8
A IMORALIDADE DOS DESENCONTROS E A ETICIDADE DOS COMPROMISSOS COMUNITARIOS Imicio Strieder * A eticidade nao se confunde com os habitos e os costumes de urn povo. A eticidatle se avalia a partir de urna postura de vida, que se manifesta no i.11terrelacionamentodos homens entre si. Tal postura, no entanto, somente tera caracteristicas eticas se existirem alguns pressupostos. E preciso que sejam dadas as condiyoes minimas para urna vida realmente hurnana. Defmir quais sao estas condiyoes minimas depende de urna antropologia, de uma antropovisao.Isto e, de uma caracterizayao teorica do homem, deseu valor, de seu sentido e de seus objetivos de vida; da compreensao que se possui do outro homem. Por natureza 0 homem nem e born, nem e mau; nem basta defmi-lo como ser racional ou irracional; como ser social ou associal. 0 homem e urn projeto que cria, no decorrer desua historia, determinadas condiyoes pelas quais se manifesta como ser etico, racional, politico; ou, ao contraio, como ser nao-etico, irracional, fechado em si. Por •lruicio Strieder e Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco.

AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

A IMORALIDADE DOS DESENCONTROS E AETICIDADE DOS COMPROMISSOS

COMUNITARIOS

Imicio Strieder *

A eticidade nao se confunde com os habitos e oscostumes de urn povo. A eticidatle se avalia a partir deurna postura de vida, que se manifesta noi.11terrelacionamentodos homens entre si. Tal postura, noentanto, somente tera caracteristicas eticas se existiremalguns pressupostos. E preciso que sejam dadas ascondiyoes minimas para urna vida realmente hurnana.Defmir quais sao estas condiyoes minimas depende deurna antropologia, de uma antropovisao. Isto e, de umacaracterizayao teorica do homem, de seu valor, de seusentido e de seus objetivos de vida; da compreensao que sepossui do outro homem.

Por natureza 0 homem nem e born, nem e mau;nem basta defmi-lo como ser racional ou irracional; comoser social ou associal. 0 homem e urn projeto que cria, nodecorrer de sua historia, determinadas condiyoes pelasquais se manifesta como ser etico, racional, politico; ou, aocontraio, como ser nao-etico, irracional, fechado em si. Por

• lruicio Strieder e Professor do Departamento de Filosofia da UniversidadeFederal de Pernambuco.

Page 2: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

isto mesmo se estuda a ontogenese da consciencia moral ese sente a necessidade da conscientiza9ao, da socializa9aoe da politiza9ao do homem. A etica de urn povo nao seelabora em gabinetes. Ela e 0 resultado da convivencia doshomens entre si, da experiencia e do exercicio daracionalidade. A eticidade e urn conjunto de valores,portanto de posturas de convivencia, que as comunidades,ou os povos, consideram como dignos de estima no seuinterrelacionamento. A eticidade se constitui a partir deurna intersubjetividade em rela9ao a estes valores.

Os pressupostos eticos nao fluem imediatamenteda razao, mas se manifestam culturalmente, na medida emque estas culturas exercitam a razao pnitica. Por isto, quemse fecha com suas categorias racionais em urn grupo devida restrito, ou nas categorias de urna classe social,assumira atitudes eticas apenas em fun9ao deste grupo oudesta classe. A eticidade universalistica e urn ideal que afuosofia propoe e persegue, porque acredita naparticipa9ao de todos os homens no logos universal. Nestesentido, as vezes, a etica e defmida teoricamente como a"casa da racionalidade". Eu prefrro dizer que 0 ethos e a"casa onde nos sentimos bem". Nao e preciso demonstrar anecessidade da etica. Ela e urn dado primario. Os homens,em qualquer situa9ao, sentem a necess~dade de assumiratitudes de vida para se sentrrem bem nointerrelacionamento com aqueles com os quaiscompartilham a sua vida. Dali surge a eticidade, que :xi~eurna certa constfulcia no comportamento. Esta constanClas,eadquire atraves de urna ascese de vida, que transformaos habitos em virtude. A eticidade, assim, se demonstra

nao como urn dado biol6gico, mas como urn dado culturalPor isto, em rela9ao aqueles que consideramos estranhos·normalmente, nao se age com categorias eticas d~amizade, confian9a, honestidade, etc... A eticidadepressupoe uma aproxima9ao dos homens entre si:aproxima9ao ideol6gica, politica, cultural, economica,religiosa, etnica... Esta aproxima9ao, quando assurnida,produz solidariedade e fratemidade, que, por sua vez,levam a objetivos e aspira90es comuns. E somente la ondese criam estruturas de aproxima9ao dos homens entre si, aeticidade se afrrma. Onde os homens permanecemestranhos entre si predominarao os preconceitos, asfraudes e os desmandos eticos em todos os sentidos. Emtal contexto nao existirao os pressupostos para urnaverdadeira eticidade.

1. 0 distanciamento dos ,homens na America Latinae as dificuldades de uma etica latino-americana

Diante do exposto acima, podemos nosperguntar por que a etica na America Latina sempre semostrou tao precaria. A partir da tese de que a etica seconstitui a partir da aproxima9ao dos homens entre si,vejamos a situa9ao dos homens neste continente. Youargumentar a partir de urna constata9aomuito concreta. Haalgum tempo organizei urn seminario sobre a realidadesocial da America Latina. Mas, antes de entrar naproblematica propriamente dita, constatei a necessidade detransmitir informa90es basicas de geografia, hist6ria,politica, economia e demografia latino-americanas, pois

Page 3: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

vanos participantes deste seminano nao se lembravamnem do nome, nem das fronteiras de grande parte dospaises latino-americanos, muito menos de outros detalhessocio-culturais. Por isto, emitir conceitos de valor sobre aAmerica Latina inclui 0 risco de estarmos avaliando algoque nao conhecemos suficienteme~t.e. Desta. forma, j~lgo, .a primeira deficiencia para urna ettcldade lat~o-~en~anase constitui, justamente, na falta de conSClenCla latmo-americana. Isto tanto nas camadas populares como naselites. Especialmente, nos, brasileiros, estamos de costaspara a America Latina. Pratic~ente nos voltamos ~a:a osEstados Unidos e a Europa. E para lei que se dmge amaioria dos nossoS avioes e navios, e e de lei queesperamos a verdadeira sabedoria. A int~gr~yao. e ~intercfunbio latino-americano, em todos os mvelS, amda emuito fragil. Por isto mesmo nao possuu.n0s. urnaconsciencia latino-americana. Nao temos urna Identtdadecerta, pois ate 0 direito de nos denominarmos de"americanos" nos tiraram. Este conceito estei reservadopara os cidadaos dos Estados Unidos. . .

Embora a America Latma esteJasignificativamente fragmentada na area politic a e c~~~,e esta fragmentayao tenda a crescer no decorrer <:ill histona,podemos falar de urna certa unidade latino-amencana. ~staunidade se deve a hist6ria comurn que det~rmmouprofundamente todas as areas da vida l~tino-ame~cana: acolonizayao. Urn colonialismo que, tragtcame~te, mterfereem todos os niveis de nossa vida. Mesm~ ~s1ID, J.>Odem~shoje ainda falar de uma unidade da Amenca Latma, POlStodas as nayoes deste continente se encontram no mesmo

120

barco do Terceiro Mundo. Vivemos sob 0 signo dosubdesenvolvimento, da-periferia do sistema capitalista, dadependencia, do autoritarismo, da marginalizayao, daimpunidade, da injustiya, da violencia, das drogas, doanalfabetismo, da divida extema e duma crescente norte-americanizayao. 0 que nos reduz praticamente a novascolonias, nurna versao modernizada. A unidade latino-americana ainda aparece quando se constata que, empraticamente todos os paises deste continente, predominaum biclassismo social vexatorio. 0 que vivemos de formadrastic a no Brasil.

A nossa sociedade esteidividida em duas classes ,separadas por urn fosso aparentemente intransponivel. Deurn lado do fosso estao aqueles que podem usufruir detodas as conquistas da vida modema. Para esta classe tantofaz que sejamos latino-americanos, europeus ou norte-americanos. Nao possui consciencia comunitana, nemuma antropologia da dignidade essencial do ser humano. Eurna classe individualista, elitana, estranha aos problemasdos concidadaos. E, por isto mesmo, sem principios eticoshumanitanos; geralmente corrupta e imoral.

Frente a esta classe, a outra, do outro lado dofosso, nao tern chances. Os seus membros san expoliados,suspeitos de bademeiros, de ignorantes e de gente que naopresta. Nao importa que comam "0 pao que 0 diaboamassou".

Nao quero aqui p·arecer maniqueista, aflfffiandoque todo mal esteja do lado da classe A, e que todo bemesteja do lado da classe C ou D. Estou apenas tentantoassinalar uma situayao historico-politico-social, a partir da

Page 4: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

qual se podeni tentar fazer urna leitura da eticidade latino-americana e, especificamente, brasileira.

Historicamente 0 colonizador veio ao Brasilcomo conquistador. 0 "penso, logo existo" de Descartesfoi transformado pelo portugues em "conquisto, logoexisto". 0 espirito que trazia os colonizadores para ca naoera a vontade de negociar e intercambiar com povosamigos, ou estabelecer-se aqui como em urna nova patria.Fundamentavam a sua rela~ao com 0 aborigene nadiferen~a, na distancia. Europeus e amerindios serelacionavam como estranhos uns aos outros. E nestasitua~ao de estranhos nao podiam nascer condi~oes paraurna convivencia etica. Pois 0 homem, como estranho, naoage eticamente. Esta e a minha tese basica a partir da qualtento fazer a leitura da eticidade dos povos e dos gruposhurnanos. 0 relacionamento etico apenas surge quandohomens se assumem como amigos, irmaos, parceiros e sepropoem objetivos associativos comuns. Fora disto naoexiste etica. Por isto encontramos etica apenas la onde sefaz urn traballho comunitario de aproxima~aodas pessoas,rompendo com as barreiras que motivam ,0 distanciamentoentre os homens. Em todos os niveis em que estas barreiraspermanecerem intransponiveis, ou nao se flZer 0 esfor~ode supera-Ias, nao se criam condi~oes para urna vidabaseada em principios eticos. Tais barreiras podem serculturais sociais economicas religt'osas, politicas, ou" ,simplesmente ideol6gicas. .

Os homens, enquanto estranhos entre si, nao saoeticos. A partir deste principio se const~. que acoloniza~ao nao podia oferecer urn substrato etlco para

122

nosso pais. Nem 0 neocolonialismo da atualidadeproporciona bases para urna estrutura etica. Oscolonizadores, e hoje os neocolonizadores, vieram e vempara ca nao para firmar alian~as de igual para igual, ouconstruir urna nova sociedade, mas para conquistar e paraexplorar. Muitas vezes eram enviadospara ca marginaisque, e de supor, nao possuiam muito senso comunitario. Esera que os "neocolonizadores" de hoje sempre saoempresarios de etica ilibada?

o distanciamento entre os donos de escravos eos escravos, entre a Casa Grande e a Senzala, revela queno sistema de escravidao nao ha chao para uma posturaetica. Escravos e donos de escravos, em diversos niveis.,permaneciam estranhos entre si. Por isto 0 seurelacionamento nao se baseava em principios eticos. Osdonos de escravos torturavam e oprimiam os escravos, e osescravos, por sua vez, tentavam fugir e burlar os seusdonos. 0 que era 16gico. Isto nao significa que naohouvesse escravos que, ap6s manipula~ao, naodefendessem seus donos ou se tomassem torturadores dospr6prios escravos. Assim como hoje ha casos de policiaisque moram na favela, mas defendem os ricos eamedrontam os favelados. Tambem nao quero aqui serentendido que defendo a ideia de que a eticidade, ou afalta de eticidade, se restringe ao esquema da luta declasses. No meu entender, a luta de classes e insuficientepara explicar a situa~ao etica de urn povo. Pois nao edificil constatar desvios eticos entre individuos da mesmaclasse. Em tempos passados dizia-se que "pobre nao roubapobre", Quem hoje conhece urn pouco do nosso mundo de

Page 5: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

miseria sabe perfeitamente que isto nao e verdade. Poroutro lado, 0 rico nao explora apenas 0 pobre, mas ha umaroubalheira generalizada tambem entre os ricos.

a que de fato impede ou deteriora a etica de urnpovo e muito mais do que a simples luta de ~l~se~.Embora neste contexto se veritiquem as mais abommavelsexplora90es do homem pelo homem. A falta de etic~ocorre em todo distanciamento das pessoas entre SI.Distanciamento que podera ser por motivos politicos,culturais, sociais, economicos, religiosos, raciais, etc...Todos estes distanciamentos terao como base urnacompreensao ideologica inadequada. E, enquanto houverindividuos ou grupos que se fecham ideologicamente, elesserao estranhos aqueles que nao seguem a mesmaideologia. E, enquanto perdurar esta situa9ao, ospressupostos para urn relacionamento etico nao existirao.Este esquema podera ser quebrado atraves do dialogo entreas partes e a vontade de rompimento das barreiras queafastam as pessoas entre si. a que se apregoava, porexemplo, no tempo das ditaduras militares n~ Brasil? ~uetodos inclusive os melhores amigos, devenam ser tldos, .como suspeitos, pois poderiam ser subversivos. E asSlffiseincentivava a deduragem. Em tal ambiente todos se tornamestranhos entre si, e como consequencia acontece 0descalabro etico. a que de fato aconteceu enmo.

Por que os portugueses, no tempo dacoloniza9ao, apregoavam que "abaixo do Equador naoexistia pecado"? Porque vinham para ca como estranhos,sem compromisso comunitario. Por isto roubavam asmulheres dos indigenas, massacravam os homens ou os

reduziam a escravidao. Acasalavam-se sem compromissode comunhao de vida. a relacionamento nao era de pessoapara pessoa, mas de dominador para dominado.

Na epoca atual do neo-colonialismo existemmuitos grupos no Brasil, e na America Latina como urntodd, "prostituindo" nossa sociedade, comprando oscorpos, ou melhor, a for9a de trabalho dos habitantesdaqui, por urn pre90 viI. Dali os salarios aviltantes dostrabalhadores brasileiros. Entre estes grupos encontramosgrande parte das multinacionais, que vem para ca, naopara contribuir no bem-estar das nossas popula90es, masporque aqui a mao-de-obra e mais barata do que nos paisesde origem. Sao, portanto, estranhos no nosso meio quequerem lucrar 0 maximo. Praticam, assim, a rapinagem e aexplora9ao, e procurarao sempre pagar 0 minimo aosoperarios, burlar ao maximo 0 tisco, subfaturar osprodutos de exporta9ao e remeter 0 maximo de dolares aoexterior, e preferivelmente de forma ilegal. Esta,certamente, e urna presen9a imoral entre nos.

Mas nao devemos ser ingenuos atribuindo todoo mal economico do Brasil e da America Latina a presen9adas multinacionais em nosso continente. A imoralidadeesta na forma como grande parte delas se encontra entrenos: sem urn compromisso comunitario efetivo. Eu naosou xenofobo. Nem sou contra a presen9a de estrangeiros,n~ de multinacionais no Brasil. Mas e preciso que sesalba que todo estrangeiro que vem para ca com a inten9aode permanecer estranho a nossa realidade, logicamente naopautara seu comportamento em principios eticos. Alemdisto, e preciso que fique claro que a deficiencia etica no

Page 6: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

Brasil e na America Latina nem sempre tern por causa 0capitalismo intemacional e as multinacionais. Certamenteha situa~oes vexatorias advindas das atitudes docapitalismo central em rela~ao ao nosso capitalismoperiferico e subdesenvolvido. Por exemplo, eu achovergonhoso que os pre~os das nossas materias primas, donosso cafe, do nosso a~ucar, da nossa soja, etc... sejamflXadosem Chicago, Washington, Londres, Paris, Toquioou Frankfurt. Sera que eles la consideram qual deveria sero pre~ojusto destes produtos para que nos pudessemos teruma vida digna, ou os criterios deles sao outros?

Mas, como disse antes, nao devemos seringenuos na analise da precariedade etica na Americ~Latina e no Brasil. Basta ler livros como "Argentina nuncamas", "Brasil nunca mais" para descobrir que nem todasas arbitrariedades, torturas e corrup~es provemdiretamente do capitalismo intemacional. Aqui mesmo,entre nos, esta a origem de muitas falcatruas eticas:imoralidade publica, desfalques na Previdencia, escandalosfmanceiros, concorrencias fraudulentas, Camara e Senadovazios, Esquema PC, CPI do or~amento, mordomias,privilegios desumanizantes, impunidade aos crimes do"colarinho branco", disparidade vergonhosa nadistribui~ao da renda, sonega~ao de impostos, comissoespara fIrmar contratos lesivos aos interesses do pais, faltade respeito aos direitos trabalhistas, analfabetismo por faltade verbas para a educa~ao, corrup~ao na policia e napolitica, especula~ao fmanceira desabusada, aumentosabusivos de pre~os, etc. Para diminuir esta desonestidade epreciso vontade e projeto politico. Pois a causa disto, e os

remedios tambem, parecem estar dentro das nossasfronteiras. Nos brasileiros somos estranhos a nos mesmos,falta-nos a consciencia de brasilidade e de comunidadenacional. Tudo indica que ainda nao superamos aconsciencia de conquistadores e de exploradores. E muitosainda alimentam urna auto-consciencia de donos deescravos. E estes se consideram nao-povo, enquantoconsideram 0 povao formado por sub-homens, gente quenao presta. E, por isto, passivel de todo tipo de explora~aoe vexame. E ha tambem aqueles que ainda possuem aconsciencia de escravos, abaixando a cabe~a diante dequalquer engravatado, confessando que nada sabem,enquanto 0 "Dr." tudo sabe. Nesta situa~ao de conscienciainfra-hurnana e de situa~ao economica de miseria naoe~istem as condi~oes humanas minimas para avaliaretIcamente0 comportamento das pessoas.

Julgo necessaria uma revolu~ao etica naAmerica Latina e, especialmente, no Brasil. Em myel deAmerica Latina isto significaria a integra~ao latino-americana, como defesa contra aqueles que vem para Cel,permanecendo estranhos entre nos e, por isto, agindounoralmente. Para melhorar a orienta~aoetica de urn povoe necessario articular conceitos como comunidadesolidariedade, fraternidade, conhecimento mutuo. Seja n~rela~ao entre os povos, como no proprio pais. Nao bastafazer campanhas e mais campanhas, como "Dia D da~duca~ao", "Crian~a Feliz", "Contra a Violencia" "PelaEtica", "Contra a Fome e a Miseria", "Adote urn ~imal",?u q~~~er coisa destas. E preciso criarmtersubJetIvldade,romper barreiras e diminuir fossos que

Page 7: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

separam os homens. E isto em todos os niveis: culturais,sociais, economicos, etc. So assim haveni posturas eticasmais proprias para a convivencia.

Muitos empresarios, e 0 capitalismo em geral,sao de opiniao que as greves nao deveriam existir, poisprejudicam demais. Estou convencido de que nao adiantadesejar que as greves diminuam, enquanto nao houver aparticipa~ao efetiva dos trabalhadores nos lucros e naadministra~ao das empresas onde trabalham. Pois, docontrario, patroes e operarios sempre se consideraraoestranhos entre si. E, de acordo com minha constata~ao,enquanto os homens permanecerem estranhos entre si, 0

seu relacionamento nao se pautara segundo principioseticos.

Na politica apenas havera etica, quando elarealmente for a administra~ao da coisa publica, e nao 0

jogo de interesses particulares. Ja Platao propunha que 0

politico, enquanto encarregado das coisas publicas, naodeveria ter nada em seu nome, do contrario confundiria osinteresses publicos com os particulares. Se aceitamos esteprincipio de Platao, explica-se muito bem a fama dedesmandos eticos dos nossos homens publicos, pois amaioria nao parece ser tao desprovida de bens particulares!

Gutro exemplo de imoralidade por causa daestranheza e do desencontro: considero grande parte doturismo estrangeiro no Brasil como imoral. De fato, amaioria dos turistas estrangeiros trazidos para ca pelapropaganda turistica, vem para 0 Brasil nao para comungarconosco a nossa vida. Permanecem totalmente estranhos agrande parte do povo brasileiro. Nao pelo fato de serem

estrangeiros, mas porque aqui vem viver uma vida que nosnao vivernos. Sao hospedados em hoteis em que a maioriado povo brasileiro nao tern condi~oes de se hospedar; acomida que cornern nao e a comida do povo; viajam peloBrasil todo com mordomias nao desfrutaveis pelospr6prios brasileiros. Assim, se cria urna situa~ao deestranhos para estranhos. E grande parte dos turistasestrangeiros, entre nos, nao prima por atitudes eticas,enquanto aqui permanece. E muitos brasileiros se julgamlegitimados em assaltar, explorar e enganar estes turistas.Nao e de estranhar que se tenha que montar urn sistemarepressivo especial para proteger as areas de hoteis quehospedam turistas estrangeiros no Brasil. Bern diferenteseria urn verdadeiro turismo. Urn turisrno etico. Para urnpais com turismo etico 0 turista'vai a fun de compartilhar avida do povo. Come a comida do povo e compartilha acultura do povo. E assim pode ter as garantiasfundamentais de que nao sera assaltado ou explorado. Emcontraposi~ao a isto a propaganda turistica do Brasil noexterior, muitas vezes, sugere aos adventicios,principalmente para 0 Carnaval, que aqui temosprostitui~ao e homossexualismo a vontade. E orgaosoficiais, juntamente com certos meios de comunica~ao,atraves de pretensas campanhas de preven~ao, induzem apopula~ao a transar a vontade, inclusive importando"camisinhas" de multinacionais e distribuindo-asgenerosamente a popula~ao, para poder "brincar" semreceio. Eo vergonhoso turismo sexual, que ate envergonhaos paises de origem dos turistas. E quando 0 turista tiverido embora ficam a aids e os ftlhos bastardos. E os dolares

Page 8: AIMORALIDADE DOSDESENCONTROS EA ETICIDADE … · istomesmo se estuda a ontogeneseda conscienciamoral e se sente a necessidade da conscientiza9ao,da socializa9ao e da politiza9ao do

deste turismo, em vez de favorecerem 0 povo brasileiro,prejudicam-no de mUltiplasformas, e terao que ser gastoscom os doentes de aids, muitas vezes vitimas inocentescontaminadas por transfusao de sangue. Quando 0 turismoe de estranhos para estranhos ele teni embutido em seubojo a imoralidade.

Conclusao

Ainda muitos exemplos poderiam ser aquiarrolados para demonstrar que a eticidade de urn povo, oude urn continente, depende da aproxima~ao das pessoasentre si e da supera~ao dos fossos que causam as rupturasnas sociedades, seja pelas disparidades economicas;sociais ou culturais. E a partir destas rupturas que, a meuver, se deve ler a crise etica da America Latina e do Brasilem especial. E preciso que todos os que buscam ahurnaniza~ao deste continente se conven~am de que aUnicasaida para a dignidade dos homens que aqui queremviver sera conseguir, dos que aqui se instalaram e seinstalam, 0 compromisso comunitario. Somente se aquelesque aqui vivem, tiverem urna consciencia e urna praxis deresponsabilidade comunitaria, poderemos ter a esperan~ade urna convivencia etica.

Este gigantesco trabalho de reconcilia~ao, deaproxima~ao dos homens entre si tera que contar com aparticipa~ao das estruturas politicas, descentralizadas, poisa supera~ao da distfulcia dos homens entre si come~arapelas pequenas comunidades, os municipios, depois osEstados e, por fIm, a nivel do Govemo central. Esta e, a

meu ver, a (mica saida para urn encaminhamento eticoadequado e urna supera~ao da crise etica. Na AmericaLatina a fIlosofIa da liberta~ao promete dar urna valiosacontribui~aona constru~aode urna etica de liberta~aoparao nosso continente.

Referencias Bibliograficas

DUSSEL, Enrique D. - Filosofia da Liberta~iio. SaoPaulo, Loyola, s. d.

- Para uma etica da liberta~iio latino-americana. Sao Paulo, Loyola, 1977, v. 2.

GALEANO, Eduardo - As veias abertas da AmericaLatina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

VARIOS - A hora da etica libertadora. Sao Paulo,Paulinas, 1985.