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1 CONTROLO JURISDICIONAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: REGRA OU EXCEPÇÃO?* José de Melo Alexandrino Introdução Teve lugar nos dias 13 a 15 de Janeiro de 2009, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, um Encontro Luso-Brasileiro de Direito 1 . No primeiro dia, dedicado ao Encontro de Direito Constitucional, numa pergunta interessada mas inocente, quis saber, junto do último painel de Professores, se havia de facto registo de uma eventual evolução 2 no problema que há alguns anos tinha levado o Professor Gomes Canotilho a falar em incomodidade (dos juristas brasileiros) e em incomunicabilidade (da doutrina portuguesa com a brasileira): o problema era o de «[alguns dos nossos colegas brasileiros estarem] firmemente convictos de que é possível e desejável a fiscalização judicial das políticas públicas» 3 . Escusado será dizer que a resposta que obtive tanto da parte brasileira como da parte portuguesa confirmou, por inteiro, tanto a incomodidade, como a incomunicabilidade. Tinha aliás nesse dia lançado os olhos sobre a recente obra, editada no Brasil, Lições de Direito Constitucional em Homenagem ao Professor Jorge Miranda, na qual justamente um administrativista (Diogo de Figueiredo Moreira Neto) e um constitucionalista (Marcelo Figueiredo) definiram o controlo judicial das políticas * Versão provisória de uma intervenção (integrada no subtema “Jurisdição, Políticas Públicas e Administração”) proferida no II Encontro de Professores de Direito Público (subordinado ao tema geral “Tribunais”), que teve lugar na Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, nos dias 16 e 17 de Janeiro de 2009 [na ocasião, a intervenção ateve-se à primeira parte]. 1 Encontro co-organizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Faculdade de Direito da Fundação Álvaro Armando Penteado, de São Paulo. 2 A pensar no possível impacto de aparentes conversões de vozes tão marcantes como as de Luís Roberto Barroso, pelo menos no que respeita às políticas de saúde [cfr. Luís Roberto Barroso, «Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial», in Revista Interesse Público, n.º 46 (2007), p. 31-62]. 3 J. J. Gomes Canotilho, «Tribunal Constitucional, jurisprudências e políticas públicas», in Anuário Português de Direito Constitucional, vol. II (2003), p. 78 [77-86].

ALEXANDRINO, José de Melo - Controle Jurisdicional de Políticas Públicas

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ALEXANDRINO, José de Melo - Controle Jurisdicional de Políticas Públicas

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    CONTROLO JURISDICIONAL DAS POLTICAS PBLICAS: REGRA OU EXCEPO?*

    Jos de Melo Alexandrino

    Introduo

    Teve lugar nos dias 13 a 15 de Janeiro de 2009, na Faculdade de Direito da

    Universidade de Lisboa, um Encontro Luso-Brasileiro de Direito1. No primeiro dia,

    dedicado ao Encontro de Direito Constitucional, numa pergunta interessada mas

    inocente, quis saber, junto do ltimo painel de Professores, se havia de facto registo de

    uma eventual evoluo2 no problema que h alguns anos tinha levado o Professor

    Gomes Canotilho a falar em incomodidade (dos juristas brasileiros) e em incomunicabilidade

    (da doutrina portuguesa com a brasileira): o problema era o de [alguns dos nossos

    colegas brasileiros estarem] firmemente convictos de que possvel e desejvel a

    fiscalizao judicial das polticas pblicas3.

    Escusado ser dizer que a resposta que obtive tanto da parte brasileira como da

    parte portuguesa confirmou, por inteiro, tanto a incomodidade, como a

    incomunicabilidade. Tinha alis nesse dia lanado os olhos sobre a recente obra, editada

    no Brasil, Lies de Direito Constitucional em Homenagem ao Professor Jorge Miranda, na qual

    justamente um administrativista (Diogo de Figueiredo Moreira Neto) e um

    constitucionalista (Marcelo Figueiredo) definiram o controlo judicial das polticas

    * Verso provisria de uma interveno (integrada no subtema Jurisdio, Polticas Pblicas e

    Administrao) proferida no II Encontro de Professores de Direito Pblico (subordinado ao tema geral Tribunais), que teve lugar na Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Catlica Portuguesa, nos dias 16 e 17 de Janeiro de 2009 [na ocasio, a interveno ateve-se primeira parte].

    1 Encontro co-organizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Faculdade de Direito da Fundao lvaro Armando Penteado, de So Paulo.

    2 A pensar no possvel impacto de aparentes converses de vozes to marcantes como as de Lus Roberto Barroso, pelo menos no que respeita s polticas de sade [cfr. Lus Roberto Barroso, Da falta de efetividade judicializao excessiva: direito sade, fornecimento gratuito de medicamentos e parmetros para a atuao judicial, in Revista Interesse Pblico, n. 46 (2007), p. 31-62].

    3 J. J. Gomes Canotilho, Tribunal Constitucional, jurisprudncias e polticas pblicas, in Anurio Portugus de Direito Constitucional, vol. II (2003), p. 78 [77-86].

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    pblicas como a prxima misso do Direito Administrativo e procuraram traar uma

    viso geral sobre o tema do controlo das polticas pblicas4.

    O propsito essencial desta minha interveno o de reunir um conjunto de

    observaes que permitam fundamentar uma resposta seguinte interrogao: deve ou

    no admitir-se como regra a possibilidade de controlo das polticas pblicas pelo poder jurisdicional

    (em particular, por intermdio do controlo de constitucionalidade)?5

    A interveno estar dividida em duas partes. A primeira ocupa-se da

    contextualizao espcio-temporal do problema, bem como da demarcao de uma das

    principais condicionantes a ter em conta, tentando ainda alguma clarificao conceptual (com a

    consequente delimitao de realidades). A segunda avana com um esboo comparativo,

    colocando em confronto as perspectivas jurdicas dominantes, mas tambm os

    resultados, presentes em trs ordenamentos: o portugus, o brasileiro e o sul-africano.

    Pensando ainda em termos de uma delimitao negativa, no estaro de facto no

    centro da anlise dimenses todavia bastante prximas do nosso problema: (i) como as

    da politizao da justia, onde existem alis investigaes particularmente aprofundadas,

    ainda que no mbito de outras reas do saber6, tanto de autores portugueses, como

    Antnio de Arajo, Pedro Magalhes7 ou Nuno Garoupa8, quanto de autores brasileiros,

    como, entre muitos outros, Ernani de Carvalho Neto9; (ii) to-pouco faro parte da

    4 Respectivamente, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Novos horizontes para o Direito

    Administrativo pelo Controle das Polticas Pblicas. Ecos de um Congresso: a prxima misso, in Maria Elizabeth Guimares Teixeira Rocha / Samantha Ribeiro Meyer-Pflug (coord.), Lies de Direito Constitucional em Homenagem ao Professor Jorge Miranda, Rio de Janeiro, 2008, p. 281-289; Marcelo Figueiredo, O controle das polticas pblicas pelo poder judicirio no Brasil Uma viso geral, ibidem, p. 571-607.

    5 Para uma interessante colocao de uma srie de correspondentes subquestes, Cass R. Sunstein, Direitos sociais e econmicos? Lies da frica do Sul, in Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Jurisdio e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II, Porto Alegre, 2006, p. 15 [11-28]; para uma interrogao paralela, agora na rea da sade pblica e com um distinto parmetro: Marco Akerman / Rosilda Mendes / Cludia Maria Bgus, possvel avaliar um imperativo tico?, in Cincias & Sade Colectiva, So Paulo, 9, 3 (2004), p. 605-615.

    6 Mas tambm na esfera jurdica [por ltimo, Jos Joaquim Gomes Canotilho, Um olhar jurdico-constitucional sobre a judiciarizao da poltica e a politicizao da justia, tpicos de uma interveno, indito, 2007, acessvel a partir de http://www.stj.pt/?idm=433&sid=154 (14.01.2009)].

    7 Em particular, desde a sua dissertao de doutoramento The Limits to Judicialization: Legislative Politics and Constitutional Review in the Iberian Democracies, Ohio, 2003.

    8 Por ltimo, veja-se o estudo, em colaborao com Sofia Amaral Garcia e Veronica Grembi, Judicial Independence and Party Politics in the Kelsenian Constitutional Courts: The Case of Portugal, in Journal of Empirical Legal Studies, 6, 2009.

    9 A comear, tambm aqui, pela referncia sua tese Reviso abstracta da legislao e judicializao da poltica no Brasil: especificidade e selectividade, So Paulo, 2005; com profundo interesse e amplas indicaes, Matthew M. Taylor, O Judicirio e as Polticas Pblicas no Brasil, in DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, vol. 50, n. 2 (2007), p. 229-257.

  • 3

    anlise as dimenses da separao de poderes10; (iii) ou as formas de controlo jurisdicional da

    actividade da administrao pblica ou do legislador (nomeadamente, por via da

    aplicao do novo regime de responsabilidade extracontratual do Estado), bem como

    das formas de controlo jurisdicional das decises inconstitucionais dos prprios

    tribunais; (iv) as dimenses relacionadas com o desenho do sistema de fiscalizao da

    constitucionalidade (onde neste momento ocorrem, entre ns, propostas de distinto sinal

    da parte de diversos autores); (v) enfim, o tratamento das sentenas intermdias da

    jurisprudncia constitucional (como eventual forma de interveno nas polticas pblicas)11.

    1. Contexto, condicionantes e clarificaes

    Numa das visitas ao escaparate dos peridicos, confrontei-me no ms passado

    com uma surpreendente comunho de temas em quatro importantes revistas de Direito

    Pblico: a revista alem Der Staat (vol. 47, n. 3, 2008) tinha nos seus primeiros ensaios

    duas anlises sobre a transformao da estatalidade (Wandel von Staatlichkeit),

    construdos a partir do desenvolvimento de programas de investigao sobre o tema da

    transformao do Estado, levados a cabo nos ltimos anos em diversas Universidades

    alems (com um magnfico ensaio crtico de partida da autoria de Gunnar Folke

    Schuppert); a revista norte-americana I.CON, International Journal of Constitutional Law

    (vol. 6, n.os 3 e 4, 2008), dedicada ao Symposium Constitucionalismo na era da

    globalizao e da privativatizao, percorria os sucessivos desafios teorticos,

    institucionais e normativos do tema, terminando na (re)anlise do problema (por Frank

    Michelman) das vias de introduo de normas de direitos sociais na Constituio dos

    E.U.A. e numa tentativa de resposta questo de saber se os direitos sociais na

    Constituio sul-africana de 1996 tm distribudo os bens que prometem; voltando

    Europa, na revista italiana Diritto e Societ (n. 2, 2008), Massimo Luciani afrontava

    corajosamente outros diro: em termos conservadores o tema Generazioni future,

    distribuzione temporale della spesa pubblica e vincoli costituzionali; por fim, a Rivista

    10 Continua a ser um clssico, entre ns, a dissertao de Nuno Piarra, A separao dos poderes como

    doutrina e como princpio constitucional Um contributo para o estudo das suas origens e evoluo, Coimbra, 1989; para uma reflexo a vrias vozes, veja-se o volume I do Anurio Portugus de Direito Constitucional (2001), p. 11-174; para um sntese mais recente, Maria Lcia Amaral, A Forma da Repblica uma introduo ao estudo do direito constitucional, Coimbra, 2005, p. 154 ss.

    11 Para um desenvolvimento, Carlos Blanco de Morais, Justia Constitucional, tomo II O contencioso constitucional portugus entre o modelo misto e a tentao do sistema de reenvio, Coimbra, 2005, p. 238-441, 815-873.

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    Trimestrale di Diritto Pubblico (n. 3, 2008), ainda que centrada nos efeitos das decises do

    Tribunal Constitucional, fazia na sua parte final o registo do debate ocorrido, em Abril

    de 2008, em torno de um livro de Marco DAlberti (Poteri pubblici, mercati e globalizzazione,

    Bologna, 2008), discusses em que intervieram nomes como os de Antonio Marzano,

    Giuliano Amato, Sabino Cassese ou Giuseppe Tesauro.

    1.1. O contexto do nosso problema est todo a: o constitucionalismo global, a

    fragmentao do Estado12, a sacralizao e a iminncia da dessacralizao do mercado

    (Giuliano Amato), a distribuio da despesa pblica, a avaliao das normas

    constitucionais que prometem a oferta de bens sociais. S que, a este contexto, por

    assim dizer, captado em termos acadmicos, veio adicionar-se nos ltimos trs meses o

    peso de outras realidades, um contexto de crise: que passou rapidamente de uma crise de

    confiana aparentemente localizada a uma crise econmica global13.

    Para observar como o presente contexto assume foros verdadeiramente paradoxais,

    basta pensar nos dois ordenamentos paradigmticos, o alemo e o norte-americano: no

    primeiro14, quando a doutrina (tanto nas Cincias sociais prximas15, como na Cincia

    do Direito) dava sinais claros de ter chegado a uma nova perspectiva da transformao

    do Estado (tendo j construdo uma srie de indicadores, tanto no plano interno, como

    no externo), com a compreenso da mudana nas tarefas do Estado, com propostas de

    novos pontos de cristalizao dessa mudana (como a ideia de co-produo da estatalidade,

    face proeminncia do trabalho em rede)16, inesperadamente, o quadro do real altera-se

    e o Estado soberano17 de novo chamado a agir (invertendo por assim dizer o percurso

    que havia sido ditado pela economicizao do sector pblico: agora o lema von

    12 Sobre a qual, entre ns, Paulo Otero, Legalidade e Administrao Pblica O sentido da vinculao

    administrativa juridicidade, Coimbra, 2003, p. 557 ss.; J. J. Gomes Canotilho, Constitucionalismo poltico e constitucionalismo societal num mundo globalizado (2005), in id., Brancosos e Interconstitucionalidade. Itinerrios dos discursos sobre a historicidade constitucional, Coimbra, 2006, p. 281-300.

    13 No caso portugus, segundo o Governo, a previso do dfice pblico, que era de 2,2% em 31 de Dezembro de 2008, passou hoje mesmo para 3,9%; segundo outras previses, tambm hoje divulgadas, o dfice estar bem acima dos 4% do PIB.

    14 Escrevendo, h quase uma dcada, sobre o paroxismo neoestatalista (que corre o risco de acentuar a introverso do Direito constitucional), J. J. Gomes Canotilho, O Direito constitucional na encruzilhada do milnio. De uma disciplina dirigente a uma disciplina dirigida (2000), in id., Brancosos e Interconstitucionalidade..., p. 194 [183-197].

    15 Veja-se o texto, com amplas indicaes, de Philipp Genschel e Stephan Leibfried, Schupperts Staat. Wie beobachtet man den Wandel einer Formidee?, in Der Staat, vol. 47, n. 3 (2008), p. 359-380.

    16 Gunnar Folke Schuppert, Was ist und wie misst man Wandel von Staatlichkeit?, in Der Staat, vol. 47, n. 3 (2008), p. 342 ss., 345 ss. [325-358].

    17 Ou sob a forma estruturada de um reinventado G-20.

  • 5

    Benchmark zu Bismarck)18; no segundo ordenamento, no s foi ressuscitado Keynes,

    como o Presidente entretanto eleito se prope avanar, entre outras, com uma improvvel

    poltica pblica de sade, entendida como direito de todos ou, pelo menos, como forma

    exigida pelo bem comum ( questo para perguntar se desta vez se trata de um regresso

    ao second Bill of Rights, de que falava Roosevelt em 1944)19.

    1.2. Mas para avanarmos no nosso tema, alm do contexto, no podemos deixar

    de ter em linha de conta pelo menos uma condicionante: a que se prende com o perfil do

    ordenamento jurdico em questo, em especial, com o perfil e com as opes

    estruturantes da Constituio20 (ainda que a mesma partida se possa mostrar um

    constituio de Estado constitucional21). H naturalmente muitas outras condicionantes,

    designadamente as que se prendem com a cultura jurdica22 ou a cultura poltica23.

    Fiquemo-nos pela primeira24.

    18 Com o dito inverso, G. F. Schuppert, Was ist und wie misst man Wandel, p. 342. Estaremos em presena de uma outra recuperao, alem por excelncia, do a priori do Estado (cfr. J.

    J. Gomes Canotilho, O Direito constitucional na encruzilhada..., p. 192)? 19 Mensagem de 11 de Janeiro de 1944: () We have accepted, so to speak, a second Bill of Rights

    under which a new basis of security and prosperity can be established for all (...). I ask the Congress to explore the means for implementing this economic bill of rights for it is definitely the responsibility of the Congress to do so (), apud Frank I. Michelman, Socioeconomic rights in constitutional law: Explaning America away, in I.CON, International Journal of Constitutional Law, vol. 6, n.os 3 e 4 (2008), p. 664 [663-686].

    20 Na Constituio da ndia, por exemplo, os direitos sociais esto previstos, mas com explcito entendimento de que o legislador, e no os tribunais, que est encarregado da respectiva implementao (cfr. C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 14).

    21 Porque se trata de um tipo-ideal [neste sentido, Peter Hberle, Neue Horizonte und Herausforderungen des Konstitutionalismus, in Europische Grundrechte-Zeitschrift, vol. 33, n.os 19-21 (2006), p. 533-540 (com base na Conferncia Novos Horizontes e novos Desafios do Constitucionalismo, Lisboa, 26 de Abril de 2006)]; sobre os princpios estruturantes da feio portuguesa desse tipo-ideal, Jorge Reis Novais, Os princpios constitucionais estruturantes da Repblica Portuguesa, Coimbra, 2004; Lcia Amaral, A Forma da Repblica..., p. 66 ss., 127 ss., 1139 ss.; em frmula de sntese, Jos de Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais Introduo geral, Estoril, 2007, p. 14, nota 13.

    22 Em especial sobre os problemas de simbolizao, Marcelo Neves, A constitucionalizao simblica, 2. ed., So Paulo, 2007; sobre o conceito prximo de normatividade no oficial, Paulo Otero, As instituies polticas e a emergncia de uma Constituio no oficial, in Anurio Portugus de Direito Constitucional, vol. 2 (2002), p. 83-116; id., Legalidade e Administrao Pblica O sentido da vinculao administrativa juridicidade, Coimbra, 2003, p. 181 ss., 424 ss., 566 ss.

    23 No Brasil, depois de um certa conteno feita sobre a Constituio dirigente, soa agora o canto das sereias da nova hermenutica e do neo-constitucionalismo (sem resultados dignos de nota, Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Polticas Pblicas, 2005, indito, disponvel em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=50 (14.01.2009).

    24 Sobre o segundo tipo de condicionantes, Lcia Amaral, A Forma da Repblica..., p. 101 s. (ditas a de pressupostos externos); M. Taylor, O Judicirio e as polticas..., p. 243 ss.; Cludio Gonalves Couto / Rogrio Bastos Arantes, Constituio, Governo e Democracia no Brasil, in Revista Brasileira de Cincias Sociais, vol. 21, n. 6 (2006), p. 42 ss. [41-62].

  • 6

    Sobre a Constituio portuguesa, todos sabemos da sua complexidade e de no se

    resumir definio de uma ordem-quadro (que deixasse tudo o mais ao livre jogo do

    debate poltico): sabemos que pelo menos numa parte relevante de certas polticas

    pblicas [a] Constituio deixava pouca liberdade de conformao ao poder poltico-

    legislativo ao consagrar os esquemas organizativos e funcionais de realizao das

    polticas (direito sade realizado atravs de um servio nacional de sade universal e

    gratuito, direito ao ensino mediante uma poltica de democratizao do ensino baseada

    na gratuitidade progressiva dos vrios graus de ensino, direito segurana social com

    base num sistema nacional e unificado de segurana social)25; sabemos portanto que, ao

    lado das normas de fins e tarefas do Estado e de numerosos direitos fundamentais

    sociais, foram configuradas no patamar da norma constitucional certas polticas

    pblicas, como forma suplementar de concretizao do bem-estar26.

    Segundo clculos feitos por cientistas polticos brasileiros (utilizando critrios e

    metodologias de anlise que poderemos ou no aceitar), 30,5% das disposies da

    Constituio federal de 1988 versam sobre polticas pblicas (policy), ocupando a matria

    constitucional os outros 69,5%27.

    Embora sejam francamente em menor nmero os dispositivos constitucionais

    portugueses sobre polticas pblicas e no dispondo ns de uma contabilidade

    similarmente avaliada, sem prejuzo de ajustamentos ditados pela diferente realidade de

    base, h pelo menos trs efeitos que decorrem imediatamente dessa constitucionalizao:

    (i) uma poltica pblica constitucionalmente concretizada constitui um

    impedimento margem de natural e desejvel variao quanto ao

    contedo e s formas de execuo das opes polticas (opes

    pressupostas pelo sistema democrtico e pela prpria ideia de

    alternncia)28, alm de implicar um Estado soberano que j no existe29

    (afastando-se desta forma dos renovados desafios da modernidade30);

    (ii) [a] constitucionalizao de polticas pblicas faz com que os sucessivos

    governantes se vejam diante da necessidade de modificar o ordenamento

    25 G. Canotilho, Tribunal Constitucional, Jurisprudncias..., p. 84. 26 Sobre as diversas formas de concretizao jurdica do bem-estar, Paulo Otero, Instituies Polticas e

    Constitucionais, vol. I, Coimbra, 2007, p. 344 s. 27 C. Couto / R. Arantes, Constituio, Governo..., p. 53. 28 Claro a este respeito, J. J. Gomes Canotilho, O tom e o dom na teoria jurdico-constitucional dos

    direitos fundamentais (1996), in id., Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra, 2004, p. 130 ss. [115-136].

    29 G. Canotilho, O tom e o dom..., p. 131. 30 Para um elenco possvel, J. J. Gomes Canotilho, Da Constituio dirigente ao Direito

    comunitrio dirigente (1999), in id., Brancosos e interconstitucionalidade..., p. 215 ss. [205-226].

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    constitucional para poder implementar parte das suas plataformas de

    governo31;

    (iii) em terceiro lugar, [e]sse tipo especial de Constituio tende a causar

    impacto significativo sobre o funcionamento do sistema de justia, na

    medida em que o Judicirio (...) passa a ser mais solicitado para controlar a

    constitucionalidade das leis e dos demais actos normativos32.

    Estes trs efeitos esto amplamente demonstrados no caso brasileiro33: por

    exemplo, de 1995 a 2002, durante a presidncia de Fernando Henrique Cardoso foram

    aprovadas 35 emendas constitucionais, com uma taxa de incidncia sobre polticas

    pblicas superior a 60%34 a verificao do segundo efeito comprova automaticamente

    o primeiro (o impedimento da actividade governativa); que o poder judicial tem sido

    solicitado a esto a prov-lo a doutrina e a jurisprudncia35.

    Quanto a Portugal, o frenesim36 (agora acompanhado do nosso ostinatismo)37

    constitucional est plenamente demonstrado e a contabilidade at pode ser confrontada

    com a brasileira: se no Brasil tem havido, em mdia, mais de trs emendas

    constitucionais por ano38, em Portugal, distribuindo os mais de 700 preceitos objecto de

    reviso, a mdia a de que tm sido alterados mais de 20 dispositivos constitucionais

    por ano.

    J na frica do Sul, nem uma coisa, nem a outra: nem houve configurao

    constitucional de polticas pblicas (sem que deixe de ser, como tem sido qualificada,

    uma constituio transformativa39), nem h revisionismo constitucional; todavia, aos

    31 C. Couto / R. Arantes, Constituio, Governo..., p. 43. 32 C. Couto / R. Arantes, Constituio, Governo..., p. 44. 33 C. Couto / R. Arantes, Constituio, Governo..., p. 42-58. 34 C. Couto / R. Arantes, Constituio, Governo..., p. 432. 35 Com apontamentos relevantes, L. Roberto Barroso, Da falta de efectividade..., p. 32 ss.; M.

    Figueiredo, O Controle das Polticas..., p. 572 ss. 36 Jorge Miranda, Acabar com o Frenesim Constitucional, in AAVV, Nos 25 Anos da Constituio da

    Repblica Portuguesa de 1976 Evoluo constitucional e perspectivas futuras, Lisboa, 2001, p. 653-662; P. Otero, Legalidade e Administrao..., p. 569; Jos de Melo Alexandrino, A estruturao do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituio portuguesa, vol. I Razes e contexto, Coimbra, 2006, p. 833 ss.; id., Reforma constitucional lies do constitucionalismo portugus, in AAVV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Martim de Albuquerque [no prelo], lio proferida em Luanda, 2007, disponvel em http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/AlexandrinoJosedeMelo2.pdf (14.01 .2009).

    37 Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950), Lisboa, 1995, p. 46 ss.; M. Alexandrino, Reforma constitucional..., p. 14 (com outras indicaes).

    38 C. Couto / R. Arantes, [sumrio] Constituio, Governo..., p. 220. 39 C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 15.

  • 8

    tribunais que tem sido solicitado o controlo de polticas sociais implcitas40 nos artigos

    26. a 29. da Constituio41.

    1.3. Alm do contexto e das condicionantes, teremos de olhar tambm para outras

    dificuldades, de que a maior o prprio conceito de polticas pblicas, muito raramente

    definido pelos juristas e, quando o , poucas vezes se poder dizer que os juristas

    saibam do que falam: estamos na verdade no, h muito denunciado, reino da

    metodologia fuzzy42: para dar um exemplo, os juristas definem as polticas pblicas

    como [u]m conjunto heterogneo de medidas e decises tomadas por todos aqueles

    obrigados pelo Direito a atender ou realizar um fim ou uma meta conso[n]ante com o

    interesse pblico43.

    Ora, as polticas pblicas no nasceram na rbita da Cincia do Direito, nem so

    por ela estudadas de forma impressiva44. Da a necessidade de ir ao stio prprio.

    40 Sobre esta implicao, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 7. ed.,

    Coimbra, 2003, p. 407; R. Novais, Os princpios constitucionais..., p. 312 ss.; Jos de Melo Alexandrino, A estruturao do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituio portuguesa, vol. II A construo dogmtica, Coimbra, 2006, p. 225, 250.

    41 Pierre De Vos, Pious Wishes or Directly Enforceable Human Rights? Social and Economic Rights in South Africas 1996 Constitution, in South African Journal on Human Rights, 13 (1997), p. 67-101; C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos, p. 17 ss.; Dennis M. Davis, Socioeconomic rights: Do they deliver the goods?, in I.CON, International Journal of Constitutional Law, vol. 6, n.os 3 e 4 (2008), p. 687-711.

    42 J. J. Gomes Canotilho, Metodologia fuzzy e camalees normativos na problemtica actual dos direitos econmicos, sociais e culturais (1998), in id., Estudos sobre direitos fundamentais, p. 97-114.

    43 M. Figueiredo, O controle das polticas pblicas..., p. 581; como exemplo de uma obra onde se tenta um esforo de conceptualizao jurdica, Maria Paula Dallari Bucci, Direito Administrativo e Polticas Pblicas, So Paulo, 2002.

    44 A frase do texto verdadeira em geral, mas no o inteiramente no Brasil nem, ainda que em escala distinta, na restante Amrica do Sul; com feito, no Brasil, se bem que a produo cientfica dominante sobre polticas pblicas esteja centrada nas reas da cincia poltica, da sociologia e da economia, h um volume considervel de investigaes e estudos jurdicos sobre o tema, razo pela qual a perspectiva jurdica se entremostra como uma das quatro ou cinco reas primrias de anlise desse objecto; diversamente, na Europa ocidental ou na Amrica do Norte, e naturalmente em Portugal, pode afirmar-se que a anlise jurdica das polticas pblicas no tem uma expresso visvel como rea disciplinar.

    Para uma nota de algumas obras de cunho jurdico mais recentes, no Brasil, Marcus Aurlo de Freitas Barros, Miradas sobre o controle jurisdicional de polticas pblicas: dos precedentes judiciais teoria (2004), paper acessvel em http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/miradas.pdf (14.01.2009); Amrico Bed Freire Jnior, O Controle Judicial de Polticas Pblicas, So Paulo, 2005; Thiago Lima Breus, Polticas Pblicas no Estado Constitucional: a problemtica da concretizao dos direitos fundamentais pela administrao pblica brasileira contempornea, dissertao [j editada em livro], Curitiba, 2006, acessvel em http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/5703/1/t.PDF (14.01.2009); Maria Paula Dallari Bucci (org.), Polticas Pblicas - Reflexes Sobre o Conceito Jurdico, So Paulo, 2006; Jean Carlos Dias, O Controle Judicial de Polticas Pblicas, So Paulo, 2007; Cristiana Fortini / Maria Tereza Fonseca Dias/ Jlio Csar dos Santos Esteves, Polticas Pblicas - Possibilidades e Limites, Belo Horizonte, 2008; Lus Manuel Fonseca Pires, Controle judicial da discricionariedade administrativa: dos conceitos jurdicos indeterminados s polticas pblicas, Rio de Janeiro, 2009 [a estas ltimas obras no tivemos acesso].

  • 9

    Qual o stio prprio? o das cincias sociais a que pertencem os fundadores e

    as reas do conhecimento onde, com integridade, se tenham realizado os avanos mais

    aprofundados nesse domnio do saber.

    Vou cingir-me a algumas notas, de aprendiz naif:

    (i) sem prejuzo do reconhecimento de que se trata de um campo multidisciplinar

    (implicando disciplinas to distintas como a Sociologia, a Cincia poltica, a

    Economia, mas tambm a Antropologia, a Geografia, a Gesto, etc.)45, parece

    suficientemente consolidada a ideia de que as polticas pblicas constituem

    uma subrea da Cincia poltica46;

    (ii) tendo como pais fundadores H. Laswell, H. Simon, Lindblom e D. Easton47 e

    emergindo em meados do sculo XX, uma das definies mais simples e

    persuasivas de poltica pblica talvez seja a de Thomas Dye, que a entende

    como [o] que o governo pode ou no fazer48; acompanhando nesta parte a

    investigadora da Universidade da Bahia (Celina Souza), o conceito releva dos

    seguintes elementos principais:

    a poltica pblica permite distinguir entre o que o governo pretende fazer

    e o que, de facto, faz;

    a poltica pblica envolve mltiplos actores e nveis de deciso, embora

    seja materializada atravs dos governos;

    a poltica pblica abrangente e no se limita a leis e regras;

    a poltica pblica corresponde a uma aco intencional, com objectivos a

    serem alcanados;

    a poltica pblica uma aco que visa o longo prazo;

    J em Portugal, a recente obra, do Professor Joaquim Manuel Croca Caeiro, Polticas pblicas, polticas

    sociais e Estado Providncia: Uma introduo, Lisboa, 2008, ou a de Eduardo Ral Lopes Rodrigues, Polticas pblicas de promoo da concorrncia, Lisboa, 2008, bem como a generalidade dos trabalhos desenvolvidos em diversos centros de investigao (nomeadamente no Minho e em Lisboa) situam-se todos nas reas da Economia, da Gesto, da Cincia Poltica, da Sociologia ou da Administrao Pblica.

    45 Celina Souza, Polticas Pblicas: uma reviso da literatura, in Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16 (2006), p. 25 [20-45], num texto de sntese de grande qualidade, para onde remetemos em geral.

    46 C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 22; Andrei Pittol Trevisan / Hans Michael van Bellen, Avaliao de polticas pblicas: uma reviso terica de um campo em construo, in Revista de Administrao Pblica, Rio de Janeiro, 42, 3 (2008), p. 531 [529-550].

    47 C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 23. 48 Thomas D. Dye, Understanding Public Policy (1984), citado por Celina Souza, Polticas Pblicas...,

    p. 24.

  • 10

    a poltica pblica envolve processos subsequentes respectiva definio,

    implicando tambm implementao, execuo e avaliao49.

    (iii) Ao nvel terminolgico, nomeadamente com base nos recursos da lngua

    inglesa (que se serve dos termos polity, politics e policy), poderamos talvez tentar

    fazer-lhe corresponder expresses portuguesas50, sendo que apenas o ltimo

    termo policy ou public policy corresponde ao conceito de polticas pblicas;

    (iv) Sendo muitos os modelos tericos e empricos de formulao e anlise das

    polticas pblicas51, destes breves apontamentos conceptuais poderemos

    retirar algumas ilaes relevantes: (1.) no h equivalncia entre polticas

    pblicas e polticas sociais, uma vez que estas so uma pequena parte daquelas;

    (2.) no h equivalncia entre polticas pblicas e concretizao dos direitos

    fundamentais sociais, uma vez que essa tarefa apenas componente, explcita

    ou implcita, de uma ou de vrias polticas pblicas; (3.) no h equivalncia

    entre polticas pblicas e a ideia (lanada por Peter Hberle em 1972) de uma

    poltica de direitos fundamentais, ideia que, bem vistas as coisas, nunca teve um

    contedo preciso; (4.) sobretudo no h equivalncia entre polticas pblicas e

    direitos sociais, uma vez que estes, ao contrrio daquelas, so normas ou

    pressupem sempre normas.

    1.4. Por fim, conta de apontamento suplementar, teramos ainda de ter em

    considerao pelo menos dois aspectos: o mbito espacial das polticas pblicas e a

    considerao das mesmas como processo (o ciclo da poltica pblica).

    a) Quanto ao mbito espacial, as polticas pblicas podem ter mbito universal

    (so disso exemplo maior os Objectivos do Milnio52), nacional (por regra, quando

    se fala em polticas pblicas, est-se pensar no mbito nacional), regional (trata-se de

    um nvel espacial de deciso cada vez mais importante, sobretudo no plano dos

    Estados membros da Unio Europeia) ou municipal (no cabe dvida de que os

    entes territoriais locais so estruturas do poder poltico, cuja autonomia de

    49 C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 36 s. 50 Descrendo dessa possibilidade, C. Couto / R. Arantes, Constituio, Governo..., p. 46 ss.;

    sugerindo significados distintos (dos apontados por estes autores), para os equivalentes termos ingleses, C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 40.

    51 Para uma sntese de oito modelos formulados nos ltimos 50 anos, C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 28 ss.

    52 Para informao sobre a Declarao do Milnio e os seus diversos objectivos sectoriais, http://www.undp.org/mdg/basics.shtml (14.01.2009).

  • 11

    orientao lhes permite uma margem de indirizzo na modelao das polticas

    pblicas locais, alis em crescente articulao e coordenao com os nveis regional

    e nacional); isto, sem esquecer que, no espao da Unio Europeia e at do

    Conselho da Europa, se deve ainda falar de um mbito supranacional.

    Em cada um destes mbitos variam naturalmente as entidades e as estruturas

    montadas para o desempenho de cada tarefa, dentro de cada uma das fases

    relevantes do ciclo53, bem como a prpria natureza dos actos nele sucessivamente

    implicados: por exemplo, no plano universal, se a funo de legislador cabe aos

    tratados multilaterais gerais e a de administrao geral compete s diversas estruturas

    especializadas das Naes Unidas, no h nenhum tribunal que possa promover

    um controlo da execuo das polticas pblicas a esse nvel, razo pela qual em

    bom rigor, nesse mbito, o nosso problema no chega a colocar-se54.

    b) Quanto ao ciclo da poltica pblica (policy cicle), os estudos sociolgicos e

    politolgicos, nomeadamente o modelo do processo incremental (iniciado com

    Charles E. Lindblom)55, costumam definir uma srie de estgios, nomeadamente os

    seguintes quatro momentos: o da deciso, o da elaborao, o da implementao e o

    da avaliao.

    Em termos das coordenadas do trabalho jurdico, talvez plausvel identificar a

    fase da definio (ou formulao), da implementao (ou execuo) e do controlo56. Em

    cada uma dessas subfases intervm metodologias de anlise, intervenientes e

    parmetros necessariamente diferentes, devendo a Cincia do Direito saber articular

    os conhecimentos e os modelos de anlise colhidos junto das reas disciplinares

    primrias.

    53 Sobre o papel dos governos e de outros participantes, C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 26 s. 54 No entanto, para um efeito argumentativo relevante, no plano interno, M. Alexandrino, Direitos

    Fundamentais..., p. 148. 55 Sobre o qual, C. Souza, Polticas Pblicas..., p. 29 s. A primeira fase (a que, no texto, chamamos da deciso), segundo este modelo, subdividida em:

    definio da agenda, identificao de alternativas, avaliao das opes e seleco das opes. 56 Nas Cincias sociais, o conceito de avaliao tem um perfil prprio (v. g., A. Trevisan / H. van

    Bellen, Avaliao de polticas pblicas..., p. 535 ss., com indicaes), que no se confunde nem sobrepe com a ideia de controlo presente na generalidade dos estudos jurdicos (v. g., A. Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo..., p. 14 ss.; M. Barros, Miradas sobre o controle jurisdicional..., p. 20 ss.; Th. Breus, Polticas Pblicas no Estado Constitucional..., p. 188 ss.; D. Moreira Neto, Novos Horizontes..., p. 281 ss., 286 ss.).

  • 12

    2. Um esboo comparativo: das perspectivas dominantes aos resultados

    Em breve exerccio comparativo, procuraremos (i) confrontar a perspectiva

    dominante de resposta interrogao inicial e, aproveitando a recente divulgao do

    relatrio anual da Human Rights Watch (World Report 2009)57, (ii) expor tambm alguns

    dados concretos (procurando dessa forma uma eventual linha de sintonia com a perspectiva

    dominante encontrada).

    2.1. Quanto perspectiva dominante de resposta nossa interrogao, captada a partir

    do perfil da jurisprudncia (constitucional e ordinria) e da doutrina, comeamos pelo

    ordenamento portugus.

    a) Em Portugal, tanto a jurisprudncia58 como a doutrina59 (e at o legislador)60

    cedo deixaram de acreditar na exequibilidade da metanarrativa constitucional61, a tal

    ponto de se ter perdido (ou transformado) pelo caminho o elemento transformador

    presente no texto inicial62.

    Na sntese do Professor Gomes Canotilho, [o] Tribunal Constitucional, ao

    discutir temas to politicamente sensveis como o das taxas moderadoras dos

    servios de sade, o da actualizao de propinas do ensino superior, o da

    liberalizao do comrcio farmacutico, nunca passou dos direitos s polticas. Por

    mais que fosse evidente que law is politics e law is economics e que as normas de direitos

    sociais, econmicos e culturais traziam acoplados direitos sociais e polticas pblicas, o

    problema era sempre o de conformao, modelao e restrio normativa de

    direitos fundamentais e no o de controlo de polticas pblicas concretizadoras

    57 Acessvel em http://www.hrw.org/world-report-2009 (15.01.2009). 58 M. Alexandrino, A estruturao do sistema..., II, p. 594 ss., com amplas indicaes. 59 M. Alexandrino, A estruturao do sistema..., II, p. 241 ss. 60 Como, para no ir mais longe, se pde verificar, na recente reforma do Cdigo do Trabalho

    promovida pelo XVII Governo Constitucional contando j a a censura unnime (do nico preceito requerido pelo Presidente da Repblica) do Tribunal Constitucional (no acrdo n. 632/2008, in Dirio da Repblica, 1. srie, de 9 de Janeiro de 2009, p. 161-169).

    61 O ano de viragem decisivo na doutrina foi certamente o ano de 1994, ano em que o Professor Gomes Canotilho, numa marcante conferncia proferida no Instituto Pimenta Bueno de So Paulo, procedeu a uma reviso da doutrina do dirigismo constitucional (dando mais tarde origem ao clebre texto Rever ou romper com a Constituio dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo, agora na sua obra Brancosos e interconstitucionalidade..., p. 101-129), reviso qual dedicou uma srie impressionante de notveis regressos apesar de, segundo nos parece, essas peregrinaes no terem tido uma idntica nfase na magistral obra Direito Constitucional e Teoria da Constituio (salvo talvez na parte da teoria da constituio).

    62 M. Alexandrino, A estruturao do sistema..., I, p. 283, nota 773, 735, 831 ss.

  • 13

    desses direitos63 para tal, fez uso de uma verdadeira ars judicandi, atravs da qual

    foi definida a medida jurdico-constitucional do racionamento [dos servios e dos

    bens]64. Ainda assim, no plano do constitucionalismo europeu, no deixa de ser

    sintomtico que, na recente obra Les grandes dcisions des cours constitutionnelles

    europennes, seja ainda o Tribunal Constitucional portugus o que mais destaca dois

    leading cases em matria de direitos fundamentais sociais (e das correspondentes

    polticas pblicas: de segurana social e de habitao)65.

    Quanto jurisdio ordinria, apesar de inexistncia de estudos de recorte

    sistemtico sobre a matria, dificilmente a concluso poderia ser diferente. Pelo

    contrrio: se h alguma interferncia significativa, com algum impacto no momento

    da (re)definio de polticas pblicas, ela ocorre apenas por via do dilogo entre o

    Tribunal Constitucional, o legislador de reviso e o legislador ordinrio66. De resto,

    mesmo em matrias que contendem com polticas mais prximas do ncleo

    axiolgico da Constituio (como o caso da matria da interrupo voluntria da

    gravidez), a jurisprudncia constitucional tem sido pautada por um evidente self-

    restraint67.

    Em suma, no ordenamento portugus, a perspectiva dominante a do

    reconhecimento da regra de que no compete aos tribunais a concretizao poltica

    da Constituio por maioria de razo, to-pouco lhes compete o controlo de

    polticas pblicas no impostas pela Constituio.

    Porm, a no-admisso de uma regra de controlo jurisdicional das polticas pblicas, no

    significa: (i) que, na presena de um parmetro jurdico adequado (seja na base da lei,

    seja na base dos efeitos de proteco de normas de direitos fundamentais ou de

    outros princpios ou regras constitucionais)68, os tribunais no estejam habilitados,

    63 G. Canotilho, Tribunal Constitucional, Jurisprudncias..., p. 84. 64 G. Canotilho, Tribunal Constitucional, Jurisprudncias..., p. 85. Num outro texto, o Professor Gomes Canotilho chamara ao processo que levou a este desenlace a

    caminho da des-introverso e da subsidiariedade (cfr. Metodologia fuzzy..., p. 112). 65 Acrdos n.os 509/2002 e 590/2004 [cfr. Jorge Miranda / Jos M. Alexandrino, Tribunal

    constitutionnel portugais, in Pierre Bon / Didier Maus (dir.), Les grandes dcisions des cours constitutionnelles europennes, Paris, 2008, p. 173 ss., 339 ss.].

    66 Com diversos apontamentos relativos a essa interaco, M. Alexandrino, A estruturao do sistema..., I, p. 641 ss., 706 ss., 769 ss.; para um confronto com o nvel de interaco que , na realidade, muito mais do que isso do Supremo Tribunal Federal, no Brasil, M. Taylor, O Judicirio e as polticas..., p. 235 ss.

    67 Logo de incio, J. J. Gomes Canotilho, Direito, direitos, Tribunal, tribunais, in AAVV, Portugal O sistema poltico e constitucional, Lisboa, 1989, p. 901-912; por ltimo, J. Miranda / M. Alexandrino, Tribunal constitutionnel portugais, p. 207 ss.

    68 O princpio da proibio do retrocesso, enquanto tal, no constitui um parmetro adequado de controlo (por ltimo, M. Alexandrino, Direitos Fundamentais..., p. 148; Jorge Miranda, Manual de Direito

  • 14

    sem com isso interferirem na esfera prpria das funes poltica e legislativa, a

    apreciar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de um acto ou omisso relevantes

    no ciclo de uma poltica pblica; (ii) que no seja possvel, sobretudo com recurso

    ao instrumentrio do Direito administrativo, vir a acolher futuros novos parmetros de

    controlo, capazes de atender a novas exigncias colocadas pela transparncia, pela

    eficincia, pela prestao de contas ou, mesmo, pela exigncia de fundamentao

    das prioridades69; (iv) ou que no haja zonas especialmente problemticas (nomeadamente

    as que se situam na articulao entre a Administrao e os partidos)70, podendo

    inclusivamente dar-se o caso de polticas privadas (como, pode ser o caso, na rea

    do marketing poltico) estarem a ser promovidas, directa ou indirectamente, com

    dinheiros pblicos (e como se fossem polticas pblicas).

    b) Tudo se passa diversamente no Brasil. Em primeiro lugar, a crena na

    Constituio dirigente no foi aparentemente abalada junto da sociedade, nem junto

    da generalidade dos actores polticos. Em segundo lugar, com maior ou menor grau

    de prudncia e sinceridade71, a doutrina e a jurisprudncia ainda dominantes

    parecem no ver nenhum obstculo srio na admisso de uma regra a favor do controlo

    jurisdicional das polticas pblicas.

    Aparentemente, na base desse resultado estaria a fora da judicial review, no

    quadro daquilo que vem sendo designado de neo-constitucionalismo ou de Direito

    constitucional ps-moderno72; semelhante quadro envolveria, como premissas

    doutrinrias, a reconstruo da efectividade das normas constitucionais, a teoria dos

    princpios, a nova hermenutica, o recurso ponderao de bens e a redefinio do

    papel do poder judicirio e, como instrumentos de aco, o reforo do controlo da

    constitucionalidade e a utilizao efectiva, tambm nesse plano, de toda a panplia

    de meios processuais disponveis no ordenamento brasileiro (desde a aco civil

    pblica at ao mandato de injuno, passando pelas diversas aces

    constitucionais)73.

    Constitucional, tomo IV Direitos Fundamentais, 4. ed., Coimbra, 2008, p. 435 ss.; J. Miranda / M. Alexandrino, Tribunal constitutionnel portugais, p. 343).

    69 C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 25. 70 Jorge Miranda, Diviso do poder e partidos polticos, in Anurio Portugus de Direito Constitucional,

    vol. I (2001), p. 53, 56 ss. [51-59]. 71 Sobre a necessidade de um modicum de sinceridade e de prudncia neste domnio, F. Michelman,

    Socioeconomic rights..., p. 668. 72 D. Moreira Neto, Novos horizontes..., p. 282. 73 M. Figueiredo, O controle das polticas..., p. 575 s.

  • 15

    Na realidade, no se deve excluir a explicao ligada indiferenciao de

    sistemas funcionais (poltico, econmico, social, jurdico74)75 e sobreposio do

    sistema poltico sobre o jurdico (com alopoiese deste)76; estamos aqui na presena de

    uma expresso daquilo que foi designado de modernidade perifrica (Marcelo Neves)77.

    Como escreve Gomes Canotilho, [o]nde no h (ainda) diferenciao de sistemas, a

    poltica da sociedade dificilmente se poder limitar a decises polticas

    quimicamente puras78.

    No final, pensamos todavia que o mbito e a natureza do controlo jurisdicional

    sobre as polticas pblicas levado a cabo no Brasil ficam aqum das declaraes:

    porque, em mltiplos casos, o parmetro de controlo uma norma constitucional

    de contedo determinado (como so as normas de direitos originrios a

    prestaes)79; porque, noutros casos, correndo embora o risco da rigidez, a

    Constituio imps aos vrios entes de governo territorial a aplicao de uma

    percentagem mnima de receita dos impostos80; por outro, no improvvel o

    aperfeioamento de um parmetro que possa ter em conta o resultado final

    esperado da actuao estatal81 caso para observar com ateno a experincia

    italiana posterior a 2001 (e a aplicao concreta da frmula das prestaes

    essenciais) e, no menos, a formidvel experincia sul-africana.

    c) Relativamente frica do Sul, talvez o primeiro aspecto a realar resida na

    observao de que o Direito constitucional deste pas, nestes ltimos quinze anos,

    parece ter dado um contributo maior projeco cientfica e moral dos direitos

    sociais no mundo anglo-saxnico (e, da, na literatura jurdica em geral) do que meio

    sculo de constitucionalismo social europeu no seu todo.

    74 Por sua vez, no ocorre sequer suficiente diferenciao dentro de cada um destes subsistemas

    funcionais (M. Neves, A Constitucionalizao..., p. 79 s., 143 s., 145 s.). 75 Por ltimo, J. J. Gomes Canotilho, Estado ps-moderno e Constituio sem sujeito (2003), in

    id., Brancosos e interconstitucionalidade..., p. 152 [131-162]. 76 M. Neves, A Constitucionalizao..., p. 140 ss., 148 ss. 77 M. Neves, A Constitucionalizao..., p. 170 ss.; ainda sobre a especificidade do contexto latino-

    americano, M. Taylor, O Judicirio e as polticas..., p. 229. 78 G. Canotilho, Estado ps-moderno..., p. 153. 79 Para um exemplo, M. Figueiredo, O controle das polticas..., p. 572 (o caso, apreciado em 1998,

    da falta de 500 vagas numa escola de ensino fundamental, na cidade de Rio Claro). 80 Sobre o ponto, A. Paula Barcellos, Neoconstitucionalismo..., p. 17. 81 A. Paula Barcellos, Neoconstitucionalismo..., p. 19.

  • 16

    E h razes para isso, alm das bvias (lngua e famlia jurdica). Em primeiro

    lugar, como j referimos, porque a opo82 pela constitucionalizao de alguns

    direitos sociais no foi acompanhada pela concreta configurao das polticas

    pblicas correspondentes83. Pelo contrrio, os artigos 26., n. 2, e 27., n. 2, da

    Constituio no deixam de referir expressamente o seguinte: The state must take

    reasonable legislative and other measures, within its available resources, to achieve

    the progressive realization of this right84; paralelamente a este triplo

    reconhecimento (obrigao do legislador democrtico, segundo uma pauta de

    razoabilidade, disponibilidade de recursos e realizao progressiva), o constituinte estatuiu

    um conjunto de garantias concretas imediatamente exigveis (como as que decorrem

    do n. 3 de cada um desses dois artigos), ou seja, definiu um conjunto de direitos

    essenciais nesses domnios. Ora, perante problemas graves de pobreza e excluso

    social, foi ao poder judicial que as comunidades e os grupos mais desfavorecidos se

    dirigiram, reclamando a satisfao dos direitos correspondentes. Como reagiram os

    tribunais a esses pedidos?

    A abordagem aos direitos fundamentais sociais feita pelo Tribunal

    Constitucional conta j com uma srie de decises relevantes, das quais o leading case

    continua a ser o caso Grootboom85 (Government of the Republic of South Africa and

    Others v Grootboom and Others)86, de 4 de Outubro de 2000, em matria do direito

    habitao87; em deciso unnime, o Tribunal recorreu ao teste das medidas razoveis

    (reasonable measures test): o Estado tem de demonstrar que tomou as medidas razoveis

    para assegurar o programa de realizao do direito88 (tem por isso de demonstrar

    que pelo menos fez algum esforo para cumprir com o nvel mnimo das

    82 Opo que tem razes num debate que precedeu a queda do regime do apartheid (cfr. D. Davis,

    Socioeconomic rights..., p. 687-689). 83 Para uma viso geral, Jrg Lcke, Die Entstehung der neuen sdafrikanischen Verfassung, in

    JR, 47 (1999), p. 467-502. 84 Sobre esta forma, C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 15. 85 Salientando o carcter de deciso extraordinria talvez at com uma alguma injustia, pelo

    menos em relao a certas sentenas do Tribunal Constitucional italiano , Cass Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 12, 17. 19; sobre o contexto da deciso, o seu contedo e significado, ibidem, p. 17-28; D. Davis, Socioeconomic rights..., p. 692 ss., 696 ss., 699 ss.

    86 Texto integral acessvel em http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2000/19.html (15.01.2009). 87 Entre as decises recenseadas por Dennis Davis, salientam-se as seguintes: Soobramoney of Heath

    KwaZulu Natal (1997), texto acessvel em http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/1997/17.html (15.01.2009), Minister of Health v Treatment Action Campaign (2002), texto acessvel em http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2002/16.html (15.01.2009); numa segunda fase, Khosa v Minister of Social Development (2004), acessvel em http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2004/11.html (15.01.2009), e Rail Commuters Action Group and Others v Transnet Ltd t/a Metrorail and Others (acrdo de 26 de Novembro de 2004).

    88 C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 21.

  • 17

    correspondentes obrigaes)89; no caso concreto, o Tribunal Constitucional

    entendeu que, por falta de um programa capaz de garantir pelo menos um alvio

    temporrio para a situao daquelas 900 pessoas que no tinham nenhum lugar

    onde viver, os direitos constitucionais dos requerentes tinham sido violados90.

    Seguindo um padro, de incio, tmido e, numa segunda fase, centrado no

    critrio da razoabilidade e, na fase mais recente, na invocao da norma de

    dignidade da pessoa humana, fazendo nossa a sntese de Dennis Davis, [o] registo

    da jurisprudncia sul-africana em matria de direitos sociais documenta a

    importncia de se atingir a implementao dos princpios crticos da transparncia,

    da prestao de contas (accountability) e da participao91.

    Por seu lado, os tribunais ordinrios, mesmo nas instncias superiores,

    parecem dar sinais de conceder um padro mais elevado de proteco s garantias

    constitucionais de direitos sociais (o que se revela, por exemplo, no prprio caso

    Grootboom, mas tambm em decises mais recentes)92 .

    Segundo Dennis Davis, no final, a experincia sul-africana93: (i) adverte-nos

    para o facto de a organizao poltica continuar a ser o principal instrumento para

    assegurar as diferentes decises de distribuio a favor dos pessoas mais vulnerveis

    da sociedade; (ii) confirma que os juzes, mesmo quando dispem de textos

    progressistas, continuam a preferir modelos de deciso baseados nas tradies

    jurdicas precedentes (reduzindo com isso o potencial do texto constitucional); (iii)

    comprova que no deixa de ser uma tarefa difcil convencer os juristas acerca da

    imbricao profunda do Direito com os processos polticos e econmicos da

    sociedade; (iv) em todo o caso, revela tambm que os mais desfavorecidos

    conseguiram impor aos decisores polticos transparncia e accountability94.

    89 D. Davis, Socioeconomic rights..., p. 694 (com outras indicaes). 90 C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 19. 91 D. Davis, Socioeconomic rights..., p. 710. 92 C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 19; HRW, World Report 2009, p. 119. 93 Na avaliao de Cass Sunstein, feita na base do caso Grootboom, o Tribunal no criou um direito

    habitao imediatamente exigvel: [c]riou o direito a um programa coerente e coordenado destinado a atender determinao constitucional (cfr. C. Sunstein, Direitos sociais e econmicos..., p. 22); ainda segundo o autor, o Tribunal Constitucional revela sensatez (ibidem, p. 27), uma vez que consegue assegurar a proteco dos direitos sociais [e] fazer isso sem colocar um peso indevido na rbita judicial (ibidem, p. 28); por fim, o caso revela ainda que o Tribunal Constitucional utiliza um modelo de Direito administrativo (e no de Direito constitucional), ligado a toda a srie de princpios de Direito administrativo que orienta o controlo jurisdicional contra as inaces das entidades administrativas (ibidem, p. 25, 26).

    94 D. Davis, Socioeconomic rights..., p. 711.

  • 18

    Em suma, na frica do Sul, apesar da existncia de algumas vozes crticas na

    doutrina (com destaque para Sandra Liebenberg95 e para as posies defendidas por

    amicus curiae junto do Tribunal Constitucional), [e]m face dos constrangimentos

    histricos e culturais subsistentes, h uma clara conscincia do largo caminho a

    percorrer para se atingir a dignidade, igualdade e liberdade para todos96; por tudo

    isso, o controlo jurisdicional das polticas pblicas no pode tomar-se como regra.

    2.2. Quanto comparao pelos resultados, pesem as reservas de que so naturalmente

    passveis documentos desse tipo, parece ser possvel identificar um conjunto de dados

    objectivveis no Relatrio da Human Rights Watch (HRW) relativo a acontecimentos de

    200897.

    a) Tal como vem sucedendo nos ltimos anos, no h no Relatrio da HRW

    informao especfica relativamente a Portugal98. Ainda assim, e como a Unio

    Europeia aparece tambm num bloco nico99, podem ser extensveis a Portugal pelo

    menos algumas das observaes respeitantes ao tratamento dado aos imigrantes na

    Unio Europeia e falta de clara orientao pelos direitos humanos das leis e das

    polticas de imigrao algo que corresponde a um padro de anlise a cujas

    concluses mostrmos adeso recente100.

    b) Quanto situao brasileira, o Relatrio da HRW comea por esta sntese:

    Diante de uma crise de segurana pblica com altas taxas de crimes violentos,

    algumas foras policiais brasileiras se engajam em prticas abusivas em vez de

    adoptarem polticas apropriadas de policiamento. As condies de deteno no pas

    so desumanas. A tortura continua sendo um problema grave. O trabalho forado

    persiste em alguns Estados, apesar de esforos do governo federal para erradic-lo.

    95 D. Davis, Socioeconomic rights..., p. 706, nota 58. 96 D. Davis, Socioeconomic rights..., p. 706. 97 Temos recorrido a esse tipo de informao, para efeitos circunscritos e, tal como aqui, como puro

    instrumento auxiliar (cfr. M. Alexandrino, A estruturao do sistema..., I, p. 138 s., nota 125; id., Direitos Fundamentais..., p. 10, nota 1).

    98 O mesmo no sucede com os relatrios da Freedom House, pelo menos nos relativos aos anos mais recentes disponveis (como os de 2007 ou 2008).

    99 HRW, World Report 2009, p. 359-374. 100 Jos de Melo Alexandrino, A nova lei de entrada, permanncia, sada e afastamento de

    estrangeiros, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. 49 (2008), texto acessvel em http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/AlexandrinoJosedeMelo3.pdf (14.01 .2009); id, Migraes, in Notcias - Amnistia Internacional, srie V (2008), p. 17.

  • 19

    Povos indgenas e trabalhadores sem terra enfrentam ameaas e violncia em

    conflitos rurais relativos distribuio da terra101.

    c) Por fim, quanto situao sul-africana, o Relatrio da HRW diz na sua

    sntese inicial: Poverty, unemployment, gender-based and xenophobic violence,

    and crime remain significant barriers to the enjoyment of human rights; the

    governments commitment to address them is inadequate. Vulnerable groups and

    NGOs are increasingly using the courts to establish the principle of progressive

    realization of socioeconomic rights as stipulated in the constitution102.

    Curiosamente, porm (ao contrrio do que sucede no Brasil, onde esse aspecto

    no merece salincia), tal como nos anos precedentes, o Relatrio salienta as

    decises dos tribunais superiores em matrias como as do acesso gua103,

    habitao e sade (no deixando de referir a adopo do plano governamental

    para a habitao Breaking New Ground).

    101 HRW, World Report 2009, p. 160-165. O relatrio especifica depois dados como os seguintes: 50 000 homicdios ocorrem anualmente no

    Brasil; a violncia policial responsvel por um em cada 5 homicdios dolosos; segundo o Relator Especial da ONU sobre Execues Extrajudiciais Sumrias ou Arbitrrias, as megaoperaes so homicidas e contraproducentes; a Comisso Parlamentar de Inqurito ao sistema prisional, em Julho de 2008, demonstrou que a tortura, os espancamentos e os abusos so um problema grave no Brasil (em Janeiro de 2008, 119 presas estariam mantidas numa cela parcialmente descoberta e construda para abrigar 12 pessoas na cadeia de Monte Mor em So Paulo e [s]egundo relatos, quatro detentas estavam grvidas e uma delas permaneceu na cela por dois dias com o seu recm-nascido aps dar luz); a lentido do sistema judicirio contribui para a superlotao (segundo as estatsticas oficiais, a populao prisional chegou a 440 000 presos, dos quais 43% aguardam julgamento); num presdio do estado da Rondnia, apesar das medidas provisrias decretadas desde 2002 pelo Tribunal Interamericano de Direitos do Homem, mais de 100 prisioneiros tero sido mortos desde ento, tendo o Procurador-Geral da Repblica pedido a interveno federal.

    102 Na pgina 161 do relatrio de 2008, escrevia-se: [e]mergindo de uma histria de desigualdade racial institucionalizada, a frica do Sul fez progressos admirveis em transformar o Estado e a sociedade, de modo a garantir o respeito pelos direitos fundamentais, incluindo a liberdade de expresso, um sistema judicirio independente e eleies livres e justas. No entanto, a pobreza generalizada, o desemprego, a persistncia de nveis elevados de criminalidade violenta e a desigualdade entre homens e mulheres continuam a inibir o pleno gozo dos direitos humanos.

    103 esse o caso do reconhecimento pela High Court, em Abril de 2008, comunidade Phiri (contra a Cidade de Joanesburgo) do direito gua para as comunidades pobres, ordenando Cidade o livre fornecimento de 50 litros de gua por dia a cada pessoa, decidindo que 25 litros de gua por dia eram insuficientes, particularmente para as pessoas doentes com HIV/SIDA (cfr. HRW, World Report 2009, p. 119).