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Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, nº 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pág.133 O Discurso da Ordem A composição da imagem do menor Gutember Gutember Gutember Gutember Gutemberg Alexandrino Rodrigues g Alexandrino Rodrigues g Alexandrino Rodrigues g Alexandrino Rodrigues g Alexandrino Rodrigues Doutorando em História Social pela USP O s nomes absorvem para sem- pre a imagem que formamos das coisas. Este poder de de- calque dos nomes, como demonstrou Marcel Proust, 1 advém da pintura obtu- sa que muitas vezes os nomes apresen- tam das coisas. Como resultado da singularidade discursiva, as imagens se transformam em máscaras, não mais ocultando pseudo-identidades, antes revelando, por meio de reflexos distorcidos, os traços inexoráveis de pessoas concretas, que vivendo no cotidiano, dissimulam apenas o quanto é conveniente. Tal alusão tor- na-se latente quando lembramos a ori- gem da palavra máscara, que em grego significa “persona” ou “personagem”. Maria Luiza Tucci Carneiro ao discutir metodologicamente a questão da polissemia dos discursos lembra-nos que a força das imagens não se encontra na veracidade dos fatos que elas ten- tam representar e sim na capacidade que têm de interferir no comportamen- to humano, gerando sentimentos e ati- tudes de medo, repulsa, ódio, inveja, submissão, adoração, entre outros. 2 Partimos dos discursos enquanto moda- lidades que buscam representar a reali- dade social, pois, ordenam, classificam e representam o universo de inserção de um determinado grupo, legitimando em alguns casos, a ação de entidades institucionalizadoras, como, por exem- plo, os presídios, os manicômios e enti-

O Discurso Da Ordem Gutemberg Alexandrino Rodrigues

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Sobre gestão de ilegalismos

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  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.133

    R V O

    O Discurso da OrdemA composio da imagem

    do menor

    GutemberGutemberGutemberGutemberGutemberg Alexandrino Rodriguesg Alexandrino Rodriguesg Alexandrino Rodriguesg Alexandrino Rodriguesg Alexandrino RodriguesDoutorando em Histria Social pela USP

    Os nomes absorvem para sem-

    pre a imagem que formamos

    das coisas. Este poder de de-

    calque dos nomes, como demonstrou

    Marcel Proust,1 advm da pintura obtu-

    sa que muitas vezes os nomes apresen-

    tam das coisas.

    Como resu l tado da s ingu la r idade

    discursiva, as imagens se transformam

    em mscaras , no mais ocu l tando

    pseudo-identidades, antes revelando, por

    meio de reflexos distorcidos, os traos

    inexorveis de pessoas concretas, que

    vivendo no cotidiano, dissimulam apenas

    o quanto conveniente. Tal aluso tor-

    na-se latente quando lembramos a ori-

    gem da palavra mscara, que em grego

    significa persona ou personagem.

    Maria Luiza Tucci Carneiro ao discutir

    metodo log icamente a ques to da

    polissemia dos discursos lembra-nos que

    a fora das imagens no se encontra

    na veracidade dos fatos que elas ten-

    tam representar e sim na capacidade

    que tm de interferir no comportamen-

    to humano, gerando sentimentos e ati-

    tudes de medo, repulsa, dio, inveja,

    submisso, adorao, entre outros.2

    Partimos dos discursos enquanto moda-

    lidades que buscam representar a reali-

    dade social, pois, ordenam, classificam

    e representam o universo de insero de

    um determinado grupo, legitimando em

    alguns casos, a ao de ent idades

    institucionalizadoras, como, por exem-

    plo, os presdios, os manicmios e enti-

  • pg.134, jan/jun 2002

    A C E

    dades concebidas como reeducacionais,

    particularmente a Fundao Estadual do

    Bem-Estar do Menor (FEBEM-SP).

    Erwing Goffman concebe tais instituies

    como totais, pois exercem um controle

    absoluto sobre as pessoas a elas desti-

    nadas.3 Foucault denomina tais institui-

    es como completas e austeras, exer-

    cendo o mximo de controle e vigiln-

    cia, disciplinando cada um de seus mem-

    bros. Internamente o poder se encontra

    di ludo pelo espao, operando na

    transversalidade das relaes: todos con-

    trolam os indivduos a eles encarregados,

    max imizando a e f icc ia do poder

    institucional. Se para Goffman ocorre

    uma mutilao do eu diluindo a indivi-

    dualidade do interno, para Foucault ocor-

    re o aparecimento dos corpos dceis,

    controlados, vigiados e punidos.4

    Entendemos institucionalizao como

    um conjunto de padres que foram cria-

    dos ao longo do tempo, abrangendo di-

    versas instncias discursivas: o olhar de

    quem fala, como fala e por que fala; a

    situao do interno que se torna objeto

    a ser analisado e enquadrado em locali-

    dades previamente construdas. Enquan-

    to objeto, o interno no tem nenhum di-

    reito: cada gesto, cada ato, confirma a

    necessidade da sua excluso social. No

    tecido social, a institucionalizao deli-

    mita as fronteiras entre o normal e o

    patolgico, o doente e o saudvel.5

    O mapeamento de diversas instncias

    discursivas discursos jurdicos, mdi-

    cos, psiquitricos e sociolgicos possi-

    bilita a compreenso do tipo de imagem

    que ao longo do sculo XX, sobretudo

    nas dcadas de 1960 e 1970, foi sendo

    construda em torno de crianas e ado-

    lescentes pobres da sociedade.

    Por outro lado, coloca em cena a repre-

    sentao desta imagem para o imagin-

    rio social e coletivo, bem como para pr-

    ticas de excluso que este segmento so-

    cial vivenciou como fruto da polissemia

    discursiva.

    O excludo, como sustenta Mart ine

    Xiberras, acaba sendo rejeitado para fora

    de todos os espaos, tanto dos merca-

    dos materiais quanto dos simblicos.

    Surgem como o outro que deve ser man-

    tido distncia, no compartilhando com

    os valores socialmente aceitos.6

    A questo da espacialidade torna-se ca-

    pilar em uma sociedade excludente e

    autoritria, erguendo fronteiras entre o

    normal e o patolgico, o saudvel e o

    doente. Cria-se, portanto, a lgica da vi-

    sibilidade, da disciplina e seu corolrio,

    o da segregao social.

    Autores como Guillermo ODonnell, Pau-

    lo Srgio Pinheiro e Marilena Chau afir-

    mam que o autoritarismo um dado his-

    trico constante na sociedade brasilei-

    ra. Para ODonnell, o autoritarismo foi

    socialmente implantado ao longo da for-

    mao histrica, delineando a dicotomia

    entre dominantes e dominados: senho-

    res escravos, industriais, proprietrios

    de terras e no proprietrios.7

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.135

    R V O

    Na mesma linha que ODonnell, Paulo

    Sr g io P inhe i ro a tes ta que o

    autoritarismo, no Brasil, socialmente

    existente, caracterizando-se por diversas

    polaridades, delimitando fronteiras, ex-

    cluindo grande parcela da populao por

    meio da suspeio e mecanismo de con-

    troles correcionais dos quais a priso, os

    manicmios e os reformatrios se encar-

    regam de classificar os indivduos em ci-

    dados e no cidados.8

    A questo da cidadania tambm se en-

    contra presente nas discusses de

    Marilena Chau, apontando-a como privi-

    lgio de poucos. O autoritarismo con-

    cebido pela autora como um grande

    referencial para pensarmos as relaes

    entre o Estado e a sociedade civil.9

    Tanto Pinheiro quanto Chau observam

    que o autoritarismo, como dado histri-

    co da sociedade brasileira acabou se

    acentuando com o golpe de 1964, para-

    doxalmente batizado com o nome de re-

    voluo.

    A imagem da criana abandonada, infra-

    tora e delinqente teve como sustent-

    culo inmeros artigos da revista Brasil

    Jovem, criada em 1967 para divulgar as

    obras da Fundao Nacional do Bem-Es-

    tar do Menor (FUNABEM) que, por meio

    de inmeros colaboradores, compuse-

    ram um quadro sobre as d iversas

    tipologias do abandono e da delinqn-

    cia. Este quadro encontrou ainda respal-

    do no interior dos pronturios da FEBEM-

    SP. Nos pronturios, os discursos mdi-

    cos e jurdicos tentaram diagnosticar

    muito mais que o corpo, e sim a alma

    dos internos.

    A histria da criana no Brasil, como lem-

    bra Mary Lucy Del Priori,10 se fez som-

    bra dos adultos, tornando-se objeto pri-

    vilegiado dos pais, clrigos, mestres, se-

    nhores, juristas, mdicos e toda uma

    categoria de profissionais que, aos pou-

    cos, reservaram para as crianas o mun-

    do do silncio. Seus gestos, jogos, brin-

    cadeiras, atitudes, pulsaes e compor-

    tamentos foram, paulatinamente, tornan-

    do-se anlises de diversos saberes: o

    olhar do adulto sempre conferiu legiti-

    midade s inmeras aes para que a so-

    ciedade, ao longo da histria, determi-

    nasse o local a ser ocupado pelas crian-

    as . Se a h is t r ia das c r ianas

    emblemtica da postura excludente da

    sociedade brasileira, torna-se muito mais

    complexa quando analisamos a histria

    das crianas e dos jovens oriundos das

    camadas mais pobres da sociedade que,

    vivendo margem do sistema, despon-

    tam tal Hrcules Quasmodo, isto ,

    como personagens monstruosas, disse-

    minando o medo e a desconfiana. A

    estas personagens no faltaram no inte-

    rior da prpria sociedade aqueles que

    defenderam o combate, e no limite do

    possvel, a exterminao.

    A histria, como Loreley,11 exerce um

    fascnio a todo esprito que se prope a

    contempl-la, seduzindo no pelo canto,

    mas pela magia da palavra. Palavra que

    inventa a si mesma, o mundo represen-

    tando o desenrolar das experincias vi-

  • pg.136, jan/jun 2002

    A C E

    vidas, assim como assegurando a circu-

    lao das foras entre o domnio do vis-

    vel e recompondo, no fluxo temporal, as

    trajetrias dos homens enquanto sujei-

    tos histricos.

    A documentao existente no Brasil so-

    bre a temtica da menoridade pode ser

    v i s ta , em la r ga esca la , como um

    referencial de que o autoritarismo per-

    passa todas as esferas da sociedade,

    sobretudo na articulao dos inmeros

    discursos produzidos.

    Podemos dizer com Jacques Le Goff que

    todo documento um monumento, e

    como tal nunca puramente objetivo, na

    medida em que previamente construdo

    e arquitetado com interesses de deter-

    minados grupos, apresentando parado-

    xos e antteses. Desta forma deve ser

    analisado, descosturado e desmontado.12

    Seguindo o raciocnio de Le Goff e ten-

    do como pressuposto terico as inme-

    ras an l i ses d iscurs ivas de Miche l

    Foucault, podemos dizer que os discur-

    sos, produzidos por determinadas insti-

    tuies, so monumentos, tendo dispo-

    sio prpria, condies de existncias

    e atuaes prticas.13

    O que importa mostrar que no se

    tem por um lado discursos inertes; e

    por outro a existncia de um sujeito

    todo poderoso que os manipula, os

    transforma, os renova; sim que os su-

    jeitos que produzem discursos formam

    parte de um campo discursivo; que ali

    tem suas possibilidades e suas funes

    (possibilidades de mutao funcional).

    O discurso um espao de posies e

    de funcionamentos diferenciados para

    os sujeitos.14

    Para Foucault o discurso aparece como

    acontecimento, carregando as condies

    de produtividade e guardando em seu

    interior a potencializao dos dispositi-

    vos de vigilncia,15 o esquadrinhamento

    do corpo e da alma daqueles os quais

    so encarregados. Cria-se por meio dos

    discursos inmeros saberes, que aplica-

    dos objetivamente sob o estatuto da ci-

    ncia, da razo e da objetividade, leva

    ao confinamento os loucos, os presos e

    todos os indivduos tidos como anormais

    e desviantes. Enfim, conseguem estabe-

    lecer a dicotomia normal/anormal, so/

    patolgico.

    Dentro de seu mtodo de an l ise ,

    Foucault se preocupa em investigar como

    e por que os discursos so produzidos,

    quais as formas de apropriao deles,

    que indivduos, que grupo, que classes

    tm acessos a determinados tipos de dis-

    cursos e quais seus limites.16

    Ao determinar as condies de produti-

    vidade, o autor busca tornar visvel o

    que s visvel por estar demasiado na

    superfcie das coisas.17 Encontramos

    nesta busca da superfcie, s vezes con-

    fusa e contraditria, o bvio, e como lem-

    bra Clarice Lispector, o bvio a verda-

    de mais difcil de se enxergar.

    As contribuies de Foucault so impor-

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.137

    R V O

    tantes, na medida em que o discurso

    no o lugar de uma tbula rasa onde

    se depositam passivamente certos obje-

    tos previamente constitudos, definindo-

    se pela capacidade de articulao de ob-

    jetos heterogneos.18

    Ana l i sa r fo r maes d iscurs ivas ,

    posit iv idades, e o saber que lhes

    correspondem, no assinar formas de

    cientificidade, recorrer a um campo

    de determinaes histricas que deve

    dar conta, em sua apario, sua per-

    manncia, sua transformao, e che-

    gado o caso seu eclipse.19

    As dimenses dos discursos encontra-

    das, explcitas e implicitamente nos re-

    gistros da FEBEM, ajudam, em parte, a

    recompor as condies de existncia de

    parcela da populao brasileira: como

    produtores de eventos e dando horizon-

    te s suas anlises, tais discursos funci-

    onam como catalisadores da imagem

    conferida s crianas e aos adolescen-

    tes que subitamente apareceram como

    o outro, ou estrangeiros dentro do pr-

    prio territrio brasileiro.

    Sustenta Paul Ricouer que todo texto

    manifesta um mundo permeado de ten-

    ses, rupturas e permanncias, carregan-

    do sua temporalidade:

    No h inteno oculta a ser procura-

    da detrs do texto, mas um mundo a

    ser manifestado atrs dele. Ora, esse

    poder do texto de abrir uma dimenso

    da realidade comporta, em seu princ-

    pio mesmo, um recurso contra toda

    realidade dada e, dessa forma, a pos-

    sibilidade de uma crtica real.20

    Para o autor, o discurso um evento,

    sendo, antes de tudo, realizado tempo-

    ralmente e no presente.21 O discurso,

    como produtor de eventos, vincula-se

    pessoa que fala e, por isso, congrega em

    si uma pluralidade de tempos histricos,

    carregando as marcas da temporalidade,

    seus agentes e objetividades. O evento

    consiste no fato de algum falar, de al-

    gum se exprimir tomando a palavra.22

    O discurso, como lembra o autor, sem-

    pre discurso de algo, refere-se a um mun-

    do que tenta exprimir e representar. Por

    outro lado, ele tem a eficcia da persua-

    so e determina o territrio pelo qual as

    personagens devem se posicionar. Ins-

    creve-se no fluxo de prticas realizadas

    constantemente, estabelecendo normas

    e padres que vo ao encontro do direi-

    to, da legitimidade e da soberania, num

    elo de coexistncias bipolares ou, como

    salienta Foucault, cria uma economia

    poltica da verdade.23

    O discurso possui no somente o mun-

    do, mas o outro, outra pessoa, um

    interlocutor ao qual se dirige: o evento

    o fenmeno temporal da troca, o esta-

    belecimento do dilogo, que pode tra-

    var-se, prolongar-se ou interromper-se.24

    A anlise empreendida pelos colabora-

    dores da revista Brasil Jovem estabele-

    ce uma tipologia do desvio e da delin-

    qncia. Parte-se da premissa de que a

    inexistncia de condies materiais (po-

    breza e seus corolrios) contribui dire-

  • pg.138, jan/jun 2002

    A C E

    tamente para o aparecimento do aban-

    dono. Geralmente, a causalidade do fe-

    nmeno existente explicitada a partir

    do mundo dos setores pobres da socie-

    dade, vistos enquanto desviantes. No se

    questiona o sistema sociopoltico e cul-

    tural, no qual esto inseridos. Procuram-

    se explicitaes residuais no universo

    material e simblico dos indivduos.

    A anlise dos documentos deve sair da

    superfcie e registrar que as condies

    materiais e institucionais criadas por

    meio da articulao dos discursos, men-

    sagens e representaes funcionam

    como alegorias que simulam a estrutura

    real de relaes sociais, legitimando,

    como afirma Pierre Bourdieu, uma ordem

    arbitrria em que se funda o sistema de

    dominao vigente.25

    Ao problematizarmos a criao da ima-

    gem do menor, no podemos perder de

    vista as correlaes simblicas efeitos

    e prticas de poder, ao e correlao

    do saber, excluso material e simblica

    e materiais subjacentes a vrias cate-

    gorias que em determinado momento his-

    trico se articularam.

    Dentro de uma anlise funcionalista, des-

    ponta o pensamento do professor de so-

    ciologia Jos Cavalieri, segundo o qual

    os fatores responsveis pelo aparecimen-

    to dos menores infratores esto direta-

    mente ligados pobreza e a precrias

    condies habitacionais, destacando os

    cortios e o mundo da rua deletrio por

    natureza. O limite entre o mundo da rua

    e da marginalidade tnue, de acordo

    com o pensamento do socilogo.

    As menores transviadas e os menores

    infratores derivam dos cortios (...). Na

    rua, coabitada por indivduos sem ne-

    nhuma ndole, foco de prostituio e

    marginalizao, os menores adquirem

    vcios e hbitos perniciosos: furtos,

    uso de entorpecentes, perverses.

    Atrados pelo submundo, resvalam-se

    e so arrastados ao crime (...).26

    Geralmente nos discursos, as habitaes

    precrias aparecem como metfora da

    degenerao social. O mundo da favela

    visto como germe do problema social,

    locais infectos de irregularidades.

    A rua, de acordo com os idelogos, fun-

    ciona como a continuao do mundo

    desordenado das favelas e dos cortios.

    Mundo do caos e da desintegrao mo-

    ral e social, despontando, no dizer do ju-

    rista Lauro Barreira, a irresponsabilidade

    e a misria; local isento de educao e

    condies de existncia. Segundo o ju-

    rista, os filhos concebidos dentro des-

    tas moradias so fracos, condenados

    inflexvel lei da seleo natural.27

    Nestas duas dimenses, temos a met-

    fora da desintegrao do mundo orgni-

    co, concebido pelos idelogos, como cor-

    po poltico da nao, em oposio ao

    mundo ordenado de coeso e estabilida-

    de social.

    Para Georges Balandier, a metfora cor-

    poral traduz a lgica do ser vivo em lgi-

    ca social. Seguindo seu raciocnio, a so-

    ciedade passa a ser concebida por meio

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.139

    R V O

    de um grupo mantenedor do poder pol-

    tico, como corpo orgnico, cujos tecidos,

    rgos e membros funcionam como um

    todo ordenado.28 O descompasso de um

    ou de vrios rgos levaria ao caos soci-

    al. Torna-se necessrio diagnosticar as

    parte infectas irradiadoras de molstias.

    A doena assume no interior do discur-

    so poltico, afirma Susan Sontag, uma no-

    o de represso, concebida no como

    castigo, mas como manifestao do mal,

    de algo que tem que ser punido.29

    A sociedade concebida como corpo

    doente, tanto fsico quanto moralmente.

    Diversos males, sustenta a estudante

    universitria Leonora Farias Neves da

    Costa, comprometiam s bases da soci-

    edade. Dentro de uma lgica estritamen-

    te moral so apontados como graves pro-

    blemas:

    A realidade atual do menor bem mais

    aterradora que a explorao do menor

    nos primrdios da revoluo industri-

    al, pois, agora, j no s a sade fsi-

    ca do menor que se v agredida, mas

    existe ameaa atual e iminente sua

    prpria moral, comprometendo as pr-

    prias bases da sociedade, pelo aumen-

    to indiscriminado da criminalidade, da

    toxicomania, do meretrcio e da ho-

    mossexualidade. O abandono do me-

    nor ter, como seqncia inevitvel, a

    destruio da sociedade organizada

    com retorno ao obscurantismo e

    barbrie.30

    Houve, ainda, uma juno entre os dis-

    cursos dos colaboradores da revista que

    trataram da problemtica dos menores

    abandonados, com os artigos que se de-

    bruaram sobre os casos de conduta anti-

    sociais, ou seja, os infratores e os delin-

    qentes. Ambos partiam dos mesmos

    pressupostos, vistos como causadores da

    situao analisada: industrializao, ur-

    banizao, no-integrao de parcela da

    populao, condies precrias de mo-

    radia, higiene e alimentao. No entan-

    to, enquanto parte dos colaboradores

    partia de pressupostos sociolgicos, ou-

    tra categoria de idelogos procurou bus-

    car nas cincias jurdicas e/ou mdica a

    validao de suas teses eminentemente

    excludentes e moralistas. Se o primeiro

    grupo tentou investigar a gnesis do

    abandono, o segundo, legitimando-se

    num saber tcnico ou cientfico esqua-

    drinhou os vetores, considerados por

    eles fundamentais para se conceber a

    delinqncia, enquanto desvio de perso-

    nalidade, em alguns casos de psicopa-

    tas, completando o ciclo entre um e ou-

    tro grupo.

    Mrio Moura Rezende, juiz de Joo Pes-

    soa, ao apontar as causas da delinqn-

    cia juvenil, fala das transformaes s-

    cio-econmicas pelas quais passou a so-

    ciedade brasileira. A passagem de uma

    economia rural para uma industrial e co-

    mercial apontada como divisor para

    explicar a delinqncia. Seguindo seu

    raciocnio, a transformao atraiu para

    os centros urbanos todos componentes

    vlidos. A partir disso explica o apare-

    cimento de duas categorias: na primei-

  • pg.140, jan/jun 2002

    A C E

    ra, apontaria o grupo do qual participa-

    vam os indivduos honestos que, por

    meio de seu trabalho, conseguiram ven-

    cer; outros por inaptido ou falta de

    sorte nada conseguiram, mas, nem por

    isso regressaram ao campo; preferiram

    ficar habitando mseros mocambos nos

    arredores das cidades, vivendo de expe-

    dientes. Finaliza o autor que a sorte dos

    filhos desses homens estava selada, pois

    j que no dispunham de meios para

    satisfazer seus mais elementares dese-

    jos, terminam praticando os primeiros

    furtos e da por diante tem mais um de-

    linqente.31

    Mais uma vez o jurista focaliza o proble-

    ma, vinculando-o dentro do contexto s-

    cio-econmico no qual a transformao

    da economia rural e urbana responderia,

    em pr imeira instncia , aos fa tores

    precpuos da marginalizao do menor,

    encontrando na delinqncia juvenil seu

    ltimo estgio. Porm, esta perturbaria

    toda a sociedade, apresentada como im-

    potente diante do nascimento dos cha-

    mados infratores.

    A maioria da populao no compre-

    ende essas verdades e por isso culpa

    as autoridades por no destrurem ou

    no manterem na priso os pequenos

    delinqentes. Esta indignao j con-

    taminou todas as camadas sociais,

    transformando-se numa verdadeira re-

    vo l ta cont ra a ex is tnc ia desses

    desajustados, principalmente porque

    alguns deles j chegaram a matar. Mas,

    voltando ao tema dos delinqentes,

    aqui no nordeste o caso est tomando

    as propores de verdadeira calamida-

    de pblica. Os comerciantes vivem

    aterrorizados com esses pequenos

    monstros. Enquanto isso, no dispo-

    mos de estabelecimentos de reeduca-

    o adequados para intern-los.32

    Pelo uso dos adjetivos imputados aos

    menores, como, por exemplo, pequenos

    delinqentes, desajustados, pequenos

    monstros, observamos como o discur-

    so constri a imagem do infrator como

    elemento de alta periculosidade. O res-

    tante da sociedade aparece como impo-

    tente d iante da s i tuao. Temos a

    verticalizao da prtica discursiva exi-

    gindo uma postura dos rgos competen-

    tes, isto , de se criar estabelecimentos

    de reeducao para intern-los.

    De acordo com um artigo intitulado In-

    vestigao Criminolgica,33 o Cdigo de

    Menores, datado de 1927, no atendia

    mais s necessidades do Brasil atual. O

    novo cdigo iria se preocupar em preve-

    nir e descobrir as causas da delinqn-

    cia do abandono dos menores e proteg-

    los antes que se tornem infratores.

    Necessitamos de uma justia criminal

    especializada, incluindo os organismos

    policiais. Necessitamos de uma justi-

    a criminal mais rpida. Necessitamos

    que o Brasil participe mais ativamente

    dos trabalhos das Naes Unidas sobre

    preveno contra o crime e tratamen-

    to de criminosos. Necessitamos corri-

    gir as distores da legislao penal

    por meio de uma adequada poltica cri-

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.141

    R V O

    mina l , com a inves t i gao

    criminolgica para obteno de uma

    melhor defesa social.34

    O artigo, acima, preconiza a preveno

    do crime como forma de combater a de-

    linqncia, assim como o prprio delin-

    qente. O uso abusivo do verbo neces-

    sitar, em primeira pessoa do plural, re-

    mete a necessidade de se criar uma jus-

    tia criminal mais eficiente, bem como

    uma interveno direta do governo nos

    crimes civis.

    Nesta mesma linhagem, alguns artigos

    preconizavam a reestruturao do Cdi-

    go de Menores, de 1927, e uma das ino-

    vaes, no dizer de vrios juristas, de-

    veria perpassar pela interveno do cri-

    me cometido pelo menor.

    No dizer do jor nal is ta Gumercindo

    Fleury, uma vez que os menores so ins-

    trudos sobre a proteo que a menori-

    dade lhes d, tornam-se indiferentes e

    por isso mais perigosos.

    Todas as medidas que a polcia vem

    tomando para conter essas gangues

    que se tornam cada vez mais sinistras,

    esbarram com bices intransponveis,

    dos quais o principal , sem dvida, a

    pouca idade dos criminosos. Estes, per-

    feitamente instrudos sobre a proteo

    que a menoridade lhes d perante a lei,

    tornam-se indiferentes e cnicos e, por

    isso mesmo, ainda mais perigosos.35

    Os menores so apresentados pelo ju-

    rista como delinqentes, viciosos, inici-

    ados no crime, usurios de txicos.

    Os paulistanos esto realmente preo-

    cupados com essa onda interminvel

    de assaltos propriedade particular e

    a transeuntes. O grande exrcito an-

    nimo, que representado pela polcia

    civil, em permanente viglia, multipli-

    ca seus esforos para conter a onda de

    delinqentes que invadiu a cidade. So

    Paulo uma capital do trabalho. Aqui,

    noite e dia, os homens constroem,

    buscando o seu conforto e o da fam-

    lia, a prpria grandeza do Brasil. Certo

    que no oferecemos condies, ape-

    sar de sermos quase seis milhes de

    habitantes, para incentivar proezas dos

    que se colocam margem da lei. Na

    verdade os que delinqem no so in-

    divduos calejados no crime, marginais

    facilmente identificveis, pelos agen-

    tes de segurana, pelos seus gestos e

    pela sua linguagem moldada no hbi-

    to da gria. Compreendo as tremendas

    dificuldades com que lidam os inspe-

    tores para apanhar os fora da lei por-

    que todos os assaltos verificados em

    So Paulo nos ltimos anos tm sido

    praticados ainda na adolescncia, e

    com menos de vinte anos de idade.36

    Mediante observaes de Rosa Maria

    Fisher, se por um lado a menoridade

    lhes permite mais livre trnsito no mun-

    do do crime, por outro lado o estigma

    social os vincula to fortemente ilega-

    lidade que muitas dessas crianas so

    marcadas como criminosas, antes de te-

    rem a oportunidade de delinqir.37

    Da problemtica exposta surgiu uma dis-

  • pg.142, jan/jun 2002

    A C E

    cusso importante durante o perodo,

    isto , a necessidade de interveno do

    Estado no sentido de investir em pesqui-

    sas cientficas, tal como a criminologia,

    defendida por Virglio Donnici, como

    uma cincia jovem, procurando unifica-

    o metodolgica, tendo em vista o con-

    junto de cincias, desde a biologia, a an-

    tropologia e outras, at a estatstica.

    uma cincia viva, eminentemente soci-

    al, com a finalidade de melhorar os m-

    todos para o tratamento dos criminosos

    e a preveno da marginalidade.38

    impressionante a quantidade de vezes

    que os colaboradores recorrem s teori-

    as de Csare Lombroso. Embora alguns

    apresentem cr t icas ao mtodo

    lombrosiano, extremamente determinista,

    concordam, em parte, com as investiga-

    es operacionalizadas pelo terico ita-

    liano. O que parecia sepultado renasce

    neste perodo, desta vez com grande ve-

    emncia, quando se pensa a questo dos

    menores infratores, pois somente uma

    criminologia, cujas heranas remonta-

    vam o sculo XIX, poderia deslindar a

    alma perversa dos pequenos corpos cri-

    minosos.

    No Brasil existe uma pluralidade de tem-

    pos histricos coabitando o mesmo es-

    pao, destinando parte do contingente

    social excluso. Esta no foi a primei-

    ra vez na histria que mtodos calcados

    no pensamento, em vigor no sculo XIX,

    foram retomados, como demonstraram

    Lilia Moritz Schwarcz e Srgio Carrara,

    ao discutirem a convergncia de discur-

    sos durante os sculos XVIII e XIX, de-

    terminando o racismo, a intolerncia e a

    excluso de certo segmento social.

    A criminologia nasceu em 1885, medi-

    ante estudos de Rafael Garfalo, da Es-

    cola Italiana, fortemente marcada pelo

    positivismo e pela antropologia criminal,

    da qual tambm faziam parte Csare

    Lombroso e Enrique Ferri, os quais viam

    o crime como fenmeno natural, deter-

    minado por fatores biolgicos que agiri-

    am ao nvel do organismo individual.

    A influncia das idias de Ferri, profes-

    sor da Escola Italiana de Direito Penal,

    no Brasil, foi demonstrada por Lil ia

    Moritz Schwarcz, quando este, em 1908,

    visitou a Faculdade de Direito de So

    Paulo, sendo recebido com entusiasmo

    de alunos que com euforia atiravam-lhe

    flores e trepidosos aplausos.39

    Com Lombroso (1835-1909), seria defi-

    nido o perfil do delinqente, a partir das

    tcn icas de ant ropometr ia e da

    craniologia, ao examinar os corpos dos

    criminosos, bem como no tratamento

    estatstico dos resultados obtidos. Por

    meio de seus estudos, Lombroso, classi-

    ficaria os seres humanos em dois grupos:

    os delinqentes e no-delinqentes. Os

    primeiros seriam objeto de estudo bio-

    lgico, postulando inmeros caracteres

    a eles peculiares. Nascia a figura do cri-

    minoso nato.40

    Lombroso, sustenta Carrara, formulou

    uma srie de estigmas que

    na superfcie do corpo do criminoso

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.143

    R V O

    identificava sua alma. Psicologicamen-

    te, o gosto pela tatuagem, pela gria e

    onomatopia, a imprevidncia, a pro-

    digalidade, a vaidade, a imprudncia,

    a impulsividade, a insensibilidade mo-

    ral, o carter vingativo, o amor pela

    orgia, a preguia, a precocidade, o pra-

    zer no delito, e a ausncia de remor-

    sos completavam a f igura do at-

    v ico . Hav ia a inda carac te r s t i cas

    fisionmicas: o olhar frio e fixo do as-

    sassino. Errante, oblquo e inquieto

    nos ladres.41

    Para Erwing Goffman, o estigma carrega

    em si uma valorao completamente ne-

    gativa, tornando-se, na realidade, um

    tipo especial de relao entre atributo e

    esteretipo. Partindo deste postulado te-

    rico, o autor fundamenta sua anlise a

    partir da inflexo de trs atributos con-

    s iderados pi lares mantenedores da

    estereotipia engendrada pelo estigma, a

    saber: as abominaes do corpo, mani-

    festadas pelas deformidades fsicas; as

    culpas de carter individual (fraquezas,

    vcios) e, finalmente, os estigmas tribais

    de raa, nao e religio. Ao construir

    uma teoria do estigma, chama-nos a aten-

    o para os perigos que ela representa,

    calcada na inferioridade que confere ao

    outro, retirando sua individualidade e,

    por conseguinte, mergulhando numa es-

    fera de animosidade baseada em outras

    diferenas, como, por exemplo, de clas-

    se social.42

    Marilena Chau lembra-nos de que as

    classes ditas subalternas

    de fato o so e carregam os estig-

    mas da suspei ta , da cu lpa e das

    incriminaes permanentes. Situao

    mais aterradora quando nos lembra-

    mos de que os instrumentos criados

    para a represso e tortura dos presos

    polticos foram transferidos para o tra-

    tamento dirio da populao trabalha-

    dora e que impera uma ideologia se-

    gundo a qual a misria a causa

    da v io lnc ia , as c lasses d i tas

    desfavorecidas sendo consideradas

    potencialmente criminosas.43

    O discurso psiquitrico tambm se fez

    presente na revista Brasil Jovem, confe-

    rindo por meio da cincia legitimidade

    representao da alma potencialmente

    criminosa. O professor Elso Arruda, di-

    retor do Instituto de Psicologia da Uni-

    versidade Federal do Rio de Janeiro, con-

    siderava a delinqncia como atributo de

    personalidades psicopticas. Para ele a

    psicopatia era um atributo do homem

    que se considerava infeliz, constituindo

    grave perigo sociedade capaz de prati-

    car os mais abominveis crimes.44

    Essas personalidades, denominadas

    anormais, em sua maioria e constitu-

    das personalidades psicopatas. Em

    virtude de suas anormalidades, as per-

    sonalidades psicopticas costumam

    incidir no crime e, no raro, tornam-se

    delinqentes inveterados e perigosos

    para a sociedade. Se querem dinheiro

    roubam ou assaltam, se querem bens

    ou vantagens obtm-nos sem olhar os

    meios; se sentem desejos instintivos,

  • pg.144, jan/jun 2002

    A C E

    raptam e violam; se no gostam de nin-

    gum, atacam e matam. Destitudos de

    sentimento e de valores ticos, seguem

    a regra de que os fins justificam os

    meios. Ao estudar essas personalida-

    des anormais, em particular os delin-

    qentes contumazes, verifica-se que

    suas anomalias e sua expresso no

    comportamento variam em cada caso.

    Assim h os que tm no roubo sua

    manifestao tpica. Os que assaltam

    com uso de armas ofensivas; os que

    falsificam documentos; os que atracam

    menores para fins libidinosos, os que

    no podem ser perturbados porque

    reagem com violncia explosiva; enfim

    h um nmero infinito de condutas

    anti-sociais e criminosas desses indi-

    vduos. Muitos deles, excessivamente

    vaidosos, presunosos e arrogantes,

    cometem atos anti-sociais apenas para

    serem respeitados, para aparecer nos

    jornais e na televiso, para adquirir

    notoriedade, enfim para chamar aten-

    o sobre a sua pessoa. Ao passo que

    as pessoas normais procuram se des-

    tacar pelo trabalho honesto, pelo es-

    tudo, pela dedicao cincia ou

    causa pblica, as personalidades anor-

    mais procuram a evidncia e a notorie-

    dade pelas suas faanhas, pela ostenta-

    o, pelo exibicionismo e pelo crime.45

    Alm das metforas extradas do mundo

    orgnico, de conceitos morais, encontra-

    mos a metfora religiosa. O discurso do

    presidente Emlio Garrastazu Mdici, nes-

    te sentido, torna-se emblemtico do sa-

    grado enquanto mantenedor do social.

    Os discursos constroem a imagem do

    corpo social enquanto pluralidade das

    dimenses corpreas e espirituais. A so-

    ciedade revestida de carne, rgos,

    msculos, tecidos, nervos, e sobretudo,

    de uma alma sequiosa da moralidade dos

    valores ligados nao, ptria, reli-

    gio e famlia.

    Maria Helena Capelato trabalha a concep-

    o das imagens sagradas utilizadas em

    determinados governos e a fo ra

    conferida a elas. Para tanto, baseia-se em

    Alcir Lenharo para quem a sacralizao

    dos smbolos garante maior fora ima-

    gem.46

    No dia 5 de outubro, dando incio s so-

    lenidades da Semana da Criana, Emlio

    Garrastazu Mdici fez um pronunciamen-

    to na FUNABEM, posteriori incorpora-

    do na revista Brasil Jovem. O que cha-

    ma a ateno, no pronunciamento de

    Mdici, o uso abundante da palavra

    milagre, ora para ressaltar o papel da

    Fundao Nacional do Bem-Estar do Me-

    nor, ora para ressaltar o governo militar

    como responsvel direto pela criao da

    instituio.

    Nesta manh, vejo todo o milagre. Vejo

    o milagre da transmutao da sucur-

    sal do inferno, da escola do crime, da

    fbrica de monstros morais (refernci-

    as ao Setor de Atendimento dos Meno-

    res-SAM extinto com a criao da

    FUNABEM em 1 de dezembro de 1964)

    em um centro educacional voltado para

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.145

    R V O

    o desenvolvimento integral do menor.

    Esse milagre que hoje e aqui procla-

    mamos a toda a nao brasileira, ns

    o devemos revoluo de maro. E no

    tenho dv ida em a f i r mar que a

    constatao mais cega e mais surda,

    que tudo negasse obra revolucion-

    ria, haveria, pelo menos de bendiz-lo

    por apagar o sangue, a corrupo e a

    vergonha do malsinado SAM, pois, nes-

    te lugar, ergue a FUNABEM.47

    O general Mdici, aps relatar todas as

    atrocidades cometidas aos menores, faz

    uma aluso lenda do Negrinho do

    Pastoreio. Em seguida, associa a lenda

    histria de vida de cada criana desam-

    parada, v t ima da explorao e da

    corrupo.

    Penso nas crianas de tudo precisadas;

    penso nos menores que, l fora, so-

    frem, dos maiores, a crueldade, a ex-

    plorao e a corrupo, e me revolto

    ante as imagens da criana, mendiga,

    da inocncia feita cmplice e da pure-

    za manchada no vcio. E a saga de mi-

    nha terra me vem como smbolo mes-

    mo de todos os menores desampara-

    dos , que em cada qua l ve jo um

    negrinho do pastoreio. Quisera v-los,

    a todos, esses desamparados, no so-

    mente como aquele atirado, sangrando

    num formigueiro, afilhado de Nossa Se-

    nhora, e que, aparecerem as coisas per-

    didas, surgindo frente de fantasmtica

    tropilha, diz-se fazer o milagre.48

    A maneira como Mdici constri seu dis-

    curso coloca todas as dimenses tempo-

    rais e espirituais justapostas. O corpo da

    nao recebe por meio das imagens do

    sagrado, do divino, insgnias de pereni-

    dade. O lder funciona como o ser atre-

    lado ordem das coisas, seu amor, be-

    nevolncia se comparam fora do divi-

    no, em luta constante para extirpar

    do mundo pro fano a mcu la da

    desassistncia da infncia no Brasil.

    O caleidoscpio dos problemas relativos

    aos menores abandonados e aos delin-

    qentes ganhou status de legitimidade no

    interior dos pronturios da FEBEM-SP. A

    instituio na mesma linhagem que os

    colaboradores da revista Brasil Jovem,

    aponta o conjunto de valores respons-

    veis pela marginalizao do menor em

    termos profundamente moralistas. O de-

    bate feito pelos idelogos sobre a ques-

    to das crianas e dos adolescentes, di-

    lui no tempo e no espao os aspectos

    sociais, polticos e econmicos nos quais

    as crianas e suas famlias esto inseri-

    dos . Cr iou -se , por meio do o lhar

    reducionista, a idia da pobreza e da

    delinqncia como atributos das pesso-

    as, no como conseqncia de uma so-

    ciedade injusta, cujos bens econmicos

    se encontram nas mos de determinados

    indivduos, em detrimento da maioria da

    populao.

    A FEBEM, da mesma forma, possui seus

    idelogos cujas idias vo ao encontro

    do pensamento normatizador dos cola-

    boradores de Brasil Jovem. Para cada

    caso, a instituio atribui um conjunto

    de valores, recaindo ao nvel scio-fami-

  • pg.146, jan/jun 2002

    A C E

    liar. O elo que se formou na esteira de

    todos estes pensamentos determinou a

    institucionalizao do menor.

    A riqueza dos pronturios permite visualizar

    vrias etapas da institucionalizao do inter-

    no, por exemplo, quem so os chamados

    menores abandonados e infratores, e

    como realizado seu processo de

    institucionalizao a partir de diversas

    categorias discursivas e extradiscursivas.

    Os pronturios possibilitam, ainda, o res-

    gate de uma memria social esquecida,

    como sustenta Maria Odila Leite da Silva

    Dias ao estudar a vida cotidiana das mu-

    lheres pobres ao longo do sculo XIX:

    Histrias de vida que foram se perden-

    do antes por um esquecimento ideol-

    gico do que por ausncia de documen-

    tao. verdade que as informaes

    se escondem, ralas e fragmentadas,

    nas entrelinhas dos documentos, onde

    pairam fora do corpus central do con-

    tedo explcito. Trata-se de reunir da-

    dos muito dispersos e de esmiuar o

    implcito.49

    Os pronturios constituem espcies de

    dossis nos quais observamos toda a tra-

    jetria da institucionalizao da criana

    ou do adolescente, levando-nos impres-

    so de que nada escapa aos olhos aten-

    tos da instituio encarregada de acom-

    panhar todo o seu percurso, cujo ponto

    de partida se faz ainda no ambiente fa-

    miliar, passando a acompanhar, paula-

    t inamente , todos os a tos , ges tos

    identificadores de uma patologia a ser

    sanada.50

    Os pronturios so excelentes documen-

    tos h is tr icos , como lembra Mar ia

    Clementina Pereira da Cunha, pois reve-

    lam os limites da ao institucional e,

    apesar da monotonia na qual se reveste

    a histria de vida de cada interno, per-

    mitem-nos compreender que esta s

    pode ser compreendida quando

    referenciada experincia individual e

    tambm dessa maneira incorporada

    problemtica histrica. Resta considerar

    que os processos da institucionalizao

    configuram evidentes formas de relao

    ao ambiente social e, nesta medida, fa-

    lam sem cessar deste mundo que os con-

    denou ao silncio.51

    No interior dos pronturios, verificamos

    como ocorreu a solidificao da imagem

    do menor abandonado e infrator. Os

    muros da FEBEM-SP se tornaram labora-

    trios a partir dos quais os tcnicos

    mdicos, psiquiatras, psiclogos e assis-

    tentes sociais decodificaram cada ges-

    to, cada ato do interno. Este se torna

    objeto a ser analisado e classificado. A

    FEBEM torna-se o locus da vigilncia e

    do asilo.

    O mundo da disciplina, da vigilncia e

    do asilo encontrou em Foucault um de

    seus estudiosos. O autor investiga a

    coisificao do homem frente s diver-

    sas prticas discursivas visualizadas em

    manicmios e em presdios.

    Segundo Foucault, as relaes de fora

    agem em mltiplos sentidos, de tal modo

    que se irradiam do centro para a perife-

    ria, de baixo para cima, apresentando,

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.147

    R V O

    portanto, um carter difuso, garantindo

    uma relao assimtrica entre os indiv-

    duos.

    Podemos dizer que as instituies, como

    a FUNABEM, nascidas com o golpe mili-

    tar, funcionam como sistemas disciplina-

    res, impondo uma lgica constante de

    controle e vigilncia. Nelas, como sus-

    tenta Foucault, o poder capilar, ocor-

    rendo na transversalidade, isto , em

    mltiplas direes diretores, mdicos,

    pedagogos, inspetores e vigias , passan-

    do tanto pelos dominantes quanto pelos

    dominados. O controle existente dentro

    das unidades da FEBEM absolutamen-

    te discreto, pois est em toda parte e

    sempre alerta, funcionando permanente-

    mente e em grande silncio.

    Em Vigiar e punir, Foucault demonstrou

    uma ntida preocupao em entender al-

    guns dos processos de constituio do

    indivduo, sendo que, dentre eles, o pro-

    cesso de tal constituio ser analisado

    por meio do mapeamento da sociedade

    discipl inar. O autor apresenta uma

    listagem dos valores que a relao de

    fora assumiu no decorrer do sculo

    XVIII, ou seja, a diviso do espao, o

    ordenamento do tempo e finalmente a

    composio espao-tempo.

    A internao, o enquadramento so

    potencializados na sociedade disciplinar,

    no dizer de Foucault, enquanto relaes

    de fora circunscritas diviso do espa-

    o, da mesma forma que a subdiviso

    do tempo, a codificao dos atos, bem

    como a decodificao dos gestos, so

    atributos do ordenamento do tempo.52

    Existe o jogo duplo dos olhares: de um

    lado, os pareceristas esquadrinham o

    movimento corpreo do interno; de ou-

    tro, os internos reconhecem que a lgi-

    ca da instituio procura transform-los

    em corpos dceis, controlados, vigiados

    e punidos.

    Para efeito de anlise, trs categorias de

    internos foram observadas nos prontu-

    rios, a saber: os menores abandonados

    ou com problemas de conduta crian-

    as de quatro a 12 anos; adolescentes

    do sexo feminino 13 a 17 anos, inter-

    nadas por problemas de conduta e os

    adolescentes do sexo masculino de 14

    a 18 anos, considerados pela instituio

    como portadores de problemas de con-

    duta, ou infratores.

    O que chama a ateno, em um primei-

    ro momento, a elasticidade das classi-

    ficaes criadas pela instituio, isto ,

    a nomenclatura que diz respeito con-

    duta assume diversas categorias diver-

    gentes entre si, mediante a anlise dos

    pareceristas.

    Para as crianas de quatro a 12 anos, o

    termo problema de conduta refere-se ao

    fato de no freqentarem escola, no

    obedecerem aos pais. Quando a termi-

    nologia usada para adolescentes do

    sexo feminino de 13 a 17 anos, verifica-

    mos outras coloraes, como, por exem-

    plo, prostitutas, toxicmanos, indivdu-

    os agressivos, depressivos e alcolatras.

    A adolescente MM, 16 anos, que foi in-

  • pg.148, jan/jun 2002

    A C E

    ternada, segundo os tcnicos da FEBEM,

    por problemas de conduta, obteve o se-

    guinte parecer: menor apresenta um di-

    fcil contato. Evidencia idias assassinas,

    fazendo ameaas. rancorosa. No faz

    crtica de si mesma. Desde criana tem

    desmaios. dada ao uso de bebidas al-

    colicas.53

    Para os adolescentes classificados como

    infratores a internao por problemas de

    conduta poderia indicar a vadiagem ou,

    at mesmo, reclamaes por parte dos

    genitores.

    Os pronturios sinalizam para diversos

    esteretipos imputados aos adolescen-

    tes , v i s tos como f r ios , ego s tas e

    egocntricos, no possuindo as virtudes

    do homem afeito ao trabalho, relatando

    que muitos utilizam a prostituio como

    meio de sobrevivncia.

    MPS, 15 anos, internado pela genitora,

    enquadra-se na categoria dos pronturi-

    os em que milhares de jovens e adoles-

    centes foram considerados como indiv-

    duos que no gostam de trabalhar, pre-

    ferindo viver da prostituio masculina.

    M exps que gosta de ficar nas imedia-

    es da alameda Glete, na rua Aurora,

    convivendo com prostituio e homos-

    sexuais. Sobre isso disse que era uma

    forma que encontrava para conseguir

    dinheiro, pois no tencionava trabalhar

    de forma alguma. Alega M que no pos-

    sui o hbito de roubar porque acha

    muito difcil ter a profisso de ladro,

    que para praticar qualquer ato anti-so-

    cial necessrio muita coragem e isso

    ele nunca teve. Gosta de conseguir di-

    nheiro fcil, mas com prostitutas e tra-

    vestis, nunca roubando.54

    Outros, como CFF, 16 anos, que foi in-

    ternado por assassinato, apresentaria,

    mediante os pareceristas, as caracters-

    t i cas do de l inqente na to , sendo

    categorizado como dissimulado, tentan-

    do usar paradoxalmente uma boa ima-

    gem durante a entrevista.

    No se contam idias msticas ou pre-

    ocupao de ordem religiosa. Pensa-

    mento sem evidenciar alteraes pa-

    tolgicas de forma, curso ou conte-

    do. Nega distrbio de percepo. Nega

    uso de psicotrpicos. Uso social de

    bebidas alcolicas. Uso de maconha.

    Atitude subjetiva variando de franca,

    cooperante. Nega crises depressivas ou

    episdios de choro imotivado. Nega

    crise de agitao psicomotora. Nega

    cr ise de auto-agressiv idade. Nega

    hetero-agressividade, tentando dar

    uma srie de explicaes para o ato

    cometido, que envolveu violncia. Du-

    rante toda a entrevista tenta jogar uma

    boa imagem, como de uma pessoa sim-

    ptica e educada.55

    Cada g rupo tor na -se por tador de

    caracteres especficos mediante a anli-

    se dos pareceristas. O caleidoscpio das

    classificaes abrange diversos signos,

    estigmas que mediante o parecer marca-

    r a vida institucional do interno. As clas-

    sificaes delimitam o espao a ser pre-

    enchido pelo interno nas diversas unida-

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.149

    R V O

    des da FEBEM. A criana classificada

    como abandonada sempre concebida

    pelos tcnicos como oriunda da cultura

    da pobreza, mostrando-se inibida, apre-

    sentando vocabulrio pobre e sentimen-

    to de inferioridade.

    Analisa-se o comportamento da criana

    durante a entrevista e qualquer gesto con-

    siderado anormal descrito como resulta-

    do do abandono, da pobreza e das condi-

    es de existncia material do menor.

    Enquanto o proclamado reveste as carac-

    tersticas da criana abandonada, o es-

    condido, como observa Chartier, revela

    um quadro de representao da realida-

    de social presente nos pareceres.

    Os tcnicos tentam impor sua concepo

    do mundo social ao analisarem a vida de

    cada interno: as lutas de representaes

    tm tanta importncia quanto as lutas

    econmicas para se compreenderem os

    mecanismos pelos quais um grupo im-

    pem, ou tenta impor sua concepo de

    mundo social, os valores que so os seus

    e o seu domnio.56

    O quadro formado por estas mltiplas

    representaes elucidativo da concep-

    o que tm os grupos de poder sobre

    as camadas mais pobres da sociedade.

    A pobreza, nesta linha de raciocnio

    estabelecida pelos pareceristas, conver-

    ge para a criao de uma imagem do in-

    terno como inseguro, com baixo nvel in-

    te lectua l , e por conseguinte como

    desviante das normas estabelecidas.

    GE, de apenas 9 anos, ao ser internada

    por ter sido considerada em estado de

    abandono, obteve o seguinte parecer

    psicolgico:

    Menor srio, demonstrando certa difi-

    culdade de estabelecer um contato

    satisfatrio, tendo inicialmente retra-

    do-se e mostrando-se tenso. Ao famili-

    arizar-se com a entrevista relaxou um

    pouco, porm denota certas reser-

    vas , em seus re lac ionamentos

    interpessoais. Ao expressar-se oral-

    mente denota certa limitao, revelan-

    do distrbio de linguagem, pois omite

    e troca fonemas, tornando, s vezes,

    sua verbalizao incompreensvel, seu

    vocabulrio reduzido; entretanto evi-

    dencia boa compreenso, quando so-

    licitado. Quanto ao aspecto emocional,

    revela certa ansiedade latente dificul-

    tando sua interao com o ambiente,

    mostrando-se inslito, inseguro, te-

    mendo ser rejeitado. H sinais de

    inadequao intelectual, demonstran-

    do certa fluidez em seu controle racio-

    nal. Sente-se incapaz e insatisfeito, no

    conseguindo organizar e integrar seus

    estmulos recebidos. Muito sensvel,

    revela certa angstia ligada a elemen-

    tos persecutrios e mobilizadores;

    afetivamente privado, no alcanou

    ainda boa identidade que lhe permite

    aceitar-se. Possui bom raciocnio lgi-

    co, conseguindo assimilar e discrimi-

    nar os fa tos co t id ianos com

    inadequao, porm o faz lentamente.

    Tenta cooperar na realizao das tare-

    fas, mostra-se bem adaptado, tendo

  • pg.150, jan/jun 2002

    A C E

    obtido resultado mdio, situando-se

    dentro da faixa da normalidade. Mos-

    tra pobre desenvolvimento psicomotor,

    sugerindo dificuldade em sua coorde-

    nao manual motora e uma organiza-

    o e estruturao grafo-perceptiva

    inadequada para sua idade. Sua ima-

    gem corporal rudimentar. Possui

    lateralidade dominante direita.57

    No caso das adolescentes, a imagem

    conferida pelos pareceristas aproxima

    seu universo ao mundo do alienado, dos

    loucos, sendo categorizadas como ran-

    corosas, portadoras de idias assassinas,

    vivendo na completa marginalidade, bem

    como na ociosidade.

    A jovem MLB, 16 anos, internada por ter

    pra t icado a tos ant i - soc ia i s , fo i

    diagnosticada como pessoa muito revol-

    tada, odiando todo mundo, sendo

    passional, explosiva, uma vez que, de

    acordo com os pareceristas, tentou as-

    sassinar o namorado.58

    Aos poucos o cotidiano da FEBEM ganha

    proporo, mediante a leitura e anlise

    dos pronturios, permitindo visualizar

    um conjunto de prticas extremamente

    moralistas. O mundo dos menores des-

    ponta como anttese do bom trabalhador,

    do bom pai, do bom filho. A instituio

    no produz nenhum pensamento sui

    gener is , an tes reproduz va lores

    subjacentes no todo social.

    Nesta perspectiva, ganham fora os dis-

    cursos dos psiclogos e dos psiquiatras,

    levando baila a eficincia das tticas

    morais. So eles que diagnosticam a per-

    versidade, a ociosidade, a apatia, a falta

    de valores ticos, tudo dentro de uma

    padronizao imposta por valores domi-

    nante.

    Foucault, ao estudar instituies asilares,

    esteve atento a todos os mecanismos

    produzidos e reproduzidos espacialmen-

    te, lembrando que, no interior de cada

    uma das unidades asilares ocorrem pr-

    ticas subtradas da sociedade como um

    todo, isto , cria-se a idia segundo a

    qual o internado, o louco, o delinqen-

    te, precisa reaprender, dentro do asilo,

    os valores anteriormente perdidos, po-

    dendo desta forma retornar ao convvio

    social.

    Surgem, nesta esfera, vozes destoantes

    para afirmarem o conjunto das coisas

    perdidas. A prtica psiquitrica ser uma

    manifestao de ttica moral, do sculo

    XVII, com a normatizao dos costumes,

    com a delimitao do universo dos nor-

    mais e anormais, delinqentes e homens

    honestos, normas estas conservadas in

    totum nos rituais da vida asilar. 59

    O discurso do psiquiatra contribui para

    a institucionalizao de jovens e crian-

    as, no sem antes desenhar o quadro

    dos desvios de conduta. O pincel e a tela

    da instituio ganhariam, no excludo,

    uma musa s avessas. A representao

    da delinqncia, da alienao seria ma-

    tizada nos pareceres, numa tentativa de

    forjar mecanismos indiscutveis, sendo

    baseados na voz e no conhecimento de

    especialistas.

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.151

    R V O

    A imagem do delinqente nato se crista-

    liza nos pronturios do menor infrator.

    Se os colaboradores de Brasil Jovem lan-

    aram mo das teorias lombrosianas

    para comporem um quadro no qual qual-

    quer signo comprovasse a malignidade

    manifesta, os pareceristas da FEBEM, no

    interior das diversas unidades, aplicari-

    am o modelo da antropologia criminal

    para esquadrinhar a potencial idade

    subjacente delinqncia manifesta.

    O corpo tcnico da Fundao Estadual

    do Bem-Estar do Menor, assim como os

    idelogos de Brasil Jovem, contriburam

    para o processo de estigmatizao de

    centena de milhares de menores no fi-

    nal do sculo XX. Os pareceres da

    FEBEM, aliado aos artigos de Brasil Jo-

    vem, mostraram que as teorias de Csare

    Lombroso, as teor ias eugn icas e

    excludentes, desenvolvidas ao longo do

    sculo XIX, no estavam soterradas: an-

    tes se manifestaram por meio do vis

    conservador e autoritrio que caracteri-

    za grande parte da sociedade brasileira.

    A anlise dos pronturios ultrapassa os

    muros da instituio, encontrando na

    imprensa outro veiculador da degenera-

    o social dos indivduos. Neste caso, a

    idia se tornou mais uma evidncia da

    periculosidade intrnseca aos jovens e

    adolescentes que passaram pelos muros

    da instituio.

    O imaginrio coletivo aglutina todas as

    imagens que aos poucos so tecidas pe-

    los discursos, justapondo-se na mem-

    ria. Se a memria incapaz de fornecer

    imediatamente a lembrana das mlti-

    plas impresses, a lembrana se forma

    nela aos poucos e se recompe a partir

    de fragmentos mnemnicos.

    Porm, o tempo da memria permite que

    por meio das imagens despontem a for-

    a dos discursos que se materializam nos

    traos, impresses, sabores e cheiros, e

    revivem a cada instante, quando se evo-

    ca a imagem do outro, do estrangei-

    ro e do excludo, cujos caracteres fo-

    ram construdos numa determinada

    temporalidade.

    O tempo enquanto espelho da memria

    s vezes reflete a imagem do outro en-

    quanto estrangeiro, criatura a ser cotidi-

    anamente excluda. Como bem lembra

    Proust, os homens no mudam de um

    dia para o outro e procuram num regime

    novo a continuao do antigo.60 O mun-

    do da excluso e do excludo mapeado

    pelos pareceristas. Para Xiberras toda

    a relao com o outro, que deve se idea-

    lizar na lgica da excluso.

    O menor apareceu como estrangeiro,

    dentro da prpria terra em que nasceu.

    Terra esta que o negava, condenando-o

    ao pior dos mundos, julgando-o portador

    das chagas sociais, disseminando o

    medo e a desconfiana, tal como os le-

    prosos examinados por Foucault na His-

    tria da loucura.

    Emir Sader, em uma aluso impressio-

    nante figura do menor enquanto estran-

    geiro, lembra uma passagem de Foucault

  • pg.152, jan/jun 2002

    A C E

    que se encaixa exatamente na histria

    da infncia negada no Brasil.

    Esse gesto que proscreve tinha, sem

    dvida, outro alcance: ele no isolava

    estranhos desconhecidos, durante

    muito tempo evitado por hbito; cria-

    va-os, alterando rostos familiares na

    paisagem social a fim de fazer deles

    figuras bizarras que ningum reconhe-

    cias mais. Suscitava ali mesmo onde

    ningum o pressentira.61

    Quem diria que um dia essas afirmaes

    de Foucault, como lembra Sader, sobre

    a arqueologia do banimento da loucura,

    viessem a se ajustar apropriadamente ao

    mecanismo de gerao de imagem do

    menor infrator entre ns. Imagem com-

    posta por uma multiplicidade de espe-

    lhos, irradiando os reflexos de uma so-

    ciedade excludente e autoritria, trans-

    formando categorias como os loucos, os

    presidirios e os menores, no outro. O

    verbo delinqir, como constata Sader,

    no existe em primeira pessoa, uma vez

    que o delinqente sempre o outro.62

    N O T A S

    1. Marcel. Proust, Em busca do tempo perdido: no caminho de Swan, So Paulo, Globo, 1998, p.373.

    2. Maria Luiza Tucci Carneiro, O discurso da intolerncia: fontes para o estudo do racismo,Fontes histricas: abordagens e mtodos, So Paulo, Ed. UNESP, 1996, p. 28.

    3. Erving Goffman, Manicmios, prises e conventos, So Paulo, Perspectiva, 1999, p. 27.

    4. Michel Foucault, Vigiar e punir, Petrpolis, Vozes, 1977, p. 31.

    5. Gutemberg Alexandrino Rodrigues, Os filhos do mundo: a face oculta da menoridade, SoPaulo, IBCCRIM, 2001, p. 277.

    6. Martine Xiberras, As teorias da excluso: para a construo do imaginrio do desvio, Lisboa,Instituto Piaget, 1993, p. 22.

    7. Guillermo ODonnell, Contrapontos, autoritarismo e democratizao, So Paulo, Vrtice, 1986.

    8. Paulo Srgio Pinheiro, Autoritarismo e transio, Revista da USP, So Paulo, n. 9, mar.-mai.,1991, p. 55.

    9. Marilena Chau, Conformismo e resistncia: aspectos da cultura popular no Brasil, So Paulo,Brasiliense, 1993, p. 48.

    10.Mary Del Priori, Histria da criana no Brasil, So Paulo, Contexto, 1998, pp.7-8.

    11.Loreley o nome de uma personagem do folclore alemo, cantado num belssimo poema por

  • Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p. 133-154, jan/jun 2002 - pg.153

    R V O

    Heine, como observa Clarice Lispector. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores comseus cnticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar. Clarice Lispector, Uma aprendi-zagem ou o livro dos prazeres, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1993, p. 144.

    12.Jacques Le Goff, Histria e memria, So Paulo, Ed. UNICAMP, 1994, p. 30.

    13.Michel Foucault, El discurso del poder, Mxico, Folios Edicines, 1983, p.74.

    14.Idem, p. 71.

    15.Idem, p.39.

    16.Idem, p. 33.

    17.Idem, p. 16.

    18.Idem, p. 28.

    19.Idem, p. 117.

    20.Paul Ricouer, Interpretao e ideologias, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1990, p. 138.

    21.Idem, p. 46.

    22.Paul Ricouer, op. cit., p. 46.

    23.Michel Foucault, Microfsica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 13.

    24.Idem, ibidem.

    25.Pierre Bourdieu, A economia das trocas simblicas, So Paulo, Perspectiva, 1992.

    26.Jos Cavalieri, O bem-estar do menor em comentrio, Brasil Jovem, ano II, dezembro de1967, p. 65.

    27.Lauro Barreira, O menor desamparado, Brasil Jovem, Rio de Janeiro, 2 trimestre de 1971, p.70.

    28.George Balandier, A desordem: o elogio do movimento, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997,p. 26.

    29.Susan Sontag, A doena como metfora e a SIDA e as suas metforas, Lisboa, Quetzal Edito-res, 1998, p. 88.

    30.Leonara Farias Neves da Costa, O problema do menor abandonado, Brasil Jovem, Rio deJaneiro, ano 11, n. 37, 1 quadrimestre de 1977, p.77.

    31.Mrio Moura Rezende, A delinqncia juvenil e suas conseqncias, Brasil Jovem, Rio deJaneiro, ano IV, n. 13, maro de 1970, p. 15.

    32.Ibidem.

    33.Artigo do professor Vrglio Donnici (professor catedrtico de direito penal do Instituto deCincias Penais da Faculdade Cndido Mendes), Brasil Jovem, ano IV, 3 trimestre de 1970.

    34.Idem, p. 64.

    35.Gumercindo Fleury, Delinqncia juvenil, Brasil Jovem, Rio de Janeiro, ano II, n. 8, dezem-bro de 1968, p. 72.

    36.Idem.

    37.Rosa Maria Fisher Ferreira, Meninos de rua: expectativas e valores de menores marginaliza-dos em So Paulo, So Paulo, CEDEC, 1979, p. 44.

    38.Virglio Donnici, op. cit., p. 64.

    39.Lilia Moritz Schwarcz, O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial noBrasil, 1870-1930, So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 179.

    40.Juan Manuel Mayorca e Nelson Pizzotti Mendes, Criminologia, So Paulo, Editora ResenhaUniversitria, 1975, p. 106.

    41.Srgio Carrara, Crime e loucura: o aparecimento do manicmio judicirio na passagem dosculo, Rio de Janeiro, Ed. UERJ/EDUSP, 1988, p.105.

    42.Erving Goffman, Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada, Rio de Janei-ro Zahar, p. 15.

  • pg.154, jan/jun 2002

    A C E

    43.Marilena Chau, Conformismo e resistncia: aspectos da cultura popular no Brasil, So Paulo,Brasiliense, 1983, p. 57.

    44.Elso Arruda, Uma anlise do ponto de vista da psicologia, Brasil Jovem, 3 quadrimestre de1975, p. 35.

    45.Idem, ibidem.

    46.Maria Helena Capelato, Multides em cena: a propaganda poltica no varguismo e no peronismo,So Paulo, Papirus, 1999, p. 259.

    47.Emlio Garrastazu Mdici, Mensagem ao jovem do Brasil, Brasil Jovem, ano IV, n. 16, 4 tri-mestre de 1970, p. 53.

    48.Idem, ibidem.

    49.Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em So Paulo no sculo XIX, So Paulo,Brasiliense, 1995, p. 14.

    50.Gutemberg Alexandrino Rodrigues, op cit., p. 174.

    51.Maria Clementina Pereira da Cunha, O espelho do mundo: Juqueri a histria de um hospcio,Rio de Janeiro, Vozes, 1988, p. 114.

    52.Michel Foucault, Vigiar e punir, Rio de Janeiro, Vozes, 1977, p 150.

    53.PT: 27. 706-A, MM ou SAM.

    54.PT: 37.095-A, MPS.

    55.PT: 31.919-A, CFF.

    56.Roger Chartier, A histria cultural: entre prticas e representaes, Lisboa, Difel, 1990, p. 17.

    57.PT: 28.047-A, GE.

    58.PT: 28.234-A, MLB.

    59. Michel Foucault, Histria da loucura, So Paulo, Perspectiva, 1975, p. 501.

    60.Marcel Proust, Em busca do tempo perdido: sombra das raparigas em flor, So Paulo, Globo,1998, p.86.

    61.Michel Foucault apud Emir Sader, Maria Igns Bierrenbach e Cyntia Petroncio Figueiredo,Fogo no pavilho, So Paulo, Brasiliense, 1987, p.12.

    62.Idem, ibidem.

    A B S T R A C T

    This essay intends to expose the discourses analyses that search to represent the social reality of

    a determined group, that one composed by the abandoned and delinquent child, during the

    decades of 1960 and 1970. It also emphasizes the history of children and young persons of the

    poorest strata of the Brazilian society.