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José Luiz Belas / Março de1983 INTRODUÇÃO Pensei em retomar alguns textos produzidos por mim na década passada . Este é um deles. Seu título original era: Pré-Escola, Alfabetização... Reflexões. Foi escrito em 1983. O fato de ter sido escrito há quase duas décadas atrás só o enriquece já que , mesmo passado tanto tempo, ele se mostra bastante atual e nos ajuda a perceber que o cronos em educação tem qualidades bem distintas daquele que usamos para falar sobre o desenvolvimento das atividades técnicas em geral. Se para algumas escolas de nossa sociedade essa reflexão já se tornou obsoleta, tenho certeza que o número dessas instituições de educação é insignificante quando se pensa na Educação brasileira como um todo. Comentários, sugestões, críticas, serão sempre bem vindas. jlbelas/setembro de 2001 No contato que temos com pais e educadores, notamos a existência de uma concepção confusa sobre os objetivos básicos que norteiam o trabalho escolar com crianças pequenas. Isso, obviamente, acarreta sentimentos de dúvida, angústia e insegurança nos pais desses alunos. Entre as dúvidas que surgem nota-se a seguinte: SERIA A EDUCAÇÃO INFANTIL UMA PREPARAÇÃO PARA A ALFABETIZAÇÃO ? De onde parte esta dúvida ? Parece que muita gente ainda vê as classes de alfabetização como um espaço físico e um momentol onde se ensina a criança a ler, escrever e fazer contas.

Alfabetização

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Seu título original era: Pré-Escola, Alfabetização... Reflexões. Foi escrito em 1983. O fato de ter sido escrito há quase duas décadas atrás só o enriquece já que , mesmo passado tanto tempo, ele se mostra bastante atual e nos ajuda a perceber que o cronos em educação tem qualidades bem distintas daquele que usamos para falar sobre o desenvolvimento das atividades técnicas em geral. Se para algumas escolas de nossa sociedade essa reflexão já se tornou obsoleta, tenho certeza que o número dessas instituições de educação é insignificante quando se pensa na Educação brasileira como um todo.

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Jos Luiz Belas / Maro de1983

Jos Luiz Belas / Maro de1983

INTRODUO

Pensei em retomar alguns textos produzidos por mim na dcada passada . Este um deles. Seu ttulo original era: Pr-Escola, Alfabetizao... Reflexes. Foi escrito em 1983.

O fato de ter sido escrito h quase duas dcadas atrs s o enriquece j que , mesmo passado tanto tempo, ele se mostra bastante atual e nos ajuda a perceber que o cronos em educao tem qualidades bem distintas daquele que usamos para falar sobre o desenvolvimento das atividades tcnicas em geral.

Se para algumas escolas de nossa sociedade essa reflexo j se tornou obsoleta, tenho certeza que o nmero dessas instituies de educao insignificante quando se pensa na Educao brasileira como um todo.

Comentrios, sugestes, crticas, sero sempre bem vindas.

jlbelas/setembro de 2001

No contato que temos com pais e educadores, notamos a existncia de uma concepo confusa sobre os objetivos bsicos que norteiam o trabalho escolar com crianas pequenas. Isso, obviamente, acarreta sentimentos de dvida, angstia e insegurana nos pais desses alunos.

Entre as dvidas que surgem nota-se a seguinte: SERIA A EDUCAO INFANTIL UMA PREPARAO PARA A ALFABETIZAO ?

De onde parte esta dvida ?

Parece que muita gente ainda v as classes de alfabetizao como um espao fsico e um momentol onde se ensina a criana a ler, escrever e fazer contas.

Parece que muitas pessoas acreditam que , ao trmino do ano letivo, uma criana que estiver freqentando tais classes , dever estar lendo, escrevendo e sabendo muitas coisas sobre nmeros.

O interessante disso tudo que esta concepo, que j existia no tempo de nossos avs, permanece, hoje, ao mesmo tempo que se fala em cirurgia a "laser", clonagem, etc..

como se o tempo no houvesse passado em Educao.

Para a maior parte da populao, o trabalho escolar, na alfabetizao, se aproxima muito de um treinamento, um adestramento do pequeno aluno.

Tudo indica que, por haver tal expectativa social, relativamente s classes de alfabetizao, pr-escola caberia um papel tambm bastante definido, caracterizado como "uma fase de preparao onde se vai dar condies a uma criana para que ela aprenda a ler, escrever e contar". Exagerando um pouco mais este raciocnio, poderamos dizer que o momento para se comear a aprender "portugus e matemtica" .

At certo ponto, os objetivos propostos acima, relativamente pr-escola e alfabetizao, so corretos. Entretanto, hoje eles poderiam ser considerados altamente limitados e obsoletos.

Diramos que a pr-escola uma fase de preparao da criana como um todo.

Nessa fase, o potencial afetivo, social, cognitivo, emocional, motor, etc. ... da criana ser estimulado. Atravs disso a prepararemos para a realizao de outras atividades cada vez mais complexas, INCLUSIVE para aquelas nas quais ir aprender a ler, escrever, contar...

Para ns, os objetivos da pr-escola so mais amplos do que simplesmente dar condies para que uma criana se alfabetize. Tais objetivos , os que buscamos, sero atingidos - principalmente - atravs de atividades ldicas.

no mundo do brinquedo e da brincadeira, no qual a criana pequena vive mergulhada a maior parte do seu tempo, onde deveremos buscar a matria prima para o trabalho com alunos desse estgio do desenvolvimento.

Atravs do que lhe mais atraente - o brincar - poderemos ajudar a criana a se desenvolver fsica e psicologicamente e chegar a um tal nvel que a alfabetizao passe a ser sentida e vivida como um jogo, um desafio, uma brincadeira interessante e motivadora.

Cremos que caiba, neste momento, um adendo:

Por mais que tenhamos (pais e educadores) evoludo em nossos conceitos sobre educao, profundamente ainda no estamos tranqilos e seguros diante da NOVA escola que prega a liberdade para aprender, o respeito ao ritmo de cada aluno, os direitos da criana, a matemtica moderna, etc. ....

Se a criana estiver na escola aprendendo a fazer contas de somar, lidando com nmeros e letras, os pais ficam tranqilos. Caso contrrio, eles se "grilam" pois a nova realidade lhes escapa ao controle.. No viveram isso em suas infncias. Iam escola para "aprender", no para "ficar brincando". No conseguem perceber que a brincadeira a coisa mais sria que uma criana faz.

Numa viso tradicional de Escola, se diria que : Escola no "lugar para se brincar".

Com isso, com essa viso, se sentenciaria a EDUCAO INFANTIL pois ela seria visto como o lugar onde se brinca, onde "no aconteceria nada srio" .

A sentena poderia ser mais enfatizada ainda assim:

" uma escola com objetivos pequenos para pessoas(crianas) que ainda no tm objetivos."

Infelizmente assim que muitas pessoas ainda vem a Educao Infantil.

Essa desvalorizao reflete bem o nvel de desinformao e de deformao que muitos carregam em relao a este perodo to ou mais importante do que um curso superior, ou de especializao, na vida de todo ser humano.

DOS SABERES DOCENTES ALFABETIZAO DE CRIANAS: UM CONTRIBUTO FORMAO DE PROFESSORES

Alfabetizao, Leitura e Escrita GT-10

Maria Estela Costa Holanda Campelo UFRN

I Introduo Este trabalho investigou, sob a perspectiva dos professores, os saberes docentes requeridos na alfabetizao bem sucedida de crianas de uma escola pblica da periferia urbana do Nordeste brasileiro. Segundo Saviani (1991, p.16), o saber o objeto especfico do trabalho escolar. Em se tratando da alfabetizao, esse saber adquire uma especificidade ainda maior, tanto no ensinar como no aprender, exigindo que o professor domine e articule uma gama de saberes os saberes docentes para que possa mediar, com sucesso, tal aquisio. E, principalmente para as crianas das classes populares, a escola o local por excelncia para essa apropriao. Ali bastante significativa a interao/cooperao da criana com os seus pares, nas suas aquisies, visto que a alfabetizao no simplesmente adquirida, mas co-construda no processo de escolarizao (Cook-Gumperz, 1991). A alfabetizao , pois, uma aquisio social/individual e, nesse processo, exercem papis relevantes, tanto o contexto intra como o extra-escolar, favorecendo ou no as mediaes. Desvelando, junto a professores alfabetizadores, os seus saberes experienciais (Gauthier et. al. 1998) ou adquiridos experienciais (Canrio, 1999), o trabalho pretende contribuir para os cursos de formao inicial e contnua de professores, uma vez que, para alm da evoluo dos saberes escolares, h a prpria considerao dos saberes construdos a partir da experincia, da tradio ou do trabalho, e que no cabem no livro da escola (Nvoa, 1999, p.6).

Em termos paradigmticos, a investigao se inscreve no Paradigma Qualitativo de Pensamentos do Professor (Villar Angulo, 1988), utilizando como referncias metodolgicas, o estudo de caso e a histria de vida, atravs de uma abordagem multifacetada de coleta de dados: a observao participante, o questionrio, a entrevista semi-estruturada e os documentos pessoais dos professores. A escolha do campo emprico recaiu na Escola Municipal X, que preencheu os requisitos previamente definidos: a)evidncias estatsticas de desenvolvimento de uma pedagogia de alfabetizao pautada no sucesso escolar pelo menos, nos ltimos trs anos apesar de ali ele ser improvvel (Lahire, 1997); b)atendimento a crianas na fase inicial de escolarizao; c)aceitao da proposta de trabalho. Trabalhamos com uma amostra de 11 sujeitos, escolhida segundo trs critrios: a)que na sua individualidade/totalidade, os sujeitos contemplassem todas as caractersticas dos professores da Escola, evidenciadas pelo diagnstico resultante da anlise do Questionrio; b)que os sujeitos fossem apontados por outros tcnica de amostragem de bola de neve (Bogdan e Biklen, 1994, p.99); c)que a amostra correspondesse a 30% do total de professores de Educao Infantil e do Ensino Fundamental daquela Escola, no ano de 1998.

Da anlise dos dados, emergiu a temtica Pedagogia da Alfabetizao com as categorias: Saberes docentes referendados pela prtica letiva e Questes didtico-pedaggicas negadas pela prtica, destacando-se que, neste trabalho, discutiremos apenas a subcategoria Saberes Docentes Especficos da Alfabetizao referendados pela prtica letiva.

II Pedagogia da Alfabetizao As categorias e subcategorias integrantes desta temtica se constituem em saberes experienciais (Gauthier et al., 1998) ou em adquiridos experienciais (Canrio, 1999) construdos pelos entrevistados e codificados em certos saberes concernentes ao ensinar e ao aprender mas, especialmente, relativos ao ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, pela criana da escola pblica.

Saberes docentes referendados pela prtica letiva Especficos da Alfabetizao so aqueles saberes difundidos ou no pela literatura educacional e que foram referendados pela experincia do professor, uma vez que, na sua atividade pedaggica, tm sido exigidos dele, para que possa se desincumbir com eficincia, no s do trabalho docente em geral mas, e sobretudo, da ao especfica de alfabetizar crianas. Os saberes docentes referendados pela prtica letiva/especficos da alfabetizao so, simultaneamente, concernentes e referendados pela prtica pedaggica do professor, na atividade docente especfica de alfabetizar crianas. Estes saberes, por si ss, no garantem a alfabetizao, mas eles so indispensveis para que o professor possa mediar uma aquisio bem sucedida da lecto-escrita, pelas crianas.

No Quadro que se segue, relacionamos os saberes docentes especficos da alfabetizao que foram referendados pela prtica letiva dos professores investigados. Imediatamente aps o Quadro, analisaremos os referidos saberes, procurando faz-lo o mais prximo possvel da ordem em que foram apresentados no Quadro.

Saberes docentes referendados pela prtica letiva

Especficos da alfabetizao

- limites/possibilidades da mediao docente: oportunizar/obstar a alfabetizao

- a alfabetizao pautada na afetividade

- a criana e a sua histria de vida so temas significativos na sua alfabetizao

- a leitura do mundo precede a leitura da palavra

- a leitura de si mesmo e do outro, como partes do mundo, precede a leitura da palavra

- a mediao docente deve favorecer a dialtica: leitura do mundo/leitura da palavra

- o corpo, mediado pela palavra, tem papel relevante nas bases scio-afetivas

- a escola deve favorecer a continuidade/superao do conhecimento da criana

- o prazer de ler/gostar de ler so fundamentais para o aprender a ler

- importncia do contato permanente da criana com a leitura e a escrita

- lendo que se aprende a ler

- escrevendo que se aprende a escrever

- articulao: saberes disciplinares X saberes das Cincias da Educao

- a linguagem como forma de inter-ao

- a lecto-escrita tem funes sociais e individuais que devem ser compreendidas e vivenciadas pelos alunos

- o compromisso poltico do alfabetizador envolve a apropriao da lngua padro, pela criana

- o processo psicogentico de construo da escrita

- o texto como unidade bsica de ensino, na alfabetizao

- conceitos: alfabetizao; analfabeto/alfabetizado; analfabetismo/alfabetismo

Dependendo das intervenes mediacionais, sobretudo do professor, as experincias do alfabetizando com a lngua escrita poder ser o incio de um rico processo de aquisies ou o trmino de uma vida escolar pautada no insucesso, cujas marcas indelveis passaro a agir como um ferrete ou um chamariz para outros sucessivos fracassos. E o que pensam, nesse sentido, os professores da Escola X? Embora se diga que o aluno aprende, apesar do professor, perfeitamente possvel que o professor atrapalhe a alfabetizao da criana at sem querer (Fala de S-3). Se o professor, at sem querer, pode atrapalhar a alfabetizao do seu aluno, em vez de favorec-la, importante que saibamos como e quando isso acontece. A mediao docente prejudicial alfabetizao da criana...

... quando o professor no valoriza a produo da criana; quando deixa o aluno fazer as atividades de qualquer jeito; o professor precisa observar muito e incentivar a criana a se aperfeioar cada vez mais (Fala de S-4).

... quando o professor discrimina a criana (Fala de S-2).

... quando o professor no sabe fazer o seu trabalho; quando inibe a produo do aluno; ou quando no se sente responsvel pela alfabetizao das crianas o professor precisa fazer esse aluno querer (Fala de S-3).

... quando ele no aproveita o conhecimento de mundo que a criana traz ou no valoriza as histrias de vida que ela conta. A atitude de indiferena ou de desvalorizao do professor atrapalha porque pode passar pela cabea da criana assim: nada que eu cheguei aqui sabendo vai servir. Se a escola nega o conhecimento da criana ela se sente desestimulada e, ao invs de avanar, regride (Fala de S-11).

Mas, se por um lado, a mediao docente pode obstar a alfabetizao da criana, por outro, ela tambm poder favorecer essa importante construo. Desse modo, alm das inferncias que podemos fazer das situaes anteriores, o professor tambm pode favorecer a alfabetizao da criana...

... quando ele interage com a criana e no coage, pois a alfabetizao pautada no afetivo (Fala de S-5).

... quando ele interage com a criana, procurando entender o mundo dela, a viso dessa criana. Ele precisa situar-se nessa criana para entender todo o processo que est realizando. O professor tem que criar uma relao afetiva com a criana porque a afetividade, em instncia alguma, pode ser ignorada; muito menos na alfabetizao (Fala de S-3).

... quando o professor parte do conhecimento de mundo que a criana tem, valorizando, estimulando e proporcionando outros conhecimentos, outras leitura(Fala de S-11).

Outros saberes docentes esto presentes nas falas dos professores. S-1 e S-11, por exemplo, expressam a opinio de 81,8% dos entrevistados que apontaram a histria de vida da criana como um material significativo na sua alfabetizao. Saberes docentes atitudinais tambm foram nomeados, haja vista que o bom professor deve ser: observador atento e respeitoso; competente: sabe o que faz, porque faz e como faz; capaz de motivar o aluno sem pression-lo, sem angusti-lo; cuidadoso com a auto-estima da criana; ouvinte afetuoso dos seus alunos. A interao afetiva entre professor e alunos foi destacada espontaneamente por 63,6% dos entrevistados e reforada nos ltimos excertos das falas de S-5 e S-3. A ltima fala de S-11 est muito prxima do pensamento de Snyders (1989, p.91), que aponta o modo de vida dos alunos como saber docente que deve ser trabalhado na formao e na prtica dos professores e que, certamente, faro mais significativas as suas aprendizagens:

preciso que [os professores] conheam, sobretudo, o modo de vida dos alunos, o modo de cultura dos alunos, o modo de distrao dos aluno (...), que entrem nesses modos de vida e tentem faz-los avanar um pouco mais. A formao dos professores no deve ser somente no campo da Matemtica ou da Literatura. Ela deve considerar o modo de vida dos alunos (...) (Snyders, 1989, p.91).

Com clareza, S-11 expressa a mxima freireana nem sempre compreendida de que a leitura de mundo precede a leitura da palavra, o que no significa acomodar-se quela ou com ela concordar, diz o prprio Freire (1999, p.138). Mas a leitura de si mesmo e do outro, como partes do mundo, precede a leitura da palavra. E no relato das experincias bem sucedidas de S-5 que vamos encontrar essa dimenso da alfabetizao, muitas vezes ignorada pelos professores. S-5 tem conseguido muitos progressos dos seus alunos, mesmo aqueles mais agressivos,

trabalhando as relaes scio-afetivas no grupo e com cada criana, com toque, palavras de carinho e muito afeto. Inicialmente, muitas crianas no se deixam tocar; so ariscas, desconfiadas e, ao menor carinho, elas pulam, fogem... Conversvamos com elas e trabalhvamos a sua agressividade de forma mais carinhosa, de falar com o coleguinha, de toc-lo, de sentir a mo do colega, de sentir o p... Trabalhamos muito com tinta, por exemplo, pintando os ps, as mos, fazendo com que eles sintam o papel, o prprio corpo, o colega (Fala de S-5).

O trabalho de S-5 com algumas crianas muito agressivas mas que conseguiram outras aquisies, alm do seu espao no grupo uma prova inconteste do seu saber de que sobretudo com o corpo, mediado pela palavra, que a criana constri seus vnculos afetivos e suas formas de convivncia social (Amorim, 1990, p.89). Mas... que relaes existem entre essas aquisies da criana e a sua alfabetizao?

Tem todas as relaes porque como que a criana vai aprender a ler e a escrever, se ela no conhece nem a si mesmo? Leitura de mundo, eles tm muita, mas uma leitura mecnica, onde no percebem o significado, o sentido das coisas. No nosso trabalho, eles se tocavam, liam o outro, liam a si prprios: como era a mozinha do colega (se era fina, grossa...), seu prprio p (se era grande, pequeno...). Eles comeavam a se sentir diferentes, a se sentir gente, a se sentir amados, a amar; aprenderam a colocar o que tinham de bom dentro deles para os outros tambm. E isso, antes, nunca era respeitado. Desse trabalho para a leitura da palavra era muito mais rpido! (Fala de S-5).

Na nossa percepo, S-5, de fato, sabe vivenciar o que Freire (1999, p.94) chama a verdadeira intensidade da dialtica entre a leitura do mundo e a leitura da palavra. A riqueza da prtica de S-5, traduzida na sua fala, nos faz refletir sobre a pequenez da nossa imaginao que, por mais criativa que seja, no consegue alcanar todas as repercusses que uma prtica to humana e significativa, como esta, pode ter na pessoa da criana e do prprio professor. Inmeros saberes docentes podem ser a apreendidos e confirmados: a)a alfabetizao pautada na afetividade; b)a leitura de si mesmo e do outro, como partes do mundo, precede a leitura da palavra; c)a criana e a sua histria de vida so temas significativos na sua alfabetizao; d)o corpo, mediado pela palavra, tem papel relevante no desenvolvimento scio-afetivo dos alunos; e)a escola deve favorecer a continuidade/superao da lgica, da cultura e do conhecimento da criana, entre outros saberes. Quanto a essa continuidade/superao, S-11 a defende em termos de uma continuidade evolutiva graduada. Vejamos:

Com a instituio oficial dos nveis e ciclos de aprendizagem, o trabalho com a criana tem que ter mesmo essa continuidade desde a educao infantil e, principalmente, at os 1s ciclos. Essa continuidade tem que ser feita de forma evolutiva e graduada. medida em que a criana vai avanando nos ciclos, o trabalho d continuidade queles saberes iniciais, sempre com muito respeito criana e com muito estmulo para que ela leia, escreva, produza muitos textos, painis.... porque em cada etapa, essa continuidade vai sendo graduada em novos objetivos, novos contedos, novos projetos. Por exemplo, se a criana est alfabtica, eu vou trabalhar para que ela fique ortogrfica.

Nesse sentido, observamos que as recomendaes de S-11 apontam para o que defende Snyders (1989, p.93):

Creio que o problema sempre este: permanecer na continuidade do que os alunos j gostam e, ao mesmo tempo, como que empurr-los um pouco alm disso (...). Receio que o ensino (...) no considere essa continuidade, sobretudo, no que diz respeito s crianas dos meios muito carentes. (...) se quisermos produzir algum efeito, preciso, pois, partir do modo de vida deles, participar, at certo ponto, (...) e, em seguida, neste modo de vida, ajud-los a progredir (avanar).

Como parte da sua funo social, a escola deve favorecer o avano da criana em todos os sentidos. Mas esse avano deve estar apoiado no conhecimento que a criana tem, principalmente naquilo que ela gosta e considera significativo porque, s assim, as suas aprendizagens sero facilitadas. nessa perspectiva que Snyders (1989) defende a continuidade/ruptura da cultura primeira/cultura elaborada, o que Freire (1999) prefere chamar continuidade/superao do saber de experincia feito/saber cientfico.

Os professores da Escola reconhecem essa forma de trabalhar como mais prazerosa e, por esta razo, mais envolvente. Nesse sentido, eles destacam que, na alfabetizao, a relao prazer de ler/gostar de ler fundamental para o aprender a ler. O prazer de ler/gostar de ler deve ser anterior e simultneo ao aprender a ler, para que esta aquisio se consolide. o prazer de ler/gostar de ler que levar a criana de volta ao texto e, a, quanto mais ela l, melhor vai ler, do que poder resultar um bom leitor. Para tanto, os professores da Escola X apontam a Literatura Infantil que bastante trabalhada na Escola como uma vertente promissora na mediao do processo de gostar de ler/aprender a ler, alm de fazer parte do patrimnio cultural da humanidade, do qual todas as crianas deveriam se apropriar .

Os professores tm observado que s a histria de vida das crianas to ou mais prazeroso que a Literatura Infantil, na sua alfabetizao. So materiais muito significativos que prendem a ateno da criana, alm da funo catrtica que desempenham. Tais recursos tm favorecido tambm o contato da criana com os livros. Esse fator e o prprio ato de leitura so apontados pelos professores como importantes na alfabetizao.

Quando trabalhei com salas de leitura, percebi que as crianas que tinham mais acesso biblioteca, s salas de leitura, que levavam esses livros pra casa, apresentavam rendimentos mais interessantes do que as outras. Tive casos de crianas que aprenderam a ler, pela vontade de ler os livros que levavam para casa (Fala de S-3).

Depreendemos desta, de outras falas dos professores e do seu prprio trabalho, a importncia conferida por eles s experincias de leitura e escrita da criana, como fundamentais na sua alfabetizao porque lendo que se aprende a ler; escrevendo que se aprende a escrever e essas atividades, naquela Escola, no so feitas de qualquer jeito.

Segundo Gauthier et al. (1998), o bom ensino, entre outras condies, requer que a formao do professor contemple o domnio de saberes diversos, catalogados numa tipologia constituda pelos saberes disciplinares, curriculares, das cincias da educao, da tradio pedaggica, experienciais, da ao pedaggica. A necessidade de uma slida formao do professor enfatizada na prtica e no discurso dos professores da Escola. Dentre tantos saberes da formao, destacamos os saberes disciplinares e a sua inter-relao com os saberes das Cincias da Educao na perspectiva apontada por Tardif, Lessard, Lahaye (1991).

As palavras de S-7 como que eu vou ensinar geometria e geografia aos meus alunos, se eu no sei esses contedos? esto em perfeita sintonia com a assero de Gauthier et al. (1998, p.29), de que ensinar exige um conhecimento do contedo a ser transmitido, visto que, evidentemente, no se pode ensinar algo cujo contedo no se domina. Os saberes disciplinares (Tardif, Lessard, Lahaye, 1991) integram o que Mialaret (1991, p.9) chama de formao acadmica:

processo e resultado de estudos gerais e especficos feitos num domnio particular por um indivduo; (...) desenvolve, por um lado, uma competncia mais acentuada numa ou mais disciplinas cientficas conforme o nvel de estudos efectuados [sic] e, por outro lado, aquilo a que chamaremos de cultura geral (...): a verdadeira cultura geral a que torna o homem aberto(...), a tudo o que ultrapassa o estreito crculo da sua especialidade. A cultura geral assim concebida depende tambm das experincias do indivduo feitas fora dos quadros estritamente universitrios (...).

Vimos que S-7 se referiu a duas disciplinas completamente diferentes (geometria e geografia), o que mostra as exigncias da realidade do professor alfabetizador que, dentre os saberes disciplinares, devem conhecer os contedos relativos lngua portuguesa, s cincias, inclusive matemtica, histria e geografia, pelo menos. Alm do estudo desses contedos, consideramos muito imprescindvel formao do alfabetizador, o estudo articulado das especficas metodologias relacionadas queles contedos. Compreendendo as exigncias da formao com que se depara o professor, Mialaret (1991, p.11) complementa:

parece-nos que uma formao acadmica no deve ser centrada apenas sobre este ou aquele grupo de disciplinas (...), mas deve assegurar ao mesmo tempo aberturas sobre outros domnios cientficos (...). preciso opor, como Gaston Bachelard, a falsa especializao que limita e empobrece o indivduo, autntica especializao que, graas a um aprofundamento inteligente, estabelece relaes, intersecta domnios cientficos cada vez mais numerosos (...). A autntica cultura geral no comparvel amvel camada superficial que permite falar sem competncia de todos os assuntos.

Em se tratando da formao docente, a cultura acadmica necessria mas insuficiente. Diz, ainda Mialaret (1991) que hoje no mais se admite que para formar o professor basta uma grande cultura acadmica sem formao pedaggica ou uma boa formao pedaggica sem nenhum nvel especial de formao acadmica. Deve ficar claro que formao acadmica e formao pedaggica no se confundem; no so opostas; no so completamente separadas e, no caso dos professores, formao acadmica e formao pedaggica esto muito ligadas e no simplesmente justapostas. A necessidade da interligao entre formao acadmica e formao pedaggica, de que fala Mialaret, tambm destacada por S-7, que o faz, nos termos das suas necessidades: o professor precisa saber os contedos, saber como a criana aprende e se relaciona com esses contedos; quais os contedos que podem ser ministrados, como ensinar esses contedos. E quanto formao pedaggica, S-9 chega a citar disciplinas do seu curso de Pedagogia que deram maior contribuio sua prtica: Filosofia, Antropologia, Didtica e Processo de Alfabetizao, entre outras.

Sobre a importncia da concepo de linguagem na atividade docente de alfabetizar crianas, os professores no falaram explicitamente. Todavia, mais importante do que o discurso sobre a prtica efetiva do professor. Nesse sentido, temos muitas evidncias de que, a prtica de muitos professores da Escola tem subjacente a concepo de linguagem como forma de inter-ao, concepo esta

(...) que implica uma postura educacional diferenciada, uma vez que situa a linguagem como o lugar de constituio de relaes sociais, onde os falantes se tornam sujeitos. Neste sentido, a lngua s tem existncia no jogo que se joga na sociedade, na interlocuo, e no interior de seu funcionamento que se pode estabelecer as regras de tal jogo (Geraldi, 1984a, p.43).

Em termos das funes da linguagem oral e escrita tomando como referncia outros contextos escolares que conhecemos, nos causou surpresa a prtica viva da lngua na Escola X que parece ter subjacente a inteno de resgatar, para dentro do contexto escolar, a sua funcionalidade no cotidiano extra-escolar, tornando a pedagogia da alfabetizao mais prazerosa e efetiva. Ali, a criana vivencia experincias significativas com a linguagem, atravs de atos de fala, leitura e escrita, onde a prtica viva da lngua plena de contedo e de sentido. Porquanto, participam da escrita e leitura de cartas, jornais, poesias, msicas, receitas, listas de compras, propagandas, simpatias, oraes, entre outras, explorando funes diversas da linguagem solicitar, informar, contar, brincar, argumentar, refletir... em situaes acadmicas onde privilegiada a interao verbal realidade fundamental da lngua (Bakhtin, 1986).

Para as crianas da Escola X que, em geral, no tm adultos alfabetizados ao seu redor, os professores tm a preocupao de permitir-lhes, desde a educao infantil, o acesso a atos funcionais e significativos de leitura e escrita que despertem e alimentem o seu desejo de se apropriarem da lngua padro, em todos os seus usos e complexidade. Nesse sentido, fazemos nossas as palavras de Teberosky (1991, p.15):

H algo mais proveitoso na escola do que o fato de ela proporcionar uma variedade de oportunidades de uso da linguagem? Se o professor capaz de oferecer uma ajuda efetiva quanto diversidade das situaes de uso, a criana poder aprender, por meio desse uso, as regras de funcionamento da linguagem escrita.

A prtica consciente e consistente dos professores est enraizada no compromisso poltico dos que fazem aquela Escola com a incluso social dos seus alunos. E no poderia ser diferente a dodiscncia de um professor alfabetizador comprometido politicamente com o aluno da escola pblica porque o compromisso poltico da aula de lngua portuguesa oportunizar o domnio tambm desta variedade padro, como uma das formas de acesso a bens que, sendo de todos, so de uso de alguns (Geraldi, 1984b, p.124). Tal como Gnerre apud Geraldi (1984a, p.45), os professores sabem que a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder; mas como Geraldi (1984c, p.79), eles acreditam que a linguagem tambm serve para romper o bloqueio.

Nesse sentido, importante frisar que aqueles professores no ignoram nem desrespeitam as vrias formas dialetais utilizadas pelos alunos. Ao contrrio, num clima de respeito, desde a educao infantil, todas as crianas so encorajadas a falar como sabem, a escrever como sabem e a ler como sabem porque, fortalecidas pelo reconhecimento da sua cultura primeira, gradativamente, podero romper o bloqueio de acesso a outras formas culturais de interao. Mas os professores daquela Escola vivem situaes dilemticas diante da questo: como alimentar e no inibir a participao da criana, corrigindo seus erros rumo apropriao dos diversos usos e complexidade da lngua padro? Esta deciso no deve ser feita de forma aleatria mas respaldada teoricamente e, neste sentido, j existem muitos estudos.

O referencial terico bsico dos professores da Escola a psicognese da lngua escrita de Ferreiro, Teberosky e colaboradores. Vejamos o que diz S-11: O professor alfabetizador precisa compreender o processo pelo qual a criana passa at chegar a se alfabetizar. Para ele se fundamentar nisto, s estudando muito a psicognese da lngua escrita de Emilia Ferreiro. Em vrios momentos da pesquisa, ficou evidente que, para aqueles docentes, o processo psicogentico de construo da escrita um saber docente fundamental para quem vai alfabetizar, haja vista as inmeras possibilidades de uma prtica menos estigmatizante e discriminatria que aquela perspectiva enseja. As concepes de sujeito da aprendizagem, processo de ensino e objeto de conhecimento subjacentes Psicognese da Lngua Escrita (Ferreiro e Teberosky, 1985) apontam para uma mudana radical na pedagogia mecanicista de alfabetizao. No contexto dos estudos psicogenticos, os professores ressaltaram a importncia dos saberes docentes relativos: aos nveis de conceptualizao da escrita; s hipteses/conflitos cognitivos; ao erro construtivo. Os nveis de conceptualizao evoluem desde a no diferenciao entre as representaes icnica e no icnica at a fonetizao da escrita, sempre sob o respaldo de hipteses especficas da pr-silbica alfabtica. Os confrontos do alfabetizando com situaes de escrita no explicveis pela hiptese vigente, perturbam-no, desequilibrando-o. Aqui sublinhamos a importncia do ambiente alfabetizador, ora fornecendo elementos para consolidao das hipteses construdas, ora provendo o contexto de elementos desequilibradores/reequilibradores rumo s construes em nveis mais complexos. H uma estreita relao entre as escritas produzidas pela criana e as hipteses por ela formuladas quanto escrita. As escritas no so aleatrias e muitos dos erros observados se justificam atravs das hipteses, sendo, assim, explicados por Ferreiro e Teberosky (1985, p.30):

Na teoria de Piaget, o conhecimento objetivo aparece como uma aquisio, e no como um dado inicial. O caminho em direo a este conhecimento objetivo no linear: no nos aproximamos dele passo a passo, juntando peas de conhecimento umas sobre as outras, mas sim atravs de grandes reestruturaes globais, algumas das quais so errneas (no que se refere ao ponto final), porm construtivas (na medida em que permitem aceder a ele). Esta noo de erros construtivos essencial.

Porquanto, (...) a cada erro subjaz uma hiptese e um mecanismo de se executar esta hiptese. Donde se pode inferir que o erro sempre sistemtico, e nunca aleatrio (Oliveira e Nascimento, 1990, p.38). Conforme foi dito anteriormente, os professores sentem muitas dificuldades quanto postura que devem assumir frente aos erros das crianas na alfabetizao, sem inibi-las. Na tentativa de contribuir com estes e outros professores, discutiremos algumas questes referentes ao assunto e faremos indicaes de fontes de pesquisa interessantes nesse sentido. Desse modo, com base na opinio de especialistas que discutiram a questo no artigo de Oliveira (1992), relacionamos alguns procedimentos pedaggicos, cuja utilizao s o professor e o seu contexto podero indicar a adequao e/ou a oportunidade de utiliz-los: a)atentar para as hipteses construdas pelas crianas mas mediar desequilbrios/reequilbrios para novas aquisies; b)evitar a prtica espontanesta: deixar a criana errar, errar at aprender uma irresponsabilidade; c)confrontar escritas iguais e diferentes; d)considerar que a lngua escrita uma construo social e cultural com grafia no aleatria, com regras que devem ser aprendidas por seus usurios; e)listar corretamente palavras que tenham sido incorretamente grafadas pelas crianas; f)discutir com as crianas a noo de conveno normas corriqueiras como o uniforme, a postura em sala de aula etc.); g)buscar a lgica que subjaz grafia das palavras; h)construir jogos que possibilitem a compreenso: da no correspondncia biunvoca som X grafia; da relao escrita X pauta sonora da linguagem; de que no se escreve como se fala nem se fala como se escreve; i)incentivar as crianas a escreverem do seu jeito, o que no significa de qualquer jeito mas da melhor maneira possvel.

Todavia, s os contextos scio-culturais e polticos especficos podero iluminar a deciso pedaggica do professor quanto conduo da questo, na perspectiva de que a escrita seja sempre significativa para a criana, mormente como instrumento de interao. Observamos na prtica e no discurso dos professores da Escola a preocupao em proporcionar s crianas experincias significativas de aprendizagem com a leitura e escrita. A aquisio da lngua escrita objetivada, no s em termos da construo de um sistema de representao grfica, pela criana, mas principalmente como forma de interao, manifestada atravs dos diversos usos sociais construdos no seu contexto, na sua cultura. Um ensino-aprendizagem da lngua escrita apoiado nesses pressupostos dever ser desenvolvido atravs de situaes e atividades, cujas funes e sentido sejam reconhecidos pela criana ou por sua comunidade onde, certamente, foi construda a possibilidade desse reconhecimento (Lemos, 1991, p.9).

Considerando a perspectiva de ampliao apontada por Snyders (1989), as atividades escolares podero ensejar ao alfabetizando, novas experincias com a leitura e a escrita, para que ele possa se apropriar de outras funes da lngua escrita, igualmente dialgicas e significativas. Com estas preocupaes, a pedagogia da alfabetizao da Escola X utiliza-se, basicamente, do texto como unidade de ensino, na alfabetizao, fundamentada, principalmente em Teberosky. Baseada em Stubbs, Teberosky (1991, p.50), chama texto toda pea de discurso oral ou texto escrito que tenha sido produzido em uma situao social. No Prefcio do livro de Teberosky (1991), Lemos explica e exemplifica a concepo de texto trabalhada pela autora e algumas das inmeras possibilidades de descobertas sobre a escrita que o texto pode proporcionar aos alfabetizandos:

(...) o texto a unidade de produo lingstica que, independentemente de sua extenso, corresponde ao discurso que constitui uma determinada situao ou atividade. Escrever o prprio nome , assim, produzir um texto dentro de um ato com sentido afim ao que a assinatura do prprio nome tem para o adulto, mesmo que sua extenso seja a de uma palavra. (...) a diversidade das situaes em que os atos de ler e escrever esto integrados, que oferece tanto a possibilidade da criana reconhecer os conflitos que o sistema de representao alfabtica inevitavelmente criar para ela, quanto a possibilidade de sua apropriao (Lemos, 1991, p.9).

A maioria dos professores fala das vantagens da utilizao do texto, principalmente pela riqueza de situaes desequilibradoras/reequilibradoras que ele proporciona, ao contrrio do trabalho com a letra solta que, entre outras desvantagens, no d oportunidade da criana falar (Fala de S-1). Falando da importncia do trabalho com o texto na alfabetizao da criana, S-6 faz uma analogia entre a aprendizagem da lngua oral e a aprendizagem da lngua escrita, no que cita o trabalho de Rego (1988) que retomamos no fechamento desse item, justificando a utilizao do texto como unidade de ensino na alfabetizao:

Quando as crianas comeam a aprender a falar, as palavras e frases lhe so apresentadas em contextos significativos para elas. No h por parte dos pais uma preocupao com seqncias didticas preestabelecidas. Esse modo de transmitir o conhecimento de uma lngua tem-se mostrado bastante eficaz no sentido de fornecer s crianas as evidncias de que elas necessitam para perceber a forma como a linguagem se organiza para propsitos comunicativos especficos. Em curto espao de tempo a criana termina por dominar um extenso vocabulrio e as estruturas bsicas de sua lngua, a no ser que exista algum impedimento de natureza especfica (Rego, 1988, p.14).

Alm de todos esses saberes, de fundamental importncia para a pedagogia da alfabetizao, que o professor compreenda os conceitos de alfabetizao; analfabetismo/alfabetismo; analfabeto/alfabetizado (Sntese de falas de vrios sujeitos desta investigao). As discusses feitas por Soares (1985; 1994) so das mais completas e esclarecedoras nesse sentido; as mesmas tm se constitudo em relevantes contribuies no estudo de professores que procuram dirimir dvidas quanto a esses conceitos. Por esta razo, nos apoiaremos principalmente nos referidos trabalhos da autora, para as discusses nesse item. Soares (1985; 1994) chama a ateno para no se atribuir alfabetizao um conceito demasiadamente amplo ou excessivamente restrito, ora ultrapassando os limites do mundo da escrita, ora limitando codificao. Alguns equvocos podem dificultar as conceituaes e a clareza do professor acerca do alcance da sua ao. Um desses equvocos diz respeito desresponsabilizao de alguns docentes dos diversos nveis e ciclos que ficam atribuindo ao prximo professor a incumbncia de alfabetizar as crianas, sob a alegao de que a alfabetizao um processo contnuo que se desenvolve por toda a vida. A alfabetizao , de fato, um processo contnuo que se inicia antes mesmo da criana entrar para a escola e se desenvolve por toda a vida. Mas, como diz Soares (1985, p.20), no devemos confundir o processo de aquisio da lngua oral e escrita com o processo de desenvolvimento da lngua oral e escrita. E mesmo que haja a opo pela abordagem construtivista de aquisio da lngua escrita, o professor no pode esquecer que a codificao/decodificao sempre um meio para que aquela aquisio se realize plenamente. Desse modo, o domnio da mecnica no suficiente para a alfabetizao mas necessariamente tem que ser trabalhado.

Postos os elementos bsicos da discusso, podemos sintetizar os conceitos que, na nossa opinio e na dos entrevistados, so fundamentais para uma prtica mais firme e coerente. Etimologicamente, o termo alfabetizao no ultrapassa o significado de levar aquisio do alfabeto, ou seja, ensinar as habilidades de ler e de escrever (Soares, 1985, p.20). Todavia, o processo de alfabetizao deve visar mais que isso: alm da aquisio das habilidades de decodificao/codificao/compreenso/expresso da leitura e da escrita, a pedagogia da alfabetizao no pode estar dissociada dos usos sociais da lngua escrita significativos, pelo menos, na sociedade em que vive o alfabetizando (Cf. Soares, 1994, p.48). Quanto s dicotomias analfabetismo X alfabetismo, analfabeto X alfabetizado, na realidade, so falsas dicotomias: o alfabetismo ou letramento, como chamam alguns que a condio de domnio e uso plenos da escrita, numa sociedade letrada (Soares, 1994, p.48) uma varivel contnua. Nesse sentido, Romo (1991) diz que h pessoas mais alfabetizadas que outras; no so duas categorias distintas, o que tambm torna discutvel a perspectiva de analfabeto absoluto ou analfabeto literal. Considerando a leitura de mundo como momento que antecede a leitura de palavra, bem como os grafismos primitivos da escrita pr-silbica como escrita, bastante discutvel em que momento do continuum h ausncia total da habilidade de ler/escrever ou quando se est plenamente alfabetizado. A clareza dos argumentos apresentados por Soares (1994, p.49) evidencia ainda que no h um analfabeto ou analfabetismo num ponto zero do continuum. Se isso fosse possvel, significaria que, naquela pessoa, haveria ausncia total de leitura de mundo/palavra, bem como ausncia de condies de uso da escrita, mesmo que esse uso fosse mediado por algum com nvel mais elevado de alfabetismo por exemplo, o indivduo ser incapaz de se inteirar das notcias de um parente atravs da leitura de uma carta por outrem.

III Consideraes Finais A alfabetizao do indivduo determinada por e determinante de uma multiplicidade de fatores. Dentre estes, os de ordem cultural, social e poltica relativizam os critrios definidores da quantidade e da qualidade das aquisies, evidenciando que aqueles conceitos so relativos a diferentes povos, culturas e momentos histricos. Como diz Soares (1985), tais conceitos so de natureza complexa, multifacetada, ativa, construtiva e que implicam dimenses individual, social, cultural e poltica, envolvendo uma gama de perspectivas e uma pluralidade de enfoques. Desse modo, uma abordagem coerente de alfabetizao deve ser suficientemente competente para incluir: a) a mecnica do ler/escrever; b) os aspectos construtivos do processo; c) o enfoque da lngua escrita como meio de expresso/compreenso/interao, com especificidade e autonomia com relao lngua oral; d) os determinantes sociais das funes e finalidades da lngua escrita.

Alm disso, em nenhum momento/nvel desse processo, o professor pode se omitir de desempenhar, da melhor maneira possvel, o seu papel mediador na construo desse conhecimento, pela criana. E, sobretudo para a criana da escola pblica, cuja vida escolar, em geral, muita curta, nenhum momento do seu processo de alfabetizao deve ser desperdiado. Para isto, o professor dever proporcionar-lhe experincias sistemticas, onde a criana seja estimulada: a desenvolver a sua oralidade; a agir e a refletir sobre a lngua escrita/falada; a refletir sobre as funes e importncia da aquisio da lngua escrita; a ler e a escrever, no s como habilidade de decodificao e de codificao, mas principalmente como apreenso/compreenso/expresso da lngua; a fazer uso da lngua oral e escrita, em todos os nveis de complexidade e em todos os usos sociais/individuais, respeitando-se as variaes lingsticas apresentadas por cada um dos alunos. Esta a grande meta da alfabetizao que, por ser processual, acontece por etapas. Essas etapas, ao longo dos nveis/ciclos escolares devem ser flexivelmente definidas mas insistentemente perseguidas. Desse modo, as crianas no devem ser prejudicadas, se no atingirem as metas do seu nvel, nem devem ser impedidas de avanar, se apresentam condies de faz-lo. Finalmente, a compreenso e a articulao desses saberes, pelos professores, so fundamentais para que sejam definidos critrios de avaliao e de interveno junto s crianas e para que possam encaminhar uma pedagogia de alfabetizao com mais chances de ser bem sucedida.

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