Algumas Reflexoes Sobre Literatura Negra Florentina

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  • 8/18/2019 Algumas Reflexoes Sobre Literatura Negra Florentina

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    Professora da Universidade Federalda Bahia.

    Literatura Afro-Brasileira:

    algumas refexões

    A literatura tem sido, na vida cultural brasilei-ra, um elemento importante para a congu-ração identitária de setores das elites. Sabe-dores da força da palavra, tendo consciência de que acultura letrada desenha pers e normas comportamen-tais e interage com as culturas populares, intelectuais do

    século XIX zeram da literatura veículo de construçãoe transmissão de idéias e valores que compuseram osdiscursos ociais sobre o Brasil. O imperador Pedro II,intelectuais como Gonçalves de Magalhães, Alencar,Machado de Assis, Joaquim Nabuco desejaram fazerdos textos literários pilares institucionais da nacionali-dade, por vezes sugerindo modelos de heróis ou apon-tando vilões, outras, propondo especicidades no uso

     brasileiro da língua portuguesa, ou através da exaltaçãode elementos da terra brasileira, ou ainda nas tentativasde inserção de seus textos e rostos na tradição escritaocidental, esmaecendo o papel dos grupos étnicos des-

     prestigiados por esta tradição. Os romances românticos,em suas versões regionais ou urbanas podem ser vistoscomo exemplos do impulso didático-pedagógico quenorteava os projetos literários dos escritores brasileiroque publicavam na primeira parte do século XIX. Aliás,a denição do Brasil e da brasilidade torna-se insisten-temente presente na agenda de pensadores e escritores

     brasileiro desde que Denis1  Garret2  , no século XIX,sugeriram o abrasileiramento das letras nacionais. Paracompor seus discursos de comunidade imaginada, po-líticos e intelectuais elegeram o que/quem realçar e oque/quem esmaecer, ou mesmo esquecer, nas perfor-mances discursivas que encenaram. Por outro lado, valeressaltar que além dos objetivos já referidos, a autoriade discursos históricos, políticos ou literários forneciaao indivíduo a possibilidade de desfrutar de privilégios- desde a época, restritos aos poucos que possuíam ha-

     bilidades de ler e escrever e principalmente de publicar.

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    Deste modo, aos negros,africanos ou afrodescen-dentes, de acordo coma legislação vigente em

    todo período colonial eextensiva ao século XIX,não caberia escrever, pu-

     blicar ou mesmo falar desi ou de seu grupo.

    Embora assim fossedeterminado, existem re-gistros de nomes de al-guns que falaram de si oude suas tradições desde o

     período colonial. Deni-

    dos como pardos, mula-tos ou negros, termos que para além de nuances dis-criminatórias evocavamuma ascendência africanaincontestável, eles tenta-ram participar das deci-sões e dos debates sobrea vida política nacional.Oswaldo de Camargo noseu livro O negro escritofaz referência ao que se-ria “ o primeiro texto deum negro”, uma carta deHenrique Dias citada porEdison Carneiro. No tex-to Henrique Dias recla-ma ao rei de Portugal em1650:

    “E ora, pelo Mestre deCampo General Francis-

     co Barreto, que governa, sou tratado com pouco respeito, e com palavrasindizentes à minha pes-

     soa, nem me conhece por soldado, e que não sou nada nem venço soldo,(e) a este respeito outras

     muitas moléstias, que to- dos geralmente padecem

     até que Vossa Majesta- de seja servido mandar remediar tantas faltas, pelo que convém â con-

     servação deste estado.Guarde Deus a católica pessoa de Vossa Majes- tade para aumento daCristandade”( Camargo,1987, p.25)

    João Reis e EduardoSilva transcrevem emapêndice ao livro Nego-ciação e conito, textode um “Tratado proposto

    a Manuel da Silva Ferrei-ra pelos seus escravos du-rante o tempo em que elesse conservaram levanta-dos” escrito por volta de1789; os participantesda revolta dos Búzios, nomesmo ano, escreviam efaziam circular pela ci-dade do Salvador avisose informações que eramcolocado nos postes dacidade. Ainda os textos

     produzidos pelas irman-dades e sociedades negrascomprovam a existênciade pardos e negros alfa-

     betizados que redigiamatas, registravam dívidase depósitos em livros al-guns dos quais têm sido

     pesquisados contempora-neamente.

    Ou seja, de próprio punho ou não, os negrosatuavam como sujeitosnas pequenas brechasque podiam descobrir noregime escravista. Parti-cipando diretamente docampo da textualidade

    instituída dos registroshistóricos, cita-se Cal-das Barbosa, poeta satíri-co do século XVIII, autor

    de poemas inspirados emmodinhas e lundus quecircularam na tradiçãooral, além de outros poe-tas “ mulatos” ou “ mesti-ços” que são assim iden-ticados nas históriasliterárias e podem de-monstrar como os afro-descendentes, em tendooportunidades, atuavam

    como sujeitos de discur-sos, relacionando-os ounão com suas históriasou tradições de origemafricana. Para muitos de-les, mestiços, obliterar avinculação com estas tra-dições era uma forma demais facilmente ampliaras brechas do sistema es-cravista discriminatório

    Elejo alguns marcossignicativos de uma pro-dução literária que tem,entre outras, a propostade incorporar marcas de

     problemas ou tradiçõesatinentes aos afrodescen-dentes em seu corpo tex-tual. Penso nos já antoló-gicos para estudiosos dotema, Luis Gama, MariaFirmina dos Reis, José doPatrocínio, Antonio Re-

     bouças e Cruz e Souza,Lima Barreto - Escrito-res afrodescendentes queescreveram sobre temasatinentes à afrodescen-dência, que militaram emmovimentos sociais da

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    época voltados para aabolição ou que discuti-ram em suas obras sobrea discriminação racial.

    Uma questão se co-loca ...Teriam estes es-critores publicado tex-tos que podem consituiruma textualidade negrano Brasil?

    Escreveram com talobjetivo?

    Arrisco então umaresposta:

    Estes escritores, em-

     bora não estivessem in-teressados em participarde um produção textu-al que se denia comoafro-brasileira, podemhoje, a posteriori, ser li-dos como antecessoresde uma produção textualintencionalmente deni-da como afrodescenden-te, compondo assim umaversão da história da li-teratura no Brasil.

    As histórias selecio-nam e organizam os fa-tos e os textos de acordocom a sintaxe que em-

     basa as crenças estéti-co-losócas do seu au-tor ou autores. Assim, oque é escolhido para serlembrado ou esquecidovaria de acordo com a

     performance que se de-seja apresentar e com osobjetivos e metodologia

     pedagógicos do discursoidentitário qualquer queseja ele. Entendo quealguns autores podemser lidos e inseridos em

    uma tradição que è ins-taurada com o objetivode resgatar a história deuma textualidade afro-

    descendente e de divul-gar nomes contemporâ-neos que têm pouca ounenhuma circulação en-tre o já parco universode leitores do Brasil..

    Vale destacar, no en-tanto, que embora jáexistam vários estudosna con-t e m p o -

    raneida-de, sãorelativa-mente re-centes ose s t u d o sde fôlegosobre a

     produçãot e x t u a l

     produzi-da e/ouencenada

     por afro-descendentes. Os brasi-lianistas foram os pri-meiros a dedicar maioratenção ao tema; Basti-de4, Brookshaw5, Raba-saa6, Sayers7  são nomesque podem ser apontadoscomo marcos deste tipode estudo, seguidos porClóvis Moura, Oswaldode Camargo, BeneditaDamasceno dentre vá-rios outros que se debru-çaram sobre a história datextualidade no Brasil

     procurando identicarmomentos signicativos

    em que escritores brasi-leiros zeram da sua as-cendência africana con-teúdo de seus textos e

    atuações.A expressão do dese- jo do afrodescendenteescrever, reivindicandodireitos de cidadão e lu-gar ativo na comunidadeimaginada Brasil, ganhafôlego e maior visibili-dade na cidade de São

    Paulo nosanos iniciais

    do séculoXIX, coma chamadai m p r e n s anegra. En-tretanto, noséculo XIX,antes mes-mo da abo-lição, pelasvias institu-cionais ounão, MariaFirmina dos

    Reis, Antônio Rebouças,Gama, Patrocínio, An-dré Rebouças ilustram a

     busca da imprensa e datribuna como forma defazer ouvidas as reivin-dicações negras do sécu-lo. Já no século XX, so-frendo as conseqüênciasda exclusão programadae crescente do mercadode trabalho e da vidasocial brasileira, inte-lectuais, funcionários eoperários afro-descen-dentes reuniram-se emtorno de jornais e asso-

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    ciações com o intuito de promover confraterni-zações, cursos, festas natentativa de romper as

     barreiras da política cul-tural da época. O Mene-lick, Clarim da Alvora-da e a Voz da raça sãoexemplares de momentosem que os afro-brasilei-ros organizaram-se para

     produzir textos e intervirna textualidade e na po-lítica cultural brasileira.Em Salvador, a história

    registra, as atividades do professor Manuel Que-rino que, em 1918, en-tre outras atividades quedesenvolve, escreve parao VI Congresso Brasilei-ro de Geograa, realiza-do em Belo Horizonte, otexto intitulado “ O colo-no preto como factor dacivilização brasileira” .

    Organizado em seiscapítulos, o texto fala dacolonização, da chegadados africanos ao Brasil,com destaque para os co-nhecimentos que o refe-rido grupo trazia e queutilizou e adaptou ás con-dições de que dispunhano período em que este-ve escravizado. O traba-lho de Manuel Querinorepresenta um esforço

     para constituir exemplos positivos de participaçãodo negro na produção deriqueza do país. Em Araça africana, no capítu-lo intitulado “Os homensde cor preta na história”,

    Querino lista intelectuaisfamosos e professoresanônimos afrodescenden-tes que se destacaram nas

    suas áreas de trabalho,fazendo um breve resu-mo de suas biograas.

    Um trabalho importan-te para aqueles que dese-

     jam construir um elencode afro-descendentesque resgate o papel ne-gro como sujeito políticocultural.

      Para além da impor-

    tância como registro his-tórico, tal genealogia datextualidade afro-brasi-leira exerce o papel fun-damental de constituir lu-gares de memória funda-mentais como estímulo àação dos escritores e lei-tores mais jovens. Assim,

     podemos dizer que comos fatos pesquisados atéo momento podemos fa-lar de uma tradição textu-al de autoria de afro-bra-sileiros que se constróigradativamente com a“ descoberta “ de autoresque não estão na frentede cena dos veículos delegitimação dos cânonesliterários no Brasil.

    Os escritores e inte-lectuais afro-brasileiros,depois que os movimen-tos políticos e literáriosdos Estados Unidos e daFrança propagaram-se noBrasil através de tradu-ções e versões publica-das na imprensa negra ecomo conseqüência das

    visitas realizadas pornomes atuantes da vidaafro-americana, inten-sicaram as reexões

    sobre as suas produções.O Jornal Quilombo, diri-gido por Abdias do Nas-cimento volta-se para “denir” o teatro negro” e

     produções culturais ou-tras também com o mes-mo designativo. Nesteintuito publica na ediçãode janeiro de 1950, nú-mero 5, parte do texto de

    Sartre, Orfeu Negro, emtradução feita por Iro-nides Rodrigues, nomesempre citado quando sefala das produções e domovimento negro nas dé-cadas inciais do séculoXX.. Ainda enfatizandoos trânsitos entre as pro-duções e as reexões dosafro-descendentes via-

     bilizadas pelo Atlântico Negro, o mesmo Jornal Quilombo publica, no nú-mero 7-8, anúncio do nú-mero 7 da Presença Afri-cana - revista cultural domundo negro, o anúncioestá escrito em francês ecom endereço para com-

     pra em Paris. De fato, oQuilombo é um exemplareloqüente dos circuitosdo Atlântico Negro queacontecem nos meadosdo século XX, haja vistaa quantidade de registrosde visitas de intelectuaise artistas negros e a gran-de quantidade de textos einformações ou palestras

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     proferidas por afro-ame-ricanos e outros estran-geiros que se debruçamsobre temas relativos á

    vida e culturas de ori-gem africana.Depois do Jornal Qui-

    lombo  os escritores eintelectuais afro-brasi-leiros dão continuida-de à tradição de fundargrupos, jornais e revis-tas como os Cadernos deCultura da AssociaçãoCultural do Negro, Con-

    gressos de Negro, Afro-Latina América, RevistaTição em Porto Alegre,Jornal Abertura em SãoPaulo, Jornal do Movi-mento Negro Unicado,o grupo Gens , os Cader-nos Negros, a antologiaQuilombo de palavrasentre outros.

    A partir da segundametade do século XX

     podemos falar de auto-res com Ruth Guima-rães, Muniz Sodré, JoelRuno dos Santos, GeniGuimarães, Cuti, Con-ceição Evaristo, Edmil-son Pereira, Adão Ven-tura, outros escritoresque produzem textossobre aspectos da tradi-ção histórico-cultural deorigem africana no Bra-sil, ou sobre aspectos docotidiano do afro-brasi-leiro ou ainda levantamem seus textos questõessobre o que entendem

     por literatura afro-brasi-leira ou literatura negra.

    O escritor Cuti, en-tendo que cabe á litera-tura o papel de resgateda história e cultura do

    negro no Brasil arma:

    “a literatura negranão é só uma questãode pele, é uma questãode mergulhar em deter-minados sentimentos denacionalidade enraiza-dos na própria históriado Africano no Brasil esua descendência, tra-

     zendo um lado do Brasilque é camuado” CN7. p.6 

    Em livro intituladoReexões sobre a litera-tura brasileira, de 1985Márcio Barbosa também

     propõe uma denição:

     “Eis, portanto, a es- pecifcidade da litera-tura negra no Brasil: éuma arte feita a partirde uma perspectiva dodominado, do oprimido.

     Mesmo os negros que en-traram para a história daliteratura branca não es-caparam dessa condição,

     já que nunca deixaramde ser fsicamente negrose portanto, sujeitos a to-das as condições que seimpõe aos oprimidos emgeral.” ( Reexões p.50)

    Márcio Barbosa e Es-meralda Ribeiro, na apre-sentação dos Cadernos

     Negros 25, destacam a

     preocupação estética eas “ alegrias e dores pró- prias do seres humanos”como elementos básicosda constituição do textoliterário mas destacam adiferença instalada pelos

     poema afro-brasileiros:“ sua capacidade de

    dar visibilidade às mar-cas culturais e existen-ciais que identifcam osdescendentes de africa-nos neste país.”

    (CN 25, p. 11)

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    A poeta e romancistaConceição Evaristo res-salta a possibilidade dedescoberta fornecida pelo

    ato da escrita: “ escreveré dar movimento à dan-ça-canto que meu corponão executa. a poesia éa senha que invento para

     poder acessar o mundo”CN 25 p.35

    Já Para Oubi Inaê ki- buko

      “A literatura consi-

    tui-se de Palavras crista-linas que semeiam cami-nhos no solo da vivênciaentre negros,brancos eoutras etnias ao seremregadas pelas águas dorespeito,conhecimento,auto-estima, consciência,autocrítica, solidarieda-de...” p.141

    A longa citação de re-exões diferenciadas ela-

     boradas por autores afro- brasileiros tem por metaregistrar a diversidade deconcepções de literaturaafro-brasileira entre es-critores que se denemcomo afro-brasileiros.

    Vemos, através dosdepoimentos que os es-critores citados denem

    a literatura negra comomergulhada na experiên-cia de vida dos afro-bra-sileiros – literatura com amarca das tradições, pro-

     blemas, situações e expe-riências culturais que senão são exclusividades

    dos afrodescendentes,são a eles mais atinentes.

    O poeta Cuti, escolheem alguns momentos er-

    guer sua pele como sím- bolo identitário individu-al e coletivo. Como ilus-tra o poema “Porto-meestandarte”

     Minha bandeira minha pele

    não me cabe hastear-meem dias de parada

    após um século dahipócrita liberdadevigiadaminha bandeira minha

     pele

    não vou enrolar-me,contudoe num cantoacobertar-me de versos

    minha bandeira minha pele fncado estou na terraque me pertenço

     fatal seria desertar-mealvuras não nos servemcomo abrigomiçangas de lágrimasenfeitam o paísdas procissões ecarnavaisminha bandeira minha

     pelede resto é gingar com ostemporais

    (CUTI, Sanga, p.46)Se vários escritores in-

    sistem explicitamente nahistórica função social daliteratura, outra vertente

    da poesia negra investeem outra temática, pro-cura calma e namenteresgatar aspectos da cul-

    tura e memória afro-bra-sileiras. Recorrem aosmuseus, aos arquivos,às bibliotecas e princi-

     palmente aos arquivosvivos da tradição oral.Onde estão guardadosnos acervos do narradortradicional cantadores econtadores, relíquias dastradições das congadas,do candomblé, dos ori-kis, dos contos. – O quenão deixa de se revestirtambém de uma funçãosocial. Os poetas fazemda experiência vivencia-da e transmitida de pai

     para lho um processo deconstante reconguraçãoe preservação simultâne-as de tradições secularesuma teia de palavras con-cretas e palavras sentidascomo sugere Antônio doscrioulos:

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     Há palavras reais. Inútil escrever sem elas. A poesia entre cãs ebichosé também palavra.

     Mas o texto capturaé o rastrode carros indo,sem os bois.

     A poesia comparece para nomear o mundo( Águas de contendas,1998 p. 2)

    A tradição oral, mui-tas vezes desprestigia-da, é o instrumento peloqual a tradição africanatransmitiu e transmite avasta riqueza de saberes.É na alegria do contato

     propiciado pela narraçãooral de episódios e liçõesde vida, entre os gruposafricanos e da diáspo-

    ra que circu-lam os valoressimbólicos dastradições da

    sociedades quenão têm na es-crita a sua prin-cipal forma detransmissão desaberes.

    Os poetasafro-brasilei-ros retomam amemória comtema de poesia

    relida em umaclave contem- porânea quenão apaga oseu tom de re-sistência e pre-servação iden-

    titária e interessa-seem criar outras vias de

     preservação e/ou resga-te da tradição. A poesiade Edmilson Pereira e ade Jaime Sodré, os con-tos de Mestre Didi, entreoutros, podem ser lidoscomo parte desta verten-te da poesia afro-brasi-leira

    A poesia entendidacomo trabalho de esca-vação lírica, ncada na

     beleza e na memória eresultado de um apren-dizado criativo das tradi-ções que se transmitemde geração a geração eque terá como resultadoa preservação e atualiza-ção de cantos e contoscomo sugere a p poetaConceição Evaristo em

    “ De mãe”: 

    O cuidado da minha po-esia

    aprendi foi de mãemulher de pôr reparonas coisase de assuntar a vida(...)

    Foi mãe que me fezsentir as ores amassadasdebaixo das pedrasos corpos vazios

    rente às calçadase me ensinou, insisto, foi elaa fazer da palavraartifícioarte e ofíciodo meu cantoda minha fala.

    (CN 25 p.36-7) A poesia de crítica so-

    cial, espada ativa na lutacontra o racismo, a ex-clusão, as desigualdadessociais, poesia que semabandono da explora-ção das potencialidadesexpressivas da língua,investe em fazer da pa-lavra um instrumento dereivindicação de cidada-nia. Existe ainda poesiamais voltada para a relei-tura das tradições, acre-ditam ser esta uma outraforma de luta, apresen-tar para afro-brasileirose não, a diversidade deaspectos culturais queestiveram obliterados

     pela tradição ocidental.

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    Outra ainda, propõe-se aresgatar a história do ne-gro no Brasil, seleciona eorganiza os fatos históri-

    cos, os heróis esquecidose querem apontar a parti-cipação ativa dos negrose afrodescendentes naconstrução da comuni-dade imaginada Brasil.Mas o escritor afro-bra-sileiro fala também desi, seus anseios, amores,dissabores e ,como todae qualquer literatura, pas-

    seia por várias temáticase seus textos não podemser reduzidos a uma te-mática única.

    Entretanto, escritoreshá que recusam explici-tamente qualquer qua-licativo que enfatize olugar étnico de onde fa-lam, advogam o caráter“incolor” da literatura eda arte. Mas como fazê-lo se desde os antigosa arte tem sido descri-ta como trazendo em simarcas premeditadas e asinconscientes das vivên-cias de seus autores?

    Falar de literatura ne-gra deve pressupor, nomeu entendimento, duasquestões centrais.... Olugar de quem fala, sejaum lugar étnico de per-tença ou de adoção, por-tanto, sem essecialismos,e aliado a isto um debru-çar-se sobre os arquivosda história do negropassada ou presente e/ ou sobre as culturas de

    origem africana. Nãoacredito, portanto, quea literatura, como alma,não tem cor. É sabido que

    a literatura, em sua histó-ria na tradição ocidentalfoi vista sim como arteuniversal que tratava detemas igualmente univer-sais, leia-se ocidentais ouocidentalizados. Com a

     proliferação dos discur-sos nacionais, aceitou-seque, mantendo o caráteruniversal, a arte literária

    abordasse também aspec-tos da história particulardos povos...Podemosdizer que as literaturasnacionais passam a sera partir da constituiçãode temáticas, linguagense personagens nacionaisque foram aceitos e in-centivados pela crítica daépoca. Analisada sob uma

     perspectiva aurática, in-tocável . mesmo em tem-

     pos da reprodutibilidade,de que fala Benjamim, aliteratura não se desvestiude uma posição senhorial.Imbuída de que lhe cabiaa função de selecionarleitores, imbuída de queo hermetismo garantiriao acesso de pouco, fosse

     pela inacessibilidade daleitura/escrita, fosse peladiculdade econômica,excluiu de seu campo aliteratura oral e todos ou-tros “ impuros” usos derecursos expressivos eestilísticos que a sua lin-guagem assumiu como

    se fossem a ela restritos.Literatura oral, literatu-ra popular, ensaios, crô-nicas foram ´por muito

    tempo tachados de me-nores, senão excluídosdos jardins das Musas.As mudanças políticase sociais, as transforma-ções tecnológicas e da in-dústria cultural abalaramo pedestal da literaturae ela se viu obrigada aconviver com as “marcassujas” da vida. Dos seus

    lugares desprestigiados,mulheres, afro-brasilei-ras/os, homosexuais,analfabetos juntamente acultura de massa e a cul-tura popular atacaram ocampo literário e reivin-dicaram para si a pos-sibilidade de tematizar,no interior deste campo,questões e problemas so-ciais e passaram a confe-rir qualicações de etniae gênero, por exemplo, àliteratura.

    O poeta Solano Trin-dade faz uma “Advertên-cia.” No seu poema

     Há poetas que só fazemversos de amor 

     Há poetas herméticosconcretistasEnquanto se fabricam

     Bombas atômicas e dehidrogênioEnquanto se preparam

     Exércitos para a guerraEnquanto a fome estiolaos povos...

     Depois eles farão versos

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    1 - DENIS, Ferdinand Resumo da história literária do Brasil In: CÈSAR, Gulilhermino. Historiadores e críticos doromantismo: 1 a contribuição européia: crítica e história literária. São Paulo:EDUSP, 1978, p.37-82.2 - GARRET, Almeida. A restauração das letras em Portugal e no Brasil em meados do século XVIII In: CÈSARGulilhermino. Historiadores e críticos do romantismo: 1 a contribuição européia: crítica e história literária. SãoPaulo:EDUSP, 1978, p. 87-92.

    3 - BHABHA em seu livro Local da cultura observa que “ na produção da nação como naaraçãio ocorre umacisão entre a temporalidade continuística, cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente doperformativo. É através deste processo de cisão que a ambivalência conceitual da sociedade moderna se tornao lugar de escrever a nação. “ (BHABHA,1998,p.2074 - BASITDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1972 (1a ed.1944)5 - BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 19836 - RABASSA, Gregory. O negro na fcção brasileira . Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1965( publicado nos

    EEUU em 1954)7 - SAYERS. O negro na literatura brasileira. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1958

         N     O     T     A     S

    REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICACADERNOS NEGROS: poemas afro-

    brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2004,n. 25

    e 27.

    CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito:

    apontamentos sobre a presença do negro na

    literatura brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial,

    1987.

    CUTI.Sanga. Belo Horizonte : Mazza,

    2002.

    QUILOMBHOJE. Reexões sobre a literatura

    afro-brasileira.São Paulo: Conselho

    de Participação e desenvolvimento da

    Comunidade Negra, 1985.Quilombo: vida, problemas e aspirações

    do negro. São Paulo: FUSP e Editora 34,

    2003 ( ed. facslimilar n.1 a 10))

    SOUZA, Florentina. Afro-descendência em

    Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo

    Horizonte: Autêntica, 2005.

    de pavor e de remorsoE não escaparão aocastigoPorque a guerra

    e a fomeTambém os atingirãoE os poetas cairão no esquecimento

    Os afro-brasileiros jávinham de há muito insta-lando um desconforto na

     produção textual brasilei-ra através da produção detextos jornalísticos e lite-

    rários que debruçavam-sesobre suas histórias e acultura, dialogando comum tradição político-rei-vindicatória ou com astradições popular e an-tropológica, escritoresnascidos afro-brasileiros,adotando ou recusandoa designação produzemtextos nos quais as mar-cas de uma posição di-ferenciada na sociedade

     brasileira, pululam aqui eali..Não podemos de falarde literatura negra comoessencialização, nem po-demos atribuir a uma

     produção que resulta deexperiências vivenciaisdiferenciadas nenhumtraço de homogeneidade.

    Se existem aqueles quevêem na literatura um es- paço para a denúncia dasdesigualdades sociais esuas vinculaçõs étnicas,ou como arma de com-

     bate contra o racismo e aexclusão; existem outrosque com lirismo e ou-tro tipo de sensibilidade,combatem de outra for-

    ma, resgatam uma me-mória quase esquecidados cantos religiosos, doscânticos míticos, das fes-tas e outars tradições quese reconguraram na di-áspora e que hoje resistemnos textos inscritos nasmemórias dos velhos, nasrecordações ás vezes im-

     precisas dos mais jovens,nos antigos casarios e nasruínas das pequenas cida-des e vilas que guardamsegredos imemoriais.

    Assim os escritorese escritoras de origemafro-brasileira vão fa-

    lando de si, de suas fa-mílias, da história deseu grupo e rasuram a

     pretensa universalidade/

    ocidentalidade da arteliterária. Estabelecen-do uma agenda temáticaque atenda ás suas de-mandas e jogue com odoce e útil, a faca e or,o riso e a raiva, a ale-gria e a dor, a memóriae o presente, como fa-zem todas as expressõesartísticas.