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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA ALGUNS ASPECTOS DA SEMIÓTICA DA CULTURA DE IÚRI LÓTMAN Ekaterina Vólkova Américo São Paulo 2012

Alguns aspectos da semiótica da cultura de Iuri Lótman

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA

    ALGUNS ASPECTOS DA SEMITICA DA CULTURA

    DE IRI LTMAN

    Ekaterina Vlkova Amrico

    So Paulo

    2012

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA

    ALGUNS ASPECTOS DA SEMITICA DA CULTURA

    DE IRI LTMAN

    Ekaterina Vlkova Amrico

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Literatura e Cultura Russa do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientador: Professora Dra. Aurora

    Fornoni Bernardini

    Pesquisa financiada pela CAPES

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE

    TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,

    PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    VLKOVA AMRICO, Ekaterina. Iri Ltman e a semitica da cultura / Ekaterina Vlkova Amrico; Orientadora Aurora Fornoni Bernardini. -- So Paulo, 2012. Tese (Doutorado Programa de Ps-graduao em Literatura e Cultura Russa. rea de Concentrao: Literatura e cultura russa Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo).

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    FOLHA DE APROVAO

    Ekaterina Vlkova Amrico

    Iri Ltman e a semitica da cultura

    .

    Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor. rea de Concentrao: Literatura e Cultura Russa.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________

    Prof. Dr. _______________________________________________________________

    Instituio: _______________________ Assinatura: ____________________________

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    AGRADECIMENTOS

    Professora Aurora Bernardini pela orientao, pelas valiosas indicaes bibliogrficas, pela pacincia com a imperfeio dos meus conhecimentos da lngua portuguesa e pelo carinho. Aos Professores Elena Vssina e Bruno Barretto Gomide, participaram da minha banca de qualificao, pelo incentivo e pelas sugestes que enriqueceram tanto o presente trabalho. Ao professor Serguei Neklidov, da Universidade Estatal de Humanidades de Moscou, pelas preciosas informaes e pelos materiais referentes a Escola Semitica de Trtu-Moscou. Aos meus pais Guenrikh Vlkov e Galina Verjkhvskaia que despertaram em mim a paixo pela leitura e aprendizagem (assisti pela primeira vez aos programas de Iri Ltman sobre a cultura russa na companhia do meu pai e ganhei da minha me o romance O nome da rosa, como presente pelo meu 12 aniversrio) e que sempre trataram tudo o que faziam com perfeio e dedicao exemplares. minha famlia: ao meu marido Edelcio Amrico pelas leituras, sugestes e muita confiana e aos meus filhos Sofia, Aleksandr e Ksenia pela pacincia com a "mame trabalhando". s minhas queridas amigas Ceclia Rosas, Denise Regina de Sales, Graziela Schneider Urso, Mrcia Orsoni Chagas Kondratiuk e Paula Costa Vaz de Almeida pela ajuda na reviso das tradues e pelas crticas e sugestes oportunas.

    CAPES pela concesso da bolsa de doutorado e pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa.

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    RESUMO

    VLKOVA AMRICO, E. Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman. 2012. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    O presente trabalho tem por objetivo a anlise da evoluo da semitica da

    cultura na obra de estudioso da cultura e literatura, crtico e filsofo russo Iri Ltman

    por meio de tradues e dos comentrios concernentes aos seus ensaios, escritos em

    diferentes pocas e dedicados aos principais conceitos da semitica da cultura, tais

    como o fenmeno da cultura e os seus processos dinmicos, o fenmeno da arte, o

    problema do texto, a memria cultural e a semiosfera.

    A obra de Ltman enquanto semioticista inseparvel do contexto histrico dos

    estudos da literatura, lingustica, semitica, cultura tanto na Rssia, quanto no Ocidente.

    Entre os seus precursores russos esto os escritores e os filsofos do sculo XIX e, no

    sculo XX, os simbolistas, os futuristas e os formalistas. A essncia da semitica da

    cultura lotmaniana comeou a se formar no mbito da Escola Semitica de Trtu-

    Moscou e com a base na tradio dos estudos lingusticos, j nos trabalhos posteriores

    ela adquiriu um carter mais filosfico, ao lidar com a imprevisibilidade dos processos

    culturais universais. Definimos ainda os pontos de coerncia entre as ideias de Ltman e

    a obra dos estruturalistas e ps-estruturalistas franceses, alm de Mikhail Bakhtin e

    Umberto Eco.

    Palavras-chave: Iri Ltman semitica da cultura Escola Semirica de Trtu-

    Moscou sistemas modelizantes secundrios - texto semiosfera - Mikhail Bakhtin

    Umberto Eco O nome da Rosa literatura russa

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    ABSTRACT

    VLKOVA AMRICO, E. Some aspects of Yuri Lotman's semiotics of culture. 2012. Thesis (Ph.D.) - Faculty of Philosophy and Humanities, University of So Paulo, Sao Paulo, 2012.

    The present work aims at analyzing the development of semiotics of culture in

    the work of Russian culture and literature scholar, critic and philosopher Yuri Lotman

    through translation and commentary of his essays, written at different periods and

    dedicated to the core concepts of semiotics of culture, such as culture phenomenon and

    its dynamic processes, the phenomenon of art, the problem of the text, the cultural

    memory and semiosphere.

    Lotman`s work as a semiotician is inseparable from the historical context of the

    literature, linguistics, semiotics and culture studies both in Russia and the West. Among

    his precursors are Russian writers and philosophers of the nineteenth and twentieth-

    century, the symbolists, futurists and formalists. The essence of Lotman`s semiotics of

    culture began to form in the Tartu-Moscow Semiotic School on the basis of language

    studies tradition, though in later works he developed a more philosophical approach,

    dealing with the unpredictability of universal cultural processes. Further, we point out

    the connection between Lotman's ideas and work of French structuralists and

    poststructuralists, Mikhail Bakhtin and Umberto Eco.

    Keywords: Yuri Lotman - semiotics of culture - TartuMoscow Semiotic School

    secondary modelling systems - text - semiosphere - Mikhail Bakhtin - Umberto Eco -

    The Name of the Rose - Russian literature

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    SUMRIO:

    1. Introduo.......................................................................................................p.10

    1. Delimitao do tema...................................................................................p.10

    2. Estrutura da tese..........................................................................................p.13

    3. Principais fontes.........................................................................................p.17

    2. Captulo I. Iri Ltman: entre biografia e obra...............................................p.25

    1. Iri Ltman e um modelo exemplar...........................................................p.26

    2. A formao.................................................................................................p.33

    3. Trtu............................................................................................................p.40

    3.1 A escola de Trtu-Moscou....................................................................p.54

    3.2 A obra de Ltman nos anos 1970-1990...............................................p.89

    3. Captulo II. O universo de Iri Ltman.........................................................p.104

    1. Da histria semitica.............................................................................p.104

    2. A semitica da cultura no contexto terico..............................................p.111

    3. Da semitica filosofia............................................................................p.134

    4. Captulo III. Tradues ................................................................................p.150

    Apresentao dos textos escolhidos...............................................................p.150

    1. No limiar do imprevisvel. A ltima entrevista de

    Iri Ltman..............................................................................................p.153

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    2. Propostas em relao ao programa da IV Escola de vero sobre os

    Sistemas Secundrios de modelao........................................................p.166

    3. O problema do texto..................................................................................p.169

    4. O problema da traduo potica.................................................................p.188

    5. A cultura como intelecto coletivo e os problemas da

    Inteligncia artificial..................................................................................p.194

    6. O fenmeno da arte.....................................................................................p.213

    7. O fenmeno da cultura................................................................................p.227

    8. A semitica da cultura e o conceito de texto..............................................p.248

    9. Sobre a dinmica da cultura........................................................................p.255

    10. A sada do labirinto...................................................................................p.280

    5. Consideraes finais.....................................................................................p.309

    6. Bibliografia....................................................................................................p.316

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    INTRODUO

    1. Delimitao do tema

    O objetivo da presente tese de doutorado apresentar a contribuio do

    semioticista russo Iri Ltman como a de um dos fundadores da semitica da cultura do

    sculo XX. Alm de filsofo ele foi terico e crtico literrio, criador de um sistema

    inovador da anlise tipolgica e sistemtica da cultura e literatura russas. Nossa

    apresentao constar de dados biobibliogrficos de Ltman, bem como de uma sntese

    das principais ideias que constam dos ensaios aqui traduzidos, que julgamos como

    estando entre os mais representativos de seus estudos semiticos.

    Atualmente, a obra de Iri Ltman obteve reconhecimento mundial,

    particularmente na rea dos estudos semiticos e serve como referncia para muitos

    outros pesquisadores. O interesse por seus trabalhos vem crescendo a partir dos anos

    sessenta do sculo XX, marcados pelo surgimento da Escola Semitica Russa, tambm

    chamada de Escola Semitica de Trtu-Moscou. Nesse sentido, Iri Ltman, por ser seu

    fundador e lder, pode ser considerado um dos representantes mais notveis da

    semitica russa. No Brasil, os estudos semiticos de Ltman tambm so divulgados e

    conhecidos no meio acadmico, sendo que algumas das suas obras foram traduzidas

    para o portugus. No entanto, grande parte da sua herana bibiogrfica ainda no foi

    vertida para o nosso idioma e, portanto, os estudiosos brasileiros so obrigados a

    recorrer s tradues em outras lnguas.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    Devido impossibilidade de abarcar toda a obra de Iri Ltman que conta com

    mais de oitocentos ensaios crticos, com uma grande variedade de assuntos e temas

    abordados, preferimos focalizar alguns trabalhos de Ltman dedicados especificamente

    sua viso da semitica da cultura. Os ensaios traduzidos pertencem a diferentes

    pocas, abrangendo o perodo de 1964 a 1992, e, portanto, oferecem uma oportunidade

    de observar a evoluo das ideias centrais dessas obras do autor.

    Alm do grande volume de obras publicadas, outra dificuldade que encontramos

    no processo de elaborao da tese foi a tarefa de definir a essncia terica da obra de

    Ltman. As suas formulaes metodolgicas fazem parte de inmeros ensaios, o que

    nos levou a considerar necessrio o estudo prvio de toda a sua obra antes da extrao

    dos postulados tericos e da definio dos textos a serem traduzidos.

    A anlise do sistema metodolgico do semioticista russo seria incompleta sem a

    descrio do contexto cientfico de seu surgimento, bem como sem a sua comparao

    com as ideias dos outros estudiosos da semitica e da cultura, como, por exemplo,

    Mikhail Bakhtin ou Umberto Eco.

    Acreditamos que os ensaios traduzidos possam interessar no apenas aos

    estudiosos da cultura russa, mas a um meio acadmico muito mais amplo, por

    descreverem processos culturais universais. Com base nos ensaios traduzidos e outros

    trabalhos de Ltman relacionados semitica da cultura, analisaremos os conceitos

    essenciais da sua contribuio enquanto semioticista, que se destaca pela profunda

    confluncia de vrias disciplinas, tais como estudos literrios, histricos, lingusticos,

    semiticos e filosficos. Alm das cincias humanas, em sua obra percebe-se uma

    considervel influncia da rea das cincias exatas, entre elas, por exemplo, a

    matemtica e a biologia.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    12

    O conhecimento da obra de Iri Ltman e do seu ncleo terico e conceitual

    indispensvel para os estudos na rea das cincias humanas, pois suas descobertas

    enriquecem a anlise da semitica da cultura com novos conceitos e paradigmas.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    13

    2. Estrutura da tese

    Inicialmente, o projeto de pesquisa que constituiu a presente Tese era intitulado

    Literatura russa do sculo XIX atravs da obra de Iri Ltman e visava a anlise e a

    traduo da obra de Ltman dedicada a esse assunto. Porm, durante o exame de

    qualificao que teve lugar em 2011, foi tomada a deciso, por sugesto da banca, de

    mudar o tema e a direo da pesquisa para o estudo da semitica da cultura na obra de

    Iri Ltman em geral, por ser um assunto que tocaria no apenas os interessados na

    cultura e literatura russas, mas um meio acadmico mais amplo.

    A Tese consiste nos seguintes captulos:

    Captulo I. Iri Ltman: entre biografia e obra.

    Trata-se de uma anlise biobibliogrfica da obra de Iri Ltman por meio da

    qual possvel definir quatro momentos cronolgicos de sua vida que tiveram um

    grande impacto na sua obra:

    1. A formao universitria (1939-1950). Nesse perodo, Ltman recebeu a

    herana da literatura russa e da tradio dos estudos literrios: da escola

    histrica e comparativa do final do sculo XIX - incio do sculo XX, do

    formalismo russo e do estruturalismo.

    2. A atuao como professor de literatura russa na universidade de Trtu (1954-

    1993). Muitos dos temas abordados na obra de Ltman surgiram no processo de

    preparao das aulas e discusso com os alunos.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    14

    3. A atuao na qualidade de organizador e um dos membros principais da Escola

    Semitica de Trtu-Moscou (1960-1980). De um lado, houve a influncia da

    escola e do mtodo estrutural-semitico nos estudos de Ltman e de outro,

    manifesta-se o carter independente e nico da sua obra.

    4. Aps o fim das atividades da Escola de Trtu-Moscou em meados dos anos

    1980, a obra de Ltman volta-se cada vez mais s questes filosficas e

    histricas, responsveis pelo desenvolvimento da cultura.

    Captulo II. O universo de Iri Ltman.

    Nesse captulo encontram-se observaes gerais acerca do mtodo do estudo

    semitico da cultura aplicado por Ltman, das suas principais caractersticas e origens,

    da ampliao constante dos conceitos principais ao longo de sua obra enquanto

    semioticista.

    A obra de Ltman revela a viso da histria da cultura como um processo nico

    que obedece a certas leis. Nesse sentido, o seu mtodo de estudo pode ser chamado de

    histrico, isto : os processos culturais concretos so compreendidos como parte da

    histria universal da humanidade e no podem ser analisados fora desse contexto.

    Outro trao importante, tanto da metodologia de Ltman, como tambm de toda

    sua obra o movimento de constante expanso e ampliao: ele usa um detalhe

    pequeno, uma obra literria ou um autor concreto como uma chave para analisar uma

    poca, uma corrente literria ou at mesmo a cultura como um todo.

    Alm disso, o mtodo de Ltman costuma ser chamado de paradoxal por

    questionar aquilo que parecia bvio para as geraes anteriores e interessar-se por

    assuntos e personalidades pouco estudados ou at mesmo esquecidos.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    15

    A sua semitica da cultura pode ser chamada ainda antropocntrica por colocar a

    personalidade humana no centro de todos os processos culturais.

    A partir da comparao com a obra dos seus precursores e contemporneos,

    entre eles os formalistas russos, os estruturalistas franceses, Mikhail Bakhtin e Umberto

    Eco, definimos como sendo os principais conceitos da semitica da cultura lotmaniana a

    noo do texto lingustico, literrio e cultural e o mbito em que esses textos coexistem:

    a esfera dos sentidos, a semiosfera.

    praticamente impossvel definir em uma palavra a rea dos estudos de

    Ltman: seria ele um crtico literrio? Um historiador da literatura e da cultura? Um

    filsofo? Como veremos, se trata de uma viso universal que abrange vrias reas do

    conhecimento humano. Dessa forma, outro diferencial da obra de Ltman a ser

    considerado o seu carter interdisciplinar.

    Captulo III. Tradues

    Nesse captulo, apresentamos as tradues de oito ensaios, escritos em pocas

    diferentes e, portanto, testemunhas da evoluo do seu paradigma terico. Entre

    inmeros trabalhos de Ltman escolhemos aqueles que concentram em grau maior as

    ideias do autor acerca da semitica da cultura. J os prprios ttulos dos artigos

    sinalizam a complexidade dos assuntos abordados: "O problema do texto", "O

    fenmeno da cultura", "A semitica da cultura e o problema do texto", "A dinmica da

    cultura" e assim por diante.

    A traduo para a lngua portuguesa acompanhada por comentrios com breves

    informaes sobre personalidades, lugares ou correntes literrias e culturais, integrantes

    dos textos de Ltman.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    16

    Observaremos ainda que a traduo desses ensaios poder conter algumas

    imperfeies estilsticas devido s dificuldades da verso do russo para o portugus, este

    idioma no sendo o nativo da tradutora.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    17

    4. Principais fontes

    Em lngua russa, existe um grande volume de obras de Iri Ltman publicadas,

    tanto em livros isolados, quanto em coletneas de vrios autores, como tambm em

    peridicos russos e soviticos. Entre essas edies, destaca-se a coletnea lanada pela

    editora Iskusstvo de So Petersburgo que serviu como base principal para a

    elaborao do presente trabalho, assim como para seleo dos textos de autoria de Iri

    Ltman a serem traduzidos:

    1. LTMAN, Iu. A educao da alma ( ). So Petersburgo,

    Isstustvo-SPB, 2003.

    2. LTMAN, Iu. M. Pchkin (). So Petersturgo, Isskustvo-SPB, 2003.

    3. LTMAN, Iu. M. Histria e tipologia da cultura russa (

    ). So Petersburgo, Isskustvo-SPB, 2002.

    4. LTMAN, Iu. M. Semiosfera (). So Petersburgo, Isskustvo-SPB,

    2000.

    5. LTMAN, Iu. M. Sobre a literatura russa ( ). So

    Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1997.

    6. LTMAN, Iu. M. Karamzin (). So Petersturgo, Isskustvo-SPB,

    1994.

    7. LTMAN, Iu. M. Sobre a poesia e os poetas (O ). So

    Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1996.

    8. LTMAN, Iu. M. Conversas sobre a cultura russa (

    ). So Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1994.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    18

    As principais fontes da presente tese de doutorado podem ser divididas nos

    seguintes componentes:

    I. Obras de Iri Ltman em russo.

    A esse bloco pertencem todos os textos de autoria de Iri Ltman referentes

    semitica da cultura, bem como literatura e cultura russas. Entre estes trabalhos que

    permitem definir a sua metodologia, alguns foram escolhidos para a traduo por serem

    considerados os mais representativos.

    Entre as fontes disponveis na internet, em primeiro lugar citaremos o site

    www.ruthenia.ru criado pela Editora Reunida de Humanidades de Moscou (Editora

    OGI) e pelo Departamento de Literatura Russa da Universidade de Trtu. Alm de

    inmeros materiais bibliogrficos, informaes sobre os eventos acadmicos e rumos da

    pesquisa moderna na rea das cincias humanas, bem como pginas dedicadas a obra

    dos estudiosos de literatura e cultura, em 2004 dentro do site foi criada a pgina pessoal

    de Iri Ltman: Lotmaniana Tartuensia. Ela consiste nas seguintes partes: Obras com

    os artigos, ensaios e monografias de Iri Ltman; Biografia, formada tanto pelas obras

    dedicadas a Iri Ltman, quanto por seus ensaios autobiogrficos; Fotos, Desenhos com

    os materiais de autoria de Ltman, todos inditos e a lista das obras de Ltman

    disponveis na internet.

    II. Obras de Iri Ltman j traduzidas para a lngua portuguesa, no Brasil ou em

    Portugal, entre elas:

    1. LOTMAN, Iri. A estrutura do texto artstico [traduo de MARIA DO

    CARMO VIEIRA RAPOSO E ALBERTO RAPOSO], Lisboa: Editorial

    Estampa, 1978.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    19

    Esse livro de Iri Ltman foi traduzido tambm no Brasil por Jasna Paravich

    Sarhan, 1978, como parte de sua dissertao de mestrado, sob a orientao de

    Boris Schnaiderman. O livro fundamental para a definio do conceito central

    para a obra de Iri Ltman: o texto, sendo que o texto focado nesse livro

    pertence esfera da literatura.

    2. LOTMAN, Iri. "Sobre o problema da tipologia da cultura" [Traduo de

    Aurora Fornoni Bernardini, Boris Shnaiderman e Lucy Seki]. //

    SCHNAIDERMAN, Boris (org.). Semitica Russa. So Paulo: Ed. Perspectiva,

    1979.

    3. LTMAN, I. USPNSKI, B. Ensaios de semitica sovitica (trad. V. NAVAS E

    S.T. DE MENEZES). Lisboa. Horizonte,1971.

    4. LOTMAN, Iri. Esttica e semitica do cinema, Lisboa: Estampa, 1978.

    5. LOTMAN, Iri. Ensaios de semitica sovitica. Coleo: Horizonte

    universitrio. [Traduo de: Victoria NAVAS E SALVATO E TELES DE

    MENEZES], Lisboa: Horizonte, 1981.

    6. LOTMAN, Iri. "O smbolo no sistema da cultura". // Tipologia do simbolismo

    nas culturas russa e ocidental. [Org. de Arlete Cavaliere, Elena Vssina e No

    Silva]. So Paulo, Humanitas, 2005. P. 47-62.

    III. Biografia de Iri Ltman. Aqui, sem dvida, se destacam os trabalhos de Bors

    Egrov, amigo de Ltman e seu colega na Universidade de Trtu.

    EGROV, B.F. "A personalidade e a obra de Iu.M. Ltman" ("

    . . ") // LTMAN, Iu. M. Pchkin. So Petersburgo, 1995. P. 5-20.

    ___________ "Vida e obra de Iri Ltman" (" ").

    Moscou, NLO, 1999.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    20

    O livro Vida e obra de Iri Ltman recebeu crticas por idealizao excessiva da

    imagem do pesquisador e por tratar sua obra como um testamento irrevogvel. Essas

    crticas foram expressas no ensaio de Ie. Grnyi e I. Plschikov intitulado Ltman em

    memrias de um contemporneo (" "). //

    http://www.zhurnal.ru/staff/gorny/texts/egorov_lotman.html.

    III. Trabalhos dedicados contribuio de Iri Ltman como crtico literrio, professor

    e semioticista.

    a) Obras publicadas em portugus, entre as quais se destaca o ensaio de Jerusa Pires

    Ferreira sob o ttulo Cultura memria. // Revista USP, So Paulo, No 24,

    dezembro/fevereiro 1994/95. P. 115-120.

    b) Obras publicadas em russo:

    As principais fontes para a anlise da metodologia de Ltman que ser

    apresentada no presente trabalho so trs coletneas pstumas de Ltman, a primeira

    das quais saiu em 1995: Coletnea Lotmaniana ( ). Moscou,

    "ITS-Garant", 1995.

    Outras fontes importantes so o ensaio do terico literrio e membro da Escola

    de Trtu-Moscou Mikhail Gasprov Iu. M.Ltman: cincia e ideologia (". .

    : "). // LTMAN, Iu. Sobre os poetas e a poesia (

    ). So Petersburgo, 1996. P. 9-17; e os trabalhos da aluna de Iri Ltman,

    Liubov Kisselova, entre os quais esto: Iu. M. Ltman como interlocutor: a

    comunicao como educao (".. :

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    21

    ) // LTMAN, Iu. A educao da alma ( ). So

    Petersburgo, Isstustvo-SPB, 2003. P. 598-611.

    KISSELIOVA, L. "A atividade acadmica de Iu. M. Ltman na Universidade de Trtu"

    (" . . ") //

    Slavica Tergestina IV: A herana de Iu. M. Ltman: o presente e o futuro (

    . . : ). Trieste, 1996. P. 919.

    _____________ "Iu.M. Ltman como chefe do departamento de literatura russa" (".

    . "). // 220 anos de filologia

    russa e eslava em Trtu (200 - ) // Slavica

    Tartuensia V. Trtu, 2003. P. 336349.

    Alm disso, utilizamos os ensaios de I. V Kondakov Iu. M. Ltman como um

    culturlogo. No epicentro da grande estrutura" (". . (

    ))". // Iu. M. Ltman. Moscou, ROSSPEN, 2009. P.

    221-239, bem como de I. A Tchernov Ensaio de introduo ao sistema de Iu. M.

    Ltman" (" .." // LTMAN, Iu. M. Sobre a

    literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 5-15.

    c) Obras publicadas em outros idiomas.

    Para uma viso completa da obra de Ltman e da sua significao e repercusso

    mundial consideramos relevante utilizar algumas fontes em outros idiomas, tais como

    os seguintes trabalhos:

    STEINER, Lina. Toward an Ideal Universal Community: Lotman's Revisiting of the

    Enlightenment and Romanticism. // Comparative Literature Studies, Volume 40,

    Number 1, 2003.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    22

    KRISTEVA, J. EVANS, M. N. "On Yuri Lotman". // PMLA, Vol.109, No.3 (May,

    1994). P. 375-376.

    DELTCHEVA, R. VLASOV, E. "Lotmans Culture and Explosion: A shift in the

    paradigm of the semiotics of culture". // Slavic and East European Journal. Vol. 40,

    No1 (Spring 1996). P. 148-152.

    U. "Introduction". // LOTMAN, Y. Universe of the Mind: A semiotic Theory of

    Culture. London; New York, 1990.

    HUTCHINGS, S. C. "Semiotics and the History of Culture (In Honor of Jurij Lotman)".

    // Slavic review, Vol. 51 No. 2. (Summer, 1992). P.374-375.

    AMCOLA J. De la forma a la informacn: Bajtn e Lotman en el debate com el

    formalismo ruso. Rosrio, Beatriz Viterbo, 1997.

    ANDREWS, E. Conversations with Lotman: Cultural Semiotics in Language,

    Literature and Cognition. Toronto, University of Toronto Press, 2003.

    3. Eventos e trabalhos dedicados s tendncias e escolas, que influenciaram a evoluo

    dos estudos de Iri Ltman.

    a) Em primeiro lugar, podemos destacar o evento que se deu recentemente, em

    novembro de 2011, na Universidade de So Paulo e foi dedicado especialmente ao

    fenmeno da Escola Semitica de Trtu-Moscou e os seus resultados para o futuro das

    cincias humanas: Seminrio Acadmico Internacional - Semitica russa: a Escola de

    Trtu-Moscou. O Seminrio contou com a participao dos convidados internacionais:

    Prof. Dr. Serguei Neklidov (Universidades Estatal de Humanidades / Moscou) e Prof.

    Dr. Roman Timntchik (Universidade Hebraica de Jerusalm). No decorrer do

    seminrio, Serguei Neklidov apresentou uma palestra sobre O inicio da Escola de

    Semitica Trtu-Moscou e os estudos estruturais da cultura popular e Poesia de rua,

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    23

    poesia na rua; Roman Timntchik desenvolveu o tema de Signos e coisas nos conceitos

    da Escola de Semitica Trtu-Moscou e Anna Akhmtova: poesia destino?; Jerusa

    Pires Ferreira (PUC / SP) apresentou materiais sobre Iri Lotman e os estudos

    semiticos no Brasil e Aurora Bernardini (USP) discursou a respeito da publicao da

    obra de Ltman e dos semioticistas de Trtu no Brasil e na Amrica Latina. Alm das

    informaes importantes apresentadas no seminrio e a evidncia de que os avanos da

    Escola Semitica de Trtu-Moscou tiveram uma grande influncia nos estudos

    contemporneos em todas as reas de cincias humanas, Serguei Neklidov cedeu-nos

    vrios materiais (documentos e fotografias) que foram includos na presente Tese.

    Citaremos ainda algumas obras publicadas em portugus sobre a Escola

    Semitica Russa e os seus precursores:

    Em primeiro lugar, destacaremos a coletnea organizada por Boris

    Schnaiderman com o ttulo de Semitica russa (So Paulo, Perspectiva, 1979) que

    reuniu os ensaios dos principais representantes da Escola Semitica de Trtu-Moscou.

    A coletnea conta com a introduo da autoria de Boris Schaniderman "Semitica na

    U.R.S.S. Uma busca dos "elos perdidos" que revela o contexto em que a obra dos

    semioticistas russos foi recebida no Brasil nos anos 1970.

    No livro de Irene Machado Escola de Semitica A Experincia de Trtu-

    Moscou para o estudo da Cultura (Ateli Editorial, 2003) encontramos a anlise

    detalhada dos conceitos tericos apresentados pela Escola de Trtu-Moscou.

    Destacaremos algumas obras dedicadas ao formalismo russo que teve um papel

    significativo no desenvolvimento das ideias de Ltman:

    O livro de Krystyna Pomorska Formalismo e futurismo (So Paulo, Perspectiva,

    1972) nos d uma ideia bastante completa de todos os perodos de existncia do

    formalismo russo. J o ensaio de Aurora Bernardini Formalismo russo: uma

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    24

    revisitao // Literatura e sociedade 5, Revista do DTLLC-FFLCH-USP, 2002, bem

    como de Tzvetan Tdorov "A herana metodolgica do formalismo" // As estruturas

    narrativas. Perspectiva, So Paulo, 2006. P. 27-52 mostram o rumo que as ideias

    formalistas tomaram nas dcadas posteriores.

    b) Obras publicadas em russo.

    Dentre os livros dedicados ao formalismo russo e publicados na prpria Rssia

    podemos mencionar a obra abrangente de P. N. Medvidev (do crculo de M. M.

    Bakhtin) O mtodo formal nos estudos literrios // So Paulo, Contexto, 2012.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    25

    CAPITULO I

    Iri Ltman: entre biografia e obra.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    26

    1. Iri Ltman e um modelo exemplar

    Atualmente o nome de Iri Mikhilovitch Ltman (1922-1993) conhecido no

    mundo todo e suas obras so traduzidas para muitas lnguas estrangeiras. A rea de sua

    atuao foi to ampla que impossvel definir em uma palavra qual teria sido sua

    ocupao principal: semioticista, estudioso da literatura e cultura, historiador? Na

    verdade, o seu mtodo de estudo das questes literrias e culturais representa uma

    miscigenao de todas essas disciplinas, ou ento sua interao, o dilogo entre elas. A

    interdisciplinaridade o trao mais importante no s da obra de Iri Ltman, mas

    tambm da poca na qual esteve inserida a sua criao.

    No por acaso que diferentes autores aproximavam Ltman de Leonardo da

    Vinci1, Mikhail Lomonssov2 e Einstein3. A comparao com Albert Einstein se baseia

    inicialmente na semelhana visual, embora ela possa ser estendida para a esfera da

    atividade mental: assim como Einstein foi um "gnio da fsica, Ltman o era das

    Cincias Humanas, ou, para ser mais preciso, da Semitica".4 Assim, nos ensaios

    crticos dedicados a obra de Ltman ele chamado constantemente de "cientista".

    Ltman sempre tratou os estudos literrios e a semitica como uma cincia. J as

    comparaes com Leonardo da Vinci e Mikhail Lomonssov (1711-1765) de fato

    parecem ser extremamente interessantes e frutferas por nos remeterem Renascena

    europeia e russa.

    1 TCHERNOV, Igor. "Ensaio introdutrio ao sistema de Iu. M. Ltman" (" .."). // Ltman, Iu.M. Sobre a literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 5. 2 MACHADO, Irene. Escola de Semitica A Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da Cultura. Ateli Editorial, 2003, p. 23. 3 PIRES FERREIRA, J. "Cultura memria". // Revista USP, So Paulo (24), dezembro/fevereiro 1994/95. P. 115. 4 Idem.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    27

    O papel de Lomonssov para a fundao e o desenvolvimento das cincias na

    Rssia foi essencial. Ele instituiu, na Rssia, a maioria das cincias presentes

    atualmente, entre elas: qumica, fsica, astronomia, geologia, geografia e, claro, os

    princpios da linguagem literria russa. Essa versatilidade surpreendente de

    Lomonssov como cientista faz jus sua comparao com Ltman. Se no sculo XVIII

    existisse a expresso "interdisciplinaridade", certamente tal expresso seria aplicada a

    Lomonssov.

    Sem a contribuio de Lomonssov no seriam possveis os avanos nas

    cincias humanas e exatas na Rssia ao longo do sculo XVIII; j sem as reformas de

    Pedro, o Grande, provavelmente, Lomonssov no teria possibilidade de revelar o seu

    gnio, de fazer a sua peregrinao de pescador a acadmico e cientista. Foi o enxerto da

    educao europeia, feito por Pedro, que tornou possvel o surgimento do Iluminismo

    Russo e de Mikhail Lomonssov como um dos seus maiores representantes.

    O aparecimento do "elemento europeu" na cultura russa a fez olhar para si

    mesma e questionar suas razes e seu futuro. Desde ento, a sociedade russa nunca mais

    foi to unida e unnime como antes. A camada superior que viajava para o exterior e j

    no sculo seguinte, o XIX, falava o francs melhor que o russo, se afastou

    definitivamente das classes inferiores. O Iluminismo, como um dos resultados das

    reformas de Pedro e da consequente introduo do elemento "alheio" na cultura russa,

    trouxe consigo duas ideias conflitantes: a viso da histria como progresso (do estado

    precrio ao desenvolvimento superior) e como regresso (do estado "natural"

    civilizao destruidora). As duas tendncias se refletiram na etapa posterior do

    Iluminismo, o Romantismo, em forma de conflito entre o homem e a natureza, a

    sociedade "civilizada" e tribos "selvagens" como, por exemplo, os dos ciganos. Essa

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    28

    questo foi analisada por Iri Ltman em seu ensaio "Sobre a literatura russa do perodo

    clssico". 5

    A dicotomia se encarnou, em meados do sculo XIX, em discusso entre os

    ocidentalistas, que consideravam que a Rssia devesse cada vez mais se igualar aos

    moldes europeus, e os eslavfilos, que defendiam a ideia da volta s origens do povo

    russo e do caminho independente da Rssia, diferente dos pases europeus. Obviamente,

    essa definio bastante simplificada, porm a anlise mais detalhada desse fenmeno

    histrico-cultural um tema muito amplo e complexo que requer um estudo especfico.

    Observaremos apenas que o embate entre os ocidentalistas e eslavfilos foi um dos

    fatores que predestinou o desenvolvimento posterior no somente da literatura, como

    tambm da crtica literria russa. Dessa forma, possvel afirmar que o Iluminismo

    russo gerou toda a trajetria percorrida pela cultura russa nos sculos XIX e XX, e, foi a

    partir desse perodo que Iri Ltman iniciou os seus estudos de literatura russa. Ltman,

    como herdeiro de toda a tradio cultural e literria russa, tambm pode ser chamado de

    Homem Iluminista.

    O Iluminismo no apenas predestinou o desenvolvimento da literatura e crtica

    literria russa, como tambm contribuiu significativamente para a formao de outro

    fenmeno cultural de grande importncia: a intelliguntsia6. O contemporneo e

    conterrneo de Ltman, estudioso da cultura russa e acadmico de Leningrado Dmitri

    Likhatchiov (1906-1999), afirmava que "o fenmeno da intelliguntsia na Rssia ,

    antes de tudo, a independncia do pensamento em combinao com educao

    5 LTMAN, Iu. "Sobre a literatura russa do perodo clssico" (" "). // LTMAN, Iu. Sobre a literatura russa. ( ). So Petersburgo, Isskustvo-SPB, 1997, p. 594-604. 6 Intelliguntsia: termo criado pelo jornalista P. D. Boborkin em 1860 como definio dos intelectuais russos, porm, posteriormente esse conceito passou a ser usado no sentido mais restrito: aqueles intelectuais que servem como modelo de conduta moral para toda a sociedade.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    29

    europeia".7 Um dos traos mais marcantes da intelliguntsia pode ser definido como a

    busca da correlao entre a literatura e a vida, a anlise da interao dessas duas

    dimenses e da maneira como uma exerce influncia sobre a outra. Foi sob esse prisma

    que Ltman estudou a obra do historiador, escritor e poeta iluminista russo Nikolai

    Karamzn (1766 - 1826) ao qual dedicou vrios ensaios que, j aps sua morte, foram

    reunidos em um volume.8 Ao analisar a obra e a vida de Karamzn, Ltman destaca o

    seu desejo de construir a vida, a imagem e a conduta conforme certo modelo ideal.

    Curiosamente, a vida e os estudos do prprio Ltman tambm podem ser analisados a

    partir desse desejo:

    Trata-se de uma construo intencional e consequente da sua prpria

    imagem, de uma orientao criao da vida, bem como da

    modelao da sua conduta de acordo com certos modelos pr-

    escolhidos. No por acaso que justamente nesses termos Ltman

    descreveu o caminho artstico de muitas figuras importantes na cultura

    russa, particularmente, de Karamzn e Pchkin.9

    De fato, a ideia de viver a vida como se fosse uma obra literria no uma

    novidade para a cultura russa. Alm de Karamzn e Pchkin, citados acima, podemos

    lembrar tambm do poeta e escritor russo Mikhail Lrmontov (1814-1841), cuja vida,

    repleta de conflitos e duelos, lembra o seu prprio romance O heri do nosso tempo

    (1840). No incio do sculo XX, o conceito de criao da vida (jiznetvrtchetvo)

    tronou-se fundamental para os simbolistas russos, na filosofia dos quais a realidade

    7 LIKHATCHIV, D. "Sobre a intelliguntsia russa" (" "). // http://www.gumer.info/bibliotek_Buks/Culture/Article/_Lihachev_RussIntel.php 8 LTMAN, Iu.M. Karamzn. So Petersburbo, Isksstvo, 1997. 9 GRNYI, Ie., PLSCHIKOV, I. "Ltman em memrias de um contemporneo" (" "). // http://www.zhurnal.ru/staff/gorny/texts/egorov_lotman.html

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    30

    adquire caractersticas de um texto artstico. 10 Por outro lado, a orientao para um

    modelo ideal de conduta um trao essencial da intelliguntsia russa11, e nesse sentido

    Iri Ltman um representante digno:

    Ltman no era apenas conhecedor e propagador da cultura da

    nobreza russa como tambm, claro, um portador dessa cultura,

    talvez ele tenha sido um dos ltimos em termos de esprito e conduta

    aristocratas do nosso pas.12

    Em 1988, cedendo aos pedidos de sua esposa, Zara Mints (1927-1990), Ltman

    concordou em ditar suas memrias, porm, por falta de tempo, s comeou a dit-las

    efetivamente em 1992, ou seja, um ano antes de sua morte. Elas foram publicadas sob o

    ttulo No-memrias (-) na primeira Coletnea de Ltman lanada em

    1995. 13 Baseamos o presente captulo nessas memrias e na biografia, escrita pelo

    amigo e colega de Ltman, Boris Egrov, e publicada em 1999 sob o ttulo Vida e obra

    de Iu. M. Ltman. 14 O livro de Egrov tornou-se um best-seller o que comprova o

    crescente interesse pela figura do pesquisador. Porm, essa biografia tambm recebeu

    crticas como, por exemplo, a resenha Ltman em memrias de um contemporneo. 15

    Os autores acusam o bigrafo de idealizar demasiadamente a imagem e a obra de

    10 MINTS, Z.G. "O conceito de texto e a esttica simbolista" (" "). // http://www.ruthenia.ru/mints/papers/poniatie.html 11 KOLISNIKOVA, A. V. A criao da vida como o meio de existncia da intelliguintsia. ( ). Tese de doutorado. Novossibirsk, NGASU, 2003. 12 USPINSKI, V. "Os passeios com Ltman e a modelao secundria". (" "). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem/vl_usp95.html 13 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // Coletnea de Ltman, I . ( . I). Moscou, 1995. P. 553. 14 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman" (" )", Moscou, NLO, 1999. 15 GRNYI, Ie., PLSCHIKOV, I. "Ltman em memrias de um contemporneo" (" "). // http://www.zhurnal.ru/staff/gorny/texts/egorov_lotman.html

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    31

    Ltman e observam que a biografia, escrita por Egrov, lembra a descrio de vida de

    um Santo:

    A infncia de Ltman e at mesmo toda a sua vida, so modelados por

    Egrov de acordo com um cnone hagiogrfico. Desde os primeiros

    anos, Ltman vive apenas com seus interesses espirituais: leitura

    incessante, xadrez, exerccios musicais, idas a teatros e ao Hermitage

    onde uma vez [Ltman] foi detido: um funcionrio achou estranho

    que um menino estivesse parado h meia-hora diante da Madalena

    penitente de Ticiano. Todas essas diversas paixes foram, no final,

    sacrificadas em detrimento de uma: a cincia. O culto da Cincia o

    anlogo direto ao culto a Deus nas obras hagiogrficas. Indiretamente

    isso explica tambm o atesmo consequente de Ltman: em sua vida, a

    Cincia tomou o lugar de Deus. 16

    Os autores acusam os crticos em geral de criarem o culto de Ltman, de o

    idealizarem e no perceberem as falhas e imprecises de suas concluses. No entanto, a

    idealizao e a beatificao dos poetas e escritores um trao nacional russo que foi

    destacado pelo estudioso da literatura e cultura russa Aleksandr Pntchenko (1937 -

    2002):

    O poeta (independente do fato se ele escreve em versos ou em prosa)

    um eterno problema russo. Em lugar algum torturam tanto os poetas

    enquanto esto vivos e veneram tanto aps sua morte, como na

    Rssia.17

    Nesse artigo Pntchenko, em primeiro lugar, se refere ao destino de Aleksandr

    Pchkin cuja morte no duelo tornou-se pretexto para sua santificao. Durante o

    16 Idem. 17 PNTCHENKO, A. "O poeta russo ou a santidade secular como um problema religioso e cultural" (" , - "). // Zvezd, 2002, No 9.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    32

    Seminrio Acadmico Internacional dedicado literatura e crtica russa, realizado na

    Universidade de So Paulo em 2011, o crtico literrio Mikhail Sverdlov afirmou que o

    mesmo fenmeno pode ser observado em relao a Bakhtin e sua obra. Dessa forma,

    parece que lidamos com uma tendncia de fato presente na cultura russa. Vejamos a

    partir dos fatos biogrficos e bibliogrficos quais so as razes da "venerao" por

    Ltman.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    33

    2. A formao

    Iri Ltman nasceu em 1922 em uma famlia de intelectuais petersburguses de

    origem judaica. Na escola ele no se interessava tanto pela lngua e literatura, como pela

    entomologia, sobre a qual escreveu em No-memrias:

    O misterioso e assustador mundo dos insetos que me atrai at agora

    causa em mim uma estranha sensao: acho que justamente os insetos,

    com sua evoluo extremamente lenta e surpreendente fora de

    sobrevivncia sero os ltimos a povoar o nosso planeta. Eles, sem

    dvida, so dotados de um mundo inteligente, porm, ele para sempre

    permanecer fechado para ns.18

    Em sua ltima entrevista, cuja traduo parte integrante do nosso trabalho,

    Ltman tambm comenta sobre essa paixo no realizada:

    Em minha vida houve um perodo em que eu pretendia ser no um

    fillogo, mas um entomlogo. Eu sei pouco sobre esta rea, no a

    entendo muito bem, mas acredito tratar-se de uma esfera que deve ser

    traduzida por meio de frmulas mais adequadas nossa compreenso,

    e, se isso for possvel, pelo visto, no acontecer em um futuro

    acessvel.19

    Na mesma entrevista, ele ainda fez uma comparao com a orientao para

    coletividade prpria dos seres humanos e dos insetos, ou seja, os conhecimentos

    entomolgicos tambm lhe serviam como base e material para a anlise da cultura

    humana.

    18 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 19 LTMAN, Iu. "No limiar do imprevisvel" (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/ECCE/INTERLOT.HTM

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    34

    O curioso que esse interesse pela entomologia um trao relativamente

    comum entre os escritores russos: podemos lembrar-nos de Lev Tolsti que criava

    abelhas em Isnaia Poliana e usava as suas observaes entomolgicas para a descrio

    dos processos sociais, como no caso de Guerra e paz, ao comparar a Moscou

    abandonada por seus habitantes com uma colmeia sem a rainha. Vladmir Nabkov

    levou o interesse pelos insetos to a srio que, embora sendo autodidata, descobriu vinte

    novas espcies de borboletas e escreveu dezoito artigos cientficos sobre o assunto,

    sendo que elas tornaram-se tambm o objeto de sua descrio, por exemplo, no romance

    A ddiva (). Em 1993 a comparao entre a vida dos seres humanos e a dos insetos

    foi retomada no romance A vida dos insetos de Vktor Pelvin20 que representa uma

    alegoria da sociedade russa dos anos 1990.

    Ltman concluiu a escola com o diploma vermelho, ou seja, com notas

    excelentes. Provavelmente, o fato de sua irm mais velha, Ldia Ltman (1917-2011),

    estudar na Faculdade de Filologia da Universidade de Leningrado tenha contribudo

    para a sua escolha: em passar do interesse pela entomologia para o da filologia. Ltman

    se tornou estudante da mesma faculdade em 1939. Naquela poca, a Universidade

    concentrava os maiores nomes das cincias humanas na Rssia: o curso de introduo

    aos estudos literrios era ministrado pelo historiador da literatura, crtico e escritor

    Grigori Gukvski (1902-1950) que se dedicava principalmente aos estudos da literatura

    russa dos sculos XVIII XIX, nos quais destacava o paralelismo entre o esquema

    tradicional literrio classicismo romantismo realismo e a trade estado

    personalidade povo. Os estudos do folclore na Universidade eram lecionados por

    Mark Azadvski (1888-1954), autor de uma obra volumosa Histria da folclorstica

    20 PELVIN, V. A vida dos insetos ( ). Moscou, EKSMO, 2007.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    35

    russa ( ), publicada entre 1958 1963 e Vladmir

    Propp (1895-1970). Em No-memrias Ltman destaca o seu interesse pelo folclore:

    No primeiro ano eu me interessei pelo folclore: frequentava as aulas

    complementares de Mark Konstantnovitch Azadvski e tive um

    comparecimento muito oportuno no seminrio de Vladmir

    Ikovlevitch Propp. (Propp apresentava apenas os seminrios, j

    Azadvski lecionava: ambas as aulas eram extremamente

    interessantes).21

    Alis, o primeiro trabalho anual, escrito por Ltman na Universidade, foi

    elaborado justamente sob a orientao de Propp. Foi ento que teve incio o carter

    interdisciplinar e verstil dos estudos lotmanianos. A Universidade de Leningrado teve

    um papel importantssimo em sua formao como estudioso da cultura e da literatura.

    Um dos mais profundos crticos da obra de Ltman, Igor Tchernov, descreve esse

    ambiente universitrio da seguinte forma:

    Os seus professores eram aqueles que representam o orgulho e a glria

    da cincia nacional: N. I. Mordvtchenko22, G. A. Gukvski, M. K.

    Azadvski, V. Ia. Propp, B. V. Tomachvski23 e B. M. Eichenbaum24.

    Justamente durante seus seminrios e aulas formou-se a sua

    personalidade como pesquisador e como pessoa. Se acrescentar essa

    lista os nomes de V. M. Jirmnski25, Iu. N. Tyninov26, L. V.

    Pumpinski27 e O. M. Freidenberg28 aos quais Iu. M. Ltman

    21 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 22 Mordvtchenko, Nikolai (1904-1951). Estudioso e professor da literatura russa na Universidade de Leningrado. 23 Tomachvski, Boris (1890-1957). Historiador da literatura russa e escritor, professor da literatura russa na Universidade de Leningrado. Um dos representantes do formalismo. 24 Eichenbaum, Boris (1886-1959). Crtico literrio e professor da literatura russa na Universidade de Leningrado, um dos tericos do mtodo formal. 25 Jirmnski, Vktor (1891-1971). Estudioso da literatura, um dos tericos do mtodo formal. 26 Tyninov, Iri (1894-1971). Escritor e dramaturgo, um dos tericos da escola formal. 27 Pumpinski, Lev (1891-1940). Historiador da literatura e msica russa.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    36

    considerava como seus professores a distncia, ficar claro que a

    escola era admirvel. Nem antes nem depois nenhuma universidade da

    Europa pode se orgulhar de uma pliade semelhante de especialistas

    de primeira classe que simultaneamente lecionavam na mesma

    universidade. O prprio ambiente vivificante de Leningrado

    representava aquele caldo cultural que gerou vrios grandes estudiosos

    modernos.29

    Em outubro de 1940, aps concluir o primeiro ano na universidade, Ltman foi

    recrutado para servir no exrcito sovitico. Por ter iniciado o servio militar um ano

    antes da Rssia entrar na Segunda Guerra Mundial, ele teve mais tempo de preparao

    para os combates do que os jovens que foram para o front logo aps a concluso da

    escola. Ltman participou da guerra durante todos os quatro anos e, junto com o

    Exrcito Sovitico, se deslocou at Berlim. Mesmo durante a guerra Ltman no deixou

    de estudar: ele aprendia o francs. Alm disso, a experincia militar tornou-se

    enriquecedora em certo sentido, para ele: as particularidades da linguagem militar 30 e

    os exemplos dessa rea serviam para explicar os processos culturais e semiticos:

    [...] suponhamos que voc tenha um canho que atira em um alvo que

    voc no v. O alvo est atrs da montanha. Tem uma montanha na

    sua frente, e no d para enxergar coisa alguma. O que fazer? Ento,

    voc faz coisas simples. Coloca um posto de observao bem

    esquerda e outro bem direita e os liga atravs de um rdio. Um olha

    sob um ngulo, outro sob outro, e voc v o que est atrs da

    montanha. Ou seja, mudando seu ponto de vista, voc o amplia. A

    diferena de posies fornece um certo avano rumo verdade.31

    28 Freidenberg, Olga (1890-1955). Estudiosa da literatura, cultura e folclore. 29 THCERNOV, Igor. "Ensaio introdutrio ao sistema de Iu. M. Ltman" (" .."). // Ltman, Iu.M. Sobre a literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 6. 30 Idem. 31 "No limiar do imprevisvel" (" "). A ltima entrevista de Iri Ltman. // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/ECCE/INTERLOT.HTM

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    37

    Quando, em 1945, a guerra acabou, Ltman continuou seus estudos na

    Universidade de Leningrado. Ele lembra, como com uma voracidade de um alcolatra

    me dediquei aos estudos 32, demonstrando um interesse especial pelos cursos e

    palestras do professor Nikolai Mordvtchenko, ao qual posteriormente dedicou um

    artigo.33 Nele, Ltman destaca as ligaes de hereditariedade entre as pesquisas de

    Mordvtchenko e os fundadores do formalismo russo Boris Eichenbaum e Iri

    Tyninov. A descrio do mtodo de pesquisa cientfica, adotado por Mordvtchenko,

    pode ser aplicada aos trabalhos do prprio Ltman:

    A dupla perspectiva, a anlise da obra literria, de um lado como um

    monumento histrico, e de outro, como uma obra de arte, um texto de

    natureza especial, permitia ver os fatos literrios naquela dupla

    combinao de historicismo e organizao interna que, na etapa

    cientfica moderna, representa uma das condies obrigatrias de

    anlise.34

    A partir das aulas e conversas com Mordvtchenko, Ltman interessou-se pela

    literatura e cultura russa do final do sculo XVIII e do sculo XIX. No jornal

    Mensageiro da Universidade de Leningrado35 Ltman publicou o seu primeiro artigo

    dedicado aos manuscritos de um dos dezembristas36 encontrados por ele. Como

    continuao dos estudos relacionados a essa poca, ainda na Universidade, Ltman

    32 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 33 LTMAN, Iu. "Nikolai Ivnovitch Mordvtchenko. Notas sobre a individualidade artstica do cientista." (" . "). // A educao da alma ( ). So Petersburgo, 2003. P. 6873. 34 Idem. P. 68. 35 Mensageiro da Universidade de Leningrado ( ), 1949, No 7. 36 Dezembristas : participantes do movimento oposicionista da nobreza russa que organizava sociedades secretas e, em dezembro de 1825, fez uma tentativa de revolta que veio a fracassar.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    38

    publicou um artigo37 Da histria da luta scio-literria nos anos 80 do sculo XVIII. A.

    N. Radschev38 e A. M. Kutzov39 na coletnea da Universidade de Leningrado

    chamada Radschev. De acordo com o seu bigrafo B. Egrov, j nesses primeiros

    trabalhos podem ser notados traos caractersticos de toda a obra de Ltman:

    J nos trabalhos de Iri Mkilovitch como estudante, em seu

    contedo e mtodo, refletiu-se a peculiaridade do seu pensamento

    artstico. Antes de tudo, para ele, aluno de N. I. Mordvtchenko, so

    caractersticos a sistematicidade, a variedade de assuntos abordados e

    a contextualidade: o fenmeno literrio analisado com uma ampla

    base social e histrica.40

    Nos ltimos anos na Universidade, Ltman conheceu a sua futura esposa, Zara

    Mints, tambm estudante da Faculdade de Filologia O primeiro encontro foi bastante

    cmico e no predizia em nada a futura unio feliz de dois grandes pesquisadores:

    Certa vez, depois da aula, vieram Zara Grigrievna com Vika

    Kaminskaia e Zara Grigrievna me props decorar o salo para uma

    conferncia cientfica prxima dedicada a Maiakvski, desenhando,

    em particularidade, o seu retrato. Eu economizava todo o tempo para

    os estudos cientficos, aos quais me dedicava com uma paixo de um

    alcolatra procura de uma garrafa. Participar desse tipo de eventos

    estava longe de fazer parte dos meus planos. Gaguejando muito [...] eu

    expliquei a Zara Grigrievna que desenhava s por dinheiro. O seu

    entusiasmo de komsomol 41 foi abalado por tamanho cinismo e ela, ao

    37 LTMAN, Iu. Da histria da luta scio-literria nos anos 80 do sculo XVIII. A. N. Radschev e A. M. Kutzov" (" - 80- . XVIII . . . . . "). // Radschev (), Universidade de Leningrado, 1950. 38 Aleksandr Radschev (1749-1802): escritor, filsofo e poeta, um dos principais representantes de Iluminismo russo. 39 Aleksandr Kutzov (1748-1790): mstico e maom russo, amigo de N. Karamzn. 40 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman" (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM 41 Komsomol: organizao juvenil do Partido Comunista da Unio Sovitica.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    39

    se afastar de mim com lgrimas nos olhos, pronunciou em voz alta:

    Canalha bigodudo! Assim foi a nossa primeira declarao.42

    Porm, apesar do primeiro encontro perturbado, o casamento dos dois

    estudiosos foi feliz. Eles tiverem trs filhos e trabalharam a vida inteira lado ao lado na

    Universidade de Trtu. Esse trabalho ser o assunto do prximo subcaptulo.

    42 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    40

    3. Trtu

    No mesmo ano, em 1950, Ltman finalizou, com excelncia, seus estudos na

    Universidade de Leningrado. Esse tipo de diploma juntamente com as condecoraes

    recebidas durante a Guerra deveriam lhe abrir vrios caminhos de trabalho, na qualidade

    de professor, nas melhores universidades soviticas.

    Porm, os ltimos anos do governo de Stlin foram marcados pela assim

    chamada luta contra os cosmopolitas. Era uma campanha ideolgica realizada entre

    1948 1953 e voltada contra aquela parte da inteliguntsia que era vista como

    simpatizante ao modelo capitalista ocidental. Em 1948, quando Israel estabeleceu as

    relaes diplomticas com Estados Unidos, os judeus soviticos passaram a ser

    acusados de falta de lealdade com a Unio Sovitica e at de contribuirem para a

    espionagem norte-americana.

    As perseguies eram direcionadas principalmente contra os intelectuais judeus.

    No incio de 1948, o jornal Literatrnaia gazita chamou de "cosmopolitas" os

    defensores do mtodo comparativo nos estudos literrios:

    O cosmopolita, rindo maldosamente, tenta a "descobrir", a todo custo,

    um ou outro "paralelo", um ou outro sinal de semelhana entre a

    cultura russa e a do Ocidente. No esforo infame de provar que a

    cultura do povo russo foi "emprestada" do Ocidente revela-se toda a

    misria desses falsos estudiosos da cultura, sem ptria, cuja essncia

    interior uma mistura de lacaio Smerdiakov de Os irmos Karamzov

    com o lacaio Icha de O jardim das cerejeiras, apaixonados por "tudo

    o estrangeiro".43

    43 "Leituras histricas. Sobre os cosmopolitas sem ptria" (" . "). // O tema do dia ( ) de 5 de fevereiro de 2004, http://www.temadnya.ru/spravka/05feb2004/3630.html

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    41

    Como resultado da campanha, em fevereiro de 1949, os mais importantes e

    mundialmente conhecidos crticos literrios soviticos, todos judeus, foram acusados de

    imporem as tendncias antirrussas. Entre eles estavam: Boris Eichenbaum, Vktor

    Jirmnski, Mark Azadvski e Grigri Gukvski, ou seja, professores e precursores de

    Iri Ltman. Todos eles perderam emprego; j Gukvski foi preso e morreu sem sair em

    liberdade.

    A famlia de Ltman tambm era de origem judaica e, considerando a gravidade

    da situao, ele se viu obrigado a procurar uma instituio longe do centro poltico e das

    principais cidades da Unio Sovitica. Eis como o prprio Ltman se lembra desse

    momento:

    Para mim restavam duas possibilidades: continuar a procura de

    trabalho em Leningrado e bater em portas fechadas, ou deixar isso e,

    ao lanar todas as cartas na mesa, comear um jogo totalmente novo.

    Escolhi o segundo. 44

    Essa segunda opo foi a pequena e agradvel cidade de Trtu,45 localizada na

    Estnia. A escolha dessa cidade, que naquela poca tinha cerca de 70.000 habitantes,

    poderia parecer um tanto estranha e at infeliz, se no considerarmos trs fatores

    relevantes.

    O primeiro deles, como fora mencionado previamente, era a impossibilidade de

    Ltman poder lecionar nas maiores universidades soviticos em virtude de sua origem.

    Em segundo lugar, na Unio Sovitica, as repblicas blticas no representavam

    apenas partes perifricas de um enorme imprio, mas, de certa forma, simbolizavam a

    cultura Ocidental, o prprio Ocidente, a Europa. Isso se deve ao fato que Estnia,

    44 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 45 Anteriormente Trtu foi chamada em almo de Dorpat ou Drpt e em russo Irev ou Derpt. A cidade foi fundada por prncipe russo Iaroslav Mdryi (cerca de 978 - 1054) em 1030.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    42

    Letnia e Litunia terem sido as ltimas a se juntarem Unio Sovitica. Por isso elas

    conservaram certo "esprito" europeu e passaram a representar o exterior dentro do

    pas. Alm disso, a maioria dos soviticos no podia visitar livremente os pases da

    Europa capitalista, e a viagem para os pases blticos praticamente se transformava em

    uma chance nica de conhecer a Europa. Isso sem contar que, longe do centro poltico,

    o controle era menos rgido e, portanto, havia certa liberdade de expresso e criao.

    Trtu nos anos 1960. (Foto do arquivo pessoal de Professor Sergui Neklidov).

    Em terceiro lugar, a Universidade de Trtu, onde Ltman logo passou a lecionar,

    possua uma longa histria: ela foi fundada antes das principais Universidades da

    Rssia, em 1632 (um sculo antes da fundao da primeira Universidade russa, em

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    43

    Moscou, no ano de 1755). Alm disso, o bigrafo B. Egrov, apesar de chamar a

    escolha de Ltman de mero acaso, logo em seguida lembra-se das antigas relaes

    histricas e culturais que ligavam a Rssia e a Estnia.

    Dessa forma, Iri Mikhilovitch foi para Estnia por mero acaso,

    porm, necessrio considerar que o atraiu no apenas a fama da

    cidade universitria e a ausncia, quase total, de antissemitismo

    oficial, como tambm as antigas relaes histrico-culturais de

    Petersburgo com a Estnia: pois muitos escritores e polticos russos do

    incio do sculo XIX, inclusive os dezembristas, foram ligados,

    biograficamente e por meio da sua obra, com a Estnia.46

    J o prprio Ltman descreveu sua partida para a Estnia da seguinte forma:

    Vestido com o terno preto do meu pai, um pouco reformado, o nico

    festivo, eu fui para Trtu, onde permaneci pelo resto de minha

    vida.47

    Foi assim que ele passou a lecionar no Instituto de Ensino (

    ) de Trtu, segunda cidade estoniana mais importante depois de Tallinn.

    Paralelamente s aulas no Instituto de Ensino, Ltman lecionava na Universidade de

    Trtu, qual foi convidado como professor permanente em 1954.

    Ainda em 1952, apenas dois anos aps ter concludo seu curso na Universidade,

    Ltman voltou para Leningrado para defender a tese de doutorado.

    A tese, de fato, foi escrita ainda nos anos estudantis e, logo aps o

    trmino da Universidade, a apresentei para a defesa (parece que isso

    foi visto como um atrevimento, mas juro que foi pura inocncia).48

    46 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman". (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM 47 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    44

    O seu tema eram as relaes artsticas entre Aleksandr Radschev, cuja vida e

    obra ele j havia analisado anteriormente, e Nikolai Karamzn que se tornou centro dos

    seus estudos posteriores. Em 1958, Ltman escreveu o artigo Radschev e Mably49. A

    partir de ento comeou o seu interesse pelas ligaes culturais entre a Rssia e os

    pases da Europa Ocidental. Mencionaremos apenas alguns dos seus trabalhos

    dedicados a esse tema: Novos materiais referentes ao incio do contato da literatura

    russa com Schiller (

    ), que tambm foi publicado em 1958, Rousseau e a cultura russa do

    sculo XVIII ( XVIII ) de 1967, Sobre o problema

    de Dante e Pchkin ( ") de 1980, entre outros.

    Alm das relaes interculturais, Ltman interessou-se seriamente pela figura de

    Nikolai Karamzn, que, juntamente com Aleksandr Radschev, considerado um dos

    representantes mais notveis de Iluminismo russo. Em 1957 Ltman publicou o

    primeiro trabalho dedicado exclusivamente obra do historiador e filsofo russo: A

    evoluo da concepo de mundo de Karamzn (

    (17891803)). Todos os trabalhos dedicados a Karamzn foram reunidos,

    j aps a morte de Ltman, em uma coletnea intitulada Karamzn. 50

    Hoje difcil compreender a coragem do pesquisador que se interessou por essa

    figura que caiu em desgraa na poca sovitica por ser considerado um escritor

    monarquista e reacionrio. Ainda no sculo anterior Aleksandr Pchkin via a obra

    principal de Karamzin, a Histria do Estado Russo (

    ) de uma maneira bem parecida com a crtica sovitica:

    48 Idem. 49 Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785): abade e filsofo-iluminista francs. 50 LTMAN, Iu. Karamzn. So Petersburgo, Isksstvo, 1997.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    45

    Em sua Histria, a elegncia e a simplicidade

    Mostram-nos, sem parcialidade,

    A necessidade de monarquismo

    E as maravilhas do chicote.51

    ,

    , ,

    . 52

    (1918)

    B. Egrov tambm destaca o significado central das obras dedicadas ao

    Karamzin entre a herana de Ltman como estudioso da cultura russa dos sculos

    XVIII-XIX:

    O conjunto de trabalhos de Ltman sobre Karamzn um dos mais

    significativos entre o seu legado. A reviso das opinies unilaterais

    anteriores sobre Karamzn, a revelao dos elementos republicanos

    e utpicos na viso do mundo do jovem viajante russo, a descoberta

    virtuosa das datas reais, e no ficcionais e camufladas, da estadia de

    Karamzn em Paris durante a Revoluo Francesa, a anlise da

    complexa combinao de monarquismo e liberalismo peculiar nas

    ltimas obras de Karamzn, o carter cientfico-artstico da Histria do

    estado russo: essa a lista somente das principais descobertas do

    pesquisador.53

    De volta a Trtu, Ltman retomou todas as atividades acadmicas com muita

    intensidade. Passados muitos anos, ele se lembrava daqueles primeiros anos na Estnia,

    em que ele se sentiu literalmente estranho e estrangeiro (pois l, alm do idioma oficial

    da Unio Sovitica, o russo, falava-se ainda o estoniano) como de uma poca muito

    51 Traduo nossa. 52 Os estudiosos da literatura russa ainda no chegaram ao acordo em relao questo se Pchkin realmente era o autor dessa epigrama. 53 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman". (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    46

    feliz que o ajudou na elaborao de novos conceitos sobre a literatura e cultura em

    geral:

    A falta de conhecimento do idioma e do ambiente, bem como a

    imprudente ingenuidade que me acompanhou durante toda a vida, no

    me permitiram enxergar o carter trgico daquelas condies as quais

    nos deparamos. Eu, sinceramente, via a situao como um idlio: o

    trabalho com os estudantes me trazia um enorme prazer, a boa

    biblioteca permitia, de forma enrgica, avanar nos captulos da tese,

    que em geral j fora escrita, a amizade com o crculo dos jovens

    estudiosos de literatura, que nessa poca residiam em Trtu: tudo isso

    criava em mim uma sensao de ininterrupta felicidade. Quatro ou

    seis horas de aulas por dia no me cansavam, e eu, literalmente, sentia

    as asas crescerem quando de repente descobria que, ao lecionar, era

    capaz de chegar s ideias absolutamente novas e que, no final das

    aulas, estavam se formando conceitos novos, at ento desconhecidos

    por mim.54

    Em outro trecho de suas No-memrias, depois de descrever como ele, Zara

    Mints e o filho pequeno viviam em um quarto com baratas, Ltman concluiu:

    Porm, a nossa vida era muito feliz: trabalhvamos muito,

    escrevamos muito e sempre nos encontrvamos em um crculo

    pequeno, mas muito estreito e amigvel. Eu mudei para a

    Universidade de vez, enquanto Zara Grigrievna trabalhava no

    Instituto dos professores.55

    Toda a sua vida foi ligada Universidade: de 1960 a 1977 Ltman foi o chefe

    do Departamento de Literatura Russa at a sua transferncia para o Departamento de

    54 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html 55 Idem.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    47

    Literatura Estrangeira, fato ocorrido em 1977. Essa transferncia refletiu a preocupao

    do governo com as pesquisas de Ltman voltadas semitica, oriunda do Ocidente, que

    podiam ser perigosas para o estado. O prprio Ltman ironizava que apenas "o exlio de

    Soljentsyn56 no Ocidente capaz de explicar porque um professor de literatura russa

    trabalha no Departamento de Literatura Estrangeira". 57 Porm, mesmo sendo professor

    de outro departamento, Ltman continuou a lecionar no Departamento de Literatura e

    Lngua Russa.

    Apesar da inconveniente transferncia, Ltman tinha liberdade relativa para

    trabalhar e pesquisar na Universidade de Trtu. Esse fato em muito se deve ao esforo

    do reitor da Universidade Fidor Klement (1903-1973), entre os anos 1950-60:

    Ele [...] de forma nica, combinava em si o partidrio funcionrio

    sovitico (era membro do Comit Central do Partido Comunista da

    Estnia e deputado do Conselho Superior da Unio Sovitica) e

    sincero marxista, com um homem da cincia, complacente aos jovens

    pesquisadores. 58

    Graas a ele o Departamento de Literatura Russa da Universidade passa a

    publicar anualmente (desde 1958) a coletnea Trabalhos sobre a filologia russa e

    eslava ( ) que fazia parte da srie Notas

    cientficas ( ). Ltman destaca a importncia dessa edio para o

    desenvolvimento contnuo dos estudos eslavos na Unio Sovitica:

    56 Soljentsyn, Aleksandr (1918-2008). Romancista, dramaturgo e historiador russoque escrevia sobre os campos de trabalhos forados na Unio Sovitica e por essa razo fora expulso do pas, em 1974. 57 KISSELIVA, L. N. Iu.M. "Ltman como chefe do departamento de literatura russa" (". . "). // http://www.ruthenia.ru/lotman/txt/kiseleva03a.html. 58 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    48

    Quando chegamos Trtu, As Notas cientficas praticamente no

    eram publicadas. [...] O primeiro congresso dos eslavistas na Unio

    Sovitica tornou-se o pretexto graas ao qual conseguimos a

    permisso de Klement para publicar um volume inteiro. Era a primeira

    edio dos Trabalhos sobre a filologia russa e eslava, foi assim que

    chamamos a nova srie. Paralelamente consegui publicar uma

    monografia dedicada vida e obra de Kaissrov59. [...] Assim

    comearam as edies sobre os estudos eslavos em Trtu.60

    As Notas cientficas transformaram-se em uma das principais edies da

    Universidade de Trtu. Publicada anualmente desde 1958, a srie, at o presente

    momento, consiste em 26 volumes com 289 trabalhos de 108 autores. A partir de 1964

    passou a ser publicada igualmente outra srie Trabalhos sobre os sistemas sgnicos

    ( ), que expressava as opinies da escola Semitica de

    Trtu, liderada por Iri Ltman.

    59 Kaissrov, Andrei (1782-1813): poeta, crtico e historiador da literatura cuja obra foi praticamente esquecida pelas geraes posteriores e foi reapresentada por Iu. Ltman que tinha interesse especial em resgatar os autores esquecidos. 60 LTMAN, Iu. No-memrias (Ne-memury). // http://www.ruthenia.ru/lotman/mem1/Lotmanne-memuary.html

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    49

    2a edio dos Trabalhos sobre os sistemas sgnicos (1965) os Materiais do simpsio sovitico sobre os sistemas modelizantes secundrios (1974), elaborados na base da ltima, V, Escola de vero. (Fotos do

    arquivo pessoal de Serguei Neklidov).

    At hoje foram preparadas 23 edies dessa srie. Alm disso, tambm em 1964,

    a esposa de Iu. Ltman, Zara Mints, passou a publicar a Coletnea de Blok (

    ) dedicado aos estudos do simbolismo russo.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    50

    Iri Ltman e sua esposa Zara Mints (foto do site: ruthenia.ru)

    Essa coletnea inclui nove volumes com 117 artigos provenientes de 88 autores:

    A edio do primeiro volume das Notas foi motivada pelo congresso

    dos estudos eslavos, entretanto, posteriormente (e aqui preciso

    agradecer ao reitor Klement), conseguimos conquistar o direito de fato

    edio anual do volume completo dos Trabalhos sobre a filologia

    russa e eslava, sendo que a sua edio foi realizada em um volume

    significativamente ampliado. Dentro de algum tempo conseguimos

    ainda a permisso para a criao de mais uma srie independente:

    srie de trabalhos semiticos, que se tornou um dos principais feitos

    de nossas vidas: de Egrov, Zara Grigrievna e da minha...61

    Essa intensidade de trabalhos cientficos, caracterstica em geral para toda a vida

    de Iri Ltman que at os ltimos anos lecionava de seis a oito horas todos os dias,

    possui tambm outra razo:

    61 Idem.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    51

    Zara Grigrievna, Boris Fidorovitch [Egrov E. V.] e eu

    combinamos o seguinte princpio: cada volume era visto como ltimo.

    De fato, sempre partimos da possibilidade de destruio total e

    trmino da edio. Da, de um lado, a intensidade dos trabalhos e do

    outro, s vezes, alterao de boas partes da composio: tivemos que

    inserir em um artigo aquilo que, em condies normais, poderia ser

    transformado em uma publicao separada. 62

    Esse medo de uma repentina proibio de publicar, por parte do governo

    sovitico, explica tambm o carter resumido de alguns ensaios dos participantes dessas

    coletneas: eles preferiam publicar os seus trabalhos mesmo que em forma de teses a

    acrescentar material complementar, exemplos e explicaes mais detalhadas a correr o

    risco de no poder v-los impressos. Essa brevidade observa-se, por exemplo, no ensaio

    de Zara Mints "O conceito de texto e a esttica simbolista"63 ou, ento nas fundamentais

    "Teses para uma anlise semitica da cultura" 64, escritas por Ltman em coautoria

    Viatcheslav Ivnov65, Aleksandr Piatigrski66, Vladimir Toporov67 e Bors Uspinski68,

    sobre as quais refletiremos adiante.

    Na coletnea, Ltman publicou alguns dos seus trabalhos dedicados literatura

    do perodo pr-dezembrista que posteriormente foram reunidos em sua tese de livre-

    docncia Os caminhos de desenvolvimento da literatura russa do perodo pr-

    dezembrista ( )

    62 Idem. 63 MINTS, Zara. "O conceito de texto e a esttica simbolista" (" "). // MINTS, Z.G. Blok e o simbolismo russo: Obras selecionadas em 3 volumes ( : : 3 ). Volume 3. So Petersburgo, Iskusstvo, 2004, p. 97102. 64 "Teses para uma anlise semitica da cultura". // MACHADO, Irene. Escola de Semitica A Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da cultura. Ateli Editorial, 2003, p. 99-132. 65 Ivnov, Viatcheslav Vsivolodovitch (1929). Linguista, um dos participantes notveis da Escola semitica de Trtu-Moscou. 66 Piatigrski, Aleksandr (1929-2009). Fillogo e filsofo russo, estudioso da cultura oriental, um dos fundadores da Escola semitica de Trtu-Moscou. 67 Toporov, Vladimir (1928-2005). Especialista em literatura, cultura e linguistica, um dos fundadores da Escola semitica de Trtu-Moscou. 68 Uspinski, Boris (1937). Crtico literrio e linguista, um dos fundadores da Escola semitica de Trtu-Moscou.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    52

    defendida na Universidade de Leningrado, em 1961. Para a preparao dessa tese,

    Ltman teve que estudar, alm das obras literrias desse perodo, dez arquivos de

    Moscou e Leningrado, bem como todas as revistas de 1800-1815. O principal tema da

    tese a influncia do pensamento sociopoltico e da filosofia na literatura, j que nessa

    poca a literatura ainda no era completamente independente.

    O Departamento de Literatura Russa da Universidade de Trtu era, nos anos

    1960, extremamente ativo e produtivo e tinha, entre os membros, o seu criador, Bors

    Egrov e os professores Iri Ltman, Zara Mints e Igor Tchernov. Os principais rumos

    de pesquisa eram a anlise do texto potico, bem como o estudo dos diferentes modelos

    culturais.

    Alm dos estudos de literatura russa, nesse perodo Ltman se interessa cada vez

    mais pelos conceitos do estruturalismo em geral e pela nova cincia formada com a base

    neles: a semitica. Na mesma poca, Ltman se aproximou dos linguistas e estudiosos

    de literatura de Moscou: em dezembro de 1962 na capital sovitica, teve lugar o

    Simpsio de estudo estrutural dos sistemas sgnicos que tocava nos mais variados

    assuntos, como semitica da linguagem e arte, mitologia e semitica do ritual. Do

    simpsio participaram Piotr Bogatyriov69, Viatcheslav Ivnov, Vladimir Toporov,

    ndrei Zalizniak70, entre outros. Para o Simpsio, foi lanada uma pequena coletnea

    com teses dos pesquisadores moscovitas e resumo das suas apresentaes.

    O livrinho [...] caiu nas mos de I. M. Ltman (que, apesar de no ter

    participado do Simpsio, de forma independente chegou aos mesmos

    69 Bogatyriov, Piotr (1893-1971). Estudioso de folclore e etnografia. 70 Zaliznik, Andrei (1935). Linguista, um dos participantes da Escola semitica de Trtu-Moscou.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    53

    problemas). Ele se interessou muito pelo folheto e, quando veio a

    Moscou, sugeriu colaborar na base da Universidade de Trtu.71

    Esse foi o incio de uma longa parceria cientfica que depois foi chamada de

    Escola Semitica de Trtu-Moscou.

    71 USPINSKI, B. A. "O problema de gnese da escola semitica de Trtu-Moscou". (" - "). // Iu. M. Ltman e Escola semitica de Ttru-Moscou ( - ). Volume II. Moscou, 1994, p. 275.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    54

    3.1. A Escola de Trtu-Moscou

    No faz parte do objetivo desse captulo uma descrio completa e detalhada dos

    conceitos da Escola Semitica de Trtu-Moscou, bem como da contribuio de cada

    uma dos seus participantes, pois isso j foi realizado em vrias obras dedicadas ao

    assunto e, inclusive, no Brasil, no livro de Irene Machado Escola de Semitica A

    Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da Cultura.72 Ao falar de Escola semitica

    russa, necessrio observar que, apesar de ser fundada e liderada por Iri Ltman, ela

    contou com a participao de muitos autores importantes, tais como: Vladmir Toporov,

    Bors Uspinski, Viatcheslav Ivnov, Eleazar Meletnski e Serguei Neklidov, entre

    outros. Trata-se, portanto, de uma interao constante entre especialistas em diferentes

    reas, como lingustica, estudos literrios, folclorstica, culturologia e at mesmo

    cincias exatas (como, por exemplo, a contribuio de Vladmir Uspinski, matemtico

    e linguista). No entanto, nos deteremos apenas aos aspectos especficos tocantes a Iri

    Ltman e formao da sua viso de semitica da cultura que ocorreu justamente nesse

    perodo.

    Como de conhecimento geral, os anos 1960 foram marcados por um

    desenvolvimento intenso (s vezes tambm chamado de "superao") do estruturalismo

    que, de rea estritamente lingustica, passou para as cincias humanas em geral. Ltman

    desenvolvia o estruturalismo na rea dos estudos literrios. Em seu artigo de 1963

    Sobre a separao do conceito de estrutura na lingustica e nos estudos literrios 73,

    ele observou:

    72 MACHADO, Irene. Escola de Semitica A Experincia de Trtu-Moscou para o estudo da Cultura. Ateli Editorial, 2003. 73 LTMAN, Iu. Sobre a separao do conceito de estrutura na lingustica e nos estudos literrios (" "). // Questes de lingustica ( ), 1963, No 3.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

    55

    Existe [...] uma peculiaridade: o linguista trabalha com o plano de

    expresso de modo formal, enquanto que o estudioso da literatura

    descobre, por meio da expresso, as esferas do contedo (o gnero

    gramatical, feminino ou masculino, em certas imagens pode possuir

    um contexto de contedo) [...] etc 74.

    De acordo com Igor Tchernov, essa foi a primeira tentativa de colocar a

    filologia na mesma linha das assim chamadas cincias exatas75.

    O livro de Ltman Curso de potica estrutural76, publicado em 1964, representa

    uma contribuio expanso do estruturalismo.

    Iri Ltman com a primeira edio do seu livro Curso de potica estrutural, de 1964. (Foto do arquivo pessoal de Serguei Neklidov).

    74 EGROV, B.F. "Vida e obra de Iri Ltman" (" "). // http://vivovoco.rsl.ru/VV/PAPERS/LOTMAN/_EGOROV_1.HTM 75 TCHERNV I.A. "Ensaio introdutrio ao sistema de Iu. M. Ltman" (" .."). // Ltman, Iu.M. Sobre a literatura russa ( ). So Petersburgo, 1997. P. 7. 76 LTMAN, Iu. Curso de potica estrutural. Edio 1. Introduo, a teoria da poesia. ( . 1. , ). Trtu, 1964.

  • Alguns aspectos da semitica da cultura de Iri Ltman

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    De acordo com estudioso da literatura e membro da escola semitica de Trtu-

    Moscou, Mikhail Gasprov77 (1935-2005), esse livro serviu como base para as obras

    posteriores de Ltman, tais como A estrutura do texto artstico de 1970 e A anlise do

    texto potico de 197278.

    Segundo Gasprov, em todos esses livros Ltman emprega o mtodo

    materialista, prprio ao marxismo79. Essa afirmao pode parecer estranha considerando

    o fato de que Ltman praticamente pertencia dissidncia sovitica, opondo-se,

    portanto, poltica oficial da Unio Sovitica que, por sua vez, se baseava justamente

    no marxismo. Na verdade, Ltman, assim como outros dissidentes, inclusive Mikhail

    Gasprov, sentia que havia uma discrepncia entre o mtodo marxista e a sua ideologia:

    Os estudos literrios soviticos se baseavam no marxismo. No

    marxismo, conviviam o mtodo e a ideologia. O mtodo do marxismo

    era o materialismo histrico e dialtico. O materialismo representava

    um axioma: a existncia determina a conscincia, inclusive do

    portador da cultura, o poeta e o leitor. Historicismo significava que

    cultura era uma consequncia dos fenmenos socioeconmicos de seu

    tempo. Dialtica significava que o desenvolvimento da cultura, assim

    como de todos os processos mundiais, se realiza como resultado da

    luta das suas contradies internas. J a ideologia ensinava algo

    diferente. A histria acabaria e comearia a eternidade de uma

    sociedade ideal sem classes [...]. Todas as contradies internas j

    teriam exercido o seu papel e sobrariam apenas as externas, entre os

    fenmenos bons e ruins: portanto tornava-se necessrio dividir os

    fenmenos culturais em bons e ruins e tentar fazer com que os

    primeiros sejam bons em todos os aspectos e vice-versa. A verdade

    77 GASPROV, M. "Iu. M. Ltman: a cincia e a ideologia" (". . : "). // GASPROV, M. Obras selecionadas. Volume 2. Moscou,