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A FORÇA DO DESTINO Camp Fear Alice Orr Um mistério assombrava a vida de Melissa... Ao retornar ao camping em que costumava passar as férias, Melissa descobriu que sua vida fora uma grande mentira. O falecido marido, que ela julgava conhecer tão bem, a enganara de maneira vil! Disposta a desvendar todos os mistérios do passado, ela não teve outra escolha senão confiar em George Conti, um homem que Possuía um forte motivo para se envolver com Melissa, e fazê-la se apaixonar por ele. Será que o amor verdadeiro estava batendo à porta de Melissa, ou George era apenas mais um mistério a ser desvendado?

Alice Orr - A Força Do Destino

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A FORÇA DO DESTINOCamp Fear

Alice Orr

Um mistério assombrava a vida de Melissa...

Ao retornar ao camping em que costumava passar as férias, Melissa descobriu que sua vida fora uma grande mentira. O falecido marido,

que ela julgava conhecer tão bem, a enganara de maneira vil! Disposta a desvendar todos os mistérios do passado, ela não teve

outra escolha senão confiar em George Conti, um homem que Possuía um forte motivo para se envolver com Melissa, e fazê-la se apaixonar

por ele. Será que o amor verdadeiro estava batendo à porta de Melissa, ou George era apenas mais um mistério a ser desvendado?

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Copyright © 1994 by Alice OrrOriginalmente publicado em 1994 pela Silhouette Books,

Divisão da Harlequin Enterprises Limited.Título original: Camp Fear

PRÓLOGO

Melissa Wald tentava se convencer de que não estava perdida. Aquela estrada haveria de ter uma placa de sinalização, indicando o caminho a seguir.

Não entendia como conseguira errar a entrada para Camp Tranquility. Na verdade, pretendera evitar a rodovia norte de Syracuse, que lhe trazia dolorosas lembranças de Philip. Nos dois últimos verões, quando o marido ainda estava vivo, ambos haviam feito aquele percurso repetidas vezes. Ela resolvera não pegar a rodovia que dava acesso direto a Pulaski, no Estado de Nova York. Ao desviar, enveredara pelas estradas interestaduais, e agora se encontrava num local desconhecido. Aproximando-se de um desvio à direita, percebeu que a rodovia estendia-se para muito longe. Um qui-lômetro adiante avistou, à beira da estrada, uma barraca de frutas e verduras. Eram quatro estacas de madeira, cobertas por uma lona velha e desgastada. As prateleiras, já acinzentadas pelo tempo, estavam repletas de rachaduras.

Os produtos, amarelados e envelhecidos, pareciam abandonados havia anos. Melissa surpreendeu-se com a simplicidade do comércio. Meia dúzia de melões, algumas cebolas; e poucas batatas amontoavam-se numa cesta de vime. Naquela época do ano, esses lugares costumavam ficar lotados de compradores. E mesmo com um estoque reduzido, como o daquela barraca, os produtos já te-riam sido vendidos e renovados. Dois rapazes, parados atrás das prateleiras, seguiram-na com olhares vagos. As famílias que viviam nas montanhas de Lewis County não pagavam impostos nem mandavam os filhos à escola. A lenda local dizia que os habitantes mantinham-se armados para expulsar a visita indesejável de algum representante do governo ou assistente social. Também não gostavam da presença de estranhos.

Observando os rostos estáticos, Melissa se perguntava até que

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ponto essas histórias eram verdadeiras. Estava a alguns metros de distância da barraca, subindo uma pequena ladeira, quando um movimento súbito na estrada a assustou .

— Oh, meu Deus! — exclamou, pisando no freio do carro. O automóvel pertencera a Philip, que costumava utilizá-lo em

viagens. Era confortável, luxuoso e grande o suficiente para acondicionar todos os suprimentos necessários. Nesse momento, Melissa desejou estar com seu pequeno carro esporte, mais fácil de dirigir. Ao virar a direção, enquanto freava, divisou um vulto de mulher. Em vez de se desviar do veículo, a desconhecida corria em direção a ele. Vestia jeans e camiseta e parecia ter trinta anos. Cabelos longos e despenteados cobriam-lhe o rosto, mas não lhe escondiam a raiva. Com o dedo em riste, apontado para Melissa, ela berrava, enlouquecida.

— Esse carro não é seu! É meu! Devia ser meu! — E continuava caminhando em direção ao veículo.

Melissa pensou que a estranha a tivesse confundido com outra pessoa. Respirou fundo. Não tinha a menor disposição de discutir ou de incomodar-se com a ira daquela mulher.

De repente, uma pedra bateu no vidro da janela. A desconhecida atacava o carro de Philip. Numa manobra rápida, Melissa desviou o veículo para o acostamento, evitando um atropelamento. Uma chuva de pedregulhos caiu sobre o vidro da frente. A maluca prosseguia em seu ataque enfurecido.

Melissa retornou à estrada e, pelo espelho retrovisor, viu a outra gesticulando e esbravejando, as mãos cheias de pedras. Sem se preocupar com o limite de velocidade, pisou fundo no acelerador, escapando com rapidez.

Sentia-se covarde por fugir daquela maneira. Poderia ter parado para esclarecer o terrível engano.

O carro lhe pertencia; a mulher apenas se confundira. Recordando-se daquele rosto enlouquecido, porém, supôs que a estranha apenas pretendera arranjar confusão. Na certa era uma alma atormentada e sofredora. Em outras circunstâncias, ela estaria curiosa em saber qual a história escondida por trás daquele comportamento agressivo. Mas, no momento, seu coração palpitava, enquanto suas mãos apertavam a direção do carro. Queria sair dali o mais rápido possível, torcendo para que o velho Lincoln de Philip não

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a decepcionasse.

CAPITULO I

Melissa não demorou muito para encontrar um trevo bem sinalizado. Considerou-se uma mulher de sorte ao ler, nas placas in-dicativas, o nome de Camp Tranquility. Sempre considerara o acampamento um lar.

Todas as vezes que se aproximava do lugar, diminuía a velo-cidade a fim de apreciar a bela paisagem. Mas, naquela tarde, fez questão de manter o ritmo acelerado do veículo. Pisou no acelerador até atingir o trailer no qual ela e Philip haviam passado os dois últimos verões.

O camping nunca lhe parecera tão acolhedor. O aroma dos pinheiros e da grama queimada pelo sol indicava ser aquele o local perfeito para passar os finais de semana. Em especial quando ela se sentia cansada de Syracuse, onde vivera durante os cinco anos de seu casamento com Philip.

As folhas movidas pela brisa, o canto dos pássaros e os gritos alegres das crianças davam-lhe uma sensação de paz e serenidade. Era exatamente de algo assim que precisava.

Afinal, ainda se recuperava da perda do marido, morto havia dez meses. Não tivera condições de cancelar o aluguel da área do camping. Depois dos acontecimentos da última temporada, Bonnie e Joe Delaney, donos da propriedade, não a forçaram a nada. Compreenderam a situação pela qual Melissa passara e concederam-lhe o tempo necessário para curar as feridas. Bonnie e Joe eram assim.

Tinham excelente tino para negócios, mas também possuíam corações bondosos. Aliás, muitas pessoas haviam se mostrado generosas nos últimos dez meses. Desse modo, estimulavam o esforço de Melissa, que procurava sair daquele estado emocional frágil. O choque já havia passado, e a dor começava a diminuir de intensidade. Ela não tinha certeza de aonde essa repentina mudança a levaria, especialmente com as estranhas sensações que vinha experimentando nos últimos tempos. De qualquer modo, não se importaria de permanecer enrolada num edredom de algodão o resto

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da tarde, mesmo que isso representasse um sinal de fraqueza.O gramado ao redor do trailer estava alto, como se ninguém

caminhasse por ali houvesse muito tempo. Os Delaney haviam mantido o lugar intato. Sob a mesa de piquenique, o mato crescera, quase cobrindo os pés de madeira dos bancos. Com certeza, ninguém se sentara ali para tomar cerveja ou fazer churrasco. Uma sensação de vazio prevalecia no interior do trailer, envolvendo-a como se fosse um nevoeiro cinzento e frio numa noite de outono.

Melissa sentiu o peito se apertar. Sua vontade era entrar no carro e sair dali, para nunca mais voltar. Philip, sem dúvida, esperaria tal atitude. Mantivera algumas opiniões suspeitas a respeito da esposa. Achava-a submissa e fraca. Melissa nunca fora capaz de con-tradizer essas opiniões, ao menos não com muita veemência. Não acreditava ser esse o melhor modo de combater os argumentos do marido.

Na verdade, o casamento, com o passar dos anos, tornara-se um hábito, uma convivência amigável, sem novidades. Melissa estava determinada a não cometer de novo o mesmo erro. Desligou o motor do carro e saltou.

Apressou-se em abrir o trailer. Tinha receio de mudar de idéia, ceder à covardia e sair dali correndo. O interior do veículo estava empoeirado, e ela passou a tarde trabalhando duro para limpá-lo. Encheu os armários de mantimentos e lavou os utensílios de cozinha. No fim do dia, sua nova casa já se transformara num lar aconchegante. A noite chegou acompanhada pelo som das folhagens.

No entanto, os ruídos da natureza não pareciam tão acolhedores agora. Era a primeira vez que Melissa se encontrava realmente só naquele lugar, e isso a assustava.

No passado, o marido a protegia das ameaças que a escuridão ocultava. Naquela noite, porém, o barulho do motor do Lincoln de Philip não seria ouvido.

Ele não chegaria, todo envergonhado, expressando alguma desculpa pelo atraso. Talvez por isso ela estivesse sentindo aqueles arrepios constantes. Ou talvez fosse apenas por causa da brisa fria...

Nos primeiros anos de casamento, Melissa não fizera exigências.

Philip significara um refúgio, o único conforto que tivera depois da turbulenta vida familiar.

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Sentia-se tão grata a ele por tê-la afastado daquele sofrimento que, na maior parte do tempo, submetia-se ao que Philip desejasse fazer. Mas, quando viajavam ao camping, libertava-se das amarras da gratidão. Era o lugar onde mais se divertia, descobrindo-se no contato com a natureza. Philip não se interessava muito por acampar entre as montanhas. Sua idéia de aventura era uma suíte de hotel, com uma imensa cama de casal. Apesar disso, ele satisfazia o desejo da esposa. Depois de algum tempo, passou a gostar do camping.

Seu passatempo preferido eram as fogueiras, só acesas tarde da noite, quando ele retornava da cidade, ou após Melissa adormecer. Ela nunca duvidou que pudesse fazer o serviço sozinha.

Em várias ocasiões, exasperada com o marido por causa dos atrasos, quase ateava fogo no mato. Mas logo se continha, e esperava. O fogo era o motivo pelo qual Philip se permitira acampar.

Ele arrumava as toras de madeira seca que Melissa recolhia na floresta, construindo uma enorme estrutura recheada de jornais a fim de fazer as chamas subir mais rapidamente. Nem sequer se importava com o sofrimento da esposa ao ver a natureza sendo destruída.

Philip não era o tipo de homem que fazia concessões. Sempre se encarregara de tudo, poupando-a de todos os esforços ou tarefas.

O camping fora a única exigência de Melissa. Também insistira em comprar o trailer com o dinheiro que havia herdado da avó. Até a louça, os travesseiros e as roupas de cama foram adquiridos com essa herança. Philip esbravejara, indignado, com o desperdício de dinheiro em pratos e copos, quando a maioria das pessoas usava pro-dutos de plástico e papel. Mas não tentou impedi-la da compra, como Melissa esperara que fizesse. Na verdade, deixar prevalecer seu desejo lhe mostrara facetas valiosas a respeito de Philip e do rela-cionamento de ambos. Se ela batesse o pé, o marido respeitaria seus desejos.

Ao menos fora assim naquele caso. Mas Melissa não agira com teimosia nos cinco anos de casamento. Ao contrário, preferira deixar Philip cuidar de tudo, tomar todas as decisões. Em pouco tempo o excesso de proteção tornou-se um peso incômodo, como uma corrente no pescoço.

Melissa rasgou as folhas da seção de esportes da revista Syracuse Post Standard, enrolando-as como uma longa tocha, do jeito que Philip costumava fazer. Colocou o papel ao lado dos outros,

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dentro do círculo de metal enferrujado, idêntico aos outros oitenta e cinco círculos de Camp Tranquility. Correu em direção ao trailer e, então, virou-se para ver as chamas subindo ao céu. Felizmente, havia árvores frondosas contornando a área. Assim, nenhum dos vizinhos poderia ver quão aborrecida ela estava.

Só esperava que, como os Delaney, seus companheiros de camping compreendessem sua situação.

Entretanto, a culpa em relação aos sentimentos que nutria por Philip, ou a ausência deles, era um assunto delicado demais para dividir com alguém.

De qualquer forma, ela jamais fizera amizades no acampamento.

Philip preferia o isolamento, e Melissa, embora relutante, aceitara a decisão. Afinal, essa era uma condição essencial para que o marido a levasse ao camping. Ela se perguntava se conseguiria fazer alguma amizade naquela temporada, ou até mesmo se suportaria voltar no ano seguinte. Seriam as lembranças tão fortes e intensas a ponto de dominá-la por completo? Os sentimentos que a invadiam no momento davam uma boa indicação de que, talvez, essa fosse sua última visita a Lewis County. Syracuse também não era mais um lugar fácil para viver. Mas no camping, ao menos, Melissa não teria a recordação constante da morte do marido e de sua responsabilidade nela. Ninguém a questionaria se desistisse de acampar e vendesse o trailer. Afinal, não fora ali que Philip sofrerá o acidente fatal?

Se as pessoas os conhecessem bem, saberiam que ele fora obrigado a ir a Camp Tranquility por insistência da esposa. A pressa fizera com que Philip embarcasse naquele pequeno avião numa noite de tempestade. Ninguém suspeitaria da culpa que Melissa carregava sobre os ombros. E ninguém a condenaria por querer fugir dessas lembranças.

De qualquer maneira, agora estava no acampamento, e pretendia permanecer ali, custasse o que custasse. Pegou outro punhado de papel e amassou-o, jogando-o na fogueira. Observou as chamas consumirem as folhas da revista. Com cuidado, mexeu nas toras com um galho de árvore ainda verde.

A madeira seca estalava com o intenso calor, soltando diminutas brasas pelo ar, que subiam vermelhas, na direção das estrelas.

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Melissa sorriu. Era uma bela fogueira. Podia até afirmar que fora um bom começo.

A paciência era uma necessidade, pensava, assistindo ao maravilhoso espetáculo de luzes vermelhas e alaranjadas proporcionadas pelas chamas. O uivo de um lobo ecoou de dentro da mata virgem. Melissa levantou a cabeça para ouvi-lo e para respirar o suave ar da noite, misturado à essência de madeira e terra secas. O fogo estava alto o suficiente para iluminar boa parte do terreno, estendendo-se até a folhagem à frente. Seu olhar fixou-se numa forma escura por detrás da mata. Alguém estava em pé atrás das árvores. A luminosidade não era forte o bastante para Melissa saber o que a pessoa fazia.

Ouviu outro estalo da madeira. Sentia que o estranho a observava com a mesma intensidade com que ela admirara o fogo minutos antes. De repente, a pessoa se foi. Melissa tinha certeza de que não era uma ilusão. Alguém a observara. A lembrança da mulher encolerizada passou por sua mente, fazendo-a arrepiar-se. E se fosse ela?

Bem, mas a sombra poderia ser apenas uma ilusão causada pela dança das chamas.

Também poderia ter origem num daqueles sentimentos inexplicáveis que Melissa vivera na casa da Genesse Street. Lá, expe-rimentara a sensação de ser observada, pôr olhos furtivos, através dos vidros do casarão. Claro, não havia provas de que alguém a espionava. Na verdade, as evidências provavam o contrário.

Contudo, seu instinto lhe dizia que o vulto não fora produto da imaginação. O mesmo instinto a advertia de que o estranho talvez lhe causasse algum mal. Melissa não se preocupou em ponderar que tipo de maldade ele poderia provocar. Virou-se e correu ao trailer, trancando-se lá.

Havia somente uma luz acesa perto da porta de correr que levava ao deque, construído no ano anterior. Aquela porta, inteira de vidro, fora o que mais a encantara ao comprar o trailer. Agora, sentia-se exposta e vulnerável. Pegou os lençóis para cobrir o vidro e fechou as janelas. Eram tantas as janelas!

Precipitou-se para o quarto, acendendo todas as luzes. Decorara aquele quarto com esmero: os livros favoritos enfileirados na estante, a mesa de cabeceira sob o abajur cor de laranja, e a confortável cama desmontável.

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O carpete azul-turquesa fora escolhido para combinar com o céu de verão, e os travesseiros macios, jogados sobre a colcha de algodão, formavam um ninho aconchegante.

Melissa apreciara cada noite passada naquele canto confortável, acompanhada de um bom livro e do aroma trazido pela brisa suave que entrava pelas janelas. Vivera dias muito agradáveis naquele dormitório, ou sentada à mesa, sob o guarda-sol amarelo, no deque. Encontrara a paz nos dois lugares.

Naquela noite, porém não havia sinal de serenidade. O que outrora fora acolhedor e prazeroso agora não oferecia nenhuma pos-sibilidade de refúgio. Correndo de volta à sala, Melissa acendeu as luzes que ainda estavam apagadas, incluindo a lâmpada fosforescente do pequeno banheiro. Não conseguia imaginar quão brilhante o trailer podia parecer se olhado do lado de fora; mas era exatamente isso que queria. Ninguém se atreveria a incomodá-la ou bisbilhotar num lugar tão iluminado.

Na verdade, deveria acender as luzes do deque. Assim, desencorajaria eventuais intrusos.

Quando se aproximou do interruptor de luz, resolveu dar uma olhadela lá fora, por uma fresta entre os lençóis. O que viu a fez parar e reconsiderar.

O fogo, que a deixara tão orgulhosa, havia se alastrado e tomara as pranchas de madeira do deque. As chamas ultrapassavam a parede de metal do círculo. Melissa pensara, ao armar a fogueira, em assar algumas batatas nas brasas.

Enquanto isso, iria se aquecer, sentada na espreguiçadeira, aproveitando a quietude da natureza. Esperara resgatar as lembranças de verões passados, mas, em vez disso, escondia-se por detrás das cortinas, assustada demais para arriscar-se a sair do trailer. Várias vezes, depois que Philip morrera, experimentara o mesmo tipo de pânico. Acontecia quando ficava sozinha em casa, à noite. Sentia a presença de alguém, que a observava. Naquele instante, deu-se conta de que era uma mulher solitária.

Começou a sentir náuseas. A garganta se apertou e a boca ressecou. Por segundos pensou em pedir socorro a algum conhecido ou em esconder-se em algum lugar.

Então respirou fundo, esforçando-se para se acalmar. Obrigou-se a controlar o pânico. Afinal, essa seria sua vida dali por diante.

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Precisava prosseguir, reunindo as forças necessárias para isso.O marido fora um homem metódico, atento aos mínimos

detalhes. As finanças estavam em dia, nas mãos de um contador competente. Tudo o que Melissa tinha a fazer era pegar o telefone, se precisasse de dinheiro, ou verificar se alguma conta fora paga no dia certo.

Philip contratara um caseiro para tomar conta da residência e um jardineiro para cuidar do jardim. O mecânico conhecia bem os carros dos Wald, e até lhe diria quando e por quanto vender os automóveis.

Os cuidados minuciosos de Philip foram tantos que não seria necessária sua presença para controlar a rotina diária de Melissa. Ele se certificara de que tudo correria conforme desejasse e do jeito como a esposa sempre o deixara fazer. Seria esse o motivo que a fazia sentir-se perseguida?

Enquanto Philip vivera, Melissa achara essa estrutura confortável. Um paraíso controlado após a crescente ansiedade que vivera ao lado da mãe, durante as turbulências da relação familiar.

Por vários meses, depois da morte de Philip, continuara a tirar proveito da segurança e da passividade que a vida organizada lhe proporcionara. Porém, ainda carregava a dor e a culpa. Então, semanas atrás, começou a sentir um alvoroço interior, como se a chegada da primavera tivesse germinado vitalidade e energia dentro dela. Aos poucos, foi percebendo que sua existência não era conveniente, e sim uma armadilha na qual se deixara apanhar. Não podia permitir que a imagem opressora de Philip a dominasse. Um dos motivos que a haviam feito voltar ao camping fora livrar-se da carga de organização do marido.

Queria observar como conseguiria se arranjar sozinha. Dissera á si mesma que seria a única a responsabilizar-se e a correr riscos. E ali estava ela, tremendo de medo atrás dos lençóis, necessitando da segurança das luzes apenas para passar uma noite longe do manto protetor de Philip. Procurava ignorar o estranho instinto que a preve-nia contra aquela figura sinistra entre as árvores.

Outro motivo que a levara ao camping fora a impressão de ser vigiada na casa da Genesse Street. Assim, não poderia se deixar abater. Por nada no mundo. Pegou a faca de churrasco na gaveta da cozinha e juntou outras revistas para alimentar o fogo.

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Respirou fundo e abriu a porta. A noite trazia o odor da umidade do dia.

Ela quase podia sentir o aroma das plantas que cresciam na terra, e ouvir as folhas verdes balouçando ao sabor da brisa. E havia a presença pungente da fogueira, lembrando-a do intruso por detrás das árvores. Antes de sair, vestira um casaco de moletom. Portanto, estava preparada para o vento frio da noite. Ficou satisfeita por ter tido coragem de deixar o trailer e verificar o local onde o inesperado visitante estivera. Depois de arrumar a fogueira, puxou a cadeira para perto do círculo de metal e sentou-se.

Pôde ouvir uma música distante, vinda de além das árvores. Não reconheceu a canção, mas recostou-se na cadeira, balançando o corpo ao ritmo da melodia. Aquele terreno fora escolhido por ser bem afastado. Ela até pagara uma quantia extra pelo espaço de dois trailers, para se manter isolada de vizinhos inconvenientes. Agora, relaxada, sentia-se grata pela privacidade.

Os ruídos constantes que ouvia deveriam vir dos galhos das árvores, batendo na porta do trailer. De súbito, porém, escutou outro barulho de folhagem.

Endireitou-se na cadeira, aguçando os ouvidos. Seu primeiro impulso foi correr e voltar ao trailer, mas estava determinada a enfrentar o que quer que fosse.

Tateou a grama ao redor da cadeira, onde deixara a faca de churrasco. Seus dedos tocaram o cabo de madeira e o seguraram. Ela não queria que a lâmina brilhasse com o reflexo das chamas. Por isso, manteve-a embaixo do assento. Endireitou as costas, na certeza de estar pronta para qualquer eventualidade. Também notou que a sensação de sossego desaparecera desde o instante em que ouvira o primeiro ruído no mato. E o pior era que agora o barulho das folhas, amassadas por passadas vigorosas, aproximava-se cada vez mais.

CAPITULO II

Melissa duvidou de que se tratasse da mesma pessoa que vira oculta entre as árvores. O homem à sua frente era muito maior, e possuía uma postura imponente. Isso a deixava ainda mais tomada pelo pânico. Talvez não devesse confiar tanto em suas sensações.

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Quando o inesperado visitante aproximou-se da fogueira, Melissa continuava a segurar a faca debaixo da cadeira, mantendo-a fora da visão do homem. Ele era alto e musculoso; caminhava com charme e segurança, com porte garboso. Os ombros largos e os braços fortes traduziam um modo de vida dedicado ao físico. Em circunstâncias normais, ela ficaria apavorada ao deparar, de repente, com aquele gigante surgido das trevas. Entretanto, mais uma vez, seguiu seus instintos e, por estranho que parecesse, não se assustou com a aparência do homem.

Deixou a faca escorregar pelos dedos e cair na grama, junto à cadeira. Levantou-se, a fim de cumprimentar o recém-chegado, e esperou que ele chegasse mais perto do fogo para observar-lhe as feições. Quando o viu melhor, surpreendeu-se.

Voltou a sentar-se, sem conseguir pronunciar uma palavra. Os traços eram tão másculos quanto o corpo. Os cabelos negros, como a noite, caíam sobre a testa alta e levemente franzida. Os olhos, de um brilho intenso, permaneciam fixos nela, e Melissa podia jurar que es-tavam sorrindo.

—Você é Melissa Wald supõe — disse ele. — Nunca nos vimos antes, mas sei quem é há muito tempo. Sou George Conti. — E estendeu a mão para cumprimentá-la. Como e quando ele soubera o seu nome?

A mão era forte, e os dedos, longos. Melissa preferiu ignorar o fato, pois ter os dedos envolvidos pelos dele não era o que mais desejava no momento.

Mas, naquela região do Estado, onde os habitantes eram considerados os mais amigáveis e hospitaleiros, não poderia se mostrar grosseira.

George Conti era mais alto do que a média. Melissa precisou levantar-se para cumprimentá-lo. Já estava se movendo quando o homem deu um passo à frente e segurou-a pelo braço. Numa fração de segundo, ela ergueu-se sem precisar despender o menor esforço. George Conti soltou-a tão rápido quanto a segurou, e deu outro passo para trás. Melissa sentiu-se pequena e indefesa diante daquele rapaz cujo físico assemelhava-se ao de Apoio, o mais belo dos deuses gregos.

Ele parecia ciente da situação constrangedora em que a colocara, em meio à escuridão da noite. Melissa sentiu-se incomodada com aquela atitude inesperada. George estava de costas

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para as chamas, e ela conseguia apenas visualizar-lhe a silhueta. Não podia localizar a direção daquele olhar, o que a tornava ainda mais embaraçada. Mesmo depois da morte de Philip, ainda se considerava uma mulher comprometida. Jamais se imaginara como objeto de interesse de outros homens, só do marido. Em várias ocasiões despertou desejo, mas não deu importância ao fato. Naquele instante, porém, estava bem consciente desse poder de sedução. Os olhos do visitante continuavam fixos nela, percorrendo todo o corpo feminino.

Analisavam as formas arredondadas dos seios e das pernas esguias, cobertas pela calça justa de malha.

A fogueira quase extinta aumentava a escuridão do cenário, mas Melissa podia sentir que estava sendo observada. Balançou a cabeça, tentando livrar-se daquelas ridículas fantasias. O dia fora cheio de momentos de tensão; na certa isso afetara seu bom senso.

— É um prazer conhecê-lo, Sr. Conti — cumprimentou ela, fugindo das emoções que a afligiam. — Está acampando por aqui? Não me lembro de tê-lo visto antes.

— Sou amigo dos Delaney. Eu os ajudo algumas vezes. Mas não sou um campista. Sou o que eles chamam de habitante local.

— Quer dizer que mora aqui?— Isso mesmo. Virando-se em direção à fogueira, ele pegou o

graveto que Melissa utilizara para agitar o fogo. Mudou algumas toras de lugar, e a intensidade das chamas aumentou rapidamente. Com uma das mãos no bolso da calça jeans, George concentrou-se nas labaredas, absorvido pela beleza colorida do fogo. Agora, Melissa podia ver com nitidez as feições do homem, inclusive os olhos.

A expressão era contemplativa. Ele dissera que trabalhava com os Delaney? Pois George Conti não tinha aparência de operário, apesar de aquele físico exuberante ser capaz de desempenhar, com facilidade, qualquer tarefa braçal.

— O senhor trabalha aqui? — perguntou ela, notando a redundância da pergunta. Afinal, se ele vivia na região, também deveria trabalhar ali Erguendo o rosto, ele a fitou nos olhos.

— Na verdade, não. Administro alguns negócios em Albany. Mas pretendo trabalhar aqui. Enquanto não me decido, vou me readaptando à vida no campo.

— Entendo. — Então, ela estava certa. George não era um operário.

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— E você? Parando de remexer as brasas, George Conti fixou a atenção

em Melissa, que pôde sentir a intensidade daquele olhar. Uma sensação penetrante envolveu-a. Era como se ele roçasse as curvas do seu corpo com o olhar.

— Eu? — Sei que não vive nas imediações. Mora em Syracuse, não é? — Sim, moro. — Melissa sentou-se na espreguiçadeira,

mantendo-se ereta. Por mais que desejasse uma posição confortável, estava longe de consegui-la. — Mas não trabalho em Syracuse. Eu... Bem, meu marido...

— Já soube o que aconteceu a seu marido. Sinto muito. Havia carinho naquelas palavras.

Ele não demonstrou piedade, como faziam as outras pessoas. Melissa sentiu, naquele momento, que poderia desabafar sem re-servas, contar-lhe sobre seus temores e sentimentos mais profundos. George Conti não só ouviria com atenção como também a compreenderia. Talvez até a confortasse, ajudando-a a superar a confusão emocional que a abalava.

Quantas tolices e ilusões... Pensar que um desconhecido partilharia seus pensamentos mais íntimos era ridículo. Agradecendo as condolências, comentou:

— É a primeira vez que venho acampar desde que meu marido faleceu.

— Sim, eu sei. — Como pode saber disso?Melissa o encarou, intrigada. Nesse instante, foi ele que

pareceu embaraçado. O modo como tensionou os ombros, caminhando ao redor da fogueira, era típico. Tentou disfarçar, mexendo nas toras em brasa, mas sua ansiedade era aparente. As labaredas se ergueram, soltando faíscas avermelhadas pelo ar.

— Vi quando você chegou hoje à tarde. Assim como notei sua estada no verão passado — explicou ele,

Fitando-a. A ponta do galho já estava em brasa. Melissa desviou o olhar do rosto de George, admirando a fogueira.

— Sua família mora aqui também?

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— Não eram os olhos intensos do visitante que pretendia evitar. Resolveu ignorar o último comentário que ele fizera.

— Meus pais estão em Lowville. Possuíam uma fazenda, a uns cinqüenta quilômetros daqui. Estavam cansados de cuidar da agricultura e resolveram morar na cidade. Minha irmã e a família mudaram-se para Boonville. Tenho algumas tias, tios e primos espalhados pela região. — Deve ser acolhedor possuir uma família tão numerosa.

— Hoje em dia, sim. Quando eu era criança, sentia-me sufocado.

— Mas mesmo assim você voltou para cá. — Melissa sabia quanto estava sendo indiscreta, mas a curiosidade era mais forte.

— Para ser franco, não voltei. — Ele fitava o fogo, sem parar de mexer nas brasas. — Estive viajando... Conhecendo o mundo.

— Contudo, está de volta agora. — Sim, estou. Eu... — Ele se deteve para olhá-la mais uma vez,

questionando-a. Estaria sentindo o mesmo que Melissa? O clima de intimidade e

o calor emanado pelas chamas ardentes da fogueira davam a sensação de que ambos poderiam partilhar todos os segredos, sem temer traição.

— Tenho uma casa aqui — revelou George, após momentos de contemplação.

No entanto, de algum modo, Melissa sabia não ser essa a informação que ele pretendia revelar.

— Passei vários verões construindo-a. Fica atrás da floresta, não muito longe daqui. Decidi experimentar e descobrir os mistérios in-sondáveis da vida no campo.

— Entendo.Mesmo desconfiada de que havia muito mais a ser dito, Melissa

resolveu não insistir. Mas percebeu que ele evitava deixar-se envolver pelo clima de intimidade. Desde a adolescência, ela sempre fora capaz de levar as pessoas a confidencias jamais reveladas. Desenvolvera essa habilidade com o convívio materno.

O relacionamento com sua mãe era tão difícil que Melissa tinha de usar a inteligência em interrogatórios sutis, artimanhas até, para esclarecer fatos e entender o comportamento contraditório que as

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distanciava a cada dia.Nesse caso em particular, o talento de Melissa informava que,

por enquanto, George Conti já satisfizera sua curiosidade. Após revolver, pela última vez, as brasas do fogo, ele jogou o galho no chão e caminhou até o outro lado da fogueira.

Da posição em que se encontrava, Melissa pôde reparar, com mais cuidado, nos traços duros e firmes daquele rosto. George ergueu o pescoço para admirar as estrelas.

O movimento das chamas fazia com que cada pequeno detalhe das feições de George aparecesse e se escondesse num jogo de luz e sombra. Primeiro, iluminou-se o queixo resoluto, depois o maxilar duro e másculo, e, então, as sobrancelhas negras sobre os olhos brilhantes. Melissa examinava aquele rosto atraente.

As estrelas brilhavam, muito claras. Como que hipnotizado por elas, George pareceu ter se esquecido da presença feminina. Melissa o contemplou, embevecida, a beleza infinita daquele céu que sempre a encantava. Era um espetáculo extraordinário.

George respirou fundo, exalando o ar bem devagar. Ela fez o mesmo.

— Que linda noite — comentou-o em tom baixo.As palavras ressoaram de forma profunda. No mesmo instante,

a voz de Melissa falhou. Ainda olhando para o alto, ela notou què as estrelas pareciam ter adquirido um brilho mais intenso.

— Sim, é verdade — conseguiu responder, por fim.Ambos ficaram um longo tempo apreciando as estrelas, em

completo silêncio. Então ele se virou, sorrindo, como se não desejasse voltar ao mundo real.

— Já está ficando tarde — disse. — Acho melhor eu ir embora. — Novamente fitou-a com firmeza, franzindo a testa.

— Tem certeza de que ficará bem sozinha? Philip lhe fazia a mesma pergunta com freqüência, salientando-lhe a fragilidade. Essa atitude a deixava cada vez mais ressentida. Por isso, o comentário não foi recebido com satisfação.

— Claro que estarei bem — respondeu de pronto, mas com naturalidade. — Por que não ficaria?

Por instantes, ele não respondeu; apenas a observou. Parecia espantado com a súbita reação de Melissa.

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— Certo — concordou. Erguendo os ombros, ele fez menção de partir. Melissa teve

dúvidas sobre se aquele homem lhe estenderia a mão. Se o fizesse, estaria preparada para mostrar, num cumprimento

firme e decidido, quanto era auto-suficiente. Porém George apenas assentiu e sorriu.

— Durma bem — despediu-se, caminhando em direção à mata. De repente, deteve-se, ainda fitando-a nos olhos. — Acho que nos veremos em breve.

Não havia necessidade de avisar, pois Melissa já pressentia que logo se encontrariam. Na verdade, desejava revê-lo. Mas, antes que pudesse responder ou despedir-se, George já havia se afastado. Ela ficara, mais uma vez, sozinha no acampamento.

Na manhã seguinte, Melissa acordou cedo. Era um dos hábitos do campo. O canto dos pássaros invadia o ar, como se quisesse avisar a todos que um dia novo e ensolarado se anunciava.

Não era preciso despertador, mas ela o programou assim mesmo. Se o tempo permitisse, a primeira refeição do dia seria feita no deque, antes que o sol absorvesse o orvalho do gramado. Espreguiçando-se na cama confortável, Melissa sentiu a brisa fresca da manhã entrando pelas frestas da janela. Jogou as cobertas de lado e sentou-se.

Usara somente uma camisa larga para dormir; assim, bastava vestir uma calça preta e colocar os chinelos de borracha. Antes de sair, pegou o velho casaco de moletom. Não precisava arrumar-se com esmero para tomar o café da manhã sob o guarda-sol amarelo, no deque minutos depois, o delicioso aroma do café espalhava-se pela cozinha. Melissa pegou sua xícara favorita, ornada com desenhos egípcios.

Teria de preparar as refeições que faria durante o dia, mas antes era imprescindível sair para respirar o ar fresco da manhã. Ao abrir a porta do trailer, notou a faca de churrasco que havia deixado sob a cadeira na noite passada. Segurou-a pelo cabo e passou os dedos sobre o metal brilhante da lâmina. Um arrepio percorreu-lhe o corpo quando se lembrou do pavor que vivera.

Sem dúvida, estivera em perigo. Alguém a vigiava por detrás das árvores. Tinha certeza disso. Não se tratava de um campista passeando com seu cachorro ou um funcionário fazendo a ronda

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noturna. Por mais que ela tentasse se convencer do contrário, um intruso a espionara invadira sua privacidade.

Recolocou a faca na gaveta da cozinha e voltou ao deque. O perigo da noite anterior não teria acontecido se Philip estivesse vivo. Nos últimos dez meses, sentia-se uma mulher solitária, vivendo num mundo ameaçador.

Naquele fim de semana, a ameaça tornara-se realidade. Mas conseguira enfrentar a situação, controlara o próprio medo. Era um ponto favorável.

Seria capaz de repetir a façanha? Ou melhor, poderia obter forças para defender-se dos imprevistos desse novo mundo? No entanto, na noite anterior tivera uma sensação muito superior ao medo. Lembrou-se com nitidez. Deveria chamar tal impressão de liberdade?

Viu-se atenta a todos os sons e movimentos; seus sentidos permaneceram aguçados, dando-lhe a dose necessária de confiança, embora estivesse assustada. Sorrindo de satisfação, sentou-se na cadeira branca do deque, esticando as pernas e cruzando-as.

Imaginou-se caminhando em direção à escuridão, determinada a encarar qualquer intruso ou bandido que pudesse estar lá. Puxaria a arma no momento certo. Philip acharia ridículo, claro, e riria dela. Mas Melissa não se importaria, estava muito orgulhosa da mulher corajosa que descobrira dentro dela mesma.

Suspeitava, ainda, que essa nova força apareceria sempre na hora exata. Havia também outro detalhe importante. Conhecera um homem charmoso e atraente.

A confiança que a alegrara minutos antes desapareceu. Podia visualizar o belo perfil de George Conti enquanto ele fitava as estrelas. Sentia uma onda de prazer percorrer-lhe a pele ao lembrar o corpo musculoso iluminado pelas chamas da fogueira.

O som da voz masculina ecoava em suas veias, fazendo o sangue correr mais depressa. Colocando a mão no pescoço, Melissa tentou recuperar o fôlego. Esse era um desafio para o qual não se sentia preparada. Poderia enfrentar a escuridão e confrontar-se com qualquer inimigo.

Contudo, encarar a ameaça de um homem como George Conti, e o que ele causava em seu coração, seria demais. Reprimira essa faceta durante anos. Sabia que existia, mas jamais a provara. Tinha

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medo de se ver envolvida pelas armadilhas da paixão. Na noite estrelada, havia experimentado uma emoção semelhante, e por um instante achou que perderia o controle. Nunca vivera sensação igual quando casada. Ao lado de Philip, sua vida girava em torno de uma rotina monótona.

Entretanto, sentia-se tentada a reviver aquela emoção, mesmo que fosse só mais uma vez. Mas era um território perigoso, acautelou-se Melissa. Não conhecia George Conti, tampouco sabia quais eram suas intenções. O homem poderia muito bem ser um bandido. Naquela noite, chegara a pensar que George fosse mais forte e mais alto do que a sombra que avistara entre as árvores. Agora, tinha dúvidas a seu respeito. Talvez fossem as sensações maravilhosas agitando seu corpo que a estivessem confundindo.

George Conti não era um bandido porque ela não queria vê-lo como tal. Talvez fosse ameaçador...

Ela tentou se concentrar, a fim de ouvir o que a intuição lhe dizia. Sempre possuíra a habilidade de avaliar o caráter das pessoas.

Desenvolvera esse talento como defesa, durante a infância. Conseguia compreender os próprios sentimentos quando se obrigava a ser honesta consigo mesma.

Mas agora, apesar da concentração, só conseguia se embaralhar. Embora a vida ao lado da mãe tivesse sido incerta e inadequada, Melissa sempre se mantivera consciente dos fatos. Logo após a puberdade, pelas circunstâncias que a rodeavam, comportava-se como adulta, mas sofria por ter de ser mais madura do que a idade lhe permitia.

Essas reflexões fizeram-na recuperar a autoconfiança e, como na noite anterior, ela sentiu-se viva. Duas qualidades que perdera ao submeter-se ao mundo controlado e seguro de Philip. Conseguira lidar com uma situação de perigo e orgulhava-se disso. Pisando firme sobre o deque, pegou a xícara posta em cima da mesa e parou diante da porta antes de entrar no trailer.

Não queria retroceder, submeter-se novamente ao domínio de alguém. Muito menos de outro homem. Abriu a porta de vidro e entrou. Na cozinha, lavou a xícara, enquanto a água espirrava em sua camisa. Mesmo antes daquele fim de semana já resolvera não se esconder da vida e não fugir de nada. Sentiu-se arrepiar ao pensar no conceito de fuga. Permaneceu com as mãos sob a torneira, o jato de água ainda molhando a camisa.

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Uma imagem passou por sua mente, tão nítida que parecia real. Viu-se pisando fundo no acelerador do Lincoln e precipitando-se em direção à estrada. Através do espelho retrovisor, enxergava a mulher correndo atrás do carro, com os cabelos ao vento, soltando palavrões que Melissa não parou para escutar porque desejava afastar-se o mais rápido possível.

Comportara-se do modo como Philip esperaria que fizesse.Aborrecida, fechou a torneira e deixou a xícara em cima do

escorredor de pratos. Estava? Decidida a ser firme e a encarar qualquer problema. Porém não cumprira à risca a decisão. Enxugou as mãos na toalha azul, certa de que precisaria corrigir um erro.

Mantendo a velocidade exigida por lei, Melissa dirigiu até a estrada onde vira a barraca de verduras, na tarde anterior. No mapa, a região era chamada de Tug Hill, uma vasta planície que se estendia até o lago Ontário. Durante o inverno, as tempestades de neve eram capazes de bloquear as estradas, velhas e negligenciadas. Houve época em que alguns pioneiros decidiram instalar-se na região e torná-la produtiva. Mas a terra árida do campo e o clima rigoroso espantaram-nos.

Diziam que o lugar fora batizado de Tug Hill porque muitos fazendeiros tiveram seus corações arrancados pelo sofrimento. Somente os nativos sobreviviam à instabilidade dessa parte do país. De acordo com a lenda dos índios iroqueses, seu povo havia fincado raízes nesse chão. Literalmente.

Agora, os iroqueses não existiam mais. Permaneciam ali somente algumas famílias, vivendo em fazendas dilapidadas e pobres. Fora isso, havia apenas casas abandonadas em ruínas, como as que Melissa via ao longo da estrada que percorria.

Tinham os telhados arrebentados e os pisos obscurecidos pela mata selvagem. Dois campos mais adiante, ela avistou várias lápides agrupadas numa área. A maioria havia sido destruída, pela natureza ou por vândalos. Aquele cemitério abandonado a fez arrepiar-se, em-bora o calor já estivesse intenso àquela hora do dia.

Lembrou-se do comentário que ouvira certa vez de um nativo. Ele dissera que aquela era a região de Deus, e que Ele a queria só para si, espantando os forasteiros. Talvez essa história explicasse o fato de ela sentir-se uma verdadeira intrusa naquela área, como se tivesse saído do mapa e se encontrasse onde as lendas ainda prevaleciam, assombradas por seus fantasmas.

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O azul do céu e o canto dos pássaros não conseguiam amenizar o clima de decadência e desolação da região abandonada.

Assustada, Melissa pensou em mudar de direção e voltar ao camping. Mas algo dentro dela a impulsionava, apesar de sentir-se incapaz de controlar o medo. O coração batia mais rápido que o normal; a respiração tornou-se ofegante. A tensão era tão insuportável que, se ela quisesse, poderia concentrar-se e ouvir o sangue correndo-lhe pelas veias. Não tinha a menor intenção de retroceder até se confrontar com o medo, sem a ajuda de Philip ou de qualquer outro homem.

E na entrada mais à frente reconheceu a oportunidade de cumprir a penosa missão a que se propusera.

CAPÍTULO III

A primeira vista, a barraca parecia abandonada. Assim mesmo, Melissa parou o carro e desceu. Em seguida avistou um homem, sen-tado numa cadeira de ferro ao lado da estaca de madeira. Os dois pés da cadeira estavam suspensos a alguns centímetros do chão, e o encosto, já puído, apoiado na estaca. Melissa deduziu que, se ele continuasse naquela posição, em pouco tempo a barraca e a cadeira desmontariam, jogando seu ocupante ao chão.

— O que posso fazer por você? — perguntou o homem. Por alguns segundos ela não soube o que responder.

O que estava fazendo ali, afinal?— Estou procurando uma pessoa que vi aqui ontem.— E mesmo? O vendedor não se moveu. Melissa reparou que os cabelos do

homem eram compridos e mal cortados. Ele vestia uma camiseta velha e preta, que realçava os músculos dos braços e dos ombros. O rosto tinha uma coloração opaca, acinzentada, embora a pele fosse morena. Os olhos estavam semicerrados, pois ele sorria de forma matreira e bastante familiar.

— Havia uma mulher aqui ontem à tarde. Tinha cabelos compridos e pretos. — Melissa continuava em pé, diante da barraca.

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— Como os meus? — Ele deu risada e passou a mão sobre os cabelos. — Não sei. Não reparei muito bem.

— Sim, ela possuía cabelos iguais aos meus — declarou ele, criando um clima de suspense. — E também é sabido que todos nós, os Mapes, possuímos a mesma cor de cabelo e olhos. Mas DeDe foi quem herdou o pior temperamento. Creio que você já notou isso.

— O nome dela é DeDe? — Melissa esperou pela confirmação, mas o homem apenas sorriu. — Saberia me dizer por que motivo ela me atacou ontem à tarde? Achei muito estranho, pois nunca nos vimos...

— Creio que DeDe estava mais interessada no carro do que em você.

— Ele apontou o Lincoln.— Por que ela fez aquilo?— Talvez tenha pensado que o carro fosse dela. Talvez tenha

pensado que você o roubou. Nós, os Mapes, adoramos veículos velhos e luxuosos como esse.

Aquele tom de ironia estava começando a irritá-la. Melissa já havia rodado várias cidades do norte do Estado e jamais presenciara tamanha grosseria e falta de educação por parte dos habitantes.

Contudo, tivera o mesmo sentimento no passado, quando tentava, sem sucesso, obter informações. Como aquele homem, as pessoas jogavam com as palavras apenas para provocá-la. A melhor alternativa era ser paciente. Caso contrário, não conseguiria estabelecer diálogo. Portanto, esforçou-se para manter a calma.

— Será que posso conversar com DeDe? Se ela estiver disponível, claro.

— Disponível? — Ele soltou uma gargalhada. — Ela não gostaria de ouvi-la falar assim. Minha irmã gosta de se fazer de difícil, entende? Mas, em casos como esse, penso que não haverá problema.

De novo ele apontou para o Lincoln, e de repente o sorriso desapareceu. Melissa pressentiu o perigo, tão palpável quanto o chão em que pisava. O bom senso implorava-lhe para entrar no carro, pois pisava em terreno perigoso. Ela ficou tentada a ceder, mas não o fez.

— Sua irmã está aqui?— Lá em cima, na casa — respondeu ele, em tom sério,

parecendo ter perdido o interesse na brincadeira.

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— Poderia me levar até ela?— Tenho de ficar aqui até escurecer.— Talvez pudesse sair por alguns minutos. Não há movimento,

pelo menos no momento — insistiu Melissa, olhando ao redor da barraca e depois em direção à estrada deserta.

— Tem razão — concordou ele, olhando também para a estrada vazia. — Os negócios não são muito proveitosos nesta região.

— Então, por que você mantém essa barraca? — A curiosidade foi maior que a discrição.

Ele a encarou por um momento, como se a pergunta não fizesse nenhum sentido.

— Porque sempre a tivemos. — Ele se levantou. — Vamos. Vou levá-la até a casa.

O irmão de DeDe não era alto, mas possuía músculos fortes, o suficiente para enfrentar qualquer contenda. Ele caminhou em direção a uma passagem de terra, entre as folhagens atrás da barraca. De súbito, Melissa hesitou em segui-lo. Como saber se ele dizia a verdade? Talvez não tivesse irmã. Talvez a estivesse atraindo para o mato a fim de feri-la.

— Você vem ou não? O indagou parado numa clareira utilizada para guardar as caixas vazias. Aquela distância, ele não parecia tão ameaçador, nem tinha o sorriso irônico nos lábios. Se a intenção de Melissa era chamar-lhe a atenção, na certa conseguira mais do imaginara. — Faça como quiser — resmungou ele. — Vou buscar um refrigerante para mim. Pode me seguir ou não.

Andando em direção à mata, ele se afastou da estrada. Os passos eram largos, porém propositados, como se Mapes estivesse determinado a seguir seu destino sem se preocupar com quem o acompanhava, Melissa respirou fundo, lembrando-se de que decidira correr riscos nessa nova fase da vida. No entanto, lamentou não ter em mãos a faca de churrasco, apenas para se garantir. Continuou seguindo o rapaz, mas manteve uma distância razoável, caso precisasse fugir por algum motivo inesperado.

O caminho continuava, atravessando um pomar de diferentes tipos de pessegueiros, pereiras, ameixeiras e outras árvores carregadas de frutas. Ultrapassando o pomar, o caminho descia uma longa encosta, no fundo da qual se estendiam matas espessas e protetoras. Ali, o solo, atapetado de folhas mortas de muitos verões,

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era macio ao pisar. Sob as árvores era muito fresco, pois o sol quase não

atravessava a densa folhagem; a terra, sempre úmida e exuberante de seiva, exalava suave odor. Quando atingiu o topo de uma pequena colina, Melissa conseguiu visualizar com clareza algumas casas de Tug Hill, tão judiadas quanto o campo abandonado próximo à estrada.

Pareciam nunca ter sido pintadas ou restauradas. Talvez a moradia dos Mapes tivesse as mesmas características. No entanto, enganou-se redondamente. A casa era de madeira, e um vasto terraço estendia-se por toda a frente.

As paredes, pintadas de branco, eram forradas de trepadeiras floridas, que davam um colorido suave à beleza do lugar. Ao redor das escadas, canteiros de margaridas e azaléias. Além das flores, o jardim era composto de vários tipos de árvores, que apareciam na entrada, seguiam pelos arredores e iam até os fundos. A moradia, muito bem-cuidada e de construção sólida, ainda possuía uma grande área onde floresciam outras plantas e flores raras.

A porta da frente se abriu com um som estridente, que revelava dobradiças enferrujadas. Melissa ficou espantada ao perceber o descuido do proprietário, comparado ao exterior de excessivo cuidado e dedicação.

A jovem mulher, parada na soleira, deveria ser a responsável pela administração da casa.

Olhou para Melissa com certo desdém, mas não aparentava hostilidade ou revolta. Os cabelos negros de DeDe Mapes estavam presos no alto da cabeça, e não soltos ao vento, como no dia em que correra frenética, atrás do Lincoln. Se fosse a pessoa mais geniosa da família, como dissera o irmão, naquele instante não havia nada que confirmasse tal temperamento.

— Você gosta de flores? — perguntou DeDe, talvez porque estivesse olhando de dentro da casa, enquanto Melissa caminhava pelo jardim. — Reggie nunca mencionou nada a esse respeito. Subindo um degrau, Melissa se deteve. O irmão de DeDe foi até a outra extremidade do terraço e ficou observando a cena, encostado na parede.

— Não conheço ninguém chamado Reggie — informou Melissa.— Você conhecia, sim — retrucou o irmão. — Apenas não sabia

disso.

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— Fique quieto, Davis. — DeDe não encarou o irmão quando falou, mas ele resmungou alguns palavrões em voz baixa. DeDe aproximou-se da escada. A brisa fresca balançava a saia de algodão longa e rodada. A blusa era justa, de manga curta e cavada, realçando as curvas dos seios e da cintura. A pele tinha uma tonalidade morena, contrastando com as feições fortes. DeDe Mapes era uma mulher muito atraente.

— E melhor você subir até aqui e se sentar — disse ela a Melissa. — Vai precisar de uma cadeira quando ouvir o que tenho a dizer.

Hesitando, Melissa teve dúvidas quanto à calma aparente da mulher. Não pretendia sair correndo, atemorizada, como fizera no dia anterior, mas havia algo estranho naquele ambiente.

Teria de manter-se fria e controlada, pois sentira um clima de tensão e revolta mal disfarçada por parte de DeDe.

— Não tenha medo. Pode subir — convidou o irmão. — DeDe não vai machucá-la. Não faz parte do seu estilo, a menos que você lhe dê motivos.

— Davis, já disse para ficar fora disso. Agora volte à barraca, onde é o seu lugar.

Davis não era muito mais alto do que a irmã, mas tinha uma estrutura corpórea bem mais avantajada. Resmungando, ele caminhou em direção à escada.

— Tudo bem. Não posso me ausentar da barraca. Não com a quantidade de compradores que temos ultimamente. Então desceu a escada e seguiu até o caminho de terra. Pelo jeito, esqueceu-se do refrigerante que pretendia tomar.

— Não ligue para ele — aconselhou DeDe. — Meus irmãos precisam de alguém que os coloque na linha. E, pelo que Melissa pôde notar, DeDe era essa pessoa.

— Davis tinha razão quando disse que, eu não a machucaria — continuou DeDe.

— Você me deu um susto e tanto ontem. Fiquei furiosa. Quando estou zangada, ninguém consegue me deter. Não deixo que isso aconteça com freqüência. Bem, pode ficar em pé enquanto lhe conto o que precisa saber. Se quiser, venha se sentar aqui no terraço. Para mim tanto faz, porque vou falar de um jeito ou de outro.

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Dito isso, DeDe virou-se e caminhou até as cadeiras do terraço, de onde se avistava a imensa planície de Tug Hill. Melissa estava apreensiva e curiosa com o mistério que envolvia a revelação daquela mulher desconhecida. Poderia ser apenas um caso de confusão de identidade. Contudo, DeDe Mapes não parecia ser o tipo de pessoa capaz de cometer enganos desse gênero.

Aproximando-se, sentou-se na cadeira próxima à escada. — Sou eu quem cuida da casa para meu pai e meus irmãos —

disse DeDe, confirmando aquilo que Melissa já suspeitara. — Tem sido minha obrigação desde que me formei no segundo

grau. Os professores me aconselharam a fazer faculdade, mas a família não conseguiria organizar a casa sem minha presença. Então, resolvi ficar. Fui pedida em casamento algumas vezes, porém não vi futuro nesse tipo de relacionamento. Teria sido ruim para meus irmãos e para meu pai, pois a chance de arranjarem mais problemas seria maior. Além disso, nunca me apaixonei por ninguém. Não até conhecer Reggie.

Fitando as árvores, DeDe fez uma pausa. A planície de Tug Hill não era tão plana. Podiam-se ver algumas pequenas colinas. Os campos, além das árvores, adquiriam tons esverdeados, amarelados e bege. A longa distância podia-se avistar a superfície brilhante do lago Ontário, desenhando o horizonte ensolarado. DeDe Mapes olhava nessa direção, mas Melissa tinha a sensação de que ela estava com os pensamentos em outro lugar.

— Reggie é a pessoa que seu irmão diz que conheço? Desculpe, mas não me lembro de ninguém com esse nome.

Repentinamente agitada, DeDe virou-se para Melissa, dando sinais de que sua calma era apenas aparente.

— Escute, não provoquei a situação. Apenas aconteceu. Reggie deveria ter resolvido o problema. Ele disse que o faria, mas não houve tempo. Eu quase me encarreguei da questão, como sempre faço. No entanto, não quis passar por cima dele. — Respirou fundo antes de prosseguir: — Além do mais, ele não sabia que eu a conhecia. Muito menos que eu descobrira quem ele era.

Assustada, Melissa sentiu um tremor percorrer-lhe a espinha. Teve o pressentimento de que algo desagradável estava para acontecer. Preferia ignorar o que vinha pela frente, mas era tarde demais para recuar.

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— Não sei do que está falando. O que esse Reggie e todo o resto têm a ver comigo? Reggie de que, aliás?

Enquanto fitava o rosto de Melissa, DeDe recuperou a aparência calma. Porém notava-se que a tensão aumentava. O esforço de expor sua intimidade deixava-a com as faces coradas e os músculos do maxilar rígidos.

— Comigo, ele se chamava Reggie Williams — explicou DeDe. — Mas também tinha outro nome. Era Philip Wald.

Melissa chegou a abrir a boca para protestar, mas a voz não saiu. O choque parecia haver travado sua garganta. DeDe estava enganada. Claro, só podia ser um engano. Contudo, o pressentimento que tivera minutos antes tornava-se cada vez mais forte. As palavras da mulher ainda ecoavam em sua mente, como os sinos repicando numa grande catedral. Quando, por fim, conseguiu falar, a voz soou rouca e fraca:

— Você tem provas?Do bolso da saia, DeDe retirou uma fotografia. O modo como

segurava a foto mostrava o valor inestimável do objeto. Entretanto, para Melissa, aquele pedaço de plástico e a imagem contida nele significavam dor e decepção. Hesitou em segurar o retrato, enquanto DeDe mostrava-se relutante em entregá-lo. Com a ponta dos dedos, pegou o pedaço de papel fotográfico, fixando-se na imagem. Mas não compreendia o que se passava. A foto estava tremida, como se o fotógrafo tivesse se movido na hora de disparar a máquina. DeDe usava um vestido amarelo, e os longos cabelos negros eram presos por uma fita também amarela. Ela sorria, mostrando-se bem mais feliz e jovial.

Na imagem, não olhava para a câmara e parecia caminhar em direção ao fotógrafo. Logo atrás dela, havia um homem de perfil. Não estava tão nítido, mas era possível distingui-lo.

O homem era Philip Wald. Melissa sentiu a respiração falhar enquanto olhava os detalhes da cena. A mão de DeDe estava em suas costas, e a de Philip, estendida nessa direção. Os dois pareciam estar de mãos dadas. Horrorizada, Melissa fitou aqueles dedos entrelaçados. De repente, DeDe começou a tagarelar, na tentativa de atenuar o choque e a dor estampados na expressão decepcionada da outra.

— Não sabia que ele era casado quando o conheci — falou

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DeDe. — Na época, eu ia muito ao campo de aviação, perto da fazenda dos Adams, porque um dos meus irmãos trabalha ali. Reggie costumava pousar e decolar naquela pista, e certa vez começamos a conversar. Depois fomos tomar café e acabamos nos apaixonando. Ele vinha me ver às sextas-feiras, assim que chegava. Passávamos todas essas noites juntos. Por isso Philip sempre chegava tarde nas noites de sexta-feira! Melissa finalmente descobrira onde ele se encontrava quando, ao justificar sua ausência, usava a desculpa esfarrapada de que precisava verificar o avião ou lavar o carro.

— Com o tempo, desconfiei que Reggie era casado — prosseguiu DeDe. — Se não fosse, por que tinha de ir embora depois da meia-noite? Um dia, peguei a picape de Davis e o segui ao acampamento. Deixei o carro estacionado na estrada e continuei a pé, até avistar o velho Lincoln. Aliás, você tem um belo trailer. Bem, não pude enxergá-lo por dentro, mas, instantes depois, Reggie saiu e começou a preparar a fogueira. Você estava lá também. Vê-la naquela noite, para mim, foi a situação mais difícil que vivi em minha vida.

Novamente, DeDe parou de falar e fitou as árvores. Melissa queria odiar aquela mulher, porém não conseguia. Ao contrário, sensibilizou-se com a emoção daquela mulher ao descobrir que o homem por quem se apaixonara tinha uma esposa. Mas, além do sentimento de solidariedade, outra emoção surgiu em seu coração. Visualizou DeDe esgueirando-se por entre as árvores para vigiá-la no camping. Numa calça jeans, DeDe Mapes teria a mesma silhueta que Melissa vira na mata. Naquele momento, porém, o melhor seria guardar a suspeita.

— Bem, pelo que estou entendendo, você tinha um caso com meu marido. É isso?

Os olhos de DeDe estavam cheios de lágrimas, mas ela conteve o choro.

— Prefiro não usar essas palavras, mas no fundo, era isso mesmo. Eu era amante de um homem casado. Nunca fiz nada parecido e tentei acabar com tudo. Pode não acreditar, mas é verdade. Depois de segui-lo e constatar a dura realidade, resolvi terminar o relacionamento. Então ele me contou sobre os problemas que vocês vinham tendo.

— Que problemas? O choque inicial, causado pela revelação de DeDe, deu lugar à

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raiva, mesclada à humilhação e ao sentimento de traição. Eram emoções desoladoras que corriam, desenfreadas, nas veias de Melissa.

— Não sei se era verdade. — Pela primeira vez, DeDe mostrou-se insegura. — Afinal, Reggie não era um homem muito honesto... Em relação a nós duas.

Dessa vez ela dissera a verdade. Melissa assentiu. — Diga-me apenas o que ele lhe contou.— Ele me disse que não havia muita intimidade no casamento e

que você era uma pessoa reservada. Mas dependia dele para tudo. Sendo assim, não poderia partir de repente e deixá-la desamparada. Precisava estar certo de que você saberia se defender caso tomasse uma atitude definitiva. Havia certa veracidade naquelas declarações. Melissa aguardou alguns instantes antes de perguntar:

— Ele disse que ia me deixar para ficar com você?— Sim, disse. — DeDe não parecia gostar das revelações que

fazia. — Ele pretendia lhe contar toda a verdade naquele fim de

semana... No dia em que morreu. DeDe virou o rosto, talvez porque tivesse dificuldades em

conter as lágrimas. A fúria de Melissa transformou-se em frieza, e ela descobriu um fato novo: jamais experimentara a dor profunda que DeDe sentia pela morte de Philip.

— Eu também queria dar um ponto final a essa situação naquele dia. Pretendia pedir o divórcio.

O orgulho de Melissa encarregou-se de sua defesa. Ela não desejava deixar a impressão de esposa alienada, que sempre vivera à sombra do marido, ignorando o que se passava à sua volta.

— Isso não me surpreende — confessou DeDe, enxugando as lágrimas. — Tudo o que eu soube a seu respeito me faz crer que você não daria continuidade a algo que já não existisse.

— Tudo o que soube sobre mim? Andou me espionando?— Não a culpo por indignar-se. Naquele tempo, você era minha

inimiga. Portanto, investiguei sua vida. E claro que não consegui descobrir muito por aqui, pois você só vinha nos finais de semana. Porém encontrei alguns fatos relevantes. Foi assim que fiquei sabendo que Reggie era um nome falso. Então, nesse dia, tomei uma

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decisão. Não sei se é correto ou não, mas foi o que fiz e não me arrependo.

Melissa não tinha certeza se queria ou não saber a respeito da decisão da outra. Mas resolveu perguntar:

— Que foi que fez, DeDe? — Decidi não contar a Reggie que sabia seu verdadeiro nome.

Tive medo de assustá-lo e, com isso, perdê-lo para sempre. Eu não poderia cogitar a possibilidade de viver sem Reggie, ou melhor, Philip. Então, prossegui com a farsa. Jamais revelei aos amigos que ele não se chamava Reggie Williams.

— Outras pessoas o conheciam por esse nome? — Melissa engoliu em seco.

— Claro. Ele tinha muitos amigos.— Não me diga mais nada. — Ela se levantou. — Não agüento

ouvir nenhuma outra história. — Não há mais nada para contar — finalizou DeDe, levantando-

se também. — Existe a casa que Reggie comprou. Era lá que ficávamos quando ele chegava. Creio que agora pertence a você.

Atônita, Melissa encarou DeDe. Philip comprara uma casa naquela região? Ela pedira essa casa um milhão de vezes, e o marido afirmara não ter nenhum interesse em se estabelecer no campo. De súbito, percebeu que, se ouvisse uma só palavra a respeito de Philip, ou Reggie, seria capaz de cometer um ato de extrema violência.

— Desculpe — murmurou —, mas preciso ir embora. Agora.Após descer a escada, Melissa correu em direção à estrada.— Você vai voltar? — gritou DeDe, do terraço. Melissa não sabia

o que dizer. Não tinha respostaPara nenhuma pergunta. Tudo o que fez foi acenar de forma

displicente, e afastar-se dali o mais rápido possível, sem olhar para trás.

CAPÍTULO IV

Aflita, Melissa procurava a chave do carro dentro da bolsa. Se

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não conseguisse encontrá-la em dois segundos, jogaria todos os objetos no chão.

— Eles a magoaram?Melissa reconheceu a voz. Ainda descontrolada, virou-se e viu

George Conti caminhar em sua direção.— O que está fazendo aqui? — A surpresa foi maior do que a

presença perturbadora daquele homem.— Eu estava passando quando vi seu carro. Mas, como não a

avistei em lugar nenhum, resolvi esperar para ver se estava tudo bem. De repente, você apareceu entre as árvores, correndo como se fantasmas a perseguissem. Eles lhe fizeram algum mal? — George Conti apontou em direção à casa dos Mapes.

Algum mal? Ela reprimiu o grito. Sim, eles fizeram um grande mal. Destruíram a vida de um ser humano num piscar de olhos. Aquela mulher afirmou que Philip comprara uma casa no campo. Melissa havia implorado uma casa, e ele se recusara a atendê-la. Em dúvida, fora magoada pelos Mapes. Jamais se sentira tão ferida e ultrajada como agora. A vontade era de proferir todas essas palavras e permitir que lágrimas corressem por suas faces. Porém decidiu manter a dignidade e esconder o desespero, a dor que dilaceravam sua alma.

Com esforço conseguiu disfarçar e respondeu indiferente:— Por que os Mapes me fariam algum mal? Ele pareceu considerar a questão antes de dizer:— Porque são pessoas um tanto rudes. E você parece estar

aborrecida.— Estou bem — mentiu Melissa, enquanto remexia na bolsa.— Posso ajudá-la em alguma coisa? — Ele deu um passo a

frente.— Não, obrigada. — Ela se afastou, encostando-se na porta do

carro. — Estou tentando encontrar a chave do Lincoln. Com toda

gentileza, como se compreendesse a delicadeza da situação, George tocou-a no ombro, afastando-a para o lado. Passou a mão pela abertura da janela do carro. Em seguida, Melissa ouviu o som familiar do chaveiro. A chave estava na ignição, onde Melissa a deixara.

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— Deixe-me levá-la de volta ao camping — ofereceu-se George.— Não diga tolices — retrucou-a, pegando a chave. — Meu

carro está bem aqui. Por que eu precisaria de uma carona?— Creio que você está muito tensa para dirigir.— Engano seu — respondeu Melissa, mentindo. Sabia que

estava sendo grosseira, mas não queria estar ao lado daquele homem que lhe provocava sensações esquisitas. Abriu a porta, rezando para que sua agitação não parecesse tão evidente.

— Você prendeu algo aqui — avisou George quando a viu fechar a porta do carro.

Melissa não notara que seu blazer tinha escorregado do banco de trás, caindo no chão do Lincoln. George abriu a porta, tirando a manga que ficara presa e jogando-a para dentro. Então ela reparou na mancha de graxa sobre o tecido de linho bege. A súbita vontade de se abandonar em prantos a invadiu.

As lágrimas continuavam ofuscando-lhe a vista, e os soluços estavam presos em sua garganta. Compreendeu que a necessidade do choro não era por causa da mancha no blazer, mas sim pela descoberta da vida secreta do marido. E pela inconveniente presença de George. Se aquele homem continuasse ali por mais tempo, ela daria um espetáculo inusitado.

— Obrigada — conseguiu responder. Ao ligar o carro, Melissa suspirou, aliviada, quando ouviu o

motor do Lincoln funcionando. Engatou a marcha e olhou para George Conti, sem poder expressar nem mesmo um breve sorriso.

— Vou acompanhá-la até o camping com meu carro — informou ele. "Não faça isso!", implorou Melissa em pensamento. Porém, como sabia que as lágrimas estavam prestes a rolar, resolveu concordar.

Quando pisou no acelerador, deixou um rastro de poeira. Nem se lembrou de olhar para os lados, certificando-se de que a passagem estava livre. Felizmente, sua imprudência não teve conseqüências desastrosas, pois a rodovia continuava deserta como sempre. Pelo espelho retrovisor, avistou George Conti dirigindo-se para sua caminhonete, estacionada do outro lado da estrada.

Com certeza, ele não a vira cometera esse deslize. Mesmo assim, era observada por outro par de olhos. Davis Mapes, de volta à sua cadeira de plástico ao lado da prateleira de verduras, fitava-a

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com o mesmo ar zombeteiro de antes. No mínimo devia estar atento, e testemunhara o desespero de

Melissa. De braços cruzados, o irmão de DeDe conservava o sorriso cínico nos lábios. Irritada, Melissa acelerou o Lincoln e partiu sem se importar com o limite de velocidade, ou se George Conti conseguiria segui-la. Tudo o que desejava era sumir dali e encontrar um lugar seguro onde pudesse colocar os pensamentos em ordem.

Contudo, George Conti cumpria sua palavra e a seguia a distância. Ela não fora feliz na tentativa de afastá-lo, como pretendia. Através do espelho retrovisor, via o pára-choques de cromo de a caminhonete brilhar com o reflexo do sol. George acompanhou-a durante todo o trajeto até o camping. Melissa precisava arrumar um jeito de se livrar dele. Não queria ser alvo da piedade de ninguém. Necessitava ficar só com seu sofrimento. A propósito, por que ele mantinha aquela atitude protetora? Não era apenas uma questão de hospitalidade.

O que fazia George Conti naquela estrada abandonada de Tug Hill? Melissa não acreditava em coincidências.

O acontecimento seguinte interrompeu esses devaneios. Saindo da rodovia que dava acesso à casa dos Mapes, Melissa virou à esquerda, num desvio paralelo à estrada anterior. O caminho era bem mais estreito, sem asfalto, com algumas elevações que demandavam certa atenção ao dirigir. Logo à frente, as árvores cresciam, devorando os campos, invadindo a trilha e dando espaço apenas para os carros. De súbito, Melissa enxergou uma mulher correndo entre as folhagens.

Ao avistar o Lincoln, a estranha precipitou-se, ainda mais depressa, em direção ao veículo. Agitava os braços com tanta excitação que quase perdeu o equilíbrio. Não houve alternativa senão frear o carro, para não atropelar a mulher.

— Era só o que me faltava! — resmungou Melissa. Poderia prosseguir e deixar que Conti se encarregasse daquela

maluca. Mas, ao lembrar-se do incidente com DeDe Mapes, no dia anterior, e para não repetir o mesmo comportamento, resolveu parar. Aquela estranha seria outra desvairada, querendo ajustar contas com Melissa? Não, impossível. DeDe demonstrara raiva, enquanto essa mulher mostrava-se simplesmente assustada. Não havia outra escolha senão acudi-la.

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Freou bruscamente, pois ela já se atirava contra a porta dos passageiros.

— Posso ajudá-la? — perguntou Melissa, pela janela aberta.— Preciso de uma carona. Pelo amor de Deus, necessito de uma

carona.Antes de esperar o convite, abriu a porta do automóvel e

entrou.— Para onde está indo? — indagou Melissa, arrependendo-se

por recolher aquela pessoa perturbada.— Para o lugar aonde você vai: o acampamento — respondeu

ela, com a respiração ofegante.— Está no Camp Tranquility? — Melissa não se lembrava de tê-

la visto antes, mas não poderia conhecer todos os campistas, principalmente no início da temporada. No entanto, percebeu que muita gente a conhecia...

— Sim, sim. Estou. Podemos dar o fora daqui? — Suas mãos tremiam quando puxaram a franja do cabelo para trás.

— O que aconteceu? Por que está tão assustada? — Prometo contar todos os detalhes se sairmos daqui neste

minuto.Não havia motivo aparente que justificasse o terror daquela

desconhecida. A mata estava deserta; ninguém a perseguia. Se Melissa não atendesse ao apelo, a passageira poderia cometer algum desatino. Pediu-lhe que colocasse o cinto de segurança, preparando-se para percorrer o interminável caminho de volta ao acampamento.

Ao olhar pelo espelho lateral, viu George abrindo a porta da caminhonete. Melissa não queria dar-lhe explicações, muito menos falar sobre sua vida pessoal. Contar a George Conti, um homem charmoso e sedutor, que não tivera capacidade para segurar o marido não estava em seus planos. Era inconcebível revelar tamanha tolice. Nunca ter notado que Philip tivera uma amante, numa região romântica como aquela, era dupla tolice.

Sem pensar por que se importava com a opinião de um estranho, Melissa seguiu em frente, deixando George engolir poeira.

— Está se sentindo bem? — perguntou a passageira, encarando a motorista com curiosidade.

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— Você disse que queria dar o fora daqui. Pois é isso que estou fazendo.

— Tudo bem. Não está mais aqui quem falou. — A mulher parecia ter esquecido o fato que a assustara, passando agora a temer a motorista desgovernada, dirigindo em alta velocidade, naquele atalho irregular e estreito.

Apesar de perceber o temor da passageira, Melissa não se importou. Aliás, nada mais importava naquele momento, exceto o desejo de encontrar Philip em qualquer dimensão para dar-lhe um soco no nariz. Que pensamento terrível! Philip estava morto.

Diminuindo a velocidade, Melissa observou o olhar apreensivo da passageira, que mantinha a mão firme no trinco da porta. Sentiu-se culpada pela explosão de raiva.

— Desculpe-me — disse, apoiando o braço na porta e tentando se acalmar. — Eu estava pensando em outro problema.

— Sim, eu percebi — murmurou ela, ainda segurando o trinco da porta, como quem se preparasse para escapulir à primeira oportunidade.

— Meu nome é Melissa Wald. E o seu? — Esperava tranqüilizar a mulher com uma conversa cordial.

— Hildy Hammond.— O que está fazendo no camping? Veio passar o verão? —

Mesmo calma Melissa ainda respirava com dificuldade.— Pretendo ficar todo o verão, mas não tenho certeza. Isso vai

depender do andamento do meu projeto. — Olhou para Melissa. — Especialmente agora.— Em que tipo de projeto está trabalhando? Hildy Hammond relaxou o corpo. — Sou antropóloga. Estou estudando os povos que viviam aqui

antes da colonização e suas atividades tribais na região.— Está pesquisando os índios? — Preferimos ser chamados de

povos nativos — corrigiu Hildy, tentando esconder a arrogância.— Você é nativa? — indagou Melissa, sabendo estar sendo

politicamente correta. — Por um lado. Mas executar esse projeto me aproximou desse

lado. Estava pensando se o que acabou de acontecer tem algo a ver

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com o despertar dessa consciência. — Hildy murmurou a última questão como se a fizesse para si mesma.

— O que acabou de acontecer? Foi isso que a assustou? — perguntou Melissa.

— Sim, foi. E prometi contar-lhe em troca de uma carona.— É verdade. Você prometeu. Melissa, ainda magoada, tinha dúvidas sobre se conseguiria

ouvir o que Hildy teria para relatar. De qualquer modo, seria uma distração. Depois das revelações bombásticas de DeDe, estava preparada para ouvir qualquer história sem se emocionar com mais nada. Além disso, seria melhor ouvi-la do que pensar em Philip, em DeDe e na casa de campo.

— Acho que recebi a visita de um espírito — revelou Hildy. — Como? — Melissa foi pega de surpresa.— Sei que é bizarro. Para mim, como cientista, é algo absurdo.Bizarro era o adjetivo ideal para descrever Hildy Hammond. Sua roupa era uma mistura de cores. Havia terras nos joelhos e

fuligem na camiseta. As faces avermelhadas não escondiam a tonalidade morena da pele. Com os cabelos em completo desalinho, ela dava a impressão de ter saído de um manicômio.

— Eu estava trabalhando nos escombros, como sempre faço. Existe uma ruína depois da mata, na base da encosta, onde realizo minhas escavações. Creio que a área era usada pelos iroqueses como local de caça, durante o verão. A lenda diz que houve uma terrível batalha naquele lugar. Por isso tantos ossos foram encontrados. Nunca acreditei nessa história. Então, decidi escavar e procurar peças de artesanato.

Isso explicava a terra nos joelhos e a fuligem na camiseta. —Tinha acabado de encontrar restos de cerâmica, que

provavelmente pertenciam aos iroqueses... — Hildy hesitou. — E em seguida, aconteceu — murmurou, fitando o campo verdejante.

— O que aconteceu? A mulher conseguira capturar a atenção de Melissa.— Senti algo... Preciso pensar nisso de modo científico. Não

devo tirar conclusões precipitadas, como uma doidivanas excêntrica.De novo, Melissa fitou-a. Além de bizarra, doidivanas excêntrica

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poderia ser outro adjetivo adequado para descrever Hildy, ao menos na aparência.

— Que tipo de sensação experimentou?— Algo físico, ao mesmo tempo quente, prazeroso e urgente.

Por que urgente? Talvez porque houvesse a necessidade de ser notado por mim. E se eu o tivesse ignorado?

— Ignorado o quê? De que está falando?— Oh, desculpe. Costumo pensar em voz alta quando tenho

algum problema para resolver. — Hildy deu risada. — Vou tentar ser mais clara. É difícil descrever o que se passou. Num primeiro instante, eu estava cavando, no segundo fui... Engolida. Esse é o melhor modo de especificar o que houve. Foi como se algo ou alguém me envolvesse. Para ser mais precisa, fui pega por essa sensação. Agora que posso pensar com calma, sinto que não foi tão ruim assim. Exceto pela urgência.

Enquanto dirigia, Melissa prestava atenção ao que Hildy dizia. Era um acontecimento fantástico demais para ser verdadeiro. Lembrou-se das incansáveis narrativas que sua mãe costumava fazer sobre o sobrenatural, o horóscopo, enfim, todas essas crendices.

— Talvez você tenha tomado muito sol — sugeriu. Pensativa, Hildy olhou para a motorista. — Pode ser que sim. Seria uma explicação científica aceitável. Nesse instante, ela caiu em silêncio profundo. Melissa sentiu-se

aliviada. Durante toda a sua vida ouvira histórias sobre aparições e visões. Jamais lhes dera crédito. Se havia um assunto que não a interessava, era o sobrenatural; a última coisa que queria era ser forçada a escutar uma antropóloga relatando suas experiências paranormais. Por sorte, Hildy notou a falta de interesse de Melissa. Ou talvez não quisesse mais falar sobre o que quer que tenha descoberto na ruína, àquela manhã. Permaneceu calada até chegarem a Camp Tranquility.

Melissa não conseguiu se livrar de George Conti. Quando entraram na área do camping, tentou, sem sucesso, acenar, como agradecimento.

Ele continuou a escoltá-la durante todo o trajeto até chegar ao acampamento e atingir o traíler. Com um gesto rápido, ela agradeceu a gentileza e caminhou até o deque. Porém, encostado em sua ca-

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minhonete, George a observava, como se dissesse "Não pense que vai se livrar de mim tão facilmente".

Ao vê-lo aproximar-se, ela sentiu o coração palpitar. Não estava preparada para enfrentá-lo, e por isso experimentou um desconfortável acanhamento. No fundo, queria entrar, fechar as portas e as cortinas, esconder-se e impedir aquele homem de invadir seu espaço, suas emoções. Mas seria muita grosseria. Afinal, George estava tentando ajudá-la... Ou não?

Em frente ao deque, como se adivinhasse os pensamentos de Melissa, ele perguntou:

— Posso ajudá-la? — Não, obrigada. Estou bem.— Você parece tudo, menos bem. Algo aconteceu na casa dos

Mapes que a deixou muito aborrecida. Só quero saber se posso ser útil.

— Preciso aprender a cuidar de mim sozinha — resmungou ela.— Não me ofereci para carregar o peso do mundo por você.

Apenas perguntei se precisa de uma pequena ajuda. O modo como ele disse aquelas palavras abalou ainda mais os

sentimentos de Melissa. Havia uma grande diferença entre entregar a responsabilidade

de sua vida a alguém e aceitar a assistência amiga e solidária. Assistência era o que mais necessitava naquele momento. A intuição lhe dizia que podia confiar em George Conti.

— Você conhece bem a região, não é? — indagou. — E, portanto, conhece as pessoas daqui, certo?

— Bem, não tenho relações profundas com os habitantes locais. Faz um bom tempo que não venho para cá.

— Mas você sabe quem são, como pensam, e conhece a região.— Claro. Passei a maior parte de minha vida aqui. O que quer

saber?Respirando fundo, ela tomou coragem. Ainda tinha dúvidas

sobre o que pretendia fazer, mas estava desesperada, e George parecia sua única salvação.

— Preciso mesmo de ajuda, George. — Farei o que estiver a meu alcance.

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Ela o fitou por alguns instantes. Os olhos eram verdes. Com a iluminação da fogueira, não fora capaz de identificar a cor daqueles olhos sinceros e verdadeiros. Por que George se preocupava tanto com ela? Talvez fosse apenas bondade. Talvez tivesse motivos ocultos. Porém, deixando-se levar pela sinceridade daquele olhar, Melissa sentiu-se impelida a acreditar naquele homem.

— Entre, por favor — convidou. — Conversaremos melhor aqui dentro. A sala do trailer era confortável. Havia um sofá macio localizado embaixo da janela, em frente à porta de entrada.

Melissa ofereceu-o a George e sentou-se numa cadeira, do lado oposto.

Não tinha certeza de como dizer. Talvez fosse melhor ir direto ao assunto.

— Meu mundo desabou esta manhã — começou, ainda assustada. — Descobri fatos que me deixaram em estado de choque, e preciso saber se são verdadeiros. Suspeito que sim, mas tenho de me certificar.

— Então quer que eu a ajude a verificar esses fatos, certo?— Isso mesmo. — Ela sentiu-se grata pela compreensão

imediata.— Que fatos são esses? A gratidão evaporou. — Bem...— Se não estiver pronta para falar sobre isso, podemos

continuar outro dia. — Não, prefiro conversar agora. — Melissa respirou fundo. — Na

verdade, não sei se estou pronta. Mas decidi enfrentar a situação.Apesar da mágoa profunda, ela permaneceu determinada a

confidenciar sua triste descoberta. Contou a George como ocorreu a morte de Philip e comentou, sem entusiasmo, suas reações durante os primeiros meses de viuvez. Mais uma vez respirou fundo e revelou o caso de amor do falecido marido.

Também confessou as suspeitas de que esse relacionamento era algo mais que um mero envolvimento sexual. Após ter conhecido DeDe Mapes, suspeitava que Philip mantivera uma vida dupla e que pretendia se separar na noite do falecimento. Não houve necessidade de confidenciar a humilhação que sentia pela traição do marido.

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Tinha certeza de que a decepção e os sentimentos ofendidos estavam bem claros em seu rosto. A atitude solidária e discreta de George também foi evidente. Com os olhos verdes brilhando, ele segurou-lhe a mão, num gesto de extrema doçura.

Nunca um simples toque foi tão apaziguador. Melissa prosseguiu com o relato até que cada palavra se tornasse uma tortura. Sentiu-se esgotada. Continuar seria impossível, pois atingira o limite de suas forças. Acompanhou George até a saída.

Então, ele teve uma atitude de ternura que a surpreendeu: co-locou os braços a seu redor e abraçou-a com carinho.

Era um gesto natural, considerando as circunstâncias. Ela se revelara de tal forma que havia necessidade de um conforto, e George percebera-lhe a carência. Porém, conforto não foi o que Melissa sentiu ao ver-se envolvida por aquele abraço.

Momentos depois, prestes a desmaiar de exaustão, sentia que seu corpo entrava em colapso.

— Por favor, preciso ficar sozinha — pediu, afastando-se.— Compreendo — disse George, descendo do deque.O pânico a invadiu. E se ele realmente a compreendesse? Teria

percebido as reações que Melissa tivera, como uma ingênua personagem das novelas do século dezenove? Pior ainda: ela revelara fragilidade ao contar sua história a um homem que acabara de conhecer.

O que faria agora? Poderia George Conti considerá-la uma tola? Ou tirar vantagem de sua fraqueza? Melissa conseguiu

murmurar uma despedida enquanto o via entrar na caminhonete e partir. Trancou a porta e atirou-se na cama, coberta pelos travesseiros macios. Exaurida, demorou a conciliar o sono.

Passou a tarde toda, até a noite, deitada, sem se mover. Infelizmente, não se sentiu melhor ao acordar. A dor de cabeça era tão forte que parecia uma ressaca incurável. Melissa levantou-se, atravessou a sala, a cozinha, e chegou ao pequeno banheiro. Lavou o rosto, sentindo que deveria entrar debaixo do chuveiro a fim de refrescar a mente e aliviar a confusão de sentimentos.

Teria feito isso se não ouvisse um ruído que abalou ainda mais sua alma enfraquecida. Algo bateu na parede do trailer e depois escorreu pela lataria. O local de onde vinha o barulho era baixo

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demais para um galho de árvore. Além disso, a cobertura do deque ficava do outro lado. Assim,

nenhum galho poderia alcançá-lo.Escutou o mesmo ruído novamente. Mas dessa vez o som

parecia mover-se na direção da porta do trailer. Havia algo lá fora, no deque, em meio à escuridão. A raiva era tanta que Melissa nem sequer notou o medo. Saiu do banheiro e foi à cozinha. Com a intenção de se proteger, procurou uma arma na gaveta e retirou algo, sem saber o que era. Precipitou-se à porta, abrindo-a. Sim, era um homem. Como ele se abaixou e correu, Melissa não pôde reparar em nenhuma característica do intruso. Pensou ter visto uma calça preta, mas não tinha certeza.

Na verdade, quando parou para refletir, teve dúvidas se era mesmo um homem. A cabeça parecia coberta por um tecido, talvez um capuz.

Sua única certeza era de que já se assustara o suficiente com os acontecimentos de um único dia. Saiu ao deque, sem se preocupar por estar descalça. Em pé, no primeiro degrau, ergueu a cabeça e gritou:

— Saia daqui e deixe-me em paz! Se não fizer o que digo, vou matá-lo!

Para enfatizar as palavras, balançou a arma sobre a cabeça. A ira causada por aquela invasão noturna, somada à traição de Philip e todas as ocorrências infelizes do dia deixaram-na enlouquecida. Sem sombra de dúvida, estava tão atacada pela fúria que nem reparou que a arma em sua mão era uma colher de pau.

CAPITULO V

Era ainda muito cedo quando Melissa olhou pela janela do trailer, observando a manhã nublada. Não seria um dia muito quente; nuvens densas cobriam o céu, dando-lhe uma cor acinzentada.

Ocasião perfeita para continuar debaixo das cobertas e voltar a dormir, sem se preocupar com horário ou qualquer tipo de obrigação. Mas, infelizmente, ela já havia despertado com os nervos à flor da pele. Fora uma noite mal dormida e agitada. Acordara com a

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sensação de haver tido sonhos tumultuados e inconstantes. Receava nunca mais voltar a ter paz de espírito nem recuperar a vida tran-qüila, embora rotineira, que conhecera. Talvez uma noite exaustiva de amor e paixão fosse o remédio ideal para aliviar essa tensão. O pensamento deixou Melissa ainda mais aflita. De onde viera esse desejo?

Não pensava em sexo havia meses. Nem quando Philip era vivo. Afinal, as noites com o marido não haviam sido das mais excitantes. Por que estava pensando nisso agora? Claro, porque as relações que tivera com Philip nunca foram apaixonadas. Mas Melissa jamais se queixara, pois não pensara em ter experiências sexuais fora do casamento. Não havia sentido em questionar a falta de amor agora que Philip estava morto.

"Aposto que fazer amor com George Conti seria bem diferente", pensou, sentando-se na cabeceira da cama.

O simples devaneio deixou-a incomodada. Conhecera vários homens atraentes, mas nenhum deles lhe despertou interesse como George Conti. Jamais ficara imaginando como seriam durante o ato de amor.

Poderia George ter algo mais do que os outros? Estar envolvida por aqueles braços fortes, mesmo por um instante, fora uma experiência incomparável. Como se sentiria se tivesse aquele homem a abraçá-la para o resto da vida? Mais uma vez, seus pensamentos tornavam-se insuportáveis. Não conhecia George Conti e tinha algu-mas dúvidas a respeito dele. Por que passara pela estrada no momento em que Melissa se encontrava na casa dos Mapes? Por que se mostrara tão solícito, como se fossem velhos amigos, se mal se conheciam?

De que modo descobrira tantas particularidades sobre ela, e por que se mostrava preocupado com sua segurança a ponto de escoltá-la até o acampamento? Alguém a observara naquela noite, e em outras a vigiara. Naquele momento, ele era o maior suspeito.

Tomando coragem, Melissa se levantou, vestiu seu longo roupão felpudo e calçou os chinelos. Já estava começando a preparar o café da manhã quando ouviu um barulho estranho, vindo do lado de fora. Na hora, lembrou-se do ruído da noite anterior. Mas esse era diferente. Parecia vir de longe, entre as matas. Na verdade, assemelhava-se a um murmúrio. Atemorizada, porém curiosa, olhou discretamente para fora, através da fresta de uma das janelas. A

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manhã permanecia cinzenta, e uma suave garoa caía sobre as árvores. As folhas pesavam com as pequenas gotas da chuva. As nuvens estavam bastante carregadas. De quando em quando, ouvia-se o som dos pássaros.

Um gemido seria mais adequado como descrição, e vinha do outro acampamento, além da estrada. No dia anterior, não havia nenhum campista naquela área. Na verdade, o terreno era um dos últimos a ser alugado.

Os Delaney o consideravam lamacento demais para barracas ou trailers. Entretanto, havia alguém naquela área. Quando Melissa chegara, notara uma série de lotes desocupados, fato inédito para uma temporada de verão. Os Delaney, como proprietários, tinham o direito de alugar o espaço para quem desejassem. Melissa jamais questionava a decisão. Porém estava surpresa. Enquanto observava o novo vizinho, começou a ficar preocupada. Ele não era muito alto, mas corpulento. Vestia a tradicional jaqueta verde-oliva do exército e a inevitável calça jeans, o uniforme do campista. Os cabelos curtos e bem-cortados começavam a cachear à medida que a garoa os umedecia. O homem tentava fincar duas estacas para montar a barraca, atrelada ao trailer.

A chuva se acumulara sobre a lona, formando uma poça de água, e o peso impedia-o de equilibrar as estacas. Era óbvio que se tratava de um principiante, sem a menor noção de como montar uma barraca. Era o campista mais ingênuo e desajeitado que Melissa já vira.

O vizinho resmungava, impaciente com as estacas que não conseguia fincar. Melissa não distinguia as palavras, mas pelo tom de voz deduziu que ele não sabia lidar com suas frustrações.

O homem erguia os punhos fechados para o céu, gesticulando e blasfemando contra a chuva.

O comportamento era pouco comum; no entanto, não havia nada de alarmante. O que chamava a atenção de Melissa era o modo como ele balançava as estacas e a lona. Os movimentos refletiam a crescente raiva contra os dois cilindros de metal. O homem andava de um lado para outro, procurando o lugar certo para fixá-las. O rosto tornava-se avermelhado e a respiração, ofegante. Ele ia acabar tendo um infarto de tanto nervosismo. As solas dos sapatos enchiam-se de lama com a movimentação frenética sobre o terreno alagado. Era certo que logo ele tiraria os calçados, e o fez.

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O acontecimento seguinte foi tão esperado quanto o primeiro. O vizinho escorregou e caiu sobre um dos joelhos, apoiando-se com a mão para evitar esborrachar-se na lama. Levantou-se e, contrariado, olhou a sujeira das roupas. Olhou ao redor, a fim de encontrar algo com que se limpar, mas não havia nada à vista. Pegou as estacas, presas à lona, e socou-as com brutalidade no chão encharcado, proferindo palavrões que os ouvidos de Melissa jamais desejariam escutar.

Durante alguns segundos, a tenda ficou suspensa. Mas logo veio a resposta. Embora Melissa tivesse vontade de avisá-lo, não ha-veria tempo. Antes que pudesse abrir a boca para gritar, as estacas balançaram e a lona veio abaixo, derramando a água da chuva sobre a cabeça do desastrado campista. Em outras circunstâncias, Melissa teria soltado uma gargalhada. Não por desrespeito ao esforço inútil do desajeitado vizinho, mas sim porque aquela era uma cena hilariante.

Entretanto, uma rápida visão do rosto daquele homem alterou seu humor e reprimiu-lhe a risada. A face avermelhada e colérica não provocava medo.

O que a deixou arrepiada foi a expressão maléfica que o caracterizava. Melissa jamais vira um olhar tão cruel. As feições duras e distorcidas marcavam o ódio interior que o corroia. Os olhos adquiriram um brilho obscuro, e os lábios, cerrados, vociferavam contra tudo e todos. De repente, ela sentiu-se incomodada com as reações insanas do homem. Para não ser notada, tentou puxar a cortina, mas o tecido não se moveu. Olhando para fora, viu que o campista havia parado de gesticular e a encarava.

A expressão maldosa se dissipou. As gotas de chuva caíam-lhe sobre a cabeça e os ombros, mas ele parecia não senti-las. Imóvel, observava-a a distância.

Com certeza percebera que ela o fitava, pois demonstrava desagrado.

Segurando a cortina, ela tentou puxá-la novamente. Como não conseguisse, afastou-se da janela e saiu do quarto. Atravessando a sala, foi à cozinha e recostou-se na pia, apenas para ouvir.

Os xingamentos e as blasfêmias haviam cessado. Ela se concentrou, na tentativa de escutar os movimentos do estranho vizinho. Talvez fosse o excesso de atenção que fez as batidas na porta soarem mais fortes do que o normal, fazendo-a pular,

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assustada. As cortinas cobriam a porta de vidro. Melissa desejou poder olhar através delas antes de atender à porta. Porém o medo não lhe permitiu tamanha audácia. Seria imprudência receber um desconhecido sem se certificar do que se tratava. Poderia ser o desastrado vizinho que se instalava no terreno em frente? Se fosse, por que ele iria até o trailer!

Virando-se, ela puxou a cortina sobre a pia. Uma árvore atrapalhava sua visão, mas pôde enxergar o trailer do terreno em frente através dos galhos. O homem não se encontrava mais no camping. As batidas na porta soaram, insistentes. E, dessa vez, pareciam mais reais.

— Senhorita? — O chamado vinha do deque. Como não reconhecesse aquela voz, ela não respondeu. — Meu nome é Sonny Shannon. Estou acampando do outro lado da estrada — disse ele. — Creio que assistiu à minha luta. Então, resolvi vir até aqui para me apresentar e mostrar-lhe que não sou tão louco quanto pareço.

O tom era jovial e afável, o oposto da personagem enfurecida que Melissa vira minutos atrás. Sentiu-se uma tola, escondendo-se entre as cortinas. Porém manteve-se alerta e decidiu não destrancar o trailer antes de saber quem ele era realmente. Dirigiu-se à porta de vidro e puxou as cortinas. Lá estava o sr. Shannon. O sorriso era tão simpático que ela chegou a duvidar que se tratasse da mesma pessoa que vira blasfemando, minutos antes. Abriu uma fresta na porta, o suficiente para poder conversar e, caso precisasse, fechá-la o mais rápido possível.

— Olá — cumprimentou ele, com o sorriso ainda mais largo. — Sou Sonny Shannon. Se ele esticasse o braço para cumprimentá-la, Melissa teria de optar entre ser hospitaleira ou permanecer cautelosa. Por via das dúvidas, seria melhor preservar-se, mantendo a porta entreaberta.

Felizmente, Sonny permaneceu com as mãos nos bolsos da jaqueta.

— Sou Melissa Wald — apresentou-se, tentando sorrir. — Sinto-me constrangido sabendo que fui observado durante a

lamentável e fracassada confusão que armei. Acho que eu desejava me convencer de que acampar era a coisa mais simples do mundo. Confesso que me enganei. — E a primeira vez que vem ao camping?

— Foi tão evidente assim? Oh, claro que foi. — Ele deu de

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ombros, soltando um riso tímido. — Também é a primeira vez que brigo com um pedaço de lona. E a lona acabou vencendo.

— Todos nós precisamos começar um dia — comentou Melissa, sem conter a risada. — Minha primeira experiência neste camping foi um fiasco. — Meu primo desistiu de ser campista. Então decidi experimentar. Ainda vou conseguir acampar, ou me afogarei tentando.

Ele passou a mão nos cabelos molhados. A chuva caía, incessante, formando manchas escuras sobre os ombros do rapaz. Uma boa vizinha lhe daria as boas-vindas, oferecendo-lhe abrigo e uma xícara de café bem quente.

Mas Sonny não despertava confiança; possuía uma expressão duvidosa e seu comportamento merecia ser observado. Melissa não pretendia ignorar essa primeira impressão. Não sabia nada a respeito daquele moço, exceto que ele se colocara à sua frente de forma descontraída e sem receios, apesar das atitudes pouco elogiáveis apresentadas instantes atrás. A súbita transformação deixou-a intrigada.

No entanto, não gostava da idéia de vê-lo contrair uma pneumonia só porque não era um homem habituado à vida no campo.

— Você tem aquecimento no trailer? — perguntou, apontando o outro lado da estrada.

— De acordo com o manual de instruções, tenho. — Ele hesitou como quem espera ser convidado para o café da manhã.

Porém Melissa não se comoveu. — Não se surpreenda se o aquecimento não funcionar na

primeira tentativa. Às vezes, esses aparelhos demoram mesmo a pegar.

— Bem, nesse caso acho melhor começar a ligá-lo. Se o trailer explodir, você poderá notificar às autoridades a causa da explosão. — Sonny deu um passo em direção aos degraus do deque e parou.

Talvez ainda esperasse um convite para o café. Mas Melissa, embora houvesse recuperado o senso de humor, estava decidida a não recebê-lo.

— Boa sorte — disse ela. Com uma das mãos, ele fez um gesto de adeus e caminhou ao

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longo do trailer. Aliviada, Melissa fechou a porta e abriu as cortinas, deixando a luminosidade do dia penetrar em seu pequeno lar. Com aquele mau tempo, não seria possível fazer o desjejum no deque. Já que pretendia passar a manhã dentro do trailer, precisava garantir privacidade absoluta.

Sendo assim, resolveu manter fechadas as janelas de onde avistava a área de Sonny Shannon. Ainda mais porque tinha sérias suspeitas a respeito do caráter do novo vizinho. Enquanto acendia as luzes e o aquecedor, ouvia, ao longe, as reclamações de Sonny Shannon. Instantes depois, o silêncio dominou o campo do outro lado da estrada.

O café estava pronto, e o aroma dos biscoitos, recém-assados, espalhava-se pelo ambiente. O aquecedor fora ligado em baixa temperatura; o frio não era intenso, mas Melissa preferia o calor à umidade do dia. O clima aconchegante dissipava a tensão causada pelo estranho encontro com Sonny Shannon. De algum modo, ela lhe era grata, pois, por um breve espaço de tempo, conseguira esquecer seus problemas.

Quando a próxima batida na porta ecoou pelo trailer, Melissa tinha acabado de vestir uma calça jeans e uma malha de algodão, quente o bastante para protegê-la daquele dia chuvoso. Apesar de o céu estar carregado de nuvens, a garoa já havia parado.

Ao ver quem batia à porta, sua tranqüilidade momentânea desapareceu. Lembrou-se vagamente de que George Conti prometera voltar na manhã seguinte. Ou teria sido ela mesma que o convidara?

De qualquer forma, George mantivera a palavra e aguardava ser atendido. Sorrindo, Melissa escancarou a porta para recebê-lo.

— Alguém sujou de barro a entrada — informou ele. — Você acordou cedo para passear na chuva?

Olhando para o chão, onde George pisava com suas botas molhadas, Melissa viu as marcas de lama que Sonny Shannon deixara no deque. — Meu novo vizinho veio se apresentar hoje cedo — explicou ela, convidando-o a entrar.

George hesitou. — Quer que eu tire minhas botas? A sola deve estar cheia de

lama. — Não se incomode com isso. — Melissa afastou-se, dando-lhe

passagem.

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Ao entrar, George esbarrou no braço feminino, e ela se deu conta de que o desejava ali, àquela hora. Não havia ilusões. Aquele homem a atraía e ela não pretendia ignorar o fato. Por mais que se sentisse perturbada e confusa, estava determinada a enfrentar a realidade.

— Descontração é o que mais me agrada nesse estilo de vida — a comentou, deixando uma pequena fresta na porta para permitir a circulação do ar fresco da manhã. — Não precisamos nos incomodar com o barro dos sapatos. Basta deixá-los secar e depois sacudi-los lá fora.

— Seu trailer é muito confortável — elogiou George, olhando ao redor. — Por isso hesitei ao entrar. Não queria sujá-lo.

— Ele não foi feito só para dar conforto, mas sim para ser prático. Na verdade, eu poderia morar neste trailer o ano todo, se encontrasse um lugar mais quente para viver durante o inverno.

— Nunca pensei que alguém como você se contentasse apenas com o básico.

— Eu não chamaria isso de básico. — Melissa sorriu, olhando o microondas, o fogão compacto, a geladeira adaptada ao armário e a televisão a cabo. Sorrindo, percebeu quanto se sentia bem na presen-ça de George Conti. Satisfeita, notou que ele se adequava àquele ambiente acolhedor.

— Sim, você tem certa vantagem — disse ele, sentando-se à mesa.

— Ninguém conseguiria assar biscoitos num trailer menor. E, se não considerar este comentário como uma indireta, é sinal de que estou perdendo minhas habilidades.

Melissa entendeu a mensagem, retirou a toalha que cobria a cesta de biscoitos e ofereceu-os a George. Serviu o café, pensando em como se sentia feliz em receber um homem tão charmoso em sua pequena casa de verão. Sem avisar, esse pensamento inspirou outro.

Lembrou-se das fantasias que a transportaram às alturas, quando imaginava como seria divino fazer. Amor com George Conti. Nesse instante, suas mãos tremeram, fazendo-a derramar um pouco de café no pires.

— Posso ajudá-la com isso? — ofereceu-se George. — Não, obrigada. Está tudo sob controle. Mantendo a

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compostura, ela preparou a mesa com biscoitos e café. Seria mais sensato deixar de lado os devaneios e, como boa anfitriã, dedicar-se somente às atividades domésticas.

A forte atração que sentia por George se dissiparia se agisse como dona de casa. Mas era impossível.

A jovem viúva solitária, traída e mal-amada, não poderia abandonar a oportunidade que lhe batera à porta. Seria indigno recusar o belo presente que o destino colocara em suas mãos. Ou seria mais uma das armadilhas da vida? Tirar-lhe o marido e apresentar-lhe um homem com todos os atributos necessários para fazer uma mulher realizar seus desejos mais íntimos era, no mínimo, um grande desafio.

— Conhece um homem chamado Sonny Shannon? — perguntou, desviando o assunto para algo menos pessoal.

— Claro que conheço. Onde o conheceu?— Ele é o novo vizinho de que lhe falei. Seu trailer está

estacionado do outro lado da estrada. — Sim, eu o vi. Sempre que podem, os Delaney tentam manter

aquela área livre, para que ninguém a incomode. Sonny nunca demonstrou grande interesse por acampamentos.

— Se gosta, não sei. — Melissa começou a rir. — Só sei que ele teve sérios problemas para se proteger da chuva essa manhã.

— Sonny é um homem genioso. Não me espantaria vê-lo irritado quando as coisas não se resolvem de acordo com seus desejos.

— Também notei essa característica. — Mas é uma boa pessoa. Trabalha na polícia. Estudávamos em

escolas diferentes e acabamos nos conhecendo durante as competições de futebol, basquete e beisebol. Numa cidade pequena como esta, os campeonatos são disputados sempre com os mesmos jogadores.

Melissa tentava desviar o olhar de admiração direcionado ao corpo atlético de George.

— Então, Sonny Shannon é policial... — disse. — Ele trabalha aqui mesmo?

— Sim, com o xerife. — George hesitou por um instante, contemplando a xícara de café. — Meu irmão Patrick também

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pertencia a esse departamento.— Ele deve conhecer muito bem Sonny Shannon, não é?— Ele conhecia Sonny. Patrick foi morto no ano passado.— Oh, sinto muito...— Tudo bem. — Ele parecia não querer estender o assunto. —

Acho que os Delaney podem oferecer outra área de camping para Shannon, se você preferir a privacidade.

O modo como ele disse essas palavras e o brilho intenso nos olhos verdes mostraram a Melissa que ambos entravam no território da intimidade novamente.

— Pretendo ir a um lugar hoje informou, desviando o rumo das idéias.

— Tem a ver com Philip. Talvez você possa ir comigo. Tenho o pressentimento de que poderá me ajudar.

— Um plano de ação, certo? Parece-me interessante — falou George, enquanto mastigava os biscoitos. — O que tem em mente?

— Quero ir ao aeroporto onde Philip costumava deixar o avião. E perto do terreno dos Adams. Conhece o lugar?

— Claro. Eu e meus companheiros costumávamos brincar por lá quando adolescentes. O que pensa encontrar naquela região?

— Não sei bem, mas Philip passava muito tempo ali. — Melissa foi até a pia e ocupou-se de alguns pratos, evitando o olhar de George.

— DeDe Mapes disse-me que os encontros com Philip eram lá.— Entendo. — George terminou o café e levou a xícara à pia,

onde Melissa fingia se distrair na lavagem dos pratos. Ele a tocou no ombro, com toda gentileza. — A propósito, você faz biscoitos deliciosos. Foi o melhor café da manhã que tomei em minha vida.

— Obrigada. Mas não precisa exagerar. — Ela queria se afastar, mas não conseguia. George acariciou-lhe o ombro.

— Agora acho melhor irmos ao aeroporto. Hoje é sábado e os turistas começarão a chegar dentro de poucas horas.

Melissa assentiu com um gesto de cabeça. No fundo, não tinha certeza de que queria o auxílio de George ou se desejava resolver sozinha os problemas pendentes. Não poderia permitir que ele se encarregasse e decidisse tudo, como Philip sempre fizera. Mas

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George Conti parecia diferente. Saberia respeitar suas vontades e estava disposto a acompanhá-la.

Contudo, o que Melissa queria realmente? Duvidando de sua capacidade, tenderia a cair na velha condição de mulher dependente? Mais grave ainda era imaginar que George possuía essa atitude paternalista. No momento, o melhor seria aquietar essas suspeitas, sem apagá-las. Além do mais, os fatos dos últimos dois dias foram tão avassaladores que Melissa agradecia por ter alguém a seu lado enquanto bancava a investigadora.

Os sentimentos com relação a George e a possibilidade de tê-lo como amante ficariam de lado por algum tempo, mas não esquecidos. Agora, ela precisava solucionar os mistérios que envolviam a vida obscura de Philip. Talvez não houvesse futuro para Melissa e George enquanto essas questões não fossem esclarecidas.

CAPÍTULO VI

Lewis-Adams era um aeroporto pequeno. Tinha apenas uma pista de pouso, toda de concreto, construída no meio de um vasto campo verdejante.

Dois hangares e uma torre eram as únicas construções do local. Normalmente, como dissera George, o movimento consistia em alguns poucos turistas e uns dois pilotos disponíveis. Mas, naquele sábado, esperava-se que o movimento fosse bem superior, pois se iniciava o "mercado das pulgas", um imenso brechó a céu aberto.

A área atrás dos hangares estava repleta de estandes e bancas, formando um extenso corredor para os compradores.

Em outras circunstâncias, Melissa teria adorado circular entre a multidão, admirando as bijuterias antigas, os livros usados e demais quinquilharias próprias daquele tipo de comércio.

Apreciava descobrir, entre as velharias, algum objeto raro que fazia esse tipo de passeio parecer uma caça ao tesouro. No entanto, naquele dia, sua intenção era procurar algo muito diferente. Do outro lado dos hangares, parados na cabeceira da pista, estavam os aviões.

Todos eram pequenos, embora se diferenciassem pelo estado

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de conservação. Alguns pareciam novos, recém-pintados com cores fortes e brilhantes. Outros, os mais velhos, impressionavam menos, apresentavam alguns arranhões e amassados na lataria.

Dentro de um dos hangares havia um único avião semelhante ao de Philip. A pista fora aumentada, anos atrás, para acomodar aquele tipo de aeronave, usada por caçadores aficionados durante as temporadas de caça, no outono. George e Melissa caminharam pelo mercado das pulgas até atingirem os hangares. Foram observados com curiosidade pelos visitantes da feira. Ela já estava habituada com a natureza desconfiada dos nova-iorquinos do norte, e não se alarmava com suas atitudes indiscretas. Fazia parte da natureza daquele povo, que sofria invernos rigorosos e, fechados em suas residências, criavam muitas expectativas em relação aos visitantes, o que os tornava cautelosos.

Mesmo assim, Melissa preferia que aqueles olhares se fixassem em outro alvo. Ainda mais porque os habitantes locais deviam se perguntar o que fazia ela, acompanhada de George Conti.

Uma pequena extensão de terra, coberta de grama alta, separava o mercado do hangar. O solo ainda estava fofo e conservava algumas poças de lama, resquícios da chuva caída pela manhã. Melissa conhecia muito bem a região, a ponto de se prevenir contra as intempéries da natureza.

Colocara sua calça dentro do cano das botas forradas, podendo, desse modo, andar despreocupada sobre o barro. O dia prometia ser quente, o calor começava a aumentar de intensidade e por volta do meio-dia o vento soprava forte. Ela trocara a malha de algodão por uma camiseta, amarrando uma japona na cintura, para o caso de chover novamente. Aprendera a ser tão cautelosa em relação às mudanças climáticas quanto aos nativos da região.

Já haviam atravessado metade do gramado lamacento quando Melissa notou que alguém os fitava. Apoiado na porta do hangar, o curioso observado assistia à caminhada do casal. Ao se aproximar, Melissa o reconheceu de imediato.

— Você notou que aquele homem encostado no hangar está nos observando? — perguntou ela a George.

— Como não notar? Ele nem se dá ao trabalho de disfarçar.— Por acaso ele é irmão de Davis Mapes?— Com certeza. Os Mapes são todos parecidos, exceto DeDe.

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Ela... — George se deteve e encarou Melissa com ar de

constrangimento; falara como se tivesse esquecido que a vida dupla de Philip era um assunto delicado.

— DeDe é bonita demais para se parecer com os dois irmãos — completou Melissa. — Eu a achei muito atraente. Não precisa se sentir intimidado. Em silêncio, George assentiu com a cabeça.

— Se me perguntasse Melissa, eu diria que você é mais do que atraente. Na verdade, é linda.

Atônita, ela o fitou, sem resposta diante do inesperado elogio. Não estava acostumada a ouvir galanteios de um homem. Philip raramente a enaltecia.

— Bem, mas é claro que você não perguntou. Então, acho melhor manter minha boca fechada — disse George, ao reparar na expressão de espanto de Melissa.

— De forma alguma. Sou eu quem deveria aprender a abrir a boca e agradecer-lhe.

— Foi um prazer. — O irmão de Davis se chama Dolby, certo? — a indagou,

querendo mudar, o rumo da conversa.— Certo. — DeDe me contou que ele anda por aqui, tentando

arranjar trabalho temporário. Foi Dolby quem a apresentou a Philip. A semelhança entre Davis e Dolby estava nos traços faciais. Ambos possuíam a pele morena e os olhos miúdos. Eram

também da mesma altura, mas de físico bem diferente. Davis tinha ombros e tórax largos, pois devia passar a maior parte do tempo trabalhando pesado no campo. Dolby, por sua vez, era mais magro e nada musculoso.

A camiseta preta que vestia caía solta sobre o tronco ossudo. Entretanto, Dolby possuía um ar sinistro bem mais acentuado do que o do irmão. Havia algo de ameaçador em seus olhos. Era carrancudo, e parecia conter uma raiva prestes a explodir.

À medida que se aproximava, Melissa estudava aquela expressão agressiva. Sentia que a raiva era-lhe direcionada. A impressão era tão forte que ela precisou desviar o rosto para não se deixar abater. Se George notou algo, não demonstrou quando cum-primentou o rapaz. Em voz baixa, trocaram saudações e apertaram as

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mãos. — O que está fazendo aqui, Conti? — perguntou Dolby, sem

olhar para Melissa. Ignorava-lhe a presença. — Veio barganhar alguma bagatela naquelas mesas? — E apontou em direção ao mercado.

— Aquilo que certas pessoas consideram bagatela pode ser um tesouro para outras.

— Não sei nada sobre isso. Não tenho muita experiência com tesouros. — O tom agressivo da voz de Dolby assemelhava-se à raiva que Melissa via em seus olhos. — Só sei que esses forasteiros esnobes vêm até aqui e agem como se fôssemos caipiras estúpidos. — Ficou evidente que se referia a Melissa. Conti pareceu ter a mesma impressão.

— Você não está falando da Sra. Wald, não é, Dolby? — perguntou, ameaçando o rapaz.

— E se estiver? — Não seria nada gentil de sua parte. Afinal, não queremos que

a hospitalidade dos habitantes do norte seja denegrida. — E se eu lhe disser que não me importo com o que as pessoas

pensam? Vai querer encarar uma briga por isso? Dolby ergueu os ombros, numa atitude desafiadora. Nem

chegava aos pés da estrutura de George, mas cerrou os dentes de uma maneira tal que mostrava sua disposição de enfrentar o oponente com quaisquer recursos que estivessem ao seu alcance.

Melissa pôde perceber que assistia à exibição típica de dois valentões querendo provar a masculinidade. Eles estavam prestes a se atracar, de rolar pelo chão como adolescentes inseguros e tolos.

Independentemente do que esse comportamento significasse, ela não tinha a menor vontade de aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Queria mesmo era sair dali, antes que o espetáculo de barbárie começasse. Então, George deu risada, e esse simples movimento desfez a tensão.

— Ora, Dolby, você me conhece — amenizou ele. — Não sou do tipo que gosta de brigas.

— É já conheço bem sua reputação. O rapaz sorriu com cinismo.

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— Dizem que você prefere a condição de amante à de lutador. Dessa vez Dolby lançou um olhar malicioso a Melissa. Ela não

podia condenar o rapaz por uma simples expressão facial, mas, no fundo, desejou que George comprasse a briga. Ele talvez pudesse apenas quebrar os dentes de Dolby. Assim, o moço ficaria de boca fechada por um longo tempo.

— Já conhece Melissa Wald? — perguntou George. — Sei quem ela é. — Dolby desviou o olhar, sem se preocupar

em sorrir ou cumprimentá-la. — Também soube o que aconteceu ontem. Ouvi dizer que ela teve péssimas novidades sobre o marido.

— Que péssimas novidades são essas? — indagou Conti, tentando descobrir quanto Dolby conhecia do assunto.

— Fiquei sabendo que a senhora aqui descobriu que o marido estava saindo com minha irmã. Você sabia que fui eu que os apresentei?

Dolby Mapes sorria para Melissa enquanto falava. Ela tentava conter a dor que sentia, pensando em como um desconhecido podia referir-se a assuntos tão íntimos e delicados sem o menor respeito.

De repente, George deu um passo em direção a Dolby, pronto para esbofeteá-lo. Melissa segurou-lhe o braço, impedindo-o de cometer um desatino.

— Soube que apresentou DeDe a meu marido — interveio ela. — Não tenho nenhuma mágoa em relação a você ou a sua irmã. Ela é uma jovem adorável, e acredito que realmente amava Philip. A culpa de tudo isso é dele. E talvez minha também.

Para confortá-la, George tomou-lhe a mão, segurando-a com força. Ela ficou feliz com o apoio, mas, no fundo, não precisava ser confortada. Parecia estranho, mas as palavras que acabara de dizer a Dolby Mapes a libertaram do sofrimento de procurar algum culpado. Teve certeza de que queria descobrir a verdadeira história de Philip apenas para encontrar a verdade sobre si mesma. Tinha de agradecer a Dolby por lhe ter permitido descobrir isso.

— Vou entender se você não quiser me ajudar — prosseguiu. — Mas serei muito grata se puder contar qualquer coisa sobre meu marido e seus negócios aqui.

Talvez fosse a doçura na voz de Melissa que tivesse feito os olhos de Dolby perderem aquele brilho raivoso. Ele limpou a garganta

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e fitou a multidão distante por um longo tempo antes de responder:— Vou lhe apresentar Charlie Gillis. Ele é o único que pode falar

sobre Reggie Williams... Isto é, sobre seu marido.— Obrigada, Dolby. Não vou esquecer esse favor — disse

Melissa.O irmão de DeDe dirigiu-se ao outro hangar. George e Melissa o

seguiram.Charlie Gillis era mecânico de aviões, e, segundo Dolby Mapes,

um dos melhores. Ele também já sabia sobre a verdadeira identidade de Reggie Williams.

— Uma história como essa se espalha com facilidade pela região — comentou Charlie. — Você devia esperar por isso. Especialmente em Lewis County, onde é raro acontecer algo interessante. Terá sorte se sua vida não sair no jornal da cidade.

— Espero que não — suspirou Melissa.— Acho que Charlie está exagerando — retrucou George. — O

jornal de Lewis County publica notícias de cidade pequena, mas não compactua com fofocas.

— Está querendo dizer que minha irmã é uma mentirosa? — desafiou Dolby, com raiva.

— Não estou dizendo nada disso — defendeu-se George. — Só penso que as circunstâncias devem ser investigadas, e os detalhes, comprovados, antes que o jornal tenha a chance de publicar uma história sensacionalista. E não existe nenhuma investigação sendo feita.

— Sim, existe — corrigiu Melissa. As palavras calaram os três homens, que a fitaram, intrigados. — Pretendo investigar cada detalhe da vida de meu marido, e DeDe Mapes terá de aceitar o que quer que eu descubra. Se ela quiser colocar a história no jornal ou divulgá-la pelo céu num desses aviões, a escolha será dela. Quanto a mim, não penso ficar muito tempo por aqui. Talvez o tempo necessário para descobrir a verdade. Em pé ao lado dela, George conservava uma expressão séria.

— Bem, parece que a moça está decidida — foi tudo o que Dolby Mapes pôde dizer, demonstrando surpresa.

Limpando as mãos cheias de graxa, Charlie balançava a cabeça, preocupado.

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— Por que não deixa a situação como está? — perguntou ele. — Levar avante uma investigação pode levantar muita sujeira. Ninguém ficará feliz com isso.

— Ela foi bem clara, Charlie. A verdade precisa ser descoberta — rebateu Dolby.

— Deixe que o falecido descanse em paz — prosseguiu Charlie Gillis.

— Não creio que revirar as cinzas desse caso possa ajudá-la. Reggie me tratava bem, e não pretendo dividir seus negócios com ninguém.

— Se ele o tratava tão bem, por que vocês dois brigaram duas semanas antes de ele morrer? — provocou Dolby.

— Não sei do que está falando — resmungou Charlie, jogando o pano com o qual limpava as mãos no chão do hangar. — Não me lembro de nenhuma briga. Reggie e eu discutimos, mas e daí? Todo mundo discute algumas vezes. Isso não significa que não fôssemos amigos, e eu não delato amigos. Ele se virou e afastou-se, mas Melissa segurou-o pelo braço.

— Respeito seus escrúpulos, Sr. Gillis. — Escrúpulos? — repetiu Dolby, com cinismo. — Charlie nunca soube o que é ter escrúpulos. — Por favor, Dolby, deixe-me cuidar disso. Como eu ia dizendo,

Sr. Gillis, quero apenas saber se havia algo incomum nas atividades do meu marido em Lewis County.

— O que quer dizer com atividades incomuns? — perguntou Charlie, com ar desconfiado.

— Ele costumava decolar de Syracuse às sextas-feiras. E depois voava de volta à nossa casa aos domingos. O que fazia aqui durante o fim de semana?

Charlie pareceu refletir antes de responder: — Ele gostava de fazer piruetas com o avião aos sábados à

tarde. E tudo o que sei. Dessa vez, ele se afastou, indo em direção à prateleira de ferramentas que ficava no fundo do hangar.

Antes que se distanciasse, porém, Dolby o alcançou. — Não era só isso que Williams fazia por aqui e você sabe disso

— disse o irmão de DeDe.

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— Está me chamando de mentiroso? — Charlie segurou-o pelo braço, empurrando-o.

— Sim, estou. — Embora fosse menor do que Charlie, Dolby demonstrava coragem. O mecânico tremia nervoso, mas não se movia.

— Conte a ela sobre as outras viagens que Reggie fazia. Aquelas que o tiravam daqui um sábado por mês.

— Não sei do que está falando — esquivou-se Charlie. Dolby agarrou-o pelo braço. — Eu sei do que estou falado. Minha irmã chegou a participar

de duas dessas viagens, e eu acabei descobrindo o motivo das outras. Até sei para onde ele ia nesses vôos.

— Então, por que está me pressionando? — Charlie se desvencilhou.

— Por que não conta a eles o que pensa que sabe?— Porque achei que você poderia mostrar-lhes as provas

concretas. Os planos de vôo ou coisas desse tipo. — Dolby esfregou a mão na calça para limpar a graxa que a sujara ao agarrar o braço de Charlie.

— Não vou mostrar nenhum registro de vôo, a menos que haja um mandado oficial. São documentos sigilosos, principalmente em se tratando de um homem já morto.

— Por favor, Dolby — pediu Melissa —, conte-me o que sabe. Não preciso ver registros ou planos de vôo. Acredito em sua palavra e na de DeDe.

O pedido pareceu comovê-lo.— Bem, como eu disse, minha irmã acompanhou Reggie em

duas dessas viagens. Em ambas as vezes, ele foi ao mesmo lugar. Cheguei a dar uma olhadela nos registros de vôo e nas milhas que o avião percorria. Williams sempre fazia a mesma rota, todos os sábados.

— Aonde ele ia? Qual era seu destino? — indagou George, colocando o braço ao redor do ombro de Melissa, numa atitude protetora.

— Nova York. Reggie voava para a cidade de Nova York — revelou Dolby. — Não é isso, Charlie?

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Fingindo não ouvir a pergunta, o mecânico mexia em uma engrenagem de avião, encostado à prateleira de ferramentas.

— Tem certeza de que Philip voava para Nova York? — perguntou Melissa. Essa nova descoberta pareceu surpreendê-la ainda mais.

— Tenho absoluta certeza. Pode perguntar a DeDe. Ela irá confirmar. Uma vez, chegaram a ficar um dia inteiro em Nova York. Reggie levou-a para conhecer alguns amigos. Ela passou dias falando sobre esse passeio. Fora o mesmo sábado em que Philip passara o dia

Todo ausente. Quando Melissa perguntara-lhe o porquê da demora, ele dissera ter trabalhado no motor do avião. Em outros finais de semana, Philip se ausentara durante horas. Nova York ficava a noventa minutos de distância, ou talvez menos, no avião de Philip, que era super possante. Melissa continuava confusa.

— O que foi? — indagou George. — Você tem algum motivo para duvidar do que Dolby está contando?

— Philip odiava Nova York. Ele me dizia que não iria até essa cidade nem que sua vida dependesse disso.

Bem, e daí? Philip também lhe dissera que não compraria uma casa no norte do Estado, nem que fosse o último lugar no mundo para morar. Melissa não queria voltar pelo mercado, para não ter que enfrentar todos aqueles olhares bisbilhoteiros e cochichos inconvenientes. No momento, preferia evitar aquela situação.

Além do mais, suas botas estavam começando a incomodá-la. O sol surgira em todo o seu esplendor, e o leve aroma de terra molhada, que se desprendia após a chuva da manhã, fora abafado pelo ar quente e sufocante do verão. Na verdade, Melissa queria tirar as botas e caminhar descalça até a caminhonete, mas isso des-pertaria ainda mais a curiosidade dos habitantes.

Teria pedido a George para contornar o mercado, mas seria um caminho mais longo e exaustivo sob o sol causticante. Aliás, seus pés começavam a inchar, e o calcanhar direito roçava na bota, causando uma pequena ardência.

Depois de atravessar o gramado lamacento, ela e George percorreram a interminável distância que os levaria de volta à estrada.

— Ora, ora! Aí está meu velho amigo George Conti!

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A voz veio de uma das bancas repletas de facas antigas, canivetes, cintos de metal e outros instrumentos violentos. Melissa mal olhou para os produtos. Tampouco desejava conversar com alguém que tivesse predileção por aquele tipo de objetos. Algo mais a incomodava. Mais do que a sensação de estar sendo observada. Ela se virou e pensou ter visto, com o canto dos olhos, alguma coisa estranha movimentar-se por detrás de algumas mesas. Tentava se aproximar e vir mais de perto quando George, apressado, puxou-a pelo braço, forçando-a a caminhar.

— Ei, Conti! — chamava a voz grave, próxima à mesa de facas. — Parece que fugir é algo comum em sua família. Era isso que

seu irmão caçula fazia quando bateu a cabeça naquela árvore, o ano passado?

George parou de forma abrupta. Melissa tropeçou e quase caiu. Ficou aliviada pela interrupção da correria. Seu calcanhar na certa já estava em carne viva.

No entanto, não tinha disposição para presenciar outra provocação. A mão de George apertava-lhe o braço com tamanha força que Melissa concluiu que ele não tinha noção do que fazia. Todos os músculos masculinos retesaram-se. Ele tentava manter o controle diante do desafio. No instante em que Melissa se preparava para protestar, George relaxou, soltando a mão que lhe segurava o braço delicado. Naquele momento, ela teve certeza de que George Conti enfrentaria aquele homem grosseiro. Mas ele nem sequer se moveu O suspense tomou conta dos visitantes e dos vendedores. Até um rapaz, que vendia discos usados, desligou o aparelho de som para assistir ao evento. Silenciosos e cheios de expectativa, os rostos se fixaram em George. Queriam presenciar algo excitante, que quebrasse a rotina monótona daquela dia. Melissa, porém, não olhava para George. Sua atenção estava voltada ao adversário. Mais precisamente, seu interesse se dirigia ao brinco pendurado na orelha esquerda do homem. Era uma caveira de prata, de olhos vazados, com borda esmaltada de preto. Melissa olhava para aquele espectro como se estivesse vendo a personificação do demônio.

— É covarde demais para responder, Conti? — desafiava o dono da caveira. — Mas você é mesmo igualzinho a seu irmão, hein? Patrick foi covarde para enfrentar a situação e resolveu prender os outros rapazes.

Lentamente, George virou-se, furioso, mostrando a quem

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quisesse ver que sua paciência se esgotara.— Você sabe qual é minha resposta, Rango — declarou em voz

baixa, quase num grunhido. Rango continuava a rir. Atrás dele, meia dúzia de homens

formavam uma parede de músculos. O instinto de Melissa a alertou de que algo perigoso estava para

acontecer. Ela olhou para a frente, atrás do mercado, onde pensara ter visto um vulto se mover.

Naquela direção havia um pequeno matagal, beirando a estrada. Melissa viu novamente algo se mexer e em seguida desaparecer entre as folhagens. Podia até ser um cachorro, mas ela duvidava disso. Mesmo assim, se fosse uma pessoa, teria de estar rastejando para poder se esconder no mato rasteiro. No mesmo instante, Rango deu um passo à frente, e seus companheiros o seguiram.

— Sim, Conti. Sei muito bem o que vai dizer — afirmou ele, encarando George. — Vai dizer que seu irmão Patrick caiu numa armadilha.

— Isso mesmo. Ele caiu numa armadilha. Jogando a cabeça para trás, Rango soltou uma gargalhada que podia ser ouvida a quilômetros de distância. Logo depois, fixou o olhar sobre George. — Foi isso que eu disse quando aquele cretino do seu irmão me colocou fora de circulação, cinco anos atrás — esbravejou Rango. — Ele me chamou de mentiroso, na ocasião, e agora digo que você é o mentiroso. O que vai fazer a respeito?

Melissa olhou para George, esperando uma reação violenta ao notar-lhe os músculos tensos e os dentes cerrados. Uma pequena veia na testa pulsava com intensidade; a expressão era dura e enfurecida. Ela o viu encarar os homens de Rango, um após o outro. Ao chegar ao último, George fixou a atenção no espaço por um breve momento. Então, soltou um suspiro tão sutil que só Melissa percebeu.

— Nada — respondeu ele. — Não pretendo fazer nada a respeito.

As palavras foram tão fortes e significativas que congelaram os rostos ávidos de sangue dos espectadores.

De súbito, George virou-se em direção à estrada, colocando-se em marcha acelerada e apertando, mais uma vez, o braço de Melissa.

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Comentários e caçoadas ecoaram no mercado. Várias vozes imitaram o som de uma galinha cacarejando, mas ninguém os seguiu. George e Melissa percorreram em silêncio o longo caminho que os distanciava da estrada. Ela sentiu o rosto corar, não sabia se de raiva pela provocação ou se pela situação de impotência e humilhação a que George se submetera. Preferia que Conti tivesse enfrentado fisicamente aqueles idiotas musculosos.

Ela própria desejaria atirar-se contra eles e ajudá-lo a descarregar sua ira. Irritada, imaginava defesas titânicas contra o grupo de marginais e por isso não percebeu o vulto que os espreitava, esgueirando-se de modo sorrateiro pela mata, do lado oposto da estrada. George não estava em condições de conversar e explicar a realidade dos fatos.

Ao chegar à caminhonete, conservando-se calado, abriu a porta para Melissa entrar. Deu a partida no carro, mas o som do motor não abafou o ruído da multidão agitada. George fez a manobra para tomar o caminho que os levaria de volta ao camping. No momento em que pisou no acelerador, uma bala atingiu o vidro da frente do veículo.

CAPÍTULO VII

O tiro não partira do mercado das pulgas. Melissa lembrou-se do movimento suspeito que vira entre as folhagens na beira da estrada e concluiu que alguém os seguira com intenção de atacá-los de surpresa.

Felizmente, não foram atingidos; a bala penetrou em diagonal, atravessou o lado direito do vidro da caminhonete, sobre a cabeça de Melissa, e saiu pela janela aberta. Aconteceu tão depressa que ela mal se deu conta do perigo. Na verdade, nem ouviu o som do tiro.

Durante alguns segundos nem sequer teve consciência do que acabara de ocorrer. Quando entrara no carro, o vidro estava intato; no instante seguinte, formou-se um buraco redondo à sua frente, com algumas rachaduras ao redor. Ela não havia colocado o cinto de segurança quando ouviu o ruído dos pneus derrapando na estrada. A saída brusca do carro projetou-a de encontro ao painel. Num ato instintivo, ela apoiou as mãos na madeira, evitando machucar-se com

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a pancada. — Ponha o cinto — ordenou George. — E mantenha a cabeça

abaixada.Sem objeção, e sem se sentir ofendida com o tom rude, ela

obedeceu rigorosamente as ordens e abaixou-se no banco da caminhonete com o cinto de segurança preso à cintura. George dirigia com destreza e excessiva velocidade, sabendo que suas vidas dependiam dessa fuga. Inclinava-se de encontro à direção do carro, e cada músculo daquele corpo vigoroso parecia treinado para defender-se em situações de perigo iminente.

A mão direita mudava a marcha do veículo com precisão absoluta. De quando em quando, ele olhava pelo espelho retrovisor, mas mantinha a atenção fixa na estrada. Após ter dado aquela ordem indiscutível, não deu sinais de notar a presença de Melissa. A caminhonete corria demais quando atingiu a rodovia. O asfalto fora pavimentado várias vezes durante o ano, fato freqüente em se tratando de estradas do norte do Estado.

A caminhonete pulava e sacolejava a cada erosão causada pelas chuvas e que ainda não havia sido reparada. Mesmo presa ao cinto de segurança, Melissa era jogada com violência de encontro à porta do carro. Com as mãos, apoiava-se no painel e na janela, sempre tentando manter a cabeça abaixada.

— Droga! — exclamou George, virando a direção.— O que foi? — O coração de Melissa pulava como se fosse

saltar pela boca. Em resposta à pergunta, ele fez um gesto em direção ao

espelho retrovisor. Virando-se, Melissa olhou pelo vidro de trás da caminhonete. O que viu foi o suficiente para obrigá-la a esconder-se, deitando-se novamente no banco do carro. Atrás deles havia outra caminhonete, que se aproximava em alta velocidade.

O pára-choques era protegido por uma armação de aço. Sem dúvida, aquele veículo não fora feito para o trabalho no campo. Parecia um carro blindado, e muito luxuoso. Comparada à de George, a caminhonete do perseguidor mais parecia um tanque de guerra perseguindo uma carroça.

Seria um verdadeiro massacre se fossem alcançados. A sensação era de estar sendo caçada por um monstro, sem a menor chance de salvação, concluía Melissa enquanto tentava pôr as idéias

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em ordem. Preferia expor suas impressões a George a ficar encolhida no encosto do banco. No entanto, ele se mantinha firme na direção e não dava sinais de estar disposto a conversar. Na verdade, seus lábios estavam cerrados, e o rosto parecia tão sinistro e ameaçador quanto a máquina que os perseguia. Num gesto rápido, Melissa olhou mais uma vez para trás, na tentativa de avaliar a situação.

— Ele está nos alcançando! — gritou desesperada.— Não posso fazer nada. A caminhonete dele é bem mais

possante do que a nossa.— E a mesma pessoa que atirou em nós, não é?— Tenho quase certeza disso.— O que faremos se ele nos pegar? Era óbvio que George se esforçava ao máximo para escapar do

atacante. Pisava no acelerador, forçando o carro a correr como um raio, superando o limite de velocidade que lhe era permitido. Mas, mesmo assim, a caminhonete preta ganhava vantagem. Não havia dúvidas sobre o vencedor daquela corrida maluca, apesar de George ser um piloto fantástico.

— Estou fazendo o melhor que posso. Acho que ele está querendo me pegar, mas vai tentar atingir você também. Quero que fique abaixada no chão do carro, sob o painel. Melissa o encarou. Agora reconhecia a gravidade desesperadora da situação.

— Faça o que digo! — gritou George ao vê-la imóvel como uma estátua de pedra.

Tirando o cinto de segurança, Melissa escorregou para o chão, espremendo-se debaixo do painel.

Naquele cubículo, podia sentir cada buraco da estrada reverberando em sua espinha. Cobriu a cabeça com as mãos, a fim de proteger a nuca das pancadas que levava. Num instante insano, ocorreu-lhe que seria ridículo morrer naquela posição.

— Prepare-se! — avisou George. — Aí vem ele! Com a proximidade do perseguidor e o ronco do motor das

caminhonetes, quase não se ouvia o aviso de George. O veículo preto os alcançara, emparelhando com o deles. Melissa não resistiu e olhou pela janela de George, avistando a cabine negra e brilhante. Mesmo abaixado, George Conti não teria como evitar ser alvejado. Além disso, seria perigoso se desviasse a atenção da estrada. Estavam

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encurralados! —Segure-se — advertiu ele. — Vou tentar surpreendê-lo. Uma manobra estratégica? Para onde iriam? Havia apenas um

profundo abismo, coberto por frondosas árvores, do lado direito, e a caminhonete preta bloqueava a faixa esquerda da estrada.

Aquilo mais parecia uma piada mórbida. Infelizmente, não era uma piada. Melissa então se deu conta do que George pretendia fazer. Viu-o pisar no freio justamente no momento em que ela se encolhia, protegendo-se do inevitável impacto da brecada brusca.

Os pneus da caminhonete emitiram um som agudo de derrapagem.

Com rapidez, George virou a direção, fazendo uma curva de 180 graus e pisando fundo no acelerador. Após a vitoriosa manobra, estavam de volta ao caminho de onde vieram. Melissa aproveitou a trégua, sentou-se no banco e colocou o cinto de segurança. Olhando para trás, avistou a caminhonete a longa distância.

O motorista já tivera tempo para notar a astúcia de George, e, se quisesse, poderia continuar a perseguição. Em vez disso, porém, continuou em direção contrária, afastando-se cada vez mais.

— Ele não está nos seguindo! — exclamou ela, aliviada.— Não, não está — concordou George, pensativo.— O que acha disso tudo?— Bem, ele pode ter desistido porque estamos voltando ao local

do tiro, onde haverá muitas testemunhas. Ou talvez quisesse apenas nos assustar, e já sabe que conseguiu. Ou então era um garoto inconseqüente, querendo apostar uma corrida na estrada.

— Em qual dessas possibilidades você aposta? — indagou Melissa.

Virando a direção, George estacionou no acostamento da estrada paralela ao campo de aviação.

— Não tenho a menor idéia. Nem sei quem atirou. Talvez não fosse o mesmo homem da caminhonete. Nem mesmo sei atrás de quem ele estava se de mim ou de você. Só reconheço que existem várias questões a verificar, e sei exatamente por onde começar a investigação.

Ligando o motor, ele tomou um atalho da estrada principal, por

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onde nem o atirador nem a caminhonete preta haviam passado. Melissa não conhecia muito bem aquele caminho. Mas, uma vez que George lhe salvara a vida, estava disposta a segui-lo até o fim. Não passou muito tempo e Melissa reconheceu o local. George não reduzira a velocidade desde que saíra da estrada fatídica. Corria pelos caminhos de terra, repletos de pedregulhos e cascalhos, como se quisesse atenuar a raiva que o invadia.

Quando desviou, tomando a direção de uma terceira estrada, também menos movimentada, Melissa começou a se familiarizar com as sinalizações. Havia um cemitério repleto de pedras e uma construção em ruínas.

— Estamos indo à casa dos Mapes?— Isso mesmo.— O que pensa encontrar lá?— Não sei — confessou George. — Mas não confio nos irmãos

Mapes. Só porque Dolby mostrou-se solidário não significa que seja amigo. Minha experiência com essa família me diz que são incapazes de cultivar amizades, a não ser entre eles mesmos.

— Entendo — respondeu Melissa, embora não compreendesse o comportamento dos habitantes do norte, sempre arredios. — Temos de nos manter preparados para qualquer eventualidade. — Ela tentava usar de diplomacia.

— Existem várias perguntas sem respostas. Precisamos descobrir o que aconteceu, mas agindo com cautela. Idéias preconcebidas só irão atrapalhar a investigação.

Por um momento, George permaneceu em silêncio, e Melissa teve a nítida impressão de que ele tentava se controlar para não explodir.

— Escute — começou ele —, sei que está querendo ser justa e imparcial. Você não pretende acusar pessoas sem evidências palpáveis, certo? O problema é que não temos nenhuma prova. Então, na falta de provas, temos de seguir nossa intuição. Patrick teria feito o mesmo.

E Patrick acabou morto, teria sido o comentário de Melissa, mas ela foi ponderada e guardou-o.

— Minha intuição me diz — concluiu George — que Davis e Dolby Mapes são nossos adversários nessa luta.

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— Que luta? Eu não sabia que estávamos em guerra.Olhando para o rosto de George, Melissa viu uma expressão

significativa naqueles profundos olhos verdes. A determinação e o autocontrole, que o impediram de se

defender no mercado, demonstravam sua coragem e superioridade. Pôde até aceitar ser ridicularizado pelos habitantes locais.

Ao virar as costas, ignorando a provocação, mostrou uma atitude digna de um homem de muita fibra. Mas havia algo mais abrangente na expressão do jovem herói. Melissa foi testemunha da inteligência de George ao encontrar um meio de escapar daquele monstro negro que os perseguia. Tantas qualidades poucas vezes poderiam aparecer num relacionamento que estava apenas se iniciando. Fora uma manhã reveladora.

Apesar do medo, Melissa agradeceu ter podido viver aquela aventura. Contudo, ela e George tinham algum tipo de relação? Poderia pensar nesses termos? Teria ele o mesmo tipo de pensamento?

As respostas para essas perguntas tão pessoais viriam no momento oportuno. George estacionou a caminhonete ao lado da barraca dos Mapes, que parecia fechada. Antes que aquele dia agitado terminasse, teriam outras questões importantes e misteriosas a averiguar.

— Vou dar uma olhadela no lugar — sussurrou ele nos ouvidos de Melissa quando chegaram perto da varanda da casa dos Mapes.

A decisão de George a agradou, pois ela possuía suas próprias prioridades. Não considerava o incidente daquela manhã um empecilho para desvendar o mistério que envolvia a vida secreta de Philip. Seu objetivo era descobrir a verdade sobre os últimos cinco anos passados ao lado do marido, e não se intimidaria com ameaças. Com essas idéias em mente, ela bateu à porta da casa.

DeDe apareceu, usando calça jeans. Os cabelos, soltos sobre os ombros, pareciam tão embaraçados quanto no dia em que ela correra pela estrada, apedrejando o Lincoln. Havia um casaco em cima de uma cadeira da sala e sapatos no chão.

Aquela cena, sem dúvida, mostrava que DeDe Mapes acabara de chegar. As unhas dos pés estavam pintadas com esmalte vermelho, o que dava a ela muita feminilidade.

Philip devia gostar, pensou Melissa, imaginando que talvez

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tivesse falhado em não usar artifícios femininos para criar alternativas e melhorar o convívio conjugai. Arrependida, lamentou o fato de ter frustrado Philip, a ponto de ele procurar outra mulher que satisfizesse seus anseios e desejos. Mas, no fundo do coração, o que realmente a entristecia não era o fato de ter desapontado o marido, e sim de não ter se interessado em saber o que ele pensava e sentia a respeito da esposa. Entretanto, dadas as descobertas dos últimos dois dias, Melissa não sentia a menor culpa por isso.

— Está se sentindo bem? — perguntou DeDe. — Você me parece tão vermelha...

— É mesmo? Melissa tocou o rosto com o dorso da mão, sentindo o calor e a umidade do suor. Passou os dedos entre os cabelos, notando que estavam encaracolados, conseqüência daquela fuga enlouquecida.

— Acho que andei me exercitando demais esta manhã — comentou com ironia, tentando obter uma resposta que lhe servisse de pista.

Porém DeDe não fez nenhuma observação. Apenas assentiu com um gesto de cabeça. Talvez estivesse querendo ser discreta. No entanto, outra possível explicação para a atitude taciturna de DeDe ocorreu a Melissa. Talvez ela não estivesse curiosa a respeito porque já sabia do acontecido. E se George tivesse razão sobre o fato de os Mapes estarem evolvidos naquele acidente? E se DeDe fosse a maior responsável?

Fitando os pés descalços da moça, Melissa imaginou que talvez a amante de Philip não estivesse tão resignada com essa condição, como demostrara no dia anterior. DeDe poderia ter alimentado a mágoa a ponto de o sentimento motivá-la a buscar vingança. Nesse caso, a bala não fora direcionada a George.

— Por que não se senta? — convidou DeDe. — Continuo achando que você não está muito bem. — Segurando o braço de Melissa, conduziu-a à cadeira. Se ela era ou não a responsável pelo incidente, isso não tinha mais importância.

Melissa precisava mesmo sentar-se. A tensa e tumultuada manhã a estressara, mobilizando toda a sua energia física.

— Quer tomar alguma coisa? — DeDe parecia realmente preocupada.

— Pode parecer um pedido estranho, mas você se importaria se

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eu tirasse minhas botas? Acho que uma bolha se formou no calcanhar.

— Não é um pedido estranho para mim — respondeu DeDe, sorrindo. — Você já deve ter notado que ando descalça pela casa. Não há nenhuma razão para que não faça o mesmo.

— Obrigada. — Melissa retirou as botas enquanto a moça saía da sala.

A atitude solícita da anfitriã poderia significar uma forma de encobrir alguma intenção maligna, mas Melissa tinha dúvidas a respeito. Apesar de terem sido adversárias no passado, e talvez ainda o fossem no presente, ela não conseguia conceber que DeDe Mapes possuísse uma personalidade violenta e criminosa.

Seria coerente sentir que a amante do marido fosse uma boa pessoa? Esses sentimentos positivos quanto à formação do caráter da jovem rondavam-lhe a imaginação quando DeDe retornou, carregando uma caixa de primeiros-socorros.

— Vamos dar uma olhadela nesse calcanhar. Olhando para os pés descalços, Melissa pensava se deveria

deixar que a rival cuidasse do curativo. Mas a mulher seria capaz de criar encrenca, partindo do princípio de que era a única a manter Davis e Dolby na linha. Portanto, recusar seus préstimos seria arriscado.

— Sim, você tem uma bolha — confirmou ela, levantando o pé direito de Melissa e verificando o dano causado pela bota de couro.

— Por que continuou andando se estava ferida? Deve estar doendo bastante... A bolha é imensa!

Sem poder observar o rosto de DeDe, Melissa não sabia se ela estava sendo sincera.

— Eu tinha outras coisas em mente e não dei atenção à dor.— Devia ser algo bem interessante, a ponto de fazê-la ignorar a

dor.Melissa gravou aquelas palavras, tentando detectar nelas um

duplo significado. Não notou nada. George afirmara que os Mapes não eram

confiáveis. Talvez estivesse certo. Talvez DeDe fosse cínica, habituada a fingir sem se denunciar.

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Afinal, tivera sangue-frio ao descobrir que o namorado era casado e persistira num relacionamento com um homem comprometido. Entretanto, no princípio, dissera não saber que "Reggie" era casado. Nesse caso, Philip fora o mais cínico da história.

A mente de Melissa trabalhava em conflitos e dúvidas angustiantes. Não havia como descobrir quem era o traidor ou a traidora. Mas, agora, ela teria de manter-se atenta aos mínimos detalhes. Depois pensaria com tranqüilidade.

— Tenho um ótimo remédio para bolhas, em especial para as grandes como essa. É como mágica — disse DeDe.

— Mas você precisa confiar no que vou fazer.Confiar! Um aviso de perigo fez o coração de Melissa disparar.— O que planeja fazer? — perguntou ela, sem esconder o

ceticismo.Bem devagar, DeDe abriu a caixa de remédios e retirou uma

longa agulha de costura. Acendeu um fósforo e aqueceu a ponta na chama. Quando a ponta de metal se inflamou, tornando-se vermelha, ela apagou o palito de fósforo. Com muito cuidado, segurou a agulha esterilizada.

— Aprendi esse tratamento com minha mãe — contou, justificando o processo de esterilização. — Provavelmente o método foi passado de geração em geração. Por isso, nem sei quando começou. Minha família conhece uma porção de remédios e curas. Você deve ter notado as ervas que tenho ao redor do terraço. Atrás da casa existem mais variedades. E surpreendente o poder que essas ervas possuem. Nas farmácias, as pessoas encontram os remédios manipulados pelos laboratórios. Mas posso afirmar que as plantas são milagrosas, bem mais eficientes do que ás drogas. Ponho minha mão no fogo por isso.

Melissa lembrou-se que sentira o aroma das ervas enquanto aguardava, sentada no terraço dos Mapes, na tarde anterior. Tinha absoluta certeza de que plantas medicinais produziam um efeito eficaz bem mais saudável do que os medicamentos industrializados. Na verdade, os hippies divulgaram curas naturais tão eficientes quanto aquelas a que DeDe se referia.

— Você vai furar a bolha, certo? — arriscou Melissa.— Esse é um modo bem simples de dizer que vou perfurar a

bolha e deixar sair o líquido. — E o que vai fazer depois?

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— Colocarei uma mistura especial que vai ajudá-la a secar e a cicatrizar.

— Uma mistura de ervas?— Nada tão exótico assim. — DeDe soltou uma gargalhada. —

Uma simples bolha não precisa de alquimia muito elaborada. — Apontou a garrafa de álcool sobre a mesa. — Esse líquido custa barato e não me dá trabalho. Mas é bem eficiente. Acredito nos velhos métodos, mas também acredito no senso comum. Se não quiser que eu mexa em seu pé, não tem problema. A bolha é sua, não minha.

— Não, não. Eu não disse isso — corrigiu Melissa. A dor no calcanhar parecia se intensificar com as desconfianças sobre a dedicada DeDe.

— Tenho certeza de que sabe o que está fazendo. Ajoelhando-se diante de Melissa, a moça tomou-lhe o pé direito, posicionando a agulha.

— Já entendi — disse ela, olhando com intensidade para Melissa.

— Você acha que não sou digna de confiança porque fui amante de seu marido. — Fez uma pausa e continuou a fitá-la. — Posso compreender por que está inclinada a pensar dessa maneira. Por um segundo, Melissa pensou em se esquivar daquele comentário perspicaz. Mas resolveu enfrentar a situação.

— Você está certa. Era exatamente isso que eu estava pensando.

Assentindo, DeDe Mapes levantou-se. Melissa segurou-lhe o braço, impedindo-a de afastar-se.

— Mas agora meu calcanhar está doendo muito e você se ofereceu para ajudar. Eu ficaria grata se pudesse terminar essa pequena cirurgia. Antes de assentir, DeDe hesitou, em silêncio.

— Tudo bem, vou atender seu pedido — concordou, ajoelhando-se em frente a Melissa.

George apareceu diante da porta de tela logo depois de encerrado o curativo. DeDe ainda colocava a bandagem no calcanhar de Melissa quando avistou o novo visitante. Observando George e depois DeDe, Melissa teve dificuldades em julgar quem ficou mais surpreso.

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— O que você está fazendo aqui? — perguntou a moça num tom agressivo.

— Estou com a Sra. Wald — informou George, apontando para Melissa.

O tom de voz também era pouco amigável. Talvez George pretendesse atingir DeDe, referindo-se a Melissa pelo sobrenome de casada. A mulher os contemplava, sem disfarçar seu desagrado ao vê-los juntos.

— Então, nesse caso, você pode entrar — convidou, sem sequer olhar para George.

— Na verdade, acho que devemos ir embora — interveio Melissa. Levantou-se e, surpreendida, notou que o desconforto quase desaparecera.

— Você não veio até aqui para me perguntar algo? — indagou DeDe. George afastou-se da porta.

— Sim, é verdade. Mas minha pergunta pode esperar.Se George Conti não aparecesse, Melissa teria conseguido

conversar com DeDe. No entanto, ele não era bem-vindo e deixava a srta. Mapes incomodada. Além disso, Melissa gostaria de retribuir a ajuda recebida, e uma das perguntas a fazer seria por que a presença de George lhe era hostil. Diante dele, isso não seria possível.

— Espere um minuto — pediu DeDe. — Quero lhe dar algo. — E correu para os fundos da casa.

— A propósito, o que aconteceu aqui? — perguntou George, sussurrando do lado de fora. Melissa fez um sinal para que se calasse. Ele assentiu e saiu do terraço. Instantes depois, DeDe voltou, carregando um par de chinelos de plástico e um papel dobrado.

— Acho que vão lhe servir — falou, colocando os chinelos no chão. — E isso pode ajudá-la a esclarecer algumas dúvidas.

Recebendo o papel dobrado, Melissa sentiu que havia um objeto entre as dobras. Curiosa, desdobrou-o na presença de DeDe e, intrigada, olhou-a sem sorrir.

Expressar um sorriso de satisfação não seria uma reação adequada, embora Melissa estivesse tentada, a abraçar a amante do marido.

— Obrigada — disse por fim, colocando o papel no bolso. — Obrigada pelo curativo também. Vou lhe trazer os chinelos amanhã.

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— Não se incomode. Eles são seus. Mas isso não significa que não possa voltar amanhã, se quiser.

— Ótimo — disse Melissa, sorrindo. Ela e George se retiraram e dirigiram-se ao pátio, onde ficara

estacionada a caminhonete. Melissa conseguia andar, mas precisava de apoio para não forçar o pé. Segurando-a pelo braço, George aproveitou a oportunidade para iniciar o interrogatório.

— O que vocês duas faziam lá dentro da casa?— DeDe fez um curativo no meu pé e depois me deu um

presente.— Quer dizer, os chinelos? — George carregava as botas de

Melissa.— Não. Estava me referindo a isto. — Tirou o papel do bolso e

mostrou-o a George.— O que é? — perguntou ele.— A chave da casa de Philip. E um mapa, indicando o caminho

para chegar até ela.

CAPÍTULO VIII

— Não acha que já tivemos o bastante por um dia? — perguntou George quando viu Melissa insistir em ir à casa de Philip, naquela tarde.

— Para ser sincera, acho que já tivemos o suficiente por vários dias, mas isso não significa que vou saltar do trem antes de chegar à estação. E você? Descobriu alguma coisa?

Os dois estavam na caminhonete de George, afastando-se da propriedade dos Mapes.

— Não havia nenhuma caminhonete como a que nos seguiu nos arredores da casa dos Mapes.

Melissa quase suspirou aliviada. Não queria que DeDe estivesse envolvida em nenhuma confusão. Philip já lhe causara problemas demais.

Em momento algum sentiu-se responsável pela atitude do

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marido, mas reconhecia que uma grande afinidade a ligava a DeDe. Philip deixara uma bomba na mão de Melissa, e isso fazia com que as duas tivessem algo em comum.

— De qualquer jeito — prosseguiu George, interrompendo-lhe os pensamentos —, isso não significa que a caminhonete não pertença aos Mapes. Talvez um dos irmãos a tenha escondido em algum canto e agora esteja rindo do susto que nos deu na estrada. Dessa vez, o suspiro de Melissa foi de irritação e não de alívio.

— Ao que tudo indica, é bem possível.— Você quer descobrir a verdade, custe o que custar? Ou quer

saber somente aquilo que seus ouvidos podem escutar? Indignada, ela se virou e o encarou.

— Não é justo — protestou. — Enfrentei os maiores dissabores nestas últimas vinte quatro horas e já provei a mim mesma que estou apta a continuar. — Sim, tem razão — concordou ele com suavidade.

— E é exatamente por esse motivo que quero levá-la de volta ao camping. Irei à casa de Philip sozinho. Você não precisa se submeter a isso. Posso fazer uma descrição detalhada cio local. Até mesmo tirar fotos, se quiser.

A raiva de Melissa não era tão grande quanto a expressão consternada nos olhos de George. Porém ela sabia o que tinha a fazer.

Tocando-lhe o braço, aproximou-se, a fim de chamar-lhe a atenção e mostrar quão determinada estava.

— Agradeço sua bondade. Agradeço tudo o que fez por mim hoje. Mas vou a essa casa, e pretendo ir com meu próprio carro. Então, por favor, leve-me de volta ao camping. — Viu que George abriu a boca para protestar e, antes que ele o fizesse, segurou-lhe o braço com mais firmeza e prosseguiu:

— Por favor, faça isso por mim.Assentindo com um gesto de cabeça, George resolveu manter a

boca fechada. Não ficou contente com aquela resolução, mas não tinha escolha. Para uma mulher que vivera à sombra do marido nos últimos seis anos, Melissa estava indo muito bem. George Conti não era do tipo que se deixava influenciar, ponderou Melissa. Se assim fosse, ambos teriam levado um tiro na cabeça e estariam mortos no meio da estrada.

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Essa possibilidade a fez tremer. Virando-se para a janela do carro, afastou-se. Desse modo, ele não veria quanto aquele dia traumático a abalara. Olhando a paisagem, Melissa mal notava os extensos campos da região. Pensava apenas nos eventos daquela manhã tumultuada: as revelações de Dolby, o desafio que George sofrerá no mercado, o tiro, a perseguição da caminhonete preta e a visita à casa de DeDe.

No passado, teria se desesperado em buscar uma explicação coerente para esses acontecimentos. Agora, não sentia essa necessidade. Aprendera a esperar. Aquele mistério seria esclarecido, mais cedo ou mais tarde. Embora não se sentisse bem com isso, aceitava a situação. O melhor daquela história era descobrir sua capacidade de enfrentar os fatos sem precisar da superproteção de Philip ou de George.

Ficou aliviada por poder fazer o trajeto até o camping em silêncio.

Precisava ser forte, embora ainda se sentisse abalada com as novas descobertas. De tão fortes e precisos, os argumentos de George acabaram se revelando imbatíveis. Melissa não conseguiu convencê-lo a permitir que fosse sozinha à casa que Philip e DeDe haviam partilhado.

As coordenadas do mapa da moça eram complicadas, e George conhecia a área melhor do que ninguém. Para um turista eventual, seria muito fácil perder-se naquela região, repleta de estradas desertas e sem sinalização. Assim, ela acabou cedendo em seguir George. Ele foi à frente com a caminhonete; Melissa seguiu atrás, no Lincoln. Mas havia outros motivos que tornavam a companhia daquele homem bem-vinda na empreitada. Em primeiro lugar, ela estava se dirigindo ao esconderijo amoroso de Philip.

Nesse caso, a melhor alternativa era mesmo estar com alguém, principalmente um amigo. E, sem dúvida, George Conti tornara-se um amigo.

Pararam no posto de gasolina, em Lowville, para ter certeza de que não ficariam sem combustível durante a pequena viagem.

Melissa o observava colocar combustível na caminhonete. Até uma simples tarefa revelava o poder daquele corpo

musculoso. No entanto, ele mantinha esse poder sob controle, sem precisar exibi-lo a todo instante. Melissa não tinha como negar que o

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achava muito atraente.Durante os momentos de calma, admitia quanto apreciava vê-

lo. O corpo masculino se movia de forma harmônica, revelando uma virilidade impressionante, quase tangível.

Era interessante olhar os movimento das mãos fortes. O modo como ele pegava os objetos com rapidez e

determinação mostrava que estava sempre ciente do que queria. No fundo, Melissa desejava que aquelas mãos a abraçassem,

acariciassem. Aquele desejo era perturbador. O pior, porém, era que não

conseguia evitar tais pensamentos.Depois de descobrir a existência do amor secreto de Philip,

achava que deveria sentir raiva. Ou mágoa. Em vez disso, experimentava a intensa satisfação de estar na companhia de um homem que a fazia consciente de sua feminilidade.

Jamais se sentira tão viva. O único problema era o resquício de culpa por ver-se feliz após a morte do marido. Saíram do posto de gasolina e das rodovias asfaltadas. Tomaram estradas de terra que se estendiam em meio à floresta.

O Lincoln ocupava todo o espaço dos caminhos estreitos, resvalando nos galhos e nas folhagens. O ar tornava-se doce com o aroma exalado pelos pinheiros.

As copas das árvores eram tão densas que impediam a entrada da luz do sol, tornando a floresta refrescante e confortável. Melissa imaginou-se deitada sobre as folhas, com George a seu lado...

O pensamento não a assustou. Compreendia que esses sentimentos eram frutos de um longo período de viuvez e de um casamento sem paixão.

Finalmente chegaram à casa de Philip. Foi então que Melissa entendeu que aquela era apenas mais uma lembrança ruim de um casamento errado. Nunca a teria escolhido para morar.

Não era nada bonita e parecia inadequada ao lugar. A fachada branca, rodeada de estruturas de alumínio, não combinava com a vegetação selvagem da floresta.

— Sim, esse é o tipo de casa que Philip teria escolhido... — comentou depois de estacionar.

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— O que quer dizer? — O alumínio facilita a manutenção do lugar. E a arquitetura não faz sentido algum. É pouco criativa, porém organizada e controlada.

— Philip era assim? Organizado e controlado?— Ah, muito — afirmou Melissa, com tristeza na voz, enquanto

caminhava até o terraço. Foi preciso virar a chave repetidas vezes antes que a porta

destrancasse. Mas a casa não estava abandonada. Lá dentro, tudo se encontrava limpo e arrumado. Não havia

sinal de poeira nem teias de aranha. Viam-se até vasos com plantas espalhados nas janelas e pendurados na parede. Melissa reconheceu algumas das ervas que vira na casa dos Mapes.

A personalidade extrovertida de DeDe deixava marcas em todos os cantos. O exterior, com certeza, fora escolha de Philip, mas o interior pertencia a DeDe Mapes.

Melissa ponderou que não gostava da casa onde morava, em Genesse Street. A decoração da sala era fria, com poltronas e sofás de couro. Na verdade, mais se assemelhava à sala de espera de um consultório médico.

Não lembrava em nada um ambiente familiar e aconchegante. Ali, no confortável lar de DeDe, Melissa arrependeu-se por não ter lutado pelos próprios desejos enquanto vivera com Philip.

— Você está bem? A pergunta de George foi gentil e solícita. Ele a fitava com

carinho nos olhos.— Sim, estou bem — respondeu ela, comovida com a

preocupação do amigo. Sorrindo, tocou-lhe o braço, para lhe garantir que dizia a verdade.

— Eu sabia que não ia ser fácil para você — disse George, cobrindo-lhe a mão delicada.

— Para ser sincera, está sendo menos duro do que eu esperava. Ainda segurando-lhe a mão, George assentiu. Mas parecia não

ter compreendido muito bem o que ela dissera.— Pode se explicar melhor? — Meu marido e eu não formávamos exatamente aquilo que se

chama de casal — confessou Melissa em voz baixa. — Se ele não

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tivesse morrido, creio que não ficaríamos juntos por muito tempo mais.

— Eu não fazia idéia...— Levei um longo tempo para tomar consciência dessa

realidade.— E seu marido? Ele sabia que você pretendia deixá-lo?— Não, não sabia. — Melissa olhou ao redor. E, com certeza,

não teria se sentido magoado se soubesse.— Não costumo falar mal dos mortos — disse George,

acariciando-lhe a mão. — Mas alguém capaz de perdê-la sem se sentir magoado não é um homem esperto.

— Não me considero nem um pouco esperta, sabe? Afinal, não percebi o que acontecia bem debaixo do meu nariz.

— Todos nós tendemos a confiar nas pessoas que amamos. Não queremos pensar que elas possam algum dia, nos decepcionar. — A repentina profundidade no tom de voz de George fez Melissa suspeitar de que ele falava por experiência própria. Algum fato do passado ainda o perturbava. — Por que não dá uma olhadela no lugar? — sugeriu ele, afastando-se. — Imagino que queira fazer isso sozinha. Vou esperá-la aqui.

— Está bem, obrigada. A sensibilidade daquele homem era incrível, e o coração de

Melissa se entregava cada vez mais ao encantamento que ele lhe inspirava. Sorriu-lhe e começou a circular pela casa. Não tinha certeza do que iria encontrar, mas se sentia incomodada por vasculhar aquela moradia. Parecia estar invadindo a privacidade de alguém, como se Philip e DeDe fossem o casal e ela fosse à outra...

Ao abrir o armário da suíte principal, reconheceu as roupas do marido. Surpreendeu-se por não ter notado a falta daquelas vestes quando empacotara as coisas dele para entregar a uma instituição de caridade. O interessante foi que a raiva e o sentimento de traição não pareceram tão significativos.

Aqueles sinais da vida secreta de Philip com DeDe não a inco-modavam tanto quanto esperava. Na verdade, Melissa foi tomada por um grande sentimento de tristeza.

Nunca fora apaixonada pelo marido, mas gostava dele. No fundo de sua alma, desejava que Philip pudesse ter passado mais

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tempo naquela casa.Ali, certamente, ele encontrara uma vida bem mais satisfatória

do que aquela que obtivera com a própria esposa. Na verdade, Philip se casara porque julgava que Melissa precisava de cuidados.

Agira mais como pai do que como marido. Então, quando se cansou dessa vida, acabou arranjando uma amante. E, no instante em que Melissa descartou a necessidade de controle e proteção, ele já não estava por perto para testemunhar a mudança. De qualquer maneira, talvez nunca pudessem construir um relacionamento diferente. Não havia, entre eles, a emoção necessária para levar o casamento adiante.

Melissa pousou o olhar na cômoda do quarto, que, limpíssima, deixava transparecer o brilho do verniz. Abriu uma das gavetas, sentindo, por algum motivo, que tinha todo o direito de fazê-lo. Afinal, o amor que aquela casa abrigara fora vivido também à sua custa. O conteúdo da gaveta a fez sentir-se tola. Havia uma caixa de aspirinas e um livro que DeDe devia estar lendo.

Sobre um bloco de papel em branco, meia dúzia de grampos de cabelo e um lápis. Ela já estava prestes a fechar a gaveta quando notou um pacote amarelo atrás do livro. Reconheceu o embrulho, típico das lojas de revelação fotográfica. Puxou mais a gaveta. Percebeu que o pacote estava aberto, mas que ainda continha as fotos. Esfregou as mãos na calça, tentando decidir o que fazer. Num gesto quase automático, tirou o envelope amarelo da gaveta.

Pensava que as fotos fossem de DeDe, mas enganou-se. A maioria mostrava paisagens naturais; registros de flores selvagens de todas as cores.

Havia também campos verdejantes com o céu azul. Melissa não conhecia os locais, mas sabia que se localizavam naquela região do Estado. As fotografias, muito bem-tiradas, convenceram-na de que não fora Philip o responsável por elas.

O marido não tinha o menor talento com câmaras; costumava cortar a cabeça das pessoas, bem como os aspectos mais significativos das paisagens.

Os retratos que Melissa via agora, ao contrário, estavam perfeitos. Sem dúvida haviam sido tirados num único dia, pois a paisagem de fundo era muito familiar. Parte do hangar do aeroporto de Lewis County estava bem à mostra, ao lado do avião de Philip.

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A visão da aeronave responsável pela morte do marido trouxe lágrimas aos olhos de Melissa. Descontraído e sorridente, Philip estava parado em frente a algumas pessoas, que pareciam ser clientes do aeroporto. Ela não reconheceu ninguém. No total, havia apenas três fotos do aeroporto.

Provavelmente haviam sido tiradas uma após a outra, pois as mesmas pessoas apareciam em todas elas.

No mínimo, DeDe tentara capturar o sorriso de Philip. Ele olhava para a câmara com uma expressão afetuosa.

Melissa lembrava-se de tê-lo visto sorrir daquele jeito em algum momento durante os anos de casamento, mas não conseguia precisar quando.

Pegando uma das três fotos e guardando-a no bolso da jaqueta, colocou as outras no envelope. Não tinha a menor idéia do que ia fazer com aquela fotografia, mas tê-la consigo lhe dava a impressão de estar executando a investigação. Recolocou o pacote amarelo onde o encontrara e saiu do quarto. Agora estava pronta para deixar aquela casa. Notou que George a observava tentar fechar a porta, ato que se revelou vão. Não adiantava virar a chave para trancar o aposento, porque nada acontecia.

E a impaciência apenas agravava o problema. Ela empurrava a chave na fechadura, sem conseguir acertar a posição correta.

— Deixe-me ajudá-la — ofereceu-se George.— Um momento, por favor. Antes de olhar para ele, Melissa

tentou mais duas vezes, sem sucesso. — No porta-luvas da caminhonete há um spray lubrificante —

disse George. — Pode ir buscá-lo para mim?Melissa dirigiu-se até o veículo, abriu o porta-luvas e logo

avistou o lubrificante. Junto do spray havia também alguns mapas e uma variedade de chaves. Quando puxou a lata azul, ela notou que dois outros objetos caíram no chão do carro.

Um deles era o documento de registro da caminhonete, segundo parecia mais interessante, e Melissa não pôde controlar a curiosidade. Era uma foto em preto e branco, já envelhecida pelo tempo. Dois jovens sorriam, abraçados. George estava bem mais moço, mas não foi isso que lhe chamou a atenção. Reparou, isso sim, no tórax musculoso que o torso nu deixava à mostra. Mesmo sendo uma imagem em preto e branco, era possível distinguir a tez morena

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e o cabelo escuro. Os ombros largos e o bíceps vigoroso quase a deixaram sem fôlego. Como se pudesse sentir o calor daquele corpo, ela tocou o peito de George com a ponta dos dedos. Por ser antiga, a foto mostrava-se um tanto opaca. Melissa aproximou-a dos olhos para poder ver George com nitidez. Nesse instante, notou as marcas de lápis sobre duas pessoas. Leu os nomes de George e Patrick sobre o papel.

A tristeza tocou-lhe o coração quando olhou novamente para os dois homens, felizes por estar juntos. Aquele era o irmão que George havia perdido. Patrick não se parecia muito com ele. Lembrava-o apenas em alguns traços, como a testa e o queixo. Era mais baixo, também. Mas o forte afeto familiar era evidente. Porém, algo mais estava em evidência na foto. Melissa levou algum tempo antes de notar a revelação surpreendente. Já vira o rosto de Patrick antes. Pre-cisou se concentrar a fim de se lembrar onde. Só sabia que o vira recentemente, mas ignorava quando. George dissera que o irmão morrera no ano anterior....

Então, de repente, tudo ficou muito claro. Parecia impossível, mas ela estava certa. Pegou do bolso a foto que tirara da cômoda e colocou-a ao lado da primeira. Observou-as com atenção.

Teve dificuldades em se certificar do que via. Não era fácil entender as implicações daquela nova descoberta. Patrick estava mais velho na foto colorida. E mais alto do que no retrato em preto e branco. O queixo parecia mais duro, e os cabelos, mais negros. De todo modo, não havia como negar que o jovem que aparecia em ambas as fotos era uma só pessoa: Patrick Conti.

CAPÍTULO IX

Melissa colocou a foto bem no fundo do porta-luvas, junto aos mapas. Assim, George não desconfiaria de nada. O retrato colorido continuou em suas mãos.

Antes de guardá-lo, contemplou o rosto revelador. Aliás, observou os dois rostos, incluindo o de Philip. Patrick Conti o conhecera. Não havia data na foto, mas a camisa que Philip usava fora comprada no último verão.

Ambos estavam sorrindo e pareciam velhos amigos. Que tipo de

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relacionamento haviam tido, afinal? Jamais ouvira o marido mencionar o nome de Patrick. Mas Philip

nunca comentava sobre os conhecidos, principalmente aqueles com quem mantinha relacionamentos comerciais.

Que negócios sustentara com Patrick Conti? Talvez fosse um contato social, uma vez que freqüentavam o mesmo aeroporto. Então, por que tinham sido fotografados juntos?

E ambos sorriam satisfeitos, como bons companheiros... Essas questões a deixavam intrigada. Mas não tanto quanto a

descoberta que fizera nas duas fotos. George estaria ciente de que o irmão conhecera Philip?

A intuição de Melissa dizia que sim. Do contrário, ele não manteria aquela fotografia no porta-luvas. Porém, se aquele era um fato relevante, por que George não comentara nada? Havia algo de suspeito no interesse dele em investigar o passado de Philip em Lewis County. Agora a intuição de Melissa transformava-se num pressenti-mento: George fazia parte daquele passado.

Mesmo que ela acreditasse em coincidências, saberia, de pron-to, que aquela fotografia não era um fato isolado. De novo, guardou a foto colorida no bolso da jaqueta. Pela primeira vez, desejou estar imaginando coisas.

Ora, todos os habitantes do norte se conheciam, ainda mais numa comunidade tão pequena como aquela. Philip travara vários conhecimentos com o povo da região.

Quem era George Conti, afinal? Melissa não sabia quase nada a respeito dele. No entanto,

ambos haviam partilhado experiências vitais nos últimos dias. Ela até tivera fantasias eróticas com aquele homem!

Naquele momento, deu-se conta de que cometera um grave erro. Quanta decepção! Sua cabeça girava, em meio a tanta confusão.

— Encontrou o lubrificante? — gritou George, da varanda."Encontrei mais do que isso", pensou Melissa. Pegou a lata azul

e saiu da caminhonete, sem ter certeza da atitude que tomaria a respeito da recente descoberta. Por enquanto, levaria o lubrificante e tentaria sair dali o mais rápido possível. Sozinha. As desculpas que ela usou para manter-se afastada de George soaram fracas e

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inconsistentes. Como não obtivesse êxito, resolveu apelar para a sensibilidade dele.

— Ver essa casa me afetou mais do que imaginei — mentiu. — No momento, preciso ficar sozinha para refletir.

Em parte, a justificativa era verdadeira, mas não pelos motivos que ela fazia tentar supor. Queria que George pensasse que as evidências da traição de Philip haviam sido um golpe cruel. Aliás, esse tema permanecia em sua mente quando Melissa entrou no Lincoln e seguiu a estrada de terra, sob o sol do entardecer. A noite começava a cair, e a densa floresta tornava-se, aos poucos, escura e misteriosa.

Lembrou-se de que imaginara um passeio com George entre as árvores, um descanso sob o pinheiral, o corpo musculoso junto ao seu, as mãos fortes acariciando-lhe a pele...

O pensamento a aborreceu, e ela quase se chocou com uma das árvores, ao fazer uma curva à direita. Na estrada estreita, os longos galhos da vegetação resvalavam nas laterais do carro, deixando arranhões na lataria que Philip gostava tanto de encerar. A verdade era que as decepções se multiplicavam, tornando-a cada vez mais desencantada com as pessoas.

Os problemas não paravam de surgir, um após o outro, e sua paciência se esgotava.

Pisou o acelerador, aumentando a velocidade para deliberadamente provocar marcas profundas no precioso carro daquele traidor. De qualquer maneira, mesmo antes de saber da vida dupla do marido, ela já havia decidido livrar-se dó velho Lincoln. O veículo representava o casamento fracassado que tivera, e Melissa não estava mais disposta a carregar aquele peso antiquado e dispendioso. Aliás, não queria carregar mais nada que lhe recordasse o passado.

Ao atingir a autopista, conseguiu distanciar-se da caminhonete de George. A maior vantagem daquele carro enorme e velho era a alta velocidade que alcançava no asfalto. Enquanto se deliciava com o vento que lhe tocava o rosto, ela imaginava ouvir, a qualquer momento, o som da sirene de um carro da polícia, surgindo de detrás de algum outdoor da estrada.

Como nos filmes de faroeste, em que os vaqueiros corriam velozmente pelas rodovias, com suas caminhonetes possantes, a fim de aproveitar cada minuto da liberdade, antes de ser pegos pelos

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representantes da lei... Seus lábios se abriram num breve sorriso. Desde que chegara a

Lewis County estava levando a vida numa velocidade acima do normal.

E George Conti fora a alavanca que a jogara rumo a essa rota desgovernada. Bem, mas essa não era uma comparação digna do que acontecera nos últimos dias.

Afinal, ele não fora o responsável pelo desmoronar de suas ilusões matrimoniais, nem o único alvo do tiroteio travado na estrada. Apesar disso, George Conti não só omitira a verdade como também mentira. Estava quase certa disso.

Ou talvez ela precisasse de uma válvula de escape, algum bode expiatório em quem pudesse descarregar sua raiva...

Talvez ele tivesse se tornado o candidato perfeito para o papel. Pisando mais fundo no pedal do acelerador, Melissa sentia que a velocidade fazia aumentar ainda mais sua ira.

Se George aparecesse à sua frente, naquela rodovia, seria capaz de passar sobre ele, amassando o pára-choques prateado que Philip esforçara-se em manter polido.

Essa atitude daria cabo de ambos de uma só vez, eliminando os dois homens que a usaram de forma covarde.

Conservando o carro em alta velocidade, ela percorria a autopista como se quisesse apagar o passado, e talvez o presente, ultrapassando os limites de segurança e colocando sua vida em risco.

Chegou a Camp Tranquility quase à hora do jantar. A área da piscina estava silenciosa; as crianças certamente haviam se recolhido aos acampamentos, famintas e sonolentas.

O delicioso aroma de churrasco lembrou-a de que não se alimentara desde o café da manhã. Ficou surpresa ao ouvir o estômago reclamar. Afinal, as emoções do dia atribulado que tivera haviam-na feito perder o apetite.

Melissa ficava maravilhada com a capacidade do corpo em armazenar energia, mantendo a pessoa em plena atividade mesmo quando a psique encontrava-se em estado calamitoso. Em frente ao trailer, do lado oposto da estrada, Sonny Shannon armara uma pequena churrasqueira sobre a mesa de madeira. Uma garrafa de molho de tomate, um pacote de sal e pratos de papel era tudo o que

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ele possuía em sua aventura de campista principiante. Na verdade, as chamas do fogareiro já atingiam a grade,

causando um sério risco de incêndio. Recordando-se da cena hilariante que presenciara no dia

anterior, Melissa precisou se controlar para não rir. Já sentira o cheiro de carne queimada mesmo antes de avistar a fumaça negra subindo da churrasqueira.

— Você vai esperar as chamas baixarem antes de colocar a comida, não é? — a indagou, aproximando-se. — O carvão continua quente mesmo quando não apresenta a tonalidade vermelha.

— É mesmo? — indagou Sonny, como se ponderasse sobre os mistérios que envolviam um punhado de carvão enquanto remexia as salsichas esturricadas sobre a grade. Vestia calça jeans e camiseta, e o suor escorria-lhe pela testa, dada a proximidade excessiva do braseiro. — Acho que vou aprender, a duras penas, como evitar morrer de fome ao acampar pela primeira vez — comentou, com humor.

— Importa-se em dividir comigo esse aprendizado? — ela perguntou.

Depois de tantas desventuras, os dilemas de Sonny poderiam até ser divertidos.

— De forma alguma. Sinta-se à vontade para aprender. O segredo é manter um pote de amendoins e uma garrafa de suco ao alcance das mãos.

— Tem razão — concordou Melissa, rindo. — Sempre precisamos nos garantir quando estamos no meio do

mato.— Se o tempo não nos derrotar, sem dúvida o carvão o fará. —

Sonny usou o garfo para pegar as salsichas queimadas. — Já é hora de dar paz a essas salsichas — declarou, jogando-as num saco de papel ao lado da mesa. — Creio que com isso encerro o expediente por hoje.

— Você ainda tem algumas? — Melissa apontou para as salsichas dentro do saco de papel. — Isto é, algumas que não estejam incineradas...

— Claro — respondeu ele. — Tenho até mostarda e molho de tomate. Mas acho que não é suficiente para um jantar digno e

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apetitoso. — Por que não me deixa ver o que posso fazer? Tenho muita

experiência com esse tipo de aventura.— Fique à vontade — ofereceu Sonny, indicando os utensílios

do churrasco. — Considere-me seu desajeitado assistente, pronto para executar suas ordens.

— Está bem. Sorrindo, ela se lembrou da primeira vez que o viu,

esbravejando contra as estacas de alumínio. Sem dúvida, Sonny sabia ser agradável e jovial bem diferente do homem ameaçador e furioso que parecera no dia anterior.

— Muito obrigado pela ajuda que está me oferecendo — continuou ele. — Sinto-me um peixe fora d'água quando se trata de acampamentos. Um bom vizinho é tudo de que preciso agora.

Ainda sorrindo, Melissa removeu o excesso de carvão da churrasqueira. Sonny colocara dez vezes mais do que o necessário.

Concentrou-se na tarefa, evitando encará-lo nos olhos. Não fora até o acampamento de Sonny por ser uma vizinha solidária; tampouco se orgulhava de usar essa desculpa a fim de obter o que pretendia.

Até o jantar ser servido, Melissa decidiu não revelar o principal objetivo daquela visita. Sonny abrira uma lata de feijão e um saco de batatas fritas, insistindo para que ela o acompanhasse na refeição.

Não havia motivo para recusar a oferta. Afinal, ela estava tão faminta quanto ele. A comida não era das mais nutritivas, mas, com certeza, seria bem-vinda. Quando Melissa perguntou a Sonny se havia algo com que cobrir a mesa, ele desapareceu dentro do pequeno trailer e, em seguida, voltou com um enorme tecido de algodão.

— Vi este pano no supermercado quando estava comprando salsichas — explicou. — Achei que podia ser útil, embora não soubesse exatamente para quê. Contendo-se, Melissa não comentou o exagero do vizinho. Aliás, estava claro que os objetos essenciais para um acampamento haviam sido esquecidos por ele.

Estendeu o tecido sobre a mesa e arrumou os pratos e os condimentos necessários. Certificou-se de que Sonny colocara o lampião sobre uma tora de madeira em vez de deixá-lo em contato direto com a toalha improvisada.

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Naquela noite, ele quase incendiara o acampamento; portanto, Melissa preferia evitar outros acidentes. Começou a sentir-se como uma mãe protetora, cuidando de um "bebê" de mais de trinta anos de idade. Porém, não se esquecera de seu real objetivo. Esperou pela oportunidade certa para tocar no assunto, pois não pretendia parecer tão óbvia. A chance apareceu quando Sonny ofereceu-lhe uma lata de cerveja e ela aceitou.

O líquido gelado desceu-lhe, refrescante e agradável, pela garganta seca. Apesar de todas as falhas que Sonny havia cometido naquela aventura, fora bastante prudente em levar bebidas geladas dentro de uma caixa de isopor.

— Notei que você não ficou muito tempo no acampamento hoje — comentou Sonny, depois de saciar a fome. — Foi dar um passeio pelas redondezas?

Pronto, ele dera a abertura que Melissa tanto esperava. Ela se se manteve cuidadosa, para não estragar o plano.

— Um amigo dos Delaney levou-me para conhecer alguns colegas do meu falecido marido. Pessoas que não tive tempo de conhecer antes de ele morrer.

— Quem é esse amigo dos Delaney?Sonny facilitou a situação ao fazer essa pergunta. Melissa

permaneceu cautelosa, mantendo o tom casual.— Ele se chama George Conti. Você deve conhecê-lo.— Por que acha que eu o conheço?— George me disse que você esteve servindo a força policial ao

lado do irmão dele.— E verdade — confirmou Sonny. — Patrick e eu costumávamos

trabalhar juntos. Joguei muito futebol contra o time de George quando estávamos na escola. Ele lhe contou isso?

— Sim, acredito que tenha mencionado algo parecido. Com o garfo, Melissa juntou no centro do prato os últimos grãos de feijão. Queria estender a conversa até conseguir maiores informações.

— O Sr. Conti parece muito triste com a morte do irmão... — Após o comentário informal, acrescentou molho de tomate ao feijão.

Colocando uma das pernas sobre ó banco de madeira, Sonny apoiou a mão na mesa, procurando uma posição mais confortável.

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O simples movimento fez com que os músculos do braço se retesassem. Nesse instante, ocorreu a Melissa que, embora fosse um principiante desajeitado, Sonny Shannon deveria ser mais eficiente em outras áreas.

Novamente experimentou a estranha sensação que a perturbara quando o viu pela primeira vez.

— George lhe contou como Patrick morreu? — perguntou ele, enquanto se dirigia ao isopor, ao lado do pequeno trailer.

— Ele não pareceu desejar falar a respeito, e eu não me atrevi a perguntar. — Melissa continuava a brincar com os grãos. — Você sabe como aconteceu?

— Todos aqui sabem. — Sonny levantou a tampa do isopor, retirando outra cerveja. A lata úmida brilhava sob a luminosidade do lampião. — Um acontecimento como esse, numa cidade pequena, não passa em brancas nuvens. O povo explora o assunto por muito tempo. Aliás, as pessoas ainda comentam o fato.

— Nunca ouvi nenhum comentário. — Foi em meados do mês de agosto. — Sonny sentou-se à mesa com a lata de cerveja na mão.

Embora olhasse para o prato à sua frente, Melissa podia jurar que estava sendo observada pelo policial. Philip morrera na terceira semana do mês de agosto, no ano anterior.

Mas e daí? Afinal de contas, ela não acreditava em coincidências. Muito menos em estranhas conexões entre eventos disparatados. Sua mãe fora mestra em achar explicações e ligações para tudo o que acontecia. De acordo com ela, o cosmos estabelecia o destino das pessoas, exercendo grande influência em suas vidas. Para Melissa, isso era uma grande bobagem. Mas, naquele caso em particular, talvez não fosse.

— Patrick estava de moto e bateu numa árvore — contou Sonny, fitando-a com intensidade. — A polícia registrou o fato como um acidente.

— Sei... Philip morrera num acidente também. A mãe de Melissa costumava dizer que não existiam acidentes. — Isso é sinal de nervosismo — disse Sonny. — Como? — Melissa olhou-o, surpresa.— Brincar com a comida desse jeito. — Ele apontou para o

prato.

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— Minha mãe costumava dizer que isso é sinal de nervosismo.Posicionando o lampião, permitiu que a luz iluminasse o próprio

rosto. Sob a luminosidade, Melissa notou que não se enganara. Ele a observava atentamente.

— Pode diminuir a intensidade da luz, por favor? — pediu ela. — A chama está ofuscando meus olhos.— Claro. Sonny virou o dispositivo do lampião até que a ilu-

minação se tornasse apenas uma penumbra na escuridão da noite.— Gostaria de ouvir a história de Patrick Conti? — o indagou.— Há algo mais além do acidente de moto? — Melissa tentava

dissimular seu interesse. — Há muito mais do que isso. A história começa bem antes

dessa morte. — Sonny tomou um longo gole de cerveja. — Patrick foi suspenso da força policial, três semanas antes de falecer. Encontraram uma considerável quantia de dinheiro falso em sua casa.

— Dinheiro falsificado? — Isso mesmo — confirmou o policial, depois de outro gole. —

Havia uma mala cheia de notas de vinte dólares, que vinham sendo distribuídas pelo Estado nos últimos dois anos. As placas de falsificação chegavam pela fronteira do Canadá. Patrick Conti, de al-gum modo, estava envolvido nessa transação.

— Mas ninguém tinha certeza se ele estava mesmo envolvido, certo?

— Certo. Patrick morreu antes que a investigação chegasse ao fim. Os federais passaram meses atrás dessas placas falsificadas. Sem o depoimentos do irmão de George, não havia testemunhas, e a mala cheia de dinheiro era a única evidência que tinham. Sendo as-sim, a investigação não foi concluída. Também não encontraram impressões digitais, de maneira que o caso acabou encerrado.

— Então Patrick não foi considerado culpado, mas também não o inocentaram.

— Exatamente — enfatizou Sonny, batendo a mão sobre a mesa.

— Deve ter sido difícil para a família... — comentou Melissa, pensando numa pessoa, em especial.

— Muitos boatos desagradáveis chegaram aos ouvidos dos pais

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de Patrick. Eles se cansaram de ouvir o ditado: ele é culpado até que se prove sua inocência. E assim que o sistema funciona. Seja como for, os comentários diminuíram após a morte de Patrick. Exceto para algumas pessoas, que ainda insistem em falar sobre o acidente.

— Não compreendo. Inclinado sobre a mesa, Sonny aproximou-se, como se quisesse

confidenciar. A escassa luminosidade impedia Melissa de ver com nitidez a expressão do policial.

— Algumas pessoas acreditam que Patrick provocou o acidente porque não foi capaz de enfrentar a desgraça de ter sido acusado de falsificação — explicou. — A transação com o dinheiro falso fora arranjada para uma semana após o acidente.

— São apenas fofocas, não são? — indagou Melissa, preocupada.

— Não há nenhuma prova de que Patrick tenha cometido suicídio. Ou há?

— Uns dizem que sim, outros dizem que não. Mas o que prevalece na cabeça da maioria das pessoas é que a morte desse rapaz não foi acidental.

— Por quê?— Porque não havia provas. Nenhuma evidência foi encontrada

no local do acidente.— Que tipo de evidência deveriam ter encontrado?— Ao lado da árvore, onde ele bateu, não havia nenhuma

marca. — Sonny inclinou a cabeça para trás e tomou um gole de

cerveja.— Como assim? Acho que não estou entendendo. Amassando a

lata de cerveja com uma das mãos, Sonny jogou-a no saco de lixo. Em seguida, apoiou-se na mesa, aproximando-se.

— O que a polícia não encontrou — confessou, num tom de suspense — foram às marcas de pneu na estrada.

CAPÍTULO X

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Nenhuma marca de pneus! Melissa assistira a um número sufi-ciente de filmes policiais na televisão e no cinema para saber que, em qualquer acidente de automóvel, as marcas da derrapagem sempre traziam uma pista para desvendar o mistério. A menos que o motorista dormisse na direção. Seria possível alguém dormir numa motocicleta, com o barulho intenso do motor? Um problema no freio poderia ser uma explicação razoável. Que tipo de freio era utilizado numa moto? Poderia falhar de repente? Mesmo que o guidão se rompesse, o veículo seria jogado de encontro à árvore, provocando o acidente?

O relatório da polícia concluíra que Patrick Conti tivera morte acidental. Ora, os policiais deveriam ter explorado outras possibilidades. Ou teriam encoberto a verdade para evitar o sofrimento da família? Apesar disso, e mesmo com a possibilidade de sujar a própria ficha, Patrick era policial.

Como tal, poderia arranjar várias maneiras de preservar sua reputação. De súbito, o som alto de uma melodia agitada intensificou o susto de Melissa.

— De onde vem essa música? — perguntou. — Alguém organizou um baile no pavilhão do camping —

explicou Sonny. — Disseram-me que esses eventos são freqüentes por aqui.

— Oh, claro. Melissa lembrou-se que Philip costumava levá-la para jantar fora quando festas como essa aconteciam.

— Vamos? — convidou Sonny. — O que acha de dar uma olhadela no baile?

— Acho que não estou com vontade de fazer isso. Sonny levantou-se e, dando a volta na mesa, segurou-lhe o

braço.— Qualquer programa pode ser melhor do que ficar aqui,

revirando pensamentos mórbidos enquanto tomamos cerveja.Era um argumento considerável.— Mas não estou vestida de acordo! — Melissa estudou a calça

jeans e os chinelos que DeDe lhe dera.— Também não estou usando uma das minhas melhores

roupas. G que acha que as pessoas usam nessas festas campestres?

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Vestidos longos e smoking? Outro argumento favorável.— Bem... — Ora, anime-se! — pediu ele, puxando-a. — Vamos dar uma

espiada. O que tem a perder? Um ambiente agitado e barulhento não era o que mais a

agradaria naquele momento. Mas, dado o desânimo, talvez fosse interessante tentar divertir-se um pouco. Afinal, após um dia de turbulências emocionais, ouvir um pouco de música seria até reconfortante.

— Tudo bem — concordou. — Vamos dar uma olhadela.— Ótimo. — Tirando um pente do bolso, Sonny ajeitou os

cabelos.Nesse instante, Melissa lembrou-se de que também tinha um

pente de madeira no bolso da jaqueta. Tentou, sem sucesso, desembaraçar os cabelos, que, de tanto

vento e umidade, estavam cheios de nós. Mesmo assim, insistiu em passar o pente entre os fios, gemendo de dor quando o puxava.

— Não se incomode com sua aparência — disse Sonny, rindo. — Você está muito charmosa.

Melissa parou de se pentear, esperando que o elogio de Sonny não contivesse segundas intenções. Não lhe ocorrera que a visita àquele homem pudesse ser interpretada como algo além da velha política de boa vizinhança. Por sorte, não percebeu no tom de voz do policial nada que indicasse um flerte, uma indireta. Melhor assim. No entanto, se fosse George Conti quem lhe fizesse o elogio, compreenderia essas palavras de outra maneira. Fechou os olhos e, pela via da imaginação, chegou a ouvir a voz rouca e profunda soando em seus ouvidos, fazendo-a arrepiar-se...

— Você vem ou não? — chamou Sonny, já alcançando o caminho que levava ao pavilhão de Camp Tranquility.

Pensar em George deixou-a novamente aborrecida. Na realidade, não queria ir ao pavilhão. Nem com Sonny nem com qualquer outra pessoa. Porém, seria incapaz de mostrar-se grosseira. O mínimo que poderia fazer era espiar a festa por alguns minutos.

Depois, pediria desculpas e iria embora. Mais tarde, no trailer, ouviria sua própria seleção de músicas. E em volume baixo. Assim, talvez pudesse descansar relaxar. Por enquanto, restava-lhe somente

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acompanhar Sonny pela encosta que dava acesso ao pavilhão. O baile era embalado ao som de rock androll e country-western.

O responsável pelo repertório fora apelidado de Rockin' Ronnie. Ele instalara o equipamento num canto do imenso galpão. No centro da pista havia uma bola brilhante, pendurada no teto. Luzes coloridas piscavam, sem cessar, sobre a multidão que se divertia. Crianças pulavam em círculos, e as mães ensaiavam pequenos passos com seus bebês no colo. Alguns casais, a maioria adolescentes, também dançavam com animação.

Giravam e rodopiavam, seguindo o ritmo. Os observadores batiam palmas e riam, sentados nas mesas ao redor da pista.

Todos pareciam divertir-se, e usavam roupas tão informais quanto Sonny havia previsto: jeans, shorts, camisetas e até chinelos como os de Melissa. O ambiente estava alegre, radiante; quando uma canção terminava, as pessoas gritavam, pedindo a próxima seqüência.

— Ali está Hildy — gritou Sonny, para se fazer ouvir em meio à multidão. Ele indicava a segunda mesa, localizada à beira da pista.

No mesmo instante, Melissa reconheceu a mulher que havia lhe pedido carona na estrada. Sonny apressou-se para encontrá-la, e ela pensou ter visto um sinal de irritação no rosto de Hildy Hammond.

— Olá. — Ao ver Melissa aproximar-se, a expressão de desagrado desapareceu do rosto de Hildy. — Que bom vê-la de novo. Pensei em passar pelo seu acampamento. Queria agradecer-lhe mais uma vez pela carona do outro dia. Você praticamente salvou minha vida.

— Vocês duas já se conheciam? — perguntou Sonny.— Sim, já — respondeu Hildy, deixando transparecer irritação

na voz. — Sente-se — convidou, referindo-se a Melissa. Teria Hildy excluído Sonny de propósito? Era difícil dizer. Os eventos dos últimos dias haviam deixado

Melissa um pouco confusa. Começava a ver enigmas até mesmo em situações inocentes. Convidado ou não, Sonny sentou-se à mesa e virou-se para assistir à atividade na pista. Tamborilava os dedos no tampo, acompanhando o ritmo da música. Se Hildy tinha alguma intenção em fazê-lo sentir-se excluído, fracassara.

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— Foi uma boa pedida, não acha vizinha? — perguntou Sonny, sorrindo para Melissa.

— Com certeza, vizinho — disse ela, retribuindo o sorriso. Agora que estava no baile, sentia-se satisfeita por ter aceitado

o convite. A euforia da multidão ajudava a amenizar o dia exaustivo e atribulado que tivera. As faces das crianças tornavam-se cada vez mais rosadas, à medida que elas batiam palmas e pulavam, sob os olhares atentos dos pais.

As mesas estavam repletas de famílias e amigos. Rockin' Ronnie, enquanto organizava a seleção de músicas, controlava a ilu-minação, lançando focos vermelhos, amarelos e verdes sobre os convidados. Tanto as crianças quanto os adultos usavam colares e faixas coloridas.

Melissa não se lembrava de ter participado de uma festa tão esfuziante como aquela.

— Vou pegar bebidas para nós — informou Sonny, levantando-se da mesa com agilidade.

Uma jovem atraente o observava com considerável interesse, mas ele nem pareceu notar que era alvo de tanto assédio.

— Não para mim — salientou Hildy. — Eu trouxe minha garrafa térmica, cheia de chá gelado.

— Quero um refrigerante dietético — pediu Melissa. Havia planejado voltar direto ao acampamento depois de uma rápida olhadela no local. Mas agora pretendia ficar por mais tempo. A alegria da multidão era contagiante. Não sabia dizer por que, mas de repente não se sentia tão cansada como estava ao chegar ao acampamento de Sonny. Além disso, alguns goles de cerveja ajudaram-na a relaxar.

A música alta, as luzes piscando e o som das risadas estimularam uma reserva de energia que ela nem sabia existir. Se Sonny a convidasse para dançar, não hesitaria em aceitar.

Mas também havia outra razão para permanecer naquela festa. Já era hora de manter-se algum tempo afastada da presença perturbadora de George. Necessitava relacionar-se com outras pessoas e fazer coisas que não o envolvessem. Sonny e Hildy manteriam sua mente ocupada; assim, não precisaria pensar nele. Pelo menos, era isso que esperava. Então, de forma inesperada, avistou George.

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Em pé num canto, distante da folia, ele se resguardava sob a penumbra dos fundos do pavilhão.

Mesmo assim Melissa não teve dificuldades em reconhecê-lo. A silhueta alta e musculosa era perceptível em qualquer situação. Algumas mulheres se viravam para fitá-lo, umas mais sutis do que outras. Melissa não conseguia ver-lhe o rosto com clareza, mas tinha a impressão de que ele a observava. Quando o viu caminhar em sua direção, teve a mesma sensação de descontrole, de pânico, que sempre experimentava quando na presença daquele homem. Seu coração disparou, e a garganta ficou seca. Suas faces tornaram-se quentes, e ela agradeceu por estar no escuro. Assim, ninguém a veria corar daquela maneira.

As passagens entre as mesas estavam bloqueadas, em ambas as direções, por grupos de pessoas que conversavam e se divertiam. A alegria, que poucos minutos antes a conquistara, agora estava longe de ser jovial e contagiante. Enquanto isso, George se aproximava. Sonny também caminhava na direção da mesa, carregando uma lata de cerveja e um refrigerante. Não havia por onde fugir.

Talvez pudesse convidar Sonny para dançar. Desse modo, livrar-se-ia da presença incômoda de George, que, a alguns metros de distância, aproximava-se cada vez mais. No momento em que Melissa resolveu pedir socorro a Sonny, uma jovem na mesa ao lado foi mais rápida. Parou diante do policial, tirou as bebidas de sua mão e depositou-as sobre a mesa. Ele lançou um olhar derrotado para Melissa, enquanto a jovem o levava à pista de dança. "Capturado na primeira tentativa", refletiu Melissa, invejando a desenvoltura da jovem em relação aos homens.

Era uma atitude desembaraçada, que ela jamais tivera. George estava mais perto ainda. Não havia como escapar sem ser rude. Ele inclinou o rosto e Melissa ouviu-o convidá-la para dançar, mas não conseguiu responder. O pânico invadiu-a novamente.

As pernas enfraqueceram, e a energia revigorante que a multidão festiva lhe dera esvaiu-se por completo.

Era difícil acreditar numa reação tão drástica como aquela. Talvez fosse efeito do dia tumultuado. Mas a verdade era que Melissa não respondera ao convite de George porque não o conseguira. Seu cérebro foi incapaz de formular frases coerentes. Então, Hildy tomou a iniciativa:

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— Vá dançar Melissa. Você não pretende ficar a noite toda sentada ao meu lado, não é? Além do mais, vim aqui apenas para olhar. Aceite o convite e divirta-se.

Antes que ela tivesse tempo de retrucar, George puxou-a pelo braço, guiando-a até a pista.

A força daquele homem era poderosa e irresistível. Hildy sorria, e as pessoas em volta das mesas riam e acompanhavam com gestos de cabeça o ritmo da música. Sem dúvida, aquele não era o lugar ideal para armar uma cena. Além disso, ela já vivera dramas suficientes por um dia. Tentava se convencer de que a pulsação acelerada fosse causada pelo constrangimento. A alternativa mais simples naquela situação seria relaxar e aceitar o convite sem receio. Assim que entraram na pista, a música mudou. Uma canção de amor começou a soar no ambiente, tão suave quanto a voz da intérprete.

Melissa olhou ao redor, tentando encontrar uma justificativa para não dançar com George.

Avistou Sonny um pouco adiante, com a jovem parceira enlaçando-o pelo pescoço. Ele fitou Melissa, sorrindo com resignação. Bem, não havia escolha a não ser resignar-se também. Devia ter fugido enquanto podia. Agora era tarde demais. George colocou os braços em volta da cintura delicada, puxando-a. A intensidade daquele abraço foi devastadora. Ela não estava preparada para a emoção de ser envolvida por um homem que se tornara algo mais do que um simples amigo.

Sentiu que ele pressionava-lhe o corpo. As mãos fortes deslizavam sob a. jaqueta, espalmadas sobre a camiseta de algodão.

O calor daquele gesto era tão intenso que Melissa imaginou que suas costas fossem ficar marcadas para o resto da vida. Seus seios tocavam o tórax largo, e ela tentou ignorar a energia sensual que circulava entre os dois corpos, fazendo-a tremer. Mas seria impossível disfarçar ou esconder o que estava acontecendo. Jamais tivera, em sua vida, uma resposta sexual tão poderosa com um homem.

Mesmo no início do casamento com Philip, quando a relação fora uma novidade excitante, ela não se sentira como agora. Cada centímetro de seu corpo despertara para a vida. A respiração estava ofegante; os mamilos, túrgidos, aguardavam o toque masculino. Tinha certeza de que George podia sentir os seios rijos através do tecido da camisa.

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Também era capaz de perceber as ondas sensuais que os envolviam. Afastou-se um pouco, tentando resistir.

Mas o ato apenas acirrou a intensidade do abraço, fazendo-a ar-der de desejo. Qualquer dúvida ou raiva que sentisse em relação a George começava a ser eliminada pela chama da crescente atração.

Olhou novamente ao redor e avistou Sonny Shannon, que continuava abraçado à parceira de dança. Mas ele não a fitava. Sua atenção concentrava-se em Melissa. O que Sonny estaria vendo para manter aquela expressão questionadora no rosto? O que os olhos de Melissa transmitiam? Confusão? Medo? Desejo? Ela sentiu a pele arrepiar-se só em pensar que não conseguia disfarçar as emoções.

De súbito, sentiu o forte impulso de fugir do olhar questionador de Sonny e da fome enlouquecida de George. Mergulhou o rosto no peito forte. Ao mesmo tempo, virou-se bem devagar, seguindo o ritmo da canção e dando as costas a Sonny Shannon. O movimento fez com que George estreitasse o abraço, colando as coxas às suas. Ele devia ter entendido esse gesto como uma forma de encorajamento, pois deslizou as mãos até os quadris de Melissa, pressionando-a. Um gemido de prazer escapou dos lábios de George.

Ela não pôde evitar um estremecimento, como resposta. Em seu rosto quente e vermelho corriam gotas de suor, vindas da testa. Todo o seu corpo ardia, como se fosse derreter, até desaparecer, nos braços de George. O clima sedutor foi interrompido quando ela escutou uma risada alta no salão. O susto fez com que voltasse à realidade. Estavam se deixando envolver pela sensualidade diante das famílias e das crianças da cidade. Levantando a cabeça, Melissa deu uma rápida olhadela ao redor.

Havia vários casais dançando, e ninguém parecia prestar-lhes atenção. Pois deveriam, pensou. Ambos haviam se acariciado com intensa paixão, mas nenhum convidado manifestara censura ou interesse. Ninguém, aliás, parecia ter notado a cena. Ninguém, com exceção de Sonny Shannon, dava ares de surpresa.

Contudo, ela não permitiria que aquele clima continuasse. Afastou-se de George e, tentando manter um pouco de calma em meio àquela onda de agitação, falou:

— Quero parar de dançar. Impedindo-a de se distanciar, George segurou-a com firmeza

pelo braço.

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— Então vamos conversar. Sua voz estava mais rouca do que o normal, como se ele precisasse de esforço para manter o autocontrole. Melissa sentiu-o perturbado.

Conduzindo-a pela pista, entre os dançarinos apaixonados, George dirigiu-se à porta do pavilhão, onde ela o vira anteriormente. Melissa ficou aliviada por sair do ambiente iluminado por holofotes; não queria que as luzes lhe revelassem a expressão conflitante.

Passou as mãos pela calça jeans e surpreendeu-se ao notar que sua sensibilidade aguçada estava à flor da pele. Saindo do pavilhão, George conduziu-a ao bosque, envolto pela escuridão da noite. Quando Melissa reparou onde se encontravam, tentou esquivar-se, mas ele continuou a segurá-la com firmeza. No instante em que resolveu pedir-lhe que a soltasse, foi tomada nos braços e beijada.

Ambos ofegavam. Melissa debateu-se, tentando se libertar, mas não obteve sucesso. George apertou-a ainda mais entre os braços. Quando ela tentou evitar o contato dos lábios másculos, foi segura pelo pescoço, o que lhe dificultou os movimentos. Não tinha meios de escapar daquele beijo. A pressão dos lábios e do corpo daquele homem era tão intensa que ela imaginou-se absorvida por algo in-tangível.

Jamais fora desejada e arrebatada daquela maneira. Inesperadamente, porém, George relaxou o abraço, tornando-se

gentil. Seus lábios passaram a explorar os dela de maneira suave. As mãos acariciavam-lhe o rosto, em vez de segurá-lo. A boca movia-se com suavidade, descendo pelo queixo até chegar ao pescoço alvo, onde sentiu a pulsação de Melissa em ritmo acelerado.

George beijava-lhe a pele com doçura, e ela, gemendo, deixou-se levar pela carícia. Tinha certeza de que ele a pegaria nos braços, carregando-a para a floresta, onde pudessem concretizar as fantasias sensuais que os dominavam. Saciariam a fome da paixão sobre as folhas ressecadas, caídas aos pés dos pinheiros. Entretanto, Melissa dizia a si mesma que aquilo não poderia acontecer.

Mas George a envolvia com tanto carinho, enquanto a beijava, que seria inconcebível quebrar o encanto daquele momento. Outro tipo de força começou a surgir. O corpo feminino pedia mais; Melissa desejava se permitir mergulhar numa entrega sem receios nem limites. Quando percebeu que não conseguiria mais evitar a união, algo dentro dela chamou-lhe a atenção. Não seria justo entregar-se a um homem em quem não confiava.

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Juntou todas as forças para se proteger. Não de George, mas de si mesma. Empurrou-o para longe e correu o mais rápido que pôde, fugindo para longe dali. Na fuga, conseguia ouvir os passos de George, tentando alcançá-la. Também presumia que aquela atitude intempestiva atrairia a atenção das pessoas no pavilhão. Então resolveu diminuir a marcha, mas ainda mantendo certa velocidade.

Atingiu a lateral do prédio e precipitou-se em direção ao caminho de terra que dava acesso direto a seu trailer. No momento em que se encontrava quase próxima ao acampamento, sentiu a mão de George em seu braço. Mesmo assim, continuou andando depressa, determinada a alcançar a segurança do pequeno lar.

— Precisamos conversar — disse ele. — Temos que entender o que está nos acontecendo.

— Não existe nada acontecendo entre nós — rebateu ela, num tom de voz mais alto do que pretendia.

O baile no pavilhão continuava animado.— Não é verdade, e você sabe disso — insistiu George,

tentando detê-la. — Mas quero que seja verdade. — Melissa nem pa-rou para fitá-lo.

O único alvo à sua frente era o santuário do trailer, que já podia ser avistado. As luzes do que apareciam entre as folhas das árvores, iluminando o caminho seguro e aconchegante.

Mas havia algo errado. Por um instante, ela não conseguiu identificar o quê. O caos mental causado pelo beijo inesperado de George a impedia de raciocinar. Contudo, estava certa de que havia algum problema com o trailer.

George decerto captou-lhe a sensação de estranheza. Soltou-a e seguiu-lhe o olhar em direção ao acampamento.

— O que foi? — perguntou ele. Há alguma coisa errada? — As luzes. Deixei as do deque acesas, mas as de dentro do

trailer estavam apagadas. Do ponto em que se encontravam, conseguiam ver alguns

detalhes da pequena cozinha. Sem dúvida, alguém entrara lá e acendera as luzes.

— Tem certeza de que apagou todas as lâmpadas lá de dentro? — perguntou George, mas Melissa já havia se precipitado em direção à porta de vidro.

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O primeiro objeto que notou ao entrar foram os vasos de flores, caídos no chão. Os armários de comida encontravam-se abertos e todo o seu conteúdo fora jogado no assoalho. Infelizmente, o visitante inesperado não fora cuidadoso o bastante a ponto de se preocupar em não deixar rastros. A mesa da cozinha estava de pernas para o, ar, e as almofadas do sofá, jogadas sobre o carpete.

A terra dos vasos também se encontrava espalhada pelo chão da sala. Ajoelhando-se, Melissa recolheu algumas pétalas vermelhas e amarelas.

Olhando para o que restava das plantas, indagou-se por que alguém destruiria seu tão amado lar de verão. Aquele espaço fora seu santuário, um pedaço do mundo que pertencia somente a ela. Comprara-o com seu próprio dinheiro. Investira tempo e prazer para decorá-lo. Poucas pessoas haviam partilhado daquele conforto... Até aquela noite.

Durante as horas em que Melissa estivera no baile, alguém havia invadido seu valioso esconderijo. Tinha espalhado seus pertences por todos os lados, retirado o conteúdo das gavetas e armários, criado uma desordem desoladora. Os Delaney chamaram o assistente do xerife da região. Quando ele chegou, com as sirenes do carro patrulha ligadas, toda a multidão que se encontrava na festa desceu a encosta para bisbilhotar.

Incluindo Sonny Shannon e Hildy Hammond. George estava presente quando Melissa abriu a porta e constatou a invasão do trailer. Fora cauteloso e precavido, impedindo-a de entrar antes de verificar se o invasor havia se retirado. Mas, embora estivesse acompanhada, sob a proteção daquele belo homem, Melissa sentia-se abandonada, muito assustada. Sabia que o ataque não fora obra de ladrões ou de vândalos.

Apesar de o assistente do xerife dizer que outros arrombamentos haviam ocorrido na área durante as últimas semanas, Melissa tinha certeza de que aquele incidente não estava relacionado aos outros. Nada havia sido roubado.

Além da desordem generalizada, nenhum objeto valioso estava faltando ou fora danificado. O intruso estava à procura de alguma coisa específica. Foi essa a conclusão a que chegou o assistente do xerife após verificar o local.

Anotou o depoimento de Melissa, esclarecendo que o departamento de polícia investigaria o caso. Não achou relevante a

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sugestão de que havia uma ligação estreita entre o arrombamento e os estranhos eventos dos últimos dias.

Impaciente com o desinteresse do oficial, Melissa insistiu, quase aos berros, para que ele verificasse as atividades de Philip sob o nome de Reggie Williams. O homem prometeu que assim o faria. No entanto, parecia mais disposto a acreditar numa situação de conflito sentimental, tendo em vista a infidelidade matrimonial, do que num caso de polícia. Entretanto, na tentativa de acalmá-la, prometeu acio-nar o departamento para investigar as pistas que ela fornecera.

Mesmo assim, Melissa não conseguia evitar a lembrança do constante pesadelo que a atormentara na infância, quando morava com a mãe. Nesse sonho, tinha a sensação de que algo terrível aconteceria. Jamais soubera com exatidão o quê. Apenas sentia um medo profundo e uma necessidade desesperadora de proteção. Corria de porta em porta, gritando e pedindo socorro, mas ninguém parecia notar o perigo. Apesar dos argumentos e das lágrimas, era incapaz de convencer os personagens do pesadelo sobre o iminente risco que a ameaçava.

Nessas ocasiões, acordava e via-se em sua cama, rodeada dos objetos que pertenciam a seu quarto de criança. Mas continuava sentindo-se sozinha e aterrorizada. Pois era exatamente esse o sentimento que a invadia agora. Percebeu que George seria a única pessoa capaz de aliviá-la naquele momento de isolamento. Porém ele permaneceu distante, especialmente depois da chegada do assistente do xerife. Apenas observou o trabalho policial. De súbito, Melissa teve a nítida impressão de que ele era mais um dos personagens daquele pesadelo, recusando-se a dar-lhe crédito e evitando envolver-se com os problemas dela. Naquele instante, George Conti agia como os outros. Seria capaz de abandoná-la à própria sorte.

CAPÍTULO XI

— Existe algum outro lugar onde você possa passar a noite? — indagou o assistente do xerife.

Melissa nem pensara nessa eventualidade. O policial dava por encerrada a investigação depois de uma vis-

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toria superficial na cena do crime. Ao acompanhá-lo até a porta, ela notou a pequena cesta de

flores silvestres caída sobre o piso do deque. Alguém revolvera a terra do vaso, espalhando-a pelas ripas de madeira.

Aquela imagem lembrava um filme em preto e branco, realizado nos anos vinte, em que o espião inimigo escondia microfilmes num pote de flores silvestres. As lembranças das cenas de suspense provocaram-lhe um riso nervoso.

Talvez fosse resultado da tensão diante daqueles eventos inexplicáveis, pois, no minuto seguinte, a vontade de rir deu lugar à necessidade de chorar até a morte. Melissa sentiu os olhos se enche-rem de lágrimas e a garganta se fechar.

— Ela pode ficar comigo. — Hildy Hammond estava em pé nos degraus do deque. Meu quarto tem espaço suficiente.

Era a segunda vez que Hildy se oferecia para ajudá-la naquela noite. Pouco antes, quando Melissa estava dentro do trailer, verificando os danos da invasão, ela surgira de repente, perguntando se poderia ser útil em algo. O assistente do xerife a impedira de entrar, alegando que isso poderia atrapalhar a investigação. Apesar da ordem policial, Hildy mostrara-se relutante. Havia uma expressão verdadeira nos olhos da boa senhora, fazendo com que Melissa acreditasse que ela seria uma pessoa digna de confiança. O oficial desceu os degraus no momento em que Hildy fez menção de subi-los.

— Deve considerar essa oferta, Sra. Wald — sugeriu-o, fitando Hildy com frieza.

Na verdade, a antropóloga parecia bizarra, como sempre. Vestia um casaco mexicano sobre a camiseta de trabalho, e a calça era larga e colorida. Nos pés, colocara meias grossas, envoltas por uma simples sandália de couro cru. Diante daquela visão singular, Melissa ficava imaginando como seria o trailer da mulher. Talvez os Delaney pudessem oferecer-lhe uma cama até que a tranca da porta de vidro fosse consertada. Enquanto tentava encontrar um modo de sugerir a idéia sem magoar Hildy, avistou George se movimentando entre o grupo de curiosos. Algo em seu rosto indicava que ele mesmo se ofereceria para abrigá-la naquela noite.

— Obrigada, Hildy — apressou-se Melissa. — Se tem certeza de que não vou atrapalhar, aceitarei a oferta de bom grado. Mas só por uma noite, está bem?

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— Você não vai me atrapalhar, querida — garantiu a antropóloga, tocando-lhe o braço. — Vamos conversar e nos divertir como duas adolescentes.

Conversar com Hildy não era o que Melissa tinha em mente. Mas a boa mulher lhe oferecia aconchego, e ela não perderia a oportunidade de aceitar. Pelo canto dos olhos, reparou que George detivera-se a certa distância. Com as mãos nos bolsos da calça, ele observou a cena por alguns instantes, virou-se e seguiu em direção à estrada.

A estratégia com Hildy funcionara. A imagem dos momentos de amor vividos em frente ao pavilhão, naquele mesma noite, voltou mais nítida do que nunca à mente de Melissa. Ela ainda podia sentir os braços de George envolvendo seu corpo, e os lábios beijando os seus com ardente paixão.

— Se continuar desagasalhada, vai pegar uma gripe — disse Hildy num tom maternal, oferecendo o próprio casaco para Melissa. — Vista isto.

Ela colocou o abrigo mexicano sobre as costas, a atenção voltada a George, que sumia em meio à mata escura. Sentiu a pele arrepiar-se ao pensar nos sentimentos conflitantes que a ligavam àquele belo homem.

— Acho que já pegou uma gripe — afirmou Hildy, passando o braço ao redor de Melissa, enquanto a conduzia pelo deque.

— Meu trailer é confortável e acolhe-dor. Lá você vai encontrar tudo de que necessita. Inclusive uma escova de dentes. Basta me acompanhar.

Aturdida, ela mal ouvia as palavras da antropóloga. Mas, de repente, algo naquele discurso chamou-lhe a atenção. Hildy Hammond diminuiu o tom de voz e aproximou-se, como se não quisesse que o assistente a ouvisse:

— Também tenho uma informação que poderá tornar mais claro o que aconteceu aqui esta noite.

Antes que Melissa pudesse retrucar, Hildy fez-lhe um sinal pedindo silêncio. O policial, que não lhes prestava atenção, não reparou no gesto. Os Delaney haviam se oferecido para colocar uma barricada diante da porta do trailer de Melissa. Portanto, o casal estava ocupado coma tarefa e também não escutara a confissão de Hildy.

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O último dos curiosos já se afastava quando o assistente do xerife guardou o bloco de anotações no bolso. O gesto significava que o serviço policial fora encerrado. Melissa lançou um olhar tristonho para o que restara de sua sala. Não havia nada a fazer naquela noite, embora ela desejasse resgatar o ambiente, colocando todas as coisas em ordem.

Felizmente, o bom senso prevaleceu, advertindo-a de que não se encontrava preparada para enfrentar aquele trabalho. A melhor opção seria desfrutar de uma boa noite de sono. Desse modo, teria tempo e distância suficientes de George Conti para refletir a respeito do que acontecera entre ambos.

— Vamos indo — disse a Hildy.A imagem cativante de George não abandonava seus

pensamentos. Talvez a mudança de ambiente pusesse um fim à insistente obsessão.

Com essa proposta em mente, ela apressou-se pela estrada, com Hildy ao seu lado. No entanto, tinha dúvidas sobre se conseguiria tirar aquele homem da mente. Aconchegou-se mais ao casaco mexicano, tentando conter outro repentino tremor.

O trailer de Hildy localizava-se a vários lotes de distância. Melissa não ficou surpresa ao reparar na falta de flores ao redor do acampamento da antropóloga. A área consistia apenas em um gramado recém-aparado.

Claro, Hildy estava acampando por tempo limitado, como mencionara no dia da carona. A temporada era mais ligada ao trabalho do que à diversão. O interior do trailer mostrava isso.

A mesa da minúscula cozinha, com objetos velhos e um microscópio, era utilizada como laboratório. Nas portas dos armários havia inúmeros rótulos, categorizando cada artefato antigo.

Hildy aproveitara até o escorredor de pratos para alojar as peças que encontrava. Os livros ficavam espalhados por todos os cantos: sobre a geladeira, debaixo da mesa e no piso atapetado da sala.

— Acredite ou não, sei onde encontrar tudo o que preciso — disse ela, notando o olhar de espanto de Melissa diante de tamanha desordem, num espaço tão limitado. — E para provar o que estou dizendo vou fazer um café.

Retirou um pote da geladeira; a garrafa térmica e a panela

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saíram do forno. Colocou a água no fogo, foi ao armário e pegou dois sacos de biscoitos de sabores diferentes.

Após liberar um pequeno espaço sobre a mesa da saleta, arrumou as xícaras chinesas e o prato de biscoitos com muito cuidado e atenção.

— Relíquias de um mundo gentil e caloroso — comentou ao depositar as canecas e o açucareiro sobre a mesinha.

Além do espanto de ver Hildy Hammond utilizando a sala como escritório, enchendo-a de livros e equipamentos de pesquisa, Melissa também se surpreendeu ao notar os requintados cuidados da mulher em relação às finas louças que compunham os utensílios de cozinha.

— Minha porcelana é toda azul — comentou, sentindo-se feliz com a afinidade recém-descoberta. — Mas foram compradas numa loja de departamentos, não na China.

— Não gosto de pratos de papel. Eles absorvem todo o líquido da comida antes que tenhamos tempo de terminá-la.

O aroma de café fresco começou a se espalhar pelo trailer. Melissa sorriu, sentindo que recobrava as forças. Pegou um biscoito de chocolate, devorando-o como quem não se alimenta há muito tempo.

— Mantenho essa área livre para descansar — informou Hildy, servindo o café na porcelana chinesa. — Caso contrário, acho que me sentiria como um bicho. O ser humano precisa de um canto, não acha?

Assentindo, Melissa associou aquela afirmação a seu próprio trailer, o lugar onde encontrava refúgio. Esperava poder sentir-se da mesma maneira depois do incidente daquela noite.

— Esse sofá transforma-se numa cama — explicou Hildy. — Às vezes durmo na sala, só para variar. Hoje você fica no quarto, e eu me arranjo por aqui. — Ao perceber que Melissa tentava protestar, acrescentou:

— É assim que quero. Costumo acordar durante a madrugada para trabalhar. Muitas pessoas da minha idade fazem isso. Não precisamos de horas seguidas de sono, como a maioria dos jovens. Portanto, acho melhor você ficar no quarto. — Apontou para uma porta no final do trailer. — Desse modo, se eu resolver trabalhar algumas horas, sei que não irei perturbá-la.

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— Obrigada. — Na verdade, Melissa preferia dormir no quarto, onde havia uma porta para ser fechada.

— Vou buscar umas coisas para você. Antes de dirigir-se ao quarto, Hildy parou na cozinha para pegar mais biscoitos. Minutos depois, apareceu com os braços repletos de roupas e um prato na mão.

— Essa será sua roupa de dormir. Estendendo o tecido sobre o sofá, Hildy mostrou uma velha e

confortável camisola de algodão, bordada com motivos coloridos até a altura da gola. A costura das laterais fora refeita, indicando a necessidade de um pequeno reajuste para que Hildy pudesse usá-la.

— Coloque isto aqui nos ombros, caso queira ler durante a noite, como costumo fazer. — E entregou a Melissa um xale azul, substituindo, o casaco mexicano. — Quando entrei em seu trailer, notei quanto gosta de azul.

— E a minha cor favorita. — Melissa comovia-se com a gentileza de Hildy.

— Algo para proteger seus pés. — Mostrou um par de meias de homem. — Desculpe, não são muito femininas. Mas eu geralmente opto pelo conforto e não pela estética.

— Obrigada. Elas serão muito úteis.— E esta é a última peça. — Hildy entregou a Melissa um

suéter, também azul, de gola alta. — Por que não o coloca sobre os ombros? Acho que seria bom, julgando pelo modo como tremia quando saímos do trailer.

Tocando o suéter, Melissa sentiu a maciez do tecido. Gostaria de conversar com alguém, especialmente com outra mulher, sobre o motivo pelo qual tivera aquele estremecimento. Mas ainda não estava preparada para isso. Dessa maneira, limitou-se a seguir o conselho de Hildy e vestiu a malha azul, sentindo o odor de roupa lavada.

Voltando à cozinha, a antropóloga pegou a garrafa de café e levou-a para a sala. Depois de servir novamente as xícaras, sentou-se ao lado de Melissa.

— Está disposta a conversar? — perguntou. — Ou prefere dormir?

— Por estranho que pareça, não estou com sono. Deveria, mas não me sinto cansada.

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— Isso acontece, às vezes, quando o corpo passa por momentos de extrema tensão. Os nervos ficam em estado de alerta durante algum tempo. O importante é permitir-se relaxar. Assim o sono virá em breve.

— Acho que tem razão. — A idéia era tentadora, mas Melissa receava que, se fosse deitar, ficaria olhando para o teto, sem conseguir pegar no sono. — E você? Está cansada?

— Nem um pouco. — Hildy punha tanto açúcar no café que Melissa entendeu por que era tão cheia de energia. — Prefiro conversar, uma vez que não quer dormir.

— Eu gostaria de saber qual é o segredo ao qual você se referiu quando saímos do meu trailer. Está relacionado ao arrombamento, não está?

— Eu lhe contei o início da história no dia em que você me encontrou nas proximidades daqueles escombros e me deu uma carona até aqui.

— Não entendi. — Melissa colocou a xícara sobre a mesa. — Está querendo dizer que sabia sobre o arrombamento antes que acontecesse?

— Não exatamente. Eu sabia que certos eventos iriam acontecer, mas não podia precisar quando.

— Continuo sem entender.Melissa sentia-se meio descrente. Tentou se recordar do que

Hildy dissera naquele dia. Era algo relacionado à pesquisa numa velha região dos povos nativos.

Sim, fora exatamente isso. Porém havia algo mais, de que Melissa não conseguia se recordar. Após tantas revelações, sua memória começava a falhar, como se a mente precisasse recobrar energia para prosseguir trabalhando.

— Tentei lhe contar sobre uma experiência que tive nas ruínas — continuou Hildy. — Você não acreditou, mas não posso culpá-la por isso. Nem eu mesma acredito. Contudo, voltei ao local, e agora estou convencida de que não foi fruto de minha imaginação. Existe uma es-pécie de ser naquelas ruínas. E, por algum motivo, sinto que está relacionado ao arrombamento do seu trailer.

Respirando fundo, Melissa lembrou-se da conversa com Hildy. Resquícios e imagens daquele dia chegavam à sua mente.

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A antropóloga mencionada algo sobre ter sentido uma presença nas ruínas. Fora engolida por uma sensação estranha. Sem dúvida, era essa a descrição.

Por isso Melissa não dera muita importância ao fato. E ainda continuava achando a história uma loucura. Sentia-se desapontada; fora até ali com a intenção de descobrir algo, ou de encontrar alguma pista que a ajudasse a compreender os confusos eventos dos últimos dias. Em vez disso, tornara-se vítima dos delírios fantásticos de uma mulher de meia-idade, que acreditava em fantasmas. Todavia, sentia-se culpada por ter pensamentos injustos sobre Hildy. Afinal, ela a hospedara com tanto carinho... Mas não pôde evitar a frustração. Tivera a esperança de que a antropóloga, com sua mente científica, pudesse fornecer-lhe a chave para o angustiante mistério que envolvia a vida de Philip.

Então recordou-se das fantasias que tivera sobre estar sendo vítima de uma conspiração, ou algo parecido. Não era menos maluca do que Hildy, com aquela conversa de se comunicar com espíritos. Ambas deliravam. Talvez a causa fosse o excesso de isolamento.

— Venha comigo — dizia Hildy. — Sei que estou pedindo muito, mas acompanhe-me até os escombros. Talvez possa me ajudar a descobrir o que realmente aconteceu.

— Tudo bem — concordou Melissa. — Vou com você. — Levantou-se e olhou para a boa senhora. — Vamos logo.

— Agora? — Hildy Hammond pareceu assustada em encontrar alguém mais insano do que ela. — No meio da noite?

— Levaremos lanternas. Se o tal espírito estiver mesmo lá, não seria a noite o melhor momento para surpreendê-lo?

— Não esperava que você acreditasse em mim — confessou Hildy, levantando-se. — Também nunca pensei que agiria por impulso.

Recolhendo a porcelana chinesa numa bandeja, a antropóloga parou, fitando Melissa.

— Então por que está fazendo isso?— Digamos que eu esteja tentando fugir de um pesadelo.Hildy levou uma lanterna enorme, daquelas utilizadas por

campistas fanáticos. Melissa encontrou outra, bem mais simples, no porta-luvas do Lincoln.

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Estava chovendo. Do porta-malas do carro, Melissa retirou a jaqueta e emprestou uma capa impermeável a Hildy.

Suas botas ainda estavam no banco traseiro, mas não poderia usá-las porque a bolha ainda não cicatrizara.

De qualquer modo, embora o ar estivesse fresco, a água da chuva tornava a temperatura agradável. Seus pés não esfriariam. Estavam protegidos pelos poderosos chinelos de DeDe.

Ambas rumaram pela estrada que dava acesso aos escombros. Quando Melissa desligou o motor do Lincoln, começou a questionar o fato de ter ido àquele lugar. O excitamento diante daquela aventura a empolgava. Agiam tal qual duas adolescentes, esgueirando-se na calada da noite para explorar o desconhecido, enquanto os habitantes do camping dormiam tranqüilos.

No entanto, esse excitamento durou apenas até chegar ao local misterioso.

Sua consciência acusatória a censurava de leviandade por ter cogitado acompanhar uma mulher excêntrica a um lugar estranho na escuridão da noite, sob a chuva torrencial. Saindo do carro, Melissa evitou bater a porta para não quebrar o silêncio abissal da noite. Hildy não teve a mesma preocupação.

Estabanada, empurrou a porta, fazendo um estardalhaço assustador. Colocando o capuz sobre os cabelos secos, a bizarra senhora acendeu a lanterna. Não havia muito para ver, apenas as silhuetas sombrias da árvores. Melissa também acendeu seu farolete, mas a potência da luz, comparada à de Hildy, era bem inferior. Ficou grata por a nova amiga ser tão precavida.

Seguindo-a ao longo do caminho, Melissa tropeçou numa pedra e quase caiu. Percebeu, então, que deveria iluminar os próprios pés para não cometer o erro novamente. Fortificado pelas chuvas, o mato crescera entre as pedras e os escombros da ruína indígena. Melissa imaginava o que poderia ser encontrado naquelas escavações. As pedras da região eram utilizadas com freqüência para a restauração de estradas em más condições. Porém as rodovias de Lewis County necessitavam de piche a fim de se tornar transitáveis.

Apesar disso, aqueles escombros haviam sido abandonados à mercê do poder da natureza. Apontando o feixe de luz da lanterna para as paredes da ruína, Melissa enxergou o fungo crescendo nas rachaduras das pedras. Havia três paredes, sendo que na terceira

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restava apenas metade da construção.Justamente o local onde Hildy escavara. Os sinais de escavação

eram recentes, bem no centro do muro. Caminhando devagar, Melissa seguia os passos da antropóloga naquela direção. Não conseguia ver com clareza o que a mulher investigava. A chuva aumentara, dificultando-lhe a visão. Puxou o capuz da jaqueta para frente, tentando impedir que as gotas caíssem em seus olhos. Mas o gesto obstruiu ainda mais a percepção visual.

O feixe da lanterna de Hildy se mexia do outro lado dos escombros. Melissa arrependia-se por ter ido àquele lugar, por ter-se disposto a participar daquela aventura absurda.

O ruído que ouviu em seguida convenceu-a de que seria mais prudente ter permanecido no aconchego do trailer. O som viera de algum lugar sobre a ruína, como se fosse carregado pelo vento ou pelas nuvens. Para ser mais precisa, o barulho se originava do centro dos escombros, entre as três paredes de pedra, onde Melissa notara os sinais de escavação. Hildy corria naquela direção.

Sim, definitivamente tratava-se de uma melodia. No princípio, eram notas isoladas. A chuva caía incessantemente sobre a jaqueta de Melissa, atrapalhando-lhe a audição. Ela empurrou o capuz para trás, tentando escutar com atenção. O som interrompeu sua caminhada.

Será que estava escutando bem? Ou seria apenas uma alucinação?

As notas isoladas organizavam-se numa melodia familiar. A respiração de Melissa tornou-se ofegante. Não podia ser verdade. Alguém estava tocando uma flauta, e a canção chamava-se Greensleeves. Concentrou-se para ter certeza de que não se enganara. Dois pensamentos lhe ocorreram, aumentando seus temores. Primeiro: conhecia bem o instrumento e sabia ser impossível tocá-lo debaixo daquela tempestade, muito menos de forma tão sonora.

Como era necessário usar as duas mãos para tirar som do instrumento, o flautista jamais conseguiria segurar um guarda-chuva e a flauta sob o temporal.

Ora, poderia haver uma segunda pessoa segurando o guarda-chuva pára o músico. Mas por que diabos alguém faria um recital num dilúvio? O segundo pensamento foi bem pior. Tinha a ver com

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seu marido, Philip. Ele jamais foi um amante da cultura. Pinturas e teatro o entediavam. Entretanto, sentira certa admiração pela música. Esse gosto se iniciara na infância, e sua mãe o matriculara numa escola para que tivesse os conhecimentos musicais básicos. Talvez assim despertasse no garoto um interesse maior pela arte. Philip não progredira muito, a ponto de participar da orquestra da escola. De qualquer modo, guardara sua flauta durante anos. De quando em quando, arriscava-se a tocar algumas canções que aprendera. Melissa o ouvira arranhar o instrumento inúmeras vezes, principalmente nos momentos em que ele se encontrava aborrecido ou precisava se acalmar. E a única canção que soubera tocar chamava-se Greensleeves.

CAPITULO XII

Melissa não acreditava em fantasmas. -Não tivera experiências paranormais e não concebia a possibilidade de outras pessoas as possuírem.

Se alguém testemunhasse em contrário, ela o classificaria de sensacionalista, facilmente sugestionável ou mentiroso. E talvez uma dessas três coisas, ou todas, estivessem lhe acontecendo. Não poderia haver outra explicação para o que se passava naquele momento.

— Melissa... — uma voz a chamava através da chuva.A voz era fraca demais para ser a de Philip, a ponderava, sem

acreditar no que escutava. Philip estava morto e enterrado. O que acontecia naquela ruína, afinal? A voz também não se assemelhava à de Hildy. Melissa forçou os olhos, para enxergar melhor através da chuva e da escuridão. Aliviada, avistou a luz de uma lanterna, um pouco tênue, que se intensificava de forma gradativa à medida que se aproximava.

— Você ouviu a música? — perguntou a mesma voz. Era Hildy. Sua voz devia ter sido distorcida pelo barulho da chuva ou pela ansiedade.

— Sim, ouvi! — gritou ela. De repente, a música cessou, embora o eco ainda ressoasse nas trevas.

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Melissa mais sentia do que ouvia aquela ressonância, como se as vibrações da flauta pertencessem às pedras e fossem liberadas pela chuva. Se Hildy não tivesse escutado aquela canção, pensaria que tudo não passara de um produto de sua imaginação.

A figura da antropóloga já se tornava visível. Ela se apressava, mas em alguns momentos parava, como se precisasse recuperar o fôlego. Ao aproximar-se de Melissa, balbuciava coisas incompreensíveis, num tom ofegante.

— Fale devagar, Hildy. Não posso compreender uma só palavra. Cambaleando, a mulher segurou no braço de Melissa, usando-o

como apoio enquanto procurava recuperar o fôlego. Estava apavorada. Melissa tentou segurar a lanterna antes que caísse no chão, mas Hildy não a soltou. Colocando o farolete sobre o capim molhado, Melissa segurou-lhe o braço trêmulo.

— Não! — gritou Hildy, desvencilhando-se. — Não me segure. Preciso sair daqui!

Puxou o cordão que prendia a capa impermeável e se desequilibrou. Ainda não se recuperara do susto e da corrida que fizera pelos escombros, mas estava aterrorizada, pronta para fugir.

— Algo mais aconteceu com você? — perguntou Melissa. — Quero dizer, além da música?

— Foi a música. — Hildy virou-se de forma abrupta, fazendo a capa escorregar com o movimento.

A chuva caía-lhe sobre o rosto, mas ela não parecia notar. — Dessa vez, foi forte demais. Não podemos ficar aqui. Os cabelos começavam a cair pelo rosto de Hildy; a água

escorria-lhe pelo pescoço, e seus olhos estavam esbugalhados. Melissa alcançou a capa e colocou-a ao redor do corpo da amiga.

— Não me ajude! — Num gesto inesperado, deu um tapa na mão de Melissa. — Ajude a si mesma. Você é a única que precisa de socorro.

— Mas do que está falando? Apertando o braço de Melissa, a mulher a puxou para perto.

— Venha comigo agora. Temos de sair daqui o mais rápido possível. Conversaremos depois.

Hildy a empurrava com tanta insistência que Melissa, teimando,

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parou de propósito, deixando seus pés afundarem na lama do terreno.

— Pare, por favor! Diga-me do que estamos fugindo. Viu alguém atrás da ruína?

— Ninguém — esbravejou ela, dando ênfase à resposta. — Mas existe algo lá atrás, sim. E está querendo você.— Ora, isso é ridículo. Ignorando o arrepio repentino, Melissa lembrou-se de que não

acreditava em almas do outro mundo. Era uma pessoa racional e não se deixaria envolver sem provas concretas. Jamais pensara como sua mãe. Muito menos como Hildy Hammond.

— Então fique se quiser. Eu vou sair daqui agora. Antes que Melissa pudesse retrucar, a antropóloga afastou-se

em disparada. A capa voava nas costas da mulher, acompanhando o vento. Ela levou a lanterna, deixando em seu rastro a escuridão da noite.

— Hildy, espere! — gritou Melissa para a figura que desaparecia de vista. — Espere até que eu encontre meu farolete!

Aparentemente, a mulher não ouviu. Precipitou-se para frente, tropeçando na escuridão. A chuva tornava-se mais forte com a intensidade, do vento. Em meio às trevas, Melissa tentava enxergar alguma coisa. Mas seu esforço era inútil. A água continuava caindo torrencialmente, formando poças e lama sobre o solo. Melissa ainda estava próxima à ruína, onde o chão era coberto de grama e cascalho. A calça, encharcada, começava a grudar em suas pernas. Hildy tinha razão. Já era hora de dar o fora dali.

Ela caminhou até os escombros, junto ao local onde deixara cair o farolete. Com os pés, tentou vasculhar o solo.

Abaixou-se para enxergar melhor, sem sucesso. Tateando no escuro, resolveu apalpar o gramado molhado, procurando algum sinal da lanterna. Pensou em sair dali em meio à escuridão, procurando encontrar o carro de qualquer maneira.

Então tocou em um objeto de metal e respirou, aliviada. Agarrou o cilindro frio e úmido.

— Droga — resmungou, ao notar que se tratava somente de uma lata de refrigerante. Jogou-a longe, com raiva.

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Com o gesto brusco, perdeu o equilíbrio e escorregou, caindo sentada na poça de lama. Agora o jeans estava totalmente ensopado e sujo de barro.

A sensação de desconforto começou a irritá-la. Para o inferno com a lanterna! Iria sair daquele lugar nem que tivesse de engatinhar até o Limpou Levantando-se, correu contra a chuva. Uma rajada de vento dificultou-lhe os passos. Sentia-se sugada de volta à ruína, como se alguém a puxasse para trás. Hesitou ao perceber que uma força, tão intensa quanto assustadora, parecia tomar conta dela. A descrição que Hildy fizera naquele dia surgiu em sua mente. Envolvida! Estava sendo envolvida por algo incompreensível.

Em seu relato, a antropóloga dissera não ser aquela uma experiência desagradável. Mas não era essa a sensação de Melissa. Para ela, a situação tornava-se intolerável, ainda mais porque ignorava o que aconteceria em seguida.

Aquela sensação lhe era familiar e insuportável. Lembrava-lhe Philip.

De modo geral, ele fora uma pessoa autoritária e possessiva. Raras vezes sentia medo ou ansiedade.

Seu comportamento era previsível. Fazia questão de ter controle absoluto de sua vida, evitando colocar-se em situações desconhecidas.

Em poucas ocasiões, quando dependia de outras pessoas, a expressão plácida de Philip mostrava algum sinal de perturbação; perdendo o poder de manipulação, teria que submeter-se ao inesperado. Melissa recordou-se do modo rude como ele a tratara, em certa ocasião.

Não escondera a insatisfação, e até um sentimento de humilhação, apenas por necessitar admitir o fato de depender de ajuda. Nessas circunstâncias, Philip tinha crises de nervosismo, gritando em altos brados:

— Faça isso agora! Faça direito! Em momentos assim, o tom era tão agressivo que Melissa

sentia o coração se apertar no peito. E, naquele instante, a sensação se repetia. Ela fechou o zíper da jaqueta e olhou para os dois lados. Não viu nada. O lado racional de sua mente analisava a situação. A reação se assemelhava àquela que costumava ter quando Philip descarregava sua revolta diante da própria incapacidade de

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manipular o mundo. Sentia-se paralisada, estática. Um frio percorreu-lhe a espinha. Em pé, sem se mover, parecia uma pedra velha presa ao solo, petrificada, imóvel.

Estava parada no lugar, como se uma força superior, originária do centro da Terra, fosse arrebatá-la às profundezas, soterrando-a.

De repente, a possibilidade de salvação se apresentou. Foi como um flash de luz, iluminando o caminho no final do túnel. Melissa não tinha idéia de onde viera aquele pronunciamento. Só compreendeu a veracidade das palavras.

— Você precisa se afastar dessas ruínas — sussurrou-lhe uma voz.

— Essa presença só tem poder entre essas paredes de pedra.Não havia motivo para questionar a autenticidade daquela voz

ou de rejeitar a veracidade daquilo que lhe acontecia. Melissa, na verdade, ignorou seu lado racional.

Endireitando a coluna, reuniu todas as suas forças e, suplicando a proteção divina, rezou para conseguir a energia necessária para realizar a fuga. Esticou os braços à frente, com as palmas das mãos abertas, como se quisesse romper um muro de aço. Respirou fundo e prosseguiu. Forçou todo o seu peso contra aquela barreira invisível e deu um passo adiante, tirando os pés do solo que parecia sugá-la.

Movida pela fé, com esforço e determinação, ela empurrava o muro imaginário, lutando contra a resistência intangível. Mais tarde, tentaria se convencer de que era apenas a força contrária do vento que a detinha. Mas, naquele momento, não tinha tempo para caracterizar o adversário.

Algo ou alguém tentava impedi-la de escapar de um pequeno espaço, onde ela mesma não desejava estar. A cada passo, forçava o corpo contra o adversário, até conseguir ultrapassar os limites da ruína.

Mas não parou nesse ponto. Correu alguns metros antes de tropeçar e cair de joelhos no terreno barrento. A batalha parecera ter se prolongado durante horas intermináveis.

Melissa não podia precisar. Só sabia que triunfara, vencera seu oponente. Uma sensação de alívio a invadiu. Estava quase se deixando levar pela violência da tempestade quando sentiu uma pressão em seu braço, puxando-a para o chão.

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O pânico retornou, mas Melissa, mesmo ofegante, não se deixou abater. Repeliu-o tão depressa quanto pôde. Aquela voz vinda do além se enganara. Talvez até tivesse um motivo cruel para fazê-lo. A força que circundava a ruína expandia seu poder para além dos limites dos muros rochosos.

Aquela presença tentava puxá-la de volta. Melissa não poderia permitir que isso acontecesse. Agora entendia como a exaustão aniquilava o ser humano, entregando-o à mercê da própria desgraça. Precisava ignorar o cansaço das pernas e dos braços, prosseguir na luta. Não podia se entregar ao desespero.

Não podia desanimar nem pensar em fraquejar. Seu único pensamento era fugir.

Já havia sido tragada pela força quando resolveu reagir. Firmou os pés no chão e começou a andar para trás. Escorregava, caía e se levantava com tanta coragem que foi capaz de encarar aquela ameaça invisível.

Não pôde ver com clareza através da chuva e do vento. Conseguiu apenas perceber que a força que a sugava era palpável.

Também larga e sólida aquela presença se colocava entre ela e a ruína, como uma pedra maciça ou um tronco de árvore. Precisava retroceder; retornar à direção anterior, onde se sentiria segura. A estrada não devia estar distante, Mas teria de lutar muito para alcançá-la.

A melhor alternativa, naquelas circunstâncias, seria dar chutes fortes. Mas Melissa lembrou-se dos chinelos que usava. Poderiam fazê-la escorregar.

Abaixou-se e fincou os dedos na terra, alcançando o que procurava. Utilizando todo o peso do corpo, jogou-se para trás, empurrando a estranha força.

Quando se preparava para jogar uma pedra no adversário, sentiu-se presa pela cintura. O toque era frio como o aço.

— Melissa, pare! Sou eu! De novo viu-se envolvida em outra batalha, talvez pior do que a

primeira. Ouviu mais uma vez a voz, e finalmente a reconheceu.— Melissa, sou eu! George! Vacilou. Por um momento, a experiência que havia vivido

naqueles escombros pareceu apagar-se de sua mente. Num gesto

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instintivo, ergueu a mão e tocou o rosto amigo à sua frente.Num primeiro instante ele recuou como se evitasse levar um

soco nos olhos. Porém os dedos de Melissa percorreram-lhe suavemente os traços fortes e poderosos do queixo, e voltaram, acariciando as sobrancelhas grossas.

Aquele rosto era inconfundível. Não estava enganada. Ela o reconheceria mesmo sem enxergá-

lo. Jogando os braços ao redor do pescoço de George, vencida,

pousou a cabeça na jaqueta molhada, entregando-se ao choro compulsivo que a dominava.

Juntara toda a sua energia para combater o inimigo. Apesar das suspeitas anteriores, soube, naquele instante, que George era digno de confiança.

A tensão se dissipou. Melissa deixou-se envolver pelo abraço aconchegante. Ele a apertou contra o peito másculo, oferecendo-lhe a proteção

de que necessitava. No entanto, sua mão direita recusava-se a soltar a pedra. Aquele instrumento de combate era a única arma que encontrara para se defender. George insistira em abrigá-la em sua casa, o lugar mais próximo dos escombros. Alegara que Melissa precisava se aquecer para evitar uma pneumonia. Ela não discordou.

Tampouco reagiu quando ele retirou-lhe a pedra da mão e quando a carregou até a caminhonete.

Com carinho, envolveu-a num cobertor, colocando-a sentada junto a Hildy. Ainda sob o impacto dos acontecimentos, Melissa prestava atenção aos olhares preocupados dos dois amigos, enquanto seguiam para a casa de George, que dirigia em alta velocidade.

Fitava-a de quando em quando. A chuva diminuíra e, apesar do asfalto escorregadio, ele pisava fundo no acelerador. Lembrando-se do dia em que conhecera Hildy, Melissa associou o mesmo estado calamitoso ao daquele momento.

No entanto, agora, a antropóloga guardava o mais absoluto silêncio. George estacionou a caminhonete em frente à sua residência e apressou-se em ajudar as duas mulheres. Primeiro auxiliou Hildy.

— Você acha que ela está em estado de choque? — perguntou a antropóloga. — Talvez seja melhor levá-la a um hospital.

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— O hospital fica muito distante daqui — argumentou George. — Chamarei o médico quando entrarmos.— Não preciso de médico — resmungou Melissa, caminhando

até a porta da casa pré-fabricada. — Só quero me sentar em silêncio por algum tempo.

— Veremos se realmente não precisa de um médico — rebateu George.

Assentindo, Melissa deixou-se conduzir. Uma vez dentro da casa, ele pegou roupas secas para as duas. Enquanto se vestiam, acendeu a lareira.

Usando uma das camisetas de George, Melissa entrou na sala. Dobrara a manga da blusa várias vezes, e fez o mesmo com a

barra da calça de malha. O modo como ele a fitou, com os olhos brilhantes, refletindo as chamas do fogo, foi o bastante para fazê-la corar e virar o rosto.

— Você precisa aquecer seus pés. Vou buscar um par de meias de lã

— disse ele, e retirou-se em direção ao dormitório.Sentada ao lado da lareira, Melissa desejava poder vestir as

meias grossas de Hildy. Tomara um banho bem quente no chuveiro de George e trocara

o que restava da bandagem de DeDe por outra, que encontrou no armário do banheiro.

A bolha não a incomodava; parecia cicatrizada. Quando George voltou com o par de meias de lã, Melissa respirou aliviada, sabendo que, com os pés quentes, logo suas mãos geladas e seu corpo estariam aquecidos.

Esticou o braço para pegar as meias, mas George já se encontrava ajoelhado à sua frente.

— Sou a segunda pessoa que se ajoelha a seus pés hoje. Daqui a pouco isso vai se tornar um hábito.

Aquele comentário era uma referência a DeDe. E uma brincadeira.

Porque George tentava amenizar a expressão sombria de Melissa. Mas não obteve sucesso.

Ela somente balançou a cabeça, para não ser grosseira.

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Estivera naquele mesmo dia na casa dos Mapes? Na verdade, já passava da meia-noite. Então, a visita a DeDe

ocorrera no dia anterior. Porém, Melissa não havia dormido. Aquele, sem dúvida, fora o dia mais extraordinário de sua vida, e ela esperava nunca mais vivenciar algo parecido.

A pouca energia que ainda lhe restava seria suficiente para fazê-la voltar ao trailer de Hildy. Melissa adoraria deitar no confortável sofá de George, cobrir-se com a colcha indiana e cair num sono profundo e merecido.

As sombras das chamas da lareira dançavam, refletidas na parede envidraçada. Ela conhecera o bastante da casa de George para saber que era adorável e aconchegante.

No entanto, estava resolvida a dormir no trailer de Hildy, como houvera planejado.

Tinha algumas questões a resolver antes de se deixar levar pelo cansaço.

Com cuidado e gentileza, George vestiu-lhe as meias. Hildy permanecia no quarto, trocando de roupa, e Melissa começava a ficar curiosa com tanta demora. Em breve iria procurar pela amiga. Mas antes precisava de algumas respostas.

— O que você estava fazendo na ruína? Sentado sobre as almofadas em frente à lareira, George

mantinha o olhar fixo nas chamas. Aquela cena lembrou-a do dia em que se conheceram, ao redor da fogueira do acampamento. Virando-se, ele a fitou e, como na primeira noite, a luz do fogo iluminou-lhe o olhar de um azul enigmático.

Melissa queria poder traduzir aquela expressão profunda, mas precisava prestar atenção às palavras que ele dizia:

— Sei que não vai gostar disso, pois é uma mulher independente — começou, num tom austero. — Mas eu estava vigiando o trailer de Hildy quando vocês duas saíram.

— Por que fez isso?— Depois do arrombamento, pensei que seria prudente manter-

me alerta, caso o intruso resolvesse voltar. Uma vez que a polícia se omitiu, eu mesmo decidi agir.

Havia a possibilidade de aquela explicação ser verdadeira. Mas... E se não fosse?

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— Por que nos seguiu?— Eu a vi entrando em seu trailer e saindo em seguida.— Fui até lá para pegar a chave do carro.— Enquanto estavam lá dentro, Sonny Shannon saiu. Segundos

depois, vocês entraram no Lincoln. Não havia muito movimento no camping àquela hora. E, como achei que pretendiam segui-lo, e isso seria encrenca na certa, decidi ficar por perto.

— Não vi ninguém quando saí. Mas por que o fato de seguir Sonny seria encrenca na certa?

— E de Sonny Shannon que estão falando? — perguntou Hildy, saindo do quarto. Pelo modo como seus cabelos estavam despenteados e os olhos inchados, ela certamente andara dormindo. — Ele pode arranjar problemas para qualquer um.

— Não estávamos falando de Sonny — esclareceu Melissa, tentando parecer gentil diante da interrupção de Hildy. Afinal, ainda havia várias questões a elucidar. — George me explicava por que achou necessário nos vigiar esta noite.

— E verdade? — indagou Hildy, aproximando-se com ar de suspeita.

— Pensei que o bandido que invadiu o trailer de Melissa pudesse voltar.

— Não seria incomum? Um ladrão invadindo o mesmo lugar duas vezes numa só noite? — Hildy insistia em sua suspeita.

— O inesperado visitante não era um ladrão. Nada foi roubado. E também não era um vândalo, pois não houve nenhum dano nos objetos — argumentou George. — Então, creio que ele procurava algo. Não sei se chegou a encontrar.

— O que o faz pensar que não? — Hildy evitou o tom inquisidor.— O vaso — respondeu ele. — Não faz sentido que o invasor

tenha verificado aquele pote antes de entrar no trailer. Havia outros lugares para esconder alguma coisa. Meu palpite é que ele vasculhou o vaso quando saiu. O que significa que não encontrou o que buscava dentro do trailer.

— Talvez ele tenha encontrado o que queria no pote de flores — arriscou Hildy.

— Talvez... — foi tudo o que George falou.

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— Isso explica por que você estava vigiando o meu trailer — disse Melissa. — Mas também me contou que fazia o mesmo com o de Hildy.

— Eu vigiava os dois. Ou melhor, tentava vigiar.— Quer dizer que ficou correndo entre um trailer e outro no

meio da noite? — Mais ou menos isso.— Parece-me um comportamento um tanto bizarro, não acha?— Tudo o que aconteceu hoje à noite foi bizarro — concluiu

Hildy. — Especialmente os eventos dos escombros indígenas.Levantando-se de forma abrupta, Melissa colocou-se entre os

dois amigos. — Nós apenas fomos pegas de surpresa pela tempestade. Perdi

minha lanterna e entrei em pânico. — Sorrindo, Melissa fez um sinal para Hildy ficar quieta. Parecendo compreender o pedido, a mulher sentou-se no sofá e permaneceu calada.

— Acho melhor ir embora — prosseguiu, fitando a antropóloga.— Podem ficar aqui — ofereceu-o. — Tenho quartos suficientes

para todos. — Não, prefiro ir. — Melissa olhou para as meias, tentando

pensar em algo para calçar. Na certa, sapatos causariam mais danos à sua bolha. George

pareceu notar-lhe a preocupação.— Tenho um par de botas que você poderá usar. — E abriu um

armário debaixo da escada. — A propósito, o que vocês duas faziam naquelas ruínas?

— Hildy queria me mostrar suas escavações.— No meio da tempestade?— Mais ou menos isso — rebateu Melissa, repetindo a mesma

frase que ele dissera há pouco.— Parece-me um comportamento um tanto bizarro, não acha?Ela quis sorrir, mas se conteve.— As botas que você mencionou estão aí? — perguntou,

apontando para o armário que George abrira.Inclinando-se, ele retirou um par de botas cor de oliva.

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— Pertenciam ao meu irmão. O tom transformara-se. Toda vez que George se referia a Patrick, sua voz tornava-se

compungida. Melissa lembrou-se das palavras de Sonny Shannon sobre as

estranhas circunstâncias que envolveram aquela morte, e sobre o fato de George não aceitar o laudo da polícia.

A perda trágica do irmão era um assunto delicado para George Conti. A onda de compaixão que tomou conta de Melissa foi tão grande que ela quase desistiu de fazer a outra pergunta.

Era uma questão que a atormentava desde que chegara àquela casa.

— Você... Toca algum instrumento?— Por que pergunta? Segurando uma jaqueta, George

observava Melissa colocar as botas.— Sei que parece tolo, mas estive pensando nisso. O sorriso

carinhoso que acompanhou as palavras foi suficiente para fazê-la obter a resposta. — Eu tocava saxofone na banda da escola.

— Obrigada. — Ela vestiu a jaqueta enquanto Hildy olhava os dois com expressão confusa.

— Amanhã de manhã levarei seu carro até o acampamento — informou George.

Quando já estava à soleira da porta, Melissa virou-se. — Não é preciso. — Foi tão rápida que Hildy até se assustou. —

Prefiro dirigir eu mesma. Obrigada — acrescentou com mais calma. Nem esperou pela resposta. Abriu a porta e, erguendo a gola da

jaqueta, saiu no meio da chuva. Os cabelos, que haviam secado com o calor da lareira, tornaram-se úmidos novamente.

Mas Melissa não deu importância. Aliás, mal podia notar qualquer outra coisa, pois seu coração batia acelerado. Naquela noite, reconhecia a verdade que lhe custara admitir. Estava apaixonada por George Conti e não conseguia conter o sentimento.

No entanto, outro problema ainda a incomodava. Os princípios básicos para tocar saxofone eram semelhantes aos necessários ao manuseio da flauta. Philip lhe dissera isso, certa vez. Explicara que alguém capaz de tirar sons de um desses instrumentos poderia tocar

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o outro.

CAPÍTULO XIII

Na manhã seguinte, ao acordar, Melissa não sentiu a menor disposição para sair da cama.

O trailer de Hildy era bem antigo, e o desgaste já se apresentara sob diversos aspectos.

O quarto não possuía impermeabilização, era precariamente ve-dado e absorvia o calor do sol. As pequeninas janelas estavam abertas, porém não forneciam ventilação suficiente ao ambiente, transformando-o numa verdadeira sauna.

A temperatura elevada, com certeza, a despertara, estragando seus planos de merecido repouso. Sentia-se tão cansada que poderia fechar os olhos e dormir até o entardecer, não fosse o calor.

Ao jogar de lado os lençóis, notou um objeto escorregando para o chão. Debruçou-se à beira da cama e verificou do que se tratava. Parecia um talismã indígena, repleto de grama seca e com uma pena de pássaro; tudo isso dentro de uma bolsinha, amarrada por uma tira de couro.

Julgou saber por que aquela peça exótica encontrava-se sob o edredom macio.

Deduziu que Hildy deixara o amuleto sobre a cama para defendê-la contra males invisíveis. Embora fosse cética em relação a crendices, ela ficou contente ao ver-se protegida, em especial depois dos percalços vividos na noite anterior.

Hildy estivera ocupada com tarefas cotidianas também. Ao pé da cama, deixara uma blusa de algodão azul e uma calça

branca. Os sapatos de lona de Melissa estavam no chão, ao lado das roupas. Aquela era a vestimenta perfeita para um dia quente de verão.

Infelizmente, Melissa duvidava poder desfrutar da beleza do novo dia. Resquícios dos acontecimentos passados ainda pesavam em seu corpo, atingindo-lhe a cabeça. Era como se tivesse tomado uma garrafa inteira de uísque de má qualidade.

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Apesar do mal-estar e do excessivo calor, estava tentada a permanecer naquele quarto, dormindo até o dia seguinte. Contudo, levantou-se, pegou o roupão de Hildy, a toalha de banho e o xampu. Como a antropóloga lhe deixara um bilhete, dizendo que o chuveiro não funcionava, pois o boxe era utilizado para armazenar os frutos das escavações, Melissa não teve escolha a não ser dirigir-se ao vestiário coletivo do camping.

Embora não estivesse habituada a partilhar sua intimidade, o banho tornou-se uma bênção, devolvendo-lhe o ânimo necessário para enfrentar o novo dia. O jato de água do chuveiro coletivo era bem mais possante do que o do moderno banheiro do trailer de Melissa.

Quando abriu a torneira quente, deu um pulo para o lado antes de regular a temperatura, temendo ferir a pele com o calor excessivo da água. Sob o chuveiro, permitiu-se apreciar a sensação de ter a alma purificada pela água das montanhas.

Enquanto o jato percorria-lhe os seios, a barriga e as coxas, Melissa imaginou toda a dor e o estresse desaparecendo de seu corpo. A espuma branca caindo no chão do boxe arrastava problemas e aborrecimentos para dentro do ralo. No entanto, ela sabia que aquela sensação era temporária. Ensaboando os cabelos com xampu, agradeceu poder ter, pelo menos, alguns minutos de prazer.

De volta ao trailer de Hildy, procurou outra bandagem para efetuar novo curativo no calcanhar. O remédio caseiro de DeDe funcionara de forma surpreendente.

Lembrou-se do carinho dispensado pela amante do marido, ao cuidar com gentileza daquele ferimento.

A afinidade entre ambas era impressionante, considerando o fato de terem sido rivais.

Pensar na vida dupla de Philip e nos problemas que se desencadearam em seguida era deprimente. Por um momento, Melissa desejou sair do trailer e encontrar um mundo tranqüilo, livre de preocupações.

Como numa armadilha, aquela fantasia provocou outra cena imaginária. Um mundo sem problemas ao lado de George Conti. Em seus devaneios, ela o via alto, moreno e charmoso, espalhando virilidade sob o sol luminoso de verão...

Irritada, fechou a porta do armário do banheiro com violência.

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Ao se dar conta da atitude brusca, certificou-se de que nada fora danificado. Por sorte não quebrara o espelho. Logo depois, começou a procurar o secador. Seus cabelos poderiam secar à luz do dia, mas Melissa precisava distrair-se.

Qualquer tarefa seria pretexto para não pensar em George, o homem responsável pelas dúvidas e confusões de sua mente atormentada. Encontrou o secador de cabelos embaixo da pia do banheiro.

Ligou o aparelho, agitando-o ao redor da cabeça para espalhar o ar quente.

Tentou se concentrar na imagem de Hildy usando aquela máquina para secar as mechas cinzentas da cabeleira em desalinho.

Em outras circunstâncias, acharia graça dessa imagem. Mas, naquele momento, não conseguia nem expressar um sorriso.

A novidade que encontrou em seu próprio trailer deixou-a mais animada. Hildy, os Delaney e dois vizinhos alojados no terreno atrás do bosque uniram-se em mutirão para arrumar e limpar o pequeno refúgio de Melissa, enquanto ela dormia, pela manhã.

Penalizados com as fortes emoções que a haviam abalado, concordaram que o descanso seria o melhor remédio para aplacar um espírito atormentado.

O trailer recuperara sua forma original. Até o pote de flores fora arranjado e pendurado sobre o deque, apagando todos os rastros do arrombamento. O carpete da saleta, que fora manchado pelo vaso de plantas aquáticas, estava limpo e seco, dissipando, de vez, as evidências da invasão. Alguém se preocupara inclusive em levar o Lincoln para lá. Comovida com a bondade e a solidariedade dos vi-zinhos, Melissa não sabia como manifestar seu agradecimento. Com o dorso da mão, limpou as lágrimas. As vicissitudes que sofrerá foram superadas pela descoberta dos grandes amigos que encontrara naquele verão.

"Há males que vêm para bem", pensou, reconhecendo a gratidão que sentia. Esperava contar com o carinho dos novos amigos para enfrentar os medos e as ansiedades do que ainda estava por vir. Um tanto apreensiva Melissa se dirigia à casa de George.

A dedicada Hildy, preocupada com a saúde da amiga, oferecera-se para. Acompanhá-la. Ela, porém, preferira ir sozinha. E, de propósito, mantivera segredo sobre o assunto a tratar com seu

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guardião. Além do mais, apesar do espírito livre de Hildy Hammond, não seria aconselhável tê-la como testemunha do que iria fazer.

Melissa surpreendeu-se ao encontrar a casa de George vazia. A medida que a situação, repleta de imprevistos, evoluía, ela não conseguia evitar o espanto quando algo saía como planejava. Para completar, a porta estava destrancada. De fato, essa era uma atitude típica dos habitantes da região; pelo menos daqueles que viviam na área rural. Se a porta da frente estivesse trancada, sempre haveria a dos fundos, ou uma janela sem nenhum dispositivo de segurança. Melissa soltou um suspiro profundo, muniu-se de coragem, abriu a porta e entrou.

O suave odor de lenha queimada emanava pela sala. As toras transformadas em cinzas jaziam frias, na lareira. Ela planejara uma busca sistemática, começando pelo andar superior.

Subiu a escada, construída junto à parede de tijolos da chaminé. No quarto de George também havia uma pequena lareira, diante da cama. A morada, simples e despojada, fora elaborada para oferecer conforto e bem-estar.

Foi difícil para Melissa admitir que aquele era um lar tranqüilo e invejável. Na realidade, não queria apreciar nada referente a George. Não naquele momento, e talvez nunca.

No dormitório, passou alguns instantes observando a acolhedora cama de casal, com o calor da lareira logo à frente. Uma breve fantasia passou por sua mente fértil: como seria delicioso deitar-se com George no aconchego daquele leito! Afastou a fantasia. Concentrou a atenção na cômoda e nas gavetas da mesinha-de-cabeceira, ao lado da cama. Sobre o patamar da lareira, havia uma fotografia de George e Patrick.

O porta-retratos de prata contrastava com o aspecto rústico e masculino dos objetos. O luxo do porta-retratos mostrava a importância da relação entre os dois irmãos, concluiu ela. Tinha cer-teza também de que aquela foto fora colocada ali após a morte de Patrick. O local de destaque em que se encontrava poderia ser considerado o santuário de George.

Resistindo ao sentimento de compaixão que a envolvia, Melissa continuou sua busca. Entretanto, não encontrou nada que pudesse auxiliá-la a esclarecer suas dúvidas.

Desceu a escada, pensando na inútil invasão à casa de George.

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Sua atitude fora a mesma dos bandidos que tinham estado em seu trailer. Não tinha argumentos para justificar aquele comportamento fora de propósito e indigno. Sentia-se tão baixa e vil quanto o intruso que lhe invadira o lote. Agira de modo reprovável e indesculpável.

Sabia o que estava fazendo quando resolveu invadir a casa de uma pessoa como George, que, até o momento, só lhe dedicara uma amizade desinteressada.

Colocara de lado sua integridade, substituindo-a pela oportunidade de obter algumas respostas às dúvidas sobre o verdadeiro motivo de George ter se envolvido, de maneira intensa, em sua vida. Desesperada, necessitava esclarecer esses pontos.

O armário, que George abrira para pegar as botas de Patrick, estava repleto de coisas interessantes: varas de pescar, um rifle de caça, sapatos para andar na neve e até mesmo uma rede para pegar borboletas. Logo depois, Melissa foi ao escritório, localizado nos fundos da casa. Verificou as revistas sobre a escrivaninha e as gavetas. Nada relevante.

Se fosse sincera consigo mesma, concluiria que cometera um erro ao deixar o escritório por último. Um detetive experiente concluiria que aquela sala era o lugar mais propício para oferecer pistas. Logo, a busca deveria começar por ali. Qualquer pessoa normal deduziria que Melissa, no fundo, não desejava descobrir nada ilícito a respeito de George. Nesse caso, ela estava sabotando o próprio esforço.

Mas não queria acreditar nessa hipótese.Durante alguns minutos, permaneceu em pé, diante da janela,

admirando a vista. A parede envidraçada cobria a extensão lateral da casa. George colocara a mesa numa posição estratégica, bem em frente à paisagem.

A residência fora construída com tijolos e madeira, sobre uma pequena encosta. Mais abaixo, havia inúmeras árvores, que desciam o terreno até encontrar um lago de águas cristalinas. A beira dessa lagoa, ele instalara um deque, para facilitar a pescaria ou a natação. Uma única árvore frondosa à beira da lagoa, com galhos grossos, permanecia tranqüila, refrescando o deque com sua sombra.

Numa da ramificações, havia uma corda larga, pendendo quase próxima ao solo. Contagiada pela beleza da paisagem, Melissa podia imaginar George balançando-se naquela corda e mergulhando em

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seguida, deixando-se envolver pelas águas plácidas e refrescantes do lago.

Uma brincadeira adorável, na qual a espontaneidade natural de um garoto poderia emergir num homem. Virou-se para a escrivaninha. Precisava manter os olhos longe da vista pitoresca e poética, teria de se dedicar à busca e não a fantasias sensuais sobre George Conti.

Abriu uma das gavetas e começou a vasculhar a pilha de contas a pagar. De repente, ouviu o ruído inconfundível do motor da caminhonete.

Mais do que depressa, fechou a gaveta com dedos trêmulos, mas não se precipitou porta afora. Não podia sair e pegar o Lincoln sem que George a visse ou ouvisse. Porém já havia pensado nessa possibilidade quando decidira realizar sua busca secreta.

Elaborara um plano convincente para dissipar qualquer suspeita. Para evitar desconfiança, prevenira-se antes de iniciar sua façanha: havia deixado sobre o sofá a pilha de roupas que George lhe emprestara. E era nesse lugar que se encontrava no instante em que o anfitrião apareceu na sala. Ao vê-lo entrar, Melissa sentiu o coração disparar. Tentou se convencer de que a causa desse nervosismo era a mentira que pretendia contar a ele.

Naqueles milésimos de segundo, ainda teve tempo para recordar quando tivera um batimento cardíaco semelhante. Fora antes de conhecer Philip, sem dúvida alguma.

Afinal, escolhera-o para marido porque ele possuía um temperamento firme e a capacidade de apaziguá-la em momentos difíceis. Alguma vez na vida Melissa sentira descontração diante de fortes emoções? Seria por culpa da insegurança materna que se sentia indefesa diante de situações conflitantes?

Essas questões sem resposta atormentavam-na enquanto George caminhava em sua direção. Ele a fitou, intrigado.

— Que surpresa encantadora! — Vim devolver-lhe as roupas que me emprestou e agradecer.

— Ela apontou o pacote sobre o sofá e as botas no chão. — Como você não estava e encontrei a porta aberta, achei melhor trazê-las para cá.

— Eu é que agradeço — disse George, parecendo duvidar daquela justificativa.

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De repente, Melissa sentiu-se acuada. Aquela representação não lhe agradava, soava-lhe falsa. Se ficasse mais cinco minutos naquela casa, teria um ataque de nervos.

— Acho que já vou indo — disse num tom informal, foi caminhando até a porta. Com determinação, George tocou-lhe o braço, impedindo-a de continuar.

— Estou vindo de Camp Tranquility — informou ele. — Dois assistentes do xerife estiveram no acampamento à sua procura.

— O que queriam? — Apenas disseram que desejavam falar com você. Não

entraram em detalhes. Talvez fosse melhor ir ao gabinete do xerife, em Lowville, e ver o que pode descobrir.

— Sim, tem razão. Vou fazer isso — concordou ela, pensativa.— Quer que eu a acompanhe? Posso lhe dar apoio moral.— Como? — Melissa estava tão absorta em pensamentos que

não entendeu as palavras de George. — Eu gostaria de acompanhá-la, se me permitir. Ainda pensativa, ela não encontrou nenhum motivo

Concreto para recusar. As suspeitas em relação àquele homem haviam diminuído, pois não havia encontrado naquela casa nada que o recriminasse. Não lhe agradava a idéia de ir ao escritório do xerife, muito menos desacompanhada. Principalmente porque suspeitava de que as informações que a aguardavam não seriam satisfatórias.

— Já que está se oferecendo — disse, eu não me importaria em ter sua companhia.

Melissa nunca estivera no gabinete do xerife de Lewis County. Imaginava que, numa cidade pequena, os oficiais de polícia fossem amigáveis e calorosos. Enganara-se redondamente.

Gente de semblante carrancudo e de aspecto maldoso circulava pelos corredores do pequeno prédio, tal qual nos filmes policiais da televisão. Na noite fatídica, ela não havia notado, mas o assistente do xerife agia como se fosse o personagem principal dos enlatados da tevê. A camisa do uniforme fora passada com uma precisão impecável.

Até o cinto parecia ter sido polido. Ele não usava os óculos escuros típicos dos tiras, mas, com certeza, devia tê-los guardado em algum lugar, esperando uma oportunidade para colocá-los sobre o

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nariz.— Meu nome é Roemer — apresentou-se ele. — Nós nos

conhecemos ontem à noite. — Sim, eu me lembro. Na ocasião, Melissa não gravara o nome do homem. Na

verdade, não se recordava de alguém tê-lo pronunciado. As lembranças da noite anterior eram apenas cenas isoladas ou clarões de imagens, como os vasos de flores jogados pelo carpete, vento e chuva sobre os escombros indígenas e o par de botas nas mãos de George. Tinha certeza de que, em algum momento, todas essas imagens se juntariam de forma coerente. Por enquanto, preferia que ninguém soubesse quanto sua memória estava desorganizada ou quanto se sentia abalada e tensa. Faria o maior sacrifício para ficar atenta a tudo o que acontecia à sua volta e disfarçar seu estado de espírito.

O primeiro detalhe em que reparou foi o desinteresse do oficial Roemer, tal qual na noite anterior, quando ele mal podia esperar para encerrar a vistoria e se retirar da cena do crime, acreditando ser apenas um ato de vandalismo de um adolescente. Com ar austero, Roemer conduziu-a a uma sala particular, proibindo a secretária de passar-lhe qualquer ligação telefônica enquanto estivesse atendendo Melissa.

Ela, por sua vez, perguntava-se o porquê daquele tratamento preferencial. Notou também a antipatia existente entre o oficial e George.

Ele a acompanhara ao departamento e, no mais absoluto silêncio, analisava os fatos, conservando a expressão taciturna que o caracterizava. Os dois homens se cumprimentaram, e isso foi tudo.

Quando o assistente Roemer solicitou a Melissa que o acompanhasse, fez questão de salientar que entrasse sozinha.

Ela, então, dispensou o amigo, pois fora até ali dirigindo o próprio carro. Mas George preferiu ficar e esperá-la. O policial pareceu não aprovar a decisão, e Melissa deduziu que aquela animosidade poderia estar ligada à morte de Patrick. Uma vez dentro da sala, porém, esqueceu-se do irmão de George. Viu que a mesa estava coberta de mensagens de fax, separadas em duas pilhas diferentes.

Cada qual era presa pelo cabeçalho, com grampos para papel.

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Ao lado delas, havia duas pastas timbradas da polícia de Lewis County.

Aproximando-se da escrivaninha, Melissa tentou ler a identificação em cada pasta. Mesmo de cabeça para baixo, não foi difícil enxergar o nome de Philip Wald em uma delas, e o de Reggie Williams na outra. Depois de convidá-la a sentar-se, o oficial Roemer foi direto ao assunto:

— Pelo jeito, seu falecido marido levava uma vida dupla. Mais tarde, Melissa concluiria que, com aquela afirmação

abrupta, Roemer pretendia chocá-la a fim de sondar quanto ela sabia sobre a segunda identidade de Philip. Contudo, naquele instante, não foi capaz de perceber as intenções do policial. O que pôde entender era que o assistente do xerife se referia a algo além de um simples caso de amor extraconjugal. Um simples problema doméstico como esse não exigiria aquela quantidade de papéis. Melissa deu o melhor de si para concentrar-se e manter o controle.

— Já ouviu falar numa empresa chamada North County Wash and Dry? — perguntou Roemer.

Durante alguns segundos, ela refletiu sobre a resposta e sobre a causa de uma pergunta tão fora de propósito.

— Creio que não — respondeu. — Essa empresa tem algo a ver com Philip? — Eu diria que sim. Ele era o proprietário. — Roemer bateu nas

pilhas de papel de fax. — Ou, de acordo com isso, a empresa pertencia a Reggie William.

— Philip jamais mencionou algo a respeito. Que tipo de empresa é essa?

— Uma cadeia de lavanderias automáticas — revelou-o, encarando-a. — Estão espalhadas por toda a região. Lewis County, Jefferson, até mesmo Sr. Lawrence. Lavanderias pareciam ser um negócio lucrativo para o seu marido.

— Entendo — disse Melissa, embora não compreendesse coisa alguma.

— Está me dizendo que não sabia nada a respeito disso? — Absolutamente nada. — Sob a aparência controlada, ela

sentiu uma onda de pânico.

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— E sobre isso? — Roemer apontou a pilha de papéis, identificada com o nome de Reggie Williams. — Tinha conhecimento desses documentos?

— Que documentos são esses?Inclinando-se para ver o que ele apontava, Melissa não

conseguiu descobrir do que se tratava. Roemer puxou os papéis antes que ela pudesse lê-los.

— Extratos bancários — respondeu, balançando as folhas e depois as colocando de lado. — Reggie Williams tinha dinheiro depositado em todos os bancos do norte do Estado de Nova York. Um em cada cidade na qual possuía uma lavanderia automática. — Recostando-se no espaldar da cadeira, o policial observava-a, enquanto tamborilava os dedos sobre a pilha de folhas.

— O que tem a dizer sobre essas informações? — indagou. Soltando um suspiro profundo, Melissa tentava refletir com

clareza. Mas não conseguiu ter um só pensamento coerente. O que lhe

restava de autocontrole desapareceu num segundo. Teve de admitir que fosse um alívio encontrar George, quando

saiu do departamento de polícia. Ele estava sentado na caminhonete, estacionada ao lado do Lincoln numa rua próxima à delegacia. George saltou do carro assim que a viu aproximar-se!

— O que aconteceu? — Acho que estou sob suspeita, mas não sei do que me

acusam. Também não tenho certeza se eles sabem.— Talvez você deva contratar um advogado para ajudá-la.— Já pensei nisso. No entanto, não creio que vá fazer alguma diferença. O oficial

Roemer fez um interrogatório exaustivo. Perguntou as mesmas coisas umas trinta vezes. Fiquei respondendo que não sabia de nada. E sin-to-me desolada em admitir que é verdade.

Caminhando até o Lincoln, Melissa nutria um misto de raiva e desânimo.

Várias vezes, no gabinete do xerife, controlara o impulso de esbofetear-lhe o rosto e arrancar todos os botões daquela camisa engomada.

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Compreendeu, mais tarde, que sua revolta não se relacionava a ele, mas sim às circunstâncias. Estava furiosa. Precisava saber a verdade, mas, ao mesmo tempo, temia descobri-la. Seu maior desejo era entrar naquele carro antiquado e voltar, a toda velocidade, para a mansão de Genesse Street. Poderia trancar-se no casarão e impedir a entrada de quem quer que a procure. Infelizmente, já quebrara as correntes daquele refúgio doentio. Com a nova alma que desabrochara, seria impossível esconder-se por muito tempo, mesmo com a permissão do dedicado oficial Roemer.

— Então, que tal me deixar fazer o jantar? — sugeriu George. Era uma surpresa e tanto ouvi-lo falar sobre a hora do jantar. Melissa não notara o tempo passar. O sol já começava a se pôr atrás das montanhas, mesclando o céu com seus raios amarelos e alaranjados. O interrogatório fora bastante longo. E improdutivo.

— Não sei se vou conseguir comer algo — resmungou ela.— Há muito mais do que isso — falou George, ajudando-a a

entrar no carro. — Preciso conversar com você sobre outros assuntos. Eu já deveria ter lhe dito antes, mas me preocupei em não assustá-la.

Havia algo de estranho naquele tom de voz. — Esses assuntos têm a ver com os negócios de Philip? —

perguntou ela. George hesitou.— Não. Têm a ver comigo — confessou ele, por fim. Fechando a

porta do carro, apenas fitou-a. Melissa gostaria realmente de esclarecer algumas questões sobre aquele homem enigmático.

— Na sua casa ou na minha? Perguntou orgulhosa do tom casual.

— Na minha — respondeu ele. — Em minha cozinha, sou o capitão do navio.

Como um grande mestre da culinária, George fez jus à afirmação. Carne, batatas e salada, uma refeição típica masculina. Mas muito bem-temperada e feita com esmero. Surpresa, Melissa enganara-se ao duvidar de seu apetite. Deliciou-se com o filé, com as batatas assadas e com a tigela de verduras frescas e tenras, regadas com molho de queijo.

Quando George perguntou-lhe sobre a última refeição decente que tivera, ela se recordou, na hora, do churrasco com Sonny Shannon. Estivera ocupada o bastante para não se lembrar de alimentar-se.

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Diante da lareira acesa, George colocou uma bandeja de café e biscoitos de chocolate. Somente nesse momento resolveu tocar no assunto que se propusera a discutir.

— Meu irmão Patrick significava tudo para mim — começou. — Ele me conhecia melhor do que ninguém. Bem melhor que meus pais até.

— Entendo. Enquanto falava, George mantinha os olhos fixos nas chamas

do fogo. Melissa não se atreveu a interrompê-lo. Apenas observava o perfil másculo e ouvia.

— Eu também o conhecia muito bem. Patrick me confidenciava seus segredos mais íntimos. Quando mudei de cidade, nós nos comunicávamos pelo telefone e nos encontrávamos com freqüência. Ele sabia o que se passava em meu coração, e vice-versa. Meu irmão nunca realizou algo ilegal ou desonesto. Jamais seria capaz de cometer o crime do qual foi acusado. — Fez uma pausa e fitou Melissa. — Creio que já lhe contaram que ele foi suspenso da polícia por suspeita de envolvimento na distribuição de dinheiro falso.

— Sim, já ouvi essa história — confirmou-a, num murmúrio.— Claro. Uma acusação assim não passaria em brancas nuvens

numa cidade tão pequena. Aconteceu há um ano, e as fofocas continuam quentes.

A dureza no tom de voz permitiu que Melissa se abstivesse de comentários.

— Bem, Patrick não estava envolvido. — George levou a xícara ao chão com tanta violência que o café transbordou sobre o pires. — E não se matou. Meu irmão jamais aceitaria as palavras daquele idiota do mercado das pulgas. Suicídio é uma fuga covarde, e Patrick não era covarde.

— Então o que acha que aconteceu? — Melissa arriscou a pergunta, apesar de entender que ele precisava desabafar.

Levantando-se do sofá, George se aproximou da lareira. Pegou o garfo de metal e começou a mexer nas toras em brasa.

— Não sei — confessou. — Não tenho idéia do que aconteceu.A angústia daquele homem era profunda e comovente.— Você não pode se atormentar desse jeito, George. Isso não

lhe faz bem.

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— Bem? — repetiu ele, segurando-a pelos ombros com suas mãos fortes.

— Você foi o único bem que me aconteceu nesse tenebroso ano que passou.

Ele falava alto, fazendo o coração de Melissa palpitar, descontrolado. Tinha certeza de que seria beijada. Não o impediu, pois esperava envolver-se no mesmo abraço apaixonado daquela noite, no pavilhão.

Mas nada aconteceu como sonhara. Numa gentileza pungente, George passou os braços pela cintura delicada, fazendo desabrochar um sentimento bem mais profundo. Colou seu corpo ao dela e tomou-lhe os lábios trêmulos.

Soltando um gemido de prazer, Melissa correspondeu àquele beijo com ardor. Ambos imploravam pela mútua necessidade de socorro, alívio e amor. Amor. A palavra surgiu na mente de Melissa, mas não viera do coração. O único pensamento coerente era nunca ter se sentido acolhida e amada nos braços de um homem. Não havia temor em seus olhos. Não poderia haver temor num gesto gentil e adorável como aquele. Erguendo as mãos, ela as fez deslizar sobre os ombros fortes, alcançando os cabelos negros. Sob os dedos, sentia a maciez dos cachos sedosos. George, por sua vez, continuou a acariciá-la, como se fosse a mulher mais frágil do mundo.

Os lábios se moviam numa dança de descoberta, testando, sentindo e aprendendo a doce sensualidade de cada um.

As línguas se tocaram e, no mesmo instante, a transformação se processou.

Aprofundando o beijo, George conduziu-a numa viagem alucinante. Melissa se sentia eletrizada, como se seu corpo queimasse à chama da paixão.

Fora casada, mas agora mais se assemelhava a uma virgem inexperiente, faminta pela primeira noite de amor.

Esperava ser dominada pelo amante, mergulhando no vazio da eternidade. Apertou os músculos do poderoso braço e sentiu a força masculina sob os dedos. Com as duas mãos, segurou-lhe o rosto, afastando-se. George abriu os olhos, fitando-a com uma expressão de surpresa.

— Quero você — sussurrou ela, de um modo que jamais pensara ser capaz. — E quero agora.

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Em segundos, os olhos de George expressaram a beleza e a intensidade daquele pedido.

O azul profundo fixava-se em Melissa, transmitindo-lhe a certeza de estar sendo correspondida. Com extrema facilidade, ele a carregou nos braços. Permaneceu fitando-a enquanto atravessava a sala, em direção à escada de madeira.

Seus lábios, semi-abertos, seduziam-na em silêncio. Havia uma mensagem naquela atitude, e Melissa pôde decifrá-la.

A respiração de George era lenta, ressonando no corpo feminino. Olhando-o com paixão, ela tocou-lhe a boca, sentindo o calor da respiração pesada.

— Meu amor... — murmurou George, apressando-se em subir os degraus.

Mas a pressa não era necessária. Melissa sabia que não precisavam correr. Não existia nenhum empecilho ou força que os impedisse de realizar aquele desejo. Estariam nus pela primeira vez, sem barreiras ou suspeitas. Seriam duas almas fundindo-se numa só. George a conquistaria com sua masculinidade, e ela se entregaria ao ato em toda a sua plenitude e sensualidade.

Colocando-a na cama, George se deitou ao lado dela, demonstrando a ansiedade de um adolescente em sua primeira experiência sexual. Melissa preparava-se para entregar seu corpo a ele como jamais fizera. No fundo 'de seu coração, clamava por aquele momento. Os lábios rubros sugavam os dele enquanto o desejo crescia, insano, incandescente.

Seus dedos, finos e delicados, acariciavam cada centímetro daquela pele morena, irresistivelmente sedutora.

George também a tocava. Beijava-a com volúpia enquanto as roupas iam sendo atiradas ao chão do quarto. Melissa se perdia entre sensações múltiplas de prazer, causadas pelos beijos e carícias. Sem noção dos movimentos de George, que buscava frenético, seus seios rijos, as pernas e as coxas, ela se entregou aos desejos ardentes do amor. Sua única certeza era o calor do desejo que lhe percorria o corpo, implorando para ser satisfeito numa tempestade de paixão.

O coração batia acelerado. Quando ele a penetrou, a comunhão foi tanta que a pulsação de Melissa chegou a patamares jamais imaginados. O ato era demasiado forte e precioso, fazendo-a gemer de prazer.

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Após tantos anos de solidão e isolamento, George lhe revelava, enfim, os segredos ocultos do amor e da paixão que havia soterrado nos escombros de sua alma. E Melissa, entregue à mesma urgência, à mesma necessidade, transformou-se numa mulher realizada e completa.

CAPÍTULO XIV

Os primeiros raios de sol da manhã atravessaram as persianas do quarto de George, ofuscando os olhos de Melissa. As janelas haviam sido especialmente desenhadas para adequar-se à arquitetura da casa.

Aliás, todos os objetos ornavam, em perfeita harmonia, com a decoração.

As texturas, as cores, as peças de cerâmica e os vitrais coloridos, posicionados em pontos estratégicos, mostravam quanto ele se preocupara com cada detalhe. Eram aspectos sutis que diziam muito sobre o homem deitado ao lado de Melissa.

Aquela residência campestre revelava facetas de George Conti com a luminosidade do sol do meio-dia. Bem devagar, ela se moveu para não acordá-lo. A luz pálida da manhã iluminava os cachos negros de George, emitindo um brilho quase azul. Com o braço direito atrás da cabeça, ele dormia um sono profundo e tranqüilo. Os músculos relaxados pousavam sobre o travesseiro, e Melissa teve vontade de tocá-los.

Mas sabia que, se o fizesse, o gesto poderia despertá-lo. Sorriu. Antes daquela noite, jamais se imaginara desejando tocar o

corpo de um homem com tanta volúpia. Esse tipo de atitude nunca lhe havia passado pela cabeça. Sempre fora objetiva demais em se tratando de gestos espontâneos.

Contudo, agora, podia sentir a própria alma se transformando. Estava entregue ao sentimento que nutria por aquele homem.

No centro do seu coração, cada pulsação significava uma forte emoção. E era bom, muito bom.

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A nova mulher que nascera daquele maravilhoso encontro de amor revelava novidades que ela jamais pensou existir. Sentira-se viva, sensível a cada toque das doces carícias de George.

Agora compreendia que seu lado feminino estivera adormecido durante anos. E, nesse instante, sentia-se mais iluminada, muito mais do que os raios de sol daquela manhã. Havia um roupão azul-marinho pendurado no mancebo do quarto. Ela saiu da cama em silêncio e vestiu-o.

O tecido macio acariciava sua pele de modo bem familiar. Tão familiar quanto se tornara a essência de George, naquelas últimas horas. Percebendo o chão de madeira sob seus pés, ela se agachou para procurar os sapatos. Acabou encontrando-os embaixo da cama.

Desceu a escada. Sentira-se tão viva e feliz deitada naquela cama, e a casa de George era tão aconchegante, que lhe parecia muito natural caminhar com liberdade pelos cômodos, como se estivesse em sua própria casa.

Como no dia anterior, as cinzas da lareira espalhavam um leve odor pela sala. As xícaras de café ainda estavam sobre a mesinha de centro, diante do sofá. A pilha de roupas permanecia onde Melissa a havia deixado. Devolver aquelas roupas fora uma desculpa necessá-ria. Só assim ela pudera ir à casa de George. Maravilhou-se ao pensar que não precisava mais de subterfúgios para estar no lugar ao qual descobrira pertencer.

Levou a bandeja de café à cozinha e lavou as xícaras na pia, dentro da qual ainda estava a louça do incrível jantar da noite anterior. Deveria enxaguá-las também, mas o barulho acordaria George. Passando pela sala de estar, resolveu ir ao escritório, apreciar a bela paisagem do lago.

A leve brisa provocava ondulações na superfície, e as águas plácidas refletiam a pálida luz do sol. Um pato selvagem nadava, tranqüilo, ao longo da margem. As penas do animal brilhavam, enquanto ele deslizava sem nenhum esforço. Para os olhos de Melissa, aquele quadro sublime significava serenidade e paz. Na verdade, era assim que se sentia naquela manhã gloriosa.

Voltando-se à mesa de George, sentiu-se culpada por ter mentido. Estivera vasculhando aquelas gavetas quando ele chegou, quase sendo pega em flagrante. No entanto, não podia ignorar os pensamentos que a haviam atormentado.

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Propusera-se a fazer aquela busca por uma razão: suspeitara do comportamento de George. Os eventos da noite anterior apenas ame-nizaram a desconfiança, mas as questões continuavam sem respostas. E elas a invadiam agora, abalando seu estado de absoluta paz de espírito. Melissa ficou em silêncio.

Não ouviu nenhum som pela casa. George ainda devia estar dormindo. Com extremo cuidado, ela abriu as gavetas da escrivaninha, uma após outra, procurando alguma pista.

Dirigindo-se à última, esperava não ter sucesso como nas outras. Não queria ver desmoronar o castelo que construíra ao redor do homem amado. O primeiro sinal de angústia veio quando a última gaveta não abriu com tanta facilidade. Não continha nada de alarmante. Ela, porém, decidiu verificar-lhe os fundos. Puxou-a até o fim, avistando um envelope bege, fechado por uma fita adesiva. Seu coração disparou. Não desejava encontrar aquele envelope. Relutante, ponderou se devia ou não abri-lo. Infelizmente, suas suspeitas não lhe deixaram outra escolha.

O documento que encontrou dentro do papel era familiar. Parecia um recibo de transação comercial para pessoa física.

O nome escrito no cabeçalho da folha revelou-se, de forma assustadora, conhecido. O pedaço de papel que George havia escondido nos fundos da gaveta era um documento da empresa in-titulada North Country Wash and Dry, e fora assinado por Reggie Williams. Melissa reconheceria a letra do marido em qualquer lugar do mundo. Suas mãos tremiam tanto que ela mal conseguiu recolocar o papel no envelope. Fechou-o e pôs de volta na gaveta.

Se George examinasse a fita adesiva, descobriria que fora adulterada.

Mas Melissa não tinha tempo de pensar nesse detalhe. Precisava sair dali. Cada segundo de permanência tornava-se ainda mais doloroso. Tomou cuidado para não fazer nenhum barulho ao fechar a gaveta. George não poderia acordar e encontrá-la antes que empreendesse sua fuga.

Vê-lo novamente causaria muita dor e sofrimento. Pé ante pé, ela atravessou a sala. Pegou uma camiseta e uma calça de malha da pilha de roupas sobre o sofá. Não tinha a menor vontade de usar as vestes de George, mas não queria subir a escada para pegar as suas. Saiu, deixando a porta encostada. Entrou no carro e, puxando o freio de mão, dirigiu-o pela ladeira sem ligar o motor. Só o fez quando

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chegou à estrada. Então, virou a chave na ignição, sabendo que, mesmo ouvindo o som do motor, George já não poderia alcançá-la. Afastou-se então daquele lugar adorável, desejando nunca mais voltar.

Durante todo o trajeto de volta, Melissa sentiu a alma atormentada. Deveria contar ao policial Roemer sobre o que encontrara na escrivaninha de George?

Estava tentada a fazê-lo porque queria traí-lo, do mesmo modo como se sentia traída? Estaria aquele documento relacionado à morte de Patrick Conti?

Se assim fosse, qual seria a ligação? No instante em que chegou ao trailer, sentia-se exausta por tentar responder a essas questões. Trancou a porta de vidro e puxou todas as cortinas, para que ninguém a visse. Estava determinada a permanecer sozinha. Não se importava com os significativos cuidados das pessoas; não queria ser incomodada.

Andou de um lado para outro, colocando no lugar certo os objetos que seus bem-intencionados vizinhos haviam arrumado, no dia anterior.

— Essa tigela não pertence a este lugar — resmungava, enquanto pegava o pote de cerâmica e o colocava na estante da sala.

Sabia quanto estava sendo irracional e tempestuosa. Também tinha consciência de que esse comportamento não correspondia à sua personalidade dócil. Philip ficaria chocado se a visse daquele jeito. Ou talvez até se divertisse.

— Que a opinião de Philip vá para o inferno! Depois do desabafo, ouviu a voz estridente de Hildy soar do

lado de fora. Furiosa, estava procurando algum objeto para quebrar, arrumar ou jogar.

— Oh, não. Agora não, Hildy — murmurou mais aborrecida do que nunca.

Definitivamente, não queria conversar com Hildy, mas como dispensá-la? Estacionara o carro diante do trailer.

Era óbvio que estava em casa. Entretanto, talvez a antropóloga imaginasse que ela fora

passear com George, na caminhonete. Afinal, ambos tinham sido visto juntos em inúmeras ocasiões, por várias pessoas, e Melissa

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conhecia bem os habitantes do norte para saber que as fofocas rola-vam soltas.

Quando estivera no gabinete do xerife, seu nome fora ligado ao de George, permeado por fantasias maliciosas. Ela teria gostado da idéia, não fosse a profunda dor em seu coração. Ajoelhando-se no banco da cozinha compacta, abriu uma fresta na cortina, mas não pôde ver Hildy.

Escutou-a falar de novo, e a voz vinha do outro lado do trailer. Cruzou a sala e espiou entre as cortinas da janela. Hildy Hammond estava lá fora, sim, mas não era Melissa a quem chamava. Sonny Shannon estava saindo do seu trailer enquanto a antropóloga caminhava em sua direção, parecendo muito agitada. Abrindo um pouco a janela, Melissa tentou ouvir o que diziam.

— E quero que pare com isso agora! — esbravejava Hildy.— Parar com o quê? — perguntava Sonny, sorrindo.— Parar de me seguir. Pare de me espionar. Não fique se

esgueirando ao redor das ruínas.— Ouça, não quero brigar com você, mas não tenho a menor

idéia do que está falando. Hildy agitava os braços e andava, aflita, pelo acampamento de

Sonny. Quase esbarrou numa das estacas que suportavam a lona. Seria um desastre, na certa. Ao notar a possibilidade de isso acontecer, Sonny afastou-se da barraca, levando Hildy consigo.

— Você sabe muito bem do que estou falando — rebateu ela, apontando o dedo em riste para Shannon. — Por sua causa, ele parou de se manifestar. Acredito que o tenha espantado de propósito.

— Espantado quem? — O espírito, é claro. Eu estava quase conseguindo fazer

contato. E então você o espantou.— Espírito? — Sonny parecia atônito. — Está se referindo a

coisas como fantasmas e assombrações?— É exatamente a isso que me refiro como você bem sabe. —

Hildy estava a poucos centímetros de distância de Sonny, e aproximava-se a cada acusação que vociferava. Inclinando a cabeça para trás, o policial soltou uma gargalhada.

— Eu jamais me meteria com você e seus fantasmas. Acredite em mim.

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— Pois eu não acreditaria em você nem se o visse fazer um juramento solene sobre a Bíblia — Ela já avançava sobre Sonny quando ele se virou e entrou no trailer, batendo a porta. — Deixe meu espírito em paz! — gritou, sacudindo as mãos. — Se não me ouvir, vai se arrepender!

Bem depressa, Melissa fechou a janela e soltou as cortinas. Teria se divertido com a cena hilariante se não estivesse com uma vontade imensa de chorar. Tudo o que queria era ir embora. Desejava empacotar suas coisas e voltar a Syracuse.

Quanto à vida dupla de Philip, poderia contratar um detetive particular para investigar o que a polícia havia negligenciado. O profissional vasculharia as contas bancárias, organizaria as dívidas e as pagaria. Depois passaria o problema a um advogado competente, caso houvesse algum trâmite legal.

Sim, ela poderia contratar alguém para fazer tudo isso, uma pessoa que realizasse essas tarefas por profissão, sem se permitir sofrer com as revelações arrasadoras.

Ponderou sobre o que deveria encaixotar antes de partir. Na verdade, preferia virar as costas, trancar a porta e ir embora. No entanto, seu lado prático não permitia.

Ao menos limpara a geladeira e desligara o gás. Planejava-se ficar um longo tempo sem aparecer, deveria cobrir os móveis e tirar os alimentos perecíveis.

Só de pensar no que precisaria ser feito, Melissa sentiu-se esgotada.

Sentou-se na cadeira próxima à porta de vidro. Começava a planejar os preparativos para abandonar o camping. Listava as tarefas necessárias a fim de colocar o trailer à venda.

Tinha até mesmo considerado pedir um preço irrisório só para se livrar daquele peso o mais rápido possível. De novo, pensou em contratar alguém para vendê-lo. O encarregado poderia espalhar cartazes pela região, valorizando a mercadoria, e talvez negociar um preço melhor.

Os Delaney seriam perfeitos para isso. Melissa imaginava esse cenário doloroso quando ouviu uma batida na porta, que a fez pular de susto.

— Quero falar com você! Sei que está aí dentro! — Era George, e parecia zangado. Por que estaria zangado, afinal? Melissa

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enfureceu-se, indignada. — Deixe-me entrar. Não vou embora até que me deixe entrar.

Respirando fundo, ela concluiu que deveria ter fugido quando teve essa idéia. Agora estava encurralada. Podia notar o tom de raiva na voz de George.

Se ele pretendia arrombar a porta para que Melissa o deixasse entrar, que assim o fizesse.

Um segundo depois, porém, ela se arrependeu do pensamento. Então se levantou e destrancou a porta. Caminhou até o sofá e sentou-se. Se George queria entrar, que entrasse.

O espaço pareceu menor depois que ele entrou na sala. Era grande demais para aquele cubículo. Havia tensão nos músculos do rosto, e os punhos estavam cerrados. Agitado, andava de um lado para o outro, como se precisasse de um exercício físico a fim de não sucumbir à fúria.

Diante daquela visão, Melissa teve de se controlar para não admirar a beleza masculina e a profundidade dos olhos, que soltavam faíscas.

Os cabelos caíram sobre a testa, e ele empurrou-os para trás com violência. No mínimo, arrancara alguns fios ao empreender aque-le gesto. A raiva de George era assustadora, mas ela não sentia medo. Sentia-se mais do que pronta para enfrentá-lo.

— Notei que você encontrou o que estava procurando esta manhã — disse ele. Não houve réplica.

Melissa queria descobrir quanto ele sabia, antes de se manifestar. Observou-o retirando um envelope bege do bolso da jaqueta e jogando-o sobre a mesa.

Tinha quase certeza de que era o mesmo documento escondido na última gaveta da escrivaninha.

— Já que teve tanto trabalho para encontrar isto aqui, acho que deve ficar com ele — murmurou George. Então, ele se virou.

Melissa pensou que fosse embora. Seu coração disparou diante da possibilidade de vê-lo sair.

O trailer ficaria vazio e triste sem aquela presença máscula. Mais uma vez, George voltou atrás, passando os dedos entre os

cabelos cacheados. O olhar mantinha-se fixo em Melissa.

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— Você me usou — acusou a voz revelando dor e sofrimento.— Eu o usei? E você, não me usou? Por acaso não estava

tentando investigar a vida de Philip, aproximando-se de mim? Não foi esse o motivo que o fez me rodear, no princípio?

— No princípio, sim. Ele a fitava com intensidade. A vontade de Melissa era dizer

que a morte de Patrick estava relacionada a tudo aquilo, mas se conteve. Não pretendia revelar o que sabia.

— E conseguiu o que queria? De cabeça baixa, George olhava para o carpete. Colocou as

mãos nos bolsos da jaqueta.— Não consegui o que pensei querer — confessou, num

sussurro. — Acabei desejando-a tanto que esqueci o motivo inicial.— Qual era esse motivo inicial?— Cumprir a promessa que fiz no túmulo de meu irmão. Mas,

em vez disso, apaixonei-me por você. Pensei estar sendo correspondido. Até esta manhã.

Por um momento, ele permaneceu parado, estático. Depois começou a agitar-se.— O que tudo isso tem a ver com Philip? Esquecendo-se das regras do jogo, Melissa decidiu colocar tudo

em pratos limpos. Estava aborrecida demais para brincar. George se dissera apaixonado, mas somente até aquela manhã. O sentimento era recíproco. Mas, apesar das descobertas fatídicas, ela não fora capaz de apagar as emoções, como ele fizera.

— Você não sabe de nada a respeito das transações de seu marido, não é?

— Não, não sei. Aliás, nunca soube o que ele fazia.— Jamais desconfiou das ausências constantes de Philip? Vocês

não conversavam? Não ficava curiosa em saber de onde ele tirava tanto dinheiro?

— O que acontecia entre mim e meu marido não é da sua conta. — A indignação mascarou a vergonha. As acusações de George eram precisas e verdadeiras.

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— E me parece que não era da sua conta, também. No começo, pensei que estivesse desconfiada das trapaças de Philip. Agora acredito que ele a manteve alheia a tudo porque era mais fácil para você. Desse modo, continuaria escondida em sua vidinha confortável e não seria perturbada com problemas que não saberia resolver.

— Quais eram as trapaças de meu marido? — perguntou ela, com muita calma.

— Não eram roupas o que ele lavava naquelas lavanderias.— O que quer dizer?— Ele estava lavando dinheiro. Milhares de dólares. Talvez

tenha chegado a milhões durante o ano. Aturdida, Melissa o fitava, tentando conciliar as moedas

utilizadas nas máquinas de lavar roupa com aquela considerável quantia a que George se referia.

— Como ele fazia isso?— Usando a máscara dos investimentos. Você investe dinheiro

e depois o recebe com juros. Empresta alguma quantia e recebe de volta com lucro. Os dólares circulam de um lugar para outro. Meneando a cabeça, Melissa não sabia o que dizer. Estava chocada. Na verdade, era difícil acreditar que Philip envolvera-se em algo ilícito e inescrupuloso. Sempre desprezara as pessoas sem caráter e desonestas. Porém, alguém como ele seria bem capaz de usar uma cadeia de lavanderias para lavar dinheiro. No mínimo, acabaria se divertindo com aquela história.

— Desconheço os detalhes de como ele conseguiu isso — dizia George. — A polícia irá investigar, com certeza. Mas só sei de uma coisa...

Ele hesitou, e Melissa não conseguiu evitar a expectativa. Se George tinha certeza de algo, ela queria saber, pois não tinha certeza de mais nada.

— O que você sabe? — Só sei que meu irmão não teve nada a ver com essa história

de lavagem de dinheiro. Ele caiu numa armadilha.Nesse momento, a porta de vidro se abriu. Alguém puxou a

cortina. Era o oficial Roemer. — Começo a pensar que está certo Conti — disse ele enquanto

George dava um passo à frente, permitindo-lhe a entrada.

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Roemer relatou que resolvera verificar o relatório da autópsia de Philip.

Fora a Onondaga County, onde o avião havia caído. Chegando lá, descobriu não existir autópsia nenhuma. A explosão ocorrera de forma tão violenta que não restara nada a ser examinado pelo médico legista. A ossada e os fragmentos da arcada dentária estavam tão estragados que foi impossível identificá-los.

Inacreditável. Melissa tivera tantos detalhes a respeito da morte do marido, mas nunca se dera ao trabalho de verificar. Não quisera pensar no assunto.

— Por que é tão importante ver o relatório da autópsia de meu marido?

— Bem, o procedimento é esse — explicou o policial. — Não temos como provar nada sem o relatório. Mas, considerando as evidências que encontramos, existem razões suficientes para acreditar que o acidente com o avião do sr. Wald foi apenas uma encenação.

— Como assim? — O coração de Melissa tornou a disparar.— Temos fortes suspeitas de que o sr. Wald não esteja morto.— Oh, meu Deus... Encostando-se no sofá, Melissa colocou as mãos no rosto, como

se tentasse ter certeza de que ainda era real, em meio a tanto absurdo.

Queria pedir mais informações, mas estava tão assombrada que seria impraticável formular uma pergunta, qualquer que fosse ela. Do lado de fora, ouvia-se o rádio do carro-patrulha chamar o oficial Roemer. Ele se desculpou e pediu licença para retirar-se. Melissa assentiu, sem prestar atenção no que o homem dizia.

— Você está bem? Ela olhou para cima e encontrou a expressão preocupada de George.

— Estou tentando digerir tudo isso.— Sim, eu sei. A expressão dele tornou-se sombria. O peso das

palavras que não eram ditas contaminava o ar. Apesar dos segredos, das falcatruas e do dinheiro falso, ambos

tinham o sentimento profundo que os unia. O que aconteceria, então, se Philip ainda estivesse vivo? Não

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houve tempo de pensar na pergunta, pois o assistente do xerife retornou.

— Achei que esse chamado poderia lhe interessar. A sra. Hildy Hammond sofreu um acidente nas velhas ruínas indígenas. Estou indo até lá agora. Se quiser, pode vir também. Aquela notícia teve o mesmo efeito de uma segunda facada no peito.

— Vou levá-la até os escombros — disse George.Após assentir, Roemer saiu. Na mente de Melissa, uma voz

insistente repetia: o que virá depois?

O que virá depois?

O que virá depois?

resposta, ela não tinha a menor intenção de ouvir.

CAPITULO XV

A ambulância de resgate impediu a entrada de Melissa e George nas ruínas. Ele, porém, usou de sua influência para com os voluntários da equipe para descobrir que os ferimentos de Hildy haviam sido extremamente graves. Então, seguiu com Melissa para o hospital.

Médicos e enfermeiras corriam, num vaivém irritante. O estado de Hildy devia ser muito delicado, pois ela fora instalada numa minúscula sala de emergência, e toda a equipe mobilizava-se para atendê-la.

— O ferimento foi causado pela queda? — perguntou Melissa, quando chegaram ao hospital.

— Aparentemente, não — disse George. — De acordo com o motorista da ambulância, foi um instrumento pontiagudo que a feriu.

Pálida, Melissa o encarou.— Então ela caiu porque levou uma pancada na cabeça com um

instrumento pontiagudo...— Exatamente. Melissa não pediu desculpas por estar sendo redundante. Ela mesma se sentia como se tivesse levado várias pancadas

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na cabeça. Aquela altura, não tinha certeza sobre se seria capaz de assimilar alguma informação nova.

Precisava descobrir o que acontecera a Hildy e montar, de algum modo, aquele quebra-cabeça complicado.

Três enfermeiros conversavam na entrada do setor de emergência, enquanto tomavam café. Melissa se aproximou deles.

— Sou amiga da Sra. Hammond — apresentou-se.— Ela conseguiu dizer algo sobre quem a machucou? Os três

homens de entreolharam. Um deles riu e os outros dois contiveram a risada.

— Sim, ela nos disse quem foi — informou um dos enfermeiros.Ele tinha um sorriso cínico nos lábios. Havia um enorme crachá

na lapela, identificando-o como membro da equipe de resgate do hospital municipal de Lewis County.

— O que a Sra. Hammond lhe contou? — perguntou ela num tom sério, esperando desencorajar piadas inadequadas em relação ao estado de Hildy. — Ela nos disse que foi um fantasma que a atacou

— respondeu o homem de expressão cínica. Balançando a cabeça, os outros dois confirmaram, tentando conter o riso.

— Ela chamou o atacante de espírito — completou um dos homens, jogando o copo de papel no lixo.

— A sra. Hammond nos contou que ele saiu do chão e a atacou. Ficou repetindo essa história várias vezes, como se quisesse nos convencer dessa maluquice. Os outros dois confirmaram o depoimento e menearam a cabeça, enfatizando o ceticismo.

— Isso sempre acontece — comentou um deles, antes de dirigir-se à sala de emergência.

— Claro que sim. Melissa nem sequer notou aquele comentário. Estava muito preocupada com Hildy, temendo a gravidade do

que ocorrera à amiga. Também se sentia frustrada por ter tantas perguntas sem

resposta. Aqueles palhaços não ajudariam em nada. Então, resolveu ir

embora. A insistência de Melissa em visitar DeDe Mapes foi veemente. George não se entusiasmou com a idéia. Mas, quando ela

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se propôs a pegar o carro para ir sozinha, ele concordou em levá-la.DeDe merecia ser informada das descobertas do oficial Roemer.

Se havia alguma chance de Philip estar vivo, a irmã caçula dos Mapes ficaria tão surpresa quanto Melissa, talvez até mais.

Ainda amava Philip com intensidade. Porém Melissa não tinha certeza do que sentia pelo marido.

Seria gratidão? Ou apenas afeto, por terem vividos tantos anos juntos? Sempre pensara ser amor o sentimento que a unia a Philip. Mas

agora descobria que estava enganada. Quando chegaram à casa dos Mapes, encontraram DeDe

sentada na cadeira de balanço do terraço. Ela parecia estar esperando aquela visita, como se soubesse

que seria informada dos últimos acontecimentos. Aquela calma deliberada era a atitude típica de alguém que antecipava o choque, preparando-se para tal.

DeDe ofereceu a cadeira ao lado para Melissa, e George permaneceu em pé, nos degraus do terraço.

Após ouvir as notícias sobre Philip, ela ficou em silêncio, mantendo o olhar perdido na direção do lago Ontário, que brilhava no horizonte. O sol aparecia, de quando em quando, por detrás das nuvens. DeDe levou alguns segundos para refletir sobre o que acabara de ouvir.

— Conheço Butch Roemer desde o jardim da infância — disse finalmente. — Numa cidade pequena, isso é comum. Muitos de nós ficam por aqui durante toda uma vida. Houve uma época em que Butch se interessou por mim. Para ser sincera, cheguei a gostar da idéia de tê-lo como namorado. Levaria o caso avante se não tivesse conhecido Reggie.

Mais uma vez, ela se calou. Melissa pensou em dizer algo relacionado ao motivo que a levara ali, mas se conteve. DeDe era tão cautelosa quanto a maioria dos habitantes do norte do Estado. A cautela significava despender algum tempo para avaliar todos os aspectos do problema.

— Conheço Butch Roemer melhor do que ninguém — continuou ela. — E esperto para uma série de circunstâncias. — Virou-se para Melissa, encarando-a.

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— Mas desta vez está enganado. Reggie morreu. Tenho certeza disso.

— Como pode ter tanta certeza? — indagou Melissa, imaginando que DeDe possuísse alguma prova oculta, não revelada.

— Se levei dez minutos para convencê-la sobre o remédio caseiro para sua bolha, precisarei de uma eternidade a fim de levá-la a crer no que estou dizendo.

— Tente. — Melissa estava pronta para acreditar em qualquer argumento que explicasse os últimos acontecimentos.

— É bem simples — começou ela. — Reggie está morto, mas não se foi. Ao menos não inteiramente.

— Como? — As esperanças de Melissa desapareceram num piscar de olhos.

— Se não consegue acreditar no que digo, por que insiste em perguntar?

O que a amante de Philip acabara de dizer era muito semelhante às insanidades proferidas pela mãe de Melissa.

Mas DeDe poderia ser considerada uma jovem inteligente e responsável. Merecia, ao menos, ser ouvida.

— Tenho minhas dúvidas também, como você. Mas viver nesta região torna a pessoa mais aberta às novidades. Talvez seja por isso que muitos tenham morrido na tentativa de sobreviver aqui. — De novo, o olhar de DeDe perdeu-se nos campos de Tug Hill. — Mesmo antes do índios, os habitantes eram enterrados nesta terra. Existem várias almas vagando pelo vento, como dizem. Foi uma brisa forte que trouxe Reggie até minha casa.

— Quer dizer, depois do acidente de avião? — perguntou Melissa.

— Umas duas semanas depois — revelou DeDe. — E não foi apenas uma vez. Mas não pense que Reggie veio fantasiado de fantasma. Eu não podia vê-lo como vejo você. Era somente uma sensação, uma presença forte.

— O mesmo que ser envolvida por essa presença — murmurou Melissa, recordando-se da experiência que tivera nos escombros, da descrição de Hildy, do som da flauta e tudo o mais.

— Exatamente! — exclamou DeDe. — Você definiu muito bem. Envolvida. Foi assim que me senti. Ele me rodeava, sua alma parecia

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resvalar meu corpo. E conheço Reggie o suficiente para poder senti-lo.

— Imagino que o conheça bem mais do que eu.— Desculpe-me. — DeDe segurou a mão de Melissa.— Não pretendia desrespeitá-la. Sei que você era a esposa, e

eu a amante. — Não considero um desrespeito. — Sei quanto lhe custou vir até aqui para me contar, as

descobertas sobre Reggie. Não precisava fazer isso, e quero que aceite minha gratidão. Acredite-me, ele não está vivo. Pelo menos, não como nós estamos. Espero que isso possa confortá-la.

Olhando para George e depois para Melissa, DeDe pareceu compreender o que havia entre ambos.

— Obrigada — agradeceu ela, levantando-se. — Vou mantê-la informada, caso obtenha outras informações. — Deus a abençoe — disse DeDe, e segurou-lhe o braço. —

Tome cuidado. Alguns espíritos que rodeiam este lugar não são tão amigáveis quanto Reggie.

Assentindo, Melissa suspeitou que DeDe se referisse aos espíritos vivos, embora não conseguisse esquecer o depoimento de Hildy sobre o ferimento.

Seria possível que o espírito de Philip tivesse cometido o ataque contra a antropóloga? Talvez ele não fosse tão amigável, afinal. Uma semana antes, Melissa se recusaria a acreditar em tal dedução.

Agora, não tinha certeza de nada. Tudo era possível. Principalmente naquela região, onde o vento soprava de forma diferente. George a esperava no último degrau do terraço.

Quando Melissa fez menção de ir até ele, divisou Davis Mapes, em pé, à soleira da porta. O irmão de DeDe vestia as mesmas roupas que usara quando ela o vira pela primeira vez.

Os cabelos pretos, despenteados, revelavam que o rapaz estivera dormindo. Mas o que disse em seguida indicava que estivera escutando boa parte da conversa.

— Minha irmã não está mentindo. O que ela diz é a pura verdade. Se houvesse alguma chance de Reggie estar vivo, DeDe já teria movido céus e terras. Ele só pode visitá-la desse jeito porque

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está morto. Ponho minha mão no fogo por isso. A raiva no rosto de DeDe quando perseguira o Lincoln pela

estrada surgiu na mente de Melissa. A mulher era temperamental. Davis estava certo em seu

julgamento. Sua irmã teria feito um escândalo se soubesse que Philip a traíra.

— Além disso — continuou Davis —, ela é a que mais entende de espíritos. Nossa avó costumava dizer que havia uma pequena bruxa dentro de minha irmã. Uma garota sensitiva, como ela própria chamava á neta.

— Fique quieto, Davis — ordenou DeDe. — Eles não querem ouvir essas histórias de caipira. Você precisa voltar para a barraca.

Resmungando, o moço dirigiu-se ao caminho de terra que dava acesso à barraca, passando por Melissa e George sem ao menos despedir-se.

— Não liguem para o que ele diz — aconselhou DeDe. — Meu irmão gosta de assustar as pessoas. Na maior parte do

tempo, não tem noção do que fala. Talvez, naquele momento, Davis tivesse muita noção do que

dizia. Quanto mais se afastavam da casa dos Mapes, mais a história de DeDe parecia inacreditável.

Quando chegaram ao acampamento, Melissa estava convencida de que viver tanto tempo numa região isolada transformara as preocupações da moça em algo mórbido. Contudo, não conseguia ignorar o pânico pelo simples fato de imaginar a alma de Philip vagando entre as árvores da floresta. Esse sentimento apavorante poderia explicar a vontade inesperada de convidar George para jantar. A noite chegava com lentidão, e Melissa não tinha a menor disposição de ficar sozinha.

Antes disso, resolveram passar pelo escritório do camping para telefonar ao hospital. O quadro de Hildy era estável. O ferimento na cabeça não lhe causaria danos irreparáveis. Naquele momento, ela dormia, enquanto os médicos a assistiam.

A enfermeira de plantão sugeriu que Melissa fosse visitá-la no dia seguinte.

Como estava cansada e sem vontade de dirigir, ela resolveu aceitar a sugestão. George, com certeza, teria lhe oferecido uma

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carona até o hospital, mas tê-lo ao lado no meio da noite a assustava. Melissa acreditou nos motivos que o haviam levado a

aproximar-se. O escândalo envolvendo a morte de Patrick Conti estava ligado aos negócios ilícitos de Philip. Mas ela ainda não entendia como. George tentava limpar o nome do irmão. Era uma explicação razoável para alguém se envolver numa situação confusa.

Melissa até acreditava que os sentimentos dele haviam mudado, com o desenrolar dos acontecimentos. Por outro lado, não tinha certeza de poder acreditar no futuro de ambos. Na realidade, uma união futura seria impossível.

Entregar-se à intimidade com George enquanto essas dúvidas pairavam no ar seria muito arriscado.

Mas naquele momento ela não queria ficar sozinha. O acam-pamento de Sonny estava deserto.

Os Delaney ocupavam-se da administração do camping. E Melissa não conhecia bem os outros vizinhos a ponto de convidar-se para passar a noite.

Portanto, restava George como companhia, apesar das emoções conflitantes que sentia por ele. A melhor alternativa seria mantê-lo ocupado naquele espaço confinado do trailer.

Pediu-lhe, então, que acendesse a churrasqueira. Não era necessário ficar vigiando o carvão, mas Melissa o instruiu dessa forma, e ele não discutiu. Talvez se sentisse tão incomodado quanto ela.

Talvez o fato de estarem sozinhos o perturbasse. Afinal, por que ele se envolveria com uma mulher tão confusa?

Por que não esperava que o mistério fosse esclarecido para depois se reaproximar? Melissa tentava agir normalmente, preparando o jantar e sentando-se para degustá-lo. Insistira em co-mer do lado de fora, apesar das nuvens carregadas no céu. A cozinha do trailer era pequena demais para alguém que pretendia fugir da intimidade.

A conversa se manteve num tom casual. Melissa encorajara George a contar histórias sobre sua infância naquela região. No princípio, ele hesitou. Depois começou a falar sobre o irmão, Patrick.

As peripécias dos dois foram relatadas com certa tristeza. Mas, aos poucos, George se empolgou e narrou às aventuras adolescentes

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de ambos. Melissa podia ver a tensão desaparecendo do rosto másculo.

Os ombros fortes relaxavam à medida que as histórias tornavam-se mais divertidas. Atenta ao relato, ela começou a relaxar também. Ria das trapalhadas dos dois irmãos.

A infância de George fora bem tranqüila. A dela, ao contrário, fora tumultuada, forçando-a a ter responsabilidades e preocupações muito cedo. Tornara-se adulta antes da hora. A juventude de George fora abençoada. Ele dividia esses anos de alegria de forma tão aberta que Melissa sentia-se participante ativa dessa fase. Viu-se soltando gargalhadas como uma garota sem compromisso. O céu escurecia, e ela nem notou a noite tomar espaço.

George, por ser mais cuidadoso, resolveu pegar algumas velas. A luminosidade das chamas oferecia um clima íntimo ao jantar.

Os primeiros pingos de chuva começaram a cair, tamborilando sobre o guarda-sol amarelo do deque. Mas ela não ouvia o barulho, pois sua atenção estava voltada a George. Por completo. De repente, Melissa escutou algo que não poderia ignorar. Ele também se calou para ouvir.

— Você ouviu isso? — murmurou ela, enquanto seu coração disparava.

— Sim. Não, não era uma alucinação. O que estava acontecendo, afinal? Por que alguém insistia em

tocar a música Greensleeves na flauta, em plena chuva? Bem, ao menos aquilo indicava que não era George o flautista. Certificando-se disso, Melissa respirou fundo, aliviada.

O som se afastava em direção à estrada. Ela pulou da cadeira e desceu os degraus do deque.

Correu ao encontro da melodia, que agora ecoava mais longe. A chuva, suave e quente, era mais uma garoa. Bem diferente

do dia em que ela ouvira aquela flauta pela primeira vez. Melissa corria sob os pingos sem sequer senti-los. Parou para

tentar ver algo, mas naquela escuridão era impossível. A melodia continuava.

Virando-se, ela se precipitou em direção ao trailer. George a seguira, e ambos se encontraram no meio do caminho.

— Venha comigo — disse ela, ofegante. — Sei para onde ele

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está indo.Sem maiores explicações, correu até o Lincoln. George hesitou

por um momento, e então a seguiu. Ainda chovia quando eles chegaram às ruínas indígenas. Como não se tratava de uma tempestade, a terra não estaria muito molhada e lamacenta.

As escavações de Hildy estavam protegidas pelas rochas. Quanto a Melissa, não era a chuva que a preocupava. Por isso sentia-se segura com a presença de George.

Voltando-se, olhou para trás, a fim de ter certeza de que ele a acompanhava. Lembrava-se com clareza dos eventos da noite anterior e de como ficara presa à poderosa força.

— Vá em frente. Estou bem atrás de você — tranqüilizou George.

Era difícil escutar-lhe a voz, pois a brisa leve transformava-se num vento forte. Aquela súbita mudança a apavorava.

O ar da noite estivera calmo até chegarem aos escombros. Melissa ignorou os temores. Não permitiria que aquele lugar lhe dominasse as emoções.

A flauta ainda era audível, e ela não tinha mais dúvidas quanto à identidade do flautista.

Sua intuição lhe dizia, com clareza. Talvez tivesse herdado algum poder psíquico da mãe. Fora praticamente arrastada àquele lugar. Não sabia ao certo o que a levara ali ou o que esperava en-contrar. Mas, de algum modo, aquelas perguntas seriam respondidas naquela noite.

O céu continuava nublado, tornando a noite ainda mais escura. Não havia nenhum sinal da lua, e as plantas cheias de espinhos que cobriam o terreno dos escombros pareciam aguardar o momento certo para atacar. Com a lanterna na mão, Melissa iluminava o cami-nho tortuoso.

Olhou para trás outra vez. A silhueta avantajada de George a encorajava. O solo estava mais sólido do que barrento.

Melissa tentava se convencer de que os pedaços de pedra a sustentariam. Pura ilusão. Lembrou de um documentário que vira na televisão sobre abalos sísmicos causando erupções na superfície.

Chegara a ter pesadelos depois de ver esse programa. Tal qual na época da infância, quando a precária vida com sua mãe a fizera

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ter sonhos escabrosos.Aquelas recordações perturbadoras não se apagariam com

facilidade, mas Melissa se esforçou. Ouvia, os passos de George logo atrás, esmagando folhas e galhos secos. Se fosse sugada pelas rachaduras do solo, ele a salvaria.

Com essa certeza em mente, ela se atreveu a alcançar as escavações dos Hildy com mais impetuosidade. Mantinha o feixe de luz junto ao chão, para não chamar atenção à sua chegada. Havia algo ou alguém naqueles escombros, e ela pretendia pegá-lo de surpresa.

Naquele momento, ouviu algo. Um arrepio percorreu-lhe a espinha enquanto o som agudo se

tornava mais forte, à medida que ela se aproximava. Caminhava diretamente ao encontro desse mistério.Pisou em um arbusto rasteiro e olhou para trás, avistando

George. Ele estava um pouco longe, mas visível. Queria poder perguntar-lhe se ouvira o mesmo som. Contudo, já

se encontravam bem próximos ao desafio. Os arbustos se tornaram mais altos. Melissa precisou se inclinar para entrar na trilha de terra.

Seria muito arriscado, mas estava decidida a enfrentar o risco. Entre os galhos das folhagens, enxergou uma sombra um pouco

difusa por causa da chuva a da escuridão. Apagou a lanterna e ouviu o som agudo, que se tornava mais regular agora.

Havia também o barulho da chuva. Centenas de pingos caíam sobre os galhos e as folhas da mata.

Aquela sinfonia pungente era acompanhada pelo cheiro de terra molhada. Melissa teria apreciado a beleza da noite, não fosse aquele barulho estranho.

O ruído parecia metal raspando sobre a pedra. Havia alguém nas escavações de Hildy. Melissa se virou para George. De alguma maneira, precisava dizer-lhe o que vira.

Talvez, se murmurasse, o som da chuva abafasse sua voz. No mesmo instante, notou que o vento abrandara. Ali, em meio aos escombros, havia somente o ruído suave da chuva, como se o vento velasse pela segurança dos antepassados indígenas. Melissa não gostava de pensar nisso. Mas não podia se esquecer de que aquele local era mal-assombrado.

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Foi um alívio avistar George se aproximando, surgindo entre os galhos dos arbustos. Não conseguia ver sua expressão. No momento em que ele se colocou ao seu lado, Melissa percebeu algo errado.

O adorável odor de terra molhada fora substituído por um cheiro diferente, exalando da pessoa que se aproximara.

E não se tratava de George. Óleo de motor! Ela sentia o cheiro de óleo de motor! Ao pegar a lanterna para acendê-la, uma mão forte agarrou-lhe

o braço, impedindo-a. Ela se debateu, mas na posição em que se encontrava não podia lutar muito.

O homem que a segurava era mais baixo do que George, mas grande o bastante para submetê-la. Principalmente por ela ter sido pega de surpresa. A lanterna caiu e ele a agarrou pela cintura.

— Desista, minha jovem — dizia a voz familiar. — Você já ficou tempo demais fora de casa. Agora está encrencada.

Levantando-se, ele a puxou. Melissa não conseguia identificar a voz.

— Quem é você?— Acho que não fará diferença saber quem sou. Você e seu

namorado não sairão vivos daqui. Em todo caso, meu nome é Charles Gillis. Lembra-se? Funcionário do aeroporto.

— O mecânico do avião de Philip!— Isso mesmo, querida. — Ele ria e a puxava em direção às

escavações. — O melhor mecânico da cidade. Experiente o bastante para provocar uma explosão, fazendo parecer apenas um acidente.

O barulho metálico cessara. Enquanto Gillis empurrava Melissa, uma luz ofuscou-lhe os olhos. Tentava imaginar por que o avião de Philip fora sabotado.

— Apague as luzes! — gritou Gillis. — Sou eu! Já cuidei dos intrusos!

— Tem certeza? Aquela voz pertencia, sem sombra de dúvida, a Son-ny Shannon. Ele apareceu, segurando uma pá.

— Tenho certeza — respondeu Gillis. — Dei uma pancada na cabeça de Conti. Foi tão violenta que ele irá dormir durante uma semana. Encontrei essa moça aqui entre as folhagens.

Atrás de Sonny, um buraco fora aberto na extremidade da

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parede das ruínas. Poucos metros adiante se encontrava o local onde Hildy escavara. Ao lado do monte de terra, havia um enorme saco de plástico preto.

Sonny seguiu o olhar de Melissa em direção àquele saco. Um sorriso pavoroso surgiu em seu rosto.

— Eu o enterrei ali, no ano passado.— Philip? — perguntou ela. — Isso mesmo. O corpo do velho Philip, ou Reggie, tem estado

aqui desde então. E não no cemitério de Syracuse, como você pensava.

— Como ele morreu? — perguntou Melissa, sentindo ser essa a primeira vez que recebia a notícia da morte de Philip.

— Charlie e eu o vimos dar o último suspiro.— É — confirmou Gillis, iluminando o rosto de Melissa. — Pena

que ele tenha morrido tão cedo. — Cale a boca! — esbravejou Sonny.— Qual é o problema? — rebateu Gillis. — Não quer que a dama

saiba o que aconteceu?— Eu disse para calar a boca! — Se eu tivesse aqueles gorilas atrás de mim, também

pressionaria o marido dela até ele contar onde escondeu o dinheiro. E não gostaria que ninguém ficasse sabendo disso.

— Foi um acidente. Como eu podia adivinhar que o coração do infeliz pararia antes que eu pudesse fazê-lo falar?

— Nossos amigos pagam você para saber esse tipo de coisa — rebatia Charlie. — E não para torturar.

Largando a pá, Sonny puxou uma arma. Talvez até estivesse com ela o tempo todo. Melissa não sabia precisar. Mas agora estava atenta a tudo. O olhar furioso de Shannon estava direcionado a Charles Gillis.

O mecânico soltou o braço de Melissa para se defender. A pá se encontrava muito longe para ela poder alcançá-la.

Mas havia uma picareta próxima ao corpo estendido no chão, suja de barro. Num movimento rápido e preciso, Melissa afastou-se de Gillis e pegou a picareta. Agora, só precisava apanhá-los de surpresa.

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Erguendo a picareta no ar, bateu com força na nuca de Sonny. O policial corrupto caiu no chão, desfalecido. A pancada, no mínimo, fizera belos estragos na cabeça do infeliz. No mesmo instante, Gillis tomou a arma de Sonny e precipitou-se em direção a Melissa.

Ela largou a picareta, sabendo que o mecânico poderia rendê-la, usando de brutalidade. No entanto, o homem atravessou o corpo de Philip, caindo ao pés dela como um saco vazio de batatas. Dando um passo atrás, ela olhou para baixo. Gillis poderia recuperar a arma e atirar. Mas o pobre jazia ao lado de Sonny. Teria o mecânico tropeçado no corpo de Philip?

— Ele deveria saber que sou muito cabeça-dura quando resolveu me dar aquela coronhada.

Reconhecendo aquela voz, ela virou-se. Viu George em pé, ao lado dos corpos. A luz da lanterna iluminava o rosto másculo. Era a mesma expressão que Melissa vira quando o encontrara pela primeira vez. Não conseguiu divisar o brilho dos olhos azuis, mas não tinha a menor dúvida de que estavam sorrindo.

EPÍLOGO

Naquela manhã, Melissa dirigia-se à casa dos Mapes. Só que, ao contrário do primeiro dia, agora tinha uma tarefa pela frente: ajudar DeDe e os irmãos a empacotar seus objetos e fazer a mudança. Ela passara a casa de Philip para o nome da moça. Sonny Shannon e Charles Gillis haviam sido transferidos para a prisão estadual, acusados de atacar Hildy e de arrombar o trailer de Melissa.

Sobre Charles também pesava a suspeita de ter atirado na caminhonete de George. Mas a acusação mais pesada referia-se a assassinato e fraude monetária.

Os dois confessaram ainda ter armado a cilada que matara Patrick Conti, porque ele investigava as transações de Reggie Williams.

Sonny plantara os dólares falsos para implicar Patrick e afastá-lo do esquema da lavagem de dinheiro empreendido pela empresa de Philip.

A exumação do cadáver de Patrick revelara super-dose de

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drogas, que Sonny colocara em seu café da manhã. Isso explicava a morte trágica: e sem pistas do rapaz. Ele ainda teve a honra do nome resgatada, desvinculada de envolvimentos ilícitos, e recebeu uma homenagem pública como herói da polícia.

Sonny e Charlie haviam tomado conhecimento do plano secreto de Philip, de simular o acidente de avião e saltar de pára-quedas antes que a aeronave explodisse. Ele pretendia ficar sozinho com todo o dinheiro obtido pela operação-lavagem. Os dois, vendo-se enganados, decidiram segui-lo e o torturaram até a morte. Ninguém sabia onde os dólares se encontravam até o dia em que George resolveu vasculhar a casa dos Mapes, depois de seu carro ter levado um tiro na estrada. Naquele dia, notou um buraco falso no galpão dos fundos da residência. Mais tarde, ao voltar lá, descobriu que Philip escondera ali o dinheiro.

— Mal posso acreditar que meu acidente ajudou a pôr fim a esse mistério! — disse Hildy, que, com a cabeça cheia de bandagens, também participava da mudança.

— Mas é isso mesmo — falou Davis Mapes. — Sonny pensou que a grana podia estar nas escavações e, para procurá-la, tinha que afastar você de lá. Na verdade, o grande responsável por todas essas tragédias foi Reggie. — Assim que acabou de falar, olhou para Melissa.

— Desculpe. Alguém precisa cortar essa minha língua comprida. — Não se preocupe — respondeu ela. — Philip pertence ao

passado. Deixemos que descanse em paz. Agora, só quero pensar no futuro.

— Pois espero que, no futuro, você não erre de estrada quando quiser acampar... — zombou George, passando os braços em torno da cintura delicada. Melissa sorriu. — Sem erros. De agora em diante, minha estrada tem acesso direto a você.