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ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO*Rodrigo Naves

RESUMO

Com foco na tela Caipira picando fumo,este artigo analisa a obra do pintor Almeida Jnior (1850-1899).O autor discute o tratamento concedido pelo artista ao meio social, natureza,aos tipos humanos,s peculiaridades regionais.Adiante,problematiza a idia de nacionalidade em sua obra,marcada por instabilidades de forma que dialogam com a tradio crtica do determinismo naturalista. PALAVRAS-CHAVE: Almeida Jnior; nacionalismo; determinismo naturalista; pintura brasileira.SUMMARY

Focusing the painting Caipira picando fumo, this article analyses the work of the Brazilian painter Almeida Jnior (1850-1899).The author discusses the way the artist used to depict the social environment,nature,human types and regional particularities.Further on,he puts into question the idea of nationality in Juniors work,which is best understood ifseen against the framework oftheories such as the naturalist determinism. KEYWORDS: Almeida Jnior; nationality; naturalist determinism; Brazilian painting.

[*] Este ensaio foi apresentado no ciclo Histria da Arte Brasileira no Acervo da Pinacoteca, organizado por Tasa Helena Palhares, em 17 de maio de 2003. [1] O movimento das mos do caboclo neste quadro sempre me intrigou. De fato, nunca vi ningum picar fumo dessa maneira, ou seja, movendo a lmina de cima para baixo. Essa posio corresponde mais, a meu ver, ao de descascar laranja. No entanto, vrias pessoas que consultei acham plausvel essa posio. Certamente,isso no muda em nada a qualidade da tela de Almeida Jnior.

O sol forte no parece incomodar o homem sentado nos degraus da casa. Uma tarefa singela concentra toda sua ateno: picar fumo, atender a um pequeno vcio. No se trata propriamente de trabalho.E sua concentrao corresponde ao aspecto caprichoso da atividade. Absorto, suas feies no revelam a tenso de quem necessita alcanar um objetivo preciso.Basta se deixar levar pelos movimentos conhecidos das mos1.O alheamento reduz sua presena fsica e torna-o menos suscetvel ao calor,em proveito de um momento de intimidade,de quem se v entregue ao ritmo errante das divagaes. Ao fundo, a porta entreaberta e a sombra do interior da habitao reforam a atitude ensimesmada do caipira,como se o abrigo fsico da casa ecoasse a proteo evocada pelo recolhimento psicolgico, numa quase figurao do que costumamos chamar interioridade2.NOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 135

Apenas essa intimidade protetora separa de maneira mais acentuada o caipira do ambiente em que se encontra e o resguarda da indiferenciao que permeia toda a tela. A luz forte e os tons muito aproximados tendem a romper ameaadoramente a distncia entre todos os elementos do quadro.Cultura e natureza,homem e coisas tm traos demais em comum,e quase poderiam estar um no lugar do outro.O cho do terreiro se transporta com pouqussimas nuances para a parede de pau-apique. E entre terra e terra as separaes so tambm muito rsticas: degraus toscos e carcomidos pelo tempo,apoiados em estacas precrias, um madeirame que j deixa para trs as marcas do trabalho humano e retorna condio natural.Monteiro Lobato,antes de mudar suas idias sob a influncia do movimento higienista de Belisrio Penna e Miguel Pereira,entre outros,dir da choa do caboclo brasileiro:To ntima a comunho dessas palhoas com a terra local, que dariam idia de coisa nascida do cho por obra espontnea da natureza se a natureza fosse capaz de criar coisas to feias3.Impossvel melhor descrio.Posteriormente, ainda na mesma dcada, Lobato considerar Almeida Jnior a madrugada do dia seguinte4 da pintura brasileira. Fisicamente,tambm o homem se distancia pouco desse meio rude. A roupa simples est gasta como aquilo que o cerca.A camisa branca cortada pobremente, sem botes , em lugar de realar a figura humana,torna mais forte a luz do sol,que age sem piedade sobre seu corpo.As palhas de milho espalhadas pelo cho tm um tom semelhante ao da camisa e ajudam em sua disperso a reforar a precariedade da vestimenta. As calas, sobretudo a perna direita, tm manchas de terra. Nada se afasta definitivamente do cho.As partes descobertas do corpo do caipira tambm tm um tom prximo ao da terra. Crestada pelo sol, sua pele revela a aspereza da vida passada compulsoriamente junto natureza. As mos e, sobretudo, os ps sofreram no contato constante com o meio,e se deformaram,adquirindo um aspecto erodido e arredondado dos elementos submetidos longamente fora dos elementos. Monteiro Lobato afirma que a verso definitiva de Caipira picando fumo seria inferior ao estudo que tambm pertence coleo da Pinacoteca.Enquanto o estudo teria sido (...) feito ao ar livre,com a alma do artista impregnada do tema,a edio ampliada (o que tambm ocorreria com Amolao interrompida) tem (...) todos os leves defeitos duma segunda edio ampliada, preparada s pressas para exclusivos fins comerciais5. Contudo, se a verso definitiva pode ter perdido algo do frescor do estudo livre, ela ganhou muito em realismo e em consonncia com o tema. A diferena bsica entre os dois quadros o clareamento geral a que Almeida Jnior submeteu a segunda verso.No estudo,os contrastes entre claros e escuros so mais marcados e os volumes um tanto mais acentuados,o que d maior solidez s coisas e reala levemente a figura do caipira em relao ao fundo.Sem falar que no estudo a figura do matuto proporcionalmente maior do que no quadro final, e com isso todo o espao se articula com mais fora e determinao. Na136 ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO Rodrigo Naves

[2] Maria Ceclia Frana Loureno, autora da mais ampla pesquisa sobre a obra de Almeida Jnior (a dissertao de mestrado Revendo Almeida Jnior, defendida na ECA-USP, em 1980), chama a ateno para essa dimenso ntima nas telas regionalistas do pintor. Ver Almeida Jnior e a expresso de valores. Em Almeida Jnior um artista revisitado. So Paulo, Pinacoteca do Estado de So Paulo,2000,p.14.

[3] Velha praga. Em Urups. So Paulo, Brasiliense, 2002, p. 162. Esse artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo,em 1914. [4] Almeida Junior. Em Idias de Jeca Tatu.So Paulo,Brasiliense,1959, p. 79. No aparente paradoxo entre a crtica ao caipira e o apoio pintura regionalista de Almeida Jnior, como veremos adiante, residem algumas das razes que ajudam a entender a importncia que a pintura de Almeida Jnior adquiriu entre ns, sobretudo para os paulistas.

[5] Almeida Junior.Op.cit,p.823. Almeida Jnior no costumava fazer desenhos preparatrios para suas telas e os esboos eram pintados a leo.Ver ensaio de Maria Ceclia Frana Loureno j citado, p. 14. Em Caipira picando fumo, Almeida Jnior usou como modelo um caboclo da regio,apelidado Quatro-Pau ou Quatro-Paus, em referncia carta mais alta do truco e provavelmente uma evidncia das habilidades do personagem. Em relao a isso, ver Vicente de Azevedo. Almeida Jnior. O romance do pintor. So Paulo, edio do autor,1985,p.63.

[6] Modesto Brocos,espanhol,chega jovem ao Brasil e estuda na Academia Imperial de Belas Artes, indo posteriormente aperfeioar-se na Europa,como costumava ocorrer com os alunos mais bem sucedidos da Academia. Antonio Ferrigno j tinha formao artstica quando chega a So Paulo,onde fica de 1893 a 1905,retornando Itlia,onde morre.

tela final, no s os tons se aproximam como a sombra introduzida no canto inferior direito (inexistente no estudo) aumenta, por contraste, a fora do sol e por conseqncia o movimento de aproximao de todas as coisas,para o que o clareamento da paleta tambm contribui decisivamente. E fica difcil no pensar em certos trabalhos do incio da produo de Monet Jardim em flor (1866),Mulheres no jardim (18667), nos quais o recurso a reas de sombra para intensificao da regies iluminadas tambm foi usado quando observamos o recurso de que lana mo aqui Almeida Jnior. No entanto,o que realmente importa ressaltar em relao a Caipira picando fumo o contraste entre a aridez do ambiente e a relativa serenidade do caboclo. Prensada entre a sombra do telhado ao alto e a das folhagens no canto inferior direito, a regio de luz funciona como uma estufa.E ento fica difcil no associar a desolao da cena intensidade do clima. E se a atitude absorta do caipira o livra em parte do castigo do sol, isso ocorre por uma espcie de renncia asctica em lugar de provir de uma atividade que submeta a natureza a desgnios humanos. Nesta tela o homem sofre o meio,em vez de determin-lo.Mas convm ressaltar como Almeida Jnior soube encontrar uma maneira de pintar que condiz muito com o tema.Tambm sua pintura pelas relaes tonais rebaixadas,no papel jogado pelos detalhes do quadro,pela arguta representao da luz se nega a representar o ambiente caboclo de maneira pitoresca.H a uma recusa a representar o caipira por meio de contrastes midos e sugestivos dos pequenos arranjos que emprega para tocar a vida. A pintura mesma de Almeida Jnior ao menos nesta tela tem algo da fragilidade da vida que descreve,na qual o trabalho humano no interveio na realidade de forma a garantir proteo a homens e mulheres. A comparao deste quadro com outras obras da poca que tratam de temas semelhantes ajuda a identificar as particularidades da arte de Almeida Jnior. Tanto Modesto Brocos (1852-1936) quanto Antonio Ferrigno (1863-1940) estrangeiros que vm para o Brasil e que so contemporneos de Almeida Jnior6 tm obras tematicamente prximas a Caipira picando fumo. No entanto, vistas mais detidamente, fica claro que para eles a cena rural ou suburbana era ocasio para uma pintura de costumes tradicional, na qual certos episdios cotidianos serviam para fixar acontecimentos ao mesmo tempo singulares e representativos de uma cultura e de um lugar momentos em que contrastes prosaicos pareciam reunir o pitoresco aos extratos mais reveladores de um modo de vida.Nessa arte mesmo os temas mais humildes tornam possvel uma pintura marcada por uma paradoxal exuberncia modesta, na qual a figura de uma negra escrava se v adornada pelos detalhes saborosos que a envolvem,como acontece em Mulata quitandeira (s/d),de Antonio Ferrigno,pertencente ao acervo da Pinacoteca.Ou ainda quando pessoas de diversas raas servem de figurantes a uma parbola edificante,como no quadro Redeno de Cam (1895,MNBA),de Modesto Brocos. A, o elogio do embranquecimento da populao brasileira temNOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 137

um tom quase propagandstico7, de par com uma pintura atravessada por uma riqueza de detalhes pattica,que tende apenas a dar um aspecto arejado a um significado absolutamente preconceituoso.Nesses quadros,nada revela a aridez que rege a tela de Almeida Jnior.Ao contrrio, uma diversidade mida apenas nos distrai e enleva, afastando-nos da pobreza que lavra entre aquela populao. ii O sol o grande personagem deste Caipira picando fumo. O homem que se ajeita meio a gosto na porta da casa pode at conviver bem com ele. Mas no est a sua altura. O cismar que o protege tambm o impede de agir e o que domina o quadro a exterioridade majestosa da luz e do calor que parecem apenas tolerar a presena daquilo que ainda no foi reduzido a eles. Essa nfase no meio natural pe esta obra de Almeida Jnior em contato com uma srie de manifestaes culturais daquele perodo que ajudaro a compreender melhor a extenso e o significado dessa tela e, talvez, da parte mais significativa da produo do pintor.Ser necessrio portanto um pequeno desvio antes de voltarmos pintura de Almeida Jnior. Num ensaio dos anos 1990, Antonio Candido faz uma anlise muito esclarecedora de O cortio, de Alusio Azevedo, livro publicado com grande sucesso em 1890, trs anos antes da realizao do quadro que estamos analisando8.O objetivo de Antonio Candido encontrar as singularidades do livro brasileiro em relao a LAssommoir, de Zola, indiscutivelmente a fonte de inspirao para o romance de Alusio Azevedo.Mas,para os efeitos de minha anlise,interessa principalmente destacar certos aspectos da anlise de Antonio Candido, que revela com preciso como o naturalismo de Alusio Azevedo enfatizar sobretudo o sol como o elemento definidor do meio brasileiro meio esse que para todos os naturalistas constitua uma das chaves para a compreenso das atitudes humanas, de par com a hereditariedade (raa) e outras determinaes biolgicas ,ainda que o sol possa se infiltrar nos homens pela mediao tnica da mulata,figura racial que tambm faz as vezes de elemento quase natural. O cortio se organiza no apenas em torno da habitao coletiva que d nome ao livro, mas tambm na oposio entre as figuras de Joo Romo e Jernimo,ambos portugueses imigrados e de origem humilde, e cujas atitudes diametralmente opostas em relao ao meio brasileiro conduziro a desfechos antitticos. A trajetria de Joo Romo a da formao da riqueza individual9. Pelo trabalho mas tambm pela explorao mais desabrida,vai de empregado de um vendeiro a homem rico, dono de propriedades e prestes a mudar radicalmente de posio social pelo casamento com a filha de um nobre parvenu,o Miranda.Jernimo, por sua vez, surge como trabalhador exemplar e vai aos poucos sucumbindo natureza do pas,simbolizada por Rita Baiana:Naquela138 ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO Rodrigo Naves

[7] Ver Lilia Moritz Schwarcz. O espetculo das raas. Cientistas, instituies e questo racial no Brasil, 18701930. So Paulo, Companhia das Letras,2002,pp.11 e 12.Cam era um dos trs filhos de No. No Gnesis, l-se que Cam teria surpreendido o pai nu e bbado.Uma leitura preconceituosa da Bblia fez desse gesto a razo de ser Cam o suposto fundador da raa negra, cuja escravido nos tempos modernos seria um castigo pelo ato vergonhoso de seu ancestral.

[8] De cortio a cortio.Em Novos estudos, n. 30. So Paulo, Cebrap, julho de 1991,pp.111-129.

[9] Idem,p.115.

[10] Alusio Azevedo. O cortio. So Paulo, Abril Cultural, 1981, p. 78. Citado por Antonio Candido na pgina 122.

[11] Idem,p.49.

[12] Antonio Candido. Op. cit., pp. 120 e 123.

[13] Thomas E. Skidmore. Preto no branco. Raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. RJ, Paz e Terra, 1976. A obra j citada de Lilia Moritz Schwarcz tambm ajuda a esclarecer essas questes. [14] Skidmore,op.cit.,p.44 ss e 49-50.

[15] Henry Thomas Buckle. Apud Skidmore,op.cit.,p.44-5.

mulata estava o grande mistrio, a sntese das impresses que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda;era o aroma quente dos trevos e das baunilhas,que o atordoavam nas matas brasileiras10. Enquanto Joo Romo resiste ao meio e se impe a ele, Jernimo cede ao sol onipresente.E a Alusio Azevedo faz uma passagem astuciosa entre meio natural e raa.Jernimo at certo momento suporta o trabalho estafante na pedreira de Joo Romo, agentando um sol que parece sado da tela de Almeida Jnior:Meio-dia em ponto.O sol estava a pino; tudo reverberava luz irreconcilivel de dezembro, num dia sem nuvens.A pedreira,em que ela batia de chapa em cima,cegava olhada de frente. Era preciso martirizar a vista para descobrir as nuances da pedra (...)11. Mas o sol subreptcio a mulata Rita Baiana termina por amolec-lo,levando-o progressivamente ao desleixo e decadncia. Por uma manobra sagaz, Alusio Azevedo no deixa que Jernimo sucumba natureza em suas relaes diretas com ela: o trabalho na pedreira.O sol se apodera do portugus pela mediao da raa a mulata Rita Baiana , ampliando o raio de ao do meio e a envergadura de suas influncias, ainda que sob a pena de um indisfarvel preconceito racial. Derrubar Jernimo no lugar mesmo de seus maiores esforos desautorizaria em parte o otimismo naturalista no poder regenerador do comportamento ativo e empreendedor. E Antonio Candido mostra como essa valorao negativa da natureza, principalmente num pas de civilizao incipiente, invertia a idealizao promovida pelos romnticos e perturbava a vida intelectual brasileira,marcando-a com um pessimismo que reforava a dominao colonialista, j que fazia da natureza brasileira algo avesso s virtudes da civilizao12. No era porm apenas o determinismo naturalista que tinha grande influncia no pas. Outras teorias mesolgicas conquistaram significativo trnsito entre as camadas letradas do Brasil,reforando a viso negativa que fazamos de ns mesmos. Thomas E. Skidmore13 mostra como as poucas pginas dedicadas ao Brasil por Henry Thomas Buckle (1821-62) em seu History of civilization in England tiveram grande penetrao no pas,a ponto de serem traduzidas (e com aprovao) por ningum menos que Silvio Romero14.Para Buckle,no Brasil to luxuriante a vegetao que a natureza parece desregrar-se na ostentao de seu poder (...),em meio a essa pompa e fulgor da natureza,nenhum lugar deixado para o homem.(...) Em nenhum outro lugar h to penoso contraste entre a grandiosidade do mundo exterior e a pequenez do interno15. Praticamente impossvel no lembrar do caboclo de Almeida Jnior a cismar em meio a um calor paralisante. E essas avaliaes em torno da natureza tm tanta influncia que mesmo no incio do sculo seguinte elas iro ecoar (ainda que problematizadas) em obras como Os sertes, de Euclides da Cunha, e Cana, de Graa Aranha. Mesmo Milkau,o personagem de Cana que acredita na possibilidade de triunfar sobre a natureza brasileira por meio do trabalho, afirmar: Aqui oNOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 139

esprito esmagado pela estupenda majestade da natureza... Ns nos dissolvemos na contemplao16. A aceitao no Brasil de um pensamento que praticamente inviabilizava a civilizao no pas no se explica porm apenas por um forte sentimento de inferioridade, que conferia s metrpoles o poder de antecipar o curso da histria e os pases aptos a trilh-lo. Uma estratificao social das mais perversas fazia com que esses determinismos de vrios matizes cassem como uma luva num ambiente em que tudo conspirava para um causalismo sem remisso, j que por muito tempo o trabalho escravo condenou uma grande parcela da populao justamente aquela que trabalhava simples condio de correia de transmisso. Nos romances do prprio Zola os conflitos e complexidades da sociedade francesa abrandavam a tentativa de reduzir a vida a processos causais simples,e basta ler Germinalpara se ter uma idia precisa disso.E,apenas para voltarmos momentaneamente pintura,me parece que a defesa que Zola fez de Manet e dos impressionistas que, de resto, ele punha na conta de naturalistas, mas que sem dvida se afastavam muito de sua esttica se deve no apenas sua receptividade aos novos movimentos,como tambm e principalmente fora com que esses artistas e suas obras buscavam se diferenciar da tradio e do pensamento artstico dominante.No era o caso do Brasil. E o que teria Almeida Jnior a ver com tudo isso? praticamente impossvel provar essas filiaes, embora vrios aspectos da obra e da biografia do pintor conduzam nessa direo. Almeida Jnior nasceu numa famlia empobrecida de Itu, no interior de So Paulo, e toda uma literatura de Gonzaga Duque a Lus Martins se esforou em fazer dele uma espcie de prottipo de seus tipos caipiras, garantindo assim maior verdade a seu trabalho17.No entanto,o artista esteve quatro vezes na Europa18, parece ter estudado muito em sua primeira estada em Paris19, conhecia consideravelmente a produo artstica e intelectual francesa e em So Paulo conviveu com crculos acostumados a essas discusses,j que teorias como o naturalismo,o darwinismo social e o positivismo tinham livre trnsito entre eles.Sua sensibilidade para as injunes entre meio social, natureza e produo artstica fica clara no que deve ser seu nico texto publicado em vida20,no qual no s aponta (...) as dificuldades extraordinrias em interpretar e reproduzir a natureza brasileira21 quanto os entraves colocados (...) pelo mau gosto muitas vezes intolervel do pblico22. A meu ver,porm, antes de tudo sua pintura que d provas de seu envolvimento com as questes levantadas atrs. Embora tenha estudado em Paris com Cabanel espcie de sumo sacerdote do academicismo declinante ,depois de ter passado pelas aulas de Vtor Meireles na Academia de Nacional de Belas Artes, Almeida Jnior, em suas produes mais independentes (as chamadas telas regionalistas ou caipiras), pe de lado as idealizaes consagradas pela academia. De par com produes acomodadas como Pintura alegoria (1892)140 ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO Rodrigo Naves

[16] Graa Aranha. Cana. Rio de Janeiro,F.Briguiet,1959,p.40.

[17] Gonzaga Duque escreve: (...) deste modesto provinciano, inalteravelmente roceiro, surgio um artista de valor(...) Corot era tambm de um typo similhante: pequeno, robusto, tez tostada pelo sol, olhos pequeninos e azues. Em A arte brasileira. Rio de Janeiro, H. Lombaerts, 1888, p. 155. Lus Martins cita, endossando, palavras de Bazilio de Magalhes, que afirma que mesmo em Paris o pintor (...) conservava sempre o seu inato caipirismo, na fala, no trajar, nas tendncias e nas idias (...). Lus Martins. Almeida Junior, em Revista do Arquivo Municipal.So Paulo,Departamento de Cultura, LXVI, 1940, p. 7. Monteiro Lobato diz que Almeida Jnior (...) paulista da velha tmpera, caboclo de bem. Op. cit. p. 85. Afirmaes como essas permeiam boa parte da literatura sobre Almeida Jnior. [18] Sua estada mais longa foi de 1876 a 1882,quando esteve como bolsista de D. Pedro II estudando em Paris, tendo viajado tambm para a Itlia. Posteriormente, esteve na Europa, mais rapidamente, nos anos de 1887,1891 e 1896.Ver a dissertao de Maria Ceclia Frana Loureno, j citada,pp.15-19.

[19] Essa afirmao feita pelo seu primeiro bigrafo, Gasto Pereira da Silva. Almeida Junior. Sua vida e sua obra. So Paulo, Editora do Brasil, 1946,pp.78-9. [20] Filinto de Almeida, crtico de O Estado de S. Paulo, na anlise de uma exposio de Benedito Calixto, ataca duramente o pintor texto publicado em 23.7.1890 ,e invoca uma conversa que teria tido com Almeida Jnior para reforar seus argumentos. Almeida Jnior sai em defesa de sua honra num artigo publicado no Correio Paulistano em 3.8.1890. Esse artigo se encontra republicado na dissertao de Maria Ceclia Frana Loureno,pp.211-16. [21] Idem,p.213. [22] Idem,ibidem. [23] Ver o ensaio j citado de Maria Ceclia Frana Loureno,p.14. [24] Outros dados mais ou menos episdicos ajudariam a comprovar os laos de Almeida Jnior com as vertentes intelectuais mencionadas, como a simpatia que o crculo organizado em torno da Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo tambm ele fortemente marcado pelas teorias deterministas nutria por sua obra.E no me parece casual que o mais famoso escritor naturalista de So Paulo,o mineiro Jlio Ribeiro, mencione o pintor em seu livro mais conhecido, A carne (1888), quando a personagem principal, a emancipada e culta Lenita, imagina construir em So Paulo uma casa decorada por Aurlio de Figueiredo e Almeida Jnior. So Paulo, Editora Trs,1972,p.58. [25] Esse texto foi distribudo pelo artista por ocasio da exposio pblica de Partida da mono (1897).Embora o carter histrico do quadro certamente pea o tom edificante, se lembrarmos que as mones duraram at por volta de 1830,portanto pouco anteriores poca em que se situam os personagens de Almeida Jnior, no parece descabido estabelecer um nexo entre os destemidos e ousados sertanejos dessas expedies e a gente retratada pelo pintor.Esse texto se encontra republicado na dissertao de Maria Ceclia Frana Loureno,na p.217. [26] Reproduo fac-similar de A Bohemia no catlogo da Pinacoteca mencionado anteriormente,p.6.

ou Batismo de Jesus (1895), ambas pertencentes Pinacoteca, o pintor tambm se inclina para um realismo mais prximo das preocupaes de Courbet, artista que admirava23. Ora, fica difcil se aproximar do mestre do realismo sem pr a verdade no lugar da beleza, com o que os vnculos com as teorias de Taine e Zola se construiriam a despeito de sua vontade. Por outro lado, quase todas suas telas regionalistas que no se reduzem a uma nica fase de sua produo enfatizam essa relao complexa (e, diria, subordinada) com o meio, como mostram Apertando o lombilho (1895),Cozinha caipira (1895),mas tambm Derrubador brasileiro (1879), Caipiras negaceando (1888), Saudade (1899),Nh Chica (1895),Amolao interrompida (1894) e mesmo Violeiro (1899). Principalmente nas duas primeiras telas mencionadas,as figuras humanas,ainda que envolvidas com trabalhos,mal se deixam apartar do meio que as envolve um meio em que, como no Caipira picando fumo, cultura e natureza trocam constantemente de posio,a ponto de a cozinha em que a mulher moureja ter mais o aspecto de um covil do que de uma habitao humana24. iii Contudo, a condenao que os determinismos nos impunham no parece ter, nas telas de Almeida Jnior, a efetividade prometida. Paradoxalmente, seus personagens regionais quase sem exceo submetidos quelas condies adversas que impediriam o advento da civilizao no pas nunca (at onde sei) foram vistos pejorativamente,como exemplos de uma espcie degradada e impotente ou simplesmente como miserveis. Ao contrrio,a comear pela opinio do prprio artista,eram considerados herdeiros de (...) uma tradio gloriosa para os Paulistas25. No primeiro nmero da publicao A Bohemia rgo da elite paulista dirigido por Jos Piza , de abril de 1896, por ocasio da viagem de Almeida Jnior e Pedro Alexandrino Europa, o redator louva a arte do pintor ituano,que (...) com uma pacincia de beneditino estuda toda a vida paulista no seu estado de pureza primitiva (...)26.Sabe-se l o que significaria pureza primitiva,mas por certo no se tratava de uma ofensa.E Monteiro Lobato v que dentro do corpo do Violeiro (...) sentese pulsar o corao ingnuo dos nossos musicistas espontneos, filhos do campo e do ar livre27.Um pouco mais tarde,em 1940,Lus Martins far uma interpretao eivada do modernismo de 1922,ao falar (...) que a gente sente,em seus ltimos trabalhos,a preguia,o dengue,a entrega sonolenta diante do castigo do sol uma sugesto irresistvel de milharais queimando nas tardes de estio, bambuais se debruando sobre a gua mole dos lagos e um canto melanclico de cigarra...H um esprito brasileiro inequvoco em seus quadros,qualquer coisa de inconscientemente brbaro e profundo,uma fatalidade de terra moa que nenhumNOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 141

grande artista estrangeiro conseguiria traduzir.Ele o primeiro clssico de nossa pintura28.E a nem Mrio de Andrade agentou.E numa carta a Lus Martins diz que sua crtica de Almeida Jnior bem boa, (...) embora por vezes voc faa um bocado de literatura. (....) em vez de ver esse esprito brasileiro em qualquer coisa de inconscientemente brbaro e profundo, uma fatalidade de terra moa no seria prefervel a esta crtica impressionista dar dados mais objetivos29? O curioso que o mesmo Mrio de Andrade,anos antes,escreveria sobre Tarsila do Amaral em tons muito parecidos aos de Lus Martins,e justamente tentando mostrar as diferenas entre a brasilidade de Almeida Jnior e de Tarsila:(...) o que faz mesmo aquela brasileirice imanente dos quadros dela a prpria realidade plstica: um certo e muito bem aproveitado caipirismo de formas e de cor, uma sistematizao inteligente do mau gosto que de um bom gosto excepcional, uma sentimentalidade intimista, meio pequenta [sic], cheia de moleza e de sabor forte30. Como se v, a coisa vai longe.E nos nossos dias,Maria Ceclia Frana Loureno no painel explicativo instalado na sala com as obras de Almeida Jnior na Pinacoteca dir que o pintor (...) transforma os personagens de suas telas em verdadeiros monumentos ao trabalhador srio, hbil, forte, bravo,competente e destemido. Esse duplo movimento em princpio paradoxal a nfase negativa no determinismo do meio e a apreciao positiva desse mesmo ambiente e de seus personagens se explica em boa medida pelo objetivo que envolvia instituies e literatos paulistas, no sentido de criar uma identidade herica para o povo de sua provncia, possibilitando assim o estabelecimento de uma histria que justificaria um futuro grandioso e promissor. Em lugar de sermos inviveis, estvamos apenas no comeo... donde a pureza dos primitivos, a ingenuidade, o inconscientemente brbaro, a nos reservar uma origem imaculada. No ltimo quarto do sculo XIX o enriquecimento trazido principalmente pelo caf colocava a provncia de So Paulo numa posio incmoda em relao centralizao do Imprio e a sua capital, o Rio de Janeiro. De par com o desenvolvimento de um movimento republicano, se d em So Paulo um esforo consciente para dotar a provncia de atributos histricos que justificassem a posio de liderana econmica que vinha alcanando e apontassem para a necessidade de um peso poltico de que ainda carecia. Instituies como o Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo,o Museu Paulista, a Academia Paulista de Letras, o jornal O Estado de S. Paulo e um grande nmero de literatos mais ou menos prximos a eles iro aos poucos produzir um discurso heterogneo mas eficaz que, entre outros aspectos,conduzir glorificao dos bandeirantes e a uma valorizao da mestiagem,ressaltadas a as singularidades com que ela ocorreria na regio, onde o isolamento do Planato de Piratininga teria propiciado a formao de uma sub-raa superior, mescla dos valentes bandeirantes com os altaneiros Guaian, o mameluco paulista, pai do142 ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO Rodrigo Naves

[27] Almeida Junior,op.cit.,p.85. [28] Almeida Junior,op.cit.,p.19.

[29] Carta de 16.7.1940 de Mrio de Andrade a Lus Martins.H cpia desse manuscrito na biblioteca do MAM-SP. O sinal de interrogao no est presente na carta de Mrio de Andrade, embora a orao seja interrogativa.

[30] Mrio de Andrade.Tarsila.Em Brasil: primeiro tempo modernista 1917/29. So Paulo, IEB-USP, 1972 (org.Marta Rossetti Batista e outros), p.127.O texto de Mrio de Andrade foi publicado em 1929, mas est datado de 21 de dezembro de 1927.

[31] O processo de consolidao desse imaginrio discutido por Antonio Celso Ferreira em A epopia bandeirante: letrados, instituies, inveno histrica (1870-1940).So Paulo, Unesp, 2001. Domingos Tadeu Chiarelli defende idias semelhantes a essa em sua tese de doutoramento.E acrescenta que esse elogio de uma figura paulista tpica tambm teria a ver com um esforo de diferenciao das elites paulistas diante dos imigrantes que comeavam a povoar as cidades do estado. Ver dados sobre a tese na nota 39.

caboclo e do caipira31. Almeida Jnior contribuiu para a formao desse iderio e a recepo de seu trabalho seria incompreensvel sem a considerao desse processo. Como se v, os caipiras de Almeida Jnior carregavam grandes responsabilidades. Por um lado, sofrem a ao decidida do meio e servem como exemplo para as mais diferentes teses deterministas que viam nesse tipo de relao a maneira correta de entender o homem e sua formao.De outro,devem encarnar,ao menos transitoriamente,a bravura da raa de gigantes,que de Saint-Hilaire a Alfredo Ellis Jr.acompanharia os paulistas. No era mesmo pouca responsabilidade. E a prpria pintura de Almeida Jnior parece se ressentir desse peso e de tantas satisfaes a dar.Mais:ser esse compromisso do caipira do pintor com o engrandecimento simblico dos paulistas que, a meu ver, impedir que as suas telas radicalizem sem piedade a ao do sol sobre as figuras humanas,esgarando-as e reduzindo-as a verdadeiros farrapos humanos, com o que certamente sua arte ganharia em qualidade e mesmo em verossimilhana. iv Almeida Jnior fez um esforo sincero para produzir uma pintura que se aproximasse mais da realidade brasileira e deixasse de lado o universalismo vazio das frmulas acadmicas. Sua produo muito irregular, marcada vrias vezes pelo meio social acanhado a que tinha que responder para ganhar a vida e isso se nota claramente nos retratos, que foram por muito tempo seu ganha-po e por uma inconstncia de quem se v forado a agradar o pblico,ainda que sob o risco de comprometer o desenvolvimento de sua obra.Mas em toda sua trajetria revela uma preocupao continuada com algumas questes que o diferenciavam de seu ambiente artstico. Crticos como Srgio Milliet, Lourival Gomes Machado e Mrio Pedrosa consideravam que Almeida Jnior trouxera alguma renovao apenas nos temas,enquanto continuava a pintar maneira de Cabanel32. Ainda que considerado insuficiente, esse novo impulso no seria de se desprezar,sobretudo se o tomarmos em toda sua extenso.Como mostrou Gilda de Mello e Souza, sua atuao (...) ajudou a suprimir a monumentalidade das obras, a renovar os assuntos e as personagens, a vincular organicamente as figuras ao ambiente e talvez reformular o tratamento da luz33. A meu ver, Caipira picando fumo a tela em que Almeida Jnior consegue ir mais longe no apenas tematicamente, mas sobretudo no esforo de encontrar uma maneira de pintar que afinasse com aqueles temas.H uma grande controvrsia em torno da luz de Almeida Jnior e de suas relaes com as inovaes introduzidas pela pintura francesa na segunda metade do sculo XIX34.Nesse quadro,porm,penso ser inegvel um embate com a pintura francesa no-acadmica,o que ajuda a reveNOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 143

[32] Srgio Milliet. Luz paisagem arte nacional, em Pintura quase sempre. Porto Alegre, Globo, 1944, p. 77. Lourival Gomes Machado.Retrato da arte moderna do Brasil. So Paulo, Departamento de Cultura, 1947, p. 26. Mrio Pedrosa. Visconti diante das modernas geraes, em Acadmicos e modernos. So Paulo,Edusp,1998,p.122. [33] Gilda de Mello e Souza. Pintura brasileira contempornea: os precursores, em Exerccios de leitura. So Paulo, Duas Cidades, 1980, p. 224. Sobre a importncia do pensamento da autora para a histria da arte brasileira, ver Moda caipira, de Otlia Beatriz Fiori Arantes e Paulo Eduardo Arantes, em Sentido da formao.So Paulo,Paz e Terra,1997.

lar os limites e ambigidades do seu dilogo com a arte mais avanada do momento. Se a educao artstica formal de Almeida Jnior se deu em ambiente acadmico Vitor Meireles no Rio de Janeiro, Alexandre Cabanel em Paris35, como apontei anteriormente , o mesmo no ocorreu com sua formao mais ampla.Conhece-se pouco sobre o gosto artstico do pintor. No entanto, a observao de seus quadros deixa poucas dvidas sobre alguns vnculos, para alm dos compromissos acadmicos das telas mais tradicionais.Courbet e Millet contriburam para uma relao no idealizada com a natureza e com os homens. E quase impossvel no ver numa obra como A estrada (1899) a influncia de Corot e de uma luminosidade feita de cores claras e intensas, no mais criada pelo contraste entre claros e escuros. Da mesma maneira, considero muito provvel que O derrubador brasileiro (1879) tenha encontrado apoio em O Cristo morto e anjos (1864),de Manet.Sem falar nos contrastes marcados entre regies de sombra e luz que o aproximam dos primeiros trabalhos de Monet, como apontei no incio. Todos esses quadros evidenciam uma ateno renovao que ocorria na pintura francesa naquele momento embora este quadro de Manet seja dos mais moderados e que tinha na luz um de seus elementos mais decisivos.Gilda de Mello e Souza considera que Almeida Jnior teria optado por uma soluo de compromisso, ao aproximar-se das sadas encontradas por alguns pintores acadmicos secundrios Jules Breton, Troyon, Rosa Bonheur que incorporavam superficialmente aspectos do impressionismo, sem pr em xeque os cdigos pictricos dominantes36. Penso que haja tambm outros aspectos alm desses. No quadro que analiso a luz domina toda a cena.Sua intensidade se revela na claridade ofuscante e na proximidade entre todas as coisas,que no tm um contorno muito marcado. No entanto, mesmo nesta tela a luz de Almeida Jnior no consegue, como nas melhores obras impressionistas,romper com a integridade dos volumes e figurar uma ao que fosse alm de uma realidade dada a priori e inviolvel em sua inteireza.E, por no poder transfigurar a realidade, a luz nesse quadro tende a apresentar-se apenas como calor, que a desolao do ambiente confirma e qualifica. Cabanel havia transposto a claridade para o interior de suas figuras. E suas mulheres se assemelham a abajures, a volumes iluminados por dentro. Almeida Jnior desloca essa luz para o exterior, criando no ambiente uma verdadeira fornalha. A luz impressionista possibilitada pictoricamente pelas pinceladas descontnuas que,justapostas,permitiam a representao da interao recproca entre as cores fendia a aparncia compacta do mundo, tornando-o apto a novos arranjos e possibilidades.E as sries realizadas por Monet a Catedral de Rouen,o Parlamento ingls,as ninfias etc. punham s claras o fim da unicidade do real e a nova disponibilidade do mundo.No entanto,para os impressionistas a luz era principalmente o elemento evidenciador de que o olhar adquirira um novo estatuto144 ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO Rodrigo Naves

[34] Os autores que consideram que o pintor renovou somente nos temas vem na sua luz apenas elementos tradicionais.Lus Martins (op.cit.,p. 12) diz que foi a (...) influncia do sol brasileiro (...) que clareou sua paleta. Aracy Amaral (A luz de Almeida Jnior, em Almeida Jnior um artista revisitado, op. cit., p. 10) tambm considera que o pintor (...) permanece sensvel luz, luz local (...). A anlise que me parece mais esclarecedora a de Gilda de Mello e Souza (op. cit., p. 230 ss), qual voltarei mais adiante. [35] Sobre a formao francesa de Almeida Jnior ver Patricia Telles. Os estudantes brasileiros de pintura na cole des Beaux Arts de Paris de 1831 a 1889. Dissertao apresentada no Curso de Especializao em Histria da Arte e da Arquitetura no Brasil. PUC-Rio de Janeiro,1992.

[36] Gilda de Mello e Souza, op. cit., p.231.

diante da realidade. Ele no mais apenas espelhava o mundo, dando como aceita a sua feio slida e acabada.Ele agia sobre as coisas e as reagenciava, semelhana das possibilidades abertas pelos novos movimentos sociais e pelas novas tcnicas.Nesse contexto,a luz se mostrava como o aspecto pictrico mais propcio a libertar a realidade de uma solidez conservadora e entreg-la s oscilaes de uma aparncia tendente s mais diversas transformaes. No mundo de Almeida Jnior essa desenvoltura era impensvel. O meio brasileiro social e tecnologicamente atrasado no permitia que a luz tornasse a vida e a realidade mais porosas e plsticas. Ela precisaria, ainda por um bom tempo, ser entendida como calor, a funcionar como instrumento natural e no como instrumento do olhar a servio de todos os tipos de determinismo,por mais que artistas como Castagneto, Visconti e Parreiras tenham tentado,com maior ou menor sucesso,conduzi-la numa outra direo. Ainda que, por uma dessas ambigidades que a vida nos trpicos si propiciar, a ao do sol viesse a substituir a histria e talhasse a figura mtica de um paulista de tempos remotos, rstico em seus hbitos e feies, mas curtido e escalavrado como uma obra da natureza. v A pintura de Almeida Jnior se caracteriza por ser permevel a quase todas as discusses que procuravam determinar as foras que dariam singularidade vida do pas.Sua ateno ao meio social, natureza,aos tipos humanos, s peculiaridades regionais parecia apontar para um pas mais concreto,produto do cruzamento de aspectos reais,sem maiores idealizaes e fantasias.Tentei mostrar o quanto essas idias estavam permeadas de argumentos altamente discutveis,algumas vezes decididamente ideolgicos e preconceituosos.Mas nada disso vinha muito ao caso.Eram sumarentos os frutos e abriam o apetite. No foi acidente portanto o interesse despertado por Almeida Jnior em todos aqueles que,de uma maneira ou de outra,se preocuparam com a constituio de uma arte nacional: Gonzaga Duque37, Oswald de Andrade de 1915,ainda no modernista ,Monteiro Lobato,Mrio de Andrade,Lus Martins...a lista vai longe.Pr a mo nessa matria significava sentir o pulso de uma vida rica e promissora,j que ali todos os caminhos se cruzariam.Em 1928,Mrio de Andrade olhava com melancolia para uma tradio nacional que,nas artes visuais,no se cumprira. Falando do Aleijadinho, dir que ele era (...) o maior boato-falso da nacionalidade,ao mesmo tempo que caracterizava toda a falsificao da nossa entidade civilizada,feita no de desenvolvimento interno,natural, que vai do centro para a periferia e se torna excntrica por expanso,mas de importaes acomodatcias e irregulares,artificial,vinda do exterior. De fato Antnio Francisco Lisboa profetizava para a nacionalidade um gnio plstico que os Almeidas Juniores posteriores,to raros! so insuNOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 145

[37] Depois de apoiar as obras iniciais de Almeida Jnior, Gonzaga Duque o critica pelos temas caboclos e, sobretudo, pela maneira de pintar. Ver Contemporaneos. Rio de Janeiro, Typ. Benedicto de Souza, 1929, pp. 110-12.

ficientes pra confirmar38.Passados mais de dez anos,em 1939 escrevendo sobre os painis que Portinari realizara para a Feira Internacional de Nova York , ver as coisas com outros olhos: So quadros que s poderiam ser concebidos por algum profundamente brasileiro. No apenas os costumes, tudo nosso, o ar, o cheiro, o clima destes painis. Aquela tradio que Almeida Jr.quis abrir,s agora parece retomada por este pintor, que em vez de perder tempo em buscar a cor do nosso cu, est verdadeiramente fazendo obra de sentimento nacional39. Toda a vez que se tratava de encontrar uma tradio nacional nas artes visuais, l estava Almeida Jnior como modelo... retomado ou no. Para que se constitusse uma linha forte capaz de autorizar a meno a uma tradio, se fazia necessria a sucesso de momentos densos, manifestaes culturais ou artsticas que sintetizassem mltiplos aspectos do Brasil. E Almeida Jnior era sempre o exemplo de planto. Para Taine como para Zola a arte seria a expresso de uma raa e de um meio histrico. E Monteiro Lobato ele mesmo um admirador de Taine e Zola pronuncia isso com todas as letras ao falar de Almeida Jnior: Exerce entre ns a misso de Courbet na Frana. Pinta, no o homem, mas um homem o filho da terra, e cria com isso a pintura nacional em contraposio internacional dominante. E um pouco adiante: Nunca foi seno Almeida Junior no indivduo; paulista na espcie;brasileiro no gnero40.Como se v,tratava-se quase de um desdobramento biolgico,em que da semente chegava-se flor (arte),passando pela planta (o povo, a histria) de resto uma metfora cara a Taine. Num processo de particularizao e determinao crescentes iase do mais genrico singularidade nacional. Almeida Jnior realmente responde a essa demanda e quer fazer brotar a flor da nacionalidade.O problema que a nao mal existia e restava se apoiar em idias prontas e duvidosas. Numa sociedade muito pouco diferenciada e complexa, quase nada contribua para pr em xeque aquele movimento evolutivo que conduzia do mais bruto ao mais burilado, ainda que a gema se cristalizasse na figura do caipira. E a pintura, sem ser instrumento de interrogao e questionamento, apenas reafirmava o que j supunha conhecer.Mais do que arte,Almeida Jnior faz cultura estende a outra rea de expresso temas e problemas j delineados e que ele pouco ajuda a avanar ou a discutir. E penso que tambm este meu artigo para alm de minhas prprias limitaes comprova esse impasse,j que tambm ele se ocupa sobretudo de dados circunstanciais,que balizariam a pintura analisada. No entanto, muito esclarecedor observar como a radicalidade da arte de Dostoivski a recusa das idias dadas e aceitas leva-o a escarnecer essa ordem bem posta das coisas.O narrador de Memrias do subsolo ironiza cruelmente o mesmo Buckle que encantou boa parte de nossa melhor intelectualidade: (...) proclamo com insolncia que todos esses belos sistemas,todas essas teorias para explicar humanidade os seus interesses verdadeiros (...) tudo isso no passa de logsti146 ALMEIDA JNIOR: O SOL NO MEIO DO CAMINHO Rodrigo Naves

[38] Mrio de Andrade. O Aleijadinho,em Aspectos das artes plsticas no Brasil. So Paulo, Livraria Martins Editora,1975,p.45.

[39] Mrio de Andrade. Obras novas de Cndido Portinari. O Estado de S. Paulo. Suplemento em rotogravura, n. 134, 1939. Apud Domingos Tadeu Chiarelli. De Almeida Jr. a Almeida Jr. crtica de arte de Mrio de Andrade. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Artes Plsticas da ECA-USP, 1996, p. 162. Esse estudo extremamente esclarecedor no s do pensamento plstico de Mrio de Andrade que,at onde eu saiba, nunca escreveu um texto especialmente dedicado a Almeida Jnior, embora o mencione em vrios artigos como tambm do papel que Almeida Jnior joga na sua viso sobre as artes visuais do pas.

[40] Almeida Junior,op.cit.,p.79.

[41] Fiodor Dostoivski. Memrias do subsolo. So Paulo, Editora 34, 2000, pp. 35-6 [traduo de Boris Schnaiderman].

ca! (...) afirmar, por exemplo, com Buckle, que o homem suavizado pela civilizao, tornando-se por conseguinte, pouco a pouco, menos sanguinrio e menos dado guerra. (...) Lanai um olhar ao redor: o sangue jorra em torrentes e, o que mais, de modo to alegre como se fosse champanhe41. Para fazer um jogo de palavras mas talvez tambm para dialogar com elas com as idias fora do lugar de Roberto Schwarz, no me parece descabido afirmar que na obra de Almeida Jnior o limite era outro:as idias estavam excessivamente no lugar.De tanto procurar por aquilo que nos determinava,ela termina por elogiar nossa prpria incapacidade de transcendncia e superao. Tudo conspirava para que a obra de arte fosse apenas a expresso de uma poca e de um povo, sem em nenhum momento opor-se a esse movimento de exteriorizao ou ento constituir-se numa fora razoavelmente autnoma que contribusse para tornar mais complexa a idia que fazamos de ns mesmos. O acanhamento da sua pintura no advinha apenas de uma possvel falta de talento do artista.Faltava principalmente ar atividade artstica. No de estranhar portanto que desse elogio da nacionalidade ainda que tingida de bandeirantismo se desprenda uma tristeza e uma melancolia profundas, ao contrrio da formidvel alegria impressionista.O delineamento de uma face reconhecvel para o pas supunha um certo fatalismo e aceitao de nossa prpria impotncia. O mtodo interpretativo de Taine quaisquer que fossem os seus limites passava a funcionar como guia para a criao artstica.E o que,at certo ponto, poderia servir como desmistificao da produo de arte a identificao das origens da obra de arte, livrando-a de inefveis inspiraes e intuies terminava por se mostrar como uma decidida esterilizao, quando colocado como norte a ser alcanado.Em outras palavras:o que estava posto no incio as origens teria que ser necessariamente reencontrado ao fim na obra de arte,com o que se estabelecia um crculo vicioso impossvel de romper. Tambm a pintura americana se viu, em determinado momento, prisioneira desse dilema. Enquanto artistas como Thomas Hart Benton e Grant Wood se esforavam por obter uma pintura voluntariosamente diversa da europia e prxima do que seria o homem americano autntico, pouco se avanou. No entanto, com Pollock e sua gerao chegou-se efetivamente a uma arte diferenciada,e no apenas da produo europia.Com o expressionismo abstrato a prpria experincia americana se ampliou, revelando possibilidades de significao e ruptura at ento desconhecidas. A pintura de Almeida Jnior desperta o interesse legtimo daqueles que buscavam uma arte nacional preocupada em interceptar a trama de relaes que nos singularizava. E a influncia do naturalismo e dos vrios determinismos ajudou a delinear as correntes que teciam nossa realidade concreta.No entanto,se arte bastasse o estabelecimento das condies em que surge,muito provavelmente ela no teria razo de ser, j que uma intranscendncia de base paralisaria sua potncia. A nfaseNOVOS ESTUDOS 73 NOVEMBRO 2005 147

nas circunstncias que,bem ou mal,definem uma nacionalidade conduziu todas as tentativas de nacionalismo artstico a uma posio paradoxalmente combativa e impotente, dado que arte cumpria no ir alm de um solo estabilizado que ela ajudava a caracterizar e que, por sua vez, tambm a estabilizava e pacificava. E uma arte que deve, de antemo, fazer sentido tende necessariamente a contribuir para perpetuar sociedades em que as foras sociais so conduzidas a uma soma zero,pois um culturalismo as dispe como um mosaico em que os antagonismos se convertem em contrastes prximos ao pitoresco.Boa parte da produo visual brasileira, ao menos at fins dos anos 1960, foi domesticada e diluda por problemas dessa natureza. Por isso a luz de Almeida Jnior traz em si o que,do sol,a essa altura da histria da arte,era apenas conservao e no ampliao:a luz rebatida,o calor que entorpece.O caboclo que pica fumo parece enlevado em seu afazer modesto.Talvez fosse mesmo possvel vislumbrar a um elogio da vida simples,um bucolismo de quem encontrou a justa medida no contato com natureza e vive em paz.No estivesse tambm prestes a ser tragado por este sol paradoxal,que fala de crepsculo em pleno meio-dia.42Rodrigo Naves professor e crtico de arte.

[42] Para a realizao deste artigo contei com a ajuda de muitas pessoas. Agradeo, em especial, a colaborao de Patricia Telles, Cau Alves, Fernanda Peixoto, Jos Antonio Pasta Jr.,Luiz Felipe de Alencastro,Margarida SantAnna, Maria Luza Ferreira de Oliveira, Tadeu Chiarelli, Tnia Rodrigues, Tiago Mesquita e Vilma Aras. Recebido para publicao em 01 de agosto de 2005.NOVOS ESTUDOSCEBRAP

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