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Anais do I Seminário Brasileiro de Poéticas Orais: Vozes ... parte 1.pdf · Foi gestado durante 4 anos junto ao GT de Literatura Oral e ... A respeito do projeto junto ao GT de

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  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades ii 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

    Reitora: Profa. Dra. Ndina Aparecida Moreno

    Vice-reitora: Prof. Dra. Berenice Quinzani Jordo

    Diretora do Centro de Letras e Cincias Humanas: Profa. Dra. Mirian Donat

    Chefe do Departamento de Letras Vernculas e Clssicas:

    Profa. Dra. Maringela Peccioli Galli Joanilho

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Letras Estudos Literrios:

    Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes

    Comisso organizadora do evento:

    Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes -PPG Letras/ UEL (coordenador)

    Fabiana Francisco Tibrio - PPG Letras/UEL

    Felipe Grne Ewald - PPG Letras/UEL

    Juliana Franco Alves - PPG Letras/UEL

    Marcelo Rodrigues Jardim - PPG Letras/UEL

    Profa. Dra. Marta Dantas Silva - PPG Letras/Artes/UEL

    Priscilla Lopes da Silva - PPG Letras/UEL

    Profa. Dra. Sonia Aparecida Vido Pascolati - PPG Letras/UEL

    Profa. Dra. Suely Leite - Letras/UEL

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    S471a Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades (1. : 2010 : Londrina, PR)[Anais do] I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais : Vozes, Performances , Sonoridades / Frederico Augusto Garcia Fernandes...[et al.] (orgs.) Londrina : UEL, 2011.775 p.

    Inclui bibliografia.

    ISBN: 978-85-7846-101-0

    1. Linguagem potica Congressos. 2. Literatura Histria e crtica Congressos. 3. Crtica literria Congressos. 4. Lingustica Congressos. 5. Poesia sonora Histria e crtica Congressos. I. Fernandes, Frederico Augusto Garcia. II. I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais : Vozes, Performances, Sonoridades.

    CDU 82-1.09

    Catalogao na publicao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicosda Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades iii 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    guisa de apresentao...

    O mapa aberto, conectvel em todas as suas dimenses, desmontvel, reversvel, suscetvel de receber modificaes constantemente. (Gilles Deleuze & Flix Guattari)

    O I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances e Sonoridades

    foi realizado entre os dias 20 e 22 de outubro de 2010, nas dependncias do Centro de Letras e

    Cincias Humanas (CLCH) da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e teve como

    objetivo principal reunir estudiosos de diferentes reas do conhecimento, de modo a criar um

    ambiente de encontro e debate de ideias entre pesquisadores da poesia oral, com fins

    cooperao e pesquisas futuras. O evento foi realizado pelo Programa de Ps-Graduao em

    Letras (Estudos Literrios) da UEL e contou com o apoio financeiro da Fundao Araucria e

    dos cursos de Especializao em Lngua Portuguesa e Literatura Brasileira da UEL.

    As pesquisas em poticas orais encontram-se pulverizadas em diferentes reas do

    conhecimento. O arco de reas envolvidas com a oralidade apresenta uma envergadura que

    vai das cincias da sade, passando pela Psicologia, pelos estudos de lnguas indgenas e

    vernculas, pela Lingustica Aplicada, Histria, Antropologia, Sociologia, apenas para citar

    algumas disciplinas. Alm disso, merece destaque nesse encontro, o que melhor revelado

    nessas duas partes dos Anais, projetos envolvendo os estudos literrios, com debates em torno

    da oralidade e suas relaes com o texto literrio, gneros poticos orais, a sonoridade e o

    emprego da voz em textos poticos vanguardistas e multimiditicos.

    Os estudos de poticas orais no Brasil so melhor compreendidos numa

    cartografia de estudos e objetos. Empregamos o termo cartografia no como um tratado

    geogrfico (espacial) sobre o qual as crticas e os objetos criticados se desenham, mas como a

    descrio de um conjunto de diferentes olhares e pensamentos, numa relao de espao/tempo

    determinada. Trata-se de uma metacrtica sobre o ofcio de coleta e anlise de textos poticos

    orais. Assim, uma cartografia tem a pretenso de colocar o pesquisador da poesia oral frente a

    diferentes correntes de pensamento e tambm provocar o dilogo entre elas. Permite a ele ter

    um olhar crtico sobre o seu prprio fazer, de modo a pensar conceitos e formas de

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades iv 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________relacionamento com seu objeto de pesquisa. Vista nesta perspectiva, uma cartografia de

    poticas orais tem como objetivo principal realizar um estudo dos diferentes olhares crticos

    em torno da poesia oral e propiciar o debate em torno de ideias. Os dados coletados pelo

    projeto Cartografia de Poticas Orais do Brasil1, no que diz respeito regio Sul, revelam

    tambm uma pluralidade de reas de conhecimento envolvidas com as poticas orais. Num

    levantamento preliminar de projetos de pesquisa em 19 IES nos estados do Paran, Santa

    Catarina e Rio Grande do Sul, foram detectados projetos em Artes Cnicas, Histria,

    Antropologia, Geografia, Sociologia, Comunicao e uma predominncia de projetos na rea

    de Letras, com nfase em Literatura Comparada e Teoria Literria. A realizao do I

    Seminrio Brasileiro de Poticas Orais foi ao encontro do projeto Cartografias..., trazendo

    pesquisadores de diferentes departamentos e reas do saber, possibilitando o debate e a troca

    de conhecimentos em torno das pesquisas em oralidade e sonoridade.

    No Brasil, os pesquisadores em poticas orais, geralmente, encontram porto para a

    disseminao e o debate de ideias de suas pesquisas em eventos de Antropologia e Histria

    Oral, nos quais se constituem grupos de trabalho ad hoc que tratam de questes inerentes s

    poticas orais como performance, narrativa oral, tradio, memria, identidade, entre outras.

    Cabe destacar, entre este tipo de agremiao, o GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL,

    que h mais de uma dcada vem reunindo pesquisadores da rea de Letras e Lingustica nos

    encontros bienais da ANPOLL e realiza tambm seu encontro intermedirio. A realizao do

    I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais rompeu com o paradigma de grupos de trabalho ad

    hoc, situando as poticas orais na berlinda de um debate no qual os apresentadores de trabalho

    podiam interagir com conhecimentos de reas distintas da sua de origem.

    Desse modo, a estrutura do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais foi pensada

    em torno de 5 grandes eixos temticos, nos quais a interdisciplinaridade pudesse afluir:

    1 O projeto Cartografia de Poticas Orais do Brasil foi proposto e coordenado pelo prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes. Foi gestado durante 4 anos junto ao GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL e teve incio em 2008. Atualmente o projeto apresenta uma equipe de 16 pesquisadores, envolvendo 11 IES (UEL, Unicamp, UFBA, UNEB, UFGD, UFMT, CEFET/MT, UFPA, UEBA, Unipampa, UFRGS). A respeito do projeto junto ao GT de Literatura Oral e Popular, ver o stio: http://www.anpoll.org.br/site/gts/relatorios/GTLiteraturaOralPopularRelatorio2006-2008.pdf

    http://www.anpoll.org.br/site/gts/relatorios/GTLiteraturaOralPopularRelatorio2006-2008.pdfhttp://www.anpoll.org.br/site/gts/relatorios/GTLiteraturaOralPopularRelatorio2006-2008.pdf

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades v 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    a) Questes de Oralidade e Educao

    Ementa: emprego do texto potico oral como um instrumental metodolgico na

    educao.

    b) Oralidade e Literatura

    Ementa: problemas da representao da oralidade em textos literrios e a presena

    da voz de narradores/poetas oriundos de uma cultura oral em obras escritas.

    c) Mdia e Oralidade

    Ementa: estudos sobre os diferentes suportes empregados na disseminao do

    texto potico oral, questes inerentes a: transcrio, transcriao, traduo e edio.

    d) Performance e Poesia Oral

    Ementa: abordagem e anlise de diferentes expresses performticas,

    vanguardistas e populares, em que circulam o texto potico oral.

    e) Abordagens Interdisciplinares:

    Ementa: pesquisas oriundas de diversas reas do conhecimento, de modo a

    evidenciar trabalhos cuja preocupao principal no o texto de circulao potica oral, mas

    cuja abordagem e anlise tornam-se necessrias.

    Tais categorias so amplas e flexveis, sendo que a proposta dos eixos temticos

    teve por objetivo superar algumas dicotomias como erudito x popular, folclrico x

    cannico, escrito x oral, comumente empregadas ao texto potico oral. Dessa forma,

    pesquisadores de vrias reas do conhecimento encontraram-se envolvidos durante as sesses

    de comunicao e as mesas-redondas, o que possibilitou o confronto e o cotejo de enfoques

    tericos e de objetos, abrindo espao para as contribuies que uma rea de conhecimento

    pode dar a outra. A reside a diferena dessa proposta de evento, cuja contribuio principal

    foi a de agregar pesquisadores de diferentes campos do saber, ampliando o escopo de

    pesquisas em poticas orais e de promover o dilogo multidisciplinar em torno de textos

    poticos orais.

    Estes Anais renem parcela dos trabalhos apresentados durante o evento.

    Divididos em duas partes, de modo a facilitar seu acesso e download, eles apresentam um

    amplo panorama cartogrfico de como os estudos em poticas orais podem ser pensados no

    Pas. O leitor encontrar em tela artigos que variam de temas como a oralidade na literatura

    brasileira, passando por capoeira, rap, teatro, ensino de literatura, literatura grega clssica,

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades vi 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________francesa, infantil, a potica indgena, a potica de aboios e de rezadeiras, polipoesia, entre

    outros.

    Esperamos que a grande profuso dos trabalhos aqui apresentados oxigene ainda

    mais o dilogo entre os pesquisadores e que as pesquisas configurem-se como uma porta de

    entrada para que conheamos a potica das vozes de muitos brasileiros ainda distantes dos

    bancos escolares.

    Londrina, 17 de julho de 2011.

    Os organizadores

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades vii 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    ndice

    Parte 1

    Elefante de Francisco Alvim: potica do improviso? Adriano de Souza

    1

    A representao do demnio na literatura popularAmanda Crispim Ferreira e Raimunda de Brito Batista

    13

    A palavra como impulso do gesto: reflexes sobre o teatro de Joaquim CardozoAna Carolina Paiva

    32

    Ao som do repente: a potica do improvisoAndra Betnia da Silva

    50

    Tradio, histria e potica no samba de roda baianoAri Lima

    63

    Causos e assombraes na coleo Lua Cheia: uma anlise do distanciamento do narrador oral

    Carina Bertozzi de Lima

    70

    Capoeira Angola: versos, veredas e vadiaoCarla Alves de Carvalho Yahn

    79

    Serto de linguagem: Rosa, Mallarm, HeideggerCleia da Rocha Sumiya e Jos Srgio Custdio

    94

    O Mito de Ssifo no poema Desastre, de Cesrio VerdeCristian Pagoto

    108

    Catatau: vozes do cogito em performanceDalva de Souza Lobo

    122

    Da oralidade enquanto procedimento de organizao discursivaDante Henrique Mantovani

    134

    Expresses idiomticas, grias, e discusso da histria nacional em Ra sga Corao , de Oduvaldo Vianna Filho

    werton Silva de Oliveira

    157

    O discurso potico de Herclito: memria e oralidadeFelipe Augusto Vicari de Carli e Roosevelt Arajo da Rocha Jnior

    174

    O espetculo da violncia no conto Jri, de Luiz VilelaFrancielle Aparecida Miquilini de Arcega e Moacir Dalla Palma

    189

    A potica da oralidade e a performance do leitorGlucia Helena Braz

    204

    Mulher e oralidade: as possveis marcas do discurso patriarcal na cano Doidinha de seu Jorge

    Guilian Scorsim Omura, Jullyana Araujo Lopes e Moacir Dalla Palma

    220

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades viii 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________O prego anlise de um poema para crianas feito cano

    Helena Ester Munari Nicolau Loureiro235

    A potica do sarau medieval: liturgia e semioseJander Antnio S de Arajo

    249

    A sade pela palavra vocalizada: performances de rezadeiras da ParabaJoo Irineu de Frana Neto

    253

    Oralidade e educao. Poticas orais em sala de aula: relatos e retratosJosebel Akel Fares

    264

    A modernidade no Poema de sete faces, de Carlos Drummond de AndradeKayan Gusmo e Cristian Pagoto

    280

    O caipira e sua msicaLaurindo Stefanelli

    295

    O universo configurado pela poesia do cancioneiro popular gacho: o homem, a mulher, o amor, suas relaes e pontos de vista de um sobre o outro

    Lisana Bertussi

    306

    Oralidade e performance na obra de Klvisson VianaLvia Petry Jahn

    316

    Ricardo Azevedo: folclore ou literatura oral?Luciane dos Santos

    329

    Performances da literatura de cordel no espao da migrao: uma peleja terica entre J. Barros e Maxado Nordestino

    Luciany Aparecida Alves Santos

    344

    Valre Novarina e o uso performativo da linguagem na d ramaturgia contempornea Marcelo Bourscheid

    364

    Parte 2 Acessar pelo outro arquivo

    Cora Coralina, um caso de oralidadeMrcia Batista de Oliveira

    374

    Entre o oral e o escrito: a criao de uma oralituraMargarete Nascimento dos Santos

    393

    A voz em sua pluralidade interna e externaMaria Auxiliadora Cunha Grossi

    407

    Um estudo de propostas de leitura de poesia em livros didticosMaria de Lourdes Bacicheti Gonalves

    428

    Aboio: potica de um canto de trabalhoMaria Laura de Albuquerque Maurcio

    447

    O influxo rabe no portugus brasileiro derivado do contato de lnguas: a herana lxica dos escravos africanos e dos imigrantes libaneses

    Maria Youssef Abreu

    458

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades ix 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________Ritmo e poesia em performance: uma anlise das relaes entre texto e msica no RAP dos Racionais Mcs

    Marlia Gessa

    480

    A voz a pessoa: performance de dona Rita na Lapinha Sagrado Corao de JesusMarinaldo Jos da Silva

    501

    Agamben e a Tucandeira: o contemporneo em um canto arcaico dos ndios Sater-Maw

    Mrio Geraldo da Fonseca

    513

    Explorando a contao de mitos, causos e histrias tradicionais do norte do Paran no ensino de histria: o recurso oralidade como elemento de anlise

    Mario Junior Alves Polo

    526

    As narrativas urbanas e a internet: por uma potica da oralidade relacionada s novas tecnologias

    Mauren Pavo Przybylski

    541

    Narrativa, tradio e experincia: anlise de aspectos da literatura tradicional/oral/popular em A viagem do elefante, de Jos Saramago

    Max Alexandre de Paula Gonalves

    563

    Experimentalismo e (no) oralidade como representao da violncia em O paraso bem bacana

    Moacir Dalla Palma

    575

    Representaes de luta: a retratao do homem sertanejo e de sua vida na literatura de cordel e no filme Vidas secas

    Paulo Estevo Mortati Fuzinelli

    591

    Representaes identitrias em cantigas de roda Rafael Rodrigues da Silva e Renata Fonseca Monteiro

    607

    O narrador e o cantador: seus aspectos e papis referentes Literatura de CordelRaphaela Cristina Maximiano Pereira

    619

    A coita que se conta/canta (vozes da ausncia)Renata Farias de Felippe

    635

    Memria e testemunho: a maldio de ter vivido em Dama da noite, de Caio Fernando Abreu

    Ricardo Augusto de Lima

    643

    Valor esttico e ruptura na linguagem de Augusto dos AnjosRogrio Caetano de Almeida

    657

    Ogum: uma performance hbrida nos terreiros de umbandaRoncalli Dantas Pinheiro

    666

    Poesia grega arcaica: oralidade e performanceRoosevelt Rocha

    673

    Acentuao corporal da palavra 683

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades x 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    Sandra Parra Furlanete

    Oralidade e vocalidade: diferentes possibilidades do conceito de voz na poesia contempornea de lngua inglesa

    Slvia Regina Gomes Miho

    688

    Potica da voz: palavra e performance na cantoria de violaSimone Oliveira de Castro

    705

    Polipoesia e recuperao da performance da vozVincius Silva de Lima

    722

    O umbigo de Ado: o olhar crtico de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) em conferncias

    Vitor Celso Salvador

    733

    Arte e loucura: Fernando Pessoa(s)?Vivian Karina da Silva

    751

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 1 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    ELEFANTE DE FRANCISCO ALVIM: POTICA DO IMPROVISO?

    Adriano de Souza2 (PG-UFSM)

    A poesia de Francisco Alvim um improviso, afirma Cacaso3. Mas onde est e

    o que este improviso? Na viso do crtico, o improviso consiste na tcnica anti-lrica de

    desocupar o espao enunciativo do poema como recurso de expresso de um eu-lrico, para

    pr em cena a voz dos que no deram certo na vida, dos deserdados, dos dilacerados, embora

    aparentemente realizados. Pode-se dar seqncia explicao de Cacaso, no sentido de

    aproveit-la para adentrar estrutura interna que compe, para usar a expresso de Antnio

    Cndido, a economia do livro Elefante. H um trao na arquitetura compositiva dos poemas

    que necessariamente merece destaque para tentar responder questo levantada pelo crtico, a

    saber, a tenso comunicativa que se estabelece entre, basicamente, duas formas de

    representao do arranjo potico: uma que tende poesia e a outra prosa. A primeira

    orientada por alguns recursos tradicionais da poesia lrica moderna ocidental, metforas

    insondveis, sujeito lrico diludo em meio ao mistrio que pretende revelar, sintaxe

    entranhada e uma sonoridade que aparenta apenas sugerir; a segunda elaborada pela

    intromisso de elementos do cotidiano, pela tonalidade coloquial, pelo recurso personae

    como elemento anti-lrico, por certa objetividade, tpica da oralidade e, sobretudo, por

    elementos tradicionalmente atribudos ao domnio da prosa. Sendo assim, a questo do

    improviso, apontada inicialmente por Cacaso, passa a ser entendida no apenas como um

    recurso do qual o poeta se vale para pr em cena a palavra alheia, mas, sobretudo, como um

    conceito que, se bem entendido, ajudar a vislumbrar de que forma essa potica constri um

    espao de interlocuo, cuja tcnica est na dinmica e na tenso comunicativas decorrentes

    do deslocamento da figura central do eu em favor da construo de cenas enunciativas do

    cotidiano. Para precisar um pouco melhor o conceito proposto, necessrio limitar alguns

    pressupostos tericos em torno dos quais se pode reorientar uma leitura da poesia de

    Francisco Alvim.

    2 Mestrando em Estudos Literrios Universidade Federal de Santa Maria e-mail: [email protected] CACASO. O Poeta dos Outros. In: Novos Estudos n 22. So Paulo, 1988.

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 2 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    Octvio Paz4, ao desenvolver sua abordagem em torno de algumas caractersticas

    da problemtica moderna para a literatura, observa na prosa romanesca do incio do sculo

    XX um retorno poesia. Nesse momento especfico, o crtico admite que a crise da sociedade

    moderna impe para o romance novas formas de expresso, de modo que este, por meio da

    experincia de representar atravs da linguagem uma forma sensvel que cada vez mais se

    apresenta fragmentada ao artista, passa a reivindicar para si a suposta autonomia da palavra

    potica, a fim de romper com os fios do pensamento discursivo e racional. Agora,

    importante que se tenha claro que Paz se refere a uma determinada corrente potica, esta

    representada pela linguagem preciosista e transcendente, por metforas insondveis e sintaxe

    impenetrvel, esta que, para muitos, constitui-se, a partir de Baudelaire, como a experincia

    moderna de poesia. Sobre isto, convm deter-se um pouco mais.

    As manifestaes simblicas que formalizaram aquilo que chamamos

    genericamente de poesia moderna fixaram suas bases em estruturas sensveis cuja difcil

    assimilao e igualmente difcil decifrao, em termos de discurso sistemtico e crtico, deve-

    se, principalmente, perspectiva das dissonncias e anormalidades atravs da qual essas

    estticas transgrediram as estruturas tradicionais de linguagem em favor do, no menos

    problemtico, encanto pelas construes da razo crtica. Incompreensibilidade e fascinao

    a primeira dissonncia que dar suporte para Hugo Friedrich5 delinear a estrutura da lrica

    moderna talvez sejam os plos mais recorrentes da tenso que configurou a comunicao do

    sentimento potico moderno, isso porque a procura inicial de um Baudelaire, a qual deu incio

    ao trabalho pela autonomia da forma e do movimento lingstico, este ltimo valendo-se de

    seqncias sonoras isentas de significado, deu origem a aporias das quais seus sucessores

    jamais puderam se desvencilhar. Refiro-me aqui ao impasse gerado por tal fazer esttico que,

    ao primar pelas categorias da fantasia, da obscuridade e da magia lingstica, acabou por

    apagar os vnculos com o que comumente se chamava de realidade e, conseqentemente, com

    os referentes em que o leitor, na tentativa fortuita de compreender o poema a partir dos

    contedos de suas afirmaes, fixava-se.

    4 PAZ, Octavio. Ambigedad de la novela. In: El Arco y La Lira. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 19705 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna Da metade do sculo XIX a metade do sculo XX, trad. Marise M. Curioni. So Paulo: Duas Cidades, 1991.

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 3 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    O terreno das contradies, onde desconfortadamente a modernidade ergueu

    paredes, obrigou o artista a desenvolver maneiras de escapar corriqueira normalidade dos

    discursos formatados pela conscincia objetiva e pragmtica das ento novas relaes sociais

    que o capitalismo industrial criara. Decorre disso uma esttica, cuja razo de ser fundamenta-

    se na reao a uma sociedade preocupada com a produtividade e a segurana econmica da

    vida e cuja ndole baseia-se na renncia ordem objetiva, lgica, afetiva e racional da

    modernidade. Da que, concordando com Octvio Paz6, podemos entender a afirmao de que

    a poesia moderna uma reao diante, para e contra a modernidade, uma negao de si

    mesma. O mesmo poeta que sente sua criao aprisionada e degradada pelo triunfo da tcnica

    mecanicista e instrumentalizada, sente-se fascinado pela solido delirante e inebriante que a

    condio de fechamento em si proporciona, nica e exclusivamente pelo primado da tcnica

    enquanto conscincia crtica do fazer esttico.

    primeira vista, essas so algumas das circunstncias scio-histricas que

    caracterizaram a chamada tradio moderna da poesia lrica, expresso que por si s j

    implicaria diversos questionamentos. Como pode o moderno ser tradicional? Pergunta-se

    Octvio Paz na tentativa de expor alguns dos paradoxos que a modernidade trouxe consigo.

    Na perspectiva do poeta e crtico mexicano, a modernidade potica tem incio juntamente

    quando o romantismo passa a negar os modelos da tradio que comearam no Renascimento

    pela influncia do princpio de imitao da Antigidade greco-latina, a partir disso emerge a

    chamada tradio da ruptura, trao que essencialmente caracteriza a modernidade potica

    por inaugurar uma tradio que nega a si prpria e assim se perpetua. (PAZ, 1984).

    Outro ponto importante, na abordagem do crtico latino-americano, reside na crise

    da viso teolgica que a modernidade inaugura, esse fato desencadeado pela progressiva

    desintegrao que a mitologia crist sofreu em decorrncia do triunfo da razo crtica.

    queda do princpio da identidade apoiada no cristianismo, juntamente derrocada da noo de

    eternidade, o poeta moderno responde atravs do grotesco, do horrvel, do estranho, do

    sublime irregular, da esttica dos contrastes e, sobretudo, atravs da analogia e da ironia. O

    par assinalado por Paz atende necessidade do poeta moderno de inventar mitologias feitas

    de retalhos de filosofia e religies (1984; p.78): por um lado o poeta recorre s imagens e

    6 PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do Romantismo vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 4 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    fantasias que a operao do pensamento analgico lhe proporciona como um sistema de

    correspondncias, por outro esse mesmo sistema auto-sabotado pela ironia, esta

    manifestao da crtica no reino da imaginao e da sensibilidade. De um lado a imagem: a

    metfora, a metonmia, a morte de Deus, a angstia, a analogia; do outro o formato: a crtica,

    o grotesco, a ironia. Na sntese desta dialtica esto Hlderlin, Blake, Poe, mas tambm esto

    Baudelaire, Rimbaud, Mallarm e todos os demais filhos do barro.

    Friedrich7 entende que essencialmente As Flores do Mal no formam uma lrica

    demasiado obscura, no entanto, a obra desenvolve uma procura que prepara o poetar obscuro

    que suceder a Baudelaire, sobretudo por dois pontos: magia da linguagem e fantasia.

    Pintor de genial fantasia, assim entende-se o poeta de sonho parisiense, aquele capaz de tecer

    paisagens a que mortal algum jamais olhou. A palavra, na procura deste poeta, passa a

    adquirir uma dimenso transcendente e misteriosa, ela a possibilidade da poesia numa

    civilizao comercializada, portanto precisa construir seus prprios recursos expressivos que

    sustentem sua capacidade de expresso artstica, em outras palavras, a vontade da forma

    prepondera sobre a vontade da simples expresso, para tanto o poeta deve esmerar-se em

    ouvir o inaudvel e ver o invisvel.

    Um lrico no auge do capitalismo, eis o problema fundamental de Baudelaire, cuja

    dimenso, sem precedentes, ditar os rumos da poesia moderna, a doura que embala e o

    frenesi que mata, trabalho com a ars potica que pode se referir tanto ao ttulo do soneto, A

    uma passante, como tambm prpria tarefa do artista moderno: para criar o irreal o poeta

    necessita da mesma exatido e inteligncia pela qual a realidade tornou-se decifrada e banal, o

    poeta a inteligncia crtica, filho da razo crtica: voltamos a Paz.

    A urdidura do estranho, do insondvel e do extasiante so elementos a partir dos

    quais podemos dar existncia, ainda que vagamente, s metforas do Rimbaud de Iluminuras.

    Isso porque estamos num mundo cuja realidade existe s na lngua (FRIEDRICH, 1991). O

    poeta impe sua criao por meio de contedos caticos, incompletudes, desarmonias formais

    e fragmentos estranhos aos olhos humanos: A bandeira em carne viva sobre a seda de oceano

    e flores rticas; (elas no existem.) esse parece ser o referente do poema intitulado Brbaro,

    referente cuja representao artificial e desumanizada dissonante, parece no existir, como o

    prprio verso prope, no entanto, sabemos melhor seria dizer supomos que ela possui sua 7 OP.Cit.

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    existncia atrelada s tessituras de sentido desentranhadas das irreais e brbaras associaes

    que a linguagem rimbaudiana elabora.

    A partir do pequeno, porm consistente legado deixado por Rimbaud, a lrica

    moderna passa a se identificar cada vez mais com fantasia guiada pelo intelecto, com o

    manejo das foras impulsivas da lngua, ruptura com a tradio humanstica e crist, ao

    predomnio das categorias negativas na composio potica e, sobretudo, sugestionabilidade

    que a magia lingstica capaz de criar. Aos poucos o trabalho do poeta moderno aproxima-

    se, em termos programticos, ao do alquimista, aquele que de metais vulgares e ordinrios,

    julga ser capaz de fazer ouro. As conseqncias dessa aproximao so duas, por um lado a

    poeta adquire autonomia sobre a comunicao do sentimento potico, principalmente porque

    este ltimo vem acompanhado da reflexo sobre a prpria composio. Por outro, a busca de

    Rimbaud pelo manejo das foras subjetivas da lngua e a impessoalidade alcanada por

    Mallarm configuraram uma situao-limite na lrica do sculo XIX: o solitrio fechamento

    em si a que a linguagem potica alcanou pela elaborao precisa das palavras, no sentido de

    se tornarem uma voz hermtica, capaz de ocultar tanto poeta quanto leitor.

    Em Mallarm, o real e suas expresses lingsticas so eliminados atravs de

    imprecisas associaes de idias, sua procura consiste em desarticular as operaes lgicas do

    signo lingstico, para restitu-lo de sua carga original e originria, em lugar da compreenso,

    coloca-se a idia da sugesto, a nica ponte com o leitor. O resultado desse trabalho foi o que

    Friedrich chamou de esquema ontolgico, ou seja, a capacidade de dar palavra mais

    simples, afastada do objeto concreto, uma dimenso que no seria explicvel por si mesma. O

    Absoluto, o Nada ao qual Mallarm afirma ter chegado quando abandonou a escrita.

    O silncio a que chegou Mallarm marcar definitivamente os rumos da lrica do

    sculo XX. Duas das principais tendncias podem ser lidas como alternativas frente ao

    impasse de Mallarm: Valry, com o que Friedrich chama de festa do intelecto, prenuncia

    uma lrica da intelectualidade e da severidade das formas e Andr Breton, com a derrocada do

    intelecto, prope uma lrica formalmente livre e alegrica. Fato que as mudanas impostas

    pela modernidade ao conceito de tempo, de espao e de histria influenciaram diretamente o

    prprio conceito de lrica no sculo XX, pois, uma vez assimiladas as mudanas pelas

    geraes posteriores a Baudelaire, a lrica passa a sofrer constantes modificaes e

    reformulaes. As vanguardas de incio do sculo, perpetuando a tradio da ruptura, so

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    um bom exemplo do que entendemos por reformulaes do conceito de lrica. Isso porque, a

    rigor, so as manifestaes estticas a partir do Futurismo que iro concretizar a problemtica

    inerente organizao da matria verbal, essencialmente temporal e sucessiva, numa

    disposio espacial e simultnea.

    Quanto a isso, Octvio Paz entende que o poema permanece sendo uma estrutura

    verbal, linear e sucessiva, mas agora tende a transpor a linearidade pela sensao de

    simultaneidade. Aqui se encaixaria grande parte das correntes estticas do sculo XX,

    sobretudo as que primaram pelo simultaneismo atravs da supresso de nexos de ligaes,

    justaposio de imagens, fragmento, enfraquecimento da coerncia lingstica e semntica,

    etc. Esses so os elementos que tambm iro configurar o que Friedrich chama de nova

    linguagem, na opinio do crtico alemo quanto menos tradicional a poesia queira ser, mais

    se distancia da ordem cannica da expresso lingstica. Em detrimento da frase articulada

    por sujeito verbo e predicado, o poeta prefere a anti-sintaxe, capaz de acentuar as

    ambigidades presentes nos discursos humanos, para assim elevar a linguagem potica acima

    da linguagem usual. Nesse sentido, o modernism anglo-americano exemplo considervel, as

    figuras de T. S. Eliot e Erza Pound mostram embora cada um sua maneira uma faceta

    programtica cuja proposta consiste em reconstruir, por meio da tcnica, do domnio, da

    maestria e lucidez, o que Paz chama de tradio central. Claro que essa procura da

    reconstruo da tradio no se daria por outro modo que no o da ruptura com as tcnicas de

    fuso e metforas dos modernos franceses.

    O caso das vanguardas d origem a novos e instigantes debates, sobretudo se

    lembrarmos que sua abrangncia atinge, salvo particularidades, os pases do Ocidente, do

    mundo eslavo ao hispano-americano de forma diferenciada. A questo ento que se impe ao

    estudo das manifestaes poticas a partir das vanguardas reside no fato de se poder observar

    tal fenmeno por diferentes matizes. Se for verdade que na essncia das manifestaes de

    vanguardas est a tentativa de resgatar os elos e lacunas herdados do simbolismo francs,

    entre arte e vida numa perspectiva que atenda dinmica da sensibilidade de uma poca

    eminentemente pragmtica, caberia, a partir de ento, investigar como se d tal aproximao

    do ponto de vista da comunicabilidade potica. Sabemos que, ao lado do rigor e do

    formalismo de algumas poticas do sculo XX, caminharam manifestaes que primaram pela

    aproximao dos elementos do cotidiano para, de um lado buscar uma reconciliao entre

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    histria e poesia, e de outro atacar frontalmente determinadas vises da realidade acessvel

    aos sentidos por meio da ironia, mas tambm por meio de outro elemento que passa a ganhar

    destaque no estudo da poesia sobretudo quando direcionarmos a tica para as manifestaes

    estticas inauguradas pela Semana de Arte Moderna de So Paulo o humor.

    De modo que, a partir dessa breve e panormica exposio, temos j elementos

    para, a bem de introduo, expor que a busca pela chamada poesia pura, esta erigida pela

    alquimia da palavra e pela elaborao de estruturas poticas de difcil decodificao, admite

    necessariamente um principal impasse: a liberdade criativa de interpretar a realidade como o

    motivo impulsionador dessas estticas aprisionou tanto a criao potica, como tambm o

    pblico para o qual ela supostamente se dirigia, isso porque a dita experincia levou s

    ltimas conseqncias o trabalho de decantao do referente, este quase sempre apresentado

    ao leitor na sua instncia mais deformada e desumanizada possvel. Da procede a

    configurao da transcendncia por meio da transfigurao do referente potico e do

    ensimesmamento do poeta em face de uma linguagem autotlica e absoluta8.

    A alterao da percepo esttica, ou caso se prefira, das sensibilidades que se

    manifestam nessa primeira metade do sculo XX, est bem definida pelo que Michael

    Hamburger chamou de nova austeridade: trata-se da busca de uma anti-poesia, na qual se

    sobrepem o tom coloquial e a procura de novas estruturas, atravs de elementos que j no

    parecem metafricos, porque esto corrompidos pelo domnio especfico da prosa e porque

    permitem uma comunicao to direta como a prosa. Esta procura est intimamente ligada a

    um questionamento - mais que isso, uma desconfiana - por parte de algumas dices

    poticas, que emergem, a rigor, a partir da segunda guerra mundial, frente s formas

    tradicionais sobre as quais a poesia lrica moderna ocidental estabeleceu sua autonomia9.

    Resulta oportuno apontar que o conceito que se procura para uma aproximao

    poesia de Alvim, busca necessariamente nesses dois antecedentes, configurados por Octavio

    Paz e Michel Hamburger, a matria verbal que o encerra. Ora, de um lado h o romance

    contaminado pela palavra potica, de outro, a poesia explorando os recursos comunicativos

    da prosa. Da que o improviso da poesia de Francisco Alvim se d justamente na dinmica

    8 CABAAS, Teresa. Poesia Moderna: uma retrospectiva. In: A potica da inverso: representao e simulacro na poesia concreta. Goinia: UFG, 2000.9 HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia: tenses na poesia modernista desde Baudelaire. Traduo: Alpio Correia de Franca Neto. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 8 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    gerada pelo trnsito recproco entre prosa e poesia, que culminar no problema fundamental

    dessa potica: no caso de Francisco Alvim, por um lado, o eu lrico parece no ser mais

    responsvel pela viso de mundo que o livro encerra, tampouco parece querer orient-la, ele

    supostamente desaparece, deixando em seu lugar falas aparentemente banais e personas sem

    nenhuma transcendncia; por outro lado, o poeta recobra sua funo clssica de instncia

    dinamizadora da matria lingstica, de modo a recuperar as potencialidades e

    desdobramentos tradicionais que determinadas correntes da poesia moderna atriburam

    palavra potica.

    Para melhor elucidar de que forma a noo de improviso colabora para o discurso

    potico de Elefante ser perceptivelmente desmetaforizado e ceder o espao nobre da

    enunciao potica a falas e personas, impe-se a necessidade de construir um recorte que

    possibilite enxergar a tradio que Alvim reivindica quando, ainda no final dos anos 60, sua

    dico potica emerge. Para tanto, toma-se como exemplo um poema de Oswald de Andrade

    do livro Pau- Brasil, da sesso Poemas da Colonizao10:

    O capoeira

    - Qu apanh sordado? - O qu? - Qu apanh? Pernas e cabeas na calada

    Dentre as mais fecundas e problemticas heranas deixadas pelas vanguardas

    histricas no panorama artstico brasileiro das primeiras dcadas do sculo passado esto o

    ponto de vista crtico juntamente com a perspectiva esttica de pesquisa e trabalho formal.

    Fecundas porque possibilitaram ao artista moderno a liberdade de criar e experimentar, ao

    sabor do inconsciente, tudo o que lhe proporcionava a configurao de uma sociedade que,

    enquanto comeava a se modernizar, ainda conservava muitos traos da colnia escravista.

    Problemticas porque deixaram um legado de impasses, que reorientou determinantemente

    uma dada prtica de anlise, impondo-lhe de um lado o desprendimento de esquemas de

    interpretao cannicos e de outro a elaborao de novos paradigmas para a crtica de arte.

    10 ANDRADE, Oswald. . Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978.

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    Um pouco nessa linha e a propsito disso, Haroldo de Campos11 aposta na

    visualidade como um dos principais recursos deste fazer esttico. Em poemas como esse em

    questo, a articulao das imagens escapa, como sugere o crtico concretista, da relao de

    tipo equacional do smile, pois a atitude metafrica sofre a interferncia da atitude

    metonmica. Mas, o que significa isso e qual a pertinncia de tal afirmao para a abordagem

    que se est tentando construir? Ora, voltando a Octvio Paz12, no seu estudo sobre a Metfora,

    pode-se retomar sua sugesto sobre o sentido de totalidade que a metfora encerra, justamente

    porque isto que se chama viso do mundo construda pela metfora resultado de uma

    dialtica, cuja sntese opera no plano da similaridade semntica. Sendo assim, a metonmia, a

    rigor, no opera uma relao de sntese, porque a ela cabe eminentemente uma frao do todo,

    um fragmento ou parte. De modo que, no poema do capoeira, por exemplo, a interferncia da

    atitude metonmica do verso Pernas e cabeas na calada visivelmente determinante para

    a imagem que o poema cria. Trata-se, portanto, de um poema visual, ainda que no se possa

    chamar de metafrico, porque o fragmento de realidade transposto em imagens reordenado

    pelos nexos da linguagem coloquial, que, alm de explorarem o elemento sonoro do poema,

    delimitam as diferentes pessoas do discurso: o capoeira, o soldado e uma terceira voz a que

    Haroldo de Campos13 certamente chamaria de objetividade cmara-na-mo. Agora, pode-se

    indagar um pouco mais a fundo sobre essa terceira voz do poema e perguntar se estaria j aqui

    a prenuncia de uma subjetividade afastada do dito; em outras palavras, se essa terceira voz

    no estaria j anunciando uma impassibilidade do sujeito lrico frente ao que o poema sustenta

    enquanto significado. Sendo assim, estaria aqui um lampejo modernista ainda no

    suficientemente iluminado, em termos de tcnicas trazidas pelas vanguardas europias, e cujo

    desdobramento esttico servir de respaldo para a proposta potica de Francisco Alvim.

    Na tentativa de elucidar um pouco melhor essas questes, tomarei como exemplo

    este dois poemas de Alvim, do livro Elefante14:

    11 CAMPOS, Haroldo de. Uma potica da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978.12 PAZ, Octavio. Traduo e Metfora. In: Os filhos do barro: do Romantismo vanguarda. Traduo Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.13 Op. Cit.14 ALVIM, Francisco. Op. Cit., p.121 e 35, respectivamente.

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    ELE

    Inteligente?No sei. Dependedo ponto de vista.H, como se sabe,trs tipos de inteligncia:a humana, a animal e a militar(nessa ordem)A dele a do ltimo tipo.Quando rubrica um papelpe dia e hora eos papiscaminham em ordem unida.

    HOSPITALIDADE

    Se seu pas assim to bom por que no volta?

    Em ambos, a tonalidade irnica parece predominar justamente pelo jogo

    semntico que se estabelece. No primeiro, esse jogo se fundamenta no conceito de

    inteligncia, sobretudo porque resgata mesmo que a idia de resgate possa no ficar bem

    clara a memria de um tempo da histria do pas, no qual os militares estavam no poder. A

    partir disso, cria-se a incongruncia entre a idia de inteligncia e a idia de militar, como se a

    unio de ambas resultasse em uma questo meramente burocrtica de rubrica, pe dia e hora

    ou na insolente e intangvel disciplina militar de os papis caminham em ordem unida. A

    propsito da incongruncia criada, torna-se possvel pensar em um processo metonmico

    decorrente de uma espcie de antropomorfizao direcionada palavra papis. A metonmia,

    tal qual a entendo aqui, alm de uma figura de linguagem atravs da qual algo citado por

    algumas das relaes mantidas com o verdadeiro fenmeno ou objeto que ela substitui, admite

    outra acepo no poema em questo. O que a ocorre, a meu ver, uma transposio

    metonmica de uma configurao usual os militares caminham em ordem unida para uma

    configurao metonmica irnica os papis caminham em ordem unida, na qual as relaes

    entre o que chamamos de fenmeno verdadeiro militares e o objeto substitudo papis so

    transpostas, no plano semntico, de modo a constiturem uma nica expresso plenamente

    identificada coerncia dos significados que o poema encerra: Ele, com sua inteligncia

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    militar, quando rubrica um papel, os papis caminham em ordem unida. Atravs dessa

    transposio, podemos tambm visualizar de maneira um pouco mais concreta a forma

    dialogada do poema, que se d possivelmente por meio da interferncia, no espao

    enunciativo, de vozes aparentemente descentradas, se comparadas figura de um eu lrico

    identificado tradio de um fazer potico modernista.

    J no segundo poema, o jogo irnico se faz na base de uma pergunta retrica, a

    qual diz respeito relao de dependncia entre poema e ttulo. O ttulo do poema j faz parte

    intrinsecamente da situao enunciativa que o poema instaura, isso acaba por se tornar um

    importante recurso discursivo, que obedece fundamentalmente ao princpio da conciso

    potica; hospitalidade um poema breve, quase instantneo, possivelmente atrelado a marcas

    temporais que o identificam tanto a uma situao de exlio poltico como a questes referentes

    idia de nao, nacionalidade e cultura. Com efeito, atentando novamente para a forma dos

    poemas, chega-se s proximidades do humor como um dos principais fundamentos da

    comunicabilidade desta potica, pois justamente a aparente simplicidade do discurso

    prosaico que sustenta a possibilidade de construo de cenas cmicas aos olhos do leitor,

    cabendo, a este ltimo, perguntar-se onde est o potico de tudo isso. A esta pergunta s se

    poderia responder atravs da anlise e interpretao dos poemas, questo com a qual, por ora,

    no me comprometo, dado o espao reduzido desta abordagem. No entanto, e aproveitando

    para retomar o que foi dito at agora, a hiptese aqui construda vai ao encontro de uma

    abordagem que visa a compreender de que forma esta potica constri um espao de

    interlocuo a partir da tcnica do deslocamento do eu, em favor da manipulao de cenas

    enunciativas do cotidiano, lugar de onde emerge o conceito de improviso: esse que permite

    observar a dinmica gerada pelo trnsito recproco entre prosa e poesia em Elefante.

    A partir disso, observou-se de que forma tal discurso potico perceptivelmente

    desmetaforizado, pois, para colocar em cena a potica das falas, necessrio que o poema

    obedea a um princpio que se origina em Oswald, no qual, como vimos, a atitude

    metafrica sofre a interferncia da atitude metonmica e chega a um ponto onde a

    transposio metonmica se sobrepe em relao metfora. Para finalizar, a modo de

    concluso em aberto, poderia, ento, sugerir que o improviso da poesia de Francisco Alvim,

    ou seja, o improviso da potica das falas se encontra, justamente, no sofisticado e nada

    improvisado procedimento da desmetaforizao: eis o paradoxo.

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    Bibliografia

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    ANDRADE, Oswald. . Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978.

    CACASO. O Poeta dos Outros. In: Novos Estudos n 22. So Paulo, 1988.

    CAMPOS, Haroldo de. Uma potica da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978.

    CABAAS, Teresa. Poesia Moderna: uma retrospectiva. In: A potica da inverso: representao e simulacro na poesia concreta. Goinia: UFG, 2000.

    FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna Da metade do sculo XIX a metade do sculo XX, trad. Marise M. Curioni. So Paulo: Duas Cidades, 1991.

    HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia: tenses na poesia modernista desde Baudelaire. Traduo: Alpio Correia de Franca Neto. So Paulo: Cosac Naify, 2007.

    PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do Romantismo vanguarda. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

    PAZ, Octavio. Ambigedad de la novela. In: El Arco y La Lira. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1970.

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 13 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

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    A REPRESENTAO DO DEMNIO NA LITERATURA POPULAR

    Amanda Crispim Ferreira15 (G-UEL)Raimunda de Brito Batista16 (Profa. Dra.-UEL)

    Introduo

    Falar de Literatura popular no Brasil est automaticamente ligado a Literatura de

    cordel, visto que esta se tornou mais conhecida que as outras manifestaes. A poesia popular,

    ou Literatura de cordel, chegou ao Brasil atravs dos colonizadores portugueses e

    popularizou-se no nordeste, onde ganhou caractersticas prprias enquanto escrita, sobre

    assuntos variados e com temticas baseadas na cultura popular.

    Tornou-se um importante meio de informao e entretenimento, devido a sua

    variedade temtica e facilidade de acesso nas regies onde se encontra. Atualmente ela

    tambm desempenha a funo de formadora de opinio, pois, atravs dos livretos que os

    poetas se posicionam acerca dos vrios assuntos que interessam sociedade, como a poltica,

    a violncia, a educao, a mdia, os desastres naturais, entre outros.

    Os folhetos apresentam temas variados entre os quais biografias de personalidades

    nordestinas como Padre Ccero, Frei Damio e Lampio, que so enaltecidos e homenageados

    constantemente pelos cordelistas.

    A figura do demnio tambm uma presena constante na cultura popular, porm

    ao invs de enaltecido e homenageado, repudiado pelos cordelistas e por uma literatura

    marcada pela religiosidade, principalmente catlica. Herdada da cultura dos colonizadores

    portugueses, um dos assuntos da literatura de cordel eram os ensinamentos da Igreja Catlica

    ou a vida de santos. (LUYTEN, 1983, p.30).

    O demnio, o medo do inferno e dos castigos de Deus so temas recorrentes no

    imaginrio popular e por isso frequente, no s nos folhetos, mas tambm em outros tipos de

    manifestaes literrias, como as lendas e os romances, e na Literatura considerada cannica,

    15 Este artigo fruto da pesquisa realizada no acervo de Literatura de cordel, da BC/UEL, por meio do projeto de pesquisa Tempo de Cordel, coordenado pela professora Raimunda de Brito Batista. Email: [email protected] [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 14 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

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    como os autos de Gil Vicente. Acredita-se que o homem tem a necessidade de criar um

    culpado para suas infelicidades, por isso a ideia do demnio vista como causa de todos os

    males, principalmente da pobreza e da seca, foi constantemente fortalecida. Eduardo Diatahy

    no artigo A quotidianidade do demnio na cultura popular (1985), e Carlos Nogueira em O

    diabo no imaginrio cristo (1986), comentam sobre esta ideia:

    A construo do demnio deve ter sido continuamente reforada pela tendncia do homem a encontrar um bode expiatrio de preferncia no-humano a quem atribuir a culpa pelo mal, pela violncia, pelo sofrimento e pela infelicidade. Assim, todas as culturas e economias desde a civilizao pastoral, passando pelo xamanismo dos nmades asiticos, at as demonologias mais recentes, incluindo a da civilizao industrial criaram seus deuses e seus demnios, seus mitos sobre a felicidade e a desgraa, que expressam os seus desejos e seus temores. (MENEZES,1985, p.100-1).

    Desprovidos dos conhecimentos necessrios para compreender as leis que regem o Universo, os primeiros cristos da mesma maneira que anteriormente, os pagos faziam intervir, em todos os fenmenos da Natureza, foras sobrenaturais. Segundo o seu carter benfico ou malfico, os fenmenos naturais eram atribudos ora ao equilbrio divino guardado pelos anjos, ora tentativa de subverso dessa ordem pelos demnios, crena que perdurou por toda a Idade Mdia, inclusive em Toms de Aquino (Summa I, q. 80). (NOGUEIRA, 1986, p.23).

    Neste sentido, o demnio constitui-se como um dos temas centrais da Literatura

    de Cordel, aparecendo em quase todos os folhetos. Quando no personagem central

    coadjuvante, sendo causa ou explicao de eventos ou comportamentos. (MENEZES, 1985,

    p.100.).

    Diante disso, nos propomos neste artigo, a analisar como se d essa presena do

    demnio na literatura de cordel e como este representado pelos poetas populares.

    1.O demnio na literatura popular

    A Literatura popular uma Literatura escrita pelo povo e destinada ao povo.

    Assim, trata de assuntos de interesse popular. Como j foi dito anteriormente, a figura do

    demnio est presente na maioria dos folhetos, devido importncia que as pessoas do a

    essa figura. Eduardo Diatahy de Menezes, antroplogo da Universidade Federal do Cear e

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    pesquisador de religio e cultura popular, em seu artigo A quotidianidade do demnio na

    cultura popular (1985), diz que praticamente todos os campos da cultura esto povoados pela

    presena do Demnio, tanto que na linguagem erudita e colonial so muitas as expresses e a

    sinonmia ou apelidos em torno da figura do Diabo. O autor cita Mario Souto Maior que

    registrou na linguagem popular 105 apelativos do diabo e 99 locues em que este termo ou

    correlatos comparecem, para comprovar sua afirmao17.

    Ele representado nos folhetos, assim como imaginado na cultura popular:

    negro, chifrudo, mal cheiroso, trapaceiro, mau, mentiroso, ou seja, aparncias monstruosas e

    assustadoras, o oposto de Deus.

    As representaes dos inimigos desenvolvem-se numa quase ilimitada variedade de formas grotescas e fantasmagricas, uma vez que esses seres de pesadelo simbolizam um crime contra o Criador e, portanto, contra a sua criao: a Natureza. Demnios com anatomias animais ou semi-humanas ou deformadas: cobertos de plos ou escamas, com cabeas demasiadamente grandes ou demasiadamente pequenas em relao ao corpo, dotados de olhos saltados e bocas rasgadas e cavernosas, chifres, rabos e asas, garras e cascos, cabeas de pssaros ou bicos, com inmeras faces, braos, pernas e outros apndices, enfim quantas outras monstruosidades a imaginao pudesse criar. (NOGUEIRA, 1986, p.56)

    Estas representaes foram sendo construdas no imaginrio popular brasileiro, ao

    longo dos anos, por meio da insero da cultura judaico-crist, foi trazida para o Brasil nas

    caravelas portuguesas. A ideia de o diabo ser negro, por exemplo, pode ter vindo da imagem

    de que o demnio o prncipe das trevas e pai de toda escurido, enquanto Deus a luz, o

    branco que representam a pureza. importante ressaltar, que alm desta explicao, pode

    haver outra, encontrada na tradio bblica, que o fato da frica ter sido colonizada por

    Cam, o filho amaldioado de No18 e por isso, divulgou-se a ideia de que tudo que vem da

    frica do demnio.

    Outra ideia a respeito dos chifres, que foram criados no diabo, devido ao fato de

    serem associados figura maligna ao bode:

    No novo Testamento, os bodes esto firmemente relacionados com o Mal e, na cena do Juzo Final, os bodes e os cordeiros os maus e os bons so

    17 MENEZES,1985, p. 95. 18 Pode se ler em Gnesis, 10.

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    separados, sendo os primeiros precipitados no Inferno. Por outro lado, o bode, assim como os demnios, era conhecido por sua devassido e mau cheiro, e na conscincia popular, sua belicosidade e os prejuzos que causava a campos e colheitas aumentavam as suas possibilidades de ligao com o furioso e destrutivo Inimigo. (NOGUEIRA, 1986, p.58)

    Alm do bode, outro animal a quem o diabo constantemente associado na

    Literatura popular o co, ou mais precisamente, o co preto:

    O Diabo assume outras e variadssimas formas animais (...). Mas a sua apario como um co, e um co preto a cor denunciando a presena demonaca ocupa o segundo lugar de preferncia dos relatos. Leo, bispo de Chipre, conta que o diabo saiu de um possesso sob a forma de um co preto. (...). Collin de Plancy, em seu Dicionrio infernal, conta que, ainda no sculo XIX, nos Pases Baixos, era comum expulsar os ces das igrejas e inscrever porta da casa do Senhor: Os ces, fora do templo do Deus. (NOGUEIRA, 1986, p.59-60)

    Existe ainda, a ideia de que o demnio pode atingir outras formas para enganar e

    seduzir os fiis, como aconteceu com Ado e Eva, que segundo a narrao bblica, foram

    abordados pelo demnio que apareceu em forma de serpente no Paraso e os fizeram pecar19:

    (...) O diabo pode aparecer sob vrias formas: um urso, um cavalo, um gato, um macaco, um sapo, um corvo, um abutre, um cavalheiro, um soldado, um caador, um drago e um negro. (NOGUEIRA, 1986, p.46)

    O demnio podia aparecer como um homem galante, ou como uma bela mulher, incitando os mortais luxria; ou tentava agarrar o imprudente sob a forma de um padre, um mercador ou um de seus vizinhos. (NOGUEIRA, 1986, p.54)

    importante ressaltar, que ainda sob uma tica judaico-crist, se atribui ao

    demnio a causa da subverso dos valores cristos, como divrcio, alcoolismo, prostituio,

    homossexualismo, sexo liberal, entre outras prticas comuns na atualidade que so contrrias

    ao que prega o cristianismo.

    Neste sentido, pode-se afirmar que a literatura popular moralizante, utilizando-

    se de histrias de exemplo e maldies, com a presena de divindades como a Virgem Maria,

    Jesus, santos e histrias de milagres, para pregar a obedincia a Deus e a repulsa ao Demnio.

    19 Pode-se ler em Gnesis 3.

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    Alm da utilizao, da chamada pedagogia do medo20, comum tambm na literatura popular

    a relao isomrfica que existe entre o Demnio e Deus e a pobreza e a riqueza. Segundo

    Menezes (1985), a populao pobre pode se identificar com o demnio, que tambm pobre,

    e ver Deus como uma figura distante, que no olha para as preces de seus filhos. Menezes

    tambm relaciona a esse fato, as constantes histrias de pobres que fazem pactos com o

    demnio para mudarem de vida, nas cantorias de repente, nos improvisos e na literatura de

    cordel.

    2. A representao do demnio na literatura de cordel

    Aps essa exposio sobre a figura do demnio na literatura popular, passemos

    para a anlise de folhetos, disponveis no acervo da Biblioteca Central da Universidade

    Estadual de Londrina, que abordam a temtica trabalhada no artigo.

    O primeiro folheto a ser analisado O menino que nasceu com dois chifres, no

    estado de So Paulo, de Minelvino Francisco Silva o travador apstolo. O folheto conta a

    histria de uma mulher que amaldioou o filho enquanto grvida, dizendo na Sexta feita da

    Paixo, que no poderia ir a Igreja, devido ao peso da barriga e que estava grvida do co. Na

    mesma noite a mulher entrou em trabalho de parto, e deu a luz ao prprio demnio:

    Quando foi a meia noiteEssa mulher piorouSua barriga cresceuE l dentro comeouUm ronca-ronca danadoQue o homem quase assombrou

    Depressa pegou um carroLevou-a para o hospitalChegando l o doutorFez um exame legalE disse: misericrdiaParece coisa infernal!

    A coisa no est boaPra nascer este fulanoO jeito chamar por Deus

    20 NOGUEIRA, 1986, p. 34.

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    O nosso pai soberanoE apelar no momentoPra o parto Cezariano

    E assim mesmo ele fezDeu comeo a operaoCom pouco tirou o molequeDe rabo asa e esporoCom dois chifres na cabeaPretos da cor do carvo

    O mdico disse: danou-seAssim no pode ficarCom este moleque vivoVai tudo complicarEu vou dar uma injeoPra ver se posso o matar

    Foi pegando uma injeoDaquelas que exterminaE aplico no molequePra contar sua sinaMas ele sorriu e disse:Para mim vitamina.(...)

    Esta histria pode ser inserida no ciclo de exemplos, pois d um exemplo do que

    acontece quando se diz o nome do demnio ao invs do nome de Deus. Segundo Menezes

    (1985) os folhetos de exemplo obedecem a uma mesma estrutura narrativa, em que se adota a

    pedagogia do medo com a finalidade de levar o descrente ou o homem degenerado a aceitar a

    f crist pelo temor dos castigos infernais.

    Por meio desta histria, d-se uma lio, amedronta-se o povo, que ao l-la ou

    escut-la no tomar semelhante deciso, por medo do castigo que possa vir a receber. No fim

    do cordel, o poeta popular d um sermo nas mulheres que costumam amaldioar seus

    filhos rebeldes, e as aconselha a pedir a misericrdia de Deus sobre eles, reforando o valor

    cristo, em detrimento do outro. Neste sentido, ele tambm demarca a oposio entre Deus e o

    Diabo:

    O povo quem conta istoQue em So Paulo se deuPois um menino de chifreNaquele Estado nasceu

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    E a mulher xingadeiraFoi triste o castigo seu

    De qualquer forma exemploOu uma grande lioPara todas as mulheresDe pouca compreenoQue deixa o nome de DeusPara chamar o nome do co

    Por qualquer uma toliceChama os filhos de DiaboE outro nome mais feioE ainda muito mais braboDeste jeito s ter filho com chifre e rabo

    Por isso mes de famliasTomem os conselhos meusNo chamem nomes horrveisA nenhum dos filhos seusNo devemos esquecer o santo nome de Deus

    Deus quem nos dar sadeE Deus quem nos dar o poDeus quem nos dar a sorteDeus quem dar-nos perdo Deus quem nos dar a vidaE ainda dar a salvao

    (...)Portanto vamos a EleSem sair fora dos trilhosRalar no cho os joelhosPedindo por nossos filhosQue prontamente ele darCompreeno, sade e brilhos.

    (...)Portanto chamem por DeusQue pode a todos salvarDeixem o nome do malditoNo queira se condenar Deus nos dar tudo e bomMaldito no tem o que dar

    Ele o pai da mentiraEle no teve riqueza,Ele o ente mais pobre

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    Que ficou na naturezaPerdeu a graa de DeusEle o maior na pobreza.

    Ainda sobre os folhetos de exemplo, escolhemos outro que se intitula O rapaz

    que virou cachorro, porque zombou do Pe. Cio de Joo de Barros. O folheto apresenta

    exatamente o que est exposto no ttulo, um rapaz que zomba de padre Ccero e como castigo

    transformado em cachorro. Depois de muito sofrer pelo mundo, pede perdo a Frei Damio

    pelo pecado. perdoado e torna-se homem novamente e, a partir daquele instante, nunca mais

    zombou de Padre Ccero. Novamente a figura do cachorro aparece para representar o

    demnio, mas o interessante notar que o opositor no a figura de Deus propriamente dita,

    como aconteceu no exemplo anterior, mas de um servo de Deus, santificado pela populao

    nordestina, Padre Ccero.

    Neste sentido, podemos afirmar que a figura do demnio tambm utilizada para

    exaltar os heris nordestinos, mostrando-os sempre superiores a ele. No caso de Padre Ccero,

    o mal no pode sobre ele, porque Deus est com Ele, e na cultura popular o demnio no tem

    poder sobre Deus, nem sobre seus filhos fiis. H outros casos, em que o demnio derrotado

    por algum que mais poderoso que ele sem a ajuda de Deus, ou seja, algum que to forte

    quanto Deus para vencer o diabo. Este algum Lampio, a figura mais famosa do nordeste,

    que carregou (e carrega) sobre si uma incgnita, a respeito de suas atitudes: Lampio foi bom

    ou ruim? Essa ambiguidade sempre representada na literatura de cordel, sendo que alguns

    cordelistas o apresentam como heri, outros como o bandido.

    Um exemplo do confronto de Lampio com o demnio o folheto A chegada de

    Lampeo ao inferno de Jos Pacheco. Nele, o cordelista narra a chegada de Lampio, que

    no pode ir para o cu, ao inferno. Porm Satans no o aceita, alegando que ele to ruim,

    que ir desmoralizar o local. Diante desta recusa, Lampio trava uma luta no inferno,

    enfrentando Satans e seu exrcito de demnios sozinho. Por fim vence a luta, volta para o

    serto, deixando um grande prejuzo no inferno:

    Estava travada a lutaMais de uma hora faziaA poeira cobria tudoNegro embolava e gemia

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    Porm Lampeo feridoAinda no tinha sidoDevido a grande energia.

    Lampeo pegou um chexoE rebolou-o num coMas o qu? ArrebentouA vidraa do oitoSaiu um fogo azuladoIncendiou o mercadoE o armazm de algodo.

    Satans com esse incndioTocou no bzio chamandoCorreram todos os negrosQue se achavam brigandoLampeo pegou a olharNo vendo com quem brigarTambm foi se retirando.

    Houve grande prejuzoNo inferno nesse diaQueimou-se todo dinheiroQue Satans possuaQueimou-se o livro de pontosPerdeu-se vinte mil contosSomente em mercadoria.

    Reclamando Lucfer:- horror maior no precisaOs anos ruins de safraAgora mais esta pisaSe no houver bom invernoTo cedo aqui no infernoNingum compra uma camisa.

    Leitores vou terminarTratando de LampeoMuito embora que no possaVos dar a explicaoNo inferno no ficouNo cu tambm no chegouPor certo est no serto.

    Ao final do folheto, o cordelista atenta para a veracidade do relato, dizendo que

    quem duvida, deve mandar uma carta ao inferno perguntando por Caim. importante

    ressaltar, que nos demais folhetos analisados, h tambm essa preocupao em garantir a

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 22 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

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    veracidade dos fatos narrados, mesmos que estes parecem ser inverossmeis. comum,

    deixarmos de acreditar em tais histrias, por isso os cordelistas utilizam-se de bons

    argumentos, do poder de persuaso que o poeta tem sobre as pessoas, o que, na maioria das

    vezes, a ameaa do inferno, para fazer com que acreditemos em seu relato:

    Quem duvidar desta histriaPensar que no foi assimQuerer zombar do meu srioNo acreditando em mimV comprar papel modernoEscreva para o infernoMande saber de Caim.

    Alm de orientar a populao a respeito dos castigos de Deus, a figura do

    demnio tambm usada para punir a populao que no vive conforme os valores cristos.

    Neste sentido, os folhetos de exemplo tambm so utilizados para criticar os comportamentos

    no-cristos como o homossexualismo, divrcio, liberdade sexual, entre outros exemplos.

    Sob esta perspectiva, encontra-se o folheto A moa de mini-saia que tomou banho de mar

    com o satans na praia Amaralina de Rodolfo Coelho Cavalcante trovador brasileiro.

    Assim como diz o ttulo, o poeta narra a histria de uma moa de mini-saia que

    tomou banho de mar fogoso com o diabo disfarado de homem e que s depois de um

    tempo (trs horas depois), quando viu que seus ps no eram humanos, percebeu que o belo

    moo era o demnio:

    Os dois juntos, coladinhos, S queriam mesmo amor,Mas nisso Maria ClaraQuase que mudou de corPorque ele sem sapatoTinha os ps de patoDe causar at terror.

    Naquela hora o DemnioDe calo, de chifre e raboFoi dizendo: - minha garotaPor voc morro, me acabo,No se assuste, olhe e vejaPois o que voc deseja gosto do diabo.

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    Quando ela olhou o vultoNotou a transformao,Tinha dois chifres na testaComo touro do sertoTambm um comprido raboConheceu que era o diaboNa figura de um cristo.

    Satans inda falou:- toda mini-saia minhaSeja preta ou seja brancaSeja loura ou moreninhaEssa moda eu inventeiE quem usa minha leiSe torna minha queridinha.

    Valei-me Nossa SenhoraMaria Clara gritou, E ali teve um desmaioQuando o pessoal chegouViu ela mesmo o diaboDe calo, de chifres e raboQue com ele se banhou.

    O diabo disse que se sentiu atraido por ela, por causa da mini-saia e ela, com o

    susto, acabou desmaiando e nunca mais usou mini-saia ou biquni. O diabo voltou ao inferno

    furioso por ter perdido o namoro, convocou todos os demnios e os orientou a ir s praias

    atrs de moas com mini-saias.

    Reuniu todos os diabosDe um a um e mandouTomarem banho de praia,Inda mais autorizou:- Quero todas Mini saiaQue encontrarem na praiaJ que esta me escapou.

    - Vocs todos os DomingosVo tomar banho de marPara aplacar a quenturaQue aqui de lascar...Das praias que ningum saiaE moas de mini-saiaCuidado no escapar

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 24 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

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    (...)

    - Aquele que bancar o frouxoNa terra levar vaiaPorque a donzela de hojeDe biquni e mini-saiaS toma banho fogosoE se o cabra for gostosoSe casa mesmo na praia.

    Por fim, o cordelista alerta as moas do perigo de ir praia e se deparar com o

    demnio disfarado:

    Cuidado, moas, cuidado,Com rapazinho atraenteQue pode ser o diaboCom o perfil diferente ...S saber se DiaboQuando ele mostrar o raboNo lugar que no tem gente.

    Dizem que em GuarajubaUma moa se encontrouCom um pretinho de luxoE com ele se banhou,Era o prprio SatansE s largou o rapazQuando ele o rabo mostrou.

    Percebe-se claramente uma crtica do cordelista ao uso de mini-saia, uma pea de

    roupa que ao mesmo tempo representou autonomia feminina para uns e depravao, para

    outros. Para convencer as moas a no utilizarem mais a pea, o poeta diz que foi o demnio

    que a inventou e que hoje engana moas que a utilizam, seduzindo-as nas praias sob a forma

    de um belo rapaz. Por fim, o poeta ainda d um conselho s moas e para provar a veracidade

    do seu relato, cita um outro caso ocorrido em Guarajuba. Assim, por medo de acontecer com

    elas o que aconteceu com a moa apresentada no folheto, muitas moas provavelmente

    deixaram de usar mini-saia, e o folheto de exemplo cumprir seu objetivo.

    Outra caracterstica importante do demnio na literatura popular o modo cmico

    que ele tratado por alguns poetas populares. Ao lermos folhetos que falam do diabo, na

    maioria das vezes ele enganado ou humilhado pelos humanos. Deve-se isso a forma como o

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    povo encontrou de se defender da teologia da cultura erudita, que era aterrorizante e

    incompreensvel:

    O diabo popular uma personagem familiar, s vezes benfazeja, muito menos terrvel do que afirma a Igreja e pode ser inclusive, facilmente enganado. A mentalidade popular defendia-se, desse modo, da teologia aterrorizante e muitas vezes incompreensvel da cultura erudita. (NOGUEIRA, 1986, p.76).

    Para ilustrar este caso, apresentaremos dois exemplos. O primeiro intitula-se O

    velho que enganou o diabo de Jos Antnio Torres, e o segundo O ferreiro das trs idades

    de Natanael Lima. Nos dois folhetos, os homens fazem tratos com o diabo e por fim, no

    cumprem, fazendo com que o diabo saia prejudicado na histria.

    No primeiro, o diabo trabalha para o velho, tornando-o rico, e em troca o velho

    teria que dar um pouco de seu sangue:

    Vim dar lhe uma proteoQue tenho fora e vontadeDe trabalhar pra vocSerio sem haver maldadeVim aqui lhe protegerO meu intento fazer A sua felicidade

    Disse o velho ento expliqueEste negcio direitoPara eu ficar cienteSe para mim ter jeitoQuando voc explicarSe no me prejudicarE me servir eu aceitoRespondeu o negro assimMeu pai sofre de uma fraquezaSangue humano o remdioSe deres o teu com certezaEu sou o teu camaradaNo te faltar mais nadaSe acaba a tua pobreza

    O velho disse consigoEu engano este ladroEu sei que LuciferPorm no fao questo

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    Comigo ele se embaraaPorque trabalha de graaO inverno e o vero

    E assim, o velho aceitou a proposta do diabo. Depois de muito trabalhar, o diabo

    decidiu cobrar o sangue do velho. Este, por sua vez, disse que antes de dar o sangue, o diabo

    precisava roar o campo, onde o velho, sem o conhecimento do diabo, havia escondido uma

    cruz. Quando o diabo percebeu a cruz, no quis mais roar o campo, perdendo o direito ao

    sangue do velho, que termina a histria rico, descansando em sua propriedade.

    O segundo folheto narra a histria de um ferreiro to pobre, cujo nome era

    Pobreza e seu cachorro, Misria. Um dia Jesus o visita e compadecido com a sua situao, lhe

    concede trs pedidos:

    Jesus respondeu- Pobreza triste sua misso!Ento, pede-me trs coisasQue darei de corao - Diz-me se queres riqueza,Vida longa e salvao.

    Pobreza disse: - eu no queroEssa tua SalvaoQuero que quem se sentarAqui neste meu piloS possa se levantarCom minha autorizao.

    Jesus prometeu fazerO pedido de Pobreza- quem sentar neste piloFica com toda a certeza!Se no queres salvaoEnto pede-me riqueza!

    Riqueza tambm no queroQue me acostumei pedirQuero que, naquele pau, A pessoa que ali subirDele s possa descerQuando eu mand-lo sair!

    Jesus falou em parbolaNa verdade, na verdadeEu lhe digo que ser

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 27 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

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    Feita esta tua vontade!Pede-me anos de vidaQue prolongo a tua idade!

    - Senhor tambm eu no queroQue aumente minha vida-Quero quem penetrarNo meu quarto de dormidaFique l preso, at quandoEu dar ordem de sada.

    De fazer os trs pedidosJesus Cristo garantiu.Era hora da partidaEle ento se despediuDe Pobreza, e com So PedroSua viagem seguiu.

    Aps a partida de Jesus, o Diabo foi visitar o ferreiro, oferecendo lhe riqueza e

    que aps quarenta anos, viria buscar sua alma. O ferreiro aceitou, e curtiu a riqueza durante o

    tempo que o demnio lhe dera. Passado os quarenta anos, o demnio foi buscar o ferreiro, que

    o enganou, fazendo-lhe ficar preso no pilo. Assim, a condio para tir-lo do castigo foi dar-

    lhe mais riqueza e cem anos de vida para desfrut-la. Ao fim dos cem anos, o diabo volta para

    busc-lo e novamente enganado pelo ferreiro, ficando preso no pau. A condio para

    libertar-se era novamente riqueza e mais setenta anos na terra. Chegando o dia combinado, o

    diabo veio busc-lo e o ferreiro o enganou, prendendo o diabo e mais uma legio de demnios

    no seu quarto. A condio para voltar ao inferno, era libertar o ferreiro do acordo, deixando-o

    em paz. Por fim, o diabo aceitou.

    Nos dois folhetos, pudemos ver a figura de um demnio ridicularizado por

    humanos tementes a Deus. Neste sentido, podemos afirmar que na cultura popular no h a

    crena de que as foras do mal superam as do bem e h sempre uma crena de que Deus

    sempre superior ao Demnio. Diferente de outras culturas, que atualmente acreditam que o

    Demnio tem se tornado superior, devido s constantes desgraas que o mundo tem vivido.

    Essa afirmao pode ser comprovada, com citaes do prprio folheto o ferreiro das trs

    idades:

    Tu querias me levarPara uma vida de horror

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    Porm fui favorecido Pelas graas do Senhor,Para que saibas maldito,Que Deus superior!

    Guerreaste contra DeusSe tornando Satanss mensageiro do mals inimigo da pazPorm todo teu poder,Contra Jesus nada faz!

    (...)

    Agora, responde, Diabo:Cad os poderes teus?Ficars eternamente Preso nos domnios meusComo prova que no mundoNingum no vive sem Deus!

    importante ressaltar outro ponto, presente nestes folhetos, que so relevantes no

    estudo sobre a representao do demnio na Literatura de cordel, que o pacto com o

    Demnio. Tal pacto frequente nesta Literatura, e o contexto , na maioria das vezes, um

    homem pobre, que se alia ao Demnio em busca de riqueza. Tal histria no uma inveno

    dos cordelistas, mas uma crena que veio desde o perodo medieval, perpassa Fausto de

    Goethe no Romantismo, e chega aos folhetos brasileiros:

    O drama do homem que, em busca de um bem supremo para si, vende sua alma aos poderes do mal ou seja a dualidade bsica da alma humana que inspira uma das lendas mais fortes do perodo medieval e que traduz em ltima instncia, o desejo de transgresso de uma ordem e de uma condio impostas, e, ao mesmo tempo, a orgulhosa afirmao do poder do esprito humano exprimir-se mais tarde no trgico Fausto protestante de Marlowe, que morre abandonado e amaldioado; mas ser depois restaurado em sua nobreza anterior pelo Fausto de Goethe, o qual reedita a busca do saber e da paixo que atormentava um Abelardo; e continuar como tema fundamental de inmeras obras posteriores, pelo menos at Valry e Thomas Mann, para no falar de suas manifestaes no domnio das artes plsticas e da msica. (MENEZES, 1985, p.95)

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    Tal pacto constantemente condenado, tanto que os desfechos so ou

    catastrficos ou a personagem necessita desfazer o pacto, para alcanar o perdo de Deus. Na

    histria do ferreiro, por exemplo, ele teve que destruir o demnio, para poder entrar no cu.

    Por fim, apresentamos um ltimo aspecto que consideramos interessante sobre

    esta temtica, que a associao do demnio com o homem negro e consequentemente, a

    associao de tudo que vem da frica a coisas malignas, como a religio, a msica, a dana,

    entre outras. Consideramos tal associao preconceituosa, e assim, preconceituosa tambm a

    Literatura de cordel. Mesmo sabendo que esta associao no foi criada pelos cordelistas,

    nossa afirmao se faz verdadeira, j que eles a divulgam, por meio dos folhetos.

    Em todos os folhetos analisados neste artigo, o demnio era sempre negro, e as

    xilogravuras das capas, sempre apresentavam a figura do diabo escura. Havia tambm

    citaes em que caractersticas do negro como lbios grandes, pele escura e cabelo enrolado,

    eram tratados como caractersticas malignas.

    H vrios cordis que poderamos apresentar como exemplo, porm

    apresentaremos o folheto O valente Joo corta-brao e negro endiabrado de Antnio Alves

    da Silva. O poeta popular apresenta um duelo entre um negro sem nome, um cabra

    valente do nordeste e um valente Joo, em que o negro perde. No enredo, o negro o

    prprio diabo que veio lutar com o valente e incrdulo Joo corta-brao que para vencer a luta

    roga a Deus e passa de incrdulo a cristo:

    Media quase dois metros Parecia um chipanze.Sua cabea era grande Na forma duma coit,Tinha um metro em cada braoDois palmos em cada p!

    Ningum nunca tinha vistoEste negro no quartel,Que prprio satansEra uma cpia fiel...E vestiu-se de soldado,Mas era um monstro cruel....Joo meteu-lhe o ferroDizendo: Negro eu lhe cabo.Cortou a cala do negro

  • Anais do I Seminrio Brasileiro de Poticas Orais: Vozes, Performances, Sonoridades 30 20 a 22 de outubro de 2010 Universidade Estadual de Londrina.

    ISBN: 978-85-7846-101-0___________________________________________

    Mostrando a ponta do raboO moo a conheceuQue o negro era o Diabo. ...Disse o negro: desse jeitoNo posso ser cabra macho...Quando eu vencia a lutaVocs vm com cambalachoChamando por esse homemTudo foi por gua abaixo...

    Ao dizer estas palavrasDe raiva o negro gemeuDeu um estouro to grandeQue a casa estremeceuFeito um rolo de fumaaDali desapareceu...

    Outro exemplo interessante a capa do livreto o bode subversivo que deu no

    diabo de Franklin Maxado Nordestino. A xilogravura traz a imagem do inferno em que o

    bode vence o diabo (representado pela figura de um negro) e fica com a diaba, uma negra

    com os seios mostra, quadris largos, entre outros atributos. Na xilogravura tambm

    aparecem outras figuras demonacas e todas so negras, confirmando a teoria de Moura

    (1976): na literatura de cordel prega-se que o inferno um lugar povoado e governado por

    negros (p. 46)

    Consideraes finais

    Diante da discusso apresentada no texto, podemos concluir que a figura do

    demnio faz parte do cotidiano das pessoas. uma personagem que est presente tanto na

    cultura popular quanto na erudita, porm, a representao desta figura de faz distinta tanto em

    uma quanto em outro. Pois, percebe-se que na primeira ele apresentado para alertar os

    homens acerca dos castigos de Deus para com aqueles que so infiis a Ele e a seus

    ensinamentos, e para explicar acontecimentos ruins, como a seca e a pobreza. J na segunda, o

    temor pelo prprio demnio, e pelo mal que ele pode fazer aos homens.

    Nota-se na Literatura popular que o demnio ridicularizado e humilhado pelos

    homens, como pudemos ver nas histrias de pactos, e acredita-se sempre na superioridade de

    Deus sobre o Mal. Entretanto, na cultura erudita, prega-se a igualdade entre o poder divino e o

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    maligno, tanto que da mesma forma que Jesus considerado o Prncipe da Paz, o demnio

    considerado o Prncipe das trevas ou Prncipe deste mundo.

    Bibliografia

    LITERATURA DE CORDEL Catlogo do acervo do sistema de bibliotecas da UEL. Londrina: UEL, Fundao Araucria e Biblioteca Central, 2001.

    LUYTEN, Joseph M. O que Literatura Popular. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. A quotidianidade do demnio na cultura popular. In: Religio e Sociedade. Rio de Janeiro: Campos, 1985. N12/2, p. 91-130.

    MOURA, Clovis. O preconceito de cor na literatura de cordel. So Paulo: Resenha Universitria, 1976.

    NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O diabo no imaginrio cristo. So Paulo: tica, 1986.

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