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ANAIS ELETRÔNICOS

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ANAIS ELETRÔNICOS

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL

Florianópolis/Palhoça 14, 15 e 16 de setembro de 2017

ANAIS

ELETRÔNICOS

Organizador Alexandre Botelho

Universidade do Sul de Santa Catarina

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Coordenador científico

Prof. Alexandre Botelho, MSc. Comissão Organizadora Alexandre Botelho Anderson de Souza Rosa Andressa Tomazini Cláudia Pick Eliana Becker Eliziane Vezintana Fabiano Zoldan Janete Zanchin

João Batista Thomé Juliana Fiorini Thomé Karina Souza Karla Leonora Dahse Nunes Letícia Zanela Luciana Xavier de Oliveira Luciara Vanderlinde Canadas Maria Eduarda Medeiros da Silveira Sâmia Mônica Fortunato Samira Schultz Mansur Sergio Francisco da Silva Júnior Suele de Souza Rosa Tânia Maria Santhias Victor Rebelo Bianchini

Comissão científica Alberto Gonçalves Daniele Espezim Eliana Becker Hercílio Lentz João Batista Thomé João Paulo Filipin Joel Irineu Lohn

Patrícia Castagna Sâmia Fortunato Solange Büchelle Susana Pretto Tânia Santhias Realização Grupo de Pesquisa Zeitgeist Apoio Universidade do Sul de Santa Catarina

Page 5: ANAIS ELETRÔNICOS - Unisul

Botelho, Alexandre Anais do I Congresso de Direito Unisul - SC, 2017. 264 p.

Anais (congresso) - Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis/Palhoça, 2017.

Inclui referências. 1. Direito. I., II. Universidade do Sul de Santa Catarina. III. Título

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SUMÁRIO

A CARÊNCIA DE CRITÉRIOS HERMENÊUTICOS PARA

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

EM MATÉRIA PENAL NO BRASIL: UMA APROXIMAÇÃO

DO DIREITO PENAL DE AUTOR .............................................. 9 Airto Chaves Júnior e Roberta Werner Pinto

ASPECTOS DESTACADOS DO PRINCÍPIO DO INTERESSE

PÚBLICO SEM SUA PRÉ-AFIRMADA SUPREMACIA: UM

NOVO PARADIGMA ................................................................. 46 Artur Vinícius Zimmermann Fontes ................................................................. 46

O DIREITO HUMANO DE MIGRAR E A NOVA LEI DE

MIGRAÇÃO ................................................................................ 78 Carolina Nunes Miranda Carasek da Rocha, Jamila Pitton Rissardo e Juliana

Müller

REFLEXÃO ACERCA DOS CRITÉRIOS LEGAIS

DIFERENCIADORES ENTRE O USUÁRIO E O TRAFICANTE

NA LEI DE DROGAS ................................................................. 97 Fabiano Zoldan

EM BUSCA DAS GARANTIAS DA MULHER

ENCARCERADA ...................................................................... 116 Gabriela Gomes Soncini e Jhonatan Morais Barbosa

A NULIDADE DO ENUNCIADO N.º 165 DO FONAJE (FÓRUM

NACIONAL DE JUIZADOS ESPECIAIS) A PARTIR DA

TEORIA GERAL DO DIREITO E SUA INEFICIÊNCIA

PRÁTICA................................................................................... 128 Guilherme Christen Möller

COMÉRCIO ELETRÔNICO E TRIBUTAÇÃO HIPÓTESE DE

INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE BENS DIGITAIS ............... 160 Helder Santos Ferreira

TRADUTOR/INTÉRPRETE DE LIBRAS: UM DIREITO DA

PESSOA SURDA ...................................................................... 196

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Jéssyka Maia de Souza

ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A INCLUSÃO

ESCOLAR ................................................................................. 217 Kátia Victoriano Bunn

A APLICABILIDADE DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO

DIREITO AO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO

CONTRATO .............................................................................. 237 Luciara Vanderlinde Canadas

DESIGN THINKING UMA NOVA FERRAMENTA PARA

REPENSAR AS CONDIÇÕES GERAIS DA AÇÃO PENAL . 250 Felipe Andre Dani e Márcia Sarubbi Lippmann

Soberania e Integração: uma análise das constituições brasileira e

argentina ..................................................................................... 265 Glécia Morgana da Silva Marinho

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APRESENTAÇÃO

O II Congresso de Direito UNISUL se fortalece como marco no progresso científico do Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), especificamente campus Florianópolis (Trajano) e Palhoça (Pedra Branca), reunindo o corpo docente e discente da instituição em torno das mais renomadas e avançadas

discussões sobre as relações entre Direito e Sociedade.

Idealizado pelo Grupo de Pesquisa Zeitgeist, o II Congresso de Direito UNISUL adotou o tema “Direito e Sociedade” como norte para as suas palestras e atividades, dentre as quais se destacou a “Mostra Científica”, na qual alunos e professores puderam apresentar à comunidade seus trabalhos de pesquisa e receber críticas e sugestões dos professores do curso, com a finalidade de aprimorar o trabalho a ser realizado.

Estes “Anais Eletrônicos” são o resultado dessa mostra científica, que pretendeu estimular e reforçar o pensamento científico, a importância da pesquisa no Curso de Direito e as consequências dos resultados da pesquisa para a sociedade.

Com esta publicação, renova-se a esperança de um Direito cada vez mais identificado com a sua finalidade: a promoção do ser humano.

Prof. Alexandre Botelho

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 9

A CARÊNCIA DE CRITÉRIOS HERMENÊUTICOS

PARA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA EM MATÉRIA PENAL NO

BRASIL: UMA APROXIMAÇÃO DO DIREITO PENAL DE AUTOR

Airto Chaves Júnior

Roberta Werner Pinto

RESUMO

Através do método indutivo, a presente pesquisa tem como objeto o estudo da latente desorientação político-criminal dos Tribunais Superiores do Brasil no trato do Princípio da Intervenção Mínima. O objetivo geral é demonstrar que as balizas de que se valem os Tribunais Superiores no trato do Princípio da Intervenção Mínima não condizem com as ideias fundantes de referido princípio, o que ocorre, especialmente, quando se verificam categorias à análise de aspectos relativos a pessoa do réu para determinar-se a (in)existência do fato criminoso. Assim, tem como problema de pesquisa o seguinte questionamento: os vetores interpretativos sedimentados pelos Tribunais Superiores para o reconhecimento da atipicidade material da conduta em razão da mínima lesão ao bem jurídico pelo princípio da insignificância encontram amparo dogmático no Funcionalismo Penal Teleológico? Justifica-se a pesquisa

na medida em que a intervenção penal deve ser reservada e mínima em face das circunstâncias, jamais vinculada a critérios ou vetores objetivos.

Palavras-chave: Princípio da Intervenção Mínima; Bem Jurídico Penal; Direito Penal de Autor.

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INTRODUÇÃO

A partir dos fartos precedentes que ostentam os Tribunais Superiores do Brasil no trato do Princípio da Intervenção Mínima, a presente pesquisa tem por escopo o estudo da latente desorientação político-criminal acampada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal para o reconhecimento da atipicidade material da conduta em razão da mínima lesão ao bem jurídico pelo princípio da insignificância.

Nos Tribunais Superiores, sedimentou-se o entendimento de que o Direito Penal não deve intervir quando se estiver diante dos seguintes critérios objetivos traçados por esses Tribunais, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e, d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Ocorre, entretanto, que essas “balizas” de que se vale a jurisprudência na abordagem do Minimalismo Penal não respeitam as ideias fundantes do Princípio da Intervenção Mínima, o que incide, especialmente, quando se verificam aspectos relativos à pessoa do réu para determinar-se a (in)existência do fato criminoso.

Assim, a dúvida que se pretende sanar com o presente trabalho, é a seguinte: os vetores interpretativos sedimentados pelos Tribunais Superiores do Brasil para o

reconhecimento da atipicidade material da conduta em razão da mínima lesão ao bem jurídico encontram amparo dogmático no Princípio da Intervenção Mínima?

Para sanar essa dúvida, inicialmente, tratar-se-á dos requisitos para a aferição das hipóteses de incidência do Princípio da Intervenção Mínima a partir da concepções funcionalista em Direito Penal, construção que é fundada na lesividade, subsidiariedade e fragmentariedade.

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Na segunda e última parte da pesquisa, apresentar-se-á as carências de referências dogmáticas dos vetores elencados pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal no trato da intervenção mínima do Direito Penal, chegando-se a levar em conta características pessoais do agente para se verificar se manifestar sobre a existência ou não do fato criminoso, majorando a discriminação que já é intrínseca ao processo de criminalização.

Por derradeiro, o presente trabalho se encerra com as

Considerações Finais, nas quais serão apresentados pontos conclusivos acerca da resposta do problema de pesquisa formulado.

O método utilizado no estudo que se apresenta será o indutivo, o qual é subsidiado, sempre, pela pesquisa bibliográfica.

1. O BEM JURÍDICO PENAL

Costuma-se afirmar que o cerne de todo o Direito Penal está situado no injusto, isto é, no tipo de antijuridicidade. Porém, apenas essa constatação formal não basta. No fundo de toda norma penal, por exigência constitucional, subsiste a proteção de um bem jurídico como objeto concretamente apreensível. A conduta proibida, assim, deve ser encarada como realidade concreta, não como uma relação causal, neutra e formal.1

Deve-se, assim, partir do pressuposto de que o Direito Penal se vale de uma série de técnicas de regulamentação,

as quais visam atingir a meta da proteção de bens jurídicos por meio de uma cuidadosa distribuição de deveres e competências. Ou seja, não apenas o autor do injusto, mas

1 TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e comunicação

de penas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda. Número especial de lançamento, 1992, p. 78-79.

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também a vítima (quando possível), o juiz e o legislador devem prestar contribuições para realizar o fim proposto pelo sistema. É necessário introduzir esse método de persecução de fins na divisão do trabalho também na teoria do bem jurídico-penal do injusto.2

Bernd Shünemann3 registra que a ideia central da limitação de caracterização do injusto penal deriva do conceito de contrato social, tal como foi imposta há cerca de 250 anos. Com o passar do tempo, essa ideia inicial ganhou

contornos diversos, de modo que as voltas do "dano social" na filosofia jurídico-penal de Beccaria e Hommel, de "lesão de direito" em Feuerbach e de "bem" ou "bem jurídico" em Birbaun e Liszt não se incorporaram em raciocínios idênticos, porém, são caracterizados por uma base comum, cujas diferenças, conforme Shünemann4, foram muito

2 GRECO, Luís. Modernização do Direito Penal, Bens Jurídicos

Coletivos e Crimes de Perigo Abstrato. Com um adendo:

Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 07-08. 3 SHÜNEMANN, Bernd. La teoria del Bien Jurídico

¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Traducción Rafael Alcácer, María Martin e

Íñigo Ortiz de Urbina. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas

y Sociales, S.A., 2007, p. 206. 4 Beccaria reconheceu expressamente como terceira categoria de

crimes aqueles que são contrários ao que cada um está obrigado a fazer ou não fazer em atenção ao bem público, definindo esse

bem público como a tranquilidade pública e paz. No que diz

respeito a Feuerbach, embora em sua filosofia de direito penal e,

em princípio, também no Código Penal bávaro de 1813, elaborado,

encontramos a restrição do direito penal ao comprometimento dos

direitos subjetivos do indivíduo. Finalmente, no que diz respeito à própria posição de Birbaun sobre a limitação do direito penal, a

avaliação de Amelung citada acima de um "conceito que abrange

a extensão do poder coercivo do Estado à manutenção da

moralidade" é muito exagerada. Birbaun busca o "conceito jurídico

natural de crime" ou o "conceito de crime natural", e por isso entende aquele que "de acordo com a natureza do direito penal

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acentuadas com a profunda investigação que servem de modelo até os dias atuais.

A partir do primeiro terço dos 250 anos de história da moderna teoria jurídico-penal, (a qual começa com Beccaria e termina com Birbaun), verificam-se respostas não idênticas, porém, pouco divergentes para no que concerne a Teoria do Bem Jurídico: a) por meio de considerações jusracionalistas - diretamente da figura do contrato social ou apoiadas de forma historicamente menos rígida - é

possível desenvolver um conceito de crime, que não está disponível para o legislador, e que se define pelo “dano social causado aos bens naturais ou aos bens sociais dos membros da sociedade (...), e é imprescindível que esta infração afete um bem necessário para todos e que deve ser preservado”5; b) passa-se a sustentar a ideia orientadora de que o Estado deve garantir a possibilidade de desenvolvimento do indivíduo, fornecendo algumas coordenadas do que o

pode ser racionalmente considerado digno de punição na

sociedade civil". (...) No momento de conceituar os bens, parte

sempre que em parte são dados dos homens provenientes da natureza e em parte são produtos da evolução social, e diferencia

com bastante precisão os delitos contra bens individuais daqueles

contra bens coletivos. Ver: SHÜNEMANN, Bernd. La teoria del

Bien Jurídico ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o

juego de abalorios dogmático? Tradução de Rafael Alcácer, María

Martin e Íñigo Ortiz de Urbina. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2007, p. 203-204. 5 SHÜNEMANN, Bernd. La teoria del Bien Jurídico

¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de

abalorios dogmático? Tradução de Rafael Alcácer, María Martin e

Íñigo Ortiz de Urbina. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2007, p. 207.

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Estado pode proteger através do direito penal e aquilo que o Estado não pode6.7

Por isso, a Teoria do Bem Jurídico desempenha um papel central no Direito Penal do mundo ocidental, tanto Europeu quanto brasileiro, pois o Brasil é tributário, especialmente, da dogmática penal alemã. E essa centralidade pode ser diagnosticada a partir do clássico preceito formulado por Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde: “o bem jurídico é o critério central para

6 Sobre aquilo que não pode ser protegido pelo Estado através do Direito Penal, lembra Claus Roxin que “os simples atentados

contra a moral não são suficientes para a justificação de uma

norma penal. Sempre que eles não diminuam a liberdade e a

segurança de alguém, não lesionam um bem jurídico”. Assim, os

objetos de proteção de uma abstração incompreensível não devem

reconhecer-se como bens jurídicos. Os tipos penais que sancionam formas de comportamento sob a condição de que sejam

“idôneas” para “perturbar a paz pública”, por exemplo, não

descrevem suficientemente um bem jurídico concreto, pois a

“idoneidade” reclamada pressupõe um juízo de valor não fundado

empiricamente (ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos

como função do Direito Penal. 2. ed. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2009, p. 21/25). 7 Em primeiro lugar, os bens que o indivíduo precisa para o seu

desenvolvimento, mas não os bens usurpados à custa do

desenvolvimento de outros; e, mais tarde, os bens compartilhados por todos os indivíduos que são necessários para uma vida

próspera em comum. (...) Ao mesmo tempo, com o conceito de

dano ou de bem, tem-se que não pode ser objeto de proteção

criminal qualquer interesse, e sim somente aquele interesse

imprescindível para a vida próspera em comum, de modo que os

meros retrocessos que se deslocam sobre o indivíduo ou a mera imperfeição de uma organização social, não são suficientes para

justificar uso ao direito penal (Conforme: SHÜNEMANN, Bernd. La

teoria del Bien Jurídico ¿Fundamento de legitimación del

Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Traducción Rafael

Alcácer, María Martin e Íñigo Ortiz de Urbina. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S.A., 2007, p. 208).

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determinar corretamente o merecimento de pena que, para salvaguardar, de algum modo, os direitos das diferentes partes que intervém no conflito penal, deve ser complementado com outros critérios, como a danosidade social, a subsidiariedade, a tolerância, etc.”8.

É bem verdade que os demais ramos do Direito também comportam essa finalidade, ou seja, também são concebidos para proteger os direitos legais e assim, pode-se dizer que o Direito Penal intervém em conjunto com muitas

outras instituições sociais. A sua diferença, porém, está na maneira de como ele realiza especificamente essa tarefa protetora quando trata das infrações normativas mais graves, sobretudo, porque a sua proteção tem como parâmetro a conduta desviante, o que caracteriza o Direito Penal. 9

Mas, afinal, o que pode ser considerado “Bem Jurídico”? Estudo realizado por José L. González Cussac,

8 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. Sevilha/ES:

Tirant lo Blanch, 1989, p. 113-114. Conforme os autores, até

mesmo os teóricos de orientação doutrinária que sustentam que a

missão do Direito Penal não consiste na proteção de bens

jurídicos, mas no fortalecimento dos valores ético-sociais e do sistema normativo precisam admitir, também, o critério do bem

jurídico, pois o Direito Penal só pode perseguir aquelas metas

dentro dos limites traçados pela Constituição e pela ideia do

Estado de Direito. Nem a proteção dos valores ético-sociais da

ação, nem o fortalecimento do reconhecimento normativo, nem,

também, a proteção dos direitos legais, podem ser aceitos além do direito penal e do princípio da proporcionalidade. Assim, seja qual

for a missão ou propósito do direito penal, sempre será limitado

pela ideia do Estado de Direito (Obra citada, p. 114). 9 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco.

Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. Sevilha/ES: Tirant lo Blanch, 1989, p. 116.

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Paulo Cesar Busato e Rodrigo L. F. Cabral10 traça as principais noções de Bem Jurídico tratadas pela doutrina penal ao longo do tempo.

Em primeiro lugar, fala-se de uma concepção formal, a qual entendia que o Bem Jurídico era desprovido de qualquer significação material. Conforme essa orientação, a lesão ocorreria com a pura desobediência às prescrições legais e, assim, identificava-se com a finalidade contida na própria norma.

Mais tarde, passa-se a cuidar de uma concepção material do Bem Jurídico Penal. Essa orientação, encontra-se alinhada as idéias de direito subjetivo, interesse, valor, etc.11, os quais, em grande medida, relacionam-se com a ideia de repercussão social e, a partir dela, de dano ou aquilo que se compreende por lesividade social.

Atualmente, os parâmetros dessas duas orientações são distinguidos a partir de novas formulações. Com relação

10 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL,

Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro:

parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR: Empório do Direito, 2017, p. 221-222. 11 A compreensão da categoria “bem jurídico penal” é melhor

realizada a partir da teoria do tipo. Assim, poder-se-ia definir a

expressão como “a relação de disponibilidade de um indivíduo com

um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam”. Porém,

sabe-se que toda definição, peca por tautologia se prescindir-se de

sua explicação. Costuma-se, por exemplo, dizer que os bens

jurídicos são, a vida, a honra, a propriedade, a administração

pública. etc. Na verdade, “embora não seja incorreto afirmar que

a honra seja um bem jurídico, isto não passa de uma abreviatura, porque o bem jurídico não é propriamente a honra, e sim o direito

a dispor da própria honra, como o bem jurídico não é a

propriedade, e sim o direito de dispor dos próprios direitos

patrimoniais”. Ver: ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José

Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1 (Parte Geral). 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 403.

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à primeira, pode-se falar em concepções teleológico-formais que, originárias no interior da corrente funcionalista (estratégica), contemplam a norma e as categorias da teoria do delito (o bem jurídico, inclusive) a partir de suas consequências, ou seja, da pena12: o objetivo aqui seria, assim, assegurar as expectativas normativas pelo que, o conceito é desprovido de qualquer função de tutela.

Em sentido contrário, as novas formulações materiais são elaboradas a partir da perspectiva do Estado Social de

Direito. Busca-se, neste contexto, recuperar a função limitadora do Bem Jurídico conectando-o às finalidades do ordenamento jurídico e à política criminal (teleológico-material) e com as finalidades consagradas na Constituição (teses constitucionalistas).13 Desse modo, conforme os

12 Juarez Tavares explica que essa primeira perspectiva toma, simplesmente, a norma como instrumento de proteção imediata

do interesse. Assim, ao se adotar essa orientação, a norma seria

concebida como a forma estatal de manutenção e proteção de

interesses sociais relevantes ou dominantes (ninguém nega que o

direito não está alheio aos interesses da estrutura social, nem

pode sobrevier por muito tempo sem eles). Uma vez promulgada, só caberia interpretá-la e fazê-la incidir no caso concreto

(Conforme: TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. 4. Ed.

Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 254). 13 Neste passo, quando se sustenta que toda incriminação visa a

defender um bem jurídico, o conceito de bem jurídico pode ser entendido tanto de uma perspectiva dogmática quanto de uma

perspectiva político-criminal, ou, para usar a famosa terminologia

de Hassemer, tanto de uma perspectiva imanente ao sistema

quanto transcendente ao sistema. De uma perspectiva dogmática,

toda norma terá seu bem jurídico. Quanto a esse conceito, não há

qualquer dúvida ou problema. Ele nada mais é que o interesse protegido por determinada norma, e onde houver uma norma,

haverá um tal interesse. O conceito político-criminal de bem

jurídico seria, portanto, dados fundamentais para a realização

pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social,

nos limites de uma ordem constitucional. Ver: GRECO, Luís. Modernização do Direito Penal, Bens Jurídicos Coletivos e Crimes

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 18

mencionados autores14, um conceito pedagógico de Bem Jurídico pode ser definido como “todo valor da vida humana (bem) protegido pelo Direito (jurídico)”15.

São, portanto, circunstâncias reais a partir das quais se busca promover uma vida segura e livre, que garanta os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes

de Perigo Abstrato. Com um adendo: Princípio da ofensividade e

crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011,

p. 89. 14 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL,

Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro:

parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR: Empório do Direito, 2017, p. 212. Na mesma obra, os autores

conceituam “Bem Jurídico” como “o primeiro momento em todo

processo de sua justificação da intervenção estatal. É um requisito

necessário, mas não suficiente para a legitimação constitucional

da intervenção penal sobre a liberdade geral dos cidadãos (...). É

todo valor, interesse ou direito digno, necessário e suscetível de proteção e cuja existência ou tutela não esteja proscrita

constitucionalmente. (...) Em termos de justificação: a necessidade

de tutela de um bem jurídico legitima a punição e transforma-se

em um critério essencial na aplicação dos tipos penais.” (Obra

citada, p. 217). Importa registrar, porém, que eles renunciam as concepções dogmáticas tradicionais (e dominantes) segundo a

qual o bem jurídico desempenha uma função nuclear ao constituir

o conceito que outorgaria especificamente cada delito com a

combinação com a categoria “injusto penal”. Para eles, o que

fundamenta a especificidade de cada delito não é o bem jurídico,

mas a ação típica que o lesiona. Nesta perspectiva de análise, “ação típica” e “bem jurídico” são noções inseparáveis (Obra já

mencionada, p. 218). 15 Em Direito Penal, o Bem Jurídico pode ter natureza

individual/pessoal (vida humana, patrimônio, incolumidade

física, honra, etc.) ou coletivo/supraindividual (patrimônio histórico, meio ambiente, etc.).

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 19

objetivos. 16 Por isso, Claus Roxin17 defende um conceito de bem jurídico limitador à legislação penal, na medida em que pretende mostrar ao legislador as fronteiras de uma punição legítima. Por isso, promove severas críticas ao conceito metódico de bem jurídico (fundado na concepção formal anteriormente explanada), segundo o qual como bem jurídico unicamente se deve entender o fim das normas, a ratio legis.

Problema é que, apesar de pedagógico, referido

conceito é bastante vago, o que permite que tenha sido ele utilizado pela doutrina como suporte argumentativo para explicar o porquê de certas incriminações, mas a partir do pressuposto puramente formal de que a norma penal teria como escopo sua proteção e, admitindo, assim, sua legitimidade. Não parece esta a melhor orientação, especialmente porque o discurso de proteção do bem jurídico é sempre uma oportunidade incriminadora e, assim, poder-se-iam tipificar condutas que lesam bem jurídicos ilegítimos (abstratamente) e, no âmbito concreto, punir comportamentos inócuos, sem qualquer correspondência efetiva com questões da vida social. Por isso, “ao invés de ser tratado como objeto de proteção, deve assumir a posição de objeto de referência necessária da incriminação”18, em que a sua função essencial deve estar

16 Essa segunda orientação subordina a norma a um processo de avaliação. A partir dessa perspectiva, a norma jurídica, em todas

as suas fases, estaria submetida a um processo de verificação de

legitimidade e validade, de modo que o interesse só pudesse nela

se inserir na forma de valor jurídico, cuja lesão ou perigo de lesão

condicionaria a intervenção estatal (Ver: TAVARES, Juarez.

Teoria do Crime Culposo. 4. Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 254-255). 17 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do

Direito Penal. 2. ed. Tradução de André Luís Callegari e Nereu

José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 20. 18 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. 4. Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 254.

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situada na “capacidade que mostra de se afirmar como o critério de determinação de um direito penal que não pode ser aleatório, que assume pela primeira vez de forma racional a sua legitimação”19.

Isso implica exigir, em qualquer processo de incriminação, a demonstração de que a conduta tenha lesado ou posto em perigo o respectivo bem jurídico (princípio da lesividade). De tal forma, o princípio da lesividade constitui uma manifestação do princípio da

estrita legalidade penal, pois a norma é a única que pode fixar o valor a ser tutelado (ou seja, o bem jurídico penalmente protegido).20 Caso contrário, ou seja, “caso a incriminação não possa ter como objeto de referência a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico, é ela invadida por não representar essa norma um instrumento adequado do processo de comunicação que se destina a determinar as zonas do lícito e do ilícito”21. Daí a importância da submissão ao Princípio da Exclusiva Proteção de Bens Jurídicos formulado por Claus Roxin22, pois serve ele como linha diretriz político-criminal para o legislador, como arsenal de indicações para a configuração de um delito de um Direito Penal liberal e de Estado de Direito. Mas, a partir desse modelo dogmático, três observações são necessárias.

19 PEREIRA, Maria Margarida Silva. Bens Jurídicos Colectivos e

Bens Jurídicos Políticos. Portugal: Coimbra Editora, 2003, p.

309-310. 20 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL,

Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro:

parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR: Empório do Direito, 2017, p. 213. 21 TAVARES, Juarez. Teoria do Crime Culposo. 4. Ed.

Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 254. 22 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do

Direito Penal. 2. ed. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 26.

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A primeira delas, é que, pela via do Princípio da Intervenção Mínima e da elaboração de um conceito de Bem Jurídico, apresenta-se uma serie de peculiaridades que convertem o Direito Penal num mecanismo de proteção jurídica autônoma, e até certo ponto, independentemente de outros ramos do Direito. No entanto, “não existe uma obrigação para o legislador sancionar penalmente toda conduta que lesione um bem jurídico, e nem o Direito Penal é a única forma de proteção de bens jurídicos, sejam ou não direitos fundamentais”23 (critério da fragmentariedade24).

23 MUÑOZ CONDE, Francisco. El Nuevo Derecho Penal Español.

Estudios Penales en Memoria Del Profesor José Manuel Valle

Muñiz. Protección de bienes jurídicos como limite constitucional

del Derecho penal. Elcano (Navarro): Aranzadi Editorial, 2011, p.

563. 24 Conforme Paulo Cesar Busato, a identificação do bem jurídico

como referência da dimensão material do injusto penal constitui

um limite à atividade repressora do Estado. Por isso, não são todos

os bens jurídicos que recebem a proteção penal, senão somente

aqueles identificados como essenciais ao desenvolvimento humano em sociedade. Toda norma penal deve ter em sua

estrutura de base um bem jurídico. No entanto, esse bem deve ser

essencial para o desenvolvimento humano em sociedade, o que se

alinha com o reconhecimento de que todo bem jurídico penal deve

ser compatível com um Estado Social e Democrático de Direito. O

caráter fragmentário do Direito Penal faz com que o Estado retire do ordenamento pelo meio legislativo tipos penais cuja

identificação à ofensa de tal bem não é respaldada em um

consenso social sobre sua imprescindibilidade. Francisco Muñoz

Conde sustenta que a fragmentariedade do Direito Penal aparece

em uma tripla forma: a) defendendo o bem jurídico só contra

ataques de especial gravidade; b) tipificando só uma parte de que nos demais ramos do ordenamento jurídico estima como ilícito; e,

c) deixando sem castigo, em princípio, as ações meramente

imorais. Resumidamente, essa seleção de bens jurídicos, os seus

níveis de gravidade de ataque e a exclusão das condutas

meramente imorais é denominada fragmentariedade. A fragmentariedade é, assim, uma característica do Princípio da

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A segunda observação sugere que a proteção de bens jurídicos não significa, necessariamente, proteção através do Direito Penal. Conforme lembra Claus Roxin, “os bens jurídicos não são somente protegidos pelo Direito penal, mas sim, também, por ele”.

Em terceiro lugar, as condutas tipificadas penalmente que podem lesionar ou pôr em perigo bens jurídicos relevantes (princípio da legalidade penal) devem respeitar o caráter de ultima ratio que, dentro do ordenamento jurídico,

tem o Direito Penal como último recurso de intervenção (critério da subsidiariedade25).

Intervenção Mínima. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte

geral. 2. ed. São Paulo, SP: Atlas, 2013, p. 56-59. 25 Guilherme Merolli explica que o desrespeito ao caráter subsidiário do direito penal gera um pernicioso fenômeno

denominado de "hipertrofia penal" (também conhecido como

"inflação legislativa", "esquizofrenia legislativa" ou "crescimento

patológico do direito penal") - fenômeno este que não está livre e

isento de críticas. Isto porque a hipertrofia penal representa a cristalização da ideia de que o Direito Penal pode ser a panaceia

para dos os males. Ora, mediante a sua deflagração, detecta-se a

volúpia do legislador em querer resolver simplesmente tudo pela

via criminal. Nesse contexto, o Direito Penal deixa de ser a ultima ratio da política social do legislador e se transforma, subitamente,

na prima ratio ou, então, na sola ratio de solução dos conflitos

sociais - em franca oposição, portanto, à concepção do Direito Penal enquanto um instrumento subsidiário de controle social.

Conforme: MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de

Direito Penal: curso ministrado na cadeira de direito penal I da

UFSC. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 21; neste passo,

existem situações em que a intervenção do Estado pela via do

Direito Penal não teria sentido: não se pode, por exemplo, falar em necessidade de intervenção penal para se cobrar a dívida

decorrente da inadimplência de aluguel quando as medidas cíveis

de despejo se provam mais eficientes e menos custosas. Isso não

implica negar ao patrimônio a condição de bem jurídico essencial

do indivíduo, mas reconhece a hipótese como um “ataque menos grave” a esse bem. Assim, pleitear a não intervenção penal em

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 23

É bem verdade que a afirmação de que o Direito Penal deva funcionar como último meio de intervenção de controle pouco contribui para o exercício desse mesmo controle, já que não se fornece, concretamente, parâmetros substanciais que legitimam determinada punição. Isso se deve, especialmente, ao fato de que não existe um conceito unitário de Bem Jurídico e, assim, não é possível definir bem jurídico como se fosse um tipo de objeto. Por conseguinte, esse conceito deve ser “concebido procedimentalmente, em termos de justificação, argumentação ou discussão. Neste sentido, bem jurídico será todo aquele cuja tutela legitima a punição”26.

determinados casos não significa pugnar pela ausência completa

de intervenção do Direito ou a desnecessidade de intervenção

estatal, ou ainda, a irrelevância completa do fato em si, como frequentemente se pensa. Ver: BUSATO, Paulo César. Direito

penal: parte geral. 2. ed. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 60-61; a

necessária proteção do Bem Jurídico pela via penal pode, então,

ser explicada nos seguintes termos: o legislador encontra-se

diante do ente "vida humana" e tem interesse em tutelá-la, porque

a valora (a considera positiva, boa, necessária, digna de respeito etc.). Este interesse jurídico em tutelar o ente "vida humana" deve

ser traduzido em uma norma; quando se pergunta "como tutelá-

lo?", a única resposta é: "proibindo matar". Esta é a norma

proibitiva "não matarás". Esta norma deve ser expressa em leis e,

com isto, a vida humana se revelará como um bem jurídico. Assim, a vida humana é um bem jurídico à luz das disposições

constitucionais, civis (art. 948 do CC/2002) etc. Sem embargo,

pode ser que não se contente com esta manifestação da norma e

requeira também uma tutela penal, ao menos para certas formas

de lesão ao bem. É aí, então, quando o legislador elabora o tipo

penal que o bem jurídico vida humana passa a ser um bem jurídico-penalmente tutelado (art. 121 do CP). Conforme:

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual

de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1 (Parte Geral). 9. Ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2011, p. 397. 26 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro:

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Assim, a análise de critérios da lesividade, subsidiariedade e da fragmentariedade pressupõe o respeito a uma escala de ponderação entre a intervenção estatal e a liberdade civil. Para tanto, deve-se, necessariamente, observar a fixação prévia de certas diretrizes que deverão ser levadas em conta em dois níveis de ponderação: I. pelo legislador (durante o processo de seleção das condutas penalmente relevantes); II. pelo aplicador do Direito na valoração do comportamento que, formalmente, teria violado o bem jurídico selecionado no âmbito abstrato.

Com relação à proteção do Bem Jurídico no campo abstrato (realizada no âmbito do poder legislativo), Guilherme Guedes Raposo27 enumera três etapas que devem ser observadas por ocasião da escolha dos comportamentos passíveis de punição por meio de uma pena: a) a identificação do bem jurídico que se deseja proteger28; b) a definição da estratégia político-criminal que será adotada para sua proteção, ou seja, a fixação das medidas – punitivas ou não – que serão implementadas para resguardar a integridade do bem jurídico (o legislador deve se valer, aqui, com base em regras de experiências, em dados empíricos e criminológicos, e em eventuais conhecimentos científicos setoriais); e, c) a análise de qual forma de controle social, dentre todas existentes, será a

parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR:

Empório do Direito, 2017, p. 214. 27 RAPOSO, Guilherme Guedes. Teoria do bem jurídico e

estrutura do delito: Uma reflexão sobre a legitimidade da

antecipação da tutela penal como meio de proteção de bens

jurídicos na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2011, p. 167. 28 A importância disso reside, justamente, porque é “através do

direito penal que o controle social é formalizado” (HASSEMER,

Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la

Criminología y al Derecho Penal. Sevilha/ES: Tirant lo Blanch, 1989, p. 116).

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mais eficaz e menos onerosa (em termos de danos sociais) para coibir o comportamento indesejado.

Nesse primeiro nível, deve-se observar se o bem jurídico em questão inscreve-se entre aqueles cuja proteção é fundamental para o desenvolvimento social do indivíduo. Não seriam fundamentais e nem suscetíveis de incriminação, assim, a dissensão de opinião29 e ofensas a convicções de conteúdo meramente moral. 30

No segundo nível, por sua parte, o aplicador do Direito

tampouco deve proteger os Bens Jurídicos de uma maneira absoluta, senão unicamente frente às lesões produzidas mediante riscos não permitidos e intoleráveis socialmente. De acordo com Claus Roxin31, a categoria central do injusto penal não é, pois, a causação do resultado ou a finalidade da ação humana, como se vinha acreditando por muito tempo, senão a realização de um risco não permitido. A causalidade é só uma condição necessária, mas não suficiente, do injusto penal.

Apesar de toda essa construção teórica, uma oposição que se costuma fazer à ideia de proteção de Bens Jurídicos como missão do Direito Penal necessita ser enfrentada.

29 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São

Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 65. 30 Define-se “moralismo jurídico-penal” como a tese segundo a qual a imoralidade de um comportamento é uma boa razão, isto

é, uma razão adicional e intrinsecamente relevante, para

incriminá-lo (GRECO, Luís. Tem futuro a Teoria do bem jurídico?

Reflexões a partir da decisão do Tribunal Constitucional Alemão a

respeito do crime de incesto (§ 173 Strafgesetzbuch). In: Revista

Brasileira de Ciências Criminais. Ana Elisa Liberatore S. Bechara (Coord.). Ano 18, nº 82, jan-fev./2010, P. 172). O Direito

Penal não pode proteger a moral porque sua tarefa se esgota na

proteção de bens jurídicos, e a moral não é um bem jurídico. 31 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do

Direito Penal. 2. ed. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 41.

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Conforme anota Paulo Cesar Busato32, o Direito Penal oferece uma proteção meramente simbólica e não efetiva na proteção de Bens Jurídicos.33 E isso é fato incontestável e que é demonstrado por cada novo fato criminoso. Diante dessa constatação, importa lembrar que, num Estado

32 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São

Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 16. 33 Tenta-se distinguir as funções manifestas das funções

simbólicas do Direito Penal. Para tanto, é comum que se recorra

aos estudos do sociólogo norte-americano Robert Merton: seria simbólico o Direito Penal que não alcança as suas funções

manifestas (declaradas), mas apenas as latentes, de modo que se

desenvolve uma fraude. E isso parece mesmo ocorrer já que,

segundo a difundida teoria da prevenção geral positiva, defendida

inclusive por Winfried Hassemer (um dos principais críticos do

Direito Penal Simbólico), o simbolismo é inerente não apenas às modernas incriminações, mas a toda e qualquer norma penal.

Sobre o tema, ver: GRECO, Luís. Modernização do Direito Penal,

Bens Jurídicos Coletivos e Crimes de Perigo Abstrato. Com um

adendo: Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 41-42. E o fracasso das funções

alinhadas à prevenção geral restam bastante evidentes quando avaliada a reincidência penal. “Apesar da deficiência dos dados

estatísticos é inquestionável que a delinquência não diminui em

toda a América Latina e que o sistema penitenciário tradicional

não consegue reabilitar ninguém, ao contrário, constitui uma

realidade violenta e opressiva e serve apenas para reforçar os valores negativos do condenado. A prisão exerce, não se pode

negar, forte influência no fracasso do tratamento do recluso. É

impossível pretender recuperar alguém para a vida em liberdade

em condições de não liberdade. Com efeito, os resultados obtidos

com a aplicação da pena privativa de liberdade são, sob todos os

aspectos, desalentadores (...). Na verdade, as causas responsáveis pelos índices alarmantes de reincidência não são estudadas

cientificamente. O progresso obtido em outros campos do

conhecimento humano ocorre exatamente mediante o estudo

criterioso dos fracassos e das suas causas (...)”. Conforme:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 718-719.

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Democrático regulado pelo Direito, só é legítimo intervir juridicamente na vida das pessoas ex post, pelo que, não é possível pensar que o Direito Penal ofereça uma proteção real, seja qual for o Bem Jurídico a que se esteja tratando. O máximo que se pode esperar, é que a norma oriente a consciência das pessoas mas, sempre, num caráter de mera expectativa.

2. INTERVENÇÃO MÍNIMA E INSIGNIFICÂNCIA DO FATO NO BRASIL

Conforme se verificou, os critérios para a legitimação de normas a partir das Teorias que tratam do Bem Jurídico Penal como núcleo fundamente para o Direito Penal constituem um filtro no processo de incriminação, tanto no campo abstrato de tipificação das condutas (seletividade na indicação dos bens que receberão a tutela penal) quanto no campo concreto de aplicação da norma (com a limitação à cominação e a aplicação das penas). Nesta perspectiva dogmática, “além de reduzir a intervenção punitiva do Estado, faz-se necessário qualificar tal intervenção de forma socialmente adequada”34, levando-se em conta bens jurídicos considerados realmente dignos de tutela penal.

Neste passo, o Direito Penal pode ser utilizado, também, como instrumento de crítica, seja política ou constitucional, tanto nas práticas legislativas quanto nos diversos exercícios que promovem a criminalização

34 GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 117.

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secundária35 na forma daquilo que tratou Luigi Ferrajoli36: “o grau de civilização de um Estado é medido, sobretudo, pela economia das proibições e penalidades, e pelo grau de tolerância social expressada no comportamento desviante, especialmente quando não se ofende os Direitos Fundamentais das pessoas”.

A proposta deve se ajustar, portanto, à proteção dos Direitos Fundamentais no controle social daquilo que Paulo Cesar Busato37 chama de “controle do intolerável”. E o

intolerável, segundo o autor, passa pela existência de um ataque grave a um bem jurídico essencial ao desenvolvimento do indivíduo na sociedade. Essa, e nenhuma outra, deve ser a justificação da imposição de uma norma jurídico-penal, a qual somente pode ser considerada válida diante da pretensão de justiça.

Por esta razão, frente ao nosso modelo constitucional, o Bem Jurídico deve operar como um limite ao Estado (função negativa), e jamais em sentido contrário. Assim, esse limite não obriga a punir (a criar tipos penais) nem mesmo nos casos em que se verificam socialmente danosos, pois o Estado possui outros instrumentos de tutela distintos

35 Tem-se por criminalização secundária a seleção efetiva e

definitiva operada pelas agências de repressão. Essas agências são

os segmentos do Sistema Penal que atuam no plano concreto. Os

segmentos básicos do sistema penal que funcionam neste momento do processo de criminalização são o policial, o judicial,

e o executivo. Trata-se, portanto, de três grupos humanos que

convergem na atividade institucionalizada do sistema. Conforme:

CHAVES JR., Airto. OLDONI, Fabiano. Para que(m) serve o

direito penal? uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014,

p. 141. 36 FERRAJOLI, Luigi. Derecho Penal Mínimo y Bienes Jurídicos

Fundamentales. In: Revista de la Asociación de Ciencias

Penales de Costa Rica. Marzo-Junio 1992. Año 4, nº 5. 37 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 17.

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daqueles produzidos a partir do Direito Penal de forma que não se pode inverter o sentido do âmbito de proteção38 (ultima ratio).

No Brasil, o Princípio da Intervenção Mínima é tratado sob a denominação de princípio da bagatela ou princípio da insignificância, nomenclatura que foi mencionada por Claus Roxin na obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal39 editada pela primeira vez em 1972.40

Na perspectiva da insignificância, a tipicidade penal

exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Assim, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal (adequação da conduta ao tipo) podem não apresentar nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal (por ausência de tipicidade material)

38 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro:

parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR:

Empório do Direito, 2017, p. 214. 39 Ver: ROXIN, Claus. Política Criminal y Sistema del Derecho

Penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde. 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 2002, p. 73. Conforme Roxin, para ser

significativa no âmbito penal, “não é qualquer tipo de lesão à

integridade corporal, mas somente uma lesão relevante; uma

forma delitiva de injúria é só a lesão grave a pretensão social de

respeito. Como força deve ser considerada unicamente um

obstáculo de certa importância, igualmente também a ameaça deve ser sensível para ultrapassar o umbral da criminalidade”

(Obra citada, p. 74). 40 Há autores, a exemplo de Cezar Roberto Bitencourt, que

sustentam que a terminologia foi utilizada por Roxin pela primeira

vez no ano de 1964, mas foi com a obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal que o princípio foi incorporado ao âmbito da doutrina.

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porque, nesses casos, o bem jurídico penalmente tutelado não chegou a ser afetado.41

Embora no contexto brasileiro a esmagadora maioria dos autores trate da insignificância como princípio orientador da intervenção penal, há autores que fornecem severas críticas a essa questão terminológica por entenderem que essas expressões (bagatela ou insignificância) minimizam a importância do tema porque, foneticamente, associa o princípio a uma questão de pouca

importância quando, realmente, ocupa o núcleo da filtragem político-criminal.

Paulo Cesar Busato42, por exemplo, anota que as expressões induzem conclusão de que o objeto material sobre o qual se debruça o intérprete é o determinante único da necessidade de intervenção penal. Por vezes, isso acaba por contaminar a práxis forense brasileira, pois resta associada a uma necessidade positivista atávica, manifestando-se em decisões que referem expressamente à necessidade de fixação objetiva, por exemplo, de valores de referência para crimes patrimoniais.

De outra parte, ainda conforme o autor referido, a adoção da expressão intervenção mínima dá a exata medida e os precisos contornos do princípio, pois deixa claro que a intervenção do Estado pela via do Direito Penal é reservada, seletiva, mínima, em face das circunstâncias, jamais vinculada a critérios objetivos e, menos ainda, a valores determinados.

No final da década de 1980, alguns casos tangenciaram o Princípio da Intervenção Mínima no Supremo Tribunal Federal. No entanto, o RHC 66.869 julgado em dezembro de 1988, de Relatoria do Min. Aldir

41 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte

geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 68-69. 42 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 64.

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Passarinho, é o precedente apontado como o primeiro em que a Suprema Corte reconheceu a atipicidade material do fato com fundamento no princípio da insignificância.43 Dezesseis anos mais tarde, vem a julgamento aquele que é considerado o verdadeiro marco da jurisprudência do STF na matéria. No precedente, pela primeira vez, são expostos, de forma analítica, os fundamentos e os quatro vetores que mais tarde seria matéria sedimentada para a aplicação do princípio da insignificância em matéria penal no Brasil.44

43 Veja-se, porém, é possível encontrar antecedentes ainda mais remotos, em que a irrelevância penal dos fatos em questão foi

utilizada como argumento para a concessão de ordens de habeas

corpus. No único acórdão do Plenário sobre o tema (HC 39.289,

Rel. Min. Gonçalves de Oliveira, j. 08.08.1962), discutiu-se o furto

de “sete metros de pano cru”, tendo sido a ordem concedida por

ausência de dolo. Em casos julgados em 09.03.1970 (RHC 47.694, Rel. Min. Thompson Flores) e 15.12.1970 (HC 48.370, Rel. Min.

Djaci Falcão), os pacientes foram beneficiados por decisões que

reconheceram a atipicidade do porte de pequenas quantidades de

maconha para consumo pessoal, uma vez que as condutas

ocorreram antes do advento do Decreto-Lei nº 385/1968. Ver: STF, 1ª Turma: Habeas Corpus 123.108 (MG). Relatoria do Min.

Roberto Barroso. Julgado em 03/08/2015, p. 13. 44 STF, HC 84.412, de Relatoria do Min. Celso de Mello, julgado

em 19.10.2004. O acusado, no caso em questão, fora processado

por furtar uma fita de videogame, avaliada em R$ 25,00 (vinte e

cinco reais). Segue a ementa: “PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA – IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O

RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA

CRIMINAL – CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA

TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL – DELITO DE

FURTO – CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO,

COM APENAS 19 ANOS DE IDADE – ‘RES FURTIVA’ NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO

ATUALMENTE EM VIGOR) – DOUTRINA – CONSIDERAÇÕES EM

TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF – PEDIDO DEFERIDO. O

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR

DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão

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Apoiando-se neste precedente, foram assentadas algumas premissas alinhadas diretamente ao Princípio da Intervenção Mínima: a) a insignificância é fundada nos postulados da fragmentariedade e subsidiariedade; b) a insignificância exclui a tipicidade material do fato45; e, c)

com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima

do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de

afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de

seu caráter material. Doutrina. Tal postulado – que considera

necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a

presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação,

(c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e

(d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em

seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o

caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do

Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO

DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’. - O

sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância

de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do

indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens

jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos

em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano,

efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O

direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam

resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo,

prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja

à integridade da própria ordem social”. Destacou-se. 45 Isso porque, é bastante prevalente no âmbito doutrinário de que

a ausência de grave lesão ao bem jurídico penalmente protegido

pela norma penal afasta a tipicidade material. Dessa forma, a tipicidade penal deve ser avaliada em duas fases distintas: a)

formal (adequação da conduta ao tipo legal); b) material (relevante

ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado. Há autores, ainda

que trabalham a tipicidade penal num modelo conglobante,

incluindo a normatividade ao conceito de tipicidade penal: “Não obstante, não se deve pensar que, quando uma conduta se adequa

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para o reconhecimento da insignificância, devem ser observados os quatro vetores que orientaram o HC 84.41246, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e, d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.47

formalmente a uma descrição típica, só por esta circunstância é

penalmente típica. Que uma conduta seja típica não significa

necessariamente que é antinormativa, isto é, que esteja proibida

pela norma (pelo "não matarás", "não furtarás" etc.). O tipo é criado pelo legislador para tutelar o bem contra as condutas

proibidas pela norma, de modo que o juiz jamais pode considerar

incluídas no tipo aquelas condutas que, embora formalmente se

adeguem à descrição típica, realmente não podem ser

consideradas contrárias à norma e nem lesivas do bem jurídico

tutelado. A antinormatividade não é comprovada somente coma adequação da conduta ao tipo legal, posto que requer uma

investigação do alcance da norma que está anteposta, e que deu

origem ao tipo legal, e uma investigação sobre a afetação do bem

jurídico. Esta investigação é uma etapa posterior do juízo de

tipicidade que, uma vez comprovada a tipicidade legal, obriga a indagar sobre a antinormatividade, e apenas quando esta se

comprova é que se pode concluir pela tipicidade penal da

conduta”. Ver: ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José

Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1 (Parte

Geral). 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 398. 46 Ementa citada na nota de rodapé nº 46. 47 Importa lembrar que, embora em menor grau, há precedentes

que trabalham com outros vetores, a exemplo do que se encontra

no teor do julgamento d HC 107.082, de Relatoria do Min. Ayres

Britto, de 24/04/2012. Neste julgamento, dentre os parâmetros

para a aplicação do princípio da insignificância, fez-se referência, por exemplo, a vulnerabilidade social do agente. Sobre o tema, vale

registrar que a vulnerabilidade do agente já foi objeto de estudo de

Eugênio Raúl Zaffaroni e, para o autor, trata-se de critério para

medição da culpabilidade, jamais da tipicidade. Conforme esse

autor, quando o Processo Penal demonstra que o Acusado possui

negatividades sociais que determinam a sua criminalização, essa condição deve servir para que se reduza a censura que o Estado

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 34

Ao que parece, então, o Tribunal não conceberia, doravante, a existência de uma conduta típica que não afetasse um Bem Jurídico. Seria, essa lesão, indispensável, portanto, para configurar a tipicidade penal, adequando a jurisprudência àquilo que a doutrina já vinha sustentando a tempos: “o bem jurídico desempenha um papel central na teoria do tipo, dando o verdadeiro sentido teleológico (de telas, fim) à lei penal. Sem o bem jurídico, não há um "para quê?" do tipo e, portanto, não há possibilidade alguma de interpretação teleológica da lei penal (...)"48.

Ao se consultar os precedentes dos Tribunais Superiores, é possível diagnosticar o quanto é aceita a orientação formulada a partir dos quatro vetores interpretativos (oriundos, conforme tratado, do HC 84.412, do STF) no trato do Princípio da Intervenção Mínima no Brasil.

Problema é que, em análise a esses vetores (mínima ofensividade da conduta do agente; nenhuma periculosidade social da ação; reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada), percebe-se, desde logo, que eles não se alinham as ideias fundantes do Princípio da Intervenção Mínima, o que possibilita que esses Tribunais se utilizem de distorções interpretativas bastantes graves em seus precedentes, orientando os Tribunais das Unidades Federativas a replicar essas distorções.

possa fazer em relação ao seu comportamento. Ver: ZAFFARONI,

Eugenio Raúl; SLOKUR, Alejandro; ALAGIU, Alejandro. Derecho

Penal: parte general. 2 ed. Buenos Aires: Sociedad Anónima Editora, 2002, p. 650-657. 48 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique.

Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1 (Parte Geral). 9. Ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 402-403; Ver, ainda:

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 84-90.

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Exemplo disso pode ser constatado ao se voltar os olhos para as inúmeras decisões que negam o caráter de mínima intervenção do Direito Penal em razão da suposta reincidência do agente (por vezes, utilizando-se da expressão “reiteração delitiva”)49, isto é, por circunstâncias atinentes ao sujeito do crime, e não do fato praticado por ele.

A linha argumentativa, na maior parte desses casos, é no sentido de que aplicação do princípio da insignificância

deve ser precedida de “criteriosa análise de cada caso” mas, sobretudo, a fim de evitar que a sua adoção indiscriminada constitua “verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais”. 50 Neste passo, a lesão ao bem jurídico penalmente tutelado não seria o único parâmetro a ser avaliado. Pelo contrário, os Tribunais Superiores do Brasil ostentam inúmeros precedentes que afastam a atipicidade material da conduta em hipóteses em que o agente ostenta condenações anteriores ou, até mesmo, inquéritos policiais ou ações penais em curso51, haja vista que, nesta última condição, embora possa se falar em agente tecnicamente primário, “referida situação pessoal evidencia uma

49 Embora extremamente minoritário, vale anotar que é possível

encontrar precedentes que desprezam as condições do agente no

trato do princípio da insignificância (Exemplos: HC 112.400, de

Relatoria do Min. Gilmar Mendes; HC 106.068, de Relatoria da Min. Carmen Lúcia; e HC 93.393, que tem como Relator o Min

Cezar Peluso, etc.). 50 Ver: STF, HC 120043/DF, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira

Turma, Data de Julgamento: 19/11/2013. Data de Publicação:

03/12/2013; no HC 107.733 AgR, o mesmo Ministro fez

considerações semelhantes ao denegar a ordem a paciente reincidente, condenado a um ano e três meses de reclusão, em

regime inicial semiaberto, por furtar seis barras de chocolate,

avaliadas conjuntamente em R$ 31,80 (trinta e um reais e oitenta

centavos). 51 STJ, HC 250.126/AL, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 10/03/2016, DJe 21/03/2016.

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habitualidade delitiva, o que não pode ser tolerado pelo Direito Penal”52.

Observa-se, assim, uma flagrante transmudação do Princípio da Intervenção Mínima e dos critérios da fragmentariedade e subsidiariedade, pois aquilo que tem a função de limitar o ius puniendi, é manipulado como verdadeiro instrumento para interpretações extensivas da norma penal. Em outras palavras, “determinadas construções dogmáticas convertem um limite do ius puniendi em uma demanda e justificação do mesmo, de modo que subvertem sua função de freio para transmuda-lo em um acelerador de incriminação”53.

A desorientação hermenêutica é tão brutal que se chega a aportar para um verdadeiro Direito Penal de Autor54,

52 STF – HC 135317/MG. Relatoria da Ministra Carmen Lúcia. Segunda Turma. Data de Julgamento: 06/09/2016. Data de

Publicação: 01/08/2017: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL.

PENAL. TENTATIVA DE FURTO DE CELULAR E CARREGADOR

DE CELULAR AVALIADOS EM R$ 274,00 (DUZENTOS E

SETENTA E QUATRO REAIS). PRETENSÃO DE INCIDÊNCIA DO

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. PACIENTE REINCIDENTE. ORDEM DENEGADA. 1. A verificação da

tipicidade penal não pode ser percebida como o exercício abstrato

de adequação do fato concreto à norma jurídica. Além da

correspondência formal, para a configuração da tipicidade é

necessária análise materialmente valorativa das circunstâncias da espécie em exame, no sentido de se decidir sobre a ocorrência de

lesão grave, contundente e penalmente relevante do bem jurídico

tutelado. Paciente reincidente na prática de furto tentado. Não

incidência do princípio da insignificância. 2. Ordem denegada. 53 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL,

Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro: parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR:

Empório do Direito, 2017, p. 215. 54 Sobre o Direito Penal de Autor, ver: JAKOBS, Günther. MELIÁ,

Manuel Cancio. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Org.

e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

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levando-se em conta, antes de qualquer outro qualificativo, as condições pessoais do réu (inquéritos policiais em curso, antecedentes e reincidência) para se verificar se o fato é, ou não, penalmente típico: esquece-se o fato praticado e concentra-se na pessoa do agente.55 Por certo, esse tratamento dirigido à pessoa do réu propõe um modelo de exegese bastante esquizofrênico, conforme se pode

55 Os precedentes que subvertem os critérios da Intervenção Mínima do Direito Penal são fatos: no RHC 117.751, de Relatoria

do Min. Ricardo Lewandowski, o paciente era processado por ter

subtraído de um supermercado um desodorante, avaliado em R$

15,12 (quinze reais e doze centavos); no julgamento do HC

101.998, o Relator, Min. Dias Toffoli, manteve a condenação a um

ano de reclusão sem substituição por pena restritiva, pelo furto de nove barras de chocolate, avaliadas em R$ 45,00 (quarenta e cinco

reais), ao considerar que o réu, por ser reincidente, teria

“personalidade voltada à prática delituosa”; semelhantemente, no

HC 118.089, a Relatora Min. Cármen Lúcia, manteve a

condenação do paciente de dois anos de reclusão sem substituição por pena restritiva de direitos por ter subtraído do caixa de uma

padaria uma cédula de R$ 50,00 (cinquenta reais) e um maço de

cigarros. Curiosa é a fundamentação do acórdão:

“comportamentos contrários à lei penal, mesmo que

insignificantes, quando constantes, devido à sua reprovabilidade,

perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal”; o então Ministro Teori Zavascki também

acompanhava a posição majoritária. No julgamento do HC

114.877, manteve a condenação do réu a dois anos de reclusão

por subtração de objeto avaliado em R$ 100,00 (cem reais).

Conforme ele, “não se pode considerar atípica, por irrelevante, a conduta formalmente típica, de delito contra o patrimônio,

praticada por paciente que possui condenações anteriores”; o

Ministro Celso de Melo também tende a afastar a aplicação do

princípio da insignificância quando o réu ostenta condenação

definitiva (ver HC 111.016); Joaquim Barbosa, quando Ministro do

Supremo, também adotava a mesma orientação (conforme HC 107.500).

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constatar do exemplo trazido por Paulo Cesar Busato56: seria bastante curioso submeter a Corte à consideração da seguinte hipótese: “A”, reincidente, em concurso de pessoas com “B”, agente completamente primário e de bons antecedentes, cometem determinada subtração de valor irrisório, verdadeiramente sem qualquer importância. Perceba-se que, seguindo o seu plano hermenêutico, estar-se-ia forçado a reconhecer o injusto penal apenas para um dos agentes.

Sustenta-se no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que as teorias afetas a um Estado Democrático de Direito, tais como o Princípio da Intervenção Mínima, e que tendem a afastar ao máximo a incidência do Direito Penal “não podem servir como passaporte, carta branca ou green card para a prática de condutas típicas”. Desse modo, o reconhecimento da insignificância para agentes com registros criminais pretéritos, representaria, portanto, estímulo para a prática reiterada de pequenos crimes sem punição.57

Ocorre, no entanto, que tipicidade penal (tanto a formal quanto a material) não comporta qualquer relação com a pessoa do agente (se processado, condenado ou reincidente). As questões relacionadas ao autor da conduta só poderiam ser levadas em conta após a prova de que estão presentes todos os componentes do injusto e numa eventual dosimetria de pena em caso de condenação (CP, art. 59 do Código Penal58), ou seja, após comprovada a presença de tipicidade, ilicitude e culpabilidade.

56 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São

Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 64. 57 É o que emerge dos precedentes: HC 110.951, Rel. Min. Dias

Toffoli, DJe 27/02/2012; HC 108.696 Rel. Min. Dias Toffoli, DJe

20/10/2011; e HC 107.674, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe

14/9/2011. 58 Art. 59 do Código Penal – “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos

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A jurisprudência que prevalece no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, porém, estabelece exatamente o contrário: afasta o princípio da insignificância a agentes em situação de reiteração delitiva (tecnicamente reincidentes ou não). Nesta perturbada (des)orientação, a subtração de um chocolate de uma loja que compõe uma grande rede de supermercados pode ou não ser crime, e essa determinação da existência do fato criminoso dependerá de aspectos relativos à pessoa do réu. Nega-se, assim, a tradição dogmática de um Direito Penal de Culpabilidade para se instalar um verdadeiro Direito Penal de Autor no Brasil59, semelhantemente à proposta e limites materiais trazidos por Günther Jakobs, na década de 1980: criminalização no estágio prévio à lesão a bem

motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como

ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja

necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena

aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de

cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição

da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena,

se cabível”. Destacou-se. 59 Semelhante interpretação, fez o Ministro Roberto Barroso, em

voto (vencido) do julgamento do HC 123.108, de sua Relatoria,

julgado em 05/08/2014 pela Primeira Turma do Supremo

Tribunal Federal: “(...) caso se entenda que o furto de coisa de valor

ínfimo pode ser punido na hipótese de reincidência do agente, é

preciso admitir que a questão da insignificância se move do domínio da tipicidade para o da culpabilidade. Isto porque, como

visto, não é possível afirmar, à luz da Constituição, que uma

mesma conduta é típica para uns e não para outros (os

reincidentes), sob pena de configuração de um inaceitável direito

penal do autor, e não do fato, como já decidiu este Tribunal”. Conforme nota 77 do Acórdão, p. 40.

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jurídico”60. Neste passo, “o Direito Penal poderia ser caracterizado pela imagem do agente de que ele parte”61.

Além disso, converte-se o Princípio da Exclusiva Proteção dos Bens Jurídicos (Claus Roxin) num princípio de total proteção dos bens jurídicos, renunciando-se à proteção de sua segurança jurídica de liberdades públicas frente ao poder do Estado em troca de uma suposta e falsa segurança material: a proteção de todo e qualquer interesse pela via do Direito Penal.

Portanto, se a função do Bem jurídico consiste em ser o primeiro tópico da argumentação sobre a validade de uma norma, ou seja, o primeiro momento em todo processo de justificação da intervenção estatal62, há de se respeitar requisitos para aferição da hipótese de incidência do Princípio da Intervenção Mínima, quais sejam: 1. O reconhecimento de que o caso sob reflete um ataque a um bem jurídico fundamental para o desenvolvimento da vítima em sociedade; 2. Que esse ataque seja grave o suficiente para justificar que a última instância de controle social (Direito Penal)63. A gravidade da lesão ao Bem Jurídico, por

60 Ver: JAKOBS, Günther. MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal

do inimigo: noções e críticas. Org. e trad. André Luís Callegari,

Nereu José Giacomolli. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2007. 61 GRECO, Luís. Modernização do Direito Penal, Bens Jurídicos Coletivos e Crimes de Perigo Abstrato. Com um adendo:

Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 25. 62 CUSSAC, José L. González; BUSATO, Paulo Cesar; CABRAL,

Rodrigo Leite Ferreira. Compêndio de Direito Penal Brasileiro:

parte geral. Valência/ES: Tirant lo Blanc; Florianópolis/BR: Empório do Direito, 2017, p. 217. 63 Veja-se que a gravidade da lesão ao bem jurídico não comporta

relação alguma com a fase do crime em que se atingiu a conduta.

Não se deve levar em conta, assim, no juízo de tipicidade penal, se

o crime é consumado ou tentado. Porém, essa característica, lamentavelmente, também tem sido critério para o

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sua vez, deve ser medida tendo em conta: a) a classe de violação realizada, em face de sua tolerabilidade social; b) a intensidade do prejuízo ao bem jurídico da vítima em face de suas condições pessoais; e, c) se o emprego do Direito penal, na hipótese concreta, não é meramente simbólico, diante da melhor e mais eficaz possibilidade de solução do problema social por outra via64 (institucionalizada ou não).

É claro que referido princípio não se prende, exclusivamente, ao valor intrínseco com Bem Jurídico.

Porém, não há amparo dogmático ou exegese possível para se sustentar a tipicidade penal nas características pessoais do agente, salvo a possibilidade de que, assumidamente, ter-se um Direito Penal de Periculosidade e fundado, portanto, na pessoa do autor.

Assim, é patente a desorientação dogmática nos Tribunais Superiores sobre os contornos da tipicidade material no trato de um dos princípios mais importantes do Direito Penal, pois é o Princípio da Intervenção Mínima que funciona como elemento fundante de todo o processo de criminalização, tanto primário quanto secundário.

Por fim, apesar do discurso que recheia os votos dos precedentes no trato da matéria ser anotado como se refletisse verdadeira declaração de boas intenções, as razões em que os Tribunais se ancoram para aferir a tipicidade material da conduta rebaixam o Princípio da Intervenção Mínima ao cumprimento de meras funções cosméticas e que, assim, não ultrapassam o mero discurso, pois são “cunhados com o deliberado propósito de agravar ainda

reconhecimento da insignificância do fato em matéria penal no Brasil. Ver, por exemplo, o seguinte precedente: STJ, REsp

828094/RS, 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator

Min. Arnaldo Esteves Lima. Julgado em 05/02/2009. Publicado

em 16/03/2009. 64 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 67.

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mais a discriminação que já é intrínseca ao processo de criminalização e conformação de suas regras”65.

CONCLUSÃO

A partir da pesquisa que se finaliza, foi possível concluir o que segue:

a) Há várias teorias que buscam no Bem Jurídico os limites para a intervenção penal;

b) O Princípio da Intervenção Mínima é fundado nas formulações materiais elaboradas sob a perspectiva do Estado Social, campo em que Bem Jurídico assume a posição de objeto de referência necessária da incriminação, que deve ser ponderada em consonância com os critérios da lesividade, subsidiariedade e fragmentariedade;

c) Para tanto, no âmbito abstrato, deve-se observar se o Bem Jurídico inscreve-se entre aqueles cuja proteção é fundamental para o desenvolvimento social do indivíduo. Depois disso, no âmbito concreto, o aplicador do Direito só deve acionar o Direito Penal frente condutas que promovam lesões produzidas mediante riscos não permitidos e intoleráveis socialmente;

d) No Brasil, o Princípio da Intervenção Mínima é tratado sob a denominação de princípio da bagatela ou princípio da insignificância. Conforme esse princípio, a ausência de ofensa relevante ao bem jurídico penalmente tutelado exclui a tipicidade material que, por sua vez, afasta

a própria tipicidade penal;

e) Assim, para incidência do princípio da insignificância, os Tribunais Superiores sedimentaram a orientação de que se faz necessária a presença de quatro vetores interpretativos. Da análise desses vetores,

65 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo/SP: Atlas, 2013, p. 65.

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constatou-se que eles não se alinham as ideias fundantes do Princípio da Intervenção Mínima, o que possibilita que esses Tribunais se utilizem de distorções interpretativas bastantes graves em seus precedentes;

f) A desorientação hermenêutica é tão brutal que se chega a aportar para um verdadeira Direito Penal de Autor no âmbito jurisprudencial do STF e do STJ, levando-se em conta, antes de qualquer outro qualificativo, as condições pessoais do réu para se verificar se o fato é, ou não,

penalmente típico;

g) Por consequência, deflagra-se uma flagrante transmudação do Princípio da Intervenção Mínima e dos critérios da fragmentariedade e subsidiariedade, pois aquilo que teria a função de limitar o ius puniendi, acaba sendo manipulado como verdadeiro instrumento para interpretações extensivas da norma penal, ampliando o processo de incriminação.

Concluiu-se, por fim, que os vetores interpretativos sedimentos pelos Tribunais Superiores do Brasil, ao tempo em que desrespeitam toda a tradição dogmática que dá sustentação ao Princípio da Intervenção Mínima, aproxima-se a política-criminal que dá suporte ao Direito Penal de Autor.

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ASPECTOS DESTACADOS DO PRINCÍPIO DO

INTERESSE PÚBLICO SEM SUA PRÉ-AFIRMADA SUPREMACIA: UM NOVO PARADIGMA

Artur Vinícius Zimmermann Fontes

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo o escrutínio do princípio

da supremacia do interesse público sobre o privado, o qual, enquanto estruturante do sistema de Direito Administrativo em vigor atualmente, acaba não questionado em diversas situações. A partir dos diferentes modelos de Estado vivenciados desde o século XVI, expostos no primeiro capítulo, são delimitados os contornos em que concebido o interesse público no Estado Absolutista, no Estado Legal de Direito, no Estado Social de Direito e no Estado Constitucional de Direito, este último abordado no segundo capítulo. Também é abordada a temática dos direitos fundamentais, centro gravitacional do modelo de Estado vigente nos dias atuais. No terceiro e último capítulo, insere-se a atual concepção da supremacia do interesse público, bem como as críticas já existentes ao indigitado paradigma, como preparação à proposta que ao final é apresentada. Proposta esta que visa abordar um conceito de interesse público sem a sua pré-afirmada supremacia, em conformidade aos direitos fundamentais, à soberania popular e à administração pública consensual. O novo paradigma do interesse público reclama uma Administração

Pública mais aberta, participativa, eficiente e democrática, o que permite a maximização dos interesses dos integrantes da sociedade, individualmente considerados.

Palavras-chave: Interesse Público; Supremacia; Modelos de Estado; Direitos Fundamentais; Novo Paradigma.

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INTRODUÇÃO

O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é estruturante do regime jurídico de Direito Administrativo atualmente por todos conhecido. A ponderação de interesses, no conflito entre interesses privados e interesse público, pende para este último na esmagadora maioria das vezes. Até mesmo direitos fundamentais são preteridos, ao fundamento da proteção do interesse público, como fim maior e razão de ser do Estado.

Em verdade, vê-se em muitos casos a supremacia do interesse público como um fim em si mesmo, inclusive, sem o ônus argumentativo que seria necessário em outras situações – como, por exemplo, a colisão entre direitos individuais distintos, hipótese em que necessária a justificativa para a prevalência de um ou alguns deles em detrimento dos demais.

Este paradigma, assim, acaba não questionado, ao passo em que atualmente a sociedade vive um momento de reflexão acerca de sólidas estruturas clássicas como a família, a religião e o próprio Estado.

São apresentadas diferentes visões, manifestadas por respeitados doutrinadores acerca da temática, possibilitando-se que, ao final, sejam apresentadas opiniões por vezes contrapostas, mas que agregarão o estudo visando a uma proposta final, sem a pretensão de ser a única possível.

No primeiro capítulo, abordados os modelos de Estado que se sucederam a partir do século XVI, em que vigorante o paradigma absolutista, com a evolução para o Estado Legal de Direito, até o momento em que a atuação estatal tinha contornos voltados à satisfação dos interesses sociais.

O segundo capítulo, por seu turno, inicia com a mesma temática do Estado de Direito, desta vez vigorante o modelo constitucional, cuja Lei Maior tem a função primordial na

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delimitação da atuação da Administração Pública. Ao final deste capítulo, ainda, abordam-se os direitos fundamentais – centro gravitacional do atual modelo de Estado –, suas dimensões, acepções e características.

No terceiro e último capítulo deste artigo, a abordagem inicia assentando-se o princípio da supremacia do interesse público como atualmente conhecido, com os fundamentos de sua justificação. São abordadas, em seguida, algumas críticas a essa inquestionada supremacia. Ao final,

apresenta-se proposta que direcione à reconstrução do princípio do interesse público, que se coaduna, este sim, aos direitos fundamentais, à soberania popular e à administração pública consensual.

Essa é, por conseguinte, a arquitetônica do presente trabalho, voltada não à negação do interesse público, porém reflexiva acerca da pré-afirmada e inquestionada supremacia deste, com o que, de antemão, não se concorda. O sistema constitucional parece não dar suporte a um princípio que se afirme superior, a priori, a um segundo interesse, privado.

1. O INTERESSE PÚBLICO NOS DIFERENTES MODELOS DE ESTADO

O princípio da supremacia do interesse público e o próprio Direito Administrativo sofreram variações ao longo da evolução e das transições do sistema de Estado, com o acompanhamento do conteúdo e da amplitude do modelo em vigor. Sem a pretensão de simplificar a questão, serão abordados a seguir os principais pontos do interesse público em cada concepção de Estado.

1.1 Estado Absolutista como modelo precursor

Remonta a Maquiavel o emprego moderno do conceito de Estado, segundo o qual “todos os Estados, todos os domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são

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Estados, e são repúblicas ou principados” (MAQUIAVEL, 2004, p. 3).

Antes mesmo da Idade Média havia a ideia de Estado com reminiscência da acepção de território. “A polis dos gregos ou a civitas e a respublica dos romanos eram vozes que traduziam a ideia de Estado”, destacando-se a “personificação do vínculo comunitário, de aderência imediata à ordem política e de cidadania”. Posteriormente, no Império Romano, “os vocábulos Imperium e Regnum,

então de uso corrente, passaram a exprimir a ideia de Estado, nomeadamente como organização de domínio e poder” (BONAVIDES, 2000, p. 73-74).

José Joaquim Gomes Canotilho (1992, p. 14-15) preleciona que “o conceito de Estado é assumido como uma forma histórica”, desde o século XIX, “de um ordenamento jurídico geral”, tendo como elementos a territorialidade – “espaço da soberania estadual” –, a população – “a existência de um ‘povo’ ou comunidade historicamente definida” – e a politicidade – “prossecução de fins definidos e individualizados em termos políticos”.

Para Thomas Hobbes (apud MARTINS NETO; THOMASELLI, 2016), a soberania ilimitada decorre da própria lógica com que concebido o Estado. “Não se reconhece a eficácia, em favor dos indivíduos, de direitos anteriores à instituição do poder político, entendidos como limites de conteúdo postos ao legislador constituído”. O autor, inclusive, sequer admite a oponibilidade do direito à vida, quando confrontado com o interesse do soberano. Hobbes “aceita o direito do súdito a não se conformar com a pena de morte, podendo legitimamente resistir, mas ainda assim podendo legitimamente ser morto em cumprimento da condenação”.

No que concerne ao interesse público, os grandes filósofos da antiguidade enxergavam-no “como um caso particular do problema mais geral da justiça”. Maquiavel, repise-se, desmistificou referida ideia ao afirmar que “o

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interesse público objetivava a formação e manutenção de um Estado forte que proporcionasse paz às pessoas e o consequente progresso da sociedade” (SILVA, 2012, p. 198).

Por acreditar que a busca ao interesse do déspota, livre de disputas políticas, conduziria a essa propalada paz social, adveio o absolutismo. Na prática, entretanto, “não houve o esperado progresso porque, com a patrimonialização do aparato estatal”, este era mantido à custa do trabalho do povo, mais especificamente das classes

menos favorecidas, as quais sustentavam a nobreza (SILVA, 2012, p. 198).

Não obstante Max Weber (apud BONAVIDES, 2000, p. 77) concordar com o fundamento do Estado na força, aduz o sociólogo que “a violência não é o instrumento normal e único do Estado”, mas aquele que lhe é “específico”.

O Estado Absolutista, assim, consistiu em “instrumento de dominação e nunca se cumpriu um interesse público, porque este se confundia com os interesses pessoais dos detentores do poder” (SILVA, 2012, p. 198).

Na percuciente análise de Zygmunt Bauman (2007, p. 66-67):

O que para estes [o poder arbitrário de reis e príncipes] era o direito divino de fazer e desfazer regras à sua vontade, e portanto, em última instância, seguir seus próprios caprichos e extravagâncias, significava para seus súditos uma existência à mercê da benevolência real, não muito diferente de um destino errático: uma vida de incerteza contínua e incurável, que dependia das formas

misteriosas com que mudavam os benefícios concedidos pelo soberano.

Nesse panorama, portanto, pode-se afirmar que aquele interesse público concebido no Estado Absolutista, eminentemente centralizador, distancia-se da forma como o conhecemos nos dias atuais.

Em linhas gerais, “diferentemente do modelo descentralizado característico da organização política

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feudal, preparando o advento do Estado Liberal”, o absolutismo pode ser situado historicamente como um modelo “de transição, do que decorre sua destacada importância, na medida em que consolidou a centralização do poder político na figura do monarca” (CRISTÓVAM, 2014, p. 68).

1.2 Interesse público no Estado Legal de Direito

Afirmada a transitoriedade do modelo anterior, não se pode diminuir a importância do Estado Absolutista, do qual remanescem até os dias atuais características da administração pública como conhecida hoje – há resquícios patrimonialistas da gestão da coisa pública.

José Joaquim Gomes Canotilho (1992, p. 355-356) preleciona que “o ponto de partida e de referência” a este modelo de Estado consiste em um “indivíduo autodeterminado, igual livre e isolado”. E acrescenta: “oriunda da teoria do Estado do liberalismo nascente e fortemente influenciada pelas concepções jusracionalistas, a ideia de Estado de direito surge conexionada com dois pressupostos”, os quais consistiam na razão de ser do Estado Legal de Direito: a “ideia de legalidade de toda a atividade estadual (mais tarde identificada como elemento formal do Estado de direito)” e a “ideia de realização de justiça, como fim primário do poder estadual (elemento material)” (CANOTILHO, 1992, p. 355-356).

Acerca do tema em voga:

Concretamente, constituía o instrumento da luta política da

burguesia contra o Estado Absolutista centralizador, contra os resquícios do Estado feudal, contra as sobrevivências estamentais. Formulado depois em termos filosóficos, o conceito passou a alicerçar a compreensão do Estado como Estado que respeita a liberdade ética do homem individual (KANT) e reconhece uma vinculação jurídica para os próprios atos (CANOTILHO, 1992, p. 356).

Nas palavras de Carlos Roberto Pellegrino (1997, p. 179-180), o cidadão passa a determinar seu destino político

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e assume “a titularidade da res publica não apenas na condição de partícipe determinante da vontade coletiva, mas também perseverando seus comandos de liberdade individual”.

Enquanto meio instrumental eficiente na preservação do corpo social”, a sistematização do Direito Administrativo contemporâneo deu-se, nestes fundamentos, “contra o risco dos desmandos e das exacerbações tão ao gosto de personalidades autoritárias, que impetuosamente costumavam desafiar a lei em acintoso desrespeito a tudo quanto fosse do interesse público

(PELLEGRINO, 1997, p. 180).

Importante ressaltar que a melhor denominação a este modelo de Estado consiste em Estado Legal de Direito. Nas palavras de José Sérgio da Silva Cristóvam (2014, p. 70),

parece que para fazer referência ao modelo de Estado típico do liberalismo clássico seria mais adequado falar em “Estado Legal de Direito”, uma vez que, com a derrocada do Estado Absolutista e a ascensão do Estado de Direito, houve, de fato, uma verdadeira substituição do império da vontade do monarca (governos dos homens) pelo império da vontade da lei (governo das leis), uma espécie de totem da racionalidade moderna. A lei passou a ser a vontade soberana, à qual deveriam estar submetidos o Estado e os cidadãos.

Com efeito, no Estado Legal de Direito ainda não se concebia uma garantia constitucional, uma salvaguarda às iniquidades do legislador, pela inexistência de uma lei “qualificada como fundamental, vinculante, superior às demais e, em parte, irrevogável, segundo precisamente a lógica do constitucionalismo” (MARTINS NETO; THOMASELLI, 2016).

Ressaltando-se a crítica a respeito da inexistência de uma lei maior, “qualificada como fundamental”, tem-se que o Estado Legal de Direito caracteriza-se por uma “lei emanada do poder público” como “instrumento de regência da vida em sociedade”, havendo a limitação ao legislativo “por regras que definem as autoridades habilitadas a legislar e a forma pela qual devem proceder” (MARTINS NETO; THOMASELLI, 2016).

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O interesse público no Estado Legal de Direito, portanto, pode ser situado como uma evolução do modelo em que é consubstanciado e centralizado no interesse do soberano, mas acima de tudo traduzido pelo conjunto de interesses – liberdades – individuais, notadamente do ponto de vista econômico.

1.3 Estado Social De Direito e interesse público

Na percuciente análise de José Sérgio da Silva Cristóvam (2014, p. 72), o Estado Social de Direito adveio de uma profunda situação de desigualdade social, sobretudo a partir da Revolução Industrial, como corolário da “feição liberal-abstencionista de Estado de Direito e de interesse público, construída a partir de uma (pouco adequada) visão homogeneizante dos interesses sociais”.

Como marcos normativos deste modelo de Estado, têm-se as Constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919, designadas “como ‘constitucionalismo de segunda dimensão’, de feição marcadamente social e fundada em um modelo de Estado prestacionista e intervencionista”. Normatiza-se, nesse contexto, um “extenso rol de direitos sociais (direitos de segunda geração)” (CRISTÓVAM, 2014, p. 72).

Na Alemanha, já se denotava a “evolução de um modelo estatal intervencionista, com certa ampliação do reconhecimento (embora quase que exclusivamente normativo) de direitos sociais”, isso “desde a segunda metade do século XIX, em concomitância com a crise do modelo liberal-individualista de Estado” (CRISTÓVAM, 2014, p. 72).

Conforme os ensinamentos de Massimo Severo Giannini, Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2008, p. 54) observa que, hoje, "a construção dada ao Estado, sobretudo pela doutrina alemã, e depois recebida em toda a Europa continental não responde à realidade vigente, porque o

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Estado não age mais unilateralmente". O texto a seguir reflete a temática em discussão:

A história duramente demonstrou que esse excessivo individualismo não teria condições de garantir uma vida valiosa em sociedades complexas e desiguais, como as que se desenvolveriam a partir do século XVIII, de modo que, paulatinamente, o Estado passou a assumir um ativo papel de tutor da sociedade, para guiá-la e dirigi-la, de modo a assegurar um certo grau de igualdade material, ainda que com sacrifício de algumas liberdades: instituía-se como evolução, o conceito do Estado providência (MOREIRA NETO, 2008, p. 22).

Em linhas gerais, há de fato a evolução do Estado, paulatinamente, de um modelo menos garantidor a um papel mais provedor do cidadão.

Ao encontro dessas considerações, outra análise peculiar é desenvolvida por Zygmunt Bauman (2007, p. 70), que aprofunda a questão sob o ponto de vista sociológico. Para ele, o contexto em que desenvolvido o Estado Social de Direito consiste em uma solução à elitização da democracia, considerado um “círculo vicioso” em que “um grande número de pessoas tem apenas poucas posses ou aquisições”, sem que isso demande “uma defesa corajosa, e assim, na opinião dos ricos, elas não precisam nem deveriam ser dotadas dos direitos políticos que devem servir a esse propósito”.

Como resposta, duas possibilidades: limitar cada vez mais o “sufrágio aos que já possuíam tais recursos”, ou revolucionar “progressivamente a sociedade de maneira a transformar esses privilégios — riqueza e cultura — em direitos garantidos para todos”. Assim, da “tarefa de ajustar as instituições e procedimentos políticos às realidades sociais já existentes”, passou-se à “função de usar as instituições e os processos políticos para reformar as realidades sociais” (BAUMAN, 2007, p. 70-72).

Pois bem. Considerada a proposta constante do preâmbulo deste capítulo, de ressaltar não só a evolução do conceito de interesse público, mas a do próprio Direito

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Administrativo, é importante observar a denominada história oficial do nascimento do Direito Administrativo, com o advento da “Lei de 28 do pluvioso do Ano VIII, de 1800 (Loi du 28 pluviôse an VIII)”, a qual “trazia os preceitos sobre a organização administrativa e regulava os litígios contra a Administração Pública” (CRITÓVAM, 2014, p. 80).

Vasco Pereira da Silva (2009, p. 10 apud CRITÓVAM, 2014, p. 84) ressalta um viés autoritário que marca o surgimento e o caminho do Direito Administrativo. O

“Contencioso Administrativo, na Revolução francesa, concebido com ‘privilégio de foro’ da Administração, destinado a garantir a defesa dos poderes públicos e não a assegurar a proteção dos direitos dos particulares”.

José Joaquim Gomes Canotilho (1992, p. 356) afirma que a “doutrina constitucionalista do liberalismo inicial aproveitara o impulso filosófico para situar o Estado de Direito” como modelo “oposto ao Estado de Polícia”. O Estado é caracterizado “à medida da liberdade do indivíduo, na qual a lei e a administração não constituem um instrumento autoritário de Policey, mas o fundamento de uma ordem de liberdade”.

A título conclusivo do presente capítulo, tem-se o Estado moderno, inaugurado na célebre visão de Maquiavel, marcado por diversas transformações de pensamento. O interesse público, antes traduzido na vontade única e nos desmandos do monarca, passou a ser centralizado no comando da Lei – característica do Estado Legal de Direito –, enfim marcado por um modelo de Estado mais provedor de seus cidadãos, com o escopo na satisfação de uma gama de interesses sociais, com consequentes ações positivas relacionadas à prestação de serviços públicos e à satisfação das necessidades coletivas.

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2 ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO,

INTERESSE PÚBLICO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

O estudo acerca do Estado Constitucional de Direito, não obstante coeso ao que fora abordado no capítulo anterior – em que estudadas as acepções de interesse público nos diferentes modelos de Estado –, será mais bem aprofundado neste capítulo. A temática evolui, ainda, para a abordagem dos direitos fundamentais advindos com este modelo de Estado, chamado por alguns também de Estado

Democrático de Direito.

2.1 O advento do estado constitucional de direito

De forma sintética, conquanto sofisticada, o professor Luís Roberto Barroso (2005a, p. 9-10), hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, traz uma contextualização a respeito da evolução do Estado evidenciada no século passado, nos seguintes termos:

Ao longo do século XX, o Estado percorreu uma trajetória pendular.

Começou liberal, com funções mínimas, em uma era de afirmação dos direitos políticos e individuais. Tornou-se social após o primeiro quarto, assumindo encargos na superação das desigualdades e na promoção dos direitos sociais. Na virada do século, estava neoliberal, concentrando-se na atividade de regulação, abdicando da intervenção econômica direta, em um movimento de desjuridicização de determinadas conquistas sociais. E assim chegou ao novo século e ao novo milênio. O Estado contemporâneo tem seu perfil redefinido pela formação de blocos políticos e econômicos, pela perda de densidade do conceito de soberania, pelo aparente esvaziamento do seu poder diante da globalização.

São passíveis de se afirmar duas mudanças de paradigma: a primeira ocorrida com “o nascimento do Estado Moderno e com a afirmação do princípio de legalidade como norma de reconhecimento do direito”, e a segunda, não “menos radical”, “produzida na segunda metade do século XIX, com a subordinação das leis às Constituições rígidas, hierarquicamente superiores” (MARTINS NETO; THOMASELLI, 2016).

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Há consenso em relação ao momento histórico de surgimento deste modelo de Estado: a partir do Segundo Pós-Guerra. Era necessário “suplantar a ordem de instabilidade política e social” vivida na Europa (CRISTÓVAM, 2014, p. 76).

Considera-se o surgimento do Estado Constitucional de Direito, ainda, em função da crise da legalidade. Consoante já ressaltado no tópico relativo ao Estado Legal de Direito, no capítulo anterior, os limites jurídicos que

havia ao abuso de poder eram de natureza formal, sem restrições ao conteúdo. Isso em razão da ausência de uma Lei Maior, qualificada como vinculante e superior às demais, a qual pudesse impor referidas limitações materiais e não meramente formais.

Redefiniu-se o lugar da Constituição e a influência que o direito constitucional exerce sobre as instituições contemporâneas. Essa aproximação de ideias entre constitucionalismo e democracia “produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado Democrático de Direito, Estado Constitucional de Direito, Estado Constitucional Democrático” (BARROSO, 2005b, p. 23).

Como fatores dessa mudança, Eduardo García de Enterría (apud MOREIRA NETO, 2008, p. 67-68) elenca: (i) o “desaparecimento de qualquer alternativa ao princípio democrático”; (ii) o “acolhimento da justiça constitucional concentrada com fundamento no princípio norte-americano da supremacia”; e (iii) a justificação última do constitucionalismo, a qual vem a ser “os valores combinados, do regime democrático com os dos direitos fundamentais, capazes de resistir, graças à normatividade superior da Constituição, a pressões de eventuais maiorias”.

Uma nova onda de reconstrução político-jurídica foi evidenciada, com a “radical afirmação da democracia e dos direitos humanos, no que se convencionou designar de

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Estado Democrático de Direito, aqui chamado de Estado Constitucional de Direito” (CRISTÓVAM, 2014, p. 76).

Em outras palavras, afirma-se:

Esta onda de reconstitucionalização democrática também alcançou, ainda que de forma um tanto tardia (finais do século XX), grande parte da América Latina, a exemplo da ordem constitucional brasileira de 1988, aqui indicada como clara expressão de um autêntico “constitucionalismo de terceira dimensão”. Um modelo de Estado social e democrático de direito,

fundado na limitação constitucional dos poderes constituídos, na

soberania popular (autogoverno do povo), na cooperação de pessoas livres e iguais, bem como no respeito e na satisfação otimizada dos direitos e garantias fundamentais (individuais, coletivos e sociais) (CRISTÓVAM, 2014, p. 76).

Paulo Ricardo Schier (2011, p. 3) acrescenta que, tanto na antiguidade assim como na Idade Média, havia certa concepção de constituição. “Os homens sempre acreditaram, em determinada medida, na existência de algumas regras e/ou princípios que se colocavam em posição de hierarquia privilegiada”. As noções então existentes, entretanto, “não eram movidas pelo ethos humanista da modernidade”, ainda que “dotados de relativa carga de supremacia material”.

Conceitualmente, de forma singular, Canotilho (1992, p. 364) consigna:

O Estado de direito é um Estado constitucional. Pressupõe a existência de uma Constituição que sirva – valendo e vigorando – de ordem jurídico-normativa fundamental vinculativa de todos os

poderes públicos. A Constituição confere à ordem estadual e aos

atos dos poderes públicos medida e forma. Precisamente por isso, a lei constitucional não é apenas – como sugeria a teoria tradicional do Estado de direito – uma simples lei incluída no sistema ou no complexo normativo-estadual. Trata-se de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia – supremacia da Constituição – e é nesta supremacia normativa da lei constitucional que o <primado do direito> do Estado de direito encontra uma primeira e decisiva expressão.

A adequada noção de interesse público no Estado Constitucional de Direito, por seu turno, “não pode ser outra

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que não aquela nascida, afirmada e limitada pela ordem constitucional vigente, fonte de legitimação e justificação de todas as instituições democráticas e dos poderes constituídos” (CRISTÓVAM, 2014, p. 76).

Com efeito, o “elenco de normas substantivas da Constituição não se esgota na declaração de direitos fundamentais”. “Sem um judiciário independente, é improvável que os direitos resistam aos atentados”. Também se faz necessária a “alternância compulsória dos

governantes por meio de eleições periódicas”, a fim de que “os direitos sejam adequadamente considerados e respeitados” (MARTINS NETO; THOMASELLI, 2016).

Não há outra conclusão, no entanto, senão a de que “os direitos fundamentais são a essência do Estado Constitucional” (MARTINS NETO; THOMASELLI, 2016), tema este a ser abordado no tópico seguinte.

2.2 Direitos fundamentais

Retomou-se brevemente, nas linhas que antes se sucederam, o advento do Estado Constitucional de Direito, que trouxe consigo a centralidade dos direitos fundamentais. Antes de adentar na temática objeto do presente trabalho – a supremacia do interesse público –, portanto, é importante consignar breves considerações a respeito dos direitos fundamentais, como alternativa a ser proposta ao modelo atualmente em vigor.

Antonio-Enrique Pérez Luño (apud MOREIRA NETO,

2008, p. 23) observa que “o constitucionalismo atual não seria o que hoje é sem os direitos fundamentais”. O autor os coloca como um dos tripés básicos para os movimentos de constitucionalização pós-modernos que se seguiram em escala global.

Norberto Bobbio (1992, p. 5) preleciona que os direitos fundamentais são direitos históricos, que nascem “em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de

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novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.

A clássica doutrina concebe os direitos fundamentais em três dimensões ao longo de sua evolução histórica: a primeira delas é oriunda do pensamento liberal do século XVIII, com forte caráter individualista, que exige abstenção do Estado. Englobam-se, dentre estes, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade, à participação política, e são “direitos que passaram a ser referidos

genericamente como direitos civis e direitos políticos” (OLIVEIRA, 2016, p. 13).

Classificam-se como direitos fundamentais de segunda dimensão os direitos sociais, culturais e econômicos, que encontram sua gênese no século XIX, notadamente a partir da “percepção de que a formal consagração dos direitos à liberdade e à igualdade não implicavam necessariamente a sua realização do ponto de vista substancial”. Não mais uma abstenção estatal exigia-se, mas, pelo contrário, prestações ativas por parte do Estado. A titularidade desses direitos, ademais, “compreendidos como a densificação do princípio da justiça social, continua pertencendo ao indivíduo, não podendo ser confundidos com direitos coletivos ou difusos” (OLIVEIRA, 2016, p. 13-14)

Os direitos fundamentais de terceira geração, ainda, expressam valores atinentes à solidariedade e à fraternidade e são construídos em torno da titularidade coletiva ou difusa de uma certa gama de direitos, advinda das mais variadas reivindicações e destinada à proteção de grupos humanos, povos, nações, coletividades regionais ou étnicas. Esta categoria de direitos destina-se ao

genêro humano, em sentido amplo. Originalmente formatados no âmbito internacional, seriam aqueles direitos decorrentes da percepção da divisão do mundo entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, nascendo na segunda metade do século XX, a partir de reflexões sobre temas como desenvolvimento, meio ambiente e paz, entre outros. Entretanto, solidificou-se o entendimento segundo o qual constituem direitos dessa dimensão

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os relativos (i) ao desenvolvimento, (ii) à autodeterminação dos

povos, (iii) à paz, (iv) ao meio ambiente e à qualidade de vida, (v) à conservação e utilização do patrimônio comum da humanidade – histórico e cultural, e (vi) à comunicação (OLIVEIRA, 2016, p. 14).

Não se poderia abordar esta temática sem citar Robert Alexy (2003, p. 32-37), para quem os direitos fundamentais têm posição no sistema jurídica definida a partir de quatro características extremas: em primeiro lugar, o máximo grau hierárquico dos direitos fundamentais; por segundo, estes regulam com a máxima força jurídica; terceiramente,

regulam objetos relevantes, de máxima importância; e por último, mas não por isso menos importante, os direitos fundamentais possuem o máximo grau de indeterminação. “Os direitos fundamentais são o que são, sobretudo, através da interpretação".

Como bem assevera Paulo Ricardo Schier (2011, p. 4), uma Constituição deve ser compreendida a partir dos direitos fundamentais, porquanto “direitos vinculados à proteção do homem”.

São eles, ainda, “que justificam a criação e desenvolvimento de mecanismos de legitimação, limitação, controle e racionalização do poder”. O Estado de Direito, o princípio da legalidade, a separação dos poderes, as técnicas de distribuição do poder no território e os mecanismos de controle da Administração Pública, todos são exemplificados pelo autor como instrumentos que gravitam em torno da proteção daqueles direitos fundamentais que, “embora historicamente tenham se desenvolvido e se modificado,

permaneceram como núcleo legitimador do Estado e do Direito” (SCHIER, 2011, p. 4-5).

Conquanto não aprofundados com o devido rigor alguns pontos que não estritamente necessários e pertinentes à temática deste estudo, notadamente em razão da limitação deste, ficaram demonstrados até aqui os aspectos que permeiam a evolução do Estado até o advento de seu modelo constitucional, cujo centro gravitacional

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reside nos direitos fundamentais, a fim de prevalecer a crítica que será exposta no capítulo seguinte.

3 ASPECTOS DESTACADOS DO PRINCÍPIO DO INTERESSE PÚBLICO SEM SUA PRÉ-AFIRMADA SUPREMACIA: UM NOVO PARADIGMA

O conceito do interesse público referencia sempre a um recorte temporal e histórico de uma concepção do Estado, da sociedade e do indivíduo, e se manifesta na construção de um determinado ordenamento jurídico. Nesse ínterim, ele “deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem” (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 61).

Hector Jorge Escola (apud OLIVEIRA, 2011, p. 133, tradução minha) preleciona que,

com todo o exposto [pelo administrativista espanhol em sua obra], temos podido demonstrar que o verdadeiro fundamento do Direito Administrativo é o interesse público, que é aquele que dá sentido e compreensão a todas as suas instituições, e o que justifica e explica a singularidade de seus princípios e suas soluções”.

Para além do interesse público, de há muito se tem concebido como um dos pilares do Direito Administrativo a sua pré-afirmada supremacia, cuja atual concepção inicia o presente capítulo.

3.1 O paradigma da supremacia do interesse público

Do magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello (2006) tem-se que o sistema de Direito Administrativo é construído sobre os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público pela Administração.

O mesmo autor entroniza-os, inclusive, em uma categoria que denomina de supraprincípio. Ambos esses

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princípios buscariam oferecer uma resposta teórica à oposição configurada entre as “prerrogativas da Administração” e os “direitos dos administrados”. Tem-se, de um lado, que somente a vinculação à busca do interesse público poderia justificar a existência de prerrogativas para a Administração e essa busca da realização do interesse público, por outro lado, um compromisso indisponível (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 54).

Nesta construção teórica, guarda uma dupla dimensão

de sentido o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Remete, em um primeiro sentido, às prerrogativas do Estado, especialmente ao atributo da imperatividade, o que justificaria a possibilidade de a Administração Pública “constituir obrigações para os administrados por meio de ato unilateral, ou modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas” (CARVALHO, 2016).

Em um segundo sentido, “vincula a atuação administrativa à exigência de legitimidade, pois as prerrogativas atribuídas pelo sistema jurídico para a Administração Pública condicionam-se à realização do interesse público” (CARVALHO, 2016). Na lição de Bandeira de Mello (2006, p. 397), "não há, no Estado de Direito, privilégios atribuídos à ‘força governante’ (para usar uma desataviada mas realista expressão de Duguit) pelo mero fato de ser a força governante”.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, p. 69) afirma que, embora protejam reflexamente o interesse individual, as normas de direito público têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo.

O princípio da supremacia do interesse público, segundo a administrativista, deve ser considerado em dois momentos: pelo legislador quando da elaboração da lei e pelo administrador na ocasião de executá-la: “Esse princípio está presente tanto no momento de elaboração da lei como no momento da sua execução em concreto pela

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Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda sua atuação” (DI PIETRO, 2004, p. 70).

Para José dos Santos Carvalho Filho (2009, p. 73) não se ponderam interesses públicos e privados, em razão de a supremacia daquele ser fruto justamente do interesse público. Consequentemente, não haveria lógica senão a seguinte: se o interesse é considerado público, por certo deve preponderar sobre o particular nas hipóteses de

colisão. Logo, “seria o caos na organização social se as demandas gerais não suplantassem as individuais”.

O respeitado administrativista acrescenta, ainda, que “as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 31).

Hely Lopes Meirelles (2014, p. 111), ainda, consigna referido princípio como “intimamente ligado ao da finalidade”. A primazia do interesse público sobre o privado é tida como “inerente à atuação estatal e domina-a, na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral, ou seja, da coletividade”. Assim, não se justifica o interesse público no interesse “do Estado e do aparelhamento do Estado. Esse interesse público prevalente é extraído da ordem jurídica, em cada caso concreto”.

A supremacia do interesse público, inclusive, “é o motivo da desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados, mas essa desigualdade advém da lei, que, assim, define os limites da própria supremacia” (MEIRELLES, 2014, p. 111).

Defende-se, dessa forma, a ideia da verticalidade na relação entre administrados e Administração, o que dá

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ensejo aos mais variados desequilíbrios nessas relações, os quais pendem sempre em favor do Estado.

3.2 Críticas à supremacia do interesse público

É importante ressaltar, de início, que a Constituição da República Federativa do Brasil não prevê expressamente a supremacia do interesse público. Tem-se um princípio implícito, não obstante toda a sua importância para o Direito Administrativo mencionada no tópico anterior.

Com mais rigor, ainda, ressalta-se o fato de que nossa Constituição caracteriza-se “por uma profunda abrangência normativa (prolixa)”. Ainda assim, inexiste qualquer “enunciado normativo que estabeleça (de forma abstrata e normativa) uma rota de colisão ou mesmo concorrência entre interesses públicos e privados” (CRISTÓVAM, 2014, p. 174).

Para José Sérgio da Silva Cristóvam (2014, p. 174-175), isso reforça “a completa ausência de fundamento normativo ou justificativa axiológica para uma norma (abstrata) de prevalência (absoluta) do interesse público sobre o particular”, com o acréscimo da impossibilidade de se extrair uma “relação de conflito constitucional abstrato entre interesses públicos e privados”.

A Constituição Federal não reduziu e nem conduziu a noção de interesse público a um significado estatal, o que acentua “a ideia da construção de um conceito de interesse público que não se esgote no Estado ou a ele não esteja

essencial e visceralmente vinculado” Ainda, exsurge-se o status constitucional da defesa dos direitos e interesses privados, particulares. Isso porque, da mesma forma com que a Constituição “alberga estruturas normativas de defesa do interesse público, há também destacada guarida a legítimos interesses particulares (individuais, de grupos e corporações)” (CRISTÓVAM, 2014, p. 174).

Ao encontro dessas considerações, Fábio Medina Osório afirma que não existe no país uma norma específica

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que venha a consagrar a supremacia do interesse público como princípio geral da Administração Pública. Segundo ele, não se vislumbra uma ponderação entre um privilégio da Administração Pública em detrimento dos interesses particulares, como a liberdade, a propriedade, dentre outros. A prevalência do interesse público consagra, de fato, norma constitucional direcionada ao controle das atividades públicas (OSÓRIO, 2000, p. 94).

De fato, como afirma Humberto Ávila, não há

fundamento constitucional para que se possa afirmar a supremacia de um princípio sobre os demais. Para o professor (ÁVILA, 2007, p. 24), indigitado princípio pressupõe a verificação de algumas condições, sem o que não se pode ter o princípio da supremacia do interesse público como uma condição necessária à explicação do ordenamento jurídico – ou seja, um postulado normativo.

O interesse público deve ser descrito ou explicável separadamente no interesse privado, ou ser dele dissociável, para que possa ser concebida, ainda que abstratamente, uma posição de supremacia em favor do primeiro; a relação bipolar entre os citados interesses deve ser de significado geral e fundamental para a explicação do direito administrativo, a qual pressupõe uma relação Estado-cidadão; o interesse público deve ser determinável normativa e objetivamente, mesmo no caso concreto, sob pena de ser insustentável uma supremacia intersubjetivamente controlável (ÁVILA, 2007, p. 24).

O grande problema, assim, reside no funcionamento do referido princípio, tal como se encontra enunciado atualmente. Haveria, por obséquio, plena adequação do

princípio do interesse público para a dogmática do Direito Administrativo. O autor, assim, não pretende negar a importância do interesse público, mas tão somente a sua supremacia (ÁVILA, 2007).

Paulo Ricardo Schier (2011) também desenvolve percuciente crítica ao princípio da supremacia do interesse público e centra o debate nos aspectos formais de como este princípio vem sendo colocado. A partir dos direitos

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fundamentais e da unidade da Constituição, afirma-se que “a ponderação constitucional prévia em favor dos interesses públicos é antes uma exceção a um princípio geral implícito de Direito Público” (SCHIER, 2011, p. 12).

São elencadas três hipóteses e suas conclusões a respeito do tema: a primeira é a de que interesses públicos e privados normalmente se harmonizam. Esta seria “a regra primordial do sistema”. Os diversos princípios e os direitos fundamentais “guardam uma conexão de sentido que

impõem a ideia de unidade, de mútua complementação e autodelimitação”. Assim, não há que se falar em supremacia do interesse público sobre o interesse privado, na medida em que ambos se integram (SCHIER, 2011, p. 13).

A segunda hipótese consiste na opção do Poder constituinte originário, a priori, pela prevalência de um interesse em relação ao outro. Citando alguns incisos do artigo 5º da CRFB, conclui-se que o critério de prevalência do interesse público, em tais situações, é aferido caso a caso. “A ponderação, in abstrato, realizada pelo constituinte originário, ora pende aos interesses públicos e ora aos privados. Logo, daí não se infere a supremacia de um ou de outro” (SCHIER, 2011, p. 14).

A terceira hipótese, ainda, seria o exposto a seguir:

A Constituição autoriza que lei (infraconstitucional) restrinja o

interesse particular, em determinadas situações, em favor do interesse público. Neste caso, sempre deverá cobrar-se observância da razoabilidade, proporcionalidade, proibição do excesso e preservação do núcleo essencial. Formalmente, a autorização

deverá ser expressa etc. É a situação típica do art. 5º, XII (sigilo de dados e comunicações telefônicas). Note-se que o interesse público, aqui, mesmo quando justifica a restrição do interesse particular, não é absoluto. O interesse público prevalece em certas condições materiais (necessidade, adequação e proporcionalidade estrita etc.) e formais (fim de instrução processual penal ou investigação criminal, na forma da lei, por autorização judicial...). Sem as condições, o interesse público sucumbe. Logo, reitere-se, não é absoluto (SCHIER, 2011, p. 14).

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Dessa forma, pondera-se, em todas as situações analisadas no ensaio, não propriamente a supremacia do interesse público, mas o próprio interesse público.

No prisma infraconstitucional, a Lei Federal n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, prevê o interesse público como finalidade desta, a qual “obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,

moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

Todo o delineado neste tópico denota, portanto, que não há fundamento constitucional ou mesmo infraconstitucional para o princípio da supremacia do interesse público, com a sua prevalência abstrata e a priori sobre os interesses particulares.

Não se está negando, por outro lado, o princípio do interesse público, este sim albergado pela Constituição e pelas normas infraconstitucionais, cuja defesa continuará a ser exercida no tópico seguinte.

3.3 O novo paradigma do interesse público

Paradigma pode ser conceituado como modelo científico vigorante em dado momento histórico, que envolve também certo "esgotamento da confiabilidade de suas premissas", de forma que estas não são questionadas (KUHN, 1989 apud MOREIRA NETO, 2008, p. 17).

Com efeito, o interesse público não pode ser descrito como prevalente relativamente aos interesses particulares, de forma abstrata e indissociadamente, ainda que o paradigma da supremacia do interesse público sobre o privado esteja em vigor há tanto tempo.

Conforme delineado desde as primeiras páginas do presente estudo, a evolução do conceito de poder de Estado para função de Estado remarca uma “funcionalização da

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atividade administrativa para a efetiva, eficiente e legítima realização dos direitos das pessoas, o que passa a ser a adequada interpretação dos cometimentos constitucionais” (MOREIRA NETO, 2008, p. 45).

Não se defende aqui, repise-se, a negativa do interesse público, ou mesmo a prevalência dos interesses privados sobre o público, de forma que é justamente a citada reconstrução do princípio que é proposta. Não a reconstrução da supremacia do interesse público em si,

porque não parece ser possível reconstruir algo tido como superior – o interesse público –, sem necessariamente reduzir as diferenças ou o igualar ao que é tido como inferior – interesses privados.

Hector Jorge Escola (1989, p. 243) conceitua o interesse público não como “entidade superior ao interesse privado”, sendo inexistente uma “contraposição entre ambos”. Para ele, “o interesse público só é prevalecente com respeito ao interesse privado, só tem prioridade ou predominância, por ser um interesse majoritário, que se confunde e assimila com o querer valorativo atribuído à comunidade”.

Concebido o princípio desta forma, esta prevalência ampara-se, também, no fato de que o interesse público “haverá de resultar em maiores direitos e benefícios para todos e cada um dos indivíduos da comunidade, que, por isso, justamente aceitam voluntariamente aquela predominância, que lhes é vantajosa” (ESCOLA, 1989,

p.243).

A supremacia do interesse público, assim, não pode ser traduzida na imposição aos particulares da vontade exclusiva e autoritária do Estado. À Administração Pública cabe a árdua tarefa de interpretar esta vontade majoritária da sociedade corretamente – “aquilo que a mesma espera de retorno do Estado – para que, assim, o interesse público possa ser satisfeito” (PARRECHIO, 2016).

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Esses contornos, no entanto, parecem não ser bem traduzidos no princípio da supremacia do interesse público. Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2008, p. 76), num enfoque mais finalístico, “como decorrência da democratização substantiva em curso” evidencia-se cada vez mais que “o eixo juspolítico se vem deslocando do Estado, então o único protagonista das decisões políticas materiais, para a Sociedade, que ascende como novo protagonista do poder”.

No que concerne ao fundamento jurídico do eixo de atuação estatal, do primado do Estado passa-se ao primado da pessoa. “Os valores que devem prevalecer são os vigentes na sociedade, tanto os finalísticos e permanentes, em que se incluem os universais e, por isso, inalteráveis pela ordem jurídica interna dos Estados”. Quanto aos valores “instrumentais e conjunturais, estes, sim, a serem recolhidos e adotados pelos Estados para sua ação através dos métodos democráticos” (MOREIRA NETO, 2008, p. 78-79).

Daniel Sarmento (2008, p. 119-120), em uma visão mais abrangente de interesse público, acrescenta que a defesa de um direito fundamental – individual – acaba por resultar na promoção do interesse público, reflexa ou diretamente.

Para ele, o interesse público não consiste em “algo diverso e superior ao somatório da totalidade dos interesses dos componentes da comunidade política, mas como a fórmula que, em cada caso, maximizasse os interesses dos integrantes da sociedade, individualmente considerados” (SARMENTO, 2005, p. 58-59).

José Sérgio da Silva Cristóvam (2014), por sua vez, em brilhante estudo sobre o tema, propõe ao final um modelo de Administração Pública democrática, participativa, consensual e pluralista. Acrescenta-se que “não se pode admitir como válida a tese de que o conjunto de prerrogativas/privilégios da Administração Pública possa

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ser, a priori, legitimado a partir de uma noção (assim pouco subsistente) de supremacia do interesse público”.

A prevalência de um, em detrimento do outro, “dependerá do conjunto de normas (regras e princípios) constitucionais e infraconstitucionais vigentes”, que serão “aplicados segundo aqueles parâmetros e critérios consagrados pela hermenêutica contemporânea” (CRISTÓVAM, 2014, p. 132).

Nesse sentido, por fim, é de ser acrescentado:

A ordem constitucional brasileira, fundada em um modelo de Estado republicano, social e democrático de direito, impõe a travessia para este modelo de Direito Administrativo renovado e redimensionado, mais democrático, mais republicano e mais inclusivo. Uma disciplina jurídico-administrativa capaz de pintar os corredores das repartições públicas e colorir todas as praças e esquinas da nação com aquela aquarela de promessas constitucionais libertárias e emancipatórias. Por certo, há aqui muito mais utopia do que realismo pragmático, mas neste momento histórico parece que o otimismo das promessas traz em si uma proposta muito mais progressista e emancipatória que o inescapável pessimismo imposto pela realidade de uma Administração Pública ainda profundamente patrimonialista, autocrática e desigual. Inflar as velas desta “nau” ainda à deriva,

com ventos teóricos comprometidos em somente soprar na legítima direção ditada pela ordem constitucional, é também atribuição dos juristas! (CRISTÓVAM, 2014, p. 339).

Impõe-se a “passagem da atuação de subordinação à atuação de colaboração" (MOREIRA NETO, 2008, p. 55). Um Estado que seja “do povo, pelo povo e para o povo” (AFONSO DA SILVA, 2003, p. 135 apud SILVA, 2012, p. 212). O

“governo exercido pelo conjunto dos cidadãos” (ANTUNES ROCHA, 1997, p. 195), de forma que a centralidade da atuação estatal seja efetivamente o primado da pessoa.

A defesa do interesse público – e não o de sua supremacia – parece ser o caminho voltado à centralidade da pessoa humana, ao respeito pelos direitos fundamentais, à tradução material da soberania popular e a uma corolária evolução do Estado. Com inspiração no poema de Antônio

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Machado (2016), acrescente-se que o processo está em curso, e o caminho se faz ao caminhar.

CONCLUSÃO

A Administração Pública consensual, desprovida da clássica posição de superioridade em relação aos administrados – modelo este que se tem evidenciado desde o Estado Absolutista –, impõe agora uma atuação voltada à concretização do interesse público, sem a necessária,

inquestionada e pré-afirmada supremacia deste. Não mais uma relação de hierarquia, com o cidadão em posição de inferioridade, mas pautada pelo consenso e pela cooperação. Ou seja, decisões exercidas não de forma única ou por apenas um pequeno grupo de pessoas, mas pelo conjunto de cidadãos.

Não se pretende, de fato, que esta proposta seja absoluta, imutável e única possível. Por menor que seja a mudança, no entanto, não se pode concordar com a absoluta supremacia do interesse público sobre o privado. A ponderação de interesses, no conflito entre ambos, deve ser aferida em cada caso, sem que haja uma nítida desigualdade ou mesmo pré-disposição à escolha do interesse público, indistintamente.

Com efeito, o Estado moderno, inaugurado na célebre visão de Maquiavel, é marcado por diversas transformações de pensamento. O interesse público, antes traduzido nessa vontade única e nos desmandos do monarca, passou a ser

centralizado no comando da Lei – característica do Estado Legal de Direito –, enfim marcado por um modelo de Estado mais provedor de seus cidadãos, com o escopo na satisfação de uma gama de interesses sociais, com consequentes ações positivas relacionadas à prestação de serviços públicos e à satisfação das necessidades coletivas.

Já no Estado Constitucional de Direito, a adequada noção de interesse público não pode ser outra que não

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aquela nascida, afirmada e limitada pela ordem constitucional vigente, fonte de legitimação e justificação de todas as instituições democráticas e dos poderes constituídos. Os direitos fundamentais, por seu turno, são a essência deste modelo estatal, de forma que a Constituição deve ser compreendida a partir deles.

Em contraposição a estes, há a supremacia do interesse público, trazida ao terceiro capítulo e tida como estruturante do sistema de Direito Administrativo em vigor.

A atuação estatal, nesse contexto, observa a supremacia do interesse público no momento de elaboração da lei e por ocasião de o administrador executá-la. Ocorre que a supremacia do interesse público não pode ser extraída da Constituição Federal, ainda que implicitamente.

Para Humberto Ávila, não se tem rigorosamente um princípio jurídico ou norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, com o acréscimo de que esta não pode ser descrita sem referência a uma situação concreta. O interesse público não pode ser traduzido de forma separada ou em contraposição aos interesses privados.

José Sérgio da Silva Cristóvam também consigna percuciente crítica a este paradigma, em que afirma a impossibilidade de se extrair uma relação de conflito constitucional abstrato entre interesses públicos e privados. Em primeiro lugar, o monografista extrai da Constituição um princípio implícito do interesse público, mas não de sua supremacia. Em segundo lugar, nem toda e qualquer noção de interesse público fica restringida a um significado estatal e, por fim, erige-se status constitucional à defesa dos direitos e interesses privados.

Acrescenta Paulo Ricardo Schier que a ponderação constitucional prévia em favor dos interesses públicos é antes uma exceção a um princípio geral implícito de Direito Público. Em seu ensaio, a partir do levantamento de hipóteses, o autor chega à conclusão de que não se pode

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ponderar propriamente a supremacia do interesse público, mas o próprio interesse público.

Daniel Sarmento concebe o interesse público não como algo superior ou mesmo diverso da somatória dos interesses da comunidade. É antes uma fórmula que em cada caso maximiza os interesses dos integrantes da sociedade, individualmente considerados.

Todas essas considerações permitem delinear uma nova perspectiva para a Administração Pública, mais

aberta, participativa, eficiente e democrática. É certo que o Direito não se transforma repentinamente, de uma única vez, tão somente a partir da descoberta de um novo paradigma.

Esses contornos também não refletem a realidade brasileira hoje vivida, o que demonstra que o caminho será lento e gradual, a partir da superação de clássicos institutos, com a redefinição das práticas ultrapassadas, na linha deste novo panorama aqui debatido. Por certo, esta temática não restou esgotada no presente estudo. Futuras pesquisas, a partir da mesma perspectiva aqui exposta, certamente enriquecerão o debate.

É possível concluir, com todo o exposto, que a pré-afirmada supremacia do interesse público apresenta-se incompatível com a Constituição Federal.

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O DIREITO HUMANO DE MIGRAR E A NOVA LEI

DE MIGRAÇÃO

Carolina Nunes Miranda Carasek da Rocha

Jamila Pitton Rissardo

Juliana Müller

RESUMO

O trabalho tem como objetivo analisar a nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) sob o prisma do direito humano de migrar. Diante disso, questiona-se: a Lei de Migração está em consonância com o direito humano de migrar? Esta pergunta é extremamente importante para avaliar a nova lei, pois a antiga norma que regulava essa matéria era o Estatuto do Estrangeiro, feito na época da ditadura militar brasileira, e por isso inadequado à ordem constitucional vigente. Trabalha-se com a hipótese de que a Lei de Migração incorporou em seu texto os principais pontos do direito humano de migrar, em comparação com o Estatuto do Estrangeiro. Outrossim, os objetivos específicos deste trabalho são relatar o direito humano de migrar e suas legislações internacionais; descrever os principais avanços da Lei de Migração em comparação com o Estatuto do Estrangeiro; analisar os avanços e pontos negativos da Lei de Migração, principalmente sob o aspecto do direito humano de migrar. Conclui-se que a nova lei abarcou de forma mais adequada os preceitos de direitos humanos, porém, os vetos à Lei de Migração retiraram direitos importantes dos migrantes, o que a impede de estar em completa harmonia com o direito humano de migrar.

Palavras-Chave: migração; lei de migração; direito humano de migrar.

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INTRODUÇÃO

Este artigo propõe um estudo acerca da nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) sob o prisma do direito humano de migrar. O novo diploma legal revogou o Estatuto do Estrangeiro, cujos princípios basilares eram a segurança nacional e o interesse nacional, e estava em descompasso com o direito humano de migrar. A nova legislação regula a migração dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante no País. Assim, questiona-se: a Lei de Migração está em consonância com o direito humano de migrar?

Para cumprir com o objetivo geral do artigo, cada capítulo do trabalho possui um objetivo específico. O primeiro compreende em relatar o direito humano de migrar e suas legislações internacionais. O segundo consiste em descrever os principais avanços da Lei de Migração em comparação com o Estatuto do Estrangeiro. Por fim, o terceiro almeja analisar os avanços e pontos negativos da Lei de Migração, principalmente sob o aspecto do direito humano de migrar.

A metodologia utilizada é a literatura formal. Utiliza-se o método de abordagem dedutivo, que parte de uma premissa geral, o direito humano de migrar, para uma premissa específica, a Lei de Migrações. Ademais, o trabalho é de pesquisa do tipo básica, com característica exploratória, por meio do estudo de legislações, livros, artigos científicos e trabalhos monográficos. Por conta disso, adota-se a técnica de pesquisa documental e bibliográfica, fazendo uso de legislações internacionais e doutrinas.

1. O DIREITO HUMANO DE MIGRAR

As normas internacionais de direitos humanos asseguram a proteção ao indivíduo, de forma indistinta e universal. Entre seus princípios está a universalidade de

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direitos, que implica que qualquer pessoa, pelo simples fato de ser um indivíduo, tem seus direitos básicos assegurados, onde quer que esteja. Por conseguinte, os tratados de direitos humanos, frutos da internacionalização dos direitos humanos, resguardam os direitos e prerrogativas dos indivíduos e os protegem de ilegalidades e violências, quer os indivíduos estejam fixados em um local ou em mobilidade.

O fenômeno migratório existe desde os primórdios dos

tempos, acompanhando a história da humanidade. Recentemente, alguns fluxos migratórios aumentaram exponencialmente, ganhando atenção da mídia e tornando-se conhecidos pela população mundial. As normas internacionais, no entanto, nem sempre acompanham esta demanda. É necessário que as leis que regulam estes fluxos migratórios sejam eficientes na proteção dos direitos humanos dos indivíduos envolvidos.

Muitas vezes, a migração é barrada pelo Estado receptor, que detém o monopólio da soberania sob seu território. Esta soberania implica na prerrogativa de escolha de quem adentra seu espaço físico. De acordo com Baganha (2001, p. 133) “[...] é o exercício do direito de soberania de controlar quem pode entrar, permanecer e pertencer ao Estado-nação que define as migrações internacionais como um processo social específico”. Além disso, defende o autor que as fronteiras são mecanismos de manutenção do status quo de desigualdade entre os países, e o controle que o Estado exerce sob suas fronteiras é o que efetivamente divide o mundo entre centro e periferia, ao menos no campo econômico.

No campo da política, o Estado permanece como ator principal e tomador das decisões. Essas decisões são influenciadas por diversos aspectos, pois, “as políticas de migração e nacionalidade refletem interesses econômicos, demográficos e conjunturas políticas." (REIS, 2004, p.8). Assim, o controle de quem entra e sai de seu território

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permanece inserido no campo político, sendo uma das prerrogativas da soberania do Estado. A respeito disso,

De facto, consagrou-se o princípio econômico de que qualquer pessoa deve ser livre de poder oferecer a sua força de trabalho no mercado que melhor a renumere, e fez-se-lhe corresponder a nível político o direito individual de mobilidade interna e externa, mas condicionou-se este último ao exercício dos direitos de soberania do país receptor (nomeadamente o direito de controlar as suas fronteiras e de admitir estrangeiros no solo nacional. Dentro deste quadro político, cabia aos países de emigração proteger os seus nacionais, sem no entanto impedir a sua saída, e competia aos

países receptores definir o perfil do imigrante que podia entrar, permanecer e pertencer à sua sociedade (BAGANHA, 2001, p. 139).

Isso significa que há a necessidade de um sancionamento político no que tange os fluxos migratórios. Quando um ser humano migra de uma nação para outra, está também migrando de um sistema político para outro, de um Estado soberano para outro. No mesmo sentido, “maior evidência não poderia existir de que os Direitos Humanos não são intrínsecos à natureza humana, pois cessam logo que o indivíduo atravessa as fronteiras de sua nação” (BRITO, 2013, p. 92). Por essa linha de raciocínio, a soberania do Estado seria maior que um direito universal de migrar.

Cabe então ao Estado externalizar sua vontade de quem é bem-vindo em seu território. Por essa perspectiva, "as migrações internacionais não são causadas exclusiva ou principalmente pela ação do Estado. No entanto, ele, por meio de políticas de imigração e cidadania, é um importante fator explicativo no processo de formação dos fluxos e ajuda a moldar a forma que esses fluxos adquirem" (REIS, 2004, p.2).

De igual importância são os tratados e convenções de direitos humanos. Esses são as ferramentas mais valiosas para os indivíduos que estão enfrentando algum tipo de violação de seus direitos, situação que não é incomum para quem está migrando.

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A principal norma internacional garantidora dos direitos humanos é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1945. Seu artigo 15 prevê o direito a ter direitos, que pode ser interpretado extensivamente como um dispositivo legal que garante o direito à nacionalidade, o direito de trocar de nacionalidade e o de não perder a nacionalidade original. Ainda no âmbito da migração, o artigo 14 estabelece o direito de buscar asilo nos casos de perseguição e o artigo 13, em seu parágrafo segundo, fixa o direito de saída do país natal e de reentrada (REIS, 2004). Os referidos artigos, em ordem numérica crescente, em sua redação completa são:

Artigo 13 - 1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar. Artigo 14 - 1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Artigo 15 - 1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, p. 9)

Segundo Hunt (2009, p. 232, apud Brito, 2013, p. 89) “a Declaração afirma, no artigo 13, os direitos de ir e vir e de mudança de residência dentro das fronteiras do país, mas não garante a mobilidade no plano internacional”. Dessa forma, na Declaração Universal dos Direitos

Humanos de 1945, o direito de migrar está circunscrito ao âmbito interno de cada Estado, em uma interpretação literal da norma.

Essa interpretação ocorre porque a Declaração foi feita inicialmente para regular apenas a relação entre os Estados e seus cidadãos. Contudo, com a evolução do papel do indivíduo no sistema internacional, até sua centralidade no mesmo, a Declaração começou a ser utilizada para também

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regular a relação entre Estados e indivíduos, sejam esses nacionais ou não. De fato, o aumento do fluxo migratório tornou necessário o surgimento de cada vez mais normas para regular a recepção dos migrantes.

Por conta disso, novas convenções e declarações foram formadas após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Porém, “não há um instrumento amplo o qual regule a conduta dos Estados a respeito de todas as variáveis existentes na migração. O que há são normas

internacionais” (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2010, p. 277). A Convenção de Genebra e o Protocolo de Nova York são exemplos dessas normas, pois elas restringem a soberania do Estado em regular quem adentra sua fronteira, dando mais importância ao ser humano e suas necessidades básicas.

Outra norma importante é a Convenção sobre Direitos dos Imigrantes de 1990 da Organização das Nações Unidas. Entre seus dispositivos estão a obrigatoriedade de tratamento isonômico trabalhista entre cidadãos e migrantes; o direito de recorrer ao judiciário nos casos de deportação; e o direito de ser informado acerca de direitos em um idioma que entendam; entre outros (REIS, 2004).

Nessa sequência, percebe-se que aos poucos o rol de direitos individuais universais vai se ampliando e sendo assegurado normativamente. A respeito disso, Reis (2004, p. 3) afirma que "lentamente, direitos individuais universais independentes do Estado vão sendo reconhecidos, numa tendência que vinha se acentuando desde o fim da Segunda Guerra Mundial”.

Sob este Norte e tendo em consideração as normas internacionais de direitos humanos e o aumento dos fluxos migratórios, há uma crescente tendência de admitir a entrada e fixação de indivíduos em qualquer território, sob o fundamento de um direito humano de migrar.

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O direito humano de migrar corresponde a adequação de migrar como direito humano, dessa forma os indivíduos devem ter garantido o direito de mobilidade avante a soberania estatal. Com efeito, “até o século XIX, muitos países não adotavam nenhum tipo de diferença em relação aos direitos dos nacionais e dos estrangeiros, e a livre circulação entre os países era permitida” (JUBILUT; APOLINÁRIO, 2010, p. 276). Dessa forma, o direito humano de migrar já existia anteriormente, mas foi gradativamente desaparecendo com prevalência e fortificação da soberania

dos Estados.

Com o aumento do fluxo de migrantes e a centralidade do ser humano no sistema internacional, as relações entre nacionalidade/cidadania e soberania/imigração estão mudando. Os fatores citados são responsáveis pela reorganização das fronteiras (internas e externas) dos Estados. Estes estão gradativamente perdendo sua soberania e autonomia decisória de quem entra em seu território, ao mesmo tempo que as diferenças entre “cidadão nacional” e “imigrantes” estão cada vez menores (REIS, 2004).

Este fenômeno é chamado cidadania mundial ou pós-nacional, e corresponde à diminuição das diferenças entre nacionais e estrangeiros sob a égide de direitos universais inerentes a qualquer ser humano, em qualquer lugar. Então, o que se vislumbra é

[...] não só o Estado estaria se tornando impotente diante da circulação de indivíduos entre fronteiras, como também a

identidade nacional estaria perdendo a centralidade como fonte do reconhecimento de direitos de cidadania. Afirma-se que a decisão sobre as fronteiras não é mais uma decisão política, mas que as fronteiras são estabelecidas por convenções, tratados e legislações

internacionais de acordo com critérios relacionados aos direitos individuais universais." (REIS, 2004, p.13)

Dessa forma, o direito humano de migrar corresponderia a um direito universal que também deve ser assegurado e estaria à frente da soberania estatal. Conforme

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Cissé (1999, p. 9), “todo ser humano tem o direito de viajar, de transumar, numa palavra de circular, de receber e de ser recebido”. Assim, tem-se que a partir de uma visão humanística e holística, existe um direito humano de migrar, numa concepção progressista dos direitos individuais universais do ser humano.

2. OS AVANÇOS NA NOVA LEI DE MIGRAÇÃO EM EQUIPARAÇÃO AO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO

O Estatuto do Estrangeiro, até novembro de 2017, era a lei que regia os direitos e deveres dos imigrantes e refugiados em território brasileiro. A nova Lei de Migração, publicada em março de 2017

1, propõe amplos direitos aos migrantes os quais não estavam contemplados na antiga Lei. Sob a lógica de equiparação, o presente capítulo analisa as principais mudanças legislativas abarcadas pela nova Lei.

Primeiramente, a mudança de vocabulário - deixando de lado o termo estrangeiro e adotando a denominação migrante - já é em si um avanço. Segundo Houaiss (2012, apud TIMÓTEO, 2016, pg 87), o termo estrangeiro possui conotação pejorativa, pois em nossa língua, em sentido figurado, ele se relaciona a estranho. Nota-se que este nomenclatura evidencia alguém que é alheio ao território nacional, e não pertence ao lugar.

Além de uma questão puramente gramatical, consta no

Estatuto do Estrangeiro uma norma conduzida por um Estado autoritário durante o regime de Ditadura Militar, na qual a opção pela segurança nacional - cujo termo aparece dezesseis vezes na Lei - estava acima dos direitos humanos, e recebia o estrangeiro como ameaça ao território e interesse nacional. Assim sendo, o Estatuto do Estrangeiro já em seu

1 A Lei de Migração tornou-se publicada no dia 24 de maio de 2017 e seu período de vacatio legis é 180 dias após a publicação.

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nome adotava uma postura de aversão e exclusão ao imigrante.

Com a Constituição Federal de 1988 o Estatuto do Estrangeiro passa a ser além de inadequado e excludente também inconstitucional, exemplo disso é que o artigo 5º da Constituição afirma “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade”. O Estatuto do Estrangeiro de 1980, como pode-se observar em seu artigo 2º, prezava a defesa do trabalhador nacional ante os direitos dos imigrantes.

Ainda que exista o endurecimento de políticas migratórias, da ascensão de partidos e movimentos nacionalistas e de um crescente xenofobismo, grande parte da América Latina aprovou novas leis migratórias desde os anos 1990 (NUNES, 2017). Conforme Nunes (2017) a adequação da legislação às medidas internacionais de direitos humanos é uma necessidade. Nessa perspectiva, na égide do sistema Democrático brasileiro:

A substituição do Estatuto do Estrangeiro pela Lei de Migração diz respeito ao regime migratório brasileiro, composto de fontes internas (leis, normas infralegais) e internacionais (tratados), mas interessa igualmente a pessoas e governos estrangeiras e organismos internacionais (v.g. OIT, ACNUR, OMI, MERCOSUL). (NUNES, 2017, p. 21).

O Estatuto do Estrangeiro, como o artigo 1º da lei

destaca, é integralmente moldado pela vinda do migrante em tempos de paz, ao passo que a Lei nº 13.445/17 salienta acerca dos direitos e deveres do migrante de forma abrangente sem, no entanto, limitar-se aos tempos de paz. Conforme o Art. 3o, inciso I, a nova Lei de Migração é respaldada pelos princípios de universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; não criminalização da migração;

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acolhida humanitária; inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas.

A Lei de Migração inicia o §1º de seu primeiro artigo distinguindo os termos de imigrante, emigrante, residente fronteiriço, visitante e apátrida; fato de suma importância em contraponto ao Estatuto do Estrangeiro que não delimita todos os termos citados. O destaque do vocábulo emigrante é evidenciado pelo Capítulo VII da Lei que define o rol de políticas públicas tão bem como a abrangência dos direitos

dos emigrantes.

Destaca-se também o fato de que a Lei de Migrações assegura atenção especial aos apátridas2 (ARAUJO et al, 2017). Distinto do Estatuto do Estrangeiro há na Lei de Migração a Seção II “Da Proteção do Apátrida e da Redução da Apatridia” a qual garante que durante a tramitação do processo de reconhecimento da condição de apátrida, o indivíduo disponha de iguais direitos dos migrantes (ARAUJO et al, 2017); após o reconhecimento do indivíduo como apátrida, o mesmo goza de direitos e garantias previstos na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, sendo possível o mesmo adquirir a nacionalidade brasileira.

No que se refere aos documentos de viagem, o Estatuto do Estrangeiro limitava-se a dois documentos: o passaporte e o laissez-passer, por sua vez, a Lei de Migração possibilita uma nova grande abrangência de documentos de viagem contabilizados em um total de nove documentos.

Há também modificações nos tipos de visto utilizados; conforme o artigo 4, no Estatuto do Estrangeiro são

2 “Apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por

nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da

Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada

pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim

reconhecida pelo Estado brasileiro” (Lei de Migrações - Art 1º, §1º , VI).

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observados os seguintes vistos: de trânsito, de turista, temporário, permanente, de cortesia, oficial e diplomático, enquanto na Lei de Migração restaram os vistos de visita, temporário, diplomático, oficial e de cortesia; os vistos da Lei de Migração estão segmentados para casos específicos previstos em regulamento. As normas modificaram o termo conceitual de visto; a Lei nº 6.815/80 observava o visto como autorização para o imigrante ingressar ou permanecer no país, já a Lei nº 13.445/17 trata o visto somente para o ingresso do imigrante ao país; o presente fato permitiu a modificação do visto permanente pela residência na nova Lei (NUNES, 2017).

Além disso, as infrações e consequentes penalidades referentes aos imigrantes sofreram grandes transformações na Lei de Migração; a expulsão antes adaptada a vários fatores alusivos a defesa da segurança nacional no Estatuto do Estrangeiro, agora, com a Lei de Migração, somente acontecerá nos casos de:

I - crime de genocídio, crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão, nos termos definidos pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, promulgado pelo Decreto no 4.388, de 25 de setembro de 2002; ou II - crime comum doloso passível de pena privativa de liberdade,

consideradas a gravidade e as possibilidades de ressocialização em território nacional.

No caso do Estatuto do Estrangeiro, a competência decisória acerca da expulsão era do Presidente da República, conquanto a Lei de Migração não define expressamente a quem compete a expulsão somente admite

no Art. 54 que “caberá à autoridade competente resolver sobre a expulsão, a duração do impedimento de reingresso e a suspensão ou a revogação dos efeitos da expulsão”.

Caso semelhante a exportação também acontece para a deportação; a lei de Migração restringiu a deportação para em casos do imigrante “entrar em território nacional sem estar autorizado” (Art. 109, inciso I) e “permanecer em território nacional depois de esgotado o prazo legal da

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documentação migratória” (Art. 109, inciso II). Os custos de deportação no Estatuto do Estrangeiro estavam a cargo do próprio deportando, empresa transportadora e/ou do Tesouro Nacional, já na Lei de Migração a responsabilidade dos custos de transporte não é definida.

Em equiparação, a repatriação definida no Art. 49 por “medida administrativa de devolução de pessoa em situação de impedimento ao país de procedência ou de nacionalidade”, não será aplicada “à pessoa em situação de

refúgio ou de apatridia, de fato ou de direito, ao menor de 18 (dezoito) anos desacompanhado ou separado de sua família” (Art 49, § 4o), fato que podia suceder-se no Estatuto do Estrangeiro3.

No que concerne a penalidades, o Art. 115 da Lei de Migração acrescentou ao Código Penal o crime de promoção de migração ilegal, nos seguintes termos:

Art. 232-A. Promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro em país estrangeiro: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. §1º Na mesma pena incorre quem promover, por qualquer meio, com o fim de obter vantagem econômica, a saída de estrangeiro do território nacional para ingressar ilegalmente em país estrangeiro. § 2º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se: I - o crime é cometido com violência; ou II - a vítima é submetida a condição desumana ou degradante. § 3º A pena prevista para o crime será aplicada sem prejuízo das

correspondentes às infrações conexas.

O acréscimo deste artigo demonstra grande

preocupação para com a integridade e proteção dos migrantes, que são frequentemente alvos de criminosos que atuam cobrando quantias exorbitantes para traficar seres

3 O Art. 42. do Estatuto do Estrangeiro define: “A repatriação de

refugiados aos seus países de origem deve ser caracterizada pelo

caráter voluntário do retorno, salvo nos casos em que não possam

recusar a proteção do país de que são nacionais, por não mais subsistirem as circunstâncias que determinaram o refúgio”.

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humanos através das fronteiras entre países, processo que quase sempre envolve violência física, mental e/ou sexual contra as vítimas.

Outro ponto desigual entre o Estatuto do Estrangeiro e a Lei de Migração é o fato de que o primeiro vedava qualquer atividade de natureza política4 (ARAUJO et al, 2017), o segundo, por sua vez, assegura (no Art. 4º), entre outros pontos, o direito de reunião para fins pacíficos e o direito de associação, inclusive sindical. Além de que

“ninguém será impedido de ingressar no País por motivo de raça, religião, nacionalidade pertinência a grupo social ou opinião política” (Art. 45).

Na perspectiva laboral, “a capacidade de desempenho de uma atividade produtiva depende exclusivamente da capacidade e formação profissional, e em nenhum caso encontra-se vinculada à condição migratória das pessoas” (TIMÓTEO, 2016, p.97), nesse sentido a Lei de Migração abarca a igualdade e inclusão do imigrante nas questões trabalhistas. Compreende-se assim que “se um imigrante for submetido a violações de direitos fundamentais trabalhistas, ele deve ser reparado - independentemente de seu status migratório” (TIMÓTEO, 2016, p. 100).

Pela análise dos aspectos citados em comparação ao Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80 de 1980) com a Lei de Migração (nº 13.445/17), observa-se que a última abrange novos grupos relacionados a imigração (é o caso dos emigrantes), protege os apátridas, oportuniza a diversificação de documentos de viagem e modifica os tipos de visto utilizados no país (assim como o termo conceitual dos mesmos). Do mesmo modo, questões referentes a infrações e penalidades desfrutaram grandes modificações; a expulsão, deportação e repatriação estão limitadas a casos específicos (não mais condensados a aspectos de segurança

4 O artigo 106 do Estatuto do Estrangeiro aponta as limitações dos imigrantes por meio das vedações.

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nacional). Com a nova lei, “ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

3. AVANÇOS E DESAFIOS DA LEI DE MIGRAÇÃO, SOB O ASPECTO DO DIREITO HUMANO DE MIGRAR

Como analisado, a evidente insuficiência da legislação brasileira anterior para reger as complexas questões que são suscitadas pelo aumento dos fluxos migratórios na atualidade e o relevante aumento do número de imigrantes que passaram a residir em território nacional culminou na aprovação da nova Lei de Migração.

Na aplicação do Estatuto do Estrangeiro era clara a prevalência dos interesses político-institucionais brasileiros. Essa prevalência tinha como consequência a exclusão da principal finalidade da lei: regular as liberdades de circulação e locomoção no território nacional, além do mecanismo de acesso à cidadania brasileira por parte dos estrangeiros. (LOPES, 2009)

A mudança do Estatuto do Estrangeiro para uma nova Lei é relevante para a política externa brasileira, tão bem como para a “vitalidade” da democracia (KENICKE; LORENZETTO, 2017); substitui-se o princípio de segurança nacional vigente no Estatuto do Estrangeiro pelo de desenvolvimento humano (KENICKE; LORENZETTO, 2017).

A principal manifestação do caráter humanizado da nova lei em comparação com a anterior está nos princípios gerais dos dois diplomas jurídicos. Como explorado anteriormente, o Estatuto do Estrangeiro era norteado pelos princípios da Segurança Nacional e do Interesse Nacional, conforme o art. 2º do referido Estatuto. Costa (2016) referencia que a motivação desses princípios restritos e nacionalistas se dá pelo contexto de ditadura militar em que a lei foi criada e a crise econômica da época.

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Já a Lei de Migrações, como restou analisado, traz um rol extensivo de princípios gerais para guiar a política migratória brasileira que está em consonância com as diretrizes internacionais de Direitos Humanos. Surge assim uma nova ótica no campo de migrações, que busca não criminalizar, discriminar ou vitimar o migrante, e torna-se assim um instrumento de potencial resolução dos diversos problemas enfrentados pelos imigrantes em nossa sociedade.

De fato, o objeto de ambas as leis é diferente. O Estatuto do Estrangeiro, conforme seu art. 1º, regulava a situação jurídica do estrangeiro em tempos de paz. A Lei de Migrações, por sua vez, “dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante” (BRASIL, 2017).

Soma-se a isto o fato de que a nova lei utiliza terminologias mais adequada aos tempos atuais, organizou melhor os tipos de visto, aceitando mais possibilidades de documentos de viagem, legislou sobre direitos laborais e políticos e limitou expulsão, deportação e repatriação a casos específicos.

A partir da análise realizada, pode-se constatar grandes avanços na substituição de uma norma insensível às questões de Direitos humanos e pautada pelo princípio de segurança nacional para uma nova onda de direitos abarcados pela Lei de Migração, especialmente no tangente

ao direito humano de migrar.

É evidente, contudo, que ainda existem muitas dificuldades enfrentadas pelos migrantes ao chegar no Brasil. Obstáculos como a falta de acessibilidade a informações, demasiada burocracia de procedimentos públicos, a dificuldade de conseguir emprego e a falta de acolhimento de uma sociedade xenofóbica e racista podem levar a situações de marginalidade social e estado de extrema vulnerabilidade.

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Essa condição de maior vulnerabilidade que grande parte dos imigrantes enfrentam no no país decorre de variadas razões, dentre elas, uma Política Migratória ainda insuficiente. A Lei de Migração, é, de fato, um avanço que deve ser reconhecido e utilizado como exemplo para o desenvolvimento de outras mobilizações estatais e legislativas - bem como políticas públicas de ações afirmativas - a fim de fazer cumprir o dever Constitucional de igualdade entre migrantes e nacionais.

Analisando o discurso das autoridades brasileiras, a autora afirma que é nítido o respaldo governamental que a xenofobia social possui. Por exemplo, um dos grandes fluxos migratórios atuais que se destina ao Brasil é o haitiano - e a única política pública que foi direcionada por muitos governos municipais para tratar a questão dos novos migrantes em seu território foi a de alocar ônibus para manda-los para outros estados ou regiões distantes no país. (ROSA, 2015)

A mídia traz notícias de manifestações contra imigrantes em alguns locais do país. É facilmente identificável, segundo Vidal (2015) que estes protestos são em sua maioria voltadas aos haitianos e africanos. Resta claro, assim, que a origem desse preconceito está também profundamente relacionado ao racismo, social e institucional. A situação de vulnerabilidade destes migrantes é mais aguda quando recai sobre o mesmo indivíduo a discriminação por ser imigrante e por ser negro.

Além disso, pode-se também observar que parte da população brasileira encara o migrante como uma ameaça à sua oportunidade no mercado de trabalho. (VITAL, 2015)

Basta analisar o fato à luz de dados reais para ficar demonstrado que os imigrantes no Brasil não chegam sequer a 1% da população nacional, de forma que encará-los como concorrentes é apenas resultado evidente de preconceito. (VITAL, 2015)

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Como explana Vital (2015), a xenofobia e racismo nascem da falta de informação, gerando uma sociedade que cria barreiras à um direito que é humano e de todos.

Tem-se, assim, que muito ainda deverá ser desenvolvido dentro do tema de Política Migratória brasileira, a fim de cumprir completamente com os ditames Constitucionais de igualdade e promoção dos Direitos Humanos.

CONCLUSÃO

Como analisado, o direito humano de migrar refere-se ao âmbito da dignidade humana na qual os indivíduos devem ter garantido seu direito de mobilidade à frente da soberania estatal.

Assim, o sistema internacional de proteção dos direitos humanos está diminuindo a autonomia decisória do Estado em quem entra em seu território e a diferenciação entre nacionais e imigrantes, pois cada vez mais se entende que o ser humano ocupa o lugar central nas normas internacionais.

A Lei de Migração, que revogou o Estatuto do Estrangeiro, é um exemplo disso, dispondo sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante no País de forma mais adequada aos Direitos Humanos e à Constituição de 1988.

É evidente que a Lei de Migração incorporou em seu texto os principais pontos do direito humano de migrar, em

comparação com o Estatuto do Estrangeiro, ao ampliar os direitos laborais e políticos, ao tratar questões como expulsão, deportação e repatriação e mesmo pela mudança de terminologia que traz maior acolhimento ao migrante.

Contudo, os desafios ainda estão presentes, e a realidade mostra que milhares de migrantes ainda enfrentam um dia-a-dia que não condiz com os preceitos de dignidade humana. Centenas encontram-se em situação de

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desemprego ou em situação de trabalho análoga à de escravo; muitos não conseguem alimentar e abrigar a si e à sua família; e, além disso, encaram a dureza de uma realidade social extremamente xenofóbica e racista.

Desta forma, reconhecido o avanço trazido à legislação nacional pela aprovação da Lei 13.445/17, resta lutar para que as políticas migratórias brasileiras continuem a progredir, sempre em consonância com os Direitos Humanos e consciente de que migrar é direito inerente ao

ser humano.

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Acesso em: 07 dez. 2017.

VITAL, A. Debatedores apontam casos de racismo e xenofobia no Brasil. Brasília, DF, 23 set. 2015. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/RELACO

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DE-RACISMO-EXENOFOBIA-NOBRASIL.html>. Acesso em: 20

jul. 2017.

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REFLEXÃO ACERCA DOS CRITÉRIOS LEGAIS

DIFERENCIADORES ENTRE O USUÁRIO E O TRAFICANTE NA LEI DE DROGAS

Fabiano Zoldan

RESUMO

Apesar dos avanços trazidos pela Lei 11.343/06, a exemplo

da despenalização do usuário, constante em seu artigo 28, é indiscutível o fato de que há grande celeuma em relação aos critérios legais (quase todos subjetivos) para diferenciar entre a “circunstância de consumo” e a “circunstância de tráfico”. Nesse sentido, o presente trabalho, tem por objeto de estudo a distinção entre o usuário e o traficante de drogas à luz da referida lei. A investigação apoia-se em pesquisa bibliográfica e documental e utiliza como referencial o método analítico descritivo. O problema consiste na verificação da aplicação dos critérios trazidos no artigo 28, §2º da Lei. O objetivo é discorrer sobre os parâmetros – ou a falta deles – abordados pela doutrina para enquadrar esses critérios. A relevância do trabalho está justamente no ato de refletir sobre a (in)justiça que pode ser gerada como consequência da aplicação desses critérios de diferenciação na prática jurídica.

Palavras-chave: Lei de Drogas; Usuário; Traficante; Critérios Legais.

INTRODUÇÃO

Apesar dos avanços trazidos pela Lei 11.343/06, a exemplo da despenalização do usuário, constante em seu artigo 28, é indiscutível o fato de que há grande celeuma em relação aos critérios legais (quase todos subjetivos) para diferenciar entre a “circunstância de consumo” e a “circunstância de tráfico”. Nesse sentido, o presente trabalho, tem por objeto de estudo a distinção entre o

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usuário e o traficante de drogas à luz da referida lei. A investigação apoia-se em pesquisa bibliográfica e documental e utiliza como referencial o método analítico descritivo. O problema consiste na verificação da aplicação dos critérios trazidos no artigo 28, §2º da Lei. O objetivo é discorrer sobre os parâmetros – ou a falta deles – abordados pela doutrina para enquadrar esses critérios. A relevância do trabalho está justamente no ato de refletir sobre a (in)justiça que pode ser gerada como consequência da aplicação desses critérios de diferenciação na prática

jurídica.

1. TIPIFICAÇÃO DO ART. 33 E DO ART. 28 NA LEI 11.343/06

Uma das principais novidades trazidas pela Lei 11.343/06 diz respeito a mudança da política criminal em relação ao usuário de drogas. Não há de se negar que, em relação à Lei nº 6.368/76, a nova Lei de Drogas trouxe consideráveis avanços, como o reconhecimento de políticas de prevenção e redução de danos, instituindo o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e a despenalização (com a manutenção do status de crime) para o usuário.

A conduta descrita no atual art. 28 da Lei de drogas, achava-se contemplada no art. 16 da revogada Lei 6.368/76 que considerava crime – com cominação de pena de detenção – o porte de drogas para consumo próprio.

Com o advento da Lei 11.343/06, o texto trazido no art. 28 não mais comina pena de prisão para o usuário.

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade;

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III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso

educativo. (BRASIL, 2006).

Frente ao novo texto, surgiu intenso celeuma acerca da natureza jurídica do referido artigo. Resumidamente, se mostrará duas posições como exemplo das controvérsias sobre a natureza jurídica do art. 28 da nova lei de drogas.

a) Luiz Flávio Gomes (2008) afirma que houve descriminalização formal e transformação em infração sui generis. Esse posicionamento aduz que o legislador passa a

considerar o porte de drogas para consumo pessoal não mais como crime, mas como infração penal sui generis de menor potencial ofensivo.

b) Renato Brasileiro de Lima (2017) explica que houve despenalização e manutenção do status crime. Ressalta esta posição pelo fato do legislador afastar a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário de drogas, contudo, não conclui que teria havido descriminalização, pois o que ocorre é a individualização da pena com a aplicação das medidas diversas da prisão. Além do mais, comenta que as infrações relativas ao usuário de drogas foram previstas no capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”, na Lei 11.343/06, e por si só já estariam enquadradas como tal.

Esta hipótese que trata o referido artigo como caso de despenalização da conduta é que encontra respaldo na doutrina majoritária e no Supremo Tribunal Federal. Portanto, entende-se que a posse de drogas para consumo

pessoal continua sendo crime, embora sem previsão de pena privativa de liberdade.

Nessa linha leciona Capez (2007) ao se referir da descriminalização da conduta:

Entendemos, no entanto, que não houve descriminalização da conduta. O fato continua tendo a natureza de crime, na medida em que a própria Lei o inseriu no capítulo relativo aos crimes e às penas (Capítulo III); além do que as sanções só podem ser aplicadas

por juiz criminal e não por autoridade administrativa, e mediante

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o devido processo legal (no caso, o procedimento criminal do

Juizado Especial Criminal), conforme expressa determinação legal do art. 48, parágrafo 1º, da nova Lei. (CAPEZ, 2007, p.60).

Importante também destacar outra inovação da atual lei de drogas que foi o aumento das penas privativa de liberdade e pecuniária para o crime de tráfico. A pena mínima cominada ao delito foi aumentada de 3 (três) para 5 (cinco) anos, enquanto a pena pecuniária foi elevada de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa para 500 (quinhentos) a 1500 (mil e quinhentos) dias-multa (art. 33

da lei 11.343/06).

Sobre a matéria, Marcão aduz:

A previsão é saudável na medida em que permite uma individualização mais adequada e proporcional da pena; contudo, deverá ser analisada com redobrada cautela, impondo ao magistrado cuidadosa apuração dos requisitos legais no curso da instrução, visando evitar conceder ou negar o benefício fora das hipóteses pretendidas pelo legislador. (MARCÃO, 2007, p. 137).

Restou notório, portanto, a determinação do legislador em aumentar a distância entre o usuário e o traficante, sobretudo, a partir da diferenciação das consequências penais previstas para cada uma dessas figuras.

Contudo, o que permaneceu muito tênue – mas de crucial relevância – foi o estabelecimento, a elucidação e a compreensão sobre os principais elementos e/ou critérios para distinção entre o crime de porte de drogas para consumo pessoal e o crime de tráfico de drogas.

Na lei 11.343/06 a tipificação do art. 28 ficou formada

por cinco verbos nucleares e depende da presença da intenção especial do agente para consumo pessoal, in verbis:

Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar [...]. (BRASIL, 2006).

Por sua vez, o art. 33 restou formado por dezoito verbos nucleares que caracterizam a traficância:

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Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir,

vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. (BRASIL, 2006).

Com intuito norteador o art. 28 § 2º aduz os critérios de distinção entre o consumo de drogas e o tráfico:

Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao

local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (BRASIL, 2006).

Destaca-se, portanto, no referido parágrafo, oito critérios legais de distinção entre o porte para uso próprio e o tráfico de drogas, sublinha-se: (1) a quantidade e (2) a natureza da substância apreendida; (3) o local e (4) as condições da ação; (5) as circunstâncias sociais, (6) pessoais, (7) a conduta e (8) os antecedentes do agente.

Entrementes, é imperioso sublinhar que o referido artigo 28 § 2º da atual lei de drogas não trouxe qualquer evolução em relação aos critérios diferenciadores entre o usuário e o traficante, se comparado ao artigo 37 da lei anterior.

Sobre o ocorrido Nascimento (2001) reflete:

Fato a registrar é que o artigo 28, § 2º, da Lei nº. 11.343/2006, não trouxe qualquer inovação à questão dos critérios diferenciadores entre o usuário e o traficante, perdendo a oportunidade de definir a conduta do dependente de substâncias psicoativas de uso

proscrito no país. Certo é que a nova lei conservou a mesma

redação dada ao artigo 37 da lei anterior, ou seja, omitiu-se sobre o tema abordado, promovendo divergências judiciais causadoras de graves consequências para os destinatários da lei. (NASCIMENTO, 2011).

A formulação trazida pelos critérios do art. 28 § 2º da lei de drogas tem se mostrado insuficiente, especialmente em relação ao critério da quantidade, parcialmente objetivo, que continuou ficando em aberto. Assim, sem uma

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indicação clara de parâmetros de distinção se gera uma insegurança visível na aplicação da Lei. (CAMPOS, 2013).

Para o Instituto Igarapé (2015), a Lei de Drogas, na busca pela justiça no caso concreto, acabou por gerar insegurança e decisões contraditórias. Mesmo quando o Judiciário desclassifica uma conduta de porte de drogas para consumo pessoal, reconhecendo não haver traficância, é frequente que o acusado esteja preso cautelarmente há alguns meses.

A maioria dos presos provisórios e condenados por tráfico de drogas no Brasil é composta de réus primários, que levavam consigo pequenas quantidades de substância ilícita, flagrados em operações de policiamento de rotina, desarmados, sem provas de envolvimento com a criminalidade organizada. (INSTITUTO IGARAPÉ, 2015).

Na mesma esteira, Olinger (apud NASCIMENTO, 2011) chama a atenção para a seletividade que ocorre no momento da aplicação da regra, que acaba ficando a cargo da polícia ostensiva:

Ao flexibilizar os critérios de definição de que quantidade da substância poderia ser para consumo próprio e o que caracterizaria tráfico, o Sisnad coloca a cargo da polícia ostensiva a decisão de abrir ou não um processo judicial, permitindo que o policial escolha quem será liberado e quem será encaminhado à Justiça. A nova lei de drogas legaliza a seletividade de sua aplicação. Quem define inicialmente se o indivíduo é traficante ou usuário ainda é o policial. (OLINGER apud NASCIMENTO, 2011).

A necessidade de se refletir sobre a injustiça que acaba sendo gerada pelos efeitos das decisões e práticas judiciárias

e policial relacionadas à aplicação da Lei de Drogas é eminente. As próprias autoridades carecem de segurança na hora de decidir sobre a aplicabilidade do tipo penal.

2. SISTEMAS DE QUANTIFICAÇÃO

A relevância do estudo do art. 28 § 2º da Lei de Drogas é que seu texto avoca as razões que levam a autoridade judiciária (ou policial) a classificar o delito. Conforme bem

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anunciado, a classificação se norteia por uma “[...] série de critérios que devem ser sopesados para que se possa fazer a distinção entre usuário e o traficante”. (LIMA, 2017, p. 977).

Para melhor compreensão, o autor leciona que são dois os sistemas legais utilizados pelos diversos ordenamentos jurídicos para distinguir o usuário de drogas do traficante de drogas. (LIMA, 2017):

a) Sistema de quantificação legal: nesse caso, é fixado um quantum diário para o consumo pessoal. Logo, se

a quantidade de droga apreendida com o agente não ultrapassar esse limite diário, não há de falar em tráfico de drogas, pois estará caracterizado objetivamente o crime de porte de drogas para consumo pessoal;

b) Sistema da quantificação judicial: ao contrário do sistema anterior, incumbe ao juiz analisar as circunstâncias fáticas do caso concreto e decidir se se trata de porte de drogas para consumo pessoal ou tráfico de drogas.

Em que pese críticas de parte da doutrina, resta claro que o legislador brasileiro adota o critério da quantificação judicial, uma vez que

É tradição da lei brasileira a adoção do sistema de reconhecimento judicial ou policial (sistema de quantificação judicial). Cabe ao juiz (ou a autoridade policial) reconhecer se a droga encontrada era para destinação pessoal ou para o tráfico. Para isso a lei estabeleceu uma série enorme de critérios. Logo, não se trata de opinião do juiz ou de uma apreciação subjetiva. Os dados são objetivos. (GOMES, 2008, p. 163).

Não obstante Gomes (2008) referir-se aos dados objetivos, há de se verificar que, muito embora o texto da lei aponte os oito critérios, as suas interpretações são de natureza subjetiva.

Segundo o Instituto Igarapé (2015), é de natureza objetiva apenas o critério que faz referência à natureza da substância apreendida – pois uma regulamentação da ANVISA lista quais são as substâncias proibidas,

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completando assim a norma penal em branco heterogênea. (INSTITUTO IGARAPÉ, 2015).

Sobre a dificuldade de se definir a finalidade do agente, Zaffaroni e Pierangeli (2011) aduzem que a subjetividade existente no art. 28, § 2o da Lei de Drogas ocasiona considerável margem de discricionariedade ao juiz, uma vez que, tendo ele de sopesar os critérios estabelecidos no referido dispositivo, acaba compondo um conceito próprio a respeito do traficante e/ou do usuário. Este esforço

interpretativo acaba por prejudicar a segurança jurídica, pois, “por dependerem de uma valoração – necessitariam da precisão dos elementos descritivos”. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 415).

Mesmo com os critérios para quantificação judicial, que, em tese, permitiriam analisar a circunstância fática, para Carvalho (2010), os problemas de interpretação derivam da vagueza da estrutura criminalizadora, da forma de construção da tipicidade penal em ambos os delitos, da disparidade entre a quantidade de penas previstas e da inexistência de tipos penais intermediários entre o uso e o tráfico.

Se absolutamente diferenciadas as sanções e os tratamentos penal, processual penal e penitenciário dos crimes de tráfico e de porte para consumo, necessário definir chaves de interpretação constitucionais que permitam caracterizar, com o mínimo de precisão possível, tais desvios puníveis, intentando reduzir os custos e os danos causados pela vagueza da estrutura criminalizadora. (CARVALHO, 2010, p. 261).

Contudo, frente ao sistema de quantificação judicial adotado pela legislação pátria, a combinação de todos quesitos do art. 28 § 2º da Lei de Drogas – “analisados em conjunto, globalmente, jamais de maneira separada” (LIMA, 2017, p. 978) – é que subsidia a decisão da autoridade que colocará a pessoa que porta a droga em “circunstância de consumo” ou em “circunstância de tráfico”.

Nesta senda, se passará a análise desses critérios.

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3. CRITÉRIOS DETERMINANTES DO ART. 28 § 2º DA

LEI 11.343/06

Conforme visto, os critérios que determinam se a droga apreendida destinava-se ao consumo pessoal ou ao tráfico estão determinados no art. 28 § 2º da Lei 11.343/06:

[...] o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (BRASIL, 2006).

Ao discorrer sobre os critérios, Gomes (2008) destaca:

O objeto material do delito [natureza e quantidade da droga], o desvalor da ação [local e condições em que ela se desenvolveu] assim como o próprio agente do fato [suas circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes]. (GOMES, 2008, p. 164).

Abordar-se-á com maior atenção cada um dos critérios.

3.1 Natureza e quantidade da substância apreendida

Quanto à natureza da substância, é imperioso destacar que o potencial nocivo se diferencia entre as inúmeras substâncias consideradas ilícitas pela legislação.

Destarte, sem ingressar no mérito, apenas para como exemplo, há hoje estudos sobre a liberação da maconha, há certas autorizações, ainda, há legislações estrangeiras que não a criminalizam. Portanto, há de se concluir que o potencial nocivo da maconha se difere de forma considerável quando comparado ao potencial destrutivo da cocaína.

Neste interim, é válido refletir sobre as palavras do Ministro Barroso em decisão proferida no Supremo Tribunal Federal:

Na determinacão da intensidade da repressão à maconha, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que não se trata de droga cujo consumo torne o usuário um risco para terceiros. Notadamente nas situacões em que o consumo próprio, a reparticão entre parceiros usuários e o comércio de pequenas quantidades não oferecem linhas divisórias totalmente nítidas. (BRASIL, 2015).

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Ainda quanto à natureza da droga, Pedrinha (apud NASCIMENTO, 2011) parte da premissa de que esse critério não deve ser analisado isoladamente, fazendo-se imprescindível a apreciação conjunta com a quantidade de substância apreendida. Nessa acepção, a mencionada autora dispõe que:

A natureza e a quantidade são critérios que devem ser pontuados conjuntamente, pois, a segunda está, essencialmente, atrelada à especificidade de cada substância. Assim, por exemplo, 100 gramas de cannabis [maconha] poderá ser considerado uma

quantidade razoável para um usuário diário desta substância, o mesmo não podendo ser dito em face da cocaína ou heroína, cuja quantidade necessária para se obter o resultado esperado, bem como o seu nível de tolerância, é muito menor do que o da cannabis. A quantidade só será exorbitante, portanto, em face da

natureza da substância em particular. (PEDRINHA apud NASCIMENTO, 2011).

No tocante à quantidade da substância, urge destacar a redação do art. 28, §1º, que deixa entrever que o cultivo deve ser destinado à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

Como exemplo, a cannabis sativa tem como substância alucinógena o THC (tetrahidro-carbinol), componente ativo da maconha com propriedade alucinógena, que “pode ser encontrado na planta inteira, sendo mais concentrada na flor da fêmea, que é a droga propriamente dita”. (MUNDO EDUCAÇÃO, 2017).

Nesse norte sublinha Lima (2017):

Importante perceber que o dispositivo faz referência não à pequena quantidade de plantas, mas sim à pequena quantidade de drogas produzida por tais plantas. Daí a necessidade de se aferir a quantidade de droga capaz de ser produzida por cada espécie de planta. (LIMA, 2017, p. 982).

Para Gomes (2008) a quantidade da droga, por si só, não constitui, em regra, critério determinante, ou seja, tudo depende do caso concreto, da pessoa concreta, da droga que foi aprendida, etc.

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Claro que há situações inequívocas: uma tonelada de cocaína ou

de maconha revela traficância [destinação a terceiros]. Há, entretanto, quantidades que não permitem uma conclusão definitiva. Daí a necessidade de se valorar não somente um critério [o quantitativo], senão todos os fixados na Lei. O modus vivendi do agente [ele vive de quê?] é um dado bastante expressivo. Qual a sua fonte de receita? Qual a sua profissão? Trabalha onde? Quais sinais exteriores de riqueza apresenta? Tudo isso conta para a correta definição jurídica do fato. (GOMES, 2008, p. 164).

Evidencia-se que o critério da natureza e da quantidade da droga apreendida não pode ser usado como

único elemento para se distinguir o tráfico de drogas do porte para consumo pessoal. Nesse aspecto, Lima (2017) contribui:

Até mesmo para descaracterizar o tráfico de drogas, é muito comum que traficantes tenham à disposição pequena quantidade de drogas. No entanto, a depender das circunstâncias do caso concreto, como, por exemplo, na hipótese em que houver a apreensão de 100 (cem) pedras de crack, a conclusão inevitável é a de que se trata de tráfico de drogas. Ora, atento à realidade em que vive e observando aquilo que as regras de experiência demonstram que normalmente acontece, o intérprete deverá concluir que tal quantidade jamais poderia ser consumida por um único indivíduo. (LIMA, 2017, p. 978).

Em suas observações, Vilar Lins (2007) assegura que a mera quantidade não seria motivo suficiente para enquadrar a conduta nas hipóteses do art. 28, fazendo-se necessário identificar outros elementos:

Impõe-se ao magistrado buscar informações sobre a quantidade máxima de uso de determinada substância, ou seja, o limite de tolerância do organismo, para avaliar se o numerário apreendido

poderia ou não ser desarrazoado para o consumo de um único indivíduo. [...] Registra-se, entretanto, que o limite é variável de sujeito para sujeito, bem como, em muitas circunstâncias, a exemplo dos casos de vício, ou seja, de uso habitual, o usuário prefere adquirir em grande quantidade para não se ver compelido a retornar ao mundo do tráfico em um espaço curto de tempo. Verifica-se, ainda, que em diversas oportunidades, um indivíduo está a portar drogas cuja efetiva propriedade é de outrem, que pode ter conferido àquele a incumbência de adquirir ou guardar, temporariamente a droga. (VILAR LINS, 2007, p. 250).

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Entrementes, Lima (2017) pondera:

[...] Apesar do crime do art. 28 da Lei de Drogas não explicitar a quantidade de entorpecente apta à caracterização do delito, a expressão “para consumo pessoal” descrita no tipo penal sugere que a pequena quantidade de droga faz parte da própria essência do delito em questão. (LIMA, 2017, p. 978).

Contudo, para a configuração do delito do art. 28 da Lei 11.343/06 é necessário que a quantidade de droga apreendida seja pequena, de tal forma que somente seja possível para o consumo pessoal. Caso evidenciada a apreensão de quantidade não crível para o consumo pessoal se estaria diante do delito de tráfico (art. 33).

Há ainda a corrente de autores que entendem que a quantidade permitida para porte afim de caracterizar consumo pessoal deveria ser um critério objetivo, fixada legalmente, ou seja, se deveria adotar um sistema de quantificação legal e não judicial.

Como exemplo, o Instituto Igarapé (2015), representado por diversos juristas, propõe demarcar parâmetros objetivos para quantificação da droga apreendida.

Nesse sentido, propomos o estabelecimento de parâmetros objetivos a partir dos quais os agentes públicos possam valorar o critério legal da quantidade da droga, de acordo com a sua natureza, na apreciação dos casos concretos. (INSTITUTO IGARAPÉ, 2015).

Entretanto, cabe ressaltar que a adoção de critérios objetivos de distinção não conclui por si só a caracterização automática dos suspeitos flagrados com quantidades acima das quantidades referendadas. “A indicação de quantidades de referência deve servir apenas como base para orientar os aplicadores da lei sobre o perfil do usuário, permanecendo a necessidade de se caracterizar a atividade de tráfico que justifique a invocação do art. 33”, assevera o Instituto Igarapé (2015).

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3.2 Local e condições da ação

No conjunto dos critérios apresentados pelo art. 28 § 2º, o local e as condições em que se desenvolveu a ação também são considerados para que se possa classificar o tipo penal (tráfico ou consumo próprio).

Para Vilar Lins (2007), é bastante frágil considerar como critério o local e a condição em que se desenvolveu a ação de apreensão da substância ilegal. Uma vez considerados, demandam bastante atenção, pois traficantes e usuários (em busca de droga) costumam frequentar as zonas típicas de traficância. A autora assim aduz:

O local e a condição em que ocorreu a apreensão formarão o cenário e o enredo em que estava inserido o usuário no momento em que foi flagrado. A doutrina fala, por exemplo, em locais em que, normalmente, são vendidas drogas, zona típica de tráfico. É conveniente ressaltar, entretanto, que, se existem essas zonas é porque também existem os usuários que lá transitam; assim, a presença de indivíduos neste loco não é razão suficientemente para enquadrá-lo no tráfico. (VILAR LINS, 2007, p. 251).

É evidente que se existem locais de traficância é porque nesses mesmos espaços também circulam os compradores que, em número considerável, são os usuários.

Outrossim, acerca das consequências ainda mais negativas do contato com as comunidades dominadas pelo tráfico, Barroso (2015) aduz:

A forte repressão às drogas, a criminalizacão do consumo da maconha e a ausencia de critérios legais objetivos para diferenciar o usuário e o pequeno e o grande traficante tem produzido

consequencias mais negativas sobre as comunidades diretamente dominadas pelas organizacões criminosas e sobre a sociedade em geral, do que aquelas produzidas pela droga sobre os usuários. (BRASIL, 2015).

Destarte, o que muitas vezes se constata é que a tentativa de evitar áreas de risco, dominadas pelo tráfico, faz com que o usuário realize compras de maiores quantidades da droga para armazenar em sua casa, garantido assim o consumo por um maior período de tempo.

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Sobre esse aspecto Gomes (2008) recorda:

Não faz muito tempo que um ator de televisão famoso foi surpreendido comprando uma quantidade razoável de drogas. Aparentemente, pela quantidade, seria para o tráfico. Depois se comprovou ex abundantia sua qualidade de usuário. Como se vê, tudo depende do caso concreto, da pessoa concreta, da droga que foi apreendida, quantidade, etc. (GOMES, 2008, p. 164).

Portanto, também é crível a hipótese de se considerar a compra e o armazenamento de quantidade considerável de droga para consumo próprio, para, então, se evitar visitas

frequentes às áreas de traficância. Portanto, novamente, a necessidade de se analisar as particularidades no caso concreto.

Por outro lado, Lima (2017) ressalta:

Se o agente for surpreendido em determinada localidade conhecida como ponto de distribuição de drogas, trazendo consigo a substância entorpecente acondicionada em pequenas embalagens para venda, sendo com ele apreendido grande numerário em dinheiro, provavelmente recebido dos usuários, demonstrando-se, ademais, uma constante movimentação de pessoas para o consumo e aquisição de drogas, há de se concluir que se trata de tráfico de drogas. (LIMA, 2017, p. 978).

Em suma, muito embora o local e as condições da ação possam a prima facie parecer um critério mais objetivo, certo é que também se constitui como mais um elemento que só pode ser valorado numa análise conjunta e pormenorizada do caso concreto.

3.3 Circunstâncias sociais e pessoais

As características pessoais e sociais podem ser esboçadas a partir de inúmeras constatações, como o fato do agente possuir emprego, profissão ou trabalho lícito; que relações interpessoais mantém; se os bens materiais que possui são condizentes com os seus rendimentos; dentre outras características, a exemplo de hábitos e lugares que costuma frequentar.

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Nesse diapasão Pedrinha (apud NASCIMENTO, 2011) explica:

As características pessoais e sociais do agente, segundo a lei, também devem ser analisadas pelas autoridades. Dessa maneira, a atividade que o sujeito desenvolve, seu processo histórico, como se dão suas relações, qual sua fonte de renda e patrimônio são características que, em conjunto, formam o que Luiz Flávio Gomes (2006) denominou de modus vivendi do agente. (PEDRINHA apud NASCIMENTO, 2011).

Entretanto, o ponto em comento é criticado pela doutrina, pois é nesse espaço que se dá lugar para a seletividade, ou seja, há grande chance de que pessoas marginalizadas pela sociedade sejam punidas indevidamente pelo sistema penal. Nesse sentido Vilar Lins (2007) expõe a sua crítica:

A investigação desse ponto deflagra uma série de preocupações quanto à sua aplicabilidade e efetividade, em razão da quase iminente e cristalina possibilidade de se acabar atingindo apenas aqueles indivíduos pertencentes a população carente, residentes em favelas e subúrbios. (VILAR LINS, 2007, p. 251).

Ainda, em relação às circunstâncias pessoais, Lima (2017) destaca que o fato de ser o agente considerado usuário ou dependente de drogas, por si só, não constitui motivo relevante para a descaracterização do tráfico de entorpecentes; “mormente quando comprovada a sua condição de traficante e a considerável quantidade com ele apreendida”, assevera. (LIMA, 2017, p. 979).

3.4 Conduta e antecedentes do agente

Há doutrinadores que consideram indevido o emprego da conduta e dos antecedentes do agente como critérios para aferição do consumo próprio ou do tráfico de drogas, sob o argumento de que se estaria aplicando o direito penal do autor.

Esse é o entendimento de Arruda (2007) ao lecionar que tais critérios precisam ser aplicados com especial atenção, pois se corre o risco de se fazer uma apreciação

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subjetiva do agente, ao invés de se analisar o fato criminoso em si.

Não nos parece adequado que sejam levados em consideração os ‘antecedentes’ ou a ‘conduta social’ do agente como elementos idôneos à verificação da ocorrência de um ou outro delito. Tomando-se essa orientação ao pé da letra serão condenados e presos por tráfico os ‘suspeitos de sempre’, não sendo lícito partir de uma posição pré-concebida de que havendo praticado um delito de tráfico, aquele agente forçosamente voltará a cometê-lo, ou mesmo que tenha mais propensão ao ilícito do que qualquer outra pessoa. Cria-se assim uma rotulação perigosa dos indivíduos.

(ARRUDA, 2007, p. 31).

Sob o olhar de Lima (2017) não deve haver impedimento na utilização dos antecedentes como mais um critério indicativo de possível traficância. Assim afirma o autor:

Se é verdade que os antecedentes do agente, isoladamente

considerados, não podem ser utilizados para se aferir se se trata de tráfico ou de porte de drogas para consumo pessoal, também não é menos verdade que, em conjunto com os demais critérios apontados pelo art. 28 § 2º, não há óbice à utilização dos antecedentes como mais um critério indicativo de possível traficância. (LIMA, 2017, p. 979).

Por fim, a conduta e os antecedente do agente são critérios subjetivos que devem ser considerados a partir de uma situação concreta. Também estes, desde que analisados conjuntamente com os demais critérios para aferição do consumo pessoal, podem, em suas devidas medidas, ponderar na decisão do magistrado quando do enquadramento típico.

CONCLUSÃO

A percepção sobre os pontos levantados neste trabalho acerca da singularização entre usuário de droga e traficante, conforme a Lei 11.343/06, é de que dispomos de uma legislação ainda frágil, devido a sua subjetividade, ao buscar diferenciar tais delitos no seu art. 28 § 2º.

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Muito embora o referido artigo de lei permita ao juiz uma maior flexibilização para classificar o delito a partir de uma realidade concreta, a verdade é que uma análise equivocada (ou obscura) de algum de seus aspectos pode levar o autor do fato à duras consequências impostas pelo sistema penal. Nesse caso, a diferença é abismal: num extremo se tem a despenalização da infração (para o usuário) enquanto no outro se tem o recolhimento ao cárcere (para o traficante), este último com pena mínima cominada de 5 anos.

Dada a subjetividade dos critérios – que podem ser interpretados pelos magistrados a partir de diferentes olhares da doutrina e da jurisprudência – e da forma particularizada como são concebidos pelas pessoas e pela sociedade (considerando culturas e ideologias) – pode vir a ocorrer uma maior penalização da população mais marginalizada, que por uma questão de condição de vida, se encontra num plano mais desfavorável em relação aos próprios critérios apontados na Lei.

Desse modo, a inadequação da leitura dos critérios diferenciadores (seja por que motivo for) entre o usuário de drogas e o traficante, ou ainda, a omissão de parte(s) desses critérios, ou então, o modo como serão empregados ao caso concreto poderá resultar em latente injustiça.

Assim, o presente artigo, não tendo a pretensão de ser um estudo conclusivo sobre o tema, buscou trazer a baila a questão da distinção entre o usuário e o traficante de drogas, apontando que a lei 11.343/06, apesar de inovadora em muitos aspectos, manteve o celeuma nos critérios para tipificação penal do art. 28 (e consequentemente do art. 33). Por sua vez, a forma como se concebe e se emprega os critérios diferenciadores (presentes no art. 28, § 2º) pode ocasionar riscos na aplicação da justiça.

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EM BUSCA DAS GARANTIAS DA MULHER

ENCARCERADA

Gabriela Gomes Soncini

Jhonatan Morais Barbosa

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de discutir as condições em que

são submetidas as mulheres nas prisões, por meio de uma perspectiva de gênero. Retomar o longo caminho enfrentado pelas mulheres, desde as primeiras legislações criadas para atender tais demandas, faz-se necessário; por meio de levantamento de dados e leituras acerca do tema. Nota-se com isso, inúmeras lacunas entre lei e execução, a dominação masculina e a invisibilidade que resta a elas. Desta forma busca-se descontruir o mito da igualdade no direito penal, apontando para o fator da construção das leis – que na construção social é sobretudo elaborada por homens, para homens e sobre homens, subrogando mulheres a condições de vulnerabilidade no ambiente carcerário, em especial. Objetiva-se demonstrar, por fim, que o sistema penal atual é punitivo e reprodutor de uma construção patriarcal e preconceituosa, no qual as mulheres enquanto criminosas nunca serão vistas com bons olhos- por descumprirem o padrão do “dever ser”. A compreensão de tais estruturas, faz parte do entendimento sobre o cárcere feminino brasileiro e esclarece o enraizamento das

desigualdades entre homens e mulheres através da falta de cuidado com as diferenças de gênero, produzidas historicamente.

Palavras-Chave: Mulheres; Prisão; Gênero.

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INTRODUÇÃO

Nos últimos anos estamos presenciando uma avalanche de espetáculos dantescos no sistema carcerário brasileiro, e neste enredo genocida em que vivemos há uma discussão que merece um espaço maior e precisa muito ser colocada em destaque, são vozes que sustentam os pilares da democracia, do Estado de Direito e das garantias ainda não perdidas, e que lutam cada vez mais por acontecimentos dignos na realidade prisional: A condição da mulher encarcerada no Brasil. Há de se considerar que o cárcere é um ambiente que, por si só, favorece a violação de direitos. Não estamos falando apenas da perda da liberdade, mas de todo um enredo e uma condição de vulnerabilidade que torna a prisão um espaço de despersonificação e rotulação constante. O indivíduo que ali está, perde a cada dia a capacidade de autodeterminação. Este processo revela a prisão como um espaço de “mutilação do eu” de etiquetamento social – situação na qual a pessoa se afasta do próprio conceito de identidade.

Ocorre, que as mulheres, enquanto seres docilizados e estigmatizados por toda uma sociedade, carrega consigo uma maior incidência de objetivos moralizadores; fato que as tornam alvo de maiores preconceitos e desprezo pelo Estado. Perceber a mulher no sistema penitenciário é criar um paradoxo social, pois à ela sempre coube o cuidado com o lar, a proteção da família, a fragilidade, a doçura, como se apenas lhe pertencesse os ideais moralistas e a boa conduta. É inadmissível que um ser tão oprimido e submisso, diante de uma sociedade patriarcal, venha a descumprir regras. (LIMA, 2006)

O histórico de evolução das formas punitivas, em uma visão ocidental, tendo elas cunho estatal ou privado, sempre foi preordenado e estudado a partir da lógica da transgressão masculina. Considerando que a socialização feminina apresenta caráter cerceador e docilizador, as transgressões às normas legais cometidas por mulheres representam número inexpressivo em

relação às cometidas pela parcela masculina.

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As mulheres já chegaram a ser inimputáveis pelo simples fato de sua condição feminina, e aquelas que violavam as leis eram enviadas para as casas de correção da igreja católica e todo encargo punitivista era aplicado pela própria igreja. Foi só a partir do século XX, através de um grande avanço da atuação feminina na sociedade como um todo e principalmente nas condutas delituosas, que o estado começou a intervir na execução da pena das mulheres desviantes. Desde as casas de correções da igreja católica até os dias de hoje as mulheres sempre tiveram um NÃO favorecimento quanto ao cumprimento das penas a elas submetidas. O Brasil mesmo sendo partícipe de diversos tratados internacionais que versam sobre temas de direitos humanos e direitos das mulheres, permanecem inertes diante de tantas violências relacionadas às mulheres em condição de cárcere.

A prisão configura um ambiente opressor e no que tange às mulheres acaba por agravar ainda mais esta condição. São tamanhas as violações decorrentes da falta de estrutura para atender as mínimas necessidades de gênero. Neste diapasão podemos citar quanto o instituto da visita íntima, as necessidades ligadas à gestação e a maternidade e as condições de higiene e salubridade a elas impostas.

É importante trazer a baila que o sistema carcerário discrimina a condição das presas enquanto mulheres e a vulnerabilidade em que por vezes se encontram, diante da necessidade que a natureza feminina apresenta. Consoante informações do Departamento Penitenciário Nacional,

existem em torno de 60 presídios no país destinados somente à detenção de mulheres. Nos demais, que englobam a maioria, não há um espaço adequado para amparo e tratamento voltado para assegurar a dignidade contida em nossa Constituição Federal e nem tampouco para pensar em uma futura ressocialização. As políticas públicas e penitenciárias foram pensadas pelos homens e para os homens. As mulheres são, portanto, uma parcela da

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população carcerária situada na invisibilidade, suas necessidades por muitas vezes não são atendidas, sua dignidade é constantemente violada. O poder público oferece a elas, um pacote padrão, igualando suas realidades com a dos homens, as colocando em situações precárias.

A mulher então, diante sua condição de submissão, opressão e estigma que a acompanha por séculos, é apresentada a um tratamento prisional distinto ao dos homens – que também são submetidos às mazelas do

sistema carcerário e a ausência de vontade governamental no trato dos problemas penitenciários, mas se faz pertinente apontar as peculiaridades e necessidades condizentes com seu biológico. Cada fato ou delinquente possui peculiaridades dependentes de um tratamento diferenciado. (CASTRO, 2010)

Diante do descumprimento de regras constitucionais na prática prisional brasileira, dele decorre a discriminação e opressão da mulher encarcerada, porquanto, conforme explica Castilho (2007), citando GARCIA:

(...) a prisão para a mulher é um espaço discriminador e opressivo, que se expressa na aberta desigualdade do tratamento que recebe, no sentido diferente que a prisão tem para ela, nas consequências para sua família, na forma como o Judiciário reage em face do desvio feminino e na concepção que a sociedade atribui ao desvio.

1. A SITUAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO FEMININO BRASILEIRO

De fato, o sistema carcerário foi construído sob a lógica masculina, porém nos últimos anos houve um aumento muito grande na população carcerária feminina, de acordo com a INFOPEN- MULHERES esse aumento foi de “567,4% de 2000 a 2014”, chegando ao número de 37.380 mulheres encarceradas dando ao Brasil o 5º lugar no Ranking

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Mundial1. Em geral as mulheres são jovens, possuem filhos, são responsáveis pelo sustento familiar, apresentam um índice baixo de escolaridade e exercem até o momento da prisão atividades informais, na sua grande maioria envolvida com o tráfico de drogas. Importante salientar que a criminalidade combatida pelo Estado possui fundos sociais. Não é por nada que os crimes que representam a maior parcela da população carcerária no Brasil sejam o de tráfico de drogas, furto ou roubo.

As condições precárias a que são submetidas refletem diretamente na má-gestão e na corrupção presentes dentro do sistema penitenciário como consequência de políticas estatais. As apenadas que ali estão dispostas, ingressam com um quadro bastante delicado em sua maioria. Algumas, já grávidas, adentram a penitenciária em estados lamentáveis de saúde - advindas de uma classe baixa e periférica, em sua maioria- necessitadas de um tratamento médico, muitas vezes já possuem doenças sexualmente transmissíveis – DSTs, outras tantas nunca realizaram um pré-natal, ou são dependentes químicas. Quando iniciam suas vidas no cárcere, encontram dificuldades em receber atendimento médico preventivo, e enfrentam questões relacionadas ao parto, em inúmeros casos dando a luz sem qualquer atendimento e estrutura, dentro das celas; pois os policiais e carcereiros preferem se abster.

Nota-se como a mulher é vista socialmente, ainda que dentro de um estabelecimento a margem e esquecido pelos cidadãos “de bem”, que não enxergam essa estrutura como

um instituto que também faz parte da sociedade e necessita de investimentos.

A partir dessa previsão, podemos problematizar questões que consubstanciam o enraizamento do estigma social direcionado à mulher e adjetivos que não poderiam

1 Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça - Relatório Infopen Mulheres. 2014.

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“escapar” de suas reputações, desta forma traduzindo e reforçando as desigualdades de gênero. Um exemplo de moralidade imposta a mulher será caracterizada pelo instituto da visita íntima nos estabelecimentos prisionais - enquanto para os homens essa modalidade é permitida desde 1984 pela “Lei de Execuções Penais art. 41, X”2 para as mulheres foi implementada apenas em 1999 e regulamenta pelo Programa de Visita Íntima para Mulheres Presas, através da resolução 1/99 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Mesmo assim o legislador ainda encara esse feito nos estabelecimentos prisionais como uma regalia e não um direito,

Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, a porcentagem de mulheres que recebem a visita íntima é baixíssima – apenas 9,68% das encarceradas. Um percentual significativo

afirma não receber por ser muito difícil de conseguir autorização dos estabelecimentos prisionais. Essa obstrução da visita mostra, senão, um abuso de poder, sob o pálio de um protecionismo discriminatório notadamente sexista.

Em grande maioria o discurso produzido pelos diretores dos estabelecimentos prisionais para explicar o motivo da diferença entre homens e mulheres no tocante a visita íntima, é de que as mulheres acabam engravidando e tem necessidades sexuais diferentes dos homens, tendo como sustentáculos argumentos de que a maioria das mulheres encarceradas não tem parceiros. Em razão disso, a realidade das mulheres jogadas ao ineficiente sistema prisional faz com que elas sejam criminalizadas não só por

sua conduta ilícita como também estigmatizadas pela inadequação ao comportamento esperado. Conveniente apontar que, as maiorias das encarceradas sofrem um processo de desestruturação diário.

2 BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984.

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Muitas deixaram seus filhos com familiares, e outras nem isso possuem. O abandono em que elas se encontram é notório, seja pela falta dos filhos, seja pela ausência de seus companheiros, seja por não receberem ninguém no horário de visitas.

Nesse sentido, nosso papel não é o de concordar, julgar ou estabelecer discordâncias com o sistema, bem como com as condutas das presidiárias. A compreensão de que estamos inseridos num sistema social que estabelece

normas, regras e modelos de comportamentos como corretos e compatíveis com o ordenamento atual, faz com que possamos entender somente – e não julgar – os reais motivos de tamanhas leis e sanções, a fim de manter a harmonia e a ordem social. (ROUSSEAU, 1986).

Também presenciamos uma parcela de juízes, operadores do direito e até mesmo o legislador perpetuar e colonizar a penalidade de prisão como sendo a solução dos vários problemas, mantendo todo sistema prisional como um mecanismo de controle de classe, raça e gênero, onde só se pune os mais fracos.

2. NECESSIDADES E CONDIÇÕES NO SISTEMA PRISIONAL FEMININO

Com relação às necessidades ligadas à gestação e maternidade pode-se constatar que também o Estado é negligente perante as mulheres presas. De acordo com o referido §2º do art. 83 da Lei de Execuções Penais diz “Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”, porém a realidade no cárcere brasileiro é outra. Segundo relatório da Infopen 2014 apenas 34% das unidades femininas no Brasil oferecem celas ou dormitórios adequados e condicionados para mulheres gestantes, em unidades mistas o número cai para 6%. Segundo a

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Organização Mundial de Saúde e o Mistério da Saúde a amamentação deve ser ofertada no mínimo durante os seis primeiros meses de gestação, para que ela possa ter garantida importantes fontes de nutrientes que são fundamentais para seu desenvolvimento.

As condições e a falta mínima de garantias fundamentais assolam o cenário carcerário feminino, e perante este desrespeitoso acontecimento podemos citar o caso da Elisângela Pereira da Silva, que foi algemada pelo

pé e pela mão após o parto na Santa Casa, em São Paulo no início de 2012. Em outubro de 2015 na Penitenciária feminina Talavera Bruce no Rio de Janeiro foi a vez de Bárbara Oliveira de Souza passar momentos de condições precárias, ferindo um dos fundamentais princípios constitucionais, que é a dignidade da pessoa humana, em estágio avançado de parto, pedindo por ajuda um bom tempo acabou dando a luz sozinha na solitária - que é um local destinado ao isolamento, muito comum nos estabelecimentos prisionais, só após algum tempo depois de ter seu bebê sozinha na cela é que foi conduzida a um hospital, porém quando retornou foi direcionada novamente ao isolamento, e seu bebê a um abrigo municipal. São inúmeros os episódios de indignidade que ofendem as garantias mínimas das mulheres mães no cárcere brasileiro, as mudanças deveriam ser reclamadas com mais compromisso e responsabilidade perante o Estado de Direito, porém a verdade é que poucos são aqueles que vivem em um chamado Estado de Direito Constitucional, na

concepção do mestre Juarez Cirino dos Santos, o único direito estabelecido para aqueles que caíram por uma mazela da vida nas entranhas do sistema prisional é o Estado de Polícia, ou Estado de Exceção. O que Bárbara e Elisângela passaram provoca uma sensação de total ruptura com o mínimo essencial que torna a vida humana possível em sociedade, a violência contra mulheres mães no cárcere não é algo novo, são enraizadas nas desigualdades de gêneros, fundadas no machismo patriarcal que criaram um

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sistema de sujeição subordinação e dominação da mulher, capaz de considerar natural situações como esta. Nesse arrolar de desespero que é o cárcere, encontramos diversas identidades que estão vivenciando a mesma experiência, umas estão ali pela primeira vez, outras acostumadas com vida delituosa, porém como ressalta Espinoza

As interações no cárcere, mesmo feminino, se reproduzem pela regra do medo, ou seja, a doutrina de prêmios e castigos é reconstruída na sua versão mais perversa, visto que não se apela ao estímulo, mas à coerção, para produzir alterações na conduta

das pessoas. A disciplina converte-se então em mecanismo justificado para o incremento do sofrimento3.

Outra problemática é que há uma deficiência por parte do Estado em disponibilizar nos sistemas prisionais materiais de higiene pessoais essenciais às mulheres, como absorventes íntimos e shampoo, poucas são as presas que são atendidas por ginecologista e outro profissional da saúde, ficando a mercê nessas condições em um cenário desolador, e nessa lógica Nana Queiroz diz

É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos que lembrar que alguns desses presos, sim, Menstruam4.

As mulheres e suas necessidades são literalmente esquecidas pelos próprios sistemas carcerários, suas especificidades de gênero são ignoradas e o estado esquece-se de que elas precisam de absorventes, e até mesmo papel

higiênico. Nos presídios mais precários chagam a utilizar miolo de pão velho amassando, para que fique no formato de um O.B e colocam dentro da vagina para conter o fluxo menstrual. Situações como esta são comuns pelo Brasil a fora, muitos dos itens de higiene pessoal é de

3 ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder

punitivo. IBCCRIM: São Paulo, 2004. 4 QUEIROZ, Nana. Presas que menstruam. Editora Record, 2015.

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responsabilidade da própria detenta, ou seja, se os familiares a levam. Mesmo o Brasil participando de tratados e convenções internacionais não se pode esperar muito, pois toda a pretensão vinda em relação aos direitos humanos tende ao fracasso, a preocupação de sistematização e efetivação dos direitos fundamentais ou então chamados por Ferrajoli “Lei dos mais fracos” é de responsabilidade do Estado, e esse nada faz.

Nessa miséria estão nossas mulheres, merecedoras de

um mínimo existencial de dignidade, com isso João Marcos Buch diz:

“Num céu de tempestades, os raios das prisões talvez sejam os que mais racham e ferem nosso país. A mulher, nessas tormentas, é a que mais sofre. Que então ao menos se permita a ela que continue sendo mulher, linda mulher, no sentido mais profundo e histórico que isso significa. É assim que se resgata a dignidade humana, é assim que se resgata a dignidade de toda uma nação”5.

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A NULIDADE DO ENUNCIADO N.º 165 DO FONAJE

(FÓRUM NACIONAL DE JUIZADOS ESPECIAIS) A PARTIR DA TEORIA GERAL DO DIREITO E SUA

INEFICIÊNCIA PRÁTICA

Guilherme Christen Möller

RESUMO

Com o objetivo investigar a nulidade existente no Enunciado n.º 165 do FONAJE, bem como sua ineficiência prática, por meio de um estudo misto (utilização de método dedutivo e indutivo), abordar-se-á neste artigo os principais pontos acerca da temática, para tanto, iniciando-se tecendo considerações sobre o Enunciado n.º 165 do FONAJE a partir da Lei n.º 9.099/95 e do Código de Processo Civil de 2015, seguindo-se para a análise de um dos objetos deste estudo, a nulidade do Enunciado n.º 165 do FONAJE a partir da Teoria Geral do Direito, e, ao fim, fechando esta digressão com a observação acerca da ineficácia da celeridade processual na utilização de prazos corridos, fundamento do enunciado objeto deste estudo a partir de dados práticos. Nessa perspectiva, conclui-se que, com base na Teoria Geral do Direito, o Enunciado n.º 165 do FONAJE é nulo, além de ser ineficiente na prática, devendo-se o mesmo ser cancelado o quanto antes a fim de que não mais induza em erro os atuantes do Direito com a sua utilização.

Palavras-chave: Código de Processo Civil de 2015; Juizado Especial; FONAJE, Enunciado n.º 165 do FONAJE; Prazo.

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INTRODUÇÃO

Em março do ano de 2015 aprova-se a Lei Ordinária n.º 13.105/2015, o Código de Processo Civil de 2015. Essa codificação é marcada por romper com muitas das técnicas instrumentais que vinham sendo utilizadas no período em que vigorou o Código Buzaid (Código de Processo Civil de 1973, Lei n.º 5.869/73).

Dentre tantas modificações e novidades, encontra-se a

disposição relativa ao computo dos prazos dos atos/fatos processuais, os quais passam a ser contados em dias úteis, suspendendo-se a contagem nos finais de semana, feriados e recesso forense (art. 219 do CPC).

Essa regra, no entanto, aplica-se em todos os procedimentos, seja comum ou especial, enquanto não houver disposição, especial, que o contrarie, isso inclusive nos procedimentos especiais previstos em leis esparsas, ocasião em que se aplica a disposição especial, afinal, a disposição especial sobrepõe à disposição geral, seguindo-se o critério da especialidade.

Nesse cenário, surge o Fórum Nacional de Juizados Especiais e elabora um enunciado, qual seja Enunciado n.º 165 do FONAJE, com base no princípio da celeridade processual (art. 2º da Lei dos Juizados Especiais), sustentando que nos processos que tramitarem pelo procedimento do juizado especial, serão os prazos computados de forma continua, ou seja, similar ao Código

de Processo Civil de 1973.

A posição adotada pelo FONAJE estaria correta se a Lei n.º 9.099/95 apresentasse norma-regra que assim dispunha, o que em momento algum é possível observar no corpo dessa lei.

Desse modo, a fim de zelar por uma “falsa” celeridade processual, utiliza-se um enunciado para sobrepor uma disposição de lei ordinária, rejeitando-se a hierarquia de

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normas e induzindo as Unidades Jurisdicionais, que detenham competência da Lei dos Juizados Especiais, a seguir a contagem dos prazos processuais de forma continua.

Ver-se-á neste estudo que não bastasse uma violação à Teoria Geral do Direito, o Enunciado n.º 165 do FONAJE nada mais representa do que uma “falsa”, como já pontuado, celeridade processual, afinal, pelos dados colhidos e que aqui serão apresentados, não há prejuízo a

celeridade processual tutelada na utilização de prazos em dias úteis em vez de prazos corridos.

1. PARA ENTENDER O ENUNCIADO N.º 165 DO FONAJE: BREVÍSSIMA ANÁLISE DA LEI DOS

JUIZADOS ESPECIAIS E DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

O presente capítulo tem por mera finalidade apresentar solidas bases para entender o problema que será investigado no presente estudo, de modo que se abordará, incialmente, a Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/95) – com enfoque na parte cível da lei –, passando-se para a análise do Código de Processo Civil – nesse momento focando-se exclusivamente na nova disposição acerca da forma de contagem de prazo processuais –, e, ao fim deste introito, analisando o Enunciado n.º 165 do FONAJE com base na Lei n.º 9.099/95 e no Código de Processo Civil de 2015.

A Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/951) surge como sucedâneo da revogada Lei dos Juizados Especiais de

1 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Juizados

Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.

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Pequenas Causas (Lei n.º 7.244/842), inclusive, essa conclusão é acessível na proporção em que se observar a revogação operada pela primeira lei sobre a segunda, isso na perspectiva da disposição do art. 97, in fine, da Lei n.º 9.099/953.

Inspirada, no início da década de oitenta do século passado, na iniciativa individual de juízes de direito, guiados pela small clains courts do sistema jurídico norte-americano4, formando os denominados “conselhos de

conciliação e arbitramento”, é caracterizado por ser uma técnica processual diferenciada, na proporção em que é vista como um procedimento especial, considerado que sua natureza especial decorre do fator que é oriundo de uma lei especial, o contrário do que ocorre no Código de Processo Civil, afinal, o último, mesmo que uma lei de mesma hierarquia – lei ordinária – (art. 59 da Constituição Federal5),

2 BRASIL. Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. Juizado

Especial de Pequenas Causas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-

1988/L7244.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. 3 Art. 97. Ficam revogadas a Lei nº 4.611, de 2 de abril de 1965 e

a Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1984. BRASIL. Lei nº 9.099,

de 26 de setembro de 1995. Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso

em: 1 out. 2017. 4 VIDAL, Jane Maria Köhler. Origem do Juizado Especial de

Pequenas Causas e seu estágio atual. In: Revista dos Juizados

de Pequenas Causas. N. 1. Abr/1991. DECOMAIN, Pedro Roberto. Juizados especiais da fazenda pública (Lei n.º

12.153/09). In: Revista Dialética de Direito Processual (RDDP).

N. 84. Mar/2010. 5 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.

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trata-se de uma lei geral, responsável por regular o campo das relações processuais civis brasileiras.6

Numa perspectiva instrumental, sua diferenciação em relação ao Código de Processo Civil está no fato de que se respalda em critérios como oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, com o objetivo primordial – e sempre que assim for possível – a obtenção de um resultado processual por vias de autocomposição (art. 2º da Lei n.º 9.099/95)7.

Em razão da técnica processual diferenciada, o procedimento previsto na Lei n.º 9.099/1995, interpretado conjuntamente com as disposição especificas da Lei n.º 10.259/2001 e da Lei n.º 12.153/2009, tem natureza especial. O direito posto em causa não assume qualquer relevo nessa definição. O procedimento nos juizados especiais caracteriza-se pela oralidade em grau máximo [...] – ou procedimento por audiências – e pela influência dos princípios diretores – simplicidade, informalidade, economia e celeridade objetivando, “sempre que possível a conciliação ou a transação” (art. 2.º da Lei n.º 9.099/1995. 8

Diferentemente do Código de Processo Civil de 2015 (Lei n.º 13.105/2015), em que se consagra como norma fundamental do processo (art. 4º do CPC) a garantia fundamental constitucional (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF) de razoável duração do processo, a Lei dos Juizados Especiais impõe que a relação processual que esteja sob guarda desse procedimento especial deva ser célere (art. 2º da Lei n.º 9.099/95), de modo a entender a necessidade do processo que tramita por esse rito ter de tramitar e ser julgado o mais rápido possível.

6 ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. 2ª. ed. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2016, v. I. 7 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Juizados

Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso

em: 1 out. 2017. 8 ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. 2ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, v. I, p. 114.

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O direito de acessar a ordem jurídica justa exige uma prestação

qualificada que, dentre outros atributos, há de ser concedida em um prazo razoável. Este o teor do art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, por meio da Emenda Constitucional 45 de 2004: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. O dispositivo constitucional em comento explicita o direito fundamental a um processo com duração razoável, nos âmbitos judicial e administrativo, bem como os meios que garantam esta sua qualidade, de sorte a integrar o rol dos direitos fundamentais previstos em nossa Carca Constitucional. Considerando a inegável

morosidade na tramitação dos processos no Brasil, o legislador constitucional positivou a duração razoável do processo, mas sem definir qual seria o tempo de tramitação para que se verificasse o comando constitucional – e, por certo, não poderia ser de outra forma Tem-se, portanto, um conceito indeterminado que compete à doutrina tentar encontrar a maneira de (i) aferi-lo e (ii) efetivá-lo, caso a caso, sem que se possa, a priori, fixar um número como sendo aquele o “prazo razoável”. Portanto, ainda que se considerem os critérios acima mencionados e as peculiaridades de cada causa, não é possível, de antemão, afirmar qual seria o prazo razoável de duração de determinado processo. Impõe-se, pois, nos dias atuais, a atualização e revisitação do próprio princípio do acesso à justiça, princípio este que hoje já não mais se exaure na possibilidade do exercício do direito de ação, mas abarca também, e principalmente, o direito conferido ao jurisdicionado à obtenção de uma tutela

adequada à natureza do direito material controvertido e que venha a conferir ao jurisdicionado, num prazo razoável e observado o devido processo legal, exatamente aquilo a que tem direito de obter9.

Na mesma proporção em que se encontra indeterminabilidade para definir o lapso temporal que corresponderia à razoável duração do processo, encontra-se indeterminabilidade para definir o lapso temporal correspondente à celeridade processual. Pensa-se, no entanto, que o lapso temporal dessa celeridade deva ser – no

9 CARACIOLA, Andrea Boari. Duração razoável do processo. In: Teoria Geral do Processo contemporâneo. 1ª. ed. ASSIS, Carlos

Augusto de; CARACIOLA, Andrea Boari; DELLORE, Luiz;

FERNANDES, Luís Eduardo Simardi; SOUZA, André Pagani, p. 80-82.

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mínimo – infimamente considerável em relação ao lapso da duração razoável.

Não bastasse divergências existentes entre essas leis, há, porém, determinadas ocasiões em que ocorrerão omissões no procedimento da Lei dos Juizados Especiais. Frente à essa omissão legislativa, socorre-se ao Código de Processo Civil para fins de suprir a vista lacuna (art. 1.046, § 2º, do CPC). Numa perspectiva comparativa entre disposições existentes em cada uma dessas leis, vislumbra-

se a situação aqui exposta na questão da contagem dos prazos dos atos/fatos do processo.

É, prazo, “a distância de tempo que medeia entre dois atos ou fatos”10 do processo, com a finalidade de fixar quantidade razoável de tempo para a realização desses atos do processo. Sua existência é necessária para que o processo não seja eterno, afinal, deve iniciar (dies a quo) e finalizar (dies ad quem).11

Na legislação processual civil anterior, os prazos eram regulados a partir do art. 177 e obedeciam ao princípio da continuidade (art. 178 do CPC/73)12, ou seja, vez que iniciada a contagem do prazo correspondente ao ato/fato processual, não seria ela suspensa ou interrompida sem relevante motivo13.

10 GONÇALVES, Marcus Vinicíus Rios. Novo Curso de Direito

Processual Civil. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 302. 11 GONÇALVES, Marcus Vinicíus Rios. Novo Curso de Direito

Processual Civil. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 302. 12 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm. Acesso

em: 1 out. 2017. 13 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JÚNIOR, Nelson. Código

de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 13ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 537.

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Essa metodologia não se manteve no Código de Processo Civil de 2015, afinal, a proposta para essa “nova” codificação seria a de tratar a “contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz” computando-se “somente os dias úteis” (art. 219 do CPC)14, representando, desse modo, duas consideráveis modificações: 1) Computo em dias úteis; 2) Suspensão dos prazos em feriados, finais de semanas e recesso forense.15 No Código de Processo Civil de 2015, as disposições relativas aos prazos processuais foram regulados na seção I, capítulo III, do título I, do livro IV, a

partir do seu art. 218.16

Diferentemente do CPC/1973, que estabelece a continuidade dos prazos processuais sem levam em consideração a sua interrupção em razão de feriados (art. 178 do CPC/1973), a nova lei processual é expressa ao estabelecer que na contagem dos prazos legais ou judiciais computar-se-ão somente os dias úteis (art. 219). 17

Tal modificação não deve ser vista como algo irrisório, afinal, trata-se de algo significativamente democrático, na medida em que se atendeu as reivindicações da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), empregando o respeito pelo papel do advogado na proporção de lhe garantir descanso nos finais de semana, feriados e recesso forense, o que não

14 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 1 out. 2017. Art. 219. 15 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do

CPC: crítica e propostas. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, p. 94. 16 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de

Processo Civil. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 1 out. 2017. Art. 219. 17 DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. 19ª. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 435.

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acontecia outrora, pois havia a necessidade de tal profissional ficar à disposição de um eventual prazo.18

Sendo advogado militante no contencioso cível, não tenho como deixar de saudar efusivamente a novidade legislativa. Nem é preciso muita experiência forense para compreender que, com prazos em trâmite durante o final de semana, o advogado simplesmente não tem descanso. Basta imaginar o termo inicial de contestação numa ação cautelar numa quarta-feira como feriado na quinta e na sexta.19

Além disso, na seara dos prazos processuais, buscou-se a tentativa da uniformização, determinando um prazo padrão em dia, por conta da forma de sua contagem, para regular os atos/fatos processuais.20

Ocorre que a regra do art. 1.003, § 5º21 (unificação de prazos), do CPC, não se aplica a todos os prazos legais, tampouco faz alguma referência a eventual prazo decorrente da fixação pelo juiz (prazo judicial) ou convencional, mesmo

18 FERREIRA, Antonio Oneildo. A Advocacia sob uma perspectiva

temporal. In: O Novo CPC: As conquistas da Advocacia. COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado; FERREIRA, Antonio Oneildo;

LAMACHIA, Claudio Pacheco Prates; SOUZA NETO, Cláudio

Pereira; RIBEIRO, Cláudio Stábile. (coord). Brasília: OAB,

Conselho Federal, 2015, p. 97. 19 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo

Civil comentado. 1ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 348. 20 FERREIRA, Antonio Oneildo. A Advocacia sob uma perspectiva

temporal. In: O Novo CPC: As conquistas da Advocacia. COÊLHO,

Marcus Vinicius Furtado; FERREIRA, Antonio Oneildo;

LAMACHIA, Claudio Pacheco Prates; SOUZA NETO, Cláudio

Pereira; RIBEIRO, Cláudio Stábile. (coord). Brasília: OAB,

Conselho Federal, 2015, p. 93-94. 21 Art. 1.003, § 5º, do CPC: “Art. 1.003 [...] § 5º Excetuados os

embargos de declaração, o prazo para interpor os recursos e para

responder-lhes é de 15 (quinze) dias. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16

de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. Art. 219.

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que seguindo a linha do CPC de 1973 e se aplicando aos três casos.22

Em outras palavras, a proposta marcante – quiçá principal – acerca da forma de contagem de prazos a partir da vigência do CPC de 2015, em 18 de março de 2016, foi a de considerar apenas os dias que forem úteis daquele prazo, excluindo-se os finais de semana, feriados e recesso forense.

Assim, tecido essas considerações acerca da Lei n.º 9.099/95 e da Lei n.º 13.105/15, a inexistência de norma

regulamentadora sobre a contagem de prazos na Lei dos Juizados Especiais, faz recorrer-se à lei geral (art. 1.046, § 2º, do CPC)23, no caso o Código de Processo Civil de 2015, ocasionando-se na aplicação da contagem nos estritos moldes do art. 219 desse diploma ao procedimento especial da Lei n.º 9.099/95.

Dentre tantos pontos controvertidos, alguns deles ocupam posição central no debate. O tema aqui tratado é precisamente um deles: a nova sistemática de contagem de prazos processuais instituída pelo art. 219 do CPC/2015 e sua (in)aplicabilidade ao Sistema dos Juizados Especiais. A simples leitura das leis que disciplinam o Sistema dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995; Lei nº 10.259/2001; e Lei nº 12.153/2009) conduz a uma única e irrefutável conclusão: nenhuma delas traz qualquer dispositivo sobre a contagem dos prazos processuais. Pode até haver outras controvérsias, mas tal questão é incontestável.24

22 ALVIM, Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda; ASSIS, Araken de.

Comentários ao Código de Processo Civil. 3ª. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2014, p. 390. 23 “Permanecem em vigor as disposições especiais dos

procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código”. BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de

março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. 24 DIAS, Alisson de Souza. Os Juizados Especiais e o novo CPC:

A questão da contagem dos prazos. In: Portal Jurisprudência. Disponível em:

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Contudo, insurge, nesse, até então, “pacífico campo”, o Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE), manifestando-se, por intermédio de um enunciado, que inobstante a inexistência de regulamentação acerca da contagem de prazos na Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/95), a disposição contida no Código de Processo Civil deva ser deixada à limiar por conta da celeridade (art. 2º) que rege essa lei especial, ocasionando a utilização da contagem de forma continua, similarmente ao Código de Processo Civil de 1973, conforme dispõe o Enunciado n.º 165 do FONAJE: “Nos Juizados Especiais Cíveis, todos os prazos serão contados de forma contínua (XXXIX Encontro - Maceió-AL)”25, afinal, a utilização da contagem dos prazos em dias úteis seria prejudicial à celeridade processual tutelada por essa lei especial.

Ref.: Artigo 219 do Código de Processo Civil de 2015, que trata da contagem de prazos processuais em dias úteis. Os Magistrados integrantes da Diretoria e Comissões do FONAJE – Fórum Nacional de Juizados Especiais, reunidos ordinariamente, nas dependências do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis, em data de 04 de março de 2016, convictos de que as disposições do artigo 219 do Novo CPC, relativas à contagem de prazos processuais, não se aplicam ao Sistema de Juizados Especiais, deliberaram por elaborar e divulgar a presente Nota Técnica, já como indicativo de proposta de enunciado específico a ser apreciada por ocasião do XXXIX Encontro do FONAJE, a ter lugar em Maceió-AL, de 08 a 10 de junho de 2016, dada a flagrante incompatibilidade com os critérios informadores da Lei 9.099/1995.26

<http://portaljurisprudencia.com.br/2016/08/07/os-juizados-

especiais-e-o-novo-cpc-questao-da-contagem-dos-prazos/>.

Acesso em: 2 out. 2017. 25 BRASIL. FONAJE, Fórum Nacional de Juizados Especiais.

Enunciados. Disponível em:

<http://www.amb.com.br/fonaje/?p=32>. Acesso em: 2 out.

2017. 26 BRASIL. FONAJE, Fórum Nacional de Juizados Especiais. Nota técnica n.º 01/2016. Disponível em:

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Na linha da nota “técnica”, foi o entendimento do XXXIX Encontro do FONAJE, realizado em Maceió, Estado do Alagoas, nos dias 8 a 10 de junho do ano de 2016, resultando no enunciado protagonista deste trabalho, o Enunciado n.º 165 do FONAJE.

Os magistrados dos Juizados Especiais do Brasil, reunidos no XXXIX Encontro do Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE, nos dias 8, 9 e 10 de junho de 2016, em Maceió, capital do Estado de Alagoas, sob o tema ‘A Autonomia dos Juizados Especiais’, vêm a público para: 1. Reafirmar a necessidade de

preservação da autonomia e da independência do Sistema de Juizados Especiais em relação a institutos e a procedimentos incompatíveis com os critérios informadores definidos no art. 2º da Lei 9.099/95, notadamente os previstos no Novo Código de Processo Civil; e ressaltar que, por suas peculiaridades, os Juizados Especiais, órgãos constitucionais (art. 98, inc. I, da CF/88), são vocacionados a contribuir positiva e decisivamente para a redução dos índices de congestionamento processual da Justiça Brasileira; [...].27

Em outras palavras, descartou-se o Código de Processo Civil – quiçá a própria Teoria Geral do Direito, conforme será visto a frente – e criou-se um enunciado para sobrepor essa lei ordinária – frisa-se: enunciado sobrepondo disposição de lei ordinária –, pautando-se meramente em princípios, e não numa norma-regra prevista na Lei dos Juizados Especiais, o que implicando, fatidicamente, na aplicação desse enunciado nas varas competentes pelos Juizados Especiais Cíveis do Brasil, isso sem contar a ambiguidade que daí emanou, com Unidades Jurisdicionais aplicando o

<https://drive.google.com/file/d/0B0ZgIqiDzc7yeXNMakdwMGR

pQkk/view>. Acesso em: 2 out. 2017. 27 BRASIL. FONAJE, Fórum Nacional de Juizados Especiais. Carta

de Maceió – XXXIX FONAJE. Disponível em:

<http://www.amb.com.br/fonaje/?p=634>. Acesso em: 2 out. 2017.

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enunciado em questão, bem como outras tanto seguindo a disposição do Código de Processo Civil28.

2. A CONCLUSÃO DA LEITURA DO ENUNCIADO N.º 165 DO FONAJE A PARTIR DA TEORIA GERAL DO DIREITO: NULIDADE! (UM EXEMPLO DA

NECESSIDADE DA LEITURA INTERDISCIPLINAR DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL)

O sistema jurídico brasileiro adota uma hierarquização de normas, na proporção em que existe um sistema e, para a composição desse sistema, existem diversas camadas que

28 Até o advento da I Jornada de Direito Processual Civil, criou-se

um turbulento cenário no tema aqui proposto – quiçá

contraditório –, haja vista que, enquanto, de um lado, o Enunciado

n.º 165 do FONAJE sustenta que os prazos nos Juizados Especiais

devam ser contados de forma contínua, o Enunciado n.º 45 da

ENFAM sustenta que “a contagem dos prazos em dias úteis aplica-se ao sistema dos juizados especiais”, e, por fim, o Enunciado n.º

175 do FONAJEF dispõe que, “por falta de previsão legal específica

nas leis que tratam dos juizados especiais, aplica-se, nestes, a

previsão da contagem dos prazos em dias úteis (CPC/2015, art.

219)”. BRASIL. FONAJE, Fórum Nacional de Juizados Especiais. Enunciados. Disponível em:

<http://www.amb.com.br/fonaje/?p=32>. Acesso em: 2 out.

2017. BRASIL. ENFAM, Escola Nacional de Formação e

Aperfeiçoamento de Magistrados. Enunciados Aprovados.

Disponível em: <http://www.enfam.jus.br/wp-

content/uploads/2015/09/ENUNCIADOS-VERSÃO-DEFINITIVA-.pdf>. Acesso em: 2 out. 2017. BRASIL. FONAJEF,

Fórum Nacional de Juizados Especiais Federais. Enunciados.

Disponível em:

<http://www.ajufe.org/static/ajufe/arquivos/downloads/fonajef

-enunciados-compilados-i-ao-xiii-definitivo-1151152.pdf>. Acesso em: 2 out. 2017.

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o sustentarão, cada uma representando um nível normativo nessa hierarquia.29

Nessa perspectiva, há, no topo desse sistema, a Constituição Federal, norma suprema do sistema, seguindo-se para baixo, encontram-se, respectivamente, as Leis Complementares, Leis Ordinárias, Medidas Provisórias e leis delegadas, e, ao fim dessa cadeia – do qual se prefere a denominação de sistema normativo – estão as Resoluções, Portarias e Enunciados, compondo a base do sistema. Essa

é a denominada “pirâmide Kelseniana”30.

Ironicamente, uma “norma” – se é que a atribuição, à um enunciado, do termo “norma” estaria correto – de última camada, v.g., um Enunciado, v.g., oriundo do Fórum Nacional de Juizados Especiais, não poderia ir em sentido contrário à uma disposição contida em camadas superiores desse sistema, como por exemplo, um Enunciado contrariando disposição contida em uma determinada – v.g., Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015) – Lei Ordinária. A hierarquização dessas normas pressupõe subordinação entre elas, de modo que, uma “norma” da base não poderia contraria a norma do topo, tampouco ser utilizada como instrumento jurídico para alterar o sentido daquela norma. Caso isso ocorra, aplica-se o denominado “critério da hierarquia”, ou seja, em ocorrendo uma das hipóteses aqui destacadas, nessa perspectiva, das normas conflitantes, a de mais alto grau hierárquico prevalece, sendo a outra deixada à limiar.

A proposta desse sistema parte de Hans Kelsen31, sendo adotado e incorporado pelo sistema jurídico do Brasil

29 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2009. 30 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2009. 31 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

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no art. 59 da Constituição Federal de 198832, sendo que o fundamento de todo esse sistema hierárquico encontra escopo na chamada “norma hipotética fundamental”33.

Aplicando-se esse brevíssimo introito sobre hierarquia de normas ao caso em comento, veja-se que de um lado, há uma disposição contida em Lei Ordinária Federal, qual seja o art. 219 do Código de Processo Civil de 2015 (Lei Ordinária n.º 13.105/2015)34, arguindo que os prazos processuais serão computados em dias úteis, excluídos os finais de

semanas, feriados e recesso forense, e, por outro lado, há um Enunciado que dispõe em sentido contrário àquela norma, qual seja o Enunciado n.º 165 do FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais), arguindo, por sua vez, que os prazos processuais, na Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/1995)35, deverão ser contados de forma corrida, afinal, a redação do art. 219 do CPC vai em sentido contrário às propedêuticas dessa lei especial.

Destaca-se, no entanto, que o diálogo conflitante sobre a questão é esse, ou seja, um Enunciado (base da hierarquia das “normas”), contrariando disposição contida em Lei Ordinária (“terceira camada” da hierarquia das normas).

32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituica

ocompilado.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. 33 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2009. 34 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de

Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-

2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. 35 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Juizados

Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.

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O problema, porém, é que não há qualquer disposição sobre forma de contagem de prazos processuais na Lei dos Juizados Especiais, ou seja, dever-se-ia, pelo menos, seguir a orientação do Código de Processo Civil de 2015, vez que não há uma aplicação de um critério de especialidade (lex specialis derogat lex generalis) para desempate dessa questão.36

A discussão consiste puramente no fator de que uma norma, hierarquicamente inferior, é utilizada como

instrumento para contrariar o disposto em outra norma, no entanto, hierarquicamente superior àquela.

Nessa perspectiva, a conclusão que se tira não é outro do que a do Enunciado n.º 165 do FONAJE ser nulo, afinal, não poderia contraria o Código de Processo Civil, vez que está hierarquicamente subordinado à disposição contida no último.

Em entendendo que seria necessário essa adaptação – adaptação necessária, conforme será visto na sequência – deveria ser seguido as vias ordinárias do processo legislativo que dispõe a Constituição Federal37 e propor uma mudança no próprio texto da Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/95) para a adição de redação no sentido do enunciado.

Caso assim fosse, a discussão aqui seria meramente acerca da sua eficiência, afinal, não haveria uma nulidade a ser destacada, haja vista que, no conflito de normas entre leis de mesma hierarquia, no caso em comento o Código de

Processo Civil e a Lei dos Juizados Especiais, aplica-se a disposição da lei especial (critério da especialidade, lex

36 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª. ed. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2009. 37 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.

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specialis derogat lex generalis), conforme destacou-se alhures.

Nessa perspectiva, correto é o posicionamento do Enunciado n.º 19 da I Jornada de Direito Processual Civil, do Enunciado n.º 45 do ENFAM e do Enunciado n.º 175 do FONAJEF, sendo que o errado nessa história é o posicionamento defendido pelo Enunciado n.º 165 do FONAJE, objeto contestado neste estudo.38

38 Dispõe o Enunciado n.º 19 da I Jornada de Direito Processual

Civil que “o prazo em dias úteis previsto no art. 219 do CPC aplica-

se também aos procedimentos regidos pelas Leis n. 9.099/1995,

10.259/2001 e 12.153/2009, por outro lado, o Enunciado n.º 165 do FONAJE sustenta que os prazos nos Juizados Especiais devam

ser contados de forma contínua, já, o Enunciado n.º 45 da ENFAM

sustenta que “a contagem dos prazos em dias úteis aplica-se ao

sistema dos juizados especiais”, e, por fim, em mesmo sentido ao

último, o Enunciado n.º 175 do FONAJEF dispõe que, “por falta

de previsão legal específica nas leis que tratam dos juizados especiais, aplica-se, nestes, a previsão da contagem dos prazos em

dias úteis (CPC/2015, art. 219)”. BRASIL. FONAJE, Fórum

Nacional de Juizados Especiais. Enunciados. Disponível em:

<http://www.amb.com.br/fonaje/?p=32>. Acesso em: 2 out.

2017. BRASIL. ENFAM, Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Enunciados Aprovados.

Disponível em: <http://www.enfam.jus.br/wp-

content/uploads/2015/09/ENUNCIADOS-VERSÃO-

DEFINITIVA-.pdf>. Acesso em: 2 out. 2017. BRASIL. FONAJEF,

Fórum Nacional de Juizados Especiais Federais. Enunciados.

Disponível em: <http://www.ajufe.org/static/ajufe/arquivos/downloads/fonajef

-enunciados-compilados-i-ao-xiii-definitivo-1151152.pdf>. Acesso

em: 2 out. 2017. BRASIL. I Jornada de Direito Processual Civil.

Enunciados. Disponível em:

<http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2017/setembro/copy_of_Enunciadosaprovadosvfpub.pdf>. Acesso em: 2 out. 2017.

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Não há, porém, vencedores ou vencidos nessa história39, afinal, deva ser tirada a lição dessa “aventura jurídica” realizada pelo FONAJE de que o aperfeiçoamento da técnica processual40 não contempla um fim em si, de modo que deve recorrer a categorias basilares do Direito, como, aqui o caso, a Teoria Geral do Direito. O fato de não se concordar com o Código de Processo Civil em determinados pontos não significa que os sentidos das suas disposições possam ser alterados, seja doutrinariamente, seja de forma ativista, tampouco deva ser aplicado com olhos no código passado, Código de Processo Civil de 1973, o que dá uma ideia de complexo de curupira41.

Ao que tudo indica, o Enunciado n.º 165 do FONAJE restou cancelado em decorrência do Enunciado n.º 19 da I Jornada de Direito Processual Civil, todavia, preocupante é o raciocínio de que, a um, um enunciado, como o em comento, é capaz de invalidar disposição em uma lei ordinária, ora Código de Processo Civil, bem como, a dois, o fato de um enunciado estar anulando outro enunciado (???), dando a ideia da semeação de uma cultura de “jurisdição enunciativa”, o que é demasiadamente preocupante para o panorama jurídico brasileiro contemporâneo.42

39 STRECK, Lenio Luiz. Enunciado cancela enunciado; uma

“jurisdição enunciativa”? Quo vadis? In: CONJUR, Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-set-

14/senso-incomum-enunciado-cancela-enunciado-jurisdicao-

enunciativa-quo-vadis>. Acesso em: 5 out. 2017. 40 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos

Direitos. 4ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 41 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O poder judiciário e a efetividade da nova Constituição. In: Revista Forense, n. 304,

1988. 42 STRECK, Lenio Luiz. Enunciado cancela enunciado; uma

“jurisdição enunciativa”? Quo vadis? In: CONJUR, Consultor

Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-set-

14/senso-incomum-enunciado-cancela-enunciado-jurisdicao-enunciativa-quo-vadis>. Acesso em: 5 out. 2017.

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3. E SE NÃO BASTASSE TODO O EXPOSTO NESTE

ESTUDO, A FUNDAMENTAÇÃO DO ENUNCIADO N.º 165 DO FONAJE É EFICIENTE? (CELERIDADE

PROCESSUAL X DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO SOB A PERSPECTIVA DA “JUSTIÇA EM NÚMEROS”)

Embora já se tratou acerca do diálogo distintivo entre celeridade processual e duração razoável do processo –

mesmo que de forma supérflua –, compreender a sua distinção é primordial para a investigação da “eficiência” do Enunciado n.º 165 do FONAJE, afinal, encontra sua fundamentação na diretriz celeridade que rege a Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/95).

Há divergência doutrinária sobre a questão aqui proposta, afinal, não são raros os casos de autores que optem por entender celeridade processual e duração razoável do processo como sinônimos43.

Entretanto, a duração razoável do processo, garantia fundamental do processo (art. 4º do CPC) e fundamental da constituição (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF), possui sintonia com a ideia da obtenção de tutela jurisdicional justa sem dilações processuais indevidas44, todavia, não necessário que sua atividade deva ser obtida de forma rápida, mas, que deva ser obtida respeitando a estrutura das normas processuais constitucionais, como ampla defesa, contraditório efetivo, devido processo legal, dentre outros45.

Nesse panorama, a duração razoável do processo não deve ser atrelada com a ideia de um lapso temporal

43 Como exemplo: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal.

18.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 44 DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e

Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 45 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá Editora, 2010.

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previamente determinado, mas, que lhe seja determinável conforme o caso concreto, afinal, dever-se-ão respeitar as condições naturais de cada relação processual. Cada processo é diferente doutro, de modo que errado seria o pensamento de sua rígida padronização procedimental, o que, caso contrário fosse, violaria uma percepção de processualismo constitucional e de policontexturalidade46 processual.

Assim, quando se fala sobre celeridade processual, não

significa que o processo que assim for norteado deva desrespeitar as premissas fundamentais constitucionais, mas que as respeite por meio de um procedimento diferenciado, como é o caso da Lei n.º 9.099/95, em que se assegura tal rapidez do processo por meio de um procedimento “infimamente burocrático”, pautando-se em oralidade, simplicidade, informalidade e economia processual (art. 2º da Lei n.º 9.099/9547), o que seria, de certo modo, improvavelmente aplicável quando da utilização de um, v.g., procedimento comum (art. 318 e ss do CPC).

A razoável duração do processo não é o mesmo que a celeridade processual, são coisas distintas, como fica claro pela simples leitura do inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição pátria. Verifica-se pela leitura do art. 8º, inciso 1 do Pacto de São José da Costa Rica que a razoável duração do processo vem acompanhada das garantias processuais, na Constituição brasileira, a razoável duração também foi prevista em conjunto com inúmeras garantias processuais e com os princípios institutivos do processo, evidentemente que o referido princípio deve ser lido em conjunto

com as garantias e princípios institutivos do processo consagrados pela Constituição. Assim, a razoável duração do processo significa

o processo célere, sem dilações indevidas, porém, asseguradas as

46 MELEU, Marcelino da Silva. Jurisdição Comunitária: A efetivação do acesso à justiça no policontexturalidade. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2014. 47 BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Juizados

Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em: 1 out. 2017.

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garantias processuais constitucionais e os princípios institutivos

do processo. Em suma, a razoável duração do processo poderá ser representada pelo binômio celeridade X garantias processuais inerentes ao devido processo legal. Assim, somente terá duração razoável o processo que tenha tramitado de forma célere (sem dilações indevidas) mas que tenha obedecido aos princípios e garantias do devido processo constitucional, permitindo que as partes tenham participado efetivamente da construção do provimento jurisdicional. Conclui-se, portanto, que a razoável duração do processo figura como o centro gravitacional entre a celeridade processual e as garantias constitucionais do processo democrático. Assim, o processo não deve visar a celeridade pela

celeridade, o que o converteria em instrumento de vingança, mas buscar exterminar as etapas mortas e garantir a participação dos sujeitos na construção do provimento. Se de um lado exige-se rapidez, de outro há a demanda de tempo para a maturação do provimento a ser construído pelas partes.48

Justamente por essa ínfima burocracia que rege a Lei dos Juizados Especiais, o que se espera por sua celeridade processual é que os processos que tramitem por tal procedimento tenham mínima duração até, pelo menos, o seu julgamento em primeiro grau de jurisdição, isso em comparação à um processo, v.g., tramitando pelo procedimento comum numa vara estadual de competência comum.

Neste momento, mostra-se necessário a extração e análise de alguns dados a respeito desse lapso de tramitação de um processo pelo procedimento nos Juizados Especiais e nas Varas Estaduais Comuns até, pelo menos, o seu julgamento em primeiro grau de jurisdição, a fim de averiguar se essa celeridade processual que fundamenta o

Enunciado n.º 165 do FONAJE é realmente eficiente, ou

48 SANTIAGO NETO, José de Assis. Razoável duração do

processo não é sinônimo de processo célere. In: Empório do

Direito. Disponível em:

<http://emporiododireito.com.br/razoavel-duracao-do-processo-

nao-e-sinonimo-de-processo-celere-por-jose-de-assis-santiago-neto/>. Acesso em: 3 out. 2017.

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seja, se a utilização de dias corridos em vez de dias úteis apresenta um resultado significante.

Da análise da “Justiça em números do ano de 2016”49, a qual tem como ano-base o ano de 2015 – ou seja, ano em que vigorava o Código de Processo Civil de 197350 e houve a aprovação do “novo” CPC – extrai-se que o lapso de duração de um processo de conhecimento que tramita, em primeiro grau de jurisdição, perante uma Unidade Jurisdicional Estadual Comum (Juízo Comum) leva aproximados 1 (um)

ano e 9 (nove) meses51 até que seja sentenciado, um processo de conhecimento que tramita perante a Unidade Jurisdicional Estadual Especial (Juizado Especial) leva aproximados 9 (nove) meses52 para ser sentenciado, de modo a ser possível concluir que um processo que tramita pelo procedimento da Lei n.º 9.099/95 é julgado, aproximadamente53, 1 (um) ano a menos do que um

49 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2016: ano-base 2015. Brasília: CNJ, 2016. 50 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de

Processo Civil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 1 out. 2017. 51 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2016: ano-base 2015. Brasília: CNJ, 2016, p. 126. 52 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2016: ano-base 2015. Brasília: CNJ, 2016, p. 127. 53 “Por ser a primeira coleta de dados relativa ao tempo do

processo, alguns tribunais não encaminharam as informações ao

CNJ, o que justifica a presença de alguns vazios nos gráficos que

serão apresentados a seguir. Antes de iniciarmos as análises que

seguem, é importante ter em mente as limitações metodológicas

ainda existentes. Neste relatório trataremos da média como medida estatística para representar o tempo. Apesar de

extremamente útil, ela é limitada, pois resume em uma única

métrica os resultados de informações que sabemos ser

extremamente heterogêneas. Para adequada análise de tempo,

seria necessário estudar curvas de sobrevivência, agrupando os processos semelhantes, segundo as classes e os assuntos. Tais

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processo que tramitava pelos procedimentos ordinário e sumário – isso considerando que não há dados distintivos para cada um dos antigos procedimentos da Lei n.º 5.869/73.

Ainda, nessa linha, a distinção dos lapsos de tramitação em cada um desses procedimentos é ainda maior quando versar sobre processos de cunho executivo, haja vista que, enquanto um processo de execução, em primeiro grau de jurisdição, que tramita perante uma Unidade

Jurisdicional Estadual Comum (Juízo Comum) leva aproximados 4 (quatro) anos e 3 (três) meses54 para ser sentenciado, um processo de execução que tramita perante uma Unidade Jurisdicional Estadual Especial (Juizado Especial) leva aproximados 1 (um) ano e 1 (um) mês55 para ser sentenciado.

Já, da análise da “Justiça em números do ano de 2017”56, a qual tem como ano-base o ano de 2016 – ou seja, ano em que vigorou até o mês de março o Código de Processo

dados ainda não estão disponíveis, e são complexos para serem

obtidos, mas o CNJ, por meio do Selo Justiça em Números, está trabalhando no aperfeiçoamento do Sistema de Estatística do

Poder Judiciário, e planeja obter as informações necessárias para

produção de estudos mais aprofundados sobre o tempo de

tramitação processual. A divisão da aferição do tempo do processo

por fases processuais faz sentido na medida em que os marcos temporais usados para os cálculos são bem claros. Assim, na

apuração do tempo médio dos processos até a sentença de mérito,

sabe-se exatamente quando o processo começa (protocolo) e qual

o termo final de apuração (última sentença proferida)”. CNJ,

Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2016: ano-

base 2015. Brasília: CNJ, 2016, p. 125. 54 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2016: ano-base 2015. Brasília: CNJ, 2016, p. 126. 55 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2016: ano-base 2015. Brasília: CNJ, 2016, p. 127. 56 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2017: ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017.

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Civil de 1973 e nos meses subsequentes o Código de Processo Civil de 2015 – extrai-se que o lapso de duração de um processo de conhecimento que tramita, em primeiro grau de jurisdição, perante uma Unidade Jurisdicional Estadual Comum (Juízo Comum) leva aproximados 2 (dois) anos e 1 (um) mês57 até que seja sentenciado, um processo de conhecimento que tramita perante a Unidade Jurisdicional Estadual Especial (Juizado Especial) leva aproximados 10 (dez) meses58 para ser sentenciado, concluindo-se que um processo que tramita pelo procedimento da Lei n.º 9.099/95 é julgado, aproximadamente59, 1 (um) ano e 5 (cinco) meses a menos

57 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2017: ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017, p. 129. 58 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2017: ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017, p. 129. 59 “Essas estimativas guardam limitações metodológicas. A

principal delas está no uso da média como medida estatística para

representar o tempo. A média é fortemente influenciada por

valores extremos e, ao resumir em uma única métrica os

resultados de informações que sabemos serem extremamente heterogêneas, torna-se uma medida limitada. Para análise de

tempo mais adequada, seria necessário recorrer aos quantis e às

curvas de sobrevivência, por exemplo, sempre considerando o

agrupamento de processos semelhantes, segundo classe e

assunto. Para possibilitar essas análises, seria preciso recorrer

aos dados de cada processo individualmente. O CNJ, por meio do Selo Justiça em Números, já recebe essas informações de alguns

tribunais, e, a partir de 2017, o encaminhamento dos dados

processuais individuais passou a ser obrigatório, de acordo com a

Portaria n. 46/2017, aperfeiçoando o Sistema de Estatísticas do

Poder Judiciário. A divisão da aferição do tempo do processo por

fases processuais faz sentido na medida em que os marcos temporais usados para os cálculos são bem claros. Assim, na

apuração do tempo médio dos processos até a sentença de mérito,

sabe-se exatamente quando o processo começa (protocolo) e qual

o termo final de apuração (última sentença proferida). Importante

esclarecer que a apuração dos tempos médios se deu pela avaliação da duração em cada fase ou instância. Por exemplo, na

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do que um processo que tramitava pelos procedimento comum.

Além disso, a distinção dos lapsos de tramitação em cada um desses procedimentos é ainda maior quando versar sobre processos de cunho executivo, haja vista que, enquanto um processo de execução, em primeiro grau de jurisdição, que tramita perante uma Unidade Jurisdicional Estadual Comum (Juízo Comum) leva aproximados 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses60 para ser sentenciado, um processo

de execução que tramita perante uma Unidade Jurisdicional Estadual Especial (Juizado Especial) leva aproximados 1 (um) ano e 2 (dois) meses61 para ser sentenciado.

Indiscutivelmente é a conclusão, com base nesses dados, que as Unidades Jurisdicionais que operam sob o procedimento da Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/95) cumprem a premissa de um processo célere, porém, indaga-se se é eficiente pensar que a utilização da contagem de prazos em dias úteis traria efetivo prejuízo aos números aqui expostos: De práxis, a resposta que vem à mente é negativa.

A Lei Federal 9.099/95, ao delimitar a data da audiência de instrução como termo final para a apresentação da contestação, restringe-se a prever os seguintes possíveis prazos para as partes: cinco dias para embargos de declaração (artigo 49) e mais cinco dias para a resposta (CPC, parágrafo 2º do artigo 1023); 10 dias para o recurso inominado (caput do artigo 42) e mais 10 dias para contrarrazões ao recurso inominado (parágrafo 2º do artigo 42). Assim, no processo onde houver embargos de declaração,

execução, conta-se o tempo a partir do início da execução ou

liquidação ou cumprimento, até a data da última sentença em

execução. No conhecimento, conta-se a partir da data do protocolo”. CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em

números 2017: ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017, p. 128. 60 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números

2017: ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017, p. 129. 61 CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2017: ano-base 2016. Brasília: CNJ, 2017, p. 129.

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contrarrazões aos embargos de declaração, recurso inominado,

contrarrazões ao recurso inominado, o tempo total de prazo em curso será de 40 dias (5+5+10+10). Se esses 40 dias forem computados em dias úteis, haverá um incremento, no máximo, de cinco finais de semana, ou seja, os 40 dias úteis corresponderão a 50 dias corridos.62

Não bastasse a nulidade do Enunciado n.º 165 do FONAJE a partir da Teoria Geral do Direito, conforme destacou-se alhures, o mesmo mostra-se antidemocrático, na medida em desrespeitar prerrogativas básicas da figura

dos Advogados, na proporção em que lhe retira o repouso dos finais de semana, feriados e recesso forense – aliás, isso prejudica o próprio resultado da peça processual, afinal, a mesma não poderá ser trabalhada com maior cautela63 –, bem como é ineficiente na prática, afinal, o aperfeiçoamento dessa premissa da Lei dos Juizados Especiais que é a celeridade processual será ainda mais aperfeiçoada e respeitada se o seu principal “vilão” for corretamente combatido, qual seja o “tempo de prateleira”, ou seja, o tempo que o processo permanece inerte esperando movimentação para que os atos do processo sejam cumpridos e o processo possa ser ”solvido”.

62 ABBOUD, George; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Enunciado 165 do Fonaje,

sobre prazos nos juizados, deve ser cancelado. In: CONJUR,

Consultor Jurídico. Disponível em:

<http://www.conjur.com.br/2017-ago-29/opiniao-fonaje-

cancelar-enunciado-165-prazos-juizados>. Acesso em: 3 out.

2017. 63 ABBOUD, George; APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho;

CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. Enunciado 165 do Fonaje,

sobre prazos nos juizados, deve ser cancelado. In: CONJUR,

Consultor Jurídico. Disponível em:

<http://www.conjur.com.br/2017-ago-29/opiniao-fonaje-

cancelar-enunciado-165-prazos-juizados>. Acesso em: 3 out. 2017.

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CONCLUSÃO

Buscou-se com esta breve digressão, após analisar o Código de Processo Civil de 2015 (Lei n.º 13.105/2015), a Lei dos Juizados Especiais (Lei n.º 9.099/95) e o Enunciado n.º 165 do FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais), a partir da Teoria Geral do Direito, demonstrar que o enunciado objeto deste trabalho é nulo.

Um enunciado não pode contrapor disposição contida

numa norma hierarquicamente superior, como é o caso em questão, de modo que, pelo critério da hierarquia, aplicar-se-á a disposição contida na norma superior, ora Código de Processo Civil, e não a disposição contida no enunciado, ora Enunciado n.º 165 do FONAJE.

Caso houvesse a real necessidade de adaptar a Lei dos Juizados Especiais ao Código de Processo Civil no tocante à modificação na forma de contagem de prazos processuais (art. 219 do CPC), dever-se-ia observar o processo constitucional legislativo, disposto a partir do art. 59 da Constituição Federal de 1988, ou seja, pela via ordinária, e não seguir pelos rumos propostos pelo FONAJE, com um peculiar ativismo, além do mais, o enunciado em comento não merecia o estudo que aqui foi elaborado por um simples fator: O FONAJE não detêm competência para legislar sobre matéria processual!

Além disso, o enunciado objeto deste estudo, além de nulo pela hierarquia normativa (pirâmide kelseniana),

mostra-se ineficiente na medida em que, pelo procedimento proposto na Lei dos Juizados Especiais, contar os prazos de forma corrida no lugar da contagem em dias úteis acarretará na salvação de míseros dias a menos no conjunto de todo do lapso de duração do processo.

Combata-se, assim, o seu real vilão, o chama “tempo de prateleira”, o tempo que o processo fica aguardando movimentação pelos servidores do Poder Judiciário, e não se ceife um Direito democraticamente conquistado pela

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Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nesse vigente Código de Processo Civil, ou seja, os prazos em dias úteis (art. 219 do CPC).

Ademais, ressalta-se que não há vencedores ou vencidos nessa história, de modo que deva ser tirada a lição dessa “aventura jurídica” realizada pelo FONAJE de que o aperfeiçoamento da técnica processual não contempla um fim em si, afinal, deve recorrer a categorias basilares do Direito, como, aqui o caso, a Teoria Geral do Direito. Desse

modo, o fato de não se concordar com o Código de Processo Civil em determinados pontos não significa que os sentidos das suas disposições possam ser alterados, seja doutrinariamente, seja de forma ativista, tampouco deva ser aplicado com olhos no código passado, Código de Processo Civil de 1973.

Felizmente e ao que tudo indica, o Enunciado n.º 165 do FONAJE restou cancelado em decorrência do Enunciado n.º 19 da I Jornada de Direito Processual Civil. Entretanto, por toda essa experiência que vem se tirando acerca desse vasto “oceano” de enunciados que são constantemente elaborados no Brasil, dois pontos são extremamente preocupantes, a um enunciado invalidando disposição de uma lei ordinária, a dois, o fato de um enunciado estar anulando outro enunciado, dando a ideia da semeação de uma cultura de “jurisdição enunciativa”, o que é demasiadamente preocupante para o panorama jurídico brasileiro contemporâneo.

Retomemos a aplicação dos prazos em dias úteis, ou seja, o art. 219 do Código de Processo Civil, no procedimento dos juizados especiais!

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COMÉRCIO ELETRÔNICO E TRIBUTAÇÃO

HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA DO ICMS SOBRE BENS DIGITAIS

Helder Santos Ferreira

RESUMO

O artigo adentra nas controvérsias jurídico-tributárias

concernentes ao tema comércio eletrônico e tributação, discutindo a hipótese de incidência do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) sobre bens digitais. O objetivo geral consiste em analisar a natureza e as características das operações realizadas pela internet através do comércio eletrônico de bens digitais por download, de modo a estabelecer parâmetros para uma proposta de tributação. O referencial teórico aborda noções gerais sobre a internet, questões tributárias no âmbito da rede de computadores, a atividade dos provedores de acesso e não incidência do ICMS, bem como algumas considerações sobre bens digitais, aspectos específicos sobre o comércio eletrônico e ICMS. Com isso, chega-se a vislumbrar um parâmetro de análise tributária que pudesse se adequar à hipótese de incidência do ICMS sobre bens digitais, pautado pelo conceito de mercadoria e em sua circulação nas operações efetuadas mediante download, onde inexiste circulação física de produto.

Palavras-chave: Tributação; Internet; Comércio Eletrônico; ICMS; Bens digitais.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho possui como tema comércio eletrônico (e-commerce) e tributação no que se refere à hipótese de incidência do ICMS - Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – sobre bens digitais (conteúdos digitais), tendo em vista as limitações e possibilidades ao poder do Estado em tributar.

O artigo analisa a comercialização eletrônica de conteúdos digitais ou bens digitais via download disponibilizados pela internet, tendo por objetivo verificar se teria natureza jurídica de operação mercantil para que, então, possa ser configurada uma hipótese de incidência que enseje tributação por ICMS, de acordo com os parâmetros normativos e jurisprudenciais aplicados atualmente ao sistema tributário nacional.

1. SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

Ao tratar das considerações gerais sobre o sistema constitucional tributário, verifica-se que a tributação é uma atividade abrangente não apenas da instituição de tributos, mas também da sua arrecadação e da fiscalização de seu recolhimento, estas últimas tarefas eminentemente administrativas. Ao tratar do sistema constitucional tributário, importa sublinhar o que se deva entender por

sistema. Sistema é a reunião ordenada de várias partes que formam um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras. As que dão razão às outras chamam-se princípios, e o sistema é tanto mais perfeito quanto em menor número existam (CARRAZZA, 2013, p. 43 - 44).

Assim, por sistema tributário nacional entende-se, singelamente, o conjunto de normas constitucionais e

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infraconstitucionais que disciplinam a atividade tributante. Resulta, essencialmente, da conjugação de três planos normativos distintos: o texto constitucional, a lei complementar, veiculadora de normas gerais em matéria tributária (o Código Tributário Nacional), e a lei ordinária, instrumento de instituição de tributos por excelência (COSTA, 2016, p. 59).

Por fim, trata de prescrever limitações ao poder de tributar, vale dizer, as contenções ao exercício dessa

atividade estatal. Essas limitações são traduzidas, essencialmente, na definição de princípios e imunidades. Os princípios constituem os vetores, e podem ser definidos como as normas fundantes de um sistema, cujos forte conteúdo axiológico e alto grau de generalidade e abstração ensejam o amplo alcance de seus efeitos, orientando a interpretação e a aplicação de outras normas. Outras expressivas limitações constitucionais ao poder de tributar são as exonerações qualificadas como imunidades. Uma vez efetuada a opção política de se definir a competência tributária em nível constitucional, tem-se, como consequência, a previsão de exonerações fiscais consideradas mais relevantes nesse mesmo nível. Essas limitações representam diretrizes negativas, porquanto negam a competência tributária nas hipóteses delineadas constitucionalmente (COSTA, 2016, p. 61 - 62).

Nesse sentido, afirma-se que “os limites da competência tributária não se resumem aos que estão definidos no texto constitucional”, uma vez que a ampla

diversidade de imunidades tributárias expostas fora da seção das “Limitações do Poder de Tributar” da Carta Magna, como em normas esparsas, incorre na ausência de vinculação obrigatória da limitação ao poder de tributar aos enunciados constitucionais, dando, assim, abertura para atuação de outros tipos normativos que também podem vir a balizar o poder do legislador tributário na criação ou modificação de tributos (AMARO, 2016, p. 128).

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1.1 Imunidades Tributárias

Outras expressivas limitações constitucionais ao poder de tributar são as exonerações qualificadas como imunidades. Uma vez efetuada a opção política de se definir a competência tributária em nível constitucional, tem-se como consequência, a previsão de exonerações fiscais consideradas mais relevantes nesse mesmo nível. (COSTA, 2016, p. 104).

Com efeito, para verificar se os conteúdos digitais comercializados por meio da internet seriam albergados pela imunidade prevista no art. 150, VI, d, e, da Constituição Federal1, é necessário analisar a amplitude desta norma constitucional.

Assim, as imunidades comparecem como importantes instrumentos à disposição do Constituinte para implementar, no quadrante da tributação, os valores mais caros à sociedade. É verdade que toda construção normativa se justifica por esse intento, mas é no setor das imunidades que se faz sentir de maneira mais contundente (CARVALHO, p., 2017, p. 210).

Imunidade dos livros, jornais, periódicos e do papel para a sua impressão

O art. 150, VI, d, da CRFB/1988 outorga imunidade aos “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão”. O STF afirma que essa imunidade “tem por

1 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao

contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e

aos Municípios: [...] VI - instituir impostos sobre: d) livros, jornais,

periódicos e o papel destinado à sua impressão; e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras

musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em

geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes

materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa

de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser (BRASIL, 1988).

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escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação” (STF, Segunda Turma, rel. Mina. ELLEN GRACIE, RE 221.239, 2004).

A referência ao papel teve por finalidade ampliar o âmbito da imunidade, de modo que envolva o que é normalmente o seu maior insumo. Não há que se entender tal referência como excludente dos livros, jornais e

periódicos em meio magnético ou eletrônico. Impõe-se que se considerem os direitos fundamentais a que a Constituição visa proteger com a norma em questão. Vem sendo reconhecida a imunidade de livros em CD-ROM, o mesmo devendo acontecer com os livros e as revistas eletrônicas acessíveis pela internet: e-books (PAULSEN, 2017, p. 118).

O STF chegou a se manifestar no sentido de que o livro não é apenas o produto acabado, mas o conjunto de serviços que o realiza, havendo, ainda, decisão no sentido de que a imunidade alcança a distribuição. De outro lado, porém, pronunciou-se no sentido de que a imunidade não aproveita a composição gráfica e que “os serviços de distribuição de livros, jornais e periódicos não são abrangidos pela imunidade tributária estabelecida pelo art. 150, VI, d, da Constituição Federal”2.

Entendeu o STF que “a pretensão de estender a garantia constitucional da imunidade tributária, em infinito regresso, de modo a abarcar os insumos empregados na fabricação do papel, não encontra guarida na

2 Ementa: Tributário. Agravo regimental no Recurso Extraordinário. art. 150, VI, d, da cf. Imunidade Tributária.

Serviços de distribuição de livros, jornais e periódicos.

Abrangência. Impossibilidade. Precedentes. Revogação de lei

municipal por decreto. Análise. Óbice da súmula 280/STF (STF,

Segunda Turma, rel. Min. TEORI ZAVASCKI, RE 568454 AgR, jun. 2013b).

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jurisprudência” (STF, RE 848696 AgR, rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, ago. 2016). Por isso, O STF chegou a editar a Súmula 657: “A imunidade prevista no art. 150, VI, d, da CRFB/1988 abrange os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos”. Em suma, o STF entendeu que a imunidade de que trata o art. 150, VI, 'd', da CRFB/1988 alcança o livro digital (e-book)3.

Assim, observa-se que embora o legislador constituinte tenha sido silente quando o assunto é venda de livros

digitais no texto da Lei Maior, a doutrina já assentou entendimento no sentido de garantir imunização ampla, sendo uma das finalidades da norma constitucional a preservação da transmissão do conhecimento, independe de

3 A imunidade de que trata o art. 150, VI, 'd', da CF alcança o livro

digital (e-book). De igual modo, as mudanças históricas e os fatores políticos e sociais da atualidade, sejam em razão do avanço

tecnológico, seja em decorrência da preocupação ambiental,

justificam a equiparação do 'papel', numa visão panorâmica da

realidade e da norma, aos suportes utilizados para a publicação

dos livros. Nesse contexto moderno, portanto, a teleologia da regra

de imunidade igualmente alcança os aparelhos leitores de livros eletrônicos (e-readers) confeccionados exclusivamente para esse

fim, ainda que eventualmente equipados com funcionalidades

acessórias ou rudimentares que auxiliam a leitura digital, tais

como dicionário de sinônimos, marcadores, escolha do tipo e

tamanho da fonte e outros. Apesar de não se confundirem com os livros digitais propriamente ditos, esses aparelhos funcionam

como o papel dos livros tradicionais impressos, e o propósito seria

justamente mimetizá-lo. Estão enquadrados, portanto, no

conceito de suporte abrangido pela norma imunizante.

Entretanto, esse entendimento não é aplicável aos aparelhos

multifuncionais, como tablets, smartphones e laptops, os quais são muito além de meros equipamentos utilizados para a leitura

de livros digitais. No caso concreto, o CD-Rom é apenas um corpo

mecânico ou suporte e aquilo que está nele fixado (seu conteúdo

textual) é o livro, ambos abarcados pela imunidade do citado

dispositivo constitucional." (RE 330817, Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgamento em 20.9.2012).

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sua forma, matéria esta que ainda será analisada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 330817 (NOSSA GOBBI, 2013).

A imunidade pode abraçar, portanto, também os novos meios de difusão do pensamento e das ideias, cujo surgimento reflete uma mudança nos hábitos sociais permitindo uma divulgação mais plural das informações. Assim, quando se procura caracterizar “conteúdo digital” (livros, jornais, periódicos) para fins da imunidade referida

pelo art. 150, VI, d, da Constituição Federal, deve-se levar em conta que não importa o fato de este ter seu conteúdo digitalizado em arquivo magnético e não impresso em papel. Ou seja, se o conteúdo digital pode ser o conteúdo de algo impresso, logo não há dúvidas de que os conteúdos digitais (livros, jornais, periódicos) devem ser tratados da mesma forma que se tivessem sido imprimidos, para os efeitos da imunidade.

Imunidade dos fonogramas e videogramas musicais

A EC n. 75/2013 estabeleceu nova imunidade a impostos. Diz respeito aos “fonogramas4 e videofonogramas5 musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais6 de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser” (BRASIL, 2013a). Trata-se de norma autoaplicável, com densidade normativa suficiente para que se

4 Fonograma: “Registro exclusivamente sonoro em suporte

material, como disco, fita magnética, etc.” (FERREIRA; SILVEIRA;

FERREIRA, 2009, p. 920). 5 Videofonograma: “registro de imagens e sons em determinado

suporte” (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2009, p. 1.943). 6 Literomusical: “diz-se de espetáculo, ou reunião social em que se

leem trechos literários, se declamam poemas, e em que há,

também apresentações musicais” (FERREIRA; SILVEIRA; FERREIRA, 2009, p. 1.220).

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compreenda o seu alcance e se possa aplicá-la diretamente. Foi aprovada com vista a favorecer a produção musical brasileira, fazendo com que seja menos impactada pelos efeitos da concorrência predatória de produtos falsificados comercializados sem o pagamento de tributos, bem como pelo acesso facilitado e gratuito que as pessoas têm à música através da internet (PAULSEN, 2017, p. 119 – 120).

O primeiro questionamento de grande relevo que surge neste momento é saber se a imunização estabelecida pelo

legislador derivado é ampla ao ponto de incidir sobre as músicas comercializadas, em qualquer formato, inclusive as digitais espalhadas pela internet, pois uma leitura rápida do novo texto poderá provocar dúvidas e ressuscitar antigos debates. Porém, verifica-se da leitura da nova alínea “e” que o legislador se preocupou com tal problemática, e a fim de evitar interpretação diversa ou se falar em silêncio legislativo, foi claro ao dispor que a imunidade sobre os fonogramas e videogramas é estendida aos “suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham”, ou seja, a imunidade não incide apenas sobre os CDs e DVDs físicos já disponíveis na fase de revenda, mas também sobre todo o acervo digital, o que apenas ratifica o posicionamento já declinado e a necessidade de adotar o mesmo entendimento quanto aos livros eletrônicos. A Emenda Constitucional nº 75/2013 veio para ampliar as hipóteses de imunidade tributária previstas no inciso VI do art. 150 da Carta Magna, para incluir a alínea “e”, que representa uma limitação ao poder de tributar quando o assunto é fonogramas e

videogramas musicais produzidos em nosso país, não mais sendo possível instituir impostos sobre tal matéria (NOSSA GOBBI, 2013).

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2. NTERNET E COMÉRCIO ELETRÔNICO (E-COMMERCE)

2.1 Breve consideração acerca da questão tributária na

internet

A questão da tributação no âmbito da internet é algo de extrema complexidade e importância, envolvendo uma série de aspectos relacionados à identificação de um fato da realidade que sirva de hipótese de incidência tributária, ou seja, que determinado ato praticado através da rede mundial de computadores produza os efeitos de uma realidade verdadeiramente imponível, obrigando os contribuintes ao pagamento da prestação pecuniária correspondente (CÔRREA, 2010, p. 50).

A questão da tributação das operações de circulação de mercadorias através da internet deve ser também analisada considerando a aquisição de bens não corpóreos (intangíveis). Tal se dá, por exemplo, quando o usuário da rede mundial adquire um software via internet por intermédio de um download (ABREU; PRADO, 2001, p. 18). Pode-se inferir que os Estados teriam competência legislativa para tributar, em hipótese, por meio do ICMS, as operações onerosas nas quais os usuários da internet façam download de conteúdo digital (bens digitais), cuja disponibilidade na rede e o cunho econômico evidenciam o caráter comercial da circulação de mercadoria.

Para solução da questão, é imprescindível a individualização das práticas relacionadas à utilização da internet para identificação do respectivo fato gerador. Tais práticas podem relacionar-se à prestação de serviços, venda de mercadorias tangíveis, “distribuição” de “mercadorias intangíveis” (CÔRREA, 2010, p. 50).

Atividade dos provedores de acesso à internet e a não-incidência do ICMS

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No que concerne à tributação, desde o desenvolvimento da internet no Brasil a preocupação governamental direcionou-se aos serviços prestados por provedores de acesso. Tal preocupação era e é óbvia, uma vez ser mais fácil para o Poder Público identificar as atividades exercidas por um prestador de serviço. Também, pelo fato de estas se aproximarem muito das atividades comerciais comuns, facilitariam assim a cobrança da exação (CÔRREA, 2010, p. 50-51).

A discussão sobre o tema reside na definição de qual tributo incidiria sobre os provedores de acesso: o imposto sobre a circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), de competência dos Estados e definido pelo art. 155, II, da Constituição Federal, ou o imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN)7, de competência dos municípios e definido pelo art. 156, III, da Carta Magna de 1988.

No caso de ser um serviço de comunicação estar-se diante de fato gerador do ICMS, somente se considerar a relação entre os serviços prestados pelos provedores de internet e os serviços de comunicação e a possibilidade de ser consumada se analisados os conceitos oferecidos pela legislação (CÔRREA, 2010, p. 51). Assim sendo, a Portaria n. 148, baixada pelo Ministério das Telecomunicações, tendo por referência a Norma n. 004/95 define provedor de serviço como: provedor de serviço de conexão à internet: entidade que presta o serviço de conexão à internet (BRASIL,

1995).

7 Em relação ao imposto sobre serviços de qualquer natureza

(ISSQN), é forte a posição de não incidência da exação sobre os

serviços prestados pelos provedores. A posição adotada decorre do

motivo de que a lista serviços anexa à Lei Complementar n. 116,

de 31 de julho de 2003, não estando nela inseridos os serviços prestados pelos provedores de acesso (CÔRREA, 2010, p. 54).

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Então, compreende-se que um provedor presta serviço de conexão à internet, e que esta tem natureza de agregar valor ao serviço de telecomunicação oferecido, já que a internet pode ser utilizada para vários fins, desde a transferência de arquivos até a própria comunicação entre pessoas. Desse modo, os provedores não seriam os responsáveis diretos pela telecomunicação, mas sim por adicionar um valor a esta, aumentando sua utilidade (CÔRREA, 2010, p. 52).

Diante dos fundamentos e conceitos apresentados, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o serviço prestado pelo provedor de acesso à Internet não se caracteriza como serviço de telecomunicação, porque não necessita de autorização, permissão ou concessão da União, conforme determina o art. 21, XI, CRFB/19888.

2.2 Conteúdo digital ou bens digitais

Um conteúdo digital é tudo aquilo que existe em formato digital, em código binário. Pode-se classificá-los em conteúdo que contém informações que podem ser enviadas através da internet ou arquivo de computador a serem consumidas de modo gratuito ou pago por pessoas físicas ou jurídicas. Por exemplo, software, vídeos, áudios, imagens, e-books, jogos e conteúdo online (CODIFICAR, 2015).

Os bens digitais constituem conjuntos organizados de instruções, na forma de linguagem de sobre nível, armazenados em forma digital, podendo ser interpretados por computadores e por outros dispositivos assemelhados

8 Art. 21. Compete à União: [...] XI - explorar, diretamente ou

mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de

telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a

organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais (BRASIL, 1988).

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que produzam funcionalidades predeterminadas (EMERENCIANO, 2003, p. 83).

Uma das controvérsias mais difíceis de se superar hoje na doutrina é a da natureza jurídica dos bens digitais. Esse questionamento terá importantes desdobramentos práticos, pois, a depender da natureza jurídica adotada para os bens digitais, eles se submeterão a regimes jurídicos diversos. Que os bens digitais se enquadram na categoria de bens jurídicos não há qualquer dúvida. O problema consiste em

dizer que tipo de bem é o bem digital (SANTOS, 2014).

A partir de conexões estabelecidas por intermédio da rede mundial de computadores, é possível que bens digitais sejam descarregados de um provedor diretamente para o usuário, ou mesmo transferidos de uma máquina para outra. Essa operação de transferência de dados da Internet para o computador ou deste para um outro micro é chamada de download (MELO, 2001, p. 245).

Sendo assim, além dos bens digitais, os serviços prestados pela via eletrônica também circulam na rede por meio de downloads, fato que por si só não os iguala, posto que essa espécie de serviço mantém intacta a sua natureza de atividade humana, de obrigação de fazer (SANTOS, 2014).

Download de bens digitais (ou de conteúdo digital).

A chamada Revolução Digital implementou transformações drásticas na realidade social, inclusive no tocante aos modos pelos quais as empresas desenvolvem suas atividades econômicas. A Internet abriu as portas para

que um simples comando computacional possa selar todas as etapas de uma contratação entre ausentes, desde sua formação até a completa execução da avença, em apenas alguns segundos (ASSUNÇÃO, 2009, p. 16).

Rapidamente popularizam-se novas espécies de bens, aptos a satisfazer necessidades humanas tradicionalmente atendidas por utilidades corpóreas. São os chamados “bens digitais”, cuja distribuição no mercado é totalmente

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desvinculada de suportes tangíveis, realizando-se através de mecanismos de transferências de dados, comumente chamados downloads (ASSUNÇÃO, 2009, p. 16).

Os downloads são operações que permitem a cópia de um arquivo de informações em formato digital entre computadores, geralmente através da Internet. Empregados no comércio eletrônico direto como meios de distribuição de bens digitais, os downloads se tornaram parte indissolúvel do cotidiano das pessoas que gozam de acesso a

computadores. A exposição desses bens em sites espalhados pelo ciberespaço cria um inovador campo de atuação para as empresas: o mercado de conteúdos digitais (ASSUNÇÃO, 2009, p. 16).

Ocorre que as movimentações financeiras desse segmento da economia têm crescido de forma exponencial, alertando governos e organismos internacionais para um detalhe das operações com bens digitais: enquanto [...] as transferências eletrônicas se beneficiam de um verdadeiro “limbo” jurídico-tributário (ASSUNÇÃO, 2009, p. 17).

Tratamento jurídico de bens digitais

Para análise do tratamento jurídico de bens digitais ou conteúdo digital deve-se ter em consideração questões relativas à licença ou cessão do direito de obras intelectuais protegidas e seus reflexos, em consonância com o disposto no art. 7° da Lei n. 9.610/1998, às quais são “criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível” (BRASIL, 1998a).

No que diz respeito à tangibilidade dos bens digitais, a doutrina converge no sentido de classificá-los como bens incorpóreos, havendo ainda quem afirme que, por meio do processo de digitalização, os bens materiais, como os livros, filmes e revistas, passam à categoria de bens imateriais, com o objetivo de facilitar a sua transação (SANTOS, 2014).

Sucede que os downloads de bens digitais, via de regra, não importam transferências de titularidade sobre as obras

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intelectuais, ou seja, o poder de disposição jurídica (ASSUNÇÃO, 2009, p. 27). No mesmo sentido, Flávia Lanari (2005, p. 207), menciona que “sob o ponto de vista dos direitos autorais, a disposição jurídica decorrente do ato negocial é tão limitada que não se presta a caracterizar uma verdadeira operação de circulação jurídica”. No entanto, a partir do momento em que o autor decide reproduzir em massa o seu software e vender essas cópias por meio de download, essas cópias não mais lhe pertencerão, sendo sua titularidade transferida para aquele que a adquire. Este poderá dispor livremente da sua cópia, podendo emprestá-la, apaga-la, etc. (SANTOS, 2014).

Dessa maneira, os direitos patrimoniais do autor poderão ser transferidos total ou parcialmente, mediante acordo escrito entre as partes. Para que isso ocorra, estruturas físicas de armazenagem das obras intelectuais hão de ser utilizadas, acessoriamente à prestação principal do negócio. O caráter econômico dessa transferência atrelado ao tipo de contrato assinado pelo produtor da obra (licenciamento, concessão, cessão, etc.), por sua vez, é fundamental para a identificação dos efeitos tributários inerentes à operação jurídica realizada. Isso porque a linha limítrofe que separa determinadas hipóteses de incidência pode se revelar bastante tênue em algumas situações concernentes às transferências de direitos de propriedade intelectual, dando ensejo a profundas controvérsias tributárias (ASSUNÇÃO, 2009, p. 19).

3. ICMS NO COMÉRCIO ELETRÔNICO

Com efeito, a tributação do comércio eletrônico é um tema relevante, principalmente quanto ao ICMS, imposto de competência estadual (art. 155, II Constituição Federal/1988) que incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, haja vista que, sendo o principal tributo

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incidente sobre a atividade mercantil, tem relação ampla com a análise do comércio eletrônico realizado no âmbito da Internet (STURTZ, 2003, p. 6).

3.1 Considerações sobre a noção de mercadoria para a

incidência do ICMS

O ICMS incide sobre operações com mercadorias (e não sobre a simples circulação de mercadorias). Só a passagem de mercadorias de uma pessoa para outra, por força da

prática de um negócio jurídico, é que abre espaço à tributação por meio de ICMS. Assim, o ICMS deve ter por hipótese de incidência a operação jurídica que acarrete circulação de mercadoria, isto é a transmissão de sua titularidade (CARRAZZA, 2011, p. 43).

Neste sentido, na lição de Geraldo Ataliba, “a sua perfeita compreensão e a exegese dos textos normativos evidencia que toda a ênfase deve ser posta no termo “operação” mais do que no termo “circulação”. A incidência é sobre operações e não sobre o fenômeno da circulação” (apud CARRAZZA, 2011, p. 43). Operações são negócios jurídicos; circulação é transferência de titularidade, e não apenas movimentação física; mercadorias são bens objeto de comércio (PAULSEN, 2017, p. 370). A ideia de “circulação de mercadoria” traduz negócio jurídico que tenha por objeto a transferência de propriedade do bem. Mercadoria, por sua vez, é o conceito extraído do Direito Comercial, a significar bem móvel9 sujeito a mercancia (COSTA, 2016, p. 398). Por isso, o conceito de mercadoria dado pelo Direito Privado é

vinculante no Direito Tributário. Como o texto

9 “Toda mercadoria é bem móvel corpóreo (bem material), mas nem todo bem móvel corpóreo é mercadoria. Apenas o bem móvel

preordenado à prática de operações mercantis é que assume a

qualidade de mercadoria. Em suma, a distinção jurídica entre bem

móvel corpóreo (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca,

consubstanciando-se no propósito de destinação comercial” (CARRAZZA, 2011, p. 44).

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constitucional adotou o conceito tradicional de mercadoria para definir a competência impositiva estadual, nenhuma lei tributária poderá conceituá-la diferentemente (art. 110 do CTN).

Importa considerar, ainda, que mercadorias não são quaisquer produtos ou bens, mas apenas aqueles que constituem objeto de uma atividade econômica habitual e com finalidade lucrativa consistente na venda de produtos, não se confundindo com a alienação eventual de um bem

por pessoa física ou mesmo por pessoa jurídica cuja atividade econômica seja de outra natureza (PAULSEN, 2017, p. 371).

Salienta-se que do ponto de vista material não há diferença entre coisa e mercadoria. A diferença que existe não é de substância, mas apenas de destinação. Uma coisa é denominada de mercadoria quando destinada à comercialização. Trata-se da tese da circulação jurídica, que envolve a transferência de propriedade ou posse da mercadoria, a qual não é pacífica na doutrina e na jurisprudência (HARADA, 2016, p. 531).

Há acesa discussão acerca da possibilidade de se considerar mercadoria10 apenas os bens corpóreos ou também os incorpóreos (PAULSEN, 2017, p. 372). O STF, defrontado com a questão no que diz respeito aos softwares,

10 Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo,

sobre as operações de licenciamento ou cessão do direito de uso

de programas de computador matéria exclusiva da lide,

efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa

impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja

também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de

computador produzidos em série e comercializados no varejo como

a do chamado software de prateleira, os quais, materializando o

corpus mechanicum da criação intelectual do programa,

constituem mercadorias postas no comércio (RE 176.626-3 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10/11/1998) (BRASIL, 1998b).

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inicialmente posicionou-se pela impossibilidade de incidência do ICMS.

Todavia, mais recentemente, pronunciou-se o Ministro Gilmar Mendes, em maio de 2010, ao julgar a ADI 1.945 MC, o STF manteve lei estadual do Estado do Mato Grosso que determinava a incidência do ICMS mesmo sobre operações “realizadas por transferência eletrônica de dados”. Entendeu-se que o avanço da tecnologia repercute na interpretação do texto constitucional, e que o download de

softwares ou de músicas equivale à sua compra em CD (BRASIL, 2010).

O STF não chegou a definir uma posição clara a respeito. Porém, é certo que o exame atento de vários de seus acórdãos, prolatados no início da discussão doutrinária, permite concluir que aquela Alta Corte de Justiça deixou sinalizada a tese de que a “circulação de mercadoria” não significa apenas circulação jurídica, mas também não admite a tributação de todo e qualquer deslocamento físico da mercadoria, mas somente daquele que representa uma movimentação em direção ao consumo (HARADA, 2016, p. 531).

Inexistindo circulação jurídica das obras intelectuais transmitidas eletronicamente, vale dizer, mudança patrimonial, não se pode admitir a caracterização da materialidade da norma de incidência do ICMS, com base na significação corrente da expressão “circulação”, atrelada a atos de transferência de domínio. Afinal, nem o processo

de cópia das informações que compõem o bem digital nem o negócio jurídico de licenciamento ou cessão parcial de uso ocasionam deslocamento de direitos patrimoniais (ASSUNÇÃO, 2009, p. 27).

Logo, mercadoria, para fins de tributação por via de ICMS, é o que a lei comercial considera mercadoria. Segue-se, daí que não pode a lei dos Estados ou do Distrito Federal alterar este conceito, para fins tributários. Porque esta não é uma matéria sob reserva de lei tributária (hipótese em que

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aí, sim, seria modificável pela própria entidade tributante) (CARRAZZA, p. 2011, p. 46).

3.2 Implicações tributárias

Comércio eletrônico de bens tangíveis

O comércio eletrônico pode ser efetivado dentro da Internet, quando a entrega do objeto ocorre por meio de transmissão da informação digitalizada, o que se denomina comércio eletrônico direto, e também por meio da Internet,

quando a rede mundial de computadores serve, tão-somente, como meio contratual entre comprador e vendedor, existindo, assim, a saída física do bem corpóreo e sua efetiva entrega. Em outras palavras, o comércio eletrônico direto diz respeito a bens intangíveis, incorpóreos e o comércio eletrônico indireto trata de bens tangíveis, corpóreos (STURTZ, 2003, p. 6).

O comércio eletrônico envolve a venda de bens tangíveis (comércio eletrônico impróprio ou indireto) e de bens intangíveis (comércio eletrônico próprio ou direto). Assim, são exemplos do primeiro tipo de operações: a venda de livros, brinquedos, CDs de música, equipamentos eletrônicos, entre outros. Já no segundo tipo de transações, pode-se ter a venda de softwares, música, etc. No primeiro caso, tem-se um desdobramento físico da operação, um bem corpóreo sairá do estabelecimento do vendedor e será entregue ao comprador. Já no segundo caso, a operação começa, se desenvolve e termina nos meios eletrônicos, normalmente a Internet (CASTRO, 2000).

No fundamental, o comércio eletrônico impróprio ou indireto (de bens tangíveis ou corpóreos), com crescimento exponencial no Brasil e no mundo, não apresenta dificuldades maiores em termos de tributação. Tem-se o pedido, a rigor, a própria operação de compra e venda, realizado por meio eletrônico (e-mail ou formulário eletrônico) como poderia ser feito por carta, fax ou telefone. Quando as mercadorias saírem dos estabelecimentos

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vendedores serão devidos os tributos pertinentes. Atente-se para o fato de que a forma ou meio do pedido, ou do contrato de compra e venda, conduz ao mesmo resultado: saída física ou material da mercadoria do estabelecimento (CASTRO, 2000).

Comércio eletrônico de bens intangíveis

O Comércio eletrônico direto é aquele caracterizado pela entrega do objeto realizada dentro da Internet, diferente do comércio eletrônico indireto, onde o produto é entregue

ao comprador por meio de correio ou transportadora. No comércio eletrônico direto a entrega ocorre por meio do envio de dados digitalizados, operação amplamente conhecida como download (processo de se transferir uma cópia de um arquivo em um computador remoto para outro computador através da rede) (STURTZ, 2003, p. 12).

O comércio eletrônico direto, enfim, pode ser entendido como a venda de objetos intangíveis, incorpóreos, haja vista que o produto não possui suporte físico e a sua troca de titularidade se dá pela transmissão de dados, ou, pelo procedimento de download (STURTZ, 2003, p. 12).

A existência do comércio eletrônico direto reside na tecnologia digital, que permite a transferência de bens dispensando suportes tangíveis que, até pouco tempo, eram indispensáveis. A comercialização de músicas, filmes, softwares, livros e muitos outros bens que podem ser digitalizados se torna amplamente possível e dispensa o uso do CD e até mesmo do papel (STURTZ, 2003, p. 12).

As maiores preocupações jurídicas tributárias estão relacionadas ao comércio eletrônico direto e dizem respeito, substancialmente, à ausência de tributação, pois a grande questão atual é a inexistência de qualquer incidência tributária, haja vista que, para fins de ICMS, não existe saída física de mercadoria (STURTZ, 2003, p. 12). Contudo, Guilherme Cezaroti (2005, p. 118) argumenta que “a corporalidade não é um requisito intrínseco das

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mercadorias, podendo as cessões de direitos de propriedade intelectual ser qualificadas como vendas de mercadorias intangíveis, sujeitas ao ICMS”.

No caso de operações de comércio eletrônico direto aparece a impossibilidade de tributação face à inexistência de regulamentação e previsão legal. Com as regras constitucionais e legais vigentes, ditas operações estão fora do campo da tributação. Entretanto, a regulamentação trata-se de uma necessidade jurídica para que não ocorra a

desigualdade tributária entre os contribuintes e a perda arrecadatória, pois muitas empresas migrarão para a Internet, acompanhadas dos consumidores que certamente pagarão menos em razão da inexistência de tributos (STURTZ, 2003, p. 12).

Com efeito, no caso do comércio eletrônico direto, inexiste previsão legal que permita cobranças de valores sobre as operações mercantis de bens intangíveis e, se ampliada a interpretação, de maneira que uma transmissão de dados seja considerada uma circulação de mercadorias, a possibilidade esbarraria no art. 110 do CTN. (STURTZ, 2003, p. 13).

É importante também salientar que a analogia só pode ser usada restritivamente no Direito Tributário, principalmente se esta interpretação resultar na exigência de tributo não previsto em lei, de acordo com o que dispõe o Código Tributário Nacional no art. 108, I e § 1º (STURTZ, 2003, p. 13).

Hipótese de incidência do ICMS ao comércio eletrônico direto

Os tributaristas têm discutido qual o tributo a ser aplicado nas operações de comércio eletrônico de bens que não possuem suporte físico (STURTZ, 2003, p. 13). A questão crucial referente à incidência tributária reside na possibilidade de incidência do ICMS, no conceito de mercadoria e na sua circulação nas operações efetuadas

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mediante download, onde inexiste circulação física de produto (STURTZ, 2003, p. 16).

Efetivamente, se vierem a ser tributadas as operações virtuais de comércio, devem-se aplicar os tributos já existentes para as transações realizadas por empresas e compradores brasileiros. Os tributos referidos são o ICMS, no caso de o bem-estar à disposição de todos, e o ISSQN, no caso de bem “sob encomenda”, o que caracterizaria um serviço (STURTZ, 2003, p. 13-14).

Ora, os tributos a que devem estar sujeitas às operações de comércio eletrônico direto devem ser tão-somente os já existentes, que são atualmente aplicados às operações convencionais. A criação de novos tributos, como, por exemplo, um “imposto sobre as vendas na Internet”, teria como efeito um freio ao comércio e seria um obstáculo ao desenvolvimento, além de ferir o princípio da isonomia, haja vista que, hipoteticamente, alguns comerciantes pagariam o ICMS, e outros, o dito imposto fictício (STURTZ, 2003, p. 14).

Com efeito, para que haja a efetiva cobrança deste imposto, necessária é a regulamentação. O que existe no ordenamento jurídico brasileiro é somente uma decisão do STF11, que conclui pela impossibilidade da incidência, no que concerne ao ICMS, ao analisar especificamente caso de software: “(…) não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador –

matéria exclusiva da lide – efetivamente não podem os Estados instituir ICMS”. Apesar de o STF entender que o bem incorpóreo não estaria sujeito à incidência do ICMS deve-se atender para o fato de que o conceito de mercadoria e o de incidência podem ser mais amplos, fazendo com que

11 RE 176.626-3 – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 10/11/1998 (BRASIL, 1998b).

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seja possível a configuração da hipótese de incidência do ICMS (STURTZ, 2003, p. 16).

Todavia, do ponto de vista do direito positivo vigente, tendo em conta as peculiaridades das transferências de bens digitais, não se pode afirmar existente uma operação de circulação jurídica entre autores e distribuidores, ou entre distribuidores e usuários finais. O que há são contratos atípicos que permitem aos empresários a disponibilização de informações para serem reproduzidas

mediante download, sob as balizas delimitadas no termo eletrônico de adesão submetido ao usuário final. Vê-se assim que a posição do STF sobre a incidência do ICMS estampada no Recurso Extraordinário n. 176626/SP, não se ajusta ao modelo do comércio eletrônico direto12 (ASSUNÇÂO, 2009, p. 31).

12 Na opinião de Abreu e Prado, contrária à decisão do STF, basta

que haja regulamentação para que o ICMS seja cobrado. Pode-se

concluir que os Estados têm competência legislativa para tributar,

por meio do ICMS, as operações onerosas nas quais os usuários

da Internet façam download de software, cuja disponibilidade na rede e o cunho econômico evidenciam o caráter comercial da

circulação de mercadoria. Diante do exposto, concluímos que

integra a competência dos estados a tributação da aquisição de

bens não corpóreos (intangíveis) via Internet, aptidão esta que

deve ser exercida por meio de edição de leis específicas, inexistindo no atual momento, disposições legais que permitam a cobrança do

ICMS sobre tais operações (ABREU; PRADO, 2001, p. 19-20). Por

sua vez, Geraldo Ataliba dispõe, reconhecendo que a incidência

pode ser mais ampla se comparada ao que está exposto na lei

tributária, o seguinte: A lei, ao descrever um Estado de fato,

limita-se a arrecadar certos caracteres que bem o definam, para os efeitos de criar uma hipótese de incidência. Com isto, pode

negligenciar outros caracteres do mesmo, que não sejam

reputados essenciais à hipótese de incidência (ATALIBA, 1997, p.

56). Ao invocar o aspecto material da hipótese de incidência,

considerado como aspecto mais relevante, Ataliba diz, em referência ao ICMS, que é: 1) prática (não por qualquer um); 2) por

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O principal aspecto, segundo o autor, é a transmissão de titularidade da mercadoria. A circulação corpórea, em si, não tem importância relevante para impedir a ocorrência da hipótese de incidência (STURTZ, 2003, p. 17).

Ives Gandra da Silva Martins analisa a incidência do ICMS13 e/ou do ISSQN no caso de download de software ocorrida de web site estrangeiro, operação esta que configura um exemplo típico do comércio eletrônico de bens intangíveis. Tais tributos seriam devidos, desde que

regulamentados.

Acertada é a posição do tributarista citado, haja vista que, ressalvada a regulamentação, a operação de aquisição de software através de download deve estar sob a incidência do ICMS14, ou então do ISSQN, se o programa tem

quem exerce atividade mercantil; 3) de operação jurídica (não

qualquer uma); 4) mercantil (regida pelo direito comercial); 5) que

(cuja operação) importa, impele, causa, provoca e desencadeia; 6)

circulação (juridicamente entendida como modificação de

titularidade, transferência de mão, relevante para o Direito

Privado); 7) de mercadoria (juridicamente entendida como objeto de mercancia). Tentando síntese, pode-se enunciar esta hipótese

de incidência como consistindo na ‘prática de operação mercantil,

que importa a transmissão de titularidade de direitos de

disposição sobre a mercadoria (ATALIBA, 1997, p. 127-128). 13 Em tese, a aquisição de um programa (software) de escala comercial (software de prateleira) equivale a uma aquisição de

mercadoria, com o que o ICMS deve incidir. Não o sendo, o

programa tem característica de uma prestação de serviço

personalizado, com o que, no máximo, é possível futuro

enquadramento na lista de serviços (MARTINS, 2001, p. 51-53). 14 Abreu e Prado corroboram neste sentido e concluem pela incidência do ICMS nas operações de aquisição de bens

incorpóreos pela Internet, condicionada à edição de leis que

regulamentem a matéria: Concluímos que integra a competência

dos Estados a tributação das aquisições de bens não corpóreos

(intangíveis) via Internet, aptidão esta que deve ser exercida por meio de edição de leis específicas, inexistindo, no atual momento,

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característica de serviço personalizado (STURTZ, 2003, p. 15).

Hugo de Brito Machado, entretanto, tem posição contrária e leciona pela impossibilidade de incidência do ICMS em operações de comércio eletrônico de bens intangíveis: “Não sendo um bem corpóreo, o software efetivamente não é mercadoria, de sorte que se configura verdadeiro absurdo a exigência do ICMS sobre sua aquisição” (MACHADO, 2016, p. 396).

Entende-se que a possibilidade de incidência do ICMS nas operações realizadas através do comércio eletrônico direto pode ser considerada, não sendo óbice o fato de ser ou não uma mercadoria. Efetivamente, deve incidir o tributo. Outra interpretação levaria a uma desigualdade entre os contribuintes, como, por exemplo, entre aquele que vende a música no CD pagando o ICMS e aquele que vende através de download. Não incidindo o imposto mencionado, teria que haver então um tributo especial para a rede a fim de colocar os contribuintes que estão dentro e fora num plano de igualdade. Entretanto, esta hipótese deve ser rechaçada pelos princípios básicos de tributação na Internet já elencados, além da impopularidade de um novo tributo (STURTZ, 2003, p. 16).

Logo, aparentemente a solução seria pela incidência do ICMS, desde que embasada no diploma legal, uma vez que a norma tributária, nos moldes dos artigos 108 § 1º e 110 do Código Tributário Nacional, não pode ser amplamente

interpretada, a ponto de exigir tributo sem que haja situação expressa em lei (STURTZ, 2003, p. 16).

Sobre o fato gerador do ICMS, deve-se atender ao fato de que a circulação de mercadoria significa a transferência da titularidade e que o principal elemento para a incidência do tributo é a operação mercantil consumada, ou seja, o

disposições legais que permitam a cobrança do ICMS sobre tais operações (ABREU; PRADO, 2001, p. 20).

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aspecto essencial a ser observado é a operação que transfere a titularidade da mercadoria (STURTZ, 2003, p. 17).

Importante nesse sentido é a lição de Roque Carrazza quando se refere ao ICMS15, os conceitos de “operação”, “circulação” e “mercadorias” se interligam e complementam, de modo que se os três não se apresentam, no caso concreto, não há falar, sequer em tese, em incidência do gravame. Por sua vez, Rômulo Teixeira argumenta que o fundamento do fato gerador do ICMS16 é a movimentação da mercadoria,

contudo, para que se materialize o aspecto operacional, há que se configurar a troca de proprietário ou a transferência de titularidade do bem comerciado.

15 (..) incide sobre a realização de operações relativas à circulação

de mercadorias (circulação jurídico-comercial). A lei que veicular sua hipótese de incidência só será válida se descrever uma

operação relativa à circulação de mercadorias. Saliente-se, de

logo, que, para fins de ICMS, os conceitos de “operação”,

“circulação” e “mercadorias” se interligam e complementam, de

modo que se os três não se apresentam, no caso concreto, não há

falar, sequer em tese, em incidência do gravame. É bom também esclarecermos, desde logo, que tal circulação só pode ser jurídica

(e não meramente física). Ora, a circulação jurídica pressupõe a

transferência, evidentemente de uma pessoa a outra e pelos meios

adequados, da titularidade de uma mercadoria vale dizer, dos

poderes de disponibilidade sobre ela. Sem tal mudança de titularidade não há falar em tributação válida por meio de ICMS

(CARRAZZA, 2011, p. 39). 16 É sabido que o fato gerador do ICMS é a movimentação da

mercadoria. Nessa movimentação, contudo, para que se

materialize o aspecto operacional, há que se configurar a troca de

proprietário ou a transferência de titularidade do bem comerciado. Assim, o que se há de tributar é a obrigação contratual de se dar

uma coisa certa (mercadoria) ou a de fazer ou realizar, também

por contrato, um serviço (transporte, v.g.). O ponto de incidência

do imposto é, pois, a operação mercantil legalmente consumada e

não a circulação da mercadoria, que é simples consequência do negócio realizado (TEIXEIRA, 1998).

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 185

Na verdade, o fato gerador não exige a circulação física de mercadoria, mas sim a operação que enseja a transferência de sua titularidade. Isso pode ser confirmado pelo entendimento Superior Tribunal de Justiça (Súmula 166)17, no sentido de não reconhecer a existência do fato gerador quando a mercadoria é transferida entre filiais do mesmo estabelecimento. Neste caso, existe a circulação física, pois a mercadoria sai de um estabelecimento e vai para outro do mesmo proprietário. Não existe, porém, a transferência de titularidade e, por isso, não há fato gerador

do ICMS.

No caso de haver transferência de titularidade, mas não haver circulação física (somente transmissão de dados digitalizados), deve, porém, ser entendido com hipótese de incidência do ICMS, sendo, portanto, fato tributável, se ocorrido o fato gerador. Isso evidência a ênfase da hipótese de incidência não na circulação, mas sim na transferência de titularidade e, por conseguinte, considerando que no download não ocorra circulação nos moldes tradicionais, mas aconteça a troca de titularidade, não existe outra conclusão para o caso senão o reconhecimento da hipótese de incidência do ICMS (STURTZ, 2003, p. 17).

Parece ficar evidenciada a hipótese teórica de incidência deste imposto nas operações de comércio eletrônico direto, onde não existe circulação física de mercadoria, mas sim a transmissão digital através de download. Basta, entretanto, que esta nova possibilidade de ocorrência do fato gerador esteja devidamente disciplinada pela legislação competente. Por outro lado, não se defende a ideia de ampliar indiscriminadamente o conceito de mercadoria, mas tão somente adaptá-lo à realidade atual. A ampliação deve valer somente para os bens que tenham

17 Súmula 166- STJ: Não constitui fato gerador do ICMS o simples

deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do

mesmo contribuinte. (Súmula 166, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/1996, DJ 23/08/1996) (BRASIL, 1996a).

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caráter comercial, mas que não se enquadram atualmente no ultrapassado conceito, tais como filmes, músicas e softwares digitalizados, circuláveis através de download (STURTZ, 2003, p. 18).

E, para que seja o conceito de mercadoria ampliado, tornando, assim, regulamentada, do ponto de vista tributário, a operação de comércio eletrônico direto, vale ressaltar o art. 110 do CTN18 estabelece que não pode haver alteração na definição, conceito e alcance de institutos

jurídicos-tributários.

Conforme o entendimento de Roque Wolkweiss19, no art. 110 do CTN tem-se que, quando a Constituição Federal usar determinada palavra ou figura de direito para definir competências, essa palavra ou figura jurídica não pode ter, quando da criação do tributo ou arrecadação respectiva, o seu sentido original alterado.

Por sua vez, Hugo de Brito Machado Segundo20 questiona o emprego de uma palavra em seu texto, por que

18 A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o

alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal,

pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do

Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar

competências tributárias (BRASIL, 1966). 19 [...] tem-se que, quando a Constituição Federal usar determinada palavra ou figura de direito para definir (dizer qual a

pessoa jurídica de direito público) ou limitar (estabelecer as

condições) competências (para instituir este ou aquele tributo ou

arrecadação pecuniária compulsória), essa palavra ou figura

jurídica não pode ter, quando da criação do tributo ou arrecadação

respectiva, o seu sentido original alterado (WOLKWEISS, 2002, p. 220). 20 O art. 110 do CTN, embora tenha inegável importância didática,

é mera afirmação do óbvio. [...] Ele afirma o óbvio, todavia, no que

tange à impossibilidade de a lei alterar a Constituição. No que

tange ao fato de a Constituição ter acolhido conceitos de Direito Privado, a afirmação não ostenta a mesma obviedade. Ao empregar

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ela deveria ser entendida com o significado que lhe é usualmente atribuído pelo Direito Privado? Dizer que assim deve ser porque previsto no art. 110 do CTN implicaria interpretar a Constituição à luz do CTN.

Isto quer dizer que o conceito de Direito Privado utilizado pela Constituição Federal não poderá ser alterado pela lei tributária. Destarte, o caso da mercadoria, previsto na Carta Magna, no seu art. 155, II, deve ser analisado em conformidade com o art. 110 do CTN, uma vez que a

legislação tributária seria imprópria para alterar a definição do vocábulo “mercadoria” e, consequentemente, exigir o tributo (STURTZ, 2003, p. 19).

Por derradeiro, a ampliação da definição deveria ser feita somente através de emenda constitucional. Isto porque nada impede que a Lei Maior altere o conceito de direito privado para fins tributários, que venha a equiparar a transmissão de dados digitalizados à circulação de mercadorias. Logo, percebe-se que a Carta Magna, por óbvio, tem autonomia sobre a regra do art. 110 do Código Tributário Nacional.

Então, entende-se que pode vir a Constituição Federal, em eventual alteração, acrescentando um parágrafo ao art. 155, a equiparar a transmissão de dados digitalizados à operação de circulação de mercadorias, para então estar obedecida, quanto ao conceito de mercadoria, a regra do art. 110 do CTN, e, quanto ao aspecto didático e científico, a hipótese de incidência do ICMS, restando, assim,

uma palavra em seu texto, por que ela deveria ser entendida com

o significado que lhe é usualmente atribuído pelo Direito Privado?

Dizer que assim deve ser “porque previsto no art. 110 do CTN” implicaria interpretar a Constituição à luz do CTN, o que não

parece adequado. Por outro lado, se a palavra empregada pela

Constituição possui significado claro previamente atribuído pela

legislação anterior, seja ela de Direito Privado ou não, por que

recorrer a outros significados, não jurídicos, na interpretação constitucional? (MACHADO SEGUNDO, 2017, p. 253).

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regulamentada a operação de comércio eletrônico direto para fins tributários.

CONCLUSÃO

O artigo apresentou como objeto de análise o comércio eletrônico e a tributação nas operações envolvendo a comercialização eletrônica de bens digitais disponibilizados por download, atribuindo ao objeto eventuais características de mercadoria passível de circulação que

pudessem ensejar hipótese de incidência do ICMS sobre bens digitais.

De modo consequente, foram relatados os principais aspectos que norteiam o ordenamento jurídico tributário nacional, concluindo-se que a rigidez principiológica, constitucional e normativa que rege o sistema tributário nacional, indica ainda mais a necessidade de adequação expressa e exata dos moldes indicativos jurídicos e tributários do objeto de estudo em questão, para que haja efetiva adequação aos padrões legislativos e conceituais propostos na esfera jurídico-tributária.

À vista disso, foram evidenciadas algumas especificidades teóricas e jurídicas que norteiam a utilização da internet para o comércio eletrônico, verificando-se possíveis controvérsias jurídico-tributárias que atingem a venda de bens digitais por download. A discussão mostrou-se relevante em consequência de supostas incompreensões no campo jurídico e da inércia legislativa em enfrentar a

complexidade de variações e especificações decorrentes do comércio eletrônico direto.

Dessa forma, conforme exposto ao longo do presente trabalho, bens digitais poderiam, em tese, ser classificados como mercadoria passível de circulação e, hipoteticamente, sujeito à incidência de ICMS, tendo em vista sua total intangibilidade, que decorre da ausência de meio físico; assim como em razão da obrigação que envolve a operação,

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que aparentemente não se enquadra em obrigação de dar (fornece fisicamente o objeto contratado), a qual seria necessária para incidência do tributo em comento.

Sendo assim, tem-se que as operações que envolvem a comercialização eletrônica de conteúdo digital seriam atingidas por obrigação de fazer, tendo em vista o fato de ao usuário ser permitido o download de bens digitais através de licença ou cessão do direito de uso, sem que a ele seja fornecido fisicamente o objeto contratado. Entretanto, há

divergência acerca do assunto, em virtude de que a venda direta de bens digitais disponibilizados por download, como uma espécie de prestação de serviço e abarcada na obrigação de fazer, requer a necessária e indissociável preexistência de bens corpóreos para que o usuário atinja a finalidade de uso do conteúdo digital.

Desse modo, não se deixa de levar em consideração os critérios normativos estabelecidos no ordenamento jurídico-tributário, em especial as limitações ao poder de tributar no tocante aos princípios e imunidades. Observa-se que eventuais alterações na seara conceitual do direito privado poderiam atender a finalidade jurídico-tributária, a qual viesse a equiparar a transmissão de dados digitalizados à circulação de mercadorias. Resultando, assim, na hipótese de incidência do ICMS, para fins de operação eletrônica na internet e tributação de bens digitais por download.

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TRADUTOR/INTÉRPRETE DE LIBRAS: UM

DIREITO DA PESSOA SURDA

Jéssyka Maia de Souza

RESUMO

O acesso à informação é um direito fundamental previsto no ordenamento jurídico brasileiro, disposto na Constituição Federal de 1988, entretanto, nota-se a ausência de acesso à informação quando se refere à pessoa surda, desde seu aprendizado - que é o que lhe dará base para a vida na sociedade - até uma simples consulta médica. O Decreto nº 5.626,12/05 dispõe sobre o papel do profissional intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) como meio legal de garantir as propostas de inclusão do surdos previstas nas leis. Assim, a atuação do profissional é de grande valor nesse novo contexto de inclusão da pessoa surda em nossa sociedade, uma vez que ele fará a interpretação e a tradução dos conteúdos para a pessoa surda. A Libras foi oficializada como segunda língua oficial brasileira, o que proporciona a política de inclusão de surdos e o uso e difusão de Libras em todas as esferas sociais e, no âmbito da educação. Neste segmento, ressalta-se a presença obrigatória do profissional nas instituições públicas federais, estaduais e privadas de ensino superior a fim de garantir aos alunos surdos o acesso à comunicação, à informação e à educação.

Palavras-chave: Tradutor/Intérprete de Libras; Libras;

Campo educacional.

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 197

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo conceituar a Comunidade e o Povo Surdo, a Libras (Língua Brasileira de Sinais), e o TILS (Tradutor/Intérprete de Libras). Além da conceitualização, mostrar a falta do TILS nas escolas, reunindo algumas matérias sobre a falta deste profissional. Com fundamentação na Constituição Federal em seu artigo 5º inciso XXXIII, bem como no inciso II do § 3 do art. 37 e no § 2 do art. 216. Demonstrando os direitos da Pessoa

Surda. Sendo esta, a proposta do artigo.

As pesquisas da Organização Mundial da Saúde (OMS) (2011) apresentam que 28 milhões do total de 190 milhões de pessoas possuem algum problema ligado à audição no Brasil. Sendo isso, 14% da população brasileira.

As pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2010) apresentam dados de que 9,8 milhões de brasileiros sofrem de deficiência auditiva1. Este número representa 5,2% da população brasileira, da qual 2,6 milhões são surdos e 7,2 milhões apresentam grande dificuldade para ouvir.

Foi a Organização das Nações Unidas (ONU) que aprovou a “Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, em 2006, que foi promulgada pelo Brasil através do Decreto nº 6.949, de 25/08/200928. Este documento foi marcante na história, uma vez que apresenta como princípios: o respeito pela dignidade à pessoa

1 Deficiência Auditiva: consiste na perda parcial ou total da

capacidade de detectar sons, causada por má-formação (causa

genética), lesão na orelha ou na composição do aparelho auditivo. Surdez: é considerado surdo todo aquele que tem total ausência

da audição, ou seja, que não ouve nada. E é considerado

parcialmente surdo todo aquele que a capacidade de ouvir, apesar

de deficiente, é funcional com ou sem prótese auditiva. Entre os

tipos de deficiência auditiva estão a condutiva, mista, neurossensorial e central.

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humana, a independência das pessoas. Visa a não discriminação, a participação e inclusão plena e efetiva na sociedade, o respeito pela diferença e aceitação dos “deficientes”; a igualdade de oportunidades, a acessibilidade, além do respeito pela evolução das capacidades das crianças “deficientes” e o direito à preservação da identidade.

Ao longo dos tempos as pessoas com deficiências foram tidas como demônios, criaturas de Deus, seres

amaldiçoados, videntes, pobres coitados e doentes, valores estes atribuídos à deficiência. Esse conceito de deficiência é resultado de séculos de construção teórica e baseia-se no modelo médico e social2.

O modelo médico é baseado na doença, na patologia, tem como objetivo a cura e/ou recuperação do dano. O modelo social tem o foco nos prejuízos sociais, e objetivos a modificação da sociedade para substituir as desvantagens da pessoa com deficiência.

O modelo que adotamos atualmente visa à melhoria da qualidade de vida permitindo a participação ativa das pessoas portadoras de deficiência na sociedade.

1. HITÓRIA DA PESSOA SURDA

De forma sucinta, cabe esclarecer historicamente a vida dos surdos ao longo do tempo. Há poucos registros de pessoas surdas na história, devendo-se levar em conta que eram dominados por ouvintes, e sendo totalmente excluídos

da vida social.

2Segundo Skliar (2005, p. 15), o ouvintismo é “um conjunto de

representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está

obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Além

disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as

percepções do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam as práticas terapêuticas habituais”.

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A presença do povo surdo é tão antiga quanto à humanidade.

Sempre existiram surdos. O que acontece, porém, é que nos diferentes momentos históricos nem sempre eles foram respeitados em suas diferenças ou mesmo reconhecidos como seres humanos. (STROBEL, 2008b, p. 42).

Nas primeiras civilizações houve diferentes formas de tratamento aos sujeitos surdos. Sobre as pessoas surdas no Egito e na Pérsia, Strobel diz:

Para os países Egito e Pérsia, os surdos eram considerados como

sujeitos privilegiados enviados dos deuses, porque pelo fato dos

surdos não falarem e viverem em silêncio, eles achavam que os sujeitos surdos conversavam em segredo com os deuses numa espécie de meditação espiritual. Havia um possante sentimento de respeito, protegiam e ‘adoravam’ os surdos, todavia os sujeitos surdos eram mantidos acomodados sem serem instruídos e não tinham vida social. (2008b, p. 82).

Alguns filósofos da época, como Sócrates, pensavam que os símbolos tinham que ser falados, e detinha do seguinte pensamento:

Se não tivéssemos voz nem língua e ainda assim quiséssemos expressar coisas uns aos outros, não deveríamos, como aqueles que ora são mudos, esforçar-nos para transmitir o que desejássemos dizer com as mãos, a cabeça e outras partes do corpo?.

Aristóteles, atrapalhou por dois séculos a educação do povo surdo, por considerar que os surdos eram mudos, e acreditar que a linguagem proporcionava a condição de humano para o indivíduo, sendo então, o surdo considerado um não-humano caso não tivesse a linguagem, vinculando a fala à estruturação do pensamento, a voz como condição

para a linguagem, e a linguagem como processo para o homem se considerar animal político. Por isso afirmava que o “surdo não pensa, não pode ser considerado humano”. (GOLDFELD, 1997, p.24).

É na Política (1, 2, 1253) que vai ser explicada a natureza da linguagem. O animal político (zôon politikón) liga-se necessariamente à faculdade humana de falar, pois sem linguagem não haveria sociedade política. (…) A natureza não faz nada em vão e, dentre os animais, o homem é o único que ela dotou de

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linguagem. Sem dúvida a voz (phoné) é uma indicação de prazer ou

de dor, e também se encontra nos outros animais; o lógos, porém, tem por fim dizer o que é conveniente ou inconveniente e, conseqüentemente, o que é justo ou injusto” (NEVES, 1981, p. 58).

Os romanos não aceitavam os surdos na sociedade, os matavam jogando no rio ou os abandonando. Só conseguiam sobreviver aqueles que os pais escondiam ou que eram escravizados.

[…]por volta de 753 a.C., o fundador da Roma, o imperador Rômulo, decretou uma lei onde todos os recém-nascidos que

fossem incômodo para o Estado deveriam ser mortos até aos três anos. 22 Então, por isso, muitos surdos não conseguiam fugir deste destino bárbaro. (RADUTZKY apud STROBEL, 2006, p. 248).

No decorrer dos anos os surdos foram privados de todos os direitos legais da sociedade dita normal da época, por serem considerados deficientes, havia leis que os excluíam. Eram privados do convívio social. Eram impedidos de adquirirem bens, propriedades e até de casar. (STROBEL 2008).

Ser surdo, ao longo da história, não foi fácil, foram feitas muitas injustiças atrozes contra nós, não aceitavam o ‘diferente’ e nossas ‘diferenças’(STROBEL,2008).

Não cabe a esta pesquisa, classificar os surdos como deficientes ou não. Mas para entendimento do trabalho, faz-se necessário a conceituação desses termos, já que as pessoas surdas são classificadas pela sociedade como “deficientes”, mais especificamente deficientes auditivos (D.A)3.

Segundo Skliar (1998, p.11) “a surdez constitui uma diferença a ser politicamente reconhecida; a surdez é uma experiência visual; a surdez é uma identidade múltipla ou multifacetada e, finalmente, a surdez está localizada dentro do discurso sobre a deficiência”. Há duas abordagens

3 Segundo dicionário Aurelio, Mudo: adjetivo substantivo masculino, aquele que ou quem não fala, não tem ou perdeu a capacidade de falar.

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culturais de surdez, a clínica-patológica, que defende que a surdez é uma deficiência que pode ser curada pela medicina, Strobel (2008, p.36):

A concepção clínico-patológica concebe a surdez como uma deficiência a ser curada através de recursos como: treinamento de fala e audição, adaptação precoce de aparelhos de amplificação sonora individuais, intervenções cirúrgicas como o Implante Coclear etc. Nesse sentido, o encaminhamento é o trabalho fonoaudiológico e a escola comum, com o objetivo de “integrar” a

pessoa surda no mundo dos ouvintes através da “normatização” da fala.(p.36).

E a sócio antropológica que defende o respeito ao surdo e não a cura da surdez, Strobel (2008, p.36):

A concepção sócio antropológica concebe a surdez como uma diferença a ser respeitada e não uma deficiência a ser eliminada. O respeito à surdez significa considerar a pessoa surda como pertencente a uma comunidade minoritária com direito à língua e cultura própria.

1.1 Surdo-mudo, surdo e surdo

Para esclarecer as terminologias da surdez, é importante falar sobre os termos para se referir às Pessoas surdas. O primeiro deles é o termo surdo-mudo e o segundo o termo é Surdo e/ou surdo.

O termo surdo-mudo é usado erroneamente ainda nos dias de hoje, e é de toda forma repudiado pela comunidade surda, uma vez que a Mudez é uma deficiência sem conexão com a surdez, da pessoa que não tem a capacidade de falar, no entanto, os surdos apresentam o aparelho fonador preservado, emitem sons, podem falar por meio da Língua de sinais, e há ainda, aqueles que conseguem se tornar oralizados, por motivos pessoais, ou por imposição da ouvintista4, descartando, com isso, a característica de ser mudo5,

4 ASL: American Sign Language 5 INSM: Instituto Nacional de Surdos e Mudos

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(...) as comunidades de surdos de todo o mundo passaram a ser

comunidades culturais (...) "falantes" de uma língua própria. Assim, mesmo quando não vocaliza, um surdo pode perfeitamente "falar" em sua Língua de Sinais, não cabendo à denominação SURDOMUDO. Por outro lado, a mudez é um tipo de patologia causado por questões ligadas às cordas vocais, à língua, à laringe ou ainda em função de problemas psicológicos ou neurológicos. A surdez não está absolutamente vinculada à mudez (...). Dizer que alguém que fala com dificuldades é MUDO é preconceituoso, não acham? (RAMOS apud STROBEL, 2008b, p. 34).

A terminologia com a inicial maiúscula ou minúscula

é importante, pois o termo Surdo com a letra S maiúscula, se refere à surdos que assumem a identidade surda e são usuários da Libras - vale ressaltar que não são todos que se sentem desta forma – e o termo surdo com a letra s minúscula, se refere a todos os surdos, e não apenas aos que usam Libras.

Nos Estados Unidos as terminologias de nacionalidades, povos e línguas sempre usam a letra maiúscula. Segundo os surdos linguistas americanos Padden e Humphries (2000), o povo surdo americano optou por ‘Deaf’. Sendo o D maiúsculo para representar a comunidade usuária da ‘ASL’6 e uma cultura diferente, porém as pessoas que têm alguma "deficiência auditiva", como idosos ou ouvintes que subitamente perdem a capacidade de ouvir, não são ‘Deaf’, mas sim ‘deaf’. O uso da palavra ‘deaf’ com letra minúscula trata das pessoas que não ouvem, seja qual for a sua identidade cultural.

Utilizaremos o termo surdo nesta pesquisa, pois

trataremos do Direito da Pessoa surda, sem distinção.

6 Perlin (2006, p. 138), a primeira doutora surda do país, diz que,

“As identidades surdas são multifacetadas, fragmentadas, em

constantes mudanças; jamais se encontra uma identidade

26213 mestre, um foco. Os surdos passam a serem surdos

através da experiência visual, de adquirir certo jeito de ser surdo”.

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1.2 Congresso de Milão em 1880

O Congresso de Milão foi o Congresso Internacional de Educadores de Surdos, realizado no ano de 1880 em Milão. Reunia os intelectuais da época para tratar sobre qual seria o melhor método para a educação dos surdos, se com oralismo ou com a Língua de sinais. Houve a votação de quais métodos seriam utilizados, no entanto todos os participantes surdos foram excluídos e não puderam votar. Ficou decidido então que o método adotado seria o Oralista,

o que proibiu a Língua de sinais.

Podemos destacar Alexander Granham Bell (1847-1922), como o oralista mais influente e poderoso da época - considerado inventor do telefone -, deu continuidade ao trabalho de seu pai, ensinando o oralismo puro para os surdos.

Alexander Grahan Bell escreveu muitos artigos criticando a cultura surda e a língua de sinais alegando que era inferior à língua oral e não propiciava o desenvolvimento intelectual dos sujeitos surdos. (STROBEL, 2008b, p. 88).

Bell reuniu-se com oralistas europeus para organizar este congresso, que por vez foi um momento obscuro para as comunidades surdas de todo o mundo, provocando atraso da cultura surda e um bloqueio de séculos na educação dos surdos.

O Congresso Internacional de Educadores de Surdos, realizado em

1880 em Milão, no qual os professores surdos foram excluídos da votação, o oralismo saiu vencedor e o uso da língua de sinais nas escolas foi “oficialmente” abolido. Os alunos surdos foram

proibidos de usar sua própria língua “natural” e, dali por diante, forçados a aprender, o melhor que pudessem, a (para eles) “artificial” língua falada. E talvez isso seja condizente com o espírito da época, seu arrogante senso da ciência como poder, de comandar a natureza e nunca se dobrar a ela. (SACKS, 1998, p. 40).

Durante grande parte do século XX, o oralismo foi predominante nas instituições de ensino para surdos de diferentes países do mundo. A Língua de sinais era proibida nas escolas sobre o pretexto de que a comunicação manual

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prejudicava o aprendizado da língua oral, dizia-se que a língua gestual deixava os indivíduos preguiçosos. Há registro de punições para aqueles que eram pegos sinalizando, como ter suas mãos amarradas para evitar que os alunos sinalizassem.

Os surdos geralmente ficam incomodados quando a língua de sinais chama a atenção dos outros ao seu redor. Estendem os olhares não só como curiosos, mas também como de desprezo. A principal causa desse comportamento originou-se em razão da geração passada dos surdos daqui ser mantida na opinião que a

língua de sinais é inferior à língua oral. (...) algumas vezes me esforço e devolvo o olhar dos outros com um sorriso. Eles não têm culpa. Talvez não tenham recebido as informações necessárias (...) (STRNADOVA, 2000, p.81).

Cabe ressaltar que, com isso, os surdos eram obrigados a oralizar, eram submetidos a tratamentos auditivos, bem como isolados de comunidades surdas. O discurso patógico sobre a surdez foi reacendido, tratando o surdo como um doente ou um incapaz que precisava ser normalizado. Mas muitos surdos confrontavam o ouvintismo forçado, e, faziam conversas privadas, em encontro com amigos, encontros de associações e práticas desportivas, assim, as comunidades surdas se fortaleciam, e promoviam a luta por seus direitos.

2. CULTURA SURDA

Para Frederick Schiller (apud EAGLETON,2005), a cultura é a estrutura daquilo que é chamado de “hegemonia”, que molda os sujeitos humanos às

necessidades de um tipo de sociedade politicamente organizada, remodelando-os com base nos atuantes dóceis, moderados, de elevados princípios, pacíficos, conciliadores. Isso evidencia que esta sociedade gerou o desejo da necessidade de sermos perfeitos para pertencermos a ela, senão estaríamos excluídos.

Segundo Strobel (2009), a cultura surda, seria o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim

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de torná-lo acessível e habitável, ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das “almas” das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo, tudo o que faz parte da experiência de vida dos surdos.

Entendemos então, que as pessoas surdas vivem em uma cultura diferente da cultura hegemônica dos sujeitos ouvintes: Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de se torná-lo acessível e habitável ajustando-os com as

suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas e das almas das comunidades surdas. [sic] (STROBEL, 2008, p. 24).

A cultura surda, apensar de ter sido muito abalada ao longo da história com a proibição do uso da Língua de sinais. No entanto não se deu por vencida e lutou para se fortalecer perante todo o sofrimento e preconceito que sofreu.

Em 1957, o INMS7, passou a ser chamada de Instituto Nacional de Educação de Surdo (INES), que foi vinculado a Secretaria de Educação, regido pela portaria nº323 de 08/04/2009.

Pode-se dizer que nos dias atuais a cultura surda do país tem se fortalecido, com a defesa do ensino de Libras, com a luta pelos direitos à acessibilidade.

Impulsionado pelas tendências mundiais em torno da discussão sobre as línguas de sinais e a cultura surda, o povo surdo brasileiro vive, atualmente, um momento de fortalecimento de seus

movimentos de luta em defesa da Libras e da acessibilidade e, pelo reconhecimento e respeito à cultura surda no Brasil. (BARROS; HORA, 2009, p.41).

Dito isso, cabe ressaltar que os surdos vivem, ao mesmo tempo, em dois mundos diferentes, um na cultura surda e outro na cultura dos ouvintes, quando este indivíduo vive dentro da cultura ouvinte, pode resultar em

7 Datilologia: Comunicação através de sinais feitos com os dedos.

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confusão de identidade8, isolamento do individuo, dentre outras consequências que podem fazer com que muitos se sintam discriminados, desvalorizados, inferiorizados por essa cultura.

Como exemplo de um indivíduo surdo na cultura ouvinte Strobel (2008, p. 23) afirma:

[...] o nascimento de uma criança surda é uma catástrofe porque estão acostumados com o padrão “normalizador” para interagir à vida social e também desconhecem o “mundo dos surdos”. Por

outro lado, na maioria das vezes, o povo surdo acolhe o nascimento de cada criança surda como uma dádiva preciosa e não agem como os pais ouvintes que sofrem exageradamente o desapontamento inicial de gerarem seus filhos surdos, isto é evidenciado nas várias gerações de famílias com todos os membros surdos da família.

Strobel (2008), também relata uma situação visual que teve como experiência em determinada circunstância.

[...] meu namorado ouvinte me disse que iria fazer uma surpresa pra mim pelo meu aniversário; falou que iria me levar a um restaurante bem romântico. Fomos a um restaurante escolhido por ele, era um ambiente escuro com velas e flores no meio da mesa, fiquei constrangida porque eu não conseguia acompanhar a leitura labial do que ele me falava por causa da falta de iluminação, pela fumaça de vela que desfocava a imagem do rosto dele, que era negro, e para piorar, havia um homem no canto do restaurante tocando musicas que, sem poder escutar, me irritava e me fazia perder a concentração por causa dos movimentos dos dedos repetidos de vai-e-vem com seu violino. Meu namorado percebeu o equivoco e resolvemos ir a uma pizzaria! Strobel (2008, p. 38).

Aqui vimos uma diferença entre as duas culturas, o que na cultura ouvinte seria um jantar romântico, na

cultura surda não seria, levando em consideração o local em que se encontravam, escuro e de dificil visibilidade, o que para os surdos é essencial, já que a Língua é visual-espacial.

8 Segundo Theodor (1976, p.13), tradutor é aquele que torna

compreensível aquilo que antes era ininteligível, e já por isso deve ser encarado como um intérprete por excelência.

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2.1 Comunidade e povo surdo

Os autores surdos americanos Padden e Humphries ( 2000,p5.) dizem que:

Comunidade surda é um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham os objetivos comuns de seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de alcançarem estes objetivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas próprias Surdas, mas que apoiam ativamente os objetivos da comunidade e trabalham em conjunto com as pessoas Surdas para os alcançar. (PADDEN e HUMPHRIES

apud STROBEL, 2008, p. 30).

E o conceito de “povo”:

[...] conjunto de pessoas que falam a mesma língua, têm costumes e interesses semelhantes, historia e tradições comuns. [...] conjunto de pessoas que vivem em comunidade num determinado território; nação, sociedade [...] conjunto de indivíduos de uma mesma ou de várias nacionalidades, agrupados num mesmo Estado. [...] conjuntos de pessoas que não habitam o mesmo país, mas que estão ligadas por uma origem, sua religião ou qualquer outro laço. (HOUAISS; VILLAR, 2001,p. 2275).

Logo o povo surdo o “povo surdo é o grupo de sujeitos surdos que usam a mesma língua, que tem costumes, história, tradições comuns e interesses semelhantes” (STROBEL, 2008, p. 30).

Podem faz parte da comunidade surda todos aqueles que de alguma forma apoiam e estão em contato com as pessoas surda, bem como os pais, intérpretes e professores, etc. Mas para fazer parte do Povo surdo, diferente da comunidade surda, a pessoa precisa aceitar sua identidade

surda.

O povo surdo, como já foi dito, por muito tempo foi tido como deficiente e até mesmo “doente mental”, o que fez com que muitos surdos não quisessem admitir a surdez, não aceitando sua identidade. Também há aqueles que, por algum motivo, ficam surdos e que não aceitam isso.

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3. LIBRAS: LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS

Antes de falar sobre a Língua brasileira de sinais, há de se falar da Língua de sinais. Mas por que? Qual a diferença?

A Língua de Sinais foi criada pelo Monge Charles-Michele de L’epée, na metade do século XVIII. Os monges realizavam o Voto de silêncio, o que os impedia de conversar de forma Oral, logo, precisariam se comunicar de outra

forma. As línguas de sinais são diferentes umas das outras e independem das línguas orais auditivas utilizadas em outros países. Por exemplo: Brasil e Portugal possuem a mesma língua oficial, o Português, mas a línguas de sinais são diferentes, no Brasil é usada a Libras, e em Portugal, é usada a Língual Gestual Portuguesa (LGP); o mesmo acontece com os Estados Unidos, usa-se American Sign Language (ASL) e na Inglaterra: Língua de Sinais Britânica (BLS), ambos utilizam o Inglês como língua oral.

Libras é a língua de sinais que se constitui naturalmente na comunidade surda brasileira. É uma língua viva e autônoma, reconhecida pelas linguísticas por apresentar todos os níveis que constituem quaisquer outras línguas e possui níveis de: síntese (estrutura), semântica (significado), morfológico (formação de palavra), fonológico (unidades que constituem a língua) e pragmático (contexto conversacional).

Segundo Greice Kelli Sonsin (2012):

A Libras, teve sua origem na língua de sinais francesa, é uma forma de comunicação dos surdos. Sendo reconhecida como 2ª língua oficial do Brasil pela lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, e regulamentada por meio do decreto 5626/2005, pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reconhece como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais, e outros recursos a ela associados, ratifica o dever da garantia, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, de formas institucionais de apoiar o uso e difusão de libras como meio de

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comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades

surdas do Brasil.

Ela possui seu alfabeto manual, com letras de A a Z, bem como números de 0 a 9, conhecido como “alfabeto datilológico”, recurso utilizado nas seguintes situações:

• Quando não existir ou se desconhecer um sinal pronto para a palavra ou conceito na língua de sinais;

• Para nomes próprios;

• Para títulos de trabalhos;

• Para explicar o significado de um sinal para um ouvinte que conheça o alfabeto manual.

Essa imagem ilustra o alfabeto manual da Libras:

Ela possui configuração de mão, que seriam os parâmetros gramaticais da língua de sinais.

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Fonte: LSB – Língua Brasileira de Sinais LTDA (2017).

O alfabeto manual não é a própria língua de sinais, no entanto ele permite soletrar palavras específicas e complementa a utilização da língua de sinais. Libras é a primeira língua (L1), a língua principal do surdo, e tem Português como segunda língua (L2).

É por meio da Libras que as possibilidades cognitivas e conceituais para nomear e categorizar a realidade

acontecem. É por meio dela que o surdo tem acesso à cultura, ao conhecimento e à integração social.

Um exemplo de uma frase nas duas línguas, para esclarecer a diferença:

• Em português -: “O meu sobrinho vai se formar como jornalista em dezembro”

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• Em Libras: - “Dezembro agora sobrinho meu

formatura jornalista”.

Para o ouvinte, não inserido na comunidade surda, esta frase estaria errada, por isso eles julgam o português do surdo como errado.

Erika Longone(2012) diz que,

Para o surdo, a aquisição da modalidade escrita representa a alfabetização em uma outra língua com diferenças sintáticas, morfológicas e fonéticas. Por isso, as irregularidades

morfossintáticas identificadas na escrita dos indivíduos surdos coincidem com construções próprias da língua de sinais, dito isso entraremos no assunto do Profissional que possibilita a comunicação entre as línguas, aquele que fará o surdo aprender, na sua língua, o conteúdo que lhe é dado.

Então nos perguntamos “à escola inclusiva não seria o suficiente para ensinar os surdos?” – não devemos considerar as escolas regulares, pois estas de forma nenhuma estão preparadas para ensinar surdos, levando em conta que já vimos o método oralista não funcionar para eles – A escola inclusiva, apesar de inserir o surdo no aprendizado, na prática, não se adapta ao surdo. Podemos dar como exemplo, uma aula de português onde a professora prepara o Ditado para aula. Como um aluno surdo irá participar? Há de se adaptar, mostrar as imagens do que será dito, enquanto para o aluno ouvinte ela irá falar “bola” para que ele escreva, ao aluno surdo, ela irá mostrar a imagem da bola para que ele escreva o nome. Também podemos dar como exemplo uma aula de recreação, onde o professor escolhe a brincadeira “vivo-morto” que tem como objetivo testar a agilidade, atenção, pensamento rápido, bem como reflexos da criança. Para o aluno surdo, deveria haver adaptações, como ao invés de ser falado, poderiam ter uma placa com 2 cores, uma para que a criança abaixe e outra para que levante. Estes exemplos se referem a escola inclusiva, onde o surdo seria incluído na escola regular.

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4. PROFISSÃO DO TRADUTOR/INTÉRPRETE DE

LIBRAS

Tradutores e intérpretes são profissionais da língua, trabalham com a língua A e com a língua B, não trataremos como língua nativa e estrangeira, pois a língua foco desta pesquisa não é estrangeira. São profissionais sócio, político, economicamente distintos; traços que fazem diferença na escolha das palavras na hora da interpretação. Ainda hoje, o senso comum sustenta a ideia de que para traduzir basta

saber falar a língua, ignorando a pessoa tradutor, mantendo a ( ilusão) da invisibilidade do tradutor no processo tradutório. A tradução deixa de ser vista como um ato linguisticamente mecânico, ou seja, uma simples mudança de código, mas como um entendimento entre dois grupos linguísticos no mesmo contexto.

Tradutor é a pessoa que traduz de uma língua para outra. Ele fará o mesmo papel que o intérprete, mas com a tradução – a diferença entre os dois é que a interpretação se faz de forma oral e a tradução pela forma escrita e/ou de forma não falada, como livros, revistas, novelas, teatros, etc.

Intérprete de língua de sinais é pessoa que interpreta de uma dada língua de sinais para outra língua, ou desta outra língua para uma determinada língua de sinais. Ele é o profissional que domina a língua de sinais e a língua falada do país, no nosso caso a língua portuguesa, e que é qualificado9 para desempenhar a função de intérprete. No nosso país, o TILS deve dominar a língua brasileira de sinais

e a língua portuguesa.

A profissão do TILS é regulamentada pelo Decreto 5.626 que prevê a inserção da língua de sinais como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de

9 A qualificação se da por meio do Prolibras (Certificação de

proficiência na tradução e interpretação da libras-português-libras ), ou pela formação no curso de Letras Libras – bacharelado.

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professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e como disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional. Prevê também a formação de profissionais surdos e ouvintes para o ensino da língua de sinais,assim como a formação e avaliação dos Intérpretes e Tradutores de Libras, entre outras diversas e importantes ações.

O decreto 5.626/05 regulamenta a profissão do TILS, e trata em seus capítulos sobre, a inclusão da libras como

disciplina curricular, da formação do professor de libras e do instrutor de libras, do uso e da difusão da libras e da língua portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação, da formação do tradutor e intérprete de libras - língua portuguesa, da garantia do direito à educação das pessoas surdas ou com deficiência auditiva, da garantia do direito à saúde das pessoas surdas ou com deficiência auditiva, do papel do poder público e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos, no apoio ao uso e difusão da libra.

CONCLUSÃO

Observa-se no decorrer da pesquisa que foram muitas conquistas quanto ao Direito da pessoa surda, e que este espaço esta sendo cada vez mais conquistado. Mas apesar das conquistas pelas Leis e decretos, o direito ao TILS no Brasil ainda é negado a vários surdos, há de se dizer que este direito é pouco conhecido, no geral a comunidade surda

ainda é pouco conhecida, tendo em vista o seu histórico.

Foram selecionadas algumas imagens de notícias sobre a falta de TILS nas Instituições de ensino:

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Como vimos anteriormente, o TILS é crucial para a comunicação dos surdos quando há português-libras nas escolas inclusivas, visto isso quando há a falta do TILS, o surdo volta ao método oralista, mesmo que não tenha suas mãos amarradas, ainda assim não irão aprender, não podendo se desenvolver como as outras crianças, perdendo um período importante no crescimento pessoal, bem como prejuízos psicológicos por tudo que tem de passar para poder exigir um direito que está sendo negado a eles.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 217

ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A

INCLUSÃO ESCOLAR

Uma sociedade que exclui uma parte de seus membros é uma sociedade empobrecida. As ações que melhoram as condições para pessoas com deficiência resultarão em se projetar em mundo flexível para todos”. Declaração de Madri1

Kátia Victoriano Bunn

RESUMO

Estamos na era do conhecimento da inclusão escolar de alunos com necessidades educacionais especiais. Sancionada recentemente a Lei Federal nº 13.146/2015, de 06 de julho e publicada no dia seguinte, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, que determina a obrigatoriedade em acolher e matricular todos os alunos, independente das suas necessidades e diferenças, tem gerado grandes discussões sobre o assunto, sobretudo no âmbito das escolas particulares. Este artigo faz uma reflexão sobre esta legislação específica verificando se ela efetivamente tem cumprido a garantia a que se compromete, proporcionando a todo aluno com necessidades educacionais especiais, condições de aprendizado e desenvolvimento das suas potencialidades. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada por meio de método dedutivo e de procedimento técnico bibliográfico e documental. Todos os alunos com necessidades educacionais especiais, devem

1 Declaração de Madri – Resultou do Congresso Europeu sobre

Deficiência, realizado em 2003 quando foi declarado o Ano

Europeu das Pessoas com Deficiência, sobre os direitos de mais

de 50 milhões de pessoas com deficiência. Disponível em:

<www.apaebrasil.org.br/arquivo/27133+&cd=9&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em:

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 218

ter garantido seu direito de acesso e permanência na escola, quer seja pública gratuita ou particular, para que esses indivíduos não sejam privados do exercício de seus direitos humanos, de suas liberdades fundamentais, do direito de viver em igualdade com os demais, e proporcionando independência e postura crítica frente aos fatos do dia a dia, corroborando a inclusão nas escolas.

Palavras-chave: Adequação das escolas; direitos humanos; igualdade; inclusão escolar.

INTRODUÇÃO

O Estatuto da Pessoa com Deficiência além de versar sobre Direitos Humanos e ter status de emenda constitucional, reflete a mais moderna visão inclusiva que dá concretude à dignidade da pessoa humana.

Entretanto, estudos realizados pelo Ministério da Educação comprovam que 53% dos pais de crianças com necessidades especiais não matriculam seus filhos nas escolas porque têm medo deles sofrerem algum tipo de preconceito, de não conseguirem se locomover dentro da escola ou até mesmo não terem condições de aprender as lições.

Dados do IBGE elaborados em parceria com o Ministério da Saúde no ano de 2016 revelaram que 6,2% dos brasileiros têm algum tipo de deficiência, ou seja, um

número quase cinco vezes maior que a população de países como Bolívia e Cuba, levando-se em consideração o número de habitantes do país no mesmo ano.

O Brasil tem até 2024 para cumprir uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) e universalizar, para a população de 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na

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rede regular de ensino. Questiona-se, porém, como cumprí-la se o governo não sabe exatamente quantas crianças e jovens nessas condições estão fora da escola.

A política de inclusão dos alunos na rede regular de ensino que apresentam necessidades educacionais especiais, não se refere apenas na permanência física desses alunos. É fundamental rever concepções e paradigmas, respeitando e valorizando a suas diversidades para que se possa determinar que a escola defina como responsabilidade

a criação de espaços inclusivos.

O artigo 205, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), dispõe sobre a educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Já o art. 206, inciso I, da CF/88 estabelece a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” como um dos princípios para o ensino e, o art. 208, da CF/88, garante como dever do Estado, a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.

A Lei Federal nº 13.146/2015, determina a obrigatoriedade em acolher e matricular todos os alunos, independente das suas necessidades e diferenças, tem gerado grandes discussões sobre o assunto, sobretudo no âmbito das escolas particulares, pois endossada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2016, a Ação de Inconstitucionalidade 5357, disciplinou que embora a responsabilidade originária da educação especial seja das instituições públicas, o STF julgou constitucionais as normas da referida lei, que estabelecem a obrigatoriedade de as escolas privadas promoverem a inserção de alunos com deficiência no ensino regular e prover as medidas de adaptação necessárias sem que ônus financeiro seja repassado às mensalidades, anuidades e matrículas.

A cada ano, aumenta o número de pessoas com deficiência em salas de aula. O aumento captado através de

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estudos, de acordo com especialistas, deve-se, sobretudo a mudanças na legislação. Contudo, não basta apenas garantir o acesso. As escolas precisam reconhecer e responder às diversas dificuldades de seus alunos, acomodando os diferentes estilos e ritmos de aprendizagem e assegurando uma educação de qualidade para todos mediante currículos apropriados, modificações organizacionais, estratégias de ensino, recursos e parcerias com suas comunidades.

Dessa forma, a inclusão significa que não é o aluno que se molda ou se adapta à escola, mas a escola consciente de sua função coloca-se à disposição do aluno provendo estrutura atualizada, capacitação do corpo docente e de toda equipe de funcionários das escolas dentro de um processo democrático.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A história da pessoa com deficiência é permeada de preconceitos, abandono, sacrifício e até mesmo eliminação. Na antiguidade, segundo Aranha (2008, p. 13), estudos comprovam que as crianças que nasciam com alguma deficiência perceptível eram abandonadas ao relento e ali, permaneciam até que viessem ao óbito. No decorrer do tempo, estes indivíduos receberam os mais diversos tipos de tratamento.

Na Grécia, por exemplo, onde a perfeição do corpo era cultuada, os deficientes eram sacrificados ou escondidos.

Platão e Aristóteles determinaram em seus livros A República e A Política respectivamente, o planejamento das cidades gregas e indicavam as pessoas nascidas “disformes” para a eliminação que poderia ser por exposição, abandono ou atiradas do aprisco de Taygetos2 (GUGEL, 2007).

2 Taygetos - O Monte Taygetos é uma das montanhas mais altas da Grécia, com uma altura de 2404 metros. Mt. Taygetos. Discover

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Assim como na loucura, Amaral (1994, p. 25) leciona que as pessoas deficientes ficavam a margem de dois entendimentos controvertidos que se explicava com a presença de deuses ou demônios e, por isso, cabia ao próprio pai exterminar o filho que nascia com alguma deficiência.

Apesar desse contexto nem todas as crianças eram mortas. Kitahara e Custódio (2017, p. 82) explicam que, na Itália, algumas crianças com deficiência eram colocadas em

cestos de flores às margens do rio Tibre. Pessoas pobres a pegavam para serem criadas com o objetivo de pedirem esmolas quando adultas ou para fazer parte de circos e divertir a corte dos palácios.

Desponta então, o cristianismo, doutrina precursora da caridade e do amor que lutou contra a eliminação dos filhos nascidos com deficiência. Embora os cristãos tenha sofrido grande perseguição, conseguiram modificar o entendimento dos romanos a partir do século IV quando foram criados os primeiros hospitais de caridade que davam abrigo aos indigentes e pessoas com deficiências (GUGEL, 2007).

Na Idade Média marcada pela precariedade das condições de vida e saúde das pessoas e pelo domínio da Igreja Católica, no qual a bruxaria/feitiçaria tornaram-se justificativas incontestáveis para os que não se rendiam as determinações da corte e do clero, pois as pessoas eram respeitadas por sua imagem e semelhança de Deus. Por isso, denominavam-se os que nasciam com alguma deficiência como “endemoniados”, e o tratamento aplicado era tortura ou a morte na fogueira (OLIVEIRA, 2010, p. 30).

A Idade Moderna tornou-se um marco entre uma época de ignorância e o nascer de uma nova era, fundamentado no

Sparta/Natural Beauty. Disponível em:

<http://www.exploresparta.gr/tourism/en/mt-taygetos/> Acesso em: 02 nov. 2017.

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humanismo, o homem passa a ser visto como um animal racional. São apresentadas novas ideias sobre a deficiência com métodos científicos como a tese da organicidade que a descreviam como um problema patológico e não espiritual ou moral, que prescrevia medicação e tratamento (KITAHARA, CUSTÓDIO, 2017, p.82).

Relata Gugel (2007) que os séculos XVII e XVIII foi uma época de grande desenvolvimento para as pessoas com deficiência, pois passaram a ter assistência especializada

em hospitais, oferecendo tratamento ortopédico para os mutilados de guerra e para pessoas cegas e surdas.

De acordo com Aranha (2008, p. 13) foi desta forma que iniciaram-se os tratamentos médicos em hospitais especiais para essas pessoas, no entanto, tinham a característica de confinar, mais do que tratar, os pacientes considerados doentes e/ou, que estivessem incomodando a sociedade.

Com a chegada do século XIX surge uma nova visão da pessoa com deficiêcia. Nesse sentido, Gugel (2007) explica:

Charles Barbier, capitão do exército francês, após solicitação de Napoleão desenvolveu um código para ser usado em mensagens transmitidas à noite durante as batalhas. Rejeitado pelos militares devido a sua complexidade, foi apresentado por Barbier no Instituto Nacional de Jovens Cegos em Paris. Dentre os alunos que assistiram a apresentação estava Louis Braille que tinha 14 anos e, sugeriu algumas alterações que foram recusadas por Barbier. Braille modificou totalmente o sistema que até hoje é utilizado por pessoas cegas.

No Brasil, influenciado pelos educadores da Europa e Estados Unidos, o imperador D. Pedro II, criou o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, hoje Instituto Benjamin Constant e depois fundou o Imperial Instituto de Surdos e Mudos, atualmente Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES, ambos em atividade e referências nacional para essas deficiências específicas (DICHER; TREVISAM, 2015, p. 12).

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Afirma Gugel (2007) que no século XX ocorreu o aperfeiçoamento das técnicas e dos instrumentos tecnológicos assistivos. Por toda a Europa começou-se a perceber que as pessoas com deficiência deveriam participar de forma ativa do dia a dia da sociedade. Esta percepção efetivou-se por meio de leis em diversos países reconhecendo os direitos das crianças com deficiência.

Contudo, Hudson (2011, p. 508) leciona que dentre as atrocidades cometidas na Alemanha Nazista houve um

programa nomeado T4 que tinha como objetivo a eutanásia para crianças deficientes com o lema “... porque Deus não quer que o doente se reproduza”. Havia também, a intenção de expandir-se aos adultos, o que foi realizado no Holocausto em nome da raça ariana pura.

Acrescenta ainda Hudson (2011, p. 508) que Hitler mandou exterminar não só as crianças e adultos com deficiência, mas, determinou também que os indivíduos que supostamente tinham hereditariedade para cegueira, surdez e deficiência mental fossem esterilizados, o que gerou um número lastimável de execuções e esterilizações desta população que causava risco a raça pura que ele almejava.

Após a II Guerra Mundial os países abatidos pela barbárie ocorrida e com a intenção de reconstruir o mundo sob uma nova ideologia, elaboraram uma declaração com objetivo de resguardar a dignidade, o valor da pessoa humana e os direitos fundamentais, chamada de Declaração dos Direitos Humanos, que apesar de timidamente, promoveu progressos em relação ao cuidado a ser dispensado à pessoa com deficiência (DICHER; TREVISAM, 2015, p. 14).

No Brasil, graças a Constituição Federal de 1988 foi determinado o direito a igualdade como forma de dissipar toda e qualquer tipo de discriminação e promover a inclusão das pessoas com deficiência. Em 1990, a Conferência

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Mundial de Educação para Todos3, em Jomtien, na Tailândia, garante a educação básica e de qualidade para todos e, mais tarde, em 1994, a Declaração de Salamanca4, na qual a educação inclusiva, a diversidade e o multiculturalismo são reconhecidos como essência humana.

Sendo assim, mudou-se a ótica em relação ao ser humano, imputando-lhe não só deveres, mas também direitos em relação a sua participação na sociedade. Embora

de forma contida, despontou-se uma atenção maior ao cuidado a ser dispensado a pessoa com deficiência.

3 Ratifica que “a educação é um direito fundamental de todos,

independentemente de gênero e idade, no mundo inteiro”, Pontua

que “educação serve de contribuição para conquistar um mundo

mais seguro, próspero e ambientalmente mais seguro, favorecendo, ao mesmo tempo, o progresso social, econômico e

cultural, a tolerância e a cooperação internacional”. Reconhece

que a educação hoje ministrada apresenta “graves deficiências,

que é preciso torná-la mais relevante e melhorar sua qualidade e

que ela deve estar universalmente disponível” (UNESCO, 1998, p.

3). Disponível em: < http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.p

df> . Acesso em: 02 nov. 2017. 4 Documento elaborado na Conferência Mundial sobre Educação

Especial, em Salamanca, na Espanha, em 1994, com o objetivo de

fornecer diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais de acordo com o movimento de

inclusão social. É considerada um dos principais documentos

mundiais que visam a inclusão social, ao lado da Convenção de

Direitos da Criança (1988) e da Declaração sobre Educação para

Todos de 1990. Ela é o resultado de uma tendência mundial que

consolidou a educação inclusiva, e cuja origem tem sido atribuída aos movimentos de direitos humanos e de desinstitucionalização

manicomial que surgiram a partir das décadas de 60 e 70.

MENEZES, Ebenezer Takuno. Educa Brasil. Informação para

Formação.Disponível em: <

http://www.educabrasil.com.br/declaracao-de-salamanca/>. Acesso em: 02 nov. 2017.

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 225

2. TERMINOLOGIA

A origem e desenvolvimento da cultura tem como preceito delimitar o processo da educação de uma sociedade. Guedes (2012, p.87) ensina que, por esse motivo, a terminologia empregada para caracterizar pessoas com deficiência vem suscitando muitos debates sobre o assunto, pois é imprescindível que se encontre uma maneira de determiná-los com respeito, dignidade e justiça.

Por isso, essas delimitações vem sofrendo mudanças e cada uma delas retrata a concepção dada as pessoas com deficiência na história da humanidade. Sassaki (2011, p. 1) assegura que:

Usar ou não usar termos técnicos corretamente não é uma mera

questão semântica ou sem importância, se desejamos falar ou escrever construtivamente, numa perspectiva inclusiva, sobre qualquer assunto de cunho humano. E a terminologia correta é especialmente importante quando abordamos assuntos tradicionalmente eivados de preconceitos, estigmas e estereótipos, como é o caso das deficiências que milhões de pessoas possuem no Brasil.

Utilizando-se da terminologia correta, é possível distanciar-se da discriminação e dos termos pejorativos que tarjam de maneira errônea as pessoas com deficiência e, dessa forma, impedem sua inclusão na sociedade. Sassaki (2011, p.2) ressalta ainda que o uso incorreto da terminologia possibilita que se perpetuem ideologias equivocadas e conceitos obsoleto. Tornando-se um grande entrave para a inclusão.

No decorrer da história da pessoa com deficiência muitas foram as terminologias utilizadas. Sobre o assunto aponta Ribeiro (2016, p.1):

Isso não acontece por acaso. Na própria “História Constitucional” do Brasil, termos como “aleijado”, “inválido”, “incapacitado”, “defeituoso”, “desvalido” (Constituição de 1934), “excepcional”

(Constituição de 1937 e Emenda Constitucional nº 1 de 1969) e “pessoa deficiente” (Emenda Constitucional nº 12 de 1978), já foram usados para designar as pessoas com deficiência.

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 226

Nesse sentido, para trazer uma nova interpretação, a Constituição Federal de 1988 utilizou a expressão “pessoa portadora de deficiência”, que para Melo (2007, p.17): “concentra a ideia de que a pessoa é quem deve merecer destaque e não alguma limitação que eventualmente apresente, notadamente por representar apenas uma característica do indivíduo”.

Em relação aos termos utilizados antes da CF/88, com certeza houve uma evolução, mas tendo a terminologia

relevante valor sobre a inclusão escolar, houve uma proposta de emenda à Constituição de nº 431 de 2009, para substituir a expressão “portador de deficiência” e similares por “pessoa com deficiência” seguindo o previsto na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os direitos da pessoa com deficiência.

Sobre o assunto esclarece Fávero (2007, p. 25):

Os movimentos sociais identificaram que a expressão “portador” cai muito bem para coisas que a pessoa carrega e/ou pode deixar de lado, não para características físicas, sensoriais ou mentais do ser humano. Ainda, que a palavra “portador” traz um peso freqüentemente associado a doenças, já que também é usada, e aí corretamente, para designar uma situação em que alguém, em determinado momento, está portando um vírus, por exemplo. É simples: basta imaginar que jamais falaríamos “pessoa portadora de olhos azuis”.

Utilizando-se a expressão “pessoa portadora de deficiência”, mesmo com objetivo de dar uma maior atenção à pessoa do que ao adjetivo, deu-se a deficiência conotação de doença, como quando se diz que a pessoa é portadora de

um vírus, por exemplo.

No ambiente escolar, a terminologia é fundamental para sua compreensão e, para que possa o aluno ser acompanhado da forma mais adequada proporcionando o desenvolvimento das suas habilidades. Fávero (2007, p.25) sugere que: “Junto com a contestação do termo “portador”, conclui-se que o melhor seria o “com”: pessoa com deficiência. Quanto mais natural for o modo de se referir à

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deficiência, como qualquer outra característica da pessoa, mais legitimado é o texto”.

Por fim, é preciso abolir a adoção de termos que se destinem a disfarçar preconceitos. Deve-se aplicar o que promova a exaltação da pessoa como ser humano buscando dissipar as determinações que levem a adjetivação que estigmatize de forma preconceituosa.

3. O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A INCLUSÃO ESCOLAR

O caminho da inclusão escolar é longo e ainda não foi alcançado. O Brasil foi participante efetivo nos mais importantes eventos ligados ao reconhecimento dos direitos dos cidadãos com deficiência. Para ratificar o compromisso com esses documentos internacionais e reforçar a intenção do desenvolvimento de uma sociedade para todos, a legislação brasileira tem sido uma importante ferramenta como observa-se no quadro a seguir:

Quadro 1 – Legislação brasileira - reconhecimento dos direitos dos

cidadãos com deficiência

LEGISLAÇÃO ANO OBSERVAÇÕES

Constituição da

República

Federativa do Brasil

1988 Um dos seus objetivos fundamentais

é promover o bem de todos, sem

preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas

de discriminação” (art.3º, inciso IV).

Define, no art. 205, a educação como

um direito de todos, garantindo o

pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a

qualificação para o trabalho. No art.

206, inciso I, estabelece a igualdade

de condições de acesso e

permanência na escola como um dos

princípios para o ensino e garante como dever do Estado, a oferta do

atendimento educacional

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 228

especializado, preferencialmente na

rede regular de ensino (art. 208).

Lei nº 7.853 –

Direitos das

Pessoas

Portadoras de

Deficiência

1989 Teve o ineditismo de atribuir ao

Ministério Público a defesa dos

interesses difusos e coletivos da

Pessoa Portadora de Deficiência além

de tratar sobre diversas matérias que se associam na proporção de uma

melhor qualidade de vida a essas

pessoas.

Lei nº 8.069 –

Estatuto da

Criança e do Adolescente

1990 No art. 55, reforça os dispositivos

legais supracitados ao determinar

que “os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos

ou pupilos na rede regular de ensino”.

Lei nº 9.394 –

Lei de Diretrizes

e Bases da

Educação

Nacional

1996 No art. 59, preconiza que os sistemas

de ensino devem assegurar aos

estudantes currículo, métodos,

recursos e organização específicos

para atender às suas necessidades; assegura a terminalidade específica

àqueles que não atingiram o nível

exigido para a conclusão do ensino

fundamental, em virtude de suas

deficiências; e assegura a aceleração de estudos aos superdotados para

conclusão do programa escolar.

Também define, dentre as normas

para a organização da educação

básica, a possibilidade de avanço nos

cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado (art. 24,

inciso V) e [...] oportunidades

educacionais apropriadas,

consideradas as características do

alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante

cursos e exames (art. 37).

Decreto nº

3.298 – Política

Nacional para

1999 Regulamenta a Lei nº 7.853/89, ao

dispor sobre a Política Nacional para

a Integração da Pessoa Portadora de

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 229

Integração da

Pessoa

Portadora de

Deficiência

Deficiência dando-lhe maior

efetividade. Define a educação

especial como uma modalidade

transversal a todos os níveis e

modalidades de ensino, enfatizando a

atuação complementar da educação especial ao ensino regular.

Lei nº 10.172 –

Plano Nacional

de Educação

2001 Destaca que “o grande avanço que a

década da educação deveria produzir

seria a construção de uma escola

inclusiva que garanta o atendimento

à diversidade humana”. Ao estabelecer objetivos e metas para

que os sistemas de ensino favoreçam

o atendimento aos estudantes com

deficiência, transtornos globais do

desenvolvimento e altas

habilidades/superdotação, aponta um déficit referente à oferta de

matrículas para estudantes com

deficiência nas classes comuns do

ensino regular, à formação docente, à

acessibilidade física e ao atendimento educacional especializado.

Decreto nº

3.956 –

Convenção

Interamericana

para Eliminação

de Todas as Formas de

Discriminação

contra as

Pessoas com

Deficiência

2001 Convenção da Guatemala (1999),

promulgada no Brasil pelo Decreto nº

3.956/2001, afirma que as pessoas

com deficiência têm os mesmos

direitos humanos e liberdades

fundamentais que as demais pessoas, definindo como discriminação com

base na deficiência toda diferenciação

ou exclusão que possa impedir ou

anular o exercício dos direitos

humanos e de suas liberdades fundamentais. Este Decreto tem

importante repercussão na educação,

exigindo uma reinterpretação da

educação especial, compreendida no

contexto da diferenciação, adotado

para promover a eliminação das

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 230

barreiras que impedem o acesso à

escolarização.

Resolução

CNE/CEB nº 02

– Diretrizes

Nacionais para

a Educação Especial na

Educação

Básica

2001 No artigo 2º, determinam que: “Os

sistemas de ensino devem matricular

todos os estudantes, cabendo às

escolas organizarem-se para o

atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais,

assegurando as condições

necessárias para uma educação de

qualidade para todos. (MEC/SEESP,

2001).

Fonte: BRASIL, Ministério da Educação e Cultura - Política

Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação

Inclusiva (MEC/SECADI), 2014.

Por fim, a Lei nº 13.146 - A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituída no dia 06 de julho de 2015.

Na verdade, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada em Nova York no dia 30 de março de 2007, com seu Protocolo Facultativo é o fundamento do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Sua relevância é evidenciada por ser o primeiro e único diploma internacional que versa sobre Direitos Humanos que foi aprovado pelo Congresso Nacional com força de Emenda Constitucional em 25 de agosto de 2009 (MAZZUOLI, 2014, p. 199).

Os países signatários devem proibir quaisquer discriminações que se fundamentem na deficiência e garantir proteção legal a elas contra discriminação por qualquer motivo.

É importante frisar que a CF/88 garante a todos o direito à educação e ao acesso à escola. De acordo com Mantoan (2003, p. 22):

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II CONGRESSO DE DIREITO UNISUL (ANAIS ELETRÔNICOS) 231

A CF/88 não utiliza adjetivos, portanto, toda escola deve atender

aos princípios constitucionais, não podendo excluir nenhuma pessoa em razão de sua origem, raça, sexo, cor, idade ou deficiência. Apenas esses dispositivos já bastariam para que não se negasse a qualquer pessoa, com ou sem deficiência, o acesso à mesma sala de aula que qualquer outro aluno.

Todas as garantias previstas na nossa CF/88 já bastariam para que a inclusão ocorresse de modo pleno, mas não é o que acontece.

Quanto ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, houve

um tema de grande discussão referente à responsabilidade das escolas particulares promoverem a inserção de alunos com deficiência no ensino regular.

Embora a responsabilidade originária para educação especial seja das instituições públicas, conforme previsto na CF/88, o Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2016, julgou constitucionais as normas da referida lei, que estabelecem a obrigatoriedade de as escolas privadas promoverem a inserção de alunos com deficiência no ensino regular e prover as medidas de adaptação necessárias sem que o ônus financeiro seja repassado às mensalidades, anuidades e matrículas (SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL, 2016).

O STF (2016) informa ainda que: “a decisão majoritária foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357 e seguiu o voto do relator, Ministro Edson Fachin”. Sendo assim, todos os alunos com necessidades educacionais especiais, devem ter garantido

seu direito de acesso e permanência na escola, quer seja pública gratuita ou particular.

O governo exigiu em um curto espaço de tempo que as escolas privadas estivessem prontas integralmente, mas as escolas públicas estão até o momento bastante defasavadas perante estas mesmas exigências.

A maioria das escolas ainda não estão preparadas para acolher de maneira adequada estes indivíduos. Isto porque,

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é fundamental que a escola tenha seu corpo docente e discente preparados além de recursos físicos apropriados para que assim, seja possível a integração efetiva.

Mantoan (2003, p. 25) leciona que:

É indispensável que os estabelecimentos de ensino eliminem barreiras arquitetônicas e adotem práticas de ensino adequadas às diferenças dos alunos em geral, oferecendo alternativas que contemplem a diversidade, além de recursos de ensino e equipamentos especializados que atendam a todas as necessidades educacionais dos educandos, com ou sem deficiências, mas sem

discriminações.

Defende ainda Mantoan (2003, p. 25) que: “Todos os níveis dos cursos de formação de professores devem sofrer modificações nos seus currículos, de modo que os futuros professores aprendam práticas de ensino adequadas às diferenças”.

Kitahara e Custório (2017, pp. 83-84) constatam esta necessidade por meio de estudos ratificando que há uma grande resistência na garantia desse direito e que a exclusão escolar oposta às determinações legais iniciam-se pelos professores.

Confirmando as estatísticas Oliveira et al (2012) afirmam que a falta de capacitação profissional, escassez de material didático e salas de aula superlotadas são os principais motivos da não inclusão. No estudo, 70% dos professores entrevistados admitem que não tiveram em sua forma disciplina especializada de educação especial, o que reflete uma formação deficitária.

Não é um questionamento, mas uma constatação que a inclusão escolar carece dos seus elementos essenciais, quer sejam eles humanos ou físicos, há um extenso trabalho que precisa ser posto em prática.

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CONCLUSÃO

Na história da humanidade houve importantes mudanças no tratamento dispensado à pessoa com deficiência. O marco dessas mudanças guarda relação com as duas grandes guerras mundiais e levou à sociedade a percepção da necessidade de dispensar a elas um tratamento igualitário.

No Brasil existe uma grande inconsonância entre o

aporte oferecido pela legislação que garante a inclusão escolar e a sua efetivação prática que vai de encontro com o despreparo do corpo docente e discente, a falta de adequação da estrutura física das escolas e a maior de todas as barreiras que é o preconceito aliado a inércia por parte da sociedade.

Para incluir é preciso ir além da garantia ao acesso. As escolas devem verificar e responder às inúmeras dificuldades de seus alunos para poder então, oferecer a todos ensino para cada peculiaridade assegurando educação de qualidade para todos com currículos adequados, alterações organizacionais necessárias, estratégias de ensino, recursos e parcerias com suas comunidades.

Dessa forma, a inclusão significa que não é o aluno que se molda ou se adapta à escola, mas a escola consciente de sua função, coloca-se à disposição do aluno provendo estrutura atualizada, capacitação do corpo docente e de

toda equipe de funcionários das escola além de promover ações pedagógicas à diversidade dos aprendizes.

De fato, apesar dos avanços tecnológicos e científicos que propiciaram maior independências às pessoas com deficiências, bem como dos movimentos sociais em prol da inclusão da pessoa com deficiência, o isolamento social em que vivem ainda persiste gerando a exclusão que precisa ser combatida.

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Sendo a educação a estrutura básica do desenvolvimento do ser humano, a inclusão escolar é ferramenta impresncindível para que esses indivíduos não sejam privados do exercício de seus direitos humanos, de suas liberdades fundamentais, do direito de viver em igualdade com os demais, e proporcionando independência e postura crítica frente aos fatos do dia a dia, corroborando a inclusão nas escolas.

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A APLICABILIDADE DA TEORIA TRIDIMENSIONAL

DO DIREITO AO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Luciara Vanderlinde Canadas

RESUMO

No presente artigo busca-se apresentar a aplicabilidade da

teoria tridimensional do direito à criação da norma jurídica, procedendo à verificação das interações com o dispositivo 421 do código civil, a função social do contrato, em decisão judicial selecionada. Pretende-se responder ao problema: houve influência da teoria tridimensional do direito no dispositivo em comento? Como ocorre a interpretação do artigo 421 na decisão selecionada? A hipótese sustentada é de que a elaboração do código civil, coordenada por Miguel Reale, durante mais de 30 anos culminou na influência de sua teoria em diversos artigos, acolhidos em especial na teoria da função social da propriedade privada e da boa-fé objetiva dos contratos.

Palavras-chave: Teoria tridimensional; Aplicabilidade; Função Social; Norma jurídica.

INTRODUÇÃO

A Compreensão da realidade jurídica é sempre desafiadora. A própria palavra direito é imbuída de significados culturais agregados pela diversidade da percepção humana, constituindo fonte inesgotável de estudo e pesquisa. Se ainda é indagável definir o direito como ciência, a filosofia do direito promove a reflexão e compreensão deste objeto de estudo. A abordagem dessas questões, emerge o interesse pela elaboração do presente

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trabalho. É imperioso observar a aplicabilidade do plano filosófico da teoria do direito ao plano concreto da criação da norma jurídica, e isso se faz pautado não apenas com o objetivo de evidenciar uma discussão filosófica sobre o assunto, mas ponderar aos estudantes das ciências jurídicas uma ponte entre um assunto por vezes de difícil compreensão, porém necessário à sedimentação do conhecimento do Direito.

Os códigos, hoje modernamente compilados em Vade Mecum, fazem parte da rotina de qualquer estudante de Direito. Mas, como podemos compreender o caminho para a edificação de uma norma? Com quais fundamentos se constrói um código, ou atualiza-se o que por anos regeu o funcionamento de uma sociedade? Para definir uma linha de pensamento, a escolha foi pela teoria tridimensional do direito, desenvolvida por Miguel Reale.

Sua primeira obra sobre o tema foi redigida em 1940, com a finalidade de servir como dissertação para o concurso à cátedra de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da universidade de São Paulo, dando origem ao livro “Fundamentos do Direito”. Ademais, sobrevieram as obras que estruturaram seu legado: “Teoria Tridimensional do Direito” e “O direito como experiência”, na qual argumenta que o fenômeno jurídico deve ser analisado e compreendido sob uma visão que englobe três aspectos epistemológicos: o fato jurídico, o valor e a norma.

Miguel Reale, foi coordenador da reforma do Código

Civil Brasileiro, sancionado em 2002. Sua atuação na elaboração do código por mais de trinta anos culminou na influência de sua teoria em diversos artigos, acolhidos em especial na teoria da função social da propriedade e da boa-fé objetiva nos contratos. Contudo, é para o instituto da função social do contrato, expresso no artigo 421 do código civil que se busca definir parâmetros da aplicabilidade da teoria tridimensional do direito. Seu caráter inovador, considerado como cláusula aberta, merece destaque pelo

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grau de importância que exerce o contrato na sociedade, e é sob este aspecto que o presente trabalho pretende identificar e elucidar as formas de contribuição e eventuais interações da fórmula de Reale no dispositivo em comento e posteriormente proceder à verificação da aplicação do artigo 421 em decisões judiciais selecionadas.

1. A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO

O caminho para a estruturação da teoria

tridimensional do direito, nasce dos questionamentos impostos à época, sobre a temática fundamental da validade do direito, como um dos temas mais fecundos da teoria da norma jurídica.

É neste cenário de profunda reflexão que Miguel Reale tem a elaboração de sua primeira obra sobre o tema, redigida em 1940, com a finalidade de servir como dissertação para o concurso à cátedra de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da universidade de São Paulo, dando origem ao livro “Fundamentos do Direito”.

Ao levantar o patrimônio filosófico jurídico de então, Reale tinha dois propósitos essenciais: pôr à mostra o problema fundamental do Direito, e revelar os seus pontos débeis, para que se tornasse possível construir uma teoria jurídica livre das deficiências e ambiguidades apontadas.1

A posição crítica que assume se reveste de grande importância histórica. “As instituições políticas e jurídicas não são pedaços da natureza, explicáveis segundo pesos e

medidas das ciências físico-matemáticas”2. Afirmação que iria repercutir em toda obra posterior, fornecendo a Reale “a convicção de que a realidade humana não podia ser

1 REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3ªed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997 p. 24 2 Idem, p. 15

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compreendida e muito menos explicada com base nos princípios naturalistas e positivistas”3.

A obra Fundamentos do Direito inicia a delimitação do pensamento da teoria tridimensional, trazendo questões como a influência do culturalismo4 e assentando—se sobre a consideração que “a pessoa humana é o valor fonte e que são os valores que atribuem força normativas aos fatos. Assim sendo, o Direito é uma ordem de fatos integrada em uma ordem de valores, sendo objeto de estudo ao mesmo

tempo da jurisprudência e da sociologia jurídica”5.

Ademais, sobreveio a criação da obra que se destaca em seu legado: Teoria Tridimensional do Direito, na qual argumenta que o fenômeno jurídico deve ser analisado e compreendido sob uma visão que englobe três aspectos epistemológicos: o fato jurídico, o valor e a norma.

Múltiplos são os estudiosos do Direito que inspiram o desenvolvimento da teoria tridimensional, “nascida do fato da observação ora intrigante da coincidência da divisão da filosofia do direito pelos estudiosos italianos, para fins pedagógicos em três partes: teoria dos fenômenos jurídicos, valores que atuam na experiência jurídica e, teoria da norma jurídica.6”

Icilio Vanni, é o primeiro a ser citado por Reale como criador da divisão tripartida, “o qual, como positivista-

3 Ibidem, p. 26 4 “Uma concepção do Direito que se integra no historicismo

contemporâneo e aplica, no estudo do Estado e do Direito, os

princípios fundamentais da Axiologia, ou seja, da teoria dos

valores em função dos graus de evolução social” REALE, Miguel.Teoria do Direito e do Estado. 5ªed. São Paulo: Saraiva,

2003, p.08. 5 REALE, Miguel. Fundamentos do Direito.3ªed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997, p. 35 6 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 117

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critico, dava mais importância ao que ele chamava de Fenomenologia Jurídica, por dizer ao Direito como fato social, a Gneseologia Jurídica, pertinente à norma, e a Deontologia Jurídica, relativa aos deveres jurídicos.7” Del Vecchio, discípulo de Icilio Vanni, manteve a tripartição, mas sob outro prisma: “teoria da idéia do Direito ou Justiça (Deontologia jurídica); teoria do conceito de Direito e reservou poucas páginas à Fenomenologia.8” Por fim, observou a teoria de Adolfo Ravà, na qual, “dava ênfase à norma jurídica como norma técnica, complementando-a

com as outras duas partes”9.

O questionamento proposto por Miguel Reale, surge da pergunta: “no fundo dessa divisão pedagógica, não se esconde um problema essencial quanto à estrutura da experiência jurídica? Não é necessário ir além de uma discriminação metodológica para se alcançar a realidade jurídica em si? 10”

Assim, a teoria tridimensional vem a contrapor Hans Kelsen, conhecido como o “jurista da norma, do normativismo hierárquico, da pirâmide das normas jurídicas, conforme expunha em sua Teoria Pura do Direito (1ª edição).11” Kelsen, considera impossível explicar o mundo jurídico mediante o estudo dos fatos, porque “do fato de alguma coisa ter de ser necessariamente não se pode jamais concluir que algo deva ser deste ou daquele modo.12”

A metodologia de Kelsen “deixa o direito no plano da pura normatividade lógica, quando reduz o estado à sua

7 Idem, p. 92 8 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ª ed. São

Paulo: Saraiva, 1994, p. 95 9 Idem, p.97 10 Ibidem, p. 118 11 REALE, M. Filosofia do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva,2002.

p. 455 12 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.16

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pura dimensão normativa, excluindo da cogitação do jurista, no campo próprio de sua ciência, a base ético – social da entidade estatal13”.

O Estado é um valor ou – a versão normativa do valor – uma norma ou sistema de normas; a ordem estatal não é nada mais, nada menos que a própria ordem jurídica ou a expressão de sua unidade; que o poder não é mais que a positividade mesma do Direito; que o Direito vale por si independentemente de sua eficácia social, pois o problema da positividade não é senão o problema da

realidade dentro da esfera do conhecimento normativo; que a norma não é um preceito imperativo, mas um juízo hipotético ou,

mais claramente, um esquema de interpretação que une um fato condicionante a uma circunstância condicionada; que esta referibilidade de um fato a outro, enquanto imputação da consequência condicionante representa uma pura expressão do dever ser14.

Miguel Reale, reconhece a grande contribuição dos conceitos doutrinários de Hans Kelsen, reverenciando-a como “jurisprudência positiva que elevou o sistema gradativo das normas do Direito15”, e enfatiza que “Kelsen não ignora a expressão sociológica do estado, mas a afasta metodicamente, do objeto próprio do Direito. A crítica de Reale, prende-se à impossibilidade lógica de uma redução normativa do estado, desejando que a norma jurídica fosse visualizada como a indicação de um caminho, que deve partir de um ponto e guiado em determinada direção, definindo a primeira elaboração da tridimensionalidade:

Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas

envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é

principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural

13 REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3ªed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997. p. 155 14 KELSEN, H. Teoria Geral do Estado p. 18 e 19. 15 REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 156

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tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma,

é fato e valor16.

Após a análise de diversas teorias que davam ênfase apenas a um dos elementos – fato, valor e norma – buscou captar a nova posição doutrinária, evidenciando no âmbito do historicismo axiológico17 o sentido de cada palavra.

Entende-se por valor, quando empregado em face da teoria tridimensional do direito, “uma intencionalidade historicamente objetivada no processo de cultura,

implicando no sentido vetorial de uma ação possível”18.

Concebidos os valores, “o conceito de fato também surge desprovido de qualquer consistência estática e neutra, mostrando que ele envolve tanto aquilo que acontece, independentemente da iniciativa humana, mas que adquire significado.19”. Desse modo, o fato de que cuida o jurista, é “algo que somente o é enquanto se situa no envolver da história, recebendo significado no contexto ou na estrutura em que ele ocorre20”. O fato, em suma, é valorado – mas jamais se converte em valor.

Define assim que, uma norma jurídica uma vez emanada, sofre alterações semânticas, pela superveniência de mudanças no plano dos fatos e valores, até se tornar necessária a sua revogação; e, também para demonstrar que o surgimento da norma pressupõe uma tomada de posição perante fatos sociais, tendo-se em vista a realização de determinados valores. “O Direito só se constitui quando

16 REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3ªed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1997. p. 119. 17REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São

Paulo: Saraiva, 1994 p. 80. Homem como ente essencialmente histórico, é fonte de todos os

valores. 18 REALE,M. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São Paulo:

Saraiva, 1994. p. 94 19 Idem, p. 95 20 Ibidem, p. 95

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determinadas valorações dos fatos sociais culminam numa integração de natureza normativa.21”

O direito é uma realidade trivalente ou, por outras palavras, tridimensional. O direito é sempre fato, valor e norma, para quem quer que o estude, havendo apenas variação no ângulo ou prisma da pesquisa22.

2. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO SOB ÓTICA TRIDIMENSIONAL

A liberdade de contratar e a força obrigatória do contrato – traduzida pela clássica expressão pacta sunt servanda ou “o contrato faz lei entre as partes” – predominaram por muito tempo como pilares do direito privado, constituindo-se em garantia e segurança dos negócios jurídicos. “Com o passar do tempo e o desenvolvimento das relações privadas, no entanto, verificou-se a necessidade da flexibilização da força obrigatória do contrato, como meio a garantir o equilíbrio das relações contratuais.23”

Amparando-se na Constituição Federal de 1988, o Código Civil vigente trouxe ao ordenamento jurídico, o dever de observância da função social do contrato, marcando a passagem da concepção individualista para uma concepção social, em que o interesse social e a justiça prevalecem sobre a liberdade individual.24

21 REALE. M. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São Paulo:

Saraiva, 1994. p. 103 22 REALE M. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 125 23 TONIAZZO, Paulo Roberto Froes. A função social do contrato

privado: limite da liberdade de contratar. São José: CLC, 2008 p.

56-57 24 TONIAZZO, Paulo Roberto Froes. A função social do contrato privado: limite da liberdade de contratar. São José: CLC, 2008.

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O princípio da função social do contrato anseia na resolução de possíveis divergências que afetem além da relação contratual entre as partes, a sociedade. É necessário que além de ser válido e apto a produzir efeitos, o contrato atinja seus objetivos sociais. “A função social, como qualidade inerente ao conceito de propriedade, visa adaptar este direito aos interesses maiores de toda a coletividade, além da figura singular do proprietário.25”

Dentro do conceito de Justiça Social, as partes não

podem mais exercer os seus interesses contratuais livremente, o conteúdo do contrato deve refletir as exigências da nova ordem, cabendo ao Estado disciplinar e corrigir as vontades das partes para buscar o interesse coletivo, pois “muitas são as normas da ordem pública que se inserem na economia jurídica do contrato.26”

Portanto, a proteção dos interesses privados não incide apenas na liberdade das partes de contratar, mas nos efeitos externos do contrato diante da nova ordem pública contratual.

O art. 421 do Código Civil dispõe: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” A liberdade de contratar é considerada uma cláusula aberta, de interpretação abrangente. Os interesses sociais das partes devem ser protegidos na medida em que os valores sociais relevantes, que ultrapassem a esfera individual, sejam também protegidos.

É possível ponderar que a influência da Teoria Tridimensional do Direito ao artigo 421, tenha sido aspecto relevante ao legislador, permitido a flexibilidade axiológica da norma, fomentando fundamentações em artigos da

25 HIRONAKA, Giselda. A Funcão Social do Contrato. In: Estudos

Jurídicos, v. 19, n. 47, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São

Leopoldo/RS, 1986. p.145 26 MOURA, Mário Aguiar. Função social do contrato. Revista dos tribunais. Vol. 630. São Paulo, abril/1988. P. 247-249.

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Constituição Federal e outros do código civil. A interpretação da função social do contrato é permeada pelos valores sociais traçados pela ordem jurídica, e como defendido por Miguel Reale “No momento de interpretar uma norma é necessária compreende-la em função dos fatos que a condicionam e dos valores que a guiam.27”

Estudar a função social do contrato sob olhar unicamente econômico é desconhecer a sua importância enquanto elemento pacificador das relações sociais. “A

releitura da relação obrigacional abraça outros conceitos, privilegiando outros princípios para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”28.

O atual código civil é um sistema aberto, ou seja, cabe ao juiz a interpretação e aplicação dos dispositivos legais, “principalmente àqueles que possuem cláusulas gerais, no qual demandam a valoração e a intepretação feita pelo juiz de acordo com o comportamento da sociedade naquele momento histórico”29.

A compreensão tridimensional do direito sugere que a norma deva ser valorada realizando a intepretação em função dos fatos que a condicionam e dos valores que a guiam, características comuns às cláusulas gerais, representada neste trabalho pelo princípio da função social do contrato.

27 REALE M. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São Paulo:

Saraiva, 1994. p. 65 28 ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo código

civil. Revisa dos tribunais. Vo. 815. São Paulo, 2003, p. 11-12 29 Idem, p. 31

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3. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 421 EM DECISÃO

JUDICIAL SELECIONADA

Para visualização da aplicação do artigo 421 do código civil, pautou-se a escolha de uma decisão judicial, fundamentada a partir da função social do contrato.

O agravo de instrumento n.2015.069670-4, trata de ação de obrigação de fazer com pedido de tutela antecipada em contrato coletivo empresarial de plano de saúde. No caso em tela, a seguradora do plano de saúde pleiteia pelo cancelamento do plano, tem o pedido indeferido e agrava a decisão. Fundamenta que, não incide na lide as regras da Lei 9.656/98, uma vez que o contrato firmado é anterior a lei e que a relação jurídica contratual ampara a rescisão unilateral do contrato firmado.

A decisão da juíza a quo é pela manutenção do plano de saúde, “remetendo a situação ao princípio da função social contrato, na medida em que visa resguardar princípio basilar do direito pátrio, a dignidade da pessoa humana30”, revestindo determinada hipótese, como a análise de caso em caráter peculiar, “uma vez que a agravada contribui para o respectivo plano de saúde há mais de 20 anos ininterruptos, de forma que se ver desamparada por esse seguro (juntamente com seus segurados e dependentes), de uma hora para outra, é situação a se considerar com parcimônia.31” Por fim,

observa que a sub-estipulante possui segurados e dependentes acometidos de doença grave, cuja necessidade e efetivo tratamento

das suas moléstias vêm se desenrolando desde muito antes da solicitação de cancelamento do plano de saúde pela estipulante32.

30 Agravo de instrumento n. 2015.069670-4. Relatora: Desa. Maria

do Rocio Luz Santa Ritta 31 Agravo de instrumento n. 2015.069670-4. Relatora: Desa. Maria

do Rocio Luz Santa Ritta 32 Agravo de instrumento n. 2015.069670-4. Relatora: Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta

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Observamos assim a valoração da norma em virtude dos fatos vinculados à situação. Duas fundamentações foram utilizadas pelo plano de saúde para rescindir o contrato, ambas devidamente positivadas. A primeira em relação à lei dos planos de saúde, a segunda em relação ao próprio contrato firmado entre as partes. Porém, o magistrado realiza a interpretação dos fatos, valorando outros aspectos da realidade contratual: o tempo de contribuição ao plano, e a necessidade dos assegurados em virtude das gravidade das doenças, negando provimento ao recurso. “Nenhuma norma surge ex nihilo, mas pressupõe sempre uma tomada de posição perante fatos sociais, tendo em vista a realização de determinados valores”33.

CONCLUSÃO

A teoria tridimensional do Direito proposta por Miguel Reale surge da necessidade de superar a compreensão positivista da ciência normativa, impondo a consciência de um novo paradigma da experiência jurídica. Deseja demonstrar que não se pode limitar o enunciado das leis, desconsiderando fatos e valores empregados culturalmente, sendo estas questões também evidenciadas no processo normativo.

O princípio da função social do contrato, estipulado no artigo 421 do código civil, juntamente com os princípios da boa-fé e do equilíbrio econômico, compõe uma nova hermenêutica do direito contratual, uma vez que como

cláusula aberta permite ao operador do direito contextualizar aspectos além dos positivados, mas também relevantes para a causa, sendo utilizando amplamente na fundamentação de decisões judiciais.

A criação do instituto da função social do contrato no código civil de 2002 é disposição inovadora e não existente

33 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.101

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no código anterior, sendo categorizada como de alta relevância, uma vez que, o contrato é estrutura fundamental para o funcionamento de toda a sociedade. Portanto, ao inserir esse instituto ao no código civil, Miguel Reale introduziu um instrumento de intervenção jurídica que propiciou ao aplicador do Direito coibir abusos, integrando a relação contratual, os valores do bem comum e da finalidade social da lei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DESIGN THINKING UMA NOVA FERRAMENTA

PARA REPENSAR AS CONDIÇÕES GERAIS DA AÇÃO PENAL

Felipe Andre Dani

Márcia Sarubbi Lippmann

RESUMO

Aborda-se o uso do Design Thinking, compreendido como ferramenta para repensar o Direito Processual Penal. Design Thinking ou Pensamento do Design, configura-se como uma nova ferramenta para pensar e abordar problemas, trata-se de um modelo de pensamento centrado nas pessoas, dividido em cinco etapas: descoberta, interpretação, ideação, experimentação e evolução; desta feita, por ser uma ferramenta multidisciplinar, seus princípios são aplicáveis a uma ampla variedade de áreas que busquem uma estratégia eficaz e humanizada de encontrar soluções. Desta feita, com o escopo de lançar um novo olhar e repensar o Direito Processual Penal, adota-se como referência o modelo abordado por Stanford, em seu projeto Legal Design Lab, com o objetivo de propor um novo modo de pensar o acesso à Justiça de forma efetiva na esfera penal.

Palavras-chave: Ação Penal, Design Thinking; Ferramenta; Processo Penal.

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1. CONHECENDO O DESIGN THINKING

O Design Thinking ou Pensamento do Design, apresenta-se como um elemento hábil a repensar os requisitos da ação penal.

Pode ser compreendido como um novo jeito de pensar e abordar problemas, um modelo de pensamento centrado nas pessoas, dividido em cinco etapas: descoberta, interpretação, ideação, experimentação e evolução.

Assim, o Design Thinking, apresenta-se como uma metodologia multidisciplinar, não ficando circunscrita apenas à fera da ideação do Design ou da criação de novos produtos, seus princípios são aplicáveis a uma ampla variedade de áreas que busquem uma forma empática de encontrar soluções.

O complexo cenário econômico e social da contemporaneidade - com suas demandas e necessidades emergentes -, trazem consigo um fluxo contínuo e veloz de mudança em todas as áreas do conhecimento. A era do cliente, a globalização, a era digital e a consequente dissolução de fronteiras, neste cenário, trazem também mudanças significativas nas maneiras com as quais nos relacionamos entre nós e com o significado dos bens e serviços que nos cercam, apresentando novos desafios - e demandando novas soluções.1

A seara jurídica tornou-se um campo fértil em busca de inovações, sendo então necessária a adoção de uma

postura criativa e inovadora, produzindo novos modelos legais que vão ao encontro das necessidades humanas não atendidas, principalmente para definir e executar as ideias

1 DESIGN THINKING. Disponível em

http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-east-

1.amazonaws.com/openaccess/9788580392159/04.pdf. Acesso em 10 de setembro de 2017.

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certas, trazendo-as para cenário social e jurídico, em tempo hábil a atender a demanda social por JUSTIÇA.

Todavia, a busca por inovações, não é uma tarefa fácil e faz com que os indivíduos e grupos sociais, saiam de seus cinturões de conforto e busquem o desconforto que implica no repensar, pressuposto para inovar.

A busca por soluções completas e empáticas, levou o mundo dos negócios, a perceber que não mais bastava oferecer uma solução focada na superioridade tecnológica

ou na excelência em desempenho como vantagem mercadológica.

A inovação através de modelos de negócio é um campo em rápida evolução, apesar de não ser exatamente uma novidade. Segundo Osterwalder & Pigneur [3], podemos apontá-la em diversos momentos da história, como por exemplo no século XV, quando Gutemberg buscou aplicações práticas para seu então recém-criado artefato mecânico para impressão, revolucionando todo o processo de transmissão da informação de uma era. Outro exemplo pode ser dado ainda na década de 50, quando os fundadores da Diners Club disseminaram o uso do cartão de crédito. Em ambos os casos, percebemos a inovação a partir de seus modelos de negócios - na sua maneira de criar, entregar e capturar valor. Não se configuram, no entanto, a partir de um modelo estruturado de conhecimento sistematizado e passível de reprodução e disseminação.2

O grande diferencial desta ferramenta, é justamente o modo como o designer percebe as coisas e age sobre elas que chamou a atenção de gestores, abrindo novos caminhos para a inovação, haja vista o designer enxergar como problema tudo aquilo que prejudica ou impede a experiência

2 DESIGN THINKING. Disponível em

http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-east-

1.amazonaws.com/openaccess/9788580392159/04.pdf. Acesso em 29 de agosto de 2017.

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(emocional, cognitiva, estética) e o bem-estar na vida das pessoas (considerando todos os aspectos da vida, como trabalho, lazer, relacionamentos, cultura entre outras, fazendo com que sua principal tarefa seja identificar problemas e gerar soluções.

O Designer, parte da ideia de que os problemas que afetam o bem-estar das pessoas são de natureza múltipla e que é preciso mapear a cultura, os contextos, as experiências pessoais e os processos na vida dos indivíduos

para ganhar uma visão mais completa e assim melhor identificar as barreiras e gerar alternativas para transpô-las. Assim ao investir esforços nesse mapeamento, o designer consegue identificar os razões e as consequências das dificuldades, sendo assim mais assertivo na busca por soluções

Para implementação desta ferramenta de busca por soluções, são trilhadas 5 etapas, que são: imersão, interpretação, ideação, experimentação e evolução, sobre a quais passa-se a discorrer.

A primeira fase do processo de geração de novas ideias é denominada Imersão, trata-se da fase de aproximação do problema, na qual a equipe busca estudar os vários pontos de vista, tanto do cliente, quanto da empresa e são feitos vários tipos de pesquisa.

Esta é a fase de aproximação do problema.

A equipe busca mergulhar nas implicações do desafio, estudando tanto o ponto de vista da empresa quanto do cliente. São feitas pesquisas de todos os tipos: entrevistas, buscas de tendências (Cool Hunting), observação direta (como por exemplo a técnica de Sombra), e muito mais.

A imersão pode ser dividida em Preliminar, quando há um primeiro contato com o problema e em Profundidade, quando se inicia o levantamento das necessidades e

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oportunidades que irão nortear a geração de soluções na fase seguinte do projeto, a Ideação.3

A segunda fase, recebe o nome de Ideação, nela é realiza pela equipe o processo de brainstorming, este é o momento em que efetivamente começa-se a pensar de modo inovador, propondo soluções para o problema, não alicerçadas em padrões tradicional.

Esta é a fase do brainstorming, a tempestade cerebral, quando as ideias são apresentadas sem nenhum

julgamento.

É o momento de efetivamente começar a “pensar fora da caixa”, propondo soluções para o problema. Para isso, utilizam-se práticas de estímulo à criatividade, o que ajuda as pessoas a gerar soluções que estejam de acordo com o contexto do assunto trabalhado.

Não há limite de ideias nesta fase. Também é aconselhável que haja variedade de perfis de pessoas envolvidas, inclusive incluindo quem será beneficiado com as soluções propostas.4

Este processo chega ao fim com a Prototipagem, a fase na qual é tangibilizada a ideia, passando-se do abstrato para o físico, com o escopo de representar a realidade, assim na fase na prototipagem, tem-se a validação das ideias que foram geradas nos processos anteriores.

Prototipar é tangibilizar uma ideia, é a passagem do abstrato para o físico de forma a representar a realidade -

3 TIME MGJ. As 3 fases do Design Thinking: imersão, ideação e

prototipagem. Disponível em: http://blog.mjv.com.br/ideias/3-fases-design-thinking-imersao-ideacao-e-prototipagem. Acesso

em 29 de agosto de 2017. 4 TIME MGJ. As 3 fases do Design Thinking: imersão, ideação e

prototipagem. Disponível em: http://blog.mjv.com.br/ideias/3-

fases-design-thinking-imersao-ideacao-e-prototipagem. Acesso em 29 de agosto de 2017.

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mesmo que simplificada - e propiciar validações”, explicam os autores de Design Thinking - Inovação em Negócios.

Em resumo, a Prototipação é a fase de validação das ideias geradas. É a hora de aparar as arestas, ver o que se encaixa no projeto, juntar propostas e colocar a mão na massa.

Apesar de ser apresentada como fase final, a prototipação pode acontecer em paralelo às outras fases. Conforme as ideias forem surgindo elas podem ser

prototipadas, testadas e, em alguns casos, até implementadas.5

Uma vez apresentadas as bases do Design Thinking, passa-se a abordar o modelo do Legal Design Lab, da universidade de Stanford, na Califórnia, EUA, uma modelo de precursor e de referência mundial no uso do Design Thinking como ferramenta para repensar o Direito, através de um olhar inovador, empático, humanizado e criativo.

2. LEGAL DESIGN LAB DE STANFORD UMA REFERÊNCIA PRÁTICA A SER SEGUIDA

Adota-se como referência o modelo adotado por Stanford, em seu projeto Legal Design Lab, uma “(...) equipe interdisciplinar, com base na Faculdade de Direito de Stanford, trabalhando na interseção do design centrado no humano, tecnologia e lei para construir uma nova geração de produtos legais e serviços”6, com o objetivo de propor um

5 TIME MGJ. As 3 fases do Design Thinking: imersão, ideação e prototipagem. Disponível em: http://blog.mjv.com.br/ideias/3-

fases-design-thinking-imersao-ideacao-e-prototipagem. Acesso

em 29 de agosto de 2017. 6LEGAL DESIGN LAB. Disponível em

<http://www.legaltechdesign.com/> Acesso em 10 de setembro de 2017.

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novo modo de pensar o acesso à Justiça de forma efetiva na esfera penal.

O Legal Lab Design, tem como missão o treinando de estudantes de direito e profissionais em design jurídico, focado no ser humano, o desenvolvendo de novos modelos de serviços legais amigáveis, acessíveis e envolventes e a pesquisa de como a inovação pode ser trazida para o mundo jurídico, assim como a individualização dos anseios dos usuários do sistema legal.

Atua através de um eixo quadripartite de ação, com foco no Acesso à Justiça e Inovação do Tribunal, Uma Internet melhor para Ajuda Legal, Comunicação legal inteligente e nos Novos Modelos de Órgãos Jurídicos, conforme passa-se a brevemente descrever.

Acesso à Justiça e Inovação do Tribunal, é um programa desenvolvido através de aulas, da produção de tecnologia, pesquisa de usuários e trabalhos exploratórios para oferecer suporte amigável, eficiente e poderoso para pessoas que usam o sistema legal.

O Melhor Internet para Ajuda Legal, é uma iniciativa tem como escopo promover um sistema coordenado de prestadores de serviços e um ecossistema de melhores ferramentas e interfaces para os leigos usarem on-line para encontrar ajuda legal.

O Comunicação legal inteligente, utiliza-se da pesquisa orientada por design para formas mais eficazes e envolventes de comunicar informações legais - avisos,

políticas, processo, elegibilidade e além - para leigos.

Por fim, o Novos Modelos de Órgãos Jurídicos, é um projeto de pesquisa e workshop destinado a mudanças maiores em nível de sistema em tribunais, escritórios de advocacia, departamentos legais e grupos de ajuda legal - para promover culturas mais experimentais, diversas e ágeis

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Uma vez contextualizada o Design Thinking como ferramenta inovadora, empática e eficaz para buscar soluções humanizadas para os desafios encontrados pelos operadores e usuários do sistema judicial brasileiro e apresentado o inovador projeto desenvolvido pela Universidade de Stanford. Propõe-se a aplicação do Design Thinking como uma nova forma de pensar os requisitos da ação penal.

3. CONCEITUANDO CONCEITOS

Nada melhor do que iniciar a fundamentação trazendo elementos constitucionais e de diversos ramos do direito, introduzindo com o Direito e Processo Constitucional, isso traz ao presente escrito maior relevo e substância para análise e crítica.

A atividade jurisdicional é exclusiva do Estado, que, por ser poder Judiciário é inerte a este, e, portanto, só funciona por provocação; é, portanto, a ação, o direito de invocar a tutela jurisdicional, de solicitar ao Estado a solução da lide.

Segundo Misael Montenegro Filho7:

A pessoa natural que pretende resolver o conflito de interesses deve ter o direito de solicitar a intervenção do Estado, vale dizer, que a função jurisdicional se manifeste, função que se encontra estática, no aguardo da correspondente provocação.

A definição do termo “ação” mostra-se necessário, em que pese existir múltiplos sentidos e conceitos, sendo empregado pela doutrina como direito, poder, as vezes como sinônimo de processo, procedimento8.

7 MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil:

teoria geral do processo e processo de conhecimento. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2008. p.109. 8 SILVA, Ovídio Batista da; GOMES, Fabio Luiz. Teoria geral do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.95

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Não obstante o Direito permitir, em situações excepcionais a autotutela, a regra é depender do Estado Juiz para o arbitramento dos conflitos, a solução é estabelecida pelo Poder Judiciário, sendo a ação um direito dos jurisdicionados de buscar soluções no terceiro detentor único e exclusivo de solucionar, juridicamente, os conflitos.

Segundo Ada Pellegrini Grinover9, ação seria o direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou poder de exigir esse exercício). Exercer este direito implica em provocar a

jurisdição (provocação necessária, visto que, em regra, ela é inerte), o qual se exerce através de um complexo de atos denominado processo.

O direito de ação não tem modificada a sua conceituação, se observarmos na ótica do Direito Penal, continua sendo um direito público, subjetivo da parte, de exigir do Estado, uma prestação jurisdicional.

Correlato a estes pensamentos, tem-se a necessidade de introduzir o objetivo do direito de ação, talvez o inicial seria a manutenção do pacto social, e da manutenção da dependência do cidadão à jurisdição estatal, impedindo este de praticar a justiça privada; mas, ainda, como objetivos decorrentes deste direito, pode-se estabelecer o interesse público de dar a cada um o que é seu, assegurando a convivência pacífica e harmonioso em sociedade, neste último objetivo pairam-se dúvidas quanto ao seu atingimento.

A convivência pacífica, a harmonia social, e, até mesmo, a visão concreta justiça, numa análise subjetiva das partes, não estão sendo atingidas com a aplicação deste poder jurisdicional estatal, distanciado da realidade das partes, enclausurado no aspecto técnico, adstrito de colher

9 GRINOVER, Ada Pellegrinni. Teoria geral do processo. 18. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p 256)

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ou atingir os anseios sociais, ou seja, enclausurado num arcabouço de burocracia e insensibilidade.

Analisando as condições da ação para os processualistas do direito civil, tratam dos requisitos indispensáveis para o exercício do direito de ação, associado as lições de Liebman, as condições seriam: legitimidade das partes, interesse processual de agir, e, possibilidade jurídica do pedido. Importante salientar que o Código de Processo Civil de 2015 optou por extirpar a possibilidade jurídica do

pedido do rol de condições gerais da ação.

Fredie Didier Jr10, argumenta sobre a incoerência de inserir a possibilidade jurídica do pedido, como condição genérica da ação:

Tida por Moniz de Aragão como “um dos aspectos menos versados da teoria da ação” e por Calmon de Passos como “uma invenção nacional”, a possibilidade jurídica do pedido é, sem sombra de dúvidas, a mais esdrúxula e despropositada das condições da ação. Em substituição à categoria denominada por Chiovenda “existência do direito” (fiel ao concretismo), também considerada como condição da ação, criou Enrico Liebman a possibilidade jurídica do pedido, com a manifesta preocupação de extremá-la do mérito – talvez por isso se tenha utilizado a palavra “possibilidade”, que denota aquilo que pode ser, e não aquilo que necessariamente será (...) A existência da possibilidade jurídica do pedido como condicionadora da ação é uma concessão ao antigo pensamento de Wach e Chiovenda, que vinculava a existência do direito de ação à existência do direito material. Com toda razão, portanto, Calmon de Passos e Marinoni, quando afirmam que o pensamento de

10 Didier Jr, Fredie. Um réquiem às condições da ação. Estudo

analítico sobre a existência do instituto. Jus Navegandi, Teresina,

a. 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em:

http://jus.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2918. Acesso em 13 set. 2017.

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Enrico Liebman é restritivo, à semelhança dos concretistas podendo ser colocado ao lado deles, expressando um meio-termo entre concepção tradicional e a concepção abstrata. A verdade é uma só: a possibilidade jurídica do pedido foi uma grande falha, que originou tantas outras.

Importante estas referências sobre o direito de ação na visão do processo civil, isso porque os conceitos não são muito diferentes quando analisados na esfera do processo penal, pelo contrário, existem identidades e semelhanças

que aproximam da teoria geral estes dois ramos do direito, portanto, o que serve para um, é perfeitamente adequado para o outro, segundo o dito popular: “pau que bate em Chico, bate em Francisco”.

Sendo assim, após analisar a ação sob a ótica do direito constitucional e direito processual civil, inicia, neste instante, a análise destes conceitos no ramo do processo penal.

4. O CONCEITO DE AÇÃO PARA O DIREITO PROCESSUAL PENAL

A ação penal é direito público subjetivo das partes e, inicia, o processo penal, segundo Nucci11: “É direito do Estado-acusação ou do ofendido de ingressar em juízo, solicitando a prestação jurisdicional, representada pela aplicação das normas de direito penal ao caso concreto.”

Dentre as condições genéricas da ação penal,

referenda-se: possibilidade jurídica do pedido (há controvérsias – conforme citado alhures), legitimidade, interesse de agir e justa causa.

11 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 140.

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Segundo Pacelli12, discorrendo sobre o interesse de agir: “De modo geral, na teoria do processo, afirma-se que o interesse de agir encontra-se ligado à necessidade da escolha jurisdicional para a composição do conflito surgido entre quem se alega titular de um direito subjetivo, oponível a outro, e este, devedor da obrigação a ele correspondente, na clássica conceituação de direito privado, no sentido de que a um direito corresponde um dever. A via jurisdicional, para ser acionada, exigiria, então, o esgotamento prévio e anterior de todas as possibilidades possíveis de

autocomposição.”

Neste diapasão, tem-se a necessidade de cindir o direito privado (processo civil), do direito público (processo penal), haja vista a intenção ser aplicar a ferramenta do Design Thinking ao processo penal, com intenção de ser relativizado o interesse de agir, condição de ação.

Mantendo o foco apenas na condição interesse de agir, subdivide-se a mesma em necessidade, adequação e utilidade. E é, neste último, utilidade, que a ferramenta do Design Thinking pode ser útil ao processo, trazendo elementos concretos para observar o interesse-utilidade da ação penal em mostrar-se útil para a realização da pretensão punitiva do estado, gize-se, aplicação de sanção penal.

Importantíssimo deixar claro ao leitor que na ação penal temos duas espécies, quais: ação pública e ação privada, a intenção deste artigo é focar na ação penal privada, haja vista ter princípios que possibilitariam a aplicação do design thinking, pois a ação penal privada possui princípios como: oportunidade/conveniência (cabe ao titular da ação penal privada o juízo de oportunidade acerca do oferecimento, ou não, da ação), disponibilidade (a

12 PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas. 2014. p. 106.

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ação penal privada é disponível para seu titular, podendo exercer do direito de dispor do processo em andamento).

Trata-se de inserir o querelante/vítima, até então relegado no processo penal a segundo plano, a ser precursor de seus interesses e anseios, ou seja, manusear o processo penal de ação penal privada com intenção de satisfazer a subjetiva justiça, sem que, para isso, seja tolhido qualquer direito constitucional do acusado, em especial, ampla defesa e contraditório.

O que se pretende através deste estudo é abordar o Design Thinking como ferramenta para aplicar como condição genérica de ação penal privada, ou seja, observar a utilidade do instrumento e, logo, customizar a prestação jurisdicional.

Customização da prestação jurisdicional, ou customização da ação penal privada, é observar quais os anseios e necessidades da vítima e prestar um serviço judiciário capaz de ajustar seus desejos e necessidades como jurisdicionado, ao processo que pretende iniciar, logo, é tornar o querelante/vítima precursor do processo, ou pelo menos, verificar como Estado Juiz, se a ação penal, dentro da ótica do Design Thinking, terá condições de procedibilidade dentro da visão de justiça, justiça lida como atendimento das vontades da parte querelante/vítima, através da movimentação do Poder Judiciário.

A ação penal privada deve mostrar-se sedutora, envolver o jurisdicionado vítima e, agora, querelante da ação penal privada, para que este se sinta confortável e atendido pela prestação e atenção concedida.

Alguns precursores desta ferramenta podem ser vistos em passagens tanto em procedimentos especiais, e, aqui, deve-se estabelecer uma importante referência ao instituto da composição civil dos danos, prevista na Lei dos Juizados Especiais Criminais (lei 9.099/95), quando da possibilidade da vítima transacionar com o acusado e estabelecer suas

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necessidades e anseios com a prática do ato judiciário na esfera penal.

Ainda, ferramenta semelhante e com certo conteúdo de discricionariedade e prevalência da vítima, ou seu status elevado, apresenta-se presente no Código Penal, quando o legislador estabeleceu que a pena restritiva de direitos, mais especificamente a prestação pecuniária, e, também, a prestação inominada, terão, como destinatário principal a vítima, em detrimento de outros beneficiários.

CONCLUSÃO

Lança-se o desafio de utilizar o Design Thinking, uma ferramenta a muito tempo utilizado no desenvolvimento de todo e qualquer produto, a ser empregado ou consumido pelo ser humano, como ferramenta para repensar a própria ação, ou a própria prestação jurisdicional.

Desde já, a ideia aqui contida não é mercantilizar, ou simplesmente transformar a ação judicial em um produto como os que se tem a disposição de uma massa de consumidores, mas sim, individualizar e estudar as demandas judiciais, mais especificamente as condições da ação, através da visão criativa e inovadora do Design Thinking, para, buscar justiça subjetiva, na prestação jurisdicional.

Explica-se justiça subjetiva como o adimplemento de todos os anseios e vontades do jurisdicionado, e, consequentemente, seu contentamento com o serviço

judiciário estatal, tendo como consequência, sua satisfação plena e, harmonização e pacificação social, instrumentos tidos como objetivos do Estado Democrático de Direito.

(Re)pensar pelo Design Thinking, as condições da ação, com ênfase nas condições da ação penal privada, torna o processo, o serviço judiciário, mais atraente, sedutor, capaz de atender as intenções dos jurisdicionados, buscando um novo Direito.

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fases-design-thinking-imersao-ideacao-e-prototipagem. Acesso

em 29 de agosto de 2017.

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SOBERANIA E INTEGRAÇÃO: UMA ANÁLISE DAS

CONSTITUIÇÕES BRASILEIRA E ARGENTINA

Glécia Morgana da Silva Marinho

RESUMO

O mundo globalizado cada vez mais pressupõe a necessidade de acordos entre Estados como meio para alcançar o crescimento individual ou integrado das nações. Acordos comerciais e instituições integracionistas se tornam cada vez mais comuns. Contundo estes mecanismos ainda esbarram em obstáculos, como a soberania. Este trabalho visa analisar esta questão em específico, através do direito comparado, examinando a relação entre o conceito adotado pelas constituições argentina e brasileira. A análise das cartas torna visível a disparidade entre as políticas externas adotadas por ambos os países, onde é possível perceber a influência dos mesmos sobre suas relações internacionais e a interferência ocasionada pela soberania. Por meio de pesquisa bibliográfica, a partir dos dispositivos legais intrínsecos e da doutrina e jurisprudência, foi adotada a metodologia analítica para obter os resultados supracitados. O fundamento teórico foi embasado nas ideias de J. Bodin, T. Hobbes e H. Kelsen que, imersos em realidades distintas, apresentam definições desde Estado absolutista moderno ao mundo contemporâneo globalizado com ênfase no Direito Internacional, demonstrando a diferença entre as definições de soberania (clássica e relativa) por eles defendidas e

utilizadas neste trabalho.

Palavras-chave: Soberania; Direito Internacional; Direito Constitucional; Constituição Brasileira; Constituição Argentina.

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INTRODUÇÃO

Um dos maiores problemas encontrados atualmente no Direito Internacional é a forma como este se relaciona com as legislações domésticas, seja em termos de hierarquia ou mesmo de reconhecimento, vigência e validade. Neste sentido, a soberania desponta como um dos pontos mais significativos, uma vez que ela pode facilitar ou mesmo impedir as relações entre países. Isto porque apesar de se tratar de um termo que nasceu no século XVI e do qual possui uma conceituação clássica definida e defendida por pensadores renomados, ao longo do século XX foram encontrados problemas quanto a forma de interpretar tal conceituação.

A partir daí, discussões sobre a necessidade de reconceituação do termo tomaram fôlego, em especial com o reconhecimento e fortalecimento do Direito Internacional. Além disso, novas formas de organizações de Estados passaram a figurar e já não se encaixavam com a conceituação desenvolvida por teóricos como J. Bodin e T. Hobbes. O conceito de soberania relativa começou a ser disseminado a partir das ideias de H. Kelsen.

Muitas Constituições passaram a adotar este novo olhar sobre o termo, como é o caso da Constituição da Nação Argentina (CNA), na tentativa de estabelecer relações mais próximas com outros países e promover acordos internacionais convenientes para o Estado. Algo que não ocorre com o Brasil que, apesar de não estar expresso no texto constitucional, opta por adotar a soberania clássica, a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).

Este trabalho busca, por meio do estudo comparado entre estas duas cartas, apresentar os principais pontos em que a soberania interfere nas relações internacionais, por meio da discussão teórica do termo e da análise dos dispositivos utilizados para a consolidação das relações internacionais destes países. Primeiramente será

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apresentada a discussão teórica sobre os conceitos clássico e relativo de soberania e depois uma análise comparativa do efeito das mesmas nas constituições em análise.

1. A TRANSIÇÃO DO REGIME DE FEUDOS AO

ESTADO ABSOLUTISTA E O SURGIMENTO DE UM NOVO TERMO

A Europa do século XII começou a experimentar uma série de transformações que resultariam na instauração do Estado Moderno, quatro séculos depois. Estes séculos de transição foram marcados pela tentativa incansável de definir um poder soberano capaz de pôr fim ao caos que o continente mergulhara até ali.

É neste mesmo período que começa a ser desenvolvido o conceito de soberania, que traz consigo toda a carga histórica intrinsecamente ligada à sua formação. O termo é, portanto, o resultado de uma sequência de fatos políticos, sociais, históricos e geográficos que começaram a se desenvolver antes mesmo do Estado Moderno e foi crucial para o mesmo, como aponta Raquel Kritsch (2002, p. 32):

o conceito de soberania teve uma gênese demorada: resultou de um processo de transformação jurídica e política, do qual emergiu um novo mapeamento do poder e das lealdades na Europa. Nesse processo, não só se afirmava uma nova formação de poder, como também se desenvolvia um discurso jurídico e político adequado aos novos conflitos e à nova realidade.

O termo, surgido na Europa do século XIII, é a

representação daquele momento histórico, da formação do discurso teórico político-jurídico e resultante do debate de diversos pensadores que buscavam uma solução para o caos que o continente enfrentava. A Europa deste período era marcada por diversos conflitos, por levas migratórias, invasões, conquistas e/ou ocupações entre si e de povos vindos de outros continentes, das dissidências territoriais entre seus diversos conglomerados políticos e territoriais e das guerras constantes internas e externas.

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Destarte, é possível destacar que o Período Medieval da História europeia foi fortemente marcado pela instabilidade em todos os setores das sociedades daquele continente, levando a consequente compreensão que a busca pela estabilidade e manutenção da ordem estaria diretamente ligada a existência (ou ainda, naquele momento da história, à criação) de um poder supremo.

Este poder nasceu do confronto dos diversos poderes políticos que se destacavam. As principais representações

de poder vinham do papa (uma vez que a crença católica havia sido disseminada por todo o continente e começara a ser reconhecida como a religião verdadeira), dos reis (entendidos como herdeiros divinos do poder político, através da concepção do Direito Natural) e da nobreza (que visava dotar-se de tal poder e havia se fortalecido durante o Período Medieval).

O cruzamento destes poderes em consonância com as necessidades políticas impulsiona os pensadores do período a desenvolver conceitos jurídicos e políticos eficazes. Assim temos:

A questão da soberania é constituída justamente no cruzamento desses confrontos políticos, que se dão entre: 1) o império e o papado; 2) o império e os poderes estatais nascentes; 3) o papado e esses poderes estatais; 4) estes poderes e a nobreza. Também é relevante, naturalmente, o pano de fundo das mudanças econômicas e sociais (KRITSCH, 2002, p.40).

É neste período que os territórios europeus não podiam mais aceitar que a disputa entre as principais fontes do

poder governamental (sejam os consolidados ou aqueles nascentes) sobrepujasse as necessidades de manutenção da paz e da ordem. Afinal, os povos do continente estavam sendo subjugados por estrangeiros. Nesse cenário, compreendia-se a necessidade de se reconhecer um poder supremo, incontestável, hegemônico, ilimitado e ilimitável capaz de manter a estabilidade dos territórios.

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A definição do supracitado poder, contudo, não bastava. Era necessário que o mesmo fosse desenvolvido sobre pilares aceitos e reconhecidos pelos povos. Assim, o novo Estado se formou a partir de três elementos consubstanciais, essenciais à sua concepção e que se mantinham desde a Era Medieval, quais sejam:

1) o aparecimento de unidades políticas persistentes no tempo e geograficamente estáveis; 2) o desenvolvimento de instituições duradouras e impessoais; 3) o surgimento de consenso sobre a necessidade de uma autoridade suprema e a aceitação pelos

súditos dessa autoridade como objeto da lealdade básica (Strayer apud KRITSCH, 2002, p. 33).

O Estado absolutista surge, portanto, em resposta as diversas discussões teóricas, a conjuntura do período e a busca pela figura que representaria tal poder. Ele possui, na figura dos reis, o papel do soberano como detentor da vontade divina e inconteste, abençoada pelo próprio representante de Deus na terra: o papa. Esta foi a forma eficaz para resolver muitos dos conflitos existentes entre as principais fontes do poder, tendo conceitos como absolutismo e soberania diretamente elencados em sua formação.

A imagem dos senhores feudais possuidores de poder irrestrito e inquestionável sobre suas terras é substituída pela soberania do rei e da benção papal sobre estes governantes. Nasce um Estado com força, definido como “um poder absoluto e perpétuo... que não se limitava a nenhum poder terrestre e adstrito às leis divinas e naturais” (LOCATERI, 2014, p. 02).

A soberania nasce, por sua vez, como um mecanismo para balizar o absolutismo do Estado Moderno, como um poder supremo e irrestrito até mesmo perante ações divinas, justificando as ações do senhor soberano, deixando para trás os conceitos que já não se encaixavam mais àquela conjuntura político-social. Foi importante fenômeno para a implementação do Estado-Nação a partir do século XVI e a solução de parte dos muitos conflitos europeus existentes

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no século XVII, à exemplo da Guerra dos Trinta Anos. “A soberania significa, assim, um poder ilimitado e ilimitável, que tenderia ao absolutismo, já que ninguém o poderia limitar, nem mesmo ele próprio” (PERINI, 2016, p. 02).

2. SOBERANIA CLÁSSICA E RELATIVA: DO NASCIMENTO À RECONCEITUAÇÃO DO TERMO

2.1 J. Bodin e seu conceito clássico de soberania

J. Bodin foi um filosofo francês do século XVI que defendeu o Estado absolutista, por meio do conceito de soberania por ele desenvolvido. É um dos principais filósofos a estudar o termo e responsável pela sistematização do estudo do termo, entendendo a necessidade de defini-lo, algo que até então não havia “jurisconsulto nem filósofo político que o tenha definido, mesmo que ao ponto inicial e ao mais necessário para ser entendido na República” (BODIN, 2011, p. 196).

Para ele, a soberania está relacionada ao poder perpétuo e ilimitado do governante, tendo como limite apenas a lei divina e natural. Essa soberania absoluta e incontestável deve ser mantida nas mãos do governante, enquanto guardião de seus súditos e do Estado. Ela transcorre da delegação que o povo dá aquele que é reconhecido como seu detentor legítimo e, por tanto, soberano, reflexo do poder divino que reconhece a hegemonia e supremacia do príncipe.

Por este entendimento, a soberania pertence ao povo que “outorga seu poder a alguém enquanto este viver, na qualidade de oficial ou lugartenente, ou então para descarregar-se do exercício do poder” (BODIN, 2011, p. 202), finalizando com o término do período de governo ou morte do príncipe soberano.

J. Bodin é a principal referência do conceito clássico de soberania e seus estudos e teorias costumam serem

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utilizados como base para a discussão do termo. Na sua coleção Os Seis Livros da República, ele define o que é soberania e cria uma definição que seria repetida ao longo dos anos com o fito de fortalecer o Estado Moderno. Em suas palavras:

A soberanía é um poder absoluto e perpétuo de uma República, que os latinos denominan majestatem, os gregos ákran éxusian, kyrían arkhé y kýrion políteuma, e os italianos segnoria – palavra que usam tanto para os particulares quanto para aqueles que manejam todos os negócios de Estado de uma República (BODIN,

2011, p. 195-6).

De suas palavras, pode-se compreender que até alí o termo soberania possuía diferentes significados e expressões, utilizados para distintos fins e relações privadas e públicas. Em comum, as definições traziam a ideia de poder, um poder superior que emanava do segnor ou do majestatem, por exemplo, e não estava limitado às relações estatais.

2.2 T. Hobbes e o fortalecimento do Estado absolutista

Cerca de um século depois, o filófoso inglês T. Hobbes trouxe um conceito de soberania ainda mais potente. Numa Inglaterra submergida em grave crise da coroa1, cujo corria o risco de resultar no fim de seu governo, ele seguiu na contramão dos outros filósofos que já se envolviam com conceitos da burguesia revolucionária. Seu objetivo maior era a segurança do Estado e suas teorias foram carregadas deste propósito: a manutenção da pátria inglesa.

1 No início do século XVII, com a morte de Elisabeth I que não deixou descendentes, a Inglaterra submergiu numa crise que

levou o país a três guerras civis consecutivas. Os trabalhos de T.

Hobbes foram feitos sob esta realidade, num período cujo a

manutenção do trono inglês era incerta e que durou quase um

século, envolto em revoltas e correndo risco de resultar na total

dissolução da coroa britânica e no fim do Estado inglês.

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Segundo este autor, a essência da soberania está na conversão de todos os poderes individuais dos súditos ao reconhecimento do poder soberano. Sua analogia de Estado – por ele denominada Leviatã – se referia a um corpo complexo, onde a cabeça era ocupada por alguém que detinha a direção da República, enquanto o povo era o organismo que a mantinha viva.

O Leviatã é um homem artificial, cujo o movimento ocorre em acordo com a natureza, definido por T. Hobbes

como “a arte por meio da qual Deus fez e governa o mundo” (HOBBES, 2002, p. 15). A estrutura do Estado foi pensada a partir desta analogia orgânica, que imita o homem, uma criatura racional, a mais perfeita obra de Deus. Cada parte do organismo possui uma finalidade específica, indispensável ao seu bom funcionamento. Elas sustentam e se movem em acordo com as necessidade e obrigações típicas a função que seu posto obriga. Segundo o filósofo:

os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos [são] juntas artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, atados a soberania, todas juntas e todos os membros se movem para cumprir seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e a prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus Populi (a segurança do povo) é sua tarefa; os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas, são a memória; a equidade e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a enfermidade; e a guerra civil é a morte (HOBBES, 2002, p. 11).

Assim, para T. Hobbes, o Estado funcionava como um organismo vivo, uma analogia perfeita da criação divina. Numa obra escrita sobre as consequências das guerras civis inglesas do século XVII – o Leviatã – o filósofo esclarece a necessidade de evitar a qualquer custo uma guerra civil, uma vez que sua existência significaria a morte do Estado. Sua obra foi uma questão de sobrevivência do Estado inglês deste período.

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2.3 O período contemporâneo e o início da revisão do

conceito de soberania

Não há dúvidas da importância dos conceitos de J. Bodin e T. Hobbes para seus devidos períodos históricos. Contudo, as necessidades do Estado mudaram ao longo dos séculos, sobretudo a partir do século XX, quando o mundo presenciou desastrosos conflitos, resultados da falta de limitação do Poder da Nação Soberana. A percepção de que essa inflexão resultou em guerras, destruições, massacres e a perda de milhões de vida num espaço tão curto de tempo somada a condenação global aos absurdos praticados e resultante das ações bélicas de alguns países, tornaram-se a principal força propulsora da nova tendência teórica sobre os conceitos de Estado e soberania.

A partir deste momento se tornou inaceitável que um Estado haja de acordo com seus interesses, desrespeitando os demais, insubordinando-se à Sociedade Internacional e criando suas próprias regras incontestes. Se fez necessário evitar que o mundo mergulhasse em catástrofe semelhante, impulsionando os teóricos a redefinirem ou, pelo menos, questionarem os conceitos até então apresentados.

Surgiu uma nova tendência impulsionada pela ideia de que o Estado não possui uma soberania ilimitada. Alguns chegaram a questionar se seria correto dotar de soberania os Estados diante da conjuntura atual. Como dispõe Perini (2016, p. 05):

a tendência atual é no sentido de que o Estado não pode tomar

qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os benefícios que lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada vez mais satisfações no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só à sua população, mas também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O poder de julgar sem ser julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo consideravelmente.

O terreno tornou-se propício para o conceito de soberania relativa, defendido por H. Kelsen, que “afirmava

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que a noção tradicional de soberania é incompatível com a supremacia de Direito Internacional e ao estabelecimento de uma ordem dessa natureza no cenário político mundial” (LOCATERI, 2014, p. 02). H. Kelsen é o principal teórico da nova corrente de definição do termo e acreditava na supremacia do Direito Internacional, utilizando suas discussões para defender o monismo internacionalista e redefinir conceitos considerados arcaicos. Para ele:

O sistema jurídico... é uno, e por isso é impossível aceitar o dualismo, uma vez que, se aceitar a primazia do direito

internacional sobre o direito interno, não existe soberania, mas, por outro lado, se aceitar o contrário, a soberania existe, mas surgem outros tipos de problema. Um deles consiste no fato de que, se o direito interno é superior ao internacional, cada país só será

soberano sob sua ótica e, havendo várias ordens de valores igualmente soberanas, torna-se impossível solucionar os conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes. Por isso Kelsen defendeu o monismo, ou seja, defendeu que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser separadas, e, em caso de conflito entre normas internas e internacionais, estas últimas devem prevalecer. Nesse sentido, a igualdade entre os Estados se traduz pelo princípio da sua autonomia enquanto sujeitos das relações internacionais (PERINI, 2016, p. 03).

As reflexões de H. Kelsen em defesa do monismo e da igualdade entre nações, reconhecendo a supremacia do Direito Internacional, resultaram no conceito de soberania relativa. Segundo o entendimento do autor, o Estado só é soberano sobre os indivíduos que compõem a nação, mas perante a Sociedade Internacional ele possui igualdade aos demais Entes e deve se subordinar aos tratados cujo seja

signatário. O reconhecimento da supremacia dos tratados confere uma espécie de delegação de soberania dos Estados ao acordo firmado, dando a base para a atual conceituação do princípio da subsidiariedade que prevê que “os Estados delegam certas competências soberanas a órgãos e instituições supranacionais” (PORTELA, 2015, p. 1003), sendo apontado como a principal demonstração da reconceituação do termo.

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A supranacionalidade, por sua vez, é um fenômeno decorrente do “modelo avançado de flexibilização da soberania estatal” e “implica a existência de uma espécie de soberania compartilhada” (PORTELA, 2015, p. 1003), que delega poderes a Comunidades Internacionais, através dos tratados assinados por seus entes (FANTINEL, 2009, p. 27), considerado os tratados internacionais superiores à normativa interna dos Estados.

A evolução deste conceito possibilitou a criação de

novas formas de Direito, como o Comunitário e o da Integração. Segundo estas novas formas de relação entre as nações, os Estados soberanos “através de cedência ou transferência de parcelas de soberania” resultam numa nova forma de organização mundial (LOCATERI, 2014, p. 03), quais sejam os blocos comunitários e integracionistas, à exemplo da União Europeia. Esta comunidade, por sua vez, utiliza o conceito de soberania relativa adotada pelas constituições dos integrantes da UE e fundada nos princípios da nova ordem mundial. O conceito de soberania relativa, por seu turno, seria incompatível com o modelo do Estado Absolutista Moderno e, por isso, pressupõe este novo organograma mundial.

Destarte, a compreensão de que a supranacionalidade fere a soberania, passa a ser considerada inconcebível a partir do surgimento do conceito de soberania relativa, uma vez que as Constituições que a adotam, na verdade, apenas cedem competências materiais a organismos e instituições internacionais, sobrepujando a rigidez do termo que cambia

o individualismo nacional pela comunidade internacional, mantendo o poder e a soberania emanados do povo de cada Estado. É o que define Pizzolo (2012, p. 371):

La soberanía se manifiesta hoy, fuera de su concepción teórico-política, en un conjunto de competencias o atributos que de manera exclusiva radica en el pueblo de cada Estado. Pero dicha exclusividad no implica exclusividad en cuanto a la titularidad de la competencia… los órganos estatales… pueden incluso atribuir el ejercicio mismo de sus competencias a órganos internacionales. Con

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ello no afectan la soberanía de un Estado, pues la misma

permanece, en cuanto a su titularidad, de forma exclusiva en el pueblo… el derecho supranacional es fruto de competencias atribuidas.

A descrição definida acima sobre como se manifesta a teoria condiz com a relatividade do conceito e é orientada pelos doutrinadores que carregam uma visão jovial e contemporânea do termo. Afastados da definição anacrônica da soberania absoluta, entendem, a partir da teoria da soberania relativa de Kelsen que não há perda ou mácula a

soberania estatal, uma vez que é o próprio Estado que define os tratados que irá assinar. O novo entendimento, por sua vez, emana do princípio da subsidiariedade que é usado constantemente para explicar a normativa jurídica da União Europeia. O princípio será melhor retratado no ponto a seguir.

Nos séculos seguintes, filósofos identificaram alguns problemas nesta supremacia ilimitada ou, pelo menos, do mau uso das teorias de J. Bodin e T. Hobbes. Mais precisamente depois dos indescritíveis danos resultantes das duas grandes guerras que devastaram a Europa do século XX. A críticas e vozes que invocavam uma reconceitualização se tornaram fortes, resultando no fortalecimento das ideias apresentadas por H. Kelsen. Seu conceito promoveu uma nova realidade mundial, permitindo o surgimento de organizações comunitárias e integradas de países.

2.4 H. Kelsen e a relativização da soberania

H. Kelsen, filósofo e jurista austríaco, presenciou as duas Grandes Guerras Mundiais, num contexto cujo viu seu país sendo invadido por alemães, testemunhando um dos maiores problemas da inexistência de limites aos poderes de um Estado: a possibilidade de guerrear com seus vizinhos por jugar-se supremo, soberano, ilimitado, ilimitável e absoluto.

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Em 1944, ele escreveu A paz pelo Direito2, onde desenvolveu a tese sobre a importância do Direito Internacional e o reconhecimento de uma Sociedade Internacional, onde os Estados nacionais cumprem um acordo legitimo de reconhecer uns aos outros em regime de igualdade, não permitindo que nenhum seja compreendido como superior aos demais. Para ele, as guerras eram resultadas da falta de limites aos poderes estatais, um problema a ser solucionado por meio do direito. Neste caso, a concepção do Direito Internacional, o respeito aos tratados firmados e o reconhecimento da superioridade jurídica dos acordos internacionais (KELSEN, 2011) seriam a solução para a paz mundial.

H. Kelsen desenvolveu o conceito de soberania relativa e “afirmava que a noção tradicional de soberania é incompatível com a supremacia do Direito Internacional e ao estabelecimento de uma ordem dessa natureza no cenário político mundial” (PERINI, 2016, P. 03). Como principal teórico da nova corrente de definição do termo, ele acreditava na supremacia do Direito Internacional, utilizando suas discussões para defender a tese monista internacionalista e redefinir conceitos considerados arcaicos. Para ele:

O sistema jurídico (…) é uno, e por isso é impossível aceitar o dualismo, uma vez que, se aceitar a primazia do direito internacional sobre o direito interno, não existe soberania, mas, por outro lado, se aceitar o contrário, a soberania existe, mas surgem outros tipos de problemas. Um deles consiste no fato de

que, se o direito interno é superior ao internacional, cada país só

será soberano sob sua ótica e, havendo várias ordens de valores igualmente soberanas, torna-se impossível solucionar os conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes. Por isso Kelsen defendeu o monismo, ou seja, defendeu que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser separadas, e, em caso de conflito entre normas internas e internacionais, estas últimas devem prevalecer. Nesse sentido, a igualdade entre os Estados se traduz pelo principio de sua

2 Título original: “Peace through law”.

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autonomia enquanto sujeitos das relações internacionais (PERINI,

2016, P. 03).

Segundo a teoria monista internacionalista, existe apenas um sistema jurídico integrado pelos Direito Internacional e Nacional, onde hierarquicamente, aquele é superior a este. Para H. Kelsen, isto ocorre porque um Estado não é de fato soberano: a soberania está numa presunção teórico-política. Em suas palavras:

Não se pode dizer que um Estado “é” ou “não é” soberano; só se

pode presumir que ele é ou não é soberano, e essa pressuposição depende da teoria que utilizamos para abordar a esfera dos fenômenos jurídicos. Se aceitamos a hipótese da primazia do Direito Internacional, então o Estado “não é” soberano. Sob essa hipótese, o Estado poderia ser declarado soberano no sentido relativo de que nenhuma outra ordem ademais da ordem jurídica internacional é superior à ordem jurídica nacional, de modo que o Estado está sujeitado diretamente apenas ao Direito Internacional.

Se, por outro lado, aceitamos a hipótese da primazia do Direito nacional, então o Estado “é” soberano no sentido absoluto, original, do termo, sendo superior a qualquer outra ordem, inclusive o Direito internacional (KELSEN, 1990, p. 546-7).

H. Kelsen acreditava, assim, que a soberania do Estado não é algo que se pode afirmar ou rechaçar, pois sua definição e aplicabilidade está diretamente conectada a duas hipóteses. Na primeira, se pode compreender que o Estado é soberano no sentido original, possui primazia frente de qualquer outra ordem, inclusive a ordem mundial. Na segunda, o Estado possui soberania em qualquer aspecto de ordem nacional, estando hierarquicamente posicionado acima de todas as normativas e poderes da nação, mas teria

uma limitação: o Direito Internacional.

A eleição entre os posicionamentos jurídicos se concebe a partir de uma compreensão política. H. Kelsen afirma que se faz necessária a eleição do posicionamento jurídico a respeito do que é soberania, algo que se concebe a partir de uma postura política que considera nacionalismo e imperialismo ou o internacionalismo e pacifismo. Na primeira situação, há uma tendência ao conceito clássico de

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soberania, enquanto, no segundo caso, o entendimento é que o Direito Internacional é a ordem maior (KELSEN, 1990, p. 551).

Ao considerar a postura política nacional-imperialista, concebemos que o Estado é soberano, pois a “afirmação de que a soberania é uma qualidade essencial ao Estado significava que o Estado é uma autoridade suprema” (KELSEN, 1990, p. 544). O problema neste posicionamento é que um ser supremo não reconhece força ou poder igual

ou acima dele. Significa dizer que um Estado soberano, pelo entendimento clássico da expressão, pode fazer o que quiser, sem limites ou justificativas, gerando instabilidade internacional.

Por outro lado, a postura pacifista-internacionalista condiz com a supremacia dos tratados internacionais firmados entre os Estados. A ordem e paz mundial se mantêm por meio da harmonia normativa entre Direito Internacional e Nacional, utilizando os conceitos jurídicos e a hierarquia normativa para manutenção da paz mundial. Para H. Kelsen, a paz e o Direito Internacional se complementam e são indissociáveis. Ele acredita que a supremacia das normas internacionais por si só já aponta o caminho para evitar guerras, enquanto o reconhecimento de uma supremacia nacional levaria países a conflitos, uma vez que sua vontade não possuiria limites, solucionando os conflitos por meio da beligerância.

O conceito da soberania relativa de H. Kelsen tomou força e passou a figurar em muitas constituições que visam políticas de integração e comunidade, como ocorre com diversos Estados europeus e alguns latino-americanos. Ao se comparar as constituições brasileira e argentina é possível identificar diversas diferenças entre as formas de promoção das relações internacionais, justamente pelo fato da segunda adotar a soberania relativa e a primeira, por força de interpretação, adotar a soberania absoluta.

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3. A SOBERANIA NO DIREITO COMPARADO ENTRE

BRASIL E ARGENTINA

Ao se analisar as Constituições do Brasil e da Argentina em consonância com o Direito Internacional, muitos pontos parecem, ao menos superficialmente, convergir para a mesma direção, enquanto outros destoam de forma significante. O que aparece de imediato é a impressão que a carta argentina se demonstra aparentemente mais avançado que a brasileira, ao menos no

ponto de esclarecer questões que, no Brasil, resultam num enorme arcabouço doutrinário e jurisprudencial de discussão.

É justamente neste ponto que o debate sobre o estudo comparado das Cartas Fundamentais em análise começa a se desenvolver. Com base na análise de renomados doutrinadores e juristas de ambas as nações é possível afirmar que existe uma considerável diferença entre os dois países, tornando um avançado em suas discussões e o outro estagnado frente aos debates que precisam ser superados com urgência.

Esclarecendo o supracitado no parágrafo anterior, existem autores que defendem a adoção da teoria monista, outros da teoria dualista, aqueles que preceituam uma teoria mista adotando conceitos de ambas, cuja primeira se voltaria aos tratados de Direitos Humanos e a segunda para os demais e, por fim, existem os que defendem que a Constituição Brasileira não adota quaisquer princípios

defendidos por teóricos monistas e dualistas.

Adicione a isto a posição do STF que aparenta estar não apenas na contramão da interpretação normativa dos diversos teóricos, mas impedindo aos atuais avanços normativos internacionais ao manter uma interpretação excessivamente restritiva dos pressupostos constitucionais. É o que se verifica no acordão CR-AgR 8279, que dispõe:

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A recepção dos tratados internacionais em geral e dos acordos

celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL depende, para efeito de sua ulterior execução no plano interno, de uma sucessão causal e ordenada de atos revestidos de caráter político-jurídico, assim definidos: (a) aprovação, pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, de tais convenções; (b) ratificação desses atos internacionais, pelo Chefe de Estado, mediante depósito do respectivo instrumento; (c) promulgação de tais acordos ou tratados, pelo Presidente da República, mediante decreto, em ordem a viabilizar a produção dos seguintes efeitos básicos, essenciais à sua vigência doméstica: (1) publicação oficial do texto do tratado e (2) executoriedade do ato de direito internacional

público, que passa, então - e somente então - a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes. O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO NÃO CONSAGRA O PRINCÍPIO DO EFEITO DIRETO E NEM O POSTULADO DA APLICABILIDADE IMEDIATA DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. - A Constituição brasileira não consagrou, em tema de convenções internacionais ou de tratados de integração, nem o princípio do efeito direto, nem o postulado da aplicabilidade imediata. Isso significa, de jure constituto, que, enquanto não se concluir o ciclo de sua transposição, para o direito interno, os tratados internacionais e os acordos de integração, além de não poderem ser invocados, desde logo, pelos particulares, no que se refere aos direitos e obrigações neles fundados (princípio do efeito direto), também não poderão ser aplicados, imediatamente, no âmbito doméstico do Estado brasileiro (postulado da aplicabilidade

imediata).3

A doutrina faz coro contra o posicionamento do Supremo, considerado conservador e superado. Este duelo doutrinário que envolve não apenas doutrinadores e juristas, mas que também é composto por lados divergentes nos mesmos grupos aponta para um problema maior: enquanto países como a Argentina já superaram tais discussões, o Brasil se debruça incansavelmente na

3 Para ver acordão na íntegra: BRASIL, Ministério das Relações

Internacionais (MRE). STF. CR-AgR 8279 / AT – Argentina, de

17/6/1998, Dualismo moderado - Necessidade de incorporação

de tratados à ordem jurídica interna, mesmo aqueles concluídos

no âmbito do Mercosul. Disponível em: <http://dai-

mre.serpro.gov.br/clientes/dai/dai/teste>, Acesso 01 ago 16.

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tentativa de definir teoricamente o caráter monista ou dualista de sua legislação, unicamente porque o legislador não aclarou tais questões e jogou na mão da doutrina e da jurisprudência tais problemáticas.

À primeira vista, a dificuldade maior parece ser apenas a superação da falta de dispositivos normativos adequados. Contudo, a falta de passividade quanto aos poucos dispositivos já existente também aparece como um fator preponderante. Expressamente, pode-se afirmar que

enquanto o Brasil está estagnado na discussão entre monismo e dualismo, a Argentina apresenta um conceito mais avançado, completo e complexo, definido não apenas por sua Constituição, mas corroborado pela Suprema Corte do país.

Os teóricos argentinos não se debruçam sobre a discussão das teorias monista e dualista, mas sobre a interpretação de conceitos como “harmonização e vigência normativa”. A harmonização, presente de forma expressiva na CNA e afirmada pela CSJN demonstra o avanço argentino na internalização das normas internacionais e na relação entre normativas externas e domésticas. O sistema jurídico argentino em alguns pontos chega a assumir a supremacia normativa do DI, mas o ponto mais interessante é o conceito de harmonização que preceitua que as normas, independentes de fontes devem encontrar uma congruência, uma simetria entre si.

A teoria da harmonização normativa está relacionada aos mais progressivos conceitos de Direito Internacional, convalidando o Direito da Integração e Comunitário, permitindo a adoção do princípio da subsidiariedade4 ou

4 O princípio da subsidiariedade, presente em diversas

constituições dos Estados que compõem a União Europeia, é

forma pela qual é desenvolvida a hierarquia normativa da

comunidade, estabelecendo os limites da Constituição europeia, impedindo que a mesma interfira nos assuntos internos dos

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ainda de delegar autoridade a um tribunal ou autoridade supranacional. Ela busca uma congruência, um complemento entre a legislação nacional e os acordos afirmados e é um modelo a ser discutido e apreciado pelos demais países latinos.

É claro que este trabalho não busca infligir conceitos de um país para outro, mas resta clara a percepção de que as discussões sobre a temática na região argentina estão mais avançadas que na brasileira, não se limitando apenas

às questões teóricas, mas, sobretudo, às práticas que permitem que julgados internacionais, desde que advindos de tribunais5 reconhecidos pelo sistema jurídico argentino, sejam chamados aos processos nacionais, dando uma vazão ainda maior a adoção de normativa externa e não limitando tribunais nacionais apenas aos julgados domésticos.

Outro ponto que merece destaque diz respeito ao período de vigência dos códigos estudados. A CNA está vigente desde 1853 e, após ser alvo de diversas modificações de caráter político interno, em 1994 passou por uma reforma condizente às relações internacionais do país. Nesta última reforma, o objetivo era justamente adequar-se às novas políticas internacionais que o país começava a adotar, inclusive com a assinatura do tratado de Assunção, em

Estados-membros e possibilitando o encaixe das normativas

comunitária e nacionais. Por meio dele se estabelece que a

legislação superior complementa a menor nos assuntos que esta

última não possa legislar, de forma complementar – ou seja,

subsidiária.

5 É válido salientar que até o presente momento apenas um

tribunal tem autoridade reconhecida dentro da sistemática

argentina, qual seja a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Contudo, a Constituição do país abre precedentes para a adoção

de outros tribunais, inclusive do ainda não composto Tribunal de

Justiça do Mercosul.

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1991, por meio da adição dos incisos 22 e 24 ao artigo 75 da CNA.

A inexistência de dispositivos específicos para a execução de acordos internacionais nunca impediu que a Argentina fosse signatária de convenções internacionais, como se vê:

De acordo com Perotti (2004), por razões históricas óbvias, a versão original da Constituição Nacional Argentina (1853) não contemplou especificamente a participação da Nação em processo de integração

econômica de cunho supranacional, mesmo assim, o país participou dos tratados de integração que deram origem a ALALC e a ALADI, haja vista que estes tratados não criaram instituições supranacionais, tampouco, um ordenamento comunitário. (PEDROSO, 2007, p.34).

Além dos blocos mencionados acima, deve ser destacado o significativo número de tratados assinados com o Brasil e que são considerados precedentes do Mercosul. Aliás, os dois países além de membros fundadores foram os grandes idealizadores do bloco e demonstraram, politicamente, ao longo de sua história política internacional, o desejo de construir uma comunidade latino-americana integrada.

Neste diapasão, enquanto a Argentina, três anos após a assinatura do Tratado de Assunção, reformou sua Constituição com o fito de melhor se adequar ao Direito da Integração, incluiu termos como supraestatais, e permitiu a aplicação da jurisprudência dos tribunais internacionais no território nacional, a partir da teoria de harmonização normativa independente da origem de suas fontes, o Brasil apenas reviu o artigo 4º de sua Constituição.

A revisão do artigo 4º se deu na tentativa de avaliar se a assinatura do Tratado de Assunção não feria a soberania e os ditames da CRFB/88. Da análise, resultou a compreensão de que o Brasil poderia firmar acordos integracionistas deste de que não desrespeitassem a soberania nacional e que fossem firmados apenas com países latino-americanos. Inúmeros doutrinadores apontam

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para a necessidade de reforma constitucional brasileira, revisão de termos ou ainda da inclusão de emendas constitucionais que melhor aclarem os temas discutidos neste escrito, mas até agora a Constituição se mantém nos mesmos moldes do definido pelo Constituinte há quase trinta anos, em 1988.

Enquanto a diferença mais gritante entre as normativas mencionados refere-se à existência ou não de dispositivos que regulamentem os tratados internacionais

que são signatários e a relação teórica com a normativa pátria, um ponto parece convergir em acordo: o tratamento especial dado aos acordos em matéria de Direito Humanos. Ambas as legislações entendem a importância do tema e adotam o conceito de equiparação constitucional aos acordos firmados neste tópico. Aliás, embora ainda envolto de ressalvas e limitações, esta matéria parece ser a mais facilmente pacificada em termos de importância e a necessidade de incluí-la como legislação especial ou ainda supranacional nos diversos países do globo.

Os dois países adotam processo próprio de internalização de tratados de Direitos Humanos, mas possuem algumas peculiaridades. Enquanto a CNA já traz um rol inicial de acordos e prevê a forma que deve ser adotada para a internalização deste tipo de convenções, não deixando pontos divergentes, a CRFB/88, no estudo doutrinário, parece apontar duas formas diferentes de internalização, onde apenas uma das modalidades concederia grau constitucional. Ademais, ainda há fervorosa

discussão sobre o caráter automático ou não destes acordos para a Constituição brasileira uma vez que não há passividade interpretativa do termo expresso em seu texto.

Em resumo, é possível ver diferenças tanto no texto constitucional, quanto na interpretação das Cortes superiores ou ainda na leitura feita pelos doutrinadores destes países. Enquanto na Argentina a norma é expressa, o tratamento é bem definido e a interpretação da Suprema

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Corte é extensiva, no Brasil a norma deixa muitas lacunas, em alguns pontos chega a ser silente, o Supremo Tribunal Federal impõe interpretação excessivamente restritiva e a doutrina está longe de atingir uma posição majoritária consensual em favor de sua amplitude.

CONCLUSÃO

O contexto geopolítico do mundo contemporâneo aponta para a necessidade de se aprofundar as discussões

e soluções dos distintos temas de problematização jurídica entre Direito Interno e Externo. A relação entre Direito Nacional e Internacional, ligada a solução dos conflitos entre ambos e as novas formas de integração mundial dos entes internacionais apontam para a necessidade da adoção de um conceito relativo de soberania, compatível com a nova ordem internacional e os princípios da supranacionalidade, conceito que se contrapõe ao nacionalismo exacerbado e que foi amplamente difundido após o fim dos conflitos da primeira metade do século XX, a partir do pensamento de teóricos como H. Kelsen. A reconceituação do termo questiona o poder ilimitado e ilimitável do Estado presente nas definições clássicas de teóricos como J. Bodin e T. Hobbes.

Para melhor demonstrar a aplicação das teorias de J. Bodin e H. Kelsen foram selecionadas as cartas brasileira e argentina, donde se pôde concluir que os tratados que versam sobre Direitos Humanos têm maior facilidade de

aceitação como normativas superiores, embora ambos os países cedam apenas características constitucionais a eles. Em termos de soberania, o Brasil ainda adota o conceito de soberania absoluta vetando qualquer manifestação de Direito Supranacional, mesmo mediante o termo “aprovação automática” presente em seu texto; enquanto a Argentina adota a soberania relativa com delegação da mesma mediante igualdade e reciprocidade dos signatários do acordo, chegando a incluir no texto constitucional o termo

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supraestatais para definir acordos de integração. A diferença de tratamento dos tribunais também é expressiva, uma vez que o STF adota a interpretação restritiva da norma, enquanto a CSJN assume uma interpretação mais extensiva.

Assim, enquanto no Brasil doutrinadores e juristas se debruçam na tentativa de redefinir conceitos que já não se encaixam com a conjuntura mundial, com longos trabalhos e estudos que não chegam ao consenso da teoria adotada

pelo país, a Argentina se reveste de conceitos como harmonização normativa e chega a aceitar jurisprudência externa em seus tribunais. O resultado disso é uma discrepância conceitual e normativa significativa entre ambos os países, apontando para a necessidade urgente da revisão de termos limitadores das relações externas brasileiras.

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