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Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X) 889 A prática de esporte entre “officiais graduados” e “as simples praças”: instrumento para “desenvolvimento physico do pessoal” ou prática “em promiscuidade completa”? Karina Barbosa Cancella * Resumo: As disputas esportivas realizadas no interior das Forças Armadas brasileiras no início do século XX eram controladas por duas entidades reguladoras: a ―Liga de Sports da Marinha‖ e a ―Liga de Sports do Exército‖. Com rígidas normas com relação à interação entre os diferentes círculos hierárquicos na prática dos esportes, estas ligas organizavam suas atividades reforçando a separação de seus militares em todas as instâncias, transportando ao esporte as distinções políticas existentes em todos os níveis das instituições militares. Palavras-chave: Esporte, Ligas Militares, Hierarquia. Abstract: The sporting competitions held by the Brazilian Armed Forces in the beginning of 20th century were controlled by two regulators organizations: the "Navy League of Sports" and the "Army Sports League." Presenting strict rules of interaction among the different hierarchical circles to practice the sports, these institutions have organized their activities reinforcing the separation of their militaries in all instances, carrying to the sport, the distinctions policies from all levels of the military organizations. Keywords: Sport, Military Leagues, Hierarchy As instituições militares brasileiras são organizadas em torno de dois conceitos basilares: hierarquia e disciplina. Segundo o Estatuto dos Militares, 1 a ―hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas‖ e a disciplina a ―rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar‖, devendo ser respeitadas em todos os níveis e instâncias da vida dos militares, dentro e fora dos quartéis. Estes aspectos definem os processos de interação pessoal e profissional nas instituições militares, sendo estendidos a todas as atividades realizadas, caracterizando

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A prática de esporte entre “officiais graduados” e “as simples praças”:

instrumento para “desenvolvimento physico do pessoal” ou prática “em

promiscuidade completa”?

Karina Barbosa Cancella*

Resumo: As disputas esportivas realizadas no interior das Forças Armadas brasileiras

no início do século XX eram controladas por duas entidades reguladoras: a ―Liga de

Sports da Marinha‖ e a ―Liga de Sports do Exército‖. Com rígidas normas com relação

à interação entre os diferentes círculos hierárquicos na prática dos esportes, estas ligas

organizavam suas atividades reforçando a separação de seus militares em todas as

instâncias, transportando ao esporte as distinções políticas existentes em todos os níveis

das instituições militares.

Palavras-chave: Esporte, Ligas Militares, Hierarquia.

Abstract: The sporting competitions held by the Brazilian Armed Forces in the

beginning of 20th century were controlled by two regulators organizations: the "Navy

League of Sports" and the "Army Sports League." Presenting strict rules of interaction

among the different hierarchical circles to practice the sports, these institutions have

organized their activities reinforcing the separation of their militaries in all instances,

carrying to the sport, the distinctions policies from all levels of the military

organizations.

Keywords: Sport, Military Leagues, Hierarchy

As instituições militares brasileiras são organizadas em torno de dois conceitos

basilares: hierarquia e disciplina. Segundo o Estatuto dos Militares,1

a ―hierarquia

militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças

Armadas‖ e a disciplina a ―rigorosa observância e o acatamento integral das leis,

regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar‖, devendo

ser respeitadas em todos os níveis e instâncias da vida dos militares, dentro e fora dos

quartéis.

Estes aspectos definem os processos de interação pessoal e profissional nas

instituições militares, sendo estendidos a todas as atividades realizadas, caracterizando

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as estruturas de distinção a partir dos ―círculos hierárquicos‖, organizados em três níveis

principais: Oficiais (Oficiais Generais, Oficiais Superiores, Oficiais Subalternos), Sub-

oficiais e Praças (Sargentos, Cabos, Marinheiros, Soldados). O convívio social e as

atividades profissionais dos militares devem respeitar esta hierarquização, estando os

subordinados sempre em obrigação de cumprimento disciplinar para com seus

superiores. A não obediência da cadeia hierárquica e do cumprimento das normas e

determinações dentro dos critérios da disciplina podem acarretar sanções, desde uma

advertência até a prisão, dependendo da circunstância e do posto ou graduação do

militar.

A rigorosa observância destes critérios de organização perpassou a história das

instituições militares brasileiras desde suas formações, ainda no século XIX. Em todas

as atividades desenvolvidas, desde suas funções institucionais de defender a Pátria e a

garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem, até as interações sociais corriqueiras,

os critérios de hierarquia e disciplina precisavam ser atendidos com a máxima atenção.

No início do século XX, as Forças Armadas brasileiras (FFAA) eram constituídas por

Exército Brasileiro (EB) e Marinha do Brasil (MB), uma vez que a Força Aérea

Brasileira (FAB) foi criada somente em janeiro de 1941, através do Decreto-Lei nº.

2.961, que estabeleceu a criação do Ministério da Aeronáutica e a transferência de todos

os militares que compunham a Arma de Aeronáutica do Exército e o Corpo de Aviação

Naval para a subordinação daquele Ministério.

Acompanhando o processo de intensificação da disseminação da prática esportiva

no Brasil nas primeiras décadas do novecentos, as duas forças (EB e MB), iniciaram

medidas para reconhecimento institucional e organização destas práticas no interior de

suas estruturas. Apesar de inúmeras modalidades já serem praticadas corriqueiramente

por praças e oficiais do EB e da MB desde o século XIX, somente em 1915 se efetivou

a criação das primeiras entidades reguladores do esporte no interior destas instituições,

sendo consequência de uma preocupação em centralizar o controle da organização dos

jogos já praticados e normatizar os processos de participação nestes. Esta preocupação

acompanhou o processo de estruturação e regulamentação de entidades esportivas e

clubes já identificado no meio civil desde a virada do século XX. A necessidade de

criação de instituições para reger a organização do esporte, tendo uma grande

diversidade de modalidades e clubes surgindo a cada momento, tornava-se cada vez

mais emergente. Já se destacavam, naquele momento, entidades diretivas de

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modalidades como remo (Federação Brasileira de Sociedades de Remo) e futebol (Liga

Metropolitana de Sports Athleticos).

No ano de 1915, o Exército Brasileiro criou sua primeira forma de

regulamentação dos esportes, fundando a Liga Militar de Football. A criação de uma

liga específica de futebol justificava-se por vários militares participarem de equipes dos

principais clubes de futebol do Rio de Janeiro, promovendo competições amistosas

entre os regimentos do Exército onde serviam. Por iniciativa do Tenente Francisco

Mendes, atleta do Fluminense Football Club foi instalado um campo ao lado do 1º.

Regimento de Artilharia Montado, na Vila Militar para a realização das partidas.2

A Liga Militar de Football foi reconhecida institucionalmente através de Aviso do

Ministério da Guerra nº. 966 de 22 de junho de 1915, publicado em Diário Oficial da

União de 29 de junho de 1915, e teve seu funcionamento autorizado pelo então Ministro

José Caetano de Faria sendo facultado ao pessoal dos corpos do Exército a inscrição na

referida Liga e participação em suas atividades.3 O primeiro presidente foi o Coronel

Chrispim Ferreira e seus primeiros cinco anos de atividade foram dedicados à

modalidade futebol.

Em 25 de novembro do mesmo ano de 1915, um grupo de oficiais efetivou a

fundação de uma entidade diretora de esportes navais na sede do Clube Naval que

recebeu o nome de Liga de Sports da Marinha (LSM). A fundação oficial ocorreu em

1915, mas sua regulamentação institucional foi reconhecida a partir da publicação em

Ordem do Dia do Ministério de Negócios da Marinha nº. 01 de 04 de janeiro de 1916

onde o Ministro da Marinha Almirante Alexandrino Faria de Alencar autorizava o

funcionamento da LSM com o seguinte disposto:4

Sr. Chefe de Estado Maior da Armada, declaro-vos, para fins convenientes, que,

approvados os intuitos da Liga de Sports da Marinha, fundada por officiais com

o fim de concorrer para o desenvolvimento physico do pessoal da Armada, por

meio dos jogos e exercícios, com campeonatos annuaes, resolvi permittir que a

citada Liga se corresponda com as autoridades da Marinha, em relação ao que

for necessário a seus fins, e que as autoridades lhe facilitem os meios de acção,

sem prejuízo para o serviço, fazendo-se os jogos sob direção da referida Liga e

seus representantes nos navios, corpos, estabelecimentos, ficando a acção destes

últimos sujeita a approvação dos respectivos comandantes. Saúde e fraternidade.

Assignado Alexandrino Faria de Alencar.

Como referenciado no documento, o objetivo de autorização de funcionamento da

LSM era o ―desenvolvimento physico do pessoal da Armada, por meio de jogos e

exercícios‖, e para tal as autoridades navais deveriam facilitar seus meios de ação para a

organização das atividades esportivas. Neste documento identificam-se algumas

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regulamentações partindo do Ministério da Marinha sobre os processos de organização

e participação nas atividades, destacando a necessidade de autorização dos comandantes

(oficiais superiores) para que seus subordinados participassem das atividades da Liga e

que esta instituição deveria se corresponder com as autoridades navais para a

comunicação de suas propostas, fato este somente possível por se configurar como uma

iniciativa de oficiais da Armada (envolvendo também oficiais superiores), já que os

processos de comunicação e correspondência também deveriam respeitar a cadeia

hierárquica.

As primeiras competições organizadas pela LSM envolviam diferentes

modalidades como o football e os esportes aquáticos remo, vela, water polo e natação,

tradicionalmente praticados por militares da Marinha do Brasil. Entre os anos de 1915,

o ano de fundação da Liga, e 1940, quando foi extinta para a criação do Departamento

de Educação Física da Marinha, registraram-se competições e participação de equipes

pela LSM em diferentes modalidades esportivas. As competições eram realizadas entre

os grupos esportivos que representavam os navios e estabelecimentos da Marinha, entre

estes grupos e equipes do Exército Brasileiro, também registrando-se participações em

disputas com equipes civis.5

Entre 1915 e 1920, o Exército contou com uma liga esportiva criada com o intuito

de atuar na organização da modalidade futebol. No entanto, através dos registros de

competições e correspondências da LSM, foi possível identificar a participação de

equipes do Exército em eventos de outras modalidades como nas disputas anuais da

―Taça Flamengo‖ com competição entre Exército e Marinha em futebol, cabo de guerra

e corrida de estafetas realizadas entre os anos de 1917 e 1924. Ainda como Liga Militar

de Football, o Exército enviou equipes para o Campeonato Acadêmico de Escolas

Superiores (Escola Naval e Escola Militar) nas modalidades de water polo e natação,

sendo registradas edições deste campeonato entre 1919 e 1924.6

Somente em 1920 sua nomenclatura foi alterada para Liga de Sports do Exército

(LSE), conforme aprovado por Aviso do Ministério da Guerra nº. 534 de 31 de julho de

1920 e publicado em Diário Oficial da União de 06 de agosto de 1920.7 Suas atividades,

no entanto, não se ampliaram de maneira significativa no desenvolvimento de outras

modalidades inicialmente. Passou a incorporar outros esportes de forma mais efetiva a

partir de 1922, já com influência da Missão Militar Francesa8 atuante desde 1919 e

comandada pelo General Maurice Gamelin. A partir desta influência, além de

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estabelecer uma nova doutrina militar, outros conceitos sobre a generalização da prática

esportiva passaram a figurar no cotidiano do EB seguindo as diretrizes da Escola de

Joinville Le Pont.9

As Ligas Esportivas Militares (LEM), além de organizar as competições, tinham

como função regulamentar a prática esportiva estabelecendo os critérios para

participação e composição de suas equipes representantes tanto para as competições

internas como para as disputas com equipes civis para as quais eram convidadas. Este

processo de regulamentação e organização envolveu a criação de Diretorias com

responsabilidade de atuar nas diferentes áreas da estrutura das Ligas. As definições

sobre a organização interna da LSM foram efetivadas na primeira reunião de diretoria

com a nomeação de diretores dos diferentes jogos a serem coordenados pela Liga. Além

das funções de Diretor-Presidente, Diretor-Secretário e Diretor-Tesoureiro, foram

criadas as diretorias de ―Serviços de Remo‖, ―Serviços de Vela‖ e ―Serviços de

Football‖.10

A cada ano eram realizadas eleições com voto individual entre os sócios para

seleção daqueles que ocupariam as funções diretivas da instituição nos cargos de Diretor

Presidente, Diretor Tesoureiro e Diretor Secretário, assim como os suplentes. Este

processo era realizado durante as Assembleias Gerais, como registrado em Ata da 1ª.

Assembleia Geral de 20 de novembro de 1916 para a escolha do corpo diretivo para o

ano de 1917.11

Apesar do processo ―democrático‖ de escolha, somente poderiam se

candidatar aos cargos de direção os sócios da Liga que, por sua vez, eram compostos

por oficiais e guardas-marinha, conforme determinações definidas ainda em 1915.12

Desta forma, encontravam-se fora do processo de organização esportiva e definição de

regras e prioridades todos os demais integrantes da Força (marinheiros, cabos, sargentos

e suboficiais), sendo-lhes permitida apenas a participação nas competições desde que

devidamente autorizadas por seus comandantes. Ao estabelecer o regulamento para os

eventos eram criadas categorias distintas para oficiais, suboficiais e praças, mantendo a

estrutura hierárquica como definição da participação esportiva. Com esta organização,

evitava-se não somente que oficiais e praças, por exemplo, competissem uns contra os

outros, mas também que competissem lado a lado nos esportes coletivos.

A composição das equipes esportivas e a participação nas competições

apresentavam fortes características de separação entre os diversos círculos hierárquicos

que organizam o pessoal militar das FFAA. Tanto na LSM como na LSE, foi possível

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identificar declarações textuais reforçando a necessidade de manter-se na prática

esportiva a distinção entre oficias, suboficiais e praças, não sendo bem recebida a

convivência entre estes grupos, mesmo que apenas durante as participações no esporte.

Na Marinha, esta foi uma temática discutida já em suas primeiras reuniões, ainda no ano

de 1915, a fim de determinar as ações na organização de suas primeiras competições.

Na ata da 2ª. Assembleia de Representantes, de 27 de dezembro de 1915 registra-se o

processo de organização das primeiras competições, definindo-se a criação de

categorias para oficiais, suboficiais e praças nas competições de natação, remo e vela.

Para as competições de water polo e futebol, levantaram-se questões sobre a

composição mista das equipes, havendo grupos a favor e contra. Sobre isso, o então

Diretor Secretário Capitão-Tenente Alberto de Lemos Basto, informa que 13

(...) a intenção da Directoria é estabelecer logo que possa os campeonatos de foot

ball e water polo e que, para permitir que todos os navios tomem parte nestes

jogos se estabelecer campeonatos separados para officiaes, sub officiaes e praças

o que, ao menos ao principio, não e possível, pensa propor que o campeonato de

foot ball seja desde já estabelecido para as praças (...)

A questão da composição mista de equipes, com oficiais e praças, foi tema de

debate em alguns momentos ao longo da vida da LSM, mas observando os registros de

organização e de resultados com a manutenção das provas distintas ao longo da década

de 1920, percebe-se a sustentação das ideias de separação baseadas nos círculos

hierárquicos.

No caso da LSE, a primeira normativa textual sobre a composição mista de

equipes foi identificada em Aviso do Ministério da Guerra nº. 23 de 14 de outubro de

1922, assinado pelo então Ministro João Pandiá Calógeras. Este aviso tratava sobre uma

consulta do Comando da 9ª. Companhia de Metralhadoras Pesadas se seria lícita a

participação de um oficial junto com praças em uma festa pública náutica de remo. Em

resposta, determinou-se14

a)Que o regulamento interno dos serviços geraes, sem cogitar propriamente de

casos relativos aos jogos sportivos, manda que ―o superior deve tratar seu

subordinado com estima, consideração e bondade, sem nunca descer a

familiaridade‖; b) Que a observância de círculos, fora do serviço onde estejam

separados os officiais graduados, e as simples praças, mostra a inconveniência de

qualquer promiscuidade; c) Que não devem ser usados entre indivíduos que

fazem parte dos círculos differentes os jogos de dependem sobretudo de

agilidade e do emprego de força physica, taes como foot-ball, o Box, a luta

romana e outros; d) Que será de inteira vantagem que os homens, uma vez

incorporados ao exercito, se tornem ágeis e fortes, pelo cultivo dos jogos

sportivos mais aconselhados; entretanto, a pratica delles, em promiscuidade

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completa, traz serio prejuízo a disciplina, não podendo guardar compostura que

devem ter officiaes e praças em quaesquer situações em que se encontrem; e, e)

Que, em taes condições, não é permittido aos officiaes tomar parte em torneios

sportivos, ao lado de praças, afim de disputarem em commum quaesquer provas.

Saude e Fraternidade – Calogeras.

O uso do termo ―promiscuidade‖ na especificação sobre as aproximações entre

oficiais e seus subordinados ressalta o rigor na aplicação dos círculos hierárquicos no

EB naquele momento. A proibição de participação nas competições com equipes mistas

e em confrontos entre superiores e subordinados foi reforçada em Aviso do Ministério

da Guerra de 03 de junho de 1930, publicado em Diário Oficial de 07 de junho de 1930,

determinando que 15

III — E inconveniente conforme preceitua o art. 292 do R. I. S. G. a

possibilidade de militares de círculos differentes, em torneios sportivos. Essa

disposição, aliás, não é nova, pois o actual regulamento interno dos serviços

geraes apenas consolidou ordens vigentes reguladas pelos avisos ns 23, de 14 de

outubro de 1922 (ministro Calogeras) e nº. 13de 18 de fevereiro de 1926

(Ministro Setembrino).

Tratadas como ―promiscuidade‖ e ―inconvenientes‖, as participações de oficiais e

praças lado a lado em competições esportivas eram reprimidas no Exército, desde os

anos iniciais da LSE, estendendo-se à década de 1930. O mesmo se verifica na LSM a

partir da manutenção das competições distintas, como anteriormente comentado. O rigor

com relação às separações hierárquicas passa por questões disciplinares comuns às

FFAA, sendo uma constante no processo de organização esportiva nas duas instituições.

As questões disciplinares apresentadas na análise deste objeto podem ser

compreendidas a luz das proposições de Michel Foucault,16

que compreende a disciplina

como uma forma de poder e controle sobre o corpo que visa a sua ―domesticação‖. Os

corpos domesticados, ou dóceis como o autor refere, são de mais fácil domínio e

manipulação. O autor explora a concepção de poder a partir da disciplina. A sociedade

está submetida à força da disciplina e, ao mesmo tempo, assume papel de

disciplinadora, uma vez que disciplina para manter a ordem e a produtividade. Todas as

instâncias da sociedade buscam disciplinar umas às outras, como um movimento

contínuo e circular, onde a disciplina e o controle assumem o papel principal de

ordenadores da sociedade e de suas múltiplas abordagens. No caso do objeto desta

pesquisa, a aplicação da disciplina é base de definição das principais atividades das

FFAA, desde o comportamento, os movimentos do corpo e até mesmo em normas sobre

vestimentas (sejam os uniformes ou as roupas fora das organizações militares).

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Sendo as FFAA essencialmente disciplinadoras em suas ações, o transporte desta

configuração para as relações e interações travadas no momento da prática esportiva não

nos apresenta surpresa. No entanto, as rigorosas distinções e distanciamentos

oficialmente normatizados para atividades que, a princípio, não se enquadram no quadro

de ações institucionais destas forças e, portanto, podem ser identificadas como

atividades paralelas ou recreativas, reforçam as questões relacionadas à organização

política destas instituições e sua estrita relação com as bases da hierarquia e da

disciplina. Estes fatores seriam, portanto, definidores não somente das atribuições e

subordinações no interior do organismo institucional, mas também dos locais políticos e

sociais por onde podem transitar os indivíduos e as interações permitidas ou

―promíscuas‖, como o então Ministro da Guerra João Pandiá Calógeras definiu a prática

de esporte entre oficiais e praças do Exército Brasileiro.

A partir da análise dos documentos é possível concluir que mesmo a prática

esportiva sendo introduzida como forma de ―desenvolvimento físico‖, a participação

nas referidas atividades mostrava-se inteiramente enquadrada e definida pelos critérios

hierárquicos estruturadores das instituições militares aplicando-se à participação nas

competições as mesmas prerrogativas e obrigações presentes nas demais áreas de

atuação dos militares brasileiros.

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (UFRJ); Integrante do Sport –

Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ); Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior. Orientador: João Manuel Casquinha Malaia Santos e-mail:

[email protected] Contatos: (21) 7881-4579

1 BRASIL. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Disponível

em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm>. Acesso 12 jun. 2011.

2 RIBEIRO, André Morgado. ―Contribuições da Missão Militar Francesa para o desenvolvimento do

desporto no Exército Brasileiro: Comemoração aos 100 anos do início da orientação daquela Missão‖.

Revista de Educação Física. Rio de Janeiro: IPCFEx, p. 9-15, 2009. 3 BRASIL, Diário Oficial da União de 29 de junho de 1915, Seção 1, p. 05.

4 ALENCAR, Alexandrino. Relatório do Ministério de Negócios da Marinha de 1916. Anexo A, p. 01.

5 Cf. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha - Volume I - Anexo I (1915-1920) Comissão

de Desportos da Marinha; Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha - Volume I - Anexo II

(1920-1922) Comissão de Desportos da Marinha; Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha -

Volume I - Anexo III (1922-1924) Comissão de Desportos da Marinha; Livro Registro de Competições

(1923-1928) Comissão de Desportos da Marinha. 6 Idem.

7 BRASIL, Diário Oficial da União de 06 de agosto de 1915, Seção 1, p. 10

8 Missão Militar Francesa foi enviada ao Brasil com objetivos de modernizar a instrução das tropas com

grande influência no processo de formação de oficiais, em especial no campo doutrinário. Adaptando os

ensinamentos do Exército Francês à realidade nacional brasileira, esta missão esteve em atividade entre

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1919 e 1940 na tentativa de criação de uma doutrina militar institucionalizada no interior do EB, até então

inexistente.

9 MARTINS Luiz Eduardo Almeida; CUNHA, Rafael Soares Pinheiro da; SOEIRO, Renato Souza Pinto.

―O proeficiente papel da Comissão de Desportos do Exército para o desenvolvimento esportivo nacional‖.

Revista do Clube Militar. Rio de Janeiro: Outubro de 2007.

10 ―1ª. Sessão da Diretoria de 16 de dezembro de 1915‖ - Livro Histórico Departamento de Esportes da

Marinha - Volume I - Anexo I. Comissão de Desportos da Marinha.

11 ―1ª. Assembleia Geral de 20 de novembro de 1916‖. Livro Histórico Departamento de Esportes da

Marinha - Volume I - Anexo I, p. 22v e 23. Comissão de Desportos da Marinha. 12

―1ª. Assembleia de Representantes de 24 de dezembro de 1915‖. Livro Histórico Departamento de

Esportes da Marinha - Volume I - Anexo I, p. 3 e 3v. Comissão de Desportos da Marinha. 13

―2ª. Assembleia de Representantes, de 27 de dezembro de 1915‖. Livro Histórico Departamento de

Esportes da Marinha - Volume I - Anexo I, p. 04. Comissão de Desportos da Marinha. 14

CALOGERAS, José. Relatório do Ministério da Guerra de 1922, Anexo AB, p. 136-137.

15 BRASIL, Diário Oficial da União de 07 de junho de 1930, Seção 1, p. 12.

16 FOUCAULT; Michel. (Trad.) VASSALO; Ligia M. Ponde. Vigiar e Punir: nascimento da

prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.

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O realismo socialista como política cultural soviética e do PCB nas artes

plásticas

Karina Pinheiro Fernandes1

Resumo: Neste artigo pretende-se comparar o realismo socialista soviético, arte oficial

desde 1934 na URSS, com a apropriação que o PCB realizou desta vertente artística a

partir de 1945, especialmente nas artes plásticas. Pretende-se, aqui, ressaltar as

condições e funções que permeavam esta produção artística na URSS e no Brasil,

visando destacar as diferenças nos resultados práticos das obras plásticas. Para esta

finalidade serão utilizadas obras do governo de Stalin e ilustrações do jornal Tribuna

Popular (1945-1947) vinculado ao PCB.

Palavras-chave: realismo socialista; PCB; URSS

Abstract: This article aims to compare the Soviet socialist realism, official art in the

USSR since 1934, with the appropriation that PCB held this since 1945, especially in

the visual arts. It is intended here to point out the conditions and functions involved in

this artistic production in the USSR and Brazil, to highlight differences in the

experimental works of arts. Will be used for this purpose works of Stalin's pieces of

art and illustrations of the newspaper Tribuna Popular (1945-1947) linked to the PCB.

Key-words: socialist realism; PCB; USSR

O realismo socialista surgiu como política cultural oficial na União Soviética em

1930 sob o governo de Stalin (1924-1953). A proposta era utilizar a arte de forma bem

clara para o entendimento do povo, e ainda, que os temas fossem afinados com a

realidade dos trabalhadores, suas questões e modos de vida. Esta vertente estética servia

principalmente como um meio de propaganda do governo, pois os artistas produziam

em contribuição ao regime de Stalin. Desde o ano de 1934 até 1945 esta vertente

estética se apresentou como representante dos interesses da classe trabalhadora contra a

arte burguesa, capaz de mostrar uma arte em favor da revolução e definir a burguesia

como inimiga da classe trabalhadora.

Após este período, que coincide com o fim da Segunda Guerra Mundial e com os

primeiros sinais da Guerra Fria, as diretrizes estéticas foram enrijecidas e explicitavam

que a arte deveria mostrar a vida do proletário operário ou camponês, ou seja, a arte

deveria ser didática e alcançar o entendimento das massas mostrando sua realidade

sofrida e sua superação, idéia fulcral da Revolução de 1917. O realismo socialista foi a

arte oficial da União Soviética até a morte de Stalin em 1953, e especialmente depois de

1956 quando seus crimes foram revelados ao mundo, suas ideias seriam negadas

também na URSS.2

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Na década de 1930 o governo de Josef Stalin (1924-1953) alcançava êxito no

desenvolvimento industrial, o que lhe fortalecia no poder. Stalin se cercou ainda de um

aparato ideológico em que o arrocho das liberdades e o controle da produção artística

eram essenciais. Paul Wood explicita a necessidade desta arte para alcançar os objetivos

do Plano Quinquenal, que pretendia grande crescimento de produção para conseguir

quase a autossuficiência.

A União Soviética do final dos anos 20 e começo dos 30 era um local em que se

sacrificava tudo em favor do impulso dado à produção pelo Plano Quinquenal,

da necessidade de construir, virtualmente do nada, o Estado industrial

independente postulado pela noção do ―socialismo em um só país.3

Após o ano de 1945 a União Soviética enfrentou forte censura e terror, quando

foram considerados anticomunistas ou traidores da revolução quaisquer opositores das

diretrizes oficiais. A partir de então será radicalizada a postura soviética em relação à

cultura e à estética4. O realismo socialista passou a ser a única forma de arte permitida, e

como o governo stalinista procurava incutir a ideia de que viviam um regime comunista

no qual todos estavam satisfeitos, esta vertente estética, portanto servia a este fim. No

entanto a arte realista socialista teria grande alcance na sociedade, principalmente por

ser a única vertente estética permitida pelo comitê central soviético, e por isso é

importante esta análise de sua composição. A partir das artes plásticas podemos

observar as condições e funções que permeavam esta produção artística na URSS.

Diante destas condições podemos notar o esforço de imprimir estas ideias nas

formas visuais de arte, como no cartaz abaixo no qual o povo exalta a figura de Stalin e

agita bandeiras vermelhas em apoio ao seu governo. Os rostos mostram felicidade, entre

homens, mulheres e crianças vemos sorrisos e animação com a aparição de seu

governante.

(Cartaz soviético. Querido Stalin – alegria nacional! Sem data.)

No Brasil o Partido Comunista do Brasil havia sido desarticulado após o fracasso

do Levante Comunista em 1935, e apenas em 1943 conseguiu se reestruturar e voltar ao

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cenário político. Na década de 1940 o PCB cresceria em número de filiados, de

candidatos eleitos e de publicações periódicas, disseminando suas perspectivas políticas

e também sua política cultural. 5

Durante a Segunda Guerra Mundial grande parte do

mundo temia e buscava combater a ameaça nazista. Coadunando com o espírito de luta

pela democracia e pela liberdade em alta no mundo, o PCB se posicionava a favor de

uma União Nacional de apoio ao governo brasileiro contra o Eixo e pela entrada do

Brasil nesta guerra. O Estado não pôde, assim, ir contra as movimentações e campanhas

comunistas, pois elas se configuravam como uma voz antinazista6.

Luís Carlos Prestes foi o líder e o porta-voz destas ideias, e os resistentes às

mudanças dentro do Partido provocariam uma cisão, chegando a se afastarem do

mesmo. Em seus discursos, Prestes, o chefe do Partido Comunista do Brasil, deixava

clara a intenção do partido de ampliar suas frentes. A moderação neste momento atraiu

milhares de novos filiados e simpatizantes especialmente quando, a partir de 1945, o

Partido Comunista retornou à legalidade, o que durou até 1947 – quando tornaria a ser

considerado ilegal, culminando, um ano depois, na cassação dos mandatos dos

parlamentares comunistas e no aumento da perseguição aos seus militantes7.

A política cultural do PCB era parte da doutrina de expansão dos ideais

comunistas para as massas. A apropriação que o Partido fez do realismo socialista e a

aplicação promovida para a sociedade brasileira enfocava a necessidade da arte chegar a

classe trabalhadora através de temas brasileiros especialmente aqueles que abordassem a

vida do trabalhador do campo ou da cidade. A partir de 1945 o PCB começou a divulgar

no Brasil as teses do realismo socialista através do jornal Tribuna Popular. Daí em

diante outros periódicos serviriam a este fim, além de publicarem os debates acerca dos

propósitos desta vertente artística travados entre intelectuais, artistas, membros e não

membros do Partido.8

A exaltação do líder político, capaz de trazer a vitória e salvar os trabalhadores do

jugo da burguesia que os explorava foi apropriada pelo PCB, com a diferença que

Joseph Stalin era exaltado por já ter conquistado tal salvação do povo, enquanto o líder

Carlos Prestes era a promessa desta salvação, sendo conhecido como ―Cavaleiro da

Esperança‖.

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(Jornal Tribuna Popular , 18 de setembro de 1945)

Esta página tem um caráter de uma clara homenagem a Carlos Prestes

ocupando quase toda a folha. Os personagens da imagem são poucos e estão

bem de perto e abaixo vem o referido canto de exaltação a Prestes e ao

Partido Comunista do Brasil. Este canto traz uma breve história da relação

do povo com o partido, destacando-se seu papel de ―guia‖ e protetor. O

partido também seria exaltado por ter trazido Prestes para o povo, tirando -o

da prisão e levando- o a ser o maior guia dos trabalhadores. Há neste

momento, uma referência ao papel do PCB na libertação de Prestes da prisão

política no período em que o Partido esteve na ilegalidade, e ainda ao

período posterior no qual Carlos Prestes reafirmou seu destaque no cenário

político e sua popularidade especialmente entre os membros e simpatizantes

do PCB.

A ilustração é feita em três planos distintos. No primeiro plano vemos

o perfil de Prestes com grande destaque, com a cabeça ligeiramente erguida

e o olhar para além, denotando esperança. No segundo plano podemos

observar sete pessoas que parecem estar apoiando Prestes e confirmando as

palavras do canto. Entre estas pessoas há uma criança e duas mulheres, os

homens estão uns de terno outros apenas de camisa. Esta variedade nos

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personagens parece demonstrar a admiração e apoio a Prestes vindas de

diferentes pessoas, podendo ser crianças, mulheres ou homens. No terceiro

plano, vemos uma clara alusão à Coluna Prestes da qual Carlos Prestes foi

líder e afirmou-se como guia dos oprimidos. A partir de então, ficou

conhecido como ―Cavaleiro da Esperança‖, o que só reafirmava seu caráter

heróico, como exalta o canto intitulado: ―canto heróico ao Partido de

Prestes‖. Esta parte da imagem, na qual vemos três homens a cavalo, com

armas e bandeiras e em meio a vegetação, parece ser uma recordação dos

outros personagens, como um sonho que está sempre presente no imaginário

das pessoas quando se fala em Prestes.

A política cultural soviética se pautava no realismo socialista, pois

para o governo soviético e seus teóricos era a forma de arte que poderia

trazer maior identificação e diálogo com os trabalhadores. 9 Outra questão

importante a ser observada é relativa às condições em que vivia o povo na

União Soviética, e o governo era categórico na exposição da satisfação, e

fartura na qual viviam os trabalhadores urbanos e t ambém os rurais. Os

Planos Quinquenais impulsionavam o governo e o aumento da produção, e

para isso estimulavam também as artes, pois garantiam o apoio e o

convencimento de grande parte da população nas modificações pelas quais

passavam a URSS.

―A União Soviética do final dos anos 20 e começo dos 30 era

um local em que se sacrificava tudo em favor do impulso dado

à produção pelo Plano Quinquenal, da necessidade de

construir, virtualmente do nada, o Estado industrial

independente postulado pela noção do ―socialismo em um só

país‖. 10

Nas áreas rurais soviéticas os campos se tornaram propriedade

coletiva, e qualquer desagrado foi abafado pela propaganda de crescimento

da produção e satisfação dos camponeses. Eram os kolkhozes – fazendas

coletivas – tema recorrente nos cartazes de propaganda dos grandes feitos

do governo soviético. A imagem abaixo é um exemplo de um cartaz

soviético que mostra a fartura da produção de grãos no campo, e a felicidade

da camponesa, ao fundo aparecem máquinas que denotam desenvolvi mento

tecnológico na atividade rural. As outras personagens também parecem bem

postas, com roupas limpas, sem rasgos ou qualquer sinal de pobreza.

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(Cartaz soviético. Onda âmbar de grãos de trigo! sem data)

Enquanto na URSS as condições nos Kokhozes eram comemoradas pelo

realismo socialista, no Brasil a condição do PCB de opositor do governo e

propositor de novas políticas públicas apoiado nas ideias comunistas abria

espaço para matérias de caráter crítico e de denúncia das condições do país

e de seu povo. Os problemas nas áreas rurais brasileiras podem ser

destacados pelas ilustrações apresentadas no jornal Tribuna Popular

mostrarem condições bem distintas das que eram divulgadas na União

Soviética.

(Jornal Tribuna Popular,

18 de maio de 1947)

Já a página acima traz

como principal manchete: ―Terras para os fascistas estrangeiros, despejo e escravidão

para os camponeses, nossos irmãos‖ e uma matéria que trata das más condições de

trabalho no campo, dizendo as dificuldades que os trabalhadores rurais passam desde o

norte até o sul do país. A maior crítica está na falta de apoio e atenção do governo a

esses trabalhadores e seus problemas, enquanto o mesmo governo incentivaria a vinda

de milhões de imigrantes vindos da Europa em virtude dos problemas que enfrenta

diante do fim da Segunda Guerra Mundial. Para o jornalista esses imigrantes são um

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problema para o Brasil, pois vão ser mais pessoas que explorarão os trabalhadores

brasileiros, ao invés de virem para trabalhar em áreas pouco povoadas, ocupando o

território nacional.

A matéria atenta para os maiores prejudicados, que seriam os trabalhadores

rurais que ficariam na miséria, e acabariam deixando o campo. A ilustração mostra o

que poderia ser uma família, com um senhor idoso à frente, o único calçado

possivelmente pela idade avançada, com feições de sofrimento e podendo ainda estar

com a saúde fragilizada. Atrás dele há uma mulher, um homem e duas crianças

pequenas, com expressão de fome, descalços e com roupas humildes, descabelados,

olhar desolado, chamando atenção para a condição triste e sofrida em que se encontram

estas pessoas.

As ilustrações analisadas neste artigo apresentam características que especificam

as políticas culturais soviética e do PCB e as diferentes funções do realismo socialista

para cada contexto específico. É importante destacar as formas recorrentes no que diz

respeito aos seus personagens e as expressões e apresentação deles nos dois casos

analisados – a URSS e o Brasil. No jornal Tribuna Popular, vinculado ao Partido

Comunista do Brasil, os personagens são geralmente trabalhadores rurais e urbanos e

suas famílias, mas também figuras como Carlos Prestes, coadunando-se com os temas

das matérias que ilustram. Estes homens, mulheres e ainda crianças geralmente são

apresentados com feições tristes, sofridas ou expressando firmeza e esperança, quando

retratados em alguma manifestação, em alguma luta. Ainda notamos que suas

vestimentas são geralmente ternos, quando em reuniões de massas e protestos,

mostrando seriedade destes homens, mas ainda é comum pessoas retratadas com roupas

bastante humildes, às vezes até esfarrapadas, e descalças quando trabalhadores rurais.

Estas características coadunam-se com o teor das matérias, que nos casos

analisados acima, são de denúncia ou de convocação a protestos. Desta forma, a

seriedade dos temas encontra ressonância nas ilustrações, especialmente na seriedade e

respeitabilidade com que são representadas essas pessoas.

Por outro lado, os cartazes soviéticos apresentavam um povo feliz, que lutou e

venceu a Revolução de 1917, a Primeira Guerra Mundial e teria conquistado o regime

comunista. Portanto, os soviéticos são representados como pessoas satisfeitas com o

regime, que seria representante do povo e de suas vontades políticas e culturais. As

personagens nestes cartazes mostram o apoio ao governo de Stalin, ora felizes com as

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conquistas, ora firmes em apoio às lutas que propõe. A função destes cartazes é incutir

as ideias do regime stalinista no povo, e promover a ideia de satisfação com grandes

conquistas sociais, econômico-produtivas, políticas e culturais. A utilização da arte

realista socialista cabe bem a este propósito, pois não permite interpretações que

pudessem abrir espaço a contrariedades ao governo.

As imagens que ilustram o jornal Tribuna Popular têm uma dupla função a partir

de uma dupla intencionalidade. A primeira intenção seria aproximar e atrair o leitor do

jornal como expectador da ilustração que se identifica com o que está retratado para em

seguida se identificar com as questões levantadas pelas matérias de cunho político,

especialmente. A segunda seria a ampliação do alcance artístico, seguindo um objetivo

mais subjetivo de tornar a arte útil, próxima e a serviço do povo. A partir das ilustrações

analisadas parece que o objetivo de apelo ao leitor poderia mesmo ter sido alcançado,

pois as imagens são persuasivas e dialogam com as matérias que ilustram. No entanto, o

mais importante é observar justamente a relação disposta entre imagem, texto e leitor,

para enfim se aproximar das intenções e posicionamentos do corpo editorial deste

jornal. 11

Por fim, podemos concluir que apesar de condições distintas entre os

produtores e defensores da arte realista socialista na União Soviética e no

Brasil, a propaganda em defesa da via comunista de governo encontrou

espaço fecundo através desta vertente estética, com o infortúnio de cercear

as liberdades artísticas. Esta condição deriva do autoritarismo do governo

stalinista que não considerava possível dar margem à interpretações de sua s

diretrizes, convicções e ações. No Brasil, o PCB , assim como outros

Partidos Comunistas do mundo, se alinhou às diretrizes stalinistas e adotou

o realismo socialista como única via artística capaz de traduzir as ideias do

partido. O estudo desta apropriação do realismo socialista soviético por

parte do PCB é importante para a compreensão de sua política cultural, de

sua atuação no contexto político nacional e o que se assemelha e se

distingue da política cultural soviética na qual se inspira.

1 Karina Pinheiro Fernandes é mestranda em História Social no Programa de Pós Graduação do Instituto

de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ).

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2 STRADA, Vittorio. Da ―revolução cultural‖ ao ―realismo socialista”. HOBSBAWN, Eric. (org.)

História do Marxismo. Paz e Terra, 1989. Volume IX.

3 WOOD, Paul. Realismos e Realidades, capítulo 4. In: FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD,

Paul. Arte Moderna: Práticas e Debates. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A Arte no Entre-Guerras.

Cosac e Naif, 1998.p.312 4 STRADA, Vittorio. Do ―realismo socialista‖ ao zdhanovismo. HOBSBAWN, Eric. (org.) História do

Marxismo. Paz e Terra, 1989. Volume IX. 5 REIS, Daniel Aarão. Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre

1943 e 1964. Pág. 69. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo. História do Marxismo no Brasil.

Volume 5: Partidos e organizações dos anos 20 aos 60. Editora da Unicamp, 2002. 6SEGATTO, José Antônio. Breve História do PCB. Livraria Editora Ciências Humanas. São Paulo,1981.

7CARONE, Edgar. O PCB- 1943 a 1964. Volume 2. Editora Difel, 1982.

8ARAUJO, Mônica da Silva. A arte do partido para o povo: o realismo socialista no Brasil e as relações

entre artistas e PCB(1945-1958). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS-PPGHIS, 2002. 9ZDHANOV, Andrei. As tarefas da literatura na sociedade soviética. Problemas - Revista Mensal de

Cultura Política nº 20 - Agosto-Setembro de 1949. 10

WOOD, Paul. Realismos e Realidades, capítulo 4. In: FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD,

Paul. Arte Moderna: Práticas e Debates. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A Arte no Entre-Guerras.

Cosac e Naif, 1998. p.312. 1111

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O Recife antes da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial

Karl Schurster1

Introdução

―O que você vê neste lugar pobre e miserável? Pelo menos bombas não caem na

sua cabeça!‖2 Johann: alemão fugido da Segunda Guerra Mundial, vendedor de

aspirinas pelo interior do Brasil. Ranulpho: nordestino, homem simples que sonha ir

para o Rio de Janeiro trabalhar e mudar de vida. O cruzamento destas histórias presente

em Cinema, Aspirinas e urubus, é mais um exemplo do que chamamos de Guerra como

metáfora. Como dissemos em texto anterior3 o Brasil não teve seu território destruído

ou invadido pelas forças beligerantes durante o conflito mundial (1939-1945), porém

vivenciou um diário estado de guerra presente na sua imprensa, no cotidiano dos seus

cidadãos, na preparação das suas forças armadas e nas ações governamentais. Neste

sentido, se não tivemos uma guerra com teatro de operações em solo brasileiro, a

tivemos pela construção de práticas, de sociabilidades que não a tornaram real, mas que

fizeram da experiência de preparação para uma guerra um aspecto fundamental da

década de ‘40 no Brasil.

A película de Marcelo Gomes, citada acima, mostra a constante revisão do

conflito pelo cinema, apontando não só a importância da guerra, mas sua capilaridade, o

quanto ela conseguiu penetrar nas sociedades e como as diversas impressões e

significados dados ao conflito mundial são fundamentais para pensar que a história não

se restringe aos chamados grandes atores determinados pela política ou pela própria

historiografia. A própria dinâmica histórica é responsável pela descentralização da

historia. A história é por excelência plural. Em muitos casos é a memória construída de

um evento ou a própria interpretação consolidada pela historiografia centraliza os

acontecimentos em personagens que determinam como o foco do debate selecionando o

que deve ser contado ou lembrado. A historiografia que se dedica aos estudos da

Segunda Guerra Mundial se preocupou/preocupa da década de 1980 aos idos do século

XXI em desvelar histórias abrindo espaços para acompanhar a dinâmica dos processos

históricos. A história é pautada pelo movimento, pela dinâmica, pelas peculiaridades

que envolvem o todo e neste sentido, tratar a guerra esquecendo como as

particularidades destas visões constroem o todo e que quando se trata da visão de um

homem simples e comum como Ranulpho (entendendo esta análise como metafórica)

estamos apontando para a ideia central de que a história só tem significado a quem toca.

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O historiador vienese, Carl Schorske estava certo quando nos alertou de que os

indivíduos não tem obrigação de pensar a história, mas sim de pensar com ela.4

A pouco em artigo nosso intitulado Figura esvaziada de Hitler5 nos questionamos

sobre o conceito que os alemães chamaram de mitmachen, fazer junto, cooperar e a

importância que esta definição trouxe para o entendimento do Terceiro Reich. Mesmo

acreditando na dificuldade de aproximar comparativamente os regimes na Alemanha e

Brasil devido suas evidentes distinções, há um ponto de interseção que são a natureza

destes regimes políticos. Tanto o Brasil quanto a Alemanha estavam sendo governada

por ditaduras e por isso, a utilização do conceito de fazer junto, de cooperação, são

fundamentais tanto para análise de uma como de outra. Se a ditadura implementada

pelo Terceiro Reich representou as expectativas e a esperanças pré-existentes do povo

alemão não podemos dizer diferente do Estado Novo Brasileiro. O governo de exceção

implementado no Brasil em 1937 se sustenta em larga medida através da ideia de que a

população brasileira gradativamente cooperou e consentiu com o regime político.

Nosso objetivo neste artigo é entender e narrar o cotidiano da população

pernambucana antes da Segunda Guerra Mundial apresentando como seu cotidiano foi

alterado pela dinâmica do conflito através da convivência com os norte-americanos na

capital, com a escassez de alimentos, combustíveis, os constantes apagões da cidade e

os exercícios de defesa que eram ensinados costumeiramente a população recifense. Na

cidade do Recife este cotidiano de guerra ficou mais próximo da sociedade através dos

periódicos locais, em especial quatro deles por serem os mais veiculados: Folha da

Manhã, Diário de Pernambuco, Jornal do Commércio e Jornal Pequeno. Estes jornais,

com editoriais diferentes e com objetivos políticos distintos, foram de suma importância

para conectar o Recife aos acontecimentos nacionais e internacionais e é através deles

que pretendemos problematizar o cotidiano da pré entrada do Brasil no conflito

mundial.

Cotidiano, preparação e Guerra

1.0 Recife, a guerra, os americanos...

A guerra não entrou na vida dos recifenses apenas pelos jornais. Era uma realidade [...]

que se não lhes ensangüentava as ruas nem lhes explodia as veias, persistia como ameaça

constante ao seu destino da cidade aberta ao Atlântico.6

A cidade do Recife não teve suas ruas obstruídas por combates, ou as torres de

suas igrejas seculares destruídas por bombardeiros. Contudo, é importante que se

reconheça à importância da capital pernambucana durante esse conflito. Se não foi

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Dresden, El Alamein ou Hiroshima, (sítios de relevo conhecido), tampouco permaneceu

alheio ao turbilhão que se erguia a sua volta. Recife, a cidade dos mercadores aberta ao

oceano, presenciou de local privilegiado um dos mais ativos fronts da guerra: a Batalha

do Atlântico.

A Batalha do Atlântico é tida como a mais longa da história, tendo começado em

1939, com o bloqueio das Ilhas Britânicas, e terminando apenas em 1945, com a derrota

do Reich alemão. Pelo menos desde a Idade Moderna que os países europeus

reconhecem o mar como fonte de poder da Grã-Bretanha, e não foram poucos aqueles

que tentaram isolá-la (a República Holandesa, Napoleão, etc.). Contudo, no começo da

guerra, a marinha de Hitler logrou um bloqueio dos mais eficientes: seus submarinos

cortaram as ligações do Reino Unido com o Atlântico, bombardeando-o sem sequer ser

notado, e uma verdadeira muralha subaquática foi armada diante das Ilhas Britânicas

para sufocá-las e forçá-las ao armistício.

Além disso, os exércitos do Eixo faziam progresso na África do Norte, e em

1941, Dakar, no Senegal, foi ocupada. Diante da ofensiva submarina e da expansão do

Eixo em terras africanas, ficou claro, para os Estados Unidos, que a invasão de terras

americanas não era apenas um temor absurdo, mas algo que cada vez mais se

aproximava da realidade. Isso já era algo corrente desde muito como nos mostra Stetson

Conn e Byron Fairchild:

Rumores sobre o interesse japonês em ilhas no pacífico, situadas ao largo

da costa das Américas, informações sobre reconhecimentos japoneses sob

o disfarce de ‗pesca‘, ao longo das costas do México e da América

Central, rumores sobre o interesse alemão na Baía Samaná, na República

Dominicana, informações sobre conspirações para fomentar revoluções

no Brasil, no Uruguai e na Argentina foram exemplos típicos de fatos que

induziram a um alarme crescente nos círculos do governo (americano)

durante o ano de 1938.7

Onde se encontra o Recife nesse contexto? Numa posição estrategicamente vital

para o esforço de guerra. O nordeste brasileiro, como um todo, era de vital importância

para os Estados Unidos: ainda que os americanos não estivessem (até 1942) em guerra

declarada contra Alemanha e Itália:

Com elas foi encaminhado ao Congresso [...] o projeto chamado ‗Lend

Lease Act‘, uma lei que permitiu aos EUA assegurar o fornecimento de

armamento e outras ajudas às democracias livres, a prazo e por um terço

do valor. Aprovada, os EUA passaram a ser o ‗Arsenal das

Democracias‘.8

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A corrente de suprimentos seguia tanto diretamente para a Inglaterra como

cortava o coração da África até o Oriente Médio, onde existiam possessões britânicas.

Assim, desde 1939 os americanos procuram ampliar sua presença no nordeste brasileiro.

Esta situação só se ampliava diante das vitórias do Eixo no Norte da África: vindos de

Dakar, os italianos – e esse era o temor americano – desembarcariam em praias

nordestinas e colocariam em risco o Canal do Panamá, artéria vital que ligava as duas

linhas costeiras dos Estados Unidos.

Desta feita, já em 1939 os americanos desenvolvem, secretamente, o chamado

Plano de Defesa do ―Hemisfério Arco Íris‖ 9, que considerava:

O saliente nordestino como área estratégica prioritária de defesa

dos Estados Unidos (...) e a sua ocupação por forças americanas numa

decorrência natural da necessidade de tornar efetiva aquela defesa.

Alguns historiadores registraram até recomendação do Departamento de

Guerra de emprego de força, como recurso para ocupar a região. 10

À localização estratégica do Recife em relação à costa africana e ao Canal do

Panamá, devemos somar sua posição de passagem das principais rotas de comércio

interamericanas: como o oriente dominado pelos japoneses, a indústria americana

voltava-se para a América Latina, e essas linhas de suprimento não poderiam, em

hipótese alguma, ser interrompidas.11

Estávamos, então, diante de um Recife

coadjuvante que poderia roubar a cena dos atores principais do conflito, se nada fosse

feito em sentido contrário.

O papel da cidade nesse conflito vem sendo tratado de maneira incipiente pela

bibliografia: a principal fonte para conhecermos essa história está nos livros publicados

pela Biblioteca do Exército e, principalmente, pelo Instituto Histórico da Aeronáutica

(de fato, das três forças a mais diretamente ligada ao Recife foi a Força Aérea, já que

era aqui que ficava o comando aéreo brasileiro). Contudo, a abordagem dos autores

resume-se a listas de batalhas, descrição de aviões e algumas memórias dispersas, sem

uma análise mais profunda a respeito do assunto. Estes autores são importantes para

conhecermos os dados em suas minúcias, mas não vão muito além da superficialidade

dos fatos.

Zélia Gominho, em seu livro Veneza Americana X Mocambópolis, comenta

alguns aspectos da repercussão do conflito entre os recifenses. Por outro lado, a

dissertação da professora Leda Rivas (O Diário de Pernambuco e a II Guerra Mundial

– O Conflito visto por um Jornal de Província) é rica em possibilidades para aqueles

que desejam vasculhar com afinco o dia-a-dia do recifense durante a II Guerra. A autora

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trabalha com o informativo pernambucano, e é em cima dele onde constrói seu texto.

Contudo, como salientaremos mais adiante, muito do que aparecia nos jornais do

período fazia parte da política nacional getulista de convencimento das massas a fim de

propiciar um clima de homogeneidade evitando as contradições sociais existentes. Por

exemplo, o Diário de Pernambuco afirmou que ―a confraternização entre militares

norte-americanos e brasileiros era costumeira.‖ 12

Na realidade, as relações entre as

forças armadas das duas nações eram marcadas muito mais pela tensão que

propriamente pela comunhão: os ―Arquivos da Comissão Militar Mista Brasil - Estados

Unidos‖ 13

revelam que os choques eram bastante comuns e diversas vezes ocorreram

incidentes diplomáticos, sendo o mais sério deles quando um grupo de soldados

americanos desrespeitou símbolos nacionais brasileiros (o hino e a bandeira) e ainda não

obedeceu ao oficial brasileiro que o repreendeu. Enviada carta ao Secretário de Estado

norte-americano, este enviou suas diplomáticas escusas.14

Logo no início do conflito, os americanos exigiram do governo brasileiro

algumas áreas para instalação de suas forças. No Acordo de Cooperação Brasil –

Estados Unidos (de 23 de maio de 1942), essa cessão fica bem clara:

―Artigo VI – O governo brasileiro facultará ao governo norte-americano a

construção de depósitos e instalações, inclusive para o pessoal, assim como

a organização de que carecer, em território nacional, para o aproveitamento

e auxilio de suas forças militares.‖15

Isso foi posto em prática durante a preparação e a entrada do Brasil no conflito

mundial. A Unites States Atlantic Fleet, de Nova York, enviou documento, constando

ser secreto e confidencial, ao Interventor Agamenon Magalhães sobre a construção de

uma base médica, hospital, para auxiliar na estrutura dos norte-americanos em Recife e

que depois de pronta seria mais um legado do acordo de cooperação Brasil – Estados

Unidos:

Excelência, a condição de congestionamento de pessoal acrescida de

grandes atrasos na construção de serviços hospitalares e alojamentos para

oficiais e praças nos obrigou a um exame completo nos edifícios

disponíveis nessa área para ocupação militar. No exame realizado

chegou-se a conclusão que o local mais apropriado para nesses fins é o

edifício em construção em Tejipió. Conquanto tenha inteira compreensão

das necessidades desse hospital para o povo pernambucano também

posso informar que o edifício não ficará pronto para entrar em

funcionamento antes de principio de meados de 1944. Acreditamos que

sem os nossos esforços para aumentar a prioridade do material e sem o

emprego de uma verba extraordinária junto aos construtores não

poderemos conseguir um adiantamento na prontificação do referido

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edifício. Solicito, portanto, de V. Excia, a necessária autorização para a

ocupação do edifício pelas forças navais dos Estados Unidos logo que

consigamos terminá-lo. Essa ocupação será livre de aluguel até 31 de

dezembro de 1944, quando as forças navais dos Estados Unidos

concordam em evacuar o edifício e benfeitorias, deixando-o nas melhores

condições possíveis para o fim que se destina. Nesse caso, as forças do

Atlântico Sul concordam no seguinte: a) deixar o edifício e terrenos em

condições materiais excelentes; b) dotar o edifício de suprimentos

adequados e eficiente de água; c) não fazer mudanças na atual estrutura

ou no projeto do edifício; d) cercar o terreno, embelezar e ajardinar; e)

(...) o necessário para apressar a prontificação do edifício sem ônus extra

para o governo brasileiro; f) quando as forças armadas dos Estados

Unidos evacuarem o edifício todos os melhoramentos ali introduzidos

pelas referidas forças serão deixadas ao governo Brasileiro, sem

obrigações de qualquer espécie.16

Percebemos com isso que a americanização do Recife foi parte extensiva da

política de Boa Vizinhança iniciada anos atrás como um projeto do governo F. D.

Roosevelt. Podemos caracterizar a política de boa vizinhança ―pela maior colaboração

econômica e militar e negociação diplomática, como estratégia de impedir a influência

européia, manter a estabilidade nas Américas e assegurar a liderança norte-americana no

hemisfério.17

Contudo, o que não estava no acordo (e que os Arquivos da Comissão Mista

relatam) é que os americanos passaram a exigir, nessas suas bases em território

brasileiro, extraterritorialidade, ou seja, transformar as bases americanas instaladas no

Brasil em solo americano que implica estar tutelado pelo Estado Maior Norte-

Americano. Os mesmos arquivos mostram o duelo entre o comandante da Força Aérea

brasileira – na figura do Brigadeiro Eduardo Gomes (que se encontrava no Recife) –

contra os comandantes americanos – numa disputa para anular essa ordem. Assim,

percebemos que ainda há muito a ser descoberto sobre a relação americano-brasileira no

Recife dos anos 40, e que a cordialidade não era, de forma alguma, traço absoluto e

inegável dessas relações.

Temos ainda mais informações sobre essa presença: são bastante conhecidas as

dificuldades pelas quais passaram os recifenses durante o conflito:

O bacalhau, desdenhado como comida de pobre se refinava pelo preço de

50$00, ovo a dez tostões, carne verde a sete cruzeiros, além da escassez.

Filas no açougue (...) com o racionamento do combustível, as mercearias

estavam autorizadas a vender uma garrafa de querosene por freguês. 18

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Os americanos aqui sediados, ao contrário, não precisavam se preocupar com

carestia ou desabastecimento: exibiam a sua pujança econômica esbanjando exatamente

aqueles bens que faziam falta à população local: o governo do Estado, por exemplo, a

despeito do racionamento de combustível, enviou telegrama a todas as repartições

policiais informando que os jipes americanos poderiam circular livremente, já que

utilizavam gasolina importada.19

Se os gêneros alimentícios estavam com preços tão

proibitivos, eram em parte por que seguindo as diretrizes da ―Comissão Brasileiro –

Americana de Produção de Gêneros Alimentícios” produzia-se para alimentar os

soldados “gringos‖, enquanto os nativos ficavam com o resto. Ficavam claras as

modificações culturais e sociais da presença estrangeira na capital pernambucana.

Cotidiano e antes da declaração de guerra no Recife

Um dos slogans centrais do periódico Folha da Manhã, de posse do interventor

Agamenon Magalhães, e o mais difundido de Pernambuco foi: ―A edição matutina da

Folha da Manhã insere diariamente um dos serviços telegráficos mais completos da

imprensa brasileira sobre os acontecimentos internacionais, abundantemente

ilustrados.‖20

Este jornal foi o responsável por passar a maioria da população

pernambucana, juntamente com a rádio clube de Pernambuco os acontecimentos

internacionais sobre o desenrolar da guerra que iniciara na Europa em 1939.

Diariamente as notícias internacionais, as falas governamentais locais e nacionais, bem

como aspectos do cotidiano como restaurantes, propagandas comerciais, esportes,

cinema, o dia-a-dia de uma cidade compunham o editorial deste jornal que circulava

pelo Recife em edição matutina e vespertina e por contar com financiamento

governamental era, como disse a própria matéria acima, ―abundantemente ilustrado.‖

No mesmo dia de publicação desta propaganda citada, o interventor Agamenon

Magalhães reproduz em sua coluna, como de costume na terceira página do jornal, uma

fala do presidente Getúlio Vargas onde o mesmo pedia aos brasileiros que trabalhassem

e produzissem o máximo possível para que não faltassem gêneros alimentícios nem

matéria prima para a indústria, deixando claro que essa seria a melhor forma de servir

ao Brasil.21

A fala do presidente vinha acompanhada dos dizeres que o Estado Novo

tinha a autoridade necessária para fazer este apelo por ter sido o responsável pela

criação do clima de ―(...) ordem, confiança e preocupação pelas cosias úteis e sérias.‖22

Foi neste sentido de ordem constituída pela instauração do Estado Novo que Vargas se

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apegou para afirmar que o povo brasileiro não desejava nem outro chefe, nem outro

regime. O Estado Novo era lido pelo governo e pelas instituições nacionais como uma

decisão nacional.23

No dia 28 de janeiro de 1942 o Brasil rompia relações diplomáticas com as

potências do Eixo e os passaportes dos diplomatas da Alemanha, da Itália e do Japão

foram devolvidos. Era o início de novas legislações bem como de um novo caminhar no

cotidiano citadino que se radicalizaria a partir de agosto do referido ano com a

declaração formal de guerra. Pouco tempo depois do rompimento de relações o

presidente Vargas assina um decreto lei com encargos a todos os brasileiros e

estrangeiros residentes ou em trânsito no país e as pessoas jurídicas públicas e de direito

privado. Em linhas gerais o decreto tratava da chamada defesa passiva e se dirigia aos

homes de 15, 21, 45 a 60 anos, assim como os de 21 a 45 não convocados para os

comandos militares e as mulheres de 16 a 40 anos o cumprimento de funções que lhe

foram determinadas pelos órgãos competentes, sob pena de multas e prisão em tempos

de paz impostas pelos delegados da defesa passiva e em tempos de guerra pelos

tribunais militares. O decreto ainda estabelecia a construção de abrigos em prédios de 5

ou mais pavimentos, além de outras medidas de segurança e a imprensa é obrigada a

inserir publicações destinadas a instruir a população das medidas de defesa passiva.24

Esse decreto já representava, claramente, uma alteração no cotidiano da população

brasileira construindo um vigiar e punir que se radicaliza quando o Brasil adentra no

conflito.

Em março de 1942 seria praticado em recife um dos mais importantes e

lembrados exercícios de defesa passiva, o Black-out. O mesmo consistia em apagar

todas as luzes da cidade para proteção por um possível ataque, dificultando a

identificação de possíveis alvos à força inimiga. Através de uma grande propaganda dos

jornais e rádios às 20h30 as sirenes do Diário da Manhã davam o primeiro alarme para

inicio do exercício. A cidade iluminada via as margens do Capibaribe e do Beberibe as

escuras. A Recife das luzes era agora uma cidade em preparação para a guerra. A poesia

e a literatura deram margem a uma preocupação com a guerra e suas repercussões. O

black-out foi a primeira experiência desta guerra como metáfora.

Uma das recorrentes matérias nos jornais pernambucanos se intitulava Economia

de Guerra, nestas, sempre apresentadas por figuras governamentais, no caso da Folha

da Manhã, o próprio interventor, tinham caráter educativo e disciplinador mostrando

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como o Estado estava dando o exemplo a ser seguido pela população em tempos tão

difíceis para o Brasil. Um exemplo bastante significativo foi dado em março de 1942

quando o Estado anunciou a adoção de consumo obrigatório de álcool motor em todos

os serviços públicos: ―os carros oficiais só queimam o carburante nacional. (...) Fizemos

isso antes da guerra, fomos providentes. (...) o que é necessário é que os carros só

andem a serviço e por necessidade urgente.‖25

O governo não demorou a dizer a

população pernambucana o quanto estava vigilante e que todos deveriam compreender a

gravidade do momento cooperando. O Jornal Pequeno trazia uma nota explicativa da

secretaria da Agricultura deixando claro como iria funcionar o racionamento e onde

estariam os locais de atendimento a população e que a Comissão de Controle de

Combustível só daria autorização a quem estivesse de posse da caderneta válida por

trinta dias. Alguns profissionais entrariam na designação de ‗profissões ativas‘ e com

isso ganhariam uma cota de combustíveis. Para evitar os constantes tumultos mediante a

interpretação do que seria ‗profissões ativas‘, as mesmas foram listadas pela comissão:

médicos, arquitetos, construtores, corretores e pracistas, todos os profissionais que no

exercício da sua profissão tenham que se locomover para pontos distantes da cidade.26

Esta é uma das características de uma ditadura: a tentativa de diminuir os espaços

privados transformando tudo em coletividade. No caso da Alemanha essa coletividade

estava voltada para o conceito de raça, no caso do Brasil o de nação trabalhista. Para o

frankfurtiniano Franz Neumann (1900-1954) as ditaduras teriam três características

sociais: sistema econômico, afinidade de classes e estrutura da personalidade.27

No

Brasil isso estava bem definido. A economia estava sendo moldada pelo Estado

controlando a escassez trazidas pelo conflito mundial, a ideia de classes avia sido

suprimida pela ideia de nação e neste sentido o trabalhismo seria esse pensamento e a

estrutura da personalidade era calcada no próprio presidente Vargas, constituindo o que

chamamos de mito de Vargas e os interventores que em larga medida tinham uma

representação tão forte em alguns Estados quanto o próprio presidente. Por isso, quando

tratamos do cotidiano do Recife durante a Segunda Guerra Mundial estamos tratando de

uma cidade, e o Brasil, vivendo sob a vigilância e o controle de uma ditadura.

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Recife ao mesmo tempo em que tinha se transformado

numa cidade apagada devido aos black-outs, era

propagandeada pelo governo e suas concessionárias como

uma cidade moderna ―onde a iluminação elétrica enche as

ruas e os lares de luz, alegria e de vida.‖28

Esse paradoxo foi

constante durante todos os anos de 1942-1945, ao mesmo

tempo em que a guerra trazia a carestia e a necessidade de

uma sociedade educada e disciplinada para atender o

chamado do Estado, não se podia deixar de propagandear a

ideia de que este Estado era moderno e progressista.

Outra questão central que atinge o cotidiano da população, em especial dos

trabalhadores, neste período em que as consequências da guerra foram mais sentidas, foi

o problema salarial. A necessidade de ir a público tranquilizar a sociedade sobre esta

questão fez com que o interventor dedicasse sua coluna a explicar a população como o

governo reagiria para defender a classe trabalhadora.29

Agamenon deixou claro que os

salários estariam condicionados aos preços e que se os preços se elevarem os salários

não poderão ser mantidos abaixo de certo nível. Ainda assim tranquilizar os industriais

se fazia necessário, visto que trabalhadores e industriais eram a base da popularidade

deste regime. Então se fez entender que as indústrias não acumulariam este ônus

permanente em seus custos. Esse jogo político era visto tanto no âmbito Estadual quanto

Federal durante o Estado Novo. A Comissão de Tabelamento foi de fundamental

importância neste sentido, aplicando multas aos comerciantes que infringissem a regra

de tabelamento de preços. Em uma de suas reuniões em 1942 a Comissão de

Tabelamento procura se explicar sobre determinados aumentos questionados pela

população local. Houve certo controle no preço do feijão, mas em relação a carne de

porco e a carne verde de boi as reclamações só aumentavam. A Comissão se justificava

deixando claro que o aumento do preço da carne de porco era provisório e que logo que

a situação se regularizasse o preço voltaria ao seu normal. Já as reclamações sobre a

carne verde de boi vinham em larga medida para a comissão de preços e pesagem.

Segundo o Jornal Pequeno foram encontradas nos açougues em Recife diferenças de até

350 gramas na pesagem, resultando em diversas prisões e multas aos

estabelecimentos.30

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Até o Sr. Kilowatt, o chamado criado elétrico da propaganda da concessionária de

eletricidade Pernambuco Tramways aconselhava em agosto de 1942 a todos os cidadãos

a ―tratarem com muito cuidado os motores e aparelhos que prestam serviço. Se assim

fizerem, agirão dentro do ponto de vista nacional: ECONOMIA! Aliás, a maior parte de

aparelhos e máquinas já não se fabrica para dar lugar à produção dos aviões, navios,

tanques e canhões indispensáveis a VITÓRIA.‖31

Era o chamado esforço coletivo em

prol da pátria como propagandeava o Estado e suas instituições.

Também antes da entrada do Brasil no conflito variados filmes foram lançados

com a temática do nazismo e com a guerra como pano de fundo. Confissões de um

espião nazista, o filme norte-americano Tempestades d‟ Alma (The mortal storn),

considerado o primeiro filme anti-nazista em telas brasileira, lançado nos Estados

Unidos em 1940 e dirigido por Frank Borzage. Logo em seguida é lançado Fuga, com

Robert Taylor com a propaganda: ―(...) era a fuga do terror nazista para o direito de

viver, de amar, de ser feliz!‖32

Entre o cinema, a propaganda e política se construiu a

tela que compõe a cotidiano recifense no que antecede a entrada do Brasil no mais duro

conflito do século XX. Se a guerra não adentrou as ruas do Recife pelas bombas e

canhões, entrou pelos jornais, rádios e películas que quebraram as barreiras de uma

metáfora constituindo uma guerra particular, a guerra em Recife.

No aniversário do 07 de setembro de 1942 m presidente Getúlio Vargas no estádio

de São Genuário para um público de aproximadamente 70 mil pessoas tratado pela rádio

como um ‗grande programa orfeônico para a concentração cívica‘, o presidente fala ao

brasileiros não apenas da República, mas do dever de cívico dos brasileiros para com o

estado de exceção que se instaurou com a entrada do Brasil em agosto no grande

conflito mundial:

Brasileiros! A comemoração do dia da independência que teve nos

últimos anos cunho de puro curso cívico reveste-se hoje de

significação maior, constitui mesmo a continência extraordinária da

vida nacional. Por um ¼ de século as festividades públicas eram

ocasião para demonstrar os esforços do Brasil no sentido do

progresso pacífico e acolher as representações de outros povos que

vinham congratular-se conosco e compartilhar da nossa justa alegria.

A semana da pátria, este ano de 1942, assume o caráter de um

movimento de mobilização gera das forças morais e materiais da

nação. Serve para conclamar os brasileiros ao cumprimento de

obrigações penosas impostas por circunstâncias incontroláveis para

as quais não concorremos, mas a que temos que fazer frente com

quantas energias possamos dispor (...).33

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Era o início de um novo tempo. Os jornais diminuiriam de tamanho para o esforço

de guerra, os racionamentos e as carestias estavam aumentando. Enquanto o conflito na

Europa começava a mudar de rumo com novas estratégias e tecnologias, no Brasil o

acordo com os aliados muda o próprio desenvolvimento da ditadura varguista que

caminhava para marcar sua participação na guerra com o envio de tropas auxiliares ao

exercito americano.

FILMOGRAFIA

GOMES, Marcelo. Cinema, Aspirinas e Urubus. Brasil: Estúdio Dezenove Som e Imagem,

Imovision, 2005.

FONTES

07 de setembro. A hora do Brasil. Estádio de São Genuário. CPDOC. Fundação Getúlio

Vargas. GV; Disco 025 Fr07: LA FC 05Lb 464-485. 1942.

Comissão de Tabelamento de Preços e gêneros Alimentícios. JORNAL PEQUENO.

Recife. APEJE. 1942.

Sr. Kilowatt aconselha. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE. 1942.

Fuga! FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 8 de julho de1942.

Eu fiz este progresso. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 1942.

Ordem Econômica. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE, 1942.

Economia de Guerra. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Março. 1942.

Nota Explicativa da Secretária da Agricultura. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE.

Maio, 1942.

Defesa Passiva Anti Aérea. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro. 1942.

FOLHA DA MANHÃ. APEJE. Recife. 01 de Janeiro de 1942.

O Conselho do Presidente Getúlio Vargas. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 01

de Janeiro de 1942. p. 03.

Um Regime. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro de 1942. p. 03

United States Atlantic Fleet. Headquarters of the Commander Fourth Fleet. c/o Fleet Post

Office, New York – NY. Secreto e pessoal. CPDOC/FGV – Arquivo Agamenon Magalhães.

AGM c 1942-1944.00.00.14. 713.34

1 Doutorando em História Comparada pela UFRJ com estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin,

pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ e professor de História Contemporânea

da Universidade Católica de Petrópolis.

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919

2 GOMES, Marcelo. Cinema, Aspirinas e Urubus. Brasil: Estúdio Dezenove Som e Imagem, Imovision,

2005. 3 SCHURSTER, Karl. A Guerra como metáfora: política, propaganda e imprensa no Estado Novo. 1942-

1945. Olinda. Livro Rápido. 2009. 4 SCHORSKE, Carl. Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo.

Companhia das Letras. 2000. 5 SCHURSTER, Karl; SILVA, Francisco Carlos T. da. Figura esvaziada de Hitler. Mostra na Alemanha

levanta a questão se regimes de exceção representam anseios da sociedade. Revista de História da

Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. 2011. 6 RIVAS, Leda Maria R. C. O Diário de Pernambuco e a II Guerra Mundial – O Conflito visto por um

Jornal de Província. Dissertação (Mestrado em História). Recife: UFPE/CFCH, 1988. p.338. 7 CONN, Stetson; FAIRCHILD, Byron. A Estrutura de Defesa do Hemisfério Ocidental. Rio de Janeiro.

Biblioteca do Exército Editora. 2000. p.27. 8 SIQUEIRA, Deocécio L. de. Fronteiras: A Patrulha Aérea e o Adeus do Arco e Flecha. Rio de Janeiro:

Revista Aeronáutica Editora, s/d, p.85. 9 O Rainbow I [como era chamado pelos americanos] ―previa a proteção de todo território dos Estados

Unidos (mas não reforço para as Filipinas) e para o restante do Hemisfério Ocidental ao norte da

latitude de 10º meridiano sul, uma linha que parte a América do Sul logo abaixo dos salientes peruano e

brasileiro. (...) o Rainbow I presumia que as democracias da Europa e da América Latina ficariam

neutras, e que somente as forças dos Estados Unidos estariam disponíveis para resistir a um ataque‖.

CONN, Stetson; FAIRCHILD, Byron. op cit. p.31. 10

INSTITUTO HISTÓRICO-CULTURAL DA AERONÁUTICA. História Geral da Aeronáutica

Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; Rio de Janeiro: INCAER, 1990, p. 379. grifo nosso. 11

―A ameaça era tão evidente que o próprio Churchill, com sua Inglaterra em apuros, decidiu desviar

forças para conter o Eixo naquele setor. [o norte da África, para barrar a expansão do Eixo] (...) Havia

também outro ponto a considerar. O Nordeste Brasileiro é um saliente por onde passam as linhas de

navegação marítima unindo as Américas do Norte e do Sul. (...) Era imperativo se preparar o Norte e

Nordeste para eventuais situações ameaçadoras‖. SIQUEIRA. Deoclécio L. de, op cit, p. 88/89. 12

RIOS, Leda Maria R., op cit. p. 261. 13

Arquivos do Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. 14

Este documento encontra-se no Arquivo do Museu Aéreo Espacial do Rio de Janeiro. O historiador

Antonio Pedro Tota nos fala que o processo de americanização da sociedade brasileira quebrou as

possíveis resistências à aproximação política entre os Estados Unidos e o Brasil. ―A política da Boa

Vizinhança de Roosevelt era o instrumento, de amplo espectro, para a execução do plano de

americanização. A sintonia fina da operação ficou a cargo, como veremos, de uma verdadeira ‗fábrica de

ideologias‘, criada pelo governo americano nessa conjuntura mundial‖. TOTA, Antonio Pedro. O

Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia

das Letras. 2000. p.19. O documento discutido acima no texto, nos mostra que em alguns momentos a

relação entre Brasileiros e Norte-Americanos foi marcada por uma tensão, principalmente no que tange o

âmbito das questões militares. Outro exemplo também nos é dado por Tota mostrando que ―mesmo com

todo o esforço de forjar uma imagem mais simpática dos americanos, manifestações de arrogância eram,

às vezes, inevitáveis. O aclamado Orson Welles, teve em algumas ocasiões, comportamento pouco

recomendável. O episodio mais conhecido foi quando, completamente embriagado, jogou pela janela os

moveis do apartamento onde morava no Rio de Janeiro‖. TOTA, Antonio Pedro. Op. Cit. p.181. 15

Apud. SIQUEIRA, Deoclécio L. de, op cit. p. 107. 16

United States Atlantic Fleet. Headquarters of the Commander Fourth Fleet. c/o Fleet Post Office, New

York – NY. Secreto e pessoal. CPDOC/FGV – Arquivo Agamenon Magalhães. AGM c 1942-

1944.00.00.14. 713. 17

PINHEIRO, Letícia. Política Externa Brasileira (1889-2002). Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2004. p.24. 18

GOMINHO, Zélia de O. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na cidade do Recife

(década de 30 e 40). Recife. CEPE. 1998. p. 162. 19

Fundo de Interventoria, Correspondência Expedida. APEJE. 20

FOLHA DA MANHÃ. APEJE. Recife. 01 de Janeiro de 1942. 21

O Conselho do Presidente Getúlio Vargas. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 01 de Janeiro de

1942. p. 03. 22

Idem. 23

Um Regime. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro de 1942. p. 03 24

Defesa Passiva Anti Aérea. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro. 1942.

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25

Economia de Guerra. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Março. 1942. 26

Nota Explicativa da Secretária da Agricultura. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE. Maio, 1942. 27

NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1969, p.

275. 28

Eu fiz este progresso. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 1942. 29

Ordem Econômica. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE, 1942. 30

Comissão de Tabelamento de Preços e gêneros Alimentícios. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE.

1942. 31

Sr. Kilowatt aconselha. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE. 1942. 32

Fuga! FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 8 de julho de1942. 33

07 de setembro. A hora do Brasil. Estádio de São Genuário. CPDOC. Fundação Getúlio Vargas. GV;

Disco 025 Fr07: LA FC 05Lb 464-485. 1942.

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Uma proposta de trabalho: sobre as perspectivas etnológicas e os usos literários e

patrimoniais do projeto intelectual de Blaise Cendrars (1924-1949)

KARLA ADRIANA DE AQUINO1

RESUMO: O escritor Blaise Cendrars esteve no Brasil no ano de 1924, viajando com os

modernistas a Minas Gerais. Este ano tornaria-se um marco para o movimento modernista, que

se voltaria para temas nacionais e para a emergência da questão patrimonial no Brasil, para a

qual colaborariam Cendrars, Oswald e Mário de Andrade. A obra de Cendrars, a partir também

de 1924, sofreu uma inflexão, passando da poesia vanguardista para o romance experimental,

marcada pela apropriação de sua experiência brasileira.

PALAVRAS-CHAVES: Blaise Cendrars; descoberta do Brasil; história cultural

SUMMARY: In 1924, Blaise Cendrars traveled with the modernists to Minas Gerais, Brazil.

This year was also the turning point of the modernist movement which would focus on national

themes as well as on the emergence of the national heritage issue in Brazil to which Cendrars,

Oswald and Mario de Andrade would contribute. Also from 1924 onwards, Cendrars‘s work

would undergo an inflection, changing from avant-garde poetry to experimental novel imprinted

by the assimilation of his Brazilian experience.

KEYWORDS: Blaise Cendrars, Brazil Discovery , Cultural History.

a) O Brasil de Blaise Cendrars

Blaise Cendrars, escritor frnaco-suíço cuja obra parece ter circulado

decisivamente entre os artistas modernistas brasileiros, ainda antes de suas viagens ao

Brasil nos anos de 1924, 1926 e 1927, pois já lhes era bastante conhecida “antes mesmo

da Semana de 22”2. Dimensionar sua participação na ―descoberta do Brasil‖ ao lado

dos modernistas é tarefa desafiadora. Em 1924, no Manifesto Pau-Brasil, lançado por

Oswald de Andrade, o único nome estrangeiro mencionado é o de Cendrars, a quem, em

1925, dedica a edição dos poemas de Pau-Brasil: “A Blaise Cendrars por ocasião da

descoberta do Brasil”, menção aos versos de Feuilles de Route.

Cendrars foi acolhido pelos modernistas no Brasil, em 1924, segundo Maria

Teresa de Freitas e Claude Leroy3, como uma espécie de ―agente duplo‖, como disse

Mário de Andrade, ou seja, como um poeta francês vindo da Europa para liberar os

modernistas da França, aliado de suas lutas nacionalistas contra a influência européia.

Ele batizaria o Brasil de sua ―Utopialand‖.

Com o intuito de conhecer as manifestações culturais brasileiras, Blaise Cendrars

viaja para ver o carnaval do Rio de Janeiro, as cidades históricas de Minas Gerais e o

interior de São Paulo. Fora de Cendrars a ideia da viagem às cidades históricas de

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Minas, solicitada a Paulo Prado, ainda antes de partir com destino ao Brasil, com o

objetivo conhecer as tradições, os monumentos históricos do país. Tradições que

mudariam os rumos do movimento modernista brasileiro, dando origem às poesias

―pau-brasil‖ de Oswald de Andrade e a orientação primitivista da pintura de Tarsila do

Amaral4. Essas tradições seriam apropriadas por Cendrars em suas obras, em que

procuraremos investigar a tensão entre respeito etnológico e apropriação estética. É

Cendrars, na mesma viagem a Minas com os modernistas, que anuncia a todos eles sua

decisão de escrever sobre a ―genialidade de Aleijadinho‖5, nunca tendo realizado o

projeto que Mário de Andrade realizaria anos depois.

b) A Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil

Foi ainda Cendrars que, na viagem a Minas, foi incumbido de redigir os estatutos

da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, primeira entidade do

gênero a ser criada no Brasil6 para proteger o patrimônio histórico nacional. Sua

primeira reunião realizou-se no dia 20 de maio de 1924, na casa de sua fundadora Dona

Olívia Guedes Penteado. Teriam comparecido à reunião, segundo o depoimento de

René Thiollier, o recém-empossado presidente do Estado de São Paulo, Carlos de

Campos e José Carlos de Macedo Soares, além dos frequentadores tradicionais, que

costumavam ser7: Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars, Godofredo da Silva Telles, Dona

Carolina Penteado da Silva Telles, Paulo Prado, além de Carlos de Campos e ele

próprio8.

O Comitê Diretor designava Paulo Prado, Dona Olívia Guedes Penteado, Oswald

de Andrade e ―etc‖ como Membros Fundadores. A entidade protetora aí é concebida

como privada, pública não-governamental, seguindo o modelo anglo-americano. Os

estatutos, que permanecem no estágio preliminar de minuta, estabelecem como

finalidade a proteção e conservação dos monumentos históricos do Brasil9, porém o

mais interessante dos estatutos da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do

Brasil são os procedimentos recomendados para proteção e conservação dos bens e o

elenco daquilo que se poderia considerar como patrimônio histórico, que, para além dos

monumentos históricos, inclui uma série de bens de caráter móvel e de caráter imaterial

(como se concebem hoje, de caráter ecológico e de cultura popular) que, durante o

século XX, não foram privilegiados ou mesmo não foram contemplados pela ação do

SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje Instituto

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(IPHAN)10

. Por exemplo, caberia ao Comitê de Iniciativa em cada Estado, segundo os

estatutos redigidos por Cendrars, ocupar-se da arte popular em suas diversas

manifestações, das festas tradicionais, da culinária, bem como da arte indígena e das

manifestações culturais dos negros.

Cendrars concebeu, nos estatutos da Sociedade de Amigos dos Monumentos

Históricos do Brasil, uma Sociedade Folclórica Brasileira, o que realizaria Mário de

Andrade, criando em 1937, data também da instituição do SPHAN11

, sob o nome de

Sociedade de Etnografia e Folclore, cujas atividades durariam cerca de dois anos,

ligada ao Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo. De fato, como afirma

Elizabeth Travassos, Mário de Andrade ―foi protagonista de um dos esforços de

institucionalização do folclore e de afirmação da necessidade de torná-lo condizente

com as exigências da produção do saber científico.‖12

Não menos importante parece ter

sido o papel da etnografia e do folclore no trajeto que levaria Cendrars da poesia

vanguardista ao romance, depois de sua primeira viagem ao Brasil. Podemos supor que

Mário de Andrade conhecesse os estatutos de autoria de Cendrars.

Um de nossos interesses neste trabalho é investigar como Mario de Andrade,

Oswald de Andrade e Blaise Cendrars, todos conceptores de anteprojetos visando a

criação de uma instituição ―patrimonial‖ no Brasildas décadas de 1920 e 1930, se

inserem nas disputas que marcaram a emergência de um campo de caráter científico,

voltado para o patrimônio cultural brasileiro, em busca de distinção e autonomia.

Denominamos aqui ―anteprojetos‖ os seguintes textos, redigidos, respectivamente,

em 1924, 1926, 1936: os estatutos da Sociedade de Amigos dos Monumentos Históricos

do Brasil, por Blaise Cendrars; o anteprojeto de criação do Departamento de

Organização e Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil (DODEPAB), por Oswald de

Andrade; e o anteprojeto para criação do Serviço de Patrimônio Artístico Nacional, por

Mário de Andrade. Lembramos que os três textos têm caráter de ―anteprojetos‖, no que

diz respeito à precedência em relação ao Decreto-lei que cria o SPHAN em 1937, não

tendo sido implementados para as suas finalidades institucionais específicas, tal como

concebidos (somente o anteprojeto de Mário de Andrade teria concorrido para a criação

do SPHAN, sem ser adotado).

Esses três anteprojetos primavam pelo respeito etnológico e veiculavam, sem

dúvida, nas ―manifestações populares‖ representadas, matrizes estéticas das obras

literárias de seus autores. Partimos do princípio, portanto, de que esse investimento

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consistiu, nos três casos, num verdadeiro projeto intelectual que estrutura a produção

letrada desses escritores.

No entanto, o discurso - até certo ponto comum - dos modernistas não era

homogêneo. A tarefa deste trabalho consiste, em suma, em identificar, nos projetos

intelectuais de Blaise Cendrars, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, as

representações de ―cultura popular‖ concorrentes, nas décadas de 20 e 30, e expressas,

diversamente, tanto nos respectivos projetos para a criação de entidades de proteção do

patrimônio cultural brasileiro quanto nas suas obras literárias.

Sendo o foco central deste trabalho voltado para o menos conhecido desses

projetos intelectuais - o de Blaise Cendrars -, é possível compreender, particularmente,

os usos de representações do Brasil na sua obra e a função exercida por suas viagens,

particularmente a de 1924 - o que condiz com o fato de 1924 ter sido o ano da virada do

movimento modernista na direção de um mergulho nas raízes nacionais. Nesse sentido,

como diz Alexandre Eulalio13

, quase nenhuma obra do que é considerado pela

historiografia literária o ―segundo período‖ das produções de Blaise Cendrars

negligencia o Brasil.14

Essas obras serão investigadas, lado a lado com obras de

escritores modernistas brasileiros, de modo a dar conta da circulação e dos usos de

tópicas sobre a ―cultura brasileira‖ naquele momento.

c) Os anteprojetos de criação de uma entidade de proteção do patrimônio cultural

brasileiro

Como veremos mais detalhadamente no trabalho a seguir, há semelhanças entre os

três anteprojetos aqui considerados e, sobretudo, exclusões, no Decreto-lei nº 25 de

1937 que institui o SPHAN, de determinados aspectos neles previstos.

O anteprojeto de Mário de Andrade para o SPAN/ Serviço do Patrimônio Artístico

Nacional15

pode, de fato, ter sido assim inspirado pela iniciativa da Sociedade de

Amigos dos Monumentos Históricos, pois há várias semelhanças entre os dois textos e,

de todo modo, as ideias sobre o patrimônio histórico e artístico oriundas da viagem que

os ―modernistas‖ e Blaise Cendrars realizaram a Minas circulavam naquele momento. O

próprio Mário de Andrade, após sua viagem a Minas Gerais em 1919, publica uma série

de ensaios na Revista do Brasil, intitulado a ―Arte Religiosa no Brasil‖, denunciando o

descaso pelas riquezas culturais de São João Del-Rei, Mariana e Vila Rica, vistas como

berço da ―civilização brasileira‖16

. A conservação e o registro deste patrimônio era,

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realmente, uma tarefa à qual Mário de Andrade se dedicaria. Também seu ensaio de

1928, intitulado O Aleijadinho, aproxima os seus interesses dos de Blaise Cendrars. O

anteprojeto de um ―Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico‖, de 1936, concebido

por Mario de Andrade abre espaço, assim como os estatutos de Cendrars, para a

proteção do patrimônio cultural popular, para os bens de caráter imaterial e natural,

como já foi dito. Ambos os projetos citam como bens patrimoniais: bens móveis, como

objetos de uso doméstico, livros e arquivos; as paisagens; a arte popular; a música; a

culinária; as danças. As festas populares são destacadas por Cendrars que também

relaciona as manifestações da cultura indígena e negra, Mário de Andrade relaciona a

necessidade de se preservarem as manifestações culturais indígenas, porém não cita as

manifestações culturais dos negros, mas deixa espaço para as estas no ítem ―Da Arte

Popula

Das oito categorias de bens patrimoniais, relacionadas e conceituadas por Mário

de Andrade, destacam-se a ―Das artes arqueológica e ameríndia‖ e a da ―Arte Popular‖,

que não receberam o mesmo destaque no Decreto-lei nº 2517

. Neste, o único espaço para

o patrimônio de caráter ―popular‖, ou de natureza imaterial ou natural, é aquele que

relaciona - sem especificar ou conceituar, entretanto - os bens que se inscreveriam no

Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. A questão é que no Decreto-

lei nº 25 de 1937 não está explicitado, como no anteprojeto de Mário de Andrade, o que

se entende por ―etnográfico‖. Podemos supor que a precariedade conceitual do Decreto-

lei nº 25 abriu caminho para legitimar uma prática patrimonial que não contemplou essa

natureza de bens, privilegiando os monumentos históricos arquitetônicos.

A ―brecha‖ para a inclusão de bens imateriais que talvez pudesse existir com o

Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, previsto no Decreto-lei nº 25

- cuja utilização restringiu-se praticamente aos bens de natureza arqueológica durante o

século XX, de materialidade evidente - tampouco foi acentuada. Do anteprojeto de

Mário de Andrade, o Decreto-lei dispensou, assim, toda a sua abrangência conceitual,

bem como a correspondência entre museus e Livros do Tombo, mantendo como mais

característico, os quatro livros de Tombo, acrescentando ao primeiro Livro de Tombo

Arqueológico e Etnográfico de Mário de Andrade o termo ―Paisagístico‖ e a previsão de

um Conselho Consultivo presidido pelo ocupante do cargo máximo executivo do órgão-

diretor ou presidente. Além dos quatro Livros do Tombo, o legado do anteprojeto de

Mário de Andrade é, portanto, a previsão do Livro Arqueológico Etnográfico, que, na

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virada do século XXI, tornar-se-ia referência para a criação da legislação que rege o

patrimônio imaterial. Além disso, há a introdução do termo ―tombamento‖, que já

aparecera antes, em projeto de Oswald de Andrade para um órgão de função similar, em

substituição aos termos ―classificação‖ ou ―catalogação‖18

usados na época.

Também o anteprojeto sumário para a criação de um órgão que cuidasse do

patrimônio histórico e artístico nacional de Oswald de Andrade, assim como anteprojeto

de Mário, aproxima-se dos estatutos redigidos por Blaise Cendrars. Logo após a posse

de Washington Luís, seu amigo pessoal, na Presidência da República, em 1926, Oswald

de Andrade entrega-lhe um esboço de criação do Departamento de Organização e

Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil (DODEPAB) - não se sabe se por encomenda

ou por iniciativa própria -, cuja sede seria o Museu Nacional e teria por finalidade

―salvar, inventariar e tombar o patrimônio nacional‖19

. Oswald propunha a criação de

um órgão governamental de repartição pública, cujo alcance de proteção seria mais

restrito. De similar aos estatutos de Cendrars, o projeto de Oswald de Andrade guarda a

articulação entre museus locais e Museu Nacional, bem como o destaque para a

propaganda do patrimônio - também presente no anteprojeto de Mário de Andrade - e na

antevisão do aproveitamento da indústria de turismo para a promoção dos bens e um

certo financiamento autônomo do órgão. Como nos anteprojetos de Blaise Cendrars e de

Mário de Andrade, o anteprojeto de Oswald de Andrade – posterior ao primeiro e

anterior ao segundo - estende o escopo de atuação do órgão, relacionando entre suas

finalidades a necessidade de se proteger as manifestações culturais tradicionais:

―Divulgar e fixar em livros, revistas e pesquisas as nossas tradições, lendas e riquezas

folclóricas‖20

, abarcando assim o que hoje se chama de patrimônio imaterial. Aproxima-

se, assim, do texto de Blaise Cendrars, quando este fala da necessidade de se ocupar ―da

arte popular sob todas as suas formas‖.

Nota-se, pois, a distância entre o que veio a ser, em 1937, o SPHAN e as

intenções dos anteprojetos de Blaise Cendrars, Oswald de Andrade e Mário de Andrade,

no que concerne ao escopo da proteção patrimonial, com o abandono, no Decreto-Lei nº

25 de 1937, das tópicas relacionadas às manifestações culturais populares e aos

conhecimentos tradicionais, tão valorizadas por Cendrars e pelos modernistas. Apesar

de o Decreto-Lei apropriar-se desses discursos que o precederam, aproximando-se deles

em suas finalidades, resta ainda indagar o que foi excluído, comparando, no filigrana

dos textos, as representações, particularmente as de ―popular‖, ―identidade brasileira‖,

―nação‖, entre outras.

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Quando em 1934, Gustavo Capanema assume o Ministério da Educação e Saúde,

já havia interesse de parte da elite intelectual e política reivindicando a proteção do

patrimônio histórico e artístico nacional, com a demanda pela participação do Estado na

questão21

. Lembre-se a série de ensaios de Mário de Andrade na Revista do Brasil,

intitulado a ―Arte Religiosa no Brasil‖22

. Assis Chateaubriand promoveu campanha em

prol desta causa em O Jornal23

. Em 1924, o tema aparece no artigo de Jackson de

Figueiredo intitulado ―A defesa do patrimônio artístico das igrejas‖, publicado na

Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e transcrito na Revista do Brasil de abril de 1924,

comentando a circular de Dom Sebastião Leme, na qual o arcebispo clamava aos

vigários pela preservação do patrimônio histórico e artístico das igrejas24

. Nos anos 20

foram criadas Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos em Minas Gerais

(1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco (1928)25

. Há ainda outros três projetos que se

destacaram: do deputado pernambucano Luís Cedro, de 1923, do jurista Jair Lins, de

1925 e do deputado baiano José Wanderley de Araújo Pinho, de 1930.

Em quase todas as importantes análises que consideram as discussões prévias ao

Decreto-Lei de criação do SPHAN encontra-se minimizado o papel da proposta de

Cendrars, expressa na criação da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do

Brasil. Concebida como entidade não-governamental, no plano conceitual, a Sociedade

criada por ele estende sua proteção além dos monumentos arquitetônicos, abarcando os

bens móveis, intangíveis, naturais, as manifestações populares de cultura, destacando as

contribuições indígenas e dos negros, o que era uma novidade no cenário nacional. Do

ponto de vista administrativo, apresenta um modelo descentralizado com ramificações

nos vários estados num sistema nacional, preocupando-se com o uso dos bens tombados

No plano financeiro, trata-se de uma visão capitalista de iniciativa pública, prevendo

subvenções do poder público, acrescidas de rendas próprias institucionais ou advindas

da porcentagem sobre a venda dos bens tombados, além de poderem ser também

comerciais, da venda de livros, fotografias, postais, discos de música brasileira, da

exibição de filmes, dos ingressos dos museus ou da compra e troca de obras de arte;

prevendo ainda a promoção de festas populares, o desenvolvimento do turismo cultural,

a criação de restaurante com culinária tradicional além da publicidade, através da

divulgação e da propaganda com meios tradicionais, como livros, revistas, conferências,

campanhas públicas, e com a nascente indústria cultural26

.

d) O Brasil no projeto intelectual de Blaise Cendrars

O interesse etnológico parece ser determinante no trajeto que leva Blaise

Cendrars da descoberta das tradições culturais do Brasil à virada da sua obra literária, da

poesia ao romance. Cendrars declara ter feito seu aprendizado de romancista no Brasil,

após viagem a Morro Azul, onde conhece Oswaldo Padroso, que se tornaria seu

personagem vinte e cinco anos mais tarde em “La Tour Eiffel sidérale”27

. Como

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afirmam Maria Teresa de Freitas e Claude Leroy, a questão do exotismo mascarava

outra, mais perturbadora: ―a descoberta do Brasil confirmou Cendrars na via que ele

tinha escolhido, não de renegar a estética da modernidade, mas de dissociá-la do

comportamento vanguardista‖28

. A partir de 1924, segundo Michèle Touret, o Brasil

lhe oferece a ocasião de elaborar um discurso explicativo, demonstrativo e fortemente

carregado de ideologia. Em seu primeiro texto sobre sua experiência brasileira, Feuilles

de Route – Le Formose é a ―colagem‖ o procedimento de que Cendrars se vale, ao

introduzir na obra elementos pré-existentes de Viagem nas províncias de São Paulo e

Santa Catarina, escrito por Auguste de Saint-Hilaire, publicado em Paris em 185129

.

Como Remy Gourmont, considerado o ―mestre‖ de Cendrars ele analisa o mundo à luz

de sua experiência brasileira. Seu modelo não é a vida na floresta, mas a fazenda, a

grande propriedade patriarcal, a indústria e o comércio modernos30

. A crítica literária

até os anos 70 menosprezou o encontro de Cendras com o Brasil, mas desde então, este

vem sendo considerado capital para o desenvolvimento de uma ―modernidade outra, não

vanguardista, cuja paisagem e mais genericamente o mundo brasileiro lhe deram o

exemplo e o desejo‖, que encontra em La Tour Eiffel sidérale ―a história cifrada, a

teoria, o princípio e a realização‖31

.

Em Bourlinguer, por exemplo, há o que Maria Teresa de Freitas chama de

―irrupção da História na autobiografia – e sobretudo em uma autobiografia mítica, como

é a de Cendrars -‖, em que o personagem de Paulo Prado assegura a função histórica do

gênero, ―o que é também uma garantia da autenticidade do texto‖32

. Vê-se, no que

Freitas chama de ―espécie de díptico simultâneo dinâmico‖33

, a história do Brasil se

passar em diferentes momentos, da fundação da cidade de São Paulo à modernização

dos grandes centros urbanos carioca e paulista, dos escritos dos primeiros viajantes às

imigrações, da independência política do país à sua entrada na Primeira Grande Guerra

Mundial ao lado dos aliados.

A riqueza das apropriações de ―Brasil‖ na obra de Blaise Cendrars pode ser

configurada, assim, como um verdadeiro projeto intelectual, com consequências

evidentemente literárias, ainda pouco contemplado pelos estudiosos da obra de Cendrars

ou da história da cultura brasileira, de modo geral.

É nesse sentido que o presente trabalho objetiva identificar as diversas

representações de ―cultura popular brasileira‖ presentes nas obras de Blaise Cendrars,

comparando-as às dos escritores modernistas Oswald de Andrade e Mário de Andrade e

aos seus respectivos anteprojetos para constituição de uma entidade de proteção ao

patrimônio histórico e artístico no Brasil, nos anos 20 e 30. Para tanto, busca-se no

projeto intelectual de Blaise Cendrars, por um lado, as relações – ou, por vezes, as

tensões – entre as suas perspectiva etnológica em relação à cultura popular brasileira,

particularmente nos seus textos programáticos (como o anteprojeto de Patrimônio) e,

por outro, entre os gêneros autobiográfico e histórico, particularmente na sua obra

literária. Pretende-se, também, investigar como os três se situam com relação ao

interesse etnológico expresso na busca das tradições brasileiras, a partir de 1924. A

partir da determinação das formas pelas quais se representa a questão patrimonial na

sociedade brasileira dos anos 20 e 30, nos âmbitos intelectual e político, se pode

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verificar em que medida as ideias presentes nos estatutos da Sociedade de Amigos dos

Monumentos Históricos do Brasil redigidos por Cendrars encontram-se presentes

também em outros projetos contemporâneos ou mesmo posteriores. Por fim, este

trabalho busca investigar as razões por que, na medida em que uma determinada

corrente modernista tornou-se hegemônica com a criação do SPHAN, a perspectiva

proposta por Cendrars foi preterida.

A hipótese central deste trabalho é de que as viagens de Blaise Cendrars com os

modernistas ao Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo foram fundamentais para o

seu projeto intelectual, calcado num interesse etnológico e estético, num momento

crucial para a emergência da questão patrimonial no Brasil (que culminou, para ele, com

a criação da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos, como vimos). As

viagens levaram também a uma mudança na produção literária de Cendrars, o que se

pode perceber pelo espaço dedicado ao Brasil na sua obra a partir deste marco temporal,

com a virada de sua obra da poesia ao romance. Buscamos afirmar também que o

anteprojeto patrimonial de Blaise Cendrars (assim como os de Oswald de Andrade e

Mário de Andrade) não foi incorporado pelo Estado, uma vez derrotadas as suas

representações de arte e cultura popular, de nação e de patrimônio histórico e artístico,

por haver um largo espaço para as manifestações de caráter ―imaterial‖. O Decreto-lei

nº 25/37 consagra, assim, um modelo diverso do que se encontra na base do projeto

intelectual de Cendrars e que coube aqui definir.

1 Doutoranda do PPGHIS/UFRJ. Orientadora: Profª. Drª Andrea Daher.

2―E se Oswald conhecia Cendrars através de sua obra que chegava ao Brasil antes mesmo da

Semana de 22, o mesmo se poderia dizer de todos os demais modernistas, em especial Paulo Prado, de

quem Cendrars foi particular amigo até o falecimento dessa grande personalidade de São Paulo‖.

AMARAL, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: FAPESP/ Editora 34,

1997, p. 21. 3 FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction).

Brésil, L’Utopialand de Blaise Cendrars. Actes du colloque de São Paulo, 4-7 août 1997. Ouvrage

publié avec le concours de l‘ Université de São Paulo, de l‘Université Paris X-Nanterre, de La Fondation

Pro Helvetia et du Ministère Français dês Affaires Étrangères. Avec des textes inédits de Blaise Cendrars.

Paris: Harmattan, 1998, pp. 17-25. 4 FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction). Brésil, L’Utopialand de Blaise

Cendrars.Op. cit., 1998, p. 20.

5 AMARAL, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: FAPESP/

Editora 34, 1997, p.18.

6 Esse importante documento encontra-se no Fundo Blaise Cendrars, na Biblioteca Nacional de

Berna e foi publicado por Carlos Augusto Calil in CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do

Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do Patrimônio Histórico‖, Op. cit., 2006, pp.82-83 e 87-89.

7 Segundo carta de Mário de Andrade dirigida a Manuel Bandeira, de 19 de maio do mesmo mês,

CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do

Patrimônio Histórico‖, Op. cit., 2006 , p.81.

8 Id. Ibidem, p. 81.

9 Tradução de C. A. Calil, Id. Ibidem, p. 82/83.

10

Regido pelo Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro de 1937, de autoria de Rodrigo melo Franco

de Andrade, cujo anteprojeto, de 1936, é de autoria de Mário de Andrade, por encomenda do ministro

Gustavo Capanema. 11

Instituído pelo Decreto-Lei nº 25 de 1937, que normatiza a atuação do SPHAN/ Serviço de Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, criado pela lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, pela qual o Congresso

Nacional aprovou a nova estrutura do MES/ Ministério da Educação e Saúde

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930

12

TRAVASSOS, Elizabeth. ―Mário e o Folclore‖.Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Mário de Andrade, nº 30, 2002. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/

Ministério da Cultura/Secretaria do Livro e da Leitura, 2002.

1313

EULALIO, Alexandre. A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars. 2ª edição revista e

ampliada por Carlos Augusto Calil com Inéditos de Blaise Cendrars. São Paulo: Edusp/ USP/ Imprensa

Oficial: FAPESP, 2001, p.33. 14

De Feuilles de Route I. Le Formose (ilustrado por Tarsila do Amaral, e escrito na viagem de volta à

Europa, quase ao mesmo tempo que o Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade) até Sud-Américaines

(1924); La Métaphysique du Café (1927); Une Nuit dans la Forêt (1929); Histoires Vraies (1937); La Vie

Dangereuse (1938); D‟Outremer à Indigo (1940); L‟Homme Foudroyé (1945); Bourlinguer (1948); Le

Lotissement du Ciel (1949); Trop, C‟est Trop (1957). Cf. CENDRARS, M CENDRARS, Miriam. Blaise

Cendrars- l’or d’un poete. Paris: Découvertes Gallimard, s/d, p.65..

15

ANDRADE, Mário de. ―Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico

Nacional‖. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 30/ 2002. Brasília:

IPHAN/Ministério da Cultura/ Governo Federal, 2002. 16

ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento, 1993. Apud: NOGUEIRA,

Antonio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos. Mário de Andrade e a concepção de

patrimônio e inventário. São Paulo: Editora Hucitec/ FAPESP, Coleção Estudos Brasileiros, 2005, pp. 76-

77.

17

FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo: trajetória da política

federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Minc/ Iphan, 2005, p. 245-252.

18

NASCIMENTO, Juliana Assis. Mário de Andrade e a cultura tradicional popular e erudita:

das viagens pessoais à missão institucional no Departamento de Cultura e no SPHAN (1924 a 1945),

monografia de conclusão do curso de História. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Departamento de História,

dez. 2009.

19

CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do

Patrimônio Histórico‖, Op. cit., 2006, p.86. 20

Id. Ibidem, 86.

21

FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo: trajetória da política

federal de preservação no Brasil. Op. cit., p. 82-120 22

ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. Op. cit., 1993. Apud: NOGUEIRA, Antonio

Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos. Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e

inventário. São Paulo: Editora Hucitec/ FAPESP, Coleção Estudos Brasileiros, 2005, pp. 76-77. 23

CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do

Patrimônio Histórico‖, Op. cit., p.85.

24

Id. Ibidem., p. 85.

25

Id. Ibidem, p. 95.

26

CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do

Patrimônio Histórico‖. Op. cit., 2006, p.84. 27

CENDRARS, Blaise. Le Lotissement du ciel (1949), Gallimard, 1996. 28

FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction). Brésil, L’Utopialand de Blaise Cendrars.

Op. cit., p.22 (tradução minha). 29

MELCHIOR, Reto. ―Feuilles de Route: Feuilles de Collage‖, in FREITAS, Maria Teresa de &

LEROY, Claude (direction). Ibidem, 1998, p.315. 30

Id. Ibidem, p. 209. 31

FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction). Brésil, L’Utopialand de Blaise Cendrars. p.

23 (tradução minha). 32

FREITAS, Maria Teresa. Portrait de Paulo Prado, in FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude

(direction) Ibidem, 1998, pp. 36-37 (tradução minha). 33

Id. Ibidem, 1998, p.34.

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O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e o transformismo do Partido

dos Trabalhadores.

Kelly Barreto Videira Chaves

RESUMO: O objeto deste estudo é o Conselho de Desenvolvimento Econômico e

Social - CDES, criado pelo governo Lula no ano de 2003, para promover um novo pacto

social que retomasse o desenvolvimento econômico do Brasil com distribuição de renda

para o conjunto da população. Ligado à matriz teórica gramsciana, analisa o

transformismo ocorrido com o Partido dos Trabalhadores através do CDES e da nova

relação entre o Estado e a Sociedade Civil no período de 2003 a 2010.

Palavras-Chave: Sociedade Civil, CDES, Partido dos Trabalhadores

ABSTRACT: The object of this study is the Council for Economic and Social - CDES,

created by Lula's government in 2003 to promote a new social pact taking over Brazil's

economic development with income distribution for the whole population. On the

Gramscian theoretical framework, examines the transformism occurred with the Labor

Party through the CDES and the new relationship between the State and Civil Society in

the period 2003 to 2010.

Keywords: Civil Society, CDES, the Workers' Party

O foco desta pesquisa é identificar no CDES os frutos do transformismo petista

sob o governo de Lula da Silva (2003-2010) através do mapeamento dos princípios

idealizadores do CDES no contexto das campanhas presidenciais e dos posicionamentos

de Lula diante das decisões do CDES durante seus mandatos.

Todos os que elegeram Lula possuíam uma grande expectativa de que houvesse

mudanças no novo governo. As promessas de campanha incluíam a retomada do

crescimento econômico e políticas de distribuição de renda, mas devido à conjuntura

política e econômica de 2003, ou seja, por conta da crise internacional e das opções

políticas de Lula, ao se comprometer com o cumprimento de acordos internacionais e

com os interesses do empresariado brasileiro que o apoiou, restou um limitado espaço

para as novas políticas de desenvolvimento começar a dar os primeiros passos.

A realidade indesejada que se concretizou para os que depositaram esperanças de

profundas mudanças no governo de Lula foi a continuidade com a política

macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso que incluía a estabilização da inflação

e do crescimento econômico e a carência de políticas sociais. As limitações impostas ao

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governo Lula e suas primeiras escolhas políticas não tiveram o poder de diminuir a

expectativa dos que acompanhavam ansiosos as possíveis mudanças que deveriam ser

executadas por ele. Frustrada essa expectativa, depois de um certo tempo restou a

pressão para que um novo modelo de desenvolvimento para o país de fato ocorresse.

A formalização da transição para um novo modelo econômico que tivesse a marca

da concertação social foi idealizada por um importante intelectual do Partido dos

Trabalhadores e seu membro histórico, Tarso Genro, que conduziu o conselho nos

períodos 2003/2004 e 2006/2007 e defendeu a criação de um novo bloco social

dirigente, sem vínculos ideológicos ou partidários, que pudesse garantir a coesão social

que sustentasse esse processo de transição1.

Segundo Tarso Genro era necessário eleger temas importantes para o

desenvolvimento do país e buscar a pactuação em torno deles para que essa decisão

fosse hegemônica na sociedade, sem contestações ou impedimentos importantes para

sua realização. Esse entendimento era chamado de concertação por Genro.

Genro entendia que o CDES deveria ser um espaço de conciliação de classes - já

que o novo bloco social dirigente deve abrir mão de posições políticas, ideológicas e

partidárias - e aprofundamento das relações democráticas entre Estado e sociedade pois,

segundo ele, é através dos acordos e não de histerias que são decididos importantes

temas do novo projeto de desenvolvimento.

O CDES representou a função de assessorar o presidente da República na

formulação de políticas que sustentassem um novo modelo de desenvolvimento para o

país. ―Pela primeira vez na história da república, o juízo político do governo é formado

a partir da interação com a sociedade civil.2‖ Sua principal característica é o ideário de

concertação ou pacto social entre os diferentes representantes da sociedade presentes

nele.

Adotamos a idéia gramsciana de sociedade civil, que a considera como espaço

político para que os interesses de classes e frações de classe possam se organizar,

estabelecer e manter a (contra)hegemonia, através da ―guerra de posição‖ na sociedade

capitalista, ou seja, através das disputas entre interesses e projetos de classes opostas.

Segundo Gramsci, o Estado é conquistado pelo grupo hegemônico da sociedade civil

que conquistou o consenso antes mesmo da chegada ao poder, e chegando lá no governo

ele se utiliza do aparato estatal para fazer valer os interesses do grupo o qual representa:

Leis, burocracia, polícia e etc.

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A partir de uma revisão da literatura que abrange tanto o debate conceitual de

Estado, Sociedade Civil e Partido Político em Gramsci como o seu contexto atual à luz

da essência do CDES, buscarei os alicerces teóricos que sustentarão minha análise sobre

o objeto.

O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) é ―uma experiência

inédita na democracia brasileira3‖, é um espaço público não estatal e policlassista, isto é,

onde estão reunidos: empresários, trabalhadores, intelectuais, representantes dos

movimentos sociais e do terceiro setor e ―representa um importante avanço para o

controle social do Estado e para a ampliação de diálogo social4‖, de natureza consultiva,

foi criado no primeiro dia de governo do presidente Lula pela medida provisória n.103

no ano de 2003, em 28 de Maio daquele ano a Lei n. 10.683 regulamentou-o.

As principais produções consensuais desenvolvidas pelo CDES foram: cartas de

concertação que nos dão um panorama dos primeiros passos do exercício de pactuação

entre os conselheiros e dos seus primeiros consensos, a Agenda Nacional de

Desenvolvimento, os Enunciados Estratégicos para o Desenvolvimento e finalmente, a

Agenda para o Novo Ciclo de Desenvolvimento, todos considerados como documentos

estratégicos pela SEDES.

Através da análise dos documentos estratégicos desenvolvidos pelo conselho

durante o primeiro mandato de Lula da Silva podemos compreender melhor a função e a

importância do conselho e avaliar de forma crítica os objetivos que o compõe.

Segundo o Relatório de atividades feito pela SEDES referente às atividades do

CDES em 2003, destaco os seguintes acontecimentos: o encontro que os conselheiros

tiveram com representantes do Banco Mundial para discutir e avaliar as prioridades e

diretrizes do conselho para os próximos quatro anos; os acordos de cooperação

assinados entre o CDES e outros conselhos similares de Portugal, Espanha, Itália,

França e o Comitê Econômico e Social Europeu; a entrada e ascensão do CDES na

Associação Internacional de Conselhos Econômicos e Sociais integrando sua diretoria.

Por último, foram firmados convênios de cooperação com o Banco Mundial, o Banco

Interamericano de Desenvolvimento, a CEPAL, a OIT, a UNESCO, a FGV e a UFRGS

no âmbito do Programa nacional de apoio à concertação.

As cartas de concertação representavam as prioridades para o desenvolvimento do

país e as ações a serem realizadas pela sociedade e pelo governo a fim de alcançá-las.

Foram seis as cartas de concertação5 produzidas pelo CDES: 1) Ação política para a

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mudança e a concertação 2) Ação pelo progresso e inclusão social 3) Fundamentos para

um novo contrato social 4) O desafio da transição e o papel da sociedade: a retomada do

crescimento 5) Caminhos para um novo contrato social: documento de referência para o

debate 6) Política industrial como consenso para uma agenda de Desenvolvimento.

Naquele momento inicial do processo de elaborar as cartas houve a necessidade de os

conselheiros obterem conhecimentos sobre a estruturação desse novo pacto social e de

construírem os diálogos entre os próprios conselheiros de origens sociais, profissionais

e ideológicas tão diversas.

O diálogo e a negociação presentes nas discussões de propostas no CDES são

pressupostos para se chegar a um consenso mínimo entre os diversos interesses lá

representados a fim de resolver questões importantes para o desenvolvimento nacional.

As idéias de pacto, concertação social, ou ainda, de novo contrato social, já

estavam presentes desde o período da campanha presidencial no ano de 2002. Era

possível identificá-las como características importantes do possível futuro governo, que

seriam materializadas principalmente através do CDES.

No primeiro documento divulgado pelo Partido dos Trabalhadores, logo após o

resultado da eleição presidencial que Lula venceu, mais uma vez foi reafirmada a

principal característica do CDES e garantida a sua criação: ―Meu governo terá a marca

do entendimento e da negociação (...) Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil,

formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (...).6‖

Neste documento que previa a formalização do CDES, é possível compreender

que o objetivo de Lula era promover uma união de forças para que políticas fossem

criadas para beneficiar o conjunto da população e garantir a retomada do

desenvolvimento do país, após as decisões dos governos anteriores que priorizaram a

estabilidade econômica em detrimento do desenvolvimento nacional e das políticas

sociais.

No Brasil há um histórico de conciliação entre as elites e não de concertação

social ou negociação por meio de diálogos ou debates para a criação de novos blocos

sociais, como explicitados acima. 7A conciliação histórica entre as elites brasileiras,

rural e industrial, promoveu a cooptação de movimentos sociais e a exclusão política

das camadas subalternas a fim de manter as relações de poder estabelecidas intactas.

Essa ausência de espaços de participação e de uma cultura de diálogos e

negociações é essencialmente diferente do que se entende com condição para realizar

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processo de concertação. Isso trás dois problemas: primeiro, impõe uma limitação ao

CDES, que será refletida em sua capacidade de estimular ―processos de negociação com

disputa entre interesses e posicionamentos ideológicos diversos‖. Segundo, nos obriga a

refletir sobre ―em que medida a nova arena institucionaliza dinâmicas úteis à construção

de consenso em torno dos caminhos para se alcançar o desenvolvimento‖ 8 apesar da

falta de uma cultura de participação e diálogos civis.

O CDES considera que empresariado e empregados se unam em prol do

desenvolvimento do país. Na sua composição há uma diversidade de representantes da

sociedade: grandes empresários, representantes de movimentos sociais, de sindicatos, de

universidades, religiosos e artistas. Há que se destacar que a maioria dos membros

representa o empresariado.

A hegemonia capitalista entende que é necessário um mundo sem antagonismos

de classes econômicas para alcançar o desenvolvimento e utiliza a noção de Terceira

Via justificada pelo sociólogo inglês Antony Giddens (2001a)9, que entende que esta

seria uma alternativa entre o Estado (primeira via) e o Mercado (segunda via), ou seja,

que através das organizações da sociedade civil (terceira via) algumas funções do estado

seriam exercidas mas sem a referência dos conflitos de classe.

Ellen Wood (2003)10

chama a atenção para o modo como o conceito de sociedade

civil tem sido utilizado atualmente, não exibindo um significado essencialmente

anticapitalista, pois ele tem sido utilizado para inúmeros fins. Há alguns pontos em

comum nesta gama de atuais significados para este conceito: ele identifica uma

potencial arena de liberdade fora do estado, autonomia, pluralidade e associações

voluntárias. Realidade distinta da que Gramsci entendia ―o conceito de sociedade civil

deveria ser, sem ambigüidades, uma arma contra o capitalismo, nunca uma acomodação

a ele‖.

Essa redução do conceito de Sociedade Civil que Wood (2003) chama a atenção,

diz respeito às instituições e relações do sistema capitalista que, dentro da sociedade

civil, passam a ser encaradas no mesmo nível das associações domésticas ou

voluntárias, e dessa forma o mercado passa a ser um objetivo desejável assim como as

liberdades políticas e intelectuais presentes na sociedade civil, e aí a principal

característica da relação de dominação/exploração do sistema capitalista se torna oculta.

A ideologia presente no CDES suscita críticas também de outros autores como

NEVES (2010) e FONTES (2010)11

, que entendem que o CDES surgiu de um ideário

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de construção da hegemonia capitalista para alcançar o progresso através do fim dos

antagonismos entre capital e trabalho. Utilizando o diálogo social para estabelecer uma

nova relação entre Estado e Sociedade Civil. Eliminando a divisão da sociedade em

classes, desmontam-se as organizações populares, permitindo que a dinâmica do capital

se espraie por toda a sociedade de forma natural. Segundo Neves (2010) Essa

hegemonia foi construída a partir dos anos 1990 e 2000 que traçou o objetivo de

alcançar o desenvolvimento com paz social.

Fontes (2010) também discute sobre a ―nova sociabilidade no Brasil

contemporâneo‖ que modificou a Esquerda e a Direita através das diretrizes do Pós-

Modernismo com traços do Liberalismo e que defende uma sociedade solidária e um

capitalismo humanizado, ou seja, a nova sociabilidade oculta as relações de exploração

inerente ao sistema capitalista.

O Estado atua na organização do consenso burguês diante do conjunto das classes

trabalhadoras, por meio de uma nova pedagogia da hegemonia (NEVES, 2005) cuja

atuação se encontra na difusão de categorias como ―diálogo social‖, ―negociação‖,

―pactuação‖, etc. Lideranças do Partido dos Trabalhadores passaram a defender e

aceitar uma espécie de modernização do partido, através da proposta de realização de

reformas, dentro da estrutura capitalista e não apenas através de sua superação como

fora na época de sua fundação.

Esse movimento de mudança no interior do Partido se refletiu nos seus vislumbres

para o Conselho e fez com que aprovasse a idéia concernente aos princípios defendidos

nesse espaço, de eliminar a divisão da sociedade em classes através da concertação

social, para que dessa forma, fosse possível o desmonte das organizações populares,

ligadas a concepção marxista de sociedade de classes, levando a naturalização da

dinâmica do capital por toda a sociedade.

No decorrer da pesquisa investigaremos as seguintes hipóteses:

i. O transformismo do PT permitiu a vitória nas eleições presidenciais de 2003 e

2006, especialmente por conta de acordos com o empresariado brasileiro.

ii. Os princípios norteadores para a criação do CDES estão relacionados ao

transformismo petista.

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iii. O CDES funcionou como espaço de garantia dos acordos assumidos por Lula da

Silva com o empresariado brasileiro.

Nossos principais objetivos são:

i. Estudar os principais documentos oficiais da fundação do Partido dos

Trabalhadores produzidos na década de 1980 e compará-los com os documentos

produzidos a partir da segunda metade da década de 1990 para analisar as principais

mudanças ocorridas na direção ideológica do Partido.

ii. Refletir sobre as mudanças de estratégias utilizadas nas campanhas presidenciais

do Partido dos Trabalhadores nos anos de 1989, 1994, 1998 e 2002.

iii. Discutir o contexto político da idealização e criação do CDES.

iv. Analisar as principais decisões do CDES no período estudado.

v. Examinar os conceitos utilizados pelo CDES para embasar seus objetivos, tais

como concertação social, pacto social, diálogo civil, sociedade civil.

vi. Comparar a mudança de trajetória do PT com os posicionamentos de Lula em

relação às principais discussões que ocorreram no CDES.

Os procedimentos metodológicos a serem utilizados na pesquisa estão associados

à vertente teórica adotada e se expressam nos itens abaixo:

O ponto de partida será destrinchar os documentos que previam a criação do

Conselho, antes mesmo da vitória nas eleições e relacioná-los às mudanças estratégicas

do Partido dos Trabalhadores nas três eleições presidenciais anteriores. Para isso será

necessário o estudo sobre as concepções do Partido na época de sua fundação e o

aprofundamento sobre o crescente movimento de mudança ideológica sofrido no

decorrer dos anos.

Será enfatizado especialmente o contexto da campanha presidencial de 2002

quando fez-se necessário maior aproximação de Lula da Silva com o empresariado

brasileiro. Confrontarei as principais mudanças ideológicas do Partido dos

Trabalhadores expressas nos documentos produzidos pelo conselho e aceitas e/ou

incentivadas por Lula da Silva durante os seus dois governos.

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1 GENRO, Tarso. Democratizar as relações entre governo e sociedade. In: CORREA, Jaime Montalvo (et

al). Novos espaços democráticos: diálogo social no Brasil e a experiência da Espanha. São Paulo: Perseu

Abramo, 2003a.

____________. As Premissas da Concertação, 2003b. Disponível em <http://www.tarsogenro.com.br/>.

Acesso em 30.08.2010.

2 Relatório de Atividades CDES 2003

3 Relatório de Atividades CDES 2003

4 Relatório de Atividades CDES 2003

5 As cartas de concertação encontram-se disponíveis no portal do CDES: www.cdes.gov.br. Utilizaremos

os textos das versões definitivas das cartas e não das que se encontravam em processo de discussão para

reavaliação. 6 SILVA, Luis Inácio Lula da. Um Brasil para Todos. Crescimento, Emprego e Inclusão Social.

Coligação Lula Presidente. Programa de Governo 2002a. Disponível em:

<http://virtualbooks.terra.com.br/osmelhoresautores/planodegovernoLULA.htm>. Acesso em 09/12/2010.

________________________. Compromisso com a Mudança. São Paulo, 2002b. Disponível em

<www.pt.org.br>. Acesso em 11/12/2010.

7 KUNRATH, Romério Jair. CDES: O CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E

SOCIAL DO BRASIL. Porto Alegre, 2005, 196p. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação

em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

8 RIBEIRO, Daniela Mesquita de Franco. A construção institucional do CDES: uma dinâmica favorável

ao desenvolvimento? 7º Encontro da ABCP, Recife, 2010.

9 GIDDENS, Antony. A Terceira Via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social

democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001a.

10 WOOD, Ellen. M. Democracia contra o capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.

11 NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: Intelectuais

da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. Paulo: Xamã, 2010. FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital

imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010.

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As funções do horror na literatura brasileira (1855 – 1930)

Lainister de Oliveira Esteves

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir as funções do horror na ficção brasileira do

século XIX. Dividindo os textos em três categorias funcionais; o horror acadêmico; o

horror doméstico e o horror Fin de siècle; analisaremos os diferentes usos dos

dispositivos próprios da literatura grotesca e de terror na configuração da prosa

nacional. Serão avaliadas ainda as apropriações de autores como William Shakespeare,

Lord Byron, E.T.A Hoffmann e Edgar Allan Poe.

Palavras – chave: literatura; horror; grotesca.

Abstract: The aim of this paper is to discuss the functions of horror in brazilian

nineteenth-century fiction. Dividing the text into three functional categories: the

academic horror, the domestic horror and the Fin de siecle horror; will be analyzed the

different uses of grotesque literature and terror in the national prose.Will be evaluated

further appropriations of authors such as William Shakespeare, Lord Byron, ETA

Hoffmann and Edgar Allan Poe.

Keywords: literature; horror; grotesque

Delimitando a construção da ―identidade nacional‖ como a grande missão dos

letrados do século XIX os estudos literários brasileiros, em especial as histórias

literárias, tendem a vincular inelutavelmente o projeto de construção da nacionalidade e

o processo de consolidação da independência política brasileira1 com a autonomização

da produção literária. A literatura forneceria o enredo do país em construção, estando

quase exclusivamente a serviço da composição de um suposto ―vínculo de

nacionalidade‖ forjando um repertório cultural comum.

Em Formação da literatura Brasileira, Antônio Cândido afirma que a literatura

no Brasil começa a ser esboçada com o arcadismo na segunda metade do século XVIII,

mas torna-se mais nítida apenas a partir do século XIX. Isto porque, segundo o autor,

somente nesse período surge um ―sistema de obras ligadas por denominadores comuns

que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase‖. 2 A literatura como sistema

seria diferente das ―manifestações literárias‖ produzidas no Brasil durante os séculos

XVI e XVIII. Estas, ainda que eventualmente possam ser qualificadas como ―obras de

valor‖, seriam frutos de um ―meio imaturo‖ limitador do alcance e da recepção. A noção

de formação de um sistema literário passa pela manifestação histórica de elementos de

―natureza social e psíquica‖, dentre os quais:

um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um

conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a

obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem,

traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar

a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo

como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do

indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de

interpretação das diferentes esferas da realidade.3

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Para Cândido, somente a existência de um sistema literário permite a formação de

uma tradição responsável pela transmissão de padrões de pensamento e comportamento,

capazes de assegurar um movimento contínuo no universo letrado. Sem essa

continuidade ―não há literatura, como fenômeno de civilização‖.4

O autor define seu trabalho como ―uma história dos brasileiros no seu desejo de

ter uma literatura" e afirma que, originalmente, a produção literária brasileira é marcada

por um ―nacionalismo infuso‖ que deixaria a imaginação e a fantasia em segundo plano

tendo em vista ―o peso do sentimento de missão, que acarretava a obrigação tácita de

descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance

geral.‖5

Nesse sentido, a brasilidade torna-se critério de valor e traço de originalidade. Na

perspectiva de Antônio Cândido, em grande medida apropriada dos primeiros

românticos e de críticos estrangeiros como Ferdinand Denis e Almeida Garret, é a

adoção de temas nacionais, com destaque para o indianismo, que começa a marcar a

independência da literatura brasileira. As preocupações com a expressão local e com a

construção do nacional definiriam a agenda literária oitocentista e seriam a chave da

configuração de um sistema que, por sua vez, garantiria a autonomia em relação à

literatura portuguesa.

O paradigma crítico de Cândido associa a construção do campo literário brasileiro

com a ideia de nacionalidade, a literatura produzida no Brasil parece ser dotada de um

único sentido e assume uma única função. Configura-se com um único interesse: o de

representar a identidade nacional. Não por acaso, o momento de invenção da nação

torna-se também o período formação da literatura. Segundo Abel Barros Baptista:

Por força dessa harmonia, fundar a literatura nacional brasileira implicava cortar

com o passado, clássico e colonial: a novidade, a originalidade e a invenção,

lugares-comuns da modernidade literária, reuniram-se e confundiram-se num

único e poderoso lugar comum: a nacionalidade literária, pelo que a consciência da

nacionalidade começou por ser forma específica de consciência da modernidade.6

Nesta chave, o romantismo aparece fundamentalmente como uma forma de

nacionalismo, assumindo o papel de construir e interpretar o Brasil, ou seja, ―a literatura

brasileira seria brasileira antes de ser literatura: um problema do Brasil, antes de mais

do Brasil, que se esgotaria no Brasil‖.7

Para Cândido, ―a nossa literatura é um galho secundário da portuguesa‖, nesse

sentido, o conceito de formação é baseado na germinação desse galho que guarda

semelhanças com o ―arbusto‖ que lhe gerou, mas vai progressivamente adaptando-se ao

solo nativo até se tornar fruto original do mesmo. Na lógica da formação, a questão da

nacionalidade da origem é deslocada para o produto final. A interpretação de Cândido é

fundamentalmente teleológica: a forma literária propriamente brasileira já está inscrita

no processo de incorporação das matrizes portuguesas. Nesse sentido, a produção

letrada colonial é lida como o esboço ou a raiz do sistema que se formaria: ―as

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manifestações literárias seriam assim, digamos, certa parte da literatura portuguesa que

já anuncia o Brasil‖.8

Na obra de Antônio Cândido, a formação do sistema é naturalizada como dever

cívico e todas as disputas convergem para um mesmo resultado. A formação da

literatura brasileira se dá como o resultado do amadurecimento de algumas instituições e

é acelerada por um tipo de ethos nacionalista que teria se manifestado entre os homens

de letras. Ainda que não se possa negar que esses agentes articularam projetos

nacionalistas para as letras, é preciso considerar uma série de questões que estão em

jogo, ressaltando que esse processo não se dá como decorrência ―natural‖ da

independência política, mas é organizado a partir de projetos que não se orientam

exclusivamente pelo ―desejo de ter uma literatura‖ que reflita a ―cor local‖.

É possível considerar outros aspectos da produção e do consumo de literatura no

Brasil oitocentista. Em Como e porque sou romancista, escrito em 1873 e publicado em

1893 pela tipografia Leuziner, José de Alencar afirma:

Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns cadernos escritos em letra

miúda e conchegada. Eram o meu tesouro literário. Ali estavam fragmentos de

romances, alguns apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem

princípio. De charadas e versos, nem lembrança. Estas flores efêmeras das

primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas dos meus canhenhos

e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas secas das mangueiras, a cuja

sombra folgara aquele ano feliz de minha infância. Nessa época tinha eu dois

moldes para o romance. Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o

recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um

castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma capela gótica

frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.

O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa pitoresca do meu amigo

Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças e perfumes agrestes. Aí

a cena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante

arroio que a bordava de recamos cristalinos. Tudo isto, porém, era esfumilho que

mais tarde devia apagar-se.9

Na passagem se define uma tradição que serve de referência para o entendimento

do autor acerca do romance. O modelo ―merencório‖, soturno, alude ao gótico, ao

misterioso e ao horror e o molde ―risonho‖ remete a um universo campestre, leve e

cheio de cores. Concentrando-se no primeiro, efetivamente objeto deste projeto, é

possível pensar que obras literárias ligadas à estética grotesca,10

que faz uso de

elementos voltados para o horror circularam no Brasil do século XIX. Nesse sentido, é

possível analisar a circulação de autores como Marques de Sade, Lord Byron, Horace

Walpole, Daniel Dafoe, Edgar Allan Poe, Maupassant, E.T.A Hoffmann entre letrados

brasileiros.

Considerando, por exemplo, a publicação de Noites da taverna (1855) de Álvares

de Azevedo (obra consagrada pela crítica como expoente máximo da ficção ultra-

romântica e sombria); Sem olhos, escrito por Machado de Assis e publicado no Jornal

das Famílias entre dezembro de 1876 e fevereiro de 1877 e o romance As mulheres

fatais de Claudio de Souza, publicado em 1928, observam-se diferentes usos de

elementos próprios das narrativas grotescas e obscuras cujas matrizes remetem a obras

de língua inglesa, francesa e alemã. Nesse percurso, o ―terror‖ se estabelece em

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diferentes modalidades, assume funções variadas e se destaca na configuração da prosa

ficcional no Brasil.

Os textos ficcionais de Álvares de Azevedo (incluindo Noites da taverna, e O

livro de Fra. Gondiciário) estão diretamente vinculados a essa ―tradição‖ e configuram

tipos característicos de narrativas de terror, obras estruturadas em torno do suspense

sombrio do sangue e do desejo, destinadas a um público específico: jovens estudantes

universitários interessados em literatura ultra-romântica. Permeada de citações a

Bocage, Byron, Dante, Shakespeare, Spinoza, Homero, Noites na taverna encena os

dramas do horror com histórias macabras que se pretendem alicerçadas em determinada

tradição letrada. O palco e os monólogos de cada personagem estão estrategicamente

crivados de referências legitimadoras. Antes que Solfieri passe a narrar sua história,

tem-se a seguinte passagem:

—Agora ouvi-me, senhores! Entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando

as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como

os braços do carniceiro no cepo gotejaste, o que nos cabe é uma historia

sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos - como Hoffmann os delirava ao

clarão dourado do Johannisberg! 11

Destaca-se a citação a Hoffmann e a definição de conto fantástico. O escritor

alemão aparece como referencia em termos de histórias macabras, seus contos

fantásticos orientam a fala de Solfieri. Usando Hoffmann, Álvares de Azevedo narra o

terror, a fantasia, o amor e a morte organizando a trama entre sexo, fetiches e cadáveres

transformados em alvos de desejo sexual. A perversão e a luxúria são os eixos de um

ultra-romantismo produzido e consumido, predominantemente, nos arredores das

faculdades de São Paulo.

Dalmo ou os mistérios da noite de Luís Ramos Figueira se enquadra na mesma

categoria. Publicado em 1863, o romance narra a história de um homem que vaga pelas

ruas de São Paulo à noite. Os caminhos errantes, os vícios noturnos definem o destino

do personagem principal, levado a se arrepender em nome do amor. O tom sombrio e

macabro prevalece ao longo da narrativa repleta de reflexões sobre Deus e a morte. Os

momentos finais trazem o clímax da redenção do herói no cemitério, entre coveiros e

caixões. A primeira edição feita pela Tipografia Literária traz na primeira página, logo

abaixo do nome, a informação de que o autor é ―bacharel em Belas-letras e estudante do

quarto ano da faculdade de direito de São Paulo‖12

. O destaque para os dados se articula

com o interesse em situar a obra, demarcando um lugar, deixando claro para o leitor que

ele estará diante do texto romântico de um estudante de direito, a filiação a Álvares de

Azevedo, por exemplo, tende a se estabelecer imediatamente.

Periódicos como O Guaianá, O Caiaba, O Acayaba e Forum Literário, editados

durante as décadas de cinqüenta e sessenta do século XIX traziam narrativas macabras

de jovens escritores de São Paulo, dentre eles Lindorf E.F França; Leonel de Alencar;

Félix Xavier da Cunha, Américo Lobo e J.f de Menezes. Os temas variavam, mas em

geral são histórias que destacam a face horrível da perversão sexual e dos vícios. O

macabro está a serviço da encenação do excesso e da desmedida o que por sua vez serve

a uma determinada representação da vida boemia romântica e errante. O horror

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pervertido funciona como elemento de ligação com uma tradição literária que remonta a

Sade, Byron e Hoffmann e oferece argumentos que definem a fetichização da vida

literária.

Outra vertente de literatura grotesca pode ser encontrada em romances e

publicações periódica voltadas para um público basicamente doméstico e feminino. O

grande locus desse tipo de produção foi o Jornal das Famílias, do editor francês Baptiste

Louis Garnier publicado entre 1863 e 1878. Entre receitas culinárias, dicas de moda e

economia doméstica, o periódico quinzenal trazia histórias macabras para deleite das

leitoras. D. Maria Medeiros de Albuquerque; Carlos Nodier; Jose ferreira de Meneses;

D. C Figueiras; Viriato Duarte, além de Machado de Assis, estão entre os colaboradores

mais constantes. Em geral são histórias de amor que trazem elementos macabros e finais

cheios de suspense e morte.

Um exemplo marcante é A mão de Deus de D. Maria Medeiros de Albuqerque.

Neste conto publicado em Julho de 1867, Padre Arsênio vai orar por uma mulher muito

enferma em Lisboa. Em determinado momento Leonor começa a se debater e sangrar

pela boca e o padre descobre sua história. Sua vida fora marcada pela luxúria e

devassidão, casa-se com Henrique que abandonou Maria e depois Albertina para ficar

com ela. Maria enlouquece e morre; Albertina ganha herança e fica rica; Leonor morre

de forma horrível. Henrique se redime casando com Albertina. No dia da morte da vilã:

Os relâmpagos penetravam pelas fendas das janelas e alumiavam o simples

aposento, a chuva em torrentes, impelida por um vento furioso, batia com estrondo

contra as vidraças, e a trovoada achava-se já tão próxima que os trovões abalavam

toda a casa!

O estado da enferma era horrível! Quando a vi também julguei que aquele pobre

corpo em poucas horas deixaria de padecer e, contudo, ha três dias que se conserva

agonizante, tendo perfeitos os seus sentidos! Já vedes que é horroroso!13

O conto mistura horror, devassidão, pecado e redenção. Um exemplo típico do

tipo de literatura veiculada no jornal que traz para o universo doméstico exemplos de

aventura e libertinagem normalmente castigados pelo destino. Machado de Assis foi

outro colaborador constante. Dentre seus textos destaca-se Sem olhos. Publicado entre

dezembro 1876 e fevereiro de 1877 traz a sombria história de amor contada por um

homem em seu leito de morte. A visão de uma mulher sem olhos assombra o

protagonista confundindo sonho e realidade. A narrativa levanta questões quanto ao

interesse de leitores por histórias fantásticas e escabrosas e sugere que o consumo desse

tipo de narrativa seria mais comum do que se pode imaginar em um primeiro momento.

No entanto a relação de Machado de Assis com o grotesco não se limita ao

referido jornal A causa secreta (publicado na forma de folhetins na Gazeta de notícias

em 1855) e A mulher pálida (publicado em A Estação, 1881) apresentam outra

modalidade de horror, mais articulado com os paradigmas realistas: tem-se a inserção

do elemento macabro e misterioso em histórias configuradas menos em torno do

fantástico do que a partir da exploração de um realismo aterrador, cruel e silencioso. No

primeiro conto, consagrado pela crítica como um clássico das letras brasileiras, é

narrado o drama de um homem que sente prazer em observar a dor alheia. A primeira

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publicação em livro é de 1896, na antologia Várias histórias. Nele, Fortunado, homem

de desejos macabros, experimenta a morte de sua mulher como espetáculo.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do

marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e

frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições

da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte.

Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de

agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela

expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. 14

O fetiche soturno, o desenrolar da decomposição, entram em cena para representar

o mistério do que não pode ser representado: é o absurdo moral, o fantástico

inexplicável da realidade cujo ápice se dá na observação silenciosa de Fortunato diante

da traição pós-morte do amigo Garcia que beija intensamente o cadáver Maria Luísa.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não

pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as

lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável

desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor

moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. 15

Em A mulher pálida Máximo passa a vida a procurar a mulher mais pálida do

mundo, recusa bons casamentos em nome desse desejo curioso.

A vizinha morreu daí a duas semanas; Máximo levou-a ao cemitério.

Mês e meio depois, uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever

uma carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu. Antes

de cair teve tempo de murmurar.

— Pálida... pálida...

Uns pensavam que ele se referia à morte, como a noiva mais pálida, que ia enfim

desposar, outros, acreditaram que eram saudades da dama tísica, outros que de

Eulália, etc... Alguns crêem simplesmente que ele estava doido; e esta opinião,

posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim

que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors,

etc.16

O silêncio perturbador que realça o mistério, que encerra a trama sem oferecer

respostas objetivas, anuncia o horror do que não cabe ser dito. O grotesco assustador é o

vazio, o indecifrável pontua a trama verossímil, o realismo encontra seu limite, resta o

que não cabe representação. A relação de Machado de Assis com histórias sombrias, no

entanto, não se limita a esses dois contos, vale lembrar que o autor, em 1883, traduziu o

poema O corvo, de Edgar Allan Poe, uma das maiores autoridades modernas em termos

de ficção sombria.

Demônios, de Aluísio Azevedo, publicado inicialmente na Gazeta de Notícias, em

1891, e em uma seleta de mesmo nome lançada em 1893, narra os horrores de uma noite

que parece não ter fim. No jornal, a história foi contada em treze capítulos e o suspense

é intensificado ao final de cada uma dessas partes. Depois de perceber que o dia não

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voltaria a nascer o personagem principal vai à procura dos outros moradores da pensão

onde mora;

E corri aos outros quartos, e já sem bater fui arrombando as portas que encontrei

fechadas. A luz da minha vela, cada vez mais lívida, parecia, como eu, tiritar de

medo. Oh! Que terrível momento! Que terrível momento! Era como se em torno

de mim o nada insondável e tenebroso escancarasse, para devorar-me, a sua

enorme boca viscosa e sôfrega. Por todas aquelas camas, que eu percorria como

um louco, só tateava corpos enregelados e hirtos.

Não encontrava ninguém com vida; ninguém! Era a morte geral! A morte

completa! Uma tragédia silenciosa e terrível, com um único espectador, que era eu. 17

O terror dramatizado na sucessão de cadáveres, na tensão dos encontros com a

morte alude aos recursos típicos do gênero. Neste conto Aluísio de Azevedo flerta

diretamente com a tradição apresentada por Alencar. Os quartos escuros da pensão, as

luzes das velas revelando corpos funcionam como a ―capela gótica‖ ou as ―ruínas do

castelo‖ de Horace Walpole.18

Em outra passagem:

E os nossos pés, num misterioso trabalho subterrâneo, continuavam a lançar pelas

entranhas da terra as suas longas e insaciáveis raízes; e os dedos das nossas mãos

continuavam a multiplicar-se, a crescer e a esfolhar, como galhos de uma árvore

que reverdece. Nossos olhos desfizeram-se em goma espessa e escorreram-nos

pela crosta da cara, secando depois como resina; e das suas órbitas vazias

começavam a brotar muitos rebentões viçosos. Os dentes despregaram-se, um por

um, caindo de per si, e as nossas bocas murcharam-se inúteis, vindo, tanto delas,

como de nossas ventas já sem faro, novas vergônteas e renovos que abriam novas

folhas e novas brácteas. E agora só por estas e pelas extensas raízes de nossos pés

é que nos alimentávamos para viver. 19

O herói e sua amada Laura (única sobrevivente da tragédia misteriosa)

transformam-se em um tipo de árvore. A cena traz elementos fantásticos próprios da

lógica ficcional grotesca. Em Demônios a preocupação do autor de clássicos como O

Cortiço e Casa de Pensão desloca-se da realidade da população carioca no século XIX

para as possibilidades do inverossímil ficcional, ou seja, um Aluísio Azevedo menos

naturalista e mais sobrenatural.

Esse tipo de prosa realista lança mão de elementos grotescos encenando dramas

do amor e da morte onde o crime e a crueldade são expostos em nome de um ultra-

realismo que quer revelar, muitas vezes na forma de tensões silenciosas, algo para além

das aparências, para além das possibilidades de representação. Flertando com o romance

romântico despretensioso estabelece um conflito entre o ordinário e o extraordinário que

problematiza os paradigmas realistas jogando com seus limites. O efeito é a

apresentação do universo do excesso e da perversão para um público doméstico, a

inserção da aventura para leitores em busca de um passatempo diferente das suaves

histórias de amor dos folhetins.

A ―estética sombria‖ se espalha pela produção literária brasileira em diferentes

modalidades. É veiculada em jornais de grande circulação e em inúmeras publicações.

Conquista público variado e tem papel decisivo na solidificação da produção literária

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brasileira. Sua importância pode ser medida, por exemplo, pela coletânea Contos

brasileiros, lançada em 1922, pela renomada Livraria Garnier. A obra, organizada por

Alberto de Oliveira e Jorge Jobim, reúne contos escolhidos por serem ―alguns dos

principais, dos mais belos ou dos mais estimados do público e dos nossos homens de

letras‖,20

como aparece no prefácio escrito por Alberto de Oliveira. Essa referência dá

indícios da popularidade e do sucesso da ―literatura macabra‖ com os leitores do início

do século XX. Isto porque a maioria dos contos alude, de alguma maneira, ao terror.

Dos trinta e seis contos dezenove enquadram-se nessa categoria.

No prefácio o conto é definido como popular, ―elemento orgânico de agremiação

social‖ sem ser somente ―entretenimento fácil dessas horas de ócio‖21

. Forjando uma

tradição que inclui Homero, Sherazade e Boccacio, Alberto de Oliveira aponta o caráter

recente desse gênero no Brasil, anunciando Machado de Assis como o grande precursor.

A natureza concisa do conto o tornaria popular e espaço privilegiado para a

dramatização do:

Extraordinário, ou o maravilhoso em que imaginação extravasa e delira, o

picaresco ou o jocoso e toda sorte de diatribes, mais ou menos mordazes, os feitos

brilhantes, de valor aceitável e os porque exagerados é inadmissível o heroísmo; a

religião; a educação; a moral; a filosofia, a ciência, tudo é e se torna objetivo do

conto, cuja forma literária e artística se acentua nos últimos tempos. 22

O conto é tratado como a forma ideal para o extraordinário e o maravilhoso. A

articulação com o grotesco é inevitável uma vez que os grandes autores do gênero

destacaram-se justamente como contistas. O estudo do terror no Brasil pode se traduzir

também como investigação da consolidação do conto enquanto forma literária. O conto

torna-se acessível, popular, em grande medida por estar atrelado à difusão da estética

grotesca. Se boa parte dos autores de prosa brasileiros experimenta o conto, uma das

formas privilegiadas dessa experimentação contempla o uso de recursos narrativos

próprios do gênero.

Essa tendência parece mais clara já no final do século dezenove e torna-se ainda

mais evidente nas primeiras décadas do século vinte. A supracitada seleção de Alberto

de Oliveira e Jorge Jobim assim como História cambiantes (1874) de Carlos Augusto

Ferreira; Dentro da Noite (1910) de João do Rio e Coivara (1920) de Gastão Cruls são

exemplos de coletâneas de contos que atestam o triunfo do terror no Fin de siècle. O

grotesco teria conquistado popularidade devido o apelo com o público além de permitir

a discussão de algumas questões relevantes como ciência, fé e os limites entre o

naturalismo e o sobrenatural.

Observando as diferentes formas que o horror assume na literatura brasileira

oitocentista e as diferentes funções que assume, é possível mensurar sua importância

para a autonomização e a consolidação da produção literária no Brasil. Nesse sentido, o

estudo das lógicas de produção e consumo do tipo de literatura aqui apresentada permite

analisar práticas literárias para além do que pode ser considerado como ―questão

nacional‖.

Bolsista do CNPQ

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1 Sobre o assunto ver GUIMARÃES, Manoel Salgado. ―Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o

projeto de uma história nacional‖. in: Estudos históricos, nº 1, 1988. 2 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. BH: Ed. Itatiaia,

1981, p. 23 3 CÂNDIDO, Antônio. Op. cit, p. 23.

4 CÂNDIDO, Antônio. Op. cit, p. 24.

5 CÂNDIDO, Antônio. Op. cit, p. 27.

6 BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas, Editora

da UNICAMP, 2005, P. 27. 7BAPTISTA, Abel Barros. Op. cit. p.27.

8 BAPTISTA, Abel Barros. Op. cit. p.65.

9 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Para de Minas, Virtual Books online M&M

editores Ltda, 2003, p. 15-16. 10

Ver KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo, Perspectiva, 1986. 11

AZEVEDO, Álvares. Noite na Taverna. São Paulo, Kick Editora, s/d. p. 18. 12

FIGUEIRA, Luiz Ramos. Dalmo ou os mistérios da noite. São Paulo, Typ. Literraria, 1863. 13

ALBUQUERQUE, D. Maria Medeiros de. A mão de Deus. Jornal das Famílias, Julho 1867. 14

ASSIS, Machado. ―A causa secreta‖ .Várias histórias. Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 15

ASSIS, Machado de. ―A causa secreta‖ Várias histórias. Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,

Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

16

ASSIS, Machado de. ―A mulher pálida‖. Textos literários em meio eletrônico. Disponível em

http://www2.uol.com.br/machadodeassis. Acesso em 03 set. 2010. 17

AZEVEDO, Aluísio de. ―Demônios‖. Aluísio Azevedo: Ficção completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,

2005. p.89.

18

WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. São Paulo: editora Nova Alexandria, 1996.

19

AZEVEDO, Aluísio de. ―Demônios‖. Aluísio Azevedo: Ficção completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,

2005. p.112.

20

OLIVEIRA, Alberto de. E JOBIM, Jorge. Contos brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1922. p.

IV. 21

OLIVEIRA, Alberto de. E JOBIM, Jorge. Op. Cit. p. II. 2222

OLIVEIRA, Alberto de. E JOBIM, Jorge. Op. Cit. p. III.

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A visão de povo no jornal Notícias Populares

Larissa Raele Cestari1

Resumo: O texto analisa a visão de povo que pautou o jornal paulistano Notícias

Populares, no momento de sua criação, por setores da elite liberal, em outubro de 1963.

Criado para concorrer com o jornal Última Hora e impedir que sua mensagem chegasse

às classes populares, a visão de povo subjacente às mensagens de Notícias Populares

foi marcada por tensão e ambigüidade: ora as classes populares foram consideradas

incapazes e manipuladas; ora foram reconhecidas como cidadãs, aptas a reivindicarem

os seus direitos.

Palavras –chave: Notícias Populares, concepção de povo, elites liberais

Abstract: The paper analyzes the idea of people who guided the newspaper Notícias

Populares, at the time of its creation, by sections of the liberal elite, in October 1963.

Created to compete with the newspaper Última Hora, preventing its message out to the

popular classes, the view of people behind the Notícias Populares messages were

marked by tension and ambiguity: sometimes the popular classes were considered

inefficient and handled, were now recognized as citizens , able to claim their rights.

Keywords: Notícias Populares, idea of people, liberal elite

No contexto de polarização ideológica e mobilização política das classes

populares que marcou o governo de João Goulart, o jornalista romeno Jean Mellé e o

deputado da UDN, Herbert Levy, criaram, em São Paulo, em outubro de 1963, o jornal

Notícias Populares (NP) como estratégia de reação dos setores de direita à conquista

das classes populares pelos grupos de esquerda. O objetivo da criação de Notícias

Populares foi o de roubar o público do jornal Última Hora (UH), de Samuel Wainer,

para neutralizar sua ação junto às classes trabalhadoras. Para os setores liberais

representados por Herbert Levy, Última Hora, periódico identificado com as posições

do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), representava uma ameaça, pois, em meio a suas

notícias sensacionalistas, difundia mensagens da esquerda, promovendo a politização

das classes populares e o apoio ao governo de João Goulart.

Mas qual foi a visão de povo que pautou o jornal Notícias Populares no momento

de sua criação, em 1963? Que imagens e representações esse jornal construiu das

classes populares num momento em que, devido a ampliação da participação política

dos trabalhadores, o tema da incorporação das classes populares na política adquiria

centralidade, mobilizando diversos atores, situados em diferentes posições da arena

política? O resgate do contexto de criação do jornal e a análise da estrutura e do

conteúdo de suas mensagens constituem um caminho possível para respondermos a essa

questão.

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A ideia da criação do Notícias Populares partiu do jornalista romeno exilado no

Brasil, Jean Mellé. Na Romênia, Mellé, bem relacionado no Palácio Real, tinha sido

proprietário de um jornal popular, baseado na editoria de polícia, chamado Momentul.

Quando, em 1947, o exército soviético transformou a Romênia em uma república

comunista, Mellé fez oposição ao novo regime, sendo preso após publicar em seu jornal

a manchete ―Russos roubam o pão do povo‖2. Depois de passar dez anos preso nos

campos de concentração da Sibéria, foi libertado em 1958, chegando ao Brasil no ano

seguinte, quando foi contrato por Samuel Wainer para trabalhar como colunista

internacional do jornal Última Hora. No entanto, no início do ano de 1963, assustado

com o ―perigo comunista‖ que acreditava assolar o país, Mellé deixou a redação do

Última Hora, que, na sua visão, caminhava cada vez mais à esquerda, e levou o projeto

de criação de um jornal popular anticomunista para Herbert Levy, então presidente da

UDN, e um dos líderes da ala direita desse partido, a chamada ―banda de música‖3.

A proposta de criação de um jornal popular foi, então, ao encontro dos interesses

de Herbert Levy que, naquele momento, atuava de diversas formas no combate ao

governo de João Goulart e à influência dos grupos de esquerda na mobilização dos

trabalhadores. Levy viu em Notícias Populares mais um meio de impedir que as classes

populares se politizassem à esquerda, além de abrir um canal de comunicação com esses

setores. Assim, em 19 de abril de 1963, foi criada a Editora Notícias Populares S.A.,

mas a primeira edição do jornal só sairia em 15 de outubro daquele ano.

Segundo Gisela Goldenstein, a intenção de Notícias Populares em roubar o

público de Última Hora, motivo principal da sua criação, não estava relacionada à busca

do apoio popular às mobilizações conservadoras contra João Goulart, mas sim à

despolitização das classes trabalhadoras, já que o apoio buscado era o das classes

médias. Por isso, segundo a autora, o projeto de criação do jornal definia que o

noticiário político deveria ser mínimo, pois seus criadores acreditavam que se as classes

populares liam Última Hora, o faziam não pelo seu conteúdo político, mas pelo

entretenimento e pelas notícias sensacionalistas desse jornal. Essa postura dos criadores

de Notícias Populares expressaria, segundo Goldenstein, uma visão ―liberal-

oligárquica‖ sobre as classes populares, próxima à ideia de que ―o povo não pensa e

nem tem interesse nisso‖.4

No entanto, essa intenção original não se concretizou, pois ao analisarmos as

mensagens de Notícias Populares, vermos que o jornal, em meio ao sensacionalismo,

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investiu no noticiário político quase tanto quanto Última Hora, sinal de que a

participação política dos trabalhadores no cenário brasileiro já havia chegado a um

ponto de não-retorno. Se Notícias Populares pretendia anular a atuação de Última Hora,

teria de abordar os temas políticos formulando um discurso alternativo ao do

concorrente. E assim o fez. No período que selecionamos para análise, outubro e

novembro de 1963, meses tensionados por greves e pelas consequências da tentativa de

decretação do estado de sítio por João Goulart, os temas políticos, sempre abordados do

ponto de vista udenista, e sindicais, tratados num tom moderado a fim de não perder os

seus leitores, predominaram no jornal, tendo mais espaços que a editoria de polícia e

esportes.

Coube a Jean Mellé traduzir a concepção de povo dos liberais representados por

Levy para um jornal que se pretendia popular. A tarefa de Mellé seria adequar a

linguagem e a mensagem de Notícias Populares às características culturais que ele

supunha ser dos seus leitores. A fórmula encontrada por ele, traduzindo a imagem que

tinha do povo, foi mesclar elementos tradicionais da imprensa sensacionalista, que ele

acreditava ser o chamariz para os leitores, com temas políticos contemporâneos. E

apostando que o leitor popular compra jornal por impulso, a primeira orientação de

Mellé foi fazer da manchete de Notícias Populares e da primeira página o carro-chefe

do jornal5.

O estudo das partes componentes do Notícias Populares nos ajuda a compreender

o que os seus criadores definiram como sendo de interesse popular. O noticiário do

jornal dividia-se em espaços para políticas nacional, estadual e internacional, temas

trabalhistas e sindicais, polícia, esportes e os problemas do cotidiano que afetavam as

classes populares. As colunas sociais, faits-divers, vida de artistas, lazer, coluna

feminina, horóscopo, turfe, quadrinhos completavam o quadro do jornal buscando

reforçar a atração do público popular. A parte voltada para temas políticos e sindicais,

nos meses analisados, ocupava a metade do jornal, que possuía 12 páginas, sendo as

páginas restantes distribuídas entre os outros diversos conteúdos elencados acima.

Como dissemos acima, isso mostra uma contradição com o projeto inicial de criação do

jornal, que pretendia excluir o noticiário político por considerar que povo não pensa, e

revela contradições na própria concepção de classes populares das elites liberais

representadas por Notícias Populares.

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Embora os diversos temas tivessem espaços mais ou menos cativos, a

diagramação não era rígida, podendo aparecer, lado a lado, faits-divers, notícias

policiais, econômicas, políticas, sindicais e do cotidiano. Esses conteúdos poderiam ser

tratados tanto numa linguagem ―séria‖ quanto numa linguagem sensacionalista,

dependendo do objetivo do jornalista e do espaço ocupado no jornal. Considerando que

o seu público não tinha hábito de leitura, a paginação do jornal foi feita de modo

acessível, com textos geralmente curtos, manchetes e títulos em letras garrafais e uma

enorme quantidade de fotos que, muitas vezes, não condiziam com a importância da

matéria.

A linguagem da abordagem dos temas também era diversa. Assim, nas editorias

de polícia, esporte e cotidiano, recorria-se a técnicas da indústria cultural, especialmente

à linguagem sensacionalista cujo tom informal, misturando irreverência e indignação,

trazia como marca a dramatização do conteúdo e o seu apelo moral6. Já nas editorias

política e sindical, embora não excluísse recursos do sensacionalismo, predominou uma

linguagem mais ―séria‖, formal – exceto nas manchetes e títulos – muitas vezes

buscando dar um entendimento histórico-social da realidade, como a coluna ―Jean Mellé

Informa‖. No entanto, também essa divisão não era rígida: as linguagens poderiam ser

misturadas numa mesma notícia ou no mesmo espaço do jornal.

Assim, ao analisarmos a estrutura da mensagem, a diagramação e a linguagem dos

temas, percebemos que Notícias Populares trabalhava com uma visão heterogênea das

classes populares. Tomando de empréstimo conceitos formulados por Chartier,

podemos considerar que Notícias Populares dividiu os seus leitores em ―povo plebs‖,

aquele que não é considerado sujeito político, pois não é esclarecido pela razão, forma

de participar do mundo político-institucional na modernidade, e ―povo populus‖, esse

sim sujeito político, ativo nas esferas de participação da política formal7.

Na visão de Notícias Populares, o ―povo plebs‖ era aquele que comprava o jornal

pelo entretenimento, pela emocionalidade das matérias policiais, pelas informações do

cotidiano em detrimento do mundo político institucional. Era o povo que buscava o

jornal não para ampliar o seu conhecimento do mundo, mas para resolver problemas

concretos do seu cotidiano, como o preço da carne, ou para buscar estórias interessantes,

insólitas, que não levavam a reflexões maiores além do inusitado do fato imediato.

Enfim, era um leitor despolitizado, tratado muitas vezes como um indivíduo irracional.

É principalmente para ele que se destinavam matérias, como a publicada no dia 22 de

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outubro, que rendeu a seguinte manchete: ―Criança assassinada com um tiro no

coração‖. A matéria é interessante não somente por ajudar a revelar a visão subjacente

que o jornal tinha de seus leitores, mas também a representação do povo que divulgava

em suas páginas. Apesar de ser capa do jornal, o assunto foi tratado numa pequena nota

na página 2 – a foto era maior que o texto – e foi narrado da seguinte forma:

―A família de Isidora foi, na tarde de ontem, visitar Marcolino conhecido

passador de maconha em Vila Nice e imediações de Vila Gustavo. Todos os

presentes passaram a fumar a erva. No sofá, Isidora ―rosnava‖ sob o efeito da

droga. Sua mulher Adelina também estava maconhada (...) o tiro foi disparado

acidentalmente (...)‖.

Na matéria, a representação do povo é feita de forma caricaturizada,

transformando-o em estereótipo da desordem e da irracionalidade (―Isadora rosnava‖).

Ao mesmo tempo, os editores pressupunham um leitor interessado somente nos

elementos espetaculares, apelando para um tom emotivo e para julgamentos morais.

Mas não foi só nas páginas policiais que se considerou o ―povo-plebs‖. Ele esteve

também na forma da abordagem dos problemas socioeconômicos da cidade de São

Paulo como na matéria ―Miséria faz fila no albergue do Cambuci‖: ―No albergue

noturno do Cambuci a miséria realmente faz fila para entrar. Centenas de desgraçados

se reúnem ali (...) são procedentes de estados do norte atraídos pela promessa da

cidade grande (...)‖

Percebe-se a manutenção do tom dramático, mas agora em outra chave, buscando

despertar a empatia do leitor com os personagens da matéria. Na continuação da

reportagem, é enfatizado que a maioria dos migrantes só quer trabalhar, mas não

consegue devido ao saturamento do mercado de trabalho em São Paulo. Além disso, é

denunciado o desprezo das autoridades, como o caso do policial que cuida da fila do

albergue. No texto, eles ainda são distinguidos das

―prostitutas, dos malandros, os fugitivos do Juqueri, os despejados das favelas (...)

que promovem arruaças (...) para roubar em alguns casos um companheiro que

está bêbado vinte cruzeiros para tomar uma pinga. São um caso à parte e são uma

minoria. O que necessita de atenção urgente é o homem que está disposto a

trabalhar, que quer viver e produzir (...)‖

Assim, o migrante foi dignificado, na matéria, por ser trabalhador, papel social

reconhecido positivamente para o homem pobre. Porém, esse mesmo trabalhador seria

vítima da sociedade. Sua marca seria a impotência e a ausência de iniciativa própria.

Dessa forma, a narrativa do jornal, ao sentimentalizar a questão social, buscou criar a

penalização e reforçar uma visão subalterna do integrante das classes populares, na sua

condição de excluído e passivo, de não-cidadão. Apesar de ter apontado o desemprego

como um problema da organização econômico-social, a matéria não desenvolveu

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argumentos nem apontou soluções, num momento em que esse tema se inseria no

debate sobre as reformas de base. O conteúdo da mensagem acabou por particularizar o

fenômeno social descrito a fim de valorizar a emoção pela vitimização dos personagens.

Ao analisarmos as matérias acima, vemos, portanto, que tanto a concepção do

leitor popular quanto as próprias representações do povo veiculadas em determinadas

páginas do jornal demonstravam uma visão do povo como ―plebs‖. Ou seja, um povo

desorganizado, que ―não pensa nem tem interesse nisso‖, cujas manifestações eram

qualificadas muitas vezes por sua emocionalidade\irracionalidade, mas de quem o jornal

não poderia descuidar em função de um contexto de radicalização no país em que as

esquerdas avançavam na conquista dos setores populares. No que se refere às

representações das classes populares veiculadas nas matérias, vemos ainda que Notícias

Populares dividiu o ―povo plebs‖ em dois setores, ambos marginais à sociedade: um, o

povo violento e irracional; o outro, trabalhador e vítima da sociedade.

Mas se, de um lado, Notícias Populares trabalhou com a ideia de um povo

despolitizado que buscava, no jornal, ―sexo, crime, esportes‖, por outro, não deixou de

considerar a existência de amplos setores populares mobilizados, que participavam do

embate político em torno de projetos para a nação. Esse ―povo populus‖, na visão do

jornal, seria formado, principalmente, pelos trabalhadores assalariados sindicalizados

que precisavam ser tirados da influência dos grupos de esquerda. Era especialmente

para ele, embora não só, que o jornal dirigia o noticiário político e sindical. A coluna

―Jean Mellé informa‖, no dia 18 de outubro, nos dá um exemplo desse trabalho de

―contraofensiva‖. Sob o título ―Magalhães Pinto modifica sua posição política para

volta a linha do partido‖, Mellé colocava:

―Das mais interessantes a nova posição do Sr. Magalhães Pinto, depois que tentou,

sem sucesso, aproximar-se da chamada esquerda. Vítima de um erro de cálculo – o

de que a ―esquerda‖ teria importância na opinião pública nacional – o governador

de Minas arriscou perder o apoio da maioria da UDN (...) O incidente da recusa do

estado de sítio, da sua repulsa por todo o país, convenceu o Sr. Magalhães Pinto,

como convenceu o Sr. João Goulart, de que o povo brasileiro prefere a defesa das

liberdades democráticas, contra qualquer tentativa ditatorial.(...) o governador de

Minas (...) reconquistar os seus antigos amigos, no seio do seu próprio partido e

das camadas populares democráticas. Reafirmaria assim as suas convicções, que

todos conhecem como firmadas numa tradição antidemagógica, mas que, por um

momento, foram confundidas, na errada tentativa de aproximação com as

―esquerdas‖(...) as correntes inimigas do regime democrático, em vigor no país.‖

Numa linguagem formal, que mobiliza conceitos, Mellé, editor-chefe do jornal,

tratou seu leitor como um sujeito político racional que precisava ser conquistado.

Abordando, do ponto de vista liberal, os conflitos políticos do país, o autor pretendia

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formar um entendimento da realidade para o seu leitor. Assim, buscando desqualificar o

adversário, Mellé associou a esquerda e o governo João Goulart à demagogia e a um

regime ditatorial – a tentativa de decretação do estado de sítio comprovaria isso – e, no

mesmo movimento, ressaltou os liberais da UDN e as classe populares como baluartes

da democracia no país. Nesse ponto, o discurso veiculado por Mellé em nada diferiu do

discurso veiculado pela grande imprensa para os leitores de classe média. Interessante é

que, naquele espaço – a coluna ―Jean Mellé Informa‖ –, a linguagem e a forma como o

conteúdo foi abordado era diferente das orientações gerais do editor-chefe para a

estruturação das mensagens do jornal.

No entanto, essa imagem do povo como sujeito político não foi construída sem

contradições: a abordagem do tema do sindicalismo no jornal nos revela isso. O

movimento sindical, no período analisado, foi o grande tema abordado por Notícias

Populares, exatamente por ser o sindicato, naquele contexto, tanto o lugar por onde os

trabalhadores se politizavam e se mobilizavam, quanto por ser uma das bases do

governo Goulart, que tratava os líderes sindicais como interlocutores privilegiados. A

análise que Notícias Populares fez da greve geral dos 700 mil em São Paulo, a greve

mais importante do Estado, no período analisado, nos permite vislumbrar as

ambiguidades na visão do povo como sujeito político divulgadas pelo jornal.

Desde 18 de outubro, 11 dias antes da eclosão da greve, o jornal vinha noticiando

as tensões entre os trabalhadores de vários ramos da indústria de São Paulo,

representados pelo Pacto de Ação Conjunta (PAC), intersindical ligada ao Comando

Geral dos Trabalhadores (CGT), de orientação de esquerda, e pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), então nas mãos do PTB-PCB. Sob o

título ―Aumento para os industriários: guerra fria pode pegar fogo‖, o jornal anunciava o

conflito entre o PAC, e depois a CNTI, representando 79 sindicatos, e os empresários

representados pela FIESP. Até dia 29 de outubro, quando teve início a greve geral, o

jornal, num tom moderado, deu voz, nas suas páginas, tanto ao operariado quanto ao

empresariado. Veiculando as demandas, as mesas de negociação com a FIESP e a forma

de organização dos sindicatos e suas relações com as intersindicais, o jornal oferecia, a

despeito da linguagem irreverente muitas vezes usada, uma visão de maturidade dos

trabalhadores na defesa dos seus direitos.

No entanto, quando da eclosão da greve geral, marcada por forte mobilização e

participação dos trabalhadores, o jornal mudou o tom, buscando reverter a situação. Um

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dos pontos mais ressaltados foi a questão da ilegitimidade da greve, declarando-a

política e liderada por ―elementos subversivos‖ e ―líderes sindicais pelegos‖. Esse

discurso se repetiu em vários espaços do jornal, incluindo a coluna ―Waldo Claro

denuncia‖:

―São Paulo pode amanhecer paralisado por uma greve completamente espúria, no

sentido de dar continuidade ao esquema acionado pelo governo federal ansioso de

concretizar uma intervenção armada nas duas maiores trincheiras que se opõem

hoje aos seus desejos confessos de continuísmo (...) Basta uma rápida e superficial

análise nos nomes dos promotores do ―putsch‖ grevista, para se ter um idéia de

que não são os operários quem a promove (...) a fraternidade dos agitadores

reunidas em torno do poder constituído (...)‖ objetivando estabelecer ―(...) o

reinado do totalitarismo vermelho (...). Não há o desejo honesto de luta pela

melhoria salarial e social dos trabalhadores (...) Não, essas greves estão

umbilicalmente ligadas aos interesses políticos (...) Setecentos mil trabalhadores,

segundo o IBGE do CGT, deixarão de cumprir com seu dever perante a pátria e

perante as necessidades de sua famílias. Seguirão pelo caminho de dubiedades,

para obedecerem simplesmente e passivamente os que fizeram do instituto da

greve, a indústria para um enriquecimento fácil e sem grandeza. Que os

trabalhadores que trabalham (...) abominem mais essa tentativa de subversão dos

valores que presidem nossa formação. (...) a hora não é de seguir os pelegos

amestrados em Havana, é de continuar seguindo pela trilha brasileira, que é nossa

e é cristão (...)

No texto acima, a participação do trabalhador na greve foi explicada pela

manipulação do governo federal, em seu projeto continuísta, e dos ―pelegos

comunistas‖ do CGT. No discurso de Waldo Claro, os sindicatos e a greve, ou seja, o

espaço e o momento de ação política dos trabalhadores, perderam a sua legitimidade por

serem órgãos cooptados por lideranças corruptas, pelegas, que não representavam

verdadeiramente os trabalhadores e que os estariam usando para atingir objetivos

políticos alheios ao que o jornal entendia como sendo as reivindicações da categoria.

Assim, o trabalhador, que ―obedece simplesmente e passivamente‖, perdeu, no discurso

do jornal, a sua condição de sujeito político, de indivíduo livre e autônomo com

capacidade para tomar suas próprias decisões e agir politicamente. Foi também definido

um lugar social para o operário: zelar pela pátria e por sua família através da sua

produção.

Dando continuidade a essa linha de argumentação, no dia 31 de outubro, o jornal

publicou, quase na íntegra, a resposta de Herbert Levy para Almino Afonso, do PTB,

sobre a greve geral em São Paulo. Sob o título ―Levy adverte aos intervencionistas: São

Paulo pegará em armas‖, o jornal fez das palavras de Levy a sua posição:

―(...) a extrema esquerda foi reduzida na sua expressão eleitoral e política. Isto

demonstrou (...) a saturação em que se encontram os verdadeiros trabalhadores

esses que não são pelegos, esses que não são líderes da extrema esquerda a

serviço de ideologias exóticas; demonstrou como a maioria absoluta de

trabalhadores está cansada de ser explorada, na forma de greves políticas que

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não encontram acolhidas na constituição (...) Se estes sindicatos precisam ter

ação política (...) é porque o partido de V. Exa (...)‖ ―(...) está fracassando, não

interpreta mais os sentimentos dos trabalhadores (...) enquanto em São Paulo

há ordem, trabalho e, como aqui se diz, mais de 70% dos trabalhadores não

querem ouvir falar em greve, em Pernambuco, através de impressionantes

relatórios das classes produtoras (...) o que se verifica é a comunização (...)

Novamente aqui se contrapôs o trabalhador ao grevista e ao líder sindical que

buscavam subverter as relações político-sociais no Brasil. No mesmo movimento, a

matéria buscou deslegitimar o PTB, partido mais popular no período, enquanto

representante dos trabalhadores. Mas diferente do texto de Waldo Claro, o que se

ressaltou na comunicação de Levy foi a contraposição da imagem da ordem em São

Paulo, onde os trabalhadores não aderem a ideologias exóticas, à comunização,

portanto, a desordem, em Pernambuco, de Miguel Arraes, importante líder das

esquerdas. Dessa forma, o mito da índole cordial e pacífica do povo brasileiro, que os

comunistas desejavam corromper, era acionado para deslegitimar o movimento dos

trabalhadores. Na reportagem, o jornal ainda deixava claro que Levy encarava todas as

greves reivindicatórias como legítimas, não lhes fazendo restrição. O problema estava

no fato de elas serem manipuladas por elementos exteriores ao operariado. Esse foi o

discurso predominante do jornal nas abordagens de praticamente todas as greves. As

reivindicações salariais eram reconhecidas – afinal o jornal não poderia perder a

interlocução com o seu público –, mas a participação política dos trabalhadores, quando

envolvia sindicatos à esquerda, era vedada sob a acusação de manipulação dos

trabalhadores.

Dessa forma, Notícias Populares construiu um discurso que definia os limites do

comportamento político das classes trabalhadoras, buscando articular o reconhecimento,

visto como inevitável naquela conjuntura política, e o controle dessas classes. O lugar

da cidadania para as classes populares, na visão do jornal, estava no trabalho, ou mesmo

em uma ação política limitada aos ―valores cristãos e democráticos‖, ou seja, desde que

fosse contrária ao governo Goulart e às esquerdas – daí todo o investimento de Levy em

fundar sindicatos anticomunistas ou de conclamar, pelo jornal, as classes populares a

comparecerem às marchas da família em 1964. Como diz Jorge Ferreira, o perigo não

era o pelego, mas o movimento sindical em processo de mobilização e politização

crescente. No projeto político conservador dos liberais brasileiros não havia espaços

para a cidadania plena dos trabalhadores8.

Ao analisarmos a mensagem de Notícias Populares percebemos que a

concepção de povo do grupo liberal representado pelo jornal foi marcada por uma forte

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tensão e ambiguidade. De um lado o ―povo plebs‖, desorganizado, que ―não pensa nem

tem interesse nisso‖, cujas manifestações eram qualificadas por sua emocionalidade e

irracionalidade, mas de quem o jornal não pode descuidar em função de um contexto de

radicalização no país em que as esquerdas avançavam na conquista dos setores

populares. De outro, ―o povo populus‖, cujas representações do jornal oscilavam entre

reconhecê-lo como sujeito político e, no mesmo movimento, negar essa condição

atribuindo a sua mobilização à manipulação de lideranças estranhas ao operariado, visto

que o consideravam, ou pelo menos desejavam que assim o fosse, como incapaz de

articulação própria.

1 Mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC- FGV, bolsista Faperj. Orientador: Marly

Motta. E-mail: [email protected]

2 CAMPOS JR, Celso de et al. Nada Mais que a verdade. A extraordinária história do jornal Notícias

Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002, p.35

3 Sobre Herbert Levy, ver: SOUSA, Luís Otávio de. Levy, Herbert. In: ABREU, Alzira Alves de et

al.(Orgs). Dicionário histórico biográfico brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio

Vragas,2001.

4 GOLDENSTEIN, Gisela Taschner. Do jornalismo político à indústria cultural. São

Paulo:Summus,1987, pp.77-87.

5 GOLDENSTEIN, Gisela Taschner. Do jornalismo político à indústria cultural. São

Paulo:Summus,1987.

6 Sobre o sensacionalismo, ver: SIQUEIRA, Carla Vieira de. “Sexo, Crime e Sindicato”:

Sensasionalismo e populismo nos jornais Última Hora, O Dia e Luta Democrática durante o segundo

governo Vargas (1951-1954). Tese (doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2002

7 CHARTIER, Roger. ―Cultura política e cultura popular no Antigo Regime‖. A história Cultural: entre

práticas e representações. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil\Difel, 1990

8 FERREIRA, Jorge (org). ―O nome e a coisa‖. In: O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de

Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p119.

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A historiografia e seus regionalismos. As “escolas” gaúcha e

carioca e suas definições de trabalhismo.

Laura Vianna Vasconcellos

Resumo: Numa contraposição ao populismo, o conceito de trabalhismo acabou com

uma dimensão teórica e conceitual ampliada, e ganhou, por isso, grande dificuldade de

definição. As ―escolas‖ gaúchas e cariocas dão contribuições diferenciadas: os gaúchos

discutem a relação entre o trabalhismo e o positivismo, entendendo-o como um modelo

de pensamento; os cariocas o analisam com uma perspectiva estatal, tomando-o como

uma ideologia política de Estado. O diálogo entre as duas ―escolas‖ pode ser uma

alternativa para entender esse conceito tão importante.

Palavras chaves: trabalhismo, regionalismo e diálogo

Abstract: In contradition to populis, the concept of laborism acquire as amplified

theorical and conceptual extent, thefore became very difficult to define. The schools of

Rio Grande do Sul and Rio de Janeiro have differentiated contributions. The dialogue

between those schools can be an alternative to understand the important concept of

laborism

Key–words: laborism, regionalism and dialogue

Apresentação

Os debates sobre o trabalhismo na historiografia brasileira são muito vastos e calorosos.

Revisionismos, reformulações e diferenças de enfoque fazem do trabalhismo um conceito

dinâmico, discutido e redefinido constantemente.

No entanto, muito pouco se fala sobre as maneiras regionais de se entender o conceito.

Sobre os regionalismos do trabalhismo.

Evidentemente, não se pode falar de uma ―escola‖ carioca ou de uma ―escola‖ gaúcha

do trabalhismo se com isso queira se afirmar uma maneira homogênea e estática do fenômeno:

os cariocas o entendem desta maneira, os gaúchos daquela1.

Seria uma simplificação e um erro metodológico.

Há uma enormidade de interpretações cariocas e outra gama também bastante vasta de

interpretações gaúchas. No entanto, ao propor a ideia de orientações regionais para o

trabalhismo, está-se chamando a atenção para algumas diretrizes locais - para um viés

interpretativo que pode ser observado regionalmente.

Em ouras palavras: a discussão sobre o trabalhismo que tem como foco o Rio Grande do

Sul se orienta por uma temática, a carioca por outra. Trata-se apenas de orientações

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interpretativas diferentes, que abarcam uma variedade de pesquisas e de contribuições em seu

interior, e não de duas interpretações estáticas que se contrapõem.

Aqui, neste artigo, por conta do limite reduzido de páginas, foram escolhidas as

interpretações expoentes das duas orientações. Entre elas, há uma gama de interpretações que

discutem e questionam seus marcos.

Ao propor e estabelecer esse diálogo, o trabalhismo ganha complexidade e

temporalidade.

A orientação carioca: o trabalhismo como ideologia de Estado.

O trabalhismo foi definido pela baliza, pelo limite e extensão conceitual do populismo.

Nasceu para repudiar este antigo conceito, e, para fazê-lo satisfatoriamente, teve de ser feito

usando a sua fôrma conceitual, embora o seu interior seja completamente diferente.

A autora que primeiro propôs de maneira sistemática esse repúdio ao populismo,

substituindo-o pela ideia de trabalhismo foi Angela de Castro Gomes, com o seu hoje clássico A

invenção do trabalhismo.

Nele, o trabalhismo ganhou data de nascimento, 1942, e ganhou também objetivos

próprios: tratava-se de uma ideologia política estatal. Os homens de governo, no esforço de

traçar uma transição segura, que desse sustento às diretrizes inauguradas por Vargas,

empenharam-se num esforço sistemático, bem articulado e bem-sucedido na montagem de uma

ideologia política, o trabalhismo

É nesse complexo processo de ―invenção‖ que a autora se detém.

No livro, a ideia de uma determinação material regendo o pacto político entre Estado e

massa trabalhadora é questionada. De acordo com esta lógica, o Estado teria conseguido a

adesão das massas por meio das legislações sociais. Obediência política em troca dos ganhos

sociais, essa era a sustentabilidade do pacto. No entanto, segundo Angela de Castro, esse

mecanismo não teria obtido êxito antes de 1940, quando associado a esta lógica material –

essencial para a construção do pacto social -, elaborou-se um discurso sofisticado, que resgatava

o discurso operário da Primeira República, porém, de uma forma repaginada. Assim nascia o

trabalhismo.

Não teria havido mera submissão e perda de identidade por parte das massas

trabalhadoras, mas antes elas faziam parte de um pacto político que combinava ganhos materiais

com ganhos simbólicos da reciprocidade; ou seja, mais do que a legislação social, era a

dimensão simbólica que garantia a unidade e o funcionamento do pacto. É à elaboração desse

discurso simbólico – o trabalhismo – que a autora dá atenção.

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Ao contrário de submissão, esta relação entre Estado e sociedade, mesmo que desigual,

teria algum nível de reciprocidade; enquanto o Estado se beneficiava do sentimento de

retribuição gerado pela elaboração e efetivação dos benefícios sociais, as massas trabalhadoras,

por sua vez, sentiam-se de alguma forma identificadas e realizadas com os valores e o discurso

do Estado varguista, já que muitas deles eram demandas de lutas antigas.

O que Angela de Castro Gomes ressalta em seu livro é a complexa montagem desta

ideologia política, o trabalhismo, que, apesar de autoritária, possuía legitimidade na cultura

política2 da classe trabalhadora, satisfazendo algumas de suas reivindicações.

Apesar da reciprocidade, havia um sentido em todo esse processo; segundo a autora, a

invenção e a formulação do trabalhismo foram feitas a partir da iniciativa do Estado, através de

órgãos, departamentos e partidos, e com intensa propaganda política. Portanto, apesar de

destacar a lógica material da relação, fundamental para o pacto político, a autora também

chamou a atenção para a sua dimensão simbólica, responsável, esta sim, pela solidificação do

pacto político trabalhista. Por não concordar com as interpretações que viam na relação entre

Estado e sociedade do período apenas o seu aspecto manipulador e de cooptação, estruturado na

lógica material e na repressão do Estado, a autora acabou por rejeitar o conceito de populismo,

adotando em seu lugar, mas com outras bases, o de trabalhismo.

No livro de Jorge Ferreira, O populismo e sua história, no artigo ―O populismo e as

ciências sociais no Brasil‖, a autora reafirmou que, ao escrever A invenção do Trabalhismo, na

década de 1980, sua intenção foi de rejeitar não apenas a palavra ―populismo‖, mas o seu

conteúdo básico: uma classe trabalhadora e passiva e sem consciência, manipulada por políticos

inescrupulosos. Assim, a autora refutou o conceito como explicação para as relações entre

massa trabalhadora e Estado.

Portanto, na interpretação da autora, o trabalhismo seria uma ideologia política construída

em um período específico, por iniciativa dos homens do governo, e que, de uma forma ou de

outra, representava as aspirações e desejos da classe trabalhadora. Esta ideologia política teria

bases em uma cultura política que não se restringiu somente ao período do Estado Novo, mas a

toda uma época. Assim, o trabalhismo seria uma ideologia política respaldada na cultura política

das massas trabalhadoras, mas formulada pela mão do Estado, numa reinterpretação e

ressignificação de maneira a dar continuidade a um projeto político.

Com o mesmo esforço de Angela de Castro Gomes – o de repudiar o conceito de

populismo –, Jorge Ferreira escreveu parte significativa de sua obra – e acabou dando ao

conceito de trabalhismo, entendido como ideologia política, uma feição mais participativa e

dinâmica. Enquanto Angela de Castro Gomes analisou a relação entre o Estado e a sociedade a

partir do foco do Estado – a partir de fontes oficiais e estatais, como programas de rádio,

discursos ministeriais e revistas –, Jorge Ferreira daria mais atenção à esfera da sociedade, tendo

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como fontes cartas de populares e jornais da época. O autor preocupou-se mais com a recepção

e participação popular no pacto. Se em A invenção do trabalhismo o conceito norteador da obra

é a noção de cultura política, nos trabalhos de Jorge Ferreira o que sobressai é a noção de

cultura política popular.3

Ainda que mencione o caráter autoritário do governo varguista, o autor se dedicou a

demonstrar o grau de reelaboração exercido pelas classes populares e a sua relativa autonomia

frente ao discurso varguista.4 Por isso, comprovou o caráter de apoio popular ao regime getulista

Sob a influência de autores como Guinzburg, Chartier e Peter Burke, Ferreira observa

que, longe de receberem passivamente as idéias, os populares as reinterpretavam com base em

sua própria cultura, transformando o discurso original e oficial em um outro, muitas vezes

imprevisível. ―Os mecanismos de ‗controle operário‘ foram implementados, mas sua atuação e

eficácia eram limitados pela própria cultura da classe trabalhadora‖.5

Jorge Ferreira argumenta que entre o Estado e classe trabalhadora havia interesses

comuns; no trabalhismo, ainda segundo ele, havia idéias, crenças e valores que já vinham sendo

formuladas e reivindicadas desde antes de 1930, e que, por esta razão, ele teria expressado ―uma

consciência de classe, legítima porque histórica‖.6 Segundo o autor, o projeto trabalhista, para

ser aceito e compreendido, precisava ter bases e sustentação no patrimônio simbólico e na

cultura popular, caso contrário não se manteria, nem serviria como orientação ideológica para

um dos mais bem-sucedidos partidos de nossa história: o PTB.

Assim, unidas, as duas interpretações dariam ao trabalhismo duas frentes de análise: a

idéia de uma ideologia de Estado, e a de reelaboração, reinterpretação e, sobretudo, de

participação, aí no nível da sociedade, pelo filtro da cultura popular.

Ambos trabalham com a ideia de uma ideologia política formulada a partir do Estado,

com bases numa cultura política anterior, inventada, mas reinterpretada pelas camadas

populares.

A orientação gaúcha: a relação trabalhismo e positivismo

Nas abordagens ―gaúchas‖ o que se observa é uma tendência à discussão entre a relação

entre o positivismo e o trabalhismo. Sobre suas continuidades e rupturas7.

O contraste com a interpretação de Angela de Castro Gomes é marcante, posto que a

autora demarca o ano de 1942 como o nascimento do trabalhismo. Como contraponto,

escolhemos então duas obras, as quais estendem o tempo do trabalhismo não mais a 1942, mas

até sua raiz histórica: o positivismo. Foram elas: A greve de 1917: as origens do trabalhismo

gaúcho, de Miguel Bodea,8 e ―A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias

de longa duração‖, capítulo 9 do livro de Alfredo Bosi, Dialética da colonização.9

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* * *

A ideia central: os princípios positivistas serviram como guia norteador da atuação

política do PRR (Partido Republicano Rio-Grandense) e expressaram certas medidas que, mais

tarde, seriam reproduzidas no período getulista e no seu trabalhismo. Assim, destacam-se o

imposto territorial, a taxação da propriedade da terra (a terra sendo um bem público, explorado

por um único indivíduo, devia ser taxada, justificavam os positivistas), o incentivo às

manufaturas por meio da isenção fiscal (o objetivo era fazer o Rio Grande do Sul entrar na era

industrial, a preocupação com o desenvolvimento econômico das indústrias incipientes, e nisso

Bosi vê traços de protecionismo); a política de socialização dos serviços públicos (Borges de

Medeiros chegou a promover a encampação do porto da capital gaúcha e da via férrea, alegando

razões de utilidade pública, e que estas estatizações, à época, fizeram grande contraste com a

política privatizante implementada pelo governo federal10

).

Bosi considera que essas medidas teriam cunho progressista, mas assim como ocorrerá no

trabalhismo, o positivismo atuaria de maneira também conservadora, sobretudo na chamada

questão social. Segundo Bosi, o governo atendia e buscava demonstrar uma prática política de

conciliação e abertura para as demandas dos trabalhadores, de modo a promover a sua

incorporação no pacto político, mas sempre de uma maneira paternalista, cooptando-os por meio

da máquina do Estado.11

Na sua interpretação, ao mesmo tempo em que buscava atender os

reclamos dos operários, Borges de Medeiros mandava coibir as manifestações que julgava mais

violentas. Para o autor, este registro dual, a um só tempo progressista e regressista, se

converteria em instituição quando Lindolfo Collor e Vargas criaram o Ministério do Trabalho,

anos mais tarde.12

Essa dualidade é a grande marca do trabalhismo brasileiro.

Outra continuidade: já naquela época forjava-se uma relação entre Borges e os

trabalhadores com a mesma tendência paternalista do período de Vargas e do trabalhismo. O

chefe político aparecia como líder benfeitor, Borges de Medeiros era considerado pelos

sindicalistas gaúchos como político protetor, por ter acatado algumas das reivindicações dos

trabalhadores, tabelando os preços de gêneros de necessidade básica e por ter dado aumento

salarial.13

A abolição teria sido o ponto de partida para se formar ideias pré-trabalhistas entre os

nossos contianos. A preocupação de Júlio de Castilhos em não deixar os ex-escravos a mercê

das Leis do mercado, cobrando do legislador a tarefa de pré-formar as condições em que se

estabeleceria o trabalho livre e a regulamentação da situação dos libertos no Brasil, é

considerado por Bosi como o esboço de um Estado-providência:14

regime de oito horas de

trabalho, férias, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e aposentadoria.

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Por Estado-providência o autor entende aquele Estado provedor, que não deixa a cargo

do capital decidir sobre as condições de vida e trabalho dos trabalhadores. No ideal de Comte e

Saint-Simon, o Estado-providência seria, pois, o maestro de um pacto estabelecido entre

governo e industriais, todos dispostos a integrar a classe trabalhadora harmonicamente num

pacto, concedendo-lhe alguma ―assistência benévola‖, no qual prevaleceria o ideal reformista de

um aparelho público vasto, responsável não só pelo estímulo à produção, mas também pela

correção das desigualdades do mercado.15

No entanto, apesar de atender a algumas das demandas dos trabalhadores, o que para

época constituía uma distinção frente à postura política do governo, esse mesmo positivismo

apresentava um perfil autoritário na maneira de incorporar o operariado ao pacto político, um

dualismo que, segundo Bosi, seria a tônica do trabalhismo brasileiro até 1964.

Corporativismo, paternalismo, autoritarismo e progressismo são expressões largamente

utilizadas por Bosi para traçar o modelo de Estado idealizado por nossos comtianos, que seria

também, numa perspectiva mais ampla, – e esta é a conclusão do autor – o traço do capitalismo

brasileiro. O positivismo teria dado ao nosso desenvolvimento capitalista um perfil peculiar,

sendo a um só tempo moderno e arcaico.

Em Miguel Bodea há uma análise mais pormenorizada do positivismo de Borges de

Medeiros, uma vez que seu livro se dedica à greve de 1917 e à relação do governo com os

grevistas. A ligação entre o PRR (Partido Republicano Rio-Grandense) e o trabalhismo do PTB

e de Vargas é também ali traçada. À semelhança de Bosi, Bodea acredita que o positivismo teria

fornecido a origem doutrinária do que foi o trabalhismo do PTB; Vargas, Pasqualini, Leonel

Brizola e João Goulart.

O modo como Borges de Medeiros enfrentara a greve de 1917 já demonstrava os

primeiros sinais do que seria a relação dos líderes trabalhistas com os trabalhadores anos mais

tarde. Esse é também o argumento de Bodea; no entanto, ao contrário da análise de Bosi, que

sempre realça a contradição mal resolvida entre progressivismo e autoritarismo, muito presente

no positivismo e no trabalhismo (aí estaria, então a conexão entre os dois); em Bodea, essa

contradição não é destacada. A relação entre trabalhismo e positivismo seria reduzida ao

ineditismo do atendimento do governo às reivindicações dos grevistas (todas embasadas pelo

ideal comtiano de harmonia social e Estado previdente) e à particularidade gaúcha de ter se

estabelecido no estado uma aliança entre diferentes classes e frações de classes, o que teria

permitido ao PRR uma peculiar prática política.

O primeiro traço de continuidade entre a prática política de Borges de Medeiros e o

trabalhismo estava nas bandeiras nacionalistas. A especificidade gaúcha de ter a maior parte das

indústrias em mãos estrangeiras, na opinião do autor, teria unido operários e burguesia numa

comunhão contra a má administração dessas empresas. Daí ter surgido, no Rio Grande do Sul, o

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embrião do que seria o nacionalismo da década de 1950. A presença desse patriotismo no

desenrolar do movimento teria promovido uma importante transformação no discurso dos

grevistas; de ―trabalhadores‖ a ―povo‖, todos os segmentos sociais uniam-se numa mesma

palavra. O movimento perdia, com isso, toda sua identidade de classe, o governo já não

representaria o papel de patronato, de adversário a ser convencido. Na união das classes, Borges

de Medeiros passaria a ser o grande interlocutor dos interesses gaúchos frente à dominação

estrangeira. O governo converte-se de oponente a interlocutor e aliado.

Um outro componente do que seria um ―[...] ‗pré-ensaio‘ do fenômeno populista e do

trabalhismo, principalmente na sua variante gaúcha‖16

, seria a ideia de incorporação do

operariado ao pacto social, a noção de harmonia social e o repúdio da idéia de luta de classes.

No jornal A Federação, falava-se da incorporação do operariado à sociedade, manifestada pela

materialização de alguns dos anseios dos trabalhadores, falava anda de uma lógica social

diferenciada da sociedade gaúcha, em que o espírito coletivo prevalecia sobre os interesses

individuais, daí – julgavam os republicanos –, a obrigação do bem público em satisfazer

interesses não só do proletariado, mas também dos capitalistas. Saltava aos olhos, portanto, a

ideia de um Estado interventor, de uma sociedade harmonizada, na qual os interesses coletivos

deveriam preponderar por sobre os interesses classistas e individuais, e também a noção de que

o proletariado deveria ser agrupado à sociedade por meio de direitos básicos assegurados. Três

ideias também presentes no trabalhismo.

A influência do positivismo teria dado a Borges de Medeiros uma ótica diferenciada

para lidar com a situação grevista. No entanto, segundo Miguel Bodea, só o positivismo não

seria suficiente para explicar a especificidade gaúcha. O Rio Grande do Sul apresentava

particularidades ainda mais estruturais, que teriam ajudado e permitido tal conduta. Uma delas

teria sido o rearranjo político ocorrido no estado, criador de uma cisão oligárquica – a

dissidência foi chamada por Joseph Love de ―quase elite‖,17

Além de possuir características diferenciadas com relação à oligarquia cafeeira paulista,

já que estava mais voltada para o mercado interno, o Rio Grande do Sul ainda apresentaria a

peculiaridade de ver sua oligarquia dicotomizada entre maragatos e chimangos, entre

federalistas e republicanos castilhistas. Essas duas particularidades explicariam os reclamos

desta elite por maior intervenção estatal na economia, com medidas protecionistas, e a postura

mais aberta do governo de Borges de Medeiros diante dos grevistas de 1917. O perfil mais

ligado ao mercado interno justificava o desejo por um Estado protetor e atuante, enquanto a

cisão oligárquica dava ao governo a possibilidade financeira de permitir maiores concessões ao

movimento grevista.

Bodea considera ter sido o Rio Grande do Sul o local ideal para uma comunhão

interclassista. Lá, o predomínio de trabalhadores nacionais nas fábricas e serviços, associado a

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uma classe intermediária não tão vinculada às demandas do mercado externo, e a formação de

um Estado composto por segmentos interessados em incorporar o proletariado no pacto social

teriam permitido uma aliança interclassista:

Por essas interpretações, vê-se que a relevância do positivismo para a compreensão do

trabalhismo não é pequena; de alguma forma, de acordo com essas interpretações, ele deu a

marca de continuidade entre dois momentos de nossa história. Avaliar o peso dessas

permanências pode ser uma forma diferente de avaliar uns dos mais importantes momentos

políticos de nossa trajetória política.

Um possível diálogo

Numa interpretação gramisciana18

do trabalhismo, o fenômeno pode ser interpretado

numa divisão complementar de duas esferas: a da sociedade civil, na qual se busca o que

Gramsci denomina de ―visão do mundo‖, e a da sociedade política, em que esta visão de mundo

ganha ares de coerção. Assim, as duas interpretações, a da origem histórica positivista

(consenso, no nível da sociedade civil) e a da ideologia política estatal (coerção, na sociedade

política) podem fazer parte de um mesmo fenômeno. O trabalhismo como partido político.

Ao considerá-lo como ―partido político‖, englobando tanto a atuação de seus dirigentes

políticos, no plano da sociedade política, como também o nível da cristalização do ―senso

comum‖, já no âmbito das massas, amplia-se a concepção de trabalhismo. Só assim,

considerando-o tanto uma corrente doutrinária como um movimento social – a um só tempo

como resultado de uma ação política, pela atuação pública dos dirigentes, mas também como

expressão de uma visão de mundo –, não se reduz o trabalhismo à esfera do Estado. Numa

abordagem como esta, o trabalhismo não pode ter início no ano de 1942, como defende Angela

de Castro Gomes. Nem pode ser reduzida única e exclusivamente a uma ideologia inventada,

cujo fim último seria a sustentação de um regime político. Esta seria apenas a expressão de um

dos níveis desse trabalhismo: a sua esfera de atuação na sociedade política, no plano da coerção,

quando o trabalhismo emergia como força política, exercendo o domínio da máquina estatal.

Com Bodea e sua abordagem gramisciana19

do trabalhismo – com a qual tendemos a concordar

–, este conceito ganha maior amplitude temporal, indo desde os positivistas gaúchos, na fase de

elaboração do trabalhismo como ―visão de mundo‖, passando pelos anos 1930-1945, momento

em que o trabalhismo se expressava como força política, até o ano de 1964, época de sua crise

política.

Notas

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1 O regionalismo gaúcho pode ser ampliado a todos os estudos que tendem a estudar o trabalhismo a

partir do Rio Grande do Sul. Ver-se-á que os autores expoentes do que aqui se chamou de ―trabalhismo

gaúcho‖ não são gaúchos de nascimento, mas escolheram analisar o trabalhismo a partir daquele Estado.

Isso será determinante nas suas análises. 2 Angela de Castro Gomes, assim como Pierre Rosanvallon, reforça a perspectiva da história política que

avalia o político como um espaço de negociação, de auto-representação das relações sociais de um

determinado período. Para ambos, a política deve ser entendida em seu sentido mais amplo – a cultura

política –, e compreendida como historicamente construída, como produto de uma dada época histórica;

de seus valores culturais e políticos. GOMES, Angela de Castro Gomes. ―Política: história, ciência,

cultura etc‖. In Estudos Históricos, n. 17. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1996.

3 Este assunto está na introdução de seu livro, Getulismo, PTB, e cultura política popular1945-1964. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. O autor fala em recuperar, ainda que parcialmente, as vivências e

experiências políticas dos trabalhadores, populares e eleitores do PTB; em compreender as atitudes, as

motivações e a maneira como os quadros do PTB, entre 1945-1964, deram significados e interpretaram a

realidade social em que viveram. Sabendo da dificuldade de recuperar a atuação política desses populares,

já que faltam registros concretos, o autor se utiliza do conceito de cultura, entendendo-o como conjunto

de atitudes, representações sociais e códigos de comportamento que forma as crenças, idéias e valores

reconhecidos por um certo grupo social. Ao analisar as manifestações políticas das camadas populares

adeptas do trabalhismo com o conceito de cultura, o autor acredita estar reconstruindo um aparato

simbólico que, de alguma maneira, teve existência real para os trabalhadores; é como se a cultura, sob

este ponto de vista, organizasse a realidade na consciência social dessas pessoas. O que se sobressai,

portanto, é a preocupação do autor em entender de que maneira o trabalhismo foi interpretado e percebido

por essas camadas populares, p 14. 4 O autor faz isso em seu livro Trabalhadores do Brasil.

5 O populismo e sua história, op.cit., p. 90.

6 O populismo e sua história, op. cit., p. 103.

7 No Rio Grande do Sul há um frutífero debate sobre essas continuidades e rupturas; há os que ressaltam a

continuidade entre os dois, estendendo o fenômeno do trabalhismo a uma temporalidade mais longa, e os

que o reduzem à temporalidade mais recente, concordando com Angela de Castro Gomes. No entanto,

ainda que haja essas discordâncias, só o fato de eles discutirem essa questão, já nos permite englobá-los

no que chamamos de viés ou orientação interpretativa gaúcha.

Nos estudos cariocas essas continuidades sequer são discutidas. 8 BODEA, Miguel. A greve de 1917: as origens do trabalhismo gaúcho. Porto Alegre: Editora L&PM,

1979. 9 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

10 O autor ainda argumenta que estas medidas estatizantes podem ser consideradas parte de uma doutrina

cujo objetivo era coibir os abusos do mercado e que tinha a política de prover para prover, por isso, a

intervenção. O autor ainda lembra que, por questão de hábito, situamos o nacionalismo estatizante entre

os anos 1930-1950, mas que estas medidas, por si só, já teriam sido um indício de um dos principais

componentes do trabalhismo getulista; o nacionalismo. BOSI, op. cit., p. 289. 11

Idem, p. 300. 12

Idem, p. 295. 13

Idem, p. 296. 14

Idem, p. 297. 15

Idem, p. 274. 16

Idem, p. 45. Não há muito esclarecimento sobre os termos ―populismo‖ e ―trabalhismo‖ nesta obra.

Sobre o assunto, há apenas uma pequenina nota de rodapé. Nela, Bodea cita o esforço de negar o caráter

populista ao trabalhismo, sobretudo nos trabalhos de Moniz Bandeira (o livro citado é O governo de João

Goulart, de 1978), mas não há qualquer esclarecimento mais cuidadoso. Bodea explica que seu propósito

na obra se resume apenas a tentar desvendar as origens do próprio trabalhismo e do getulismo, ambas a

partir da especificidade de formação político-social do Rio Grande do Sul, mas sem ter qualquer

pretensão maior sobre aquele assunto. Ainda na mesma nota, o autor faz uma periodização do

trabalhismo, afirmando ser o getulismo sua primeira fase. Cabe destacar apenas que, já aí, getulismo e

trabalhismo aparecem como etapas diferentes, embora complementares.

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17

O conceito está no capítulo de Love, ―O Rio grande do Sul como fator de instabilidade na República

Velha‖, no livro organizado por FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília A. N. O Brasil republicano, vol

1, Estrutura de poder e economia (1889-1930): São Paulo: Difel, 2003, p.111.

18

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,

1968. 19

A tese é defendida no seu livro BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul.

Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992.

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Tendências da Historiografia Contemporânea: os usos e apropriações da cultura

digital no fazer historiográfico

Leandro Coelho de Aguiar*

Resumo: Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado em Ciência da Informação, em curso

na UFRJ PPGCI IBICT com financiamento da CAPES, que pretende mapear no universo dos

historiadores a dinâmica da produção e apropriação das novas tecnologias em formato digital.

Especificamente neste ensaio, busca-se refletir possíveis mudanças de paradigmas da

historiografia contemporânea: idéia de história global, história e memória; e tempo e espaço

histórico, mudanças estas que tem como influência o avanço nas ultimas décadas da cultura

digital.

Palavras-chave: Historiografia. Cultura Digital. Historiografia Digital.

Abstract: This work is part of the research master's degree in Information Science, in progress

at UFRJ PPGCI IBICT with funding from CAPES, you want to map the universe of historians

the dynamics of production and appropriation of new technologies in digital format. Specifically

in this paper, we try to reflect possible changes in the paradigms of contemporary

historiography: the idea of global history, history and memory, and historical time and space,

changes which have an influence in the last decades the advancement of digital culture.

Keywords: Historiography, Digital Culture, Digital Historiography.

Introdução

Em 1994, de passagem pelo Brasil, o historiador inglês Manfred Thaller proferiu uma

conferência onde elucidou acerca das possibilidades do uso das novas tecnologias,

especificamente do computador, no fazer historiográfico1. Anos depois, em 1997, Luciano

Figueiredo2 descrevendo acerca do uso do computador na história, não apenas ilustrou a

importância de Thaller para a temática, como faz referência a um dos seus principais trabalhos,

o KLEIO, um software destinado às exigências específicas dos historiadores.

Duas observações podem ser feitas a partir das reflexões contidas na fala de Figueiredo

acerca de Thaller. A primeira é que algumas de suas ―estimativas‖ se confirmaram e podem ser

hoje observadas em uso pelos historiadores, como por exemplo, a digitalização e a organização

de fontes, a utilização de instrumentos como tesauros e o próprio banco de dados. Todavia

outras tendências, ainda são pouco utilizadas pelos historiadores, como por exemplo, o uso de

mecanismos de comparação de escritas históricas e modernas e no caso do uso da tecnologia

para ―recuperar‖ e ―restaurar‖ documentos históricos, neste caso, entrando em discussão a idéia

de fidedignidade da fonte.

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A segunda observação é acerca de uma visão ufanista do uso destas novas tecnologias

digitais, levando a crer que muitos dos problemas existentes acerca do uso das fontes pelos

historiadores seriam superados graças ao uso destas novas tecnologias.

Quatro anos antes da fala de Thaller, o historiador Guilherme Pereira das Neves

pronunciou aquele que é visto como um dos primeiros trabalhos no Brasil sobre o uso de

computadores no fazer historiográfico, onde, ao refletir e descrever acerca da sua experiência na

aplicação da informática na pesquisa da tese de seu doutoramente, chamou atenção acerca do

uso de banco de dados na pesquisa,

O uso do micro, como banco de dados, desperta a imaginação do historiador para a

possibilidade de vir a livrar-se seu trabalho do acompanhamento inevitável e

fastidioso de uma enorme quantidade de fichas de cartolina [...] seria o caso então,

de afirmar que o sonho de Comenius transformou-se em realidade? 3

Neves refere-se ao sonho de Jan Amo Komensky – ou Comenius como ficou conhecido

no Brasil – de buscar um método capaz de superar certas dificuldades em lhe dar com o

extraordinário acúmulo de dados propiciado pelo movimento humanista. Neste caso ―reunindo

todas as informações contidas em textos, classificando-os e ordenando-os, de maneira a dar

consistências e tornar acessível aquela sabedoria à qual os verdadeiros ‗savants‘ deveriam

almejar‖. 4

De acordo com Figueiredo5, a experiência do uso do computador aplicada à história

vem se multiplicando no Brasil e no mundo. Desde os primeiros modelos demográficos e

econômicos da década de 1960, passando pela ―explosão‖ assistida pelo barateamento dos

microcomputadores, o desenvolvimento de interfaces gráficas, o tratamento integrado de vários

objetos (texto, gráficos, tabelas, imagens e sons) possibilitando, assim, a geração de uma nova

relação com esta tecnologia.

Para Silva o uso das tecnologias digitais nos procedimentos de pesquisa histórica na

década de 1990 já não era novidade. Sendo reconhecidos tais discussões deste a década de

19706, onde os primeiros historiadores que mais se beneficiaram com o uso destas novas

tecnologias digitais foram os que se dedicavam à história quantitativa, econômica e

demográfica. Através do uso dos bancos de dados, puderam tratar das fontes como registros de

casamentos ou relações e preços de mercadorias, devido a estas fontes apresentarem

informações seriadas e dados homogêneos. 7

Na década de 1990, com o declínio da história quantitativa, observou-se também o

declínio do uso dos bancos de dados pelos historiadores. Por outro lado, marca a ampliação do

uso da informática em outros campos da história, como por exemplo, na história da arte com o

desenvolvimento de sistemas de informações iconográficas e através de processos de

digitalização, assim como o uso da ―realidade virtual‖ na divulgação do conhecimento histórico.

8

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Alguns historiadores se lançaram em pesquisas e equipes interdisciplinares, como por

exemplo, o já mencionado projeto KLEIO. Neste caso, para além da idéia de se criar um

programa que servisse de modelo único de software ao serviço do historiador (fato visto hoje

como impossível metodologicamente), representou de fato um avanço conceitual em relação aos

usos de banco de dados relacionais para o trabalho do historiador9.

Mesmo com o desenvolvimento das tecnologias e o barateamento dos equipamentos e

softwares, ainda hoje se observa alguns empecilhos no uso das tecnologias digitais pelo

historiador. Para Silva10

, dois fatores são relevantes nesta perspectiva, o ―pequeno conhecimento

de informática dos historiadores‖ e a ―dificuldade de recursos financeiros e tecnológicos para a

manutenção, suporte e treinamento‖, que, aliado a falta de espaços de debates coletivos sobre a

temática, resultando em apropriações problemáticas destas tecnologias.

De acordo com Poster11

, além das novas tecnologias voltadas para o uso com as fontes

históricas, como exemplo, a digitalização de documentos históricos, também a comunicação e

divulgação do conhecimento estão sendo influenciados por estas novas tecnologias. Algumas

destas características podem ser observadas e pontuadas: os historiadores estão publicando cada

vez mais em meios digitais e on-line; há um aumento significativo no numero de periódicos

digitais, assim como os periódicos ―tradicionais‖ que estão disponibilizando seus volumes on-

line, ou até mesmo estão migrando exclusivamente para o formato digital, a exemplo da Revista

de História da ANPUH12

; e uma série de centros e grupos de pesquisas que utilizam sites e

portais on-line na comunicação e divulgação dos trabalhos de seus membros. Francisco Javier

Garcia Marco13

fala da ―revolução das tecnologias de informação e comunicação‖ no ofício do

historiador, chamando atenção ao novo meio de comunicação dos historiadores, descrito como o

―laboratório do historiador do futuro‖, denominado como ―Sistemas de Informação Histórica

(SIH)‖. Trata-se da gestão da informação e do conhecimento histórico de forma integrada e

compartilhada coletivamente com ajuda das TICs digitais, através de um portal on-line.

Cultura digital no fazer histórico como uma mudança de paradigma

Como é a disciplina da história afetada pela digitalização da escrita? A

digitalização é simplesmente um meio mais eficiente de armazenamento,

reprodução e transmissão de documentos, cuja disponibilidade de espaço e

tempo é maior para aplicação pelos historiadores de técnicas e métodos de

investigação? Ou será que a digitalização causará uma alteração para os

historiadores na constituição da verdade? 14

Quais são as influências da cultura digital na relação da história com a memória? De

uma nova concepção da história total, universal ou global? Assim como a própria mudança da

concepção de tempo e espaço para a história? Diante desses questionamentos, torna-se

importante hoje a reflexão e o debate acerca da influência das tecnologias digitais na produção,

divulgação e comunicação do conhecimento científico, para além de uma perspectiva

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meramente metodológica e tecnicista, mas também chamando atenção para uma perspectiva de

mudança paradigmática no próprio fazer histórico.

Utiliza-se aqui o conceito de paradigma científico, descrito por Thomas Kuhn, como

sendo ―as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,

oferecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma

ciência‖15

. Em outras palavras, paradigma científico pode referir-se fundamentalmente como

uma ―concepção de mundo‖ que, pressupondo um ―modo de ver‖ e de ―praticar‖, englobando

um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação.

De outro lado, torna-se importante também observar estas mudanças de paradigmas, o

que Kuhn vai chamar de revoluções científicas,

as revoluções científicas são os complementos desintegradores da tradição à qual a

atividade da ciência normal está ligada [...] tais mudanças, juntamente com as

controvérsias que quase sempre as acompanham, são características definidoras

das revoluções científicas. 16

Acerca desta mudança de paradigmas na história, em 2001 foi lançado pelo grupo de

discussão História A Debate (HAD)17

o Manifesto Historiográfico de História a Debate,

explicitando algumas posições sobre a escrita e o ofício do historiador como alternativa

historiográfica para o século XXI. Um dos pontos em discussão é acerca dos usos das novas

tecnologias digitais, especialmente o computador e a internet, na escrita e no ofício do

historiador. De acordo com o manifesto, as ―novas tecnologias estão revolucionando o acesso à

bibliografia e as fontes‖, chamando atenção ao papel da internet, como uma poderosa

ferramenta contra a ―fragmentação do saber histórico‖.

Este novo paradigma digital na história deve ser entendido como resultado de um

processo social mais amplo, envolvendo um novo paradigma da comunicação de informação e

conhecimento na sociedade. Ao contrário do que pensam os mais pessimistas, não vai substituir

as atividades presenciais e suas instituições seculares, ―mas fará parte de uma maneira crescente

da vida acadêmica e social‖. Assim sendo, esta generalização das tecnologias digitais, tanto no

mundo acadêmico quanto na sociedade em geral, deve ser entendida como um fator relevante da

transição do século XX ao século XXI. 18

Sob as perspectivas dos novos paradigmas historiográficos, ainda de acordo com o

HAD, observa-se a ampliação do conceito de fonte histórica, da ―documentação não estatal, os

escritos de tipo material, oral e iconográfico, e as não-fontes: silêncios, erros e lacunas que (...)

há de dar valor procurando também a objetividade nas pluralidades das fontes‖. Nesta

perspectiva, compreendendo como um novo modelo,

que incorpore a nova relação com as fontes trazida pela historiografia renovadora

dos anos 60 e 70, a história das mulheres, a história oral, a história ecológica, a

história mundial/global e noutras novidades surgidas ou desenvolvidas nos anos 80

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e 90, como a ―nova historiografia‖ que está a nascer na Internet e da qual

fazemos parte. 19

Poster, ao realizar tais questionamentos acerca da real influencia das novas tecnologias

no fazer histórico, não tem a pretensão de respondê-las, mas apenas trazer a tona esta

discussões. Carlos Barros20

, ao afirmar que ―o novo paradigma da história, como tudo, será

digital‖, busca mostrar que s novas tecnologias, não repercutem apenas no acesso às fontes, no

método de trabalho ou no processo de divulgação e comunicação, mas pode mudar no resultado

final do próprio trabalho do historiador, conduzindo-os à construção de outro objeto,

―naturalmente mais global‖.

A história global

Para Flórez21

, torna-se impossível pensarmos uma história digital, sem pensar na

história global, assim como pensar esta forma de história globalizada por aqueles que são

―treinados‖ a pensar em abordagens unilateral e tradicional. Pensar de forma global acaba

sendo, por um lado, uma tarefa complexa, mas por outro lado, uma tarefa gratificante, tendo em

vista que o historiador encontra-se mentalmente conectado com a cultura digital, com as

multiplicidades de possibilidades e versões em que a história é representada. 22

A cultura digital no fazer histórico remete de fato a uma história global, por depender de

um contexto globalizado e globalizante. Barros questiona, ―quais são os desafios que a

mundialização projeta para a historiografia?‖23

Para Flórez, o desafio se coloca do local para o

global, de ―histórias subordinadas, memórias escondidas e ocultas, que tem vindo a emergir no

contexto da cultura digital, antes do domínio de um discurso predominante‖24

.

Esta história global de acordo com o próprio Barros, é o resultado do contexto dos anos

1990, envolvendo a busca de uma nova modernidade, resultado dos embates entre a própria

concepção de história moderna e pós-moderna, ―mais autocrática, local e global, social e

cultural, estatal e livre-cambista, mais complexa e difícil, que não abandone o criticismo, mas

que tampouco renuncie à transformação da sociedade, com a liderança da razão.‖ 25

A história global pode ser pensada a partir da perspectiva de David Christian26

, uma

história universal, onde se torna compreendida a partir de avanços e recuo (conflitos), não em

uma cidadania nacional, mas sim global. Estas mudanças tornam-se importante ao observar a

noção de paradigma khuntiano, partindo da hipótese de que a história precisa aproximar-se das

outras ciências. Nesta nova História global ou universal cravada no contexto social do século

XXI, a espécie humana é uma só, com múltiplas especificidades e um agravante, o tempo da

informação, como exemplo da informação instantânea e on-line. A história muda, não a partir

dos conflitos, de acordo com as teorias ―tradicionais‖, mas, tendo como foco a questão

temporal, junto da propagação da informação e da linguagem (o que nos diferencia dos outros

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animais). Mudança, de uma concepção de civilização e cultura politicamente dada, para o

entendimento de espécie humana e suas linguagens.

Se esta concepção de história vai ou não ganhar força, não há como saber, mas de certo

que este tipo de pensamento possibilita, pelo menos, à historiografia sair de sua ―zona de

conforto‖ e a buscar novos questionamentos e explicações. Assim como compreender que

muitas das críticas a estas novas tendências historiográficas, existem pelo fato de que os

historiadores do século XX e XXI estão ainda presos à história do século XIX.

História e memória

Uma outra discussão importante na análise das relações entre o ofício e práticas

historiográficas com a cultura digital é a questão da memória. Murguia e Ribeiro, indagam

justamente acerca das práticas historiográficas na sociedade contemporânea: ―se a linguagem e a

memória constituem, elas mesmas, a narrativa histórica, de que forma seria afetada essa

narrativa com a criação de linguagens e memórias artificiais?‖ Eles estão justamente argüindo o

aparecimento no século XX das tecnologias digitais de informação e comunicação, fenômenos

tecnológicos que mudou radicalmente a forma de geração e difusão do conhecimento, assim

como a própria percepção de realidade e de realidade histórica. 27

Qual a relação da história com a memória sob o prisma da cultura digital? Primeiro,

torna-se importante observar justamente a relação entre história e memória. Para Dantas28

tanto

a história quanto a memória trabalham com o passado, havendo distinções e aproximações,

certo apenas que a historiografia atual, não mais procura definir a memória como falso em

oposição à história e sua verdade absoluta. Para Murguia e Ribeiro, a partir do momento em que

a história se coloca como ordenadora das lembranças tendo como fundo os vestígios do passado,

e ao se tornar legível, a memória faz-se história, assim sendo a memória só é legível pela sua

―tradução‖ enquanto discurso. ―Discurso maleável, manipulável, normalizado, porém dispostos

a ser arranjados de forma diferente por cada uma das pessoas (estilo) num suporte físico

(documento)‖. 29

Hoje, cada vez mais as sociedades se voltam para o passado, em uma espécie de

―musealização do mundo‖, como descreve Huyssen, ou a emergência de um ―boom de

memórias‖, como descreve Nora. Trata-se de um discurso em parte contraditório, pois ao

mesmo tempo em que as novas tecnologias digitais contribuem para um ―permanente presente‖,

observa-se um interesse pelo passado através do registro em imagens e textos (sites, blogs,

videos).30

Torna-se importante ratificar o entendimento acerca da constituição da memória, para

Alessandro Portelli, a memória, assim como toda a atividade humana, é social e por isso pode

ser compartilhada. É justamente este pensamento que embasa esta reflexão acerca da concepção

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de história, memória e cultura digital. Neste contexto contemporâneo, uma pergunta se faz

pertinente. De que forma as tecnologias e a cultura digital influenciam as práticas de memória?

E qual a relação destas práticas de memória em relação ao fazer histórico? 31

Para Nora32

, não apenas trata da distinção e aproximações entre memória e história,

como também cria um dispositivo para se trabalhar na fronteira destas vivências: ―os lugares de

memória‖. Sua reflexão acerca da memória e história nasce de uma constatação prática em sua

própria vivência, percebeu que a juventude francesa estava perdendo a memória da revolução

francesa. Neste momento é que ele passa a questionar o próprio papel da história, buscando

subsídios pragmáticos para o desafio de fazer lembrar. Nora observa que a aceleração da

história, equivale a uma possível crise da memória, busca justamente problematizar o

esquecimento e sensibilizar o historiador no que fazer lembrar. Nora identifica como fator

determinante de nossa época a problemática fundamental da questão da mundialização, processo

pelo qual o mundo se torna um só e no quais os meios de comunicação de massa exercem um

papel primordial.

Evidencia-se uma tendência contemporânea crucial, a concepção social de globalização

da sociedade como conseqüência das transformações tecnologias envolvendo as tecnologias de

informação e comunicação. É nesta perspectiva que a cultura digital possibilita um novo tipo de

memória, a memória entendida como rede, onde todos os dados estão conectados, onde ―a partir

de um é possível entrar em todos, e nenhum deles impede de entrar nos outros‖. A memória-

rede caracteriza-se justamente pelo processo mutuo de fragmentação e globalização, pelo

próprio movimento desordenado, não precisando de ordem prévia. 33

Com o surgimento da cultura digital o principio da escrita linear dá lugar a novas

tendências, quando as informações passam a circular em bits, onde o suporte torna-se leve,

móvel, maleável. 34

A chegada das novas tecnologias e a formação de uma cultura digital significa lidar com

novos tipos e conhecimento que, de certa forma, Nora percebeu já com o crescimento da

comunicação em massa, no sentido de ―imediatez‖ e simultaneidade. Tal perspectiva possibilita

a história em lidar com novos paradigmas, não mais seqüenciais e lineares, pelo contrário, cada

vez mais velozes, múltiplos e simultâneos, ocasionando, se não um problema imediato, pelo

menos certo mal estar, uma vez que não dá para esquecer uma das tradições no objeto e ofício

do historiador, a historicidade da história. 35

História e a concepção de tempo e espaço

Uma outra questão que o historiador tem que saber lhe dar com o advento da tecnologia

e da cultura digital, é acerca da relação e mudança da perspectiva de tempo e espaço. Carlos

Ginzbusg, em uma palestra realizada em 2010 no Brasil, chamou atenção justamente que as

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idéias de presente, de passada e de futuro tentem a se tornarem mais frágeis. O autor deu como

exemplo o Google, onde, como uma ferramenta da internet, pode ser ―ao mesmo tempo, um

poderoso instrumento de pesquisa histórica e um poderoso instrumento de cancelamento da

história. Porque, no presente eletrônico, o passado se dissolve‖. Ele demonstra ser possível em

poucos minutos de pesquisa na internet, abolir a noção de tempo e espaço, resumir séculos em

minutos ou segundos, diminuir metros e até quilômetros de arquivos em poucos milímetros

quadrados de uma memória artificial, ou polegadas do monitor. 36

A cultura digital e o tipo de sociedade a que estão dando lugar, fazem com que

desapareça a barreira que delimitava passado e presente, acrescentando o futuro dentro de um

―eterno presente‖. Através do imediatismo e da informação instantânea, também modifica se a

noção de espaço. Na história, se algo era verdadeiro, ―isso ocorria pelo fato de ser explicado

num tempo, num lugar determinado, devidamente documentado‖, todavia hoje, a cultura digital

relativiza este tempo e espaço, onde a confiança tende a ser depositadas nas mensagens por elas

geradas e transmitidas. Assim sendo, ao rigor científico, junta-se a eficácia tecnológica.

Nesta perspectiva, qual o papel do historiador? Hobsbawm37

busca discutir a relação da

história com o presente e o futuro, onde o historiador faz a previsão do futuro no passado,

fazendo uma leitura a partir dele mesmo. Justamente o que se discuti no Koselleck38

no livro

―futuro passado‖, onde busca refletir acerca de um ponto: o historiado escreve a história a luz de

que? Para ele deve haver um meio termo, trata-se de estudar as experiências e relações do

passado e a expectativa do futuro, onde o historiador não é neutro nem inocente, ou seja,

trabalha o passado, orientado pelas perspectivas do futuro.

Considerações finais

Retornando a indagação realizada por Mark poster, ―como é a disciplina da história

afetada pela digitalização da escrita?‖. Este ensaio não conseguiria responder a esta pergunta,

pois este debate ainda está por fazer. Todavia, diante das breves reflexões aqui realizadas,

algumas considerações já podem ser conjeturadas. .

De fato, o fazer historiográfico já vem sendo influenciado pela cultura digital deste o

fim do século XX. Esta influencia, ocorre, não apenas nas práticas, técnicas e métodos de

investigação histórica, como por exemplo, na criação de meio mais eficiente de armazenamento,

organização, reprodução e transmissão de documentos e informações históricas, mas também na

produção e comunicação do próprio conhecimento histórico produzido.

Todavia, este debate, não está restrito a questões práticas e metodológicas da pesquisa

no fazer histórico. Partindo da concepção de paradigma e de revolução científica kuhniano,

pode-se observar que a cultura digital está, como indagou Poster, alterando a constituição da

verdade para os historiadores, mas não apenas, acrescenta-se a isso, a alteração de outros

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importantes princípios história, como a própria concepção de tempo (passado, presente e futuro)

e de espaço.

Como já foi dito no início, o objetivo desse trabalho é apenas o de organizar, dentre um

leque de possibilidades, algumas linhas de pensamento, debates e reflexões acerca desta

temática. Espera-se que mais um passo tenha sido dado, pois agredida-se que as respostas a

essas perguntas só poderão ser propostas e discutidas, se cada vez mais reflexões forem

realizadas, mesmo sabendo que, como disse Carlos Guinzburg, o risco de tal ―fala‖ seja grande

para o historiador.

Notas

* Mestrando em Ciência da Informação (PPGCI IBICT UFRJ) - Financiamento: bolsista CAPES –

Orientadora: Prof. Dra. Maria Nélida Gonzalez de Gómez (IBICT) – E-mail: [email protected]

1 THALLER, Manfred. Tendências futuras dos softwares aplicadas à pesquisa e ao ensino da história. In:

IV Encontro Internacional de História e Computação: São Paulo: UNESP, 1994. Ver em, FIGUEIREDO,

Luciano. ―História e Informática: o uso do computador‖. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo.

Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, p. 419-441, 1997.

2 Ibidem FIGUEREDO, 1997.

3 NEVES, Guilherme Pereira das.‖O sonho de Comenius: o uso de micro-computadores na pesquisa de

História Social‖. In: História Hoje: balanços e perspectivas / Anais do IV Encontro Regional da ANPUH-

RJ. Rio de Janeiro: ANPUH RJ, 1990, p. 210-213.

4 Ibidem, p. 208.

5 Cf. FIGUEIREDO. Cp. cit, p. 208-214.

6 Eventos na década de 1970 envolvendo a temática História e a informática: V Conferência Internacional

de História Econômica em Leningrado (1970), I Conferência sobre História e Computação (1973) e em

1971 com o americano Edward Shorte que publicou o manual intitulado The Historian and the computer.

No Brasil é lembrado o trabalho, já mencionado, de Guilherme Pereira das Neves, num período um pouco

mais tardio, em 1990. Ver em: SILVA, Edson Armando. ―Banco de dados e pesquisa qualitativa em

história: reflexões acerca de uma experiência‖. Revista de História Regional. Ponta Grossa, PR: UEPG, 3

(2), p. 167-176, 1998

7 Ibidem.

8 Ibidem.

9 O programa baseava-se no ―conceito de base de fados orientado à fonte‖, onde a recuperação dos

elementos era feita através de ―redes semânticas‖, sendo possível recuperarem qualquer informação em

qualquer grupo de dentro da base. Dessa forma era possível identificar relações imprevistas no momento

da criação da base de dados, não sendo necessário pré-definir uma estrutura rígida ou uma hierarquia

entre os elementos do documento. Cf. FIGUEIREDO. Cp. cit, p. 436.

10 Cf. SILVA. Op. cit, p. 165-176.

11 POSTER, Mark. ―History in the Digital Domain‖. Historein. vol. 4, p. 17-32, 2003.

12 REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. Publicação da Associação Nacional de História.

<http://www.s2.anpuh.org/revistabrasileira/public/>

13 MARCO, Francisco Javier Garcia. ―Los sistemas de informacíon histórica: uma nueva fronteira em la

construccíon científica de la Historia‖. Revista Aragon em lá Edad Média. Zaragoza, Espanha, nº. 19, p.

213-233, 2006.

14 Cf. POSTER. Op. cit, p. 17.

15KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções Científicas. – 7 ed. - São Paulo: Perspectiva, 2003. p

13.

16 Ibidem p. 25.

17 HISTORIA A DEBATE é um grupo de discussão com fórum permanente de debates criado em 1993 e

sediado na Universidade Santiago de Compostela (Espanha). As temáticas discutidas permanentemente

envolvem sobre metodologia, historiografia e teoria de História; sobre a renovação prática da

investigação e da divulgação histórica; e sobre a docência na História, tanto na universidade quanto no

ensino básico, e sua relação com a investigação e a reflexão historiográfica. Desde 1993 já foram

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realizados quatro Congressos, denominados de Congresso Internacional História A Debate. <www.h-

debate.com> .

18 Ibidem.

19 Ibidem.

20 BARROS, Carlos. ―Para um novo paradigma historiográfico‖. Revista Tempo. Rio de Janeiro, nº. 11,

p. 205-221, 2001.

21 FLÓREZ, Jairo Antonio M. ―Da escassez à abundância‖. História Digital (Blog). Postado em 9 d

março de 2011. Disponível em < http://historiaabierta.org/historiadigital/2011/03/09/de-la-escasez-a-la-

abundancia/>. Acessado em 10/06/2011.

22 Ibidem.

23Cf. BARROS. Op. cit, p. 214.

24 Cf. FLOREZ. Op. cit, p. 1.

25 Cf. BARROS. Op. cit, p. 215.

26 CHRISTIAN, David. ―The returno f universal history‖. History and Theory. Theme Issue 49 (4): 6-27.

December, 2010.

27 MURGUIA, Eduardo I; e RIBEIRO, Raimundo D. do P. ―Memória, história e novas tecnologias‖.

Revista Impulso. São Paulo: UNIMEP, nº 28, p. 179-188, 2001. p. 181.

28 DANTAS, Camila G. ―O passado em Bits; questões sobre a reelaboração da memória social na

internet‖. Blog Digital History. Disponível em <http://chnm.gmu.edu/digitalhistory/>. Acessado em

02/09/2010.

29 Cf. MURGUIA e RIBEIRO. Op. cit, p. 185.

30 Cf. DANTAS..

31 Ibidem, p. 2.

32 NORA, Pierre. ―Entre memória e história: a problemática dos lugares‖. In: Projeto História 10. São

Paulo: PUCSP, p. 7-28, 1993.

33 Cf. MURGUIA; RIBEIRO. Op., cit. p. 185.

34 Cf. DANTAS. Op. cit, p. 9.

35 Cf. MURGUIA; RIBEIRO. Op. cit, p. 182.

36 GINZBURG, Carlos. História na Era Google. Porto Alegre: Seminário Fronteiras do Pensamento,

2010. (Conferência). Disponível em <

http://www.youtube.com/watch?v=wSSHNqAbd7E&feature=player_embedded>. Acessado em

10/06/2011..

37 HOSBAWM, Eric. ―A história e a previsão do futuro‖. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das

letras, 1998, p. 46-67.

38 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuições à semântica dos tempos históricos. Trad.

Wilma Mass e Carlos Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-RIO, 2006.

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OUVINTES ALEMÃES: NAS ONDAS DA RÁDIO, THOMAS MANN E A

RESISTÊNCIA.

Leandro Couto Carreira Ricon1

RESUMO: Este trabalho objetiva analisar os discursos de Thomas Mann gravados nos Estados

Unidos da América e transmitidos via rádio para a Alemanha no momento da II Guerra

Mundial. A partir destes discursos, em favor da resistência contra o regime nazista, é possível

problematizar o autor alemão no que tange a sua visão política. E mais, é possível fazer um

paralelo comparativo entre os discursos de Mann e os discursos de Adolf Hitler.

PALAVRAS-CHAVE: Alemanha, Rádio, Thomas Mann.

ABSTRACT: This work aims to analyze the recorded speeches of Thomas Mann in the United

States of America and transmitted by radio to Germany at the time of World War II. From these

speeches in favor of resistance against the Nazi regime, it is possible to confront the German

author and his political views. It is possible to make a parallel comparison between Mann's

speeches and Hitler‘s speeches.

KEY-WORDS: Germany, Radio, Thomas Mann.

O rádio no momento nazista

Os regimes fascistas e populistas, sejam eles os europeus, como o fascismo italiano e o

nazismo alemão, ou os latino-americanos, como o varguismo no Brasil e o peronismo na

Argentina, possuem um caráter comum: percebem a necessidade e utilidade do controle dos

meios de comunicação de massa, entre eles, e um dos principais, o rádio, um dos meios mais

populares nas décadas de 1930 e 19402. Porém, a utilização da rádio por esses regimes

encontrou conflitos no próprio meio social. Destarte, o objetivo deste trabalho é analisar os

discursos do escritor alemão Thomas Mann gravados nos Estados Unidos da América e

transmitidos (ou lidos) via rádio para a Alemanha no momento da II Guerra Mundial. Para tal,

passaremos, sucintamente, pela história do rádio na Alemanha nazista e pela utilização que o

regime deu ao equipamento.

Com a chegada do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores

(Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP) ao poder, Joseph Goebbels (1897-

1945) ficou sendo o responsável pelo Ministério Nacional para Informação [ou Esclarecimento]

Pública e Propaganda (Reichsministerium für Volksaufklärung und Propaganda – RMVP). Este,

―assumiu com grande energia e entusiasmo sua tarefa de reorganizar a imprensa, o rádio, a

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produção cinematográfica, o teatro, a música, as artes visuais, a literatura e todas as outras

formas de atividade cultural‖3.

Neste sentido, Joseph Goebbels e os outros líderes deste modelo de governo buscaram

―mobilizar a sociedade através de uma política agressiva de comunicação, que almejava a

homogeneização ideológica e subordinava a informação ao poder autoritário do Estado.‖4 A

partir desta política de comunicação, Goebbels inseriu a propaganda partidária no interior da

Alemanha.

Contando com a ajuda de Wilhelm Frick (1877-1946), Ministro do Interior da Alemanha

(Reichsminister des Innern) e de Hans Geogr Fritzsche (1900-1953), Diretor Ministerial

subordinado diretamente a Goebbels e especialista em transmissões radiofônicas do Reich,

Goebbels começou a utilizar o rádio para espalhar a propaganda nazista pela Alemanha e pelos

territórios próximos, visando à doutrinação partidária e à exaltação fanática da Nação alemã, o

Reich.

A utilização da propaganda servia a um caráter extremamente pedagógico-nacionalista,

como nos afirma Wagner Pinheiro Pereira:

Estes governos criaram sofisticados mecanismos estatais de propaganda e

utilizaram-se da produção cultural, da educação e dos meios de comunicação para

conquistar a adesão da sociedade em torno de um projeto político-pedagógico

nacionalista, que visava ―educar‖ as massas segundo os princípios ideológicos dos

regimes (...) tendo-se em vista que um governo de caráter (...) autoritário precisa

multiplicar esforços no campo da repressão e da informação para se apresentar

como a melhor opção para seu país, os regimes fascistas (...) utilizaram-se de

diversos recursos para conseguir uma base popular extensa com uma intervenção

ideológica decisiva, que visava conquistar os corações e as mentes das massas ao

novo tipo de poder instaurado.‖5

Contudo, para o projeto propagandístico nazista funcionar, foi necessário afastar da

direção dos meios de comunicação – nos referiremos, a partir de agora, especificamente ao rádio

– os indivíduos não partidários do regime. Logo, toda a rádio passou a pertencer ou a ter uma

influência direta e forte do Estado. Todavia ainda não era o suficiente e, ainda em 1933,

engenheiros a serviço do Partido mapearam toda a Alemanha; analisando o local preocupados

com as transmissões de rádio, chegando à conclusão de que bastava um receptor simples (de

ondas médias e longas) para se ter a cobertura de todo o território, garantindo, assim, ao mesmo

tempo, a facilidade de receber o sinal da Alemanha e a dificuldade de receber as emissões

estrangeiras, como, especificamente, a inglesa.

Porém, coexistia outro problema: mesmo com a inexistência de emissoras contra o

partido6 o povo (no caso, o público de uma propaganda político-partidária) não possuía o

aparelho por questões, principalmente, econômicas. Logo, Goebbels7 desenvolveria, para sanar

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este problema, o conceito de um Receptor do Povo (Volksempfänger) que seria fabricado em

massa e distribuído para toda a população, levando a seus lares toda a propaganda por ele

formulada, tudo isso acompanhado de leis que proibiam a sintonização de rádios estrangeiras ou

clandestinas. O rádio foi financiado pelo Estado e vendido a baixos preços ou mesmo

distribuído por programas públicos na Alemanha, tendo chegado ao número de 6 milhões de

rádios em circulação em 1936, o que gerou um grande aumento no número de ouvintes entre os

anos de 1933 e 1939.

Contudo, dentro da programação das emissoras ocorria a construção propagandística, e,

ao mesmo tempo em que, devido à censura e a homogeneização das transmissões, houve uma

diminuição considerável no número de estações, houve, também, a fusão do entretenimento

radiofônico (músicas populares e eruditas8, poesias e literaturas alemães) com as informações

relevantes para o Reich e para o ouvinte. E mais, além dessa mistura clara entre interesse

noticiário público e gosto privado, a partir desse aparato midiático-cultural, o Estado nazista

difundiu, entre outras, as seguintes mensagens: o culto ao Führer; a idéia de raça pura; a

valorização da Nação alemã como suprema; além de, é claro, acusar os judeus e comunistas de

planos de dominação mundial e violência contra os alemães.

O último golpe para assegurar a presença total do rádio na sociedade alemã do III Reich

foi, além do emprego de técnicas de sedução para estimular ainda mais a excitação e a

fascinação dos ouvintes, como a mescla entre interesse público e privado, a legislação que

transformou em obrigatória a utilização do aparelho em locais públicos de grande freqüência,

tais como os restaurantes e as fábricas9.

Contudo, os discursos de Joseph Goebbels tinham uma diferença perante os discursos

de Adolf Hitler: se o Führer conseguia prender a atenção em seus discursos públicos, Goebbels

tinha mais facilidade com os discursos de rádio, possuindo, inclusive um senso de humor mais

refinado do que o de Hitler. No mais, o chefe nazista sabia bem a utilidade do aparelho: grande

parte dos discursos do Führer foram transmitidos pelas emissoras nazistas (mesmo sem a

familiaridade do líder com este modelo de comunicação). Vale lembrarmos que Hitler logo no

início da Guerra avisa ao povo alemão sobre o conflito e lembremos, também, que o último

discurso para o povo (ou público) de Hitler é na rádio, em 1945, poucos dias antes de seu

suicídio, ocorrido em 30 de Abril.

No mais, além da presença dos discursos de Hitler nesta forma de comunicação de

massa, este conhecia perfeitamente a importância da rádio para a propaganda nazista,

afirmando, por exemplo, que ―sem alto-falantes não teríamos conseguido conquistar a

Alemanha‖10

.

Thomas Mann: um escritor contra um partido

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Nascido em 1875, Thomas Mann não ficou conhecido apenas por sua grande e

complexa obra artística que fez com que ganhasse o Nobel de Literatura de 1929, ficou

conhecido, também, por sua atitude política democrática e firme, principalmente contra a

presença do nazismo na Alemanha e da perseguição que este partido promovia contra os judeus,

incluindo ele mesmo. Essa posição política, muito diferente do internacionalismo pacifista de

seu irmão Heinrich Mann (1871-1950) levou o autor a ser estudado na segunda metade do

Século XX com características políticas e sociais e não apenas artísticas, como seria de esperar

para alguém tão reconhecido no ramo das letras.

Já na década de 1920 podemos ressaltar a luta de Mann contra os pronunciamentos do

partido Nacional-Socialista, principalmente por sua característica anti-semita11

sendo o

assassinato do Ministro das Relações Exteriores da República de Weimar, por elementos da

direita, Walther Rathenau (1867-1922), um judeu, assim como Mann, um dos fatores que

levaram o autor a criticar política e a sociedade alemã.

Contudo Mann não quer ser um militante direto na política, preferindo continuar

fazendo sua crítica sem abrir mão daquilo que se considerava: um artista. Dessa forma, no ano

da chegada do partido ao poder, 1933, o autor se exila em Zurique na Suíça aparecendo, na

Alemanha, nas listas de expatriados publicada pelo jornal Völkischer Beobachter (Observador

Popular), pertencente ao partido nazista. Com a ampliação das perseguições e a crescente

violência, principalmente contra judeus, presente na Europa, Mann muda-se para os Estados

Unidos da América em 1938 e logo começa a trabalhar em Princeton emprego que, contudo,

durará pouco tempo, por inadaptabilidade do autor ao modelo acadêmico americano.

Neste tempo de permanência nos Estados Unidos (1938-1952), Mann também escreve

textos que são apelos à resistência, tais quais os seus discursos radiofônicos. Além do mais,

podemos perceber na obra de Thomas Mann uma interação completa entre realidade artística e

representação (interpretação) política, como é o caso de José e seus irmãos, escrito entre 1933 e

1943 e Doutor Fausto, escrito em 1947, ambos com nítidas referências à sua saída da Alemanha

e sobre a possibilidade de seu retorno12

. Em 1952 Mann retorna para a Suíça, mesmo tendo

conseguido a cidadania americana em 1944. Todavia, desde sua saída da Alemanha, não

conseguirá se inserir em um núcleo político-social complexo como aquele que deixara,

perdendo sua rede de sociabilidade e permanecendo atormentado por questões emotivas, ou

espirituais, como o mesmo falaria13

.

Além de sua vida intelectual, de certo modo ativa, nos EUA e da produção de seus

textos, muitos dos quais contendo claras idéias de combate ao regime nazista, Mann se engaja

em um projeto audacioso: escrever dos Estados Unidos textos que seriam telegrafados para a

Inglaterra e lidos na rádio por alguém que conhecesse o idioma, sendo transmitidos em ondas

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médias e longas, chegando, portanto, aos rádios que população alemã tinham autorização para

possuir. Com o tempo e a partir da sugestão do próprio autor, um método mais complicado foi

elaborado: ele escrevia o texto em alemão, lia para um gravador em Los Angeles, essa gravação

era transportada, via aérea, para Nova Iorque aonde era executada diante de um telefone. Do

outro lado da linha estava Londres, onde o texto era executado na frente de um microfone,

sendo emitido diretamente. Dessa forma, os alemães que tinham coragem de sintonizar em

estações proibidas não apenas conheceriam o conteúdo dos discursos do autor como, também,

poderiam ouvir a sua voz. O primeiro método de discursos (leitura) foi feito entre Outubro de

1940 e Fevereiro de 1941 (quatro transmissões apenas). Logo após, em Março de 1941, já se

começou a usar o segundo método, que foi mantido até o final das transmissões. Tais

transmissões obtiveram um sucesso tão grande nos países destinatários bem como na Inglaterra,

nos Estados Unidos e na França que o autor passou a ter oito minutos de gravação ao invés dos

cinco acertados originalmente.

Publicado no Brasil recentemente14

, o compêndio de discursos políticos do autor

falecido em 1955 possuem características importantes que devem ser analisadas. Todos os 59

discursos, que começam com a chamada „‟Ouvintes Alemães!‟, foram transmitidos, na média

um por mês, entre 1940 e 194515

. A partir de agora, trataremos, neste texto, de duas destas

características, selecionadas por formarem uma lógica discursiva: (1) a idéia feita dos Estados

Unidos da América e de seus governantes; e (2) a idéia de Alemanha original e de Alemanha

nazista, bem como de seus governantes e de seu povo, além, é claro, de outras características

que aparecem como a religiosidade e as tônicas dos discursos.

Nos discursos transmitidos pela rádio, percebemos uma idealização complexa dos

Estados Unidos da América e de seu povo e governantes, principalmente a idéia que se faz de

seu presidente, o democrata Franklin Delano Roosevelt. Para Mann, os EUA representam o

ideal de liberdade individual sem prejuízo da coletividade. Uma nação aonde todos, não

importando a origem, trabalham para o crescimento econômico e social da sociedade que passa

a ser compreendida de forma comunitária. Os estadunidenses passam, dessa forma, a

representarem o ideal mais puro de democracia, participando ativamente da vida pública

nacional. Outra representação feita por Thomas Mann é a dos governantes americanos, tidos,

originalmente, como indivíduos honestos e bons, que sempre lutaram e lutarão pelos mais puros

ideais da humanidade. Dessa forma, o autor alemão localiza o presidente F. D. Roosevelt.

Nascido em 1882, Roosevelt foi o presidente dos EUA entre 1932 e 1945, ano em que morreu

pouco antes do término da Guerra, deixando seu posto para seu vice-presidente: Harry Truman,

responsável pela utilização das duas bombas atômicas e, portanto, pelo fim da Guerra no

Pacífico. A democracia americana de Roosevelt presente nos textos de Mann é a clara oposição

à tirania insana germânica de Adolf Hitler, e o presidente americano passa a ser visto como o

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exemplo de homem a ser seguido por todos os governantes, um homem que inspira o povo aos

mais puros ideais humanos, como a liberdade, a bondade, o horror à tirania e, principalmente, a

democracia.

Em oposição a toda a representação feita dos Estados Unidos por Mann, encontra-se a

Alemanha nazista e seus governantes. Desta forma, a Alemanha nazista passa a ser lida como

um local de injustiça certa mediada pela propaganda de Goebbels16

. Todavia, para o autor de

Doutor Fausto, essa Alemanha não é a Alemanha original, a Alemanha romântica17

. Para o

autor, essa Alemanha encontrada pós-1933 é a Alemanha modificada pelo delírio de um grupo

que leva à destruição do espírito originário alemão.

Um ponto característico nos discursos de Thomas Mann é o grande apelo religioso.

Mann identifica o cristianismo como uma religiosidade fortemente alemã18

e convida os cristãos

a combaterem o nazismo, uma vez que o partido modificou todo o ideário cristão de amor ao

próximo e respeito mútuo. Esse ponto é curioso, uma vez que o próprio Mann é um judeu, o que

não o impediu de convidar as duas religiões ao combate. Esse apelo religioso começa forte nos

seus discursos de 1940 e se mantém presente até o final, em 1945. Podemos ressaltar que Mann

constantemente refere-se ao Natal como a festa alemã por excelência e pede, sabendo que não

será atendido, que no próximo Natal, ocorra a paz19

.

Marcado por uma pluralidade de sentimentos, os discursos de Mann visavam atingir o

lado emotivo de forma simples – o que Goebbels também procurava com suas propagandas

políticas. Alternando-se entre o discurso emocionado e o comovente, entre o irado e o

esperançoso, entre o realista e o idealista, o revoltado e o preocupado, o raivoso engajado e o

patriota,, Mann acreditava originalmente que a Alemanha perderia, por questões puramente

morais (metafísicas) como o próprio escritor explica. Contudo, essa crença, especialmente

espiritual, não deve ceder à comodidade de baixar guarda, uma vez que a luta seria longa e

difícil, sendo bem-vinda a ajuda de países distantes, como a Rússia, por exemplo.

E mais, vale fazermos um apanhado das modificações dos discursos de Mann ao longo

dos seis anos em que foram feitos:

Nos poucos discursos do ano de 1940 – três apenas – feitos entre os meses de Outubro e

Dezembro, o autor se preocupa em demonstrar a fragilidade de Adolf Hitler enquanto

governante máximo do país, demonstrando, também, que o próprio ditador não confia no povo

que o segue, assim sendo, a Guerra deveria acabar, sob pena de destruir a Europa como um todo

e, em particular, a Alemanha.

Já em 1941, com algumas vitórias alemães no conflito, Mann percebe a difícil tarefa de

falar para um povo que está ganhando, por causa da alegria da vitória, porém adverte ao povo

que o egocentrismo e o senso de humor degenerado de Hitler são doenças e que os alemães

apenas estão servindo a um senhor obscuro, para tal, o autor defende a seguinte tese: como a

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alta cúpula nazista se mostra anticomunista se estes indivíduos assinaram um pacto de não

agressão com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1939 (o autor se refere ao Pacto

Molotov-Ribbentrop); e mais, como os mesmos nazistas defendem uma idéia de raça pura e

podem lutam, ao mesmo tempo, ao lado dos japoneses. O autor, contudo, lembra que os Estados

Unidos estão apoiando a Inglaterra, mesmo que ainda indiretamente e que, por mais diferentes

que sejam as políticas, a Rússia e a Inglaterra estão lutando do mesmo lado. A partir deste ponto

o autor coloca uma pergunta aos ouvintes alemães: como podem não perceber seu erro se todo o

mundo se une contra a Alemanha? Para responder esta pergunta o autor sugere que os alemães

não são nazistas, o nazismo não se encaixa no país, estando os habitantes apenas fascinados por

toda a propaganda partidária feita.

Os discursos de 1942, mais firmes, provavelmente pelo início da participação dos

Estados Unidos na Guerra após o ataque japonês às bases de Pearl Harbor, já demonstram a

idéia de Guerra Mundial, ou Total como o autor prefere. Porém, os discursos deste ano

demonstrariam características mais importantes, e, na primeira mensagem 1942, a do mês de

Janeiro, o autor fala:

Ouvintes alemães! A notícia soa incrível, mas minha fonte é segura. Em inúmeras

famílias judias holandesas, assim me contaram em Amsterdam e outras cidades,

reina o luto profundo por filhos que tiveram mortes horríveis. Quatrocentos jovens

judeus holandeses foram levados para a Alemanha para servir de objetos de

pesquisa com gás venenoso20

. A virulência dessa arma nobre e tão genuinamente

alemã, uma verdadeira arma de Siegfried, foi comprovada com os jovens sub-

humanos. Eles estão mortos – morreram pela ―nova ordem‖ e pela engenhosidade

bélica da raça de senhores. Para isso, até que serviram. Eram só judeus.21

Percebemos, a partir desta fala, o conhecimento dos tão temidos campos de testes que

começaram com a desculpa científica. Estes campos já começam com o assassinato de grande

número de indivíduos, principalmente judeus e pessoas com deformidades físicas ou danos

mentais. Essa idéia de campos de teste será transformada em extermínio e Mann em sua fala de

27 de Setembro de 1942 cita uma fala de Goebbels à rádio, na qual este Ministro teria dito:

―Nosso objetivo é aniquilar os judeus. Vençamos ou sejamos derrotados nós temos de alcançar

esse objetivo, e vamos alcançá-lo. Se o Exército alemão for obrigado a recuar, ele vai fazê-lo

exterminando [grifo nosso] pelo caminho até o último judeu da face da Terra‖22

. Notamos

portando a presença da figura do extermínio, do genocídio.

Ainda em 1942, em 15 de Outubro, Mann faz um discurso específico para os germano-

americanos, ressaltando a dificuldade desses que, mesmo amando a sua origem, conhecem os

erros da Alemanha e preferem a vitória da liberdade e da democracia promovida pelos Aliados.

Para Mann, os descendentes de alemães ou mesmo o alemão que migrou para os Estados

Unidos não tem que se envergonhar do seu país originário, uma vez que o que existe, no

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momento da Guerra, não é mais a Alemanha, mas sim uma caricatura distorcida da verdadeira

Alemanha. Logo, esses indivíduos não devem ter conflitos de sentimentos: ―o hífen que separa

‗germano‘ e ‗americano‘ não deve significar nenhuma ruptura espiritual, nenhum conflito de

sentimentos, de deveres de fidelidade.‖23

.

No ano de 1943, Mann, no geral, lembra os 10 anos de Nacional-Socialismo que apenas

trouxeram o conflito e a tristeza para o mundo, além, é claro de lamentar pela mentira do

fascismo italiano, aliado do nazismo alemão. Em 1944, por sua vez, o vencedor do Nobel narra

a tristeza dos soldados aliados atacarem a Alemanha: é triste por que o autor acredita na

possibilidade de não ter ocorrido o conflito caso os alemães não tivessem apoiado a fala e a

política nazista. Por último, em 1945, o escritor começa criticando a fala de Hitler em

homenagem ao aniversário do nazismo no poder. Após essa primeira aparição na rádio, Mann

surge lamentando o falecimento de Roosevelt, falecimento este tão comemorado por Hitler em

um de seus últimos discursos feito, também, via rádio. Ao término da guerra o autor demonstra

a tristeza da derrota e a tristeza de ser alemão, que destruiu e foi destruído pelo mundo:

―Ouvintes alemães! Como é duro quando o júbilo do mundo tem a ver com a derrota, com a

humilhação do próprio país! Como se mostra mais uma vez terrível o abismo entre a Alemanha,

a terra de nossos pais e mestres, e o mundo civilizado!‖24

.

A partir do conhecimento prévio dos discursos de Hitler e dos de Mann podemos

perceber similitudes e diferenças entre os indivíduos. Ambos se utilizam da transmissão

radiofônica para fazer apelos e Mann se utiliza da oratória, uma especialidade do ditador

alemão, para atacar o regime. Enquanto Hitler fala contra os judeus Mann, ele próprio um dos

judeus combatidos, fala na rádio contra o Führer. A partir de certo momento as informações

nazistas na rádio se modificam: se antes o regime apenas narra suas vitórias, com a escassez

destas, as comunicações ficam mais fatalistas; ao mesmo tempo, os discursos do autor de Morte

em Veneza ficam mais esperançosos. Ao longo do percurso da Guerra, Hitler se afasta dos

ouvintes enquanto Mann vai, aos poucos, se aproximando, proporcionalmente, da massa de

ouvintes. Ponto central nos discursos de Mann que deve sempre ser notado é que o autor não

critica apenas Hitler, critica o partido e, principalmente, Joseph Goebbels: criticando o governo

de Hitler, a atuação do partido e a propaganda de Goebbels

Percebido que o rádio transforma o povo em público a partir da idéia de propaganda,

chegamos à lógica de que não devemos supervalorizar a importância dos meios de comunicação

de massa que apenas incitam ou combatem padrões pré-existentes, logo, muito mais do que

resistência, em sentido conceitual, os discursos combatentes de Thomas Mann são um convite,

um convite à liberdade e à democracia, um convite à resistência.

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1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de

História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ) – orientado por Dr. José Costa

D‘Assunção Barros; pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da mesma instituição.

Membro do Conselho Editorial do periódico Veredas da História. Desenvolve pesquisa na área de

História Social das Artes e dos Artistas. Contato: [email protected] 2 A utilização radiofônica é o objetivo deste trabalho, porém, é necessário lembrarmos que o rádio é

apenas um desses meios de comunicação explorado por esses regimes. Não podemos esquecer, contudo,

da utilização que, ao menos esses quatro regimes citados no corpo do texto, também se utilizaram da

produção literária, teatral e, principalmente cinematográfica. 3 KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo : Companhia das Letras, 2010, p.323.

4 PEREIRA, Wagner Pinheiro. O Espetáculo do Poder: Políticas de comunicação e Propaganda nos

Fascismos Europeus e nos Populismos Latino-Americanos (1922-1955). In: SEBRIAN, Raphael Nunes

Nicoletti; et alli (ORG). Do Político e suas interpretações. Campinas : Pontes Editores, 2009, p.46. 5 IBID, p.45-46.

6 Existiam, ainda, rádios clandestinas porém foram cada vez ficando mais escassas na medida em que as

leis foram se tornando mais duras e efetivas. 7 Sobre a importância do rádio para Goebbels, ver: KRISS, Ernest. The Danger of Propaganda. In: The

American Imago. Vol. II, nº1. Boston : Hans Sachs, 1941. 8 A utilização da música pelo regime nazista é caso interessante: vale lembrar que as músicas que

tocavam nas rádios eram apenas as alemães (excluindo-se os autores judeus, como Félix Mendelssohn-

Bartholdy e Arnold Schönberg, por exemplo) e que as músicas norte-americanas, principalmente o Jazz,

foram banidas logo no começo do regime nazista. 9 Ressaltamos que, neste momento, existe a presença, por exemplo, da figura do Guarda do Rádio:

indivíduo que fiscalizava a utilização do equipamento em locais públicos. Lembremos, também, que, nas

fábricas, os funcionários tinham o direito de ouvir os discursos políticos assegurados em legislações

específicas. 10

Apud. GUERIN, Daniel. Fascime et gramd capital. Paris : Gallimard, 1936, p.58. Também ver:

RAUSCHING, Herman. Hitler me dijo. Buenos Aires : Hachette, 1940. 11

Nota-se que alguns textos de Mann estão bem próximos da Social-Democracia Alemã. 12

Cf. DAYAN-HERZBRUN, S. Thomas Mann: a writer against Nazism. Trans/Form/Ação (São Paulo),

v.20, p.63-76, 1997. 13

Sobre o exílio e a dificuldade de Thomas Mann nos EUA, cf. MANN, Klaus. Le Tournant. Cap. IX.

Paris : Solin, 1984. Este texto, diga-se de passagem, foi escrito por Klaus Mann, filho da personagem aqui

analisada. Para a biografia do autor, ver: ROSENFELD, A. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva:

Edusp; Campinas: Editora da Unicamp, 1994. 14

Para nossa fonte, conferir: MANN, Thomas. Ouvintes Alemães: Discursos contra Hitler (1940-1945).

Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2009. 15

No total são 59 discursos, assim distribuídos: três em 1940, treze em 1941, catorze em 1942, treze em

1943, cinco em 1944, onze em 1945. 16

É interessante percebermos como, nos discursos de Thomas Mann, a idéia de propaganda partidária

feita por Joseph Goebbels já encontra um caráter de propaganda total, mesclando o público e o privado,

ponto que muitos pensadores, principalmente historiadores, voltariam a discutir mais tarde com o fim da

guerra 17

Para a relação entre Thomas Mann, a Alemanha e o Romantismo, ver: SAFRANSKI, Rüdiger.

Romantismo: uma questão alemã. São Paulo : Estação Liberdade, 2010. 18

Lembremos que um dos principais marcos de modernidade na Alemanha, pelo menos para a

conceituação da época, era a Reforma iniciada por Martinho Lutero no Século XVI. 19

O nazismo, desta forma, para Thomas Mann, não é nem alemão nem mesmo cristão, logo, deve ser

combatido. 20

Este número de quatrocentos jovens holandeses judeus foi, mais tarde, na transmissão de Junho do

mesmo ano, corrigido para o número de aproximadamente oitocentos jovens holandeses judeus. 21

MANN, Op. Cit. p.71. 22

GOEBBELS apud MANN, Op. Cit. p.105. 23

MANN, Op. Cit. p.110. 24

IBID, p.212.

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A luta dos Sovietes e o vislumbrar da Anarquia: a repercussão da Revolução

Russa na imprensa operária anarquista brasileira (1917-1922)

Leandro Ribeiro Gomes*

Resumo: Este trabalho busca apresentar uma síntese de uma pesquisa que estuda todo

material que foi impresso e escrito, dentro de uma seleção de periódicos, nos jornais

anarquistas do movimento operário brasileiro a respeito da Revolução Russa de 1917.

São textos que expressam as visões e representações que os militantes anarquistas do

movimento operário aqui do Brasil tiveram a respeito dos distantes eventos russos, que

grande importância e influência passaram a exercer nos movimentos operários e

revolucionários ao redor do mundo.

Palavras-chave: Revolução Russa, Imprensa operária, Anarquismo.

Abstract: This study aims to present a synthesis of a research that examines all the

material that was printed and written in a selection of anarchists newspapers of the

Brazilian labor movement about the Russian Revolution of 1917. Militant texts

that express the views and representations that the Brazilian anarchist labor

movement had about the far away events of the Russian Revolution, a historical fact

that had great importance and influence in the revolutionaries movements and their

practice around the world.

Keywords: Russian Revolution, Labor Press, Anarchism.

Numa pesquisa que objetiva analisar quais foram as repercussões da Revolução

Russa nas folhas operárias dos anarquistas do Brasil o fator do ―político‖, em todas as

suas interações com a cultura e a sociedade, fica explícito. Neste caso, esta fonte se

torna muito fértil para investigar a relação dinâmica entre as idéias e propostas daquela

revolução que chegaram até aqui com o pensamento político ácrata já existente e as

peculiaridades e condições da luta do movimento operário daquele instante nestas terras

tropicais.

O elemento político fica evidente nestas fontes por se tratar de uma imprensa

militante envolvida com organizações operárias – como sindicatos, ligas e comitês – e

que lutavam contra o patronato e os governos da Primeira República brasileira por

melhores condições de vida e de trabalho para os operários e o povo em geral. E as

propostas e exemplos revolucionários vindos da Rússia naquele período – sejam por

parte das teses e caminhos mostrados por Lênin e os bolcheviques, ou pelas grandes

desapropriações e socializações em massa realizadas popularmente pelos sovietes – foi

uma novidade contundente que atingiu e abalou à reflexão e a consciência dos

anarquistas brasileiros, gerando identificações e reprovações, simpatizantes e

adversários, o encantamento e a decepção.

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Já são bem conhecidas dentro da historiografia recente as mudanças que se

operaram na prática de sua escrita com o contato que ela teve com outras ciências

sociais ao longo do século XX, e o quanto que este processo influenciou uma Nova

História Cultural que, por sua vez, ―renovou‖ a tradicional história política com o

estudo das ―práticas‖ e ―representações‖ sociais – o que acabou redirecionando o olhar

dos historiadores ao uso dos periódicos como fonte.1

Dentro desta história cultural

temos a perspectiva que o político também participa da difusão da cultura, já que os

meios de comunicação (como os jornais) também podem se tornar objetos e veículos da

política:

(...) Mas a história política – e esta não é a menor das contribuições que ela extraiu

da convivência com outras disciplinas – aprendeu que, se o político tem

características próprias que tornam inoperante toda análise reducionista, ele

também tem relações com os outros domínios: liga-se por mil vínculos, por toda

espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida coletiva. O político não

constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social. (...).2

Dessa forma, referindo-se ao que foi considerado um dos maiores eventos

internacionais do século XX – a Revolução Russa – que teve em seu conteúdo

motivações de caráter abertamente internacionalistas, com apelos e propostas socialistas

de amplitude mundiais a todos os movimentos operários do mundo, o interesse deste

evento por parte dos anarquistas brasileiros que militavam no movimento operário – e

que, portanto, como anarquistas também se reconheciam como ―socialistas‖, em sua

corrente libertária – é um assunto que já possui o seu peculiar interesse. Faz parte, de

certa forma, dos impactos da Revolução de Outubro ao redor do mundo, pois – como

afirma Hobsbawm – esta revolução possuiu duas histórias que são entrelaçadas: seu

impacto sobre a Rússia e seu impacto sobre o mundo, e esta segunda parte ainda oferece

muitas possibilidades de investigação.3

O período desta pesquisa limita-se do início do processo revolucionário russo

(com a abdicação do czar Nicolau II em março de 1917) se estendendo até dezembro de

1922 (com a fundação oficial da URSS, mesmo ano também da fundação do PCB, em

sua maioria por antigos militantes do anarquismo que se converteram ao comunismo). É

claro que ao longo deste percurso observamos grandes mudanças no pensamento dos

libertários brasileiros a respeito da Revolução Russa, assim como uma multiplicidade e

heterogeneidade de interpretações e posições que enriquece e ultrapassa as tradicionais

explicações historiográficas sobre o impacto que a revolução socialista na Rússia teve

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no movimento operário do Brasil. É que as dificuldades de acesso às informações sobre

a Rússia naquela época, à distância e as especificidades da sociedade brasileira são

fatores que influenciaram muito as notícias sobre este evento que foram publicadas nos

jornais libertários.

Ecos de Outubro: a luta dos Soviets e os anarquistas do Brasil

―Os ultimos reveses dos exercitos bolchevistas, dos paladinos da Justiça, são

coisas insignificantes que em nada modificarão a atitude dos pioneiros, e que de

modo algum farão esmorecer a fé dos operarios, milenarmente escravisados, nem a

tenaz e impiedosa campanha de difamação, nem a força conluiada dos exercitos

capitalistas conseguirão extinguir a labareda purificadora do idealismo moscovita.

Operarios! Povo trabalhador! Servos da gleba! – Aprendei a venerar os vossos

irmãos russos, que são os grandes redentores da humanidade que sofre e que tem

fome! Eles são as unicas almas verdadeiramente grandes e audazes que ainda foi

dado ao mundo rotineiro e egoista procriar! Aprendei com eles o espirito de

sacrificio e o entusiasmo santo dos heroes!‖.4

Neste artigo sobre o bolchevismo, que faz parte do abundante conjunto de fontes

que foi reunido nesta pesquisa, temos um exemplo significativo do entusiasmo e da

excitação que os acontecimentos na distante Rússia causaram nas reflexões e

interpretações da realidade dos ativistas libertários aqui do Brasil. Não obtivermos

informações de quem era Fernando Rosalba, muitos militantes envolvidos nestes jornais

usavam pseudônimos e este não faz parte do ―grupo dos anarquistas famosos‖ que são

amplamente citados na historiografia do início do movimento operário brasileiro. E

optamos em transcrever as fontes com a grafia da época.

Quanto ao jornal, ―Spártacus‖ é uma das folhas mais significativas dentre as dez

escolhidas neste trabalho. Tablóide de quatro páginas, o formato típico e mais comum

da imprensa operária deste período, este jornal mescla a propaganda e a divulgação da

cultura anarquista com textos políticos direcionados a vários setores profissionais e

organizações de trabalhadores, como também a divulgação da situação do movimento

operário no Brasil e no mundo. ―Spártacus‖ foi um jornal fundado como ―porta-voz‖ do

núcleo carioca do Partido Comunista. Planejado para ser um diário, o jornal se

constituiu como um semanário, surgindo em agosto de 1919 e – sofrendo perseguição

policial – indo até janeiro de 1920. José Oiticica, militante anarquista famoso da época,

amplamente citado pela bibliografia deste campo de pesquisa, chefiava o grupo editorial

do periódico e Astrojildo Pereira – outro nome também bem conhecido, antigo

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anarquista que ajudou a fundar o PCB em 1922 – era o administrador e chefe da

redação.5

Fernando Rosalba se refere ao movimento revolucionário na Rússia – que naquele

momento completava já três anos – como uma ―labareda purificadora‖, e o povo russo

como os ―grandes redentores da humanidade‖, uma atitude de total apoio à revolução,

pois ele faz parte do grupo de anarquistas no Rio de Janeiro que se simpatizou com a

Revolução Russa. O jornal ―Spártacus‖ foi fundado no mesmo ano em que ocorreram

várias tentativas por parte dos libertários de fundarem partidos comunistas, o próprio

periódico se apresentava como representante deste grupo no Rio de Janeiro, já que

outras identificações semelhantes ocorreram em outros pontos do país. Contudo, estes

partidos comunistas de 1919 possuíam outro caráter, como explica o próprio Astrojildo

Pereira, distinto do Partido Comunista do Brasil de 1922 (um partido político oficial de

cunho marxista):

A idéia de partido, o nome comunista, os termos secretariado e comissariado do

povo, tudo isto misturado e adaptado a concepções tipicamente libertárias,

denunciam a profunda ressonância que a revolução russa alcançou no movimento

operário do Brasil. Astrojildo Pereira também salienta: ―Tratava-se, na realidade,

de uma organização tipicamente anarquista, e a sua denominação de ‗Partido

Comunista‘ era um puro reflexo, nos meios operários brasileiros, da poderosa

influência exercida pela Revolução proletária triunfante na Rússia, que se sabia

dirigida pelos comunistas daquele país. O que não se sabia ao certo é que os

comunistas que se achavam à frente da revolução russa eram marxistas e não

anarquistas‖. (...).6

Na época em que aconteceu a Revolução Russa o Brasil estava passando por uma

fase de mudanças econômicas, políticas e sociais de longo prazo – que vinha desde o

final do século XIX com a abolição da escravidão e a proclamação da República, em

1888/89. Quando se estuda a formação da classe e do movimento operário no Brasil esta

conjuntura é explicada para entender a história da organização dos trabalhadores. Foi

uma época também em que se iniciou uma primeira industrialização e outra etapa da

urbanização do país, com anos de fluxo imigratório europeu. A questão da imigração,

como elemento determinante ou de principal influência na formação das organizações

operárias e de suas doutrinas, pois boa parte destes imigrantes eram trabalhadores que

vinham de países que possuíam no período movimentos anarquistas fortes – como a

Itália e Espanha – sempre foi discutida desde o início deste campo de pesquisa, foi a

chamada questão da ―planta exótica‖.7

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Mas para entender o anarquismo no Brasil estudos mais recentes criticam a idéia

da ―planta exótica‖. A influência da imigração foi importante, mas ela não basta –

segundo Cláudio Batalha – para explicar a predominância do anarquismo e do anarco-

sindicalismo no movimento operário do Brasil nestes anos iniciais de 1890 a 1920. Para

Batalha havia outros fatores no Brasil da Primeira República que levou o anarquismo a

suplantar o socialismo da II Internacional na preferência dos militantes operários, como

a distância que havia das propostas de mudanças por meio do processo eleitoral da

realidade dos trabalhadores, que tinham uma participação eleitoral muito limitada numa

sociedade ainda fortemente marcada pela escravidão.8

Estas explicações ajudam a entender a força e a importância que o anarquismo

teve nas experiências das lutas do movimento operário daquele período, entretanto,

outros estudos apontam para a dificuldade de precisar o grau de penetração desta

doutrina entre os trabalhadores. É claro que houve identificações destes com

aspectos das idéias anarquistas, mas os libertários não eram maioria entre os

trabalhadores – embora fossem bem visíveis e tenha influenciado muito os operários

organizados –, pois também havia outras correntes e o sindicalismo – apesar de suas

intimas relações com o anarquismo – foi muito difundido entre os operários.9

Como foi demonstrado na declaração de Astrojildo Pereira no livro citado de

Moniz Bandeira – aliás, livro este que foi um dos primeiros títulos sobre o assunto no

Brasil – os anarquistas daqui, no início, desconheciam que os revolucionários à frente

da Revolução Russa eram marxistas, e a visão entre os libertários de que esta revolução

foi de caráter anarquista de fato ocorreu, ainda que esta representação da revolução não

tenha sido tão simples como as explicações tradicionais.

É importante salientar que a 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores,

fundada em 1864, teve em sua criação a colaboração de marxistas e anarquistas, entre

outras tendências. Os conflitos entre a tendência autoritária e libertária do socialismo

dentro desta Internacional – como ficaram conhecidos às divergências entre marxistas e

anarquistas – de certa forma ajudou a desenvolver o socialismo enquanto movimento

organizado dos trabalhadores do mundo. Portanto, os anarquistas também sempre foram

considerados interlocutores do movimento operário e socialista.10

Isso ajuda a entender as confusões dos anarquistas brasileiros, pois estes se

reconheciam dentro de uma tendência que fazia parte da tradição libertária do

comunismo, e que desde a época do anarquista russo Bakunin durante a I Internacional

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polemizavam com Marx quanto ao uso da centralização do Estado para construir uma

sociedade livre e socialista.11

Para os anarquistas, cujo pensamento caracteriza-se pela

total rejeição ao dogma e a sistemas teóricos rígidos, e uma defesa do julgamento

individual, a criação espontânea e em massa dos sovietes na Rússia – que eram

conselhos populares que buscaram efetivar uma administração direta da sociedade pela

própria sociedade – pareceram, aos olhos do distante anarquismo brasileiro, como a

concretização da anarquia.12

De qualquer forma, a percepção revolucionária dos

libertários no Brasil, em parte, estava de acordo com a verdade, pois a idéia e as

representações que eles tiveram do ―regime dos sovietes‖ foi influenciada pela análise e

testemunhos sobre a Rússia revolucionária em seus primeiros anos:

De certo modo, a história da URSS é, antes de mais nada, a de uma bolchevização

da sociedade, e, depois, de uma bolchevização das instituições. Mas, na origem,

em 1917-18, foram os comitês de fábrica e de aldeia, os sovietes de bairro que

governaram a própria sociedade.

A tomada do poder em outubro deu-lhes legitimidade. Só mais tarde é que os

sovietes perderam a realidade deste poder.

Nem por isso pode-se negar que as primeiras análises do ―regime dos sovietes‖

continham uma parte de verdade. E, do mesmo modo, era autêntica a vontade

afirmada pelos novos dirigentes no sentido de emancipar a mulher, de igualar o

estatuto dos cidadãos, etc. A bolchevização dos sovietes, o autoritarismo

institucional são fatos posteriores; manifestam seus efeitos somente um pouco

mais tarde (...).13

A repressão do governo republicano aqui no Brasil, numa sociedade com fortes

tradições autoritárias que negligenciava as questões e problemas sociais, contra o

movimento operário anarquista foi intensa e sistemática. As idéias libertárias de

igualdade social incomodou as classes dirigentes, e os governos e industriais se

articularam na repressão deste movimento.14

Por isso, considerando que os anarquistas

aqui no Brasil também se viam dentro da luta internacional pela causa operária, suas

ações na produção de sua imprensa – ao divulgar as notícias sobre a Revolução Russa –

também acabava sendo condicionada pelas necessidades da luta operária aqui do Brasil,

luta esta que possuía seus inimigos específicos, opiniões contrárias a vencer e um ideal

a comprovar e defender:

(...) Ao criarem esses jornais, os anarquistas no Brasil seguiam os passos habituais

dos militantes de outros países, mas também visavam a criar uma experiência de

informação alternativa em meio à grande imprensa e muitas vezes explicitamente

em oposição a ela. Esses jornais não eram somente um veículo de propaganda, mas

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constituíam centros propulsores e coordenadores dos vários grupos no plano local,

estadual e, às vezes, até nacional.15

Fazendo um exercício de diálogo com outro estudo semelhante ao nosso –

como a tese de Andreas Doeswijk que fala da repercussão da Revolução Russa entre os

anarquistas do Uruguai e da Argentina – é necessário ressaltar que aqui não há só a

questão, então, da distância e da falta de informação dos libertários brasileiros em

relação aos eventos russos. A especificidade histórica de cada sociedade, que conferem

seus significados e possuem suas experiências particulares, afetam as notícias, que

passam ser ―filtradas pelo desejo e a distância‖.16

Fontes: acesso as informações e interpretações distintas

―Fomos dos primeiros a defender aqui o maximalismo russo contra a critica

extremista de varios camaradas. Como tivemos, então, occasião de affirmar,

defenderemos os maximalistas da Russia enquanto elles forem atacados pelas

forças mercenarias do capitalismo, e não porque haviamos renunciado aos nossos

principios. A nossa attitude equivale então a uma afirmação de solidariedade a

uma facção revolucionaria inimiga da organização capitalista, porque entendemos

que atacar a atuação maximalista seria coadjuvar os reaccionarios na sua obra de

restauração do regimen imperialista derrubado pela revolução de 17. No entanto,

não precisamos dizer que, como anarchistas, somos contrarios a qualquer forma de

Estado, quer este seja imperialista, quer republicano ou socialista. (...)‖.17

O jornal anarco-sindicalista de São Paulo ―A Plebe‖ foi um dos periódicos

libertários mais conhecidos do Brasil. Semanal fundado em junho de 1917 ele percorre

até o fim do período deste estudo – com exceção do ano de 1918 quando seu editor

Edgard Leuenroth ficou preso devido a sua participação na greve geral paulista de 1917.

Edgard Leuenroth também foi responsável em 1919, junto com outro militante de nome

de Hélio Negro, pela publicação de um pequeno livro intitulado: ―O que é Maximismo

ou Bolchevismo‖. Na época aqui no Brasil os termos ―maximismo‖ e ―maximalismo‖

eram os nomes em que eram conhecidos os bolcheviques, pois os anarquistas

acreditavam que estes eram adeptos do ―programa máximo‖, o máximo de mudanças.18

Podemos observar então que este jornal já era editado por anarquistas que se

identificaram com a Revolução Russa desde o início. Também não obtemos

informações de quem era D. Fagundes, mas podemos constatar no trecho de seu texto

questionador sobre o socialismo que ele afirma uma posição peculiar, de defesa da

revolução ao mesmo tempo em que condena o Estado mesmo sendo este socialista –

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reafirmando a tese anarquista que prega o fim do Estado. É de notar que ele toma o

cuidado de destacar que ele faz parte daqueles que defenderam o maximalismo russo

―contra a critica extremista de vários camaradas‖.

Apesar das identificações entre os anarquistas com a Revolução Russa

divergências e uma multiplicidade de visões percorreram as páginas da imprensa ácrata

sobre o assunto. Pouco menos de um ano antes do texto de D. Fagundes acima, em

outro periódico anarquista de São Paulo, um importante artigo do conhecido anarquista

Florentino de Carvalho defende os aspectos libertários da Revolução Russa citando a

―constituição‖ dos sovietes, mas condena o Estado bolchevique citando Trotsky e a

condução da revolução. Desaprova ainda alguns militantes anarquistas no Rio de

Janeiro que se simpatizaram com o maximalismo e propagam a organização de um

partido. Denuncia as perseguições na Rússia a anarquistas e outros socialistas:

―Para dar uma idéa sobre a pseudo dictadura proletaria basta saber-se que os

socialistas revolucionarios, os reformistas e todos os que não pertenciam à

familia bolchevique foram escorraçados dos comitês e de todas as repartições

publicas. Os anarchistas, como mais perigosos inimigos do Estado, foram

escorraçados sob o fogos das metralhadoras‖.19

Florentino de Carvalho foi um dos primeiros anarquistas brasileiros a se

manifestar contra o novo poder soviético. Em um momento em que toda a imprensa

internacional fazia uma guerra contra a Revolução Russa, a posição dos anarquistas que

denunciavam o autoritarismo bolchevique era muito incômoda dentro do movimento

operário.20

Quanto ao acesso às informações, os anarquistas aqui no Brasil se utilizavam de

suas correspondências com o movimento operário de outros países – de onde também

vinham exemplares de outros jornais operários estrangeiros. Sem dizer ainda que eles

também liam e utilizavam as fontes da grande imprensa brasileira – que por sua vez

recebia as notícias das agências internacionais de notícias, no contexto da Primeira

Guerra Mundial, quando se iniciou uma hegemonia das agências norte-americanas.

Notas

*. Mestrando em História, UNESP/Assis-SP, orientador Dr. Sérgio Augusto

Queiroz Norte e Silva. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]

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1. O papel e a relevância da imprensa como fonte histórica e as mudanças de seu

tratamento pela historiografia é apresentada no texto: DE LUCA, Tania Regina.

―História dos, nos e por meio dos periódicos‖. In: PINSKI, Carla Bassanezi. (Org.).

Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 111-153.

2. Ver: RÉMOND, René. (Org.). Por Uma História Política. Trad. Dora Rocha.

Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/FGV, 1996, p. 35-36.

3. HOBSBAWM, Eric J. ―Podemos escrever a História da Revolução Russa?‖. In:

__________. Sobre História: ensaios. Trad. Cid Knipel M. São Paulo: Companhia das

Letras, 2000, p. 266.

4. Trecho de um artigo assinado pelo militante Fernando Rosalba: Spártacus, ―Do

bolchevismo‖, ano1, nº14, 01/11/1919, p. 03.

5. Sobre os dados a respeito do jornal Spártacus consultar: DULLES, John W. F.

Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935). Trad. César Parreiras Horta. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 92.

6. BANDEIRA, Moniz; MELO, Clovis; ANDRADE, A. T. O Ano Vermelho: A

Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980,

p. 152. Esta declaração de Astrojildo os autores afirmam extrair de seu livro Formação

do PCB.

7. Boris Fausto salienta a importância e influência da imigração na ideologia e nos

modelos de organização da classe operária, e a importância das concepções anarquistas

para o surgimento de novas formas de luta na sociedade brasileira. Destaca também o

quanto o pensamento reacionário no Brasil entendeu esse fenômeno como uma ―planta

exótica‖, para rotular as correntes revolucionárias que surgiram na sociedade brasileira

como sendo algo ―estranho‖ à natureza do Brasil. Porém, o próprio autor afirma que no

caso do anarquismo brasileiro ―o papel da importação foi considerável‖. Ver: FAUSTO,

Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social (1890-1920). Rio de Janeiro/São Paulo: Difel,

1977, p. 32; 62-63.

8. BATALHA, Cláudio H. M. ―Formação da classe operária e projetos de

identidade coletiva‖. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lucilia de Almeida N. (Org.). O

Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República

à Revolução de 1930. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 172.

9. Cf: TOLEDO, Edilene. ―A trajetória anarquista no Brasil na Primeira

República‖. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão. (Org.). As Esquerdas

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no Brasil: A formação das tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2007. Vol. I, p. 63-66.

10. Os conflitos do anarquismo com o marxismo na primeira Internacional, e o

entendimento do anarquismo como também uma corrente do movimento socialista

internacional é discutida em: COLE, G. D. H. História del Pensamiento Socialista:

marxismo y anarquismo (1850-1890). Traducción de Rubén Landa. México: Fondo de

Cultura Económica, 1958. Vol. 2, p. 116-118.

11. Sobre este assunto especificamente ver: HOBSBAWM, Eric J. ―O

bolchevismo e os anarquistas‖. In: __________. Revolucionários: ensaios

contemporâneos. Trad. João Carlos C. Garcia e Adelângela S. Garcia. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1982, p. 67-79.

12. A respeito das idéias anarquistas ver: WOODCOCK, George. História das

Idéias e Movimentos Anarquistas. Trad. Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 2002.

Vol. 1: A idéia.

13. FERRO, Marc. O Ocidente diante da Revolução Soviética: a história e seus

mitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 61-62.

14. Há um livro interessante que fala da repressão política da Primeira República

brasileira, e no caso especificamente das articulações de governos e empresários de São

Paulo e Rio de Janeiro para construir uma ideologia anti-anarquista, ver: ALVES,

Paulo. A Verdade da Repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem

republicana (1890-1921). São Paulo. Editora Arte e Ciência/Unip, 1997, p, 10-11.

15. TOLEDO, op. cit. p. 60.

16. ANDREAS L, Doeswijk. Entre camaleões e cristalizados: os anarco-

bolcheviques Rioplatenses (1917-1930). (Tese de Doutorado). Unicamp, Campinas,

1998, p. 46.

17. Trecho de um artigo assinado por D. Fagundes: A Plebe, ―Socialismo?!‖,

ano5, nº117, 14/05/1921, p. 02.

18. BANDEIRA, op. cit. p. 160. E sobre a vida de Edgard Leuenroth e o jornal A

Plebe: KHOURY, Y. M. A. Edgar Leuenroth: Uma voz libertária – imprensa, memória

e militância anarco-sindicalistas. 320p. (Tese de Doutorado). USP, São Paulo, 1988.

19. A Obra, ―O bolchevismo: sua repercussão no Brasil‖, ano1, nº13, 15/09/1920,

p. 04.

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20. Ver: CUBERO, Jaime. ―Reflexos da Revolução Russa no Brasil‖. In:

Libertárias: 80 anos de Revolução Russa, nº 1. São Paulo: Imaginário, 1997, p. 33.

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O kirchnerismo na Argentina: memória, justiça e direitos humanos (2003-

2007)

Leonardo Mendes Barbosa

Resumo: A presente comunicação se propõe a caracterizar de forma pontual as

especificidades de um novo movimento político forjado na sociedade argentina entre os

anos de 2003 e 2007, o kirchnerismo, enfatizando a eleição presidencial vencida por

Néstor Kirchner e a opção pelo estabelecimento de políticas públicas de Estado de

condenação as violações perpetradas pelos militares na ditadura civil-militar de 1976-

1983.

Palavras-chave: kirchnerismo - políticas públicas - ditadura civil-militar.

Abstract: This notice proposes to characterize specific points of a new political

movement forged in argentine society between the years 2003 and 2007, the

Kirchnerism, emphasizing the presidential election won by Nestor Kirchner and the

option for setting public policies of state sentencing violations committed by military in

civil-military dictatorship from 1976 to 1983.

Keywords: Kirchnerism - public policy - civil-military dictatorship.

Introdução

Na história do tempo presente podemos observar diversas sociedades imersas em

processos dicotômicos que envolvem duas categorias elementares no processo de

estabelecimento de uma memória coletiva: lembrança e esquecimento.1 Povos,

sociedades e quiçá nações só conseguiram seguir em frente a partir do estabelecimento

definitivo e magistralmente entrosado de uma relação entre lembrança e esquecimento,

onde ―esquecer‖ tornar-se-ia fundamental em nome de uma ilusória convivência

pacífica, enquanto lembrar permitiria vislumbrar a superação no presente de questões

pendentes e necessárias de resolução, projetando assim um suposto futuro sem traumas.

Na América Latina é fato que temas como cidadania, justiça e direitos humanos

ficam mais na esfera dos debates governamentais e das assinaturas em convenções

internacionais e menos na instância da viabilidade prática. Na Argentina, ainda se busca

um real equilíbrio entre a sociedade e as instituições do Estado, e este, paulatinamente,

vem reconhecendo através do estabelecimento de políticas públicas a emergência de se

condenar as ações levadas a cabo por uma elite dirigente caracterizada por atos

terroristas com motivação política nos anos 70 e 80.

No presente trabalho pretendemos analisar como um novo movimento político se

forjou na sociedade argentina entre os anos de 2003 e 2007, o kirchnerismo – cujo lócus

de atuação político-partidária é o Partido Justicialista – reivindicando sua origem

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peronista de compromisso com a ampliação da cidadania social e de uma atuação mais

forte do Estado na relação com o privado, tendo como uma de suas bases de atuação o

desenvolvimento de políticas públicas de Estado com ações voltadas para a promoção

da justiça e a criação de uma memória acerca do que ocorreu àqueles que lutaram contra

a violência política produzida pela elite militar de 1976 a 1983, após um golpe de

Estado que derrubou a presidente eleita María Estela Martínez de Perón – então

conhecida como Isabel Perón –, e como tal acontecimento histórico e seus

desdobramentos ainda influenciam contemporaneamente as tomadas de decisões do

Estado argentino de acordo com as demandas sociais sobre tal temática ainda latente.

Torna-se necessário ressaltar que não temos como objetivo fazer uma história

marcada pelos pressupostos da velha história política dando ênfase a figura de Néstor

Kirchner, líder máximo do movimento kirchnerista, e de suas ações, mas sim, dar conta

da dinamicidade e mobilidade da sociedade argentina em dado momento de sua história

contemplando aspectos de sua cultura política que repercutiram nos meios econômico,

social e, principalmente, cultural em um período delimitado caracterizado por políticas

públicas que buscaram discutir a temática dos direitos humanos sob uma perspectiva da

promoção da memória e da justiça.

Nosso trabalho também tem como objetivo analisar questões que ainda afetam a

atual realidade das sociedades latinoamericanas, marcadas pelo desrespeito sistemático

a democracia e pela manutenção de práticas autoritárias nos campos ideológicos

conduzidos por regimes políticos de esquerda e de direita. A mobilização das

sociedades contra governos tirânicos se liga a denúncia e a não omissão frente aos

desmandos de atos terroristas que atentem contra a vida humana. A defesa de uma

sociedade com menos disparidades sociais, ampla no que se refere a cidadania dos seus

membros e à direitos diversos é um caminho a ser trilhado.

A eleição de Néstor Kirchner

Na Argentina, a ditadura militar de 1976 à 1983 foi altamente destrutiva para

todos os segmentos da sociedade e para as bases que a sustentavam, pois a cultura

política ainda marcada pelo retorno a democracia seria enterrada definitivamente com o

intento quase missionário de se transformar Estado e sociedade a partir da ―limpeza‖

dos elementos que sujavam a pátria com a prática da subversão aos valores cristãos e

ocidentais. A eliminação de qualquer discurso alternativo e a montagem de um eficiente

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1000

sistema de informação aliado à repressão extrema provocou assassinatos em série,

―desaparecimentos‖ e deixou marcas em gerações distintas. A condenação de tais atos

de forma mais contundente ocorre em seguida ao fim do regime repressivo, conforme

demonstra o trabalho realizado pela CONADEP – Comissão Nacional sobre o

Desaparecimento de Pessoas durante o Estado de terrorismo:

Esta Comisión entiende que resulta absolutamente indispensable la investigación

judicial de la integración de los grupos de tareas en la estructura represiva.

Entiende también que la posibilidad de determinar en definitiva la suerte de los

miles de desaparecidos pasa necesariamente por la individualización de los

componentes de los grupos de tareas, de sus responsables y dependencia orgánica

de las fuerzas armadas. Existen pruebas suficientes para avalar la existencia de

tales grupos y de su ubicación ‗legítima‘ en la estructura formal de las fuerzas

armadas.2

Indo ao encontro das proposições de Quiroga e Tcach3, entendemos que a

compreensão do autoritarismo argentino dos anos 70 não se separa do atual processo de

autocompreensão da sociedade argentina, pois as experiências crivadas pelas tensões

entre autoritarismo e democracia provocaram transformações profundas na capacidade

de se organizar e conviver dos argentinos.

A luta contra a impunidade desencadeada pelos movimentos sociais através de

protestos mais incisivos e a busca por uma relação fértil com os representantes do

Estado se mostra exitosa com a chegada de Néstor Kirchner ao poder presidencial, que

logo reconhece a necessidade do Estado pedir perdão à sociedade pelos anos de terror

político contra seus próprios cidadãos.4 O delineamento e a reconstrução de instituições

com compromissos republicanos e democráticos também se filiam a própria história

política de Néstor Kirchner que se forma ideologicamente nos anos 70 inserido nos

marcos do peronismo revolucionário.5

A eleição de Néstor Kirchner ocorre em um período de profunda crise política,

resultado da falência de um modelo político-social excludente que não contemplava a

participação popular e as demandas manifestadas pelos movimentos organizados da

sociedade civil. A inexistência de políticas públicas direcionadas a determinados grupos

dessa sociedade ou a imposição de cima para baixo de medidas impopulares

deslegitimavam o processo político e colocavam os representantes estatais em uma

situação de permanente contestação.

Nesse ínterim, é de suma importância contextualizar a promoção de políticas

públicas contra a impunidade, pela memória e pela justiça, todas vigentes, a partir de

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um quadro abrangente de construção e desenvolvimento de uma cultura política

marcada nos anos de 2003 a 2007 por profundas transformações na cúpula das forças

armadas, na área de segurança pública e direitos humanos, no poder judiciário, nas

instituições do Estado no que tange a relação do poder executivo com a sociedade e na

representação desta no âmbito político partidário.

A ditadura civil-militar de 1976-1983

Pode-se afirmar que a atual produção historiográfica argentina sobre a ditadura

militar de 1976 a 1983 tem apresentado como ponto central o estímulo a uma reflexão

coletiva sobre tal período, pensando criticamente sobre o que se passou e a real

contribuição de parte dos cidadãos argentinos para a consolidação do regime autoritário

– quadro muito diferente de um primeiro momento onde o Estado autoritário e a sua

classe dirigente eram eleitos pela sociedade, e de forma refletida na historiografia, como

os únicos responsáveis pelos excessos do regime.

Essas novas reflexões, oriundas do comportamento do povo argentino frente à sua

própria história, também se propõem a discutir como tal sociedade,

contemporaneamente, processa tais fatos e os incorpora em sua memória coletiva,

logrando perspectivas de desenvolvimento, sem deixar de ter consciência dos erros do

passado e do próprio presente no que tange os avanços e os retrocessos na formação de

uma memória para os anos de violência política. O estabelecimento de um regime

autoritário entre os anos de 1976 e 1983 não é uma exceção na história política recente

da Argentina, pois de 1930 a 1973 quinze presidentes ocuparam o poder, sendo onze

militares, e apenas dois conseguiram cumprir o tempo constitucionalmente previsto para

os seus mandatos:

O processo não foi fundamentalmente diferente entre 1973 e 1976, sob os

diferentes governos peronistas que se sucederam antes do golpe de Estado de

março. Foi por causa dos mesmos mecanismos que os militares, expulsos do poder

a 25 de abril de 1973 por uma violenta corrente eleitoral, sob a reprovação quase

que universal, conseguiram três anos mais tarde fazer esquecer o imobilismo

autoritário e a impopularidade de sete anos de ―governo das forças armadas‖

(1966-1973) e impor-se novamente através da violência, a uma opinião pública

aturdida, mas aliviada.6

Na luta contra a subversão, todos aqueles que pertencessem a guerrilha perderiam

a condição de ser ―argentino‖, o direito a cidadania e a justiça já que o terrorismo

deveria ser extirpado da sociedade, quando na verdade se estabelecia pelas mãos da

Junta Militar, de forma cada vez mais incisiva, o Estado de terrorismo. No governo do

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1002

General Videla a repressão extrema geralmente culminava na execução patrocinada pelo

Estado, como é precisamente demonstrado por Romero:

Essa era a decisão mais importante, tomada nos mais altos níveis operacionais,

como a chefatura de cada um dos corpos do Exército, depois de uma análise

cuidadosa dos antecedentes, da utilidade potencial ou da ‗responsabilidade‘ dos

detidos. Apesar de a Junta Militar ter estabelecido a pena de morte, esta nunca foi

aplicada, e todas as execuções foram clandestinas. Às vezes, os cadáveres

apareciam na rua, como se tivessem morrido em confrontos ou tentativas de fuga.

Em outras ocasiões, pilhas inteiras de corpos foram dinamitadas, como uma

represália espetacular a alguma ação guerrilheira. Mas, na maioria dos casos, os

cadáveres eram ocultados, enterrados em cemitérios como indigentes, queimados

em valas coletivas, cavadas pelas próprias vítimas antes de serem fuziladas, ou

lançados ao mar presos a blocos de cimento, após serem postos para dormir com

uma injeção. Assim, não houve mortos, apenas ―desaparecidos‖. 7

Os três primeiros anos da ditadura militar se constituiriam em um verdadeiro

genocídio, com a política de extermínio adotada pelo governo sendo plenamente

colocada em prática, objetivando assim eliminar todo ativismo, protesto social e

pensamento crítico que pudessem trazer a tona algum tipo de movimento popular.

Sobre os anos de ditadura militar nos aproximamos das premissas apresentadas

por Marcos Novaro e Vicente Palermo na obra La dictadura militar 1976-1983: del

golpe de Estado a la restauración democrática, cuja análise demonstra como foram os

anos de terror sem ignorar os elementos de continuidade com o presente. Igualmente

fundamentais são as proposições discutidas por Luiz Alberto Romero que contextualiza

a história política argentina demonstrando as especificidades do peronismo para o

quadro político-institucional argentino com tal cenário sendo nomeado como uma das

justificativas para o golpe de 1976, além de demonstrar a vivacidade desse movimento

político na redemocratização e as novas questões enfrentadas pela sociedade argentina

nesse período.

O Kirchnerismo

No estudo do movimento kirchnerista e do desenvolvimento de suas políticas

públicas pela memória e pela justiça recorremos a um conjunto de análises pertencentes

a história e as ciências sociais, com ênfase nas postulações encontradas novamente em

Novaro e Palermo, organizadores da obra La historia reciente: Argentina en

democracia. A compreensão da tradição peronista do movimento kirchnerista tem como

uma das bases da nossa análise as formulações de Eduardo Jozami8 que demonstra com

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perspicácia as diferenças entre Néstor Kirchner e Carlos Menem, ambos protagonistas

de disputas dentro do Partido Justicialista e das eleições vencidas por Kirchner.

As críticas mais acentuadas a certos aspectos da cultura política kirchnerista segue

o intento de demonstrar o perigo que é a chegada ao poder de um suposto líder

personalista que visa apenas seus projetos pessoais e coloca as instituições do Estado a

serviço do seu grupo político. A retórica de defesa dos direitos humanos e de renovação

da política defendida pelo kirchnerismo não se comprovaria na prática, segundo os

opositores, pois o governo não permite que a sociedade manifeste suas vontades,

aproveitando-se de um débil quadro de enfraquecimento dos partidos políticos e de

descrença dos cidadãos na política, o que enfraquece a oposição e permite o avanço do

domínio do aparelho estatal por um movimento cujo líder personifica uma espécie de

autoritarismo e o centralismo na condução da coisa pública. 9

Essa perspectiva que

enquadra o kirchnerismo como um movimento autoritário é desconstruída por Moreira e

Barbosa:

El kirchnerismo utilizó las tradicionales prerrogativas que los presidentes tienen en

Argentina para tomar decisiones, como los decretos de necesidad y urgencia, o

realizó algunos cambios de las reglas siguiendo los caminos institucionales, y en

eso fue menos autoritario y más, un gobierno que aprovechó los espacios

institucionales para concentrar la gestión en la figura del Presidente.10

O conceito chave que percorre todo o nosso trabalho de compreensão do que é o

kirchnerismo e como o mesmo se forma no período que nos propomos analisar, é o de

cultura política, conforme as proposições de Serge Berstein. Buscando compreender o

que caracteriza a cultura política, Berstein admite que seu significado é complexo e

junto com Jean-François Sirinelli entende que o conceito pode ser desenvolvido a partir

da idéia de que é ―uma espécie de código e de um conjunto de referentes, formalizados

no seio de um partido ou, mais largamente, difundidos no seio de uma família ou de

uma tradição políticas‖11

.

A História Cultural há muitos anos tem se situado no centro de uma importante

renovação dos estudos históricos sobre as sociedades humanas e a referência ao político,

a partir da École des Annales, gerou análises tanto depreciativas quanto brilhantes no

âmbito dos estudos produzidos pelos historiadores filiados as perspectivas teórico-

metodológicas defendidas por essa escola historiográfica. A cultura política também se

insere no processo de renovação da história política e emerge como chave explicativa

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dos comportamentos políticos no decorrer da história sendo de fundamental

importância:

Em outras palavras, uma cultura política surge em resposta a um problema da

sociedade e vai-se tornando cada vez mais complexa ao longo de um processo por

vezes muito lento que lhe permite transformar-se, adaptar-se à evolução da própria

sociedade. Ela só se torna verdadeiramente operacional quando suscita a adesão de

grupos importantes da sociedade, após ter progredido nas mentes que pouco a

pouco se vão habituando ao seu discurso, às soluções por ela propostas, e que

acabam por interiorizá-la. É então, somente então, que ela se torna um dos móveis

do comportamento político.12

Os elementos que compõem a cultura política formam um conjunto coerente onde

todos esses componentes se vinculam possibilitando a formação de uma identidade do

indivíduo que dela se reclama. A cultura política preenche simultaneamente uma

―leitura comum do passado‖ e uma ―projeção no futuro vivida em conjunto‖. Analisar o

político a partir do conceito de cultura política só tem validade se o mesmo oferecer a

possibilidade de se compreender os fenômenos que se propõe a explicar, ou seja, a

cultura política não deve ser apenas um termo técnico do trabalho do historiador, mas

ter utilidade.

A cultura política apresenta uma dupla função que se estabelece simultaneamente,

se colocando como um fenômeno individual, interiorizado pelo homem, e um fenômeno

coletivo, partilhado por grupos numerosos. Sendo apenas um dos componentes da

cultura da sociedade, Berstein afirma com coerência que a cultura política é um dos

elementos mais interessantes e importantes da história cultural, pois contribui para a

compreensão das motivações dos atos humanos em determinado momento de sua

história.

Nosso trabalho se beneficia da contribuição de outras disciplinas, todavia, a

ênfase conferida às análises da sociologia e da ciência política sobre o nosso objeto de

estudo se liga a preocupação de compreender a real dimensão dessa nova fase da cultura

política argentina tendo como recorte temporal o período que se refere ao exercício do

poder pelo então presidente Néstor Kirchner; nos interessa também compreender o

papel dos movimentos sociais através da análise da relação dialética que se estabeleceu

nesse momento com o Estado visando a promoção de políticas públicas voltadas para as

áreas de direitos humanos e justiça, além da criação de uma memória sobre a repressão

política dos anos 70 e início dos anos 80. Sobre a política kirchnerista de direitos

humanos e justiça, Atílio Boron afirma que:

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Em matéria de direitos humanos: uma nova legislação, que acabou com a impunidade dos

genocidas, e uma série interminável de gestos e iniciativas que causaram profundo impacto – mas

também profundas divisões – nos organismos de defesa dos direitos humanos, mas que, pela primeira vez,

demonstravam uma firme determinação governamental de dizer a verdade e fazer justiça; depuração da

Suprema Corte de Justiça, cúmplice da pilhagem e corrupção dos anos noventa.13

E analisando a atuação do kirchnerismo frente as políticas de direitos humanos,

memória e justiça, Moreira e Barbosa entendem que:

(…) la gestión kirchnerista provocó dos grandes rupturas con respecto a las

anteriores administraciones en la cuestión de los derechos humanos: por un lado,

asumió como política de Estado la condena a las violaciones de estos derechos

cometidas por los integrantes de la última dictadura militar, con lo que rompió

con la teoría de los dos demonios seguida (ya sea por conveniencia política o por

convicción) por los anteriores gobiernos constitucionales desde 1983, y por otra

parte enarboló la cuestión de la memoria como una bandera a seguir, apoyando

en este sentido las reivindicaciones históricas de los movimientos de defensa de

los derechos humanos como la Asamblea Permanente por los Derechos

Humanos (APDH) y Madres y Abuelas de Plaza de Mayo, entre otras. De esta

manera se retomaron los juicios a todos los integrantes de las fuerzas armadas o

de seguridad sospechados de violaciones a los derechos humanos y que, ya sin el

amparo de las leyes de Punto Final y Obediencia Debida, pudieron ser llamados

a comparecer ante la Justicia.14

O sociólogo Julio Godio na obra El tiempo de Kirchner, demonstra como a

sociedade argentina, a partir de uma profunda crise social e política, viveu um período

de intensa transformação no que se refere as práticas políticas forjadas nos governos que

antecederam a formação do kirchnerismo como força política. Os partidos políticos

estavam debilitados socialmente, sem legitimidade, o que incluía o partido de Kirchner,

o Partido Justicialista, contudo, a nova liderança nacional se apresentava como

propositor de uma nova corrente dentro do peronismo, se colocando como uma

alternativa nacionalista e desenvolvimentista de tipo keynesiana contrária as forças

neoconservadoras-liberais representadas por Carlos Menem, pois ―Kirchner aspira a

conformar um gobierno nacionalista, neodesarrolista y peronista superador de las

prácticas de la vieja política‖.15

Considerações finais

Enfim, por mais que pensar o futuro implique em pensar um passado de dor e

angústia, a sociedade argentina no curso do seu processo histórico resolveu optar pela

lembrança ao invés de cair na tentação do esquecimento. Gerações que se perguntaram

onde estavam seus filhos e netos hoje ganham a companhia daqueles que desejam saber

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onde estão seus pais, onde estão esses cidadãos argentinos e quem foram os

responsáveis pelo desaparecimento e assassinato deles. O kirchnerismo tem se proposto

a responder tais questionamentos através de políticas públicas que contemplam os

direitos humanos, a reparação jurídica frente as violações e a criação de uma memória

sobre os anos de repressão política que indubitavelmente visa condenar os crimes

praticados por uma elite dirigente golpista.

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ, sob orientação da Prof.ª Dr.ª

Maria Teresa Toríbio Brites Lemos. Pesquisa feita através de apoio financeiro da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

1 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: Puc/SP,

1993. p. 9. 2

CONADEP. Nunca más - Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas. 8ª edición.

Buenos Aires: Eudeba, 2007. p.259. 3 QUIROGA, Hugo e TCACH, César. A veinte años del Golpe con memória democrática. Rosario: Homo

Sapiens Ediciones, 1996. 4 Le Monde Diplomatique - Brasil. Argentina, 25 anos contra a impunidade. Ano 3, Número 31, Fevereiro de

2010. pp.18 e 19.

5 GODIO, Julio. El tiempo de Kirchner: el devenir de una revolución desde arriba. Buenos Aires: Letra

Grifa, 2006. Colección Política Pensada. pp. 35 e 36 . 6 ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984. p. 323.

7 ROMERO, Luiz Alberto. História Contemporânea da Argentina. Trad. Edmundo Barreiros. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2006. pp. 198-199. 8 JOZAMI, Eduardo. Dilemas del peronismo. Ideologia, historia política y kirchnerismo. Buenos Aires:

Editorial Norma, 2009. 9 QUIROGA, Hugo. La República desolada: los câmbios políticos de la Argentina 2001-2009. Buenos Aires:

Edhasa, 2010.

SARLO, Beatriz. La audácia y el cálculo: Kirchner 2003-2010. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. 10

MOREIRA, Carlos & BARBOSA, Sebastián. El kirchnerismo en Argentina: origen, apogeo y crisis, su

construcción de poder y forma de gobernar. Sociedade e cultura – Revista de Ciências Sociais. Goiânia:

Universidade Federal de Goiás, v. 13, n.2, p.193-200, jul/dez. 2010. p. 195. 11

BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: Jean-Pierre Rioux & Sirinelli. Para uma história cultural.

Lisboa: Estampa, 1998. p. 349-363. 12

_____________. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Cecília (Org.) et al. Cultura política,

memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. pp. 38-39. 13

BORON, Atílio. Néstor Kirchner e as desventuras da “centro esquerda” na Argentina. Revista Lutas

Sociais, n.17/18, junho de 2007. p.18. 14

MOREIRA, Carlos & BARBOSA, Sebastián. El kirchnerismo en Argentina: origen, apogeo y crisis, su

construcción de poder y forma de gobernar. Sociedade e cultura – Revista de Ciências Sociais. Goiânia:

Universidade Federal de Goiás, v. 13, n.2, p.193-200, jul/dez. 2010. p. 196-197. 15

GODIO, Julio. El tiempo de Kirchner: el devenir de una revolución desde arriba. Buenos Aires: Letra

Grifa, 2006. Colección Política Pensada. p. 49.

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O choro: uma visão sobre a questão dos limites e possibilidades

para a inserção do negro na sociedade brasileira através da música.

Leonardo Santana da Silva.1

Resumo:A presente comunicação objetiva analisar reflexivamente a inserção do negro

na sociedade brasileira através do choro. Nossa proposta é estudar a relação entre o

―choro‖ e a inserção social, no período que compreende o final do século XIX e início

do século XX. Este novo gênero musical será um divisor de águas na história cultural,

na medida em que, a partir do período referido, o choro pode ser considerado o embrião

para o desenvolvimento de uma música popular genuinamente brasileira.

Palavras-chave: inserção social – gênero musical – músicos chorões.

Abstract: This communication is an object of study analysis of the historiographical

point of view on entering the black in Brazilian society through crying. Therefore, our

proposal is to study the relationship between the "crying" - new musical style built by

black musicians of the lower middle classes - and social inclusion, in the period

comprising the late nineteenth and early twentieth century. This new genre, so it will be

a watershed moment in cultural history (in the case of the musical point of view of our

society), to the extent that, from that period, the cry can be considered the embryo to the

development of a genuinely Brazilian popular music.

Keywords: social integration – music genre – musicians whiners.

Introdução:

O texto que apresentaremos nesta comunicação é resultado de algumas reflexões de nossa

pesquisa de mestrado. A relevância de nosso estudo está em uma nova abordagem, a saber,

como uma produção cultural fundamentalmente negra vai servir de instrumento a uma possível

inserção social. Esta pesquisa tem como originalidade o próprio tema sugerido, visto que

existem dois vieses específicos que conseqüentemente abordará dois temas distintos. Neste

caso, um está relacionado à questão da contribuição social do negro afro-brasileiro em nossa

sociedade, assim como, o outro está relacionado ao ponto de vista cultural através da criação de

um novo estilo musical num primeiro momento.

Assim sendo, esta nova maneira de se executar a música seria um marco divisor na

história da música popular brasileira, pois sobre a égide desses músicos negros denominados de

chorões, o estilo criado se tornaria um gênero musical consolidado. De um modo geral, nossa

proposta é justamente a junção dos dois temas. Deste modo, a investigação apresentada no

sentido teórico-metodológico dentro das especificidades, propõe evidenciar a inserção e

conseqüentemente a trajetória social deste negro através desta prática cultural.

Choro e chorões – conceitos e historiografia.

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Ao propormos tal pesquisa, não poderíamos deixar de fazer referência a algumas questões

que nos farão compreender um pouco mais este universo fascinante que é a nossa cultura,

representada, neste caso, pela música popular brasileira. Para iniciar a discussão sobre este tema

sedutor que é o choro, faço minhas as palavras do grande músico brasileiro, o maestro Heitor

Villa-Lobos, que definem o seu significado de modo simples e brilhante: ―o choro é a alma

musical do povo brasileiro‖.

Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que o período no qual surge o choro, a

sociedade brasileira era escravista (1870), embora o sistema escravista estivesse em um

processo de esgotamento. Nesta trajetória muitas medidas foram tomadas para a libertação do

negro, sejam elas através de leis emancipacionistas gradualistas (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do

Ventre Livre e Lei dos Sexagenários), alforrias concedidas, pecúlio legal, formas de resistência

de um modo geral, enfim as várias maneiras de se ver livre deste sistema opressor, o que deve

ser colocado é que só através da abolição da escravidão é que esta liberdade será legitimada.

Então fica claro que se manter como parte integrante desta sociedade, era uma tarefa árdua para

estes negros, considerando que para as elites, o negro era visto de maneira estigmatizada.

Portanto mesmo após a República instaurada houve uma resistência nas mentalidades das

camadas superiores desta sociedade, no entanto o negro que a partir deste momento da história

passa a ser livres continua a ser mal visto diante daqueles que ainda possuía aquela visão

escravista enraizadas em suas mentes.

Desta forma, buscaremos repensar as novas possibilidades de uma inserção do negro a

partir de um momento que a sua liberdade é recente. Assim, colocar em prática o estudo deste

objeto nos permite cada vez mais, entender um processo histórico que é muito discutido até os

dias de hoje.

Neste sentido, o movimento cultural popular pode ser analisado como fator de inserção de

determinados setores sociais, no caso específico a ser investigado, refere-se à questão do negro.

Utilizaremos as categorias e conceitos dos seguintes pesquisadores e historiadores: André

Diniz, José D`Assunção Barros, Ary Vasconcelos e José Ramos Tinhorão. No livro intitulado

de Joaquim Callado o pai do choro, seu autor o pesquisador André Diniz, discorre sobre a

trajetória inicial deste novo estilo musical, passando para origem do seu gênero propriamente

dito, consolidado como uma nova identidade musical. O autor cita também, pelo menos quatro

versões sobre a origem da palavra choro. São elas: a definição de Baptista Siqueira (maestro); a

do folclorista Luís da Câmara Cascudo; a do pesquisador Ary Vasconcelos e a do pesquisador

José Ramos Tinhorão. Em relação a estas definições, faremos sua exposição no item destinado

ao quadro teórico.

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A obra mostra a miscigenação dos gêneros musicais tanto europeus, quanto o africano,

iniciando então a sua nacionalização. Isso significa a transformação destes estilos para outro

propriamente popular brasileiro.

O autor André Diniz demonstra as diversas gerações destes chorões, além de narrar o

cenário do ambiente social, econômico e político do Rio de Janeiro neste período, evidenciando

que os chorões, vinham das camadas médias da sociedade, ou seja, trabalhadores dos correios,

telégrafos, bandas militares, pequenos cargos públicos, entre outros.

Em se tratando dos conceitos formulados pelo historiador José D`Assunção, nos

apropriaremos de duas obras de sua autoria, cujo o conteúdo se enquadra perfeitamente ao tema

proposto desta pesquisa. O primeiro é o livro denominado de: O Brasil e a sua Música.

Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. O autor relata num primeiro momento a história da

chegada dos negros africanos no Brasil, em virtude da colonização e as várias fases da

escravidão até a o período Imperial. O que podemos compreender neste momento inicial da obra

é a presença de uma representação e descrição conjuntural da condição socioeconômica deste

período – séc. XVI – XIX.

O historiador José D`Assunção, analisa a questão relacionada à construção da identidade

afro-brasileira, devido ao processo de miscigenação das raças, resultando assim, numa formação

de um novo padrão cultural. Esta mistura racial demonstra ser um caráter positivo

principalmente no âmbito cultural. Ainda imerso a esta obra, José D`Assunção fala claramente

da importância deste encontro inter-étnico, que possibilitou diferentes experiências musicais não

só no Brasil como nas Américas de um modo geral. Um exemplo crucial disto é o blues, o jazz,

o samba, o chorinho e a bossa-nova.

Outro ponto que merece muita atenção é a contribuição trazida pelas danças e ritmos de

origem africanas e européias, que ao se misturarem, originaria numa nova forma musical na

esfera popular, erudita e folclórica brasileira. Ex: maracatu, congada, jongo, lundu, polca

maxixe, batuque, samba, afoxé, frevo, chorinho, etc.

Vejamos agora algumas diretrizes estabelecidas por este mesmo autor, em sua segunda

obra denominada de Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis

primeiras décadas do século XX. Embora este seu livro esteja mais especificamente direcionado

para a construção do caráter nacional e moderno dentro da música erudita brasileira, o autor

desenvolve um capítulo interessante, onde relaciona a influência do ―choro‖ na música erudita

brasileira.

O historiador José D`Assunção esclarece ainda a questão do que vem a ser o ―choro‖.

Assim sendo, ele fala sobre os elementos que constrói este gênero musical, evidenciando a

interação dos rudimentos folclóricos rurais e regionais do Brasil com a música estrangeira.

Afirma que a palavra ―choro‖ surgiu para designar um estilo de grupo formado por músicos

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populares da época. O autor ainda descreve sobre a primeira formação musical original, ou seja,

a estrutura instrumental inicial (flauta, violão e cavaquinho) e a função de cada instrumento.

Menciona também a inclusão de outros instrumentos na sua composição no decorrer dos anos.

Outra idéia que nos chama a atenção é quando José D`Assunção especifica a passagem do

termo ―choro‖ (nome atribuído primeiramente por causa da formação musical instrumental),

para a consolidação do termo, passando a converter-se em um novo gênero musical. Esta

passagem ocorre quando estes músicos passam a adotar uma peculiaridade em sua execução

musical, ou seja, uma execução mais ligeira adquirindo assim uma identidade própria.

A visão que iremos trabalhar agora é de outro intelectual fundamental nesta discurssão:

Ary Vasconcelos. Dentre algumas obras de referência em relação ao tema a ser investigado,

utilizaremos seu livro chamado Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro, com o

propósito de elucidar um pouco mais a nossa apresentação.

No seu livro o autor aponta em que contexto nasce o ―choro‖: 1870 – final da Guerra do

Paraguai. Ressalta que o choro não é propriamente um gênero musical no seu início, mas a

designação de um conjunto instrumental que logo se transformou num jeito brasileiro de se

executar a música de gênero dançante vindo da Europa.

O livro segue com a divisão das gerações de chorões e a importância destes chorões em

sua respectiva época, ressaltando cada momento das diversas fases do ―chorinho‖. Uma

observação importante que deve ser destacada é o período da 3ª geração dos chorões (1919-

1930), onde surge o maior nome do choro de todos os tempos: Pixinguinha. É neste momento

que o choro, segundo Ary Vasconcelos, irá chegar ao seu ápice. Aponta que em 1919 será

formado os Oito Batutas, o mais importante grupo de choro existente. Com a formação deste

conjunto, temos algumas mudanças significativas na composição instrumental, como por

exemplo, o ingresso da percussão no choro. Outra mudança é no campo social, pois na maioria

das vezes o choro era executado apenas em festas nos subúrbios cariocas, passando a ser

executado em festas da alta sociedade para figuras importantes destas classes elitizadas,

demonstrando uma convivência mais direta entre estas classes. O autor nos dá exemplo da

ocasião em que os reis da Bélgica estiveram no Brasil, e foram executados ―chorinhos‖ para

essa realeza. Mais um exemplo foi o financiamento de uma turnê pela Europa para os Oito

Batutas, sendo essa de suma importância, devido à divulgação de nossa cultura fora de nosso

território nacional.

Trabalhemos então neste momento os ensinamentos formados por José Ramos Tinhorão.

Na obra, História da Música Popular Brasileira, fala do surgimento da música popular

brasileira através de barbeiros. Afirma que devido às habilidades múltiplas dos barbeiros e a sua

condição privilegiada, por desenvolver uma atividade liberal, tinham tempo para o

desenvolvimento e aprendizagem de outras funções; dentro delas, a mais procurada, seria a

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música. Destaca a presença de uma mistura de músicas, danças, batuques, percussão e de

tambores negros, que surgiram na Bahia e no Rio de Janeiro, na metade do séc. XVIII,

demonstrando ser o embrião para o nascimento do choro.

O autor relata a condição sociocultural desses instrumentistas negros (barbeiros),

destinados a um novo ―serviço urbano‖: ―a música‖. Deste modo, estes músicos passaram a ser

as principais figuras direcionadas a diversão em festas tanto na esfera pública quanto na esfera

privada. É neste contexto que o choro vai surgir, através da transformação da música de

barbeiros. Tinhorão indica a condição socioeconômica destes músicos, destacando suas camadas

e áreas de trabalho: funcionalismo público, funcionários dos correios, repartições civis e

militares, telégrafos, casa da moeda, estrada e ferro Central do Brasil e entre outras.

Em se tratado dos chorões, podemos destacar alguns nomes importantes, que compreende

o período da fase inicial do ―choro‖. Dentro desse contexto, temos Joaquim Callado (flautista e

compositor) considerado pioneiro e pai dos ―chorões‖, Virgílio Pinto (flautista e compositor),

Saturnino (flautista), Juca Vale-violão (violonista), Miguel Rangel (flautista), Luizinho

(flautista), Viriato Figueira (flautista e saxofonista) entre outros.

André Diniz, em ―almanaque do choro‖, assim se refere:

Mestiço simpático, exímio flautista, mulherengo, e muito popular na cidade do Rio

de Janeiro, Joaquim Callado era filho da primeira geração do choro. Ao seu lado

estavam Viriato Figueira, também flautista e saxofonista, Virgílio Pinto,

compositor e instrumentista, e o flautista Saturnino, entre tantos outros músicos

que ajudaram na criação do choro.

Geralmente o único que sabia ler a partitura, o flautista tinha papel

importantíssimo nos grupos de choro, pois incentivava o gosto pelo choro

aguçando as qualidades musicais dos acompanhadores de ouvido.2

Faremos agora um apanhado sucinto do que é o choro em se tratando do seu conceito,

pois a origem da palavra choro em si possui muitos sentidos, por esta razão, vão existir

diferentes concepções designadas para justificar e legitimar o nome dado a este novo estilo

musical, que ao passar do tempo, tornou-se um novo gênero na música popular brasileira.

O choro vai surgir com a evolução da chamada música de barbeiros (estilo de música

vinda das camadas urbanas, onde se misturavam músicas, danças e batuques a base de

instrumentos de percussão negra, com os estilos brancos e mestiços), cedendo o lugar para a

criação de uma nova maneira de se executar a música que aqui havia:

O espírito de confraternização desses músicos se revela através do ―choro‖, música

que surgiu a partir da fusão do lundu, ritmo de sotaque africano à base de

percussão, com gêneros europeus. Suas interpretações musicais, ao sabor da

cultura afro-carioca, era o tempero para as audições nos ―arranca-rabos‖ e cortiços

das chamadas populares, nos bailes da classe média – batizados, aniversários,

casamentos – ou mesmo nos salões da elite da corte de D. Pedro II.3

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Desta forma, temos como elementos básicos para a sua caracterização os seguintes

pontos: em primeiro lugar, é a sua formação instrumental original, que consistia de três

instrumentos básicos; flauta, violão e cavaquinho:

Nos seus primórdios mesmo, particularmente na cidade do Rio de Janeiro que é o

seu berço, a palavra Choro surgiu para designar um tipo de grupo formado por

músicos populares. A formação de raiz era o chamado ―terno‖, que consistia de

uma flauta, de um violão (ou dois) e um cavaquinho.4

A segunda característica fundamental é a composição dos diversos gêneros estrangeiros,

sobretudo europeus, acoplado a ritmos africanos. A terceira característica, e, por conseguinte a

principal, seria a questão de transformar todos esses elementos em um jeito brasileiro de se

executar a música:

As interpretações diferenciadas dos gêneros estrangeiros da época – como a polca,

valsa, o xótis, a quadrilha – fizeram nascer um jeito ―brasileiro‖ de tocar. O choro

do século XIX surgiu como uma maneira de frasear, ou seja, um estilo de executar

os gêneros europeus. A influência européia, portanto era clara, mas não foi à única.

O lundu era outro rio que iria desembocar no novo ritmo.

Principal ritmo de origem africana a aportar no Brasil, o lundu, música à base de

percussão, palmas e refrões, era cultivado pelos negros desde os tempos de

trabalho escravo nas lavouras de açúcar da Colônia.5

O que queremos dizer é que boa parte da produção musical que se tinha no Brasil neste

período era vinda da Europa, porém, não podemos deixar de mencionar a existência de uma

música proveniente das senzalas, assim como nas aldeias indígenas. Então, foi através deste

repertório musical que os músicos brasileiros passam a executar tais obras com seus próprios

estilos, ou seja, dizendo numa linguagem mais popular, seria um jeito de tocar mais

abrasileirado. Logo, com o passar do tempo, essa forma de executar as músicas estrangeiras

começam a ceder lugar para o repertório criado através das composições próprias que os

chorões haviam realizado. Portanto, se iniciaria uma nova etapa da música passando a existir

não só uma maneira de tocar, como também um gênero musical brasileiro propriamente dito.

Desta forma, esta comunicação buscou pontuar e, conseqüentemente repensar

objetivamente as novas possibilidades de uma inserção do negro a partir de um momento que a

sua liberdade é recente. Assim, colocar em prática o estudo deste objeto nos permite cada vez

mais entender um processo histórico que é muito discutido até os dias de hoje cujo movimento

cultural popular pode ser analisado como fator de inserção de determinados setores sociais a

uma sociedade de classes que, no caso específico a investigado, refere-se à questão do negro

brasileiro.

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1 Mestre em História Social / USS. Professor do Conservatório Brasileiro de Música.

[email protected]. Tel. (21) 9246-9690. Rua Cônego de Ananias, 550 Aptº 101 – Itaocara / RJ

Cep: 28570-000 2 DINIZ, André. Joaquim Callado o pai do choro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 15.

3 Idem, Almanaque do choro: A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed. Rio de

Janeiro Jorge Zahar Editor, 2003, p. 14. 4 BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis

primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: CBM – CEU, 2004, p. 257. 5 Idem, DINIZ, André. Almanaque do choro. Op. Cit., p. 17.

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História Diplomática e Relações Internacionais: Uma Abordagem

Historiográfica

Leonel Victor Soares Caraciki1

Resumo: Com o presente artigo, pretende-se discutir como o campo da história das

relações internacionais tem sido desenvolvido no Brasil e com oele tem sido objeto de

reflexão crítica. Trata-se de propor ruma reflexão sobre os desafios de sua escrita,

apresentando algumas das obras que influenciaram essa concepção que chamamos de

―História Diplomática Renovada‖ ou mais acertadamente, ―História das Relações

Internacionais‖

Palavras-chave: historiografia, relações internacionais, história diplomática

Abstract: With this article, we intend to discuss how the field of the history of

international relations has been developed in Brazil and how it has been the subject of

critical reflection. A reflection on the challenges of its writing is proposed, by

presenting some of the works that influenced this concept that we call "Renewed

Diplomatic History" or as it is usually defined, "History of International Relations"

Keywords: historiography, international relations, diplomatic history

O presente artigo tem como objetivo passar em revista a produção relativa a

história diplomática e das relações internacionais, fazendo uma ponte com a situação

brasileira. Pretende-se, ao fim, levantar algumas questões sobre a escrita deste campo,

seus desafios e possíveis horizontes.

Ao pensar em história diplomática é muito comum que o historiador profissional

se remeta diretamente às críticas elaboradas pelos integrantes dos Annales, que a

classificavamao lado da história metódica como ―historicizante‖ e evenementiélle,

desprezando os problemas reais ao tratar apena da ―espuma‖ do processo histórico.

Quando o grupo de Marc Bloch propõe o alargamento da história para além das

políticas de Estado, as fontes clássicas da história diplomática, ou seja, a documentação

interna das chancelarias, aparecem como reproduções do discurso oficial e pouco

interessantes para servir como fontes de pesquisa.

O tríptico ―economia-sociedade-civilização‖ desaloja o binômio metódico

―história factual-política‖ do centro do pensamento histórico2, ao mesmo tempo que se

pronuncia, no início do século XX, a estruturação disciplinar das Relações

Internacionais como um campo de pesquisa autônomo. Tal conjuntura coloca a história

diplomática na desconfortável posição de não atender nem ao seu campo original, a

história, nem a disciplina que influenciou.

Parece possível que tal impasse se reflita na atual produção historiográfica da

história diplomática/das relações internacionais, que não foi capaz de acompanhar a

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renovação geral da história política, capitaneada por René Remond na coletânea de

artigos ―Por uma História Política‖, e igualmente, não produziu um corpus de obras

que lhe possibilitaria um maior espaço de reflexão na academia, permitindo que o trato

de uma ―história internacional‖ fosse cerceado pelas Relações Internacionais.

Para uma maior clareza no trato do tema, é necessário tecer uma diferenciação

entre a história diplomática e a das relações internacionais. A primeira se ocupava com

o ―estudo dos acontecimentos internos das grandes potências européias, dos

movimentos coletivos e forças que resultam da experiência institucional, religiosa e

social, e das relações entre os Estados, dando ênfase ao confronto entre estes3‖. Já a

denominada ―história das relações internacionais‖ pretende-se mais ampla, evocando

um fenômeno mais abrangente que diplomacia e política exterior, incluindo em sua

análise os atores não-estatais e suas relações no campo internacional, assim como a

sociedade com suas forças4.

I – Considerações sobre a ―periferização‖ da história das relações internacionais

A quebra e a consequente reorganização do sistema europeu ao fim da Primeira

Guerra Mundial impôs alguns desafios para os estudiosos e politicos do continente.

Como explicar o rápido processo de desmonte dos Impérios Austro-Húngaro e

Otomano, ou da mudança de fluxo de poder que rapidamente se polarizou para os

Estados Unidos? Como dar inteligibilidade as novas necessidades de negociação e

reivindicações oriundas de uma nova ordem internacional? Tais questões deram origem

ao campo disciplinar conhecido como ―Relações Internacionais‖. Indo além da análise

descritiva de negociações entre partes no jogo diplomático, seus fundadores procuravam

teorizar como se dava o funcionamento do sistema inter-Estados, ultrapassando as

interpretações do Direito Internacional, da Economia Política e da já mencionada

História Diplomática5.

O campo assumiu algumas diferentes formas de compreensão e escrita,

acompanhando as várias tradições acadêmicas, principalmente nos EUA e Inglaterra e

em menor grau, na França. A natureza distinta da participação de cada um desses

Estados no cenário internacional também influenciou no modo de pensar dos

pesquiadores em Relações Internacionais resultando em objetos de análise e reflexões

bastante diversas umas das outras.

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A escola americana geralmente preteriu as formulações teóricas ao favorecer

termos mais concretos de análise, potencializados para uso do Estado6. Os Estados

Unidos se afirmavam como potência internacional ao fim da Primeira Guerra e um dos

pontos preconizados pelo Presidente Woodrow Wilson nas negociações de paz da

Conferência de Paris foi o de uma diplomacia pública e irrestrita, colocando em pauta a

necessidade dos estudos de uso prático para dar entendimento ao papel dos EUA e seus

desafios no sistema internacional.

A escola inglesa, por sua vez, estruturou-se pela cooperação entre os

departamentos acadêmicos e o serviço diplomático, também assumindo cunho prático,

mas com certo grau de reflexão teórica e incorporando elementos culturais como

componentes de análise7, possivelmente, refletindo a experiência imperial britânica.

A terceira grande corrente ficou conhecida como escola francesa. Apesar de ser

uma potência vitoriosa na Primeira Guerra Mundial, a França perdia lentamente sua

importância no cenário internacional, já deteriorada desde sua derrota para a Prússia em

1871. Uma reavaliação de seu papel nos caminhos das relações internacionais e de suas

políticas era vista como necessária, não diferentemente de outros países. Outro

importante fator foi a já mencionada crítica da Escola dos Annales contra a história

metódica e diplomática, acusando-as da reificação das fontes, de concepções que davam

importância última ao Estado e que suas visões puramente cronológicas eram

insuficientes para o entendimento dos processos históricos89

.

É usual referir-se às Relações Internacionais como uma ciência anglo-saxã, o que

é facilmente verificado ao perceber o peso da produção acadêmica e dos conceitos10

oriundos dos centros de pesquisa da Inglaterra e Estados Unidos. Mas o grande ponto

que define a diferença teórico-metodológica entre o modelo anglo-saxão e o francês é o

diálogo interdisciplinar. O principal ponto de apoio das correntes americana e inglesa é

a Ciência Política, gerando estudos em consonância com as necessidades práticas para a

formulação de doutrinas e modelos de ação política para os departamentos

governamentais11

.

Mesmo deslegitimados entre seus pares, os historiadores das relações

internacionais franceses desenvolveram um método distinto de análise. Colocando o

fenômeno das relações internacionais como foco central de estudo, incorporaram

também as dinâmicas sociais, econômicas e religiosas da vida transnacional, assim

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como voltaram sua atenção para um foco histórico mais apurado, constituindo um

paradigma próprio12

. Ronaldo Gonçalves aponta que

Enquanto as Relações Internacionais caracterizam-se ―pela existência de objetivos

a manter ou conquistar, pela conveniência de efetuar trocas de interesse, pela

necessidade de desenvolver pressões ou resistir a pressões de diversas naturezas‖

(Caminha, 1982, p.25) a História das Relações Internacionais, de acordo com

Bueno (1980, p.122) ―estuda a singularidade, o concreto, o irreversível, submetido

à força do tempo‖13

.

Essa vertente analítica, conhecida pelos seus dois maiores expoentes, Jean-

Baptiste Duroselle e Pierre Renouvin, insiste em analisar o evento respeitando sua

especificidade. Para estes ―está óbvio „que o estudo não se esgota (…) na análise do

„fato curto‟. Este responde a movimentos mais profundos. (…) Os historiadores citados

valorizam ainda (…) a ação do homem de Estado, na sua recíproca relação com as

forças profundas.‟ (Bueno, 1983: 76-77)‖14

.

O trabalho de Pierre Renouvin, ―Histoire des Relations Internationales‖

(publicado entre 1953 e 1961) é o pioneiro no campo. Se distanciando do historicismo e

do foco nos ―homens de Estado‖, em três volumes o autor delinea as relações e

evoluções de Estados e entidades políticas da Idade Média até 1945. Sobre esse

empreendimento ele diz:

Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro que eles

permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda que eles

tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais, interesses

econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem inteiramente essas

forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir maior importância à

attitude das chancelarias e dos ministros,a a analisar a influência do fator pessoal.

É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores poderão e deverão se

aplicar15

.

Em uma consideração sobre a história diplomática, o mesmo contemporiza

que

Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a contestações; é o

seu método, tal como o praticm muito frequentemente seus adeptos. (…) Ora, as

instruções das chancelarias se aplicam muitas vezes a nada dizer de essencial, e os

relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também frequentemente a busca

das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de muitos embaixadores

atritbui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória, às questões

econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as forças profundas-

porque, para o diplomata de então, a ‗grande política‘ plana muito acima dessas

contingências16

.

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Renouvin treinou ou influenciou toda uma geração de historiadores das relações

internacionais na França, dos quais podemos citar René Girault, Maurice Baumont e

outros que lidam com sua visão de ―forças profundas‖ dentro da análise das relações

internacionais. Tal visão, nas palavras de René Girault: ―realizou uma revolução

epistemológica de amplitude comparável à dos Annales em um domínio particular da

história, o domínio das relações entre os Estados ou entre os homens separados por

fronteiras17

‖. Pierre Renouvin opera em seu trabalho a ponte entre uma história

diplomática para uma história das relações internacionais ao considerar a história

econômica e social, assim como das idéias e instituições18

como fundamentais para a

escrita de uma história que se prezaria como total.

Todavia, mesmo com toda a renovação trazida por Renouvin e os historiadores

franceses, o campo não conseguiu se reafirmar à frente das Relações Internacionais, que

cada vez mais se profissionalizava dentro da Academia, principalmente a partir dos anos

1970. Ainda que definitivamente tenhamos uma produção de trabalhos que se inserem

no campo, sua capacidade de diálogo com o mainstream da produção em história é

reduzida e ofuscada pelos trabalhos de Relações Internacionais.

II – Marcos da produção brasileira em história diplomática e das relações

internacionais

Ao contrário do que ocorre na Europa, a produção de conhecimento em história

diplomática e relações internacionais no Brasil oscila entre uma fase de produção por

leigos, passando por algumas tentativas de síntese pelos chamados ―autores

intermediários‖, até chegarmos à uma fase atual, de ―profissionalização com algumas

permanências do passado‖, termo que sera discutido adiante19

.

Os primeiros trabalhos que podemos considerar de cunho ―histórico‖foram

escritos por homens que exerceram papel dentro dos negócios de Estado ou das relações

exteriores do País20

. Podemos citar Joaquim Nabuco e Oliveira Lima como

representantes desta tradição de escrita. O pioneiro trabalho quepretendeu

expressamente preencher uma lacuna de conhecimento é um dos grandes marcos da

história diplomática do Brasil: ―A Política Exterior do Império‖ (1927) de João Pandiá

Calógeras. O autor adere à uma concepção bastante tradicional de narrativa, que mesmo

não sendo feita por um historiador profissional, bebe nas fontes da ―escola metódica‖ de

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Henri Langlois e Charles Seignobos. Sua narrativa é essencialmente política, e os

poucos lampejos de economia que são vistos na obra são detalhes que subjazem ao

―acúmulo de fatos‖2122

. O trabalho em três tomos foi pensado como lição para um

cenário em que a política externa havia perdido parte do brilho que possuia ao ser

conduzida pelo Conselho de Estado do Império, ao que o autor dizia:

―ao invés do que acontecia no regime imperial, em que grupo de especialistas

mantinha no Conselho de Estado a tradição una da Chancelaria, desde os mais

remotos tempos da conquista lusa até os nossos dias, (...) vai-se perdendo o contato

com esse passado tão fecundo em lições‖ (p.xxxvi). Para justificar seu

empreendimento, ele falou do acúmulo de ―provas que era preciso e urgente

divulgar aos brasileiros (...) o que havia sido, o que ainda era a tradição nacional

no convívio com os demais povos‖ (idem)23

Ainda que problemática em seu método, a obra foi o marco inicial da

possibilidade de síntese do tema no Brasil, sendo complementada anos depois pelo

esforço de Hélio Vianna, com seu ―História Diplomática do Brasil‖. Apesar de

reproduzir um discurso oficial e apologético em relação à política externa, a obra

beneficia-se por ter sido concebida em um ambiente de profissionalização dos quadros

da diplomacia brasileira, pois o autor foi um dos professores do recém-inaugurado

Instituto Rio Branco (1945) e se tornou uma das pedras fundamentais do estudo da

história diplomática do Brasil. Juntamente com o trabalho de Carlos Delgado de

Carvalho, ambos serviriam por longo tempo como manuais de ensino de história

diplomática. Nesse sentido, ainda que se prendam à modelos explicativos factuais e nem

sempre avancem em maiores análises de seus objetos de estudo, é perceptível a

preocupação com o ordenamento cronológico e narrativo, ao dar um ―sentido histórico

extenso aos seu objeto de estudo‖24

.

Mesmo se configurando como uma tríade de ―obras fundadoras‖ dos estudos no

Brasil, até os anos 1990 não se empreendeu outro esforço de síntese comparável aos de

Hélio Vianna e Carlos Delgado. Embora estes fossem frequentemente criticados por sua

concepção de história evenementiélle ou por seus posicionamentos políticos, seus

críticos não produziram uma resposta que desse conta do que apontavam como falhas

nas tais obras, ditas ―tradicionais‖25

.

A institucionalização das Relações Internacionais como disciplina acadêmica em

meados dos anos 1970, traz um novo impulso de criação de obras no campo de estudos,

avançando em escopo e objetivos. Ao incorporar paradigmas internacionais vinculados

a escola americana, a produção deu um salto qualitativo e quantitativo dentro da

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academia, atraindo também diplomatas mais ligados à pesquisa acadêmica26

. A abertura

de programas de pós-graduação (como o da UnB em 1970 ou a pós-graduação lato

sensu da UERJ) dedicados ao estudo do tema, bem como a gradual reorganização dos

arquivos do Itamaraty pós-198827

, produziu uma nova geração de historiadores

profissionalmente treinados que contribuiram para o cenário geral da produção

historiográfica. Uma evidência de tal mudança são os trabalhos de síntese geral de

Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, sendo marco fundador, o título ―História da Política

Exterior do Brasil‖ de 1992. Esse, considerado o ―estado da arte‖ dos trabalhos de

história das relações internacionais no Brasil, incorpora as reflexões da historiografia

francesa de Renouvin à um sólido trabalho arquivistico28

e analitico. Apesar da

qualidade da obra, não foi empreendida qualquer outra tentativa de diálogo, da mesma

magnitude, por parte de outra visão de pesquisa ou de hipóteses, empobrecendo um

debate .

Ainda assim, boa parte dos trabalhos está dispersa em artigos e teses acadêmicas,

nem sempre encontrando um diálogo maior do que entre os especialistas na área ou

dentro dos quadros de diplomatas profissionais.

III – Considerações Finais

A presente reflexão sobre a estruturação histórica e a condição atual dos estudos

sobre a história das relações internacionais é condicionada à pesquisa que venho

desenvolvendo no mestrado em História Social da UFRJ sobre a diplomacia brasileira e

sua participação no voto da Assembléia Geral da ONU que condenou o sionismo como

forma de racismo. Tal evento, dado em 1975, me parece suscitar importantes questões

sobre o papel da ordem interna do Estado e suas formulações em política externa, que é

tema de teorização constante entre as escolas de análise, recebendo um capítulo escrito

por Pierre Milza no livro de René Remond, ―Por uma História Política‖, anteriormente

mencionado.

O contato com a literatura sobre o tema levantou alguns pontos que creio

relevantes para uma avaliação geral do que vem sendo produzido na história das

relações internacionais.

Primeiramente, ao utilizar o termo ―profissionalização com algumas permanências

do passado‖, me refiro à condição de uma produção conduzida prioritariamente por

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autores que não tem formação profissional em História. O nível de qualidade dos

trabalhos não é, de maneira alguma, desabonado pela formação de seus autores, mas seu

vínculo com a atividade diplomática é o principal motor para a investigação29

. A

principal crítica à esses trabalhos é o fato que assumem um ―caráter episódico, ou não

incorporam um sentido de duração histórica, desprezando em alguns casos a relação

entre o passado e o presente, ou não estabelecem relações entre o objeto estudado e a

realidade em sua totalidade30

‖.

Outra questão relevante é o peso teórico da escola anglo-saxã na produção

intelectual. Ainda que os autores brasileiros no campo se utilizem das diversas tradições

de pensamento de forma bastante original, a tendência normativa dos conceitos

importados tende à ofuscar uma discussão mais profunda da historicidade e duração

histórica31

. Apesar de tais conceitos serem extremamente úteis e dificilmente

descartáveis, a ampliação do campo de pesquisa e de reflexão

não deve subtrair a importância da documentação diplomática. Reduzir o apego ao

escrutínio documental e ao ambiente coevo em que se desdobram os processos

políticos na intenção de ampliar o nível de análise seria, fundamentalmente, uma

alavancagem ilusória do conhecimento historiográfico, implicando perda da

qualidade da pesquisa. A investigação de fontes governamentais é parte essencial

para que se compreendam os processos atinentes às relações internacionais, que

também têm a ver com processos sociais e econômicos, representações e

percepções, o mundo das idéias e as fontes que as nutrem32

.

Por fim, acredito que um diálogo maior entre os historiadores e os temas das

relações internacionais seria profícuo para um debate que contribuiria para ambos os

lados. As atitudes pouco generosas dos historiadores – notadamente menos acentuadas

que já foram e facilmente percebidas no volume de produção recente3334

- em relação à

documentação diplomática e ao trato do tema das relações internacionais, poderiam ser

revistas ao entrarem em contato com os trabalhos recentes, pois

a atual historiografia das relações internacionais, que sucedeu a antiga história

diplomática, não tem mais nada a dever, em termos de metodologia e técnicas,a

outros ramos da pesquisa histórica e o aproveitamento dos arquivos diplomáticos

assumiu, por isso, um caráter diferenciado e muito mais interessante do que no

passado35

.

Um trabalho conjunto de reflexão pode jogar luz sobre processos nacionais

importantes, sobre a cultura política das elites ou sobre as conjunturas econômicas que

estuturaram a posição internacional do Brasil36

.Da mesma maneira que a história

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diplomática se beneficiou do alargamento de suas fontes, poderia ganhar com uma

sofisticação analítica proporcionada pela prática historiadora. Igualmente, é visível a

possibilidade de que a escrita da história no geral, se beneficie do diálogo e do contato

mais claro com as fontes arquivisticas diplomáticas, que ainda se encontram pouco

exploradas.

1 Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do

Rio de Janeiro. 2 FARIAS, M. N.; FONSECA, A. D.; ROIZ, D. S. A escola metódica e o movimento dos Annales:

contribuições

teórico-metodológicas à história. Akrópolis, v. 14, n. 3 e 4: 121-126, 2006. 3 SANTOS, Norma Breda dos. História das Relações Internacionais no Brasil – Esboço de uma

avaliação sobre a área. Disponível em:

http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=221014791002 4 CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros. São Paulo:

Saraiva, 2008. P.11. 5 GONÇALVES, Williams. Relações Internacionais. Disponível em:

http://www.cedep.ifch.ufrgs.br/Textos_Elet/pdf/WilliamsRR.II.pdf 6 idem

7 ibidem

8GONÇALVES, Ricardo. Teoria da História das Relações Internacionais: A Escola Francesa.

Disponível em: http://ronaldopgoncalves.vilabol.uol.com.br/teoria.htm 9 SANTOS, Norma Breda dos. História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação

sobre a área. In: Revista História: São Paulo, v.24, n.1, 2005. pp. 11-39 10

GONÇALVES, Williams. Op cit. 11

―Ao se dedicar, com grande afinco, ao estudo das Relações Internacionais, os anglo-saxãos

elaboraram hipóteses, formularam teorias e definiram os conceitos que se universalizaram, tais como

aqueles que lhe são específicos, ou seja, criaram o léxico das Relações Internacionais.” Cf.

GONÇALVES, Williams. Op. Cit. 12

GONÇALVES, Ricardo. Op. cit. 13

idem 14

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Estudo de Relações Internacionais do Brasil: Etapas da produção

historiográfica brasileira, 1927 – 1992. Disponível em:

http://expertise.educacao.ws/filipemendonca/wp-content/uploads/2010/03/Paulo-Roberto-de-Almeida-

Estudos-de-Rela%C3%A7%C3%B5es-Internacionais-do-Brasil-Etapas-da-produ%C3%A7%C3%A3o-

historiogr%C3%A1fica-brasileira.pdf 15

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração

do total. Disponível em: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/04/histoire-des-relations-

internationales.html 16

idem 17

GIRAULT, René. Présentation. In: RENOUVIN, Pierre. Histoire des Relations Internationales. Du

Moyen Age à 1789. v.I. Paris: Hachette, 1994, p.II apudSANTOS, Norma Breda dos. História das

Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a area. In: Revista História: São

Paulo, v.24, n.1, 2005. pp. 11-39 18

SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 19

idem 20

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Op. Cit. 21

idem 22

SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 23

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Op. Cit. 24

RACY, Joaquim. História e Política Externa Brasileira: Considerações sobre a História e a

Historiografia das Relações Internacionais do Brasil. Teoria e Sociedade, nº16, pp. 216-231, 2008.

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25

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Em busca da simplicidade e das clarezas perdidas: Delgado de

Carvalho e a historiografia diplomática perdida. In: CARVALHO, Carlos Delgado de. História

Diplomática do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2008. 26

idem 27

FILHO, Pio Penna. A Pesquisa Histórica no Itamaraty. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73291999000200007&script=sci_arttext 28

SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 29

RACY, Joaquim. Op cit. 30

idem. 31

Ibidem. 32

SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 33

Quadro 1.5 ―Relações internacionais, política externa e produção especializada no Brasil, 1945-2006‖.

In ALMEIDA, P. R. IBRI-RBPI: Guia sinóptico e cronológico de subsídios à pesquisa, 1954-1998. 34

Quadro 2 ―Perfil Profissonal dos Pesquisadores que Solicitaram Pesquisas no Arquivo do Itamaraty‖

In: FILHO, Pio Penna. Op cit. 35

BERTONHA, João Fábio. A Diplomacia a Serviço da História: Os Arquivos Diplomáticos Brasileiros,

Italianos Ingleses e Americanos. Disponível em:

www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/download/184/175 36

idem

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O cinema ficcional histórico: política e memória nos filmes “Independência

ou morte” e “Os Inconfidentes”

Lidiane Macedo Cosmelli1

Resumo: A presente comunicação tem por objetivo refletir a relação entre o cinema

ficcional histórico e a memória social. Dentro do contexto de comemoração existente no

sesquicentenário da Independência do Brasil (1972), observamos a produção de dois

filmes com conteúdo histórico, todavia com narrativas cinematográficas e estéticas

distintas, trata-se de ―Os inconfidentes‖ e ―Independência ou morte‖. Abordaremos

assim, como se dá o projeto de construção de uma memória nacional na ditadura civil-

militar brasileira através do cinema.

Palavras-chave: Cinema, memória social, narrativas fílmicas.

Abstract: This Communication aims to reflect the relation between fictional movie

history and the social memory. Inside the context of celebration existing in the

sesquicentennial celebration of the Independence of Brazil (1972). We can observe the

production of two films with historical content, however with film narratives and

different esthetics, it is ―Os Inconfidentes‖ and ―Indenpendência ou morte‖.We will

discuss, how is the project of constructing national memory of civil-military

dictatorship in Brazil through cinema.

Keywords: Cinema, social memory, film narratives.

Em que medida, aprendemos com as imagens? Até que ponto a reconstrução

cinematográfica de um fato do passado interfere no nosso conhecimento sobre a

História? Sabemos que a sala de aula não é o único espaço em que a História de um país

é contada, em vários outros lugares2 pode ser contado o que constitui o nacional.

O período da ditadura civil-militar (1964- 1985) no Brasil é marcado por dois

aspectos fundamentais, o repressivo e o legitimador. A repressão na ditadura possui

alguns instrumentos muito claros de sua atuação como o combate aos opositores, a

restrição de liberdades e a tortura. No aspecto legitimador, temos a propaganda política,

por exemplo, que segundo Fico3 tinha duas frentes. Alguns setores do exército

trabalhavam com a tentativa de combate à subversão, com o slogan “Brasil: ame-o ou

deixe-o”, há também a diretriz de “educar o povo”.

O argumento de educar o povo está na demonstração dos valores presentes na

moral e na civilidade. Reforçando assim, aquilo que expresse os símbolos nacionais.

Agradava aos governos militares a produção de filmes que ressaltassem a História do

Brasil, e que trouxessem heróis nacionais em seu enredo. Dessa forma, os chamados

―filmes históricos‖ 4 são um bom instrumento para tal feito.

No ano de 1972 há dois significativos filmes ficcionais históricos em cartaz. Um é

“Independência ou Morte”, dirigido por Carlos Coimbra e produzido por Osvaldo

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Massaini. Filme considerado polêmico por muitos e apontado como o filme oficial da

ditadura civil-militar no Brasil. Seria a representação da versão oficial da História. Ele é

também um dos filmes mais vistos na época5.

O filme possui a visão conservadora da História. Concentra-se na figura de

D.Pedro I, entrelaça a vida política com a vida pessoal do monarca e o coloca como

ponto decisivo no processo. Em nenhum momento o filme questiona esta versão. Marc

Ferro aponta como o filme histórico pouco intervém na contribuição científica do fazer

histórico e constitui assim a transcrição cinematográfica de uma visão histórica6. Sendo

assim, percebemos a representação de “Independência ou Morte” como a versão da

historiografia que retrata a via pacífica da independência e valoriza os feitos de

personagens clássicos.

O outro filme é “Os Inconfidentes”, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.

Filme que possui influências do Cinema Novo7· Estabelece um diálogo com o tempo

presente e propõe uma revisão da abordagem oficial do fato histórico. Produzido em

uma época bastante conflituosa da política nacional, marcada pela ditadura civil-militar,

este momento convive com a censura, a tentativa de organização de grupos de esquerda

e a repressão.

Como observado anteriormente, as duas vertentes, “repressão” e “educação”,

visando o nacional e o cívico, convivem juntas. Sendo assim, é financiado pela

Embrafilme8, cuja meta era incentivar produções que retratassem temas nacionais e

históricos e integra a série educativa “América Latina por seus realizadores” pela rede

italiana de televisão RAI9. Entretanto, apesar do apoio governamental, o filme aponta

críticas ao regime. Joaquim Pedro considera-o um filme político, porém seria difícil

censurá-lo já que estava respaldado pela História.

É um filme diretamente político e indiretamente político em relação à

atualidade política brasileira. Mas é um filme que trata diretamente da política, dos

artistas envolvidos na política, da tentativa política de artistas, de pessoas de classe

média, e do comportamento dessas pessoas debaixo de uma repressão. Quer dizer:

era a tentativa de fazer um filme sobre um problema contemporâneo, daquele

momento, no Brasil, escudado neste historicismo. Porque ficava difícil da censura

cortar o que era historicamente exato como as falas de Tiradentes, as falas dos

poetas da inconfidência.10

Esse acontecimento é representado não pela via tradicional, centrada na figura de

Tiradentes. Joaquim Pedro apresenta seu filme através dos intelectuais e dos

inconfidentes. Sobre esses intelectuais, podemos colocá-los como independentes de

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qualquer tempo histórico, discutindo assim o comportamento de intelectuais perante um

momento de repressão.

O filme se passa quase todo na cadeia, já que teve sua pesquisa baseada nos autos

da devassa. Discute a versão de mártir de Tiradentes, já que este é um herói fracassado.

Em relação a sua receptividade, podemos destacar que obteve um grande sucesso com a

crítica, principalmente no exterior. Para compreender como se estruturam os

argumentos nesses dois filmes é importante analisar a narrativa fílmica de ambos.

Pensando a narrativa fílmica

A narrativa é um elemento presente nas interações humanas, pois sempre haverá

alguém com algo para contar e um público pronto para ouvir certas histórias.

Construindo assim, nessas narrativas, um pouco do que somos e nossa relação com o

mundo. A narrativa pode se constituir através da tradição oral, contar histórias de vida,

mitos e tradições é uma maneira de compartilhar experiências. Ela também pode se dar

através da escrita, como em romances, livros, gibis. Outra forma, que nos interessa

particularmente, é a narrativa através da linguagem do audiovisual, em especial do

cinema.

A imagem em movimento e o seus usos já faz parte de nossa leitura sobre a

imagem. Em pleno século XXI, a sobreposição de cenas ou até mesmo contar uma

história começando pelo fim, desalinhar já nos é conhecido. Entretanto, algo que parece

ser totalmente incorporado a nossa cultura, não foi sempre assim. Carrièrre (2006)11

nos

fala que nos primórdios do cinema existia a figura do explicador, pessoa que ficava ao

lado da tela com um bastão apontando para cena e explicando quem são os personagens

e o que está acontecendo na cena naquele momento.

Um caso clássico de não compreensão de imagens foi uma das primeiras cenas

apresentadas pelos irmãos Lumiére que retrata a chegada de um trem na estação. A cena

mostra a imagem de um trem que se aproxima da estação e não para, segue adiante.

Parece uma cena bastante simples e até corriqueira, considerando que estamos

habituados a assistir cenas como essa. Atualmente o audiovisual já faz parte de nossas

interações, entretanto quando apresentada pela primeira vez causou pânico em quem

assistia, as pessoas achavam que o trem ultrapassaria a tela. A ideia de perspectiva ainda

estava centrada em imagens paradas.

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Segundo Carrière (2006), ao contrário da escrita, aonde o indivíduo necessita

dominar o código para poder compreender, ou seja, saber ler e escrever. A linguagem

cinematográfica atualmente não precisa dessa alfabetização, é algo possível para

compreensão de qualquer pessoa. O que devemos pensar é que apesar de ser um código

compreensível à linguagem cinematográfica não é direta, ela é repleta de subterfúgios,

de não ditos. Sendo assim, perceber o que está além de um primeiro momento é visto na

tela é sim um exercício de alfabetização, de entender tanto o detalhe do filme como

atentar-se para o contexto que aquele filme é gerado.

A linguagem cinematográfica possui determinados elementos que nos passam a

ideia de veracidade do que estamos assistindo, muito ligado ao som e a imagem, como

esses dois itens são construídos na cena induzindo determinadas interpretações. O som,

por exemplo, quando pensamos em um filme de suspense geralmente somos levados por

uma música angustiante que fornece o ritmo das sequencias e de todo desenrolar. Já em

um romance, a música de amor dos mocinhos pode chegar a ser o ponto clímax do

casal. Em um filme épico, especialmente quando representa uma batalha, o som dá o

tom a sequencia de maneira que prende o espectador ao filme.

O posicionamento da câmera também diz muito sobre as intenções implícitas. A

câmera colocada por cima do personagem pode transmitir um ar de superioridade. A

maneira como ela percorre o cenário, resaltando determinados aspectos e não apontando

outro. A luz também revela algumas características, um ponto de luz em um

personagem ou objeto em cena dá destaque a ele na construção do entendimento. Outro

ponto a ser observado são os enquadramentos, o personagem um primeiro ou segundo

plano. Todos esses fatores, juntos podem apontar diversas características do

autor/cineasta e de suas intenções que não estão ditas nas falas, é o que Ferro (1992)

chama de não visível.12

Sendo assim, através da estrutura narrativa podemos pensar o cinema ficcional

como um lugar de memória, tal como é proposto por Nora (1993), em que esses lugares

de memória são antes de tudo restos. Ele fala de restos no sentido de vivenciar, os

lugares são restos porque desde os tempos imemoriais nós nos utilizamos deles para

guardar nossas memórias. Pensamos assim, no cinema ficcional como lugar de memória

através de duas direções.

Primeiro podemos pensar no lugar do espectador, ao assistir ao filme, as

memórias que ele possui sobre o que está sendo representado. Talvez a narrativa fílmica

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remeta a uma aula de História, a livros lidos, a uma palestra assistida, ou até mesmo a

outros filmes sobre a temática. É o que Halbwachs (2006)13

nos fala sobre as

lembranças e sobre o grau de envolvimento ao lembrarmos ou não de determinado fato.

E a nossa aproximidade ou não com a História, vai além dos nossos conhecimentos

prévios, tem haver com o como a história é contada. A forma como se estrutura uma

narrativa passa a ter uma maior relevância do que o enredo contado no cinema. Pois, é

justamente no ―como contar‖, que podemos perceber o que está por traz do que é

narrado.

Edward Said14

aborda a questão da autoridade de quem fala sobre o objeto

estudado. Trabalha como os europeus se consideravam capacitados a falar do oriente,

pois se julgavam com conhecimentos necessários para tal feito. Sobre a autoridade Said

diz:

É formada, irradiada, disseminada; é instrumental, é persuasiva; tem posição, estabelece padrões

de gosto e valor; é virtualmente indistinguível de certas ideias que dignifica como verdadeiras, e das

tradições, percepções e juízos que forma, transmite, reproduz. 15

Dessa forma, pensamos no conceito de autoridade discutido por Said, para a

representação fílmica. Um filme histórico, muitas vezes, age como autoridade sobre o

fato no imaginário coletivo, ou seja, o que visto nas telas do cinema, em alguns casos, é

encarado pelo público como a verdade sobre o ocorrido e não como uma representação

que adota uma determinada linha narrativa, por motivos diversos, do que está sendo

apresentado. Existem mecanismos para garantia desta autoridade, um exemplo disto está

no filme ―Independência ou Morte‖, no qual é representado o quadro de Pedro

Américo16

na cena do grito do Ipiranga, essa reconstituição serve para conferir ao filme

a legitimidade sobre o discurso oficial do passado nacional.

A outra direção que podemos pensar a narrativa ficcional como lugar de

memória trata-se da própria estrutura fílmica, a maneira na qual o conteúdo é

apresentado fala da memória da produção e da época em que é produzido. O lugar

ocupado por essas pessoas na sociedade. Podemos pensar assim na estrutura cênica e o

que ela diz ao telespectador.

Já através de Huyssen (2000) podemos pensar o papel da mídia na sociedade

contemporânea e a influência de novas tecnologias como forma de memória, trazendo

questões sobre diferentes representações e maneiras de legitimação das memórias.

Huyssen acredita que o problema da memória não pode ser encarado em função da

dicotomia entre o que é memória trivial e o que é memória séria. Pensamos nesta

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mesma problemática entre a dicotomia que em alguns casos é apresentado entre o

cinema chamado inovador e o cinema de massa, dito ―cinemão‖. Afinal o que define e

legitima essas denominações? O que classifica, ou melhor, desclassifica determinado

tipo de representação fílmica em detrimento de outro. O que acreditamos que se deve ter

em mente a análise e não a distinção da linguagem, mas sim dos motivos que cada

produção tem para representar de determinada forma. Percebemos assim as diversas

possibilidades de representação.

Se reconhecemos a distância constitutiva entre a realidade e sua representação em linguagem ou

imagem, devemos, em princípio estar abertos para as muitas possibilidades diferentes de representação do

real e de suas memórias.17

Sendo assim, consideramos de fundamental importância pensar nas múltiplas

possibilidades de representação de um fato histórico através do cinema, considerando

seus deslocamentos de acordo com os interesses propostos dos realizadores.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Memória Social (Universidade Federal do Estado do Rio

de Janeiro). ) Orientadora: Profª Drª Diana de Souza Pinto. E-mail: [email protected]

Telefone: 8873-8238 Endereço: Avenida Nossa Senhora de Copacabana 391/AP 401 Cep: 22020-002

2 Ver o conceito de ―lugares de memória‖ proposto por Pierre Nora em: NORA, Pierre. Entre memória e

história: a problemática dos lugares. São Paulo, Projeto História - Revista do Programa de Estudos pós-

graduados em História e do Departamento de História. V. 10, 1993.

3 FICO, Carlos Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:

FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucila de Almeida ( orgs) .O Brasil Republicano: o tempo da ditadura.

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

4 José D‘Assunção define três formas de filme que trabalham com a História. O chamado ―filmes

históricos‖, aqueles que representam eventos ou processos históricos conhecidos, os ―filmes de

ambientação histórica‖, que são aqueles com enredos criados livremente, porém dentro de um contexto

histórico e há ainda os ―documentários históricos‖ que são os de trabalhos de representação

historiográfica através de filmes.

5 Só para ilustrar essa enorme bilheteria, é interessante notar que a mesma supera a do sucesso norte-

americano ―O poderoso Chefão‖, realizado no mesmo ano. FONSECA, Vitória Azevedo. História

Imaginada no Brasil: Análise de Carlota Joaquina, a princesa do Brasil e Independência ou Morte.

Campinas, SP: [s.n], 2002.

6 FERRO, Marc. Existe uma visão cinematográfica da História? In: FERRO, Marc. A História Vigiada.

Trad: Doris Sanches Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

7 Um dos mais importantes movimentos estéticos do cinema brasileiro. “o Cinema Novo foi a versão

brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção

em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida era o

engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz

de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social” XAVIER, Ismail. Cinema

Brasileiro Moderno.3ºed.São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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8 Empresa Brasileira de Filmes. Empresa estatal criada em 1969 que agia como produtora e distribuidora

de obras cinematográficas.

9 FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema-Memória: reflexões sobre a memória coletiva e o saber

histórico. O olho da História. Bahia, vol 11. Dez 2008. Disponível em <

http://oolhodahistoria.org/n11/sumario.php > Acesso em: 12 mar 2010.

10

Depoimento concedido ao folheto organizado pelo cineclube Macunaíma na ocasião da retrospectiva

Joaquim Pedro de Andrade, em 1976. Disponível em: www.filmesdoserro.com.br/jpa_entr_2.asp

11

CARRIÈRE, Jean Claude. A Linguagem secreta do cinema: tradução Fernando Albagli e Benjamin

Albagli-1 ed –especial, Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2006.

12

Marc Ferro trabalha com os conceitos de visível e não-visível. O visível na obra cinematográfica é

aquilo que se comunica diretamente com o espectador, como por exemplo as cenas, as falas e a música. Já

o não-visível seriam os lapsos do criador. Aquilo que não é exposto de forma clara, mas através de

subterfúgios. Pensamos também no não-visível como uma maneira de representar o circuito que envolve

o filme: produção, recepção, crítica, público. Sendo assim, o não-visível engloba não apenas o que

contém nas sequências fílmicas, mas também o circuito social que o envolve.

13

HALBWACHS, Maurice. Memória individual e memória coletiva. In: ______. A memória coletiva.

São Paulo: Centauro, 2006.

14

Em seu livro Orientalismo, Edward Said reflete sobre com a questão da representação do outro,

trabalha como a representação dos povos orientais pelo ocidente serviu como forma de legitimação do

mesmo.

15

SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo. Companhia das

Letras, 1990. p:31

16

16

Trata-se do quadro ―O Grito do Ipiranga‖, pintado em 1888.

17

HUYSSEN, Andreas. "Passados presentes, mídia, política, amnésia", in: Seduzidos pela memória. RJ,

Aeroplano editora, 2000.p.22

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Ferro, fogo e ideias: a Liga Brasileira pelos Aliados e o debate sobre a

Primeira Guerra Mundial na imprensa fluminense.

Lívia Claro Pires

Resumo: A Primeira Guerra Mundial, a princípio tão distante da realidade brasileira,

suscita na nova república uma série de debates entre os intelectuais fluminenses,

estampadas nos jornais da capital federal. A defesa ou o repúdio a um dos blocos em

confronto assumia as cores de um projeto de edificação da nação. Dessa forma, o

presente trabalho pretende analisar o projeto de nação presente no discurso da Liga

Brasileira pelos Aliados, no contexto da intelectualidade fluminense da primeira década

do século XX.

Palavras-chave: Primeira República – intelectuais – Primeira Guerra Mundial.

Abstract: The First World War, at first so far from Brazilian reality, issues in the new

republic a series of debates among intellectuals from Rio de Janeiro. The defense or

rejection of the groups in conflict meant the exposition of a project to nation. Thus, this

paper aims analyze the project of nation in the Brazilian League by Allies speach in the

context of the Rio intelligentsia on the first decade of the twentieth.

Keywords: First Republic – intellectual – First World War.

O período da Primeira República brasileira é marcado na historiografia tradicional

pelo domínio das oligarquias agrárias, pelo voto de cabresto e pela política do café-com-

leite. Em geral, um momento histórico caracterizado quase que exclusivamente como

transitório, situado entre o atraso herdado do Império e as mudanças trazidas pelo

governo Getúlio Vargas. Nessa perspectiva, o impacto da Primeira Guerra Mundial

sobre o país é entendido basicamente por suas consequências econômicas, tais como o

abalo das oligarquias cafeeiras e o incentivo ao esforço da industrialização. Uma nova

vertente historiográfica, no entanto, tem resgatado a Primeira República como um

momento de contribuições determinantes para a construção dos arcabouços políticos e

culturais do Brasil ao longo do século XX.

Segundo esta corrente, o país nas primeiras décadas do século XX, busca mais do

que consolidar o novo regime: almeja adentrar na modernidade. A adoção da República

como forma de governo representou para uma elite política e letrada o primeiro passo

para esse objetivo maior, imbuído de um forte caráter nacionalista. Nesse projeto de

modernidade, pretendia-se abandonar todo e qualquer ranço do Império, entendido

como o epíteto do atraso, com o qual seria importante romper. A Primeira República,

dessa forma, não é mais tida como uma passagem para as transformações da Era

Vargas, mas o período que proporcionou ele mesmo as mudanças.

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Na então capital federal, o desejo da modernidade e o rompimento com o

passado monárquico fez-se de maneira singular. Representada como cidade-exemplo da

nação, no seu espaço foi depositado e exercido o projeto de modernidade para o Brasil –

a cidade era o recipiente do progresso da civilização brasileira1. Para o Rio de Janeiro

confluíram não só as expectativas, mas as ações de civilizar/modernizar a nação, como

um pólo irradiador. A reforma produzida por Pereira Passos, em 1903, concretizaram,

ou assim pretenderam, os planos civilizacionais embutidos na concepção de

modernidade. O espaço urbano é redefinido nesses moldes modernos, algo que

extrapola a caracterização física, adentrando no pensamento e nas ideias da elite letrada.

O Rio de Janeiro, dessa forma, confundido com o país, torna-se como o baluarte de um

projeto – teórico e prático – para a modernidade brasileira.

Nessa cidade fervilhante, transitavam pelos cafés e livrarias sujeitos que

tomaram para si a missão de pensar o desenvolvimento do espírito moderno no Brasil.

Pertencentes à elite fluminense, caracterizavam-se como atores políticos-culturais2,

agindo nas duas esferas à medida que ocupavam cargos públicos e atuavam na vida

política do país, ao mesmo tempo em que exerciam o papel de criadores e mediadores

culturais. Eram indivíduos, antes de tudo, engajados no cotidiano da cidade, como suas

testemunhas e consciência legítimas3. Percebiam-se como os portadores das respostas e

projetos adequados para a construção e organização do país, por serem capazes de

identificar as mazelas nacionais. Dia a dia, expunham suas opiniões e conclusões nas

páginas da imprensa, em publicações de livros, ou, simplesmente, nas conversas entre

doces finos de uma confeitaria. A modernidade entendida por esses ―intérpretes‖ era

baseada nas noções de progresso, civilização e nacionalidade. O Brasil precisa definir-

se como nação para civilizar-se e abandonar a barbárie, alcançando o caminho para o

progresso. Cumprida essa etapa, alcançaria o reconhecimento internacional como nação

civilizada e seria aceito como igual entre as grandes potências mundiais, deixando para

trás, definitivamente, o estigma de colônia.

O desencadeamento da Primeira Guerra Mundial na Europa trouxe novos

elementos para o pensamento da construção da nacionalidade e da modernização

brasileira. Através da reflexão sobre o confronto europeu, percebe-se a eclosão de

diferentes projetos de Brasil, vistos nos embates intelectuais publicados na imprensa

fluminense. O pensamento girava em torno do posicionamento brasileiro diante do

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conflito, e, a partir das conclusões encontradas, toda uma cadeia reflexiva sobre o futuro

nacional era exposta.

As opiniões a respeito da guerra vistas nas páginas dos jornais são conflitantes,

opostas ferozmente, atacadas e defendidas. São expostas através de cartas e artigos

endereçados às redações, comentando os últimos acontecimentos da guerra. Sobretudo

buscam extrair do conflito modelos de nação, de civilização e de progresso aplicáveis ao

Brasil. Para os defensores do posicionamento oficial do governo, a guerra era uma

demonstração da decadência européia e uma oportunidade de pensar o Brasil através de

padrões brasileiros, para, então, melhorá-lo4. O conflito era um palco de horror e

sangue, onde não existiriam vantagens compensatórias o suficiente para a perda de

oportunidades comerciais e políticas com ambos os lados em conflito, assumindo

responsabilidades sobre causas que não pertenciam ao Brasil.

Existiam aqueles que, no entanto, alinharam o seu apoio a um dos lados

beligerantes. E, em suas falas, a escolha pelo apoio à Tríplice Aliança ou à Tríplice

Entente pode ser entendida como uma questão de qual bloco contribuiria de maneira

mais vantajosa para a construção da nacionalidade e do progresso brasileiros. Nota-se

uma relação com o que Wilson Martins classificou como provincianismo intelectual5:

valorizava-se preceitos e ideias externas, como se contivessem a fórmula para a

modernização e o progresso do Brasil.

Para os simpatizantes da Alemanha na guerra, esse país era o representante do

inédito, da inovação técnica e do pensamento moderno e racional. Tendo o Império

Alemão como o modelo de progresso, esses intelectuais acreditavam na possibilidade

do Brasil ser alçado ao posto de potência internacional. Os partidários da Tríplice

Entente, por sua vez, acreditavam ser a França e Cia. os parceiros ideais para a

construção da nação brasileira. Esses países ofereciam ao Brasil o exemplo da liberdade

e democracia aos moldes da tradição da civilização latina. É interessante notar que, para

esses intelectuais, a guerra não se tratava de um confronto entre dois blocos de nações,

mas entre duas civilizações, opostas e irreconciliáveis: a latina e a germânica. A

primeira era representada6 como a herança greco-romana para o Ocidente, impregnada

pelos ideias de liberdade, democracia, civilização e cultura. A segunda, por sua vez, era

interpretada de forma dispare, como a herdeira direta dos povos nômades que

assaltaram o Império Romano, imbuída de barbárie. Dessa forma, a Primeira Guerra

Mundial era traduzida no discurso desses intelectuais como o embate entre a civilização

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liberal, jurídica e latina, ao lado da Tríplice Entente; e os partidários da barbárie, da

dominação e da destruição, pela Alemanha. O Brasil, um representante legítimo da

latinidade, deveria postar-se ao lado dos Aliados como forma de desenvolver e

aproximar-se dos valores desse modelo civilizacional.

Buscando a defesa dos Aliados, iniciou-se no Rio de Janeiro uma associação7

denominada ―Liga Brasileira pelos Aliados‖. Fundada em por José Veríssimo, Nestor

Victor e Olavo Bilac, contou com o apoio da nata da intelectualidade fluminense.

Nomes como o poeta Alberto de Oliveira, os senadores Artur Azeredo, Alcindo

Guanabara e Paulo de Frontin, o jornalista João Luso, o romancista Afonso de Taunay,

dentre outros, assinaram o seu termo de adesão. Em discurso aos membros quando da

fundação da Liga, José Veríssimo afirmou:

Por estarmos convencidos na guerra atual que a verdade, a justiça e a razão

que, aliadas, combatem o militarismo e o imperialismo alemães,

declaramos aderir à fundação de uma liga, com o fim de prestar assistência

moral e beneficência a essas nações.8

Na mesma ocasião, Graça Aranha – empossado como representante da Liga

Brasileira no exterior e membro do Comitê Executivo – falou ser o objetivo da reunião

organizar as simpatias brasileiras em prol dos Aliados. E, de fato, as ações da

associação demonstram a tentativa de cumprimento de tal finalidade. Moções,

manifestos e boletins eram publicados em periódicos como ―Jornal do Commércio‖,

―Jornal do Brasil‖ e ―O Imparcial‖, expondo apoio à causa aliada e repúdio à Alemanha

e seu desempenho no conflito. Promovia palestras e exposições de artistas estrangeiros

– de nacionalidade aliada ou neutra -, cuja temática era, recorrentemente, a denúncia das

atrocidades alemãs. Assim o foi com a exposição no Rio de Janeiro do artista plástico

holandês Luís Raemackers, trazido em 1916 sob os auspícios da Liga, cujos desenhos

resumiam-se a uma sátira cruciante às inomináveis proezas do banditismo alemão,

promotor da grande guerra9. No mesmo ano, organizou festivais para angariar fundos

para as vítimas belgas e soldados franceses cegos no front. Na data de 14 de julho de

1916, realizou um grande evento para a comemoração da Queda da Bastilha, no Teatro

Lírico da capital, onde o deputado Irineu Marinho discursou, detratando a Alemanha.

Disse ele:

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Enquanto a França domina o coração e a inteligência dos homens e dos

povos, os cientistas alemães se esforçam vãmente em conquistar a

hegemonia germânica no globo; mas como os processos prussianos são

os da má fé, o da violência e o da força, a Alemanha não pode ser amada

na terra.10

Suas ações propagandísticas não passavam incólumes aos olhos dos seus

representantes no Brasil. A entidade mantinha contato junto a funcionários das

embaixadas francesas, inglesas, belgas, dentre outras. Em geral, estas demonstravam

contentamento com desempenho da Liga Brasileira, aprovando suas declarações e

agradecendo suas manifestações de apoio, através de cartas enviadas por embaixadores

aos seus dirigentes. As comunicações entre as embaixadas e os membros da Liga

ultrapassavam, por vezes, a simples gratidão. Conforme divulgada pela própria

associação no ―Jornal do Commércio‖, foi pedido a Sá Vianna, um dos seus membros,

pelo ministro da Grã-Bretanha que enviasse 500 exemplares da conferência de sua

autoria ―L‘Ámerique em face de la conflagration européene‖ para ser utilizada como

serviço de propaganda, para fazer onde ela ainda não era conhecida. Da mesma forma,

atendendo a uma recomendação do ministro da França, a Liga promoveu a conferência

da artista francesa Juanita de Frézia, acerca de assuntos sobre a guerra, dentre elas as

atrocidades alemãs cometidas no conflito.

No entanto, não era apenas de festivais e atividades propagandísticas que se

restringia a Liga Brasileira pelos Aliados. Estão presentes em suas falas questões que

inquietavam a intelectualidade carioca, como a construção da nacionalidade brasileira, a

modernidade, o progresso e a civilização, extrapolando a temática de apoio a um dos

blocos envolvidos na guerra. Como era comum no meio letrado brasileiro, seus

membros acreditavam ter a fórmula ideal para atingir o progresso nacional. Não à toa,

suas reuniões aconteciam no Clube de Engenharia, localizado na Avenida Central, atual

Avenida Rio Branco, que, à época das reformas urbanas de Pereira Passos, atuou como

uma instituição respaldadora do progresso.11

Segundo as suas afirmações na imprensas,

não haveria melhor modelo a ser seguido que o postulado da Tríplice Entente,

principalmente o da França.

Este país europeu era frequentemente exaltado nos boletins divulgados na

imprensa pela Liga Brasileira pelos Aliados. Símbolo de civilidade, destacavam na

cultura francesa os ideais liberais, aos quais o Brasil deveria inspirar-se. A França era o

modelo de nação, de civilização e de modernidade a ser adotado pela recém-proclamada

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república brasileira, caso esta almejasse alcançar o progresso. A cultura francesa como

fonte de inspiração para a construção da nação brasileira é uma influência notável na

fala dos membros da Liga. Um exemplo dessa condição é o acima mencionado evento

comemorativo da Queda da Bastilha. Ao se auto-questionar do por que da celebração de

uma data que não pertencia ao calendário de feriados nacionais, o deputado Irineu

Marinho concluiu:

A data de hoje (...) é também um dia de júbilo popular porque significa o

valor da influência sobre a evolução política do nosso país e a profunda

ação das ideias, do pensamento, da cultura, em uma palavra – da

civilização francesa na formação da nossa mentalidade e da nossa alma

nacional.12

A Liga, dessa forma, pode ser inserida no contexto que Wilson Martins chamou

de ―francesismo reinante‖13

, onde as ideias oriundas da França assumiam caráter de

dogma entre a intelectualidade brasileira, em especial a carioca. No caso da Liga, deve

ser levado em consideração o fato de seus participantes manterem contato com

personalidades da intelectualidade francesa da época, como Maurice Barrés e Paul

Deschanel. Por esse motivo, a influência francesa nos pronunciamentos da Liga se

fizesse de maneira consolidada, não apenas como simples inspiração.

A França por si só, no entanto, não era a única razão para o seu papel de

destaque na construção da nação brasileira para aquela associação. O país europeu era

representado como o expoente máximo da civilização e cultura latina, a qual o Brasil

pertencia. Sua ascendência latina herdada da colonização portuguesa, que lhe delegou a

língua portuguesa e a tradição do pensamento clássico, fazia parte do seu cerne de

nação, influindo na constituição da cultura do país. No pensamento da associação, os

caracteres da latinidade na formação da nação brasileira deveriam ser preservados a

qualquer custo, pois eram a garantia de um futuro glorioso. Por isso, defendiam o apoio

moral do governo brasileiro aos Aliados, em uma solidariedade fraternal. A crença na

formação latina do Brasil é traduzida na fala de Graça Aranha, dirigida à Grécia:

Gregos e romenos, uma grande nação, às margens do Atlântico Sul,

formada pela cultura greco-latina, profundamente se comove com as vossas

angústias nesse momento supremo, em que a fatalidade veio trazer às

vossas fronteiras o decisivo combate por nossa civilização. Pelos espaços,

as almas dos povos da mesma formação se unem e realizam essa unidade

moral que nos tornará invencíveis e imortais. E é inspirada por essa união

espiritual que a Liga Brasileira pelos Aliados se dirige aos seus irmãos

helenos romenos.14

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Quem sai aos seus não degenera, pensavam os intelectuais da Liga, e, para o

Brasil prosperar, era imprescindível que não traísse a sua natureza latina. Uma

possibilidade, de acordo com a sua perspectiva, existente. A ameaça vinha das colônias

alemãs instaladas na região sul, configurando o chamado ―perigo alemão‖, suposta

ameaça imperialista do Segundo Reich sobre o território brasileiro. A Liga Brasileira foi

um dos principais meios difusores dessa ideia, propagandeada constantemente em suas

manifestações na imprensa. Em um dos seus boletins veiculados, lia-se o seguinte:

Ora, são fortes as demonstrações dos próprios alemães dos seus propósitos

de se assenhorearem daquelas regiões brasileiras, primeiro, segundo o seu

processo costumeiro, pela infiltração e insinuação pacífica, depois como

puderem, mesmo pela força. São eles que os escrevem em suas publicações

germanistas.15

A ênfase na existência do ―perigo alemão‖ presentes neste e em outros discursos

da Liga demonstra a preocupação com a imigração enquanto elemento de construção

(ou desconstrução) da nacionalidade brasileira, recorrente nos debates entre os letrados

fluminenses. Nem todas as nacionalidades eram bem-vistas e bem-quistas em um

cenário intelectual fortemente influenciado pela teoria evolucionista das raças,

vinculada ao darwinismo entre as nações, corrente nas primeiras décadas do século XX.

A fala de repúdio ao imigrante alemão na Liga Brasileira evidencia a exclusão desse

elemento como irrelevante para a edificação da nação brasileira, assim como a

preocupação constante com a conquista definitiva do território. Este era um dos

ingredientes essenciais para a realização de uma nação moderna. O extenso território

brasileiro pouco povoado, precisa ser conquistado, integrado e consolidado, da mesma

forma que a nacionalidade brasileira, considerada frágil pela Liga.

O afastamento do elemento alemão relaciona-se ao tratamento deste imigrante

como um fator de corrupção da cultura latina presente no país. Absorvendo a oposição

frequentemente feita entre cultura latina e cultura germânica, acrescentou o fator

imperialista e predatório dos alemães para com o Brasil diretamente, através do ―perigo

alemão‖. A presença dos imigrantes alemães e seu possível isolamento, mantendo a

língua e os hábitos nativos, para os membros da Liga, era uma evidência de sua

periculosidade à unidade política e cultural. Em seu entendimento, a cultura germânica,

essencialmente predatória em relação à latina, constituía em uma afronta aos valores do

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modelo de nação que pretendiam formar, identificado com aquele paradigma

civilizacional. A propaganda do ―perigo alemão‖ configura, dessa forma, com uma

maneira de justificar a rejeição a um determinado tipo de modelo civilizacional. Graça

Aranha o afirma em artigo acima citado:

Durante longos anos a Alemanha procurou ativamente copiar as obras inimitáveis

da nossa cultura [latina]. (....) A Alemanha sofreu a falência de toda a sua ciência, da

sua arte e de todo o seu esforço, e, então, num furor demoníaco, quis fazer desaparecer

da face da terra a graça da nossa cultura e substituí-la pela grosseria germânica.

E acrescenta:

Então, por consideração a alguns traficantes boches das nossas grandes

cidades e por consideração às colônias alemães esparsas em nosso

território, mentiríamos o nosso passado, renegaríamos o nosso ideal,

repudiaríamos os nossos deveres sagrados para com essa nobre civilização

que nos foi dada no sangue dos nossos antepassados europeus?16

Assim, o país é representado com uma projeção para o futuro, em seu caráter de

nação em formação. A Primeira República pode ser entendida como o momento em que

diferentes projetos de Brasil são confrontados, buscando o preenchimento do processo

de consolidação da República e da nação. Neste esforço, é evidente o posicionamento

dos fluminenses, preocupados em realizar um balanço da vida nacional e mostrar as

suas soluções. Como atores político-culturais que era, ao se defrontarem com a Primeira

Guerra, a princípio tão distante de sua realidade, assumiram-na como o pano de fundo

para realizarem diagnósticos do país, buscando influir no direcionamento das atitudes

tomadas pelo governo e conformar uma ―opinião pública‖. A Liga Brasileira pelos

Aliados, como um elemento no debate sobre a guerra, traduz o desejo pelo progresso,

pelo alcance da civilização e da modernidade, da completa constituição do país

enquanto nação, sobretudo, do reconhecimento dessa condição pela comunidade

internacional. A partir dessas percepções, o impacto do conflito europeu assume novas

nuances, que vão além da influência sobre o preço do café. A Primeira Guerra auxilia

no entendimento da reflexão dos pensamentos intelectuais, da construção da nação e da

nacionalidade brasileiras nas primeiras décadas do século passado.

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1 RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Em algum lugar do passado: cultura e história no Rio de Janeiro.

In: AZEVEDO, André Nunes de. Rio de Janeiro: capital e capitalidades. Rio de Janeiro: Departamento

Cultural/SR-3/UERJ, 2002. p. 11-43. 2 GOMES, Ângela de Castro. Rebeldes literários: intelectuais e nacionalismo na Primeira República.

Tempo, Rio de Janeiro, v.11, n.22, p.153-156, jan.2007. 3 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.) Por uma história política. Rio

de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 231-269. 4 Cf. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.

5 Sobre o uso desse termo, ver MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Volume V. São

Paulo: Editora Cultrix, 1979. 6 O conceito de representação utilizado neste artigo é definido em: CHARTIER, Roger. História cultural:

entre práticas e representações. São Paulo: DIFEL, 1990. 7 A respeito do conceito de ―associação‖ utilizado, ver: RIOUX, Jean-Pierre. A associação em política. In:

RÉMOND, René (org.) Op. Cit. p. 99-139. 8 Trecho do discurso contido no boletim Liga para os Aliados. Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 18

de março de 1915. p. 2. 9 Nota contida em Jornal do Commércio.Rio de Janeiro. 27 de julho de 1917. p. 4.

10 O discurso na íntegra pode ser encontrado em Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 15 de julho de

1916. p. 4. 11

Sobre esse assunto, ver: RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Op. Cit. p. 30. 12

Ver Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 15 de julho de 1916. p. 4. 13

MARTINS, Wilson. Op. Cit. 14

Ver Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 5 de janeiro de 1916. p. 3. 15

Ver artigo publicado em Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 6 de janeiro de 1916. 16

Idem.

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Joaquim José Rodrigues Torres e a Escola Normal da província do Rio de

Janeiro (1834-1836)

Lívia Beatriz da Conceição

Resumo: Temos por objetivo pensar sobre a atuação de Rodrigues Torres como

presidente da Província fluminense. Perceberemos como este personagem interpretou e

agiu no processo de constituição do Império do Brasil, refletindo em especial sobre a

criação da Escola Normal. Tendo como estratégia de ação formar os membros desse

Estado em construção, Rodrigues Torres percebia o ensino público como um remédio

poderoso, e o espaço escolar como um singular local nesse fim. Problematizarmos suas

propostas nesse objetivo é nossa questão central.

Palavras-chave: Biografia, Instrução Pública, História Política.

Abstract: Our purpose is to think about Rodrigues Torres performance as the president

of the Fluminense province.We'll notice how this character performed and acted in the

constitution of Brazil empire process,specially on reflecting the creation of the Normal

School.Strategically acting to form members from this new Estate,Rodrigues Torres

had in mind a public education as a "powered medicine",and the educational system as a

singular premises for this purpose.To argue his proposals is our matter.

Keywords: Biography, Public Instruction., Politic History.

Em 1º de fevereiro de 1835, Joaquim José Rodrigues Torres assim abria a

primeira sessão da primeira legislatura da Assembléia Legislativa Provincial

fluminense:

Vindo hoje cumprir o grato dever de dar começo a vossos primeiros trabalhos,

sobremodo me é penoso não poder apresentar-vos nesta mesma ocasião o quadro

completo do estado dos negócios públicos e das providências que mais precisa a

província para seu melhoramento. Sobre outras causas, o curto espaço de menos de

quatro meses que tem de existência a Administração Provincial e a falta quase

absoluta de documentos que me pusessem ao fato dos negócios, fazem

forçosamente aparecer no Relatório que tenho a honra de apresentar-vos defeitos e

lacunas que em verdade podem ser supridos por vossas luzes e pelo conhecimento

prático que tendes da Província, mas o que não obstante apressar-me-ei a encher e

corrigir a medida que for recebendo mais exatas e amplas informações1

Joaquim José Rodrigues Torres assumiu a presidência da Província do Rio de

Janeiro em outubro de 1834, dois meses após a promulgação do Ato Adicional de 12 de

agosto do mesmo ano. Nesta primeira fala à Assembléia Legislativa Provincial ele

precisava apresentar ―o quadro completo do estado dos negócios públicos e das

providências que mais precisa[va] a província para seu melhoramento‖, conforme

decretava o artigo oito da lei complementar à Constituição de 1824.

Um relatório construído num ―curto espaço de menos de quatro meses‖ de

atuação, mas que não deixou de dar especial atenção, como defenderemos, a um

tema/projeto considerado por ele como um ―remédio poderoso‖2: o ensino público

escolar. Nesse sentido, sua fala de abertura pode nos fornece alguns vestígios que nos

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ajudam a refletir sobre qual era a sua posição, a sua estratégia de ação para o tema da

instrução pública, com vias a formar os membros e a imprimir uma direção para o

jovem império em construção3.

De acordo com o referido Ato, que criou as Assembléias Legislativas Provinciais,

competia a estas legislar sobre a instrução pública primária e secundária em âmbito

provincial4, e Joaquim José Rodrigues Torres, como presidente de província, devia

prestar esclarecimentos sobre o que estava sendo executado nesse objetivo. Mas este

também era um momento, seguramente, de sugerir idéias, de tecer suas propostas de

ação política, como no caso das Escolas de Primeiras Letras, uma vez que estas se

configuravam para ele como um singular local, pois:

Os conhecimentos que aí se adquirem são indispensáveis, não só para tratar dos

negócios domésticos, mas ainda para bem desempenhar todos os deveres de

Cidadão. Fora uma tirania que o Estado impusesse a seus membros obrigações,

sem lhes dar ao mesmo tempo meios de as bem conhecer e cumprir5.

A relação necessária entre o governo da Casa e o governo do Estado6 se

estabelecia no diminuto espaço escolar. Lugar indispensável para se apreender não

somente as ―obrigações‖ relacionadas aos ―negócios domésticos‖, mas também aquelas

que diziam respeito ao bom desempenho enquanto ―Cidadão‖ do ―Estado‖. Obrigações

estas que deveriam ser antes muito bem conhecidas para em seguida serem cumpridas.

Uma das principais providências a serem tomadas nesse curto período de

administração provincial seria, então, no seu entender, a multiplicação desse

privilegiado espaço de experimentação política. Contudo, para que os frutos que daí se

pudessem tirar fossem proveitosos seria importante, primeiramente, haver um

investimento em uma outra estratégia de ação: a formação de ―hábeis professores‖ 7.

Nesse objetivo, em seu laboratório fluminense, Joaquim José Rodrigues Torres

indica também como providência necessária a ser tomada para o ―melhoramento do

País‖ a criação de uma Escola Normal. Local onde esses professores seriam

―habilita[dos] convenientemente‖ 8 para efetuarem sua tão preciosa função de informar

aos ―membros‖ desse Estado em construção quais seriam aqueles ―indispensáveis‖

―deveres de Cidadão‖.

Em suas palavras, ―o acréscimo de despesa que disso proviera, seria para o

futuro amplamente compensado pelas vantagens que aí resultariam‖9. O investimento na

instrução pública, através de uma habilitação/fiscalização dos professores e da

multiplicação das escolas de primeiras letras, era considerado assim por esse

personagem individual como um ―remédio poderoso‖ 10

, com vias a um objetivo maior

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de formação do povo e do Estado. Essas, certamente, seriam as vantagens possíveis a

serem conseguidas, justificando, como é defendido por ele, tamanha despesa do serviço

público.

Mesmo em se tratando de um relatório com ―defeitos e lacunas‖ 11

, ou ainda com

―erros e omissões‖ 12

, e o fato dele estar a apenas quatro meses como presidente de

província, o espaço escolar ocupava um lugar de destaque em seu projeto de ação

política como o local onde se edificaria ―a educação científica e moral dos habitantes‖ 13

da Província fluminense e, por conseguinte, do ―país‖. Urgente se fazia, então, a criação

daquele lugar singular para a certeira capacitação do professorado, figurando-os, assim,

em ―Alunos habilitados‖ 14

.

Ainda em 4 de abril de 1835, cerca de apenas dois meses após o primeiro relatório

e seis meses após a sua entrada na presidência da província, foi criada por lei provincial

a escola normal15

. Seus trabalhos, com vias a ―formar crescido número de Cidadãos

habilitados convenientemente para dar à instrução primária o impulso e consideração

que deve ela merecer de um povo civilizado‖ 16

, iniciaram-se em outubro do mesmo

ano.

A escola normal da província fluminense para Rodrigues Torres deveria capacitar

não somente os candidatos às cadeiras vagas, isto é, os professores que quisessem se

tornar efetivos, mas também todo o professorado já em exercício e ―que disso

carecessem‖17

; e assim foi instituído pela lei provincial que a criou.

A argumentação para que os professores já em função fossem aperfeiçoados nesse

espaço de disciplinarização era a de que assim foi decretado pela primeira e única lei

geral sobre a instrução pública primária no Império, a de 15 de outubro de 1827. Porém,

ao consultarmos a referida legislação podemos perceber que o que se pedia para ser

feito com os professores em exercício era bem diferente do que sugeria a lei provincial

de 1835: ―os professores atuais não serão providos nas cadeiras que novamente se

criarem sem exame aprovação‖18

. Isto é, passariam por um exame de seleção os

professores que já em função quisessem se tornar efetivos. E ainda, a lei de 1827 não

fala em criação de uma escola normal, e, seguramente, a fluminense tinha características

próprias construídas no bojo das discussões e formação de idéias que em muito tinham

correlação com as propostas de experimentação política de seu primeiro presidente de

Província.

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Um exemplo disso foi a criação de um dispositivo legal que conferia aos

professores matriculados, como forma de incentivá-los a estar presentes nesse

privilegiado espaço de fabricação disciplinada do professorado, proventos para que

estes pagassem suas mensalidades, algo que não foi instituído pela lei de 1827,

figurando-se assim em ―escolares pensionistas‖19

. No entanto, para que eles tivessem

esse direito deveriam atestar sua freqüência através de uma lista que seria enviada pelo

diretor da escola diretamente ao presidente de província, via secretaria de governo, ao

final de cada mês20

.

E mais, pela lei provincial, os professores em exercício que se recusassem a

freqüentar a escola normal seriam aposentados com ordenados correspondentes ao seu

tempo de serviço. Além do fato de que a escola estaria sob vigilância e inspeção direta

do próprio presidente de província, com o diretor sendo ―obrigado a dar-lhe conta todos

os meses do adiantamento e conduta de seus ouvintes‖21

. Caso assim não o fizesse, ele

poderia ser demitido; assim como os escolares, que ―por incapacidade, irregularidade de

conduta e falta de aplicação‖22

não se encaixassem no perfil dessa subordinadora

instituição de ensino. A exemplo do pensionista Albino Alves de Azevedo, matriculado

em 3 de outubro de 1835 e ―despedido‖ dois meses após por aviso do governo

provincial23

.

Ainda não nos foi possível rastrear os motivos que levaram Albino a ser expulso

da escola normal, mas certamente esta decisão em muito teve correlação com a sua

conduta enquanto aluno, ou melhor, pela falta desta, seja por ele não se encaixar nas

regras estabelecidas ou ainda mesmo por questões relacionadas à sua freqüência. Jozé

da Costa Azevedo, diretor da escola normal na ocasião e personagem sobre o qual nos

deteremos mais adiante, possivelmente encaminhou a Joaquim José Rodrigues Torres

―informação motivada e circunstanciada‖24

a cerca da ―incapacidade, irregularidade de

conduta e falta de aplicação‖25

de Albino enquanto escolar. E ser ―despedido‖ tinha

sérias implicações, pois caberia a ele, por exemplo, repor o dinheiro recebido.

A resolução do governo provincial de que Albino seria expulso cumpria uma

determinação da lei de 10 de outubro do mesmo ano, em execução ao artigo 14º da lei

de 4 de abril de 1835, em que o vice-presidente de província, Paulino José Soares de

Souza, ordenava que além dos escolares poderem ser demitidos por falta de

―capacidade, morigeração e regularidade de comportamento ou aplicação necessária

para desempenhar os deveres do magistério‖, assim seria procedido caso eles tivessem

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―quinze faltas sem causa legítima‖26

. Da mesma forma, o diretor daria parte ao

presidente de província logo que julgasse que um escolar estivesse ―suficientemente

instruído‖ para dar início aos exames de seleção públicos para o provimento das

cadeiras vagas27

.

No tocante a estes exames, é curiosa a proximidade estabelecida entre esta

capacitação dos professores e a atuação de Joaquim José Rodrigues Torres como

presidente de província, pois a ele cabia a avaliação direta daqueles que estariam aptos,

já que ele próprio, como presidente de província, faria parte da banca pública dos

candidatos ao cargo de efetivos 28

.

Vale lembrar nesse momento que não somente os novos, mas todos os professores

em exercício nas escolas de primeiras letras da província foram obrigados a passar pela

formação/habilitação na escola normal, e, a partir disso, por este exame público com a

presença do seu então presidente. A primeira autoridade provincial29

aproximava-se,

nesse ato, diretamente do professorado. Mas não apenas agora através do acesso e

leitura dos relatórios enviados mensalmente pelo diretor da escola normal sobre o

gerenciamento desse particular local de experimentação de um projeto político de ação.

Joaquim José Rodrigues Torres estabelecia, com isso, um contato direto com o

cotidiano escolar, decidindo, inclusive, quais desses docentes estavam ―suficientemente

instruídos‖ para atuarem como um poderoso agente do governo do Estado30

.

Alguns vestígios documentais nos fazem afirmar que havia um longo período de

capacitação nas escolas normais para que esses indivíduos se tornassem ―hábeis

professores‖, a ponto de passarem por esses exames públicos de seleção. Casos como o

de Miguel Joaquim da Cunha, matriculado em 28 de setembro de 1835, examinado e

aprovado cerca de dois anos após, em 20 de abril de 1837, e ainda passando por exame

de oposição em 27 de maio do mesmo ano31

. Ou ainda como o de João Rodarte da

Gama Lobo, que foi matriculado em 28 de setembro de 1835, passou pelo exame de

seleção em 20 de abril de 1837, no mesmo momento em que Miguel Joaquim da Cunha,

mas que somente dois anos após, em 27 de maio de 1839, fez exame de oposição, sendo

igualmente aprovado ao fim32

. Personagens estes, certamente, ―suficientemente

instruídos‖, ao final de um longo processo de habilitação, para efetuar a tão preciosa

função de micro-agente do estado no particular espaço das escolas de primeiras letras.

Em seu segundo relatório à Assembléia Legislativa Provincial, de 1º de março de

1836, Joaquim José Rodrigues Torres tece vários comentários a respeito do bom

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funcionamento desse privilegiado local de preparo daqueles que seriam os responsáveis

por forjar o par Estado/povo do jovem império em formação. Uma de suas principais

ponderações diz respeito à própria organização interna desta instituição:

Se me fora permitido fazer algumas observações sobre a Lei orgânica da Escola,

propor-vos-ia: 1º, que houvesse um número determinado de pensões para os

Alunos que mais distintos se mostrassem: 2º, que fixásseis desde já os honorários

para os que, habilitados na Escola, vierem a exercer o Magistério: dar-lhes-eis

assim um estímulo presente, e assegurando-lhes as vantagens que devem no futuro

gozar, criareis o incentivo mais poderoso para aplicação dos Alunos, e por

conseqüência para o bom resultado das Escolas primárias, isto é, da parte mais

essencial da educação, porque é a que maior influência pode exercer sobre a sorte

do nosso país33

.

De professores transmutavam-se em alunos ―distintos‖ e capacitados que seriam,

além de rigorosamente treinados, fiscalizados por uma ―autoridade encarregada

especialmente desta incumbência‖34

. Mais uma vez o diretor, que era indicado

diretamente pelo presidente de província para o cargo. O primeiro deles a ser nomeado

foi o ―distinto brasileiro‖35

Tenente Coronel Jozé da Costa Azevedo, ―cidadão‖36

este

que tinha ―conhecimentos especiais‖37

para dirigir o ensino público. Tanto que a ele era

sugerido por Joaquim José Rodrigues Torres que fosse entregue também, ainda que

momentaneamente, a ―inspeção e fiscalização de todas as Escola primárias da

Província‖38

, com o objetivo de ―dar-lhes a mais conveniente direção‖39

. Junto a isto,

caberia a Jozé da Costa Azevedo:

Organizar os Estatutos por que se devem elas reger; determinar os compêndios e

modelos; dar aos professores as instruções necessárias; exigir deles todas as

informações convenientes; solicitar, por intermédio do Governo da Província, as

providências para o bom desempenho e melhoramento deste importante ramo do

serviço público40

.

Funções estas que Rodrigues Torres assegurava que ―seriam cabalmente

preenchidas pelo cidadão que se achava a testa deste útil estabelecimento‖41

.

Personagem este que estava à frente inclusive tanto dos pedidos de exames públicos de

seleção para o cargo de efetivo de Miguel Joaquim da Cunha e João Rodarte da Gama

Lobo, quanto da expulsão de Albino Alves de Azevedo, atuando assim também como

um poderoso agente do estado no micro-espaço escolar42

.

A medida de ―dar aos professores as instruções necessárias; [e] exigir deles todas

as informações convenientes‖, através da precisa vigilância do Tenente Coronel Jozé da

Costa Azevedo, seria uma ação ―indispensável para conseguir fim tão importante‖43

. E

que ―fim‖ seria este? O ―de fiscalizar se os Professores cumprem como devem com os

seus deveres‖ 44

. Dever este de, como cidadão habilitado convenientemente, formar,

através da instrução pública primária, ―cujo melhoramento e progresso é por certo uma

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das mais vitais necessidades do nosso país‖ 45

, outros tantos súditos imperiais.

Certamente uma vantagem considerável! E caso esses professores assim não agissem

poderiam ser despedidos, a exemplo do que aconteceu com Albino Alves de Azevedo.

A província do Rio de Janeiro ia se constituindo, desta forma, em um local

singular de experimentação política de Joaquim José Rodrigues Torres de suas

propostas de ação para a instrução pública, com vias a formação do povo e da nação.

Para José Gonçalves Gondra e Alessandra Schueler, ―a construção do Brasil e dos

brasileiros (...) foi objeto de lutas e confrontos entre projetos políticos distintos e de

tensões entre sonhos, caminhos possíveis e formas plurais da nação e da educação

brasileiras‖46

. Dentre esses tantos projetos de ação para o ensino público escolar nesse

momento particular estavam certamente os de Rodrigues Torres.

De acordo com Ilmar Mattos, a instrução pública era ―uma das maneiras, por

vezes a mais significativa, de construir a relação entre o Estado e a Casa e de forjar a

unidade do Império‖47

. Nesse sentido, a província fluminense teria sido um ―laboratório

saquarema‖ para esse fim, a partir do cargo do presidente de província. Joaquim José

Rodrigues Torres ficou no cargo por um significativo período de dezenove meses. Logo

após, foi seu concunhado e correligionário Paulino José Soares de Sousa quem o

assumiu, ficando de abril de 1836 a agosto de 1840. Lembrando que Paulino foi

também seu vice-presidente48

.

Debruçarmo-nos sobre a perspectiva de Joaquim José Rodrigues Torres quanto a

este tema do ensino público escolar, e sobre sua atuação nesse sentido enquanto

presidente da província fluminense, um particular micro-espaço, vale frisar, de exercício

de seus projetos e de criação de alianças, faz-nos pensar não só sobre o tipo de

―membro‖ que se pretendia formar, cumpridor de ―todos os deveres de Cidadão‖, mas

também sobre o tipo de Estado que se pretendia construir a partir de uma direção.

Rastrearmos suas propostas de ação no que diz respeito à instrução pública pode

nos fornecer, em escala micro, alguns vestígios sobre as leituras construídas por esse

personagem histórico individual para e num momento particular de formação do Estado

nacional no Brasil monárquico. Projetos estes, dentre tantos vários outros, de ação

política em que o ensino público era percebido, seguramente, como um ―remédio

poderoso‖, e o espaço escolar do laboratório fluminense como um singular local num

objetivo maior de formar/forjar o povo e a nação do jovem império em construção.

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Este artigo teve por finalidade problematizar suas propostas de ação nesse sentido

como presidente da província fluminense na criação da escola normal, mas sempre

tendo em mente os limites em sua possibilidade de atuação. A viabilidade de realização

ou não de seus projetos de ação política dependeu, certamente, de outros tantos projetos

individuais e/ou coletivos. Escrever uma história de vida, objetivo mais amplo em

pesquisa de doutoramento, certamente é estar sempre atento ao jogo relacional no qual o

sujeito biografado esteve envolvido. Redes de dependência e reciprocidade construídas

ao longo de uma vida e que são plásticas, negociáveis, dentro de um campo de

possíveis49

.

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ) -Agência Financiadora CAPES. E-mail de contato: [email protected]. 1 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com

que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª

sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.

Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil). 2 Ibidem, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).

3 Esta é uma versão preliminar de um dos capítulos da tese em constituição. Nesse sentido, algumas

questões aqui discutidas já tiveram a oportunidade de serem problematizadas em outros momentos. 4 Apenas o ensino superior e o elementar e médio do recém criado Município Neutro permaneceram a

cargo do Ministério do Império. 5 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com

que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª

sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.

Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 6 Idéia cunhada por Ilmar Mattos em MATTOS, Ilmar R. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1994.

7 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com

que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª

sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.

Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 8Ibidem , p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).

9 Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil).

10 Ibidem, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).

11 Ibidem , p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil).

12 Esta já uma perspectiva construída cerca de um ano depois, em relatório apresentado à mesma

Assembléia Legislativa Provincial no ano de 1836. Relatório do presidente da Província do Rio de

Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título, 1836‖, p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil). 13

Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com

que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª

sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.

Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 14

Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,

1836‖, p. 5 (disponível em www.crl.edu/brazil). 15

Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do Rio de Janeiro

desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. A Escola Normal fluminense foi a primeira a ser criada

pelo Império do Brasil. Em nosso período de estudo, que corresponde ao final dos anos trinta, houve

somente mais três: em Minas Gerais, em 1835, mas com funcionamento efetivo a partir de 1840, na

Bahia, em 1836, e no Pará, em 1839. Ver a respeito, por exemplo, José Gonçalves Gondra e Alessandra

Schueler. Educação, pode e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. 16

Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,

1836‖, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).

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1048

17

Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com

que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª

sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.

Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 18

Artigo 9º da Lei de 15 de outubro de 1827. Ver em: LIMA, Lauro de Oliveira. Histórias da Educação

no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro: Editora Brasília, s/d, pp. 105-107.

19

Artigo 18 da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da

mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia

Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851.

Pela Lei de 15 de outubro de 1827, em seu artigo 5º, ―os professores que não tivessem a necessária

instrução (...) [no ensino mútuo iriam] instruir-se em curto prazo e a custa dos seus ordenados‖. ―Lei de

15 de outubro de 1827‖. In: LIMA, Lauro de Oliveira. Op.Cit.. 20

Artigo 18 da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da

mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia

Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 21

Artigo 13 da Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do

Rio de Janeiro desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 22

Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do Rio de Janeiro

desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 23

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo Presidência da Província (PP). Série

Diretoria de Instrução Pública. Documentos Provenientes da Diretoria de Instrução Pública. Notação

0213. 24

Artigo 8º da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da

mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia

Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 25

Artigo 14º da Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do

Rio de Janeiro desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 26

Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da mesma legislação

organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia Legislativa

Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 27

Artigo 9º da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da

mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia

Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 28

Artigo 10º da Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do

Rio de Janeiro desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 29

De acordo com a Lei de 3 de outubro de 1834, que marcava as atribuições do presidente de Província,

este seria a primeira autoridade provincial, e a ele estavam subordinados ―todos que nela se encontrassem,

‗seja qual for a sua classe ou graduação‘‖. MATTOS, Ilmar R. Op.Cit., p. 244.

30 Idéia cunhada por MATTOS, Ilmar R. Op.Cit.

31 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo Presidência da Província (PP). Série

Diretoria de Instrução Pública. Documentos Provenientes da Diretoria de Instrução Pública. Notação

0213. 32

Ibidem . 33

Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,

1836‖, pp. 3-4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 34

Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 35

Ibidem , p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 36

Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 37

Ibidem, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 38

Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 39

Ibidem , p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 40

Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 41

Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil).

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42

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo Presidência da Província (PP). Série

Diretoria de Instrução Pública. Documentos Provenientes da Diretoria de Instrução Pública. Notação

0213. 43

Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,

1836‖, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 44

Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 45

Ibidem, p. 5 (disponível em www.crl.edu/brazil). 46

GONDRA, José Gonçalves e SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império

brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008, p. 39.

47

MATTOS, Ilmar R. ―A teia de Penélope‖. In: MATTOS, Ilmar R. Op.Cit, p. 245. 48

Segundo Ilmar Mattos, ao contrário das demais províncias, a do Rio de Janeiro teve presidentes por

longos períodos, a exemplo dos dois citados acima; e estes não eram estranhos a ela. Mesmo as breves

presidências liberais, como a de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (1844-1848), ―não foram

suficientes para modificar o traço que assinalava aquela unidade político-administrativa, desde 1834: a

província fluminense cumprindo o papel de um laboratório, no qual os saquaremas tanto testavam

medidas e avaliavam ações que buscavam estender à administração geral, quanto aplicavam decisões do

Governo-Geral, sempre com a finalidade última de consolidar a ordem no Império‖. Ilmar Mattos.

Op.Cit., p. 240. A relação dos presidentes da Província fluminense pode ser vista em Barão do Javari.

Organizações e programas ministeriais. Regimento parlamentar no Império. 2ª edição. Rio de Janeiro,

1962, pp. 445-446. Ainda de acordo com Ilmar Mattos, ―a instrução cumpria – ou deveria cumprir – um

papel fundamental, que permitia – ou deveria permitir – que o Império se colocasse ao lado das 'Nações

Civilizadas'‖, com cada uma de suas classes e de suas raças, nesse processo, conhecendo mais ou menos o

seu lugar. Ilmar Mattos. Op.Cit., p. 245. 49

Idéia esta cunhada por Gilberto Velho como forma de evitarmos, numa análise sobre trajetórias e

biografias, ―um voluntarismo individualista agonístico ou um determinismo sócio-cultural rígido‖.

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor,1994, p.40.

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Paul Ricoeur e Dominick Lacapra: História e Literatura; Historiografia e

Crítica literária

Lorena Lopes da Costa1

Resumo: O artigo pretende discutir proposições de Lacapra e Ricoeur acerca da

narrativa, da história e da literatura. Para Lacapra, embora a questão da narrativa não

seja nova, ela aparece agora sob nova forma, convidando-nos a pensar não apenas a

escrita da história, mas o que a escrita do romance oferece à historiografia. Para

Ricoeur, a referência da linguagem existe em qualquer narrativa. O que ocorre entre

narrativas literárias e históricas é uma inspiração mútua, uma referência cruzada.

Palavras-chave: narrativa, história e literatura.

Abstract: The article discusses LaCapra and Ricoeur‘s propositions about narrative,

history and literature. For LaCapra, although the question of the narrative is not new, it

now appears in a new way, inviting us to consider not only the history writing, but what

novel writing offers to historiography. For Ricoeur, the language reference exists in

every narrative. What happens between literary and historical narratives is a mutual

inspiration, a cross-reference.

Key-words: narrative, history and literature.

Dominick Lacapra lembra que, até recentemente, a função da narrativa na história

teria sido minimizada. Realçou-se, em especial considerando a vasta troca da história

com as ciências sociais ao longo do século XX, a necessidade de analisar dados,

formular hipóteses e construir modelos explicativos. A função da narrativa, a qual

Lacapra entende ser também sua dimensão artística foi, quando considerara, pensada

apenas em termos de estilo.

Para o autor, a questão da narrativa, embora não seja nova, aparece agora de uma

nova forma, convidando o interessado a pensar não apenas na escrita da história, mas,

também, no que a escrita do romance oferece à historiografia, de tal maneira que a nova

forma da velha questão enquadra o problema da própria história moderna2.

No século XIX, também analisado por Hayden White, por exemplo, houve,

segundo Lacapra, um paralelo notável entre o romance e a narrativa histórica, de modo

que mestres da narrativa eram encontrados nessas duas áreas do discurso. Próximo de

seu fim, o Oitocentos evidencia, no entanto, uma separação contrastante entre a

narrativa histórica e romanesca. Enquanto a narrativa histórica ter-se-ia mantido presa a

sua forma oitocentista, a qual tinha pouca auto-consciência sobre o problema da

opinião ou do ponto de vista3 nesse período, o romance, por outro lado, desde Flaubert,

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1051

teria experimentado uma vastidão de abordagens para a narrativa. O breve apanhado de

Lacapra, que compara historicizando essas duas áreas do discurso em prosa, parece

habilitar o autor a explorar com mais autoridade a questão de como o romance deveria

ser tratado ou pensado pelo historiador. E, por mais que a própria categoria que

qualifica um texto como romance não seja consensual4, Lacapra entende que o

problema da narrativa não apenas convida a repensar a analogia entre romance e

história, como desloca, na verdade, a questão para a relação entre historiografia e crítica

literária, uma vez que tal articulação irá estabelecer, tácita ou declaradamente, a forma

de visualizar no romance uma fonte.

Lacapra identifica como uma das soluções dadas para a articulação da

historiografia com a crítica literária aquela que faz um uso estritamente documental ou,

em outros termos, positivista do romance. Tal uso implica em dificuldades que, segundo

o autor, existem quando do tratamento de qualquer documento, seja ele literário ou não,

tomado como fonte. O uso documental, pontua o autor, desconsidera o fato de um texto

também suplementar o passado que ele busca representar, de modo que nenhum texto

pode ser pensado como um acesso direto aos fatos passados. Malgrado tais

apontamentos, o romance portaria uma função referencial. E é dando crédito a essa

função que o historiador converte o conteúdo do romance em informação acerca da

vida, em um dado momento ou das transformações desse momento representado.

Além de desconsiderar a mediação exercida por todo e qualquer texto, essa

perspectiva positivista gera uma narrativa histórica menos autocrítica e indagadora do

que a própria narrativa literária, a qual ela tenta explicar5. O texto literário acaba por

ser redundante na medida em que aponta para o historiador aquilo que a historiografia o

habilitou a perceber nele mesmo6. O uso documental do romance, assim, apenas

confirmaria aquilo já encontrado ou passível de ser encontrado em outras fontes. Ou,

por outro lado, a literatura fica reduzida não a uma fonte redundante, mas a uma forma

meramente sugestiva. Frente aos romances que sugerem alguma informação cuja

veracidade não possa ser confirmada por outra fonte, a atitude positivista os enquadraria

num status de fonte pouco séria, no sentido de ser pouco comprometida com a erudição

histórica.

Em oposição ao uso documental que pode ser feito com o texto literário, Lacapara

identifica o método formalista. Para ele, no entanto, esse segundo caso, que entende o

texto literário como uma entidade com um fim em si mesma e que, por isso mesmo,

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relega à história um lugar secundário, não pode ser considerado enquanto alternativa à

questão da literatura como objeto para a história.

Em busca, então, de uma alternativa mais satisfatória que possa prever igualmente

um entendimento diferente de textos literários e uma relação diferente entre

historiografia e crítica literária7, Lacapra propõe um movimento no sentido de

compreender o texto em relação aos usos da linguagem que estabelecem algum tipo de

acordo entre si ou que acabam por registrar contextos de tal maneira que o intérprete

assume, um pouco, o olhar do historiador bem como do crítico, já que a sua leitura

acaba por realizar alguma troca com o passado.

Esses contextos registrados de alguma forma na leitura do texto são três,

conforme explica o autor: o primeiro é o da escrita, que inclui do tempo do autor não

apenas suas intenções, mas também ideologias e discursos coevos. Pensar esse primeiro

contexto oportuniza uma questão que tanto o método documental quanto o formal

excluem: qual seja, a que diz respeito à maneira como o texto chegou a um acordo com

seu contexto. O segundo momento é o da recepção, que investiga a forma como o texto

é lido em diferentes meios. Por fim, no terceiro, o da leitura crítica, o autor chama

atenção para a possibilidade de se considerar na leitura de um romance, além das vozes

de contestação ou discursos de oposição do passado, os caminhos pelos quais o texto

pode ser entendido e, ainda, caminhos pelos quais o mesmo texto pode auxiliar a

historiografia a elaborar criticamente sua própria voz. Com a leitura crítica, de acordo

com o autor, fica posta a questão mais sugestiva, que parte do romance para a

historiografia, questão que reelabora a dimensão da narrativa nos dois campos em

questão, tanto a literatura quanto a história:

se a escrita contemporânea da história pode aprender algo de natureza

autocrítica a partir de um modo de discurso que ela frequentemente tenta

usar ou explicar de maneira excessivamente reducionista8.

História e Literatura – Mimese e Temporalidade

Num dos capítulos do primeiro volume de Tempo e Narrativa9, Ricoeur investiga

os elos de construção de uma narrativa. Articulada, é ela que dota de significado a

existência temporal do homem. Narrar, em Ricoeur, é ação que humaniza o tempo. O

curioso é que, de um modo geral nesse texto, Ricoeur deixa claro estar tratando da

narrativa sem discriminar gêneros ou, ainda, sem restringir seus apontamentos à

historiografia, que, certamente, narra ou à literatura, que narra também. De fato, fica

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claro que para o autor esses dois tipos de narrativa não se confundem. Será apenas no

terceiro tomo de Tempo e Narrativa que Ricoeur debruçar-se-á sobre as especificidades

de cada qual. De modo que, num primeiro momento, a narrativa que serve de objeto de

estudo a Ricoeur explica tanto o texto literário quanto o histórico e, portanto, revela

muito daquilo que eles guardam em comum.

Bebendo em Aristóteles, Ricoeur identifica três momentos que instauram ou

fazem a mediação entre o tempo e a narrativa. No primeiro momento, denominado

Mimese I, da composição da intriga, deve haver uma pré-compreensão do mundo e da

ação que se pretende narrar. É preciso, nesse momento, entender o agir humano no

mundo de tal maneira que seja possível distingui-lo de outro movimento humano

qualquer. Por ser articulada em signos, regras e normas, a ação ao ser narrada pode ser

decifrada pelos outros atores do jogo social. A pré-compreensão da ação recorre,

portanto, aos elementos de uma determinada cultura que permitem a um determinado

público entender tal ação e eles têm essa capacidade, exatamente, por serem públicos.

Já nesse primeiro momento da tessitura da intriga, Ricoeur lança mão de um

argumento contrário aos pressupostos de Hayden White. É que, segundo Ricoeur, a ação

não é nunca neutra nem poderia ser. Ela está sempre sujeita a uma hierarquia de valores

que a qualifica e a julga de acordo com a preferência moral própria ao esse determinado

público ou a essa determinada cultura.

A ação efetiva, que se busca apreender nesse primeiro momento, revela um

intercâmbio entre diferentes dimensões temporais e, consequentemente, institui, para si

própria, uma temporalidade específica que decorre desse intercâmbio e articula as

temporalidades que são, nela, intercambiadas.

Na Mimese I, enfim, o que se quer é, da forma mais completa, pré-compreender a

ação humana. Tendo isso sido feito, tal ação vence a primeira etapa a fim de que possa

ser representada pela narrativa. Na Mimese II, entendida por Ricoeur como pivô da

análise, o que se tem, embora o autor intencionalmente evite o termo, é o momento da

ficção10

. Para ele, ficção não seria nem o sinônimo das configurações narrativas nem o

antônimo da pretensão da narrativa histórica de constituir uma narrativa

“verdadeira”11

. A ficção em Ricoeur quer dizer o ―como se‖, o que contribuir para

demarcar a divergência entre o autor e uma crítica literária, que, segundo ele mesmo,

não leva em conta a divisão do discurso narrativo em duas grandes classes delimitadas

pela dimensão referencial.

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O segundo momento, quando se busca representar a ação humana forjando uma

narrativa, tem um papel claramente mediador, para Ricoeur. A Mimese II seria uma

operação de configuração que integra os elementos de seu campo textual, bem como

opera para além desse campo, numa mediação, aí sim, mais ampla entre a pré-

compreensão da ação humana e a pós-compreensão, que se dá para o leitor da intriga. A

tessitura da intriga tem caráter mediador, porque é ela que transforma os acontecimentos

em história, mediando o aspecto episódico e o aspecto configurante12

; é ela também que

oferece à história narrada uma forma de acabar e, assim, representa o escoamento do

tempo demarcando uma direção, e, por outro lado, possibilitando uma leitura aos

avessos, uma vez que o princípio e o fim da ação representada estão sinalizados.

Ricoeur, ao pensar a tessitura da intriga, aproxima, como faz Kant, o ato

configurante da imaginação, que é importante por sintetizar ou esquematizar a história

narrando-a13

. Mais além, o ato configurante que consiste no segundo momento

mimético, não apenas esquematiza, mas também faz uso de paradigmas disponíveis ou

sedimentados, que fornecem regras para a construção da narrativa.

A Mimense III seria a interseção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou

do leitor14

. Ela dispõe sua atenção sobre o público receptor da obra. Este terceiro

momento explica o porquê do encadeamento que une a travessia mimética ser

progressivo e, não, simplesmente um círculo que sempre se repete. No leitor, a ação

representada pela intriga é ressignificada, altera o mundo do leitor, mas é igualmente

alterada. O leitor trabalha ao ler a narrativa e cria um tempo refigurado por meio daquilo

que o texto fabricado lhe oferece.

Muito diferente da forma semiótica como Hayden White compreende a fabricação

do texto ou, em suas palavras, a urdidura do enredo, Ricoeur reconhece a importância

da tessitura da intriga por seu papel medidor. É o tempo configurado, que pode ser lido

e ouvido, que liga um tempo prefigurado, referido na intriga, a um tempo refigurado,

recebido pelo leitor, mas também trabalhado pelo leitor. À ação, cabe um tempo

inerente e, nesse tempo, a ação não pode ser eticamente neutra. À intriga cabe um tempo

tanto cronológico, próprio aos episódios da narrativa, quanto um não cronológico,

responsável por transformar os acontecimentos em história. À leitura da obra, por fim,

cabe uma terceira temporalidade, específica. O ouvinte ou o leitor recebe o texto

conforme sua capacidade, mas, em função da experiência nova, que é, pela leitura

compartilhada, aberta a um horizonte de mundo.

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1055

Para Ricoeur, a referência da linguagem existe em qualquer narrativa, mesmo

naquelas não descritivas, em forma de poesia ou prosa. Até aquelas que se esforçam

para se alienarem do real, teriam, nesse esforço mesmo de alienação, uma forma de

interseção entre o mundo do texto e o do leitor. Nenhum texto pode, segundo o autor,

abdicar da referência da linguagem. Os textos não descritivos, os líricos por exemplo,

sem descreverem o mundo, inexoravelmente, falam dele e, em especial, de aspectos dele

que não poderiam ser ditos de outra forma, senão pela forma indireta da metáfora.

A historiografia, por seu turno, por mais que busque vestígios do passado e trate

do passado, prendendo-se a acontecimentos que, de fato, ocorreram não pode deixar de

recorrer à referência metafórica, por excelência constituinte do regime referencial

próprio aos textos líricos citados há pouco. A reconstrução do passado, por meio de seus

vestígios, depende da imaginação e, para imaginar o passado, a metáfora é essencial.

Tal figura é, na verdade, comum a todos os textos poéticos.

O que ocorre entre narrativas literárias e históricas é uma inspiração mútua: uma

referência cruzada, segundo Ricoeur. Se a narrativa histórica, para fazer com que a

referência aos vestígios diga sobre o passado, sobre o que efetivamente aconteceu,

precisa do artifício da metáfora, por outro lado, a narrativa de ficção colhe, nos vestígios

do passado, parte de seu dinamismo referencial. Tanto a intencionalidade histórica

quanto o intento de verdade da ficção literária respondem à aporia da temporalidade por

meio de sua poética da narratividade.

Nesse sentido, a ficção inspirar-se-ia tanto na história quanto a história na ficção.

É essa inspiração recíproca que me autoriza a colocar o problema da referência cruzada

entre a historiografia e a narrativa da ficção15

.

Ricoeur entende que a história reclama para si certa ficcionalização16

. Essa

ficcionalização estaria a serviço do intento historiográfico de representação do passado;

estaria a serviço de um fenômeno que possibilita ao leitor ou ouvinte ver como aquilo

que aconteceu.

Um rastro do passado – uma ruína, um resto, um fóssil, uma peça de museu –,

para ser rastro, precisa afigurar tal passado, que é o mundo que falta ao redor da

relíquia. A relíquia, por sua vez, é aquilo que se presta como referência a esse mundo

ausente. Próximo àquilo que Hayden White chama de função representativa da

imaginação histórica, o ato de se ―afigurar que‖, em Ricoeur, faz com que a imaginação

dê acesso a algo que pode ser visto. Os tropos, essenciais para se entender como o

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historiador explica o passado segundo White, viabilizam o fenômeno de ver o passado.

A história toma emprestado, destarte da literatura, tropos para que a função

representativa da imaginação histórica seja possível.

O historiador moderno já não mais se permite lançar mão, por exemplo, de

discursos imaginados, pondera Ricoeur, mas, mesmo se ancorando em evidências, ele

não deixa de recorrer, sutilmente, àquilo que um romance faz de forma explícita. O

historiador pinta a situação da qual trata e, para isso, acaba por restituir uma cadeia de

pensamento e um discurso interno a ela. A elocução do historiador, o que remete a

Aristóteles, coloca algo diante dos olhos: faz ver. Da ficção, a história retira a força de

provocar a ilusão da presença, sem anular o distanciamento crítico, pontua Ricoeur. As

ferramentas que a literatura usa são caras à história.

Na mão contrária, é da história que a ficção retira parte de sua força. É da

história que partem alguns dos elementos que permitem à ficção concretizar também seu

projeto de ver como aquilo poderia ter ocorrido. A ficção conta algo como se tivesse

contando, efetivamente, algo ocorrido e, como a história, ela trata do passado. Diferente

da história, porém, a ficção diz de um passado fictício, pertencente à voz narrativa, vivo

apenas no passado dessa voz. E, por mais irreais que sejam os acontecimentos narrados,

também na ficção, a narrativa faz o que a história almeja: suprir o caráter esquivo da

efemeridade do tempo ido. Outro elemento que torna a história necessária à ficção está

relacionado à forma como a segunda arma a sua intriga, o que, mais uma vez, remete a

Aristóteles e lembra o argumento de Ginzburg17

: a intriga, para ser persuasiva, deve ser

provável ou necessária. O passado da voz narrativa é fictício mas se identifica com o

provável, com o que poderia ter ocorrido e é isso o que ressoa em toda reivindicação de

verossimilhança, caso contrário, o leitor não conseguiria realizar a Mimese III.

O verossímil em Aristóteles, para Ricoeur, abarca tanto potencialidades do

passado real quanto os possíveis irreais da pura ficção. O irreal da pura ficção é,

profundamente, afim ao que não se realizou no passado efetivo, mas que poderia ter-se

realizado. De tal maneira que a ficção é quase histórica e, como visto, a história é quase

fictícia.

A interpretação que aqui proponho do caráter ―quase histórico‖ da ficção

confirma, evidentemente, a que proponho ao caráter ―quase fictício‖ do passado

histórico. Se é verdade que uma das funções da ficção, misturada à história, é libertar

retrospectivamente certas possibilidades não efetuadas do passado histórico, é graças a

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seu caráter quase histórico que a própria ficção pode exercer retrospectivamente a sua

função libertadora. O quase-passado da ficção torna-se, assim, o detector dos possíveis

ocultos no passado efetivo. O que teria podido acontecer – o verossímil segundo

Aristóteles – recobre, ao mesmo tempo, as potencialidades do passado ―real‖ e os

possíveis ―irreais‖ da pura ficção18

.

Enquanto, para Hayden White, não há oposição entre história e ficção, sendo a

história até mesmo um gênero literário, já que a explicação histórica não é dada pelo

conteúdo factual, mas pela mesma maneira com a qual o romancista dá sentido ao real,

para Ricoeur, a narrativa histórica também é literária, mas é realista, segundo a análise

de José Carlos Reis19

. O caminho que Ricoeur propõe para a historiografia é a

semântica hermenêutica. Nela, por mais que a história seja um artefato verbal, ela não

pode ser restrita ao texto. O discurso histórico não se restringe à suspensão que ele faz

do mundo. O discurso histórico, na verdade, restitui algo ao mundo, que, sem o texto,

poderia ter-se perdido. O leitor, ativo, transforma o texto à medida que o aplica a sua

realidade, que é, por sua vez, significada por meio do texto. E o leitor também contribui

para demarcar o realismo da histórica. O mundo do leitor põe limite à dimensão

ficcional do texto, porque ele não apenas recebe o texto, mas trabalha nele ligando a

experiência configurada, que se dá a ver pelo texto, à referência exterior, controlando-o

realista e cientificamente.

Ademais, ao enraizar a narrativa na temporalidade, Ricoeur aprofunda ainda

mais seu realismo, segundo o crítico. A intriga unifica experiências dispersas,

oferecendo ao leitor a oportunidade de reconhecer a experiência vivida. Essa imitação

narrativa é realizada tanto pela literatura, quanto pela história. Mas, se em White, a

forma ou a urdidura do enredo predominam tanto sobre a história quanto sobre a

literatura, aproximando-as; em Ricoeur, é o realismo um dos pontos sobre o qual a

história e a literatura se cruzam, equacionando-se sem se igualarem.

Embora se diferenciem no que concerne à temporalidade, história e literatura

cumprem o mesmo: dão forma e sentido à experiência temporal do mundo humano. E,

por mais que cumpram o mesmo, elas se complementam. As narrativas históricas são

variações interpretativas e as ficcionais, variações imaginativas. O uso da documentação

seria a linha divisória entre história e ficção, para Ricoeur, na análise de Reis. O

documento impõe certos elementos à operação historiográfica: a data, a ação, a

personagem. Os dados exteriores limitam as possibilidades disponíveis ou combináveis

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para se pensar o evento histórico. E é por essa limitação que a interpretação histórica,

por mais que utilize a imaginação, não pode ser uma variação imaginativa, ou apenas

orientada pela imaginação. Pode haver abordagens de uma situação histórica, mas os

vestígios dessa situação ou os dados que as compõem são os mesmos – ainda que outros

rastros possam ser, com o tempo e com as novas pesquisas, agregados.

A narrativa histórica quer reconhecer os homens e as experiências do passado por

meio dos vestígios que permaneceram, bem como quer inseri-los no tempo do

calendário. Ela quer conectar o tempo vivido por esses homens ao tempo cósmico e

biológico. Cria um terceiro tempo para traduzir a experiência humana. Já na ficção, a

narrativa se desobriga daquilo que cerca a história: datas, gerações, locais, vestígios.

Embora desobrigar-se não implique não fazer referência de alguma maneira a esses

elementos, como já abordado, até a negação deles implica algum tipo de referência a

eles, o tempo fictício é livre e, geralmente, evita a exatidão. Explora, especialmente, o

tempo humano, as características não lineares de experiências irreais, não submetidas ao

tempo calendário, preferido pela história para Ricoeur.

Literatura e história cruzam-se, mas não se confundem. Partilhando alguns

elementos e podendo ser entendidas, todas duas, pela semântica hermenêutica – na qual

Ricoeur trata da narrativa em geral –, uma oferece a outra aquilo que suas

particularidades permitem, como que alargando um pouco o campo de ação de cada

uma. Por exemplo, considerando que a história cruza-se com a ficção no momento da

composição, que é literária e oferece imagens ao leitor e considerando, por outro lado,

que a ficção cruza-se com a história, no momento em que quer convencer o leitor da

plausabilidade do narrado, todas as duas empurram seus limites para imaginar melhor

seu passado, seja o passado experimentado pelo mundo, seja aquele experimentado pela

voz narrativa na ficção. E, não menos, empurram seu horizonte de expectativa, ao

fazerem o leitor ver o que, no passado, foi, bem como o que poderia ter sido.

É na leitura, no espírito do leitor, que o abismo entre a história e a ficção torna-se

um vale: uma se torna ―quase‖ a outra. Na refiguração do tempo, história e ficção não se

opõem mais tão radicalmente, cruzam-se. Cada um desses modos narrativos se faz

empréstimos: a história incorpora fontes de ficcionalização, a ficção só transforma o

agir e sentir se incorpora fontes de historicização20

.

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11

Mestranda do Departamento de História, da UFMG, da linha História e Culturas Políticas; bolsista do

CNPq. 2 LACAPRA, p.108.

3 LACAPRA, p. 114.

4 Lacapra lança mão de diferentes perspectivas sobre o romance, considerando os estudos de George

Lukács e Mikhail Bakhtin. 5 LACAPRA, Dominick. História e romance. Revista de História, Campinas, n. 2/3, p. 107-124, 1991; p.

117. 6 STARLING, Heloísa. Sérgio Cardoso org. ―A Republica e o Subúrbio: Imaginação

Literária e Republicanismo no Brasil.” In. Retorno ao Republicanismo. Belo

Horizonte. Editora UFMG, 2004.

7 LACAPRA, História e romance. Revista de História, Campinas, n. 2/3, p. 107-124, 1991; p.118.

8 LACAPRA, História e romance. Revista de História, Campinas, n. 2/3, p. 107-124, 1991; p.122.

9 RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.

In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v.

10 Ricoeur, no entanto, acaba por escolher a segunda acepção, na qual ficção opõe-se à narrativa histórica.

11 RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.

In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p.101.

12 Ricoeur, neste e em outros pontos, recorre aos estudos de Northrop Frye, a quem também Hayden

White faz referência consistente. 13

Ele chama atenção tanto para o esquematismo quanto para o tradicionalismo, mas, por ora, basta ater-se

ao primeiro, que diz sobre o papel da imaginação. 14

RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.

In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p.110 15

RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.

In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p. 125. 16

RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖. In: Tempo e Narrativa. Campinas:

Papirus, 1994. 3v; 17

O estudo exploratório sobre a obra de Ginzburg foi elaborado no primeiro capítulo da dissertação do

qual esse texto, com algumas modificações faz parte. 18

RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.

In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p.331. 19

REIS, José Carlos. ―O entrecruzamento entre narrativa histórica e narrativa de ficção‖. In: O desafio

historiográfico. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. 159 p. (FGV de bolso. Série História ; v. 13). 20

REIS, José Carlos. ―O entrecruzamento entre narrativa histórica e narrativa de ficção‖. In: O desafio

historiográfico. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. 159 p. (FGV de bolso. Série História ; v. 13); p.81.

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Minas Gerais e as novas abordagens historiográficas: questões de História

política, sociabilidades e culturas políticas1.

Luana de Souza Faria

Resumo: A historiografia mineira do período colonial tem-se renovado

substancialmente nos últimos anos, temas antes relegados a segundo plano, como os

relacionados à esfera do político, tornam-se agora numa via privilegiada para a

compreensão das complexas relações sociais de uma sociedade. O objetivo desse artigo

é analisar o modo como a renovação da História política contribuiu para as novas

abordagens sobre a relação entre a Coroa portuguesa e suas possessões, principalmente

no que tange ao tratamento dispensado por ela aos descaminhos do ouro.

Palavras chaves: Minas Gerais, descaminhos do ouro, História política

Abstract: The historiography of Minas Gerais in the colonial period has been renewed

in recent years, issues before relegated to the background, such as those related to the

political sphere, now become a privileged means for understanding the complex social

relations of a society. The purpose of this article is to analyze the way how the renewal

of Political History has contributed to the new approaches between the Portuguese

Crown and its possessions, especially with regard to the treatment accorded by it to the

gold´s detours.

Key Words: State of Minas Gerais, Minas Gerais, gold´s detours, Political History.

Nos últimos trinta anos a historiografia mineira do período colonial tem

contribuído de modo significativo para uma renovação tanto de ordem teórica como

metodológica, tal renovação, no entanto não aconteceu de modo isolado, acompanhou a

uma tendência internacional, que se manifestou frente a um crescente descontentamento

que levou a crise de grandes paradigmas como o estruturalismo e a filosofia

materialista. Temas antes relegados a segundo plano, como aqueles relacionados à

esfera do político, tornam-se agora numa via privilegiada para a compreensão das

sociedades por meio das relações sociais que foram engendradas pelos diversos atores

sociais em seus diferentes contextos. Importa-nos aqui, ter em mente que, esta nova

abordagem passa a rejeitar algumas premissas até então consagradas, como as que

consideravam ―os processos sociais marcado pela linearidade e previsibilidade.

Recusando explicações fundamentadas em variáveis ‗externas‘ aos próprios processos

históricos‖2, além de ―abandonar os modelos que trabalham com a relação de

dominação, a partir da premissa de que o dominante é capaz de controlar e anular o

dominado, tornando a expressão ou o reflexo de si mesmo‖3, uma vez que, tais

abordagens mostraram-se ineficazes quando utilizadas para explicar a complexidade dos

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fenômenos sociais à luz de concepções dicotômicas ou teleológicas, como por exemplo,

metrópole x colônia ou dominante x dominado.

O modo como esta historiografia abordava os seus objetos foi profundamente

questionada, possibilitando a introdução de novos conceitos, e a revisão de outros já

consagrados. Novas fontes foram introduzidas no trabalho do historiador e com a elas

veio a necessidade de incorporar outras metodologias para tratar adequadamente os

novos objetos. E como havia de ser, a História é repensada e reformulada, abrindo

espaço para que um grupo de historiadores abordasse o político a partir de questões

mais sofisticadas. As análises estruturantes, que faziam das escolhas dos atores sociais

meras funções destas, não davam mais conta de responder aos questionamentos

oriundos de diversas partes, ficando patente que os fenômenos sociais eram muito mais

complexos do que se propunham.

Uma importante contribuição, embora bastante questionada, para o que chamamos

com muito cuidado de ―retorno ao político‖ veio das análises de Michel de Foucault,

uma vez que ele nos propõe a pensar a desinstitucionalização do político ao realizar um

estudo do poder ou para melhor dizer dos ―micro-poderes‖ presentes na sociedade.

Foucault desloca a análise propriamente do político para o poder ao perceber que este

não está concentrado apenas nas mãos do Estado, ele está presente nas relações

humanas. Pensar sua obra torna-se importante aqui à medida que nos leva a pensar

trabalhos posteriores como o do Geovanni Levi4 que vai pensar a distribuição dos

poderes em uma pequena comunidade de camponeses na Itália do século XVII ou o do

Xavier Gil Pujol, que em um importante estudo afirmará que ―el poder es el tema sobre

el que gravita buena parte de la nueva valoración de la história política‖5, o que trará

implicações importantes para as novas abordagens, sobretudo para a que nos importa

aqui, a Monarquia portuguesa no século XVIII, em que o Estado agora é pensando

como fruto dos intermediários, ou seja, das negociações.

Interesso-nos pensar a relação estabelecida entre a metrópole e colônia, mais

especificamente no modo de administrar e fazer justiça no Antigo Regime frente aos

constantes descaminhos do ouro, uma vez que ―a Monarquia portuguesa concebia como

obrigação real, a função básica de assegurar o cumprimento das leis, coibir abusos e

crimes e fiscalizar a administração em seus diferentes níveis‖6. Nesse sentido Pujol

mostra a fecundidade da análise, uma vez que ―el estudio de la ley y del castigo es um

modo de abordar el análisis del mantenimiento de um sistema de poder o, por lo menos,

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de los intentos realizados a tal fin‖7 e a partir desse entendimento nos é proposto três

modos de empreender semelhante estudo, sendo o terceiro o que mais nos interessa uma

vez que o ―enfoque que compagina las inquietudes de la historia social com el debido

interes por las cuestiones políticas y de reparto de poder‖8, este focaliza no estudo de

casos extraindo de vários registros

casos selectivos que permiten ver la interconexión de los diferentes

factores concurrentes em el funcionamiento de um sistema legal: relación

com la autoridad, conflictos de clase y poder del estado, intento de inculcar

hábitos de obediencia em las clases bajas, aplicación arbitraria de la ley y

simultânea consagración del rule of law y de la ideologia a el asociada,

distintas percepciones del sistema legal e su relación com los valores

morales, etc9.

O quinto que se devia a sua Majestade não deve ser compreendido como um

simples imposto, mas como um direito régio, o que já nos leva a questões mais

complexas acerca da necessidade de se paga-lo, uma vez que este era legitimado pelos

diversos tratados de juristas da época, sejam eles teólogos ou leigos, o fato era que tal

noção tentava imputar na consciência dos povos a necessidade de se pagar tal direito,

uma vez que dele advinha a manutenção da ―Casa‖, ou preservação do ―corpo‖.

Já no início da década de 1720, pouco tempo após a Revolta de Vila Rica, em que

o povo se revoltara contra às ordens régias que ordenava o estabelecimento das Casas de

Fundição e Moeda, no famoso Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que

nas Minas Ocorreram no ano de 1720, o autor já anunciava o resultado de tantas

mudanças na forma de arrecadação dos quintos,

Tantas mudanças, desde o seu principio, tem padecido esta cansada e

trabalhosa cobrança dos quintos; tem-se-lhe assinado tantas formas de os

arrecadar que, à vista da sua variedade, assentei por infalível que também

acabaria cedo a nova lei. E a razão que tive para o julgar assim foi ver que

outras muitas ordens de El-Rei, impugnadas sempre a seu salvo nas Minas,

não podiam deixar de tirar muita parte de subsistência e vigor à nova lei,

porque nenhuma coisa diminui tanto a autoridade como fazer muitas vezes

o que depois se há de mudar, e estabelecer o que não há de mudar; e

estabelecer o que não há de consistir10

Dessa forma, veremos ao longo dos anos que se correram, que o autor cético em

relação às tantas mudanças, ainda no inicio do século, não deve ter se surpreendido no

que resultara a política administrativa adotada pela Coroa Portuguesa para as suas

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Colônias nesse período. Ao findar a primeira metade do século XVIII a Colônia já havia

experimentado quatro métodos distintos de arrecadação do quinto, desde o pagamento

por bateias, passando por casas de fundição, cota anual, capitação até a restituição das

casas de fundição em 1750. E dentro dessas propostas, como pano de fundo, estava a

preocupação não só em encontrar o melhor meio de arrecadar os direitos régios, mas de

preservá-los contra os constantes descaminhos.

Assim buscamos observar o que a historiadora Junia Ferreira Furtado observou ―o

contrabando de ouro e diamantes passou a ser visto não apenas como atividade

ilegítima, mas também na medida em que impunha novas formas de governar e

redimensionava a relação de poder entre a população local e os administradores

metropolitanos‖11

. Deste modo, precisamos ter em mente a natureza das relações

estabelecidas entre a Coroa portuguesa e seus vassalos nas colônias ultramarinas. As

novas abordagens, questionando a ideia de um ―pacto colonial‖ que era efetivado por

meio do ―exclusivo metropolitano‖ têm tratado estas questões agora sob uma outra

perspectiva, a de uma concepção de Monarquia Pluricontinental12

―em que, para o caso

português, esta é ―caracterizada pela presença de um poder central fraco demais para

impor-se pela coerção, mas forte o suficiente para negociar seus interesses com os

múltiplos poderes existentes no reino e nas conquistas‖13

. Desse modo, ao pensarmos os

múltiplos modos como os atores sociais negociavam com o poder real não podemos

deixar de pensar em uma cultura política subjacente a todas essas ações uma vez que

a formação política da governação portuguesa na América incidiu em

grande parte na transladação de uma série de mecanismos jurídicos e

administrativos do reino para as regiões que iam pouco a pouco compondo

o Brasil colonial. A centralidade do rei, fonte de justiça e equilíbrio,

constituiu-se na chave do processo de hierarquização social desse

complexo e variado rol de agentes inter-relacionados14

.

Tal abordagem trás implicações importantes para as novas análises sobre as

relações estabelecidas entre Coroa e Metrópole. Desse modo, ao analisarmos a

administração e a justiça no Antigo Regime não podemos perder de vista que esta

sociedade era concebida e conseqüentemente gerida de acordo com o modelo

administrativo do Ancien Régime, ou seja, a ―oeconomia‖ de acordo com Maria

Fernanda Bicalho o ato de governar no Antigo Regime

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[...] incorporou um antiqüíssimo imaginário doméstico, e tal sucedeu

porque era unanimemente aceite que a arte de conduzir uma família, por

um lado, e a técnica que habilitava a governar a ‗república‘, por outro,

constituíam saberes que relevavam, fundamentalmente, de uma mesma

exigência, de uma mesma qualidade, de um mesmo princípio ético e

político15

.

E é através dessa concepção que, se por um lado, era possível construir as redes

de amizade do qual o rei dependia para a preservação dos seus domínios ultramarinos,

ou seja, o futuro da ―casa‖ derivava da capacidade do pai para gerir a amizade e a

reputação16

, por outro lado, é a partir dessa mesma idéia que também encontramos os

próprios limites para uma ação mais efetiva e centralizadora por parte do rei, implicando

mesmo no modo de aplicar a justiça, pois em virtude de sua ―debilidade, tinham que

complementar a pouca força de que dispunham com os meios ‗doces‘ do favor dos

súditos por meio da liberalidade ou da demonstração magnificente‖17

. Se de acordo com

a concepção corporativa da sociedade a função da cabeça era a de fazer a justiça e

garantir a autonomia dos poderes, o que observamos na prática é uma imensa confusão,

onde as leis constantemente eram burladas, seja por oficiais régios ou por pessoas

comuns.

Sabemos que administrar a colônia não era tarefa fácil, menos ainda encontrar

meios para conter os descaminhos do ouro. A experiência mostrava que era necessário

mais do que esperar a fidelidade e a ação dos oficiais, era preciso encontrar um meio

pelo qual El Rei fosse servido empregar de modo a assegurar para si a fidelidade de seus

vassalos, principalmente daqueles que na prática deveriam trabalhar a favor da Coroa.

As denúncias e as apreensões que se faziam poderiam ser vista com bons olhos pelos

seus vassalos, pela oportunidade que esta prática oferecia para se obter uma parte dos

bens confiscados. Desse modo, o que observamos é um constante jogo de interesses

entre os mais simples vassalos, oficiais régios e a própria Coroa, levando-nos a

questionar essas relações e assim conduzindo-nos a pensar nos valores e noções que

norteavam a ação dos diversos atores sociais, sejam os descaminhadores, desde escravos

até os grandes homens de negócios, os agentes régios que muitas vezes foram

coniventes com os descaminhos ou mesmo do rei que devia ponderar as suas ações,

principalmente no ultramar, gerando muitas vezes situações embaraçosas. Pensar a

ação dos indivíduos, e o modo como essas relações podem nos revelar os valores e as

crenças de uma determinada sociedade, tornam-se interessante à medida que estas

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deixam transparecer uma determinada cultura política e é aqui que tomamos o conceito

de sociabilidade, formulado inicialmente por Georg Simmel.

O sociológo partindo da idéia de que ―as forças reais, as necessidades e os

impulsos de vida produzem as formas de comportamento adequadas ao jogo, estas

formas, todavia, tornam-se conteúdos e estímulos no próprio jogo, ou melhor, enquanto

jogo18

. Assim o autor designa sociabilidade como a forma lúdica da sociação 19

. Todas

as formas de interação ou de sociação entre os homens – o desejo de sobrepujar, de

trocar, a formação de partidos, o desejo de arrancar alguma coisa do outro, os azares de

encontros e separações acidentais, a mutação entre inimizade e cooperação, o domínio

por meio de artifícios e a revanche – na seriedade do real, tudo isso está imbuído de

conteúdos intencionais. Levando-nos a considerar considera que a interação entre os

indivíduos sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos

propósitos20

, deste modo os homens se organizam reciprocamente, as suas condições

para influenciar os outros e para ser influenciado por eles. Entender esses processos

interacionais não é apenas uma mudança de objeto, mas de perspectiva.

O Tenente dos Dragões, Martinho Alves Coelho, movido por seus interesses faz

uma importante diligência para impedir que os reais quintos de Sua Majestade fosse

descaminhado, de acordo com Dom Lourenço em carta enviada ao Rei, ao tomar

conhecimento por meio de algumas investigações de que um importante comboio seguia

pela estrada de São Paulo com ouro descaminho, este ―[...] logo me veio dar parte, e

denunciar este ouro, e me pediu que ele mesmo queria ir confiscar‖21

. Assim, logo após

realizar a apreensão e confisco, Martinho Alves de Coelho ―[...] cobrou a terça parte do

ouro que se confiscou [...]‖22

e logo fez ―[...] requerimento para que como denunciante

lhe mande inteirar a metade do ouro, de acordo com as leis, por ser ao mesmo tempo, o

denunciante e ter feito a apreensão‖23

. Uma vez que a lei estava dando margem à

interpretações duvidosas, Dom Lourenço, em acordo com o Provedor da fazenda

ajustaram dar apenas a terça parte do confisco ―[...] porque Vossa Majestade diz nesta,

que releva depois a todo o transgressor, se ele denunciar ouro, e manda que se lhe dê a

metade do ouro que denunciar, e que visto Vossa Majestade não mandar pela sua lei dar

a metade, se não do denunciante que for transgressor [...]‖24

. Ao que parece, além do

Rei permitir dar a metade do ouro somente ao próprio transgressor que for o

denunciante, em sua lei ele ―[...] não manda absolutamente dar a tal metade a qualquer

denunciante[...]‖25

nesse sentido, diante de tais duvidas Dom Lourenço é servido por

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hora dar apenas a terça parte ao Tenente dos Dragões [...] que é o que Vossa Majestade

manda dar a quem denuncia qualquer fazenda furtada aos direitos‖ 26

. Num primeiro

momento, pode-nos parecer estranho o fato de o Rei ser tão benévolo com seus súditos

transgressores, dando o respaldando por lei a possibilidade do arrependimento o que

levaria apenas a apreensão da metade de todos os bens. No entanto, a lógica daqueles

que viviam numa sociedade de Antigo Regime justificava tais ações, estas eram

configuradas pelo meio social em que viviam não podendo o Rei se desvincular-se de

tal estrutura.

Ao permitir esse tipo de negócio a Coroa abria largos espaços para as negociações

antes de se aplicar a justiça, além de tornar o processo de beneficiamento daqueles que

fizeram a denúncia e o confisco mais complexo, nesse sentido, observamos como

afirmou Hespanha, o direito penal se caracteriza, mais do que por uma presença, por

uma ausência, deixando transparecer nessas relações aquilo que acreditamos ser o

modelo administrativo no Ancien Régime, a ―oeconomia‖, onde a ―transposição do

imaginário familiar para o campo das relações sociais informais é uma constante da

época‖ 27

. E de modo bastante peculiar, o governador ajuda a imprimir esse imaginário

nas suas relações na colônia, interferindo de modo significativo nas relações políticas

estabelecidas no interior das Gerais, importantíssimo para a criação dos seus próprios

laços de amizade, nesse sentido ele faz grandes elogios a ação do Tenente que ―[...] fez

um grande serviço, assim na tomada que fez, e pela sua indústria descobriu, como

quanto grande terror que tem causado este confisco‖ 28

por tudo isso que fez o Tenente,

Dom Lourenço acha conveniente e sugere ao Rei que ―se sirva pela Sua Real grandeza,

e piedade de lhe mandar dar a metade do ouro da tomada [...]‖ 29

. Além de sugerir que

se faça dele capitão de uma das companhias dos dragões, que se achavam sem os seus‖

30. Ao terminar a carta, o governador volta a insistir naquilo que já havia dito em cartas

anteriores, e tenta convencer El-Rei a aceitar aquilo que lhe parecia ser o modo mais

conveniente para se evitar os constantes descaminhos,

[...] dizendo que a todo o denunciante de ouro furtado aos quintos, e a

todos aqueles que prenderem os transgressores, trazendo os primeiros

presos e entregando os confiscos para serem sentenciados se lhe desse não

só todo o ouro confiscado, senão também o mais confisco que se lhe fizer,

se de toda a sua fazenda, porque esta forma haveria muita gente, que

procurasse para utilidade sua, fazer denunciação e confiscos, e não haveria

com este receio quem se atrevesse a desencaminhar ouro [...]31

.

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Entretanto, ao que parece o Rei estavam nada satisfeitos com as livres iniciativas

do governador nas Minas Gerais, diante dessas questões, assim o Rei, em consulta do

seu Conselho Ultramarino, não poupa palavras para repreender a ação do governador

nesse caso, em que nem ao Tenente cabia pedir e menos ainda o governador entregar-

lhe a terça parte ―[...] antes de haver sentença de condenação e nela se julgar a tomada

por boa como de direito é necessário‖ 32

além disso, El-Rei põe um ponto na discussão

deixando claro de uma vez por todas para que não haja mais duvidas que, ―[...] seja ou

não transgressor o denunciante se lhe dê a metade que a lei aponta o que só se praticará

para o futuro, de que vos aviso para assim o tenhais entendido‖33

.

A forma de governabilidade adotada pela Coroa, principalmente nessas situações

poderia se constituir numa via de mão dupla, embora não equilibrada, podendo muitas

vezes estar desfavorável para o próprio Rei. Ao soberano cabia a justiça, como também

a graça e os atos de compaixão para com seus vassalos, o não punir com severidade

poderia levar, talvez a muitos não temerem os descaminhos, pois inúmeros subterfúgios

poderiam ser utilizados para escapar da penas impostas aos descaminhadores. O

exemplo que se devia dar não era feito, o que era para intimidar, não assustava, e os

vassalos empreendiam cada dia mais seus esforços não em se sujeitar às leis, mas em

agir de acordo com os seus interesses, tecendo as suas próprias redes de poder, como no

caso das Casas de Moedas falsas encontrada nas Minas.

É interessante observar a explicação dada pelo governador por ter dado a terça

parte ao tenente, além dele o ter denunciado, os que levavam tal carregamento

confessaram ser este ouro descaminhado, assim tal prerrogativa por si só já justificaria o

confisco, por outro lado, é sabido que

a razão porque denunciam é para logo se lhe entregue a sua parte, para com

ela remirem as suas necessidades, por esta causa, também é que mandei

logo entregar a Martinho Alves a tal terça parte, para assim fazer exemplo

e me ter apetite a que houvesse mais pessoas que denunciassem ouro 34

.

Podemos perceber o quanto os serviços ao Rei estava limitado pelos interesses de

particulares, uma vez ninguém há de querer ―denunciar ouro esperando que em Lisboa

se sentencie por bem feita a tomada, e a experiência assim a mostra porque depois que

se soube desta real resolução de Vossa Majestade, não houve mais nem quem fizesse a

diligência de pesquisar quem levava ouro furtado‖ 35

. Nesse sentido, qualquer estudo

que venha salientar o caráter rígido das relações que se estabeleciam entre metrópole e

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colônia carece de análise sobre o dinamismo das relações internas e o seu poder de

negociação e imposição de suas vontades baldando muitas vezes por completo as

iniciativas metropolitanas. As qualidades assim atribuídas ao Rei se por um lado

serviam para reforçar os seus laços de lealdade com seus súditos, por outro se mostrava

um tanto arriscado, uma vez que

―[...] é muito ouro que se furta aos reais quintos de Vossa Majestade e com

demasia insolência, porém não há quem se atreva a denunciá-lo, talvez

porque se não querem malquistar e não cobrarem logo e porque tem visto

que os presos que tem ido para a Lisboa voltaram para este Brasil

perdoados do degredo da Índia, e nesta América mata-se a gente com muita

facilidade sem saber quem os matou‖.

O que se destaca aos olhos do leitor é a forma como o governador se posiciona

mediante a um ponto chave na política ultramarina e que interfere de imediato no modo

de sociabilidade na colônia, ou seja, o perdão dado pelo Monarca aos transgressores.

Incentivar as denúncias poderia gerar um clima tenso nas minas e nos caminhos que

levavam a ela, as promessas de ganhos poderiam significar uma ―faca de dois gumes‖

para sua política ultramarina, uma vez que, não se trabalhava com a consciência de

servir bem a Sua Majestade, mas com a idéia do lucro fácil e rápido, essa consciência

fragilizada poderia causar sérios danos à administração ultramarina, bem como a própria

imagem do rei como soberano. Além de tudo, o fato de os colonos ao perceberem que

muitos que iam para o reino voltavam para a colônia perdoados contribuía para tornar

ainda mais complexa a situação no ultramar. Nem o incentivo as denuncia, nem os

confisco serviram para coibir os descaminhos, levando a Coroa a um intenso dialogo

com oficiais régios sobre o melhor meio de se cobrarem os quintos, levando o rei a uma

conclusão um tanto realista acerca da realidade local no qual se deparavam, pois sendo

representados vários arbítrios, e fazendo larga consideração sobre esta

matéria, vim a conhecer, que não era esperável ir por meio de rigores, ou

aumento das penas, nem por multiplicação das Casas de Fundição ou de

guardas, nem finalmente por outra alguma diligência que se usasse, se

evitasse os descaminhos de um gênero tão fácil a esconder, como é o ouro

em um país, cuja disposição subministra muitos meios para fraudá-lo, e

que todos os ditos remédios não produziram outro fruto mais que aumentar

as despesas à minha Fazenda, persistindo sempre o embaraço do comércio

e multiplicando-se cada dia mais os delitos.36

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Desse modo, mandar dar buscas nos viandantes, vigiar os caminhos e portos, dar

buscas nas casas de nada adiantaria se não estivesse imputado primeiro na consciência

dos povos as obrigações devida a Sua Majestade, a começar pelos oficiais. Mas para

isso, talvez fosse necessário que a Coroa agisse de outra forma, adotasse outra política,

mas que não seria possível devido à distância e também ao contexto político no qual a

Monarquia portugusa estava inserida, ou seja, no Ancien Régime condicionando dessa

forma muitas de suas ações adotadas para o ultramar.

1 Mestranda pelo programa de pós-graduação em História, UFJF.

2 GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In:

SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). Culturas

Políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad,

2005. p. 23 3 Idem. p. 24

4 REVEL, Jacques (org). Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 2000

5 GIL PUJOL, Xavier. Tiempo de política: perspectivas historiográficas sobre a Europa Moderna.

Barcelona:Universitat de Barcelona, 2006. pag. 87. 6 Idem. p. 102

7 Idem. p. 103

8 Idem.

9 Idem.

10 Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas no ano de 1720: Fundação João

Pinheiro, 1994. P. 67 11

FURTADO, Júnia Ferreira. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para o império

marítimo português no século XIII. IN: FURTADO, Junia Ferreira; SOUZA, Laura de Mello &

BICALHO, Maria Fernanda (orgs). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 118 12

Tendo sido formulada inicialmente por Nuno Monteiro, João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa tem

contribuído para a formulação do conceito, no qual intuí-se ―que se tratava de uma chave cognitiva capaz

de dar conta da dinâmica do império ultramarino português‖. Cf: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de

Fátima. Monarquia pluricontinental e república: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos

XVI-XVIII. In: Tempo, vol. 14, nº 27, Niterói, jul/dez. 2009 e MONTEIRO, Nuno G. A ‗tragédia dos

Távoras‘. Parentesco, redes de poder e facções políticas em meados do século XVIII. In: FRAGOSO,

João e GOUVÊA, Fátima (orgs.). Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos

XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 13

FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Idem. p. 5 14

GOUVÊA, Maria de Fátima. Diálogos historiográficos e cultura política na formação da América

Ibérica. IN: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). Culturas

Políticas. Ensaios de história cultual, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.

p. 78. 15

BICALHO, Maria Fernanda. As tramas da política: conselhos, secretários e juntas na administração da

monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos. In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de

Fátima (orgs). Na Trama das Redes. Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de

Janeiro: Civilização brasileiro. 2010. P. 346 16

HESPANHA, António M. "Os poderes do centro". In:MATTOSO, José (dir.). História de Portugal,

volume 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa,1993. p. 187/188

17 Idem

18 SIMMEL, Georg. ―Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal‖. In: MORAIS FILHO,

Evaristo de (org). Georg Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. P. 167. 19

Idem. p. 169 20

Idem. p. 165 21

PROJETO RESGATE – AVULSOS DE MINAS GERAIS. Cx. 11. Doc. 33. 1729. Carta de Dom

Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, comunicando o prejuízo causado por Martinho

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Alves Coelho, tenente dos Dragões, e as providências tomadas para impedir o descaminhos dos reais

quintos.

22 Idem

23 Idem

24 Idem

25 Idem

26 Idem

27 HESPANHA, Antonio Manuel & BARRETO, Angela Xavier. As redes clientelares. In: MATTOSO,

José (dir.). História de Portugal, volume 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 342

28 Idem

29 Idem

30 Idem

31 Idem

32 Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM). Transcrição da 1ª parte do Códice 23 (Seção Colonial).

Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei 1721-1731. p.273. Belo Horizonte.

V. 30. 1979 33

Idem 34

Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM). Transcrição da 2ª parte do Códice 23 (Seção Colonial).

Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei 1721-1731. p.256. Belo Horizonte.

V. 31. 1980. 35

Idem 36

APM/SC 35 – Carta de Sua Majestade ao governador de Minas Gerais, Conde das Golvêas, André de

Mello e Castro sobre o parecer dos ministros sobre o sistema de Capitação. Lisboa, 30 de outubro de

1733. f. 18

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A RESTRIÇÃO À IMIGRAÇÃO NO BRASIL DURANTE A ERA

VARGAS (1930-1945) – DEFINIÇÕES DO PRECONCEITO E EXTENSÃO

DA SUA EXISTÊNCIA

Luciana Garcia de Oliveira1

RESUMO: Em meio à grande produção acadêmica sobre imigração, é comumente

destacado os problemas enfrentados pelos estrangeiros, sobretudo no campo. Por outro lado, há

pouca abordagem sobre aqueles que permaneceram nas grandes cidades brasileiras com

dificuldades mas, também com muito sucesso e prosperidade. O trabalho, no entanto visa

destacar a importância sócio-cultural da presença dos imigrantes judeus e as origens da

discriminação sofrida em território nacional, sobretudo após o advento do regime do Estado

Novo.

Palavras chaves: imigração, judeu e discriminação.

ABSTRACT: Amid the scholarship on immigration, it is commonly highlighted the

problems faced by foreigners, especially in the field. On the other hand, there is little approach

to those who remained in the large Brazilian cities with difficulties but also with much success

and prosperity. The study, however, aims to highlight the socio-cultural presence of Jewish

immigrants and the origins of the discrimination suffered in the national territory, especially

after the advent of the Estado Novo regime.

Key words: immigration, jewish and discrimination.

1. Introdução

Logo no final da Primeira Guerra Mundial, a constatação do aumento

proporcional da entrada de imigrantes de origem judaica no Brasil deveu-se, em parte às

mudanças na legislação imigratória dos Estados Unidos, Canadá, Argentina e África do

Sul, que passaram a ser bastante restritivas à esse contingente.

O fato da maioria desses imigrantes serem provenientes do Leste Europeu pós

Revolução Russa, serviu para que os principais políticos brasileiros e intelectuais

respeitados legitimassem seus preconceitos, de modo à associar todos judeus ao

comunismo. Muitos debates foram planejados à fim de insuflar sobre o ―problema

judaico‖, devido ao tamanho da comunidade aqui instalada.

Era bastante reparado no entanto que, frequentemente, esses imigrantes eram

auxiliados pelas empresas de créditos (laispar kasses), que forneciam recursos

suficientes para que pudessem abrir pequenas lojas e fábricas nas grandes cidades, já

que não eram acostumados a trabalhar na lavoura como os demais imigrantes (italianos,

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espanhóis e portugueses). Essas empresas, eminentemente judaicas, possibilitavam a

todos esses imigrantes a dispor de uma base monetária inicial.

Assim que recebiam esse capital, costumavam comprar mercadorias no atacado

de antigos mascates (geralmente formado por imigrantes sírios e libaneses). Prática que

rendeu comentários bastante negativos por parte da imprensa brasileira, que não via

―com bons olhos‖ o rápido crescimento e a prosperidade desses imigrantes frente aos

demais habitantes em território nacional.

Houve a preocupação, por parte de líderes judaicos, como o rabino Isaiah

Raffalovich que, comumente alertava a comunidade judaica sobre o perigo da criação

de associações restritivas aos judeus, fato que poderia provocar uma nova insurreição

do antijudaísmo, semelhante ao ocorrido nos países de origem desses imigrantes.

Segundo a obra “O Brasil e a questão judaica – Imigração, diplomacia e preconceito”

de autoria de Jeffrey Lesser é citado caso parecido envolvendo o prestigiado escritor

Guilherme de Almeida:

―Esses temores não eram infundados. Poeta altamente conceituado e

membro da prestigiosa Acadêmia Brasileira de Letras, Guilherme de

Almeida denominou o Bom Retiro de ―O Gueto‖, na série de oito artigos à

respeito das ―impressões acerca de nossos diversos bairros estrangeiros‖,

que escreveu para o Estado de São Paulo, jornal de grande circulação, ao

fazê-lo Almeida provavelmente quis invocar uma imagem dual que

combinava a idéia de um bairro urbano centro-europeu, onde os judeus

eram segregados da sociedade ao redor, com a miséria que os não-judeus

com freqüência associavam com o shtetl (aldeia judaica) da Europa do

Leste‖2 .

A imagem até então descrita por Almeida revela que, para muitos, os judeus

recém chegados não eram considerados completamente humanos. A existência de

problemas sociais, envolvendo considerável número de prostitutas e rufiões judeus nas

grandes cidades brasileiras (como no Rio de Janeiro), determinava uma crescente

oposição à entrada desse grupo no país. Era possível deparar-se com jornais (e outros

meios da imprensa popular) que se utilizavam da visão cristã tradicional que via no

judaísmo a decadência moral, fruto da associação com a prostituição e com o

rufianismo.

Inclusive, foi observado por alguns estudiosos no Brasil que a palavra ―polaca‖

era sinônimo de prostituta (e de judia), da mesma forma a gíria ―cafetão‖ era largamente

utilizado para referir-se à homens judeus, sobretudo os do Leste Europeu.

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Diante dessa realidade, foi fundado em 1924 em São Paulo, um grupo

denominado Sociedade Religiosa Beneficente Israelita (SRBI), muito provavelmente

pelas próprias prostitutas, a fim de disponibilizar assistência, pelos quais a população

brasileira recusava-se a prestar. Assim, quando foi definitivamente solucionado o

problema da prostituição judaica, em 1968, a sociedade foi dissolvida. Em seu lugar foi

fundado o Lar do Velhos (também pertencente à essa comunidade) com o capital até

então remanescente.

Todo esse estado de calamidade, envolvendo esses novos imigrantes, de acordo

com Jeffrey Lesser e outros estudiosos do tema, era resultado direto e natural da

segregação econômica, social e educacional sofrida pela comunidade judaica do Leste

Europeu, sobretudo instalada no Rio de Janeiro.

Por outro lado, era notado, segundo Marcos Chor Maio que, embora houvesse a

existência de algumas instituições exclusivamente judaicas, havia, ao mesmo tempo,

uma forte interação dos imigrantes judeus e seus descendentes com a sociedade

brasileira, seja no campo educacional, seja no mercado de trabalho3.

2. As demais instituições de integração

Além das instituições já existentes, havia ainda a presença de bases comunitárias

que facilitavam e ao mesmo tempo incentivavam os judeus a se estabelecerem no Brasil,

contando inclusive com importante apoio financeiro da Jewish Colonization

Association, que colaborou diretamente na criação de diversas escolas judaicas na

década de 1920 instaladas em várias cidades brasileiras.

Mais tarde, em 1925, teve início uma série de pequenos conflitos dentro dessas

escolas. Por um lado, os sionistas insistiam no ensino obrigatório do hebraico, por

outro, antissionistas (esquerdistas), reclamavam pela falta do ensino do ídiche. Dessa

forma, as escolas passaram a serem divididas de acordo com suas orientações políticas.

Apesar de alguns problemas enfrentados, foi constatado que o estabelecimento

de diferentes instituições judaicas transformou o Brasil em um lugar mais atraente para

os judeus . Nesse sentido, para garantir uma migração segura e ―apropriada‖, foi

redigido pelo próprio Raffalovich e distribuído na Europa Oriental, panfletos exaltando

todas as virtudes do país.

No final da década de 1920, a vida judaica encontrava-se bem organizada e

estabelecida e, em decorrência disso, a comunidade em questão já havia triplicado o seu

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tamanho. O que não impediu que, uns anos depois, problemas de ordem econômica (em

decorrência da grande depressão), como a queda do preços do café contribuíssem para

que a atitude brasileira mudasse com relação à comunidade judaica. O aumento nos

preços e no desemprego, causado pela crise, influenciou diretamente na imigração.

Agora, as organizações judaicas dispunham de menos recursos e os problemas

econômicos desencadeados desestimulou muitos imigrantes potenciais a virem ao

Brasil.

Mesmo assim, o modo de encarar o Brasil (do ponto de vista do imigrante

judeu), mudou drasticamente, por volta de 1930. O país já não era considerado como

uma parada intermediária rumo a riqueza em outra parte. Muitos percebiam que era

mais fácil ganhar a vida no Brasil do que em qualquer parte do mundo.

Em conseqüência dessas mudanças, as associações aqui instaladas passaram a

concentrar seus trabalhos em prol de transformar os imigrantes em cidadãos brasileiros

e menos ao auxílio para a sua chegada.

As boas relações das lideranças judaicas com o governo brasileiro perduraram

durante muitos anos, principalmente durante a gestão de Raffalovich, mesmo após ser

também decretada uma legislação restritiva a entrada desse contingente no Brasil.

3. Catolicismo e judaísmo

No advento ao Estado Novo, em novembro de 1937, já haviam muitos fatores

que influenciaram a atmosfera antijudaica, sobretudo as idéias racistas, advindas por

parte de setores da administração e intelectuais, que predominaram no Brasil desde o

final do século XIX. Além das idéias e teorias, a existência de um setor fascista

brasileiro foi bastante determinante para a identificação dos judeus ao comunismo

internacional.

Em decorrência desse clima, a conseqüência imediata foi a redução de cotas de

imigração de toda pessoas de ―origem semita‖. Assim, muitos cônsules na Europa

receberam instruções para não conceder vistos a esses imigrantes, que passaram a serem

considerados indesejáveis.

Os reflexos às hostilidades contra imigrantes judeus, perdurou durante muitos

anos, e ainda prevalecia entre membros da administração brasileira. Políticos,

diplomatas, publicistas e intelectuais argumentavam que tratava-se de uma imigração

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prejudicial, já que os judeus, em geral, não eram agricultores e sua presença atrairia uma

série de conflitos e transtornos nas grandes cidades brasileiras.

Em pleno Estado Novo, ainda em 1937, o Ministério do Exterior emitiu, com a

autorização do presidente Getúlio Vargas, uma circular secreta (número 1127), enviada

aos cônsules na Europa, na qual proibia (oficialmente) a concessão de vistos à pessoas

de ―origem semita4‖. No ano seguinte, a imigração desse grupo havia diminuído

consideravelmente.

A identidade nacional, no entanto, era relacionado à religião católica. O que

serviu para rotular o judeu como inimigo do cristianismo. Porém, mais determinante, foi

a ênfase na identificação dos judeus aos comunistas.

A imagem histórica oficial de que havia a presença de judeus em todas as

revoluções, corroborava, de certa forma, a idéia de que esse mesmo grupo dominava a

economia mundial, mediante financiamento internacional. Aliado a este esteriótipo,

elementos como o internacionalismo e o antipatriotismo, faziam com que a sociedade

assimilasse o perigo implícito não somente entre os judeus de esquerda (envolvidos

sobretudo na Revolução de Outubro), mas sobre todos os judeus indistintamente.

De maneira semelhante, ao ocorrido na Argentina, o antijudaísmo no Brasil não

se baseou nas idéias propagadas pela Alemanha Nazista. As elites católicas brasileiras

inspiraram-se em outras fontes, que não era influenciado tão somente pelas idéias de

superioridade racial. A ameaça comunista era uma das principais causas para que

setores da Igreja Católica repudiassem os judeus. Para os católicos, o advento de idéias

revolucionárias em solo nacional, implicaria na forte possibilidade de perda de fiéis,

além da ameaça iminente à algumas instituições consideradas ―sagradas‖ como a

família e a propriedade.

Aliado a tudo isso, mais tarde, em 1942, quando a maioria dos países latino-

americanos já tinham rompido relações com os países do Eixo, o Brasil em 28 de

janeiro do mesmo ano, rompeu suas relações com a Alemanha e logo iniciou relações

diretas com os Estados Unidos.

O que propiciou para que, alguns anos depois (em 1947), o então Ministro das

Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, participasse da divisão da Palestina. O que lhe

rendeu grandes homenagens em Tel Aviv, capital do Estado de Israel, mesmo que

quatorze anos antes o presidente Vargas e suas lideranças políticas, incluindo Aranha,

tivessem impedido impiedosamente a entrada de muitos refugiados judeus no Brasil.

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Muito embora havia a prevalência do antijudaísmo por parte dos membros da

administração do governo Vargas, internamente, os judeus que já viviam no Brasil,

enfrentavam poucos empecilhos cotidianos ou estruturais para a conquista de objetivos

econômicos e sociais, segundo Jeffrey Lesser em seu artigo Semitismo em negociação:

O Brasil e a questão judaica (1930-1945).

Dessa forma, a imigração judaica tornou-se assim, foco de grande atenção.

Muitos imigrantes e refugiados judeus ascenderam a economia nas cidades brasileiras.

Fato que, para muitos intelectuais brasileiros, mostrou-se bastante positivo, sobretudo

para o crescimento da economia nacional e a conseqüente visibilidade internacional.

Nesse passo, é constatado que em 1939, foi ano de maior abertura ao contingente

judeu, quando compararmos à qualquer outro ano de incentivo à políticas imigratórias

no Brasil. Segundo Lesser, número maior ao ocorrido desde 1929.

Além da visibilidade e importância no que diz respeito ao desenvolvimento

econômico no Brasil, o que de fato foi muito determinante para essa situação, foi

exatamente o papel exercido pelos grupos de assistência à comunidade judaica, como as

sinagogas, escolas e clubes, preponderantes no que se concerne às mudanças de velhos

esteriótipos em atributos considerados positivos. Houve, inclusive a presença de alguns

intelectuais notáveis, conhecidos internacionalmente, como a do cientista Albert

Einstein, que aterrizou no Brasil, a fim de colaborar para o incentivo a ajuda aos

refugiados de seus conterrâneos na Europa.

Outra questão determinante para a mudança comportamental foi a pressão

exercida pelos Estados Unidos a fim de que outros países assumissem o compromisso

em relação à questão judaica. O desejo de apresentar ao mundo a recusa em

institucionalizar o antijudaísmo na política interna, corroborou para que muitos políticos

se dispusessem à realizar exceções, diante da política oficial de recusa à vistos à

imigrantes refugiados.

Assim, o rompimento com os países do Eixo foi culminante para a propaganda

de solidariedade para com os imigrantes judeus, vítimas de perseguições políticas na

Europa.

4. A postura do Itamaraty

Em janeiro de 1941, ainda com base na política institucional de não admissão de

judeus, o secretário das Relações Exteriores enviou uma circular aos consulados

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estrangeiros, com detalhadas instruções para identificar judeus interessados em vistos

para o ingresso ao Brasil.

Conforme preleciona Avraham Milgram em seu artigo O Itamaraty e os judeus:

―A atitude do Brasil em relação aos judeus europeus nos anos de 1930 e de

1940 foi objeto de várias teses acadêmicas. As duas obras referenciais da

matéria são de autoria de Maria Luiza Tucci Carneiro e do historiador

americano Jeffery Lesser. Trata-se de perspectivas antagônicas na maneira

de julgar o Estado Novo e sua ―política judaica‖. Para Maria Luiza Tucci

Carneiro, a expressão ideológica nacionalista-antissemita do Estado Novo

foi o fator determinante na obstrução à entrada de judeus ao Brasil e a

responsável pelo seu balanço negativo. Para Jeffrey Lesser, a conjuntura

das relações do Brasil com as potências aliadas de um lado e a gama de

interesses econômicos advinda de dentro do país de outro, foi o que

possibilitou a reformulação da imagem do judeu e a conseqüente entrada

de contingentes imigratórios, apesar das pressões ideológicas nacionalistas

e nativistas em contrário.‖5 .

Para os que defendiam o impedimento à entrada de judeus no país, o alegavam

no sentido de que o Brasil deveria dar preferência aos imigrantes trabalhadores

agrícolas, ao contrário, geraria aumento no índice de desemprego nos centros urbanos.

Por isso, muito deles negavam o rótulo de antissemita, uma vez que não discriminavam

a comunidade judaica pelo fato de serem membros de uma cultura e religião peculiar,

mas porque preocupavam-se em evitar eventuais transtornos as grandes cidades

brasileiras. Para esses atores, o projeto político nacional envolviam fatores puramente

sociais. 6

1 (Email: [email protected]) – Pós-graduanda em Política e Relações Internacionais, sob

orientação do professor Dr. Igor Fuser pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

(FESP), graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e

membro do Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, da faculdade de História da

Universidade de São Paulo (USP). Endereço pessoal: Rua Vitor Dubugras, 182, bairro Jardim da Glória –

São Paulo – SP, CEP: 04114-100, telefone residencial: 011-55757775, celular: 011-71296915.

1. 2 LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica – Imigração, Diplomacia e

Preconceito, p. 71. 3 MAIO, Marcos Chor. PANDOLFI, Dulce (org.) Repensando o Estado Novo, p. 230.

2. 4 LESSER, Jefrey. O Brasil e a questão judaica – Imigração, Diplomacia e Preconceito,

p. 83. 5 MILGRAM, Avraham. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). O anti-semitismo nas Américas,

p. 382.

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Uma análise dos Parâmetros Curriculares de História para o Ensino

Fundamental: propostas e possibilidades

Luciana Velloso1

Introdução

A partir dos anos de 1990, as questões educacionais tomaram dimensões

complexas, posto que se vivia um momento de construção de uma nova ordem social

marcada pela aceleração das mudanças sociais, tecnológicas e culturais e de uma nova

concepção de Estado e de relações entre o global e o local. Pensando, então, na

produção de textos, que encaminham as novas políticas curriculares, se discutiu os

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que circularam em sua versão preliminar a

partir de novembro de 1995, e que estavam sendo elaborados por técnicos ligados ao

Governo Federal.

No ano de 1997, o Ministério da Educação e do Desporto do Brasil (MEC)

apresentou a versão final dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de 1ª a 4ª

séries e, em 1998, foi apresentada a versão final dos PCNs para o ensino de 5ª a 8ª

séries. O processo que resultou na versão preliminar dos Parâmetros teve início antes da

posse (do primeiro mandato) do na época Presidente da República, Fernando Henrique

Cardoso, em 1995. Já no final do ano de 1994, a futura equipe da Secretaria de

Educação Fundamental do MEC teria promovido discussões entre estudiosos da

educação brasileira e representantes de alguns países que recentemente haviam

realizado reformas curriculares, sobre a idéia de estabelecer um currículo nacional para

o Brasil.

A reforma curricular foi considerada essencial para o desenvolvimento efetivo dos

indivíduos e da sociedade, pois se alegou que a escola ainda tinha como objetivo de

ensino a capacitação de alunos para a ocupação de futuros postos de trabalho nas

especializações tradicionais. Os princípios que orientaram a reforma curricular do Brasil

foram amplamente divulgados, na década de 1990, através da Declaração Mundial

Sobre Educação para Todos, cujas diretrizes foram traduzidas no nosso Plano Decenal

de Educação, em 1993.

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1079

Em relação aos PCNs, o que estava em questão eram, de um lado, discussões

sobre os problemas relacionados à noção de um ―currículo nacional‖, posto que, apesar

da afirmação da não obrigatoriedade da adoção desses parâmetros - antecipada em seu

documento introdutório -, esse parecia ser apenas um recurso retórico pelo que se podia

observar em termos dos investimentos que estavam sendo realizados na sua construção

e no que ia emergindo em torno de poderes constituídos e recursos mobilizados, assim

como por sua feição de guia curricular com muitas especificações e prescrições.

Por outro lado, havia também críticas em relação à forma não democrática de sua

construção, que foi confiada a um grupo restrito de especialistas, deixando de lado uma

grande diversidade de enfoques e perspectivas a respeito dos currículos escolares. Nesse

contexto, também emergia a preocupação com o que poderia significar a adoção dos

PCNs para o trabalho docente.

Deve-se destacar que os PCNs para o Ensino Fundamental foram se tornando

diretrizes de alcance nacional, especialmente alicerçados naquilo que se constituiu como

os conteúdos disciplinares avaliados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica

(SAEB). É o que distinguem Souza e Oliveira2 ao afirmarem o poder do SAEB de

conformar os currículos escolares. Nesse aspecto, lembram ―o significado que podem

assumir os Parâmetros Curriculares Nacionais, no sentido de se constituírem nos

padrões de desempenho esperados‖. O que está em questão, portanto, é que as unidades

escolares, envolvidas em processos de competição, irão planejar o desenvolvimento

curricular por aquilo que será objeto da avaliação do sistema. Assim, ganhou força o

que está proposto pelos PCNs de forma geral, e no que é objeto de análise deste

trabalho, o que se refere ao ensino de História.

1. Apresentando e Contextualizando os PCNs de História para o Ensino

Fundamental

Uma das preocupações que aparecem de forma bastante explícita ao longo do

documento é sua preocupação com uma aprendizagem contextualizada, ou seja, há um

destaque que se dá ao conceito de ―contextualização‖. Conforme indica Lopes3 - ao

pensar a produção de políticas curriculares – o conceito de contextualização foi

desenvolvido pelo MEC por apropriação de múltiplos discursos curriculares, nacionais e

internacionais, oriundos de contextos acadêmicos, oficiais e das agências multilaterais.

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1080

A contextualização, associada à interdisciplinaridade, foi sendo divulgada pelo MEC

como princípio curricular central dos PCNs capaz de produzir uma verdadeira revolução

no ensino.

A aprendizagem situada (contextualizada) é associada, nos PCNs, à preocupação

em retirar o aluno da condição de espectador passivo, em produzir uma aprendizagem

significativa e em desenvolver o conhecimento espontâneo em direção ao conhecimento

abstrato. Com constantes referências a autores como Vygotsky, Piaget e outros

vinculados ao construtivismo, a contextualização nesses momentos aproxima-se mais da

valorização dos saberes prévios dos alunos. Nesse caso, contextualizar é, sobretudo, não

entender o aluno como ―tábula rasa‖. Em certa medida, a idéia de contextualização

também aparece associada à valorização do cotidiano: os saberes escolares devem ter

relação intrínseca com questões concretas da vida dos alunos. Tal preocupação parece

bem em consonância com o que já assinalava Jörn Rüssen4, ao se referir à preocupação

de Karl-Ernst Jeismann, com o engajamento por parte do historiador, atento/a à relações

tecidas entre saberes e práxis (no sentido de ação no mundo), entre participação social e

reflexão sobre os processos temporais de seu tempo.

Para o Ensino Fundamental, os PCNs subdividem-se em 10 Volumes5, sendo o

Volume 5, foco desta análise, o de História e Geografia. O documento estrutura-se em

duas partes. Uma primeira parte que envolve: Caracterização da área de História;

Aprender e Ensinar História no ensino fundamental; Objetivos gerais de História para o

ensino fundamental; Conteúdos de história: critérios de seleção e organização. Já a

segunda parte que trata das especificidades do Primeiro Ciclo e do Segundo Ciclo, além

das respectivas Orientações Didáticas.

Já na apresentação ao professor dos PCNs em geral, o na época Ministro da

Educação, Paulo Renato de Souza, indica que há uma forte preocupação com o auxílio

no trabalho docente, embora se explicite que os Parâmetros Nacionais não se propõem a

serem guias, mas referenciais para o trabalho docente, que respeitem a concepção

pedagógica de cada instituição e a pluralidade cultural do país. Desse modo, colocam-se

como ―abertos e flexíveis, podendo ser adaptados à realidade de cada região‖6.

A preocupação com a cidadania é bastante frisada, ainda no texto do Ministro,

destinada aos docentes. Foram observadas no texto três menções ao termo, de diferentes

formas (―crescerem como cidadãos‖, ―conquista de sua cidadania‖, ―o propósito do

Ministério ao consolidar os Parâmetros, é apontar metas de qualidade que ajudem o

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aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão participativo, reflexivo, autônomo,

conhecedor de seus direitos e deveres‖). Nesse sentido, dentre os Objetivos Gerais dos

PCNs para todas as disciplinas, o primeiro objetivo define a concepção de cidadania do

Ministério e enfatiza a necessidade dos alunos serem capazes de

―compreender a cidadania como participação social e política, assim como

exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia,

atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e

exigindo para si mesmo o respeito‖7

Os objetivos são apresentados de duas maneiras no documento. A primeira surge

como objetivos gerais a serem alcançados ao final do Ensino Fundamental. Já a segunda

refere-se aos objetivos específicos por série ou ciclo. Dentre os objetivos gerais espera-

se que os alunos sejam capazes de compreender a cidadania como participação social e

política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando

no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o

outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável

e construtiva nas diferentes situações sociais.

Aborda-se também o uso do diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar

decisões coletivas; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural

brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se

contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de

crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais.

2. Ideias e concepções acerca dos conteúdos e das práticas de ensino/aprendizagem

na disciplina História

A proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais de História é proporcionar ao

professor da Educação Básica uma visão clara sobre o ensino desta disciplina, bem

como seus principais objetivos. É possível verificar neste documento pedagógico o

tratamento de três conceitos que estarão presentes em todos os anos de escolaridade: o

fato histórico, o sujeito histórico e o tempo histórico. Importante ressaltar que, na busca

por esses conhecimentos o professor estará escolhendo uma concepção de História para

transmitir aos alunos o estudo produzido por pesquisadores, adaptando a seus objetivos.

No que se refere à questão do tempo histórico, podemos observar a presença dos

conceitos de diferentes temporalidades, conforme fora explicitado pelo renomado

historiador Fernand Braudel em seu clássico “O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo

na época de Felipe II”. Assim como Braudel8 nos fala das três temporalidades (curta,

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média e longa duração), os PCNs também informam que, dependendo dos ritmos da

duração e da velocidade com que as mudanças ocorrem, podemos identificar três

tempos: do acontecimento breve (corresponde a um momento preciso, marcado por uma

data), o da conjuntura (se prolonga e pode ser apreendido durante uma vida) e o da

estrutura (parece imutável, pois as mudanças são imperceptíveis na vida das pessoas).

Os PCNs distinguem maneiras distintas de serem trabalhados os conceitos

históricos, dependendo das escolhas didáticas, ou seja, podem-se propiciar situações

pedagógicas privilegiadas como o desenvolvimento de capacidades intelectuais

autônomas, que definirá a constituição da identidade social do alunado.

Na leitura do documento se evidencia a preocupação com um ensino de História

que desenvolva a consciência humana, algo que seria alcançado estabelecendo-se

relações entre identidades individuais, sociais e coletivas, relacionando o particular e o

geral, construindo noções de diferenças e semelhanças e de continuidade e permanência.

Assim, no ensino de História coloca-se a necessidade do uso de metodologias

específicas a faixa etária e as particularidades sociais e culturais do corpo discente.

Considera-se necessário que o trabalho pedagógico requer estudos de novos materiais e

que a escolha metodológica represente possibilidades de orientação que relacione os

acontecimentos passados a uma realidade presente.

Podemos então perceber que a proposta dos PCNs é trabalhar com eixos temáticos

de acordo com as séries adotadas se propondo a propiciar ao aluno o que considera uma

visão crítica e realista entre o passado e o presente. No tópico intitulado ―Aprender e

Ensinar História no Ensino Fundamental‖, o texto inicia afirmando que o ensino e a

aprendizagem de História envolvem uma ―distinção básica entre o saber histórico, como

um campo de pesquisa e produção de conhecimento do domínio de especialistas, e o

saber escolar, como conhecimento produzido no espaço escolar‖9. Guimarães, já

demonstrava sua preocupação em pensar o quanto essa história acadêmica e a história

que se produz nas escolas poderiam estar relacionadas, embora constatando a

problemática da constatação de uma ―enorme defasagem entre o que se produz na

universidade, fruto em grande parte do avanço dos programas de pós-graduação, e seus

resultados para o ensino de história realizado nos colégios‖ 10

.

Os PCNs afirmam que o saber histórico escolar reelabora o conhecimento

produzido no campo das pesquisas dos historiadores e especialistas do campo das

Ciências Humanas, selecionando e se apropriando de partes dos resultados acadêmicos,

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articulando-os de acordo com seus objetivos. Nesse sentido, parece-nos muito oportuna

a reflexão de Guimarães, que tece uma relação intrínseca entre a escrita da história

como parte de um ofício específico do historiador e essa escrita como parte do processo

de formação pedagógica. Afinal, pensar sobre a história que está sendo ensinada não é

algo que deve fazer parte unicamente de professores e professoras que trabalham

cotidianamente nas escolas, mas também daqueles profissionais que atuam mais

diretamente na academia. Ambos estão produzindo, pensando e fazendo história, e

torna-se tarefa da ordem do dia reduzir ―esses espaços de silêncio e desconfiança mútua

entre escola e a universidade‖ 11

Ainda no tópico supracitado dos PCNs, indica-se que o saber histórico escolar, na

sua relação com o saber histórico, compreende, de modo amplo, a delimitação de três

conceitos fundamentais: o de fato histórico, de sujeito histórico e de tempo histórico.

Estes diferentes conceitos, conforme dito nos Parâmetros, ―refletem distintas

concepções de História e de como ela é estruturada e constituída‖12

.

Se, conforme indicou Guimarães, os conteúdos a serem inseridos nos currículos

escolares envolvem uma seleção do que e de como deve ser ensinado, importante

observarmos o tópico dos PCNs intitulado ―Conteúdos de História: critérios de seleção

e organização‖13

. Neste tópico se discute justamente a impossibilidade de se ensinar

uma História de todos os tempos e de todas as sociedades e os Parâmetros alegam que

embora a seleção tenha sido variada, ela tem seguido certa tradição de ensino, que vai

sendo rearticulada de acordo com temas relevantes de cada geração.

Recomenda-se o trabalho com documentos variados como sítios arqueológicos,

edificações, plantas urbanas, mapas, instrumentos de trabalho, objetos cerimoniais e

rituais, adornos, meios de comunicação, vestimentas, textos, imagens e filmes. Levantar

questões de antecipação do tema questionando os alunos o que sabem, quais suas idéias,

opiniões, dúvidas e/ou hipóteses sobre o tema em debate e valorizar seus

conhecimentos; propor novos questionamentos, fornecer novas informações, estimular a

troca de informações, promoção de trabalhos interdisciplinares; desenvolvimento de

atividades com diferentes fontes de informação (livros, jornais, revistas, filmes,

fotografias, objetos etc.).

Tais considerações recomendadas pelos PCNs nos remetem à importância do

alunado ter contato com o que Fernando Sánchez Marcos14

denomina como ―cultura

histórica‖. Ao propor atividades que contemplem o acesso a essa gama tão vasta de

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recursos e situações, os Parâmetros têm em vista uma visão mais abrangente de história,

que não pode ser desvinculada de questões culturais. Com isso, se entende que cultura é

todo o modo como uma sociedade interpreta, transmite e transforma a realidade.

Agregando-se ao conceito de ―cultura‖ o termo ―histórica‖, temos um conceito

heurístico (cultura histórica) que faculta o entendimento do modo concreto e peculiar

em que uma sociedade se relaciona com seu passado. Envolve uma dimensão cognitiva

e estética, por exemplo, de patrimônios materiais e imateriais. Patrimônio envolvendo

uma dimensão estética que busca resguardar uma dada imagem do passado (enquanto

representação do mesmo).

Uma formação que contemple aspectos tão abrangentes parece-nos bem de acordo

com a proposta de uma Bildung, mencionada no texto de Guimarães (2009). Bildung

como um conceito de origem alemã que nos remete a uma formação humanística que

leve em conta um ―processo de socialização e individuação‖15

. Em oposição a um

ensino mais tecnicista, a Bildung diz então respeito a um conjunto de competências a

serem adquiridas pelo indivíduo para que possa perceber-se como relacionado

diretamente com o mundo em que vive e o contexto histórico-social que o circunscreve.

No primeiro ciclo, por exemplo, a proposta privilegia a leitura de tempos

diferentes no tempo presente, e em determinado espaço e a leitura do mesmo espaço em

outros tempos. Com isso, busca-se propiciar ao alunado o entendimento do que

Guimarães, baseado no conceito proposto por François Hartog, denomina como a

existência de diferentes ―regimes de historicidade‖16

. Embora estejamos imersos em um

regime contemporâneo de ―presentismo‖, podemos perceber que essa passagem do

tempo é sentida/vivida diferentemente pelas sociedades ao longo da história e

dependendo dos das diferentes culturas em que se inserem.

No que se refere à questão da avaliação, a proposta se refere a um processo

contínuo. Neste sentido, buscam-se considerar os conhecimentos prévios, as hipóteses e

os domínios dos alunos e relacioná-los com as mudanças que ocorrem no processo de

ensino e aprendizagem. Ao professor coloca-se a função de identificar a apreensão de

conteúdos, noções, conceitos, procedimentos e atitudes dos estudantes, comparando o

antes, o durante e o depois (em um processo contínuo). Desse modo, a avaliação não

deve mensurar simplesmente fatos ou conceitos assimilados, e sim ter um caráter

diagnóstico que possibilite ao educador avaliar o seu próprio desempenho como

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docente, refletindo sobre as intervenções didáticas e outras possibilidades de como atuar

no processo de aprendizagem dos alunos.

Algumas considerações (diante de tantas que poderiam ser feitas...)

Saliba nos propõe pistas para repensar um ensino mais significativo para o grupo

de alunos/as com os quais lidamos atualmente. Ele comenta sobre o retorno da biografia

(daí a noção de guinada subjetiva) nos estudos históricos. Contudo, a dificuldade se

coloca quando, diante da quantidade imensa de informações às quais docentes e

discentes são interpelados cotidianamente, como transformar informação em

conhecimento útil e efetivo. Saliba então afirma a necessidade de resgatarmos nossa

capacidade de reflexão:

―Ao professor de história nada mais resta a fazer senão aumentar, criar ou até

recriar ao máximo o nosso quadro de referências. Autores, obras, perspectivas

temporais – cada vez mais vamos perdendo nossa capacidade de juntar tais dados e

refletir sobre eles. O que é muito grave‖ 17

Os PCNs apresentam preocupações que nos parecem consonantes com as questões

levantadas por Rüssen18

, quando nos fala da importância dessa construção de

identidades associada à formas de ―agir no mundo‖ (experiências históricas,

interpretações, orientações...). Os conteúdos a serem ensinados apresentam uma forte

preocupação com seus impactos na vida prática, o que irá depender em grande medida

de como os/as diferentes docentes irão articular tais conteúdos com as vivências de seu

alunado.

O documento dos parâmetros sobre a disciplina de História pode ser entendido

como a carta de intenções governamentais sobre a disciplina para o nível fundamental

de ensino, configurando um discurso que, como todo discurso oficial, projeta

identidades pedagógicas e orienta a produção do conhecimento oficial – o conhecimento

educacional construído e distribuído às instituições educacionais pelo Estado em sua

atuação como campo recontextualizador pedagógico oficial19

No que se refere às diferentes apropriações dos documentos que serão feitas,

concordo com Lopes quando em seu estudo sobre os PCNs do Ensino Médio - que

também fornece importantes subsídios para pensarmos os documentos à nível do Ensino

Fundamental – afirma que:

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―Ainda que se considere que muitos professores nas escolas lerão o texto dos

parâmetros com desinteresse ou descrédito, ou mesmo abandonarão seus volumes

nas gavetas, não entendo ser possível pensar na força de um cotidiano escolar que

se constrói a despeito das orientações oficiais. Certamente existem reinterpretações

desses documentos e ações de resistência aos mesmos na prática pedagógica,

assim como permanece em evidência o caráter produtivo do conhecimento

escolar‖20

Ainda Lopes, que, ao se apropriar da noção de recontextualização de Basil

Bernstein, propõe que pensemos as traduções e apropriações de discursos diversos a

partir de um processo de ―recontextualização por hibridismo‖ 21

. O conceito de

hibridismo é creditado aos estudos de Nestor García Canclini22

, autor que tem pensado

as culturas latino-americanas a partir da tradição dos Estudos Culturais.

Para Bernstein23

, a recontextualização constitui-se a partir da transferência de

textos de um contexto a outro, como por exemplo, da academia ao contexto oficial de

um Estado nacional ou do contexto oficial ao contexto escolar. Nessa

recontextualização, o texto é modificado por processos de simplificação, condensação e

reelaboração, desenvolvidos em meio aos conflitos entre os diferentes interesses que

estruturam o campo de recontextualização.

A proposta da recontextualização parece-nos adequada quando entendemos que as

políticas curriculares e definições mais globais são diferentemente negociadas

localmente. Os textos oficiais não são aqui entendidos de forma tão fixa que não

possibilite aos sujeitos que as ressignifiquem de acordo com seus contextos escolares

específicos. Tais processos de ampliam-se e aprofundam-se, dado o caráter híbrido da

cultura no atual estágio de globalização em que nos inserimos.

Em consonância com Lopes24

, podemos perceber que é notória a centralidade do

currículo nas políticas educacionais no contexto de globalização atual. As reformas

educacionais encontram-se intimamente atreladas, por exemplo, a mudanças nas

legislações, formas de financiamento, relações entre as diferentes instâncias do poder

oficial (central, estadual e municipal), na gestão das escolas, na formação de

professores, na instituição de processos de avaliação centralizada nos resultados. No

entanto, em consonância com o que analisa a autora, não compreendo que as políticas

curriculares propostas para os diferentes países sejam produtoras de uma

homogeneidade centrada em um poder governamental que estabelece marcos que serão

postos em prática uniformemente e sem a sua recontextualização nas instâncias

educativas locais.

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Importante termos em vista as finalidades dos documentos, que visam em grande

medida a formação para a inserção social no mundo produtivo globalizado25

. Em função

de tais finalidades, é de grande importância que os/as educadores/as assumam uma

postura crítica em relação a tais parâmetros, utilizando-os de acordo com as demandas

específicas do alunado com o qual está lidando.

1 Graduada em Pedagogia e História (UERJ), Mestra e Doutoranda em Educação (ProPEd/UERJ)

Notas e Referências:

2 SOUZA, S. Z. L. de; OLIVEIRA, R. P. de. Políticas de avaliação no Brasil e quase mercado. Educação

e Sociedade, v. 24, n. 84, p. 873-895, set. 2003, p.882.

3 LOPES, A. R. C. Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio e a submissão ao mundo

produtivo: o caso do conceito de contextualização. Educação e Sociedade. v.23, n.80, 2002, pp. 386-400.

4 RÜSSEN, J. História Viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico.

Brasília: Editora UnB, 1980.

5 Neste trabalho, foram adotadoa para consulta os documentos publicados pela Editora DP&A, que além

dos PCNs, também publicou os Temas Transversais.

6 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares

nacionais: história e geografia. 2.ed. v.5. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

7 Idem, p. 7, grifo meu.

8 BRAUDEL, F. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. 2ª edição. Lisboa :

Publicações Dom Quixote, 1995.

9 BRASIL, 2002, Op. cit. p.35.

10

GUIMARÃES, M S. L.. Escrita da história e ensino da história: tensões e paradoxos. In: A escrita da

história escolar: memória e historiografia. ROCHA, H. ; MAGALHÃES, M. ; GONTIJO, R. (orgs.). Rio

de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 36.

11

Idem, Ibidem, p.39.

12

BRASIL, 2002, Op. cit. p.38.

13

GUIMARÃES, M. L. S. Op. cit. p.43.

14

Fonte: http://culturahistorica.es/cultura_historica.html (Acessado em 10/05/2011)

15

GUIMARÃES, M. L. S. Op. cit. p.48.

16

GUIMARÃES, M. L. S. Op. cit. p.43.

17

SALIBA, E. T. Na guinada subjetiva, a memória tem futuro? In: A escrita da história escolar: memória

e historiografia. ROCHA, H. ; MAGALHÃES, M. ; GONTIJO, R. (orgs.). Rio de Janeiro: Editora FGV,

2009, p. 60.

18

RÜSSEN, J. Op.cit. 1980.

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1088

19

BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis:

Vozes, 1996. BERNSTEIN, B. Pedagogía, control simbólico e identidad. Madrid: Morata, 1998.

20

LOPES, A. R. C. Op. cit. p.387.

21

LOPES, A. R. C. Idem.

22

GARCÍA-CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São

Paulo: EDUSP, 1998.

23

BERNSTEIN, B. Op. cit. 1996, 1998.

24

LOPES, A. R. C. Políticas curriculares: continuidade ou mudança de rumos? Revista Brasileira de

Educação. Mai/jun/jul/ago, n.26, 2004, p.109-118.

25

LOPES A. R.C. Op. cit. 2002.

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1089

O corpo e o poder político: uma análise do encarceramento como

instrumento de correção dos indesejáveis no Código Criminal do Império do Brasil

Luciano Rocha Pinto*

Resumo: Os atos humanos sempre foram objeto de preocupação dos grupos dominantes

e a punição traduz uma estratégia de poder para os não adequados. No Código Imperial,

contudo, os corpos não são descartáveis. Tendo por objeto os corpos e por objetivo sua

normalização, o encarceramentoemerge como punição privilegiada para o controle das

irregularidades. A história da prisão é antes de tudo a história do corpo e sua relação

com o poder político.

Palavras-chave: Brasil Império, Código Criminal, Controle.

The human body and the political power: an analysis of the prison system as an

instrument of social services according to the Criminal Code in the Kingdom of

Brazil.

Abstract: The human actions were always a worry for the most powerful groups in

society and the punishment, in its different forms, seemed to be a powerful strategy for

the inadequate ones. Although, according to the codes established by the monarchy in

Brazil, the human bodies were not disposable. Having the human body as an object and

its social patterning as an objective, the prison system comes up as a privileged

punishment to control the irregularities. The history of prison in Brazil is, above all, the

history of the human body and its relation to the political power.

Keywords: The kingdom of Brazil; The Criminal Code; Controlling.

As transformações do modo de punir na modernidade assumiram princípios que a

distinguem do Antigo Regime a partir de uma reestruturação do saber sobre o homem,

sobre a lei e sobre o crime. Emanando da vontade do Soberano a lei buscava marcar os

indivíduos indesejáveis por meio dos suplícios. Marcar o corpo do infrator e marcar a

memória da sociedade, eis o duplo sentido do suplício. A noção de lei, encharcada da

mentalidade burguesa, se afasta dos antigos particularismos reais e se torna uma

codificação que busque favorecer a sociedade. Ela vai se reportar à conduta dos

indivíduos regulamentando-a por um corpus jurídico normalizador, que qualificará seus

atos em permitidos e proibidos. O crime não será mais um atentado à soberania real,

mas, uma ruptura com o discurso legal e um atentado à ordem social. O ato de punir não

será uma prerrogativa real, mas um direito da sociedade, dos cidadãos de bem de se

defenderem daqueles que ferem a ordem, a propriedade e a vida.1 Diminuir a

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interferência do Soberano e disciplinar os indesejáveis para o trabalho estavam entre as

prerrogativas da nova penalogia. O encarceramento emege como punição privilegiada.

As Ordenações Filipinas não previam a prisão como pena. Ela servia apenas para

manter o delituoso até a execução de sua punição. Nos raros acontecimentos em que

havia pena de prisão, como nos casos de dívida, esta nunca seria superior a quatro

meses.2 O encarceramento era uma condição transitória para a pena. Esta situação se

inverte completamente no Código Criminal do Império do Brasil. Embora o Código

perpetue antigas formas de punição do Antigo Regime, como o açoite, o desterro, as

galés ou mesmo a pena de morte, no século XIX emerge no Brasil um novo modo de

punir: o encarceramento. A pena de prisão encontra-se nos artigos 46 a 49.

A prisão aparece como punição privilegiada nos oitocentos, como se pode

observar no gráfico 1, relativo às penas tomadas individualmente, por citação, no

Código Criminal Imperial. Praticamente metade de todas as penas previstas se referem

ao encarceramento. Um olhar sobre as penas combinadas (Gráfico 2) evidencia ainda

mais esta característica. O encarceramento chega a 75% das penas previstas.

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A influência da Escola Penal Clássica naquela formatação pode ser percebida no

princípio da utilidade da lei, que deve garantir a ordem e o bem estar social; na

identificação do crime com a desordem; no delito, independente da sua natureza e

gravidade, como ruptura com a lei. Por fim, o crime ao ferir a lei, geradora de ordem e

útil ao bem estar dos indivíduos, é sempre um dano à sociedade, uma perturbação da

ordem e o criminoso como o inimigo da sociedade por não aceitar viver conforme as

normas. Ele rompe com o pacto social e se coloca à margem da coletividade. A lei

buscará reparar o mal e impedir que males semelhantes possam se repetir.3 O cárcere,

por sua vez, emerge como o instrumento de normalização, adestramento e correção

daquela massa indisciplinada, que era a população pobre e escrava.

O livro Dos Delitos e da Penas (1763), de Beccaria aponta para o encarceramento

como uma forma de punição menos incitante da população. O corpo supliciado dos

condenados, no Antigo Regime, e as últimas palavras daquele que não tinha mais o que

perder, seus gritos e maldições contra a lei e o soberano, podiam inverter a infâmia em

heroísmo.4 Se a condenação fosse considerada injusta poderiam gerar uma série de

agitações e acender focos de ilegalismos. Pensando o encarceramento como uma atitude

mais apropriada para o controle das individualidades, a Escola Penal Clássica, a partir

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do panoptismo, fará do encarceramento o instrumento primordial de correção dos

indesejáveis.

Observando as penas individualmente fica fácil perceber um excesso de prisão. A

restrição da liberdade aparece em quase metade das penas (45,8%). Esta certeza

aumente com as penas combinadas (75%). Se as Ordenações Filipinas se caracterizam

pelo excesso do suplício, o Código Criminal pode ser caracterizado pelo excesso de

prisão. No século XIX o poder se apossou do corpo individual e do corpo populacional.

A vida dos indivíduos em sociedade passou a fazer parte da estratégia de governo. Este

novo poder não está direcionado, como no poder soberano, a terra, seus produtos e bens,

mas, aos corpos para extrair deles tempo e trabalho mediante controle e adestramento.

Controlar e disciplinar se tornaram as palavras de ordem. O poder se incumbiu da vida,

do que fazem os corpos, por onde circulam e com que finalidade. Esta racionalidade

política não objetiva a morte dos indivíduos por entendê-la como um fenômeno que

escapa do controle. Cada vez menos o poder se interessa em fazer morrer. Não por

acaso a pena capital está prevista em casos bem particulares, como insurreição, um

crime contra a segurança interna do Império, ainda assim restrita aos líderes (CCIB art.

113). Assassinato com determinados agravantes também previa pena de morte (CCIB

art. 192), podendo ser comutada para galés, no caso dos escravos, ou prisão com

trabalho. A lei vai aparecer como um instrumento disciplinar de normalização. Seu

corpus doutrinário buscará qualificar o que é permitido e proibido; aceitável e

condenável distinguindo os indivíduos, hierarquizando-os mediante as normas e

punindo seus transgressores.

Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir

riquezas (...) Somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a

verdade é a norma; é o discurso verdadeiro (...) Afinal de contas, somos

julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma

certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de

discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder.5

O poder, por meio das regras do direito, institucionaliza a verdade que deve ser

professada por todos. Os indesejáveis são indivíduos fora do lugar, sujeitos que negam a

verdade construída, assumem a ilegalidade e por isso aparecem como um perigo à

organização social e ao bem estar social. A prisão surge como o espaço privilegiado de

correção dos indisciplinados. Segundo o utilitarismo benthaniano as prisões deveriam

seguir alguns princípios fundamentais. Primeiro o isolamento. O detento não deve ter

contato com o mundo exterior, nem com outros detentos. O trabalho aparece em

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segundo lugar. Como o indivíduo lesa a sociedade, parte de sua punição está orientada

ao trabalho como reparação social e instrumento de sujeição ao modo de produção. Por

fim a modulação das penas. O castigo é o salário da infração. Para cada crime um

castigo específico conforme sua gravidade ou seu atentado à sociedade. Este excesso de

prisão tem por fim sua utilidade social: a transformação dos indivíduos e sua

ressocialização. Estar ressocializado é estar conformado às normas sociais.

A pena de prisão, no Brasil Império, poderia ser cumprida pelo simples

encarceramento. Era a chamada ―Prisão simples‖. De modo geral se destinava aos

crimes contra a segurança e a liberdade individual. Liberdade é um conceito

fundamental naquele novo olhar punitivo. É preciso preservar o indivíduo em sua

integridade física. O corpo individual não aparece apenas na cerimônia do suplício. É

preciso preservá-lo. O corpo é gerador de trabalho e riqueza. Garantir sua segurança e

liberdade é, de alguma forma, zelar pela harmonia social e pela circulação dos bens.

Importa que os corpos produzam riquezas. Uns são preservados, outros que se colocam

como um risco à sociedade tem sua liberdade restringida. Perde-se, então, sua igualdade

com os demais homens.

Os casos de crimes Particulares são os que mais preveem a prisão simples: 57%

do total. Os crimes considerados particulares são aqueles voltados aos indivíduos em

sociedade, como cárcere privado (CCIB art. 189), ajudar alguém a suicidar-se ou

fornecer os meios para esse fim (CCIB art. 196), ferir alguém (CCIB art. 201), ameaçar

(CCIB art. 207), caluniar (CCIB arts. 230-238) ou destruir coisa alheia (CCIB art. 266).

São apenas alguns exemplos de crimes punidos com o simples encarceramento. Alguns

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casos acompanha a multa.Havia também outro tipo de encarceramento: a ―prisão com

trabalho‖, que traz a ideia de lucrar com a mão de obra do encarcerado.

Embora os crimes contra a segurança individual apareçam em maior proporção,

a maior parte da punção se destina não aos crimes particulares, mas aos públicos, num

total de 61% das penas previstas. É o caso dos crimes contra a existência do Império –

como tentar destruir a independência (CCIB art. 68), provocar nação estrangeira (CCIB

art. 69) ou auxiliar nação inimiga (CCIB art. 71) – contra o livre exercício dos poderes

públicos – como opor-se à execução de decretos (CCIB art. 91) usar de violência ou

ameaça contra os membros das câmaras legislativas (CCIB art. 93) ou opor-se ao

exercício dos poderes moderador, executivo e judiciário (CCIB art. 95) – contra o livre

exercício dos direitos políticos dos cidadãos – como falsificar lista dos votos ou atas de

eleições (CCIB art. 102) ou obstar reunião dos conselhos gerais de província (CCIB art.

103) – e dos crimes contra a segurança interna do Império, como rebelião (CCIB art.

110), sedição (CCIB art. 111), resistência à ordens legais (CCIB art. 116) ou tirar presos

do poder da justiça (CCIB art. 120). São apenas alguns casos que calculam punições

mais rigorosas, como a prisão com trabalho, uma vez que os delitos são considerados de

maior gravidade.

Esta pena nunca foi posta em prática como previa o Código Criminal: a prisão

com um espaço específico destinado ao trabalho. Evidente que muitos trabalhavam nas

galés, em obras públicas, aterrando os mangues da cidade ou construindo a própria Casa

de Correção. Estas atividades eram desenvolvidas por presos. Pode-se falar então de

prisão com trabalho? Sim, mas, fora do espaço prisional. Não havendo possibilidade de

trabalhar, tendo o prisioneiro sido condenado à prisão com trabalho, a pena seria

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comutada para prisão simples com acréscimo, de um ano em média, no tempo de

permanência no cativeiro. Parece, no entanto, haver interesse em não haver prisão com

trabalho dentro dos muros da prisão. Trabalhar em obras públicas é mais interessante

para a produção de efeitos disciplinares. Na obra pública o prezo atende ao interesse

coletivo de bem estar social, torna visível sua pena e, assim, oferece um duplo serviço:

ao mesmo tempo em que refaz o dano trabalhando para a coletividade, oferece sinais

disciplinares e normalizadores.6

No início dos oitocentos, no Rio de Janeiro, existiam três tipos de prisões: as

militares, como os Fortes de Santa Cruz e Santa Bárbara, a dos Navios Presingangas e a

da Ilha das Cobras; as Eclesiásticas, como o Aljube e as existentes no interior dos

mosteiros e conventos; e as Civis, como o Calabouço, a civil da Ilha das Cobras e a

Prisão Municipal.7 De 1747 até a chegada da família Real o principal cárcere dos

criminosos comuns ficava no Palácio de Justiça, lugar do futuro Paço Imperial. Com a

vinda da corte a prisão foi transferida para a antiga prisão eclesiástica: o Aljube,

construído em 1732 aos pés do morro da Conceição. Poderia comportar até 192 pessoas.

Em 1828, uma comissão de inspeção da Câmara Municipal foi enviada para verificar as

condições do lugar. A Lei de 1º de outubro de 1828, que reformava as atribuições das

câmaras exigia que uma comissão fiscalizasse as condições das prisões.8 Afinal, a

Constituição em seu artigo 179 número XXI, exigia que ―as cadeias fossem seguras,

limpas e bem arejadas, havendo (...) a separação dos Réos, conforme suas

circunstâncias, e natureza dos seus crimes‖. O que a comissão constatou contrariava o

esperado pela legislação. Haviam 390 pessoas encarceradas naquela que denominavam

―sentina de todos os vícios‖. Muitos foram presos por pequenos delitos, como roubar

frutas no mercado, ou brigas e desacato a um policial. Mas havia também escravos e

criminosos. Todos misturados em celas sem ventilação, úmidas e insalubres. Recortadas

na rocha maciça do morro, as celas eram subterrâneas e a água minava constantemente.

Muitos dos presos não tinham registros de sua prisão, nem o tempo que estavam ou

ainda permaneceriam.9

A Casa de Correção situada na Rua Nova do Conde, hoje Frei Caneca, foi a

primeira penitenciária do Brasil, simbolizava progresso e civilização. Acompanhando as

mudanças liberais e os estudos criminológicos dos estados europeus, as autoridades

brasileiras, ao longo do século XIX, viram no encarceramento o principal meio de

punição.10

Este novo sistema teria seu ponto de irradiação da Casa de Correção.

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Adotando a lógica panóptica,11

deveria substituir a tortura pelo cárcere, o carrasco pelo

carcereiro e o anatomista pelos educadores. A contradição pode ser constatada no

cotidiano dos castigos físicos, na ausência das oficinas de trabalho e na coexistência da

escravidão.12

A inquietação com a desordem e a indisciplina levava a polícia a preocupar-se

com frequência com os escravos e os pobres livres. O sistema policial passava a maior

parte do tempo reprimindo a vadiagem, a mendicância e os ajuntamentos. Segundo o

artigo 285 do Código Criminal: ―Julgar-se-hacommettido este crime, reunindo-se três

ou mais pessoas com a intenção de se ajudarem mutuamente para commetterem algum

delicto, ou para privarem illegalmente de algum direito ou dever.‖ A lei de 6 de junho

de 1831 ratifica o exposto: ―Os chefes de polícia, delegados, subdelegados e juízes

municipaes terão todo o cuidado em que não se formem nos districtos, de dia ou de

noite, quaesquer ajuntamentos illicitos (...) estejam armados ou não armados os

reunidos‖.13

A população aparece como um problema político. ―Não é somente o corpo

individual ou a sociedade, mas, um novo corpo: o corpo múltiplo, corpo de inúmeras

cabeças‖.14

O velho poder de soberania e sua teoria jurídico-política, centradas na

afirmação do poder do monarca sobre a terra e suas riquezas, vão sendo transmutados

em algo mais sofisticado, grande invenção da sociedade burguesa, que é o poder

disciplinar.15

Esta mecânica do poder se exerce continuamente pela vigilância, pelo

controle e pelos diversos mecanismos de coerção e adestramento. Seu objetivo é

aumentar a força econômica dos corpos e diminuir a política. Neste sentido, vadios e

mendigos são uma grande preocupação.

Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta e útil de que possa

subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente.

Penas: Máximo – 24 dias de prisão com trabalho; Médio – 16 dias, idem; Mínimo

– 8 dias, idem.

Art. 296. Andar mendigando:

§1º: Nos lugares em que existem estabelecimentos públicos para os mendigos, ou

havendo pessoa que se offereça a sustental-os;

§2º: Quando os que mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos

lugares não haja os ditos estabelecimentos;

§3º: Quando fingirem chagas ou outras enfermidades;

§4º: Quando mesmo inválidos, mendigarem em reunião de quatro ou mais, não

sendo pai e filhos, e não se incluindo também no número de quatro as mulheres

que acompanharem seus maridos e os moços que guiarem os cegos.

Penas: Máximo – 1 mez de prisão simples, ou com trabalho, segundo o estado das

forças do mendigo; Médio – 19 dias, idem; Mínimo – 8 dias, idem. 16

Prisão com trabalho é um mecanismo de poder disciplinar bastante eficaz.

Adquiri-se um duplo benefício com os indivíduos indesejáveis: por um lado tira de

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circulação e por outro adquiri-se lucro com seu trabalho. Em 1838, Euzébio de Queiros

assumiu o cargo de chefe da policia e ordenou que os juízes e paz prendessem todos os

mendigos e vadios. Os incapacitados ao trabalho seriam encaminhados para a ilha de

Santa Bárbara e os sadios para a Casa de Correção por um mês com trabalho, conforme

descrito no Código Criminal. Depois disso, seriam encaminhados ao recrutamento

militar para servirem no exército ou na marinha. Estes, enquanto permanecessem na

Correção iriam quebrar pedras para aterrar os mangues da cidade, nas diversas obras

públicas existentes, inclusiva da própria Casa de Correção, então em fase inicial de

construção. Para ter certeza que a polícia capturaria os indesejáveis prometeu uma

recompensa de 10$000 por mendigo sadio apreendido.17

Justificando sua iniciativa

disse: ―sem faltar a humanidade devida aos verdadeiros infelizes, conseguimos purgar

de mendigos as ruas desta cidade‖.18

Esta população pode ser considerada um problema

político em dois aspectos distintos. É um distúrbio à ordem social por transgredir as

normas, criando uma situação de instabilidade, ao mesmo tempo em que não contribui

para a economia da cidade. Mais que isso. Eles criam obstáculos à livre circulação das

mercadorias.19

Constituem uma população que ganha visibilidade pela sua não

adequação e pelos problemas econômicos que causam. É necessário organizar a

circulação e arquitetar o espaço para que haja higiene, circulação de mercadorias e

possibilitar a vigilância afastando o que pode interferir na boa circulação. A

mendicância é um exemplo de má circulação e de periculosidade.

Melhor que a morte ou o degredo é sua sujeição e trabalho para reparar a perda ou

o mal que causou à sociedade. Trabalhando nas obras públicas ele presta um serviço

econômico ao Estado e torna-se um elemento de instrução com a exemplaridade da

punição. Mas não há problemas apenas no âmbito da segurança. A mendicância também

é uma questão de salubridade. O poder no século XIX tomou posse da vida dos

indivíduos, de suas relações e coexistências. O problema da doença e da contaminação

como fenômeno de uma população fomentava mecanismos de exclusão precisos. Na

Casa de Correção havia, conforme lei de 1856, ―aqueles que infringiam as posturas

municipais, os regulamentos policiais, os contratos, dívidas civis e comerciais (...) e os

que padeciam de moléstias contagiosas repugnantes‖.20

A cidade é em si mesma

punitiva. Em cada canto um teatro de castigos.21

A substituição do suplício pela prisão é a substituição do corpo marcado e

supliciado, pelo corpo dirigido e normalizado para ser reutilizado no trabalho. A história

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da prisão é antes de tudo a história do corpo e sua relação com o poder político. A

serventia do encarceramento está voltada ao controle das irregularidades e ilegalidades

intoleráveis. Não há humanidade no encarceramento. O verniz liberal faz reluzir a

humanidade das penas para camuflar seus reais interesses. Nesta nova concepção a

morte encerra os limites do poder sobre os corpos. É preciso fazer viver para continuar a

dominar. Afinal, morreu acabou.

*Mestre em História Política (UERJ) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Orientação: Profa. Dr

a. Marilene Rosa

Nogueira da Silva. Instituição financiadora: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do

Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Correio eletrônico: [email protected]

1 MAIA, Clarissa Nunes Etalli. História das Prisões no Brasil (Vol. 1). Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.

12. 2Ordenações Filipinas. Livro V, título CXXXIX, p. 1318.

3 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005, pp. 81 e

82. 4Idem. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 51.

5Idem. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 29.

6Idem. Vigiar e punir.Op. cit., p. 91.

7 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das

Letras, 2000, p. 177. 8―Art 56

o: Em cada reunião, nomearão humaCommissão de Cidadãos probos, de cinco, pelo menos, as

quais encarregarão a visita das Prisões Civis, Militares e Ecclesiasticas, dos Cárceres das [...], dos [...], e

de todos os Estabelecimentos Públicos de Caridade para informarem de seu estado, e dos melhoramentos

que precisão.

Art 57o: Tomarão por hum dos romeiros trabalhos, fazer construir ou concertar as Prisões Públicas, de

maneira, que haja nellas a segurança, e commodidade, que promete a Constituição.‖ (Lei de 1º de outubro

de 1828. InArquivo Histórico da Cidade de Florianópolis. Cx. 11, lv. 54. 9 HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século

XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, pp. 66-67. 10

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Arbítrio e violência nas prisões da Ilha Grande. In CARVALHO

FILHO, Silvio de Almeida et alii.Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro:

H.P. Comunicação/Instituto de Letras da UERJ, 2007, p. 42. 11

O Panoptismo é, inicialmente, uma arquitetura prisional. Jeremy Bentham denomina de Panóptico uma

construção em formato de anel dividida em celas que atravessem a espessura da construção com apenas

duas janelas, uma para o interior do anel e outra para fora. Assim, a luz perpassava todo o cômodo. No

centro do anel haveria uma torre cujo vigia poderia observar pelo efeito da contraluz o que se passa no

interior da cela. O Panoptico, no entanto, não se reduz apenas a uma arquitetura, mas uma forma de

governo, um diagrama do poder destinado a se difundir no corpo social.O arranjo panóptico está ordenado

ao controle dos corpos, seus gestos e comportamentos. O corpo, durante o século XIX, não é mais objeto

de suplícios, como na penalogia do Antigo Regime, mas de correção, instrução e adestramento, pois, deve

adquirir aptidões e ser qualificado para trabalhar. Confira: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de

Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009,

verbete: Panóptico. 12

SILVA, Marilene Rosa Nogueira da.Um lugar para os deserdados e deserdadas. In CARVALHO

FILHO, Silvio de Almeida et alii., Op.cit. pp. 21-22. 13

TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brazilannotado.Ed. Fac-sim.

Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. (Coleção história do direito brasileiro – Original:

1886), p. 509. 14

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade.Op. cit., p. 292. 15

Ibidem, p. 43. 16

Código Criminal do Império do Brasil, arts. 295-296.

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17

HOLLOWAY, Thomas H. Op. cit., pp. 129-131. 18

Ibidem, p. 130. 19

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.Op. cit., p. 91. 20

Coleção de Leis do Império do Brasil, 1857: 294-301 21

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.Op. cit., p. 93.

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1100

“Da praça mercantil ao Senado da Câmara: alianças e disputas por poder

político na Capitania do fluminense na segunda metade do setecentos.”

Lucimeire da Silva Oliveira1

Resumo: No setecentos o Rio de Janeiro passa por transformações que refletiriam diretamente

na economia da cidade, influenciando no crescimento da atividade comercial, no aparecimento

de uma nova elite de origem e em estratégias diversas daquelas da elite senhorial: os homens

de negócios. Interesses divergentes converteram-se em disputas entre nobreza da terra e

negociantes. Logo, a Câmara Municipal será o principal palco dessas querelas. Assim, a

presente comunicação pretende analisar disputas e alianças estabelecidas entre negociantes e a

―nobreza da terra."

Palavras-chave: elite mercantil, Câmara Municipal, escravidão.

Abstract: In Rio de Janeiro, seven hundred undergoing changes that reflect directly on the

City‘s economy, influencing the growth of commercial activity, the emergence of a new elite of

origin and different strategies from those of the noble elite: the businessman. Diverging interest

have became disputes between merchants and landed nobility. Therefore, the City council is the

main stage of these disputes. So, this communication is to examine disputes between traders and

established alliances and governance of the town. Key words: Merchant elite, Municipal Council, slavery

O Rio de Janeiro da virada do século XVII para o XVIII passava por uma série de

transformações, que o converteria em uma das principais cidades do Império ultramarino

português.2 Transformações estas que refletiriam diretamente na economia da cidade,

influenciando o crescimento da atividade comercial e no aparecimento de uma nova elite de

origem e, sobretudo, de estratégias muito diversas daquelas da antiga elite senhorial: os homens

de negócio.

Diferente dos séculos precedentes, que foram dominados pela formação e consolidação

de uma elite senhorial baseada no capital agrário e na ocupação dos principais cargos da

governança da cidade, no setecentos cada vez mais os negociantes vão se reconhecer como uma

comunidade e agir coletivamente em defesa de seus interesses, reclamando posições políticas. .3

Interesses divergentes converteram-se logo em disputas por poder político entre a nobreza

da terra e os negociantes. Nesse quadro a Câmara Municipal será um dos principais palcos

dessas querelas. Disputas entre negociante e camaristas foram se tornando cada vez mais

frequentes no Rio de Janeiro ao longo do setecentos. No dia 14 de janeiro de 1758, sob a

presidência do Juiz de fora Antônio de Mattos e Silva reuniram-se em sessão da Câmara

Municipal do Rio de Janeiro os vereadores: Frutuoso Pereira, Miguel Cabral de Melo, Tomé

Correia de Sá Queiroga e José Pacheco Vasconcelos e ainda o escrivão da Câmara André

Martins de Brito, para acordarem sobre a ―suspeita do concurso tão numeroso de negros que

vinham de direitura da Costa de Guiné para este país.‖ 4

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Segundo os vereadores, tratava-se de uma questão de saúde pública, pois acreditava-se

que os negros novos vindos da Costa de Guiné provocariam doenças epidêmicas que atingiriam

o Rio de Janeiro como bexiga, escorbuto, tuberculose, entre outras. Foi dessa maneira que, na

vereação de 14 de fevereiro de 1758, foi decidido fixar edital no sentido de deslocar o comércio

negreiro da área central da cidade, a região da Rua Direita (atual Rua Primeiro de março), para

sua periferia. A área destinada ao comércio desses escravos correspondia ao que ficou

conhecido como Valongo (atual Bairro da Saúde e Gamboa) que posteriormente se tornaria na

principal região portuária da cidade.

A região do largo do Paço e Rua direita foi a primeira via aberta na cidade paralela ao

litoral, já no século XVII era a principal artéria da cidade, ligando o Morro de São Bento à Rua

da Misericórdia.5 Abrigava a Mesa do Bem Comum (depois Junta do Comércio), a Casa de

Contos, o Palácio dos Governadores, as repartições públicas, além da maioria das moradias dos

homens de negócio de grosso trato e de comerciantes de escravos novos da cidade.6 Assim, a

transferência do comércio de cativos para fora da cidade afetaria não somente os seus negócios,

pois ficariam longe dos consumidores de seus produtos, mas também estariam fora do núcleo

político da cidade. Dessa maneira, em 11 de fevereiro de 1758, em resposta ao edital, 44

―homens de negócio, capitães de Navio, marinheiros e mais comerciantes de escravos que

navegam do Reino de Angola para esta Cidade‖ assinam procuração contestando as medidas

dos sanitaristas dando início a uma queda de braço entre os homens de negócio e a Câmara que

duraria mais de dez anos.

Os procuradores dos negociantes fizeram uso de vários argumentos para convencer o juiz

de fora a decidir favoravelmente a apelação dos embargantes. Logo em sua primeira petição,

feita em 11 de fevereiro de 1758, tais argumentos demonstram-se muito contundentes e hostis

em relação ao Senado da Câmara,

Pois como é possível que o Senado desta cidade que não é daquela graduação [se

referem ao Senado de Lisboa], os camaristas da capitania não são pessoas de

letras; e só o digníssimo presidente é neste predicado excelente: se queira reputar e

supor com maior jurisdição e poder; ao mesmo tempo que a lei expressa que

semelhantes negócios os alega a se expressamente a Majestade para os resolver;

parece que procede (...) esta fora dos termos a instância e argumentos. Pois assim

parece deve ser, porque o determinar território, (...) a liberdade, o impedir de

alguma sorte e negócio, o alterar um uso costume imemorável, o restringir os

passos pelas ruas que são comuns e publicas do direito real; parece sem dúvida que

somente é próprio e reservado a própria majestade.7

Assim sendo, tais advogados alegavam que não fazia parte da jurisdição do Senado da

Câmara estabelecer esse tipo de postura e ainda passam a questionar sobre os moradores que

vivem fora dos muros da cidade, pois, de acordo com o argumento da Câmara, tendo contato

com os escravos poderiam adquirir doenças.

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Pois quantos e quantas padecerão e terão falecido em sitio que em postura (sic)

para residência dos escravos se destina, deste mesmo contagio que se imagina:

pois é possível que lhes meta aqueles moradores mais peste ameaça, por ventura

não são vassalos da mesma Majestade da mesma sorte que os são os que residem

na cidade; ou importa menos a saúde destes ao Senado, por não lograrem os

predicados de cidadãos como assistentes na cidade; confesso que não alcanço

enigma desta dificuldade. 8

Portanto, questionam se na dita postura ―segue desta separação aos moradores que nela

vivem,‖ pois os que residissem no Largo de Santa Rita – que se localizava em área próxima ao

Valongo – teriam contato permanente com os ditos negros, podendo adoecer.

Referente ao teor do discurso dos procuradores dos negociantes envolvidos no processo

fica clara a preocupação com a manutenção dos costumes e com o bem comum. Ao duvidarem

da capacidade de transmissão de doenças pelos escravos, os advogados em todo momento

ressaltam a antiguidade daquele comércio que era de ―costume imemorável.‖ De acordo com

Antônio Manuel Hespanha, o costume era uma das principais soluções jurídicas do Antigo

Regime. Pautado nas práticas do cotidiano, o costume era altamente considerado, pois respondia

à ordem das coisas e como esta era geralmente concebida.9 É deste modo que a manutenção o

comércio escravos vai ser interpretado pelos advogados dos negociantes, como uma tradição

longamente estabelecida, e por estar enraizada no seio daquela comunidade não deveria ser

modificada.

Outro argumento que vai permear os discursos jurídicos desses indivíduos é a noção de

bem comum. É essencial lembrar que no Antigo Regime vigorava outro sistema de valores, ou

seja, outra paisagem mental, que informava a ação dos indivíduos completamente diferente dos

conceitos de conduta e de motivação individualista que utilizamos atualmente. 10

Logo, lidamos

com indivíduos que se consideravam, antes de qualquer coisa, como partes de um todo, ou

melhor, de uma comunidade. Segundo Antônio Manuel Hespanha, uma das convicções mais

enraizadas na sociedade de Antigo regime era a vocação natural para se viver em comunidade.

Acreditavam que esse caráter natural para viver em comunidade estava inscrita na natureza, o

que estaria na origem da obrigação à colaboração, entre-ajuda e manutenção do bem comum.

Consequentemente, estas comunidades estariam pautadas no amor e na amizade pelo próximo

tendo na noção de cooperação com vista o bem comum a sua maior finalidade.11

No entanto, a característica da fala desses indivíduos que mais nos salta aos olhos é o seu

caráter desqualificador da ação da Câmara, assim como dos seus ocupantes. Como

demonstrado, acreditavam que além de não ter poder de jurisdição sobre o tema, os camaristas

fluminenses não eram ―pessoas de letras‖, e, portanto não tinham as ―qualidades‖ necessárias

para tomar uma decisão tão importante. O discurso dos advogados dos negociantes mostra

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claramente o clima de hostilidade existente entre os negociantes e os camaristas naquele

momento.

Entretanto, mesmo com os argumentos supracitados, em resposta o juiz de fora

José Antônio de Matos e Silva declara ainda ―não ser legítima‖ a tentativa de embargo

do edital por parte dos negociantes e ―pela invariabilidade do documento do regimento

que se fez‖, decidiu que ―não podia o acordo ou postura suspender.‖12

Sem obter uma

resposta positiva, em 15 de março do mesmo ano o procurador dos comerciantes Dr.

Guilherme Franco Tagaro inicia uma nova petição na qual anexa 11 atestados de

médicos e cirurgiões como: o Doutor Mateus Saraiva, Dr. Ignácio Francisco

Mascarenhas, Dr. Bernardo da Costa Ramos, Dr. Antônio Antunes de Menezes, Dr.

Francisco Correia Leal, dentre outros. Tais atestados alegavam que os escravos eram

examinados pela visita da saúde antes do desembarque, sendo os cativos vendidos pelos

comerciantes perfeitamente saudáveis e incapazes de transmitir doenças.13

Nos outros 10 atestados que se seguem os médicos, cirurgiões e físicos

afirmavam que ao terem contato com os ditos negros nunca perceberam ―epidemia, nem

contagio que fosse comunicado dos negros novos, ou gentio de Guiné‖ ou mesmo

―sintomas que causasse semelhantes qualidades, e entre a vizinhança nunca (houve)

queixa de pessoa alguma.‖14

Questionamo-nos quais eram as relações existentes com os

negociantes de escravos para que esses médicos lançassem tais atestados, a primeira que

fica evidente é que a maioria desses profissionais da saúde trabalhava para os

comerciantes, alguns por mais de dez anos como o cirurgião anatômico Caetano José de

Nápoles de Soares. Também poderiam possuir relações mercantis, como é o caso do

cirurgião Francisco Rodrigues Neiva, que em 17 de Abril de 1755 foi outorgante de

uma procuração em que teve como um dos seus procuradores o homem de negócio

Francisco Pinheiro Guimarães, um dos embargantes de 1758 (ACSM, Livro.65.

27/4/1755). Entretanto, sugeríamos que o apoio dos ―profissionais da saúde‖ aos

negociantes também poderia possuir outras motivações.

Curiosamente, entre os médicos e cirurgiões supracitados, que apresentam

atestados em apoio aos negociantes, se encontram o Dr. Mateus Saraiva e o Dr.

Francisco Correia Leal, que estiveram presentes na audiência de 14 de Janeiro de 1758

apoiando e corroborando a decisão da Câmara de proibir a venda de escravos novos no

interior da cidade. Conforme Alexandre Passos, tais indivíduos eram alguns dos

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médicos de maior nomeada que atuaram na Cidade do Rio de Janeiro na primeira

metade do século XVIII.15

Em março de 1758, ambos alegavam que ao longo de mais de quarenta anos de

exercício profissional na cidade do Rio de Janeiro nunca presenciaram epidemia

disseminada pela comercialização de escravos novos vindos de Luanda e nem mesmo

nenhum sintoma nas pessoas que se dedicavam a esse comércio nem em seus familiares.

Mateus Saraiva como médico da Câmara ainda declara que ―os escravos novos vindos

da Costa da África, antes de desembarcarem, para serem registrados na Alfândega, são

vistoriados primeiro pela visita de saúde‖ somente desembarcando os negros saudáveis,

não conferindo assim nenhum perigo à população .16

Uma de nossas hipóteses é que a

mudança de posição desses doutores nos autos possa estar ligada às relações

estabelecidas entre esses médicos e os comerciantes de escravos da Praça do Rio de

Janeiro. Sugerimos que estas relações estavam para além das oportunidades de trabalho

que os homens de negócio podiam proporcionar para esses doutores. Em 29 de julho de

1747 Mateus Saraiva batizou Paulo, filho de Antônio dos Santos Lisboa, um dos 44

homens de negócio que tentam embargar o edital em fevereiro de 1758. Esses laços

reaparecem em 1731 no batizado de Francisco, filho de Francisco Gomes da cunha, em

que Mateus Saraiva foi padrinho ao lado da madrinha Dona Joana de Mendonça mulher

de Antônio dos Santos Lisboa.17

O compadrio foi, sem sombra de dúvidas, um

importante elemento de constituição e consolidação de laços de solidariedade na

sociedade escravista brasileira. Acreditamos que, como mostra Kátia Mattoso, os laços

de compadrio:

(...) se harmonizam perfeitamente com as regras dessa sociedade brasileira baseada

na família extensa, ampliada, patriarcal. E os laços não prendem apenas padrinho e

afilhado, ligam o padrinho, sua família e os pais da criança batizada, cujo grupo,

em seu conjunto, ganha uma promoção excepcional. 18

Mesmo alegando ―que as atestações dos professores [de medicina] são mais em número

do que os que na Câmara assim o declaram‖ os comerciantes recebem uma nova resposta

negativa do Juiz de fora em quatro de abril de 1758. Todavia, tal fato não foi suficiente para

fazer os comerciantes desistirem, e em 15 dias de junho, através de um novo procurador, o Dr.

Dionísio da Silva e Castro, entram com uma nova tentativa de embargo ao dito acórdão.

Na tentativa de se impugnar os embargos, assim como os negociantes, em 30 de Agosto

de 1758 os vereadores da Câmara convocam os procuradores Inácio Rodrigues Vieira

Mascarenhas, José Alberto Monteiro e Silvestre de Carvalho Freyre e os solicitadores Mauricio

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Correa Duarte e Geraldo da Fonseca Vidal, para saírem em sua defesa contra ―calúnia e tudo o

mais que for a bem da dita causa‖. Além da preservação da saúde pública, as argumentações dos

procuradores dos vereadores se basearam principalmente na manutenção do bem comum dos

moradores da cidade que além de conseguirem um ―menor preço pelos alugueis, haverá quem

queira edificar mais propriedades‖.

Entretanto, o argumento desses procuradores que se torna mais contundente durante o

processo é a acusação de serem os embargantes atravessadores que costumavam ―trazer seus

escravos para a Rua direita para melhor serem vistos e ter melhor vendas‖ 19

Segundo Nireu

Cavalcanti, a transferência dos escravos para fora da cidade respondia a uma antiga exigência de

alguns moradores da capitania. A localização da praça de comércio de escravos novos na Rua

direita era desfavorável para a elite agrária, composta em sua maioria de ―senhores de engenho e

lavradores de açúcar‖, que alegavam que por residirem no recôncavo da cidade (devido à

distância de suas propriedades do porto) até serem avisados da chegada de um navio com novo

carregamento de escravos, quase sempre encontravam os negros de melhor qualidade já

vendidos, tendo que comprá-los nas mãos de atravessadores a preços mais altos.20

Analisando a documentação referente ao tema, percebemos que tal questão não era

novidade. Já em nove de dezembro de 1722 os oficiais da Câmara encaminham sua primeira

carta ao rei queixando-se dos ―preços exorbitantes‖ cobrados pelos atravessadores que

provocam ―muito grave prejuízo para a terra‖ e requerem que se faça cumprir o provimento do

desembargador geral José de Siqueira que em junho de 1704 havia estabelecido que ―toda a

pessoa que atravessasse os ditos negros pagaria 50 cruzados, e teria um mês de prisão.‖21

Entretanto, os vereadores alegam que os infratores ―não deixaram de atravessar os escravos

como costumam fazer‖ e devido à ―gravidade deste dano manda que tenham estes

atravessadores perdimento dos escravos que lhe forem achados, além da pena pecuniária que lhe

é imposta porque só assim de algum modo se evitaria tão notório inconveniente‖.22

Anos depois, em oito de junho de 1748, os vereadores solicitam nova devassa devido ao

―esquecimento que estava‖ as posturas que proibiam a atuação dos atravessadores na cidade.

Alegavam que os mesmos compram ―grandes partidas por diminutos preços, e depois os

revendem por avantajados‖ causando

[...] dano tão grande do mesmo povo, senhores, por lhes não chegar o dinheiro que

possuem ao seu valor, ficando diminutos por isso os dízimos reais dos ditos

engenhos, perdidos os senhores deles, e ainda o miserável povo, que havendo de

servisse com um escravo o não compram pela exorbitância dos preços resultados

dos ditos atravessadores, e por consequência a diminuição dos quintos reais nas

companhias de Minas Gerais, São Paulo, Goitacazes, e Cuiabá, e seus dízimos

delas [...]23

Devido a tamanhos prejuízos e como existiam leis, pedem ao Senado que as

mesmas sejam postas em prática. Segundo Nireu Cavalcanti, o rei nos casos de

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denúncias, ordenava que diferentes autoridades dessem o seu parecer para melhor

legislar sobre o caso.24

Em vista disso, em 31 de março de 1753 por provisão pede ao

governador da Paraíba do Sul – o visconde de Asseca, Martim Correia de Sá e

Benevides Velasco –, e ao governador do Rio de Janeiro – conde de Bobadela, Gomes

Freire de Andrade – parecer sobre uma nova queixa dos oficiais da Câmara do Rio de

Janeiro encaminhado ao rei em 20 de Setembro de 1752. Ambos os governadores, por

sua vez, decidem requerer auxilio aos homens de negócio que ―podem ter mais noticias

desta matéria.‖

Assim, foi solicitado aos negociantes Antônio Pinto de Miranda, Manuel dos Santos

Pinto, Manuel Barbosa dos Santos, João Hopman, Manoel Rodrigues Ferreira, Manuel Ferreira

Gomes, Francisco Pinheiro Guimarães, Francisco Ferreira Guimarães que em 17 de julho de

1762 saem em defesa dos ―atravessadores‖, alegando que os mesmos não são homens ricos e

poderosos, mas sim trabalhadores ―pobres que não tem outro modo de vida‖. 25

Alegam ainda

que ―nesta cidade sempre há abundância de escravos e por falta destes não é que deixam de

trabalhar os senhores de engenho, lavradores, roceiros, moradores e mineiros‖, mas sim por não

terem ―a maior parte deles dinheiro pronto para os pagar à vista e dificultar-lhes a venda‖ .26

No entanto, a resposta veio somente a partir de nova requisição dos oficiais da Câmara ao

vice-rei e de um abaixo-assinado de 28 moradores da cidade no ano de 1765. Tais indivíduos se

queixavam mais uma vez das desordens cometidas pelos atravessadores de escravos negros

oriundos de Angola e da Costa da Mina, que não respeitavam as posturas determinadas pelo

Senado insistindo em cobrar preços altos pelos cativos. Segundo os agravantes: ―até os tempos

passados comprar um escravo por cinco, e seis (doblas), ao presente se não acha por menos de

sete, oito‖ 27

Apoiando-se nas declarações que os homens de negócios fizeram ao governador

Gomes Freire em 1752, julgando ser mais ―mais bem entendida e verdadeira informação‖, o

vice-rei em sua resposta, demonstra total apoio aos atravessadores e em 23 de junho de 1767,

decide finalmente que a Câmara não poderia ―impor penas e posturas aos denominados

atravessadores‖ 28

Tal episódio mostra a frequencia das disputas entre os negociantes e os oficiais da

Câmara em torno da venda de escravos, o acontecimento demonstra mais uma vez a importância

do tráfico para a ―bem comum‖ dos moradores da cidade e da coroa devido ao prejuízo que as

alterações nas práticas costumeiras daquele tráfico poderiam causar.

Analisando essa documentação mais de perto, encontramos entre os lavradores de cana e

senhores de engenho que assinaram o abaixo-assinado de 1765 os vereadores: Frutuoso Pereira,

Miguel Cabral de Melo e o procurador da Câmara Dr. Sebastião da Cunha Coutinho Rangel;

que em 14 de janeiro 1758 assinam o acórdão do Senado da Câmara no sentido de deslocar o

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comércio dos escravos novos para fora da cidade. Também percebemos que no documento em

que os homens de negócio saem em defesa aos atravessadores em 1752 estão João Hopman,

Manoel Rodrigues Ferreira, Manuel Ferreira Gomes, Francisco Ferreira Guimarães uns dos 44

comerciantes que contestam o acórdão de 1758; mostrando que as divergências entre esses

indivíduos estavam para além do dito processo. Sobre o tema dos atravessadores, os

procuradores dos negociantes que tentam embargar o acórdão em dezembro de 1758 alegavam

que, mesmo se proibindo o comércio de escravos na Rua Direita não se extinguiria a existência

de tais atravessadores no interior da cidade e que apesar de não condenarem sua atuação, os

embargantes alegavam que ―não eram atravessadores de escravos, mas sim donos e

comerciantes dos mesmos‖.29

Seguindo os rastros deixados por esses indivíduos nas fontes, encontramos esses

vereadores em outro episódio em que mostram sua rivalidade com os homens de negócio da

Praça do Rio de Janeiro. Em 4 de março de 1752 encontramos Frutuoso Pereira e ainda Felipe

Soares do Amaral, José Pereira da Silva e Domingos Viana de Castro (todos vereadores entre

1758 e 68) em uma representação ao Conselho Ultramarino juntamente com 38 senhores de

engenho e lavradores de açúcar em que reclamam contra a lei de fixação do preço do açúcar

que,

só obrigava aos senhores das fabricas dos engenhos e lavradores a venderem pelo

preço taxado, e não obrigava aos compradores o comprarem no pelo mesmo preço

estipulado na sobredita lei no que tem senhores de engenho e lavradores um

notável prejuízo.30

Alegavam que a dita lei possuía ―utilidade tão somente aos homens de negócio‖,

pois permitia que os mesmos pagassem o mais ―diminuto preço‖ possuindo ―liberdade

de os passarem pelo mais alto custo.‖31

Dessa forma, se sentiam injustiçados, pois,

assim como os homens de negócio, também eram vassalos de sua majestade e mereciam

ser tratados de forma igual perante a lei; argumentando que a mesma só podia ser

―contra a vontade do soberano porque o seu piedoso ânimo é de utilizar a todos os seus

vassalos, e não de prejudicar algum em beneficio de outros.‖32

Dois anos depois os senhores de engenho e lavradores de açúcar assinam juntamente

com a Câmara um novo requerimento em que repetem as alegações feitas em 1752 mostrando

que devido aos altos custos de manutenção ―em poucos anos se seguirá certa e infalível extinção

dos engenhos‖.33

Nesse documento ainda encontramos dentre as 25 reclamantes, além de

Frutuoso Pereira, José Pacheco Vasconcelos, Antônio da Fonseca e Inácio Rodrigues Vieira

Mascarenhas todos envolvidos na defesa da manutenção acórdão de 1758. No que se

refere ao perfil desses vereadores, o episódio analisado deixa claro que os mesmos além de

vereadores, também eram senhores de engenho ou lavradores de açúcar.

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Dessa maneira, o perfil desses vereadores do Senado da Câmara se encaixa naquele da

dita ―nobreza da terra‖ descendente dos primeiros conquistadores que reclamava o poder de

mando na cidade. Estes estavam muito interessados na transferência dos escravos para fora da

cidade, pois, como demonstrado, acreditavam que a transferência reduziria a ação dos

atravessadores e consequentemente o preço dos cativos, e principalmente frearia o crescimento

do poder econômico e político dos homens de negócio na cidade.

Concernente ao prosseguimento do processo de 1758, apesar de todas as tentativas e

argumentações, os procuradores dos negociantes de escravos não conseguem impedir a

conclusão dos autos e sua publicação em 14 de dezembro de 1758. Nesta publicação, fica

confirmada a proibição da comercialização de escravos novos no interior dos muros da cidade,

principalmente na Rua Direita. No entanto, o processo não termina por aí, anos depois em 1764

dezesseis negociantes dão prosseguimento aos autos que ainda vai envolver uma enorme gama

de indivíduos entre testemunhas, homens de negócio, vereadores, entre outros. O processo teve

―desfecho‖ 34

somente em 20 de Abril de 1768 com decisão do Juiz de Fora e Presidente do

Senado da Câmara Jorge Boto Machado Cardoso dando parecer favorável aos negociantes.

Machado alegava que o comércio de escravos novos era um dos mais ―avultados negócios desta

praça‖ e que os seus responsáveis ―sempre os tiveram nas mesmas casas em que vivem‖

cuidando dos mesmos ―com toda a limpeza e cautela‖ e como a transferência do comércio para

fora da cidade proporcionaria um gravíssimo e considerável prejuízo aos negociantes, ao bem

comum e à Majestade. E, portanto, determina que os comerciantes tenham liberdade para

manter seus escravos em suas próprias casas reconhecendo assim os serviços prestados por tais

negociantes para a cidade e para a coroa. Mostrando ainda que o poder econômico desses

negociantes vai fazer com que os mesmos aos poucos consigam alcançar seus interesses e poder

político na cidade, poder esse que é consolidado anos depois quando alguns desses homens de

negócio – como Brás Carneiro Leão (1773) e Antônio Lopes da Costa (1769), dentre outros

envolvidos no processo – vão aparecer na documentação como vereadores da Câmara do Rio de

Janeiro.

Dessa forma, Acreditamos que esse ambiente de disputas entre os homens de negócio da

praça carioca e a nobreza da terra está inscrito em um processo muito mais amplo em curso da

sociedade fluminense de então: as modificações da composição da hierarquia no seio dessa

sociedade fluminense associado a mudanças mais profundas no que tange a valorização do

poder econômico como fator essencial para manutenção do poder político.35

1 Mestranda do programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS-UFRJ), pesquisa financiada pelo

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) 2 Para uma melhor compreensão ver: SAMPAIO, Antônio C. J. de Na encruzilhada do Império:

Hierarquias Sociais e Conjunturas Econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1751). Rio de Janeiro:

Arquivo Nacional, 2003.

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3A Utilização da noção de comunidade pretende somente indicar o pertencimento dos comerciantes a um

grupo mais amplo: ―Nesse sentido, é sintomática a autodenominação dos mesmos e, ‗homem de negócio

desta praça‘ ou ‗homem de negócio da Praça do Rio de Janeiro‘, tendo o termo praça o claro caráter de

comunidade mercantil‖ SAMPAIO, Antônio C. J. Famílias e negócios... op. cit. p.228. 4 AGCRJ, Códice: 6.1.9 p.14F

5 PASSOS, Alexandre O Rio de Janeiro no Tempo do “Onça” (século XV ao XVIII) Rio de Janeiro

Livraria São José 1965 p.26 6 CAVALCANTI, Nireu Oliveira. ―O comércio de escravos no Rio setecentista‖, in FLORENTINO,

Manolo. (org.) Tráfico, Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005 p.41 7AGCRJ, Cód.6.1.9: 30f

8Idem

9 HESPANHA, Antônio Manuel. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de

Antigo Regime. São Paulo:Annablume, 2010 Capítulo 2 10

CLAVERO, Bartolomé. Antidora. Antropologia católica de La Economia Moderna, Milão, Giuffrè

Editore, 1991. Pp.46-48 11

CARDIM, Pedro Antônio Almeida. O poder dos afetos: ordem amorosa e a dinâmica política no

Portugal do Antigo Regime. Lisboa, Tese de doutoramento: 2000 p.316 12

AGCRJ, Códice:6.1.9 13

Idem 14

Ibidem p.44 15

PASSOS, Alexandre O Rio de Janeiro no Tempo do “Onça” (século XV ao XVIII) Rio de Janeiro

Livraria São José 1965 p.62 16

AGCRJ, Códice: 6.1.9: 3F 17

ACMRJ – AP 0762 18

MATTOSO, K. M. de Q. Ser Escravo no Brasil. SP: Brasiliense, 1982. p.132. 19

(AGCRJ, Cód. 6.1.9:116). 20

CAVALCANTI, Nireu Oliveira. ―O comércio de escravos no Rio setecentista‖, in FLORENTINO,

Manolo. (org.) Tráfico, Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005 p.41 21

AHU, Cx. 13, D. 1441 22

idem 23

AHU, Cx. 41, D. 4203 24

CAVALCANTI,Nireu. Op.cit.38 25

AHU, Cx. 76, D. 6877 26

Idem 27

Ibidem 28

Ibidem

29

AGCRJ, Cód. 6.1.9:79v 30

AHU, doc. 15.512 31

AHU, doc. 15.513 32

Idem 33

AHU, doc. 17.495 34

Em 1775 o vice-rei marquês do Lavradio lança edital transferindo definitivamente o comércio de

escravos novos para a região do Valongo, onde permaneceu até o fim do tráfico negreiro. Entretanto, é

possível encontrar registros de negociantes reclamando a manutenção da venda de escravos na Rua direita

até as primeiras décadas do século XIX. (AGCRJ 6.1.23 p. 97) 35

Segundo Pedro Cardim, foi justamente a partir da segunda metade do século XVIII que as relações comerciais

tomam um caráter individualista e a atividade econômica começa a reconhecer-se como um espaço autônomo.

Todavia, isso não quer dizer que a concepção baseada nas relações e no bem comum deixaram de existir de

imediato (CARDIM,2000:386).

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Por um cinema revolucionário: intelectuais, engajamento e

Cinema Novo

Luís Fernando Amâncio Santos*

Resumo: O presente trabalho reflete sobre o conceito de intelectual nos anos 1960,

tendo atenção para sua quase co-significação com engajamento. Pensando o contexto

brasileiro, analisaremos a atuação do Cinema Novo e como ele se articula com os

conceitos supracitados. Esse movimento tinha como proposta romper com a produção

cinematográfica brasileira de até então. Porém, mais do que o aspecto artístico, havia

ênfase nos temas abordados. Buscava-se interpretar o Brasil, indo ao encontro da cultura

popular, colocando-a no protagonismo das películas.

Palavras-chave: Intelectual, engajamento, Cinema Novo

Abstract: This paper reflects about the concept of intellectual in the

1960s, with attention to its near co-engagement with meaning. Thinking the Brazilian

context, we analyze the performance of Cinema Novo and how it ties into the

concepts mentioned above. This movement was proposed as a break with

the Brazilian film industry so far. But more than the artistic aspect, had an emphasis

on themes. They sought to play Brazil, reaching out to popular culture, making it the

main protagonist of the film.

Key words: Intellectual, engagement, Cinema Novo

O intelectual

A integração do substantivo ―intelectual‖ na língua francesa ocorre durante o

―caso Dreyfus‖, sendo, conseqüentemente, o marco da formação desse grupo social. Em

1894 foi encontrada uma carta suspeita na embaixada irlandesa, que indicaria um traidor

entre um dos oficiais franceses, que estaria colaborando com os alemães. Alfred

Dreyfus, único oficial de origem judaica, foi acusado do crime e condenado à prisão

perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Entretanto, o irmão do réu encontrou,

em 1897, provas de que o verdadeiro culpado era outro oficial francês, Charles

Eterhazy. As evidências exigiam m novo julgamento, o que não aconteceu. Foi o

estopim para uma grande comoção.

Em 1898, Émile Zola escreve um texto intitulado J‟accuse, publicado no jornal

Aurore, acusando injustiça e complô militar no julgamento de Alfred Dreyfus. Apóiam-

no, em manifesto, vários escritores, artistas e professores universitários, entre outros. O

episódio causou intensos debates, gerando a oposição entre dreyfusards e anti-

dreyfusards. Como conseqüência da comoção, em 1906, Dreyfus foi restituído no

exército, mas, sem possibilidade de seguir na carreira, pediu demissão no ano seguinte.

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Esse evento tem grande importância por deixar marcada uma postura dos

intelectuais de impor sua autoridade na esfera pública, na busca pela verdade e pela

justiça. Eles intervêm em uma questão política, reivindicando o poder simbólico que

suas qualidades de intelectuais lhes daria direito. Surge, então, uma categoria:

O neologismo ―intelectual‖ designa, originalmente, uma vanguarda cultural e

política que ousa, no final do século XIX, desafiar a razão de Estado. No entanto,

essa palavra, que poderia ter desaparecido após a resolução dessa crise política,

integra-se à língua francesa. Se, por um lado, ela designa um grupo social, por

outro, ela qualifica uma maneira de se conceber o mundo social, pressupondo,

notadamente, uma oposição às hierarquias estabelecidas.1

Assim, esse personagem, o ―intelectual‖, não ficou restrito a esse contexto, tendo

destacada importância durante o século XX. Na sua ação, quase sempre a expressão

pública de idéias e posições políticas, o intelectual tem a legitimidade de sua ligação

com o saber. Algo que pode ser encontrado no Século das Luzes, com os pensadores

posicionando-se como defensores da Razão. Voltaire, Rousseau, Diderot, entre outros,

empenhavam-se em tratados sobre as verdadeiras virtudes e a boa maneira de governar.

E também desferiam ácidas críticas à sociedade de corte e aos vícios cometidos pelas

autoridades públicas.

De certa forma, é essa função de baluartes da moralidade, encerrando em suas

palavras o que é certo, algo que somente pessoas racionais e independentes poderiam

defender, que forma o poder simbólico dos intelectuais. Não por acaso, Edward W. Said

usa o termo ―representações do intelectual‖ em seu livro sobre o conceito. Trata-se,

sobretudo, de portar uma ―aura‖ e, por ela, ter uma conseqüente exposição:

As representações do intelectual, suas articulações por uma causa ou idéia diante

da sociedade, não têm como intenção básica fortalecer o ego ou exaltar uma

posição social. Tampouco têm como principal objetivo servir a burocracias

poderosas e patrões generosos. As representações intelectuais são a atividade em

si, dependentes de um estado de consciência que é cética, comprometida e

incansavelmente devotada à investigação racional e ao juízo moral; e isso expõe o

indivíduo e coloca-o em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando

intervir por meio dela são duas características essenciais da ação intelectual.2

Durante o século XX, um período turbulento, com dois conflitos bélicos mundiais,

ascensão do nazi-facismo, crise econômica e a ideológica Guerra Fria, a demanda para a

ação do intelectual foi intensa. A barbárie das guerras e perseguições a grupos étnicos

fez necessária, mais do que nunca, a moralidade, da qual o intelectual seria defensor.

Depois da Segunda Guerra, particularmente, sua função social foi cada vez mais

delimitada. Ele pronunciou-se sobre o que considerava certo, sendo que ter um

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posicionamento político se tornou obrigatório. Então, mais do que um representante da

razão, o intelectual passou a ser um engajado. Seguindo Marilena Chauí, entendemos

que engajamento nesse contexto significava

a tomada de posição no interior da luta de classes, como negação interna das

formas de exploração e dominação vigentes em nome da emancipação ou da

autonomia em todas as esferas da vida econômica, social, política e cultural.

Diferente do ideólogo, inserido no mercado, falando a favor do mercado.3

Naqueles anos de pós-guerra, principalmente nas décadas seguintes, o intelectual

tornou-se quase um sinônimo de simpatia por ideologias de esquerda. Na maior parte

dos países ocidentais, eles se tornavam membros ativos ou simpatizantes de partidos

comunistas, pronunciavam-se a favor da União Soviética (em conseqüência, tentavam

ignorar as más notícias que vinham do governo de Stálin, como os campos de trabalhos

forçados) e mostravam-se esperançosos pelas revoluções que se anunciavam no

Terceiro Mundo.

Na França, que é a grande referência, há a figura de Jean-Paul Sartre, que encarna

como ninguém o modelo de intelectual desse período. Sua militância ideológica é

explícita, o que responde ao período turbulento do qual ele emerge. Em uma

conferência nos Estados Unidos, em 1945, por exemplo,

Sartre começou afirmando que após as experiências de guerra, derrota, ocupação,

resistência e libertação, a literatura da geração anterior parecia ―enfraquecida,

cansada, não mais pertinente‖. Uma nova literatura estava em ascensão, e era ―o

resultado da Resistência e da guerra; seu melhor representante é Albert Camus,

que tem trinta anos‖. Os novos escritores eram profundamente marcados pela

experiência de luta contra a Ocupação.4

Sartre foi atuante durante esse período em jornais e revistas, escrevendo editoriais

que clamavam pelo engajamento do intelectual. Embora a princípio ele optasse por um

distanciamento do Partido Comunista Francês, nas décadas seguintes ele se aproxima,

tornando-se seu defensor.

Ainda na França, um episódio que mobilizou os intelectuais foi a Guerra da

Argélia (1954-1962). Esse conflito pela independência da então colônia africana contou

com pesados questionamentos de pensadores franceses sobre a ação de seu governo. É

quando fortalece o chamado ―terceiro-mundismo‖, um suposto louvor a esses países

marginalizados pelo imperialismo. O marxismo, ideologia que movia a atividade

intelectual, é adaptado, e o indivíduo do terceiro mundo torna-se uma espécie de

proletariado da política internacional. A luta por sua autonomia é uma bandeira

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assumida, e Cuba, onde os revolucionários tomam o poder do ditador Fulgencio Batista

em 1959, a evidência de que mudanças eram possíveis.

O Cinema Novo

O surgimento do Cinema Novo se dá em consonância com a efervescência

cultural na qual o Brasil estava inserido durante a passagem da década de 1950 para a

sua sucessora. Nas artes, o neoconcretismo ocupava seu espaço, enquanto a literatura

continuava a dar novas formas ao modernismo e a bossa nova repercutia para além das

fronteiras do país. Em bares e cineclubes do Rio de Janeiro, jovens amantes de cinema

encontravam-se e articulavam suas idéias, ansiosos por fazer o seu movimento. Sobre a

importância dos cineclubes, Walter Lima Jr. é enfático:

Minha primeira atividade depois da obsessão (de ir ao cinema) foi me meter em

cineclubes, em vários (...). Por que cineclube? Em primeiro lugar porque passavam

filmes aos quais eu não tinha acesso porque não passavam comercialmente (...).

(Em segundo lugar) nos cineclubes eu descobri que havia outros doidos iguais a

mim. Quando que nos cineclubes havia uns 30, 40 (...), eu me senti parte de um

todo, de uma comunidade, de um grupo de pessoas.5

O nome que o movimento ganhou já indica suas características mais marcantes.

O Cinema Novo afirmou-se como reação ao que foi feito anteriormente no país. O

modelo de ―cinema de estúdio‖, como ocorreu no grande empreendimento da

Companhia Cinematográfica Vera Cruz, era repudiado. Assim como o gênero

chanchada, como no caso da Atlântida Cinematográfica, e todo empreendimento muito

pautado em princípios mercadológicos.

Partindo da experiência de Nelson Pereira dos Santos (Rio, Quarenta Graus,

1955), os cinemanovistas pretendiam, com baixos orçamentos e financiamentos

alternativos, produzir filmes livres de maiores compromissos com a bilheteria e,

conseqüentemente, com maior liberdade de expressão. O que fazia sentido com as

propostas estéticas do movimento, como as gravações em locações autênticas, utilização

de atores semiprofissionais e o empenho por representações mais realistas do Brasil.

Seus filmes eram, pois, interpretações do país. Pretendiam analisar seu processo

histórico, sua situação social, enfatizando o ―povo‖. Temas como o cangaço, a

escravidão, práticas econômicas como a pesca, entre outros, estiveram nas telas do

Cinema Novo. E o movimento, que cedo uniu as discussões teóricas de seus integrantes

com as primeiras experiências, não demorou a ter suas imagens do Brasil exibidas por

festivais europeus.

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O Cinema Novo produziu seus primeiros filmes no princípio dos anos 1960,

curtas-metragens. E foi durante essa década que se deu sua atividade enquanto

movimento. Maria do Socorro Carvalho diferencia um núcleo principal, formado por

Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman,

Carlos Diegues e David Neves6. De fato, são os diretores mais atuantes, presentes desde

o princípio do movimento, mas podemos também mencionar a participação de Miguel

Borges, Marcos Farias, Domingos de Oliveira, Mário Carneiro, Walter Lima Jr.,

Gustavo Dahl e Saulo Pereira de Mello, presentes durantes as diversas discussões em

que se amadurecia a idéia de criar uma nova tendência cinematográfica nacional. Todos

eles eram oriundos do Rio de Janeiro, exceção feita ao baiano Glauber Rocha.

Ao longo de sua atividade, o movimento abordou temas rurais e históricos, como

em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963, Glauber Rocha) e Ganga Zumba (1964,

Carlos Diegues); urbanos, com críticas à classe média, caso de O Desafio (1965, Paulo

César Saraceni) e Terra em Transe (1967, Glauber Rocha); passando também por

alegorias, como em Macunaíma (1969, Joaquim Pedro de Andrade) e Os Deuses e os

Mortos (1970, Ruy Guerra). Mudanças no contexto político brasileiro, como o

progressivo endurecimento do regime militar estabelecido com o golpe de 1964,

influenciaram essas ―reações cinematográficas‖. E, de certa forma, contribuíram para a

dissolução do movimento, na década de 1970.

O engajamento

O movimento do Cinema Novo é contemporâneo do conceito de intelectual como

um engajado, tratado anteriormente, e podemos dizer que os cineastas assumem essa

postura. São um grupo com identificação própria e que assume como uma espécie de

missão esse posicionamento de liderança, produzindo filmes que não se propunham

somente a entreter, mas sim esclarecer os expectadores. Fazer cinema é o exercício

dessa autoridade simbólica que essa classe reivindica.

Também é importante destacar que estamos tratando de tempos da Revolução

Cultural. Na análise de Eric Hobsbawm, uma série de mudanças econômicas e políticas

geradas pelo pós - Segunda Guerra Mundial refletiriam em mudanças culturais.

Instituições pouco alteradas por séculos, como a família, encontravam-se em

reformulação – maior número de divórcios, diminuição da configuração da família

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nuclear, aumento de solteiros, novas condutas sexuais e mães chefiando casas, entre

outros.

Por sua vez, uma cultura juvenil encontrava-se deveras forte. ―A juventude, um

grupo com consciência própria que se estende da puberdade até a metade da casa dos

vinte, agora se tornava um agente social independente‖7. Essa juventude radical atuou,

como nunca antes, politicamente. Movimentos estudantis pelo mundo davam o tom

contra sistemas que os jovens consideravam conservadores, injustos ou

inconstitucionais. Segundo o historiador inglês, a juventude deixa de ser vista como

estágio intermediário para a vida adulta, ganhando força por si mesma. E é expressa por

um internacionalismo, no modo de vestir (destaque para o sucesso do blue jeans) e o

estilo musical a se ouvir (o rock).

Os cineastas do Cinema Novo viviam com intensidade desse momento. Enquanto

socialmente eles participavam de todas as mudanças culturais, seus filmes

representavam essa autonomia que os jovens afirmavam. O movimento se mostrava

hábil para pensar o Brasil, inclusive confrontando cinegrafias anteriores, consideradas

pelos cinemanovistas como atrasadas.

A idéia do Cinema Novo como representante da ―cultura jovem‖ também se

articula com seu alinhamento com a cultura política de esquerda. Gerard Vincent, em

―Ser Comunista? Uma maneira de ser‖, a respeito do caso francês, afirma que a filiação

ao PCF oferecia aos jovens possibilidades de cargos que, em geral, a sociedade francesa

não dava.

A adesão maciça de jovens intelectuais burgueses, logo após a Segunda

Guerra, não raro acarreta o rompimento com a família. Eles se sentem

fascinados pelo caráter exemplar do operário (ao qual não pretendem

substituir) em explorar, descobrir e assumir a via revolucionária.8

Alguns dos membros do Cinema Novo eram filiados ao PCB, sendo Leon

Hirzman e Joaquim Pedro de Andrade os mais militantes9. Porém, independente desse

engajamento mais declarado, percebe-se nos filmes desses diretores essa filiação à

cultura política comunista. O que procuraremos, a seguir, é demonstrar de que maneira

isso aparece nas películas do Cinema Novo e nas atitudes desses cineastas. Utilizaremos

para isso, além de bibliografia relacionada e de obras desses autores, a autobiografia

Por dentro do Cinema Novo: minha viagem, de Paulo César Saraceni.

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Primeiro, é importante observar as referências feitas à ―revolução‖. O Cinema

Novo é um movimento que se entende como revolucionário. Anthony Giddens destaca a

existência de um ―socialismo revolucionário‖ que, por sua vez, teria raízes em Marx. Na

obra desse autor ―quer aconteça ou não em batalhas ativas nas ruas, a revolução é a

expressão de uma ‗mudança Gestalt‘, uma transição de um tipo de sociedade para

outro‖10

. Para esses socialistas, o reformismo era visto com desconfiança, uma vez que

seria um mecanismo falso, de mudanças superficiais.

Se as notícias que vinham da União Soviética não eram as mais positivas, o

marxismo ocidental se apoiava na crítica ao capitalismo e na esperança com relação a

países do Terceiro Mundo. ―A China de Mao, a Cuba de Castro, e às vezes alguns

outros países revolucionários do Terceiro Mundo, inspiraram as esperanças de alguns

marxistas ocidentais – até que as deficiências dessas sociedades se tornaram

evidentes‖11

.

Esse empenho em fazer a revolução e a inspiração, no caso do Cinema Novo, em

Cuba, pode ser observado no trecho abaixo de uma carta de Glauber Rocha para Paulo

César Saraceni, enquanto este estudava em Roma:

Acho que devemos fazer revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às

ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Não se esqueça de seu

país, veja se politiza o Gustavo [Dahl, crítico de cinema que também estudava na

Itália]. Cuba é o máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração

do capitalismo. São machos, raçudos, jovens geniais‖.12

Essa inspiração em Cuba será uma constante. O ―cinema novo‖ não é uma

exclusividade do Brasil. Existem similares por países latino-americanos e uma

correspondência entre eles. De certa forma, é como se na revolução do cinema também

houvesse a universalidade defendida por Marx com relação ao comunismo. Sobre o

Festival de Santa Margherita, na Itália, Saraceni descreve o contato com os cineastas

desses países como um ponto positivo da jornada: ―Conhecer os cineastas cubanos, os

latino-americanos. Problemas iguais em cada país, imperialismo de Hollywood, por

exemplo, que detinha mais de 95% do mercado‖13

. A situação terceiro-mundista e a

ânsia por vencê-la são compartilhadas.

Anthony Giddens ressalta a colocação dessa questão naquela época:

Um outro ponto de apoio do marxismo ocidental foi a teoria do imperialismo

capitalista e da dependência do Terceiro Mundo. Afirmava-se que a revolução

socialista seria a única maneira pela qual os países de Terceiro Mundo poderiam se

libertar de sua posição inferior na ordem capitalista global.14

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Como ―fazer revolução‖ por parte desses cineastas que sequer pegavam em

armas? Vale lembrar do poder simbólico das afirmações dessa classe de intelectuais.

Nos anos 1960, há uma grande valorização sobre o potencial de produzir cinema. É o

que afirma Marcelo Ridenti:

Em contraste com seu limitado êxito de público, a influência do Cinema Novo no

meio intelectualizado era tamanha que se constituía como pólo imantador para

artistas e intelectuais de esquerda de outras áreas, os quais por vezes pensaram em

ser cineastas, chegando mesmo a realizar filmes.15

A proposta do Cinema Novo era de problematizar as estruturas da nação

brasileira. Seus filmes tinham o povo como foco de suas objetivas, pretendiam trazer

para a discussão realidades incômodas. E, diferente de produções nacionais anteriores,

que tentavam fazer filmes amenos através de temáticas populares (ao menos na

concepção dos cinemanovistas), esses diretores evitavam narrativas tradicionais. A

filiação deles à ideologia comunista impregna sua noção sobre cultura popular. É uma

arte que precisa ser engajada e, sobretudo, engajar.

Paulo César Saraceni assim define a proposta do Manifesto do Cinema Novo,

como ficaram conhecidos uma série de artigos assinados por Glauber Rocha:

Aberto, sem nenhum dogma, nenhum preconceito, pedia-se apenas que fosse

autoral, sincero, criativo, revolucionário e que [o cinema] olhasse a realidade

social e econômica do Brasil com vontade de analisá-la, transformá-la num mundo

melhor para todos. Mas que, principalmente, amasse o cinema.16

Havia uma busca de afirmação estética, produzindo um cinema que fosse ―novo‖.

Técnicas como usar a câmera na mão, cortes inesperados, uma representação mais viva

dos atores, muitas vezes falando com os olhos voltados ao expectador, interpelando-o.

Se essa linguagem não era atrativa ao grande público, justificava-se dizendo que ela era

importante para tirá-los de seu conforto. Segundo Ismail Xavier, os diretores

queriam uma dramaturgia liberta de clichês, impulsionadora da expressão autoral

sem as censuras do aparato industrial, estimuladora de uma consciência crítica em

face da experiência contemporânea. Sem descartar as emoções e o divertimento,

entendiam que as dimensões políticas das novas poéticas exigiam uma linguagem

que deveria ir além da transformação dos problemas em espetáculo17

.

Citaremos, brevemente, dois exemplos de como esses cineastas abordavam

questões em seus filmes, vistas por óticas do ideário comunista sobre a cultura popular.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1963, Glauber Rocha trata do povo sertanejo,

na figura do casal Rosa e Manoel. Com origem humilde e sem grandes perspectivas, o

marido é seduzido pelas promessas religiosas de um suposto santo e, depois, envolve-se

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na violência do cangaço, servindo a Corisco. Nenhuma dessas opções, todavia, são

sólidas o suficiente para livrar o casal de um fim desolador. A promessa de ―o sertão

virar mar‖ configura-se uma ilusão desse povo entregue a uma condição miserável.

Já em Garrincha, Alegria do Povo, também de 1963, dirigido por Joaquim Pedro

de Andrade, é o futebol o tema. Tendo como personagem o jogador do Botafogo, o

diretor desenvolve um verdadeiro ensaio sobre o futebol no Brasil. Ainda que exista

uma valorização da beleza do esporte praticado no país, de forma extremamente lúdica

na habilidade de Garrincha, sobressai uma abordagem pessimista. O esporte é tratado

como instrumento de políticos para ganhar a simpatia da população e como forma de

alienação desse povo, voltando suas infelicidades para a catarse do estádio.

Nos filmes mencionados, e em tantos outros, ficam evidentes temas como a

opressão e a desmobilização do proletariado. Os personagens estão entregues a destinos

infelizes, sem grandes perspectivas, enquanto alguns poucos, os coronéis do sertão ou

os oportunistas políticos, tem sua boa posição inabalada. Ou seja, é um cinema crítico

da inércia social. E esclarecer os expectadores sobre essa situação de ―exploração do

proletariado‖, não deixa de ser uma importante etapa para a revolução.

Percebemos, assim, como os cineastas também se apresentam como ―intelectuais

engajados‖. Nos seus filmes e declarações fica clara a filiação à ideologia comunista. A

militância política do grupo fica a cargo do ―fazer cinema‖, atividade dotada de grande

prestígio naquele momento. A própria busca estética desses autores é por uma estética

política.

Para o Cinema Novo, a exibição de seus filmes em cineclubes, cinemas e festivais

era o seu palanque. E preparar uma revolução, sua ambição.

* Mestrando em História pela UFMG/ Bolsista CapesOrientado pelo Prof. Dr. João Pinto Furtado

1 RODRIGUES, Helenice. ―O intelectual no ‗campo‘ cultural francês: do ‗caso Dreyfus‘ aos tempos

atuais‖. Revista Varia História, Belo Horizonte, vol. 21, nº 34, julho de 2005: 400. 2 SAID, Edward W.. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo:

Companhia das Letras, 2005: 33. 3 CHAUÍ, Marilena. ―O intelectual engajado: uma figura em extinção?‖ NOVAES, Adauto. O silêncio

dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006: 29.

4 ARONSON, Ronald. Camus e Sartre: o fim de uma amizade no pós-Guerra. Trad. Caio Liudvik. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2007: 94. 5 Apud: SIMONARD, Pedro. A geração do Cinema novo: Para uma antropologia do cinema. Rio de

Janeiro: Mauad X, 2006: 73. 6 CARVALHO, Maria do Socorro. ―Cinema novo Brasileiro‖ In: MASCARELLO, Fernando. História do

Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006: 290.

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7 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. Das Letras,

1995: 317. 8 VINCENT, Gerald. ―Ser Comunista? Uma maneira de ser‖. In: História da Vida Privada vol.5: da

Primeira Guerra a nossos dias. PROST, Antoine; VINCENT, Gerald. São Paulo: Companhia das Letras,

2003: 433. 9 Relato de Nelson Pereira dos Santos em RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da

revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000: 93. 10

GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical. São Paulo:

Editora UNESP, 1996: 76.

11 Ibidem, p.78

12 Apud: SARACENI, Paulo César. Por dentro do cinema novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1993: 101.

13 Ibidem: 107

14 GIDDENS, op. cit.: 78

15 RIDENTI, 2000: 91

16 SARACENI, op. cit.:118

17 XAVIER, Ismail. ―Cinema político e gêneros tradicionais: a força e os limites da matriz

melodramática‖ in Revista USP, nº 19, setembro – outubro - novembro 1993: 115-116.

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A atuação de João Batista da Costa na aplicação do Diretório no Rio de

Janeiro: interações entre a política indígena e a indigenista (1767-79)

Luís Rafael Araújo Corrêa1

RESUMO: A aplicação da política indigenista pombalina na América portuguesa foi

condicionada pelas especificidades locais e pela interação constante com a política

indígena, representada principalmente pelas lideranças indígenas. No Rio de Janeiro, a

atuação de João Batista da Costa, capitão-mor da aldeia de São Barnabé, é crucial a fim

de denotar a participação ativa dos índios na efetivação da política indigenista

pombalina e o avanço colonial sobre as aldeias, estimuladas pelos pressupostos

assimilacionistas do Diretório.

Palavras-chave: Política indigenista pombalina; Política indígena; Aldeias indígenas.

ABSTRACT: The application of Pombal's Indian policy in the Portuguese America

was conditioned by the local specificities and by the constant interaction with the

indigenous policy, represented mainly by indigenous chiefs. In Rio de Janeiro, the role

of João Batista da Costa, capitão-mor of the Indian village of São Barnabé, is crucial to

denote the active participation by indians in effectuation of Pombal's Indian Policy and

the colonial expansion in Indian villages, stimulated by the assimilationists rules of the

Diretório.

Key-words: Pombal‘s Indian policy; Indigenous policy; Indian villages.

A proposta do presente artigo direciona-se para a análise da aplicação da política

indigenista pombalina no Rio de Janeiro, que em grande parte foi condicionada pelas

especificidades locais e pela ativa participação dos índios aldeados. Para tanto,

focaremos a emblemática atuação de João Batista da Costa, capitão-mor da aldeia de

São Barnabé, a fim de denotar que os indígenas, interagiram a partir de seus próprios

interesses e motivações com as novas determinações indigenistas, incidindo, então,

sobre os rumos do Diretório na capitania em questão.

A Política Indigenista Pombalina

Durante muito tempo, a maior parte dos estudos sobre as mudanças introduzidas

pela política indigenista pombalina destacava particularmente o Grão-Pará e o

Maranhão. Isto se deve, em grande parte, ao fato dela ter sido construída e pensada para

tal região. Em meados do século XVIII, perante uma situação turbulenta herdada dos

últimos anos do reinado de D.João V, D. José I chega ao trono de Portugal colocando à

frente de seu ministério Sebastião José de Carvalho e Melo, que já nos primeiros anos

empreendeu um esforço de reorganização administrativa do império português. Tendo

seu irmão como governador do Grão-Pará e Maranhão, a região amazônica desde o

princípio foi alvo do interesse do futuro Marquês de Pombal. As pretensões do ministro

incluíam o estabelecimento de maior controle sobre a mesma, por razões estratégicas e

pela expectativa econômica; a abolição do poder das ordens religiosas, sobretudo em

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relação às populações indígenas locais; e a consolidação de fronteiras nesta área que

disputava com a Coroa espanhola. As palavras de ordem eram ocupar, povoar, controlar

e desenvolver2.

Como parte do projeto que se tinha para a região, diversas medidas seriam

formuladas pela Coroa em relação aos índios com vistas a alcançar os objetivos

previstos. No entanto, o contexto local e as demandas dos agentes sociais envolvidos

incidiriam sobre os rumos da política indigenista, que tomaria corpo definitivo na

legislação conhecida como Diretório. O Diretório, projetado inicialmente para o Estado

do Grão-Pará e Maranhão, conciliava em seus parágrafos a demanda dos colonos por

mão-de-obra e o interesse régio em converter os indígenas em agentes da colonização e

integrá-los a sociedade colonial. Várias mudanças previstas davam o tom dessa política

notadamente assimilacionista, havendo uma clara intenção de propiciar a

homogeneização cultural e de assimilar os indígenas de modo que, em um futuro não

muito distante, a integração dos mesmos chegasse a um nível que não fosse mais

possível distinguir índios e brancos3. Todavia, sem se resumir a efetivação do que

desejavam os agentes administrativos metropolitanos, a referida política, que não nasceu

pronta, foi construída e aplicada mediante as circunstâncias, aos acontecimentos e aos

interesses envolvidos4.

Posteriormente, por meio do alvará de 17 de agosto de 1758, as determinações do

Diretório foram estendidas para o estado do Brasil. Considerando a dinâmica de

aplicação da referida legislação em várias partes da América portuguesa, que em

algumas regiões motivou inclusive a criação de leis que adaptavam os parágrafos do

Diretório à realidade em questão, conclui-se que a dita implementação não se limitou a

uma mera transposição das medidas formuladas para a região amazônica. Ela foi, antes

de tudo, condicionada pelas especificidades locais, resultando, portanto, em

experiências que, mesmo não sendo completamente singulares, guardavam contornos

próprios5.

No Rio de Janeiro, diante da expulsão dos jesuítas e das novas determinações

indigenistas, diversas cartas régias foram enviadas com o intuito de instruir as

autoridades sobre como proceder em relação às aldeias. Em primeiro lugar,

determinava-se que as aldeias fossem convertidas em vilas ou freguesias. Nas mesmas

instruções, é perceptível também a preocupação constante em preservar o patrimônio

dos aldeamentos para os índios, já que, de acordo com elas, ―nas igrejas das missões é

tudo pertencente aos índios, e que no seu nome e a título de tutela é que se achavam na

mera administração deles religiosos da Companhia de Jesus‖6. Porém, apesar das

aldeias terem sido convertidas em freguesias, a aplicação do Diretório no Rio de Janeiro

transcorria com alguma lentidão. Em 28 de abril de 1759, o governador interino da

capitania, José Antônio Freire de Andrade, manifestava a sua intenção de efetivá-lo.

Mas, quanto a isso, muito pouco foi feito e, em 1761, o Conde de Bobadella ainda

discutia sobre a aplicação do Diretório em sua jurisdição7. A referida lentidão muito

provavelmente pode ser explicada pela ausência do referido governador, que rumou em

1752 em direção ao sul a fim de participar como comissário português da demarcação

dos limites da América meridional e só retornou definitivamente ao Rio de Janeiro em

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1122

1759. Mesmo após o seu retorno, as preocupações do Conde estiveram voltadas

principalmente para as ordens de Pombal em relação à defesa da cidade e para a

conservação das conquistas no extremo sul. Posteriormente, o Conde da Cunha, que

assumiu já no posto de Vice-rei, também teve uma administração especialmente voltada

para a defesa e a manutenção das fronteiras, deixando o tema em segundo plano.

Foi apenas no vice-reinado seguinte, o do Conde de Azambuja, que se verificou

uma maior preocupação em efetivar a política indigenista pombalina. Apesar de não ter

ocupado o cargo por muito tempo em virtude de sua saúde debilitada, o então Vice-rei

determinou que o capitão-mor da aldeia de São Barnabé, João Batista da Costa, fosse

responsável por ―reger e administrar debaixo de sua patente todas as aldeas desta

capitania‖, tendo a seu dispor ―em cada huma dellas todos os officiais de milicia q se

faziao necessarios assim para as guarnecerem e fortificarem como para acomodarem os

distúrbios q os Indios nellas fizessem‖8. Começava ali a participação do então capitão-

mor de São Barnabé na aplicação do Diretório na capitania.

A participação de João Batista da Costa na administração do Conde de

Azambuja

Antes de tudo, é fundamental trazer a tona uma importante questão: o que levou o

Conde de Azambuja a conferir tais responsabilidades a esse índio? Para respondê-la,

vale à pena considerar um fato que contribuiu decisivamente para a escolha de João

Batista da Costa como o encarregado do Vice-rei: a concessão do posto de capitão-mor

e de um soldo de 4 mil-réis para o mencionado indígena, dois anos antes da chegada do

Conde de Azambuja ao Rio de Janeiro. Quando estes foram concedidos pelo Conselho

Ultramarino, Costa, então sargento-mor, estava a dois anos na Corte em busca de seu

provimento no posto de capitão-mor – que estava vago – alegando que possuía dez anos

de serviços prestados sem qualquer ordenado. Tal agraciamento colocou Batista da

Costa em uma situação diferenciada ao retornar, já que sua posição havia sido

confirmada diretamente pelo Conselho e juntamente com isso lhe foi concedido o soldo.

Nesse sentido, é relevante lembrar que essa não era uma situação incomum no que diz

respeito aos indígenas inseridos à ordem colonial9. Como Carvalho Junior bem destaca,

a prática dos índios irem diretamente ao reino requisitar mercês, já verificada no século

XVII, possuía um significado especial para os mesmos, pois nas localidades tais

agraciamentos despendidos pelo centro monárquico eram percebidos como sinais de

distinção, tanto entre as autoridades locais quanto entre os próprios índios10

. Ao retornar

do reino, portanto, as referidas concessões a João Batista da Costa certamente

representavam prestígio e reconhecimento na sociedade local, tendo modificado

diretamente tanto a forma como o mesmo se via como a que os outros o viam. Uma boa

prova disso é que, mirando o mesmo reconhecimento social, lideranças de outras

aldeias, a partir do precedente aberto por Costa, solicitaram semelhantes mercês

utilizando o caso do capitão-mor de São Barnabé como um argumento a favor de suas

demandas.

Tendo isso em vista, o mais provável é que a escolha do Conde de Azambuja

tenha se dado em virtude da intenção do mesmo em encarregar alguém que gozasse de

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prestígio e de suficiente autoridade para mobilizar os índios das aldeias com vistas a

atender os interesses régios. Dentre esses interesses, inclui-se não só o de propiciar a

assimilação dos indígenas à sociedade colonial a partir da intensificação das relações e

dos contatos com os colonos, como também o de garantir mão-de-obra para o real

serviço. Desse modo, a fim de garantir o bom andamento das povoações indígenas –

que vivenciavam uma nova realidade desde a expulsão dos jesuítas e da promulgação do

Diretório – era crucial manter e reforçar a tradicional política de alianças com os índios

levada a cabo pela Coroa. Costa, que ocupava posição privilegiada decorrente da

concessão régia supracitada, certamente reunia tais quesitos em função dos longos anos

que exercia o posto de liderança em São Barnabé, o que influiu diretamente na sua

escolha.

Cabe ressaltar que esse não constituiu um caso singular no bojo do processo em

tela. Sobre isso, Ligio Maia destaca a participação ativa das chefias indígenas quanto à

aplicação da política indigenista pombalina em Pernambuco e suas anexas. Em sua tese,

ele dedica-se a delinear as concessões que o governador da dita capitania, Lobo da

Silva, fez às lideranças indígenas locais em uma reunião a fim de obter o apoio dos

mesmos para pôr em prática as novas determinações da Coroa. De acordo com a sua

perspectiva, o autor denota que tal reunião constituiu ―o ponto chave para a

compreensão da importância das lideranças indígenas na aplicação do diretório, pois

sem elas, o novo systema – como citavam os documentos coevos – era simplesmente

impraticável‖11

. Dessa maneira, como Maia também indica, é evidente, portanto, que a

colaboração de tais chefias era indispensável nesse contexto, tendo sido devidamente

compreendida pelas autoridades em diversas localidades da América portuguesa.

Assim, em um contexto em que os diretores ainda não tinham sido providenciados

para as aldeias, o capitão-mor de São Barnabé emergiu como uma figura importante

quanto à aplicação da política indigenista pombalina no Rio de Janeiro. E, de fato, ele

agiu nesse sentido. De acordo com várias certidões, Costa desempenhava o importante

serviço de ―aprontar Indios para o serviço de S. Magestade‖, de maneira que ia ―a todas

as aldeas desta capitania para visitar o estado e numerar os Indios dellas para quando for

necessário extrahir de cada huma os indios mais capazes para o dito serviço‖. Em um

dos documentos, o pároco da aldeia de São Francisco Xavier de Itaguaí confirma a

visita de Batista da Costa com esse propósito ―por ordem do Conde de Azambuja‖12

.

Mas, ao que parece, as visitas iam além do provimento de índios para o real serviço,

como bem destaca o padre da aldeia de Cabo Frio. O citado pároco informa que

veio o Capitao aos 20 de junho de 1766 e juntou todos os moradores aos 24 do

mesmo mes e os admoestou que vivessem como Deus mandava e que fossem

prontos para o real serviço cuidando juntamente no seo proprio aproveitamento

pellos achar geralmente destituidos de bens sem cuidarem em lavouras nem couza

alguma de que se pudessem sustentarem a si e as suas famillias13

.

O seu zelo no que tange a efetivação dos novos pressupostos indigenistas também

pode ser percebido em uma denúncia que fez em relação a José Dias Quaresma, capitão-

mor da Aldeia da Sagrada Família de Ipuca. Nessa denúncia, João Batista da Costa,

confirmando que o ―Conde Azambuja lhe ampliou mandando que o dito capitam mor

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corregesse todas as Aldeas desta capitania‖, delata que Quaresma é casado com uma

negra, fato que contrariava os princípios do Diretório14

. Enfim, ao que tudo indica, o

capitão-mor de São Barnabé foi não apenas incumbido da referida tarefa, mas também a

assumiu, sobretudo se levarmos em conta que a denúncia em tela foi feita pouca depois

da saída do Conde de Azambuja do posto de Vice-rei.

Para compreender o comprometimento de Costa, vale considerar a possibilidade

de inserção dos capitães-mores das aldeias indígenas na hierarquia social portuguesa a

partir do importante papel exercido pela Coroa como definidora de tal hierarquia. Isso

porque, à primeira vista, tais considerações podem parecer contraditórias quando damos

conta que estamos falando de uma sociedade caracterizada pela rígida ordenação social

e que era particularmente excludente em relação a determinados grupos: segundo a

cultura política do Antigo Regime português, havia barreiras quanto à mobilidade social

mediante as noções de pureza de sangue e defeito mecânico. Porém, tais impedimentos,

como destacou Raminelli, tenderam a ser relativizados de acordo com o contexto.

Quanto a isso, como lembra Monteiro, embora o cume da pirâmide hierárquica tenha se

mantido rigidamente encerrado, a mobilidade social em relação aos graus menores da

nobreza eram acessíveis. Segundo o próprio, apesar da ascensão social à alta nobreza se

fazer pelo meio da riqueza e pelo modo de vida, as distinções intermediárias poderiam

ser alcançadas através de serviços prestados ao rei, reforçando, portanto, a posição da

monarquia na regulação da mobilidade. Além disso, Monteiro enfatiza que a legislação

portuguesa sempre destinou às lideranças locais os principais postos da hierarquia local.

Dessa forma, as chefias indígenas, que desempenhavam a importante função de

intermediários, acabavam por se inserir na hierarquia social dado aos serviços que

prestavam em prol do empreendimento colonial e do prestígio que possuíam junto aos

seus liderados15

. Justamente por isso, ―a produção de lealdade em terras tão remotas era

mais relevante do que a classificação social do próprio reino‖, o que fazia com que

regras rigorosas como o defeito mecânico e a pureza de sangue se flexibilizassem no

ultramar16

. Portanto, se por um lado havia o interesse do Vice-rei em garantir o bom

andamento da aplicação do Diretório ao conferir responsabilidades a um índio que

possuía prestígio em relação aos demais, por outro havia o interesse de Costa em

alcançar uma posição mais favorável no bojo da hierarquia social.

Assim, nesses primeiros passos do Diretório no Rio de Janeiro, a sua aplicação,

longe de uma simples imposição, foi marcada pela constante interação com a política

indígena, representada então por João Batista da Costa.

O Diretório na administração do Marquês de Lavradio

Em 1769, quando o Marquês de Lavradio assumiu o vice-reinado, a participação

de Costa nos rumos da política indigenista declinou. Preocupado em fazer valer

sistematicamente os pressupostos do Diretório em sua jurisdição – tarefa que

considerava ―bastante árdua‖, mas que estava entre ―os negocios bastantemente

importantes‖ – o Marquês empreendeu uma série de mudanças quanto ao tema17

. A sua

proposta, ao invés de centralizar as responsabilidades em alguém, pautou-se na

interação com as demais lideranças das aldeias, as quais foram reforçadas, e na

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designação de diretores – incumbidos de civilizar os índios – para algumas delas. Com

isso, a posição de destaque usufruída por Batista da Costa na administração do Conde

de Azambuja diminuiu sensivelmente.

A propósito, se a autoridade de Costa em relação aos demais aldeamentos deixou

de existir em virtude dessa nova orientação, o dito capitão-mor viu sua influência ser

ameaçada também no interior de sua própria comunidade em virtude das mudanças

empreendidas pelo Marquês de Lavradio. Quanto a isso, é preciso ressaltar a atenção

especial dada pelo então Vice-rei à aldeia de São Barnabé, que se tornou emblemática

dada a sua singularidade no contexto da capitania do Rio de Janeiro por ter sido a única

a ser transformada em vila, em 1772, com o nome de Vila Nova de São José D‘El Rei.

Além disso, ela foi a primeira a ter sido provida de um diretor encarregado de reger a

povoação, fato que geraria consideráveis conflitos com João Batista da Costa no que

tange ao exercício da autoridade na comunidade.

Todavia, é preciso salientar que o esforço do Marquês em aplicar o Diretório teve

como reflexo não apenas a deterioração do poder político do capitão-mor de São

Barnabé, como também o avanço colonial sobre as terras da aldeia. No bojo dos

propósitos civilizacionais e assimilacionistas presentes no Diretório, Lavradio

responsabilizou-se por ―muitas índias que estavam em bastante perigo de se perderem,

mandando-as criar, e educar nesta cidade, a fim que possam ter mais sentimentos de

pureza, e honestidade‖, tendo ―já casado seis ou sete com homens brancos‖18

. Mandou

também que vários índios de São Barnabé aprendessem ofícios na cidade do Rio de

janeiro e enviou três a um colégio para serem devidamente educados. Mas, mais do que

isso, ele abriu espaço para que os colonos, agora incentivados a viver no interior das

aldeias, avançassem sobre as terras das mesmas.

Diante dessa situação conturbada, Batista da Costa não hesitou em mobilizar os

índios da aldeia em uma revolta contra as usurpações das terras coletivas. Ciente da

revolta, o Vice-rei não mediu esforços para pacificá-la. Ordenou a Feliciano Joaquim de

Sousa, o primeiro diretor nomeado para tal povoação, que não tivesse ―procedimentos

forte com nenhum deles, ainda dos que quiserem ir‖, procedendo ―com muita brandura,

e aqueles que forem ficando lhes dará todas as liberdades que eles por ora quiserem,

fazendo-lhes em tudo a vontade‖, de modo que se ―vejam tão abundantes, e satisfeitos

que eles possam ir conhecendo pouco a pouco a grande felicidade que têm tido‖. Como

parte da pacificação, enviou também uma patente ao capitão-mor e mandou o Diretor

esperançar aos índios de que ele iria providenciar para ―reparti-lhes as terras, e dar-lhes

instrumentos que as cultivem‖, além de determinar que fosse realizada a medição das

terras do aldeamento com o objetivo de preservá-las19

. As providências, apesar de terem

levado ao fim da revolta, não deixaram os índios satisfeitos, tendo em vista que,

segundo Costa, as medidas do Marquês de Lavradio eram não apenas onerosas, já que o

que era gasto com as medições saía dos rendimentos da aldeia, como também

ineficazes, pois não solucionava o problema20

. Mesmo assim, a consideração das

demandas dos índios pelo Vice-rei, que tentou uma saída para o problema, denota bem a

contínua interação entre a política indígena e a indigenista, revelando que Costa, embora

enfraquecido, ainda era uma figura política importante.

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Essa importância pode ser novamente atestada em 1779, quando as conturbações

vivenciadas pela recém-criada vila atingiram o seu ápice. Capitalizando a insatisfação

dos índios aldeados com as usurpações cometidas pelos colonos em suas terras e com a

série de desmandos cometidos pelos seguidos diretores da povoação, João Batista da

Costa redige um requerimento endereçado à rainha D. Maria I no qual pede

providências imediatas para os agravos sofridos pelos indígenas, em uma clara

apropriação da cultura política letrada e institucionalizada ibérica. De acordo com o seu

relato, os seguidos regentes que passaram pela povoação foram responsáveis apenas por

se aproveitarem do trabalho dos índios e dos rendimentos da mesma, cometendo

diversos abusos e submetendo os indígenas a inúmeras privações. Diante de

administrações tão despóticas, o capitão-mor em questão destaca as fugas de diversos

índios como uma alternativa a essa situação, justificando: ―huma liberdade constrangida

he como o ar emserrado nas estreitas concavidades da terra, que com repetidos aballos

pretende solicitar a fuga‖21

. Mais do que isso, Costa presta-se a criticar a regência dos

diretores, seguindo o argumento de que os mesmos administravam a povoação a partir

de seus interesses particulares:

Nao servem os Directores nesta Aldea se nao destruhirem e fazerem todo o genero

de negocio para conveniencia sua, e utilizando-se dos trabalhos dos Indios e

tambem do dinheiro dos rendimentos das terras da dita Aldea, pois rende dois mil

cruzados cada hum anno pouco mais ou menos que com certeza nao sei dizer a

VRM , pelos Escrivaes da Ouvedoria ser o que recebia o produto dos rendimentos

quando o Doutor Ouvidor da Comarca era Juiz Conservador da Aldea e agora os

Directores sao os q dao gasto do dinheiro e os Indios nao se utilizao22

.

Na sua perspectiva, a presença dos diretores – que ―so servirao para destruhir a

Aldea e amotinarem os Índios‖, bem como utilizar ―do trabalho deles, como se focem

seus escravos, maltratando-os pondo-os em fuga e emriquecendo com os lucros e com

os rendimentos da Aldea sem aumento para ella‖ – era desnecessária, tendo em vista

que os ditos regentes em nada contribuiriam para uma povoação que era desprovida de

grandes atrativos:

Se os Excelentissimos Condes de Bobadella e Azambuja quando governarao esta

Cidade vicem que era necessario Derector na Aldea o teriao posto , pois por

saberem que nella nunca houverao nem ha fabricas de qualidade alguma desde o

seu principio, porque os Indios da dita Aldea se ocupao na Cidade do Real serviço

e outros com suas mulheres em lavouras para os seus sustentos, tambem em

fazerem balaios , esteiras e acentos para cadeiras para com o produto se vestirem e

nao nessecitao para esta execução de direcção nem de Director porque sabem

fazer23

.

A essas, somam-se ainda as várias queixas que novamente remetiam às investidas

dos colonos sobre as terras da aldeia, problema recorrente a partir das mudanças

introduzidas pelo Diretório. Enfim, através das reivindicações de João Batista da Costa,

podemos perceber, para além das fugas e da revolta, a postura crítica a respeito de

aspectos importantes do Diretório a partir da ótica indígena. Não estamos querendo

dizer que o capitão-mor em tela tenha sido um opositor da política em questão, até

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porque, como vimos anteriormente, ele foi um significativo colaborador no que tange a

aplicação da mesma durante a administração do Conde de Azambuja. Mas sim que

Costa, com o apoio de seus liderados, apontava conscientemente para os desvios

decorrentes da aplicação do Diretório de modo a conseguir, através da intervenção

régia, solução para os seus problemas.

E, de fato, a Coroa interviu a favor dos índios. No parecer do Conselho

Ultramarino, determinou-se que fosse mandado ―devassar os excessos de que neste

papel se acuzavao os dous Directores desta Aldea‖ e foi sugerido reparações para os

agravos que a aldeia sofria. Mas, mais do que isso, o parecer corroborava a posição

defendida por Costa a respeito da inutilidade dos diretores. O documento destaca que a

presença de tais diretores ―nao convem mais nesta e nas mais Aldeas como tenho por

certo, tendo visto as queixas que se fazem dos do Pará e Maranhão, abula este

pernicioso official, creado em bem e convertido sempre em dano dos Índios‖24

. Ao fim,

a ação dos índios obteve sucesso e o diretor foi substituído.

Dessa maneira, o resultado do requerimento de Costa que capitalizava a

insatisfação dos aldeados, bem como a atuação do dito capitão-mor ao longo de todo o

processo em questão, demonstram de forma emblemática que os índios, ao invés de

meros objetos da política indigenista pombalina, tiveram participação ativa na mesma,

incidindo, inclusive, sobre os seus rumos. Fica evidente, então, que a aplicação do

Diretório, menos do que uma simples imposição, foi o produto da interação constante

entre a política indigenista e a indígena.

1 Mestrando em História pela UFF, sob a orientação de Maria Regina Celestino de Almeida.

[email protected] Tel.: 26958715. Endereço: Rua Carandá, 64 / Jardim Tropical/ Nova Iguaçu/

26011-130. 2 Sobre isso, ver: COELHO, Mauro César. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência

portuguesa na América: o caso do Diretório dos Índios. Tese de Doutorado: Usp, 2005. 3 ―Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade

não mandar o contrário‖. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de

―civilização‖ no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. Apêndice. 4 É fundamental diferenciar ―projeto‖ colonial – o que pretendiam os agentes administrativos – de

―processo‖, ou seja, como se deu na prática tais determinações a partir da dinâmica entre os vários

agentes sociais envolvidos. 5 Sobre a aplicação do Diretório em outras regiões, ver, por exemplo: GARCIA, Elisa Frühauf. As

diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América

portuguesa. Tese de Doutorado: UFF, 2007; LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de

índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado: UFPE,

2005. 6 Carta régia ao bispo do Rio de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx.63, Docs.63.

7 Carta de José Antônio Freire de Andrade ao rei. AHU. RJ Avulsos, Cx.57, Docs.45,46; Ofício do

governador conde de Bobadela a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1761. AHU. RJ Avulsos, Cx.

61, D. 5816. 8 Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.

9 Requerimento de João Batista da Costa, ao rei D. José I. 1765. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 81, D. 4.

10 CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Índios cristãos. A conversão dos gentios na Amazônia

Portuguesa (1653-1769). Tese de Doutorado: UNICAMP, 2005 11

MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia à vila de índios: vassalagem e identidade

no Ceará colonial – século XVIII. Tese de Doutorado: UFF, 2010. p.271. 12

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 13

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 14

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.

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1128

15

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites sociais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo

Regime. Análise Social, vol. XXXII, n.º 141, 1997. 16

RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo:

Alameda, 2008. p.53. 17

LAVRADIO, Marquês do. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: Secretaria de Estado

de Educação e Cultura. Instituto Estadual do Livro, 1978. p.95. 18

LAVRADIO, Marquês do. Op. Cit. p.117. 19

LAVRADIO, Marquês do. Op. Cit. p.117. 20

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 21

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 22

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 23

Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 24

Consulta do Conselho Ultramarino sobre a representação de João batista da Costa. AHU. Rio de

Janeiro, Cx. 122, D. 33.

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1129

O movimento jesuíta em direção ao Oriente

Luiz Felipe Urbieta Rego*1

Resumo: O presente estudo procura analisar o movimento jesuíta em seu esforço de

entendimento e apropriação de culturas orientais. Ele irá focar-senosprimeiros contatos

e no processo de estabelecimento das diretrizes básicas para o trabalho missionário.

Esse contexto será abordado estudando o vinculo simbiótico entre a Companhia de

Jesus e a Coroa de Portugal. Busca com isso expor a Companhia de Jesus como uma

instituição que para além de seu fim religioso criou relatos históricos ricos em análises

culturais e etnográficas.

Palavras-Chaves: Cultura. Jesuíta. Oriente.

Abstract: This essay will study the process of understanding of the Oriental cultures by

the Jesuits in the XVI century. We will conduct an inquiry in the fields of cultural

history and using the works of various Jesuit authors as basis for the study of

development of the relations between East and West. In this process the Portuguese

Crow and the Society of Jesus developed a symbiotic bond that defined the forms that

foreign people were treated and described in the Jesuits texts in a way that never had

been done before in the Occident.

Key words: Jesuits. Orient. Culture.

O século XVI foi o período que englobou o nascimento explosivo de novas visões

de mundo engendradas pelas Grandes Navegações, os Descobrimentos, a Reforma

Protestante e pelo Renascimento. Essa nova produção de pensares questionava

profundamente os valores tradicionais pregados pelo dogma religioso. Entretanto foram

os mesmos religiosos católicos que, sendo detentores dos saberes clássicos de Roma e

Grécia, começaram a questionar sua relação com o passado(1), inaugurando a polemica

renascentista dos antigos contra os modernos. Este debate é mais bem ilustrado através

do jogo de metáforas produzidas ao longo desse período: a imagem dos homens daquela

contemporaneidade como anões em ombros de gigantes fora gradativamente sendo

substituída pela ideia de uma luz do passado que retornava expulsando as trevas do

presente(2). Observamos nessa transição o surgimento de um sentimento de autonomia

e valorização do homem que em sua apropriação e adaptação dos valores antigos

realizava um feito legitimamente consciente, autônomo e digno de orgulho próprio. As

descobertas de novas terras eram fruto da dedicação e esforço racional dos seres

humanos para compreender a realidade a sua volta em uma dimensão que não fosse

1 Mestrando em Historia Social da Cultura pela PUC-Rio. Bolsista Capes.

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1130

mais atrelada exclusivamente a uma perspectiva religiosa. O humanismo desponta nesse

contexto como um elemento fundamental para elaboração uma visão positiva do ser

humano e do individuo.

Segundo São Tomás de Aquino, o homem era incapaz de mudar sua condição, a

não ser através da graça divina. Entretanto, um dos principais autores humanistas do

XVI, Erasmo de Roterdam (1546-1536), postulava que o ser humano possuía uma

habilidade inerente de mudar a si próprio. Essa ideia da capacidade de modelar o

espirito humano fora desenvolvida por outros autores como Maquiavel, Thomas More e

Alberti exaltando com isso o fulgor criativo e a capacidade de adaptação humana.

Moldar a consciência humana não era totalmente ausente na Escolástica de

Aquino, mas a adaptação encontrava-se atrelada a subjugação ao dogma e a

disciplinarização do espirito através de práticas ascéticas. Este é o argumentopregado

pelo fundador da Companhia de Jesus,Inácio de Loyola, em sua obra fundamental: os

Exercícios Espirituais (3).

Loyola e Erasmo escreviam,portanto, segundo os mesmos modelos e influencias,

mas com objetivos divergentes: enquanto Erasmo pregava uma filosofia cristã que

rejeitava uma disciplina opressora Loyola defendia um retorno ao dogma católico

pautado por uma rígida disciplina interiorizante, a qual se realizava através da escrita e

leitura metódica de obras edificantes para o trabalho apostólico. Observamos aqui como

tanto a intelectualidade humanista quanto jesuíta operava em um solo comum,

apropriando-se de conceitos clássicos segundo seus interesses e ideais próprios.

Foram esses elementos positivadores da ação humana que em muitos aspectos

incentivaram a atitude mental necessária para uma empresa como as Grandes

Navegações. Ela foi apoiada tanto por razões pragmáticas materialistas como de um

cunho ideológico que ressoa desde as Cruzadas do XV. O movimento cruzadista

desempenhou um papel fundamental no processo de construção da identidade

portuguesa e espanhola, criando a chamada identidade ibérica. A expulsão das

influencias árabes da península ibérica e o posterior esforço dos portugueses em se

libertar do monopólio comercial das cidades italianas e em se estabelecer como um dos

primeiros estados monárquicos absolutistas, fazendo questão do aval da Igreja Católica,

demonstra as tensões fundadoras da modernidade ocidental.

A percepção dessas tensões foi percebida no século XVII, quando os homens

sentiram profundamente os contrastes entre ações e intenções humanas. Ao mesmo

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tempo em que eram conscientes de sua capacidade criativa e destrutiva eles também se

conscientizavam de sua efemeridade e insignificância. Os europeus desenvolveram um

senso dramático marcado pela conflitualidade, um dos elementos definidores da

sensibilidade barroca. Conforme comenta Rosario Villari:

―De facto, o aspecto peculiar da conflitualidade barroca reside menos no

contraste entre indivíduos diferentes do que na existência de

comportamentos aparentemente incompatíveis ou nitidamente

contraditórios no seio do mesmo individuo. A convivência entre

tradicionalismo e busca pela novidade, de conservadorismo e rebelião, de

amorà verdade e culto da dissimulação, de prudência e loucura. De

sensualidade e misticismo, de superstição e racionalidade, de austeridade e

―consumismo‖, de afirmação do direito natural e de exaltação dopoder

absoluto, è um fenômeno de que pode se encontrar inúmeros exemplos na

cultura e na realidade do mundo barroco. ‖(4)

Durante muito tempo criou-se uma imagem negativa de decadência que o próprio

barroco produzira de si mesmo. Ela fora admitida por seus leitores posteriores como

Rouland Mousnier, Pierre Chaunu e José Antonio Maraval.

Um dos aspectos mais marcantes da relação dos séculos XVI e XVII é, portanto, o

processo de articulação das concepções epocais como um elemento de produção de

saber vital para a própria definição da identidade dos homens do seu tempo. Fora no

século XVII que surgiu uma concepção tripartida de tempo histórico organizado

cronologicamente(5). Com isso colocava-se em xeque o paradigma do tempo

predefinido biblicamente e surgiu a cisão entre Modernos e Antigos.

Isso é de extrema importância para o nosso estudo, pois o debate sobre a

separação do tempo bíblico e histórico era um dos centros da disputa entre Protestantes

e Católicos. E ao mesmo tempo a Contra Reforma e, principalmente, a Companhia de

Jesus se esforçavam para inserir aalteridadedos povos ameríndios e asiáticos dentro da

conformidade bíblica.

A produção jesuítica surge nesse contexto tanto em seu caráter de documentação

provida nos processos inquisitoriais, como as correspondências jesuíticas e os relatos

públicos das atividades missionarias no Novo Mundo e Oriente. Estas obras tinham

funções diversas. Elas divulgavam o trabalho missionário dos jesuítas em locais

distantes, como as Américas e o Oriente, e com isso realizavam os primeiros relatos

etnográficos e antropológicos da modernidade. Mais do que estarem escrevendo a

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historia da Companhia de Jesus, os seus missionários acreditavamestar escrevendo o

próprio processo civilizacional.

A obra Expeditione Apud Sinas do jesuíta Nicolas Trigault(1577-1628) desponta

nesse contexto enquanto reveladora da ideologia missionaria jesuíta e da forma com esta

percebia e enquadrava a alteridade. Ela fora escrita com o objetivo de narrar toda a

trajetória da Companhia de Jesus no Oriente.O estudo da historia desta obra, feita a

partir da adaptação dos escritos de um dos missionários jesuítas mais eminentes na

China, Matteo Ricci(1552-1610), é também reveladora das complexas interações dos

jesuítas com as escalas local, regional e global de poder.

Destaca-se aqui que a obra de Trigault tinha em um de seus principais argumentos

justamente combater opiniões e ideias distorcidas que vinham sendo divulgadas a

respeito da China e do trabalho da Companhia de Jesus no Oriente (6). Em paralelo ele

também testemunha debates e conflitos dentro da administração interna do Império

Português.Embora sua obra esteja focada no aspecto religioso elaé um testemunho dos

primeiros contatos entre Ocidente e Oriente na modernidade.

Ao pensar nos jesuítas somos imediatamente levados para a dimensão religiosa.

Mas embora a religião desempenhasse um papel central para os homens daqueles

tempos, percebemos na própria natureza flexível dessa ordem missionaria, a ascensão

de uma atitude racional e questionadora dos modelos religiosos vigentes. O sentido de

emergência da necessidade de expandir a ação apostólica para além da Europa tem

razões tanto pragmáticas quantodevocionais de não apenas garantir o monopólio

religioso da igreja Católica como também ordenar e fiscalizar o processo civilizatório.

Um dos principais argumentos que procuramos defender nesta obra é a concepção

da Companhia de Jesus enquanto uma instituição que se definira através da articulação

de sua produção intelectual com sua ação devocional. No processo de seu

estabelecimento ela veio a se relacionar ao projeto imperialista português não apenas

devido à proeminência de Coroa Lusa na empresa marítima, mas também devido

àprofunda devoção portuguesa. Portugal e a Companhia de Jesus partilhavam dessa

forma um vínculo simbiótico (7).Masenquanto instituições independentespossuíam

agendas e ideologias diversas ainda que partilhassem de características essenciais como

seu desejo de expansão e sua característica adaptativa ao contexto local.

A experiência missionaria e colonial na Índia, especificamente em Goa,

influenciou profundamente a atitude missionaria jesuíta, sendo também reveladora da

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natureza do vínculo da Companhia com a Coroa. Foi em Goaque os métodos de

conversão jesuítas foram os mais polêmicos devido às formas de imposição da religião

católica aos nativos.

Os jesuítas muitas vezes obrigavam os nativos hindus a comerem carne de vaca,

tornando-os párias para sua própria sociedade, além de se apossarem de crianças órfãs

de pai e mãe, mesmo quando estas tinham outros familiares dispostos a cria-las (8).

Essas atitudes geraram desavenças com o próprio governo colonial luso, que precisava

da cooperação dos nativos para administrar a produção colonial. Issoobrigou os jesuítas

a reverem suas práticas de evangelização. Passado um breve intervalo temporal o

Império Português havia consolidado suas posições no Oriente e abandonara o espirito

conquistador característico da primeira metade do XVI para adotar uma postura

defensiva, de manutenção dos territórios conquistados(9).

A empresa jesuíta no Oriente tem como marco inicial a chegada de Francisco

Xavier no Japão em 1549 e sua posterior tentativa de adentrar a China em 1552.

Trigault relata esse episodio como um resultado da experiência missionaria de Xavier

no Japão:

―While Xavier was working among the idol-worshippers of Japan, he

observed that whenever they were hard pressed in an argument, they

always had recourse to the authority of the Chinese. This was quite in

keeping with the fact that they also deferred to the wisdom of the Chinese

in questions pertaining to religious worship and in matters of public

administration. Whence it happened that they commonly asserted, that if

the Christian religion was really the one true religion, it surely would have

been known to the intelligent Chinese and also accepted by them.

Whereupon Xavier decided that he must visit the Chinese as soon as

possible and convert them from their superstitious beliefs. With that done,

he could more easily win over the Japanese, with the Gospel brought to

them from China.‖(10)

A autoridade teológica dos chineses é apresentada como justificativa que leva

Xaviera iniciar sua proposta missionária para a China. A missão japonesa iniciada por

Xavier fora transmitida desde o seu início como um sucesso,resultado das semelhanças

superficiais entre budismo e cristianismo que elevaram as expectativas de Xavier e

produziram desentendimentos de ambos os lados. Xavier acreditava que se convencesse

os chineses que o Cristianismo era a única religião verdadeira ele conseguiria converter

mais facilmente os japoneses. Foi no Japão que os jesuítas começaram a formar as

primeiras concepções da China enquanto um elemento referencial no microcosmo

asiático. Essa crença se manteve forte até a chegada de Ricci, que também acreditava

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que mesmo o menor progresso na China seria benéfico para missão asiática como um

todo.

Em sua empreitada para a China Xavier foi barrado pelo Governador Geral de

Malaca, Alvares Taidio. A principal causa atribuída a essa atitude era o temor do

Governador de uma represália dos chineses, que proibiam terminantemente qualquer

entrada nos portos continentais sem aviso e autorização prévia.

Xavier tenta convencer o Governador de Malaca utilizando todos os seus contatos

na burocracia administrativa colonial e também na estrutura eclesiástica local. Ele

consegue através deles uma carta do Rei de Portugal autorizando-o explicitamentea

realizar a viagem para China:

―Finally, Francesco Alvares, (…), went personally to the Governor

with letters from the King of Portugal, in which the Sovereign

asserted that when he sent Xavier to India his intention was that he

should preach the Gospel to the entire Orient. Together with these

letters he also produced the decree of the Viceroy, making it a crime

against the Crown for anyone wilfully to impede the legation to

China. When Taidio heard these documents read, in presence of a

numerous gathering, he jumped up from his chair, stamped his foot

in anger and exclaimed, "What interest have I in decrees of the

Viceroy? I know it is for the King's best interests that this expedition

should not be undertaken." ‖(11).

O Governador Geral questionou mesmo um decreto real que colocava como um

crime contra a Coroa qualquer impedimento à expedição chinesa. Tal atitude reflete a

particularidade do imperialismo português cuja autoridade do Rei se esvaia

proporcionalmente a distancia e complexidade administrativa das áreas ocupadas em

nome do Império. Xavier ainda realiza uma ultima tentativa religiosa ameaçando

excomungar Alvares Taidio. Aautoridade eclesiástica foraignorada e o Governador

aparentemente não temia a punição divina ou mesmo da própria Coroa.

O fim desse imbróglio termina com o Governador Geral sendo não apenas preso,

acusado de vários crimes, além do de difamar Xavier, morrendo na prisão leproso e

pobre (12). O terrível fim desteoficial português, independente de poder ser confirmado

ou não, demonstra o caráter exemplar das obras jesuítas. Elas estavam imbuídas de uma

função evangelizadora que sacraliza a figura dos jesuítas e os coloca como vigias do Rei

e fiscais da manutenção dos costumes católicos entre os portugueses.

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Para entender esse entrelaçamento metodológico presente na missionação chinesa

e japonesa analisamos a obra ―Apologia em la qual se responde a diversas calumnias

que se escrivó contra los Padres da Compañia de Japón y China‖ (12) do então padre

visitador Alessandro Valignano (1539-1606). O cargo de padre visitador era uma das

funções mais ilustrativas da mobilidade dos jesuítas. Como seu nome sugere esses

jesuítas tinham não apenas a função de visitar as diversas missões espalhadas pelo

globo, como também realizar o trabalho de divulgar para a Santa Sé e Europa sua

atividade missionaria sob uma luz positiva, buscando com isso obter donativos para

custear os gastos da Companhia. Seguido do cargo de Geral da Companhia esse era um

dos cargos de maior prestigio e autoridade dentro da ordem. Nicolas Trigault também

exercera essa função. E fora Valignano que nomeara Matteo Ricci como Superior da

MissãoChinesa em 1597(13).

A obra de Valignano fora escrita entre 1597 e 1598, perto dos anos finais de sua

função como padre visitador da Companhia de Jesus (1573 a 1606). A Apologia fora um

texto concebido para ser direcionadoexclusivamente para o meio eclesiástico, sendo que

o próprio autor declara que tal missiva não deveria ser publicada para não revelar os

conflitos religiosos internos do Catolicismo no Oriente(14).

Durante esse período ele visitara as missões de Macau, Goa e Japão. O contexto

queo levara a escrever seu relato fora rebater as críticas feitas pelos frades franciscanos

quanto à exclusividade missionaria dos jesuítas na China e Japão. Isso somado a extensa

propaganda feita pelos franciscanos do martírio de um dos seus em território japonês em

1597, e da tensão que subjazia na região devido à invasão japonesa na Coreia em 1592,

levaram a Igreja de Manila, nas Filipinas, centro da Coroa Espanhola no Oriente, a

incitar os franciscanos contra os jesuítas devido aos seus interesses geopolíticos. A

Coroa Espanhola desejava adentrar no rico mercado chinês monopolizado por Portugal

através de Macau. E para isso patrocinava a empresa missionaria franciscana no Oriente

cujo centro estava em Manila, nas Filipinas.

A questão central que estava em jogo nesse debate entre jesuítas e franciscanos

era a legitimidade da Santa Sé em conceder direitos seculares às coroas cristãs da

Europa sobrereinos gentios infiéis. Valignano vai rebater os argumentos franciscanos

buscando defender pragmaticamente a exclusividade jesuíta e o domínio lusitano

centrado na cidade Macau. Em sua Apologia ele faz questão de destacar o aspecto

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espiritual do poder papal, separando assim poder secular de poder religioso para refutar

a perspectiva franciscana.

O pensamento missionário de Valignano e, por consequência da Companhia de

Jesus, via a maneira de realizar a atividade apostólica de uma forma diametralmente

oposta da concebida pelos franciscanos. Enquanto estes viam o Japão enquanto um

território a ser conquistado(15) para garantir o avanço do cristianismo na Ásia,

Valignano partilha da postura concessiva e, até mesmo em certo ponto condescendente,

de respeitar os costumes locais. Dessa forma ele negava a imposição do evangelho pela

força, algo comprovadamente prejudicial conforme fora observado na experiência

indiana. Procurava então compatibilizar a atividade missionaria de acordo com a

especifidade daqueles a quem desejava converter. Os franciscanos , segundo ele,

cometiam o erro de ignorar a complexidade do contexto em que estavam se inserindo,

buscando impor formas religiosas que não eram aprovadas ou compreendidas pelos

nativos.

O trabalho missionário no Japão estabeleceu as bases metodológicas a serem

aplicados pelos jesuítas em todo Sudeste Asiático. Observamos no modelo jesuíta

aplicado no Japão as sementes do método empreendido por Ricci e Trigault na China. E

esta metodologia continha em si um elemento reveladorde uma atitude mental inédita: a

valorização da experiência empírica em detrimento da tradição.

Os jesuítas não apenas seguiramas rotas coloniais lusas, mas de fato como

podemos observar sua presençacontribuiu ao longo do tempo para expansão,

estabilização e, às vezes,paradoxalmente, para a desestabilização (como fora o casodas

tensões experimentadas na Índia e Brasil) do poder português em suas áreas coloniais.

A ausência de estudos de história cultural sobre a China dentro do cenário

acadêmico nacional mobilizou-me a pensar em alternativas que ampliem esse horizonte,

para possibilitar comparações entre estruturas sociais que produzam novas perspectivas

para compreensão do processo de construção da identidade e alteridade dentro do

diálogo cultural. A cultura enquanto elemento dotado de uma estrutura discursiva

permitea análise dos processos interativos no encontro dos povos ao longo da historia

(16).

O que eu procuro com minha pesquisa é iniciar uma reflexão sobre o diálogo

cultural usando textos dos primeiros jesuítas na China. Para além de sua dimensão

religiosa, tais escritos demonstram um dos muitos processos de intermediação entre

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Razão e Religião. Essa divisão categórica é apenas o final de um longo processo mental

iniciado pelo pensamento ocidental. O que o historiador procurafazer com os objetos

indiciários desse movimento é reconstituir os passos que levaram a esse resultado (17).

E uma das formas de se fazê-lo é realizando uma comparação etnohistorica dos

resultados de encontros de diferentes civilizações em diferentes tempos.

NOTAS

1- RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. A formação do mundo

moderno/Antonio Edmilson M. Rodrigues, Francisco José Calazans Falcon. -2 ed.- Rio

de Janeiro: Elsevier,2006. Capitulo3p.69.

2- Publicado oficialmente em 1548 esta obra já era bastante difundida no circulo

eclesiástico dos jesuítas desde antes mesmo a fundação da ordem IN: BANGERT,

William. História da Companhia de Jesus. Porto: Livraria A. I; São Paulo: Loyola,

1985.

3- VILLARI, Rosario. O homem barroco. Lisboa, Presença: 1995. Introdução p.9.

4- Rodrigues, Antonio Edmilson Martins. A formação do mundo moderno/Antonio

Edmilson M. Rodrigues, Francisco José Calazans Falcon. -2 ed.- Rio de Janeiro:

Elsevier,2006. Capitulo 1 p.1.

5- Trigault, Nicolas, S.J. China in the Sixteenth Century: The Journals of Mathew

Ricci:1583-1610.Trad. Louis J. Gallagher, S.J. New York, Random House ,1953.

Preface by Nicolas Trigault pp.13 - 14.

6- Fernandes, Eunicia Barros Barcelos; MATTOS, Ilmar Rohloff de. Futuros

outros: homens e espaços: os aldeamentos jesuíticos e a colonização na América

portuguesa. 2001. 227 p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Curso

de Pós-Graduação em História, Niterói, RJ, 2001.

7- BOXER, Charles. O império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1969.

8- Idem, p.144.

9- TRIGAULT,Nicolas, S.J. China in the Sixteenth Century: The Journals of

Mathew Ricci:1583-1610.Trad. Louis J. Gallagher, S.J. New York, Random House,

1953. P.117.

10- Idem, p120.

11- Ibidem, p.121.

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12- Este documento foi analisado através do estudo de: Correia , Pedro Lage Reis .A

concepção de missionação na Apologia de Valignano: estudo sobre a presença jesuíta

e franciscana no Japão (1587-1597).Lisboa : Centro cientifico e cultural de Macau,

2008.

13- Boxer, C.R.The Christian Century in Japan, Berkeley: University of California

Press, 1951

14- Correia, Pedro Lage Reis. A concepção de missionação na Apologia de

Valignano: estudo sobre a presença jesuíta e franciscana no Japão (1587-

1597).Lisboa : Centro cientifico e cultural de Macau, 2008. P.178.

15- Esta perspectiva de conquistar em nome da cristandade não era um ponto

passivo comum a todos jesuítas,existindo inclusive jesuítas de origem portuguesa que

consideravam viável ver os cristãos japoneses como súditos que estariam dispostos a se

rebelar contra as autoridades locais e mesmo empreender uma guerra com a própria

China. Ver: BOXER, Charles. Relações raciais no império colonial português, 1415-

1825. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967.

16- WHITE, Hayden V. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura.

São Paulo: EDUSP, 1994.

17- FEBVRE, Lucien. A problemática da incredulidade no século XVI. A Religião

de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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Bolivarianismo: análise inicial de um conceito em uso na Venezuela chavista

Luiz Fernando de Oliveira Silva

RESUMO: O atual processo político em curso na Venezuela desde a eleição de Hugo

Chávez à presidência em 1998 trouxe à discussão as apropriações do pensamento

político de Simon Bolívar na construção de uma ideologia capaz de responder as

inquietações dos venezuelanos. Neste artigo, objetivamos fazer uma análise inicial da

construção do conceito de bolivarianismo dentro do presente contexto político

venezuelano.

PALAVRAS-CHAVE: Bolivarianismo; Venezuela; Hugo Chávez.

ABSTRACT: The current process politician in course in Venezuela since the election

of Hugo Chavez to the presidency in 1998 brought to the quarrel the appropriations of

the thought politician of Simon Bolivar in the construction of an ideology capable to

answer the fidgets of the Venezuelans. In this article, we objectify to inside make an

initial analysis of the construction of the concept of bolivarianism of the present context

Venezuelan politician..

PALAVRAS-CHAVE: Bolivarianism; Venezuela; Hugo Chávez.

Introdução

O presente cenário político na Venezuela não pode ser entendido como um

fenômeno da curta duração, apenas como uma tendência da política latino-americana ou

um processo político que se fecha em si.

Ao contrário, compreendemos este fenômeno como fruto de um processo político

específico mas que nos remete, seguramente, às décadas anteriores ao próprio

fenômeno. Concordamos com o sociólogo venezuelano Edgardo Lander1 ao afirmar

que o processo sociopolítico em andamento na Venezuela é uma reflexo de um processo

mais longo, iniciado na década de 70 do século XX, quando o pacto de governabilidade

firmado entre as elites políticas locais entrou em decadência ocasionando após uma

onde de graves crises no sistema econômico local, uma série ininterrupta de abalos da

instabilidade política, cujos pontos fortes e nefrálgicos se deram na década seguinte,

como a adoção de medidas econômicas impopulares que levaram, por sua vez, à

distúrbios singulares como o Caracazo (1989), como a volta do pluripartidarismo

(1992), como a tentativa de golpe de Estado pelos militares do Exército (1992), a

abertura de processo de impeachment contra o presidente Andrés Perez (1993) e as

discussões sobre a necessidade de uma ampla reforma constitucional (1993).

A nova face do Bolivarianismo

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1140

Em 1992, oficiais do Exército venezuelano fizeram uma tentativa frustrada de

golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Perez. Liderados por um

desconhecido tenente-coronel de Barinas chamado Hugo Chávez o movimento foi

sufocado, dentre outro, pelo fato dos rebeldes não terem conseguido tomar o canal de

TV estatal, expor suas idéias e objetivos e convocar o apoio da população da capital

Caracas. Entretanto, ao ser preso, o coronel Chávez se pronunciou a nação (esta era

uma das condições para sua rendição) dizendo:

Antes de mais nada, quero desejar bom-dia a todo o povo da Venezuela. Esta

mensagem bolivariana é dirigida aos valentes soldados que se encontram no

regimento de pára-quedistas da Arágua e na Brigada blindada de Valencia.

Companheiros: lamentavelmente, por enquanto, os objetivos que nos colocamos

não foram atingidos na capital. (...) Assim que ouçam minha palavra, ouçam o

comandante Chávez (...) Agradeço sua lealdade, agradeço sua valentia, seu

desprendimento e eu, diante do país e de vocês, assumo a responsabilidade deste

movimento militar bolivariano. Muito obrigado.‖2

Naquela ocasião, dois pontos daquele rápido discurso de pouco mais de um

minuto evidenciava os objetivos daquele grupo, e do pensamento político que pairava

sobre a caserna venezuelana sobre a situação política e social do país. O primeiro, foi

exatamente o caráter militar e bolivariano daquele levante; o segundo foi o fato de que

um homem (que naquela ocasião de tornara uma figura pública) vinha à TV para

assumir a responsabilidade sobre algo que não deu certo e, que para a maioria da

população depunha contra os princípios legais vigente.

Após quase duzentos anos de conquistar a independência para metade da América

do Sul espanhola, no século XIX, Simon Bolívar era restabelecido como ponto central

de um pensamento político rebelde no seio do Exército venezuelano. Bolívar, herói

nacional em vários países sul-americanos, era o vulto que inspirava e dava nome a um

grupo de oficiais das Fuerzas Armadas Nacionales (as FAN) que tentara um golpe de

Estado. Mas o que levava aqueles oficiais, aquele grupo a buscar em Bolívar a

inspiração política e ideológica para o levante e para uma nova proposta para a

Venezuela?

Para os intelectuais e políticos marxistas e socialistas até os anos 1960/70, Bolívar

se constituía como uma figura que reunia em si as características capitalistas mais

detestáveis: apesar de lutar contra os colonizadores espanhóis, Bolívar colocara a

América do Sul hispânica à mercê da ação do imperialismo comercial britânico; sendo

membro da família mais rica de Caracas, Bolívar teria comandado o processo

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separatista em benefício de sua própria ―classe burguesa‖. Diante da idéia de que o

Libertador, na verdade, teria sido um colaborador do imperialismo do século XIX, a

esquerda não o considerava como protótipo revolucionário para uma América Latina

que, em pleno século XX, lutava como era possível, contra o imperialismo

estadunidense.

Os aspirantes que ingressavam na Academia Militar tinham uma formação de

bacharéis militares. Durante o primeiro mandato de Rafael Caldera (1969-1974) houve

uma reformulação da educação aplicada na Academia Militar, cujo novo programa faria

de Chávez e de seus companheiros de caserna licenciados em Ciências e Artes

Militares3, abrindo as portas da oficialidade também a elementos das camadas mais

humildes da população, diferente do que acontecia, na mesma época, nas Forças

Armadas de outros países sul-americanos. Ao mesmo tempo, a formação destes oficiais

era voltada para o nacionalismo, para o culto ao Libertador, para o resgate da dignidade

militar.

Diante da crise endêmica de se avizinhava já nos anos 1970, o movimento

bolivariano ganhara força na caserna contra o modelo sócio-economico-político vigente,

uma vez que os oficiais médios das Forças Armadas cruzavam a fronteira social entre a

maioria da população mais empobrecida do que outrora e as classes abastadas, que só

asseguravam seu padrão de vida ante a crise econômica e o aprofundamento da

polarização social recorrendo a sonegação de impostos e corrupção. Estes oficiais

transitavam neste espaço devido a sua origem humilde (muitos tinha suas famílias

vivendo nos populosos barrios das grandes cidades como Caracas, Maracay, Barinas e

outras) mas que gozavam do acesso ao ensino superior e ascensão social por pertencer

as Forças Armadas, num momento em que os serviços públicos como Educação,

transporte e saúde estavam sucateados. É neste contexto que, o bolivarianismo militar

se funde com ideologias de esquerda, e os oficiais da Academia Militar e dos quartéis

espalhados pelo país, formam grupos de discussão, crítica e, não raras vezes, de

conspiração contra o modelo puntofijista agonizante, e a memória de Bolívar passa a

representar os ideais nacionalistas e libertadores da esquerda venezuelana.

Chávez antes de ser um político, está imbuído do espírito da caserna, da

disciplina, das ordens, rigor e orgulho militares, do nacionalismo, do bolivarianismo.

Ele ―entende a alma do Exército, pois faz parte desta alma‖.4 Por isso, entende que a

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revolução que diz conduzir na Venezuela desde sua eleição em 1998, tem,

obrigatoriamente, nas Forças Armadas uma das suas bases de sustento mais sólidas.

O culto a Bolívar e as reflexões sobre o seu pensamento político e seu legado na

Venezuela estava espalhado em diversos setores da sociedade e das instituições.

Todavia, esta memória coletiva foi canalizada para a discussão política pelos militares,

em especial e mais concretamente pelo grupo de reflexão e debates liderado por Hugo

Chávez na Academia Militar.

O grupo de Chávez fundou em 1982 o Ejército Bolivariano Revolucionario

(EBR) que logo tornou-se o Movimiento Bolivariano Revolucionario 200 (MBR-200),

parafraseando o famoso juramento de Bolívar no Monte Sacro (1805) de libertar o povo

venezuelano da opressão dos poderosos.5 Em sua companhia estavam Jesus Urdeneta,

Felipe Acosta e Raul Baduel, que ocuparam cargos estratégicos no governo Chávez.

O surgimento e consolidação do MBR-200 representa uma nova etapa no

pensamento da esquerda na Venezuela e na América Latina, em geral. Diante do

colapso do pensamento de esquerda que se testemunhava nos anos 1980, com o fracasso

das experiências socialistas na Europa, com as formas de opressão exercidas pelo

governo soviético em diversos países, com o declínio político e econômico do império

soviético que encontraria, dali a poucos anos o seu fim, levava a mudanças no

pensamento de esquerda. Não mais se pensava na revolução tradicional para se chegar

ao poder, nem na planificação econômica como remédio ao capitalismo selvagem do

final do século XX. No lugar disso, as propostas variavam entre a adesão ao sistema

democrático como forma legítima de chegada ao poder e implementar modificações

específicas e bem pontuais na sociedade e na economia, até mesmo ao afastamento do

pensamento socialista através da aproximação com moderados e setores de direita.

O MBR-200 não conseguia, a priori, desvincular a implementação das mudanças

sociais necessárias sem o uso da força para tomar o poder. Dez anos depois de sua

fundação, o MBR-200 tentava um golpe de Estado, mas a IV República venezuelana,

apesar de seu colapso iminente ainda teve forças para rechaçar aquela tentativa militar,

mas sabia-se que não sobreviveria mais tempo.

Paralelamente, outra parte dos militares que discutiam a política nacional estava

bastante interessada em resgatar os ideais do último ditador venezuelano, deposto nos

anos 1950, o Gen. Pérez Jiménez em cujo governo se gestava o objetivo de fazer da

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Venezuela uma potência regional por meio do investimento na indústria pesada,

incluindo aí o desenvolvimento das Forças Armadas e do seu poderia bélico.

Com o afastamento legítimo do presidente Carlos Andrés Perez, em 1993 e a

vitória eleitoral de Rafael Caldera, por uma questão política, os golpistas foram

anistiados. Uma vez reorganizados, o movimento bolivariano foi ganhando força

política nos debates sobre a necessidade de mudanças profundas na sociedade e na

própria constituição venezuelana, que datava de 1961.

Durante este último governo de Caldera, o MBR-200 via a oportunidade de

participar diretamente do processo eleitoral em 1998. Mas para tal, sem que o

movimento perdesse suas especificidades enquanto movimento social, sua liderança

buscou cooptar políticos e intelectuais civis. Esta aproximação entre militares e civis

dentro do movimento foi determinante para distinguir uma nova fase do bolivarianismo,

a sua fase político-partidária.

De movimento a partido

Uma vez que os militares bolivarianos – em sua maioria reformados ou expulsos

após o fracasso do golpe de fevereiro de 1992 – estavam ideologicamente ligados a

esquerda, o MBR-200 estabeleceu contatos com as lideranças de esquerda que foram

derrotadas e marginalizadas nos anos 1960, como foi o caso exemplar de Douglas

Bravo e de Alí Rodriguez, ambos do extinto Partido Revolucionário Venezuelano

(PRV).

Concomitantemente, o MBR-200 buscou aliar-se a outras agremiações políticas

de menor expressão postas na clandestinidade como a La Causa Revolucionária (LCR),

a Liga Socialista (LS) e a Bandera Roja (BR), bem como com os partidos que fizeram a

opção de renunciar a luta armada e participar do processo eleitoral, como foi o caso o

Movimiento al Socialismo (MAS) e o tradicional Partido Comunista de Venezuela

(PCV). A participação de políticos profissionais no movimento influenciou a sua

concepção de Estado, de política e de esquerda, propondo o diálogo, a descentralização

e a adoção de uma gestão democrática. Outros intelectuais e políticos proeminentes no

cenário político venezuelano se aproximaram e aderiram ao bolivarianismo, entre os

quais se destacam José Vicente Rangel que foi chanceler (1999-2001), ministro da Defesa

(2001-2002) e vice-presidente (2002-2007); e Luís Miquelena que foi presidente da Constituinte

(1999) e ministro da Justiça (1999-2002).

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Assim, dentro de um movimento sócio-político de proporções nacionais, militares

e civis refletiam e discutiam as propostas do movimento para a Venezuela, as formas de

fazer política, de influenciar decisões, de cooptar eleitores e outros correligionários. Em

1998, o movimento decidira participar das eleições gerais de dezembro, inclusive com

um candidato próprio à presidência. O nome escolhido foi o Hugo Chávez, seja pelo

seu carisma natural e sua liderança, seja por ser a cabeça pensante do MBR-200, seria a

opção mais viável, capaz de fazer com o país aquilo que só ele conseguia fazer dentro

do movimento: cooptar apoiadores, inibir opositores, reunir em torno de suas propostas

pessoas com distintas posições sobre determinado assunto.

Paralelamente à estrutura tradicional do MBR-200 o movimento bolivariano

fundava o Movimiento Vª República (MVR) especificamente para a disputa eleitoral. O

MVB possuía uma estrutura e uma organização distinta do MBR-200 original.

Enquanto o último foi constituído como espaço privilegiado para a reflexão, o debate e

a formação ideológica de seus membros, o primeiro não abria espaço ao debate e a

formação de seus participantes, concentrando suas forças a alcançar o seu único

objetivo em curto prazo, a eleição de Chávez em dezembro.

O MVB reunia em torno da candidatura de Chávez e de seu discurso inflamado a

grande maioria dos partidos de esquerda, formando assim o chamado Polo Patriótico,

uma complexa e extensa coligação de partidos de diversos segmentos, muito mais

comprometidos em impor uma derrota histórica aos partidos signatários do Pacto de

Punto Fijo – a AD e o COPEI – do que com a proposta radical de Chávez.

A vitória de Chávez decretava o fim de um sistema político, que na prática era

bipartidário desde 1958, vigente na Venezuela. Os dois partidos, outra hegemônicos,

entraram em colapso e, devido as suas disputas internas, não foram capazes de reunir

uma oposição suficientemente coesa no legislativo para impedir (ou ao menos, inibir) a

execução das propostas bolivarianas após fevereiro de 1999.

De partido a governo

Após a vitoria eleitoral de 1998, o movimento bolivariano, outrora fruto de uma

concepção coletiva de suas lideranças, cedeu ao carisma do presidente Chávez.

Instalou-se no movimento, no partido e no governo um forte desequilíbrio de lideranças.

O rosto do movimento, do partido ou do governo era o Chávez; a voz do bolivarianismo

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era a de Chávez; a nação e o Estado venezuelano era personificado pelo presidente,

assim como as esperanças e os anseios da maioria da população.

Uma vez conquistado o poder e recebendo o apoio de 56% do eleitorado

venezuelano, o bolivarianismo passa a ser observado como a linha condutora das

políticas de Estado. Tanto que boa parte das promessas de campanha foram

implementadas em 1999, sobretudo as mudanças constitucionais e a adoção de formas

de democracia participativa e direta.

Reeleito nas eleições gerais de 2000 com 62% dos votos, Chávez imprimiu o seu

personalismo político ainda mais, reforçando o seu vínculo direto com o seu eleitorado,

sua base política, sem ter que recorrer a burocracia do Polo, ou do partido nem mesmo

do movimento. O governo criou mecanismo de contato direto entre os eleitores e o

presidente.

Por conta do esvaziamento político das funções do Polo e do próprio movimento,

muitas foram as vozes dissonantes que se desligaram do governo nos anos seguintes.

Várias destes rompimentos além de desgastar o governo e o Polo, engrossaram as

fileiras da oposição que, até então não estava representada na Assembléia Nacional.

Uma vez reorganizada nas ruas e com o apoio de deputados recém-saídos do governo na

Assembléia, a oposição pressionava o governo, fazendo uso dos meios de comunicação

em massa a sua disposição levando o governo a uma crise grave entre 2001 e 2003.

Neste período, a oposição organizou contra Chávez grande número de

manifestações de rua, nas maiores cidades do país, sobretudo na capital. Diversos

setores ligados as centrais sindicais, a indústria e ao empresariado organizaram greves e

tumultos, sobretudo nos setores produtivos como foi o caso dos paros gerais, dos

caminhoneiros e dos funcionários da PDVSA, a estatal de petróleo. A crise de

abastecimento oriunda destas manifestações e greves minou a credibilidade do governo

e a popularidade do presidente, bem como diminuiu o seu poder de barganha junto aos

partidos do Polo. A crise culminou com a tentativa de golpe de Estado engendrada por

militares, empresariado e meios de comunicação privados, em abril de 2002.

Após a crise de abril de 2002, Chávez assumira pessoalmente o seu momento

político. Os partidos formadores do Polo Patriótico, outrora aglutinadores de votos em

1998 e 2000, demonstraram toda a sua incapacidade de articulação em defesa do

governo e os princípios constitucionais, muito menos de reunir a população contra o

golpe. Segundo Margarita Lopez-Maya, o que frustrou os golpistas em 2002, ao

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contrário da dinâmica testemunhada em 1992, foi a cooperação imediata entre militares

leais ao governo e a massa populacional que tomou as ruas em defesa de seu

presidente.6 Uma vez de volta ao poder, Chávez estreitou seus vínculos com seus

eleitores e com os militares, dispensando os partidos desta tarefa.

Com a experiência do abril de 2002, o Polo Patriótico agravou sua

desfragmentação, que só será completa em 2006. Em 2001, uma disputa interna no

MAS causou um racha no partido que deixou o Polo; seus dissidentes fundaram o Por

Democracia Social (PODEMOS) que permaneceu no Polo até 2006, quando finalmente

romperam com Chávez. O Pátria Para Todos (PPT) afastou-se do governo entre 2000

e 2001 quando, em condições melhores, voltou para o Polo até, parte de sua militância

desaparecer, em 2007, nas fileiras do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), o

partido único fundado por Chávez para reunir toda a base aliada.

Os oficiais militantes do MRB-200 que foram expulsos ou reformados

compulsoriamente como punição ao golpe de 1992 se filiaram ao MVB em 1998,

tornando-se personagens de destaque político dentro do governo Chávez, sobretudo

durante a crise de 2002/2003, reforçando o protagonismo dos militares durante o

governo Chávez, tanto para a manutenção do movimento bolivariano quanto para a

sobrevivência do governo chavista, ocupando postos-chave na administração pública,

sobretudo no primeiro e segundo escalões.

Ao passo que o Estado se tornava bolivariano o movimento se espalhou por outros

setores da sociedade. Estas organizações políticas e sociais – gozando de bastante

autonomia com relação ao governo, apesar de permanecerem sob proteção e influência

direta de Chávez – davam conta do exercício da cidadania a nível local, comunitário; na

representação e assistência a grupos sociais incluídos nas políticas sociais do governo

como negros, indígenas e camponeses. Os agrupamentos sociais bolivarianos de maior

expressão são os Círculos Bolivarianos, as Unidades de Batalha Eleitoral e os Batalhões

do Psuv.

De governo a pessoa

Ao sair vitorioso da terceira disputa presidencial desde 1998, Chávez, contando

com uma base eleitoral consolidada e de políticas sociais capazes de cooptar apoio

político nos diversos setores da sociedade, propõe a verticalização da revolução

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bolivariana. Esta verticalização visa o aprofundamento das medidas revolucionárias e

uma radicalização na forma de conduzir o processo político em andamento.

O governo julga necessário substituir a representação política do bolivarianismo,

substituindo o MVB por um partido mais amplo, capaz de dialogar com os diversos

setores sociais e abranger outras formas de pensamento político. Nesta proposta o

Partido Socialista Unido da Venezuela é fundado sobre as ruínas não só do MVB

quanto dos outros partidos do Polo Patriótico. Uma nova opção ideológica fica

explicitada na composição do Psuv. Chávez lançava as bases de uma nova política que

levaria a Venezuela a fazer a opção pelo socialismo, um novo modelo socialista

denominado por Chávez de Socialismo del siglo XXI. A fundação do Psuv aponta para

uma nova etapa do processo político venezuelano, mas desta vez, a figura central, sem

concorrência, é o próprio presidente.

A proposta de verticalização da revolução bolivariana feita em 2006/2007 foi

seguida pela proposta oficial da parte do governo de modificação de mais de 60 artigos

da Constituição de 1999, dentre os quais se destacam os pontos sobre a mudança dos

princípios que regulam a propriedade privada e a reforma institucional das FAN. Creio

que estes dois pontos podem ser considerados como os pontos de maior polêmica no

projeto do governo, que suscitou grande desconfiança tanto por parte de opositores

quanto por parte de apoiadores, revelando fissuras no cerne do bolivarianismo militar.

Em julho de 2007, um dos mais leais colaboradores do presidente rompe com o

governo em repúdio as propostas de Chávez. O Gen. Raul Baduel, como já dito, esteve

ao lado do presidente deste os tempos de Academia Militar e fora ele o grande

responsável pela sua recondução ao Miraflores em abril de 2002. Entretanto, Baduel

demitindo-se do cargo de Ministro Popular da Defesa em julho de 2007, revelou-se um

opositor feroz, indo a público para criticar a medida do governo e questionar as

intenções de Chávez sobre o rumo que dava ao processo político na Venezuela.

Naquele referendum, o governo sofreu a primeira derrota em nove anos.7

Apesar de Chávez sempre evocar a memória, o pensamento, a figura de Bolívar

em seu discurso, percebe-se que o movimento bolivariano original se perde em meio a

proposta socialista. Chávez tenta conjugar num mesmo projeto, num mesmo discurso o

projeto bolivariano ao lado da adoção do socialismo do século XXI como forma de

fortalecer internamente o seu governo, a sua administração, a sua base política, ao

mesmo tempo em que estabelece, no campo econômico e diplomático, a opção por

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construir um caminho alternativo ao neoliberalismo econômico como forma de

resistência ao imperialismo estadunidense. Sobre este último aspecto, vemos que

Chávez retoma uma antiga proposta de Bolívar para a América Latina: a integração

como forma de vencer a ingerência dos EUA na região.

Conclusão

O bolivarianismo pode ser defino como um movimento cívico-militar específico

da Venezuela surgido entre os oficiais do Exercito nos anos 1980 com a intenção de

criticar, refletir e questionar o modelo político, econômico e social do país naquela

ocasião, defendendo a reconhecimento da dignidade militar e a luta contra a corrupção e

a desigualdade social. Este movimento se organizou em torno de uma proposta de

tomada do poder por meio da força em 1992. Após o fracasso desta tentativa, abriu-se a

participação de intelectuais e políticos civis capazes de dar força política ao movimento

para disputar as eleições em 1998 apoiando o seu líder Hugo Chávez.

Uma vez no poder, o bolivarianismo implementara as mudanças propostas por

Chávez durante a campanha, mas é marcado pela falta de espaço para debates e

contestações internas, aderindo sempre as propostas do presidente que, uma vez,

consolidada sua força política vinculada diretamente aos militares e aos eleitores,

reformula o próprio projeto do movimento, adicionando à sua plataforma ideológica o

um novo modelo socialista, objetivando o fortalecimento do governo internamente, e da

Venezuela no plano latino-americano com discurso capaz de cooptar propostas de

resistência e combate aqueles que, segundo Chávez seriam os dois grandes males da

globalização no início do século XXI: o neoliberalismo econômico e a agressividade da

política externa norte-americana.

Para os críticos como Raul Baduel, nos últimos anos, o bolivarianismo militar

original foi de tal forma deformado pela política do presidente Chávez que poderia ser

chamado, hoje, de chavismo, uma vez que a peça central no tabuleiro político que antes

era destacado a figura de Bolívar tem sido o próprio presidente.

1 LANDER, Edgardo. ―Izquierda y populismo: alternativas al neoliberalismo en Venezuela‖ In:

BARRET, Patrick; CHÁVEZ, Daniel; e RODRIGUEZ, Cesar (orgs.). La nueva izquierda

latinoamericana. Bogotá: Grupo Ed. Norma, 2005, p. 104. 2 CHAVEZ, Hugo. ―Pronunciamento a nação por ocasião de sua prisão após o fracasso da tentativa de

golpe em 04 de fevereiro de 1992‖ apud MARINGONI, Gilberto. A revolução venezuelana. São Paulo:

EdUnesp, 2009, p. 95-96.

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3 MARCANO, Cristina; TYSKA, Alberto. Hugo Chávez sem uniforme: uma história pessoal. Rio de

Janeiro: Gryphus, 2006, p. 35. 4 GOTT, Richard. A sombra do Libertador: Hugo Chávez Frias e a transformação na Venezuela. São

Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 281-282. 5 OLIVEIRA-SILVA, Luiz Fernando. Sob a sombra do Libertador: as representações do pensamento de

Simon Bolívar nos discursos do presidente venezuelano Hugo Chávez (1999-2006). Vassouras:

Universidade Severino Sombra, 2010, p. 26. 6 LOPEZ-MAYA, Margarita. ―Venezuela: Hugo Chavez y El bolivarianismo‖ in Revista Venezuela de

Economía y Ciencias Sociales, 2008, vol. 14, n. 13, p. 59. 7 Segundo Gilberto Maringoni, a vitória do ―no‖ sobre o ―si‖ foi apertada: 1,41%, ou seja, 124.962 votos

dentre os quase nove milhões de votos válidos. Ver MARINGONI, Gilberto. Op.Cit. p. 27.

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O governo dos santos: os homens da Quinta Monarquia no Interregno

britânico (século XVII)

Luiz Filipe Alves Guimarães Coelho*

Resumo: Esta comunicação tem como proposta abordar uma temática pouco conhecida

em nosso país: a organização e atuação da seita radical dos Homens da Quinta

Monarquia (ou pentamonarquistas) no contexto do Interregno inglês (após a guerra civil

inglesa) que teve como conseqüências a execução do rei Carlos I. Nosso objetivo é

mostrar a partir da organização deste grupo como política e religião se articulam neste

momento ímpar vivido pela Inglaterra no século XVII, obtendo resultados

imprevisíveis.

Palavras-chave: pentamonarquistas, milenarismo, Guerra Civil Inglesa

Abstract: This paper has the purpose of addressing a subject little known in our

country: the organization and actions of the radical sect of the Fifth Monarchy Men (or

Fifth monarchists) in the context of the English Interregnum (after the English Civil

War) that resulted in the execution of King Charles I. Our goal is to show from the

organization of this group as politics and religion are linked in this unique moment

experienced by England in the 17th century, giving unpredictable results.

Key-words: Fifth Monarchy Men, millenarianism, English Civil War

No dia 6 de janeiro de 1661, em Londres, um grupo de 50 homens se rebelou e

pegou em armas para lutar contra a Restauração do rei Carlos II à coroa inglesa, em prol

de um reinado utópico comandado por Deus. Após breve vitória contra uma pequena

força de soldados, os reforços enviados trataram de suprimir e derrotar os insurgentes.

Ao todo, foram mortos 20 soldados e 26 rebeldes, e mais 20 foram capturados. Dentre

esses, doze foram executados, juntamente com o líder do levante, Thomas Venner, que

foi enforcado e esquartejado. Para muitos historiadores, uma página da história era

virada: esta seria a última manifestação violenta dos sonhos radicais nascidos durante os

anos da Revolução Inglesa.1

A seita conhecida por Fifth Monarchy Men (Homens da Quinta Monarquia, ou

pentamonarquistas) surgiu dentro das tropas parlamentares durante a guerra civil, onde

eles se alistavam para participar do que acreditavam se tratar de uma guerra santa.

Alguns serviam como pregadores, mas muitos se inscreveram como soldados. Por

menor que fosse a patente deles quando entravam, a promoção durante a guerra era

acelerada, o que fez com que muitos chegassem a altos postos militares2. Para Bernard

Capp, apesar do conflito não ter sido causado primordialmente por questões religiosas,

havia uma tradição puritana de interpretar todos os acontecimentos políticos através do

milenarismo3.

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Os pentamonarquistas tinham como principal característica a fé na iminência do

milênio. Suas idéias se baseavam principalmente nas profecias de Daniel, e eles

acreditavam que após a queda dos quatro últimos reinos – representados pelos impérios

assírio, persa, grego e romano, tendo este último se prolongado com o papado – viria o

último reino de Cristo na terra, governado pelos santos. Aqueles que haviam recebido a

mensagem de Deus deveriam se comprometer a acelerar e/ou preparar o mundo para a

chegada de Jesus e de seu reinado 4.

Estes homens acreditavam que a Bíblia seria a chave para a compreensão da

história mundial e um guia para a mudança política5. Portanto, a base para a construção

do reino dos santos ―seria a lei mosaica‖6, que serviria para mostrar aos eleitos como

todos seriam governados assim que Cristo descesse à terra7. Segundo Luise Fargo

Brown, o dever imediato dos santos seria acomodar o governo presente às leis de Cristo,

preparando-o para a sua chegada. Para tal fim, eles deveriam rezar e observar,

separando-se do mundo e denunciando todos os seus defeitos, até receberem algum

chamado para agir. Para a historiadora, o que difere a seita de tantas outras que existiam

na Inglaterra do período era a sua presunção de serem eles os responsáveis por guiar o

governo a caminho de Cristo e seu dever de denunciar qualquer falha. A linguagem

violenta usada e a noção de que os santos poderiam reagir a uma sugestão ignorada

pegando em armas, fizeram com que a seita se destacasse e desde cedo atraísse certa

suspeita de outros grupos8. Já para Bernard Capp, além do recurso à violência mantido

pelos santos (quando ignorados) e sua presunção de aperfeiçoar o governo presente,

outra característica que diferenciava a seita era que o milenarismo formava o centro de

suas doutrinas, sendo na verdade a ―raison d‟être” do movimento9.

Segundo Christopher Hill as cidades inglesas constituíam os centros de

crescimento para a maioria das seitas, onde se formavam comunidades para expandir e

receber imigrantes entre suas fileiras, ―(...) pequenos artesãos, aprendizes, trabalhadores

dedicados [..], todos podiam reconhecer-se mutuamente como os eleitos num mundo

sem Deus‖. 10

Os Homens da Quinta Monarquia não fugiram deste padrão, como

demonstra Jean Delumeau. A documentação levantada pelo historiador permitiu que

este contabilizasse 29 grupos apenas em Londres. Número expressivo se comparado

com os outros 43 que poderiam ser encontrados em todo resto da Inglaterra, sem contar

o País de Gales11

. Para Capp, as áreas de atuação da seita exibiam poucas características

em comum. Um fator que demonstraria maior importância seria a presença de um líder

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de influência. A seita era essencialmente urbana: as cidades ofereciam amplas

assembléias de pessoas oriundas de diversas origens sociais e religiosas, mais

acostumadas a novas idéias; a alfabetização era mais comum, possibilitando um maior

impacto de panfletos e livros; e, finalmente, a presença de um número grande de

clérigos em cidades maiores possibilitava uma maior liberdade religiosa, mesmo antes

de 1640. Além destas questões, o interesse e a atuação política da seita provavelmente

atraíam os seus integrantes a locais onde pudessem colaborar com a construção do reino

de Cristo: as grandes cidades, principalmente Londres12

.

O movimento demonstrou maior força e aceitação entre as camadas mais baixas

da população das cidades, como artesãos e operários têxteis13

Segundo Delumeau:

―Seus adversários os descreviam como ‗os piores dos homens, a escória, a ‗ralé‘.

Mesmo um de seus líderes, Feake, reconhecia que os ‗santos‘ eram ‗uma companhia de

homens iletrados e mulheres simplórias‟” 14

. As mulheres também se mostravam

numerosas entre os pentamonarquistas e muitas se encarregaram dos deveres de pregar e

profetizar, como Mary Cary, uma das profetizas do grupo15

. Os grupos em Londres

também contavam com uma forte presença de jovens aprendizes que, segundo Brown,

encantavam-se em ouvir que eles eram os eleitos de Cristo, responsáveis por eliminar a

Besta e por presenciar a chegada do tempo prometido16

.

Para Hill, a situação econômica dos fiéis acabava criando uma consciência de

classe e uma hostilidade à aristocracia17

. Delumeau, por sua vez, aponta que estes

homens ―(...) viviam numa real insegurança econômica e social‖. Entretanto, entre os

principais inspiradores do movimento, encontramos universitários oriundos do clero e

oficiais do exército, tendo suas origens tanto na gentry18

, quanto nas próprias fileiras do

exército19

.

Porém, apesar da forte presença dos estratos mais baixos da sociedade inglesa, a

observação de Hill deve ser tomada com cautela. Primeiramente, a relação entre os

pentamonarquistas e os levellers, movimento que recebeu grande foco do historiador

inglês, não demonstrava muita simpatia. As ideias igualitárias e republicanas destes não

encontravam favor entre os santos. Apesar de concordarem em seus ataques contra o

dízimo e às instituições legais, o que possibilitava certo intercâmbio de ideias e

argumentos, havia uma diferença fundamental, como demonstra Brown: enquanto os

levellers defendiam um governo pelo povo, os pentamonarquistas lutavam por um

governo de eleitos20

. Para Capp havia uma longa tradição de descontentamento com o

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dízimo e com as leis que logo viraram ponto comum entre quase todos os movimentos

radicais do período. Porém, as diferenças entre os dois movimentos eram grandes: os

levellers demonstravam tendências igualitárias, enquanto os santos eram extremamente

elitistas21

. A iniciativa de implantar o código mosaico não encontrava paralelos entre os

levellers. Na verdade muitos líderes pentamonarquistas eram certamente hostis ao grupo

e às suas idéias22

.

Para Capp, a crise econômica não poderia ser vista como principal impulsionadora

do movimento. Apesar de ser largamente formado por ofícios que carregavam alto nível

de insegurança social e econômica, a indústria têxtil, de onde vinha grande parte do

grupo, esteve em alta durante os momentos de maior atividade pentamonarquista. E o

exército, outra grande fonte de seguidores, esteve protegido dessas ondulações

econômicas pelo aumento do soldo em 1649. A onda milenarista deveria ser vista antes

como conseqüência dos tumultos políticos e religiosos. Somente após 1649 essa onda se

organizou em um movimento, estimulado pela execução do rei e pela noção de que seus

atuais líderes estavam traindo o milênio23

. Entretanto, a observação de Hill não está

totalmente incorreta: a associação com as camadas mais baixas influenciava os líderes e

inseria bandeiras como revolução social e desapropriação de terras de nobres ingleses

infiéis, que por sua vez apelavam a certos grupos sociais24

.

Inicialmente, o movimento se organizou como um grupo de influência, tanto em

suas relações com o Rump Parliament25

, quanto com o Barebone‟s Parliament26

,

realizando agitações contra um, e pressionando o outro com suas políticas radicais27

.

Para os pentamonarquistas, o Rump deveria ser dissolvido, pois apenas os oficiais do

exército, ou seja, ―os soldados de Deus‖, poderiam ter controle sobre o governo28

. De

fato, Cromwell acabou destituindo o Rump, para o júbilo dos santos: um novo e

maravilhoso governo iria começar, e os eleitos sentiam o dever de oferecer sugestões de

como ele se organizaria29

. A decisão de Cromwell de instituir o Barebone‟s iria contar,

entre seus membros, com doze Homens da Quinta Monarquia. Isso satisfez grande parte

dos pentamonarquistas, com a notável exceção de Feake, que continuava a argumentar

pela liderança de alguém mais iluminado que Cromwell. Esta seria a melhor chance

para o grupo criar o seu reino dos santos30

. Nas reuniões do parlamento os santos iriam

atacar continuamente o dízimo e lutar por uma reforma legislativa, suas principais

bandeiras. Este programa era amplamente aceito, e muitos concordavam com a urgência

por um ou por outro, até mesmo Cromwell31

.

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A grande fragmentação dentro do parlamento servia como uma vantagem para o

grupo. Mesmo os moderados tinham dificuldades em agir em grupo e em certos

momentos os santos estiveram realmente próximos de concretizar algumas de suas

propostas32

. Contudo, o que afastava os pentamonarquistas era a sua postura radical e

intolerante, cobrando medidas imediatas e deposições urgentes. Frente à progressiva

recusa às suas medidas radicais e os seguidos fracassos, o grupo acabou rompendo com

o parlamento. Alguns começaram a pregar que apenas uma mudança completa na

legislação e nas normas religiosas poderia desenvolver as ―condições indispensáveis

para o estabelecimento do milênio‖33

.

Parte dos pentamonarquisas depositou em Oliver Cromwell suas esperanças

retratando-o como um ―segundo Moisés‖, que iria guiar o seu povo à Terra Prometida34

.

Entretanto, após a dissolução do Barebone‟s Parliament em dezembro de 1653, e a

conseqüente proclamação do Protetorado, os radicais mudaram seu posicionamento,

passando à oposição total, vendo o protetor como um tirano, um novo rei, um traidor

das causas religiosas e um apóstata35

. Segundo Brown, o protetorado foi um grande

golpe para os Homens da Quinta Monarquia. Eles o condenavam não por ser um

governo instituído pelo exército, mas por ser o governo de uma pessoa só. Para os

santos o único que poderia governar sozinho era Cristo durante a Quinta Monarquia.

Muitos começam a reconhecer o protetor nas profecias, principalmente em Daniel36

.

A situação iria se intensificar após a declaração de um acordo de paz com a

Holanda37

. Muitos pentamonarquistas encaravam a guerra contra o outro país

protestante como um primeiro passo para seu sonho de conquista, seguido pelo domínio

da França até chegar a Roma, dobrando todos os poderes do mundo ante Cristo e o

governo dos seus eleitos. Este posicionamento demonstra também certa intolerância

religiosa, uma vez que até mesmo os protestantes holandeses eram considerados

apóstatas e deveriam ser conquistados e convertidos38

. Segundo Capp, apesar de seu

pretenso ecumenismo, os santos tinham dificuldade em achar algo que aprovassem nos

outros grupos religiosos39

.

Neste período, a principal medida repressiva do governo de Cromwell era a

prisão, sem direito a julgamento, dos homens de maior proeminência no movimento40

.

Rogers, Feake e Harrison passaram a maior parte do tempo entrando e saindo da cadeia,

sendo o último também expulso do exército. Além disso, quando os prisioneiros

escreviam uma petição para um julgamento público num tribunal de justiça, eram

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informados que estavam sendo poupados por misericórdia, pois um julgamento

certamente significaria sentença de morte. O governo também fez uma série de

tentativas de persuadir os pentamonarquistas a se aliarem, mas, apesar do sucesso com

alguns líderes menores, os grandes nomes do grupo se mantiveram fiéis as suas idéias,

mesmo atrás das grades41

. Para Brown, Cromwell não conseguia consentir medidas

mais duras contra homens cuja oposição a ele era consciente, apenas equivocada.

Segundo a pesquisadora, Cromwell preferia seguir o princípio de que não há melhor

incentivo para uma causa do que a perseguição do governo42

. Portanto, além de manter

os líderes na prisão, o protetor retratava os eleitos como uma ameaça para inspirar medo

em outros grupos mais moderados, forçando-os a procurar a proteção do governo43

.

Estas táticas intensificaram um problema que se mostrava um obstáculo constante

ao movimento. Os Homens da Quinta Monarquia nunca demonstraram uma grande

união. Até mesmo em sua profecia que previa o reinado de Cristo, havia grande

discordância com relação ao ano em que ele iria ocorrer. Alguns acreditavam que se

daria em poucos anos, enquanto outros pregavam que ainda teriam que esperar algumas

décadas44

. Isso levava a outra discordância: deveriam eles acelerar e se preparar para o

reinado iminente, fosse através de levantes armados ou de pregações inflamadas, ou era

sua obrigação serem pacientes, orar, se separar do mundo, viver vidas puras e obedecer

pacificamente o governo, esperando pelo sinal de Deus de que era momento certo para

agir? 45

Para Leo Solt, isso pode ser explicado pelo fato de o grupo não ter se formado

pelas pregações de um influente profeta religioso, um líder carismático, como aconteceu

com outras seitas. Porém, na verdade, pode ser dito que este movimento chegou à sua

proeminência como uma reação contra as atitudes e medidas de Cromwell e seus

partidários, vistos pelo grupo como perpetuadores da tirania que eles haviam lutado para

sobrepujar46

.

Capp, por sua vez, aponta que se tratava de uma aliança entre radicais que

dividiam a crença na iminência do Milênio e no seu dever de preparar a Terra. Dentro

do movimento, havia grande diversidade de opiniões relacionadas às identidades

religiosas e convicções, que cada membro apresentava devido à sua origem em outras

seitas diferentes, como batistas ou congregacionistas.47

Segundo Brown, um dos

motivos que os santos encontravam para se vangloriar era exatamente que a sua

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associação aos pentamonarquistas não exigia a inserção em nenhum outro grupo

religioso48

.

Conforme Brandon John Marriot, os pentamonarquistas não tinham um líder ou

profeta específico. Muitos indivíduos assumiam papéis de liderança dentro de cada

congregação. Entretanto, alguns nomes possuíam mais evidência dentro do grupo49

.

Durante o protetorado, muitos Fifth Monarchy Men, apesar da aparente derrota e

da prisão de seis líderes, mantiveram-se ativos, recusando o seu fracasso50

. Além de

iniciativas para buscar a aliança com outros grupos descontentes, a ala mais violenta do

movimento começou a planejar golpes e ataques à Cromwell, chegando até mesmo a um

pequeno levante organizado por um líder menor chamado Thomas Venner51

. Nenhum

dos líderes de maior expressão aceitou os vários convites para participar do levante.

Para muitos, os inconfidentes estavam se precipitando. Um sinal claro de Deus deveria

ser recebido antes que os santos pudessem pegar em armas52

. Outro obstáculo foi ainda

maior para a associação dos líderes: segundo uma passagem em Revelações (Rev. 11)

os santos deveriam aguardar um período de 42 meses, ao final do qual o governo da

besta acabaria. Conforme a interpretação dos santos isso aconteceria no dia dezesseis de

junho de 1657. O levante de Venner, marcado para a segunda semana de abril, estava

adiantado demais, e, portanto, fadado ao fracasso53

. Ao final esta previsão se

concretizou e a insurreição fracassou antes mesmo de começar: agentes do governo já

haviam se infiltrado no grupo e muitos insurretos foram presos antes mesmo de

chegarem ao local combinado54

. Contudo, os pentamonarquistas tiveram pouco tempo

para se orgulhar de sua clarividência, pois a medida do protetor foi prender todos os

líderes que poderiam ter tido alguma participação55

.

Com a morte do Protetor, em 1659, muitos dos líderes presos receberam a

liberdade por Richard Cromwell, filho e sucessor de Oliver. Entretanto, o retorno aos

palcos políticos não duraria muito para eles e, após a Restauração de Carlos II em 1660,

muitos fugiram, como Rogers para Holanda, ou se afastariam da cena política, para

evitar a perseguição do novo governo. No entanto, alguns foram capturados pela sua

participação na execução do pai do novo rei, condenados por regicídio e executados.

Destino esse reservado para um dos principais líderes do grupo, o General Harrison.

Em anos posteriores, alguns retornariam para a Inglaterra, como John Rogers em 1662.

Entretanto, sua ação política já estava encerrada. Os pentamonarquistas falharam, e a

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última chance de concretizar os seus intensos sonhos se esvaía enquanto a corda

apertava o pescoço de Thomas Venner em 1661.

Para Capp, o nível especial de hostilidade que as idéias dos santos receberam de

seus conterrâneos se deveu provavelmente pelo seu sucesso em publicar a sua ideologia,

e pelo fato de que em 1653 eles parecerem ter chegado realmente perto de uma

oportunidade para implementar o seu programa. Segundo o historiador, os

pentamonarquistas não podem ser inteiramente responsabilizados pela Restauração.

Contudo, as suas demandas agressivas por revolução social, econômica e religiosa

desacreditaram os governos republicanos, que se provaram incapazes de contê-los. Sua

linguagem violenta criava certo pânico entre outros grupos, o que seria utilizado tanto

por Cromwell, quanto pelos monarquistas nos momentos anteriores à volta de Carlos II,

e fortaleceram a crescente idéia de que não poderia haver ordem até que o rei tivesse

retornado56

.

Contudo, segundo Brown, foi o radicalismo e a intransigência dos

pentamonarquistas que aceleraram o fim do Rump e foram um dos principais

responsáveis pelo fracasso do Barebone's. A pressão que os seus integrantes realizavam

dentro e fora do parlamento congelava os seus procedimentos e ampliava a sua

fragmentação. Porém, para Brown, o maior efeito dos Homens da Quinta Monarquia foi

o abalo que eles causaram na fé de Oliver Cromwell de que um grupo de fiéis poderia

ser responsável pela administração da sociedade. Os amargos ataques e a linguagem

violenta dos seus pregadores fortalecerem a ascendente convicção do Protetor de que

uma igreja organizada e um ministério regulamentado eram necessários para manter a

paz. Incapazes de perceber que o Protetorado era a sua única defesa contra o retorno de

tudo aquilo que lutaram para derrubar, os santos continuaram atacando Cromwell. A

intensa atividade política, após a morte do Protetor, apenas contribuiu mais para a

Restauração de Carlos II. Em sua intransigência, sua resistência para negociar com o

que acreditavam ser maligno, e sua luta ininterrupta por um estado perfeito, ajudaram

para o fracasso do compromisso estruturado por Cromwell e para o retorno do filho do

rei que eles mesmos executaram57

.

* Mestrando em História pelo PPGH-UFF. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro. E-mail:

[email protected]

1 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma historia do paraíso. São Paulo: Companhia das

Letras, 1997. p. 236

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2 BROWN, Louise Fargo. The Political Activities of the Baptists and Fifth Monarchy Men in England

During the Iterregnum. London: Oxford University Press. 1912 p. 9 3 CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchu Men. A study in Seventeenth Century English Milenarism.

London: Faber and Faber. 2008 p. 35 4 DELUMEAU, Jean. Op. cit. p. 226

5WARBURTON, Rachel. Future Perfect?: Elect Nationhood and the Grammar of Desire in Mary Cary‘s

Millennial Visions. In: Utopian Studies. S/l, v. 18, n. 2, p. 115-138, 2007. p. 120 6 A Lei Mosaica é composta de todo o código de leis formado por 613 disposições, ordens e proibições.

Em hebraico a Lei é chamada de Torá, que pode significar lei como também instrução ou doutrina. O

conteúdo da Torá são os cinco livros de Moisés. 7 SOLT, Leo F. The Fifth Monarchy Men: Politics and the Millennium. In: Church History. S/l, v. 30, n.

3, p. 314-324. p. 317 8 BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 26

9 CAPP, Bernard S. Op. Cit. p. 14

10 HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça. Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640.

São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 58 11

DELUMEAU, Jean. Op. cit.. Ver também: CAPP, Bernard S. Op. Cit. p. 76 12

CAPP, Bernard S. Op. Cit.p. 80 13

HILL, Christopher. Op. Cit. p. 109 14

DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 232 15

WARBURTON, Rachel. Op. Cit. p. 119 16

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 107 17

HILL, Christopher. Op. Cit. p. 109. 1818

O grupo social inglês conhecido como gentry foi foco de significativo debate historiográfico. Nessa

discussão, assumimos o significado desenvolvido por Lawrence Stone: o historiador se posiciona contra

as considerações de que o grupo seria uma espécie de pequena ou média nobreza, à maneira do continente

europeu, ou, como fazem os conservadores, como Trevor-Roper, de que se tratava de uma pequena

nobreza frustrada e decadente. Stone questiona também as interpretações de tendência marxista que a

caracterizavam como uma burguesia rural e capitalista. Para o historiador, gentry seria o conjunto dos

gentlemen (cavalheiros). Contudo, para que o indivíduo pudesse ser inserido nesta camada social bastava

apenas ser rico, ou melhor, ser rico e estar disposto a comprar uma propriedade rural e um brasão, os

quais podiam ser livremente comprados no mercado. Cf: STONE, Lawrence. Causas da Revolução

Inglesa. Bauru, SP: EDUSC, 2000. 19

DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 232. Ver também: Bernard S. Capp. Op. Cit. p. 82 20

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 38 21

Apesar de questionar as divisões de nascimento entre os homens e clamar a luta pela justiça social e

pela defesa dos pobres, os santos jamais abandonaram a forte noção de que os eleitos desempenhavam um

papel diferenciado na sociedade. Justificando-se pela eleição divina eles se viam como a elite religiosa e

política e os responsáveis por moldar o governo de Cristo e remendar a massa degenerada. CAPP,

Bernard S. Op. Cit. 144 22

Ibid. p. 91 23

Ibid. p. 88 24

Ibid. p. 144 25

Apelidado, assim, por ter sido constituído do que sobrou do antigo parlamento após o expurgo,

subseqüente a morte do rei, dos parlamentares ligados à Igreja Anglicana e ao rei executado. 26

Parlamento formado por Cromwell, que selecionou seus integrantes entre os lideres religiosos e alguns

membros do exército. Seu nome também é originado em uma alcunha popular desrespeitosa, que se

referia tanto a um de seus membros, chamado de Praise-God Barebone, quanto ao fato do parlamento

exercer pouco poder político de fato. 27

CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened : The Fifth Monarchy, King Charles and King Jesus. In:

Journal of Religious History, s/l,v. 32, n. 1, p. 16-30, 2008. p. 17 28

DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 233. 29

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 29 Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op.

Cit. p. 62 30

STUMER, Andrew. The sixteenth century apocalypse: The fifth monarchists. In: Access: History, S/I,

v. 2, n. 2, p. 21-30, 1999, p. 27 31

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 35; Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men…

Op. Cit. p. 177

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32

CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 69 33

DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p, 234 Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op.

Cit. p. 72; BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 39 34

CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened… Op. Cit. p. 17. 35

SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 314. Ver também: BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p.42 ; CAPP, Bernard S.

The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 75 36

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 45 37

DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 235. 38

SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 320. Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p.

154 39

CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 183 40

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 46 41

SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 319 42

BROWN, Louise Fargo n. Op. Cit. p. 98 43

Ibid. p. 62 44

SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 319 Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p.

193 45

CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened… Op. Cit. p. 18. Ver também: BROWN, Louise Fargo.

Op. Cit. p. 103 46

SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 322. 47

CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened… Op. Cit. p. 18. Ver também: BROWN, Louise Fargo.

Op. Cit. p.203 48

Ibid.p. 59 49

MARRIOT, B. J. Blurring Boundaries: The Transmission of Millennial Information Across the

Seventennth-Century Judeo-Christian Frontier. Thesis submitted in partial fulfillment of the requirements

for the degree of Master of Arts in History. Simon Fraser University, Burnaby, BC, Canada. 2008. p. 6 50

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 89 ; Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men…

Op. Cit. p. 109 51

Ibid. p. 111 ; Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 117 52

CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 134 53

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 116 54

CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 117 55

SOLT, Leo F. Op. Cit. 56

CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 130 57

BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 205

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1160

A mitificação política da imagem de Plínio Salgado: a relação entre os

católicos e o Integralismo

Luiz Mário Ferreira Costa

Resumo: O propósito deste artigo é conferir o processo de ―mitificação‖ do líder

político Plínio Salgado, neste sentido, serão analisados alguns textos escritos por

personalidades destacadas do catolicismo brasileiro. O entendimento de católicos e

integralistas de que a sociedade estaria ―contaminada‖ pelos vícios liberais e pela falácia

da democracia reforçava uma narrativa comum que, em última instância, preconizava a

substituição dos partidos políticos pelo ―systema corporativo-integralista.‖

Palavras-chave: mito político, mitificação, corporativismo.

Abstract: The purpose of this article is to check the process of ―mythification‖ of the

political leader Plínio Salgado, in this sense, we will analyze some texts written by

prominent personalities of brazilian catholicism. The understanding of catholic and

integralists that society would be ―contaminated‖ by the vices and the fallacy of

liberaldemocracy reinforced a common narrative that ultimately recommended the

replacement of the political parties by the ―systema corporativo-integralista‖.

Keywords: political myth, mythification, corporativism.

Considerações iniciais:

Em linhas gerais este artigo versa sobre a tentativa de alguns autores católicos em

transformar Plínio Salgado num ―mito político‖. Porém, antes, é preciso que se defina

aqui o que entendemos por ―mito‖, tarefa esta um tanto quanto problemática, devido à

enormidade de significações que esta palavra conserva. Contudo, entendemos que o

mito pode ser visto como um relato do passado, que dentre outras coisas, conserva no

presente um valor eminentemente explicativo.

Conforme sugeriu o historiador romeno Mircea Eliade, o mito na medida em que

ilumina e justifica algumas peripécias do destino do homem, torna-se uma ―narrativa

sagrada‖, uma ―história verdadeira‖, porque sempre se refere à realidade. Um bom

exemplo, seria o mito cosmogônico, porque a existência do Mundo aí está para

confirmá-lo, ou mesmo, o mito da origem da morte que é igualmente ―verdadeiro‖, pois

é provado pela mortalidade dos homens. Ainda segundo o autor, o mito proclama a

Artigo de autoria de Luiz Mário Ferreira Costa, doutorando pelo Programa de Pós Graduação em História da

Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior – CAPES.

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1161

aparição de uma nova ―situação cósmica‖ ou de um acontecimento primordial, assim ele

é sempre a narrativa de uma ―criação‖. Neste sentido, a principal função do mito seria a

de revelar os ―modelos exemplares‖ de todos os ritos e atividades humanas

significativas. 2

Na década de 1950, o estudioso Roland Barthes reforçou o debate teórico em

torno do mito, definindo-o como uma ―fala‖, mas, não uma fala qualquer, e sim um

sistema de comunicação. Deste modo, o mito não poderia ser um objeto, nem um

conceito ou uma idéia, ele é um modo de ―significação‖, uma forma, definida por

limites históricos e condições de funcionamento na sociedade.3 Barthes ainda aludiu que

o mito é um sistema semiológico e por isso transforma uma intenção histórica em

natureza, uma eventualidade em eternidade. A função do mito é evacuar o real:

―literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia ou, caso se prefira,

uma evaporação e uma ausência perceptível‖, passando da história à natureza 4. Em

suma, o mito não pode negar as coisas, a sua função é, pelo contrário, falar delas,

purificar, inocentar, fundamentar em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não

de explicação, mas de constatação 5.

Outra definição interessante acerca da aplicabilidade do estudo do mito na história

vem de Raoul Girardet, sobretudo, com a obra Mitos y mitologias políticas. O autor não

só recupera com riqueza de detalhes a discussão acerca das mitologias, como também

identificou pelo menos quatro ―grandes conjuntos‖ mitológicos. A saber: o mito da

―Conspiração, do Salvador, da Idade de Ouro e da Unidade‖. Para ele, uma sociedade

revela-se com maior certeza suas desordens e seus sofrimentos através de exame de seus

sonhos. Entender os sonhos como algo que pode ser experimentado analiticamente,

como aquilo que possui finalidades didáticas é uma das propostas de Girardet 6.

As reflexões de Girardet merecem destaque, naquilo que tange a investigação das

mitologias políticas, especialmente, acerca do que ele chamou de ―mito do Salvador‖.

Nesta perspectiva, toda a questão levantada pelo autor, no entendimento deste mito,

consiste em saber como se opera a passagem do histórico ao mítico, em outras palavras,

como atua o misterioso processo de ―heroización‖, que culmina na transmutação do real

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1162

e sua absorção no imaginário. 7

Em nosso caso específico, tentaremos demonstrar a

partir da documentação pesquisada a colaboração de escritos católicos no processo que

permeia a mitificação política de Plínio Salgado. Esta ―cooperação‖ pode ser entendida,

por um lado, como a reação aos avanços das idéias comunistas e, por outro, como

indicação da orientação política manifestada pelo clero. Pois conter e guiar os anseios

de setores urbanos que se politizavam, assegurava a não alteração da ordem social, o

que atendia aos anseios da Igreja Católica naquele contexto.

A “superioridade moral da ideologia” de Plínio Salgado

Um ponto a ser destacado no processo de criação de nosso ―mito político‖ diz

respeito à superioridade moral de suas idéias, o que equivale dizer, que o líder do

Integralismo deveria ser visto como uma figura ―simbólica‖, possuidor de uma verdade

moral, religiosa ou filosófica e por isso representava um momento histórico sob a forma

de ―alegoria‖. Aqueles que ―pintavam‖ este retrato de Salgado, consciente e/ou

inconscientemente, acabavam por transformar a artificialidade de um discurso político

numa narrativa ―naturalizada‖, repleta de ilustrações, que distorciam e corrompiam os

limites tênues entre o real e o imaginário.

Para facilitar a compreensão do processo de mitificação de Salgado,

apresentaremos alguns fragmentos de textos produzidos por setores expressivos do

catolicismo brasileiro. Ainda que a orientação oficial da Igreja fosse ficar neutra perante

a política, era comum encontrar padres e bispos que exaltavam os camisas-verdes e, que

viam Salgado como o melhor dos candidatos às eleições presidenciais de 1938. Para os

bispos, Salgado era o único homem capaz de conduzir o Brasil aos novos tempos,

graças à sua inteligência científica e espiritual.

PLÍNIO SALGADO, espirito intelligente e culto, orientado por sólidos

princípios catholicos, e em cujas actividades transparece a profunda e

segura visão de sábio sociologo e sincero patriota, desejoso de bem servir a

Causa de Deus, da Pátria e da Família trilogia base insubstituível de todo o

systema que não nutre utopias, nem transige com as ambições de interesse

pessoal – LUIZ, bispo de Uberaba. 8

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1163

O escritor católico Tasso da Silveira deu mais ênfase a esta questão,

fundamentando seus argumentos na encíclica Divini Redemptoris de Pio XI, que dentre

outras coisas, sustentava que o liberalismo havia preparado o terreno para o advento do

comunismo. Para Silveira a negação e o abandono do sentido religioso da vida e a

transformação do trabalho humano em mercadoria, alimentava a desordem social e

política, fomentando a tão temida luta de classes.

Ora, em disputa á suprema magistratura da Nação no proximo quadriênio,

apresentaram-se três candidaturas: a do sr. Armando de Salles Oliveira, a

do sr. José Américo de Almeida, a do sr. Plínio Salgado. As duas

primeiras, franca e confessadamente liberalistas, defendendo princípios de

vida política, econômica e social reiteradamente censurados ou

condemnados pela Egreja, e, aliás, de fundo e forma tão idênticas, salvo

differenças de estylo literário, que não se sabe bem por que são duas

candidaturas e não uma apenas. E a terceira dellas desfraldando a bandeira

do Estado Integral Corporativista, erguida sobre o alicerce do amor a Deus

e respeito á pessoa humana inviolável. 9

Muitos membros da Igreja estavam cientes da falta de formação e informação de

seu rebanho, por isso apressaram-se na catequização política dos fieis, apresentando

Salgado como a única opção política a ser seguida. Segundo o clero somente por

desconhecimento do assunto um católico brasileiro poderia preferir o nome de Armando

de Salles ou o de José Américo, quando se apresenta o líder Plínio Salgado. 10

Outra observação importante a ser feita na construção desse mito político, é o

valor dos princípios filosóficos e jurídicos professado pelo Integralismo, ou seja, as

bandeiras levantadas pelo líder em seus discursos políticos. Neste sentido, inúmeros

bispos exaltavam os preceitos cristãos e nacionalistas dos integralistas, o que, em

contrapartida, aumentaria consideravelmente o número de afiliados ao movimento.

Aconselhando aos bons catholicos e ao clero que prestigiem ao

Integralismo, único meio capaz de acção, actualmente, capaz de impedir a

derrocada tremenda que ameaça a religião e a Pátria... Se, pois, no

Integralismo temos uma escola de patriotismo são e uma ideologia muito

approximada da doutrina catholica, prestigia-lo será fazer da nossa parte

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para que Deus nos ajude, sobretudo, na hora incerta e perigosa que

vivemos – MANOEL, bispo de Aterrado. 11

Em documento intitulado, O sentido cristão do Integralismo (1937), Salgado

reforçava as propostas feitas através do Manifesto de Outubro e do Manifesto

Programa, naquilo que se referia ao ideal de Estado. Em sua opinião o Estado Integral

transcendia as formas políticas e filosóficas, pois descenderia diretamente de Cristo.

Nesta perspectiva, o Estado Integral era o Brasil realizando sua ―felicidade material‖ e

sua ―grandeza nacional‖, baseando-se num profundo sentimento de solidariedade e

fraternidade entre todos os brasileiros.

Esse é o Estado Integral, como eu o compreendo no recesso de minha

consciência, nas horas caladas em que me dirijo a Deus, pedindo-lhe que

faça a felicidade de meu Povo. E é por isso que, neste momento quero

fazer-vos a profissão publica de minha fé... Por Cristo me levantei; por

Cristo quero um grande Brasil; por Cristo ensino a doutrina da

solidariedade humana e da harmonia social; por Cristo luto; por Cristo vos

conclamo; por Cristo voz conduzo; por Cristo trabalharei. 12

Com esta premissa, Salgado e o Integralismo atraiam os bons olhos da Igreja

Católica que de um modo geral declarava a ―sagração‖ do movimento:

Assim como o governo da Republica permitte a livre pregação do

Integralismo, a Egreja tambem recebe em seu seio, como filhos

bemvindos, os camisas-verdes que se recolhem em seu recesso para

implorar as bênçãos do Senhor para a obra grandiosa que estão realizando

– JOSÉ, bispo de Nictheroy. 13

O destacado pensador católico Alceu de Amoroso Lima, também preocupou-se

em endossar seu apoio aos integralistas, principalmente, no sentido de ―purificar‖ a

ideologia e explicitar as diferenças com o Fascismo e o Nazismo.

A maioria dos que entre nós condemnam o Integralismo (confundindo-o

inteiramente com o fascismo e com o hitlerismo) fazem-no por ligarem,

erradamente, o catholicismo ao predomínio político e econômico da ―classe

burgueza‖ e ao regimen da ―pluralidade partidária. É uma attitude

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anachronica e insustentável, que diminue a Egreja, ligando-a a uma

determinada era social, que desvirtua o sentido sobrenatural da Fé christã e

pode arrastar o Catholicismo aos peiores naufrágios, por solidarizal-o com

regimens sociaes em franca decomposição. 14

Amoroso Lima chegaria a incentivar que católicos se filiassem no movimento,

pois este era visto como reação sadia contra os males ―que nos dissolvem por dentro‖.

O integralismo, afirmava ele, possuía no campo social, em grande parte os mesmos

adversários que a Igreja. Neste sentido, a luta contra inimigos comuns forjaria um laço

que criava aproximações inevitáveis:

Como doutrina política (o Integralismo) pretende em boa hora restaurar o

sentido frouxo de Autoridade, dar á Unidade Nacional o posto básico que

lhe compete em toda a sociologia política do Brasil, defender as bases

moraes e jurídicas da familia brasileira. Todos os pontos de um programma

excellente. Penso que a nossa attitude, em face do movimento integralista,

se não deve ser nem de hostilidade nem de confusão, só póde ser a da

COOPERAÇÃO.15

Naquele contexto político extremamente delicado, Amoroso Lima manifestava a

preocupação de que o Governo Vargas pudesse proibir a atuação política da AIB e

alimentava o caráter pacífico do movimento:

Se o governo fechar o Integralismo é que commetterá uma grave injustiça,

pois tratará igualmente coisas desiguaes. Aquelles que aplaudem acto do

Governo, não por espírito de facção ou por amor do regimen democrático-

liberal e sim por amor do Brasil e do progresso, – sabem perfeitamente

distinguir o que uma fácil rhetorica parlamentar confunde. O Integralismo

não prega a guerra civil, não insufla a lucta de classes, não aconselha a

desapropriação violenta, não estimula a organização do odio. Quaesquer

que sejam os excessos de sua linguagem, por vezes, ou as apparencias de

seus methodos de acção para a conquista do poder – trabalha em defesa das

grandes idéas e instituições que formaram o Brasil político, mantiveram

sua unidade moral, christianizaram sua alma e hão de leval-o a um futuro

socialmente pacifico e justo. 16

Como podemos intuir, logicamente, a preferência de setores católicos pelo

Integralismo ultrapassava a simples admiração pelo líder e por sua ideologia. No fundo

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o que percebemos é a defesa de um modelo de Estado comum compartilhado entre

integralistas e católicos. Estado este que exercia o poder com autoridade, legitimidade e

amparado por um sistema corporativista.

A noção de Estado com a qual se pretende dialogar está bem próxima daquela

sugerida por Adam Przeworsky, que segundo uma de suas abordagens, defendia a

primazia da ―força‖ na constituição das sociedades. Nas palavras de Przeworsky, o

―Estado organiza e exercita o monopólio da força física‖ sobre um território e é a

utilização, aberta ou escondida, da violência que garante sua eficácia. Este ―poder

universalizador‖ que emana do Estado se apóia, por um lado, na capacidade do Estado

de invocar um interesse superior e, por outro, na aptidão de extrair fontes que tornarão

possíveis suas tentativas de resolver as questões levantadas.17

O Estado Integral tão admirado por integralistas e alguns clérigos parecia se

enquadrar dentro desta perspectiva, pois mesclava o ideal de ―poder universalizador‖

com uma atitude ―católica-moralista‖, capaz de conter as lutas de classes por meio do

corporativismo.

O Integralismo affirma a existência de Deus e a immortallidade da alma.

Comprehende a família e a autoridade segundo os ensinamentos christãos.

Reconhece, no homem, ―uma tríplice aspiração – material, intelectual e

moral‖. É contra os ódios e as lutas de classes. Para elle, a sociedade é ―a

reunião de seres humanos, devem viver em harmonia. Segundo os destinos

superiores do homem‖ (...) No Integralismo, ha um regime corporativo

integral, abrangendo todas as profissões, menos o Clero e a milícia. Os

poderes se organizam democraticamente, nos tres graus – municipal,

provincial e federal – por eleição corporativa.18

Nosso ideal de corporativismo pode ser melhor entendido quando se aprecia a

obra de Philippe C. Schmitter, Ainda o século do corporativismo? (1978).19

Para ele o

corporativismo deve ser visto como um sistema de representação de interesses e/ou

atitudes, uma organização institucional particularmente modal ou típico-ideal que ligava

os interesses da sociedade civil, organizadas associativamente, às estruturas de decisão

do Estado. Desta forma, o corporativismo representava um conjunto específico e

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concreto de práticas institucionais ou de estruturas envolvendo a representação (ou falsa

representação) de interesses de grupo empiricamente observáveis.

Na opinião de Lúcio José dos Santos, a encíclica Quadragesimo anno de Pio XI,

depois de referir-se aos ―vícios do individualismo‖, reforçou as vantagens da

organização corporativa, como a colaboração pacífica das classes e a repressão das

organizações socialistas. Além de combater ―o erro da economia individualista‖, que

esqueceu o lado social e moral do mundo econômico. Para Santos ―como Estado

corporativo, pois, o Integralismo está de accôrdo com a orientação da Egreja‖. 20

A Egreja, é ainda Pio XI quem fala, exige apenas que o corporativismo

respeite os direitos da personalidade humana, os direitos do christão, do

pae de família e do productor. Ora o Integralismo está nitidamente ,

perfeitamente, dentro desse quadro traçado pelo incomparavel Chefe da

Egreja. No Integralismo, ha um regimen corporativo integral, abrangendo

todas as profissões, menos o Clero e a Milícia. Os poderes se organizam

democraticamente, nos tres graus – municipal, provincial e federal – por

eleição corporativa. Quer dizer que o Estado é a resultante das corporações

e nenhum interesse pode ser akheio ou contrario a ellas.21

Por fim, diante do que foi exposto, resta dizer que a política combina, tanto

julgamentos factuais, quanto juízos de valor, sendo assim, a interpretação da realidade

está sempre em jogo nos debates políticos. Deste modo, entender como a ―opção‖ pelo

corporativismo surgiu no horizonte das expectativas de teóricos integralistas, e caiu no

gosto dos católico, nos revela em certa medida, elementos que constituem alguns

padrões culturais daquele contexto político. Ao mesmo tempo em que a busca pela

coesão social, em torno de uma ―velha mitologia política‖, que recuperava a idéia de um

―Salvador‖, parecia funcionar relativamente bem, no sentido de dotar o movimento de

um caráter alegórico e original.

Considerações finais:

Apesar do Estado Integralista não ter saído do papel, ele constituiu um discurso

político ativo, presente na vida de milhares de militantes espalhados, tanto nas capitais

quanto no interior do país, muitos estados da região centro-oeste, norte e nordeste,

possuíam núcleos que ajudavam a difundir os ideais integralistas. Aliás, o movimento

que propunha introduzir no Brasil um Estado forte e autoritário parecia agradar,

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principalmente, os setores médios da sociedade, incluindo os militares, elementos

conservadores da Igreja Católica e parte destacada da intelectualidade nacional. O

fortalecimento do Integralismo demonstrava não só a recusa ao modelo político liberal,

como também a falta de uma resistência comunista, principalmente, depois do fatídico

episódio de 1935.

O aparente sucesso do movimento foi possível graças à eficiência com que se

trabalhava a construção do ―mito político‖ Plínio Salgado. Esta narrativa mítica

funcionava como a base da doutrina integralista, que culminava na idéia de um ―Deus

criador do Universo e da história‖ e num projeto de ―unicidade eterna‖. Tal proposta

implicava também a concepção de um conceito próprio de ordem e progresso histórico.

22 Igualmente, a posição e a autoridade de quem desempenhava as funções de liderança

não deveriam ser contestadas, pois a vinda do ―salvador‖ traria o aperfeiçoamento da

civilização, via liderança autoritária e moral e, que no caso específico da doutrina

integralista, estava investida em Salgado. Assim, desde o momento em que se equipara

o líder integralista a figuras históricas as mensagens publicitária do movimento tendiam

à ―sacralização‖ do próprio Salgado desempenhando um papel fundamental na

moldagem de uma mentalidade coletiva.

Entretanto, a legitimação do Integralismo não se encontra somente num passado

mítico, onde o caboclo e o elemento católico se encontram, mas também num futuro

promissor. Afinal o discurso em defesa de um Estado Integral, embora se utilize do

passado e o redesenhe permanentemente, projeta-se com muito mais freqüência em

direção ao futuro. Mesmo que os integralistas não admitissem a idéia messiânica de

Salvação, eles acabaram por produzir elementos fundamentais para o ―mito do

Salvador‖, pois Salgado foi descrito como um ―ser ideal‖, que acumulava o passado, o

presente e o futuro, numa mesma existência material, espiritual e patriótica.

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Notas:

1 ELIADE, Mircea. Mito e realidade: (Tradução) Pola Civelli. São Paulo: Perpectiva, 2010.

p.11

² BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução, Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane

Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 200.

³ Idem p. 234 4 Idem p. 235

5 GIRARDET, Raoul. Mitos y mitologias políticas. (Tradução) Horacio Pons.

Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión SAIC. 1999. 6 Idem p. 69

7 OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO. Acção Integralista Brasileira.

Publicado pela Secretaria Nacional de Propaganda. s/d. p.4 8 Idem p.18-19

9 Idem p.19

10 Idem p.5

11 O SENTIDO CRISTÃO DO INTEGRALISMO, Plínio Salgado. Agosto de

1937 12

OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO. (op.cit) p.4 13

Idem p.6 14

Idem p.7 15

Idem p.7 16

PRZEWORSKI, Adam. Estado e Economia no capitalismo. (Tradução)

Argelina Cheibub Figueiredo, Pedro Paulo Zahluth Bastos. Rio de Janeiro. Relume-

Dumará, 1995 17

OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO (op.cit) p.13 18 SCHMITTER, Philippe C. (1974) "Still a century of corporatism?" In: Review of Politics

36(1): 7-52

19 OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO. (op.cit) p.13

20 Idem p.14

21 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. 5 ed. São Paulo: GRD, 1995.

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O caleidoscópio da política externa norte-americana e a Questão da

Palestina (1945-1948)

Luiz Salgado Neto

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o debate sobre a Questão da Palestina na

sociedade norte-americana entre 1945 e 1948 e como o episódio constitui-se como uma

manifestação do ―caleidoscópio da política externa norte-americana‖, isto é, um

conjunto heterogêneo de atores que participa ou influencia a política externa dos

Estados Unidos. Busca-se demonstrar que apesar do discurso do consenso, a política

externa norte-americana é caracterizada por frequentes embates entre distintas esferas

governamentais e entre sociedade e o governo.

Palavras-chave: Política externa dos Estados Unidos – Palestina – Sionismo

Abstract: The aim of this paper is to present the debate about the Palestine Question in

American society between 1945 and 1948, and how this episode manifested the called

―kaleidoscope of American foreign policy‖, that is, a heterogeneous set of actors that take part

or influence the U.S. foreign policy. This paper also pursues to demonstrate that despite the

discourse of consensus, the foreign policy of United States is characterized by frequent

divergences between different spheres of government and between the society and the

government.

Key-words: U. S. foreign policy –– Palestine – Zionism

Entre 1945 e 1948, houve um intenso debate nos Estados Unidos sobre o projeto

de criação de um Estado judeu na Palestina, objetivo final do movimento sionista. O

sionismo se estabeleceu em território norte-americano na década de 1880, antes mesmo

de Theodor Herzl convocar o Primeiro Congresso Sionista, na cidade suíça de Basileia,

em 1897, evento em que foi aprovada a resolução afirmando que o objetivo do sionismo

era ―criar para o povo judeu um lar na Palestina, garantido por uma Constituição‖1.

Assim como na Europa, o sionismo encontrou dificuldades em se firmar como

um movimento político nos Estados Unidos. Muitos judeus eram contrários ao

sionismo, pois, em primeiro lugar, temiam ser acusados de dupla lealdade, o que

poderia resultar em uma onda de antissemitismo, mas também porque entendiam que já

tinham encontrado sua Sião na América, pois embora houvesse um antissemitismo

latente na sociedade norte-americana, nada se comparava aos massacres da Europa

Oriental, ocorridos nas duas últimas décadas do século XIX, ou as restrições jurídicas

que existiam em países como Alemanha e Rússia2. Contudo, com as investidas

antissemitas de Hitler na década de 1930 e, principalmente, com o holocausto durante a

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Segunda Grande Guerra, os judeus norte-americanos foram persuadidos de que a única

forma de evitar que novos massacres ocorressem era a criação de um Estado judeu na

Palestina3. Este refúgio não seria destinado a eles, judeus norte-americanos, mas àqueles

que eram perseguidos e massacrados na Europa.

Na verdade, com o fim da Segunda Guerra e o holocausto tornado público, o

sionismo pôde afirmar-se internacionalmente e defender de forma contundente que a

solução para o antissemitismo era a criação de um Estado para o povo judeu. Além

disso, ao fim da Segunda Grande Guerra, a situação dos judeus libertados do nazismo

permanecia grave: milhares permaneciam em campos de refugiados; continuavam

morrendo de fome, de frio e de doenças, deixados à míngua nos mesmos campos de

concentração construídos pelos nazistas, e ainda vestindo os mesmos uniformes

listrados, quando muito. Muitos desses refugiados (chamados pela sigla DP – Displaced

Persons), não desejavam voltar para seus países de nascimento – Alemanha, Polônia,

Áustria – mas manifestavam desejo de ir para a Palestina4.

Contudo, a negativa dos habitantes árabes da Palestina e dos governos dos

Estados árabes vizinhos era veemente. Estes alegavam que os árabes habitavam a

Palestina havia séculos e, portanto, não abririam mão de seus direitos para que um povo

estrangeiro (de origem europeia) ocupasse as terras que, aos seus olhos, eram suas.

Além disso, afirmavam que os causadores das mazelas dos judeus eram os europeus e

que a solução, portanto, deveria ser encontrada na Europa. Os árabes afirmavam para

todos os líderes mundiais e para investigadores internacionais que não seria justo

resolver o problema dos refugiados judeus às custas dos árabes da Palestina.

Esse conflito entre duas visões sobre quem tinha o direito de construir seu lar

nacional na Palestina gerou um problema de política externa e interna para o Presidente

Harry Truman (1945-1953). Na verdade, a Questão da Palestina5 se apresentou como

uma celeuma para Truman, uma ―dor de cabeça‖, segundo as palavras do próprio

presidente. Como Chefe de Estado de uma das duas maiores potências do pós-guerra,

Truman deveria decidir que lado apoiar, o que lhe criou um dilema: por um lado, havia

a questão humanitária e a política interna; por outro, havia os riscos para a política

externa.

Quanto às questões internacionais, as análises dos principais especialistas em

política externa diziam que os interesses estratégicos e econômicos dos Estados Unidos

seriam profundamente prejudicados por uma política pró-sionista. Em novembro de

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1947, eram contra a Partilha da Palestina6 e, em maio de 1948, defendiam o não

reconhecimento do Estado de Israel. Seus argumentos eram fortes e se pautavam,

principalmente, pela possibilidade da União Soviética aproveitar esta oportunidade para

lançar sua influência política no Oriente Médio. Com efeito, os Estados Unidos

possuíam laços importantes (nos campos econômico e militar) com países árabes,

principalmente com a Arábia Saudita, que poderiam ser altamente prejudicados se

houvesse uma aproximação com os sionistas. Os estrategistas norte-americanos temiam

que o mundo árabe se voltasse para a União Soviética e concedesse seu importante

suprimento de petróleo para a máquina de guerra do Exército Vermelho.

Além disso, a paralisação do fluxo de petróleo dessa região prejudicaria o projeto

de recuperação da Europa no âmbito do chamado Plano Marshall. Os governantes

árabes diversas vezes ameaçaram Washington com a revogação de concessões a

empresas de petróleo se o governo norte-americano adotasse medidas pró-sionistas.

Por outro lado, uma parte significativa da sociedade norte-americana era pró-

sionista. Diante do impacto do holocausto e das imagens dos DPs na Europa, a criação

de um Estado judeu na Palestina adquiriu um aspecto de ação humanitária e de justiça a

ser feita a um povo que fora barbaramente perseguido e massacrado. Além disso, a essa

percepção de que a situação dos judeus era uma questão moral, se juntou uma empatia

cultural com os sionistas. Havia uma percepção enraizada na cultura norte-americana,

muito anterior ao holocausto, que diferenciava os sionistas da população árabe que

habitava a Palestina. Os sionistas eram vistos como vetor de progresso e modernização

na Palestina, que estava ―abandonada‖ sob domínio árabe e turco, e que deveria ser

―reconstruída‖, ―redimida‖. O sionismo também foi percebido como um movimento

análogo ao norte-americano durante a colonização da América e no processo de

expansão para o Oeste. Já os árabes eram representados como atrasados, reacionários,

primitivos, incapazes de se governarem e de promoverem o ―necessário‖ trabalho de

―reconstrução‖ da Palestina. Em termos políticos, os árabes foram vistos como egoístas,

ao não permitirem a entrada de judeus na Palestina depois do holocausto7. Em suma,

representações enraizadas na cultura norte-americana ocasionaram uma empatia com os

sionistas e um distanciamento em relação aos árabes. E, por fim, quando a discussão

sobre a decisão de apoiar ou rejeitar um Estado judeu na Palestina chegou ao ápice,

entre 1947 e 1948, a grande maioria da sociedade norte-americana não hesitou em

apoiar o sionismo, desconsiderando a oposição da população árabe da Palestina.

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Truman ficou em meio a essa polarização, pressionado a tomar uma decisão,

situação que o colocou em uma difícil encruzilhada. Negar medidas favoráveis ao

sionismo desagradaria grande parte da sociedade norte-americana, algo extremamente

negativo em uma democracia eleitoral, e iria contra as convicções pessoais do

presidente, uma pessoa extremamente religiosa e manifestamente oposta ao

antissemitismo8. Por outro lado, um apoio à ida dos judeus para a Palestina poderia

prejudicar a parceria cuidadosamente construída pelos oficiais do Departamento de

Estado, que desde o início da década de 1940, esforçavam-se por obter uma

aproximação com os países árabes do Oriente Médio. Assim, o Presidente viu-se em

meio a um dilema entre sua política interna e suas convicções pessoais, de um lado, e os

cálculos estratégicos da Guerra Fria, de outro.

Esse episódio demonstra muito bem o que o analista político Walter Russel Mead

intitulou o ―caleidoscópio da política externa norte-americana‖9, isto é, um conjunto

heterogêneo de atores que participa ou influencia, em graus variados, a execução da

política externa dos Estados Unidos. Na verdade, a Questão da Palestina demonstra que

o consenso que muitos afirmam existir na política externa norte-americana é um mito10

.

A política externa norte-americana se caracteriza por um embate entre diversas forças

no interior das esferas governamentais e por um diálogo frequente entre o governo e

segmentos da sociedade. Há uma relação complexa entre uma miríade de grupos,

setores, organizações, movimentos sociais, lobbies e o governo. Algo muito importante

a ser ressaltado é que nessa relação, uma grande variedade de segmentos sociais

pressiona o presidente, os congressistas e os oficiais governamentais em suas tarefas de

formulação e execução da política externa dos Estados Unidos da América.

Além disso, as discussões sobre o sionismo e sobre a Questão da Palestina nos

possibilitam construir outras análises sobre o processo de tomada de decisão em política

externa. Tradicionalmente, as análises têm como centro a dinâmica diplomática e as

decisões dos chefes de Estado em relação a países estrangeiros. Com maior frequência,

o foco dos estudos são atores governamentais, sejam oficiais dos ministérios das

relações exteriores, sejam os tomadores de decisão do poder executivo. Dessa forma,

são estudos centrados no Estado e em quem ocupa cargos oficiais. A abordagem

historiográfica tradicional se fundamenta nos preceitos teórico-metodológicos da

História Diplomática, baseando-se em teorias sobre processos de tomada de decisão

interna aos governos e pressupostos advindos da teoria das Relações Internacionais, em

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geral argumentando sobre as bases ―realistas‖ ou ―idealistas‖ da política externa. As

fontes utilizadas são documentos oficiais – ofícios, memorandos, relatórios, atas de

reuniões, leis, tratados, ordens de serviços. Privilegia-se, enfim, os processos internos

aos governos.

No entanto, recentemente, pesquisadores têm lançado luz a novos atores que

participam do processo de tomada de decisão em política externa. Dentre os

historiadores, destacam-se os estudiosos que, influenciados por uma renovação das

abordagens da História Política11

, entendem a política externa como algo muito mais

disputado, em que diversos atores exercem pressões de acordo com suas demandas.

Além disso, buscam apreender as circunstâncias em que os oficiais do Estado sentem-se

constrangidos em suas possibilidades de ação, sendo pressionados tanto a adotar certos

tipos de ação, a não se omitirem ou a não agirem.

Assim, estudos recentes ressaltam que devemos problematizar a atenção excessiva

dada ao Estado como instância privilegiada da política externa. Frank Costigliola e

Thomas Paterson12

nos levam a perceber que os contatos entre duas sociedades não

podem ser vistas apenas tendo como centro de análise os Estados. Ambos os autores

propõem aos historiadores que, ao invés de nos referirmos à ―história da política

externa‖ ou à ―história diplomática‖, devemos praticar uma ―história das relações

exteriores‖ (history of foreign relations) de um país, algo mais amplo que a política

oficial. Ou seja, Costigliola e Paterson nos sugerem que não limitemos os estudos das

relações entre diferentes sociedades aos líderes ou oficiais diplomáticos, mas que

englobemos também as relações entre grupos distintos entre diferentes países. Além

disso, os autores sugerem que prestemos atenção também à atuação dos grupos de

pressão, das empresas transnacionais, das Organizações Não-Governamentais, da

imprensa e de outras instâncias associativas não-oficiais. Assim, embora sejam

instâncias de poder importantes, os Estados não podem ser vistos como atores

exclusivos das relações exteriores de um determinado país.

Em muitas ocasiões, a centralidade do Estado nas análises tem como decorrência

o entendimento do Estado como ente homogêneo e unívoco, visão que ofusca as cisões

dentro dos governos. No caso específico dos Estados Unidos, o Departamento de Estado

tem a função de elaborar estratégias e de formular a política externa de uma forma geral.

Contudo, é o presidente quem possui a última palavra e o Congresso aprova a guerra.

Isso frequentemente leva a conflitos entre diferentes esferas do governo ou entre

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distintos órgãos no interior do poder executivo. Em relação à Questão da Palestina,

houve uma profunda cisão entre oficiais do Departamento de Estado e atores pró-

sionistas no Congresso e na Casa Branca. Segundo Michael Benson13

, o embate no

interior do governo se deve à divergência de visões sobre quem teria a legitimidade de

lidar com a política externa. No caso da Questão da Palestina, os oficiais no

Departamento de Estado se arrogavam o direito de serem os pensadores mais adequados

para lidarem com a política externa dos Estados Unidos e, por conseguinte, de formular

uma política para a Palestina. Segundo eles, ao contrário dos cargos que possuíam a

alternância comum às democracias – o presidente e os parlamentares – os oficiais das

relações exteriores eram servidores do Estado que vivenciavam diversas mudanças de

governo. Eles enxergavam a política externa como algo ―institucional‖, que transcendia

governos e opiniões passageiras da população. Contudo, Truman resolveu tomar para si

a tarefa de elaborar a política externa para a Palestina. Embora tenha manifestado

hesitação e ambiguidade, deixara claro nas primeiras reuniões com seus auxiliares

diretos que se sentia muito honrado em receber informações de um pessoal

extremamente qualificado, mas que ele, na posição de presidente, era o tomador de

decisões. Quanto à Palestina, Truman fez questão de salientar que era a Casa Branca e

não o Departamento de Estado que comandava a política14

.

Se essa dinâmica é complexa em níveis governamentais, talvez ainda mais

importante seja a complexidade da relação entre a sociedade e os oficiais

governamentais. Nos Estados Unidos, país com uma democracia consolidada, os líderes

políticos e oficiais governamentais precisam dialogar, em diversas ocasiões, com vários

atores da sociedade. Em determinadas questões, projetos definidos para a política

externa são prejudicados ou precisam ser reorientados por conta da ação de grupos

militantes que procuram forçar a decisão de acordo com seus interesses. Walter Russel

Mead15

se contrapõe a autores que afirmam que a democracia é prejudicial a uma

política externa eficaz. Segundo Mead, os Estados Unidos conseguiram vitórias de vulto

na arena internacional durante o século XX pagando um preço relativamente baixo. E

uma das principais características apontadas por Mead para tal sucesso é o sistema

democrático norte-americano, que garante que todos tenham voz no processo político e

que todos os interesses sejam, pelo menos em alguma medida, respondidos16

.

O presente artigo não tem como objetivo responder se a democracia é boa ou ruim

a longo prazo para uma política externa eficaz. O que cabe ressaltar é que a despeito de

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um entendimento sobre o ―sucesso‖ da política externa dos Estados Unidos no século

XX, deve-se reconhecer que certas medidas governamentais pontuais, julgadas pelos

agentes do governo como as mais adequadas, podem ser minadas por segmentos da

sociedade em regimes democráticos. É importante assinalar que, dependendo da questão

em foco, o diálogo comum às democracias pode impor restrições às atividades dos

tomadores de decisão. Nesse sentido, e sem avaliar a moralidade em jogo, é oportuno

perceber, como Melvin Small17

, que a democracia por vezes se apresenta como um

complicador de uma determinada política externa. Segundo ele, mesmo em países

autoritários há limites do que a instância máxima de governo pode fazer. Contudo, nas

democracias, principalmente naquelas em que o público efetivamente participa das

discussões, os agentes do governo são fiscalizados e sofrem pressão de variadas

direções. Lobbies, veículos de imprensa, movimentos sociais, corporações

transnacionais, grupos religiosos buscam forçar os tomadores de decisão no sentido de

uma atuação que seja condizente com seus interesses ou com algo que entendem ser

moralmente correto.

Em regimes democráticos, presidentes e primeiros-ministros não devem avaliar a

resposta do público apenas por conta de interesses políticos de curto prazo, como em

épocas eleitorais, isto é, quando os políticos ficam mais sensíveis aos humores da

sociedade, tendo em vista os votos que perderão ou ganharão com determinado curso de

ação. É importante também assinalar que a democracia é caracterizada por liberdade de

expressão e debates públicos sobre determinados problemas. Em certas controvérsias

políticas, o público fica extremamente envolvido e age efetivamente, seja porque tem

interesse direto, seja porque entende que um lado tem razão.

Isso implica que devemos perceber outros dois aspectos importantes: primeiro, o

interesse que o público ou determinados grupos atribuem a determinada questão; e,

segundo, se o(s) grupo(s) possui(em) poder de tornar essa questão uma questão de

importância política. Dito isso, percebemos que quando algum assunto tem pouco

interesse para o público, o governo tem mais liberdade de ação. Em outras, se o público

atribuir grande importância, ele terá pouca margem de manobra.

Em se tratando de política externa, isso também ocorre. Em certas questões no

cenário internacional, o conflito é tão controverso que pode trazer implicações políticas

internas para o presidente ou para os congressistas. Os agentes do governo devem, por

isso, levar em consideração o peso que a sociedade atribui a certa matéria em debate.

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Para os Chefes de Estado de países democráticos, nem sempre é possível agir de acordo

com o que se julga adequado ou conforme as formulações de seus assessores.

Alguns autores afirmam que as pressões do público não se fazem sentir na política

externa. No entanto, ao analisarmos casos concretos em democracias, percebemos que

os debates públicos são ouvidos nos níveis governamentais, cujos representantes eleitos

devem observar o que a maioria defende que se faça, o que traz restrições às suas

ações18

. Por outro lado, oficiais de carreira, não eleitos, pensam que em certas matérias

devem usar seu conhecimento e não se inclinar a ouvir o público. Isso por vezes torna-

se uma divergência aberta entre os oficiais governamentais e a opinião pública. E, em

determinadas ocasiões, a pressão da sociedade pode alterar um curso de ação, se o

tomador de decisão agir pensando como será julgado pela sociedade. Segundo Melvin

Small, ainda que a opinião pública seja sempre heterogênea, basta que o presidente e

seus assessores pensem que alguma opinião é homogênea para levá-la em

consideração19

. Com relação à Questão da Palestina, o público atribuía muita

importância ao conflito, manifestava uma opinião dominante pró-sionista e agia

efetivamente. O presidente e o Departamento de Estado não tinham as mãos livres para

fazer o que julgavam ser melhor.

Além disso, segundo Bernard Cohen20

, um bom critério para sabermos se houve

uma mudança de atitude influenciada pela opinião pública é observar o projeto

elaborado e o que efetivamente foi feito pelo governo, analisando a atividade de pressão

social sobre os tomadores de decisão em política externa entre dois marcos temporais

definidos. Fica patente ao observarmos a documentação e a postura de Truman no

período de 1945 a 1948 que ele inicialmente não tinha a intenção de apoiar um Estado

judeu na Palestina. Somente depois de muita discussão e pressão de diversas

associações e organizações (judaicas e não-judaicas), da imprensa e de políticos

(Democratas e Republicanos), Truman decidiu por esse curso de ação21

. Podemos,

portanto, creditar uma parte significativa da política pró-sionista norte-americana não às

políticas refletidas do Departamento de Estado, mas à pressão de importantes segmentos

da sociedade norte-americana.

Portanto, percebemos que vetores diversificados exercem pressão no processo de

formulação e execução da política externa norte-americana. Seria equivocado pensar as

decisões políticas apenas como frutos de uma atividade racional de elaboração de um

projeto ou como produtos de leis gerais de comportamento político. Embora saibamos

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que existem projetos políticos nos mais altos níveis de governo, tais projetos podem

sofrer uma reorientação por conta de contingências não previstas durante sua elaboração

e, sobretudo, em regimes democráticos, tais projetos podem se ver frustrados por uma

ação militante de certos segmentos da sociedade. Em relação à Questão da Palestina, o

Presidente Harry Truman viu-se constrangido a adotar uma medida que a princípio era

contrário, mas que, devido à intensa pressão originada de diversificados atores, teve de

adotar um novo curso de ação. Assim, ao invés de pensarmos em um consenso norte-

americano em torno da política externa, devemos enxergar as ações efetivas como frutos

de uma correlação de forças e como produtos de intensos embates entre diferentes

setores da sociedade e distintos setores do governo dos Estados Unidos, bem como entre

diferentes esferas governamentais, cada qual buscando orientar as ações de acordo com

suas convicções ou interesses.

1 SHLAIM, Avi. A muralha de ferro: Israel e o mundo árabe. Rio de Janeiro: Fissus Editora, 2004, p. 39.

2 UROFSKY, Melvin. American Zionism: from Herzl to the Holocaust. 2

nd Ed. Lincoln, Nebraska:

University of Nebraska Press, 1995, p. 81; DINER, Hasia. Jews of the United States (1654-2000). Los

Angeles: University of California Press, 2004, p. 157-8 3 BERMAN, Aaron. Nazism, the Jews and American Zionism (1933-1948). Detroit: Wayne State

University Press, 1990, p. 11-4. 4 RADOSH, Allis; RADOSH, Ronald. A safe haven: Harry S. Truman and the founding of Israel. New

York: Harper Collins Publisher, 2009, p. 93. 5 O que estou denominando de Questão da Palestina é o impasse ocasionado pelo conflito entre judeus e

árabes palestinos sobre a posse e o uso do território para objetivos nacionais. Ambos os lados

reivindicavam para si a Palestina como o solo sobre o qual seria construído seu ―Estado nacional‖. Em

primeiro lugar, portanto, deve se ter em mente que este é um conflito fundamentalmente político. Embora

ambos os lados façam frequentes alusões a fundamentos religiosos, o conflito se caracteriza como uma

luta entre dois grupos por um mesmo território. Como diz François Massoulié, ―o conflito se resume a

esse dado fundamental: a ocupação efetiva, simbólica e política por um grupo humano de um território já

habitado por outro grupo humano.‖ (MASSOULIÉ, François. Os conflitos do Oriente Médio. São Paulo:

Editora Ática, 1996, p. 47). 6 A Palestina esteve sob administração britânica desde 1922, após a dissolução do Império Turco-

Otomano, por meio de um Mandato conferido pela Liga das Nações. Com a eclosão da violência na

Palestina entre árabes palestinos e judeus sionistas durante a década de 1930, houve diversas tentativas de

solucionar o impasse. No início de 1947, a Grã-Bretanha entregou a questão à recém-fundada

Organização das Nações Unidas. Em novembro de 1947, foi aprovada a resolução 181 da Assembleia

Geral, que previa a partilha da Palestina em um Estado judeu e um Estado árabe. 7 SALGADO NETO, L. ―A Questão da Palestina em foco: o debate norte-americano sobre a política

externa dos Estados Unidos para o Oriente Médio (1936-1948)‖. In: Anais do V Congresso Mundial da

Associação Internacional de Estudos Americanos (IASA): configurações americanas. Niterói, 2011. 8 Pode-se argumentar contrariamente aos sentimentos humanitários de Truman, já que ele foi o homem

que ordenou o lançamento de duas bombas atômicas sobre o Japão, em agosto de 1945. Porém, no caso

específico dos refugiados dos campos de concentração, agiu, diversas vezes, de acordo com suas

preocupações sobre os refugiados, emitindo ordens expressas aos militares que serviam na área de

responsabilidade dos Estados Unidos para que fossem adotadas medidas que aliviariam a situação dos

DPs. Além disso, providenciou para que muitos desses refugiados fossem repatriados na Europa e tentou

elevar o número de permissões para que judeus entrassem nos Estados Unidos. Sua medida que gerou

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mais controvérsia foi o pedido que fez ao Primeiro-Ministro britânico Clement Attlee, em maio de 1946,

para que autorizasse a entrada de cem mil refugiados judeus na Palestina. 9 MEAD, Walter Russel. Uma orientação especial: a política externa norte-americana e sua influência no

mundo. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2006, p. 72-7. 10

AZEVEDO, Cecília. ―Culturas políticas em confronto: a política externa norte-americana em questão‖.

In: Anais Eletrônicos do IV Encontro da AIPLAC. Maringá, 2004. Disponível em:

<http://www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro6/cecilia_azevedo.pdf> Acesso em: 20 jun. 2011. 11

Cf. RÉMOND, René. ―Uma história presente‖. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política.

2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.11-36. 12

COSTIGLIOLA, Frank & PATTERSON, Tomas. ―Defining and doing the History of United States

foreign policy: a primer‖. In: HOGAN, M. & PATERSON T. Explaining the history of American foreign

relations. Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 10, nota 2. 13

BENSON, Michael. Harry Truman and the founding of Israel. Westport: Praeger Publishers, 1997, p.

77-8. 14

Ibidem, p. 46; RADOSH, Allis; RADOSH, Ronald. op. cit., p. 95. 15

MEAD. op. cit., p. 58-64. 16

Ibidem, p. 74. 17

SMALL, Melvin. Democracy and diplomacy: the impact of domestic politics on U.S. foreign policy

(1789-1994). Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996, p. xi-xiii. 18

BECKER, Jean-Jacques. ―Opinião pública‖. In: RÉMOND, René (org). Por uma história política. Rio

de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, p. 202. 19

SMALL, Melvin. ―Introduction‖. In: SMALL, Melvin (ed.). Public Opinion and historians:

interdisciplinary perspectives. Detroit: Wayne State University Press, 1970, p. 20. 20

COHEN, Bernard. ―Public opinion and policy maker‖. In: SMALL, Melvin (ed.). Public Opinion and

historians: interdisciplinary perspectives. Detroit: Wayne State University Press, 1970, p. 66. 21

SALGADO NETO, Luiz. Entre preocupações humanitárias e cálculos estratégicos: a ambiguidade dos

Estados Unidos no processo de criação do Estado de Israel (1945-1948). 2010. 112f. Trabalho de

Conclusão de Curso (Graduação em História) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.