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Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
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A prática de esporte entre “officiais graduados” e “as simples praças”:
instrumento para “desenvolvimento physico do pessoal” ou prática “em
promiscuidade completa”?
Karina Barbosa Cancella*
Resumo: As disputas esportivas realizadas no interior das Forças Armadas brasileiras
no início do século XX eram controladas por duas entidades reguladoras: a ―Liga de
Sports da Marinha‖ e a ―Liga de Sports do Exército‖. Com rígidas normas com relação
à interação entre os diferentes círculos hierárquicos na prática dos esportes, estas ligas
organizavam suas atividades reforçando a separação de seus militares em todas as
instâncias, transportando ao esporte as distinções políticas existentes em todos os níveis
das instituições militares.
Palavras-chave: Esporte, Ligas Militares, Hierarquia.
Abstract: The sporting competitions held by the Brazilian Armed Forces in the
beginning of 20th century were controlled by two regulators organizations: the "Navy
League of Sports" and the "Army Sports League." Presenting strict rules of interaction
among the different hierarchical circles to practice the sports, these institutions have
organized their activities reinforcing the separation of their militaries in all instances,
carrying to the sport, the distinctions policies from all levels of the military
organizations.
Keywords: Sport, Military Leagues, Hierarchy
As instituições militares brasileiras são organizadas em torno de dois conceitos
basilares: hierarquia e disciplina. Segundo o Estatuto dos Militares,1
a ―hierarquia
militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças
Armadas‖ e a disciplina a ―rigorosa observância e o acatamento integral das leis,
regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar‖, devendo
ser respeitadas em todos os níveis e instâncias da vida dos militares, dentro e fora dos
quartéis.
Estes aspectos definem os processos de interação pessoal e profissional nas
instituições militares, sendo estendidos a todas as atividades realizadas, caracterizando
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as estruturas de distinção a partir dos ―círculos hierárquicos‖, organizados em três níveis
principais: Oficiais (Oficiais Generais, Oficiais Superiores, Oficiais Subalternos), Sub-
oficiais e Praças (Sargentos, Cabos, Marinheiros, Soldados). O convívio social e as
atividades profissionais dos militares devem respeitar esta hierarquização, estando os
subordinados sempre em obrigação de cumprimento disciplinar para com seus
superiores. A não obediência da cadeia hierárquica e do cumprimento das normas e
determinações dentro dos critérios da disciplina podem acarretar sanções, desde uma
advertência até a prisão, dependendo da circunstância e do posto ou graduação do
militar.
A rigorosa observância destes critérios de organização perpassou a história das
instituições militares brasileiras desde suas formações, ainda no século XIX. Em todas
as atividades desenvolvidas, desde suas funções institucionais de defender a Pátria e a
garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem, até as interações sociais corriqueiras,
os critérios de hierarquia e disciplina precisavam ser atendidos com a máxima atenção.
No início do século XX, as Forças Armadas brasileiras (FFAA) eram constituídas por
Exército Brasileiro (EB) e Marinha do Brasil (MB), uma vez que a Força Aérea
Brasileira (FAB) foi criada somente em janeiro de 1941, através do Decreto-Lei nº.
2.961, que estabeleceu a criação do Ministério da Aeronáutica e a transferência de todos
os militares que compunham a Arma de Aeronáutica do Exército e o Corpo de Aviação
Naval para a subordinação daquele Ministério.
Acompanhando o processo de intensificação da disseminação da prática esportiva
no Brasil nas primeiras décadas do novecentos, as duas forças (EB e MB), iniciaram
medidas para reconhecimento institucional e organização destas práticas no interior de
suas estruturas. Apesar de inúmeras modalidades já serem praticadas corriqueiramente
por praças e oficiais do EB e da MB desde o século XIX, somente em 1915 se efetivou
a criação das primeiras entidades reguladores do esporte no interior destas instituições,
sendo consequência de uma preocupação em centralizar o controle da organização dos
jogos já praticados e normatizar os processos de participação nestes. Esta preocupação
acompanhou o processo de estruturação e regulamentação de entidades esportivas e
clubes já identificado no meio civil desde a virada do século XX. A necessidade de
criação de instituições para reger a organização do esporte, tendo uma grande
diversidade de modalidades e clubes surgindo a cada momento, tornava-se cada vez
mais emergente. Já se destacavam, naquele momento, entidades diretivas de
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modalidades como remo (Federação Brasileira de Sociedades de Remo) e futebol (Liga
Metropolitana de Sports Athleticos).
No ano de 1915, o Exército Brasileiro criou sua primeira forma de
regulamentação dos esportes, fundando a Liga Militar de Football. A criação de uma
liga específica de futebol justificava-se por vários militares participarem de equipes dos
principais clubes de futebol do Rio de Janeiro, promovendo competições amistosas
entre os regimentos do Exército onde serviam. Por iniciativa do Tenente Francisco
Mendes, atleta do Fluminense Football Club foi instalado um campo ao lado do 1º.
Regimento de Artilharia Montado, na Vila Militar para a realização das partidas.2
A Liga Militar de Football foi reconhecida institucionalmente através de Aviso do
Ministério da Guerra nº. 966 de 22 de junho de 1915, publicado em Diário Oficial da
União de 29 de junho de 1915, e teve seu funcionamento autorizado pelo então Ministro
José Caetano de Faria sendo facultado ao pessoal dos corpos do Exército a inscrição na
referida Liga e participação em suas atividades.3 O primeiro presidente foi o Coronel
Chrispim Ferreira e seus primeiros cinco anos de atividade foram dedicados à
modalidade futebol.
Em 25 de novembro do mesmo ano de 1915, um grupo de oficiais efetivou a
fundação de uma entidade diretora de esportes navais na sede do Clube Naval que
recebeu o nome de Liga de Sports da Marinha (LSM). A fundação oficial ocorreu em
1915, mas sua regulamentação institucional foi reconhecida a partir da publicação em
Ordem do Dia do Ministério de Negócios da Marinha nº. 01 de 04 de janeiro de 1916
onde o Ministro da Marinha Almirante Alexandrino Faria de Alencar autorizava o
funcionamento da LSM com o seguinte disposto:4
Sr. Chefe de Estado Maior da Armada, declaro-vos, para fins convenientes, que,
approvados os intuitos da Liga de Sports da Marinha, fundada por officiais com
o fim de concorrer para o desenvolvimento physico do pessoal da Armada, por
meio dos jogos e exercícios, com campeonatos annuaes, resolvi permittir que a
citada Liga se corresponda com as autoridades da Marinha, em relação ao que
for necessário a seus fins, e que as autoridades lhe facilitem os meios de acção,
sem prejuízo para o serviço, fazendo-se os jogos sob direção da referida Liga e
seus representantes nos navios, corpos, estabelecimentos, ficando a acção destes
últimos sujeita a approvação dos respectivos comandantes. Saúde e fraternidade.
Assignado Alexandrino Faria de Alencar.
Como referenciado no documento, o objetivo de autorização de funcionamento da
LSM era o ―desenvolvimento physico do pessoal da Armada, por meio de jogos e
exercícios‖, e para tal as autoridades navais deveriam facilitar seus meios de ação para a
organização das atividades esportivas. Neste documento identificam-se algumas
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regulamentações partindo do Ministério da Marinha sobre os processos de organização
e participação nas atividades, destacando a necessidade de autorização dos comandantes
(oficiais superiores) para que seus subordinados participassem das atividades da Liga e
que esta instituição deveria se corresponder com as autoridades navais para a
comunicação de suas propostas, fato este somente possível por se configurar como uma
iniciativa de oficiais da Armada (envolvendo também oficiais superiores), já que os
processos de comunicação e correspondência também deveriam respeitar a cadeia
hierárquica.
As primeiras competições organizadas pela LSM envolviam diferentes
modalidades como o football e os esportes aquáticos remo, vela, water polo e natação,
tradicionalmente praticados por militares da Marinha do Brasil. Entre os anos de 1915,
o ano de fundação da Liga, e 1940, quando foi extinta para a criação do Departamento
de Educação Física da Marinha, registraram-se competições e participação de equipes
pela LSM em diferentes modalidades esportivas. As competições eram realizadas entre
os grupos esportivos que representavam os navios e estabelecimentos da Marinha, entre
estes grupos e equipes do Exército Brasileiro, também registrando-se participações em
disputas com equipes civis.5
Entre 1915 e 1920, o Exército contou com uma liga esportiva criada com o intuito
de atuar na organização da modalidade futebol. No entanto, através dos registros de
competições e correspondências da LSM, foi possível identificar a participação de
equipes do Exército em eventos de outras modalidades como nas disputas anuais da
―Taça Flamengo‖ com competição entre Exército e Marinha em futebol, cabo de guerra
e corrida de estafetas realizadas entre os anos de 1917 e 1924. Ainda como Liga Militar
de Football, o Exército enviou equipes para o Campeonato Acadêmico de Escolas
Superiores (Escola Naval e Escola Militar) nas modalidades de water polo e natação,
sendo registradas edições deste campeonato entre 1919 e 1924.6
Somente em 1920 sua nomenclatura foi alterada para Liga de Sports do Exército
(LSE), conforme aprovado por Aviso do Ministério da Guerra nº. 534 de 31 de julho de
1920 e publicado em Diário Oficial da União de 06 de agosto de 1920.7 Suas atividades,
no entanto, não se ampliaram de maneira significativa no desenvolvimento de outras
modalidades inicialmente. Passou a incorporar outros esportes de forma mais efetiva a
partir de 1922, já com influência da Missão Militar Francesa8 atuante desde 1919 e
comandada pelo General Maurice Gamelin. A partir desta influência, além de
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estabelecer uma nova doutrina militar, outros conceitos sobre a generalização da prática
esportiva passaram a figurar no cotidiano do EB seguindo as diretrizes da Escola de
Joinville Le Pont.9
As Ligas Esportivas Militares (LEM), além de organizar as competições, tinham
como função regulamentar a prática esportiva estabelecendo os critérios para
participação e composição de suas equipes representantes tanto para as competições
internas como para as disputas com equipes civis para as quais eram convidadas. Este
processo de regulamentação e organização envolveu a criação de Diretorias com
responsabilidade de atuar nas diferentes áreas da estrutura das Ligas. As definições
sobre a organização interna da LSM foram efetivadas na primeira reunião de diretoria
com a nomeação de diretores dos diferentes jogos a serem coordenados pela Liga. Além
das funções de Diretor-Presidente, Diretor-Secretário e Diretor-Tesoureiro, foram
criadas as diretorias de ―Serviços de Remo‖, ―Serviços de Vela‖ e ―Serviços de
Football‖.10
A cada ano eram realizadas eleições com voto individual entre os sócios para
seleção daqueles que ocupariam as funções diretivas da instituição nos cargos de Diretor
Presidente, Diretor Tesoureiro e Diretor Secretário, assim como os suplentes. Este
processo era realizado durante as Assembleias Gerais, como registrado em Ata da 1ª.
Assembleia Geral de 20 de novembro de 1916 para a escolha do corpo diretivo para o
ano de 1917.11
Apesar do processo ―democrático‖ de escolha, somente poderiam se
candidatar aos cargos de direção os sócios da Liga que, por sua vez, eram compostos
por oficiais e guardas-marinha, conforme determinações definidas ainda em 1915.12
Desta forma, encontravam-se fora do processo de organização esportiva e definição de
regras e prioridades todos os demais integrantes da Força (marinheiros, cabos, sargentos
e suboficiais), sendo-lhes permitida apenas a participação nas competições desde que
devidamente autorizadas por seus comandantes. Ao estabelecer o regulamento para os
eventos eram criadas categorias distintas para oficiais, suboficiais e praças, mantendo a
estrutura hierárquica como definição da participação esportiva. Com esta organização,
evitava-se não somente que oficiais e praças, por exemplo, competissem uns contra os
outros, mas também que competissem lado a lado nos esportes coletivos.
A composição das equipes esportivas e a participação nas competições
apresentavam fortes características de separação entre os diversos círculos hierárquicos
que organizam o pessoal militar das FFAA. Tanto na LSM como na LSE, foi possível
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identificar declarações textuais reforçando a necessidade de manter-se na prática
esportiva a distinção entre oficias, suboficiais e praças, não sendo bem recebida a
convivência entre estes grupos, mesmo que apenas durante as participações no esporte.
Na Marinha, esta foi uma temática discutida já em suas primeiras reuniões, ainda no ano
de 1915, a fim de determinar as ações na organização de suas primeiras competições.
Na ata da 2ª. Assembleia de Representantes, de 27 de dezembro de 1915 registra-se o
processo de organização das primeiras competições, definindo-se a criação de
categorias para oficiais, suboficiais e praças nas competições de natação, remo e vela.
Para as competições de water polo e futebol, levantaram-se questões sobre a
composição mista das equipes, havendo grupos a favor e contra. Sobre isso, o então
Diretor Secretário Capitão-Tenente Alberto de Lemos Basto, informa que 13
(...) a intenção da Directoria é estabelecer logo que possa os campeonatos de foot
ball e water polo e que, para permitir que todos os navios tomem parte nestes
jogos se estabelecer campeonatos separados para officiaes, sub officiaes e praças
o que, ao menos ao principio, não e possível, pensa propor que o campeonato de
foot ball seja desde já estabelecido para as praças (...)
A questão da composição mista de equipes, com oficiais e praças, foi tema de
debate em alguns momentos ao longo da vida da LSM, mas observando os registros de
organização e de resultados com a manutenção das provas distintas ao longo da década
de 1920, percebe-se a sustentação das ideias de separação baseadas nos círculos
hierárquicos.
No caso da LSE, a primeira normativa textual sobre a composição mista de
equipes foi identificada em Aviso do Ministério da Guerra nº. 23 de 14 de outubro de
1922, assinado pelo então Ministro João Pandiá Calógeras. Este aviso tratava sobre uma
consulta do Comando da 9ª. Companhia de Metralhadoras Pesadas se seria lícita a
participação de um oficial junto com praças em uma festa pública náutica de remo. Em
resposta, determinou-se14
a)Que o regulamento interno dos serviços geraes, sem cogitar propriamente de
casos relativos aos jogos sportivos, manda que ―o superior deve tratar seu
subordinado com estima, consideração e bondade, sem nunca descer a
familiaridade‖; b) Que a observância de círculos, fora do serviço onde estejam
separados os officiais graduados, e as simples praças, mostra a inconveniência de
qualquer promiscuidade; c) Que não devem ser usados entre indivíduos que
fazem parte dos círculos differentes os jogos de dependem sobretudo de
agilidade e do emprego de força physica, taes como foot-ball, o Box, a luta
romana e outros; d) Que será de inteira vantagem que os homens, uma vez
incorporados ao exercito, se tornem ágeis e fortes, pelo cultivo dos jogos
sportivos mais aconselhados; entretanto, a pratica delles, em promiscuidade
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completa, traz serio prejuízo a disciplina, não podendo guardar compostura que
devem ter officiaes e praças em quaesquer situações em que se encontrem; e, e)
Que, em taes condições, não é permittido aos officiaes tomar parte em torneios
sportivos, ao lado de praças, afim de disputarem em commum quaesquer provas.
Saude e Fraternidade – Calogeras.
O uso do termo ―promiscuidade‖ na especificação sobre as aproximações entre
oficiais e seus subordinados ressalta o rigor na aplicação dos círculos hierárquicos no
EB naquele momento. A proibição de participação nas competições com equipes mistas
e em confrontos entre superiores e subordinados foi reforçada em Aviso do Ministério
da Guerra de 03 de junho de 1930, publicado em Diário Oficial de 07 de junho de 1930,
determinando que 15
III — E inconveniente conforme preceitua o art. 292 do R. I. S. G. a
possibilidade de militares de círculos differentes, em torneios sportivos. Essa
disposição, aliás, não é nova, pois o actual regulamento interno dos serviços
geraes apenas consolidou ordens vigentes reguladas pelos avisos ns 23, de 14 de
outubro de 1922 (ministro Calogeras) e nº. 13de 18 de fevereiro de 1926
(Ministro Setembrino).
Tratadas como ―promiscuidade‖ e ―inconvenientes‖, as participações de oficiais e
praças lado a lado em competições esportivas eram reprimidas no Exército, desde os
anos iniciais da LSE, estendendo-se à década de 1930. O mesmo se verifica na LSM a
partir da manutenção das competições distintas, como anteriormente comentado. O rigor
com relação às separações hierárquicas passa por questões disciplinares comuns às
FFAA, sendo uma constante no processo de organização esportiva nas duas instituições.
As questões disciplinares apresentadas na análise deste objeto podem ser
compreendidas a luz das proposições de Michel Foucault,16
que compreende a disciplina
como uma forma de poder e controle sobre o corpo que visa a sua ―domesticação‖. Os
corpos domesticados, ou dóceis como o autor refere, são de mais fácil domínio e
manipulação. O autor explora a concepção de poder a partir da disciplina. A sociedade
está submetida à força da disciplina e, ao mesmo tempo, assume papel de
disciplinadora, uma vez que disciplina para manter a ordem e a produtividade. Todas as
instâncias da sociedade buscam disciplinar umas às outras, como um movimento
contínuo e circular, onde a disciplina e o controle assumem o papel principal de
ordenadores da sociedade e de suas múltiplas abordagens. No caso do objeto desta
pesquisa, a aplicação da disciplina é base de definição das principais atividades das
FFAA, desde o comportamento, os movimentos do corpo e até mesmo em normas sobre
vestimentas (sejam os uniformes ou as roupas fora das organizações militares).
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Sendo as FFAA essencialmente disciplinadoras em suas ações, o transporte desta
configuração para as relações e interações travadas no momento da prática esportiva não
nos apresenta surpresa. No entanto, as rigorosas distinções e distanciamentos
oficialmente normatizados para atividades que, a princípio, não se enquadram no quadro
de ações institucionais destas forças e, portanto, podem ser identificadas como
atividades paralelas ou recreativas, reforçam as questões relacionadas à organização
política destas instituições e sua estrita relação com as bases da hierarquia e da
disciplina. Estes fatores seriam, portanto, definidores não somente das atribuições e
subordinações no interior do organismo institucional, mas também dos locais políticos e
sociais por onde podem transitar os indivíduos e as interações permitidas ou
―promíscuas‖, como o então Ministro da Guerra João Pandiá Calógeras definiu a prática
de esporte entre oficiais e praças do Exército Brasileiro.
A partir da análise dos documentos é possível concluir que mesmo a prática
esportiva sendo introduzida como forma de ―desenvolvimento físico‖, a participação
nas referidas atividades mostrava-se inteiramente enquadrada e definida pelos critérios
hierárquicos estruturadores das instituições militares aplicando-se à participação nas
competições as mesmas prerrogativas e obrigações presentes nas demais áreas de
atuação dos militares brasileiros.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (UFRJ); Integrante do Sport –
Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ); Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior. Orientador: João Manuel Casquinha Malaia Santos e-mail:
[email protected] Contatos: (21) 7881-4579
1 BRASIL. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Disponível
em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm>. Acesso 12 jun. 2011.
2 RIBEIRO, André Morgado. ―Contribuições da Missão Militar Francesa para o desenvolvimento do
desporto no Exército Brasileiro: Comemoração aos 100 anos do início da orientação daquela Missão‖.
Revista de Educação Física. Rio de Janeiro: IPCFEx, p. 9-15, 2009. 3 BRASIL, Diário Oficial da União de 29 de junho de 1915, Seção 1, p. 05.
4 ALENCAR, Alexandrino. Relatório do Ministério de Negócios da Marinha de 1916. Anexo A, p. 01.
5 Cf. Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha - Volume I - Anexo I (1915-1920) Comissão
de Desportos da Marinha; Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha - Volume I - Anexo II
(1920-1922) Comissão de Desportos da Marinha; Livro Histórico Departamento de Esportes da Marinha -
Volume I - Anexo III (1922-1924) Comissão de Desportos da Marinha; Livro Registro de Competições
(1923-1928) Comissão de Desportos da Marinha. 6 Idem.
7 BRASIL, Diário Oficial da União de 06 de agosto de 1915, Seção 1, p. 10
8 Missão Militar Francesa foi enviada ao Brasil com objetivos de modernizar a instrução das tropas com
grande influência no processo de formação de oficiais, em especial no campo doutrinário. Adaptando os
ensinamentos do Exército Francês à realidade nacional brasileira, esta missão esteve em atividade entre
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1919 e 1940 na tentativa de criação de uma doutrina militar institucionalizada no interior do EB, até então
inexistente.
9 MARTINS Luiz Eduardo Almeida; CUNHA, Rafael Soares Pinheiro da; SOEIRO, Renato Souza Pinto.
―O proeficiente papel da Comissão de Desportos do Exército para o desenvolvimento esportivo nacional‖.
Revista do Clube Militar. Rio de Janeiro: Outubro de 2007.
10 ―1ª. Sessão da Diretoria de 16 de dezembro de 1915‖ - Livro Histórico Departamento de Esportes da
Marinha - Volume I - Anexo I. Comissão de Desportos da Marinha.
11 ―1ª. Assembleia Geral de 20 de novembro de 1916‖. Livro Histórico Departamento de Esportes da
Marinha - Volume I - Anexo I, p. 22v e 23. Comissão de Desportos da Marinha. 12
―1ª. Assembleia de Representantes de 24 de dezembro de 1915‖. Livro Histórico Departamento de
Esportes da Marinha - Volume I - Anexo I, p. 3 e 3v. Comissão de Desportos da Marinha. 13
―2ª. Assembleia de Representantes, de 27 de dezembro de 1915‖. Livro Histórico Departamento de
Esportes da Marinha - Volume I - Anexo I, p. 04. Comissão de Desportos da Marinha. 14
CALOGERAS, José. Relatório do Ministério da Guerra de 1922, Anexo AB, p. 136-137.
15 BRASIL, Diário Oficial da União de 07 de junho de 1930, Seção 1, p. 12.
16 FOUCAULT; Michel. (Trad.) VASSALO; Ligia M. Ponde. Vigiar e Punir: nascimento da
prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.
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O realismo socialista como política cultural soviética e do PCB nas artes
plásticas
Karina Pinheiro Fernandes1
Resumo: Neste artigo pretende-se comparar o realismo socialista soviético, arte oficial
desde 1934 na URSS, com a apropriação que o PCB realizou desta vertente artística a
partir de 1945, especialmente nas artes plásticas. Pretende-se, aqui, ressaltar as
condições e funções que permeavam esta produção artística na URSS e no Brasil,
visando destacar as diferenças nos resultados práticos das obras plásticas. Para esta
finalidade serão utilizadas obras do governo de Stalin e ilustrações do jornal Tribuna
Popular (1945-1947) vinculado ao PCB.
Palavras-chave: realismo socialista; PCB; URSS
Abstract: This article aims to compare the Soviet socialist realism, official art in the
USSR since 1934, with the appropriation that PCB held this since 1945, especially in
the visual arts. It is intended here to point out the conditions and functions involved in
this artistic production in the USSR and Brazil, to highlight differences in the
experimental works of arts. Will be used for this purpose works of Stalin's pieces of
art and illustrations of the newspaper Tribuna Popular (1945-1947) linked to the PCB.
Key-words: socialist realism; PCB; USSR
O realismo socialista surgiu como política cultural oficial na União Soviética em
1930 sob o governo de Stalin (1924-1953). A proposta era utilizar a arte de forma bem
clara para o entendimento do povo, e ainda, que os temas fossem afinados com a
realidade dos trabalhadores, suas questões e modos de vida. Esta vertente estética servia
principalmente como um meio de propaganda do governo, pois os artistas produziam
em contribuição ao regime de Stalin. Desde o ano de 1934 até 1945 esta vertente
estética se apresentou como representante dos interesses da classe trabalhadora contra a
arte burguesa, capaz de mostrar uma arte em favor da revolução e definir a burguesia
como inimiga da classe trabalhadora.
Após este período, que coincide com o fim da Segunda Guerra Mundial e com os
primeiros sinais da Guerra Fria, as diretrizes estéticas foram enrijecidas e explicitavam
que a arte deveria mostrar a vida do proletário operário ou camponês, ou seja, a arte
deveria ser didática e alcançar o entendimento das massas mostrando sua realidade
sofrida e sua superação, idéia fulcral da Revolução de 1917. O realismo socialista foi a
arte oficial da União Soviética até a morte de Stalin em 1953, e especialmente depois de
1956 quando seus crimes foram revelados ao mundo, suas ideias seriam negadas
também na URSS.2
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Na década de 1930 o governo de Josef Stalin (1924-1953) alcançava êxito no
desenvolvimento industrial, o que lhe fortalecia no poder. Stalin se cercou ainda de um
aparato ideológico em que o arrocho das liberdades e o controle da produção artística
eram essenciais. Paul Wood explicita a necessidade desta arte para alcançar os objetivos
do Plano Quinquenal, que pretendia grande crescimento de produção para conseguir
quase a autossuficiência.
A União Soviética do final dos anos 20 e começo dos 30 era um local em que se
sacrificava tudo em favor do impulso dado à produção pelo Plano Quinquenal,
da necessidade de construir, virtualmente do nada, o Estado industrial
independente postulado pela noção do ―socialismo em um só país.3
Após o ano de 1945 a União Soviética enfrentou forte censura e terror, quando
foram considerados anticomunistas ou traidores da revolução quaisquer opositores das
diretrizes oficiais. A partir de então será radicalizada a postura soviética em relação à
cultura e à estética4. O realismo socialista passou a ser a única forma de arte permitida, e
como o governo stalinista procurava incutir a ideia de que viviam um regime comunista
no qual todos estavam satisfeitos, esta vertente estética, portanto servia a este fim. No
entanto a arte realista socialista teria grande alcance na sociedade, principalmente por
ser a única vertente estética permitida pelo comitê central soviético, e por isso é
importante esta análise de sua composição. A partir das artes plásticas podemos
observar as condições e funções que permeavam esta produção artística na URSS.
Diante destas condições podemos notar o esforço de imprimir estas ideias nas
formas visuais de arte, como no cartaz abaixo no qual o povo exalta a figura de Stalin e
agita bandeiras vermelhas em apoio ao seu governo. Os rostos mostram felicidade, entre
homens, mulheres e crianças vemos sorrisos e animação com a aparição de seu
governante.
(Cartaz soviético. Querido Stalin – alegria nacional! Sem data.)
No Brasil o Partido Comunista do Brasil havia sido desarticulado após o fracasso
do Levante Comunista em 1935, e apenas em 1943 conseguiu se reestruturar e voltar ao
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cenário político. Na década de 1940 o PCB cresceria em número de filiados, de
candidatos eleitos e de publicações periódicas, disseminando suas perspectivas políticas
e também sua política cultural. 5
Durante a Segunda Guerra Mundial grande parte do
mundo temia e buscava combater a ameaça nazista. Coadunando com o espírito de luta
pela democracia e pela liberdade em alta no mundo, o PCB se posicionava a favor de
uma União Nacional de apoio ao governo brasileiro contra o Eixo e pela entrada do
Brasil nesta guerra. O Estado não pôde, assim, ir contra as movimentações e campanhas
comunistas, pois elas se configuravam como uma voz antinazista6.
Luís Carlos Prestes foi o líder e o porta-voz destas ideias, e os resistentes às
mudanças dentro do Partido provocariam uma cisão, chegando a se afastarem do
mesmo. Em seus discursos, Prestes, o chefe do Partido Comunista do Brasil, deixava
clara a intenção do partido de ampliar suas frentes. A moderação neste momento atraiu
milhares de novos filiados e simpatizantes especialmente quando, a partir de 1945, o
Partido Comunista retornou à legalidade, o que durou até 1947 – quando tornaria a ser
considerado ilegal, culminando, um ano depois, na cassação dos mandatos dos
parlamentares comunistas e no aumento da perseguição aos seus militantes7.
A política cultural do PCB era parte da doutrina de expansão dos ideais
comunistas para as massas. A apropriação que o Partido fez do realismo socialista e a
aplicação promovida para a sociedade brasileira enfocava a necessidade da arte chegar a
classe trabalhadora através de temas brasileiros especialmente aqueles que abordassem a
vida do trabalhador do campo ou da cidade. A partir de 1945 o PCB começou a divulgar
no Brasil as teses do realismo socialista através do jornal Tribuna Popular. Daí em
diante outros periódicos serviriam a este fim, além de publicarem os debates acerca dos
propósitos desta vertente artística travados entre intelectuais, artistas, membros e não
membros do Partido.8
A exaltação do líder político, capaz de trazer a vitória e salvar os trabalhadores do
jugo da burguesia que os explorava foi apropriada pelo PCB, com a diferença que
Joseph Stalin era exaltado por já ter conquistado tal salvação do povo, enquanto o líder
Carlos Prestes era a promessa desta salvação, sendo conhecido como ―Cavaleiro da
Esperança‖.
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(Jornal Tribuna Popular , 18 de setembro de 1945)
Esta página tem um caráter de uma clara homenagem a Carlos Prestes
ocupando quase toda a folha. Os personagens da imagem são poucos e estão
bem de perto e abaixo vem o referido canto de exaltação a Prestes e ao
Partido Comunista do Brasil. Este canto traz uma breve história da relação
do povo com o partido, destacando-se seu papel de ―guia‖ e protetor. O
partido também seria exaltado por ter trazido Prestes para o povo, tirando -o
da prisão e levando- o a ser o maior guia dos trabalhadores. Há neste
momento, uma referência ao papel do PCB na libertação de Prestes da prisão
política no período em que o Partido esteve na ilegalidade, e ainda ao
período posterior no qual Carlos Prestes reafirmou seu destaque no cenário
político e sua popularidade especialmente entre os membros e simpatizantes
do PCB.
A ilustração é feita em três planos distintos. No primeiro plano vemos
o perfil de Prestes com grande destaque, com a cabeça ligeiramente erguida
e o olhar para além, denotando esperança. No segundo plano podemos
observar sete pessoas que parecem estar apoiando Prestes e confirmando as
palavras do canto. Entre estas pessoas há uma criança e duas mulheres, os
homens estão uns de terno outros apenas de camisa. Esta variedade nos
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personagens parece demonstrar a admiração e apoio a Prestes vindas de
diferentes pessoas, podendo ser crianças, mulheres ou homens. No terceiro
plano, vemos uma clara alusão à Coluna Prestes da qual Carlos Prestes foi
líder e afirmou-se como guia dos oprimidos. A partir de então, ficou
conhecido como ―Cavaleiro da Esperança‖, o que só reafirmava seu caráter
heróico, como exalta o canto intitulado: ―canto heróico ao Partido de
Prestes‖. Esta parte da imagem, na qual vemos três homens a cavalo, com
armas e bandeiras e em meio a vegetação, parece ser uma recordação dos
outros personagens, como um sonho que está sempre presente no imaginário
das pessoas quando se fala em Prestes.
A política cultural soviética se pautava no realismo socialista, pois
para o governo soviético e seus teóricos era a forma de arte que poderia
trazer maior identificação e diálogo com os trabalhadores. 9 Outra questão
importante a ser observada é relativa às condições em que vivia o povo na
União Soviética, e o governo era categórico na exposição da satisfação, e
fartura na qual viviam os trabalhadores urbanos e t ambém os rurais. Os
Planos Quinquenais impulsionavam o governo e o aumento da produção, e
para isso estimulavam também as artes, pois garantiam o apoio e o
convencimento de grande parte da população nas modificações pelas quais
passavam a URSS.
―A União Soviética do final dos anos 20 e começo dos 30 era
um local em que se sacrificava tudo em favor do impulso dado
à produção pelo Plano Quinquenal, da necessidade de
construir, virtualmente do nada, o Estado industrial
independente postulado pela noção do ―socialismo em um só
país‖. 10
Nas áreas rurais soviéticas os campos se tornaram propriedade
coletiva, e qualquer desagrado foi abafado pela propaganda de crescimento
da produção e satisfação dos camponeses. Eram os kolkhozes – fazendas
coletivas – tema recorrente nos cartazes de propaganda dos grandes feitos
do governo soviético. A imagem abaixo é um exemplo de um cartaz
soviético que mostra a fartura da produção de grãos no campo, e a felicidade
da camponesa, ao fundo aparecem máquinas que denotam desenvolvi mento
tecnológico na atividade rural. As outras personagens também parecem bem
postas, com roupas limpas, sem rasgos ou qualquer sinal de pobreza.
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(Cartaz soviético. Onda âmbar de grãos de trigo! sem data)
Enquanto na URSS as condições nos Kokhozes eram comemoradas pelo
realismo socialista, no Brasil a condição do PCB de opositor do governo e
propositor de novas políticas públicas apoiado nas ideias comunistas abria
espaço para matérias de caráter crítico e de denúncia das condições do país
e de seu povo. Os problemas nas áreas rurais brasileiras podem ser
destacados pelas ilustrações apresentadas no jornal Tribuna Popular
mostrarem condições bem distintas das que eram divulgadas na União
Soviética.
(Jornal Tribuna Popular,
18 de maio de 1947)
Já a página acima traz
como principal manchete: ―Terras para os fascistas estrangeiros, despejo e escravidão
para os camponeses, nossos irmãos‖ e uma matéria que trata das más condições de
trabalho no campo, dizendo as dificuldades que os trabalhadores rurais passam desde o
norte até o sul do país. A maior crítica está na falta de apoio e atenção do governo a
esses trabalhadores e seus problemas, enquanto o mesmo governo incentivaria a vinda
de milhões de imigrantes vindos da Europa em virtude dos problemas que enfrenta
diante do fim da Segunda Guerra Mundial. Para o jornalista esses imigrantes são um
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problema para o Brasil, pois vão ser mais pessoas que explorarão os trabalhadores
brasileiros, ao invés de virem para trabalhar em áreas pouco povoadas, ocupando o
território nacional.
A matéria atenta para os maiores prejudicados, que seriam os trabalhadores
rurais que ficariam na miséria, e acabariam deixando o campo. A ilustração mostra o
que poderia ser uma família, com um senhor idoso à frente, o único calçado
possivelmente pela idade avançada, com feições de sofrimento e podendo ainda estar
com a saúde fragilizada. Atrás dele há uma mulher, um homem e duas crianças
pequenas, com expressão de fome, descalços e com roupas humildes, descabelados,
olhar desolado, chamando atenção para a condição triste e sofrida em que se encontram
estas pessoas.
As ilustrações analisadas neste artigo apresentam características que especificam
as políticas culturais soviética e do PCB e as diferentes funções do realismo socialista
para cada contexto específico. É importante destacar as formas recorrentes no que diz
respeito aos seus personagens e as expressões e apresentação deles nos dois casos
analisados – a URSS e o Brasil. No jornal Tribuna Popular, vinculado ao Partido
Comunista do Brasil, os personagens são geralmente trabalhadores rurais e urbanos e
suas famílias, mas também figuras como Carlos Prestes, coadunando-se com os temas
das matérias que ilustram. Estes homens, mulheres e ainda crianças geralmente são
apresentados com feições tristes, sofridas ou expressando firmeza e esperança, quando
retratados em alguma manifestação, em alguma luta. Ainda notamos que suas
vestimentas são geralmente ternos, quando em reuniões de massas e protestos,
mostrando seriedade destes homens, mas ainda é comum pessoas retratadas com roupas
bastante humildes, às vezes até esfarrapadas, e descalças quando trabalhadores rurais.
Estas características coadunam-se com o teor das matérias, que nos casos
analisados acima, são de denúncia ou de convocação a protestos. Desta forma, a
seriedade dos temas encontra ressonância nas ilustrações, especialmente na seriedade e
respeitabilidade com que são representadas essas pessoas.
Por outro lado, os cartazes soviéticos apresentavam um povo feliz, que lutou e
venceu a Revolução de 1917, a Primeira Guerra Mundial e teria conquistado o regime
comunista. Portanto, os soviéticos são representados como pessoas satisfeitas com o
regime, que seria representante do povo e de suas vontades políticas e culturais. As
personagens nestes cartazes mostram o apoio ao governo de Stalin, ora felizes com as
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conquistas, ora firmes em apoio às lutas que propõe. A função destes cartazes é incutir
as ideias do regime stalinista no povo, e promover a ideia de satisfação com grandes
conquistas sociais, econômico-produtivas, políticas e culturais. A utilização da arte
realista socialista cabe bem a este propósito, pois não permite interpretações que
pudessem abrir espaço a contrariedades ao governo.
As imagens que ilustram o jornal Tribuna Popular têm uma dupla função a partir
de uma dupla intencionalidade. A primeira intenção seria aproximar e atrair o leitor do
jornal como expectador da ilustração que se identifica com o que está retratado para em
seguida se identificar com as questões levantadas pelas matérias de cunho político,
especialmente. A segunda seria a ampliação do alcance artístico, seguindo um objetivo
mais subjetivo de tornar a arte útil, próxima e a serviço do povo. A partir das ilustrações
analisadas parece que o objetivo de apelo ao leitor poderia mesmo ter sido alcançado,
pois as imagens são persuasivas e dialogam com as matérias que ilustram. No entanto, o
mais importante é observar justamente a relação disposta entre imagem, texto e leitor,
para enfim se aproximar das intenções e posicionamentos do corpo editorial deste
jornal. 11
Por fim, podemos concluir que apesar de condições distintas entre os
produtores e defensores da arte realista socialista na União Soviética e no
Brasil, a propaganda em defesa da via comunista de governo encontrou
espaço fecundo através desta vertente estética, com o infortúnio de cercear
as liberdades artísticas. Esta condição deriva do autoritarismo do governo
stalinista que não considerava possível dar margem à interpretações de sua s
diretrizes, convicções e ações. No Brasil, o PCB , assim como outros
Partidos Comunistas do mundo, se alinhou às diretrizes stalinistas e adotou
o realismo socialista como única via artística capaz de traduzir as ideias do
partido. O estudo desta apropriação do realismo socialista soviético por
parte do PCB é importante para a compreensão de sua política cultural, de
sua atuação no contexto político nacional e o que se assemelha e se
distingue da política cultural soviética na qual se inspira.
1 Karina Pinheiro Fernandes é mestranda em História Social no Programa de Pós Graduação do Instituto
de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ).
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2 STRADA, Vittorio. Da ―revolução cultural‖ ao ―realismo socialista”. HOBSBAWN, Eric. (org.)
História do Marxismo. Paz e Terra, 1989. Volume IX.
3 WOOD, Paul. Realismos e Realidades, capítulo 4. In: FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD,
Paul. Arte Moderna: Práticas e Debates. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A Arte no Entre-Guerras.
Cosac e Naif, 1998.p.312 4 STRADA, Vittorio. Do ―realismo socialista‖ ao zdhanovismo. HOBSBAWN, Eric. (org.) História do
Marxismo. Paz e Terra, 1989. Volume IX. 5 REIS, Daniel Aarão. Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre
1943 e 1964. Pág. 69. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo. História do Marxismo no Brasil.
Volume 5: Partidos e organizações dos anos 20 aos 60. Editora da Unicamp, 2002. 6SEGATTO, José Antônio. Breve História do PCB. Livraria Editora Ciências Humanas. São Paulo,1981.
7CARONE, Edgar. O PCB- 1943 a 1964. Volume 2. Editora Difel, 1982.
8ARAUJO, Mônica da Silva. A arte do partido para o povo: o realismo socialista no Brasil e as relações
entre artistas e PCB(1945-1958). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS-PPGHIS, 2002. 9ZDHANOV, Andrei. As tarefas da literatura na sociedade soviética. Problemas - Revista Mensal de
Cultura Política nº 20 - Agosto-Setembro de 1949. 10
WOOD, Paul. Realismos e Realidades, capítulo 4. In: FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD,
Paul. Arte Moderna: Práticas e Debates. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A Arte no Entre-Guerras.
Cosac e Naif, 1998. p.312. 1111
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O Recife antes da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial
Karl Schurster1
Introdução
―O que você vê neste lugar pobre e miserável? Pelo menos bombas não caem na
sua cabeça!‖2 Johann: alemão fugido da Segunda Guerra Mundial, vendedor de
aspirinas pelo interior do Brasil. Ranulpho: nordestino, homem simples que sonha ir
para o Rio de Janeiro trabalhar e mudar de vida. O cruzamento destas histórias presente
em Cinema, Aspirinas e urubus, é mais um exemplo do que chamamos de Guerra como
metáfora. Como dissemos em texto anterior3 o Brasil não teve seu território destruído
ou invadido pelas forças beligerantes durante o conflito mundial (1939-1945), porém
vivenciou um diário estado de guerra presente na sua imprensa, no cotidiano dos seus
cidadãos, na preparação das suas forças armadas e nas ações governamentais. Neste
sentido, se não tivemos uma guerra com teatro de operações em solo brasileiro, a
tivemos pela construção de práticas, de sociabilidades que não a tornaram real, mas que
fizeram da experiência de preparação para uma guerra um aspecto fundamental da
década de ‘40 no Brasil.
A película de Marcelo Gomes, citada acima, mostra a constante revisão do
conflito pelo cinema, apontando não só a importância da guerra, mas sua capilaridade, o
quanto ela conseguiu penetrar nas sociedades e como as diversas impressões e
significados dados ao conflito mundial são fundamentais para pensar que a história não
se restringe aos chamados grandes atores determinados pela política ou pela própria
historiografia. A própria dinâmica histórica é responsável pela descentralização da
historia. A história é por excelência plural. Em muitos casos é a memória construída de
um evento ou a própria interpretação consolidada pela historiografia centraliza os
acontecimentos em personagens que determinam como o foco do debate selecionando o
que deve ser contado ou lembrado. A historiografia que se dedica aos estudos da
Segunda Guerra Mundial se preocupou/preocupa da década de 1980 aos idos do século
XXI em desvelar histórias abrindo espaços para acompanhar a dinâmica dos processos
históricos. A história é pautada pelo movimento, pela dinâmica, pelas peculiaridades
que envolvem o todo e neste sentido, tratar a guerra esquecendo como as
particularidades destas visões constroem o todo e que quando se trata da visão de um
homem simples e comum como Ranulpho (entendendo esta análise como metafórica)
estamos apontando para a ideia central de que a história só tem significado a quem toca.
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O historiador vienese, Carl Schorske estava certo quando nos alertou de que os
indivíduos não tem obrigação de pensar a história, mas sim de pensar com ela.4
A pouco em artigo nosso intitulado Figura esvaziada de Hitler5 nos questionamos
sobre o conceito que os alemães chamaram de mitmachen, fazer junto, cooperar e a
importância que esta definição trouxe para o entendimento do Terceiro Reich. Mesmo
acreditando na dificuldade de aproximar comparativamente os regimes na Alemanha e
Brasil devido suas evidentes distinções, há um ponto de interseção que são a natureza
destes regimes políticos. Tanto o Brasil quanto a Alemanha estavam sendo governada
por ditaduras e por isso, a utilização do conceito de fazer junto, de cooperação, são
fundamentais tanto para análise de uma como de outra. Se a ditadura implementada
pelo Terceiro Reich representou as expectativas e a esperanças pré-existentes do povo
alemão não podemos dizer diferente do Estado Novo Brasileiro. O governo de exceção
implementado no Brasil em 1937 se sustenta em larga medida através da ideia de que a
população brasileira gradativamente cooperou e consentiu com o regime político.
Nosso objetivo neste artigo é entender e narrar o cotidiano da população
pernambucana antes da Segunda Guerra Mundial apresentando como seu cotidiano foi
alterado pela dinâmica do conflito através da convivência com os norte-americanos na
capital, com a escassez de alimentos, combustíveis, os constantes apagões da cidade e
os exercícios de defesa que eram ensinados costumeiramente a população recifense. Na
cidade do Recife este cotidiano de guerra ficou mais próximo da sociedade através dos
periódicos locais, em especial quatro deles por serem os mais veiculados: Folha da
Manhã, Diário de Pernambuco, Jornal do Commércio e Jornal Pequeno. Estes jornais,
com editoriais diferentes e com objetivos políticos distintos, foram de suma importância
para conectar o Recife aos acontecimentos nacionais e internacionais e é através deles
que pretendemos problematizar o cotidiano da pré entrada do Brasil no conflito
mundial.
Cotidiano, preparação e Guerra
1.0 Recife, a guerra, os americanos...
A guerra não entrou na vida dos recifenses apenas pelos jornais. Era uma realidade [...]
que se não lhes ensangüentava as ruas nem lhes explodia as veias, persistia como ameaça
constante ao seu destino da cidade aberta ao Atlântico.6
A cidade do Recife não teve suas ruas obstruídas por combates, ou as torres de
suas igrejas seculares destruídas por bombardeiros. Contudo, é importante que se
reconheça à importância da capital pernambucana durante esse conflito. Se não foi
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Dresden, El Alamein ou Hiroshima, (sítios de relevo conhecido), tampouco permaneceu
alheio ao turbilhão que se erguia a sua volta. Recife, a cidade dos mercadores aberta ao
oceano, presenciou de local privilegiado um dos mais ativos fronts da guerra: a Batalha
do Atlântico.
A Batalha do Atlântico é tida como a mais longa da história, tendo começado em
1939, com o bloqueio das Ilhas Britânicas, e terminando apenas em 1945, com a derrota
do Reich alemão. Pelo menos desde a Idade Moderna que os países europeus
reconhecem o mar como fonte de poder da Grã-Bretanha, e não foram poucos aqueles
que tentaram isolá-la (a República Holandesa, Napoleão, etc.). Contudo, no começo da
guerra, a marinha de Hitler logrou um bloqueio dos mais eficientes: seus submarinos
cortaram as ligações do Reino Unido com o Atlântico, bombardeando-o sem sequer ser
notado, e uma verdadeira muralha subaquática foi armada diante das Ilhas Britânicas
para sufocá-las e forçá-las ao armistício.
Além disso, os exércitos do Eixo faziam progresso na África do Norte, e em
1941, Dakar, no Senegal, foi ocupada. Diante da ofensiva submarina e da expansão do
Eixo em terras africanas, ficou claro, para os Estados Unidos, que a invasão de terras
americanas não era apenas um temor absurdo, mas algo que cada vez mais se
aproximava da realidade. Isso já era algo corrente desde muito como nos mostra Stetson
Conn e Byron Fairchild:
Rumores sobre o interesse japonês em ilhas no pacífico, situadas ao largo
da costa das Américas, informações sobre reconhecimentos japoneses sob
o disfarce de ‗pesca‘, ao longo das costas do México e da América
Central, rumores sobre o interesse alemão na Baía Samaná, na República
Dominicana, informações sobre conspirações para fomentar revoluções
no Brasil, no Uruguai e na Argentina foram exemplos típicos de fatos que
induziram a um alarme crescente nos círculos do governo (americano)
durante o ano de 1938.7
Onde se encontra o Recife nesse contexto? Numa posição estrategicamente vital
para o esforço de guerra. O nordeste brasileiro, como um todo, era de vital importância
para os Estados Unidos: ainda que os americanos não estivessem (até 1942) em guerra
declarada contra Alemanha e Itália:
Com elas foi encaminhado ao Congresso [...] o projeto chamado ‗Lend
Lease Act‘, uma lei que permitiu aos EUA assegurar o fornecimento de
armamento e outras ajudas às democracias livres, a prazo e por um terço
do valor. Aprovada, os EUA passaram a ser o ‗Arsenal das
Democracias‘.8
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A corrente de suprimentos seguia tanto diretamente para a Inglaterra como
cortava o coração da África até o Oriente Médio, onde existiam possessões britânicas.
Assim, desde 1939 os americanos procuram ampliar sua presença no nordeste brasileiro.
Esta situação só se ampliava diante das vitórias do Eixo no Norte da África: vindos de
Dakar, os italianos – e esse era o temor americano – desembarcariam em praias
nordestinas e colocariam em risco o Canal do Panamá, artéria vital que ligava as duas
linhas costeiras dos Estados Unidos.
Desta feita, já em 1939 os americanos desenvolvem, secretamente, o chamado
Plano de Defesa do ―Hemisfério Arco Íris‖ 9, que considerava:
O saliente nordestino como área estratégica prioritária de defesa
dos Estados Unidos (...) e a sua ocupação por forças americanas numa
decorrência natural da necessidade de tornar efetiva aquela defesa.
Alguns historiadores registraram até recomendação do Departamento de
Guerra de emprego de força, como recurso para ocupar a região. 10
À localização estratégica do Recife em relação à costa africana e ao Canal do
Panamá, devemos somar sua posição de passagem das principais rotas de comércio
interamericanas: como o oriente dominado pelos japoneses, a indústria americana
voltava-se para a América Latina, e essas linhas de suprimento não poderiam, em
hipótese alguma, ser interrompidas.11
Estávamos, então, diante de um Recife
coadjuvante que poderia roubar a cena dos atores principais do conflito, se nada fosse
feito em sentido contrário.
O papel da cidade nesse conflito vem sendo tratado de maneira incipiente pela
bibliografia: a principal fonte para conhecermos essa história está nos livros publicados
pela Biblioteca do Exército e, principalmente, pelo Instituto Histórico da Aeronáutica
(de fato, das três forças a mais diretamente ligada ao Recife foi a Força Aérea, já que
era aqui que ficava o comando aéreo brasileiro). Contudo, a abordagem dos autores
resume-se a listas de batalhas, descrição de aviões e algumas memórias dispersas, sem
uma análise mais profunda a respeito do assunto. Estes autores são importantes para
conhecermos os dados em suas minúcias, mas não vão muito além da superficialidade
dos fatos.
Zélia Gominho, em seu livro Veneza Americana X Mocambópolis, comenta
alguns aspectos da repercussão do conflito entre os recifenses. Por outro lado, a
dissertação da professora Leda Rivas (O Diário de Pernambuco e a II Guerra Mundial
– O Conflito visto por um Jornal de Província) é rica em possibilidades para aqueles
que desejam vasculhar com afinco o dia-a-dia do recifense durante a II Guerra. A autora
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trabalha com o informativo pernambucano, e é em cima dele onde constrói seu texto.
Contudo, como salientaremos mais adiante, muito do que aparecia nos jornais do
período fazia parte da política nacional getulista de convencimento das massas a fim de
propiciar um clima de homogeneidade evitando as contradições sociais existentes. Por
exemplo, o Diário de Pernambuco afirmou que ―a confraternização entre militares
norte-americanos e brasileiros era costumeira.‖ 12
Na realidade, as relações entre as
forças armadas das duas nações eram marcadas muito mais pela tensão que
propriamente pela comunhão: os ―Arquivos da Comissão Militar Mista Brasil - Estados
Unidos‖ 13
revelam que os choques eram bastante comuns e diversas vezes ocorreram
incidentes diplomáticos, sendo o mais sério deles quando um grupo de soldados
americanos desrespeitou símbolos nacionais brasileiros (o hino e a bandeira) e ainda não
obedeceu ao oficial brasileiro que o repreendeu. Enviada carta ao Secretário de Estado
norte-americano, este enviou suas diplomáticas escusas.14
Logo no início do conflito, os americanos exigiram do governo brasileiro
algumas áreas para instalação de suas forças. No Acordo de Cooperação Brasil –
Estados Unidos (de 23 de maio de 1942), essa cessão fica bem clara:
―Artigo VI – O governo brasileiro facultará ao governo norte-americano a
construção de depósitos e instalações, inclusive para o pessoal, assim como
a organização de que carecer, em território nacional, para o aproveitamento
e auxilio de suas forças militares.‖15
Isso foi posto em prática durante a preparação e a entrada do Brasil no conflito
mundial. A Unites States Atlantic Fleet, de Nova York, enviou documento, constando
ser secreto e confidencial, ao Interventor Agamenon Magalhães sobre a construção de
uma base médica, hospital, para auxiliar na estrutura dos norte-americanos em Recife e
que depois de pronta seria mais um legado do acordo de cooperação Brasil – Estados
Unidos:
Excelência, a condição de congestionamento de pessoal acrescida de
grandes atrasos na construção de serviços hospitalares e alojamentos para
oficiais e praças nos obrigou a um exame completo nos edifícios
disponíveis nessa área para ocupação militar. No exame realizado
chegou-se a conclusão que o local mais apropriado para nesses fins é o
edifício em construção em Tejipió. Conquanto tenha inteira compreensão
das necessidades desse hospital para o povo pernambucano também
posso informar que o edifício não ficará pronto para entrar em
funcionamento antes de principio de meados de 1944. Acreditamos que
sem os nossos esforços para aumentar a prioridade do material e sem o
emprego de uma verba extraordinária junto aos construtores não
poderemos conseguir um adiantamento na prontificação do referido
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edifício. Solicito, portanto, de V. Excia, a necessária autorização para a
ocupação do edifício pelas forças navais dos Estados Unidos logo que
consigamos terminá-lo. Essa ocupação será livre de aluguel até 31 de
dezembro de 1944, quando as forças navais dos Estados Unidos
concordam em evacuar o edifício e benfeitorias, deixando-o nas melhores
condições possíveis para o fim que se destina. Nesse caso, as forças do
Atlântico Sul concordam no seguinte: a) deixar o edifício e terrenos em
condições materiais excelentes; b) dotar o edifício de suprimentos
adequados e eficiente de água; c) não fazer mudanças na atual estrutura
ou no projeto do edifício; d) cercar o terreno, embelezar e ajardinar; e)
(...) o necessário para apressar a prontificação do edifício sem ônus extra
para o governo brasileiro; f) quando as forças armadas dos Estados
Unidos evacuarem o edifício todos os melhoramentos ali introduzidos
pelas referidas forças serão deixadas ao governo Brasileiro, sem
obrigações de qualquer espécie.16
Percebemos com isso que a americanização do Recife foi parte extensiva da
política de Boa Vizinhança iniciada anos atrás como um projeto do governo F. D.
Roosevelt. Podemos caracterizar a política de boa vizinhança ―pela maior colaboração
econômica e militar e negociação diplomática, como estratégia de impedir a influência
européia, manter a estabilidade nas Américas e assegurar a liderança norte-americana no
hemisfério.17
Contudo, o que não estava no acordo (e que os Arquivos da Comissão Mista
relatam) é que os americanos passaram a exigir, nessas suas bases em território
brasileiro, extraterritorialidade, ou seja, transformar as bases americanas instaladas no
Brasil em solo americano que implica estar tutelado pelo Estado Maior Norte-
Americano. Os mesmos arquivos mostram o duelo entre o comandante da Força Aérea
brasileira – na figura do Brigadeiro Eduardo Gomes (que se encontrava no Recife) –
contra os comandantes americanos – numa disputa para anular essa ordem. Assim,
percebemos que ainda há muito a ser descoberto sobre a relação americano-brasileira no
Recife dos anos 40, e que a cordialidade não era, de forma alguma, traço absoluto e
inegável dessas relações.
Temos ainda mais informações sobre essa presença: são bastante conhecidas as
dificuldades pelas quais passaram os recifenses durante o conflito:
O bacalhau, desdenhado como comida de pobre se refinava pelo preço de
50$00, ovo a dez tostões, carne verde a sete cruzeiros, além da escassez.
Filas no açougue (...) com o racionamento do combustível, as mercearias
estavam autorizadas a vender uma garrafa de querosene por freguês. 18
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Os americanos aqui sediados, ao contrário, não precisavam se preocupar com
carestia ou desabastecimento: exibiam a sua pujança econômica esbanjando exatamente
aqueles bens que faziam falta à população local: o governo do Estado, por exemplo, a
despeito do racionamento de combustível, enviou telegrama a todas as repartições
policiais informando que os jipes americanos poderiam circular livremente, já que
utilizavam gasolina importada.19
Se os gêneros alimentícios estavam com preços tão
proibitivos, eram em parte por que seguindo as diretrizes da ―Comissão Brasileiro –
Americana de Produção de Gêneros Alimentícios” produzia-se para alimentar os
soldados “gringos‖, enquanto os nativos ficavam com o resto. Ficavam claras as
modificações culturais e sociais da presença estrangeira na capital pernambucana.
Cotidiano e antes da declaração de guerra no Recife
Um dos slogans centrais do periódico Folha da Manhã, de posse do interventor
Agamenon Magalhães, e o mais difundido de Pernambuco foi: ―A edição matutina da
Folha da Manhã insere diariamente um dos serviços telegráficos mais completos da
imprensa brasileira sobre os acontecimentos internacionais, abundantemente
ilustrados.‖20
Este jornal foi o responsável por passar a maioria da população
pernambucana, juntamente com a rádio clube de Pernambuco os acontecimentos
internacionais sobre o desenrolar da guerra que iniciara na Europa em 1939.
Diariamente as notícias internacionais, as falas governamentais locais e nacionais, bem
como aspectos do cotidiano como restaurantes, propagandas comerciais, esportes,
cinema, o dia-a-dia de uma cidade compunham o editorial deste jornal que circulava
pelo Recife em edição matutina e vespertina e por contar com financiamento
governamental era, como disse a própria matéria acima, ―abundantemente ilustrado.‖
No mesmo dia de publicação desta propaganda citada, o interventor Agamenon
Magalhães reproduz em sua coluna, como de costume na terceira página do jornal, uma
fala do presidente Getúlio Vargas onde o mesmo pedia aos brasileiros que trabalhassem
e produzissem o máximo possível para que não faltassem gêneros alimentícios nem
matéria prima para a indústria, deixando claro que essa seria a melhor forma de servir
ao Brasil.21
A fala do presidente vinha acompanhada dos dizeres que o Estado Novo
tinha a autoridade necessária para fazer este apelo por ter sido o responsável pela
criação do clima de ―(...) ordem, confiança e preocupação pelas cosias úteis e sérias.‖22
Foi neste sentido de ordem constituída pela instauração do Estado Novo que Vargas se
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apegou para afirmar que o povo brasileiro não desejava nem outro chefe, nem outro
regime. O Estado Novo era lido pelo governo e pelas instituições nacionais como uma
decisão nacional.23
No dia 28 de janeiro de 1942 o Brasil rompia relações diplomáticas com as
potências do Eixo e os passaportes dos diplomatas da Alemanha, da Itália e do Japão
foram devolvidos. Era o início de novas legislações bem como de um novo caminhar no
cotidiano citadino que se radicalizaria a partir de agosto do referido ano com a
declaração formal de guerra. Pouco tempo depois do rompimento de relações o
presidente Vargas assina um decreto lei com encargos a todos os brasileiros e
estrangeiros residentes ou em trânsito no país e as pessoas jurídicas públicas e de direito
privado. Em linhas gerais o decreto tratava da chamada defesa passiva e se dirigia aos
homes de 15, 21, 45 a 60 anos, assim como os de 21 a 45 não convocados para os
comandos militares e as mulheres de 16 a 40 anos o cumprimento de funções que lhe
foram determinadas pelos órgãos competentes, sob pena de multas e prisão em tempos
de paz impostas pelos delegados da defesa passiva e em tempos de guerra pelos
tribunais militares. O decreto ainda estabelecia a construção de abrigos em prédios de 5
ou mais pavimentos, além de outras medidas de segurança e a imprensa é obrigada a
inserir publicações destinadas a instruir a população das medidas de defesa passiva.24
Esse decreto já representava, claramente, uma alteração no cotidiano da população
brasileira construindo um vigiar e punir que se radicaliza quando o Brasil adentra no
conflito.
Em março de 1942 seria praticado em recife um dos mais importantes e
lembrados exercícios de defesa passiva, o Black-out. O mesmo consistia em apagar
todas as luzes da cidade para proteção por um possível ataque, dificultando a
identificação de possíveis alvos à força inimiga. Através de uma grande propaganda dos
jornais e rádios às 20h30 as sirenes do Diário da Manhã davam o primeiro alarme para
inicio do exercício. A cidade iluminada via as margens do Capibaribe e do Beberibe as
escuras. A Recife das luzes era agora uma cidade em preparação para a guerra. A poesia
e a literatura deram margem a uma preocupação com a guerra e suas repercussões. O
black-out foi a primeira experiência desta guerra como metáfora.
Uma das recorrentes matérias nos jornais pernambucanos se intitulava Economia
de Guerra, nestas, sempre apresentadas por figuras governamentais, no caso da Folha
da Manhã, o próprio interventor, tinham caráter educativo e disciplinador mostrando
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como o Estado estava dando o exemplo a ser seguido pela população em tempos tão
difíceis para o Brasil. Um exemplo bastante significativo foi dado em março de 1942
quando o Estado anunciou a adoção de consumo obrigatório de álcool motor em todos
os serviços públicos: ―os carros oficiais só queimam o carburante nacional. (...) Fizemos
isso antes da guerra, fomos providentes. (...) o que é necessário é que os carros só
andem a serviço e por necessidade urgente.‖25
O governo não demorou a dizer a
população pernambucana o quanto estava vigilante e que todos deveriam compreender a
gravidade do momento cooperando. O Jornal Pequeno trazia uma nota explicativa da
secretaria da Agricultura deixando claro como iria funcionar o racionamento e onde
estariam os locais de atendimento a população e que a Comissão de Controle de
Combustível só daria autorização a quem estivesse de posse da caderneta válida por
trinta dias. Alguns profissionais entrariam na designação de ‗profissões ativas‘ e com
isso ganhariam uma cota de combustíveis. Para evitar os constantes tumultos mediante a
interpretação do que seria ‗profissões ativas‘, as mesmas foram listadas pela comissão:
médicos, arquitetos, construtores, corretores e pracistas, todos os profissionais que no
exercício da sua profissão tenham que se locomover para pontos distantes da cidade.26
Esta é uma das características de uma ditadura: a tentativa de diminuir os espaços
privados transformando tudo em coletividade. No caso da Alemanha essa coletividade
estava voltada para o conceito de raça, no caso do Brasil o de nação trabalhista. Para o
frankfurtiniano Franz Neumann (1900-1954) as ditaduras teriam três características
sociais: sistema econômico, afinidade de classes e estrutura da personalidade.27
No
Brasil isso estava bem definido. A economia estava sendo moldada pelo Estado
controlando a escassez trazidas pelo conflito mundial, a ideia de classes avia sido
suprimida pela ideia de nação e neste sentido o trabalhismo seria esse pensamento e a
estrutura da personalidade era calcada no próprio presidente Vargas, constituindo o que
chamamos de mito de Vargas e os interventores que em larga medida tinham uma
representação tão forte em alguns Estados quanto o próprio presidente. Por isso, quando
tratamos do cotidiano do Recife durante a Segunda Guerra Mundial estamos tratando de
uma cidade, e o Brasil, vivendo sob a vigilância e o controle de uma ditadura.
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Recife ao mesmo tempo em que tinha se transformado
numa cidade apagada devido aos black-outs, era
propagandeada pelo governo e suas concessionárias como
uma cidade moderna ―onde a iluminação elétrica enche as
ruas e os lares de luz, alegria e de vida.‖28
Esse paradoxo foi
constante durante todos os anos de 1942-1945, ao mesmo
tempo em que a guerra trazia a carestia e a necessidade de
uma sociedade educada e disciplinada para atender o
chamado do Estado, não se podia deixar de propagandear a
ideia de que este Estado era moderno e progressista.
Outra questão central que atinge o cotidiano da população, em especial dos
trabalhadores, neste período em que as consequências da guerra foram mais sentidas, foi
o problema salarial. A necessidade de ir a público tranquilizar a sociedade sobre esta
questão fez com que o interventor dedicasse sua coluna a explicar a população como o
governo reagiria para defender a classe trabalhadora.29
Agamenon deixou claro que os
salários estariam condicionados aos preços e que se os preços se elevarem os salários
não poderão ser mantidos abaixo de certo nível. Ainda assim tranquilizar os industriais
se fazia necessário, visto que trabalhadores e industriais eram a base da popularidade
deste regime. Então se fez entender que as indústrias não acumulariam este ônus
permanente em seus custos. Esse jogo político era visto tanto no âmbito Estadual quanto
Federal durante o Estado Novo. A Comissão de Tabelamento foi de fundamental
importância neste sentido, aplicando multas aos comerciantes que infringissem a regra
de tabelamento de preços. Em uma de suas reuniões em 1942 a Comissão de
Tabelamento procura se explicar sobre determinados aumentos questionados pela
população local. Houve certo controle no preço do feijão, mas em relação a carne de
porco e a carne verde de boi as reclamações só aumentavam. A Comissão se justificava
deixando claro que o aumento do preço da carne de porco era provisório e que logo que
a situação se regularizasse o preço voltaria ao seu normal. Já as reclamações sobre a
carne verde de boi vinham em larga medida para a comissão de preços e pesagem.
Segundo o Jornal Pequeno foram encontradas nos açougues em Recife diferenças de até
350 gramas na pesagem, resultando em diversas prisões e multas aos
estabelecimentos.30
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Até o Sr. Kilowatt, o chamado criado elétrico da propaganda da concessionária de
eletricidade Pernambuco Tramways aconselhava em agosto de 1942 a todos os cidadãos
a ―tratarem com muito cuidado os motores e aparelhos que prestam serviço. Se assim
fizerem, agirão dentro do ponto de vista nacional: ECONOMIA! Aliás, a maior parte de
aparelhos e máquinas já não se fabrica para dar lugar à produção dos aviões, navios,
tanques e canhões indispensáveis a VITÓRIA.‖31
Era o chamado esforço coletivo em
prol da pátria como propagandeava o Estado e suas instituições.
Também antes da entrada do Brasil no conflito variados filmes foram lançados
com a temática do nazismo e com a guerra como pano de fundo. Confissões de um
espião nazista, o filme norte-americano Tempestades d‟ Alma (The mortal storn),
considerado o primeiro filme anti-nazista em telas brasileira, lançado nos Estados
Unidos em 1940 e dirigido por Frank Borzage. Logo em seguida é lançado Fuga, com
Robert Taylor com a propaganda: ―(...) era a fuga do terror nazista para o direito de
viver, de amar, de ser feliz!‖32
Entre o cinema, a propaganda e política se construiu a
tela que compõe a cotidiano recifense no que antecede a entrada do Brasil no mais duro
conflito do século XX. Se a guerra não adentrou as ruas do Recife pelas bombas e
canhões, entrou pelos jornais, rádios e películas que quebraram as barreiras de uma
metáfora constituindo uma guerra particular, a guerra em Recife.
No aniversário do 07 de setembro de 1942 m presidente Getúlio Vargas no estádio
de São Genuário para um público de aproximadamente 70 mil pessoas tratado pela rádio
como um ‗grande programa orfeônico para a concentração cívica‘, o presidente fala ao
brasileiros não apenas da República, mas do dever de cívico dos brasileiros para com o
estado de exceção que se instaurou com a entrada do Brasil em agosto no grande
conflito mundial:
Brasileiros! A comemoração do dia da independência que teve nos
últimos anos cunho de puro curso cívico reveste-se hoje de
significação maior, constitui mesmo a continência extraordinária da
vida nacional. Por um ¼ de século as festividades públicas eram
ocasião para demonstrar os esforços do Brasil no sentido do
progresso pacífico e acolher as representações de outros povos que
vinham congratular-se conosco e compartilhar da nossa justa alegria.
A semana da pátria, este ano de 1942, assume o caráter de um
movimento de mobilização gera das forças morais e materiais da
nação. Serve para conclamar os brasileiros ao cumprimento de
obrigações penosas impostas por circunstâncias incontroláveis para
as quais não concorremos, mas a que temos que fazer frente com
quantas energias possamos dispor (...).33
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Era o início de um novo tempo. Os jornais diminuiriam de tamanho para o esforço
de guerra, os racionamentos e as carestias estavam aumentando. Enquanto o conflito na
Europa começava a mudar de rumo com novas estratégias e tecnologias, no Brasil o
acordo com os aliados muda o próprio desenvolvimento da ditadura varguista que
caminhava para marcar sua participação na guerra com o envio de tropas auxiliares ao
exercito americano.
FILMOGRAFIA
GOMES, Marcelo. Cinema, Aspirinas e Urubus. Brasil: Estúdio Dezenove Som e Imagem,
Imovision, 2005.
FONTES
07 de setembro. A hora do Brasil. Estádio de São Genuário. CPDOC. Fundação Getúlio
Vargas. GV; Disco 025 Fr07: LA FC 05Lb 464-485. 1942.
Comissão de Tabelamento de Preços e gêneros Alimentícios. JORNAL PEQUENO.
Recife. APEJE. 1942.
Sr. Kilowatt aconselha. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE. 1942.
Fuga! FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 8 de julho de1942.
Eu fiz este progresso. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 1942.
Ordem Econômica. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE, 1942.
Economia de Guerra. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Março. 1942.
Nota Explicativa da Secretária da Agricultura. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE.
Maio, 1942.
Defesa Passiva Anti Aérea. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro. 1942.
FOLHA DA MANHÃ. APEJE. Recife. 01 de Janeiro de 1942.
O Conselho do Presidente Getúlio Vargas. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 01
de Janeiro de 1942. p. 03.
Um Regime. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro de 1942. p. 03
United States Atlantic Fleet. Headquarters of the Commander Fourth Fleet. c/o Fleet Post
Office, New York – NY. Secreto e pessoal. CPDOC/FGV – Arquivo Agamenon Magalhães.
AGM c 1942-1944.00.00.14. 713.34
1 Doutorando em História Comparada pela UFRJ com estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin,
pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/UFRJ e professor de História Contemporânea
da Universidade Católica de Petrópolis.
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919
2 GOMES, Marcelo. Cinema, Aspirinas e Urubus. Brasil: Estúdio Dezenove Som e Imagem, Imovision,
2005. 3 SCHURSTER, Karl. A Guerra como metáfora: política, propaganda e imprensa no Estado Novo. 1942-
1945. Olinda. Livro Rápido. 2009. 4 SCHORSKE, Carl. Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo.
Companhia das Letras. 2000. 5 SCHURSTER, Karl; SILVA, Francisco Carlos T. da. Figura esvaziada de Hitler. Mostra na Alemanha
levanta a questão se regimes de exceção representam anseios da sociedade. Revista de História da
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. 2011. 6 RIVAS, Leda Maria R. C. O Diário de Pernambuco e a II Guerra Mundial – O Conflito visto por um
Jornal de Província. Dissertação (Mestrado em História). Recife: UFPE/CFCH, 1988. p.338. 7 CONN, Stetson; FAIRCHILD, Byron. A Estrutura de Defesa do Hemisfério Ocidental. Rio de Janeiro.
Biblioteca do Exército Editora. 2000. p.27. 8 SIQUEIRA, Deocécio L. de. Fronteiras: A Patrulha Aérea e o Adeus do Arco e Flecha. Rio de Janeiro:
Revista Aeronáutica Editora, s/d, p.85. 9 O Rainbow I [como era chamado pelos americanos] ―previa a proteção de todo território dos Estados
Unidos (mas não reforço para as Filipinas) e para o restante do Hemisfério Ocidental ao norte da
latitude de 10º meridiano sul, uma linha que parte a América do Sul logo abaixo dos salientes peruano e
brasileiro. (...) o Rainbow I presumia que as democracias da Europa e da América Latina ficariam
neutras, e que somente as forças dos Estados Unidos estariam disponíveis para resistir a um ataque‖.
CONN, Stetson; FAIRCHILD, Byron. op cit. p.31. 10
INSTITUTO HISTÓRICO-CULTURAL DA AERONÁUTICA. História Geral da Aeronáutica
Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; Rio de Janeiro: INCAER, 1990, p. 379. grifo nosso. 11
―A ameaça era tão evidente que o próprio Churchill, com sua Inglaterra em apuros, decidiu desviar
forças para conter o Eixo naquele setor. [o norte da África, para barrar a expansão do Eixo] (...) Havia
também outro ponto a considerar. O Nordeste Brasileiro é um saliente por onde passam as linhas de
navegação marítima unindo as Américas do Norte e do Sul. (...) Era imperativo se preparar o Norte e
Nordeste para eventuais situações ameaçadoras‖. SIQUEIRA. Deoclécio L. de, op cit, p. 88/89. 12
RIOS, Leda Maria R., op cit. p. 261. 13
Arquivos do Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. 14
Este documento encontra-se no Arquivo do Museu Aéreo Espacial do Rio de Janeiro. O historiador
Antonio Pedro Tota nos fala que o processo de americanização da sociedade brasileira quebrou as
possíveis resistências à aproximação política entre os Estados Unidos e o Brasil. ―A política da Boa
Vizinhança de Roosevelt era o instrumento, de amplo espectro, para a execução do plano de
americanização. A sintonia fina da operação ficou a cargo, como veremos, de uma verdadeira ‗fábrica de
ideologias‘, criada pelo governo americano nessa conjuntura mundial‖. TOTA, Antonio Pedro. O
Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia
das Letras. 2000. p.19. O documento discutido acima no texto, nos mostra que em alguns momentos a
relação entre Brasileiros e Norte-Americanos foi marcada por uma tensão, principalmente no que tange o
âmbito das questões militares. Outro exemplo também nos é dado por Tota mostrando que ―mesmo com
todo o esforço de forjar uma imagem mais simpática dos americanos, manifestações de arrogância eram,
às vezes, inevitáveis. O aclamado Orson Welles, teve em algumas ocasiões, comportamento pouco
recomendável. O episodio mais conhecido foi quando, completamente embriagado, jogou pela janela os
moveis do apartamento onde morava no Rio de Janeiro‖. TOTA, Antonio Pedro. Op. Cit. p.181. 15
Apud. SIQUEIRA, Deoclécio L. de, op cit. p. 107. 16
United States Atlantic Fleet. Headquarters of the Commander Fourth Fleet. c/o Fleet Post Office, New
York – NY. Secreto e pessoal. CPDOC/FGV – Arquivo Agamenon Magalhães. AGM c 1942-
1944.00.00.14. 713. 17
PINHEIRO, Letícia. Política Externa Brasileira (1889-2002). Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2004. p.24. 18
GOMINHO, Zélia de O. Veneza Americana x Mucambópolis: o Estado Novo na cidade do Recife
(década de 30 e 40). Recife. CEPE. 1998. p. 162. 19
Fundo de Interventoria, Correspondência Expedida. APEJE. 20
FOLHA DA MANHÃ. APEJE. Recife. 01 de Janeiro de 1942. 21
O Conselho do Presidente Getúlio Vargas. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 01 de Janeiro de
1942. p. 03. 22
Idem. 23
Um Regime. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro de 1942. p. 03 24
Defesa Passiva Anti Aérea. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Fevereiro. 1942.
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25
Economia de Guerra. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. Março. 1942. 26
Nota Explicativa da Secretária da Agricultura. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE. Maio, 1942. 27
NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1969, p.
275. 28
Eu fiz este progresso. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 1942. 29
Ordem Econômica. FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE, 1942. 30
Comissão de Tabelamento de Preços e gêneros Alimentícios. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE.
1942. 31
Sr. Kilowatt aconselha. JORNAL PEQUENO. Recife. APEJE. 1942. 32
Fuga! FOLHA DA MANHÃ. Recife. APEJE. 8 de julho de1942. 33
07 de setembro. A hora do Brasil. Estádio de São Genuário. CPDOC. Fundação Getúlio Vargas. GV;
Disco 025 Fr07: LA FC 05Lb 464-485. 1942.
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Uma proposta de trabalho: sobre as perspectivas etnológicas e os usos literários e
patrimoniais do projeto intelectual de Blaise Cendrars (1924-1949)
KARLA ADRIANA DE AQUINO1
RESUMO: O escritor Blaise Cendrars esteve no Brasil no ano de 1924, viajando com os
modernistas a Minas Gerais. Este ano tornaria-se um marco para o movimento modernista, que
se voltaria para temas nacionais e para a emergência da questão patrimonial no Brasil, para a
qual colaborariam Cendrars, Oswald e Mário de Andrade. A obra de Cendrars, a partir também
de 1924, sofreu uma inflexão, passando da poesia vanguardista para o romance experimental,
marcada pela apropriação de sua experiência brasileira.
PALAVRAS-CHAVES: Blaise Cendrars; descoberta do Brasil; história cultural
SUMMARY: In 1924, Blaise Cendrars traveled with the modernists to Minas Gerais, Brazil.
This year was also the turning point of the modernist movement which would focus on national
themes as well as on the emergence of the national heritage issue in Brazil to which Cendrars,
Oswald and Mario de Andrade would contribute. Also from 1924 onwards, Cendrars‘s work
would undergo an inflection, changing from avant-garde poetry to experimental novel imprinted
by the assimilation of his Brazilian experience.
KEYWORDS: Blaise Cendrars, Brazil Discovery , Cultural History.
a) O Brasil de Blaise Cendrars
Blaise Cendrars, escritor frnaco-suíço cuja obra parece ter circulado
decisivamente entre os artistas modernistas brasileiros, ainda antes de suas viagens ao
Brasil nos anos de 1924, 1926 e 1927, pois já lhes era bastante conhecida “antes mesmo
da Semana de 22”2. Dimensionar sua participação na ―descoberta do Brasil‖ ao lado
dos modernistas é tarefa desafiadora. Em 1924, no Manifesto Pau-Brasil, lançado por
Oswald de Andrade, o único nome estrangeiro mencionado é o de Cendrars, a quem, em
1925, dedica a edição dos poemas de Pau-Brasil: “A Blaise Cendrars por ocasião da
descoberta do Brasil”, menção aos versos de Feuilles de Route.
Cendrars foi acolhido pelos modernistas no Brasil, em 1924, segundo Maria
Teresa de Freitas e Claude Leroy3, como uma espécie de ―agente duplo‖, como disse
Mário de Andrade, ou seja, como um poeta francês vindo da Europa para liberar os
modernistas da França, aliado de suas lutas nacionalistas contra a influência européia.
Ele batizaria o Brasil de sua ―Utopialand‖.
Com o intuito de conhecer as manifestações culturais brasileiras, Blaise Cendrars
viaja para ver o carnaval do Rio de Janeiro, as cidades históricas de Minas Gerais e o
interior de São Paulo. Fora de Cendrars a ideia da viagem às cidades históricas de
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Minas, solicitada a Paulo Prado, ainda antes de partir com destino ao Brasil, com o
objetivo conhecer as tradições, os monumentos históricos do país. Tradições que
mudariam os rumos do movimento modernista brasileiro, dando origem às poesias
―pau-brasil‖ de Oswald de Andrade e a orientação primitivista da pintura de Tarsila do
Amaral4. Essas tradições seriam apropriadas por Cendrars em suas obras, em que
procuraremos investigar a tensão entre respeito etnológico e apropriação estética. É
Cendrars, na mesma viagem a Minas com os modernistas, que anuncia a todos eles sua
decisão de escrever sobre a ―genialidade de Aleijadinho‖5, nunca tendo realizado o
projeto que Mário de Andrade realizaria anos depois.
b) A Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil
Foi ainda Cendrars que, na viagem a Minas, foi incumbido de redigir os estatutos
da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil, primeira entidade do
gênero a ser criada no Brasil6 para proteger o patrimônio histórico nacional. Sua
primeira reunião realizou-se no dia 20 de maio de 1924, na casa de sua fundadora Dona
Olívia Guedes Penteado. Teriam comparecido à reunião, segundo o depoimento de
René Thiollier, o recém-empossado presidente do Estado de São Paulo, Carlos de
Campos e José Carlos de Macedo Soares, além dos frequentadores tradicionais, que
costumavam ser7: Tarsila do Amaral, Blaise Cendrars, Godofredo da Silva Telles, Dona
Carolina Penteado da Silva Telles, Paulo Prado, além de Carlos de Campos e ele
próprio8.
O Comitê Diretor designava Paulo Prado, Dona Olívia Guedes Penteado, Oswald
de Andrade e ―etc‖ como Membros Fundadores. A entidade protetora aí é concebida
como privada, pública não-governamental, seguindo o modelo anglo-americano. Os
estatutos, que permanecem no estágio preliminar de minuta, estabelecem como
finalidade a proteção e conservação dos monumentos históricos do Brasil9, porém o
mais interessante dos estatutos da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do
Brasil são os procedimentos recomendados para proteção e conservação dos bens e o
elenco daquilo que se poderia considerar como patrimônio histórico, que, para além dos
monumentos históricos, inclui uma série de bens de caráter móvel e de caráter imaterial
(como se concebem hoje, de caráter ecológico e de cultura popular) que, durante o
século XX, não foram privilegiados ou mesmo não foram contemplados pela ação do
SPHAN, Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, hoje Instituto
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
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(IPHAN)10
. Por exemplo, caberia ao Comitê de Iniciativa em cada Estado, segundo os
estatutos redigidos por Cendrars, ocupar-se da arte popular em suas diversas
manifestações, das festas tradicionais, da culinária, bem como da arte indígena e das
manifestações culturais dos negros.
Cendrars concebeu, nos estatutos da Sociedade de Amigos dos Monumentos
Históricos do Brasil, uma Sociedade Folclórica Brasileira, o que realizaria Mário de
Andrade, criando em 1937, data também da instituição do SPHAN11
, sob o nome de
Sociedade de Etnografia e Folclore, cujas atividades durariam cerca de dois anos,
ligada ao Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo. De fato, como afirma
Elizabeth Travassos, Mário de Andrade ―foi protagonista de um dos esforços de
institucionalização do folclore e de afirmação da necessidade de torná-lo condizente
com as exigências da produção do saber científico.‖12
Não menos importante parece ter
sido o papel da etnografia e do folclore no trajeto que levaria Cendrars da poesia
vanguardista ao romance, depois de sua primeira viagem ao Brasil. Podemos supor que
Mário de Andrade conhecesse os estatutos de autoria de Cendrars.
Um de nossos interesses neste trabalho é investigar como Mario de Andrade,
Oswald de Andrade e Blaise Cendrars, todos conceptores de anteprojetos visando a
criação de uma instituição ―patrimonial‖ no Brasildas décadas de 1920 e 1930, se
inserem nas disputas que marcaram a emergência de um campo de caráter científico,
voltado para o patrimônio cultural brasileiro, em busca de distinção e autonomia.
Denominamos aqui ―anteprojetos‖ os seguintes textos, redigidos, respectivamente,
em 1924, 1926, 1936: os estatutos da Sociedade de Amigos dos Monumentos Históricos
do Brasil, por Blaise Cendrars; o anteprojeto de criação do Departamento de
Organização e Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil (DODEPAB), por Oswald de
Andrade; e o anteprojeto para criação do Serviço de Patrimônio Artístico Nacional, por
Mário de Andrade. Lembramos que os três textos têm caráter de ―anteprojetos‖, no que
diz respeito à precedência em relação ao Decreto-lei que cria o SPHAN em 1937, não
tendo sido implementados para as suas finalidades institucionais específicas, tal como
concebidos (somente o anteprojeto de Mário de Andrade teria concorrido para a criação
do SPHAN, sem ser adotado).
Esses três anteprojetos primavam pelo respeito etnológico e veiculavam, sem
dúvida, nas ―manifestações populares‖ representadas, matrizes estéticas das obras
literárias de seus autores. Partimos do princípio, portanto, de que esse investimento
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consistiu, nos três casos, num verdadeiro projeto intelectual que estrutura a produção
letrada desses escritores.
No entanto, o discurso - até certo ponto comum - dos modernistas não era
homogêneo. A tarefa deste trabalho consiste, em suma, em identificar, nos projetos
intelectuais de Blaise Cendrars, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, as
representações de ―cultura popular‖ concorrentes, nas décadas de 20 e 30, e expressas,
diversamente, tanto nos respectivos projetos para a criação de entidades de proteção do
patrimônio cultural brasileiro quanto nas suas obras literárias.
Sendo o foco central deste trabalho voltado para o menos conhecido desses
projetos intelectuais - o de Blaise Cendrars -, é possível compreender, particularmente,
os usos de representações do Brasil na sua obra e a função exercida por suas viagens,
particularmente a de 1924 - o que condiz com o fato de 1924 ter sido o ano da virada do
movimento modernista na direção de um mergulho nas raízes nacionais. Nesse sentido,
como diz Alexandre Eulalio13
, quase nenhuma obra do que é considerado pela
historiografia literária o ―segundo período‖ das produções de Blaise Cendrars
negligencia o Brasil.14
Essas obras serão investigadas, lado a lado com obras de
escritores modernistas brasileiros, de modo a dar conta da circulação e dos usos de
tópicas sobre a ―cultura brasileira‖ naquele momento.
c) Os anteprojetos de criação de uma entidade de proteção do patrimônio cultural
brasileiro
Como veremos mais detalhadamente no trabalho a seguir, há semelhanças entre os
três anteprojetos aqui considerados e, sobretudo, exclusões, no Decreto-lei nº 25 de
1937 que institui o SPHAN, de determinados aspectos neles previstos.
O anteprojeto de Mário de Andrade para o SPAN/ Serviço do Patrimônio Artístico
Nacional15
pode, de fato, ter sido assim inspirado pela iniciativa da Sociedade de
Amigos dos Monumentos Históricos, pois há várias semelhanças entre os dois textos e,
de todo modo, as ideias sobre o patrimônio histórico e artístico oriundas da viagem que
os ―modernistas‖ e Blaise Cendrars realizaram a Minas circulavam naquele momento. O
próprio Mário de Andrade, após sua viagem a Minas Gerais em 1919, publica uma série
de ensaios na Revista do Brasil, intitulado a ―Arte Religiosa no Brasil‖, denunciando o
descaso pelas riquezas culturais de São João Del-Rei, Mariana e Vila Rica, vistas como
berço da ―civilização brasileira‖16
. A conservação e o registro deste patrimônio era,
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realmente, uma tarefa à qual Mário de Andrade se dedicaria. Também seu ensaio de
1928, intitulado O Aleijadinho, aproxima os seus interesses dos de Blaise Cendrars. O
anteprojeto de um ―Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico‖, de 1936, concebido
por Mario de Andrade abre espaço, assim como os estatutos de Cendrars, para a
proteção do patrimônio cultural popular, para os bens de caráter imaterial e natural,
como já foi dito. Ambos os projetos citam como bens patrimoniais: bens móveis, como
objetos de uso doméstico, livros e arquivos; as paisagens; a arte popular; a música; a
culinária; as danças. As festas populares são destacadas por Cendrars que também
relaciona as manifestações da cultura indígena e negra, Mário de Andrade relaciona a
necessidade de se preservarem as manifestações culturais indígenas, porém não cita as
manifestações culturais dos negros, mas deixa espaço para as estas no ítem ―Da Arte
Popula
Das oito categorias de bens patrimoniais, relacionadas e conceituadas por Mário
de Andrade, destacam-se a ―Das artes arqueológica e ameríndia‖ e a da ―Arte Popular‖,
que não receberam o mesmo destaque no Decreto-lei nº 2517
. Neste, o único espaço para
o patrimônio de caráter ―popular‖, ou de natureza imaterial ou natural, é aquele que
relaciona - sem especificar ou conceituar, entretanto - os bens que se inscreveriam no
Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. A questão é que no Decreto-
lei nº 25 de 1937 não está explicitado, como no anteprojeto de Mário de Andrade, o que
se entende por ―etnográfico‖. Podemos supor que a precariedade conceitual do Decreto-
lei nº 25 abriu caminho para legitimar uma prática patrimonial que não contemplou essa
natureza de bens, privilegiando os monumentos históricos arquitetônicos.
A ―brecha‖ para a inclusão de bens imateriais que talvez pudesse existir com o
Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, previsto no Decreto-lei nº 25
- cuja utilização restringiu-se praticamente aos bens de natureza arqueológica durante o
século XX, de materialidade evidente - tampouco foi acentuada. Do anteprojeto de
Mário de Andrade, o Decreto-lei dispensou, assim, toda a sua abrangência conceitual,
bem como a correspondência entre museus e Livros do Tombo, mantendo como mais
característico, os quatro livros de Tombo, acrescentando ao primeiro Livro de Tombo
Arqueológico e Etnográfico de Mário de Andrade o termo ―Paisagístico‖ e a previsão de
um Conselho Consultivo presidido pelo ocupante do cargo máximo executivo do órgão-
diretor ou presidente. Além dos quatro Livros do Tombo, o legado do anteprojeto de
Mário de Andrade é, portanto, a previsão do Livro Arqueológico Etnográfico, que, na
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virada do século XXI, tornar-se-ia referência para a criação da legislação que rege o
patrimônio imaterial. Além disso, há a introdução do termo ―tombamento‖, que já
aparecera antes, em projeto de Oswald de Andrade para um órgão de função similar, em
substituição aos termos ―classificação‖ ou ―catalogação‖18
usados na época.
Também o anteprojeto sumário para a criação de um órgão que cuidasse do
patrimônio histórico e artístico nacional de Oswald de Andrade, assim como anteprojeto
de Mário, aproxima-se dos estatutos redigidos por Blaise Cendrars. Logo após a posse
de Washington Luís, seu amigo pessoal, na Presidência da República, em 1926, Oswald
de Andrade entrega-lhe um esboço de criação do Departamento de Organização e
Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil (DODEPAB) - não se sabe se por encomenda
ou por iniciativa própria -, cuja sede seria o Museu Nacional e teria por finalidade
―salvar, inventariar e tombar o patrimônio nacional‖19
. Oswald propunha a criação de
um órgão governamental de repartição pública, cujo alcance de proteção seria mais
restrito. De similar aos estatutos de Cendrars, o projeto de Oswald de Andrade guarda a
articulação entre museus locais e Museu Nacional, bem como o destaque para a
propaganda do patrimônio - também presente no anteprojeto de Mário de Andrade - e na
antevisão do aproveitamento da indústria de turismo para a promoção dos bens e um
certo financiamento autônomo do órgão. Como nos anteprojetos de Blaise Cendrars e de
Mário de Andrade, o anteprojeto de Oswald de Andrade – posterior ao primeiro e
anterior ao segundo - estende o escopo de atuação do órgão, relacionando entre suas
finalidades a necessidade de se proteger as manifestações culturais tradicionais:
―Divulgar e fixar em livros, revistas e pesquisas as nossas tradições, lendas e riquezas
folclóricas‖20
, abarcando assim o que hoje se chama de patrimônio imaterial. Aproxima-
se, assim, do texto de Blaise Cendrars, quando este fala da necessidade de se ocupar ―da
arte popular sob todas as suas formas‖.
Nota-se, pois, a distância entre o que veio a ser, em 1937, o SPHAN e as
intenções dos anteprojetos de Blaise Cendrars, Oswald de Andrade e Mário de Andrade,
no que concerne ao escopo da proteção patrimonial, com o abandono, no Decreto-Lei nº
25 de 1937, das tópicas relacionadas às manifestações culturais populares e aos
conhecimentos tradicionais, tão valorizadas por Cendrars e pelos modernistas. Apesar
de o Decreto-Lei apropriar-se desses discursos que o precederam, aproximando-se deles
em suas finalidades, resta ainda indagar o que foi excluído, comparando, no filigrana
dos textos, as representações, particularmente as de ―popular‖, ―identidade brasileira‖,
―nação‖, entre outras.
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Quando em 1934, Gustavo Capanema assume o Ministério da Educação e Saúde,
já havia interesse de parte da elite intelectual e política reivindicando a proteção do
patrimônio histórico e artístico nacional, com a demanda pela participação do Estado na
questão21
. Lembre-se a série de ensaios de Mário de Andrade na Revista do Brasil,
intitulado a ―Arte Religiosa no Brasil‖22
. Assis Chateaubriand promoveu campanha em
prol desta causa em O Jornal23
. Em 1924, o tema aparece no artigo de Jackson de
Figueiredo intitulado ―A defesa do patrimônio artístico das igrejas‖, publicado na
Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e transcrito na Revista do Brasil de abril de 1924,
comentando a circular de Dom Sebastião Leme, na qual o arcebispo clamava aos
vigários pela preservação do patrimônio histórico e artístico das igrejas24
. Nos anos 20
foram criadas Inspetorias Estaduais de Monumentos Históricos em Minas Gerais
(1926), na Bahia (1927) e em Pernambuco (1928)25
. Há ainda outros três projetos que se
destacaram: do deputado pernambucano Luís Cedro, de 1923, do jurista Jair Lins, de
1925 e do deputado baiano José Wanderley de Araújo Pinho, de 1930.
Em quase todas as importantes análises que consideram as discussões prévias ao
Decreto-Lei de criação do SPHAN encontra-se minimizado o papel da proposta de
Cendrars, expressa na criação da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do
Brasil. Concebida como entidade não-governamental, no plano conceitual, a Sociedade
criada por ele estende sua proteção além dos monumentos arquitetônicos, abarcando os
bens móveis, intangíveis, naturais, as manifestações populares de cultura, destacando as
contribuições indígenas e dos negros, o que era uma novidade no cenário nacional. Do
ponto de vista administrativo, apresenta um modelo descentralizado com ramificações
nos vários estados num sistema nacional, preocupando-se com o uso dos bens tombados
No plano financeiro, trata-se de uma visão capitalista de iniciativa pública, prevendo
subvenções do poder público, acrescidas de rendas próprias institucionais ou advindas
da porcentagem sobre a venda dos bens tombados, além de poderem ser também
comerciais, da venda de livros, fotografias, postais, discos de música brasileira, da
exibição de filmes, dos ingressos dos museus ou da compra e troca de obras de arte;
prevendo ainda a promoção de festas populares, o desenvolvimento do turismo cultural,
a criação de restaurante com culinária tradicional além da publicidade, através da
divulgação e da propaganda com meios tradicionais, como livros, revistas, conferências,
campanhas públicas, e com a nascente indústria cultural26
.
d) O Brasil no projeto intelectual de Blaise Cendrars
O interesse etnológico parece ser determinante no trajeto que leva Blaise
Cendrars da descoberta das tradições culturais do Brasil à virada da sua obra literária, da
poesia ao romance. Cendrars declara ter feito seu aprendizado de romancista no Brasil,
após viagem a Morro Azul, onde conhece Oswaldo Padroso, que se tornaria seu
personagem vinte e cinco anos mais tarde em “La Tour Eiffel sidérale”27
. Como
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afirmam Maria Teresa de Freitas e Claude Leroy, a questão do exotismo mascarava
outra, mais perturbadora: ―a descoberta do Brasil confirmou Cendrars na via que ele
tinha escolhido, não de renegar a estética da modernidade, mas de dissociá-la do
comportamento vanguardista‖28
. A partir de 1924, segundo Michèle Touret, o Brasil
lhe oferece a ocasião de elaborar um discurso explicativo, demonstrativo e fortemente
carregado de ideologia. Em seu primeiro texto sobre sua experiência brasileira, Feuilles
de Route – Le Formose é a ―colagem‖ o procedimento de que Cendrars se vale, ao
introduzir na obra elementos pré-existentes de Viagem nas províncias de São Paulo e
Santa Catarina, escrito por Auguste de Saint-Hilaire, publicado em Paris em 185129
.
Como Remy Gourmont, considerado o ―mestre‖ de Cendrars ele analisa o mundo à luz
de sua experiência brasileira. Seu modelo não é a vida na floresta, mas a fazenda, a
grande propriedade patriarcal, a indústria e o comércio modernos30
. A crítica literária
até os anos 70 menosprezou o encontro de Cendras com o Brasil, mas desde então, este
vem sendo considerado capital para o desenvolvimento de uma ―modernidade outra, não
vanguardista, cuja paisagem e mais genericamente o mundo brasileiro lhe deram o
exemplo e o desejo‖, que encontra em La Tour Eiffel sidérale ―a história cifrada, a
teoria, o princípio e a realização‖31
.
Em Bourlinguer, por exemplo, há o que Maria Teresa de Freitas chama de
―irrupção da História na autobiografia – e sobretudo em uma autobiografia mítica, como
é a de Cendrars -‖, em que o personagem de Paulo Prado assegura a função histórica do
gênero, ―o que é também uma garantia da autenticidade do texto‖32
. Vê-se, no que
Freitas chama de ―espécie de díptico simultâneo dinâmico‖33
, a história do Brasil se
passar em diferentes momentos, da fundação da cidade de São Paulo à modernização
dos grandes centros urbanos carioca e paulista, dos escritos dos primeiros viajantes às
imigrações, da independência política do país à sua entrada na Primeira Grande Guerra
Mundial ao lado dos aliados.
A riqueza das apropriações de ―Brasil‖ na obra de Blaise Cendrars pode ser
configurada, assim, como um verdadeiro projeto intelectual, com consequências
evidentemente literárias, ainda pouco contemplado pelos estudiosos da obra de Cendrars
ou da história da cultura brasileira, de modo geral.
É nesse sentido que o presente trabalho objetiva identificar as diversas
representações de ―cultura popular brasileira‖ presentes nas obras de Blaise Cendrars,
comparando-as às dos escritores modernistas Oswald de Andrade e Mário de Andrade e
aos seus respectivos anteprojetos para constituição de uma entidade de proteção ao
patrimônio histórico e artístico no Brasil, nos anos 20 e 30. Para tanto, busca-se no
projeto intelectual de Blaise Cendrars, por um lado, as relações – ou, por vezes, as
tensões – entre as suas perspectiva etnológica em relação à cultura popular brasileira,
particularmente nos seus textos programáticos (como o anteprojeto de Patrimônio) e,
por outro, entre os gêneros autobiográfico e histórico, particularmente na sua obra
literária. Pretende-se, também, investigar como os três se situam com relação ao
interesse etnológico expresso na busca das tradições brasileiras, a partir de 1924. A
partir da determinação das formas pelas quais se representa a questão patrimonial na
sociedade brasileira dos anos 20 e 30, nos âmbitos intelectual e político, se pode
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verificar em que medida as ideias presentes nos estatutos da Sociedade de Amigos dos
Monumentos Históricos do Brasil redigidos por Cendrars encontram-se presentes
também em outros projetos contemporâneos ou mesmo posteriores. Por fim, este
trabalho busca investigar as razões por que, na medida em que uma determinada
corrente modernista tornou-se hegemônica com a criação do SPHAN, a perspectiva
proposta por Cendrars foi preterida.
A hipótese central deste trabalho é de que as viagens de Blaise Cendrars com os
modernistas ao Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo foram fundamentais para o
seu projeto intelectual, calcado num interesse etnológico e estético, num momento
crucial para a emergência da questão patrimonial no Brasil (que culminou, para ele, com
a criação da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos, como vimos). As
viagens levaram também a uma mudança na produção literária de Cendrars, o que se
pode perceber pelo espaço dedicado ao Brasil na sua obra a partir deste marco temporal,
com a virada de sua obra da poesia ao romance. Buscamos afirmar também que o
anteprojeto patrimonial de Blaise Cendrars (assim como os de Oswald de Andrade e
Mário de Andrade) não foi incorporado pelo Estado, uma vez derrotadas as suas
representações de arte e cultura popular, de nação e de patrimônio histórico e artístico,
por haver um largo espaço para as manifestações de caráter ―imaterial‖. O Decreto-lei
nº 25/37 consagra, assim, um modelo diverso do que se encontra na base do projeto
intelectual de Cendrars e que coube aqui definir.
1 Doutoranda do PPGHIS/UFRJ. Orientadora: Profª. Drª Andrea Daher.
2―E se Oswald conhecia Cendrars através de sua obra que chegava ao Brasil antes mesmo da
Semana de 22, o mesmo se poderia dizer de todos os demais modernistas, em especial Paulo Prado, de
quem Cendrars foi particular amigo até o falecimento dessa grande personalidade de São Paulo‖.
AMARAL, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: FAPESP/ Editora 34,
1997, p. 21. 3 FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction).
Brésil, L’Utopialand de Blaise Cendrars. Actes du colloque de São Paulo, 4-7 août 1997. Ouvrage
publié avec le concours de l‘ Université de São Paulo, de l‘Université Paris X-Nanterre, de La Fondation
Pro Helvetia et du Ministère Français dês Affaires Étrangères. Avec des textes inédits de Blaise Cendrars.
Paris: Harmattan, 1998, pp. 17-25. 4 FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction). Brésil, L’Utopialand de Blaise
Cendrars.Op. cit., 1998, p. 20.
5 AMARAL, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: FAPESP/
Editora 34, 1997, p.18.
6 Esse importante documento encontra-se no Fundo Blaise Cendrars, na Biblioteca Nacional de
Berna e foi publicado por Carlos Augusto Calil in CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do
Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do Patrimônio Histórico‖, Op. cit., 2006, pp.82-83 e 87-89.
7 Segundo carta de Mário de Andrade dirigida a Manuel Bandeira, de 19 de maio do mesmo mês,
CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do
Patrimônio Histórico‖, Op. cit., 2006 , p.81.
8 Id. Ibidem, p. 81.
9 Tradução de C. A. Calil, Id. Ibidem, p. 82/83.
10
Regido pelo Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro de 1937, de autoria de Rodrigo melo Franco
de Andrade, cujo anteprojeto, de 1936, é de autoria de Mário de Andrade, por encomenda do ministro
Gustavo Capanema. 11
Instituído pelo Decreto-Lei nº 25 de 1937, que normatiza a atuação do SPHAN/ Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, criado pela lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, pela qual o Congresso
Nacional aprovou a nova estrutura do MES/ Ministério da Educação e Saúde
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930
12
TRAVASSOS, Elizabeth. ―Mário e o Folclore‖.Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Mário de Andrade, nº 30, 2002. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/
Ministério da Cultura/Secretaria do Livro e da Leitura, 2002.
1313
EULALIO, Alexandre. A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars. 2ª edição revista e
ampliada por Carlos Augusto Calil com Inéditos de Blaise Cendrars. São Paulo: Edusp/ USP/ Imprensa
Oficial: FAPESP, 2001, p.33. 14
De Feuilles de Route I. Le Formose (ilustrado por Tarsila do Amaral, e escrito na viagem de volta à
Europa, quase ao mesmo tempo que o Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade) até Sud-Américaines
(1924); La Métaphysique du Café (1927); Une Nuit dans la Forêt (1929); Histoires Vraies (1937); La Vie
Dangereuse (1938); D‟Outremer à Indigo (1940); L‟Homme Foudroyé (1945); Bourlinguer (1948); Le
Lotissement du Ciel (1949); Trop, C‟est Trop (1957). Cf. CENDRARS, M CENDRARS, Miriam. Blaise
Cendrars- l’or d’un poete. Paris: Découvertes Gallimard, s/d, p.65..
15
ANDRADE, Mário de. ―Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico
Nacional‖. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 30/ 2002. Brasília:
IPHAN/Ministério da Cultura/ Governo Federal, 2002. 16
ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento, 1993. Apud: NOGUEIRA,
Antonio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos. Mário de Andrade e a concepção de
patrimônio e inventário. São Paulo: Editora Hucitec/ FAPESP, Coleção Estudos Brasileiros, 2005, pp. 76-
77.
17
FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Minc/ Iphan, 2005, p. 245-252.
18
NASCIMENTO, Juliana Assis. Mário de Andrade e a cultura tradicional popular e erudita:
das viagens pessoais à missão institucional no Departamento de Cultura e no SPHAN (1924 a 1945),
monografia de conclusão do curso de História. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/Departamento de História,
dez. 2009.
19
CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do
Patrimônio Histórico‖, Op. cit., 2006, p.86. 20
Id. Ibidem, 86.
21
FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Op. cit., p. 82-120 22
ANDRADE, Mário de. A arte religiosa no Brasil. Op. cit., 1993. Apud: NOGUEIRA, Antonio
Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos. Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e
inventário. São Paulo: Editora Hucitec/ FAPESP, Coleção Estudos Brasileiros, 2005, pp. 76-77. 23
CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do
Patrimônio Histórico‖, Op. cit., p.85.
24
Id. Ibidem., p. 85.
25
Id. Ibidem, p. 95.
26
CALIL, Carlos Augusto Machado. ―Sob o Signo do Aleijadinho, Blaise Cendrars precursor do
Patrimônio Histórico‖. Op. cit., 2006, p.84. 27
CENDRARS, Blaise. Le Lotissement du ciel (1949), Gallimard, 1996. 28
FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction). Brésil, L’Utopialand de Blaise Cendrars.
Op. cit., p.22 (tradução minha). 29
MELCHIOR, Reto. ―Feuilles de Route: Feuilles de Collage‖, in FREITAS, Maria Teresa de &
LEROY, Claude (direction). Ibidem, 1998, p.315. 30
Id. Ibidem, p. 209. 31
FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude (direction). Brésil, L’Utopialand de Blaise Cendrars. p.
23 (tradução minha). 32
FREITAS, Maria Teresa. Portrait de Paulo Prado, in FREITAS, Maria Teresa de & LEROY, Claude
(direction) Ibidem, 1998, pp. 36-37 (tradução minha). 33
Id. Ibidem, 1998, p.34.
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O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e o transformismo do Partido
dos Trabalhadores.
Kelly Barreto Videira Chaves
RESUMO: O objeto deste estudo é o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social - CDES, criado pelo governo Lula no ano de 2003, para promover um novo pacto
social que retomasse o desenvolvimento econômico do Brasil com distribuição de renda
para o conjunto da população. Ligado à matriz teórica gramsciana, analisa o
transformismo ocorrido com o Partido dos Trabalhadores através do CDES e da nova
relação entre o Estado e a Sociedade Civil no período de 2003 a 2010.
Palavras-Chave: Sociedade Civil, CDES, Partido dos Trabalhadores
ABSTRACT: The object of this study is the Council for Economic and Social - CDES,
created by Lula's government in 2003 to promote a new social pact taking over Brazil's
economic development with income distribution for the whole population. On the
Gramscian theoretical framework, examines the transformism occurred with the Labor
Party through the CDES and the new relationship between the State and Civil Society in
the period 2003 to 2010.
Keywords: Civil Society, CDES, the Workers' Party
O foco desta pesquisa é identificar no CDES os frutos do transformismo petista
sob o governo de Lula da Silva (2003-2010) através do mapeamento dos princípios
idealizadores do CDES no contexto das campanhas presidenciais e dos posicionamentos
de Lula diante das decisões do CDES durante seus mandatos.
Todos os que elegeram Lula possuíam uma grande expectativa de que houvesse
mudanças no novo governo. As promessas de campanha incluíam a retomada do
crescimento econômico e políticas de distribuição de renda, mas devido à conjuntura
política e econômica de 2003, ou seja, por conta da crise internacional e das opções
políticas de Lula, ao se comprometer com o cumprimento de acordos internacionais e
com os interesses do empresariado brasileiro que o apoiou, restou um limitado espaço
para as novas políticas de desenvolvimento começar a dar os primeiros passos.
A realidade indesejada que se concretizou para os que depositaram esperanças de
profundas mudanças no governo de Lula foi a continuidade com a política
macroeconômica de Fernando Henrique Cardoso que incluía a estabilização da inflação
e do crescimento econômico e a carência de políticas sociais. As limitações impostas ao
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governo Lula e suas primeiras escolhas políticas não tiveram o poder de diminuir a
expectativa dos que acompanhavam ansiosos as possíveis mudanças que deveriam ser
executadas por ele. Frustrada essa expectativa, depois de um certo tempo restou a
pressão para que um novo modelo de desenvolvimento para o país de fato ocorresse.
A formalização da transição para um novo modelo econômico que tivesse a marca
da concertação social foi idealizada por um importante intelectual do Partido dos
Trabalhadores e seu membro histórico, Tarso Genro, que conduziu o conselho nos
períodos 2003/2004 e 2006/2007 e defendeu a criação de um novo bloco social
dirigente, sem vínculos ideológicos ou partidários, que pudesse garantir a coesão social
que sustentasse esse processo de transição1.
Segundo Tarso Genro era necessário eleger temas importantes para o
desenvolvimento do país e buscar a pactuação em torno deles para que essa decisão
fosse hegemônica na sociedade, sem contestações ou impedimentos importantes para
sua realização. Esse entendimento era chamado de concertação por Genro.
Genro entendia que o CDES deveria ser um espaço de conciliação de classes - já
que o novo bloco social dirigente deve abrir mão de posições políticas, ideológicas e
partidárias - e aprofundamento das relações democráticas entre Estado e sociedade pois,
segundo ele, é através dos acordos e não de histerias que são decididos importantes
temas do novo projeto de desenvolvimento.
O CDES representou a função de assessorar o presidente da República na
formulação de políticas que sustentassem um novo modelo de desenvolvimento para o
país. ―Pela primeira vez na história da república, o juízo político do governo é formado
a partir da interação com a sociedade civil.2‖ Sua principal característica é o ideário de
concertação ou pacto social entre os diferentes representantes da sociedade presentes
nele.
Adotamos a idéia gramsciana de sociedade civil, que a considera como espaço
político para que os interesses de classes e frações de classe possam se organizar,
estabelecer e manter a (contra)hegemonia, através da ―guerra de posição‖ na sociedade
capitalista, ou seja, através das disputas entre interesses e projetos de classes opostas.
Segundo Gramsci, o Estado é conquistado pelo grupo hegemônico da sociedade civil
que conquistou o consenso antes mesmo da chegada ao poder, e chegando lá no governo
ele se utiliza do aparato estatal para fazer valer os interesses do grupo o qual representa:
Leis, burocracia, polícia e etc.
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A partir de uma revisão da literatura que abrange tanto o debate conceitual de
Estado, Sociedade Civil e Partido Político em Gramsci como o seu contexto atual à luz
da essência do CDES, buscarei os alicerces teóricos que sustentarão minha análise sobre
o objeto.
O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) é ―uma experiência
inédita na democracia brasileira3‖, é um espaço público não estatal e policlassista, isto é,
onde estão reunidos: empresários, trabalhadores, intelectuais, representantes dos
movimentos sociais e do terceiro setor e ―representa um importante avanço para o
controle social do Estado e para a ampliação de diálogo social4‖, de natureza consultiva,
foi criado no primeiro dia de governo do presidente Lula pela medida provisória n.103
no ano de 2003, em 28 de Maio daquele ano a Lei n. 10.683 regulamentou-o.
As principais produções consensuais desenvolvidas pelo CDES foram: cartas de
concertação que nos dão um panorama dos primeiros passos do exercício de pactuação
entre os conselheiros e dos seus primeiros consensos, a Agenda Nacional de
Desenvolvimento, os Enunciados Estratégicos para o Desenvolvimento e finalmente, a
Agenda para o Novo Ciclo de Desenvolvimento, todos considerados como documentos
estratégicos pela SEDES.
Através da análise dos documentos estratégicos desenvolvidos pelo conselho
durante o primeiro mandato de Lula da Silva podemos compreender melhor a função e a
importância do conselho e avaliar de forma crítica os objetivos que o compõe.
Segundo o Relatório de atividades feito pela SEDES referente às atividades do
CDES em 2003, destaco os seguintes acontecimentos: o encontro que os conselheiros
tiveram com representantes do Banco Mundial para discutir e avaliar as prioridades e
diretrizes do conselho para os próximos quatro anos; os acordos de cooperação
assinados entre o CDES e outros conselhos similares de Portugal, Espanha, Itália,
França e o Comitê Econômico e Social Europeu; a entrada e ascensão do CDES na
Associação Internacional de Conselhos Econômicos e Sociais integrando sua diretoria.
Por último, foram firmados convênios de cooperação com o Banco Mundial, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, a CEPAL, a OIT, a UNESCO, a FGV e a UFRGS
no âmbito do Programa nacional de apoio à concertação.
As cartas de concertação representavam as prioridades para o desenvolvimento do
país e as ações a serem realizadas pela sociedade e pelo governo a fim de alcançá-las.
Foram seis as cartas de concertação5 produzidas pelo CDES: 1) Ação política para a
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mudança e a concertação 2) Ação pelo progresso e inclusão social 3) Fundamentos para
um novo contrato social 4) O desafio da transição e o papel da sociedade: a retomada do
crescimento 5) Caminhos para um novo contrato social: documento de referência para o
debate 6) Política industrial como consenso para uma agenda de Desenvolvimento.
Naquele momento inicial do processo de elaborar as cartas houve a necessidade de os
conselheiros obterem conhecimentos sobre a estruturação desse novo pacto social e de
construírem os diálogos entre os próprios conselheiros de origens sociais, profissionais
e ideológicas tão diversas.
O diálogo e a negociação presentes nas discussões de propostas no CDES são
pressupostos para se chegar a um consenso mínimo entre os diversos interesses lá
representados a fim de resolver questões importantes para o desenvolvimento nacional.
As idéias de pacto, concertação social, ou ainda, de novo contrato social, já
estavam presentes desde o período da campanha presidencial no ano de 2002. Era
possível identificá-las como características importantes do possível futuro governo, que
seriam materializadas principalmente através do CDES.
No primeiro documento divulgado pelo Partido dos Trabalhadores, logo após o
resultado da eleição presidencial que Lula venceu, mais uma vez foi reafirmada a
principal característica do CDES e garantida a sua criação: ―Meu governo terá a marca
do entendimento e da negociação (...) Vamos promover um Pacto Nacional pelo Brasil,
formalizar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (...).6‖
Neste documento que previa a formalização do CDES, é possível compreender
que o objetivo de Lula era promover uma união de forças para que políticas fossem
criadas para beneficiar o conjunto da população e garantir a retomada do
desenvolvimento do país, após as decisões dos governos anteriores que priorizaram a
estabilidade econômica em detrimento do desenvolvimento nacional e das políticas
sociais.
No Brasil há um histórico de conciliação entre as elites e não de concertação
social ou negociação por meio de diálogos ou debates para a criação de novos blocos
sociais, como explicitados acima. 7A conciliação histórica entre as elites brasileiras,
rural e industrial, promoveu a cooptação de movimentos sociais e a exclusão política
das camadas subalternas a fim de manter as relações de poder estabelecidas intactas.
Essa ausência de espaços de participação e de uma cultura de diálogos e
negociações é essencialmente diferente do que se entende com condição para realizar
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processo de concertação. Isso trás dois problemas: primeiro, impõe uma limitação ao
CDES, que será refletida em sua capacidade de estimular ―processos de negociação com
disputa entre interesses e posicionamentos ideológicos diversos‖. Segundo, nos obriga a
refletir sobre ―em que medida a nova arena institucionaliza dinâmicas úteis à construção
de consenso em torno dos caminhos para se alcançar o desenvolvimento‖ 8 apesar da
falta de uma cultura de participação e diálogos civis.
O CDES considera que empresariado e empregados se unam em prol do
desenvolvimento do país. Na sua composição há uma diversidade de representantes da
sociedade: grandes empresários, representantes de movimentos sociais, de sindicatos, de
universidades, religiosos e artistas. Há que se destacar que a maioria dos membros
representa o empresariado.
A hegemonia capitalista entende que é necessário um mundo sem antagonismos
de classes econômicas para alcançar o desenvolvimento e utiliza a noção de Terceira
Via justificada pelo sociólogo inglês Antony Giddens (2001a)9, que entende que esta
seria uma alternativa entre o Estado (primeira via) e o Mercado (segunda via), ou seja,
que através das organizações da sociedade civil (terceira via) algumas funções do estado
seriam exercidas mas sem a referência dos conflitos de classe.
Ellen Wood (2003)10
chama a atenção para o modo como o conceito de sociedade
civil tem sido utilizado atualmente, não exibindo um significado essencialmente
anticapitalista, pois ele tem sido utilizado para inúmeros fins. Há alguns pontos em
comum nesta gama de atuais significados para este conceito: ele identifica uma
potencial arena de liberdade fora do estado, autonomia, pluralidade e associações
voluntárias. Realidade distinta da que Gramsci entendia ―o conceito de sociedade civil
deveria ser, sem ambigüidades, uma arma contra o capitalismo, nunca uma acomodação
a ele‖.
Essa redução do conceito de Sociedade Civil que Wood (2003) chama a atenção,
diz respeito às instituições e relações do sistema capitalista que, dentro da sociedade
civil, passam a ser encaradas no mesmo nível das associações domésticas ou
voluntárias, e dessa forma o mercado passa a ser um objetivo desejável assim como as
liberdades políticas e intelectuais presentes na sociedade civil, e aí a principal
característica da relação de dominação/exploração do sistema capitalista se torna oculta.
A ideologia presente no CDES suscita críticas também de outros autores como
NEVES (2010) e FONTES (2010)11
, que entendem que o CDES surgiu de um ideário
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de construção da hegemonia capitalista para alcançar o progresso através do fim dos
antagonismos entre capital e trabalho. Utilizando o diálogo social para estabelecer uma
nova relação entre Estado e Sociedade Civil. Eliminando a divisão da sociedade em
classes, desmontam-se as organizações populares, permitindo que a dinâmica do capital
se espraie por toda a sociedade de forma natural. Segundo Neves (2010) Essa
hegemonia foi construída a partir dos anos 1990 e 2000 que traçou o objetivo de
alcançar o desenvolvimento com paz social.
Fontes (2010) também discute sobre a ―nova sociabilidade no Brasil
contemporâneo‖ que modificou a Esquerda e a Direita através das diretrizes do Pós-
Modernismo com traços do Liberalismo e que defende uma sociedade solidária e um
capitalismo humanizado, ou seja, a nova sociabilidade oculta as relações de exploração
inerente ao sistema capitalista.
O Estado atua na organização do consenso burguês diante do conjunto das classes
trabalhadoras, por meio de uma nova pedagogia da hegemonia (NEVES, 2005) cuja
atuação se encontra na difusão de categorias como ―diálogo social‖, ―negociação‖,
―pactuação‖, etc. Lideranças do Partido dos Trabalhadores passaram a defender e
aceitar uma espécie de modernização do partido, através da proposta de realização de
reformas, dentro da estrutura capitalista e não apenas através de sua superação como
fora na época de sua fundação.
Esse movimento de mudança no interior do Partido se refletiu nos seus vislumbres
para o Conselho e fez com que aprovasse a idéia concernente aos princípios defendidos
nesse espaço, de eliminar a divisão da sociedade em classes através da concertação
social, para que dessa forma, fosse possível o desmonte das organizações populares,
ligadas a concepção marxista de sociedade de classes, levando a naturalização da
dinâmica do capital por toda a sociedade.
No decorrer da pesquisa investigaremos as seguintes hipóteses:
i. O transformismo do PT permitiu a vitória nas eleições presidenciais de 2003 e
2006, especialmente por conta de acordos com o empresariado brasileiro.
ii. Os princípios norteadores para a criação do CDES estão relacionados ao
transformismo petista.
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iii. O CDES funcionou como espaço de garantia dos acordos assumidos por Lula da
Silva com o empresariado brasileiro.
Nossos principais objetivos são:
i. Estudar os principais documentos oficiais da fundação do Partido dos
Trabalhadores produzidos na década de 1980 e compará-los com os documentos
produzidos a partir da segunda metade da década de 1990 para analisar as principais
mudanças ocorridas na direção ideológica do Partido.
ii. Refletir sobre as mudanças de estratégias utilizadas nas campanhas presidenciais
do Partido dos Trabalhadores nos anos de 1989, 1994, 1998 e 2002.
iii. Discutir o contexto político da idealização e criação do CDES.
iv. Analisar as principais decisões do CDES no período estudado.
v. Examinar os conceitos utilizados pelo CDES para embasar seus objetivos, tais
como concertação social, pacto social, diálogo civil, sociedade civil.
vi. Comparar a mudança de trajetória do PT com os posicionamentos de Lula em
relação às principais discussões que ocorreram no CDES.
Os procedimentos metodológicos a serem utilizados na pesquisa estão associados
à vertente teórica adotada e se expressam nos itens abaixo:
O ponto de partida será destrinchar os documentos que previam a criação do
Conselho, antes mesmo da vitória nas eleições e relacioná-los às mudanças estratégicas
do Partido dos Trabalhadores nas três eleições presidenciais anteriores. Para isso será
necessário o estudo sobre as concepções do Partido na época de sua fundação e o
aprofundamento sobre o crescente movimento de mudança ideológica sofrido no
decorrer dos anos.
Será enfatizado especialmente o contexto da campanha presidencial de 2002
quando fez-se necessário maior aproximação de Lula da Silva com o empresariado
brasileiro. Confrontarei as principais mudanças ideológicas do Partido dos
Trabalhadores expressas nos documentos produzidos pelo conselho e aceitas e/ou
incentivadas por Lula da Silva durante os seus dois governos.
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1 GENRO, Tarso. Democratizar as relações entre governo e sociedade. In: CORREA, Jaime Montalvo (et
al). Novos espaços democráticos: diálogo social no Brasil e a experiência da Espanha. São Paulo: Perseu
Abramo, 2003a.
____________. As Premissas da Concertação, 2003b. Disponível em <http://www.tarsogenro.com.br/>.
Acesso em 30.08.2010.
2 Relatório de Atividades CDES 2003
3 Relatório de Atividades CDES 2003
4 Relatório de Atividades CDES 2003
5 As cartas de concertação encontram-se disponíveis no portal do CDES: www.cdes.gov.br. Utilizaremos
os textos das versões definitivas das cartas e não das que se encontravam em processo de discussão para
reavaliação. 6 SILVA, Luis Inácio Lula da. Um Brasil para Todos. Crescimento, Emprego e Inclusão Social.
Coligação Lula Presidente. Programa de Governo 2002a. Disponível em:
<http://virtualbooks.terra.com.br/osmelhoresautores/planodegovernoLULA.htm>. Acesso em 09/12/2010.
________________________. Compromisso com a Mudança. São Paulo, 2002b. Disponível em
<www.pt.org.br>. Acesso em 11/12/2010.
7 KUNRATH, Romério Jair. CDES: O CONSELHO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E
SOCIAL DO BRASIL. Porto Alegre, 2005, 196p. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação
em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
8 RIBEIRO, Daniela Mesquita de Franco. A construção institucional do CDES: uma dinâmica favorável
ao desenvolvimento? 7º Encontro da ABCP, Recife, 2010.
9 GIDDENS, Antony. A Terceira Via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social
democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001a.
10 WOOD, Ellen. M. Democracia contra o capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.
11 NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: Intelectuais
da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. Paulo: Xamã, 2010. FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital
imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010.
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As funções do horror na literatura brasileira (1855 – 1930)
Lainister de Oliveira Esteves
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir as funções do horror na ficção brasileira do
século XIX. Dividindo os textos em três categorias funcionais; o horror acadêmico; o
horror doméstico e o horror Fin de siècle; analisaremos os diferentes usos dos
dispositivos próprios da literatura grotesca e de terror na configuração da prosa
nacional. Serão avaliadas ainda as apropriações de autores como William Shakespeare,
Lord Byron, E.T.A Hoffmann e Edgar Allan Poe.
Palavras – chave: literatura; horror; grotesca.
Abstract: The aim of this paper is to discuss the functions of horror in brazilian
nineteenth-century fiction. Dividing the text into three functional categories: the
academic horror, the domestic horror and the Fin de siecle horror; will be analyzed the
different uses of grotesque literature and terror in the national prose.Will be evaluated
further appropriations of authors such as William Shakespeare, Lord Byron, ETA
Hoffmann and Edgar Allan Poe.
Keywords: literature; horror; grotesque
Delimitando a construção da ―identidade nacional‖ como a grande missão dos
letrados do século XIX os estudos literários brasileiros, em especial as histórias
literárias, tendem a vincular inelutavelmente o projeto de construção da nacionalidade e
o processo de consolidação da independência política brasileira1 com a autonomização
da produção literária. A literatura forneceria o enredo do país em construção, estando
quase exclusivamente a serviço da composição de um suposto ―vínculo de
nacionalidade‖ forjando um repertório cultural comum.
Em Formação da literatura Brasileira, Antônio Cândido afirma que a literatura
no Brasil começa a ser esboçada com o arcadismo na segunda metade do século XVIII,
mas torna-se mais nítida apenas a partir do século XIX. Isto porque, segundo o autor,
somente nesse período surge um ―sistema de obras ligadas por denominadores comuns
que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase‖. 2 A literatura como sistema
seria diferente das ―manifestações literárias‖ produzidas no Brasil durante os séculos
XVI e XVIII. Estas, ainda que eventualmente possam ser qualificadas como ―obras de
valor‖, seriam frutos de um ―meio imaturo‖ limitador do alcance e da recepção. A noção
de formação de um sistema literário passa pela manifestação histórica de elementos de
―natureza social e psíquica‖, dentre os quais:
um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um
conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a
obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem,
traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar
a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo
como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do
indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de
interpretação das diferentes esferas da realidade.3
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Para Cândido, somente a existência de um sistema literário permite a formação de
uma tradição responsável pela transmissão de padrões de pensamento e comportamento,
capazes de assegurar um movimento contínuo no universo letrado. Sem essa
continuidade ―não há literatura, como fenômeno de civilização‖.4
O autor define seu trabalho como ―uma história dos brasileiros no seu desejo de
ter uma literatura" e afirma que, originalmente, a produção literária brasileira é marcada
por um ―nacionalismo infuso‖ que deixaria a imaginação e a fantasia em segundo plano
tendo em vista ―o peso do sentimento de missão, que acarretava a obrigação tácita de
descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance
geral.‖5
Nesse sentido, a brasilidade torna-se critério de valor e traço de originalidade. Na
perspectiva de Antônio Cândido, em grande medida apropriada dos primeiros
românticos e de críticos estrangeiros como Ferdinand Denis e Almeida Garret, é a
adoção de temas nacionais, com destaque para o indianismo, que começa a marcar a
independência da literatura brasileira. As preocupações com a expressão local e com a
construção do nacional definiriam a agenda literária oitocentista e seriam a chave da
configuração de um sistema que, por sua vez, garantiria a autonomia em relação à
literatura portuguesa.
O paradigma crítico de Cândido associa a construção do campo literário brasileiro
com a ideia de nacionalidade, a literatura produzida no Brasil parece ser dotada de um
único sentido e assume uma única função. Configura-se com um único interesse: o de
representar a identidade nacional. Não por acaso, o momento de invenção da nação
torna-se também o período formação da literatura. Segundo Abel Barros Baptista:
Por força dessa harmonia, fundar a literatura nacional brasileira implicava cortar
com o passado, clássico e colonial: a novidade, a originalidade e a invenção,
lugares-comuns da modernidade literária, reuniram-se e confundiram-se num
único e poderoso lugar comum: a nacionalidade literária, pelo que a consciência da
nacionalidade começou por ser forma específica de consciência da modernidade.6
Nesta chave, o romantismo aparece fundamentalmente como uma forma de
nacionalismo, assumindo o papel de construir e interpretar o Brasil, ou seja, ―a literatura
brasileira seria brasileira antes de ser literatura: um problema do Brasil, antes de mais
do Brasil, que se esgotaria no Brasil‖.7
Para Cândido, ―a nossa literatura é um galho secundário da portuguesa‖, nesse
sentido, o conceito de formação é baseado na germinação desse galho que guarda
semelhanças com o ―arbusto‖ que lhe gerou, mas vai progressivamente adaptando-se ao
solo nativo até se tornar fruto original do mesmo. Na lógica da formação, a questão da
nacionalidade da origem é deslocada para o produto final. A interpretação de Cândido é
fundamentalmente teleológica: a forma literária propriamente brasileira já está inscrita
no processo de incorporação das matrizes portuguesas. Nesse sentido, a produção
letrada colonial é lida como o esboço ou a raiz do sistema que se formaria: ―as
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manifestações literárias seriam assim, digamos, certa parte da literatura portuguesa que
já anuncia o Brasil‖.8
Na obra de Antônio Cândido, a formação do sistema é naturalizada como dever
cívico e todas as disputas convergem para um mesmo resultado. A formação da
literatura brasileira se dá como o resultado do amadurecimento de algumas instituições e
é acelerada por um tipo de ethos nacionalista que teria se manifestado entre os homens
de letras. Ainda que não se possa negar que esses agentes articularam projetos
nacionalistas para as letras, é preciso considerar uma série de questões que estão em
jogo, ressaltando que esse processo não se dá como decorrência ―natural‖ da
independência política, mas é organizado a partir de projetos que não se orientam
exclusivamente pelo ―desejo de ter uma literatura‖ que reflita a ―cor local‖.
É possível considerar outros aspectos da produção e do consumo de literatura no
Brasil oitocentista. Em Como e porque sou romancista, escrito em 1873 e publicado em
1893 pela tipografia Leuziner, José de Alencar afirma:
Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns cadernos escritos em letra
miúda e conchegada. Eram o meu tesouro literário. Ali estavam fragmentos de
romances, alguns apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem
princípio. De charadas e versos, nem lembrança. Estas flores efêmeras das
primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas dos meus canhenhos
e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas secas das mangueiras, a cuja
sombra folgara aquele ano feliz de minha infância. Nessa época tinha eu dois
moldes para o romance. Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o
recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um
castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma capela gótica
frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.
O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa pitoresca do meu amigo
Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças e perfumes agrestes. Aí
a cena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante
arroio que a bordava de recamos cristalinos. Tudo isto, porém, era esfumilho que
mais tarde devia apagar-se.9
Na passagem se define uma tradição que serve de referência para o entendimento
do autor acerca do romance. O modelo ―merencório‖, soturno, alude ao gótico, ao
misterioso e ao horror e o molde ―risonho‖ remete a um universo campestre, leve e
cheio de cores. Concentrando-se no primeiro, efetivamente objeto deste projeto, é
possível pensar que obras literárias ligadas à estética grotesca,10
que faz uso de
elementos voltados para o horror circularam no Brasil do século XIX. Nesse sentido, é
possível analisar a circulação de autores como Marques de Sade, Lord Byron, Horace
Walpole, Daniel Dafoe, Edgar Allan Poe, Maupassant, E.T.A Hoffmann entre letrados
brasileiros.
Considerando, por exemplo, a publicação de Noites da taverna (1855) de Álvares
de Azevedo (obra consagrada pela crítica como expoente máximo da ficção ultra-
romântica e sombria); Sem olhos, escrito por Machado de Assis e publicado no Jornal
das Famílias entre dezembro de 1876 e fevereiro de 1877 e o romance As mulheres
fatais de Claudio de Souza, publicado em 1928, observam-se diferentes usos de
elementos próprios das narrativas grotescas e obscuras cujas matrizes remetem a obras
de língua inglesa, francesa e alemã. Nesse percurso, o ―terror‖ se estabelece em
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diferentes modalidades, assume funções variadas e se destaca na configuração da prosa
ficcional no Brasil.
Os textos ficcionais de Álvares de Azevedo (incluindo Noites da taverna, e O
livro de Fra. Gondiciário) estão diretamente vinculados a essa ―tradição‖ e configuram
tipos característicos de narrativas de terror, obras estruturadas em torno do suspense
sombrio do sangue e do desejo, destinadas a um público específico: jovens estudantes
universitários interessados em literatura ultra-romântica. Permeada de citações a
Bocage, Byron, Dante, Shakespeare, Spinoza, Homero, Noites na taverna encena os
dramas do horror com histórias macabras que se pretendem alicerçadas em determinada
tradição letrada. O palco e os monólogos de cada personagem estão estrategicamente
crivados de referências legitimadoras. Antes que Solfieri passe a narrar sua história,
tem-se a seguinte passagem:
—Agora ouvi-me, senhores! Entre uma saúde e uma baforada de fumaça, quando
as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como
os braços do carniceiro no cepo gotejaste, o que nos cabe é uma historia
sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos - como Hoffmann os delirava ao
clarão dourado do Johannisberg! 11
Destaca-se a citação a Hoffmann e a definição de conto fantástico. O escritor
alemão aparece como referencia em termos de histórias macabras, seus contos
fantásticos orientam a fala de Solfieri. Usando Hoffmann, Álvares de Azevedo narra o
terror, a fantasia, o amor e a morte organizando a trama entre sexo, fetiches e cadáveres
transformados em alvos de desejo sexual. A perversão e a luxúria são os eixos de um
ultra-romantismo produzido e consumido, predominantemente, nos arredores das
faculdades de São Paulo.
Dalmo ou os mistérios da noite de Luís Ramos Figueira se enquadra na mesma
categoria. Publicado em 1863, o romance narra a história de um homem que vaga pelas
ruas de São Paulo à noite. Os caminhos errantes, os vícios noturnos definem o destino
do personagem principal, levado a se arrepender em nome do amor. O tom sombrio e
macabro prevalece ao longo da narrativa repleta de reflexões sobre Deus e a morte. Os
momentos finais trazem o clímax da redenção do herói no cemitério, entre coveiros e
caixões. A primeira edição feita pela Tipografia Literária traz na primeira página, logo
abaixo do nome, a informação de que o autor é ―bacharel em Belas-letras e estudante do
quarto ano da faculdade de direito de São Paulo‖12
. O destaque para os dados se articula
com o interesse em situar a obra, demarcando um lugar, deixando claro para o leitor que
ele estará diante do texto romântico de um estudante de direito, a filiação a Álvares de
Azevedo, por exemplo, tende a se estabelecer imediatamente.
Periódicos como O Guaianá, O Caiaba, O Acayaba e Forum Literário, editados
durante as décadas de cinqüenta e sessenta do século XIX traziam narrativas macabras
de jovens escritores de São Paulo, dentre eles Lindorf E.F França; Leonel de Alencar;
Félix Xavier da Cunha, Américo Lobo e J.f de Menezes. Os temas variavam, mas em
geral são histórias que destacam a face horrível da perversão sexual e dos vícios. O
macabro está a serviço da encenação do excesso e da desmedida o que por sua vez serve
a uma determinada representação da vida boemia romântica e errante. O horror
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pervertido funciona como elemento de ligação com uma tradição literária que remonta a
Sade, Byron e Hoffmann e oferece argumentos que definem a fetichização da vida
literária.
Outra vertente de literatura grotesca pode ser encontrada em romances e
publicações periódica voltadas para um público basicamente doméstico e feminino. O
grande locus desse tipo de produção foi o Jornal das Famílias, do editor francês Baptiste
Louis Garnier publicado entre 1863 e 1878. Entre receitas culinárias, dicas de moda e
economia doméstica, o periódico quinzenal trazia histórias macabras para deleite das
leitoras. D. Maria Medeiros de Albuquerque; Carlos Nodier; Jose ferreira de Meneses;
D. C Figueiras; Viriato Duarte, além de Machado de Assis, estão entre os colaboradores
mais constantes. Em geral são histórias de amor que trazem elementos macabros e finais
cheios de suspense e morte.
Um exemplo marcante é A mão de Deus de D. Maria Medeiros de Albuqerque.
Neste conto publicado em Julho de 1867, Padre Arsênio vai orar por uma mulher muito
enferma em Lisboa. Em determinado momento Leonor começa a se debater e sangrar
pela boca e o padre descobre sua história. Sua vida fora marcada pela luxúria e
devassidão, casa-se com Henrique que abandonou Maria e depois Albertina para ficar
com ela. Maria enlouquece e morre; Albertina ganha herança e fica rica; Leonor morre
de forma horrível. Henrique se redime casando com Albertina. No dia da morte da vilã:
Os relâmpagos penetravam pelas fendas das janelas e alumiavam o simples
aposento, a chuva em torrentes, impelida por um vento furioso, batia com estrondo
contra as vidraças, e a trovoada achava-se já tão próxima que os trovões abalavam
toda a casa!
O estado da enferma era horrível! Quando a vi também julguei que aquele pobre
corpo em poucas horas deixaria de padecer e, contudo, ha três dias que se conserva
agonizante, tendo perfeitos os seus sentidos! Já vedes que é horroroso!13
O conto mistura horror, devassidão, pecado e redenção. Um exemplo típico do
tipo de literatura veiculada no jornal que traz para o universo doméstico exemplos de
aventura e libertinagem normalmente castigados pelo destino. Machado de Assis foi
outro colaborador constante. Dentre seus textos destaca-se Sem olhos. Publicado entre
dezembro 1876 e fevereiro de 1877 traz a sombria história de amor contada por um
homem em seu leito de morte. A visão de uma mulher sem olhos assombra o
protagonista confundindo sonho e realidade. A narrativa levanta questões quanto ao
interesse de leitores por histórias fantásticas e escabrosas e sugere que o consumo desse
tipo de narrativa seria mais comum do que se pode imaginar em um primeiro momento.
No entanto a relação de Machado de Assis com o grotesco não se limita ao
referido jornal A causa secreta (publicado na forma de folhetins na Gazeta de notícias
em 1855) e A mulher pálida (publicado em A Estação, 1881) apresentam outra
modalidade de horror, mais articulado com os paradigmas realistas: tem-se a inserção
do elemento macabro e misterioso em histórias configuradas menos em torno do
fantástico do que a partir da exploração de um realismo aterrador, cruel e silencioso. No
primeiro conto, consagrado pela crítica como um clássico das letras brasileiras, é
narrado o drama de um homem que sente prazer em observar a dor alheia. A primeira
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publicação em livro é de 1896, na antologia Várias histórias. Nele, Fortunado, homem
de desejos macabros, experimenta a morte de sua mulher como espetáculo.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do
marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e
frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições
da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte.
Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de
agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela
expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. 14
O fetiche soturno, o desenrolar da decomposição, entram em cena para representar
o mistério do que não pode ser representado: é o absurdo moral, o fantástico
inexplicável da realidade cujo ápice se dá na observação silenciosa de Fortunato diante
da traição pós-morte do amigo Garcia que beija intensamente o cadáver Maria Luísa.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não
pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as
lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável
desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor
moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. 15
Em A mulher pálida Máximo passa a vida a procurar a mulher mais pálida do
mundo, recusa bons casamentos em nome desse desejo curioso.
A vizinha morreu daí a duas semanas; Máximo levou-a ao cemitério.
Mês e meio depois, uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever
uma carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu. Antes
de cair teve tempo de murmurar.
— Pálida... pálida...
Uns pensavam que ele se referia à morte, como a noiva mais pálida, que ia enfim
desposar, outros, acreditaram que eram saudades da dama tísica, outros que de
Eulália, etc... Alguns crêem simplesmente que ele estava doido; e esta opinião,
posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim
que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors,
etc.16
O silêncio perturbador que realça o mistério, que encerra a trama sem oferecer
respostas objetivas, anuncia o horror do que não cabe ser dito. O grotesco assustador é o
vazio, o indecifrável pontua a trama verossímil, o realismo encontra seu limite, resta o
que não cabe representação. A relação de Machado de Assis com histórias sombrias, no
entanto, não se limita a esses dois contos, vale lembrar que o autor, em 1883, traduziu o
poema O corvo, de Edgar Allan Poe, uma das maiores autoridades modernas em termos
de ficção sombria.
Demônios, de Aluísio Azevedo, publicado inicialmente na Gazeta de Notícias, em
1891, e em uma seleta de mesmo nome lançada em 1893, narra os horrores de uma noite
que parece não ter fim. No jornal, a história foi contada em treze capítulos e o suspense
é intensificado ao final de cada uma dessas partes. Depois de perceber que o dia não
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voltaria a nascer o personagem principal vai à procura dos outros moradores da pensão
onde mora;
E corri aos outros quartos, e já sem bater fui arrombando as portas que encontrei
fechadas. A luz da minha vela, cada vez mais lívida, parecia, como eu, tiritar de
medo. Oh! Que terrível momento! Que terrível momento! Era como se em torno
de mim o nada insondável e tenebroso escancarasse, para devorar-me, a sua
enorme boca viscosa e sôfrega. Por todas aquelas camas, que eu percorria como
um louco, só tateava corpos enregelados e hirtos.
Não encontrava ninguém com vida; ninguém! Era a morte geral! A morte
completa! Uma tragédia silenciosa e terrível, com um único espectador, que era eu. 17
O terror dramatizado na sucessão de cadáveres, na tensão dos encontros com a
morte alude aos recursos típicos do gênero. Neste conto Aluísio de Azevedo flerta
diretamente com a tradição apresentada por Alencar. Os quartos escuros da pensão, as
luzes das velas revelando corpos funcionam como a ―capela gótica‖ ou as ―ruínas do
castelo‖ de Horace Walpole.18
Em outra passagem:
E os nossos pés, num misterioso trabalho subterrâneo, continuavam a lançar pelas
entranhas da terra as suas longas e insaciáveis raízes; e os dedos das nossas mãos
continuavam a multiplicar-se, a crescer e a esfolhar, como galhos de uma árvore
que reverdece. Nossos olhos desfizeram-se em goma espessa e escorreram-nos
pela crosta da cara, secando depois como resina; e das suas órbitas vazias
começavam a brotar muitos rebentões viçosos. Os dentes despregaram-se, um por
um, caindo de per si, e as nossas bocas murcharam-se inúteis, vindo, tanto delas,
como de nossas ventas já sem faro, novas vergônteas e renovos que abriam novas
folhas e novas brácteas. E agora só por estas e pelas extensas raízes de nossos pés
é que nos alimentávamos para viver. 19
O herói e sua amada Laura (única sobrevivente da tragédia misteriosa)
transformam-se em um tipo de árvore. A cena traz elementos fantásticos próprios da
lógica ficcional grotesca. Em Demônios a preocupação do autor de clássicos como O
Cortiço e Casa de Pensão desloca-se da realidade da população carioca no século XIX
para as possibilidades do inverossímil ficcional, ou seja, um Aluísio Azevedo menos
naturalista e mais sobrenatural.
Esse tipo de prosa realista lança mão de elementos grotescos encenando dramas
do amor e da morte onde o crime e a crueldade são expostos em nome de um ultra-
realismo que quer revelar, muitas vezes na forma de tensões silenciosas, algo para além
das aparências, para além das possibilidades de representação. Flertando com o romance
romântico despretensioso estabelece um conflito entre o ordinário e o extraordinário que
problematiza os paradigmas realistas jogando com seus limites. O efeito é a
apresentação do universo do excesso e da perversão para um público doméstico, a
inserção da aventura para leitores em busca de um passatempo diferente das suaves
histórias de amor dos folhetins.
A ―estética sombria‖ se espalha pela produção literária brasileira em diferentes
modalidades. É veiculada em jornais de grande circulação e em inúmeras publicações.
Conquista público variado e tem papel decisivo na solidificação da produção literária
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brasileira. Sua importância pode ser medida, por exemplo, pela coletânea Contos
brasileiros, lançada em 1922, pela renomada Livraria Garnier. A obra, organizada por
Alberto de Oliveira e Jorge Jobim, reúne contos escolhidos por serem ―alguns dos
principais, dos mais belos ou dos mais estimados do público e dos nossos homens de
letras‖,20
como aparece no prefácio escrito por Alberto de Oliveira. Essa referência dá
indícios da popularidade e do sucesso da ―literatura macabra‖ com os leitores do início
do século XX. Isto porque a maioria dos contos alude, de alguma maneira, ao terror.
Dos trinta e seis contos dezenove enquadram-se nessa categoria.
No prefácio o conto é definido como popular, ―elemento orgânico de agremiação
social‖ sem ser somente ―entretenimento fácil dessas horas de ócio‖21
. Forjando uma
tradição que inclui Homero, Sherazade e Boccacio, Alberto de Oliveira aponta o caráter
recente desse gênero no Brasil, anunciando Machado de Assis como o grande precursor.
A natureza concisa do conto o tornaria popular e espaço privilegiado para a
dramatização do:
Extraordinário, ou o maravilhoso em que imaginação extravasa e delira, o
picaresco ou o jocoso e toda sorte de diatribes, mais ou menos mordazes, os feitos
brilhantes, de valor aceitável e os porque exagerados é inadmissível o heroísmo; a
religião; a educação; a moral; a filosofia, a ciência, tudo é e se torna objetivo do
conto, cuja forma literária e artística se acentua nos últimos tempos. 22
O conto é tratado como a forma ideal para o extraordinário e o maravilhoso. A
articulação com o grotesco é inevitável uma vez que os grandes autores do gênero
destacaram-se justamente como contistas. O estudo do terror no Brasil pode se traduzir
também como investigação da consolidação do conto enquanto forma literária. O conto
torna-se acessível, popular, em grande medida por estar atrelado à difusão da estética
grotesca. Se boa parte dos autores de prosa brasileiros experimenta o conto, uma das
formas privilegiadas dessa experimentação contempla o uso de recursos narrativos
próprios do gênero.
Essa tendência parece mais clara já no final do século dezenove e torna-se ainda
mais evidente nas primeiras décadas do século vinte. A supracitada seleção de Alberto
de Oliveira e Jorge Jobim assim como História cambiantes (1874) de Carlos Augusto
Ferreira; Dentro da Noite (1910) de João do Rio e Coivara (1920) de Gastão Cruls são
exemplos de coletâneas de contos que atestam o triunfo do terror no Fin de siècle. O
grotesco teria conquistado popularidade devido o apelo com o público além de permitir
a discussão de algumas questões relevantes como ciência, fé e os limites entre o
naturalismo e o sobrenatural.
Observando as diferentes formas que o horror assume na literatura brasileira
oitocentista e as diferentes funções que assume, é possível mensurar sua importância
para a autonomização e a consolidação da produção literária no Brasil. Nesse sentido, o
estudo das lógicas de produção e consumo do tipo de literatura aqui apresentada permite
analisar práticas literárias para além do que pode ser considerado como ―questão
nacional‖.
Bolsista do CNPQ
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1 Sobre o assunto ver GUIMARÃES, Manoel Salgado. ―Nação e civilização nos trópicos: o IHGB e o
projeto de uma história nacional‖. in: Estudos históricos, nº 1, 1988. 2 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. BH: Ed. Itatiaia,
1981, p. 23 3 CÂNDIDO, Antônio. Op. cit, p. 23.
4 CÂNDIDO, Antônio. Op. cit, p. 24.
5 CÂNDIDO, Antônio. Op. cit, p. 27.
6 BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas, Editora
da UNICAMP, 2005, P. 27. 7BAPTISTA, Abel Barros. Op. cit. p.27.
8 BAPTISTA, Abel Barros. Op. cit. p.65.
9 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Para de Minas, Virtual Books online M&M
editores Ltda, 2003, p. 15-16. 10
Ver KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo, Perspectiva, 1986. 11
AZEVEDO, Álvares. Noite na Taverna. São Paulo, Kick Editora, s/d. p. 18. 12
FIGUEIRA, Luiz Ramos. Dalmo ou os mistérios da noite. São Paulo, Typ. Literraria, 1863. 13
ALBUQUERQUE, D. Maria Medeiros de. A mão de Deus. Jornal das Famílias, Julho 1867. 14
ASSIS, Machado. ―A causa secreta‖ .Várias histórias. Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 15
ASSIS, Machado de. ―A causa secreta‖ Várias histórias. Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
16
ASSIS, Machado de. ―A mulher pálida‖. Textos literários em meio eletrônico. Disponível em
http://www2.uol.com.br/machadodeassis. Acesso em 03 set. 2010. 17
AZEVEDO, Aluísio de. ―Demônios‖. Aluísio Azevedo: Ficção completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
2005. p.89.
18
WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. São Paulo: editora Nova Alexandria, 1996.
19
AZEVEDO, Aluísio de. ―Demônios‖. Aluísio Azevedo: Ficção completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
2005. p.112.
20
OLIVEIRA, Alberto de. E JOBIM, Jorge. Contos brasileiros. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1922. p.
IV. 21
OLIVEIRA, Alberto de. E JOBIM, Jorge. Op. Cit. p. II. 2222
OLIVEIRA, Alberto de. E JOBIM, Jorge. Op. Cit. p. III.
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A visão de povo no jornal Notícias Populares
Larissa Raele Cestari1
Resumo: O texto analisa a visão de povo que pautou o jornal paulistano Notícias
Populares, no momento de sua criação, por setores da elite liberal, em outubro de 1963.
Criado para concorrer com o jornal Última Hora e impedir que sua mensagem chegasse
às classes populares, a visão de povo subjacente às mensagens de Notícias Populares
foi marcada por tensão e ambigüidade: ora as classes populares foram consideradas
incapazes e manipuladas; ora foram reconhecidas como cidadãs, aptas a reivindicarem
os seus direitos.
Palavras –chave: Notícias Populares, concepção de povo, elites liberais
Abstract: The paper analyzes the idea of people who guided the newspaper Notícias
Populares, at the time of its creation, by sections of the liberal elite, in October 1963.
Created to compete with the newspaper Última Hora, preventing its message out to the
popular classes, the view of people behind the Notícias Populares messages were
marked by tension and ambiguity: sometimes the popular classes were considered
inefficient and handled, were now recognized as citizens , able to claim their rights.
Keywords: Notícias Populares, idea of people, liberal elite
No contexto de polarização ideológica e mobilização política das classes
populares que marcou o governo de João Goulart, o jornalista romeno Jean Mellé e o
deputado da UDN, Herbert Levy, criaram, em São Paulo, em outubro de 1963, o jornal
Notícias Populares (NP) como estratégia de reação dos setores de direita à conquista
das classes populares pelos grupos de esquerda. O objetivo da criação de Notícias
Populares foi o de roubar o público do jornal Última Hora (UH), de Samuel Wainer,
para neutralizar sua ação junto às classes trabalhadoras. Para os setores liberais
representados por Herbert Levy, Última Hora, periódico identificado com as posições
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), representava uma ameaça, pois, em meio a suas
notícias sensacionalistas, difundia mensagens da esquerda, promovendo a politização
das classes populares e o apoio ao governo de João Goulart.
Mas qual foi a visão de povo que pautou o jornal Notícias Populares no momento
de sua criação, em 1963? Que imagens e representações esse jornal construiu das
classes populares num momento em que, devido a ampliação da participação política
dos trabalhadores, o tema da incorporação das classes populares na política adquiria
centralidade, mobilizando diversos atores, situados em diferentes posições da arena
política? O resgate do contexto de criação do jornal e a análise da estrutura e do
conteúdo de suas mensagens constituem um caminho possível para respondermos a essa
questão.
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A ideia da criação do Notícias Populares partiu do jornalista romeno exilado no
Brasil, Jean Mellé. Na Romênia, Mellé, bem relacionado no Palácio Real, tinha sido
proprietário de um jornal popular, baseado na editoria de polícia, chamado Momentul.
Quando, em 1947, o exército soviético transformou a Romênia em uma república
comunista, Mellé fez oposição ao novo regime, sendo preso após publicar em seu jornal
a manchete ―Russos roubam o pão do povo‖2. Depois de passar dez anos preso nos
campos de concentração da Sibéria, foi libertado em 1958, chegando ao Brasil no ano
seguinte, quando foi contrato por Samuel Wainer para trabalhar como colunista
internacional do jornal Última Hora. No entanto, no início do ano de 1963, assustado
com o ―perigo comunista‖ que acreditava assolar o país, Mellé deixou a redação do
Última Hora, que, na sua visão, caminhava cada vez mais à esquerda, e levou o projeto
de criação de um jornal popular anticomunista para Herbert Levy, então presidente da
UDN, e um dos líderes da ala direita desse partido, a chamada ―banda de música‖3.
A proposta de criação de um jornal popular foi, então, ao encontro dos interesses
de Herbert Levy que, naquele momento, atuava de diversas formas no combate ao
governo de João Goulart e à influência dos grupos de esquerda na mobilização dos
trabalhadores. Levy viu em Notícias Populares mais um meio de impedir que as classes
populares se politizassem à esquerda, além de abrir um canal de comunicação com esses
setores. Assim, em 19 de abril de 1963, foi criada a Editora Notícias Populares S.A.,
mas a primeira edição do jornal só sairia em 15 de outubro daquele ano.
Segundo Gisela Goldenstein, a intenção de Notícias Populares em roubar o
público de Última Hora, motivo principal da sua criação, não estava relacionada à busca
do apoio popular às mobilizações conservadoras contra João Goulart, mas sim à
despolitização das classes trabalhadoras, já que o apoio buscado era o das classes
médias. Por isso, segundo a autora, o projeto de criação do jornal definia que o
noticiário político deveria ser mínimo, pois seus criadores acreditavam que se as classes
populares liam Última Hora, o faziam não pelo seu conteúdo político, mas pelo
entretenimento e pelas notícias sensacionalistas desse jornal. Essa postura dos criadores
de Notícias Populares expressaria, segundo Goldenstein, uma visão ―liberal-
oligárquica‖ sobre as classes populares, próxima à ideia de que ―o povo não pensa e
nem tem interesse nisso‖.4
No entanto, essa intenção original não se concretizou, pois ao analisarmos as
mensagens de Notícias Populares, vermos que o jornal, em meio ao sensacionalismo,
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investiu no noticiário político quase tanto quanto Última Hora, sinal de que a
participação política dos trabalhadores no cenário brasileiro já havia chegado a um
ponto de não-retorno. Se Notícias Populares pretendia anular a atuação de Última Hora,
teria de abordar os temas políticos formulando um discurso alternativo ao do
concorrente. E assim o fez. No período que selecionamos para análise, outubro e
novembro de 1963, meses tensionados por greves e pelas consequências da tentativa de
decretação do estado de sítio por João Goulart, os temas políticos, sempre abordados do
ponto de vista udenista, e sindicais, tratados num tom moderado a fim de não perder os
seus leitores, predominaram no jornal, tendo mais espaços que a editoria de polícia e
esportes.
Coube a Jean Mellé traduzir a concepção de povo dos liberais representados por
Levy para um jornal que se pretendia popular. A tarefa de Mellé seria adequar a
linguagem e a mensagem de Notícias Populares às características culturais que ele
supunha ser dos seus leitores. A fórmula encontrada por ele, traduzindo a imagem que
tinha do povo, foi mesclar elementos tradicionais da imprensa sensacionalista, que ele
acreditava ser o chamariz para os leitores, com temas políticos contemporâneos. E
apostando que o leitor popular compra jornal por impulso, a primeira orientação de
Mellé foi fazer da manchete de Notícias Populares e da primeira página o carro-chefe
do jornal5.
O estudo das partes componentes do Notícias Populares nos ajuda a compreender
o que os seus criadores definiram como sendo de interesse popular. O noticiário do
jornal dividia-se em espaços para políticas nacional, estadual e internacional, temas
trabalhistas e sindicais, polícia, esportes e os problemas do cotidiano que afetavam as
classes populares. As colunas sociais, faits-divers, vida de artistas, lazer, coluna
feminina, horóscopo, turfe, quadrinhos completavam o quadro do jornal buscando
reforçar a atração do público popular. A parte voltada para temas políticos e sindicais,
nos meses analisados, ocupava a metade do jornal, que possuía 12 páginas, sendo as
páginas restantes distribuídas entre os outros diversos conteúdos elencados acima.
Como dissemos acima, isso mostra uma contradição com o projeto inicial de criação do
jornal, que pretendia excluir o noticiário político por considerar que povo não pensa, e
revela contradições na própria concepção de classes populares das elites liberais
representadas por Notícias Populares.
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Embora os diversos temas tivessem espaços mais ou menos cativos, a
diagramação não era rígida, podendo aparecer, lado a lado, faits-divers, notícias
policiais, econômicas, políticas, sindicais e do cotidiano. Esses conteúdos poderiam ser
tratados tanto numa linguagem ―séria‖ quanto numa linguagem sensacionalista,
dependendo do objetivo do jornalista e do espaço ocupado no jornal. Considerando que
o seu público não tinha hábito de leitura, a paginação do jornal foi feita de modo
acessível, com textos geralmente curtos, manchetes e títulos em letras garrafais e uma
enorme quantidade de fotos que, muitas vezes, não condiziam com a importância da
matéria.
A linguagem da abordagem dos temas também era diversa. Assim, nas editorias
de polícia, esporte e cotidiano, recorria-se a técnicas da indústria cultural, especialmente
à linguagem sensacionalista cujo tom informal, misturando irreverência e indignação,
trazia como marca a dramatização do conteúdo e o seu apelo moral6. Já nas editorias
política e sindical, embora não excluísse recursos do sensacionalismo, predominou uma
linguagem mais ―séria‖, formal – exceto nas manchetes e títulos – muitas vezes
buscando dar um entendimento histórico-social da realidade, como a coluna ―Jean Mellé
Informa‖. No entanto, também essa divisão não era rígida: as linguagens poderiam ser
misturadas numa mesma notícia ou no mesmo espaço do jornal.
Assim, ao analisarmos a estrutura da mensagem, a diagramação e a linguagem dos
temas, percebemos que Notícias Populares trabalhava com uma visão heterogênea das
classes populares. Tomando de empréstimo conceitos formulados por Chartier,
podemos considerar que Notícias Populares dividiu os seus leitores em ―povo plebs‖,
aquele que não é considerado sujeito político, pois não é esclarecido pela razão, forma
de participar do mundo político-institucional na modernidade, e ―povo populus‖, esse
sim sujeito político, ativo nas esferas de participação da política formal7.
Na visão de Notícias Populares, o ―povo plebs‖ era aquele que comprava o jornal
pelo entretenimento, pela emocionalidade das matérias policiais, pelas informações do
cotidiano em detrimento do mundo político institucional. Era o povo que buscava o
jornal não para ampliar o seu conhecimento do mundo, mas para resolver problemas
concretos do seu cotidiano, como o preço da carne, ou para buscar estórias interessantes,
insólitas, que não levavam a reflexões maiores além do inusitado do fato imediato.
Enfim, era um leitor despolitizado, tratado muitas vezes como um indivíduo irracional.
É principalmente para ele que se destinavam matérias, como a publicada no dia 22 de
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outubro, que rendeu a seguinte manchete: ―Criança assassinada com um tiro no
coração‖. A matéria é interessante não somente por ajudar a revelar a visão subjacente
que o jornal tinha de seus leitores, mas também a representação do povo que divulgava
em suas páginas. Apesar de ser capa do jornal, o assunto foi tratado numa pequena nota
na página 2 – a foto era maior que o texto – e foi narrado da seguinte forma:
―A família de Isidora foi, na tarde de ontem, visitar Marcolino conhecido
passador de maconha em Vila Nice e imediações de Vila Gustavo. Todos os
presentes passaram a fumar a erva. No sofá, Isidora ―rosnava‖ sob o efeito da
droga. Sua mulher Adelina também estava maconhada (...) o tiro foi disparado
acidentalmente (...)‖.
Na matéria, a representação do povo é feita de forma caricaturizada,
transformando-o em estereótipo da desordem e da irracionalidade (―Isadora rosnava‖).
Ao mesmo tempo, os editores pressupunham um leitor interessado somente nos
elementos espetaculares, apelando para um tom emotivo e para julgamentos morais.
Mas não foi só nas páginas policiais que se considerou o ―povo-plebs‖. Ele esteve
também na forma da abordagem dos problemas socioeconômicos da cidade de São
Paulo como na matéria ―Miséria faz fila no albergue do Cambuci‖: ―No albergue
noturno do Cambuci a miséria realmente faz fila para entrar. Centenas de desgraçados
se reúnem ali (...) são procedentes de estados do norte atraídos pela promessa da
cidade grande (...)‖
Percebe-se a manutenção do tom dramático, mas agora em outra chave, buscando
despertar a empatia do leitor com os personagens da matéria. Na continuação da
reportagem, é enfatizado que a maioria dos migrantes só quer trabalhar, mas não
consegue devido ao saturamento do mercado de trabalho em São Paulo. Além disso, é
denunciado o desprezo das autoridades, como o caso do policial que cuida da fila do
albergue. No texto, eles ainda são distinguidos das
―prostitutas, dos malandros, os fugitivos do Juqueri, os despejados das favelas (...)
que promovem arruaças (...) para roubar em alguns casos um companheiro que
está bêbado vinte cruzeiros para tomar uma pinga. São um caso à parte e são uma
minoria. O que necessita de atenção urgente é o homem que está disposto a
trabalhar, que quer viver e produzir (...)‖
Assim, o migrante foi dignificado, na matéria, por ser trabalhador, papel social
reconhecido positivamente para o homem pobre. Porém, esse mesmo trabalhador seria
vítima da sociedade. Sua marca seria a impotência e a ausência de iniciativa própria.
Dessa forma, a narrativa do jornal, ao sentimentalizar a questão social, buscou criar a
penalização e reforçar uma visão subalterna do integrante das classes populares, na sua
condição de excluído e passivo, de não-cidadão. Apesar de ter apontado o desemprego
como um problema da organização econômico-social, a matéria não desenvolveu
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argumentos nem apontou soluções, num momento em que esse tema se inseria no
debate sobre as reformas de base. O conteúdo da mensagem acabou por particularizar o
fenômeno social descrito a fim de valorizar a emoção pela vitimização dos personagens.
Ao analisarmos as matérias acima, vemos, portanto, que tanto a concepção do
leitor popular quanto as próprias representações do povo veiculadas em determinadas
páginas do jornal demonstravam uma visão do povo como ―plebs‖. Ou seja, um povo
desorganizado, que ―não pensa nem tem interesse nisso‖, cujas manifestações eram
qualificadas muitas vezes por sua emocionalidade\irracionalidade, mas de quem o jornal
não poderia descuidar em função de um contexto de radicalização no país em que as
esquerdas avançavam na conquista dos setores populares. No que se refere às
representações das classes populares veiculadas nas matérias, vemos ainda que Notícias
Populares dividiu o ―povo plebs‖ em dois setores, ambos marginais à sociedade: um, o
povo violento e irracional; o outro, trabalhador e vítima da sociedade.
Mas se, de um lado, Notícias Populares trabalhou com a ideia de um povo
despolitizado que buscava, no jornal, ―sexo, crime, esportes‖, por outro, não deixou de
considerar a existência de amplos setores populares mobilizados, que participavam do
embate político em torno de projetos para a nação. Esse ―povo populus‖, na visão do
jornal, seria formado, principalmente, pelos trabalhadores assalariados sindicalizados
que precisavam ser tirados da influência dos grupos de esquerda. Era especialmente
para ele, embora não só, que o jornal dirigia o noticiário político e sindical. A coluna
―Jean Mellé informa‖, no dia 18 de outubro, nos dá um exemplo desse trabalho de
―contraofensiva‖. Sob o título ―Magalhães Pinto modifica sua posição política para
volta a linha do partido‖, Mellé colocava:
―Das mais interessantes a nova posição do Sr. Magalhães Pinto, depois que tentou,
sem sucesso, aproximar-se da chamada esquerda. Vítima de um erro de cálculo – o
de que a ―esquerda‖ teria importância na opinião pública nacional – o governador
de Minas arriscou perder o apoio da maioria da UDN (...) O incidente da recusa do
estado de sítio, da sua repulsa por todo o país, convenceu o Sr. Magalhães Pinto,
como convenceu o Sr. João Goulart, de que o povo brasileiro prefere a defesa das
liberdades democráticas, contra qualquer tentativa ditatorial.(...) o governador de
Minas (...) reconquistar os seus antigos amigos, no seio do seu próprio partido e
das camadas populares democráticas. Reafirmaria assim as suas convicções, que
todos conhecem como firmadas numa tradição antidemagógica, mas que, por um
momento, foram confundidas, na errada tentativa de aproximação com as
―esquerdas‖(...) as correntes inimigas do regime democrático, em vigor no país.‖
Numa linguagem formal, que mobiliza conceitos, Mellé, editor-chefe do jornal,
tratou seu leitor como um sujeito político racional que precisava ser conquistado.
Abordando, do ponto de vista liberal, os conflitos políticos do país, o autor pretendia
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formar um entendimento da realidade para o seu leitor. Assim, buscando desqualificar o
adversário, Mellé associou a esquerda e o governo João Goulart à demagogia e a um
regime ditatorial – a tentativa de decretação do estado de sítio comprovaria isso – e, no
mesmo movimento, ressaltou os liberais da UDN e as classe populares como baluartes
da democracia no país. Nesse ponto, o discurso veiculado por Mellé em nada diferiu do
discurso veiculado pela grande imprensa para os leitores de classe média. Interessante é
que, naquele espaço – a coluna ―Jean Mellé Informa‖ –, a linguagem e a forma como o
conteúdo foi abordado era diferente das orientações gerais do editor-chefe para a
estruturação das mensagens do jornal.
No entanto, essa imagem do povo como sujeito político não foi construída sem
contradições: a abordagem do tema do sindicalismo no jornal nos revela isso. O
movimento sindical, no período analisado, foi o grande tema abordado por Notícias
Populares, exatamente por ser o sindicato, naquele contexto, tanto o lugar por onde os
trabalhadores se politizavam e se mobilizavam, quanto por ser uma das bases do
governo Goulart, que tratava os líderes sindicais como interlocutores privilegiados. A
análise que Notícias Populares fez da greve geral dos 700 mil em São Paulo, a greve
mais importante do Estado, no período analisado, nos permite vislumbrar as
ambiguidades na visão do povo como sujeito político divulgadas pelo jornal.
Desde 18 de outubro, 11 dias antes da eclosão da greve, o jornal vinha noticiando
as tensões entre os trabalhadores de vários ramos da indústria de São Paulo,
representados pelo Pacto de Ação Conjunta (PAC), intersindical ligada ao Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT), de orientação de esquerda, e pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), então nas mãos do PTB-PCB. Sob o
título ―Aumento para os industriários: guerra fria pode pegar fogo‖, o jornal anunciava o
conflito entre o PAC, e depois a CNTI, representando 79 sindicatos, e os empresários
representados pela FIESP. Até dia 29 de outubro, quando teve início a greve geral, o
jornal, num tom moderado, deu voz, nas suas páginas, tanto ao operariado quanto ao
empresariado. Veiculando as demandas, as mesas de negociação com a FIESP e a forma
de organização dos sindicatos e suas relações com as intersindicais, o jornal oferecia, a
despeito da linguagem irreverente muitas vezes usada, uma visão de maturidade dos
trabalhadores na defesa dos seus direitos.
No entanto, quando da eclosão da greve geral, marcada por forte mobilização e
participação dos trabalhadores, o jornal mudou o tom, buscando reverter a situação. Um
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dos pontos mais ressaltados foi a questão da ilegitimidade da greve, declarando-a
política e liderada por ―elementos subversivos‖ e ―líderes sindicais pelegos‖. Esse
discurso se repetiu em vários espaços do jornal, incluindo a coluna ―Waldo Claro
denuncia‖:
―São Paulo pode amanhecer paralisado por uma greve completamente espúria, no
sentido de dar continuidade ao esquema acionado pelo governo federal ansioso de
concretizar uma intervenção armada nas duas maiores trincheiras que se opõem
hoje aos seus desejos confessos de continuísmo (...) Basta uma rápida e superficial
análise nos nomes dos promotores do ―putsch‖ grevista, para se ter um idéia de
que não são os operários quem a promove (...) a fraternidade dos agitadores
reunidas em torno do poder constituído (...)‖ objetivando estabelecer ―(...) o
reinado do totalitarismo vermelho (...). Não há o desejo honesto de luta pela
melhoria salarial e social dos trabalhadores (...) Não, essas greves estão
umbilicalmente ligadas aos interesses políticos (...) Setecentos mil trabalhadores,
segundo o IBGE do CGT, deixarão de cumprir com seu dever perante a pátria e
perante as necessidades de sua famílias. Seguirão pelo caminho de dubiedades,
para obedecerem simplesmente e passivamente os que fizeram do instituto da
greve, a indústria para um enriquecimento fácil e sem grandeza. Que os
trabalhadores que trabalham (...) abominem mais essa tentativa de subversão dos
valores que presidem nossa formação. (...) a hora não é de seguir os pelegos
amestrados em Havana, é de continuar seguindo pela trilha brasileira, que é nossa
e é cristão (...)
No texto acima, a participação do trabalhador na greve foi explicada pela
manipulação do governo federal, em seu projeto continuísta, e dos ―pelegos
comunistas‖ do CGT. No discurso de Waldo Claro, os sindicatos e a greve, ou seja, o
espaço e o momento de ação política dos trabalhadores, perderam a sua legitimidade por
serem órgãos cooptados por lideranças corruptas, pelegas, que não representavam
verdadeiramente os trabalhadores e que os estariam usando para atingir objetivos
políticos alheios ao que o jornal entendia como sendo as reivindicações da categoria.
Assim, o trabalhador, que ―obedece simplesmente e passivamente‖, perdeu, no discurso
do jornal, a sua condição de sujeito político, de indivíduo livre e autônomo com
capacidade para tomar suas próprias decisões e agir politicamente. Foi também definido
um lugar social para o operário: zelar pela pátria e por sua família através da sua
produção.
Dando continuidade a essa linha de argumentação, no dia 31 de outubro, o jornal
publicou, quase na íntegra, a resposta de Herbert Levy para Almino Afonso, do PTB,
sobre a greve geral em São Paulo. Sob o título ―Levy adverte aos intervencionistas: São
Paulo pegará em armas‖, o jornal fez das palavras de Levy a sua posição:
―(...) a extrema esquerda foi reduzida na sua expressão eleitoral e política. Isto
demonstrou (...) a saturação em que se encontram os verdadeiros trabalhadores
esses que não são pelegos, esses que não são líderes da extrema esquerda a
serviço de ideologias exóticas; demonstrou como a maioria absoluta de
trabalhadores está cansada de ser explorada, na forma de greves políticas que
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não encontram acolhidas na constituição (...) Se estes sindicatos precisam ter
ação política (...) é porque o partido de V. Exa (...)‖ ―(...) está fracassando, não
interpreta mais os sentimentos dos trabalhadores (...) enquanto em São Paulo
há ordem, trabalho e, como aqui se diz, mais de 70% dos trabalhadores não
querem ouvir falar em greve, em Pernambuco, através de impressionantes
relatórios das classes produtoras (...) o que se verifica é a comunização (...)
Novamente aqui se contrapôs o trabalhador ao grevista e ao líder sindical que
buscavam subverter as relações político-sociais no Brasil. No mesmo movimento, a
matéria buscou deslegitimar o PTB, partido mais popular no período, enquanto
representante dos trabalhadores. Mas diferente do texto de Waldo Claro, o que se
ressaltou na comunicação de Levy foi a contraposição da imagem da ordem em São
Paulo, onde os trabalhadores não aderem a ideologias exóticas, à comunização,
portanto, a desordem, em Pernambuco, de Miguel Arraes, importante líder das
esquerdas. Dessa forma, o mito da índole cordial e pacífica do povo brasileiro, que os
comunistas desejavam corromper, era acionado para deslegitimar o movimento dos
trabalhadores. Na reportagem, o jornal ainda deixava claro que Levy encarava todas as
greves reivindicatórias como legítimas, não lhes fazendo restrição. O problema estava
no fato de elas serem manipuladas por elementos exteriores ao operariado. Esse foi o
discurso predominante do jornal nas abordagens de praticamente todas as greves. As
reivindicações salariais eram reconhecidas – afinal o jornal não poderia perder a
interlocução com o seu público –, mas a participação política dos trabalhadores, quando
envolvia sindicatos à esquerda, era vedada sob a acusação de manipulação dos
trabalhadores.
Dessa forma, Notícias Populares construiu um discurso que definia os limites do
comportamento político das classes trabalhadoras, buscando articular o reconhecimento,
visto como inevitável naquela conjuntura política, e o controle dessas classes. O lugar
da cidadania para as classes populares, na visão do jornal, estava no trabalho, ou mesmo
em uma ação política limitada aos ―valores cristãos e democráticos‖, ou seja, desde que
fosse contrária ao governo Goulart e às esquerdas – daí todo o investimento de Levy em
fundar sindicatos anticomunistas ou de conclamar, pelo jornal, as classes populares a
comparecerem às marchas da família em 1964. Como diz Jorge Ferreira, o perigo não
era o pelego, mas o movimento sindical em processo de mobilização e politização
crescente. No projeto político conservador dos liberais brasileiros não havia espaços
para a cidadania plena dos trabalhadores8.
Ao analisarmos a mensagem de Notícias Populares percebemos que a
concepção de povo do grupo liberal representado pelo jornal foi marcada por uma forte
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tensão e ambiguidade. De um lado o ―povo plebs‖, desorganizado, que ―não pensa nem
tem interesse nisso‖, cujas manifestações eram qualificadas por sua emocionalidade e
irracionalidade, mas de quem o jornal não pode descuidar em função de um contexto de
radicalização no país em que as esquerdas avançavam na conquista dos setores
populares. De outro, ―o povo populus‖, cujas representações do jornal oscilavam entre
reconhecê-lo como sujeito político e, no mesmo movimento, negar essa condição
atribuindo a sua mobilização à manipulação de lideranças estranhas ao operariado, visto
que o consideravam, ou pelo menos desejavam que assim o fosse, como incapaz de
articulação própria.
1 Mestranda em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC- FGV, bolsista Faperj. Orientador: Marly
Motta. E-mail: [email protected]
2 CAMPOS JR, Celso de et al. Nada Mais que a verdade. A extraordinária história do jornal Notícias
Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002, p.35
3 Sobre Herbert Levy, ver: SOUSA, Luís Otávio de. Levy, Herbert. In: ABREU, Alzira Alves de et
al.(Orgs). Dicionário histórico biográfico brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vragas,2001.
4 GOLDENSTEIN, Gisela Taschner. Do jornalismo político à indústria cultural. São
Paulo:Summus,1987, pp.77-87.
5 GOLDENSTEIN, Gisela Taschner. Do jornalismo político à indústria cultural. São
Paulo:Summus,1987.
6 Sobre o sensacionalismo, ver: SIQUEIRA, Carla Vieira de. “Sexo, Crime e Sindicato”:
Sensasionalismo e populismo nos jornais Última Hora, O Dia e Luta Democrática durante o segundo
governo Vargas (1951-1954). Tese (doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2002
7 CHARTIER, Roger. ―Cultura política e cultura popular no Antigo Regime‖. A história Cultural: entre
práticas e representações. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil\Difel, 1990
8 FERREIRA, Jorge (org). ―O nome e a coisa‖. In: O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p119.
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A historiografia e seus regionalismos. As “escolas” gaúcha e
carioca e suas definições de trabalhismo.
Laura Vianna Vasconcellos
Resumo: Numa contraposição ao populismo, o conceito de trabalhismo acabou com
uma dimensão teórica e conceitual ampliada, e ganhou, por isso, grande dificuldade de
definição. As ―escolas‖ gaúchas e cariocas dão contribuições diferenciadas: os gaúchos
discutem a relação entre o trabalhismo e o positivismo, entendendo-o como um modelo
de pensamento; os cariocas o analisam com uma perspectiva estatal, tomando-o como
uma ideologia política de Estado. O diálogo entre as duas ―escolas‖ pode ser uma
alternativa para entender esse conceito tão importante.
Palavras chaves: trabalhismo, regionalismo e diálogo
Abstract: In contradition to populis, the concept of laborism acquire as amplified
theorical and conceptual extent, thefore became very difficult to define. The schools of
Rio Grande do Sul and Rio de Janeiro have differentiated contributions. The dialogue
between those schools can be an alternative to understand the important concept of
laborism
Key–words: laborism, regionalism and dialogue
Apresentação
Os debates sobre o trabalhismo na historiografia brasileira são muito vastos e calorosos.
Revisionismos, reformulações e diferenças de enfoque fazem do trabalhismo um conceito
dinâmico, discutido e redefinido constantemente.
No entanto, muito pouco se fala sobre as maneiras regionais de se entender o conceito.
Sobre os regionalismos do trabalhismo.
Evidentemente, não se pode falar de uma ―escola‖ carioca ou de uma ―escola‖ gaúcha
do trabalhismo se com isso queira se afirmar uma maneira homogênea e estática do fenômeno:
os cariocas o entendem desta maneira, os gaúchos daquela1.
Seria uma simplificação e um erro metodológico.
Há uma enormidade de interpretações cariocas e outra gama também bastante vasta de
interpretações gaúchas. No entanto, ao propor a ideia de orientações regionais para o
trabalhismo, está-se chamando a atenção para algumas diretrizes locais - para um viés
interpretativo que pode ser observado regionalmente.
Em ouras palavras: a discussão sobre o trabalhismo que tem como foco o Rio Grande do
Sul se orienta por uma temática, a carioca por outra. Trata-se apenas de orientações
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interpretativas diferentes, que abarcam uma variedade de pesquisas e de contribuições em seu
interior, e não de duas interpretações estáticas que se contrapõem.
Aqui, neste artigo, por conta do limite reduzido de páginas, foram escolhidas as
interpretações expoentes das duas orientações. Entre elas, há uma gama de interpretações que
discutem e questionam seus marcos.
Ao propor e estabelecer esse diálogo, o trabalhismo ganha complexidade e
temporalidade.
A orientação carioca: o trabalhismo como ideologia de Estado.
O trabalhismo foi definido pela baliza, pelo limite e extensão conceitual do populismo.
Nasceu para repudiar este antigo conceito, e, para fazê-lo satisfatoriamente, teve de ser feito
usando a sua fôrma conceitual, embora o seu interior seja completamente diferente.
A autora que primeiro propôs de maneira sistemática esse repúdio ao populismo,
substituindo-o pela ideia de trabalhismo foi Angela de Castro Gomes, com o seu hoje clássico A
invenção do trabalhismo.
Nele, o trabalhismo ganhou data de nascimento, 1942, e ganhou também objetivos
próprios: tratava-se de uma ideologia política estatal. Os homens de governo, no esforço de
traçar uma transição segura, que desse sustento às diretrizes inauguradas por Vargas,
empenharam-se num esforço sistemático, bem articulado e bem-sucedido na montagem de uma
ideologia política, o trabalhismo
É nesse complexo processo de ―invenção‖ que a autora se detém.
No livro, a ideia de uma determinação material regendo o pacto político entre Estado e
massa trabalhadora é questionada. De acordo com esta lógica, o Estado teria conseguido a
adesão das massas por meio das legislações sociais. Obediência política em troca dos ganhos
sociais, essa era a sustentabilidade do pacto. No entanto, segundo Angela de Castro, esse
mecanismo não teria obtido êxito antes de 1940, quando associado a esta lógica material –
essencial para a construção do pacto social -, elaborou-se um discurso sofisticado, que resgatava
o discurso operário da Primeira República, porém, de uma forma repaginada. Assim nascia o
trabalhismo.
Não teria havido mera submissão e perda de identidade por parte das massas
trabalhadoras, mas antes elas faziam parte de um pacto político que combinava ganhos materiais
com ganhos simbólicos da reciprocidade; ou seja, mais do que a legislação social, era a
dimensão simbólica que garantia a unidade e o funcionamento do pacto. É à elaboração desse
discurso simbólico – o trabalhismo – que a autora dá atenção.
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Ao contrário de submissão, esta relação entre Estado e sociedade, mesmo que desigual,
teria algum nível de reciprocidade; enquanto o Estado se beneficiava do sentimento de
retribuição gerado pela elaboração e efetivação dos benefícios sociais, as massas trabalhadoras,
por sua vez, sentiam-se de alguma forma identificadas e realizadas com os valores e o discurso
do Estado varguista, já que muitas deles eram demandas de lutas antigas.
O que Angela de Castro Gomes ressalta em seu livro é a complexa montagem desta
ideologia política, o trabalhismo, que, apesar de autoritária, possuía legitimidade na cultura
política2 da classe trabalhadora, satisfazendo algumas de suas reivindicações.
Apesar da reciprocidade, havia um sentido em todo esse processo; segundo a autora, a
invenção e a formulação do trabalhismo foram feitas a partir da iniciativa do Estado, através de
órgãos, departamentos e partidos, e com intensa propaganda política. Portanto, apesar de
destacar a lógica material da relação, fundamental para o pacto político, a autora também
chamou a atenção para a sua dimensão simbólica, responsável, esta sim, pela solidificação do
pacto político trabalhista. Por não concordar com as interpretações que viam na relação entre
Estado e sociedade do período apenas o seu aspecto manipulador e de cooptação, estruturado na
lógica material e na repressão do Estado, a autora acabou por rejeitar o conceito de populismo,
adotando em seu lugar, mas com outras bases, o de trabalhismo.
No livro de Jorge Ferreira, O populismo e sua história, no artigo ―O populismo e as
ciências sociais no Brasil‖, a autora reafirmou que, ao escrever A invenção do Trabalhismo, na
década de 1980, sua intenção foi de rejeitar não apenas a palavra ―populismo‖, mas o seu
conteúdo básico: uma classe trabalhadora e passiva e sem consciência, manipulada por políticos
inescrupulosos. Assim, a autora refutou o conceito como explicação para as relações entre
massa trabalhadora e Estado.
Portanto, na interpretação da autora, o trabalhismo seria uma ideologia política construída
em um período específico, por iniciativa dos homens do governo, e que, de uma forma ou de
outra, representava as aspirações e desejos da classe trabalhadora. Esta ideologia política teria
bases em uma cultura política que não se restringiu somente ao período do Estado Novo, mas a
toda uma época. Assim, o trabalhismo seria uma ideologia política respaldada na cultura política
das massas trabalhadoras, mas formulada pela mão do Estado, numa reinterpretação e
ressignificação de maneira a dar continuidade a um projeto político.
Com o mesmo esforço de Angela de Castro Gomes – o de repudiar o conceito de
populismo –, Jorge Ferreira escreveu parte significativa de sua obra – e acabou dando ao
conceito de trabalhismo, entendido como ideologia política, uma feição mais participativa e
dinâmica. Enquanto Angela de Castro Gomes analisou a relação entre o Estado e a sociedade a
partir do foco do Estado – a partir de fontes oficiais e estatais, como programas de rádio,
discursos ministeriais e revistas –, Jorge Ferreira daria mais atenção à esfera da sociedade, tendo
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como fontes cartas de populares e jornais da época. O autor preocupou-se mais com a recepção
e participação popular no pacto. Se em A invenção do trabalhismo o conceito norteador da obra
é a noção de cultura política, nos trabalhos de Jorge Ferreira o que sobressai é a noção de
cultura política popular.3
Ainda que mencione o caráter autoritário do governo varguista, o autor se dedicou a
demonstrar o grau de reelaboração exercido pelas classes populares e a sua relativa autonomia
frente ao discurso varguista.4 Por isso, comprovou o caráter de apoio popular ao regime getulista
Sob a influência de autores como Guinzburg, Chartier e Peter Burke, Ferreira observa
que, longe de receberem passivamente as idéias, os populares as reinterpretavam com base em
sua própria cultura, transformando o discurso original e oficial em um outro, muitas vezes
imprevisível. ―Os mecanismos de ‗controle operário‘ foram implementados, mas sua atuação e
eficácia eram limitados pela própria cultura da classe trabalhadora‖.5
Jorge Ferreira argumenta que entre o Estado e classe trabalhadora havia interesses
comuns; no trabalhismo, ainda segundo ele, havia idéias, crenças e valores que já vinham sendo
formuladas e reivindicadas desde antes de 1930, e que, por esta razão, ele teria expressado ―uma
consciência de classe, legítima porque histórica‖.6 Segundo o autor, o projeto trabalhista, para
ser aceito e compreendido, precisava ter bases e sustentação no patrimônio simbólico e na
cultura popular, caso contrário não se manteria, nem serviria como orientação ideológica para
um dos mais bem-sucedidos partidos de nossa história: o PTB.
Assim, unidas, as duas interpretações dariam ao trabalhismo duas frentes de análise: a
idéia de uma ideologia de Estado, e a de reelaboração, reinterpretação e, sobretudo, de
participação, aí no nível da sociedade, pelo filtro da cultura popular.
Ambos trabalham com a ideia de uma ideologia política formulada a partir do Estado,
com bases numa cultura política anterior, inventada, mas reinterpretada pelas camadas
populares.
A orientação gaúcha: a relação trabalhismo e positivismo
Nas abordagens ―gaúchas‖ o que se observa é uma tendência à discussão entre a relação
entre o positivismo e o trabalhismo. Sobre suas continuidades e rupturas7.
O contraste com a interpretação de Angela de Castro Gomes é marcante, posto que a
autora demarca o ano de 1942 como o nascimento do trabalhismo. Como contraponto,
escolhemos então duas obras, as quais estendem o tempo do trabalhismo não mais a 1942, mas
até sua raiz histórica: o positivismo. Foram elas: A greve de 1917: as origens do trabalhismo
gaúcho, de Miguel Bodea,8 e ―A arqueologia do Estado-providência: sobre um enxerto de idéias
de longa duração‖, capítulo 9 do livro de Alfredo Bosi, Dialética da colonização.9
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* * *
A ideia central: os princípios positivistas serviram como guia norteador da atuação
política do PRR (Partido Republicano Rio-Grandense) e expressaram certas medidas que, mais
tarde, seriam reproduzidas no período getulista e no seu trabalhismo. Assim, destacam-se o
imposto territorial, a taxação da propriedade da terra (a terra sendo um bem público, explorado
por um único indivíduo, devia ser taxada, justificavam os positivistas), o incentivo às
manufaturas por meio da isenção fiscal (o objetivo era fazer o Rio Grande do Sul entrar na era
industrial, a preocupação com o desenvolvimento econômico das indústrias incipientes, e nisso
Bosi vê traços de protecionismo); a política de socialização dos serviços públicos (Borges de
Medeiros chegou a promover a encampação do porto da capital gaúcha e da via férrea, alegando
razões de utilidade pública, e que estas estatizações, à época, fizeram grande contraste com a
política privatizante implementada pelo governo federal10
).
Bosi considera que essas medidas teriam cunho progressista, mas assim como ocorrerá no
trabalhismo, o positivismo atuaria de maneira também conservadora, sobretudo na chamada
questão social. Segundo Bosi, o governo atendia e buscava demonstrar uma prática política de
conciliação e abertura para as demandas dos trabalhadores, de modo a promover a sua
incorporação no pacto político, mas sempre de uma maneira paternalista, cooptando-os por meio
da máquina do Estado.11
Na sua interpretação, ao mesmo tempo em que buscava atender os
reclamos dos operários, Borges de Medeiros mandava coibir as manifestações que julgava mais
violentas. Para o autor, este registro dual, a um só tempo progressista e regressista, se
converteria em instituição quando Lindolfo Collor e Vargas criaram o Ministério do Trabalho,
anos mais tarde.12
Essa dualidade é a grande marca do trabalhismo brasileiro.
Outra continuidade: já naquela época forjava-se uma relação entre Borges e os
trabalhadores com a mesma tendência paternalista do período de Vargas e do trabalhismo. O
chefe político aparecia como líder benfeitor, Borges de Medeiros era considerado pelos
sindicalistas gaúchos como político protetor, por ter acatado algumas das reivindicações dos
trabalhadores, tabelando os preços de gêneros de necessidade básica e por ter dado aumento
salarial.13
A abolição teria sido o ponto de partida para se formar ideias pré-trabalhistas entre os
nossos contianos. A preocupação de Júlio de Castilhos em não deixar os ex-escravos a mercê
das Leis do mercado, cobrando do legislador a tarefa de pré-formar as condições em que se
estabeleceria o trabalho livre e a regulamentação da situação dos libertos no Brasil, é
considerado por Bosi como o esboço de um Estado-providência:14
regime de oito horas de
trabalho, férias, proteção aos menores, mulheres e idosos, direito de greve e aposentadoria.
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Por Estado-providência o autor entende aquele Estado provedor, que não deixa a cargo
do capital decidir sobre as condições de vida e trabalho dos trabalhadores. No ideal de Comte e
Saint-Simon, o Estado-providência seria, pois, o maestro de um pacto estabelecido entre
governo e industriais, todos dispostos a integrar a classe trabalhadora harmonicamente num
pacto, concedendo-lhe alguma ―assistência benévola‖, no qual prevaleceria o ideal reformista de
um aparelho público vasto, responsável não só pelo estímulo à produção, mas também pela
correção das desigualdades do mercado.15
No entanto, apesar de atender a algumas das demandas dos trabalhadores, o que para
época constituía uma distinção frente à postura política do governo, esse mesmo positivismo
apresentava um perfil autoritário na maneira de incorporar o operariado ao pacto político, um
dualismo que, segundo Bosi, seria a tônica do trabalhismo brasileiro até 1964.
Corporativismo, paternalismo, autoritarismo e progressismo são expressões largamente
utilizadas por Bosi para traçar o modelo de Estado idealizado por nossos comtianos, que seria
também, numa perspectiva mais ampla, – e esta é a conclusão do autor – o traço do capitalismo
brasileiro. O positivismo teria dado ao nosso desenvolvimento capitalista um perfil peculiar,
sendo a um só tempo moderno e arcaico.
Em Miguel Bodea há uma análise mais pormenorizada do positivismo de Borges de
Medeiros, uma vez que seu livro se dedica à greve de 1917 e à relação do governo com os
grevistas. A ligação entre o PRR (Partido Republicano Rio-Grandense) e o trabalhismo do PTB
e de Vargas é também ali traçada. À semelhança de Bosi, Bodea acredita que o positivismo teria
fornecido a origem doutrinária do que foi o trabalhismo do PTB; Vargas, Pasqualini, Leonel
Brizola e João Goulart.
O modo como Borges de Medeiros enfrentara a greve de 1917 já demonstrava os
primeiros sinais do que seria a relação dos líderes trabalhistas com os trabalhadores anos mais
tarde. Esse é também o argumento de Bodea; no entanto, ao contrário da análise de Bosi, que
sempre realça a contradição mal resolvida entre progressivismo e autoritarismo, muito presente
no positivismo e no trabalhismo (aí estaria, então a conexão entre os dois); em Bodea, essa
contradição não é destacada. A relação entre trabalhismo e positivismo seria reduzida ao
ineditismo do atendimento do governo às reivindicações dos grevistas (todas embasadas pelo
ideal comtiano de harmonia social e Estado previdente) e à particularidade gaúcha de ter se
estabelecido no estado uma aliança entre diferentes classes e frações de classes, o que teria
permitido ao PRR uma peculiar prática política.
O primeiro traço de continuidade entre a prática política de Borges de Medeiros e o
trabalhismo estava nas bandeiras nacionalistas. A especificidade gaúcha de ter a maior parte das
indústrias em mãos estrangeiras, na opinião do autor, teria unido operários e burguesia numa
comunhão contra a má administração dessas empresas. Daí ter surgido, no Rio Grande do Sul, o
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embrião do que seria o nacionalismo da década de 1950. A presença desse patriotismo no
desenrolar do movimento teria promovido uma importante transformação no discurso dos
grevistas; de ―trabalhadores‖ a ―povo‖, todos os segmentos sociais uniam-se numa mesma
palavra. O movimento perdia, com isso, toda sua identidade de classe, o governo já não
representaria o papel de patronato, de adversário a ser convencido. Na união das classes, Borges
de Medeiros passaria a ser o grande interlocutor dos interesses gaúchos frente à dominação
estrangeira. O governo converte-se de oponente a interlocutor e aliado.
Um outro componente do que seria um ―[...] ‗pré-ensaio‘ do fenômeno populista e do
trabalhismo, principalmente na sua variante gaúcha‖16
, seria a ideia de incorporação do
operariado ao pacto social, a noção de harmonia social e o repúdio da idéia de luta de classes.
No jornal A Federação, falava-se da incorporação do operariado à sociedade, manifestada pela
materialização de alguns dos anseios dos trabalhadores, falava anda de uma lógica social
diferenciada da sociedade gaúcha, em que o espírito coletivo prevalecia sobre os interesses
individuais, daí – julgavam os republicanos –, a obrigação do bem público em satisfazer
interesses não só do proletariado, mas também dos capitalistas. Saltava aos olhos, portanto, a
ideia de um Estado interventor, de uma sociedade harmonizada, na qual os interesses coletivos
deveriam preponderar por sobre os interesses classistas e individuais, e também a noção de que
o proletariado deveria ser agrupado à sociedade por meio de direitos básicos assegurados. Três
ideias também presentes no trabalhismo.
A influência do positivismo teria dado a Borges de Medeiros uma ótica diferenciada
para lidar com a situação grevista. No entanto, segundo Miguel Bodea, só o positivismo não
seria suficiente para explicar a especificidade gaúcha. O Rio Grande do Sul apresentava
particularidades ainda mais estruturais, que teriam ajudado e permitido tal conduta. Uma delas
teria sido o rearranjo político ocorrido no estado, criador de uma cisão oligárquica – a
dissidência foi chamada por Joseph Love de ―quase elite‖,17
Além de possuir características diferenciadas com relação à oligarquia cafeeira paulista,
já que estava mais voltada para o mercado interno, o Rio Grande do Sul ainda apresentaria a
peculiaridade de ver sua oligarquia dicotomizada entre maragatos e chimangos, entre
federalistas e republicanos castilhistas. Essas duas particularidades explicariam os reclamos
desta elite por maior intervenção estatal na economia, com medidas protecionistas, e a postura
mais aberta do governo de Borges de Medeiros diante dos grevistas de 1917. O perfil mais
ligado ao mercado interno justificava o desejo por um Estado protetor e atuante, enquanto a
cisão oligárquica dava ao governo a possibilidade financeira de permitir maiores concessões ao
movimento grevista.
Bodea considera ter sido o Rio Grande do Sul o local ideal para uma comunhão
interclassista. Lá, o predomínio de trabalhadores nacionais nas fábricas e serviços, associado a
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uma classe intermediária não tão vinculada às demandas do mercado externo, e a formação de
um Estado composto por segmentos interessados em incorporar o proletariado no pacto social
teriam permitido uma aliança interclassista:
Por essas interpretações, vê-se que a relevância do positivismo para a compreensão do
trabalhismo não é pequena; de alguma forma, de acordo com essas interpretações, ele deu a
marca de continuidade entre dois momentos de nossa história. Avaliar o peso dessas
permanências pode ser uma forma diferente de avaliar uns dos mais importantes momentos
políticos de nossa trajetória política.
Um possível diálogo
Numa interpretação gramisciana18
do trabalhismo, o fenômeno pode ser interpretado
numa divisão complementar de duas esferas: a da sociedade civil, na qual se busca o que
Gramsci denomina de ―visão do mundo‖, e a da sociedade política, em que esta visão de mundo
ganha ares de coerção. Assim, as duas interpretações, a da origem histórica positivista
(consenso, no nível da sociedade civil) e a da ideologia política estatal (coerção, na sociedade
política) podem fazer parte de um mesmo fenômeno. O trabalhismo como partido político.
Ao considerá-lo como ―partido político‖, englobando tanto a atuação de seus dirigentes
políticos, no plano da sociedade política, como também o nível da cristalização do ―senso
comum‖, já no âmbito das massas, amplia-se a concepção de trabalhismo. Só assim,
considerando-o tanto uma corrente doutrinária como um movimento social – a um só tempo
como resultado de uma ação política, pela atuação pública dos dirigentes, mas também como
expressão de uma visão de mundo –, não se reduz o trabalhismo à esfera do Estado. Numa
abordagem como esta, o trabalhismo não pode ter início no ano de 1942, como defende Angela
de Castro Gomes. Nem pode ser reduzida única e exclusivamente a uma ideologia inventada,
cujo fim último seria a sustentação de um regime político. Esta seria apenas a expressão de um
dos níveis desse trabalhismo: a sua esfera de atuação na sociedade política, no plano da coerção,
quando o trabalhismo emergia como força política, exercendo o domínio da máquina estatal.
Com Bodea e sua abordagem gramisciana19
do trabalhismo – com a qual tendemos a concordar
–, este conceito ganha maior amplitude temporal, indo desde os positivistas gaúchos, na fase de
elaboração do trabalhismo como ―visão de mundo‖, passando pelos anos 1930-1945, momento
em que o trabalhismo se expressava como força política, até o ano de 1964, época de sua crise
política.
Notas
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1 O regionalismo gaúcho pode ser ampliado a todos os estudos que tendem a estudar o trabalhismo a
partir do Rio Grande do Sul. Ver-se-á que os autores expoentes do que aqui se chamou de ―trabalhismo
gaúcho‖ não são gaúchos de nascimento, mas escolheram analisar o trabalhismo a partir daquele Estado.
Isso será determinante nas suas análises. 2 Angela de Castro Gomes, assim como Pierre Rosanvallon, reforça a perspectiva da história política que
avalia o político como um espaço de negociação, de auto-representação das relações sociais de um
determinado período. Para ambos, a política deve ser entendida em seu sentido mais amplo – a cultura
política –, e compreendida como historicamente construída, como produto de uma dada época histórica;
de seus valores culturais e políticos. GOMES, Angela de Castro Gomes. ―Política: história, ciência,
cultura etc‖. In Estudos Históricos, n. 17. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1996.
3 Este assunto está na introdução de seu livro, Getulismo, PTB, e cultura política popular1945-1964. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. O autor fala em recuperar, ainda que parcialmente, as vivências e
experiências políticas dos trabalhadores, populares e eleitores do PTB; em compreender as atitudes, as
motivações e a maneira como os quadros do PTB, entre 1945-1964, deram significados e interpretaram a
realidade social em que viveram. Sabendo da dificuldade de recuperar a atuação política desses populares,
já que faltam registros concretos, o autor se utiliza do conceito de cultura, entendendo-o como conjunto
de atitudes, representações sociais e códigos de comportamento que forma as crenças, idéias e valores
reconhecidos por um certo grupo social. Ao analisar as manifestações políticas das camadas populares
adeptas do trabalhismo com o conceito de cultura, o autor acredita estar reconstruindo um aparato
simbólico que, de alguma maneira, teve existência real para os trabalhadores; é como se a cultura, sob
este ponto de vista, organizasse a realidade na consciência social dessas pessoas. O que se sobressai,
portanto, é a preocupação do autor em entender de que maneira o trabalhismo foi interpretado e percebido
por essas camadas populares, p 14. 4 O autor faz isso em seu livro Trabalhadores do Brasil.
5 O populismo e sua história, op.cit., p. 90.
6 O populismo e sua história, op. cit., p. 103.
7 No Rio Grande do Sul há um frutífero debate sobre essas continuidades e rupturas; há os que ressaltam a
continuidade entre os dois, estendendo o fenômeno do trabalhismo a uma temporalidade mais longa, e os
que o reduzem à temporalidade mais recente, concordando com Angela de Castro Gomes. No entanto,
ainda que haja essas discordâncias, só o fato de eles discutirem essa questão, já nos permite englobá-los
no que chamamos de viés ou orientação interpretativa gaúcha.
Nos estudos cariocas essas continuidades sequer são discutidas. 8 BODEA, Miguel. A greve de 1917: as origens do trabalhismo gaúcho. Porto Alegre: Editora L&PM,
1979. 9 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
10 O autor ainda argumenta que estas medidas estatizantes podem ser consideradas parte de uma doutrina
cujo objetivo era coibir os abusos do mercado e que tinha a política de prover para prover, por isso, a
intervenção. O autor ainda lembra que, por questão de hábito, situamos o nacionalismo estatizante entre
os anos 1930-1950, mas que estas medidas, por si só, já teriam sido um indício de um dos principais
componentes do trabalhismo getulista; o nacionalismo. BOSI, op. cit., p. 289. 11
Idem, p. 300. 12
Idem, p. 295. 13
Idem, p. 296. 14
Idem, p. 297. 15
Idem, p. 274. 16
Idem, p. 45. Não há muito esclarecimento sobre os termos ―populismo‖ e ―trabalhismo‖ nesta obra.
Sobre o assunto, há apenas uma pequenina nota de rodapé. Nela, Bodea cita o esforço de negar o caráter
populista ao trabalhismo, sobretudo nos trabalhos de Moniz Bandeira (o livro citado é O governo de João
Goulart, de 1978), mas não há qualquer esclarecimento mais cuidadoso. Bodea explica que seu propósito
na obra se resume apenas a tentar desvendar as origens do próprio trabalhismo e do getulismo, ambas a
partir da especificidade de formação político-social do Rio Grande do Sul, mas sem ter qualquer
pretensão maior sobre aquele assunto. Ainda na mesma nota, o autor faz uma periodização do
trabalhismo, afirmando ser o getulismo sua primeira fase. Cabe destacar apenas que, já aí, getulismo e
trabalhismo aparecem como etapas diferentes, embora complementares.
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17
O conceito está no capítulo de Love, ―O Rio grande do Sul como fator de instabilidade na República
Velha‖, no livro organizado por FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília A. N. O Brasil republicano, vol
1, Estrutura de poder e economia (1889-1930): São Paulo: Difel, 2003, p.111.
18
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1968. 19
A tese é defendida no seu livro BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992.
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Tendências da Historiografia Contemporânea: os usos e apropriações da cultura
digital no fazer historiográfico
Leandro Coelho de Aguiar*
Resumo: Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado em Ciência da Informação, em curso
na UFRJ PPGCI IBICT com financiamento da CAPES, que pretende mapear no universo dos
historiadores a dinâmica da produção e apropriação das novas tecnologias em formato digital.
Especificamente neste ensaio, busca-se refletir possíveis mudanças de paradigmas da
historiografia contemporânea: idéia de história global, história e memória; e tempo e espaço
histórico, mudanças estas que tem como influência o avanço nas ultimas décadas da cultura
digital.
Palavras-chave: Historiografia. Cultura Digital. Historiografia Digital.
Abstract: This work is part of the research master's degree in Information Science, in progress
at UFRJ PPGCI IBICT with funding from CAPES, you want to map the universe of historians
the dynamics of production and appropriation of new technologies in digital format. Specifically
in this paper, we try to reflect possible changes in the paradigms of contemporary
historiography: the idea of global history, history and memory, and historical time and space,
changes which have an influence in the last decades the advancement of digital culture.
Keywords: Historiography, Digital Culture, Digital Historiography.
Introdução
Em 1994, de passagem pelo Brasil, o historiador inglês Manfred Thaller proferiu uma
conferência onde elucidou acerca das possibilidades do uso das novas tecnologias,
especificamente do computador, no fazer historiográfico1. Anos depois, em 1997, Luciano
Figueiredo2 descrevendo acerca do uso do computador na história, não apenas ilustrou a
importância de Thaller para a temática, como faz referência a um dos seus principais trabalhos,
o KLEIO, um software destinado às exigências específicas dos historiadores.
Duas observações podem ser feitas a partir das reflexões contidas na fala de Figueiredo
acerca de Thaller. A primeira é que algumas de suas ―estimativas‖ se confirmaram e podem ser
hoje observadas em uso pelos historiadores, como por exemplo, a digitalização e a organização
de fontes, a utilização de instrumentos como tesauros e o próprio banco de dados. Todavia
outras tendências, ainda são pouco utilizadas pelos historiadores, como por exemplo, o uso de
mecanismos de comparação de escritas históricas e modernas e no caso do uso da tecnologia
para ―recuperar‖ e ―restaurar‖ documentos históricos, neste caso, entrando em discussão a idéia
de fidedignidade da fonte.
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A segunda observação é acerca de uma visão ufanista do uso destas novas tecnologias
digitais, levando a crer que muitos dos problemas existentes acerca do uso das fontes pelos
historiadores seriam superados graças ao uso destas novas tecnologias.
Quatro anos antes da fala de Thaller, o historiador Guilherme Pereira das Neves
pronunciou aquele que é visto como um dos primeiros trabalhos no Brasil sobre o uso de
computadores no fazer historiográfico, onde, ao refletir e descrever acerca da sua experiência na
aplicação da informática na pesquisa da tese de seu doutoramente, chamou atenção acerca do
uso de banco de dados na pesquisa,
O uso do micro, como banco de dados, desperta a imaginação do historiador para a
possibilidade de vir a livrar-se seu trabalho do acompanhamento inevitável e
fastidioso de uma enorme quantidade de fichas de cartolina [...] seria o caso então,
de afirmar que o sonho de Comenius transformou-se em realidade? 3
Neves refere-se ao sonho de Jan Amo Komensky – ou Comenius como ficou conhecido
no Brasil – de buscar um método capaz de superar certas dificuldades em lhe dar com o
extraordinário acúmulo de dados propiciado pelo movimento humanista. Neste caso ―reunindo
todas as informações contidas em textos, classificando-os e ordenando-os, de maneira a dar
consistências e tornar acessível aquela sabedoria à qual os verdadeiros ‗savants‘ deveriam
almejar‖. 4
De acordo com Figueiredo5, a experiência do uso do computador aplicada à história
vem se multiplicando no Brasil e no mundo. Desde os primeiros modelos demográficos e
econômicos da década de 1960, passando pela ―explosão‖ assistida pelo barateamento dos
microcomputadores, o desenvolvimento de interfaces gráficas, o tratamento integrado de vários
objetos (texto, gráficos, tabelas, imagens e sons) possibilitando, assim, a geração de uma nova
relação com esta tecnologia.
Para Silva o uso das tecnologias digitais nos procedimentos de pesquisa histórica na
década de 1990 já não era novidade. Sendo reconhecidos tais discussões deste a década de
19706, onde os primeiros historiadores que mais se beneficiaram com o uso destas novas
tecnologias digitais foram os que se dedicavam à história quantitativa, econômica e
demográfica. Através do uso dos bancos de dados, puderam tratar das fontes como registros de
casamentos ou relações e preços de mercadorias, devido a estas fontes apresentarem
informações seriadas e dados homogêneos. 7
Na década de 1990, com o declínio da história quantitativa, observou-se também o
declínio do uso dos bancos de dados pelos historiadores. Por outro lado, marca a ampliação do
uso da informática em outros campos da história, como por exemplo, na história da arte com o
desenvolvimento de sistemas de informações iconográficas e através de processos de
digitalização, assim como o uso da ―realidade virtual‖ na divulgação do conhecimento histórico.
8
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Alguns historiadores se lançaram em pesquisas e equipes interdisciplinares, como por
exemplo, o já mencionado projeto KLEIO. Neste caso, para além da idéia de se criar um
programa que servisse de modelo único de software ao serviço do historiador (fato visto hoje
como impossível metodologicamente), representou de fato um avanço conceitual em relação aos
usos de banco de dados relacionais para o trabalho do historiador9.
Mesmo com o desenvolvimento das tecnologias e o barateamento dos equipamentos e
softwares, ainda hoje se observa alguns empecilhos no uso das tecnologias digitais pelo
historiador. Para Silva10
, dois fatores são relevantes nesta perspectiva, o ―pequeno conhecimento
de informática dos historiadores‖ e a ―dificuldade de recursos financeiros e tecnológicos para a
manutenção, suporte e treinamento‖, que, aliado a falta de espaços de debates coletivos sobre a
temática, resultando em apropriações problemáticas destas tecnologias.
De acordo com Poster11
, além das novas tecnologias voltadas para o uso com as fontes
históricas, como exemplo, a digitalização de documentos históricos, também a comunicação e
divulgação do conhecimento estão sendo influenciados por estas novas tecnologias. Algumas
destas características podem ser observadas e pontuadas: os historiadores estão publicando cada
vez mais em meios digitais e on-line; há um aumento significativo no numero de periódicos
digitais, assim como os periódicos ―tradicionais‖ que estão disponibilizando seus volumes on-
line, ou até mesmo estão migrando exclusivamente para o formato digital, a exemplo da Revista
de História da ANPUH12
; e uma série de centros e grupos de pesquisas que utilizam sites e
portais on-line na comunicação e divulgação dos trabalhos de seus membros. Francisco Javier
Garcia Marco13
fala da ―revolução das tecnologias de informação e comunicação‖ no ofício do
historiador, chamando atenção ao novo meio de comunicação dos historiadores, descrito como o
―laboratório do historiador do futuro‖, denominado como ―Sistemas de Informação Histórica
(SIH)‖. Trata-se da gestão da informação e do conhecimento histórico de forma integrada e
compartilhada coletivamente com ajuda das TICs digitais, através de um portal on-line.
Cultura digital no fazer histórico como uma mudança de paradigma
Como é a disciplina da história afetada pela digitalização da escrita? A
digitalização é simplesmente um meio mais eficiente de armazenamento,
reprodução e transmissão de documentos, cuja disponibilidade de espaço e
tempo é maior para aplicação pelos historiadores de técnicas e métodos de
investigação? Ou será que a digitalização causará uma alteração para os
historiadores na constituição da verdade? 14
Quais são as influências da cultura digital na relação da história com a memória? De
uma nova concepção da história total, universal ou global? Assim como a própria mudança da
concepção de tempo e espaço para a história? Diante desses questionamentos, torna-se
importante hoje a reflexão e o debate acerca da influência das tecnologias digitais na produção,
divulgação e comunicação do conhecimento científico, para além de uma perspectiva
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meramente metodológica e tecnicista, mas também chamando atenção para uma perspectiva de
mudança paradigmática no próprio fazer histórico.
Utiliza-se aqui o conceito de paradigma científico, descrito por Thomas Kuhn, como
sendo ―as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
oferecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência‖15
. Em outras palavras, paradigma científico pode referir-se fundamentalmente como
uma ―concepção de mundo‖ que, pressupondo um ―modo de ver‖ e de ―praticar‖, englobando
um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação.
De outro lado, torna-se importante também observar estas mudanças de paradigmas, o
que Kuhn vai chamar de revoluções científicas,
as revoluções científicas são os complementos desintegradores da tradição à qual a
atividade da ciência normal está ligada [...] tais mudanças, juntamente com as
controvérsias que quase sempre as acompanham, são características definidoras
das revoluções científicas. 16
Acerca desta mudança de paradigmas na história, em 2001 foi lançado pelo grupo de
discussão História A Debate (HAD)17
o Manifesto Historiográfico de História a Debate,
explicitando algumas posições sobre a escrita e o ofício do historiador como alternativa
historiográfica para o século XXI. Um dos pontos em discussão é acerca dos usos das novas
tecnologias digitais, especialmente o computador e a internet, na escrita e no ofício do
historiador. De acordo com o manifesto, as ―novas tecnologias estão revolucionando o acesso à
bibliografia e as fontes‖, chamando atenção ao papel da internet, como uma poderosa
ferramenta contra a ―fragmentação do saber histórico‖.
Este novo paradigma digital na história deve ser entendido como resultado de um
processo social mais amplo, envolvendo um novo paradigma da comunicação de informação e
conhecimento na sociedade. Ao contrário do que pensam os mais pessimistas, não vai substituir
as atividades presenciais e suas instituições seculares, ―mas fará parte de uma maneira crescente
da vida acadêmica e social‖. Assim sendo, esta generalização das tecnologias digitais, tanto no
mundo acadêmico quanto na sociedade em geral, deve ser entendida como um fator relevante da
transição do século XX ao século XXI. 18
Sob as perspectivas dos novos paradigmas historiográficos, ainda de acordo com o
HAD, observa-se a ampliação do conceito de fonte histórica, da ―documentação não estatal, os
escritos de tipo material, oral e iconográfico, e as não-fontes: silêncios, erros e lacunas que (...)
há de dar valor procurando também a objetividade nas pluralidades das fontes‖. Nesta
perspectiva, compreendendo como um novo modelo,
que incorpore a nova relação com as fontes trazida pela historiografia renovadora
dos anos 60 e 70, a história das mulheres, a história oral, a história ecológica, a
história mundial/global e noutras novidades surgidas ou desenvolvidas nos anos 80
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e 90, como a ―nova historiografia‖ que está a nascer na Internet e da qual
fazemos parte. 19
Poster, ao realizar tais questionamentos acerca da real influencia das novas tecnologias
no fazer histórico, não tem a pretensão de respondê-las, mas apenas trazer a tona esta
discussões. Carlos Barros20
, ao afirmar que ―o novo paradigma da história, como tudo, será
digital‖, busca mostrar que s novas tecnologias, não repercutem apenas no acesso às fontes, no
método de trabalho ou no processo de divulgação e comunicação, mas pode mudar no resultado
final do próprio trabalho do historiador, conduzindo-os à construção de outro objeto,
―naturalmente mais global‖.
A história global
Para Flórez21
, torna-se impossível pensarmos uma história digital, sem pensar na
história global, assim como pensar esta forma de história globalizada por aqueles que são
―treinados‖ a pensar em abordagens unilateral e tradicional. Pensar de forma global acaba
sendo, por um lado, uma tarefa complexa, mas por outro lado, uma tarefa gratificante, tendo em
vista que o historiador encontra-se mentalmente conectado com a cultura digital, com as
multiplicidades de possibilidades e versões em que a história é representada. 22
A cultura digital no fazer histórico remete de fato a uma história global, por depender de
um contexto globalizado e globalizante. Barros questiona, ―quais são os desafios que a
mundialização projeta para a historiografia?‖23
Para Flórez, o desafio se coloca do local para o
global, de ―histórias subordinadas, memórias escondidas e ocultas, que tem vindo a emergir no
contexto da cultura digital, antes do domínio de um discurso predominante‖24
.
Esta história global de acordo com o próprio Barros, é o resultado do contexto dos anos
1990, envolvendo a busca de uma nova modernidade, resultado dos embates entre a própria
concepção de história moderna e pós-moderna, ―mais autocrática, local e global, social e
cultural, estatal e livre-cambista, mais complexa e difícil, que não abandone o criticismo, mas
que tampouco renuncie à transformação da sociedade, com a liderança da razão.‖ 25
A história global pode ser pensada a partir da perspectiva de David Christian26
, uma
história universal, onde se torna compreendida a partir de avanços e recuo (conflitos), não em
uma cidadania nacional, mas sim global. Estas mudanças tornam-se importante ao observar a
noção de paradigma khuntiano, partindo da hipótese de que a história precisa aproximar-se das
outras ciências. Nesta nova História global ou universal cravada no contexto social do século
XXI, a espécie humana é uma só, com múltiplas especificidades e um agravante, o tempo da
informação, como exemplo da informação instantânea e on-line. A história muda, não a partir
dos conflitos, de acordo com as teorias ―tradicionais‖, mas, tendo como foco a questão
temporal, junto da propagação da informação e da linguagem (o que nos diferencia dos outros
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animais). Mudança, de uma concepção de civilização e cultura politicamente dada, para o
entendimento de espécie humana e suas linguagens.
Se esta concepção de história vai ou não ganhar força, não há como saber, mas de certo
que este tipo de pensamento possibilita, pelo menos, à historiografia sair de sua ―zona de
conforto‖ e a buscar novos questionamentos e explicações. Assim como compreender que
muitas das críticas a estas novas tendências historiográficas, existem pelo fato de que os
historiadores do século XX e XXI estão ainda presos à história do século XIX.
História e memória
Uma outra discussão importante na análise das relações entre o ofício e práticas
historiográficas com a cultura digital é a questão da memória. Murguia e Ribeiro, indagam
justamente acerca das práticas historiográficas na sociedade contemporânea: ―se a linguagem e a
memória constituem, elas mesmas, a narrativa histórica, de que forma seria afetada essa
narrativa com a criação de linguagens e memórias artificiais?‖ Eles estão justamente argüindo o
aparecimento no século XX das tecnologias digitais de informação e comunicação, fenômenos
tecnológicos que mudou radicalmente a forma de geração e difusão do conhecimento, assim
como a própria percepção de realidade e de realidade histórica. 27
Qual a relação da história com a memória sob o prisma da cultura digital? Primeiro,
torna-se importante observar justamente a relação entre história e memória. Para Dantas28
tanto
a história quanto a memória trabalham com o passado, havendo distinções e aproximações,
certo apenas que a historiografia atual, não mais procura definir a memória como falso em
oposição à história e sua verdade absoluta. Para Murguia e Ribeiro, a partir do momento em que
a história se coloca como ordenadora das lembranças tendo como fundo os vestígios do passado,
e ao se tornar legível, a memória faz-se história, assim sendo a memória só é legível pela sua
―tradução‖ enquanto discurso. ―Discurso maleável, manipulável, normalizado, porém dispostos
a ser arranjados de forma diferente por cada uma das pessoas (estilo) num suporte físico
(documento)‖. 29
Hoje, cada vez mais as sociedades se voltam para o passado, em uma espécie de
―musealização do mundo‖, como descreve Huyssen, ou a emergência de um ―boom de
memórias‖, como descreve Nora. Trata-se de um discurso em parte contraditório, pois ao
mesmo tempo em que as novas tecnologias digitais contribuem para um ―permanente presente‖,
observa-se um interesse pelo passado através do registro em imagens e textos (sites, blogs,
videos).30
Torna-se importante ratificar o entendimento acerca da constituição da memória, para
Alessandro Portelli, a memória, assim como toda a atividade humana, é social e por isso pode
ser compartilhada. É justamente este pensamento que embasa esta reflexão acerca da concepção
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de história, memória e cultura digital. Neste contexto contemporâneo, uma pergunta se faz
pertinente. De que forma as tecnologias e a cultura digital influenciam as práticas de memória?
E qual a relação destas práticas de memória em relação ao fazer histórico? 31
Para Nora32
, não apenas trata da distinção e aproximações entre memória e história,
como também cria um dispositivo para se trabalhar na fronteira destas vivências: ―os lugares de
memória‖. Sua reflexão acerca da memória e história nasce de uma constatação prática em sua
própria vivência, percebeu que a juventude francesa estava perdendo a memória da revolução
francesa. Neste momento é que ele passa a questionar o próprio papel da história, buscando
subsídios pragmáticos para o desafio de fazer lembrar. Nora observa que a aceleração da
história, equivale a uma possível crise da memória, busca justamente problematizar o
esquecimento e sensibilizar o historiador no que fazer lembrar. Nora identifica como fator
determinante de nossa época a problemática fundamental da questão da mundialização, processo
pelo qual o mundo se torna um só e no quais os meios de comunicação de massa exercem um
papel primordial.
Evidencia-se uma tendência contemporânea crucial, a concepção social de globalização
da sociedade como conseqüência das transformações tecnologias envolvendo as tecnologias de
informação e comunicação. É nesta perspectiva que a cultura digital possibilita um novo tipo de
memória, a memória entendida como rede, onde todos os dados estão conectados, onde ―a partir
de um é possível entrar em todos, e nenhum deles impede de entrar nos outros‖. A memória-
rede caracteriza-se justamente pelo processo mutuo de fragmentação e globalização, pelo
próprio movimento desordenado, não precisando de ordem prévia. 33
Com o surgimento da cultura digital o principio da escrita linear dá lugar a novas
tendências, quando as informações passam a circular em bits, onde o suporte torna-se leve,
móvel, maleável. 34
A chegada das novas tecnologias e a formação de uma cultura digital significa lidar com
novos tipos e conhecimento que, de certa forma, Nora percebeu já com o crescimento da
comunicação em massa, no sentido de ―imediatez‖ e simultaneidade. Tal perspectiva possibilita
a história em lidar com novos paradigmas, não mais seqüenciais e lineares, pelo contrário, cada
vez mais velozes, múltiplos e simultâneos, ocasionando, se não um problema imediato, pelo
menos certo mal estar, uma vez que não dá para esquecer uma das tradições no objeto e ofício
do historiador, a historicidade da história. 35
História e a concepção de tempo e espaço
Uma outra questão que o historiador tem que saber lhe dar com o advento da tecnologia
e da cultura digital, é acerca da relação e mudança da perspectiva de tempo e espaço. Carlos
Ginzbusg, em uma palestra realizada em 2010 no Brasil, chamou atenção justamente que as
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idéias de presente, de passada e de futuro tentem a se tornarem mais frágeis. O autor deu como
exemplo o Google, onde, como uma ferramenta da internet, pode ser ―ao mesmo tempo, um
poderoso instrumento de pesquisa histórica e um poderoso instrumento de cancelamento da
história. Porque, no presente eletrônico, o passado se dissolve‖. Ele demonstra ser possível em
poucos minutos de pesquisa na internet, abolir a noção de tempo e espaço, resumir séculos em
minutos ou segundos, diminuir metros e até quilômetros de arquivos em poucos milímetros
quadrados de uma memória artificial, ou polegadas do monitor. 36
A cultura digital e o tipo de sociedade a que estão dando lugar, fazem com que
desapareça a barreira que delimitava passado e presente, acrescentando o futuro dentro de um
―eterno presente‖. Através do imediatismo e da informação instantânea, também modifica se a
noção de espaço. Na história, se algo era verdadeiro, ―isso ocorria pelo fato de ser explicado
num tempo, num lugar determinado, devidamente documentado‖, todavia hoje, a cultura digital
relativiza este tempo e espaço, onde a confiança tende a ser depositadas nas mensagens por elas
geradas e transmitidas. Assim sendo, ao rigor científico, junta-se a eficácia tecnológica.
Nesta perspectiva, qual o papel do historiador? Hobsbawm37
busca discutir a relação da
história com o presente e o futuro, onde o historiador faz a previsão do futuro no passado,
fazendo uma leitura a partir dele mesmo. Justamente o que se discuti no Koselleck38
no livro
―futuro passado‖, onde busca refletir acerca de um ponto: o historiado escreve a história a luz de
que? Para ele deve haver um meio termo, trata-se de estudar as experiências e relações do
passado e a expectativa do futuro, onde o historiador não é neutro nem inocente, ou seja,
trabalha o passado, orientado pelas perspectivas do futuro.
Considerações finais
Retornando a indagação realizada por Mark poster, ―como é a disciplina da história
afetada pela digitalização da escrita?‖. Este ensaio não conseguiria responder a esta pergunta,
pois este debate ainda está por fazer. Todavia, diante das breves reflexões aqui realizadas,
algumas considerações já podem ser conjeturadas. .
De fato, o fazer historiográfico já vem sendo influenciado pela cultura digital deste o
fim do século XX. Esta influencia, ocorre, não apenas nas práticas, técnicas e métodos de
investigação histórica, como por exemplo, na criação de meio mais eficiente de armazenamento,
organização, reprodução e transmissão de documentos e informações históricas, mas também na
produção e comunicação do próprio conhecimento histórico produzido.
Todavia, este debate, não está restrito a questões práticas e metodológicas da pesquisa
no fazer histórico. Partindo da concepção de paradigma e de revolução científica kuhniano,
pode-se observar que a cultura digital está, como indagou Poster, alterando a constituição da
verdade para os historiadores, mas não apenas, acrescenta-se a isso, a alteração de outros
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importantes princípios história, como a própria concepção de tempo (passado, presente e futuro)
e de espaço.
Como já foi dito no início, o objetivo desse trabalho é apenas o de organizar, dentre um
leque de possibilidades, algumas linhas de pensamento, debates e reflexões acerca desta
temática. Espera-se que mais um passo tenha sido dado, pois agredida-se que as respostas a
essas perguntas só poderão ser propostas e discutidas, se cada vez mais reflexões forem
realizadas, mesmo sabendo que, como disse Carlos Guinzburg, o risco de tal ―fala‖ seja grande
para o historiador.
Notas
* Mestrando em Ciência da Informação (PPGCI IBICT UFRJ) - Financiamento: bolsista CAPES –
Orientadora: Prof. Dra. Maria Nélida Gonzalez de Gómez (IBICT) – E-mail: [email protected]
1 THALLER, Manfred. Tendências futuras dos softwares aplicadas à pesquisa e ao ensino da história. In:
IV Encontro Internacional de História e Computação: São Paulo: UNESP, 1994. Ver em, FIGUEIREDO,
Luciano. ―História e Informática: o uso do computador‖. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo.
Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, p. 419-441, 1997.
2 Ibidem FIGUEREDO, 1997.
3 NEVES, Guilherme Pereira das.‖O sonho de Comenius: o uso de micro-computadores na pesquisa de
História Social‖. In: História Hoje: balanços e perspectivas / Anais do IV Encontro Regional da ANPUH-
RJ. Rio de Janeiro: ANPUH RJ, 1990, p. 210-213.
4 Ibidem, p. 208.
5 Cf. FIGUEIREDO. Cp. cit, p. 208-214.
6 Eventos na década de 1970 envolvendo a temática História e a informática: V Conferência Internacional
de História Econômica em Leningrado (1970), I Conferência sobre História e Computação (1973) e em
1971 com o americano Edward Shorte que publicou o manual intitulado The Historian and the computer.
No Brasil é lembrado o trabalho, já mencionado, de Guilherme Pereira das Neves, num período um pouco
mais tardio, em 1990. Ver em: SILVA, Edson Armando. ―Banco de dados e pesquisa qualitativa em
história: reflexões acerca de uma experiência‖. Revista de História Regional. Ponta Grossa, PR: UEPG, 3
(2), p. 167-176, 1998
7 Ibidem.
8 Ibidem.
9 O programa baseava-se no ―conceito de base de fados orientado à fonte‖, onde a recuperação dos
elementos era feita através de ―redes semânticas‖, sendo possível recuperarem qualquer informação em
qualquer grupo de dentro da base. Dessa forma era possível identificar relações imprevistas no momento
da criação da base de dados, não sendo necessário pré-definir uma estrutura rígida ou uma hierarquia
entre os elementos do documento. Cf. FIGUEIREDO. Cp. cit, p. 436.
10 Cf. SILVA. Op. cit, p. 165-176.
11 POSTER, Mark. ―History in the Digital Domain‖. Historein. vol. 4, p. 17-32, 2003.
12 REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. Publicação da Associação Nacional de História.
<http://www.s2.anpuh.org/revistabrasileira/public/>
13 MARCO, Francisco Javier Garcia. ―Los sistemas de informacíon histórica: uma nueva fronteira em la
construccíon científica de la Historia‖. Revista Aragon em lá Edad Média. Zaragoza, Espanha, nº. 19, p.
213-233, 2006.
14 Cf. POSTER. Op. cit, p. 17.
15KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções Científicas. – 7 ed. - São Paulo: Perspectiva, 2003. p
13.
16 Ibidem p. 25.
17 HISTORIA A DEBATE é um grupo de discussão com fórum permanente de debates criado em 1993 e
sediado na Universidade Santiago de Compostela (Espanha). As temáticas discutidas permanentemente
envolvem sobre metodologia, historiografia e teoria de História; sobre a renovação prática da
investigação e da divulgação histórica; e sobre a docência na História, tanto na universidade quanto no
ensino básico, e sua relação com a investigação e a reflexão historiográfica. Desde 1993 já foram
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realizados quatro Congressos, denominados de Congresso Internacional História A Debate. <www.h-
debate.com> .
18 Ibidem.
19 Ibidem.
20 BARROS, Carlos. ―Para um novo paradigma historiográfico‖. Revista Tempo. Rio de Janeiro, nº. 11,
p. 205-221, 2001.
21 FLÓREZ, Jairo Antonio M. ―Da escassez à abundância‖. História Digital (Blog). Postado em 9 d
março de 2011. Disponível em < http://historiaabierta.org/historiadigital/2011/03/09/de-la-escasez-a-la-
abundancia/>. Acessado em 10/06/2011.
22 Ibidem.
23Cf. BARROS. Op. cit, p. 214.
24 Cf. FLOREZ. Op. cit, p. 1.
25 Cf. BARROS. Op. cit, p. 215.
26 CHRISTIAN, David. ―The returno f universal history‖. History and Theory. Theme Issue 49 (4): 6-27.
December, 2010.
27 MURGUIA, Eduardo I; e RIBEIRO, Raimundo D. do P. ―Memória, história e novas tecnologias‖.
Revista Impulso. São Paulo: UNIMEP, nº 28, p. 179-188, 2001. p. 181.
28 DANTAS, Camila G. ―O passado em Bits; questões sobre a reelaboração da memória social na
internet‖. Blog Digital History. Disponível em <http://chnm.gmu.edu/digitalhistory/>. Acessado em
02/09/2010.
29 Cf. MURGUIA e RIBEIRO. Op. cit, p. 185.
30 Cf. DANTAS..
31 Ibidem, p. 2.
32 NORA, Pierre. ―Entre memória e história: a problemática dos lugares‖. In: Projeto História 10. São
Paulo: PUCSP, p. 7-28, 1993.
33 Cf. MURGUIA; RIBEIRO. Op., cit. p. 185.
34 Cf. DANTAS. Op. cit, p. 9.
35 Cf. MURGUIA; RIBEIRO. Op. cit, p. 182.
36 GINZBURG, Carlos. História na Era Google. Porto Alegre: Seminário Fronteiras do Pensamento,
2010. (Conferência). Disponível em <
http://www.youtube.com/watch?v=wSSHNqAbd7E&feature=player_embedded>. Acessado em
10/06/2011..
37 HOSBAWM, Eric. ―A história e a previsão do futuro‖. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das
letras, 1998, p. 46-67.
38 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuições à semântica dos tempos históricos. Trad.
Wilma Mass e Carlos Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-RIO, 2006.
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OUVINTES ALEMÃES: NAS ONDAS DA RÁDIO, THOMAS MANN E A
RESISTÊNCIA.
Leandro Couto Carreira Ricon1
RESUMO: Este trabalho objetiva analisar os discursos de Thomas Mann gravados nos Estados
Unidos da América e transmitidos via rádio para a Alemanha no momento da II Guerra
Mundial. A partir destes discursos, em favor da resistência contra o regime nazista, é possível
problematizar o autor alemão no que tange a sua visão política. E mais, é possível fazer um
paralelo comparativo entre os discursos de Mann e os discursos de Adolf Hitler.
PALAVRAS-CHAVE: Alemanha, Rádio, Thomas Mann.
ABSTRACT: This work aims to analyze the recorded speeches of Thomas Mann in the United
States of America and transmitted by radio to Germany at the time of World War II. From these
speeches in favor of resistance against the Nazi regime, it is possible to confront the German
author and his political views. It is possible to make a parallel comparison between Mann's
speeches and Hitler‘s speeches.
KEY-WORDS: Germany, Radio, Thomas Mann.
O rádio no momento nazista
Os regimes fascistas e populistas, sejam eles os europeus, como o fascismo italiano e o
nazismo alemão, ou os latino-americanos, como o varguismo no Brasil e o peronismo na
Argentina, possuem um caráter comum: percebem a necessidade e utilidade do controle dos
meios de comunicação de massa, entre eles, e um dos principais, o rádio, um dos meios mais
populares nas décadas de 1930 e 19402. Porém, a utilização da rádio por esses regimes
encontrou conflitos no próprio meio social. Destarte, o objetivo deste trabalho é analisar os
discursos do escritor alemão Thomas Mann gravados nos Estados Unidos da América e
transmitidos (ou lidos) via rádio para a Alemanha no momento da II Guerra Mundial. Para tal,
passaremos, sucintamente, pela história do rádio na Alemanha nazista e pela utilização que o
regime deu ao equipamento.
Com a chegada do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores
(Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP) ao poder, Joseph Goebbels (1897-
1945) ficou sendo o responsável pelo Ministério Nacional para Informação [ou Esclarecimento]
Pública e Propaganda (Reichsministerium für Volksaufklärung und Propaganda – RMVP). Este,
―assumiu com grande energia e entusiasmo sua tarefa de reorganizar a imprensa, o rádio, a
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produção cinematográfica, o teatro, a música, as artes visuais, a literatura e todas as outras
formas de atividade cultural‖3.
Neste sentido, Joseph Goebbels e os outros líderes deste modelo de governo buscaram
―mobilizar a sociedade através de uma política agressiva de comunicação, que almejava a
homogeneização ideológica e subordinava a informação ao poder autoritário do Estado.‖4 A
partir desta política de comunicação, Goebbels inseriu a propaganda partidária no interior da
Alemanha.
Contando com a ajuda de Wilhelm Frick (1877-1946), Ministro do Interior da Alemanha
(Reichsminister des Innern) e de Hans Geogr Fritzsche (1900-1953), Diretor Ministerial
subordinado diretamente a Goebbels e especialista em transmissões radiofônicas do Reich,
Goebbels começou a utilizar o rádio para espalhar a propaganda nazista pela Alemanha e pelos
territórios próximos, visando à doutrinação partidária e à exaltação fanática da Nação alemã, o
Reich.
A utilização da propaganda servia a um caráter extremamente pedagógico-nacionalista,
como nos afirma Wagner Pinheiro Pereira:
Estes governos criaram sofisticados mecanismos estatais de propaganda e
utilizaram-se da produção cultural, da educação e dos meios de comunicação para
conquistar a adesão da sociedade em torno de um projeto político-pedagógico
nacionalista, que visava ―educar‖ as massas segundo os princípios ideológicos dos
regimes (...) tendo-se em vista que um governo de caráter (...) autoritário precisa
multiplicar esforços no campo da repressão e da informação para se apresentar
como a melhor opção para seu país, os regimes fascistas (...) utilizaram-se de
diversos recursos para conseguir uma base popular extensa com uma intervenção
ideológica decisiva, que visava conquistar os corações e as mentes das massas ao
novo tipo de poder instaurado.‖5
Contudo, para o projeto propagandístico nazista funcionar, foi necessário afastar da
direção dos meios de comunicação – nos referiremos, a partir de agora, especificamente ao rádio
– os indivíduos não partidários do regime. Logo, toda a rádio passou a pertencer ou a ter uma
influência direta e forte do Estado. Todavia ainda não era o suficiente e, ainda em 1933,
engenheiros a serviço do Partido mapearam toda a Alemanha; analisando o local preocupados
com as transmissões de rádio, chegando à conclusão de que bastava um receptor simples (de
ondas médias e longas) para se ter a cobertura de todo o território, garantindo, assim, ao mesmo
tempo, a facilidade de receber o sinal da Alemanha e a dificuldade de receber as emissões
estrangeiras, como, especificamente, a inglesa.
Porém, coexistia outro problema: mesmo com a inexistência de emissoras contra o
partido6 o povo (no caso, o público de uma propaganda político-partidária) não possuía o
aparelho por questões, principalmente, econômicas. Logo, Goebbels7 desenvolveria, para sanar
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este problema, o conceito de um Receptor do Povo (Volksempfänger) que seria fabricado em
massa e distribuído para toda a população, levando a seus lares toda a propaganda por ele
formulada, tudo isso acompanhado de leis que proibiam a sintonização de rádios estrangeiras ou
clandestinas. O rádio foi financiado pelo Estado e vendido a baixos preços ou mesmo
distribuído por programas públicos na Alemanha, tendo chegado ao número de 6 milhões de
rádios em circulação em 1936, o que gerou um grande aumento no número de ouvintes entre os
anos de 1933 e 1939.
Contudo, dentro da programação das emissoras ocorria a construção propagandística, e,
ao mesmo tempo em que, devido à censura e a homogeneização das transmissões, houve uma
diminuição considerável no número de estações, houve, também, a fusão do entretenimento
radiofônico (músicas populares e eruditas8, poesias e literaturas alemães) com as informações
relevantes para o Reich e para o ouvinte. E mais, além dessa mistura clara entre interesse
noticiário público e gosto privado, a partir desse aparato midiático-cultural, o Estado nazista
difundiu, entre outras, as seguintes mensagens: o culto ao Führer; a idéia de raça pura; a
valorização da Nação alemã como suprema; além de, é claro, acusar os judeus e comunistas de
planos de dominação mundial e violência contra os alemães.
O último golpe para assegurar a presença total do rádio na sociedade alemã do III Reich
foi, além do emprego de técnicas de sedução para estimular ainda mais a excitação e a
fascinação dos ouvintes, como a mescla entre interesse público e privado, a legislação que
transformou em obrigatória a utilização do aparelho em locais públicos de grande freqüência,
tais como os restaurantes e as fábricas9.
Contudo, os discursos de Joseph Goebbels tinham uma diferença perante os discursos
de Adolf Hitler: se o Führer conseguia prender a atenção em seus discursos públicos, Goebbels
tinha mais facilidade com os discursos de rádio, possuindo, inclusive um senso de humor mais
refinado do que o de Hitler. No mais, o chefe nazista sabia bem a utilidade do aparelho: grande
parte dos discursos do Führer foram transmitidos pelas emissoras nazistas (mesmo sem a
familiaridade do líder com este modelo de comunicação). Vale lembrarmos que Hitler logo no
início da Guerra avisa ao povo alemão sobre o conflito e lembremos, também, que o último
discurso para o povo (ou público) de Hitler é na rádio, em 1945, poucos dias antes de seu
suicídio, ocorrido em 30 de Abril.
No mais, além da presença dos discursos de Hitler nesta forma de comunicação de
massa, este conhecia perfeitamente a importância da rádio para a propaganda nazista,
afirmando, por exemplo, que ―sem alto-falantes não teríamos conseguido conquistar a
Alemanha‖10
.
Thomas Mann: um escritor contra um partido
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Nascido em 1875, Thomas Mann não ficou conhecido apenas por sua grande e
complexa obra artística que fez com que ganhasse o Nobel de Literatura de 1929, ficou
conhecido, também, por sua atitude política democrática e firme, principalmente contra a
presença do nazismo na Alemanha e da perseguição que este partido promovia contra os judeus,
incluindo ele mesmo. Essa posição política, muito diferente do internacionalismo pacifista de
seu irmão Heinrich Mann (1871-1950) levou o autor a ser estudado na segunda metade do
Século XX com características políticas e sociais e não apenas artísticas, como seria de esperar
para alguém tão reconhecido no ramo das letras.
Já na década de 1920 podemos ressaltar a luta de Mann contra os pronunciamentos do
partido Nacional-Socialista, principalmente por sua característica anti-semita11
sendo o
assassinato do Ministro das Relações Exteriores da República de Weimar, por elementos da
direita, Walther Rathenau (1867-1922), um judeu, assim como Mann, um dos fatores que
levaram o autor a criticar política e a sociedade alemã.
Contudo Mann não quer ser um militante direto na política, preferindo continuar
fazendo sua crítica sem abrir mão daquilo que se considerava: um artista. Dessa forma, no ano
da chegada do partido ao poder, 1933, o autor se exila em Zurique na Suíça aparecendo, na
Alemanha, nas listas de expatriados publicada pelo jornal Völkischer Beobachter (Observador
Popular), pertencente ao partido nazista. Com a ampliação das perseguições e a crescente
violência, principalmente contra judeus, presente na Europa, Mann muda-se para os Estados
Unidos da América em 1938 e logo começa a trabalhar em Princeton emprego que, contudo,
durará pouco tempo, por inadaptabilidade do autor ao modelo acadêmico americano.
Neste tempo de permanência nos Estados Unidos (1938-1952), Mann também escreve
textos que são apelos à resistência, tais quais os seus discursos radiofônicos. Além do mais,
podemos perceber na obra de Thomas Mann uma interação completa entre realidade artística e
representação (interpretação) política, como é o caso de José e seus irmãos, escrito entre 1933 e
1943 e Doutor Fausto, escrito em 1947, ambos com nítidas referências à sua saída da Alemanha
e sobre a possibilidade de seu retorno12
. Em 1952 Mann retorna para a Suíça, mesmo tendo
conseguido a cidadania americana em 1944. Todavia, desde sua saída da Alemanha, não
conseguirá se inserir em um núcleo político-social complexo como aquele que deixara,
perdendo sua rede de sociabilidade e permanecendo atormentado por questões emotivas, ou
espirituais, como o mesmo falaria13
.
Além de sua vida intelectual, de certo modo ativa, nos EUA e da produção de seus
textos, muitos dos quais contendo claras idéias de combate ao regime nazista, Mann se engaja
em um projeto audacioso: escrever dos Estados Unidos textos que seriam telegrafados para a
Inglaterra e lidos na rádio por alguém que conhecesse o idioma, sendo transmitidos em ondas
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médias e longas, chegando, portanto, aos rádios que população alemã tinham autorização para
possuir. Com o tempo e a partir da sugestão do próprio autor, um método mais complicado foi
elaborado: ele escrevia o texto em alemão, lia para um gravador em Los Angeles, essa gravação
era transportada, via aérea, para Nova Iorque aonde era executada diante de um telefone. Do
outro lado da linha estava Londres, onde o texto era executado na frente de um microfone,
sendo emitido diretamente. Dessa forma, os alemães que tinham coragem de sintonizar em
estações proibidas não apenas conheceriam o conteúdo dos discursos do autor como, também,
poderiam ouvir a sua voz. O primeiro método de discursos (leitura) foi feito entre Outubro de
1940 e Fevereiro de 1941 (quatro transmissões apenas). Logo após, em Março de 1941, já se
começou a usar o segundo método, que foi mantido até o final das transmissões. Tais
transmissões obtiveram um sucesso tão grande nos países destinatários bem como na Inglaterra,
nos Estados Unidos e na França que o autor passou a ter oito minutos de gravação ao invés dos
cinco acertados originalmente.
Publicado no Brasil recentemente14
, o compêndio de discursos políticos do autor
falecido em 1955 possuem características importantes que devem ser analisadas. Todos os 59
discursos, que começam com a chamada „‟Ouvintes Alemães!‟, foram transmitidos, na média
um por mês, entre 1940 e 194515
. A partir de agora, trataremos, neste texto, de duas destas
características, selecionadas por formarem uma lógica discursiva: (1) a idéia feita dos Estados
Unidos da América e de seus governantes; e (2) a idéia de Alemanha original e de Alemanha
nazista, bem como de seus governantes e de seu povo, além, é claro, de outras características
que aparecem como a religiosidade e as tônicas dos discursos.
Nos discursos transmitidos pela rádio, percebemos uma idealização complexa dos
Estados Unidos da América e de seu povo e governantes, principalmente a idéia que se faz de
seu presidente, o democrata Franklin Delano Roosevelt. Para Mann, os EUA representam o
ideal de liberdade individual sem prejuízo da coletividade. Uma nação aonde todos, não
importando a origem, trabalham para o crescimento econômico e social da sociedade que passa
a ser compreendida de forma comunitária. Os estadunidenses passam, dessa forma, a
representarem o ideal mais puro de democracia, participando ativamente da vida pública
nacional. Outra representação feita por Thomas Mann é a dos governantes americanos, tidos,
originalmente, como indivíduos honestos e bons, que sempre lutaram e lutarão pelos mais puros
ideais da humanidade. Dessa forma, o autor alemão localiza o presidente F. D. Roosevelt.
Nascido em 1882, Roosevelt foi o presidente dos EUA entre 1932 e 1945, ano em que morreu
pouco antes do término da Guerra, deixando seu posto para seu vice-presidente: Harry Truman,
responsável pela utilização das duas bombas atômicas e, portanto, pelo fim da Guerra no
Pacífico. A democracia americana de Roosevelt presente nos textos de Mann é a clara oposição
à tirania insana germânica de Adolf Hitler, e o presidente americano passa a ser visto como o
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exemplo de homem a ser seguido por todos os governantes, um homem que inspira o povo aos
mais puros ideais humanos, como a liberdade, a bondade, o horror à tirania e, principalmente, a
democracia.
Em oposição a toda a representação feita dos Estados Unidos por Mann, encontra-se a
Alemanha nazista e seus governantes. Desta forma, a Alemanha nazista passa a ser lida como
um local de injustiça certa mediada pela propaganda de Goebbels16
. Todavia, para o autor de
Doutor Fausto, essa Alemanha não é a Alemanha original, a Alemanha romântica17
. Para o
autor, essa Alemanha encontrada pós-1933 é a Alemanha modificada pelo delírio de um grupo
que leva à destruição do espírito originário alemão.
Um ponto característico nos discursos de Thomas Mann é o grande apelo religioso.
Mann identifica o cristianismo como uma religiosidade fortemente alemã18
e convida os cristãos
a combaterem o nazismo, uma vez que o partido modificou todo o ideário cristão de amor ao
próximo e respeito mútuo. Esse ponto é curioso, uma vez que o próprio Mann é um judeu, o que
não o impediu de convidar as duas religiões ao combate. Esse apelo religioso começa forte nos
seus discursos de 1940 e se mantém presente até o final, em 1945. Podemos ressaltar que Mann
constantemente refere-se ao Natal como a festa alemã por excelência e pede, sabendo que não
será atendido, que no próximo Natal, ocorra a paz19
.
Marcado por uma pluralidade de sentimentos, os discursos de Mann visavam atingir o
lado emotivo de forma simples – o que Goebbels também procurava com suas propagandas
políticas. Alternando-se entre o discurso emocionado e o comovente, entre o irado e o
esperançoso, entre o realista e o idealista, o revoltado e o preocupado, o raivoso engajado e o
patriota,, Mann acreditava originalmente que a Alemanha perderia, por questões puramente
morais (metafísicas) como o próprio escritor explica. Contudo, essa crença, especialmente
espiritual, não deve ceder à comodidade de baixar guarda, uma vez que a luta seria longa e
difícil, sendo bem-vinda a ajuda de países distantes, como a Rússia, por exemplo.
E mais, vale fazermos um apanhado das modificações dos discursos de Mann ao longo
dos seis anos em que foram feitos:
Nos poucos discursos do ano de 1940 – três apenas – feitos entre os meses de Outubro e
Dezembro, o autor se preocupa em demonstrar a fragilidade de Adolf Hitler enquanto
governante máximo do país, demonstrando, também, que o próprio ditador não confia no povo
que o segue, assim sendo, a Guerra deveria acabar, sob pena de destruir a Europa como um todo
e, em particular, a Alemanha.
Já em 1941, com algumas vitórias alemães no conflito, Mann percebe a difícil tarefa de
falar para um povo que está ganhando, por causa da alegria da vitória, porém adverte ao povo
que o egocentrismo e o senso de humor degenerado de Hitler são doenças e que os alemães
apenas estão servindo a um senhor obscuro, para tal, o autor defende a seguinte tese: como a
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alta cúpula nazista se mostra anticomunista se estes indivíduos assinaram um pacto de não
agressão com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1939 (o autor se refere ao Pacto
Molotov-Ribbentrop); e mais, como os mesmos nazistas defendem uma idéia de raça pura e
podem lutam, ao mesmo tempo, ao lado dos japoneses. O autor, contudo, lembra que os Estados
Unidos estão apoiando a Inglaterra, mesmo que ainda indiretamente e que, por mais diferentes
que sejam as políticas, a Rússia e a Inglaterra estão lutando do mesmo lado. A partir deste ponto
o autor coloca uma pergunta aos ouvintes alemães: como podem não perceber seu erro se todo o
mundo se une contra a Alemanha? Para responder esta pergunta o autor sugere que os alemães
não são nazistas, o nazismo não se encaixa no país, estando os habitantes apenas fascinados por
toda a propaganda partidária feita.
Os discursos de 1942, mais firmes, provavelmente pelo início da participação dos
Estados Unidos na Guerra após o ataque japonês às bases de Pearl Harbor, já demonstram a
idéia de Guerra Mundial, ou Total como o autor prefere. Porém, os discursos deste ano
demonstrariam características mais importantes, e, na primeira mensagem 1942, a do mês de
Janeiro, o autor fala:
Ouvintes alemães! A notícia soa incrível, mas minha fonte é segura. Em inúmeras
famílias judias holandesas, assim me contaram em Amsterdam e outras cidades,
reina o luto profundo por filhos que tiveram mortes horríveis. Quatrocentos jovens
judeus holandeses foram levados para a Alemanha para servir de objetos de
pesquisa com gás venenoso20
. A virulência dessa arma nobre e tão genuinamente
alemã, uma verdadeira arma de Siegfried, foi comprovada com os jovens sub-
humanos. Eles estão mortos – morreram pela ―nova ordem‖ e pela engenhosidade
bélica da raça de senhores. Para isso, até que serviram. Eram só judeus.21
Percebemos, a partir desta fala, o conhecimento dos tão temidos campos de testes que
começaram com a desculpa científica. Estes campos já começam com o assassinato de grande
número de indivíduos, principalmente judeus e pessoas com deformidades físicas ou danos
mentais. Essa idéia de campos de teste será transformada em extermínio e Mann em sua fala de
27 de Setembro de 1942 cita uma fala de Goebbels à rádio, na qual este Ministro teria dito:
―Nosso objetivo é aniquilar os judeus. Vençamos ou sejamos derrotados nós temos de alcançar
esse objetivo, e vamos alcançá-lo. Se o Exército alemão for obrigado a recuar, ele vai fazê-lo
exterminando [grifo nosso] pelo caminho até o último judeu da face da Terra‖22
. Notamos
portando a presença da figura do extermínio, do genocídio.
Ainda em 1942, em 15 de Outubro, Mann faz um discurso específico para os germano-
americanos, ressaltando a dificuldade desses que, mesmo amando a sua origem, conhecem os
erros da Alemanha e preferem a vitória da liberdade e da democracia promovida pelos Aliados.
Para Mann, os descendentes de alemães ou mesmo o alemão que migrou para os Estados
Unidos não tem que se envergonhar do seu país originário, uma vez que o que existe, no
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momento da Guerra, não é mais a Alemanha, mas sim uma caricatura distorcida da verdadeira
Alemanha. Logo, esses indivíduos não devem ter conflitos de sentimentos: ―o hífen que separa
‗germano‘ e ‗americano‘ não deve significar nenhuma ruptura espiritual, nenhum conflito de
sentimentos, de deveres de fidelidade.‖23
.
No ano de 1943, Mann, no geral, lembra os 10 anos de Nacional-Socialismo que apenas
trouxeram o conflito e a tristeza para o mundo, além, é claro de lamentar pela mentira do
fascismo italiano, aliado do nazismo alemão. Em 1944, por sua vez, o vencedor do Nobel narra
a tristeza dos soldados aliados atacarem a Alemanha: é triste por que o autor acredita na
possibilidade de não ter ocorrido o conflito caso os alemães não tivessem apoiado a fala e a
política nazista. Por último, em 1945, o escritor começa criticando a fala de Hitler em
homenagem ao aniversário do nazismo no poder. Após essa primeira aparição na rádio, Mann
surge lamentando o falecimento de Roosevelt, falecimento este tão comemorado por Hitler em
um de seus últimos discursos feito, também, via rádio. Ao término da guerra o autor demonstra
a tristeza da derrota e a tristeza de ser alemão, que destruiu e foi destruído pelo mundo:
―Ouvintes alemães! Como é duro quando o júbilo do mundo tem a ver com a derrota, com a
humilhação do próprio país! Como se mostra mais uma vez terrível o abismo entre a Alemanha,
a terra de nossos pais e mestres, e o mundo civilizado!‖24
.
A partir do conhecimento prévio dos discursos de Hitler e dos de Mann podemos
perceber similitudes e diferenças entre os indivíduos. Ambos se utilizam da transmissão
radiofônica para fazer apelos e Mann se utiliza da oratória, uma especialidade do ditador
alemão, para atacar o regime. Enquanto Hitler fala contra os judeus Mann, ele próprio um dos
judeus combatidos, fala na rádio contra o Führer. A partir de certo momento as informações
nazistas na rádio se modificam: se antes o regime apenas narra suas vitórias, com a escassez
destas, as comunicações ficam mais fatalistas; ao mesmo tempo, os discursos do autor de Morte
em Veneza ficam mais esperançosos. Ao longo do percurso da Guerra, Hitler se afasta dos
ouvintes enquanto Mann vai, aos poucos, se aproximando, proporcionalmente, da massa de
ouvintes. Ponto central nos discursos de Mann que deve sempre ser notado é que o autor não
critica apenas Hitler, critica o partido e, principalmente, Joseph Goebbels: criticando o governo
de Hitler, a atuação do partido e a propaganda de Goebbels
Percebido que o rádio transforma o povo em público a partir da idéia de propaganda,
chegamos à lógica de que não devemos supervalorizar a importância dos meios de comunicação
de massa que apenas incitam ou combatem padrões pré-existentes, logo, muito mais do que
resistência, em sentido conceitual, os discursos combatentes de Thomas Mann são um convite,
um convite à liberdade e à democracia, um convite à resistência.
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1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de
História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-IH-UFRJ) – orientado por Dr. José Costa
D‘Assunção Barros; pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da mesma instituição.
Membro do Conselho Editorial do periódico Veredas da História. Desenvolve pesquisa na área de
História Social das Artes e dos Artistas. Contato: [email protected] 2 A utilização radiofônica é o objetivo deste trabalho, porém, é necessário lembrarmos que o rádio é
apenas um desses meios de comunicação explorado por esses regimes. Não podemos esquecer, contudo,
da utilização que, ao menos esses quatro regimes citados no corpo do texto, também se utilizaram da
produção literária, teatral e, principalmente cinematográfica. 3 KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo : Companhia das Letras, 2010, p.323.
4 PEREIRA, Wagner Pinheiro. O Espetáculo do Poder: Políticas de comunicação e Propaganda nos
Fascismos Europeus e nos Populismos Latino-Americanos (1922-1955). In: SEBRIAN, Raphael Nunes
Nicoletti; et alli (ORG). Do Político e suas interpretações. Campinas : Pontes Editores, 2009, p.46. 5 IBID, p.45-46.
6 Existiam, ainda, rádios clandestinas porém foram cada vez ficando mais escassas na medida em que as
leis foram se tornando mais duras e efetivas. 7 Sobre a importância do rádio para Goebbels, ver: KRISS, Ernest. The Danger of Propaganda. In: The
American Imago. Vol. II, nº1. Boston : Hans Sachs, 1941. 8 A utilização da música pelo regime nazista é caso interessante: vale lembrar que as músicas que
tocavam nas rádios eram apenas as alemães (excluindo-se os autores judeus, como Félix Mendelssohn-
Bartholdy e Arnold Schönberg, por exemplo) e que as músicas norte-americanas, principalmente o Jazz,
foram banidas logo no começo do regime nazista. 9 Ressaltamos que, neste momento, existe a presença, por exemplo, da figura do Guarda do Rádio:
indivíduo que fiscalizava a utilização do equipamento em locais públicos. Lembremos, também, que, nas
fábricas, os funcionários tinham o direito de ouvir os discursos políticos assegurados em legislações
específicas. 10
Apud. GUERIN, Daniel. Fascime et gramd capital. Paris : Gallimard, 1936, p.58. Também ver:
RAUSCHING, Herman. Hitler me dijo. Buenos Aires : Hachette, 1940. 11
Nota-se que alguns textos de Mann estão bem próximos da Social-Democracia Alemã. 12
Cf. DAYAN-HERZBRUN, S. Thomas Mann: a writer against Nazism. Trans/Form/Ação (São Paulo),
v.20, p.63-76, 1997. 13
Sobre o exílio e a dificuldade de Thomas Mann nos EUA, cf. MANN, Klaus. Le Tournant. Cap. IX.
Paris : Solin, 1984. Este texto, diga-se de passagem, foi escrito por Klaus Mann, filho da personagem aqui
analisada. Para a biografia do autor, ver: ROSENFELD, A. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva:
Edusp; Campinas: Editora da Unicamp, 1994. 14
Para nossa fonte, conferir: MANN, Thomas. Ouvintes Alemães: Discursos contra Hitler (1940-1945).
Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2009. 15
No total são 59 discursos, assim distribuídos: três em 1940, treze em 1941, catorze em 1942, treze em
1943, cinco em 1944, onze em 1945. 16
É interessante percebermos como, nos discursos de Thomas Mann, a idéia de propaganda partidária
feita por Joseph Goebbels já encontra um caráter de propaganda total, mesclando o público e o privado,
ponto que muitos pensadores, principalmente historiadores, voltariam a discutir mais tarde com o fim da
guerra 17
Para a relação entre Thomas Mann, a Alemanha e o Romantismo, ver: SAFRANSKI, Rüdiger.
Romantismo: uma questão alemã. São Paulo : Estação Liberdade, 2010. 18
Lembremos que um dos principais marcos de modernidade na Alemanha, pelo menos para a
conceituação da época, era a Reforma iniciada por Martinho Lutero no Século XVI. 19
O nazismo, desta forma, para Thomas Mann, não é nem alemão nem mesmo cristão, logo, deve ser
combatido. 20
Este número de quatrocentos jovens holandeses judeus foi, mais tarde, na transmissão de Junho do
mesmo ano, corrigido para o número de aproximadamente oitocentos jovens holandeses judeus. 21
MANN, Op. Cit. p.71. 22
GOEBBELS apud MANN, Op. Cit. p.105. 23
MANN, Op. Cit. p.110. 24
IBID, p.212.
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A luta dos Sovietes e o vislumbrar da Anarquia: a repercussão da Revolução
Russa na imprensa operária anarquista brasileira (1917-1922)
Leandro Ribeiro Gomes*
Resumo: Este trabalho busca apresentar uma síntese de uma pesquisa que estuda todo
material que foi impresso e escrito, dentro de uma seleção de periódicos, nos jornais
anarquistas do movimento operário brasileiro a respeito da Revolução Russa de 1917.
São textos que expressam as visões e representações que os militantes anarquistas do
movimento operário aqui do Brasil tiveram a respeito dos distantes eventos russos, que
grande importância e influência passaram a exercer nos movimentos operários e
revolucionários ao redor do mundo.
Palavras-chave: Revolução Russa, Imprensa operária, Anarquismo.
Abstract: This study aims to present a synthesis of a research that examines all the
material that was printed and written in a selection of anarchists newspapers of the
Brazilian labor movement about the Russian Revolution of 1917. Militant texts
that express the views and representations that the Brazilian anarchist labor
movement had about the far away events of the Russian Revolution, a historical fact
that had great importance and influence in the revolutionaries movements and their
practice around the world.
Keywords: Russian Revolution, Labor Press, Anarchism.
Numa pesquisa que objetiva analisar quais foram as repercussões da Revolução
Russa nas folhas operárias dos anarquistas do Brasil o fator do ―político‖, em todas as
suas interações com a cultura e a sociedade, fica explícito. Neste caso, esta fonte se
torna muito fértil para investigar a relação dinâmica entre as idéias e propostas daquela
revolução que chegaram até aqui com o pensamento político ácrata já existente e as
peculiaridades e condições da luta do movimento operário daquele instante nestas terras
tropicais.
O elemento político fica evidente nestas fontes por se tratar de uma imprensa
militante envolvida com organizações operárias – como sindicatos, ligas e comitês – e
que lutavam contra o patronato e os governos da Primeira República brasileira por
melhores condições de vida e de trabalho para os operários e o povo em geral. E as
propostas e exemplos revolucionários vindos da Rússia naquele período – sejam por
parte das teses e caminhos mostrados por Lênin e os bolcheviques, ou pelas grandes
desapropriações e socializações em massa realizadas popularmente pelos sovietes – foi
uma novidade contundente que atingiu e abalou à reflexão e a consciência dos
anarquistas brasileiros, gerando identificações e reprovações, simpatizantes e
adversários, o encantamento e a decepção.
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Já são bem conhecidas dentro da historiografia recente as mudanças que se
operaram na prática de sua escrita com o contato que ela teve com outras ciências
sociais ao longo do século XX, e o quanto que este processo influenciou uma Nova
História Cultural que, por sua vez, ―renovou‖ a tradicional história política com o
estudo das ―práticas‖ e ―representações‖ sociais – o que acabou redirecionando o olhar
dos historiadores ao uso dos periódicos como fonte.1
Dentro desta história cultural
temos a perspectiva que o político também participa da difusão da cultura, já que os
meios de comunicação (como os jornais) também podem se tornar objetos e veículos da
política:
(...) Mas a história política – e esta não é a menor das contribuições que ela extraiu
da convivência com outras disciplinas – aprendeu que, se o político tem
características próprias que tornam inoperante toda análise reducionista, ele
também tem relações com os outros domínios: liga-se por mil vínculos, por toda
espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida coletiva. O político não
constitui um setor separado: é uma modalidade da prática social. (...).2
Dessa forma, referindo-se ao que foi considerado um dos maiores eventos
internacionais do século XX – a Revolução Russa – que teve em seu conteúdo
motivações de caráter abertamente internacionalistas, com apelos e propostas socialistas
de amplitude mundiais a todos os movimentos operários do mundo, o interesse deste
evento por parte dos anarquistas brasileiros que militavam no movimento operário – e
que, portanto, como anarquistas também se reconheciam como ―socialistas‖, em sua
corrente libertária – é um assunto que já possui o seu peculiar interesse. Faz parte, de
certa forma, dos impactos da Revolução de Outubro ao redor do mundo, pois – como
afirma Hobsbawm – esta revolução possuiu duas histórias que são entrelaçadas: seu
impacto sobre a Rússia e seu impacto sobre o mundo, e esta segunda parte ainda oferece
muitas possibilidades de investigação.3
O período desta pesquisa limita-se do início do processo revolucionário russo
(com a abdicação do czar Nicolau II em março de 1917) se estendendo até dezembro de
1922 (com a fundação oficial da URSS, mesmo ano também da fundação do PCB, em
sua maioria por antigos militantes do anarquismo que se converteram ao comunismo). É
claro que ao longo deste percurso observamos grandes mudanças no pensamento dos
libertários brasileiros a respeito da Revolução Russa, assim como uma multiplicidade e
heterogeneidade de interpretações e posições que enriquece e ultrapassa as tradicionais
explicações historiográficas sobre o impacto que a revolução socialista na Rússia teve
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
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no movimento operário do Brasil. É que as dificuldades de acesso às informações sobre
a Rússia naquela época, à distância e as especificidades da sociedade brasileira são
fatores que influenciaram muito as notícias sobre este evento que foram publicadas nos
jornais libertários.
Ecos de Outubro: a luta dos Soviets e os anarquistas do Brasil
―Os ultimos reveses dos exercitos bolchevistas, dos paladinos da Justiça, são
coisas insignificantes que em nada modificarão a atitude dos pioneiros, e que de
modo algum farão esmorecer a fé dos operarios, milenarmente escravisados, nem a
tenaz e impiedosa campanha de difamação, nem a força conluiada dos exercitos
capitalistas conseguirão extinguir a labareda purificadora do idealismo moscovita.
Operarios! Povo trabalhador! Servos da gleba! – Aprendei a venerar os vossos
irmãos russos, que são os grandes redentores da humanidade que sofre e que tem
fome! Eles são as unicas almas verdadeiramente grandes e audazes que ainda foi
dado ao mundo rotineiro e egoista procriar! Aprendei com eles o espirito de
sacrificio e o entusiasmo santo dos heroes!‖.4
Neste artigo sobre o bolchevismo, que faz parte do abundante conjunto de fontes
que foi reunido nesta pesquisa, temos um exemplo significativo do entusiasmo e da
excitação que os acontecimentos na distante Rússia causaram nas reflexões e
interpretações da realidade dos ativistas libertários aqui do Brasil. Não obtivermos
informações de quem era Fernando Rosalba, muitos militantes envolvidos nestes jornais
usavam pseudônimos e este não faz parte do ―grupo dos anarquistas famosos‖ que são
amplamente citados na historiografia do início do movimento operário brasileiro. E
optamos em transcrever as fontes com a grafia da época.
Quanto ao jornal, ―Spártacus‖ é uma das folhas mais significativas dentre as dez
escolhidas neste trabalho. Tablóide de quatro páginas, o formato típico e mais comum
da imprensa operária deste período, este jornal mescla a propaganda e a divulgação da
cultura anarquista com textos políticos direcionados a vários setores profissionais e
organizações de trabalhadores, como também a divulgação da situação do movimento
operário no Brasil e no mundo. ―Spártacus‖ foi um jornal fundado como ―porta-voz‖ do
núcleo carioca do Partido Comunista. Planejado para ser um diário, o jornal se
constituiu como um semanário, surgindo em agosto de 1919 e – sofrendo perseguição
policial – indo até janeiro de 1920. José Oiticica, militante anarquista famoso da época,
amplamente citado pela bibliografia deste campo de pesquisa, chefiava o grupo editorial
do periódico e Astrojildo Pereira – outro nome também bem conhecido, antigo
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anarquista que ajudou a fundar o PCB em 1922 – era o administrador e chefe da
redação.5
Fernando Rosalba se refere ao movimento revolucionário na Rússia – que naquele
momento completava já três anos – como uma ―labareda purificadora‖, e o povo russo
como os ―grandes redentores da humanidade‖, uma atitude de total apoio à revolução,
pois ele faz parte do grupo de anarquistas no Rio de Janeiro que se simpatizou com a
Revolução Russa. O jornal ―Spártacus‖ foi fundado no mesmo ano em que ocorreram
várias tentativas por parte dos libertários de fundarem partidos comunistas, o próprio
periódico se apresentava como representante deste grupo no Rio de Janeiro, já que
outras identificações semelhantes ocorreram em outros pontos do país. Contudo, estes
partidos comunistas de 1919 possuíam outro caráter, como explica o próprio Astrojildo
Pereira, distinto do Partido Comunista do Brasil de 1922 (um partido político oficial de
cunho marxista):
A idéia de partido, o nome comunista, os termos secretariado e comissariado do
povo, tudo isto misturado e adaptado a concepções tipicamente libertárias,
denunciam a profunda ressonância que a revolução russa alcançou no movimento
operário do Brasil. Astrojildo Pereira também salienta: ―Tratava-se, na realidade,
de uma organização tipicamente anarquista, e a sua denominação de ‗Partido
Comunista‘ era um puro reflexo, nos meios operários brasileiros, da poderosa
influência exercida pela Revolução proletária triunfante na Rússia, que se sabia
dirigida pelos comunistas daquele país. O que não se sabia ao certo é que os
comunistas que se achavam à frente da revolução russa eram marxistas e não
anarquistas‖. (...).6
Na época em que aconteceu a Revolução Russa o Brasil estava passando por uma
fase de mudanças econômicas, políticas e sociais de longo prazo – que vinha desde o
final do século XIX com a abolição da escravidão e a proclamação da República, em
1888/89. Quando se estuda a formação da classe e do movimento operário no Brasil esta
conjuntura é explicada para entender a história da organização dos trabalhadores. Foi
uma época também em que se iniciou uma primeira industrialização e outra etapa da
urbanização do país, com anos de fluxo imigratório europeu. A questão da imigração,
como elemento determinante ou de principal influência na formação das organizações
operárias e de suas doutrinas, pois boa parte destes imigrantes eram trabalhadores que
vinham de países que possuíam no período movimentos anarquistas fortes – como a
Itália e Espanha – sempre foi discutida desde o início deste campo de pesquisa, foi a
chamada questão da ―planta exótica‖.7
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Mas para entender o anarquismo no Brasil estudos mais recentes criticam a idéia
da ―planta exótica‖. A influência da imigração foi importante, mas ela não basta –
segundo Cláudio Batalha – para explicar a predominância do anarquismo e do anarco-
sindicalismo no movimento operário do Brasil nestes anos iniciais de 1890 a 1920. Para
Batalha havia outros fatores no Brasil da Primeira República que levou o anarquismo a
suplantar o socialismo da II Internacional na preferência dos militantes operários, como
a distância que havia das propostas de mudanças por meio do processo eleitoral da
realidade dos trabalhadores, que tinham uma participação eleitoral muito limitada numa
sociedade ainda fortemente marcada pela escravidão.8
Estas explicações ajudam a entender a força e a importância que o anarquismo
teve nas experiências das lutas do movimento operário daquele período, entretanto,
outros estudos apontam para a dificuldade de precisar o grau de penetração desta
doutrina entre os trabalhadores. É claro que houve identificações destes com
aspectos das idéias anarquistas, mas os libertários não eram maioria entre os
trabalhadores – embora fossem bem visíveis e tenha influenciado muito os operários
organizados –, pois também havia outras correntes e o sindicalismo – apesar de suas
intimas relações com o anarquismo – foi muito difundido entre os operários.9
Como foi demonstrado na declaração de Astrojildo Pereira no livro citado de
Moniz Bandeira – aliás, livro este que foi um dos primeiros títulos sobre o assunto no
Brasil – os anarquistas daqui, no início, desconheciam que os revolucionários à frente
da Revolução Russa eram marxistas, e a visão entre os libertários de que esta revolução
foi de caráter anarquista de fato ocorreu, ainda que esta representação da revolução não
tenha sido tão simples como as explicações tradicionais.
É importante salientar que a 1ª Associação Internacional dos Trabalhadores,
fundada em 1864, teve em sua criação a colaboração de marxistas e anarquistas, entre
outras tendências. Os conflitos entre a tendência autoritária e libertária do socialismo
dentro desta Internacional – como ficaram conhecidos às divergências entre marxistas e
anarquistas – de certa forma ajudou a desenvolver o socialismo enquanto movimento
organizado dos trabalhadores do mundo. Portanto, os anarquistas também sempre foram
considerados interlocutores do movimento operário e socialista.10
Isso ajuda a entender as confusões dos anarquistas brasileiros, pois estes se
reconheciam dentro de uma tendência que fazia parte da tradição libertária do
comunismo, e que desde a época do anarquista russo Bakunin durante a I Internacional
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polemizavam com Marx quanto ao uso da centralização do Estado para construir uma
sociedade livre e socialista.11
Para os anarquistas, cujo pensamento caracteriza-se pela
total rejeição ao dogma e a sistemas teóricos rígidos, e uma defesa do julgamento
individual, a criação espontânea e em massa dos sovietes na Rússia – que eram
conselhos populares que buscaram efetivar uma administração direta da sociedade pela
própria sociedade – pareceram, aos olhos do distante anarquismo brasileiro, como a
concretização da anarquia.12
De qualquer forma, a percepção revolucionária dos
libertários no Brasil, em parte, estava de acordo com a verdade, pois a idéia e as
representações que eles tiveram do ―regime dos sovietes‖ foi influenciada pela análise e
testemunhos sobre a Rússia revolucionária em seus primeiros anos:
De certo modo, a história da URSS é, antes de mais nada, a de uma bolchevização
da sociedade, e, depois, de uma bolchevização das instituições. Mas, na origem,
em 1917-18, foram os comitês de fábrica e de aldeia, os sovietes de bairro que
governaram a própria sociedade.
A tomada do poder em outubro deu-lhes legitimidade. Só mais tarde é que os
sovietes perderam a realidade deste poder.
Nem por isso pode-se negar que as primeiras análises do ―regime dos sovietes‖
continham uma parte de verdade. E, do mesmo modo, era autêntica a vontade
afirmada pelos novos dirigentes no sentido de emancipar a mulher, de igualar o
estatuto dos cidadãos, etc. A bolchevização dos sovietes, o autoritarismo
institucional são fatos posteriores; manifestam seus efeitos somente um pouco
mais tarde (...).13
A repressão do governo republicano aqui no Brasil, numa sociedade com fortes
tradições autoritárias que negligenciava as questões e problemas sociais, contra o
movimento operário anarquista foi intensa e sistemática. As idéias libertárias de
igualdade social incomodou as classes dirigentes, e os governos e industriais se
articularam na repressão deste movimento.14
Por isso, considerando que os anarquistas
aqui no Brasil também se viam dentro da luta internacional pela causa operária, suas
ações na produção de sua imprensa – ao divulgar as notícias sobre a Revolução Russa –
também acabava sendo condicionada pelas necessidades da luta operária aqui do Brasil,
luta esta que possuía seus inimigos específicos, opiniões contrárias a vencer e um ideal
a comprovar e defender:
(...) Ao criarem esses jornais, os anarquistas no Brasil seguiam os passos habituais
dos militantes de outros países, mas também visavam a criar uma experiência de
informação alternativa em meio à grande imprensa e muitas vezes explicitamente
em oposição a ela. Esses jornais não eram somente um veículo de propaganda, mas
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constituíam centros propulsores e coordenadores dos vários grupos no plano local,
estadual e, às vezes, até nacional.15
Fazendo um exercício de diálogo com outro estudo semelhante ao nosso –
como a tese de Andreas Doeswijk que fala da repercussão da Revolução Russa entre os
anarquistas do Uruguai e da Argentina – é necessário ressaltar que aqui não há só a
questão, então, da distância e da falta de informação dos libertários brasileiros em
relação aos eventos russos. A especificidade histórica de cada sociedade, que conferem
seus significados e possuem suas experiências particulares, afetam as notícias, que
passam ser ―filtradas pelo desejo e a distância‖.16
Fontes: acesso as informações e interpretações distintas
―Fomos dos primeiros a defender aqui o maximalismo russo contra a critica
extremista de varios camaradas. Como tivemos, então, occasião de affirmar,
defenderemos os maximalistas da Russia enquanto elles forem atacados pelas
forças mercenarias do capitalismo, e não porque haviamos renunciado aos nossos
principios. A nossa attitude equivale então a uma afirmação de solidariedade a
uma facção revolucionaria inimiga da organização capitalista, porque entendemos
que atacar a atuação maximalista seria coadjuvar os reaccionarios na sua obra de
restauração do regimen imperialista derrubado pela revolução de 17. No entanto,
não precisamos dizer que, como anarchistas, somos contrarios a qualquer forma de
Estado, quer este seja imperialista, quer republicano ou socialista. (...)‖.17
O jornal anarco-sindicalista de São Paulo ―A Plebe‖ foi um dos periódicos
libertários mais conhecidos do Brasil. Semanal fundado em junho de 1917 ele percorre
até o fim do período deste estudo – com exceção do ano de 1918 quando seu editor
Edgard Leuenroth ficou preso devido a sua participação na greve geral paulista de 1917.
Edgard Leuenroth também foi responsável em 1919, junto com outro militante de nome
de Hélio Negro, pela publicação de um pequeno livro intitulado: ―O que é Maximismo
ou Bolchevismo‖. Na época aqui no Brasil os termos ―maximismo‖ e ―maximalismo‖
eram os nomes em que eram conhecidos os bolcheviques, pois os anarquistas
acreditavam que estes eram adeptos do ―programa máximo‖, o máximo de mudanças.18
Podemos observar então que este jornal já era editado por anarquistas que se
identificaram com a Revolução Russa desde o início. Também não obtemos
informações de quem era D. Fagundes, mas podemos constatar no trecho de seu texto
questionador sobre o socialismo que ele afirma uma posição peculiar, de defesa da
revolução ao mesmo tempo em que condena o Estado mesmo sendo este socialista –
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reafirmando a tese anarquista que prega o fim do Estado. É de notar que ele toma o
cuidado de destacar que ele faz parte daqueles que defenderam o maximalismo russo
―contra a critica extremista de vários camaradas‖.
Apesar das identificações entre os anarquistas com a Revolução Russa
divergências e uma multiplicidade de visões percorreram as páginas da imprensa ácrata
sobre o assunto. Pouco menos de um ano antes do texto de D. Fagundes acima, em
outro periódico anarquista de São Paulo, um importante artigo do conhecido anarquista
Florentino de Carvalho defende os aspectos libertários da Revolução Russa citando a
―constituição‖ dos sovietes, mas condena o Estado bolchevique citando Trotsky e a
condução da revolução. Desaprova ainda alguns militantes anarquistas no Rio de
Janeiro que se simpatizaram com o maximalismo e propagam a organização de um
partido. Denuncia as perseguições na Rússia a anarquistas e outros socialistas:
―Para dar uma idéa sobre a pseudo dictadura proletaria basta saber-se que os
socialistas revolucionarios, os reformistas e todos os que não pertenciam à
familia bolchevique foram escorraçados dos comitês e de todas as repartições
publicas. Os anarchistas, como mais perigosos inimigos do Estado, foram
escorraçados sob o fogos das metralhadoras‖.19
Florentino de Carvalho foi um dos primeiros anarquistas brasileiros a se
manifestar contra o novo poder soviético. Em um momento em que toda a imprensa
internacional fazia uma guerra contra a Revolução Russa, a posição dos anarquistas que
denunciavam o autoritarismo bolchevique era muito incômoda dentro do movimento
operário.20
Quanto ao acesso às informações, os anarquistas aqui no Brasil se utilizavam de
suas correspondências com o movimento operário de outros países – de onde também
vinham exemplares de outros jornais operários estrangeiros. Sem dizer ainda que eles
também liam e utilizavam as fontes da grande imprensa brasileira – que por sua vez
recebia as notícias das agências internacionais de notícias, no contexto da Primeira
Guerra Mundial, quando se iniciou uma hegemonia das agências norte-americanas.
Notas
*. Mestrando em História, UNESP/Assis-SP, orientador Dr. Sérgio Augusto
Queiroz Norte e Silva. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected]
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1. O papel e a relevância da imprensa como fonte histórica e as mudanças de seu
tratamento pela historiografia é apresentada no texto: DE LUCA, Tania Regina.
―História dos, nos e por meio dos periódicos‖. In: PINSKI, Carla Bassanezi. (Org.).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, p. 111-153.
2. Ver: RÉMOND, René. (Org.). Por Uma História Política. Trad. Dora Rocha.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/FGV, 1996, p. 35-36.
3. HOBSBAWM, Eric J. ―Podemos escrever a História da Revolução Russa?‖. In:
__________. Sobre História: ensaios. Trad. Cid Knipel M. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 266.
4. Trecho de um artigo assinado pelo militante Fernando Rosalba: Spártacus, ―Do
bolchevismo‖, ano1, nº14, 01/11/1919, p. 03.
5. Sobre os dados a respeito do jornal Spártacus consultar: DULLES, John W. F.
Anarquistas e Comunistas no Brasil (1900-1935). Trad. César Parreiras Horta. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 92.
6. BANDEIRA, Moniz; MELO, Clovis; ANDRADE, A. T. O Ano Vermelho: A
Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980,
p. 152. Esta declaração de Astrojildo os autores afirmam extrair de seu livro Formação
do PCB.
7. Boris Fausto salienta a importância e influência da imigração na ideologia e nos
modelos de organização da classe operária, e a importância das concepções anarquistas
para o surgimento de novas formas de luta na sociedade brasileira. Destaca também o
quanto o pensamento reacionário no Brasil entendeu esse fenômeno como uma ―planta
exótica‖, para rotular as correntes revolucionárias que surgiram na sociedade brasileira
como sendo algo ―estranho‖ à natureza do Brasil. Porém, o próprio autor afirma que no
caso do anarquismo brasileiro ―o papel da importação foi considerável‖. Ver: FAUSTO,
Boris. Trabalho Urbano e Conflito Social (1890-1920). Rio de Janeiro/São Paulo: Difel,
1977, p. 32; 62-63.
8. BATALHA, Cláudio H. M. ―Formação da classe operária e projetos de
identidade coletiva‖. In: FERREIRA, Jorge; Delgado, Lucilia de Almeida N. (Org.). O
Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República
à Revolução de 1930. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 172.
9. Cf: TOLEDO, Edilene. ―A trajetória anarquista no Brasil na Primeira
República‖. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão. (Org.). As Esquerdas
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no Brasil: A formação das tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007. Vol. I, p. 63-66.
10. Os conflitos do anarquismo com o marxismo na primeira Internacional, e o
entendimento do anarquismo como também uma corrente do movimento socialista
internacional é discutida em: COLE, G. D. H. História del Pensamiento Socialista:
marxismo y anarquismo (1850-1890). Traducción de Rubén Landa. México: Fondo de
Cultura Económica, 1958. Vol. 2, p. 116-118.
11. Sobre este assunto especificamente ver: HOBSBAWM, Eric J. ―O
bolchevismo e os anarquistas‖. In: __________. Revolucionários: ensaios
contemporâneos. Trad. João Carlos C. Garcia e Adelângela S. Garcia. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982, p. 67-79.
12. A respeito das idéias anarquistas ver: WOODCOCK, George. História das
Idéias e Movimentos Anarquistas. Trad. Júlia Tettamanzy. Porto Alegre: L&PM, 2002.
Vol. 1: A idéia.
13. FERRO, Marc. O Ocidente diante da Revolução Soviética: a história e seus
mitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 61-62.
14. Há um livro interessante que fala da repressão política da Primeira República
brasileira, e no caso especificamente das articulações de governos e empresários de São
Paulo e Rio de Janeiro para construir uma ideologia anti-anarquista, ver: ALVES,
Paulo. A Verdade da Repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem
republicana (1890-1921). São Paulo. Editora Arte e Ciência/Unip, 1997, p, 10-11.
15. TOLEDO, op. cit. p. 60.
16. ANDREAS L, Doeswijk. Entre camaleões e cristalizados: os anarco-
bolcheviques Rioplatenses (1917-1930). (Tese de Doutorado). Unicamp, Campinas,
1998, p. 46.
17. Trecho de um artigo assinado por D. Fagundes: A Plebe, ―Socialismo?!‖,
ano5, nº117, 14/05/1921, p. 02.
18. BANDEIRA, op. cit. p. 160. E sobre a vida de Edgard Leuenroth e o jornal A
Plebe: KHOURY, Y. M. A. Edgar Leuenroth: Uma voz libertária – imprensa, memória
e militância anarco-sindicalistas. 320p. (Tese de Doutorado). USP, São Paulo, 1988.
19. A Obra, ―O bolchevismo: sua repercussão no Brasil‖, ano1, nº13, 15/09/1920,
p. 04.
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20. Ver: CUBERO, Jaime. ―Reflexos da Revolução Russa no Brasil‖. In:
Libertárias: 80 anos de Revolução Russa, nº 1. São Paulo: Imaginário, 1997, p. 33.
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O kirchnerismo na Argentina: memória, justiça e direitos humanos (2003-
2007)
Leonardo Mendes Barbosa
Resumo: A presente comunicação se propõe a caracterizar de forma pontual as
especificidades de um novo movimento político forjado na sociedade argentina entre os
anos de 2003 e 2007, o kirchnerismo, enfatizando a eleição presidencial vencida por
Néstor Kirchner e a opção pelo estabelecimento de políticas públicas de Estado de
condenação as violações perpetradas pelos militares na ditadura civil-militar de 1976-
1983.
Palavras-chave: kirchnerismo - políticas públicas - ditadura civil-militar.
Abstract: This notice proposes to characterize specific points of a new political
movement forged in argentine society between the years 2003 and 2007, the
Kirchnerism, emphasizing the presidential election won by Nestor Kirchner and the
option for setting public policies of state sentencing violations committed by military in
civil-military dictatorship from 1976 to 1983.
Keywords: Kirchnerism - public policy - civil-military dictatorship.
Introdução
Na história do tempo presente podemos observar diversas sociedades imersas em
processos dicotômicos que envolvem duas categorias elementares no processo de
estabelecimento de uma memória coletiva: lembrança e esquecimento.1 Povos,
sociedades e quiçá nações só conseguiram seguir em frente a partir do estabelecimento
definitivo e magistralmente entrosado de uma relação entre lembrança e esquecimento,
onde ―esquecer‖ tornar-se-ia fundamental em nome de uma ilusória convivência
pacífica, enquanto lembrar permitiria vislumbrar a superação no presente de questões
pendentes e necessárias de resolução, projetando assim um suposto futuro sem traumas.
Na América Latina é fato que temas como cidadania, justiça e direitos humanos
ficam mais na esfera dos debates governamentais e das assinaturas em convenções
internacionais e menos na instância da viabilidade prática. Na Argentina, ainda se busca
um real equilíbrio entre a sociedade e as instituições do Estado, e este, paulatinamente,
vem reconhecendo através do estabelecimento de políticas públicas a emergência de se
condenar as ações levadas a cabo por uma elite dirigente caracterizada por atos
terroristas com motivação política nos anos 70 e 80.
No presente trabalho pretendemos analisar como um novo movimento político se
forjou na sociedade argentina entre os anos de 2003 e 2007, o kirchnerismo – cujo lócus
de atuação político-partidária é o Partido Justicialista – reivindicando sua origem
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peronista de compromisso com a ampliação da cidadania social e de uma atuação mais
forte do Estado na relação com o privado, tendo como uma de suas bases de atuação o
desenvolvimento de políticas públicas de Estado com ações voltadas para a promoção
da justiça e a criação de uma memória acerca do que ocorreu àqueles que lutaram contra
a violência política produzida pela elite militar de 1976 a 1983, após um golpe de
Estado que derrubou a presidente eleita María Estela Martínez de Perón – então
conhecida como Isabel Perón –, e como tal acontecimento histórico e seus
desdobramentos ainda influenciam contemporaneamente as tomadas de decisões do
Estado argentino de acordo com as demandas sociais sobre tal temática ainda latente.
Torna-se necessário ressaltar que não temos como objetivo fazer uma história
marcada pelos pressupostos da velha história política dando ênfase a figura de Néstor
Kirchner, líder máximo do movimento kirchnerista, e de suas ações, mas sim, dar conta
da dinamicidade e mobilidade da sociedade argentina em dado momento de sua história
contemplando aspectos de sua cultura política que repercutiram nos meios econômico,
social e, principalmente, cultural em um período delimitado caracterizado por políticas
públicas que buscaram discutir a temática dos direitos humanos sob uma perspectiva da
promoção da memória e da justiça.
Nosso trabalho também tem como objetivo analisar questões que ainda afetam a
atual realidade das sociedades latinoamericanas, marcadas pelo desrespeito sistemático
a democracia e pela manutenção de práticas autoritárias nos campos ideológicos
conduzidos por regimes políticos de esquerda e de direita. A mobilização das
sociedades contra governos tirânicos se liga a denúncia e a não omissão frente aos
desmandos de atos terroristas que atentem contra a vida humana. A defesa de uma
sociedade com menos disparidades sociais, ampla no que se refere a cidadania dos seus
membros e à direitos diversos é um caminho a ser trilhado.
A eleição de Néstor Kirchner
Na Argentina, a ditadura militar de 1976 à 1983 foi altamente destrutiva para
todos os segmentos da sociedade e para as bases que a sustentavam, pois a cultura
política ainda marcada pelo retorno a democracia seria enterrada definitivamente com o
intento quase missionário de se transformar Estado e sociedade a partir da ―limpeza‖
dos elementos que sujavam a pátria com a prática da subversão aos valores cristãos e
ocidentais. A eliminação de qualquer discurso alternativo e a montagem de um eficiente
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
1000
sistema de informação aliado à repressão extrema provocou assassinatos em série,
―desaparecimentos‖ e deixou marcas em gerações distintas. A condenação de tais atos
de forma mais contundente ocorre em seguida ao fim do regime repressivo, conforme
demonstra o trabalho realizado pela CONADEP – Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas durante o Estado de terrorismo:
Esta Comisión entiende que resulta absolutamente indispensable la investigación
judicial de la integración de los grupos de tareas en la estructura represiva.
Entiende también que la posibilidad de determinar en definitiva la suerte de los
miles de desaparecidos pasa necesariamente por la individualización de los
componentes de los grupos de tareas, de sus responsables y dependencia orgánica
de las fuerzas armadas. Existen pruebas suficientes para avalar la existencia de
tales grupos y de su ubicación ‗legítima‘ en la estructura formal de las fuerzas
armadas.2
Indo ao encontro das proposições de Quiroga e Tcach3, entendemos que a
compreensão do autoritarismo argentino dos anos 70 não se separa do atual processo de
autocompreensão da sociedade argentina, pois as experiências crivadas pelas tensões
entre autoritarismo e democracia provocaram transformações profundas na capacidade
de se organizar e conviver dos argentinos.
A luta contra a impunidade desencadeada pelos movimentos sociais através de
protestos mais incisivos e a busca por uma relação fértil com os representantes do
Estado se mostra exitosa com a chegada de Néstor Kirchner ao poder presidencial, que
logo reconhece a necessidade do Estado pedir perdão à sociedade pelos anos de terror
político contra seus próprios cidadãos.4 O delineamento e a reconstrução de instituições
com compromissos republicanos e democráticos também se filiam a própria história
política de Néstor Kirchner que se forma ideologicamente nos anos 70 inserido nos
marcos do peronismo revolucionário.5
A eleição de Néstor Kirchner ocorre em um período de profunda crise política,
resultado da falência de um modelo político-social excludente que não contemplava a
participação popular e as demandas manifestadas pelos movimentos organizados da
sociedade civil. A inexistência de políticas públicas direcionadas a determinados grupos
dessa sociedade ou a imposição de cima para baixo de medidas impopulares
deslegitimavam o processo político e colocavam os representantes estatais em uma
situação de permanente contestação.
Nesse ínterim, é de suma importância contextualizar a promoção de políticas
públicas contra a impunidade, pela memória e pela justiça, todas vigentes, a partir de
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1001
um quadro abrangente de construção e desenvolvimento de uma cultura política
marcada nos anos de 2003 a 2007 por profundas transformações na cúpula das forças
armadas, na área de segurança pública e direitos humanos, no poder judiciário, nas
instituições do Estado no que tange a relação do poder executivo com a sociedade e na
representação desta no âmbito político partidário.
A ditadura civil-militar de 1976-1983
Pode-se afirmar que a atual produção historiográfica argentina sobre a ditadura
militar de 1976 a 1983 tem apresentado como ponto central o estímulo a uma reflexão
coletiva sobre tal período, pensando criticamente sobre o que se passou e a real
contribuição de parte dos cidadãos argentinos para a consolidação do regime autoritário
– quadro muito diferente de um primeiro momento onde o Estado autoritário e a sua
classe dirigente eram eleitos pela sociedade, e de forma refletida na historiografia, como
os únicos responsáveis pelos excessos do regime.
Essas novas reflexões, oriundas do comportamento do povo argentino frente à sua
própria história, também se propõem a discutir como tal sociedade,
contemporaneamente, processa tais fatos e os incorpora em sua memória coletiva,
logrando perspectivas de desenvolvimento, sem deixar de ter consciência dos erros do
passado e do próprio presente no que tange os avanços e os retrocessos na formação de
uma memória para os anos de violência política. O estabelecimento de um regime
autoritário entre os anos de 1976 e 1983 não é uma exceção na história política recente
da Argentina, pois de 1930 a 1973 quinze presidentes ocuparam o poder, sendo onze
militares, e apenas dois conseguiram cumprir o tempo constitucionalmente previsto para
os seus mandatos:
O processo não foi fundamentalmente diferente entre 1973 e 1976, sob os
diferentes governos peronistas que se sucederam antes do golpe de Estado de
março. Foi por causa dos mesmos mecanismos que os militares, expulsos do poder
a 25 de abril de 1973 por uma violenta corrente eleitoral, sob a reprovação quase
que universal, conseguiram três anos mais tarde fazer esquecer o imobilismo
autoritário e a impopularidade de sete anos de ―governo das forças armadas‖
(1966-1973) e impor-se novamente através da violência, a uma opinião pública
aturdida, mas aliviada.6
Na luta contra a subversão, todos aqueles que pertencessem a guerrilha perderiam
a condição de ser ―argentino‖, o direito a cidadania e a justiça já que o terrorismo
deveria ser extirpado da sociedade, quando na verdade se estabelecia pelas mãos da
Junta Militar, de forma cada vez mais incisiva, o Estado de terrorismo. No governo do
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General Videla a repressão extrema geralmente culminava na execução patrocinada pelo
Estado, como é precisamente demonstrado por Romero:
Essa era a decisão mais importante, tomada nos mais altos níveis operacionais,
como a chefatura de cada um dos corpos do Exército, depois de uma análise
cuidadosa dos antecedentes, da utilidade potencial ou da ‗responsabilidade‘ dos
detidos. Apesar de a Junta Militar ter estabelecido a pena de morte, esta nunca foi
aplicada, e todas as execuções foram clandestinas. Às vezes, os cadáveres
apareciam na rua, como se tivessem morrido em confrontos ou tentativas de fuga.
Em outras ocasiões, pilhas inteiras de corpos foram dinamitadas, como uma
represália espetacular a alguma ação guerrilheira. Mas, na maioria dos casos, os
cadáveres eram ocultados, enterrados em cemitérios como indigentes, queimados
em valas coletivas, cavadas pelas próprias vítimas antes de serem fuziladas, ou
lançados ao mar presos a blocos de cimento, após serem postos para dormir com
uma injeção. Assim, não houve mortos, apenas ―desaparecidos‖. 7
Os três primeiros anos da ditadura militar se constituiriam em um verdadeiro
genocídio, com a política de extermínio adotada pelo governo sendo plenamente
colocada em prática, objetivando assim eliminar todo ativismo, protesto social e
pensamento crítico que pudessem trazer a tona algum tipo de movimento popular.
Sobre os anos de ditadura militar nos aproximamos das premissas apresentadas
por Marcos Novaro e Vicente Palermo na obra La dictadura militar 1976-1983: del
golpe de Estado a la restauración democrática, cuja análise demonstra como foram os
anos de terror sem ignorar os elementos de continuidade com o presente. Igualmente
fundamentais são as proposições discutidas por Luiz Alberto Romero que contextualiza
a história política argentina demonstrando as especificidades do peronismo para o
quadro político-institucional argentino com tal cenário sendo nomeado como uma das
justificativas para o golpe de 1976, além de demonstrar a vivacidade desse movimento
político na redemocratização e as novas questões enfrentadas pela sociedade argentina
nesse período.
O Kirchnerismo
No estudo do movimento kirchnerista e do desenvolvimento de suas políticas
públicas pela memória e pela justiça recorremos a um conjunto de análises pertencentes
a história e as ciências sociais, com ênfase nas postulações encontradas novamente em
Novaro e Palermo, organizadores da obra La historia reciente: Argentina en
democracia. A compreensão da tradição peronista do movimento kirchnerista tem como
uma das bases da nossa análise as formulações de Eduardo Jozami8 que demonstra com
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perspicácia as diferenças entre Néstor Kirchner e Carlos Menem, ambos protagonistas
de disputas dentro do Partido Justicialista e das eleições vencidas por Kirchner.
As críticas mais acentuadas a certos aspectos da cultura política kirchnerista segue
o intento de demonstrar o perigo que é a chegada ao poder de um suposto líder
personalista que visa apenas seus projetos pessoais e coloca as instituições do Estado a
serviço do seu grupo político. A retórica de defesa dos direitos humanos e de renovação
da política defendida pelo kirchnerismo não se comprovaria na prática, segundo os
opositores, pois o governo não permite que a sociedade manifeste suas vontades,
aproveitando-se de um débil quadro de enfraquecimento dos partidos políticos e de
descrença dos cidadãos na política, o que enfraquece a oposição e permite o avanço do
domínio do aparelho estatal por um movimento cujo líder personifica uma espécie de
autoritarismo e o centralismo na condução da coisa pública. 9
Essa perspectiva que
enquadra o kirchnerismo como um movimento autoritário é desconstruída por Moreira e
Barbosa:
El kirchnerismo utilizó las tradicionales prerrogativas que los presidentes tienen en
Argentina para tomar decisiones, como los decretos de necesidad y urgencia, o
realizó algunos cambios de las reglas siguiendo los caminos institucionales, y en
eso fue menos autoritario y más, un gobierno que aprovechó los espacios
institucionales para concentrar la gestión en la figura del Presidente.10
O conceito chave que percorre todo o nosso trabalho de compreensão do que é o
kirchnerismo e como o mesmo se forma no período que nos propomos analisar, é o de
cultura política, conforme as proposições de Serge Berstein. Buscando compreender o
que caracteriza a cultura política, Berstein admite que seu significado é complexo e
junto com Jean-François Sirinelli entende que o conceito pode ser desenvolvido a partir
da idéia de que é ―uma espécie de código e de um conjunto de referentes, formalizados
no seio de um partido ou, mais largamente, difundidos no seio de uma família ou de
uma tradição políticas‖11
.
A História Cultural há muitos anos tem se situado no centro de uma importante
renovação dos estudos históricos sobre as sociedades humanas e a referência ao político,
a partir da École des Annales, gerou análises tanto depreciativas quanto brilhantes no
âmbito dos estudos produzidos pelos historiadores filiados as perspectivas teórico-
metodológicas defendidas por essa escola historiográfica. A cultura política também se
insere no processo de renovação da história política e emerge como chave explicativa
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
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dos comportamentos políticos no decorrer da história sendo de fundamental
importância:
Em outras palavras, uma cultura política surge em resposta a um problema da
sociedade e vai-se tornando cada vez mais complexa ao longo de um processo por
vezes muito lento que lhe permite transformar-se, adaptar-se à evolução da própria
sociedade. Ela só se torna verdadeiramente operacional quando suscita a adesão de
grupos importantes da sociedade, após ter progredido nas mentes que pouco a
pouco se vão habituando ao seu discurso, às soluções por ela propostas, e que
acabam por interiorizá-la. É então, somente então, que ela se torna um dos móveis
do comportamento político.12
Os elementos que compõem a cultura política formam um conjunto coerente onde
todos esses componentes se vinculam possibilitando a formação de uma identidade do
indivíduo que dela se reclama. A cultura política preenche simultaneamente uma
―leitura comum do passado‖ e uma ―projeção no futuro vivida em conjunto‖. Analisar o
político a partir do conceito de cultura política só tem validade se o mesmo oferecer a
possibilidade de se compreender os fenômenos que se propõe a explicar, ou seja, a
cultura política não deve ser apenas um termo técnico do trabalho do historiador, mas
ter utilidade.
A cultura política apresenta uma dupla função que se estabelece simultaneamente,
se colocando como um fenômeno individual, interiorizado pelo homem, e um fenômeno
coletivo, partilhado por grupos numerosos. Sendo apenas um dos componentes da
cultura da sociedade, Berstein afirma com coerência que a cultura política é um dos
elementos mais interessantes e importantes da história cultural, pois contribui para a
compreensão das motivações dos atos humanos em determinado momento de sua
história.
Nosso trabalho se beneficia da contribuição de outras disciplinas, todavia, a
ênfase conferida às análises da sociologia e da ciência política sobre o nosso objeto de
estudo se liga a preocupação de compreender a real dimensão dessa nova fase da cultura
política argentina tendo como recorte temporal o período que se refere ao exercício do
poder pelo então presidente Néstor Kirchner; nos interessa também compreender o
papel dos movimentos sociais através da análise da relação dialética que se estabeleceu
nesse momento com o Estado visando a promoção de políticas públicas voltadas para as
áreas de direitos humanos e justiça, além da criação de uma memória sobre a repressão
política dos anos 70 e início dos anos 80. Sobre a política kirchnerista de direitos
humanos e justiça, Atílio Boron afirma que:
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Em matéria de direitos humanos: uma nova legislação, que acabou com a impunidade dos
genocidas, e uma série interminável de gestos e iniciativas que causaram profundo impacto – mas
também profundas divisões – nos organismos de defesa dos direitos humanos, mas que, pela primeira vez,
demonstravam uma firme determinação governamental de dizer a verdade e fazer justiça; depuração da
Suprema Corte de Justiça, cúmplice da pilhagem e corrupção dos anos noventa.13
E analisando a atuação do kirchnerismo frente as políticas de direitos humanos,
memória e justiça, Moreira e Barbosa entendem que:
(…) la gestión kirchnerista provocó dos grandes rupturas con respecto a las
anteriores administraciones en la cuestión de los derechos humanos: por un lado,
asumió como política de Estado la condena a las violaciones de estos derechos
cometidas por los integrantes de la última dictadura militar, con lo que rompió
con la teoría de los dos demonios seguida (ya sea por conveniencia política o por
convicción) por los anteriores gobiernos constitucionales desde 1983, y por otra
parte enarboló la cuestión de la memoria como una bandera a seguir, apoyando
en este sentido las reivindicaciones históricas de los movimientos de defensa de
los derechos humanos como la Asamblea Permanente por los Derechos
Humanos (APDH) y Madres y Abuelas de Plaza de Mayo, entre otras. De esta
manera se retomaron los juicios a todos los integrantes de las fuerzas armadas o
de seguridad sospechados de violaciones a los derechos humanos y que, ya sin el
amparo de las leyes de Punto Final y Obediencia Debida, pudieron ser llamados
a comparecer ante la Justicia.14
O sociólogo Julio Godio na obra El tiempo de Kirchner, demonstra como a
sociedade argentina, a partir de uma profunda crise social e política, viveu um período
de intensa transformação no que se refere as práticas políticas forjadas nos governos que
antecederam a formação do kirchnerismo como força política. Os partidos políticos
estavam debilitados socialmente, sem legitimidade, o que incluía o partido de Kirchner,
o Partido Justicialista, contudo, a nova liderança nacional se apresentava como
propositor de uma nova corrente dentro do peronismo, se colocando como uma
alternativa nacionalista e desenvolvimentista de tipo keynesiana contrária as forças
neoconservadoras-liberais representadas por Carlos Menem, pois ―Kirchner aspira a
conformar um gobierno nacionalista, neodesarrolista y peronista superador de las
prácticas de la vieja política‖.15
Considerações finais
Enfim, por mais que pensar o futuro implique em pensar um passado de dor e
angústia, a sociedade argentina no curso do seu processo histórico resolveu optar pela
lembrança ao invés de cair na tentação do esquecimento. Gerações que se perguntaram
onde estavam seus filhos e netos hoje ganham a companhia daqueles que desejam saber
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onde estão seus pais, onde estão esses cidadãos argentinos e quem foram os
responsáveis pelo desaparecimento e assassinato deles. O kirchnerismo tem se proposto
a responder tais questionamentos através de políticas públicas que contemplam os
direitos humanos, a reparação jurídica frente as violações e a criação de uma memória
sobre os anos de repressão política que indubitavelmente visa condenar os crimes
praticados por uma elite dirigente golpista.
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ, sob orientação da Prof.ª Dr.ª
Maria Teresa Toríbio Brites Lemos. Pesquisa feita através de apoio financeiro da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: Puc/SP,
1993. p. 9. 2
CONADEP. Nunca más - Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas. 8ª edición.
Buenos Aires: Eudeba, 2007. p.259. 3 QUIROGA, Hugo e TCACH, César. A veinte años del Golpe con memória democrática. Rosario: Homo
Sapiens Ediciones, 1996. 4 Le Monde Diplomatique - Brasil. Argentina, 25 anos contra a impunidade. Ano 3, Número 31, Fevereiro de
2010. pp.18 e 19.
5 GODIO, Julio. El tiempo de Kirchner: el devenir de una revolución desde arriba. Buenos Aires: Letra
Grifa, 2006. Colección Política Pensada. pp. 35 e 36 . 6 ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984. p. 323.
7 ROMERO, Luiz Alberto. História Contemporânea da Argentina. Trad. Edmundo Barreiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006. pp. 198-199. 8 JOZAMI, Eduardo. Dilemas del peronismo. Ideologia, historia política y kirchnerismo. Buenos Aires:
Editorial Norma, 2009. 9 QUIROGA, Hugo. La República desolada: los câmbios políticos de la Argentina 2001-2009. Buenos Aires:
Edhasa, 2010.
SARLO, Beatriz. La audácia y el cálculo: Kirchner 2003-2010. Buenos Aires: Sudamericana, 2011. 10
MOREIRA, Carlos & BARBOSA, Sebastián. El kirchnerismo en Argentina: origen, apogeo y crisis, su
construcción de poder y forma de gobernar. Sociedade e cultura – Revista de Ciências Sociais. Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, v. 13, n.2, p.193-200, jul/dez. 2010. p. 195. 11
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: Jean-Pierre Rioux & Sirinelli. Para uma história cultural.
Lisboa: Estampa, 1998. p. 349-363. 12
_____________. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Cecília (Org.) et al. Cultura política,
memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. pp. 38-39. 13
BORON, Atílio. Néstor Kirchner e as desventuras da “centro esquerda” na Argentina. Revista Lutas
Sociais, n.17/18, junho de 2007. p.18. 14
MOREIRA, Carlos & BARBOSA, Sebastián. El kirchnerismo en Argentina: origen, apogeo y crisis, su
construcción de poder y forma de gobernar. Sociedade e cultura – Revista de Ciências Sociais. Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, v. 13, n.2, p.193-200, jul/dez. 2010. p. 196-197. 15
GODIO, Julio. El tiempo de Kirchner: el devenir de una revolución desde arriba. Buenos Aires: Letra
Grifa, 2006. Colección Política Pensada. p. 49.
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1007
O choro: uma visão sobre a questão dos limites e possibilidades
para a inserção do negro na sociedade brasileira através da música.
Leonardo Santana da Silva.1
Resumo:A presente comunicação objetiva analisar reflexivamente a inserção do negro
na sociedade brasileira através do choro. Nossa proposta é estudar a relação entre o
―choro‖ e a inserção social, no período que compreende o final do século XIX e início
do século XX. Este novo gênero musical será um divisor de águas na história cultural,
na medida em que, a partir do período referido, o choro pode ser considerado o embrião
para o desenvolvimento de uma música popular genuinamente brasileira.
Palavras-chave: inserção social – gênero musical – músicos chorões.
Abstract: This communication is an object of study analysis of the historiographical
point of view on entering the black in Brazilian society through crying. Therefore, our
proposal is to study the relationship between the "crying" - new musical style built by
black musicians of the lower middle classes - and social inclusion, in the period
comprising the late nineteenth and early twentieth century. This new genre, so it will be
a watershed moment in cultural history (in the case of the musical point of view of our
society), to the extent that, from that period, the cry can be considered the embryo to the
development of a genuinely Brazilian popular music.
Keywords: social integration – music genre – musicians whiners.
Introdução:
O texto que apresentaremos nesta comunicação é resultado de algumas reflexões de nossa
pesquisa de mestrado. A relevância de nosso estudo está em uma nova abordagem, a saber,
como uma produção cultural fundamentalmente negra vai servir de instrumento a uma possível
inserção social. Esta pesquisa tem como originalidade o próprio tema sugerido, visto que
existem dois vieses específicos que conseqüentemente abordará dois temas distintos. Neste
caso, um está relacionado à questão da contribuição social do negro afro-brasileiro em nossa
sociedade, assim como, o outro está relacionado ao ponto de vista cultural através da criação de
um novo estilo musical num primeiro momento.
Assim sendo, esta nova maneira de se executar a música seria um marco divisor na
história da música popular brasileira, pois sobre a égide desses músicos negros denominados de
chorões, o estilo criado se tornaria um gênero musical consolidado. De um modo geral, nossa
proposta é justamente a junção dos dois temas. Deste modo, a investigação apresentada no
sentido teórico-metodológico dentro das especificidades, propõe evidenciar a inserção e
conseqüentemente a trajetória social deste negro através desta prática cultural.
Choro e chorões – conceitos e historiografia.
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Ao propormos tal pesquisa, não poderíamos deixar de fazer referência a algumas questões
que nos farão compreender um pouco mais este universo fascinante que é a nossa cultura,
representada, neste caso, pela música popular brasileira. Para iniciar a discussão sobre este tema
sedutor que é o choro, faço minhas as palavras do grande músico brasileiro, o maestro Heitor
Villa-Lobos, que definem o seu significado de modo simples e brilhante: ―o choro é a alma
musical do povo brasileiro‖.
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que o período no qual surge o choro, a
sociedade brasileira era escravista (1870), embora o sistema escravista estivesse em um
processo de esgotamento. Nesta trajetória muitas medidas foram tomadas para a libertação do
negro, sejam elas através de leis emancipacionistas gradualistas (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do
Ventre Livre e Lei dos Sexagenários), alforrias concedidas, pecúlio legal, formas de resistência
de um modo geral, enfim as várias maneiras de se ver livre deste sistema opressor, o que deve
ser colocado é que só através da abolição da escravidão é que esta liberdade será legitimada.
Então fica claro que se manter como parte integrante desta sociedade, era uma tarefa árdua para
estes negros, considerando que para as elites, o negro era visto de maneira estigmatizada.
Portanto mesmo após a República instaurada houve uma resistência nas mentalidades das
camadas superiores desta sociedade, no entanto o negro que a partir deste momento da história
passa a ser livres continua a ser mal visto diante daqueles que ainda possuía aquela visão
escravista enraizadas em suas mentes.
Desta forma, buscaremos repensar as novas possibilidades de uma inserção do negro a
partir de um momento que a sua liberdade é recente. Assim, colocar em prática o estudo deste
objeto nos permite cada vez mais, entender um processo histórico que é muito discutido até os
dias de hoje.
Neste sentido, o movimento cultural popular pode ser analisado como fator de inserção de
determinados setores sociais, no caso específico a ser investigado, refere-se à questão do negro.
Utilizaremos as categorias e conceitos dos seguintes pesquisadores e historiadores: André
Diniz, José D`Assunção Barros, Ary Vasconcelos e José Ramos Tinhorão. No livro intitulado
de Joaquim Callado o pai do choro, seu autor o pesquisador André Diniz, discorre sobre a
trajetória inicial deste novo estilo musical, passando para origem do seu gênero propriamente
dito, consolidado como uma nova identidade musical. O autor cita também, pelo menos quatro
versões sobre a origem da palavra choro. São elas: a definição de Baptista Siqueira (maestro); a
do folclorista Luís da Câmara Cascudo; a do pesquisador Ary Vasconcelos e a do pesquisador
José Ramos Tinhorão. Em relação a estas definições, faremos sua exposição no item destinado
ao quadro teórico.
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A obra mostra a miscigenação dos gêneros musicais tanto europeus, quanto o africano,
iniciando então a sua nacionalização. Isso significa a transformação destes estilos para outro
propriamente popular brasileiro.
O autor André Diniz demonstra as diversas gerações destes chorões, além de narrar o
cenário do ambiente social, econômico e político do Rio de Janeiro neste período, evidenciando
que os chorões, vinham das camadas médias da sociedade, ou seja, trabalhadores dos correios,
telégrafos, bandas militares, pequenos cargos públicos, entre outros.
Em se tratando dos conceitos formulados pelo historiador José D`Assunção, nos
apropriaremos de duas obras de sua autoria, cujo o conteúdo se enquadra perfeitamente ao tema
proposto desta pesquisa. O primeiro é o livro denominado de: O Brasil e a sua Música.
Primeira parte: Raízes do Brasil Musical. O autor relata num primeiro momento a história da
chegada dos negros africanos no Brasil, em virtude da colonização e as várias fases da
escravidão até a o período Imperial. O que podemos compreender neste momento inicial da obra
é a presença de uma representação e descrição conjuntural da condição socioeconômica deste
período – séc. XVI – XIX.
O historiador José D`Assunção, analisa a questão relacionada à construção da identidade
afro-brasileira, devido ao processo de miscigenação das raças, resultando assim, numa formação
de um novo padrão cultural. Esta mistura racial demonstra ser um caráter positivo
principalmente no âmbito cultural. Ainda imerso a esta obra, José D`Assunção fala claramente
da importância deste encontro inter-étnico, que possibilitou diferentes experiências musicais não
só no Brasil como nas Américas de um modo geral. Um exemplo crucial disto é o blues, o jazz,
o samba, o chorinho e a bossa-nova.
Outro ponto que merece muita atenção é a contribuição trazida pelas danças e ritmos de
origem africanas e européias, que ao se misturarem, originaria numa nova forma musical na
esfera popular, erudita e folclórica brasileira. Ex: maracatu, congada, jongo, lundu, polca
maxixe, batuque, samba, afoxé, frevo, chorinho, etc.
Vejamos agora algumas diretrizes estabelecidas por este mesmo autor, em sua segunda
obra denominada de Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis
primeiras décadas do século XX. Embora este seu livro esteja mais especificamente direcionado
para a construção do caráter nacional e moderno dentro da música erudita brasileira, o autor
desenvolve um capítulo interessante, onde relaciona a influência do ―choro‖ na música erudita
brasileira.
O historiador José D`Assunção esclarece ainda a questão do que vem a ser o ―choro‖.
Assim sendo, ele fala sobre os elementos que constrói este gênero musical, evidenciando a
interação dos rudimentos folclóricos rurais e regionais do Brasil com a música estrangeira.
Afirma que a palavra ―choro‖ surgiu para designar um estilo de grupo formado por músicos
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populares da época. O autor ainda descreve sobre a primeira formação musical original, ou seja,
a estrutura instrumental inicial (flauta, violão e cavaquinho) e a função de cada instrumento.
Menciona também a inclusão de outros instrumentos na sua composição no decorrer dos anos.
Outra idéia que nos chama a atenção é quando José D`Assunção especifica a passagem do
termo ―choro‖ (nome atribuído primeiramente por causa da formação musical instrumental),
para a consolidação do termo, passando a converter-se em um novo gênero musical. Esta
passagem ocorre quando estes músicos passam a adotar uma peculiaridade em sua execução
musical, ou seja, uma execução mais ligeira adquirindo assim uma identidade própria.
A visão que iremos trabalhar agora é de outro intelectual fundamental nesta discurssão:
Ary Vasconcelos. Dentre algumas obras de referência em relação ao tema a ser investigado,
utilizaremos seu livro chamado Carinhoso etc. – História e Inventário do Choro, com o
propósito de elucidar um pouco mais a nossa apresentação.
No seu livro o autor aponta em que contexto nasce o ―choro‖: 1870 – final da Guerra do
Paraguai. Ressalta que o choro não é propriamente um gênero musical no seu início, mas a
designação de um conjunto instrumental que logo se transformou num jeito brasileiro de se
executar a música de gênero dançante vindo da Europa.
O livro segue com a divisão das gerações de chorões e a importância destes chorões em
sua respectiva época, ressaltando cada momento das diversas fases do ―chorinho‖. Uma
observação importante que deve ser destacada é o período da 3ª geração dos chorões (1919-
1930), onde surge o maior nome do choro de todos os tempos: Pixinguinha. É neste momento
que o choro, segundo Ary Vasconcelos, irá chegar ao seu ápice. Aponta que em 1919 será
formado os Oito Batutas, o mais importante grupo de choro existente. Com a formação deste
conjunto, temos algumas mudanças significativas na composição instrumental, como por
exemplo, o ingresso da percussão no choro. Outra mudança é no campo social, pois na maioria
das vezes o choro era executado apenas em festas nos subúrbios cariocas, passando a ser
executado em festas da alta sociedade para figuras importantes destas classes elitizadas,
demonstrando uma convivência mais direta entre estas classes. O autor nos dá exemplo da
ocasião em que os reis da Bélgica estiveram no Brasil, e foram executados ―chorinhos‖ para
essa realeza. Mais um exemplo foi o financiamento de uma turnê pela Europa para os Oito
Batutas, sendo essa de suma importância, devido à divulgação de nossa cultura fora de nosso
território nacional.
Trabalhemos então neste momento os ensinamentos formados por José Ramos Tinhorão.
Na obra, História da Música Popular Brasileira, fala do surgimento da música popular
brasileira através de barbeiros. Afirma que devido às habilidades múltiplas dos barbeiros e a sua
condição privilegiada, por desenvolver uma atividade liberal, tinham tempo para o
desenvolvimento e aprendizagem de outras funções; dentro delas, a mais procurada, seria a
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música. Destaca a presença de uma mistura de músicas, danças, batuques, percussão e de
tambores negros, que surgiram na Bahia e no Rio de Janeiro, na metade do séc. XVIII,
demonstrando ser o embrião para o nascimento do choro.
O autor relata a condição sociocultural desses instrumentistas negros (barbeiros),
destinados a um novo ―serviço urbano‖: ―a música‖. Deste modo, estes músicos passaram a ser
as principais figuras direcionadas a diversão em festas tanto na esfera pública quanto na esfera
privada. É neste contexto que o choro vai surgir, através da transformação da música de
barbeiros. Tinhorão indica a condição socioeconômica destes músicos, destacando suas camadas
e áreas de trabalho: funcionalismo público, funcionários dos correios, repartições civis e
militares, telégrafos, casa da moeda, estrada e ferro Central do Brasil e entre outras.
Em se tratado dos chorões, podemos destacar alguns nomes importantes, que compreende
o período da fase inicial do ―choro‖. Dentro desse contexto, temos Joaquim Callado (flautista e
compositor) considerado pioneiro e pai dos ―chorões‖, Virgílio Pinto (flautista e compositor),
Saturnino (flautista), Juca Vale-violão (violonista), Miguel Rangel (flautista), Luizinho
(flautista), Viriato Figueira (flautista e saxofonista) entre outros.
André Diniz, em ―almanaque do choro‖, assim se refere:
Mestiço simpático, exímio flautista, mulherengo, e muito popular na cidade do Rio
de Janeiro, Joaquim Callado era filho da primeira geração do choro. Ao seu lado
estavam Viriato Figueira, também flautista e saxofonista, Virgílio Pinto,
compositor e instrumentista, e o flautista Saturnino, entre tantos outros músicos
que ajudaram na criação do choro.
Geralmente o único que sabia ler a partitura, o flautista tinha papel
importantíssimo nos grupos de choro, pois incentivava o gosto pelo choro
aguçando as qualidades musicais dos acompanhadores de ouvido.2
Faremos agora um apanhado sucinto do que é o choro em se tratando do seu conceito,
pois a origem da palavra choro em si possui muitos sentidos, por esta razão, vão existir
diferentes concepções designadas para justificar e legitimar o nome dado a este novo estilo
musical, que ao passar do tempo, tornou-se um novo gênero na música popular brasileira.
O choro vai surgir com a evolução da chamada música de barbeiros (estilo de música
vinda das camadas urbanas, onde se misturavam músicas, danças e batuques a base de
instrumentos de percussão negra, com os estilos brancos e mestiços), cedendo o lugar para a
criação de uma nova maneira de se executar a música que aqui havia:
O espírito de confraternização desses músicos se revela através do ―choro‖, música
que surgiu a partir da fusão do lundu, ritmo de sotaque africano à base de
percussão, com gêneros europeus. Suas interpretações musicais, ao sabor da
cultura afro-carioca, era o tempero para as audições nos ―arranca-rabos‖ e cortiços
das chamadas populares, nos bailes da classe média – batizados, aniversários,
casamentos – ou mesmo nos salões da elite da corte de D. Pedro II.3
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Desta forma, temos como elementos básicos para a sua caracterização os seguintes
pontos: em primeiro lugar, é a sua formação instrumental original, que consistia de três
instrumentos básicos; flauta, violão e cavaquinho:
Nos seus primórdios mesmo, particularmente na cidade do Rio de Janeiro que é o
seu berço, a palavra Choro surgiu para designar um tipo de grupo formado por
músicos populares. A formação de raiz era o chamado ―terno‖, que consistia de
uma flauta, de um violão (ou dois) e um cavaquinho.4
A segunda característica fundamental é a composição dos diversos gêneros estrangeiros,
sobretudo europeus, acoplado a ritmos africanos. A terceira característica, e, por conseguinte a
principal, seria a questão de transformar todos esses elementos em um jeito brasileiro de se
executar a música:
As interpretações diferenciadas dos gêneros estrangeiros da época – como a polca,
valsa, o xótis, a quadrilha – fizeram nascer um jeito ―brasileiro‖ de tocar. O choro
do século XIX surgiu como uma maneira de frasear, ou seja, um estilo de executar
os gêneros europeus. A influência européia, portanto era clara, mas não foi à única.
O lundu era outro rio que iria desembocar no novo ritmo.
Principal ritmo de origem africana a aportar no Brasil, o lundu, música à base de
percussão, palmas e refrões, era cultivado pelos negros desde os tempos de
trabalho escravo nas lavouras de açúcar da Colônia.5
O que queremos dizer é que boa parte da produção musical que se tinha no Brasil neste
período era vinda da Europa, porém, não podemos deixar de mencionar a existência de uma
música proveniente das senzalas, assim como nas aldeias indígenas. Então, foi através deste
repertório musical que os músicos brasileiros passam a executar tais obras com seus próprios
estilos, ou seja, dizendo numa linguagem mais popular, seria um jeito de tocar mais
abrasileirado. Logo, com o passar do tempo, essa forma de executar as músicas estrangeiras
começam a ceder lugar para o repertório criado através das composições próprias que os
chorões haviam realizado. Portanto, se iniciaria uma nova etapa da música passando a existir
não só uma maneira de tocar, como também um gênero musical brasileiro propriamente dito.
Desta forma, esta comunicação buscou pontuar e, conseqüentemente repensar
objetivamente as novas possibilidades de uma inserção do negro a partir de um momento que a
sua liberdade é recente. Assim, colocar em prática o estudo deste objeto nos permite cada vez
mais entender um processo histórico que é muito discutido até os dias de hoje cujo movimento
cultural popular pode ser analisado como fator de inserção de determinados setores sociais a
uma sociedade de classes que, no caso específico a investigado, refere-se à questão do negro
brasileiro.
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1 Mestre em História Social / USS. Professor do Conservatório Brasileiro de Música.
[email protected]. Tel. (21) 9246-9690. Rua Cônego de Ananias, 550 Aptº 101 – Itaocara / RJ
Cep: 28570-000 2 DINIZ, André. Joaquim Callado o pai do choro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008, p. 15.
3 Idem, Almanaque do choro: A história do chorinho, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed. Rio de
Janeiro Jorge Zahar Editor, 2003, p. 14. 4 BARROS, José D`Assunção. Nacionalismo e Modernismo – A Música Erudita Brasileira nas seis
primeiras décadas do século XX, vol. II. Rio de Janeiro: CBM – CEU, 2004, p. 257. 5 Idem, DINIZ, André. Almanaque do choro. Op. Cit., p. 17.
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História Diplomática e Relações Internacionais: Uma Abordagem
Historiográfica
Leonel Victor Soares Caraciki1
Resumo: Com o presente artigo, pretende-se discutir como o campo da história das
relações internacionais tem sido desenvolvido no Brasil e com oele tem sido objeto de
reflexão crítica. Trata-se de propor ruma reflexão sobre os desafios de sua escrita,
apresentando algumas das obras que influenciaram essa concepção que chamamos de
―História Diplomática Renovada‖ ou mais acertadamente, ―História das Relações
Internacionais‖
Palavras-chave: historiografia, relações internacionais, história diplomática
Abstract: With this article, we intend to discuss how the field of the history of
international relations has been developed in Brazil and how it has been the subject of
critical reflection. A reflection on the challenges of its writing is proposed, by
presenting some of the works that influenced this concept that we call "Renewed
Diplomatic History" or as it is usually defined, "History of International Relations"
Keywords: historiography, international relations, diplomatic history
O presente artigo tem como objetivo passar em revista a produção relativa a
história diplomática e das relações internacionais, fazendo uma ponte com a situação
brasileira. Pretende-se, ao fim, levantar algumas questões sobre a escrita deste campo,
seus desafios e possíveis horizontes.
Ao pensar em história diplomática é muito comum que o historiador profissional
se remeta diretamente às críticas elaboradas pelos integrantes dos Annales, que a
classificavamao lado da história metódica como ―historicizante‖ e evenementiélle,
desprezando os problemas reais ao tratar apena da ―espuma‖ do processo histórico.
Quando o grupo de Marc Bloch propõe o alargamento da história para além das
políticas de Estado, as fontes clássicas da história diplomática, ou seja, a documentação
interna das chancelarias, aparecem como reproduções do discurso oficial e pouco
interessantes para servir como fontes de pesquisa.
O tríptico ―economia-sociedade-civilização‖ desaloja o binômio metódico
―história factual-política‖ do centro do pensamento histórico2, ao mesmo tempo que se
pronuncia, no início do século XX, a estruturação disciplinar das Relações
Internacionais como um campo de pesquisa autônomo. Tal conjuntura coloca a história
diplomática na desconfortável posição de não atender nem ao seu campo original, a
história, nem a disciplina que influenciou.
Parece possível que tal impasse se reflita na atual produção historiográfica da
história diplomática/das relações internacionais, que não foi capaz de acompanhar a
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renovação geral da história política, capitaneada por René Remond na coletânea de
artigos ―Por uma História Política‖, e igualmente, não produziu um corpus de obras
que lhe possibilitaria um maior espaço de reflexão na academia, permitindo que o trato
de uma ―história internacional‖ fosse cerceado pelas Relações Internacionais.
Para uma maior clareza no trato do tema, é necessário tecer uma diferenciação
entre a história diplomática e a das relações internacionais. A primeira se ocupava com
o ―estudo dos acontecimentos internos das grandes potências européias, dos
movimentos coletivos e forças que resultam da experiência institucional, religiosa e
social, e das relações entre os Estados, dando ênfase ao confronto entre estes3‖. Já a
denominada ―história das relações internacionais‖ pretende-se mais ampla, evocando
um fenômeno mais abrangente que diplomacia e política exterior, incluindo em sua
análise os atores não-estatais e suas relações no campo internacional, assim como a
sociedade com suas forças4.
I – Considerações sobre a ―periferização‖ da história das relações internacionais
A quebra e a consequente reorganização do sistema europeu ao fim da Primeira
Guerra Mundial impôs alguns desafios para os estudiosos e politicos do continente.
Como explicar o rápido processo de desmonte dos Impérios Austro-Húngaro e
Otomano, ou da mudança de fluxo de poder que rapidamente se polarizou para os
Estados Unidos? Como dar inteligibilidade as novas necessidades de negociação e
reivindicações oriundas de uma nova ordem internacional? Tais questões deram origem
ao campo disciplinar conhecido como ―Relações Internacionais‖. Indo além da análise
descritiva de negociações entre partes no jogo diplomático, seus fundadores procuravam
teorizar como se dava o funcionamento do sistema inter-Estados, ultrapassando as
interpretações do Direito Internacional, da Economia Política e da já mencionada
História Diplomática5.
O campo assumiu algumas diferentes formas de compreensão e escrita,
acompanhando as várias tradições acadêmicas, principalmente nos EUA e Inglaterra e
em menor grau, na França. A natureza distinta da participação de cada um desses
Estados no cenário internacional também influenciou no modo de pensar dos
pesquiadores em Relações Internacionais resultando em objetos de análise e reflexões
bastante diversas umas das outras.
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A escola americana geralmente preteriu as formulações teóricas ao favorecer
termos mais concretos de análise, potencializados para uso do Estado6. Os Estados
Unidos se afirmavam como potência internacional ao fim da Primeira Guerra e um dos
pontos preconizados pelo Presidente Woodrow Wilson nas negociações de paz da
Conferência de Paris foi o de uma diplomacia pública e irrestrita, colocando em pauta a
necessidade dos estudos de uso prático para dar entendimento ao papel dos EUA e seus
desafios no sistema internacional.
A escola inglesa, por sua vez, estruturou-se pela cooperação entre os
departamentos acadêmicos e o serviço diplomático, também assumindo cunho prático,
mas com certo grau de reflexão teórica e incorporando elementos culturais como
componentes de análise7, possivelmente, refletindo a experiência imperial britânica.
A terceira grande corrente ficou conhecida como escola francesa. Apesar de ser
uma potência vitoriosa na Primeira Guerra Mundial, a França perdia lentamente sua
importância no cenário internacional, já deteriorada desde sua derrota para a Prússia em
1871. Uma reavaliação de seu papel nos caminhos das relações internacionais e de suas
políticas era vista como necessária, não diferentemente de outros países. Outro
importante fator foi a já mencionada crítica da Escola dos Annales contra a história
metódica e diplomática, acusando-as da reificação das fontes, de concepções que davam
importância última ao Estado e que suas visões puramente cronológicas eram
insuficientes para o entendimento dos processos históricos89
.
É usual referir-se às Relações Internacionais como uma ciência anglo-saxã, o que
é facilmente verificado ao perceber o peso da produção acadêmica e dos conceitos10
oriundos dos centros de pesquisa da Inglaterra e Estados Unidos. Mas o grande ponto
que define a diferença teórico-metodológica entre o modelo anglo-saxão e o francês é o
diálogo interdisciplinar. O principal ponto de apoio das correntes americana e inglesa é
a Ciência Política, gerando estudos em consonância com as necessidades práticas para a
formulação de doutrinas e modelos de ação política para os departamentos
governamentais11
.
Mesmo deslegitimados entre seus pares, os historiadores das relações
internacionais franceses desenvolveram um método distinto de análise. Colocando o
fenômeno das relações internacionais como foco central de estudo, incorporaram
também as dinâmicas sociais, econômicas e religiosas da vida transnacional, assim
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como voltaram sua atenção para um foco histórico mais apurado, constituindo um
paradigma próprio12
. Ronaldo Gonçalves aponta que
Enquanto as Relações Internacionais caracterizam-se ―pela existência de objetivos
a manter ou conquistar, pela conveniência de efetuar trocas de interesse, pela
necessidade de desenvolver pressões ou resistir a pressões de diversas naturezas‖
(Caminha, 1982, p.25) a História das Relações Internacionais, de acordo com
Bueno (1980, p.122) ―estuda a singularidade, o concreto, o irreversível, submetido
à força do tempo‖13
.
Essa vertente analítica, conhecida pelos seus dois maiores expoentes, Jean-
Baptiste Duroselle e Pierre Renouvin, insiste em analisar o evento respeitando sua
especificidade. Para estes ―está óbvio „que o estudo não se esgota (…) na análise do
„fato curto‟. Este responde a movimentos mais profundos. (…) Os historiadores citados
valorizam ainda (…) a ação do homem de Estado, na sua recíproca relação com as
forças profundas.‟ (Bueno, 1983: 76-77)‖14
.
O trabalho de Pierre Renouvin, ―Histoire des Relations Internationales‖
(publicado entre 1953 e 1961) é o pioneiro no campo. Se distanciando do historicismo e
do foco nos ―homens de Estado‖, em três volumes o autor delinea as relações e
evoluções de Estados e entidades políticas da Idade Média até 1945. Sobre esse
empreendimento ele diz:
Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro que eles
permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda que eles
tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais, interesses
econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem inteiramente essas
forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir maior importância à
attitude das chancelarias e dos ministros,a a analisar a influência do fator pessoal.
É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores poderão e deverão se
aplicar15
.
Em uma consideração sobre a história diplomática, o mesmo contemporiza
que
Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a contestações; é o
seu método, tal como o praticm muito frequentemente seus adeptos. (…) Ora, as
instruções das chancelarias se aplicam muitas vezes a nada dizer de essencial, e os
relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também frequentemente a busca
das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de muitos embaixadores
atritbui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória, às questões
econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as forças profundas-
porque, para o diplomata de então, a ‗grande política‘ plana muito acima dessas
contingências16
.
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Renouvin treinou ou influenciou toda uma geração de historiadores das relações
internacionais na França, dos quais podemos citar René Girault, Maurice Baumont e
outros que lidam com sua visão de ―forças profundas‖ dentro da análise das relações
internacionais. Tal visão, nas palavras de René Girault: ―realizou uma revolução
epistemológica de amplitude comparável à dos Annales em um domínio particular da
história, o domínio das relações entre os Estados ou entre os homens separados por
fronteiras17
‖. Pierre Renouvin opera em seu trabalho a ponte entre uma história
diplomática para uma história das relações internacionais ao considerar a história
econômica e social, assim como das idéias e instituições18
como fundamentais para a
escrita de uma história que se prezaria como total.
Todavia, mesmo com toda a renovação trazida por Renouvin e os historiadores
franceses, o campo não conseguiu se reafirmar à frente das Relações Internacionais, que
cada vez mais se profissionalizava dentro da Academia, principalmente a partir dos anos
1970. Ainda que definitivamente tenhamos uma produção de trabalhos que se inserem
no campo, sua capacidade de diálogo com o mainstream da produção em história é
reduzida e ofuscada pelos trabalhos de Relações Internacionais.
II – Marcos da produção brasileira em história diplomática e das relações
internacionais
Ao contrário do que ocorre na Europa, a produção de conhecimento em história
diplomática e relações internacionais no Brasil oscila entre uma fase de produção por
leigos, passando por algumas tentativas de síntese pelos chamados ―autores
intermediários‖, até chegarmos à uma fase atual, de ―profissionalização com algumas
permanências do passado‖, termo que sera discutido adiante19
.
Os primeiros trabalhos que podemos considerar de cunho ―histórico‖foram
escritos por homens que exerceram papel dentro dos negócios de Estado ou das relações
exteriores do País20
. Podemos citar Joaquim Nabuco e Oliveira Lima como
representantes desta tradição de escrita. O pioneiro trabalho quepretendeu
expressamente preencher uma lacuna de conhecimento é um dos grandes marcos da
história diplomática do Brasil: ―A Política Exterior do Império‖ (1927) de João Pandiá
Calógeras. O autor adere à uma concepção bastante tradicional de narrativa, que mesmo
não sendo feita por um historiador profissional, bebe nas fontes da ―escola metódica‖ de
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Henri Langlois e Charles Seignobos. Sua narrativa é essencialmente política, e os
poucos lampejos de economia que são vistos na obra são detalhes que subjazem ao
―acúmulo de fatos‖2122
. O trabalho em três tomos foi pensado como lição para um
cenário em que a política externa havia perdido parte do brilho que possuia ao ser
conduzida pelo Conselho de Estado do Império, ao que o autor dizia:
―ao invés do que acontecia no regime imperial, em que grupo de especialistas
mantinha no Conselho de Estado a tradição una da Chancelaria, desde os mais
remotos tempos da conquista lusa até os nossos dias, (...) vai-se perdendo o contato
com esse passado tão fecundo em lições‖ (p.xxxvi). Para justificar seu
empreendimento, ele falou do acúmulo de ―provas que era preciso e urgente
divulgar aos brasileiros (...) o que havia sido, o que ainda era a tradição nacional
no convívio com os demais povos‖ (idem)23
Ainda que problemática em seu método, a obra foi o marco inicial da
possibilidade de síntese do tema no Brasil, sendo complementada anos depois pelo
esforço de Hélio Vianna, com seu ―História Diplomática do Brasil‖. Apesar de
reproduzir um discurso oficial e apologético em relação à política externa, a obra
beneficia-se por ter sido concebida em um ambiente de profissionalização dos quadros
da diplomacia brasileira, pois o autor foi um dos professores do recém-inaugurado
Instituto Rio Branco (1945) e se tornou uma das pedras fundamentais do estudo da
história diplomática do Brasil. Juntamente com o trabalho de Carlos Delgado de
Carvalho, ambos serviriam por longo tempo como manuais de ensino de história
diplomática. Nesse sentido, ainda que se prendam à modelos explicativos factuais e nem
sempre avancem em maiores análises de seus objetos de estudo, é perceptível a
preocupação com o ordenamento cronológico e narrativo, ao dar um ―sentido histórico
extenso aos seu objeto de estudo‖24
.
Mesmo se configurando como uma tríade de ―obras fundadoras‖ dos estudos no
Brasil, até os anos 1990 não se empreendeu outro esforço de síntese comparável aos de
Hélio Vianna e Carlos Delgado. Embora estes fossem frequentemente criticados por sua
concepção de história evenementiélle ou por seus posicionamentos políticos, seus
críticos não produziram uma resposta que desse conta do que apontavam como falhas
nas tais obras, ditas ―tradicionais‖25
.
A institucionalização das Relações Internacionais como disciplina acadêmica em
meados dos anos 1970, traz um novo impulso de criação de obras no campo de estudos,
avançando em escopo e objetivos. Ao incorporar paradigmas internacionais vinculados
a escola americana, a produção deu um salto qualitativo e quantitativo dentro da
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academia, atraindo também diplomatas mais ligados à pesquisa acadêmica26
. A abertura
de programas de pós-graduação (como o da UnB em 1970 ou a pós-graduação lato
sensu da UERJ) dedicados ao estudo do tema, bem como a gradual reorganização dos
arquivos do Itamaraty pós-198827
, produziu uma nova geração de historiadores
profissionalmente treinados que contribuiram para o cenário geral da produção
historiográfica. Uma evidência de tal mudança são os trabalhos de síntese geral de
Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, sendo marco fundador, o título ―História da Política
Exterior do Brasil‖ de 1992. Esse, considerado o ―estado da arte‖ dos trabalhos de
história das relações internacionais no Brasil, incorpora as reflexões da historiografia
francesa de Renouvin à um sólido trabalho arquivistico28
e analitico. Apesar da
qualidade da obra, não foi empreendida qualquer outra tentativa de diálogo, da mesma
magnitude, por parte de outra visão de pesquisa ou de hipóteses, empobrecendo um
debate .
Ainda assim, boa parte dos trabalhos está dispersa em artigos e teses acadêmicas,
nem sempre encontrando um diálogo maior do que entre os especialistas na área ou
dentro dos quadros de diplomatas profissionais.
III – Considerações Finais
A presente reflexão sobre a estruturação histórica e a condição atual dos estudos
sobre a história das relações internacionais é condicionada à pesquisa que venho
desenvolvendo no mestrado em História Social da UFRJ sobre a diplomacia brasileira e
sua participação no voto da Assembléia Geral da ONU que condenou o sionismo como
forma de racismo. Tal evento, dado em 1975, me parece suscitar importantes questões
sobre o papel da ordem interna do Estado e suas formulações em política externa, que é
tema de teorização constante entre as escolas de análise, recebendo um capítulo escrito
por Pierre Milza no livro de René Remond, ―Por uma História Política‖, anteriormente
mencionado.
O contato com a literatura sobre o tema levantou alguns pontos que creio
relevantes para uma avaliação geral do que vem sendo produzido na história das
relações internacionais.
Primeiramente, ao utilizar o termo ―profissionalização com algumas permanências
do passado‖, me refiro à condição de uma produção conduzida prioritariamente por
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autores que não tem formação profissional em História. O nível de qualidade dos
trabalhos não é, de maneira alguma, desabonado pela formação de seus autores, mas seu
vínculo com a atividade diplomática é o principal motor para a investigação29
. A
principal crítica à esses trabalhos é o fato que assumem um ―caráter episódico, ou não
incorporam um sentido de duração histórica, desprezando em alguns casos a relação
entre o passado e o presente, ou não estabelecem relações entre o objeto estudado e a
realidade em sua totalidade30
‖.
Outra questão relevante é o peso teórico da escola anglo-saxã na produção
intelectual. Ainda que os autores brasileiros no campo se utilizem das diversas tradições
de pensamento de forma bastante original, a tendência normativa dos conceitos
importados tende à ofuscar uma discussão mais profunda da historicidade e duração
histórica31
. Apesar de tais conceitos serem extremamente úteis e dificilmente
descartáveis, a ampliação do campo de pesquisa e de reflexão
não deve subtrair a importância da documentação diplomática. Reduzir o apego ao
escrutínio documental e ao ambiente coevo em que se desdobram os processos
políticos na intenção de ampliar o nível de análise seria, fundamentalmente, uma
alavancagem ilusória do conhecimento historiográfico, implicando perda da
qualidade da pesquisa. A investigação de fontes governamentais é parte essencial
para que se compreendam os processos atinentes às relações internacionais, que
também têm a ver com processos sociais e econômicos, representações e
percepções, o mundo das idéias e as fontes que as nutrem32
.
Por fim, acredito que um diálogo maior entre os historiadores e os temas das
relações internacionais seria profícuo para um debate que contribuiria para ambos os
lados. As atitudes pouco generosas dos historiadores – notadamente menos acentuadas
que já foram e facilmente percebidas no volume de produção recente3334
- em relação à
documentação diplomática e ao trato do tema das relações internacionais, poderiam ser
revistas ao entrarem em contato com os trabalhos recentes, pois
a atual historiografia das relações internacionais, que sucedeu a antiga história
diplomática, não tem mais nada a dever, em termos de metodologia e técnicas,a
outros ramos da pesquisa histórica e o aproveitamento dos arquivos diplomáticos
assumiu, por isso, um caráter diferenciado e muito mais interessante do que no
passado35
.
Um trabalho conjunto de reflexão pode jogar luz sobre processos nacionais
importantes, sobre a cultura política das elites ou sobre as conjunturas econômicas que
estuturaram a posição internacional do Brasil36
.Da mesma maneira que a história
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diplomática se beneficiou do alargamento de suas fontes, poderia ganhar com uma
sofisticação analítica proporcionada pela prática historiadora. Igualmente, é visível a
possibilidade de que a escrita da história no geral, se beneficie do diálogo e do contato
mais claro com as fontes arquivisticas diplomáticas, que ainda se encontram pouco
exploradas.
1 Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. 2 FARIAS, M. N.; FONSECA, A. D.; ROIZ, D. S. A escola metódica e o movimento dos Annales:
contribuições
teórico-metodológicas à história. Akrópolis, v. 14, n. 3 e 4: 121-126, 2006. 3 SANTOS, Norma Breda dos. História das Relações Internacionais no Brasil – Esboço de uma
avaliação sobre a área. Disponível em:
http://redalyc.uaemex.mx/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=221014791002 4 CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros. São Paulo:
Saraiva, 2008. P.11. 5 GONÇALVES, Williams. Relações Internacionais. Disponível em:
http://www.cedep.ifch.ufrgs.br/Textos_Elet/pdf/WilliamsRR.II.pdf 6 idem
7 ibidem
8GONÇALVES, Ricardo. Teoria da História das Relações Internacionais: A Escola Francesa.
Disponível em: http://ronaldopgoncalves.vilabol.uol.com.br/teoria.htm 9 SANTOS, Norma Breda dos. História das Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação
sobre a área. In: Revista História: São Paulo, v.24, n.1, 2005. pp. 11-39 10
GONÇALVES, Williams. Op cit. 11
―Ao se dedicar, com grande afinco, ao estudo das Relações Internacionais, os anglo-saxãos
elaboraram hipóteses, formularam teorias e definiram os conceitos que se universalizaram, tais como
aqueles que lhe são específicos, ou seja, criaram o léxico das Relações Internacionais.” Cf.
GONÇALVES, Williams. Op. Cit. 12
GONÇALVES, Ricardo. Op. cit. 13
idem 14
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Estudo de Relações Internacionais do Brasil: Etapas da produção
historiográfica brasileira, 1927 – 1992. Disponível em:
http://expertise.educacao.ws/filipemendonca/wp-content/uploads/2010/03/Paulo-Roberto-de-Almeida-
Estudos-de-Rela%C3%A7%C3%B5es-Internacionais-do-Brasil-Etapas-da-produ%C3%A7%C3%A3o-
historiogr%C3%A1fica-brasileira.pdf 15
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração
do total. Disponível em: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/04/histoire-des-relations-
internationales.html 16
idem 17
GIRAULT, René. Présentation. In: RENOUVIN, Pierre. Histoire des Relations Internationales. Du
Moyen Age à 1789. v.I. Paris: Hachette, 1994, p.II apudSANTOS, Norma Breda dos. História das
Relações Internacionais no Brasil: esboço de uma avaliação sobre a area. In: Revista História: São
Paulo, v.24, n.1, 2005. pp. 11-39 18
SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 19
idem 20
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Op. Cit. 21
idem 22
SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 23
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Op. Cit. 24
RACY, Joaquim. História e Política Externa Brasileira: Considerações sobre a História e a
Historiografia das Relações Internacionais do Brasil. Teoria e Sociedade, nº16, pp. 216-231, 2008.
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25
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Em busca da simplicidade e das clarezas perdidas: Delgado de
Carvalho e a historiografia diplomática perdida. In: CARVALHO, Carlos Delgado de. História
Diplomática do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2008. 26
idem 27
FILHO, Pio Penna. A Pesquisa Histórica no Itamaraty. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73291999000200007&script=sci_arttext 28
SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 29
RACY, Joaquim. Op cit. 30
idem. 31
Ibidem. 32
SANTOS, Norma Breda dos. Op cit. 33
Quadro 1.5 ―Relações internacionais, política externa e produção especializada no Brasil, 1945-2006‖.
In ALMEIDA, P. R. IBRI-RBPI: Guia sinóptico e cronológico de subsídios à pesquisa, 1954-1998. 34
Quadro 2 ―Perfil Profissonal dos Pesquisadores que Solicitaram Pesquisas no Arquivo do Itamaraty‖
In: FILHO, Pio Penna. Op cit. 35
BERTONHA, João Fábio. A Diplomacia a Serviço da História: Os Arquivos Diplomáticos Brasileiros,
Italianos Ingleses e Americanos. Disponível em:
www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/download/184/175 36
idem
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O cinema ficcional histórico: política e memória nos filmes “Independência
ou morte” e “Os Inconfidentes”
Lidiane Macedo Cosmelli1
Resumo: A presente comunicação tem por objetivo refletir a relação entre o cinema
ficcional histórico e a memória social. Dentro do contexto de comemoração existente no
sesquicentenário da Independência do Brasil (1972), observamos a produção de dois
filmes com conteúdo histórico, todavia com narrativas cinematográficas e estéticas
distintas, trata-se de ―Os inconfidentes‖ e ―Independência ou morte‖. Abordaremos
assim, como se dá o projeto de construção de uma memória nacional na ditadura civil-
militar brasileira através do cinema.
Palavras-chave: Cinema, memória social, narrativas fílmicas.
Abstract: This Communication aims to reflect the relation between fictional movie
history and the social memory. Inside the context of celebration existing in the
sesquicentennial celebration of the Independence of Brazil (1972). We can observe the
production of two films with historical content, however with film narratives and
different esthetics, it is ―Os Inconfidentes‖ and ―Indenpendência ou morte‖.We will
discuss, how is the project of constructing national memory of civil-military
dictatorship in Brazil through cinema.
Keywords: Cinema, social memory, film narratives.
Em que medida, aprendemos com as imagens? Até que ponto a reconstrução
cinematográfica de um fato do passado interfere no nosso conhecimento sobre a
História? Sabemos que a sala de aula não é o único espaço em que a História de um país
é contada, em vários outros lugares2 pode ser contado o que constitui o nacional.
O período da ditadura civil-militar (1964- 1985) no Brasil é marcado por dois
aspectos fundamentais, o repressivo e o legitimador. A repressão na ditadura possui
alguns instrumentos muito claros de sua atuação como o combate aos opositores, a
restrição de liberdades e a tortura. No aspecto legitimador, temos a propaganda política,
por exemplo, que segundo Fico3 tinha duas frentes. Alguns setores do exército
trabalhavam com a tentativa de combate à subversão, com o slogan “Brasil: ame-o ou
deixe-o”, há também a diretriz de “educar o povo”.
O argumento de educar o povo está na demonstração dos valores presentes na
moral e na civilidade. Reforçando assim, aquilo que expresse os símbolos nacionais.
Agradava aos governos militares a produção de filmes que ressaltassem a História do
Brasil, e que trouxessem heróis nacionais em seu enredo. Dessa forma, os chamados
―filmes históricos‖ 4 são um bom instrumento para tal feito.
No ano de 1972 há dois significativos filmes ficcionais históricos em cartaz. Um é
“Independência ou Morte”, dirigido por Carlos Coimbra e produzido por Osvaldo
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1025
Massaini. Filme considerado polêmico por muitos e apontado como o filme oficial da
ditadura civil-militar no Brasil. Seria a representação da versão oficial da História. Ele é
também um dos filmes mais vistos na época5.
O filme possui a visão conservadora da História. Concentra-se na figura de
D.Pedro I, entrelaça a vida política com a vida pessoal do monarca e o coloca como
ponto decisivo no processo. Em nenhum momento o filme questiona esta versão. Marc
Ferro aponta como o filme histórico pouco intervém na contribuição científica do fazer
histórico e constitui assim a transcrição cinematográfica de uma visão histórica6. Sendo
assim, percebemos a representação de “Independência ou Morte” como a versão da
historiografia que retrata a via pacífica da independência e valoriza os feitos de
personagens clássicos.
O outro filme é “Os Inconfidentes”, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.
Filme que possui influências do Cinema Novo7· Estabelece um diálogo com o tempo
presente e propõe uma revisão da abordagem oficial do fato histórico. Produzido em
uma época bastante conflituosa da política nacional, marcada pela ditadura civil-militar,
este momento convive com a censura, a tentativa de organização de grupos de esquerda
e a repressão.
Como observado anteriormente, as duas vertentes, “repressão” e “educação”,
visando o nacional e o cívico, convivem juntas. Sendo assim, é financiado pela
Embrafilme8, cuja meta era incentivar produções que retratassem temas nacionais e
históricos e integra a série educativa “América Latina por seus realizadores” pela rede
italiana de televisão RAI9. Entretanto, apesar do apoio governamental, o filme aponta
críticas ao regime. Joaquim Pedro considera-o um filme político, porém seria difícil
censurá-lo já que estava respaldado pela História.
É um filme diretamente político e indiretamente político em relação à
atualidade política brasileira. Mas é um filme que trata diretamente da política, dos
artistas envolvidos na política, da tentativa política de artistas, de pessoas de classe
média, e do comportamento dessas pessoas debaixo de uma repressão. Quer dizer:
era a tentativa de fazer um filme sobre um problema contemporâneo, daquele
momento, no Brasil, escudado neste historicismo. Porque ficava difícil da censura
cortar o que era historicamente exato como as falas de Tiradentes, as falas dos
poetas da inconfidência.10
Esse acontecimento é representado não pela via tradicional, centrada na figura de
Tiradentes. Joaquim Pedro apresenta seu filme através dos intelectuais e dos
inconfidentes. Sobre esses intelectuais, podemos colocá-los como independentes de
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qualquer tempo histórico, discutindo assim o comportamento de intelectuais perante um
momento de repressão.
O filme se passa quase todo na cadeia, já que teve sua pesquisa baseada nos autos
da devassa. Discute a versão de mártir de Tiradentes, já que este é um herói fracassado.
Em relação a sua receptividade, podemos destacar que obteve um grande sucesso com a
crítica, principalmente no exterior. Para compreender como se estruturam os
argumentos nesses dois filmes é importante analisar a narrativa fílmica de ambos.
Pensando a narrativa fílmica
A narrativa é um elemento presente nas interações humanas, pois sempre haverá
alguém com algo para contar e um público pronto para ouvir certas histórias.
Construindo assim, nessas narrativas, um pouco do que somos e nossa relação com o
mundo. A narrativa pode se constituir através da tradição oral, contar histórias de vida,
mitos e tradições é uma maneira de compartilhar experiências. Ela também pode se dar
através da escrita, como em romances, livros, gibis. Outra forma, que nos interessa
particularmente, é a narrativa através da linguagem do audiovisual, em especial do
cinema.
A imagem em movimento e o seus usos já faz parte de nossa leitura sobre a
imagem. Em pleno século XXI, a sobreposição de cenas ou até mesmo contar uma
história começando pelo fim, desalinhar já nos é conhecido. Entretanto, algo que parece
ser totalmente incorporado a nossa cultura, não foi sempre assim. Carrièrre (2006)11
nos
fala que nos primórdios do cinema existia a figura do explicador, pessoa que ficava ao
lado da tela com um bastão apontando para cena e explicando quem são os personagens
e o que está acontecendo na cena naquele momento.
Um caso clássico de não compreensão de imagens foi uma das primeiras cenas
apresentadas pelos irmãos Lumiére que retrata a chegada de um trem na estação. A cena
mostra a imagem de um trem que se aproxima da estação e não para, segue adiante.
Parece uma cena bastante simples e até corriqueira, considerando que estamos
habituados a assistir cenas como essa. Atualmente o audiovisual já faz parte de nossas
interações, entretanto quando apresentada pela primeira vez causou pânico em quem
assistia, as pessoas achavam que o trem ultrapassaria a tela. A ideia de perspectiva ainda
estava centrada em imagens paradas.
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Segundo Carrière (2006), ao contrário da escrita, aonde o indivíduo necessita
dominar o código para poder compreender, ou seja, saber ler e escrever. A linguagem
cinematográfica atualmente não precisa dessa alfabetização, é algo possível para
compreensão de qualquer pessoa. O que devemos pensar é que apesar de ser um código
compreensível à linguagem cinematográfica não é direta, ela é repleta de subterfúgios,
de não ditos. Sendo assim, perceber o que está além de um primeiro momento é visto na
tela é sim um exercício de alfabetização, de entender tanto o detalhe do filme como
atentar-se para o contexto que aquele filme é gerado.
A linguagem cinematográfica possui determinados elementos que nos passam a
ideia de veracidade do que estamos assistindo, muito ligado ao som e a imagem, como
esses dois itens são construídos na cena induzindo determinadas interpretações. O som,
por exemplo, quando pensamos em um filme de suspense geralmente somos levados por
uma música angustiante que fornece o ritmo das sequencias e de todo desenrolar. Já em
um romance, a música de amor dos mocinhos pode chegar a ser o ponto clímax do
casal. Em um filme épico, especialmente quando representa uma batalha, o som dá o
tom a sequencia de maneira que prende o espectador ao filme.
O posicionamento da câmera também diz muito sobre as intenções implícitas. A
câmera colocada por cima do personagem pode transmitir um ar de superioridade. A
maneira como ela percorre o cenário, resaltando determinados aspectos e não apontando
outro. A luz também revela algumas características, um ponto de luz em um
personagem ou objeto em cena dá destaque a ele na construção do entendimento. Outro
ponto a ser observado são os enquadramentos, o personagem um primeiro ou segundo
plano. Todos esses fatores, juntos podem apontar diversas características do
autor/cineasta e de suas intenções que não estão ditas nas falas, é o que Ferro (1992)
chama de não visível.12
Sendo assim, através da estrutura narrativa podemos pensar o cinema ficcional
como um lugar de memória, tal como é proposto por Nora (1993), em que esses lugares
de memória são antes de tudo restos. Ele fala de restos no sentido de vivenciar, os
lugares são restos porque desde os tempos imemoriais nós nos utilizamos deles para
guardar nossas memórias. Pensamos assim, no cinema ficcional como lugar de memória
através de duas direções.
Primeiro podemos pensar no lugar do espectador, ao assistir ao filme, as
memórias que ele possui sobre o que está sendo representado. Talvez a narrativa fílmica
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remeta a uma aula de História, a livros lidos, a uma palestra assistida, ou até mesmo a
outros filmes sobre a temática. É o que Halbwachs (2006)13
nos fala sobre as
lembranças e sobre o grau de envolvimento ao lembrarmos ou não de determinado fato.
E a nossa aproximidade ou não com a História, vai além dos nossos conhecimentos
prévios, tem haver com o como a história é contada. A forma como se estrutura uma
narrativa passa a ter uma maior relevância do que o enredo contado no cinema. Pois, é
justamente no ―como contar‖, que podemos perceber o que está por traz do que é
narrado.
Edward Said14
aborda a questão da autoridade de quem fala sobre o objeto
estudado. Trabalha como os europeus se consideravam capacitados a falar do oriente,
pois se julgavam com conhecimentos necessários para tal feito. Sobre a autoridade Said
diz:
É formada, irradiada, disseminada; é instrumental, é persuasiva; tem posição, estabelece padrões
de gosto e valor; é virtualmente indistinguível de certas ideias que dignifica como verdadeiras, e das
tradições, percepções e juízos que forma, transmite, reproduz. 15
Dessa forma, pensamos no conceito de autoridade discutido por Said, para a
representação fílmica. Um filme histórico, muitas vezes, age como autoridade sobre o
fato no imaginário coletivo, ou seja, o que visto nas telas do cinema, em alguns casos, é
encarado pelo público como a verdade sobre o ocorrido e não como uma representação
que adota uma determinada linha narrativa, por motivos diversos, do que está sendo
apresentado. Existem mecanismos para garantia desta autoridade, um exemplo disto está
no filme ―Independência ou Morte‖, no qual é representado o quadro de Pedro
Américo16
na cena do grito do Ipiranga, essa reconstituição serve para conferir ao filme
a legitimidade sobre o discurso oficial do passado nacional.
A outra direção que podemos pensar a narrativa ficcional como lugar de
memória trata-se da própria estrutura fílmica, a maneira na qual o conteúdo é
apresentado fala da memória da produção e da época em que é produzido. O lugar
ocupado por essas pessoas na sociedade. Podemos pensar assim na estrutura cênica e o
que ela diz ao telespectador.
Já através de Huyssen (2000) podemos pensar o papel da mídia na sociedade
contemporânea e a influência de novas tecnologias como forma de memória, trazendo
questões sobre diferentes representações e maneiras de legitimação das memórias.
Huyssen acredita que o problema da memória não pode ser encarado em função da
dicotomia entre o que é memória trivial e o que é memória séria. Pensamos nesta
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mesma problemática entre a dicotomia que em alguns casos é apresentado entre o
cinema chamado inovador e o cinema de massa, dito ―cinemão‖. Afinal o que define e
legitima essas denominações? O que classifica, ou melhor, desclassifica determinado
tipo de representação fílmica em detrimento de outro. O que acreditamos que se deve ter
em mente a análise e não a distinção da linguagem, mas sim dos motivos que cada
produção tem para representar de determinada forma. Percebemos assim as diversas
possibilidades de representação.
Se reconhecemos a distância constitutiva entre a realidade e sua representação em linguagem ou
imagem, devemos, em princípio estar abertos para as muitas possibilidades diferentes de representação do
real e de suas memórias.17
Sendo assim, consideramos de fundamental importância pensar nas múltiplas
possibilidades de representação de um fato histórico através do cinema, considerando
seus deslocamentos de acordo com os interesses propostos dos realizadores.
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Memória Social (Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro). ) Orientadora: Profª Drª Diana de Souza Pinto. E-mail: [email protected]
Telefone: 8873-8238 Endereço: Avenida Nossa Senhora de Copacabana 391/AP 401 Cep: 22020-002
2 Ver o conceito de ―lugares de memória‖ proposto por Pierre Nora em: NORA, Pierre. Entre memória e
história: a problemática dos lugares. São Paulo, Projeto História - Revista do Programa de Estudos pós-
graduados em História e do Departamento de História. V. 10, 1993.
3 FICO, Carlos Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. In:
FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucila de Almeida ( orgs) .O Brasil Republicano: o tempo da ditadura.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
4 José D‘Assunção define três formas de filme que trabalham com a História. O chamado ―filmes
históricos‖, aqueles que representam eventos ou processos históricos conhecidos, os ―filmes de
ambientação histórica‖, que são aqueles com enredos criados livremente, porém dentro de um contexto
histórico e há ainda os ―documentários históricos‖ que são os de trabalhos de representação
historiográfica através de filmes.
5 Só para ilustrar essa enorme bilheteria, é interessante notar que a mesma supera a do sucesso norte-
americano ―O poderoso Chefão‖, realizado no mesmo ano. FONSECA, Vitória Azevedo. História
Imaginada no Brasil: Análise de Carlota Joaquina, a princesa do Brasil e Independência ou Morte.
Campinas, SP: [s.n], 2002.
6 FERRO, Marc. Existe uma visão cinematográfica da História? In: FERRO, Marc. A História Vigiada.
Trad: Doris Sanches Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
7 Um dos mais importantes movimentos estéticos do cinema brasileiro. “o Cinema Novo foi a versão
brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção
em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida era o
engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz
de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social” XAVIER, Ismail. Cinema
Brasileiro Moderno.3ºed.São Paulo: Paz e Terra, 2001.
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8 Empresa Brasileira de Filmes. Empresa estatal criada em 1969 que agia como produtora e distribuidora
de obras cinematográficas.
9 FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Cinema-Memória: reflexões sobre a memória coletiva e o saber
histórico. O olho da História. Bahia, vol 11. Dez 2008. Disponível em <
http://oolhodahistoria.org/n11/sumario.php > Acesso em: 12 mar 2010.
10
Depoimento concedido ao folheto organizado pelo cineclube Macunaíma na ocasião da retrospectiva
Joaquim Pedro de Andrade, em 1976. Disponível em: www.filmesdoserro.com.br/jpa_entr_2.asp
11
CARRIÈRE, Jean Claude. A Linguagem secreta do cinema: tradução Fernando Albagli e Benjamin
Albagli-1 ed –especial, Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2006.
12
Marc Ferro trabalha com os conceitos de visível e não-visível. O visível na obra cinematográfica é
aquilo que se comunica diretamente com o espectador, como por exemplo as cenas, as falas e a música. Já
o não-visível seriam os lapsos do criador. Aquilo que não é exposto de forma clara, mas através de
subterfúgios. Pensamos também no não-visível como uma maneira de representar o circuito que envolve
o filme: produção, recepção, crítica, público. Sendo assim, o não-visível engloba não apenas o que
contém nas sequências fílmicas, mas também o circuito social que o envolve.
13
HALBWACHS, Maurice. Memória individual e memória coletiva. In: ______. A memória coletiva.
São Paulo: Centauro, 2006.
14
Em seu livro Orientalismo, Edward Said reflete sobre com a questão da representação do outro,
trabalha como a representação dos povos orientais pelo ocidente serviu como forma de legitimação do
mesmo.
15
SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo. Companhia das
Letras, 1990. p:31
16
16
Trata-se do quadro ―O Grito do Ipiranga‖, pintado em 1888.
17
HUYSSEN, Andreas. "Passados presentes, mídia, política, amnésia", in: Seduzidos pela memória. RJ,
Aeroplano editora, 2000.p.22
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Ferro, fogo e ideias: a Liga Brasileira pelos Aliados e o debate sobre a
Primeira Guerra Mundial na imprensa fluminense.
Lívia Claro Pires
Resumo: A Primeira Guerra Mundial, a princípio tão distante da realidade brasileira,
suscita na nova república uma série de debates entre os intelectuais fluminenses,
estampadas nos jornais da capital federal. A defesa ou o repúdio a um dos blocos em
confronto assumia as cores de um projeto de edificação da nação. Dessa forma, o
presente trabalho pretende analisar o projeto de nação presente no discurso da Liga
Brasileira pelos Aliados, no contexto da intelectualidade fluminense da primeira década
do século XX.
Palavras-chave: Primeira República – intelectuais – Primeira Guerra Mundial.
Abstract: The First World War, at first so far from Brazilian reality, issues in the new
republic a series of debates among intellectuals from Rio de Janeiro. The defense or
rejection of the groups in conflict meant the exposition of a project to nation. Thus, this
paper aims analyze the project of nation in the Brazilian League by Allies speach in the
context of the Rio intelligentsia on the first decade of the twentieth.
Keywords: First Republic – intellectual – First World War.
O período da Primeira República brasileira é marcado na historiografia tradicional
pelo domínio das oligarquias agrárias, pelo voto de cabresto e pela política do café-com-
leite. Em geral, um momento histórico caracterizado quase que exclusivamente como
transitório, situado entre o atraso herdado do Império e as mudanças trazidas pelo
governo Getúlio Vargas. Nessa perspectiva, o impacto da Primeira Guerra Mundial
sobre o país é entendido basicamente por suas consequências econômicas, tais como o
abalo das oligarquias cafeeiras e o incentivo ao esforço da industrialização. Uma nova
vertente historiográfica, no entanto, tem resgatado a Primeira República como um
momento de contribuições determinantes para a construção dos arcabouços políticos e
culturais do Brasil ao longo do século XX.
Segundo esta corrente, o país nas primeiras décadas do século XX, busca mais do
que consolidar o novo regime: almeja adentrar na modernidade. A adoção da República
como forma de governo representou para uma elite política e letrada o primeiro passo
para esse objetivo maior, imbuído de um forte caráter nacionalista. Nesse projeto de
modernidade, pretendia-se abandonar todo e qualquer ranço do Império, entendido
como o epíteto do atraso, com o qual seria importante romper. A Primeira República,
dessa forma, não é mais tida como uma passagem para as transformações da Era
Vargas, mas o período que proporcionou ele mesmo as mudanças.
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Na então capital federal, o desejo da modernidade e o rompimento com o
passado monárquico fez-se de maneira singular. Representada como cidade-exemplo da
nação, no seu espaço foi depositado e exercido o projeto de modernidade para o Brasil –
a cidade era o recipiente do progresso da civilização brasileira1. Para o Rio de Janeiro
confluíram não só as expectativas, mas as ações de civilizar/modernizar a nação, como
um pólo irradiador. A reforma produzida por Pereira Passos, em 1903, concretizaram,
ou assim pretenderam, os planos civilizacionais embutidos na concepção de
modernidade. O espaço urbano é redefinido nesses moldes modernos, algo que
extrapola a caracterização física, adentrando no pensamento e nas ideias da elite letrada.
O Rio de Janeiro, dessa forma, confundido com o país, torna-se como o baluarte de um
projeto – teórico e prático – para a modernidade brasileira.
Nessa cidade fervilhante, transitavam pelos cafés e livrarias sujeitos que
tomaram para si a missão de pensar o desenvolvimento do espírito moderno no Brasil.
Pertencentes à elite fluminense, caracterizavam-se como atores políticos-culturais2,
agindo nas duas esferas à medida que ocupavam cargos públicos e atuavam na vida
política do país, ao mesmo tempo em que exerciam o papel de criadores e mediadores
culturais. Eram indivíduos, antes de tudo, engajados no cotidiano da cidade, como suas
testemunhas e consciência legítimas3. Percebiam-se como os portadores das respostas e
projetos adequados para a construção e organização do país, por serem capazes de
identificar as mazelas nacionais. Dia a dia, expunham suas opiniões e conclusões nas
páginas da imprensa, em publicações de livros, ou, simplesmente, nas conversas entre
doces finos de uma confeitaria. A modernidade entendida por esses ―intérpretes‖ era
baseada nas noções de progresso, civilização e nacionalidade. O Brasil precisa definir-
se como nação para civilizar-se e abandonar a barbárie, alcançando o caminho para o
progresso. Cumprida essa etapa, alcançaria o reconhecimento internacional como nação
civilizada e seria aceito como igual entre as grandes potências mundiais, deixando para
trás, definitivamente, o estigma de colônia.
O desencadeamento da Primeira Guerra Mundial na Europa trouxe novos
elementos para o pensamento da construção da nacionalidade e da modernização
brasileira. Através da reflexão sobre o confronto europeu, percebe-se a eclosão de
diferentes projetos de Brasil, vistos nos embates intelectuais publicados na imprensa
fluminense. O pensamento girava em torno do posicionamento brasileiro diante do
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conflito, e, a partir das conclusões encontradas, toda uma cadeia reflexiva sobre o futuro
nacional era exposta.
As opiniões a respeito da guerra vistas nas páginas dos jornais são conflitantes,
opostas ferozmente, atacadas e defendidas. São expostas através de cartas e artigos
endereçados às redações, comentando os últimos acontecimentos da guerra. Sobretudo
buscam extrair do conflito modelos de nação, de civilização e de progresso aplicáveis ao
Brasil. Para os defensores do posicionamento oficial do governo, a guerra era uma
demonstração da decadência européia e uma oportunidade de pensar o Brasil através de
padrões brasileiros, para, então, melhorá-lo4. O conflito era um palco de horror e
sangue, onde não existiriam vantagens compensatórias o suficiente para a perda de
oportunidades comerciais e políticas com ambos os lados em conflito, assumindo
responsabilidades sobre causas que não pertenciam ao Brasil.
Existiam aqueles que, no entanto, alinharam o seu apoio a um dos lados
beligerantes. E, em suas falas, a escolha pelo apoio à Tríplice Aliança ou à Tríplice
Entente pode ser entendida como uma questão de qual bloco contribuiria de maneira
mais vantajosa para a construção da nacionalidade e do progresso brasileiros. Nota-se
uma relação com o que Wilson Martins classificou como provincianismo intelectual5:
valorizava-se preceitos e ideias externas, como se contivessem a fórmula para a
modernização e o progresso do Brasil.
Para os simpatizantes da Alemanha na guerra, esse país era o representante do
inédito, da inovação técnica e do pensamento moderno e racional. Tendo o Império
Alemão como o modelo de progresso, esses intelectuais acreditavam na possibilidade
do Brasil ser alçado ao posto de potência internacional. Os partidários da Tríplice
Entente, por sua vez, acreditavam ser a França e Cia. os parceiros ideais para a
construção da nação brasileira. Esses países ofereciam ao Brasil o exemplo da liberdade
e democracia aos moldes da tradição da civilização latina. É interessante notar que, para
esses intelectuais, a guerra não se tratava de um confronto entre dois blocos de nações,
mas entre duas civilizações, opostas e irreconciliáveis: a latina e a germânica. A
primeira era representada6 como a herança greco-romana para o Ocidente, impregnada
pelos ideias de liberdade, democracia, civilização e cultura. A segunda, por sua vez, era
interpretada de forma dispare, como a herdeira direta dos povos nômades que
assaltaram o Império Romano, imbuída de barbárie. Dessa forma, a Primeira Guerra
Mundial era traduzida no discurso desses intelectuais como o embate entre a civilização
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liberal, jurídica e latina, ao lado da Tríplice Entente; e os partidários da barbárie, da
dominação e da destruição, pela Alemanha. O Brasil, um representante legítimo da
latinidade, deveria postar-se ao lado dos Aliados como forma de desenvolver e
aproximar-se dos valores desse modelo civilizacional.
Buscando a defesa dos Aliados, iniciou-se no Rio de Janeiro uma associação7
denominada ―Liga Brasileira pelos Aliados‖. Fundada em por José Veríssimo, Nestor
Victor e Olavo Bilac, contou com o apoio da nata da intelectualidade fluminense.
Nomes como o poeta Alberto de Oliveira, os senadores Artur Azeredo, Alcindo
Guanabara e Paulo de Frontin, o jornalista João Luso, o romancista Afonso de Taunay,
dentre outros, assinaram o seu termo de adesão. Em discurso aos membros quando da
fundação da Liga, José Veríssimo afirmou:
Por estarmos convencidos na guerra atual que a verdade, a justiça e a razão
que, aliadas, combatem o militarismo e o imperialismo alemães,
declaramos aderir à fundação de uma liga, com o fim de prestar assistência
moral e beneficência a essas nações.8
Na mesma ocasião, Graça Aranha – empossado como representante da Liga
Brasileira no exterior e membro do Comitê Executivo – falou ser o objetivo da reunião
organizar as simpatias brasileiras em prol dos Aliados. E, de fato, as ações da
associação demonstram a tentativa de cumprimento de tal finalidade. Moções,
manifestos e boletins eram publicados em periódicos como ―Jornal do Commércio‖,
―Jornal do Brasil‖ e ―O Imparcial‖, expondo apoio à causa aliada e repúdio à Alemanha
e seu desempenho no conflito. Promovia palestras e exposições de artistas estrangeiros
– de nacionalidade aliada ou neutra -, cuja temática era, recorrentemente, a denúncia das
atrocidades alemãs. Assim o foi com a exposição no Rio de Janeiro do artista plástico
holandês Luís Raemackers, trazido em 1916 sob os auspícios da Liga, cujos desenhos
resumiam-se a uma sátira cruciante às inomináveis proezas do banditismo alemão,
promotor da grande guerra9. No mesmo ano, organizou festivais para angariar fundos
para as vítimas belgas e soldados franceses cegos no front. Na data de 14 de julho de
1916, realizou um grande evento para a comemoração da Queda da Bastilha, no Teatro
Lírico da capital, onde o deputado Irineu Marinho discursou, detratando a Alemanha.
Disse ele:
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Enquanto a França domina o coração e a inteligência dos homens e dos
povos, os cientistas alemães se esforçam vãmente em conquistar a
hegemonia germânica no globo; mas como os processos prussianos são
os da má fé, o da violência e o da força, a Alemanha não pode ser amada
na terra.10
Suas ações propagandísticas não passavam incólumes aos olhos dos seus
representantes no Brasil. A entidade mantinha contato junto a funcionários das
embaixadas francesas, inglesas, belgas, dentre outras. Em geral, estas demonstravam
contentamento com desempenho da Liga Brasileira, aprovando suas declarações e
agradecendo suas manifestações de apoio, através de cartas enviadas por embaixadores
aos seus dirigentes. As comunicações entre as embaixadas e os membros da Liga
ultrapassavam, por vezes, a simples gratidão. Conforme divulgada pela própria
associação no ―Jornal do Commércio‖, foi pedido a Sá Vianna, um dos seus membros,
pelo ministro da Grã-Bretanha que enviasse 500 exemplares da conferência de sua
autoria ―L‘Ámerique em face de la conflagration européene‖ para ser utilizada como
serviço de propaganda, para fazer onde ela ainda não era conhecida. Da mesma forma,
atendendo a uma recomendação do ministro da França, a Liga promoveu a conferência
da artista francesa Juanita de Frézia, acerca de assuntos sobre a guerra, dentre elas as
atrocidades alemãs cometidas no conflito.
No entanto, não era apenas de festivais e atividades propagandísticas que se
restringia a Liga Brasileira pelos Aliados. Estão presentes em suas falas questões que
inquietavam a intelectualidade carioca, como a construção da nacionalidade brasileira, a
modernidade, o progresso e a civilização, extrapolando a temática de apoio a um dos
blocos envolvidos na guerra. Como era comum no meio letrado brasileiro, seus
membros acreditavam ter a fórmula ideal para atingir o progresso nacional. Não à toa,
suas reuniões aconteciam no Clube de Engenharia, localizado na Avenida Central, atual
Avenida Rio Branco, que, à época das reformas urbanas de Pereira Passos, atuou como
uma instituição respaldadora do progresso.11
Segundo as suas afirmações na imprensas,
não haveria melhor modelo a ser seguido que o postulado da Tríplice Entente,
principalmente o da França.
Este país europeu era frequentemente exaltado nos boletins divulgados na
imprensa pela Liga Brasileira pelos Aliados. Símbolo de civilidade, destacavam na
cultura francesa os ideais liberais, aos quais o Brasil deveria inspirar-se. A França era o
modelo de nação, de civilização e de modernidade a ser adotado pela recém-proclamada
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república brasileira, caso esta almejasse alcançar o progresso. A cultura francesa como
fonte de inspiração para a construção da nação brasileira é uma influência notável na
fala dos membros da Liga. Um exemplo dessa condição é o acima mencionado evento
comemorativo da Queda da Bastilha. Ao se auto-questionar do por que da celebração de
uma data que não pertencia ao calendário de feriados nacionais, o deputado Irineu
Marinho concluiu:
A data de hoje (...) é também um dia de júbilo popular porque significa o
valor da influência sobre a evolução política do nosso país e a profunda
ação das ideias, do pensamento, da cultura, em uma palavra – da
civilização francesa na formação da nossa mentalidade e da nossa alma
nacional.12
A Liga, dessa forma, pode ser inserida no contexto que Wilson Martins chamou
de ―francesismo reinante‖13
, onde as ideias oriundas da França assumiam caráter de
dogma entre a intelectualidade brasileira, em especial a carioca. No caso da Liga, deve
ser levado em consideração o fato de seus participantes manterem contato com
personalidades da intelectualidade francesa da época, como Maurice Barrés e Paul
Deschanel. Por esse motivo, a influência francesa nos pronunciamentos da Liga se
fizesse de maneira consolidada, não apenas como simples inspiração.
A França por si só, no entanto, não era a única razão para o seu papel de
destaque na construção da nação brasileira para aquela associação. O país europeu era
representado como o expoente máximo da civilização e cultura latina, a qual o Brasil
pertencia. Sua ascendência latina herdada da colonização portuguesa, que lhe delegou a
língua portuguesa e a tradição do pensamento clássico, fazia parte do seu cerne de
nação, influindo na constituição da cultura do país. No pensamento da associação, os
caracteres da latinidade na formação da nação brasileira deveriam ser preservados a
qualquer custo, pois eram a garantia de um futuro glorioso. Por isso, defendiam o apoio
moral do governo brasileiro aos Aliados, em uma solidariedade fraternal. A crença na
formação latina do Brasil é traduzida na fala de Graça Aranha, dirigida à Grécia:
Gregos e romenos, uma grande nação, às margens do Atlântico Sul,
formada pela cultura greco-latina, profundamente se comove com as vossas
angústias nesse momento supremo, em que a fatalidade veio trazer às
vossas fronteiras o decisivo combate por nossa civilização. Pelos espaços,
as almas dos povos da mesma formação se unem e realizam essa unidade
moral que nos tornará invencíveis e imortais. E é inspirada por essa união
espiritual que a Liga Brasileira pelos Aliados se dirige aos seus irmãos
helenos romenos.14
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Quem sai aos seus não degenera, pensavam os intelectuais da Liga, e, para o
Brasil prosperar, era imprescindível que não traísse a sua natureza latina. Uma
possibilidade, de acordo com a sua perspectiva, existente. A ameaça vinha das colônias
alemãs instaladas na região sul, configurando o chamado ―perigo alemão‖, suposta
ameaça imperialista do Segundo Reich sobre o território brasileiro. A Liga Brasileira foi
um dos principais meios difusores dessa ideia, propagandeada constantemente em suas
manifestações na imprensa. Em um dos seus boletins veiculados, lia-se o seguinte:
Ora, são fortes as demonstrações dos próprios alemães dos seus propósitos
de se assenhorearem daquelas regiões brasileiras, primeiro, segundo o seu
processo costumeiro, pela infiltração e insinuação pacífica, depois como
puderem, mesmo pela força. São eles que os escrevem em suas publicações
germanistas.15
A ênfase na existência do ―perigo alemão‖ presentes neste e em outros discursos
da Liga demonstra a preocupação com a imigração enquanto elemento de construção
(ou desconstrução) da nacionalidade brasileira, recorrente nos debates entre os letrados
fluminenses. Nem todas as nacionalidades eram bem-vistas e bem-quistas em um
cenário intelectual fortemente influenciado pela teoria evolucionista das raças,
vinculada ao darwinismo entre as nações, corrente nas primeiras décadas do século XX.
A fala de repúdio ao imigrante alemão na Liga Brasileira evidencia a exclusão desse
elemento como irrelevante para a edificação da nação brasileira, assim como a
preocupação constante com a conquista definitiva do território. Este era um dos
ingredientes essenciais para a realização de uma nação moderna. O extenso território
brasileiro pouco povoado, precisa ser conquistado, integrado e consolidado, da mesma
forma que a nacionalidade brasileira, considerada frágil pela Liga.
O afastamento do elemento alemão relaciona-se ao tratamento deste imigrante
como um fator de corrupção da cultura latina presente no país. Absorvendo a oposição
frequentemente feita entre cultura latina e cultura germânica, acrescentou o fator
imperialista e predatório dos alemães para com o Brasil diretamente, através do ―perigo
alemão‖. A presença dos imigrantes alemães e seu possível isolamento, mantendo a
língua e os hábitos nativos, para os membros da Liga, era uma evidência de sua
periculosidade à unidade política e cultural. Em seu entendimento, a cultura germânica,
essencialmente predatória em relação à latina, constituía em uma afronta aos valores do
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modelo de nação que pretendiam formar, identificado com aquele paradigma
civilizacional. A propaganda do ―perigo alemão‖ configura, dessa forma, com uma
maneira de justificar a rejeição a um determinado tipo de modelo civilizacional. Graça
Aranha o afirma em artigo acima citado:
Durante longos anos a Alemanha procurou ativamente copiar as obras inimitáveis
da nossa cultura [latina]. (....) A Alemanha sofreu a falência de toda a sua ciência, da
sua arte e de todo o seu esforço, e, então, num furor demoníaco, quis fazer desaparecer
da face da terra a graça da nossa cultura e substituí-la pela grosseria germânica.
E acrescenta:
Então, por consideração a alguns traficantes boches das nossas grandes
cidades e por consideração às colônias alemães esparsas em nosso
território, mentiríamos o nosso passado, renegaríamos o nosso ideal,
repudiaríamos os nossos deveres sagrados para com essa nobre civilização
que nos foi dada no sangue dos nossos antepassados europeus?16
Assim, o país é representado com uma projeção para o futuro, em seu caráter de
nação em formação. A Primeira República pode ser entendida como o momento em que
diferentes projetos de Brasil são confrontados, buscando o preenchimento do processo
de consolidação da República e da nação. Neste esforço, é evidente o posicionamento
dos fluminenses, preocupados em realizar um balanço da vida nacional e mostrar as
suas soluções. Como atores político-culturais que era, ao se defrontarem com a Primeira
Guerra, a princípio tão distante de sua realidade, assumiram-na como o pano de fundo
para realizarem diagnósticos do país, buscando influir no direcionamento das atitudes
tomadas pelo governo e conformar uma ―opinião pública‖. A Liga Brasileira pelos
Aliados, como um elemento no debate sobre a guerra, traduz o desejo pelo progresso,
pelo alcance da civilização e da modernidade, da completa constituição do país
enquanto nação, sobretudo, do reconhecimento dessa condição pela comunidade
internacional. A partir dessas percepções, o impacto do conflito europeu assume novas
nuances, que vão além da influência sobre o preço do café. A Primeira Guerra auxilia
no entendimento da reflexão dos pensamentos intelectuais, da construção da nação e da
nacionalidade brasileiras nas primeiras décadas do século passado.
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1 RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Em algum lugar do passado: cultura e história no Rio de Janeiro.
In: AZEVEDO, André Nunes de. Rio de Janeiro: capital e capitalidades. Rio de Janeiro: Departamento
Cultural/SR-3/UERJ, 2002. p. 11-43. 2 GOMES, Ângela de Castro. Rebeldes literários: intelectuais e nacionalismo na Primeira República.
Tempo, Rio de Janeiro, v.11, n.22, p.153-156, jan.2007. 3 SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.) Por uma história política. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 231-269. 4 Cf. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.
5 Sobre o uso desse termo, ver MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Volume V. São
Paulo: Editora Cultrix, 1979. 6 O conceito de representação utilizado neste artigo é definido em: CHARTIER, Roger. História cultural:
entre práticas e representações. São Paulo: DIFEL, 1990. 7 A respeito do conceito de ―associação‖ utilizado, ver: RIOUX, Jean-Pierre. A associação em política. In:
RÉMOND, René (org.) Op. Cit. p. 99-139. 8 Trecho do discurso contido no boletim Liga para os Aliados. Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 18
de março de 1915. p. 2. 9 Nota contida em Jornal do Commércio.Rio de Janeiro. 27 de julho de 1917. p. 4.
10 O discurso na íntegra pode ser encontrado em Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 15 de julho de
1916. p. 4. 11
Sobre esse assunto, ver: RODRIGUES, Antônio Edmilson M. Op. Cit. p. 30. 12
Ver Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 15 de julho de 1916. p. 4. 13
MARTINS, Wilson. Op. Cit. 14
Ver Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 5 de janeiro de 1916. p. 3. 15
Ver artigo publicado em Jornal do Commércio. Rio de Janeiro. 6 de janeiro de 1916. 16
Idem.
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Joaquim José Rodrigues Torres e a Escola Normal da província do Rio de
Janeiro (1834-1836)
Lívia Beatriz da Conceição
Resumo: Temos por objetivo pensar sobre a atuação de Rodrigues Torres como
presidente da Província fluminense. Perceberemos como este personagem interpretou e
agiu no processo de constituição do Império do Brasil, refletindo em especial sobre a
criação da Escola Normal. Tendo como estratégia de ação formar os membros desse
Estado em construção, Rodrigues Torres percebia o ensino público como um remédio
poderoso, e o espaço escolar como um singular local nesse fim. Problematizarmos suas
propostas nesse objetivo é nossa questão central.
Palavras-chave: Biografia, Instrução Pública, História Política.
Abstract: Our purpose is to think about Rodrigues Torres performance as the president
of the Fluminense province.We'll notice how this character performed and acted in the
constitution of Brazil empire process,specially on reflecting the creation of the Normal
School.Strategically acting to form members from this new Estate,Rodrigues Torres
had in mind a public education as a "powered medicine",and the educational system as a
singular premises for this purpose.To argue his proposals is our matter.
Keywords: Biography, Public Instruction., Politic History.
Em 1º de fevereiro de 1835, Joaquim José Rodrigues Torres assim abria a
primeira sessão da primeira legislatura da Assembléia Legislativa Provincial
fluminense:
Vindo hoje cumprir o grato dever de dar começo a vossos primeiros trabalhos,
sobremodo me é penoso não poder apresentar-vos nesta mesma ocasião o quadro
completo do estado dos negócios públicos e das providências que mais precisa a
província para seu melhoramento. Sobre outras causas, o curto espaço de menos de
quatro meses que tem de existência a Administração Provincial e a falta quase
absoluta de documentos que me pusessem ao fato dos negócios, fazem
forçosamente aparecer no Relatório que tenho a honra de apresentar-vos defeitos e
lacunas que em verdade podem ser supridos por vossas luzes e pelo conhecimento
prático que tendes da Província, mas o que não obstante apressar-me-ei a encher e
corrigir a medida que for recebendo mais exatas e amplas informações1
Joaquim José Rodrigues Torres assumiu a presidência da Província do Rio de
Janeiro em outubro de 1834, dois meses após a promulgação do Ato Adicional de 12 de
agosto do mesmo ano. Nesta primeira fala à Assembléia Legislativa Provincial ele
precisava apresentar ―o quadro completo do estado dos negócios públicos e das
providências que mais precisa[va] a província para seu melhoramento‖, conforme
decretava o artigo oito da lei complementar à Constituição de 1824.
Um relatório construído num ―curto espaço de menos de quatro meses‖ de
atuação, mas que não deixou de dar especial atenção, como defenderemos, a um
tema/projeto considerado por ele como um ―remédio poderoso‖2: o ensino público
escolar. Nesse sentido, sua fala de abertura pode nos fornece alguns vestígios que nos
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ajudam a refletir sobre qual era a sua posição, a sua estratégia de ação para o tema da
instrução pública, com vias a formar os membros e a imprimir uma direção para o
jovem império em construção3.
De acordo com o referido Ato, que criou as Assembléias Legislativas Provinciais,
competia a estas legislar sobre a instrução pública primária e secundária em âmbito
provincial4, e Joaquim José Rodrigues Torres, como presidente de província, devia
prestar esclarecimentos sobre o que estava sendo executado nesse objetivo. Mas este
também era um momento, seguramente, de sugerir idéias, de tecer suas propostas de
ação política, como no caso das Escolas de Primeiras Letras, uma vez que estas se
configuravam para ele como um singular local, pois:
Os conhecimentos que aí se adquirem são indispensáveis, não só para tratar dos
negócios domésticos, mas ainda para bem desempenhar todos os deveres de
Cidadão. Fora uma tirania que o Estado impusesse a seus membros obrigações,
sem lhes dar ao mesmo tempo meios de as bem conhecer e cumprir5.
A relação necessária entre o governo da Casa e o governo do Estado6 se
estabelecia no diminuto espaço escolar. Lugar indispensável para se apreender não
somente as ―obrigações‖ relacionadas aos ―negócios domésticos‖, mas também aquelas
que diziam respeito ao bom desempenho enquanto ―Cidadão‖ do ―Estado‖. Obrigações
estas que deveriam ser antes muito bem conhecidas para em seguida serem cumpridas.
Uma das principais providências a serem tomadas nesse curto período de
administração provincial seria, então, no seu entender, a multiplicação desse
privilegiado espaço de experimentação política. Contudo, para que os frutos que daí se
pudessem tirar fossem proveitosos seria importante, primeiramente, haver um
investimento em uma outra estratégia de ação: a formação de ―hábeis professores‖ 7.
Nesse objetivo, em seu laboratório fluminense, Joaquim José Rodrigues Torres
indica também como providência necessária a ser tomada para o ―melhoramento do
País‖ a criação de uma Escola Normal. Local onde esses professores seriam
―habilita[dos] convenientemente‖ 8 para efetuarem sua tão preciosa função de informar
aos ―membros‖ desse Estado em construção quais seriam aqueles ―indispensáveis‖
―deveres de Cidadão‖.
Em suas palavras, ―o acréscimo de despesa que disso proviera, seria para o
futuro amplamente compensado pelas vantagens que aí resultariam‖9. O investimento na
instrução pública, através de uma habilitação/fiscalização dos professores e da
multiplicação das escolas de primeiras letras, era considerado assim por esse
personagem individual como um ―remédio poderoso‖ 10
, com vias a um objetivo maior
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de formação do povo e do Estado. Essas, certamente, seriam as vantagens possíveis a
serem conseguidas, justificando, como é defendido por ele, tamanha despesa do serviço
público.
Mesmo em se tratando de um relatório com ―defeitos e lacunas‖ 11
, ou ainda com
―erros e omissões‖ 12
, e o fato dele estar a apenas quatro meses como presidente de
província, o espaço escolar ocupava um lugar de destaque em seu projeto de ação
política como o local onde se edificaria ―a educação científica e moral dos habitantes‖ 13
da Província fluminense e, por conseguinte, do ―país‖. Urgente se fazia, então, a criação
daquele lugar singular para a certeira capacitação do professorado, figurando-os, assim,
em ―Alunos habilitados‖ 14
.
Ainda em 4 de abril de 1835, cerca de apenas dois meses após o primeiro relatório
e seis meses após a sua entrada na presidência da província, foi criada por lei provincial
a escola normal15
. Seus trabalhos, com vias a ―formar crescido número de Cidadãos
habilitados convenientemente para dar à instrução primária o impulso e consideração
que deve ela merecer de um povo civilizado‖ 16
, iniciaram-se em outubro do mesmo
ano.
A escola normal da província fluminense para Rodrigues Torres deveria capacitar
não somente os candidatos às cadeiras vagas, isto é, os professores que quisessem se
tornar efetivos, mas também todo o professorado já em exercício e ―que disso
carecessem‖17
; e assim foi instituído pela lei provincial que a criou.
A argumentação para que os professores já em função fossem aperfeiçoados nesse
espaço de disciplinarização era a de que assim foi decretado pela primeira e única lei
geral sobre a instrução pública primária no Império, a de 15 de outubro de 1827. Porém,
ao consultarmos a referida legislação podemos perceber que o que se pedia para ser
feito com os professores em exercício era bem diferente do que sugeria a lei provincial
de 1835: ―os professores atuais não serão providos nas cadeiras que novamente se
criarem sem exame aprovação‖18
. Isto é, passariam por um exame de seleção os
professores que já em função quisessem se tornar efetivos. E ainda, a lei de 1827 não
fala em criação de uma escola normal, e, seguramente, a fluminense tinha características
próprias construídas no bojo das discussões e formação de idéias que em muito tinham
correlação com as propostas de experimentação política de seu primeiro presidente de
Província.
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Um exemplo disso foi a criação de um dispositivo legal que conferia aos
professores matriculados, como forma de incentivá-los a estar presentes nesse
privilegiado espaço de fabricação disciplinada do professorado, proventos para que
estes pagassem suas mensalidades, algo que não foi instituído pela lei de 1827,
figurando-se assim em ―escolares pensionistas‖19
. No entanto, para que eles tivessem
esse direito deveriam atestar sua freqüência através de uma lista que seria enviada pelo
diretor da escola diretamente ao presidente de província, via secretaria de governo, ao
final de cada mês20
.
E mais, pela lei provincial, os professores em exercício que se recusassem a
freqüentar a escola normal seriam aposentados com ordenados correspondentes ao seu
tempo de serviço. Além do fato de que a escola estaria sob vigilância e inspeção direta
do próprio presidente de província, com o diretor sendo ―obrigado a dar-lhe conta todos
os meses do adiantamento e conduta de seus ouvintes‖21
. Caso assim não o fizesse, ele
poderia ser demitido; assim como os escolares, que ―por incapacidade, irregularidade de
conduta e falta de aplicação‖22
não se encaixassem no perfil dessa subordinadora
instituição de ensino. A exemplo do pensionista Albino Alves de Azevedo, matriculado
em 3 de outubro de 1835 e ―despedido‖ dois meses após por aviso do governo
provincial23
.
Ainda não nos foi possível rastrear os motivos que levaram Albino a ser expulso
da escola normal, mas certamente esta decisão em muito teve correlação com a sua
conduta enquanto aluno, ou melhor, pela falta desta, seja por ele não se encaixar nas
regras estabelecidas ou ainda mesmo por questões relacionadas à sua freqüência. Jozé
da Costa Azevedo, diretor da escola normal na ocasião e personagem sobre o qual nos
deteremos mais adiante, possivelmente encaminhou a Joaquim José Rodrigues Torres
―informação motivada e circunstanciada‖24
a cerca da ―incapacidade, irregularidade de
conduta e falta de aplicação‖25
de Albino enquanto escolar. E ser ―despedido‖ tinha
sérias implicações, pois caberia a ele, por exemplo, repor o dinheiro recebido.
A resolução do governo provincial de que Albino seria expulso cumpria uma
determinação da lei de 10 de outubro do mesmo ano, em execução ao artigo 14º da lei
de 4 de abril de 1835, em que o vice-presidente de província, Paulino José Soares de
Souza, ordenava que além dos escolares poderem ser demitidos por falta de
―capacidade, morigeração e regularidade de comportamento ou aplicação necessária
para desempenhar os deveres do magistério‖, assim seria procedido caso eles tivessem
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―quinze faltas sem causa legítima‖26
. Da mesma forma, o diretor daria parte ao
presidente de província logo que julgasse que um escolar estivesse ―suficientemente
instruído‖ para dar início aos exames de seleção públicos para o provimento das
cadeiras vagas27
.
No tocante a estes exames, é curiosa a proximidade estabelecida entre esta
capacitação dos professores e a atuação de Joaquim José Rodrigues Torres como
presidente de província, pois a ele cabia a avaliação direta daqueles que estariam aptos,
já que ele próprio, como presidente de província, faria parte da banca pública dos
candidatos ao cargo de efetivos 28
.
Vale lembrar nesse momento que não somente os novos, mas todos os professores
em exercício nas escolas de primeiras letras da província foram obrigados a passar pela
formação/habilitação na escola normal, e, a partir disso, por este exame público com a
presença do seu então presidente. A primeira autoridade provincial29
aproximava-se,
nesse ato, diretamente do professorado. Mas não apenas agora através do acesso e
leitura dos relatórios enviados mensalmente pelo diretor da escola normal sobre o
gerenciamento desse particular local de experimentação de um projeto político de ação.
Joaquim José Rodrigues Torres estabelecia, com isso, um contato direto com o
cotidiano escolar, decidindo, inclusive, quais desses docentes estavam ―suficientemente
instruídos‖ para atuarem como um poderoso agente do governo do Estado30
.
Alguns vestígios documentais nos fazem afirmar que havia um longo período de
capacitação nas escolas normais para que esses indivíduos se tornassem ―hábeis
professores‖, a ponto de passarem por esses exames públicos de seleção. Casos como o
de Miguel Joaquim da Cunha, matriculado em 28 de setembro de 1835, examinado e
aprovado cerca de dois anos após, em 20 de abril de 1837, e ainda passando por exame
de oposição em 27 de maio do mesmo ano31
. Ou ainda como o de João Rodarte da
Gama Lobo, que foi matriculado em 28 de setembro de 1835, passou pelo exame de
seleção em 20 de abril de 1837, no mesmo momento em que Miguel Joaquim da Cunha,
mas que somente dois anos após, em 27 de maio de 1839, fez exame de oposição, sendo
igualmente aprovado ao fim32
. Personagens estes, certamente, ―suficientemente
instruídos‖, ao final de um longo processo de habilitação, para efetuar a tão preciosa
função de micro-agente do estado no particular espaço das escolas de primeiras letras.
Em seu segundo relatório à Assembléia Legislativa Provincial, de 1º de março de
1836, Joaquim José Rodrigues Torres tece vários comentários a respeito do bom
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funcionamento desse privilegiado local de preparo daqueles que seriam os responsáveis
por forjar o par Estado/povo do jovem império em formação. Uma de suas principais
ponderações diz respeito à própria organização interna desta instituição:
Se me fora permitido fazer algumas observações sobre a Lei orgânica da Escola,
propor-vos-ia: 1º, que houvesse um número determinado de pensões para os
Alunos que mais distintos se mostrassem: 2º, que fixásseis desde já os honorários
para os que, habilitados na Escola, vierem a exercer o Magistério: dar-lhes-eis
assim um estímulo presente, e assegurando-lhes as vantagens que devem no futuro
gozar, criareis o incentivo mais poderoso para aplicação dos Alunos, e por
conseqüência para o bom resultado das Escolas primárias, isto é, da parte mais
essencial da educação, porque é a que maior influência pode exercer sobre a sorte
do nosso país33
.
De professores transmutavam-se em alunos ―distintos‖ e capacitados que seriam,
além de rigorosamente treinados, fiscalizados por uma ―autoridade encarregada
especialmente desta incumbência‖34
. Mais uma vez o diretor, que era indicado
diretamente pelo presidente de província para o cargo. O primeiro deles a ser nomeado
foi o ―distinto brasileiro‖35
Tenente Coronel Jozé da Costa Azevedo, ―cidadão‖36
este
que tinha ―conhecimentos especiais‖37
para dirigir o ensino público. Tanto que a ele era
sugerido por Joaquim José Rodrigues Torres que fosse entregue também, ainda que
momentaneamente, a ―inspeção e fiscalização de todas as Escola primárias da
Província‖38
, com o objetivo de ―dar-lhes a mais conveniente direção‖39
. Junto a isto,
caberia a Jozé da Costa Azevedo:
Organizar os Estatutos por que se devem elas reger; determinar os compêndios e
modelos; dar aos professores as instruções necessárias; exigir deles todas as
informações convenientes; solicitar, por intermédio do Governo da Província, as
providências para o bom desempenho e melhoramento deste importante ramo do
serviço público40
.
Funções estas que Rodrigues Torres assegurava que ―seriam cabalmente
preenchidas pelo cidadão que se achava a testa deste útil estabelecimento‖41
.
Personagem este que estava à frente inclusive tanto dos pedidos de exames públicos de
seleção para o cargo de efetivo de Miguel Joaquim da Cunha e João Rodarte da Gama
Lobo, quanto da expulsão de Albino Alves de Azevedo, atuando assim também como
um poderoso agente do estado no micro-espaço escolar42
.
A medida de ―dar aos professores as instruções necessárias; [e] exigir deles todas
as informações convenientes‖, através da precisa vigilância do Tenente Coronel Jozé da
Costa Azevedo, seria uma ação ―indispensável para conseguir fim tão importante‖43
. E
que ―fim‖ seria este? O ―de fiscalizar se os Professores cumprem como devem com os
seus deveres‖ 44
. Dever este de, como cidadão habilitado convenientemente, formar,
através da instrução pública primária, ―cujo melhoramento e progresso é por certo uma
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das mais vitais necessidades do nosso país‖ 45
, outros tantos súditos imperiais.
Certamente uma vantagem considerável! E caso esses professores assim não agissem
poderiam ser despedidos, a exemplo do que aconteceu com Albino Alves de Azevedo.
A província do Rio de Janeiro ia se constituindo, desta forma, em um local
singular de experimentação política de Joaquim José Rodrigues Torres de suas
propostas de ação para a instrução pública, com vias a formação do povo e da nação.
Para José Gonçalves Gondra e Alessandra Schueler, ―a construção do Brasil e dos
brasileiros (...) foi objeto de lutas e confrontos entre projetos políticos distintos e de
tensões entre sonhos, caminhos possíveis e formas plurais da nação e da educação
brasileiras‖46
. Dentre esses tantos projetos de ação para o ensino público escolar nesse
momento particular estavam certamente os de Rodrigues Torres.
De acordo com Ilmar Mattos, a instrução pública era ―uma das maneiras, por
vezes a mais significativa, de construir a relação entre o Estado e a Casa e de forjar a
unidade do Império‖47
. Nesse sentido, a província fluminense teria sido um ―laboratório
saquarema‖ para esse fim, a partir do cargo do presidente de província. Joaquim José
Rodrigues Torres ficou no cargo por um significativo período de dezenove meses. Logo
após, foi seu concunhado e correligionário Paulino José Soares de Sousa quem o
assumiu, ficando de abril de 1836 a agosto de 1840. Lembrando que Paulino foi
também seu vice-presidente48
.
Debruçarmo-nos sobre a perspectiva de Joaquim José Rodrigues Torres quanto a
este tema do ensino público escolar, e sobre sua atuação nesse sentido enquanto
presidente da província fluminense, um particular micro-espaço, vale frisar, de exercício
de seus projetos e de criação de alianças, faz-nos pensar não só sobre o tipo de
―membro‖ que se pretendia formar, cumpridor de ―todos os deveres de Cidadão‖, mas
também sobre o tipo de Estado que se pretendia construir a partir de uma direção.
Rastrearmos suas propostas de ação no que diz respeito à instrução pública pode
nos fornecer, em escala micro, alguns vestígios sobre as leituras construídas por esse
personagem histórico individual para e num momento particular de formação do Estado
nacional no Brasil monárquico. Projetos estes, dentre tantos vários outros, de ação
política em que o ensino público era percebido, seguramente, como um ―remédio
poderoso‖, e o espaço escolar do laboratório fluminense como um singular local num
objetivo maior de formar/forjar o povo e a nação do jovem império em construção.
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Este artigo teve por finalidade problematizar suas propostas de ação nesse sentido
como presidente da província fluminense na criação da escola normal, mas sempre
tendo em mente os limites em sua possibilidade de atuação. A viabilidade de realização
ou não de seus projetos de ação política dependeu, certamente, de outros tantos projetos
individuais e/ou coletivos. Escrever uma história de vida, objetivo mais amplo em
pesquisa de doutoramento, certamente é estar sempre atento ao jogo relacional no qual o
sujeito biografado esteve envolvido. Redes de dependência e reciprocidade construídas
ao longo de uma vida e que são plásticas, negociáveis, dentro de um campo de
possíveis49
.
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) -Agência Financiadora CAPES. E-mail de contato: [email protected]. 1 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com
que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª
sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.
Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil). 2 Ibidem, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).
3 Esta é uma versão preliminar de um dos capítulos da tese em constituição. Nesse sentido, algumas
questões aqui discutidas já tiveram a oportunidade de serem problematizadas em outros momentos. 4 Apenas o ensino superior e o elementar e médio do recém criado Município Neutro permaneceram a
cargo do Ministério do Império. 5 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com
que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª
sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.
Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 6 Idéia cunhada por Ilmar Mattos em MATTOS, Ilmar R. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 1994.
7 Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com
que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª
sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.
Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 8Ibidem , p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).
9 Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil).
10 Ibidem, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).
11 Ibidem , p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil).
12 Esta já uma perspectiva construída cerca de um ano depois, em relatório apresentado à mesma
Assembléia Legislativa Provincial no ano de 1836. Relatório do presidente da Província do Rio de
Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título, 1836‖, p. 1 (disponível em www.crl.edu/brazil). 13
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com
que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª
sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.
Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 14
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,
1836‖, p. 5 (disponível em www.crl.edu/brazil). 15
Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do Rio de Janeiro
desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. A Escola Normal fluminense foi a primeira a ser criada
pelo Império do Brasil. Em nosso período de estudo, que corresponde ao final dos anos trinta, houve
somente mais três: em Minas Gerais, em 1835, mas com funcionamento efetivo a partir de 1840, na
Bahia, em 1836, e no Pará, em 1839. Ver a respeito, por exemplo, José Gonçalves Gondra e Alessandra
Schueler. Educação, pode e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. 16
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,
1836‖, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil).
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17
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―Fala com
que o presidente da Província do Rio de Janeiro o conselheiro Joaquim José Rodrigues Torres abriu a 1ª
sessão da 1ª Legislatura da Assembléia Legislativa da mesma Província no dia 1º de fevereiro de 1835‖.
Niterói, Typ. de Amaral e irmão, 1850, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 18
Artigo 9º da Lei de 15 de outubro de 1827. Ver em: LIMA, Lauro de Oliveira. Histórias da Educação
no Brasil: de Pombal a Passarinho. Rio de Janeiro: Editora Brasília, s/d, pp. 105-107.
19
Artigo 18 da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da
mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia
Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851.
Pela Lei de 15 de outubro de 1827, em seu artigo 5º, ―os professores que não tivessem a necessária
instrução (...) [no ensino mútuo iriam] instruir-se em curto prazo e a custa dos seus ordenados‖. ―Lei de
15 de outubro de 1827‖. In: LIMA, Lauro de Oliveira. Op.Cit.. 20
Artigo 18 da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da
mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia
Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 21
Artigo 13 da Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do
Rio de Janeiro desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 22
Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do Rio de Janeiro
desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 23
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo Presidência da Província (PP). Série
Diretoria de Instrução Pública. Documentos Provenientes da Diretoria de Instrução Pública. Notação
0213. 24
Artigo 8º da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da
mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia
Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 25
Artigo 14º da Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do
Rio de Janeiro desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 26
Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da mesma legislação
organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia Legislativa
Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 27
Artigo 9º da Legislação Provincial do Rio de Janeiro de 1835 a 1850 seguida de um repertório da
mesma legislação organizado por Luiz Honório Vieira Souto: oficial chefe da secretaria da Assembléia
Legislativa Provincial. Parte II – Regulamentos e deliberações. Niterói. Typografia Fluminense, 1851. 28
Artigo 10º da Lei de 04 de abril de 1835. Coleção de Leis, Decretos e Regulamentos da província do
Rio de Janeiro desde 1835. Niterói, Typografia Niterói, 1839. 29
De acordo com a Lei de 3 de outubro de 1834, que marcava as atribuições do presidente de Província,
este seria a primeira autoridade provincial, e a ele estavam subordinados ―todos que nela se encontrassem,
‗seja qual for a sua classe ou graduação‘‖. MATTOS, Ilmar R. Op.Cit., p. 244.
30 Idéia cunhada por MATTOS, Ilmar R. Op.Cit.
31 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo Presidência da Província (PP). Série
Diretoria de Instrução Pública. Documentos Provenientes da Diretoria de Instrução Pública. Notação
0213. 32
Ibidem . 33
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,
1836‖, pp. 3-4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 34
Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 35
Ibidem , p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 36
Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 37
Ibidem, p. 3 (disponível em www.crl.edu/brazil). 38
Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 39
Ibidem , p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 40
Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 41
Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil).
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Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Fundo Presidência da Província (PP). Série
Diretoria de Instrução Pública. Documentos Provenientes da Diretoria de Instrução Pública. Notação
0213. 43
Relatório do presidente da Província do Rio de Janeiro. TORRES, Joaquim José Rodrigues. ―s/título,
1836‖, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 44
Ibidem, p. 4 (disponível em www.crl.edu/brazil). 45
Ibidem, p. 5 (disponível em www.crl.edu/brazil). 46
GONDRA, José Gonçalves e SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império
brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008, p. 39.
47
MATTOS, Ilmar R. ―A teia de Penélope‖. In: MATTOS, Ilmar R. Op.Cit, p. 245. 48
Segundo Ilmar Mattos, ao contrário das demais províncias, a do Rio de Janeiro teve presidentes por
longos períodos, a exemplo dos dois citados acima; e estes não eram estranhos a ela. Mesmo as breves
presidências liberais, como a de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (1844-1848), ―não foram
suficientes para modificar o traço que assinalava aquela unidade político-administrativa, desde 1834: a
província fluminense cumprindo o papel de um laboratório, no qual os saquaremas tanto testavam
medidas e avaliavam ações que buscavam estender à administração geral, quanto aplicavam decisões do
Governo-Geral, sempre com a finalidade última de consolidar a ordem no Império‖. Ilmar Mattos.
Op.Cit., p. 240. A relação dos presidentes da Província fluminense pode ser vista em Barão do Javari.
Organizações e programas ministeriais. Regimento parlamentar no Império. 2ª edição. Rio de Janeiro,
1962, pp. 445-446. Ainda de acordo com Ilmar Mattos, ―a instrução cumpria – ou deveria cumprir – um
papel fundamental, que permitia – ou deveria permitir – que o Império se colocasse ao lado das 'Nações
Civilizadas'‖, com cada uma de suas classes e de suas raças, nesse processo, conhecendo mais ou menos o
seu lugar. Ilmar Mattos. Op.Cit., p. 245. 49
Idéia esta cunhada por Gilberto Velho como forma de evitarmos, numa análise sobre trajetórias e
biografias, ―um voluntarismo individualista agonístico ou um determinismo sócio-cultural rígido‖.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor,1994, p.40.
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Paul Ricoeur e Dominick Lacapra: História e Literatura; Historiografia e
Crítica literária
Lorena Lopes da Costa1
Resumo: O artigo pretende discutir proposições de Lacapra e Ricoeur acerca da
narrativa, da história e da literatura. Para Lacapra, embora a questão da narrativa não
seja nova, ela aparece agora sob nova forma, convidando-nos a pensar não apenas a
escrita da história, mas o que a escrita do romance oferece à historiografia. Para
Ricoeur, a referência da linguagem existe em qualquer narrativa. O que ocorre entre
narrativas literárias e históricas é uma inspiração mútua, uma referência cruzada.
Palavras-chave: narrativa, história e literatura.
Abstract: The article discusses LaCapra and Ricoeur‘s propositions about narrative,
history and literature. For LaCapra, although the question of the narrative is not new, it
now appears in a new way, inviting us to consider not only the history writing, but what
novel writing offers to historiography. For Ricoeur, the language reference exists in
every narrative. What happens between literary and historical narratives is a mutual
inspiration, a cross-reference.
Key-words: narrative, history and literature.
Dominick Lacapra lembra que, até recentemente, a função da narrativa na história
teria sido minimizada. Realçou-se, em especial considerando a vasta troca da história
com as ciências sociais ao longo do século XX, a necessidade de analisar dados,
formular hipóteses e construir modelos explicativos. A função da narrativa, a qual
Lacapra entende ser também sua dimensão artística foi, quando considerara, pensada
apenas em termos de estilo.
Para o autor, a questão da narrativa, embora não seja nova, aparece agora de uma
nova forma, convidando o interessado a pensar não apenas na escrita da história, mas,
também, no que a escrita do romance oferece à historiografia, de tal maneira que a nova
forma da velha questão enquadra o problema da própria história moderna2.
No século XIX, também analisado por Hayden White, por exemplo, houve,
segundo Lacapra, um paralelo notável entre o romance e a narrativa histórica, de modo
que mestres da narrativa eram encontrados nessas duas áreas do discurso. Próximo de
seu fim, o Oitocentos evidencia, no entanto, uma separação contrastante entre a
narrativa histórica e romanesca. Enquanto a narrativa histórica ter-se-ia mantido presa a
sua forma oitocentista, a qual tinha pouca auto-consciência sobre o problema da
opinião ou do ponto de vista3 nesse período, o romance, por outro lado, desde Flaubert,
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teria experimentado uma vastidão de abordagens para a narrativa. O breve apanhado de
Lacapra, que compara historicizando essas duas áreas do discurso em prosa, parece
habilitar o autor a explorar com mais autoridade a questão de como o romance deveria
ser tratado ou pensado pelo historiador. E, por mais que a própria categoria que
qualifica um texto como romance não seja consensual4, Lacapra entende que o
problema da narrativa não apenas convida a repensar a analogia entre romance e
história, como desloca, na verdade, a questão para a relação entre historiografia e crítica
literária, uma vez que tal articulação irá estabelecer, tácita ou declaradamente, a forma
de visualizar no romance uma fonte.
Lacapra identifica como uma das soluções dadas para a articulação da
historiografia com a crítica literária aquela que faz um uso estritamente documental ou,
em outros termos, positivista do romance. Tal uso implica em dificuldades que, segundo
o autor, existem quando do tratamento de qualquer documento, seja ele literário ou não,
tomado como fonte. O uso documental, pontua o autor, desconsidera o fato de um texto
também suplementar o passado que ele busca representar, de modo que nenhum texto
pode ser pensado como um acesso direto aos fatos passados. Malgrado tais
apontamentos, o romance portaria uma função referencial. E é dando crédito a essa
função que o historiador converte o conteúdo do romance em informação acerca da
vida, em um dado momento ou das transformações desse momento representado.
Além de desconsiderar a mediação exercida por todo e qualquer texto, essa
perspectiva positivista gera uma narrativa histórica menos autocrítica e indagadora do
que a própria narrativa literária, a qual ela tenta explicar5. O texto literário acaba por
ser redundante na medida em que aponta para o historiador aquilo que a historiografia o
habilitou a perceber nele mesmo6. O uso documental do romance, assim, apenas
confirmaria aquilo já encontrado ou passível de ser encontrado em outras fontes. Ou,
por outro lado, a literatura fica reduzida não a uma fonte redundante, mas a uma forma
meramente sugestiva. Frente aos romances que sugerem alguma informação cuja
veracidade não possa ser confirmada por outra fonte, a atitude positivista os enquadraria
num status de fonte pouco séria, no sentido de ser pouco comprometida com a erudição
histórica.
Em oposição ao uso documental que pode ser feito com o texto literário, Lacapara
identifica o método formalista. Para ele, no entanto, esse segundo caso, que entende o
texto literário como uma entidade com um fim em si mesma e que, por isso mesmo,
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relega à história um lugar secundário, não pode ser considerado enquanto alternativa à
questão da literatura como objeto para a história.
Em busca, então, de uma alternativa mais satisfatória que possa prever igualmente
um entendimento diferente de textos literários e uma relação diferente entre
historiografia e crítica literária7, Lacapra propõe um movimento no sentido de
compreender o texto em relação aos usos da linguagem que estabelecem algum tipo de
acordo entre si ou que acabam por registrar contextos de tal maneira que o intérprete
assume, um pouco, o olhar do historiador bem como do crítico, já que a sua leitura
acaba por realizar alguma troca com o passado.
Esses contextos registrados de alguma forma na leitura do texto são três,
conforme explica o autor: o primeiro é o da escrita, que inclui do tempo do autor não
apenas suas intenções, mas também ideologias e discursos coevos. Pensar esse primeiro
contexto oportuniza uma questão que tanto o método documental quanto o formal
excluem: qual seja, a que diz respeito à maneira como o texto chegou a um acordo com
seu contexto. O segundo momento é o da recepção, que investiga a forma como o texto
é lido em diferentes meios. Por fim, no terceiro, o da leitura crítica, o autor chama
atenção para a possibilidade de se considerar na leitura de um romance, além das vozes
de contestação ou discursos de oposição do passado, os caminhos pelos quais o texto
pode ser entendido e, ainda, caminhos pelos quais o mesmo texto pode auxiliar a
historiografia a elaborar criticamente sua própria voz. Com a leitura crítica, de acordo
com o autor, fica posta a questão mais sugestiva, que parte do romance para a
historiografia, questão que reelabora a dimensão da narrativa nos dois campos em
questão, tanto a literatura quanto a história:
se a escrita contemporânea da história pode aprender algo de natureza
autocrítica a partir de um modo de discurso que ela frequentemente tenta
usar ou explicar de maneira excessivamente reducionista8.
História e Literatura – Mimese e Temporalidade
Num dos capítulos do primeiro volume de Tempo e Narrativa9, Ricoeur investiga
os elos de construção de uma narrativa. Articulada, é ela que dota de significado a
existência temporal do homem. Narrar, em Ricoeur, é ação que humaniza o tempo. O
curioso é que, de um modo geral nesse texto, Ricoeur deixa claro estar tratando da
narrativa sem discriminar gêneros ou, ainda, sem restringir seus apontamentos à
historiografia, que, certamente, narra ou à literatura, que narra também. De fato, fica
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claro que para o autor esses dois tipos de narrativa não se confundem. Será apenas no
terceiro tomo de Tempo e Narrativa que Ricoeur debruçar-se-á sobre as especificidades
de cada qual. De modo que, num primeiro momento, a narrativa que serve de objeto de
estudo a Ricoeur explica tanto o texto literário quanto o histórico e, portanto, revela
muito daquilo que eles guardam em comum.
Bebendo em Aristóteles, Ricoeur identifica três momentos que instauram ou
fazem a mediação entre o tempo e a narrativa. No primeiro momento, denominado
Mimese I, da composição da intriga, deve haver uma pré-compreensão do mundo e da
ação que se pretende narrar. É preciso, nesse momento, entender o agir humano no
mundo de tal maneira que seja possível distingui-lo de outro movimento humano
qualquer. Por ser articulada em signos, regras e normas, a ação ao ser narrada pode ser
decifrada pelos outros atores do jogo social. A pré-compreensão da ação recorre,
portanto, aos elementos de uma determinada cultura que permitem a um determinado
público entender tal ação e eles têm essa capacidade, exatamente, por serem públicos.
Já nesse primeiro momento da tessitura da intriga, Ricoeur lança mão de um
argumento contrário aos pressupostos de Hayden White. É que, segundo Ricoeur, a ação
não é nunca neutra nem poderia ser. Ela está sempre sujeita a uma hierarquia de valores
que a qualifica e a julga de acordo com a preferência moral própria ao esse determinado
público ou a essa determinada cultura.
A ação efetiva, que se busca apreender nesse primeiro momento, revela um
intercâmbio entre diferentes dimensões temporais e, consequentemente, institui, para si
própria, uma temporalidade específica que decorre desse intercâmbio e articula as
temporalidades que são, nela, intercambiadas.
Na Mimese I, enfim, o que se quer é, da forma mais completa, pré-compreender a
ação humana. Tendo isso sido feito, tal ação vence a primeira etapa a fim de que possa
ser representada pela narrativa. Na Mimese II, entendida por Ricoeur como pivô da
análise, o que se tem, embora o autor intencionalmente evite o termo, é o momento da
ficção10
. Para ele, ficção não seria nem o sinônimo das configurações narrativas nem o
antônimo da pretensão da narrativa histórica de constituir uma narrativa
“verdadeira”11
. A ficção em Ricoeur quer dizer o ―como se‖, o que contribuir para
demarcar a divergência entre o autor e uma crítica literária, que, segundo ele mesmo,
não leva em conta a divisão do discurso narrativo em duas grandes classes delimitadas
pela dimensão referencial.
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O segundo momento, quando se busca representar a ação humana forjando uma
narrativa, tem um papel claramente mediador, para Ricoeur. A Mimese II seria uma
operação de configuração que integra os elementos de seu campo textual, bem como
opera para além desse campo, numa mediação, aí sim, mais ampla entre a pré-
compreensão da ação humana e a pós-compreensão, que se dá para o leitor da intriga. A
tessitura da intriga tem caráter mediador, porque é ela que transforma os acontecimentos
em história, mediando o aspecto episódico e o aspecto configurante12
; é ela também que
oferece à história narrada uma forma de acabar e, assim, representa o escoamento do
tempo demarcando uma direção, e, por outro lado, possibilitando uma leitura aos
avessos, uma vez que o princípio e o fim da ação representada estão sinalizados.
Ricoeur, ao pensar a tessitura da intriga, aproxima, como faz Kant, o ato
configurante da imaginação, que é importante por sintetizar ou esquematizar a história
narrando-a13
. Mais além, o ato configurante que consiste no segundo momento
mimético, não apenas esquematiza, mas também faz uso de paradigmas disponíveis ou
sedimentados, que fornecem regras para a construção da narrativa.
A Mimense III seria a interseção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou
do leitor14
. Ela dispõe sua atenção sobre o público receptor da obra. Este terceiro
momento explica o porquê do encadeamento que une a travessia mimética ser
progressivo e, não, simplesmente um círculo que sempre se repete. No leitor, a ação
representada pela intriga é ressignificada, altera o mundo do leitor, mas é igualmente
alterada. O leitor trabalha ao ler a narrativa e cria um tempo refigurado por meio daquilo
que o texto fabricado lhe oferece.
Muito diferente da forma semiótica como Hayden White compreende a fabricação
do texto ou, em suas palavras, a urdidura do enredo, Ricoeur reconhece a importância
da tessitura da intriga por seu papel medidor. É o tempo configurado, que pode ser lido
e ouvido, que liga um tempo prefigurado, referido na intriga, a um tempo refigurado,
recebido pelo leitor, mas também trabalhado pelo leitor. À ação, cabe um tempo
inerente e, nesse tempo, a ação não pode ser eticamente neutra. À intriga cabe um tempo
tanto cronológico, próprio aos episódios da narrativa, quanto um não cronológico,
responsável por transformar os acontecimentos em história. À leitura da obra, por fim,
cabe uma terceira temporalidade, específica. O ouvinte ou o leitor recebe o texto
conforme sua capacidade, mas, em função da experiência nova, que é, pela leitura
compartilhada, aberta a um horizonte de mundo.
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Para Ricoeur, a referência da linguagem existe em qualquer narrativa, mesmo
naquelas não descritivas, em forma de poesia ou prosa. Até aquelas que se esforçam
para se alienarem do real, teriam, nesse esforço mesmo de alienação, uma forma de
interseção entre o mundo do texto e o do leitor. Nenhum texto pode, segundo o autor,
abdicar da referência da linguagem. Os textos não descritivos, os líricos por exemplo,
sem descreverem o mundo, inexoravelmente, falam dele e, em especial, de aspectos dele
que não poderiam ser ditos de outra forma, senão pela forma indireta da metáfora.
A historiografia, por seu turno, por mais que busque vestígios do passado e trate
do passado, prendendo-se a acontecimentos que, de fato, ocorreram não pode deixar de
recorrer à referência metafórica, por excelência constituinte do regime referencial
próprio aos textos líricos citados há pouco. A reconstrução do passado, por meio de seus
vestígios, depende da imaginação e, para imaginar o passado, a metáfora é essencial.
Tal figura é, na verdade, comum a todos os textos poéticos.
O que ocorre entre narrativas literárias e históricas é uma inspiração mútua: uma
referência cruzada, segundo Ricoeur. Se a narrativa histórica, para fazer com que a
referência aos vestígios diga sobre o passado, sobre o que efetivamente aconteceu,
precisa do artifício da metáfora, por outro lado, a narrativa de ficção colhe, nos vestígios
do passado, parte de seu dinamismo referencial. Tanto a intencionalidade histórica
quanto o intento de verdade da ficção literária respondem à aporia da temporalidade por
meio de sua poética da narratividade.
Nesse sentido, a ficção inspirar-se-ia tanto na história quanto a história na ficção.
É essa inspiração recíproca que me autoriza a colocar o problema da referência cruzada
entre a historiografia e a narrativa da ficção15
.
Ricoeur entende que a história reclama para si certa ficcionalização16
. Essa
ficcionalização estaria a serviço do intento historiográfico de representação do passado;
estaria a serviço de um fenômeno que possibilita ao leitor ou ouvinte ver como aquilo
que aconteceu.
Um rastro do passado – uma ruína, um resto, um fóssil, uma peça de museu –,
para ser rastro, precisa afigurar tal passado, que é o mundo que falta ao redor da
relíquia. A relíquia, por sua vez, é aquilo que se presta como referência a esse mundo
ausente. Próximo àquilo que Hayden White chama de função representativa da
imaginação histórica, o ato de se ―afigurar que‖, em Ricoeur, faz com que a imaginação
dê acesso a algo que pode ser visto. Os tropos, essenciais para se entender como o
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historiador explica o passado segundo White, viabilizam o fenômeno de ver o passado.
A história toma emprestado, destarte da literatura, tropos para que a função
representativa da imaginação histórica seja possível.
O historiador moderno já não mais se permite lançar mão, por exemplo, de
discursos imaginados, pondera Ricoeur, mas, mesmo se ancorando em evidências, ele
não deixa de recorrer, sutilmente, àquilo que um romance faz de forma explícita. O
historiador pinta a situação da qual trata e, para isso, acaba por restituir uma cadeia de
pensamento e um discurso interno a ela. A elocução do historiador, o que remete a
Aristóteles, coloca algo diante dos olhos: faz ver. Da ficção, a história retira a força de
provocar a ilusão da presença, sem anular o distanciamento crítico, pontua Ricoeur. As
ferramentas que a literatura usa são caras à história.
Na mão contrária, é da história que a ficção retira parte de sua força. É da
história que partem alguns dos elementos que permitem à ficção concretizar também seu
projeto de ver como aquilo poderia ter ocorrido. A ficção conta algo como se tivesse
contando, efetivamente, algo ocorrido e, como a história, ela trata do passado. Diferente
da história, porém, a ficção diz de um passado fictício, pertencente à voz narrativa, vivo
apenas no passado dessa voz. E, por mais irreais que sejam os acontecimentos narrados,
também na ficção, a narrativa faz o que a história almeja: suprir o caráter esquivo da
efemeridade do tempo ido. Outro elemento que torna a história necessária à ficção está
relacionado à forma como a segunda arma a sua intriga, o que, mais uma vez, remete a
Aristóteles e lembra o argumento de Ginzburg17
: a intriga, para ser persuasiva, deve ser
provável ou necessária. O passado da voz narrativa é fictício mas se identifica com o
provável, com o que poderia ter ocorrido e é isso o que ressoa em toda reivindicação de
verossimilhança, caso contrário, o leitor não conseguiria realizar a Mimese III.
O verossímil em Aristóteles, para Ricoeur, abarca tanto potencialidades do
passado real quanto os possíveis irreais da pura ficção. O irreal da pura ficção é,
profundamente, afim ao que não se realizou no passado efetivo, mas que poderia ter-se
realizado. De tal maneira que a ficção é quase histórica e, como visto, a história é quase
fictícia.
A interpretação que aqui proponho do caráter ―quase histórico‖ da ficção
confirma, evidentemente, a que proponho ao caráter ―quase fictício‖ do passado
histórico. Se é verdade que uma das funções da ficção, misturada à história, é libertar
retrospectivamente certas possibilidades não efetuadas do passado histórico, é graças a
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seu caráter quase histórico que a própria ficção pode exercer retrospectivamente a sua
função libertadora. O quase-passado da ficção torna-se, assim, o detector dos possíveis
ocultos no passado efetivo. O que teria podido acontecer – o verossímil segundo
Aristóteles – recobre, ao mesmo tempo, as potencialidades do passado ―real‖ e os
possíveis ―irreais‖ da pura ficção18
.
Enquanto, para Hayden White, não há oposição entre história e ficção, sendo a
história até mesmo um gênero literário, já que a explicação histórica não é dada pelo
conteúdo factual, mas pela mesma maneira com a qual o romancista dá sentido ao real,
para Ricoeur, a narrativa histórica também é literária, mas é realista, segundo a análise
de José Carlos Reis19
. O caminho que Ricoeur propõe para a historiografia é a
semântica hermenêutica. Nela, por mais que a história seja um artefato verbal, ela não
pode ser restrita ao texto. O discurso histórico não se restringe à suspensão que ele faz
do mundo. O discurso histórico, na verdade, restitui algo ao mundo, que, sem o texto,
poderia ter-se perdido. O leitor, ativo, transforma o texto à medida que o aplica a sua
realidade, que é, por sua vez, significada por meio do texto. E o leitor também contribui
para demarcar o realismo da histórica. O mundo do leitor põe limite à dimensão
ficcional do texto, porque ele não apenas recebe o texto, mas trabalha nele ligando a
experiência configurada, que se dá a ver pelo texto, à referência exterior, controlando-o
realista e cientificamente.
Ademais, ao enraizar a narrativa na temporalidade, Ricoeur aprofunda ainda
mais seu realismo, segundo o crítico. A intriga unifica experiências dispersas,
oferecendo ao leitor a oportunidade de reconhecer a experiência vivida. Essa imitação
narrativa é realizada tanto pela literatura, quanto pela história. Mas, se em White, a
forma ou a urdidura do enredo predominam tanto sobre a história quanto sobre a
literatura, aproximando-as; em Ricoeur, é o realismo um dos pontos sobre o qual a
história e a literatura se cruzam, equacionando-se sem se igualarem.
Embora se diferenciem no que concerne à temporalidade, história e literatura
cumprem o mesmo: dão forma e sentido à experiência temporal do mundo humano. E,
por mais que cumpram o mesmo, elas se complementam. As narrativas históricas são
variações interpretativas e as ficcionais, variações imaginativas. O uso da documentação
seria a linha divisória entre história e ficção, para Ricoeur, na análise de Reis. O
documento impõe certos elementos à operação historiográfica: a data, a ação, a
personagem. Os dados exteriores limitam as possibilidades disponíveis ou combináveis
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
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para se pensar o evento histórico. E é por essa limitação que a interpretação histórica,
por mais que utilize a imaginação, não pode ser uma variação imaginativa, ou apenas
orientada pela imaginação. Pode haver abordagens de uma situação histórica, mas os
vestígios dessa situação ou os dados que as compõem são os mesmos – ainda que outros
rastros possam ser, com o tempo e com as novas pesquisas, agregados.
A narrativa histórica quer reconhecer os homens e as experiências do passado por
meio dos vestígios que permaneceram, bem como quer inseri-los no tempo do
calendário. Ela quer conectar o tempo vivido por esses homens ao tempo cósmico e
biológico. Cria um terceiro tempo para traduzir a experiência humana. Já na ficção, a
narrativa se desobriga daquilo que cerca a história: datas, gerações, locais, vestígios.
Embora desobrigar-se não implique não fazer referência de alguma maneira a esses
elementos, como já abordado, até a negação deles implica algum tipo de referência a
eles, o tempo fictício é livre e, geralmente, evita a exatidão. Explora, especialmente, o
tempo humano, as características não lineares de experiências irreais, não submetidas ao
tempo calendário, preferido pela história para Ricoeur.
Literatura e história cruzam-se, mas não se confundem. Partilhando alguns
elementos e podendo ser entendidas, todas duas, pela semântica hermenêutica – na qual
Ricoeur trata da narrativa em geral –, uma oferece a outra aquilo que suas
particularidades permitem, como que alargando um pouco o campo de ação de cada
uma. Por exemplo, considerando que a história cruza-se com a ficção no momento da
composição, que é literária e oferece imagens ao leitor e considerando, por outro lado,
que a ficção cruza-se com a história, no momento em que quer convencer o leitor da
plausabilidade do narrado, todas as duas empurram seus limites para imaginar melhor
seu passado, seja o passado experimentado pelo mundo, seja aquele experimentado pela
voz narrativa na ficção. E, não menos, empurram seu horizonte de expectativa, ao
fazerem o leitor ver o que, no passado, foi, bem como o que poderia ter sido.
É na leitura, no espírito do leitor, que o abismo entre a história e a ficção torna-se
um vale: uma se torna ―quase‖ a outra. Na refiguração do tempo, história e ficção não se
opõem mais tão radicalmente, cruzam-se. Cada um desses modos narrativos se faz
empréstimos: a história incorpora fontes de ficcionalização, a ficção só transforma o
agir e sentir se incorpora fontes de historicização20
.
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11
Mestranda do Departamento de História, da UFMG, da linha História e Culturas Políticas; bolsista do
CNPq. 2 LACAPRA, p.108.
3 LACAPRA, p. 114.
4 Lacapra lança mão de diferentes perspectivas sobre o romance, considerando os estudos de George
Lukács e Mikhail Bakhtin. 5 LACAPRA, Dominick. História e romance. Revista de História, Campinas, n. 2/3, p. 107-124, 1991; p.
117. 6 STARLING, Heloísa. Sérgio Cardoso org. ―A Republica e o Subúrbio: Imaginação
Literária e Republicanismo no Brasil.” In. Retorno ao Republicanismo. Belo
Horizonte. Editora UFMG, 2004.
7 LACAPRA, História e romance. Revista de História, Campinas, n. 2/3, p. 107-124, 1991; p.118.
8 LACAPRA, História e romance. Revista de História, Campinas, n. 2/3, p. 107-124, 1991; p.122.
9 RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.
In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v.
10 Ricoeur, no entanto, acaba por escolher a segunda acepção, na qual ficção opõe-se à narrativa histórica.
11 RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.
In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p.101.
12 Ricoeur, neste e em outros pontos, recorre aos estudos de Northrop Frye, a quem também Hayden
White faz referência consistente. 13
Ele chama atenção tanto para o esquematismo quanto para o tradicionalismo, mas, por ora, basta ater-se
ao primeiro, que diz sobre o papel da imaginação. 14
RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.
In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p.110 15
RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.
In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p. 125. 16
RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖. In: Tempo e Narrativa. Campinas:
Papirus, 1994. 3v; 17
O estudo exploratório sobre a obra de Ginzburg foi elaborado no primeiro capítulo da dissertação do
qual esse texto, com algumas modificações faz parte. 18
RICOEUR, Paul. ―O entrecruzamento da história e da ficção‖ e ―Tempo e narrativa: a tríplice mimese‖.
In: Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994. 3v; p.331. 19
REIS, José Carlos. ―O entrecruzamento entre narrativa histórica e narrativa de ficção‖. In: O desafio
historiográfico. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. 159 p. (FGV de bolso. Série História ; v. 13). 20
REIS, José Carlos. ―O entrecruzamento entre narrativa histórica e narrativa de ficção‖. In: O desafio
historiográfico. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. 159 p. (FGV de bolso. Série História ; v. 13); p.81.
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Minas Gerais e as novas abordagens historiográficas: questões de História
política, sociabilidades e culturas políticas1.
Luana de Souza Faria
Resumo: A historiografia mineira do período colonial tem-se renovado
substancialmente nos últimos anos, temas antes relegados a segundo plano, como os
relacionados à esfera do político, tornam-se agora numa via privilegiada para a
compreensão das complexas relações sociais de uma sociedade. O objetivo desse artigo
é analisar o modo como a renovação da História política contribuiu para as novas
abordagens sobre a relação entre a Coroa portuguesa e suas possessões, principalmente
no que tange ao tratamento dispensado por ela aos descaminhos do ouro.
Palavras chaves: Minas Gerais, descaminhos do ouro, História política
Abstract: The historiography of Minas Gerais in the colonial period has been renewed
in recent years, issues before relegated to the background, such as those related to the
political sphere, now become a privileged means for understanding the complex social
relations of a society. The purpose of this article is to analyze the way how the renewal
of Political History has contributed to the new approaches between the Portuguese
Crown and its possessions, especially with regard to the treatment accorded by it to the
gold´s detours.
Key Words: State of Minas Gerais, Minas Gerais, gold´s detours, Political History.
Nos últimos trinta anos a historiografia mineira do período colonial tem
contribuído de modo significativo para uma renovação tanto de ordem teórica como
metodológica, tal renovação, no entanto não aconteceu de modo isolado, acompanhou a
uma tendência internacional, que se manifestou frente a um crescente descontentamento
que levou a crise de grandes paradigmas como o estruturalismo e a filosofia
materialista. Temas antes relegados a segundo plano, como aqueles relacionados à
esfera do político, tornam-se agora numa via privilegiada para a compreensão das
sociedades por meio das relações sociais que foram engendradas pelos diversos atores
sociais em seus diferentes contextos. Importa-nos aqui, ter em mente que, esta nova
abordagem passa a rejeitar algumas premissas até então consagradas, como as que
consideravam ―os processos sociais marcado pela linearidade e previsibilidade.
Recusando explicações fundamentadas em variáveis ‗externas‘ aos próprios processos
históricos‖2, além de ―abandonar os modelos que trabalham com a relação de
dominação, a partir da premissa de que o dominante é capaz de controlar e anular o
dominado, tornando a expressão ou o reflexo de si mesmo‖3, uma vez que, tais
abordagens mostraram-se ineficazes quando utilizadas para explicar a complexidade dos
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
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fenômenos sociais à luz de concepções dicotômicas ou teleológicas, como por exemplo,
metrópole x colônia ou dominante x dominado.
O modo como esta historiografia abordava os seus objetos foi profundamente
questionada, possibilitando a introdução de novos conceitos, e a revisão de outros já
consagrados. Novas fontes foram introduzidas no trabalho do historiador e com a elas
veio a necessidade de incorporar outras metodologias para tratar adequadamente os
novos objetos. E como havia de ser, a História é repensada e reformulada, abrindo
espaço para que um grupo de historiadores abordasse o político a partir de questões
mais sofisticadas. As análises estruturantes, que faziam das escolhas dos atores sociais
meras funções destas, não davam mais conta de responder aos questionamentos
oriundos de diversas partes, ficando patente que os fenômenos sociais eram muito mais
complexos do que se propunham.
Uma importante contribuição, embora bastante questionada, para o que chamamos
com muito cuidado de ―retorno ao político‖ veio das análises de Michel de Foucault,
uma vez que ele nos propõe a pensar a desinstitucionalização do político ao realizar um
estudo do poder ou para melhor dizer dos ―micro-poderes‖ presentes na sociedade.
Foucault desloca a análise propriamente do político para o poder ao perceber que este
não está concentrado apenas nas mãos do Estado, ele está presente nas relações
humanas. Pensar sua obra torna-se importante aqui à medida que nos leva a pensar
trabalhos posteriores como o do Geovanni Levi4 que vai pensar a distribuição dos
poderes em uma pequena comunidade de camponeses na Itália do século XVII ou o do
Xavier Gil Pujol, que em um importante estudo afirmará que ―el poder es el tema sobre
el que gravita buena parte de la nueva valoración de la história política‖5, o que trará
implicações importantes para as novas abordagens, sobretudo para a que nos importa
aqui, a Monarquia portuguesa no século XVIII, em que o Estado agora é pensando
como fruto dos intermediários, ou seja, das negociações.
Interesso-nos pensar a relação estabelecida entre a metrópole e colônia, mais
especificamente no modo de administrar e fazer justiça no Antigo Regime frente aos
constantes descaminhos do ouro, uma vez que ―a Monarquia portuguesa concebia como
obrigação real, a função básica de assegurar o cumprimento das leis, coibir abusos e
crimes e fiscalizar a administração em seus diferentes níveis‖6. Nesse sentido Pujol
mostra a fecundidade da análise, uma vez que ―el estudio de la ley y del castigo es um
modo de abordar el análisis del mantenimiento de um sistema de poder o, por lo menos,
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de los intentos realizados a tal fin‖7 e a partir desse entendimento nos é proposto três
modos de empreender semelhante estudo, sendo o terceiro o que mais nos interessa uma
vez que o ―enfoque que compagina las inquietudes de la historia social com el debido
interes por las cuestiones políticas y de reparto de poder‖8, este focaliza no estudo de
casos extraindo de vários registros
casos selectivos que permiten ver la interconexión de los diferentes
factores concurrentes em el funcionamiento de um sistema legal: relación
com la autoridad, conflictos de clase y poder del estado, intento de inculcar
hábitos de obediencia em las clases bajas, aplicación arbitraria de la ley y
simultânea consagración del rule of law y de la ideologia a el asociada,
distintas percepciones del sistema legal e su relación com los valores
morales, etc9.
O quinto que se devia a sua Majestade não deve ser compreendido como um
simples imposto, mas como um direito régio, o que já nos leva a questões mais
complexas acerca da necessidade de se paga-lo, uma vez que este era legitimado pelos
diversos tratados de juristas da época, sejam eles teólogos ou leigos, o fato era que tal
noção tentava imputar na consciência dos povos a necessidade de se pagar tal direito,
uma vez que dele advinha a manutenção da ―Casa‖, ou preservação do ―corpo‖.
Já no início da década de 1720, pouco tempo após a Revolta de Vila Rica, em que
o povo se revoltara contra às ordens régias que ordenava o estabelecimento das Casas de
Fundição e Moeda, no famoso Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que
nas Minas Ocorreram no ano de 1720, o autor já anunciava o resultado de tantas
mudanças na forma de arrecadação dos quintos,
Tantas mudanças, desde o seu principio, tem padecido esta cansada e
trabalhosa cobrança dos quintos; tem-se-lhe assinado tantas formas de os
arrecadar que, à vista da sua variedade, assentei por infalível que também
acabaria cedo a nova lei. E a razão que tive para o julgar assim foi ver que
outras muitas ordens de El-Rei, impugnadas sempre a seu salvo nas Minas,
não podiam deixar de tirar muita parte de subsistência e vigor à nova lei,
porque nenhuma coisa diminui tanto a autoridade como fazer muitas vezes
o que depois se há de mudar, e estabelecer o que não há de mudar; e
estabelecer o que não há de consistir10
Dessa forma, veremos ao longo dos anos que se correram, que o autor cético em
relação às tantas mudanças, ainda no inicio do século, não deve ter se surpreendido no
que resultara a política administrativa adotada pela Coroa Portuguesa para as suas
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Colônias nesse período. Ao findar a primeira metade do século XVIII a Colônia já havia
experimentado quatro métodos distintos de arrecadação do quinto, desde o pagamento
por bateias, passando por casas de fundição, cota anual, capitação até a restituição das
casas de fundição em 1750. E dentro dessas propostas, como pano de fundo, estava a
preocupação não só em encontrar o melhor meio de arrecadar os direitos régios, mas de
preservá-los contra os constantes descaminhos.
Assim buscamos observar o que a historiadora Junia Ferreira Furtado observou ―o
contrabando de ouro e diamantes passou a ser visto não apenas como atividade
ilegítima, mas também na medida em que impunha novas formas de governar e
redimensionava a relação de poder entre a população local e os administradores
metropolitanos‖11
. Deste modo, precisamos ter em mente a natureza das relações
estabelecidas entre a Coroa portuguesa e seus vassalos nas colônias ultramarinas. As
novas abordagens, questionando a ideia de um ―pacto colonial‖ que era efetivado por
meio do ―exclusivo metropolitano‖ têm tratado estas questões agora sob uma outra
perspectiva, a de uma concepção de Monarquia Pluricontinental12
―em que, para o caso
português, esta é ―caracterizada pela presença de um poder central fraco demais para
impor-se pela coerção, mas forte o suficiente para negociar seus interesses com os
múltiplos poderes existentes no reino e nas conquistas‖13
. Desse modo, ao pensarmos os
múltiplos modos como os atores sociais negociavam com o poder real não podemos
deixar de pensar em uma cultura política subjacente a todas essas ações uma vez que
a formação política da governação portuguesa na América incidiu em
grande parte na transladação de uma série de mecanismos jurídicos e
administrativos do reino para as regiões que iam pouco a pouco compondo
o Brasil colonial. A centralidade do rei, fonte de justiça e equilíbrio,
constituiu-se na chave do processo de hierarquização social desse
complexo e variado rol de agentes inter-relacionados14
.
Tal abordagem trás implicações importantes para as novas análises sobre as
relações estabelecidas entre Coroa e Metrópole. Desse modo, ao analisarmos a
administração e a justiça no Antigo Regime não podemos perder de vista que esta
sociedade era concebida e conseqüentemente gerida de acordo com o modelo
administrativo do Ancien Régime, ou seja, a ―oeconomia‖ de acordo com Maria
Fernanda Bicalho o ato de governar no Antigo Regime
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[...] incorporou um antiqüíssimo imaginário doméstico, e tal sucedeu
porque era unanimemente aceite que a arte de conduzir uma família, por
um lado, e a técnica que habilitava a governar a ‗república‘, por outro,
constituíam saberes que relevavam, fundamentalmente, de uma mesma
exigência, de uma mesma qualidade, de um mesmo princípio ético e
político15
.
E é através dessa concepção que, se por um lado, era possível construir as redes
de amizade do qual o rei dependia para a preservação dos seus domínios ultramarinos,
ou seja, o futuro da ―casa‖ derivava da capacidade do pai para gerir a amizade e a
reputação16
, por outro lado, é a partir dessa mesma idéia que também encontramos os
próprios limites para uma ação mais efetiva e centralizadora por parte do rei, implicando
mesmo no modo de aplicar a justiça, pois em virtude de sua ―debilidade, tinham que
complementar a pouca força de que dispunham com os meios ‗doces‘ do favor dos
súditos por meio da liberalidade ou da demonstração magnificente‖17
. Se de acordo com
a concepção corporativa da sociedade a função da cabeça era a de fazer a justiça e
garantir a autonomia dos poderes, o que observamos na prática é uma imensa confusão,
onde as leis constantemente eram burladas, seja por oficiais régios ou por pessoas
comuns.
Sabemos que administrar a colônia não era tarefa fácil, menos ainda encontrar
meios para conter os descaminhos do ouro. A experiência mostrava que era necessário
mais do que esperar a fidelidade e a ação dos oficiais, era preciso encontrar um meio
pelo qual El Rei fosse servido empregar de modo a assegurar para si a fidelidade de seus
vassalos, principalmente daqueles que na prática deveriam trabalhar a favor da Coroa.
As denúncias e as apreensões que se faziam poderiam ser vista com bons olhos pelos
seus vassalos, pela oportunidade que esta prática oferecia para se obter uma parte dos
bens confiscados. Desse modo, o que observamos é um constante jogo de interesses
entre os mais simples vassalos, oficiais régios e a própria Coroa, levando-nos a
questionar essas relações e assim conduzindo-nos a pensar nos valores e noções que
norteavam a ação dos diversos atores sociais, sejam os descaminhadores, desde escravos
até os grandes homens de negócios, os agentes régios que muitas vezes foram
coniventes com os descaminhos ou mesmo do rei que devia ponderar as suas ações,
principalmente no ultramar, gerando muitas vezes situações embaraçosas. Pensar a
ação dos indivíduos, e o modo como essas relações podem nos revelar os valores e as
crenças de uma determinada sociedade, tornam-se interessante à medida que estas
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deixam transparecer uma determinada cultura política e é aqui que tomamos o conceito
de sociabilidade, formulado inicialmente por Georg Simmel.
O sociológo partindo da idéia de que ―as forças reais, as necessidades e os
impulsos de vida produzem as formas de comportamento adequadas ao jogo, estas
formas, todavia, tornam-se conteúdos e estímulos no próprio jogo, ou melhor, enquanto
jogo18
. Assim o autor designa sociabilidade como a forma lúdica da sociação 19
. Todas
as formas de interação ou de sociação entre os homens – o desejo de sobrepujar, de
trocar, a formação de partidos, o desejo de arrancar alguma coisa do outro, os azares de
encontros e separações acidentais, a mutação entre inimizade e cooperação, o domínio
por meio de artifícios e a revanche – na seriedade do real, tudo isso está imbuído de
conteúdos intencionais. Levando-nos a considerar considera que a interação entre os
indivíduos sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos
propósitos20
, deste modo os homens se organizam reciprocamente, as suas condições
para influenciar os outros e para ser influenciado por eles. Entender esses processos
interacionais não é apenas uma mudança de objeto, mas de perspectiva.
O Tenente dos Dragões, Martinho Alves Coelho, movido por seus interesses faz
uma importante diligência para impedir que os reais quintos de Sua Majestade fosse
descaminhado, de acordo com Dom Lourenço em carta enviada ao Rei, ao tomar
conhecimento por meio de algumas investigações de que um importante comboio seguia
pela estrada de São Paulo com ouro descaminho, este ―[...] logo me veio dar parte, e
denunciar este ouro, e me pediu que ele mesmo queria ir confiscar‖21
. Assim, logo após
realizar a apreensão e confisco, Martinho Alves de Coelho ―[...] cobrou a terça parte do
ouro que se confiscou [...]‖22
e logo fez ―[...] requerimento para que como denunciante
lhe mande inteirar a metade do ouro, de acordo com as leis, por ser ao mesmo tempo, o
denunciante e ter feito a apreensão‖23
. Uma vez que a lei estava dando margem à
interpretações duvidosas, Dom Lourenço, em acordo com o Provedor da fazenda
ajustaram dar apenas a terça parte do confisco ―[...] porque Vossa Majestade diz nesta,
que releva depois a todo o transgressor, se ele denunciar ouro, e manda que se lhe dê a
metade do ouro que denunciar, e que visto Vossa Majestade não mandar pela sua lei dar
a metade, se não do denunciante que for transgressor [...]‖24
. Ao que parece, além do
Rei permitir dar a metade do ouro somente ao próprio transgressor que for o
denunciante, em sua lei ele ―[...] não manda absolutamente dar a tal metade a qualquer
denunciante[...]‖25
nesse sentido, diante de tais duvidas Dom Lourenço é servido por
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hora dar apenas a terça parte ao Tenente dos Dragões [...] que é o que Vossa Majestade
manda dar a quem denuncia qualquer fazenda furtada aos direitos‖ 26
. Num primeiro
momento, pode-nos parecer estranho o fato de o Rei ser tão benévolo com seus súditos
transgressores, dando o respaldando por lei a possibilidade do arrependimento o que
levaria apenas a apreensão da metade de todos os bens. No entanto, a lógica daqueles
que viviam numa sociedade de Antigo Regime justificava tais ações, estas eram
configuradas pelo meio social em que viviam não podendo o Rei se desvincular-se de
tal estrutura.
Ao permitir esse tipo de negócio a Coroa abria largos espaços para as negociações
antes de se aplicar a justiça, além de tornar o processo de beneficiamento daqueles que
fizeram a denúncia e o confisco mais complexo, nesse sentido, observamos como
afirmou Hespanha, o direito penal se caracteriza, mais do que por uma presença, por
uma ausência, deixando transparecer nessas relações aquilo que acreditamos ser o
modelo administrativo no Ancien Régime, a ―oeconomia‖, onde a ―transposição do
imaginário familiar para o campo das relações sociais informais é uma constante da
época‖ 27
. E de modo bastante peculiar, o governador ajuda a imprimir esse imaginário
nas suas relações na colônia, interferindo de modo significativo nas relações políticas
estabelecidas no interior das Gerais, importantíssimo para a criação dos seus próprios
laços de amizade, nesse sentido ele faz grandes elogios a ação do Tenente que ―[...] fez
um grande serviço, assim na tomada que fez, e pela sua indústria descobriu, como
quanto grande terror que tem causado este confisco‖ 28
por tudo isso que fez o Tenente,
Dom Lourenço acha conveniente e sugere ao Rei que ―se sirva pela Sua Real grandeza,
e piedade de lhe mandar dar a metade do ouro da tomada [...]‖ 29
. Além de sugerir que
se faça dele capitão de uma das companhias dos dragões, que se achavam sem os seus‖
30. Ao terminar a carta, o governador volta a insistir naquilo que já havia dito em cartas
anteriores, e tenta convencer El-Rei a aceitar aquilo que lhe parecia ser o modo mais
conveniente para se evitar os constantes descaminhos,
[...] dizendo que a todo o denunciante de ouro furtado aos quintos, e a
todos aqueles que prenderem os transgressores, trazendo os primeiros
presos e entregando os confiscos para serem sentenciados se lhe desse não
só todo o ouro confiscado, senão também o mais confisco que se lhe fizer,
se de toda a sua fazenda, porque esta forma haveria muita gente, que
procurasse para utilidade sua, fazer denunciação e confiscos, e não haveria
com este receio quem se atrevesse a desencaminhar ouro [...]31
.
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Entretanto, ao que parece o Rei estavam nada satisfeitos com as livres iniciativas
do governador nas Minas Gerais, diante dessas questões, assim o Rei, em consulta do
seu Conselho Ultramarino, não poupa palavras para repreender a ação do governador
nesse caso, em que nem ao Tenente cabia pedir e menos ainda o governador entregar-
lhe a terça parte ―[...] antes de haver sentença de condenação e nela se julgar a tomada
por boa como de direito é necessário‖ 32
além disso, El-Rei põe um ponto na discussão
deixando claro de uma vez por todas para que não haja mais duvidas que, ―[...] seja ou
não transgressor o denunciante se lhe dê a metade que a lei aponta o que só se praticará
para o futuro, de que vos aviso para assim o tenhais entendido‖33
.
A forma de governabilidade adotada pela Coroa, principalmente nessas situações
poderia se constituir numa via de mão dupla, embora não equilibrada, podendo muitas
vezes estar desfavorável para o próprio Rei. Ao soberano cabia a justiça, como também
a graça e os atos de compaixão para com seus vassalos, o não punir com severidade
poderia levar, talvez a muitos não temerem os descaminhos, pois inúmeros subterfúgios
poderiam ser utilizados para escapar da penas impostas aos descaminhadores. O
exemplo que se devia dar não era feito, o que era para intimidar, não assustava, e os
vassalos empreendiam cada dia mais seus esforços não em se sujeitar às leis, mas em
agir de acordo com os seus interesses, tecendo as suas próprias redes de poder, como no
caso das Casas de Moedas falsas encontrada nas Minas.
É interessante observar a explicação dada pelo governador por ter dado a terça
parte ao tenente, além dele o ter denunciado, os que levavam tal carregamento
confessaram ser este ouro descaminhado, assim tal prerrogativa por si só já justificaria o
confisco, por outro lado, é sabido que
a razão porque denunciam é para logo se lhe entregue a sua parte, para com
ela remirem as suas necessidades, por esta causa, também é que mandei
logo entregar a Martinho Alves a tal terça parte, para assim fazer exemplo
e me ter apetite a que houvesse mais pessoas que denunciassem ouro 34
.
Podemos perceber o quanto os serviços ao Rei estava limitado pelos interesses de
particulares, uma vez ninguém há de querer ―denunciar ouro esperando que em Lisboa
se sentencie por bem feita a tomada, e a experiência assim a mostra porque depois que
se soube desta real resolução de Vossa Majestade, não houve mais nem quem fizesse a
diligência de pesquisar quem levava ouro furtado‖ 35
. Nesse sentido, qualquer estudo
que venha salientar o caráter rígido das relações que se estabeleciam entre metrópole e
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colônia carece de análise sobre o dinamismo das relações internas e o seu poder de
negociação e imposição de suas vontades baldando muitas vezes por completo as
iniciativas metropolitanas. As qualidades assim atribuídas ao Rei se por um lado
serviam para reforçar os seus laços de lealdade com seus súditos, por outro se mostrava
um tanto arriscado, uma vez que
―[...] é muito ouro que se furta aos reais quintos de Vossa Majestade e com
demasia insolência, porém não há quem se atreva a denunciá-lo, talvez
porque se não querem malquistar e não cobrarem logo e porque tem visto
que os presos que tem ido para a Lisboa voltaram para este Brasil
perdoados do degredo da Índia, e nesta América mata-se a gente com muita
facilidade sem saber quem os matou‖.
O que se destaca aos olhos do leitor é a forma como o governador se posiciona
mediante a um ponto chave na política ultramarina e que interfere de imediato no modo
de sociabilidade na colônia, ou seja, o perdão dado pelo Monarca aos transgressores.
Incentivar as denúncias poderia gerar um clima tenso nas minas e nos caminhos que
levavam a ela, as promessas de ganhos poderiam significar uma ―faca de dois gumes‖
para sua política ultramarina, uma vez que, não se trabalhava com a consciência de
servir bem a Sua Majestade, mas com a idéia do lucro fácil e rápido, essa consciência
fragilizada poderia causar sérios danos à administração ultramarina, bem como a própria
imagem do rei como soberano. Além de tudo, o fato de os colonos ao perceberem que
muitos que iam para o reino voltavam para a colônia perdoados contribuía para tornar
ainda mais complexa a situação no ultramar. Nem o incentivo as denuncia, nem os
confisco serviram para coibir os descaminhos, levando a Coroa a um intenso dialogo
com oficiais régios sobre o melhor meio de se cobrarem os quintos, levando o rei a uma
conclusão um tanto realista acerca da realidade local no qual se deparavam, pois sendo
representados vários arbítrios, e fazendo larga consideração sobre esta
matéria, vim a conhecer, que não era esperável ir por meio de rigores, ou
aumento das penas, nem por multiplicação das Casas de Fundição ou de
guardas, nem finalmente por outra alguma diligência que se usasse, se
evitasse os descaminhos de um gênero tão fácil a esconder, como é o ouro
em um país, cuja disposição subministra muitos meios para fraudá-lo, e
que todos os ditos remédios não produziram outro fruto mais que aumentar
as despesas à minha Fazenda, persistindo sempre o embaraço do comércio
e multiplicando-se cada dia mais os delitos.36
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Desse modo, mandar dar buscas nos viandantes, vigiar os caminhos e portos, dar
buscas nas casas de nada adiantaria se não estivesse imputado primeiro na consciência
dos povos as obrigações devida a Sua Majestade, a começar pelos oficiais. Mas para
isso, talvez fosse necessário que a Coroa agisse de outra forma, adotasse outra política,
mas que não seria possível devido à distância e também ao contexto político no qual a
Monarquia portugusa estava inserida, ou seja, no Ancien Régime condicionando dessa
forma muitas de suas ações adotadas para o ultramar.
1 Mestranda pelo programa de pós-graduação em História, UFJF.
2 GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In:
SOIHET, Raquel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). Culturas
Políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad,
2005. p. 23 3 Idem. p. 24
4 REVEL, Jacques (org). Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 2000
5 GIL PUJOL, Xavier. Tiempo de política: perspectivas historiográficas sobre a Europa Moderna.
Barcelona:Universitat de Barcelona, 2006. pag. 87. 6 Idem. p. 102
7 Idem. p. 103
8 Idem.
9 Idem.
10 Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas no ano de 1720: Fundação João
Pinheiro, 1994. P. 67 11
FURTADO, Júnia Ferreira. Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para o império
marítimo português no século XIII. IN: FURTADO, Junia Ferreira; SOUZA, Laura de Mello &
BICALHO, Maria Fernanda (orgs). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009. p. 118 12
Tendo sido formulada inicialmente por Nuno Monteiro, João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa tem
contribuído para a formulação do conceito, no qual intuí-se ―que se tratava de uma chave cognitiva capaz
de dar conta da dinâmica do império ultramarino português‖. Cf: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de
Fátima. Monarquia pluricontinental e república: algumas reflexões sobre a América lusa nos séculos
XVI-XVIII. In: Tempo, vol. 14, nº 27, Niterói, jul/dez. 2009 e MONTEIRO, Nuno G. A ‗tragédia dos
Távoras‘. Parentesco, redes de poder e facções políticas em meados do século XVIII. In: FRAGOSO,
João e GOUVÊA, Fátima (orgs.). Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos
XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010 13
FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima. Idem. p. 5 14
GOUVÊA, Maria de Fátima. Diálogos historiográficos e cultura política na formação da América
Ibérica. IN: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). Culturas
Políticas. Ensaios de história cultual, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
p. 78. 15
BICALHO, Maria Fernanda. As tramas da política: conselhos, secretários e juntas na administração da
monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos. In: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de
Fátima (orgs). Na Trama das Redes. Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização brasileiro. 2010. P. 346 16
HESPANHA, António M. "Os poderes do centro". In:MATTOSO, José (dir.). História de Portugal,
volume 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa,1993. p. 187/188
17 Idem
18 SIMMEL, Georg. ―Sociabilidade – um exemplo de sociologia pura ou formal‖. In: MORAIS FILHO,
Evaristo de (org). Georg Simmel: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. P. 167. 19
Idem. p. 169 20
Idem. p. 165 21
PROJETO RESGATE – AVULSOS DE MINAS GERAIS. Cx. 11. Doc. 33. 1729. Carta de Dom
Lourenço de Almeida, governador das Minas Gerais, comunicando o prejuízo causado por Martinho
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Alves Coelho, tenente dos Dragões, e as providências tomadas para impedir o descaminhos dos reais
quintos.
22 Idem
23 Idem
24 Idem
25 Idem
26 Idem
27 HESPANHA, Antonio Manuel & BARRETO, Angela Xavier. As redes clientelares. In: MATTOSO,
José (dir.). História de Portugal, volume 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 342
28 Idem
29 Idem
30 Idem
31 Idem
32 Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM). Transcrição da 1ª parte do Códice 23 (Seção Colonial).
Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei 1721-1731. p.273. Belo Horizonte.
V. 30. 1979 33
Idem 34
Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM). Transcrição da 2ª parte do Códice 23 (Seção Colonial).
Registro de alvarás, cartas, ordens régias e cartas do governador ao rei 1721-1731. p.256. Belo Horizonte.
V. 31. 1980. 35
Idem 36
APM/SC 35 – Carta de Sua Majestade ao governador de Minas Gerais, Conde das Golvêas, André de
Mello e Castro sobre o parecer dos ministros sobre o sistema de Capitação. Lisboa, 30 de outubro de
1733. f. 18
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A RESTRIÇÃO À IMIGRAÇÃO NO BRASIL DURANTE A ERA
VARGAS (1930-1945) – DEFINIÇÕES DO PRECONCEITO E EXTENSÃO
DA SUA EXISTÊNCIA
Luciana Garcia de Oliveira1
RESUMO: Em meio à grande produção acadêmica sobre imigração, é comumente
destacado os problemas enfrentados pelos estrangeiros, sobretudo no campo. Por outro lado, há
pouca abordagem sobre aqueles que permaneceram nas grandes cidades brasileiras com
dificuldades mas, também com muito sucesso e prosperidade. O trabalho, no entanto visa
destacar a importância sócio-cultural da presença dos imigrantes judeus e as origens da
discriminação sofrida em território nacional, sobretudo após o advento do regime do Estado
Novo.
Palavras chaves: imigração, judeu e discriminação.
ABSTRACT: Amid the scholarship on immigration, it is commonly highlighted the
problems faced by foreigners, especially in the field. On the other hand, there is little approach
to those who remained in the large Brazilian cities with difficulties but also with much success
and prosperity. The study, however, aims to highlight the socio-cultural presence of Jewish
immigrants and the origins of the discrimination suffered in the national territory, especially
after the advent of the Estado Novo regime.
Key words: immigration, jewish and discrimination.
1. Introdução
Logo no final da Primeira Guerra Mundial, a constatação do aumento
proporcional da entrada de imigrantes de origem judaica no Brasil deveu-se, em parte às
mudanças na legislação imigratória dos Estados Unidos, Canadá, Argentina e África do
Sul, que passaram a ser bastante restritivas à esse contingente.
O fato da maioria desses imigrantes serem provenientes do Leste Europeu pós
Revolução Russa, serviu para que os principais políticos brasileiros e intelectuais
respeitados legitimassem seus preconceitos, de modo à associar todos judeus ao
comunismo. Muitos debates foram planejados à fim de insuflar sobre o ―problema
judaico‖, devido ao tamanho da comunidade aqui instalada.
Era bastante reparado no entanto que, frequentemente, esses imigrantes eram
auxiliados pelas empresas de créditos (laispar kasses), que forneciam recursos
suficientes para que pudessem abrir pequenas lojas e fábricas nas grandes cidades, já
que não eram acostumados a trabalhar na lavoura como os demais imigrantes (italianos,
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espanhóis e portugueses). Essas empresas, eminentemente judaicas, possibilitavam a
todos esses imigrantes a dispor de uma base monetária inicial.
Assim que recebiam esse capital, costumavam comprar mercadorias no atacado
de antigos mascates (geralmente formado por imigrantes sírios e libaneses). Prática que
rendeu comentários bastante negativos por parte da imprensa brasileira, que não via
―com bons olhos‖ o rápido crescimento e a prosperidade desses imigrantes frente aos
demais habitantes em território nacional.
Houve a preocupação, por parte de líderes judaicos, como o rabino Isaiah
Raffalovich que, comumente alertava a comunidade judaica sobre o perigo da criação
de associações restritivas aos judeus, fato que poderia provocar uma nova insurreição
do antijudaísmo, semelhante ao ocorrido nos países de origem desses imigrantes.
Segundo a obra “O Brasil e a questão judaica – Imigração, diplomacia e preconceito”
de autoria de Jeffrey Lesser é citado caso parecido envolvendo o prestigiado escritor
Guilherme de Almeida:
―Esses temores não eram infundados. Poeta altamente conceituado e
membro da prestigiosa Acadêmia Brasileira de Letras, Guilherme de
Almeida denominou o Bom Retiro de ―O Gueto‖, na série de oito artigos à
respeito das ―impressões acerca de nossos diversos bairros estrangeiros‖,
que escreveu para o Estado de São Paulo, jornal de grande circulação, ao
fazê-lo Almeida provavelmente quis invocar uma imagem dual que
combinava a idéia de um bairro urbano centro-europeu, onde os judeus
eram segregados da sociedade ao redor, com a miséria que os não-judeus
com freqüência associavam com o shtetl (aldeia judaica) da Europa do
Leste‖2 .
A imagem até então descrita por Almeida revela que, para muitos, os judeus
recém chegados não eram considerados completamente humanos. A existência de
problemas sociais, envolvendo considerável número de prostitutas e rufiões judeus nas
grandes cidades brasileiras (como no Rio de Janeiro), determinava uma crescente
oposição à entrada desse grupo no país. Era possível deparar-se com jornais (e outros
meios da imprensa popular) que se utilizavam da visão cristã tradicional que via no
judaísmo a decadência moral, fruto da associação com a prostituição e com o
rufianismo.
Inclusive, foi observado por alguns estudiosos no Brasil que a palavra ―polaca‖
era sinônimo de prostituta (e de judia), da mesma forma a gíria ―cafetão‖ era largamente
utilizado para referir-se à homens judeus, sobretudo os do Leste Europeu.
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Diante dessa realidade, foi fundado em 1924 em São Paulo, um grupo
denominado Sociedade Religiosa Beneficente Israelita (SRBI), muito provavelmente
pelas próprias prostitutas, a fim de disponibilizar assistência, pelos quais a população
brasileira recusava-se a prestar. Assim, quando foi definitivamente solucionado o
problema da prostituição judaica, em 1968, a sociedade foi dissolvida. Em seu lugar foi
fundado o Lar do Velhos (também pertencente à essa comunidade) com o capital até
então remanescente.
Todo esse estado de calamidade, envolvendo esses novos imigrantes, de acordo
com Jeffrey Lesser e outros estudiosos do tema, era resultado direto e natural da
segregação econômica, social e educacional sofrida pela comunidade judaica do Leste
Europeu, sobretudo instalada no Rio de Janeiro.
Por outro lado, era notado, segundo Marcos Chor Maio que, embora houvesse a
existência de algumas instituições exclusivamente judaicas, havia, ao mesmo tempo,
uma forte interação dos imigrantes judeus e seus descendentes com a sociedade
brasileira, seja no campo educacional, seja no mercado de trabalho3.
2. As demais instituições de integração
Além das instituições já existentes, havia ainda a presença de bases comunitárias
que facilitavam e ao mesmo tempo incentivavam os judeus a se estabelecerem no Brasil,
contando inclusive com importante apoio financeiro da Jewish Colonization
Association, que colaborou diretamente na criação de diversas escolas judaicas na
década de 1920 instaladas em várias cidades brasileiras.
Mais tarde, em 1925, teve início uma série de pequenos conflitos dentro dessas
escolas. Por um lado, os sionistas insistiam no ensino obrigatório do hebraico, por
outro, antissionistas (esquerdistas), reclamavam pela falta do ensino do ídiche. Dessa
forma, as escolas passaram a serem divididas de acordo com suas orientações políticas.
Apesar de alguns problemas enfrentados, foi constatado que o estabelecimento
de diferentes instituições judaicas transformou o Brasil em um lugar mais atraente para
os judeus . Nesse sentido, para garantir uma migração segura e ―apropriada‖, foi
redigido pelo próprio Raffalovich e distribuído na Europa Oriental, panfletos exaltando
todas as virtudes do país.
No final da década de 1920, a vida judaica encontrava-se bem organizada e
estabelecida e, em decorrência disso, a comunidade em questão já havia triplicado o seu
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tamanho. O que não impediu que, uns anos depois, problemas de ordem econômica (em
decorrência da grande depressão), como a queda do preços do café contribuíssem para
que a atitude brasileira mudasse com relação à comunidade judaica. O aumento nos
preços e no desemprego, causado pela crise, influenciou diretamente na imigração.
Agora, as organizações judaicas dispunham de menos recursos e os problemas
econômicos desencadeados desestimulou muitos imigrantes potenciais a virem ao
Brasil.
Mesmo assim, o modo de encarar o Brasil (do ponto de vista do imigrante
judeu), mudou drasticamente, por volta de 1930. O país já não era considerado como
uma parada intermediária rumo a riqueza em outra parte. Muitos percebiam que era
mais fácil ganhar a vida no Brasil do que em qualquer parte do mundo.
Em conseqüência dessas mudanças, as associações aqui instaladas passaram a
concentrar seus trabalhos em prol de transformar os imigrantes em cidadãos brasileiros
e menos ao auxílio para a sua chegada.
As boas relações das lideranças judaicas com o governo brasileiro perduraram
durante muitos anos, principalmente durante a gestão de Raffalovich, mesmo após ser
também decretada uma legislação restritiva a entrada desse contingente no Brasil.
3. Catolicismo e judaísmo
No advento ao Estado Novo, em novembro de 1937, já haviam muitos fatores
que influenciaram a atmosfera antijudaica, sobretudo as idéias racistas, advindas por
parte de setores da administração e intelectuais, que predominaram no Brasil desde o
final do século XIX. Além das idéias e teorias, a existência de um setor fascista
brasileiro foi bastante determinante para a identificação dos judeus ao comunismo
internacional.
Em decorrência desse clima, a conseqüência imediata foi a redução de cotas de
imigração de toda pessoas de ―origem semita‖. Assim, muitos cônsules na Europa
receberam instruções para não conceder vistos a esses imigrantes, que passaram a serem
considerados indesejáveis.
Os reflexos às hostilidades contra imigrantes judeus, perdurou durante muitos
anos, e ainda prevalecia entre membros da administração brasileira. Políticos,
diplomatas, publicistas e intelectuais argumentavam que tratava-se de uma imigração
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prejudicial, já que os judeus, em geral, não eram agricultores e sua presença atrairia uma
série de conflitos e transtornos nas grandes cidades brasileiras.
Em pleno Estado Novo, ainda em 1937, o Ministério do Exterior emitiu, com a
autorização do presidente Getúlio Vargas, uma circular secreta (número 1127), enviada
aos cônsules na Europa, na qual proibia (oficialmente) a concessão de vistos à pessoas
de ―origem semita4‖. No ano seguinte, a imigração desse grupo havia diminuído
consideravelmente.
A identidade nacional, no entanto, era relacionado à religião católica. O que
serviu para rotular o judeu como inimigo do cristianismo. Porém, mais determinante, foi
a ênfase na identificação dos judeus aos comunistas.
A imagem histórica oficial de que havia a presença de judeus em todas as
revoluções, corroborava, de certa forma, a idéia de que esse mesmo grupo dominava a
economia mundial, mediante financiamento internacional. Aliado a este esteriótipo,
elementos como o internacionalismo e o antipatriotismo, faziam com que a sociedade
assimilasse o perigo implícito não somente entre os judeus de esquerda (envolvidos
sobretudo na Revolução de Outubro), mas sobre todos os judeus indistintamente.
De maneira semelhante, ao ocorrido na Argentina, o antijudaísmo no Brasil não
se baseou nas idéias propagadas pela Alemanha Nazista. As elites católicas brasileiras
inspiraram-se em outras fontes, que não era influenciado tão somente pelas idéias de
superioridade racial. A ameaça comunista era uma das principais causas para que
setores da Igreja Católica repudiassem os judeus. Para os católicos, o advento de idéias
revolucionárias em solo nacional, implicaria na forte possibilidade de perda de fiéis,
além da ameaça iminente à algumas instituições consideradas ―sagradas‖ como a
família e a propriedade.
Aliado a tudo isso, mais tarde, em 1942, quando a maioria dos países latino-
americanos já tinham rompido relações com os países do Eixo, o Brasil em 28 de
janeiro do mesmo ano, rompeu suas relações com a Alemanha e logo iniciou relações
diretas com os Estados Unidos.
O que propiciou para que, alguns anos depois (em 1947), o então Ministro das
Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, participasse da divisão da Palestina. O que lhe
rendeu grandes homenagens em Tel Aviv, capital do Estado de Israel, mesmo que
quatorze anos antes o presidente Vargas e suas lideranças políticas, incluindo Aranha,
tivessem impedido impiedosamente a entrada de muitos refugiados judeus no Brasil.
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Muito embora havia a prevalência do antijudaísmo por parte dos membros da
administração do governo Vargas, internamente, os judeus que já viviam no Brasil,
enfrentavam poucos empecilhos cotidianos ou estruturais para a conquista de objetivos
econômicos e sociais, segundo Jeffrey Lesser em seu artigo Semitismo em negociação:
O Brasil e a questão judaica (1930-1945).
Dessa forma, a imigração judaica tornou-se assim, foco de grande atenção.
Muitos imigrantes e refugiados judeus ascenderam a economia nas cidades brasileiras.
Fato que, para muitos intelectuais brasileiros, mostrou-se bastante positivo, sobretudo
para o crescimento da economia nacional e a conseqüente visibilidade internacional.
Nesse passo, é constatado que em 1939, foi ano de maior abertura ao contingente
judeu, quando compararmos à qualquer outro ano de incentivo à políticas imigratórias
no Brasil. Segundo Lesser, número maior ao ocorrido desde 1929.
Além da visibilidade e importância no que diz respeito ao desenvolvimento
econômico no Brasil, o que de fato foi muito determinante para essa situação, foi
exatamente o papel exercido pelos grupos de assistência à comunidade judaica, como as
sinagogas, escolas e clubes, preponderantes no que se concerne às mudanças de velhos
esteriótipos em atributos considerados positivos. Houve, inclusive a presença de alguns
intelectuais notáveis, conhecidos internacionalmente, como a do cientista Albert
Einstein, que aterrizou no Brasil, a fim de colaborar para o incentivo a ajuda aos
refugiados de seus conterrâneos na Europa.
Outra questão determinante para a mudança comportamental foi a pressão
exercida pelos Estados Unidos a fim de que outros países assumissem o compromisso
em relação à questão judaica. O desejo de apresentar ao mundo a recusa em
institucionalizar o antijudaísmo na política interna, corroborou para que muitos políticos
se dispusessem à realizar exceções, diante da política oficial de recusa à vistos à
imigrantes refugiados.
Assim, o rompimento com os países do Eixo foi culminante para a propaganda
de solidariedade para com os imigrantes judeus, vítimas de perseguições políticas na
Europa.
4. A postura do Itamaraty
Em janeiro de 1941, ainda com base na política institucional de não admissão de
judeus, o secretário das Relações Exteriores enviou uma circular aos consulados
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estrangeiros, com detalhadas instruções para identificar judeus interessados em vistos
para o ingresso ao Brasil.
Conforme preleciona Avraham Milgram em seu artigo O Itamaraty e os judeus:
―A atitude do Brasil em relação aos judeus europeus nos anos de 1930 e de
1940 foi objeto de várias teses acadêmicas. As duas obras referenciais da
matéria são de autoria de Maria Luiza Tucci Carneiro e do historiador
americano Jeffery Lesser. Trata-se de perspectivas antagônicas na maneira
de julgar o Estado Novo e sua ―política judaica‖. Para Maria Luiza Tucci
Carneiro, a expressão ideológica nacionalista-antissemita do Estado Novo
foi o fator determinante na obstrução à entrada de judeus ao Brasil e a
responsável pelo seu balanço negativo. Para Jeffrey Lesser, a conjuntura
das relações do Brasil com as potências aliadas de um lado e a gama de
interesses econômicos advinda de dentro do país de outro, foi o que
possibilitou a reformulação da imagem do judeu e a conseqüente entrada
de contingentes imigratórios, apesar das pressões ideológicas nacionalistas
e nativistas em contrário.‖5 .
Para os que defendiam o impedimento à entrada de judeus no país, o alegavam
no sentido de que o Brasil deveria dar preferência aos imigrantes trabalhadores
agrícolas, ao contrário, geraria aumento no índice de desemprego nos centros urbanos.
Por isso, muito deles negavam o rótulo de antissemita, uma vez que não discriminavam
a comunidade judaica pelo fato de serem membros de uma cultura e religião peculiar,
mas porque preocupavam-se em evitar eventuais transtornos as grandes cidades
brasileiras. Para esses atores, o projeto político nacional envolviam fatores puramente
sociais. 6
1 (Email: [email protected]) – Pós-graduanda em Política e Relações Internacionais, sob
orientação do professor Dr. Igor Fuser pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(FESP), graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e
membro do Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e Mundo Muçulmano, da faculdade de História da
Universidade de São Paulo (USP). Endereço pessoal: Rua Vitor Dubugras, 182, bairro Jardim da Glória –
São Paulo – SP, CEP: 04114-100, telefone residencial: 011-55757775, celular: 011-71296915.
1. 2 LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica – Imigração, Diplomacia e
Preconceito, p. 71. 3 MAIO, Marcos Chor. PANDOLFI, Dulce (org.) Repensando o Estado Novo, p. 230.
2. 4 LESSER, Jefrey. O Brasil e a questão judaica – Imigração, Diplomacia e Preconceito,
p. 83. 5 MILGRAM, Avraham. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). O anti-semitismo nas Américas,
p. 382.
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Uma análise dos Parâmetros Curriculares de História para o Ensino
Fundamental: propostas e possibilidades
Luciana Velloso1
Introdução
A partir dos anos de 1990, as questões educacionais tomaram dimensões
complexas, posto que se vivia um momento de construção de uma nova ordem social
marcada pela aceleração das mudanças sociais, tecnológicas e culturais e de uma nova
concepção de Estado e de relações entre o global e o local. Pensando, então, na
produção de textos, que encaminham as novas políticas curriculares, se discutiu os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que circularam em sua versão preliminar a
partir de novembro de 1995, e que estavam sendo elaborados por técnicos ligados ao
Governo Federal.
No ano de 1997, o Ministério da Educação e do Desporto do Brasil (MEC)
apresentou a versão final dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de 1ª a 4ª
séries e, em 1998, foi apresentada a versão final dos PCNs para o ensino de 5ª a 8ª
séries. O processo que resultou na versão preliminar dos Parâmetros teve início antes da
posse (do primeiro mandato) do na época Presidente da República, Fernando Henrique
Cardoso, em 1995. Já no final do ano de 1994, a futura equipe da Secretaria de
Educação Fundamental do MEC teria promovido discussões entre estudiosos da
educação brasileira e representantes de alguns países que recentemente haviam
realizado reformas curriculares, sobre a idéia de estabelecer um currículo nacional para
o Brasil.
A reforma curricular foi considerada essencial para o desenvolvimento efetivo dos
indivíduos e da sociedade, pois se alegou que a escola ainda tinha como objetivo de
ensino a capacitação de alunos para a ocupação de futuros postos de trabalho nas
especializações tradicionais. Os princípios que orientaram a reforma curricular do Brasil
foram amplamente divulgados, na década de 1990, através da Declaração Mundial
Sobre Educação para Todos, cujas diretrizes foram traduzidas no nosso Plano Decenal
de Educação, em 1993.
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Em relação aos PCNs, o que estava em questão eram, de um lado, discussões
sobre os problemas relacionados à noção de um ―currículo nacional‖, posto que, apesar
da afirmação da não obrigatoriedade da adoção desses parâmetros - antecipada em seu
documento introdutório -, esse parecia ser apenas um recurso retórico pelo que se podia
observar em termos dos investimentos que estavam sendo realizados na sua construção
e no que ia emergindo em torno de poderes constituídos e recursos mobilizados, assim
como por sua feição de guia curricular com muitas especificações e prescrições.
Por outro lado, havia também críticas em relação à forma não democrática de sua
construção, que foi confiada a um grupo restrito de especialistas, deixando de lado uma
grande diversidade de enfoques e perspectivas a respeito dos currículos escolares. Nesse
contexto, também emergia a preocupação com o que poderia significar a adoção dos
PCNs para o trabalho docente.
Deve-se destacar que os PCNs para o Ensino Fundamental foram se tornando
diretrizes de alcance nacional, especialmente alicerçados naquilo que se constituiu como
os conteúdos disciplinares avaliados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica
(SAEB). É o que distinguem Souza e Oliveira2 ao afirmarem o poder do SAEB de
conformar os currículos escolares. Nesse aspecto, lembram ―o significado que podem
assumir os Parâmetros Curriculares Nacionais, no sentido de se constituírem nos
padrões de desempenho esperados‖. O que está em questão, portanto, é que as unidades
escolares, envolvidas em processos de competição, irão planejar o desenvolvimento
curricular por aquilo que será objeto da avaliação do sistema. Assim, ganhou força o
que está proposto pelos PCNs de forma geral, e no que é objeto de análise deste
trabalho, o que se refere ao ensino de História.
1. Apresentando e Contextualizando os PCNs de História para o Ensino
Fundamental
Uma das preocupações que aparecem de forma bastante explícita ao longo do
documento é sua preocupação com uma aprendizagem contextualizada, ou seja, há um
destaque que se dá ao conceito de ―contextualização‖. Conforme indica Lopes3 - ao
pensar a produção de políticas curriculares – o conceito de contextualização foi
desenvolvido pelo MEC por apropriação de múltiplos discursos curriculares, nacionais e
internacionais, oriundos de contextos acadêmicos, oficiais e das agências multilaterais.
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1080
A contextualização, associada à interdisciplinaridade, foi sendo divulgada pelo MEC
como princípio curricular central dos PCNs capaz de produzir uma verdadeira revolução
no ensino.
A aprendizagem situada (contextualizada) é associada, nos PCNs, à preocupação
em retirar o aluno da condição de espectador passivo, em produzir uma aprendizagem
significativa e em desenvolver o conhecimento espontâneo em direção ao conhecimento
abstrato. Com constantes referências a autores como Vygotsky, Piaget e outros
vinculados ao construtivismo, a contextualização nesses momentos aproxima-se mais da
valorização dos saberes prévios dos alunos. Nesse caso, contextualizar é, sobretudo, não
entender o aluno como ―tábula rasa‖. Em certa medida, a idéia de contextualização
também aparece associada à valorização do cotidiano: os saberes escolares devem ter
relação intrínseca com questões concretas da vida dos alunos. Tal preocupação parece
bem em consonância com o que já assinalava Jörn Rüssen4, ao se referir à preocupação
de Karl-Ernst Jeismann, com o engajamento por parte do historiador, atento/a à relações
tecidas entre saberes e práxis (no sentido de ação no mundo), entre participação social e
reflexão sobre os processos temporais de seu tempo.
Para o Ensino Fundamental, os PCNs subdividem-se em 10 Volumes5, sendo o
Volume 5, foco desta análise, o de História e Geografia. O documento estrutura-se em
duas partes. Uma primeira parte que envolve: Caracterização da área de História;
Aprender e Ensinar História no ensino fundamental; Objetivos gerais de História para o
ensino fundamental; Conteúdos de história: critérios de seleção e organização. Já a
segunda parte que trata das especificidades do Primeiro Ciclo e do Segundo Ciclo, além
das respectivas Orientações Didáticas.
Já na apresentação ao professor dos PCNs em geral, o na época Ministro da
Educação, Paulo Renato de Souza, indica que há uma forte preocupação com o auxílio
no trabalho docente, embora se explicite que os Parâmetros Nacionais não se propõem a
serem guias, mas referenciais para o trabalho docente, que respeitem a concepção
pedagógica de cada instituição e a pluralidade cultural do país. Desse modo, colocam-se
como ―abertos e flexíveis, podendo ser adaptados à realidade de cada região‖6.
A preocupação com a cidadania é bastante frisada, ainda no texto do Ministro,
destinada aos docentes. Foram observadas no texto três menções ao termo, de diferentes
formas (―crescerem como cidadãos‖, ―conquista de sua cidadania‖, ―o propósito do
Ministério ao consolidar os Parâmetros, é apontar metas de qualidade que ajudem o
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aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão participativo, reflexivo, autônomo,
conhecedor de seus direitos e deveres‖). Nesse sentido, dentre os Objetivos Gerais dos
PCNs para todas as disciplinas, o primeiro objetivo define a concepção de cidadania do
Ministério e enfatiza a necessidade dos alunos serem capazes de
―compreender a cidadania como participação social e política, assim como
exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia,
atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e
exigindo para si mesmo o respeito‖7
Os objetivos são apresentados de duas maneiras no documento. A primeira surge
como objetivos gerais a serem alcançados ao final do Ensino Fundamental. Já a segunda
refere-se aos objetivos específicos por série ou ciclo. Dentre os objetivos gerais espera-
se que os alunos sejam capazes de compreender a cidadania como participação social e
política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando
no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o
outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável
e construtiva nas diferentes situações sociais.
Aborda-se também o uso do diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar
decisões coletivas; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural
brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se
contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de
crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais.
2. Ideias e concepções acerca dos conteúdos e das práticas de ensino/aprendizagem
na disciplina História
A proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais de História é proporcionar ao
professor da Educação Básica uma visão clara sobre o ensino desta disciplina, bem
como seus principais objetivos. É possível verificar neste documento pedagógico o
tratamento de três conceitos que estarão presentes em todos os anos de escolaridade: o
fato histórico, o sujeito histórico e o tempo histórico. Importante ressaltar que, na busca
por esses conhecimentos o professor estará escolhendo uma concepção de História para
transmitir aos alunos o estudo produzido por pesquisadores, adaptando a seus objetivos.
No que se refere à questão do tempo histórico, podemos observar a presença dos
conceitos de diferentes temporalidades, conforme fora explicitado pelo renomado
historiador Fernand Braudel em seu clássico “O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo
na época de Felipe II”. Assim como Braudel8 nos fala das três temporalidades (curta,
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média e longa duração), os PCNs também informam que, dependendo dos ritmos da
duração e da velocidade com que as mudanças ocorrem, podemos identificar três
tempos: do acontecimento breve (corresponde a um momento preciso, marcado por uma
data), o da conjuntura (se prolonga e pode ser apreendido durante uma vida) e o da
estrutura (parece imutável, pois as mudanças são imperceptíveis na vida das pessoas).
Os PCNs distinguem maneiras distintas de serem trabalhados os conceitos
históricos, dependendo das escolhas didáticas, ou seja, podem-se propiciar situações
pedagógicas privilegiadas como o desenvolvimento de capacidades intelectuais
autônomas, que definirá a constituição da identidade social do alunado.
Na leitura do documento se evidencia a preocupação com um ensino de História
que desenvolva a consciência humana, algo que seria alcançado estabelecendo-se
relações entre identidades individuais, sociais e coletivas, relacionando o particular e o
geral, construindo noções de diferenças e semelhanças e de continuidade e permanência.
Assim, no ensino de História coloca-se a necessidade do uso de metodologias
específicas a faixa etária e as particularidades sociais e culturais do corpo discente.
Considera-se necessário que o trabalho pedagógico requer estudos de novos materiais e
que a escolha metodológica represente possibilidades de orientação que relacione os
acontecimentos passados a uma realidade presente.
Podemos então perceber que a proposta dos PCNs é trabalhar com eixos temáticos
de acordo com as séries adotadas se propondo a propiciar ao aluno o que considera uma
visão crítica e realista entre o passado e o presente. No tópico intitulado ―Aprender e
Ensinar História no Ensino Fundamental‖, o texto inicia afirmando que o ensino e a
aprendizagem de História envolvem uma ―distinção básica entre o saber histórico, como
um campo de pesquisa e produção de conhecimento do domínio de especialistas, e o
saber escolar, como conhecimento produzido no espaço escolar‖9. Guimarães, já
demonstrava sua preocupação em pensar o quanto essa história acadêmica e a história
que se produz nas escolas poderiam estar relacionadas, embora constatando a
problemática da constatação de uma ―enorme defasagem entre o que se produz na
universidade, fruto em grande parte do avanço dos programas de pós-graduação, e seus
resultados para o ensino de história realizado nos colégios‖ 10
.
Os PCNs afirmam que o saber histórico escolar reelabora o conhecimento
produzido no campo das pesquisas dos historiadores e especialistas do campo das
Ciências Humanas, selecionando e se apropriando de partes dos resultados acadêmicos,
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articulando-os de acordo com seus objetivos. Nesse sentido, parece-nos muito oportuna
a reflexão de Guimarães, que tece uma relação intrínseca entre a escrita da história
como parte de um ofício específico do historiador e essa escrita como parte do processo
de formação pedagógica. Afinal, pensar sobre a história que está sendo ensinada não é
algo que deve fazer parte unicamente de professores e professoras que trabalham
cotidianamente nas escolas, mas também daqueles profissionais que atuam mais
diretamente na academia. Ambos estão produzindo, pensando e fazendo história, e
torna-se tarefa da ordem do dia reduzir ―esses espaços de silêncio e desconfiança mútua
entre escola e a universidade‖ 11
Ainda no tópico supracitado dos PCNs, indica-se que o saber histórico escolar, na
sua relação com o saber histórico, compreende, de modo amplo, a delimitação de três
conceitos fundamentais: o de fato histórico, de sujeito histórico e de tempo histórico.
Estes diferentes conceitos, conforme dito nos Parâmetros, ―refletem distintas
concepções de História e de como ela é estruturada e constituída‖12
.
Se, conforme indicou Guimarães, os conteúdos a serem inseridos nos currículos
escolares envolvem uma seleção do que e de como deve ser ensinado, importante
observarmos o tópico dos PCNs intitulado ―Conteúdos de História: critérios de seleção
e organização‖13
. Neste tópico se discute justamente a impossibilidade de se ensinar
uma História de todos os tempos e de todas as sociedades e os Parâmetros alegam que
embora a seleção tenha sido variada, ela tem seguido certa tradição de ensino, que vai
sendo rearticulada de acordo com temas relevantes de cada geração.
Recomenda-se o trabalho com documentos variados como sítios arqueológicos,
edificações, plantas urbanas, mapas, instrumentos de trabalho, objetos cerimoniais e
rituais, adornos, meios de comunicação, vestimentas, textos, imagens e filmes. Levantar
questões de antecipação do tema questionando os alunos o que sabem, quais suas idéias,
opiniões, dúvidas e/ou hipóteses sobre o tema em debate e valorizar seus
conhecimentos; propor novos questionamentos, fornecer novas informações, estimular a
troca de informações, promoção de trabalhos interdisciplinares; desenvolvimento de
atividades com diferentes fontes de informação (livros, jornais, revistas, filmes,
fotografias, objetos etc.).
Tais considerações recomendadas pelos PCNs nos remetem à importância do
alunado ter contato com o que Fernando Sánchez Marcos14
denomina como ―cultura
histórica‖. Ao propor atividades que contemplem o acesso a essa gama tão vasta de
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recursos e situações, os Parâmetros têm em vista uma visão mais abrangente de história,
que não pode ser desvinculada de questões culturais. Com isso, se entende que cultura é
todo o modo como uma sociedade interpreta, transmite e transforma a realidade.
Agregando-se ao conceito de ―cultura‖ o termo ―histórica‖, temos um conceito
heurístico (cultura histórica) que faculta o entendimento do modo concreto e peculiar
em que uma sociedade se relaciona com seu passado. Envolve uma dimensão cognitiva
e estética, por exemplo, de patrimônios materiais e imateriais. Patrimônio envolvendo
uma dimensão estética que busca resguardar uma dada imagem do passado (enquanto
representação do mesmo).
Uma formação que contemple aspectos tão abrangentes parece-nos bem de acordo
com a proposta de uma Bildung, mencionada no texto de Guimarães (2009). Bildung
como um conceito de origem alemã que nos remete a uma formação humanística que
leve em conta um ―processo de socialização e individuação‖15
. Em oposição a um
ensino mais tecnicista, a Bildung diz então respeito a um conjunto de competências a
serem adquiridas pelo indivíduo para que possa perceber-se como relacionado
diretamente com o mundo em que vive e o contexto histórico-social que o circunscreve.
No primeiro ciclo, por exemplo, a proposta privilegia a leitura de tempos
diferentes no tempo presente, e em determinado espaço e a leitura do mesmo espaço em
outros tempos. Com isso, busca-se propiciar ao alunado o entendimento do que
Guimarães, baseado no conceito proposto por François Hartog, denomina como a
existência de diferentes ―regimes de historicidade‖16
. Embora estejamos imersos em um
regime contemporâneo de ―presentismo‖, podemos perceber que essa passagem do
tempo é sentida/vivida diferentemente pelas sociedades ao longo da história e
dependendo dos das diferentes culturas em que se inserem.
No que se refere à questão da avaliação, a proposta se refere a um processo
contínuo. Neste sentido, buscam-se considerar os conhecimentos prévios, as hipóteses e
os domínios dos alunos e relacioná-los com as mudanças que ocorrem no processo de
ensino e aprendizagem. Ao professor coloca-se a função de identificar a apreensão de
conteúdos, noções, conceitos, procedimentos e atitudes dos estudantes, comparando o
antes, o durante e o depois (em um processo contínuo). Desse modo, a avaliação não
deve mensurar simplesmente fatos ou conceitos assimilados, e sim ter um caráter
diagnóstico que possibilite ao educador avaliar o seu próprio desempenho como
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docente, refletindo sobre as intervenções didáticas e outras possibilidades de como atuar
no processo de aprendizagem dos alunos.
Algumas considerações (diante de tantas que poderiam ser feitas...)
Saliba nos propõe pistas para repensar um ensino mais significativo para o grupo
de alunos/as com os quais lidamos atualmente. Ele comenta sobre o retorno da biografia
(daí a noção de guinada subjetiva) nos estudos históricos. Contudo, a dificuldade se
coloca quando, diante da quantidade imensa de informações às quais docentes e
discentes são interpelados cotidianamente, como transformar informação em
conhecimento útil e efetivo. Saliba então afirma a necessidade de resgatarmos nossa
capacidade de reflexão:
―Ao professor de história nada mais resta a fazer senão aumentar, criar ou até
recriar ao máximo o nosso quadro de referências. Autores, obras, perspectivas
temporais – cada vez mais vamos perdendo nossa capacidade de juntar tais dados e
refletir sobre eles. O que é muito grave‖ 17
Os PCNs apresentam preocupações que nos parecem consonantes com as questões
levantadas por Rüssen18
, quando nos fala da importância dessa construção de
identidades associada à formas de ―agir no mundo‖ (experiências históricas,
interpretações, orientações...). Os conteúdos a serem ensinados apresentam uma forte
preocupação com seus impactos na vida prática, o que irá depender em grande medida
de como os/as diferentes docentes irão articular tais conteúdos com as vivências de seu
alunado.
O documento dos parâmetros sobre a disciplina de História pode ser entendido
como a carta de intenções governamentais sobre a disciplina para o nível fundamental
de ensino, configurando um discurso que, como todo discurso oficial, projeta
identidades pedagógicas e orienta a produção do conhecimento oficial – o conhecimento
educacional construído e distribuído às instituições educacionais pelo Estado em sua
atuação como campo recontextualizador pedagógico oficial19
No que se refere às diferentes apropriações dos documentos que serão feitas,
concordo com Lopes quando em seu estudo sobre os PCNs do Ensino Médio - que
também fornece importantes subsídios para pensarmos os documentos à nível do Ensino
Fundamental – afirma que:
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―Ainda que se considere que muitos professores nas escolas lerão o texto dos
parâmetros com desinteresse ou descrédito, ou mesmo abandonarão seus volumes
nas gavetas, não entendo ser possível pensar na força de um cotidiano escolar que
se constrói a despeito das orientações oficiais. Certamente existem reinterpretações
desses documentos e ações de resistência aos mesmos na prática pedagógica,
assim como permanece em evidência o caráter produtivo do conhecimento
escolar‖20
Ainda Lopes, que, ao se apropriar da noção de recontextualização de Basil
Bernstein, propõe que pensemos as traduções e apropriações de discursos diversos a
partir de um processo de ―recontextualização por hibridismo‖ 21
. O conceito de
hibridismo é creditado aos estudos de Nestor García Canclini22
, autor que tem pensado
as culturas latino-americanas a partir da tradição dos Estudos Culturais.
Para Bernstein23
, a recontextualização constitui-se a partir da transferência de
textos de um contexto a outro, como por exemplo, da academia ao contexto oficial de
um Estado nacional ou do contexto oficial ao contexto escolar. Nessa
recontextualização, o texto é modificado por processos de simplificação, condensação e
reelaboração, desenvolvidos em meio aos conflitos entre os diferentes interesses que
estruturam o campo de recontextualização.
A proposta da recontextualização parece-nos adequada quando entendemos que as
políticas curriculares e definições mais globais são diferentemente negociadas
localmente. Os textos oficiais não são aqui entendidos de forma tão fixa que não
possibilite aos sujeitos que as ressignifiquem de acordo com seus contextos escolares
específicos. Tais processos de ampliam-se e aprofundam-se, dado o caráter híbrido da
cultura no atual estágio de globalização em que nos inserimos.
Em consonância com Lopes24
, podemos perceber que é notória a centralidade do
currículo nas políticas educacionais no contexto de globalização atual. As reformas
educacionais encontram-se intimamente atreladas, por exemplo, a mudanças nas
legislações, formas de financiamento, relações entre as diferentes instâncias do poder
oficial (central, estadual e municipal), na gestão das escolas, na formação de
professores, na instituição de processos de avaliação centralizada nos resultados. No
entanto, em consonância com o que analisa a autora, não compreendo que as políticas
curriculares propostas para os diferentes países sejam produtoras de uma
homogeneidade centrada em um poder governamental que estabelece marcos que serão
postos em prática uniformemente e sem a sua recontextualização nas instâncias
educativas locais.
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Importante termos em vista as finalidades dos documentos, que visam em grande
medida a formação para a inserção social no mundo produtivo globalizado25
. Em função
de tais finalidades, é de grande importância que os/as educadores/as assumam uma
postura crítica em relação a tais parâmetros, utilizando-os de acordo com as demandas
específicas do alunado com o qual está lidando.
1 Graduada em Pedagogia e História (UERJ), Mestra e Doutoranda em Educação (ProPEd/UERJ)
Notas e Referências:
2 SOUZA, S. Z. L. de; OLIVEIRA, R. P. de. Políticas de avaliação no Brasil e quase mercado. Educação
e Sociedade, v. 24, n. 84, p. 873-895, set. 2003, p.882.
3 LOPES, A. R. C. Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio e a submissão ao mundo
produtivo: o caso do conceito de contextualização. Educação e Sociedade. v.23, n.80, 2002, pp. 386-400.
4 RÜSSEN, J. História Viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico.
Brasília: Editora UnB, 1980.
5 Neste trabalho, foram adotadoa para consulta os documentos publicados pela Editora DP&A, que além
dos PCNs, também publicou os Temas Transversais.
6 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: história e geografia. 2.ed. v.5. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
7 Idem, p. 7, grifo meu.
8 BRAUDEL, F. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. 2ª edição. Lisboa :
Publicações Dom Quixote, 1995.
9 BRASIL, 2002, Op. cit. p.35.
10
GUIMARÃES, M S. L.. Escrita da história e ensino da história: tensões e paradoxos. In: A escrita da
história escolar: memória e historiografia. ROCHA, H. ; MAGALHÃES, M. ; GONTIJO, R. (orgs.). Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 36.
11
Idem, Ibidem, p.39.
12
BRASIL, 2002, Op. cit. p.38.
13
GUIMARÃES, M. L. S. Op. cit. p.43.
14
Fonte: http://culturahistorica.es/cultura_historica.html (Acessado em 10/05/2011)
15
GUIMARÃES, M. L. S. Op. cit. p.48.
16
GUIMARÃES, M. L. S. Op. cit. p.43.
17
SALIBA, E. T. Na guinada subjetiva, a memória tem futuro? In: A escrita da história escolar: memória
e historiografia. ROCHA, H. ; MAGALHÃES, M. ; GONTIJO, R. (orgs.). Rio de Janeiro: Editora FGV,
2009, p. 60.
18
RÜSSEN, J. Op.cit. 1980.
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19
BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis:
Vozes, 1996. BERNSTEIN, B. Pedagogía, control simbólico e identidad. Madrid: Morata, 1998.
20
LOPES, A. R. C. Op. cit. p.387.
21
LOPES, A. R. C. Idem.
22
GARCÍA-CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: EDUSP, 1998.
23
BERNSTEIN, B. Op. cit. 1996, 1998.
24
LOPES, A. R. C. Políticas curriculares: continuidade ou mudança de rumos? Revista Brasileira de
Educação. Mai/jun/jul/ago, n.26, 2004, p.109-118.
25
LOPES A. R.C. Op. cit. 2002.
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O corpo e o poder político: uma análise do encarceramento como
instrumento de correção dos indesejáveis no Código Criminal do Império do Brasil
Luciano Rocha Pinto*
Resumo: Os atos humanos sempre foram objeto de preocupação dos grupos dominantes
e a punição traduz uma estratégia de poder para os não adequados. No Código Imperial,
contudo, os corpos não são descartáveis. Tendo por objeto os corpos e por objetivo sua
normalização, o encarceramentoemerge como punição privilegiada para o controle das
irregularidades. A história da prisão é antes de tudo a história do corpo e sua relação
com o poder político.
Palavras-chave: Brasil Império, Código Criminal, Controle.
The human body and the political power: an analysis of the prison system as an
instrument of social services according to the Criminal Code in the Kingdom of
Brazil.
Abstract: The human actions were always a worry for the most powerful groups in
society and the punishment, in its different forms, seemed to be a powerful strategy for
the inadequate ones. Although, according to the codes established by the monarchy in
Brazil, the human bodies were not disposable. Having the human body as an object and
its social patterning as an objective, the prison system comes up as a privileged
punishment to control the irregularities. The history of prison in Brazil is, above all, the
history of the human body and its relation to the political power.
Keywords: The kingdom of Brazil; The Criminal Code; Controlling.
As transformações do modo de punir na modernidade assumiram princípios que a
distinguem do Antigo Regime a partir de uma reestruturação do saber sobre o homem,
sobre a lei e sobre o crime. Emanando da vontade do Soberano a lei buscava marcar os
indivíduos indesejáveis por meio dos suplícios. Marcar o corpo do infrator e marcar a
memória da sociedade, eis o duplo sentido do suplício. A noção de lei, encharcada da
mentalidade burguesa, se afasta dos antigos particularismos reais e se torna uma
codificação que busque favorecer a sociedade. Ela vai se reportar à conduta dos
indivíduos regulamentando-a por um corpus jurídico normalizador, que qualificará seus
atos em permitidos e proibidos. O crime não será mais um atentado à soberania real,
mas, uma ruptura com o discurso legal e um atentado à ordem social. O ato de punir não
será uma prerrogativa real, mas um direito da sociedade, dos cidadãos de bem de se
defenderem daqueles que ferem a ordem, a propriedade e a vida.1 Diminuir a
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interferência do Soberano e disciplinar os indesejáveis para o trabalho estavam entre as
prerrogativas da nova penalogia. O encarceramento emege como punição privilegiada.
As Ordenações Filipinas não previam a prisão como pena. Ela servia apenas para
manter o delituoso até a execução de sua punição. Nos raros acontecimentos em que
havia pena de prisão, como nos casos de dívida, esta nunca seria superior a quatro
meses.2 O encarceramento era uma condição transitória para a pena. Esta situação se
inverte completamente no Código Criminal do Império do Brasil. Embora o Código
perpetue antigas formas de punição do Antigo Regime, como o açoite, o desterro, as
galés ou mesmo a pena de morte, no século XIX emerge no Brasil um novo modo de
punir: o encarceramento. A pena de prisão encontra-se nos artigos 46 a 49.
A prisão aparece como punição privilegiada nos oitocentos, como se pode
observar no gráfico 1, relativo às penas tomadas individualmente, por citação, no
Código Criminal Imperial. Praticamente metade de todas as penas previstas se referem
ao encarceramento. Um olhar sobre as penas combinadas (Gráfico 2) evidencia ainda
mais esta característica. O encarceramento chega a 75% das penas previstas.
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A influência da Escola Penal Clássica naquela formatação pode ser percebida no
princípio da utilidade da lei, que deve garantir a ordem e o bem estar social; na
identificação do crime com a desordem; no delito, independente da sua natureza e
gravidade, como ruptura com a lei. Por fim, o crime ao ferir a lei, geradora de ordem e
útil ao bem estar dos indivíduos, é sempre um dano à sociedade, uma perturbação da
ordem e o criminoso como o inimigo da sociedade por não aceitar viver conforme as
normas. Ele rompe com o pacto social e se coloca à margem da coletividade. A lei
buscará reparar o mal e impedir que males semelhantes possam se repetir.3 O cárcere,
por sua vez, emerge como o instrumento de normalização, adestramento e correção
daquela massa indisciplinada, que era a população pobre e escrava.
O livro Dos Delitos e da Penas (1763), de Beccaria aponta para o encarceramento
como uma forma de punição menos incitante da população. O corpo supliciado dos
condenados, no Antigo Regime, e as últimas palavras daquele que não tinha mais o que
perder, seus gritos e maldições contra a lei e o soberano, podiam inverter a infâmia em
heroísmo.4 Se a condenação fosse considerada injusta poderiam gerar uma série de
agitações e acender focos de ilegalismos. Pensando o encarceramento como uma atitude
mais apropriada para o controle das individualidades, a Escola Penal Clássica, a partir
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do panoptismo, fará do encarceramento o instrumento primordial de correção dos
indesejáveis.
Observando as penas individualmente fica fácil perceber um excesso de prisão. A
restrição da liberdade aparece em quase metade das penas (45,8%). Esta certeza
aumente com as penas combinadas (75%). Se as Ordenações Filipinas se caracterizam
pelo excesso do suplício, o Código Criminal pode ser caracterizado pelo excesso de
prisão. No século XIX o poder se apossou do corpo individual e do corpo populacional.
A vida dos indivíduos em sociedade passou a fazer parte da estratégia de governo. Este
novo poder não está direcionado, como no poder soberano, a terra, seus produtos e bens,
mas, aos corpos para extrair deles tempo e trabalho mediante controle e adestramento.
Controlar e disciplinar se tornaram as palavras de ordem. O poder se incumbiu da vida,
do que fazem os corpos, por onde circulam e com que finalidade. Esta racionalidade
política não objetiva a morte dos indivíduos por entendê-la como um fenômeno que
escapa do controle. Cada vez menos o poder se interessa em fazer morrer. Não por
acaso a pena capital está prevista em casos bem particulares, como insurreição, um
crime contra a segurança interna do Império, ainda assim restrita aos líderes (CCIB art.
113). Assassinato com determinados agravantes também previa pena de morte (CCIB
art. 192), podendo ser comutada para galés, no caso dos escravos, ou prisão com
trabalho. A lei vai aparecer como um instrumento disciplinar de normalização. Seu
corpus doutrinário buscará qualificar o que é permitido e proibido; aceitável e
condenável distinguindo os indivíduos, hierarquizando-os mediante as normas e
punindo seus transgressores.
Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir
riquezas (...) Somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a
verdade é a norma; é o discurso verdadeiro (...) Afinal de contas, somos
julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma
certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer, em função de
discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder.5
O poder, por meio das regras do direito, institucionaliza a verdade que deve ser
professada por todos. Os indesejáveis são indivíduos fora do lugar, sujeitos que negam a
verdade construída, assumem a ilegalidade e por isso aparecem como um perigo à
organização social e ao bem estar social. A prisão surge como o espaço privilegiado de
correção dos indisciplinados. Segundo o utilitarismo benthaniano as prisões deveriam
seguir alguns princípios fundamentais. Primeiro o isolamento. O detento não deve ter
contato com o mundo exterior, nem com outros detentos. O trabalho aparece em
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segundo lugar. Como o indivíduo lesa a sociedade, parte de sua punição está orientada
ao trabalho como reparação social e instrumento de sujeição ao modo de produção. Por
fim a modulação das penas. O castigo é o salário da infração. Para cada crime um
castigo específico conforme sua gravidade ou seu atentado à sociedade. Este excesso de
prisão tem por fim sua utilidade social: a transformação dos indivíduos e sua
ressocialização. Estar ressocializado é estar conformado às normas sociais.
A pena de prisão, no Brasil Império, poderia ser cumprida pelo simples
encarceramento. Era a chamada ―Prisão simples‖. De modo geral se destinava aos
crimes contra a segurança e a liberdade individual. Liberdade é um conceito
fundamental naquele novo olhar punitivo. É preciso preservar o indivíduo em sua
integridade física. O corpo individual não aparece apenas na cerimônia do suplício. É
preciso preservá-lo. O corpo é gerador de trabalho e riqueza. Garantir sua segurança e
liberdade é, de alguma forma, zelar pela harmonia social e pela circulação dos bens.
Importa que os corpos produzam riquezas. Uns são preservados, outros que se colocam
como um risco à sociedade tem sua liberdade restringida. Perde-se, então, sua igualdade
com os demais homens.
Os casos de crimes Particulares são os que mais preveem a prisão simples: 57%
do total. Os crimes considerados particulares são aqueles voltados aos indivíduos em
sociedade, como cárcere privado (CCIB art. 189), ajudar alguém a suicidar-se ou
fornecer os meios para esse fim (CCIB art. 196), ferir alguém (CCIB art. 201), ameaçar
(CCIB art. 207), caluniar (CCIB arts. 230-238) ou destruir coisa alheia (CCIB art. 266).
São apenas alguns exemplos de crimes punidos com o simples encarceramento. Alguns
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casos acompanha a multa.Havia também outro tipo de encarceramento: a ―prisão com
trabalho‖, que traz a ideia de lucrar com a mão de obra do encarcerado.
Embora os crimes contra a segurança individual apareçam em maior proporção,
a maior parte da punção se destina não aos crimes particulares, mas aos públicos, num
total de 61% das penas previstas. É o caso dos crimes contra a existência do Império –
como tentar destruir a independência (CCIB art. 68), provocar nação estrangeira (CCIB
art. 69) ou auxiliar nação inimiga (CCIB art. 71) – contra o livre exercício dos poderes
públicos – como opor-se à execução de decretos (CCIB art. 91) usar de violência ou
ameaça contra os membros das câmaras legislativas (CCIB art. 93) ou opor-se ao
exercício dos poderes moderador, executivo e judiciário (CCIB art. 95) – contra o livre
exercício dos direitos políticos dos cidadãos – como falsificar lista dos votos ou atas de
eleições (CCIB art. 102) ou obstar reunião dos conselhos gerais de província (CCIB art.
103) – e dos crimes contra a segurança interna do Império, como rebelião (CCIB art.
110), sedição (CCIB art. 111), resistência à ordens legais (CCIB art. 116) ou tirar presos
do poder da justiça (CCIB art. 120). São apenas alguns casos que calculam punições
mais rigorosas, como a prisão com trabalho, uma vez que os delitos são considerados de
maior gravidade.
Esta pena nunca foi posta em prática como previa o Código Criminal: a prisão
com um espaço específico destinado ao trabalho. Evidente que muitos trabalhavam nas
galés, em obras públicas, aterrando os mangues da cidade ou construindo a própria Casa
de Correção. Estas atividades eram desenvolvidas por presos. Pode-se falar então de
prisão com trabalho? Sim, mas, fora do espaço prisional. Não havendo possibilidade de
trabalhar, tendo o prisioneiro sido condenado à prisão com trabalho, a pena seria
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comutada para prisão simples com acréscimo, de um ano em média, no tempo de
permanência no cativeiro. Parece, no entanto, haver interesse em não haver prisão com
trabalho dentro dos muros da prisão. Trabalhar em obras públicas é mais interessante
para a produção de efeitos disciplinares. Na obra pública o prezo atende ao interesse
coletivo de bem estar social, torna visível sua pena e, assim, oferece um duplo serviço:
ao mesmo tempo em que refaz o dano trabalhando para a coletividade, oferece sinais
disciplinares e normalizadores.6
No início dos oitocentos, no Rio de Janeiro, existiam três tipos de prisões: as
militares, como os Fortes de Santa Cruz e Santa Bárbara, a dos Navios Presingangas e a
da Ilha das Cobras; as Eclesiásticas, como o Aljube e as existentes no interior dos
mosteiros e conventos; e as Civis, como o Calabouço, a civil da Ilha das Cobras e a
Prisão Municipal.7 De 1747 até a chegada da família Real o principal cárcere dos
criminosos comuns ficava no Palácio de Justiça, lugar do futuro Paço Imperial. Com a
vinda da corte a prisão foi transferida para a antiga prisão eclesiástica: o Aljube,
construído em 1732 aos pés do morro da Conceição. Poderia comportar até 192 pessoas.
Em 1828, uma comissão de inspeção da Câmara Municipal foi enviada para verificar as
condições do lugar. A Lei de 1º de outubro de 1828, que reformava as atribuições das
câmaras exigia que uma comissão fiscalizasse as condições das prisões.8 Afinal, a
Constituição em seu artigo 179 número XXI, exigia que ―as cadeias fossem seguras,
limpas e bem arejadas, havendo (...) a separação dos Réos, conforme suas
circunstâncias, e natureza dos seus crimes‖. O que a comissão constatou contrariava o
esperado pela legislação. Haviam 390 pessoas encarceradas naquela que denominavam
―sentina de todos os vícios‖. Muitos foram presos por pequenos delitos, como roubar
frutas no mercado, ou brigas e desacato a um policial. Mas havia também escravos e
criminosos. Todos misturados em celas sem ventilação, úmidas e insalubres. Recortadas
na rocha maciça do morro, as celas eram subterrâneas e a água minava constantemente.
Muitos dos presos não tinham registros de sua prisão, nem o tempo que estavam ou
ainda permaneceriam.9
A Casa de Correção situada na Rua Nova do Conde, hoje Frei Caneca, foi a
primeira penitenciária do Brasil, simbolizava progresso e civilização. Acompanhando as
mudanças liberais e os estudos criminológicos dos estados europeus, as autoridades
brasileiras, ao longo do século XIX, viram no encarceramento o principal meio de
punição.10
Este novo sistema teria seu ponto de irradiação da Casa de Correção.
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Adotando a lógica panóptica,11
deveria substituir a tortura pelo cárcere, o carrasco pelo
carcereiro e o anatomista pelos educadores. A contradição pode ser constatada no
cotidiano dos castigos físicos, na ausência das oficinas de trabalho e na coexistência da
escravidão.12
A inquietação com a desordem e a indisciplina levava a polícia a preocupar-se
com frequência com os escravos e os pobres livres. O sistema policial passava a maior
parte do tempo reprimindo a vadiagem, a mendicância e os ajuntamentos. Segundo o
artigo 285 do Código Criminal: ―Julgar-se-hacommettido este crime, reunindo-se três
ou mais pessoas com a intenção de se ajudarem mutuamente para commetterem algum
delicto, ou para privarem illegalmente de algum direito ou dever.‖ A lei de 6 de junho
de 1831 ratifica o exposto: ―Os chefes de polícia, delegados, subdelegados e juízes
municipaes terão todo o cuidado em que não se formem nos districtos, de dia ou de
noite, quaesquer ajuntamentos illicitos (...) estejam armados ou não armados os
reunidos‖.13
A população aparece como um problema político. ―Não é somente o corpo
individual ou a sociedade, mas, um novo corpo: o corpo múltiplo, corpo de inúmeras
cabeças‖.14
O velho poder de soberania e sua teoria jurídico-política, centradas na
afirmação do poder do monarca sobre a terra e suas riquezas, vão sendo transmutados
em algo mais sofisticado, grande invenção da sociedade burguesa, que é o poder
disciplinar.15
Esta mecânica do poder se exerce continuamente pela vigilância, pelo
controle e pelos diversos mecanismos de coerção e adestramento. Seu objetivo é
aumentar a força econômica dos corpos e diminuir a política. Neste sentido, vadios e
mendigos são uma grande preocupação.
Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta e útil de que possa
subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente.
Penas: Máximo – 24 dias de prisão com trabalho; Médio – 16 dias, idem; Mínimo
– 8 dias, idem.
Art. 296. Andar mendigando:
§1º: Nos lugares em que existem estabelecimentos públicos para os mendigos, ou
havendo pessoa que se offereça a sustental-os;
§2º: Quando os que mendigarem estiverem em termos de trabalhar, ainda que nos
lugares não haja os ditos estabelecimentos;
§3º: Quando fingirem chagas ou outras enfermidades;
§4º: Quando mesmo inválidos, mendigarem em reunião de quatro ou mais, não
sendo pai e filhos, e não se incluindo também no número de quatro as mulheres
que acompanharem seus maridos e os moços que guiarem os cegos.
Penas: Máximo – 1 mez de prisão simples, ou com trabalho, segundo o estado das
forças do mendigo; Médio – 19 dias, idem; Mínimo – 8 dias, idem. 16
Prisão com trabalho é um mecanismo de poder disciplinar bastante eficaz.
Adquiri-se um duplo benefício com os indivíduos indesejáveis: por um lado tira de
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circulação e por outro adquiri-se lucro com seu trabalho. Em 1838, Euzébio de Queiros
assumiu o cargo de chefe da policia e ordenou que os juízes e paz prendessem todos os
mendigos e vadios. Os incapacitados ao trabalho seriam encaminhados para a ilha de
Santa Bárbara e os sadios para a Casa de Correção por um mês com trabalho, conforme
descrito no Código Criminal. Depois disso, seriam encaminhados ao recrutamento
militar para servirem no exército ou na marinha. Estes, enquanto permanecessem na
Correção iriam quebrar pedras para aterrar os mangues da cidade, nas diversas obras
públicas existentes, inclusiva da própria Casa de Correção, então em fase inicial de
construção. Para ter certeza que a polícia capturaria os indesejáveis prometeu uma
recompensa de 10$000 por mendigo sadio apreendido.17
Justificando sua iniciativa
disse: ―sem faltar a humanidade devida aos verdadeiros infelizes, conseguimos purgar
de mendigos as ruas desta cidade‖.18
Esta população pode ser considerada um problema
político em dois aspectos distintos. É um distúrbio à ordem social por transgredir as
normas, criando uma situação de instabilidade, ao mesmo tempo em que não contribui
para a economia da cidade. Mais que isso. Eles criam obstáculos à livre circulação das
mercadorias.19
Constituem uma população que ganha visibilidade pela sua não
adequação e pelos problemas econômicos que causam. É necessário organizar a
circulação e arquitetar o espaço para que haja higiene, circulação de mercadorias e
possibilitar a vigilância afastando o que pode interferir na boa circulação. A
mendicância é um exemplo de má circulação e de periculosidade.
Melhor que a morte ou o degredo é sua sujeição e trabalho para reparar a perda ou
o mal que causou à sociedade. Trabalhando nas obras públicas ele presta um serviço
econômico ao Estado e torna-se um elemento de instrução com a exemplaridade da
punição. Mas não há problemas apenas no âmbito da segurança. A mendicância também
é uma questão de salubridade. O poder no século XIX tomou posse da vida dos
indivíduos, de suas relações e coexistências. O problema da doença e da contaminação
como fenômeno de uma população fomentava mecanismos de exclusão precisos. Na
Casa de Correção havia, conforme lei de 1856, ―aqueles que infringiam as posturas
municipais, os regulamentos policiais, os contratos, dívidas civis e comerciais (...) e os
que padeciam de moléstias contagiosas repugnantes‖.20
A cidade é em si mesma
punitiva. Em cada canto um teatro de castigos.21
A substituição do suplício pela prisão é a substituição do corpo marcado e
supliciado, pelo corpo dirigido e normalizado para ser reutilizado no trabalho. A história
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da prisão é antes de tudo a história do corpo e sua relação com o poder político. A
serventia do encarceramento está voltada ao controle das irregularidades e ilegalidades
intoleráveis. Não há humanidade no encarceramento. O verniz liberal faz reluzir a
humanidade das penas para camuflar seus reais interesses. Nesta nova concepção a
morte encerra os limites do poder sobre os corpos. É preciso fazer viver para continuar a
dominar. Afinal, morreu acabou.
*Mestre em História Política (UERJ) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Orientação: Profa. Dr
a. Marilene Rosa
Nogueira da Silva. Instituição financiadora: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Correio eletrônico: [email protected]
1 MAIA, Clarissa Nunes Etalli. História das Prisões no Brasil (Vol. 1). Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p.
12. 2Ordenações Filipinas. Livro V, título CXXXIX, p. 1318.
3 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005, pp. 81 e
82. 4Idem. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, p. 51.
5Idem. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 29.
6Idem. Vigiar e punir.Op. cit., p. 91.
7 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 177. 8―Art 56
o: Em cada reunião, nomearão humaCommissão de Cidadãos probos, de cinco, pelo menos, as
quais encarregarão a visita das Prisões Civis, Militares e Ecclesiasticas, dos Cárceres das [...], dos [...], e
de todos os Estabelecimentos Públicos de Caridade para informarem de seu estado, e dos melhoramentos
que precisão.
Art 57o: Tomarão por hum dos romeiros trabalhos, fazer construir ou concertar as Prisões Públicas, de
maneira, que haja nellas a segurança, e commodidade, que promete a Constituição.‖ (Lei de 1º de outubro
de 1828. InArquivo Histórico da Cidade de Florianópolis. Cx. 11, lv. 54. 9 HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século
XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, pp. 66-67. 10
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Arbítrio e violência nas prisões da Ilha Grande. In CARVALHO
FILHO, Silvio de Almeida et alii.Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro:
H.P. Comunicação/Instituto de Letras da UERJ, 2007, p. 42. 11
O Panoptismo é, inicialmente, uma arquitetura prisional. Jeremy Bentham denomina de Panóptico uma
construção em formato de anel dividida em celas que atravessem a espessura da construção com apenas
duas janelas, uma para o interior do anel e outra para fora. Assim, a luz perpassava todo o cômodo. No
centro do anel haveria uma torre cujo vigia poderia observar pelo efeito da contraluz o que se passa no
interior da cela. O Panoptico, no entanto, não se reduz apenas a uma arquitetura, mas uma forma de
governo, um diagrama do poder destinado a se difundir no corpo social.O arranjo panóptico está ordenado
ao controle dos corpos, seus gestos e comportamentos. O corpo, durante o século XIX, não é mais objeto
de suplícios, como na penalogia do Antigo Regime, mas de correção, instrução e adestramento, pois, deve
adquirir aptidões e ser qualificado para trabalhar. Confira: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de
Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009,
verbete: Panóptico. 12
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da.Um lugar para os deserdados e deserdadas. In CARVALHO
FILHO, Silvio de Almeida et alii., Op.cit. pp. 21-22. 13
TINOCO, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brazilannotado.Ed. Fac-sim.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. (Coleção história do direito brasileiro – Original:
1886), p. 509. 14
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade.Op. cit., p. 292. 15
Ibidem, p. 43. 16
Código Criminal do Império do Brasil, arts. 295-296.
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17
HOLLOWAY, Thomas H. Op. cit., pp. 129-131. 18
Ibidem, p. 130. 19
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.Op. cit., p. 91. 20
Coleção de Leis do Império do Brasil, 1857: 294-301 21
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.Op. cit., p. 93.
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“Da praça mercantil ao Senado da Câmara: alianças e disputas por poder
político na Capitania do fluminense na segunda metade do setecentos.”
Lucimeire da Silva Oliveira1
Resumo: No setecentos o Rio de Janeiro passa por transformações que refletiriam diretamente
na economia da cidade, influenciando no crescimento da atividade comercial, no aparecimento
de uma nova elite de origem e em estratégias diversas daquelas da elite senhorial: os homens
de negócios. Interesses divergentes converteram-se em disputas entre nobreza da terra e
negociantes. Logo, a Câmara Municipal será o principal palco dessas querelas. Assim, a
presente comunicação pretende analisar disputas e alianças estabelecidas entre negociantes e a
―nobreza da terra."
Palavras-chave: elite mercantil, Câmara Municipal, escravidão.
Abstract: In Rio de Janeiro, seven hundred undergoing changes that reflect directly on the
City‘s economy, influencing the growth of commercial activity, the emergence of a new elite of
origin and different strategies from those of the noble elite: the businessman. Diverging interest
have became disputes between merchants and landed nobility. Therefore, the City council is the
main stage of these disputes. So, this communication is to examine disputes between traders and
established alliances and governance of the town. Key words: Merchant elite, Municipal Council, slavery
O Rio de Janeiro da virada do século XVII para o XVIII passava por uma série de
transformações, que o converteria em uma das principais cidades do Império ultramarino
português.2 Transformações estas que refletiriam diretamente na economia da cidade,
influenciando o crescimento da atividade comercial e no aparecimento de uma nova elite de
origem e, sobretudo, de estratégias muito diversas daquelas da antiga elite senhorial: os homens
de negócio.
Diferente dos séculos precedentes, que foram dominados pela formação e consolidação
de uma elite senhorial baseada no capital agrário e na ocupação dos principais cargos da
governança da cidade, no setecentos cada vez mais os negociantes vão se reconhecer como uma
comunidade e agir coletivamente em defesa de seus interesses, reclamando posições políticas. .3
Interesses divergentes converteram-se logo em disputas por poder político entre a nobreza
da terra e os negociantes. Nesse quadro a Câmara Municipal será um dos principais palcos
dessas querelas. Disputas entre negociante e camaristas foram se tornando cada vez mais
frequentes no Rio de Janeiro ao longo do setecentos. No dia 14 de janeiro de 1758, sob a
presidência do Juiz de fora Antônio de Mattos e Silva reuniram-se em sessão da Câmara
Municipal do Rio de Janeiro os vereadores: Frutuoso Pereira, Miguel Cabral de Melo, Tomé
Correia de Sá Queiroga e José Pacheco Vasconcelos e ainda o escrivão da Câmara André
Martins de Brito, para acordarem sobre a ―suspeita do concurso tão numeroso de negros que
vinham de direitura da Costa de Guiné para este país.‖ 4
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Segundo os vereadores, tratava-se de uma questão de saúde pública, pois acreditava-se
que os negros novos vindos da Costa de Guiné provocariam doenças epidêmicas que atingiriam
o Rio de Janeiro como bexiga, escorbuto, tuberculose, entre outras. Foi dessa maneira que, na
vereação de 14 de fevereiro de 1758, foi decidido fixar edital no sentido de deslocar o comércio
negreiro da área central da cidade, a região da Rua Direita (atual Rua Primeiro de março), para
sua periferia. A área destinada ao comércio desses escravos correspondia ao que ficou
conhecido como Valongo (atual Bairro da Saúde e Gamboa) que posteriormente se tornaria na
principal região portuária da cidade.
A região do largo do Paço e Rua direita foi a primeira via aberta na cidade paralela ao
litoral, já no século XVII era a principal artéria da cidade, ligando o Morro de São Bento à Rua
da Misericórdia.5 Abrigava a Mesa do Bem Comum (depois Junta do Comércio), a Casa de
Contos, o Palácio dos Governadores, as repartições públicas, além da maioria das moradias dos
homens de negócio de grosso trato e de comerciantes de escravos novos da cidade.6 Assim, a
transferência do comércio de cativos para fora da cidade afetaria não somente os seus negócios,
pois ficariam longe dos consumidores de seus produtos, mas também estariam fora do núcleo
político da cidade. Dessa maneira, em 11 de fevereiro de 1758, em resposta ao edital, 44
―homens de negócio, capitães de Navio, marinheiros e mais comerciantes de escravos que
navegam do Reino de Angola para esta Cidade‖ assinam procuração contestando as medidas
dos sanitaristas dando início a uma queda de braço entre os homens de negócio e a Câmara que
duraria mais de dez anos.
Os procuradores dos negociantes fizeram uso de vários argumentos para convencer o juiz
de fora a decidir favoravelmente a apelação dos embargantes. Logo em sua primeira petição,
feita em 11 de fevereiro de 1758, tais argumentos demonstram-se muito contundentes e hostis
em relação ao Senado da Câmara,
Pois como é possível que o Senado desta cidade que não é daquela graduação [se
referem ao Senado de Lisboa], os camaristas da capitania não são pessoas de
letras; e só o digníssimo presidente é neste predicado excelente: se queira reputar e
supor com maior jurisdição e poder; ao mesmo tempo que a lei expressa que
semelhantes negócios os alega a se expressamente a Majestade para os resolver;
parece que procede (...) esta fora dos termos a instância e argumentos. Pois assim
parece deve ser, porque o determinar território, (...) a liberdade, o impedir de
alguma sorte e negócio, o alterar um uso costume imemorável, o restringir os
passos pelas ruas que são comuns e publicas do direito real; parece sem dúvida que
somente é próprio e reservado a própria majestade.7
Assim sendo, tais advogados alegavam que não fazia parte da jurisdição do Senado da
Câmara estabelecer esse tipo de postura e ainda passam a questionar sobre os moradores que
vivem fora dos muros da cidade, pois, de acordo com o argumento da Câmara, tendo contato
com os escravos poderiam adquirir doenças.
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Pois quantos e quantas padecerão e terão falecido em sitio que em postura (sic)
para residência dos escravos se destina, deste mesmo contagio que se imagina:
pois é possível que lhes meta aqueles moradores mais peste ameaça, por ventura
não são vassalos da mesma Majestade da mesma sorte que os são os que residem
na cidade; ou importa menos a saúde destes ao Senado, por não lograrem os
predicados de cidadãos como assistentes na cidade; confesso que não alcanço
enigma desta dificuldade. 8
Portanto, questionam se na dita postura ―segue desta separação aos moradores que nela
vivem,‖ pois os que residissem no Largo de Santa Rita – que se localizava em área próxima ao
Valongo – teriam contato permanente com os ditos negros, podendo adoecer.
Referente ao teor do discurso dos procuradores dos negociantes envolvidos no processo
fica clara a preocupação com a manutenção dos costumes e com o bem comum. Ao duvidarem
da capacidade de transmissão de doenças pelos escravos, os advogados em todo momento
ressaltam a antiguidade daquele comércio que era de ―costume imemorável.‖ De acordo com
Antônio Manuel Hespanha, o costume era uma das principais soluções jurídicas do Antigo
Regime. Pautado nas práticas do cotidiano, o costume era altamente considerado, pois respondia
à ordem das coisas e como esta era geralmente concebida.9 É deste modo que a manutenção o
comércio escravos vai ser interpretado pelos advogados dos negociantes, como uma tradição
longamente estabelecida, e por estar enraizada no seio daquela comunidade não deveria ser
modificada.
Outro argumento que vai permear os discursos jurídicos desses indivíduos é a noção de
bem comum. É essencial lembrar que no Antigo Regime vigorava outro sistema de valores, ou
seja, outra paisagem mental, que informava a ação dos indivíduos completamente diferente dos
conceitos de conduta e de motivação individualista que utilizamos atualmente. 10
Logo, lidamos
com indivíduos que se consideravam, antes de qualquer coisa, como partes de um todo, ou
melhor, de uma comunidade. Segundo Antônio Manuel Hespanha, uma das convicções mais
enraizadas na sociedade de Antigo regime era a vocação natural para se viver em comunidade.
Acreditavam que esse caráter natural para viver em comunidade estava inscrita na natureza, o
que estaria na origem da obrigação à colaboração, entre-ajuda e manutenção do bem comum.
Consequentemente, estas comunidades estariam pautadas no amor e na amizade pelo próximo
tendo na noção de cooperação com vista o bem comum a sua maior finalidade.11
No entanto, a característica da fala desses indivíduos que mais nos salta aos olhos é o seu
caráter desqualificador da ação da Câmara, assim como dos seus ocupantes. Como
demonstrado, acreditavam que além de não ter poder de jurisdição sobre o tema, os camaristas
fluminenses não eram ―pessoas de letras‖, e, portanto não tinham as ―qualidades‖ necessárias
para tomar uma decisão tão importante. O discurso dos advogados dos negociantes mostra
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claramente o clima de hostilidade existente entre os negociantes e os camaristas naquele
momento.
Entretanto, mesmo com os argumentos supracitados, em resposta o juiz de fora
José Antônio de Matos e Silva declara ainda ―não ser legítima‖ a tentativa de embargo
do edital por parte dos negociantes e ―pela invariabilidade do documento do regimento
que se fez‖, decidiu que ―não podia o acordo ou postura suspender.‖12
Sem obter uma
resposta positiva, em 15 de março do mesmo ano o procurador dos comerciantes Dr.
Guilherme Franco Tagaro inicia uma nova petição na qual anexa 11 atestados de
médicos e cirurgiões como: o Doutor Mateus Saraiva, Dr. Ignácio Francisco
Mascarenhas, Dr. Bernardo da Costa Ramos, Dr. Antônio Antunes de Menezes, Dr.
Francisco Correia Leal, dentre outros. Tais atestados alegavam que os escravos eram
examinados pela visita da saúde antes do desembarque, sendo os cativos vendidos pelos
comerciantes perfeitamente saudáveis e incapazes de transmitir doenças.13
Nos outros 10 atestados que se seguem os médicos, cirurgiões e físicos
afirmavam que ao terem contato com os ditos negros nunca perceberam ―epidemia, nem
contagio que fosse comunicado dos negros novos, ou gentio de Guiné‖ ou mesmo
―sintomas que causasse semelhantes qualidades, e entre a vizinhança nunca (houve)
queixa de pessoa alguma.‖14
Questionamo-nos quais eram as relações existentes com os
negociantes de escravos para que esses médicos lançassem tais atestados, a primeira que
fica evidente é que a maioria desses profissionais da saúde trabalhava para os
comerciantes, alguns por mais de dez anos como o cirurgião anatômico Caetano José de
Nápoles de Soares. Também poderiam possuir relações mercantis, como é o caso do
cirurgião Francisco Rodrigues Neiva, que em 17 de Abril de 1755 foi outorgante de
uma procuração em que teve como um dos seus procuradores o homem de negócio
Francisco Pinheiro Guimarães, um dos embargantes de 1758 (ACSM, Livro.65.
27/4/1755). Entretanto, sugeríamos que o apoio dos ―profissionais da saúde‖ aos
negociantes também poderia possuir outras motivações.
Curiosamente, entre os médicos e cirurgiões supracitados, que apresentam
atestados em apoio aos negociantes, se encontram o Dr. Mateus Saraiva e o Dr.
Francisco Correia Leal, que estiveram presentes na audiência de 14 de Janeiro de 1758
apoiando e corroborando a decisão da Câmara de proibir a venda de escravos novos no
interior da cidade. Conforme Alexandre Passos, tais indivíduos eram alguns dos
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médicos de maior nomeada que atuaram na Cidade do Rio de Janeiro na primeira
metade do século XVIII.15
Em março de 1758, ambos alegavam que ao longo de mais de quarenta anos de
exercício profissional na cidade do Rio de Janeiro nunca presenciaram epidemia
disseminada pela comercialização de escravos novos vindos de Luanda e nem mesmo
nenhum sintoma nas pessoas que se dedicavam a esse comércio nem em seus familiares.
Mateus Saraiva como médico da Câmara ainda declara que ―os escravos novos vindos
da Costa da África, antes de desembarcarem, para serem registrados na Alfândega, são
vistoriados primeiro pela visita de saúde‖ somente desembarcando os negros saudáveis,
não conferindo assim nenhum perigo à população .16
Uma de nossas hipóteses é que a
mudança de posição desses doutores nos autos possa estar ligada às relações
estabelecidas entre esses médicos e os comerciantes de escravos da Praça do Rio de
Janeiro. Sugerimos que estas relações estavam para além das oportunidades de trabalho
que os homens de negócio podiam proporcionar para esses doutores. Em 29 de julho de
1747 Mateus Saraiva batizou Paulo, filho de Antônio dos Santos Lisboa, um dos 44
homens de negócio que tentam embargar o edital em fevereiro de 1758. Esses laços
reaparecem em 1731 no batizado de Francisco, filho de Francisco Gomes da cunha, em
que Mateus Saraiva foi padrinho ao lado da madrinha Dona Joana de Mendonça mulher
de Antônio dos Santos Lisboa.17
O compadrio foi, sem sombra de dúvidas, um
importante elemento de constituição e consolidação de laços de solidariedade na
sociedade escravista brasileira. Acreditamos que, como mostra Kátia Mattoso, os laços
de compadrio:
(...) se harmonizam perfeitamente com as regras dessa sociedade brasileira baseada
na família extensa, ampliada, patriarcal. E os laços não prendem apenas padrinho e
afilhado, ligam o padrinho, sua família e os pais da criança batizada, cujo grupo,
em seu conjunto, ganha uma promoção excepcional. 18
Mesmo alegando ―que as atestações dos professores [de medicina] são mais em número
do que os que na Câmara assim o declaram‖ os comerciantes recebem uma nova resposta
negativa do Juiz de fora em quatro de abril de 1758. Todavia, tal fato não foi suficiente para
fazer os comerciantes desistirem, e em 15 dias de junho, através de um novo procurador, o Dr.
Dionísio da Silva e Castro, entram com uma nova tentativa de embargo ao dito acórdão.
Na tentativa de se impugnar os embargos, assim como os negociantes, em 30 de Agosto
de 1758 os vereadores da Câmara convocam os procuradores Inácio Rodrigues Vieira
Mascarenhas, José Alberto Monteiro e Silvestre de Carvalho Freyre e os solicitadores Mauricio
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Correa Duarte e Geraldo da Fonseca Vidal, para saírem em sua defesa contra ―calúnia e tudo o
mais que for a bem da dita causa‖. Além da preservação da saúde pública, as argumentações dos
procuradores dos vereadores se basearam principalmente na manutenção do bem comum dos
moradores da cidade que além de conseguirem um ―menor preço pelos alugueis, haverá quem
queira edificar mais propriedades‖.
Entretanto, o argumento desses procuradores que se torna mais contundente durante o
processo é a acusação de serem os embargantes atravessadores que costumavam ―trazer seus
escravos para a Rua direita para melhor serem vistos e ter melhor vendas‖ 19
Segundo Nireu
Cavalcanti, a transferência dos escravos para fora da cidade respondia a uma antiga exigência de
alguns moradores da capitania. A localização da praça de comércio de escravos novos na Rua
direita era desfavorável para a elite agrária, composta em sua maioria de ―senhores de engenho e
lavradores de açúcar‖, que alegavam que por residirem no recôncavo da cidade (devido à
distância de suas propriedades do porto) até serem avisados da chegada de um navio com novo
carregamento de escravos, quase sempre encontravam os negros de melhor qualidade já
vendidos, tendo que comprá-los nas mãos de atravessadores a preços mais altos.20
Analisando a documentação referente ao tema, percebemos que tal questão não era
novidade. Já em nove de dezembro de 1722 os oficiais da Câmara encaminham sua primeira
carta ao rei queixando-se dos ―preços exorbitantes‖ cobrados pelos atravessadores que
provocam ―muito grave prejuízo para a terra‖ e requerem que se faça cumprir o provimento do
desembargador geral José de Siqueira que em junho de 1704 havia estabelecido que ―toda a
pessoa que atravessasse os ditos negros pagaria 50 cruzados, e teria um mês de prisão.‖21
Entretanto, os vereadores alegam que os infratores ―não deixaram de atravessar os escravos
como costumam fazer‖ e devido à ―gravidade deste dano manda que tenham estes
atravessadores perdimento dos escravos que lhe forem achados, além da pena pecuniária que lhe
é imposta porque só assim de algum modo se evitaria tão notório inconveniente‖.22
Anos depois, em oito de junho de 1748, os vereadores solicitam nova devassa devido ao
―esquecimento que estava‖ as posturas que proibiam a atuação dos atravessadores na cidade.
Alegavam que os mesmos compram ―grandes partidas por diminutos preços, e depois os
revendem por avantajados‖ causando
[...] dano tão grande do mesmo povo, senhores, por lhes não chegar o dinheiro que
possuem ao seu valor, ficando diminutos por isso os dízimos reais dos ditos
engenhos, perdidos os senhores deles, e ainda o miserável povo, que havendo de
servisse com um escravo o não compram pela exorbitância dos preços resultados
dos ditos atravessadores, e por consequência a diminuição dos quintos reais nas
companhias de Minas Gerais, São Paulo, Goitacazes, e Cuiabá, e seus dízimos
delas [...]23
Devido a tamanhos prejuízos e como existiam leis, pedem ao Senado que as
mesmas sejam postas em prática. Segundo Nireu Cavalcanti, o rei nos casos de
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denúncias, ordenava que diferentes autoridades dessem o seu parecer para melhor
legislar sobre o caso.24
Em vista disso, em 31 de março de 1753 por provisão pede ao
governador da Paraíba do Sul – o visconde de Asseca, Martim Correia de Sá e
Benevides Velasco –, e ao governador do Rio de Janeiro – conde de Bobadela, Gomes
Freire de Andrade – parecer sobre uma nova queixa dos oficiais da Câmara do Rio de
Janeiro encaminhado ao rei em 20 de Setembro de 1752. Ambos os governadores, por
sua vez, decidem requerer auxilio aos homens de negócio que ―podem ter mais noticias
desta matéria.‖
Assim, foi solicitado aos negociantes Antônio Pinto de Miranda, Manuel dos Santos
Pinto, Manuel Barbosa dos Santos, João Hopman, Manoel Rodrigues Ferreira, Manuel Ferreira
Gomes, Francisco Pinheiro Guimarães, Francisco Ferreira Guimarães que em 17 de julho de
1762 saem em defesa dos ―atravessadores‖, alegando que os mesmos não são homens ricos e
poderosos, mas sim trabalhadores ―pobres que não tem outro modo de vida‖. 25
Alegam ainda
que ―nesta cidade sempre há abundância de escravos e por falta destes não é que deixam de
trabalhar os senhores de engenho, lavradores, roceiros, moradores e mineiros‖, mas sim por não
terem ―a maior parte deles dinheiro pronto para os pagar à vista e dificultar-lhes a venda‖ .26
No entanto, a resposta veio somente a partir de nova requisição dos oficiais da Câmara ao
vice-rei e de um abaixo-assinado de 28 moradores da cidade no ano de 1765. Tais indivíduos se
queixavam mais uma vez das desordens cometidas pelos atravessadores de escravos negros
oriundos de Angola e da Costa da Mina, que não respeitavam as posturas determinadas pelo
Senado insistindo em cobrar preços altos pelos cativos. Segundo os agravantes: ―até os tempos
passados comprar um escravo por cinco, e seis (doblas), ao presente se não acha por menos de
sete, oito‖ 27
Apoiando-se nas declarações que os homens de negócios fizeram ao governador
Gomes Freire em 1752, julgando ser mais ―mais bem entendida e verdadeira informação‖, o
vice-rei em sua resposta, demonstra total apoio aos atravessadores e em 23 de junho de 1767,
decide finalmente que a Câmara não poderia ―impor penas e posturas aos denominados
atravessadores‖ 28
Tal episódio mostra a frequencia das disputas entre os negociantes e os oficiais da
Câmara em torno da venda de escravos, o acontecimento demonstra mais uma vez a importância
do tráfico para a ―bem comum‖ dos moradores da cidade e da coroa devido ao prejuízo que as
alterações nas práticas costumeiras daquele tráfico poderiam causar.
Analisando essa documentação mais de perto, encontramos entre os lavradores de cana e
senhores de engenho que assinaram o abaixo-assinado de 1765 os vereadores: Frutuoso Pereira,
Miguel Cabral de Melo e o procurador da Câmara Dr. Sebastião da Cunha Coutinho Rangel;
que em 14 de janeiro 1758 assinam o acórdão do Senado da Câmara no sentido de deslocar o
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comércio dos escravos novos para fora da cidade. Também percebemos que no documento em
que os homens de negócio saem em defesa aos atravessadores em 1752 estão João Hopman,
Manoel Rodrigues Ferreira, Manuel Ferreira Gomes, Francisco Ferreira Guimarães uns dos 44
comerciantes que contestam o acórdão de 1758; mostrando que as divergências entre esses
indivíduos estavam para além do dito processo. Sobre o tema dos atravessadores, os
procuradores dos negociantes que tentam embargar o acórdão em dezembro de 1758 alegavam
que, mesmo se proibindo o comércio de escravos na Rua Direita não se extinguiria a existência
de tais atravessadores no interior da cidade e que apesar de não condenarem sua atuação, os
embargantes alegavam que ―não eram atravessadores de escravos, mas sim donos e
comerciantes dos mesmos‖.29
Seguindo os rastros deixados por esses indivíduos nas fontes, encontramos esses
vereadores em outro episódio em que mostram sua rivalidade com os homens de negócio da
Praça do Rio de Janeiro. Em 4 de março de 1752 encontramos Frutuoso Pereira e ainda Felipe
Soares do Amaral, José Pereira da Silva e Domingos Viana de Castro (todos vereadores entre
1758 e 68) em uma representação ao Conselho Ultramarino juntamente com 38 senhores de
engenho e lavradores de açúcar em que reclamam contra a lei de fixação do preço do açúcar
que,
só obrigava aos senhores das fabricas dos engenhos e lavradores a venderem pelo
preço taxado, e não obrigava aos compradores o comprarem no pelo mesmo preço
estipulado na sobredita lei no que tem senhores de engenho e lavradores um
notável prejuízo.30
Alegavam que a dita lei possuía ―utilidade tão somente aos homens de negócio‖,
pois permitia que os mesmos pagassem o mais ―diminuto preço‖ possuindo ―liberdade
de os passarem pelo mais alto custo.‖31
Dessa forma, se sentiam injustiçados, pois,
assim como os homens de negócio, também eram vassalos de sua majestade e mereciam
ser tratados de forma igual perante a lei; argumentando que a mesma só podia ser
―contra a vontade do soberano porque o seu piedoso ânimo é de utilizar a todos os seus
vassalos, e não de prejudicar algum em beneficio de outros.‖32
Dois anos depois os senhores de engenho e lavradores de açúcar assinam juntamente
com a Câmara um novo requerimento em que repetem as alegações feitas em 1752 mostrando
que devido aos altos custos de manutenção ―em poucos anos se seguirá certa e infalível extinção
dos engenhos‖.33
Nesse documento ainda encontramos dentre as 25 reclamantes, além de
Frutuoso Pereira, José Pacheco Vasconcelos, Antônio da Fonseca e Inácio Rodrigues Vieira
Mascarenhas todos envolvidos na defesa da manutenção acórdão de 1758. No que se
refere ao perfil desses vereadores, o episódio analisado deixa claro que os mesmos além de
vereadores, também eram senhores de engenho ou lavradores de açúcar.
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Dessa maneira, o perfil desses vereadores do Senado da Câmara se encaixa naquele da
dita ―nobreza da terra‖ descendente dos primeiros conquistadores que reclamava o poder de
mando na cidade. Estes estavam muito interessados na transferência dos escravos para fora da
cidade, pois, como demonstrado, acreditavam que a transferência reduziria a ação dos
atravessadores e consequentemente o preço dos cativos, e principalmente frearia o crescimento
do poder econômico e político dos homens de negócio na cidade.
Concernente ao prosseguimento do processo de 1758, apesar de todas as tentativas e
argumentações, os procuradores dos negociantes de escravos não conseguem impedir a
conclusão dos autos e sua publicação em 14 de dezembro de 1758. Nesta publicação, fica
confirmada a proibição da comercialização de escravos novos no interior dos muros da cidade,
principalmente na Rua Direita. No entanto, o processo não termina por aí, anos depois em 1764
dezesseis negociantes dão prosseguimento aos autos que ainda vai envolver uma enorme gama
de indivíduos entre testemunhas, homens de negócio, vereadores, entre outros. O processo teve
―desfecho‖ 34
somente em 20 de Abril de 1768 com decisão do Juiz de Fora e Presidente do
Senado da Câmara Jorge Boto Machado Cardoso dando parecer favorável aos negociantes.
Machado alegava que o comércio de escravos novos era um dos mais ―avultados negócios desta
praça‖ e que os seus responsáveis ―sempre os tiveram nas mesmas casas em que vivem‖
cuidando dos mesmos ―com toda a limpeza e cautela‖ e como a transferência do comércio para
fora da cidade proporcionaria um gravíssimo e considerável prejuízo aos negociantes, ao bem
comum e à Majestade. E, portanto, determina que os comerciantes tenham liberdade para
manter seus escravos em suas próprias casas reconhecendo assim os serviços prestados por tais
negociantes para a cidade e para a coroa. Mostrando ainda que o poder econômico desses
negociantes vai fazer com que os mesmos aos poucos consigam alcançar seus interesses e poder
político na cidade, poder esse que é consolidado anos depois quando alguns desses homens de
negócio – como Brás Carneiro Leão (1773) e Antônio Lopes da Costa (1769), dentre outros
envolvidos no processo – vão aparecer na documentação como vereadores da Câmara do Rio de
Janeiro.
Dessa forma, Acreditamos que esse ambiente de disputas entre os homens de negócio da
praça carioca e a nobreza da terra está inscrito em um processo muito mais amplo em curso da
sociedade fluminense de então: as modificações da composição da hierarquia no seio dessa
sociedade fluminense associado a mudanças mais profundas no que tange a valorização do
poder econômico como fator essencial para manutenção do poder político.35
1 Mestranda do programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS-UFRJ), pesquisa financiada pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) 2 Para uma melhor compreensão ver: SAMPAIO, Antônio C. J. de Na encruzilhada do Império:
Hierarquias Sociais e Conjunturas Econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1751). Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2003.
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3A Utilização da noção de comunidade pretende somente indicar o pertencimento dos comerciantes a um
grupo mais amplo: ―Nesse sentido, é sintomática a autodenominação dos mesmos e, ‗homem de negócio
desta praça‘ ou ‗homem de negócio da Praça do Rio de Janeiro‘, tendo o termo praça o claro caráter de
comunidade mercantil‖ SAMPAIO, Antônio C. J. Famílias e negócios... op. cit. p.228. 4 AGCRJ, Códice: 6.1.9 p.14F
5 PASSOS, Alexandre O Rio de Janeiro no Tempo do “Onça” (século XV ao XVIII) Rio de Janeiro
Livraria São José 1965 p.26 6 CAVALCANTI, Nireu Oliveira. ―O comércio de escravos no Rio setecentista‖, in FLORENTINO,
Manolo. (org.) Tráfico, Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005 p.41 7AGCRJ, Cód.6.1.9: 30f
8Idem
9 HESPANHA, Antônio Manuel. Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de
Antigo Regime. São Paulo:Annablume, 2010 Capítulo 2 10
CLAVERO, Bartolomé. Antidora. Antropologia católica de La Economia Moderna, Milão, Giuffrè
Editore, 1991. Pp.46-48 11
CARDIM, Pedro Antônio Almeida. O poder dos afetos: ordem amorosa e a dinâmica política no
Portugal do Antigo Regime. Lisboa, Tese de doutoramento: 2000 p.316 12
AGCRJ, Códice:6.1.9 13
Idem 14
Ibidem p.44 15
PASSOS, Alexandre O Rio de Janeiro no Tempo do “Onça” (século XV ao XVIII) Rio de Janeiro
Livraria São José 1965 p.62 16
AGCRJ, Códice: 6.1.9: 3F 17
ACMRJ – AP 0762 18
MATTOSO, K. M. de Q. Ser Escravo no Brasil. SP: Brasiliense, 1982. p.132. 19
(AGCRJ, Cód. 6.1.9:116). 20
CAVALCANTI, Nireu Oliveira. ―O comércio de escravos no Rio setecentista‖, in FLORENTINO,
Manolo. (org.) Tráfico, Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005 p.41 21
AHU, Cx. 13, D. 1441 22
idem 23
AHU, Cx. 41, D. 4203 24
CAVALCANTI,Nireu. Op.cit.38 25
AHU, Cx. 76, D. 6877 26
Idem 27
Ibidem 28
Ibidem
29
AGCRJ, Cód. 6.1.9:79v 30
AHU, doc. 15.512 31
AHU, doc. 15.513 32
Idem 33
AHU, doc. 17.495 34
Em 1775 o vice-rei marquês do Lavradio lança edital transferindo definitivamente o comércio de
escravos novos para a região do Valongo, onde permaneceu até o fim do tráfico negreiro. Entretanto, é
possível encontrar registros de negociantes reclamando a manutenção da venda de escravos na Rua direita
até as primeiras décadas do século XIX. (AGCRJ 6.1.23 p. 97) 35
Segundo Pedro Cardim, foi justamente a partir da segunda metade do século XVIII que as relações comerciais
tomam um caráter individualista e a atividade econômica começa a reconhecer-se como um espaço autônomo.
Todavia, isso não quer dizer que a concepção baseada nas relações e no bem comum deixaram de existir de
imediato (CARDIM,2000:386).
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Por um cinema revolucionário: intelectuais, engajamento e
Cinema Novo
Luís Fernando Amâncio Santos*
Resumo: O presente trabalho reflete sobre o conceito de intelectual nos anos 1960,
tendo atenção para sua quase co-significação com engajamento. Pensando o contexto
brasileiro, analisaremos a atuação do Cinema Novo e como ele se articula com os
conceitos supracitados. Esse movimento tinha como proposta romper com a produção
cinematográfica brasileira de até então. Porém, mais do que o aspecto artístico, havia
ênfase nos temas abordados. Buscava-se interpretar o Brasil, indo ao encontro da cultura
popular, colocando-a no protagonismo das películas.
Palavras-chave: Intelectual, engajamento, Cinema Novo
Abstract: This paper reflects about the concept of intellectual in the
1960s, with attention to its near co-engagement with meaning. Thinking the Brazilian
context, we analyze the performance of Cinema Novo and how it ties into the
concepts mentioned above. This movement was proposed as a break with
the Brazilian film industry so far. But more than the artistic aspect, had an emphasis
on themes. They sought to play Brazil, reaching out to popular culture, making it the
main protagonist of the film.
Key words: Intellectual, engagement, Cinema Novo
O intelectual
A integração do substantivo ―intelectual‖ na língua francesa ocorre durante o
―caso Dreyfus‖, sendo, conseqüentemente, o marco da formação desse grupo social. Em
1894 foi encontrada uma carta suspeita na embaixada irlandesa, que indicaria um traidor
entre um dos oficiais franceses, que estaria colaborando com os alemães. Alfred
Dreyfus, único oficial de origem judaica, foi acusado do crime e condenado à prisão
perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Entretanto, o irmão do réu encontrou,
em 1897, provas de que o verdadeiro culpado era outro oficial francês, Charles
Eterhazy. As evidências exigiam m novo julgamento, o que não aconteceu. Foi o
estopim para uma grande comoção.
Em 1898, Émile Zola escreve um texto intitulado J‟accuse, publicado no jornal
Aurore, acusando injustiça e complô militar no julgamento de Alfred Dreyfus. Apóiam-
no, em manifesto, vários escritores, artistas e professores universitários, entre outros. O
episódio causou intensos debates, gerando a oposição entre dreyfusards e anti-
dreyfusards. Como conseqüência da comoção, em 1906, Dreyfus foi restituído no
exército, mas, sem possibilidade de seguir na carreira, pediu demissão no ano seguinte.
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Esse evento tem grande importância por deixar marcada uma postura dos
intelectuais de impor sua autoridade na esfera pública, na busca pela verdade e pela
justiça. Eles intervêm em uma questão política, reivindicando o poder simbólico que
suas qualidades de intelectuais lhes daria direito. Surge, então, uma categoria:
O neologismo ―intelectual‖ designa, originalmente, uma vanguarda cultural e
política que ousa, no final do século XIX, desafiar a razão de Estado. No entanto,
essa palavra, que poderia ter desaparecido após a resolução dessa crise política,
integra-se à língua francesa. Se, por um lado, ela designa um grupo social, por
outro, ela qualifica uma maneira de se conceber o mundo social, pressupondo,
notadamente, uma oposição às hierarquias estabelecidas.1
Assim, esse personagem, o ―intelectual‖, não ficou restrito a esse contexto, tendo
destacada importância durante o século XX. Na sua ação, quase sempre a expressão
pública de idéias e posições políticas, o intelectual tem a legitimidade de sua ligação
com o saber. Algo que pode ser encontrado no Século das Luzes, com os pensadores
posicionando-se como defensores da Razão. Voltaire, Rousseau, Diderot, entre outros,
empenhavam-se em tratados sobre as verdadeiras virtudes e a boa maneira de governar.
E também desferiam ácidas críticas à sociedade de corte e aos vícios cometidos pelas
autoridades públicas.
De certa forma, é essa função de baluartes da moralidade, encerrando em suas
palavras o que é certo, algo que somente pessoas racionais e independentes poderiam
defender, que forma o poder simbólico dos intelectuais. Não por acaso, Edward W. Said
usa o termo ―representações do intelectual‖ em seu livro sobre o conceito. Trata-se,
sobretudo, de portar uma ―aura‖ e, por ela, ter uma conseqüente exposição:
As representações do intelectual, suas articulações por uma causa ou idéia diante
da sociedade, não têm como intenção básica fortalecer o ego ou exaltar uma
posição social. Tampouco têm como principal objetivo servir a burocracias
poderosas e patrões generosos. As representações intelectuais são a atividade em
si, dependentes de um estado de consciência que é cética, comprometida e
incansavelmente devotada à investigação racional e ao juízo moral; e isso expõe o
indivíduo e coloca-o em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando
intervir por meio dela são duas características essenciais da ação intelectual.2
Durante o século XX, um período turbulento, com dois conflitos bélicos mundiais,
ascensão do nazi-facismo, crise econômica e a ideológica Guerra Fria, a demanda para a
ação do intelectual foi intensa. A barbárie das guerras e perseguições a grupos étnicos
fez necessária, mais do que nunca, a moralidade, da qual o intelectual seria defensor.
Depois da Segunda Guerra, particularmente, sua função social foi cada vez mais
delimitada. Ele pronunciou-se sobre o que considerava certo, sendo que ter um
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posicionamento político se tornou obrigatório. Então, mais do que um representante da
razão, o intelectual passou a ser um engajado. Seguindo Marilena Chauí, entendemos
que engajamento nesse contexto significava
a tomada de posição no interior da luta de classes, como negação interna das
formas de exploração e dominação vigentes em nome da emancipação ou da
autonomia em todas as esferas da vida econômica, social, política e cultural.
Diferente do ideólogo, inserido no mercado, falando a favor do mercado.3
Naqueles anos de pós-guerra, principalmente nas décadas seguintes, o intelectual
tornou-se quase um sinônimo de simpatia por ideologias de esquerda. Na maior parte
dos países ocidentais, eles se tornavam membros ativos ou simpatizantes de partidos
comunistas, pronunciavam-se a favor da União Soviética (em conseqüência, tentavam
ignorar as más notícias que vinham do governo de Stálin, como os campos de trabalhos
forçados) e mostravam-se esperançosos pelas revoluções que se anunciavam no
Terceiro Mundo.
Na França, que é a grande referência, há a figura de Jean-Paul Sartre, que encarna
como ninguém o modelo de intelectual desse período. Sua militância ideológica é
explícita, o que responde ao período turbulento do qual ele emerge. Em uma
conferência nos Estados Unidos, em 1945, por exemplo,
Sartre começou afirmando que após as experiências de guerra, derrota, ocupação,
resistência e libertação, a literatura da geração anterior parecia ―enfraquecida,
cansada, não mais pertinente‖. Uma nova literatura estava em ascensão, e era ―o
resultado da Resistência e da guerra; seu melhor representante é Albert Camus,
que tem trinta anos‖. Os novos escritores eram profundamente marcados pela
experiência de luta contra a Ocupação.4
Sartre foi atuante durante esse período em jornais e revistas, escrevendo editoriais
que clamavam pelo engajamento do intelectual. Embora a princípio ele optasse por um
distanciamento do Partido Comunista Francês, nas décadas seguintes ele se aproxima,
tornando-se seu defensor.
Ainda na França, um episódio que mobilizou os intelectuais foi a Guerra da
Argélia (1954-1962). Esse conflito pela independência da então colônia africana contou
com pesados questionamentos de pensadores franceses sobre a ação de seu governo. É
quando fortalece o chamado ―terceiro-mundismo‖, um suposto louvor a esses países
marginalizados pelo imperialismo. O marxismo, ideologia que movia a atividade
intelectual, é adaptado, e o indivíduo do terceiro mundo torna-se uma espécie de
proletariado da política internacional. A luta por sua autonomia é uma bandeira
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assumida, e Cuba, onde os revolucionários tomam o poder do ditador Fulgencio Batista
em 1959, a evidência de que mudanças eram possíveis.
O Cinema Novo
O surgimento do Cinema Novo se dá em consonância com a efervescência
cultural na qual o Brasil estava inserido durante a passagem da década de 1950 para a
sua sucessora. Nas artes, o neoconcretismo ocupava seu espaço, enquanto a literatura
continuava a dar novas formas ao modernismo e a bossa nova repercutia para além das
fronteiras do país. Em bares e cineclubes do Rio de Janeiro, jovens amantes de cinema
encontravam-se e articulavam suas idéias, ansiosos por fazer o seu movimento. Sobre a
importância dos cineclubes, Walter Lima Jr. é enfático:
Minha primeira atividade depois da obsessão (de ir ao cinema) foi me meter em
cineclubes, em vários (...). Por que cineclube? Em primeiro lugar porque passavam
filmes aos quais eu não tinha acesso porque não passavam comercialmente (...).
(Em segundo lugar) nos cineclubes eu descobri que havia outros doidos iguais a
mim. Quando que nos cineclubes havia uns 30, 40 (...), eu me senti parte de um
todo, de uma comunidade, de um grupo de pessoas.5
O nome que o movimento ganhou já indica suas características mais marcantes.
O Cinema Novo afirmou-se como reação ao que foi feito anteriormente no país. O
modelo de ―cinema de estúdio‖, como ocorreu no grande empreendimento da
Companhia Cinematográfica Vera Cruz, era repudiado. Assim como o gênero
chanchada, como no caso da Atlântida Cinematográfica, e todo empreendimento muito
pautado em princípios mercadológicos.
Partindo da experiência de Nelson Pereira dos Santos (Rio, Quarenta Graus,
1955), os cinemanovistas pretendiam, com baixos orçamentos e financiamentos
alternativos, produzir filmes livres de maiores compromissos com a bilheteria e,
conseqüentemente, com maior liberdade de expressão. O que fazia sentido com as
propostas estéticas do movimento, como as gravações em locações autênticas, utilização
de atores semiprofissionais e o empenho por representações mais realistas do Brasil.
Seus filmes eram, pois, interpretações do país. Pretendiam analisar seu processo
histórico, sua situação social, enfatizando o ―povo‖. Temas como o cangaço, a
escravidão, práticas econômicas como a pesca, entre outros, estiveram nas telas do
Cinema Novo. E o movimento, que cedo uniu as discussões teóricas de seus integrantes
com as primeiras experiências, não demorou a ter suas imagens do Brasil exibidas por
festivais europeus.
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O Cinema Novo produziu seus primeiros filmes no princípio dos anos 1960,
curtas-metragens. E foi durante essa década que se deu sua atividade enquanto
movimento. Maria do Socorro Carvalho diferencia um núcleo principal, formado por
Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman,
Carlos Diegues e David Neves6. De fato, são os diretores mais atuantes, presentes desde
o princípio do movimento, mas podemos também mencionar a participação de Miguel
Borges, Marcos Farias, Domingos de Oliveira, Mário Carneiro, Walter Lima Jr.,
Gustavo Dahl e Saulo Pereira de Mello, presentes durantes as diversas discussões em
que se amadurecia a idéia de criar uma nova tendência cinematográfica nacional. Todos
eles eram oriundos do Rio de Janeiro, exceção feita ao baiano Glauber Rocha.
Ao longo de sua atividade, o movimento abordou temas rurais e históricos, como
em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963, Glauber Rocha) e Ganga Zumba (1964,
Carlos Diegues); urbanos, com críticas à classe média, caso de O Desafio (1965, Paulo
César Saraceni) e Terra em Transe (1967, Glauber Rocha); passando também por
alegorias, como em Macunaíma (1969, Joaquim Pedro de Andrade) e Os Deuses e os
Mortos (1970, Ruy Guerra). Mudanças no contexto político brasileiro, como o
progressivo endurecimento do regime militar estabelecido com o golpe de 1964,
influenciaram essas ―reações cinematográficas‖. E, de certa forma, contribuíram para a
dissolução do movimento, na década de 1970.
O engajamento
O movimento do Cinema Novo é contemporâneo do conceito de intelectual como
um engajado, tratado anteriormente, e podemos dizer que os cineastas assumem essa
postura. São um grupo com identificação própria e que assume como uma espécie de
missão esse posicionamento de liderança, produzindo filmes que não se propunham
somente a entreter, mas sim esclarecer os expectadores. Fazer cinema é o exercício
dessa autoridade simbólica que essa classe reivindica.
Também é importante destacar que estamos tratando de tempos da Revolução
Cultural. Na análise de Eric Hobsbawm, uma série de mudanças econômicas e políticas
geradas pelo pós - Segunda Guerra Mundial refletiriam em mudanças culturais.
Instituições pouco alteradas por séculos, como a família, encontravam-se em
reformulação – maior número de divórcios, diminuição da configuração da família
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nuclear, aumento de solteiros, novas condutas sexuais e mães chefiando casas, entre
outros.
Por sua vez, uma cultura juvenil encontrava-se deveras forte. ―A juventude, um
grupo com consciência própria que se estende da puberdade até a metade da casa dos
vinte, agora se tornava um agente social independente‖7. Essa juventude radical atuou,
como nunca antes, politicamente. Movimentos estudantis pelo mundo davam o tom
contra sistemas que os jovens consideravam conservadores, injustos ou
inconstitucionais. Segundo o historiador inglês, a juventude deixa de ser vista como
estágio intermediário para a vida adulta, ganhando força por si mesma. E é expressa por
um internacionalismo, no modo de vestir (destaque para o sucesso do blue jeans) e o
estilo musical a se ouvir (o rock).
Os cineastas do Cinema Novo viviam com intensidade desse momento. Enquanto
socialmente eles participavam de todas as mudanças culturais, seus filmes
representavam essa autonomia que os jovens afirmavam. O movimento se mostrava
hábil para pensar o Brasil, inclusive confrontando cinegrafias anteriores, consideradas
pelos cinemanovistas como atrasadas.
A idéia do Cinema Novo como representante da ―cultura jovem‖ também se
articula com seu alinhamento com a cultura política de esquerda. Gerard Vincent, em
―Ser Comunista? Uma maneira de ser‖, a respeito do caso francês, afirma que a filiação
ao PCF oferecia aos jovens possibilidades de cargos que, em geral, a sociedade francesa
não dava.
A adesão maciça de jovens intelectuais burgueses, logo após a Segunda
Guerra, não raro acarreta o rompimento com a família. Eles se sentem
fascinados pelo caráter exemplar do operário (ao qual não pretendem
substituir) em explorar, descobrir e assumir a via revolucionária.8
Alguns dos membros do Cinema Novo eram filiados ao PCB, sendo Leon
Hirzman e Joaquim Pedro de Andrade os mais militantes9. Porém, independente desse
engajamento mais declarado, percebe-se nos filmes desses diretores essa filiação à
cultura política comunista. O que procuraremos, a seguir, é demonstrar de que maneira
isso aparece nas películas do Cinema Novo e nas atitudes desses cineastas. Utilizaremos
para isso, além de bibliografia relacionada e de obras desses autores, a autobiografia
Por dentro do Cinema Novo: minha viagem, de Paulo César Saraceni.
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Primeiro, é importante observar as referências feitas à ―revolução‖. O Cinema
Novo é um movimento que se entende como revolucionário. Anthony Giddens destaca a
existência de um ―socialismo revolucionário‖ que, por sua vez, teria raízes em Marx. Na
obra desse autor ―quer aconteça ou não em batalhas ativas nas ruas, a revolução é a
expressão de uma ‗mudança Gestalt‘, uma transição de um tipo de sociedade para
outro‖10
. Para esses socialistas, o reformismo era visto com desconfiança, uma vez que
seria um mecanismo falso, de mudanças superficiais.
Se as notícias que vinham da União Soviética não eram as mais positivas, o
marxismo ocidental se apoiava na crítica ao capitalismo e na esperança com relação a
países do Terceiro Mundo. ―A China de Mao, a Cuba de Castro, e às vezes alguns
outros países revolucionários do Terceiro Mundo, inspiraram as esperanças de alguns
marxistas ocidentais – até que as deficiências dessas sociedades se tornaram
evidentes‖11
.
Esse empenho em fazer a revolução e a inspiração, no caso do Cinema Novo, em
Cuba, pode ser observado no trecho abaixo de uma carta de Glauber Rocha para Paulo
César Saraceni, enquanto este estudava em Roma:
Acho que devemos fazer revolução. Cuba é um acontecimento que me levou às
ruas, me deixou sem dormir. Precisamos fazer a nossa aqui. Não se esqueça de seu
país, veja se politiza o Gustavo [Dahl, crítico de cinema que também estudava na
Itália]. Cuba é o máximo, eles estão construindo uma civilização nova no coração
do capitalismo. São machos, raçudos, jovens geniais‖.12
Essa inspiração em Cuba será uma constante. O ―cinema novo‖ não é uma
exclusividade do Brasil. Existem similares por países latino-americanos e uma
correspondência entre eles. De certa forma, é como se na revolução do cinema também
houvesse a universalidade defendida por Marx com relação ao comunismo. Sobre o
Festival de Santa Margherita, na Itália, Saraceni descreve o contato com os cineastas
desses países como um ponto positivo da jornada: ―Conhecer os cineastas cubanos, os
latino-americanos. Problemas iguais em cada país, imperialismo de Hollywood, por
exemplo, que detinha mais de 95% do mercado‖13
. A situação terceiro-mundista e a
ânsia por vencê-la são compartilhadas.
Anthony Giddens ressalta a colocação dessa questão naquela época:
Um outro ponto de apoio do marxismo ocidental foi a teoria do imperialismo
capitalista e da dependência do Terceiro Mundo. Afirmava-se que a revolução
socialista seria a única maneira pela qual os países de Terceiro Mundo poderiam se
libertar de sua posição inferior na ordem capitalista global.14
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Como ―fazer revolução‖ por parte desses cineastas que sequer pegavam em
armas? Vale lembrar do poder simbólico das afirmações dessa classe de intelectuais.
Nos anos 1960, há uma grande valorização sobre o potencial de produzir cinema. É o
que afirma Marcelo Ridenti:
Em contraste com seu limitado êxito de público, a influência do Cinema Novo no
meio intelectualizado era tamanha que se constituía como pólo imantador para
artistas e intelectuais de esquerda de outras áreas, os quais por vezes pensaram em
ser cineastas, chegando mesmo a realizar filmes.15
A proposta do Cinema Novo era de problematizar as estruturas da nação
brasileira. Seus filmes tinham o povo como foco de suas objetivas, pretendiam trazer
para a discussão realidades incômodas. E, diferente de produções nacionais anteriores,
que tentavam fazer filmes amenos através de temáticas populares (ao menos na
concepção dos cinemanovistas), esses diretores evitavam narrativas tradicionais. A
filiação deles à ideologia comunista impregna sua noção sobre cultura popular. É uma
arte que precisa ser engajada e, sobretudo, engajar.
Paulo César Saraceni assim define a proposta do Manifesto do Cinema Novo,
como ficaram conhecidos uma série de artigos assinados por Glauber Rocha:
Aberto, sem nenhum dogma, nenhum preconceito, pedia-se apenas que fosse
autoral, sincero, criativo, revolucionário e que [o cinema] olhasse a realidade
social e econômica do Brasil com vontade de analisá-la, transformá-la num mundo
melhor para todos. Mas que, principalmente, amasse o cinema.16
Havia uma busca de afirmação estética, produzindo um cinema que fosse ―novo‖.
Técnicas como usar a câmera na mão, cortes inesperados, uma representação mais viva
dos atores, muitas vezes falando com os olhos voltados ao expectador, interpelando-o.
Se essa linguagem não era atrativa ao grande público, justificava-se dizendo que ela era
importante para tirá-los de seu conforto. Segundo Ismail Xavier, os diretores
queriam uma dramaturgia liberta de clichês, impulsionadora da expressão autoral
sem as censuras do aparato industrial, estimuladora de uma consciência crítica em
face da experiência contemporânea. Sem descartar as emoções e o divertimento,
entendiam que as dimensões políticas das novas poéticas exigiam uma linguagem
que deveria ir além da transformação dos problemas em espetáculo17
.
Citaremos, brevemente, dois exemplos de como esses cineastas abordavam
questões em seus filmes, vistas por óticas do ideário comunista sobre a cultura popular.
Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1963, Glauber Rocha trata do povo sertanejo,
na figura do casal Rosa e Manoel. Com origem humilde e sem grandes perspectivas, o
marido é seduzido pelas promessas religiosas de um suposto santo e, depois, envolve-se
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na violência do cangaço, servindo a Corisco. Nenhuma dessas opções, todavia, são
sólidas o suficiente para livrar o casal de um fim desolador. A promessa de ―o sertão
virar mar‖ configura-se uma ilusão desse povo entregue a uma condição miserável.
Já em Garrincha, Alegria do Povo, também de 1963, dirigido por Joaquim Pedro
de Andrade, é o futebol o tema. Tendo como personagem o jogador do Botafogo, o
diretor desenvolve um verdadeiro ensaio sobre o futebol no Brasil. Ainda que exista
uma valorização da beleza do esporte praticado no país, de forma extremamente lúdica
na habilidade de Garrincha, sobressai uma abordagem pessimista. O esporte é tratado
como instrumento de políticos para ganhar a simpatia da população e como forma de
alienação desse povo, voltando suas infelicidades para a catarse do estádio.
Nos filmes mencionados, e em tantos outros, ficam evidentes temas como a
opressão e a desmobilização do proletariado. Os personagens estão entregues a destinos
infelizes, sem grandes perspectivas, enquanto alguns poucos, os coronéis do sertão ou
os oportunistas políticos, tem sua boa posição inabalada. Ou seja, é um cinema crítico
da inércia social. E esclarecer os expectadores sobre essa situação de ―exploração do
proletariado‖, não deixa de ser uma importante etapa para a revolução.
Percebemos, assim, como os cineastas também se apresentam como ―intelectuais
engajados‖. Nos seus filmes e declarações fica clara a filiação à ideologia comunista. A
militância política do grupo fica a cargo do ―fazer cinema‖, atividade dotada de grande
prestígio naquele momento. A própria busca estética desses autores é por uma estética
política.
Para o Cinema Novo, a exibição de seus filmes em cineclubes, cinemas e festivais
era o seu palanque. E preparar uma revolução, sua ambição.
* Mestrando em História pela UFMG/ Bolsista CapesOrientado pelo Prof. Dr. João Pinto Furtado
1 RODRIGUES, Helenice. ―O intelectual no ‗campo‘ cultural francês: do ‗caso Dreyfus‘ aos tempos
atuais‖. Revista Varia História, Belo Horizonte, vol. 21, nº 34, julho de 2005: 400. 2 SAID, Edward W.. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005: 33. 3 CHAUÍ, Marilena. ―O intelectual engajado: uma figura em extinção?‖ NOVAES, Adauto. O silêncio
dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006: 29.
4 ARONSON, Ronald. Camus e Sartre: o fim de uma amizade no pós-Guerra. Trad. Caio Liudvik. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2007: 94. 5 Apud: SIMONARD, Pedro. A geração do Cinema novo: Para uma antropologia do cinema. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2006: 73. 6 CARVALHO, Maria do Socorro. ―Cinema novo Brasileiro‖ In: MASCARELLO, Fernando. História do
Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006: 290.
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7 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. Das Letras,
1995: 317. 8 VINCENT, Gerald. ―Ser Comunista? Uma maneira de ser‖. In: História da Vida Privada vol.5: da
Primeira Guerra a nossos dias. PROST, Antoine; VINCENT, Gerald. São Paulo: Companhia das Letras,
2003: 433. 9 Relato de Nelson Pereira dos Santos em RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da
revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000: 93. 10
GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical. São Paulo:
Editora UNESP, 1996: 76.
11 Ibidem, p.78
12 Apud: SARACENI, Paulo César. Por dentro do cinema novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993: 101.
13 Ibidem: 107
14 GIDDENS, op. cit.: 78
15 RIDENTI, 2000: 91
16 SARACENI, op. cit.:118
17 XAVIER, Ismail. ―Cinema político e gêneros tradicionais: a força e os limites da matriz
melodramática‖ in Revista USP, nº 19, setembro – outubro - novembro 1993: 115-116.
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A atuação de João Batista da Costa na aplicação do Diretório no Rio de
Janeiro: interações entre a política indígena e a indigenista (1767-79)
Luís Rafael Araújo Corrêa1
RESUMO: A aplicação da política indigenista pombalina na América portuguesa foi
condicionada pelas especificidades locais e pela interação constante com a política
indígena, representada principalmente pelas lideranças indígenas. No Rio de Janeiro, a
atuação de João Batista da Costa, capitão-mor da aldeia de São Barnabé, é crucial a fim
de denotar a participação ativa dos índios na efetivação da política indigenista
pombalina e o avanço colonial sobre as aldeias, estimuladas pelos pressupostos
assimilacionistas do Diretório.
Palavras-chave: Política indigenista pombalina; Política indígena; Aldeias indígenas.
ABSTRACT: The application of Pombal's Indian policy in the Portuguese America
was conditioned by the local specificities and by the constant interaction with the
indigenous policy, represented mainly by indigenous chiefs. In Rio de Janeiro, the role
of João Batista da Costa, capitão-mor of the Indian village of São Barnabé, is crucial to
denote the active participation by indians in effectuation of Pombal's Indian Policy and
the colonial expansion in Indian villages, stimulated by the assimilationists rules of the
Diretório.
Key-words: Pombal‘s Indian policy; Indigenous policy; Indian villages.
A proposta do presente artigo direciona-se para a análise da aplicação da política
indigenista pombalina no Rio de Janeiro, que em grande parte foi condicionada pelas
especificidades locais e pela ativa participação dos índios aldeados. Para tanto,
focaremos a emblemática atuação de João Batista da Costa, capitão-mor da aldeia de
São Barnabé, a fim de denotar que os indígenas, interagiram a partir de seus próprios
interesses e motivações com as novas determinações indigenistas, incidindo, então,
sobre os rumos do Diretório na capitania em questão.
A Política Indigenista Pombalina
Durante muito tempo, a maior parte dos estudos sobre as mudanças introduzidas
pela política indigenista pombalina destacava particularmente o Grão-Pará e o
Maranhão. Isto se deve, em grande parte, ao fato dela ter sido construída e pensada para
tal região. Em meados do século XVIII, perante uma situação turbulenta herdada dos
últimos anos do reinado de D.João V, D. José I chega ao trono de Portugal colocando à
frente de seu ministério Sebastião José de Carvalho e Melo, que já nos primeiros anos
empreendeu um esforço de reorganização administrativa do império português. Tendo
seu irmão como governador do Grão-Pará e Maranhão, a região amazônica desde o
princípio foi alvo do interesse do futuro Marquês de Pombal. As pretensões do ministro
incluíam o estabelecimento de maior controle sobre a mesma, por razões estratégicas e
pela expectativa econômica; a abolição do poder das ordens religiosas, sobretudo em
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relação às populações indígenas locais; e a consolidação de fronteiras nesta área que
disputava com a Coroa espanhola. As palavras de ordem eram ocupar, povoar, controlar
e desenvolver2.
Como parte do projeto que se tinha para a região, diversas medidas seriam
formuladas pela Coroa em relação aos índios com vistas a alcançar os objetivos
previstos. No entanto, o contexto local e as demandas dos agentes sociais envolvidos
incidiriam sobre os rumos da política indigenista, que tomaria corpo definitivo na
legislação conhecida como Diretório. O Diretório, projetado inicialmente para o Estado
do Grão-Pará e Maranhão, conciliava em seus parágrafos a demanda dos colonos por
mão-de-obra e o interesse régio em converter os indígenas em agentes da colonização e
integrá-los a sociedade colonial. Várias mudanças previstas davam o tom dessa política
notadamente assimilacionista, havendo uma clara intenção de propiciar a
homogeneização cultural e de assimilar os indígenas de modo que, em um futuro não
muito distante, a integração dos mesmos chegasse a um nível que não fosse mais
possível distinguir índios e brancos3. Todavia, sem se resumir a efetivação do que
desejavam os agentes administrativos metropolitanos, a referida política, que não nasceu
pronta, foi construída e aplicada mediante as circunstâncias, aos acontecimentos e aos
interesses envolvidos4.
Posteriormente, por meio do alvará de 17 de agosto de 1758, as determinações do
Diretório foram estendidas para o estado do Brasil. Considerando a dinâmica de
aplicação da referida legislação em várias partes da América portuguesa, que em
algumas regiões motivou inclusive a criação de leis que adaptavam os parágrafos do
Diretório à realidade em questão, conclui-se que a dita implementação não se limitou a
uma mera transposição das medidas formuladas para a região amazônica. Ela foi, antes
de tudo, condicionada pelas especificidades locais, resultando, portanto, em
experiências que, mesmo não sendo completamente singulares, guardavam contornos
próprios5.
No Rio de Janeiro, diante da expulsão dos jesuítas e das novas determinações
indigenistas, diversas cartas régias foram enviadas com o intuito de instruir as
autoridades sobre como proceder em relação às aldeias. Em primeiro lugar,
determinava-se que as aldeias fossem convertidas em vilas ou freguesias. Nas mesmas
instruções, é perceptível também a preocupação constante em preservar o patrimônio
dos aldeamentos para os índios, já que, de acordo com elas, ―nas igrejas das missões é
tudo pertencente aos índios, e que no seu nome e a título de tutela é que se achavam na
mera administração deles religiosos da Companhia de Jesus‖6. Porém, apesar das
aldeias terem sido convertidas em freguesias, a aplicação do Diretório no Rio de Janeiro
transcorria com alguma lentidão. Em 28 de abril de 1759, o governador interino da
capitania, José Antônio Freire de Andrade, manifestava a sua intenção de efetivá-lo.
Mas, quanto a isso, muito pouco foi feito e, em 1761, o Conde de Bobadella ainda
discutia sobre a aplicação do Diretório em sua jurisdição7. A referida lentidão muito
provavelmente pode ser explicada pela ausência do referido governador, que rumou em
1752 em direção ao sul a fim de participar como comissário português da demarcação
dos limites da América meridional e só retornou definitivamente ao Rio de Janeiro em
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1759. Mesmo após o seu retorno, as preocupações do Conde estiveram voltadas
principalmente para as ordens de Pombal em relação à defesa da cidade e para a
conservação das conquistas no extremo sul. Posteriormente, o Conde da Cunha, que
assumiu já no posto de Vice-rei, também teve uma administração especialmente voltada
para a defesa e a manutenção das fronteiras, deixando o tema em segundo plano.
Foi apenas no vice-reinado seguinte, o do Conde de Azambuja, que se verificou
uma maior preocupação em efetivar a política indigenista pombalina. Apesar de não ter
ocupado o cargo por muito tempo em virtude de sua saúde debilitada, o então Vice-rei
determinou que o capitão-mor da aldeia de São Barnabé, João Batista da Costa, fosse
responsável por ―reger e administrar debaixo de sua patente todas as aldeas desta
capitania‖, tendo a seu dispor ―em cada huma dellas todos os officiais de milicia q se
faziao necessarios assim para as guarnecerem e fortificarem como para acomodarem os
distúrbios q os Indios nellas fizessem‖8. Começava ali a participação do então capitão-
mor de São Barnabé na aplicação do Diretório na capitania.
A participação de João Batista da Costa na administração do Conde de
Azambuja
Antes de tudo, é fundamental trazer a tona uma importante questão: o que levou o
Conde de Azambuja a conferir tais responsabilidades a esse índio? Para respondê-la,
vale à pena considerar um fato que contribuiu decisivamente para a escolha de João
Batista da Costa como o encarregado do Vice-rei: a concessão do posto de capitão-mor
e de um soldo de 4 mil-réis para o mencionado indígena, dois anos antes da chegada do
Conde de Azambuja ao Rio de Janeiro. Quando estes foram concedidos pelo Conselho
Ultramarino, Costa, então sargento-mor, estava a dois anos na Corte em busca de seu
provimento no posto de capitão-mor – que estava vago – alegando que possuía dez anos
de serviços prestados sem qualquer ordenado. Tal agraciamento colocou Batista da
Costa em uma situação diferenciada ao retornar, já que sua posição havia sido
confirmada diretamente pelo Conselho e juntamente com isso lhe foi concedido o soldo.
Nesse sentido, é relevante lembrar que essa não era uma situação incomum no que diz
respeito aos indígenas inseridos à ordem colonial9. Como Carvalho Junior bem destaca,
a prática dos índios irem diretamente ao reino requisitar mercês, já verificada no século
XVII, possuía um significado especial para os mesmos, pois nas localidades tais
agraciamentos despendidos pelo centro monárquico eram percebidos como sinais de
distinção, tanto entre as autoridades locais quanto entre os próprios índios10
. Ao retornar
do reino, portanto, as referidas concessões a João Batista da Costa certamente
representavam prestígio e reconhecimento na sociedade local, tendo modificado
diretamente tanto a forma como o mesmo se via como a que os outros o viam. Uma boa
prova disso é que, mirando o mesmo reconhecimento social, lideranças de outras
aldeias, a partir do precedente aberto por Costa, solicitaram semelhantes mercês
utilizando o caso do capitão-mor de São Barnabé como um argumento a favor de suas
demandas.
Tendo isso em vista, o mais provável é que a escolha do Conde de Azambuja
tenha se dado em virtude da intenção do mesmo em encarregar alguém que gozasse de
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prestígio e de suficiente autoridade para mobilizar os índios das aldeias com vistas a
atender os interesses régios. Dentre esses interesses, inclui-se não só o de propiciar a
assimilação dos indígenas à sociedade colonial a partir da intensificação das relações e
dos contatos com os colonos, como também o de garantir mão-de-obra para o real
serviço. Desse modo, a fim de garantir o bom andamento das povoações indígenas –
que vivenciavam uma nova realidade desde a expulsão dos jesuítas e da promulgação do
Diretório – era crucial manter e reforçar a tradicional política de alianças com os índios
levada a cabo pela Coroa. Costa, que ocupava posição privilegiada decorrente da
concessão régia supracitada, certamente reunia tais quesitos em função dos longos anos
que exercia o posto de liderança em São Barnabé, o que influiu diretamente na sua
escolha.
Cabe ressaltar que esse não constituiu um caso singular no bojo do processo em
tela. Sobre isso, Ligio Maia destaca a participação ativa das chefias indígenas quanto à
aplicação da política indigenista pombalina em Pernambuco e suas anexas. Em sua tese,
ele dedica-se a delinear as concessões que o governador da dita capitania, Lobo da
Silva, fez às lideranças indígenas locais em uma reunião a fim de obter o apoio dos
mesmos para pôr em prática as novas determinações da Coroa. De acordo com a sua
perspectiva, o autor denota que tal reunião constituiu ―o ponto chave para a
compreensão da importância das lideranças indígenas na aplicação do diretório, pois
sem elas, o novo systema – como citavam os documentos coevos – era simplesmente
impraticável‖11
. Dessa maneira, como Maia também indica, é evidente, portanto, que a
colaboração de tais chefias era indispensável nesse contexto, tendo sido devidamente
compreendida pelas autoridades em diversas localidades da América portuguesa.
Assim, em um contexto em que os diretores ainda não tinham sido providenciados
para as aldeias, o capitão-mor de São Barnabé emergiu como uma figura importante
quanto à aplicação da política indigenista pombalina no Rio de Janeiro. E, de fato, ele
agiu nesse sentido. De acordo com várias certidões, Costa desempenhava o importante
serviço de ―aprontar Indios para o serviço de S. Magestade‖, de maneira que ia ―a todas
as aldeas desta capitania para visitar o estado e numerar os Indios dellas para quando for
necessário extrahir de cada huma os indios mais capazes para o dito serviço‖. Em um
dos documentos, o pároco da aldeia de São Francisco Xavier de Itaguaí confirma a
visita de Batista da Costa com esse propósito ―por ordem do Conde de Azambuja‖12
.
Mas, ao que parece, as visitas iam além do provimento de índios para o real serviço,
como bem destaca o padre da aldeia de Cabo Frio. O citado pároco informa que
veio o Capitao aos 20 de junho de 1766 e juntou todos os moradores aos 24 do
mesmo mes e os admoestou que vivessem como Deus mandava e que fossem
prontos para o real serviço cuidando juntamente no seo proprio aproveitamento
pellos achar geralmente destituidos de bens sem cuidarem em lavouras nem couza
alguma de que se pudessem sustentarem a si e as suas famillias13
.
O seu zelo no que tange a efetivação dos novos pressupostos indigenistas também
pode ser percebido em uma denúncia que fez em relação a José Dias Quaresma, capitão-
mor da Aldeia da Sagrada Família de Ipuca. Nessa denúncia, João Batista da Costa,
confirmando que o ―Conde Azambuja lhe ampliou mandando que o dito capitam mor
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corregesse todas as Aldeas desta capitania‖, delata que Quaresma é casado com uma
negra, fato que contrariava os princípios do Diretório14
. Enfim, ao que tudo indica, o
capitão-mor de São Barnabé foi não apenas incumbido da referida tarefa, mas também a
assumiu, sobretudo se levarmos em conta que a denúncia em tela foi feita pouca depois
da saída do Conde de Azambuja do posto de Vice-rei.
Para compreender o comprometimento de Costa, vale considerar a possibilidade
de inserção dos capitães-mores das aldeias indígenas na hierarquia social portuguesa a
partir do importante papel exercido pela Coroa como definidora de tal hierarquia. Isso
porque, à primeira vista, tais considerações podem parecer contraditórias quando damos
conta que estamos falando de uma sociedade caracterizada pela rígida ordenação social
e que era particularmente excludente em relação a determinados grupos: segundo a
cultura política do Antigo Regime português, havia barreiras quanto à mobilidade social
mediante as noções de pureza de sangue e defeito mecânico. Porém, tais impedimentos,
como destacou Raminelli, tenderam a ser relativizados de acordo com o contexto.
Quanto a isso, como lembra Monteiro, embora o cume da pirâmide hierárquica tenha se
mantido rigidamente encerrado, a mobilidade social em relação aos graus menores da
nobreza eram acessíveis. Segundo o próprio, apesar da ascensão social à alta nobreza se
fazer pelo meio da riqueza e pelo modo de vida, as distinções intermediárias poderiam
ser alcançadas através de serviços prestados ao rei, reforçando, portanto, a posição da
monarquia na regulação da mobilidade. Além disso, Monteiro enfatiza que a legislação
portuguesa sempre destinou às lideranças locais os principais postos da hierarquia local.
Dessa forma, as chefias indígenas, que desempenhavam a importante função de
intermediários, acabavam por se inserir na hierarquia social dado aos serviços que
prestavam em prol do empreendimento colonial e do prestígio que possuíam junto aos
seus liderados15
. Justamente por isso, ―a produção de lealdade em terras tão remotas era
mais relevante do que a classificação social do próprio reino‖, o que fazia com que
regras rigorosas como o defeito mecânico e a pureza de sangue se flexibilizassem no
ultramar16
. Portanto, se por um lado havia o interesse do Vice-rei em garantir o bom
andamento da aplicação do Diretório ao conferir responsabilidades a um índio que
possuía prestígio em relação aos demais, por outro havia o interesse de Costa em
alcançar uma posição mais favorável no bojo da hierarquia social.
Assim, nesses primeiros passos do Diretório no Rio de Janeiro, a sua aplicação,
longe de uma simples imposição, foi marcada pela constante interação com a política
indígena, representada então por João Batista da Costa.
O Diretório na administração do Marquês de Lavradio
Em 1769, quando o Marquês de Lavradio assumiu o vice-reinado, a participação
de Costa nos rumos da política indigenista declinou. Preocupado em fazer valer
sistematicamente os pressupostos do Diretório em sua jurisdição – tarefa que
considerava ―bastante árdua‖, mas que estava entre ―os negocios bastantemente
importantes‖ – o Marquês empreendeu uma série de mudanças quanto ao tema17
. A sua
proposta, ao invés de centralizar as responsabilidades em alguém, pautou-se na
interação com as demais lideranças das aldeias, as quais foram reforçadas, e na
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designação de diretores – incumbidos de civilizar os índios – para algumas delas. Com
isso, a posição de destaque usufruída por Batista da Costa na administração do Conde
de Azambuja diminuiu sensivelmente.
A propósito, se a autoridade de Costa em relação aos demais aldeamentos deixou
de existir em virtude dessa nova orientação, o dito capitão-mor viu sua influência ser
ameaçada também no interior de sua própria comunidade em virtude das mudanças
empreendidas pelo Marquês de Lavradio. Quanto a isso, é preciso ressaltar a atenção
especial dada pelo então Vice-rei à aldeia de São Barnabé, que se tornou emblemática
dada a sua singularidade no contexto da capitania do Rio de Janeiro por ter sido a única
a ser transformada em vila, em 1772, com o nome de Vila Nova de São José D‘El Rei.
Além disso, ela foi a primeira a ter sido provida de um diretor encarregado de reger a
povoação, fato que geraria consideráveis conflitos com João Batista da Costa no que
tange ao exercício da autoridade na comunidade.
Todavia, é preciso salientar que o esforço do Marquês em aplicar o Diretório teve
como reflexo não apenas a deterioração do poder político do capitão-mor de São
Barnabé, como também o avanço colonial sobre as terras da aldeia. No bojo dos
propósitos civilizacionais e assimilacionistas presentes no Diretório, Lavradio
responsabilizou-se por ―muitas índias que estavam em bastante perigo de se perderem,
mandando-as criar, e educar nesta cidade, a fim que possam ter mais sentimentos de
pureza, e honestidade‖, tendo ―já casado seis ou sete com homens brancos‖18
. Mandou
também que vários índios de São Barnabé aprendessem ofícios na cidade do Rio de
janeiro e enviou três a um colégio para serem devidamente educados. Mas, mais do que
isso, ele abriu espaço para que os colonos, agora incentivados a viver no interior das
aldeias, avançassem sobre as terras das mesmas.
Diante dessa situação conturbada, Batista da Costa não hesitou em mobilizar os
índios da aldeia em uma revolta contra as usurpações das terras coletivas. Ciente da
revolta, o Vice-rei não mediu esforços para pacificá-la. Ordenou a Feliciano Joaquim de
Sousa, o primeiro diretor nomeado para tal povoação, que não tivesse ―procedimentos
forte com nenhum deles, ainda dos que quiserem ir‖, procedendo ―com muita brandura,
e aqueles que forem ficando lhes dará todas as liberdades que eles por ora quiserem,
fazendo-lhes em tudo a vontade‖, de modo que se ―vejam tão abundantes, e satisfeitos
que eles possam ir conhecendo pouco a pouco a grande felicidade que têm tido‖. Como
parte da pacificação, enviou também uma patente ao capitão-mor e mandou o Diretor
esperançar aos índios de que ele iria providenciar para ―reparti-lhes as terras, e dar-lhes
instrumentos que as cultivem‖, além de determinar que fosse realizada a medição das
terras do aldeamento com o objetivo de preservá-las19
. As providências, apesar de terem
levado ao fim da revolta, não deixaram os índios satisfeitos, tendo em vista que,
segundo Costa, as medidas do Marquês de Lavradio eram não apenas onerosas, já que o
que era gasto com as medições saía dos rendimentos da aldeia, como também
ineficazes, pois não solucionava o problema20
. Mesmo assim, a consideração das
demandas dos índios pelo Vice-rei, que tentou uma saída para o problema, denota bem a
contínua interação entre a política indígena e a indigenista, revelando que Costa, embora
enfraquecido, ainda era uma figura política importante.
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Essa importância pode ser novamente atestada em 1779, quando as conturbações
vivenciadas pela recém-criada vila atingiram o seu ápice. Capitalizando a insatisfação
dos índios aldeados com as usurpações cometidas pelos colonos em suas terras e com a
série de desmandos cometidos pelos seguidos diretores da povoação, João Batista da
Costa redige um requerimento endereçado à rainha D. Maria I no qual pede
providências imediatas para os agravos sofridos pelos indígenas, em uma clara
apropriação da cultura política letrada e institucionalizada ibérica. De acordo com o seu
relato, os seguidos regentes que passaram pela povoação foram responsáveis apenas por
se aproveitarem do trabalho dos índios e dos rendimentos da mesma, cometendo
diversos abusos e submetendo os indígenas a inúmeras privações. Diante de
administrações tão despóticas, o capitão-mor em questão destaca as fugas de diversos
índios como uma alternativa a essa situação, justificando: ―huma liberdade constrangida
he como o ar emserrado nas estreitas concavidades da terra, que com repetidos aballos
pretende solicitar a fuga‖21
. Mais do que isso, Costa presta-se a criticar a regência dos
diretores, seguindo o argumento de que os mesmos administravam a povoação a partir
de seus interesses particulares:
Nao servem os Directores nesta Aldea se nao destruhirem e fazerem todo o genero
de negocio para conveniencia sua, e utilizando-se dos trabalhos dos Indios e
tambem do dinheiro dos rendimentos das terras da dita Aldea, pois rende dois mil
cruzados cada hum anno pouco mais ou menos que com certeza nao sei dizer a
VRM , pelos Escrivaes da Ouvedoria ser o que recebia o produto dos rendimentos
quando o Doutor Ouvidor da Comarca era Juiz Conservador da Aldea e agora os
Directores sao os q dao gasto do dinheiro e os Indios nao se utilizao22
.
Na sua perspectiva, a presença dos diretores – que ―so servirao para destruhir a
Aldea e amotinarem os Índios‖, bem como utilizar ―do trabalho deles, como se focem
seus escravos, maltratando-os pondo-os em fuga e emriquecendo com os lucros e com
os rendimentos da Aldea sem aumento para ella‖ – era desnecessária, tendo em vista
que os ditos regentes em nada contribuiriam para uma povoação que era desprovida de
grandes atrativos:
Se os Excelentissimos Condes de Bobadella e Azambuja quando governarao esta
Cidade vicem que era necessario Derector na Aldea o teriao posto , pois por
saberem que nella nunca houverao nem ha fabricas de qualidade alguma desde o
seu principio, porque os Indios da dita Aldea se ocupao na Cidade do Real serviço
e outros com suas mulheres em lavouras para os seus sustentos, tambem em
fazerem balaios , esteiras e acentos para cadeiras para com o produto se vestirem e
nao nessecitao para esta execução de direcção nem de Director porque sabem
fazer23
.
A essas, somam-se ainda as várias queixas que novamente remetiam às investidas
dos colonos sobre as terras da aldeia, problema recorrente a partir das mudanças
introduzidas pelo Diretório. Enfim, através das reivindicações de João Batista da Costa,
podemos perceber, para além das fugas e da revolta, a postura crítica a respeito de
aspectos importantes do Diretório a partir da ótica indígena. Não estamos querendo
dizer que o capitão-mor em tela tenha sido um opositor da política em questão, até
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porque, como vimos anteriormente, ele foi um significativo colaborador no que tange a
aplicação da mesma durante a administração do Conde de Azambuja. Mas sim que
Costa, com o apoio de seus liderados, apontava conscientemente para os desvios
decorrentes da aplicação do Diretório de modo a conseguir, através da intervenção
régia, solução para os seus problemas.
E, de fato, a Coroa interviu a favor dos índios. No parecer do Conselho
Ultramarino, determinou-se que fosse mandado ―devassar os excessos de que neste
papel se acuzavao os dous Directores desta Aldea‖ e foi sugerido reparações para os
agravos que a aldeia sofria. Mas, mais do que isso, o parecer corroborava a posição
defendida por Costa a respeito da inutilidade dos diretores. O documento destaca que a
presença de tais diretores ―nao convem mais nesta e nas mais Aldeas como tenho por
certo, tendo visto as queixas que se fazem dos do Pará e Maranhão, abula este
pernicioso official, creado em bem e convertido sempre em dano dos Índios‖24
. Ao fim,
a ação dos índios obteve sucesso e o diretor foi substituído.
Dessa maneira, o resultado do requerimento de Costa que capitalizava a
insatisfação dos aldeados, bem como a atuação do dito capitão-mor ao longo de todo o
processo em questão, demonstram de forma emblemática que os índios, ao invés de
meros objetos da política indigenista pombalina, tiveram participação ativa na mesma,
incidindo, inclusive, sobre os seus rumos. Fica evidente, então, que a aplicação do
Diretório, menos do que uma simples imposição, foi o produto da interação constante
entre a política indigenista e a indígena.
1 Mestrando em História pela UFF, sob a orientação de Maria Regina Celestino de Almeida.
[email protected] Tel.: 26958715. Endereço: Rua Carandá, 64 / Jardim Tropical/ Nova Iguaçu/
26011-130. 2 Sobre isso, ver: COELHO, Mauro César. Do sertão para o mar. Um estudo sobre a experiência
portuguesa na América: o caso do Diretório dos Índios. Tese de Doutorado: Usp, 2005. 3 ―Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade
não mandar o contrário‖. In: ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de
―civilização‖ no Brasil do século XVIII. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. Apêndice. 4 É fundamental diferenciar ―projeto‖ colonial – o que pretendiam os agentes administrativos – de
―processo‖, ou seja, como se deu na prática tais determinações a partir da dinâmica entre os vários
agentes sociais envolvidos. 5 Sobre a aplicação do Diretório em outras regiões, ver, por exemplo: GARCIA, Elisa Frühauf. As
diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América
portuguesa. Tese de Doutorado: UFF, 2007; LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de
índios do Rio Grande do Norte sob o diretório pombalino no século XVIII. Tese de Doutorado: UFPE,
2005. 6 Carta régia ao bispo do Rio de Janeiro. Arquivo Histórico Ultramarino. RJ Avulsos, Cx.63, Docs.63.
7 Carta de José Antônio Freire de Andrade ao rei. AHU. RJ Avulsos, Cx.57, Docs.45,46; Ofício do
governador conde de Bobadela a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1761. AHU. RJ Avulsos, Cx.
61, D. 5816. 8 Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
9 Requerimento de João Batista da Costa, ao rei D. José I. 1765. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 81, D. 4.
10 CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Índios cristãos. A conversão dos gentios na Amazônia
Portuguesa (1653-1769). Tese de Doutorado: UNICAMP, 2005 11
MAIA, Lígio José de Oliveira. Serras de Ibiapaba. De aldeia à vila de índios: vassalagem e identidade
no Ceará colonial – século XVIII. Tese de Doutorado: UFF, 2010. p.271. 12
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 13
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 14
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139.
Anais da VI Semana de História Política | III Semana Nacional de História: Política e Cultura & Política e Sociedade Rio de Janeiro: UERJ, 2011 (ISSN 2175-831X)
1128
15
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites sociais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo
Regime. Análise Social, vol. XXXII, n.º 141, 1997. 16
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: Monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo:
Alameda, 2008. p.53. 17
LAVRADIO, Marquês do. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: Secretaria de Estado
de Educação e Cultura. Instituto Estadual do Livro, 1978. p.95. 18
LAVRADIO, Marquês do. Op. Cit. p.117. 19
LAVRADIO, Marquês do. Op. Cit. p.117. 20
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 21
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 22
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 23
Requerimento de João Batista da Costa à rainha. 1779. AHU. Rio de Janeiro, Cx. 110, D. 9139. 24
Consulta do Conselho Ultramarino sobre a representação de João batista da Costa. AHU. Rio de
Janeiro, Cx. 122, D. 33.
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O movimento jesuíta em direção ao Oriente
Luiz Felipe Urbieta Rego*1
Resumo: O presente estudo procura analisar o movimento jesuíta em seu esforço de
entendimento e apropriação de culturas orientais. Ele irá focar-senosprimeiros contatos
e no processo de estabelecimento das diretrizes básicas para o trabalho missionário.
Esse contexto será abordado estudando o vinculo simbiótico entre a Companhia de
Jesus e a Coroa de Portugal. Busca com isso expor a Companhia de Jesus como uma
instituição que para além de seu fim religioso criou relatos históricos ricos em análises
culturais e etnográficas.
Palavras-Chaves: Cultura. Jesuíta. Oriente.
Abstract: This essay will study the process of understanding of the Oriental cultures by
the Jesuits in the XVI century. We will conduct an inquiry in the fields of cultural
history and using the works of various Jesuit authors as basis for the study of
development of the relations between East and West. In this process the Portuguese
Crow and the Society of Jesus developed a symbiotic bond that defined the forms that
foreign people were treated and described in the Jesuits texts in a way that never had
been done before in the Occident.
Key words: Jesuits. Orient. Culture.
O século XVI foi o período que englobou o nascimento explosivo de novas visões
de mundo engendradas pelas Grandes Navegações, os Descobrimentos, a Reforma
Protestante e pelo Renascimento. Essa nova produção de pensares questionava
profundamente os valores tradicionais pregados pelo dogma religioso. Entretanto foram
os mesmos religiosos católicos que, sendo detentores dos saberes clássicos de Roma e
Grécia, começaram a questionar sua relação com o passado(1), inaugurando a polemica
renascentista dos antigos contra os modernos. Este debate é mais bem ilustrado através
do jogo de metáforas produzidas ao longo desse período: a imagem dos homens daquela
contemporaneidade como anões em ombros de gigantes fora gradativamente sendo
substituída pela ideia de uma luz do passado que retornava expulsando as trevas do
presente(2). Observamos nessa transição o surgimento de um sentimento de autonomia
e valorização do homem que em sua apropriação e adaptação dos valores antigos
realizava um feito legitimamente consciente, autônomo e digno de orgulho próprio. As
descobertas de novas terras eram fruto da dedicação e esforço racional dos seres
humanos para compreender a realidade a sua volta em uma dimensão que não fosse
1 Mestrando em Historia Social da Cultura pela PUC-Rio. Bolsista Capes.
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mais atrelada exclusivamente a uma perspectiva religiosa. O humanismo desponta nesse
contexto como um elemento fundamental para elaboração uma visão positiva do ser
humano e do individuo.
Segundo São Tomás de Aquino, o homem era incapaz de mudar sua condição, a
não ser através da graça divina. Entretanto, um dos principais autores humanistas do
XVI, Erasmo de Roterdam (1546-1536), postulava que o ser humano possuía uma
habilidade inerente de mudar a si próprio. Essa ideia da capacidade de modelar o
espirito humano fora desenvolvida por outros autores como Maquiavel, Thomas More e
Alberti exaltando com isso o fulgor criativo e a capacidade de adaptação humana.
Moldar a consciência humana não era totalmente ausente na Escolástica de
Aquino, mas a adaptação encontrava-se atrelada a subjugação ao dogma e a
disciplinarização do espirito através de práticas ascéticas. Este é o argumentopregado
pelo fundador da Companhia de Jesus,Inácio de Loyola, em sua obra fundamental: os
Exercícios Espirituais (3).
Loyola e Erasmo escreviam,portanto, segundo os mesmos modelos e influencias,
mas com objetivos divergentes: enquanto Erasmo pregava uma filosofia cristã que
rejeitava uma disciplina opressora Loyola defendia um retorno ao dogma católico
pautado por uma rígida disciplina interiorizante, a qual se realizava através da escrita e
leitura metódica de obras edificantes para o trabalho apostólico. Observamos aqui como
tanto a intelectualidade humanista quanto jesuíta operava em um solo comum,
apropriando-se de conceitos clássicos segundo seus interesses e ideais próprios.
Foram esses elementos positivadores da ação humana que em muitos aspectos
incentivaram a atitude mental necessária para uma empresa como as Grandes
Navegações. Ela foi apoiada tanto por razões pragmáticas materialistas como de um
cunho ideológico que ressoa desde as Cruzadas do XV. O movimento cruzadista
desempenhou um papel fundamental no processo de construção da identidade
portuguesa e espanhola, criando a chamada identidade ibérica. A expulsão das
influencias árabes da península ibérica e o posterior esforço dos portugueses em se
libertar do monopólio comercial das cidades italianas e em se estabelecer como um dos
primeiros estados monárquicos absolutistas, fazendo questão do aval da Igreja Católica,
demonstra as tensões fundadoras da modernidade ocidental.
A percepção dessas tensões foi percebida no século XVII, quando os homens
sentiram profundamente os contrastes entre ações e intenções humanas. Ao mesmo
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tempo em que eram conscientes de sua capacidade criativa e destrutiva eles também se
conscientizavam de sua efemeridade e insignificância. Os europeus desenvolveram um
senso dramático marcado pela conflitualidade, um dos elementos definidores da
sensibilidade barroca. Conforme comenta Rosario Villari:
―De facto, o aspecto peculiar da conflitualidade barroca reside menos no
contraste entre indivíduos diferentes do que na existência de
comportamentos aparentemente incompatíveis ou nitidamente
contraditórios no seio do mesmo individuo. A convivência entre
tradicionalismo e busca pela novidade, de conservadorismo e rebelião, de
amorà verdade e culto da dissimulação, de prudência e loucura. De
sensualidade e misticismo, de superstição e racionalidade, de austeridade e
―consumismo‖, de afirmação do direito natural e de exaltação dopoder
absoluto, è um fenômeno de que pode se encontrar inúmeros exemplos na
cultura e na realidade do mundo barroco. ‖(4)
Durante muito tempo criou-se uma imagem negativa de decadência que o próprio
barroco produzira de si mesmo. Ela fora admitida por seus leitores posteriores como
Rouland Mousnier, Pierre Chaunu e José Antonio Maraval.
Um dos aspectos mais marcantes da relação dos séculos XVI e XVII é, portanto, o
processo de articulação das concepções epocais como um elemento de produção de
saber vital para a própria definição da identidade dos homens do seu tempo. Fora no
século XVII que surgiu uma concepção tripartida de tempo histórico organizado
cronologicamente(5). Com isso colocava-se em xeque o paradigma do tempo
predefinido biblicamente e surgiu a cisão entre Modernos e Antigos.
Isso é de extrema importância para o nosso estudo, pois o debate sobre a
separação do tempo bíblico e histórico era um dos centros da disputa entre Protestantes
e Católicos. E ao mesmo tempo a Contra Reforma e, principalmente, a Companhia de
Jesus se esforçavam para inserir aalteridadedos povos ameríndios e asiáticos dentro da
conformidade bíblica.
A produção jesuítica surge nesse contexto tanto em seu caráter de documentação
provida nos processos inquisitoriais, como as correspondências jesuíticas e os relatos
públicos das atividades missionarias no Novo Mundo e Oriente. Estas obras tinham
funções diversas. Elas divulgavam o trabalho missionário dos jesuítas em locais
distantes, como as Américas e o Oriente, e com isso realizavam os primeiros relatos
etnográficos e antropológicos da modernidade. Mais do que estarem escrevendo a
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historia da Companhia de Jesus, os seus missionários acreditavamestar escrevendo o
próprio processo civilizacional.
A obra Expeditione Apud Sinas do jesuíta Nicolas Trigault(1577-1628) desponta
nesse contexto enquanto reveladora da ideologia missionaria jesuíta e da forma com esta
percebia e enquadrava a alteridade. Ela fora escrita com o objetivo de narrar toda a
trajetória da Companhia de Jesus no Oriente.O estudo da historia desta obra, feita a
partir da adaptação dos escritos de um dos missionários jesuítas mais eminentes na
China, Matteo Ricci(1552-1610), é também reveladora das complexas interações dos
jesuítas com as escalas local, regional e global de poder.
Destaca-se aqui que a obra de Trigault tinha em um de seus principais argumentos
justamente combater opiniões e ideias distorcidas que vinham sendo divulgadas a
respeito da China e do trabalho da Companhia de Jesus no Oriente (6). Em paralelo ele
também testemunha debates e conflitos dentro da administração interna do Império
Português.Embora sua obra esteja focada no aspecto religioso elaé um testemunho dos
primeiros contatos entre Ocidente e Oriente na modernidade.
Ao pensar nos jesuítas somos imediatamente levados para a dimensão religiosa.
Mas embora a religião desempenhasse um papel central para os homens daqueles
tempos, percebemos na própria natureza flexível dessa ordem missionaria, a ascensão
de uma atitude racional e questionadora dos modelos religiosos vigentes. O sentido de
emergência da necessidade de expandir a ação apostólica para além da Europa tem
razões tanto pragmáticas quantodevocionais de não apenas garantir o monopólio
religioso da igreja Católica como também ordenar e fiscalizar o processo civilizatório.
Um dos principais argumentos que procuramos defender nesta obra é a concepção
da Companhia de Jesus enquanto uma instituição que se definira através da articulação
de sua produção intelectual com sua ação devocional. No processo de seu
estabelecimento ela veio a se relacionar ao projeto imperialista português não apenas
devido à proeminência de Coroa Lusa na empresa marítima, mas também devido
àprofunda devoção portuguesa. Portugal e a Companhia de Jesus partilhavam dessa
forma um vínculo simbiótico (7).Masenquanto instituições independentespossuíam
agendas e ideologias diversas ainda que partilhassem de características essenciais como
seu desejo de expansão e sua característica adaptativa ao contexto local.
A experiência missionaria e colonial na Índia, especificamente em Goa,
influenciou profundamente a atitude missionaria jesuíta, sendo também reveladora da
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natureza do vínculo da Companhia com a Coroa. Foi em Goaque os métodos de
conversão jesuítas foram os mais polêmicos devido às formas de imposição da religião
católica aos nativos.
Os jesuítas muitas vezes obrigavam os nativos hindus a comerem carne de vaca,
tornando-os párias para sua própria sociedade, além de se apossarem de crianças órfãs
de pai e mãe, mesmo quando estas tinham outros familiares dispostos a cria-las (8).
Essas atitudes geraram desavenças com o próprio governo colonial luso, que precisava
da cooperação dos nativos para administrar a produção colonial. Issoobrigou os jesuítas
a reverem suas práticas de evangelização. Passado um breve intervalo temporal o
Império Português havia consolidado suas posições no Oriente e abandonara o espirito
conquistador característico da primeira metade do XVI para adotar uma postura
defensiva, de manutenção dos territórios conquistados(9).
A empresa jesuíta no Oriente tem como marco inicial a chegada de Francisco
Xavier no Japão em 1549 e sua posterior tentativa de adentrar a China em 1552.
Trigault relata esse episodio como um resultado da experiência missionaria de Xavier
no Japão:
―While Xavier was working among the idol-worshippers of Japan, he
observed that whenever they were hard pressed in an argument, they
always had recourse to the authority of the Chinese. This was quite in
keeping with the fact that they also deferred to the wisdom of the Chinese
in questions pertaining to religious worship and in matters of public
administration. Whence it happened that they commonly asserted, that if
the Christian religion was really the one true religion, it surely would have
been known to the intelligent Chinese and also accepted by them.
Whereupon Xavier decided that he must visit the Chinese as soon as
possible and convert them from their superstitious beliefs. With that done,
he could more easily win over the Japanese, with the Gospel brought to
them from China.‖(10)
A autoridade teológica dos chineses é apresentada como justificativa que leva
Xaviera iniciar sua proposta missionária para a China. A missão japonesa iniciada por
Xavier fora transmitida desde o seu início como um sucesso,resultado das semelhanças
superficiais entre budismo e cristianismo que elevaram as expectativas de Xavier e
produziram desentendimentos de ambos os lados. Xavier acreditava que se convencesse
os chineses que o Cristianismo era a única religião verdadeira ele conseguiria converter
mais facilmente os japoneses. Foi no Japão que os jesuítas começaram a formar as
primeiras concepções da China enquanto um elemento referencial no microcosmo
asiático. Essa crença se manteve forte até a chegada de Ricci, que também acreditava
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que mesmo o menor progresso na China seria benéfico para missão asiática como um
todo.
Em sua empreitada para a China Xavier foi barrado pelo Governador Geral de
Malaca, Alvares Taidio. A principal causa atribuída a essa atitude era o temor do
Governador de uma represália dos chineses, que proibiam terminantemente qualquer
entrada nos portos continentais sem aviso e autorização prévia.
Xavier tenta convencer o Governador de Malaca utilizando todos os seus contatos
na burocracia administrativa colonial e também na estrutura eclesiástica local. Ele
consegue através deles uma carta do Rei de Portugal autorizando-o explicitamentea
realizar a viagem para China:
―Finally, Francesco Alvares, (…), went personally to the Governor
with letters from the King of Portugal, in which the Sovereign
asserted that when he sent Xavier to India his intention was that he
should preach the Gospel to the entire Orient. Together with these
letters he also produced the decree of the Viceroy, making it a crime
against the Crown for anyone wilfully to impede the legation to
China. When Taidio heard these documents read, in presence of a
numerous gathering, he jumped up from his chair, stamped his foot
in anger and exclaimed, "What interest have I in decrees of the
Viceroy? I know it is for the King's best interests that this expedition
should not be undertaken." ‖(11).
O Governador Geral questionou mesmo um decreto real que colocava como um
crime contra a Coroa qualquer impedimento à expedição chinesa. Tal atitude reflete a
particularidade do imperialismo português cuja autoridade do Rei se esvaia
proporcionalmente a distancia e complexidade administrativa das áreas ocupadas em
nome do Império. Xavier ainda realiza uma ultima tentativa religiosa ameaçando
excomungar Alvares Taidio. Aautoridade eclesiástica foraignorada e o Governador
aparentemente não temia a punição divina ou mesmo da própria Coroa.
O fim desse imbróglio termina com o Governador Geral sendo não apenas preso,
acusado de vários crimes, além do de difamar Xavier, morrendo na prisão leproso e
pobre (12). O terrível fim desteoficial português, independente de poder ser confirmado
ou não, demonstra o caráter exemplar das obras jesuítas. Elas estavam imbuídas de uma
função evangelizadora que sacraliza a figura dos jesuítas e os coloca como vigias do Rei
e fiscais da manutenção dos costumes católicos entre os portugueses.
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Para entender esse entrelaçamento metodológico presente na missionação chinesa
e japonesa analisamos a obra ―Apologia em la qual se responde a diversas calumnias
que se escrivó contra los Padres da Compañia de Japón y China‖ (12) do então padre
visitador Alessandro Valignano (1539-1606). O cargo de padre visitador era uma das
funções mais ilustrativas da mobilidade dos jesuítas. Como seu nome sugere esses
jesuítas tinham não apenas a função de visitar as diversas missões espalhadas pelo
globo, como também realizar o trabalho de divulgar para a Santa Sé e Europa sua
atividade missionaria sob uma luz positiva, buscando com isso obter donativos para
custear os gastos da Companhia. Seguido do cargo de Geral da Companhia esse era um
dos cargos de maior prestigio e autoridade dentro da ordem. Nicolas Trigault também
exercera essa função. E fora Valignano que nomeara Matteo Ricci como Superior da
MissãoChinesa em 1597(13).
A obra de Valignano fora escrita entre 1597 e 1598, perto dos anos finais de sua
função como padre visitador da Companhia de Jesus (1573 a 1606). A Apologia fora um
texto concebido para ser direcionadoexclusivamente para o meio eclesiástico, sendo que
o próprio autor declara que tal missiva não deveria ser publicada para não revelar os
conflitos religiosos internos do Catolicismo no Oriente(14).
Durante esse período ele visitara as missões de Macau, Goa e Japão. O contexto
queo levara a escrever seu relato fora rebater as críticas feitas pelos frades franciscanos
quanto à exclusividade missionaria dos jesuítas na China e Japão. Isso somado a extensa
propaganda feita pelos franciscanos do martírio de um dos seus em território japonês em
1597, e da tensão que subjazia na região devido à invasão japonesa na Coreia em 1592,
levaram a Igreja de Manila, nas Filipinas, centro da Coroa Espanhola no Oriente, a
incitar os franciscanos contra os jesuítas devido aos seus interesses geopolíticos. A
Coroa Espanhola desejava adentrar no rico mercado chinês monopolizado por Portugal
através de Macau. E para isso patrocinava a empresa missionaria franciscana no Oriente
cujo centro estava em Manila, nas Filipinas.
A questão central que estava em jogo nesse debate entre jesuítas e franciscanos
era a legitimidade da Santa Sé em conceder direitos seculares às coroas cristãs da
Europa sobrereinos gentios infiéis. Valignano vai rebater os argumentos franciscanos
buscando defender pragmaticamente a exclusividade jesuíta e o domínio lusitano
centrado na cidade Macau. Em sua Apologia ele faz questão de destacar o aspecto
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espiritual do poder papal, separando assim poder secular de poder religioso para refutar
a perspectiva franciscana.
O pensamento missionário de Valignano e, por consequência da Companhia de
Jesus, via a maneira de realizar a atividade apostólica de uma forma diametralmente
oposta da concebida pelos franciscanos. Enquanto estes viam o Japão enquanto um
território a ser conquistado(15) para garantir o avanço do cristianismo na Ásia,
Valignano partilha da postura concessiva e, até mesmo em certo ponto condescendente,
de respeitar os costumes locais. Dessa forma ele negava a imposição do evangelho pela
força, algo comprovadamente prejudicial conforme fora observado na experiência
indiana. Procurava então compatibilizar a atividade missionaria de acordo com a
especifidade daqueles a quem desejava converter. Os franciscanos , segundo ele,
cometiam o erro de ignorar a complexidade do contexto em que estavam se inserindo,
buscando impor formas religiosas que não eram aprovadas ou compreendidas pelos
nativos.
O trabalho missionário no Japão estabeleceu as bases metodológicas a serem
aplicados pelos jesuítas em todo Sudeste Asiático. Observamos no modelo jesuíta
aplicado no Japão as sementes do método empreendido por Ricci e Trigault na China. E
esta metodologia continha em si um elemento reveladorde uma atitude mental inédita: a
valorização da experiência empírica em detrimento da tradição.
Os jesuítas não apenas seguiramas rotas coloniais lusas, mas de fato como
podemos observar sua presençacontribuiu ao longo do tempo para expansão,
estabilização e, às vezes,paradoxalmente, para a desestabilização (como fora o casodas
tensões experimentadas na Índia e Brasil) do poder português em suas áreas coloniais.
A ausência de estudos de história cultural sobre a China dentro do cenário
acadêmico nacional mobilizou-me a pensar em alternativas que ampliem esse horizonte,
para possibilitar comparações entre estruturas sociais que produzam novas perspectivas
para compreensão do processo de construção da identidade e alteridade dentro do
diálogo cultural. A cultura enquanto elemento dotado de uma estrutura discursiva
permitea análise dos processos interativos no encontro dos povos ao longo da historia
(16).
O que eu procuro com minha pesquisa é iniciar uma reflexão sobre o diálogo
cultural usando textos dos primeiros jesuítas na China. Para além de sua dimensão
religiosa, tais escritos demonstram um dos muitos processos de intermediação entre
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Razão e Religião. Essa divisão categórica é apenas o final de um longo processo mental
iniciado pelo pensamento ocidental. O que o historiador procurafazer com os objetos
indiciários desse movimento é reconstituir os passos que levaram a esse resultado (17).
E uma das formas de se fazê-lo é realizando uma comparação etnohistorica dos
resultados de encontros de diferentes civilizações em diferentes tempos.
NOTAS
1- RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. A formação do mundo
moderno/Antonio Edmilson M. Rodrigues, Francisco José Calazans Falcon. -2 ed.- Rio
de Janeiro: Elsevier,2006. Capitulo3p.69.
2- Publicado oficialmente em 1548 esta obra já era bastante difundida no circulo
eclesiástico dos jesuítas desde antes mesmo a fundação da ordem IN: BANGERT,
William. História da Companhia de Jesus. Porto: Livraria A. I; São Paulo: Loyola,
1985.
3- VILLARI, Rosario. O homem barroco. Lisboa, Presença: 1995. Introdução p.9.
4- Rodrigues, Antonio Edmilson Martins. A formação do mundo moderno/Antonio
Edmilson M. Rodrigues, Francisco José Calazans Falcon. -2 ed.- Rio de Janeiro:
Elsevier,2006. Capitulo 1 p.1.
5- Trigault, Nicolas, S.J. China in the Sixteenth Century: The Journals of Mathew
Ricci:1583-1610.Trad. Louis J. Gallagher, S.J. New York, Random House ,1953.
Preface by Nicolas Trigault pp.13 - 14.
6- Fernandes, Eunicia Barros Barcelos; MATTOS, Ilmar Rohloff de. Futuros
outros: homens e espaços: os aldeamentos jesuíticos e a colonização na América
portuguesa. 2001. 227 p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Curso
de Pós-Graduação em História, Niterói, RJ, 2001.
7- BOXER, Charles. O império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1969.
8- Idem, p.144.
9- TRIGAULT,Nicolas, S.J. China in the Sixteenth Century: The Journals of
Mathew Ricci:1583-1610.Trad. Louis J. Gallagher, S.J. New York, Random House,
1953. P.117.
10- Idem, p120.
11- Ibidem, p.121.
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12- Este documento foi analisado através do estudo de: Correia , Pedro Lage Reis .A
concepção de missionação na Apologia de Valignano: estudo sobre a presença jesuíta
e franciscana no Japão (1587-1597).Lisboa : Centro cientifico e cultural de Macau,
2008.
13- Boxer, C.R.The Christian Century in Japan, Berkeley: University of California
Press, 1951
14- Correia, Pedro Lage Reis. A concepção de missionação na Apologia de
Valignano: estudo sobre a presença jesuíta e franciscana no Japão (1587-
1597).Lisboa : Centro cientifico e cultural de Macau, 2008. P.178.
15- Esta perspectiva de conquistar em nome da cristandade não era um ponto
passivo comum a todos jesuítas,existindo inclusive jesuítas de origem portuguesa que
consideravam viável ver os cristãos japoneses como súditos que estariam dispostos a se
rebelar contra as autoridades locais e mesmo empreender uma guerra com a própria
China. Ver: BOXER, Charles. Relações raciais no império colonial português, 1415-
1825. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967.
16- WHITE, Hayden V. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura.
São Paulo: EDUSP, 1994.
17- FEBVRE, Lucien. A problemática da incredulidade no século XVI. A Religião
de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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Bolivarianismo: análise inicial de um conceito em uso na Venezuela chavista
Luiz Fernando de Oliveira Silva
RESUMO: O atual processo político em curso na Venezuela desde a eleição de Hugo
Chávez à presidência em 1998 trouxe à discussão as apropriações do pensamento
político de Simon Bolívar na construção de uma ideologia capaz de responder as
inquietações dos venezuelanos. Neste artigo, objetivamos fazer uma análise inicial da
construção do conceito de bolivarianismo dentro do presente contexto político
venezuelano.
PALAVRAS-CHAVE: Bolivarianismo; Venezuela; Hugo Chávez.
ABSTRACT: The current process politician in course in Venezuela since the election
of Hugo Chavez to the presidency in 1998 brought to the quarrel the appropriations of
the thought politician of Simon Bolivar in the construction of an ideology capable to
answer the fidgets of the Venezuelans. In this article, we objectify to inside make an
initial analysis of the construction of the concept of bolivarianism of the present context
Venezuelan politician..
PALAVRAS-CHAVE: Bolivarianism; Venezuela; Hugo Chávez.
Introdução
O presente cenário político na Venezuela não pode ser entendido como um
fenômeno da curta duração, apenas como uma tendência da política latino-americana ou
um processo político que se fecha em si.
Ao contrário, compreendemos este fenômeno como fruto de um processo político
específico mas que nos remete, seguramente, às décadas anteriores ao próprio
fenômeno. Concordamos com o sociólogo venezuelano Edgardo Lander1 ao afirmar
que o processo sociopolítico em andamento na Venezuela é uma reflexo de um processo
mais longo, iniciado na década de 70 do século XX, quando o pacto de governabilidade
firmado entre as elites políticas locais entrou em decadência ocasionando após uma
onde de graves crises no sistema econômico local, uma série ininterrupta de abalos da
instabilidade política, cujos pontos fortes e nefrálgicos se deram na década seguinte,
como a adoção de medidas econômicas impopulares que levaram, por sua vez, à
distúrbios singulares como o Caracazo (1989), como a volta do pluripartidarismo
(1992), como a tentativa de golpe de Estado pelos militares do Exército (1992), a
abertura de processo de impeachment contra o presidente Andrés Perez (1993) e as
discussões sobre a necessidade de uma ampla reforma constitucional (1993).
A nova face do Bolivarianismo
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Em 1992, oficiais do Exército venezuelano fizeram uma tentativa frustrada de
golpe de Estado contra o governo de Carlos Andrés Perez. Liderados por um
desconhecido tenente-coronel de Barinas chamado Hugo Chávez o movimento foi
sufocado, dentre outro, pelo fato dos rebeldes não terem conseguido tomar o canal de
TV estatal, expor suas idéias e objetivos e convocar o apoio da população da capital
Caracas. Entretanto, ao ser preso, o coronel Chávez se pronunciou a nação (esta era
uma das condições para sua rendição) dizendo:
Antes de mais nada, quero desejar bom-dia a todo o povo da Venezuela. Esta
mensagem bolivariana é dirigida aos valentes soldados que se encontram no
regimento de pára-quedistas da Arágua e na Brigada blindada de Valencia.
Companheiros: lamentavelmente, por enquanto, os objetivos que nos colocamos
não foram atingidos na capital. (...) Assim que ouçam minha palavra, ouçam o
comandante Chávez (...) Agradeço sua lealdade, agradeço sua valentia, seu
desprendimento e eu, diante do país e de vocês, assumo a responsabilidade deste
movimento militar bolivariano. Muito obrigado.‖2
Naquela ocasião, dois pontos daquele rápido discurso de pouco mais de um
minuto evidenciava os objetivos daquele grupo, e do pensamento político que pairava
sobre a caserna venezuelana sobre a situação política e social do país. O primeiro, foi
exatamente o caráter militar e bolivariano daquele levante; o segundo foi o fato de que
um homem (que naquela ocasião de tornara uma figura pública) vinha à TV para
assumir a responsabilidade sobre algo que não deu certo e, que para a maioria da
população depunha contra os princípios legais vigente.
Após quase duzentos anos de conquistar a independência para metade da América
do Sul espanhola, no século XIX, Simon Bolívar era restabelecido como ponto central
de um pensamento político rebelde no seio do Exército venezuelano. Bolívar, herói
nacional em vários países sul-americanos, era o vulto que inspirava e dava nome a um
grupo de oficiais das Fuerzas Armadas Nacionales (as FAN) que tentara um golpe de
Estado. Mas o que levava aqueles oficiais, aquele grupo a buscar em Bolívar a
inspiração política e ideológica para o levante e para uma nova proposta para a
Venezuela?
Para os intelectuais e políticos marxistas e socialistas até os anos 1960/70, Bolívar
se constituía como uma figura que reunia em si as características capitalistas mais
detestáveis: apesar de lutar contra os colonizadores espanhóis, Bolívar colocara a
América do Sul hispânica à mercê da ação do imperialismo comercial britânico; sendo
membro da família mais rica de Caracas, Bolívar teria comandado o processo
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separatista em benefício de sua própria ―classe burguesa‖. Diante da idéia de que o
Libertador, na verdade, teria sido um colaborador do imperialismo do século XIX, a
esquerda não o considerava como protótipo revolucionário para uma América Latina
que, em pleno século XX, lutava como era possível, contra o imperialismo
estadunidense.
Os aspirantes que ingressavam na Academia Militar tinham uma formação de
bacharéis militares. Durante o primeiro mandato de Rafael Caldera (1969-1974) houve
uma reformulação da educação aplicada na Academia Militar, cujo novo programa faria
de Chávez e de seus companheiros de caserna licenciados em Ciências e Artes
Militares3, abrindo as portas da oficialidade também a elementos das camadas mais
humildes da população, diferente do que acontecia, na mesma época, nas Forças
Armadas de outros países sul-americanos. Ao mesmo tempo, a formação destes oficiais
era voltada para o nacionalismo, para o culto ao Libertador, para o resgate da dignidade
militar.
Diante da crise endêmica de se avizinhava já nos anos 1970, o movimento
bolivariano ganhara força na caserna contra o modelo sócio-economico-político vigente,
uma vez que os oficiais médios das Forças Armadas cruzavam a fronteira social entre a
maioria da população mais empobrecida do que outrora e as classes abastadas, que só
asseguravam seu padrão de vida ante a crise econômica e o aprofundamento da
polarização social recorrendo a sonegação de impostos e corrupção. Estes oficiais
transitavam neste espaço devido a sua origem humilde (muitos tinha suas famílias
vivendo nos populosos barrios das grandes cidades como Caracas, Maracay, Barinas e
outras) mas que gozavam do acesso ao ensino superior e ascensão social por pertencer
as Forças Armadas, num momento em que os serviços públicos como Educação,
transporte e saúde estavam sucateados. É neste contexto que, o bolivarianismo militar
se funde com ideologias de esquerda, e os oficiais da Academia Militar e dos quartéis
espalhados pelo país, formam grupos de discussão, crítica e, não raras vezes, de
conspiração contra o modelo puntofijista agonizante, e a memória de Bolívar passa a
representar os ideais nacionalistas e libertadores da esquerda venezuelana.
Chávez antes de ser um político, está imbuído do espírito da caserna, da
disciplina, das ordens, rigor e orgulho militares, do nacionalismo, do bolivarianismo.
Ele ―entende a alma do Exército, pois faz parte desta alma‖.4 Por isso, entende que a
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revolução que diz conduzir na Venezuela desde sua eleição em 1998, tem,
obrigatoriamente, nas Forças Armadas uma das suas bases de sustento mais sólidas.
O culto a Bolívar e as reflexões sobre o seu pensamento político e seu legado na
Venezuela estava espalhado em diversos setores da sociedade e das instituições.
Todavia, esta memória coletiva foi canalizada para a discussão política pelos militares,
em especial e mais concretamente pelo grupo de reflexão e debates liderado por Hugo
Chávez na Academia Militar.
O grupo de Chávez fundou em 1982 o Ejército Bolivariano Revolucionario
(EBR) que logo tornou-se o Movimiento Bolivariano Revolucionario 200 (MBR-200),
parafraseando o famoso juramento de Bolívar no Monte Sacro (1805) de libertar o povo
venezuelano da opressão dos poderosos.5 Em sua companhia estavam Jesus Urdeneta,
Felipe Acosta e Raul Baduel, que ocuparam cargos estratégicos no governo Chávez.
O surgimento e consolidação do MBR-200 representa uma nova etapa no
pensamento da esquerda na Venezuela e na América Latina, em geral. Diante do
colapso do pensamento de esquerda que se testemunhava nos anos 1980, com o fracasso
das experiências socialistas na Europa, com as formas de opressão exercidas pelo
governo soviético em diversos países, com o declínio político e econômico do império
soviético que encontraria, dali a poucos anos o seu fim, levava a mudanças no
pensamento de esquerda. Não mais se pensava na revolução tradicional para se chegar
ao poder, nem na planificação econômica como remédio ao capitalismo selvagem do
final do século XX. No lugar disso, as propostas variavam entre a adesão ao sistema
democrático como forma legítima de chegada ao poder e implementar modificações
específicas e bem pontuais na sociedade e na economia, até mesmo ao afastamento do
pensamento socialista através da aproximação com moderados e setores de direita.
O MBR-200 não conseguia, a priori, desvincular a implementação das mudanças
sociais necessárias sem o uso da força para tomar o poder. Dez anos depois de sua
fundação, o MBR-200 tentava um golpe de Estado, mas a IV República venezuelana,
apesar de seu colapso iminente ainda teve forças para rechaçar aquela tentativa militar,
mas sabia-se que não sobreviveria mais tempo.
Paralelamente, outra parte dos militares que discutiam a política nacional estava
bastante interessada em resgatar os ideais do último ditador venezuelano, deposto nos
anos 1950, o Gen. Pérez Jiménez em cujo governo se gestava o objetivo de fazer da
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Venezuela uma potência regional por meio do investimento na indústria pesada,
incluindo aí o desenvolvimento das Forças Armadas e do seu poderia bélico.
Com o afastamento legítimo do presidente Carlos Andrés Perez, em 1993 e a
vitória eleitoral de Rafael Caldera, por uma questão política, os golpistas foram
anistiados. Uma vez reorganizados, o movimento bolivariano foi ganhando força
política nos debates sobre a necessidade de mudanças profundas na sociedade e na
própria constituição venezuelana, que datava de 1961.
Durante este último governo de Caldera, o MBR-200 via a oportunidade de
participar diretamente do processo eleitoral em 1998. Mas para tal, sem que o
movimento perdesse suas especificidades enquanto movimento social, sua liderança
buscou cooptar políticos e intelectuais civis. Esta aproximação entre militares e civis
dentro do movimento foi determinante para distinguir uma nova fase do bolivarianismo,
a sua fase político-partidária.
De movimento a partido
Uma vez que os militares bolivarianos – em sua maioria reformados ou expulsos
após o fracasso do golpe de fevereiro de 1992 – estavam ideologicamente ligados a
esquerda, o MBR-200 estabeleceu contatos com as lideranças de esquerda que foram
derrotadas e marginalizadas nos anos 1960, como foi o caso exemplar de Douglas
Bravo e de Alí Rodriguez, ambos do extinto Partido Revolucionário Venezuelano
(PRV).
Concomitantemente, o MBR-200 buscou aliar-se a outras agremiações políticas
de menor expressão postas na clandestinidade como a La Causa Revolucionária (LCR),
a Liga Socialista (LS) e a Bandera Roja (BR), bem como com os partidos que fizeram a
opção de renunciar a luta armada e participar do processo eleitoral, como foi o caso o
Movimiento al Socialismo (MAS) e o tradicional Partido Comunista de Venezuela
(PCV). A participação de políticos profissionais no movimento influenciou a sua
concepção de Estado, de política e de esquerda, propondo o diálogo, a descentralização
e a adoção de uma gestão democrática. Outros intelectuais e políticos proeminentes no
cenário político venezuelano se aproximaram e aderiram ao bolivarianismo, entre os
quais se destacam José Vicente Rangel que foi chanceler (1999-2001), ministro da Defesa
(2001-2002) e vice-presidente (2002-2007); e Luís Miquelena que foi presidente da Constituinte
(1999) e ministro da Justiça (1999-2002).
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Assim, dentro de um movimento sócio-político de proporções nacionais, militares
e civis refletiam e discutiam as propostas do movimento para a Venezuela, as formas de
fazer política, de influenciar decisões, de cooptar eleitores e outros correligionários. Em
1998, o movimento decidira participar das eleições gerais de dezembro, inclusive com
um candidato próprio à presidência. O nome escolhido foi o Hugo Chávez, seja pelo
seu carisma natural e sua liderança, seja por ser a cabeça pensante do MBR-200, seria a
opção mais viável, capaz de fazer com o país aquilo que só ele conseguia fazer dentro
do movimento: cooptar apoiadores, inibir opositores, reunir em torno de suas propostas
pessoas com distintas posições sobre determinado assunto.
Paralelamente à estrutura tradicional do MBR-200 o movimento bolivariano
fundava o Movimiento Vª República (MVR) especificamente para a disputa eleitoral. O
MVB possuía uma estrutura e uma organização distinta do MBR-200 original.
Enquanto o último foi constituído como espaço privilegiado para a reflexão, o debate e
a formação ideológica de seus membros, o primeiro não abria espaço ao debate e a
formação de seus participantes, concentrando suas forças a alcançar o seu único
objetivo em curto prazo, a eleição de Chávez em dezembro.
O MVB reunia em torno da candidatura de Chávez e de seu discurso inflamado a
grande maioria dos partidos de esquerda, formando assim o chamado Polo Patriótico,
uma complexa e extensa coligação de partidos de diversos segmentos, muito mais
comprometidos em impor uma derrota histórica aos partidos signatários do Pacto de
Punto Fijo – a AD e o COPEI – do que com a proposta radical de Chávez.
A vitória de Chávez decretava o fim de um sistema político, que na prática era
bipartidário desde 1958, vigente na Venezuela. Os dois partidos, outra hegemônicos,
entraram em colapso e, devido as suas disputas internas, não foram capazes de reunir
uma oposição suficientemente coesa no legislativo para impedir (ou ao menos, inibir) a
execução das propostas bolivarianas após fevereiro de 1999.
De partido a governo
Após a vitoria eleitoral de 1998, o movimento bolivariano, outrora fruto de uma
concepção coletiva de suas lideranças, cedeu ao carisma do presidente Chávez.
Instalou-se no movimento, no partido e no governo um forte desequilíbrio de lideranças.
O rosto do movimento, do partido ou do governo era o Chávez; a voz do bolivarianismo
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era a de Chávez; a nação e o Estado venezuelano era personificado pelo presidente,
assim como as esperanças e os anseios da maioria da população.
Uma vez conquistado o poder e recebendo o apoio de 56% do eleitorado
venezuelano, o bolivarianismo passa a ser observado como a linha condutora das
políticas de Estado. Tanto que boa parte das promessas de campanha foram
implementadas em 1999, sobretudo as mudanças constitucionais e a adoção de formas
de democracia participativa e direta.
Reeleito nas eleições gerais de 2000 com 62% dos votos, Chávez imprimiu o seu
personalismo político ainda mais, reforçando o seu vínculo direto com o seu eleitorado,
sua base política, sem ter que recorrer a burocracia do Polo, ou do partido nem mesmo
do movimento. O governo criou mecanismo de contato direto entre os eleitores e o
presidente.
Por conta do esvaziamento político das funções do Polo e do próprio movimento,
muitas foram as vozes dissonantes que se desligaram do governo nos anos seguintes.
Várias destes rompimentos além de desgastar o governo e o Polo, engrossaram as
fileiras da oposição que, até então não estava representada na Assembléia Nacional.
Uma vez reorganizada nas ruas e com o apoio de deputados recém-saídos do governo na
Assembléia, a oposição pressionava o governo, fazendo uso dos meios de comunicação
em massa a sua disposição levando o governo a uma crise grave entre 2001 e 2003.
Neste período, a oposição organizou contra Chávez grande número de
manifestações de rua, nas maiores cidades do país, sobretudo na capital. Diversos
setores ligados as centrais sindicais, a indústria e ao empresariado organizaram greves e
tumultos, sobretudo nos setores produtivos como foi o caso dos paros gerais, dos
caminhoneiros e dos funcionários da PDVSA, a estatal de petróleo. A crise de
abastecimento oriunda destas manifestações e greves minou a credibilidade do governo
e a popularidade do presidente, bem como diminuiu o seu poder de barganha junto aos
partidos do Polo. A crise culminou com a tentativa de golpe de Estado engendrada por
militares, empresariado e meios de comunicação privados, em abril de 2002.
Após a crise de abril de 2002, Chávez assumira pessoalmente o seu momento
político. Os partidos formadores do Polo Patriótico, outrora aglutinadores de votos em
1998 e 2000, demonstraram toda a sua incapacidade de articulação em defesa do
governo e os princípios constitucionais, muito menos de reunir a população contra o
golpe. Segundo Margarita Lopez-Maya, o que frustrou os golpistas em 2002, ao
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contrário da dinâmica testemunhada em 1992, foi a cooperação imediata entre militares
leais ao governo e a massa populacional que tomou as ruas em defesa de seu
presidente.6 Uma vez de volta ao poder, Chávez estreitou seus vínculos com seus
eleitores e com os militares, dispensando os partidos desta tarefa.
Com a experiência do abril de 2002, o Polo Patriótico agravou sua
desfragmentação, que só será completa em 2006. Em 2001, uma disputa interna no
MAS causou um racha no partido que deixou o Polo; seus dissidentes fundaram o Por
Democracia Social (PODEMOS) que permaneceu no Polo até 2006, quando finalmente
romperam com Chávez. O Pátria Para Todos (PPT) afastou-se do governo entre 2000
e 2001 quando, em condições melhores, voltou para o Polo até, parte de sua militância
desaparecer, em 2007, nas fileiras do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), o
partido único fundado por Chávez para reunir toda a base aliada.
Os oficiais militantes do MRB-200 que foram expulsos ou reformados
compulsoriamente como punição ao golpe de 1992 se filiaram ao MVB em 1998,
tornando-se personagens de destaque político dentro do governo Chávez, sobretudo
durante a crise de 2002/2003, reforçando o protagonismo dos militares durante o
governo Chávez, tanto para a manutenção do movimento bolivariano quanto para a
sobrevivência do governo chavista, ocupando postos-chave na administração pública,
sobretudo no primeiro e segundo escalões.
Ao passo que o Estado se tornava bolivariano o movimento se espalhou por outros
setores da sociedade. Estas organizações políticas e sociais – gozando de bastante
autonomia com relação ao governo, apesar de permanecerem sob proteção e influência
direta de Chávez – davam conta do exercício da cidadania a nível local, comunitário; na
representação e assistência a grupos sociais incluídos nas políticas sociais do governo
como negros, indígenas e camponeses. Os agrupamentos sociais bolivarianos de maior
expressão são os Círculos Bolivarianos, as Unidades de Batalha Eleitoral e os Batalhões
do Psuv.
De governo a pessoa
Ao sair vitorioso da terceira disputa presidencial desde 1998, Chávez, contando
com uma base eleitoral consolidada e de políticas sociais capazes de cooptar apoio
político nos diversos setores da sociedade, propõe a verticalização da revolução
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bolivariana. Esta verticalização visa o aprofundamento das medidas revolucionárias e
uma radicalização na forma de conduzir o processo político em andamento.
O governo julga necessário substituir a representação política do bolivarianismo,
substituindo o MVB por um partido mais amplo, capaz de dialogar com os diversos
setores sociais e abranger outras formas de pensamento político. Nesta proposta o
Partido Socialista Unido da Venezuela é fundado sobre as ruínas não só do MVB
quanto dos outros partidos do Polo Patriótico. Uma nova opção ideológica fica
explicitada na composição do Psuv. Chávez lançava as bases de uma nova política que
levaria a Venezuela a fazer a opção pelo socialismo, um novo modelo socialista
denominado por Chávez de Socialismo del siglo XXI. A fundação do Psuv aponta para
uma nova etapa do processo político venezuelano, mas desta vez, a figura central, sem
concorrência, é o próprio presidente.
A proposta de verticalização da revolução bolivariana feita em 2006/2007 foi
seguida pela proposta oficial da parte do governo de modificação de mais de 60 artigos
da Constituição de 1999, dentre os quais se destacam os pontos sobre a mudança dos
princípios que regulam a propriedade privada e a reforma institucional das FAN. Creio
que estes dois pontos podem ser considerados como os pontos de maior polêmica no
projeto do governo, que suscitou grande desconfiança tanto por parte de opositores
quanto por parte de apoiadores, revelando fissuras no cerne do bolivarianismo militar.
Em julho de 2007, um dos mais leais colaboradores do presidente rompe com o
governo em repúdio as propostas de Chávez. O Gen. Raul Baduel, como já dito, esteve
ao lado do presidente deste os tempos de Academia Militar e fora ele o grande
responsável pela sua recondução ao Miraflores em abril de 2002. Entretanto, Baduel
demitindo-se do cargo de Ministro Popular da Defesa em julho de 2007, revelou-se um
opositor feroz, indo a público para criticar a medida do governo e questionar as
intenções de Chávez sobre o rumo que dava ao processo político na Venezuela.
Naquele referendum, o governo sofreu a primeira derrota em nove anos.7
Apesar de Chávez sempre evocar a memória, o pensamento, a figura de Bolívar
em seu discurso, percebe-se que o movimento bolivariano original se perde em meio a
proposta socialista. Chávez tenta conjugar num mesmo projeto, num mesmo discurso o
projeto bolivariano ao lado da adoção do socialismo do século XXI como forma de
fortalecer internamente o seu governo, a sua administração, a sua base política, ao
mesmo tempo em que estabelece, no campo econômico e diplomático, a opção por
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construir um caminho alternativo ao neoliberalismo econômico como forma de
resistência ao imperialismo estadunidense. Sobre este último aspecto, vemos que
Chávez retoma uma antiga proposta de Bolívar para a América Latina: a integração
como forma de vencer a ingerência dos EUA na região.
Conclusão
O bolivarianismo pode ser defino como um movimento cívico-militar específico
da Venezuela surgido entre os oficiais do Exercito nos anos 1980 com a intenção de
criticar, refletir e questionar o modelo político, econômico e social do país naquela
ocasião, defendendo a reconhecimento da dignidade militar e a luta contra a corrupção e
a desigualdade social. Este movimento se organizou em torno de uma proposta de
tomada do poder por meio da força em 1992. Após o fracasso desta tentativa, abriu-se a
participação de intelectuais e políticos civis capazes de dar força política ao movimento
para disputar as eleições em 1998 apoiando o seu líder Hugo Chávez.
Uma vez no poder, o bolivarianismo implementara as mudanças propostas por
Chávez durante a campanha, mas é marcado pela falta de espaço para debates e
contestações internas, aderindo sempre as propostas do presidente que, uma vez,
consolidada sua força política vinculada diretamente aos militares e aos eleitores,
reformula o próprio projeto do movimento, adicionando à sua plataforma ideológica o
um novo modelo socialista, objetivando o fortalecimento do governo internamente, e da
Venezuela no plano latino-americano com discurso capaz de cooptar propostas de
resistência e combate aqueles que, segundo Chávez seriam os dois grandes males da
globalização no início do século XXI: o neoliberalismo econômico e a agressividade da
política externa norte-americana.
Para os críticos como Raul Baduel, nos últimos anos, o bolivarianismo militar
original foi de tal forma deformado pela política do presidente Chávez que poderia ser
chamado, hoje, de chavismo, uma vez que a peça central no tabuleiro político que antes
era destacado a figura de Bolívar tem sido o próprio presidente.
1 LANDER, Edgardo. ―Izquierda y populismo: alternativas al neoliberalismo en Venezuela‖ In:
BARRET, Patrick; CHÁVEZ, Daniel; e RODRIGUEZ, Cesar (orgs.). La nueva izquierda
latinoamericana. Bogotá: Grupo Ed. Norma, 2005, p. 104. 2 CHAVEZ, Hugo. ―Pronunciamento a nação por ocasião de sua prisão após o fracasso da tentativa de
golpe em 04 de fevereiro de 1992‖ apud MARINGONI, Gilberto. A revolução venezuelana. São Paulo:
EdUnesp, 2009, p. 95-96.
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3 MARCANO, Cristina; TYSKA, Alberto. Hugo Chávez sem uniforme: uma história pessoal. Rio de
Janeiro: Gryphus, 2006, p. 35. 4 GOTT, Richard. A sombra do Libertador: Hugo Chávez Frias e a transformação na Venezuela. São
Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 281-282. 5 OLIVEIRA-SILVA, Luiz Fernando. Sob a sombra do Libertador: as representações do pensamento de
Simon Bolívar nos discursos do presidente venezuelano Hugo Chávez (1999-2006). Vassouras:
Universidade Severino Sombra, 2010, p. 26. 6 LOPEZ-MAYA, Margarita. ―Venezuela: Hugo Chavez y El bolivarianismo‖ in Revista Venezuela de
Economía y Ciencias Sociales, 2008, vol. 14, n. 13, p. 59. 7 Segundo Gilberto Maringoni, a vitória do ―no‖ sobre o ―si‖ foi apertada: 1,41%, ou seja, 124.962 votos
dentre os quase nove milhões de votos válidos. Ver MARINGONI, Gilberto. Op.Cit. p. 27.
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O governo dos santos: os homens da Quinta Monarquia no Interregno
britânico (século XVII)
Luiz Filipe Alves Guimarães Coelho*
Resumo: Esta comunicação tem como proposta abordar uma temática pouco conhecida
em nosso país: a organização e atuação da seita radical dos Homens da Quinta
Monarquia (ou pentamonarquistas) no contexto do Interregno inglês (após a guerra civil
inglesa) que teve como conseqüências a execução do rei Carlos I. Nosso objetivo é
mostrar a partir da organização deste grupo como política e religião se articulam neste
momento ímpar vivido pela Inglaterra no século XVII, obtendo resultados
imprevisíveis.
Palavras-chave: pentamonarquistas, milenarismo, Guerra Civil Inglesa
Abstract: This paper has the purpose of addressing a subject little known in our
country: the organization and actions of the radical sect of the Fifth Monarchy Men (or
Fifth monarchists) in the context of the English Interregnum (after the English Civil
War) that resulted in the execution of King Charles I. Our goal is to show from the
organization of this group as politics and religion are linked in this unique moment
experienced by England in the 17th century, giving unpredictable results.
Key-words: Fifth Monarchy Men, millenarianism, English Civil War
No dia 6 de janeiro de 1661, em Londres, um grupo de 50 homens se rebelou e
pegou em armas para lutar contra a Restauração do rei Carlos II à coroa inglesa, em prol
de um reinado utópico comandado por Deus. Após breve vitória contra uma pequena
força de soldados, os reforços enviados trataram de suprimir e derrotar os insurgentes.
Ao todo, foram mortos 20 soldados e 26 rebeldes, e mais 20 foram capturados. Dentre
esses, doze foram executados, juntamente com o líder do levante, Thomas Venner, que
foi enforcado e esquartejado. Para muitos historiadores, uma página da história era
virada: esta seria a última manifestação violenta dos sonhos radicais nascidos durante os
anos da Revolução Inglesa.1
A seita conhecida por Fifth Monarchy Men (Homens da Quinta Monarquia, ou
pentamonarquistas) surgiu dentro das tropas parlamentares durante a guerra civil, onde
eles se alistavam para participar do que acreditavam se tratar de uma guerra santa.
Alguns serviam como pregadores, mas muitos se inscreveram como soldados. Por
menor que fosse a patente deles quando entravam, a promoção durante a guerra era
acelerada, o que fez com que muitos chegassem a altos postos militares2. Para Bernard
Capp, apesar do conflito não ter sido causado primordialmente por questões religiosas,
havia uma tradição puritana de interpretar todos os acontecimentos políticos através do
milenarismo3.
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Os pentamonarquistas tinham como principal característica a fé na iminência do
milênio. Suas idéias se baseavam principalmente nas profecias de Daniel, e eles
acreditavam que após a queda dos quatro últimos reinos – representados pelos impérios
assírio, persa, grego e romano, tendo este último se prolongado com o papado – viria o
último reino de Cristo na terra, governado pelos santos. Aqueles que haviam recebido a
mensagem de Deus deveriam se comprometer a acelerar e/ou preparar o mundo para a
chegada de Jesus e de seu reinado 4.
Estes homens acreditavam que a Bíblia seria a chave para a compreensão da
história mundial e um guia para a mudança política5. Portanto, a base para a construção
do reino dos santos ―seria a lei mosaica‖6, que serviria para mostrar aos eleitos como
todos seriam governados assim que Cristo descesse à terra7. Segundo Luise Fargo
Brown, o dever imediato dos santos seria acomodar o governo presente às leis de Cristo,
preparando-o para a sua chegada. Para tal fim, eles deveriam rezar e observar,
separando-se do mundo e denunciando todos os seus defeitos, até receberem algum
chamado para agir. Para a historiadora, o que difere a seita de tantas outras que existiam
na Inglaterra do período era a sua presunção de serem eles os responsáveis por guiar o
governo a caminho de Cristo e seu dever de denunciar qualquer falha. A linguagem
violenta usada e a noção de que os santos poderiam reagir a uma sugestão ignorada
pegando em armas, fizeram com que a seita se destacasse e desde cedo atraísse certa
suspeita de outros grupos8. Já para Bernard Capp, além do recurso à violência mantido
pelos santos (quando ignorados) e sua presunção de aperfeiçoar o governo presente,
outra característica que diferenciava a seita era que o milenarismo formava o centro de
suas doutrinas, sendo na verdade a ―raison d‟être” do movimento9.
Segundo Christopher Hill as cidades inglesas constituíam os centros de
crescimento para a maioria das seitas, onde se formavam comunidades para expandir e
receber imigrantes entre suas fileiras, ―(...) pequenos artesãos, aprendizes, trabalhadores
dedicados [..], todos podiam reconhecer-se mutuamente como os eleitos num mundo
sem Deus‖. 10
Os Homens da Quinta Monarquia não fugiram deste padrão, como
demonstra Jean Delumeau. A documentação levantada pelo historiador permitiu que
este contabilizasse 29 grupos apenas em Londres. Número expressivo se comparado
com os outros 43 que poderiam ser encontrados em todo resto da Inglaterra, sem contar
o País de Gales11
. Para Capp, as áreas de atuação da seita exibiam poucas características
em comum. Um fator que demonstraria maior importância seria a presença de um líder
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de influência. A seita era essencialmente urbana: as cidades ofereciam amplas
assembléias de pessoas oriundas de diversas origens sociais e religiosas, mais
acostumadas a novas idéias; a alfabetização era mais comum, possibilitando um maior
impacto de panfletos e livros; e, finalmente, a presença de um número grande de
clérigos em cidades maiores possibilitava uma maior liberdade religiosa, mesmo antes
de 1640. Além destas questões, o interesse e a atuação política da seita provavelmente
atraíam os seus integrantes a locais onde pudessem colaborar com a construção do reino
de Cristo: as grandes cidades, principalmente Londres12
.
O movimento demonstrou maior força e aceitação entre as camadas mais baixas
da população das cidades, como artesãos e operários têxteis13
Segundo Delumeau:
―Seus adversários os descreviam como ‗os piores dos homens, a escória, a ‗ralé‘.
Mesmo um de seus líderes, Feake, reconhecia que os ‗santos‘ eram ‗uma companhia de
homens iletrados e mulheres simplórias‟” 14
. As mulheres também se mostravam
numerosas entre os pentamonarquistas e muitas se encarregaram dos deveres de pregar e
profetizar, como Mary Cary, uma das profetizas do grupo15
. Os grupos em Londres
também contavam com uma forte presença de jovens aprendizes que, segundo Brown,
encantavam-se em ouvir que eles eram os eleitos de Cristo, responsáveis por eliminar a
Besta e por presenciar a chegada do tempo prometido16
.
Para Hill, a situação econômica dos fiéis acabava criando uma consciência de
classe e uma hostilidade à aristocracia17
. Delumeau, por sua vez, aponta que estes
homens ―(...) viviam numa real insegurança econômica e social‖. Entretanto, entre os
principais inspiradores do movimento, encontramos universitários oriundos do clero e
oficiais do exército, tendo suas origens tanto na gentry18
, quanto nas próprias fileiras do
exército19
.
Porém, apesar da forte presença dos estratos mais baixos da sociedade inglesa, a
observação de Hill deve ser tomada com cautela. Primeiramente, a relação entre os
pentamonarquistas e os levellers, movimento que recebeu grande foco do historiador
inglês, não demonstrava muita simpatia. As ideias igualitárias e republicanas destes não
encontravam favor entre os santos. Apesar de concordarem em seus ataques contra o
dízimo e às instituições legais, o que possibilitava certo intercâmbio de ideias e
argumentos, havia uma diferença fundamental, como demonstra Brown: enquanto os
levellers defendiam um governo pelo povo, os pentamonarquistas lutavam por um
governo de eleitos20
. Para Capp havia uma longa tradição de descontentamento com o
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dízimo e com as leis que logo viraram ponto comum entre quase todos os movimentos
radicais do período. Porém, as diferenças entre os dois movimentos eram grandes: os
levellers demonstravam tendências igualitárias, enquanto os santos eram extremamente
elitistas21
. A iniciativa de implantar o código mosaico não encontrava paralelos entre os
levellers. Na verdade muitos líderes pentamonarquistas eram certamente hostis ao grupo
e às suas idéias22
.
Para Capp, a crise econômica não poderia ser vista como principal impulsionadora
do movimento. Apesar de ser largamente formado por ofícios que carregavam alto nível
de insegurança social e econômica, a indústria têxtil, de onde vinha grande parte do
grupo, esteve em alta durante os momentos de maior atividade pentamonarquista. E o
exército, outra grande fonte de seguidores, esteve protegido dessas ondulações
econômicas pelo aumento do soldo em 1649. A onda milenarista deveria ser vista antes
como conseqüência dos tumultos políticos e religiosos. Somente após 1649 essa onda se
organizou em um movimento, estimulado pela execução do rei e pela noção de que seus
atuais líderes estavam traindo o milênio23
. Entretanto, a observação de Hill não está
totalmente incorreta: a associação com as camadas mais baixas influenciava os líderes e
inseria bandeiras como revolução social e desapropriação de terras de nobres ingleses
infiéis, que por sua vez apelavam a certos grupos sociais24
.
Inicialmente, o movimento se organizou como um grupo de influência, tanto em
suas relações com o Rump Parliament25
, quanto com o Barebone‟s Parliament26
,
realizando agitações contra um, e pressionando o outro com suas políticas radicais27
.
Para os pentamonarquistas, o Rump deveria ser dissolvido, pois apenas os oficiais do
exército, ou seja, ―os soldados de Deus‖, poderiam ter controle sobre o governo28
. De
fato, Cromwell acabou destituindo o Rump, para o júbilo dos santos: um novo e
maravilhoso governo iria começar, e os eleitos sentiam o dever de oferecer sugestões de
como ele se organizaria29
. A decisão de Cromwell de instituir o Barebone‟s iria contar,
entre seus membros, com doze Homens da Quinta Monarquia. Isso satisfez grande parte
dos pentamonarquistas, com a notável exceção de Feake, que continuava a argumentar
pela liderança de alguém mais iluminado que Cromwell. Esta seria a melhor chance
para o grupo criar o seu reino dos santos30
. Nas reuniões do parlamento os santos iriam
atacar continuamente o dízimo e lutar por uma reforma legislativa, suas principais
bandeiras. Este programa era amplamente aceito, e muitos concordavam com a urgência
por um ou por outro, até mesmo Cromwell31
.
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A grande fragmentação dentro do parlamento servia como uma vantagem para o
grupo. Mesmo os moderados tinham dificuldades em agir em grupo e em certos
momentos os santos estiveram realmente próximos de concretizar algumas de suas
propostas32
. Contudo, o que afastava os pentamonarquistas era a sua postura radical e
intolerante, cobrando medidas imediatas e deposições urgentes. Frente à progressiva
recusa às suas medidas radicais e os seguidos fracassos, o grupo acabou rompendo com
o parlamento. Alguns começaram a pregar que apenas uma mudança completa na
legislação e nas normas religiosas poderia desenvolver as ―condições indispensáveis
para o estabelecimento do milênio‖33
.
Parte dos pentamonarquisas depositou em Oliver Cromwell suas esperanças
retratando-o como um ―segundo Moisés‖, que iria guiar o seu povo à Terra Prometida34
.
Entretanto, após a dissolução do Barebone‟s Parliament em dezembro de 1653, e a
conseqüente proclamação do Protetorado, os radicais mudaram seu posicionamento,
passando à oposição total, vendo o protetor como um tirano, um novo rei, um traidor
das causas religiosas e um apóstata35
. Segundo Brown, o protetorado foi um grande
golpe para os Homens da Quinta Monarquia. Eles o condenavam não por ser um
governo instituído pelo exército, mas por ser o governo de uma pessoa só. Para os
santos o único que poderia governar sozinho era Cristo durante a Quinta Monarquia.
Muitos começam a reconhecer o protetor nas profecias, principalmente em Daniel36
.
A situação iria se intensificar após a declaração de um acordo de paz com a
Holanda37
. Muitos pentamonarquistas encaravam a guerra contra o outro país
protestante como um primeiro passo para seu sonho de conquista, seguido pelo domínio
da França até chegar a Roma, dobrando todos os poderes do mundo ante Cristo e o
governo dos seus eleitos. Este posicionamento demonstra também certa intolerância
religiosa, uma vez que até mesmo os protestantes holandeses eram considerados
apóstatas e deveriam ser conquistados e convertidos38
. Segundo Capp, apesar de seu
pretenso ecumenismo, os santos tinham dificuldade em achar algo que aprovassem nos
outros grupos religiosos39
.
Neste período, a principal medida repressiva do governo de Cromwell era a
prisão, sem direito a julgamento, dos homens de maior proeminência no movimento40
.
Rogers, Feake e Harrison passaram a maior parte do tempo entrando e saindo da cadeia,
sendo o último também expulso do exército. Além disso, quando os prisioneiros
escreviam uma petição para um julgamento público num tribunal de justiça, eram
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informados que estavam sendo poupados por misericórdia, pois um julgamento
certamente significaria sentença de morte. O governo também fez uma série de
tentativas de persuadir os pentamonarquistas a se aliarem, mas, apesar do sucesso com
alguns líderes menores, os grandes nomes do grupo se mantiveram fiéis as suas idéias,
mesmo atrás das grades41
. Para Brown, Cromwell não conseguia consentir medidas
mais duras contra homens cuja oposição a ele era consciente, apenas equivocada.
Segundo a pesquisadora, Cromwell preferia seguir o princípio de que não há melhor
incentivo para uma causa do que a perseguição do governo42
. Portanto, além de manter
os líderes na prisão, o protetor retratava os eleitos como uma ameaça para inspirar medo
em outros grupos mais moderados, forçando-os a procurar a proteção do governo43
.
Estas táticas intensificaram um problema que se mostrava um obstáculo constante
ao movimento. Os Homens da Quinta Monarquia nunca demonstraram uma grande
união. Até mesmo em sua profecia que previa o reinado de Cristo, havia grande
discordância com relação ao ano em que ele iria ocorrer. Alguns acreditavam que se
daria em poucos anos, enquanto outros pregavam que ainda teriam que esperar algumas
décadas44
. Isso levava a outra discordância: deveriam eles acelerar e se preparar para o
reinado iminente, fosse através de levantes armados ou de pregações inflamadas, ou era
sua obrigação serem pacientes, orar, se separar do mundo, viver vidas puras e obedecer
pacificamente o governo, esperando pelo sinal de Deus de que era momento certo para
agir? 45
Para Leo Solt, isso pode ser explicado pelo fato de o grupo não ter se formado
pelas pregações de um influente profeta religioso, um líder carismático, como aconteceu
com outras seitas. Porém, na verdade, pode ser dito que este movimento chegou à sua
proeminência como uma reação contra as atitudes e medidas de Cromwell e seus
partidários, vistos pelo grupo como perpetuadores da tirania que eles haviam lutado para
sobrepujar46
.
Capp, por sua vez, aponta que se tratava de uma aliança entre radicais que
dividiam a crença na iminência do Milênio e no seu dever de preparar a Terra. Dentro
do movimento, havia grande diversidade de opiniões relacionadas às identidades
religiosas e convicções, que cada membro apresentava devido à sua origem em outras
seitas diferentes, como batistas ou congregacionistas.47
Segundo Brown, um dos
motivos que os santos encontravam para se vangloriar era exatamente que a sua
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associação aos pentamonarquistas não exigia a inserção em nenhum outro grupo
religioso48
.
Conforme Brandon John Marriot, os pentamonarquistas não tinham um líder ou
profeta específico. Muitos indivíduos assumiam papéis de liderança dentro de cada
congregação. Entretanto, alguns nomes possuíam mais evidência dentro do grupo49
.
Durante o protetorado, muitos Fifth Monarchy Men, apesar da aparente derrota e
da prisão de seis líderes, mantiveram-se ativos, recusando o seu fracasso50
. Além de
iniciativas para buscar a aliança com outros grupos descontentes, a ala mais violenta do
movimento começou a planejar golpes e ataques à Cromwell, chegando até mesmo a um
pequeno levante organizado por um líder menor chamado Thomas Venner51
. Nenhum
dos líderes de maior expressão aceitou os vários convites para participar do levante.
Para muitos, os inconfidentes estavam se precipitando. Um sinal claro de Deus deveria
ser recebido antes que os santos pudessem pegar em armas52
. Outro obstáculo foi ainda
maior para a associação dos líderes: segundo uma passagem em Revelações (Rev. 11)
os santos deveriam aguardar um período de 42 meses, ao final do qual o governo da
besta acabaria. Conforme a interpretação dos santos isso aconteceria no dia dezesseis de
junho de 1657. O levante de Venner, marcado para a segunda semana de abril, estava
adiantado demais, e, portanto, fadado ao fracasso53
. Ao final esta previsão se
concretizou e a insurreição fracassou antes mesmo de começar: agentes do governo já
haviam se infiltrado no grupo e muitos insurretos foram presos antes mesmo de
chegarem ao local combinado54
. Contudo, os pentamonarquistas tiveram pouco tempo
para se orgulhar de sua clarividência, pois a medida do protetor foi prender todos os
líderes que poderiam ter tido alguma participação55
.
Com a morte do Protetor, em 1659, muitos dos líderes presos receberam a
liberdade por Richard Cromwell, filho e sucessor de Oliver. Entretanto, o retorno aos
palcos políticos não duraria muito para eles e, após a Restauração de Carlos II em 1660,
muitos fugiram, como Rogers para Holanda, ou se afastariam da cena política, para
evitar a perseguição do novo governo. No entanto, alguns foram capturados pela sua
participação na execução do pai do novo rei, condenados por regicídio e executados.
Destino esse reservado para um dos principais líderes do grupo, o General Harrison.
Em anos posteriores, alguns retornariam para a Inglaterra, como John Rogers em 1662.
Entretanto, sua ação política já estava encerrada. Os pentamonarquistas falharam, e a
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última chance de concretizar os seus intensos sonhos se esvaía enquanto a corda
apertava o pescoço de Thomas Venner em 1661.
Para Capp, o nível especial de hostilidade que as idéias dos santos receberam de
seus conterrâneos se deveu provavelmente pelo seu sucesso em publicar a sua ideologia,
e pelo fato de que em 1653 eles parecerem ter chegado realmente perto de uma
oportunidade para implementar o seu programa. Segundo o historiador, os
pentamonarquistas não podem ser inteiramente responsabilizados pela Restauração.
Contudo, as suas demandas agressivas por revolução social, econômica e religiosa
desacreditaram os governos republicanos, que se provaram incapazes de contê-los. Sua
linguagem violenta criava certo pânico entre outros grupos, o que seria utilizado tanto
por Cromwell, quanto pelos monarquistas nos momentos anteriores à volta de Carlos II,
e fortaleceram a crescente idéia de que não poderia haver ordem até que o rei tivesse
retornado56
.
Contudo, segundo Brown, foi o radicalismo e a intransigência dos
pentamonarquistas que aceleraram o fim do Rump e foram um dos principais
responsáveis pelo fracasso do Barebone's. A pressão que os seus integrantes realizavam
dentro e fora do parlamento congelava os seus procedimentos e ampliava a sua
fragmentação. Porém, para Brown, o maior efeito dos Homens da Quinta Monarquia foi
o abalo que eles causaram na fé de Oliver Cromwell de que um grupo de fiéis poderia
ser responsável pela administração da sociedade. Os amargos ataques e a linguagem
violenta dos seus pregadores fortalecerem a ascendente convicção do Protetor de que
uma igreja organizada e um ministério regulamentado eram necessários para manter a
paz. Incapazes de perceber que o Protetorado era a sua única defesa contra o retorno de
tudo aquilo que lutaram para derrubar, os santos continuaram atacando Cromwell. A
intensa atividade política, após a morte do Protetor, apenas contribuiu mais para a
Restauração de Carlos II. Em sua intransigência, sua resistência para negociar com o
que acreditavam ser maligno, e sua luta ininterrupta por um estado perfeito, ajudaram
para o fracasso do compromisso estruturado por Cromwell e para o retorno do filho do
rei que eles mesmos executaram57
.
* Mestrando em História pelo PPGH-UFF. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro. E-mail:
1 DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma historia do paraíso. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997. p. 236
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2 BROWN, Louise Fargo. The Political Activities of the Baptists and Fifth Monarchy Men in England
During the Iterregnum. London: Oxford University Press. 1912 p. 9 3 CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchu Men. A study in Seventeenth Century English Milenarism.
London: Faber and Faber. 2008 p. 35 4 DELUMEAU, Jean. Op. cit. p. 226
5WARBURTON, Rachel. Future Perfect?: Elect Nationhood and the Grammar of Desire in Mary Cary‘s
Millennial Visions. In: Utopian Studies. S/l, v. 18, n. 2, p. 115-138, 2007. p. 120 6 A Lei Mosaica é composta de todo o código de leis formado por 613 disposições, ordens e proibições.
Em hebraico a Lei é chamada de Torá, que pode significar lei como também instrução ou doutrina. O
conteúdo da Torá são os cinco livros de Moisés. 7 SOLT, Leo F. The Fifth Monarchy Men: Politics and the Millennium. In: Church History. S/l, v. 30, n.
3, p. 314-324. p. 317 8 BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 26
9 CAPP, Bernard S. Op. Cit. p. 14
10 HILL, Christopher. O Mundo de Ponta-Cabeça. Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 58 11
DELUMEAU, Jean. Op. cit.. Ver também: CAPP, Bernard S. Op. Cit. p. 76 12
CAPP, Bernard S. Op. Cit.p. 80 13
HILL, Christopher. Op. Cit. p. 109 14
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 232 15
WARBURTON, Rachel. Op. Cit. p. 119 16
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 107 17
HILL, Christopher. Op. Cit. p. 109. 1818
O grupo social inglês conhecido como gentry foi foco de significativo debate historiográfico. Nessa
discussão, assumimos o significado desenvolvido por Lawrence Stone: o historiador se posiciona contra
as considerações de que o grupo seria uma espécie de pequena ou média nobreza, à maneira do continente
europeu, ou, como fazem os conservadores, como Trevor-Roper, de que se tratava de uma pequena
nobreza frustrada e decadente. Stone questiona também as interpretações de tendência marxista que a
caracterizavam como uma burguesia rural e capitalista. Para o historiador, gentry seria o conjunto dos
gentlemen (cavalheiros). Contudo, para que o indivíduo pudesse ser inserido nesta camada social bastava
apenas ser rico, ou melhor, ser rico e estar disposto a comprar uma propriedade rural e um brasão, os
quais podiam ser livremente comprados no mercado. Cf: STONE, Lawrence. Causas da Revolução
Inglesa. Bauru, SP: EDUSC, 2000. 19
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 232. Ver também: Bernard S. Capp. Op. Cit. p. 82 20
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 38 21
Apesar de questionar as divisões de nascimento entre os homens e clamar a luta pela justiça social e
pela defesa dos pobres, os santos jamais abandonaram a forte noção de que os eleitos desempenhavam um
papel diferenciado na sociedade. Justificando-se pela eleição divina eles se viam como a elite religiosa e
política e os responsáveis por moldar o governo de Cristo e remendar a massa degenerada. CAPP,
Bernard S. Op. Cit. 144 22
Ibid. p. 91 23
Ibid. p. 88 24
Ibid. p. 144 25
Apelidado, assim, por ter sido constituído do que sobrou do antigo parlamento após o expurgo,
subseqüente a morte do rei, dos parlamentares ligados à Igreja Anglicana e ao rei executado. 26
Parlamento formado por Cromwell, que selecionou seus integrantes entre os lideres religiosos e alguns
membros do exército. Seu nome também é originado em uma alcunha popular desrespeitosa, que se
referia tanto a um de seus membros, chamado de Praise-God Barebone, quanto ao fato do parlamento
exercer pouco poder político de fato. 27
CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened : The Fifth Monarchy, King Charles and King Jesus. In:
Journal of Religious History, s/l,v. 32, n. 1, p. 16-30, 2008. p. 17 28
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 233. 29
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 29 Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op.
Cit. p. 62 30
STUMER, Andrew. The sixteenth century apocalypse: The fifth monarchists. In: Access: History, S/I,
v. 2, n. 2, p. 21-30, 1999, p. 27 31
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 35; Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men…
Op. Cit. p. 177
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32
CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 69 33
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p, 234 Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op.
Cit. p. 72; BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 39 34
CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened… Op. Cit. p. 17. 35
SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 314. Ver também: BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p.42 ; CAPP, Bernard S.
The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 75 36
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 45 37
DELUMEAU, Jean. Op. Cit. p. 235. 38
SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 320. Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p.
154 39
CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 183 40
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 46 41
SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 319 42
BROWN, Louise Fargo n. Op. Cit. p. 98 43
Ibid. p. 62 44
SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 319 Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p.
193 45
CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened… Op. Cit. p. 18. Ver também: BROWN, Louise Fargo.
Op. Cit. p. 103 46
SOLT, Leo F. Op. Cit. p. 322. 47
CAPP, Bernard S. A Door of Hope Re-opened… Op. Cit. p. 18. Ver também: BROWN, Louise Fargo.
Op. Cit. p.203 48
Ibid.p. 59 49
MARRIOT, B. J. Blurring Boundaries: The Transmission of Millennial Information Across the
Seventennth-Century Judeo-Christian Frontier. Thesis submitted in partial fulfillment of the requirements
for the degree of Master of Arts in History. Simon Fraser University, Burnaby, BC, Canada. 2008. p. 6 50
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 89 ; Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men…
Op. Cit. p. 109 51
Ibid. p. 111 ; Ver também: CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 117 52
CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 134 53
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 116 54
CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 117 55
SOLT, Leo F. Op. Cit. 56
CAPP, Bernard S. The Fifth Monarchy Men… Op. Cit. p. 130 57
BROWN, Louise Fargo. Op. Cit. p. 205
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A mitificação política da imagem de Plínio Salgado: a relação entre os
católicos e o Integralismo
Luiz Mário Ferreira Costa
Resumo: O propósito deste artigo é conferir o processo de ―mitificação‖ do líder
político Plínio Salgado, neste sentido, serão analisados alguns textos escritos por
personalidades destacadas do catolicismo brasileiro. O entendimento de católicos e
integralistas de que a sociedade estaria ―contaminada‖ pelos vícios liberais e pela falácia
da democracia reforçava uma narrativa comum que, em última instância, preconizava a
substituição dos partidos políticos pelo ―systema corporativo-integralista.‖
Palavras-chave: mito político, mitificação, corporativismo.
Abstract: The purpose of this article is to check the process of ―mythification‖ of the
political leader Plínio Salgado, in this sense, we will analyze some texts written by
prominent personalities of brazilian catholicism. The understanding of catholic and
integralists that society would be ―contaminated‖ by the vices and the fallacy of
liberaldemocracy reinforced a common narrative that ultimately recommended the
replacement of the political parties by the ―systema corporativo-integralista‖.
Keywords: political myth, mythification, corporativism.
Considerações iniciais:
Em linhas gerais este artigo versa sobre a tentativa de alguns autores católicos em
transformar Plínio Salgado num ―mito político‖. Porém, antes, é preciso que se defina
aqui o que entendemos por ―mito‖, tarefa esta um tanto quanto problemática, devido à
enormidade de significações que esta palavra conserva. Contudo, entendemos que o
mito pode ser visto como um relato do passado, que dentre outras coisas, conserva no
presente um valor eminentemente explicativo.
Conforme sugeriu o historiador romeno Mircea Eliade, o mito na medida em que
ilumina e justifica algumas peripécias do destino do homem, torna-se uma ―narrativa
sagrada‖, uma ―história verdadeira‖, porque sempre se refere à realidade. Um bom
exemplo, seria o mito cosmogônico, porque a existência do Mundo aí está para
confirmá-lo, ou mesmo, o mito da origem da morte que é igualmente ―verdadeiro‖, pois
é provado pela mortalidade dos homens. Ainda segundo o autor, o mito proclama a
Artigo de autoria de Luiz Mário Ferreira Costa, doutorando pelo Programa de Pós Graduação em História da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES.
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aparição de uma nova ―situação cósmica‖ ou de um acontecimento primordial, assim ele
é sempre a narrativa de uma ―criação‖. Neste sentido, a principal função do mito seria a
de revelar os ―modelos exemplares‖ de todos os ritos e atividades humanas
significativas. 2
Na década de 1950, o estudioso Roland Barthes reforçou o debate teórico em
torno do mito, definindo-o como uma ―fala‖, mas, não uma fala qualquer, e sim um
sistema de comunicação. Deste modo, o mito não poderia ser um objeto, nem um
conceito ou uma idéia, ele é um modo de ―significação‖, uma forma, definida por
limites históricos e condições de funcionamento na sociedade.3 Barthes ainda aludiu que
o mito é um sistema semiológico e por isso transforma uma intenção histórica em
natureza, uma eventualidade em eternidade. A função do mito é evacuar o real:
―literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia ou, caso se prefira,
uma evaporação e uma ausência perceptível‖, passando da história à natureza 4. Em
suma, o mito não pode negar as coisas, a sua função é, pelo contrário, falar delas,
purificar, inocentar, fundamentar em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não
de explicação, mas de constatação 5.
Outra definição interessante acerca da aplicabilidade do estudo do mito na história
vem de Raoul Girardet, sobretudo, com a obra Mitos y mitologias políticas. O autor não
só recupera com riqueza de detalhes a discussão acerca das mitologias, como também
identificou pelo menos quatro ―grandes conjuntos‖ mitológicos. A saber: o mito da
―Conspiração, do Salvador, da Idade de Ouro e da Unidade‖. Para ele, uma sociedade
revela-se com maior certeza suas desordens e seus sofrimentos através de exame de seus
sonhos. Entender os sonhos como algo que pode ser experimentado analiticamente,
como aquilo que possui finalidades didáticas é uma das propostas de Girardet 6.
As reflexões de Girardet merecem destaque, naquilo que tange a investigação das
mitologias políticas, especialmente, acerca do que ele chamou de ―mito do Salvador‖.
Nesta perspectiva, toda a questão levantada pelo autor, no entendimento deste mito,
consiste em saber como se opera a passagem do histórico ao mítico, em outras palavras,
como atua o misterioso processo de ―heroización‖, que culmina na transmutação do real
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e sua absorção no imaginário. 7
Em nosso caso específico, tentaremos demonstrar a
partir da documentação pesquisada a colaboração de escritos católicos no processo que
permeia a mitificação política de Plínio Salgado. Esta ―cooperação‖ pode ser entendida,
por um lado, como a reação aos avanços das idéias comunistas e, por outro, como
indicação da orientação política manifestada pelo clero. Pois conter e guiar os anseios
de setores urbanos que se politizavam, assegurava a não alteração da ordem social, o
que atendia aos anseios da Igreja Católica naquele contexto.
A “superioridade moral da ideologia” de Plínio Salgado
Um ponto a ser destacado no processo de criação de nosso ―mito político‖ diz
respeito à superioridade moral de suas idéias, o que equivale dizer, que o líder do
Integralismo deveria ser visto como uma figura ―simbólica‖, possuidor de uma verdade
moral, religiosa ou filosófica e por isso representava um momento histórico sob a forma
de ―alegoria‖. Aqueles que ―pintavam‖ este retrato de Salgado, consciente e/ou
inconscientemente, acabavam por transformar a artificialidade de um discurso político
numa narrativa ―naturalizada‖, repleta de ilustrações, que distorciam e corrompiam os
limites tênues entre o real e o imaginário.
Para facilitar a compreensão do processo de mitificação de Salgado,
apresentaremos alguns fragmentos de textos produzidos por setores expressivos do
catolicismo brasileiro. Ainda que a orientação oficial da Igreja fosse ficar neutra perante
a política, era comum encontrar padres e bispos que exaltavam os camisas-verdes e, que
viam Salgado como o melhor dos candidatos às eleições presidenciais de 1938. Para os
bispos, Salgado era o único homem capaz de conduzir o Brasil aos novos tempos,
graças à sua inteligência científica e espiritual.
PLÍNIO SALGADO, espirito intelligente e culto, orientado por sólidos
princípios catholicos, e em cujas actividades transparece a profunda e
segura visão de sábio sociologo e sincero patriota, desejoso de bem servir a
Causa de Deus, da Pátria e da Família trilogia base insubstituível de todo o
systema que não nutre utopias, nem transige com as ambições de interesse
pessoal – LUIZ, bispo de Uberaba. 8
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O escritor católico Tasso da Silveira deu mais ênfase a esta questão,
fundamentando seus argumentos na encíclica Divini Redemptoris de Pio XI, que dentre
outras coisas, sustentava que o liberalismo havia preparado o terreno para o advento do
comunismo. Para Silveira a negação e o abandono do sentido religioso da vida e a
transformação do trabalho humano em mercadoria, alimentava a desordem social e
política, fomentando a tão temida luta de classes.
Ora, em disputa á suprema magistratura da Nação no proximo quadriênio,
apresentaram-se três candidaturas: a do sr. Armando de Salles Oliveira, a
do sr. José Américo de Almeida, a do sr. Plínio Salgado. As duas
primeiras, franca e confessadamente liberalistas, defendendo princípios de
vida política, econômica e social reiteradamente censurados ou
condemnados pela Egreja, e, aliás, de fundo e forma tão idênticas, salvo
differenças de estylo literário, que não se sabe bem por que são duas
candidaturas e não uma apenas. E a terceira dellas desfraldando a bandeira
do Estado Integral Corporativista, erguida sobre o alicerce do amor a Deus
e respeito á pessoa humana inviolável. 9
Muitos membros da Igreja estavam cientes da falta de formação e informação de
seu rebanho, por isso apressaram-se na catequização política dos fieis, apresentando
Salgado como a única opção política a ser seguida. Segundo o clero somente por
desconhecimento do assunto um católico brasileiro poderia preferir o nome de Armando
de Salles ou o de José Américo, quando se apresenta o líder Plínio Salgado. 10
Outra observação importante a ser feita na construção desse mito político, é o
valor dos princípios filosóficos e jurídicos professado pelo Integralismo, ou seja, as
bandeiras levantadas pelo líder em seus discursos políticos. Neste sentido, inúmeros
bispos exaltavam os preceitos cristãos e nacionalistas dos integralistas, o que, em
contrapartida, aumentaria consideravelmente o número de afiliados ao movimento.
Aconselhando aos bons catholicos e ao clero que prestigiem ao
Integralismo, único meio capaz de acção, actualmente, capaz de impedir a
derrocada tremenda que ameaça a religião e a Pátria... Se, pois, no
Integralismo temos uma escola de patriotismo são e uma ideologia muito
approximada da doutrina catholica, prestigia-lo será fazer da nossa parte
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para que Deus nos ajude, sobretudo, na hora incerta e perigosa que
vivemos – MANOEL, bispo de Aterrado. 11
Em documento intitulado, O sentido cristão do Integralismo (1937), Salgado
reforçava as propostas feitas através do Manifesto de Outubro e do Manifesto
Programa, naquilo que se referia ao ideal de Estado. Em sua opinião o Estado Integral
transcendia as formas políticas e filosóficas, pois descenderia diretamente de Cristo.
Nesta perspectiva, o Estado Integral era o Brasil realizando sua ―felicidade material‖ e
sua ―grandeza nacional‖, baseando-se num profundo sentimento de solidariedade e
fraternidade entre todos os brasileiros.
Esse é o Estado Integral, como eu o compreendo no recesso de minha
consciência, nas horas caladas em que me dirijo a Deus, pedindo-lhe que
faça a felicidade de meu Povo. E é por isso que, neste momento quero
fazer-vos a profissão publica de minha fé... Por Cristo me levantei; por
Cristo quero um grande Brasil; por Cristo ensino a doutrina da
solidariedade humana e da harmonia social; por Cristo luto; por Cristo vos
conclamo; por Cristo voz conduzo; por Cristo trabalharei. 12
Com esta premissa, Salgado e o Integralismo atraiam os bons olhos da Igreja
Católica que de um modo geral declarava a ―sagração‖ do movimento:
Assim como o governo da Republica permitte a livre pregação do
Integralismo, a Egreja tambem recebe em seu seio, como filhos
bemvindos, os camisas-verdes que se recolhem em seu recesso para
implorar as bênçãos do Senhor para a obra grandiosa que estão realizando
– JOSÉ, bispo de Nictheroy. 13
O destacado pensador católico Alceu de Amoroso Lima, também preocupou-se
em endossar seu apoio aos integralistas, principalmente, no sentido de ―purificar‖ a
ideologia e explicitar as diferenças com o Fascismo e o Nazismo.
A maioria dos que entre nós condemnam o Integralismo (confundindo-o
inteiramente com o fascismo e com o hitlerismo) fazem-no por ligarem,
erradamente, o catholicismo ao predomínio político e econômico da ―classe
burgueza‖ e ao regimen da ―pluralidade partidária. É uma attitude
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anachronica e insustentável, que diminue a Egreja, ligando-a a uma
determinada era social, que desvirtua o sentido sobrenatural da Fé christã e
pode arrastar o Catholicismo aos peiores naufrágios, por solidarizal-o com
regimens sociaes em franca decomposição. 14
Amoroso Lima chegaria a incentivar que católicos se filiassem no movimento,
pois este era visto como reação sadia contra os males ―que nos dissolvem por dentro‖.
O integralismo, afirmava ele, possuía no campo social, em grande parte os mesmos
adversários que a Igreja. Neste sentido, a luta contra inimigos comuns forjaria um laço
que criava aproximações inevitáveis:
Como doutrina política (o Integralismo) pretende em boa hora restaurar o
sentido frouxo de Autoridade, dar á Unidade Nacional o posto básico que
lhe compete em toda a sociologia política do Brasil, defender as bases
moraes e jurídicas da familia brasileira. Todos os pontos de um programma
excellente. Penso que a nossa attitude, em face do movimento integralista,
se não deve ser nem de hostilidade nem de confusão, só póde ser a da
COOPERAÇÃO.15
Naquele contexto político extremamente delicado, Amoroso Lima manifestava a
preocupação de que o Governo Vargas pudesse proibir a atuação política da AIB e
alimentava o caráter pacífico do movimento:
Se o governo fechar o Integralismo é que commetterá uma grave injustiça,
pois tratará igualmente coisas desiguaes. Aquelles que aplaudem acto do
Governo, não por espírito de facção ou por amor do regimen democrático-
liberal e sim por amor do Brasil e do progresso, – sabem perfeitamente
distinguir o que uma fácil rhetorica parlamentar confunde. O Integralismo
não prega a guerra civil, não insufla a lucta de classes, não aconselha a
desapropriação violenta, não estimula a organização do odio. Quaesquer
que sejam os excessos de sua linguagem, por vezes, ou as apparencias de
seus methodos de acção para a conquista do poder – trabalha em defesa das
grandes idéas e instituições que formaram o Brasil político, mantiveram
sua unidade moral, christianizaram sua alma e hão de leval-o a um futuro
socialmente pacifico e justo. 16
Como podemos intuir, logicamente, a preferência de setores católicos pelo
Integralismo ultrapassava a simples admiração pelo líder e por sua ideologia. No fundo
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o que percebemos é a defesa de um modelo de Estado comum compartilhado entre
integralistas e católicos. Estado este que exercia o poder com autoridade, legitimidade e
amparado por um sistema corporativista.
A noção de Estado com a qual se pretende dialogar está bem próxima daquela
sugerida por Adam Przeworsky, que segundo uma de suas abordagens, defendia a
primazia da ―força‖ na constituição das sociedades. Nas palavras de Przeworsky, o
―Estado organiza e exercita o monopólio da força física‖ sobre um território e é a
utilização, aberta ou escondida, da violência que garante sua eficácia. Este ―poder
universalizador‖ que emana do Estado se apóia, por um lado, na capacidade do Estado
de invocar um interesse superior e, por outro, na aptidão de extrair fontes que tornarão
possíveis suas tentativas de resolver as questões levantadas.17
O Estado Integral tão admirado por integralistas e alguns clérigos parecia se
enquadrar dentro desta perspectiva, pois mesclava o ideal de ―poder universalizador‖
com uma atitude ―católica-moralista‖, capaz de conter as lutas de classes por meio do
corporativismo.
O Integralismo affirma a existência de Deus e a immortallidade da alma.
Comprehende a família e a autoridade segundo os ensinamentos christãos.
Reconhece, no homem, ―uma tríplice aspiração – material, intelectual e
moral‖. É contra os ódios e as lutas de classes. Para elle, a sociedade é ―a
reunião de seres humanos, devem viver em harmonia. Segundo os destinos
superiores do homem‖ (...) No Integralismo, ha um regime corporativo
integral, abrangendo todas as profissões, menos o Clero e a milícia. Os
poderes se organizam democraticamente, nos tres graus – municipal,
provincial e federal – por eleição corporativa.18
Nosso ideal de corporativismo pode ser melhor entendido quando se aprecia a
obra de Philippe C. Schmitter, Ainda o século do corporativismo? (1978).19
Para ele o
corporativismo deve ser visto como um sistema de representação de interesses e/ou
atitudes, uma organização institucional particularmente modal ou típico-ideal que ligava
os interesses da sociedade civil, organizadas associativamente, às estruturas de decisão
do Estado. Desta forma, o corporativismo representava um conjunto específico e
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concreto de práticas institucionais ou de estruturas envolvendo a representação (ou falsa
representação) de interesses de grupo empiricamente observáveis.
Na opinião de Lúcio José dos Santos, a encíclica Quadragesimo anno de Pio XI,
depois de referir-se aos ―vícios do individualismo‖, reforçou as vantagens da
organização corporativa, como a colaboração pacífica das classes e a repressão das
organizações socialistas. Além de combater ―o erro da economia individualista‖, que
esqueceu o lado social e moral do mundo econômico. Para Santos ―como Estado
corporativo, pois, o Integralismo está de accôrdo com a orientação da Egreja‖. 20
A Egreja, é ainda Pio XI quem fala, exige apenas que o corporativismo
respeite os direitos da personalidade humana, os direitos do christão, do
pae de família e do productor. Ora o Integralismo está nitidamente ,
perfeitamente, dentro desse quadro traçado pelo incomparavel Chefe da
Egreja. No Integralismo, ha um regimen corporativo integral, abrangendo
todas as profissões, menos o Clero e a Milícia. Os poderes se organizam
democraticamente, nos tres graus – municipal, provincial e federal – por
eleição corporativa. Quer dizer que o Estado é a resultante das corporações
e nenhum interesse pode ser akheio ou contrario a ellas.21
Por fim, diante do que foi exposto, resta dizer que a política combina, tanto
julgamentos factuais, quanto juízos de valor, sendo assim, a interpretação da realidade
está sempre em jogo nos debates políticos. Deste modo, entender como a ―opção‖ pelo
corporativismo surgiu no horizonte das expectativas de teóricos integralistas, e caiu no
gosto dos católico, nos revela em certa medida, elementos que constituem alguns
padrões culturais daquele contexto político. Ao mesmo tempo em que a busca pela
coesão social, em torno de uma ―velha mitologia política‖, que recuperava a idéia de um
―Salvador‖, parecia funcionar relativamente bem, no sentido de dotar o movimento de
um caráter alegórico e original.
Considerações finais:
Apesar do Estado Integralista não ter saído do papel, ele constituiu um discurso
político ativo, presente na vida de milhares de militantes espalhados, tanto nas capitais
quanto no interior do país, muitos estados da região centro-oeste, norte e nordeste,
possuíam núcleos que ajudavam a difundir os ideais integralistas. Aliás, o movimento
que propunha introduzir no Brasil um Estado forte e autoritário parecia agradar,
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principalmente, os setores médios da sociedade, incluindo os militares, elementos
conservadores da Igreja Católica e parte destacada da intelectualidade nacional. O
fortalecimento do Integralismo demonstrava não só a recusa ao modelo político liberal,
como também a falta de uma resistência comunista, principalmente, depois do fatídico
episódio de 1935.
O aparente sucesso do movimento foi possível graças à eficiência com que se
trabalhava a construção do ―mito político‖ Plínio Salgado. Esta narrativa mítica
funcionava como a base da doutrina integralista, que culminava na idéia de um ―Deus
criador do Universo e da história‖ e num projeto de ―unicidade eterna‖. Tal proposta
implicava também a concepção de um conceito próprio de ordem e progresso histórico.
22 Igualmente, a posição e a autoridade de quem desempenhava as funções de liderança
não deveriam ser contestadas, pois a vinda do ―salvador‖ traria o aperfeiçoamento da
civilização, via liderança autoritária e moral e, que no caso específico da doutrina
integralista, estava investida em Salgado. Assim, desde o momento em que se equipara
o líder integralista a figuras históricas as mensagens publicitária do movimento tendiam
à ―sacralização‖ do próprio Salgado desempenhando um papel fundamental na
moldagem de uma mentalidade coletiva.
Entretanto, a legitimação do Integralismo não se encontra somente num passado
mítico, onde o caboclo e o elemento católico se encontram, mas também num futuro
promissor. Afinal o discurso em defesa de um Estado Integral, embora se utilize do
passado e o redesenhe permanentemente, projeta-se com muito mais freqüência em
direção ao futuro. Mesmo que os integralistas não admitissem a idéia messiânica de
Salvação, eles acabaram por produzir elementos fundamentais para o ―mito do
Salvador‖, pois Salgado foi descrito como um ―ser ideal‖, que acumulava o passado, o
presente e o futuro, numa mesma existência material, espiritual e patriótica.
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Notas:
1 ELIADE, Mircea. Mito e realidade: (Tradução) Pola Civelli. São Paulo: Perpectiva, 2010.
p.11
² BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução, Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane
Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003. p. 200.
³ Idem p. 234 4 Idem p. 235
5 GIRARDET, Raoul. Mitos y mitologias políticas. (Tradução) Horacio Pons.
Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión SAIC. 1999. 6 Idem p. 69
7 OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO. Acção Integralista Brasileira.
Publicado pela Secretaria Nacional de Propaganda. s/d. p.4 8 Idem p.18-19
9 Idem p.19
10 Idem p.5
11 O SENTIDO CRISTÃO DO INTEGRALISMO, Plínio Salgado. Agosto de
1937 12
OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO. (op.cit) p.4 13
Idem p.6 14
Idem p.7 15
Idem p.7 16
PRZEWORSKI, Adam. Estado e Economia no capitalismo. (Tradução)
Argelina Cheibub Figueiredo, Pedro Paulo Zahluth Bastos. Rio de Janeiro. Relume-
Dumará, 1995 17
OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO (op.cit) p.13 18 SCHMITTER, Philippe C. (1974) "Still a century of corporatism?" In: Review of Politics
36(1): 7-52
19 OS CATHOLICOS E O INTEGRALISMO. (op.cit) p.13
20 Idem p.14
21 SALGADO, Plínio. A Quarta Humanidade. 5 ed. São Paulo: GRD, 1995.
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O caleidoscópio da política externa norte-americana e a Questão da
Palestina (1945-1948)
Luiz Salgado Neto
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o debate sobre a Questão da Palestina na
sociedade norte-americana entre 1945 e 1948 e como o episódio constitui-se como uma
manifestação do ―caleidoscópio da política externa norte-americana‖, isto é, um
conjunto heterogêneo de atores que participa ou influencia a política externa dos
Estados Unidos. Busca-se demonstrar que apesar do discurso do consenso, a política
externa norte-americana é caracterizada por frequentes embates entre distintas esferas
governamentais e entre sociedade e o governo.
Palavras-chave: Política externa dos Estados Unidos – Palestina – Sionismo
Abstract: The aim of this paper is to present the debate about the Palestine Question in
American society between 1945 and 1948, and how this episode manifested the called
―kaleidoscope of American foreign policy‖, that is, a heterogeneous set of actors that take part
or influence the U.S. foreign policy. This paper also pursues to demonstrate that despite the
discourse of consensus, the foreign policy of United States is characterized by frequent
divergences between different spheres of government and between the society and the
government.
Key-words: U. S. foreign policy –– Palestine – Zionism
Entre 1945 e 1948, houve um intenso debate nos Estados Unidos sobre o projeto
de criação de um Estado judeu na Palestina, objetivo final do movimento sionista. O
sionismo se estabeleceu em território norte-americano na década de 1880, antes mesmo
de Theodor Herzl convocar o Primeiro Congresso Sionista, na cidade suíça de Basileia,
em 1897, evento em que foi aprovada a resolução afirmando que o objetivo do sionismo
era ―criar para o povo judeu um lar na Palestina, garantido por uma Constituição‖1.
Assim como na Europa, o sionismo encontrou dificuldades em se firmar como
um movimento político nos Estados Unidos. Muitos judeus eram contrários ao
sionismo, pois, em primeiro lugar, temiam ser acusados de dupla lealdade, o que
poderia resultar em uma onda de antissemitismo, mas também porque entendiam que já
tinham encontrado sua Sião na América, pois embora houvesse um antissemitismo
latente na sociedade norte-americana, nada se comparava aos massacres da Europa
Oriental, ocorridos nas duas últimas décadas do século XIX, ou as restrições jurídicas
que existiam em países como Alemanha e Rússia2. Contudo, com as investidas
antissemitas de Hitler na década de 1930 e, principalmente, com o holocausto durante a
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Segunda Grande Guerra, os judeus norte-americanos foram persuadidos de que a única
forma de evitar que novos massacres ocorressem era a criação de um Estado judeu na
Palestina3. Este refúgio não seria destinado a eles, judeus norte-americanos, mas àqueles
que eram perseguidos e massacrados na Europa.
Na verdade, com o fim da Segunda Guerra e o holocausto tornado público, o
sionismo pôde afirmar-se internacionalmente e defender de forma contundente que a
solução para o antissemitismo era a criação de um Estado para o povo judeu. Além
disso, ao fim da Segunda Grande Guerra, a situação dos judeus libertados do nazismo
permanecia grave: milhares permaneciam em campos de refugiados; continuavam
morrendo de fome, de frio e de doenças, deixados à míngua nos mesmos campos de
concentração construídos pelos nazistas, e ainda vestindo os mesmos uniformes
listrados, quando muito. Muitos desses refugiados (chamados pela sigla DP – Displaced
Persons), não desejavam voltar para seus países de nascimento – Alemanha, Polônia,
Áustria – mas manifestavam desejo de ir para a Palestina4.
Contudo, a negativa dos habitantes árabes da Palestina e dos governos dos
Estados árabes vizinhos era veemente. Estes alegavam que os árabes habitavam a
Palestina havia séculos e, portanto, não abririam mão de seus direitos para que um povo
estrangeiro (de origem europeia) ocupasse as terras que, aos seus olhos, eram suas.
Além disso, afirmavam que os causadores das mazelas dos judeus eram os europeus e
que a solução, portanto, deveria ser encontrada na Europa. Os árabes afirmavam para
todos os líderes mundiais e para investigadores internacionais que não seria justo
resolver o problema dos refugiados judeus às custas dos árabes da Palestina.
Esse conflito entre duas visões sobre quem tinha o direito de construir seu lar
nacional na Palestina gerou um problema de política externa e interna para o Presidente
Harry Truman (1945-1953). Na verdade, a Questão da Palestina5 se apresentou como
uma celeuma para Truman, uma ―dor de cabeça‖, segundo as palavras do próprio
presidente. Como Chefe de Estado de uma das duas maiores potências do pós-guerra,
Truman deveria decidir que lado apoiar, o que lhe criou um dilema: por um lado, havia
a questão humanitária e a política interna; por outro, havia os riscos para a política
externa.
Quanto às questões internacionais, as análises dos principais especialistas em
política externa diziam que os interesses estratégicos e econômicos dos Estados Unidos
seriam profundamente prejudicados por uma política pró-sionista. Em novembro de
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1947, eram contra a Partilha da Palestina6 e, em maio de 1948, defendiam o não
reconhecimento do Estado de Israel. Seus argumentos eram fortes e se pautavam,
principalmente, pela possibilidade da União Soviética aproveitar esta oportunidade para
lançar sua influência política no Oriente Médio. Com efeito, os Estados Unidos
possuíam laços importantes (nos campos econômico e militar) com países árabes,
principalmente com a Arábia Saudita, que poderiam ser altamente prejudicados se
houvesse uma aproximação com os sionistas. Os estrategistas norte-americanos temiam
que o mundo árabe se voltasse para a União Soviética e concedesse seu importante
suprimento de petróleo para a máquina de guerra do Exército Vermelho.
Além disso, a paralisação do fluxo de petróleo dessa região prejudicaria o projeto
de recuperação da Europa no âmbito do chamado Plano Marshall. Os governantes
árabes diversas vezes ameaçaram Washington com a revogação de concessões a
empresas de petróleo se o governo norte-americano adotasse medidas pró-sionistas.
Por outro lado, uma parte significativa da sociedade norte-americana era pró-
sionista. Diante do impacto do holocausto e das imagens dos DPs na Europa, a criação
de um Estado judeu na Palestina adquiriu um aspecto de ação humanitária e de justiça a
ser feita a um povo que fora barbaramente perseguido e massacrado. Além disso, a essa
percepção de que a situação dos judeus era uma questão moral, se juntou uma empatia
cultural com os sionistas. Havia uma percepção enraizada na cultura norte-americana,
muito anterior ao holocausto, que diferenciava os sionistas da população árabe que
habitava a Palestina. Os sionistas eram vistos como vetor de progresso e modernização
na Palestina, que estava ―abandonada‖ sob domínio árabe e turco, e que deveria ser
―reconstruída‖, ―redimida‖. O sionismo também foi percebido como um movimento
análogo ao norte-americano durante a colonização da América e no processo de
expansão para o Oeste. Já os árabes eram representados como atrasados, reacionários,
primitivos, incapazes de se governarem e de promoverem o ―necessário‖ trabalho de
―reconstrução‖ da Palestina. Em termos políticos, os árabes foram vistos como egoístas,
ao não permitirem a entrada de judeus na Palestina depois do holocausto7. Em suma,
representações enraizadas na cultura norte-americana ocasionaram uma empatia com os
sionistas e um distanciamento em relação aos árabes. E, por fim, quando a discussão
sobre a decisão de apoiar ou rejeitar um Estado judeu na Palestina chegou ao ápice,
entre 1947 e 1948, a grande maioria da sociedade norte-americana não hesitou em
apoiar o sionismo, desconsiderando a oposição da população árabe da Palestina.
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Truman ficou em meio a essa polarização, pressionado a tomar uma decisão,
situação que o colocou em uma difícil encruzilhada. Negar medidas favoráveis ao
sionismo desagradaria grande parte da sociedade norte-americana, algo extremamente
negativo em uma democracia eleitoral, e iria contra as convicções pessoais do
presidente, uma pessoa extremamente religiosa e manifestamente oposta ao
antissemitismo8. Por outro lado, um apoio à ida dos judeus para a Palestina poderia
prejudicar a parceria cuidadosamente construída pelos oficiais do Departamento de
Estado, que desde o início da década de 1940, esforçavam-se por obter uma
aproximação com os países árabes do Oriente Médio. Assim, o Presidente viu-se em
meio a um dilema entre sua política interna e suas convicções pessoais, de um lado, e os
cálculos estratégicos da Guerra Fria, de outro.
Esse episódio demonstra muito bem o que o analista político Walter Russel Mead
intitulou o ―caleidoscópio da política externa norte-americana‖9, isto é, um conjunto
heterogêneo de atores que participa ou influencia, em graus variados, a execução da
política externa dos Estados Unidos. Na verdade, a Questão da Palestina demonstra que
o consenso que muitos afirmam existir na política externa norte-americana é um mito10
.
A política externa norte-americana se caracteriza por um embate entre diversas forças
no interior das esferas governamentais e por um diálogo frequente entre o governo e
segmentos da sociedade. Há uma relação complexa entre uma miríade de grupos,
setores, organizações, movimentos sociais, lobbies e o governo. Algo muito importante
a ser ressaltado é que nessa relação, uma grande variedade de segmentos sociais
pressiona o presidente, os congressistas e os oficiais governamentais em suas tarefas de
formulação e execução da política externa dos Estados Unidos da América.
Além disso, as discussões sobre o sionismo e sobre a Questão da Palestina nos
possibilitam construir outras análises sobre o processo de tomada de decisão em política
externa. Tradicionalmente, as análises têm como centro a dinâmica diplomática e as
decisões dos chefes de Estado em relação a países estrangeiros. Com maior frequência,
o foco dos estudos são atores governamentais, sejam oficiais dos ministérios das
relações exteriores, sejam os tomadores de decisão do poder executivo. Dessa forma,
são estudos centrados no Estado e em quem ocupa cargos oficiais. A abordagem
historiográfica tradicional se fundamenta nos preceitos teórico-metodológicos da
História Diplomática, baseando-se em teorias sobre processos de tomada de decisão
interna aos governos e pressupostos advindos da teoria das Relações Internacionais, em
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geral argumentando sobre as bases ―realistas‖ ou ―idealistas‖ da política externa. As
fontes utilizadas são documentos oficiais – ofícios, memorandos, relatórios, atas de
reuniões, leis, tratados, ordens de serviços. Privilegia-se, enfim, os processos internos
aos governos.
No entanto, recentemente, pesquisadores têm lançado luz a novos atores que
participam do processo de tomada de decisão em política externa. Dentre os
historiadores, destacam-se os estudiosos que, influenciados por uma renovação das
abordagens da História Política11
, entendem a política externa como algo muito mais
disputado, em que diversos atores exercem pressões de acordo com suas demandas.
Além disso, buscam apreender as circunstâncias em que os oficiais do Estado sentem-se
constrangidos em suas possibilidades de ação, sendo pressionados tanto a adotar certos
tipos de ação, a não se omitirem ou a não agirem.
Assim, estudos recentes ressaltam que devemos problematizar a atenção excessiva
dada ao Estado como instância privilegiada da política externa. Frank Costigliola e
Thomas Paterson12
nos levam a perceber que os contatos entre duas sociedades não
podem ser vistas apenas tendo como centro de análise os Estados. Ambos os autores
propõem aos historiadores que, ao invés de nos referirmos à ―história da política
externa‖ ou à ―história diplomática‖, devemos praticar uma ―história das relações
exteriores‖ (history of foreign relations) de um país, algo mais amplo que a política
oficial. Ou seja, Costigliola e Paterson nos sugerem que não limitemos os estudos das
relações entre diferentes sociedades aos líderes ou oficiais diplomáticos, mas que
englobemos também as relações entre grupos distintos entre diferentes países. Além
disso, os autores sugerem que prestemos atenção também à atuação dos grupos de
pressão, das empresas transnacionais, das Organizações Não-Governamentais, da
imprensa e de outras instâncias associativas não-oficiais. Assim, embora sejam
instâncias de poder importantes, os Estados não podem ser vistos como atores
exclusivos das relações exteriores de um determinado país.
Em muitas ocasiões, a centralidade do Estado nas análises tem como decorrência
o entendimento do Estado como ente homogêneo e unívoco, visão que ofusca as cisões
dentro dos governos. No caso específico dos Estados Unidos, o Departamento de Estado
tem a função de elaborar estratégias e de formular a política externa de uma forma geral.
Contudo, é o presidente quem possui a última palavra e o Congresso aprova a guerra.
Isso frequentemente leva a conflitos entre diferentes esferas do governo ou entre
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distintos órgãos no interior do poder executivo. Em relação à Questão da Palestina,
houve uma profunda cisão entre oficiais do Departamento de Estado e atores pró-
sionistas no Congresso e na Casa Branca. Segundo Michael Benson13
, o embate no
interior do governo se deve à divergência de visões sobre quem teria a legitimidade de
lidar com a política externa. No caso da Questão da Palestina, os oficiais no
Departamento de Estado se arrogavam o direito de serem os pensadores mais adequados
para lidarem com a política externa dos Estados Unidos e, por conseguinte, de formular
uma política para a Palestina. Segundo eles, ao contrário dos cargos que possuíam a
alternância comum às democracias – o presidente e os parlamentares – os oficiais das
relações exteriores eram servidores do Estado que vivenciavam diversas mudanças de
governo. Eles enxergavam a política externa como algo ―institucional‖, que transcendia
governos e opiniões passageiras da população. Contudo, Truman resolveu tomar para si
a tarefa de elaborar a política externa para a Palestina. Embora tenha manifestado
hesitação e ambiguidade, deixara claro nas primeiras reuniões com seus auxiliares
diretos que se sentia muito honrado em receber informações de um pessoal
extremamente qualificado, mas que ele, na posição de presidente, era o tomador de
decisões. Quanto à Palestina, Truman fez questão de salientar que era a Casa Branca e
não o Departamento de Estado que comandava a política14
.
Se essa dinâmica é complexa em níveis governamentais, talvez ainda mais
importante seja a complexidade da relação entre a sociedade e os oficiais
governamentais. Nos Estados Unidos, país com uma democracia consolidada, os líderes
políticos e oficiais governamentais precisam dialogar, em diversas ocasiões, com vários
atores da sociedade. Em determinadas questões, projetos definidos para a política
externa são prejudicados ou precisam ser reorientados por conta da ação de grupos
militantes que procuram forçar a decisão de acordo com seus interesses. Walter Russel
Mead15
se contrapõe a autores que afirmam que a democracia é prejudicial a uma
política externa eficaz. Segundo Mead, os Estados Unidos conseguiram vitórias de vulto
na arena internacional durante o século XX pagando um preço relativamente baixo. E
uma das principais características apontadas por Mead para tal sucesso é o sistema
democrático norte-americano, que garante que todos tenham voz no processo político e
que todos os interesses sejam, pelo menos em alguma medida, respondidos16
.
O presente artigo não tem como objetivo responder se a democracia é boa ou ruim
a longo prazo para uma política externa eficaz. O que cabe ressaltar é que a despeito de
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um entendimento sobre o ―sucesso‖ da política externa dos Estados Unidos no século
XX, deve-se reconhecer que certas medidas governamentais pontuais, julgadas pelos
agentes do governo como as mais adequadas, podem ser minadas por segmentos da
sociedade em regimes democráticos. É importante assinalar que, dependendo da questão
em foco, o diálogo comum às democracias pode impor restrições às atividades dos
tomadores de decisão. Nesse sentido, e sem avaliar a moralidade em jogo, é oportuno
perceber, como Melvin Small17
, que a democracia por vezes se apresenta como um
complicador de uma determinada política externa. Segundo ele, mesmo em países
autoritários há limites do que a instância máxima de governo pode fazer. Contudo, nas
democracias, principalmente naquelas em que o público efetivamente participa das
discussões, os agentes do governo são fiscalizados e sofrem pressão de variadas
direções. Lobbies, veículos de imprensa, movimentos sociais, corporações
transnacionais, grupos religiosos buscam forçar os tomadores de decisão no sentido de
uma atuação que seja condizente com seus interesses ou com algo que entendem ser
moralmente correto.
Em regimes democráticos, presidentes e primeiros-ministros não devem avaliar a
resposta do público apenas por conta de interesses políticos de curto prazo, como em
épocas eleitorais, isto é, quando os políticos ficam mais sensíveis aos humores da
sociedade, tendo em vista os votos que perderão ou ganharão com determinado curso de
ação. É importante também assinalar que a democracia é caracterizada por liberdade de
expressão e debates públicos sobre determinados problemas. Em certas controvérsias
políticas, o público fica extremamente envolvido e age efetivamente, seja porque tem
interesse direto, seja porque entende que um lado tem razão.
Isso implica que devemos perceber outros dois aspectos importantes: primeiro, o
interesse que o público ou determinados grupos atribuem a determinada questão; e,
segundo, se o(s) grupo(s) possui(em) poder de tornar essa questão uma questão de
importância política. Dito isso, percebemos que quando algum assunto tem pouco
interesse para o público, o governo tem mais liberdade de ação. Em outras, se o público
atribuir grande importância, ele terá pouca margem de manobra.
Em se tratando de política externa, isso também ocorre. Em certas questões no
cenário internacional, o conflito é tão controverso que pode trazer implicações políticas
internas para o presidente ou para os congressistas. Os agentes do governo devem, por
isso, levar em consideração o peso que a sociedade atribui a certa matéria em debate.
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Para os Chefes de Estado de países democráticos, nem sempre é possível agir de acordo
com o que se julga adequado ou conforme as formulações de seus assessores.
Alguns autores afirmam que as pressões do público não se fazem sentir na política
externa. No entanto, ao analisarmos casos concretos em democracias, percebemos que
os debates públicos são ouvidos nos níveis governamentais, cujos representantes eleitos
devem observar o que a maioria defende que se faça, o que traz restrições às suas
ações18
. Por outro lado, oficiais de carreira, não eleitos, pensam que em certas matérias
devem usar seu conhecimento e não se inclinar a ouvir o público. Isso por vezes torna-
se uma divergência aberta entre os oficiais governamentais e a opinião pública. E, em
determinadas ocasiões, a pressão da sociedade pode alterar um curso de ação, se o
tomador de decisão agir pensando como será julgado pela sociedade. Segundo Melvin
Small, ainda que a opinião pública seja sempre heterogênea, basta que o presidente e
seus assessores pensem que alguma opinião é homogênea para levá-la em
consideração19
. Com relação à Questão da Palestina, o público atribuía muita
importância ao conflito, manifestava uma opinião dominante pró-sionista e agia
efetivamente. O presidente e o Departamento de Estado não tinham as mãos livres para
fazer o que julgavam ser melhor.
Além disso, segundo Bernard Cohen20
, um bom critério para sabermos se houve
uma mudança de atitude influenciada pela opinião pública é observar o projeto
elaborado e o que efetivamente foi feito pelo governo, analisando a atividade de pressão
social sobre os tomadores de decisão em política externa entre dois marcos temporais
definidos. Fica patente ao observarmos a documentação e a postura de Truman no
período de 1945 a 1948 que ele inicialmente não tinha a intenção de apoiar um Estado
judeu na Palestina. Somente depois de muita discussão e pressão de diversas
associações e organizações (judaicas e não-judaicas), da imprensa e de políticos
(Democratas e Republicanos), Truman decidiu por esse curso de ação21
. Podemos,
portanto, creditar uma parte significativa da política pró-sionista norte-americana não às
políticas refletidas do Departamento de Estado, mas à pressão de importantes segmentos
da sociedade norte-americana.
Portanto, percebemos que vetores diversificados exercem pressão no processo de
formulação e execução da política externa norte-americana. Seria equivocado pensar as
decisões políticas apenas como frutos de uma atividade racional de elaboração de um
projeto ou como produtos de leis gerais de comportamento político. Embora saibamos
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que existem projetos políticos nos mais altos níveis de governo, tais projetos podem
sofrer uma reorientação por conta de contingências não previstas durante sua elaboração
e, sobretudo, em regimes democráticos, tais projetos podem se ver frustrados por uma
ação militante de certos segmentos da sociedade. Em relação à Questão da Palestina, o
Presidente Harry Truman viu-se constrangido a adotar uma medida que a princípio era
contrário, mas que, devido à intensa pressão originada de diversificados atores, teve de
adotar um novo curso de ação. Assim, ao invés de pensarmos em um consenso norte-
americano em torno da política externa, devemos enxergar as ações efetivas como frutos
de uma correlação de forças e como produtos de intensos embates entre diferentes
setores da sociedade e distintos setores do governo dos Estados Unidos, bem como entre
diferentes esferas governamentais, cada qual buscando orientar as ações de acordo com
suas convicções ou interesses.
1 SHLAIM, Avi. A muralha de ferro: Israel e o mundo árabe. Rio de Janeiro: Fissus Editora, 2004, p. 39.
2 UROFSKY, Melvin. American Zionism: from Herzl to the Holocaust. 2
nd Ed. Lincoln, Nebraska:
University of Nebraska Press, 1995, p. 81; DINER, Hasia. Jews of the United States (1654-2000). Los
Angeles: University of California Press, 2004, p. 157-8 3 BERMAN, Aaron. Nazism, the Jews and American Zionism (1933-1948). Detroit: Wayne State
University Press, 1990, p. 11-4. 4 RADOSH, Allis; RADOSH, Ronald. A safe haven: Harry S. Truman and the founding of Israel. New
York: Harper Collins Publisher, 2009, p. 93. 5 O que estou denominando de Questão da Palestina é o impasse ocasionado pelo conflito entre judeus e
árabes palestinos sobre a posse e o uso do território para objetivos nacionais. Ambos os lados
reivindicavam para si a Palestina como o solo sobre o qual seria construído seu ―Estado nacional‖. Em
primeiro lugar, portanto, deve se ter em mente que este é um conflito fundamentalmente político. Embora
ambos os lados façam frequentes alusões a fundamentos religiosos, o conflito se caracteriza como uma
luta entre dois grupos por um mesmo território. Como diz François Massoulié, ―o conflito se resume a
esse dado fundamental: a ocupação efetiva, simbólica e política por um grupo humano de um território já
habitado por outro grupo humano.‖ (MASSOULIÉ, François. Os conflitos do Oriente Médio. São Paulo:
Editora Ática, 1996, p. 47). 6 A Palestina esteve sob administração britânica desde 1922, após a dissolução do Império Turco-
Otomano, por meio de um Mandato conferido pela Liga das Nações. Com a eclosão da violência na
Palestina entre árabes palestinos e judeus sionistas durante a década de 1930, houve diversas tentativas de
solucionar o impasse. No início de 1947, a Grã-Bretanha entregou a questão à recém-fundada
Organização das Nações Unidas. Em novembro de 1947, foi aprovada a resolução 181 da Assembleia
Geral, que previa a partilha da Palestina em um Estado judeu e um Estado árabe. 7 SALGADO NETO, L. ―A Questão da Palestina em foco: o debate norte-americano sobre a política
externa dos Estados Unidos para o Oriente Médio (1936-1948)‖. In: Anais do V Congresso Mundial da
Associação Internacional de Estudos Americanos (IASA): configurações americanas. Niterói, 2011. 8 Pode-se argumentar contrariamente aos sentimentos humanitários de Truman, já que ele foi o homem
que ordenou o lançamento de duas bombas atômicas sobre o Japão, em agosto de 1945. Porém, no caso
específico dos refugiados dos campos de concentração, agiu, diversas vezes, de acordo com suas
preocupações sobre os refugiados, emitindo ordens expressas aos militares que serviam na área de
responsabilidade dos Estados Unidos para que fossem adotadas medidas que aliviariam a situação dos
DPs. Além disso, providenciou para que muitos desses refugiados fossem repatriados na Europa e tentou
elevar o número de permissões para que judeus entrassem nos Estados Unidos. Sua medida que gerou
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mais controvérsia foi o pedido que fez ao Primeiro-Ministro britânico Clement Attlee, em maio de 1946,
para que autorizasse a entrada de cem mil refugiados judeus na Palestina. 9 MEAD, Walter Russel. Uma orientação especial: a política externa norte-americana e sua influência no
mundo. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2006, p. 72-7. 10
AZEVEDO, Cecília. ―Culturas políticas em confronto: a política externa norte-americana em questão‖.
In: Anais Eletrônicos do IV Encontro da AIPLAC. Maringá, 2004. Disponível em:
<http://www.anphlac.org/periodicos/anais/encontro6/cecilia_azevedo.pdf> Acesso em: 20 jun. 2011. 11
Cf. RÉMOND, René. ―Uma história presente‖. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história política.
2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.11-36. 12
COSTIGLIOLA, Frank & PATTERSON, Tomas. ―Defining and doing the History of United States
foreign policy: a primer‖. In: HOGAN, M. & PATERSON T. Explaining the history of American foreign
relations. Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 10, nota 2. 13
BENSON, Michael. Harry Truman and the founding of Israel. Westport: Praeger Publishers, 1997, p.
77-8. 14
Ibidem, p. 46; RADOSH, Allis; RADOSH, Ronald. op. cit., p. 95. 15
MEAD. op. cit., p. 58-64. 16
Ibidem, p. 74. 17
SMALL, Melvin. Democracy and diplomacy: the impact of domestic politics on U.S. foreign policy
(1789-1994). Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996, p. xi-xiii. 18
BECKER, Jean-Jacques. ―Opinião pública‖. In: RÉMOND, René (org). Por uma história política. Rio
de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996, p. 202. 19
SMALL, Melvin. ―Introduction‖. In: SMALL, Melvin (ed.). Public Opinion and historians:
interdisciplinary perspectives. Detroit: Wayne State University Press, 1970, p. 20. 20
COHEN, Bernard. ―Public opinion and policy maker‖. In: SMALL, Melvin (ed.). Public Opinion and
historians: interdisciplinary perspectives. Detroit: Wayne State University Press, 1970, p. 66. 21
SALGADO NETO, Luiz. Entre preocupações humanitárias e cálculos estratégicos: a ambiguidade dos
Estados Unidos no processo de criação do Estado de Israel (1945-1948). 2010. 112f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em História) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.