192
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP ANNA MARIA CASORETTI PICO DELLA MIRANDOLA O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSÓFICA DOUTORADO EM FILOSOFIA São Paulo 2020

ANNA MARIA CASORETTI

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ANNA MARIA CASORETTI

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

PUC-SP

ANNA MARIA CASORETTI

PICO DELLA MIRANDOLA

O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSOacuteFICA

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Satildeo Paulo

2020

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

PUC-SP

ANNA MARIA CASORETTI

PICO DELLA MIRANDOLA

O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSOacuteFICA

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada agrave Banca Examinadora da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo como exigecircncia parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Antonio Joseacute Romera Valverde

Satildeo Paulo

2020

BANCA EXAMINADORA

____________________________

Prof Dr Antonio Joseacute Romera Valverde

____________________________

Prof Dr Jorge Luiz Rodrigues Gutiegraverrez

____________________________

Prof Dr Marcelo Perine

____________________________

Prof Dr Maacuterio Ariel Gonzalez Porta

____________________________

Prof Dr Pedro Monticelli

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash

Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Coacutedigo de Financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash

Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Finance Code 001

AGRADECIMENTOS

Duas pessoas em comum nascidas sob a marca estelar da

perseveranccedila foram fundamentais para que este trabalho chegasse a

termo meu orientador Professor Antonio Valverde e minha matildee

Adriana A ele devo natildeo apenas as sempre apropriadas elucidaccedilotildees no

decorrer do estudo como natildeo menos importante a sustentaccedilatildeo

ldquoespiritualrdquo para levaacute-lo adiante perante os inuacutemeros empecilhos

ensinou-me a ter como norte apenas a Filosofia Ela sempre presente

deu-me um auxiacutelio inestimaacutevel no suporte das questotildees cotidianas e com

sua sabedoria de vida me incentivou em meus momentos de fraqueza a

dar simplesmente ldquoo proacuteximo passordquo Aos dois minha eterna gratidatildeo

Agradeccedilo aos examinadores presentes na Banca do Exame de

Qualificaccedilatildeo Professores Jorge Gutieacuterrez Pedro Monticelli e Marcelo

Perine ndash trecircs mestres com os quais tive a feliz oportunidade de interagir

em outras circunstacircncias acadecircmicas ndash pelas preciosas sugestotildees

compartilhadas na ocasiatildeo Agradeccedilo ainda aos demais membros

partiacutecipes e suplentes agrave Banca Examinadora da Defesa Professores Luiz

Marcos da Silva Eduardo Kickhoumlfel e Maacuterio Porta pelo aceite de nosso

convite

Por fim natildeo posso deixar de agradecer a meu pai pelo silencioso

acolhimento a meu marido por sempre estar por aceitar minhas

ausecircncias e compreender minhas escolhas a meu filho por me incentivar

e compartilhar de minhas aspiraccedilotildees intelectuais e ainda pelo importante

auxiacutelio instrumental em ocasiotildees essenciais

RESUMO

CASORETTI Anna Maria Pico della Mirandola O Esoterismo como categoria

filosoacutefica 2020 192 p Tese (Doutorado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2020

O filoacutesofo renascentista Pico della Mirandola teve por principal intento

elaborar a conciliaccedilatildeo entre diferentes doutrinas e sistemas guiado pela

percepccedilatildeo da existecircncia de concepccedilotildees metafiacutesicas passiacuteveis de integraccedilatildeo

em seus graus mais elevados A paixatildeo pela comprovaccedilatildeo de

correspondecircncias leva-o a um percurso de aproximaccedilatildeo reconciliadora

com o passado e agrave consequente construccedilatildeo de estrateacutegias de correlaccedilatildeo

cujo princiacutepio-chave se encontra na ideia de que conceitos concernentes

aos niacuteveis mais altos da realidade se penetram reciprocamente Seu projeto

de convergecircncia teleoloacutegica contempla elementos derivados das mais

diversas perspectivas sejam filosoacuteficas teoloacutegicas ou misterioloacutegicas Em

meio a tais perspectivas identifica-se a presenccedila de tradiccedilotildees que se

perpetuaram em torno a formas de transmissatildeo esoteacuterica como eacute o caso

da misteriologia grega da Cabala judaica e do Hermetismo egiacutepcio bem

como de alguns registros de teor filosoacutefico e de manifestaccedilotildees do

Cristianismo primitivo e posterior que empregaram especiacuteficas formas de

linguagem relacionadas ao sigilo O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute apontar

para tais elementos e mostrar que sua repeticcedilatildeo permite caracterizar seu

conjunto como uma categoria presente no pensamento piquiano utilizada

natildeo apenas como recurso retoacuterico mas como possibilidade de ampliaccedilatildeo e

de siacutentese das possibilidades interpretativas Satildeo adotadas como fonte de

investigaccedilatildeo as obras De Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae e

Heptaplus

Palavras-Chave Pico della Mirandola Renascimento Esoterismo Concoacuterdia

ABSTRACT

The main intention of the Renaissance philosopher Pico della Mirandola

was to conciliate different doctrines and systems guided by the perception

of the existence of metaphysical conceptions capable of integration in their

highest degrees The passion for the proof of correspondences leads him to

a path of reconciling with the past and the consequent construction of

correlation strategies whose key principle lies in the idea that concepts

concerning the highest levels of reality penetrate reciprocally His project

of teleological convergence contemplates elements derived from the most

diverse perspectives whether philosophical theological or mysteriological

The presence of traditions that have perpetuated themselves around forms

of esoteric transmission such as Greek mysteriology Jewish Kabbalah and

Egyptian Hermeticism is found in the midst of such perspectives as well

as some records of philosophical content and manifestations of primitive

Christianity that have employed specific forms of language related to

secrecy The aim of this investigation is to point out such elements and

show that their repetition allows us to characterize the set as a category

present in Picorsquos thought used not only as a rhetorical resource but as a

possibility of expansion and synthesis of interpretative possibilities De

Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae and Heptaplus are adopted

as sources of investigation

Keywords Pico della Mirandola Renaissance Esotericism Concord

LISTA DE ABREVIATURAS

Concl (I) Giovanni PICO Conclusiones secundum opiniones aliorum Parte I in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013

Concl (II) Giovanni PICO Conclusiones secundum opinionem propriam Parte II in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013

Oratio Giovanni PICO De Hominis Dignitate in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Apologia Giovanni PICO Apologia in Paolo Edoardo Fornaciari (org) Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel Edizioni 2010

De Ente et Uno Giovanni PICO De Ente et Uno in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Commento Giovanni PICO Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo Benivieni in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Heptaplus Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Heptaplus P1 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoPrimeiro Proecircmiordquo

Heptaplus P2 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoSegundo Proecircmiordquo

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

I ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO 14

II GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA 28

1 A Vida 30

2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu 41

3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos 47

III AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO 52

1 A Secreta Conexatildeo 55

2 Religiatildeo ou Filosofia 63

3 Maritare Mundum 69

IV A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS 79

1 O tema da Dignidade do homem 81

2 O tema da Concoacuterdia 87

3 O tema da Ascese 91

V RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO 108

1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica 110

2 O Cosmo Cabalista 121

3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade 127

VI O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA 137

1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio 139

2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus 143

3 A Occlusa Sapientia 152

VII FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA 158

1 O Paradigma Esoteacuterico 158

2 A Concordacircncia teleoloacutegica 166

3 A Morte do Beijo 172

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 177

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 180

Nulla res spiritualis descendens

inferius operatur sine indumento

Nenhuma realidade espiritual que

descenda aos mundos inferiores

opera sem se velar

(Pico della Mirandola Conclusio

secundum doctrinam sapientum

hebraeorum Cabalistarum XXV)

11

INTRODUCcedilAtildeO

A presente tese propotildee identificar a presenccedila de elementos esoteacutericos na obra

do filoacutesofo Giovanni Pico della Mirandola mostrando que a recorrecircncia de tais

indiacutecios permite que lhes seja atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de categoria filosoacutefica Com o

termo ldquocategoriardquo pretende-se significar a presenccedila de um padratildeo discerniacutevel dentro

de um processo reflexivo formado pelo agrupamento de determinadas caracteriacutesticas

que se repetem a ponto de poderem ser classificadas sob uma denominaccedilatildeo comum

O termo ldquoesoterismordquo por sua vez abriga dois principais significados tantas vezes

confundidos Contempla de um lado um conjunto de tradiccedilotildees ou interpretaccedilotildees ndash

de cunho filosoacutefico teoloacutegico ou misterioloacutegico ndash que buscam proteger do puacuteblico

determinados assuntos por meio da manutenccedilatildeo do segredo ou da transmissatildeo oral

comunicando-os apenas a um restrito nuacutemero de adeptos De outro admite amiuacutede

um sentido associado ao ldquomisticismordquo relacionado a praacuteticas que conduzem ao que

chamariacuteamos hoje de experiecircncias fenomenoloacutegicas pessoais As duas significaccedilotildees

encontram-se abrangidas pela obra piquiana Seus registros foram colhidos pelo

Autor a partir de fontes pagatildes cristatildes e hebraicas encontrando-se dispostos de

forma fluiacuteda e harmocircnica lado a lado com categorias do universo filosoacutefico e

teoloacutegico Apontar para a presenccedila de tais padrotildees eacute o intento pretendido Como

objetivo secundaacuterio seraacute sugerida no uacuteltimo Capiacutetulo a existecircncia de um propoacutesito

teleoloacutegico que pede a utilizaccedilatildeo de tais paradigmas para o fechamento de certas

hipoacuteteses sob o arco da estruturaccedilatildeo do pensamento piquiano

Trecircs razotildees permitem inserir esta contribuiccedilatildeo no campo de conhecimento da

Histoacuteria da Filosofia a saber (a) o papel proeminente de seu protagonista uacuteltimo

pensador do Quattrocento italiano no panorama do Pensamento do seacuteculo XV (b) os

aportes derivados da averiguaccedilatildeo de doutrinas pertencentes a culturas e tradiccedilotildees

ocidentais e natildeo-ocidentais e (c) a apuraccedilatildeo da utilizaccedilatildeo de elementos esoteacutericos ndash

tese aqui desenvolvida ndash em cenaacuterio filosoacutefico Em outras palavras (a) Giovanni Pico

natildeo sem fundamento foi elevado agrave condiccedilatildeo de um dos mais significativos

representantes de sua eacutepoca em virtude de sua obra manifestar muitos dos

relevantes fermentos e anseios que caracterizaram seu periacuteodo embora seu quadro

intelectual de referecircncias se encontrasse fora do alcance da maioria de seus

contemporacircneos suas reflexotildees natildeo estavam isentas das principais preocupaccedilotildees de

seu tempo Ademais (b) a adesatildeo do Autor a um novo esquema epistemoloacutegico de

revisatildeo dos saberes com os quais esteve em contato o leva muito aleacutem dos problemas

filosoacuteficos nucleares dos seacuteculos que o antecedem permitindo ao leitor conhecer

doutrinas pertencentes a culturas exteriores agrave Ocidental ndash caso do Hermetismo

egiacutepcio da Cabala judaica e do Zoroastrismo persa ndash integrantes da ampla unificaccedilatildeo

pretendida por Pico Alguns daqueles conteuacutedos ndash natildeo suficientemente estudados ndash

oferecem relevantes aportes agrave Filosofia sobretudo para as temaacuteticas que concernem agrave

sistematizaccedilatildeo do mundo inteligiacutevel Finalmente (c) o estudo de um padratildeo de

pensamento colhido de fontes esoteacutericas natildeo apenas nos coloca em contato com

12

tradiccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas que fizeram uso do segredo para se perpetuar como

fornece novos paradigmas de investigaccedilatildeo e de linguagem O emprego de elaboraccedilotildees

mentais extraiacutedas de tradiccedilotildees orais natildeo eacute simples recurso retoacuterico utilizado pelo

Autor mas aporte necessaacuterio para alcanccedilar certas siacutenteses Ao contraacuterio do que possa

acreditar o senso comum haacute uma forccedila racional presente em grande parte das

doutrinas que se erigem em torno agrave transmissatildeo esoteacuterica mostrando-se seu estudo

uma importante ampliaccedilatildeo das possibilidades interpretativas

A motivaccedilatildeo para apresentar tal conjunto de temas deve-se precipuamente ao

fato de a obra de Pico della Mirandola ter sido pouco estudada no cenaacuterio filosoacutefico

nacional Tanto as traduccedilotildees quanto as interpretaccedilotildees em portuguecircs satildeo escassas

Tem-se agrave disposiccedilatildeo em primeira linha apenas as traduccedilotildees da Oratio de Hominis

Dignitate realizadas por Luiz Feracine e Maria de Lurdes Sirgado nas quais os

autores apresentam prefaacutecios introdutoacuterios ao trabalho de traduccedilatildeo Com relaccedilatildeo agrave

obra Conclusiones Nongentae principal projeto do autor os conteuacutedos

interpretativos natildeo apenas satildeo inexistentes em acircmbito nacional como bastante

exiacuteguos em termos mundiais Ademais com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees orientais acolhidas

por Pico o material para discussatildeo de suas doutrinas mostra-se em ambiente paacutetrio

insuficiente o que contribui para manter sua obra em um patamar de

impenetrabilidade Essas mesmas condiccedilotildees determinaram a opccedilatildeo por uma

apresentaccedilatildeo mais ampla e integrativa da obra piquiana um trabalho desenvolvido

de forma pontual estruturado apenas em torno aos especiacuteficos pontos esoteacutericos

coletados dos textos piquianos traria uma especificidade soacute aceitaacutevel em um

territoacuterio onde tanto o autor quanto sua obra fossem suficientemente conhecidos

Em termos de divisatildeo dos capiacutetulos segue-se uma apresentaccedilatildeo que se inicia

com os aspectos exteriores ligados agrave sociedade e agrave vida do Autor para em seguida

abordar as produccedilotildees concernentes ao seu pensamento Assim embora natildeo se mostre

uma exigecircncia para o tema desenvolvido o Primeiro Capiacutetulo agrave guisa de ldquosegunda

introduccedilatildeordquo tem por funccedilatildeo dispor o cenaacuterio temaacutetico e reconstituir uma parte da

atmosfera intelectual renascentista preparando o leitor para o acolhimento de alguns

dos elementos fundamentais que compotildeem o universo do pensamento piquiano O

Segundo Capiacutetulo contempla a biografia de Giovanni Pico devida por estar

diretamente vinculada ao desenvolvimento de seu modus cogitandi essa a razatildeo de

ser abordada no mesmo capiacutetulo a formaccedilatildeo de seu pensamento atraveacutes da

apuraccedilatildeo das principais Escolas doutrinaacuterias com as quais o filoacutesofo teve contato

Esse percurso basilar evidencia que Pico natildeo se lanccedila a argumentaccedilotildees de cunho

esoteacuterico como algueacutem desprovido de qualquer bagagem acadecircmico-filosoacutefica Antes

o contraacuterio Eacute a dimensatildeo de tal bagagem que lhe permite vislumbrar os pontos de

convergecircncia entre vaacuterias escolas e linhagens de conhecimento ndash ocorrecircncia que

pouco se verifica nas investigaccedilotildees acerca da filosofia natural ou moral mas mostra-

se de forma significativa em torno aos pontos mais elevados de suas especulaccedilotildees

metafiacutesicas ndash protegidos mais das vezes pela transmissatildeo oral

13

Do Terceiro ao Sexto Capiacutetulos satildeo apresentadas e discutidas trecircs das

principais obras de Pico as Conclusiones Nongentae a Oratio De Hominis Dignitate

e o Heptaplus O influxo do Esoterismo na obra piquiana soacute poderia ser confirmado

por meio da abordagem de certo nuacutemero de obras em seu conjunto a verificaccedilatildeo de

uma uacutenica obra natildeo traria a dimensatildeo fiel de tal influxo podendo caracterizar um

caso isolado Entre os capiacutetulos mencionados o Quinto deve ser entendido como uma

necessaacuteria digressatildeo para introduzir a seccedilatildeo seguinte contentora de informaccedilotildees

pertinentes ao Cabalismo que requerem elucidaccedilotildees porquanto o leacutexico cabaliacutestico e

muitas de suas concepccedilotildees natildeo satildeo usuais na literatura filosoacutefica Finalmente no

Seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo satildeo alinhavados os capiacutetulos precedentes de forma a lhes

dar uma coerecircncia em forma de epiacuteteto

O desenho do conjunto conforme a sequecircncia de seus capiacutetulos segue um

formato que de certa forma acompanha o desenvolvimento intelectual do Autor

poderia outrossim designar um modelo de trajeto de desenvolvimento gnosioloacutegico

partindo da esfera puacuteblica na qual satildeo apreendidas informaccedilotildees pertinentes ao

ldquoespiacuteritordquo da proacutepria eacutepoca (I) passa pelas experiecircncias de aprendizado e estudos

pessoais (II) que levam agrave elaboraccedilatildeo de ordenaccedilotildees intelectuais decorrentes das

escolas e doutrinas assimiladas (III) permitindo vislumbrar a partir delas

possibilidades de elevaccedilatildeo e de dignificaccedilatildeo do homem (IV) alcanccedilado tal estaacutegio o

pensamento lanccedila-se em especulaccedilotildees metafiacutesicas em torno agraves esferas do Inteligiacutevel

(V e VI) ateacute finalmente alcanccedilar o fim para onde tendem todas as doutrinas (VII)

Sob tal perspectiva a ordem da leitura auxilia de forma complementar a vislumbrar

a siacutentese almejada por Pico della Mirandola norte de suas investigaccedilotildees mais

profundas e fundamento para a recepccedilatildeo das mais diversas doutrinas manifestas ou

natildeo

14

CAPIacuteTULO I

ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO

No ano de 1440 Joatildeo VIII Imperador Bizantino era recebido na casa

florentina de Cosimo il Vecchio1 um dos mais proeminentes integrantes dos Medici

O encontro dos dois poderia ateacute natildeo ser digno de nota natildeo fosse o fato que ali se

encontravam os personagens siacutembolos de duas das mais fecundas ocorrecircncias que a

cidade de Florenccedila vivenciaria naquele seacuteculo para o campo do Pensamento o

Conciacutelio para unificaccedilatildeo das Igrejas e o Mecenato O soberano de Bizacircncio chegara agrave

cidade para aquele encontro ecumecircnico com o qual se esperava conter o avanccedilo dos

turcos2 no que foi seguido por consideraacutevel nuacutemero de teoacutelogos que traziam para o

solo italiano textos ineacuteditos Durante o periacuteodo em que durou ndash entre lsquo39 e lsquo44 em

meio agrave vigecircncia delrsquo Vecchio ndash3 deu-se o encontro entre as figuras mais

representativas do mundo cristatildeo (gregos e latinos) com profiacutecuas consequecircncias

para os seacuteculos XV e posteriores visto que se difundiram informaccedilotildees confrontaram-

se doutrinas e crenccedilas e abriram-se as portas para o afluxo de novos livros sobretudo

dos campos filosoacutefico e teoloacutegico Somada agrave iniciativa de mecenas como Cosimo ndash

que incentivou a aquisiccedilatildeo e traduccedilatildeo de manuscritos ndash as duas ldquoinstituiccedilotildeesrdquo

criaram as bases para a implementaccedilatildeo de um ambiente propiacutecio tanto para o retorno

a fontes antigas quanto para a abertura a novas doutrinas estranhas agrave cristatilde

O encontro de culturas foi um acontecimento sem antecedentes naquele

territoacuterio Embora a Florenccedila do seacuteculo XV natildeo possa ser comparada agrave Bagdaacute do

seacuteculo X ou agrave Toledo do seacuteculo XIII lugares onde ocorreram encontros significativos

entre as trecircs culturas monoteiacutestas mais importantes essa cidade deveria ser

mencionada como bem observa Moshe Idel imediatamente depois delas4 A urbe

toscana assistiu natildeo apenas agrave chegada dos bizantinos como acolheu um nuacutemero

significativo de judeus ndash alguns provenientes de Constantinopla mas a maior parte

expulsos da Espanha e de outros territoacuterios Ainda que a representatividade aacuterabe

natildeo tenha sido expressiva como nas outras duas cidades sua presenccedila em solo

florentino foi garantida atraveacutes dos gregos e judeus que traduziam e difundiam seus

textos entre os latinos As contribuiccedilotildees estrangeiras abriram as portas ao Platonismo

de teor miacutestico-teoloacutegico que dominou alguns ambientes intelectuais da segunda

metade do seacuteculo XV cujos rastros propiciaram a abertura para tradiccedilotildees de teor

esoteacuterico Vejamos como

1 A alcunha ldquoCosimo il Vecchiordquo eacute comumente traduzida por ldquoCosme o Velhordquo ndash assim sem viacutergula Optamos

por manter os nomes italianos em seu idioma original 2 O projeto como se sabe mostrou-se malogrado o seacuteculo XV assiste agrave tomada decisiva do Impeacuterio do Oriente

por Maomeacute II que agrave frente dos otomanos conquista Constantinopla em 1453 3 O Conciacutelio para a uniatildeo das Igrejas iniciara em Basileia em 1431 sendo depois transferido para Ferrara e

finalmente para Florenccedila em 1439 Cosimo dersquo Medici regeu a cidade de Florenccedila entre 1434 e 1464 Para maiores detalhes acerca do Conciacutelio leia-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967

4 Moshe IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 34

15

Apoacutes a tomada da capital de seu Impeacuterio pelos otomanos que ocorreria poucos

anos apoacutes o teacutermino do Conciacutelio muitos bizantinos permaneceram na Itaacutelia Alguns

dentre eles antes daquele periacuteodo vinham ajudando a incrementar o ensino do

grego necessaacuterio para o diaacutelogo com os Antigos5 contudo a contribuiccedilatildeo bizantina

mostrou-se bem mais significativa Dois personagens em particular corroboraram a

mudanccedila de paradigma intelectual que estava por vir Basiacutelio Bessarion e George

Gemistos ambos com papeacuteis seminais dentro da organizaccedilatildeo do Conciacutelio Bessarion

chegara agrave Itaacutelia em vestes de arcebispo acompanhado de Nicolau de Cusa revelando-

se um importante sustentador da uniatildeo das Igrejas Gemistos que se tornara

conhecido como George Plethon passara a integrar o Conselho de Florenccedila a partir

de rsquo38 tornando-se conselheiro do Imperador oriental Desde o iniacutecio daquelas

reuniotildees Bessarion mostrara-se preocupado em proteger os uacuteltimos vestiacutegios da

cultura grega de uma provaacutevel extinccedilatildeo assim ao mudar-se para a Itaacutelia de forma

definitiva decide transferir e doar agrave cidade de Veneza sua inteira biblioteca bizantina

exercendo ateacute o fim de seus dias uma incansaacutevel atividade de procura de textos

antigos6 O viacutenculo entre os dois eruditos iniciara ainda na Greacutecia quando durante

seis anos Bessarion frequentara em Mistra a escola de George Plethon mestre que o

introduzira agrave filosofia platocircnica7 Agrave eacutepoca Plethon se apresentava com um

comportamento profeacutetico atraveacutes do qual anunciava o fim das trecircs grandes religiotildees

e o consequente advento da cidade platocircnica8 Mais tarde seria ele o mestre de

Mistra um dos grandes responsaacuteveis pelo florescimento do Platonismo em Florenccedila

Sua presenccedila em solo toscano que de imediato provocaria uma profunda impressatildeo

no ciacuterculo de intelectuais florentinos lhe permitiria exercer um efetivo influxo sobre

seu pensamento sobretudo em duas frentes o estiacutemulo para uma mudanccedila de

orientaccedilatildeo filosoacutefica de Aristoacuteteles em direccedilatildeo a Platatildeo e a abertura para doutrinas

5 Alguns gregos de elevada erudiccedilatildeo como Argiropoulos George de Trebizonda Teodoro Gaza e seu disciacutepulo

Demetrio Calcondila alavancaram o ensino do grego entre os humanistas italianos (Eugenio GARIN Lo zodiaco della vita - La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63) A caacutetedra de grego focircra inaugurada por Manuel Chrysoloras em Florenccedila no seacuteculo anterior sendo recebida com exclamaccedilotildees por Leonardo Bruni ldquoEram setecentos anos que a Itaacutelia ignorava o grego fonte de todas as doutrinasrdquo (Leonardi ARETINI Rerum suo tempore gestarum commentarius in ldquoMuratorirdquo Rev Ital Script XIX 3 1926 p403 apud GARIN LUmanesimo italiano 2008 p48)

6 GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63 Apoacutes a queda de Constantinopla Bessarion sentiu a necessidade de formar uma biblioteca que protegesse a sobrevivecircncia da civilizaccedilatildeo grega e bizantina Conseguiu comprar ou fazer copiar a maior parte das obras do Helenismo antigo e escolheu como abrigo a cidade de Veneza natildeo somente pela confianccedila em seu sistema constitucional republicano como pelo fato de que ali prosperava uma expressiva colocircnia grega que lhe parecia constituir uma segunda Bizacircncio Os inventaacuterios das vaacuterias doaccedilotildees que foram feitas agrave Biblioteca de San Marco foram elencados por Lotte LABOWSKY em Bessarions Library and the Biblioteca Marciana - Six early inventories Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1979 Para maiores informaccedilotildees acerca de Bessarion veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 sobretudo a nota 120 p 52 para amplas referecircncias bibliograacuteficas

7 Em Mistra antiga Esparta Plethon fundara uma escola filosoacutefico-religiosa de tendecircncias neoplatocircnicas antes de vir para a Itaacutelia participar do Grande Conciacutelio Em duas cartas (uma de 1446-47 e a outra de 1454) Bessarion se refere a seu mestre Plethon como ldquoo mais saacutebio dos homensrdquo e ldquomais semelhante a Platatildeo em sabedoria e qualquer outra virtude do que qualquer outro nascido na Greacutecia desde a Antiguidaderdquo Embora cristatildeo Bessarion sugeria que conforme a doutrina da transmigraccedilatildeo das almas adotada por seu mestre ldquonatildeo se poderaacute negar que a alma de Platatildeo tomou por morada o corpo de Plethonrdquo (John MONFASANI Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte Milano 2014 apud MOLINARI op cit np60)

8 Franccedilois MASAI Pleacutethon et le Platonisme de Mistra 1956 pp 300-314 Para maiores detalhes sobre a vida de George Plethon vejam-se as obras de Christopher WOODHOUSE George Gemistos Plethon - The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986 (pp 154-170) Arnaldo DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia platonica di Firenze Firenze 1902 Eugenio GARIN Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975

16

estrangeiras ndash de cunho misterioloacutegico ndash que apresentavam viacutenculos teoreacuteticos entre

si

Assim pode-se dizer que a presenccedila grega em territoacuterio italiano natildeo propiciou

apenas o aprendizado de um idioma e o afluxo de manuscritos trouxe outros

desdobramentos Nas discussotildees em que defendiam a originalidade do pensamento

grego frente aos latinos os padres gregos contribuiacuteram em algum niacutevel e mesmo que

de forma involuntaacuteria a acelerar a crise da filosofia escolaacutestica no Ocidente atraveacutes

da instauraccedilatildeo de um certo ambiente de repuacutedio a Aristoacuteteles em seus ciacuterculos em

linhas gerais difundiam a opiniatildeo que os silogismos do Estagirita nada acresciam agrave

Teologia estranhando a forma como seus contemporacircneos latinos sustentavam teses

a partir de arsenais dialeacuteticos9 Cabe observar que certos fundamentos da tradiccedilatildeo

monaacutestica bizantina corroboravam tal direcionamento seus mosteiros eram

marcados pela miacutestica e pelo pietismo faces de uma especiacutefica forma doutrinal que

levava muitos padres gregos a se identificarem mais intimamente com os teores

neoplatocircnicos10

As discussotildees teoloacutegicas somaram-se agraves entatildeo existentes discussotildees

acadecircmicas que dividiam humanistas e aristoteacutelicos11 Um dos principais atores a lhes

fornecer municcedilatildeo foi George Plethon ao escrever um polecircmico opuacutesculo que em

breve tempo se tornaria objeto de intenso debate nos ciacuterculos de imigrados gregos ndash

sobretudo aqueles reunidos em torno a Bessarion ndash passando a verter para os

nuacutecleos latinos12 O opuacutesculo sustentava o ldquoprimadordquo de Platatildeo o que provocou a

reaccedilatildeo de seu conterracircneo George de Trebizonda que sairia em defesa de Aristoacuteteles

atraveacutes de sua Comparatio philosophorum Aristotelis et Platonis de 1458 A questatildeo

assume ressonacircncia puacuteblica levando o entatildeo cardeal Bessarion a efetuar uma

contrarreacuteplica Surge assim em 1459 a primeira versatildeo em grego do In

calumniatorem Platonis texto de capital importacircncia no qual sem atacar Aristoacuteteles

ndash cujos escritos ensinados por dois seacuteculos nas universidades europeias eram

considerados superiores em clareza e ordem expositiva ndash Bessarion se esforccedila por

mostrar que as razotildees habitualmente utilizadas para justificar a preferecircncia pelo

Liceu eram inconsistentes pois originadas de uma incompreensatildeo das verdadeiras

9 Jean DEacuteCARREAUX Les Grecs au Concile de lrsquoUnion Ferrare-Florence 1438-1439 1970 p106 Ainda para

as reaccedilotildees contra o Aristotelismo veja-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze 1967 p270 10 A partir de 1347 a igreja bizantina havia adotado a doutrina esicasta que representava mais do que uma

retomada de posiccedilotildees neoplatocircnicas Para muitos patriotas bizantinos era uma forma de inovaccedilatildeo que andava em direccedilatildeo contraacuteria tanto agrave Igreja ortodoxa quanto agrave antiga tradiccedilatildeo filosoacutefica ligada ao Aristotelismo (cf James HANKINS Plato in the Italian Renaissance Brill Leiden 1990 pp 193-197 apud MOLINARI opcit np60) Natildeo nos cabe aprofundar uma reflexatildeo em torno agraves complexas discussotildees teoloacutegicas entre gregos e latinos que influiriam em seus direcionamentos filosoacuteficos nossa intenccedilatildeo eacute pincelar alguns matizes que conduzem aos conteuacutedos a serem tratados

11 As disputas entre aristoteacutelicos e platonistas perpassam o seacuteculo XV sendo comprovadas atraveacutes de grande quantidade de material epistolar A Filosofia quattrocentesca eacute efetivamente marcada pela presenccedila de dois principais troncos a disputar o mesmo seacuteculo De um lado perpetua-se o pensamento escolaacutestico herdado dos medievais representado pela cidade de Paacutedua verdadeira rocha da tradiccedilatildeo aristoteacutelica-averroiacutesta de outro consolida-se o receacutem-nascido pensamento humanista com sua sede na eleita Florenccedila que em muitas narrativas define a ideologia do seacuteculo em questatildeo Maiores detalhes sobre o tema podem ser lidos em Paul Oskar KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996 Eugenio GARIN LUmanesimo italiano 2008 Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998

12 O opuacutesculo de George Plethon seria publicado em latim apenas no seacuteculo seguinte sob o tiacutetulo De differentiis Platonis et Aristotelis

17

intenccedilotildees que estavam na origem dos Diaacutelogos A forma enigmaacutetica da obra

platocircnica acentuada pelo uso de mitos e de imagens poeacuteticas nascia natildeo de uma

escassa preparaccedilatildeo loacutegica de seu Autor ou de um suposto desprezo pelo rigor

cientiacutefico mas sim em razatildeo da elevada altitude metafiacutesica de seu discurso que natildeo

poderia nem deveria ser expresso em termos a todos compreensiacuteveis A ideia de

conteuacutedos que natildeo poderiam ser revelados na obra de Platatildeo enfatizada por

Bessarion frutificaria sobretudo entre os ciacuterculos que viriam a frequentar a

Academia de Florenccedila

Outro fator concorrente para a orientaccedilatildeo da vida intelectual italiana que

tomaria um rumo de crescentes conotaccedilotildees miacutesticas foi a chegada de rabinos

miacutesticos e estudiosos de teosofia hebraica provenientes dos lugares mais distantes da

Diaacutespora que souberam desenvolver escolas de estudo e laboratoacuterios de escrita e

estampa a ponto de exercerem um influxo original sobre a cultura europeia13 Assim

enquanto a primeira metade do Quatrocentos presencia o influxo bizantino na

segunda metade do seacuteculo estreitam-se as relaccedilotildees entre os intelectuais cristatildeos e os

judeus sobretudo em razatildeo da toleracircncia exercida pelo neto de Cosimo Lorenzo e

pelos ciacuterculos ligados a Pico della Mirandola14 As trocas entre judeus e cristatildeos

gregos ndash ambos depositaacuterios da antiga sabedoria helecircnica ndash natildeo eram novidade

ocorrecircncia que podia ser verificada ainda em solos bizantinos15 Dessa vez as

contribuiccedilotildees do nuacutecleo intelectual hebraico somadas agrave bagagem trazida pelos

bizantinos voltavam-se agrave latinidade cristatilde Ademais uma significativa quantidade de

mestres hebreus tornou propiacutecia a divulgaccedilatildeo de textos ateacute entatildeo desconhecidos no

seacuteculo XV seja em razatildeo da dificuldade de traduccedilatildeo dos originais ndash gregos hebraicos

ou aacuterabes ndash seja em razatildeo do caraacuteter sigiloso de alguns textos hebraicos ndash que devido

a certas contingecircncias comeccedilaram a ser divulgados16

13 Gianfranco BURCHIELLARO ldquoIntroduccedilatildeordquo a Mantova e la Qabbalah 2001 14 IDEL opcit 1998 pp 39-40 Tais relaccedilotildees satildeo comprovadas por epiacutestolas como uma carta de Ficino de

1485 que relata os frutiacuteferos encontros entre doutos hebreus e cristatildeos (Ficino Opera I pp903-904 apud Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 64) Lorenzo dersquo Medici teve uma especial benevolecircncia com os judeus acolhendo em sua casa meacutedicos (a legislaccedilatildeo eclesiaacutestica proibia que cristatildeos fossem tratados por meacutedicos judeus mas as terras florentinas natildeo seguiram essa vedaccedilatildeo) muacutesicos como Guglielmo da Pesaro e filoacutesofos ligados ao seu amigo Pico della Mirandola Houve pregadores especialmente das Ordens Mendicantes que tentaram levantar a populaccedilatildeo contra os judeus como em outras eacutepocas mas as consequecircncias de suas pregaccedilotildees foram bastante limitadas e controladas nesse periacuteodo Sobre o teacutermino da benevolecircncia com os judeus a partir do advento de Savonarola leia-se Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p54 Para maiores detalhes acerca da aceitaccedilatildeo dos judeus em solo toscano veja-se Lamberto CROCIANI Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico ibid 1998 p85Veja-se ainda Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp56-61 Cesare VASOLI ldquoQuadro drsquoInsiemerdquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 5

15 George Plethon por exemplo antes de chegar agrave Itaacutelia estudara por muitos anos na escola de um renomado mestre hebreu Elisseo (Elischa) que por sua vez era sequaz dos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles Elisseo foi um importante transmissor natildeo apenas da cultura aacuterabe como da grega e persa tendo sido ele a iniciar Plethon no pensamento de Zoroastro que mais tarde chegaria agrave Academia florentina (cf MASAI opcit pp 57-60)

16 IDEL opcit 1998 p 34 Em resposta agrave nova segregaccedilatildeo dos judeus que viria no seacuteculo XV e da queima de seus livros sagrados houve um incremento de publicaccedilotildees de textos judaicos considerados segretos como forma de reaccedilatildeo agraves perseguiccedilotildees e frente ao perigo de aniquilamento da proacutepria cultura (Giulio BUSI Mantova e la Qabbalah 2001 p 28)

18

Conquanto desde o iniacutecio do lsquo400 alguns humanistas cristatildeos seguissem aulas

com professores de hebraico17 foi somente a partir da segunda metade do seacuteculo que

alguns doutos hebreus se tornariam renomados entre os ciacuterculos natildeo-hebraicos

passando a se expor em um clima de liberdade e de proficuidade sem precedentes na

histoacuteria intelectual judaica18 Antes desse periacuteodo o pensamento judaico natildeo havia

exercido nenhuma influecircncia decisiva sobre os maiores representantes do

pensamento cristatildeo salvo raras exceccedilotildees como foi o caso do influxo do Guia dos

Perplexos de Maimocircnides sobre Tomaacutes de Aquino e da influecircncia de A Fonte da

Vida de Avicebron sobre a teologia franciscana19 Agora bem mais que mediadores

linguiacutesticos os judeus mais ilustrados interpretavam textos criativamente e

capacitavam seus patronos cristatildeos a apreender formas de pensamento mais antigas e

ateacute entatildeo inacessiacuteveis em razatildeo de seus idiomas originais Alguns judeus tornaram-se

assim mestres requisitados como foi o caso dos ceacutelebres Flaacutevio Mitridate e Elia del

Medigo que mediavam o conhecimento hebraico e o aacuterabe bem como de Yohanan

Alemanno que teve acesso agraves mais importantes obras platocircnicas e neoplatocircnicas a

partir da tradiccedilatildeo filosoacutefica judaico-aacuterabe ndash trecircs autores aos quais seraacute feita uma

aproximaccedilatildeo nos proacuteximos capiacutetulos

A partir do uacuteltimo quartel do seacuteculo XV verifica-se uma significativa mudanccedila

de direccedilatildeo nas reflexotildees daqueles trecircs mestres sintomaacutetica da nova atmosfera

intelectual que se firmava ou quem sabe de uma maior liberdade que permitia o

afloramento de seus verdadeiros interesses temaacuteticos Conteuacutedos filosoacuteficos de teor

metafiacutesico passam a ser relacionados com conteuacutedos maacutegicos em diferentes

formatos que emergem em linha paralela com o interesse intelectual cristatildeo

passando a contaminar os ciacuterculos de Florenccedila A interpretaccedilatildeo com feiccedilotildees maacutegicas

da Cabala aparece seja nas traduccedilotildees latinas de Mitridate como nos escritos de

Alemanno na mesma eacutepoca em que Ficino traduz textos ldquomaacutegicosrdquo colhidos de obras

neoplatocircnicas e hermeacuteticas20 Contudo e apesar da reciacuteproca atraccedilatildeo por assuntos de

magia entre estudiosos dos dois grupos religiosos os autores judeus gozavam de

maior liberdade intelectual do que os autores cristatildeos que se encontravam sob a mira

da Igreja21 Assim fontes neoplatocircnicas e hermeacuteticas ndash e no caso de Giovanni Pico e

seus amigos judeus tambeacutem cabaliacutesticas ndash podem ser encontradas nos escritos da

eacutepoca unidas em amaacutelgamas que caracterizam uma forma original de pensamento

Da mesma forma como ocorreu com os gregos os judeus mais eruditos

receberam amplos incentivos de mecenas tanto cristatildeos quanto pertencentes ao

17 Caso de Poggio Bracciolini e Giannozzo Manetti 18 Sobre o tema leia-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp274-278 19 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e

Cabalistas 2008-b p 457 20 Moshe IDEL efetua uma anaacutelise acerca do significativo paralelo que se estabeleceu entre os intelectuais

judeus e cristatildeos precisamente no mesmo periacuteodo e na mesma aacuterea geograacutefica considerando esse um dilema interessante da histoacuteria intelectual ainda natildeo esclarecido (1998 pp 23-25) Franco BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 36) confirma a reciprocidade de tais influxos muitas marcas das discussotildees sobre Magia e Astrologia mantidas entre Pico e Ficino ndash no contexto das duas longas polecircmicas que perpassaram o seacuteculo ndash encontram-se nas obras posteriores de Alemanno

21 Segundo Idel existem registros de encontros entre magos cristatildeos e judeus durante o Renascimento (2008-b np464) Sobre a sutil fusatildeo de elementos neoplatocircnicos com aspectos do misticismo judaico vejam-se na mesma obra as paacuteginas 499-501 Ainda Giulio BUSI La Qabbalah 2011 pp28-29

19

nuacutecleo hebraico Agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici a tradiccedilatildeo familiar do mecenato

hebraico alcanccedilou seu maacuteximo esplendor atraindo para Florenccedila numerosas

personalidades do mundo hebraico no mesmo periacuteodo a Academia florentina se

abria para o mundo22 Suas contribuiccedilotildees juntamente com as discussotildees entre padres

gregos e latinos ajudaram a disseminar a filosofia neoplatocircnica enquanto em modo

simultacircneo se renovava o interesse pela mensagem velada natildeo-escrita George

Plethon de forma preciacutepua embora falecendo quase dez anos antes do surgimento

do ciacuterculo de estudos platocircnicos seria o responsaacutevel por transmitir consistentes

sementes que se desenvolveriam dentro daquele ambiente vindo a dar frutos a partir

da segunda metade do seacuteculo

A Academia antigas tradiccedilotildees novas traduccedilotildees

A chegada de Plethon agrave cidade dos Medici entusiasmou o velho Cosimo que

costumava estar entre aqueles que ouviam os discursos do filoacutesofo bizantino Plethon

vindo para o Conciacutelio que ajudaria a pacificar os acircnimos religiosos aproveitou para

dar a seus ouvintes latinos todos enamorados de Aristoacuteteles uma ideia da grandeza

de Platatildeo Cativado por tais discursos apaixonados foi sendo concebido no Patriarca

natildeo sem as devidas sugestotildees do amigo grego o desenho de um plano para instaurar

um centro de estudos de vieacutes platocircnico em solo toscano Em certo ponto Cosimo

decide realizar tal obra e escolhe o filho de seu meacutedico o ainda jovem Marsilio Ficino

para levar a termo tal empreitada Assim no ano de 1462 ndash ano considerado de

fundaccedilatildeo da Academia ndash Cosimo daacute a Ficino uma villa em Careggi incumbindo-o da

traduccedilatildeo e comentaacuterios de alguns diaacutelogos platocircnicos23 O proacuteprio Ficino batiza o

local com o nome ldquoacademiardquo homenagem agrave antiga escola fundada por Platatildeo A

Academia de Careggi preluacutedio da Academia de Florenccedila que floresceria mais tarde

sob os auspiacutecios drsquoil Magnifico Lorenzo natildeo foi um organismo legalmente

constituiacutedo como uma instituiccedilatildeo mas um simples convecircnio de doutos reunidos em

nome de um mesmo interesse cultural Suas portas se abriram para receber os mais

diversos interessados desde pensadores ilustres como Angelo Poliziano Cristoforo

Landino e os irmatildeos Benivieni ateacute poetas oradores sacerdotes homens de governo

muacutesicos juristas meacutedicos e o proacuteprio Lorenzo

Do lado de fora o cenaacuterio florentino era incrementado pelo despertar do

interesse e do envolvimento cultural de crescente nuacutemero de habitantes da cidade

tatildeo amplo na segunda metade do seacuteculo que ultrapassava os meios acadecircmicos

estendendo-se aos burgueses meacutedicos funcionaacuterios puacuteblicos artesatildeos A discussatildeo

de obras difiacuteceis como De Ente et Uno de Pico della Mirandola de temaacutetica abstrata

e aparentemente reservada a poucos especialistas despertava o interesse de um

22 CASSUTO opcit 1918 pp301-303 O patriarca Yehiel da Pisa foi um dos grandes dinamizadores de

literatura e poesia da eacutepoca e seu neto tambeacutem Yehiel que viveu agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici acolheu em sua casa florentina por vaacuterios anos uma verdadeira corte de literatos hebreus Na casa de Yehiel Yohanan Alemanno foi criado desde ainda menino educado e instruiacutedo de forma ldquoamorosardquo como conta em ldquoPrefaacuteciordquo ao seu livro Chesel Shelomograve (apud CASSUTO ibid np303)

23 GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 pp15-16

20

puacuteblico consideraacutevel a ponto de entusiasmaacute-lo24 O habitat florentino em si com seu

fervor cultural representava uma experiecircncia culturalmente importante para os

jovens estudantes que chegavam agrave cidade pela primeira vez como narraria Yohanan

Alemanno em uma de suas obras25 Enquanto isso dentro da Academia ocorria um

movimento de renovaccedilatildeo da feacute encabeccedilado por Ficino que fundamentando-se nas

especulaccedilotildees de Plethon postulava a comunhatildeo entre Religiatildeo e Filosofia buscando

acomodar aquela aos novos tempos26 A unificaccedilatildeo entre o Cristianismo e os

redescobertos temas da filosofia platocircnica e neoplatocircnica ndash em grande parte

originalidade sua ndash juntamente com sua vasta obra de traduccedilatildeo foram os dois

importantes legados deixados por Ficino

Efetivamente as traduccedilotildees foram uma dimensatildeo importante do Renascimento

florentino promovidas sobretudo pelo mecenato dos dois Medici avocirc e neto Dois

grandes conjuntos de obras foram traduzidos na comitiva de Lorenzo o de idioma

grego que incluiacutea textos neoplatocircnicos e hermeacuteticos e o hebraico que contemplava

tratados natildeo apenas filosoacuteficos como cabaliacutesticos27 Assim ao iniacutecio da deacutecada de lsquo60

Ficino traduz Alciacutenoo Especircusipo os ldquoVersosrdquo outorgados a Pitaacutegoras e o texto

lAssioco atribuiacutedo a Xenoacutecrates Mais adiante os hinos atribuiacutedos a Orfeu a

Homero os de Proclo e a Teologia de Hesiacuteodo Em lsquo84 inicia a traduccedilatildeo das

Eneacuteadas de Plotino e entre lsquo88 e lsquo93 traduz Teofrasto Porfiacuterio Jacircmblico Prisciano

Sineacutesio Miguel Psello Pseudo-Dioniacutesio e os fragmentos de Atenaacutegoras Junte-se a

essas a traduccedilatildeo de trinta e seis obras platocircnicas e vaacuterias outras28 A magnitude da

obra de traduccedilatildeo ficiniana natildeo suficientemente destacada viria a ter um notaacutevel

influxo no pensamento renascentista europeu aleacutem de propiciar agravequela cultura um

patrimocircnio ateacute entatildeo desconhecido em sua complexidade Ora nos seacuteculos anteriores

a essa eacutepoca os textos de Platatildeo natildeo eram lidos diretamente da fonte original trecircs

seacuteculos antes de Ficino o abade Guglielmo de Saint Thierry escrevia sobre o amor

24 Esses detalhes da vida na cidade podem ser avaliados atraveacutes de cartas trocadas entre Pico e cidadatildeos

comuns que natildeo apenas se mostravam interessados como estavam aptos muitas vezes a debater ideias filosoacuteficas bastante eruditas (cf Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p96)

25 Alemanno escreve na obra Hay ha-olamim (Lrsquoimmortale) que a cidade digna de se tornar a meca ideal de todo jovem desejoso de aprofundar seus conhecimentos era ldquoFirenze in terra di Toscanardquo O autor elenca as virtudes dos florentinos assim efetuando um verdadeiro elogio humanista agrave Repuacuteblica de Florenccedila (M MORTARA Catalogo dei manoscritti ebraici della biblioteca della comunitagrave israelitica di Mantova Livorno I Costa e C 1878 pp22-29 apud Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 51)

26 George Plethon vivera uma ldquofeacuterdquo neoplatocircnica procurando explicar questotildees teoloacutegicas de forma racional Ficino por sua vez torna-se padre catoacutelico e embora pretendendo seguir os cacircnones de sua feacute cristatilde natildeo consegue renunciar agrave formulaccedilatildeo de uma teologia racional capaz de dar agrave feacute religiosa um fundamento filosoacutefico (Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano p71) Sobre as afinidades entre o Platonismo e o Cristianismo veja-se COPENHAVERndashSCHMITT Renaissance philosophy A History of Western Philosophy 1992 p152

27 Segundo Moshe IDEL (1998 pp 19 24) a obra grega traduzida por Ficino e o conjunto cabaliacutestico traduzido por Mitridate foram as fontes mais importantes para o desenvolvimento intelectual dos pensadores florentinos do final do seacuteculo XV e da Europa como um todo Suas contribuiccedilotildees foram devidamente reconhecidas pelos estudiosos as traduccedilotildees de Ficino de forma especial por Paul Oskar KRISTELLER (La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento 1975) Jaacute as traduccedilotildees do hebraico mais recentemente foram analisadas detalhadamente por Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticis 19871989)

28 Como infere Mariateresa BROCCHIERI (opcit p24) ldquoem momentos proacutesperos da Histoacuteria ocorrem afortunados fenocircmenos de encontro entre o poder e a cultura trecircs seacuteculos antes na rica Andaluzia muccedilulmana o califa Abu Yarsquoqub Yusuf passara a Averroacuteis a tarefa de traduzir e comentar Aristoacutetelesrdquo dando o pontapeacute inicial para um longo periacuteodo de estudos aristoteacutelicos Agora era a vez de Cosimo Ficino e a abertura para os estudos platocircnicos

21

platocircnico baseado em fontes indiretas como Ciacutecero ou Agostinho Mas agora no

seacuteculo de Pico podia-se ler Platatildeo diretamente e as suas palavras tornavam-se pontos

de referecircncias primaacuterias29

Em meio ao material filosoacutefico houve ainda dentro da esfera intelectual da

Renascenccedila um amplo espaccedilo para temaacuteticas de cunho ldquotranscendenterdquo de

acentuado teor esoteacuterico apresentadas muitas das vezes revestidas por uma

roupagem filosoacutefica entretecida de tendecircncias neoplatocircnicas hermeacuteticas e ndash menos

perceptiacuteveis ndash cabaliacutesticas Um dos responsaacuteveis por instigar tal atmosfera fora

George Plethon cuja influecircncia natildeo se dera apenas em relaccedilatildeo ao Platonismo ele

tambeacutem trouxera Hermes Trismegisto e Zoroastro para Florenccedila jaacute devidamente

sistematizados pelo bizantino Miguel Psello no seacuteculo XI30 A partir das traduccedilotildees de

Ficino para o latim conteuacutedos permeados de misticismo e magia passam a ser

transmitidos a vaacuterios nuacutecleos da sociedade embora tal gecircnero de interesse se

mostrasse anterior tendo percorrido o seacuteculo por inteiro A relevacircncia dada ao tema

permite algumas especulaccedilotildees Para o homem meacutedio31 a religiatildeo apresentava uma

dicotomia mateacuteria-espiacuterito entatildeo natildeo mais tanto satisfatoacuteria a mateacuteria era causa de

afliccedilotildees e o reino do espiacuterito mostrava-se distante demais A intuiccedilatildeo de mundos

intermediaacuterios corroborada pelas discussotildees astroloacutegicas trazia possiacuteveis respostas agrave

sua precaacuteria existecircncia ao mesmo tempo em que o conhecimento de formas de magia

permitia natildeo se deixar dominar pelo fatuum32 Criava-se assim um espaccedilo entre a

religiatildeo e a mateacuteria preenchido pelo acesso agravequelas realidades intermeacutedias como

observou Eric Weil ldquoo homem renascentista iacutea agrave missa e depois ao astroacutelogordquo33

Ademais a crenccedila na Astrologia se intensifica em razatildeo de um difundido

anseio por unificaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o cosmo ao seu redor ndash tema estimado pelo

ldquoespiacuteritordquo do seacuteculo e razatildeo do incremento daquele estudo em meio aos humanistas

da Academia A invenccedilatildeo da prensa graacutefica tornou possiacutevel determinar com certo

grau de precisatildeo quais obras eram consideradas essenciais ou populares agrave eacutepoca

atraveacutes da detecccedilatildeo de quais conteuacutedos foram impressos mais cedo e em maior

nuacutemero a quantidade de volumes dedicados agrave Astrologia no Quattrocento italiano

aponta para a disseminaccedilatildeo de tal interesse juntamente com sua centralidade nas

29 COPENHAVER-SCHMITT opcit pp133 ss No ldquoPrefaacuteciordquo ao Supplementum ficinianum Giovanni

GENTILE escreve que Ficino eacute importante natildeo apenas para o entendimento do Renascimento italiano como do Platonismo europeu que sobreviveria dois seacuteculos depois dele portanto para o entendimento de muito da Filosofia Moderna de cujo desenrolar se plasmou o pensamento de nosso tempo (KRISTELLER Supplementum ficinianum 1937) Eugenio GARIN por sua vez ajuiacuteza que ldquoacerca da ressonacircncia enorme causada pela traduccedilatildeo de Ficino nunca se diraacute o suficienterdquo (op cit 2007 p73)

30 Arthur FIELD The Platonic Academy of Florence in Allen-Rees (org) Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy 2002 pp 359-376 Ainda para o tema veja-se IDEL 2008 p499

31 A menccedilatildeo ao homem ldquomeacutediordquo eacute usual em textos intelectuais da eacutepoca como os de Ficino e Pico para indicar homens natildeo partiacutecipes do mundo do pensamento Veja-se por exemplo De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno e scritti vari 1942 p396

32 Natildeo poucos textos de conteuacutedos declaradamente maacutegicos circulavam no Quattrocento Eugenio Garin considera que o tema da magia encontra-se no centro do quadro renascentista tal constataccedilatildeo faz o autor se distanciar sob esse quesito de Jacob Burckhardt e Giovanni Gentile (cf Michele CILIBERTO Prefaacutecio a GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006) Sobre o fatuum veja-se GARIN ibid p42

33 Eric WEIL La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie 1986 p66 Weil acrescenta que o homem do lsquo400 vivia em si uma divisatildeo interna estanque ele se via cristatildeo iacutea agrave igreja cumpria todos seus deveres religiosos ele sabia da existecircncia da alma e que essa tinha um valor mas era um saber ldquomortordquo pois o que ocorria no mundo material natildeo tinha relaccedilatildeo com a sua alma

22

discussotildees metafiacutesicas34 a presenccedila constante de instacircncias profeacuteticas na vida

poliacutetica as representaccedilotildees artiacutesticas (a imagem do homem coacutesmico onde cada parte

ou oacutergatildeo do corpo se encontra ligada a um corpo celeste torna-se comum nos

tratados astroloacutegicos) e a importacircncia do papel do astroacutelogo ndash que se torna um ator

social requisitado Todas indicaccedilotildees de um fenocircmeno central e caracterizante de uma

eacutepoca35

Sob tal clima homens letrados recepcionam o Picatrix manuscrito aacuterabe de

conteuacutedo maacutegico36 Bem mais que um manual de magia cerimonial o texto

contempla uma mescla de temas filosoacuteficos teoloacutegicos e praacuteticos apresentando um

nexo ldquoentre pressupostos teoacutericos e praacuteticas operativas entre hermetismo

especulativo de vieacutes platonizante e magia entre teurgia e teosofia orientalrdquo37 Lecirc-se

em suas linhas que ldquoa ciecircncia procede por graus conhecido um logo surge outro a

ser apreendidordquo e que ldquoatraveacutes da ciecircncia o homem faz milagres compreende tudo

consegue ser tudordquo38 Chamaria a atenccedilatildeo da Academia o conceito de ldquoNatureza

Perfeitardquo uma entidade espiritual agrave qual os filoacutesofos participam em graus diversos

qual um caminho iniciaacutetico que se desvela agrave medida que se caminha ndash um segredo

escondido dentro da Filosofia No proacuteprio Picatrix encontra-se sua definiccedilatildeo atraveacutes

de um belo discurso atribuiacutedo a Hermes Trismegisto ldquoA Natureza Perfeita eacute o

espiacuterito do filoacutesofo e do saacutebio conjugado ao planeta que o governa Eacute ele que abre as

portas da ciecircncia que o faz compreender as coisas que de outra forma natildeo poderia

compreender e das quais procedem as operaccedilotildees da natureza tanto em vigiacutelia como

no sono Daiacute resulta claro que a Natureza Perfeita se comporta no saacutebio e no filoacutesofo

como o mestre em relaccedilatildeo ao disciacutepulordquo39

O que interessa destacar eacute como as correspondecircncias entre conteuacutedos supra-

mundanos despertaram a atenccedilatildeo de estudiosos como Ficino levando-os a perceber

34 A chamada ldquopolecircmica da astrologiardquo colocaria em evidecircncia a multiplicidade de temas com ela convergentes

ou contrastantes deixando como heranccedila uma vasta quantidade de material literaacuterio O debate que perpassa todo o seacuteculo XV envolvendo um total de pelo menos trecircs seacuteculos torna partiacutecipes tanto homens de inegaacutevel conhecimento cientiacutefico como Paolo Toscanelli quanto homens de profunda religiosidade como Ficino cujas conhecidas praacuteticas astroloacutegicas contrastavam com seu pensamento cristatildeo Tanto Toscanelli quanto Ficino apesar de terem ambos colocado em duacutevida a validade das previsotildees astrais continuavam dependentes das prescriccedilotildees astroloacutegicas como observa Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo agrave obra de Garin (2011) A cidade de Ferrara um dos principais redutos de intelectuais abrigava ciacuterculos de doutos que se reuniam para tentar decifrar os significados que se escondiam nas intrincadas relaccedilotildees formadas entre os astros eram homens de razatildeo que comungavam da mesma ldquofeacuterdquo nas estrelas (Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1935 pp165 ss) Para os impactos sociais da Astrologia leia-se GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007

35 Franz BOLL Sphaera Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder Hildesheim Georg Olms reprinted 1967 p415 ss (apud GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 p173)

36 O Ghayat al-hakim (O propoacutesito do Saacutebio) ou Picatrix foi um ceacutelebre tratado aacuterabe de autor incerto cuja versatildeo latina manuscrita circulou na Itaacutelia especialmente na segunda metade do lsquo400 ocasionando tanto admiraccedilatildeo quanto indignaccedilatildeo entre alguns cristatildeos e muccedilulmanos ndash como o estudioso Ibn Khaldun ndash por ser visto como um manual de necromancia Giovanni Pico possuiacutea uma coacutepia do manuscrito em sua biblioteca Ludovico Lazzarelli o utilizou bem como no seacuteculo seguinte Cornelio Agrippa Giordano Bruno e Tommaso Campanella A obra encontra-se atualmente no Manuscrito de Munique 214 f51r (Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b np463 p474) Para o tema leia-se GARIN La diffusione di un manuale di Magia la cultura filosofica del Rinascimento italiano Firenze 1961 pp159-165

37 Cf GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 p47 38 Picatrix III vi trad Henry CORBIN Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien 1971 pp29-46 39 Picatrix III vi trad CORBIN (opcit)

23

que muitos temas do Picatrix estavam expostos no Pimander hermeacutetico ndash a ser

abordado adiante ndash confirmando a estreita conexatildeo entre Hermetism0 Magia e

Astrologia Indo aleacutem o Picatrix expunha um saber operativo capaz de colocar em

praacutetica as doutrinas hermeacuteticas receacutem-descobertas Com efeito Ficino e Pico se

interessaram pela efetuaccedilatildeo das experiecircncias maacutegicas contidas na obra O clima

excepcional de abertura ao sincretismo de pensamento existente em Florenccedila natildeo

impediu contudo que Ficino sofresse perseguiccedilotildees da Igreja Vozes maliciosas

acusavam-no de ter continuado a realizar praacuteticas maacutegicas juntamente com Pico no

periacuteodo em que este se encontrava confinado apoacutes a condenaccedilatildeo de sua obra

Conclusiones Nongentae e mesmo depois de Ficino ter sido ameaccedilado de

condenaccedilatildeo eclesiaacutestica40 O proacuteprio padre confessava ter utilizado o Picatrix em seu

Terceiro Livro do De Vita ao tratar das propriedades terapecircuticas dos talismatildes

reconhecendo ldquoatraveacutes de longa experiecircnciardquo que a concentraccedilatildeo de influxos celestes

sobre uma imagem realizada segundo as corretas regras apresentava um singular

efeito terapecircutico41 Fato eacute que enquanto Ficino era acusado de praacutetica de magia a

obra De Vita via suas ediccedilotildees se multiplicarem

A Simetria entre as Antigas Teologias

Um ano apoacutes Cosimo ter pedido a Ficino que traduzisse algumas obras

platocircnicas eis que o monge Leonardo de Pistoacuteia chega da Macedocircnia trazendo para

Florenccedila uma coacutepia do Corpus Hermeticum O impacto do surgimento desse material

eacute tatildeo extraordinaacuterio que Ficino se vecirc obrigado a suspender a traduccedilatildeo das obras de

Platatildeo para dedicar-se imediatamente ao novo manuscrito Em uma tradiccedilatildeo que fora

inaugurada por Miguel Psello o pensamento bizantino vinha mantendo por seacuteculos

o Corpus Hermeticum em um lugar de honra dentro do ensinamento platocircnico42 e os

mestres chegados de Bizacircncio para o Conciacutelio de Florenccedila cerca de duas deacutecadas

antes haviam sido os primeiros a apontar para a afinidade existente entre o

Hermetismo e o Platonismo no que concernia agrave sistematizaccedilatildeo do cosmo e agrave

ldquoantropologiardquo presentes em seus textos43 A suposta anterioridade de Hermes

Trismegisto em relaccedilatildeo a Platatildeo e a superioridade espiritual dos egiacutepcios sobre os

gregos ndash entatildeo paradigma maacuteximo do conhecimento ndash sugerida nas palavras

40 GARIN 2006 pp42-49 Nas paacuteginas do Picatrix eacute possiacutevel encontrar um compecircndio de foacutermulas maacutegicas

nas quais satildeo utilizados ingredientes como o oacutepio o haxixe e outras plantas psicoativas cujo consumo induziria a estados alterados e favoraacuteveis agrave clarividecircncia (GARIN 2007 pp51 ss)

41 Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano 1970 p71 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 38

42 Miguel Psello foi uma das personalidades mais importantes da cultura bizantina poliacutetico conselheiro de imperadores professor da Universidade de Constantinopla autor de numerosos escritos e conhecido em particular por suas obras de Histoacuteria envolveu-se na recuperaccedilatildeo da cultura claacutessica ndash interesse que encontrou a hostilidade dos ciacuterculos tradicionalistas da Igreja Bizantina Comentador de Aristoacuteteles e Platatildeo Psello tambeacutem se interessou pelas obras dos neoplatocircnicos Psello efetuou um recolhimento das coleccedilotildees gregas referentes aos materiais hermeacutetico e caldeu a partir de fragmentos encontrados em Plotino Proclo e outras fontes similares tardias (cf Stephan FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp486-487 A relaccedilatildeo de seus escritos pode ser vista em Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p19

43 O tema eacute desenvolvido por Paul Oskar KRISTELLER em El pensamiento renacentista y sus fuentes (1982 pp 206-224)

24

atribuiacutedas ao rei-sacerdote44 talvez tenham sido duas entre as razotildees para que os

Diaacutelogos fossem deixados temporariamente de lado

Na medida em que tiveres o poder oacute rei que tudo pode

preserva a qualquer custo este discurso de toda traduccedilatildeo para

que misteacuterios assim grandes natildeo cheguem aos Gregos e a sua

orgulhosa fala com falta de forccedila natildeo faccedila empalidecer e natildeo

anule a gravidade a robustez a virtude operativa dos vocaacutebulos

de nossa liacutengua Pois que os Gregos oacute rei dispotildeem apenas de

discursos vazios afeitos a produzir demonstraccedilotildees e nisso na

realidade consiste toda a sua filosofia em um barulho de sons

Noacutes diversamente natildeo nos utilizamos simplesmente de

palavras mas de sons plenos de eficaacutecia45

O gesto de Cosimo de pedir a traduccedilatildeo de Hermes antes de Platatildeo natildeo estaria

livre de significados o contato com aqueles textos enigmaacuteticos marca com uma

impronta o acircmbito intelectual florentino e o Hermetismo passa a ser uma doutrina

cultuada em toda a sua complexidade maacutegica e teoloacutegica ademais seus ecos seratildeo

fortemente ouvidos no seacuteculo posterior como pode ser constatado atraveacutes de vasta

literatura46 Antes das novas traduccedilotildees o Asclepius um dos tratados hermeacuteticos

havia circulado no Medievo de forma que algumas de suas doutrinas natildeo eram

desconhecidas e vinham sendo estudadas por alguns sobretudo por intermeacutedio das

obras de Lactacircncio e Agostinho ndash o primeiro com seus elogios o segundo com suas

condenaccedilotildees47 Ficino conhecera o Asclepius sete anos antes de iniciar a traduccedilatildeo dos

demais tratados tendo copiado alguns de seus capiacutetulos em um manuscrito pessoal

De toda forma eacute somente a partir de seu amplo trabalho de traduccedilatildeo que o

44 Os humanistas do Renascimento natildeo tinham duacutevidas acerca da antiguidade e da autenticidade daqueles

textos ndash mais tarde revelados pseudoepigraacuteficos dos primeiros seacuteculos da era vulgar ndash e tampouco sobre Hermes ter sido um real sacerdote egiacutepcio

45 Corpus Hermeticum XVI 2 (ed NOCK-FESTUGIEgraveRE 2006 pp429 ss) όσον οΰν δυνατόν έστί σοι βασιλεΰ πάντα δέ δύνασαι τόν λόγον διατήρησον άνερμήνευτον ίνα μήτε είςΈλληνας έλθη τοιαΰτα μυστήρια μήτε ή τών Ελλήνων υπερήφανος φράσις καί έκλελυμένη καί ώσπερ κεκαλλωπισμένη έξίτηλον ποιήση τό σεμνόν καί στιβαρόν καί τήν ενεργητικήν τών ονομάτων φράσινΈλληνες γάρ ώ βασιλεΰ λόγους έχουσι κενούς αποδείξεων ενεργητικούς καί αΰτη έστίν Ελλήνων φιλοσοφία λόγων ψόφος ήμεΐς δέ ού λόγοις χρώμεθα άλλα φωναΐς μεστάΐς τών έργων Traduccedilatildeo do grego feita por Andregrave Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade

46 Agrave primeira ediccedilatildeo latina do Corpus Hermeticum publicada em 1471 e ateacute entatildeo desconhecida no Ocidente seguiram-se ao menos vinte e quatro ediccedilotildees nos dois seacuteculos posteriores Somente o Pimander primeiro dos tratados teve dezesseis ediccedilotildees entre o final do seacutec XV e o final do seacutec XVI (cf KRISTELLER Studies in Renaissance thought and letters 1956 p223 ss) O impacto da obra hermeacutetica natildeo poderia deixar de atingir o mundo das Artes uma bela representaccedilatildeo de Hermes Trismegisto encontra-se no mosaico de maacutermore feito por Giovanni di Stefano em 1488 para a Catedral de Siena comprovando a aceitaccedilatildeo do saacutebio pagatildeo em territoacuterio cristatildeo Para as repercussotildees do tema veja-se Frances YATES ldquoThe Hermetic Tradition in Renaissance Sciencerdquo in Art Science and History in the Renaissance Baltimore Johns Hopkins Press 1968 pp 255-274 Eugenio GARIN Ermetismo del Rinascimento Pisa ed Della Normale 2006 James HEISER Prisci Theologi and the Hermetic Reformation in the Fifteenth Century Texas Repristination Press 2011 Luisa ROTONDI SECCHI TARUGI LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998

47 As citaccedilotildees hermeacuteticas de Lactacircncio partem da versatildeo de um escrito grego o Loacutegos teacuteleios difundido tambeacutem em versatildeo copta Em carta a Cosimo (contida no Proacutelogo agrave traduccedilatildeo do Pimander) Ficino faz referecircncia agraves acusaccedilotildees de Agostinho acerca das possiacuteveis origens divinatoacuterias ou demoniacuteacas das doutrinas de Hermes no Asclepius (De civitate Dei VIII 23-26) Por tal razatildeo o padre-filoacutesofo teria optado por seguir os juiacutezos mais favoraacuteveis de Lactacircncio Petrarca Coluccio Salutati e Nicolau de Cusa tambeacutem atestam conhecer o conteuacutedo do Asclepius sempre atraveacutes dos olhos de Lactacircncio e Agostinho Para as referecircncias das obras desses autores veja-se GARIN 2006 pp10 ss

25

Hermetismo passa a contribuir e natildeo pouco com a disseminaccedilatildeo de ldquouma nova

sensibilidaderdquo que incrementa ldquoo gosto pelo misteacuterio e pelo ocultordquo conforme ajuiacuteza

Eugenio Garin48

Dentre os dezoito tratados que compotildeem o Corpus49 o Pimander primeiro a

iniciar a ordenaccedilatildeo expotildee um relato sobre a criaccedilatildeo do mundo o homem e sua

Queda Os tratados seguintes descrevem a ascensatildeo da alma pelas esferas dos

planetas para o reino divino e seus processos de regeneraccedilatildeo O Asclepius ou

Discurso Perfeito ndash opuacutesculo desassociado dos demais tratados cuja traduccedilatildeo foi

erroneamente atribuiacuteda a Apuleio de Madaura por natildeo poucos filoacutelogos ndash50 trata da

religiatildeo dos egiacutepcios e seus ritos sacerdotais alguns polecircmicos por serem destinados

a atrair as forccedilas do cosmo para as estaacutetuas de seus deuses O ensinamento nuclear

do Pimander mostra conformidades com o processo de uniatildeo ao Inteligiacutevel descrito

no manual de magia Picatrix que natildeo deixariam de ser percebidas nos dois textos

mestre e disciacutepulo se unificam o diaacutelogo do ser eacute com o noucircs no primeiro e com a

ldquoNatureza Perfeitardquo no segundo ldquoPimander eacute o noucircs que acompanha sempre o

disciacutepulo eacute pois a Natureza Perfeitardquo51

Esse tipo de conteuacutedo tanto em suas partes teoreacuteticas quanto teuacutergicas seria

reconhecido outrossim em meio aos enunciados caldeus introduzidos na urbe por

Plethon Os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos ao sacerdote persa Zoroastro foram

manuscritos muito bem recepcionados pelo seacuteculo XV tal como ocorreu com os

hermeacuteticos52 Seu conteuacutedo de acordo com juiacutezo de Darby Nock apresenta fortes

semelhanccedilas com escritos do Gnosticismo cristatildeo ndash que em muitos pontos

coincidem com o conteuacutedo do Platonismo dos seacuteculos II e III ndash como o anelo por

certeza e revelaccedilatildeo a propensatildeo agraves abstraccedilotildees metafiacutesicas e a preocupaccedilatildeo com a

alma e sua salvaccedilatildeo53 Des Places descreve o conteuacutedo dos Oraacuteculos como uma seacuterie

de ideias ldquosobre Deus os daimons a alma o cosmordquo aleacutem de indicaccedilotildees sobre ritos

teuacutergicos54 Algumas passagens satildeo descritivas revelando a natureza de Deus do

intelecto e das hipoacutestases derivadas do Uno outras prescritivas formulam

instruccedilotildees que o teurgo deve seguir para purificar suas almas racional e irracional e

o corpo com o objetivo de se juntar agrave fonte original55 Haacute um grande nuacutemero de

48 GARIN 2006 p74 49 A ordenaccedilatildeo foi realizada por Darby Nock que distingue o Corpus Hermeticum do Asclepius e de outros

fragmentos atribuiacutedos a Estobeu Entretanto o todo da obra hermeacutetica eacute chamado a grosso modo Corpus Hermeticum O manuscrito original encontra-se em Florenccedila na Biblioteca Riccardiana 709 ff10r-12r

50 A autoria do Asclepius manteacutem-se desconhecida Ficino atribui a Apuleio a traduccedilatildeo mais antiga do corpus ldquoE multis denique Mercurii libris duo sunt divini praecipue unus de voluntate divina alter de potestate et sapientia dei Ille Asclepius hic Pimander inscribitur Illum Apuleius platonicus latinum fecit alter usque ad haec tempora restitit apud graecosrdquo (Marsilio FICINO Pimander in Opera Omnia KRISTELLER-SANCIPRIANO 1962 p1836)

51 A siacutentese eacute de Eugenio GARIN (2006 pp45-46) conforme sua leitura do Picatrix 52 Ficino traduziu os Oraacuteculos a partir da versatildeo grega de Plethon acrescentando a eles seu proacuteprio comentaacuterio

(FARMER op cit p486) Fontes antigas propotildeem que o verdadeiro autor dos Oraacuteculos Caldeus ou Loacutegia Chaldaikaacute tenha sido Giuliano o Teurgo filho de Giuliano o Caldeu que viveu agrave eacutepoca de Marco Aureacutelio em cerca de 150 dC Sobre a recepccedilatildeo aos textos de Giuliano na Academia veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia 1936

53 Cf ldquoPrefaacuteciordquo de Arthur Darby Nock ao Corpus Hermeticum opcit p 16 54 Edouard DES PLACES Oracles chaldaiumlques 1971 p12 55 Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della

concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p18

26

elementos que remetem ao Timeu platocircnico uma das razotildees que provavelmente

levou Plethon a colocar os Oraacuteculos como fundamento de sua teologia identificando-

os como a fonte das doutrinas zoroastrianas que se encontravam na origem da

teologia platocircnica Em resposta a George Scolario Plethon com efeito atestava ldquoQue

Platatildeo fez dessa filosofia a sua proacutepria eacute demonstrado pelos Oraacuteculos que nos

chegaram de Zoroastro e que concordam em todos os aspectos com as doutrinas de

Platatildeordquo56

Sabe-se que a mentalidade renascentista apreciava os arranjos simeacutetricos de

forma que todas essas traduccedilotildees pertencentes a tradiccedilotildees que natildeo somente detinham

uma prerrogativa de sabedoria como ainda apresentavam uma simetria entre seus

conteuacutedos seriam facilmente absorvidas pelos meios intelectuais sobretudo na

Academia Para muitos humanistas do lsquo400 as formas e os fenocircmenos religiosos

mais antigos eram em certo sentido verdadeiramente puros por se encontrarem

mais proacuteximos da forma original revelada pelo divino aos homens Assim havia um

terreno propiacutecio para o cultivo daqueles temas que contemplavam desde o fasciacutenio

do antigo Egito e seus rituais maacutegicos ateacute a concepccedilatildeo de uma renovaccedilatildeo religiosa

ademais proclamavam o lugar privilegiado do homem ndash tema que seria retomado

por alguns humanistas57 Ficino natildeo demora a incorporar aquelas doutrinas a seus

pensamentos percebendo semelhanccedilas com a filosofia platocircnica e descobrindo

correspondecircncias em Plotino Jacircmblico e Proclo reconhece simetrias teoreacuteticas

sobretudo nos enunciados pertinentes a sistemas cosmoloacutegicos e metafiacutesicos que

passariam a ser enfatizadas em suas obras58

A similaridade encontrada entre esses materiais constituiram para Ficino um

testemunho de arcana mysteria Na concepccedilatildeo ficiniana de inspiraccedilatildeo plethoniana

existiria uma antiga corrente de ensinamentos filosoacuteficos transmitidos por profetas-

teoacutelogos que teriam concebido uma organizaccedilatildeo dos planos inteligiacuteveis

fundamentada em revelaccedilotildees recebidas Sob seu olhar natildeo distante da visatildeo de

outros filoacutesofos ligados ao Neoplatonismo a atividade filosoacutefica coincide com a

teoloacutegica na medida em que prepara a alma-intelecto para acolher a ldquorevelaccedilatildeordquo Os

antigos teoacutelogos prisci theologi satildeo pois aqueles que conhecem por revelaccedilatildeo a

verdade sempre a mesma por se tratar de realidade natildeo sujeita ao devir Seguindo

uma tradiccedilatildeo ininterrupta as doutrinas de Trismegisto foram sendo transmitidas a

outros saacutebios da Antiguidade chegando ateacute Platatildeo compondo o que seria uma secta

philosophorum ndash como escreveria Ficino em sua carta a Cosimo dersquo Medici59

ldquoHermes por primeiro foi chamado teoacutelogo [primus igitur theologiae apellatus est

autor] o seguiu como segundo teoacutelogo Orfeu depois Aglaofemo Pitaacutegoras e

56 A passagem eacute citada e traduzida por S GENTILE Sulle prime traduzioni dal greco di Marsilio Ficino in

ldquoRinascimentordquo nr 30 1990 pp 64-65 apud CORAZZOL opcit p20 57 Para o influxo do Hermetismo sobre os Humanistas leia-se Paul Oskar KRISTELLER El pensamiento

renacentista y sus fuentes 1982 pp 206-219 58 Brian COPENHAVER Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the

Renaissance in Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe 1988 pp 79-110

59 KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996

27

Filolau mestre de nosso divino Platatildeordquo60 Plethon havia antecedido Ficino em sua

Prisca Theologia iniciando seu elenco com Zoroastro Certamente o influxo da

concepccedilatildeo intuiacuteda pelo mestre bizantino faria efeito sobre Ficino visto que em seu

ldquoproecircmiordquo agrave traduccedilatildeo das Eneacuteadas plotinianas de 1492 Hermes e Zoroastro seriam

colocados juntos em primeiro lugar como iniciadores da pia philosophia61

Nos anos proacuteximos agrave composiccedilatildeo do De Vita Ficino volta-se cada vez mais

para a traduccedilatildeo de obras de maior cunho esoteacuterico como eacute o caso do De Mysteriis

atribuiacutedo a Jacircmblico e do texto hieraacutetico de Proclo De sacrificio et Magia62 As

concepccedilotildees acerca da existecircncia de uma cadeia formada por antigos ldquoteoacutelogosrdquo a

abertura ao Platonismo estimulada pelos mestres bizantinos as repercussotildees do

misticismo hebraico as traduccedilotildees de Ficino as polecircmicas acerca da Astrologia e da

Magia que perpassam o seacuteculo satildeo todas caracteriacutesticas que se aliam para compor

um ldquoesprit du siegraveclerdquo abrindo espaccedilo para teologias estrangeiras que natildeo poderiam

deixar de influir na composiccedilatildeo do pensamento de Pico della Mirandola Resta

observar que a paulatina mudanccedila de consciecircncia trazida pela renovatio do

Quatrocentos deve-se em grande parte aos pressupostos metafiacutesicos trazidos pela

redescoberta de antigas doutrinas que fundamentaram muitos dos postulados

filosoacuteficos e teoloacutegicos da eacutepoca

60 Marsilio FICINO Proacutelogo ao Pimander (Opera Omnia Kristeller-Sancipriano (org) 1962 vol II p1836)

Para um estudo completo acerca da Prisca Theologia ficiniana leia-se DPWALKER Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958

61 Marsilio FICINO Opera Omnia opcit vol II p1537 ldquoFactum est ut pia quaedam philosophia quondam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consona nutriretur deinde apud Traces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et Italos tandem vero a divo Platone consummaretur Athenisrdquo

62 GARIN 2006 p68

28

CAPIacuteTULO II

GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Giovanni Pico foi um ser fascinante Mas natildeo feliz Seus mais intensos

projetos foram malogrados Todavia foi aclamado pelos criacuteticos como um dos mais

notaacuteveis representantes da Filosofia Renascentista por seus contemporacircneos como

o mais saacutebio filoacutesofo de sua eacutepoca1 Fruto de seu seacuteculo ou quem sabe de uma

personalidade marcada por contrastes seu pensamento natildeo estaacute livre de

contradiccedilotildees A mais visiacutevel que extravasa para a sua inteira obra encontra-se na

dicotomia entre feacute e ratio ou entre o piedoso servo da Igreja e o filoacutesofo que se liberta

de todo o dogma para investigar os mais diversos caminhos2 Tais contrastes ao se

aliarem a um forte carisma agrave fama de gecircnio multifacetado3 e a um conjunto de

circunstacircncias extraordinaacuterias ndash tais como uma vida marcada pela trageacutedia e a morte

prematura aos 31 anos ndash contribuiacuteram para criar uma atmosfera de encanto em

torno de seu nome a ponto de a cerca de trecircs deacutecadas de sua morte ainda ser

chamado de ldquohomem quase divinordquo por Maquiavel4

Enaltecimentos natildeo lhe faltaram A despeito dos elementos contrastantes em

sua obra ndash ou justamente por causa deles ndash seu legado pode ser considerado como a

siacutentese que agrega algumas das investigaccedilotildees mais marcantes de sua eacutepoca (ldquoas

causas das coisas os processos da natureza a razatildeo do universordquo)5 o que fez com que

ganhasse o interesse de famosos intelectuais europeus ao longo dos seacuteculos e

recebesse elogios de pensadores tatildeo diversos quanto Erasmo de Rotterdam Pierre

Gassendi Kepler e Voltaire6 O apreccedilo de Thomas More pela obra piquiana fez com

1 Giovanni Pico foi considerado ainda o mais jovem nobre e belo filoacutesofo de seu tempo O escolaacutestico Angelo

Poliziano se referia ao amigo em suas cartas como o ldquodivino Picordquo (sacer Picus) a ldquofecircnixrdquo (phoenix) o ldquosemideusrdquo (heros) a ldquoluz de todo o aprendizadordquo (lux omnium doctrinarum) e ldquoaquele que eacute bonito como ningueacutem e mais eminente em todos os ramos do aprendizadordquo (quo nec pulchrior alter mortalium nec in omnibus arbitror doctrinis excellentior) Para essa e outras passagens veja-se POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006 1 36-37 118-19 134-35 193 Acerca da beleza do conde avultam as descriccedilotildees ldquoEra cosigrave bello colle chiome doro svolazzanti sul volto radioso quasi novello Adone come ce lo dipinge il Ramusio [Girolamo Ramusio] in un carme latinordquo (FLAMINI Girolamo Ramusio in Atti e Memorie di R Acc di Padova 1899-1900 vol XVI pp 11-37 apud Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p9) Ver tambeacutem Joseacute Vitorino de PINA MARTINS Jean Pic de la Mirandole - Un portrait inconnu de lrsquohumanisme 1976

2 Como acentuou Newton BIGNOTTO Pico ldquofoi prisioneiro das duacutevidas que assaltavam os que se dispunham a lidar com novas ideias e continuar a viver no interior da feacute cristatilderdquo (Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 p147)

3 Tornou-se proverbial a prodigiosa memoacuteria de Pico Detinha na mente numerosas obras que o faziam ter uma habilidade enciclopeacutedica de oratoacuteria Sua capacidade de retenccedilatildeo era tal que podia recitar a inteira Divina Commedia de traacutes para frente iniciando do uacuteltimo verso ndash podendo fazer isso com qualquer poema que acabasse de ler (Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

4 Nicolau MAQUIAVEL Histoacuteria de Florenccedila livro VIII 2007 p557 Tal obra foi escrita entre 1520 e 1527 portanto nos uacuteltimos anos da vida de Maquiavel

5 PICO De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno et scritti vari 1942 p130 ldquoQuasi rerum causas naturae vias universi rationem []rdquo

6 Veja-se respectivamente Marc LAUREYS The Reception of Giovanni Pico in the Low Countries in Gian Carlo GARFAGNINI Giovanni Pico della Mirandola Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte (1494ndash1994) 1997 p629 Brian VICKERS Critical Reactions to the Occult Sciences during the Renaissance in The Scientific Enterprise - The Bar-Hillel Colloquium Studies in History Philosophy

29

que a difundisse ao puacuteblico inglecircs em larga escala seja atraveacutes das traduccedilotildees das

cartas e pequenos textos de Pico seja por sua livre traduccedilatildeo do livro Vita de

Gianfrancesco Pico que constitui a primeira biografia impressa em inglecircs7 Em

tempos contemporacircneos foi alccedilado ao tiacutetulo de ldquoFecircnix dos Engenhosrdquo por Giovanni

Semprini ldquoAlma do Renascimento italianordquo por Eugenio Garin e ldquoAurora

inacabadardquo por Henri de Lubac8

A principal marca de Pico foi natildeo se ter entregue inteiramente a nenhuma

corrente de pensamento fosse filosoacutefica ou teoloacutegica Com isso suas ideias o

colocaram em constante linha de fogo cruzado natildeo lhe permitindo pertencer de

forma plena a nenhum ciacuterculo Nem mesmo as vestes de sua cepa aristocraacutetica foram

vestidas de forma confortaacutevel seu entusiasmo por ideias novas a paixatildeo pela

investigaccedilatildeo e a rapidez febril com as quais expunha suas opiniotildees afastavam-no da

prudecircncia tiacutepica de um bom cortesatildeo9 ademais a escolha de uma vida filosoacutefica natildeo

fazia parte do repertoacuterio da nobreza no seacuteculo XV cujo caminho usual passava pelo

clero ou pela corte A resposta a Andrea Corneo que o exortava a abraccedilar esta uacuteltima

indica a verdadeira propensatildeo de Pico

Me escrevestes lsquoaproxima-se o tempo em que deveraacutes colocar-

te a serviccedilo de algum dos grandes [priacutencipes] da Itaacuteliarsquo Parece-

me que ignoras a opiniatildeo que tecircm de si os amantes da Filosofia

Esses de acordo com Horaacutecio se consideram reis natildeo sabem

servir e adequar-se aos costumes de outros vivem consigo

mesmos contentes da proacutepria serenidade se bastam e natildeo

precisam de nada que esteja fora de si mesmos [] E eu

partilhando dessa opiniatildeo anteponho a minha pequena cela [no

claustro] os meus estudos os prazeres que me propiciam os

meus livros agraves salas reais aos negoacutecios puacuteblicos aos favores da

corte10

Seus pensamentos e escritos determinaram os acontecimentos de sua

trajetoacuteria Veremos que as accedilotildees sofridas e o fato de sua obra mais grandiosa natildeo ter

tido a chance de ser concluiacuteda foram consequecircncias dramaticamente ligadas agrave

originalidade de suas premissas

and Sociology of Science ed Edna Ullmann-Margalit Dordrecht 1992 nr 4 p 75 Sheila RABIN Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic in Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750-70 Para as avaliaccedilotildees de Voltaire sobre Pico veja-se Henri De LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 p 13

7 Essa e outras referecircncias podem ser encontradas na ldquoIntroduccedilatildeordquo de Michael DOUGHERTY agrave sua obra Pico della Mirandola New Essays 2008 pp 1-2

8 As criacuteticas embora de menor vulto tambeacutem natildeo faltaram Dentre os comentaristas Lynn THORNDIKE eacute o que faz uma das mais duras avaliaccedilotildees da obra de Pico considerando o autor ldquoimaturordquo (A History of magic and a experimental science vol 4 1934 p485)

9 Conforme relata o sobrinho Gianfrancesco agrave velocidade intelectual de compreensatildeo e de apreensatildeo correspondia em Pico uma escrita raacutepida nervosa algumas vezes difiacutecil de entender Escrevia em toda a parte em folhas soltas tanto que apoacutes sua morte foi bastante trabalhoso para o sobrinho pocircr ordem naqueles escritos muitos deles incompletos (Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p97)

10 PICO Carta de 15 Outubro 1486 in Opera omnia ediccedilatildeo Basileia 1557 (apud Albano BIONDI Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pVIII) NOTA As traduccedilotildees para o portuguecircs das citaccedilotildees presentes neste capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade

30

1 A Vida

A primeira biografia de Giovanni Pico escrita pelo sobrinho-escritor

Gianfrancesco11 conta que durante seu nascimento foi visto um brilhante ciacuterculo

iacutegneo pairando sobre a cama da matildee parturiente ali permanecendo por algum

tempo O fato ocorreu em 24 de Fevereiro de 1463 no castelo do condado de

Mirandola12 A imagem foi prontamente associada agrave perfeiccedilatildeo do pensamento de

Pico que ldquocomo o fogo estaacute sempre voltado agraves coisas celestesrdquo Essas palavras

completam a narrativa incomum publicada apoacutes a morte do biografado o autor

sabia que a descriccedilatildeo soacute seria bem aceita pelo puacuteblico se o personagem central fosse

detentor de uma reputaccedilatildeo que permitisse tal associaccedilatildeo13

Filho temporatildeo Giovanni cresce sob estrito zecirclo da matildee donna Giulia dei

Boiardo no coraccedilatildeo de uma nobre famiacutelia em meio a conflitos familiares (que

levariam agrave morte anos mais tarde do sobrinho-bioacutegrafo)14 Aos catorze anos eacute

encaminhado para estudar Direito Canocircnico em Bolonha seguindo o costume que o

destinava agrave vida eclesiaacutestica A cidade conhecida por transmitir as ideias humanistas

da Itaacutelia para a Europa foi responsaacutevel por despertar a atraccedilatildeo do jovem pela ordem

dominicana aleacutem do gosto pelas preacutedicas dos frades envolvidos com assuntos

acadecircmicos Apoacutes dois anos da mudanccedila ocorre o falecimento da matildee e o rapaz

encontrando-se oacuterfatildeo vecirc-se obrigado a tomar suas decisotildees dali em frente sozinho15

11 A primeira biografia sobre Pico foi escrita por seu sobrinho Gianfrancesco Pico della Mirandola e publicada

na primeira ediccedilatildeo da Opera Omnia em Bolonha em 20 de marccedilo de 1496 Com base em sua obra e ainda com um conjunto de 120 cartas sobreviventes eacute possiacutevel estabelecer uma biografia de Pico bastante detalhada A Opera Omnia foi traduzida para o inglecircs posteriormente por Sir Thomas More e impressa em Londres em 1510 (Thomas MORE Giovanni Pico della Mirandola His Life by His Nephew Giovanni Francesco Pico ed J M Rigg- D Nutt London l89o) A moderna ediccedilatildeo chamada apenas Vita denomina-se Ioannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consumatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta (ed B Andreolli Aedes Muratoriana Modena 1994) Vejam-se mais dados biograacuteficos em E GARIN Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 L VALCKE Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique 2005 D BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola cenni e documenti inediti in Rivista contemporanea 1859 pp7-56 H de LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 W CRAVEN Pico della Mirandola Bologna 1984 J JACOBELLI Pico della Mirandola 1986 G SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola-La Fenice degli Ingegni 1921

12 Daiacute ser chamado Giovanni Pico dos condes de Mirandola e Concoacuterdia 13 A reflexatildeo estaacute em BROCCHIERI opcit pp5-8 Natildeo se deve julgar precipitadamente o sobrinho-bioacutegrafo

por um suposto enaltecimento do tio Seus escritos mostram que natildeo haacute uma exaltaccedilatildeo mas antes o contraacuterio em muitos momentos Gianfrancesco eacute bastante severo e criacutetico acerca do pensamento de Pico Sobre as circunstacircncias do nascimento veja-se Felice CERETTI Giulia Boiardo in Atti e Memorie 1881 vol 4 part 3 p 213 Jacob BURCKARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902 pp 142 e 232 Acerca das relaccedilotildees com a matildee ldquoDonna Giuliardquo veja-se SEMPRINI op cit pp1-3

14 Conforme historiadores durante o periacuteodo de Senhorio da famiacutelia Pico que durou quatro seacuteculos (ateacute 1710) os habitantes do condado gozaram de prosperidade econocircmica e estabilidade legislativa e poliacutetica aleacutem de certa liberdade religiosa que levou ao florescimento de novas ordens como a dos ldquoMendicantirdquo Da colaboraccedilatildeo com os Mendicantes nasceu em Mirandola o ldquoDesco dei Poverirdquo e o Monte do Pietagrave aleacutem do mosteiro feminino das Clarissas (cf BROCCHIERI opcit p4) Apoacutes a morte do pai que ocorre quando Giovanni era crianccedila seus irmatildeos Galeotto e Anton Maria viveram em perene discoacuterdia em razatildeo da posse do feudo A luta familiar terminaria por extinguir o sobrinho de Giovanni Gianfrancesco assassinado em 1533 por um de seus parentes (cf Felice CERETTI Biografie pichensi 1909 pp91-127)

15 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 pp 21-23 SEMPRINI opcit pp3-4 BROCCHIERI opcit pp4-5 GARIN 2011 pp3-5 Vejam-se dados biograacuteficos em ldquoProgetto Picordquo convecircnio entre a Universitagrave degli Studi di Bologna e a Brown University

31

Assim aos dezesseis anos abandonando a futura carreira de jurista parte para

Ferrara cidade das mais pujantes e populosas da Itaacutelia prestigiada por seu

endereccedilamento ao estudo das Humanidades Ferrara passaria a ser o local em que

Giovanni daria seus primeiros passos em direccedilatildeo agraves disciplinas filosoacuteficas e para onde

voltaria vaacuterias vezes em seus uacuteltimos anos de vida16 Na nova cidade passa a

frequentar os ciacuterculos de discussotildees acadecircmicas chamando a atenccedilatildeo por ser o

integrante mais jovem Entre as principais pessoas que vem a ter conhecimento estatildeo

Battista Guarino mestre que lhe apresenta um tipo de conhecimento laico ateacute entatildeo

desconhecido e o frei Girolamo Savonarola encontro que mais tarde seraacute

determinante em sua vida17 Apoacutes dois anos de intenso aprendizado o nuacutecleo de

Ferrara antes repleto de novidades passa a mostrar-se limitado Pico cada vez mais

interessado em escarafunchar conventos e bibliotecas atraacutes de novos volumes18

sente-se atraiacutedo por um ambiente mais renomado e vivo de disputas acadecircmicas19

Paacutedua

Em 1480 agora com dezoito anos Pico chega a Paacutedua Na mais famosa

universidade italiana da eacutepoca onde permaneceraacute por dois anos estudando o pupilo

abraccedila definitivamente a Teologia e a Filosofia20 A formaccedilatildeo aristoteacutelica iniciada em

Ferrara seria mantida uma vez que a Escola de Paacutedua seguia uma linha de tradiccedilatildeo

notadamente averroiacutesta O ambiente de estudos padovanos o satisfaz amplamente

como demonstra uma carta escrita ao novo amigo Ermolao Barbaro21 Uma das

razotildees encontrava-se no fato de ter contato com pessoas que viriam a ter significado

fundamental em seu desenvolvimento e em sua vida Aleacutem de Barbaro tornado

doutor e titular da caacutetedra de Filosofia Moral aos vinte e trecircs anos com o qual a

identificaccedilatildeo foi imediata Pico conheceu Nicoletto Vernia original professor que o

fez conhecer a concepccedilatildeo averroiacutesta de unidade do intelecto pela primeira vez ndash tema

que teria forte impacto sobre sua formaccedilatildeo e ao qual voltaria tempos depois22 O

mestre aristoteacutelico foi de certa forma tambeacutem o primeiro a influenciaacute-lo sobre a

harmonia de pensamento entre Platatildeo e Aristoacuteteles projeto que seria perseguido por

Pico durante os proacuteximos anos de sua vida Ainda em Paacutedua Pico conhece o coetacircneo

Elia del Medigo23 jovem brilhante que como ele teraacute uma morte prematura O

cretense douto hebreu e precoce tradutor de Averroacuteis e de outros textos aacuterabes

16 GARIN ibid pp 3-8 SEMPRINI opcit p5 17 SIRGADO GANHO Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate 2001 pp 15-16 SEMPRINI opcit p4

GARIN 2011 p8 18 SEMPRINI ibid p6 19 As chamadas ldquodisputasrdquo eram debates de alto niacutevel que ocorriam nos ambientes acadecircmicos tendo o caraacuteter

do que hoje conhecemos por simpoacutesio ou congresso 20 BROCCHIERI op cit p9 DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze 1902 p752

GARIN 2011 p10 Sobre a importacircncia de Paacutedua como centro averroiacutesta veja-se BURCKHARDT op cit pp 242-244 SEMPRINI op cit p12

21 Na carta ao filoacutesofo aristoteacutelico Ermolao Barbaro lecirc-se que de todos os ldquoginaacutesiosrdquo da Itaacutelia aquele de Paacutedua era o que mais o agradava (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France 1879 p 9) Acerca das cartas de Pico deve-se frisar que graccedilas ao primoroso trabalho de recolhimento das epiacutestolas organizado por Leacuteon Dorez tornou-se possiacutevel acompanhar muitos detalhes da vida de Giovanni Pico

22 SEMPRINI op cit pp11-12 A concepccedilatildeo de unidade do intelecto eacute uma das marcas do pensamento do filoacutesofo aacuterabe Averroacuteis tradutor das obras de Aristoacuteteles no seacuteculo XII O tema seraacute retomado no proacuteximo item

23 Elia del Medigo mestre de filosofia oriental falece com apenas trinta e trecircs anos Maiores detalhes podem ser vistos em RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo Padova 1891 Para as circunstacircncias do encontro com Pico veja-se Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9

32

imediatamente aprecia a aguda inteligecircncia daquele jovem ldquoapesarrdquo do visiacutevel gosto

por Platatildeo que nele comeccedilava a despontar ndash coisa mal vista por um aristoteacutelico

ortodoxo como Elia Tal encontro se mostraraacute um dos principais elementos

responsaacuteveis pela aproximaccedilatildeo do Mirandolano ao pensamento aacuterabe-hebraico ndash que

o levaraacute por vias indiretas ao estudo da Cabala24

Pouco antes de completar vinte anos talvez em razatildeo da receacutem-editada obra

de Marsilio Ficino a Theologia Platonica de immortalitate animorum observa-se

uma mudanccedila de direcionamento doutrinaacuterio Pico comeccedila a voltar-se fortemente ao

Platonismo Uma carta de final de lsquo82 testemunha o pedido feito a Ficino para que

aceite ser seu guia no novo caminho de estudos atraveacutes do qual pretende integrar

Aristoacuteteles e Platatildeo25 Coincidecircncia ou natildeo nessa mesma eacutepoca seu amigo Angelo

Poliziano26 o convida a participar do movimento literaacuterio florentino Ademais chega-

lhe a notiacutecia de que uma forte tradiccedilatildeo de estudos hebraicos propaga-se em Florenccedila

Essas podem ter sido as principais motivaccedilotildees que o fizeram deixar o centro

padovano e partir para a cidade do Arno27 Assim em 1484 receacutem liberto de

preocupaccedilotildees de ordem financeira28 Pico muda-se para a urbe entatildeo regida por

Lorenzo dersquo Medici patrono de personalidades como Michelangelo e mecenas do

ciacuterculo platocircnico ndash que dava agora as boas-vindas a seu mais novo ingressante

Em pouco tempo comeccedilam a ocorrer encontros de cristatildeos e hebreus na casa

do mais novo morador da cidade Um ciacuterculo de orientalistas reuacutene-se com

frequecircncia para discutir o Aristotelismo29 Natildeo raro podia ser encontrado Elia del

Medigo ndash o jovem mestre que seguindo os passos do aluno foi ter em Florenccedila ndash

sustentando debates filosoacuteficos e religiosos com outro hebraiacutesta o entatildeo convertido

Flavio Mitridate ndash que mais adiante viria a ser o proacuteximo professor do Conde30

24 Para Elia del Medigo assim como para outros acadecircmicos padovanos Aristoacuteteles representava ldquoo pai de

todos os filoacutesofosrdquo e Averroacuteis era ldquoo seu mais fiel comentadorrdquo Assim que a atitude de Del Medigo em relaccedilatildeo agrave Cabala natildeo seria tatildeo positiva quanto a de Pico ou como seraacute visto a de seu outro mestre hebreu Yohanan Alemanno justamente em razatildeo do forte acento neoplatocircnico encontrado naqueles textos Cf Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p284 ss BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11

25 Para essa e outras cartas veja-se DOREZ-THUASNE opcit p 10 Para a chegada em Florenccedila DELLA TORRE opcit p 747 SEMPRINI opcit pp16-17 GARIN 2011 p15

26 Entre os Humanistas era comum a substituiccedilatildeo do proacuteprio nome por outros Acircngelo Ambrogini nascido em Montepulciano era conhecido como Poliziano Tinha cerca de dez anos a mais que Pico e morreu no mesmo ano que ele 1494 Poliziano aos trinta anos era um filoacutelogo rigoroso preceptor dos filhos de Lorenzo dersquo Medici e conhecido em toda a Europa por manter em alta o nome do Studium florentino com suas liccedilotildees de literatura grega e latina aleacutem de defensor incansaacutevel de Pico Cf SEMPRINI opcit p18 SIRGADO GANHO opcit p17 BROCCHIERI opcit pp31-33

27 O interesse pelo ciacuterculo hebraico eacute hipoacutetese alccedilada por DOREZ-THUASNE especialmente em razatildeo da repercussatildeo dos estudos hebraicos empreendidos pelo humanista Gianozzo Manetti (Pic de la Mirandole en France 1485-1488 Paris 1897 p13)

28 Em 1483 os irmatildeos de Pico chegam a um acordo em seu conflito testamentaacuterio e fazendo uma reparticcedilatildeo deixam um terccedilo das rendas para Pico Seu irmatildeo mais velho passaria a administrar seu patrimocircnio Assim livre de quaisquer preocupaccedilotildees de ordem praacutetica Pico pode continuar sua vida de estudos Cf SEMPRINI opcit pp14-15 GARIN 2011 p15 ldquoMemorie storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandolardquo tomo unico Mirandola 1874 II

29 GARIN 2011 p23 30 Flavio Mitridate era o nome do judeu siciliano convertido Guglielmo Raimondo di Moncada Trata-se de

figura enigmaacutetica tradutor de textos aacuterabes e hebraicos e favorito de Sexto IV Pico em suas cartas o apresenta como um mestre intransigente em relaccedilatildeo agrave natildeo-propagaccedilatildeo de seus ensinamentos tidos como misteacuterios sagrados Detentor de um caraacuteter irasciacutevel coleacuterico arrogante e impaciente inclusive com seus alunos de idiomas (os quais ele pretendia que passassem imediatamente agrave leitura dos textos antigos sem preacutevios estudos) desfrutava

33

Graccedilas em boa parte agrave influecircncia e ao estiacutemulo daqueles encontros a cidade de

Florenccedila se transforma sobretudo de lsquo86 em diante e assim permanecendo por

alguns anos em um local de relevantes contatos entre duas culturas em virtude das

eruditas discussotildees que corroboravam a formaccedilatildeo de intelectuais cristatildeos e hebreus

Dentre eles Yohanan Alemanno que tatildeo logo chega a Florenccedila pede para ser

apresentado ao entatildeo renomado conde de Mirandola31 ndash com o qual dividiraacute mais

tarde o entusiasmo pelos misteacuterios da Cabala Sob tal atmosfera natildeo eacute difiacutecil

entrever que a casa florentina de Pico transforma-se em um ambiente concorrido por

abrigar debates de vaacuterias vertentes ali podiam ser encontrados filoacutesofos de vaacuterias

correntes ndash aacuterabo-hebraicas aristoteacutelicas platocircnicas ndash poetas literatos estudiosos

de Petrarca e de Dante32

Durante o periacuteodo florentino Pico dedica-se ao aprendizado de idiomas como

o hebraico o caldeu e o aacuterabe A reconciliaccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Platatildeo ndash cujas

afinidades haviam sido apontadas por Nicoletto Vernia ndash toma ares cada vez mais

concretos levando-o entre lsquo85 e lsquo86 a transferir-se para o nuacutecleo de Paris principal

centro de teologia escolaacutestica onde teria agrave disposiccedilatildeo uma quantidade maior de

material medieval para ampliar seus estudos O ambiente dos teoacutelogos da Sorbonne

acolhe fortemente suas ideias aqueles passam a consideraacute-lo um dos seus ndash a ponto

de defendecirc-lo diante do perigo em futuro natildeo muito distante33 De volta a Florenccedila

imerge nos textos neoplatocircnicos de Proclo e investiga os textos hebraicos contando

com a ajuda de Elia del Medigo e de seu mais recente mestre Flavio Mitridate34

Debruccedila-se sobre os misteacuterios platocircnicos hermeacuteticos e caldeus dos quais o amigo

Ficino era tenaz estudioso Em certo ponto convence-se de que suas reflexotildees jaacute

estatildeo maduras o suficiente para serem colocadas agrave prova Passa a preparar entatildeo

com certo iacutempeto vaacuterios textos pertinentes a um debate puacuteblico organizados de

forma a alcanccedilar grande ressonacircncia O que natildeo estava previsto eacute que a partir da

primavera do mesmo ano importantes acontecimentos alterariam o rumo de sua

vida de forma definitiva

de uma vida um tanto licenciosa de acordo com seus bioacutegrafos Cf CASSUTO opcit 1918 BROCCHIERI opcit pp 15-16

31 Uma das comprovaccedilotildees do renome de Pico nos ciacuterculos intelectuais encontra-se no fato que ao completar vinte e um anos eacute escrita uma comeacutedia em sua homenagem por Tommaso Mezzo (BROCCHIERI op cit pp 16 47) Sobre o encontro de Pico e Alemanno veja-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze 1918 p305 Alberto AMBESI Giovanni Pico della Mirandola-Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera 1996 p I Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 53

32 GARIN 2011 p23 Dante acolhido pelo Humanismo florentino do final do Quattrocento era finalmente perdoado por ter escrito em vulgar toscano Nas uacuteltimas deacutecadas daquele seacuteculo seus escritos eram retomados por muitos literatos e filoacutesofos de Florenccedila graccedilas ao impulso dado por Leonardo Bruni e sua obra Vita di Alighieri publicada em 1436 Dante que havia sido um aristoteacutelico estudioso de Tomaacutes transformava-se agora aos olhos dos humanistas em ldquoum platocircnico puro e profundo um delesrdquo (cf BROCCHIERI 2011 p51) Pico tambeacutem nutria profunda simpatia por Dante ldquoalma rude aacutespera mas atormentada por problemas mais amplosrdquo Seu vigor algumas vezes horridus asper strigosus sempre trazia uma ldquonutriccedilatildeo vitalrdquo (apud GARIN ibid p21)

33 GARIN 2011 p25 BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 p 7 34 BIONDI ldquoIntroduzionerdquo in Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995 pp X-XI

34

1486 o iniacutecio dos revezes

O ano de 1486 eacute crucial para Pico que se encontra com vinte e trecircs anos Nem

soacute de livros aulas e projetos extraordinaacuterios vive o jovem No mecircs de maio daquele

ano pouco depois de regressar de Paris Pico vive uma desafortunada e breviacutessima

aventura amorosa que tem Arezzo como pano de fundo Em rota para Roma para

onde se dirigia com o intuito de preparar sua proacutexima obra apaixona-se pela jovem e

bela ndash e casada com um Medici ndash Margherita Planeja um rapto que natildeo apenas

termina frustrado como expotildee de forma ampla os dois amantes impedindo-o de

prosseguir com a viagem35 O escacircndalo lhe traz aleacutem de arrependimento o ingresso

em um duradouro periacuteodo de austeridade com a consequente retomada dos estudos

Conforme juiacutezo de Garin ldquosua dor se transmuta em um iacutempeto de pesquisa capaz de

trazer renovadas forccedilasrdquo com as quais enfrentaria os obstaacuteculos que viriam no ano

sucessivo Acresce o historiador que aquele ldquoardor multiforme insaciaacutevel de gloacuteria

de amor de saber e no final de renuacutencia e miacutesticardquo formariam o ldquosubstrato

psicoloacutegico da celebraccedilatildeo piquiana da dignidade do homemrdquo36

Recolhido assim em seu retiro de Fratta proviacutencia de Perugia em meio aos

meses de veratildeo de rsquo86 o escritor comeccedila a elaborar aquele que seria seu projeto mais

audacioso Em complexa empreitada potildee-se a redigir inuacutemeras teses acerca de

muacuteltiplos temas passando da escolaacutestica ao averroiacutesmo das tradiccedilotildees hermeacuteticas e

persas agraves filosofias aacuterabe e judaica chegando agraves ciecircncias ocultas Tambeacutem nesse

periacuteodo esboccedila um elogio agrave concoacuterdia entre os vaacuterios sistemas filosoacuteficos parte do

qual viraacute a compor a segunda parte da De Hominis Dignitate A renovada motivaccedilatildeo

transparece em carta escrita a um amigo proacuteximo ldquoem breve saberaacutes quanto seu

amigo Pico colheu de vantagens da contemplaccedilatildeo durante esses meses de vida

obscura e solitaacuteriardquo37 Tendo por propoacutesito inicial organizar em Roma no mesmo

ano um convecircnio de intelectuais ndash a chamada Disputa Romana ndash para debater suas

proposiccedilotildees com doutos da Filosofia e da Teologia publica em 7 de dezembro de

1486 as Conclusiones Nongentae juntamente com o convite aos interessados no

debate O opuacutesculo fixado em vaacuterias universidades pode ter incomodado a alguns

levando-se em conta a idade do autor38

Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdia disputaraacute

publicamente acerca das seguintes novecentas proposiccedilotildees

dialeacuteticas morais fiacutesicas matemaacuteticas metafiacutesicas teoloacutegicas

maacutegicas e cabaliacutesticas sejam proacuteprias que dos sapientes

caldeus aacuterabes hebreus gregos egiacutepcios e latinos []39

35 Referente ao estado de acircnimo de Pico apoacutes o rapto de Margherita e os reflexos do episoacutedio sobre algumas

passagens da obra Commento sopra una Canzone drsquoamore composta da Girolamo Benivieni veja-se Pier Cesare BORI Pluralitagrave delle vie - Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola 2000 pp11-21 Para maiores detalhes sobre o episoacutedio veja-se DELLA TORRE opcit pp758-59 SEMPRINI opcit pp56 ss BROCCHIERI opcit pp55-56 CASSUTO opcit p289

36 GARIN 2011 p26 37 BROCCHIERI opcit p64 38 Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 np47 39 BIONDI opcit pXII Como esclarece o tradutor italiano das Conclusiones natildeo se tem informaccedilotildees sobre a

distribuiccedilatildeo do opuacutesculo na Itaacutelia Fora da Itaacutelia o material foi reproduzido em Ingolstadt no ano sucessivo 1487

35

A possibilidade da discussatildeo agita os ciacuterculos teoloacutegicos de Roma devido natildeo

apenas agrave presenccedila em meio ao opuacutesculo de alguns nomes ldquohereacuteticosrdquo como tambeacutem

de palavras suspeitosas como Magia Astrologia e Cabalismo Roma achava que ali

disfarccedilado sob o verniz do humanismo florentino encontrava-se o sequaz praticante

ldquodas escolas de Paacutedua e de Paris o disciacutepulo de Averroacuteis de Alexandre de Afrodiacutesia e

dos hebreusrdquo40 Assim a intenccedilatildeo original de travar uma contenda ldquosobre todas as

coisas conhecidasrdquo (omni scibili) termina por despertar opositores inclusive entre os

amigos41 tanto em razatildeo do projeto ser visto como fruto de orgulho pretencioso

quanto pela alegaccedilatildeo da presenccedila de supostas heresias naqueles conteuacutedos E as

coacutepias publicadas acabam gerando consequecircncias desdobradas em um crescendo de

gravidade cada vez maior

De iniacutecio o papa Inocecircncio VIII manda imediatamente suspender o debate das

Conclusiones e dois meses apoacutes a publicaccedilatildeo do opuacutesculo constitui uma comissatildeo

para examinaacute-lo sob a presidecircncia de Giovanni Monissart Em seu breve deixava

claro que ldquoalgumas dessas teses desviam do caminho da ortodoxia da feacute outras satildeo

obscuras confusas e intrincadas e outras tem ar de heresiardquo de forma que as

mesmas deveriam ser confiadas ao reverendo senhor Giovanni bispo de Tournai que

teria ldquoa tarefa de revecirc-las discuti-las e avaliaacute-lasrdquo42 Em um segundo momento Pico eacute

convidado a dar esclarecimentos acerca de algumas Teses nessa ocasiatildeo reafirma

vigorosamente seus pontos de vista acerca do conteuacutedo relacionado agrave Magia e agrave

Cabala aleacutem de acusar seus juiacutezes de padecerem de ignoracircncia Poucos dias depois o

trabalho da comissatildeo se conclui com a condenaccedilatildeo daquelas teses O acusado

convocado para apresentar-se novamente e escutar o veredicto final natildeo comparece

Em sua ausecircncia a comissatildeo decide proceder ao julgamento sem sua presenccedila

Enquanto isso rendendo-se ao fato de que as Teses natildeo seriam debatidas nem em

Roma nem em qualquer outro lugar cristatildeo Pico decide redigir a Apologia43

composta de treze disputationes que comporiam sua defesa Mesmo sem

conhecimento do novo texto Inocecircncio VIII autoriza o tribunal em 6 de Junho a

punir o culpado por heresia conforme as leis canocircnicas fato que o leva em 31 de

e um exemplar estaacute descrito no British Museum - General Catalogue of Printed Books vol 189 London 1963 col612 (ibid pXIII) ldquoDe adscriptis numero noningentis Dialecticis Moralibus Physicis Mathematicis Metaphysicis Theologicis Magicis Cabalisticis cum suis tum sapientum chaldeorum arabum hebreorum graecorum aegyptorum latinorumque placitis disputabit publice Johannes Picus Mirandolanus Concordiae Comes etc []rdquo

40 GARIN 2011 p32 41 Em carta a Roberto Salviati o veneziano Ermolao Barbaro escrevia que ldquosem duacutevida o nosso Pico obteraacute dessa

distinta iniciativa uma gloacuteria imortal dando aos seus amigos uma incomparaacutevel felicidaderdquo Por outro lado com certa maliacutecia comparava seu amigo Pico ao sofista Goacutergias dando a entender que tal promoccedilatildeo de discussotildees puacuteblicas visava apenas ao enaltecimento da vaidade do autor

42 A iacutentegra do breve papal pode ser vista em DOREZ-THUASNE op cit pp114-115 Os verbais das reuniotildees ocorridas para o questionamento das Teses foram descobertos por Dorez em um manuscrito da Biblioteca do Seminaacuterio arcebispal de Malines e publicados na obra compilada em parceria com Thuasne (Pic de la Mirandole en France 1897)

43 A primeira ediccedilatildeo da Apologia eacute datada 31 de Maio de 1487 (ldquoDie ultima Madij Anno Domini MCCCCLXXXVIIrdquo) A data correta de publicaccedilatildeo eacute posterior mas para natildeo parecer uma afronta agrave condenaccedilatildeo papal ela eacute retrodatada para antes da condenaccedilatildeo Na obra dedicada a Lorenzo dersquo Medici Pico retoma temas presentes na Oratio

36

Julho a fazer ato de submissatildeo agraves decisotildees dos comissaacuterios pontiacutefices jurando natildeo

mais sustentar posiccedilotildees que os juiacutezes natildeo julgassem aceitaacuteveis44

A submissatildeo contudo chega tarde a repercussatildeo da Apologia explodia

justamente nesse periacuteodo fazendo chegar aos ouvidos do Papa que Pico havia feito

circular novos escritos sem esperar o veredicto final45 A obra apesar do tom doacutecil

incentivava a investigaccedilatildeo da magia natural e da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica

reafirmando ainda a liberdade de crenccedila (libertas credendi)46 Com isso sua

situaccedilatildeo torna-se praticamente irreversiacutevel Em 5 de agosto do mesmo ano Inocecircncio

VIII natildeo apenas condena todas as Conclusiones como encarrega a comissatildeo de

intervir com um novo instrumento o da Inquisiccedilatildeo com ldquoautorizaccedilatildeo para citar

interrogar e punir conforme as faculdades canocircnicasrdquo47 Em paralelo o bispo de

Tournai impotildee que quem possua uma coacutepia das Conclusiones a entregue agraves

autoridades para serem ldquoanuladas pelo fogordquo Por fim o cardeal espanhol Pedro

Garzias que mais tarde escreveria uma confutaccedilatildeo formal da Apologia de Pico

solicita a intervenccedilatildeo do temido Torquemada entatildeo agrave frente da Inquisiccedilatildeo espanhola

para resolver a questatildeo Ora Pico lia com entusiasmo os textos hebraicos escutava e

comentava os ensinamentos de seus amigos e mestres hebreus acreditava que nos

segredos da Cabala podia-se encontrar explicaccedilotildees inclusive para a verdade dos

eventos cristatildeos o homem que magnificava a sabedoria dos hebreus dificilmente

seria absolvido48

Percebendo o perigo iminente o Conde decide afastar-se da Itaacutelia refugiando-

se na Franccedila torna-se com essa atitude um herege declaradamente reincidente um

relapsus um homem caccedilado que poderia ser capturado e lanccedilado ao caacutercere49 A

proibiccedilatildeo de discutir as treze teses condenadas por sua vez lanccedila todas as demais

teses em desgraccedila jaacute que ldquoum pouco de fermento pode corromper toda a massardquo

Com essa metaacutefora Antonio Flores membro da comissatildeo que havia condenado as

treze teses pede ajuda agrave Universidade de Paris para que Pico seja capturado na

Franccedila50 Entretanto os professores daquela universidade aleacutem de toda a corte do rei

Carlos VIII compartilham da mesma simpatia pelo ldquodoutiacutessimo e desventuradordquo

italiano a ponto de ajudaacute-lo pouco tempo depois51 em janeiro de lsquo88 quando Pico eacute

44 DOREZ-THUASNE op cit p140 ldquoEu Giovanni della Mirandola tendo sob os olhos aquilo que pensam e

decidem o nosso Senhor Santiacutessimo e os senhores deputados de Sua Santidade acerca de minhas teses confesso que as teses satildeo tais e quais determinam que sejam Sua Santidade e os juiacutezes e mantenho formalmente esta opiniatildeo Natildeo sustentarei mais nenhuma posiccedilatildeo sobre essas porque Sua Santidade e os juiacutezes julgam que natildeo devam ser sustentadas E assim jurordquo Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se DOREZ-THUASNE op cit ldquoBreve 6 Giugnordquo pp144-46 SEMPRINI op cit pp87-89

45 Quando recebe a notiacutecia da Apologia o papa descobre que outros teoacutelogos externos agrave comissatildeo ldquoe pouco prudentesrdquo haviam convalidado seu conteuacutedo

46 DOREZ-THUASNE op cit p125ss Veja-se Apologia - Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (org Paolo Edoardo FORNACIARI 2010)

47 DOREZ-THUASNE op cit pp144-146 BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti Torino 1859 p47 SEMPRINI opcit p89 BIONDI opcit pp XXI-XXII

48 Lembremos que na Espanha agrave mesma eacutepoca era feita a conversatildeo forccedilada dos judeus 49 BIONDI opcit p XXXI 50 BROCCHIERI opcit p68 51 No ano anterior agrave fuga para a Franccedila durante as discussotildees teoloacutegicas acerca da condenaccedilatildeo de Pico Jean

Cordier importante acadecircmico parisiense natildeo firmara o verbal de processo de Pico Apoacutes ter escutado as explicaccedilotildees do filoacutesofo italiano chegara agrave conclusatildeo de que as treze teses incriminadas eram ldquocatoacutelicasrdquo Poucos anos depois Cordier viria a ser reitor da Sorbonne (BROCCHIERI opcit pp 69 71)

37

feito prisioneiro no castelo de Vincennes satildeo daqueles nuacutecleos franceses juntamente

com alguns italianos que se levantam protestos contra sua prisatildeo Tais pressotildees

associadas com os pedidos de Lorenzo dersquo Medici ao Papa fazem que Pico seja

libertado ndash apesar de natildeo absolvido ndash com a condiccedilatildeo de permanecer apenas em

territoacuterio florentino sob a proteccedilatildeo do Magniacutefico Ali em Florenccedila Pico permaneceraacute

pelo resto de seus dias52

Apoacutes a proibiccedilatildeo da discussatildeo das Teses e sua consequente condenaccedilatildeo Pico

atravessa um momento difiacutecil de sua vida Como infere Garin os anos seguintes

presenciaram um homem ferido e ldquodobrado sobre si mesmordquo a condenaccedilatildeo do

supremo liacuteder do Cristianismo mesmo para um espiacuterito livre era recebida naquele

seacuteculo como um acontecimento graviacutessimo53 Mais do que o perdatildeo da Igreja Pico

esperava uma reparaccedilatildeo verbal atraveacutes da qual a Igreja o aceitasse novamente como

seu filho54

De toda forma os anos sob vigilacircncia em Florenccedila foram os de maior fervor

criativo O resultado eminente daquele periacuteodo de reclusatildeo seraacute o Heptaplus

dedicado a Lorenzo e publicado no outono de lsquo89 Uacuteltimo trabalho completo de Pico

o Heptaplus conhece imediato sucesso o que alivia em parte as frustraccedilotildees que havia

sofrido55 A obra eacute entusiasticamente recebida por um nuacutemero significativo de

intelectuais sobretudo humanistas muitos escrevem para expressar sua admiraccedilatildeo

entre eles Matteo Vero Girolamo Donato Cristoforo Landino Bartolomeo Fontio e

Ermolao Barbaro56 Poreacutem aos olhos do Papa o livro apresenta-se como uma

continuaccedilatildeo das tendecircncias hereacuteticas demonstradas nas Conclusiones fazendo que a

absolviccedilatildeo se mantenha como uma esperanccedila natildeo realizada No ano seguinte eacute

publicado o breve De Ente et Uno sobre alguns pontos da proposta de acordo entre

Platatildeo e Aristoacuteteles o texto contudo natildeo eacute finalizado Pouco tempo depois eacute

publicada a uacuteltima e mais longa obra piquiana a Disputationes adversus

astrologiam divinatricem acerca da qual o autor compotildee doze dos treze livros

pretendidos e sobre cujas circunstacircncias ainda hoje pairam duacutevidas entre os

inteacuterpretes como seraacute abordado adiante

Em 18 de Junho de 1493 o Papa Alessandro IV Borgia sucessor de Inocecircncio

VIII absolve Pico da condenaccedilatildeo de 148757 O novo Pontiacutefice mostra interesse por

alguns dos assuntos que haviam concorrido para a condenaccedilatildeo das Conclusiones

como a Magia e a Astrologia ademais vecirc o jovem filoacutesofo com simpatia sentindo-se

impelido a escrever um resumo contando suas desventuras ndash texto que

52 Crofton Black eacute de opiniatildeo que a atitude papal foi uma ldquosoluccedilatildeo pragmaacutetica para uma situaccedilatildeo

potencialmente embaraccedilosardquo Pico e suas ldquodoutrinas insalubresrdquo permaneceriam afastados de Roma e ele seria confinado agrave ldquoatmosfera rarefeita de bibliotecas florentinas e ao grupo de intelectuais agrave volta de Lorenzordquo (BLACK opcit pg 8) Para toda a questatildeo da fuga em Franccedila veja-se DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France (1485-1488) 1897 pp56-101

53 GARIN 2011 p39-40 54 BROCCHIERI opcit p41 55 BLACK opcit pg 8-9 BROCCHIERI op cit p86 56 Para as referecircncias das cartas trocadas a esse respeito veja-se BLACK ibid np10 57 Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura

italiana 1895 I pp358-361

38

posteriormente seraacute publicado junto agrave ediccedilatildeo das obras piquianas em 1572 Em sua

absolviccedilatildeo descreve-o ainda como homem iluminado pela ldquoDivina Piedade e um fiel

filho da Igrejardquo58 O erudito Papa parecia entrever no Hermetismo e na Cabala

preacircmbulos significativos e prestigiosos da religiatildeo cristatilde exatamente como havia

pretendido comprovar o conde de Mirandola59

Os uacuteltimos anos e a relaccedilatildeo com Savonarola

Nos uacuteltimos anos da vida de Pico entre rsquo90 e rsquo94 desenvolve-se uma relaccedilatildeo

complexa e intensa com Girolamo Savonarola Durante os anos de estudos iniciais

em Bolonha o frade predicador chamara a atenccedilatildeo do ainda muito jovem aprendiz

ldquoem razatildeo de suas maneiras simples e rudes os olhos viviacutessimos a fronte sulcada

pelas rugas e a pele morena que contrastava com suas vestes brancasrdquo60 Assim era

Savonarola em seus vinte e cinco anos tatildeo emagrecido pelos jejuns e abstinecircncias

que ldquoa vecirc-lo passear pelos claustros mais parecia uma sombra que um homem

vivordquo61 A atraccedilatildeo pelos discursos de vieacutes aristoteacutelico foi o iacutematilde que o ligou ao frei

quando teve a oportunidade de escutaacute-lo em uma disputa escolaacutestica Seria

improvaacutevel pensar naquela ocasiatildeo que aquele homem douto austero e riacutegido teria

importacircncia singular em sua vida62

O reencontro se daacute quando Pico natildeo obtendo a absolviccedilatildeo esperada da Igreja

decide procurar Savonarola que entatildeo pregava na Itaacutelia setentrional pedindo-lhe

para intervir por ele junto ao principal dos Dominicanos O pedido sobre o qual seu

amigo Lorenzo continuava a insistir com o Pontiacutefice63 eacute frustrado mas de alguma

forma serve para reaproximar aquelas duas personalidades de maneira definitiva a

pedido de Pico Savonarola acaba sendo chamado pelo Medici ndash a ldquocontragostordquo ndash

para reger a Igreja de San Marco em Florenccedila a partir de Abril de rsquo8964

Tal relaccedilatildeo teria exercido um poderoso influxo nas mudanccedilas de

direcionamento do pensamento de Pico ensejando especulaccedilotildees de cunho

58 BROCCHIERI opcit p100 59 Para Henri de LUBAC a absolviccedilatildeo definitiva de Pico e de seus escritos ocorreraacute apenas duas deacutecadas

adiante graccedilas ao gesto do entatildeo Papa Leatildeo X que em Abril de 1519 autorizaraacute Gianfrancesco a republicar integralmente as obras do tio (Pico della Mirandola Lrsquoalba incompiuta del Rinascimento p453)

60 SEMPRINI opcit p4 61 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 Essa e outras descriccedilotildees encontram-se nas pp 21-23 62 Para maiores detalhes veja-se Joseph SCHNITZER Savonarola 1931 vol1 sobretudo a partir de pp101 ss

BROCCHIERI op cit p39 63 Como elucida Giulio Busi Inocecircncio VIII levou muito a seacuterio o projeto de ldquoutopia sapiencialrdquo do Conde de

Mirandola Em resposta a Lorenzo que insistia para que o amigo Pico fosse perdoado escrevia que ldquoisso eacute um caso importantiacutessimo coisa diversa de gratificar o jovem filho de Lorenzo em questotildees que natildeo satildeo casos de feacuterdquo Ou seja para o Pontiacutefice era coisa de menor importacircncia conferir a dignidade de cardeal ao filho de treze anos de Lorenzo de que transigir sobre o escacircndalo provocado pelas Teses piquianas (BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in Il Sole-24 Ore 28082018)

64 AMBESI opcit p III Girolamo Savonarola tambeacutem conhecido como Jerocircnimo de Ferrara manteacutem-se agrave frente de San Marco ateacute 1994 Nesse ano apoacutes a morte de Pico e a queda de Piero filho de Lorenzo o frei toma o poder em Florenccedila Quatro anos depois em maio de 1498 seraacute enforcado e queimado (cf Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 54)

39

psicoloacutegico entre os estudiosos da obra piquiana65 A influecircncia de Savonarola natildeo

pode ser negada seja qual for seu vetor Em reflexatildeo sobre o tema ajuiacuteza Garin que

Pico e Savonarola eram ldquoduas almas tatildeo ardentes e originais quanto diferentes em

suas tendecircncias e atitudesrdquo No entanto ldquohavia algo na alma de Pico que somente

com o frei poderia ser identificadordquo66 Ambos amavam os livros de forma apaixonada

e neles viam natildeo apenas fontes de cultura mas respostas espirituais Moviam-se em

uma atmosfera distante daquela que respiravam os literatos contemporacircneos Os

problemas espirituais natildeo eram vistos como curiosidades intelectuais pertencentes ao

mundo dos doutos eram uma ldquoquestatildeo de vidardquo como prossegue Garin67 E ambos

buscavam verdades que natildeo enxergavam na Igreja do lsquo400 nem tampouco entre os

humanistas em geral Nas palavras do historiador

A existecircncia representava para ambos uma tarefa uma missatildeo

[] O mundo do espiacuterito natildeo se encontrava separado da vida

concreta a sua luz deveria permeaacute-la fundir-se a ela

transformaacute-la68

Certo eacute que durante o periacuteodo de isolamento acentuam-se em Pico claras

tendecircncias miacutesticas tornando-se Savonarola seu padre espiritual Tambeacutem chama a

atenccedilatildeo o fato de seus escritos do uacuteltimo periacuteodo apresentarem uma mudanccedila

substancial de concepccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas o autor chega a negar muitas das

teses anteriores e parece voltar-se a uma posiccedilatildeo mais ortodoxa Tal mudanccedila de

pensamento estaacute bem clara na obra Disputationes adversus astrologiam

divinatricem de forma acentuada nos uacuteltimos trecircs livros em que Pico trata com

desprezo a ciecircncia astroloacutegica dos egiacutepcios e caldeus fazendo uma minuciosa criacutetica

histoacuterica que parece lanccedilar por terra os ecircxitos daquelas antigas culturas Tal mudanccedila

de posicionamento natildeo passaria despercebida pelos criacuteticos levando a inuacutemeras

polecircmicas natildeo sem razatildeo a confutaccedilatildeo da Astrologia mateacuteria combatida de forma

ferrenha pelo frei e mentor dominicano representava um ataque que se colocava em

oposiccedilatildeo direta agraves doutrinas partilhadas pelas tradiccedilotildees agraves quais Pico prestara

homenagem em suas obras anteriores como o Hermetismo a Cabala o

Zoroastrismo o Neoplatonismo Em tentativa de esclarecer as mudanccedilas de rumo

da inacabada obra o editor Gianfrancesco Pico alegaria que as mesmas eram devidas

ao progressivo isolamento e agrave crescente religiosidade vividos por seu tio que o

levaram a passar por um processo de conversatildeo Entretanto essa afirmaccedilatildeo tem sido

colocada em duacutevida por alguns comentadores69

65 Para os efeitos psicoloacutegicos de Savonarola sobre Pico veja-se GARIN 2011 pp5-9 Para detalhes mais

completos sobre a relaccedilatildeo veja-se GARFAGNINI (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) 1997 pp 237-279 Ainda SEMPRINI opcit p4

66 GARIN 2011 p8 67 Idem 68 Idem As missotildees seja do mentor que do pupilo encontravam-se ligadas a certas formas de reaccedilatildeo a valores

religiosos e morais Suas atitudes contudo eram anacrocircnicas Pico buscava no passado a renovaccedilatildeo moral do presente Savonarola em suas preocupaccedilotildees doutrinais era um precursor das disputas religiosas que viriam no seacuteculo sucessivo (idem)

69 O tema da suposta conversatildeo de Pico e os comentaacuterios de vaacuterios inteacuterpretes podem ser conferidos na obra de William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher 1981 pp 77-87 131-154 Para maiores detalhes acerca da mudanccedila de direccedilatildeo nas Disputationes

40

A hipoacutetese de conversatildeo seja espontacircnea ou relacionada com o eventual

influxo de Savonarola eacute enfraquecida diante de um interessante testemunho que

expotildee as verdadeiras convicccedilotildees e o entusiasmo conciliador de Pico ndash o mesmo de

seus anos anteriores Pietro Crinito membro fervoroso dos piagnoni ndash nome dado

aos seguidores de Savonarola ndash relata um encontro entre o Frei e o Conde na

biblioteca de San Marco Nessa ocasiatildeo os dois travam um intenso debate acerca do

valor da sabedoria dos Antigos no qual o Frei posiciona-se entre outros contra

Platatildeo e Aristoacuteteles70 Em resposta e referindo-se agraves doutrinas cristatildes acerca da

imortalidade da alma e do caraacuteter absoluto de Deus Pico efetua uma ampla e

eloquente defesa dos Prisci Theologi muito semelhante agraves posiccedilotildees sustentadas por

Ficino71 ldquoao longo de toda a vida dos mortais existiram alguns priacutencipes os maiores

em juiacutezo e em conhecimento das coisas como Moiseacutes Pitaacutegoras Mercuacuterio Zoroastro

e Soacutelon os quais com consenso unacircnime (qui omnes pari consensu) natildeo apenas

creram nessas coisas como tambeacutem as afirmaram maximamenterdquo72 Seu discurso

pretendia sinalizar que muitos saacutebios entre pagatildeos e cristatildeos compartilhavam dos

mesmos princiacutepios Quando o debate termina como prossegue Crinito Savonarola

mostra estar rendido perante a erudiccedilatildeo do jovem abraccedila-o e reconhece que ele eacute o

uacutenico em seu tempo a conjugar um conhecimento exaustivo tanto da Filosofia dos

Antigos como das doutrinas e leis cristatildes comparaacutevel apenas ao dos grandes Padres

da Igreja do Oriente e Ocidente73

As palavras de Pico trazem por um lado a constataccedilatildeo de uma natildeo irrestrita

anuecircncia agraves orientaccedilotildees do dominicano por outro a confirmaccedilatildeo da preservaccedilatildeo das

mesmas certezas de outrora em relaccedilatildeo ao tema da concordacircncia entre antigas

tradiccedilotildees Sob a luz de tal testemunho arrefece a suposiccedilatildeo de conversatildeo e mudanccedila

de direcionamento doutrinaacuterio E solidifica-se a hipoacutetese alccedilada por alguns de

adulteraccedilatildeo de alguns textos publicados postumamente por parte de seu religioso

sobrinho e editor sob a eacutegide de Savonarola74 Outro sinal que afasta a possibilidade

de conversatildeo pode ser verificado no discurso de post-mortem do Mirandolano no

qual o Frei demonstra com desilusatildeo que ldquoesperava mais do jovemrdquo ldquoEle demorou a

veja-se Anthony GRAFTON Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore in Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers 1997 pp 93-134 Veja-se ainda Charles SCHMITT Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle in Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo pp 305-313 Stephen FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp 151-179 Eugenio GARIN Ricordando Giovanni e Gianfrancesco Pico della Mirandola in Giornale critico della filosofia italiana nr 74 1995 pp 5-19

70 Pietro CRINITO De honesta disciplina III 2 Roma Fratelli Bocca editori 1955 p 104 O debate eacute citado por Francisco BASTTITA HARRIET Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana 2016 p 218

71 Conforme expostas no Capiacutetulo I 72 CRINITO opcit pp 104-105 ldquoSed principes - inquit- in omni mortalium vita extiterunt aliquot et iudicio et

rerum cognitione maximi ut Moses Pythagoras Mercurius Zoroastres Solon qui omnes pari consensu non modo haec crediderunt sed maxime affirmaruntrdquo

73 CRINITO idem Na narrativa de Crinito dentre os Padres da Igreja aos quais Pico eacute igualado estatildeo Agostinho Gregoacuterio Dioniacutesio Jerocircnimo e Basiacutelio

74 BASTTITA HARRIET 2016 p 218 Para Alberto Cesare AMBESI a orientaccedilatildeo concordista de Pico contraacuteria agrave religiosidade de Savonarola que se manifestava de forma agressiva e intolerante elimina a hipoacutetese de conversatildeo que muitos quiseram crer (opcit p IV) Em razatildeo das incertezas de autoria que pairam sobre as Disputationes adversus astrologiam divinatricem preferimos nos abster de quaisquer comentaacuterios sobre a obra

41

abraccedilar a religiatildeo [] [mas] digo-vos que a alma dele em razatildeo das oraccedilotildees dos

frades e de algumas obras boas que realizou em vida estaacute no Purgatoacuteriordquo A ldquodemorardquo

em abraccedilar a religiatildeo deveu-se ao fato de o filoacutesofo natildeo se ter deixado convencer pelas

conversas com o padre que gostaria de tecirc-lo visto com o haacutebito dominicano75

Pico falece em 17 de novembro de 1494 em decorrecircncia de uma febre suacutebita e

violenta Logo surgem em Florenccedila suspeitas de assassinato76 Vestia na morte o

haacutebito dominicano aquele que em vida havia se recusado a usar No mesmo ano seu

sobrinho Gianfrancesco della Mirandola publica aquela que passaria agrave Histoacuteria da

Filosofia como a mais original contribuiccedilatildeo de Giovanni Pico a De Hominis

Dignitate

2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu

A recuperaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos transcorrida nos mesmos palcos em

que eram relidos os comentadores aristoteacutelicos levou ao nascimento de uma

polecircmica bastante aacutespera entre os sustentadores de cada uma daquelas linhagens

filosoacuteficas Apesar do florescente encantamento por Platatildeo sobretudo no nuacutecleo

florentino seria um equiacutevoco pensar que Aristoacuteteles tivesse sido esquecido na

segunda metade do seacuteculo XV Nas principais escolas por onde Pico passara ndash

Ferrara Bolonha Pavia e especialmente Paacutedua ndash os ensinamentos aristoteacutelicos

continuavam a fervilhar77 Mesmo entre os humanistas de vieacutes platocircnico mais

acentuado Aristoacuteteles era uma leitura obrigatoacuteria por representar a antiacutetese do

Platonismo servindo de fundamento aos mais amplos debates Tais debates

envolveriam alguns dos mais fundamentais filoacutesofos do periacuteodo de Nicolau de Cusa a

Pietro Pomponazzi passando por Ficino e deixando marcas em quase toda a

produccedilatildeo literaacuteria do seacuteculo78 A complexa temaacutetica da pressuposta antiacutetese entre o

pensamento de Platatildeo e o de Aristoacuteteles que dividia uma parcela dos acadecircmicos

ocupou uma relevante parte dos interesses de Giovanni Pico que trabalhou no

problema desde a De Hominis Dignitate ateacute o De Ente et Uno Aleacutem de todo seu

esforccedilo empregou na questatildeo a consistente bagagem que possuiacutea preenchida de

forma equacircnime pelo peso das duas vertentes que abasteciam sua biblioteca79

75 GARIN 2011 pp43 135 76 Leacuteon DOREZ apresenta a tese da morte por envenenamento por parte do secretaacuterio de Pico Cristoforo di

Casal Maggiore por razotildees financeiras ou poliacuteticas Pico havia feito empreacutestimos e destinado um lauto legado a Cristoforo (La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien in Giornale St Letteratura italiana vol 32 1898 pp360-364)

77 Tambeacutem Florenccedila respirava um clima aristoteacutelico Desde o final do seacuteculo XIII e ateacute parte do lsquoXV o filoacutesofo mais estudado pelos grandes cidadatildeos de Florenccedila havia sido Aristoacuteteles Soacute no lsquo400 foram feitas trinta e duas novas traduccedilotildees de suas obras a maior parte em Veneza e em Florenccedila nesta uacuteltima durante o periacuteodo em que jaacute prevalecia em seu solo a filosofia platocircnica (cf BROCCHIERI 2011 p24)

78 Paul Oskar KRISTELLER Movimenti filosofici del Rinascimento in Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29

79 A biblioteca de Pico tornou-se famosa por ser uma das maiores de seu seacuteculo Ademais suas fontes eram todos os livros das bibliotecas de seu tempo segundo Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo 1955) tornando seu leque de referecircncias fora do alcance de seus

42

Seus primeiros anos de estudos foram ocupados com as problemaacuteticas em

torno ao Aristotelismo e as subsequentes questotildees alccediladas por seus comentadores

Em uma carta de 1485 em resposta ao humanista Ermolao Barbaro tem-se o

importante testemunho do enraizado conhecimento de suas doutrinas e da gratidatildeo

que Pico nutria por aquela Escola em aberto elogio aos ldquograndes mestres aacuterabes e

latinos da Idade Meacutediardquo relata que a eles dedicou ldquotodos os dias e noitesrdquo daqueles

que por seis anos consecutivos teriam sido seus ldquomelhores anos de estudordquo A carta

reproduz ademais a defesa dos grandes conteuacutedos em detrimento da filologia e da

retoacuterica humanista ndash defendida por Barbaro ndash tendo se tornado um documento de

elogio agrave Filosofia ldquonatildeo seremos ceacutelebres nas escolas dos gramaacuteticos []mas sim

onde se indagam as razotildees das realidades humanas e divinasrdquo80 Seus argumentos e

justificativas somam-se para defender o meacutetodo escolaacutestico tornando-se

emblemaacuteticos das discussotildees ensejadas no periacuteodo renascentista ndash em que os

defensores da elegacircncia linguiacutestica encontravam-se em oposiccedilatildeo aos defensores dos

conteuacutedos filosoacuteficos81

Fato certo eacute que nas linhas da escolaacutestica latina especialmente a mais tardia

Pico encontrara uma riqueza de pensamento que o ajudaria a solucionar muitas de

suas duacutevidas filosoacuteficas Eis a razatildeo para dedicar ao periacuteodo nada menos que 94 de

suas Conclusiones entre as quais se encontram proposiccedilotildees dos principais

representantes do Aristotelismo cristatildeo estudados em Paacutedua e Paris como Alberto

Magno o teoacutelogo Enrico de Gand e seu contemporacircneo Egidio Romano o

dominicano Tomaacutes de Aquino o franciscano Duns Escoto e seu disciacutepulo Francisco

de Meyronnes Sua trajetoacuteria de estudos inicia-se com Tomaacutes com o qual passaria

um longo periacuteodo de instruccedilatildeo que continuaria com o percurso das demais

interpretaccedilotildees latinas82 Impulsionado por seu crescente interesse em torno ao Liceu

em breve tempo Pico seria conduzido ao encontro com o pensamento aacuterabe a

Universidade de Paacutedua sobretudo agrave sua eacutepoca seguia uma linha majoritariamente

averroiacutesta83 O relevo dispensado a essa corrente de pensamento reflete-se em suas

contemporacircneos Apoacutes sua morte e conforme deixado em testamento a biblioteca foi herdada por seu irmatildeo Anton Maria que a vendeu ao cardeal Domenico Grimani amigo de Pico e de Elia del Medigo estudioso de filosofia oriental Outras informaccedilotildees sobre a biblioteca de Pico podem ser colhidas de GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 pp 106 ss

80 A carta de Junho de 1485 eacute reproduzida dentre outros por Eugenio GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952 pp804-823 Eugenio ANAGNINE examina com precisatildeo tal epiacutestola em seu Giovanni Pico della Mirandola 1937 pp 18 ss Veja-se ainda Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998 e alguns comentaacuterios de GARIN em sua traduccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 pp7 ss e em sua obra de 2011 p7

81 A carta para Barbaro tornou-se conhecida como De genere dicendi philosophorum ou ainda ldquoil manifesto del pensiero moderno allrsquouscire dalla sua infanzia drsquoun secolordquo (cf GARIN op cit pp22-23) O veneziano Ermolao Barbaro era disciacutepulo ferrenho de um novo Aristoacuteteles compreendido agrave luz do movimento humanista que rompia com a escolaacutestica medieval Em sua visatildeo aquela forma de interpretaccedilatildeo dogmatizava o Estagirita vinculando-o agrave loacutegica e a um padratildeo de pensamento teoloacutegico para ele ldquocoisa de conventordquo Acerca da polecircmica entre Ermolao Barbaro e Giovanni Pico veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos del Renacimiento Italiano p82 GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952

82 Eugenio ANAGNINE (Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico 1937 p32) de forma singular acentua a influecircncia tomista no pensamento de Pico

83 Em Paacutedua a pesquisa universitaacuteria em torno do aristotelismo-averroiacutesta ganhara uma notoacuteria dimensatildeo especialmente na deacutecada de 70 do seacuteculo XV Esse fato contribuiu para que acorressem ao burgo diversos jovens humanistas aacutevidos em aprofundar o conhecimento aristoteacutelico Paralelamente diversos tipoacutegrafos introduziram sua arte na cidade no uacuteltimo quartel daquele seacuteculo e por via da accedilatildeo tipograacutefica foram grandes divulgadores dos

43

82 teses dedicadas aos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles quase se igualando em

nuacutemero agraves dedicadas aos comentadores cristatildeos Dentre aqueles o estudioso

debruccedilou-se sobre o filoacutesofo persa Ibn Sina conhecido como Avicenna e seu mestre

de origem turca Al-Farabi e de forma singular sobre o andaluz conhecido como

Averroacuteis cujas obras ocupavam grande parte de sua biblioteca84

Em seus estudos de especulaccedilatildeo oriental a obra de Averroacuteis desempenharia

um papel fundamental muito graccedilas a seus mestres de Paacutedua Nicoletto Vernia e

sobretudo Elia del Medigo que efetivamente incitaram Pico a aprofundar-se no

pensamento do comentador de Aristoacuteteles Eacute bastante provaacutevel que Elia leitor atento

da concepccedilatildeo da ordem metafiacutesica averroiacutesta tenha sido o primeiro a lanccedilar na

mente de seu aluno a semente da ldquoverdade uacutenicardquo sobretudo exposta por Averroacuteis em

seu De animae beatudine determinante para as primeiras concepccedilotildees piquianas em

torno da concordacircncia final entre doutrinas que se desenvolveria nos anos

seguintes85 Outras duas concepccedilotildees averroiacutestas certamente tiveram efeito em seus

escritos quais sejam o encontro da unidade da verdade com a unidade do espiacuterito

que a busca ndash e que define a unidade uacuteltima do intelecto inteligente e inteligiacutevel ndash e a

cogniccedilatildeo racional que ocorre entre pensadores individuais que formam uma

continuidade de pensamento levando a um complemento do real que apenas assim

se atua de forma plena Pico estava disposto a debater essa uacuteltima concepccedilatildeo durante

a pretendida Disputa Romana pois dentre as teses atribuiacutedas a Averroacuteis lecirc-se que ldquoa

alma intelectiva eacute uacutenica em todos os homensrdquo86 Mas de forma particular foi a

doutrina que postula a possibilidade de uniatildeo do intelecto humano com a mente

divina que mais fortemente ecoaria e se repetiria na obra de Pico87 Na forma

pressuposta pelo filoacutesofo aacuterabe

Aquele intelecto entatildeo ascenderaacute pelo ato agrave assimilaccedilatildeo das

realidades abstratas e compreenderaacute ser seu o que eacute pelo ato o

intelecto88

comentaacuterios de Averroacuteis a Aristoacuteteles Sobre a accedilatildeo tipograacutefica em Paacutedua veja-se G ANTONELLI Sulle Opere di Aristotele col commento dellrsquoAverroe impresse in Padova dal Canozio negli anni 1472 73 e 74 (Ferrara 1842) A Escola de Paacutedua graccedilas aos sistemas cientificistas adotados em seus estudos foi a responsaacutevel por cunhar a expressatildeo ldquomeacutetodo cientiacuteficordquo para questotildees de acircmbito filosoacutefico

84 Em seu ldquoAppendicerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (2011 pp 106 ss) no qual se encontra a relaccedilatildeo de obras que compunham a biblioteca de Pico escreve GARIN que o pensador do qual Pico ldquonatildeo sem significadordquo possuiacutea mais obras era justamente Averroacuteis (p118) Comentador de Aristoacuteteles por excelecircncia Abu al-Walid ibn Rushd mais frequentemente conhecido no Ocidente por Averroacuteis havia feito entre outras interpretaccedilotildees um comentaacuterio da Metafiacutesica agrave luz do Coratildeo A biblioteca de Pico continha vaacuterias de suas traduccedilotildees e comentaacuterios em aacuterabe hebraico e latim Para um maior enquadramento da problemaacutetica averroiacutesta veja-se a obra de Ernest RENAN Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme 1852

85 Acerca do influxo de Averroacuteis sobre a concepccedilatildeo de concoacuterdia piquiana veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss 86 PICO Concl (I) II I 2 (p20) ldquoUna est anima intellectiua in omnibus hominibusrdquo Dentre as teses

atribuiacutedas por Giovanni Pico aos comentadores aacuterabes de Aristoacuteteles 41 foram dedicadas a Averroacuteis O tema da unidade de alma dos filoacutesofos eacute tratado na obra do filoacutesofo aacuterabe Destructio destructionum disp I fol 20 I-21 a ldquoSoacutecrates eacute diverso de Platatildeo em nuacutemero e contudo ele mesmo [Soacutecrates] e Platatildeo satildeo o mesmo na forma que eacute almardquo (ldquoSocrates est alius a Platone numero et tamen ipse et Plato sunt idem in forma quae est animardquo)

87 A uniatildeo da mente humana com o divino eacute concepccedilatildeo presente na inteira obra piquiana colocada por outras vias e atraveacutes de outras formas filosoacuteficas ou teoloacutegicas como seu objetivo final Sobre a especiacutefica reflexatildeo do tema averroiacutesta na obra de Pico veja-se Guido DE RUGGIERO La filosofia del Cristianesimo 1920 p56

88 AVERROacuteIS De animae beatudine Opera volIX 153 AB ldquoAscendet tunc ille intellectus is actu ad assimilationem rerum abstractarum et intelligit suum esse quod est actu intellectus []rdquo O tratado De animae beatudine foi uma compilaccedilatildeo posterior de dois curtos textos de Averroacuteis sobre o intelecto (Tractatus De animae

44

A ideia da conciliaccedilatildeo do indiviacuteduo com o intelecto universal e a ideia da

unidade de alma existente entre os filoacutesofos seriam colhidas e ajudariam a compor o

substrato do pensamento piquiano89 Tais concepccedilotildees muito provavelmente

fizeram-no abraccedilar com mais veemecircncia o Platonismo com o qual encontraria

similitudes conceituais ndash como na questatildeo da afinidade existente entre a parte da

alma capaz de entender as Ideias e a realidade inteligiacutevel permitindo sua uniatildeo Cabe

ressaltar que a inspiraccedilatildeo averroiacutesta de Pico foi de tal profundidade que o levou a

afastar-se dos tradicionais nuacutecleos de Paacutedua em razatildeo de divergecircncias em relaccedilatildeo a

especificidades daquela doutrina A cisatildeo com o academicismo padovano fez com que

Barbaro o chamasse de ldquotraidorrdquo na famosa carta de rsquo85 incomodado pela

aproximaccedilatildeo do amigo ao Platonismo o peripateacutetico atribuiu seu afastamento a uma

suposta adesatildeo incondicional agrave filosofia do ciacuterculo de Ficino Mas ao contraacuterio do

que tantos quiseram crer seu afastamento foi mais consequecircncia dos argumentos

retirados de seus intensos estudos sobre o pensamento aacuterabe aliados a uma forma

diferenciada de ler Averroacuteis90 Mais do que ter sido ldquoroubadordquo de Averroacuteis por Platatildeo

Pico foi impelido pelo Comentador ao Platonismo pois havia algo naquela filosofia

que dava espaccedilo para a transcendecircncia91

Embora seja redutivo outorgar agrave filosofia de Averroacuteis o creacutedito por uma

aproximaccedilatildeo ao nuacutecleo de pensamento da Academia cabe lembrar que o Pico que se

lanccedila com interesse sobre a ficiniana Theologia Platonica em 1482 tem a mente jaacute

moldada por uma robusta bagagem averroiacutesta que natildeo seria desprezada Seu

primeiro texto relevante o Commento sopra una Canzona drsquoamore composta da

Girolamo Benivieni92 apresenta um claro vieacutes platocircnico A inegaacutevel orientaccedilatildeo de seu

primeiro escrito mostra que embora o nuacutemero total de teses dedicadas ao

Platonismo na sucessiva obra de rsquo86 tenha sido menor a admiraccedilatildeo por suas

concepccedilotildees natildeo se mostra inferior do que a experimentada com as correntes

aristoteacutelicas Eacute bastante possiacutevel que ao aproximar-se de Platatildeo e dos neoplatocircnicos

Pico jaacute o faccedila trajando as vestes do conciliador que busca harmonizar os motivos

centrais do Liceu e da Academia Sob tal enfoque chama a atenccedilatildeo o fato de Proclo

beatudine - Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis Venetiaa Junctas 1562 [reprinted Frankfurt 1962] Vol IX pp 148r-155r)

89 A concepccedilatildeo de que o intelecto eacute capaz de entender o agente primeiro e a si mesmo a partir da virtude racional eacute uma tese de Al-Farabi que Pico encontra tambeacutem em Avempace e em Maimocircnides (Doctor perplexorum I 68) neste uacuteltimo conforme elucida Salomon MUNK Le Guide des Egareacutes Paris 1856 volI n p 304-308 (GARIN 2011 p65)

90 Um detalhamento da interpretaccedilatildeo de Pico que o levou a divergir dos demais averroiacutestas nos afastaria do tema traccedilado Para o tema veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss

91 Conforme infere Moshe IDEL Averroacuteis ldquoo mais ortodoxo entre os aristoteacutelicos medievais e ao mesmo tempo conhecido por permitir a possibilidade da uniatildeo epistecircmica do humano com o Agente Intelectordquo eacute entendido por oferecer uma metafiacutesica e uma epistemologia que podem conter alguns elementos miacutesticos Trata-se pois de ldquoum racionalista que natildeo conseguindo justificar todas as coisas plenamente atraveacutes da razatildeo aceita a revelaccedilatildeordquo (IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 28-29)

92 Durante sua permanecircncia em Fratta apoacutes o fracasso amoroso com Margherita Pico concluiu seu comentaacuterio agrave canccedilatildeo de amor redigida pelo amigo Benivieni o chamado Commento obra que se tornou famosa e foi bastante comentada nas cartas do periacuteodo O texto foi editado uma primeira vez em 1519 no contexto das obras piquianas e em 1731 como texto autocircnomo com o tiacutetulo Dellrsquoamore celeste e divino - Canzone di GB fiorentino col comento di G Pico della Mirandola (Alberto Cesare AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo in Heptaplus 1996 pV)

45

ser homenageado com 55 teses dez a mais que seu estimado Aquinate Essa

quantidade revela natildeo apenas o apreccedilo de Pico pelo filoacutesofo grego como muito

provavelmente a vontade de dar continuidade ao projeto que aquele havia iniciado

jaacute entatildeo uma tentativa de levar a termo a conciliaccedilatildeo entre as duas escolas

filosoacuteficas93 Ademais assim como ele o uacuteltimo grande mestre neoplatocircnico

considerava como elemento preliminar agrave carreira filosoacutefica o entendimento das obras

loacutegicas de Aristoacuteteles Certo eacute que a ideia de encetar um estudo de verificaccedilatildeo da

concoacuterdia entre os dois grandes da Antiguidade iniciara pouco antes de seu

estabelecimento em Florenccedila ocorrido em rsquo84 encontrando-se expressa na epiacutestola a

Barbaro do mesmo ano na qual afirma ser apenas aparente tal discoacuterdia

Parece-me que em Platatildeo haacute dois aspectos a eloquecircncia

homeacuterica que se ergue ateacute os ceacuteus da poesia e um total acordo

com Aristoacuteteles se se vai a fundo Portanto se olharmos a

forma nada concorda entre os dois mas se natildeo olharmos a

forma nada se opotildee entre os dois94

O momento para retomar aquele projeto maior mantido vivo desde antes da

elaboraccedilatildeo das novecentas teses ocorre apoacutes o fracasso de seu intento com as

Conclusiones Para levaacute-lo a termo muniu-se de fundamentos encontrados tanto nas

similitudes descritas pelos comentadores que o influenciaram quanto em sentido

contraacuterio nas diferenccedilas entre os dois Filoacutesofos acentuadas sobretudo por George

Gemistos Plethon anos antes95 Assim durante os anos de rsquo90 e lsquo91 Pico se dedica

exaustivamente agrave ldquoconcordia Platonis et Aristotelisrdquo conseguindo concluir em 1492

o texto embrionaacuterio De Ente et Uno dedicado ao amigo Poliziano96 Nesse percurso

ocorre seu retorno agrave Escolaacutestica que pode ter sido decisivo assim como o

Averroiacutesmo anos antes o aproximara a Platatildeo Tomaacutes de Aquino seu mestre inicial

o reaproximava agora a Aristoacuteteles ndash natildeo sem a influecircncia da convivecircncia com

93 Em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agraves Conclusiones Pico esclarece que o acordo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ldquopor muitos

considerado possiacutevelrdquo natildeo havia sido por ningueacutem ldquosuficientemente provadordquo Por ldquomuitosrdquo Pico referia-se a Boeacutecio Simpliacutecio Agostinho e Joatildeo Gramaacutetico ldquoBoeacutecio [] parece que nunca cumpriu o que sempre disse querer fazer Simpliacutecio entre os Gregos tinha sustentado a mesma coisa quem dera tivesse mantido quanto prometera Ateacute mesmo Agostinho no livro Contra os Acadecircmicos escreve que muitos foram os que tentaram provar que a filosofia de Platatildeo e de Aristoacuteteles satildeo uma mesma filosofia Assim Joatildeo Gramaacutetico que afirma que Platatildeo difere de Aristoacuteteles soacute para os que natildeo percebem o texto de Platatildeo deixou aos vindouros a demonstraccedilatildeordquo (Concl p145) Naomi GOLDFELD observa que o mestre Elia del Medigo foi outro dentre os que encontraram dificuldades para conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles seguindo os passos de Averroacuteis que por sua vez havia encontrado dificuldades quase trecircs seacuteculos antes ao tentar essa conciliaccedilatildeo (Elia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 43-44)

94 PICO Carta de 6 de Dezembro de 1484 in De Hominis Dignitate etc p9 (I 22) ldquo[] duo in Platone agnoscere et homerican illam eloquenti facultatem supra prosam orationem sese attollentem et sensum si quis eos altius introspiciat cum omnino communionem Ita ut si verba spectes nihil pugnantius si res nihil concordiusrdquo

95 Eacute bastante provaacutevel que a polecircmica de algumas deacutecadas gerada pelo opuacutesculo posteriormente intitulado De Differentiis que exerceu forte influxo nas concernentes discussotildees do seacuteculo XV ndash no qual o mestre de Mistra aborda as diferenccedilas entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tenha afetado o jovem Pico Conforme foi visto no Capiacutetulo I a polecircmica sobre as divergecircncias ou similaridades entre os dois Filoacutesofos perpassou o seacuteculo de certa forma graccedilas agrave continuidade do debate mantida por George de Trebizonda e Basiacutelio Bessarion Para maiores detalhes acerca da questatildeo leia-se MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 James HANKINS Plato in the Italian Renaissance 1990 pp193 ss GARIN 2011 p128

96 A iacutentegra da obra pode ser encontrada na ediccedilatildeo de Vallecchi (org Eugenio Garin) da De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 Para dados adicionais sobre a discussatildeo do De Ente et Uno leia-se GARIN 2011 entre pp 79 e 98 sobretudo as pp80-81

46

Savonarola Como infere Di Napoli o retorno a Tomaacutes com sua ldquosiacutentese de superaccedilatildeo

da distinccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacutetelesrdquo seria ldquodeterminanterdquo para que Pico

embasasse sua concoacuterdia97 O esteio tomista traria a sustentaccedilatildeo necessaacuteria para

discorrer acerca da relaccedilatildeo entre o Uno e o Ser proscecircnio de uma das importantes

disputas entre acadecircmicos aristoteacutelicos e platocircnicos nas discussotildees teoloacutegicas do

seacuteculo Solucionar um dos grandes contrastes teoreacuteticos da eacutepoca cria o eixo de De

Ente et Uno para a fundamentaccedilatildeo do qual Pico apoia-se sobretudo na Metafiacutesica

de Aristoacuteteles e no Parmecircnides de Platatildeo98 Apesar de o intento natildeo ter sido

terminado e a concordacircncia portanto natildeo concluiacuteda nos moldes pretendidos a obra

aborda conceitos metafiacutesicos obrigatoacuterios para a questatildeo retratando de acordo com

Garin uma ldquonotaacutevel posiccedilatildeo especulativardquo99

A soacutelida estrutura preparada ao longo de anos para sustentar aquele que seria

um de seus mais importantes projetos filosoacuteficos o de dirimir as diferenccedilas entre os

dois Gregos permitiu-lhe especular sobre esferas metafiacutesicas elevadas Apesar de

uma exposiccedilatildeo mais ampla do De Ente et Uno mostrar-se secundaacuteria para a

composiccedilatildeo do tema aqui proposto tomar conhecimento de seu nuacutecleo e sobretudo

de para onde aponta seu fim eacute condiccedilatildeo devida para que se complete o cenaacuterio dos

alicerces que constituem o pensamento piquiano O nuacutecleo da obra concentra um

motivo de cunho ontoloacutegico visto que trata da discussatildeo acerca da unidade ou

multiplicidade do Ser tomando por base as visotildees aristoteacutelica e platocircnica referentes

ao Ser e ao Uno Partindo da passagem da Metafiacutesica ldquoo Ser eacute Unordquo100 que se opunha

agrave ldquoprioridade do Uno em relaccedilatildeo ao Enterdquo sustentada na Academia101 Pico pretende

averiguar se a Unidade eacute inerente ao Ser O fim de sua obra para o qual se orienta a

tentativa de dirimir o presumido conflito eleva-o para a esfera dos Princiacutepios ndash um

interesse relacionado agrave Origem protoloacutegico portanto Essa informaccedilatildeo deve ser

guardada Em torno a essa esfera e natildeo abaixo dela concentram-se muitas das

demais argumentaccedilotildees piquianas algumas de acircmbito supra filosoacutefico sobretudo as

que recorrem a argumentos retirados da dimensatildeo esoteacuterica como seraacute visto Seus

interesses de ordem religiosa ou miacutestica procuram justamente encontrar o ponto de

convergecircncia entre aquelas doutrinas e os Princiacutepios

97 Giovanni DI NAPOLI Pico e la problematica dottrinale del suo tempo 1965 p223 Para o influxo de Tomaacutes

de Aquino sobre o pensamento de Pico em seus uacuteltimos anos veja-se Andreacute-Jean FESTUGIEgraveRE Studia Mirandulana in Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge 1933 pp151 e ss ANAGNINE (opcit p32)

98 A discussatildeo do Parmecircnides envolveu muitos eruditos no seacuteculo XV como Bessarion e Ficino que enxergavam no diaacutelogo o coraccedilatildeo da teologia platocircnica Alguns pontos da obra contrapuseram Pico ndash que considerava a obra apenas como um exerciacutecio dialeacutetico ndash a Ficino que diria ldquono Parmecircnides Platatildeo encerrou a inteira teologiardquo (Ficino Opera Henricpetrina Basilea 1576 p1137 apud MOLINARI opcit p81) Ainda GARIN LrsquoUmanesimo Italiano 2008 pXVII As interpretaccedilotildees dos dois autores renascentistas sobre o pensamento de Platatildeo exerceraacute uma influecircncia profunda nos seacuteculos seguintes alcanccedilando desde os Platocircnicos de Cambridge ateacute a literatura alematilde atingindo Winckelmann Herder Goethe Schelling e Hegel (cf CASSIRER ldquoFicinorsquos Place in Intelectual Historyrdquo in Journal of the History of Ideas nr 6 1945)

99 GARIN 2011 p42 Como reflete o comentador em outra obra Pico mergulhou na problemaacutetica da discoacuterdia natildeo para eliminar seu dissenso mas para integrar ndash e distribuir em niacuteveis distintos ndash seus conteuacutedos (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17) Mesmo natildeo tendo concluiacutedo a obra de conciliaccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tema que continuaraacute em todo o seacuteculo XVI ndash soacute o fato de tecirc-la proposto em termos novos e tecirc-la iniciado mostram como era forte a necessidade de suplantar certas posiccedilotildees humanistas do lsquo400 e como jaacute despontavam em Pico questotildees que seriam a tocircnica do seacuteculo vindouro (GARIN 2008 p 98)

100 Metaphysica IV 2 1003b-23 ldquoens et unum idem et eadem natura suntrdquo 101 PICO De Ente et Uno p389

47

3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos

O contato com a consistente corrente d0 pensamento padovano natildeo trouxe

apenas a convicccedilatildeo de conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles Jaacute agrave eacutepoca de seus estudos

iniciais havia-se encastelado na mente de Pico aquele que viria a ser seu desafio

maior encontrar os pontos de acordo entre sistemas filosoacuteficos e doutrinas religiosas

pertencentes a tradiccedilotildees distintas102 Natildeo por acaso observa-se em sua biografia uma

alternacircncia de temaacuteticas de pesquisa que transitam entre Filosofia e doutrinas ligadas

ao campo da Revelaccedilatildeo Essas uacuteltimas satildeo retomadas no periacuteodo imediato ao retorno

da Franccedila para Florenccedila quando ocorre a aproximaccedilatildeo ao misticismo hebraico

atraveacutes de uma renovaccedilatildeo nos estudos biacuteblicos Em fase de introspecccedilatildeo inicia-se a

redaccedilatildeo de uma seacuterie incompleta de comentaacuterios sobre os Salmos e embora natildeo

comprovado uma nova traduccedilatildeo e alguns comentaacuterios sobre partes do Livro de Joacute

Nessa fase tocado pelo estado de espiacuterito de seu amigo Lorenzo escreve para o

embaixador papal em Roma Giovanni Lanfredini contando que Pico ldquovive muito

piamente como um monge canta os Salmos e escreve conteuacutedos teoloacutegicosrdquo E

acresce que ldquopoucos satildeo os homensrdquo que lhe despertam ldquotanta estimardquo103 A carta ndash

uma tentativa para a reabilitaccedilatildeo do sentenciado ainda natildeo absolvido de sua

condenaccedilatildeo ndash termina sendo malsucedida pois Inocecircncio VIII considera intoleraacutevel o

interesse contiacutenuo de Pico em Teologia preferindo que ele ldquose dedique agrave poesiardquo104

Esse tipo de interesse pelas Escrituras natildeo era novo Quando ainda estudante

em Paacutedua lanccedilara-se com premecircncia ao estudo do idioma hebraico em um primeiro

momento buscava apenas compreender as traduccedilotildees e interpretaccedilotildees hebraicas dos

pensadores aacuterabes e seus comentaacuterios referentes a Aristoacuteteles contudo em fase

posterior os textos originais hebraicos foram objeto de profundo interesse para a

busca de confirmaccedilotildees da verdade de suas crenccedilas cristatildes ndash interesse despertado

sobretudo pelo contato com Elia del Medigo durante o periacuteodo florentino A

proficiecircncia do idioma seria incrementada por Flaacutevio Mitridate ndash mestre que natildeo

apenas o ajudaria nas traduccedilotildees de alguns textos como se tornaria seu principal

instrutor de liacutenguas orientais105 Aleacutem do hebraico iniciou-o no aramaico e no aacuterabe

este entre outras coisas para que pudesse ler Maomeacute no original Assim em dado

periacuteodo o aprendiz lia simultaneamente o Coratildeo os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos a

102 GARIN 2011 p13 BROCCHIERI opcit p13 103 A carta foi escrita em 13 de junho de 1489 Os conteuacutedos teoloacutegicos referem-se tanto aos Salmos quanto

presumivelmente ao Heptaplus (BLACK opcit pg 9) As cartas entre Giovanni Lanfredini e Lorenzo dersquo Medici podem ser vistas em Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti 1859 pp51-52 Ainda para a questatildeo veja-se GARIN 2011 pp39-40

104 Em 2 de Outubro de 1489 o embaixador Giovanni Lanfredini assim responderia a Lorenzo ldquoEt dixe [il papa] lsquoQueste cose della fede sono troppo tenere et non posso tollerarle Se lui [Lorenzo] gli vuole molto bene [a Pico] che lo facci scrivere opere di poesia et non cose theologiche percheacute saranno piugrave de sua denti percheacute il conte non egrave bene fondato et non ha visto tanto quanto bisogna ad chi scrive theologiarsquordquo (MS Firenze Archivio di Stato MAP 58 96 apud Raffaella Maria ZACCARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus in Pico Poliziano e LrsquoUmanesimo di fine Quattrocento 1994 pp 76-77)

105 Para os estudos com Mitridate leia-se Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 88 Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti in Rivista contemporanea 1859 pp36-37

48

Zoroastro e o Livro da Criaccedilatildeo pilar do misticismo judaico ndash buscando extrair seus

pontos de conversatildeo106

O contato com os mestres hebreus que frequentavam o ciacuterculo florentino

ligado agrave Academia acentuou ademais seu interesse pelo Esoterismo Elia del

Medigo natildeo lhe apresentaria apenas Averroacuteis e as filosofias orientais em carta ao

aluno no provaacutevel ano de rsquo85 mencionava a principal doutrina miacutestica judaica

afirmando que ldquopoucos entre os Antigos entenderam a Cabalardquo107 Ademais

continuava a carta seus textos obscuros pediam uma hermenecircutica especial que

possibilitasse a decodificaccedilatildeo das doutrinas secretas laacute ocultas ele Elia seria o

mestre capaz de fornecer a Pico os preciosos elementos para a compreensatildeo da gnose

hebraica108 Assim embora natildeo se tendo limitado aos ensinamentos de Elia que

nesse sentido foram um tanto escassos as primeiras indicaccedilotildees para seus estudos da

Cabala foram-lhe transmitidas por aquele jovem mestre que insistia para que fossem

extraiacutedas as partes teoreticamente mais profundas da miacutestica hebraica Elia colocava

e ressaltava continuamente o problema da convergecircncia entre Filosofia e Teologia

(ldquoo outro caminho para acreditar-se na Lei aleacutem da feacute se daacute pela via filosoacuteficardquo)109 ndash

uma concepccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo do pensamento piquiano

Natildeo somente Elia lhe abriria as portas para esse gecircnero de interesse A forte

dicotomia entre a leitura literal e natildeo literal era uma caracteriacutestica constante e

enfaacutetica da tradiccedilatildeo judaica medieval ainda mantida viva no seacuteculo XV e

apresentava evidentes paralelos com os modelos de transmissatildeo esoteacuterica greco-

cristatildeos tais ideias tinham portanto uma ressonacircncia contemporacircnea sendo objeto

de discussotildees teoacutericas na Itaacutelia ainda agrave eacutepoca em que Pico escrevia o Heptaplus110 De

forma que a postura hermenecircutica ali desenvolvida natildeo se fundamenta apenas na

miacutestica judaica mas encontra raiacutezes entre os primeiros inteacuterpretes latinos e gregos

Dentre as vaacuterias fontes agraves quais Pico teve acesso e que foram certamente utilizadas

em suas pesquisas verificam-se desde representantes do Cristianismo primitivo

quanto do meacutedio e novo Platonismo como Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio Clemente

106 A questatildeo do aprendizado de liacutenguas estaacute bem documentada em vaacuterias cartas Veja-se Gian Francesco PICO

Vita di Giovanni Pico (org Sorbelli) 1963 DUKAS opcit pp69-70 CASSUTO op cit pp 282 299-300 GARIN 2011 pp97-98 Em resposta a uma carta de Ficino de setembro de 1486 em que esse lhe pede de volta a versatildeo latina do Coratildeo Pico conta-lhe sobre seu mecircs de esforccedilos para aprender o hebraico aleacutem de levar adiante os estudos do aacuterabe e do aramaico A carta pode ser lida em Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 3-4 Escreve Wirszubski que ldquoo quanto Pico aprendeu em hebraico em termos de proficiecircncia eacute difiacutecil dizer natildeo eacute de forma alguma insignificanterdquo E na p 6 ldquoPico aprendeu muito com as traduccedilotildees de Mitridate infinitamente mais do que ele poderia ter aprendido com os originais hebraicos uma vez que tentou lecirc-los sem traduccedilotildeesrdquo

107 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi in RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo 1891 Veja-se ainda Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9

108 CASSUTO opcit pp284 e ss Ainda para o tema BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11 SIRGADO GANHO opcit p17

109 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi fol 255 in RAGNISCO opcit A carta de Elia del Medigo foi publicada pela primeira vez por Jules DUKAS em Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 ldquo[] si quid tamen dictum sit contrarium Legi non mirum est quia tantum intentiones Philosophorum secundum fundamenta eorum dicere volui scitur nam quod via Legis cui magis creditur alia est a via Philosophicardquo Complementando a colocaccedilatildeo acima cabe observar que na visatildeo de Elia segundo Naomi GOLDFELD a feacute estaacute fundada sobre a razatildeo (ldquoElia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraicordquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze 1998 p 43-44)

110 BLACK opcit pp 131-132

49

Euseacutebio Plotino Porfiacuterio e Jacircmblico Tendo sido adotada por alguns dentre os

primeiros exegetas cristatildeos a abordagem esoteacuterica foi mantida em circulaccedilatildeo por

intermeacutedio da tradiccedilatildeo neoplatocircnica mais tardia ndash levada adiante por Macroacutebio

Pseudo-Dioniacutesio e Simpliacutecio ndash depois que a mesma havia deixado de ser utilizada111

Jaacute em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees relativas ao Gecircnesis cujos sinais se mostram

na De Hominis Dignitate e em caraacuteter preciacutepuo no Heptaplus eacute bastante certo que

um limitado nuacutemero de textos tenha sido extraiacutedo das exegeses gregas da escola

alexandrina particularmente referentes a escritos de Oriacutegenes e de Fiacutelon A obra De

opificio mundi de Fiacutelon foi bem recepcionada por Ambroacutesio cujo pensamento

influiria sobre Agostinho mas apoacutes essa recepccedilatildeo cristatilde no seacuteculo IV sua utilizaccedilatildeo

parece ter desaparecido em grande parte112 Eacute possiacutevel que Pico tenha tido acesso ao

conteuacutedo de Fiacutelon atraveacutes de Ambroacutesio ou Agostinho

Passar do esoterismo grego e cristatildeo ao oriental foi um passo Pico percebia

atraveacutes de suas leituras que havia outros sistemas que em comum com aqueles

partilhavam de certo pendor por questotildees de cunho teoloacutegico ndash quando natildeo

puramente miacutestico Ainda antes de chegar a Florenccedila o jovem de Mirandola fora

atraiacutedo pelo Platonismo de Ficino um Platonismo de vieacutes teoloacutegico que tentava a

conciliaccedilatildeo com o Cristianismo O entatildeo ordenado padre via na obra platocircnica uma

filosofia divinamente inspirada na qual estava sintetizada toda a tradiccedilatildeo

especulativa oriental e grega113 Na concepccedilatildeo ficiniana todos os campos do real

encontravam-se convergentes em virtude de uma uniatildeo vital do mundo tal reflexatildeo

contemplava a perspectiva de uma pia philosophia na qual estariam alinhados

Zoroastro e Moiseacutes Hermes Trismegisto e Platatildeo os pitagoacutericos e os neoplatocircnicos

O legado de Ficino natildeo deixaria de acrescer importantes elementos na construccedilatildeo do

pensamento piquiano embora natildeo sem ressalvas114

Sobretudo os textos hermeacuteticos de acordo com as traduccedilotildees ficinianas teriam

exercido influecircncia nas reflexotildees do Conde alguns de seus temas como a liberdade

da alma em relaccedilatildeo ao corpo e a natureza mediadora do homem seriam amplamente

desenvolvidos nas obras posteriores a lsquo86115 Para alguns comentadores a

111 BLACK ibid p 147 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo VII 112 BLACK idem Natildeo estaacute claro se esta obra foi incluiacuteda entre os manuscritos de Fiacutelon pertencentes agrave biblioteca

de Lorenzo Por outro lado ela estaacute atestada em dois manuscritos do Vaticano que foram incluiacutedos nos inventaacuterios de 1475 1481 e 1484

113 Para Ficino existia uma uacutenica Filosofia que consistia na ldquoreflexatildeo sobre as verdades eternas as Ideias que como tais permanecem inalteradas no tempo e transcendem a Histoacuteriardquo (cf Sebastiano GENTILE Il ritorno di Platone dei platonici e del lsquocorpusrsquo ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino in Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento 2002 pp 193-228)

114 Nem tudo foi apenas uniatildeo de ideias entre Ficino e Pico No Commento sopra una canzona drsquoamore da Girolamo Benivieni Pico faz aacutesperas criacuteticas a uma das obras de maior sucesso de Ficino o Commentarium in Convivium criticando a concoacuterdia estabelecida por Ficino de forma muito faacutecil entre o pensamento de Platatildeo e a doutrina cristatilde especialmente em pontos essenciais como a figura do Cristo Como escrevia Pico ldquoeacute preciso estar atento em natildeo confundir o filho de Deus [o demiurgo no texto de Platatildeo] com o filho de Deus dos teoacutelogos cristatildeos jaacute que este eacute de mesma essecircncia que o Pai criador e natildeo criaturardquo (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento Firenze 1965 p28)

115 O conceito do homem-mediador na obra de Hermes Trismegisto eacute bem desenvolvido por SCOTT - FERGUSON em Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which Contain Religious or Philosophic Teachings Ascribed to Hermes Trismegistus 1924-36 p 120 ss

50

ldquoantropologiardquo foi um dentre os principais interesses extraiacutedos daquele

conhecimento em razatildeo do paraacutegrafo inicial da De Hominis Dignitate em que eacute

citada a ceacutelebre sentenccedila do Asclepius ldquoMagnum o Asclepi miraculum est homordquo116

uma entre diversas passagens hermeacuteticas que exaltam a grandeza do homem Ficino

havia citado a mesma passagem mais de dez anos antes em sua Theologia

Platonica117 mas com Pico a teoria hermeacutetica seraacute aprofundada e decisiva para a

questatildeo da dignidade Os escritos atribuiacutedos a Trismegisto foram ademais a fonte

utilizada para desenvolver seus pontos de vista sobre a magia branca capaz de

ldquocomungarrdquo o homem com o divino ndash tema a ser retomado no proacuteximo Capiacutetulo ndash

embora seus muacuteltiplos interesses o fizessem se envolver tambeacutem com certas

alquimias de conotaccedilatildeo praacutetica extraiacutedas do manual Picatrix118

Na Academia Pico inicia portanto a construir uma estrada proacutepria a partir ndash

natildeo da fusatildeo mas do encontro ndash de componentes comuns extraiacutedos de domiacutenios

distintos da teologia cristatilde da filosofia neoplatocircnica de escolas iniciaacuteticas egiacutepcias e

persas da miacutestica judaica A siacutentese daqueles estudos se mostraraacute na fase de reclusatildeo

no mosteiro de San Marco apoacutes o retorno da Franccedila uma nova etapa na qual o

pesquisador voltar-se-aacute para pensadores que fizeram da experiecircncia religiosa seu

campo de reflexatildeo Mergulhando de iniacutecio nas reflexotildees teoloacutegicas de Maimocircnides

adentra definitivamente pela porta do pensamento hebraico E ao trilhar essa

estrada comeccedila a vislumbrar a ideia de ter encontrado uma soluccedilatildeo para seus

problemas referentes agrave dificuldade em aliar Filosofia e Cristianismo119 A alegria de

encontrar no pensamento hebraico a confirmaccedilatildeo da identidade profunda entre

aquelas reflexotildees e suas crenccedilas ndash e ainda com as de outras culturas ndash seria relatada

posteriormente no Heptaplus

No ambiente de isolamento a cultura hebraica de Pico comeccedila efetivamente a

desabrochar Isso ocorre mormente atraveacutes das reflexotildees conduzidas junto a

Yohanan Alemanno Elia o tinha guiado em seus primeiros passos atraveacutes do

pensamento aacuterabe-hebraico mas o vieacutes aristoteacutelico de Elia natildeo permitia um maior

aprofundamento na Cabala com Flavio Mitridate natildeo haacute duacutevidas as cogniccedilotildees sobre

o tema se estenderam mas agora com Alemanno Pico consegue de modo efetivo

avanccedilar em suas intuiccedilotildees acerca da aplicaccedilatildeo dos meacutetodos cabaliacutesticos na soluccedilatildeo

das antiacuteteses entre Religiatildeo e Filosofia120 Os interesses de Alemanno comprovados

em sua bibliografia apresentavam muitos pontos de contato com a interpretaccedilatildeo

biacuteblica em geral e particularmente com o conteuacutedo desenvolvido no Heptaplus

116 PICO Oratio p 102 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo IV 117 Marsilio FICINO Theologia platonica XIV 3 2 (ed Bompiani p1299) ldquoQuod admiratus Mercurius

Trismegistus inquit lsquoMagnum miraculum esse hominem animal venerandum et adorandum qui genus daemonum noverit quasi natura cognatum quive in deum transeat quasi ipse sit deusrsquordquo

118 Para a relaccedilatildeo de Pico com a magia extraiacuteda do Hermetismo leia-se Frances YATES Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica 1995 pp 84-116 Algumas questotildees relacionadas agrave magia praacutetica e alquimia satildeo descritas por Pietro CRINITO conta por exemplo que Pico ficou dias a preparar uma foacutermula alquiacutemica agrave base de certos venenos para curar Ermolao Barbaro E em eacutepoca de peste experimentou algumas misturas de venenos para encontrar a cura ldquoex oleo scorpionum linguisque aspidum et aliis eiusmodi venenis confectumrdquo (De honesta Disciplina I 7 p12 apud GARIN 2011 p44)

119 GARIN 2011 p27 120 GARIN 2011 pp38-39 WIRSZUBSKI op cit pp256-257

51

Atraveacutes da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica poderia ser promovida a possiacutevel conciliaccedilatildeo

entre as Escrituras e a Filosofia como seraacute visto no Capiacutetulo VI Da mesma forma

que a Teologia cristatilde havia identificado ecos de suas doutrinas nos manuscritos de

caldeus e egiacutepcios como mostravam as recentes descobertas do Platonismo

florentino121 Pico tentaria encontrar nas Escrituras conteuacutedos que teriam derivado

das doutrinas cabaliacutesticas ndash natildeo com o intuito de subordinar umas agraves outras mas

com a firme vontade de dar verdade aos textos sagrados dentro da Filosofia que

buscava122

Com a apresentaccedilatildeo das Conclusiones Nongentae Giovanni Pico teria a

chance natildeo apenas de expor como de debater finalmente o cabedal de conhecimento

aprendido naqueles anos de estudos filosoacuteficos teoloacutegicos orientais e em parte

esoteacutericos Tendo sido apresentadas as circunstacircncias ao seu redor e os caminhos

atraveacutes dos quais se estruturou seu pensamento seraacute possiacutevel prosseguir em direccedilatildeo

ao objetivo traccedilado qual seja mostrar de que forma Pico mesclou em suas

argumentaccedilotildees paracircmetros de teor natildeo-filosoacutefico

121 Essa era a ideia prevalente no ciacuterculo de Ficino A relaccedilatildeo entre essas doutrinas e sua aceitaccedilatildeo na Academia

podem ser confirmadas pela recepccedilatildeo dos textos atribuiacutedos a Hermes do Egito e ao persa Zoroastro conforme abordado no Capiacutetulo I A aceitaccedilatildeo de Hermes como ldquoum dos seusrdquo pela Igreja pode ser comprovada atraveacutes do grande trabalho de marchetaria feito no piso do Duomo de Siena nos anos rsquo80 do seacuteculo XV onde Hermes Trismegisto estaacute representado de forma extraordinaacuteria mostrando sua recepccedilatildeo em territoacuterio cristatildeo

122 Bohdan KIESZKOWSKI Averroismo e Platonismo in Italia in Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia 1936 capVII

52

CAPIacuteTULO III

AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO

As Conclusiones Nongentae1 ou Novecentas Teses formam em seu conjunto

a primeira obra de Giovanni Pico a ser estampada ndash e seu trabalho mais

desafortunado Os acontecimentos em torno ao assunto ocorreram em um ritmo

muito veloz A redaccedilatildeo foi concluiacuteda em 12 de Novembro de 1486 em 7 Dezembro o

manuscrito foi levado para ediccedilatildeo em Roma pelas matildeos de Eucharius Silber2 sem

que fosse aguardado o usual parecer de catolicidade por parte da comissatildeo pontifiacutecia

Em breve tempo algumas daquelas primeiras coacutepias seriam vetadas e em Marccedilo de

lsquo87 a comissatildeo ligada ao prelado proibiria definitivamente sua difusatildeo Treze teses

foram inicialmente censuradas Pico julgado e finalmente a totalidade das teses

condenada A proacutexima publicaccedilatildeo das Conclusiones somente ocorreria na segunda

metade do seacuteculo XVI na Basileacuteia terra natildeo catoacutelica3

Voltando-se atraacutes alguns meses para o periacuteodo de sua elaboraccedilatildeo verifica-se

que o principal projeto de Pico seguiu uma bem estruturada sistematizaccedilatildeo na

preparaccedilatildeo dos fundamentos erigida ao molde das construccedilotildees teoreacuteticas medievais

Em posse do conhecimento dos formatos escolaacutesticos o autor daria iniacutecio a uma

ordenaccedilatildeo das vaacuterias vertentes e escolas com as quais tivera contato com o objetivo

de apresentar seus pontos de analogia Assim a organizaccedilatildeo do conteuacutedo obedece a

uma sequecircncia de proposiccedilotildees extraiacutedas de sua criacutetica-histoacuterica organizada por

grupos de pensamento Em termos de estilo e aproveitando-se do meacutetodo de

argumentaccedilatildeo atraveacutes de nuacutemeros (calculationes) apreendido nos cursos de loacutegica

seguidos em Pavia Pico se serve do modelo de escrita ldquoparisiensisrdquo tendo por base a

loacutegica aristoteacutelica4 Tal estilo utilizado tanto nas Conclusiones quanto na Apologia

1 O tiacutetulo original conforme a editio princeps eacute Conclusiones DCCCC dialecticae morales physicae

mathematicae publice dispuntandae Romae Anno ab incarnatione Domini MCCCCLXXXVI die septime Decembris Sobre a escolha do nuacutemero de teses Pico explicaria em carta escrita a Girolamo Benivieni que seu intento inicial era o de escrever 700 teses chegando depois a 900 embora tivesse material para um nuacutemero maior O 900 seria o nuacutemero certo por seu significado miacutestico acerca do qual Pico apenas sinalizaria ldquose efetivamente a nossa ciecircncia dos nuacutemeros eacute digna de feacute tal cifra simboliza a alma que retorna a si apoacutes ter sido revolvida pela inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (cf Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura italiana XXV 1895 p358)

2 Eucharius Silber alias Franck era considerado o melhor tipoacutegrafo de Roma (cf Giulio BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in ldquoIl Sole-24 Orerdquo 28082018) O texto original das Conclusiones estaacute contido atualmente em quatro manuscritos conservados e distribuiacutedos entre as cidades de Viena Munique e Erlangen (respectivamente nas seguintes bibliotecas Osterreichische Nationalbibliothek lat 14708 Bayerische Staatsbibliothek lat 11807 Universitatsbibliothek lat 646) Cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 185

3 Para maiores detalhes sobre as circunstacircncias da publicaccedilatildeo veja-se Albano BIONDI ldquoIntroduzionerdquo a Conclusiones Nongentae 1995 ppV-XIII Ainda Edoardo FORNACIARI ldquoIntroduzionerdquo agrave traduccedilatildeo de Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p9 Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p63 Por mais de cinco seacuteculos as Conclusiones permaneceram em olvido com acesso apenas a poucos especialistas suas poucas ediccedilotildees remetem quase todas ao seacuteculo XVI sendo que sua uacuteltima ediccedilatildeo completa eacute de 1619 Apoacutes essa data a obra passou por um longo periacuteodo de esquecimento ateacute ser finalmente editada por Kieszkowski em 1973

4 PICO Concl (I) p7 ldquo[] in quibus recitandis non Romanae linguae nitorem sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum dicendi genus est imitatusrdquo O ldquostylus parisiensesrdquo foi especialmente desenvolvido

53

constituiacutea a base da vulgata scholastica e comeccedilava a ser objeto de criacuteticas por parte

dos humanistas em razatildeo de sua linguagem considerada obstinadamente teacutecnica No

que concerne agrave discussatildeo puacuteblica para a qual as Teses haviam sido preparadas o

meacutetodo escolhido ndash sempre escolaacutestico ndash teria sido o das quaestiones5

A obra compotildee-se de novecentos aforismos ndash ou breves proposiccedilotildees ndash que natildeo

contemplam sua anaacutelise ou fundamentaccedilatildeo filosoacutefica Com efeito ao folhear as

paacuteginas das novecentas Conclusiones verifica-se uma sucessatildeo de sinteacuteticos

conteuacutedos filosoacuteficos teoloacutegicos cientiacuteficos e misterioloacutegicos6 que encerram aquilo

que seria uma revisatildeo de posiccedilotildees parte delas de autores ou escolas comentadas por

Pico (as primeiras quatrocentas) e as demais de autoria do proacuteprio Pico (as

quinhentas seguintes) O planejamento do conjunto previa pois a apresentaccedilatildeo de

propostas de discussatildeo ndash ponto fundamental para a compreensatildeo das consequecircncias

desencadeadas ndash e natildeo a discussatildeo em si Certamente obtendo o bom resultado que

o Autor esperava no debate o intento seria levado adiante

Contrariando no entanto aquela que seria a vontade de seu Escritor o vasto

material parte de um projeto natildeo finito e natildeo devidamente esclarecido difundiu-se

rapidamente A ediccedilatildeo das novecentas proposiccedilotildees embora tendo transgredido as

formalidades eclesiaacutesticas tinha por honesto intento uma devida apresentaccedilatildeo e

discussatildeo com os eruditos ndash antes de qualquer apresentaccedilatildeo puacuteblica A indevida

publicaccedilatildeo da obra de certa forma serviu para aumentar a notoriedade do jovem

conde que jaacute desfrutava de grande fama fazendo-o passar a ser reconhecido como

ldquodoutor universal dono de um saber privilegiado acerca do homem e da natureza dos

anjos e de Deusrdquo7 Mas nem todos naqueles finais do Quattrocento enxergaram as

Teses com tamanho otimismo Algumas vozes consideraram a obra na melhor das

hipoacuteteses uma tentativa superficial de fusatildeo de doutrinas outras a julgaram ldquoaudazrdquo

ldquotemeraacuteriardquo e ldquovangloriosardquo especialmente em razatildeo de sua imoderada dimensatildeo e do

abarcamento de vaacuterias aacutereas de conteuacutedos diversos em uma uacutenica obra8 Eacute irocircnico

durante a permanecircncia de Pico em Paris entre 1485 e 1486 (cf GARIN 2011 p24) Os ldquocalculatoresrdquo do seacuteculo XIV aplicaram a matemaacutetica para problemas tratados qualitativamente na fiacutesica aristoteacutelica (Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 np467) Veja-se ainda BIONDI (1995 pXI)

5 Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 7-8 Conforme observa o comentador as especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas dos trecircs seacuteculos anteriores foram fundamentadas sobre esse meacutetodo Para maiores detalhes sobre os meacutetodos mencionados veja-se BIONDI ldquoIntroduzionerdquo e ldquoPremessa ai testirdquo em Conclusiones Nongentae opcit ppXI 4

6 O nuacutemero de distinccedilotildees temaacuteticas mencionadas por Pico na abertura das Conclusiones eacute maior ldquosatildeo proposiccedilotildees dialeacuteticas morais fiacutesicas metafiacutesicas teoloacutegicas maacutegicas e cabaliacutesticasrdquo (ed BIONDI p7) As proposiccedilotildees do tipo que hoje aceitariacuteamos como cientiacuteficas ndash que contemplam campos da fiacutesica biologia e astronomia ndash apresentam-se em nuacutemero bastante limitado Veja-se como exemplo a Conclusio 7 segundo Alberto Magno ldquoO som eacute levado conforme seu ser real ateacute o ponto onde inicia o nervo oacuteticordquo (II 7) Ou ainda a Conclusio 9 segundo Egidio Romano ldquoO calor poderaacute gerar o fogo mesmo quando natildeo estiver em contato diretordquo (IIVI 9)

7 Albano Biondi extrai essa imagem outorgada a Pico de uma carta do famoso poeta carmelita Battista Spagnoli de Mantova mestre de Filosofia e Teologia em Bologna (BIONDI ldquoIntroduzionerdquo opcit p VI)

8 Na De Hominis Dignitate elaborada como introduccedilatildeo agraves Conclusiones Pico antecipara a defesa das provaacuteveis criacuteticas que receberia justificando que a ideia de realizar um debate no molde praticado por respeitados filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles era uma forma favoraacutevel para a obtenccedilatildeo da verdade ldquodo mesmo modo que as forccedilas do corpo se robustecem com a ginaacutestica assim tambeacutem sem duacutevida nesta espeacutecie de palestra do espiacuterito a energia da alma se torna mais forte e firmerdquo (Oratio p135) Ademais seu debate natildeo tinha como intenccedilatildeo ldquomostrar engenho e erudiccedilatildeordquo (idem) mas ldquoapenas a formaccedilatildeo de sua alma e o conhecimento da verdaderdquo (ibid p133) Em relaccedilatildeo agrave elevada quantidade de teses escritas considerada por muitos ambiciosa e ldquoacima das forccedilasrdquo do autor (ibid pp 133 139 147) Pico escreveria ldquoProcurei reduzir a discussatildeo ao menor nuacutemero possiacutevel de pontos Se eu

54

observar que o Autor que tanta atenccedilatildeo dedicou agrave questatildeo doutrinaacuteria da natildeo-

divulgaccedilatildeo de certas concepccedilotildees sigilosas de ordem universal assistiu agrave indevida

publicaccedilatildeo das Teses e sua decorrente leitura por mentes despreparadas conjuntura

que o levou a sofrer consequecircncias nefastas e ateacute quase seu atestado de morte

A rejeiccedilatildeo agrave obra alcanccedilou a contemporaneidade porquanto as Conclusiones

foram pouco entendidas e muito criticadas Alguns criacuteticos talvez por natildeo terem

colhido a ideia seminal contida em seu projeto acreditaram tratar-se de uma

miscelacircnea de pensamentos que natildeo faziam sentido ou que se encontravam

inconclusos Outros viram nas Conclusiones uma combinaccedilatildeo excecircntrica de

problemas incompatiacuteveis uma curiosidade literaacuteria sem qualquer coerecircncia interna9

Eugenio Garin foi dos poucos a apontar que aquele conglomerado de sistemas deveria

ser apreciado a partir de suas referecircncias aos maiores problemas filosoacuteficos da

Histoacuteria do Pensamento O historiador completa que a tentativa de conciliaccedilatildeo de

diferentes doutrinas filosoacuteficas deve ser entendida como a consciente percepccedilatildeo da

existecircncia de uma pluralidade de pontos de vista que podem ser integrados10 Apesar

de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Pico acolhe torna suas e finalmente

refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis procurando em

sentido contraacuterio ao errocircneo julgamento de querer demonstrar uma magnitude de

conhecimentos ldquoreduzirrdquo todo o seu scibile a compactas 900 teses11

A quantidade de temas pertencentes a cada setor de pensamento natildeo estaacute

distribuiacuteda de forma uniforme dentro da recomposiccedilatildeo piquiana alguns eleitos pelo

escritor recebem mais atenccedilatildeo do que outros Eacute o caso do amplo espaccedilo dado a

questotildees de Teologia ndash concernentes a tradiccedilotildees distintas ndash a especiacuteficas aacutereas da

Filosofia ndash como a Metafiacutesica as questotildees acerca da Alma e o campo que chamamos

de Cosmologia ndash e a algumas doutrinas pertencentes ao campo da Misteriologia ndash

caso por exemplo do grupo de teses voltadas agrave Magia ao Orfismo e agrave Cabala Os

toacutepicos a seguir procuraratildeo mostrar que tais escolhas obedecem a um planejamento

Apoacutes a averiguaccedilatildeo da estrutura das Conclusiones necessaacuteria para o entendimento

do desenho geral da obra e de algumas teses relacionadas aos temas filosoacuteficos

mencionados seratildeo verificadas as questotildees teoloacutegicas condenadas e sua relaccedilatildeo com

as crenccedilas do autor por fim as disposiccedilotildees de acircmbito misterioloacutegico

tivesse querido dividir e desmembrar as suas partes mdash como eacute habitual outros fazerem mdash teria escrito certamente uma quantidade inumeraacutevel de tesesrdquo (ibid p163)

9 Um desses criacuteticos foi J BRUCKER (Historia critica Philosophiae Lipsia 1766 pp57 ss) que escreveria que a obra ldquomistura tudo inadequadamente e nos confunde uns aos outrosrdquo no que foi seguido por vaacuterios (apud GARIN 2011 n p 74)

10 GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17 Em outra obra Garin considera que o que pareceria um ldquofloreio filosoacuteficordquo eacute na verdade a ldquoexaltante procura da pequena mas lsquoimortal contribuiccedilatildeorsquo que cada homem grego romano cristatildeo aacuterabe judeu dava agrave eternidade do pensamentordquo (GARIN 2011 pp72-76)

11 Joseacute Vitorino PINA MARTINS julga ainda que a obra eacute fruto do amadurecimento do autor decorrente de suas profundas reflexotildees (Cultura Italiana Lisboa 1971)

55

1 A Secreta Conexatildeo

O conjunto de novecentas teses divide-se em dois grupos No primeiro

composto de quatrocentas proposiccedilotildees Pico apresenta as teorias de vaacuterios

pensadores que o marcaram ligados a diferentes Escolas12 Nessa seccedilatildeo eacute realizada

uma siacutentese histoacuterico-doutrinaacuteria que introduz ao leitor o nuacutecleo do pensamento

piquiano Pouco mais da metade das teses desse grupo satildeo dedicadas aos autores de

tradiccedilatildeo aristoteacutelica divididos entre os escolaacutesticos cristatildeos ndash entre eles Tomaacutes de

Aquino e Joatildeo Escoto ndash os peripateacuteticos orientais ndash como Avicena Averroacuteis e

Maimocircnides13 ndash e os gregos ndash Alexandre de Afrodiacutesia e Teofrasto entre outros14 A

outra metade da primeira parte eacute formada por filoacutesofos da Escola neoplatocircnica ndash com

Plotino e Proclo entre seus principais representantes ndash seguidos por quatro seacuteries de

doutrinas singulares Tais seacuteries finais destacam-se das precedentes por contemplar

temas ligados a teologias natildeo cristatildes De fato as uacuteltimas teses do primeiro grupo

tratam da matemaacutetica pitagoacuterica e das doutrinas caldaicas hermeacuteticas e cabaliacutesticas

Cabe observar que embora aos autores aristoteacutelicos seja dedicado enquanto

conjunto um nuacutemero relativamente maior de teses o autor isolado ao qual satildeo

destinadas mais proposiccedilotildees eacute Proclo seguido pelas doutrinas cabaliacutesticas que

fecham o grupo15

O segundo grupo com as quinhentas proposiccedilotildees seguintes constitui a

primeira delineaccedilatildeo precisa de uma doutrina da pax unifica marcando a especulaccedilatildeo

original de Pico16 Essa seacuterie de teses denominadas secundum opinionem propriam

detinha um caraacuteter de novidade ao lanccedilar em debate inusitados campos de reflexatildeo

Distribuiacutedos entre onze sessotildees os temas dividem-se entre os denominados

ldquoparadoxais voltados a conciliar os pronunciamentos de Aristoacuteteles e Platatildeo seguidos

de outros doutos que se encontram em maior discoacuterdiardquo os ldquoem dissenso com a

filosofia correnterdquo17 os ldquoparadoxais que introduzem novas posiccedilotildees na filosofiardquo e os

teoloacutegicos ldquobastante diversos da comum formulaccedilatildeo dos teoacutelogosrdquo completam o

12 Na primeira parte da obra Pico mostra seu reconhecimento agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica das Escolas porquanto a

sequecircncia de autores eacute ordenada por sua filiaccedilatildeo doutrinaacuteria Natildeo satildeo inseridas citaccedilotildees originais dos autores escolhidos mas interpretaccedilotildees pessoais de alguns passos ou doutrinas a eles atribuiacutedos (e que Pico poderia ter recebido atraveacutes de outras fontes) De qualquer forma os conteuacutedos correspondem com maior ou menor exatidatildeo a informaccedilotildees que podem ser encontradas nos escritos daqueles autores (cf ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 195)

13 Apesar de Maimocircnides ndash o chamado Moyse ldquoegiacutepciordquo - ser um filoacutesofo sefardita Pico o inclui no grupo dos aacuterabes (ldquosecundum doctrinam Arabumrdquo) possivelmente em razatildeo de Maimocircnides ter vivido no Egito e no Marrocos

14 As teses referentes agrave tradiccedilatildeo peripateacutetica estatildeo assim distribuiacutedas 94 dedicadas a seis autores escolaacutesticos latinos 82 distribuiacutedas entre oito filoacutesofos orientais e 29 dedicadas a cinco filoacutesofos gregos que professam o Aristotelismo O total de 205 teses que agraciam os disciacutepulos do Liceu reflete o acolhimento dado agravequela Escola durante os seis anos a ela dedicados conforme testemunha a carta escrita a Ermolao Barbaro vista no Capiacutetulo II

15 Dentre o elevado nuacutemero de fontes mencionadas por Pico (gregas latinas hebraicas e aacuterabes) algumas permanecem natildeo identificadas ateacute esta data Uma grande parte delas inclusos os autores aacuterabes e hebreus encontra-se identificada na obra de Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies Temple 1998

16 Eacute praticamente consensual a qualificaccedilatildeo da segunda parte das Conclusiones como sendo a expressatildeo da originalidade de Pico Veja-se BIONDI 1995 p XVIII

17 Natildeo apenas nesse especiacutefico grupo de teses como em linhas gerais Pico reconhecia que suas proposiccedilotildees apresentavam-se em linha contraacuteria aos haacutebitos argumentativos tradicionais tanto em relaccedilatildeo ao estilo quanto ao conteuacutedo (BIONDI idem)

56

conjunto as teses platocircnicas matemaacuteticas oacuterficas maacutegicas e mais uma vez outras

tantas relacionadas agraves teologias dos caldeus e dos cabalistas18 Curiosamente

constam nesse grupo dez teses sobre as doutrinas de certo filoacutesofo aacuterabe de nome

Abucaten Avenan19 Nas teses ldquoparadoxais conciliantesrdquo estatildeo lanccediladas as bases de

seu projeto de conciliaccedilatildeo entre pensadores e escolas que professavam doutrinas

tantas vezes entendidas como divergentes como os escolaacutesticos Tomaacutes e Duns

Escoto ou os aacuterabes Averroacuteis e Avicena ndash e que Pico mostraria em debate serem

concordantes20

A distribuiccedilatildeo estrutural das proposiccedilotildees certamente natildeo eacute ocasional

Tomando-se a primeira seacuterie de quatrocentas teses observa-se a seguinte sequecircncia

os pensadores aristoteacutelicos os neoplatocircnicos a teologia pitagoacuterica a caldaica a

hermeacutetica a cabalista Natildeo seria errado sugerir que essa ordenaccedilatildeo segue a

cronologia dos estudos percorridos por Pico21 Entretanto tal hipoacutetese natildeo explicaria

a colocaccedilatildeo da Cabala ao final de tudo visto que os estudos cabaliacutesticos iniciaram

muito provavelmente em periacuteodo anterior a alguns dentre aqueles Uma segunda

hipoacutetese pode ser proposta a partir do reconhecimento da existecircncia de uma

aproximaccedilatildeo gradual a filosofias relacionadas agrave Revelaccedilatildeo Ou seja a divisatildeo temaacutetica

responde a uma ordem sucessoacuteria que partindo do niacutevel aristoteacutelico-teoreacutetico vai ao

encontro das escolas neoplatocircnicas ndash em que a presenccedila de abstraccedilotildees metafiacutesicas eacute

maior de que no grupo anterior ndash e alcanccedila finalmente as uacuteltimas escolas de

proeminente conteuacutedo teoloacutegico-soterioloacutegico A hipoacutetese de uma gradativa

aproximaccedilatildeo a tais temaacuteticas se adequa ademais agrave criaccedilatildeo de condiccedilotildees

preparatoacuterias para receber o segundo grupo de teses aquelas tecidas ldquosegundo a

opiniatildeo do autorrdquo Essas iniciando-se com resoluccedilotildees e conciliaccedilotildees de acircmbito geral

filosoacutefico passam por questotildees de ordem teoloacutegica platocircnica e matemaacutetica

concluindo-se com aquele que seria um corpo uacutenico formado pelas doutrinas

misterioloacutegicas quais sejam o Zoroastrismo o Orfismo a Magia e a Cabala que

mais uma vez da mesma forma significativa como na primeira parte fecha a segunda

parte da obra

Nesse sentido a sequecircncia das proposiccedilotildees aponta para a existecircncia de uma

intencional organizaccedilatildeo ndash natildeo informada por Pico tampouco esclarecida por seus

comentadores Malgrado a escassez de informaccedilotildees expressas tais indiacutecios satildeo

18 ldquoConclusiones numero quingentae secundum opinionem propriam quae denaria diuisione diuiduntur in

Conclusiones Physicas Theologicas Platonicas Mathematicas Paradoxas dogmatizantes Paradoxas conciliantes Caldaicas Orphicas Magicas et Cabalisticasrdquo

19 Pico presume que Abucaten Avenan seja o autor de uma das mais ceacutelebres obras de cunho neoplatocircnico da filosofia medieval o Liber de Causis obra que Pico teria facilmente lido na versatildeo latina realizada por Gerardo de Cremona em torno a 1175 A questatildeo da identificaccedilatildeo desse autor que se manteve por muito tempo obscura foi talvez resolvida em 1998 quando se encontrou na lista de tradutores aacuterabes-islacircmicos presentes no grupo de al-Kindi (Bagdaacute seacuteculo IX ) fornecida no Cataacutelogo (Fihrist) do biblioacutegrafo aacuterabe medieval al-Nadim (m 987) o possiacutevel nome do personagem em questatildeo tratar-se-ia de Zaruba al-Nagravelsquoimi al-Himsi autor aacuterabe cristatildeo vivido no Iraque por volta do ano 850 (cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 188)

20 Oratio p147 ldquoAddidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo

21 Conforme foi visto no capiacutetulo anterior Pico iniciou seus estudos pelas portas das universidades de Paacutedua Pavia e Ferrara nuacutecleos aristoteacutelicos apenas mais tarde aproximou-se do Platonismo e ainda depois atraveacutes da influecircncia de Ficino aproximou-se ao estudo de Hermes no nuacutecleo de Florenccedila

57

confirmados pelo proacuteprio quando poucos meses apoacutes a publicaccedilatildeo das Conclusiones

para justificar-se da acusaccedilatildeo de que seu trabalho representava um amontoado

caoacutetico de enunciados o reacuteu faria menccedilatildeo em sua Apologia22 agrave existecircncia de uma

ldquoocculta concatenatiordquo que traria significado e unidade agraves Teses23 A revelaccedilatildeo de

existecircncia de uma concordacircncia oculta nunca esclarecida pede que o leitor olhe de

forma discernitiva para o conteuacutedo das teses bem como para a quantidade de

enunciados atribuiacutedos a cada campo de conhecimento Verifica-se que mesclados aos

assuntos que passam por conceituaccedilotildees de fiacutesica astronomia biologia ontologia e

matemaacutetica firma-se uma prevalecircncia de determinados temas que se interligam

mais do que uma terccedila parte da totalidade das teses encontra-se distribuiacuteda entre

questotildees pertinentes agrave alma humana e questotildees relacionadas ao processo hieraacuterquico

do cosmo ndash parte dessas dedicadas agrave astrologia de ordem esoteacuterica Ademais uma

fraccedilatildeo relevante das teses trata de questotildees teoloacutegicas Esses temas concorrem a

compor uma importante faceta do pensamento piquiano e como seraacute visto no uacuteltimo

toacutepico integram os nuacutecleos das doutrinas misterioloacutegicas abordadas por Pico sendo

a possiacutevel chave da secreta conexatildeo sinalizada

Embora natildeo caiba aqui a anaacutelise individual de cada Conclusio24 uma pequena

amostra de cada um dos dois primeiros temas acima mencionados eacute benvinda para

retratar o panorama geral das Conclusiones O terceiro tema referente agrave Teologia

seraacute abordado no toacutepico seguinte Dentre as 900 teses uma quantidade miacutenima25 de

167 satildeo dedicadas agraves questotildees relacionadas agrave Alma ndash universal humana e suas inter-

relaccedilotildees ndash nas especiacuteficas nomenclaturas e subdivisotildees que recebe como Intelecto

Agente Intelecto Possiacutevel ou Mente26 Eacute o caso das natildeo poucas proposiccedilotildees filosoacuteficas

pertinentes ao processo dialeacutetico que se realiza dentro de um cenaacuterio epistemoloacutegico

22 A Apologia foi o texto escrito imediatamente apoacutes a condenaccedilatildeo das Teses preparado por Pico para defender-

se das acusaccedilotildees perante a comissatildeo romana Nela satildeo apresentadas extensas confutaccedilotildees acerca de cada uma das 13 teses inicialmente condenadas que Pico reformula em um total de 45 Vejam-se detalhes na fundamental organizaccedilatildeo de Paolo Edoardo FORNACIARI (Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze 2010) A Apologia firma-se como ldquoum documento exemplar que anuncia a grande reviravolta intelectual da Idade Modernardquo de acordo com Giulio BUSI que assim narra ldquoFu dunque nel mese di aprile 1487 che il Conte della Mirandola scrisse di getto in latino un testo appassionato difficile a tratti insolente con cui voleva mettere fine una volta per tutte alle accuse e insinuazioni sul suo conto Nacque cosigrave lApologia una delle creazioni piugrave significative dellintero Rinascimentordquo (Pico fede ragione eInquisizione in ldquoIl Sole -24 Orerdquo 28082018)

23 PICO Apologia fol235 ldquoin omnibus meis conclusionibus semper occulta quaedam est concatenatiordquo 24 O esforccedilo hercuacuteleo foi realizado por Stephan Farmer que apresenta ateacute o momento presente a mais completa

ediccedilatildeo comentada das novecentas teses em seu Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) de 1998 Em termos de ediccedilotildees criacuteticas das Conclusiones existem outras duas obras entre as publicaccedilotildees modernas atuais a realizada por Bohdan Kieszkowski em 1973 baseada no manuscrito de Erlangen (que segundo Farmer parece conter vaacuterios erros) e a publicada por Albano Biondi em 1995 acompanhada de traduccedilatildeo italiana (a primeira em quinhentos anos) Essa se baseia no manuscrito de Erlangen e na editio princeps contraposto aos manuscritos de Viena e de Mocircnaco (cf BIONDI p3) tratando-se da ediccedilatildeo aqui majoritariamente empregada para as traduccedilotildees das citaccedilotildees A ediccedilatildeo de Farmer acima mencionada baseia-se na verificaccedilatildeo de duas coacutepias da editio princeps presentes na British Library de Londres e na Biblioteca Apostoacutelica Vaticana em Roma Os detalhes acerca das trecircs ediccedilotildees satildeo comentados na obra de FARMER (1998 pp186-188)

25 Trata-se de um valor miacutenimo possivelmente sendo de ordem maior A obscuridade de certas proposiccedilotildees natildeo permite sequer sua classificaccedilatildeo temaacutetica

26 Nas teses ldquosegundo opiniatildeo dos platocircnicosrdquo conclusio nr 19 (ed Biondi II p 97) o proacuteprio Pico esclarece que a parte racional da alma que ele chama de ldquoIntelecto Possiacutevel seguindo os peripateacuteticosrdquo eacute aquela capaz de operar ldquosem conjunccedilotildees com os produtos da fantasiardquo

58

como se vecirc em algumas das asserccedilotildees extraiacutedas do Aristotelismo ndash grego e aacuterabe ndash

do Neoplatonismo e da Matemaacutetica27

Quando Aristoacuteteles sustenta em Metafisica IX que as

realidades separadas e divinas satildeo por noacutes totalmente

conhecidas ou totalmente ignoradas deve ser entendido tratar-

se daquele conhecimento pertinente agravequeles que jaacute alcanccedilaram

a primeira atuaccedilatildeo do intelecto28

(Conclusio secundum Alexandrum 5)

Felicidade uacuteltima do homem eacute a contiguidade entre intelecto

agente e intelecto possiacutevel do qual esse se faz forma29

(Conclusio secundum Auenroen 3)

Felicidade uacuteltima do homem eacute quando o nosso intelecto

particular se conjuga completamente com o intelecto total e

primordial30 (Conclusio secundum Plotinum 7)

Como os objetos da matemaacutetica se assumidos absolutamente

natildeo completam em nada o intelecto se assumidos como

imagens das realidades superiores nos conduzem pela matildeo

imediatamente para a especulaccedilatildeo dos Inteligiacuteveis31

(Conclusio de mathematicis 4)

Ainda compondo as questotildees concernentes agrave Alma verifica-se que um nuacutemero

substancial de asserccedilotildees eacute reservado para tratar em linguagem teoloacutegica ou filosoacutefica

do tema da Queda ou distinccedilatildeo de um princiacutepio de unidade e de seu consequente

retorno agravequele estado de acordo com cada Escola Os exemplos abaixo satildeo tomados

de teses referentes ao Peripatetismo grego ao Neoplatonismo e ao misticismo

hebraico

27 A classificaccedilatildeo das teses segue a formataccedilatildeo estabelecida por Albano Biondi (Conclusiones Nongentae Le

novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995) que efetua uma divisatildeo conforme grupos doutrinaacuterios A traduccedilatildeo das teses para o portuguecircs eacute de nossa responsabilidade tendo sido utilizada como guia a ediccedilatildeo de Biondi

28 PICO Concl (I) III IV 5 (p34) ldquoCum dicit Aristoteles nono Metaphysicae separata et diuina aut totaliter scriri a nobis aut totaliter ignorari intelligendum est de ea cognitione quae his contigit qui iam ad summam intellectus actuationem perueneruntrdquo A ediccedilatildeo de FARMER apresenta diferente posiccedilatildeo das teses a quinta de Alexandre de Afrodiacutesia em BIONDI corresponde agrave sexta de FARMER

29 Concl (I) II I 3 (p20) ldquoFelicitas ultima hominis est cum continatur intellectus agens possibili ut forma quam continuationemrdquo Segundo Stephan FARMER o problema da ldquounidade do intelectordquo colocado por Averroacuteis nasce sobre o comentaacuterio do De Anima 35 provavelmente segundo o autor o texto aristoteacutelico mais debatido entre os escolaacutesticos medievais (1998 np 252)

30 Concl (I) IV I 7 (p36) ldquoFelicitas hominis ultima est cum particularis intellectus noster total primoque intellectui plene coniungiturrdquo Provavelmente a concepccedilatildeo eacute extraiacuteda de Eneacuteadas I4 embora colocada com palavras de Pico O Autor elaborou essas teses seis anos antes de Ficino publicar a sua traduccedilatildeo das Eneacuteadas ndash que o proacuteprio Pico o havia incitado a realizar em 1484 ndash fato que apoia a hipoacutetese de que Pico tenha sido o primeiro filoacutesofo em seacuteculos a debater publicamente aquelas opiniotildees (FARMER ibid np 296-298)

31 Concl (II) VII 4 (p106) ldquoSicut subiecta mathematicorum si absolute accipiantur intellectum nihil perficiunt ita si ut imagines accipiantur superiorum immediate nos ad intelligibilium speculationem manu ducuntrdquo

59

Creio que o intelecto agente que apenas ilumina seja em

Temiacutestio a mesma coisa que na Cabala eacute Metraton32

(Conclusio secundum Themistium 2)

Natildeo toda descende a alma quando descende33

(Conclusio secundum Plotinum 2)

O intelecto agente natildeo eacute outra coisa que a parte da alma que

permanece no alto e natildeo participa da Queda34

(Conclusio secundum Adelandum Arabem 1)35

Quando a alma teraacute compreendido tudo aquilo que poderaacute

compreender e se uniraacute agrave alma superior se despiraacute de suas

vestes terrenas se extirparaacute de seu lugar e se conjugaraacute com o

divino36 (Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum

hebraeorum 44)

Outro grupo temaacutetico pode ser delineado a partir das teses que abordam

questotildees relacionadas a teorias de organizaccedilatildeo do cosmo verificadas em quantidade

proeminente e de forma mais especiacutefica do processo de gradaccedilatildeo dentro do desenho

universal Tal tema encontra representaccedilatildeo entre outras doutrinas na escolaacutestica e

na neoplatocircnica bem como em todas as misterioloacutegicas mencionadas por Pico

(tratadas na parte final)

As processotildees nas realidades divinas se distinguem segundo

intelecto e vontade37

(Conclusio secundum Henricum Gandauensem 3)

O artiacutefice ou construtor do mundo sensiacutevel eacute o seacutetimo da

hierarquia intelectual38 (Conclusio secundum Jamblichum 2)

32 Concl (I) III V 2 (p34) ldquoIntellectus agens illuminans tantum credo sit allud apud Themistium quod est

Metraton in Cabalardquo FARMER (p294) comenta que Pico transforma o Metraton cabaliacutestico em princiacutepio filosoacutefico

33 Concl (I) IV I 2 (p36) ldquoNon tota descendit anima quum descenditrdquo Segundo FARMER os argumentos mais similares da proposiccedilatildeo encontram-se em Eneacuteadas IV81 ss (opcit np297)

34 Concl (I) IV II 1 (p36) ldquoIntellectus agens nicbil est aliud quam pars animae quae sursum manet et non caditrdquo

35 Adelando Aacuterabe eacute na verdade Adelardo di Bath (cf FORNACIARI 2010 p LXIV) 36 Concl (I) IX 44 (p60) ldquoCum anima comprehenderit quidquid poterit comprehendere et coniungetur

animae superiori expoliabit indumentum terrenum a se et exstirpabitur de loco suo et coniungetur cum diuinitaterdquo

37 Concl (I) IV 3 (p16) ldquoProcessiones distinguuntur in diuinis penes intellectum et voluntatemrdquo A biblioteca de Pico continha as principais obras de Henrique de Gand ndash Summa Theologica Quodlibeta e uma compilaccedilatildeo de seus escritos (Pearl KIBRE The library of Pico della Mirandola 1936)

38 Concl (I) IV IV 2 (p40) ldquoOpifex sensibilis mundi septimus est hierarchiae intellectualisrdquo Muitas das conclusiones atribuiacutedas a Jacircmblico foram extraiacutedas do comentaacuterio de Proclo ao Timeu que preserva fragmentos do comentaacuterio perdido de Jacircmblico para esse diaacutelogo Outras tantas foram extraiacutedas do primeiro livro do De Mysteriis parte do qual Ficino traduziu para o latim dois anos apoacutes Pico ter publicado as 900 teses (FARMER np 310)

60

A particular temaacutetica da continuidade hieraacuterquica do real encontra em Proclo

de Liacutecia seu principal emissaacuterio Agraves doutrinas daquele que representava o uacuteltimo anel

da cadeia dos platocircnicos Pico destina 55 teses que sintetizam alguns conteuacutedos que

abrangem natildeo somente as processotildees como complexas questotildees astroloacutegicas Apoacutes

ter realizado uma preliminar carreira filosoacutefica debruccedilado sobre as obras de

Aristoacuteteles o neoplatocircnico instalara-se sobre a filosofia hieraacutetica e teuacutergica39 passos

similares aos que Pico agora seguia Em relaccedilatildeo ao visiacutevel realce que lhe foi deferido

e como bem observa Albano Biondi esse ldquoeacute um caso em que a quantidade demonstra

adequadamente a relevacircncia atribuiacuteda a um estilo de pensamentordquo40

Os deuses intelectuais trazem os elementos unificantes do Uno

primevo as substacircncias das realidades inteligiacuteveis as vidas

(perfeitas compreensivas e generantes do divino) das

realidades inteligiacuteveis e intelectuais a propriedade intelectual

de si mesmos41 (Conclusio secundum Proclum 10)

Apoacutes a setemplicidade intelectual devem ser colocados

imediatamente os deuses supramundanos natildeo ligados a partes

do universo e natildeo coordenaacuteveis a este mundo que esses aliaacutes

abraccedilam por cada parte segundo causa42

(Conclusio secundum Proclum 20)

Juacutepiter Netuno e Plutatildeo dividindo-se o reino de Saturno natildeo

herdam o reino de Saturno se natildeo por mediaccedilatildeo do fundador

Juacutepiter43 (Conclusio secundum Proclum 26)

Olhando para a quaternidade do ser por si animado o demiurgo

fabrica as quatro partes principais do mundo44

(Conclusio secundum Proclum 39)

39 Proclo efetivamente comentou os versos atribuiacutedos a Orfeu ndash em cujos moldes compunha hinos ndash e os

Oraacuteculos caldeus nos quais via a essecircncia de toda a sabedoria (cf BIONDI 1995 pXXV) As teses referentes a Proclo agrave exceccedilatildeo de algumas foram extraiacutedas de sua obra-prima Theologia Platonica Pico aparentemente utilizou o texto grego (FARMER opcit npp314-315 318)

40 BIONDI opcit pXXV Proclo que havia sido esquecido apoacutes o fechamento da Academia em 529 dC ressurgindo uma primeira vez no ciacuterculo de Miguel Psello em Bizacircncio renascia agora em Florenccedila pelas matildeos de Giovanni Pico

41 Concl IVV 10 (p44) ldquoIntellectuales dii uniones habent ab uno primo substantiales ab intelligibilibus uitas perfectas et contentiuas generativas diuinorum ab intelligibilus et intellectualibus intellectuales proprietatem a se ipsisrdquo

42 Concl IVV 20 (p44) ldquoPost intellectualem hebodmadam ordinati sunt immediate supermundani Dei a partibus uniuersi exempti et incoordinabiles ad hunc mundum et secundum causam eum undique circumplectentesrdquo

43 Concl (I) IV V 26 (p46) ldquoIupiter Saturnus et Pluto Saturni regnum partientes a Saturno regnum non accipiunt nisi per medium conditoris Iouisrdquo Conforme Theologia Platonica 6 Trata-se dos trecircs liacutederes henads da ordem procliana de deuses supramundanos (FARMER np324)

44 Acerca da participaccedilatildeo do demiurgo no processo emanatoacuterio tratam ainda as teses referentes a Proclo nrs 40 41 e 42 Concl IVV 39 (p48) ldquoOpifex ad quatemitatem respiciens per se animalis quatuor fabricat partes principales mundirdquo

61

Dentro do quadro cosmoloacutegico Pico anuncia ainda em meio agraves teses e atraveacutes

daquele que se mostra um de seus autores mais estimados a existecircncia dos trecircs

Mundos cujas concepccedilotildees seriam esclarecidas devidamente no Heptaplus

Por lsquolugar supracelestersquo devemos entender aquilo que da

segunda triacuteade eacute mais inteligiacutevel que intelectual por

lsquoconcavidade sub-celestersquo aquilo que eacute mais intelectual que

inteligiacutevel por lsquoceacuteursquo aquilo que participa igualmente de uma e

de outra realidade45 (Conclusio secundum Proclum 52)

e que atraveacutes de outras Escolas encontram analogia com os corpos do homem

Atraveacutes do segredo do raio direto refletido e refratado na

ciecircncia da perspectiva somos informados acerca da triacuteplice

natureza intelectual animal e corporal46

(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 7)

A temaacutetica astroloacutegica tema que merece atenccedilatildeo por encontrar-se distribuiacutedo

entre vaacuterias seacuteries ocupa um espaccedilo natildeo pouco significativo47 Sua presenccedila na

maior parte das vezes expressa em linguagem velada contribui a firmar a

conceituaccedilatildeo da ordenaccedilatildeo universal tecida por Pico Eacute verificaacutevel particularmente

entre os representantes neoplatocircnicos e em conteuacutedo mais enigmaacutetico nas doutrinas

que fecham o segundo grupo de teses

Cada alma que participa de intelecto vulcacircnico eacute semeada na

Lua48 (Conclusio secundum Porphyrium 4)

Assim como Apolo eacute intelecto solar Ascleacutepio eacute intelecto lunar49

(Conclusio secundum Porphyrium 7)

Nos oito corpos do ceacuteu os elementos se encontram duas vezes

em modo celeste os encontraraacute aquele que proceder em ordem

retroacutegrada agravequela dupla numeraccedilatildeo de Binaacute50

(Conclusio secundum Jamblichum 4)

45 Concl IVV 52 (p50) ldquoPer supercoelestem locum habemus intelligere quod de secunda trinitate plus est

intelligibile quam intellectuale per subcoelestem concauitatem quod magis intellectuale quam intelligibile per coelum id quod aeque utroque participetrdquo Segundo Theologia Platonica 4

46 Concl (I) V 7 (p52) ldquoPer secretum radii recti reflexi et refracti in scientia perspectiuae triplicis naturae admonemur intellectualis animalis et corporalisrdquo

47 Trata-se de 37 teses que abordam de forma expressa a Astrologia A quantidade que pode natildeo parecer relevante eacute maior do que por exemplo o nuacutemero de teses atribuiacutedas a Tomaacutes de Aquino agrave matemaacutetica pitagoacuterica ou ao Orfismo entre alguns exemplos

48 Concl (I) IVIII 4 (p38) ldquoOmnia anima participans vulcanio intellectu seminatur in lunardquo 49 Concl IVIII 7 (p38) ldquoSicut Apollo est intellectus solaris ita Aesculapius est intellectus lunarisrdquo 50 Concl (I) IVIV 4 (p40) ldquoElementa in octo coeli corporibus coelesti modo bis inueniuntur quae quis

inueniet si retrogrado ordine in illa bina numeratione processeritrdquo De acordo com FARMER (opcit np311) essa proposiccedilatildeo eacute aparentemente inspirada no De mysteriis I17 A referecircncia agrave Binaacute ndash terceira dentre as Sefirot cabaliacutesticas ou numerationes correspondente agrave ldquoInteligecircnciardquo - que tem origens no Medioevo tardio natildeo poderia ser de Jacircmblico Pico provavelmente como ainda infere Farmer pretende derivar os ldquodois modos celestiaisrdquo dos

62

Provavelmente natildeo por coincidecircncia logo em seguida a Proclo satildeo tratadas as

doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do esoterismo representadas nas teses

ldquosegundo a matemaacutetica pitagoacutericardquo ldquosegundo a opiniatildeo dos teoacutelogos caldeusrdquo

ldquosegundo a doutrina de Mercuacuterio Trismegistordquo51 e ldquosegundo as doutrinas dos saacutebios

da Cabalardquo52 Pela ordenaccedilatildeo dada natildeo seria incorreto deduzir que Pico pretendesse

confirmar a afinidade entre o misticismo do uacuteltimo dos platocircnicos e as doutrinas que

se lhe seguem De fato nas teses hermeacuteticas e caldaicas Pico descreve pontual e

sinteticamente as diversas estruturas metafiacutesicas do real que embora natildeo expresso

se analogam com as neoplatocircnicas Por vezes as aacutereas do saber satildeo de duvidosa

classificaccedilatildeo dado seu caraacuteter de difiacutecil decifraccedilatildeo ou em razatildeo da presenccedila de dois

ou mais campos de conhecimento que se mesclam Eacute o caso da aacuterea teoloacutegica da qual

123 teses podem ser discernidas de forma inequiacutevoca mas cuja presenccedila se encontra

entrelaccedilada entre outros tantos conteuacutedos de forma obliacutequa ou obscura dificultando

sua classificaccedilatildeo como no exemplo abaixo

A ordenada seacuterie dos inteligiacuteveis natildeo reside na coordenada seacuterie

intelectual como sustenta Amasis o Egiacutepcio Essa eacute em

verdade acima de cada hierarquia intelectual no abismo da

unidade primaacuteria e abscocircndita aleacutem de qualquer possibilidade

de participaccedilatildeo sob a neacutevoa da escuridatildeo originaacuteria53

(Conclusio secundum Chaldeorum Theologorum 5)

A discussatildeo conceitual das teses apresentadas mesmo em seu nuacutemero

reduzido traria natildeo apenas prolixidade ao texto como um distanciamento

desnecessaacuterio da trajetoacuteria traccedilada A amostra dos poucos exemplos tem por

finalidade apontar para a prevalecircncia de determinados conteuacutedos e mostrar na

continuidade que os especiacuteficos temas indicados encontram-se natildeo por acaso

especialmente presentes nas mateacuterias esoteacutericas contidas na segunda parte da obra

Uma etapa pois necessaacuteria para alcanccedilarmos nosso intento final Entre as dispersas

teses que parecem natildeo se relacionar encontram-se elos que indicam a existecircncia de

um projeto de composiccedilatildeo que seleciona dentro de cada sistema doutrinal temas

caracteriacutesticos que confirmam a oculta concatenaccedilatildeo anunciada pelo autor Outros

fatores indicativos de tal concatenaccedilatildeo poderatildeo ser verificados de forma mais clara a

partir do segundo grupo de teses aquelas elaboradas ldquosegundo a opiniatildeo do autorrdquo a

serem verificados no toacutepico final deste Capiacutetulo Antes seratildeo vistas as teses teoloacutegicas

condenadas pela Igreja que abrem espaccedilo para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre Filosofia

elementos de Binaacute utilizando-se do meacutetodo de revolutio alphabetariae ou de alguma forma de gematria (concepccedilotildees a serem vistas no Capiacutetulo V)

51 Pico utiliza a versatildeo latina do nome de Hermes Trismegisto 52 Conclusiones [] ldquosecundum Mathematicam Pythagoraerdquo ldquosecundum opinionem Chaldeorum

Theologorumrdquo ldquosecundum priscam doctrinam Mercurii Trismegisti Aegyptiirdquo ldquosecundum doctrinam sapientum hebraeorum Cabalistarumrdquo

53 Concl (I) VII 5 (p54) ldquoCoordinatio intelligibilis non est in intellectuali coordination ut dixit Amasis Aegyptius sed est super omnem intellectualem hierarchiam in abysso primo unitatis et sub caligine primarum tenebrarum imparticipaliter absconditardquo Farmer ajuiacuteza que as proposiccedilotildees caldaicas tenham sido extraiacutedas de fontes neoplatocircnicas embora Pico afirmasse ter em sua posse manuscritos originais caldeus (np338)

63

e Teologia na estruturaccedilatildeo do pensamento de Pico reflexatildeo que serviraacute de preacircmbulo

natildeo apenas para o uacuteltimo item como particularmente para os Capiacutetulos VI e VII

2 Religiatildeo ou Filosofia

Em Veneza a ediccedilatildeo das Conclusiones foi publicamente queimada por 14 dias

consecutivos54 esse foi apenas o iniacutecio dos graves conflitos que Pico viria a ter com a

Igreja e que culminariam em sua ordem de julgamento pela Inquisiccedilatildeo ndash seguidos da

fuga prisatildeo parcial clemecircncia papal (sem absolviccedilatildeo) e finalmente a voluntaacuteria (e

vigiada) reclusatildeo ateacute quase o uacuteltimo ano de sua vida55 Afinal o que havia de ldquomalrdquo

nas Conclusiones Aos olhos da Cuacuteria Pontifiacutecia natildeo eram poucas as razotildees para

ensejar a proibiccedilatildeo daquela composiccedilatildeo que recolhia suficientes fatores para levar os

juiacutezes eclesiaacutesticos a se colocarem de sobreaviso

a) tanto a quantidade de inteacuterpretes aristoteacutelicos presentes entre as teses

quanto o estilo parisiense evocavam o racionalismo hereacutetico averroiacutesta e mais grave

alessandrino que se opunha agraves ideias humanist0-platocircnicas partilhadas pela

Igreja56

b) a menccedilatildeo a tradiccedilotildees pagatildes que traziam certos temas natildeo aceitos pelo

Cristianismo gerava uma situaccedilatildeo incocircmoda

Todos os saacutebios entre Indianos Persas Egiacutepcios e Caldeus

acreditaram na transmigraccedilatildeo das almas isto eacute na sua

passagem de um corpo a outro57

(Conclusio secundum Adelandum Arabem 8)

c) a menccedilatildeo a teologias natildeo comprovadamente divergentes como a pitagoacuterica

a oacuterfica e a hermeacutetica mas tambeacutem natildeo exatamente alinhadas com a doutrina cristatilde

54 Paolo Edoardo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p10 55 Graccedilas agraves descobertas feitas por Leacuteon Dorez em torno aos verbais das audiecircncias tidas pela Comissatildeo

Pontifiacutecia referentes agraves Teses de Pico eacute possiacutevel conhecer as condiccedilotildees que levaram agrave sua suspensatildeo e agrave supressatildeo do planejado debate (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole em France 1485-88 18971976) Veja-se tambeacutem para uma reconstruccedilatildeo pontual dos acontecimentos em torno ao julgamento eclesiaacutestico Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma 1965) ainda o item ldquoLe tappe del processo a Picordquo de FORNACIARI em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agrave Apologia lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 pp XIV-XXII

56 Pico apresentava a mesma necessidade de ldquoentenderrdquo o divino ultrapassando o veacuteu da Revelaccedilatildeo que outrora havia acometido Averroacuteis cujas doutrinas jaacute haviam sido condenadas ndash como a concepccedilatildeo de que apenas o Intelecto uacutenico poderia ser considerado imortal Os seguidores de Alessandro de Afrodiacutesia postulavam a mortalidade do corpo juntamente com a mortalidade do intelecto considerando a alma como uma funccedilatildeo do organismo portanto ligada a ele e agrave sua extinccedilatildeo Os alessandrinos chegaram a reconhecer posteriormente a presenccedila de certa imortalidade da alma mas tratar-se-ia de um tipo de imortalidade impessoal natildeo condizente com o Cristianismo Para outras informaccedilotildees veja-se GARIN 2011 pp 32 ss 140 ss

57 Concl (I) IV II 8 (p38) ldquoTranscorporationem animarum crediderunt omnes sapientes Indorum Persarum Aegyptiorum et Chaldaeorumrdquo

64

constituiacutea uma questatildeo delicada A complexidade de certos temas mesclados a

questotildees teoloacutegicas deveria ser devidamente avaliada e autorizada pela Igreja

Quem conheceraacute a sucessatildeo 1 2 3 4 5 12 teraacute nas matildeos com

precisatildeo a distribuiccedilatildeo da Providecircncia58

(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 4)

d) a presenccedila de vinte e nove Conclusiones theologicae intituladas ldquodiversas

do modo comum dos teoacutelogosrdquo59 era por si soacute ousada e soava arrogante aos olhos da

Cuacuteria Romana Ademais o conteuacutedo das asserccedilotildees teoloacutegicas ndash que compotildeem a

maior parte das teses inicialmente condenadas ndash era ofensivo e de alto teor hereacutetico

e) a presenccedila de Conclusiones Magicae e de um grande nuacutemero de

Conclusiones Cabalisticae cujo conteuacutedo entre outras coisas tentava demonstrar a

existecircncia de um sentido oculto nas Escrituras natildeo poderia ser tolerada

A Comissatildeo romana inicialmente condenou treze teses quase todas extraiacutedas

das Conclusiones in Theologia secundum opinionem propriam em sua maior parte

foram julgadas como falsas errocircneas hereacuteticas ou escandalosas sendo uma ou mais

dessas qualificaccedilotildees conjuntas60 A leitura de algumas entre as teses condenadas pode

dar uma amostra da complexidade do debate em que Pico pretendia se envolver

Se se segue a doutrina comum acerca da possiacutevel encarnaccedilatildeo

[de Deus] em qualquer criatura o corpo de Cristo pode estar

presente sobre o altar segundo a verdade do sacramento da

Eucaristia sem a conversatildeo do patildeo no corpo de Cristo ou sem a

anulaccedilatildeo da substacircncia do patildeo E isso seja dito em termos de

possibilidade natildeo de realidade61 (Conclusio in Theologia 2)

58 Concl (I) VI 4 (p52) ldquoQui I II III IV V XII ordines cognouerit prouidentiae distributionem exacte

tenebitrdquo 59 Conclusiones in Theologia numero XXIX secundum opinionem propriam a communi modo dicendi

Theologorum satis diuersam 60 No breve de Inocecircncio VIII de 20 de fevereiro de 1487 se lecirc ldquo[] segundo o juiacutezo de homens doutiacutessimos

algumas entre aquelas [teses] por efeito de sua formulaccedilatildeo desviam do reto caminho da ortodoxia algumas de tal forma obscuras confusas e intrincadas natildeo poderiam absolutamente ser apresentadas em puacuteblica discussatildeo sem preacutevios esclarecimentos outras satildeo tatildeo paradoxais que poderiam ser proibidas pela Igreja pelo sabor de heresia que emanam assim que se fossem apresentadas em debate puacuteblico poderiam engendrar escacircndalo entre as pessoas incultas e inexperientesrdquo (DOREZ-THUASNE opcit 1976 pp114-115)

61 Concl (II) IV 2 (p88) ldquoSi teneatur communis via de possibilitate suppositationis in respectu ad quamcumque creaturam dico quod sine conuersione panis in corpus Christi uel paneitatis annichilatione potest fieri ut in altari sit corpus Christi secundum veritatem sacramenti Eucharistiae quod sit dictum loquendo de possibili non de sic esserdquo De acordo com FARMER (opcit np 422) muitas das questotildees implicadas nas teses condenadas satildeo derivadas da vasta tradiccedilatildeo de comentaacuterios medievais encontrados nas Sentenccedilas de Petrus Lombardus nas quais Pico se fundamentou As principais oposiccedilotildees das teses teoloacutegicas satildeo endereccediladas a escritos de Tomaacutes de Aquino (FARMER idem) Outros comentaacuterios acerca das teses teoloacutegicas podem ser encontrados em Jader JACOBELLI Pico della Mirandola Longanesi 1986 pp 96-98

65

As palavras ldquoeste eacute o meu corpordquo e as demais pronunciadas

durante a Consagraccedilatildeo devem ser interpretadas materialmente

e natildeo indicativamente62 (Conclusio in Theologia 10)

Natildeo se deve adorar nem a cruz de Cristo nem outra imagem

alguma segundo adoraccedilatildeo de latria tampouco na forma como

a entende Tomaacutes63 (Conclusio in Theologia 14)

Um pecado mortal finito no tempo natildeo pode ser punido com

uma pena infinita segundo o tempo mas apenas com uma pena

temporalmente finita64 (Conclusio in Theologia 20)

Eacute mais racional acreditar que Oriacutegenes esteja salvo de que o

considerar condenado65 (Conclusio in Theologia 29)

Natildeo haacute ciecircncia que nos assegure mais sobre a divindade de

Cristo do que a Magia e a Cabala66 (Conclusio magica 9)

Como se vecirc satildeo todas proposiccedilotildees que discutem a Teologia cristatilde mas natildeo

apenas quase todas apresentam um conteuacutedo dificilmente compreensiacutevel ao crente

de pouca erudiccedilatildeo pois natildeo se referem a temas da ldquofeacute comumrdquo Pico sabia e tentara

advertir que suas afirmaccedilotildees deveriam ser examinadas e debatidas apenas entre os

sapientes da religiatildeo Contudo a partir da divulgaccedilatildeo das teses as prelazias

eclesiaacutesticas natildeo tardaram a se preocupar com as interpretaccedilotildees equivocadas que

aquelas declaraccedilotildees poderiam suscitar dentre ldquoos simplesrdquo podendo levar os fieacuteis a

uma confusatildeo em suas crenccedilas Natildeo se tratava apenas de discutir assuntos que a

Igreja considerava natildeo ser de alccedilada de um filoacutesofo Pico proclamava que ningueacutem

deve ser obrigado a crer se natildeo for persuadido defendia a salvaccedilatildeo de Oriacutegenes

62 Concl (II) IV 10 (p90) ldquoIlia verba Hoc est corpus etc quae in consecracione dicuntur materialiter

tenentur non significatiuerdquo Segundo FARMER (np427) Pico faz uso da ldquoteoria da suposiccedilatildeordquo medieval tardia postular algo ldquomaterialmenterdquo seria equivalente ao uso moderno de ldquocolocar aspasrdquo em torno agravequilo enquanto que postular algo em ldquosentido indicativordquo seria propocirc-lo absolutamente A tese de Pico nesse sentido significaria que se a foacutermula da Eucaristia natildeo fosse colocada ldquomaterialmenterdquo entatildeo a sentenccedila ldquoeste eacute o meu corpordquo referir-se-ia ao corpo do sacerdote e natildeo ao de Cristo Ou na forma sintetizada por JACOBELLI (opcit pp 96-98) tomar as palavras ldquomaterialmenterdquo significa ldquocomo se as dissesse Cristordquo A hostilidade da comissatildeo para com Pico reflete-se no julgamento de que tal tese aparentemente inoacutecua fosse ldquoescandalosa e contraacuteria agrave opiniatildeo comum dos sagrados doutoresrdquo

63 Concl (II) IV 14 (p90) ldquoNec crux Christi nec ulla imago adoranda est adoratione latriae etiam eo modo quo ponit Thomasrdquo A ldquoadoraccedilatildeo de latriardquo significa a idolatria conforme JACOBELLI opcit p97

64 Concl (II) IV 20 (p92) ldquoPeccato mortali finite temporis non debetur poena infinita secundum tempus sed finita tantumrdquo Aqui segundo GARIN (2011 p142) Pico se baseia em Oriacutegenes e Agostinho para os quais seria ldquoimpossiacutevel e absurdordquo um mal que fosse todo mal

65 Concl (II) IV 29 (p92) ldquoRationabilius est credere Origenem esse saluum quam credere ipsum esse damnatumrdquo Em sua resposta oral agrave comissatildeo papal Pico alegou que desde que Oriacutegenes natildeo errou por ldquopertinecircncia de vontaderdquo seria mais provaacutevel e piedoso acreditar que ele estaria salvo (DOREZ-THUASNE opcit pp 124-25) A comissatildeo declarou que a tese de Pico ldquotinha sabor de heresiardquo uma vez que se opunha agrave determinaccedilatildeo da Igreja universal (ibid p130) A resposta de Pico relatada em sua Apologia ganhou consideraacutevel popularidade no seacuteculo XVI admirada pelos reformadores da Igreja em razatildeo dos limites que impunha agrave autoridade eclesiaacutestica Para Farmer (np435) havia um sentido pessoal na afirmaccedilatildeo de Pico de que Oriacutegenes natildeo fora condenado por suas heresias mas sim pela ldquogloacuteria da sua eloquecircncia e conhecimentordquo

66 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et cabalardquo

66

negava a eternidade das penas do Inferno colocava-se contra a adoraccedilatildeo da cruz e de

qualquer imagem A busca por uma coerecircncia dentro dos dogmas o levava aleacutem de

limites tacitamente estabelecidos pela ortodoxia catoacutelica natildeo lhe permitindo parar

nem diante dos Sacramentos ingressando em sutilezas teoloacutegicas pretendia

submeter agrave discussatildeo a proacutepria questatildeo da transubstanciaccedilatildeo67 Aleacutem da condenaccedilatildeo

das teses seu artiacutefice foi declarado ldquoiacutempiordquo ldquoheregerdquo ldquomagordquo ldquoismaelitardquo e ldquojudeurdquo

Natildeo sou mago natildeo sou judeu nem ismaelita nem herege

Venero Jesus e trago sobre o meu corpo a cruz de Jesus atraveacutes

do qual o mundo eacute para mim crucifixo e eu sou crucifixo ao

mundo68

As razotildees que nos levam a abordar teses de especiacutefico teor teoloacutegico-cristatildeo em

uma investigaccedilatildeo que trata do uso de paradigmas esoteacutericos satildeo duas

Primeiramente para evidenciar que o Pico que se aproxima a teologias natildeo-cristatildes

natildeo o faz como um investigador desprovido de fundamentos pertinentes agrave teologia de

sua feacute mas sim como algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em

segundo lugar a abordagem do material teoloacutegico permite a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-

razatildeo no pensamento piquiano necessaacuteria para o fechamento do uacuteltimo capiacutetulo Sob

tal prisma a citaccedilatildeo acima deve ser entendida como uma efetiva prova de feacute do autor

longe de uma tentativa de contemporizar com seus arguidores Por outro lado as

comprovaccedilotildees de certas atitudes poderiam lanccedilar duacutevidas sobre o fato a saber a

maior parte das posiccedilotildees contestadas nas Conclusiones foi mantida na Apologia em

clara confirmaccedilatildeo de suas opiniotildees salvo poucas modificaccedilotildees69 algumas passagens

da defesa tanto oral quanto escrita mostram a incontida irritaccedilatildeo do autor e por

vezes certo escaacuternio que tomaria ares de provocaccedilatildeo agrave Igreja70 o reiterado interesse

por conteuacutedos pertencentes a outras tradiccedilotildees teoloacutegicas e sobretudo o fato de

fechar as duas partes de sua obra com um conteuacutedo relacionado a uma doutrina

religiosa ldquoestrangeirardquo poderia sugerir que Pico natildeo mais encontrasse conforto nas

crenccedilas cristatildes

67 Observe-se que toda a discussatildeo contraacuteria agrave adoraccedilatildeo da cruz e de outros siacutembolos bem como a criacutetica

piquiana ao sacramento da Eucaristia ndash a disputa De Eucharistiae Sacramento ndash seriam dois dos grandes debates travados pelos Reformadores do seacuteculo XVI (cf GARIN 2011 pp 32-33)

68 PICO Apologia (p 8) ldquoNon magus non iudaeus sum non ismaelita non haereticus sed Iesum solo et Iesu crucem in corpore meo porto per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundordquo

69 Os detalhes completos da defesa de cada tese condenada podem ser vistos em Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (FORNACIARI 2010)

70 Pico escreve na Apologia (p 33) ldquoExaminando as questotildees condenadas como hereacuteticas pelos mestres de Roma faz-se necessaacuterio que eu mude minha linguagem devo falar o idioma dos baacuterbaros pois como diz jocosamente o proveacuterbio os balbuciantes apenas entendem outros balbuciantesrdquo Na argumentaccedilatildeo referente agrave terceira Quaestio concernente agrave conclusio in Theologia 14 que trata da adoraccedilatildeo da cruz e de imagens Pico chama de hereacuteticos seus examinadores utilizando um artifiacutecio retoacuterico bastante simples sendo a sua tese catoacutelica quem a condena postulando o contraacuterio eacute propriamente hereacutetico (ibid p 132) Em outra passagem replicando as suspeitas sobre a Cabala lecirc-se ldquosuspeitam [os interrogadores] que os cabalistas natildeo sejam seres humanos mas hircocervos [animal miacutetico da Antiguidade claacutessica metade bode metade veado] ou centauros ou qualquer coisa de todo monstruosardquo (ibid pp176-77) Na sua quinta quaestio que trata da defesa da tese maacutegica nr 9 Pico diz ter ouvido algueacutem dizer que ldquoCabalardquo fosse o nome de um inimigo de Cristo e natildeo de uma doutrina (ibid pp176-77) esse fato seria mais tarde relatado por Johannes Reuchlin que em 1516 em seu tratado Arte della Cabala refere que algueacutem teria perguntado durante o interrogatoacuterio de Pico o que era a ldquocabalardquo recebendo como resposta tratar-se de um lsquohomem peacuterfido e diaboacutelico que havia escrito contra Cristorsquo sendo seus disciacutepulos chamados cabalistasrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

67

No entanto e como assegura Eugenio Garin Pico era um ldquogrande espiacuterito

religiosordquo e toda sua obra filosoacutefica esteve voltada ao conhecimento de Deus e agrave sua

relaccedilatildeo com o homem e com a realidade71 O proacuteprio subtiacutetulo que abre as

Conclusiones secundum opinionem propriam eacute forte indicador da intenccedilatildeo

respeitosa do autor e de sua vontade de submeter as teses agrave discussatildeo natildeo de impocirc-

las ldquo[] em nenhuma delas afirmo qualquer posiccedilatildeo como assertiva ou provaacutevel

senatildeo na medida em que as retenha verdadeiras ou provaacuteveis a Sagrada Igreja

Romanardquo72 O fato desconfortaacutevel para o magisteacuterio eclesiaacutestico eacute que apesar de sua

autecircntica ldquopietasrdquo que se manifestava em ldquoatitudes de sacerdote em haacutebitos laicosrdquo

Pico permanecia alheio agraves formas exteriores e cerimoniais da experiecircncia religiosa o

repuacutedio pela adoraccedilatildeo de imagens natildeo era apenas escrito (conclusio IV 14) mas

factual Tratava-se de um fiel que praticava o Cristianismo ldquosem ritos e sem

exterioridadesrdquo de um cristatildeo que ldquointroduzia a criacutetica inclusive nos Evangelhosrdquo73

Eis a razatildeo para Pico salvar Oriacutegenes com evidente inocecircncia e aproveitando de

breve momento de liberdade juvenil74 porque o erro do teoacutelogo fora feito em boa feacute

ele se arrependera e sofrera o martiacuterio porque se a condenaccedilatildeo de Oriacutegenes fosse

aceita deveriam ser condenados os Evangelhos os Apoacutestolos e os Santos jaacute que

tantas de suas doutrinas a Igreja natildeo admitia porque natildeo eacute a Igreja mas apenas

Deus que condena Na inflamada defesa de Oriacutegenes Pico mostrava tanto seu caraacuteter

pio quanto a iacutentima rebeliatildeo que vivia em relaccedilatildeo agraves doutrinas eclesiaacutesticas75

O que Pico buscava de fato era uma via de saiacuteda que permitisse a conciliaccedilatildeo

entre as exigecircncias do pensamento loacutegico e os conteuacutedos da ldquorevelaccedilatildeordquo sempre

como parte de seu projeto maior de concoacuterdia Sua viacutevida feacute cristatilde poderia tecirc-lo

levado a se acomodar diante do fasciacutenio oferecido pelas liturgias da Ecclesia ou da

coerecircncia dialeacutetica de seus teoacutelogos mas sua inteligecircncia havia sido nutrida em

demasia com textos hermeacuteticos e cabaliacutesticos ndash que intimamente o haviam

convencido da existecircncia de outros significados na literatura sagrada76 Natildeo se

tratava portanto de uma negaccedilatildeo da experiecircncia cristatilde mas da necessidade de

71 Uma ampla discussatildeo acerca da religiosidade de Pico pode ser encontrada na obra de GARIN Giovanni Pico

della Mirandola 2011 especialmente entre as pp37-48 A relaccedilatildeo entre feacute e razatildeo religiosidade e filosofia tem recebido destaque entre vaacuterios comentadores

72 Abertura agraves Conclusiones secundum opinionem propriam [] in quibus omnibus nihil assertiue uel probabiliter pono nisi quatenus id uerum uel probabile iudicat sacrosancta Romana ecclesia et caput eius benemeritus Summus Pontifex Innocentius octauus cuius iuditio qui mentis suae iuducium non summittit mentem non habet

73 GARIN 2011 p48 A tendecircncia a dar uma nova interpretaccedilatildeo agrave experiecircncia religiosa e ao conhecimento das culturas orientais seria o preluacutedio agrave profunda renovaccedilatildeo religiosa que o mundo moderno assistiria Os orientalistas de rsquo500 a rsquo700 viram em Pico seu grande percursor Atraveacutes de Reuchlin o exemplo de Pico repercutiu nas novas correntes da criacutetica religiosa que confluiacuteram ou foram conexas ao tema reformador Natildeo apenas pelo fato de ser precursor dos estudos orientais mas tambeacutem por seu acento independente e sua livre pesquisa das Escrituras dos ritos dos cultos dos siacutembolos da Igreja e das teorias jaacute aceitas atitudes e estudos que refletiriam na Reforma (Cf GARIN 2011 pp 100 105 135)

74 A atribuiccedilatildeo eacute emprestada do tradutor Albano Biondi que considera as Conclusiones uma obra ldquotanto ingecircnua quanto sofisticadardquo como um diaacuterio de viagem de um intelectual que aproveita de uma ldquobreve liberdade sem condicionamentosrdquo (BIONDI opcit pXXXVIII)

75 A tese condenada referente ao cristatildeo Oriacutegenes (Concl II 4 29) eacute a uacutenica em que Pico pretende defender um autor e natildeo sua doutrina Sua defesa ocupa na Apologia um espaccedilo muito mais extenso que as restantes com exceccedilatildeo da defesa da Magia e da Cabala (cf Apologia ldquoDe salute Origenisrdquo) Oriacutegenes foi um dos poucos pensadores entre filoacutesofos e teoacutelogos cristatildeos a se interessar pelo conhecimento do pensamento e idioma hebreus Essa talvez tenha sido uma das causas do interesse de Pico por sua filosofia (GARIN 2011 pp141 ss)

76 Alberto AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola ndash Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo Introduccedilatildeo ao Heptaplus Carmagnola 1996 p IV

68

ampliaacute-la Era um jovem entusiasmado com as recentes descobertas que

comprovavam as verdades de sua religiatildeo como havia escrito em sua introduccedilatildeo agraves

Teses procurando esclarecer aos Padres seu interesse pelas doutrinas cabaliacutesticas

ldquoas coisas tiradas dos antigos misteacuterios hebreus aleguei como confirmaccedilatildeo da

sacrossanta e catoacutelica feacuterdquo77 De fato atraveacutes de vaacuterios dos enunciados presentes na

seacuterie das Conclusiones Cabalisticae Pico propunha para debate comprovaccedilotildees ldquonatildeo

tanto da religiatildeo mosaica quanto da cristatilderdquo que dizia ter encontrado nos livros

sagrados78

Aqui os misteacuterios da Trindade aqui a encarnaccedilatildeo do Verbo

aqui a divindade do Messias aqui quanto diz respeito ao

pecado original agrave expiaccedilatildeo deste por meio de Cristo quanto

concerne agrave Jerusaleacutem Celeste agrave queda dos democircnios aos coros

angeacutelicos agraves penas do purgatoacuterio e do inferno li as mesmas

coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio em

Jerocircnimo e em Agostinho79

O entendimento da relaccedilatildeo religiatildeo-filosofia na obra de Pico natildeo estaacute isento de

dificuldades podendo denotar certa ambivalecircncia A inflamada defesa de sua proacutepria

filiaccedilatildeo religiosa como emerge na citaccedilatildeo acima deu margem a leituras puramente

cristoloacutegicas de sua obra80 No entanto haacute que se observar que na construccedilatildeo do

pensamento piquiano a religiatildeo representava a manifestaccedilatildeo final de conceitos

alcanccedilados plenamente apenas atraveacutes da Filosofia A feacute constituiacutea nesse sentido ldquoo

aacutepice de um processo racional que nela se manifesta e se potencializardquo Seu mais puro

sentimento a esse respeito emerge da carta escrita a Aldo Manuzio em 1491

ldquoPhilosophia veritatem quaerit Theologia invenit Religio Possidetrdquo81 A primazia da

Religiatildeo colocada acima da Teologia e da Filosofia conforme expressa na carta deve

ser entendida em sua correta dimensatildeo pois em outras passagens da obra piquiana a

dicotomia razatildeo-feacute apresenta-se em ordem invertida com a submissatildeo da religiatildeo agrave

77 Oratio pp 155-157 Para detalhes referentes ao confronto entre Cristianismo e Cabala veja-se Chaim

WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge 1989 78 Oratio pp159-161 79 Algumas das assertivas contidas na citaccedilatildeo encontram-se espalhadas entre as teses cabaliacutesticas (II) nrs 5 6

7 8 14 15 16 24 30 34 e 38 Aleacutem de presente na Oratio (idem) a citaccedilatildeo em questatildeo pode ser lida na Apologia (p30) ldquoHos ego libros non mediocri impensa mihi cum comparassem summa diligentia indefessis laboribus cum perlegissem vidi in illis - testis est Deus - religionem non tam Mosaicam quam Christianam Ibi Trinitatis mysterium ibi Verbi incarnatio ibi Messiae divinitas ibi de peccato originali de illius per Christum expiatione de caelesti Hierusalem de casu daemonum de ordinibus angelorum de purgatoriis de inferorum poenis eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimusrdquo

80 Para alguns que partilham do mesmo entendimento de William CRAVEN (Giovanni Pico della Mirandola symbol of his age modern interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107) o uacutenico interesse de Pico pela Cabala estava em demonstrar a verdade cristatilde ndash embora haja muitas divergecircncias quanto a esse ponto Outros como Michael SUDDUT vatildeo aleacutem defendendo uma ldquoCristologiardquo na obra de Pico (Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion in Pico della Mirandola-New Essays 2008) Por outro vieacutes Pier Cesare BORI que natildeo coloca duacutevidas sobre a religiosidade cristatilde de Pico estaacute convencido de que a utilizaccedilatildeo da Cabala e outras teologias orientais satildeo ldquobem mais do que um expediente apologeacutetico a serviccedilo de um universalismo cristocecircntricordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)

81 ldquoA Filosofia procura a verdade a Teologia a encontra e a Religiatildeo a possuirdquo Assim escrevia Pico (Epiacutestola I 6) em 11 de fevereiro de 1491 ao humanista e editor de textos raros Aldo Manuzio ldquoAccinge ad philosophiam sed hac lege ut memineris nullam esse philosophiam quae a mysteriorum veritate nos avocet Philosophia veritatem quaerit theologia invenit religio possidetrdquo (Oratio np37)

69

filosofia eacute o caso da passagem ldquoseria necessaacuterio que a Filosofia iluminasse as mentesrdquo

e que a Igreja soubesse reconhecer a sua forma capaz de ldquopersuadir e convencer

racionalmenterdquo82 A argumentaccedilatildeo alude que apenas quem conhece e sabe discutir

criticamente as fontes pode julgar seu conteuacutedo e sua eventual pretensatildeo de verdade

Segundo Pico de fato o ato de crer natildeo depende apenas da vontade mas tambeacutem do

intelecto83 Nesse caso contraacuterio ao conteuacutedo anterior expresso na carta a Manuzio a

necessidade de submeter a religiatildeo agrave razatildeo deve ser entendida em relaccedilatildeo a uma

dimensatildeo religiosa que se mostra em caraacuteter dogmaacutetico horizontal em oposiccedilatildeo agrave

dimensatildeo religiosa enquanto experiecircncia real Os indiacutecios de tal dimensatildeo da

experiecircncia de uma efetiva religiatildeo84 Pico teria encontrado em seus estudos

relacionados a teologias e teurgias tomadas da literatura neoplatocircnica

posteriormente complementadas com os Hinos Oacuterficos os Oraacuteculos Caldeus e a

praacutetica da Cabala Tratava-se pois de uma real vivecircncia religiosa que extrapolava os

dogmas de qualquer religiatildeo particular Sob tal entendimento quaisquer

correspondecircncias encontradas nas teses que se relacionem com as doutrinas da Igreja

natildeo devem ser interpretadas como uma defesa ortodoxa do Cristianismo mas como

um passo a mais em direccedilatildeo agrave conjunccedilatildeo dos ldquofinsrdquo que tendem ao Absoluto

Seguindo essa acepccedilatildeo Pico teria encontrado em Proclo sua definiccedilatildeo de ldquoverdadeira

religiatildeordquo

Assim como a feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior agrave

ciecircncia assim a feacute que eacute feacute verdadeira eacute supra

substancialmente superior agrave ciecircncia e ao intelecto conjugando-

nos imediatamente a Deus85

(Conclusio secundum Proclum 44)

3 Maritare Mundum

Nas 144 teses que distribuiacutedas em quatro seacuteries concluem as 500

Conclusiones secundum opinionem propriam eacute possiacutevel descobrir alguns elos que

datildeo sentido ao conjunto de forma que as secretas analogias apontadas na Apologia

possam ser delineadas A segunda metade da obra contempla os principais e mais

82 O tema eacute amplamente discutido em GARIN 2011 pp137-142 Ainda BUSI Pico fede ragione e

Inquisizione in Il Sole 24 Ore 28082018 83 Conclusiones in Theologia (II) IV 18 (p91) Como aponta GARIN (2011 pp137-142) natildeo por acaso o Padre

da Igreja que Pico mais amou e meditou sobre foi justamente Oriacutegenes Parecia-lhe absurda a ideia de impor uma feacute sem demonstraacute-la assim como castigar um herege e condenaacute-lo por erro teoacuterico (cf Apologia ldquoDe libertate credendirdquo)

84 A ideia contemporacircnea que se tem do termo ldquoreligiatildeordquo estaacute bastante esvaziada de seu sentido original a ponto de poder causar estranheza a dignidade que Pico lhe atribui colocando-a acima da Filosofia e da Teologia Nunca eacute tarde para recordar a origem etimoloacutegica do termo ldquoreligiatildeordquo proveniente do verbo ldquoreligarerdquo que aponta para a real uniatildeo com o divino um estado de plena vivecircncia espiritual que ultrapassa as questotildees teoreacuteticas relacionadas agrave Filosofia ou agrave Teologia

85 Concl (I) IVV 44 (p48) ldquoSicut fides quae est credulitas est infra scientiam ita fides quae est vere fides est supersubstantialiter supra scientiam et intellectum nos Deo inmediate coniungensrdquo

70

originais argumentos que seriam utilizados para debater uma teoria global da

representaccedilatildeo do mundo realizando a consonacircncia com os temas verificados no

primeiro toacutepico deste Capiacutetulo Observa-se que o realizador da obra estava seguro por

ter encontrado ocultas correspondecircncias que se mostram particularmente claras no

exame das seacuteries finais das Conclusiones intituladas ldquosegundo opiniatildeo dos

enunciados de Zoroastrordquo ldquomaacutegicasrdquo ldquosegundo os hinos de Orfeu [] e aquele saber

relativo agraves coisas divinas e agraves coisas naturaisrdquo e ldquoconsolidantes da religiatildeo cristatilde a

partir dos fundamentos colocados pelos saacutebios hebreusrdquo86 O complexo dessas quatro

seacuteries representa um corpo uacutenico no pensamento de Pico apresentando uma

substancial unidade entre os saberes da Magia da Teurgia e da Teologia

Vaacuterias correspondecircncias satildeo estabelecidas ainda entre as teses caldaicas

maacutegicas oacuterficas e cabaliacutesticas com os demais temas da inteira obra seguindo um

planejamento em que se destacam especiacuteficos teores o aceno aos trecircs mundos que

Pico havia mencionado atraveacutes de Proclo dentro de um cenaacuterio de organizaccedilatildeo do

cosmo87 a confirmaccedilatildeo de certa escolha temaacutetica que prestigia as questotildees

relacionadas ao conhecimento da alma a tonalidade teoloacutegica que se mostra

mesclada a vaacuterias teses e sobretudo o entrelaccedilamento entre distintos campos do

saber que afirmam a presenccedila da concoacuterdia buscada Os modelos temaacuteticos citados a

seguir todos extraiacutedos das ldquoteses segundo o significado das sentenccedilas de Zoroastro e

de seus exegetas caldeusrdquo apresentam natildeo somente aforismos que retratam os temas

mencionados como ainda um exemplo da multidisciplinariedade piquiana

verificaacutevel no uacuteltimo dos enunciados no qual se confirma a correspondecircncia entre as

teologias caldaica cristatilde e hebraica

No aforismo 17 [do enunciado de Zoroastro] com o triacuteplice

indumento de linho pano e pele os Magos natildeo entendem outra

coisa aleacutem da triacuteplice morada da alma celeste espiritual e

terrena88 (Conclusio secundum propriam opinionem de

intelligentia dictorum Zoroastris 8)

86 Conforme a sequecircncia e tiacutetulos completos dados por Pico temos Conclusiones secundum propriam

opinionem de intelligentia dictorum Zoroastris et expositorum eius Chaldaeorum Conclusiones Magicae Conclusiones secundum propriam opinionem de modo intelligendi hymnos Orphei secundum Magiam id est secretam diuinarum rerum naturaliumque sapientiam a me primum in eis repertam Conclusiones Cabalisticae secundum opinionem propriam ex ipsis Hebraeorum sapientum fundamentis Cristianam Religionem maxime confirmantes

87 Conclusio secundum Proclum 52 88 Concl (II) VIII 8 (p116) ldquoMagi in XVII aphorismo nichil aliud intelligunt per triplex indumentum ex lino

panno et pellibus quam triplex animae habitaculum coeleste spirituale et terrenumrdquo O trecho de acordo com FARMER (opcit np489) eacute extraiacutedo dos Oraacuteculos Caldeus A sessatildeo caldaica das Conclusiones conteacutem material natildeo encontrado no recolhimento de Miguel Psello ou George Plethon nem mesmo a numeraccedilatildeo dos Oraacuteculos de Pico coincide com a ordem encontrada naquelas coleccedilotildees anteriores A questatildeo das fontes que Pico consultou na sessatildeo caldaica eacute tatildeo misteriosa quanto a versatildeo dos Oraacuteculos que ele tinha em matildeos Em carta a Ficino de 1486 Pico fala de libellus de dogmatis Chaldaicae theologiae tum Persarum Graecorum et Chaldaeorum in illa divina et locupletissima enarratione [ldquoum pequeno livro sobre os ensinamentos da teologia caldaica naquela exposiccedilatildeo divina e opulenta dos persas gregos e caldeusrdquo] que lhe tinha chegado recentemente agraves matildeos (FARMER opcit pp486-487)

71

Aquilo que dizem os exegetas caldeus acerca do primeiro

enunciado de Zoroastro sobre a ldquoescala do taacutertaro ao primeiro

fogordquo natildeo significa outra coisa que a seacuterie das naturezas do

universo do natildeo grau da mateacuteria ao grau que gradualmente se

sobrepotildee acima de cada grau89 (idem 1)

Graccedilas ao enunciado de Zoroastro lsquosacrificareis ainda por trecircs

dias e natildeo maisrsquo me resultou evidente atraveacutes da aritmeacutetica do

caacutelculo dos dias da Mercavaacute superior que naquele enunciado

estava prevista expressamente a vinda de Cristo90

(idem 14)

A menccedilatildeo agrave aritmeacutetica da Mercavaacute superior alude agrave existecircncia de um campo

conceitual que requer um preparo especial tantas vezes guardado pelo segredo O

autor desse material mostra ter consciecircncia da necessidade de proteger certas aacutereas

conceituais que natildeo devem ser divulgadas ndash e dos riscos envolvidos em sua eventual

divulgaccedilatildeo Esse cuidado eacute referido de forma velada algumas vezes e de forma

expressa em outras Na abertura do penuacuteltimo grupo de suas teses intituladas

ldquoconforme o modo de interpretar os hinos de Orfeu segundo magiardquo Pico sugere ter

colhido nos Hinos Oacuterficos certas verdades cuja divulgaccedilatildeo seria arriscada por

necessidade em razatildeo da restriccedilatildeo pedida pelo segredo teria que expressar-se em

modo eliacuteptico utilizando-se de aforismos para conseguir despertar ldquoa mente dos

contemplativosrdquo91 Assim se lecirc em sua Conclusio oacuterfica nr 1

Expor em puacuteblico a magia secreta por mim extraiacuteda por

primeiro dos Hinos de Orfeu natildeo eacute liacutecito mas seraacute uacutetil delineaacute-

la para estimular as mentes dos contemplativos mesmo que por

meio de aforismos92

(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 1)

89 Concl (II) VIII 1 (p114) ldquoQuod dicunt interpretes chaldaei super primum dictum Zoroastris de scala a

tartaro ad primum ignem nichil aliud significat quam seriem naturarum universi a non gradu materiae ad eum qui est super omnem gradum graduate protensumrdquo

90 Concl (II) VIII 14 (p116) ldquoPer dictum illud Zoroastris ad huc tres dies sacrificabitis et non ultra apparuit michi per arithmeticam superioris merchaveacute illos computandi dies esse in eo dicto expresse praedictum aduentum Christirdquo A Mercavaacute superior (carruagem) representa a parte especulativa da Cabala concernente agraves coisas divinas como esclarece o escritor cabalista Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp 193-94)

91 Pico tinha consciecircncia dos riscos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea ou da utilizaccedilatildeo delituosa da teurgia oacuterfica Marsiacutelio Ficino que jaacute havia traduzido para o latim os Hinos Oacuterficos havia decidido evitar sua publicaccedilatildeo por julgaacute-los perigosos (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano 2009 pp 73-74) ainda do mesmo autor veja-se Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola p 630) O acesso de Pico aos Hinos oacuterficos eacute comprovado pela existecircncia em sua biblioteca de pelo menos um manuscrito contendo natildeo apenas aqueles hinos como tambeacutem os Hinos homeacutericos e os de Proclo (Pearl KIBRE opcit 1936 pp148 205)

92 Concl (II) X 1 (p120) ldquoSicut secretam magiam a nobis primum ex Orphei hymnis elicitam fas non est in publicum explicare ita nutu quodam ut in infrascriptis fiet conclusionibus eam per aphorismorum capita demonstrasse utile erit ad excitandas contemplatiuorum mentesrdquo

72

Depreende-se da asserccedilatildeo acima uma forte conotaccedilatildeo iniciaacutetica tocircnica que

conflui no complexo orgacircnico das uacuteltimas seacuteries revelando a existecircncia de uma

dimensatildeo ndash conhecida por Pico ndash que admite o adepto atraveacutes de graus que elevam

ao conhecimento ndash desde que ele seja capaz de ingressar por suas portas de iniciaccedilatildeo

A conclusio oacuterfica 7 conta que existe uma ldquoestrada de analogia secretardquo que soacute poderaacute

ser trilhada por aquele que souber ldquointelectualizar perfeitamente as propriedades

sensiacuteveisrdquo a serem extraiacutedas dos Hinos de Orfeu93 Vecirc-se que eacute dada ecircnfase seja na

primeira que na seacutetima tese acima ao uso intelectual ou contemplativo das

informaccedilotildees recebidas agrave guisa de precauccedilatildeo para natildeo ser aprisionado por elementos

negativos ndash advertecircncia que embora natildeo expressa nas teses acima encontra-se na

tese 10 segundo Hermes Trismegisto e na tese cabaliacutestica 1394 A conclusio maacutegica 17

sugere que para ultrapassar os limites estabelecidos pela natureza existem ldquodevidas

modalidades conhecidas pelos saacutebiosrdquo95 Nesse percurso a Magia representa o

primeiro grau96 por se tratar conforme a conclusio maacutegica 4 da parte ldquomais nobre

da ciecircncia naturalrdquo sendo o conhecimento do mundo fiacutesico em primeira etapa o

alimento da alma racional97

Se se verifica em noacutes uma natureza imediata que seja

simplesmente ou pelo menos prevalentemente racional essa

tem seu aacutepice na arte maacutegica E graccedilas agrave participaccedilatildeo maacutegica

tal natureza pode ascender nos homens a uma maior

perfeiccedilatildeo98 (Conclusio Magica 14)

A Magia conforme se depreende da explanaccedilatildeo realizada na De Hominis

Dignitate99 ocupa-se das relaccedilotildees da vida humana com a toda a criaccedilatildeo daiacute a

outorga de nobreza que Pico lhe concede em caraacuteter privilegiado tem por objeto a

93 Concl (II) X 7 (p122) 94 A tese cabaliacutestica 13 adverte que ldquoquem opera na Cabala se cometer erros durante o trabalho ou se aproximar

deste sem a devida purificaccedilatildeo preacutevia seraacute devorado por Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedilardquo A tese 10 segundo as doutrinas de Trismegisto informa sobre a existecircncia de uma maligna sequecircncia denaacuteria correspondente agrave existente na Cabala a respeito da qual Pico declara que natildeo poderaacute escrever nada ldquopor tratar-se de um segredordquo

95 Concl (II) IX 17 (p118) A inteira sentenccedila postula que ldquoa magia eacute proacutepria daquela natureza que eacute horizonte de tempo e eternidade e de laacute deve ser extraiacuteda segundo as devidas modalidades notas aos saacutebiosrdquo O significado da primeira oraccedilatildeo segundo FORNACIARI eacute que a natureza eacute o limite do tempo no sentido que o tempo intriacutenseco agrave natureza eacute limitado e natildeo eterno (Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 p64)

96 Na De Hominis Dignitate Pico dedica muitas linhas a esclarecer o que entende por ldquomagiardquo defendendo-a contra entendimentos equivocados eou preacute-concebidos

97 Cf FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 pp 58 63 98 Concl (II) IX 14 (p118) ldquoSi qua est natura immediata nobis quae sit uel simpliciter uel saltem ut multum

rationaliter rationalis magicam habet in summo et eius participatione potest in hominibus esse perfectiorrdquo FARMER (np498) comenta que a questatildeo concerne agrave alma purificada do mago capaz de reunir todas as forccedilas racionais distribuiacutedas entre o mundo celestial e terrestre e elevaacute-las Nesta tese lecirc-se que a magia envolve naturezas ldquoracionaisrdquo na correlata tese cabaliacutestica 12 encontra-se que a ldquoCabala purardquo (haacute tambeacutem variedades inferiores como seraacute visto no Capiacutetulo V) envolve a ldquoparte intelectualrdquo da alma racional

99 Aleacutem da ampla defesa da Magia realizada na Apologia (Quaestio V de magia naturali et cabala hebraeorum pp 154-193) Pico dedica natildeo poucas linhas para a questatildeo na De Hominis Dignitate ldquoRepleta de profundiacutessimos misteacuterios [a ldquoboa magiardquo] abraccedila a contemplaccedilatildeo mais alta das coisas mais secretas e por fim o conhecimento total da natureza Esta como que trazendo das profundidades agrave luz as virtudes dispersas e disseminadas no mundo pela bondade de Deus mais do que realizar milagres coloca-se ao serviccedilo da milagrosa natureza Esta perscrutando intimamente o secreto acordo do universo a que os Gregos chamam de uma maneira muito significativa sympateacuteia [ldquoharmonia do universordquo] explorando a muacutetua ligaccedilatildeo das naturezas traz agrave luz como se ela proacutepria fosse o artiacutefice as maravilhas escondidas nas profundezas do mundo no seio da natureza e dos misteacuterios de Deusrdquo (p153)

73

relaccedilatildeo entre o mundo fiacutesico e a alma imortal pois que o mago opera para realizar a

conexatildeo do mundo sublunar com os mundos superiores100 como seraacute visto adiante

Alguns dos meacutetodos agrave disposiccedilatildeo do sapiente praacutetico para alccedilar-se atraveacutes dos niacuteveis

intelectuais relacionam-se diretamente com o uso de sons e mantras ndash como se

extrai de algumas teses oacuterficas maacutegicas e cabaliacutesticas A tese oacuterfica 2 por exemplo

sinaliza que ldquonas operaccedilotildees de magia natural nada eacute mais eficaz que os Hinos de

Orfeurdquo acrescendo em tom de precauccedilatildeo ldquodesde que sejam aplicadas a correta

muacutesica a correta intenccedilatildeo de acircnimo e todas as demais circunstacircncias que os

sapientes conhecemrdquo101 A quarta tese oacuterfica confirma a analogia de praacuteticas e

resultados entre teologias distintas

Assim como os Hinos de Davi se prestam de forma admiraacutevel agraves

operaccedilotildees da Cabala assim os Hinos de Orfeu se prestam agraves

operaccedilotildees da magia autecircntica liacutecita e natural102

(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 4)

Observa-se uma relaccedilatildeo entre os resultados obtidos atraveacutes das praacuteticas oacuterficas

e as cabaliacutesticas pois que nos Salmos de Davi encontra-se uma aplicaccedilatildeo maacutegica

pertencente ao esoterismo hebraico que Pico certamente conhecia103 Embora se

situem em patamares distintos104 as duas dimensotildees operativas apresentam

analogias como revela a tese oacuterfica 6 ldquoa propriedade analoacutegica de qualquer virtuderdquo

(no sentido de qualidade poder ou potecircncia)105 seja natural ou divina eacute a mesma

ldquoguardadas as devidas proporccedilotildeesrdquo assim como satildeo os mesmos os nomes (utilizados

na magia natural) os hinos (na teurgia oacuterfica) e o operar (em sentido cabaliacutestico)

ldquoquem tentaraacute interpretaacute-los encontraraacute as correspondecircnciasrdquo completa o texto106

Pico alerta outrossim que para a aplicaccedilatildeo operativa de determinados hinos

oacuterficos107 seraacute necessaacuteria a participaccedilatildeo da operaccedilatildeo cabaliacutestica como postula a tese

oacuterfica 21 ldquoNatildeo haacute aplicaccedilatildeo operativa daqueles [especiacuteficos] hinos sem a operaccedilatildeo da

Cabalardquo108

100 Cf FORNACIARI 2009 p 58 101 Concl (II) X 2 (p120) Proclo em seu proecircmio ao Comentaacuterio ao Timeu atesta que os textos sagrados do

Orfismo continham indicaccedilotildees taumatuacutergicas Ademais ao proacuteprio Proclo foram atribuiacutedos o poder de auto-cura e de curar o proacuteximo atraveacutes do recurso a hinos inclusive os oacuterficos conforme se lecirc em Vita Procli de Marino Neapolis (apud FORNACIARI 2009 p74) Complementa Fornaciari (p75) que eacute a concentraccedilatildeo do pensamento no mago ou teurgo que propicia o movimento interior desde que acompanhado do cumprimento dos preceitos e das palavras certas pronunciadas nas oraccedilotildees

102 Concl (II) X 4 (p122) ldquoSicut hymni Dauid operi Cabalae mirabiliter deseruiunt ita hymni Orphei operae vere licitae et naturalis Magiaerdquo Os Hinos de Davi referem-se aos Salmos

103 A hinografia atribuiacuteda ao rei Davi exerce uma funccedilatildeo sagrada no Judaiacutesmo e houve uma sua aplicaccedilatildeo maacutegica chamada simmusy tehillim (ldquouso dos Salmosrdquo) Vejam-se esclarecimentos sobre a questatildeo e as implicaccedilotildees em acircmbito cabaliacutestico em FORNACIARI (2009 p76)

104 No capiacutetulo VI seratildeo esclarecidas as distinccedilotildees entre os procedimentos teuacutergicos e os procedimentos de tipo superior realizados em certo tipo de praacutetica cabaliacutestica

105 A complementaccedilatildeo ao termo ldquovirtuterdquo eacute de FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630)

106 Concl (II) X 6 (p122) ldquoQuarumcunque virtutum naturalium vel diuinarum eadem est proprietas analogica idem etiam nomen idem hymnus idem opus seruata proportione et qui temptauerit exponere uidebit correspondentiamrdquo

107 Trata-se dos Hinos aos quais Pico se refere na tese oacuterfica 20 (p125) endereccedilados agrave mente Paterna ldquoProtogeni Palladis Saturni Veneri Rheae Legis Bacchirdquo

108 Concl (II) X 21 (p124) A Cabala possui as propriedades para ldquocolocar em ato cada quantidade formal contiacutenua e discretardquo como estaacute complementado na mesma tese 21 Essa tese um tanto complexa recebeu de WIRSZUBSKI (opcit pp141-145) e de Brian COPENHAVER (Lrsquoocculto in Pico in Giovanni Pico della

74

Da mesma forma que efetua em relaccedilatildeo ao Orfismo Pico tece muacuteltiplas

analogias entre a Cabala e a Magia109 dois peculiares temas que exorbitam os limites

de seus proacuteprios grupos e que satildeo encontrados de forma esparsa correspondendo-se

natildeo apenas entre si como com outros dos demais elementos presentes nas Teses

Aleacutem da tese maacutegica 8 condenada pelos teoacutelogos de Inocecircncio VIII que conjuga

Magia e Cabala (no caso para afirmar a divindade de Cristo) as duas precedentes 6 e

7 tambeacutem comportam a assunccedilatildeo da Cabala ao lado da Magia ambas convergindo

para ingressar em um plano superior teoloacutegico Na conclusio maacutegica 6 Pico assume

que todas as operaccedilotildees maacutegicas eou cabaliacutesticas encontram sua referecircncia direta em

Deus

Qualquer obra que suscite estupor seja de tipo maacutegico

cabaliacutestico ou de qualquer outro gecircnero deve ser em

primeiriacutessima instacircncia referida a Deus glorioso e bendito

cuja graccedila espalha as superabundantes aacuteguas de milagrosas

virtudes sobre os homens contemplativos de boa vontade110

(Conclusio Magica 6)

A tese seguinte de nuacutemero 7 provavelmente surpreendente aos ouvidos

cristatildeos afirma que ldquoas obras de Cristo natildeo poderiam ter sido realizadas nem por via

de Magia nem por via de Cabalardquo111 A afirmaccedilatildeo parece significar que Cristo possuiria

virtudes superiores em respeito agrave Magia e agrave Cabala rendendo ambas inuacuteteis

Entretanto segundo a interpretaccedilatildeo de Paolo Fornaciari Pico estaria em verdade

sustentando que Cristo teria operado milagres graccedilas agrave forccedila da Magia e da Cabala

conjuntas112 Fato que parece sugerido na condenada tese de nuacutemero 9 amplamente

discutida na Apologia ldquonatildeo existe ciecircncia que nos afirme a divindade de Cristo mais

do que a Magia e a Cabalardquo113 A intriacutenseca relaccedilatildeo entre Magia e Cabala estaacute ainda

presente na tese maacutegica 15 que atribui agrave Cabala a propriedade tida como

imprescindiacutevel de consentir ao mago de operar com sucesso no mundo fiacutesico

Mirandola 1997 p98) interpretaccedilotildees acuradas e distintas o primeiro em acircmbito cabaliacutestico e o segundo em acircmbito matemaacutetico-geomeacutetrico Jaacute a interpretaccedilatildeo de FORNACIARI (2009 pp91-92) mais alinhada com o desenho geral da Conclusiones faz corresponder as trecircs quantidades formal contiacutenua e discreta aos trecircs mundos inteligiacutevel intermeacutedio e sublunar cujas formas podem ser operacionalizadas e quantificadas pela Cabala atraveacutes da gematria (tipologia a ser verificada no Capiacutetulo VI)

109 Uma maior aproximaccedilatildeo agrave Cabala seraacute feita nos capiacutetulos V e VI Em relaccedilatildeo agrave Magia as 26 teses maacutegicas foram objeto de anaacutelise em artigo de Frances YATES (Giovanni Pico della Mirandola and Magic in LrsquoOpera e il pensiero di G Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965 pp159-196) Para definiccedilotildees e esclarecimentos feitos pelo proacuteprio Pico remeter-se agrave parte da De Hominis Dignitate que trata de Magia e ainda agrave seccedilatildeo dedicada agrave quaestio ldquoDe magia naturalis et Cabala disputatiordquo na Apologia

110 Concl (II) IX 6 (p118) ldquoQuodcumque fiat opus mirabile siue sit magicum siue cabalisticum siue cuiuscunque alterius generis principalissime referendum est in Deum gloriosum et benedictum cuius gratia supercoelestes mirabilium uirtutum aquas super contemplatiuos homines bonae voluntatis quotidie pluit liberaliterrdquo Para Pico as operaccedilotildees maacutegicas natildeo funcionam de forma mecacircnica mas dependem da mediaccedilatildeo de uma alma purificada (FARMER p497)

111 Concl (II) IX 7 (p118) ldquoNon potuerunt opera Christi uel per uiam magiae uel per uiam Cabalae fierirdquo 112 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630 113 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et

cabalardquo Veja-se ampla discussatildeo dessa tese em FARMER (opcit pp126-128) que se remete agrave obra de Frances Yates Giovanni Pico della Mirandola and Magic 1965

75

Nenhuma operaccedilatildeo de Magia pode ser de eficaacutecia se natildeo tiver

conexa a obra cabaliacutestica expliacutecita ou impliacutecita114

(Conclusio Magica 15)

Finalmente nas trecircs teses maacutegicas finais a relaccedilatildeo entre a Cabala e a Magia eacute

precisada Na conclusio 24 a partir de quanto ensina a Cabala Pico posiciona

conforme ldquoprinciacutepios secretos da Filosofiardquo as qualidades formais inscritas nos

siacutembolos (caracteres et figuras) acima das qualidades materiais no que concerne agrave

operatividade maacutegica115 na sucessiva tese 25 afirma a correspondecircncia entre os

siacutembolos (caracteres) usados nas operaccedilotildees maacutegicas e os nuacutemeros (numeri) usados

nas operaccedilotildees cabaliacutesticas Na tese 26 Pico sustenta que agrave diferenccedila de quanto

ocorre no campo maacutegico-natural onde o nexo causa-efeito eacute respeitado em modo

rigoroso na atuaccedilatildeo cabaliacutestica pode ocorrer que um acontecimento natildeo dependa da

mediaccedilatildeo das causas Nesse sentido a uacuteltima tese maacutegica pontua assim a distinccedilatildeo

de gradaccedilatildeo entre os dois saberes atraveacutes da obra cabaliacutestica pode ocorrer algo que

nenhuma magia pode alcanccedilar desde que o operar cabaliacutestico seja ldquopuro e

imediatordquo116

Para aleacutem das inter-relaccedilotildees temaacuteticas uma especial atenccedilatildeo deve ser

dispensada agraves Teses Cabaliacutesticas117 agraves quais alguns privileacutegios foram concedidos118

satildeo elas que encerram as duas seccedilotildees da obra piquiana como a ocupar um espaccedilo

nobre a quantidade de teses cabaliacutesticas em seu total de 118 supera a quantidade de

teses de cada um dos outros grupos119 e quatro-quintos das correspondecircncias

efetuadas entre os vaacuterios conteuacutedos envolvem a Cabala120 Efetivamente o nuacutemero de

conexotildees da Cabala com outros temas ultrapassa aquelas efetuadas com as duas

seacuteries acima mencionadas Aleacutem das 47 teses cabaliacutesticas ad mentem cabalistarum e

das 71 secundum opinionem propriam121 ao menos outras cinquenta fazem

114 Concl (II) IX 15 (p118) ldquoNulla potest esse operatio magica alicuius efficaciae nisi annexum habeat opus

cabalae explicitum uel implicitumrdquo Acerca desta tese FARMER (np499) interpreta que o sentido primaacuterio que Pico quer esclarecer eacute que a parte racional da alma (pertinente agrave ldquomagia naturalrdquo) deriva da parte intelectual da alma (pertinente agrave ldquocabala purardquo) sob tal prisma a Cabala estaria impliacutecita em qualquer ato maacutegico

115 Concl(II) IX 24 (p121) ldquoEx secretioris philosophiae principiis necesse est confiteri plus posse caracteres et figuras in opere Magico quam possit quaecunque qualitas materialisrdquo

116 Respectivamente Concl (II) IX 25 e 26 (p121) Basicamente nessas trecircs uacuteltimas teses Pico postula que as palavras maacutegicas podem ser traduzidas em nuacutemeros e os nuacutemeros em palavras maacutegicas aparentemente conforme inferecircncia de FARMER (np503) atraveacutes de equaccedilotildees de gematria A menccedilatildeo agrave Cabala pura e imediata ldquosi sit pura cabala et imediatardquo envolve a parte intelectual da alma como ainda completa Farmer (idem)

117 Paolo FORNACIARI realizou a interpretaccedilatildeo da totalidade das Conclusiones Cabalisticae (2009) utilizando-se da obra de Chaim WIRSZUBSKY (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 19871989) como paracircmetro hermenecircutico para o misticismo hebraico

118 De todas as obras de Pico as Conclusiones cabalisticae parecem ter conhecido melhor destino visto que foram publicadas mais vezes geralmente em latim (veja-se por exemplo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano 2009 p13) Para Albano BIONDI as Teses cabaliacutesticas ldquosecundum opinionem propriamrdquo representam o coroamento do inteiro edifiacutecio piquiano (2013 p XXVI)

119 Dentro do primeiro grupo eacute atribuiacutedo a Proclo o maior nuacutemero de teses um total de 55 seguido do grupo dos ldquoSaacutebios da Cabalardquo com 47 teses No segundo grupo as ldquoTeses sobre a Matemaacuteticardquo e as ldquoTeses pessoais acerca da doutrina de Platatildeordquo satildeo as que apresentam maior nuacutemero respectivamente 85 e 80 teses cada Contudo na somatoacuteria dos dois grupos o conjunto das doutrinas cabaliacutesticas eacute detentor da maior quantidade de teses 118 no total

120 Cf William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age modern Interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107

121 O tiacutetulo do uacuteltimo grupo menciona 71 teses (Conclusiones Cabalisticae numero LXXI) embora sejam apresentadas de fato 72 Conforme Fornaciari (2009 p15) natildeo se trata de erro banal de Pico de seus editores de Roma e de Ingolstadt (com o qual esteve em relaccedilatildeo direta) dos inuacutemeros copistas e dos editores dos seacuteculos

76

referecircncia direta ao tema122 Embora a uacuteltima seacuterie cabaliacutestica ldquosegundo a opiniatildeo de

Picordquo apresente um grande nuacutemero de proposiccedilotildees teoloacutegicas que pretendem

confirmar as verdades do Cristianismo ndash originalidade da qual Pico se orgulhava em

razatildeo do triunfo da aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico ndash123 o conjunto formado

pelas duas seacuteries referentes aos misteacuterios hebraicos contempla a maior incidecircncia de

aforismos de conteuacutedo obscuro ou esoteacuterico alguns apenas acessiacuteveis ao ciacuterculo dos

cabalistas

O Grande Aquilo eacute de maneira geral a fonte de todas as almas

Outros dias satildeo de algumas mas natildeo de todas124

(Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum

hebraeorum 6)

Na Cabala quem penetrar o misteacuterio das Portas da Inteligecircncia

conheceraacute o misteacuterio do Grande Jubileu125 (idem 13)

Aquele que na sequecircncia coordenada da direita compreender a

propriedade do meridional tambeacutem saberaacute a razatildeo de cada

partida de Abraatildeo ir sempre em direccedilatildeo ao Austro126 (idem 14)

Quem penetrar o caraacuteter proacuteprio de hosec e laila que eacute o

segredo da escuridatildeo saberaacute o porquecirc de os maus democircnios

serem mais perigosos agrave noite do que durante o dia127 (idem 21)

As trecircs uacuteltimas seacuteries de teses contemplam a existecircncia ndash e sugerem a

transcendecircncia por parte do homem ndash do mundo fenomecircnico natural do

sucessivos A hipoacutetese do comentador eacute que Pico tenha evitado propositalmente de escrever o nuacutemero 72 por se tratar de cifra sagrada pertencente agrave versatildeo mais ampla do ldquonome expandidordquo de Deus de 72 letras (conforme Ecircxodo 346-7) habitualmente impronunciaacutevel e que apenas o Gran Sacerdote teria o direito de proferir uma vez ao ano

122 Sheila RABIN apresenta uma completa especificaccedilatildeo das teses que mesclam conteuacutedos cabaliacutesticos caso da conclusio 2 segundo Temistio da nr 10 segundo Hermes e das referecircncias presentes nas teses matemaacuteticas entre outras (Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays 2008 p 157)

123 Efetivamente atraveacutes de alguns meacutetodos como a gematria Pico consegue comprovar intrigantes relaccedilotildees entre os misteacuterios hebreus e a Teologia cristatilde Essas questotildees seratildeo verificadas nos capiacutetulos V e VI

124 Concl (I) VIII 6 (p56) ldquoMagnus Aquilo fons est animarum omnium simpliciter sicut alii Dies quarundam et non omniumrdquo Para explicar tal tese algumas interpretaccedilotildees foram tentadas Os ldquodiasrdquo da criaccedilatildeo satildeo concernentes a diferentes Sefirot (concepccedilatildeo a ser verificada adiante) O ldquoGrande Aquilordquo segundo FARMER representa um siacutembolo cabaliacutestico da quinta sefiraacute para FORNACIARI da quarta para WIRSZUBSKI (apud Farmer) o sentido eacute outro natildeo elucidado por Farmer

125 Concl (I) VIII 13 (p56) ldquoQui nouerit in Cabala mysterium portarum intelligentiae cognoscet mysterium Magni Iobelei rdquo

126 Concl (I) VIII 14 (p56) ldquoQui nouerit proprietatem meridionalem in dextrali coordinatione sciet cur omnis processio Abraam semper fit versus austrumrdquo Farmer procura esclarecer parte da tese informando que a ldquosequecircncia da direitardquo eacute uma distinccedilatildeo da emanaccedilatildeo das verdadeiras Sefirot da maleacutefica ldquosequecircncia da esquerdardquo que a reflete (np351) Wirszubski (1989 pp 32-33) cita uma longa passagem da traduccedilatildeo de Mitridate da Portae lustitiae de Gicatilla para tentar mostrar que ldquosequecircncia da direitardquo eacute simplesmente um siacutembolo para a quarta sefiraacute Farmer parece natildeo concordar com tal versatildeo pois afirma que a linguagem de Pico difere radicalmente da encontrada na traduccedilatildeo de Mitridate (que usa a palavra dextra mas nada diz sobre a coordenaccedilatildeo da ldquosequecircncia da direitardquo)

127 Concl (I) VIII 21 (p58) ldquoQui sciet proprietatem hosec et laila quae est secretum tenebrarum scit cur mali daemones plus in nocte quem in die nocentrdquo A ediccedilatildeo de Stephan Farmer (1998) suprime a expressatildeo ldquohosec et lailardquo

77

supramundano intermeacutedio e dos planos inteligiacuteveis bem como de uma dimensatildeo

epistemoloacutegica que permeia todos os planos A velada iniciaccedilatildeo sugerida por Pico tem

por principal intento alccedilar o homem ao entendimento do iacutentimo sistema de

correspondecircncias que se distribui entre os diversos niacuteveis O conhecimento do mundo

sublunar pode ser alcanccedilado pela Magia do celeste pela Teurgia oacuterfica e o acesso ao

Inteligiacutevel pela intermediaccedilatildeo da Cabala Sob esse prisma compreende-se que a

unificaccedilatildeo dos mundos eacute o objetivo final de toda a operaccedilatildeo seja maacutegica teuacutergica ou

cabaliacutestica

Natildeo existe nem no ceacuteu nem na terra virtude em estado

potencial e separada que o mago natildeo possa levar ao estado atual

e unificar128 (Conclusio Magica 5)

Entendendo o mundo como um complexo uacutenico articulado desde o mundano

aos sobremundanos o operador (ou iniciado) torna seu uacutenico escopo o aprendizado e

atuaccedilatildeo sobre os reinos que conjuga com seu proacuteprio intelecto elevando-se do saber

natural ao teoloacutegico atraveacutes de vaacuterios graus e meacutetodos O saacutebio eacute pois um

alquimista para quem ldquoa arte maacutegica natildeo adveacutem que por uniatildeo e atuaccedilatildeo de coisas

que na natureza existem em estado de potecircncia e separaccedilatildeordquo129 o ato de conjugar o

mundo ldquomaritare mundumrdquo torna-se assim sua meta preciacutepua e terminal130

Operar magia eacute simplesmente casar o mundo131

(Conclusio Magica 13)

Entender a natureza e ultrapassaacute-la elevando-se ateacute a mente divina esse eacute o

tema principal daquele texto escrito para servir de ldquointroduccedilatildeordquo agraves Teses Qualquer

das ferramentas operadas pelo homem para obter conhecimento soacute eacute digna se tiver

como finalidade sua elevaccedilatildeo Pois como lembra Pico ldquoa forma de todo o poder

maacutegico tem sua raiz na alma humanardquo mas somente ldquonaquela alma que se mostra

permanente e natildeo cadenterdquo132

A mensagem piquiana concernente ao conteuacutedo das Conclusiones de forma

particular no que se refere agraves uacuteltimas seacuteries natildeo pode ser adequadamente

elucidada133 Todavia o caminho para desvendar a occulta concatenatio mencionada

na Apologia pode ser trilhado a partir da constataccedilatildeo e subsequente averiguaccedilatildeo de

duas veementes marcas presentes dentre as novecentas teses ndash e que aqui foram

indicadas a primeira encontra-se na repeticcedilatildeo de temas relacionados agrave Cosmologia agrave

128 Concl (II) IX 5 (p118) ldquoNulla est virtus in coelo et in terra seminaliter et separata quam et actuare et

unire magus non possitrdquo 129 Concl (II) IX 11 (p118) ldquoMirabilia artis magicae non sunt nisi per unionem et actuacionem eorum quae

seminaliter et separate sunt in naturardquo 130 PICO Apologia pp 171-172 Veja-se discussatildeo aprofundada sobre o tema de ldquomaritarerdquo o mundo em Franco

BACCHELLI (2001 pp 72-73) 131 Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo FARMER bem observa

que ldquoo homo-magus eacute um sacerdote coacutesmicordquo (p498) 132 Concl (II) IX 12 (p118) ldquoForma totius magicae uirtutis est ab anima hominis stante et non cadenterdquo 133 Segundo admite Paolo FORNACIARI tradutor e comentador das Conclusiones cabalisticae ldquonatildeo estamos

ainda em grau de esclarecer plenamente no estado atual dos estudos o significado da mensagem piquianardquo (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p16)

78

Alma e agrave Teologia difusos entre as seacuteries da inteira obra a segunda pode ser

depreendida das correspondecircncias encontradas entre as seacuteries finais das

Conclusiones que se relacionam agravequeles trecircs temas Veremos no proacuteximo Capiacutetulo

que tais temas estatildeo expostos de forma mais evidenciada na Oratio De Hominis

Dignitate concorrendo para a construccedilatildeo do homem piquiano Ademais as

constataccedilotildees levantadas acrescem algumas peccedilas ao tema principal a ser sintetizado

nas paacuteginas finais Resta pontuar que o debate no qual Pico discutiria suas Teses

esclarecendo quem sabe muitos de seus obscuros temas natildeo aconteceu Muitas

dentre aquelas doutrinas que natildeo poderiam ter seus conteuacutedos divulgados

continuaram com seu segredo resguardado

79

CAPIacuteTULO IV

A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS

A Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concordiae Comitis134 foi considerada por

muitos a obra mais importante da literatura filosoacutefica do primeiro Renascimento135

Escrita para ser o discurso introdutoacuterio agraves Conclusiones a Oratio nunca foi

pronunciada e tampouco nominada foram seus editores e leitores a intitulaacute-la

ldquo(Oratio) De Hominis Dignitaterdquo (Discurso) Sobre a Dignidade do Homem nome

que apareceraacute apenas em sua ediccedilatildeo de 1557 Escrita em etapas que se alternaram

com a redaccedilatildeo das proacuteprias Conclusiones a Oratio foi definitivamente concluiacuteda

somente apoacutes a finalizaccedilatildeo das novecentas teses e quando algumas dentre elas jaacute

haviam sido submetidas a criacuteticas

Ultrapassando os limites do que seria uma simples introduccedilatildeo a obra natildeo

apenas esclarece a intenccedilatildeo pretendida com as Conclusiones como apresenta o

esboccedilo sinteacutetico daquele que seria o inteiro projeto de vida de seu autor razatildeo que

levou Burckhardt a chamaacute-la de ldquosuacutemulardquo do pensamento piquiano136 Com efeito o

breve texto guarda os principais motivos do pensamento de Pico a saber a

pluralidade das fontes a insistecircncia na conciliaccedilatildeo entre elementos considerados

usualmente diacutespares a presenccedila de elementos entatildeo considerados conservadores

tomados da tradiccedilatildeo medieval postos lado-a-lado com as frescas concepccedilotildees

humanistas da temaacutetica da dignidade a inovadora apresentaccedilatildeo da Cabala judaica A

Oratio natildeo apenas se ergue acima da ocasiatildeo para a qual foi criada como se apresenta

qual verdadeira declaraccedilatildeo filosoacutefica por si soacute razatildeo que a levou a ganhar fama

134 ldquoDiscurso de Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdiardquo Para o texto integral da Oratio veja-se o De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari trad Eugenio GARIN Vallecchi 1942 pp101-

165 O texto encontra-se tambeacutem disponiacutevel no site ldquoPico Projectrdquo convecircnio da Universidade de Bologna com a Brown University Haacute duas principais redaccedilotildees da Oratio a chamada Palatina copiada pelo humanista contemporacircneo de Pico Giovanni Nesi descoberta por Eugenio Garin e contida no codex Palatino 885 (ex 777) na Biblioteca Nazionale de Firenze (cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p56) e aquela entregue para ediccedilatildeo quase dois anos apoacutes a morte de Pico pelo sobrinho Gianfrancesco Haacute algumas (poucas) diferenccedilas entre as duas redaccedilotildees como o elogio de reconhecimento a Flavio Mitridate presente na primeira e que natildeo aparece em outras ediccedilotildees (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 p LXXIX) NOTA As traduccedilotildees aqui apresentadas das citaccedilotildees foram feitas a partir do texto latino traduzido para o italiano na ediccedilatildeo acima mencionada de Eugenio Garin considerada pelos especialistas como bastante fiel ao pensamento de Pico Garin utilizou-se especialmente da ediccedilatildeo da De Hominis Dignitate editada em Basileacuteia em 1537 Foram tambeacutem utilizadas como paracircmetros as traduccedilotildees para o portuguecircs de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Luiz Feracine ndash sendo que a autora portuguesa faz algumas omissotildees pouco relevantes em sua traduccedilatildeo Para os dados completos das vaacuterias ediccedilotildees veja-se ldquoPremessa ai Testirdquo na traduccedilatildeo das Conclusiones Nongentae de Albano Biondi 1995 pp3-5

135 Veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Meacutexico 1970 p 91 Tambeacutem Eugenio Garin e Ernst Cassirer consideram o Discurso como a obra mais famosa do lsquo400 Em outra obra Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi (1978 p132) reflete KRISTELLER que o Discurso conteacutem os fermentos mais patentes que caracterizam a eacutepoca do Renascimento Pier Cesare BORI considera que essas satildeo as paacuteginas ldquomais ceacutelebres do Humanismo italianordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564) Para Mariateresa BROCCHIERI trata-se do ldquocoroamento do trabalho de Picordquo em razatildeo de sua singular qualidade (Pico della Mirandola 2011 p78)

136 Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1927 vol II p95

80

proacutepria e a se firmar de forma independente das Teses ndash a ponto de Eugenio Garin

intitulaacute-la ldquoManifesto do Renascimentordquo137 expressatildeo muito bem aceita A Oratio eacute

essencialmente uma reflexatildeo sobre o homem construiacuteda a partir de uma enredada

estrutura que se apoia sobre um conjunto de doutrinas pertencentes a diferentes

periacuteodos da Histoacuteria do Pensamento

As duas principais linhas interpretativas concernentes ao todo da obra

piquiana podem ser tomadas como modelos de interpretaccedilatildeo de sua parte menor a

Oratio visto que nesta se encontram presentes vaacuterios elementos que se repetiratildeo nas

obras posteriores Uma tendecircncia dominante seguiu o influxo iniciado por Ernst

Cassirer e Giovanni Gentile confirmado anos depois por Eugenio Garin e Paul Oskar

Kristeller que sustenta as conexotildees entre Pico e a cultura maacutegica astroloacutegica

hermeacutetica e cabaliacutestica Outra tendecircncia protagonizada por Henri De Lubac em

seu Pic de la Mirandole138 afirmou sua continuidade com a tradiccedilatildeo teoloacutegica

fundamentada em uma heranccedila biacuteblica-judaica que perpassa os primeiros Padres e

alcanccedila a teologia escolaacutestica No entanto quaisquer diferenccedilas de perspectiva que

sigam tais orientaccedilotildees podem ser prontamente dirimidas quando unificadas sob a

aboacutebada da Concoacuterdia as linhas da obra mostram de forma bastante clara a

intenccedilatildeo de harmonizar entre si natildeo apenas doutrinas teoloacutegicas e filosoacuteficas

ocidentais como tambeacutem de harmonizaacute-las com o pensamento de outras culturas nos

moldes que o autor gostaria que houvesse em sua almejada pax filosoacutefica139

Entre os campos filosoacuteficos e teoloacutegicos associados a legados ocidentais e

orientais dois significativos temas podem ser observados no ldquomanifestordquo e tecircm sido

ressaltados pelos comentadores de forma quase unacircnime (a) a questatildeo da Dignidade

ndash que contempla o sub-tema da liberdade ndash e (b) a questatildeo da Concoacuterdia ambos

verificados a seguir com a finalidade de natildeo ocultar do leitor as interpretaccedilotildees mais

consensuais Seraacute proposto um terceiro tema parte preciacutepua deste Capiacutetulo presente

em vaacuterios momentos da obra e que natildeo tem recebido o devido destaque dos

comentadores (c) o percurso ascensional A aproximaccedilatildeo direta ao texto piquiano

mostra-se a melhor forma para constatar a presenccedila do elemento asceacutetico qual fio

condutor a unir as diferentes doutrinas trazidas no percurso histoacuterico percorrido por

Pico

137 GARIN ldquoIntroduzionerdquo a De Hominis Dignitate Heptaplus etc 1942 p23 138 Em nossa bibliografia utilizou-se a traduccedilatildeo italiana de Henri De LUBAC realizada por GColombo Pico

della Mirandola lrsquoalba incompiuta del Rinascimento 2016 139 Pier Cesare BORI apresenta uma anaacutelise pormenorizada das duas formas interpretativas citadas

segmentando de um lado as passagens biacuteblicas-teoloacutegicas da De Hominis Dignitate e de outro as maacutegicas etc (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996) Observa o autor que dentre as tendecircncias interpretativas dominantes destaca-se a originalidade de H Reinhardt em seu Freiheit zu Gott Der Grundgedanke des Systematikers Giovanni Pico della Mirandola que aponta para o caraacuteter preacute-moderno do pensamento sistemaacutetico de Pico

81

1 O tema da Dignidade do homem

Embora a Oratio tenha passado agrave Histoacuteria da Filosofia como o manifesto

acerca da dignidade do homem muito em razatildeo do nome dado agrave sua publicaccedilatildeo

realizada no seacuteculo XVI o tema da dignidade natildeo foi originalidade de Pico e algumas

variaccedilotildees de seu significado pedem uma reflexatildeo

Durante o Humanismo renascentista o tema da dignidade tornou-se bastante

precioso e levou alguns pensadores a buscarem fundamentos a partir dos primeiros

Padres para rebater a supressatildeo da questatildeo ocorrida em certos periacuteodos da Idade

Meacutedia Pode-se dizer que a ideia da Queda de Adatildeo encerra como consequecircncia a

perda de posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem que em alguns momentos literaacuterios foram

registrados como uma perda de valoraccedilatildeo da qualidade do proacuteprio homem140

Sobretudo no baixo Medievo natildeo poucos teoacutelogos foram tomados de certo

pessimismo metafiacutesico perante tal condiccedilatildeo Um exemplo emblemaacutetico da questatildeo foi

postulado por Lotharii Cardinalis o influente papa Inocecircncio III que no seacuteculo XIII

em De miseria humane conditionis afirmava que o homem eacute ldquoindigno produtor de

lecircndeas piolhos vermes urina e fezesrdquo Tal afirmaccedilatildeo apenas confirmava a de Pedro

Damiatildeo que no seacuteculo XI proclamava ser o homem ldquouma criatura vil massa de

podridatildeo poacute e cinzardquo141 Diante de tal desencanto poucos seacuteculos mais tarde alguns

humanistas sentiram-se levados a responder a Inocecircncio III buscando

fundamentaccedilatildeo especialmente em Lactacircncio e Agostinho que haviam promovido o

reconhecimento do valor do homem apoiados no princiacutepio de sua criaccedilatildeo agrave imagem

de Deus142

O tratado inaugural acerca da dignidade humana primeira resposta textual a

Inocecircncio III surge com Bartolomeo Fazio que o escreve em contexto religioso e sob

inspiraccedilatildeo monaacutestica143 Seu contemporacircneo Lorenzo Valla em De Libero Arbitrio

de 1436 acresce elementos agrave reflexatildeo ao promover a valorizaccedilatildeo do livre arbiacutetrio

voltado sobretudo para o domiacutenio que o homem pode ter das forccedilas da natureza

introduzindo assim a discussatildeo teoreacutetica renascentista acerca da liberdade e

140 A ideia de miserabilidade humana remonta ateacute onde se sabe a Moiseacutes o homem embora criado agrave imagem

de Deus traz em si ldquoo jumento o reacuteptil e a bestardquo (Henri de LUBAC Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016) O tema relacionado agrave concepccedilatildeo da Queda e as consequentes formas de ldquolerrdquo o homem em uma estrutura hieraacuterquica teoloacutegica permite a elaboraccedilatildeo de uma tese por si soacute O caraacuteter ldquogeneacutericordquo de nossa abordagem visa salientar algumas interpretaccedilotildees mais significativas e pontuais da questatildeo

141 Petrus Damianus ou mais tarde San Pier Damiani foi uma autoridade bastante considerada no preacute-Humanismo Dante situou o cardeal reformador que seria alccedilado a Doutor da Igreja em 1823 num dos mais altos ciacuterculos do Paraiacuteso como precursor de Satildeo Francisco de Assis A citaccedilatildeo encontra-se em NUNES 1978 p 64 apud Antonio VALVERDE ldquoAportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandolardquo in Revista de Filosofia Aurora v21 n29 2009 p464

142 Em relaccedilatildeo agrave valoraccedilatildeo do homem o influxo de Lactacircncio e Agostinho se manteve ateacute boa parte da Primeira Idade Meacutedia Algumas obras de Agostinho que abordam o tema satildeo De Doctrina Christiana e as Confissotildees Com relaccedilatildeo a tal influxo haacute que se observar que o valor do homem estava relacionado com sua criaccedilatildeo agrave imagem de Deus sendo sua salvaccedilatildeo advinda da redenccedilatildeo em Cristo O movimento humanista comeccedila de forma embrionaacuteria a vislumbrar ndash e postular ndash a valoraccedilatildeo do homem em razatildeo de sua liberdade ligada agrave proacutepria responsabilidade ndash o que levaria a uma concepccedilatildeo de salvaccedilatildeo relacionada agraves suas escolhas

143 O historiador Bartolomeo Fazio foi levado a escrever por certo monge beneditino que precisava de uma complementaccedilatildeo para o De miseria humane conditionis de Inocecircncio III Para maiores detalhes acerca de Fazio consultar Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902

82

necessidade ndash e dando o passo inicial para um longo processo de ruptura entre Feacute e

Filosofia144 Quase duas deacutecadas mais tarde Giannozzo Manetti amplia a questatildeo

com seu tratado De Dignitate et Excellentia Hominis escrito em 1452 no qual refuta

ponto a ponto o profundo pessimismo expresso por Inocecircncio III sobre a miseacuteria

humana estabelecendo o mundo intelectual do vir-a-ser oposto ao mundo natural

do que meramente eacute145 Manetti retoma ainda na mesma obra a questatildeo da

soberania do homem que havia sido lanccedilada por Valla ideia de cunho biacuteblico

expressa no Gecircnesis 2 (representada pela faculdade dada ao homem de atribuir

nomes) que seraacute mais tarde reafirmada por Marsilio Ficino e Pietro Pomponazzi146

Assim que embora o Discurso de Pico tenha sido quase unanimemente

celebrado em funccedilatildeo de certo entendimento ao redor da questatildeo da dignidade

humana fato eacute que o tema foi amplamente explorado bem antes do advento do

Mirandolano tendo continuado em discussatildeo nos seacuteculos XVI e XVII147 Contudo e

apesar de preservar pouca conexatildeo orgacircnica com o humanismo de sua eacutepoca o tema

da dignidade apresenta relevacircncia na obra de Pico natildeo obstante se faccedilam uacuteteis uma

ressalva e algumas distinccedilotildees entre seu desenvolvimento e o de seus antecessores

A ressalva situa-se no emprego e entendimento do termo ldquodignidaderdquo que

devido agraves variaccedilotildees sofridas ao longo da histoacuteria pode ter suscitado interpretaccedilotildees

tantas vezes equivocadas O tiacutetulo De Hominis Dignitate como foi visto natildeo foi obra

de Pico mas escolha poacutestuma O Autor ademais utiliza a palavra ldquodignidaderdquo apenas

uma vez em todo o seu Discurso ndash e natildeo para qualificar o homem148 No decorrer dos

seacuteculos o termo tem sido utilizado em grande parte das vezes como sinocircnimo de

virtude ou hombridade tendo sido essa sua principal acepccedilatildeo desde alguns escritos

da Antiguidade Entretanto no seacuteculo VI Boeacutecio deu novo rumo ao conceito de

dignitas ajudando a dirimir a ideia tradicional romana que dava agrave palavra a

envergadura de honradez e respeitabilidade que pressupunha a virtude modificando

a concepccedilatildeo trazida pelas leituras de Ciacutecero de considerar a honra como

144 Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 pp 131-132 145 Sobre o historiador Giannozzo Manetti veja-se BURCKHARDT 1991 p 170-179 LUBAC Pico della

Mirandola-LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016 pp 247-259 Acerca do conteuacutedo de Manetti comenta CASSIRER que ldquosomente no interior do vir-a-ser o espiacuterito do homem encontraria sua morada e daria provas de sua dignidade e liberdaderdquo (Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 p 135 Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se ainda Giovanni GENTILE Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento 1991 p66

146 Na ideia de soberania expressa por Ficino GENTILE aponta para a origem do ldquoregnum hominisrdquo (opcit p 66) Pomponazzi trata do tema em sua obra De incantationibus de 1520 Para outros detalhes veja-se GARIN Lo Zodiaco della Vita 2007 p116

147 Para toda a questatildeo veja-se em Antocircnio VALVERDE o toacutepico ldquoConcepccedilotildees distintas de dignidade humana da Antiguidade ao Renascimentordquo (Aportes a Oratio de Hominis Dignitate 2009) Ainda GARIN Lrsquoumanesimo Italiano 2008 Note-se que outros importantes autores aleacutem dos citados escreveram sobre o tema da dignidade como Petrarca (Scipio Africanus) Coluccio Salutati (De Herculegrave eiusque laboribus) Poggio Bracciolini (De Nobilitate) e Landino (De nobilitate animae) entre outros No seacuteculo XVI o tema da dignidade humana passa por forte criacutetica nas obras dos reformadores Lutero e Calvino e jaacute no XVII eacute retomado pelos platocircnicos de Cambridge

148 PICO Oratio p123 ldquo[]natildeo soacute os misteacuterios mosaicos ou os cristatildeos mas tambeacutem a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais que estou a discutirrdquo (ldquoVerum enimvero nec Mosaica tantum aut Christiana mysteria sed priscorum quoque teologia harum de quibus disputaturus accessi liberalium artium et emolumenta nobis et dignitatem ostenditrdquo)

83

manifestaccedilatildeo da dignidade149 Em seu De consolatione Philosophiae o termo

dignitas assume uma caracteriacutestica neutra perdendo a valecircncia positiva que lhe era

atribuiacuteda ateacute entatildeo (honor et dignitates non sunt summum bonum)150 Mais tarde jaacute

durante a Idade Meacutedia e a partir dos rastros de Boeacutecio a dignitas passa a ser

utilizada na terminologia teoloacutegico-filosoacutefica sob o significado de princiacutepio filosoacutefico

geral ou axioma postulado151 Por fim aquela que seria uma quarta acepccedilatildeo situa a

dignitas na especiacutefica categoria das hierarquias marcando assim uma posiccedilatildeo

dentro de um sistema hieraacuterquico Esse eacute o sentido que parece ser melhor extraiacutedo do

texto piquiano dentro de um contexto cosmoloacutegico que contempla uma seacuterie

ordenada de graus e dignidades ndash portanto de valoraccedilatildeo neutra ndash onde o homem eacute

colocado graccedilas a suas intriacutensecas caracteriacutesticas152

Quanto agraves principais dessemelhanccedilas observadas na reflexatildeo sobre o homem

realizada na Oratio em comparaccedilatildeo aos conteuacutedos verificados em obras de

humanistas anteriores chamam a atenccedilatildeo alguns pontos

a) As contribuiccedilotildees que os filoacutesofos humanistas deram agrave questatildeo da dignidade

ndash em se assumindo o entendimento que daacute ao termo a valecircncia positiva de virtude ndash

embora sem duacutevida dotadas de caracteriacutesticas que as distinguem entre si estiveram

voltadas em linhas gerais para a capacidade de utilizaccedilatildeo da razatildeo em acircmbito da

esfera civil ou do uso de uma potencial soberania sobre os reinos inferiores Sob tal

foco o homem era dignificado atraveacutes de valores como o respeito ao proacuteximo o

princiacutepio do dever e a busca pela felicidade Esse foi o caso da consistente reflexatildeo de

Giannozzo Manetti voltada sobretudo agrave questatildeo da atividade humana em termos

morais153 Tambeacutem para Coluccio Salutati e seu disciacutepulo Leonardo Bruni a perfeiccedilatildeo

moral do homem se traduzia de forma perfeita no ideal da vida ciacutevica Lorenzo Valla

por sua vez natildeo apenas se empenhou para afirmar a noccedilatildeo de soberania do homem

sobre a natureza anteriormente mencionada como valorizou a vida mundana em

todos os seus aspectos contra qualquer negaccedilatildeo asceacutetica Em uma famosa polecircmica

antiestoacuteica defendia que mesmo na natureza e na carne pode ser reconhecida a obra

de Deus154 A anaacutelise de Pico embora atuando no cenaacuterio antropoloacutegico que ocupava

espaccedilo cada vez maior dentro dos studia humanitatis acrescenta ao problema da

149 A fundamentaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo estaacute desenvolvida na obra de Mette LEBECH On the Problem of Human

Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg 2009 sobretudo p 62 150 BOEacuteCIO A Consolaccedilatildeo da Filosofia III 151 Veja-se Tomaacutes de AQUINO In Met III 5 390 VICO em Scienza Nuova manteacutem o uso de dignitas em seu

significado de ldquoaxiomardquo na parte em que trata ldquodos Elementosrdquo Essa utilizaccedilatildeo continuou ainda na Idade Moderna veja-se Galilei na passagem ldquoa terra natildeo pode separar-se de sua natureza de trecircs movimentos diversos ou seria necessaacuterio rejeitar muitas das dignidades manifestasrdquo (Cf Lettera a Francesco Ingoli in Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei (org) FAVARO 1933 pp 509-61)

152 Enquanto na Oratio Pico utiliza apenas uma vez o termo ldquodignidaderdquo (e natildeo no contexto de qualificaccedilatildeo do homem) no Heptaplus Pico falaraacute diretamente de dignidade do homem como posiccedilatildeo especial central dentro de uma escala ldquoNoacutes procuramos no homem uma nota que lhe seja peculiar com a qual se explique a dignidade que lhe eacute proacutepriardquo (Heptaplus V 6 ed 1942 p303) E ainda ldquoDevemos nos guardar em natildeo apreciar o grau de dignidade em que fomos colocadosrdquo (V 7 p307)

153 Cf De Dignitate et Excellentia Hominis Ver o toacutepico concernente a Manetti em GARIN Lrsquoumanesimo Italiano

154 GARIN LUmanesimo italiano 2008 respectivamente pp 69 e 62

84

filosofia moral uma dimensatildeo quase que estritamente metafiacutesica155 Essa distinccedilatildeo eacute

evidenciada logo na primeira paacutegina da Oratio em que o autor demonstra

insatisfaccedilatildeo com os enaltecimentos ateacute entatildeo proferidos aos atributos da natureza

humana certamente referindo-se agraves natildeo poucas obras anteriores escritas em seu

seacuteculo Entre os argumentos ldquoutilizados por muitosrdquo acerca da grandeza humana

Pico destaca o quase unacircnime elogio feito ao papel do homem qual ldquoviacutenculo das

criaturas superiores e inferioresrdquo ou ldquointeacuterprete da natureza em virtude da agudeza de

seus sentidos do poder indagador da razatildeo e da luz de seu intelectordquo Essas

qualidades no entanto natildeo o satisfazem e levam-no a um questionamento que natildeo

apenas sinaliza a criacutetica a seus antecessores como lhe permite ingressar em seu

argumento metafiacutesico

Grandes coisas estas sem duacutevida mas natildeo as mais importantes

isto eacute natildeo tais que consintam a reivindicaccedilatildeo do privileacutegio de

uma admiraccedilatildeo ilimitada Porque de fato natildeo deveremos noacutes

admirar mais os anjos e os beatiacutessimos coros celestes156

b) A pergunta introduz a reflexatildeo de Pico acerca da natureza indefinida do

homem nosso segundo ponto distintivo Em elaborado discurso o autor postula

atraveacutes de sua resposta a natureza ontologicamente indeterminada do homem que o

distingue tanto do mundo natural quanto do mundo angeacutelico abrind0-lhe a

possibilidade de se automodelar pelo uso que faz de sua faculdade de escolha Tal

natureza indeterminada natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo no homem mas ao contraacuterio um

privileacutegio que lhe permite natildeo ser constrangido por nenhuma limitaccedilatildeo e que lhe daacute o

atributo de em conformidade com sua vontade degenerar ou se regenerar A

concepccedilatildeo se erige atraveacutes das palavras proferidas ao primeiro homem pelo ldquodeus-

artiacuteficerdquo ndash personagem do Mito da Criaccedilatildeo piquiano

lsquoNatildeo te fizemos nem celeste nem terreno nem mortal nem

imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo

te plasmasses e te moldasses na forma que tivesses

155 A filosofia moral natildeo eacute irrelevante para Pico ao contraacuterio eacute um estaacutegio importante de evoluccedilatildeo da posiccedilatildeo

humana como seraacute visto Mas natildeo desfruta da mesma importacircncia que para seus colegas Coluccio Salutati por exemplo em discurso contra a filosofia teoacuterica-metafiacutesica e a favor da moral escreveria em seu De nobilitate legum et medicinae ldquoMuito me admira afirmares que a sabedoria consiste na contemplaccedilatildeo cuja serva seria a prudecircncia havendo entre elas a mesma relaccedilatildeo que haacute entre o administrador e o senhor e dizeres que a sapiecircncia eacute a maior das virtudes pertencente agrave melhor parte da alma que eacute do intelecto e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiecircncia E acrescentas que sendo a metafiacutesica a uacutenica ciecircncia livre o filoacutesofo quer que a especulaccedilatildeo preceda em tudo a accedilatildeo Mas a verdadeira sapiecircncia natildeo consiste como crecircs na especulaccedilatildeo pura Se tirares a prudecircncia natildeo acharaacutes nem sapiente nem sapiecircncia Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse co-nhecido coisas celestes e divinas sem que houvesse provido a si mesmo sem que houvesse sido uacutetil aos amigos agrave famiacutelia aos parentes e agrave paacutetriardquo No mesmo espiacuterito Leonardo Bruni em Isagogicon moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da filosofia moral sobre a filosofia teoacuterica Esse mostrou-se um vieacutes caracteriacutestico de muitos humanistas o de que soacute a filosofia moral seria ativa Veja-se ampla discussatildeo em GARIN LUmanesimo italiano 2008

156 PICO Oratio p102 ldquo(Horum dictorum rationem cogitanti mihi non satis illa faciebant quae multa de humanae naturae praestantia afferuntur a multis esse hominem creaturarum internuntium superis familiarem regem inferiorum sensuum perspicacia rationis indagine intellegentiae lumine naturae interpretem stabilis aevi et fluxi temporis interstitium er ndash quod Persae dicunt ndash mundi copulam immo hymenaeum ab angelis teste Davide paulo deminutum) Magna haec quidem sed non principalia id est quae summae admirationis privilegium sibi iure vindicent Cur enim non ipsos angelos er beatissimos caeli choros magis admiremurrdquo

85

seguramente escolhido Poderaacutes degenerar nas coisas inferiores

que satildeo os brutos poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades

superiores que satildeo divinas por decisatildeo da tua vontadersquo157

A passagem que se estabelece como a mais celebrada da inteira obra piquiana

ndash e sobre a qual recai a parte majoritaacuteria das leituras que afirmaram a dignificaccedilatildeo do

homem ndash apresenta um problema de ordem protoloacutegica que concerne agrave origem

teoloacutegica do homem Pico natildeo reafirma a dignidade do homem com base em sua

semelhanccedila em Deus sem prejuiacutezo de sua feacute a originalidade158 de seu homem

consiste conforme suas palavras em natildeo ter uma natureza predefinida mas em ser

ldquoopus indiscretae imaginisrdquo159 A natildeo-determinaccedilatildeo do homem mais do que uma

ausecircncia se daacute em razatildeo de uma demasia jaacute que nele encontram-se todas as

sementes situaccedilatildeo que natildeo ocorre com as bestas (que ldquotrazem consigo tudo [e

apenas] aquilo que depois teratildeordquo) e tampouco com os espiacuteritos superiores (que

ldquodesde o princiacutepio ou pouco depois foram o que seratildeo eternamenterdquo)160

c) O terceiro ponto de sutil diferenccedila em relaccedilatildeo ao anterior apresenta uma

distinccedilatildeo na posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem dentro do universo que ocupa ndash um

problema que chamariacuteamos de ordem cosmoloacutegica Embora sem negar a posiccedilatildeo

central do homem aceita na teologia medieval (ldquoo artiacutefice tomou o homem de

natureza indefinida e colocou-o no meio do mundordquo)161 Pico distancia-se

conscientemente da concepccedilatildeo hieraacuterquica mais usual conferindo ao homem um

novo status no universo Ele havia aprendido com seus principais mestres

escolaacutesticos que o lugar do homem estava determinado dentro da ordenaccedilatildeo

universal encontrando-se entre os reinos elementar celestial e angeacutelico Em sua

cosmovisatildeo o homem eacute retirado da fixidez escalar dos mundos ao ser-lhe

apresentada a possibilidade de ser e participar em todos os reinos No ponto (b)

acima trata-se de uma questatildeo de ldquosubstacircnciardquo jaacute que o homem carrega sementes

que os seres dos demais graus natildeo possuem Agora se trata de uma questatildeo de

mobilidade em razatildeo de seu proacuteprio arbiacutetrio Partindo de sua posiccedilatildeo central o

homem pode descer aos niacuteveis subumanos ou se elevar a niacuteveis supra-humanos

157 Oratio p 106 ldquoNec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius

quasi arbitrarius honorariusque plastes er fictor in quam malueris tu te formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo

158 A concepccedilatildeo da natureza indeterminada do homem foi considerada e aceita como originalidade de Pico della Mirandola Fato certo eacute que tal originalidade se houver deve ser admitida no que concerne agrave tradiccedilatildeo teoloacutegica ocidental ndash entenda-se na Era Cristatilde Antes desse periacuteodo haacute registros de concepccedilotildees similares em outras tradiccedilotildees que natildeo apenas eram conhecidas por Pico como foram utilizadas de forma aberta na De Hominis Dignitate Veja-se mais no toacutepico ldquoO tema da Concoacuterdiardquo

159 ldquoObra de imagem indeterminadardquo Conforme a Oratio ldquoIgitur hominem accepit indiscretae opus imaginis atque in mundi positum meditulliordquo Provavelmente ao escrever que o homem eacute ldquoobra de imagem indeterminadardquo Pico natildeo pretendia contradizer qualquer noccedilatildeo teoloacutegica referente agrave complexa problemaacutetica da ldquoimagem-semelhanccedilardquo de Deus fazendo apenas um uso retoacuterico das palavras Essa talvez tenha sido a razatildeo de Garin ter optado por traduzir o trecho ldquoindiscretae imaginisrdquo por ldquonatureza indeterminadardquo ao inveacutes de ldquoimagem indeterminadardquo ldquoPerciograve [lrsquoottimo artefice] accolse lrsquo uomo come opera di natura indefinitardquo (ed 1942 pp104-105)

160 Oratio p106 ldquoBruta simulatque nascuntur id secum afferunt (ut ait Lucilius) e bulga matris quod possessura sunt Supremi spiritus aut ab initio aut paulo mox id fuerunt quod sunt futuri in perpetuas aeternitates Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit paterrdquo

161 Oratio p106 ldquoMedium te mundi possuirdquo

86

condiccedilotildees que os elementos dos demais niacuteveis inclusos os anjos natildeo podem

experimentar

O tema da dignidade contempla ainda imbuiacutedo entre suas linhas um

importante desdobramento que concerne ao problema da liberdade do homem162 A

liberdade postulada por Pico natildeo se encontra pronta e soacute poderaacute ser adquirida

atraveacutes de constante exerciacutecio para sua efetivaccedilatildeo jaacute que a natureza humana abriga

vaacuterias formas de resistecircncia a tal efetivaccedilatildeo Uma mudanccedila de tocircnica que passa do

teor elogioso inicial para uma chamada de atenccedilatildeo em direccedilatildeo agraves fraquezas da

constituiccedilatildeo humana ndash com a subsequente prescriccedilatildeo do uso da liberdade como

soluccedilatildeo ndash pode ser observada nesse sentido quando se seguem as paacuteginas do

Discurso Ora pouco apoacutes afirmar que o homem pode ser tudo inclusive partiacutecipe da

vida angeacutelica Pico reflete que natildeo podemos atingir o modelo de vida dos Querubins

ldquonoacutes que somos carne e que temos o gosto das coisas terrenasrdquo Seraacute antes necessaacuterio

ldquodominar com a ciecircncia moral o iacutempeto das paixotildees dissipar a treva da razatildeo com a

dialeacutetica limpar a alma da ignoracircncia e do viacutecio para que as afecccedilotildees natildeo se

desencadeiem cegamente e tampouco a razatildeo imprudente algumas vezes delirerdquo163

Assim embora as primeiras paacuteginas do Discurso possam levar a qualificaacute-lo

como um tratado de otimismo em relaccedilatildeo ao homem o tom inicial de exaltaccedilatildeo (ldquooacute

suma e admiraacutevel felicidade do homem ao qual eacute concedido obter o que deseja ser

aquilo que querrdquo)164 eacute prontamente substituiacutedo pela constataccedilatildeo das dificuldades

ocasionadas por sua experiecircncia na mateacuteria seguida pela exortaccedilatildeo a assumir uma

responsabilidade eacutetica em relaccedilatildeo ao seu papel A argumentaccedilatildeo do tema se conclui

com a indicaccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio como meio de encetar sua necessaacuteria

transformaccedilatildeo Haacute pois nessa trajetoacuteria um pronunciado aspecto dialeacutetico165 na

medida em que Pico expotildee a necessidade do contiacutenuo exerciacutecio da razatildeo e de seu

poder indagador que o capacita a fazer escolhas Sob esse enfoque o problema

ontoloacutegico da natureza humana eacute colocado a posteriori nunca a priori diversamente

dos animais e anjos cuja natureza fixa natildeo pode ser modificada o homem pode de

acordo com suas escolhas transformar a proacutepria natureza

Finalmente haacute que se observar que tal possibilidade implica dois preceitos

por um lado essa ideia carrega uma exigecircncia aparentemente contraditoacuteria

162 A temaacutetica da liberdade presente no Discurso tem sido celebrada por comentadores ao longo dos uacuteltimos

seacuteculos Dentre os contemporacircneos por todos aqueles que seguiram os passos de Cassirer e Garin embora se verifiquem algumas poucas discordacircncias William Craven natildeo concorda com essa celebraccedilatildeo e Brian Copenhaver afirma que natildeo haacute na Oratio nada das noccedilotildees de liberdade criatividade e individualidade que lhe foram atribuiacutedas (acerca de Craven e Copenhaver veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 n p 78)

163 PICO Oratio p113 A reflexatildeo acerca da condiccedilatildeo instaacutevel do homem se manteraacute em obras posteriores em sua uacuteltima obra Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Pico fala de ldquonoacutes homuacutenculosrdquo (ed Vallecchi 1952 p444) No Heptaplus aquilo que rendia o homem um ldquodivino camaleatildeordquo era tambeacutem aquilo que o caracterizava como uma ldquotoupeira cegardquo o seu ser perenemente colocado no veacutertice da incerteza suspenso entre a ldquosuma miseacuteriardquo e a ldquosuma felicidaderdquo capaz mais de amar a verdade do que de possuiacute-la (De Hominis Dignitate etc 1942 p339)

164 Oratio p106 ldquoO summam dei patris liberalitatem summam et admirandam hominis felicitatem cui datum id habere quod optat id esse quod velitrdquo

165 Veja-se a propoacutesito a reflexatildeo de SIRGADO GANHO (ldquoComentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitaterdquo 2001 pp26-28) acerca da dimensatildeo dialeacutetica eacutetica e metafiacutesica que podem ser reconhecidas na obra de Pico

87

porquanto o livre-arbiacutetrio deveraacute ser ativado para que ocorra a autotransformaccedilatildeo

condiccedilatildeo que instaurando uma conjuntura ciacuteclica aumentaraacute o grau de sua liberdade

e consequentemente o poder de se transformar Por outro lado percebe-se nessa

situaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo do homem agrave liberdade jaacute que ele teraacute de escolher por si a

proacutepria condiccedilatildeo ndash tese notaacutevel para a eacutepoca Como explica o deus-artiacutefice

lsquoA natureza bem definida dos outros seres eacute refreada por leis por

noacutes prescritas Tu pelo contraacuterio natildeo constrangido por

nenhuma limitaccedilatildeo determina-la-aacutes para ti segundo o teu

arbiacutetriorsquo166

2 O tema da Concoacuterdia

As palavras iniciais que abrem o Discurso evidenciam a intenccedilatildeo de propor

uma filosofia conciliatoacuteria Dirigindo-se aos ldquopadri venerandirdquo (teoacutelogos e cardeais

para os quais satildeo apresentadas as justificativas) Pico dispotildee logo nas primeiras

linhas um autor da tradiccedilatildeo islacircmica acostado a outro da tradiccedilatildeo egiacutepcia O elogio

ao homem feito por Abdallah Sarraceno (ldquonada haacute de mais admiraacutevel do que o

homemrdquo) eacute comparado com a famosa sentenccedila de Hermes Trismegisto dirigida a

Ascleacutepio (ldquogrande milagre eacute o homemrdquo)167 Atraveacutes dessa escolha eacute dada autoridade a

um personagem proveniente do mundo islacircmico o maior dos antagonistas colocado

ao lado da entatildeo celebrada autoridade egiacutepcia dentro daquela Disputa que teria por

objetivo a paz filosoacutefica168

Li nos escritos dos Aacuterabes venerandos Padres que interrogado

Abdallah Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetaacuteculo

mais maravilhoso neste cenaacuterio do mundo tinha respondido

que nada via de mais admiraacutevel do que o homem Com esta

166 Oratio p106 ldquoTu nullis angustiis coercitus pro tuo arbitrio in cuius manu te posui tibi illam praefiniesrdquo 167 Eis a sentenccedila de Hermes na qual Pico se baseia ldquoPropter haec o Asclepi magnum miraculum est homo

animal adorandum et honorandum Hoc enim in naturam dei transit quasi ipse sit deus []rdquo (cf Corpus Hermeticum ed NOCK-FESTUGIEgraveRE Milano 2005 II)

168 Sobre Abdallah Sarraceno alguns comentadores acreditam tratar-se de Abd-Allah Ibn Al-Muquaffagrave escritor persa do seacuteculo VIII (cf FERACINE notas agrave Oratio 1999) Entretanto Pier Cesare Bori atraveacutes de uma pesquisa bastante aprofundada leva-nos a crer que se trate de Abdallah al-Tarjumacircn ou Anselmo Turmeda frade franciscano nascido em Palma de Maiorca no seacuteculo XIV estabelecido em Bolonha por razotildees de estudo Segundo sua autobiografia a Tuhfa ele teria recebido de um pio religioso a sugestatildeo de aproximar-se ao Islam e acabaria por converter-se na cidade de Tunis Em outra obra Disputa dellAsino de 1417 pode ser encontrada uma das fontes acerca da dignidade do homem na qual Turmeda apresenta um fundamento teoloacutegico muito similar agrave metaacutefora utilizada por Pico em seu Mito adacircmico Embora a Disputa dellAsino natildeo faccedila parte dos livros de Pico certamente a notiacutecia da disputa de Abdallah-Turmeda natildeo lhe era desconhecida Para maiores detalhes acerca de toda a questatildeo veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564 Do mesmo autor Pluralitagrave delle vie Milano 2000 pp43 ss Ainda ZAMBELLI Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lullina in Pico della Mirandola e seguaci 1995 p29

88

sentenccedila concorda aquela famosa de Hermes lsquoGrande milagre

oacute Ascleacutepio eacute o homemrsquo169

A passagem inaugura o elogio feito agrave filosofia de heterogecircneas escolas e

eacutepocas que perpassa todas as paacuteginas da Oratio como pode ser verificado atraveacutes de

variegadas tentativas de estabelecimento de acordo entre sistemas filosoacuteficos

considerados distintos170 Na passagem em que justifica a escolha dos temas das

Conclusiones Pico ressalta algumas dentre tais concordacircncias que natildeo se limitando

agrave Filosofia alcanccedilam a Teologia

[] insatisfeito por ter trazido aleacutem das doutrinas comuns

muitos assuntos da antiga teologia de Mercuacuterio Trismegisto

muitas das teorias dos Caldeus e de Pitaacutegoras muitos dos

escondidos misteacuterios dos Hebreus tambeacutem propus agrave discussatildeo

muitiacutessimos assuntos concernentes ao mundo natural e divino

encontrados e meditados por mim []Propus o acordo entre

Platatildeo e Aristoacuteteles [e] as sentenccedilas consideradas

contrastantes de Escoto e de Tomaacutes de Averroacuteis e de Avicena

que pelo contraacuterio satildeo concordantes171

Outras vaacuterias correspondecircncias satildeo efetuadas de forma fluiacuteda integrando

registros extraiacutedos do campo filosoacutefico teoloacutegico e misterioloacutegico em um estilo

literaacuterio proacuteprio Em meio agrave narrativa que trata da distribuiccedilatildeo de talentos feita por

Deus (ldquosummus pater architectus Deusrdquo) em seu Mito adacircmico Pico busca concordar

a tradiccedilatildeo biacuteblica com a pagatilde-filosoacutefica atraveacutes da menccedilatildeo agrave passagem inicial do

Gecircnesis (II 1) sobre a origem do mundo harmonizada com a passagem platocircnica

descrita no Timeu 41 (b-d) ldquouma vez tudo realizado como Moiseacutes e Timeu

atestam172 pensou por uacuteltimo criar o homemrdquo173 A concepccedilatildeo de distribuiccedilatildeo de

arqueacutetipos na mesma narrativa eacute emprestada de outro diaacutelogo platocircnico o

Protaacutegoras em que eacute narrado o ldquoMito da Criaccedilatildeo do Homemrdquo174 A analogia eacute clara

169 Oratio p 102 ldquoLegi Patres colendissimi in Arabum monumentis interrogatum Abdalam Sarracenum

quid in hac quasi mundana scena admirandum maxime spectaretur nihil spectari homine mirabilius respondisse Cui sententiae illud Mercuri adstipulatur lsquoMagnum o Asclepi miraculum est homorsquordquo

170 Para a questatildeo da Concoacuterdia filosoacutefica como sendo a principal intenccedilatildeo de Pico ao redigir a Oratio veja-se Cesare VASOLI Imagini Umanistiche 1983 p5

171 Oratio pp144-46 ldquoPropterea non contentus ego praeter communes doctrinas multa de Mercurii Trismegisti prisca theologia multa de Chaldaeorum de Pythagorae disciplinis multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mysteriis plurima quoque per nos inventa et meditata de naturalibus et divinis rebus disputanda proposuimus Proposuimus primo Platonis Aristotelisque [] Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo

172 Na passagem em questatildeo Pico refere-se a Moiseacutes como autor do Gecircnesis Ademais refere-se diretamente a Timeo di Locri filoacutesofo pitagoacuterico vivido no IV seacuteculo aC contemporacircneo de Platatildeo e autor da obra De Anima Mundi muito provavelmente o personagem que interage com Soacutecrates no diaacutelogo Timeu (Cf Enrico PEGONE tradutor de Timeu em Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010) O trecho de Platatildeo que trata do assunto estaacute em Timeu 41-b ss

173 Oratio p 104 ldquoIdcirco iam rebus omnibus (ut Moses Timaeusque testantur) absolutis de producendo homine postremo cogitavitrdquo

174 PLATAtildeO Protaacutegoras 320d-321e Conta o mito que apoacutes terem os deuses modelado dentro da terra os gecircneros mortais Epimeteu torna-se o responsaacutevel pela distribuiccedilatildeo de suas capacidades Ao terminar a tarefa seu irmatildeo Prometeu descobre que todos os animais receberam qualidades harmoniosamente enquanto o homem estaacute nu descalccedilo sem cobertas e sem armas

89

ldquodos arqueacutetipos natildeo restava nenhum sobre o qual moldar a nova criatura [o homem]

e nem dos lugares em todo o mundo restava algum em que pudesse sentar-se o

contemplador do universordquo175 Algumas paacuteginas adiante recorre mais uma vez agrave

concordacircncia entre a tradiccedilatildeo biacuteblica-cristatilde (agora representada por Moiseacutes e os

Padres da Igreja) e a platocircnica quando ao discorrer acerca do caminho eacutetico de

aperfeiccediloamento aponta para o amor como possibilidade regeneradora

Moiseacutes amou o Deus que viu e promulgou ao povo como juiz

aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplador

Eis porque no meio o Querubim com a sua luz nos prepara

para a chama seraacutefica [] Esse eacute o noacute das primeiras mentes a

ordem sapiencial que preside agrave filosofia contemplativa isso

devemos antes de tudo emular investigar e compreender 176

A menccedilatildeo agrave ordem angeacutelica eacute utilizada para acostar um teoacutelogo cristatildeo de

tradiccedilatildeo neoplatocircnica Dioniacutesio ao principal emissaacuterio da tradiccedilatildeo hebraica a

sublimidade dos Serafins seraacute alcanccedilada atraveacutes da luz querubiacutenica da mesma forma

que Moiseacutes atraveacutes do amor despertado pela visatildeo de Deus pocircde transmitir ao povo

o que havia visto quando se encontrava em estado de contemplaccedilatildeo A qualidade da

luz ndash atribuiacuteda aos querubins conforme se lecirc em Dioniacutesio177 ndash eacute diretamente

relacionada ao conhecimento advindo da contemplaccedilatildeo como seraacute verificado no

proacuteximo item Essa eacute uma funccedilatildeo intermediaacuteria entre as ordens angeacutelicas anterior e

posterior que busca alcanccedilar a dimensatildeo do amor absoluto tornando-a anaacuteloga agrave

funccedilatildeo intermeacutedia da alma humana Na continuidade da sentenccedila Pico efetua uma

analogia com o domiacutenio platocircnico ao prescrever que apoacutes se entregar agrave filosofia

contemplativa o homem poderaacute ser alccedilado ldquoaos fastiacutegios do amorrdquo retornando em

seguida devidamente preparado para as tarefas da accedilatildeo178

Uma concordacircncia de outra categoria eacute apontada na obra quando ao tratar do

problema da natureza do homem e de sua possibilidade de tudo ser Pico encontra

conformidades em tradiccedilotildees iacutempares como a hebraica a islacircmica a caldaica e a

grega esta uacuteltima representada pela filosofia pitagoacuterica e empedocliana e pela

religiosidade dos Misteacuterios helecircnicos Vejamos Pico se remete a alguns tipos de

transformaccedilotildees promovidas durante os cultos misteacutericos de antigas tradiccedilotildees Eacute o

caso da transformaccedilatildeo narrada por certo Ascleacutepio ateniense179 que durante os ritos

ldquodevido ao aspecto mutaacutevel e a uma natureza capaz de se transformarrdquo dizia-se

175 Oratio p104 ldquoVerum nec erat in archetypis unde novam subolem effingeret nec in thesauris quod novo

filio hereditarium largiretur nec in subselliis totius orbis ubi universi contemplator iste sederetrdquo 176 Oratio p112 ldquoAmavit Moses Deum quem vidit et administravit iudex in populo quae vidit prius

contemplator in monte Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos praeparat et ad Thronorum iudicium pariter Illuminat hic est nodus Primarum mentium ordo palladicus philosophiae contemplativae praeses hic nobis et aemulandus primo et ambiendus atque adeo comprehendendus estrdquo

177 PSDIONISIO AREOPAGITA De Coelesti Hierarchia VI-VII 178 O tema seraacute visto de forma aproximada no proacuteximo toacutepico 179 O Ascleacutepio ateniense citado por Pico natildeo eacute identificaacutevel conforme informa Luiz Feracine em sua traduccedilatildeo

da obra (1999) Certo eacute que Pico quer distingui-lo do conhecido Ascleacutepio de Trales na Liacutedia filoacutesofo neoplatocircnico e disciacutepulo de Amocircnio vivido no seacuteculo VI dC e que deixou um comentaacuterio sobre os primeiros sete livros da Metafiacutesica de Aristoacuteteles Pela referecircncia aos Misteacuterios que envolvem Proteu ndash no Hino oacuterfico 25 eacute feita menccedilatildeo a Proteu ndash eacute provaacutevel tratar-se de personagem de periacuteodo anterior agrave Era Cristatilde

90

simbolizado por Proteu180 Ou ainda das metamorfoses que ocorrem em cerimocircnias

secretas da misteriologia aramaica que ldquotransformam ora Enoch santo no anjo da

divindade e o chama malakh haacute-chekli-natildeh ora outros noutros espiacuteritos divinosrdquo181

Embora natildeo se tenha maiores esclarecimentos acerca dessas duas passagens eacute

possiacutevel afirmar que ambas corroboram como fundamentos acessoacuterios a concepccedilatildeo

piquiana da capacidade seja degenerativa que regenerativa do homem Tal ideia eacute

ilustrada na continuidade do texto pela referecircncia a Maomeacute (ldquoquem se afasta da lei

divina torna-se uma bestardquo) e em acircmbito grego pela referecircncia ao Pitagorismo e a

Empeacutedocles (ldquoe os Pitagoacutericos transformam os celerados em bestas e a acreditar em

Empeacutedocles ateacute mesmo em plantasrdquo)182 O trecho introduz um novo elemento entre

os temas lanccedilados na obra atraveacutes da alusatildeo agrave metempsicosis183 Em relaccedilatildeo ao

Pitagorismo Pico certamente se refere de forma direta ou indireta ao fragmento 21

de Xenoacutefanes quando alude agrave transformaccedilatildeo ldquodos celerados em bestasrdquo uacutenico

fragmento a trazer um conteuacutedo similar agrave passagem em questatildeo184 Jaacute Empeacutedocles

trata do tema em seu Purificaccedilotildees onde afirma que agrave semelhanccedila dos outros

daacuteimones fora tambeacutem ele condenado agrave mortalidade (mas que apoacutes um correto ciclo

de encarnaccedilotildees a divindade poderia ser novamente atingiacutevel)185 Embora Pico natildeo

aborde o tema da transmigraccedilatildeo diretamente em nenhuma de suas obras ndash nas

Conclusiones por exemplo a menccedilatildeo eacute feita por via obliacutequa ndash186 eacute bastante relevante

o aceno agrave possibilidade de que o processo de regeneraccedilatildeo e degeneraccedilatildeo do homem

pode se dar natildeo apenas no decurso de uma vida mas na decorrecircncia de vaacuterias ndash um

conteuacutedo que encontra correspondecircncias em algumas das principais doutrinas de

cunho esoteacuterico recepcionadas por Pico A passagem se conclui com uma fonte

extraiacuteda dos caldeus atraveacutes da qual o autor aproxima-se de sua principal concepccedilatildeo

a de que o homem carrega todas as sementes

180 Oratio p106 ldquoQuem non immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius ei se ipsam transformantis

naturae argumento per Proteum in mysteriis significari dixitrdquo 181 Oratio p108 ldquoNam et Hebraeorum theologia secretior nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis quem

vocant lsquomalakh haacute-chekli-natildehrsquo nunc in alia alios numina reformatrdquo Acerca da expressatildeo Malakh haacute-chekli-natildeh ndash escrita por Pico em ideogramas hebraicos e suprimida de vaacuterias traduccedilotildees inclusive da tradicional de Garin de 1942 ndash seu significado eacute ldquoo anjo de sheklinatildehrdquo De acordo com a Biacuteblia o patriarca Enoque natildeo teve a morte comum dos mortais (Gecircnesis V 21-24) o que o torna segundo a crenccedila um ldquoanjo da divindaderdquo Por isso a misteriologia aramaica conservada nos livros apoacutecrifos atribui a Enoque o nome de Metraton e assim eacute designado no Talmud e no Midrash De acordo com tal tradiccedilatildeo Metraton equivale a ldquoanjo em que subsiste o nome de Deusrdquo Por extensatildeo semacircntica chegou-se a identificar o nome Metraton com os atributos da divindade e com o proacuteprio ser divino resultando daiacute a figura do Mithra de Zaratustra Pico mais ortodoxo no assunto usa o termo sheklinatildeh no sentido figurado de esplendor ou manifestaccedilatildeo de Deus (cf nota agrave traduccedilatildeo de Luiz FERACINE 1999)

182 Oratio p108 ldquoEt Pythagorici scelestos homines in bruta deformant ei si Empedocli creditur etiam in plantasrdquo

183 A metempsicose doutrina de transmigraccedilatildeo da alma em corpos sucessivos manifesta-se no mundo grego por volta do final do seacuteculo VI aC de acordo com o mais antigo testemunho o de Piacutendaro em sua segunda Ode Oliacutempica de 476 aC (cf Walter BURKERT Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 p97 e Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica 1993 p568) Conferir para maiores detalhes a obra de Gabriele CORNELLI (O Pitagorismo como Categoria Historiograacutefica 2011 p145 ss)

184 No famoso fragmento (21 B7 DK Dioacutegenes Laeacutercio VIII 36) um dos mais antigos testemunhos sobre o assunto Xenoacutefanes estaria zombando de Pitaacutegoras ao insinuar que ele teria visto em um catildeo a alma de um amigo A crenccedila pitagoacuterica na metempsicose eacute ainda mencionada por Iacuteon de Chios Heroacutedoto Filolau Aristoacuteteles (que a descreve como faacutebula pitagoacuterica) e Platatildeo

185 O mote transmigracionista estaacute ainda presente no Poema lustral de Empeacutedocles que narra a aventura da alma-daacuteimon banida do Olimpo dos bem-aventurados jogada num corpo e ligada ao ciclo dos nascimentos durante tal jornada passa pela condiccedilatildeo de ldquomenino e menina arbusto passarinho e mudo peixe do marrdquo Vejam-se os fragmentos em KIRK RAVEN SCHOFIELD Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos Lisboa 2007 pp296 329-330

186 Vejam-se as Conclusiones nrs (I) IV II 8 (Adelando Aacuterabe) (I) VIII 4 (Zoroastro)

91

O persa Evantes onde expotildee a teoria caldaica escreve que o

homem natildeo possui uma sua especiacutefica e nativa imagem mas

muitas estranhas e adventiacutecias Daiacute o dito caldaico de que o

homem eacute animal de natureza vaacuteria multiforme e mutaacutevel187

Quase ao encerramento de seu Discurso e assim como o fez nas Conclusiones

Pico aborda a questatildeo da Cabala procurando mostrar atraveacutes de alguns de seus

maiores representantes a concoacuterdia com o Cristianismo (ldquoli as mesmas coisas que

todos os dias lemos em Paulo e Dioniacutesio em Jerocircnimo e em Agostinhordquo) e com a

Filosofia (ldquoparece-nos ouvir Pitaacutegoras e Platatildeordquo)188 A busca da paz final eacute segundo

Pico o ponto em que todas as filosofias se unem em concoacuterdia para regozijar-se na

ldquosantiacutessima pazrdquo apregoada pelos cristatildeos ldquodesfrutar da amizade concorderdquo

pitagoacuterica e alcanccedilar a ldquoindissoluacutevel uniatildeordquo apregoada por Averroacuteis Essa eacute a maneira

escrita em formas diferentes por meio da qual ldquotodas as almas natildeo soacute se acordam

numa uacutenica Mente que estaacute acima de cada mente mas tambeacutem de uma maneira

inefaacutevel se fundem em uma soacuterdquo189

O tema da Concoacuterdia ocupa espaccedilo proeminente no pensamento de Giovanni

Pico cuja proposta eacute reclamar a verdade atraveacutes do constante exerciacutecio dialeacutetico dos

pontos de vista Tendo sido alcanccedilado o objetivo referente a cada saber individual

cujas especiacuteficas concepccedilotildees foram escritas para a discussatildeo no debate romano o

proacuteximo passo do autor seria o de comprovar o acordo entre as vaacuterias tradiccedilotildees

abordadas prerrogativa para estabelecer a unidade da verdade O tema aqui iniciado

necessaacuterio para a siacutentese final seraacute retomado no Capiacutetulo VII pois que cada forma de

filosofar apresentada pelo autor mostra-se como um caminho de aproximaccedilatildeo agrave

verdade que uma vez alcanccedilada prescinde das particularidades de cada forma

Veremos a seguir que para estabelecer o caraacuteter universal da verdade Pico percorre

doutrinas que confluem em relaccedilatildeo a um paradigma que se estabelece pela

consecuccedilatildeo de estaacutegios relacionados a uma evoluccedilatildeo asceacutetica

3 O tema da Ascese

A liberdade preconizada sob o tema da dignidade encontra-se sujeita agrave

efetivaccedilatildeo e suplantaccedilatildeo de certos estaacutegios Meacutetodos para percorrer caminhos

187 Oratio p108 ldquoIdcirco scribit Euantes Persa ubi Chaldaicam theologiam enarrat non esse homini suam

ullam et nativam imaginem extrarias multas er adventicias Hinc illud Chaldaeorum lsquoEnosh hu shinnuim vekammah tebhaoth baal hajrsquo idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animalrdquo No texto original Pico apresenta em ideogramas aparentemente hebraicos a passagem referente ao dito caldaico Acerca de Evantes e de acordo com nota do tradutor FERACINE (1999) sua identidade eacute desconhecida

188 Oratio p160 ldquo[]eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimus In his vero quae spectant ad philosophiam Pythagoram prorsus audias et Platonem [hellip]rdquo

189 Oratio p118 ldquo[hellip]optata pace perfruemur pace sanctissima individua copula unanimi amicitia qua omnes animi in una mente quae est super omnem mentem non concordent adeo sed ineffabili quodam modo unum penitus evadantrdquo

92

asceacuteticos fazem parte das praacuteticas esoteacutericas apregoadas e utilizadas em natildeo poucas

tradiccedilotildees em sua maioria com o objetivo de alcanccedilar um estado de uniatildeo com o

Absoluto Pico utiliza-se de alguns exemplos ascensionais dentro do procedimento

escolhido para demonstrar a unidade da verdade exemplos cuja convergecircncia

doutrinaacuteria eacute esperada em esferas mais elevadas Na metade inicial da Oratio

evidenciam-se treze passagens distintas referentes a condutas asceacuteticas de

competecircncia teoloacutegica ou filosoacutefica as quais em se eliminando aquelas pertencentes

a uma mesma tradiccedilatildeo perfazem um total de sete tradiccedilotildees especiacuteficas Como

fundamentaccedilatildeo para o seu modelo de itineraacuterio asceacutetico Pico percorre as seguintes

doutrinas crenccedilas ou sistemas

1) A dialeacutetica segundo a filosofia platocircnica

2) O modelo angeacutelico postulado por Dioniacutesio Areopagita

3) As iniciaccedilotildees misteacutericas da tradiccedilatildeo grega

4) Os Mitos de Dioniso e de Osiacuteris

5) A simbologia do tabernaacuteculo de Moiseacutes pertencente agrave tradiccedilatildeo hebraica

6) As praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas

7) A misteriologia caldaica

Antes da verificaccedilatildeo de cada um desses itens cabe observar que ainda em

meio agrave narrativa de seu Mito adacircmico Pico introduz a primeira problemaacutetica de

percurso asceacutetico perfeitamente presente no coraccedilatildeo de sua reflexatildeo acerca da

dignidade humana Partindo da premissa de existecircncia de quatro niacuteveis hieraacuterquicos

existentes no homem entendidos como corpos efetivos ou como possibilidades eacute

efetuada uma analogia com os reinos que representam graus da hierarquia coacutesmica

postulada pelo autor ndash que seria mais tarde tratada no Heptaplus190 O mito chama

a atenccedilatildeo para a presenccedila de tais naturezas ou potencialidades que integram o

homem bem como de sua possibilidade de superaccedilatildeo ou regressatildeo atraveacutes da

passagem entre um e outro niacutevel Assim ao se comportar como vegetal utilizando

sua natureza entorpecida e insensiacutevel ldquoo homem seraacute como plantardquo se for sensiacutevel

ldquose tornaraacute bestardquo em razatildeo de sua alma bruta e sensual se racional ldquoelevar-se-aacute a

animal celesterdquo pois ldquonatildeo eacute a forma circular que faz o ceacuteu mas a reta razatildeordquo se

intelectual puro contemplante seraacute anjo e filho de Deus ldquopois natildeo eacute a separaccedilatildeo do

corpo que faz o anjo mas sua inteligecircncia espiritualrdquo191

190 Cf PICO Heptaplus Quinta Exposiccedilatildeo p305 191 Oratio pp106 108 Alguns anos mais tarde em 1516 talvez sob a influecircncia da obra de Pico Pietro

Pomponazzi apresentaraacute sua proacutepria concepccedilatildeo da ordem natural no De immortalitate animae ldquoA natureza procede por graus Os vegetais tecircm um pouco de alma seguem os animais dotados apenas de tato gosto e imaginaccedilatildeo indefinida depois os animais tatildeo perfeitos que parecem dotados de inteligecircncia que constroem asas

93

Entre as referecircncias percorridas Pico insere ademais um siacutembolo de ascensatildeo

iniciaacutetica representado pela imagem biacuteblica da escada de Jacoacute ldquoo sapientiacutessimo

patriarca ensinar-nos-aacute mediante um siacutembolo [] que existem escadas que sobem do

fundo da terra ateacute ao cume dos ceacuteus distintas numa longa seacuterie de degrausrdquo192 A

passagem eacute narrada no Gecircnesis referindo-se agrave revelaccedilatildeo recebida em sonho por Jacoacute

atraveacutes da visatildeo de uma escada ligando ceacuteu e terra193 Essa representaccedilatildeo permite que

se efetuem analogias com diversas tradiccedilotildees como a tradiccedilatildeo angeacutelica referida por

Pseudo Dioniacutesio os Misteacuterios gregos e a Cabala194 Ao ser retirada do campo da feacute

traz a exigecircncia de que todos os degraus sejam percorridos passando pelos graus

irredutiacuteveis da filosofia natural da filosofia moral e dos procedimentos dialeacuteticos Os

traccedilos de tal percurso estatildeo bem definidos na dialeacutetica platocircnica primeiro dos sete

modelos asceacuteticos verificados a seguir

1) A primeira referecircncia agrave dialeacutetica filosoacutefica no Discurso eacute colhida de fontes

platocircnicas e disposta em linguagem miacutetica atraveacutes do convite para que o homem

abandone o que eacute terreno e ldquovoerdquo para as regiotildees supramundanas em direccedilatildeo agrave

divindade A menccedilatildeo ao voo reafirmada na passagem em que alude ao ldquoceacutelere voo

para a Jerusaleacutem Celeste atraveacutes de um bater de asasrdquo embora natildeo mencionada

diretamente remete agraves asas da alma que proporcionam a sua libertaccedilatildeo como fora

exaltado por Platatildeo no Fedro195

Desdenhemos das coisas da terra desprezemos as astrais e

abandonando tudo o que eacute terreno voemos para a sede

supramundana proacuteximo da sumidade da divindade196

Observe-se que conforme as palavras acima a Esfera Astral eacute um reino

inserido em territoacuterio ligado ao mundano197 acima do sublunar que remete agrave

imagem de um eixo vertical cujas etapas devem ser superadas A passagem encerra a

ideia de um movimento dinacircmico que pode ser realizado pela alma humana graccedilas agrave

e se organizam em sociedades civis como as abelhas (tanto que muitos homens parecem inferiores aos brutos por inteligecircncia)rdquo Em continuidade o autor apresenta seu conceito de ldquomedianidaderdquo ou planos ldquosintetizantesrdquo entre os reinos ldquoHaacute animais meacutedios entre as plantas e os animais como as esponjas marinhas fixas como as plantas mas sensiacuteveis como os animais haacute o macaco que natildeo se sabe se eacute animal ou homem e haacute a alma intelectiva mediana entre o temporal e o eternordquo Para maiores detalhes veja-se GARIN LrsquoUmanesimo italiano 2008 pp156-160

192 Oratio p 114 193 Cf Gecircnesis 28 12-13 ldquoE sonhou e eis uma escada posta na terra cujo topo tocava nos ceacuteus e eis que os

anjos de Deus subiam e desciam por elardquo 194 Algumas distintas interpretaccedilotildees dessa passagem foram realizadas Para Luiz FERACINE (1999) a escada de

Jacoacute significa a necessidade de ascender do muacuteltiplo ao uno simbolizado pelo desmembramento titacircnico do deus Dioniso Giulio BUSI identifica a escada com a deacutecima sefiraacute da tradiccedilatildeo cabaliacutestica correspondente a malkut vista em seu duplo aspecto de oraccedilatildeo e presenccedila divina conforme o autor depreende do Sefer ha-Zohar (La Qabbalah 2011 p11) Para Albano BIONDI (1995 ldquoIntroduccedilatildeordquo) a escada apresenta um significado estritamente dialeacutetico relacionado agrave Filosofia e seus graus de conhecimento

195 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss A passagem da Oratio que cita o Fedro encontra-se na p122 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feraturrdquo

196 Oratio p110 ldquoDedignemur terrestria caelestia contemnamus et quicquid mundi est denique posthabentes ultramundanam curiam eminentissimae divinitati proximam advolemusrdquo

197 A mateacuteria referente agrave Esfera Astral eacute desenvolvida por Pico em suas Disputationes Adversus Astrologiam

94

sua posiccedilatildeo intermeacutedia dentro do desenho universal Agrave medida que se avanccedila no

texto torna-se patente que tal posiccedilatildeo consiste em uma tensatildeo vertical dialeacutetica

permanente que reporta ao Banquete Em seu Commento de lsquo86 Pico jaacute havia

explorado o diaacutelogo platocircnico e o tema da natureza carente de Eros intermediaacuteria

entre a ignoracircncia e a sabedoria sempre agrave procura desta uacuteltima198 O influxo daquela

obra pode ser agora percebido a partir da retomada do mesmo dinamismo que se

repete e percorre todo o Discurso Oriacutegenes havia feito menccedilatildeo ao mito contido no

Banquete e agrave sua analogia com a busca do homem por sabedoria e sabe-se que Pico

teve acesso agrave sua obra199 O Eros platocircnico assim como a alma piquiana ocupa uma

posiccedilatildeo intermeacutedia200 pois natildeo eacute divino nem terreno201 A potecircncia para atingir as

realidades supremas atraveacutes do amor pela sabedoria encontra-se nas representaccedilotildees

das duas obras Aleacutem da dinacircmica de atraccedilatildeo pelo saber o Discurso eacute perpassado

pela teoria platocircnica que distingue graus de conhecimento entre o sensiacutevel e o

inteligiacutevel e que postula a partir de tais pontos o meacutetodo dialeacutetico que permite a

passagem do grau inicial da pluralidade das opiniotildees ao grau final da unidade da

Ideia

A filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo e os dissiacute-

dios que atormentam dividem e dilaceram de modos diversos

a alma inquieta [] A dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo

tumultuosamente mortificada entre os contrastes das palavras e

dos silogismos capciosos202

Pico atribui ora agrave filosofia ldquonaturalrdquo ora agrave ldquomoralrdquo a competecircncia para tratar

das questotildees relacionadas agrave conduta humana203 Na primeira parte da passagem

acima ao tratar dos ldquoconflitos e opiniotildeesrdquo estabelece-se uma relaccedilatildeo com o segundo

grau de conhecimento apresentado na Repuacuteblica204 dimensatildeo da piacutestis e doxa cuja

superaccedilatildeo viraacute atraveacutes da filosofia moral Na segunda parte Pico coloca-se em grau

acima ao abordar a forma como a razatildeo poderaacute ser acalmada atraveacutes da dialeacutetica

Embora o meacutetodo dialeacutetico possa ser entendido como o sistema integral que abarca

todos os graus no sentido de movimento da consciecircncia que se move entre os graus

mais baixos e os mais altos ndash graccedilas agrave descoberta das contradiccedilotildees encontradas em

cada grau inferior de conhecimento ndash o mesmo pode tambeacutem ser dividido em duas

etapas a primeira dialeacutetica inferior opera com as contradiccedilotildees das opiniotildees e

crenccedilas isto eacute com a multiplicidade sensiacutevel moacutevel e dispersa a segunda superior

198 PLATAtildeO Banquete 203d-204c 199 A obra Contra Celsum do teoacutelogo Oriacutegenes havia sido publicada em latim em 1481 poucos anos antes da De

Hominis Dignitate A passagem em questatildeo encontra-se em IV 39 Ademais eacute conhecida a admiraccedilatildeo que Pico tinha por Oriacutegenes Para uma aprofundada reflexatildeo sobre a analogia entre o Banquete e a visatildeo dialeacutetica de Pico veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996 pp 551-564

200 PLATAtildeO Banquete 202d 201 PLATAtildeO ibid 203e 202 Oratio p119 A inversatildeo dos periacuteodos na citaccedilatildeo acima foi feita por uma questatildeo de ordenamento necessaacuterio

ao que estaacute sendo tratado ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et laceranterdquo

203 De fato na paacutegina 122 da Oratio que conteacutem a passagem citada encontra-se tanto o uso de ldquomoralisrdquo quanto ldquonaturalis philosophiardquo

204 Veja-se PLATAtildeO (Rep 509d-511e) e seu ldquoSiacutemile das duas linhasrdquo

95

ou verdadeira dialeacutetica opera ultrapassando demonstraccedilotildees baseadas em hipoacuteteses

na medida em que a multiplicidade vai sendo ordenada e sistematizada ateacute alcanccedilar o

incondicionado a unidade inteligiacutevel Essa a dialeacutetica superior capaz de elevar-se de

hipoacutetese em hipoacutetese ateacute alcanccedilar o natildeo hipoteacutetico205 eacute aquela agrave qual Pico se refere

como o aliacutevio para ldquoacalmar a razatildeordquo

Seremos arrebatados se primeiro tivermos realizado tudo

quanto estaacute em noacutes se de fato com a moral forem refreados

dentro dos justos limites os iacutempetos das paixotildees de tal modo

que se harmonizem reciprocamente com estaacutevel acordo e se a

razatildeo proceder ordenadamente mediante a dialeacutetica206

Finalmente no pinaacuteculo da ascensatildeo ocorre o ldquoarrebatamentordquo momento em

que como ainda mencionado no Banquete (210a) a alma filosoacutefica encontra-se com

a Ideia Suprema O contato direto e imediato da inteligecircncia com o inteligiacutevel se daacute

no plano noeacutetico em que ocorre a visatildeo intelectual de uma ideia em decorrecircncia do

conhecimento adquirido por meio dos atos de intuiccedilatildeo intelectual a episteacuteme Segue-

se assim o quinto grau de conhecimento postulado na Carta Seacutetima e proclamado

por Pico como final de uma trajetoacuteria de conhecimento207

Rejeitadas as impurezas com a moral e a dialeacutetica se adorne da

mais vasta Filosofia como se fosse um ornamento real208

2) A ideia de desenvolvimento vertical humano eacute encontrada outrossim na

narrativa feita por Pseudo-Dioniacutesio acerca do mundo angeacutelico Pico se fundamenta

em seu modelo de ascese miacutestica em trecircs estaacutegios (purgatio illuminatio e perfectio)

ndash conforme a visatildeo recebida em revelaccedilatildeo por Paulo relatada em Coriacutentios acerca do

triacuteplice coro angeacutelico209 Iniciando sua argumentaccedilatildeo eacute lanccedilada a questatildeo de como

proceder para chegar aos Serafins Querubins e Tronos seres pertencentes ao

primeiro ciacuterculo dentro da hierarquia cosmoloacutegica descrita por Dioniacutesio210 a melhor

205 PLATAtildeO na Carta VII (343e) descreve que a passagem contiacutenua entre os vaacuterios niacuteveis hipoteacuteticos com o

deslocamento para o alto e para baixo em cada niacutevel mesmo sob dificuldades leva ao conhecimento da coisa buscada

206 Oratio p122 ldquoAgemur ab illis utique si quid est in nobis ipsi prius egerimus nam si et per moralem affectuum vires ita per debitas competentias ad modulos fuerint intentae ut immota invicem consonent concinentia et per dialecticam ratio ad numerum se progrediendo moverit []rdquo

207 PLATAtildeO Carta VII 342b-343c Na Carta Seacutetima Platatildeo amplia o que havia estabelecido na Repuacuteblica sobre os quatro modos de conhecimento ensinando que o quinto modo de conhecimento eacute a coisa-em-si mesma ou a percepccedilatildeo intelectual direta da coisa cognosciacutevel A funccedilatildeo do quarto modo que eacute o conhecimento (342b) eacute preparar-nos para alcanccedilar o objeto real e soacute atraveacutes de uma fricccedilatildeo chegamos a ele Essa fricccedilatildeo produz uma faiacutesca como uma luz que surge na alma (341d) e nos faz ver a pura ideia da coisa Pico coloca no teacutermino de sua explanaccedilatildeo dialeacutetica o alcance da Filosofia (nesse sentido indicando o momento supremo do conhecimento) qual ldquoornamento realrdquo

208 Oratio p120 ldquo[] postquam per uroralem et dialecticam suas Bordes excusserit multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exornarit []

209 Cf Oratio p113 A passagem de Paulo que trata de seu ldquoarrebatamentordquo ao terceiro ceacuteu estaacute em 2 Coriacutentios 12 2-4 ldquoConheccedilo um homem em Cristo que haacute catorze anos[] foi arrebatado ao terceiro ceacuteu E sei que o tal homem[] foi arrebatado ao paraiacuteso e ouviu palavras inefaacuteveis que ao homem natildeo eacute liacutecito falarrdquo

210 Pico passa diretamente para o escalatildeo mais alto na hierarquia dos seres angeacutelicos a chamada Primeira Ordem Abaixo destes haacute a Segunda e Terceira Ordem composta cada qual por trecircs gecircneros de seres Dioniacutesio Areopagita esclarece em sua obra que as alegorias das formas angeacutelicas utilizadas pelos teoacutelogos satildeo apenas pontos de partida para permitir a contemplaccedilatildeo dos seres inteligiacuteveis Eacute tambeacutem uma forma de ocultar atraveacutes de

96

forma para alcanccedilaacute-los seraacute atraveacutes da observaccedilatildeo de seu protoacutetipo de vida pois ldquose

tambeacutem noacutes a vivermos jaacute estaremos partilhando de igual ventura e de fato

podemosrdquo211 Assim a destinaccedilatildeo humana consiste precisamente em imitar aquelas

vidas Primeiramente os Tronos mais proacuteximos de noacutes representantes da vida ativa

disciplinada em seguida os Querubins modelo de vida contemplativa finalmente

os Serafins mais proacuteximos de Deus representantes da uniatildeo miacutestica no amor Os

Querubins encontrando-se no ponto intermeacutedio entre os dois outros graus da ordem

agrave qual pertencem representam por analogia a funccedilatildeo intermeacutedia do homem e sua

capacidade contemplativa torna-se exemplo do ponto mais alto que pode ser

alcanccedilado atraveacutes da capacidade intelectiva humana

Se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins

devemos ter claro frente aos nossos olhos em que consiste tal

vida quais as accedilotildees e obras que devemos imitar212

Cada Ordem apreende da que lhe estaacute imediatamente superior tudo o que

concerne agraves suas operaccedilotildees retransmitindo agrave inferior aquilo que lhe eacute possiacutevel

transmitir (ldquoa ordem mediana eacute para a inferior inteacuterprete dos preceitos da ordem

superiorrdquo)213 Os Tronos tem seu nome originado a partir do conceito de sustentaacuteculo

Esse gecircnero de anjo eacute identificado pela total ausecircncia de qualquer concessatildeo aos

planos inferiores e a capacidade de se manter constante e firmemente tendendo para

os cumes Analogamente esse seria o estaacutegio da purgatio Os Querubins ldquoaqueles

que difundem sabedoriardquo satildeo tidos como a inteligecircncia mediadora entre o amor

divino e a reta razatildeo jaacute que sua inteligecircncia prepara o homem para o ardor seraacutefico e

ao mesmo tempo o ilumina pelo modelo da justiccedila dos Tronos (ldquoeis porque no meio o

Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seraacutefica e nos ilumina

juntamente com o juiacutezo dos Tronosrdquo)214 Os Querubins designam aptidotildees ao

conhecimento e agrave contemplaccedilatildeo do Absoluto e acolhem em si a plenitude dos dons

que transmitem sabedoria comunicando-os agraves essecircncias inferiores graccedilas agrave

capacidade de emanaccedilatildeo da proacutepria sabedoria que lhes foi transmitida Sua posiccedilatildeo eacute

anaacuteloga ao grau asceacutetico da illuminatio O Serafim eacute o que ocupa a mais alta posiccedilatildeo

aquele que ldquoqueimardquo na luz divina Os Serafins tecircm por qualidades o movimento

perpeacutetuo em torno dos segredos divinos o calor a profundidade e a qualidade de

comunicar aos niacuteveis que lhe sucedem a luz e o calor Detecircm o poder de auto-

purificaccedilatildeo e a aptidatildeo para conservarem a sua proacutepria luz daiacute sua relaccedilatildeo com o

uacuteltimo grau asceacutetico a perfectio215

enigmas a misteriosa unidade dessas Inteligecircncias Os nomes atribuiacutedos agraves Inteligecircncias designam suas capacidades (De Coelesti Hierarchia II-VII) Pico possuiacutea vaacuterias coacutepias em grego e latim das obras principais de Ps Dioniacutesio (cf Garin 2011 p110)

211 Oratio p111 O trecho em questatildeo encontra-se na traduccedilatildeo de Feracine tendo sido omitido na traduccedilatildeo de Sirgado Ganho ldquoSed qua ratione aut quid tandem agentes Videamus quid illi agant quam vivant vitam Eam si et nos vixerimus (possumus enim) illorum sortem iam aequaverimusrdquo

212 Oratio p112 ldquoAt vero operae precium si ad exemplar vitae cherubicae vita nostra formanda est quae illa et qualis sit quae actiones quae illorum Opera []rdquo

213 Oratio p116 ldquoEt quoniam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus interpretaturrdquo 214 Cf Oratio p113 215 PS DIONISIO De Coelesti Hierarchia VII Para detalhes adicionais veja-se nota da passagem em questatildeo

na traduccedilatildeo da Oratio de Luiz Feracine Informa o tradutor que Trono vem da raiz dar que passou para o sacircnscrito na palavra dhacircrana sustentaacuteculo O termo Querubim do hebraico kerub eacute considerado originaacuterio de

97

Pico pretende indicar a analogia existente entre as funccedilotildees angeacutelicas e o

caminho triaacutedico relacionado aos campos moral dialeacutetico e teoloacutegico que pode ser

verificado nas atribuiccedilotildees de cada Ordem Os Tronos se definem pelo reto

discernimento e a firmeza de juiacutezo qualidade que pode ser atingida atraveacutes do uso da

razatildeo e que em seu primeiro estaacutegio eacute capaz de encetar a filosofia moral No

Querubim estaacutegio intermediaacuterio apresenta-se a capacidade intelectual da

contemplaccedilatildeo ou o momento de ldquoesplendor da inteligecircnciardquo Finalmente no Serafim

tem-se o amor ao artiacutefice ao qual Pico em outras passagens ou obras refere-se

atraveacutes do termo ldquofeacuterdquo que o autor considera o uacuteltimo estaacutegio da ascese miacutestica

teoloacutegica216

Ainda que dedicados agrave vida ativa se assumirmos tratar as coisas

inferiores com reto discernimento afirmar-nos-emos com a

firmeza dos Tronos Se liberarmo-nos das accedilotildees meditando na

criaccedilatildeo o artiacutefice e no artiacutefice a criaccedilatildeo estaremos imersos na

paz da contemplaccedilatildeo e resplandeceremos rodeados de

querubiacutenica luz Se ardermos apenas por amor do artiacutefice

daquele fogo que consome todas as coisas inflamar-nos-emos

repentinamente com aspecto seraacutefico217

Ao ponto intermeacutedio querubiacutenico eleva-se a possibilidade humana alcanccedilaacutevel

pela dialeacutetica ldquoisso devemos emular investigar e compreender de modo a sermos

arrebatados ateacute aos fastiacutegios do amor descendo em seguida instruiacutedos e preparados

para as tarefas da accedilatildeordquo218 Assim para a pergunta ldquocomo se tornavam iluminados os

querubins como se elevavam ao estaacutegio seraacuteficordquo o autor indica o caminho da

contemplaccedilatildeo ldquoeste eacute o centro das primeiras mentes a ordem sapiencial que preside

agrave filosofia contemplativardquo219 Finalmente colocando palavras na boca do apoacutestolo

Paulo ndash se tivesse sido perguntado sobre o que faziam os exeacutercitos dos Querubins

enquanto esteve ele arrebatado no terceiro ceacuteu ndash responde Pico ldquopurificavam-se

eram iluminados e tornavam-se por fim perfeitosrdquo220 Repete-se o processo triaacutedico

intuiacutedo no modelo de ascetismo piquiano

Karibu que significa bendizente Em geral os Querubins satildeo associados aos gecircnios alados das mitologias egiacutepcias babilocircnicas e siro-feniacutecias O termo Serafim vem do hebraico sharaf serpente [ligado ao verbo saacuterof queimar] siacutembolo relacionado aos gecircnios e agrave divindade pelos cananeus Em geral nas representaccedilotildees lhes satildeo dadas as formas de serpente No livro Nuacutemeros (XXI 6-9) os Serafins indicam as serpentes venenosas enquanto em Isaiacuteas (VI) representam seres antropomorfos providos de seis asas Assim tanto os Serafins como os Querubins satildeo idealizaccedilotildees de seres superiores em que se fundem formas humanas com asas Essa heranccedila cultural influenciou a percepccedilatildeo dos autores biacuteblicos (FERACINE A Dignidade do Homem 1999)

216 Oratio pp111-113 217 Oratio p110 ldquoIgitur si actuosae addicti vitae inferiorum curam recto examine susceperimus Thronorum

stata soliditate firmabimur Si ab actionibus feriati in opificio opificem in opifice opificium meditantes in contemplandi otio negotiabimur luce Cherubica undique corruscabimus Si caritate ipsum opificem solum ardebimus illius igne qui edax est in Seraphicam effigiem repente flammabimurrdquo

218 Oratio p112 219 Oratio p113 Pier Cesare BORI relaciona a vida contemplativa dos Querubins com a vida intelectual que se

difunde nas vaacuterias disciplinas filosoacuteficas que seratildeo depois unificadas dialeticamente (I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564)

220 Oratio p113

98

3) A pureza dos graus angeacutelicos pede uma correta preparaccedilatildeo que Pico

vislumbra nos graus de iniciaccedilatildeo previstos nos Misteacuterios gregos ndash ldquoin Graecorum

arcanis observati initiatorum gradusrdquo

Se eacute nosso dever [] imitar a vida dos anjos pergunto quem

ousaraacute tocar as escadas do Senhor ou com peacute impuro ou com

matildeos por lavar Ao impuro segundo os Misteacuterios eacute-lhe vedado

tocar aquilo que eacute puro221

As matildeos e os peacutes conforme o proacuteprio Pico explica representam ldquotoda a parte

sensiacutevel onde estatildeo sediadas as seduccedilotildees corpoacutereasrdquo que subjugam a alma ldquoPara natildeo

sermos expulsos daquelas escadasrdquo ndash as de Jacoacute ndash ldquocomo profanos e imundosrdquo222 faz-

se necessaacuteria uma devida purificaccedilatildeo ideia que integra grande parte das religiotildees

gregas misteacutericas conhecidas ndash sobre as quais Pico certamente tinha

conhecimento223

Que outra coisa de fato querem significar nos misteacuterios gregos

os graus habituais dos iniciados admitidos no misteacuterio atraveacutes

de uma purificaccedilatildeo obtida com a moral e com a dialeacutetica artes

que jaacute dissemos serem quase purificatoacuterias [] Quando

estavam preparados sobrevinha aquela epopteia isto eacute a

visatildeo das coisas divinas atraveacutes da luz da teologia224

A epopteia corresponde a um estado de arrebatamento atribuiacutedo ao nuacutecleo dos

Misteacuterios de Elecircusis Apoacutes cerca de um ano ultrapassando os devidos estaacutegios o

adepto estaria pronto para atingir o estado supremo no qual ocorria a visatildeo

transcendente e transformadora correspondente ao rito final da iniciaccedilatildeo225 Embora

apenas se tenha conhecimento das manifestaccedilotildees exteriores dos misteacuterios eleusinos

e mesmo assim de forma imprecisa226 uma descriccedilatildeo aproximada da visatildeo eleusina

pode ser extraiacuteda das palavras de Platatildeo No Fedro eacute narrada a experiecircncia iniciaacutetica

de contemplaccedilatildeo que ilustra um estado bastante proacuteximo ao que provavelmente

ocorria na epopteia

221 Oratio p114 ldquoQuod si hoc idem nobis angelicam affectantibus vitam factitandum est quaeso quis Domini

scalas vel sordidato pede vel male mundis manibus attinget Impuro ut habent mysteria purum attingere nefasrdquo

222 Oratio p115 223 O tema da purificaccedilatildeo eacute central nos Misteacuterios de Elecircusis de Dioniso e nos Oacuterficos para citar os mais

conhecidos A Lacircmina de Turi por exemplo achado arqueoloacutegico pertencente ao seacuteculo IV ou III aC traz as inscriccedilotildees ldquoEu venho puro dentre os purosrdquo indicando a terminaccedilatildeo de um processo purificatoacuterio condiccedilatildeo obrigatoacuteria para a recepccedilatildeo do iniciado em dimensotildees superiores (cf KERN Orphicorum Fragmenta fr 32d)

224 Oratio p122 ldquoQuid enim aluid sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum gradus quibus primum per illas quas diximus quasi februales artes moralem et dialecticam purificatis contingebat mysteriorum susceptio Quae quid aluid esse potest quam secretioris per philosophiam naturae interpretatio Tum demum ita dispositis illa adveniebat lsquoἐ π ο π τ ε ί αrsquo idest rerum divinarum per theologiae lumen inspectiordquo

225 Giorgio COLLI A Sabedoria Grega 2012 p33 226 De acordo com Erwin RHODE (Psyche 2006 p239) apenas o lado exterior das cerimocircnias eleusinas

possuem registros Nas festividades conhecidas como ldquoPequenos Misteacuteriosrdquo de Elecircusis o adepto tambeacutem poderia vivenciar uma breve visatildeo reveladora Contudo era no interno dos ldquoGrandes Misteacuteriosrdquo ndash apreendidos pelos epoptas e mantidos em segredo ndash que se dava a visatildeo transformadora (COLLI opcit p31)

99

Eacuteramos iniciados naquela que justamente eacute chamada a mais

feliz das iniciaccedilotildees aquele rito secreto que celebraacutevamos []

Inteiramente perfeitas simples sem tremor e felizes eram as

apariccedilotildees ndash em um esplendor puro ndash em que eacuteramos iniciados e

atingiacuteamos o cume da contemplaccedilatildeo Noacutes mesmos puros natildeo

encerrados na tumba que agora levamos conosco e chamamos

corpo ligados estreitamente a ele como a ostra agrave sua concha227

Como forma complementar ou para dar relevo agrave questatildeo logo apoacutes a menccedilatildeo

agraves visotildees eleusinas Pico se remete ao conceito platocircnico da ldquoinspiraccedilatildeordquo socraacutetica

aproximando aqueles rituais do domiacutenio filosoacutefico (ldquoaquela iniciaccedilatildeo que outra coisa

pode ser senatildeo a interpretaccedilatildeo da mais oculta natureza mediante a Filosofiardquo)228

Quem natildeo quereraacute ser inspirado pelo furor socraacutetico exaltado

por Platatildeo no Fedro arrebatado em ceacutelere voo para a Jerusaleacutem

Celeste fugindo rapidamente com um bater de asas daqui isto

eacute do mundo reino do democircnio Arrebatar-nos-atildeo oacute Padres

arrebatar-nos-atildeo os furores socraacuteticos trazendo-nos para fora

da mente a tal ponto que nos coloquemos a noacutes e agrave nossa mente

em Deus229

A mencionada passagem do Fedro narra que atraveacutes de purificaccedilotildees e

iniciaccedilotildees seria possiacutevel encontrar uma libertaccedilatildeo dos males mas apenas para quem

estivesse ldquosob maniardquo ou ldquopossuiacutedordquo pelos deuses ldquona forma certardquo230 O ldquotrazer para

fora da menterdquo eacute outra forma de aludir ao veacutertice da experiecircncia miacutestica quando

ocorre o estado de ldquoecircxtaserdquo sem a mediaccedilatildeo da razatildeo O extasis literalmente lsquosair-de-

sirsquo era o instrumento para a liberaccedilatildeo cognoscitiva rompida a individualidade do

iniciado esse passava a ver aquilo que os natildeo iniciados natildeo viam231 ldquoLibertar-se da

existecircncia corporal conhecer o ecircxtase e elevar-se aos ceacuteusrdquo satildeo temas recorrentes nos

discursos socraacuteticos232 dizia Soacutecrates que ldquoos bacantes das iniciaccedilotildees natildeo satildeo senatildeo

aqueles que se entregam agrave filosofia no sentido exatordquo233 tecendo uma

correspondecircncia entre o campo filosoacutefico e os Misteacuterios que natildeo seria ignorada na

Oratio piquiana Os bacantes adeptos partiacutecipes dos misteacuterios dionisiacuteacos podiam

atingir um estado de maniacutea no qual se dava uma visatildeo do tipo relatado nas epopteias

de Elecircusis Tratar-se-ia assim como naqueles cultos de uma visatildeo de caraacuteter

227 PLATAtildeO Fedro 250 b-c 228 Cf Oratio p123 229 Oratio p123 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut

alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feratur Agemur Patres agemur Socraticis furoribus qui extra mentem ita nos ponant ut mentem nostram et nos ponant in Deordquo

230 PLATAtildeO Fedro 244c-245a 231 A questatildeo da saiacuteda de si promovida pelo ecircxtase encontra unanimidade entre vaacuterios inteacuterpretes Para maiores

detalhes veja-se recolhimento de Giorgio COLLI (2012 p18) tanto fontes antigas quanto mais recentes reconhecem a relaccedilatildeo entre ecircxtase e saiacuteda-de-si Niezsche foi um deles bem como Rodhe com seu Psiche

232 As palavras citadas estatildeo em Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro 2006 p10 O autor complementa que a preparaccedilatildeo por meio de vaacuterios tipos de exerciacutecios asceacuteticos utilizados para ldquodesatar os noacutesrdquo que prendem a alma ao corpo estatildeo na base do ensinamento socraacutetico Veja-se nesse sentido Feacutedon 64c-68b e Repuacuteblica VI 509b-c VII 517b-c

233 PLATAtildeO Feacutedon 69c-d

100

macircntico podendo assumir um aspecto de conhecimento da verdade234 Atraveacutes das

etapas iniciaacuteticas e entatildeo ldquotornados filoacutesofosrdquo conclui Pico que os iniciados seriam

ldquoinebriados na harmonia celesterdquo e por fim Baco senhor das Musas revelaria ldquoos

seus misteacuteriosrdquo ou ldquoos invisiacuteveis segredos de Deusrdquo235

4) Os mitos de Osiacuteris e de Dioniso respectivamente egiacutepcio e grego

representam partes das concepccedilotildees cosmogocircnicas presentes em algumas teogonias

que contemplam o conflito entre a Ordem e o Caos Pico certamente tinha em mente

elaborar uma siacutentese entre os dois mitos para ilustrar suas concepccedilotildees filosoacuteficas A

queda descrita no chamado ldquoMito dos Titatildesrdquo que narra o nascimento morte e

ressurreiccedilatildeo do deus Dioniso eacute parte da Teogonia das Rapsoacutedias que integra o

corpus da doutrina oacuterfica236 As Conclusiones oacuterficas mostram que Pico teve acesso

aos Hinos de Orfeu uma de suas provaacuteveis fontes de acesso ao mito Ambos os mitos

abordam a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da unidade universal e a criaccedilatildeo da

multiplicidade levando agrave necessidade assim como nas primeiras cosmogonias

filosoacuteficas de se suplantar a dualidade e retornar agrave unidade perdida Repetem nesse

sentido a ideia de usurpaccedilatildeo do trono que representa a unidade e a fragmentaccedilatildeo

daquele que o ocupava No caso de Osiacuteris seu irmatildeo Set o assassina apoacutes lhe tirar o

trono e posteriormente o esquarteja espalhando seus pedaccedilos por todo o Egito237

Jaacute Dioniso por encontrar-se no final da linhagem genealoacutegica dos deuses recebera

de seu pai Zeus o comando do mundo deixando enciumados os Titatildes ndash divindades

dos primeiros tempos ndash que terminam por atacaacute-lo e despedaccedilaacute-lo Dos resiacuteduos

finais de Dioniso e dos Titatildes ndash jaacute que estes tambeacutem acabam exterminados ndash nascem

natildeo apenas os homens como o novo Dioniso238

Na passagem ldquodesceremos dilacerando com forccedila titacircnica o um nos muitosrdquo239

Pico deixa evidente que estaacute a relatar a particcedilatildeo e a redistribuiccedilatildeo do Uno em seu

movimento de descese conteuacutedo que se encontra na raiz da ideia de ldquoquedardquo da

unidade ndash embora natildeo se trate da Queda original240 A concepccedilatildeo do distanciamento

da unidade encontra-se na origem do vetor que impulsiona os vaacuterios modelos de

movimento asceacutetico especialmente aqueles do paganismo Haacute que se observar que

grande parte dos mitos cosmogocircnicos lida com a reconstituiccedilatildeo da multiplicidade e o

necessaacuterio esforccedilo para que se refaccedila a unidade e para sua preservaccedilatildeo Assim em

paralelo ao nascimento de um novo Dioniso em acircmbito grego tem-se no mito

egiacutepcio a reconstituiccedilatildeo do corpo de Osiacuteris por sua esposa Iacutesis permitindo desse

234 COLLI opcit pp17-19 235 Cf Oratio p 123 236 Alberto BERNABEacute Hieros Logos - Poesia oacuterfica sobre os deuses a alma e o aleacutem Satildeo Paulo 2012 p24 237 O mito de Osiacuteris tem seu principal relato em Plutarco De Iside e Osiride Set eacute identificado com o Tifeu dos

gregos e seu parentesco com os Titatildes ndash que eliminam Dioniso ndash eacute revelado no livro LXIX Para o tema veja-se J Gwyn GRIFFITHS (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970

238 Em passagem de Olympiodoro lecirc-se ldquoIrritado contra eles [os Titatildes] Zeus os fulminou com um raio e do resiacuteduo dos vapores emitidos por eles produziu-se a mateacuteria da qual nasceram os homensrdquo (KERN Orphicorum Fragmenta fr 140 trad Alberto Bernabeacute) Para maiores detalhes veja-se BERNABEacute opcit p80 ss

239 PICO opcit p 116 ldquonunc unum in multitudinem vi titanica discerpentes descendemusrdquo 240 Alberto Bernabeacute provavelmente natildeo de forma isolada denomina a transgressatildeo cometida pelos Titatildes de

ldquopecado antecedenterdquo pelo fato de natildeo ter sido cometido pelo primeiro homem ndash caso em que seria ldquooriginalrdquo (Textos Oacuterficos y Filosofia Presocratica Edit Trotta Madrid 2004)

101

modo a concepccedilatildeo poacutestuma de seu filho Horus que representa a continuidade241

Nascimento Morte (desmembramento) e Ressurreiccedilatildeo (reconstituiccedilatildeo) constituem

em acircmbito miacutetico o triacuteplice movimento filosoacutefico que parte da Unidade fragmenta-

se na Multiplicidade e completa-se com o retorno agrave Unidade

5) A passagem biacuteblica do ldquoTabernaacuteculo de Moiseacutesrdquo narra a construccedilatildeo de um

santuaacuterio moacutevel ordenada por Deus que deveria ser realizada pelo povo hebreu

durante sua permanecircncia de quarenta anos no deserto242 A partir da estrutura

triacuteplice que se forma no templo da tradiccedilatildeo hebraica Pico concebe um percurso

asceacutetico que encontra correspondecircncia em seu modelo triaacutedico de dialeacutetica filosoacutefica

Assim como o Heptaplus apresenta a analogia do tabernaacuteculo com os trecircs mundos do

cosmo piquiano243 a Oratio faz corresponder em escala reduzida as trecircs partes do

santuaacuterio a trecircs elementos do corpo humano reafirmando a analogia mosaica entre o

homem-microcosmo e o universo-macrocosmo244 Nesse sentido a parte do

tabernaacuteculo que se encontra sob ceacuteu aberto sem proteccedilatildeo alguma corresponde aos

oacutergatildeos genitais representando o corpo material ligado aos sentidos a aacuterea

intermeacutedia do santuaacuterio jaacute protegida dos fenocircmenos da natureza encontra

correspondecircncia no coraccedilatildeo consonante agraves emoccedilotildees mas tambeacutem ao uso

instrumental da razatildeo finalmente a parte sagrada do tabernaacuteculo chamada ldquoSanto

dos Santosrdquo representa a cabeccedila sede do conhecimento superior245

Os que ainda impuros tecircm necessidade moral fiquem com o

vulgo fora do tabernaacuteculo sob o ceacuteu descoberto como os

sacerdotes da Tessaacutelia ateacute estarem purificados246

Na parte externa do tabernaacuteculo exposta a toda sorte de intempeacuteries

encontra-se o vulgo a ldquocorte inferiorrdquo247 povoada por espeacutecies animais e tambeacutem

por homens bons e maus Esse primeiro estaacutegio eacute correspondente ao grau de

conhecimento daqueles que precisam despertar atraveacutes da filosofia moral Jaacute no

interior do tabernaacuteculo niacutevel equivalente ao saber intermeacutedio inicia-se a utilizaccedilatildeo

do corpo racional embora ainda natildeo filosoacutefico

241 Osiacuteris passa a ser considerado deus dos mortos e revivendo a partir de seu filho Horus ndash associado ao Sol e

identificado por Heroacutedoto com Apolo (2 144) ndash tambeacutem o deus da renovaccedilatildeo Cabe ressaltar que a presenccedila de duas naturezas no homem que o fazem viver sob constante escolha eacute um tema eacutetico abordado por Pico em outras passagens e obras cuja derivaccedilatildeo eacute colhida de suas fontes platocircnicas Parte da natureza do homem eacute trazida dos restos de Dioniso ingeridos pelos Titatildes ndash o que lhe proporciona um componente positivo e celeste ansioso por reintegrar-se agrave sua natureza originaacuteria a outra parte eacute proveniente dos Titatildes o que inflige ao homem um elemento negativo e imbuiacutedo da marca da infraccedilatildeo por aqueles cometida

242 Cf Ecircxodo 25-27 243 Os detalhes acerca da relaccedilatildeo do tabernaacuteculo com os trecircs mundos ndash sublunar celeste e angeacutelico ndash seratildeo

abordados no Capiacutetulo VI Para um entendimento do tabernaacuteculo conforme a visatildeo miacutestica hebraica veja-se Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista 2008-b pp481-484

244 ldquoO mundo eacute chamado por Moiseacutes de homem grande de fato se o homem eacute um pequeno mundo necessariamente o mundo eacute um homem granderdquo escreveraacute Pico no Heptaplus (p 381)

245 BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 pp 348-349 246 Oratio p120 ldquoQui polluti adhuc morali indigent cum plebe habitent extra tabernaculum sub divo quasi

Thessali sacerdotes interim se expiantesrdquo 247 Expressatildeo utilizada por BUSI-EBGI opcit p 348

102

Os que jaacute atingiram uma vida reta acolhidos no santuaacuterio natildeo

se aproximem ainda das coisas sacras mas prestem-lhes pri-

meiro serviccedilo com um noviciado dialeacutetico como zelosos levitas

da filosofia248

Ao uacuteltimo grau de eminente caraacuteter teoloacutegico Pico outorga caracteriacutesticas

filosoacuteficas confirmando sua visatildeo de perfeita concoacuterdia entre a Teologia e a Filosofia

em seu grau superior As palavras ndash atribuiacutedas a Moiseacutes ndash que finalizam sua reflexatildeo

exortam para uma preparaccedilatildeo que permita o ingresso ldquona via para a futura gloacuteria dos

ceacuteus por meio da Filosofiardquo249 Estaacutegio alcanccedilado apoacutes o ingresso no uacuteltimo grau do

tabernaacuteculo o Santo dos Santos

Por fim admitidos tambeacutem eles contemplem agora no

sacerdoacutecio da Filosofia ora o multicolor quer dizer o sideacutereo

ornamento do palaacutecio de Deus ora o candelabro das sete

chamas ora os elementos de pele ateacute que acolhidos finalmente

no tabernaacuteculo do templo por meacuterito da sublimidade teoloacutegica

usufruam retirado totalmente o veacuteu da imagem da gloacuteria de

Deus250

6) A Escola pitagoacuterica se caracterizava por um longo processo percorrido

atraveacutes da passagem por graus parte integrante da ldquobios theoretikoacutesrdquo (vida

contemplativa) agrave qual os membros se dedicavam para alcanccedilar a purificaccedilatildeo da

alma251 Embora tenha tido acesso agraves informaccedilotildees acerca das praacuteticas pitagoacutericas252

tendo conhecimento portanto dos estaacutegios de iniciaccedilatildeo pertinentes ao aprendizado

da doutrina Pico se limita na Oratio a abordar algumas normas contidas nos

akouacutesmata pitagoacutericos Os akouacutesmata eram preceitos ouvidos e retransmitidos

atraveacutes dos quais a organizaccedilatildeo pitagoacuterica se perpetuava juntamente com os sinais

de reconhecimento entre os membros os symbola253 Vaacuterias das doutrinas relatadas

por autores tardios foram transmitidas verbalmente geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo graccedilas agrave

248 Oratio p120 ldquoQui mores iam composuerunt in sanctuarium recepti nondum quidem sacra attractent

sed prius dialectico famulatu seduli levitae philosophiae sacris ministrentrdquo 249 No texto biacuteblico Moiseacutes natildeo faz referecircncia agrave filosofia trata-se de interpretaccedilatildeo de Pico Cf Oratio p120

ldquoHaec nobis profecto Moses et imperat et imperando admonet excitat inhortatur ut per philosophiam ad futuram caelestem gloriam dum possums iter paremus nobisrdquo

250 Oratio p120 ldquoTum ad ea et ipsi admissi nunc superioris Dei regiae multicolorem idest sidereum aulicum ornatum nunc caelestem candelabrum septem luminibus distinctum nunc pellicea elementa in philosophiae sacerdotio contemplentur ut postremo per theologicae sublimitatis merita in templi adita recepti nullo imaginis intercedente velo divinitatis gloria perfruanturrdquo

251 Como relata Jacircmblico (Vita Pythagorica 71-72) os estaacutegios se dividiam em periacuteodo probatoacuterio dokimasiacutea periacuteodo preparatoacuterio paraskeiecirc e periacuteodo purificatoacuterio cathartisis no uacuteltimo grau o teleiocirctes correspondente ao fim telos eram reveladas as primeiras e uacuteltimas causas das coisas Esse testemunho eacute tambeacutem confirmado em Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) que o atribui a Timeu

252 Pico teve acesso agraves ldquoVidasrdquo pitagoacutericas atraveacutes da leitura de Porfiacuterio e Dioacutegenes Laeacutercio nas traduccedilotildees de Ficino e atraveacutes da leitura direta de Jacircmblico do qual possuiacutea a Vida de Pitaacutegoras (cf ldquoBiblioteca di Picordquo in GARIN 2011 p109)

253 Aristoacuteteles em sua obra Sobre os Pitagoacutericos (fr195) relatada por Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 34-5) expotildee e analisa vaacuterios akouacutesmata como a abstenccedilatildeo de favas e o impedimento de se tocar em galo branco ou em peixes sagrados O Estagirita contudo natildeo pocircde decifrar o que havia por baixo de seu simbolismo Alguns akouacutesmata foram recolhidos em uma lista conservada por Porfiacuterio em seu Vida de Pitaacutegoras com comentaacuterios de Aristoacuteteles referentes ao assunto Veja-se tambeacutem Jacircmblico Vita Pythagorica 82

103

manutenccedilatildeo de tal oralidade254 Como as doutrinas da escola eram consideradas um

segredo e sua propagaccedilatildeo estritamente reservada aos adeptos os iniciados

pitagoacutericos apreendiam seus conteuacutedos e os memorizavam A transmissatildeo dos

akouacutesmata se dava atraveacutes de enunciados enigmaacuteticos de indecifraacutevel entendimento

e Pico parece ter extraiacutedo suas interpretaccedilotildees de fontes neoplatocircnicas255

Exortar-nos-aacute [Pitaacutegoras] em primeiro lugar a natildeo nos

sentarmos em cima do alqueire isto eacute natildeo deixarmos inativa a

parte racional com a qual a alma tudo mede julga e examina

mas antes dirigi-la e mantecirc-la desperta com o exerciacutecio e as

regras da dialeacutetica256

Na passagem acima Pico leitor de Jacircmblico alude de forma indireta aos

especiacuteficos exerciacutecios (aacuteskesis) para o desenvolvimento da parte racional da alma

integrantes da biacuteos pitagoacuterica Dentre eles embora natildeo mencionados havia a

preocupaccedilatildeo com a dieteacutetica a utilizaccedilatildeo da muacutesica para fins terapecircuticos os

exerciacutecios voltados agrave contemplaccedilatildeo257 e os exerciacutecios para a memoacuteria258 Aleacutem desses

uma praacutetica necessaacuteria consistia apoacutes os graus iniciais do discipulado em

permanecer em silecircncio por cinco anos atraveacutes do qual as experiecircncias iniciaacuteticas se

mantinham como prerrogativas exclusivas de seus iniciados259 Voltando aos

preceitos da transmissatildeo oral Pico prossegue com a interpretaccedilatildeo de outro

akouacutesmata que se coaduna com sua proacutepria filosofia

Indicar-nos-aacute entatildeo duas coisas que acima de tudo devemos

evitar urinarmos voltados para o sol e cortarmos as unhas

durante o sacrifiacutecio Soacute quando tivermos expulso de noacutes

mediante a moral os turvos apetites da voluptuosidade e

tivermos cortado as garras aduncas da ira removidos os

aguilhotildees da alma soacute entatildeo comeccedilaremos a tomar parte nos

sacros misteacuterios de Baco260

254 Apoacutes o esfacelamento das comunidades pitagoacutericas os membros dispersos mais antigos continuavam a fazer

dos akouacutesmata seu guia (cf JAcircMBLICO Comm Mat) 255 Cf notas de Eugenio Garin agrave ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 256 Oratio p126 ldquoPraecipiet primo ne super modium sedeamus idest rationalem partem qua anima omnia

metitur iudicat et examinat ociosa desidia ne remittentes amittamus sed dialectica exercitatione ac regula et dirigamus assidue et excitemosrdquo

257 O vegetarianismo era praticado pelos pitagoacutericos numa eacutepoca em que o sacrifiacutecio animal era um dos pilares da cultura grega Os exerciacutecios de contemplaccedilatildeo estavam diretamente relacionados agraves especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas pitagoacutericas em clara sintonia com a concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία (theoriacutea) que carrega o significado de ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo Nesse sentido a tradiccedilatildeo reconhece as especulaccedilotildees engendradas na escola pitagoacuterica tendo aiacute se originado o ideal grego de philosophia e theoriacutea (cf JAcircMBLICO Vita Pythagorica respectivamente 85 163-164)

258 O membro da koinoniacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia para a praacutetica da anamneacutesis ldquoAcreditavam que se deveria reter e conservar na memoacuteria tudo aquilo que era ensinado e escutado[hellip] de forma que o pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado agrave memoacuteria aquilo que havia acontecido no dia anteriorrdquo (Aristoacutexeno 58 D1 DK Jacircmblico VP 164-166)

259 A propoacutesito dessa passagem lecirc-se em Jacircmblico que ldquode todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute certamente a mais dura como bem demonstram aqueles que instituiacuteram os Misteacuteriosrdquo (VP 71-72)

260 Oratio p126 ldquoTum cavenda in primis duo nobis significabit ne auf adversus Solem emingamus auf inter sacrificandum unguem resecemus Sed postquam per moralem et superfluentium voluptatum eminxerimus appetentias et unguium praesegmina quasi acutas irae prominentias et animorum aculeos resecuerimus tum demum sacris idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mysteriis []rdquo

104

Apesar de o iniacutecio do trecho acima natildeo poder ser elucidado a analogia com os

misteacuterios baacutequicos colocada como final do processo enfatiza o formato triaacutedico

repetido por Pico mais uma vez o adepto apoacutes ter passado pelos graus de purificaccedilatildeo

moral e intelectual-dialeacutetica eacute tomado por uma visatildeo final transformadora (os

sagrados misteacuterios de Baco) ou em termos filosoacuteficos consegue a unidade com o

Inteligiacutevel Apoacutes atingido tal estaacutegio seraacute necessaacuterio conservaacute-lo com a devida

alimentaccedilatildeo da alma

Aconselhar-nos-aacute por fim a alimentar o galo isto eacute a saciar

com soacutelida alimentaccedilatildeo e com a celeste ambrosia das coisas

divinas a parte divina da nossa alma261 []Eacute este o galo que

Soacutecrates na hora da morte no momento em que esperava

reunir o divino da sua alma agrave divindade de tudo e jaacute afastado do

perigo de qualquer doenccedila corpoacuterea considerava que devia a

Esculaacutepio isto eacute ao meacutedico da alma262

7) Em seus registros extraiacutedos dos Oraacuteculos Caldeus263 Pico encontra outro

modelo para comprovar sua concepccedilatildeo da triacuteplice via para a verdade em que se

repete o processo iniciado com a filosofia moral continuado com a dialeacutetica e

concluiacutedo nesse caso com a Teologia Observe-se a semelhanccedila do mito da alma

alada cuja narraccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Zoroastro com o Mito do Cocheiro narrado no

Fedro264

Escrevem os inteacuterpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a

alma alada e que quando lhe caem as asas se precipita no

corpo e volta a voar para o ceacuteu quando lhe tornam a crescer

Tendo-lhe os disciacutepulos perguntado de que modo poderiam

261 PORFIacuteRIO Vita Pythagorica 42 JAcircMBLICO Protrepticus 21 Vejam-se ainda os comentaacuterios de FICINO

acerca do simbolismo pitagoacuterico (Commentariolus in symbola Pyth in Supplementum Ficinianum II) Referecircncias conforme notas de GARIN agrave ediccedilatildeo de De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942

262 A passagem referida a Soacutecrates encontra-se em PLATAtildeO Feacutedon 118a Cf Oratio p126 ldquoPostremo ut gallum nutriamus nos admonebit idest ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrosia pascamus []Hunc gallum moriens Socrates cum divinitatem animi sui divinitati maioris mundi copulaturum se speraret Aesculapio idest animarum medicordquo []

263 A atribuiccedilatildeo feita a Zoroastro das sentenccedilas presentes nos Oraacuteculos Caldeus eacute uma provaacutevel inferecircncia de George Plethon no que foi seguido por Marsiacutelio Ficino em sua Theologia platocircnica (Cf BIDEZ - CUMONT Les Mages helleacuteniseacutes Paris 1938) Pico cita na Oratio os oraacuteculos dos Magos Ezra Zoroastro e Melchiar menciona tambeacutem ldquoEvantes o persa que explica a teologia caldeiardquo e entre essas fontes indica certos textos que ldquoentre os gregos circularam de forma incompletardquo Os textos que circularam entre os gregos de forma incompleta provavelmente satildeo os recolhidos inicialmente por Miguel Psello (que os denomina ldquoditos caldeusrdquo) e depois por George Plethon (que os atribuiacutea aos Magos descendentes de Zoroastro) Cf Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin 2013 pp9-61 Em carta a Ficino de 1486 Pico menciona ainda ldquoum livreto sobre os dogmas da teologia caldaica com uma divina e rica elucidaccedilatildeo dos Persas Gregos e Caldeus a propoacutesito de tais dogmasrdquo (apud KRISTELLER Supplementum Ficinianum 1937 pp 272-273) Uma nota na ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate etc (1942 p128) confirma Plethon juntamente com Miguel Psello como fontes de acesso de Pico aos Oraacuteculos

264 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss

105

tornar a alma apta para o voo com asas bem plumadas disse

lsquoregai as asas com a aacutegua da vidarsquo265

Na sequecircncia da narrativa piquiana os disciacutepulos de Zoroastro teriam lhe

perguntado como poderiam obter tais aacuteguas A resposta introduz por meio de uma

paraacutebola (ldquoparabolamrdquo) extraiacuteda da boca do profeta um nuacutecleo epistemoloacutegico que

Pico faraacute corresponder ao sistema que estaacute a defender

lsquoO paraiacuteso de Deus eacute banhado e irrigado por quatro rios a partir

daiacute podereis atingir as aacuteguas salutares O nome daquele que

corre de setentriatildeo eacute Pischon que significa justiccedila o que vem

do ocaso chama-se Dichon isto eacute expiaccedilatildeo o que vem do

oriente eacute Chiddekel e significa luz por fim aquele que corre do

sul chama-se Perath que podemos interpretar como feacutersquo266

O modelo de quatro rios encontra-se no Gecircnesis267 e natildeo se sabe de quais

fontes Pico colheu a passagem considerada caldaica268 Aos quatro paradigmas

relacionados agrave justiccedila expiaccedilatildeo luz e feacute o autor faz corresponder um processo

relacionaacutevel agrave tripartita philosophia

Devemos purificar a viscosidade dos olhos com a ciecircncia moral

como com ondas ocidentais devemos dirigir atentamente o

olhar com a dialeacutetica como com um niacutevel boreal devemos nos

habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca

luz da verdade primeiro indiacutecio do sol nascente ateacute que

finalmente com a meditaccedilatildeo teoloacutegica e o santiacutessimo culto de

Deus possamos aguentar vigorosamente como aacuteguias do ceacuteu o

fulgurante esplendor do sol do meio-dia269

265 Oratio p128 ldquoScribunt interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoroastris alatam esse animam cumque alae

exciderent ferre illam praeceps in Corpus tum illis subcrescentibus ad superos revolare Percunctantibus eum discipulis alis quo pacto bene plumantibus volucres animos sortirentur lsquoirrigetis dixit alas aquis vitaersquordquo

266 Conforme as palavras atribuiacutedas a Zoroastro (Oratio p 128) ldquoQuattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur indidem vobis salutares aquas hauriatis Nomen ei qui ab aquilone Pischon quod rectum denotat ei qui ab occasu Dichon quod expiationem significat ei qui ab ortu Chiddekel quod lumen sonat ei qui a meridie Perath quod pietatem interpretari possumusrdquo

267 Gecircnesis 2 10-14 ldquoNo Eacuteden nascia um rio que irrigava o jardim e depois se dividia em quatro O nome do primeiro eacute Pisom Ele percorre toda a terra de Havilaacute onde existe ouro [] O segundo que percorre toda a terra de Cuxe eacute o Giom O terceiro que corre pelo lado leste da Assiacuteria eacute o Tigre E o quarto rio eacute o Eufratesrdquo

268 No periacuteodo de redaccedilatildeo da Oratio Pico encontrava-se sob orientaccedilatildeo de Flavio Mitridate e cita em carta endereccedilada a Ficino n0 outono de 1486 seus estudos caldaicos (Supplementum Ficinianum pp 272-3) ldquoChaldaici hi libri sunt si libri sunt et non thesaurirdquo Pico tinha agrave disposiccedilatildeo alguns textos escritos em uma mescla de aramaico e hebraico conforme se extrai de alguns fragmentos Por exemplo os nomes dos rios paradisiacuteacos conforme constam no manuscrito Palatino parecem estar em caracteres etioacutepicos ou em liacutengua aramaico-hebraica conforme notou Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987) Veja-se para toda a questatildeo Stephen FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 pp 13 486-87

269 Oratio p128 ldquo[] profecto nihil aliud nisi ut morali scientia quasi undis hibericis oculorum sordes expiemus dialectica quasi boreali amussi illorum aciem liniemus ad rectum Tum in naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen quasi nascentis solis incunabula pati assuescamus ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum quasi caelestes aquilae meridiantis solis fulgidissimum iubar fortiter perferamusrdquo

106

Nesta uacuteltima passagem para conseguir estabelecer uma simetria entre seu

pressuposto processo triaacutedico e as quatro qualidades postuladas pelos caldeus Pico

insere um intervalo no lugar de um dos quatro elementos do modelo caldaico como

se fosse um niacutevel preparatoacuterio colocado antes da etapa final teoloacutegica ldquodevemos nos

habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca luz da verdaderdquo270 Tal

inserccedilatildeo que representa o primeiro contato com as ldquofaiacutescasrdquo iniciais da verdade

permite que seja mantida a analogia entre os trecircs ldquomomentosrdquo do processo filosoacutefico

e a misteriologia caldaica A despeito da impossibilidade de elucidaccedilatildeo do significado

dos rios no mito acima descrito torna-se relevante o esforccedilo realizado pelo escritor

para alcanccedilar uma simetria conceitual entre os conteuacutedos Sob tal prisma a resposta

para a questatildeo de como renovar as asas e tornaacute-las aptas para novos voos encontra-se

no caminho que se inicia com a filosofia moral se desenvolve por meio dos exerciacutecios

dialeacuteticos e se conclui na meditaccedilatildeo teoloacutegica O trecho faz menccedilatildeo ainda a ciclos

relacionados agrave luz solar o que leva Pico ao teacutermino de sua argumentaccedilatildeo a declarar

ter encontrado semelhanccedila com a concepccedilatildeo triaacutedica dos periacuteodos do dia ldquomatutinos

vespertinos e meridianosrdquo cantados primeiramente por Davi e em seguida

explicados por Agostinho271 Os trecircs periacuteodos se referem a fases do conhecimento do

homem sendo que o uacuteltimo referente agrave ofuscante luz do meio-dia encontra eco na

regiatildeo alcanccedilada atraveacutes da contemplaccedilatildeo conforme se conclui no final da exposiccedilatildeo

Esta eacute a luz meridional que inflama os Serafins e do mesmo

modo ilumina os Querubins272

Os sete modelos acima expostos cada qual pertencente a uma distinta

tradiccedilatildeo seja filosoacutefica teoloacutegica ou misterioloacutegica embora natildeo sistematizados pelo

Autor na forma aqui apresentada e aparentemente lanccedilados no texto qual uma

profusatildeo de referecircncias sem qualquer viacutenculo conceitual representam paradigmas

empregados para sustentar a ideia postulada na obra da existecircncia de formatos

270 Observe-se que nessa sentenccedila natildeo eacute feita correspondecircncia alguma com os niacuteveis da filosofia postulados pelo

autor enquanto agraves outras trecircs sentenccedilas Pico faz corresponder os graus da filosofia moral relacionada ao ocaso-ocidente-expiaccedilatildeo da passagem caldaica da dialeacutetica relacionada ao norte-boreal-justiccedila e por uacuteltimo da teologia que Pico relaciona ao sol do meio-dia e agrave feacute

271 Cf Oratio p128 ldquoHae illae forsan et a Davide decantatae primum et ab Augustino explicatae latius matutinae meridianae et vespertinae cognitionesrdquo As passagens mencionadas se encontram em Salmos 55 17 (Vulgata 54) Agostinho De Genesi ad Litteram IV 47 Conforme Agostinho em seu Comentaacuterio ao Gecircnesis ldquoo universo pode apresentar ao mesmo tempo o dia onde estaacute o sol a noite onde natildeo estaacute a tarde de onde o sol se afasta a manhatilde aonde se aproxima [] E noacutes natildeo podemos contemplar tudo isso ao mesmo tempo e natildeo devemos equiparar esta situaccedilatildeo terrena e o circuito temporal e local da luz corpoacuterea agravequela paacutetria celestial onde eacute sempre dia na contemplaccedilatildeo da Verdade incomutaacutevel sempre tarde no conhecimento da criatura em si mesma sempre manhatilde a partir deste conhecimento ao louvor do Criador Pois ali natildeo se fez tarde pela ausecircncia da luz superior mas pela diversidade de conhecimento inferior nem se faz manhatilde como o conhecimento matutino sucede agrave noite da ignoracircncia mas porque eleva para a gloacuteria do Criador o conhecimento vespertino Finalmente tambeacutem o salmista [Davi] natildeo mencionando a noite diz lsquode tarde pela manhatilde e ao meio dia cantarei e anunciarei e ouviraacutes a minha vozrsquordquo

272 Oratio p128 ldquoHaec est illa lux meridialis quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminatrdquo

107

triaacutedicos asceacuteticos que se repetem sob registros diacutespares A partir de tal enfoque a

concepccedilatildeo de domiacutenio da natureza sugerida por alguns dos autores humanistas que

trataram da dignidade do homem antes de Pico eacute suplantada pela ideia de

transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios (vegetal animal racional intelectual)

que encontra eco em um percurso de dignificaccedilatildeo (ou posicionamento espacial) em

acircmbito cosmoloacutegico Essa experiecircncia eacute entendida pelo escritor como um caminho a

ser percorrido com o auxiacutelio das corretas ferramentas ndash a teurgia dos Misteacuterios os

exerciacutecios dialeacuteticos filosoacuteficos a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo agostiniano

Os sete paradigmas confirmam que a uacuteltima etapa em qualquer dos caminhos

percorridos eacute preenchida pela experiecircncia de encontro com um centro de unidade

final da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o Absoluto Para Pico esse eacute

um momento de cunho teoloacutegico ndash descartado de qualquer dogma como visto na

discussatildeo do Capiacutetulo III Esse eacute o significado de apoacutes a ldquofilosofia ter acalmado os

conflitos da opiniatildeordquo apoacutes ldquoa dialeacutetica ter acalmado a razatildeordquo entatildeo sim ldquoa teologia

mostraraacute o caminhordquo273 Destarte ao termo de qualquer dos modelos encetados

conhece-se uma dissoluccedilatildeo ndash mesmo no percurso filosoacutefico caso da ldquofaiacutescardquo platocircnica

ndash em prol daquela uniatildeo A esse gecircnero de ocorrecircncia Pico remete a experiecircncia de

Moiseacutes no monte Sinai ao tratar da questatildeo filosoacutefica do amor-Eros ldquoMoiseacutes amou o

Deus que viu e promulgou ao povo aquilo que antes tinha visto na montanha como

contempladorrdquo274

A epopteia de Elecircusis a illuminatio angeacutelica a pertenccedila ao Santo dos Santos

do tabernaacuteculo Giovanni Pico natildeo estava a lanccedilar dados de forma aleatoacuteria em seu

texto Cada referecircncia eacute um tijolo colocado para erigir seu projeto e afirmar sua

mensagem dentro de um planejamento No caso dos paradigmas acima sua intenccedilatildeo

eacute mostrar que o percurso de etapas ascensionais se faz necessaacuterio para a descoberta

de ensinamentos que levam agrave Unidade e que em razatildeo de sua preciosidade

encontram-se custodiados pelo segredo De forma mais patente esse tema seraacute

estabelecido no Heptaplus como seraacute visto a partir do proacuteximo Capiacutetulo

273 Oratio p119 (ldquoA dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo a filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo a teologia

mostraraacute o caminhordquo) ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et lacerant []Ad illam [theologia] ipsa et viam monstrabit et comes ducet quae procul nos videns properantesrdquo

274 Oratio p112 Para esse modelo de experiecircncia de religaccedilatildeo com o Espiacuterito de Deus Pico se fundamenta em teoacutelogos como Fiacutelon Gregoacuterio de Nissa (La vita di Mosegrave II 182) e sobretudo Dioniacutesio Areopagita (Cf Pier Cesare BORI ldquoI tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandolardquo in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)

108

CAPIacuteTULO V

RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO

Ao redor de 1480 o papa Sisto IV promove a traduccedilatildeo para o latim de alguns

textos de conteuacutedo cabaliacutestico com o objetivo de apresentaacute-los ao mundo cristatildeo275

Giovanni Pico agrave eacutepoca muito jovem narraria em seu Discurso anos depois como

teria encontrado e adquirido tais livros ldquocom natildeo pequeno dispecircndio de dinheirordquo

lendo-os ldquocom suma diligecircncia e incansaacutevel estudordquo276 Embora essas traduccedilotildees natildeo

tenham sido utilizadas diretamente nas obras piquianas o intento do papa eacute

sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma naquele seacuteculo mesmo que de

forma muito tiacutemida277 Cerca de duzentos anos antes de Pico Ramon Llull na

Espanha havia tentado apresentar a Cabala judaica ao mundo latino mas sua

tentativa fora em breve esquecida278 no lsquo400 os estudos cabaliacutesticos ganharam certa

repercussatildeo entre alguns autores italianos especialmente em Florenccedila279 contudo e

de forma bastante consensual Pico foi o primeiro a introduzir com eficaacutecia a Cabala

no pensamento cristatildeo280 razatildeo suficiente para que o estudioso do Autor aproxime

seu olhar aos principais conceitos da doutrina

O Mirandolano define na Oratio o significado de ldquocabalardquo ldquoverdadeira

interpretaccedilatildeo da lei dada a Moiseacutes por Deus que para os Hebreus tem o mesmo

275 Cf PICO Oratio p159 Quais fossem esses textos e quem teria sido o tradutor natildeo eacute informado na obra

piquiana Entretanto sobre o mesmo argumento voltou-se o teoacutelogo alematildeo Konrad Summenhart em 1494 em sua obra Liber bipartitus informando que os textos cabaliacutesticos que interessaram ao papa teriam sido o Seder lsquoolam e o Neophastis A data de tais traduccedilotildees natildeo eacute informada mas deve ser estabelecida entre 1471 e 1484 periacuteodo do papado de Sisto IV Acerca da obra e comentaacuterios de Summenhart leia-se Guido BARTOLUCCI Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana in Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org F Lelli) 2014 p54

276 Cf PICO ibid p161 277 Eram poucos os que haviam ouvido falar das doutrinas cabaliacutesticas Tanto na corte pontifiacutecia quanto nas

universidades da Itaacutelia e da Europa nenhum cristatildeo fazia ideia do que fosse a Cabala ndash e nem estava interessado em saber (cf BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p296) O proacuteprio Pico conta na Apologia (ed Fornaciari 2010 p176-77) que um dos Padres ndash durante o interrogatoacuterio que se seguiu agrave publicaccedilatildeo das Conclusiones ndash perguntara quem era esse tal sujeito chamado ldquoCabalardquo Por outro lado nos casos em que a Cabala natildeo era completamente desconhecida seu estudo era visto como uma ldquobizarrice anedoacuteticardquo e natildeo como uma discussatildeo seacuteria conforme observou Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo (p XXV) a Giovanni Pico della Mirandola (GARIN 2011)

278 O teoacutelogo e filoacutesofo catalatildeo Ramon Llull florescido no seacuteculo XIII e conhecido em espanhol como Raimundo Lulio escreveu em aacuterabe latim e em occitano (langue doc) tendo recebido a alcunha de Arabicus Christianus (aacuterabe cristatildeo)

279 Interessaram-se pelo estudo da Cabala de forma a deixar registros Pier Leone da Spoleto Egidio da Viterbo e Domenico Grimani (Cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 56)

280 Efetivamente Pico mostra ter descoberto confirmaccedilotildees para a revelaccedilatildeo cristatilde no coraccedilatildeo da miacutestica hebraica como antecipado nas Conclusiones e confirmado no Heptaplus A teologia cabaliacutestico-cristatilde de Pico interessaria no Quinhentos a filoacutesofos e miacutesticos sobretudo do ambiente franciscano tendo sido aperfeiccediloada por Johann Reuchlin e Cornelius Agrippa e reutilizada mais tarde pelos ldquoplatocircnicos de Cambridgerdquo Esses autores se serviram de muitas traduccedilotildees latinas realizadas por judeus convertidos ao Cristianismo Na Cabala cristatilde foram mantidos elementos hermenecircuticos maacutegicos e de natureza teosoacutefica sendo retirados os elementos ritualiacutesticos da religiatildeo judaica Sua originalidade em apresentar a Cabala ao mundo cristatildeo eacute confirmada por FORNACIARI (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp 14 23) BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 np56) CASSUTO (Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p319) GARIN (Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 p101) SECRET (Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Cap) entre outros

109

significado que receptiordquo uma doutrina recebida ldquopor meio de sucessivas revelaccedilotildees

que um recebia do outro como por direito hereditaacuteriordquo281 De fato a palavra hebraica

qabbalah significa ldquorecepccedilatildeordquo ldquotradiccedilatildeordquo ou ldquoaceitaccedilatildeordquo indicando a transmissatildeo de

doutrinas secretas do misticismo judaico e particularmente caracterizando um

movimento de pensamento de conotaccedilatildeo esoteacuterica282 Em seu valor de ldquorecepccedilatildeordquo

enuncia o conceito de continuidade com o passado e tambeacutem o sentido de

responsabilidade que essa heranccedila espiritual comporta Cada geraccedilatildeo eacute chamada a

receber da precedente o conjunto de valores e ensinamentos secretos sobre os quais

se funda o Judaiacutesmo devendo transmiti-la agrave sucessiva283 O termo que pode ser

encontrado com diferentes grafias ndash entre as quais ldquocabalardquo forma latina empregada

por Giovanni Pico e aqui utilizada ndash284 teria aparecido na literatura apenas no seacuteculo

XI em um escrito do poeta e filoacutesofo Salomon Ibn Gabirol285 enquanto que sua plena

conotaccedilatildeo de conhecimento secreto ganharia corpo por volta do tardio seacuteculo XIII

partindo do ciacuterculo de Isaac o Cego no sul da Franccedila286

A Cabala italiana que desde sua origem ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVI exerceu

influxos mais efetivos sobre os pensadores cristatildeos renascentistas que se

interessaram pelo assunto tem sua ldquoespinha dorsalrdquo formada por trecircs cabalistas

como informa Moshe Idel Abraham Abulafia que compocircs a maior parte de suas

obras na Itaacutelia Menahem Recanati e o autor do livro Maarekhet haElohut (A Ordem

da Divindade)287 De acordo com o comentarista os trecircs tinham em comum a

caracteriacutestica conceitual da incompatibilidade com a tradicional visatildeo miacutetica da

divindade apresentando concepccedilotildees mais filosoacuteficas Tal forma diferenciada fez com

que por um lado os cabalistas espanhoacuteis que chegavam agrave Itaacutelia estranhassem as

interpretaccedilotildees da escola italiana por outro que os ciacuterculos neoplatocircnicos de Florenccedila

tivessem um encontro sem atritos com a teologia ldquoquaserdquo filosoacutefica dos rabinos

Abulafia e Recanati288 A forma de Cabala protagonizada na Itaacutelia de qualquer forma

manteve os temas fundamentais do movimento relacionados com a emanaccedilatildeo do

princiacutepio divino e com a concepccedilatildeo de que cada parte da criaccedilatildeo responde a uma

secreta harmonia de desenho transcendente Para melhor entender o emprego da

281 Cf PICO Oratio pp 157 159 Veja-se tambeacutem Apologia (ed Fornaciari 2010) p 29 282 De acordo com IDEL (2008-a p17) desde o seacuteculo X haacute testemunhos da existecircncia de uma forma especiacutefica

de tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica mas somente a partir do seacuteculo XII comeccedilam a se organizar registros a esse respeito 283 Giulio BUSI La Qabbalah 2011 p3 284 As grafias mais utilizadas para o termo proveniente do verbo hebraico LeCaBeL (ldquoreceberrdquo) satildeo qabbalah

kabbalah ou CaBaLaacute Eacute de se notar que esta palavra eacute oxiacutetona em Hebraico mas frequentemente falada em outros idiomas tanto como paroxiacutetona (inglecircs) como agraves vezes proparoxiacutetona (espanhol)

285 Salomon Ibn-Gebirol ou Schlomo ben Judah tornou-se conhecido no mundo cristatildeo como Avicebron A atribuiccedilatildeo de ter sido o primeiro a mencionar o termo ldquocabalardquo consta na ldquoIntroduccedilatildeordquo da ediccedilatildeo em espanhol do Zohar do comentarista Leoacuten DUJOVNE (El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires 1992 p XVII)

286 IDEL 2008a pp17-18 Para compor o quadro histoacuterico de desenvolvimento do misticismo hebraico satildeo relevantes tanto a obra de Gershom SCHOLEM As Grandes correntes da Miacutestica Judaica (opcit) quanto a de Giulio BUSI Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo 1995

287 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b p460 O autor do Sefer Maarekhet haElohut do qual Idel menciona a ediccedilatildeo de Mantova de 1558 natildeo eacute conhecido Sabe-se da existecircncia de uma traduccedilatildeo da obra realizada por Abulafia (ibid np461)

288 IDEL ibid p460 Efetivamente a Cabala italiana era mais ldquoextaacuteticardquo (especificaccedilatildeo que seraacute vista adiante) Para Abulafia por exemplo a crenccedila nas dez Sefirot (a ser verificada adiante) era pior do que a crenccedila cristatilde na Trindade Esse uacuteltimo toacutepico eacute tratado por IDEL em sua tese de doutoramento (As obras e a Doutrina de Abraatildeo Abulaacutefia Universidade Hebraica de Jerusaleacutem 1976 pp436 ss)

110

Cabala nos estudos realizados por Pico e as fontes por ele utilizadas se faz necessaacuterio

inicialmente entender como se deu sua transmissatildeo atraveacutes da histoacuteria e na

sequecircncia quais as principais concepccedilotildees e terminologias utilizadas pelos cabalistas

1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica

A transmissatildeo oral

A primazia da transmissatildeo de concepccedilotildees cabalistas natildeo deve ser creditada aos

escritos que lhe foram dedicados ao contraacuterio foi a tradiccedilatildeo oral a ajudar a perpetuar

tais concepccedilotildees sendo que a ocorrecircncia de manuscritos deve ser entendida como

uma seacuterie de episoacutedios excepcionais ocorridos dentro de uma longa histoacuteria de

transmissotildees orais Pressotildees externas como perseguiccedilotildees religiosas sociais e

poliacuteticas determinavam as variaccedilotildees entre as diferentes fases do misticismo judaico e

as consequentes disposiccedilotildees entre o que seria resguardado como esoteacuterico e o que se

tornaria puacuteblico289 A diaacutespora europeia responsaacutevel por fragmentar o judaiacutesmo em

pequenas comunidades criou circunstacircncias que exigiram que a experiecircncia miacutestica

fosse confiada agrave paacutegina escrita uma forma mais concreta de ampliar sua difusatildeo natildeo

sem que se mantivesse o cuidado em preservar uma linguagem simboacutelica que

protegesse os verdadeiros significados Eis a razatildeo como observa Giulio Busi de

serem frequentes nos textos cabaliacutesticos passagens como ldquoquem eacute dotado de intelecto

entenderaacuterdquo indicando a existecircncia de uma aacuterea conceitual reservada apenas agrave

transmissatildeo oral e deixando claro que o texto escrito natildeo apresenta todas as

respostas290 A necessidade histoacuterica de se registrar de forma escrita a tradiccedilatildeo oral

remete ao periacuteodo de exiacutelio babilocircnico e estaacute bem narrada por Giovanni Pico na

Oratio

Esdras291 ao ver claramente que natildeo se podia manter a tradiccedilatildeo

fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina

nos exiacutelios nos massacres nas fugas nos cativeiros do povo de

Israel dado que deste modo pereceriam os misteacuterios da celeste

doutrina concedidos por Deus e natildeo podendo se manter por

muito tempo a memoacuteria desta sem a interposiccedilatildeo de textos

escritos estabeleceu que reunidos os saacutebios entatildeo

sobreviventes cada um manifestasse quanto conservava

guardado na memoacuteria acerca dos misteacuterios da Lei Estes em

289 Tova SENDER Iniciaccedilatildeo agrave Cabala 1992 p9 290 BUSI La Qabbalah 2011 pp5-6 291 Pico refere-se aos livros biacuteblicos de Esdras Os dois primeiros o de Esdras e o de Neemias pertencem ao

elenco dos livros autecircnticos assumidos pela Igreja o terceiro eacute o Esdras grego o quarto eacute outro apoacutecrifo do gecircnero apocaliacuteptico Pico trabalha com o Esdras IV (cf Luiz FERACINE 1999 notas)

111

seguida chamados os escribas foram escritos em setenta

volumes292

Os primeiros sinais de uma reflexatildeo efetivamente miacutestica colocada em forma

escrita remetem ao iniacutecio do segundo seacuteculo de nossa Era periacuteodo em que se insere a

redaccedilatildeo da Mishnaacute ndash essencialmente um corpus juriacutedico Trata-se da ediccedilatildeo escrita

de grande parte da tradiccedilatildeo oral com o conteuacutedo das leis e dos costumes que foram

se enriquecendo atraveacutes de anos de convivecircncia293 Esse conjunto de tratados eacute

amplamente comentado por outro importante texto intitulado Guemaraacute Ao conjunto

Mishnaacute e Guemaraacute deu-se o nome de Talmud em suas duas versotildees uma de

Jerusaleacutem e outra da Babilocircnia294 Esses dois Talmudim (plural de Talmud)

constituem uma espeacutecie de enciclopeacutedia natildeo apenas das tradiccedilotildees legais como das

praacuteticas religiosas da exegese e das lendas difundidas em idade tardo-antiga

contendo consistentes elementos de reflexatildeo acerca de temas miacutesticos295 Ademais

era comum efetuar-se no Talmud referecircncias a partes da literatura que se

encontravam fora do Pentateuco ou seja aos conteuacutedos transmitidos oralmente Por

essa razatildeo as fontes talmuacutedicas embora escritas compotildeem o que seria a Toraacute oral

dentro da tradicional distinccedilatildeo entre lsquoToraacute escritarsquo e lsquoToraacute oralrsquo Conforme explica

Scholem296 a Toraacute escrita eacute o proacuteprio texto do Pentateuco297 jaacute a Toraacute oral eacute a soma

de tudo o que foi comentado por eruditos ou saacutebios acerca daquele corpus escrito

natildeo apenas pelos comentadores talmuacutedicos da Lei mas por todos os demais que

interpretaram o texto Retrocedendo aos tempos mosaicos e de acordo com a

tradiccedilatildeo rabiacutenica Moiseacutes teria recebido ao mesmo tempo ambas as Toraacutes no Monte

Sinai sendo que a parte referente aos ensinamentos natildeo escritos deveria ser

transmitida oralmente de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ndash de acordo com a antiga proibiccedilatildeo ldquoo

que eacute transmitido oralmente natildeo pode ser escritordquo298 Para o Judaiacutesmo rabiacutenico tudo

quanto um erudito de qualquer eacutepoca viesse a deduzir da Toraacute estaria incluso

naquela tradiccedilatildeo oral fornecida a Moiseacutes validando-se assim a concepccedilatildeo de que as

duas Toraacutes satildeo uma soacute tradiccedilatildeo oral e palavra escrita completam-se mutuamente

292 PICO Oratio p159 ldquoEsdras tunc ecclesiae praefectus post emendatum Moseos librum cum plane

cognosceret per exilia caedes fugas captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis doctrinae arcana perirent quorum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat constituit ut convocatis qui tunc supererant sapientibus afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat adhibitisque notariis in septuaginta volumina redigerenturrdquo

293 A Mishnaacute eacute composta por 63 tratados compilados pelo Rabino Yehudaacuteh Hanassiacute no seacuteculo II dC 294 A ediccedilatildeo do Talmud da Babilocircnia eacute considerada a mais completa pois sua composiccedilatildeo iniciou durante o

exiacutelio babilocircnico em 586 aC e chegou ateacute por volta do seacuteculo V dC (cf Marcelo MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute - A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014 p71)

295 Maiores detalhes acerca da discussatildeo histoacuterica em torno da Mishnaacute podem ser colhidos na obra La Qabbalah de Giulio BUSI (opcit pp38-40) aleacutem de o autor apresentar uma especiacutefica bibliografia para o tema Acerca do Talmud veja-se ainda SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978

296 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978 p61 297 A Toraacute eacute composta pelos 5 Livros de Moiseacutes (entre 1100 e 1300 aC) Bereshit Shemot Vaikraacute Bamidbar e

Devarim conhecidos respectivamente como Gecircnesis Ecircxodo Leviacutetico Nuacutemeros e Deuteronocircmio chamados anos depois de Antigo Testamento juntamente com os Livros de Profetas (Josueacute Juiacutezes Isaiacuteas Jeremias Ezequieletc) e Escritos (Salmos Proveacuterbios JoacuteDaniel Esdras etc) Todo esse conjunto de livros eacute chamado TaNaKh

298 MAGHIDMAN opcit p71

112

Dentre os pensadores cristatildeos Pico foi dos poucos a evidenciar o esoterismo

presente nas Escrituras como se infere a partir do destaque dado ao tema das duas

Leis recebidas por Moiseacutes A questatildeo da separaccedilatildeo entre a literalidade e oralidade

recebeu foco na Apologia depois de o tema ter se repetido em algumas passagens da

Oratio como a que narra o pedido do ldquoAltiacutessimordquo de tornar puacuteblico o primeiro

daqueles livros para ser lido pelos ldquodignos e indignosrdquo e de confiar os demais

[secretos e correspondentes agrave lei oral] ldquoapenas aos saacutebiosrdquo Em outra passagem Pico

afirma que aquele livro poderia se tornar puacuteblico ndash mantendo sua dimensatildeo secreta

preservada ndash desde que fossem observadas certas condiccedilotildees ldquoa Moiseacutes Deus ordenou

que divulgasse a lei mas que natildeo escrevesse a interpretaccedilatildeo da lei nem a divulgasse

mas a revelasse soacute a Jesus Nave [Josueacute] e este por sua vez aos sumos sacerdotes sob

o sagrado sigilo do absoluto silecircnciordquo299 Outros dois cristatildeos vaacuterios seacuteculos antes de

Pico haviam sido afetados pela temaacutetica da tradiccedilatildeo oral biacuteblica Hilaacuterio e Oriacutegenes

ambos mencionados na Oratio300

Com o passar do tempo os ensinamentos orais em geral passaram a ser

considerados como pertencentes agrave Cabala e o emprego do termo foi sendo cada vez

mais relacionado agrave transmissatildeo oral Exemplo de tal uso eacute verificado no comentaacuterio

feito por Judah Ben Barzilai no seacuteculo XII ao Secircfer Yetsiraacute ndash importante obra

cabaliacutestica a ser abordada adiante ndash ao narrar a criaccedilatildeo do Espiacuterito Santo conta o

talmudista que os saacutebios costumavam transmitir ldquoreservadamente num sussurro

atraveacutes da Cabala declaraccedilotildees dessa espeacutecierdquo301 O esoterismo deveria portanto ser

mantido por cada geraccedilatildeo em virtude da restriccedilatildeo em se confiar noccedilotildees mais

profundas aos textos escritos evitando-se que os segredos da Revelaccedilatildeo fossem

deturpados por leitores despreparados Por essa razatildeo a presenccedila de um mestre se

fazia necessaacuteria na transmissatildeo oral pois atraveacutes da relaccedilatildeo direta entre mestre e

disciacutepulo seria possiacutevel avaliar as intenccedilotildees e garantir as atitudes intelectuais e eacuteticas

do aprendiz preservava-se assim a verdade intacta

Em relaccedilatildeo aos graus que levam ao conhecimento miacutestico haacute informaccedilotildees de

que em eacutepocas mais remotas seguiam-se exigecircncias muito riacutegidas a respeito de

certos atributos morais e mesmo de traccedilos fisiognomocircnicos dos seus participantes302

Em tempos mais recentes ainda foram mantidas algumas limitaccedilotildees ao aprendizado

da Cabala como o limite miacutenimo de idade que dependendo da escola pode variar

dos trinta aos cinquenta anos Pico conhecia a restriccedilatildeo da idade mencionando-a na

Apologia ldquoEsses livros satildeo venerados com tanta devoccedilatildeo que ningueacutem pode tocaacute-los

antes de ter completado quarenta anosrdquo303 Quanto agrave trajetoacuteria iniciaacutetica natildeo haacute

evidecircncias da existecircncia de etapas preacute-definidas que o adepto devesse ou deva

299 PICO Oratio respectivamente pp159 e 155 Grifo nosso 300 Ibid p155 301 SCHOLEM Cabala-Enciclopeacutedia judaica opcit p 6 Grifo nosso 302 SENDER opcit p9 A menccedilatildeo agrave fisiognomia remete ao discipulado pitagoacuterico que talvez tenha exercido

alguma influecircncia em algum nuacutecleo cabaliacutestico posterior Natildeo encontramos em outras fontes quaisquer esclarecimentos nesse sentido

303 Apologia p31 ldquoHi libri apud hebraeos hac tempestate tanta religione coluntur ut neminem liceat nisi anos XL natum illos attingererdquo Paolo FORNACIARI informa que de acordo com a tradiccedilatildeo o estudo soacute pode ser enfrentado por indiviacuteduos do sexo masculino que tenham acima de quarenta anos (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p18)

113

cumprir para ingressar em niacuteveis distintos de conhecimento304 O que se depreende

dos comentaacuterios acerca do misticismo judaico em paralelismo com a forma de outros

percursos miacutesticos eacute que os segredos da transmissatildeo oral conduzem o proseacutelito a

atingir certo estado extaacutetico que lhe permite receber solitariamente uma Revelaccedilatildeo

Haacute portanto uma relaccedilatildeo estreita entre a transmissatildeo oral o segredo mantido

atraveacutes de tal oralidade e o estado de ecircxtase que antecede a recepccedilatildeo da Revelaccedilatildeo

O misticismo judaico e parte relevante dos exerciacutecios asceacuteticos organizam-se

de forma preciacutepua em torno agrave interpretaccedilatildeo das Escrituras Nelas se encerram os

segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral Em claro consenso todos os miacutesticos judeus

desde os Terapeutas descritos por Filon ateacute ao mais recente hassid concordam que a

Toraacute seja um organismo vivente animado por uma vida secreta que aguarda uma

interpretaccedilatildeo miacutestica305 Como explica Scholem a hermenecircutica dos textos sagrados

eacute uma das formas de alcanccedilar seu conteuacutedo ldquovivordquo possibilitando a ocorrecircncia de

dado momento em que a substacircncia de tal conteuacutedo eacute remodelada ao passar pela

ldquocorrente de fogo do sentimento miacutesticordquo Natildeo se contentando com um uacutenico ato

isolado de ecircxtase o miacutestico continuaraacute a buscar a revelaccedilatildeo de algo oculto que o

aproxime cada vez mais do divino306 A relaccedilatildeo entre as palavras sagradas e o segredo

que guardam estaacute tambeacutem descrita na obra cabaliacutestica Zohar ldquocada palavra da

Escritura encerra um misteacuterio supremordquo o sentido literal eacute ldquoapenas um invoacutelucrordquo e

tomaacute-lo por verdade pode ldquotrazer adversidadesrdquo agravequele que o recebe por essa forma

exterior307 Outra passagem do Zohar anuncia que nas mesmas palavras das

Escrituras com as quais se enxerga apenas o sentido literal em outro momento pode

ser enxergado um novo sentido miacutestico sendo cada palavra insubstituiacutevel para os

dois sentidos

ldquo[]assim como para o sentido literal cada palavra eacute

indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer

uma delas assim tambeacutem para o sentido miacutestico cada palavra eacute

indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer

palavrardquo308

O miacutestico portanto natildeo rejeita a autoridade do texto escrito ele apenas

invalida uma aparente verdade que possa se mostrar no significado literal

substituindo-a por uma interpretaccedilatildeo que decorre de intuiccedilatildeo a ser alcanccedilada

durante a reflexatildeo miacutestica309 Conforme complementa Scholem as exegeses miacutesticas

sempre partem de palavras exatas para em seguida ldquode forma genialrdquo transformar

304 BUSI opcit pp5-6 305 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit pp 15-16 Em De Vita Contemplativa obra em

que Fiacutelon aborda as seitas judaicas dos Terapeutas a Toraacute eacute relatada como algo afim a um ser vivo o sentido literal eacute o corpo enquanto a alma eacute o significado secreto debaixo da palavra escrita

306 SCHOLEM ibid p 11 Na concepccedilatildeo da ldquocorrente de fogordquo que une o adepto ao divino natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com a questatildeo filosoacutefica do ldquolampejordquo descrito por Platatildeo na Carta VII O processo filosoacutefico de conhecimento produz em dado momento uma faiacutesca e subitamente como num lampejo a alma tem uma visatildeo intelectual que pode ser comparada a uma intuiccedilatildeo

307 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 308 Zohar II 99a in VULLIAUD I pp137-38 309 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo opcit pp 21-22

114

as Escrituras em um corpus simboacutelico permitindo que se abra um portatildeo atraveacutes do

qual o miacutestico passa ldquoum portatildeo que se lhe abre sempre de novordquo Assim ldquoa exegese

miacutestica esta nova revelaccedilatildeo concedida ao miacutestico tem o caraacuteter de uma chaverdquo310

Como havia escrito Oriacutegenes em contexto concernente ao esoterismo ldquoachar as

chaves certas que abriratildeo as portas eacute a grande e aacuterdua tarefardquo311 As formas para se

encontrar ldquoa chave certardquo fazem parte dos segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral

A literatura miacutestica

O conjunto da tradiccedilatildeo escrita cabaliacutestica eacute sustentado por dois importantes

pilares ndash o Zohar e o Secircfer Yetsiraacute ndash aos quais se acrescentam como terceiro pilar

vaacuterios textos de eacutepocas diferenciadas O Secircfer Yetsiraacute (Livro da Formaccedilatildeo) eacute um

pequeno e antigo livro metafiacutesico com apenas seis capiacutetulos Escrito provavelmente

em Terra de Israel estima-se que sua data de composiccedilatildeo se situe entre os seacuteculos II

e III (podendo chegar ateacute o VI dC)312 estabelecendo-se assim como o texto judaico

mais antigo de caraacuteter propriamente miacutestico mesmo em se levando em conta a

possibilidade de ter sofrido alteraccedilotildees ao longo dos seacuteculos313 Sua primeira versatildeo

impressa realizada em Mantova e datada de 1562 tem sido a mais aceita embora

muitas coacutepias circulassem antes no universo judaico e principalmente nos ciacuterculos

fechados dos cabalistas sob formas natildeo impressas314

Os comentaacuterios ao Secircfer Yetsiraacute fazem parte integrante da literatura miacutestica

hebraica e foram amplamente utilizados por seus estudiosos Entre esses sabe-se da

existecircncia de um relevante comentaacuterio perdido realizado por Abulafia que se

fundamentou em sua admiraccedilatildeo por Maimocircnides ndash autor que mesmo natildeo tendo

produzido literatura miacutestica chegou a escrever um comentaacuterio ao primeiro capiacutetulo

do Secircfer Yetsiraacute315 Malgrado a significativa quantidade de comentaacuterios que ensejou

310 SCHOLEM ibid pp 20-23 311 A passagem referida a Oriacutegenes encontra-se em Selecta in Psalmos ref Salmo I in MIGNE Patrologia

Graeca XII 1080 apud SCHOLEM 1978 p 20 312 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit p83 Nome de Deus e Teoria da linguagem

opcit p21 Para BUSI a data de compilaccedilatildeo do Secircfer Yetsiraacute situa-se entre os seacuteculos VI e VII (2011 p9 e 46 ss) 313 O Secircfer Yetsiraacute pode ser classificado naquilo que os hebreus chamam de Maassecirc Bereshit (Atos de Criaccedilatildeo)

conjunto representado por textos cosmoloacutegicos ou cosmogocircnicos relacionados agrave Criaccedilatildeo do Universo ndash o todo ou os seres em particular ndash em distinccedilatildeo aos escritos de Maassecirc Mercavaacute relacionados agrave natureza divina ao trono celestial e agrave hierarquia dos Anjos O nome ldquomercavaacuterdquo relaciona-se agrave visatildeo da carruagem de fogo subindo aos ceacuteus que estaacute descrita em Ezequiel 101 e Isaiacuteas 61-2 (cf MAGHIDMAN opcit p107)

314 A ediccedilatildeo de Mantova apresenta tanto uma versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute acrescida de comentaacuterios quanto uma versatildeo longa inclusa em seu apecircndice embora existam bem mais do que duas versotildees do Secircfer Yetsiraacute como pode ser verificado em estudo comparativo efetuado por Hayman no qual satildeo apresentadas dezenove versotildees seis variaccedilotildees do texto longo dez da versatildeo curta e outras trecircs frutos do comentaacuterio de Saadia Gaon (892-943) A uacuteltima versatildeo comentada por Gaon tem a data precisa do ano 931 e eacute interessante observar que o proacuteprio Gaon aponta para algumas alteraccedilotildees que realizou no texto original (mudando por exemplo o nuacutemero de Portotildees da Sabedoria Divina de 221 para 231 no paraacutegrafo 19) assim alimentando duacutevidas se teria feito outras alteraccedilotildees Os manuscritos tomados como base para cada uma das versotildees satildeo o existente na Biblioteca do Vaticano (versatildeo longa) o de Parma (versatildeo curta) e a versatildeo comentada de Saadia Gaon proveniente da Guenizaacute do Cairo e atualmente na Biblioteca de Cambridge (Peter HAYMAN Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism 2004 pp2 12-14 31) Sobre as versotildees do Secircfer Yetsiraacute veja-se ainda SCHOLEM (1989 pp21 27) O Apecircndice II da obra de MAGHIDMAN (opcit) apresenta em portuguecircs a versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute

315 Para Abulafia no Guia dos Perplexos de Maimocircnides encontra-se a verdadeira teoria do Cabalismo (SCHOLEM 1995 pp 141-142) Para a averiguaccedilatildeo de outros comentaacuterios acerca do Secircfer Yetsiraacute veja-se HAYMAN opcit p31 BUSI opcit p48 SCHOLEM 1989 pp26 46

115

o autor do Secircfer Yetsiraacute permanece desconhecido Por muito tempo considerou-se

que tivesse sido Abraatildeo a concebecirc-lo ndash a obra de Pico mostra a aceitaccedilatildeo dessa

autoria ainda no lsquo400 ndash muito provavelmente em razatildeo da menccedilatildeo feita ao patriarca

no uacuteltimo paraacutegrafo do livro onde se lecirc ldquoe quando Abraham nosso pai olhou viu

entendeu perscrutou gravou e entalhou teve ecircxitordquo316 Por esse motivo o Livro da

Formaccedilatildeo eacute tambeacutem conhecido pelo nome Otiot Deavraham Avinu (O alfabeto do

patriarca Abraatildeo)317 De toda forma e embora sua autoria mantenha-se

desconhecida ainda hoje o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado o primeiro texto especulativo

escrito no idioma hebraico318 Sua peculiaridade encontra-se em estar voltado para a

alma individual humana ndash e natildeo para os judeus de modo particular ndash razatildeo de o

nuacutemero doze ser indicativo dos signos do zodiacuteaco por exemplo e natildeo das

tradicionais doze tribos de Israel Tambeacutem natildeo menciona Moiseacutes a Toraacute ou o

Messias Assim de forma incomum na literatura hebraica a obra traccedila o ldquodesenho

das forccedilas ocultas do cosmordquo sem fazer quase nenhuma referecircncia direta ao texto das

Escrituras ou agrave tradiccedilatildeo poacutes-biacuteblica como complementa Giulio Busi319

Em termos de conteuacutedo o Secircfer Yetsiraacute pode ser descrito em linhas bastante

sucintas320 como um apanhado de conhecimentos de cunho miacutestico com notas

filosoacuteficas astroloacutegicas e cosmoloacutegicas da Antiguidade em que predominam

princiacutepios de simetria reciprocidade e correspondecircncia Em linguagem enigmaacutetica

encontra-se delineado o paralelismo entre as letras do alfabeto hebraico com

categorias da criaccedilatildeo dos mundos (angeacutelico celeste e material) e com funccedilotildees de

natureza fiacutesica bioloacutegica e psiacutequica de forma a estabelecer uma relaccedilatildeo entre a

infinitude de Deus e a finitude de sua obra ou em outras palavras uma relaccedilatildeo entre

a dimensatildeo material e a espiritual O Secircfer Yetsiraacute introduz ainda a noccedilatildeo de Sefirot

ndash a ser verificada adiante ndash um dos nuacutecleos fundamentais do pensamento

cabaliacutestico capaz de presentear os miacutesticos com uma doutrina orgacircnica do aspecto

secreto da Criaccedilatildeo321

O Secircfer ha-Zohar (Livro do Esplendor) ndash ou apenas Zohar ndash embora

redigido vaacuterios seacuteculos apoacutes o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado por muitos como o

trabalho mais importante acerca da Cabala322 A despeito de ter tido sua autoria

estabelecida durante muito tempo no segundo seacuteculo e atribuiacuteda ao rabino Shimon

Bar Yohai ndash fato que tradicionalmente ainda prevalece mesmo em ediccedilotildees mais

recentes ndash alguns estudos acadecircmicos do seacuteculo passado especialmente de Gershom

316 Secircfer Yetsiraacute trad MAGHIDMAN Apecircndice II 2014 p174 317 SENDER 1992 p27 Dentre as hipoacuteteses de autoria do Secircfer Yetsiraacute Sender aponta para Rabi Akiva que

teria vivido em Israel no seacuteculo II de nossa Era (ibid pp27-28) 318 MAGHIDMAN opcit p19 319 BUSI opcit p9 320 Natildeo cabe nestas paacuteginas a anaacutelise do Secircfer Yetsiraacute ao qual literatura especializada tem se dedicado Na

sequecircncia seratildeo verificadas as principais concepccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute que exerceram influecircncia sobre Pico della Mirandola Para comentaacuterios referentes ao Secircfer Yetsiraacute em portuguecircs veja-se a obra de MAGHIDMAN (2014)

321 BUSI opcit pp9 e 46 ss SCHOLEM 1995 p83 322 SCHOLEM 1989 p 52 A importacircncia do Zohar pode ser medida pela relevacircncia que lhe foi dada por um

dos maiores cabalistas do seacuteculo XVI Isaac Luria (1534-1572) que o utilizou como principal base de seus estudos Luria foi o responsaacutevel por uma das mais importantes escolas de Cabala revolucionando o misticismo hebraico (inclusive com suas doutrinas de transmigraccedilatildeo) e todo o Cabalismo posterior

116

Scholem apontam para o judeu espanhol Moshe de Leoacuten como seu mais provaacutevel

autor aleacutem de responsaacutevel por sua publicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo no seacuteculo XIII323

Escrito em aramaico e hebraico medieval o Zohar natildeo eacute exatamente um livro

com um texto sistemaacutetico mas um conjunto de livros que reuacutene vaacuterios contos em que

os personagens utilizando-se da Biacuteblia como pretexto discutem e efetuam inserccedilotildees

narrativas O conjunto de textos aborda vaacuterios temas da vida judaica desde preceitos

e oraccedilotildees ateacute situaccedilotildees do cotidiano passando por anotaccedilotildees alquiacutemicas

astronocircmicas e astroloacutegicas As discussotildees progridem em direccedilatildeo a comentaacuterios

miacutesticos sobre a Toraacute revelando concepccedilotildees teosoacuteficas abrangentes acerca da

natureza de Deus da origem e da estrutura do universo da hierarquia dos mundos e

da transmigraccedilatildeo e destino das almas entre outros temas de natureza filosoacutefico-

metafiacutesica Seu fundo conceitual apoia-se na relaccedilatildeo entre as Sefirot e a regecircncia do

mundo desenvolvido a partir da ideia de que cada universo inferior reflete o seu

superior Cabe referir que em sua completude o Zohar natildeo trata apenas do bem

acolhe ainda uma intrincada representaccedilatildeo do domiacutenio das forccedilas negativas

designadas com a locuccedilatildeo sitra ahara que significa ldquoa outra parterdquo324

Aleacutem do Zohar e do Secircfer Yetsiraacute outras obras satildeo emblemaacuteticas e

obrigatoacuterias ao estudo do misticismo hebraico por apresentarem estreita relaccedilatildeo com

o Secircfer Yetsiraacute Quase todas se encontram entre as fontes de Giovanni Pico razatildeo de

nosso interesse Uma delas eacute o Secircfer ha-Bahir (Livro da Iluminaccedilatildeo) tambeacutem

conhecido como ldquoO Midrash do Rabino Nehuniah Ben Hakanahrdquo atribuiacutedo ao

rabino midraacuteshico que lhe daacute o nome325 O Bahir integra uma corrente estritamente

metafiacutesica da Cabala diretamente relacionada ao nuacutecleo de pensadores espanhoacuteis de

onde se originou Azriel de Gerona ndash que realizou um relevante escrito sobre as Sefirot

ndash mestre do notabilizado filoacutesofo e cabalista Nachmacircnides tambeacutem pertencente ao

mesmo grupo326 Aleacutem de tratar de questotildees acerca das emanaccedilotildees divinas o texto

aborda questotildees relacionadas agrave alma agrave transmigraccedilatildeo aos anjos e ao alfabeto

hebraico327

Compotildee ainda a construccedilatildeo do pensamento cabalista um rico repertoacuterio de

visotildees celestes guardado na chamada literatura dos ldquoaacutetrios celestiaisrdquo ou dos

Heikhalot (literalmente ldquopalaacuteciosrdquo) constituiacutedo por escritos enigmaacuteticos datados do

primeiro seacuteculo da era cristatilde ndash embora redigidos provavelmente em eacutepoca mais

323 Moshe de Leoacuten alegava ter descoberto (e natildeo escrito) o Zohar em Guadalajara cidade espanhola onde vivia SCHOLEM afirma que De Leoacuten ocultou-se atraacutes do nome de Shimon Bar Yohai para escrever aquela que seria sua obra maior (1989 p 52) Tambeacutem Pico atribuiacutea a autoria do Zohar a ldquoSimeon Antiquusrdquo

324 BUSI opcit pp 72-74 SENDER opcit p34 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p 630

325 Sheila RABIN Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays (org Dougherty MV) 2008 p 156 SCHOLEM considera o texto como pertencente provavelmente ao seacuteculo XI (1989 p 39)

326 GARIN 2011 p115 Azriel ben Menahem de Gerona foi mestre de Mosheh ben Nahman de Gerona conhecido por Nachmacircnides Este uacuteltimo notabilizou-se por seus comentaacuterios miacutesticos do Pentateuco e por seus comentaacuterios ao Talmud

327 O conceito de transmigraccedilatildeo das almas penetrou na Cabala dos seacuteculos sucessivos graccedilas ao Bahir Veja-se maiores detalhes em BUSI opcit pp 55 63 MAGHIDMAN opcit p91 Existe uma traduccedilatildeo em portuguecircs do Bahir originalmente traduzido e comentado por Arieh KAPLAN (Bahir o Livro da Iluminaccedilatildeo-atribuiacutedo ao Rabino Nehuniaacute ben haKana) realizada por Maria Regina Nogueira contendo o texto original hebraico (Ed Imago Rio de Janeiro 1992)

117

tardia O material conteacutem relatos de experiecircncias pessoais de ascensatildeo aos planos

superiores representados por uma estrutura arquitetocircnica de luzes A partir do

misticismo dos Heikhalot os cabalistas herdaram um complexo sistema angeoloacutegico

e a representaccedilatildeo de uma ascese da alma articulada em etapas cognitivas sempre

mais elevadas Efetivamente a ampla tratativa aborda as vaacuterias etapas de um

percurso asceacutetico sob um gradual processo de conhecimento328 Os tratados

apresentam algumas narrativas obscuras em que tantas vezes soberbos anjos estatildeo

colocados como guardiotildees dos palaacutecios das regiotildees celestes Por exemplo no

Heikhalot rabbati o mais ceacutelebre o miacutestico pode alcanccedilar os peacutes do trono superno

somente se ultrapassar uma sucessatildeo de sete edifiacutecios cujos portotildees representam

tantas outras etapas de seu percurso iniciaacutetico ldquopenetrar nos palaacutecios divinos

significa portanto apoderar-se de uma geografia transcendente que retrata o

invisiacutevel com a precisatildeo de um mapardquo329 Dado que os guardiotildees angeacutelicos ndash

obstaacuteculos na ldquoviagem em direccedilatildeo agrave gloacuteria excelsardquo ndash podem ser dominados agrave medida

que se conheccedilam seus nomes e atributos os tratados dos Heikhalot servem como um

guia que ensina seus nomes e as respostas necessaacuterias para superar as provas

colocadas por esses seres ldquofeitos de granizo e fogordquo330 Pico mostrava ter

familiaridade com os Heikhalot pois na De Hominis Dignitate faz menccedilatildeo agraves

transformaccedilotildees de Enoch conforme episoacutedio narrado em outro desses tratados331

Assim como o Zohar que aborda as forccedilas negativas uma natildeo irrelevante integraccedilatildeo

eacute apresentada dentro da arquitetura supramundana dos Heikhalot o Midrash Konen

informa a existecircncia sempre nas moradas superiores de uma seacuterie simeacutetrica de

palaacutecios infernais guardados por anjos do mal332

Finalmente natildeo poderia deixar de ser citada a literatura midraacuteshica O termo

ldquomidrashrdquo significa em hebraico ldquointerpretaccedilatildeordquo e indica um amplo nuacutemero de

histoacuterias e comentaacuterios biacuteblicos que se mesclam entre documentos e lendas redigidos

entre o iniacutecio do seacuteculo V e a metade da Idade Meacutedia Nos vaacuterios Midrashim o texto

das Escrituras eacute submetido a uma anaacutelise minuciosa mostrando as implicaccedilotildees

escondidas sob suas linhas Assim em contraste com a interpretaccedilatildeo

literal o Midrash designa uma exegese profunda que tenta revelar o espiacuterito velado

das Escrituras examinando possibilidades que natildeo se mostram em uma leitura

literal do texto Seu principal objetivo nesse sentido eacute o de propor o maior nuacutemero

de significados possiacuteveis de acordo com o ensinamento rabiacutenico que prescreve ldquogirar

e regirar a Toraacute pois que nessa estaacute absolutamente tudordquo333 Assim como nos demais

328 A imagem da carruagem celeste eacute bastante presente simbolizando como em outras tradiccedilotildees ndash inclusive a

platocircnica ndash o deslocamento do adepto atraveacutes do espaccedilo supramundano graccedilas ao qual ele alcanccedila a contemplaccedilatildeo de uma complexa arquitetura coacutesmica Cf BUSI opcit pp9-10 43 SENDER op cit p34

329 BUSI opcit p43 330 BUSI idem 331 Cf Oratio p107 O tratado Alfabeta derabbirsquoAqiva descreve o episoacutedio de Enoch patriarca biacuteblico

antediluviano alccedilado aos ceacuteus pelo Senhor e transformado no anjo Metraton dominante sobre as hierarquias angeacutelicas e ao qual satildeo atribuiacutedos setenta e dois nomes

332 BUSI opcit p45 np145 Comentaacuterios e textos acerca dos Heikhalot podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas na bibliografia de Giulio Busi GSCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960 PSCHAFER Hekhalot Studien Tubingen 1988 Para traduccedilotildees italianas veja-se RAVENNA-PIATELLI (org) Cabbala ebraica I sete santuari Milano 1990

333 BUSI opcit pp41-42

118

manuscritos de caraacuteter miacutestico utilizados pelos mekubalim334 os Midrashim incluem

natildeo poucas passagens de argumentaccedilotildees cosmogocircnicas que permitem especulaccedilotildees

acerca das origens da Criaccedilatildeo e da estrutura das moradas celestes A exposiccedilatildeo

midraacuteshica eacute comparada no Talmud a um ldquomartelo que desperta as faiacutescas

adormecidas na rochardquo335

As fontes cabaliacutesticas de Pico

Em carta endereccedilada ao sobrinho Gian Francesco Giovanni Pico informa

sobre alguns livros hebraicos que teria tomado emprestado de certo judeu siciliano

por um periacuteodo de vinte dias quando jaacute exercitava com relativa facilidade o

idioma336 O testemunho desse empreacutestimo junta-se a uma vasta documentaccedilatildeo que

comprova o fato de que o jovem aprendiz da Cabala teria lido todos os textos

hebraicos talmuacutedicos e midraacuteshicos que podia comprar encontrar ou pedir337 Parte

consideraacutevel desse material se lhe tornou disponiacutevel ou inteligiacutevel atraveacutes do auxiacutelio

de trecircs de seus principais mestres Elia Del Medigo Yohanan Alemanno e Flavio

Mitridate que desempenharam importante papel nas traduccedilotildees de muitos textos

seja do aacuterabe para o hebraico ou do hebraico para o latim338 A aquisiccedilatildeo da vasta

doutrina referente ao Hebraiacutesmo deve ser creditada ademais agraves conversaccedilotildees tidas

com tantos outros judeus eruditos e agraves leituras diretas de manuscritos hebraicos dos

quais comprovadamente possuiacutea um nuacutemero consideraacutevel339 Os manuscritos

foram sem duacutevidas o meio de acesso mais importante atraveacutes do qual o pensamento

judaico ndash especificamente o cabaliacutestico ndash se tornou disponiacutevel para Pico340

Nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XV seria possiacutevel encontrar em Florenccedila

um nuacutemero consideraacutevel de manuscritos de conteuacutedo especulativo judaico Havia os

volumosos escritos de Alemanno com abundantes citaccedilotildees de fontes medievais

hebraicas341 os textos de Abraham Farisol que passou um tempo em Florenccedila com

menccedilotildees a um grande nuacutemero de livros judaicos as epiacutestolas do cabalista espanhol

334 Mekubalim ou ainda Maskilim (iniciados) satildeo denominaccedilotildees que muitos autores cabalistas recebem (cf

IDEL 2008a p17) 335 BUSI opcit pp41-42 336 GARIN 2011 p 99 337 Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p143 338 Crofton BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 12 BUSI opcit p 84 339 Tatildeo ampla era a coleccedilatildeo de livros hebraicos de Pico que ensejou a criaccedilatildeo de obras especiacuteficas voltadas ao seu

estudo Veja-se por exemplo Pearl KIBRE The Library of Pico della Mirandola New York 1936 Giuliano TAMANI I libri ebraici di Pico della Mirandola in Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di studi del cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994) org G C Garfagnini Firenze 1997 pp 491-530 Giulio BUSI Chi non ammireragrave il nostro camaleonte La biblioteca cabbalistica di Giovanni Pico della Mirandola in Lenigma dellebraico nel Rinascimento Nino Aragno Editore Torino 2007 pp 25ndash45 Moshe IDEL The Throne and the Seven-Branched Candlestick Pico della Mirandolas Hebrew Source in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes XL 1977 pp 290-292 R SIMON Bibliotheca selecta I Um bom recolhimento do conteuacutedo da biblioteca de Pico pode ser encontrado ainda no ldquoAppendice La Biblioteca di Picordquo na obra Giovanni Pico della Mirandola de GARIN (2011 pp106 ss) Acerca dos hebreus com os quais Pico teve contato veja-se Umberto CASSUTO (opcit pp316-318)

340 Chaim WIRSZUBSKI com o auxiacutelio de seus alunos Moshe Idel e Carmia Schneider deteacutem o meacuterito de ter seguido o percurso intelectual de Pico identificando os textos e os autores atraveacutes dos quais estudou a Cabala daiacute resultando seu fundamental volume Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Veja-se ali em especial entre as paacuteginas 60 a 64 toda a questatildeo das fontes cabaliacutesticas de Pico

341 Para uma lista das fontes mais importantes do pensamento de Alemanno veja-se IDEL The Study Program of R Yohanan Alemanno in Tarbiz XLVIII 1979 pp 303-330

119

Isaac Mar Hayyim os escritos de Moshe ben Yoav342 E de suma relevacircncia o vasto

volume de material cabaliacutestico traduzido por Flavio Mitridate para o latim343 A

maioria dos manuscritos que chegou agraves matildeos de Pico foi-lhe elucidada justamente

por Mitridate A principal missatildeo do mestre convertido exercida com paixatildeo era

comprovar ao pupilo o argumento de que a Cabala provava a verdade do

Cristianismo para tanto procurou realizar traduccedilotildees que fossem literais mas ao

mesmo tempo capazes de lidar com as sutilezas do vocabulaacuterio cabaliacutestico344 Os

manuscritos apresentam vaacuterias anotaccedilotildees feitas pelo mestre agraves margens das

traduccedilotildees para servir de guia ao pupilo em suas possiacuteveis analogias Um desses

comentaacuterios anotado agraves margens da traduccedilatildeo do De Secretis Legis de Abulafia

relata que os dois ele e o conde se encontravam em ldquouma missatildeo comum de

profunda seriedaderdquo sendo bastante significativo do grau de comprometimento que

pretendiam dar agravequeles estudos345

De maneira mais abrangente que Mitridate como parece ser consensual o

mestre cabalista Alemanno estava bem familiarizado com a maioria dos escritos

miacutesticos judaicos provenientes tanto de autores contemporacircneos e medievais ndash da

Itaacutelia Espanha e Alemanha ndash como de fontes anteriores pertencentes agrave literatura dos

Heikhalot Agrave exceccedilatildeo do livro do Zohar do qual Alemanno natildeo tinha estreito

conhecimento haacute registros de seu acesso a uma numerosa quantidade de textos

relacionados agrave literatura biacuteblica talmuacutedica e midraacuteshica Notadamente versado nas

mais variadas correntes filosoacuteficas fossem hebraicas gregas ou aacuterabes observa-se

nas citaccedilotildees de seus trabalhos uma quantidade surpreendente de livros raros ou

pouco difusos o que constitui prova de uma erudiccedilatildeo pouco comum346

Dentre os trecircs professores mencionados no entanto o primeiro a abrir para

Pico as portas de fato ao universo da Cabala embora o tema natildeo lhe despertasse

maior interesse347 foi Elia Del Medigo Em longa carta enviada a Giovanni o rabino

antecipava ldquoVendo que Vsa Senhoria se empenha muitiacutessimo nessa bendita Cabala

342 IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in BemporadndashZatelli (org) La

Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 21 343 Entre tantos outros Mitridate traduziu o livro do conhecido rabino Eleazar de Worms o Hokhmat ha-

Nefesh sob o tiacutetulo Liber De Anima em 1486 traduziu um grupo de comentaacuterios sobre o Secircfer Yetsiraacute presentes no cod Vat hebr 191 tambeacutem o De Secretis Legis (Sitre Torah) de Abulafia presente no cod Vat hebr 190 (cf Franco BACCHELLI opcit pp 35 57) Uma lista completa das traduccedilotildees de Mitridate pode ser encontrada no livro de WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism (1987 pp 10-65)

344 Alguns desses textos natildeo existem mais Os que ainda restam encontram-se em cinco manuscritos mantidos na biblioteca do Vaticano que juntos contabilizam mais de 3500 paacuteginas Os manuscritos sobreviventes satildeo Vat Ebr 189 Vat Ebr 190 Vat Ebr 191 Chigi A VI 190 e Vat Lat 4273 (BLACK opcit p 16) Em relevante desenvolvimento nos estudos de Pico um trabalho tem sido realizado para editar esse corpus em uma seacuterie entitulada The Kabbalistic Library of Giovanni Pico della Mirandola sob direccedilatildeo de Giulio Busi O primeiro volume da seacuterie foi publicado em 2004 intitulado The Great Parchment Flavius Mithridatess Latin Translation the Hebrew Text and an English Version (org) G Busi S M Bondoni e S Campanini (Ed Nino Aragno Torino 2004)

345 WIRSZUBSKI opcit p 69 BACCHELLI opcit 2001 p 57 346 CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p315 IDEL 1998 p 34 347 Elia de Medigo presidia a escola talmuacutedica italiana de vieacutes decididamente aristoteacutelico e hostil ao

pensamento cabaliacutestico mais em razatildeo da orientaccedilatildeo filosoacutefica de cunho neoplatocircnico que apresentava do que por um antagonismo aos seus procedimentos Tal aspecto incomodava muitos outros intelectuais aristoteacutelicos como assinala BROCCHIERI (Pico della Mirandola 2011 p12) Entretanto e apesar de natildeo mostrar especial interesse pelo tema os escritos de Del Medigo tanto em hebraico quanto em latim constituem uma fonte muito confiaacutevel para uma descriccedilatildeo abrangente da Cabala como pontua IDEL (1998 p 20)

120

quero vos indicar algo que ateacute hoje natildeo quis vos mostrarrdquo A carta ajuda a lanccedilar luz

sobre as pesquisas literaacuterias de seu aluno uma vez que inclui trecircs listas colunadas

com sugestotildees de bibliografias sendo uma essencialmente cabaliacutestica a primeira

coluna apresenta obras que serviriam aos estudos aristoteacutelicos de Pico a segunda

mostra uma seacuterie de autores aacuterabes na terceira haacute uma lista entitulada ldquoqabalahrdquo

Nesta leem-se os nomes (sic) ldquoSefer Hazzocirchar MeirahrsquoEnayim Scharsquoarei Orah

Reqanati Marsquoarekheth ha Elohouth Pegraverousch Sefer Uetsirahrdquo e ao final deles a

admissatildeo ldquoe muitos outros cujos nomes natildeo me ocorrem porque estou com muitas

ocupaccedilotildeesrdquo348

Mantendo-se a ordem apresentada Del Medigo refere-se primeiramente ao

Zohar Em seguida ao texto Meirah Einayim um provaacutevel comentaacuterio sobre

Nachmacircnides feito por Isaac de Acre que pode ser estabelecido entre o final do

seacuteculo XIII e a metade do seacuteculo XIV O Scharsquoarei Orah eacute um texto do comentador

cabalista espanhol Joseph Gikatilla aluno de Abulafia compreendido em periacuteodo

aproximativo ao anterior A indicaccedilatildeo segue com a menccedilatildeo impliacutecita a algum ou a

alguns comentaacuterios atribuiacutedos ao rabino Menahem Recanati do seacuteculo XIII e o

tratado anocircnimo Maarekhet ha-Elohut do final do seacuteculo XIII e iniacutecio do XIV

contendo algumas interpretaccedilotildees cabaliacutesticas A lista se encerra com a sugestatildeo de

um comentaacuterio referente ao Secircfer Yetsiraacute As inuacutemeras recorrecircncias de marcas em

algumas seccedilotildees desses manuscritos evidenciam que Pico leu tais textos marcou as

passagens de interesse e as reutilizou em seus proacuteprios trabalhos tanto como fontes

para suas Conclusiones Cabalisticae quanto como bases para a elaboraccedilatildeo do

Heptaplus349

Quanto ao fundamental Secircfer Yetsiraacute o proacuteprio Pico conta tecirc-lo lido em lsquo86

juntamente ao comentaacuterio com o qual estava unido embora o mesmo natildeo conste da

lista de Elia Em relaccedilatildeo ao Zohar indicado na bibliografia de Elia natildeo se sabe

exatamente se o conheceu de forma direta ou indireta embora o tenha mencionado

tanto nas Conclusiones cabalisticae quanto no Heptaplus350 Tambeacutem a Oratio

apresenta certa analogia com o Zohar no que diz respeito agrave celebraccedilatildeo da liberdade e

potecircncia do espiacuterito humano o que poderia comprovar a leitura daquela obra351

348 ldquo[] et multa alia quorum nomina non occurunt mihi quia multas habeo ocupacionesrdquo O manuscrito estaacute

em Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v Fragmentos dessa carta foram transcritos e discutidos por Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 pp 48-65 O trecho com a citaccedilatildeo das bibliografias em questatildeo encontra-se em f75r e estaacute transcrito nas pp 56-57 de DUKAS (opcit) e em seu Bulletin du Bibliophile vol XLII 1875 p340 Sobre as relaccedilotildees entre Pico e Del Medigo e outros detalhes sobre a carta em questatildeo veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola 1964 pp 41-81

349 Efetivamente eacute consensual que Pico tenha utilizado Recanati como fonte principal para as Conclusiones Cabalisticae dois dos trabalhos do rabino foram traduzidos para Pico por Flavio Mitridate ndash os comentaacuterios ldquosobre o Pentateucordquo e ldquosobre as oraccedilotildeesrdquo Especialmente as 47 teses cabaliacutesticas do primeiro grupo satildeo quase todas inspiradas pelo Commento al Pentateuco (cf WIRSZUBSKI Picos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp53-56 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633 BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 17)

350 Respectivamente em Conclusiones II 24 p131 e em Heptaplus p180 No Heptaplus Pico faz alusatildeo ao presumiacutevel autor do Zohar Shimon Bar Yohai ldquoSimeon antiquusrdquo GARIN informa que ldquonatildeo se sabe ao certo se Pico conheceu o Zoharrdquo ou se o conheceu atraveacutes da leitura de Menahem Reca atribuindo a VULLIAUD (vol II p 19) a certeza de Pico ter lido o Zohar diretamente (2011 p102)

351 A celebraccedilatildeo da potecircncia humana no Zohar concentra-se na figura do Adam Kadmon o homem cuja natureza eacute determinada e estaacute acima de todos os anjos Em Pico diferentemente a natureza do homem natildeo eacute

121

Certeza eacute o fato que Pico possuiacutea o Secircfer ha-Bahir pertencente agrave corrente metafiacutesica

de cujo nuacutecleo saiacuteram os escritos de Nachmacircnides352 A obra consta do inventaacuterio de

seus livros integrado ainda por obras da corrente dos profetas miacutesticos como

Abraham ibn Ezra Moshe de Narbona Eleazar de Worms e Gikatilla este uacuteltimo

certamente estudado com atenccedilatildeo visto que fazia parte da lista de Del Medigo todas

essas obras jaacute estavam em sua posse no periacuteodo de redaccedilatildeo das Conclusiones Sua

biblioteca dispunha ainda de escritos dos comentaristas medievais Abulafia Azriel

de Gerona e do acima mencionado Menahem Recanati assim como de inuacutemeros

trabalhos anocircnimos353 Outrossim e antes de se dedicar aos estudos cabalistas Pico

havia meditado longamente sobre o pensamento de Maimocircnides e Avicebron judeus

ceacutelebres no mundo cristatildeo tendo encontrado neles algumas das raiacutezes da gnose

hebraica que reencontraria mais tarde Tambeacutem natildeo lhe passaram despercebidas as

ressonacircncias que certos procedimentos cabaliacutesticos exerceram sobre Ramon Llull na

Espanha a ponto de interessar-se pelos aspectos praacuteticos da Cabala como seraacute

visto354

2 O Cosmo Cabalista

Na mencionada carta de Elia Del Medigo na qual constam as indicaccedilotildees

bibliograacuteficas transmitidas ao pupilo Giovanni lecirc-se ldquoTrata-se de algo tatildeo secreto

que ningueacutem dentre os contemporacircneos tem se ocupado e poucos antigos

conheceram Eacute coisa pequena em quantidade mas grandiacutessima em qualidaderdquo

Antecipando seu conteuacutedo Elia complementaria ldquoOs devotos a estes textos obscuros

sustentam que o nome de Deus eacute infinito e que a um grau abaixo de Deus estatildeo as dez

Sefirot agentes da potecircncia que emana de Deus eacute atraveacutes dessas que o mundo

conserva a sua ordemrdquo355 Por meio dessas palavras o mestre descrevia in nuce os

elementos centrais da doutrina cabaliacutestica quais sejam a concepccedilatildeo do Infinito (Ein

Sof) e suas emanaccedilotildees as Sefirot

determinada e tanto ele pode continuar na indeterminaccedilatildeo quanto pode passar a ser tudo Apesar de preconizar que Pico tenha sido o primeiro divulgador do Zohar na cultura corrente da eacutepoca Garin sugere que a ideia de liberdade do homem defendida na Oratio tenha sido formada atraveacutes de leituras precedentes de obras ateacute mais significativas atribuiacutedas tanto a pensadores hebraicos tais quais Maimocircnides e Avicebron quanto a natildeo hebraicos como Fiacutelon Hermes e Honoacuterio de Autun A reflexatildeo estaacute em GARIN (2011 pp 90-91 93-105)

352 GARIN 2011 p115 RABIN opcit p 156 353 Cf Inventario delli libridel Conte Joanne de la Mirandola (pp 30 46 60 62 73 etc) elaborado por

Antonio Pizamano em 1498 em Florenccedila e editado em Memorie Storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandola Harvard University vol XI 1897 p46 (apud GARIN 2011 p103) Chaim WIRSZUBSKI comprovou que Pico fizera uso no iniacutecio de sua carreira das obras de Abulafia (Um cabalista Cristatildeo lecirc a Lei Jerusaleacutem 1977 pp11 17 e ss apud IDEL 2008-b p 461)

354 Em sua Apologia (p192) Pico comenta sobre a ldquoars Raymundirdquo segundo KIBRE (1936 p318) possuiria do filoacutesofo catalatildeo o Ars Brevis Em relaccedilatildeo aos estudos sobre Maimocircnides Avicebron e o influxo de Llull veja-se menccedilatildeo em GARIN 2011 pp 100-101 Para a relaccedilatildeo percebida por Pico entre Avicebron e as doutrinas cabalistas veja-se Salomon MUNK Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris 1857 pp275 ss que comporta ldquoDes Extraits Meacutethodiques de la Source de vie de Salomon Ibn-Gebirol (dit Avicebron) traduits de lrsquoarabe en heacutebreu par Ibn-Falaqueacuterardquo

355 DUKAS opcit pp 48-65 (Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v)

122

A emanaccedilatildeo sefiroacutetica

A estrutura metafiacutesica das Sefirot eacute uma das caracteriacutesticas medulares da

Cabala surgida por volta do seacuteculo III O termo ldquosefirotrdquo (ldquosefiraacuterdquo no singular)

ingressa de fato na miacutestica hebraica atraveacutes do Secircfer Yetsiraacute onde eacute mencionado

pela primeira vez356 Os cabalistas concordam em conceber as Sefirot como graus

ciclos ou niacuteveis atraveacutes dos quais o aspecto mais profundo do poder divino atua sobre

o universo criado ou em outras palavras como formas inteligiacuteveis atraveacutes das quais

o ldquoImanifestordquo passa a se manifestar357 Explica Paolo Fornaciari que a raiz de Sefirot

proveacutem do vocaacutebulo SFR que reconduz a uma aacuterea semacircntica que pode abranger trecircs

significados ldquoesferasrdquo ldquocifrasrdquo ou ldquosafirasrdquo Cada um desses termos remete agrave ideia

respectivamente de perfeiccedilatildeo geomeacutetrica-espacial de completude numeacuterica e de

beleza ou preciosidade ndash conceitos que se aplicam agraves qualificaccedilotildees atribuiacutedas agraves

Sefirot nas vaacuterias escolas358 Para Giulio Busi o termo hebraico pode ser traduzido

sucinta e literalmente por ldquonumeraccedilotildeesrdquo enquanto Tova Sender o traduz por

ldquocontagemrdquo em qualquer caso o nuacutemero eacute uma conotaccedilatildeo fundamental de seu

dinamismo359

O conceito de numeraccedilotildees estaacute diretamente relacionado ao nuacutemero dez

de acordo com o simbolismo numeacuterico que precede ao Secircfer Yetsiraacute e que

provavelmente recebeu influxos das doutrinas pitagoacutericas em razatildeo de sua relaccedilatildeo

com a estrutura profunda do ser e do cosmo360 Conforme sintetiza Scholem as

Sefirot satildeo os dez niacuteveis com que a natureza atuante de Deus se revela as dez forccedilas

elementares da Criaccedilatildeo os diversos aspectos da vida divina os estaacutegios pelos quais

essa vida passa ao se revelar na Criaccedilatildeo361 Na linguagem lacocircnica do Livro da

Formaccedilatildeo

ldquoDez Sefirot sem determinaccedilatildeo dez e natildeo nove dez e natildeo onze

[] a sua medida eacute dez que natildeo tecircm fimrdquo362

356 O texto integral do Secircfer Yetsiraacute pode ser visto nas seguintes obras Aryeh KAPLAN Secircfer Yetsiraacute- O Livro

da Criaccedilatildeo 2005 GRUENWALD A preliminary critical edition of the Sefer Yezirah in Israel oriental Studies 1 1971 pp132-177 A versatildeo curta do texto original em portuguecircs pode ser vista no apecircndice da obra de MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014

357 SENDER 1992 p45 BUSI La Qabbalah 2011 p14 Observa Crofton BLACK que tal concepccedilatildeo das Sefirot foi frequentemente considerada hereacutetica entre alguns meios rabiacutenicos por parecer contradizer o estrito monoteiacutesmo do Judaiacutesmo (2006 p 140)

358 FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 359 BUSI opcit p 47 SENDER opcit p28 KAPLAN contudo infere que natildeo eacute certo traduzir sefirot por

ldquonuacutemerosrdquo termo para o qual o hebraico tem uma palavra proacutepria (mispaacuter) seu significado aproxima-se mais de ldquocontardquo que remete ao conceito de nuacutemeros mas natildeo apenas (2005 p54) Flavio Mitridate em suas traduccedilotildees para o latim usava o termo numerationes

360 Gershom Scholem menciona a relaccedilatildeo com o Pitagorismo sem elucidar no entanto ndash ao menos nessa obra ndash se tal informaccedilatildeo eacute uma inferecircncia proacutepria ou se procede de fontes hebraicas (SCHOLEM Nome de Deus e Teoria da Linguagem 1999 p79) A pesquisa cabaliacutestica recolheu atraveacutes dos seacuteculos vasto material literaacuterio tanto para demonstrar o caraacuteter sagrado do dez quanto para encontrar nos antigos textos religiosos e na simbologia dos ritos a confirmaccedilatildeo de que esse nuacutemero fosse por si uma chave para o conhecimento Tudo aquilo que eacute numeraacutevel em dez representa na Cabala uma metaacutefora do mundo sefiroacutetico ndash os dedos das matildeos as enunciaccedilotildees de Deus no iniacutecio do Gecircnesis as dez esferas celestes da filosofia antiga (BUSI opcit pp 14-15)

361 SCHOLEM opcit p79 362 Secircfer Yetsiraacute I 4 5 (trad KAPLAN 2005 p283)

123

As dez Sefirot surgem ou satildeo criadas (o verbo natildeo estaacute estabelecido) a partir do

nada concepccedilatildeo repetida vaacuterias vezes no Capiacutetulo 1 do Secircfer Yetsiraacute ldquodez Sefirot do

nadardquo363 O texto trata outrossim ndash e conforme prometido em seu tiacutetulo ldquoyetsiraacuterdquo ndash

da formaccedilatildeo do universo (e natildeo criaccedilatildeo pois que o material para formar era

preexistente) por meio das vinte e duas letras do alfabeto hebraico que associadas agrave

deacutecada cabaliacutestica totalizam trinta e dois caminhos364 A combinaccedilatildeo das 22

consoantes hebraicas entre si por sua vez perfaz a totalidade de 231 resultados

possiacuteveis que representam 231 portotildees de saiacuteda do poder criador atraveacutes dos quais

ldquoo inexistente foi transformado em existenterdquo365 Agraves letras enquanto ldquofundaccedilatildeordquo do

universo satildeo dedicados quatro dos seis capiacutetulos da obra nos quais com linguagem

enigmaacutetica satildeo tratados seus significados e suas relaccedilotildees com os trecircs reinos da

criaccedilatildeo366

ldquoVinte e duas letras grava entalha pesa permuta transforma

e com elas descreve a alma de tudo o que foi formado e seraacute

formado no futurordquo367

Na maior parte das interpretaccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute como informa Moshe Idel

o surgimento do sistema das Sefirot eacute descrito em termos de emanaccedilatildeo Atzilut ou de

expansatildeo Hitpaschetut ambos os processos cumprindo certa forma de cadeia

Schalschelet que relaciona o reino mais alto divino aos mundos mais baixos

produzidos pelas Sefirot368 Observe-se que Idel usa a palavra ldquoproduzirrdquo mundos em

concordacircncia com a passagem ldquotudo o que foi formado e que seraacute formadordquo do Secircfer

Yetsiraacute (II1) Eacute possiacutevel inferir que a ideia de emanaccedilatildeo decorra da percepccedilatildeo do

incessante dinamismo contido na conotaccedilatildeo numeacuterica atraveacutes desse movimento o

fluxo divino percorre o cosmo Dentro desse sistema cada sefiraacute corresponde a um

grau provisoacuterio (porque o fluxo natildeo eacute extaacutetico) de agregaccedilatildeo da energia divina

inserido em um contiacutenuo dinamismo de descese e ascese369 Sua mais

importante designaccedilatildeo eacute assumida no Zohar no qual cada grau de emanaccedilatildeo passa a

ser relacionado a um atributo divino recebendo nomes especiacuteficos em parte

retirados do primeiro livro das Crocircnicas370 Assim embora haja variaccedilotildees semacircnticas

363 Secircfer Yetsiraacute I 2 3 4 5 6 7 8 9 (ibid pp 283-284) 364 Secircfer Yetsiraacute I1 ldquoCom 32 maravilhosos caminhos de Sabedoria grava Yah o Senhor dos Exeacutercitosrdquo (opcit

p 283) A menccedilatildeo ao termo ldquocaminhordquo natildeo eacute aleatoacuteria mas real indicaccedilatildeo de 32 sendas miacutesticas dentro de um processo iniciaacutetico A deacutecima esfera a mais nobre e primeira em posiccedilatildeo eacute onde circulam as 22 letras (MAGHIDMAN 2014 p124)

365 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 366 Cada uma das vinte e duas letras tem seu proacuteprio significado co-essencial com atribuiccedilotildees que satildeo

transmitidas agraves coisas por meio delas formadas (SENDER opcit p30) 367 Secircfer Yetsiraacute II 1 (opcit p285) 368 IDEL 2008-a p21 No iniacutecio do seacuteculo XIV na literatura de inspiraccedilatildeo zohaacuterica ndash em modo particular no

Tiqqune ha-zohar (Os Ornamentos do Esplendor) e no Masseket atzilut (Tratado sobre a Emanaccedilatildeo) ndash o processo de emanaccedilatildeo comeccedila a ser distinguido em suas sucessivas fases denotando a distacircncia que separa o mundo superno da inferior realidade material (BUSI 2011 p 19)

369 BUSI opcit pp14 47 IDEL afirma que o caraacuteter dinacircmico das Sefirot constitui uma das principais caracteriacutesticas da Cabala (2008b p515) SCHOLEM trata do caraacuteter gnoacutestico das Sefirot em sua obra Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960

370 O trecho no qual Davi bendiz Deus elencando seus atributos diz ldquotua eacute Senhor a magnificecircncia e o poder e a gloacuteria e o esplendor e a majestaderdquo (Crocircnicas 1 2911) Esses cinco atributos datildeo nomes a cinco das dez Sefirot Cf FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 SENDER opcit pp 28 45

124

e de traduccedilatildeo os termos e significados mais utilizados para distinguir cada sefiraacute satildeo

Keter (Coroa) Hokhmaacute (Sabedoria) Binaacute (Inteligecircncia ou Compreensatildeo) Hesed

(Amor ou Grandeza) Guevuraacute (Bravura ou Potecircncia) Tiferet (Beleza) Netsah

(Eternidade ou Vitoacuteria) Hod (Magnificecircncia) Yesod (Fundamento) Malkut

(Reino)371 Assim cada uma das esferas corresponde a uma forma especiacutefica de

manifestaccedilatildeo de Deus uma middah ou atribuiccedilatildeo divina que pode ser ainda

identificada com um de Seus dez nomes sagrados Sob tal luz compreende-se a

conclusio cabaliacutestica 36 ldquoDeus endossou dez vestimentas quando criou o mundordquo372

Apesar de diferenciadas em suas caracteriacutesticas as dez Sefirot constituem uma

unidade como dez matizes da mesma luz

Em termos de ordenaccedilatildeo a estrutura sefiroacutetica tem sido contemplada com

diversos tipos de representaccedilotildees como por exemplo em forma de esferas dispostas

sobre a circunferecircncia de um ciacuterculo ou de letras hebraicas encerradas uma dentro da

outra mas a imagem que se tornou mais conhecida ndash divulgada na ediccedilatildeo do Pardes

Rimmonim (O jardim das romatildes) de Cordovero no lsquo500 ndash eacute a chamada aacutervore

sefiroacutetica na qual ao longo de trecircs eixos principais e paralelos estatildeo dispostos os

ciacuterculos que simbolizam as Sefirot ligados por canais transversais que sinalizam os

reciacuteprocos influxos373 Segundo a tradiccedilatildeo cabaliacutestica a descida das forccedilas celestes

adveacutem ao longo do lado da direita atraveacutes de hokhmaacute hesed e netsah enquanto a

ascensatildeo percorre o lado esquerdo atraveacutes de binaacute guevuraacute e hod O eixo central

sobre o qual se alinham keter tiferet yesod e malkut eacute conotado pela ideia de

presenccedila e completude do divino374 Os traccedilos de ligaccedilatildeo entre as Sefirot em nuacutemero

de vinte e dois ndash e em perfeita simetria geomeacutetrica com o total de letras do alfabeto

hebraico ndash constituem as vias atraveacutes das quais a luz infinita e a forccedila criadora se

propagam A metaacutefora da propagaccedilatildeo da luz eacute tatildeo utilizada quanto a do

derramamento de aacuteguas em uma de suas representaccedilotildees tem-se a imagem de

recipientes que recebem os fluiacutedos e que depois de cheios derramam o excesso para

os recipientes inferiores sucessivamente Outro ponto importante para a

compreensatildeo do conceito de emanaccedilotildees eacute que em qualquer representaccedilatildeo cada

sefiraacute eacute considerada passiva em relaccedilatildeo agravequela que a precede e ativa em relaccedilatildeo agraveque-

la que a sucede375 Para melhor compreensatildeo desta ideia as Sefirot podem ser

representadas por trecircs triacircngulos sendo um superior ascendente e dois inferiores

descendentes O triacircngulo ascendente tambeacutem chamado espiritual recebe luz e forccedila

do Alto e corresponde ao Mundo da Emanaccedilatildeo Os triacircngulos descendentes

371 Veja-se BUSI 2011 p16 FORNACIARI 2009 p 19 np35 CROFTON pp140-141 A sequecircncia das Sefirot

mais aceita eacute aquela que foi estabelecida na escola de Isaac o Cego em Narbonne no seacuteculo XIII Acresce FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) que cada sefiraacute a uma forma de manifestaccedilatildeo ou a uma inteligecircncia angeacutelica Os cabalistas encontram uma seacuterie de correspondecircncias entre as Sefirot e cada niacutevel da realidade como os astros os oacutergatildeos vitais os personagens biacuteblicos (Abraatildeo seria Hesed ou Guedulaacute) as manifestaccedilotildees da natureza etc Como explica BUSI (opcit p16) a referecircncia ao sol a Jacoacute ou agrave noccedilatildeo abstrata de beleza correspondentes a uma mesma sefiraacute natildeo significa que esses elementos tenham equivalecircncia mas sim que estatildeo ligados por uma harmonia que institui um nexo iacutentimo e um grau comum entre eles

372 PICO Concl (II) XI 36 p134 ldquo[] deus induit se decem uestimentis quando creauit saeculumrdquo 373 Veja-se representaccedilatildeo da aacutervore sefiroacutetica em IDEL 2008a p21 MAGHIDMAN 2014 p175 374 BUSI opcit pp15-17 375 SENDER opcit pp 46 ss

125

respectivamente o intelectual e o formativo absorvem as influecircncias superiores as

transfazem e conduzem em direccedilatildeo aos mundos fiacutesicos376

O Ein Sof

Acima da concepccedilatildeo das Sefirot a doutrina cabaliacutestica concebe a enigmaacutetica

existecircncia de outros trecircs niacuteveis supra espaccedilo-temporais O mais distante e

incompreensiacutevel dentre os trecircs encerra-se na ideia de Ain que se traduz como ldquonadardquo

O Ain natildeo representa a negaccedilatildeo da existecircncia mas a afirmaccedilatildeo de que ldquonenhum

termo do vocabulaacuterio humano poderaacute definir tal abstraccedilatildeordquo como define Tova

Sender Essa ideia exclui qualquer relaccedilatildeo com os mundos pertencentes ao tempo e

ao espaccedilo O Ain natildeo existe e natildeo estaacute eacute o ldquoImanifestordquo ou a ldquoExistecircncia Negativardquo377

Em seguida haacute o Ein Sof literalmente ldquosem fimrdquo ou ldquoinfinitordquo uma concepccedilatildeo

levemente mais definida que o Ain Difere do primeiro na medida em que pressupotildee

uma participaccedilatildeo no tempo e espaccedilo em razatildeo da inclusatildeo do termo ldquosofrdquo (ldquofimrdquo)

Permanece como no princiacutepio anterior a ideia de existecircncia negativa O Ein Sof Or

(ldquoluz infinitardquo) terceiro conceito aproxima-se da apreensatildeo humana em razatildeo da

presenccedila do termo ldquoorrdquo (ldquoluzrdquo) Contudo o Ein Sof Or manteacutem-se incompreensiacutevel e

constitui o terceiro veacuteu de existecircncia negativa378 Diferentemente das Sefirot que

podem ser conhecidas atraveacutes do estudo e da contemplaccedilatildeo a teologia hebraica

negativa postula que a verdadeira essecircncia de Deus nunca seraacute conhecida Assim na

maior parte das obras cabaliacutesticas a manifestaccedilatildeo de Deus no cosmo eacute concebida

somente a partir da emanaccedilatildeo que parte do Ein Sof Or fazendo com que Aquele se

revele ldquono emanado estaacute a forccedila do Emanador mas Este natildeo sofre diminuiccedilatildeo

algumardquo379 O sistema cabaliacutestico contempla ainda uma quarta concepccedilatildeo que seria

a unidade absoluta sintetizada no Tetragrama YHWH ndash ou ldquonome sagrado de Deus

de quatro letrasrdquo380

Na emanaccedilatildeo ocorre um processo de distinccedilatildeo atraveacutes do qual os seres satildeo

formados por separaccedilatildeo da unidade absoluta De acordo com Giulio Busi o problema

da passagem do Ein Sof ao domiacutenio da emanaccedilatildeo representou um dos pontos mais

tormentosos da especulaccedilatildeo cabalista381 Especialmente na Cabala do lsquo500 difundiu-

se a reflexatildeo sobre o aspecto secreto do desencadeamento da emanaccedilatildeo passando a

376 SENDER ibid p50 377 No sentido descendente a Aacutervore da Vida constitui o trajeto atraveacutes do qual o poder criador atuou no ato da

Criaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo do AIN (ldquoNadardquo) em ANI (ldquoEurdquo) quando o Imanifesto torna-se Manifesto Note-se que AIN e ANI contecircm as mesmas letras e a permutaccedilatildeo entre elas segundo o meacutetodo cabalistico temuraacute ocorreu simultaneamente ao processo de involuccedilatildeo do poder criador (SENDER opcit p50)

378 SENDER opcit p46 Haacute registros de que o recurso agrave teologia negativa que opera com a impossibilidade de qualificar a iacutentima natureza do divino estava presente no iniacutecio do seacuteculo XIII nos ciacuterculos de Isaac o Cego (BUSI opcit p18)

379 A passagem eacute dos Sifre ha-lsquoiyyun (Livros da Contemplaccedilatildeo) redigidos na metade do seacuteculo XIII lecirc-se ainda ldquoEle eacute unido agraves suas forccedilas como a chama eacute unida agraves suas coresrdquo (cf Verman The Books of Contemplation Medieval Jewish Mystical Sources Albany 1992 apud BUSI opcit p18)

380 Paolo FORNACIARI (2009 p19) como outros autores pesquisados trata de forma bastante restrita o conceito de Tetragrama que tambeacutem eacute transliterado como IHVH Em outra qualificaccedilatildeo obscura informa SCHOLEM que o conjunto do universo estaacute selado em todos os seus seis lados com as seis permutaccedilotildees do nome IHVH e que todas as coisas existem por combinaccedilotildees dessas letras como assinaturas (1988 p201)

381 BUSI opcit p 20

126

ser bem aceita a concepccedilatildeo de que o impulso agrave manifestaccedilatildeo se deu como um

movimento espontacircneo da vontade divina expresso na ideia de expansatildeo Para que

tal manifestaccedilatildeo no cosmo fosse possiacutevel os cabalistas anuiacuteram que o Ein Sof tivesse

tido que se auto-limitar restringindo-se dentro do domiacutenio da compreensibilidade382

Tal ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina denominada Sekinah jaacute se encontrava

presente na literatura midraacuteshica e foi retomada no decorrer do seacuteculo XIII383 Mais

adiante no seacuteculo XVI Moshe Cordovero exprimiria o conceito de contraccedilatildeo divina

com um esclarecedor aforisma segundo o qual ldquoa emanaccedilatildeo eacute o espaccedilo de Sua

presenccedila no qual Ele se contraiurdquo de forma que ldquoSua grandeza mesmo que parcial

pudesse ser intuiacutedardquo Continuando dizia o cabalista que ldquoa razatildeo da emanaccedilatildeo eacute

dupla de uma parte Deus quis ocultar-se ateacute que as criaturas tivessem um limite de

outra parte Ele quis revelar-se para que as criaturas pudessem aferrar a Sua

grandezardquo384 As sentenccedilas confirmam conceitualmente o duplo movimento

presente na origem da Criaccedilatildeo o de ocultaccedilatildeo e o de manifestaccedilatildeo Ademais as

palavras de Cordovero que refletem uma posiccedilatildeo doutrinaacuteria aceita no Cabalismo

sustentam que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta

necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelos

seres finitos Sob esse prisma na concepccedilatildeo basilar de emanaccedilatildeo divina estaria

imbuiacuteda a ideia de uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade ou de sua parcial

ocultaccedilatildeo Acerca do tema e especificamente de sua atuaccedilatildeo sobre o universo fiacutesico

escreveu de forma elucidativa o mestre de Pico Alemanno

O poder [divino] se estende e emana sobre todas as criaturas em

geral ainda que elas difiram no tocante agraves suas capacidades

receptivas assim os vegetais e os animais satildeo mais receptivos

ao efluxo divino do que os minerais O ser humano tem a maior

receptividade de todos [Mas] tambeacutem na espeacutecie humana os

homens possuem distintos graus de receptividade385

A passagem conquanto se refira agraves diversas formas de recepccedilatildeo das

emanaccedilotildees no universo fiacutesico confirma a atuaccedilatildeo da divindade sobre os mundos

inferiores atraveacutes de seus canais as Sefirot Outra caracteriacutestica integrante do

movimento emanente estaacute em seu retorno A presenccedila de um fluxo descendente e

outro ascendente estaacute clara nesta outra passagem de Alemanno ldquoEle recebe todos os

canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe

aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees

382 Perceba-se que ao limitar-se em contraccedilatildeo ocorre uma queda de potecircncia Em cada subsequente estaacutegio ou

desniacutevel daacute-se uma consequente diminuiccedilatildeo da magnitude de poder da emanaccedilatildeo Essa concepccedilatildeo por si soacute pode propiciar algumas especulaccedilotildees teoloacutegicas

383 A contraccedilatildeo eacute definida em hebraico como simsum procedente da raiz simsem (BUSI 2011 p 20) A concepccedilatildeo da contraccedilatildeo divina sofre algumas variaccedilotildees ao longo do tempo Nachmacircnides trata do tema que tambeacutem consta do Midrash haacute-nersquoelam (O midrash escondido)

384 CORDOVERO Pardes Rimmonim A obra de Cordovero surgida pela primeira vez em Cracoacutevia em 1591 natildeo dispotildee atualmente de ediccedilatildeo comentada BUSI informa em sua bibliografia algumas traduccedilotildees da obra (2011 pp20-21 138)

385 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 105v Quanto aos graus de receptividade do homem a recepccedilatildeo de cada sefiraacute depende da estrutura do intelecto humano que pode participar do conhecimento apenas de forma gradual Sobre o tema veja-se BUSI 2011 p14

127

que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo386 Haacute pois um

retorno ldquoa Elerdquo um movimento contraacuterio e necessaacuterio para o equiliacutebrio universal O

fluxo de ascese e descese passando atraveacutes da aacutervore sefiroacutetica permite que os

estamentos universais se estabeleccedilam

As conceituaccedilotildees referentes ao processo de emanaccedilatildeo a partir do Ein Sof

especialmente as escritas por Alemanno certamente natildeo deixariam de ser notadas

por Pico Em pelo menos duas conclusiones o tema eacute abordado diretamente Na tese

oacuterfica 15 eacute estabelecida uma correspondecircncia ldquosatildeo a mesma coisa a Noite em Orfeu e

o Ein Sof na Cabalardquo387 Para estabelecer tal analogia Pico estaria acolhendo em

ambas as designaccedilotildees a representaccedilatildeo da existecircncia informe ou da ausecircncia de

forma e distinccedilatildeo O tema eacute retomado na tese cabaliacutestica 31 secundum opinionem

propriam ldquoQuando os cabalistas colocam com o termo Tesuvah a ausecircncia de

forma esta deve ser entendida como estado antecedente agrave formardquo388 A concepccedilatildeo de

uma contraccedilatildeo divina tambeacutem natildeo deixaria de ser mencionada

Se concebermos Deus como infinito e uno e segundo si mesmo

de modo a compreender que drsquoEle nada procede sendo apenas

distanciamento das coisas total fechamento de si em si mesmo

e extremo profundo e solitaacuterio contrair-se no recesso mais

remoto da proacutepria divindade ndash entatildeo teremos uma intuiccedilatildeo

drsquoEle que se cobre no abismo de sua profundidade389

3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade390

O vasto conjunto de materiais que foi sendo formado ao longo de seacuteculos

abrigando doutrinas que ora se complementavam ora natildeo dificilmente poderia

formar uma teoria unificada Assim que os milhares391 de textos e manuscritos

encontrados sob o leque do Cabalismo foram adquirindo tonalidades diferenciadas

que levaram agrave disposiccedilatildeo de alguns corpora com denominaccedilotildees distintas Embora

para Gershom Scholem toda a miacutestica judaica seja fundamentalmente uma teosofia ndash

386 ALEMANNO Einei haEdaacute (Os Olhos da Congregaccedilatildeo) Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51r-v 387 Concl (II) X 15 p122 ldquoIdem est Nox apud Orpheum et Ensoph in Cabalardquo 388 Concl (II) XI 31 p132 ldquoCum audis cabalistas ponere in lsquoThesuarsquo informitatem intellige informitatem per

antecedentiam ad formalitatem non per priuationemrdquo 389 PICO Concl (II) XI 35 p132 ldquoSi deus in se ut infinitum ut unum et secundum se intelligatur ut sic nihil

intelligimus ab eo procedere sed separationem a rebus et omnimodam sui in seipso clausionem et extremam in remotissimo suae diuinitatis recessu profundam ac solitariam retractionem de eo intelligimus ipso penitissime in abysso suarum tenebrarum se contegente et nullo modo in dilatatione ac profusione suarum bonitatum ac fontani splendoris se manifestanterdquo Pontua FARMER (op cit p535) que Pico distingue nessa tese a natureza transcendente de Deus (Ein-Sof) de sua natureza manifesta (as Sefirot)

390 O termo ldquodivindaderdquo pode ser atribuiacutedo a uma miriacuteade de possibilidades dentro de uma estrutura hieraacuterquica de acordo com o modelo de Cabala e com a intenccedilatildeo do operador O conceito pode ser empregado para caracterizar desde entidades mais terrenas dentro de uma visatildeo que se aproxima ao paganismo como para designar o grau maacuteximo da Unidade Absoluta

391 Embora a quantidade possa parecer exagerada o nuacutemero de manuscritos espalhados atualmente entre vaacuterias bibliotecas do mundo eacute efetivamente avultoso como confirmam as obras dos especialistas Scholem e Idel

128

jaacute que trata da imersatildeo nos misteacuterios do mundo divino e de suas relaccedilotildees com o

mundo da Criaccedilatildeo ndash392 o proacuteprio reconhece algumas divisotildees temaacuteticas existentes na

Cabala dentre as quais duas principais a chamada Cabala Praacutetica Qabalaacute Maassit

e a chamada Cabala Especulativa Qabalaacute Iiunit393 Em suas Conclusiones

Cabalisticae Giovanni Pico mostrava ter conhecimento dessas duas divisotildees

testemunhando que a distinccedilatildeo jaacute era bem aceita pelos cabalistas da eacutepoca394 A

Cabala Especulativa tomou outra subdivisatildeo a saber o modelo teuacutergico-teosoacutefico

mais difundido e considerado mais importante e o modelo extaacutetico-meditativo

tambeacutem chamado profeacutetico Essas se tornaram as trecircs principais distinccedilotildees aceitas

pelos atuais comentaristas cabaliacutesticos representando sucintamente trecircs formas de

se relacionar com a Cabala a praacutetica em alguns casos chamada ldquomaacutegicardquo a teuacutergica e

a extaacutetica395 A elucidaccedilatildeo de tais modelos seraacute uacutetil para a compreensatildeo de seus

propoacutesitos e consequentemente de seu uso na obra piquiana

A Cabala Praacutetica

Difundida especialmente a partir da escola askenazita florescida no seacuteculo XII

e responsaacutevel por levar o misticismo judaico a uma fase de transiccedilatildeo396 a Cabala

Praacutetica lida com formas ritualiacutesticas que poderiam ser organizadas ao longo de uma

reacutegua de graduaccedilotildees Tambeacutem chamada ldquomaacutegico-talismacircnicardquo contempla um

conjunto de procedimentos voltados agrave obtenccedilatildeo de determinados benefiacutecios que se

distribuem em graus variaacuteveis de densidade material relacionados agrave utilizaccedilatildeo de

praacuteticas maacutegicas Nesse sentido a magia deve ser entendida como elemento que faz

parte do saber miacutestico judaico apresentando-se sob uma profusatildeo de formas

presentes desde o final da Antiguidade397 Com o passar do tempo ocorreu a

despotencializaccedilatildeo da Cabala maacutegica em virtude da crescente manipulaccedilatildeo de

elementos externos para a obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais eou pessoais levando a

Cabala Praacutetica a aproximar-se do paganismo398 Efetivamente vaacuterias narrativas

recolhidas nos Talmudim e Midrashim de eacutepoca tardo-antiga descrevem foacutermulas

392 SCHOLEM 1999 pp 64-65 Malgrado qualquer definiccedilatildeo que o termo ldquoteosofiardquo possa ter tomado apoacutes o

seacuteculo XVIII cabe ressaltar que o uso empregado pelos comentadores ao tratar das concepccedilotildees presentes na Cabala relaciona-se agrave forma como o mesmo era utilizado pelos neoplatocircnicos para indicar o conhecimento das coisas divinas proveniente da inspiraccedilatildeo direta de Deus Nesse sentido veja-se por exemplo Proclo (Theologia Platonica V 35) e Porfiacuterio (De abstinentia ab esu animalium IV 17)

393 SCHOLEM 1989 p5 Foi a escola espanhola a produzir a primeira literatura apontando para uma dicotomia entre Cabala praacutetica e especulativa Essa distinccedilatildeo pode ter relaccedilatildeo com a divisatildeo formulada por Maimocircnides entre filosofia especulativa e filosofia praacutetica em seu tratado sobre loacutegica Milot ha-Higaion (IDEL 2008-a p32)

394 PICO Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum hebraeorum 1 ldquoIndependentemente do que digam todos os outros cabalistas eu distinguirei o conhecimento da Cabala na Ciecircncia da Numeraccedilatildeo ou Sephirot e na Ciecircncia de Semot ou Nomes em relaccedilatildeo agrave ciecircncia praacutetica e especulativardquo Pico toma emprestada tal distinccedilatildeo do cabalista Abraham Abulafia (cf IDEL Lrsquoesperienza mistica di Abraham Abulafia Milano 1992 p46 apud FORNACIARI 2009 np35)

395 IDEL 2008a p19 veja-se o inteiro artigo para detalhes acerca dos modelos de Cabala 396 Leia-se mais em BUSI opcit p49 397 Algumas partes desse tipo de conhecimento sobreviveram e encontram-se em textos hebraicos e aramaicos

como informa IDEL (2008-a pp32-33) 398 IDEL 2008a p38 Na paacutegina 37 da mesma obra Idel cita um trecho do Pardes Rimonim obra claacutessica da

literatura de Safed de Cordovero em que se encontra descrita a forma de utilizaccedilatildeo das cores para atrair as forccedilas sefiroacuteticas

129

maacutegicas e extraordinaacuterios poderes de antigos mestres confirmados por achados

arqueoloacutegicos que provam sua difusatildeo durante a diaacutespora do Oriente Proacuteximo399

Na Idade Meacutedia sob o impacto de concepccedilotildees filosoacuteficas reinantes entre os

aacuterabes surgiram elaboraccedilotildees que se sustentavam sobre a ideia que canalizando a

fonte espiritual que governa o mundo o operador poderia manipular os

acontecimentos do mundo sublunar Por conseguinte desenvolveu-se na magia

medieval aacuterabe e judaica o conceito de atraccedilatildeo das forccedilas dos corpos celestiais Tais

forccedilas denominadas Pneumata Ruhaniyyat ou Ruhaniot ndash respectivamente em

grego aacuterabe e hebraico ndash poderiam ser atraiacutedas e capturadas por meio de tipos

especiais de objetos e rituais cujas naturezas deveriam estar em concordacircncia com as

feiccedilotildees dos correspondentes corpos celestiais400 Entre as maneiras de atrair os vaacuterios

gecircneros de forccedilas existentes a linguagem mostrava-se a principal forma utilizada

sendo um procedimento que de acordo com o modelo de Cabala poderia ser

empregado em oitavas diferenciadas401

Os resultados dos chamados ldquoencantamentosrdquo passam a se difundir nos

ciacuterculos cabaliacutesticos sobretudo a partir do seacuteculo XII eacutepoca de difusatildeo da obra de

magia Secircfer Raziel (O Livro de Raziel) inclusive entre os cristatildeos402 Para muitos

sua autoria deveria ser atribuiacuteda a Eleazar de Worms que teria escrito tambeacutem um

comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute onde se leem algumas instruccedilotildees para a feitura de um

ser vivo intitulado Golem403 Ainda antes de difundir-se nos ciacuterculos renanos essa

intrigante concepccedilatildeo era conhecida entre os judeus da Itaacutelia meridional mesmo em

ambientes culturalmente elevados na obra Megillat Ahimarsquoas redigida na Puglia do

seacuteculo XI narra-se a criaccedilatildeo de um golem a partir da potecircncia do Tetragrama404

Contudo a maior absorccedilatildeo da literatura referente ao golem se daacute no Quattrocento

italiano certamente natildeo passaria despercebida aos ilustrados do Renascimento a

399 BUSI 2011 p27 Muitos dos achados arqueoloacutegicos traziam amuletos com nomes angeacutelicos frequentemente

agrupados em longas sequecircncias para reforccedilar seu valor apotropaico Maiores detalhes sobre a Cabala Praacutetica podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas por BUSI PATAI R Alchimisti ebrei-Storia e fonti trad S Bondoni Genova 1997 SEacuteD N Lrsquoalchimie e la Science sacreeacute des lettres Notes sur lrsquoalchimie juive agrave propos de lrsquo ldquoEgravesh mesarephrdquo in Alchimie Art Histoire et mythes Paris-Milan 1995 pp547-649

400 Maimocircnides embora natildeo simpatizante dessa espeacutecie de atividade foi quem melhor descreveu as formas de atraccedilatildeo de forccedilas para objetivos praacuteticos nas passagens em que trata sobre idolatria (IDEL 2008-a p34)

401 O uso da Cabala Praacutetica natildeo se restringe agrave obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais ou egoiacutesticos como poderia ser entendido Como conta Tova SENDER (opcit p82) o poder da linguagem relacionado agrave leitura dos Salmos para citar um exemplo constitui um recurso utilizado por comunidades judaicas em tempos de perigo natildeo apenas na Antiguidade como nos dias atuais

402 SENDER opcit p79 O Secircfer Raziel eacute um manual contendo instruccedilotildees para a confecccedilatildeo de amuletos Veja-se o amplo material coletado por Franccedilois SECRET Sur quelques traductions du Sefer Raziel in Revue des Eacutetudes Juives 128 1969 pp223-245

403 Considera-se que a recitaccedilatildeo correta dos versos do Secircfer Yetsiraacute tem a forccedila para produzir uma criatura e dotaacute-la de vitalidade hiut e alma neschamaacute Como no idioma hebraico eacute possiacutevel natildeo definir o tempo verbal em razatildeo de sua ausecircncia de vogais as sentenccedilas presentes naquela obra podem ser lidas como ldquoEle combinou Ele formourdquo ou de forma imperativa ldquoCombine Formerdquo (cf MAGHIDMAN 2014 p109) Acerca da criaccedilatildeo real de um ser animado conta-se que no seacuteculo XVI em Praga notabilizou-se o rabino Loumlew por criar um golem partindo do barro e utilizando o Livro da Criaccedilatildeo Sobre o tema a composiccedilatildeo intitulada Sod Peulat haYetsiraacute (O Segredo da Operaccedilatildeo da Criaccedilatildeo) eacute um dos textos que descreve a criaccedilatildeo de um golem (cf IDEL As obras e a doutrina de Abratildeo Abulafia opcit 1976 p131) Tambeacutem de IDEL Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid 1990 pp 54-80 96-118 127-163 Veja-se ainda SCHOLEM e seu capiacutetulo ldquoA ideia do Golemrdquo (A Cabala e seu Simbolismo 1978) BUSI e suas sugestotildees bibliograacuteficas acerca do tema (2011) SENDER (1992 p80)

404 BUSI idem

130

possibilidade de confeccionar um ser animado De fato como conta Franco Bacchelli

ldquonaqueles anos entre aqueles homens [do final do lsquo400] encontrava-se vivo natildeo

apenas o velho problema da possibilidade da geraccedilatildeo espontacircnea de animais

superiores mas tambeacutem a questatildeo da possibilidade de conferir vida para vaacuterios fins

operativos e sapienciais a mateacuterias inanimadasrdquo405 Satildeo justamente desse periacuteodo

as discussotildees ficinianas sobre as estaacutetuas que poderiam capturar daimons ou sobre a

geraccedilatildeo de ldquointelectosrdquo profeacuteticos estabelecidos por Lazzarelli a partir das receitas

para se confeccionar um golem406

O interesse pela magia eacute um elemento que compotildee a cena do seacuteculo XV como

visto no Capiacutetulo I e que mereceu destaque em obras piquianas como as

Conclusiones a Oratio e a Apologia O conhecimento de formas da magia hebraica

abriria espaccedilo para discussotildees mais profundas de teor eacutetico que envolveriam Pico

Alemanno e pronunciadas distinccedilotildees entre formas da Cabala consideradas puras e

impuras relacionadas aos lados ldquodireito e esquerdordquo407 A conceituaccedilatildeo do ldquolado

esquerdordquo tem suas origens ligadas muito provavelmente agrave ideia de sitra ahara

(ldquooutro ladordquo) expressa no Zohar Um manuscrito do seacuteculo XVI de autor anocircnimo

adverte para a necessidade de se preservar tais ensinamentos informando que ldquoa

Cabala praacutetica consiste em conjuraccedilotildees de anjos um saber que deve ser escondido

por causa daquelas pessoas que satildeo mestres da praacutexis [anschei baalei maaseacute]rdquo408

Alemanno demonstrara interesse pelo aspecto operativo da Cabala ainda antes

de conhecer seu disciacutepulo embora reconhecendo sua posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo agraves

formas mais elevadas de especulaccedilatildeo cabaliacutestica Pico por sua vez sabia que eram

proibidas as praacuteticas que empregavam nomes divinos para encantar democircnios

deixando claro em sua Tese maacutegica nr 26 que apenas a Cabala ldquopura e imediatardquo

poderia mover algo ldquoque nenhuma magia alcanccedilardquo409 Alemanno ndash e mais tarde

Cordovero que acolheria o influxo de seus procedimentos em Safed ndash tinha ciecircncia

da similaridade entre o tipo de Cabala que estava propondo e as praacuteticas maacutegicas

pagatildes ndash e natildeo pretendia quebrar a ordem natural recorrendo a forccedilas demoniacuteacas que

poderiam destruir tal ordem Ao contraacuterio propunha um tipo de atividade que

complementasse o curso natural das coisas adicionando uma dimensatildeo da praacutexis

baseada em leis jaacute existentes Para um cabalista como Alemanno que utilizava a

405 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione

cabaliacutestica 2001 p 62 406 BACCHELLI ibid p76 Na mesma obra em nota agrave p 82 o autor aborda a maneira como Lazzarelli em sua

obra Crater Hermetis absorveu a doutrina da criaccedilatildeo do Golem e a forma de utilizaccedilatildeo dos nomes divinos 407 Assim escreveria o Rabi Elias Menakhem Halfan mais tarde em uma epiacutestola do seacuteculo XVI ldquoa ciecircncia da

Cabala dividiu-se no iniacutecio em duas partes chamadas de lado direito e lado esquerdo O lado direito eacute todo pureza e santidade nomes divinos e angelicais e questotildees sagradas O lado esquerdo eacute todo [] democircnios e cascas do lado impurordquo (Manuscrito JTS 1822 f 153v)

408 IDEL 2008-a p32-33 O manuscrito em questatildeo originou-se na escola cabalista espanhola cuja tendecircncia agrave magia foi visiacutevel no seacuteculo XV Ao contraacuterio da magia naturalis aceita por Ficino Pico e Alemanno seus contemporacircneos espanhoacuteis cultivavam um tipo de magia diversa que lidava com conjuraccedilotildees de anjos e democircnios para uma variedade de desiacutegnios inclusive o escatoloacutegico Haacute relatos de que alguns cabalistas da Espanha cultivaram uma forma demoniacuteaca e violenta de Cabala maacutegica destinada a destruir a ordem histoacuterica e religiosa predominante que significava entre outras coisas tambeacutem o Cristianismo (IDEL Jewish Magic from the Renaissance to Early Hasidism in Neusner-Frerichs-McCracken (eds) New York-Oxford Oxford University Press 1989 pp 86-99)

409 PICO Concl (II) IX 26 p120 ldquo[] ita per opus Cabalae si sit pura Cabala et immediata fit aliquid ad quod nulla Magia attingitrdquo

131

magia em sua forma mais pura tal atividade era considerada sobrenatural apenas na

medida em que sua ordenaccedilatildeo se mostrava pertencente a uma ordem superior410 A

clara percepccedilatildeo da existecircncia de dimensotildees supracelestes puras e impuras bem como

de operadores cabalistas eticamente diferenciados em qualquer das formas

atribuiacuteveis agrave Cabala foi registrada pelo mestre de Pico

Qualquer homem bom ou mau que conheccedila a obra dos anjos

puros e impuros que satildeo superiores agraves estrelas pode atrair sua

fragracircncia sobre nossas cabeccedilas pois deu uma interpretaccedilatildeo

cabaliacutestica agrave Toraacute inteira Nisso estatildeo inclusos os mestres das

ciecircncias especulativas e praacuteticas das Sefirot411

A Cabala Teuacutergica

O modelo teuacutergico-teosoacutefico bastante amplo em relaccedilatildeo agrave quantidade de

material que lhe foi designado abrange de um lado o domiacutenio de especulaccedilatildeo que os

estudiosos descrevem como ldquoteosoacuteficordquo ndash pois lida com os diferentes e complexos

mapas do reino divino procurando revelar os misteacuterios da vida oculta de Deus suas

relaccedilotildees com a vida humana e as desta com a Criaccedilatildeo de outro a chamada ldquoteurgiardquo

ou a maneira atraveacutes da qual certos feitos religiosos humanos exercem impacto sobre

o referido reino412 Os teurgos entendem que o homem seja capaz de ativar o influxo

divino atraveacutes de cerimocircnias religiosas e invocaccedilotildees Um paradigma de pensamento

teuacutergico foi aquele desenvolvido por Jacircmblico baseado na eficaacutecia do rito como

ativador das forccedilas celestes Segundo o neoplatocircnico ldquograccedilas agraves forccedilas dos segredos

singulares que possui o teurgo natildeo comanda as potecircncias coacutesmicas como um

homemrdquo mas ldquocomo um ser que jaacute alcanccedilou o niacutevel dos deusesrdquo413 Esse eacute o

entendimento que se extrai das formas teuacutergicas mencionadas por Pico sobretudo

nas Conclusiones que tratam dos Hinos de Orfeu414 Sob o Cabalismo o conceito de

410 IDEL 2008-a pp 37-38 Em seu Collectanaea Alemanno elucida que o processo para a aquisiccedilatildeo de

poderes maacutegicos atraveacutes da emanaccedilatildeo das forccedilas superiores compreende dois estaacutegios em uma abordagem que parte do inferior ao superior inicialmente a pessoa receberia uma vibraccedilatildeo menos elevada do efluxo divino somente apoacutes habituar-se a ele poderia receber o efluxo adicional ldquoo espiacuterito do Deus vivordquo que caracterizaria o ldquodescenso da espiritualidaderdquo (horadat haRukhaniut) Para o autor se os atos para o descenso das forccedilas fossem feitos sob a utilizaccedilatildeo dos corretos mandamentos e ritos judaicos qualquer conduta ndash que em outra situaccedilatildeo seria irregular ndash tornar-se-ia atenuada Assim as consecuccedilotildees materiais e espirituais poderiam ser realizadas sem uma tentativa de ldquocurto-circuitarrdquo a ordem da natureza ou ldquosem forccedilar a vontade divinardquo (cf IDEL ibid p35) Note-se que em Florenccedila a ideia de descenso das forccedilas espirituais recebeu criacuteticas de Moiseacutes ben Yoav que considerava essa praacutetica idolatria em todos os aspectos Elia Del Medigo descartava completamente qualquer de suas formas Em sua obra Bekhinat haDat (O Exame da Religiatildeo) Del Medigo se opotildee agravequeles (como Alemanno provavelmente) que viam na Toraacute e nos preceitos meios para causar o descenso das forccedilas espirituais (ldquoeacute impossiacutevel que as forccedilas espirituais descendam para o mundo do modo que dizem os magos Ao examinarmos os dizeres da Toraacute vemos que ela se opotildee energicamente a tais praacuteticas idoacutelatrasrdquo) Cf IDEL 2008-b p 477 np 493

411 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Paris 849 f 7v 412 IDEL 2008a p 20 Essa forma de Cabala fez parte das discussotildees dos cabalistas espanhoacuteis encontrando no

Zohar uma forte expressatildeo florescendo posteriormente de forma mais vigorosa no ciacuterculo luriacircnico de Safed no seacuteculo XVI Para maiores detalhes acerca da notoacuteria escola desenvolvida por Isaac Luria veja-se IDEL 1998 pp 22-23

413 Apud BUSI (opcit p34) que natildeo cita a fonte de Jacircmblico 414 Veja-se por exemplo a Conclusio oacuterfica nr2 cf Cap III

132

Teurgia refere-se agrave crenccedila do cabalista em sua habilidade especiacutefica de influenciar no

processo e na condiccedilatildeo das Sefirot atribuindo ao rito uma especial forccedila operativa415

Tanto o fenocircmeno de recebimento do efluxo sefiroacutetico como a leitura dos

nomes divinos eram elementos familiares a Pico e integravam respectivamente a

ldquoCiecircncia das Sefirotrdquo e a ldquoCiecircncia Semotrdquo mencionadas nas Conclusiones416 A

conexatildeo entre esses dois aspectos eacute abordada no Takhlit heHakham obra conhecida

tanto por Pico como por Alemanno onde se lecirc ldquoAristoacuteteles disse que [] nos tempos

antigos os nomes divinos tinham uma certa capacidade para trazer a forccedila espiritual

agrave terra Agraves vezes essas forccedilas descendiam Outras vezes matavam o homem que as

utilizasserdquo417 A menccedilatildeo aos tempos de Aristoacuteteles eacute utilizada pelo autor do

manuscrito para prevenir contra o perigo envolvido nas praacuteticas de rituais teuacutergicos

quando natildeo eacute dada a devida atenccedilatildeo aos detalhes ndash advertecircncia referida em muitos

livros cabaliacutesticos O Sefer haAtzamin (f13) por exemplo determina ldquose a pessoa

natildeo for especialista e versada em causar o descenso das forccedilas e a execuccedilatildeo dos

rituais eles o mataratildeordquo418 Tambeacutem Pico era ciente dos riscos envolvidos nas

operaccedilotildees cabaliacutesticas tanto que assim escreveria em suas Teses ldquoQuem opera em

Cabala[] se cometer erros ao operar ou iniciar-se sem preacutevia purificaccedilatildeo seraacute

devorado por Azazel segundo as regras da justiccedilardquo419

Sob o prisma teuacutergico o estudo das estruturas das Sefirot natildeo denota apenas

uma ocupaccedilatildeo teoacuterica mas uma possibilidade de colocar o adepto em grau de intervir

diretamente sobre o mundo superno a ponto de influenciar a dinacircmica das forccedilas

divinas Enquanto a magia exercida na Cabala Praacutetica utiliza os efeitos da propagaccedilatildeo

de forccedilas superiores sobre o mundo material atraindo-as para baixo a Teurgia de

forma contraacuteria empurra o miacutestico em direccedilatildeo ao alto caracterizando-se assim

como uma forma de caminho iniciaacutetico420 O miacutestico-teurgo tem por objetivo elevar-

se ndash no caso dos cabalistas agrave dimensatildeo sefiroacutetica ndash usando como instrumentos os

especiacuteficos rituais destinados para influir sobre aquelas forccedilas Um importante

desdobramento da relaccedilatildeo causa-efeito entre as accedilotildees materiais e suas repercussotildees

celestes encerra-se na concepccedilatildeo cabaliacutestica de que as accedilotildees ritualiacutesticas natildeo satildeo as

415 IDEL 2008-b n p 461 416 Referentes agrave Cabala Especulativa e agrave Cabala Praacutetica cf Conclusio Cabalistica (II) XI 1 417 Cf Manuscrito de Munique 214 f51r apud IDEL 2008-b p474 Em outro artigo IDEL observa que a

magia heleniacutestica antiga lidava com o recebimento de forccedilas espirituais chamadas naquele contexto pneumata (2008-a p34)

418 IDEL 2008-b np 485 419 PICO Concl (II) XI 13 ldquoQui operatur in Cabalaet si errabit in opere aut non purificatus accesserit

deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudicii A primeira parte da conclusio 13 postula que aquele que operar em Cabala da forma correta encontraraacute a conjunccedilatildeo com Deus (ou com o Absoluto conforme a concepccedilatildeo da ldquoMorte do Beijordquo) Elucida FORNACIARI que assim como o ecircxito positivo traz um resultado de dimensotildees absolutas o eventual ecircxito negativo natildeo se limitaraacute a um simples fracasso mas ao completo extermiacutenio do operador inexperiente atraveacutes da ldquofagocitoserdquo por parte do democircnio (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001)

420 BUSI opcit p34 ss A magia da Cabala Praacutetica transformou-se em Teurgia tatildeo logo o objeto do efluxo espiritual passou a ser a sefiraacute de Malkhut ndash a esfera mais proacutexima ao reino material ndash e natildeo a pessoa do cabalista ou o do mago Contudo as duas formas apresentam-se como um caminho de matildeo dupla o atrair as forccedilas para baixo pode se dar em dois estaacutegios o ato teuacutergico inicial opera levando a emanaccedilatildeo da sefiraacute mais elevada ateacute a uacuteltima Malkut onde eacute possiacutevel ndash usando uma linguagem neoplatocircnica ndash a uniatildeo do intelecto com o inteligiacutevel em seguida o influxo da uacuteltima sefiraacute eacute atraiacutedo para o reino sublunar ocasionando o que se chama ldquotransbordordquo das Sefirot um ato ligado ao territoacuterio da praacutetica ou magia (cf IDEL 2008-a pp 38-43 2008-b p 471)

133

uacutenicas a reverberarem no ceacuteu como explica Giulio Busi cada ato humano mesmo o

mais simples obteacutem um resultado velado na outra dimensatildeo ldquopropagando-se como

uma onda ateacute o mais iacutentimo do misteacuterio transcendenterdquo421 Pode-se entender assim

porque a Cabala tem um papel especial no processo de dignificaccedilatildeo do homem

proposto por Pico em quase todas as suas obras a especulaccedilatildeo cabaliacutestica atribui ao

homem uma extraordinaacuteria responsabilidade na medida em que o torna partiacutecipe do

equiliacutebrio divino

A interpretaccedilatildeo das Escrituras eacute uma das ferramentas utilizadas para alcanccedilar

a comunhatildeo objetivada como abordado no item referente agrave tradiccedilatildeo oral Outras

formas ritualiacutesticas assim como na Cabala Praacutetica se datildeo pelo uso da linguagem em

virtude de sua qualidade de refletir seja pelas letras ou por seu som a estrutura

interna do reino divino ndash isto eacute do sistema sefiroacutetico ndash visto que dele participam

Essa qualidade criadora presente nas letras hebraicas permite sua atuaccedilatildeo na

mateacuteria como melhor explica Lipiner ldquoas letras do alfabeto hebraico seriam espiacuterito

derivado de espiacuterito que deslizam progressivamente da sutil sabedoria e pensamento

divinos ateacute converterem-se em substacircncias das coisas materiais jaacute presentes

integralmente nelas em potecircnciardquo422 Por conseguinte os corretos vocaacutebulos

juntamente com a correta forma de pronuacutencia natildeo apenas permitem ao teurgo influir

sobre aquela estrutura como restauram a harmonia no interior do reino divino423

A Cabala Extaacutetica

Embora a Cabala Teuacutergica tivesse adotado visotildees neoplatocircnicas importantes

os elementos aristoteacutelicos presentes na Cabala Extaacutetica foram essenciais para que

essa forma predominasse na Itaacutelia onde exerceu maiores repercussotildees sobre

pensadores do lsquo400 em razatildeo das nuances que a aproximava agrave Filosofia

Manifestando-se entre o final do seacuteculo XIII e o iniacutecio do XIV sobretudo atraveacutes dos

manuscritos dos cabalistas espanhoacuteis Abraham Abulafia Natan Saadia e Isaac de

Acre ndash os trecircs em linhagem sucessoacuteria mestre-disciacutepulo ndash a Cabala Extaacutetica

estabeleceu-se cuidando da questatildeo que envolve a comunhatildeo do homem com o

Espiacuterito divino424 Tanto Alemanno quanto Pico estavam bem familiarizados com

esse modelo de Cabala graccedilas aos estudos sobre os escritos de Abulafia que agregou

421 Como exemplifica Busi a uniatildeo sexual entre um homem e uma mulher sob a oacutetica cabalista provoca a

conjunccedilatildeo sefiroacutetica entre Malkut a sefiraacute que representa o princiacutepio feminino ligado ao Reino e Tiferet a sefiraacute da Beleza que conota o princiacutepio masculino (2011 p35)

422 Elias LIPINER As letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo - Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem 1992 p107 A essecircncia dinacircmica contida nas letras defendida e chamada de ldquoalma das letrasrdquo por Isaac o Cego relembra caracteriacutesticas platocircnicas de potecircncia criadora oriunda do mundo das Formas e das Ideias como justamente infere SCHOLEM (1999 p33)

423 A ideia de restauraccedilatildeo de harmonia no interior do reino divino concepccedilatildeo que pode soar incocircmoda eacute melhor entendida atraveacutes da explicaccedilatildeo de Yohanan Alemanno ldquoEle [o divino] recebe todos os canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo Depreende-se dessas palavras que o fluxo espiritual ocorre em duas vias o reino divino natildeo apenas emite como ldquoreceberdquo as emanaccedilotildees conferindo assim perfeiccedilatildeo ao mundo inferior e perpetuando a proacutepria harmonia (ALEMANNO Einei haEdaacute ndash Os Olhos da Congregaccedilatildeondash in Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51 r-v

424 IDEL 2008-a p29 No seacuteculo XVI a Cabala extaacutetica teraacute forte repercussatildeo atraveacutes dos escritos de Cordovero Iehudaacute Albotini e Haim Vital entre outros

134

elementos aristoteacutelicos significativos em suas concepccedilotildees fiacutesicas metafiacutesicas e

relacionadas agrave alma425 Diferentemente da Cabala Teuacutergica que atua na atraccedilatildeo de

forccedilas exteriores aqui o foco principal se concentra nos processos interiores que

ocorrem entre o intelecto humano e o coacutesmico por alguns denominado Intelecto

Ativo426

Assim como nas outras formas de Cabala a Extaacutetica utiliza algumas teacutecnicas

para atingir seus objetivos nesse caso voltados a alcanccedilar determinado estado de

ecircxtase ndash o chamado devekut ou uniatildeo com a Divindade ndash e excepcionalmente de

profecia427 Segundo Abulafia a profecia decorre do contato entre a inteligecircncia

pessoal e a inteligecircncia universal que envolve a Criaccedilatildeo A alma humana natildeo pode

suportar o influxo direto da inteligecircncia superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm

atada agrave mateacuteria O estado contemplativo permite que tais noacutes sejam desatados

atraveacutes da observaccedilatildeo extaacutetica de algum objeto sem sentido proacuteprio como por

exemplo a contemplaccedilatildeo das letras hebraicas ndash sem os riscos de outros

procedimentos Atraveacutes da escrita aleatoacuteria das letras sem a preocupaccedilatildeo de

formaccedilatildeo de algum sentido e da meditaccedilatildeo sobre cada uma de forma isolada evita-

se que a mente entre em processo de associaccedilotildees em cadeia A abstraccedilatildeo da mente

possibilita a rarefaccedilatildeo das faculdades sensoriais e a ocorrecircncia do estado de ecircxtase

com consequente abertura para o influxo da inteligecircncia superior Igualando-se na

forccedila espiritual de cada letra o miacutestico torna-se uno com ela vivenciando uma

experiecircncia de caraacuteter singular ndash conforme contam os relatos descritos em muitos

textos cabaliacutesticos428

Partes fundamentais desse processo satildeo os dispositivos e teacutecnicas para

assegurar sua consecuccedilatildeo Atraveacutes do relato de Isaac de Acre tem-se a informaccedilatildeo

das teacutecnicas conhecidas como ldquohitbodedutrdquo que se caracteriza pelo exerciacutecio da

solidatildeo e concentraccedilatildeo e ldquohischtavutrdquo a equanimidade ldquoAquele que merecer o

segredo da comunhatildeo [com o divino] mereceraacute o segredo da equanimidade se ele

425 Para elucidaccedilotildees sobre a forma que Abulafia e outros cabalistas italianos utilizaram o Aristotelismo em suas

filosofias veja-se IDEL The Study Program (opcit) pp 310-311 nota 68 para as leituras de Pico acerca de Abulafia veja-se em Wirszubski vaacuterias menccedilotildees (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism opcit) Ademais foge ao escopo traccedilado a abordagem das vaacuterias siacutenteses efetuadas entre as doutrinas cabaliacutesticas e as filosofias neoplatocircnica e aristoteacutelica no periacuteodo do Renascimento limitamo-nos portanto a apenas mencionar a existecircncia de tais inter-relaccedilotildees cujos estudos podem ser verificados nas obras de SCHOLEM Origins of the Kabbalah (Princeton University Press 1987 pp 316-320 327-330 363-364 389-390) e de IDEL Jewish Kabbalah and Neoplatonism in the Middle Ages and Renaissance (in Neoplatonism and Jewish Thought Albany Suny 1992 pp 319-351)

426 IDEL 1998 p 27 2008-a p28 427 IDEL 2008-a p29 Quando o fundador do hassidismo polonecircs Israel Baal-Schem expocircs no seacuteculo XVIII a

tese miacutestica de que a comunhatildeo com Deus (devekut) eacute mais importante do que o estudo de livros houve muita oposiccedilatildeo e sua ideia foi citada nas polecircmicas anti-hassiacutedicas como prova de tendecircncias subversivas e anti-rabiacutenicas do movimento A mesma teoria exposta duzentos anos antes por Isaac Luacuteria a grande autoridade miacutestica de Safed natildeo suscitara nenhum antagonismo Segundo SCHOLEM (1978) uma evidecircncia de mudanccedila no clima histoacuterico

428 Abraham Abursquol-Afiyah de Saragoza ndash ou Abulafia ndash que teve na ideia de profecia o propoacutesito fundamental de seu inteiro projeto cabaliacutestico realizou pesquisas acerca de tal fenocircmeno que resultaram em sua obra Chochmat Hatzeruf (A ciecircncia da combinaccedilatildeo das letras) Maiores detalhes acerca dessa forma de praacutetica cabalista podem ser encontrados em SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1988 Ainda em SCHOLEM o capiacutetulo sobre Abraham Abulafia na obra A Miacutestica Judaica conteacutem alguns registros antigos dessa experiecircncia com riqueza de detalhes Veja-se tambeacutem BUSI 2011 p 26 IDEL 2008-a pp28-30 IDEL The Mystical Experience in Abraham Abulafia 1987 IDEL Studies in Ecstatic Kabbalah 1988

135

receber esse segredo entatildeo conheceraacute tambeacutem o segredo de hitbodedut recebendo o

Espiacuterito Divino e daiacute a profeciardquo429 Essas teacutecnicas estatildeo relacionadas com a triacuteplice

purificaccedilatildeo ndash a limpeza do corpo a limpeza interior e a purificaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo ndash

descrita por Alemanno em seu Collectanaea como meacutetodo para operar a realizaccedilatildeo

de milagres Uma vez despido de todas as sensaccedilotildees e pensamentos materiais deveraacute

o operador ler apenas a Toraacute e os nomes divinos nela escritos para que entatildeo lhe

sejam revelados ldquosegredos impressionantes e visotildees divinas tais como as que podem

ser emanadas sobre as almas puras preparadas para recebecirc-losrdquo430 A alusatildeo de

Alemanno refere-se pois ao estado extaacutetico atingiacutevel atraveacutes da contemplaccedilatildeo dos

nomes divinos Se na Cabala Teuacutergica a interpretaccedilatildeo da Toraacute eacute utilizada como

elemento de aproximaccedilatildeo agrave divindade na Extaacutetica seraacute a contemplaccedilatildeo de cada letra

a propiciar a abstraccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ecircxtase

A praacutetica da contemplaccedilatildeo esteve presente desde a primeira fase do misticismo

judaico embora inicialmente relacionada agrave contemplaccedilatildeo dos mundos superiores

conforme os mencionados tratados dos Heikhalot os miacutesticos dedicavam-se entatildeo a

exerciacutecios meditativos que os permitissem visualizar os mundos celestiais a

ldquoCarruagemrdquo (Mercavaacute) o ldquoTrono da Gloacuteriardquo e os seres muitas vezes hostis que

correspondem agraves diversas ordens angelicais Apesar de essa jornada sugerir uma

ascensatildeo os visionaacuterios e exploradores dos planos celestiais eram chamados Iordei

Mercavaacute (ldquoos que descem agrave Carruagemrdquo) provavelmente aludindo natildeo a uma saiacuteda

de si mas a um aprofundamento dentro do proacuteprio ser431 A importacircncia da

contemplaccedilatildeo encontra-se ademais no centro do pensamento de Isaac o Cego

ldquotodos os atributos satildeo transmitidos para serem contempladosrdquo A descese do

princiacutepio divino eacute descrita como uma seacuterie de contemplaccedilotildees sucessivas que durante

suas ocorrecircncias plasmam as coisas e lhes fornecem o aspecto com o qual se

apresentam ao mundo O chamado ao silecircncio interior eacute frequente em sua obra ldquoo

caminho da contemplaccedilatildeo eacute de fato um absorver e natildeo um conhecer

discursivamenterdquo432 Eacute ainda atraveacutes da contemplaccedilatildeo que o homem pode percorrer

o caminho inverso da emanaccedilatildeo divina Esse eacute o ponto em que o Cabalismo mais se

aproxima do pensamento neoplatocircnico do qual se disse que ldquoa progressatildeo e a

inversatildeo constituem um processo uacutenicordquo a diaacutestole-siacutestole que movimenta o

universo433

Os trecircs modelos verificados costumam se apresentar mesclados nas praacuteticas

cabaliacutesticas e em raros casos foram tratados em abordagens completamente

429 Esse e outros relatos de experiecircncias extaacuteticas podem ser lidos em IDEL 2008-a 430 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Oxford 2234 f 164r 431 SENDER opcit pp 41-42 432 A principal obra teoacuterica de Isaac o Cego da qual se tem notiacutecia eacute o Comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute abordado

por BUSI (opcit p 53) 433 SCHOLEM 1995 p22

136

estanques Natildeo satildeo poucos os relatos de operadores que partindo da contemplaccedilatildeo e

seu subsequente alcance do reino divino ndash em claro emprego da forma Extaacutetica ndash

atraem em seguida o poder superno para realizar operaccedilotildees teuacutergicas Da mesma

forma a Cabala Teuacutergica foi combinada amiuacutede com operaccedilotildees maacutegicas de maneira

a permitir que as emanaccedilotildees das Sefirot mais altas prosseguissem sua descida sobre o

mundo extradivino Em comum tais operaccedilotildees utilizam-se da potecircncia desencadeada

pela correta escolha ou pronuacutencia de certos vocaacutebulos ou atraveacutes da meditaccedilatildeo sobre

suas formas434 Giovanni Pico utilizou-se dos trecircs modelos em suas argumentaccedilotildees A

eficaacutecia dos sons e palavras na obra maacutegica eacute defendida seja na Oratio que na

Apologia seu uso teuacutergico eacute apontado em vaacuterias conclusiones a dimensatildeo extaacutetica

encontra eco nas reflexotildees mais profundas do Mirandolano a serem retomadas no

uacuteltimo Capiacutetulo Contudo a evidecircncia do uso de fontes e conceitos extraiacutedos dos

modelos descritos entre as paacuteginas piquianas embora uma razatildeo suficiente natildeo eacute a

uacutenica para a apresentaccedilatildeo deste capiacutetulo digressivo Enquanto a outras tradiccedilotildees de

cunho esoteacuterico Pico natildeo destinou nenhuma obra em caraacuteter exclusivo ao

conhecimento cabaliacutestico mesmo que natildeo de forma expressa foi dedicado o

Heptaplus assim o esclarecimento de alguns conceitos natildeo usuais na linguagem

filosoacutefica se coloca como uma necessidade para uma aproximaccedilatildeo mais fluiacuteda e

aprofundada ao texto

434 Para uma reflexatildeo bastante aprofundada acerca do uso maacutegico-operacional da linguagem veja-se Franco

BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 pp 43-48 Veja-se tambeacutem para reflexotildees sobre a natureza da linguagem desenvolvidas por cabalistas e alguns comentadores do Secircfer Yetsiraacute VAJDA Un chapitre de lrsquohistoire du conflit entre la kabbale et la philosophie in ldquoArchives drsquohistoire doctrinale et littegraveraire du Moyen Agerdquo XXXI 1956 pp49-56 e 127-133 IDEL Language Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia Albany 1989 pp1-28 (apud BACCHELLI ibid n p 51)

137

CAPIacuteTULO VI

O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA

O Heptaplus435 vocaacutebulo que significa ldquosete vezes seterdquo nasce como um

comentaacuterio em sete partes ndash subdivididas em sete capiacutetulos cada ndash acerca dos seis

dias da criaccedilatildeo expostos no Gecircnesis 1 Antes de Giovanni Pico outros nomes entre

latinos gregos hebreus e caldeus se haviam lanccedilado a interpretar a mesma

passagem biacuteblica como o proacuteprio indicava no Primeiro Proecircmio que antecede sua

obra436 tinha portanto plena ciecircncia do fato de natildeo se tratar de originalidade sua

preocupando-se em avisar agora no Segundo Proecircmio que ldquonatildeo eacute o propoacutesito dessa

obra que quem natildeo tenha aprendido essas coisas em outro lugar as aprenda aqui

pela primeira vezrdquo437 A escolha do Gecircnesis como fundamento para ensejar uma obra

deveu-se agrave percepccedilatildeo de que sob aquela narrativa estariam guardados ldquosegredos de

todas as naturezasrdquo em mais uma evidecircncia de seu interesse em ter acesso a

realidades protegidas pela dimensatildeo esoteacuterica438 A opccedilatildeo por aquele especiacutefico livro

da Biacuteblia eacute esclarecida de forma a natildeo deixar duacutevidas se Moiseacutes tivesse sepultado

em alguma parte das Escrituras ldquoos tesouros de toda a filosofia verdadeirardquo teria

sido naquela parte que trata ldquoda emanaccedilatildeo de todas as coisas de Deus do grau do

nuacutemero da ordem das partes do mundo com elevadiacutessima capacidade filosoacuteficardquo439

Ou seja no Gecircnesis

A obra trata portanto de sete ldquoExposiccedilotildeesrdquo ou ldquoLivrosrdquo440 sucessivos que se

dedicam agrave narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo cada qual focado em uma das dimensotildees ndash ou

relaccedilotildees entre as dimensotildees ndash vislumbradas pelo autor As trecircs primeiras exposiccedilotildees

estabelecem respectivamente uma analogia entre os trecircs graus do real ndash o

elementar o celeste e o angeacutelico ndash com cada um dos trecircs mundos sub-divinos

admitidos pela Cabala descrevendo as devidas formas constitutivas de cada reino A

quarta exposiccedilatildeo trata do reino humano a quinta aponta para a sucessatildeo dos quatro

435 O Heptaplus ndash De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione ndash foi finalizado em 1489 e dedicado a

Lorenzo dersquoMedici A editio princeps consta de 1490 Quando Gianfrancesco Pico editou a primeira Opera Omnia referente agraves obras do tio optou por colocar o Heptaplus em seu iniacutecio uma posiccedilatildeo mantida nas ediccedilotildees subsequentes Em 1555 a obra foi traduzida para o italiano e em 1578 para o francecircs (cf Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 8-10) As traduccedilotildees para o portuguecircs presentes neste Capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade utilizando-se como guia a traduccedilatildeo de Eugenio Garin para o italiano (que em muitos trechos natildeo eacute estritamente literal mas adequada a um melhor entendimento do leitor)

436 Escreve Pico que diante de tantos inteacuterpretes quase natildeo ousaria ldquopensar em escrever algo de novo ou acrescer qualquer comentaacuterio original sobre o argumentordquo (Heptaplus p 177) Entre os inteacuterpretes do Gecircnesis citados em seu preacircmbulo encontram-se Ambroacutesio Agostinho Estrobeu Egiacutedio Fiacutelon Oriacutegenes e vaacuterios outros alguns menos conhecidos inclusive do ciacuterculo caldeu e hebraico (ibid pp179-181)

437 Heptaplus P2 p198 Para dar relecircvo a suas palavras Pico cita Agostinho que em sua exposiccedilatildeo sobre o Gecircnesis escrevera ldquoSe podes aprendes essas coisas se natildeo podes deixa-as a quem vale mais do que tirdquo (ldquoHaec tu si potes apprehendas si nondum potes relinquas valentioribusrdquo) A referecircncia de Agostinho encontra-se na nota agrave traduccedilatildeo de GARIN (Augustini De Gen ad litt V 3 (6) P L XXXIV 323)

438 Heptaplus P1 p170 439 Heptaplus P1 p177 A mesma alusatildeo jaacute havia sido feita por Pico em sua Apologia quando justificando suas

Conclusiones perante aos padres afirmara que ldquoos tesouros da lei espiritual estariam sepultados na obra de Moiseacutesrdquo

440 De fato Pico nomeia cada parte de sua obra de ldquoExpositiordquo ou ldquoLiberrdquo

138

mundos presentes na narrativa biacuteblica a sexta expotildee as relaccedilotildees entre esses mundos

e a seacutetima aponta para o destino que lhes cabe dentro do desenho universal O

objetivo nuclear do autor eacute demonstrar que os vaacuterios mundos natildeo satildeo membra

disiecta (membros dispersos) mas que estatildeo relacionados entre si e tecircm no homem

seu ponto de uniatildeo441 Cada uma das exposiccedilotildees por sua vez encontra-se dividida em

outras sete partes ndash correspondentes a cada um dos seis dias da Criaccedilatildeo narrados na

Biacuteblia acrescidas cada qual com o seacutetimo capiacutetulo ldquoem Cristordquo Explica o autor no

Segundo Proecircmio que o seacutetimo capiacutetulo de cada Livro representa ldquoo fim da Lei o

nosso saacutebado a nossa paz a nossa felicidaderdquo ndash assim como narrado no Gecircnesis em

que o saacutebado eacute o dia do repouso442

Segundo Eugenio Garin a redaccedilatildeo fluente e contiacutenua proposta por Pico no

Heptaplus faz parte de um meacutetodo em que a forma escrita remete agrave difusatildeo e agrave

interpenetraccedilatildeo entre os vaacuterios planos de existecircncia Os mundos com seus

variegados planos apresentam-se natildeo apenas correspondentes mas entrelaccedilados uns

aos outros quase como perspectivas muacuteltiplas (e intriacutensecas no homem) de uma

mesma realidade443 Ademais a obra apresenta um constante movimento dialeacutetico

que a faz transitar de forma harmoniosa entre a feacute e a razatildeo refletindo a perfeita

seguranccedila de Pico sobre a relaccedilatildeo entre as obras da Criaccedilatildeo e a racionalidade de suas

leis (ldquotoda obra da natureza eacute obra da inteligecircnciardquo)444 Retorna-se mais uma vez

para a relaccedilatildeo entre religiatildeo e filosofia ndash abordada no Capiacutetulo 3 ndash cuja centralidade

no pensamento piquiano seraacute retomada no Capiacutetulo final

Assim como em outras obras a dialeacutetica razatildeo-feacute eacute permeada por uma terceira

perspectiva relacionada agrave presenccedila do elemento esoteacuterico a ser verificada no decorrer

do Capiacutetulo Sob o prisma de uma hermenecircutica esoteacuterica o Heptaplus pode ser

dividido em trecircs leituras a) a primeira concentra-se no Primeiro Proecircmio escrito por

Pico agrave guisa de introduccedilatildeo em que satildeo apresentadas vaacuterias referecircncias utilizadas pelo

autor como instrumentos para a afirmaccedilatildeo da existecircncia de verdades que devem ser

preservadas da escrita b) a segunda concerne agrave alegoria do ldquoTabernaacuteculordquo de Moiseacutes

nuacutecleo do Segundo Proecircmio utilizada como fundamento metafoacuterico sobre o qual

ergue-se o projeto do Heptaplus porquanto conteacutem a representaccedilatildeo de trecircs dos

mundos tratados no conjunto da obra c) a terceira perspectiva eacute colhida da uacuteltima

parte da obra uma espeacutecie de ldquoapecircndicerdquo em que o autor apresenta de forma

detalhada a aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico Agraves trecircs partes mais nobres de sua

obra ndash os dois proecircmios em que a intenccedilatildeo do autor eacute expressa e o apecircndice que

finaliza o todo ndash junta-se a concepccedilatildeo do projeto como um todo (em seus sete Livros)

que embora natildeo tratado aqui eacute erigido sobre uma leitura que enxerga sob a letra das

Escrituras significados ocultos

441 Heptaplus V 7 p305 442 Heptaplus P2 p203 443 GARIN LUmanesimo italiano 2008 p 125 444 Heptaplus I 1 p207 ldquoomne opus naturae opus esse intelligentiaerdquo

139

1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio

Cocircnscio da dificuldade que teria em despertar qualquer interesse filosoacutefico por

seu trabalho de hermenecircutica biacuteblica Pico preocupou-se logo agrave abertura do

Heptaplus em dar credibilidade ao autor do Gecircnesis ndash que ele como os demais agrave

eacutepoca acreditava ser Moiseacutes Assim uma parte do Primeiro Proecircmio escrito como

preacircmbulo agrave obra eacute utilizada para justificar a autoridade de Moiseacutes perante um

grupo de oponentes (natildeo identificados) que teriam estabelecido uma distinccedilatildeo entre a

forma literaacuteria do texto mosaico (o Pentateuco) e a dos tradicionais escritos

filosoacuteficos ndash esses sob tal enfoque tidos como superiores

Sua defesa se divide em dois momentos Primeiramente eacute feita uma

argumentaccedilatildeo fundamentada sobre algumas autoridades da Antiguidade que de

alguma forma teriam contribuiacutedo para propagar o nome de Moiseacutes como mestre ldquode

conhecimento humano e de suma sabedoria em todas as doutrinas e literaturasrdquo445

Os indiacutecios utilizados para sustentar a reputaccedilatildeo do mencionado Profeta satildeo

provenientes a) de Lucas e Fiacutelon respeitaacuteveis testemunhos de que Moiseacutes fora

instruiacutedo em todas as doutrinas dos egiacutepcios446 b) dos egiacutepcios que teriam instruiacutedo

alguns dentre os mais celebrados filoacutesofos gregos ndash como Pitaacutegoras Platatildeo

Empeacutedocles e Demoacutecrito (menccedilatildeo que permite ao Autor inserir Moiseacutes no centro da

Filosofia grega)447 c) do neopitagoacuterico Numecircnio que chamara Platatildeo de ldquoo Moiseacutes

Aacuteticordquo (registro que chama a atenccedilatildeo para a similaridade entre as doutrinas dos dois

saacutebios)448 d) do pitagoacuterico Hermipo que teria afirmado que Pitaacutegoras transferira

muitas coisas da lei mosaica para sua proacutepria filosofia449

Em segundo lugar para explicar a disparidade existente entre a aparente rudez

do texto mosaico considerado comum e trivial (ldquomedio et trivialerdquo) e a complexidade

proacutepria de uma grande obra de Filosofia Pico recorre a referecircncias colhidas em

tradiccedilotildees erigidas sobre a oralidade e a misteriologia introduzindo no centro do

Primeiro Proecircmio uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de dimensatildeo esoteacuterica Nesse

sentido para se estabelecer em uma linha contraacuteria agrave consolidada entre os

acadecircmicos ndash a de que Moiseacutes seria inculto e pouco similar a um filoacutesofo ou

teoacutelogo450 ndash Pico se abastece de alguns fatos e personagens histoacutericos de forma a

justificar aquele tipo rude de escrita uma tentativa de demonstrar que tal estilo seria

445 Heptaplus P1 p171 446 Heptaplus idem O testemunho de Lucas estaacute em Atos 722 ldquoMoiseacutes foi instruiacutedo em toda a sabedoria dos

egiacutepciosrdquo o de Fiacutelon em De Vita Mosis 121-24 447 Heptaplus idem Na obra De mysteriis Aegyptiorum Chaldeorum Atque Assyriorum de Jacircmblico haacute uma

lista similar ldquoPythagoras Plato Democritus Eudoxus et multi ad sacerdotes Aegyptios accesseruntrdquo (traduccedilatildeo de Ficino Opera omnia repr Turin Bottega drsquoErasmo 1962)

448 Heptaplus P1 pp171-173 A referecircncia a Numecircnio encontra-se na obra de Euseacutebio Preparatio evangelica IX 6 e XI 10

449 Heptaplus P1 p173 Hermipo escreveu um Vida de Pitaacutegoras que serviu de fonte para Dioacutegenes Laerte Essa ideia contudo natildeo consta nos fragmentos atualmente existentes de Hermipo (cf Crofton BLACK 2006 p 96 e 145)

450 ldquoAut philosophus aut theologusrdquo (Hept P1 p172)

140

necessaacuterio para resguardar a preciosidade de determinado conteuacutedo451 Seu

argumento esoteacuterico se compotildee por uma sequecircncia de vaacuterias passagens452

a) ldquoExiste entre os hebreus sob o nome do sapientiacutessimo Salomatildeo um livro intitulado Sapientia natildeo esse que temos hoje obra de Fiacutelon mas outro escrito naquela linguagem secreta que chamamos lsquohierosolymarsquo cujo autor e inteacuterprete da natureza das coisas como se acredita declara ter recebido toda a sua sabedoria da profundidade da lei mosaicardquo453

b) ldquo[] devemos lembrar um famoso costume dos antigos saacutebios o de se abster de escrever acerca das coisas divinas ou sobre elas escrever veladamente e por isso satildeo chamados Misteacuterios Natildeo eacute misteacuterio o que natildeo eacute ocultordquo454

c) ldquo[Os segredos] foram observados por Indianos Etiacuteopes [] e Egiacutepcios Esse eacute o significado das Esfinges defronte aos templosrdquo455

d) ldquoInstruiacutedo por eles [os Egiacutepcios] Pitaacutegoras tornou-se mestre do silecircncio natildeo entregou suas doutrinas agrave escrita com exceccedilatildeo de muito pouco que ao morrer confiou agrave sua filha Damo De fato ele natildeo foi o verdadeiro autor de Aurea carmina mas sim Filolaurdquo [] ldquoA lei do silecircncio foi uma tradiccedilatildeo mantida ininterrupta ateacute que Hiparco a teria violado conforme deplorou Lysisrdquo456

e) ldquoSobre essa [a preservaccedilatildeo do silecircncio] juraram os disciacutepulos de Amocircnio Oriacutegenes Plotino e Herecircnio como testemunha Porfiacuteriordquo457

451 Heptaplus P1 pp 172 176 452 Para a discussatildeo das fontes utilizadas por Pico veja-se Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos

Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 123-132 453 Heptaplus P1 p170 ldquoExtat apud Hebraeos Salomonis illius cognomento sapientissimi liber cui Sapientia

titulus non qui nunc in manibus est Philonis opus sed alter hierosolyma quam vocant secretiore lingua compositus in quo vir naturae rerum sicuti putatur interpres omnem se illiusmodi disciplinam fatetur de Mosaicae legis penetralibus accepisserdquo Natildeo haacute fontes precisas sobre esse livro que Pico esclarece natildeo se tratar da obra homocircnima de Fiacutelon Referecircncia a tal trabalho pode ser encontrada no comentaacuterio de Nahmacircnides ao Pentateuco do qual uma coacutepia hebraica consta no inventaacuterio da biblioteca de Pico (Commentary of Nahmanides on Genesis ed Newman pp 25-27) Sobre o fato de Pico ter lido o comentaacuterio de Nahmacircnides veja-se BLACK opcit capiacutetulo 7 Veja-se ainda WIRSZUBSKI opcit p 219 Nahmacircnides na obra em questatildeo diz que o Livro da Sabedoria atribuiacutedo a Salomatildeo estaacute escrito em aramaico enquanto Pico escreve que estaacute na linguagem hierosolyma

454 Heptaplus P1 p172 ldquo[] revocemus eo mentem fuisse veterum sapientum celebre institutum res divinas ut aut plane non scriberent aut scriberent dissimulanter Hinc appellata mysteria (nec mysteria quae non occulta)rdquo

455 Heptaplus P1 p172 ldquohoc ab Indis hoc ab Aethiopibus [] hoc ab Aegyptiis observatum quod et Sphinges illae pro templis insinuabantrdquo A fonte utilizada por Pico para a informaccedilatildeo sobre os Indianos eacute provavelmente Euseacutebio (Preparatio evangelica IX 6 e 7) Sobre as Esfinges Pico dissera na Oratio (p157) que ldquoesculpidas nas frentes dos templos egiacutepcios advertiam que os ensinamentos miacutesticos deviam ser guardados com os noacutes dos enigmas inviolaacuteveis para a multidatildeo profanardquo A fonte de Pico para as Esfinges poderia ser Plutarco De Iside et Osiride 9

456 Idem ldquoab eis edoctus Pythagoras silentii factus est magister nec ipse quicquam litteris mandavit praeter omnino paucula quae Damae filiae moriens commendavit Non enim quae circumferuntur aurea carmina Pythagorae sunt ut vulgo etiam doctioribus persuasum est sed Philolairdquo [] ldquoLegem deinceps eam Pythagorici religiosissime tutati sunt Eam Lysis ab Hypparco violatam quaeriturrdquo A carta de Lysis para Hiparco mencionada por Pico diz ldquoMuitas pessoas dizem que vocecirc filosofa em puacuteblico o que Pitaacutegoras negou como indigno ele confiando suas notas escritas para sua filha Damo notificou que ela natildeo deveria entregaacute-los a ningueacutem fora da comunidaderdquo (Epistolographi Graeci org HERCHER Paris Ambrosio Firmin Didot 1873 p 603 apud BLACK 2006 n p146) Os pitagoacutericos efetivamente tornaram a postura da transmissatildeo unicamente oral uma exigecircncia de ordem praacutetica

457 Heptaplus P1 p172 ldquoIn eam denique iuratos Ammonii discipulos Origenem Plotinum et Herennium Porphyrius est auctorrdquo A fonte de Pico eacute Porfiacuterio que descreve tal pacto em seu Vida de Plotino 3 ldquoUm pacto foi feito por Herecircnio Oriacutegenes e Plotino para natildeo revelarem as doutrinas de Amocircnio que ele havia ensinado em palestras (PORPHYRE La vie de Plotin II ed Brisson Paris Vrin 1982) De acordo com Porfiacuterio Oriacutegenes foi

141

f) ldquoO nosso Platatildeo escondeu as proacuteprias crenccedilas sob veacuteus enigmaacuteticos siacutembolos

de mitos imagens matemaacuteticas e argumentos de sentido obscuro a ponto de contar nas epiacutestolas que apoiando-se em seus escritos ningueacutem teria compreendido claramente seu pensamento sobre as coisas divinasrdquo458

g) ldquoJesus Cristo natildeo escreveu o Evangelho mas o pregou Pregou para as massas atraveacutes de paraacutebolas e separadamente para poucos disciacutepulos aos quais era concedido compreender os misteacuterios do reino dos ceacuteus abertamente e sem imagens mesmo assim natildeo desvelou tudo agravequeles poucos uma vez que havia coisas que eles poderiam natildeo suportarrdquo459

h) ldquoJoatildeo [o apoacutestolo] revelou bem mais do que os outros sobre os segredos da divindade [] mas falou brevemente e de forma obscurardquo460

i) ldquoPaulo [] apenas aos perfeitos falaria a linguagem da sabedoriardquo461

j) ldquoDioniacutesio o Areopagita escreveu que nas Igrejas houve o sagrado e respeitado costume de natildeo transmitir doutrinas secretas por escrito mas apenas agrave voz e para os devidamente iniciadosrdquo462

pupilo de Amocircnio no mesmo tempo que Plotino e Herecircnio se eacute verdade que os trecircs fizeram um pacto de natildeo revelar em escritos as doutrinas de seu professor tanto Herecircnio quanto Oriacutegenes quebraram suas promessas

458 Idem ldquoPlato noster ita involucris aenigmatum fabularum velamine mathematicis imaginibus et subobscuris recedentium sensuum indiciis sua dogmata occultavit ut et ipse dixerit in Epistulis neminem ex his quae scripserit suam sententiam de divinis aperte intellecturum et re minus credentibus comprobaveritrdquo A passagem refere-se agrave Carta II (312 d-e) tambeacutem mencionada por Pico na Oratio (p157) na qual Platatildeo escrevendo a Dioniacutesio sobre os modos das substacircncias supremas afirma ldquoEacute necessaacuterio exprimir-nos mediante enigmas de modo que se alguma vez por acaso a carta cair na matildeo de um outro natildeo seja percebido pelos outros aquilo que escrevordquo Os segredos conceituais que Platatildeo natildeo teria submetido agrave escrita referem-se a questotildees tratadas em suas aulas ldquoSobre o Bemrdquo nas quais eram discutidos os Princiacutepios Parte de tais concepccedilotildees foram transmitidas atraveacutes da filosofia neoplatocircnica chegando a Pico atraveacutes das traduccedilotildees de Ficino Para toda a problemaacutetica em torno agraves ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo de Platatildeo veja-se o fundamental Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo de Giovanni Reale trad Marcelo Perine (Satildeo Paulo Loyola 1997)

459 Heptaplus P1 p174 ldquoIesus Christus imago substantiae Dei Evangelium non scripsit sed praedicavit praedicavit autem turbis quidem in parabolis seorsum autem paucis discipulis quibus datum erat nosse mysteria regni caelorum palam citraque figuras neque omnia paucis illis quia non omnium capaces et multa erant quae portare non poterant donec adveniens Spiritus docuit omnem veritatemrdquo A ideia de que Jesus teria revelado muitos misteacuterios apenas aos seus disciacutepulos eacute atribuiacuteda por Pico a Oriacutegenes no Commento na Apologia e na Oratio (p157) ldquoOriacutegenes afirma que Jesus Cristo mestre de vida revelou aos disciacutepulos muitas coisas que eles natildeo quiseram escrever para natildeo se tornarem vulgarizados Tal fato confirma-o sobretudo Dioniacutesio Areopagita o qual diz que os misteacuterios mais secretos foram transmitidos pelos fundadores da nossa religiatildeo ek nou eis noun dia meson logon isto eacute de mente a mente sem escritos mediante o Verbordquo

460 Pico complementa que Joatildeo revelou o misteacuterio do logos apenas com a finalidade de combater os Ebionitas que afirmavam o Cristo homem mas negavam sua divindade ldquoIoannes qui prae omnibus maxime divinitatis secreta revelavit tribus pridem vulgatis Evangeliis et a Domini cruce multis exactis annis coactus loqui quae diu tacuerat ad abolendam haeriesim Ebionitarum quae Christum hominem non etiam Deum asseverabat de aeterna Filii generatione sed paucis sed obscure pronunciavit inde exorsus in principio erat Verbumrdquo (ibid pp 174-176)

461 Heptaplus P1 p176 ldquoPaulus Corinthiis negat solidum cibum propterea quod adhuc carnis legibus vivant non autem spiritus et sapientiam loquitur ante perfectosrdquo A referecircncia (Cor I 511) encontra-se na proacutepria ediccedilatildeo Em outra passagem referida na Oratio (p157) Pico escreve ldquomanter portanto tudo isto oculto do vulgo a fim de o comunicar apenas aos perfeitos entre os quais unicamente Paulo (Cor I 2-6) afirma pronunciar palavras de sapiecircncia natildeo foi obra de humana prudecircncia mas de divina sabedoriardquo

462 Heptaplus P1 p176 ldquoDionysius Areopagita sanctum et ratum institutum fuisse scribit ecclesiis ne dogmata secretiora per litteras sed voce tantum iis qui rite essent initiati communicarenturrdquo A passagem de Pseudo Dioniacutesio encontra-se em De Coelesti Hierarchia II (cf ref na ediccedilatildeo do Heptaplus)

142

A presenccedila de vaacuterios registros relacionados agrave tradiccedilatildeo oral utilizados como

principal ferramenta de sustentaccedilatildeo para afirmar a autoridade de Moiseacutes mostra-se

um recurso introdutoacuterio necessaacuterio para dar credibilidade ao conjunto da obra

estruturada sobre uma linguagem alegoacuterica que pede uma maior acuidade daquele

que a lecirc Poreacutem longe de ser um artifiacutecio retoacuterico suas referecircncias refletem uma

categoria proacutepria e fluiacuteda do pensamento piquiano O denominador comum entre os

exemplos histoacutericos eacute a ideia de demarcaccedilatildeo entre os natildeo-iniciados e os iniciados

concepccedilatildeo que por sua vez conduz o leitor agrave aceitaccedilatildeo de uma divisatildeo da

interpretaccedilatildeo biacuteblica entre literal e natildeo-literal A leitura literal corresponde agrave

ldquomultidatildeordquo enquanto a natildeo-literal na terminologia que toma emprestado de Paulo e

dos primeiros cristatildeos ldquoaos perfeitosrdquo Seguindo as pistas de leituras relacionadas agrave

miacutestica hebraica Pico pretende evidenciar que essa dicotomia eacute fundamental para a

recepccedilatildeo das revelaccedilotildees contidas na Biacuteblia abrindo caminho para sua interpretaccedilatildeo

do Gecircnesis Esse tipo de procedimento hermenecircutico em que o fator esoteacuterico eacute

empregado como ponto de analogia entre representantes da Feacute de um lado e da

Filosofia de outro jaacute havia sido adotado em outras obras anteriores ao Heptaplus

postura filosoacutefica que se mostrara desenvolvida em torno a lsquo86 Por exemplo em sua

Conclusio cabalistica 63 Pico dizia

Assim como Aristoacuteteles dissimulou sob a superfiacutecie da

especulaccedilatildeo filosoacutefica aquela mais divina filosofia que os

filoacutesofos antigos haviam escondido com mitos e faacutebulas

mantendo-a obscura com a concisatildeo de suas palavras assim o

Rabbi Moiseacutes egiacutepcio no livro que os latinos intitulam O Guia

dos Perplexos atraveacutes da casca superficial das palavras daacute a

impressatildeo de caminhar com os filoacutesofos enquanto pelos

intentos velados de seu profundo sentir abraccedila os misteacuterios da

Cabala463

Apresentam-se ainda profusas indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo de fontes esoteacutericas

no Commento na De Hominis Dignitate ndash como verificado no Capiacutetulo IV ndash e na

Apologia Efetivamente repetem-se nas trecircs obras algumas das mesmas referecircncias

usadas por Pico no Heptaplus464 Entretanto haacute nessa obra uma diferenccedila

fundamental diversamente das obras anteriores a tradiccedilatildeo cabalista natildeo eacute citada

junto ao elenco esoteacuterico embora a mesma mantenha-se tatildeo central quanto nos

relatos anaacutelogos daquelas obras A ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo ldquocabalardquo

na inteira obra pode ter sido responsaacutevel pelo surgimento de certas interpretaccedilotildees

conflituosas embora a maior parte dos inteacuterpretes considere o conteuacutedo do

Heptaplus como exclusivamente cabalista465 Eugenio Garin em sua obra Giovanni

463 Concl (II) XI 63 Rabbi Moiseacutes egiacutepcio refere-se ao filoacutesofo medieval Maimocircnides ao qual Pico atribui trecircs

opiniotildees nas Conclusiones ldquoSicut Aristoteles diuiniorem philosophiam quam philosophi antiqui sub fabulis et apologis uelarunt ipse sub philosophicae speculationis facie dissimulauit et uerborum breuitate obscurauit ita Rabi Moyses aegyptius in libro qui a latinis dicitur dux neutrorum dum per superficialem uerborum corticem uidetur cum Philosophis ambulare per latentes profundi sensus intelligentias mysteria complectitur Cabalaerdquo

464 Veja-se por exemplo algumas das mesmas referecircncias esoteacutericas na Apologia (p27) e na Oratio (p 157) 465 Alguns dentre os relevantes inteacuterpretes que consideram o Heptaplus fundamentalmente cabalista satildeo

Matter Dorez Liebert e Vulliaud Guido MASSETANI (La Filosofia Cabalistica di Giovanni Pico della

143

Pico della Mirandola constata (a) que Pico coroou seus conhecimentos cabaliacutesticos

atraveacutes do Heptaplus (b) que as origens dessa obra estatildeo em seus profundos estudos

sobre a gnose hebraica e (c) que existe afinidade formal entre o Heptaplus e as obras

da Cabala466

De qualquer forma ao retomar em lsquo89 as concepccedilotildees de ordem esoteacuterica

propostas em seus trabalhos anteriores Pico decide remover deliberadamente a

utilizaccedilatildeo daquela palavra que poderia desencadear suspeitas de heresia e que

segundo ele teria sido a causa da condenaccedilatildeo papal que sofrera Cabe lembrar que

enquanto escrevia o Heptaplus ainda estava em vigor a bula emitida por Inocecircncio

VIII condenando as Conclusiones467 Assim eacute bastante provaacutevel que ao voltar a

redigir seus paracircmetros de fontes Pico tenha conscientemente eliminado as

referecircncias agrave Cabala por razotildees de prudecircncia Tal remoccedilatildeo parece ter sido mais

aparente do que substancial porquanto o nuacutecleo do conteuacutedo doutrinal cabaliacutestico foi

preservado (em alguns casos com as mesmas palavras das obras anteriores) como

seraacute visto a seguir Seu modelo hieraacuterquico de mundos encontra vaacuterios pontos de

convergecircncia com os mundos da doutrina cabaliacutestica utilizados para sustentar o

projeto pretendido Mais adiante atraveacutes da verificaccedilatildeo do apecircndice da obra

inteiramente consagrado a demonstrar a aplicabilidade do meacutetodo cabaliacutestico tem-se

a comprovaccedilatildeo definitiva de que a ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo Cabala

tenha sido apenas um expediente utilizado para natildeo acirrar os acircnimos ao seu redor

2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus

ldquoA Antiguidade imaginou trecircs mundosrdquo468 Com essas palavras Pico abre seu

Segundo Proecircmio em cuja narrativa confirma a posiccedilatildeo superna do mundo

suprassensiacutevel ldquoque os teoacutelogos chamam lsquoangeacutelicorsquo e os filoacutesofos lsquointeligiacutevelrsquo nunca

cantado por ningueacutem de forma adequadardquo segundo ldquoo que diz Platatildeo no Fedrordquo469

Abaixo desse haacute o mundo celeste e por uacuteltimo o nosso mundo sublunar ldquoEste ndash

continua Pico ndash eacute o mundo das trevas aquele da luz o celeste eacute composto de luz e

trevasrdquo O mundo sensiacutevel eacute representado pela aacutegua substacircncia mutaacutevel aquele pelo

fogo em razatildeo do esplendor da luz o ceacuteu natureza intermeacutedia eacute composto de aacutegua e

fogo e por tal razatildeo eacute chamado pelos hebreus de lsquoasciamaimrsquo termo composto de

Mirandola Empoli 1897) por sua vez natildeo se mostrou convencido com as correspondecircncias entre os mundos da Cabala e os propostos por Pico

466 As passagens encontram-se respectivamente (a) e (b) na paacutegina 39 (c) na paacutegina 158 (GARIN 2011) 467 A bula de Inocecircncio VIII foi emitida em 15 de dezembro de 1487 e permaneceu em vigor ateacute 18 de junho de

1493 A decisatildeo de omitir a palavra ldquocabalardquo do Heptaplus obteve um certo resultado positivo pois embora natildeo tenha ficado satisfeito com o surgimento da obra ndash considerando-a uma continuidade dos erros precedentes ndash o papa natildeo lhe conferiu o mesmo desprezo que agraves Conclusiones

468 Heptaplus P2 p185 ldquoTres mundos figurat antiquitasrdquo 469 Idem ldquoSupremum omnium ultramundanum quem theologi angelicum philosophi autem intellectualem

vocant quem a nemine satis pro dignitate decantatum Plato inquit in Phaedrordquo A passagem de Platatildeo encontra-se em Fedro 247c Na continuidade do trecho Pico complementa que as consideraccedilotildees acerca dos trecircs mundos natildeo possuem novidade alguma aos olhos dos estudiosos do mundo antigo

144

fogo (es) e aacutegua (maim)470 O caraacuteter intermeacutedio do mundo celeste eacute especialmente

acentuado por Pico que traz analogias extraiacutedas de suas fontes cabaliacutesticas Tal

caraacuteter eacute marcado pela mistura de propriedades presentes em cada um dos outros

dois mundos Assim tem-se no mundo terreno vida e morte no inteligiacutevel eterna

vida e contiacutenua atividade no celeste estabilidade de vida poreacutem com vicissitudes de

atividades e posiccedilotildees O mundo terrestre eacute constituiacutedo pela natureza caduca dos

corpos o mundo inteligiacutevel pela natureza divina da mente o ceacuteu pelo corpo embora

incorruptiacutevel e pela mente apesar de sujeita ao corpo O terceiro ldquoeacute movido pelo

segundo enquanto o segundo eacute governado pelo primeirordquo471 Continuando

os trecircs mundos satildeo apenas um natildeo apenas porque todos se

reportam de um uacutenico princiacutepio a um uacutenico fim ou em razatildeo

de sendo regulados por leis determinadas estarem coligados

por um certo liame harmonioso da natureza e por um

ordenamento em graus mas porque tudo aquilo que estaacute na

totalidade dos mundos estaacute tambeacutem em cada um e natildeo haacute algo

em qualquer um desses que natildeo esteja em cada um dos

outros472

No uacuteltimo trecho o autor fundamenta-se na concepccedilatildeo miacutestica judaica que

atribui agrave Unidade criadora a qualidade de se manifestar fora de si mesma em trecircs

planos de existecircncia que se encontram perfeitamente integrados ldquoo que se encontra

no mundo inferior estaacute incluso nos superiores mas em forma mais elevada por

analogia o que se encontra nos superiores estaacute no mundo inferior mas em condiccedilatildeo

degenerada e com uma natureza adulteradardquo473 Em linguagem que o aproxima ao

Platonismo o filoacutesofo complementa sua argumentaccedilatildeo por meio de exemplos

extraiacutedos da esfera dos fenocircmenos

470 Heptaplus P2 p187 Pico jaacute havia abordado a questatildeo do ceacuteu feito de fogo e aacutegua em sua Conclusio

cabalistica secundum opinionem propriam 67 ldquoHic tenebrarum mundus ille autem lucis caelum ex luce et tenebris temperatur Hic per aquas notatur fluxa instabilique substantia ille per ignem lucis candore et loci sublimitate caelum natura media idcirco ab Hebraeis asciamaim quasi ex es et maim idest ex igne et aqua quam diximus compositum nuncupaturrdquo

471 Heptaplus P2 pp185-187 ldquomovetur tertius a secundo secundus a primo regiturrdquo A analogia com a posiccedilatildeo mediana da alma humana entre corpo e espiacuterito natildeo eacute mencionada mas estaacute subentendida Em qualquer criatura (ou ente ou niacutevel de existecircncia) a trindade se manifesta No homem o aspecto superior eacute o Espiacuterito o aspecto mediano eacute a Alma ou princiacutepio animador o aspecto inferior eacute o corpo No corpo fiacutesico o aspecto superior eacute representado pelo ceacuterebro e sistema nervoso consciente o mediano pelo sistema nervoso simpaacutetico e os vasos sanguiacuteneos o inferior pelos demais oacutergatildeos e suas funccedilotildees vitais Veja-se em LORENZ outros detalhes das relaccedilotildees fiacutesicashumanas com os trecircs mundos (Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 pp 57-65)

472 Heptaplus P2 p189 ldquoHaec satis de tribus mundis in quibus illud in primis magnopere observandum unde et mostra fere tota pendet intentio esse hos tres mundos mundum unum non solum propterea quod ab uno principio et ad eumdem finem omnes referantur aut quoniam debitis numeris temperati et armonica quadam naturae cognatione atque ordinaria graduum serie colligentur sed quoniam quicquid in omnibus simul est mundis id et in singulis continetur neque est aliquis unus ex eis in quo non omnia sint quae sunt in singulis Quam Anaxagorae credo fuisse opinionem si recte eum sensisse putamus explicatam deinde a Pythagoricis et Platonicisrdquo Pico conclui essa passagem sugerindo que esse seria ldquoo pensamento de Anaxaacutegoras exposto pelos Pitagoacutericos e Platocircnicosrdquo Tal menccedilatildeo encontra-se em Simpliacutecio Phys 27 2 (cf ref na proacutepria ediccedilatildeo) A ideia de que ldquotudo estaacute em tudordquo encontra paralelos ademais em Proclo Elementos de Teologia proposiccedilotildees 170173 e 176

473 Heptaplus P2 p189 ldquoVerum quae in mundo sunt inferiori in superioribus sunt sed meliore nota quae itidem sunt in superioribus in postremis etiam visuntur sed degeneri conditione et adulterata ut sic dixerim naturardquo

145

O calor eacute em nosso mundo qualidade elementar nos ceacuteus

virtude caloriacutefica nas mentes angeacutelicas Ideia de calor Ou com

mais precisatildeo no mundo inferior o fogo eacute elemento o sol eacute o

fogo do ceacuteu na regiatildeo ultramundana o fogo seraacutefico eacute Intelecto

[] O fogo elementar queima o fogo celeste vivifica o fogo

supraceleste ama474

A escolha das palavras acima natildeo eacute feita ao acaso A anaacutelise do Gecircnesis feita

por Pico releva que a escolha das palavras ali empregadas para descrever a Criaccedilatildeo

natildeo eacute tampouco aleatoacuteria mas fruto da intenccedilatildeo em revelar verdades que natildeo

poderiam ser explicitadas de outra forma A eleiccedilatildeo do redator biacuteblico por palavras

simples ligadas aos elementos permitiria sua adequaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees em

virtude de seus significados metafoacutericos Assim conforme explica no Segundo

Proecircmio ldquoteria tratado Moiseacutes de cada um dos mundos de forma que nas mesmas

palavras e no mesmo contexto pudesse tratar de todosrdquo475 Eis a razatildeo da utilizaccedilatildeo de

certas palavras (no Gecircnesis) como ceacuteu terra aacutegua e luz A utilizaccedilatildeo de uma

linguagem filosoacutefica para tratar da Criaccedilatildeo com termos anaacutelogos a ldquocausa agenterdquo

ldquomateacuteriardquo ldquoqualidaderdquo e ldquoformardquo apenas serviriam para descrever o mundo

corruptiacutevel mas natildeo os demais Infere Pico que esse eacute um ldquosinal da admiraacutevel

habilidaderdquo de Moiseacutes na medida em que ele se serviu de determinados termos e os

dispocircs em uma ordem conveniente para representar todos os mundos ldquoassim no

Gecircnesis palavras contexto e ordem conveacutem plenamente a ilustrar os segredos de

todos os mundos e de toda a naturezardquo476

No percurso de suas expositiones o tema dos elementos eacute explorado por Pico

que descreve sua manifestaccedilatildeo em cada um dos mundos em oitavas diferenciadas Eacute

provaacutevel que uma de suas fontes principais para a reflexatildeo tenha sido Proclo e o Liber

de Causis que levara seu mestre Alemanno a escrever uma obra com o mesmo

conteuacutedo477 Abraatildeo Yaguel tempos depois retomaria o assunto reafirmando de

forma mais clara que os quatro elementos natildeo satildeo encontrados apenas no mundo

inferior mas existem igualmente nos corpos celestes e nas inteligecircncias separadas e

ainda ldquono que estaacute acima deles no arqueacutetipo do mundo a Causa de todas as Causas e

o Princiacutepio de todos os Princiacutepiosrdquo Contudo elucida o rabino no mundo sublunar

satildeo encontrados ldquocomo dejetos e mateacuteriardquo no ceacuteu satildeo potecircncias ou virtudes nos

mundos superiores satildeo formas arquetiacutepicas ldquomais perfeitas que no ceacuteurdquo478

474 Heptaplus P2 pp188-190 ldquo[] est apud nos calor qualitas elementaris est in caelestibus virtus

excalfactoria est in angelicis mentibus idea caloris Dicam aliquid expressius est apud nos ignis quod est elementum Sol ignis in caelo est est in regione ultramundana ignis saraphicus intellectus Sed vide quid differant Elementaris urit caelestis vivificat supercaelestis amatrdquo

475 Heptaplus P2 p195 476 Heptaplus Livro II ldquoSobre o Mundo Celesterdquo 477 A traduccedilatildeo aacuterabe de alguns trechos do Elementos de Teologia de Proclo conhecida como Liber de Causis

foi atribuiacuteda por muito tempo de forma errocircnea a Aristoacuteteles Sobre a relaccedilatildeo da obra de Alemanno Minkhat Yehudaacute e de outros textos anteriores que tratam do tema com o Liber de Causis veja-se IDEL 2008b p 509

478 Abraatildeo YAGUEL Beit Yaar haLevanon in Manuscrito de Oxford 1304 f 6r-6v (apud IDEL 2008b pp 512-513) Infere Idel que o texto de Yaguel em sua abordagem dos distintos estados dos quatro elementos primaacuterios apresenta noccedilotildees neoplatocircnicas que condizem com sua visatildeo sobre a essecircncia dos mundos noccedilotildees fortemente utilizadas por Alemanno

146

Para um melhor entendimento da mensagem do Heptaplus faz-se necessaacuterio

adentrar nas conceituaccedilotildees dos mundos manifestos segundo a miacutestica hebraica Em

uma passagem do Gecircnesis (Secircfer Bereshit) tem-se a revelaccedilatildeo da existecircncia de trecircs

mundos sob o prisma cabaliacutestico ldquoEntatildeo formou Deus o homem do poacute da terra e

soprou-lhe (ruach) nas narinas o focirclego de vida (neshamaacute) e o homem tornou-se

uma alma vivente (nefesh)rdquo479 O enunciado encerra trecircs princiacutepios que podem ser

relacionados tanto a partes concernentes agrave triacuteplice integridade do homem quanto agrave

existecircncia de trecircs mundos em sentido cosmoloacutegico Os trecircs princiacutepios satildeo Neshamaacute

o princiacutepio superior atinente ao Espiacuterito e agrave esfera das Inteligecircncias mais elevadas

Ruach o princiacutepio mediano relativo agrave Alma e agrave hierarquia dos seres astrais e

Nefesh o princiacutepio inferior relativo ao corpo vital e ao plano fiacutesico480 Entretanto no

seacuteculo XII o Zohar mencionaria quatro mundos acrescentando aos trecircs do Gecircnesis o

elemento relacionado diretamente agrave divindade Assim estabelecem-se sob registro

cabaliacutestico quatro concepccedilotildees a saber (a) o mundo da Emanaccedilatildeo do princiacutepio divino

(Olam HaAtzilut) (b) o mundo da Criaccedilatildeo (Olam HaBriaacute) no qual o homem

contemplativo colhe revelaccedilotildees atraveacutes do princiacutepio neshamaacute (c) o mundo da

Formaccedilatildeo (Olam HaYetsiraacute) relacionado a ruach e (d) o mundo da Produccedilatildeo (Olam

HaAssiaacute) correspondente a nefesh481

A quaacutedrupla concepccedilatildeo de existecircncia eacute extraiacuteda outrossim a partir de outra

passagem em Isaiacuteas ldquoa todos os que satildeo chamados pelo meu nome e os que criei

para a minha gloacuteria eu os formei e tambeacutem eu os fizrdquo482 Os cabalistas colhem nesse

versiacuteculo indicaccedilotildees das quatro dimensotildees ou reinos ndash partindo do divino emanente

e prosseguindo com os outros trecircs em ordem hieraacuterquica decrescente com suas

denominaccedilotildees inspiradas naquela sentenccedila os respectivos mundos da Criaccedilatildeo da

Formaccedilatildeo e da Realizaccedilatildeo conforme paraacutegrafo anterior Esses nomes indicam a

transformaccedilatildeo do tipo de influxo com as quais as Sefirot governam o mundo A

tradiccedilatildeo miacutestica associa a esses mundos as trecircs reparticcedilotildees da antiga cosmogonia

rabiacutenica Assim na Criaccedilatildeo Briaacute coloca-se o Trono da Gloacuteria ou a Ideia original da

Criaccedilatildeo onde se encontram as formas arquetiacutepicas e a dimensatildeo angeacutelica mais

elevada483 Na Formaccedilatildeo Yetsiraacute tambeacutem habitada por hostes angelicais a Ideia

adquire forma a mateacuteria astral se compotildee e a separaccedilatildeo se distingue em elementos

479 Gecircnesis 27 Encontram-se traduccedilotildees similares para dois dos termos hebraicos presentes na passagem

mencionada A palavra ruach significa espiacuterito e sopro de Deus neshamaacute eacute traduzido por ldquofocirclego de vidardquo e tambeacutem ldquosopro de Deusrdquo O paralelismo entre o ldquoespiacuterito de Deusrdquo e ldquoo sopro do Todo-poderosordquo eacute frequente na Biacuteblia

480 LORENZ Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 p60 481 LORENZ opcit p60 SENDER opcit pp 71-72 482 Isaiacuteas 437 483 LORENZ (opcit p61 ss) coloca na dimensatildeo da Criaccedilatildeo o movimento pelo qual o Espiacuterito saindo de seu

isolamento se manifesta como Espiacuterito em geral preceito da origem da multiplicidade A utilizaccedilatildeo do termo ldquoIdeiardquo que remete ao Platonismo eacute de Lorenz provavelmente fundamentado em escritos do rabino Abraatildeo Yaguel que no seacuteculo XVI se dirigia agraves emanaccedilotildees com o termo ldquoIdeiirdquo ldquoa forccedila que se encontra nos entes inferiores pode [igualmente] ser encontrada em maior pureza e limpidez nas Sefirot sagradas e puras que satildeo na verdade as Ideii (sic) para todas as coisasrdquo [] ldquoas Ideii satildeo uma forma simples superior aos corpos agraves almas e agraves inteligecircncias [] na terminologia dos platocircnicos aquela primeira configuraccedilatildeo eacute denominada Ideiirdquo Cf Manuscrito de Oxford 1304 f10v apud IDEL 2008-b pp 513-514

147

relativamente individuais484 Finalmente na Realizaccedilatildeo Assiaacute estabelecem-se os

mundos fiacutesico e sensiacutevel atraveacutes dos reinos mineral vegetal e animal485

Para ilustrar a concepccedilatildeo dos Trecircs Mundos no Heptaplus ndash e em

concomitacircncia confirmar a existecircncia de uma dimensatildeo esoteacuterica dentro da Biacuteblia ndash

Pico expotildee no Segundo Proecircmio uma amostra de como sob as palavras mosaicas

escritas em forma simples encontram-se revelaccedilotildees acerca da triacuteplice realidade

Referindo-se a alguns versiacuteculos biacuteblicos que tratam do ldquotabernaacuteculordquo construiacutedo por

Moiseacutes eacute efetuada uma analogia com os mundos subdivinos ali representados ldquoem

modo muito evidenterdquo como diria o autor486 Segundo a narrativa biacuteblica e como

visto no Capiacutetulo IV Moiseacutes dividira o tabernaacuteculo em trecircs partes cada uma delas

concernentes a um dos mundos A primeira parte sem teto ou proteccedilatildeo alguma

encontrava-se exposta aos vaacuterios fenocircmenos da natureza sendo frequentada por

homens tanto puros quanto impuros aleacutem de animais de toda espeacutecie assim como

no mundo sublunar as contiacutenuas vicissitudes de vida e morte se intercalavam As

outras duas partes do tabernaacuteculo estavam protegidas e imunes agraves questotildees

exteriores assim como ocorre com o mundo celeste e supraceleste As duas partes

eram chamadas ldquosantasrdquo poreacutem a mais protegida era chamada ldquoSanto dos Santosrdquo

Pico esclarece que embora os dois mundos celeste e angeacutelico sejam santos (ldquopois

apoacutes a queda de Luacutecifer natildeo restou pecado acima da luardquo) o mundo angeacutelico eacute

considerado de maior santidade e divindade487 Enquanto na Oratio o tema fora

tratado sob uma perspectiva relacionada ao homem dentro de um cenaacuterio que

contempla processos iniciaacuteticos individuais o enfoque dado no Heptaplus encontra-

se inteiramente voltado agrave confirmaccedilatildeo religiosa dos trecircs mundos em um acircmbito que

chamariacuteamos cosmoloacutegico488

484 Eacute nesse plano que ocorre a separaccedilatildeo dos aspectos masculino e feminino que no mundo antecedente

constituiacuteam uma unidade Isso explica o duplo relato biacuteblico da criaccedilatildeo do homem o primeiro em Gecircnesis 1-27 e o segundo em Gecircnesis 2-7 No primeiro relato ldquoe criou Deus o homem agrave sua imagem criou-o agrave imagem de Deus e criou-os masculino e femininordquo o verbo utilizado eacute ldquocriarrdquo referindo-se agrave Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo No segundo relato onde se lecirc ldquoo Senhor Deus formou pois o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vidardquo o verbo utilizado eacute ldquoformarrdquo o que o situa em Yetsiraacute o mundo da Formaccedilatildeo no qual o ser adquire forma e deixa de ser androacutegino (cf SENDER opcit pp 36-37)

485 As denominaccedilotildees e atribuiccedilotildees de cada Mundo sofrem pequenas variaccedilotildees semacircnticas dependendo do comentarista Uma das principais divergecircncias que podem ser encontradas refere-se agrave colocaccedilatildeo do sistema planetaacuterio que para alguns faz parte do Mundo da Formaccedilatildeo e para outros do mundo da Realizaccedilatildeo em razatildeo de sua materialidade ndash o que natildeo deixa de fazer sentido Veja-se IDEL 2008b pp 512-513 SCHOLEM 1978 p90 SENDER opcit pp 34-39 BUSI opcit p 19

486 Heptaplus P2 ldquoHoc non praetermiserim figuratos hos mundos trecircs a Mose evidentissime in admirabilis illius tabernaculi sui constructionerdquo Algumas passagens da Biacuteblia tratam do tema da construccedilatildeo do Tabernaacuteculo Em Ecircxodo 25 8-9 o Senhor daacute ordens a Moiseacutes para construir o Templo ou Tabernaacuteculo O Tabernaacuteculo (em hebraico mishkan ldquomoradiardquo ldquotenda da congregaccedilatildeordquo ou ldquosantuaacuterio conforme Ecircxodo 25 8) era a tenda usada pelos israelitas como lugar de adoraccedilatildeo enquanto viajavam pelo deserto Em Ecircxodo (29 42-46) o Senhor disse a Moiseacutes que seria no Tabernaacuteculo que Ele desceria para falar com ele e com Seu povo A tenda onde Moiseacutes se encontrava inicialmente com o Senhor foi armada fora do arraial (Ecircxodo 33 7) pois o povo tinha pecado e o Senhor lhe disse que natildeo mais seguiria no meio deles O Tabernaacuteculo era tambeacutem chamado de ldquotenda do Testemunhordquo porque nele estava guardado o Testemunho ou as taacutebuas da Lei (Ecircxodo 38 21 Nuacutemeros 1 50) Mais tarde o Tabernaacuteculo passou a ser conhecido como ldquoa Casa do Senhorrdquo (Deuteronocircmio 23 18) No lugar mais interior ficava o recinto conhecido como o ldquoSanto dos Santosrdquo pois aiacute era o local em que era colocada a arca e onde apenas o sumo sacerdote poderia entrar

487 Heptaplus P2 ldquoAmbae item sanctitatis nomine honestatae ita tamen ut quae erat secretior sancti sanctorum reliqua sancti tantum titulo decoraretur sicuti quamvis et caelestis et angelicus mundus uterque sanctus quoniam supra lunam post Luciferi casum nec macula nec peccatum aut est aut esse potest angelicus tamen caelesti longe sanctior et divinior habeturrdquo

488 A abordagem do tabernaacuteculo feita por Pico estaacute muito proacutexima daquela de alguns cabalistas que o italiano conheceu direta ou indiretamente como observou Chaim WIRSZUBSKI (Pic de la Mirandole et la Cabale 2007

148

Outra interpretaccedilatildeo do tema havia sido realizada pelo mestre de Pico Yohanan

Alemanno Ele encontrara paralelos entre a mesma narrativa biacuteblica e a questatildeo das

emanaccedilotildees sefiroacuteticas Em seu Collectanaea o tabernaacuteculo eacute descrito como

necessaacuterio para proteger os vasos que receberiam as emanaccedilotildees pois ldquoo povo havia

sido educado para crer na possibilidade de causar o descenso das forccedilas espirituais e

das emanaccedilotildees provenientes das alturas por meio de preparativos feitos pelo homem

para tal propoacutesito exatamente como quando Moiseacutes preparou o bezerro de ourordquo489

Embora Pico natildeo fale diretamente desse tipo de ritual a influecircncia de Alemanno

sobre ele eacute sabida O tabernaacuteculo eacute descrito portanto como um talismatilde complexo

que guarda e causa o descenso das forccedilas espirituais sendo uma das formas maacutegicas

descritas no Capiacutetulo anterior Ao descrever tal evento o mestre rabino se remete a

Moiseacutes como a um operador da Cabala Teuacutergica relacionando as emanaccedilotildees

sefiroacuteticas a ldquocanaisrdquo de transmissatildeo ldquoOs cabalistas acreditam que Moiseacutes tinha

conhecimento do mundo espiritual e das Sefirot [] e sabia como direcionar seus

pensamentos e aperfeiccediloar o efluxo divino que os cabalistas chamam de canaisrdquo490

Alemanno afirma ainda que o Profeta teria dito ldquolsquoascenderei ao Senhor para receber

instruccedilatildeo detalhada acerca dos preceitos pertinentes a duas instituiccedilotildeesrsquo ndash uma delas

salvaguarda o poder receptivo e diz respeito ao Tabernaacuteculo e aos seus vasosrdquo491 As

especulaccedilotildees de Alemanno conjugam o nuacutecleo conceitual cabaliacutestico ndash as emanaccedilotildees

sefiroacuteticas ndash com a geografia dos trecircs mundos depreendendo da figura de Moiseacutes o

arqueacutetipo do mago possuidor do domiacutenio das Sefirot ldquoa accedilatildeo de Moiseacutes fazia com

que os canais dirigissem a emanaccedilatildeo sobre o mundo inferior de acordo com a sua

vontaderdquo492 A ampla defesa de Moiseacutes realizada no Heptaplus por sua vez eacute

emblemaacutetica de uma percepccedilatildeo que somente se torna possiacutevel agrave luz da Cabala

Extaacutetica Pico leitor do cabalista Natan Saadia certamente via naquele personagem o

protoacutetipo do ser que realizou a uacuteltima etapa do processo extaacutetico algueacutem que ldquofoi

transformado em um ser universal depois de ser um ponto central particularrdquo

estabelecendo-se assim como o objetivo do homem inferior ldquoque ascende pela

virtude do poder do Nomerdquo493

As duas interpretaccedilotildees da passagem biacuteblica do tabernaacuteculo podem ser

inseridas em algum ou alguns dos niacuteveis hermenecircuticos atribuiacutedos pelos cabalistas agraves

Escrituras A necessidade de se manter oculta a Revelaccedilatildeo deu vazatildeo agrave ocorrecircncia de

graus de significaccedilatildeo dentro do texto biacuteblico que podem ser entendidos como veacuteus a

serem retirados de acordo com o desenvolvimento da percepccedilatildeo do leitor Haacute um

sentido literal chamado Peschat que se refere agrave compreensatildeo superficial e externa

do relato biacuteblico em que a atenccedilatildeo recai sobre o enredo e os personagens No niacutevel

p 401) Ainda sobre o tema da representaccedilatildeo do tabernaacuteculo em Pico veja-se Newton BIGNOTTO Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 pp146-47

489 ALEMANNO Manuscrito de Oxford 2234 f 22v Sobre a concepccedilatildeo do bezerro de ouro utilizado para causar o descenso das forccedilas veja-se IDEL (2008-b np 481)

490 ALEMANNO ibid f 8v IDEL atenta para a utilizaccedilatildeo do termo ldquocanaisrdquo Moiseacutes natildeo restaura a divindade mas sim os canais que transmitem as emanaccedilotildees divinas (2008-b np 480)

491 ALEMANNO ibid f 201b 492 ALEMANNO ibid f 8v apud BUSI Qabbalah 2011 p29 493 A passagem estaacute no livro Schaarei Tzedek do disciacutepulo direto do cabalista italiano Abulafia Natan Saadia e

fundamenta-se em Ezequiel I 26 (cf IDEL 2008-a p28)

149

chamado Remez embora preservada a interpretaccedilatildeo literal eacute maior a capacidade

abstrativa o enredo deixa de ser o objetivo principal da leitura e extrai-se um sentido

alegoacuterico A interpretaccedilatildeo talmuacutedica e midraacuteshica se refere a Derashaacute niacutevel que

indica um procedimento eacutetico ou religioso do qual deve ser extraiacutedo um

ldquoensinamentordquo Atraveacutes do relato biacuteblico o homem deduz o que eacute desejaacutevel ou

indesejaacutevel para o Divino o que eacute correto ou incorreto nas relaccedilotildees humanas

Finalmente no niacutevel chamado Sod que significa ldquosegredordquo eacute revelado o sentido

miacutestico que traz a revelaccedilatildeo dos mundos emanados e de seus habitantes O acesso do

miacutestico ao uacuteltimo niacutevel a partir da compreensatildeo de cada uma de suas dimensotildees

anteriores nunca eacute faacutecil ou raacutepido por tratar-se de um caminho cuja chave eacute

cifrada494

Retomando a concepccedilatildeo cabaliacutestica dos Quatro Mundos outra classificaccedilatildeo

bastante usual estabelece o mundo da Emanaccedilatildeo Atzilut em uma unidade distinta

dos demais enquanto os outros trecircs formam ndash como mundos em separaccedilatildeo ndash um

sistema triacuteplice tal conjunto conceitual alude ao aspecto duplo da Divindade ao

mesmo tempo imanente e transcendente495 A trindade derivando-se da unidade e

tendendo a reintegrar-se nela forma um ciclo quaternaacuterio que em tudo se manifesta

Ou em outras palavras os trecircs mundos manifestos somados agrave dimensatildeo primordial

do Absoluto integram os quatro mundos previstos no Zohar A divisatildeo apresentada

no Heptaplus encontra-se em analogia com a concepccedilatildeo inaugural de trecircs mundos

previstos na literatura cabaliacutestica contudo se for levada em conta a divisatildeo

quaternaacuteria do Zohar perceber-se-aacute que o meacutetodo piquiano natildeo espelha tal forma de

particcedilatildeo ndash natildeo por divergecircncia doutrinaacuteria mas em razatildeo de uma omissatildeo e de um

acreacutescimo Conforme as palavras do autor seu meacutetodo parte de ldquouma quaacutedrupla

exposiccedilatildeo de todo o texto mosaicordquo de maneira que em primeiro lugar eacute

interpretado ldquoo que escrito sobre o mundo angeacutelico e invisiacutevel em segundo lugar

como no primeiro cas0 sobre o mundo celeste depois sobre o sublunar e

corruptiacutevel em quarto sobre a natureza do homemrdquo496 Observe-se que o quarto

mundo de Pico sua principal originalidade em relaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees do

Gecircnesis refere-se ao homem ndash esse eacute seu acreacutescimo Embora a literatura cabaliacutestica

apresente vaacuterias analogias dos trecircs mundos com o aspecto triacuteplice do homem essas

satildeo um tanto distintas do tipo de interpretaccedilatildeo feita por Pico497 Por sua vez a divisatildeo

494 SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1978 p72 BUSI La Qabbalah 2011 pp10-11 SENDER pp15-16

A ideia da quaacutedrupla interpretaccedilatildeo do texto biacuteblico remete pelo menos ao seacuteculo XIII quando Moshe de Leacuteon o empregou em alguns matizes de seu significado De Leacuteon em um de seus textos mais tardios compara a Toraacute a uma noz composta de casca e cerne cujo acesso aos niacuteveis interiores se daacute atraveacutes do conhecimento das diferentes formas interpretativas Vejam-se maiores detalhes em SCHOLEM que discute amplamente a questatildeo do chamado Pardes com os vaacuterios significados histoacutericos do termo na seccedilatildeo II de seu livro Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (New York 1960)

495 SENDER opcit p37 Essa eacute uma visatildeo que se aproxima das concepccedilotildees neoplatocircnicas 496 Heptaplus P2 p194 ldquoUnde quadruplex statim totius mosaicae lectionis expositio nascitur ut primo loco

quicquid ibi est scriptum de angelico mundo et invisibili nullam omnino de aliis mentionem habentes enarremus Secundo loco itidem omnia de caelesti mundo tum de sublunari hoc et corruptibili quarto de natura hominisrdquo

497 O Judaiacutesmo admite trecircs princiacutepios para a alma humana Nefesh forccedila de vida inata presente em homens e animais permite a atividade coordenada do corpo fisico ao qual estaacute intimamente ligada o corpo sem nefesh significa a morte corresponde no homem ao mundo manifesto de Assiaacute Ruach niacutevel de alma acima de nefesh relaciona-se tambeacutem agraves emoccedilotildees tendo certa independecircncia do corpo fiacutesico ruach pode abandonaacute-lo nos estados oniacutericos ou contemplativos trazendo impressotildees de Yetsiraacute ao qual corresponde Neshamaacute niacutevel mais

150

dos quatro mundos na Cabala inicia-se com o Atzilut mundo da Emanaccedilatildeo omitido

por Pico no Heptaplus A omissatildeo natildeo se refere a qualquer tipo de contraste

doutrinaacuterio mas apenas agrave utilizaccedilatildeo de um estilo hermenecircutico que se desenrola a

partir dos mundos manifestos de forma a concordaacute-lo com o modelo do Gecircnesis

Vejamos de forma mais aproximada

O muacuteltiplo dispotildee-se em trecircs reinos elementar celeste e

angeacutelico que se desvelam como realidade mundana

inteligecircncias que governam e animam esferas e mundos498

Na passagem acima extraiacuteda dos Comentaacuterios aos Salmos verifica-se que

Pico aborda os trecircs mundos manifestos inserindo-os na dimensatildeo do muacuteltiplo Tal

informaccedilatildeo por simetria loacutegica remete agrave existecircncia de uma dimensatildeo de unidade A

Unidade ou Absoluto existente acima do reino angeacutelico perpassa toda a obra

piquiana e para Ela toda sua filosofia converge Admitindo-se essa afirmaccedilatildeo natildeo

haveria portanto a necessidade de Pico atribuir uma particular ldquoexpositiordquo agravequela

dimensatildeo de existecircncia Considerando-se que o reino angeacutelico eacute parte do muacuteltiplo lecirc-

se no Livro III que trata do ldquoMundo Angeacutelico e Invisiacutevelrdquo

Tudo aquilo que no anjo eacute imperfeito seraacute atribuiacutedo agrave sua

natureza muacuteltipla A imperfeiccedilatildeo [que existe no anjo] existe na

qualidade de multiplicidade enquanto a capacidade de elevaccedilatildeo

cumprida eacute devida agrave unidade que se lhe acosta do Alto Deus eacute a

Unidade de onde o anjo deriva seu ser sua vida e toda

perfeiccedilatildeo499

Assim a presenccedila da Unidade emanatoacuteria acima dos trecircs mundos embora natildeo

expressa diretamente eacute extraiacuteda das passagens que apontam para os aspectos de

gradaccedilatildeo no interior da dimensatildeo da multiplicidade A verificaccedilatildeo do terceiro Livro

do Heptaplus certifica que Pico natildeo suprimiu o mundo emanatoacuterio de Atzilut em sua

interpretaccedilatildeo dos momentos sucessivos da expansatildeo divina A sequecircncia entrevecirc a

analogia existente entre os nuacutemeros depreendidos de leituras cabaliacutesticas e

pitagoacutericas500 e o reino angeacutelico conforme estabelecido por Pseudo Dioniso ndash ambos

os grupos colocados como elementos intermediaacuterios entre o Uno e os mundos

inferiores

sutil e superior da alma eacute o princiacutepio que a liga ao plano da divindade e responsaacutevel pelo grau mais elevado de discernimento no homem tanto intelectual quanto espiritual circulando em Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo (cf SENDER 1992 p69 ss) Para Pico no homem ocorre o misto dos elementos ldquoonde reside o espiacuterito celeste a alma vegetal os sentidos dos brutos a razatildeo a mente angeacutelica e a imagem de Deusrdquo (Heptaplus P2 p193) A exposiccedilatildeo sobre a natureza ou ldquoreinordquo do homem eacute feita no Livro IV do Heptaplus

498 PICO Expositiones in Psalmos (trad Antonino Raspanti-Giacomo Raspanti Firenze 1997) Sobre os trecircs mundos elementaris coelestis et intellectuali veja-se Livro XLVII pp14-16

499 Heptaplus Livro III ldquoDe Mundo Angelico et Invisibilirdquo 1 p250 ldquoQuare quicquid in angelo imperfectum est angelicae multitudini quam inde habet unde est numerus idest creatura [] Utrumque igitur horum evenit angelo qua multitudo est Reliquum ut absolutio illi et consummatio ab accedente desuper fiat unitate Deus autem unitas unde ad angelum et esse et vita et omnis perfectio derivaturrdquo

500 Cf Heptaplus III 1 p249 ldquoRefiramos isso agraves coisas divinas segundo o costume pitagoacutericordquo

151

Tudo aquilo que depois da unidade eacute nuacutemero eacute perfeito e

completo por via da unidade A unidade de tudo simples por si

perfeita natildeo sai de si na sua indivisibilidade simples e solitaacuteria

adere a si mesma pois que basta a si [] O nuacutemero sendo por

sua proacutepria natureza muacuteltiplo eacute simples porquanto eacute capaz em

graccedila da unidade E embora cada nuacutemero que se afaste da

unidade caia em uma multiplicidade sempre mais extensa e em

uma sempre maior variedade e composiccedilatildeo de partes natildeo haacute

nada todavia tatildeo proacuteximo agrave unidade quanto tal multiplicidade

provida de unidade apenas acidentalmente natildeo por sua

natureza mas por composiccedilatildeo501

O desenvolvimento do tema conteacutem o modelo de emanaccedilatildeo proveniente de

Atzilut O anjo natildeo eacute unidade por si soacute do contraacuterio seria o Uno Resta que o anjo seja

nuacutemero (ldquoreliquum ut angelus numerus sitrdquo) E sendo nuacutemero ldquopor um aspecto eacute

muacuteltiplo e por outro eacute multiplicidade unificadardquo A descriccedilatildeo prossegue elucidando

que no anjo encontra-se uma dupla imperfeiccedilatildeo uma consiste no fato de natildeo ser o

proacuteprio Ser mas apenas uma essecircncia que pertence ao Ser por participaccedilatildeo a outra

se encontra no fato de natildeo ser a proacutepria Inteligecircncia mas sim participar agrave

Inteligecircncia porquanto sua natureza eacute intelecto capaz de entender Ambas as

imperfeiccedilotildees satildeo no anjo segundo sua multiplicidade enquanto a capacidade de

elevaccedilatildeo eacute devida agrave unidade que se lhe aproxima do alto Pico parece no entanto

atribuir ao nuacutemero uma possibilidade de perfeiccedilatildeo natildeo atribuiacuteda ao anjo ldquocada

nuacutemero eacute imperfeito enquanto multiplicidade embora perfeito enquanto

unidaderdquo502 A dimensatildeo angeacutelica mostra-se um dos momentos de difusatildeo do divino

um dos instrumentos atraveacutes dos quais a unidade se revela Sob tal perspectiva os

anjos as Sefirot as numeraccedilotildees se encontram em perene circularidade interligando

o Uno e o muacuteltiplo Em sua exposiccedilatildeo sobre os Anjos Pico cita fontes concordantes

como Averroacuteis (ldquoentre intelecto e inteligiacutevel cria-se uma unidade maior que entre

mateacuteria e formardquo) e Maimocircnides (ldquoa verdade se colhe de forma mais perfeita nos

anjos que no homemrdquo) para concluir que as espeacutecies inteligiacuteveis satildeo unidas na mente

angeacutelica por meio de uma ligaccedilatildeo eterna natildeo temporacircnea como ocorre no intelecto

humano503

A descriccedilatildeo acima natildeo apenas confirma a natildeo-supressatildeo do mundo da

emanaccedilatildeo primordial na obra piquiana como daacute-nos um modelo do meacutetodo

hermenecircutico utilizado para cada um dos mundos interpretados no Heptaplus Assim

como no Livro III eacute descrita a natureza angeacutelica e sua relaccedilatildeo com os outros planos ndash

501 Heptaplus III 1 p248 ldquoQuicquid est post unitatem numerus unitate perfectus et consummatus est Sola

unitas omnino simplex a se perfecta non egreditur se sed individua simplicitate et solitaria sibi cohaeret quia superest sibi nullius indiga plena suis divitiis Numerus sua natura cum sit multitudo unitatis beneficio sit simplex quantum ipse simplicitatis capax quamquam autem numerus quisque quo magis ab unitate sit procul in maiorem semper incidat multitudinem plusque in eo dissimilitudinis plus partium plus compositurae sit nullus est tamen ita unitati proximus qui multitudo non sit adventitiam habens unitatem unaque non natura sed compositionerdquo

502 Heptaplus III 1 p251 ldquoEst autem omnis numerus eatenus imperfectus quatenus multitudo perfectus autem quatenus unusrdquo

503 Heptaplus III 2 p255 A passagem de Averroacuteis estaacute em De an Beat IX 152 ab

152

em acircmbito de uma geografia universal ndash os demais Livros da obra descrevem a

natureza de cada particular mundo tratado em perfeita harmonia com os mundos

previstos na Cabala

3 A Occlusa Sapientia

Verificou-se no Capiacutetulo anterior a existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as letras

hebraicas e significados ocultos vislumbrada por Pico ainda em rsquo86 As

caracteriacutesticas inerentes ao idioma hebraico satildeo afirmadas no fechamento de suas

Conclusiones Philosophicae ldquose existe uma liacutengua originaacuteria e natildeo casual resulta

evidente sobre a base das muacuteltiplas conjecturas que essa eacute a liacutengua hebraicardquo504

Segundo essa proposiccedilatildeo o hebraico apresentaria uma relaccedilatildeo privilegiada com a

verdade instituindo com as coisas uma relaccedilatildeo imediata e necessaacuteria e natildeo mediata

como ocorre com as outras liacutenguas505 Pico percebera que as combinaccedilotildees numeacutericas

e as expressotildees linguiacutesticas apresentam iacutentimas articulaccedilotildees loacutegicas atestando natildeo

apenas a existecircncia de uma racionalidade escondida sob as formas como um processo

de manifestaccedilatildeo divina ldquoos nuacutemeros nos abrem uma estrada para a investigaccedilatildeo e

compreensatildeo de cada coisardquo506 As letras do alfabeto hebraico seriam nesse sentido

apenas ldquoveacuteusrdquo que selam o pensamento divino pedindo que seja efetuada uma

elevaccedilatildeo da letra ao espiacuterito Essa a razatildeo como ainda relembra Pico de Oriacutegenes

evitar traduzir certos vocaacutebulos hebraicos porquanto cada traduccedilatildeo representa uma

despotencializaccedilatildeo da palavra sagrada507

Na inteira Lei natildeo existem letras que em suas formas

conjunccedilotildees separaccedilotildees flexotildees direccedilotildees defeitos e excessos

grandezas maiores ou menores e em seu coroamento

fechamento abertura e ordem natildeo remetam aos segredos das

Dez Numeraccedilotildees [as Sefirot]508

A valorizaccedilatildeo da letra hebraica como fonte criadora focircra registrada pela

primeira vez no Secircfer Yetsiraacute como foi visto Cada uma das 22 letras representa um

princiacutepio gerador de energia que encerra uma chave cognitiva encontrando cor-

respondecircncia com os elementos formados por seu intermeacutedio de forma que toda a

criaccedilatildeo encontra-se relacionada a um fenocircmeno de linguagem Assim como cada

504 Concl (II) II 80 (p77) ldquoSi qua est lingua prima et non casualis illam esse hebraicam multis patet

coniecturisrdquo 505 A deduccedilatildeo eacute de Albano BIONDI tradutor das Conclusiones em seus comentaacuterios introdutoacuterios

(Conclusiones Nongentae ndash Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXIX) 506 PICO Conclusiones de mathematicis (II) VII 11 ldquoPer numeros habetur via ad omnis scibilis

investigationem et intellectionemrdquo 507 Para um aprofundamento da temaacutetica das letras hebraicas e sua recepccedilatildeo por Pico leia-se Eugenio GARIN

(2011 pp 145-49) 508 PICO Concl (I) IX 33 (p60) ldquoNullae sunt litterae in tota lege quae in formis coniunctionibus

separationibus tortuositate directione defectu superabundantis minoritate maioritate coronatione clausura apertura et ordine decem numerationum secreta non manifestentrdquo

153

sefiraacute cada letra encerra um poder criador proacuteprio recebido a partir da divindade e

emanado em direccedilatildeo agrave mateacuteria e em sentido contraacuterio permitindo o acesso e a

compreensatildeo do operador apoacutes o justo processo aos elementos inteligiacuteveis que

participam da divindade atraveacutes de sua chave cognitiva Esse eacute o significado

expresso no Secircfer Yetsiraacute de ldquocom as letras descreva a alma de tudo o que foi

formado e tudo o que seraacute formado no futurordquo509

A narrativa do Gecircnesis ndash em que Deus com uma seacuterie de ordenamentos daacute

vida agrave criaccedilatildeo ndash eacute considerada para os cabalistas testemunho fiel de como a

realidade foi desencadeada pela liacutengua divina Com a mesma ordem de letras que se

sucedem no texto biacuteblico realiza-se o desenho constitutivo da realidade que exprime

o plano divino no domiacutenio fiacutesico da criaccedilatildeo510 Conforme ainda o Secircfer Yetsiraacute

ldquotudo o que eacute formado emana de um nomerdquo511

De fato fundamentada sobre a relaccedilatildeo existente entre as letras hebraicas e a

criaccedilatildeo desenvolveu-se ao longo dos seacuteculos uma longa tradiccedilatildeo exegeacutetica voltada a

aprimorar uma habilidade que permitisse aos iniciados penetrar aleacutem da superfiacutecie

das palavras e descobrir dentro das Escrituras os segredos de toda a criaccedilatildeo512 Para

alcanccedilar os significados ocultos os cabalistas empregam algumas teacutecnicas

relacionadas a operaccedilotildees com as letras513 Os meacutetodos mais utilizados para descobrir

significaccedilotildees hermenecircuticas fundamentam-se no modelo de Abulafia que

compreendia trecircs teacutecnicas baacutesicas o notarico a gematria e a temuraacute A primeira

cujo nome proveacutem da palavra latina ldquonotariusrdquo baseia-se na teacutecnica que analisa

como formar novas palavras partindo das letras iniciais meacutedias ou finais de outras

palavras Na segunda cada letra hebraica eacute substituiacuteda por seu correspondente valor

numeacuterico interpretando-se as palavras atraveacutes dos nuacutemeros resultantes das somas

de cada letra Conhecendo-se o valor numeacuterico de uma palavra ou frase poderatildeo ser

criadas conexotildees com palavras ou frases que tenham o mesmo valor estabelecendo

com elas algumas analogias A temuraacute por sua vez eacute a arte do anagrama ou seja de

permutar a posiccedilatildeo das letras em uma mesma palavra Isso significa que uma palavra

pode ser decomposta e recomposta para formar novas palavras que revelem o

significado completo da primeira514

509 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 510 BUSI 2011 p 23-24 511 Secircfer Yetsiraacute II 512 BUSI ibid p 23-24 GARIN 2011 p146 513 Como explica BUSI (ibid p 23) a mesma palavra hebraica seraf indica tanto a transmutaccedilatildeo alquiacutemica dos

metais quanto a permutaccedilatildeo das letras do alfabeto ldquoAssim como o alquimista escolhe os liames da mateacuteria para procurar nos metais menos nobres o segredo do ouro assim o exegeta hebreu transforma a ordem das letras para descobrir por traacutes do sentido aparente o verdadeiro significado do textordquo

514 Cf Guido MASSETANI La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola 1897 pp 64-65 Um modelo de teacutecnica cabaliacutestica pode ser encontrado no Salmo 34 no qual cada verso inicia com uma das letras do alfabeto hebraico em sucessatildeo A sua funccedilatildeo cabaliacutestica estaacute esclarecida na obra Corona del buon nome de Avraham de Colonia que afirma seu valor cognitivo em relaccedilatildeo ao nome impronunciaacutevel de Deus o Tetragramma e agraves 10 Sefirot Esse aspecto impressiona Pico que utiliza o texto traduzido por Flavio Mitridate (FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) Outros exemplos de uso da gematria satildeo apresentados por Tova SENDER em seu capiacutetulo ldquoGuematriardquo (1992 p21)

154

Pico debruccedilou-se sobre algumas dentre aquelas teacutecnicas ndash como se lecirc na

Apologia e em algumas de suas Teses ndash515 e tentou permutar nomes inicialmente

atraveacutes do procedimento da ars combinatoria praticado por Ramon Llull no seacuteculo

XII que apresentava certa diferenccedila com os outros meacutetodos aprendidos Estava certo

que aquele que possuiacutesse o conhecimento da ordenaccedilatildeo da liacutengua hebraica

aprendendo a mantecirc-la ldquoem maneira analoacutegicardquo nos vaacuterios campos do saber

possuiria ldquonorma e regra para a perfeita descoberta de qualquer objeto possiacutevel do

saberrdquo conforme havia deixado claro em sua conclusio paradoxal 55516 A teacutecnica com

a qual melhor se adaptou e conseguiu obter resultados foi a temuraacute que lhe permitiu

confirmar alguns dogmas e colher descobertas originais como informam algumas

teses cabaliacutesticas

Se no nome de Abraatildeo natildeo tivesse sido inserida a letra He

Abraatildeo natildeo teria proliferado517

As letras do nome de Cacodaemon que eacute o Priacutencipe deste

Mundo e as letras do nome do Deus Triagramaacutetico satildeo as

mesmas quem souber fazer a transposiccedilatildeo ordenada inferiraacute

um do outro518

Os sinais da existecircncia de certas chaves secretas apenas esboccedilados nas obras

anteriores eram agora confirmados por Pico na uacuteltima parte do Heptaplus intitulada

ldquoExposiccedilatildeo das primeiras palavras isto eacute lsquoNo Princiacutepiorsquordquo A comprovaccedilatildeo do

meacutetodo cabaliacutestico surpreenderia o proacuteprio autor ldquopara aleacutem de minhas esperanccedilas e

de qualquer convicccedilatildeo encontrei aquilo que nem eu mesmo poderia acreditar ter

encontrado nem outros acreditariam facilmente digo uma coisa maravilhosa

inaudita e inacreditaacutevelrdquo519 Atraveacutes da permutaccedilatildeo de letras reafirmava que nos

cinco livros da lei mosaica estava encerrada a cogniccedilatildeo de todas as artes e da

sabedoria divina e humana ldquoembora dissimulada e oculta entre as mesmas letras

entre as quais a formulaccedilatildeo da lei se compotildeerdquo Agrave diferenccedila de outras obras anteriores

nas quais Pico havia mencionado tais segredos sem revelaacute-los o autor concluiacutea o

periacuteodo com a promessa ldquocomo agora seraacute demonstradordquo520

515 Cf Apologia (I p175) Conclusiones magicae secundum opinionem propriam 10 19 20 21 e 22

Conclusiones Cabalisticae Secundum secretam doctrinam 33 35 Conclusiones Cabalisticae Secundum opinionem propriam 60 70

516 Cf Conclusiones Paradoxae (II) III 55 517 Concl (I) IX 15 (p56) ldquoNisi nomini Abraam litera ה id est ha addita fuisset Abraam non generassetrdquo De

fato conta o Gecircnesis (175) que Abraatildeo e Sara soacute puderam ter filhos apoacutes mudarem os proacuteprios nomes AVRaM ficou AVRaHam e SaRaI ficou SaRaacuteH recebendo os dois a letra Hecirc que representa um dos nomes de Deus assim tornando-se feacuterteis Acerca de tal passagem do Gecircnesis conta Satildeo Jerocircnimo que o nome anterior Abram significa ldquoPai elevadordquo enquanto Abraham significa ldquoPai de muitas naccedilotildeesrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

518 Concl (I) IX 19 (p58) ldquoEaedem sunt literae nominis cacodaemonis qui est princeps mundi huius et nominis Dei Triagrammaton et qui sciuerit ordinare transpositionem deduceret unum ex aliordquo Veja-se em FORNACIARI detalhes metodoloacutegicos das contas efetuadas para analogar um nome ao outro (2009 p79)

519 Heptaplus Expositio Primae Dictionis idest lsquoIn Principiorsquo p376 Igitur praeter spem meam praeter opinionem inveni quod neque inveniens ipse credebam neque credere alii facile potuerunt [] Rem dico mirabilem inauditam et incredibilemrdquo

520 Ibid p374 ldquo[hellip] dissimulatam autem et occultatam in litteris ipsis quibus dictiones legis contextae sunt quo modo nunc declarabimusrdquo

155

Propondo-se dar ao leitor uma ideia do funcionamento do sistema de

interpretaccedilatildeo cabaliacutestico Pico parte do primeiro periacuteodo do Gecircnesis que vai desde

ldquoNo princiacutepiordquo (11) ateacute ldquoe viu Deus a luz que era um bem (14)rdquo ndash constituiacutedo de

cento e trecircs letras hebraicas como observa ndash para efetuar sua anaacutelise Em sua

ldquoaparecircncia comum e vulgarrdquo como informa o Autor ldquotal disposiccedilatildeo de letras forma

apenas a casca de uma essecircncia de misteacuterios conservados dentro do textordquo Contudo

se for realizada a decomposiccedilatildeo daquelas palavras tomadas as mesmas letras em

separado e recompostas em novas palavras que se possam formar ldquosegundo regras

apreendidas dos hebreusrdquo ldquoveremos em plena luz maravilhosas verdades

secretiacutessimas de uma sabedoria conservada a respeito de muitas coisasrdquo Mas

conforme complementa apenas ldquose formos capazes de uma selada sabedoriardquo521 Para

comprovar sua descoberta aos leitores o autor elege apenas uma das palavras que

compotildeem o periacuteodo mencionado suficiente para demonstrar seu intento

Tomando assim a primeira palavra hebraica do Gecircnesis ldquoberesitrdquo que Pico

transcreve em caracteres hebraicos segue-se uma detalhada explicaccedilatildeo de todas as

separaccedilotildees permutaccedilotildees e uniotildees efetuadas entre as letras daquela palavra surgem

novos vocaacutebulos compostos com as letras da palavra inicial dos quais satildeo dados os

significados em latim finalmente as novas palavras satildeo reordenadas em uma nova

expressatildeo da qual emerge ldquoo Pai no Filho e pelo Filho princiacutepio e fim ou seja

quietude criou a cabeccedila o fogo e o fundamento do homem grande com o pacto

bomrdquo522 Note-se que essa inteira oraccedilatildeo eacute o resultado extraiacutedo da resoluccedilatildeo e

recomposiccedilatildeo daquela uacutenica palavra mostrada passo a passo pelo autor523

Embora como infere Pico qualquer cristatildeo seja capaz de compreender o

significado de ldquoo Pai criou no Filho e atraveacutes do Filhordquo natildeo seraacute faacutecil para ldquoos ignaros

em filosofiardquo compreender o significado de ldquocabeccedila fogo e fundamento do homem

521 Ibid p374 ldquoSumamus gratia exempli primam particulam libri Geneseos videlicet ab exordio usque ad

locum ubi est scriptum lsquoEt vidit Deus lucem quod esset bonumrsquo Est tota illa scriptura tribus et centum elementis coagmentata quae eo modo disposita quo ibi sunt dictiones constituunt quas legimus nihil nisi commune et triviale prae se ferentes Corticem scilicet conflat hic litterarum ordo hoc textum medullae interius abditae latentium mysteriorum At vocabulis resolutis elementa eadem divulsa si capiamus et iuxta regulas quas ipsi tradunt quae de eis conflaridictiones possunt rite coagmentemus futurum dicunt ut elucescant nobis si simus capaces occlusae sapientiae mira de rebus multis sapientissima dogmata et si in tota hoc fiat lege tum demum ex elementorum hac quae rite statuatur et positione et nexu erui in lucem omnem doctrinam secretaque omnium liberalium disciplinarumrdquo

522 Heptaplus ibid p 378 ldquoPater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo

523 Veja-se a inteira ordenaccedilatildeo de palavras cf Heptaplus p378 (levando-se em conta que os termos hebraicos estatildeo aqui escritos em ordem inversa agrave original apresentando-se no sentido latino) ldquoDictio illa apud Hebraeos hoc modo scribitur תישארב Ex hac igitur si tertiam litteram primae coniumgamus fit dictio בא idest ab Si geminatae primae secundam addamus fit רבב idest bebar Si praeter primam omnes legamus fit תישאר idest resith Si quartam primae et ultimate connectamus fit שתב idest sciabat Si tres primas quo iacent ordine statuamus fit ארב idest bara Si prima omissa tres sequentes fit שאר idest rosc Si omissis prima et secunda duas sequentes fit שא idest es Si tribus primus omissis quartam ultimae copulemos fit תש idest seth Rursus si secundam primae fit בר idest rab Si post tertiam quintam tum quartam statuamus fit שיא idest hisc Si primas duas duabus ultimas coagmentemus fit תירב idest berith Si ultimam primae fit ultima dictio et duodecima quae est בת idest thob verso quod frequentissimum apud Hebraeos thau in thet elementum Videamus autem quid primo haec latine significent tum quae per ea non ignaris philosophiae de tota natura mysteria revelentur Ab patrem significat bebar in filio et per filium (utrumque enim significat beth praepositio) resit principium sabath quietem et finem bara creavit rosc caput es ignem seth fundamentum rab magni hisc hominis berith foedere tob bono Et totam si ordine consequenti orationem texamus erit huiusmodi Pater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo

156

granderdquo e tampouco de ldquopactordquo ndash termos que encerram cada uma das leis dos

quatro mundos tratados no Heptaplus524 A concepccedilatildeo de ldquohomem granderdquo remete a

Moiseacutes que assim chama o mundo em contraposiccedilatildeo ao homem ldquopequeno mundordquo

Aos outros elementos da oraccedilatildeo Pico faz corresponder os trecircs mundos postulados na

Cabala e na Antiga Filosofia inteligiacutevel celeste e corruptiacutevel Assim em analogia com

o corpo humano ldquopor meio de uma precisa leirdquo a cabeccedila fonte do conhecimento

representa a parte mais alta do mundo correspondente ao mundo angeacutelico ou

inteligiacutevel o fogo princiacutepio de vida e calor ligado ao coraccedilatildeo representa a parte

meacutedia qual o sol no mundo celeste o fundamento ou princiacutepio de geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo representa o mundo sublunar Essas partes no mundo e no homem se

correspondem reciprocamente Ao final da passagem Pico explica

Esse pacto eacute bom porque eacute dirigido e orientado para Deus que eacute

o Bem de forma que assim como o mundo eacute uno na totalidade

de suas partes assim tambeacutem no final possa se tornar uno com

o seu Autor525

A descoberta obtida sob o veacuteu de uma uacutenica palavra satisfaz o autor que natildeo

pretendendo ultrapassar essa conquista admite natildeo ter a experiecircncia necessaacuteria para

se aprofundar em investigaccedilotildees ldquopenso ter feito uma coisa apraziacutevel aos homens de

meu tempo tornando manifesta aquela riqueza de gemas que se me oferece sem

penetrar em seus abismos costeio as margens desse marrdquo526 Se a mesma teacutecnica for

aplicada para toda a Lei induz Pico surgiraacute toda a doutrina e os segredos de todas as

disciplinas liberais Poreacutem adverte ndash mais uma vez ndash ldquose formos capazes de

sabedoria ocultardquo (ldquosi simus capaces occlusae sapientiaerdquo) Pois pode acontecer que

ldquoaproximando-nos de dissolver e compor algumas palavras nasccedilam de nossa

atividade muitos vocaacutebulos e uma variedade de discursos rica de grandes

ensinamentos e profundos significados mas inuacutetil fortuita e despreziacutevel para quem

natildeo tendo apreendido o valor por outra via natildeo possa colher seu sentidordquo527

O caminho de descoberta das verdades veladas nas Escrituras atraveacutes de

qualquer dos meacutetodos indicados eacute o caminho miacutestico sugerido nos chamados Atos

da Criaccedilatildeo Maassecirc Bereshit isto significa que se a Criaccedilatildeo se deu por meio da

linguagem seraacute por meio da linguagem que se deveraacute retornar ao Criador528 Para os

cabalistas a arte combinatoacuteria natildeo eacute mais que uma reconfiguraccedilatildeo da palavra e da

obra de Deus A apreensatildeo da alma presente nas letras passa a ser sob esse prisma

uma das ferramentas que possibilita o regresso do homem agrave Unidade uma concepccedilatildeo

depreendida da especulaccedilatildeo alfabeacutetica de Abulafia529 que certamente se apoiara no

Zohar ldquoOs mandamentos formam o corpo das Escrituras suas vestes satildeo as

524 Cf Heptaplus ibid pp379 381 525 Heptaplus p382 ldquoQuod foedus ideo est bonum quia ad Deum qui est ipsum bonum ita dirigitur et

ordinatur ut quem admodum inter se totus mundus unus ita et cum suo auctore postremo sit unumrdquo 526 Heptaplus p376 527 PICO Heptaplus p377 528 MAGHIDMAN 2014 p108 529 BUSI 2011 p 26

157

narraccedilotildees e finalmente haacute uma almardquo530 O inteiro Heptaplus atraveacutes de seu

comentaacuterio sobre o Gecircnesis pretende provar o ponto de vista de Pico de que a

linguagem cabaliacutestica ou natildeo transcende suas proacuteprias terminologias configurando

um processo cognitivo O seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto por Pico encerra

um princiacutepio metafiacutesico de reciacuteproca contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de realidade entre

si culminando na unificaccedilatildeo com o Absoluto

Imitemos tambeacutem noacutes a santiacutessima alianccedila do mundo de

forma a estarmos unidos entre noacutes por reciacuteproco amor e a

alcanccedilarmos atraveacutes do verdadeiro amor de Deus a feliz

unificaccedilatildeo Nele531

530 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 531 Heptaplus p382 p 382 ldquoImitemur et nos sanctissimum foedus mundi ut et mutua caritate invicem simus

unum et simul omnes per veram Dei dilectionem cum illo unum feliciter evadamosrdquo

158

CAPIacuteTULO VII

FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA

O seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo tem por intento alinhavar as partes apresentadas

nos capiacutetulos anteriores buscando uma siacutentese interpretativa do que foi analisado

Para tanto alguns pontos aparentemente desconexos deveratildeo ser interligados e as

eventuais lacunas preenchidas Seraacute realizada inicialmente a elucidaccedilatildeo do

paradigma esoteacuterico verificando sua utilizaccedilatildeo em periacuteodos e escolas distintas em

seguida seratildeo vistos os tipos de conteuacutedos protegidos pelo sigilo apontando para sua

relaccedilatildeo com as tradiccedilotildees convergentes do projeto piquiano finalmente

fundamentando-nos em uma especiacutefica concepccedilatildeo utilizada por Pico della Mirandola

ndash a ldquoMorte do Beijordquo ndash seraacute proposta uma interpretaccedilatildeo capaz de lanccedilar uma

pequena luz na questatildeo da confluecircncia daquelas tradiccedilotildees para o mesmo fim

1 O Paradigma Esoteacuterico

A leitura das obras piquianas natildeo deixa duacutevidas acerca da utilizaccedilatildeo de uma

seacuterie de referecircncias de cunho esoteacuterico colhidas da leitura histoacuterica realizada pelo

Autor Como foi esboccedilado no Capiacutetulo II a praacutetica de uma atitude de proteccedilatildeo de

certos conteuacutedos encontra-se em registros relativos tanto a perspectivas teoloacutegicas

quanto filosoacuteficas denotando um modelo vaacutelido desde tempos antigos ndash seja do

periacuteodo pagatildeo quanto do cristatildeo Uma aproximaccedilatildeo a alguns modelos de

manifestaccedilotildees desse gecircnero de ocorrecircncia seraacute uacutetil para que se amplie a definiccedilatildeo de

ldquoesoterismordquo delineada na ldquoIntroduccedilatildeordquo desta tese

O adjetivo ldquoesoteacutericordquo (do grego esoterikoacutes) tem sido frequentemente atribuiacutedo

a Aristoacuteteles em verdade apenas a palavra ldquoexoteacutericordquo (exoterikoacutes) eacute encontrada nos

escritos que nos chegaram uma forma empregada para designar as obras destinadas

ao puacuteblico em contraposiccedilatildeo aos escritos acroamaacuteticos (ldquoakroacuteamardquo ldquoinstruccedilatildeo oralrdquo)

referidos agraves liccedilotildees apenas ouvidas ndash e tantas vezes anotadas532 Foi apenas no seacuteculo

II dC que o termo ldquoesoteacutericordquo e sua relaccedilatildeo com Aristoacuteteles fizeram sua primeira

apariccedilatildeo devidamente registrada atraveacutes de uma saacutetira de Luciano de Samoacutesata

Zeus e Hermes vendiam filoacutesofos como escravos no mercado anunciando que aquele

que comprasse um disciacutepulo de Aristoacuteteles receberia dois pelo preccedilo de um ldquoum visto

532 Veja-se por exemplo Politica 1278b 31 Metaphisica 1076a 28 Etica a Nicomaco 1102a 26 A

interpretaccedilatildeo heleniacutestica do termo exoterikoi logoi tomada como uma referecircncia aos escritos aristoteacutelicos eacute atribuiacuteda por Simpliacutecio mais tarde no seacuteculo VI a Eudemo de Rhodes em seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles referindo-se a uma passagem em que Aristoacuteteles teria lidado com um problema lsquoexoteacutericorsquo referente a uma questatildeo pertencente ao campo dialeacutetico (SIMPLICIUS In Ph 8327 8526 e 861 apud Wouter HANEGRAAFF Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism 2006 p 336)

159

de fora outro visto de dentrordquo [] ldquoportanto se vocecirc o comprar lembre-se de dar ao

primeiro o nome de exoteacuterico e ao segundo o de esoteacutericordquo533 Confirmando a

anedota Clemente de Alexandria escrevia pouco tempo depois ldquoos disciacutepulos de

Aristoacuteteles dizem que alguns de seus tratados satildeo esoteacutericos outros comuns e

exoteacutericosrdquo E consolidando o significado de ldquosegredordquo acrescia que ldquoaqueles que

instituiacuteram os misteacuterios sendo filoacutesofos enterraram suas doutrinas em mitos para

natildeo serem oacutebvias para todosrdquo534 Observe-se que Clemente mescla na uacuteltima

passagem o acircmbito misterioloacutegico com o filosoacutefico ndash como faraacute Pico seacuteculos depois

ndash introduzindo uma conotaccedilatildeo de misticismo ao termo Na mesma linha escreveram

Oriacutegenes o Cristatildeo e Gregoacuterio de Nissa utilizando o termo ldquoesoteacutericordquo para referir-se

a ensinamentos secretos reservados a uma ldquoelite miacutesticardquo535

Esses breves relatos fazem notar a existecircncia de duas significaccedilotildees para a

mesma palavra sendo uma concernente ao sentido de ldquosigilordquo e a outra agrave qualidade

do que eacute ldquomiacutesticordquo Embora o sinocircnimo que mais se adeque a ldquoesoteacutericordquo seja

ldquosecretordquo na maior parte das vezes as duas caracteriacutesticas encontram-se mescladas

Etimologicamente o campo semacircntico do misticismo eacute proacuteximo ao do esoterismo a

palavra ldquomisteacuteriordquo conforme sua raiz grega mus significa ldquosilecircnciordquo ou ldquofechar a

bocardquo o ldquomyacutestesrdquo ou ldquoiniciadordquo eacute pois aquele que manteacutem os laacutebios selados

enquanto mysteacuterion refere-se ao culto de iniciaccedilatildeo em que eacute mantido um caraacuteter

secreto536 Assim em seu sentido mais imediato eacute aquilo que natildeo deve ser falado que

deve ser recebido e guardado em silecircncio em sentido mais profundo aquilo que deve

ser contemplado no silecircncio537 Verifica-se ainda um aspecto de transformaccedilatildeo

aniacutemica encerrado na qualidade do que eacute miacutestico que se relaciona com uma

aproximaccedilatildeo da divindade Resta observar que embora nem toda a miacutestica seja

ensinamento secreto e nem todo ensinamento secreto seja miacutestico538 os dois gecircneros

de manifestaccedilatildeo a miacutestica e a secreta tecircm caminhado juntos e se completam na

definiccedilatildeo de esoterismo Prosseguindo seratildeo mostrados trecircs modelos de esoterismo

relacionados a doutrinas bastante distintas ndash que muito provavelmente

influenciaram diretamente Giovanni Pico

Um exemplo expressivo relacionado aos misteacuterios egiacutepcios e tracejado no

Capiacutetulo I pode ser encontrado no Hermetismo que embora supostamente

533 LUCIANO DE SAMOacuteSATA Vitarum Rustio 26 apud HANEGRAAFF opcit p 336 534 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata V 58 3-4 Jacircmblico mais tarde em Vida de Pitaacutegoras e em De

Comm Math (18) utilizaria a dicotomia para referir-se aos alunos de Pitaacutegoras divididos em duas classes ldquouma exoteacuterica e outra esoteacutericardquo

535 Vejam-se os detalhes e referecircncias em HANEGRAAFF opcit p 336 536 De acordo com Walter BURKERT encontra-se na traduccedilatildeo latina de mysteria myeis myesis a melhor

definiccedilatildeo para o termo que resulta em initia initiare initiatio introduzindo o conceito de ldquoiniciaccedilatildeordquo na linguagem ocidental Esse conceito ldquoeacute via de regra acompanhado pelo segredordquo (Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 pp19-20)

537 A uacuteltima definiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Reneacute Gueacutenon Aperccedilus sur lrsquoinitiation 2004 Paris Editions Traditionnelles p125 apud Pierre RIFFARD Dicionaacuterio do Esoterismo 1993 p241

538 Gershom SCHOLEM Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica 1999 pp64-65 Em contexto diverso do tratado por Scholem tambeacutem o especialista em religiotildees misteacutericas Walter BURKERT afirma que nem todos os cultos secretos detecircm um caraacuteter miacutestico Como exemplo cita o caso da magia privada que apesar de secreta natildeo deve receber a alcunha de miacutestica assim tambeacutem o acesso de certas hierarquias sacerdotais a objetos ou locais sagrados natildeo constitui uma miacutestica apesar de seu caraacuteter secreto Haacute por outro lado estados de misticismo que podem ser alcanccedilados durante cultos religiosos abertos que natildeo caracterizam necessariamente um segredo (op cit pp19-21)

160

pertencente a periacuteodo anterior ao cenaacuterio de significaccedilotildees acima mencionadas

encerra ao mesmo tempo o sentido secreto e o caraacuteter miacutestico sendo-nos uacutetil para

ilustrar um modelo de esoterismo natildeo-ocidental preacute-cristatildeo bem aceito no seacuteculo XV

Os escritos hermeacuteticos ocultam por detraacutes de uma manifesta clareza ndash referente agrave

forma e ao conteuacutedo ldquoexternordquo ndash uma obscuridade quanto ao sentido mais profundo

que se encontra ldquoseladordquo O material hermeacutetico contempla trecircs planos diversos em

estreita relaccedilatildeo entre eles uma forma externa clara e linear que pode se tornar mais

complexa conforme a dificuldade do argumento um conteuacutedo ldquoexternordquo e

correspondente agrave simplicidade ou complexidade do enunciado um conteuacutedo

absolutamente ldquointernordquo e oculto que natildeo possui uma possibilidade expressiva ou

leacutexica adequada reenviando a um saber recebido em revelaccedilatildeo539 Esse uacuteltimo

aspecto relaciona-se ao caraacuteter miacutestico que contempla uma regeneraccedilatildeo do ser No

Tratado XVI do Corpus Hermeticum Ascleacutepio relata ao Rei Amon

ldquoHermes meu mestre dialogando frequentemente comigo seja

em particular que na presenccedila de Tat costuma dizer-me que

aqueles que leratildeo os meus livros encontraratildeo uma composiccedilatildeo

muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute obscura e

esconde o sentido das palavras Ademais tornar-se-aacute

totalmente obscura quando sucessivamente os Gregos tentaratildeo

traduzir nossa liacutenguardquo540

Um segundo exemplo de natildeo-divulgaccedilatildeo de ensinamentos sagrados eacute

detectaacutevel em alguns registros da miacutestica cristatilde oficial541 embora o ensinamento

secreto natildeo tenha sido utilizado nesse caso como instrumento para propagar uma

tradiccedilatildeo como ocorreu no Judaiacutesmo542 Clemente de Alexandria pode ser tomado

como modelo de transmissatildeo esoteacuterica dentro da tradiccedilatildeo cristatilde tendo absorvido

ecos provenientes dos gregos perceptiacuteveis no uso que fez de termos como gnosis e

mysteria em suas discussotildees acerca dos sentidos literal e natildeo-literal da Biacuteblia543

539 Valeria SCHIAVONE trad e notas ao Corpus Hermeticum ed BUR-Rizzoli 2018 npp262-263 A

comentadora infere que a clareza da forma externa nos textos hermeacuteticos representa um sinal da luz da verdade profunda que vela mesmo que o conteuacutedo tenda a afastar o leitor do entendimento real da experiecircncia miacutestica que esconde Natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com os niacuteveis de leitura miacutestica hebraica explicados sob a conceituaccedilatildeo do chamado Pardes como verificado no Capiacutetulo V

540 CORPUS HERMETICUM Tratado XVI 1 ed Nock-Festugiegravere Bompiani 2005 p 429 Traduccedilatildeo do grego por Andregrave-Jean Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade ldquoΕρμής μεν γάρ ό διδάσκαλός μου πολλάκις μοι διαλεγόμενος καί ιδία καί τού Τάτ ένίοτε παρόντος έλεγεν ότι δόξει τοΐς έντυγχάνουσί μου τοΐς βιβλίοις άπλουστάτη είναι ή σύνταξις καί σαφής έκ δέ των έναντίων άσαφής ούσα καί κεκρυμμένον τόν νοΰν των λόγων έχουσα καί έτι άσαφεστάτη των Ελλήνων ύστερον βουληθέντων τήν ήμετέραν διάλεκτον εις τήν ιδίαν μεθερμηνεύσαι οπερ έσται των γεγραμμένων μεγίστη διαστροφή τε καί άσάφειαrdquo A obra hermeacutetica eacute bastante ampla e abrangente em termos de conteuacutedo Uma visatildeo geral de seu teor foi apresentada no primeiro capiacutetulo embora apenas em sua parte estrutural e ldquoexteriorrdquo Um maior aprofundamento do conteuacutedo hermeacutetico fugiria ao escopo aqui traccedilado Para uma anaacutelise bastante aprofundada do tema leia-se CORPUS HERMETICUM (Nock-Festugiegravere opcit) e HERMETICA (Scott-Ferguson Clarendon Press Oxford 1924-36) duas das mais abrangentes obras sobre o tema

541 A miacutestica cristatilde natildeo-oficial abarca o inteiro movimento gnoacutestico Sua tradiccedilatildeo se perpetuou atraveacutes de maior ou menor grau de sigilo conforme a eacutepoca e a especiacutefica subdivisatildeo

542 SCHOLEM opcit pp64-65 543 Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo de termos gregos como gnosis e mysteria Jean PEacutePIN argumenta que nesse

sentido percebe-se ldquouma inconsciente comunhatildeo de culturas mais do que marcas deliberadasrdquo (Mythe et alleacutegorie les origines grecques et les contestations judeacuteo-chreacutetiennes Paris Eacutetudes Augustiniennes 1976 p 251 apud Crofton BLACK 2006 p 103) Antes de Clemente Fiacutelon de Alexandria (De vita contemplativa) escrevera sobre o tema a ideia de que um grupo intelectualmente superior de crentes poderia extrair um niacutevel mais alto de

161

Como antecipado no Capiacutetulo II a postura hermenecircutica desenvolvida por Pico em

algumas obras tem certa afinidade com os primeiros inteacuterpretes cristatildeos gregos e

muito provavelmente alguns dos elementos esoteacutericos que utilizou receberam o

influxo da obra Stromata544 ndash na qual Clemente distingue duas classes de puacuteblico

um digno de receber ensinamentos secretos e outro natildeo

Stromateis englobaraacute a verdade misturada com opiniotildees sobre

Filosofia embora velada e oculta exatamente como a parte

comestiacutevel da noz na casca desta forma eacute mais aceitaacutevel eu

creio que as sementes da verdade sejam mantidas apenas para

os cultivadores da crenccedila545

Clemente reuacutene uma lista de exemplos histoacutericos para comprovar que escolas

filosoacuteficas diferentes estavam unidas em ocultar a verdade dos ldquoindignosrdquo546

utilizando-se de um quadro geral de referecircncias muito similar ao que seria utilizado

por Pico seacuteculos mais tarde (como a carta de Liacutesis para Hiparco e a Segunda Carta de

Platatildeo)547 Menciona entre aquelas os epicuristas os estoicos os aristoteacutelicos e os

ldquofundadores dos misteacuteriosrdquo Afastando-se dos pagatildeos volta-se para Cristo e alguns de

seus disciacutepulos como Paulo destacando o uso feito por alguns apoacutestolos de palavras

como μυστήριoν e σoφία548 O destaque a tais termos faz parte de sua sustentaccedilatildeo da

transmissatildeo natildeo-escrita aplicada essencialmente para a interpretaccedilatildeo das

Escrituras acerca da qual Clemente distingue duas formas de entendimento a

ldquocrenccedilardquo (πίστις) e o ldquoconhecimentordquo (γνωσις)549 Haacute pois uma dicotomia entre

ldquoaqueles que apenas apreciam as Escrituras os lsquocrentesrsquo (πιστοί) e aqueles que

foram aleacutem tornando-se examinadores precisos da verdade e portadores portanto

da gnose (γνωστιχοί)550 O termo ldquognoserdquo eacute definido em Stromata I na discussatildeo do

sentido de sigilo pedido por Cristo A gnose segundo Clemente ldquosabedoriardquo eacute o

ldquoconhecimento e compreensatildeo das coisas que satildeo que seratildeo e que foramrdquo

conhecimento das Escrituras jaacute estava presente em seu trabalho exegeacutetico Tambeacutem Oriacutegenes de Alexandria depois de Clemente distinguiu nitidamente os sentidos literal e natildeo-literal argumentando que a confianccedila no primeiro causaria erro teoloacutegico (vejam-se referecircncias e discussatildeo em BLACK np105 pp108-110)

544 Natildeo se tem certeza se Pico teve acesso direto agrave principal obra de Clemente Stromata na qual eacute elaborada uma linha argumentativa com recursos loacutegicos que se fundamentam tanto nas Escrituras quanto na Filosofia ndash um caminho traccedilado no Heptaplus piquiano Haacute uma sua citaccedilatildeo especiacutefica de Stromata nas Disputationes (44) e a referecircncia a um manuscrito denominado stromata graeca no elenco do inventaacuterio de sua biblioteca entretanto natildeo eacute certo se tal manuscrito se refere ao trabalho de Clemente Um uacutenico exemplar sobrevivente daquela obra foi encontrado na biblioteca de Lorenzo dersquo Medici podendo ter sido utilizado pelo Conde

545 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata IndashVI 708a-b (Les Stromates ed Le Boulluec 1981) Stromata ou Stromateis significa ldquoMiscelacircneasrdquo ldquoπεριέξουσι δέ οί Στρωματείς άναμεμιγμένην την αλήθειαν τοΐς φιλοσοφίας δόγμασι μάλλον δέ εγκεκαλυμμένην καί επικεκρυμμένην καθάπερ τω λεπύρω το εδώδιμον του καρύουmiddot αρμόζει γάρ οίμαι τής αληθείας τά σπέρματα μόνοις φυλάσσεσθαι τοΐς τής πίστεως γεωργοΐςrdquo

546 Cf CLEMENTE Stromata V 88b-101a 547 Ibid V 100a-b As referecircncias e conteuacutedos da carta de Liacutesis e da Segunda Carta de Platatildeo encontram-se

respectivamente em notas de rodapeacute dos Capiacutetulos IV e VI 548 Mysteacuterion e Sophia correspondem respectivamente a ldquoMisteacuteriordquo e ldquoSabedoriardquo Para a discussatildeo do tema

veja-se Salvatore LILLA Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford 1971 pp146-148

549 A distinccedilatildeo entre piacutestis e gnosis tem algumas ramificaccedilotildees Clemente usa piacutestis em diferentes sentidos dois dos quais concernentes agraves demonstraccedilotildees loacutegica e cientiacutefica e um dos quais referente agrave leitura das Escrituras Em geral ele usa os dois primeiros significados em suas polecircmicas contra os filoacutesofos e o uacuteltimo em suas polecircmicas contra os gnoacutesticos A ideia em cada caso eacute demonstrar que o Cristianismo natildeo eacute inferior nem agrave Filosofia nem ao Gnosticismo O tema eacute discutido por LILLA opcit pp 118-226

550 Cf CLEMENTE opcit VII 533a

162

apresentando-se sob veacuteus Dessa forma se ldquoa contemplaccedilatildeo eacute o objetivo do saacutebiordquo

entatildeo ldquoa contemplaccedilatildeo daqueles que ainda satildeo filoacutesofos [e natildeo ainda saacutebios]

procura com certeza a sabedoria divinardquo que poderaacute ser alcanccedilada por meio de um

aprendizado que permita a recepccedilatildeo da voz profeacutetica que se lhe revela atraveacutes da

qual ldquose compreende o que eacute seraacute e foirdquo Prosseguindo na mesma passagem o teoacutelogo

define que

ldquoa gnose em si eacute o que desceu por transmissatildeo a poucos

transmitida pelos apoacutestolos sem registro escritordquo551

O tipo de linguagem utilizado por Clemente caracteriza uma esfera que se

tornou reconhecida como esoteacuterica embora o uso de termos como Sophia Piacutestis e

Gnosis seja um convite para se adentrar em territoacuterio gnoacutestico Pico natildeo se utilizou

desse tipo de registro em seus procedimentos hermenecircuticos pelo menos natildeo de

forma direta552 De outras fontes fato certo colheu suas referecircncias pois que a

dicotomia iniciadonatildeo-iniciado se manteve preservada em outros ciacuterculos da

Antiguidade posterior a Clemente e no Medievo sobretudo nas tradiccedilotildees

neoplatocircnica e cabaliacutestica Em ambiente neoplatocircnico destacaram-se dois autores

em particular Macroacutebio e Pseudo-Dioniacutesio ambos presentes na biblioteca piquiana

O Commentarii in Somnium Scipionis de Macroacutebio e sobretudo o De Coelesti

Hierarchia de Dioniacutesio foram textos que ajudaram amplamente a disseminar a

postura esoteacuterica dos primeiros cristatildeos durante a Idade Meacutedia latina apoacutes alguns

escritos originais se terem tornado inacessiacuteveis553 Embora Dioniacutesio seja um bom

modelo de emprego do paradigma esoteacuterico em ambiente neoplatocircnico554 sua forma

de linguagem apesar de natildeo restrita agrave leitura das Escrituras apresenta semelhanccedilas

551 CLEMENTE Stromata VI 281c-284a Oriacutegenes (o Cristatildeo) tambeacutem se utilizou do termo ldquognoserdquo para

designar o entendimento do sentido natildeo-literal talvez porque tenha sido ensinado pelo proacuteprio Clemente (segundo Euseacutebio de Cesareia) Porfiacuterio por sua vez diz que Oriacutegenes foi ensinado por Amocircnio tendo sido seu pupilo ao mesmo tempo que Plotino (cf BLACK opcit p 110)

552 Um paralelismo foi tecido na obra de Jacques Matter Histoire critique du gnosticisme et de son influence publicada em 1828 entre o esoterismo e o gnosticismo do seacuteculo II ao efetuar consideraccedilotildees que partem de um sincretismo entre os ensinamentos de Cristo por um lado e as tradiccedilotildees religiosas orientais judaicas e gregas filosoacuteficas por outro Algumas das primeiras polecircmicas cristatildes contra os gnoacutesticos colocaram-se contra sua crenccedila de terem atingido uma esfera independente e mais alta de conhecimento ou revelaccedilatildeo inacessiacutevel ldquoa outrosrdquo (como os cristatildeos) A obra de Irineu de Lyon do seacuteculo II Contra as Heresias (I162) identifica e transcreve diversas escolas do gnosticismo efetuando uma exposiccedilatildeo em que contrasta suas crenccedilas com as que ele chama do cristianismo ortodoxo [ie o cristianismo ldquonatildeo hereacuteticordquo] assim refutando os ensinamentos de vaacuterios grupos gnoacutesticos (Adversus Haereses W FOERSTER Gnosis A Selection of Gnostic Texts Oxford Clarendon Press 1972 vol I pp138-139)

553 Em seu Comentaacuterio sobre o sonho de Cipiatildeo Macroacutebio postula que desde que a natureza se esconde do olhar da multidatildeo a discussatildeo de seus segredos deve ser velada da visatildeo comum (Commentarii in Somnium Scipionis I 24-18 Padova ed L Scarpa 1981 pp 76-80) Pico possuiacutea uma ediccedilatildeo impressa de tal obra (KIBRE The Library of Pico della Mirandola 1936 p 244) Uma exposiccedilatildeo de cunho esoteacuterico pode ser encontrada ainda em Simpliacutecio Euseacutebio Dioacutegenes Laeacutercio Plutarco Porfiacuterio e Jacircmblico Plotino tratara sobre a proibiccedilatildeo de tornar puacuteblico o conteuacutedo dos Misteacuterios (Eneacuteadas VI 9 11) mas suas referecircncias nesse sentido satildeo de menor expressatildeo

554 O corpus pseudo-dionisiacuteaco um grupo de obras de teor teoloacutegico escritas em grego por um autor desconhecido do final do quinto ou iniacutecio do seacuteculo VI de claro vieacutes neoplatocircnico foi atribuiacutedo (em sua primeira apariccedilatildeo registrada em 532) a outro autor Dioniacutesio o Areopagita Pico o considerava um convertido de Paulo vivido no seacuteculo I dC (ldquoDiscipulus Pauli Dionysius Areopagitardquo como mencionado em Heptaplus p176) A admiraccedilatildeo de Pico pelo Areopagita estaacute evidente no Commento onde o chama ldquopriacutencipe dos teoacutelogos cristatildeosrdquo (p462) e no qual muito provavelmente foram utilizadas as traduccedilotildees de parte do corpus dionisiacuteaco realizadas por Marsilio Ficino (cf BLACK opcit p 123) A recepccedilatildeo do corpus pseudo-dionisiacuteaco durante toda a Idade Meacutedia e Renascenccedila foi extremamente ampla pelo menos seis traduccedilotildees latinas diferentes do corpus (ou partes dele) foram feitas entre os seacuteculos IX e XV

163

com as colocaccedilotildees de Clemente555 Por essa razatildeo tomaremos como terceiro exemplo

outra tradiccedilatildeo a do misticismo hebraico

Os Capiacutetulos VI e VII apresentaram suficientes indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo do

esoterismo hebraico como forma de transmissatildeo de conhecimento entretanto a

forma de linguagem adotada por Yohanan Alemanno e Elia del Medigo para se referir

a um campo de conhecimento sigiloso ndash dimensatildeo que ambos defendiam ndash se

diferencia das abordagens hebraicas anteriores por expor um modelo que utiliza

paracircmetros retirados da linguagem filosoacutefica Diferentes em estilos e doutrinas os

dois mestres de Pico colocaram tal motivo em posiccedilatildeo de destaque nas introduccedilotildees de

suas principais obras Alemanno em seu Hay ha-olamim distingue trecircs tipos de

pessoas ldquoas que derivam seu conhecimento da demonstraccedilatildeo as que o apreendem

atraveacutes da dialeacutetica e as que ouvem a retoacutericardquo556 A mesma ideia eacute encontrada na

introduccedilatildeo do Behinat ha-dat de Elia del Medigo em que o escritor informa que haacute

ldquoprinciacutepios fundamentais que podem ser aceitos retoacuterica e dialeticamente ambos os

meacutetodos de estudo satildeo requeridos jaacute que o terceiro meacutetodo o demonstrativo eacute

impossiacutevel para as massas mas possiacutevel para os poucosrdquo Elia complementa que o

emprego do meacutetodo demonstrativo eacute beneacutefico para a comprovaccedilatildeo de alguns

princiacutepios fundamentais jaacute que leva ao conhecimento das coisas causadas e a partir

do conhecimento dessas ao conhecimento do Criador Em clara distinccedilatildeo entre um

padratildeo exoteacuterico e outro esoteacuterico conclui ser ldquoevidente que o meacutetodo demonstrativo

eacute obrigatoacuterio para o homem saacutebio mas natildeo para o judeu comumrdquo557

Nas especulaccedilotildees aacuterabe-judaicas medievais a retoacuterica era considerada com

base nos comentadores gregos tardios parte integrante das artes loacutegicas no entanto

sua aplicaccedilatildeo praacutetica na instruccedilatildeo de homens ldquolimitados intelectualmenterdquo diminuiacutea

o interesse dos filoacutesofos por essa disciplina558 A dialeacutetica por sua vez pode ser

entendida no caso dos exemplos acima citados como o procedimento racional

empregado em discussotildees com perguntas e respostas atraveacutes das quais se obteacutem

uma regra com a qual se julga o que eacute falso e verdadeiro O uacuteltimo tipo de

conhecimento derivado da demonstraccedilatildeo ldquoutiliza coisas compreensiacuteveis para

explicar as menos compreensiacuteveisrdquo559 Atraveacutes dela eacute possiacutevel demonstrar a essecircncia

das coisas por meio do conhecimento das suas causas remetendo como objetivo

555 Ao mencionar os Misteacuterios Pseudo-Dioniacutesio adverte que ldquonatildeo eacute correto interpretar por escrito as invocaccedilotildees

que pertencem aos misteacuterios nem trazer do sigilo para o conhecimento puacuteblico seu significado misteriosordquo (De ecclesiastica Hierarquia 565c) Ainda ldquoeacute necessaacuterio que as coisas sagradas natildeo sejam ditas comumente nem divulgadas aos natildeo-iniciadosrdquo (De divinis nominibus 597 c) e que ldquosejam envolvidas [as coisas sagradas] na parte mais secreta da mente protegendo-as como uma unidade da multidatildeo profanardquo (De caelesti hierarchia 145 c) Veja-se tambeacutem De ecclesiastica Hierarquia 372a onde trata da preservaccedilatildeo do Santo dos Santos mais tarde retomada por Pico (aqui abordado nos capiacutetulos IV e VI)

556 Hay ha-olamim ed Lelli p94 Fabrizio LELLI editor da obra para o italiano daacute-lhe o tiacutetulo ldquoLrsquoImmortalerdquo (Firenze Leo Olschki) O Hay ha-olamim compreende uma narrativa enciclopeacutedica de ascensatildeo individual atraveacutes das vaacuterias ciecircncias ateacute alcanccedilar o mais alto niacutevel atingiacutevel de perfeiccedilatildeo humana (IDEL The Study Program of R Jochanan Alemanno Tarbiz 48 (1979-1980) pp 303-331)

557 Sefer Behinat ha-Dat of Elijah Del-Medigo (Livro do Exame da Religiatildeo) Jacob Ross (org) Chaim Rosenberg School of Jewish Studies 1984

558 Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p64

559 A definiccedilatildeo encontra-se em Dioacutegenes Laeacutercio VII 1 45 bem como a anterior referente ao meacutetodo dialeacutetico ndash uma definiccedilatildeo bastante difundida na Idade Meacutedia que DL refere em seus estudos acerca das doutrinas estoacuteicas

164

final ao conhecimento das Causas Primeiras Os termos das discussotildees de Alemanno

e Del Medigo provecircm possivelmente da mesma fonte o Kitab fasl al-maqal (Livro

do Discurso Decisivo) em que Averroacuteis distingue os trecircs tipos de inteacuterpretes

apontados pelos mestres hebreus Para o aristoteacutelico a aquisiccedilatildeo do conhecimento

dos entes soacute poderia ser feita pela intervenccedilatildeo do silogismo racional ou seja atraveacutes

de um percurso demonstrativo560 O uso dessas formas nos modelos hebraicos

mencionados tem por propoacutesito distinguir campos de atuaccedilatildeo secretos de outros natildeo

secretos

Poderia se prosseguir com outros exemplos dada sua profusatildeo mas os trecircs

modelos apresentados satildeo suficientes para que se chegue logo adiante a algumas

conclusotildees Resta esclarecer que o substantivo ldquoesoterismordquo natildeo foi originalmente

uma autodenominaccedilatildeo atraveacutes da qual determinados autores ou ciacuterculos definiram

suas perspectivas O primeiro emprego do termo no sentido de um gecircnero de

procedimento vinculado a uma escolha de comportamento foi feito a posteriori em

1828 no trabalho de Jacques Matter sob contexto do Cristianismo inicial561

Contudo somente em 1990 por meio de Antoine Faivre o Esoterismo eacute introduzido

em acircmbito acadecircmico como ldquoforma de pensamentordquo sendo ampliada sua aceitaccedilatildeo

como um campo de estudos Em sua obra Accegraves de leacutesoteacuterisme occidental o autor

defende um paradigma que pode ser reconhecido pela presenccedila de quatro

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave proacutepria definiccedilatildeo de esoterismo agraves quais duas natildeo

intriacutensecas podem ser eventualmente acrescentadas As caracteriacutesticas intriacutensecas

propostas por Faivre tomadas aqui em empreacutestimo pela pertinecircncia agrave temaacutetica

traccedilada satildeo (a) a crenccedila em ldquocorrespondecircnciasrdquo invisiacuteveis e natildeo causais entre todas

as dimensotildees visiacuteveis e invisiacuteveis do cosmo (b) a percepccedilatildeo da natureza como

permeada e animada por uma presenccedila divina ou forccedila vital (c) a concentraccedilatildeo na

imaginaccedilatildeo religiosa como um poder que daacute acesso a niacuteveis de realidades

intermediaacuterios entre o mundo material e Deus e (d) a crenccedila em um processo de

transmutaccedilatildeo espiritual atraveacutes do qual o homem interior eacute regenerado e reconectado

com o divino As duas caracteriacutesticas natildeo intriacutensecas ndash frequentemente mas nem

sempre presentes ndash satildeo (e) a crenccedila em uma concordacircncia fundamental entre vaacuterias

ou todas as tradiccedilotildees espirituais e (f) a ideia de uma transmissatildeo mais ou menos

secreta do conhecimento espiritual562

Conforme sugerido por alguns o paradigma de Faivre melhor se adequa agrave

filosofia hermeacutetica da Renascenccedila e ao contexto romacircntico-iluminista do final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX563 De fato no que concerne ao ambiente renascentista a

560 AVERROacuteIS Discurso Decisivo IV No Artigo XVI Averroacuteis introduz os trecircs meacutetodos esclarecendo que cada

um eacute apropriado para determinada categoria da humanidade sendo o meacutetodo demonstrativo aplicado a um nuacutemero reduzido de pessoas (Artigo LII)

561 Jacques MATTER Histoire critique du gnosticisme et de son influence 1828 Menos de trecircs deacutecadas apoacutes ter sido empregado de forma ldquooficialrdquo na obra de Matter o substantivo ldquoesoterismordquo eacute reconhecido como uma nova palavra com direito a pertencer a um dicionaacuterio em 1852 atraveacutes do Novo Dicionaacuterio Universal de Maurice Lachacirctre onde eacute definido como ldquoa totalidade dos princiacutepios de uma doutrina secretardquo

562 Antoine FAIVRE Access to Western Esotericism 1994 pp10-15 Como aponta Hanegraaff (opcit p340) o valor heuriacutestico da definiccedilatildeo de Faivre eacute inegaacutevel e tem sido adotado por muitos estudiosos como ldquoo paradigma de Faivrerdquo

563 HANEGRAAFF opcit p 340

165

definiccedilatildeo acima condiz precisamente com a forma-pensamento de Pico della

Mirandola de acordo com os pontos destacados no decorrer desta tese Vejamos O

ponto lsquoarsquo referente agraves correspondecircncias invisiacuteveis entre as dimensotildees do cosmo

perpassa as vaacuterias obras de Pico encontrando-se seus sinais sobretudo no Heptaplus

no qual faz corresponder os vaacuterios reinos (ldquotudo que estaacute no mundo inferior estaacute nos

superiores de forma mais elevadardquo)564 A mesma profusatildeo de menccedilotildees se aplica ao

ponto lsquobrsquo sobre a percepccedilatildeo de uma natureza permeada pela presenccedila divina (ldquoo

mundo eacute uno na totalidade das suas partes por ser uno com o seu Autorrdquo)565 O ponto

lsquocrsquo que indica a utilizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo religiosa para o acesso agraves realidades

intermediaacuterias eacute verificaacutevel nos exemplos de praacuteticas teuacutergicas oacuterficas e cabaliacutesticas

postuladas ndash sobretudo mas natildeo exclusivamente ndash nas Conclusiones O ponto lsquodrsquo

referente a um processo de transmutaccedilatildeo espiritual que reconecta o homem ao

divino eacute o tema fundamental da De Hominis Dignitate Quanto aos dois pontos natildeo

intriacutensecos tem-se no ponto lsquoersquo concernente agrave concordacircncia entre as tradiccedilotildees

espirituais a descriccedilatildeo do projeto de concoacuterdia que justamente se consagrou como o

principal interesse da vida de Pico por fim o ponto lsquofrsquo acerca da transmissatildeo secreta

do conhecimento espiritual eacute o tema desenvolvido neste trabalho Assim se

devecircssemos classificar a obra de Pico de acordo com os paracircmetros de Faivre os seis

itens acima a fariam constar perfeitamente entre os conteuacutedos esoteacutericos

Natildeo se encontra indicado no paradigma de Faivre contudo nem tampouco em

definiccedilotildees usuais acerca do esoterismo quais conteuacutedos devem ser preservados O

tipo de linguagem que demarca o motivo da transmissatildeo secreta apesar das

diferenccedilas de eacutepoca e estilo apresenta claras similaridades em seus usos muitas

vezes repetitivas conforme as palavras de Ascleacutepio ldquoaqueles que leratildeo meus livros

encontraratildeo uma composiccedilatildeo muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute

obscura e esconde o sentido das palavrasrdquo em Clemente ldquoa verdade velada e oculta

estaraacute misturada com opiniotildees sobre Filosofiardquo em Del Medigo ldquoo meacutetodo

demonstrativo eacute impossiacutevel para as massasrdquo Pico absorvendo tais conteuacutedos os

utiliza de forma ampliada na Oratio tratando de Paulo escreve que o apoacutestolo

mantinha [tudo aquilo] ldquooculto do vulgordquo ldquoDioniacutesio Areopagita disse que os

misteacuterios mais secretos foram transmitidos de mente a mente sem escritosrdquo ldquoOrfeu

revestiu os misteacuterios dos seus dogmas com a veste das faacutebulasrdquo566 E acerca das

proacuteprias informaccedilotildees que iria transmitir o Mirandolano advertia que se fosse liacutecito

trazer a puacuteblico alguma coisa dos secretos misteacuterios o faria ldquosob o veacuteu do enigmardquo567

Observa-se que natildeo haacute menccedilatildeo aos conteuacutedos Em alguns casos esses nunca satildeo

revelados em outros apenas sugeridos Haacute no entanto alguns indiacutecios que apontam

para trecircs possiacuteveis conteuacutedos temaacuteticos a serem verificados a seguir

564 PICO Heptaplus p189 565 Ibid p383 566 As passagens da Oratio encontram-se respectivamente nas pgs 157 157 163 567 PICO Oratio p129

166

2 A Concordacircncia teleoloacutegica

Haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o Esoterismo e as tradiccedilotildees agraves quais Pico atribui

pontos de convergecircncia Colocado de outra forma os pontos de confluecircncia relativos

agraves tradiccedilotildees mencionadas na obra piquiana gravitam em torno a especiacuteficos nuacutecleos

de teor esoteacuterico Essa eacute a revitalizada intuiccedilatildeo do Autor que precede seu projeto de

Concoacuterdia Antes dele segundo sua proacutepria confirmaccedilatildeo outros jaacute haviam ingressado

em tal caminho Numecircnio tentara acordar bracircmanes magos egiacutepcios e hebreus

Moiseacutes Pitaacutegoras e Platatildeo Proclo apoacutes tentar a comunhatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles

abordara a filosofia hieraacutetica atraveacutes de seus comentaacuterios a Orfeu tentando

comprovar a convergecircncia entre as doutrinas caldaicas oacuterficas hermeacuteticas e

platocircnicas568 As tentativas desses autores em concordar doutrinas aparentemente

dessemelhantes seguem um criteacuterio de escolha a partir do qual as escolas ou

doutrinas eleitas participam de meacutetodos de transmissatildeo sigilosa do conhecimento

provavelmente natildeo por coincidecircncia Dentre os diversos registros verificados seja

nas referecircncias esoteacutericas empregadas por seus antecessores seja naquelas

retomadas por Pico consegue-se identificar trecircs niacuteveis ou campos temaacuteticos de

utilizaccedilatildeo do segredo na transmissatildeo (1) o primeiro niacutevel caracteriza-se pela

necessidade de se proteger poderes empregados em atos de trocas entre os reinos (2)

o segundo niacutevel trata de informaccedilotildees referentes aos mundos intermediaacuterios

distribuiacutedos entre o sublunar e a Unidade (3) o terceiro niacutevel protege conteuacutedos

relacionados aos Princiacutepios ou ao Absoluto

1 No primeiro niacutevel o segredo protege os atos que envolvem as trocas

efetuadas entre o mundo sublunar e os supralunares por intermeacutedio de accedilotildees

humanas caracteriza-se portanto como um niacutevel ldquopraacuteticordquo Eacute o caso dos usos de

magia ou teurgia que envolvem ritos para atrair o descenso de forccedilas pertencentes a

esferas superiores dos sons utilizados nos Hinos oacuterficos para certas funccedilotildees dos usos

da Cabala Praacutetica da teurgia de Jacircmblico e Proclo dos rituais realizados nos

Misteacuterios menores para uma regeneraccedilatildeo psiacutequica transitoacuteria todos temas

abordados nos capiacutetulos anteriores Em ambiente hermeacutetico o Asclepius traz

referecircncias claras de praacuteticas para o descenso das forccedilas ndash como o apelo agraves almas dos

daimons e dos anjos para fazecirc-las morar em imagens sagradas de forma que tais

imagens pudessem ter a forccedila de fazer o bem e o mal569 ndash embora os meacutetodos em si

568 Pico teria lido sobre Numecircnio de Apameia em Euseacutebio (Prep Ev IX 7 XI 10 XII 5) conforme indicaccedilatildeo

do proacuteprio em seu prefaacutecio ao Heptaplus (a identificaccedilatildeo da obra de Euseacutebio encontra-se em GARIN 2001 n p 75 que a extraiu de ZELLER a Filosofia dos Gregos (1881) e de MATTER Histoire de lrsquoEacutecole drsquoAlexandrie (Paris 1848 vol III pp234-37) Acerca de Proclo suas reflexotildees encontram-se em Elementos de Teologia conforme Albano BIONDI Conclusiones Nongentae-Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXV

569 CORPUS HERMETICUM VIII 24 ed Nock-Festugiegravere 2005 pp557-559 ldquoNossos primeiros antepassados [] inventaram a arte de fazer deuses logo assim que os fizeram vincularam a eles uma virtude adequada inferida da natureza material misturando essa virtude com a substacircncia das estaacutetuas dado que natildeo podiam criar almas propriamente ditas e depois de invocarem as almas de daimons as introduziam em seus iacutedolos por meio de rituais santos e divinos de modo que esses iacutedolos tivessem o poder de fazer o bem e o malrdquo Ainda do ldquoLivro sagrado dedicado a Asclepiusrdquo (opcit 37 p583) ldquoTrata-se de estaacutetuas dotadas de uma alma conscientes cheias de sopro vital e que realizam um nuacutemero incalculaacutevel de prodiacutegios estaacutetuas que conhecem o futuro e o predizem atraveacutes das sortes da inspiraccedilatildeo profeacutetica dos sonhos e de muitos outros meacutetodos que enviam aos homens as enfermidades e as curam que concedem segundo nossos meacuteritos a dor ou a fortunardquo

167

sejam mantidos em segredo Plotino retomaria esse interesse como se lecirc em Eneacuteadas

IV ldquoos antigos saacutebios que quiseram os deuses presentes entre eles construindo-lhes

templos e estaacutetuas entenderam que eacute sempre faacutecil atrair a alma universal mas que eacute

particularmente trabalhoso mantecirc-la a menos que se construa algo afim e capaz de

receber-lhe a participaccedilatildeordquo pois ldquoa imagem figurada de uma coisa estaacute sempre

predisposta a sofrer a influecircncia da coisa copiada como um espelho capaz de

aprisionar a imagem que refleterdquo570 Os modelos hermeacutetico e plotiniano encontram

eco na concepccedilatildeo do bezerro de ouro da versatildeo de Alemanno vista na abordagem do

Heptaplus571

Amostras de correspondecircncias dentro desse campo de atuaccedilatildeo satildeo

apresentadas na obra piquiana na qual satildeo apontadas especiacuteficas similaridades entre

praacuteticas pertencentes a nuacutecleos distintos sobretudo nas teses que compotildeem os

uacuteltimos grupos de suas Conclusiones572 Em muitos casos as formas de magia ou

teurgia protegidas pelo segredo servem para ldquocasar o mundordquo e a partir de entatildeo

ldquoorganizar o caosrdquo como intuiu Pico em 1486573 Esse niacutevel de atuaccedilatildeo eacute via de regra

protegido por elevado grau de sigilo necessaacuterio para uma seguranccedila social ou legal

conforme a eacutepoca e a cultura ou para proteger certos tipos de conhecimento dos

perigos que podem desencadear em matildeos incautas Embora haja certas similaridades

entre algumas praacuteticas nesse niacutevel encontram-se maiores divergecircncias entre os

meacutetodos pelo fato de haver um distanciamento maior da Unidade

2 O segundo domiacutenio de registros esoteacutericos contempla o vasto campo

especulativo que trata da sistematizaccedilatildeo do mundo emanado ou da criaccedilatildeo do reino

da multiplicidade a partir da Unidade Embora distintos sistemas apresentem

diferenccedilas conceituais e lexicais verificam-se iacutentimas correspondecircncias no que

concerne aos niacuteveis de graduaccedilotildees entre os diferentes mundos que foram destacadas

e confirmadas ampla e repetidamente por Pico ndash que caracterizou esse estudo como

ldquometafiacutesica das formas inteligiacuteveis e angeacutelicasrdquo574 A obra piquiana mostra seu esforccedilo

para comprovar que concepccedilotildees teoreacuteticas distintas se conciliam em harmonia

Aquele que entre os cabalistas se chama Metatron eacute sem

duacutevida o que eacute denominado por Orfeo lsquoPallasrsquo por Zoroastro

lsquomente paternarsquo por Mercuacuterio lsquofilho de Deusrsquo por Pitaacutegoras

lsquosabedoriarsquo por Parmecircnides lsquoesfera inteligiacutevelrsquo575

570 PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Bompiani Milano 2010 571 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 22v apud Moshe IDEL 2008b np 481 Na

concepccedilatildeo de Alemanno o preparo do bezerro de ouro por Moiseacutes eacute tido como necessaacuterio para o recebimento das emanaccedilotildees provenientes do descenso das forccedilas espirituais

572 Vejam-se algumas dessas correspondecircncias na uacuteltima parte do Capiacutetulo III 573 PICO Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo 574 Cf Apologia p 29 ldquointeligibilibus angelicisque formis exactam methaphysicamrdquo 575 Concl (II) XI 10 (p128) ldquoIllud quod apud Cabalistas dicitur Hochmah illud est sine dubio quod ab

Orpheo Pallas a Zoroastre paterna mens a Mercurio dei filius a Pythagora sapientia a Parmenide sphera intelligibilis nominaturrdquo O termo Hochmah assim traduzido por Biondi e escrito no original em caracteres de provaacutevel hebraico foi traduzido por Farmer como Metraton seguindo a interpretaccedilatildeo de Wirszubski que afirma utilizar outras evidecircncias para tal conclusatildeo (cf FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) - The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 np 524) Optamos pela utilizaccedilatildeo de ldquoMetratonrdquo em nossa traduccedilatildeo ao portuguecircs em razatildeo de sua presenccedila em outras passagens de Pico Com

168

Em sua prospecccedilatildeo da metafiacutesica do Inteligiacutevel Pico identifica as Sefirot

cabaliacutesticas com os nuacutemeros pitagoacutericos e com as dez esferas da ordenaccedilatildeo hermeacutetica

ndash ldquomomentos sucessivos da expansatildeo da divindaderdquo ou ldquoatosrdquo com os quais Deus se

faz presente nas coisas576ndash concepccedilotildees que encontram sustentaccedilatildeo em sua tese

cabaliacutestica 36 ldquoDeus cobriu-se com dez vestimentas quando criou o mundordquo577 Tece

ainda paralelos entre os ldquodez vingadoresrdquo da teoria hermeacutetica e a maligna sequecircncia

denaacuteria da cabala (situada ldquodo lado esquerdordquo) sobre os quais Pico nada escreveu

ldquopor se tratar de um segredordquo578 Outra simetria eacute verificaacutevel entre certos graus

ldquofuncionaisrdquo contemplados no Hermetismo e na Cabala na teoria hermeacutetica da

ascensatildeo da alma pelas esferas a regeneraccedilatildeo da alma se daacute na oitava esfera

chamada ogdoaacutedica ndash relacionada ao nuacutemero oito ndash conforme se depreende do

Corpus Hermeticum XIII tambeacutem na Cabala existe essa concepccedilatildeo relacionada a

uma determinada Sefiraacute conforme estudo de Scholem579 Outra fonte utilizada por

Pico para compor suas correspondecircncias de estratos metafiacutesicos encontra-se nos

textos caldaicos que apresentam passagens com elaboraccedilotildees que unificam os vaacuterios

planos conforme pode ser lido na ordenaccedilatildeo dos Oraacuteculos Caldeus realizada por

Miguel Psello

Sustentam que haacute sete mundos reais um iacutegneo e primeiro trecircs

eteacutereos e trecircs materiais o uacuteltimo dos quais denominado

terrestre e inimigo da luz trata-se da regiatildeo sublunar que aleacutem

do mais encerra em si mesma a mateacuteria a que denominam

abismo [] Homenageiam certo Abismo paterno composto

pela triacuteade Pai Potecircncia e Intelecto Segue-se a Iynga inteligiacutevel

depois os Conectores (compostos de elementos iacutegneos eteacutereos e

materiais) depois os Teletarcas Em seguida os Pais Fontes

referecircncia agrave passagem em questatildeo observa-se que embora com nomenclaturas diferenciadas e pertinentes a cada respectiva tradiccedilatildeo Pico as faz corresponder em termos de posiccedilatildeo ou graduaccedilatildeo dentro do plano do Inteligiacutevel Sobre o mesmo tema Pico escrevera no Commento descrevendo como a mente criada procede do bem primeiro ldquoEssa primeira criatura eacute chamada seja pelos platocircnicos que pelos antigos filoacutesofos Mercuacuterio Trismegisto e Zoroastro ora filho de Deus ora sabedoria mente ou razatildeo divina o qual alguns interpretaram inclusive como Verbordquo (Commento sopra una canzona drsquoamore I 5 1942 p 466) Pico se preocupa em diferenciar a emanaccedilatildeo do primeiro princiacutepio com ldquoaquele que foi chamado por nossos teoacutelogos como lsquofilho de Deusrsquordquo ldquoEd abbi ciascuno diligente avvertenzia di non intendere che questo sia quello che darsquo nostri Teologi egrave detto figliuolo di Dio perchegrave noi intendiamo per il figliuolo una medesima essenzia col padre a lui in ogni cosa equale creatore finalmente e non creatura ma debbesi comparare quello che ersquo Platonici chiamano figliuolo di Dio al primo e piugrave nobile angelo da Dio creatordquo (idem)

576 Cf Cesare VASOLI in ldquoIntroduzionerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (Garin 2011) Pico estabelece niacuteveis de correspondecircncias outrossim entre determinados niacuteveis angeacutelicos e certas potecircncias integrantes do Orfismo como pode ser verificado em anaacutelise de Paolo FORNACIARI (2001) ldquoSatildeo inteligecircncias angeacutelicas e divindades homoacutelogas em funccedilatildeo e poder pois entre outras coisas as Potestades satildeo uma lsquodisposiccedilatildeo angeacutelica de tipo intermediaacuterio que eacute purificada iluminada e aperfeiccediloada pelos esplendores da divindadersquo bem como os lsquoCuretirsquo indicados nos Hinos oacuterficos 31 e 38 Em ambos os casos satildeo entidades mediadoras entre o uno e o mundo sensiacutevel geralmente benignos embora com enorme poder sobre o qual o homem deve manter-se consciente e com temor reverencialrdquo

577 PICO Concl (II) XI 36 (p135) ldquo[] cur dicatur apud Cabalistas quod Deus induit se decem vestimentis quando creauit saeculumrdquo

578 PICO Concl (I) VIII 10 (p55) ldquo[] de quibus ego in cabalisticis conclusionibus nichil possui quia est secretumrdquo Na deacutecima tese hermeacutetica Pico denomina os dez vingadores de lsquomala coordinatiorsquo verdadeiras e proacuteprias entidades negativas que se apresentam como o espelho perverso das Sefirot como deduz FORNACIARI (2001)

579 Gershom SCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 1960

169

tambeacutem chamados de lsquoGuias do Mundorsquo sendo o primeiro deles

aquele que se costuma dizer lsquounitariamente mais distantersquo

Finalmente vecircm os trecircs Implacaacuteveis e por uacuteltimo lsquoaquele que

estaacute cercado por baixorsquo580

Embora possa ser tentador investigar os significados das concepccedilotildees

mencionadas buscando seu aprofundamento esse se mostraria um caminho longo e

desnecessaacuterio para o tema tratado O que se pretende relevar ndash aleacutem de expor alguns

exemplos que ilustram o domiacutenio tratado ndash eacute que muitos dos conteuacutedos pertinentes

agraves estratificaccedilotildees dos planos metafiacutesicos ndash niacutevel onde Pico encontra elaboraccedilotildees

espaciais em elevada conformidade ndash envolvem tradiccedilotildees que lidam com a

transmissatildeo esoteacuterica e que compotildeem um segundo tipo de caracterizaccedilatildeo temaacutetica

Esse gecircnero de conteuacutedo encontra mais transposiccedilotildees para a linguagem escrita do

que o modelo anterior e o seguinte apesar de suas abstraccedilotildees constituiacuterem em

muitos casos um veacuteu indecifraacutevel De fato natildeo obstante as temaacuteticas atinentes ao

movimento de criaccedilatildeo e estabelecimento dos graus do muacuteltiplo serem mais

facilmente encontradas em material escrito ndash e portanto menos protegidas pelo

segredo ndash a ocultaccedilatildeo de suas particularidades se daacute por meio do recurso a uma

linguagem miacutetica alegoacuterica ou obscura (fundada sobre semacircnticas e formas

linguiacutesticas diferenciadas conforme a tradiccedilatildeo)

3 O terceiro domiacutenio contemplado pelo Esoterismo inclui em caraacuteter

acessoacuterio as formas de proteccedilatildeo a praacuteticas iniciaacuteticas que visam suplantar estaacutegios do

mundo sensiacutevel e intelectual O tema da ascese em direccedilatildeo agrave Unidade integra as

doutrinas mencionadas na De Hominis Dignitate visitadas no Capiacutetulo IV eacute um dos

conteuacutedos principais tratados no Pimandro hermeacutetico (a ascese a partir ldquodo reino da

natureza e da morterdquo) eacute o objetivo dos atos de contemplaccedilatildeo almejados na Cabala

Extaacutetica As crenccedilas oacuterficas de retorno agrave Unidade apresentam claras analogias com a

soteriologia encontrada no Segundo Tratado hermeacutetico Trismegisto que passara

pela experiecircncia iniciaacutetica da regeneraccedilatildeo diz a seu filho Tat que o ldquohomem

renascido seraacute deusrdquo581 em evidente paralelismo com os dizeres encontrados na

lacircmina oacuterfica de Turi do seacuteculo IV aC ldquoAlegra-te por teres sofrido o que nunca antes

sofreste de homem nasceraacutes um deusrdquo582

Tais processos iniciaacuteticos que objetivam alcanccedilar o mais alto grau da divindade

devem ser vistos como caracteriacutesticas secundaacuterias ou acessoacuterias como acima

disposto A caracteriacutestica efetivamente preciacutepua do terceiro domiacutenio esoteacuterico

encontra-se na proteccedilatildeo ao nuacutecleo concernente agraves Causas Primeiras Em torno a essa

dimensatildeo verifica-se uma confluecircncia doutrinaacuteria observada e relatada por Pico o

580 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus 1991 p18 Trecho extraiacutedo da Exposiccedilatildeo

Caldaica de Miguel Psello [42 (54)] que tivera contato com os Oraacuteculos atraveacutes dos textos de Proclo Psello e Plethon realizaram comentaacuterios extensos sobre os Oraacuteculos Caldeus e suas coleccedilotildees foram aumentadas por Franciscus Patricuis que em 1593 publicou em latim aquele conteuacutedo sistematizado em 324 oraacuteculos (Zoroaster et eius 320 Oracula Chaldaica) acrescentando-lhes conceitos de Proclo Heacutermias Simpliacutecio Damaacutescio entre outros Essa obra foi a base da classificaccedilatildeo feita por Thomas Taylor (The Chaldean Oracles London 1806)

581 Corpus Hermeticum XIII opcit p 379 582 Otto KERN Orphicorum Fragmenta fr32 c-f

170

uacuteltimo grau de ordenaccedilatildeo do sistema caldeu coincide com o que se verifica em textos

hermeacuteticos oacuterficos pitagoacutericos e neoplatocircnicos pode-se dizer que seus fins

convergem em direccedilatildeo agravequele nuacutecleo ndash identificado como ldquoiniacuteciordquo e ldquofimrdquo583 Assim

tambeacutem se averigua em outros nuacutecleos investigativos para a possibilidade de tal

ldquoencontrordquo se volta Clemente ao buscar sentidos natildeo literais nas Escrituras de forma

paralela em relaccedilatildeo ao mesmo material voltam-se os cabalistas em suas buscas

interpretativas e contemplativas ndash almejando alcanccedilar o estado de devekut (uniatildeo

com a Divindade)584 e em acircmbito misterioloacutegico esse eacute o propoacutesito para o qual se

dirigem as orientaccedilotildees relacionadas ao alcance da epopteia eleusina Sob registro

filosoacutefico Elia Del Medigo escrevera que o emprego do meacutetodo demonstrativo seria

capaz de comprovar princiacutepios fundamentais ndash por conduzir ao conhecimento das

coisas causadas ldquoe finalmente do Criadorrdquo585

Em torno aos Princiacutepios tem-se pois o norte de chegada das doutrinas

teoloacutegicas filosoacuteficas e algumas ritualiacutesticas partiacutecipes do projeto vislumbrado por

Pico conforme os vaacuterios exemplos apontados na Oratio Para esse fim Pico

direcionou suas principais reflexotildees de teor filosoacutefico que denominou ldquocausas das

coisasrdquo586 como verificaacutevel no De Ente et Uno no qual procurou dirimir o conflito

entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash conforme delineado na abordagem das fundamentaccedilotildees

filosoacuteficas do Autor no Capiacutetulo II Para fazer confluir as doutrinas dos dois

Filoacutesofos foi encetada uma discussatildeo em torno agravequela esfera Da mesma forma para

fazer convergir doutrinas como as caldaicas as pitagoacutericas e as neoplatocircnicas foram

observadas as relaccedilotildees das mesmas com as Causas Primeiras atraveacutes de seus

registros comprovou que os saacutebios caldeus acreditavam ldquoem um Princiacutepio uacutenico de

todas as coisasrdquo celebrando-o ldquocomo Uno e Bemrdquondash587 claro exemplo de uma

protologia natildeo desconhecida As linhas doutrinais percorridas na obra piquiana

partilham pois por vias singulares de concepccedilotildees similares em torno aos ldquofinsrdquo de

formas convergentes de comunhatildeo com a Unidade Nesse grau o sigilo estaacute sempre

presente e seus conteuacutedos quando transmitidos ocorrem apoacutes aacuterdua trajetoacuteria Ora

Pitaacutegoras quando ensinava a seus disciacutepulos natildeo lhes dava o poder de interpretar as

causas das coisas nos primeiros estaacutegios de suas especulaccedilotildees ele lhes ensinava

primeiramente a ldquociecircnciardquo somente no uacuteltimo grau de discipulado ndash o grau de

teleiotecircs correspondente ao telos ndash lhes eram reveladas as Causas os Princiacutepios588

Nesse niacutevel de especulaccedilatildeo por sua proximidade com a proacutepria Unidade muitas das

divergecircncias satildeo diluiacutedas podendo-se falar de uma concordacircncia teleoloacutegica

583 Eugenio Garin (2011 p149) amplia a rede de afinidades acrescendo aos acima mencionados elementos do

pensamento cristatildeo do gnosticismo do platonismo da miacutestica de Satildeo Joatildeo de Paulo e Nicolau de Cusa (apesar como enfatiza das iacutentimas divergecircncias entre cada uma dessas correntes)

584 Veja-se o Capiacutetulo V 585 Veja-se o Item 1 586 Cf Oratio p131 587 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus opcit 1991 p18 Os Oraacuteculos Caldeus talvez

por terem tido entre um de seus primeiros comentadores o neopitagoacuterico Numecircnio apresentam muitos elementos pitagoacutericos como a colocaccedilatildeo de uma Mocircnada ndash ou princiacutepio de Unidade ndash no veacutertice das coisas e de uma Diacuteade como princiacutepio do muacuteltiplo

588 Veja-se nota sobre o tema no Item 3 Capiacutetulo IV Cf Jacircmblico Vita Pythagorica 71-72 Dioacutegenes Laeacutercio VIII 10

171

Qual a razatildeo para a natildeo divulgaccedilatildeo de questotildees conceituais referentes aos

uacuteltimos niacuteveis metafiacutesicos Para Oriacutegenes os misteacuterios das Escrituras estatildeo ocultos

sob um veacuteu de coisas ldquovisiacuteveisrdquo para proteger aqueles ldquoincapazes de suportaacute-losrdquo589

Segundo Abulafia ldquoa alma humana natildeo pode suportar o influxo direto da inteligecircncia

superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm atada agrave mateacuteriardquo Maimocircnides de

forma mais extrema dizia que a nocividade da sabedoria metafiacutesica requer sua

transmissatildeo em alegorias pois ldquoaqueles que tentam compreender seus segredos sem

a devida preparaccedilatildeo seratildeo destruiacutedosrdquo590 O que se depreende de vaacuterias passagens

desse gecircnero eacute que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta

necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelo

intelecto finito Em termos teoloacutegicos a divindade soacute pode ser apreendida atraveacutes de

uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade Pico utiliza uma linguagem mais requintada

para referir-se agrave mesma condiccedilatildeo ldquoAs doutrinas sagradas estatildeo escondidas sob

termos populares como dentro de uma concha para que os olhos menos agudos natildeo

sejam ofuscados Trazem pois a luz para beneficiar aos satildeos mas a trazem escondida

e velada para natildeo ofender aos homens de vista fraacutegilrdquo591

O ldquoponto de chegadardquo sugerido na argumentaccedilatildeo proposta constitui uma

justificativa para a utilizaccedilatildeo de categorias esoteacutericas Tal dimensatildeo natildeo se configura

como um patamar atingiacutevel por especulaccedilotildees filosoacuteficas As aporias encontradas ao

final de um percurso dialeacutetico natildeo se resolvem por aproximaccedilotildees da razatildeo mas pela

ocupaccedilatildeo de um espaccedilo proacuteprio caracterizado por todas as tradiccedilotildees que tratam com

fenocircmenos iniciaacuteticos Vislumbra-se pois a existecircncia de um ldquoabismordquo ndash um

ldquoespaccedilordquo entre o muacuteltiplo e o Uno natildeo ultrapassaacutevel por procedimentos intelectuais

ndash sugerido ou subentendido pelas formas linguiacutesticas utilizadas nas tradiccedilotildees

esoteacutericas Pico tentara elucidar a concepccedilatildeo ldquoo abismo eacute a capacidade inteligiacutevel no

profundo pois penetrante e perscrutadora acima dessa encontra-se a escuridatildeo ateacute

que seja iluminada pelos raios das cogniccedilotildees espirituaisrdquo592 Quando o intelecto se

apaga quando a escada utilizada para elevar-se eacute abandonada a funccedilatildeo da miacutestica eacute

entatildeo exercida aquele espaccedilo eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes das transformaccedilotildees do miacutestico

que decorrem de seu contato com a divindade ndash as denominadas proteccedilotildees

ldquoacessoacuteriasrdquo dentro dos modelos apresentados de Esoterismo A forma de alcanccedilar tal

fim havia sido ademais sinalizada na Oratio dos trecircs niacuteveis supra-humanos aos

quais o homem pode elevar-se o niacutevel celeste eacute acessiacutevel pela razatildeo o niacutevel angeacutelico

pela dialeacutetica que permite o alcance do Inteligiacutevel o uacuteltimo niacutevel de conhecimento

do Absoluto ou da ldquounidade do espiacuterito com Deusrdquo poderaacute ser alcanccedilado atraveacutes do

589 Apud BLACK op cit pp103-104 590 MAIMOcircNIDES Dux neutrorum (Guia dos Perplexos) III 54 apud Naomi GOLDFELD Elia del Medigo e

lrsquoaverroismo hebraico in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 45 Maimocircnides nessa passagem refere-se ao relato da entrada de quatro rabinos no Pardes nem todos preparados para receber ldquoa verdaderdquo conforme sua leitura do Talmud Babilocircnico Hagigah 15a

591 PICO Heptaplus P1 p180 ldquoNos credere possumus satisfactum rudibus auditoribus si lumen scientiae quod introspicerent sapientes crassioribus verbis quasi cornea texta circumdatum obduxerit ne hebetiores inde Oculi perstringerentur Attulerit ergo lumen ut sanis oculis proforet inclusum tamen et velatum attulerit ne lippientibus officeretrdquo

592 Heptaplus III p253 ldquoAbyssus intellectualis proprietas est profunda quaeque penetrans et perscrutans Super hanc tenebrae sunt donec spiritalium notionum quibus omnia videt et intuetur radiis non illustraturrdquo

172

processo asceacutetico que reconduz ao ldquocentro da proacutepria unidaderdquo593 Haacute pois uma

dimensatildeo natildeo ultrapassaacutevel para a qual a Theoriacutea594 conduz por intermeacutedio de suas

filhas a Filosofia e a Teologia a uacutenica forma de ir aleacutem eacute atraveacutes do ecircxtase miacutestico

situaccedilatildeo extrema apontada em vaacuterias das tradiccedilotildees pelas quais Giovanni Pico

transitou e para a qual encetou sua proacutepria reflexatildeo

3 A Morte do Beijo

Um dos pontos mais elevados da reflexatildeo piquiana encontra-se no recurso de

conceituaccedilatildeo biacuteblico-cabaliacutestica referente agrave ldquomors osculirdquo ldquomorte do beijordquo uma das

possiacuteveis definiccedilotildees do ecircxtase miacutestico O tema trata de uma relaccedilatildeo extaacutetica em que

dois amantes um terreno e outro celeste alcanccedilam a comunhatildeo A concepccedilatildeo

(poeacutetica miacutestica e filosoacutefica)595 descreve a morte figurada que ocorre por ocasiatildeo da

separaccedilatildeo da alma dos acidentes do mundo sensiacutevel quando essa se vecirc colhida em

um transporte transcendente simbolizado pela troca do beijo miacutestico O tema eacute

sintetizado por Pico nas teses cabaliacutesticas 11 e 13 ldquosecundum opinionem propriamrdquo e

ampliado no Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo

Benivieni Conforme a conclusio cabalistica 11

O modo atraveacutes do qual as almas racionais satildeo sacrificadas a

Deus por intermeacutedio do Arcanjo natildeo especificado pelos

Cabalistas somente ocorre por via da separaccedilatildeo da alma do

corpo natildeo do corpo da alma exceto por acidente como

acontece na Morte do Beijo sobre a qual estaacute escrito lsquoPreciosa

na presenccedila do Senhor a morte de seus santosrsquo596

O fenocircmeno da separaccedilatildeo da alma do corpo conforme acima mencionado eacute

melhor descrito no Commento ldquoAgraves vezes se diz que a alma estaacute separada do corpo

mas natildeo o corpo dela e isto eacute quando cada uma das forccedilas da alma exceto a que o

corpo nutre chamada vegetativa estaacute ligada mas natildeo opera em nada como se natildeo

593 PICO Oratio p107 ldquo[] in unitatis centrum suae se receperit unus cum Deo spiritus factus in solitaria

Patris caliginerdquo 594 O termo se adequa agrave concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo conforme a

tradiccedilatildeo pitagoacuterica 595 A colocaccedilatildeo eacute de Paolo Fornaciari que adiciona a qualificaccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo ao conteuacutedo O comentador

considera a recuperaccedilatildeo dessa ldquoverdadeira hierogamiardquo um dos aportes mais originais que Pico empresta da Cabala ao Cristianismo um dos instrumentos mais eficazes de sua tatildeo almejada ascensatildeo agrave pax unificardquo (FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp24-25)

596 Concl II XI 11 p128 ldquoModus quo rationabiles animae per archangelum Deo sacrificantur qui a Cabalistis non exprimitur non est nisi per separationem animae a corpore non corporis ab anima nisi per accidens ut contigit in morte osculi de quo scribitur lsquopraeciosa in conspectu domini mors sanctorum eiusrsquordquo Pico extrai o uacuteltimo trecho de Salmos 116 15-16 Como ajuiacuteza Paolo FORNACIARI (ibid np41) a ldquomorte do beijordquo em latim ldquomors osculirdquo em hebraico ldquomytat benesiqahrdquo eacute um tiacutepico exemplo de cruzamento entre temas platocircnicos [que podem ser melhor depreendidos da leitura do Commento] e cabaliacutesticos A relaccedilatildeo extaacutetica eacute tambeacutem retratada no Cacircntico dos Cacircnticos entre Salomatildeo e sua amada que a leitura anagoacutegica identifica como Deus e sua relaccedilatildeo com Israel inteiramente de acordo com o tema cabaliacutestico do matrimocircnio miacutestico entre a sefiraacute Yesod (o fundamento mas tambeacutem a virilidade) e Knesset Israrsquoel (a comunidade dos fieacuteis) (ibid p24)

173

estivesse em nadardquo Tal situaccedilatildeo ocorre continua o texto quando a parte intelectual ndash

chamada por Pico ldquorainha da almardquo ndash estaacute em ato e operante natildeo sofrendo em si o

ato de qualquer outra potecircncia597 Essa condiccedilatildeo entre a alma e o corpo eacute chamada

ldquoprimeira morterdquo598

Atraveacutes da primeira morte que eacute a separaccedilatildeo apenas da alma do

corpo e natildeo o contraacuterio a amada Vecircnus celestial poderaacute

portanto ver o amante e esse estar face a face com ela

contemplando sua imagem divina e com seus olhos purificados

assim se alimentar599

O amante representa a mente600 ou a parte intelectual da alma que se une

ldquoem amorrdquo com algum niacutevel natildeo esclarecido do Inteligiacutevel Pico chama ainda a

atenccedilatildeo para o fato de o eventual ecircxtase alcanccedilado envolver o risco de uma segunda

morte a final A excessiva prolongaccedilatildeo do estado de ecircxtase marca um dos eventos

capazes de ocasionar a segunda morte ldquose muito se fortalecer e prolongar a operaccedilatildeo

intelectual eacute necessaacuterio que desta uacuteltima parte vegetativa a alma tambeacutem se separe

de forma que ela do corpo e o corpo dela sejam separadosrdquo Haacute outra forma de

deflagrar a segunda morte indicada no Commento atraveacutes de uma obscura

advertecircncia em relaccedilatildeo a outro tipo de relaccedilatildeo que o praticante possa pretender ldquoE

note-se que a uniatildeo mais perfeita e iacutentima que o amante possa ter com a amada

celestial eacute denotada pela uniatildeo do beijo porque qualquer outro congresso ou coacutepula

usado no amor corporal natildeo eacute liacutecito usar em qualquer forma de transfiguraccedilatildeo601

neste santo e sagradiacutessimo amorrdquo602 Em caso de tal pretensatildeo o Autor daacute a entender

que a segunda morte pode ser almejada

Quem ainda mais intrinsecamente quiser possuiacute-la e natildeo

contente em vecirc-la e ouvi-la quiser ser digno dos seus abraccedilos

iacutentimos e beijos anelantes deve separar-se de si mesmo

totalmente atraveacutes da segunda morte do corpo e entatildeo natildeo soacute

ver e ouvir a Vecircnus celestial mas com um noacute indissoluacutevel

abraccedilaacute-la e com beijos de um ao outro sua proacutepria alma

597 A uacutenica potecircncia que ainda pode operar na alma nesse estado acresce Pico ldquoeacute a potecircncia nutritiva cujas

operaccedilotildees por seu grande distanciamento da alma natildeo satildeo de todo anuladas por seus atos embora muito debilitadasrdquo (Commento pp557-558)

598 Como informa Giulio BUSI (Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p66) a ldquoprimeira morterdquo do corpo no leacutexico neoplatocircnico eacute o resultado do encaminhar-se em um percurso contemplativo que leva agrave morte figurada ou filosoacutefica

599 Commento p557 O texto original natildeo foi escrito em latim mas em italiano ldquoPuograve dunque per la prima morte che egrave separazione solo dellrsquoanima dal corpo e non per lrsquoopposito vedere lo amante lrsquoamata venere celeste e a faccia a faccia con lei ragionando della divina immagine sua ersquo suoi purificati occhi felicemente pascererdquo

600 Cf nota de Eugenio Garin agrave sua traduccedilatildeo do Commento (1942 np 557) 601 No texto original a palavra utilizada eacute lsquotraslazionersquo que Garin corrige em nota agrave traduccedilatildeo como

lsquotransunzionersquo (ed Vallecchi 1942 p 558) 602 Commento pp557-558 ldquoE nota che la piugrave perfetta e intima unione che possa lrsquoamante avere della celeste

amata si denota per lrsquounione del bacio perchegrave ogni altro congresso o copula piugrave in lagrave usata nello amore corporale non egrave licito per alcuno modo per traslazione alcuna usare in questo santo e sacratissimo amorerdquo

174

transfigurar estando tatildeo perfeitamente unidas que ambas

podem ser chamadas de uma soacute alma603

Nas Conclusiones Pico retoma a questatildeo da segunda morte do corpo dessa

vez em razatildeo de algum tipo de imperiacutecia praticado durante o ldquointercursordquo O preccedilo a

pagar estaacute bem expresso na conclusio cabalistica 13

Quem operar em Cabala sem a presenccedila de algum estranho se

exporaacute agrave binsica [Morte do Beijo] caso se prolongue muito no

trabalho E se cometer erros durante o trabalho ou se

aproximar deste sem a devida purificaccedilatildeo seraacute devorado por

Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedila604

O Commento natildeo ultrapassa essas poucas indicaccedilotildees e seu autor deixa claro

que ldquonatildeo lereis nada a mais em seus livros [dos cabalistas] a natildeo ser que binsica isto

eacute a morte do beijo ocorre quando a alma no rapto intelectual se une agraves coisas

separadas e do corpo elevada em tudo o abandonardquo605 Provavelmente Pico obteve as

referecircncias sobre a Morte do Beijo atraveacutes de suas leituras de Maimocircnides que no

final do seacuteculo XI havia retomado do Talmud o tema do beijo divino oferecendo no

Guia dos Perplexos uma profunda exegese do assunto relacionando o uacuteltimo

intercurso ao desvanecimento do corpo na velhice condiccedilatildeo necessaacuteria para que o

impulso vital se transformasse em ldquopuro pensamentordquo606 Ou pode ter lido sobre o

assunto em Menachem Recanati outra de suas fontes que acerca do binsica elaborou

uma ldquoviagem extrema e alienanterdquo607 tendo legado um passo importante por

descrever de forma bastante detalhada o percurso miacutestico que pode conduzir ao

beijo beatificante e letal

Os padres morriam de um beijo Quando os pios e os homens de

accedilatildeo se encontravam em solidatildeo e imersos nos segredos

supernos a faculdade imaginativa de seus pensamentos fazia

que as coisas se mostrassem como gravadas perante eles E

603 Commento p557 ldquoma chi piugrave intrinsicamente ancora la vuole possedere e non contento del vederla e

udirla essere degnato dersquo suoi intimi amplessi e anelanti baci bisogna che per la seconda morte dal corpo per totale separazione si separi e allora non solo vede e ode la celeste Venere ma con nodo indissolubile a lei srsquoabbraccia e con baci lrsquouno in lrsquoaltro la propia anima trasfudendo non tanto cambiano quelle quanto che sigrave perfettamente insieme si uniscono che ciascheduna di loro dua anime e ambedue una sola anima chiamare si possonordquo

604 Concl II XI 13 p128 ldquoQui operatur in Cabala sine admixtione extranei si diu erit in opera morietur ex binsica et si errabit in opere aut non purificatus accesserit deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudiciirdquo Conforme FORNACIARI (2009 np42) para atingir o estado de ldquobinsicardquo ou a ldquomorte do beijordquo a alma racional que aspira agrave separaccedilatildeo da alma do corpo deve encontrar-se soacute Azazel na demonologia cristatilde eacute uma das sete epifanias do lado maligno Provavelmente Pico tomou o conceito de Azazel de Abulafia e de seu comentaacuterio ao Guia dos Perplexos de Maimocircnides que lhe foi traduzido por Mitridate

605 Commento p558 ldquonegrave piugrave nersquo loro libri leggerai se non che binsica cioegrave morte di bacio egrave quando lrsquoanima nel ratto intellettuale tanto alle cose separate si unisce che dal corpo elevata in tutto lrsquoabbandonardquo O Binsica que fecha o Commento eacute na opiniatildeo de BUSI (2014 p68) o mais afortunado entre os hiacutebridos piquianos retomado posteriormente por renomados como Baldassare Castiglione e Giordano Bruno Na continuidade da passagem Pico narra que os cabalistas mencionam que alguns de seus padres ldquomorreram de binsica como eacute o caso de Abraatildeo Jacoacute Moiseacutes Aaron Maria e alguns outrosrdquo Pico provavelmente extrai isso do Talmud da Babilocircnia que apresenta passos com essas menccedilotildees

606 BUSI opcit 2014 p69 607 Cf traduccedilatildeo de Giulio Busi 2014 p70

175

enquanto uniam suas almas agrave alma superior as coisas se

multiplicavam e se revelavam da fonte do pensamento como

quem abre uma cisterna drsquoaacutegua que comeccedila a fluir O

pensamento unido eacute de fato como fonte e cisterna que natildeo se

exaure [] Graccedilas agrave uniatildeo do pensamento com a emanaccedilatildeo as

palavras se multiplicam e crescem e surgem na alegria Por isso

foi ensinado que lsquoa Sekinah natildeo se manifesta na indolecircncia mas

na alegriarsquo608

As vaacuterias faces do misticismo de Giovanni Pico devem ser unificadas a partir

de evidecircncias amplamente dispersas nas Teses e confirmadas por discussotildees

retomadas em outras obras O tema da ascensatildeo miacutestica que ocorre antes da uniatildeo

extaacutetica sugerida pela imagem da Morte do Beijo eacute tambeacutem desenvolvido no

Commento Em uma interpretaccedilatildeo pessoal da tradicional escada platocircnica do

amor609 Pico relata a ascensatildeo em sete passos que envolvem uma progressatildeo ao

conhecimento ndash ldquoconhecimento reflexivordquo em seus termos ndash com a gradual

transformaccedilatildeo aniacutemica do sensual para o racional e sucessivamente para as

faculdades inteligiacuteveis Nos uacuteltimos graus de ascese o quinto e o sexto a alma

alcanccedila a ldquoVecircnus celestialrdquo (o inteligiacutevel ou a mente angeacutelica) que se lhe revela em sua

proacutepria imagem ndash embora ainda natildeo com a ldquoplenitude total de sua belezardquo pois que

esta natildeo pode ser apreendida pelo intelecto particular ou ldquoparcialrdquo da alma Assim

atraveacutes do amor a alma une seu intelecto parcial ao inteligiacutevel universal a ldquoprimeira

das criaturas a uacuteltima e universal hospedagem da beleza idealrdquo610

O seacutetimo passo da exposiccedilatildeo piquiana contempla o termo da trajetoacuteria um

estado de quietismo sugerido pela suacutebita mudanccedila de paradigma de linguagem ndash de

ativa durante o processo intelectual para passiva ao descrever o estaacutegio mais

elevado da ascensatildeo miacutestica ndash como bem observou Stephan Farmer611 ao final de seu

percurso quando o homem nada mais pode alcanccedilar por meio de seus proacuteprios

recursos a alma eacute ldquoatraiacutedardquo ldquopossuiacutedardquo ldquointoxicadardquo ldquoconsumidardquo ldquoinspiradardquo

ldquoiluminadardquo ldquoaperfeiccediloadardquo e finalmente ldquofelicitadardquo por Deus Em tal ponto

608 Menachem RECANATI Bersquour lsquoal ha-Torah Lemberg Wa-yehi 1880-81 c37d apud BUSI 2014 p70 A

fonte agrave qual Recanati recorre para dar um conteuacutedo teoacuterico agrave passagem eacute Azriel de Gerona atraveacutes de seu Comentario agraves aggadot talmuacutedicas A concepccedilatildeo de Sekinah estaacute relacionada com a ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina presente na literatura midraacuteshica conforme verificado no Capiacutetulo V Aqui quer significar o espaccedilo da emanaccedilatildeo divina Maiores detalhes podem ser vistos em BUSI 2011 p21

609 Cf FARMER opcit p110 610 Commento pp 567-569 Pico remete-se ao Banquete e ao Fedro para efetuar sua exposiccedilatildeo conforme sua

proacutepria indicaccedilatildeo (ibid p567) No primeiro dos sete passos de sua progressatildeo ao conhecimento a beleza particular de um objeto eacute percebida pelos sentidos e eacute desejada por si mesma No segundo passo a beleza sensual eacute abstraiacuteda pela capacidade inerente agrave alma embora ainda permanecendo distante de sua origem No terceiro passo a alma ldquoconsidera a proacutepria natureza da beleza corporal em si mesmardquo contemplando a ldquobeleza universal de todos os corpos compreendidos em conjuntordquo A beleza corpoacuterea desempenha um papel apenas nesses trecircs primeiros passos No quarto passo a alma conclui que a visatildeo da beleza corpoacuterea universal natildeo procede de um objeto exterior sensiacutevel mas de sua proacutepria luz e poder intriacutensecos e assim transformando-se em si mesma vecirc a imagem de beleza ideal que participa do intelecto No quinto passo fundamentando-se no conhecimento ldquoreflexivordquo a alma se eleva de sua parte racional para sua parte intelectual permitindo-se acolher a ldquoVecircnus celestialrdquo em sua proacutepria imagem Por fim a alma se une ao intelecto universal atraveacutes do amor A realizaccedilatildeo dessa uniatildeo na sexta etapa conclui sua jornada pois natildeo lhe eacute permitido ir mais longe no seacutetimo grau ndash no qual deve descansar com alegria ao lado do primeiro Pai a fonte da beleza

611 FARMER pp39 ss 112

176

terminal Pico faz convergir o percurso filosoacutefico com a experiecircncia religiosa ao

sugerir que no cume do processo gnosioloacutegico do homem ndash que atribui aos

platocircnicos chamar de ldquounidade da almardquo ndash a alma ldquose une imediatamente a Deusrdquo612

De suas leituras socraacuteticas apreendera que o ecircxtase miacutestico era comparaacutevel ao

reencontro com a eternidade inteligiacutevel em um estado de contemplaccedilatildeo que sacia a

alma e a coloca frente a frente com a plenitude de cada realidade613 Concepccedilatildeo

similar fora descrita em termos religiosos na De Hominis Dignitate na qual se lecirc

que em seu estado miacutestico mais elevado o homem eacute ldquofeito um soacute espiacuterito com Deusrdquo

deixando de ser ele mesmo e passando a ser ldquoAquele mesmo que o fezrdquo614

A concepccedilatildeo da Morte do Beijo pode ser tomada como um bom modelo do

ldquofimrdquo ndash temporaacuterio na ldquoprimeira morterdquo ou definitivo na ldquosegundardquo ndash para o qual

convergem muitas das argumentaccedilotildees piquianas de teor esoteacuterico Tal concepccedilatildeo de

caraacuteter precipuamente teoloacutegico coaduna-se com o seacutetimo grau do percurso

filosoacutefico dialeacutetico postulado no Commento estaacutegio que fora sinteticamente exposto

na Conclusio 58 in doctrina Platonis

A caccedilada de Soacutecrates[] pode ser adequadamente dividida em

seis graus o primeiro eacute a existecircncia de mateacuteria externa o

segundo a existecircncia particular imaterial o terceiro a existecircncia

universal o quarto a existecircncia racional o quinto a existecircncia

inteligiacutevel particular o sexto a existecircncia inteligiacutevel total No

seacutetimo grau eacute preciso desistir da caccedilada615

612 Commento p479 ldquoel sommo di questa parte intellectiva chiamano ersquo Platonici unitagrave della anima [hellip]rdquo 613 Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro pp57-58 60-61 Haacute vaacuterias passagens nas quais Soacutecrates tece

analogias entre o ecircxtase miacutestico e o reencontro da alma com o Inteligiacutevel As analogias se relacionam ao deliacuterio amoroso (Fedro 265 a-b) ao deliacuterio poeacutetico (Iacuteon 534 b-d) e tambeacutem ao deliacuterio loacutegico mesmo que ldquoem estado de deliacuteriordquo deve haver juacutebilo ldquoem sentir-se arrebatado pela eternidaderdquo (Feacutedon 69 c-d)

614 Oratio pp123-125 615 PICO Conclvsiones II V 58 (grifo nosso) ldquoVenatio illa Socratis de qua in Protagora conuenienter per sex

gradus potest sic distribui ut primus sit esse materiae extrinsecae secundus esse particulare immateriale tertius esse uniuersale quartus esse rationale quintus esse particulare intellectuale sextus esse totale intellectuale in septimo tanquam in sabbato cessandum est a uenationerdquo Eugenio Garin ao rodapeacute da passagem corrige ldquointelectualrdquo utilizado por Pico por ldquointeligiacutevelrdquo O tema eacute extraiacutedo do Protaacutegoras (321 b ss) conforme informado pelo proacuteprio Pico na mencionada passagem

177

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As obras de Pico della Mirandola analisadas ndash Conclusiones Nongentae De

Hominis Dignitate e Heptaplus ndash embora bastante distintas em termos de forma

conteuacutedo e propoacutesito apresentam em comum um amplo emprego de referecircncias

retiradas de doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do Esoterismo Os elementos

pertinentes a esse campo coletados nas trecircs obras evidenciam que as reflexotildees do

Autor se apropriam daqueles conteuacutedos reutilizando-os em formas hermenecircuticas

proacuteprias Conforme o intento proposto para esta tese foram identificadas tais

referecircncias cuja inserccedilatildeo em meio agraves argumentaccedilotildees se faz de forma fluiacuteda sem

instituir contrastes com categorias do universo filosoacutefico A verificaccedilatildeo de constantes

repeticcedilotildees desses modelos permite que seu conjunto seja estabelecido como uma

categoria proacutepria do pensamento piquiano Um objetivo secundaacuterio foi mostrar que o

recrutamento de tais elementos mostra-se no decorrer da leitura das obras uma

condiccedilatildeo essencial para o alcance de suas siacutenteses

A anaacutelise das Conclusiones realizada no Terceiro Capiacutetulo permitiu que

algumas constataccedilotildees fossem dispostas Entre o conglomerado de sistemas presentes

na obra foi visto que alguns temas despertam maior interesse do Autor vindo a se

condensar nas teses que integram os uacuteltimos grupos da obra Embora natildeo

apresentadas em formato argumentativo as teses dos quatro uacuteltimos grupos (que

tratam de doutrinas maacutegicas oacuterficas caldaicas e cabaliacutesticas) apresentam em seu

conjunto um postulado doutrinaacuterio de acentuado tom esoteacuterico cujos indiacutecios

conceituais satildeo verificaacuteveis no percurso das demais obras piquianas O mesmo

Capiacutetulo expotildee especiacuteficas teses de cunho teoloacutegico-cristatildeo que poderiam soar

estranhas dentro de uma investigaccedilatildeo que tem por objetivo tratar da utilizaccedilatildeo de

paradigmas esoteacutericos Essa abordagem mostrou-se uacutetil por permitir evidenciar

primeiramente que o Pico que se aproxima de teologias natildeo-cristatildes o faz como

algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em segundo lugar a

verificaccedilatildeo do material teoloacutegico permitiu a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-razatildeo no

pensamento piquiano necessaacuteria para a compreensatildeo da teleologia envolvida em sua

busca por convergecircncias doutrinaacuterias A partir dessa abordagem foi possiacutevel

constatar que a visatildeo piquiana de religiatildeo estaacute relacionada em um primeiro

momento a uma busca racional (pois ldquoa feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior

agrave razatildeordquo) busca essa que no entanto deve ser abandonada em seu uacuteltimo estaacutegio

(pois ldquoa feacute verdadeira eacute superior ao intelecto conjugando-nos imediatamente a

Deusrdquo)

Na De Hominis Dignitate tratada no Quarto Capiacutetulo verificou-se que a

concepccedilatildeo de dignidade do homem em Pico eacute diretamente relacionada agrave ideia de

transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios ndash vegetal animal racional intelectual

ndash apontando em direccedilatildeo agrave necessidade de exerciacutecios para a efetivaccedilatildeo de sua

liberdade ndash condiccedilatildeo que capacita o homem a encetar um percurso de auto

178

transformaccedilatildeo Assim o apregoado processo de transmutaccedilatildeo atraveacutes do qual o

homem inferior eacute regenerado e reconectado com o divino eacute entendido pelo Escritor

como um caminho a ser percorrido com o auxiacutelio de corretas ferramentas Os sete

modelos de processos triaacutedicos examinados extraiacutedos de registros histoacutericos

defendidos na obra ndash a dialeacutetica platocircnica o modelo angeacutelico pseudo-dionisiacuteaco a

misteriologia grega os paradigmas miacuteticos de Dioniso e Osiacuteris a representaccedilatildeo do

tabernaacuteculo da tradiccedilatildeo hebraica as praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas e a misteriologia

caldaica ndash fundamentam-se na tradiccedilatildeo oral ou na utilizaccedilatildeo de formas de linguagem

enigmaacuteticas que encobrem seus verdadeiros significados Os sete paradigmas de

trajetoacuterias asceacuteticas apontam na uacuteltima etapa para a experiecircncia de encontro com

um centro de unidade termo da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o

Absoluto

O mesmo fim eacute postulado atraveacutes do seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto

por Pico no Heptaplus que representa uma clara indicaccedilatildeo de preparaccedilatildeo do homem

ndash no qual se encerra um princiacutepio metafiacutesico de contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de

realidade ou dos Mundos analogados na obra ndash que culmina em sua unificaccedilatildeo com

o divino O Sexto Capiacutetulo testifica que para erigir seu projeto de teoria global de

representaccedilatildeo do mundo o Autor recruta registros que se fundamentam sobre

transmissotildees orais a comprovaccedilatildeo de idoneidade de Moiseacutes principal alicerce

referencial sobre o qual se edifica o projeto do Heptaplus eacute concebida a partir de

testemunhos retirados em sua totalidade de fontes esoteacutericas ndash ou tidas como

esoteacutericas ndash como os Misteacuterios gregos e egiacutepcios o pitagoacuterico Hermipo Pseudo-

Dioniacutesio os disciacutepulos de Amocircnio e ainda Platatildeo Jesus e seus disciacutepulos Paulo e

Joatildeo Satildeo assim utilizados mais uma vez paracircmetros utilizados em obras

anteriores ndash nesse caso para defender a autoridade de Moiseacutes paradigma essencial

em sua representaccedilatildeo do ser que alcanccedilou o uacuteltimo estaacutegio de uniatildeo com o divino

No uacuteltimo Capiacutetulo argumentou-se que o apelo a uma dimensatildeo alcanccedilada por

intermeacutedio de uma experiecircncia miacutestica pessoal eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que se

alcance o ldquofimrdquo apregoado nas obras piquianas Em De Ente et Uno Pico havia

refletido que soacute a razatildeo natildeo seria garantia de obtenccedilatildeo de qualquer resposta

postulando a impossibilidade de se colher Deus com o simples recurso do intelecto

ldquoo homem enquanto criatura racional se debate em vatildeo entre a necessidade de

afirmar a unidade que sente em sua proacutepria raiz e a impossibilidade derivada de sua

mesma subsistecircncia como natureza racional de alcanccedilaacute-la mantendo-se ele mesmordquo

Deparar-se com o abismo que o separa da Divindade mostra-se inevitaacutevel O ecircxtase

miacutestico eacute um caminho que possibilita realizar tal travessia A linguagem miacutetica ou

alegoacuterica por sua vez natildeo apenas protege tal dimensatildeo iniciaacutetica como permite a

apreensatildeo intelectual de tal fenocircmeno A Morte do Beijo a epopteia eleusina a visatildeo

de Moiseacutes no Sinai a illuminatio angeacutelica a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo

agostiniano o devekut cabaliacutestico representam momentos de unidade temporaacuteria ndash

a ldquoprimeira morterdquo descrita por Pico ndash que espelham a dissoluccedilatildeo na Unidade final

179

Apesar de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Giovanni Pico acolhe torna

suas e finalmente refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis A

sua tentativa de obter respostas eacute ampliada pelo acreacutescimo de um novo paradigma

categorial Mais do que isso a utilizaccedilatildeo da categoria esoteacuterica torna-se condiccedilatildeo

absolutamente necessaacuteria para o alcance do fim apontado em suas obras Resta

pontuar que o conjunto da obra piquiana natildeo se mostra algo distante pois de fato ali

estaacute relatada natildeo uma meta atingida mas uma perene busca Esse caminho encontra-

se descrito no De Ente et Uno qual uma previsatildeo pessoal natildeo intencional na qual o

Autor intui que ldquoo processo de colher Deus natildeo resulta em uma unidade que se

determina e resolve para sempre mas sim de um processo de unificaccedilatildeo que

procede ao infinitordquo

180

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

1 Fontes Primaacuterias

Traduccedilotildees de obras de Giovanni Pico della Mirandola

De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Eugenio Garin (org) Firenze Vallecchi 1942

Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Albano Biondi (org) Firenze Leo S Olschki 19952013

Conclusiones Cabalisticae Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009

Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009

Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Eugenio Garin (org) Vol I e II Firenze Vallecchi 1946-1952

Discorso sulla Dignitagrave dellrsquouomo Francesco Bausi (org) Parma Guanda 2003

Oratio de Hominis Dignitate Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001

A Dignidade do Homem Trad Luiz Feracine Campo Grande Solivros 1999

Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Trad Eugenio Garin Carmagnola Arktos 1996

Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Paolo Edoardo Fornaciari (org) Firenze Sismel Edizioni 2010

Expositiones in Psalmos Trad Antonino Raspanti - Giacomo Raspanti Firenze Leo Olschki 1997

Outras Fontes Primaacuterias

AGOSTINHO DE HIPONA Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2014

____ A Cidade de Deus Trad J Dias Pereira VolI Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996

CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Les Stromates Alain Le Boulluec (org) Trad Pierre Voulet Paris Eacuteditions du Cerf 1981

181

DIONIacuteSIO AREOPAGITA PSEUDO A Hierarquia Celeste Carin Zwilling (org) Satildeo Paulo Polar 2015

FICINO MARSILIO Theologia Platonica Milano Bompiani 2011

____ Opera Omnia Mario Sancipriano - Paul Oskar Kristeller (org) Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II

PICO DELLA MIRANDOLA GIANFRANCESCO Johannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consummatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta Bruno Andreolli (org) Modena Aedes Muratoriana 1994

PLATONE Tutte le opere Roma Newton Compton Editori 2010

PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Milano Bompiani 2010

POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006

CORPUS HERMETICUM Edizione e comento di Arthur Darby Nock Trad Andreacute-Jean Festugiegravere A cura di Ilaria Ramelli Milano Bompiani 2006

DE ORACULIS CHALDAICIS Trad Wilhelm Kroll Reprints from the collection of the University of Michigan Library [1894] Hildesheim G Olms 1962

SEcircFER YETSIRAacute O Livro da Criaccedilatildeo Aryeh Kaplan (org) Trad Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005

SEPHER HA-ZOHAR Trad Paul Vulliaud In Eacutetudes et Correspondance de Jean de Pauly Relatives au Sepher Ha-Zohar Paris Bibliothegraveque Chacornac 1933

ZOcircHAR RABI SHIMON BAR IOCHAI (atribuiacutedo a) Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume Editora 2013 (Tomo I) 2014 (Tomo II)

2 Fontes Secundaacuterias

AMBESI ALBERTO CESARE Giovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera In Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Carmagnola Arktos 1996

ANAGNINE EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico Bari Laterza 1937

BACON ROGER Opus maius IV Oxford JH Bridges 1897

BACCHELLI FRANCO Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica Cittagrave di Castello Leo S Olschki 2001

182

BARON HANS The Crisis of Early Italian Renaissance Civic Humanism and Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny New Jersey Princeton University PressNewberry Library 1966

____ En Busca del Humanismo Ciacutevico Florentino ndash Ensayos sobre el Cambio del Pensamiento Medieval al Moderno Trad Miguel Abelardo Camacho Ocampo Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Economica 1993

BARONE GIUSEPPE Antologia Giovanni Pico della Mirandola Milano Virgilio Editore 1973

BARTOLUCCI GUIDO Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana In Fabrizio Lelli (org) Giovanni Pico e la Cabbalagrave Firenze Leo Olschki 2014

BASTITTA HARRIET FRANCISCO Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Buffon-Drsquoamico (org) Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana Santa Feacute Ediciones UNL 2016

BATKIN LEONID M LrsquoIdea di Individualitagrave nel Rinascimento Italiano Trad Valentina Rossi Roma-Bari Laterza 1992

BAUSI FRANCESCO (org) Giovanni Pico della Mirandola Opere complete Torino Lexis Progetti Editoriali 2000

____ Nec rethor neque philosophus Fonti lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-87) Firenze Leo Olschki 1996

____ E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza Napoli Liguori 1998

BAZAacuteN FRANCISCO GARCIA ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus Madrid Biblioteca Claacutesica Gredos 1991

BEMPORAD DL ndash ZATELLI IDA (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Celebrazioni del V centenario della morte di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998

BERTI DOMENICO Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti In Rivista Contemporanea VII vol XVI Torino 1859

BERTOZZI MARCO (org) Nello specchio del cielo Giovanni Pico della Mirandola e le ldquoDisputationes contro lrsquoastrologia divinatoriardquo Firenze Leo Olschki 2008

BIDEZ JOSEPH ndash CUMONT FRANZ Les mages helleniseacutes Paris Belles Lettres 1938

BIGNOTTO NEWTON Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola In O que nos faz pensar nr 27 2010

BIONDI ALBANO ldquoIntroduzionerdquo alle Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 2013

183

BLACK CROFTON Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics Boston Brill 2006

BORI PIER CESARE I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola In Annali di storia dellrsquoesegesi 132 1996 pp 551-564

____ Pluralitagrave delle vie Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola Milano Feltrinelli 2000

BROCCHIERI MARIATERESA F B Pico della Mirandola Bari Laterza 2011

BURCHIELLARO GIANFRANCO ldquoIntroduzionerdquo a Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001

BURCKARDT JACOB La civiltagrave del Rinascimento in Italia Trad Valbusa Vol II Firenze Sansoni 1902

BURKERT WALTER Antigos Cultos de Misteacuterio Satildeo Paulo Edusp 1987

BUSI GIULIO La Qabbalah Roma-Bari Laterza 2011

____ Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001

____ Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo Torino Busi e Loewenthal (eds) 1995

____ Pico fede ragione e Inquisizione In Il Sole-24 Ore 28082018

BUSI GIULIO - EBGI RAPHAEL Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah Torino Giulio Einaudi Editore 2014

CASSIRER ERNST Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento Trad F Federici Firenze La Nuova Italia 19351977

CASSUTO UMBERTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze Leo Olschki 1918 (ristampa 1965)

CATAgrave CESARE ldquoLidea di lsquoanima stellatarsquo nel Quattrocento fiorentino Andrea da Barberino e la teoria psico-astrologica in Marsilio Ficinordquo In Bruniana amp Campanelliana XVI 2 2010 pp 629-639

CERETTI FELICE Biografie pichensi II Mirandola 1909

____ Giulia Boiardo In Atti e Memorie della Deput di Storia Patria dellEmilia Modena 1881

CHASTEL ANDREacute LrsquoArtista In Eugenio Garin (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016

COLLI GIORGIO A Sabedoria Grega ndash I (Fragmentos) Traduccedilatildeo Renato Ambroacutesio Satildeo Paulo Paulus 2012

COPENHAVER BRIAN Lrsquoocculto in Pico In Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Firenze Leo Olschki 1997

184

____ The Secret of Picorsquos Oratio Cabala and Renaissance Philosophy In Midwest Studies in Philosophy 26 2002

____ Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the

Renaissance In Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe Washington Associated University Presses 1988

COPENHAVER BRIAN ndash SCHMITT CHARLES Renaissance philosophy A History of Western Philosophy Oxford University Press 1992

CORAZZOL GIACOMO Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo In Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 pp9-61

CORBIN HENRY Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien Paris Eacuteditions Preacutesence 1971

CRAVEN WILLIAM G Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher Geacutenegraveve Librairie Droz 1981

CRINITO PIETRO De honesta disciplina Carlo Angeleri (org) Roma Fratelli Bocca 1955

CROCIANI LAMBERTO Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (orgs) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998 pp85-99

CROUZEL HENRY Pic de la Mirandole et Origegravene In Bulletin de litteacuterature eccleacutesiastique 66 1965 pp174-194 e pp272-288

DEacuteCARREAUX JEAN Les Grecs au Concile de lrsquo Union Ferrare-Florence 1438-1439 Paris A et J Picard 1970

DELLA TORRE ARNALDO Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze Firenze G Carnesecchi e Figli 1902

DE RUGGIERO GUIDO La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920

DES PLACES EDOUARD Oracles chaldaiumlques Paris Les Belles Lettres 1971

DI NAPOLI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma Desclee amp C Editori Pontifici 1965

____ LrsquoEssere e lrsquoUno in Pico della Mirandola In Rivista di Filosofia neoscolastica 46 1954 pp 356-389

DI NOLA ALFONSO MARIA Cabbala e mistica giudaica Roma Carucci 1984

DOREZ LEacuteON - THUASNE LOUIS Pic de la Mirandole em France (1485-88) Paris Ernest Leroux 1897 (Slatkine Reprints Genegraveve 1976)

185

DOREZ LEacuteON Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) In Giornale Storico della Letteratura italiana 25 1895

____ La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien In Giornale Storico della Letteratura italiana 32 1898

DOUGHERTY MICHAEL V (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

DUJOVNE LEOacuteN Kabbala Sefer Yetsiraacute El libro de la Creacion Buenos Aires Sigal 1992

____ El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires Sigal 1992

DUKAS JULES Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle Paris L Techener 1876

EDELHEIT AMOS Ficino Pico and Savonarola The evolution of Humanist Theology Leiden Brill 2008

FAIVRE ANTOINE Access to Western Esotericism Albany Suny Press 1994

FARMER STEPHAN ALAN Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems Temple Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies 1998

FAVARO A Lettera a Francesco Ingoli (org) In Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei v 6 Firenze Barbera Editore 1933

FERACINE LUIZ Prefaacutecio e Comentaacuterios a A Dignidade do Homem de Pico della Mirandola Campo Grande Solivros 1999

FESTUGIEgraveRE ANDREacute-JEAN Studia Mirandulana In Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge Paris Librairie Vrin 1933

____ La reacuteveacutelation drsquoHermegraves Trismeacutegiste 4 volumes Paris Les Belles Lettres 1950-1954

FIELD ARTHUR The Platonic Academy of Florence In Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy (Allen-Rees org) Leiden Brill 2002

FORNACIARI PAOLO EDOARDO Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano Mimesis 2009

____ Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano Mimesis 2009

____ Introduzione e Note a Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel 2010

____ Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola In Bruniana e Campanelliana 7 2001 pp627-633

186

GARFAGNINI GIAN CARLO (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) Firenze Leo Olschki 1997

GARIN EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina Roma Edizioni di Storia e Letteratura 2011

____ Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento 1965

____ La cultura del Rinascimento Bari Laterza 1967

____ Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975

____ Ermetismo del Rinascimento Pisa Della Normale 1986 (copia anastatica 2006)

____ Ritrati di Umanisti ndash Sette Protagonisti del Rinascimento Milano Bompiani 1996

____ Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento Bari Laterza 2007

____ LUmanesimo italiano Bari Laterza 2008

____ (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016

GENTILE GIOVANNI Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento Firenze Codignola 1991

GENTILE SEBASTIANO Il ritorno di Platone dei platonici e del corpus ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino In Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento Milano Mondadori 2002

GILL JOSEPH Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967

GILSON ETIENNE Les Meacutetamorphoses de la Citeacute de Dieu Publications Universitaires de Louvain Librairie Philosophique Louvain-Paris J Vrin 1952

GOLDFELD NAOMI VOGELMANN Elia del Medigo e lrsquoAverroismo hebraico In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

GRAFTON ANTHONY Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore In Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers Ann Arbor University of Michigan Press 1997

GRIFFITHS J GWYN (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970

187

GRIMALDI NICOLAS Soacutecrates o Feiticeiro Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006

GUICCIARDINI FRANCESCO Storie Fiorentine dal 1378 al 1509 Bari Laterza 1931

HANEGRAAFF WOUTER J (org) Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism Leiden Brill 2006

HANKINS JAMES Plato in the Italian Renaissance Leiden Brill 1990

HAYMAN A PETER Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism Tubingen Mohr Siebeck 2004

IDEL MOSHE Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

____ Kabbalah New Perspectives New Haven Yale University Press 1988

____ Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid Albany Suny 1990

____ Kabballah and Hermeticism in Dame Frances A Yatesrsquos Renaissance In Eacutesoterism gnoses et imaginaire symbolique Leuven 2001 pp71-90

____ Uma Introduccedilatildeo In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 2008-a

____ As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Eliana Langer e Margarida Goldsztajn Satildeo Paulo Perspectiva 2008-b

JACOBELLI JADER Pico della Mirandola Prefaacutecio de Eugenio Garin Milano Longabesi amp C 1986

KAPLAN ARIEH Secircfer Ietsiraacute O Livro da Criaccedilatildeo Teoria e Praacutetica Trad Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005

KEPLER JOHANNES De Stella Nova Harmonice Mundi In Gesammelte Werke Beck Muumlnchen Max Caspar 1938

KERN OTTO Orfici ndash Testimonianze e Frammenti nellrsquoedizione di Otto Kern A cura di Elena Verzura Milano Bompiani 2011

KIBRE PEARL The library of Pico della Mirandola New York Columbia University Press 1936

KIESZKOWSKI BOHDAN Averroismo e Platonismo in Italia negli ultimi decenni del sec XV In Giornale critico della Filosofia Italiana 1933 4

____ Averroismo e Platonismo in Italia In Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia Firenze 1936 capVII

188

____ Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia Firenze Sansoni 1936

____ Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola In Rinascimento XV 1964 pp 41-81

KRISTELLER PAUL OSKAR Supplementum ficinianum (org) Firenze Leo Olschki 1937

____ The scholastic background of Marsilio Ficino (1944) In Studies in Renaissance Thought and Letters Vol I Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1956

____ Movimenti filosofici del Rinascimento In Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29

____ La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento Firenze La Nuova Italia 1975

____ Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi Firenze La Nuova Italia 1978

____ Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Trad M Pentildealoza Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1970

____ El pensamiento renacentista y sus fuentes Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1982

____ Studies in Renaissance Thought and Letters Vol IV Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1996

KRISTELLER PAUL OSKAR - SANCIPRIANO MARIO (org) Marsilio Ficino Opera Omnia Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II

LEBECH METTE On the Problem of Human Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg Konigshausen amp Neumann 2009

LELLI FABRIZIO Alemanno Giovanni Pico della Mirandola e la cultura ebraica italiana del XV secolo In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola VolI Firenze Leo Olschki 1997

____ Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org) Firenze Leo Olschki 2014

____ Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

____ Pico della Mirandola Giovanni In Wouter Hanegraaf (org) Dictionary of Gnosis and Western Esotericism Leiden 2005 pp949-954

LILLA SALVATORE Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford Oxford University Press 1971

LIPINER ELIAS As Letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo ndash Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem Rio de Janeiro Imago 1992

LORENZ FV Cabala A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente Satildeo Paulo Pensamento 1997

189

LUBAC HENRI DE Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento Trad G Colombo - A dellrsquoAsta Vol 29 Milano Jaca Book 1977

____ Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions Paris Aubier Montaigne 1974

MAGHIDMAN MARCELO Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico Satildeo Paulo Annablume 2014

MAQUIAVEL NICOLAU Histoacuteria de Florenccedila Satildeo Paulo Martins Fontes 2007

MASAI FRANCcedilOIS Pleacutethon et le Platonisme de Mistra Paris Les Belles Lettres 1956

MASSETANI GUIDO La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola Empoli Tipografia di Edisso Traversari 1897

MATTER JACQUES Histoire critique du gnosticisme et de son influence Paris FG Levrault 1828 (reprint 2011)

MONFASANI JOHN Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte ldquoPrefassionerdquo In Accendere-Privitera (org) Milano Bompiani 2014

MOLINARI JONATHAN Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola Bologna Il Mulino 2015

MUNK SALOMON Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris A Franck 1857

PEGONE ENRICO Timeo Note e Trad In Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010

PINA MARTINS JOSEacute VITORINO Jean Pic de la Mirandole Un portrait inconnu de lrsquohumanisme une eacutedition trecircs rare de ses Conclusiones Paris Presses Universitaires de France 1976

____ Pico della Mirandola e o Humanismo Italiano nas origens do Humanismo Portuguecircs Lisboa Sep de Estudos Italianos em Portugal 1964

____ Cultura Italiana Lisboa Editorial Verbo 1971

RABI SHIMON BAR IOCHAI Zocirchar Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume 2013

RABIN SHEILA Pico on Magic and Astrology In Dougherty MV (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

____ Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic In Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750ndash70

RAGNISCO PIETRO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo In Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze Lettere ed Arti in Padova Padova 1891

190

RASPANTI ANTONINO Filosofia teologia religione lrsquounitagrave della visione in Giovanni Pico Palermo Edi Oftes 1991

REALE GIOVANNI Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo Trad Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 1997

RENAN ERNEST Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme Paris A Durand 1852

RHODE ERWIN Psyche Roma-Bari Laterza 2006

RIFFARD PIERRE Dicionaacuterio de Esoterismo Trad Maria Joatildeo Freire Lisboa Editorial Teorema 1993

ROTONDI SECCHI TARUGI LUISA LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998

RUGGIERO GUIDO DE La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920

RUTKIN H DARREL Giovanni Pico della Mirandolarsquos Early reform of Astrology an Interpretation of vera astrologia in the Cabalistic Conclusions In Bruniana e Campanelliana 10 2004 pp495-498

SARTORI ALBERTO Giovanni Pico della Mirandola Filosofia teologia concordia Padova Facoltagrave Teologica del Triveneto 2017

SCOTT WALTER - FERGUSON ALEXANDER STEWART Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which contain religious or philosophic teachings ascribed to Hermes Trismegistus Oxford Clarendon Press 1924-36

SCHIAVONE VALERIA Corpus Hermeticum Trad e Notas Milano BUR Rizzoli 2018

SCHMITT CHARLES Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle In (AAVV org) Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965

SCHNITZER JOSEPH Savonarola Vol1 Trad E Rutili Milano Fratelli Treves 1931

SCHOLEM GERSHOM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York Theological Seminary of America 1960

____ A Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg et al Satildeo Paulo Perspectiva 1972

____ A Cabala e seu simbolismo Trad Hans Borger e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1988

____ Cabala Enciclopeacutedia judaica Vol 9 Trad H Burlamaqui JC Guimaratildees e ML Braga Rio de Janeiro A Koogan 1989

____ As Grandes correntes da Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg e outros Satildeo Paulo Perspectiva 1995

191

____ Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica Trad Ruth Solon e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1999

SECRET FRANCcedilOIS Lrsquointerpretazione della Kabbala nel Rinascimento In ldquoConviviumrdquo 25 1956 pp541-552

____ Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance Milano Archegrave Arma artis 1985

SENDER TOVA Iniciaccedilatildeo agrave Cabala Rio de Janeiro Record 1991

SEMPRINI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola La Fenice degli Ingegni Todi Casa Editrice Atanograver 1921

SIRGADO GANHO MARIA LURDES Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate Lisboa Ediccedilotildees 70 2001

SUDDUT MICHAEL Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion In Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

TENENTI A Florence agrave lrsquoEacutepoque des Medicis Paris Flammarion 1968

THORNDIKE LYNN A History of Experimental Science Vol 4 Fourteenth and Fifteenth Centuries New York Columbia University Press 1934

VALCKE LOUIS Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique Paris Les Belles Lettres 2005

VALVERDE A J R Aportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandola In Revista de Filosofia Aurora Vol 21 29 pp 457-480 Curitiba Champagnat 2009

VASOLI CESARE Introduccedilatildeo agrave Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina (EGarin) Roma Edizioni Storia e Letteratura 2011

____ Imagini Umanistiche Napoli Morano 1983

____ Conclusioni In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) VolII Firenze Leo Olschki 1997 pp641-695

____ The Renaissance Concept of Philosophy In Charles Schmitt (org) The Cambridge History of Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1998

VILLARI PASQUALE Girolamo Savonarola Vol I Firenze Le Monnier 1910

WALKER DP Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958

WARBURG ABY La rinascita del paganesimo antico Contributi alla storia della cultura raccolti da G Bing Trad E Cantimori Firenze La Nuova Italia 1966

192

WEIL ERIC La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie Paris Editions Vrin 1986

WIRSZUBSKI CHAIM Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge Harvard University Press 19871989

____ Pic de la Mirandole et la Cabale Paris Eacuteditions de lrsquoeacuteclat 2007

WOODHOUSE CHRISTOPHER M George Gemistos Plethon The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986

YATES FRANCES A Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1995

____ Giovanni Pico della Mirandola and Magic In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo VolI Convegno Internazionale di Mirandola (1963) Firenze 1965 pp159-204

ZACCARIA RAFFAELLA MARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus In Paolo Viti (org) Pico Poliziano e lrsquoUmanesimo di fine Quattrocento Nr 16 Firenze Leo Olschki 1994

ZAMBELLI PAOLA Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lulliana in Pico della Mirandola e seguaci Venezia Saggi Marsilio 1995

ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola In Rinascimento ndash Rivista dellrsquoIstituto Nazionale di Studi sul Rinascimento nr48 Firenze Leo Olschki 2009

Page 2: ANNA MARIA CASORETTI

Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo

PUC-SP

ANNA MARIA CASORETTI

PICO DELLA MIRANDOLA

O ESOTERISMO COMO CATEGORIA FILOSOacuteFICA

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada agrave Banca Examinadora da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo como exigecircncia parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo sob a orientaccedilatildeo do Professor Doutor Antonio Joseacute Romera Valverde

Satildeo Paulo

2020

BANCA EXAMINADORA

____________________________

Prof Dr Antonio Joseacute Romera Valverde

____________________________

Prof Dr Jorge Luiz Rodrigues Gutiegraverrez

____________________________

Prof Dr Marcelo Perine

____________________________

Prof Dr Maacuterio Ariel Gonzalez Porta

____________________________

Prof Dr Pedro Monticelli

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash

Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Coacutedigo de Financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash

Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Finance Code 001

AGRADECIMENTOS

Duas pessoas em comum nascidas sob a marca estelar da

perseveranccedila foram fundamentais para que este trabalho chegasse a

termo meu orientador Professor Antonio Valverde e minha matildee

Adriana A ele devo natildeo apenas as sempre apropriadas elucidaccedilotildees no

decorrer do estudo como natildeo menos importante a sustentaccedilatildeo

ldquoespiritualrdquo para levaacute-lo adiante perante os inuacutemeros empecilhos

ensinou-me a ter como norte apenas a Filosofia Ela sempre presente

deu-me um auxiacutelio inestimaacutevel no suporte das questotildees cotidianas e com

sua sabedoria de vida me incentivou em meus momentos de fraqueza a

dar simplesmente ldquoo proacuteximo passordquo Aos dois minha eterna gratidatildeo

Agradeccedilo aos examinadores presentes na Banca do Exame de

Qualificaccedilatildeo Professores Jorge Gutieacuterrez Pedro Monticelli e Marcelo

Perine ndash trecircs mestres com os quais tive a feliz oportunidade de interagir

em outras circunstacircncias acadecircmicas ndash pelas preciosas sugestotildees

compartilhadas na ocasiatildeo Agradeccedilo ainda aos demais membros

partiacutecipes e suplentes agrave Banca Examinadora da Defesa Professores Luiz

Marcos da Silva Eduardo Kickhoumlfel e Maacuterio Porta pelo aceite de nosso

convite

Por fim natildeo posso deixar de agradecer a meu pai pelo silencioso

acolhimento a meu marido por sempre estar por aceitar minhas

ausecircncias e compreender minhas escolhas a meu filho por me incentivar

e compartilhar de minhas aspiraccedilotildees intelectuais e ainda pelo importante

auxiacutelio instrumental em ocasiotildees essenciais

RESUMO

CASORETTI Anna Maria Pico della Mirandola O Esoterismo como categoria

filosoacutefica 2020 192 p Tese (Doutorado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2020

O filoacutesofo renascentista Pico della Mirandola teve por principal intento

elaborar a conciliaccedilatildeo entre diferentes doutrinas e sistemas guiado pela

percepccedilatildeo da existecircncia de concepccedilotildees metafiacutesicas passiacuteveis de integraccedilatildeo

em seus graus mais elevados A paixatildeo pela comprovaccedilatildeo de

correspondecircncias leva-o a um percurso de aproximaccedilatildeo reconciliadora

com o passado e agrave consequente construccedilatildeo de estrateacutegias de correlaccedilatildeo

cujo princiacutepio-chave se encontra na ideia de que conceitos concernentes

aos niacuteveis mais altos da realidade se penetram reciprocamente Seu projeto

de convergecircncia teleoloacutegica contempla elementos derivados das mais

diversas perspectivas sejam filosoacuteficas teoloacutegicas ou misterioloacutegicas Em

meio a tais perspectivas identifica-se a presenccedila de tradiccedilotildees que se

perpetuaram em torno a formas de transmissatildeo esoteacuterica como eacute o caso

da misteriologia grega da Cabala judaica e do Hermetismo egiacutepcio bem

como de alguns registros de teor filosoacutefico e de manifestaccedilotildees do

Cristianismo primitivo e posterior que empregaram especiacuteficas formas de

linguagem relacionadas ao sigilo O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute apontar

para tais elementos e mostrar que sua repeticcedilatildeo permite caracterizar seu

conjunto como uma categoria presente no pensamento piquiano utilizada

natildeo apenas como recurso retoacuterico mas como possibilidade de ampliaccedilatildeo e

de siacutentese das possibilidades interpretativas Satildeo adotadas como fonte de

investigaccedilatildeo as obras De Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae e

Heptaplus

Palavras-Chave Pico della Mirandola Renascimento Esoterismo Concoacuterdia

ABSTRACT

The main intention of the Renaissance philosopher Pico della Mirandola

was to conciliate different doctrines and systems guided by the perception

of the existence of metaphysical conceptions capable of integration in their

highest degrees The passion for the proof of correspondences leads him to

a path of reconciling with the past and the consequent construction of

correlation strategies whose key principle lies in the idea that concepts

concerning the highest levels of reality penetrate reciprocally His project

of teleological convergence contemplates elements derived from the most

diverse perspectives whether philosophical theological or mysteriological

The presence of traditions that have perpetuated themselves around forms

of esoteric transmission such as Greek mysteriology Jewish Kabbalah and

Egyptian Hermeticism is found in the midst of such perspectives as well

as some records of philosophical content and manifestations of primitive

Christianity that have employed specific forms of language related to

secrecy The aim of this investigation is to point out such elements and

show that their repetition allows us to characterize the set as a category

present in Picorsquos thought used not only as a rhetorical resource but as a

possibility of expansion and synthesis of interpretative possibilities De

Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae and Heptaplus are adopted

as sources of investigation

Keywords Pico della Mirandola Renaissance Esotericism Concord

LISTA DE ABREVIATURAS

Concl (I) Giovanni PICO Conclusiones secundum opiniones aliorum Parte I in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013

Concl (II) Giovanni PICO Conclusiones secundum opinionem propriam Parte II in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013

Oratio Giovanni PICO De Hominis Dignitate in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Apologia Giovanni PICO Apologia in Paolo Edoardo Fornaciari (org) Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel Edizioni 2010

De Ente et Uno Giovanni PICO De Ente et Uno in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Commento Giovanni PICO Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo Benivieni in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Heptaplus Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Heptaplus P1 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoPrimeiro Proecircmiordquo

Heptaplus P2 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoSegundo Proecircmiordquo

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

I ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO 14

II GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA 28

1 A Vida 30

2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu 41

3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos 47

III AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO 52

1 A Secreta Conexatildeo 55

2 Religiatildeo ou Filosofia 63

3 Maritare Mundum 69

IV A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS 79

1 O tema da Dignidade do homem 81

2 O tema da Concoacuterdia 87

3 O tema da Ascese 91

V RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO 108

1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica 110

2 O Cosmo Cabalista 121

3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade 127

VI O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA 137

1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio 139

2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus 143

3 A Occlusa Sapientia 152

VII FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA 158

1 O Paradigma Esoteacuterico 158

2 A Concordacircncia teleoloacutegica 166

3 A Morte do Beijo 172

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 177

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 180

Nulla res spiritualis descendens

inferius operatur sine indumento

Nenhuma realidade espiritual que

descenda aos mundos inferiores

opera sem se velar

(Pico della Mirandola Conclusio

secundum doctrinam sapientum

hebraeorum Cabalistarum XXV)

11

INTRODUCcedilAtildeO

A presente tese propotildee identificar a presenccedila de elementos esoteacutericos na obra

do filoacutesofo Giovanni Pico della Mirandola mostrando que a recorrecircncia de tais

indiacutecios permite que lhes seja atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de categoria filosoacutefica Com o

termo ldquocategoriardquo pretende-se significar a presenccedila de um padratildeo discerniacutevel dentro

de um processo reflexivo formado pelo agrupamento de determinadas caracteriacutesticas

que se repetem a ponto de poderem ser classificadas sob uma denominaccedilatildeo comum

O termo ldquoesoterismordquo por sua vez abriga dois principais significados tantas vezes

confundidos Contempla de um lado um conjunto de tradiccedilotildees ou interpretaccedilotildees ndash

de cunho filosoacutefico teoloacutegico ou misterioloacutegico ndash que buscam proteger do puacuteblico

determinados assuntos por meio da manutenccedilatildeo do segredo ou da transmissatildeo oral

comunicando-os apenas a um restrito nuacutemero de adeptos De outro admite amiuacutede

um sentido associado ao ldquomisticismordquo relacionado a praacuteticas que conduzem ao que

chamariacuteamos hoje de experiecircncias fenomenoloacutegicas pessoais As duas significaccedilotildees

encontram-se abrangidas pela obra piquiana Seus registros foram colhidos pelo

Autor a partir de fontes pagatildes cristatildes e hebraicas encontrando-se dispostos de

forma fluiacuteda e harmocircnica lado a lado com categorias do universo filosoacutefico e

teoloacutegico Apontar para a presenccedila de tais padrotildees eacute o intento pretendido Como

objetivo secundaacuterio seraacute sugerida no uacuteltimo Capiacutetulo a existecircncia de um propoacutesito

teleoloacutegico que pede a utilizaccedilatildeo de tais paradigmas para o fechamento de certas

hipoacuteteses sob o arco da estruturaccedilatildeo do pensamento piquiano

Trecircs razotildees permitem inserir esta contribuiccedilatildeo no campo de conhecimento da

Histoacuteria da Filosofia a saber (a) o papel proeminente de seu protagonista uacuteltimo

pensador do Quattrocento italiano no panorama do Pensamento do seacuteculo XV (b) os

aportes derivados da averiguaccedilatildeo de doutrinas pertencentes a culturas e tradiccedilotildees

ocidentais e natildeo-ocidentais e (c) a apuraccedilatildeo da utilizaccedilatildeo de elementos esoteacutericos ndash

tese aqui desenvolvida ndash em cenaacuterio filosoacutefico Em outras palavras (a) Giovanni Pico

natildeo sem fundamento foi elevado agrave condiccedilatildeo de um dos mais significativos

representantes de sua eacutepoca em virtude de sua obra manifestar muitos dos

relevantes fermentos e anseios que caracterizaram seu periacuteodo embora seu quadro

intelectual de referecircncias se encontrasse fora do alcance da maioria de seus

contemporacircneos suas reflexotildees natildeo estavam isentas das principais preocupaccedilotildees de

seu tempo Ademais (b) a adesatildeo do Autor a um novo esquema epistemoloacutegico de

revisatildeo dos saberes com os quais esteve em contato o leva muito aleacutem dos problemas

filosoacuteficos nucleares dos seacuteculos que o antecedem permitindo ao leitor conhecer

doutrinas pertencentes a culturas exteriores agrave Ocidental ndash caso do Hermetismo

egiacutepcio da Cabala judaica e do Zoroastrismo persa ndash integrantes da ampla unificaccedilatildeo

pretendida por Pico Alguns daqueles conteuacutedos ndash natildeo suficientemente estudados ndash

oferecem relevantes aportes agrave Filosofia sobretudo para as temaacuteticas que concernem agrave

sistematizaccedilatildeo do mundo inteligiacutevel Finalmente (c) o estudo de um padratildeo de

pensamento colhido de fontes esoteacutericas natildeo apenas nos coloca em contato com

12

tradiccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas que fizeram uso do segredo para se perpetuar como

fornece novos paradigmas de investigaccedilatildeo e de linguagem O emprego de elaboraccedilotildees

mentais extraiacutedas de tradiccedilotildees orais natildeo eacute simples recurso retoacuterico utilizado pelo

Autor mas aporte necessaacuterio para alcanccedilar certas siacutenteses Ao contraacuterio do que possa

acreditar o senso comum haacute uma forccedila racional presente em grande parte das

doutrinas que se erigem em torno agrave transmissatildeo esoteacuterica mostrando-se seu estudo

uma importante ampliaccedilatildeo das possibilidades interpretativas

A motivaccedilatildeo para apresentar tal conjunto de temas deve-se precipuamente ao

fato de a obra de Pico della Mirandola ter sido pouco estudada no cenaacuterio filosoacutefico

nacional Tanto as traduccedilotildees quanto as interpretaccedilotildees em portuguecircs satildeo escassas

Tem-se agrave disposiccedilatildeo em primeira linha apenas as traduccedilotildees da Oratio de Hominis

Dignitate realizadas por Luiz Feracine e Maria de Lurdes Sirgado nas quais os

autores apresentam prefaacutecios introdutoacuterios ao trabalho de traduccedilatildeo Com relaccedilatildeo agrave

obra Conclusiones Nongentae principal projeto do autor os conteuacutedos

interpretativos natildeo apenas satildeo inexistentes em acircmbito nacional como bastante

exiacuteguos em termos mundiais Ademais com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees orientais acolhidas

por Pico o material para discussatildeo de suas doutrinas mostra-se em ambiente paacutetrio

insuficiente o que contribui para manter sua obra em um patamar de

impenetrabilidade Essas mesmas condiccedilotildees determinaram a opccedilatildeo por uma

apresentaccedilatildeo mais ampla e integrativa da obra piquiana um trabalho desenvolvido

de forma pontual estruturado apenas em torno aos especiacuteficos pontos esoteacutericos

coletados dos textos piquianos traria uma especificidade soacute aceitaacutevel em um

territoacuterio onde tanto o autor quanto sua obra fossem suficientemente conhecidos

Em termos de divisatildeo dos capiacutetulos segue-se uma apresentaccedilatildeo que se inicia

com os aspectos exteriores ligados agrave sociedade e agrave vida do Autor para em seguida

abordar as produccedilotildees concernentes ao seu pensamento Assim embora natildeo se mostre

uma exigecircncia para o tema desenvolvido o Primeiro Capiacutetulo agrave guisa de ldquosegunda

introduccedilatildeordquo tem por funccedilatildeo dispor o cenaacuterio temaacutetico e reconstituir uma parte da

atmosfera intelectual renascentista preparando o leitor para o acolhimento de alguns

dos elementos fundamentais que compotildeem o universo do pensamento piquiano O

Segundo Capiacutetulo contempla a biografia de Giovanni Pico devida por estar

diretamente vinculada ao desenvolvimento de seu modus cogitandi essa a razatildeo de

ser abordada no mesmo capiacutetulo a formaccedilatildeo de seu pensamento atraveacutes da

apuraccedilatildeo das principais Escolas doutrinaacuterias com as quais o filoacutesofo teve contato

Esse percurso basilar evidencia que Pico natildeo se lanccedila a argumentaccedilotildees de cunho

esoteacuterico como algueacutem desprovido de qualquer bagagem acadecircmico-filosoacutefica Antes

o contraacuterio Eacute a dimensatildeo de tal bagagem que lhe permite vislumbrar os pontos de

convergecircncia entre vaacuterias escolas e linhagens de conhecimento ndash ocorrecircncia que

pouco se verifica nas investigaccedilotildees acerca da filosofia natural ou moral mas mostra-

se de forma significativa em torno aos pontos mais elevados de suas especulaccedilotildees

metafiacutesicas ndash protegidos mais das vezes pela transmissatildeo oral

13

Do Terceiro ao Sexto Capiacutetulos satildeo apresentadas e discutidas trecircs das

principais obras de Pico as Conclusiones Nongentae a Oratio De Hominis Dignitate

e o Heptaplus O influxo do Esoterismo na obra piquiana soacute poderia ser confirmado

por meio da abordagem de certo nuacutemero de obras em seu conjunto a verificaccedilatildeo de

uma uacutenica obra natildeo traria a dimensatildeo fiel de tal influxo podendo caracterizar um

caso isolado Entre os capiacutetulos mencionados o Quinto deve ser entendido como uma

necessaacuteria digressatildeo para introduzir a seccedilatildeo seguinte contentora de informaccedilotildees

pertinentes ao Cabalismo que requerem elucidaccedilotildees porquanto o leacutexico cabaliacutestico e

muitas de suas concepccedilotildees natildeo satildeo usuais na literatura filosoacutefica Finalmente no

Seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo satildeo alinhavados os capiacutetulos precedentes de forma a lhes

dar uma coerecircncia em forma de epiacuteteto

O desenho do conjunto conforme a sequecircncia de seus capiacutetulos segue um

formato que de certa forma acompanha o desenvolvimento intelectual do Autor

poderia outrossim designar um modelo de trajeto de desenvolvimento gnosioloacutegico

partindo da esfera puacuteblica na qual satildeo apreendidas informaccedilotildees pertinentes ao

ldquoespiacuteritordquo da proacutepria eacutepoca (I) passa pelas experiecircncias de aprendizado e estudos

pessoais (II) que levam agrave elaboraccedilatildeo de ordenaccedilotildees intelectuais decorrentes das

escolas e doutrinas assimiladas (III) permitindo vislumbrar a partir delas

possibilidades de elevaccedilatildeo e de dignificaccedilatildeo do homem (IV) alcanccedilado tal estaacutegio o

pensamento lanccedila-se em especulaccedilotildees metafiacutesicas em torno agraves esferas do Inteligiacutevel

(V e VI) ateacute finalmente alcanccedilar o fim para onde tendem todas as doutrinas (VII)

Sob tal perspectiva a ordem da leitura auxilia de forma complementar a vislumbrar

a siacutentese almejada por Pico della Mirandola norte de suas investigaccedilotildees mais

profundas e fundamento para a recepccedilatildeo das mais diversas doutrinas manifestas ou

natildeo

14

CAPIacuteTULO I

ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO

No ano de 1440 Joatildeo VIII Imperador Bizantino era recebido na casa

florentina de Cosimo il Vecchio1 um dos mais proeminentes integrantes dos Medici

O encontro dos dois poderia ateacute natildeo ser digno de nota natildeo fosse o fato que ali se

encontravam os personagens siacutembolos de duas das mais fecundas ocorrecircncias que a

cidade de Florenccedila vivenciaria naquele seacuteculo para o campo do Pensamento o

Conciacutelio para unificaccedilatildeo das Igrejas e o Mecenato O soberano de Bizacircncio chegara agrave

cidade para aquele encontro ecumecircnico com o qual se esperava conter o avanccedilo dos

turcos2 no que foi seguido por consideraacutevel nuacutemero de teoacutelogos que traziam para o

solo italiano textos ineacuteditos Durante o periacuteodo em que durou ndash entre lsquo39 e lsquo44 em

meio agrave vigecircncia delrsquo Vecchio ndash3 deu-se o encontro entre as figuras mais

representativas do mundo cristatildeo (gregos e latinos) com profiacutecuas consequecircncias

para os seacuteculos XV e posteriores visto que se difundiram informaccedilotildees confrontaram-

se doutrinas e crenccedilas e abriram-se as portas para o afluxo de novos livros sobretudo

dos campos filosoacutefico e teoloacutegico Somada agrave iniciativa de mecenas como Cosimo ndash

que incentivou a aquisiccedilatildeo e traduccedilatildeo de manuscritos ndash as duas ldquoinstituiccedilotildeesrdquo

criaram as bases para a implementaccedilatildeo de um ambiente propiacutecio tanto para o retorno

a fontes antigas quanto para a abertura a novas doutrinas estranhas agrave cristatilde

O encontro de culturas foi um acontecimento sem antecedentes naquele

territoacuterio Embora a Florenccedila do seacuteculo XV natildeo possa ser comparada agrave Bagdaacute do

seacuteculo X ou agrave Toledo do seacuteculo XIII lugares onde ocorreram encontros significativos

entre as trecircs culturas monoteiacutestas mais importantes essa cidade deveria ser

mencionada como bem observa Moshe Idel imediatamente depois delas4 A urbe

toscana assistiu natildeo apenas agrave chegada dos bizantinos como acolheu um nuacutemero

significativo de judeus ndash alguns provenientes de Constantinopla mas a maior parte

expulsos da Espanha e de outros territoacuterios Ainda que a representatividade aacuterabe

natildeo tenha sido expressiva como nas outras duas cidades sua presenccedila em solo

florentino foi garantida atraveacutes dos gregos e judeus que traduziam e difundiam seus

textos entre os latinos As contribuiccedilotildees estrangeiras abriram as portas ao Platonismo

de teor miacutestico-teoloacutegico que dominou alguns ambientes intelectuais da segunda

metade do seacuteculo XV cujos rastros propiciaram a abertura para tradiccedilotildees de teor

esoteacuterico Vejamos como

1 A alcunha ldquoCosimo il Vecchiordquo eacute comumente traduzida por ldquoCosme o Velhordquo ndash assim sem viacutergula Optamos

por manter os nomes italianos em seu idioma original 2 O projeto como se sabe mostrou-se malogrado o seacuteculo XV assiste agrave tomada decisiva do Impeacuterio do Oriente

por Maomeacute II que agrave frente dos otomanos conquista Constantinopla em 1453 3 O Conciacutelio para a uniatildeo das Igrejas iniciara em Basileia em 1431 sendo depois transferido para Ferrara e

finalmente para Florenccedila em 1439 Cosimo dersquo Medici regeu a cidade de Florenccedila entre 1434 e 1464 Para maiores detalhes acerca do Conciacutelio leia-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967

4 Moshe IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 34

15

Apoacutes a tomada da capital de seu Impeacuterio pelos otomanos que ocorreria poucos

anos apoacutes o teacutermino do Conciacutelio muitos bizantinos permaneceram na Itaacutelia Alguns

dentre eles antes daquele periacuteodo vinham ajudando a incrementar o ensino do

grego necessaacuterio para o diaacutelogo com os Antigos5 contudo a contribuiccedilatildeo bizantina

mostrou-se bem mais significativa Dois personagens em particular corroboraram a

mudanccedila de paradigma intelectual que estava por vir Basiacutelio Bessarion e George

Gemistos ambos com papeacuteis seminais dentro da organizaccedilatildeo do Conciacutelio Bessarion

chegara agrave Itaacutelia em vestes de arcebispo acompanhado de Nicolau de Cusa revelando-

se um importante sustentador da uniatildeo das Igrejas Gemistos que se tornara

conhecido como George Plethon passara a integrar o Conselho de Florenccedila a partir

de rsquo38 tornando-se conselheiro do Imperador oriental Desde o iniacutecio daquelas

reuniotildees Bessarion mostrara-se preocupado em proteger os uacuteltimos vestiacutegios da

cultura grega de uma provaacutevel extinccedilatildeo assim ao mudar-se para a Itaacutelia de forma

definitiva decide transferir e doar agrave cidade de Veneza sua inteira biblioteca bizantina

exercendo ateacute o fim de seus dias uma incansaacutevel atividade de procura de textos

antigos6 O viacutenculo entre os dois eruditos iniciara ainda na Greacutecia quando durante

seis anos Bessarion frequentara em Mistra a escola de George Plethon mestre que o

introduzira agrave filosofia platocircnica7 Agrave eacutepoca Plethon se apresentava com um

comportamento profeacutetico atraveacutes do qual anunciava o fim das trecircs grandes religiotildees

e o consequente advento da cidade platocircnica8 Mais tarde seria ele o mestre de

Mistra um dos grandes responsaacuteveis pelo florescimento do Platonismo em Florenccedila

Sua presenccedila em solo toscano que de imediato provocaria uma profunda impressatildeo

no ciacuterculo de intelectuais florentinos lhe permitiria exercer um efetivo influxo sobre

seu pensamento sobretudo em duas frentes o estiacutemulo para uma mudanccedila de

orientaccedilatildeo filosoacutefica de Aristoacuteteles em direccedilatildeo a Platatildeo e a abertura para doutrinas

5 Alguns gregos de elevada erudiccedilatildeo como Argiropoulos George de Trebizonda Teodoro Gaza e seu disciacutepulo

Demetrio Calcondila alavancaram o ensino do grego entre os humanistas italianos (Eugenio GARIN Lo zodiaco della vita - La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63) A caacutetedra de grego focircra inaugurada por Manuel Chrysoloras em Florenccedila no seacuteculo anterior sendo recebida com exclamaccedilotildees por Leonardo Bruni ldquoEram setecentos anos que a Itaacutelia ignorava o grego fonte de todas as doutrinasrdquo (Leonardi ARETINI Rerum suo tempore gestarum commentarius in ldquoMuratorirdquo Rev Ital Script XIX 3 1926 p403 apud GARIN LUmanesimo italiano 2008 p48)

6 GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63 Apoacutes a queda de Constantinopla Bessarion sentiu a necessidade de formar uma biblioteca que protegesse a sobrevivecircncia da civilizaccedilatildeo grega e bizantina Conseguiu comprar ou fazer copiar a maior parte das obras do Helenismo antigo e escolheu como abrigo a cidade de Veneza natildeo somente pela confianccedila em seu sistema constitucional republicano como pelo fato de que ali prosperava uma expressiva colocircnia grega que lhe parecia constituir uma segunda Bizacircncio Os inventaacuterios das vaacuterias doaccedilotildees que foram feitas agrave Biblioteca de San Marco foram elencados por Lotte LABOWSKY em Bessarions Library and the Biblioteca Marciana - Six early inventories Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1979 Para maiores informaccedilotildees acerca de Bessarion veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 sobretudo a nota 120 p 52 para amplas referecircncias bibliograacuteficas

7 Em Mistra antiga Esparta Plethon fundara uma escola filosoacutefico-religiosa de tendecircncias neoplatocircnicas antes de vir para a Itaacutelia participar do Grande Conciacutelio Em duas cartas (uma de 1446-47 e a outra de 1454) Bessarion se refere a seu mestre Plethon como ldquoo mais saacutebio dos homensrdquo e ldquomais semelhante a Platatildeo em sabedoria e qualquer outra virtude do que qualquer outro nascido na Greacutecia desde a Antiguidaderdquo Embora cristatildeo Bessarion sugeria que conforme a doutrina da transmigraccedilatildeo das almas adotada por seu mestre ldquonatildeo se poderaacute negar que a alma de Platatildeo tomou por morada o corpo de Plethonrdquo (John MONFASANI Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte Milano 2014 apud MOLINARI op cit np60)

8 Franccedilois MASAI Pleacutethon et le Platonisme de Mistra 1956 pp 300-314 Para maiores detalhes sobre a vida de George Plethon vejam-se as obras de Christopher WOODHOUSE George Gemistos Plethon - The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986 (pp 154-170) Arnaldo DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia platonica di Firenze Firenze 1902 Eugenio GARIN Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975

16

estrangeiras ndash de cunho misterioloacutegico ndash que apresentavam viacutenculos teoreacuteticos entre

si

Assim pode-se dizer que a presenccedila grega em territoacuterio italiano natildeo propiciou

apenas o aprendizado de um idioma e o afluxo de manuscritos trouxe outros

desdobramentos Nas discussotildees em que defendiam a originalidade do pensamento

grego frente aos latinos os padres gregos contribuiacuteram em algum niacutevel e mesmo que

de forma involuntaacuteria a acelerar a crise da filosofia escolaacutestica no Ocidente atraveacutes

da instauraccedilatildeo de um certo ambiente de repuacutedio a Aristoacuteteles em seus ciacuterculos em

linhas gerais difundiam a opiniatildeo que os silogismos do Estagirita nada acresciam agrave

Teologia estranhando a forma como seus contemporacircneos latinos sustentavam teses

a partir de arsenais dialeacuteticos9 Cabe observar que certos fundamentos da tradiccedilatildeo

monaacutestica bizantina corroboravam tal direcionamento seus mosteiros eram

marcados pela miacutestica e pelo pietismo faces de uma especiacutefica forma doutrinal que

levava muitos padres gregos a se identificarem mais intimamente com os teores

neoplatocircnicos10

As discussotildees teoloacutegicas somaram-se agraves entatildeo existentes discussotildees

acadecircmicas que dividiam humanistas e aristoteacutelicos11 Um dos principais atores a lhes

fornecer municcedilatildeo foi George Plethon ao escrever um polecircmico opuacutesculo que em

breve tempo se tornaria objeto de intenso debate nos ciacuterculos de imigrados gregos ndash

sobretudo aqueles reunidos em torno a Bessarion ndash passando a verter para os

nuacutecleos latinos12 O opuacutesculo sustentava o ldquoprimadordquo de Platatildeo o que provocou a

reaccedilatildeo de seu conterracircneo George de Trebizonda que sairia em defesa de Aristoacuteteles

atraveacutes de sua Comparatio philosophorum Aristotelis et Platonis de 1458 A questatildeo

assume ressonacircncia puacuteblica levando o entatildeo cardeal Bessarion a efetuar uma

contrarreacuteplica Surge assim em 1459 a primeira versatildeo em grego do In

calumniatorem Platonis texto de capital importacircncia no qual sem atacar Aristoacuteteles

ndash cujos escritos ensinados por dois seacuteculos nas universidades europeias eram

considerados superiores em clareza e ordem expositiva ndash Bessarion se esforccedila por

mostrar que as razotildees habitualmente utilizadas para justificar a preferecircncia pelo

Liceu eram inconsistentes pois originadas de uma incompreensatildeo das verdadeiras

9 Jean DEacuteCARREAUX Les Grecs au Concile de lrsquoUnion Ferrare-Florence 1438-1439 1970 p106 Ainda para

as reaccedilotildees contra o Aristotelismo veja-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze 1967 p270 10 A partir de 1347 a igreja bizantina havia adotado a doutrina esicasta que representava mais do que uma

retomada de posiccedilotildees neoplatocircnicas Para muitos patriotas bizantinos era uma forma de inovaccedilatildeo que andava em direccedilatildeo contraacuteria tanto agrave Igreja ortodoxa quanto agrave antiga tradiccedilatildeo filosoacutefica ligada ao Aristotelismo (cf James HANKINS Plato in the Italian Renaissance Brill Leiden 1990 pp 193-197 apud MOLINARI opcit np60) Natildeo nos cabe aprofundar uma reflexatildeo em torno agraves complexas discussotildees teoloacutegicas entre gregos e latinos que influiriam em seus direcionamentos filosoacuteficos nossa intenccedilatildeo eacute pincelar alguns matizes que conduzem aos conteuacutedos a serem tratados

11 As disputas entre aristoteacutelicos e platonistas perpassam o seacuteculo XV sendo comprovadas atraveacutes de grande quantidade de material epistolar A Filosofia quattrocentesca eacute efetivamente marcada pela presenccedila de dois principais troncos a disputar o mesmo seacuteculo De um lado perpetua-se o pensamento escolaacutestico herdado dos medievais representado pela cidade de Paacutedua verdadeira rocha da tradiccedilatildeo aristoteacutelica-averroiacutesta de outro consolida-se o receacutem-nascido pensamento humanista com sua sede na eleita Florenccedila que em muitas narrativas define a ideologia do seacuteculo em questatildeo Maiores detalhes sobre o tema podem ser lidos em Paul Oskar KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996 Eugenio GARIN LUmanesimo italiano 2008 Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998

12 O opuacutesculo de George Plethon seria publicado em latim apenas no seacuteculo seguinte sob o tiacutetulo De differentiis Platonis et Aristotelis

17

intenccedilotildees que estavam na origem dos Diaacutelogos A forma enigmaacutetica da obra

platocircnica acentuada pelo uso de mitos e de imagens poeacuteticas nascia natildeo de uma

escassa preparaccedilatildeo loacutegica de seu Autor ou de um suposto desprezo pelo rigor

cientiacutefico mas sim em razatildeo da elevada altitude metafiacutesica de seu discurso que natildeo

poderia nem deveria ser expresso em termos a todos compreensiacuteveis A ideia de

conteuacutedos que natildeo poderiam ser revelados na obra de Platatildeo enfatizada por

Bessarion frutificaria sobretudo entre os ciacuterculos que viriam a frequentar a

Academia de Florenccedila

Outro fator concorrente para a orientaccedilatildeo da vida intelectual italiana que

tomaria um rumo de crescentes conotaccedilotildees miacutesticas foi a chegada de rabinos

miacutesticos e estudiosos de teosofia hebraica provenientes dos lugares mais distantes da

Diaacutespora que souberam desenvolver escolas de estudo e laboratoacuterios de escrita e

estampa a ponto de exercerem um influxo original sobre a cultura europeia13 Assim

enquanto a primeira metade do Quatrocentos presencia o influxo bizantino na

segunda metade do seacuteculo estreitam-se as relaccedilotildees entre os intelectuais cristatildeos e os

judeus sobretudo em razatildeo da toleracircncia exercida pelo neto de Cosimo Lorenzo e

pelos ciacuterculos ligados a Pico della Mirandola14 As trocas entre judeus e cristatildeos

gregos ndash ambos depositaacuterios da antiga sabedoria helecircnica ndash natildeo eram novidade

ocorrecircncia que podia ser verificada ainda em solos bizantinos15 Dessa vez as

contribuiccedilotildees do nuacutecleo intelectual hebraico somadas agrave bagagem trazida pelos

bizantinos voltavam-se agrave latinidade cristatilde Ademais uma significativa quantidade de

mestres hebreus tornou propiacutecia a divulgaccedilatildeo de textos ateacute entatildeo desconhecidos no

seacuteculo XV seja em razatildeo da dificuldade de traduccedilatildeo dos originais ndash gregos hebraicos

ou aacuterabes ndash seja em razatildeo do caraacuteter sigiloso de alguns textos hebraicos ndash que devido

a certas contingecircncias comeccedilaram a ser divulgados16

13 Gianfranco BURCHIELLARO ldquoIntroduccedilatildeordquo a Mantova e la Qabbalah 2001 14 IDEL opcit 1998 pp 39-40 Tais relaccedilotildees satildeo comprovadas por epiacutestolas como uma carta de Ficino de

1485 que relata os frutiacuteferos encontros entre doutos hebreus e cristatildeos (Ficino Opera I pp903-904 apud Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 64) Lorenzo dersquo Medici teve uma especial benevolecircncia com os judeus acolhendo em sua casa meacutedicos (a legislaccedilatildeo eclesiaacutestica proibia que cristatildeos fossem tratados por meacutedicos judeus mas as terras florentinas natildeo seguiram essa vedaccedilatildeo) muacutesicos como Guglielmo da Pesaro e filoacutesofos ligados ao seu amigo Pico della Mirandola Houve pregadores especialmente das Ordens Mendicantes que tentaram levantar a populaccedilatildeo contra os judeus como em outras eacutepocas mas as consequecircncias de suas pregaccedilotildees foram bastante limitadas e controladas nesse periacuteodo Sobre o teacutermino da benevolecircncia com os judeus a partir do advento de Savonarola leia-se Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p54 Para maiores detalhes acerca da aceitaccedilatildeo dos judeus em solo toscano veja-se Lamberto CROCIANI Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico ibid 1998 p85Veja-se ainda Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp56-61 Cesare VASOLI ldquoQuadro drsquoInsiemerdquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 5

15 George Plethon por exemplo antes de chegar agrave Itaacutelia estudara por muitos anos na escola de um renomado mestre hebreu Elisseo (Elischa) que por sua vez era sequaz dos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles Elisseo foi um importante transmissor natildeo apenas da cultura aacuterabe como da grega e persa tendo sido ele a iniciar Plethon no pensamento de Zoroastro que mais tarde chegaria agrave Academia florentina (cf MASAI opcit pp 57-60)

16 IDEL opcit 1998 p 34 Em resposta agrave nova segregaccedilatildeo dos judeus que viria no seacuteculo XV e da queima de seus livros sagrados houve um incremento de publicaccedilotildees de textos judaicos considerados segretos como forma de reaccedilatildeo agraves perseguiccedilotildees e frente ao perigo de aniquilamento da proacutepria cultura (Giulio BUSI Mantova e la Qabbalah 2001 p 28)

18

Conquanto desde o iniacutecio do lsquo400 alguns humanistas cristatildeos seguissem aulas

com professores de hebraico17 foi somente a partir da segunda metade do seacuteculo que

alguns doutos hebreus se tornariam renomados entre os ciacuterculos natildeo-hebraicos

passando a se expor em um clima de liberdade e de proficuidade sem precedentes na

histoacuteria intelectual judaica18 Antes desse periacuteodo o pensamento judaico natildeo havia

exercido nenhuma influecircncia decisiva sobre os maiores representantes do

pensamento cristatildeo salvo raras exceccedilotildees como foi o caso do influxo do Guia dos

Perplexos de Maimocircnides sobre Tomaacutes de Aquino e da influecircncia de A Fonte da

Vida de Avicebron sobre a teologia franciscana19 Agora bem mais que mediadores

linguiacutesticos os judeus mais ilustrados interpretavam textos criativamente e

capacitavam seus patronos cristatildeos a apreender formas de pensamento mais antigas e

ateacute entatildeo inacessiacuteveis em razatildeo de seus idiomas originais Alguns judeus tornaram-se

assim mestres requisitados como foi o caso dos ceacutelebres Flaacutevio Mitridate e Elia del

Medigo que mediavam o conhecimento hebraico e o aacuterabe bem como de Yohanan

Alemanno que teve acesso agraves mais importantes obras platocircnicas e neoplatocircnicas a

partir da tradiccedilatildeo filosoacutefica judaico-aacuterabe ndash trecircs autores aos quais seraacute feita uma

aproximaccedilatildeo nos proacuteximos capiacutetulos

A partir do uacuteltimo quartel do seacuteculo XV verifica-se uma significativa mudanccedila

de direccedilatildeo nas reflexotildees daqueles trecircs mestres sintomaacutetica da nova atmosfera

intelectual que se firmava ou quem sabe de uma maior liberdade que permitia o

afloramento de seus verdadeiros interesses temaacuteticos Conteuacutedos filosoacuteficos de teor

metafiacutesico passam a ser relacionados com conteuacutedos maacutegicos em diferentes

formatos que emergem em linha paralela com o interesse intelectual cristatildeo

passando a contaminar os ciacuterculos de Florenccedila A interpretaccedilatildeo com feiccedilotildees maacutegicas

da Cabala aparece seja nas traduccedilotildees latinas de Mitridate como nos escritos de

Alemanno na mesma eacutepoca em que Ficino traduz textos ldquomaacutegicosrdquo colhidos de obras

neoplatocircnicas e hermeacuteticas20 Contudo e apesar da reciacuteproca atraccedilatildeo por assuntos de

magia entre estudiosos dos dois grupos religiosos os autores judeus gozavam de

maior liberdade intelectual do que os autores cristatildeos que se encontravam sob a mira

da Igreja21 Assim fontes neoplatocircnicas e hermeacuteticas ndash e no caso de Giovanni Pico e

seus amigos judeus tambeacutem cabaliacutesticas ndash podem ser encontradas nos escritos da

eacutepoca unidas em amaacutelgamas que caracterizam uma forma original de pensamento

Da mesma forma como ocorreu com os gregos os judeus mais eruditos

receberam amplos incentivos de mecenas tanto cristatildeos quanto pertencentes ao

17 Caso de Poggio Bracciolini e Giannozzo Manetti 18 Sobre o tema leia-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp274-278 19 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e

Cabalistas 2008-b p 457 20 Moshe IDEL efetua uma anaacutelise acerca do significativo paralelo que se estabeleceu entre os intelectuais

judeus e cristatildeos precisamente no mesmo periacuteodo e na mesma aacuterea geograacutefica considerando esse um dilema interessante da histoacuteria intelectual ainda natildeo esclarecido (1998 pp 23-25) Franco BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 36) confirma a reciprocidade de tais influxos muitas marcas das discussotildees sobre Magia e Astrologia mantidas entre Pico e Ficino ndash no contexto das duas longas polecircmicas que perpassaram o seacuteculo ndash encontram-se nas obras posteriores de Alemanno

21 Segundo Idel existem registros de encontros entre magos cristatildeos e judeus durante o Renascimento (2008-b np464) Sobre a sutil fusatildeo de elementos neoplatocircnicos com aspectos do misticismo judaico vejam-se na mesma obra as paacuteginas 499-501 Ainda Giulio BUSI La Qabbalah 2011 pp28-29

19

nuacutecleo hebraico Agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici a tradiccedilatildeo familiar do mecenato

hebraico alcanccedilou seu maacuteximo esplendor atraindo para Florenccedila numerosas

personalidades do mundo hebraico no mesmo periacuteodo a Academia florentina se

abria para o mundo22 Suas contribuiccedilotildees juntamente com as discussotildees entre padres

gregos e latinos ajudaram a disseminar a filosofia neoplatocircnica enquanto em modo

simultacircneo se renovava o interesse pela mensagem velada natildeo-escrita George

Plethon de forma preciacutepua embora falecendo quase dez anos antes do surgimento

do ciacuterculo de estudos platocircnicos seria o responsaacutevel por transmitir consistentes

sementes que se desenvolveriam dentro daquele ambiente vindo a dar frutos a partir

da segunda metade do seacuteculo

A Academia antigas tradiccedilotildees novas traduccedilotildees

A chegada de Plethon agrave cidade dos Medici entusiasmou o velho Cosimo que

costumava estar entre aqueles que ouviam os discursos do filoacutesofo bizantino Plethon

vindo para o Conciacutelio que ajudaria a pacificar os acircnimos religiosos aproveitou para

dar a seus ouvintes latinos todos enamorados de Aristoacuteteles uma ideia da grandeza

de Platatildeo Cativado por tais discursos apaixonados foi sendo concebido no Patriarca

natildeo sem as devidas sugestotildees do amigo grego o desenho de um plano para instaurar

um centro de estudos de vieacutes platocircnico em solo toscano Em certo ponto Cosimo

decide realizar tal obra e escolhe o filho de seu meacutedico o ainda jovem Marsilio Ficino

para levar a termo tal empreitada Assim no ano de 1462 ndash ano considerado de

fundaccedilatildeo da Academia ndash Cosimo daacute a Ficino uma villa em Careggi incumbindo-o da

traduccedilatildeo e comentaacuterios de alguns diaacutelogos platocircnicos23 O proacuteprio Ficino batiza o

local com o nome ldquoacademiardquo homenagem agrave antiga escola fundada por Platatildeo A

Academia de Careggi preluacutedio da Academia de Florenccedila que floresceria mais tarde

sob os auspiacutecios drsquoil Magnifico Lorenzo natildeo foi um organismo legalmente

constituiacutedo como uma instituiccedilatildeo mas um simples convecircnio de doutos reunidos em

nome de um mesmo interesse cultural Suas portas se abriram para receber os mais

diversos interessados desde pensadores ilustres como Angelo Poliziano Cristoforo

Landino e os irmatildeos Benivieni ateacute poetas oradores sacerdotes homens de governo

muacutesicos juristas meacutedicos e o proacuteprio Lorenzo

Do lado de fora o cenaacuterio florentino era incrementado pelo despertar do

interesse e do envolvimento cultural de crescente nuacutemero de habitantes da cidade

tatildeo amplo na segunda metade do seacuteculo que ultrapassava os meios acadecircmicos

estendendo-se aos burgueses meacutedicos funcionaacuterios puacuteblicos artesatildeos A discussatildeo

de obras difiacuteceis como De Ente et Uno de Pico della Mirandola de temaacutetica abstrata

e aparentemente reservada a poucos especialistas despertava o interesse de um

22 CASSUTO opcit 1918 pp301-303 O patriarca Yehiel da Pisa foi um dos grandes dinamizadores de

literatura e poesia da eacutepoca e seu neto tambeacutem Yehiel que viveu agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici acolheu em sua casa florentina por vaacuterios anos uma verdadeira corte de literatos hebreus Na casa de Yehiel Yohanan Alemanno foi criado desde ainda menino educado e instruiacutedo de forma ldquoamorosardquo como conta em ldquoPrefaacuteciordquo ao seu livro Chesel Shelomograve (apud CASSUTO ibid np303)

23 GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 pp15-16

20

puacuteblico consideraacutevel a ponto de entusiasmaacute-lo24 O habitat florentino em si com seu

fervor cultural representava uma experiecircncia culturalmente importante para os

jovens estudantes que chegavam agrave cidade pela primeira vez como narraria Yohanan

Alemanno em uma de suas obras25 Enquanto isso dentro da Academia ocorria um

movimento de renovaccedilatildeo da feacute encabeccedilado por Ficino que fundamentando-se nas

especulaccedilotildees de Plethon postulava a comunhatildeo entre Religiatildeo e Filosofia buscando

acomodar aquela aos novos tempos26 A unificaccedilatildeo entre o Cristianismo e os

redescobertos temas da filosofia platocircnica e neoplatocircnica ndash em grande parte

originalidade sua ndash juntamente com sua vasta obra de traduccedilatildeo foram os dois

importantes legados deixados por Ficino

Efetivamente as traduccedilotildees foram uma dimensatildeo importante do Renascimento

florentino promovidas sobretudo pelo mecenato dos dois Medici avocirc e neto Dois

grandes conjuntos de obras foram traduzidos na comitiva de Lorenzo o de idioma

grego que incluiacutea textos neoplatocircnicos e hermeacuteticos e o hebraico que contemplava

tratados natildeo apenas filosoacuteficos como cabaliacutesticos27 Assim ao iniacutecio da deacutecada de lsquo60

Ficino traduz Alciacutenoo Especircusipo os ldquoVersosrdquo outorgados a Pitaacutegoras e o texto

lAssioco atribuiacutedo a Xenoacutecrates Mais adiante os hinos atribuiacutedos a Orfeu a

Homero os de Proclo e a Teologia de Hesiacuteodo Em lsquo84 inicia a traduccedilatildeo das

Eneacuteadas de Plotino e entre lsquo88 e lsquo93 traduz Teofrasto Porfiacuterio Jacircmblico Prisciano

Sineacutesio Miguel Psello Pseudo-Dioniacutesio e os fragmentos de Atenaacutegoras Junte-se a

essas a traduccedilatildeo de trinta e seis obras platocircnicas e vaacuterias outras28 A magnitude da

obra de traduccedilatildeo ficiniana natildeo suficientemente destacada viria a ter um notaacutevel

influxo no pensamento renascentista europeu aleacutem de propiciar agravequela cultura um

patrimocircnio ateacute entatildeo desconhecido em sua complexidade Ora nos seacuteculos anteriores

a essa eacutepoca os textos de Platatildeo natildeo eram lidos diretamente da fonte original trecircs

seacuteculos antes de Ficino o abade Guglielmo de Saint Thierry escrevia sobre o amor

24 Esses detalhes da vida na cidade podem ser avaliados atraveacutes de cartas trocadas entre Pico e cidadatildeos

comuns que natildeo apenas se mostravam interessados como estavam aptos muitas vezes a debater ideias filosoacuteficas bastante eruditas (cf Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p96)

25 Alemanno escreve na obra Hay ha-olamim (Lrsquoimmortale) que a cidade digna de se tornar a meca ideal de todo jovem desejoso de aprofundar seus conhecimentos era ldquoFirenze in terra di Toscanardquo O autor elenca as virtudes dos florentinos assim efetuando um verdadeiro elogio humanista agrave Repuacuteblica de Florenccedila (M MORTARA Catalogo dei manoscritti ebraici della biblioteca della comunitagrave israelitica di Mantova Livorno I Costa e C 1878 pp22-29 apud Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 51)

26 George Plethon vivera uma ldquofeacuterdquo neoplatocircnica procurando explicar questotildees teoloacutegicas de forma racional Ficino por sua vez torna-se padre catoacutelico e embora pretendendo seguir os cacircnones de sua feacute cristatilde natildeo consegue renunciar agrave formulaccedilatildeo de uma teologia racional capaz de dar agrave feacute religiosa um fundamento filosoacutefico (Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano p71) Sobre as afinidades entre o Platonismo e o Cristianismo veja-se COPENHAVERndashSCHMITT Renaissance philosophy A History of Western Philosophy 1992 p152

27 Segundo Moshe IDEL (1998 pp 19 24) a obra grega traduzida por Ficino e o conjunto cabaliacutestico traduzido por Mitridate foram as fontes mais importantes para o desenvolvimento intelectual dos pensadores florentinos do final do seacuteculo XV e da Europa como um todo Suas contribuiccedilotildees foram devidamente reconhecidas pelos estudiosos as traduccedilotildees de Ficino de forma especial por Paul Oskar KRISTELLER (La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento 1975) Jaacute as traduccedilotildees do hebraico mais recentemente foram analisadas detalhadamente por Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticis 19871989)

28 Como infere Mariateresa BROCCHIERI (opcit p24) ldquoem momentos proacutesperos da Histoacuteria ocorrem afortunados fenocircmenos de encontro entre o poder e a cultura trecircs seacuteculos antes na rica Andaluzia muccedilulmana o califa Abu Yarsquoqub Yusuf passara a Averroacuteis a tarefa de traduzir e comentar Aristoacutetelesrdquo dando o pontapeacute inicial para um longo periacuteodo de estudos aristoteacutelicos Agora era a vez de Cosimo Ficino e a abertura para os estudos platocircnicos

21

platocircnico baseado em fontes indiretas como Ciacutecero ou Agostinho Mas agora no

seacuteculo de Pico podia-se ler Platatildeo diretamente e as suas palavras tornavam-se pontos

de referecircncias primaacuterias29

Em meio ao material filosoacutefico houve ainda dentro da esfera intelectual da

Renascenccedila um amplo espaccedilo para temaacuteticas de cunho ldquotranscendenterdquo de

acentuado teor esoteacuterico apresentadas muitas das vezes revestidas por uma

roupagem filosoacutefica entretecida de tendecircncias neoplatocircnicas hermeacuteticas e ndash menos

perceptiacuteveis ndash cabaliacutesticas Um dos responsaacuteveis por instigar tal atmosfera fora

George Plethon cuja influecircncia natildeo se dera apenas em relaccedilatildeo ao Platonismo ele

tambeacutem trouxera Hermes Trismegisto e Zoroastro para Florenccedila jaacute devidamente

sistematizados pelo bizantino Miguel Psello no seacuteculo XI30 A partir das traduccedilotildees de

Ficino para o latim conteuacutedos permeados de misticismo e magia passam a ser

transmitidos a vaacuterios nuacutecleos da sociedade embora tal gecircnero de interesse se

mostrasse anterior tendo percorrido o seacuteculo por inteiro A relevacircncia dada ao tema

permite algumas especulaccedilotildees Para o homem meacutedio31 a religiatildeo apresentava uma

dicotomia mateacuteria-espiacuterito entatildeo natildeo mais tanto satisfatoacuteria a mateacuteria era causa de

afliccedilotildees e o reino do espiacuterito mostrava-se distante demais A intuiccedilatildeo de mundos

intermediaacuterios corroborada pelas discussotildees astroloacutegicas trazia possiacuteveis respostas agrave

sua precaacuteria existecircncia ao mesmo tempo em que o conhecimento de formas de magia

permitia natildeo se deixar dominar pelo fatuum32 Criava-se assim um espaccedilo entre a

religiatildeo e a mateacuteria preenchido pelo acesso agravequelas realidades intermeacutedias como

observou Eric Weil ldquoo homem renascentista iacutea agrave missa e depois ao astroacutelogordquo33

Ademais a crenccedila na Astrologia se intensifica em razatildeo de um difundido

anseio por unificaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o cosmo ao seu redor ndash tema estimado pelo

ldquoespiacuteritordquo do seacuteculo e razatildeo do incremento daquele estudo em meio aos humanistas

da Academia A invenccedilatildeo da prensa graacutefica tornou possiacutevel determinar com certo

grau de precisatildeo quais obras eram consideradas essenciais ou populares agrave eacutepoca

atraveacutes da detecccedilatildeo de quais conteuacutedos foram impressos mais cedo e em maior

nuacutemero a quantidade de volumes dedicados agrave Astrologia no Quattrocento italiano

aponta para a disseminaccedilatildeo de tal interesse juntamente com sua centralidade nas

29 COPENHAVER-SCHMITT opcit pp133 ss No ldquoPrefaacuteciordquo ao Supplementum ficinianum Giovanni

GENTILE escreve que Ficino eacute importante natildeo apenas para o entendimento do Renascimento italiano como do Platonismo europeu que sobreviveria dois seacuteculos depois dele portanto para o entendimento de muito da Filosofia Moderna de cujo desenrolar se plasmou o pensamento de nosso tempo (KRISTELLER Supplementum ficinianum 1937) Eugenio GARIN por sua vez ajuiacuteza que ldquoacerca da ressonacircncia enorme causada pela traduccedilatildeo de Ficino nunca se diraacute o suficienterdquo (op cit 2007 p73)

30 Arthur FIELD The Platonic Academy of Florence in Allen-Rees (org) Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy 2002 pp 359-376 Ainda para o tema veja-se IDEL 2008 p499

31 A menccedilatildeo ao homem ldquomeacutediordquo eacute usual em textos intelectuais da eacutepoca como os de Ficino e Pico para indicar homens natildeo partiacutecipes do mundo do pensamento Veja-se por exemplo De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno e scritti vari 1942 p396

32 Natildeo poucos textos de conteuacutedos declaradamente maacutegicos circulavam no Quattrocento Eugenio Garin considera que o tema da magia encontra-se no centro do quadro renascentista tal constataccedilatildeo faz o autor se distanciar sob esse quesito de Jacob Burckhardt e Giovanni Gentile (cf Michele CILIBERTO Prefaacutecio a GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006) Sobre o fatuum veja-se GARIN ibid p42

33 Eric WEIL La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie 1986 p66 Weil acrescenta que o homem do lsquo400 vivia em si uma divisatildeo interna estanque ele se via cristatildeo iacutea agrave igreja cumpria todos seus deveres religiosos ele sabia da existecircncia da alma e que essa tinha um valor mas era um saber ldquomortordquo pois o que ocorria no mundo material natildeo tinha relaccedilatildeo com a sua alma

22

discussotildees metafiacutesicas34 a presenccedila constante de instacircncias profeacuteticas na vida

poliacutetica as representaccedilotildees artiacutesticas (a imagem do homem coacutesmico onde cada parte

ou oacutergatildeo do corpo se encontra ligada a um corpo celeste torna-se comum nos

tratados astroloacutegicos) e a importacircncia do papel do astroacutelogo ndash que se torna um ator

social requisitado Todas indicaccedilotildees de um fenocircmeno central e caracterizante de uma

eacutepoca35

Sob tal clima homens letrados recepcionam o Picatrix manuscrito aacuterabe de

conteuacutedo maacutegico36 Bem mais que um manual de magia cerimonial o texto

contempla uma mescla de temas filosoacuteficos teoloacutegicos e praacuteticos apresentando um

nexo ldquoentre pressupostos teoacutericos e praacuteticas operativas entre hermetismo

especulativo de vieacutes platonizante e magia entre teurgia e teosofia orientalrdquo37 Lecirc-se

em suas linhas que ldquoa ciecircncia procede por graus conhecido um logo surge outro a

ser apreendidordquo e que ldquoatraveacutes da ciecircncia o homem faz milagres compreende tudo

consegue ser tudordquo38 Chamaria a atenccedilatildeo da Academia o conceito de ldquoNatureza

Perfeitardquo uma entidade espiritual agrave qual os filoacutesofos participam em graus diversos

qual um caminho iniciaacutetico que se desvela agrave medida que se caminha ndash um segredo

escondido dentro da Filosofia No proacuteprio Picatrix encontra-se sua definiccedilatildeo atraveacutes

de um belo discurso atribuiacutedo a Hermes Trismegisto ldquoA Natureza Perfeita eacute o

espiacuterito do filoacutesofo e do saacutebio conjugado ao planeta que o governa Eacute ele que abre as

portas da ciecircncia que o faz compreender as coisas que de outra forma natildeo poderia

compreender e das quais procedem as operaccedilotildees da natureza tanto em vigiacutelia como

no sono Daiacute resulta claro que a Natureza Perfeita se comporta no saacutebio e no filoacutesofo

como o mestre em relaccedilatildeo ao disciacutepulordquo39

O que interessa destacar eacute como as correspondecircncias entre conteuacutedos supra-

mundanos despertaram a atenccedilatildeo de estudiosos como Ficino levando-os a perceber

34 A chamada ldquopolecircmica da astrologiardquo colocaria em evidecircncia a multiplicidade de temas com ela convergentes

ou contrastantes deixando como heranccedila uma vasta quantidade de material literaacuterio O debate que perpassa todo o seacuteculo XV envolvendo um total de pelo menos trecircs seacuteculos torna partiacutecipes tanto homens de inegaacutevel conhecimento cientiacutefico como Paolo Toscanelli quanto homens de profunda religiosidade como Ficino cujas conhecidas praacuteticas astroloacutegicas contrastavam com seu pensamento cristatildeo Tanto Toscanelli quanto Ficino apesar de terem ambos colocado em duacutevida a validade das previsotildees astrais continuavam dependentes das prescriccedilotildees astroloacutegicas como observa Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo agrave obra de Garin (2011) A cidade de Ferrara um dos principais redutos de intelectuais abrigava ciacuterculos de doutos que se reuniam para tentar decifrar os significados que se escondiam nas intrincadas relaccedilotildees formadas entre os astros eram homens de razatildeo que comungavam da mesma ldquofeacuterdquo nas estrelas (Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1935 pp165 ss) Para os impactos sociais da Astrologia leia-se GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007

35 Franz BOLL Sphaera Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder Hildesheim Georg Olms reprinted 1967 p415 ss (apud GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 p173)

36 O Ghayat al-hakim (O propoacutesito do Saacutebio) ou Picatrix foi um ceacutelebre tratado aacuterabe de autor incerto cuja versatildeo latina manuscrita circulou na Itaacutelia especialmente na segunda metade do lsquo400 ocasionando tanto admiraccedilatildeo quanto indignaccedilatildeo entre alguns cristatildeos e muccedilulmanos ndash como o estudioso Ibn Khaldun ndash por ser visto como um manual de necromancia Giovanni Pico possuiacutea uma coacutepia do manuscrito em sua biblioteca Ludovico Lazzarelli o utilizou bem como no seacuteculo seguinte Cornelio Agrippa Giordano Bruno e Tommaso Campanella A obra encontra-se atualmente no Manuscrito de Munique 214 f51r (Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b np463 p474) Para o tema leia-se GARIN La diffusione di un manuale di Magia la cultura filosofica del Rinascimento italiano Firenze 1961 pp159-165

37 Cf GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 p47 38 Picatrix III vi trad Henry CORBIN Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien 1971 pp29-46 39 Picatrix III vi trad CORBIN (opcit)

23

que muitos temas do Picatrix estavam expostos no Pimander hermeacutetico ndash a ser

abordado adiante ndash confirmando a estreita conexatildeo entre Hermetism0 Magia e

Astrologia Indo aleacutem o Picatrix expunha um saber operativo capaz de colocar em

praacutetica as doutrinas hermeacuteticas receacutem-descobertas Com efeito Ficino e Pico se

interessaram pela efetuaccedilatildeo das experiecircncias maacutegicas contidas na obra O clima

excepcional de abertura ao sincretismo de pensamento existente em Florenccedila natildeo

impediu contudo que Ficino sofresse perseguiccedilotildees da Igreja Vozes maliciosas

acusavam-no de ter continuado a realizar praacuteticas maacutegicas juntamente com Pico no

periacuteodo em que este se encontrava confinado apoacutes a condenaccedilatildeo de sua obra

Conclusiones Nongentae e mesmo depois de Ficino ter sido ameaccedilado de

condenaccedilatildeo eclesiaacutestica40 O proacuteprio padre confessava ter utilizado o Picatrix em seu

Terceiro Livro do De Vita ao tratar das propriedades terapecircuticas dos talismatildes

reconhecendo ldquoatraveacutes de longa experiecircnciardquo que a concentraccedilatildeo de influxos celestes

sobre uma imagem realizada segundo as corretas regras apresentava um singular

efeito terapecircutico41 Fato eacute que enquanto Ficino era acusado de praacutetica de magia a

obra De Vita via suas ediccedilotildees se multiplicarem

A Simetria entre as Antigas Teologias

Um ano apoacutes Cosimo ter pedido a Ficino que traduzisse algumas obras

platocircnicas eis que o monge Leonardo de Pistoacuteia chega da Macedocircnia trazendo para

Florenccedila uma coacutepia do Corpus Hermeticum O impacto do surgimento desse material

eacute tatildeo extraordinaacuterio que Ficino se vecirc obrigado a suspender a traduccedilatildeo das obras de

Platatildeo para dedicar-se imediatamente ao novo manuscrito Em uma tradiccedilatildeo que fora

inaugurada por Miguel Psello o pensamento bizantino vinha mantendo por seacuteculos

o Corpus Hermeticum em um lugar de honra dentro do ensinamento platocircnico42 e os

mestres chegados de Bizacircncio para o Conciacutelio de Florenccedila cerca de duas deacutecadas

antes haviam sido os primeiros a apontar para a afinidade existente entre o

Hermetismo e o Platonismo no que concernia agrave sistematizaccedilatildeo do cosmo e agrave

ldquoantropologiardquo presentes em seus textos43 A suposta anterioridade de Hermes

Trismegisto em relaccedilatildeo a Platatildeo e a superioridade espiritual dos egiacutepcios sobre os

gregos ndash entatildeo paradigma maacuteximo do conhecimento ndash sugerida nas palavras

40 GARIN 2006 pp42-49 Nas paacuteginas do Picatrix eacute possiacutevel encontrar um compecircndio de foacutermulas maacutegicas

nas quais satildeo utilizados ingredientes como o oacutepio o haxixe e outras plantas psicoativas cujo consumo induziria a estados alterados e favoraacuteveis agrave clarividecircncia (GARIN 2007 pp51 ss)

41 Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano 1970 p71 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 38

42 Miguel Psello foi uma das personalidades mais importantes da cultura bizantina poliacutetico conselheiro de imperadores professor da Universidade de Constantinopla autor de numerosos escritos e conhecido em particular por suas obras de Histoacuteria envolveu-se na recuperaccedilatildeo da cultura claacutessica ndash interesse que encontrou a hostilidade dos ciacuterculos tradicionalistas da Igreja Bizantina Comentador de Aristoacuteteles e Platatildeo Psello tambeacutem se interessou pelas obras dos neoplatocircnicos Psello efetuou um recolhimento das coleccedilotildees gregas referentes aos materiais hermeacutetico e caldeu a partir de fragmentos encontrados em Plotino Proclo e outras fontes similares tardias (cf Stephan FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp486-487 A relaccedilatildeo de seus escritos pode ser vista em Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p19

43 O tema eacute desenvolvido por Paul Oskar KRISTELLER em El pensamiento renacentista y sus fuentes (1982 pp 206-224)

24

atribuiacutedas ao rei-sacerdote44 talvez tenham sido duas entre as razotildees para que os

Diaacutelogos fossem deixados temporariamente de lado

Na medida em que tiveres o poder oacute rei que tudo pode

preserva a qualquer custo este discurso de toda traduccedilatildeo para

que misteacuterios assim grandes natildeo cheguem aos Gregos e a sua

orgulhosa fala com falta de forccedila natildeo faccedila empalidecer e natildeo

anule a gravidade a robustez a virtude operativa dos vocaacutebulos

de nossa liacutengua Pois que os Gregos oacute rei dispotildeem apenas de

discursos vazios afeitos a produzir demonstraccedilotildees e nisso na

realidade consiste toda a sua filosofia em um barulho de sons

Noacutes diversamente natildeo nos utilizamos simplesmente de

palavras mas de sons plenos de eficaacutecia45

O gesto de Cosimo de pedir a traduccedilatildeo de Hermes antes de Platatildeo natildeo estaria

livre de significados o contato com aqueles textos enigmaacuteticos marca com uma

impronta o acircmbito intelectual florentino e o Hermetismo passa a ser uma doutrina

cultuada em toda a sua complexidade maacutegica e teoloacutegica ademais seus ecos seratildeo

fortemente ouvidos no seacuteculo posterior como pode ser constatado atraveacutes de vasta

literatura46 Antes das novas traduccedilotildees o Asclepius um dos tratados hermeacuteticos

havia circulado no Medievo de forma que algumas de suas doutrinas natildeo eram

desconhecidas e vinham sendo estudadas por alguns sobretudo por intermeacutedio das

obras de Lactacircncio e Agostinho ndash o primeiro com seus elogios o segundo com suas

condenaccedilotildees47 Ficino conhecera o Asclepius sete anos antes de iniciar a traduccedilatildeo dos

demais tratados tendo copiado alguns de seus capiacutetulos em um manuscrito pessoal

De toda forma eacute somente a partir de seu amplo trabalho de traduccedilatildeo que o

44 Os humanistas do Renascimento natildeo tinham duacutevidas acerca da antiguidade e da autenticidade daqueles

textos ndash mais tarde revelados pseudoepigraacuteficos dos primeiros seacuteculos da era vulgar ndash e tampouco sobre Hermes ter sido um real sacerdote egiacutepcio

45 Corpus Hermeticum XVI 2 (ed NOCK-FESTUGIEgraveRE 2006 pp429 ss) όσον οΰν δυνατόν έστί σοι βασιλεΰ πάντα δέ δύνασαι τόν λόγον διατήρησον άνερμήνευτον ίνα μήτε είςΈλληνας έλθη τοιαΰτα μυστήρια μήτε ή τών Ελλήνων υπερήφανος φράσις καί έκλελυμένη καί ώσπερ κεκαλλωπισμένη έξίτηλον ποιήση τό σεμνόν καί στιβαρόν καί τήν ενεργητικήν τών ονομάτων φράσινΈλληνες γάρ ώ βασιλεΰ λόγους έχουσι κενούς αποδείξεων ενεργητικούς καί αΰτη έστίν Ελλήνων φιλοσοφία λόγων ψόφος ήμεΐς δέ ού λόγοις χρώμεθα άλλα φωναΐς μεστάΐς τών έργων Traduccedilatildeo do grego feita por Andregrave Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade

46 Agrave primeira ediccedilatildeo latina do Corpus Hermeticum publicada em 1471 e ateacute entatildeo desconhecida no Ocidente seguiram-se ao menos vinte e quatro ediccedilotildees nos dois seacuteculos posteriores Somente o Pimander primeiro dos tratados teve dezesseis ediccedilotildees entre o final do seacutec XV e o final do seacutec XVI (cf KRISTELLER Studies in Renaissance thought and letters 1956 p223 ss) O impacto da obra hermeacutetica natildeo poderia deixar de atingir o mundo das Artes uma bela representaccedilatildeo de Hermes Trismegisto encontra-se no mosaico de maacutermore feito por Giovanni di Stefano em 1488 para a Catedral de Siena comprovando a aceitaccedilatildeo do saacutebio pagatildeo em territoacuterio cristatildeo Para as repercussotildees do tema veja-se Frances YATES ldquoThe Hermetic Tradition in Renaissance Sciencerdquo in Art Science and History in the Renaissance Baltimore Johns Hopkins Press 1968 pp 255-274 Eugenio GARIN Ermetismo del Rinascimento Pisa ed Della Normale 2006 James HEISER Prisci Theologi and the Hermetic Reformation in the Fifteenth Century Texas Repristination Press 2011 Luisa ROTONDI SECCHI TARUGI LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998

47 As citaccedilotildees hermeacuteticas de Lactacircncio partem da versatildeo de um escrito grego o Loacutegos teacuteleios difundido tambeacutem em versatildeo copta Em carta a Cosimo (contida no Proacutelogo agrave traduccedilatildeo do Pimander) Ficino faz referecircncia agraves acusaccedilotildees de Agostinho acerca das possiacuteveis origens divinatoacuterias ou demoniacuteacas das doutrinas de Hermes no Asclepius (De civitate Dei VIII 23-26) Por tal razatildeo o padre-filoacutesofo teria optado por seguir os juiacutezos mais favoraacuteveis de Lactacircncio Petrarca Coluccio Salutati e Nicolau de Cusa tambeacutem atestam conhecer o conteuacutedo do Asclepius sempre atraveacutes dos olhos de Lactacircncio e Agostinho Para as referecircncias das obras desses autores veja-se GARIN 2006 pp10 ss

25

Hermetismo passa a contribuir e natildeo pouco com a disseminaccedilatildeo de ldquouma nova

sensibilidaderdquo que incrementa ldquoo gosto pelo misteacuterio e pelo ocultordquo conforme ajuiacuteza

Eugenio Garin48

Dentre os dezoito tratados que compotildeem o Corpus49 o Pimander primeiro a

iniciar a ordenaccedilatildeo expotildee um relato sobre a criaccedilatildeo do mundo o homem e sua

Queda Os tratados seguintes descrevem a ascensatildeo da alma pelas esferas dos

planetas para o reino divino e seus processos de regeneraccedilatildeo O Asclepius ou

Discurso Perfeito ndash opuacutesculo desassociado dos demais tratados cuja traduccedilatildeo foi

erroneamente atribuiacuteda a Apuleio de Madaura por natildeo poucos filoacutelogos ndash50 trata da

religiatildeo dos egiacutepcios e seus ritos sacerdotais alguns polecircmicos por serem destinados

a atrair as forccedilas do cosmo para as estaacutetuas de seus deuses O ensinamento nuclear

do Pimander mostra conformidades com o processo de uniatildeo ao Inteligiacutevel descrito

no manual de magia Picatrix que natildeo deixariam de ser percebidas nos dois textos

mestre e disciacutepulo se unificam o diaacutelogo do ser eacute com o noucircs no primeiro e com a

ldquoNatureza Perfeitardquo no segundo ldquoPimander eacute o noucircs que acompanha sempre o

disciacutepulo eacute pois a Natureza Perfeitardquo51

Esse tipo de conteuacutedo tanto em suas partes teoreacuteticas quanto teuacutergicas seria

reconhecido outrossim em meio aos enunciados caldeus introduzidos na urbe por

Plethon Os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos ao sacerdote persa Zoroastro foram

manuscritos muito bem recepcionados pelo seacuteculo XV tal como ocorreu com os

hermeacuteticos52 Seu conteuacutedo de acordo com juiacutezo de Darby Nock apresenta fortes

semelhanccedilas com escritos do Gnosticismo cristatildeo ndash que em muitos pontos

coincidem com o conteuacutedo do Platonismo dos seacuteculos II e III ndash como o anelo por

certeza e revelaccedilatildeo a propensatildeo agraves abstraccedilotildees metafiacutesicas e a preocupaccedilatildeo com a

alma e sua salvaccedilatildeo53 Des Places descreve o conteuacutedo dos Oraacuteculos como uma seacuterie

de ideias ldquosobre Deus os daimons a alma o cosmordquo aleacutem de indicaccedilotildees sobre ritos

teuacutergicos54 Algumas passagens satildeo descritivas revelando a natureza de Deus do

intelecto e das hipoacutestases derivadas do Uno outras prescritivas formulam

instruccedilotildees que o teurgo deve seguir para purificar suas almas racional e irracional e

o corpo com o objetivo de se juntar agrave fonte original55 Haacute um grande nuacutemero de

48 GARIN 2006 p74 49 A ordenaccedilatildeo foi realizada por Darby Nock que distingue o Corpus Hermeticum do Asclepius e de outros

fragmentos atribuiacutedos a Estobeu Entretanto o todo da obra hermeacutetica eacute chamado a grosso modo Corpus Hermeticum O manuscrito original encontra-se em Florenccedila na Biblioteca Riccardiana 709 ff10r-12r

50 A autoria do Asclepius manteacutem-se desconhecida Ficino atribui a Apuleio a traduccedilatildeo mais antiga do corpus ldquoE multis denique Mercurii libris duo sunt divini praecipue unus de voluntate divina alter de potestate et sapientia dei Ille Asclepius hic Pimander inscribitur Illum Apuleius platonicus latinum fecit alter usque ad haec tempora restitit apud graecosrdquo (Marsilio FICINO Pimander in Opera Omnia KRISTELLER-SANCIPRIANO 1962 p1836)

51 A siacutentese eacute de Eugenio GARIN (2006 pp45-46) conforme sua leitura do Picatrix 52 Ficino traduziu os Oraacuteculos a partir da versatildeo grega de Plethon acrescentando a eles seu proacuteprio comentaacuterio

(FARMER op cit p486) Fontes antigas propotildeem que o verdadeiro autor dos Oraacuteculos Caldeus ou Loacutegia Chaldaikaacute tenha sido Giuliano o Teurgo filho de Giuliano o Caldeu que viveu agrave eacutepoca de Marco Aureacutelio em cerca de 150 dC Sobre a recepccedilatildeo aos textos de Giuliano na Academia veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia 1936

53 Cf ldquoPrefaacuteciordquo de Arthur Darby Nock ao Corpus Hermeticum opcit p 16 54 Edouard DES PLACES Oracles chaldaiumlques 1971 p12 55 Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della

concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p18

26

elementos que remetem ao Timeu platocircnico uma das razotildees que provavelmente

levou Plethon a colocar os Oraacuteculos como fundamento de sua teologia identificando-

os como a fonte das doutrinas zoroastrianas que se encontravam na origem da

teologia platocircnica Em resposta a George Scolario Plethon com efeito atestava ldquoQue

Platatildeo fez dessa filosofia a sua proacutepria eacute demonstrado pelos Oraacuteculos que nos

chegaram de Zoroastro e que concordam em todos os aspectos com as doutrinas de

Platatildeordquo56

Sabe-se que a mentalidade renascentista apreciava os arranjos simeacutetricos de

forma que todas essas traduccedilotildees pertencentes a tradiccedilotildees que natildeo somente detinham

uma prerrogativa de sabedoria como ainda apresentavam uma simetria entre seus

conteuacutedos seriam facilmente absorvidas pelos meios intelectuais sobretudo na

Academia Para muitos humanistas do lsquo400 as formas e os fenocircmenos religiosos

mais antigos eram em certo sentido verdadeiramente puros por se encontrarem

mais proacuteximos da forma original revelada pelo divino aos homens Assim havia um

terreno propiacutecio para o cultivo daqueles temas que contemplavam desde o fasciacutenio

do antigo Egito e seus rituais maacutegicos ateacute a concepccedilatildeo de uma renovaccedilatildeo religiosa

ademais proclamavam o lugar privilegiado do homem ndash tema que seria retomado

por alguns humanistas57 Ficino natildeo demora a incorporar aquelas doutrinas a seus

pensamentos percebendo semelhanccedilas com a filosofia platocircnica e descobrindo

correspondecircncias em Plotino Jacircmblico e Proclo reconhece simetrias teoreacuteticas

sobretudo nos enunciados pertinentes a sistemas cosmoloacutegicos e metafiacutesicos que

passariam a ser enfatizadas em suas obras58

A similaridade encontrada entre esses materiais constituiram para Ficino um

testemunho de arcana mysteria Na concepccedilatildeo ficiniana de inspiraccedilatildeo plethoniana

existiria uma antiga corrente de ensinamentos filosoacuteficos transmitidos por profetas-

teoacutelogos que teriam concebido uma organizaccedilatildeo dos planos inteligiacuteveis

fundamentada em revelaccedilotildees recebidas Sob seu olhar natildeo distante da visatildeo de

outros filoacutesofos ligados ao Neoplatonismo a atividade filosoacutefica coincide com a

teoloacutegica na medida em que prepara a alma-intelecto para acolher a ldquorevelaccedilatildeordquo Os

antigos teoacutelogos prisci theologi satildeo pois aqueles que conhecem por revelaccedilatildeo a

verdade sempre a mesma por se tratar de realidade natildeo sujeita ao devir Seguindo

uma tradiccedilatildeo ininterrupta as doutrinas de Trismegisto foram sendo transmitidas a

outros saacutebios da Antiguidade chegando ateacute Platatildeo compondo o que seria uma secta

philosophorum ndash como escreveria Ficino em sua carta a Cosimo dersquo Medici59

ldquoHermes por primeiro foi chamado teoacutelogo [primus igitur theologiae apellatus est

autor] o seguiu como segundo teoacutelogo Orfeu depois Aglaofemo Pitaacutegoras e

56 A passagem eacute citada e traduzida por S GENTILE Sulle prime traduzioni dal greco di Marsilio Ficino in

ldquoRinascimentordquo nr 30 1990 pp 64-65 apud CORAZZOL opcit p20 57 Para o influxo do Hermetismo sobre os Humanistas leia-se Paul Oskar KRISTELLER El pensamiento

renacentista y sus fuentes 1982 pp 206-219 58 Brian COPENHAVER Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the

Renaissance in Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe 1988 pp 79-110

59 KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996

27

Filolau mestre de nosso divino Platatildeordquo60 Plethon havia antecedido Ficino em sua

Prisca Theologia iniciando seu elenco com Zoroastro Certamente o influxo da

concepccedilatildeo intuiacuteda pelo mestre bizantino faria efeito sobre Ficino visto que em seu

ldquoproecircmiordquo agrave traduccedilatildeo das Eneacuteadas plotinianas de 1492 Hermes e Zoroastro seriam

colocados juntos em primeiro lugar como iniciadores da pia philosophia61

Nos anos proacuteximos agrave composiccedilatildeo do De Vita Ficino volta-se cada vez mais

para a traduccedilatildeo de obras de maior cunho esoteacuterico como eacute o caso do De Mysteriis

atribuiacutedo a Jacircmblico e do texto hieraacutetico de Proclo De sacrificio et Magia62 As

concepccedilotildees acerca da existecircncia de uma cadeia formada por antigos ldquoteoacutelogosrdquo a

abertura ao Platonismo estimulada pelos mestres bizantinos as repercussotildees do

misticismo hebraico as traduccedilotildees de Ficino as polecircmicas acerca da Astrologia e da

Magia que perpassam o seacuteculo satildeo todas caracteriacutesticas que se aliam para compor

um ldquoesprit du siegraveclerdquo abrindo espaccedilo para teologias estrangeiras que natildeo poderiam

deixar de influir na composiccedilatildeo do pensamento de Pico della Mirandola Resta

observar que a paulatina mudanccedila de consciecircncia trazida pela renovatio do

Quatrocentos deve-se em grande parte aos pressupostos metafiacutesicos trazidos pela

redescoberta de antigas doutrinas que fundamentaram muitos dos postulados

filosoacuteficos e teoloacutegicos da eacutepoca

60 Marsilio FICINO Proacutelogo ao Pimander (Opera Omnia Kristeller-Sancipriano (org) 1962 vol II p1836)

Para um estudo completo acerca da Prisca Theologia ficiniana leia-se DPWALKER Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958

61 Marsilio FICINO Opera Omnia opcit vol II p1537 ldquoFactum est ut pia quaedam philosophia quondam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consona nutriretur deinde apud Traces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et Italos tandem vero a divo Platone consummaretur Athenisrdquo

62 GARIN 2006 p68

28

CAPIacuteTULO II

GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Giovanni Pico foi um ser fascinante Mas natildeo feliz Seus mais intensos

projetos foram malogrados Todavia foi aclamado pelos criacuteticos como um dos mais

notaacuteveis representantes da Filosofia Renascentista por seus contemporacircneos como

o mais saacutebio filoacutesofo de sua eacutepoca1 Fruto de seu seacuteculo ou quem sabe de uma

personalidade marcada por contrastes seu pensamento natildeo estaacute livre de

contradiccedilotildees A mais visiacutevel que extravasa para a sua inteira obra encontra-se na

dicotomia entre feacute e ratio ou entre o piedoso servo da Igreja e o filoacutesofo que se liberta

de todo o dogma para investigar os mais diversos caminhos2 Tais contrastes ao se

aliarem a um forte carisma agrave fama de gecircnio multifacetado3 e a um conjunto de

circunstacircncias extraordinaacuterias ndash tais como uma vida marcada pela trageacutedia e a morte

prematura aos 31 anos ndash contribuiacuteram para criar uma atmosfera de encanto em

torno de seu nome a ponto de a cerca de trecircs deacutecadas de sua morte ainda ser

chamado de ldquohomem quase divinordquo por Maquiavel4

Enaltecimentos natildeo lhe faltaram A despeito dos elementos contrastantes em

sua obra ndash ou justamente por causa deles ndash seu legado pode ser considerado como a

siacutentese que agrega algumas das investigaccedilotildees mais marcantes de sua eacutepoca (ldquoas

causas das coisas os processos da natureza a razatildeo do universordquo)5 o que fez com que

ganhasse o interesse de famosos intelectuais europeus ao longo dos seacuteculos e

recebesse elogios de pensadores tatildeo diversos quanto Erasmo de Rotterdam Pierre

Gassendi Kepler e Voltaire6 O apreccedilo de Thomas More pela obra piquiana fez com

1 Giovanni Pico foi considerado ainda o mais jovem nobre e belo filoacutesofo de seu tempo O escolaacutestico Angelo

Poliziano se referia ao amigo em suas cartas como o ldquodivino Picordquo (sacer Picus) a ldquofecircnixrdquo (phoenix) o ldquosemideusrdquo (heros) a ldquoluz de todo o aprendizadordquo (lux omnium doctrinarum) e ldquoaquele que eacute bonito como ningueacutem e mais eminente em todos os ramos do aprendizadordquo (quo nec pulchrior alter mortalium nec in omnibus arbitror doctrinis excellentior) Para essa e outras passagens veja-se POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006 1 36-37 118-19 134-35 193 Acerca da beleza do conde avultam as descriccedilotildees ldquoEra cosigrave bello colle chiome doro svolazzanti sul volto radioso quasi novello Adone come ce lo dipinge il Ramusio [Girolamo Ramusio] in un carme latinordquo (FLAMINI Girolamo Ramusio in Atti e Memorie di R Acc di Padova 1899-1900 vol XVI pp 11-37 apud Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p9) Ver tambeacutem Joseacute Vitorino de PINA MARTINS Jean Pic de la Mirandole - Un portrait inconnu de lrsquohumanisme 1976

2 Como acentuou Newton BIGNOTTO Pico ldquofoi prisioneiro das duacutevidas que assaltavam os que se dispunham a lidar com novas ideias e continuar a viver no interior da feacute cristatilderdquo (Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 p147)

3 Tornou-se proverbial a prodigiosa memoacuteria de Pico Detinha na mente numerosas obras que o faziam ter uma habilidade enciclopeacutedica de oratoacuteria Sua capacidade de retenccedilatildeo era tal que podia recitar a inteira Divina Commedia de traacutes para frente iniciando do uacuteltimo verso ndash podendo fazer isso com qualquer poema que acabasse de ler (Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

4 Nicolau MAQUIAVEL Histoacuteria de Florenccedila livro VIII 2007 p557 Tal obra foi escrita entre 1520 e 1527 portanto nos uacuteltimos anos da vida de Maquiavel

5 PICO De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno et scritti vari 1942 p130 ldquoQuasi rerum causas naturae vias universi rationem []rdquo

6 Veja-se respectivamente Marc LAUREYS The Reception of Giovanni Pico in the Low Countries in Gian Carlo GARFAGNINI Giovanni Pico della Mirandola Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte (1494ndash1994) 1997 p629 Brian VICKERS Critical Reactions to the Occult Sciences during the Renaissance in The Scientific Enterprise - The Bar-Hillel Colloquium Studies in History Philosophy

29

que a difundisse ao puacuteblico inglecircs em larga escala seja atraveacutes das traduccedilotildees das

cartas e pequenos textos de Pico seja por sua livre traduccedilatildeo do livro Vita de

Gianfrancesco Pico que constitui a primeira biografia impressa em inglecircs7 Em

tempos contemporacircneos foi alccedilado ao tiacutetulo de ldquoFecircnix dos Engenhosrdquo por Giovanni

Semprini ldquoAlma do Renascimento italianordquo por Eugenio Garin e ldquoAurora

inacabadardquo por Henri de Lubac8

A principal marca de Pico foi natildeo se ter entregue inteiramente a nenhuma

corrente de pensamento fosse filosoacutefica ou teoloacutegica Com isso suas ideias o

colocaram em constante linha de fogo cruzado natildeo lhe permitindo pertencer de

forma plena a nenhum ciacuterculo Nem mesmo as vestes de sua cepa aristocraacutetica foram

vestidas de forma confortaacutevel seu entusiasmo por ideias novas a paixatildeo pela

investigaccedilatildeo e a rapidez febril com as quais expunha suas opiniotildees afastavam-no da

prudecircncia tiacutepica de um bom cortesatildeo9 ademais a escolha de uma vida filosoacutefica natildeo

fazia parte do repertoacuterio da nobreza no seacuteculo XV cujo caminho usual passava pelo

clero ou pela corte A resposta a Andrea Corneo que o exortava a abraccedilar esta uacuteltima

indica a verdadeira propensatildeo de Pico

Me escrevestes lsquoaproxima-se o tempo em que deveraacutes colocar-

te a serviccedilo de algum dos grandes [priacutencipes] da Itaacuteliarsquo Parece-

me que ignoras a opiniatildeo que tecircm de si os amantes da Filosofia

Esses de acordo com Horaacutecio se consideram reis natildeo sabem

servir e adequar-se aos costumes de outros vivem consigo

mesmos contentes da proacutepria serenidade se bastam e natildeo

precisam de nada que esteja fora de si mesmos [] E eu

partilhando dessa opiniatildeo anteponho a minha pequena cela [no

claustro] os meus estudos os prazeres que me propiciam os

meus livros agraves salas reais aos negoacutecios puacuteblicos aos favores da

corte10

Seus pensamentos e escritos determinaram os acontecimentos de sua

trajetoacuteria Veremos que as accedilotildees sofridas e o fato de sua obra mais grandiosa natildeo ter

tido a chance de ser concluiacuteda foram consequecircncias dramaticamente ligadas agrave

originalidade de suas premissas

and Sociology of Science ed Edna Ullmann-Margalit Dordrecht 1992 nr 4 p 75 Sheila RABIN Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic in Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750-70 Para as avaliaccedilotildees de Voltaire sobre Pico veja-se Henri De LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 p 13

7 Essa e outras referecircncias podem ser encontradas na ldquoIntroduccedilatildeordquo de Michael DOUGHERTY agrave sua obra Pico della Mirandola New Essays 2008 pp 1-2

8 As criacuteticas embora de menor vulto tambeacutem natildeo faltaram Dentre os comentaristas Lynn THORNDIKE eacute o que faz uma das mais duras avaliaccedilotildees da obra de Pico considerando o autor ldquoimaturordquo (A History of magic and a experimental science vol 4 1934 p485)

9 Conforme relata o sobrinho Gianfrancesco agrave velocidade intelectual de compreensatildeo e de apreensatildeo correspondia em Pico uma escrita raacutepida nervosa algumas vezes difiacutecil de entender Escrevia em toda a parte em folhas soltas tanto que apoacutes sua morte foi bastante trabalhoso para o sobrinho pocircr ordem naqueles escritos muitos deles incompletos (Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p97)

10 PICO Carta de 15 Outubro 1486 in Opera omnia ediccedilatildeo Basileia 1557 (apud Albano BIONDI Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pVIII) NOTA As traduccedilotildees para o portuguecircs das citaccedilotildees presentes neste capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade

30

1 A Vida

A primeira biografia de Giovanni Pico escrita pelo sobrinho-escritor

Gianfrancesco11 conta que durante seu nascimento foi visto um brilhante ciacuterculo

iacutegneo pairando sobre a cama da matildee parturiente ali permanecendo por algum

tempo O fato ocorreu em 24 de Fevereiro de 1463 no castelo do condado de

Mirandola12 A imagem foi prontamente associada agrave perfeiccedilatildeo do pensamento de

Pico que ldquocomo o fogo estaacute sempre voltado agraves coisas celestesrdquo Essas palavras

completam a narrativa incomum publicada apoacutes a morte do biografado o autor

sabia que a descriccedilatildeo soacute seria bem aceita pelo puacuteblico se o personagem central fosse

detentor de uma reputaccedilatildeo que permitisse tal associaccedilatildeo13

Filho temporatildeo Giovanni cresce sob estrito zecirclo da matildee donna Giulia dei

Boiardo no coraccedilatildeo de uma nobre famiacutelia em meio a conflitos familiares (que

levariam agrave morte anos mais tarde do sobrinho-bioacutegrafo)14 Aos catorze anos eacute

encaminhado para estudar Direito Canocircnico em Bolonha seguindo o costume que o

destinava agrave vida eclesiaacutestica A cidade conhecida por transmitir as ideias humanistas

da Itaacutelia para a Europa foi responsaacutevel por despertar a atraccedilatildeo do jovem pela ordem

dominicana aleacutem do gosto pelas preacutedicas dos frades envolvidos com assuntos

acadecircmicos Apoacutes dois anos da mudanccedila ocorre o falecimento da matildee e o rapaz

encontrando-se oacuterfatildeo vecirc-se obrigado a tomar suas decisotildees dali em frente sozinho15

11 A primeira biografia sobre Pico foi escrita por seu sobrinho Gianfrancesco Pico della Mirandola e publicada

na primeira ediccedilatildeo da Opera Omnia em Bolonha em 20 de marccedilo de 1496 Com base em sua obra e ainda com um conjunto de 120 cartas sobreviventes eacute possiacutevel estabelecer uma biografia de Pico bastante detalhada A Opera Omnia foi traduzida para o inglecircs posteriormente por Sir Thomas More e impressa em Londres em 1510 (Thomas MORE Giovanni Pico della Mirandola His Life by His Nephew Giovanni Francesco Pico ed J M Rigg- D Nutt London l89o) A moderna ediccedilatildeo chamada apenas Vita denomina-se Ioannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consumatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta (ed B Andreolli Aedes Muratoriana Modena 1994) Vejam-se mais dados biograacuteficos em E GARIN Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 L VALCKE Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique 2005 D BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola cenni e documenti inediti in Rivista contemporanea 1859 pp7-56 H de LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 W CRAVEN Pico della Mirandola Bologna 1984 J JACOBELLI Pico della Mirandola 1986 G SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola-La Fenice degli Ingegni 1921

12 Daiacute ser chamado Giovanni Pico dos condes de Mirandola e Concoacuterdia 13 A reflexatildeo estaacute em BROCCHIERI opcit pp5-8 Natildeo se deve julgar precipitadamente o sobrinho-bioacutegrafo

por um suposto enaltecimento do tio Seus escritos mostram que natildeo haacute uma exaltaccedilatildeo mas antes o contraacuterio em muitos momentos Gianfrancesco eacute bastante severo e criacutetico acerca do pensamento de Pico Sobre as circunstacircncias do nascimento veja-se Felice CERETTI Giulia Boiardo in Atti e Memorie 1881 vol 4 part 3 p 213 Jacob BURCKARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902 pp 142 e 232 Acerca das relaccedilotildees com a matildee ldquoDonna Giuliardquo veja-se SEMPRINI op cit pp1-3

14 Conforme historiadores durante o periacuteodo de Senhorio da famiacutelia Pico que durou quatro seacuteculos (ateacute 1710) os habitantes do condado gozaram de prosperidade econocircmica e estabilidade legislativa e poliacutetica aleacutem de certa liberdade religiosa que levou ao florescimento de novas ordens como a dos ldquoMendicantirdquo Da colaboraccedilatildeo com os Mendicantes nasceu em Mirandola o ldquoDesco dei Poverirdquo e o Monte do Pietagrave aleacutem do mosteiro feminino das Clarissas (cf BROCCHIERI opcit p4) Apoacutes a morte do pai que ocorre quando Giovanni era crianccedila seus irmatildeos Galeotto e Anton Maria viveram em perene discoacuterdia em razatildeo da posse do feudo A luta familiar terminaria por extinguir o sobrinho de Giovanni Gianfrancesco assassinado em 1533 por um de seus parentes (cf Felice CERETTI Biografie pichensi 1909 pp91-127)

15 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 pp 21-23 SEMPRINI opcit pp3-4 BROCCHIERI opcit pp4-5 GARIN 2011 pp3-5 Vejam-se dados biograacuteficos em ldquoProgetto Picordquo convecircnio entre a Universitagrave degli Studi di Bologna e a Brown University

31

Assim aos dezesseis anos abandonando a futura carreira de jurista parte para

Ferrara cidade das mais pujantes e populosas da Itaacutelia prestigiada por seu

endereccedilamento ao estudo das Humanidades Ferrara passaria a ser o local em que

Giovanni daria seus primeiros passos em direccedilatildeo agraves disciplinas filosoacuteficas e para onde

voltaria vaacuterias vezes em seus uacuteltimos anos de vida16 Na nova cidade passa a

frequentar os ciacuterculos de discussotildees acadecircmicas chamando a atenccedilatildeo por ser o

integrante mais jovem Entre as principais pessoas que vem a ter conhecimento estatildeo

Battista Guarino mestre que lhe apresenta um tipo de conhecimento laico ateacute entatildeo

desconhecido e o frei Girolamo Savonarola encontro que mais tarde seraacute

determinante em sua vida17 Apoacutes dois anos de intenso aprendizado o nuacutecleo de

Ferrara antes repleto de novidades passa a mostrar-se limitado Pico cada vez mais

interessado em escarafunchar conventos e bibliotecas atraacutes de novos volumes18

sente-se atraiacutedo por um ambiente mais renomado e vivo de disputas acadecircmicas19

Paacutedua

Em 1480 agora com dezoito anos Pico chega a Paacutedua Na mais famosa

universidade italiana da eacutepoca onde permaneceraacute por dois anos estudando o pupilo

abraccedila definitivamente a Teologia e a Filosofia20 A formaccedilatildeo aristoteacutelica iniciada em

Ferrara seria mantida uma vez que a Escola de Paacutedua seguia uma linha de tradiccedilatildeo

notadamente averroiacutesta O ambiente de estudos padovanos o satisfaz amplamente

como demonstra uma carta escrita ao novo amigo Ermolao Barbaro21 Uma das

razotildees encontrava-se no fato de ter contato com pessoas que viriam a ter significado

fundamental em seu desenvolvimento e em sua vida Aleacutem de Barbaro tornado

doutor e titular da caacutetedra de Filosofia Moral aos vinte e trecircs anos com o qual a

identificaccedilatildeo foi imediata Pico conheceu Nicoletto Vernia original professor que o

fez conhecer a concepccedilatildeo averroiacutesta de unidade do intelecto pela primeira vez ndash tema

que teria forte impacto sobre sua formaccedilatildeo e ao qual voltaria tempos depois22 O

mestre aristoteacutelico foi de certa forma tambeacutem o primeiro a influenciaacute-lo sobre a

harmonia de pensamento entre Platatildeo e Aristoacuteteles projeto que seria perseguido por

Pico durante os proacuteximos anos de sua vida Ainda em Paacutedua Pico conhece o coetacircneo

Elia del Medigo23 jovem brilhante que como ele teraacute uma morte prematura O

cretense douto hebreu e precoce tradutor de Averroacuteis e de outros textos aacuterabes

16 GARIN ibid pp 3-8 SEMPRINI opcit p5 17 SIRGADO GANHO Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate 2001 pp 15-16 SEMPRINI opcit p4

GARIN 2011 p8 18 SEMPRINI ibid p6 19 As chamadas ldquodisputasrdquo eram debates de alto niacutevel que ocorriam nos ambientes acadecircmicos tendo o caraacuteter

do que hoje conhecemos por simpoacutesio ou congresso 20 BROCCHIERI op cit p9 DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze 1902 p752

GARIN 2011 p10 Sobre a importacircncia de Paacutedua como centro averroiacutesta veja-se BURCKHARDT op cit pp 242-244 SEMPRINI op cit p12

21 Na carta ao filoacutesofo aristoteacutelico Ermolao Barbaro lecirc-se que de todos os ldquoginaacutesiosrdquo da Itaacutelia aquele de Paacutedua era o que mais o agradava (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France 1879 p 9) Acerca das cartas de Pico deve-se frisar que graccedilas ao primoroso trabalho de recolhimento das epiacutestolas organizado por Leacuteon Dorez tornou-se possiacutevel acompanhar muitos detalhes da vida de Giovanni Pico

22 SEMPRINI op cit pp11-12 A concepccedilatildeo de unidade do intelecto eacute uma das marcas do pensamento do filoacutesofo aacuterabe Averroacuteis tradutor das obras de Aristoacuteteles no seacuteculo XII O tema seraacute retomado no proacuteximo item

23 Elia del Medigo mestre de filosofia oriental falece com apenas trinta e trecircs anos Maiores detalhes podem ser vistos em RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo Padova 1891 Para as circunstacircncias do encontro com Pico veja-se Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9

32

imediatamente aprecia a aguda inteligecircncia daquele jovem ldquoapesarrdquo do visiacutevel gosto

por Platatildeo que nele comeccedilava a despontar ndash coisa mal vista por um aristoteacutelico

ortodoxo como Elia Tal encontro se mostraraacute um dos principais elementos

responsaacuteveis pela aproximaccedilatildeo do Mirandolano ao pensamento aacuterabe-hebraico ndash que

o levaraacute por vias indiretas ao estudo da Cabala24

Pouco antes de completar vinte anos talvez em razatildeo da receacutem-editada obra

de Marsilio Ficino a Theologia Platonica de immortalitate animorum observa-se

uma mudanccedila de direcionamento doutrinaacuterio Pico comeccedila a voltar-se fortemente ao

Platonismo Uma carta de final de lsquo82 testemunha o pedido feito a Ficino para que

aceite ser seu guia no novo caminho de estudos atraveacutes do qual pretende integrar

Aristoacuteteles e Platatildeo25 Coincidecircncia ou natildeo nessa mesma eacutepoca seu amigo Angelo

Poliziano26 o convida a participar do movimento literaacuterio florentino Ademais chega-

lhe a notiacutecia de que uma forte tradiccedilatildeo de estudos hebraicos propaga-se em Florenccedila

Essas podem ter sido as principais motivaccedilotildees que o fizeram deixar o centro

padovano e partir para a cidade do Arno27 Assim em 1484 receacutem liberto de

preocupaccedilotildees de ordem financeira28 Pico muda-se para a urbe entatildeo regida por

Lorenzo dersquo Medici patrono de personalidades como Michelangelo e mecenas do

ciacuterculo platocircnico ndash que dava agora as boas-vindas a seu mais novo ingressante

Em pouco tempo comeccedilam a ocorrer encontros de cristatildeos e hebreus na casa

do mais novo morador da cidade Um ciacuterculo de orientalistas reuacutene-se com

frequecircncia para discutir o Aristotelismo29 Natildeo raro podia ser encontrado Elia del

Medigo ndash o jovem mestre que seguindo os passos do aluno foi ter em Florenccedila ndash

sustentando debates filosoacuteficos e religiosos com outro hebraiacutesta o entatildeo convertido

Flavio Mitridate ndash que mais adiante viria a ser o proacuteximo professor do Conde30

24 Para Elia del Medigo assim como para outros acadecircmicos padovanos Aristoacuteteles representava ldquoo pai de

todos os filoacutesofosrdquo e Averroacuteis era ldquoo seu mais fiel comentadorrdquo Assim que a atitude de Del Medigo em relaccedilatildeo agrave Cabala natildeo seria tatildeo positiva quanto a de Pico ou como seraacute visto a de seu outro mestre hebreu Yohanan Alemanno justamente em razatildeo do forte acento neoplatocircnico encontrado naqueles textos Cf Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p284 ss BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11

25 Para essa e outras cartas veja-se DOREZ-THUASNE opcit p 10 Para a chegada em Florenccedila DELLA TORRE opcit p 747 SEMPRINI opcit pp16-17 GARIN 2011 p15

26 Entre os Humanistas era comum a substituiccedilatildeo do proacuteprio nome por outros Acircngelo Ambrogini nascido em Montepulciano era conhecido como Poliziano Tinha cerca de dez anos a mais que Pico e morreu no mesmo ano que ele 1494 Poliziano aos trinta anos era um filoacutelogo rigoroso preceptor dos filhos de Lorenzo dersquo Medici e conhecido em toda a Europa por manter em alta o nome do Studium florentino com suas liccedilotildees de literatura grega e latina aleacutem de defensor incansaacutevel de Pico Cf SEMPRINI opcit p18 SIRGADO GANHO opcit p17 BROCCHIERI opcit pp31-33

27 O interesse pelo ciacuterculo hebraico eacute hipoacutetese alccedilada por DOREZ-THUASNE especialmente em razatildeo da repercussatildeo dos estudos hebraicos empreendidos pelo humanista Gianozzo Manetti (Pic de la Mirandole en France 1485-1488 Paris 1897 p13)

28 Em 1483 os irmatildeos de Pico chegam a um acordo em seu conflito testamentaacuterio e fazendo uma reparticcedilatildeo deixam um terccedilo das rendas para Pico Seu irmatildeo mais velho passaria a administrar seu patrimocircnio Assim livre de quaisquer preocupaccedilotildees de ordem praacutetica Pico pode continuar sua vida de estudos Cf SEMPRINI opcit pp14-15 GARIN 2011 p15 ldquoMemorie storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandolardquo tomo unico Mirandola 1874 II

29 GARIN 2011 p23 30 Flavio Mitridate era o nome do judeu siciliano convertido Guglielmo Raimondo di Moncada Trata-se de

figura enigmaacutetica tradutor de textos aacuterabes e hebraicos e favorito de Sexto IV Pico em suas cartas o apresenta como um mestre intransigente em relaccedilatildeo agrave natildeo-propagaccedilatildeo de seus ensinamentos tidos como misteacuterios sagrados Detentor de um caraacuteter irasciacutevel coleacuterico arrogante e impaciente inclusive com seus alunos de idiomas (os quais ele pretendia que passassem imediatamente agrave leitura dos textos antigos sem preacutevios estudos) desfrutava

33

Graccedilas em boa parte agrave influecircncia e ao estiacutemulo daqueles encontros a cidade de

Florenccedila se transforma sobretudo de lsquo86 em diante e assim permanecendo por

alguns anos em um local de relevantes contatos entre duas culturas em virtude das

eruditas discussotildees que corroboravam a formaccedilatildeo de intelectuais cristatildeos e hebreus

Dentre eles Yohanan Alemanno que tatildeo logo chega a Florenccedila pede para ser

apresentado ao entatildeo renomado conde de Mirandola31 ndash com o qual dividiraacute mais

tarde o entusiasmo pelos misteacuterios da Cabala Sob tal atmosfera natildeo eacute difiacutecil

entrever que a casa florentina de Pico transforma-se em um ambiente concorrido por

abrigar debates de vaacuterias vertentes ali podiam ser encontrados filoacutesofos de vaacuterias

correntes ndash aacuterabo-hebraicas aristoteacutelicas platocircnicas ndash poetas literatos estudiosos

de Petrarca e de Dante32

Durante o periacuteodo florentino Pico dedica-se ao aprendizado de idiomas como

o hebraico o caldeu e o aacuterabe A reconciliaccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Platatildeo ndash cujas

afinidades haviam sido apontadas por Nicoletto Vernia ndash toma ares cada vez mais

concretos levando-o entre lsquo85 e lsquo86 a transferir-se para o nuacutecleo de Paris principal

centro de teologia escolaacutestica onde teria agrave disposiccedilatildeo uma quantidade maior de

material medieval para ampliar seus estudos O ambiente dos teoacutelogos da Sorbonne

acolhe fortemente suas ideias aqueles passam a consideraacute-lo um dos seus ndash a ponto

de defendecirc-lo diante do perigo em futuro natildeo muito distante33 De volta a Florenccedila

imerge nos textos neoplatocircnicos de Proclo e investiga os textos hebraicos contando

com a ajuda de Elia del Medigo e de seu mais recente mestre Flavio Mitridate34

Debruccedila-se sobre os misteacuterios platocircnicos hermeacuteticos e caldeus dos quais o amigo

Ficino era tenaz estudioso Em certo ponto convence-se de que suas reflexotildees jaacute

estatildeo maduras o suficiente para serem colocadas agrave prova Passa a preparar entatildeo

com certo iacutempeto vaacuterios textos pertinentes a um debate puacuteblico organizados de

forma a alcanccedilar grande ressonacircncia O que natildeo estava previsto eacute que a partir da

primavera do mesmo ano importantes acontecimentos alterariam o rumo de sua

vida de forma definitiva

de uma vida um tanto licenciosa de acordo com seus bioacutegrafos Cf CASSUTO opcit 1918 BROCCHIERI opcit pp 15-16

31 Uma das comprovaccedilotildees do renome de Pico nos ciacuterculos intelectuais encontra-se no fato que ao completar vinte e um anos eacute escrita uma comeacutedia em sua homenagem por Tommaso Mezzo (BROCCHIERI op cit pp 16 47) Sobre o encontro de Pico e Alemanno veja-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze 1918 p305 Alberto AMBESI Giovanni Pico della Mirandola-Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera 1996 p I Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 53

32 GARIN 2011 p23 Dante acolhido pelo Humanismo florentino do final do Quattrocento era finalmente perdoado por ter escrito em vulgar toscano Nas uacuteltimas deacutecadas daquele seacuteculo seus escritos eram retomados por muitos literatos e filoacutesofos de Florenccedila graccedilas ao impulso dado por Leonardo Bruni e sua obra Vita di Alighieri publicada em 1436 Dante que havia sido um aristoteacutelico estudioso de Tomaacutes transformava-se agora aos olhos dos humanistas em ldquoum platocircnico puro e profundo um delesrdquo (cf BROCCHIERI 2011 p51) Pico tambeacutem nutria profunda simpatia por Dante ldquoalma rude aacutespera mas atormentada por problemas mais amplosrdquo Seu vigor algumas vezes horridus asper strigosus sempre trazia uma ldquonutriccedilatildeo vitalrdquo (apud GARIN ibid p21)

33 GARIN 2011 p25 BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 p 7 34 BIONDI ldquoIntroduzionerdquo in Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995 pp X-XI

34

1486 o iniacutecio dos revezes

O ano de 1486 eacute crucial para Pico que se encontra com vinte e trecircs anos Nem

soacute de livros aulas e projetos extraordinaacuterios vive o jovem No mecircs de maio daquele

ano pouco depois de regressar de Paris Pico vive uma desafortunada e breviacutessima

aventura amorosa que tem Arezzo como pano de fundo Em rota para Roma para

onde se dirigia com o intuito de preparar sua proacutexima obra apaixona-se pela jovem e

bela ndash e casada com um Medici ndash Margherita Planeja um rapto que natildeo apenas

termina frustrado como expotildee de forma ampla os dois amantes impedindo-o de

prosseguir com a viagem35 O escacircndalo lhe traz aleacutem de arrependimento o ingresso

em um duradouro periacuteodo de austeridade com a consequente retomada dos estudos

Conforme juiacutezo de Garin ldquosua dor se transmuta em um iacutempeto de pesquisa capaz de

trazer renovadas forccedilasrdquo com as quais enfrentaria os obstaacuteculos que viriam no ano

sucessivo Acresce o historiador que aquele ldquoardor multiforme insaciaacutevel de gloacuteria

de amor de saber e no final de renuacutencia e miacutesticardquo formariam o ldquosubstrato

psicoloacutegico da celebraccedilatildeo piquiana da dignidade do homemrdquo36

Recolhido assim em seu retiro de Fratta proviacutencia de Perugia em meio aos

meses de veratildeo de rsquo86 o escritor comeccedila a elaborar aquele que seria seu projeto mais

audacioso Em complexa empreitada potildee-se a redigir inuacutemeras teses acerca de

muacuteltiplos temas passando da escolaacutestica ao averroiacutesmo das tradiccedilotildees hermeacuteticas e

persas agraves filosofias aacuterabe e judaica chegando agraves ciecircncias ocultas Tambeacutem nesse

periacuteodo esboccedila um elogio agrave concoacuterdia entre os vaacuterios sistemas filosoacuteficos parte do

qual viraacute a compor a segunda parte da De Hominis Dignitate A renovada motivaccedilatildeo

transparece em carta escrita a um amigo proacuteximo ldquoem breve saberaacutes quanto seu

amigo Pico colheu de vantagens da contemplaccedilatildeo durante esses meses de vida

obscura e solitaacuteriardquo37 Tendo por propoacutesito inicial organizar em Roma no mesmo

ano um convecircnio de intelectuais ndash a chamada Disputa Romana ndash para debater suas

proposiccedilotildees com doutos da Filosofia e da Teologia publica em 7 de dezembro de

1486 as Conclusiones Nongentae juntamente com o convite aos interessados no

debate O opuacutesculo fixado em vaacuterias universidades pode ter incomodado a alguns

levando-se em conta a idade do autor38

Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdia disputaraacute

publicamente acerca das seguintes novecentas proposiccedilotildees

dialeacuteticas morais fiacutesicas matemaacuteticas metafiacutesicas teoloacutegicas

maacutegicas e cabaliacutesticas sejam proacuteprias que dos sapientes

caldeus aacuterabes hebreus gregos egiacutepcios e latinos []39

35 Referente ao estado de acircnimo de Pico apoacutes o rapto de Margherita e os reflexos do episoacutedio sobre algumas

passagens da obra Commento sopra una Canzone drsquoamore composta da Girolamo Benivieni veja-se Pier Cesare BORI Pluralitagrave delle vie - Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola 2000 pp11-21 Para maiores detalhes sobre o episoacutedio veja-se DELLA TORRE opcit pp758-59 SEMPRINI opcit pp56 ss BROCCHIERI opcit pp55-56 CASSUTO opcit p289

36 GARIN 2011 p26 37 BROCCHIERI opcit p64 38 Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 np47 39 BIONDI opcit pXII Como esclarece o tradutor italiano das Conclusiones natildeo se tem informaccedilotildees sobre a

distribuiccedilatildeo do opuacutesculo na Itaacutelia Fora da Itaacutelia o material foi reproduzido em Ingolstadt no ano sucessivo 1487

35

A possibilidade da discussatildeo agita os ciacuterculos teoloacutegicos de Roma devido natildeo

apenas agrave presenccedila em meio ao opuacutesculo de alguns nomes ldquohereacuteticosrdquo como tambeacutem

de palavras suspeitosas como Magia Astrologia e Cabalismo Roma achava que ali

disfarccedilado sob o verniz do humanismo florentino encontrava-se o sequaz praticante

ldquodas escolas de Paacutedua e de Paris o disciacutepulo de Averroacuteis de Alexandre de Afrodiacutesia e

dos hebreusrdquo40 Assim a intenccedilatildeo original de travar uma contenda ldquosobre todas as

coisas conhecidasrdquo (omni scibili) termina por despertar opositores inclusive entre os

amigos41 tanto em razatildeo do projeto ser visto como fruto de orgulho pretencioso

quanto pela alegaccedilatildeo da presenccedila de supostas heresias naqueles conteuacutedos E as

coacutepias publicadas acabam gerando consequecircncias desdobradas em um crescendo de

gravidade cada vez maior

De iniacutecio o papa Inocecircncio VIII manda imediatamente suspender o debate das

Conclusiones e dois meses apoacutes a publicaccedilatildeo do opuacutesculo constitui uma comissatildeo

para examinaacute-lo sob a presidecircncia de Giovanni Monissart Em seu breve deixava

claro que ldquoalgumas dessas teses desviam do caminho da ortodoxia da feacute outras satildeo

obscuras confusas e intrincadas e outras tem ar de heresiardquo de forma que as

mesmas deveriam ser confiadas ao reverendo senhor Giovanni bispo de Tournai que

teria ldquoa tarefa de revecirc-las discuti-las e avaliaacute-lasrdquo42 Em um segundo momento Pico eacute

convidado a dar esclarecimentos acerca de algumas Teses nessa ocasiatildeo reafirma

vigorosamente seus pontos de vista acerca do conteuacutedo relacionado agrave Magia e agrave

Cabala aleacutem de acusar seus juiacutezes de padecerem de ignoracircncia Poucos dias depois o

trabalho da comissatildeo se conclui com a condenaccedilatildeo daquelas teses O acusado

convocado para apresentar-se novamente e escutar o veredicto final natildeo comparece

Em sua ausecircncia a comissatildeo decide proceder ao julgamento sem sua presenccedila

Enquanto isso rendendo-se ao fato de que as Teses natildeo seriam debatidas nem em

Roma nem em qualquer outro lugar cristatildeo Pico decide redigir a Apologia43

composta de treze disputationes que comporiam sua defesa Mesmo sem

conhecimento do novo texto Inocecircncio VIII autoriza o tribunal em 6 de Junho a

punir o culpado por heresia conforme as leis canocircnicas fato que o leva em 31 de

e um exemplar estaacute descrito no British Museum - General Catalogue of Printed Books vol 189 London 1963 col612 (ibid pXIII) ldquoDe adscriptis numero noningentis Dialecticis Moralibus Physicis Mathematicis Metaphysicis Theologicis Magicis Cabalisticis cum suis tum sapientum chaldeorum arabum hebreorum graecorum aegyptorum latinorumque placitis disputabit publice Johannes Picus Mirandolanus Concordiae Comes etc []rdquo

40 GARIN 2011 p32 41 Em carta a Roberto Salviati o veneziano Ermolao Barbaro escrevia que ldquosem duacutevida o nosso Pico obteraacute dessa

distinta iniciativa uma gloacuteria imortal dando aos seus amigos uma incomparaacutevel felicidaderdquo Por outro lado com certa maliacutecia comparava seu amigo Pico ao sofista Goacutergias dando a entender que tal promoccedilatildeo de discussotildees puacuteblicas visava apenas ao enaltecimento da vaidade do autor

42 A iacutentegra do breve papal pode ser vista em DOREZ-THUASNE op cit pp114-115 Os verbais das reuniotildees ocorridas para o questionamento das Teses foram descobertos por Dorez em um manuscrito da Biblioteca do Seminaacuterio arcebispal de Malines e publicados na obra compilada em parceria com Thuasne (Pic de la Mirandole en France 1897)

43 A primeira ediccedilatildeo da Apologia eacute datada 31 de Maio de 1487 (ldquoDie ultima Madij Anno Domini MCCCCLXXXVIIrdquo) A data correta de publicaccedilatildeo eacute posterior mas para natildeo parecer uma afronta agrave condenaccedilatildeo papal ela eacute retrodatada para antes da condenaccedilatildeo Na obra dedicada a Lorenzo dersquo Medici Pico retoma temas presentes na Oratio

36

Julho a fazer ato de submissatildeo agraves decisotildees dos comissaacuterios pontiacutefices jurando natildeo

mais sustentar posiccedilotildees que os juiacutezes natildeo julgassem aceitaacuteveis44

A submissatildeo contudo chega tarde a repercussatildeo da Apologia explodia

justamente nesse periacuteodo fazendo chegar aos ouvidos do Papa que Pico havia feito

circular novos escritos sem esperar o veredicto final45 A obra apesar do tom doacutecil

incentivava a investigaccedilatildeo da magia natural e da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica

reafirmando ainda a liberdade de crenccedila (libertas credendi)46 Com isso sua

situaccedilatildeo torna-se praticamente irreversiacutevel Em 5 de agosto do mesmo ano Inocecircncio

VIII natildeo apenas condena todas as Conclusiones como encarrega a comissatildeo de

intervir com um novo instrumento o da Inquisiccedilatildeo com ldquoautorizaccedilatildeo para citar

interrogar e punir conforme as faculdades canocircnicasrdquo47 Em paralelo o bispo de

Tournai impotildee que quem possua uma coacutepia das Conclusiones a entregue agraves

autoridades para serem ldquoanuladas pelo fogordquo Por fim o cardeal espanhol Pedro

Garzias que mais tarde escreveria uma confutaccedilatildeo formal da Apologia de Pico

solicita a intervenccedilatildeo do temido Torquemada entatildeo agrave frente da Inquisiccedilatildeo espanhola

para resolver a questatildeo Ora Pico lia com entusiasmo os textos hebraicos escutava e

comentava os ensinamentos de seus amigos e mestres hebreus acreditava que nos

segredos da Cabala podia-se encontrar explicaccedilotildees inclusive para a verdade dos

eventos cristatildeos o homem que magnificava a sabedoria dos hebreus dificilmente

seria absolvido48

Percebendo o perigo iminente o Conde decide afastar-se da Itaacutelia refugiando-

se na Franccedila torna-se com essa atitude um herege declaradamente reincidente um

relapsus um homem caccedilado que poderia ser capturado e lanccedilado ao caacutercere49 A

proibiccedilatildeo de discutir as treze teses condenadas por sua vez lanccedila todas as demais

teses em desgraccedila jaacute que ldquoum pouco de fermento pode corromper toda a massardquo

Com essa metaacutefora Antonio Flores membro da comissatildeo que havia condenado as

treze teses pede ajuda agrave Universidade de Paris para que Pico seja capturado na

Franccedila50 Entretanto os professores daquela universidade aleacutem de toda a corte do rei

Carlos VIII compartilham da mesma simpatia pelo ldquodoutiacutessimo e desventuradordquo

italiano a ponto de ajudaacute-lo pouco tempo depois51 em janeiro de lsquo88 quando Pico eacute

44 DOREZ-THUASNE op cit p140 ldquoEu Giovanni della Mirandola tendo sob os olhos aquilo que pensam e

decidem o nosso Senhor Santiacutessimo e os senhores deputados de Sua Santidade acerca de minhas teses confesso que as teses satildeo tais e quais determinam que sejam Sua Santidade e os juiacutezes e mantenho formalmente esta opiniatildeo Natildeo sustentarei mais nenhuma posiccedilatildeo sobre essas porque Sua Santidade e os juiacutezes julgam que natildeo devam ser sustentadas E assim jurordquo Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se DOREZ-THUASNE op cit ldquoBreve 6 Giugnordquo pp144-46 SEMPRINI op cit pp87-89

45 Quando recebe a notiacutecia da Apologia o papa descobre que outros teoacutelogos externos agrave comissatildeo ldquoe pouco prudentesrdquo haviam convalidado seu conteuacutedo

46 DOREZ-THUASNE op cit p125ss Veja-se Apologia - Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (org Paolo Edoardo FORNACIARI 2010)

47 DOREZ-THUASNE op cit pp144-146 BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti Torino 1859 p47 SEMPRINI opcit p89 BIONDI opcit pp XXI-XXII

48 Lembremos que na Espanha agrave mesma eacutepoca era feita a conversatildeo forccedilada dos judeus 49 BIONDI opcit p XXXI 50 BROCCHIERI opcit p68 51 No ano anterior agrave fuga para a Franccedila durante as discussotildees teoloacutegicas acerca da condenaccedilatildeo de Pico Jean

Cordier importante acadecircmico parisiense natildeo firmara o verbal de processo de Pico Apoacutes ter escutado as explicaccedilotildees do filoacutesofo italiano chegara agrave conclusatildeo de que as treze teses incriminadas eram ldquocatoacutelicasrdquo Poucos anos depois Cordier viria a ser reitor da Sorbonne (BROCCHIERI opcit pp 69 71)

37

feito prisioneiro no castelo de Vincennes satildeo daqueles nuacutecleos franceses juntamente

com alguns italianos que se levantam protestos contra sua prisatildeo Tais pressotildees

associadas com os pedidos de Lorenzo dersquo Medici ao Papa fazem que Pico seja

libertado ndash apesar de natildeo absolvido ndash com a condiccedilatildeo de permanecer apenas em

territoacuterio florentino sob a proteccedilatildeo do Magniacutefico Ali em Florenccedila Pico permaneceraacute

pelo resto de seus dias52

Apoacutes a proibiccedilatildeo da discussatildeo das Teses e sua consequente condenaccedilatildeo Pico

atravessa um momento difiacutecil de sua vida Como infere Garin os anos seguintes

presenciaram um homem ferido e ldquodobrado sobre si mesmordquo a condenaccedilatildeo do

supremo liacuteder do Cristianismo mesmo para um espiacuterito livre era recebida naquele

seacuteculo como um acontecimento graviacutessimo53 Mais do que o perdatildeo da Igreja Pico

esperava uma reparaccedilatildeo verbal atraveacutes da qual a Igreja o aceitasse novamente como

seu filho54

De toda forma os anos sob vigilacircncia em Florenccedila foram os de maior fervor

criativo O resultado eminente daquele periacuteodo de reclusatildeo seraacute o Heptaplus

dedicado a Lorenzo e publicado no outono de lsquo89 Uacuteltimo trabalho completo de Pico

o Heptaplus conhece imediato sucesso o que alivia em parte as frustraccedilotildees que havia

sofrido55 A obra eacute entusiasticamente recebida por um nuacutemero significativo de

intelectuais sobretudo humanistas muitos escrevem para expressar sua admiraccedilatildeo

entre eles Matteo Vero Girolamo Donato Cristoforo Landino Bartolomeo Fontio e

Ermolao Barbaro56 Poreacutem aos olhos do Papa o livro apresenta-se como uma

continuaccedilatildeo das tendecircncias hereacuteticas demonstradas nas Conclusiones fazendo que a

absolviccedilatildeo se mantenha como uma esperanccedila natildeo realizada No ano seguinte eacute

publicado o breve De Ente et Uno sobre alguns pontos da proposta de acordo entre

Platatildeo e Aristoacuteteles o texto contudo natildeo eacute finalizado Pouco tempo depois eacute

publicada a uacuteltima e mais longa obra piquiana a Disputationes adversus

astrologiam divinatricem acerca da qual o autor compotildee doze dos treze livros

pretendidos e sobre cujas circunstacircncias ainda hoje pairam duacutevidas entre os

inteacuterpretes como seraacute abordado adiante

Em 18 de Junho de 1493 o Papa Alessandro IV Borgia sucessor de Inocecircncio

VIII absolve Pico da condenaccedilatildeo de 148757 O novo Pontiacutefice mostra interesse por

alguns dos assuntos que haviam concorrido para a condenaccedilatildeo das Conclusiones

como a Magia e a Astrologia ademais vecirc o jovem filoacutesofo com simpatia sentindo-se

impelido a escrever um resumo contando suas desventuras ndash texto que

52 Crofton Black eacute de opiniatildeo que a atitude papal foi uma ldquosoluccedilatildeo pragmaacutetica para uma situaccedilatildeo

potencialmente embaraccedilosardquo Pico e suas ldquodoutrinas insalubresrdquo permaneceriam afastados de Roma e ele seria confinado agrave ldquoatmosfera rarefeita de bibliotecas florentinas e ao grupo de intelectuais agrave volta de Lorenzordquo (BLACK opcit pg 8) Para toda a questatildeo da fuga em Franccedila veja-se DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France (1485-1488) 1897 pp56-101

53 GARIN 2011 p39-40 54 BROCCHIERI opcit p41 55 BLACK opcit pg 8-9 BROCCHIERI op cit p86 56 Para as referecircncias das cartas trocadas a esse respeito veja-se BLACK ibid np10 57 Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura

italiana 1895 I pp358-361

38

posteriormente seraacute publicado junto agrave ediccedilatildeo das obras piquianas em 1572 Em sua

absolviccedilatildeo descreve-o ainda como homem iluminado pela ldquoDivina Piedade e um fiel

filho da Igrejardquo58 O erudito Papa parecia entrever no Hermetismo e na Cabala

preacircmbulos significativos e prestigiosos da religiatildeo cristatilde exatamente como havia

pretendido comprovar o conde de Mirandola59

Os uacuteltimos anos e a relaccedilatildeo com Savonarola

Nos uacuteltimos anos da vida de Pico entre rsquo90 e rsquo94 desenvolve-se uma relaccedilatildeo

complexa e intensa com Girolamo Savonarola Durante os anos de estudos iniciais

em Bolonha o frade predicador chamara a atenccedilatildeo do ainda muito jovem aprendiz

ldquoem razatildeo de suas maneiras simples e rudes os olhos viviacutessimos a fronte sulcada

pelas rugas e a pele morena que contrastava com suas vestes brancasrdquo60 Assim era

Savonarola em seus vinte e cinco anos tatildeo emagrecido pelos jejuns e abstinecircncias

que ldquoa vecirc-lo passear pelos claustros mais parecia uma sombra que um homem

vivordquo61 A atraccedilatildeo pelos discursos de vieacutes aristoteacutelico foi o iacutematilde que o ligou ao frei

quando teve a oportunidade de escutaacute-lo em uma disputa escolaacutestica Seria

improvaacutevel pensar naquela ocasiatildeo que aquele homem douto austero e riacutegido teria

importacircncia singular em sua vida62

O reencontro se daacute quando Pico natildeo obtendo a absolviccedilatildeo esperada da Igreja

decide procurar Savonarola que entatildeo pregava na Itaacutelia setentrional pedindo-lhe

para intervir por ele junto ao principal dos Dominicanos O pedido sobre o qual seu

amigo Lorenzo continuava a insistir com o Pontiacutefice63 eacute frustrado mas de alguma

forma serve para reaproximar aquelas duas personalidades de maneira definitiva a

pedido de Pico Savonarola acaba sendo chamado pelo Medici ndash a ldquocontragostordquo ndash

para reger a Igreja de San Marco em Florenccedila a partir de Abril de rsquo8964

Tal relaccedilatildeo teria exercido um poderoso influxo nas mudanccedilas de

direcionamento do pensamento de Pico ensejando especulaccedilotildees de cunho

58 BROCCHIERI opcit p100 59 Para Henri de LUBAC a absolviccedilatildeo definitiva de Pico e de seus escritos ocorreraacute apenas duas deacutecadas

adiante graccedilas ao gesto do entatildeo Papa Leatildeo X que em Abril de 1519 autorizaraacute Gianfrancesco a republicar integralmente as obras do tio (Pico della Mirandola Lrsquoalba incompiuta del Rinascimento p453)

60 SEMPRINI opcit p4 61 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 Essa e outras descriccedilotildees encontram-se nas pp 21-23 62 Para maiores detalhes veja-se Joseph SCHNITZER Savonarola 1931 vol1 sobretudo a partir de pp101 ss

BROCCHIERI op cit p39 63 Como elucida Giulio Busi Inocecircncio VIII levou muito a seacuterio o projeto de ldquoutopia sapiencialrdquo do Conde de

Mirandola Em resposta a Lorenzo que insistia para que o amigo Pico fosse perdoado escrevia que ldquoisso eacute um caso importantiacutessimo coisa diversa de gratificar o jovem filho de Lorenzo em questotildees que natildeo satildeo casos de feacuterdquo Ou seja para o Pontiacutefice era coisa de menor importacircncia conferir a dignidade de cardeal ao filho de treze anos de Lorenzo de que transigir sobre o escacircndalo provocado pelas Teses piquianas (BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in Il Sole-24 Ore 28082018)

64 AMBESI opcit p III Girolamo Savonarola tambeacutem conhecido como Jerocircnimo de Ferrara manteacutem-se agrave frente de San Marco ateacute 1994 Nesse ano apoacutes a morte de Pico e a queda de Piero filho de Lorenzo o frei toma o poder em Florenccedila Quatro anos depois em maio de 1498 seraacute enforcado e queimado (cf Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 54)

39

psicoloacutegico entre os estudiosos da obra piquiana65 A influecircncia de Savonarola natildeo

pode ser negada seja qual for seu vetor Em reflexatildeo sobre o tema ajuiacuteza Garin que

Pico e Savonarola eram ldquoduas almas tatildeo ardentes e originais quanto diferentes em

suas tendecircncias e atitudesrdquo No entanto ldquohavia algo na alma de Pico que somente

com o frei poderia ser identificadordquo66 Ambos amavam os livros de forma apaixonada

e neles viam natildeo apenas fontes de cultura mas respostas espirituais Moviam-se em

uma atmosfera distante daquela que respiravam os literatos contemporacircneos Os

problemas espirituais natildeo eram vistos como curiosidades intelectuais pertencentes ao

mundo dos doutos eram uma ldquoquestatildeo de vidardquo como prossegue Garin67 E ambos

buscavam verdades que natildeo enxergavam na Igreja do lsquo400 nem tampouco entre os

humanistas em geral Nas palavras do historiador

A existecircncia representava para ambos uma tarefa uma missatildeo

[] O mundo do espiacuterito natildeo se encontrava separado da vida

concreta a sua luz deveria permeaacute-la fundir-se a ela

transformaacute-la68

Certo eacute que durante o periacuteodo de isolamento acentuam-se em Pico claras

tendecircncias miacutesticas tornando-se Savonarola seu padre espiritual Tambeacutem chama a

atenccedilatildeo o fato de seus escritos do uacuteltimo periacuteodo apresentarem uma mudanccedila

substancial de concepccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas o autor chega a negar muitas das

teses anteriores e parece voltar-se a uma posiccedilatildeo mais ortodoxa Tal mudanccedila de

pensamento estaacute bem clara na obra Disputationes adversus astrologiam

divinatricem de forma acentuada nos uacuteltimos trecircs livros em que Pico trata com

desprezo a ciecircncia astroloacutegica dos egiacutepcios e caldeus fazendo uma minuciosa criacutetica

histoacuterica que parece lanccedilar por terra os ecircxitos daquelas antigas culturas Tal mudanccedila

de posicionamento natildeo passaria despercebida pelos criacuteticos levando a inuacutemeras

polecircmicas natildeo sem razatildeo a confutaccedilatildeo da Astrologia mateacuteria combatida de forma

ferrenha pelo frei e mentor dominicano representava um ataque que se colocava em

oposiccedilatildeo direta agraves doutrinas partilhadas pelas tradiccedilotildees agraves quais Pico prestara

homenagem em suas obras anteriores como o Hermetismo a Cabala o

Zoroastrismo o Neoplatonismo Em tentativa de esclarecer as mudanccedilas de rumo

da inacabada obra o editor Gianfrancesco Pico alegaria que as mesmas eram devidas

ao progressivo isolamento e agrave crescente religiosidade vividos por seu tio que o

levaram a passar por um processo de conversatildeo Entretanto essa afirmaccedilatildeo tem sido

colocada em duacutevida por alguns comentadores69

65 Para os efeitos psicoloacutegicos de Savonarola sobre Pico veja-se GARIN 2011 pp5-9 Para detalhes mais

completos sobre a relaccedilatildeo veja-se GARFAGNINI (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) 1997 pp 237-279 Ainda SEMPRINI opcit p4

66 GARIN 2011 p8 67 Idem 68 Idem As missotildees seja do mentor que do pupilo encontravam-se ligadas a certas formas de reaccedilatildeo a valores

religiosos e morais Suas atitudes contudo eram anacrocircnicas Pico buscava no passado a renovaccedilatildeo moral do presente Savonarola em suas preocupaccedilotildees doutrinais era um precursor das disputas religiosas que viriam no seacuteculo sucessivo (idem)

69 O tema da suposta conversatildeo de Pico e os comentaacuterios de vaacuterios inteacuterpretes podem ser conferidos na obra de William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher 1981 pp 77-87 131-154 Para maiores detalhes acerca da mudanccedila de direccedilatildeo nas Disputationes

40

A hipoacutetese de conversatildeo seja espontacircnea ou relacionada com o eventual

influxo de Savonarola eacute enfraquecida diante de um interessante testemunho que

expotildee as verdadeiras convicccedilotildees e o entusiasmo conciliador de Pico ndash o mesmo de

seus anos anteriores Pietro Crinito membro fervoroso dos piagnoni ndash nome dado

aos seguidores de Savonarola ndash relata um encontro entre o Frei e o Conde na

biblioteca de San Marco Nessa ocasiatildeo os dois travam um intenso debate acerca do

valor da sabedoria dos Antigos no qual o Frei posiciona-se entre outros contra

Platatildeo e Aristoacuteteles70 Em resposta e referindo-se agraves doutrinas cristatildes acerca da

imortalidade da alma e do caraacuteter absoluto de Deus Pico efetua uma ampla e

eloquente defesa dos Prisci Theologi muito semelhante agraves posiccedilotildees sustentadas por

Ficino71 ldquoao longo de toda a vida dos mortais existiram alguns priacutencipes os maiores

em juiacutezo e em conhecimento das coisas como Moiseacutes Pitaacutegoras Mercuacuterio Zoroastro

e Soacutelon os quais com consenso unacircnime (qui omnes pari consensu) natildeo apenas

creram nessas coisas como tambeacutem as afirmaram maximamenterdquo72 Seu discurso

pretendia sinalizar que muitos saacutebios entre pagatildeos e cristatildeos compartilhavam dos

mesmos princiacutepios Quando o debate termina como prossegue Crinito Savonarola

mostra estar rendido perante a erudiccedilatildeo do jovem abraccedila-o e reconhece que ele eacute o

uacutenico em seu tempo a conjugar um conhecimento exaustivo tanto da Filosofia dos

Antigos como das doutrinas e leis cristatildes comparaacutevel apenas ao dos grandes Padres

da Igreja do Oriente e Ocidente73

As palavras de Pico trazem por um lado a constataccedilatildeo de uma natildeo irrestrita

anuecircncia agraves orientaccedilotildees do dominicano por outro a confirmaccedilatildeo da preservaccedilatildeo das

mesmas certezas de outrora em relaccedilatildeo ao tema da concordacircncia entre antigas

tradiccedilotildees Sob a luz de tal testemunho arrefece a suposiccedilatildeo de conversatildeo e mudanccedila

de direcionamento doutrinaacuterio E solidifica-se a hipoacutetese alccedilada por alguns de

adulteraccedilatildeo de alguns textos publicados postumamente por parte de seu religioso

sobrinho e editor sob a eacutegide de Savonarola74 Outro sinal que afasta a possibilidade

de conversatildeo pode ser verificado no discurso de post-mortem do Mirandolano no

qual o Frei demonstra com desilusatildeo que ldquoesperava mais do jovemrdquo ldquoEle demorou a

veja-se Anthony GRAFTON Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore in Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers 1997 pp 93-134 Veja-se ainda Charles SCHMITT Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle in Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo pp 305-313 Stephen FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp 151-179 Eugenio GARIN Ricordando Giovanni e Gianfrancesco Pico della Mirandola in Giornale critico della filosofia italiana nr 74 1995 pp 5-19

70 Pietro CRINITO De honesta disciplina III 2 Roma Fratelli Bocca editori 1955 p 104 O debate eacute citado por Francisco BASTTITA HARRIET Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana 2016 p 218

71 Conforme expostas no Capiacutetulo I 72 CRINITO opcit pp 104-105 ldquoSed principes - inquit- in omni mortalium vita extiterunt aliquot et iudicio et

rerum cognitione maximi ut Moses Pythagoras Mercurius Zoroastres Solon qui omnes pari consensu non modo haec crediderunt sed maxime affirmaruntrdquo

73 CRINITO idem Na narrativa de Crinito dentre os Padres da Igreja aos quais Pico eacute igualado estatildeo Agostinho Gregoacuterio Dioniacutesio Jerocircnimo e Basiacutelio

74 BASTTITA HARRIET 2016 p 218 Para Alberto Cesare AMBESI a orientaccedilatildeo concordista de Pico contraacuteria agrave religiosidade de Savonarola que se manifestava de forma agressiva e intolerante elimina a hipoacutetese de conversatildeo que muitos quiseram crer (opcit p IV) Em razatildeo das incertezas de autoria que pairam sobre as Disputationes adversus astrologiam divinatricem preferimos nos abster de quaisquer comentaacuterios sobre a obra

41

abraccedilar a religiatildeo [] [mas] digo-vos que a alma dele em razatildeo das oraccedilotildees dos

frades e de algumas obras boas que realizou em vida estaacute no Purgatoacuteriordquo A ldquodemorardquo

em abraccedilar a religiatildeo deveu-se ao fato de o filoacutesofo natildeo se ter deixado convencer pelas

conversas com o padre que gostaria de tecirc-lo visto com o haacutebito dominicano75

Pico falece em 17 de novembro de 1494 em decorrecircncia de uma febre suacutebita e

violenta Logo surgem em Florenccedila suspeitas de assassinato76 Vestia na morte o

haacutebito dominicano aquele que em vida havia se recusado a usar No mesmo ano seu

sobrinho Gianfrancesco della Mirandola publica aquela que passaria agrave Histoacuteria da

Filosofia como a mais original contribuiccedilatildeo de Giovanni Pico a De Hominis

Dignitate

2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu

A recuperaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos transcorrida nos mesmos palcos em

que eram relidos os comentadores aristoteacutelicos levou ao nascimento de uma

polecircmica bastante aacutespera entre os sustentadores de cada uma daquelas linhagens

filosoacuteficas Apesar do florescente encantamento por Platatildeo sobretudo no nuacutecleo

florentino seria um equiacutevoco pensar que Aristoacuteteles tivesse sido esquecido na

segunda metade do seacuteculo XV Nas principais escolas por onde Pico passara ndash

Ferrara Bolonha Pavia e especialmente Paacutedua ndash os ensinamentos aristoteacutelicos

continuavam a fervilhar77 Mesmo entre os humanistas de vieacutes platocircnico mais

acentuado Aristoacuteteles era uma leitura obrigatoacuteria por representar a antiacutetese do

Platonismo servindo de fundamento aos mais amplos debates Tais debates

envolveriam alguns dos mais fundamentais filoacutesofos do periacuteodo de Nicolau de Cusa a

Pietro Pomponazzi passando por Ficino e deixando marcas em quase toda a

produccedilatildeo literaacuteria do seacuteculo78 A complexa temaacutetica da pressuposta antiacutetese entre o

pensamento de Platatildeo e o de Aristoacuteteles que dividia uma parcela dos acadecircmicos

ocupou uma relevante parte dos interesses de Giovanni Pico que trabalhou no

problema desde a De Hominis Dignitate ateacute o De Ente et Uno Aleacutem de todo seu

esforccedilo empregou na questatildeo a consistente bagagem que possuiacutea preenchida de

forma equacircnime pelo peso das duas vertentes que abasteciam sua biblioteca79

75 GARIN 2011 pp43 135 76 Leacuteon DOREZ apresenta a tese da morte por envenenamento por parte do secretaacuterio de Pico Cristoforo di

Casal Maggiore por razotildees financeiras ou poliacuteticas Pico havia feito empreacutestimos e destinado um lauto legado a Cristoforo (La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien in Giornale St Letteratura italiana vol 32 1898 pp360-364)

77 Tambeacutem Florenccedila respirava um clima aristoteacutelico Desde o final do seacuteculo XIII e ateacute parte do lsquoXV o filoacutesofo mais estudado pelos grandes cidadatildeos de Florenccedila havia sido Aristoacuteteles Soacute no lsquo400 foram feitas trinta e duas novas traduccedilotildees de suas obras a maior parte em Veneza e em Florenccedila nesta uacuteltima durante o periacuteodo em que jaacute prevalecia em seu solo a filosofia platocircnica (cf BROCCHIERI 2011 p24)

78 Paul Oskar KRISTELLER Movimenti filosofici del Rinascimento in Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29

79 A biblioteca de Pico tornou-se famosa por ser uma das maiores de seu seacuteculo Ademais suas fontes eram todos os livros das bibliotecas de seu tempo segundo Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo 1955) tornando seu leque de referecircncias fora do alcance de seus

42

Seus primeiros anos de estudos foram ocupados com as problemaacuteticas em

torno ao Aristotelismo e as subsequentes questotildees alccediladas por seus comentadores

Em uma carta de 1485 em resposta ao humanista Ermolao Barbaro tem-se o

importante testemunho do enraizado conhecimento de suas doutrinas e da gratidatildeo

que Pico nutria por aquela Escola em aberto elogio aos ldquograndes mestres aacuterabes e

latinos da Idade Meacutediardquo relata que a eles dedicou ldquotodos os dias e noitesrdquo daqueles

que por seis anos consecutivos teriam sido seus ldquomelhores anos de estudordquo A carta

reproduz ademais a defesa dos grandes conteuacutedos em detrimento da filologia e da

retoacuterica humanista ndash defendida por Barbaro ndash tendo se tornado um documento de

elogio agrave Filosofia ldquonatildeo seremos ceacutelebres nas escolas dos gramaacuteticos []mas sim

onde se indagam as razotildees das realidades humanas e divinasrdquo80 Seus argumentos e

justificativas somam-se para defender o meacutetodo escolaacutestico tornando-se

emblemaacuteticos das discussotildees ensejadas no periacuteodo renascentista ndash em que os

defensores da elegacircncia linguiacutestica encontravam-se em oposiccedilatildeo aos defensores dos

conteuacutedos filosoacuteficos81

Fato certo eacute que nas linhas da escolaacutestica latina especialmente a mais tardia

Pico encontrara uma riqueza de pensamento que o ajudaria a solucionar muitas de

suas duacutevidas filosoacuteficas Eis a razatildeo para dedicar ao periacuteodo nada menos que 94 de

suas Conclusiones entre as quais se encontram proposiccedilotildees dos principais

representantes do Aristotelismo cristatildeo estudados em Paacutedua e Paris como Alberto

Magno o teoacutelogo Enrico de Gand e seu contemporacircneo Egidio Romano o

dominicano Tomaacutes de Aquino o franciscano Duns Escoto e seu disciacutepulo Francisco

de Meyronnes Sua trajetoacuteria de estudos inicia-se com Tomaacutes com o qual passaria

um longo periacuteodo de instruccedilatildeo que continuaria com o percurso das demais

interpretaccedilotildees latinas82 Impulsionado por seu crescente interesse em torno ao Liceu

em breve tempo Pico seria conduzido ao encontro com o pensamento aacuterabe a

Universidade de Paacutedua sobretudo agrave sua eacutepoca seguia uma linha majoritariamente

averroiacutesta83 O relevo dispensado a essa corrente de pensamento reflete-se em suas

contemporacircneos Apoacutes sua morte e conforme deixado em testamento a biblioteca foi herdada por seu irmatildeo Anton Maria que a vendeu ao cardeal Domenico Grimani amigo de Pico e de Elia del Medigo estudioso de filosofia oriental Outras informaccedilotildees sobre a biblioteca de Pico podem ser colhidas de GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 pp 106 ss

80 A carta de Junho de 1485 eacute reproduzida dentre outros por Eugenio GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952 pp804-823 Eugenio ANAGNINE examina com precisatildeo tal epiacutestola em seu Giovanni Pico della Mirandola 1937 pp 18 ss Veja-se ainda Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998 e alguns comentaacuterios de GARIN em sua traduccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 pp7 ss e em sua obra de 2011 p7

81 A carta para Barbaro tornou-se conhecida como De genere dicendi philosophorum ou ainda ldquoil manifesto del pensiero moderno allrsquouscire dalla sua infanzia drsquoun secolordquo (cf GARIN op cit pp22-23) O veneziano Ermolao Barbaro era disciacutepulo ferrenho de um novo Aristoacuteteles compreendido agrave luz do movimento humanista que rompia com a escolaacutestica medieval Em sua visatildeo aquela forma de interpretaccedilatildeo dogmatizava o Estagirita vinculando-o agrave loacutegica e a um padratildeo de pensamento teoloacutegico para ele ldquocoisa de conventordquo Acerca da polecircmica entre Ermolao Barbaro e Giovanni Pico veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos del Renacimiento Italiano p82 GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952

82 Eugenio ANAGNINE (Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico 1937 p32) de forma singular acentua a influecircncia tomista no pensamento de Pico

83 Em Paacutedua a pesquisa universitaacuteria em torno do aristotelismo-averroiacutesta ganhara uma notoacuteria dimensatildeo especialmente na deacutecada de 70 do seacuteculo XV Esse fato contribuiu para que acorressem ao burgo diversos jovens humanistas aacutevidos em aprofundar o conhecimento aristoteacutelico Paralelamente diversos tipoacutegrafos introduziram sua arte na cidade no uacuteltimo quartel daquele seacuteculo e por via da accedilatildeo tipograacutefica foram grandes divulgadores dos

43

82 teses dedicadas aos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles quase se igualando em

nuacutemero agraves dedicadas aos comentadores cristatildeos Dentre aqueles o estudioso

debruccedilou-se sobre o filoacutesofo persa Ibn Sina conhecido como Avicenna e seu mestre

de origem turca Al-Farabi e de forma singular sobre o andaluz conhecido como

Averroacuteis cujas obras ocupavam grande parte de sua biblioteca84

Em seus estudos de especulaccedilatildeo oriental a obra de Averroacuteis desempenharia

um papel fundamental muito graccedilas a seus mestres de Paacutedua Nicoletto Vernia e

sobretudo Elia del Medigo que efetivamente incitaram Pico a aprofundar-se no

pensamento do comentador de Aristoacuteteles Eacute bastante provaacutevel que Elia leitor atento

da concepccedilatildeo da ordem metafiacutesica averroiacutesta tenha sido o primeiro a lanccedilar na

mente de seu aluno a semente da ldquoverdade uacutenicardquo sobretudo exposta por Averroacuteis em

seu De animae beatudine determinante para as primeiras concepccedilotildees piquianas em

torno da concordacircncia final entre doutrinas que se desenvolveria nos anos

seguintes85 Outras duas concepccedilotildees averroiacutestas certamente tiveram efeito em seus

escritos quais sejam o encontro da unidade da verdade com a unidade do espiacuterito

que a busca ndash e que define a unidade uacuteltima do intelecto inteligente e inteligiacutevel ndash e a

cogniccedilatildeo racional que ocorre entre pensadores individuais que formam uma

continuidade de pensamento levando a um complemento do real que apenas assim

se atua de forma plena Pico estava disposto a debater essa uacuteltima concepccedilatildeo durante

a pretendida Disputa Romana pois dentre as teses atribuiacutedas a Averroacuteis lecirc-se que ldquoa

alma intelectiva eacute uacutenica em todos os homensrdquo86 Mas de forma particular foi a

doutrina que postula a possibilidade de uniatildeo do intelecto humano com a mente

divina que mais fortemente ecoaria e se repetiria na obra de Pico87 Na forma

pressuposta pelo filoacutesofo aacuterabe

Aquele intelecto entatildeo ascenderaacute pelo ato agrave assimilaccedilatildeo das

realidades abstratas e compreenderaacute ser seu o que eacute pelo ato o

intelecto88

comentaacuterios de Averroacuteis a Aristoacuteteles Sobre a accedilatildeo tipograacutefica em Paacutedua veja-se G ANTONELLI Sulle Opere di Aristotele col commento dellrsquoAverroe impresse in Padova dal Canozio negli anni 1472 73 e 74 (Ferrara 1842) A Escola de Paacutedua graccedilas aos sistemas cientificistas adotados em seus estudos foi a responsaacutevel por cunhar a expressatildeo ldquomeacutetodo cientiacuteficordquo para questotildees de acircmbito filosoacutefico

84 Em seu ldquoAppendicerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (2011 pp 106 ss) no qual se encontra a relaccedilatildeo de obras que compunham a biblioteca de Pico escreve GARIN que o pensador do qual Pico ldquonatildeo sem significadordquo possuiacutea mais obras era justamente Averroacuteis (p118) Comentador de Aristoacuteteles por excelecircncia Abu al-Walid ibn Rushd mais frequentemente conhecido no Ocidente por Averroacuteis havia feito entre outras interpretaccedilotildees um comentaacuterio da Metafiacutesica agrave luz do Coratildeo A biblioteca de Pico continha vaacuterias de suas traduccedilotildees e comentaacuterios em aacuterabe hebraico e latim Para um maior enquadramento da problemaacutetica averroiacutesta veja-se a obra de Ernest RENAN Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme 1852

85 Acerca do influxo de Averroacuteis sobre a concepccedilatildeo de concoacuterdia piquiana veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss 86 PICO Concl (I) II I 2 (p20) ldquoUna est anima intellectiua in omnibus hominibusrdquo Dentre as teses

atribuiacutedas por Giovanni Pico aos comentadores aacuterabes de Aristoacuteteles 41 foram dedicadas a Averroacuteis O tema da unidade de alma dos filoacutesofos eacute tratado na obra do filoacutesofo aacuterabe Destructio destructionum disp I fol 20 I-21 a ldquoSoacutecrates eacute diverso de Platatildeo em nuacutemero e contudo ele mesmo [Soacutecrates] e Platatildeo satildeo o mesmo na forma que eacute almardquo (ldquoSocrates est alius a Platone numero et tamen ipse et Plato sunt idem in forma quae est animardquo)

87 A uniatildeo da mente humana com o divino eacute concepccedilatildeo presente na inteira obra piquiana colocada por outras vias e atraveacutes de outras formas filosoacuteficas ou teoloacutegicas como seu objetivo final Sobre a especiacutefica reflexatildeo do tema averroiacutesta na obra de Pico veja-se Guido DE RUGGIERO La filosofia del Cristianesimo 1920 p56

88 AVERROacuteIS De animae beatudine Opera volIX 153 AB ldquoAscendet tunc ille intellectus is actu ad assimilationem rerum abstractarum et intelligit suum esse quod est actu intellectus []rdquo O tratado De animae beatudine foi uma compilaccedilatildeo posterior de dois curtos textos de Averroacuteis sobre o intelecto (Tractatus De animae

44

A ideia da conciliaccedilatildeo do indiviacuteduo com o intelecto universal e a ideia da

unidade de alma existente entre os filoacutesofos seriam colhidas e ajudariam a compor o

substrato do pensamento piquiano89 Tais concepccedilotildees muito provavelmente

fizeram-no abraccedilar com mais veemecircncia o Platonismo com o qual encontraria

similitudes conceituais ndash como na questatildeo da afinidade existente entre a parte da

alma capaz de entender as Ideias e a realidade inteligiacutevel permitindo sua uniatildeo Cabe

ressaltar que a inspiraccedilatildeo averroiacutesta de Pico foi de tal profundidade que o levou a

afastar-se dos tradicionais nuacutecleos de Paacutedua em razatildeo de divergecircncias em relaccedilatildeo a

especificidades daquela doutrina A cisatildeo com o academicismo padovano fez com que

Barbaro o chamasse de ldquotraidorrdquo na famosa carta de rsquo85 incomodado pela

aproximaccedilatildeo do amigo ao Platonismo o peripateacutetico atribuiu seu afastamento a uma

suposta adesatildeo incondicional agrave filosofia do ciacuterculo de Ficino Mas ao contraacuterio do

que tantos quiseram crer seu afastamento foi mais consequecircncia dos argumentos

retirados de seus intensos estudos sobre o pensamento aacuterabe aliados a uma forma

diferenciada de ler Averroacuteis90 Mais do que ter sido ldquoroubadordquo de Averroacuteis por Platatildeo

Pico foi impelido pelo Comentador ao Platonismo pois havia algo naquela filosofia

que dava espaccedilo para a transcendecircncia91

Embora seja redutivo outorgar agrave filosofia de Averroacuteis o creacutedito por uma

aproximaccedilatildeo ao nuacutecleo de pensamento da Academia cabe lembrar que o Pico que se

lanccedila com interesse sobre a ficiniana Theologia Platonica em 1482 tem a mente jaacute

moldada por uma robusta bagagem averroiacutesta que natildeo seria desprezada Seu

primeiro texto relevante o Commento sopra una Canzona drsquoamore composta da

Girolamo Benivieni92 apresenta um claro vieacutes platocircnico A inegaacutevel orientaccedilatildeo de seu

primeiro escrito mostra que embora o nuacutemero total de teses dedicadas ao

Platonismo na sucessiva obra de rsquo86 tenha sido menor a admiraccedilatildeo por suas

concepccedilotildees natildeo se mostra inferior do que a experimentada com as correntes

aristoteacutelicas Eacute bastante possiacutevel que ao aproximar-se de Platatildeo e dos neoplatocircnicos

Pico jaacute o faccedila trajando as vestes do conciliador que busca harmonizar os motivos

centrais do Liceu e da Academia Sob tal enfoque chama a atenccedilatildeo o fato de Proclo

beatudine - Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis Venetiaa Junctas 1562 [reprinted Frankfurt 1962] Vol IX pp 148r-155r)

89 A concepccedilatildeo de que o intelecto eacute capaz de entender o agente primeiro e a si mesmo a partir da virtude racional eacute uma tese de Al-Farabi que Pico encontra tambeacutem em Avempace e em Maimocircnides (Doctor perplexorum I 68) neste uacuteltimo conforme elucida Salomon MUNK Le Guide des Egareacutes Paris 1856 volI n p 304-308 (GARIN 2011 p65)

90 Um detalhamento da interpretaccedilatildeo de Pico que o levou a divergir dos demais averroiacutestas nos afastaria do tema traccedilado Para o tema veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss

91 Conforme infere Moshe IDEL Averroacuteis ldquoo mais ortodoxo entre os aristoteacutelicos medievais e ao mesmo tempo conhecido por permitir a possibilidade da uniatildeo epistecircmica do humano com o Agente Intelectordquo eacute entendido por oferecer uma metafiacutesica e uma epistemologia que podem conter alguns elementos miacutesticos Trata-se pois de ldquoum racionalista que natildeo conseguindo justificar todas as coisas plenamente atraveacutes da razatildeo aceita a revelaccedilatildeordquo (IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 28-29)

92 Durante sua permanecircncia em Fratta apoacutes o fracasso amoroso com Margherita Pico concluiu seu comentaacuterio agrave canccedilatildeo de amor redigida pelo amigo Benivieni o chamado Commento obra que se tornou famosa e foi bastante comentada nas cartas do periacuteodo O texto foi editado uma primeira vez em 1519 no contexto das obras piquianas e em 1731 como texto autocircnomo com o tiacutetulo Dellrsquoamore celeste e divino - Canzone di GB fiorentino col comento di G Pico della Mirandola (Alberto Cesare AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo in Heptaplus 1996 pV)

45

ser homenageado com 55 teses dez a mais que seu estimado Aquinate Essa

quantidade revela natildeo apenas o apreccedilo de Pico pelo filoacutesofo grego como muito

provavelmente a vontade de dar continuidade ao projeto que aquele havia iniciado

jaacute entatildeo uma tentativa de levar a termo a conciliaccedilatildeo entre as duas escolas

filosoacuteficas93 Ademais assim como ele o uacuteltimo grande mestre neoplatocircnico

considerava como elemento preliminar agrave carreira filosoacutefica o entendimento das obras

loacutegicas de Aristoacuteteles Certo eacute que a ideia de encetar um estudo de verificaccedilatildeo da

concoacuterdia entre os dois grandes da Antiguidade iniciara pouco antes de seu

estabelecimento em Florenccedila ocorrido em rsquo84 encontrando-se expressa na epiacutestola a

Barbaro do mesmo ano na qual afirma ser apenas aparente tal discoacuterdia

Parece-me que em Platatildeo haacute dois aspectos a eloquecircncia

homeacuterica que se ergue ateacute os ceacuteus da poesia e um total acordo

com Aristoacuteteles se se vai a fundo Portanto se olharmos a

forma nada concorda entre os dois mas se natildeo olharmos a

forma nada se opotildee entre os dois94

O momento para retomar aquele projeto maior mantido vivo desde antes da

elaboraccedilatildeo das novecentas teses ocorre apoacutes o fracasso de seu intento com as

Conclusiones Para levaacute-lo a termo muniu-se de fundamentos encontrados tanto nas

similitudes descritas pelos comentadores que o influenciaram quanto em sentido

contraacuterio nas diferenccedilas entre os dois Filoacutesofos acentuadas sobretudo por George

Gemistos Plethon anos antes95 Assim durante os anos de rsquo90 e lsquo91 Pico se dedica

exaustivamente agrave ldquoconcordia Platonis et Aristotelisrdquo conseguindo concluir em 1492

o texto embrionaacuterio De Ente et Uno dedicado ao amigo Poliziano96 Nesse percurso

ocorre seu retorno agrave Escolaacutestica que pode ter sido decisivo assim como o

Averroiacutesmo anos antes o aproximara a Platatildeo Tomaacutes de Aquino seu mestre inicial

o reaproximava agora a Aristoacuteteles ndash natildeo sem a influecircncia da convivecircncia com

93 Em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agraves Conclusiones Pico esclarece que o acordo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ldquopor muitos

considerado possiacutevelrdquo natildeo havia sido por ningueacutem ldquosuficientemente provadordquo Por ldquomuitosrdquo Pico referia-se a Boeacutecio Simpliacutecio Agostinho e Joatildeo Gramaacutetico ldquoBoeacutecio [] parece que nunca cumpriu o que sempre disse querer fazer Simpliacutecio entre os Gregos tinha sustentado a mesma coisa quem dera tivesse mantido quanto prometera Ateacute mesmo Agostinho no livro Contra os Acadecircmicos escreve que muitos foram os que tentaram provar que a filosofia de Platatildeo e de Aristoacuteteles satildeo uma mesma filosofia Assim Joatildeo Gramaacutetico que afirma que Platatildeo difere de Aristoacuteteles soacute para os que natildeo percebem o texto de Platatildeo deixou aos vindouros a demonstraccedilatildeordquo (Concl p145) Naomi GOLDFELD observa que o mestre Elia del Medigo foi outro dentre os que encontraram dificuldades para conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles seguindo os passos de Averroacuteis que por sua vez havia encontrado dificuldades quase trecircs seacuteculos antes ao tentar essa conciliaccedilatildeo (Elia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 43-44)

94 PICO Carta de 6 de Dezembro de 1484 in De Hominis Dignitate etc p9 (I 22) ldquo[] duo in Platone agnoscere et homerican illam eloquenti facultatem supra prosam orationem sese attollentem et sensum si quis eos altius introspiciat cum omnino communionem Ita ut si verba spectes nihil pugnantius si res nihil concordiusrdquo

95 Eacute bastante provaacutevel que a polecircmica de algumas deacutecadas gerada pelo opuacutesculo posteriormente intitulado De Differentiis que exerceu forte influxo nas concernentes discussotildees do seacuteculo XV ndash no qual o mestre de Mistra aborda as diferenccedilas entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tenha afetado o jovem Pico Conforme foi visto no Capiacutetulo I a polecircmica sobre as divergecircncias ou similaridades entre os dois Filoacutesofos perpassou o seacuteculo de certa forma graccedilas agrave continuidade do debate mantida por George de Trebizonda e Basiacutelio Bessarion Para maiores detalhes acerca da questatildeo leia-se MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 James HANKINS Plato in the Italian Renaissance 1990 pp193 ss GARIN 2011 p128

96 A iacutentegra da obra pode ser encontrada na ediccedilatildeo de Vallecchi (org Eugenio Garin) da De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 Para dados adicionais sobre a discussatildeo do De Ente et Uno leia-se GARIN 2011 entre pp 79 e 98 sobretudo as pp80-81

46

Savonarola Como infere Di Napoli o retorno a Tomaacutes com sua ldquosiacutentese de superaccedilatildeo

da distinccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacutetelesrdquo seria ldquodeterminanterdquo para que Pico

embasasse sua concoacuterdia97 O esteio tomista traria a sustentaccedilatildeo necessaacuteria para

discorrer acerca da relaccedilatildeo entre o Uno e o Ser proscecircnio de uma das importantes

disputas entre acadecircmicos aristoteacutelicos e platocircnicos nas discussotildees teoloacutegicas do

seacuteculo Solucionar um dos grandes contrastes teoreacuteticos da eacutepoca cria o eixo de De

Ente et Uno para a fundamentaccedilatildeo do qual Pico apoia-se sobretudo na Metafiacutesica

de Aristoacuteteles e no Parmecircnides de Platatildeo98 Apesar de o intento natildeo ter sido

terminado e a concordacircncia portanto natildeo concluiacuteda nos moldes pretendidos a obra

aborda conceitos metafiacutesicos obrigatoacuterios para a questatildeo retratando de acordo com

Garin uma ldquonotaacutevel posiccedilatildeo especulativardquo99

A soacutelida estrutura preparada ao longo de anos para sustentar aquele que seria

um de seus mais importantes projetos filosoacuteficos o de dirimir as diferenccedilas entre os

dois Gregos permitiu-lhe especular sobre esferas metafiacutesicas elevadas Apesar de

uma exposiccedilatildeo mais ampla do De Ente et Uno mostrar-se secundaacuteria para a

composiccedilatildeo do tema aqui proposto tomar conhecimento de seu nuacutecleo e sobretudo

de para onde aponta seu fim eacute condiccedilatildeo devida para que se complete o cenaacuterio dos

alicerces que constituem o pensamento piquiano O nuacutecleo da obra concentra um

motivo de cunho ontoloacutegico visto que trata da discussatildeo acerca da unidade ou

multiplicidade do Ser tomando por base as visotildees aristoteacutelica e platocircnica referentes

ao Ser e ao Uno Partindo da passagem da Metafiacutesica ldquoo Ser eacute Unordquo100 que se opunha

agrave ldquoprioridade do Uno em relaccedilatildeo ao Enterdquo sustentada na Academia101 Pico pretende

averiguar se a Unidade eacute inerente ao Ser O fim de sua obra para o qual se orienta a

tentativa de dirimir o presumido conflito eleva-o para a esfera dos Princiacutepios ndash um

interesse relacionado agrave Origem protoloacutegico portanto Essa informaccedilatildeo deve ser

guardada Em torno a essa esfera e natildeo abaixo dela concentram-se muitas das

demais argumentaccedilotildees piquianas algumas de acircmbito supra filosoacutefico sobretudo as

que recorrem a argumentos retirados da dimensatildeo esoteacuterica como seraacute visto Seus

interesses de ordem religiosa ou miacutestica procuram justamente encontrar o ponto de

convergecircncia entre aquelas doutrinas e os Princiacutepios

97 Giovanni DI NAPOLI Pico e la problematica dottrinale del suo tempo 1965 p223 Para o influxo de Tomaacutes

de Aquino sobre o pensamento de Pico em seus uacuteltimos anos veja-se Andreacute-Jean FESTUGIEgraveRE Studia Mirandulana in Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge 1933 pp151 e ss ANAGNINE (opcit p32)

98 A discussatildeo do Parmecircnides envolveu muitos eruditos no seacuteculo XV como Bessarion e Ficino que enxergavam no diaacutelogo o coraccedilatildeo da teologia platocircnica Alguns pontos da obra contrapuseram Pico ndash que considerava a obra apenas como um exerciacutecio dialeacutetico ndash a Ficino que diria ldquono Parmecircnides Platatildeo encerrou a inteira teologiardquo (Ficino Opera Henricpetrina Basilea 1576 p1137 apud MOLINARI opcit p81) Ainda GARIN LrsquoUmanesimo Italiano 2008 pXVII As interpretaccedilotildees dos dois autores renascentistas sobre o pensamento de Platatildeo exerceraacute uma influecircncia profunda nos seacuteculos seguintes alcanccedilando desde os Platocircnicos de Cambridge ateacute a literatura alematilde atingindo Winckelmann Herder Goethe Schelling e Hegel (cf CASSIRER ldquoFicinorsquos Place in Intelectual Historyrdquo in Journal of the History of Ideas nr 6 1945)

99 GARIN 2011 p42 Como reflete o comentador em outra obra Pico mergulhou na problemaacutetica da discoacuterdia natildeo para eliminar seu dissenso mas para integrar ndash e distribuir em niacuteveis distintos ndash seus conteuacutedos (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17) Mesmo natildeo tendo concluiacutedo a obra de conciliaccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tema que continuaraacute em todo o seacuteculo XVI ndash soacute o fato de tecirc-la proposto em termos novos e tecirc-la iniciado mostram como era forte a necessidade de suplantar certas posiccedilotildees humanistas do lsquo400 e como jaacute despontavam em Pico questotildees que seriam a tocircnica do seacuteculo vindouro (GARIN 2008 p 98)

100 Metaphysica IV 2 1003b-23 ldquoens et unum idem et eadem natura suntrdquo 101 PICO De Ente et Uno p389

47

3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos

O contato com a consistente corrente d0 pensamento padovano natildeo trouxe

apenas a convicccedilatildeo de conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles Jaacute agrave eacutepoca de seus estudos

iniciais havia-se encastelado na mente de Pico aquele que viria a ser seu desafio

maior encontrar os pontos de acordo entre sistemas filosoacuteficos e doutrinas religiosas

pertencentes a tradiccedilotildees distintas102 Natildeo por acaso observa-se em sua biografia uma

alternacircncia de temaacuteticas de pesquisa que transitam entre Filosofia e doutrinas ligadas

ao campo da Revelaccedilatildeo Essas uacuteltimas satildeo retomadas no periacuteodo imediato ao retorno

da Franccedila para Florenccedila quando ocorre a aproximaccedilatildeo ao misticismo hebraico

atraveacutes de uma renovaccedilatildeo nos estudos biacuteblicos Em fase de introspecccedilatildeo inicia-se a

redaccedilatildeo de uma seacuterie incompleta de comentaacuterios sobre os Salmos e embora natildeo

comprovado uma nova traduccedilatildeo e alguns comentaacuterios sobre partes do Livro de Joacute

Nessa fase tocado pelo estado de espiacuterito de seu amigo Lorenzo escreve para o

embaixador papal em Roma Giovanni Lanfredini contando que Pico ldquovive muito

piamente como um monge canta os Salmos e escreve conteuacutedos teoloacutegicosrdquo E

acresce que ldquopoucos satildeo os homensrdquo que lhe despertam ldquotanta estimardquo103 A carta ndash

uma tentativa para a reabilitaccedilatildeo do sentenciado ainda natildeo absolvido de sua

condenaccedilatildeo ndash termina sendo malsucedida pois Inocecircncio VIII considera intoleraacutevel o

interesse contiacutenuo de Pico em Teologia preferindo que ele ldquose dedique agrave poesiardquo104

Esse tipo de interesse pelas Escrituras natildeo era novo Quando ainda estudante

em Paacutedua lanccedilara-se com premecircncia ao estudo do idioma hebraico em um primeiro

momento buscava apenas compreender as traduccedilotildees e interpretaccedilotildees hebraicas dos

pensadores aacuterabes e seus comentaacuterios referentes a Aristoacuteteles contudo em fase

posterior os textos originais hebraicos foram objeto de profundo interesse para a

busca de confirmaccedilotildees da verdade de suas crenccedilas cristatildes ndash interesse despertado

sobretudo pelo contato com Elia del Medigo durante o periacuteodo florentino A

proficiecircncia do idioma seria incrementada por Flaacutevio Mitridate ndash mestre que natildeo

apenas o ajudaria nas traduccedilotildees de alguns textos como se tornaria seu principal

instrutor de liacutenguas orientais105 Aleacutem do hebraico iniciou-o no aramaico e no aacuterabe

este entre outras coisas para que pudesse ler Maomeacute no original Assim em dado

periacuteodo o aprendiz lia simultaneamente o Coratildeo os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos a

102 GARIN 2011 p13 BROCCHIERI opcit p13 103 A carta foi escrita em 13 de junho de 1489 Os conteuacutedos teoloacutegicos referem-se tanto aos Salmos quanto

presumivelmente ao Heptaplus (BLACK opcit pg 9) As cartas entre Giovanni Lanfredini e Lorenzo dersquo Medici podem ser vistas em Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti 1859 pp51-52 Ainda para a questatildeo veja-se GARIN 2011 pp39-40

104 Em 2 de Outubro de 1489 o embaixador Giovanni Lanfredini assim responderia a Lorenzo ldquoEt dixe [il papa] lsquoQueste cose della fede sono troppo tenere et non posso tollerarle Se lui [Lorenzo] gli vuole molto bene [a Pico] che lo facci scrivere opere di poesia et non cose theologiche percheacute saranno piugrave de sua denti percheacute il conte non egrave bene fondato et non ha visto tanto quanto bisogna ad chi scrive theologiarsquordquo (MS Firenze Archivio di Stato MAP 58 96 apud Raffaella Maria ZACCARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus in Pico Poliziano e LrsquoUmanesimo di fine Quattrocento 1994 pp 76-77)

105 Para os estudos com Mitridate leia-se Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 88 Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti in Rivista contemporanea 1859 pp36-37

48

Zoroastro e o Livro da Criaccedilatildeo pilar do misticismo judaico ndash buscando extrair seus

pontos de conversatildeo106

O contato com os mestres hebreus que frequentavam o ciacuterculo florentino

ligado agrave Academia acentuou ademais seu interesse pelo Esoterismo Elia del

Medigo natildeo lhe apresentaria apenas Averroacuteis e as filosofias orientais em carta ao

aluno no provaacutevel ano de rsquo85 mencionava a principal doutrina miacutestica judaica

afirmando que ldquopoucos entre os Antigos entenderam a Cabalardquo107 Ademais

continuava a carta seus textos obscuros pediam uma hermenecircutica especial que

possibilitasse a decodificaccedilatildeo das doutrinas secretas laacute ocultas ele Elia seria o

mestre capaz de fornecer a Pico os preciosos elementos para a compreensatildeo da gnose

hebraica108 Assim embora natildeo se tendo limitado aos ensinamentos de Elia que

nesse sentido foram um tanto escassos as primeiras indicaccedilotildees para seus estudos da

Cabala foram-lhe transmitidas por aquele jovem mestre que insistia para que fossem

extraiacutedas as partes teoreticamente mais profundas da miacutestica hebraica Elia colocava

e ressaltava continuamente o problema da convergecircncia entre Filosofia e Teologia

(ldquoo outro caminho para acreditar-se na Lei aleacutem da feacute se daacute pela via filosoacuteficardquo)109 ndash

uma concepccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo do pensamento piquiano

Natildeo somente Elia lhe abriria as portas para esse gecircnero de interesse A forte

dicotomia entre a leitura literal e natildeo literal era uma caracteriacutestica constante e

enfaacutetica da tradiccedilatildeo judaica medieval ainda mantida viva no seacuteculo XV e

apresentava evidentes paralelos com os modelos de transmissatildeo esoteacuterica greco-

cristatildeos tais ideias tinham portanto uma ressonacircncia contemporacircnea sendo objeto

de discussotildees teoacutericas na Itaacutelia ainda agrave eacutepoca em que Pico escrevia o Heptaplus110 De

forma que a postura hermenecircutica ali desenvolvida natildeo se fundamenta apenas na

miacutestica judaica mas encontra raiacutezes entre os primeiros inteacuterpretes latinos e gregos

Dentre as vaacuterias fontes agraves quais Pico teve acesso e que foram certamente utilizadas

em suas pesquisas verificam-se desde representantes do Cristianismo primitivo

quanto do meacutedio e novo Platonismo como Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio Clemente

106 A questatildeo do aprendizado de liacutenguas estaacute bem documentada em vaacuterias cartas Veja-se Gian Francesco PICO

Vita di Giovanni Pico (org Sorbelli) 1963 DUKAS opcit pp69-70 CASSUTO op cit pp 282 299-300 GARIN 2011 pp97-98 Em resposta a uma carta de Ficino de setembro de 1486 em que esse lhe pede de volta a versatildeo latina do Coratildeo Pico conta-lhe sobre seu mecircs de esforccedilos para aprender o hebraico aleacutem de levar adiante os estudos do aacuterabe e do aramaico A carta pode ser lida em Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 3-4 Escreve Wirszubski que ldquoo quanto Pico aprendeu em hebraico em termos de proficiecircncia eacute difiacutecil dizer natildeo eacute de forma alguma insignificanterdquo E na p 6 ldquoPico aprendeu muito com as traduccedilotildees de Mitridate infinitamente mais do que ele poderia ter aprendido com os originais hebraicos uma vez que tentou lecirc-los sem traduccedilotildeesrdquo

107 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi in RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo 1891 Veja-se ainda Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9

108 CASSUTO opcit pp284 e ss Ainda para o tema BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11 SIRGADO GANHO opcit p17

109 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi fol 255 in RAGNISCO opcit A carta de Elia del Medigo foi publicada pela primeira vez por Jules DUKAS em Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 ldquo[] si quid tamen dictum sit contrarium Legi non mirum est quia tantum intentiones Philosophorum secundum fundamenta eorum dicere volui scitur nam quod via Legis cui magis creditur alia est a via Philosophicardquo Complementando a colocaccedilatildeo acima cabe observar que na visatildeo de Elia segundo Naomi GOLDFELD a feacute estaacute fundada sobre a razatildeo (ldquoElia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraicordquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze 1998 p 43-44)

110 BLACK opcit pp 131-132

49

Euseacutebio Plotino Porfiacuterio e Jacircmblico Tendo sido adotada por alguns dentre os

primeiros exegetas cristatildeos a abordagem esoteacuterica foi mantida em circulaccedilatildeo por

intermeacutedio da tradiccedilatildeo neoplatocircnica mais tardia ndash levada adiante por Macroacutebio

Pseudo-Dioniacutesio e Simpliacutecio ndash depois que a mesma havia deixado de ser utilizada111

Jaacute em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees relativas ao Gecircnesis cujos sinais se mostram

na De Hominis Dignitate e em caraacuteter preciacutepuo no Heptaplus eacute bastante certo que

um limitado nuacutemero de textos tenha sido extraiacutedo das exegeses gregas da escola

alexandrina particularmente referentes a escritos de Oriacutegenes e de Fiacutelon A obra De

opificio mundi de Fiacutelon foi bem recepcionada por Ambroacutesio cujo pensamento

influiria sobre Agostinho mas apoacutes essa recepccedilatildeo cristatilde no seacuteculo IV sua utilizaccedilatildeo

parece ter desaparecido em grande parte112 Eacute possiacutevel que Pico tenha tido acesso ao

conteuacutedo de Fiacutelon atraveacutes de Ambroacutesio ou Agostinho

Passar do esoterismo grego e cristatildeo ao oriental foi um passo Pico percebia

atraveacutes de suas leituras que havia outros sistemas que em comum com aqueles

partilhavam de certo pendor por questotildees de cunho teoloacutegico ndash quando natildeo

puramente miacutestico Ainda antes de chegar a Florenccedila o jovem de Mirandola fora

atraiacutedo pelo Platonismo de Ficino um Platonismo de vieacutes teoloacutegico que tentava a

conciliaccedilatildeo com o Cristianismo O entatildeo ordenado padre via na obra platocircnica uma

filosofia divinamente inspirada na qual estava sintetizada toda a tradiccedilatildeo

especulativa oriental e grega113 Na concepccedilatildeo ficiniana todos os campos do real

encontravam-se convergentes em virtude de uma uniatildeo vital do mundo tal reflexatildeo

contemplava a perspectiva de uma pia philosophia na qual estariam alinhados

Zoroastro e Moiseacutes Hermes Trismegisto e Platatildeo os pitagoacutericos e os neoplatocircnicos

O legado de Ficino natildeo deixaria de acrescer importantes elementos na construccedilatildeo do

pensamento piquiano embora natildeo sem ressalvas114

Sobretudo os textos hermeacuteticos de acordo com as traduccedilotildees ficinianas teriam

exercido influecircncia nas reflexotildees do Conde alguns de seus temas como a liberdade

da alma em relaccedilatildeo ao corpo e a natureza mediadora do homem seriam amplamente

desenvolvidos nas obras posteriores a lsquo86115 Para alguns comentadores a

111 BLACK ibid p 147 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo VII 112 BLACK idem Natildeo estaacute claro se esta obra foi incluiacuteda entre os manuscritos de Fiacutelon pertencentes agrave biblioteca

de Lorenzo Por outro lado ela estaacute atestada em dois manuscritos do Vaticano que foram incluiacutedos nos inventaacuterios de 1475 1481 e 1484

113 Para Ficino existia uma uacutenica Filosofia que consistia na ldquoreflexatildeo sobre as verdades eternas as Ideias que como tais permanecem inalteradas no tempo e transcendem a Histoacuteriardquo (cf Sebastiano GENTILE Il ritorno di Platone dei platonici e del lsquocorpusrsquo ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino in Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento 2002 pp 193-228)

114 Nem tudo foi apenas uniatildeo de ideias entre Ficino e Pico No Commento sopra una canzona drsquoamore da Girolamo Benivieni Pico faz aacutesperas criacuteticas a uma das obras de maior sucesso de Ficino o Commentarium in Convivium criticando a concoacuterdia estabelecida por Ficino de forma muito faacutecil entre o pensamento de Platatildeo e a doutrina cristatilde especialmente em pontos essenciais como a figura do Cristo Como escrevia Pico ldquoeacute preciso estar atento em natildeo confundir o filho de Deus [o demiurgo no texto de Platatildeo] com o filho de Deus dos teoacutelogos cristatildeos jaacute que este eacute de mesma essecircncia que o Pai criador e natildeo criaturardquo (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento Firenze 1965 p28)

115 O conceito do homem-mediador na obra de Hermes Trismegisto eacute bem desenvolvido por SCOTT - FERGUSON em Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which Contain Religious or Philosophic Teachings Ascribed to Hermes Trismegistus 1924-36 p 120 ss

50

ldquoantropologiardquo foi um dentre os principais interesses extraiacutedos daquele

conhecimento em razatildeo do paraacutegrafo inicial da De Hominis Dignitate em que eacute

citada a ceacutelebre sentenccedila do Asclepius ldquoMagnum o Asclepi miraculum est homordquo116

uma entre diversas passagens hermeacuteticas que exaltam a grandeza do homem Ficino

havia citado a mesma passagem mais de dez anos antes em sua Theologia

Platonica117 mas com Pico a teoria hermeacutetica seraacute aprofundada e decisiva para a

questatildeo da dignidade Os escritos atribuiacutedos a Trismegisto foram ademais a fonte

utilizada para desenvolver seus pontos de vista sobre a magia branca capaz de

ldquocomungarrdquo o homem com o divino ndash tema a ser retomado no proacuteximo Capiacutetulo ndash

embora seus muacuteltiplos interesses o fizessem se envolver tambeacutem com certas

alquimias de conotaccedilatildeo praacutetica extraiacutedas do manual Picatrix118

Na Academia Pico inicia portanto a construir uma estrada proacutepria a partir ndash

natildeo da fusatildeo mas do encontro ndash de componentes comuns extraiacutedos de domiacutenios

distintos da teologia cristatilde da filosofia neoplatocircnica de escolas iniciaacuteticas egiacutepcias e

persas da miacutestica judaica A siacutentese daqueles estudos se mostraraacute na fase de reclusatildeo

no mosteiro de San Marco apoacutes o retorno da Franccedila uma nova etapa na qual o

pesquisador voltar-se-aacute para pensadores que fizeram da experiecircncia religiosa seu

campo de reflexatildeo Mergulhando de iniacutecio nas reflexotildees teoloacutegicas de Maimocircnides

adentra definitivamente pela porta do pensamento hebraico E ao trilhar essa

estrada comeccedila a vislumbrar a ideia de ter encontrado uma soluccedilatildeo para seus

problemas referentes agrave dificuldade em aliar Filosofia e Cristianismo119 A alegria de

encontrar no pensamento hebraico a confirmaccedilatildeo da identidade profunda entre

aquelas reflexotildees e suas crenccedilas ndash e ainda com as de outras culturas ndash seria relatada

posteriormente no Heptaplus

No ambiente de isolamento a cultura hebraica de Pico comeccedila efetivamente a

desabrochar Isso ocorre mormente atraveacutes das reflexotildees conduzidas junto a

Yohanan Alemanno Elia o tinha guiado em seus primeiros passos atraveacutes do

pensamento aacuterabe-hebraico mas o vieacutes aristoteacutelico de Elia natildeo permitia um maior

aprofundamento na Cabala com Flavio Mitridate natildeo haacute duacutevidas as cogniccedilotildees sobre

o tema se estenderam mas agora com Alemanno Pico consegue de modo efetivo

avanccedilar em suas intuiccedilotildees acerca da aplicaccedilatildeo dos meacutetodos cabaliacutesticos na soluccedilatildeo

das antiacuteteses entre Religiatildeo e Filosofia120 Os interesses de Alemanno comprovados

em sua bibliografia apresentavam muitos pontos de contato com a interpretaccedilatildeo

biacuteblica em geral e particularmente com o conteuacutedo desenvolvido no Heptaplus

116 PICO Oratio p 102 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo IV 117 Marsilio FICINO Theologia platonica XIV 3 2 (ed Bompiani p1299) ldquoQuod admiratus Mercurius

Trismegistus inquit lsquoMagnum miraculum esse hominem animal venerandum et adorandum qui genus daemonum noverit quasi natura cognatum quive in deum transeat quasi ipse sit deusrsquordquo

118 Para a relaccedilatildeo de Pico com a magia extraiacuteda do Hermetismo leia-se Frances YATES Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica 1995 pp 84-116 Algumas questotildees relacionadas agrave magia praacutetica e alquimia satildeo descritas por Pietro CRINITO conta por exemplo que Pico ficou dias a preparar uma foacutermula alquiacutemica agrave base de certos venenos para curar Ermolao Barbaro E em eacutepoca de peste experimentou algumas misturas de venenos para encontrar a cura ldquoex oleo scorpionum linguisque aspidum et aliis eiusmodi venenis confectumrdquo (De honesta Disciplina I 7 p12 apud GARIN 2011 p44)

119 GARIN 2011 p27 120 GARIN 2011 pp38-39 WIRSZUBSKI op cit pp256-257

51

Atraveacutes da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica poderia ser promovida a possiacutevel conciliaccedilatildeo

entre as Escrituras e a Filosofia como seraacute visto no Capiacutetulo VI Da mesma forma

que a Teologia cristatilde havia identificado ecos de suas doutrinas nos manuscritos de

caldeus e egiacutepcios como mostravam as recentes descobertas do Platonismo

florentino121 Pico tentaria encontrar nas Escrituras conteuacutedos que teriam derivado

das doutrinas cabaliacutesticas ndash natildeo com o intuito de subordinar umas agraves outras mas

com a firme vontade de dar verdade aos textos sagrados dentro da Filosofia que

buscava122

Com a apresentaccedilatildeo das Conclusiones Nongentae Giovanni Pico teria a

chance natildeo apenas de expor como de debater finalmente o cabedal de conhecimento

aprendido naqueles anos de estudos filosoacuteficos teoloacutegicos orientais e em parte

esoteacutericos Tendo sido apresentadas as circunstacircncias ao seu redor e os caminhos

atraveacutes dos quais se estruturou seu pensamento seraacute possiacutevel prosseguir em direccedilatildeo

ao objetivo traccedilado qual seja mostrar de que forma Pico mesclou em suas

argumentaccedilotildees paracircmetros de teor natildeo-filosoacutefico

121 Essa era a ideia prevalente no ciacuterculo de Ficino A relaccedilatildeo entre essas doutrinas e sua aceitaccedilatildeo na Academia

podem ser confirmadas pela recepccedilatildeo dos textos atribuiacutedos a Hermes do Egito e ao persa Zoroastro conforme abordado no Capiacutetulo I A aceitaccedilatildeo de Hermes como ldquoum dos seusrdquo pela Igreja pode ser comprovada atraveacutes do grande trabalho de marchetaria feito no piso do Duomo de Siena nos anos rsquo80 do seacuteculo XV onde Hermes Trismegisto estaacute representado de forma extraordinaacuteria mostrando sua recepccedilatildeo em territoacuterio cristatildeo

122 Bohdan KIESZKOWSKI Averroismo e Platonismo in Italia in Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia 1936 capVII

52

CAPIacuteTULO III

AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO

As Conclusiones Nongentae1 ou Novecentas Teses formam em seu conjunto

a primeira obra de Giovanni Pico a ser estampada ndash e seu trabalho mais

desafortunado Os acontecimentos em torno ao assunto ocorreram em um ritmo

muito veloz A redaccedilatildeo foi concluiacuteda em 12 de Novembro de 1486 em 7 Dezembro o

manuscrito foi levado para ediccedilatildeo em Roma pelas matildeos de Eucharius Silber2 sem

que fosse aguardado o usual parecer de catolicidade por parte da comissatildeo pontifiacutecia

Em breve tempo algumas daquelas primeiras coacutepias seriam vetadas e em Marccedilo de

lsquo87 a comissatildeo ligada ao prelado proibiria definitivamente sua difusatildeo Treze teses

foram inicialmente censuradas Pico julgado e finalmente a totalidade das teses

condenada A proacutexima publicaccedilatildeo das Conclusiones somente ocorreria na segunda

metade do seacuteculo XVI na Basileacuteia terra natildeo catoacutelica3

Voltando-se atraacutes alguns meses para o periacuteodo de sua elaboraccedilatildeo verifica-se

que o principal projeto de Pico seguiu uma bem estruturada sistematizaccedilatildeo na

preparaccedilatildeo dos fundamentos erigida ao molde das construccedilotildees teoreacuteticas medievais

Em posse do conhecimento dos formatos escolaacutesticos o autor daria iniacutecio a uma

ordenaccedilatildeo das vaacuterias vertentes e escolas com as quais tivera contato com o objetivo

de apresentar seus pontos de analogia Assim a organizaccedilatildeo do conteuacutedo obedece a

uma sequecircncia de proposiccedilotildees extraiacutedas de sua criacutetica-histoacuterica organizada por

grupos de pensamento Em termos de estilo e aproveitando-se do meacutetodo de

argumentaccedilatildeo atraveacutes de nuacutemeros (calculationes) apreendido nos cursos de loacutegica

seguidos em Pavia Pico se serve do modelo de escrita ldquoparisiensisrdquo tendo por base a

loacutegica aristoteacutelica4 Tal estilo utilizado tanto nas Conclusiones quanto na Apologia

1 O tiacutetulo original conforme a editio princeps eacute Conclusiones DCCCC dialecticae morales physicae

mathematicae publice dispuntandae Romae Anno ab incarnatione Domini MCCCCLXXXVI die septime Decembris Sobre a escolha do nuacutemero de teses Pico explicaria em carta escrita a Girolamo Benivieni que seu intento inicial era o de escrever 700 teses chegando depois a 900 embora tivesse material para um nuacutemero maior O 900 seria o nuacutemero certo por seu significado miacutestico acerca do qual Pico apenas sinalizaria ldquose efetivamente a nossa ciecircncia dos nuacutemeros eacute digna de feacute tal cifra simboliza a alma que retorna a si apoacutes ter sido revolvida pela inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (cf Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura italiana XXV 1895 p358)

2 Eucharius Silber alias Franck era considerado o melhor tipoacutegrafo de Roma (cf Giulio BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in ldquoIl Sole-24 Orerdquo 28082018) O texto original das Conclusiones estaacute contido atualmente em quatro manuscritos conservados e distribuiacutedos entre as cidades de Viena Munique e Erlangen (respectivamente nas seguintes bibliotecas Osterreichische Nationalbibliothek lat 14708 Bayerische Staatsbibliothek lat 11807 Universitatsbibliothek lat 646) Cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 185

3 Para maiores detalhes sobre as circunstacircncias da publicaccedilatildeo veja-se Albano BIONDI ldquoIntroduzionerdquo a Conclusiones Nongentae 1995 ppV-XIII Ainda Edoardo FORNACIARI ldquoIntroduzionerdquo agrave traduccedilatildeo de Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p9 Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p63 Por mais de cinco seacuteculos as Conclusiones permaneceram em olvido com acesso apenas a poucos especialistas suas poucas ediccedilotildees remetem quase todas ao seacuteculo XVI sendo que sua uacuteltima ediccedilatildeo completa eacute de 1619 Apoacutes essa data a obra passou por um longo periacuteodo de esquecimento ateacute ser finalmente editada por Kieszkowski em 1973

4 PICO Concl (I) p7 ldquo[] in quibus recitandis non Romanae linguae nitorem sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum dicendi genus est imitatusrdquo O ldquostylus parisiensesrdquo foi especialmente desenvolvido

53

constituiacutea a base da vulgata scholastica e comeccedilava a ser objeto de criacuteticas por parte

dos humanistas em razatildeo de sua linguagem considerada obstinadamente teacutecnica No

que concerne agrave discussatildeo puacuteblica para a qual as Teses haviam sido preparadas o

meacutetodo escolhido ndash sempre escolaacutestico ndash teria sido o das quaestiones5

A obra compotildee-se de novecentos aforismos ndash ou breves proposiccedilotildees ndash que natildeo

contemplam sua anaacutelise ou fundamentaccedilatildeo filosoacutefica Com efeito ao folhear as

paacuteginas das novecentas Conclusiones verifica-se uma sucessatildeo de sinteacuteticos

conteuacutedos filosoacuteficos teoloacutegicos cientiacuteficos e misterioloacutegicos6 que encerram aquilo

que seria uma revisatildeo de posiccedilotildees parte delas de autores ou escolas comentadas por

Pico (as primeiras quatrocentas) e as demais de autoria do proacuteprio Pico (as

quinhentas seguintes) O planejamento do conjunto previa pois a apresentaccedilatildeo de

propostas de discussatildeo ndash ponto fundamental para a compreensatildeo das consequecircncias

desencadeadas ndash e natildeo a discussatildeo em si Certamente obtendo o bom resultado que

o Autor esperava no debate o intento seria levado adiante

Contrariando no entanto aquela que seria a vontade de seu Escritor o vasto

material parte de um projeto natildeo finito e natildeo devidamente esclarecido difundiu-se

rapidamente A ediccedilatildeo das novecentas proposiccedilotildees embora tendo transgredido as

formalidades eclesiaacutesticas tinha por honesto intento uma devida apresentaccedilatildeo e

discussatildeo com os eruditos ndash antes de qualquer apresentaccedilatildeo puacuteblica A indevida

publicaccedilatildeo da obra de certa forma serviu para aumentar a notoriedade do jovem

conde que jaacute desfrutava de grande fama fazendo-o passar a ser reconhecido como

ldquodoutor universal dono de um saber privilegiado acerca do homem e da natureza dos

anjos e de Deusrdquo7 Mas nem todos naqueles finais do Quattrocento enxergaram as

Teses com tamanho otimismo Algumas vozes consideraram a obra na melhor das

hipoacuteteses uma tentativa superficial de fusatildeo de doutrinas outras a julgaram ldquoaudazrdquo

ldquotemeraacuteriardquo e ldquovangloriosardquo especialmente em razatildeo de sua imoderada dimensatildeo e do

abarcamento de vaacuterias aacutereas de conteuacutedos diversos em uma uacutenica obra8 Eacute irocircnico

durante a permanecircncia de Pico em Paris entre 1485 e 1486 (cf GARIN 2011 p24) Os ldquocalculatoresrdquo do seacuteculo XIV aplicaram a matemaacutetica para problemas tratados qualitativamente na fiacutesica aristoteacutelica (Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 np467) Veja-se ainda BIONDI (1995 pXI)

5 Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 7-8 Conforme observa o comentador as especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas dos trecircs seacuteculos anteriores foram fundamentadas sobre esse meacutetodo Para maiores detalhes sobre os meacutetodos mencionados veja-se BIONDI ldquoIntroduzionerdquo e ldquoPremessa ai testirdquo em Conclusiones Nongentae opcit ppXI 4

6 O nuacutemero de distinccedilotildees temaacuteticas mencionadas por Pico na abertura das Conclusiones eacute maior ldquosatildeo proposiccedilotildees dialeacuteticas morais fiacutesicas metafiacutesicas teoloacutegicas maacutegicas e cabaliacutesticasrdquo (ed BIONDI p7) As proposiccedilotildees do tipo que hoje aceitariacuteamos como cientiacuteficas ndash que contemplam campos da fiacutesica biologia e astronomia ndash apresentam-se em nuacutemero bastante limitado Veja-se como exemplo a Conclusio 7 segundo Alberto Magno ldquoO som eacute levado conforme seu ser real ateacute o ponto onde inicia o nervo oacuteticordquo (II 7) Ou ainda a Conclusio 9 segundo Egidio Romano ldquoO calor poderaacute gerar o fogo mesmo quando natildeo estiver em contato diretordquo (IIVI 9)

7 Albano Biondi extrai essa imagem outorgada a Pico de uma carta do famoso poeta carmelita Battista Spagnoli de Mantova mestre de Filosofia e Teologia em Bologna (BIONDI ldquoIntroduzionerdquo opcit p VI)

8 Na De Hominis Dignitate elaborada como introduccedilatildeo agraves Conclusiones Pico antecipara a defesa das provaacuteveis criacuteticas que receberia justificando que a ideia de realizar um debate no molde praticado por respeitados filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles era uma forma favoraacutevel para a obtenccedilatildeo da verdade ldquodo mesmo modo que as forccedilas do corpo se robustecem com a ginaacutestica assim tambeacutem sem duacutevida nesta espeacutecie de palestra do espiacuterito a energia da alma se torna mais forte e firmerdquo (Oratio p135) Ademais seu debate natildeo tinha como intenccedilatildeo ldquomostrar engenho e erudiccedilatildeordquo (idem) mas ldquoapenas a formaccedilatildeo de sua alma e o conhecimento da verdaderdquo (ibid p133) Em relaccedilatildeo agrave elevada quantidade de teses escritas considerada por muitos ambiciosa e ldquoacima das forccedilasrdquo do autor (ibid pp 133 139 147) Pico escreveria ldquoProcurei reduzir a discussatildeo ao menor nuacutemero possiacutevel de pontos Se eu

54

observar que o Autor que tanta atenccedilatildeo dedicou agrave questatildeo doutrinaacuteria da natildeo-

divulgaccedilatildeo de certas concepccedilotildees sigilosas de ordem universal assistiu agrave indevida

publicaccedilatildeo das Teses e sua decorrente leitura por mentes despreparadas conjuntura

que o levou a sofrer consequecircncias nefastas e ateacute quase seu atestado de morte

A rejeiccedilatildeo agrave obra alcanccedilou a contemporaneidade porquanto as Conclusiones

foram pouco entendidas e muito criticadas Alguns criacuteticos talvez por natildeo terem

colhido a ideia seminal contida em seu projeto acreditaram tratar-se de uma

miscelacircnea de pensamentos que natildeo faziam sentido ou que se encontravam

inconclusos Outros viram nas Conclusiones uma combinaccedilatildeo excecircntrica de

problemas incompatiacuteveis uma curiosidade literaacuteria sem qualquer coerecircncia interna9

Eugenio Garin foi dos poucos a apontar que aquele conglomerado de sistemas deveria

ser apreciado a partir de suas referecircncias aos maiores problemas filosoacuteficos da

Histoacuteria do Pensamento O historiador completa que a tentativa de conciliaccedilatildeo de

diferentes doutrinas filosoacuteficas deve ser entendida como a consciente percepccedilatildeo da

existecircncia de uma pluralidade de pontos de vista que podem ser integrados10 Apesar

de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Pico acolhe torna suas e finalmente

refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis procurando em

sentido contraacuterio ao errocircneo julgamento de querer demonstrar uma magnitude de

conhecimentos ldquoreduzirrdquo todo o seu scibile a compactas 900 teses11

A quantidade de temas pertencentes a cada setor de pensamento natildeo estaacute

distribuiacuteda de forma uniforme dentro da recomposiccedilatildeo piquiana alguns eleitos pelo

escritor recebem mais atenccedilatildeo do que outros Eacute o caso do amplo espaccedilo dado a

questotildees de Teologia ndash concernentes a tradiccedilotildees distintas ndash a especiacuteficas aacutereas da

Filosofia ndash como a Metafiacutesica as questotildees acerca da Alma e o campo que chamamos

de Cosmologia ndash e a algumas doutrinas pertencentes ao campo da Misteriologia ndash

caso por exemplo do grupo de teses voltadas agrave Magia ao Orfismo e agrave Cabala Os

toacutepicos a seguir procuraratildeo mostrar que tais escolhas obedecem a um planejamento

Apoacutes a averiguaccedilatildeo da estrutura das Conclusiones necessaacuteria para o entendimento

do desenho geral da obra e de algumas teses relacionadas aos temas filosoacuteficos

mencionados seratildeo verificadas as questotildees teoloacutegicas condenadas e sua relaccedilatildeo com

as crenccedilas do autor por fim as disposiccedilotildees de acircmbito misterioloacutegico

tivesse querido dividir e desmembrar as suas partes mdash como eacute habitual outros fazerem mdash teria escrito certamente uma quantidade inumeraacutevel de tesesrdquo (ibid p163)

9 Um desses criacuteticos foi J BRUCKER (Historia critica Philosophiae Lipsia 1766 pp57 ss) que escreveria que a obra ldquomistura tudo inadequadamente e nos confunde uns aos outrosrdquo no que foi seguido por vaacuterios (apud GARIN 2011 n p 74)

10 GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17 Em outra obra Garin considera que o que pareceria um ldquofloreio filosoacuteficordquo eacute na verdade a ldquoexaltante procura da pequena mas lsquoimortal contribuiccedilatildeorsquo que cada homem grego romano cristatildeo aacuterabe judeu dava agrave eternidade do pensamentordquo (GARIN 2011 pp72-76)

11 Joseacute Vitorino PINA MARTINS julga ainda que a obra eacute fruto do amadurecimento do autor decorrente de suas profundas reflexotildees (Cultura Italiana Lisboa 1971)

55

1 A Secreta Conexatildeo

O conjunto de novecentas teses divide-se em dois grupos No primeiro

composto de quatrocentas proposiccedilotildees Pico apresenta as teorias de vaacuterios

pensadores que o marcaram ligados a diferentes Escolas12 Nessa seccedilatildeo eacute realizada

uma siacutentese histoacuterico-doutrinaacuteria que introduz ao leitor o nuacutecleo do pensamento

piquiano Pouco mais da metade das teses desse grupo satildeo dedicadas aos autores de

tradiccedilatildeo aristoteacutelica divididos entre os escolaacutesticos cristatildeos ndash entre eles Tomaacutes de

Aquino e Joatildeo Escoto ndash os peripateacuteticos orientais ndash como Avicena Averroacuteis e

Maimocircnides13 ndash e os gregos ndash Alexandre de Afrodiacutesia e Teofrasto entre outros14 A

outra metade da primeira parte eacute formada por filoacutesofos da Escola neoplatocircnica ndash com

Plotino e Proclo entre seus principais representantes ndash seguidos por quatro seacuteries de

doutrinas singulares Tais seacuteries finais destacam-se das precedentes por contemplar

temas ligados a teologias natildeo cristatildes De fato as uacuteltimas teses do primeiro grupo

tratam da matemaacutetica pitagoacuterica e das doutrinas caldaicas hermeacuteticas e cabaliacutesticas

Cabe observar que embora aos autores aristoteacutelicos seja dedicado enquanto

conjunto um nuacutemero relativamente maior de teses o autor isolado ao qual satildeo

destinadas mais proposiccedilotildees eacute Proclo seguido pelas doutrinas cabaliacutesticas que

fecham o grupo15

O segundo grupo com as quinhentas proposiccedilotildees seguintes constitui a

primeira delineaccedilatildeo precisa de uma doutrina da pax unifica marcando a especulaccedilatildeo

original de Pico16 Essa seacuterie de teses denominadas secundum opinionem propriam

detinha um caraacuteter de novidade ao lanccedilar em debate inusitados campos de reflexatildeo

Distribuiacutedos entre onze sessotildees os temas dividem-se entre os denominados

ldquoparadoxais voltados a conciliar os pronunciamentos de Aristoacuteteles e Platatildeo seguidos

de outros doutos que se encontram em maior discoacuterdiardquo os ldquoem dissenso com a

filosofia correnterdquo17 os ldquoparadoxais que introduzem novas posiccedilotildees na filosofiardquo e os

teoloacutegicos ldquobastante diversos da comum formulaccedilatildeo dos teoacutelogosrdquo completam o

12 Na primeira parte da obra Pico mostra seu reconhecimento agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica das Escolas porquanto a

sequecircncia de autores eacute ordenada por sua filiaccedilatildeo doutrinaacuteria Natildeo satildeo inseridas citaccedilotildees originais dos autores escolhidos mas interpretaccedilotildees pessoais de alguns passos ou doutrinas a eles atribuiacutedos (e que Pico poderia ter recebido atraveacutes de outras fontes) De qualquer forma os conteuacutedos correspondem com maior ou menor exatidatildeo a informaccedilotildees que podem ser encontradas nos escritos daqueles autores (cf ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 195)

13 Apesar de Maimocircnides ndash o chamado Moyse ldquoegiacutepciordquo - ser um filoacutesofo sefardita Pico o inclui no grupo dos aacuterabes (ldquosecundum doctrinam Arabumrdquo) possivelmente em razatildeo de Maimocircnides ter vivido no Egito e no Marrocos

14 As teses referentes agrave tradiccedilatildeo peripateacutetica estatildeo assim distribuiacutedas 94 dedicadas a seis autores escolaacutesticos latinos 82 distribuiacutedas entre oito filoacutesofos orientais e 29 dedicadas a cinco filoacutesofos gregos que professam o Aristotelismo O total de 205 teses que agraciam os disciacutepulos do Liceu reflete o acolhimento dado agravequela Escola durante os seis anos a ela dedicados conforme testemunha a carta escrita a Ermolao Barbaro vista no Capiacutetulo II

15 Dentre o elevado nuacutemero de fontes mencionadas por Pico (gregas latinas hebraicas e aacuterabes) algumas permanecem natildeo identificadas ateacute esta data Uma grande parte delas inclusos os autores aacuterabes e hebreus encontra-se identificada na obra de Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies Temple 1998

16 Eacute praticamente consensual a qualificaccedilatildeo da segunda parte das Conclusiones como sendo a expressatildeo da originalidade de Pico Veja-se BIONDI 1995 p XVIII

17 Natildeo apenas nesse especiacutefico grupo de teses como em linhas gerais Pico reconhecia que suas proposiccedilotildees apresentavam-se em linha contraacuteria aos haacutebitos argumentativos tradicionais tanto em relaccedilatildeo ao estilo quanto ao conteuacutedo (BIONDI idem)

56

conjunto as teses platocircnicas matemaacuteticas oacuterficas maacutegicas e mais uma vez outras

tantas relacionadas agraves teologias dos caldeus e dos cabalistas18 Curiosamente

constam nesse grupo dez teses sobre as doutrinas de certo filoacutesofo aacuterabe de nome

Abucaten Avenan19 Nas teses ldquoparadoxais conciliantesrdquo estatildeo lanccediladas as bases de

seu projeto de conciliaccedilatildeo entre pensadores e escolas que professavam doutrinas

tantas vezes entendidas como divergentes como os escolaacutesticos Tomaacutes e Duns

Escoto ou os aacuterabes Averroacuteis e Avicena ndash e que Pico mostraria em debate serem

concordantes20

A distribuiccedilatildeo estrutural das proposiccedilotildees certamente natildeo eacute ocasional

Tomando-se a primeira seacuterie de quatrocentas teses observa-se a seguinte sequecircncia

os pensadores aristoteacutelicos os neoplatocircnicos a teologia pitagoacuterica a caldaica a

hermeacutetica a cabalista Natildeo seria errado sugerir que essa ordenaccedilatildeo segue a

cronologia dos estudos percorridos por Pico21 Entretanto tal hipoacutetese natildeo explicaria

a colocaccedilatildeo da Cabala ao final de tudo visto que os estudos cabaliacutesticos iniciaram

muito provavelmente em periacuteodo anterior a alguns dentre aqueles Uma segunda

hipoacutetese pode ser proposta a partir do reconhecimento da existecircncia de uma

aproximaccedilatildeo gradual a filosofias relacionadas agrave Revelaccedilatildeo Ou seja a divisatildeo temaacutetica

responde a uma ordem sucessoacuteria que partindo do niacutevel aristoteacutelico-teoreacutetico vai ao

encontro das escolas neoplatocircnicas ndash em que a presenccedila de abstraccedilotildees metafiacutesicas eacute

maior de que no grupo anterior ndash e alcanccedila finalmente as uacuteltimas escolas de

proeminente conteuacutedo teoloacutegico-soterioloacutegico A hipoacutetese de uma gradativa

aproximaccedilatildeo a tais temaacuteticas se adequa ademais agrave criaccedilatildeo de condiccedilotildees

preparatoacuterias para receber o segundo grupo de teses aquelas tecidas ldquosegundo a

opiniatildeo do autorrdquo Essas iniciando-se com resoluccedilotildees e conciliaccedilotildees de acircmbito geral

filosoacutefico passam por questotildees de ordem teoloacutegica platocircnica e matemaacutetica

concluindo-se com aquele que seria um corpo uacutenico formado pelas doutrinas

misterioloacutegicas quais sejam o Zoroastrismo o Orfismo a Magia e a Cabala que

mais uma vez da mesma forma significativa como na primeira parte fecha a segunda

parte da obra

Nesse sentido a sequecircncia das proposiccedilotildees aponta para a existecircncia de uma

intencional organizaccedilatildeo ndash natildeo informada por Pico tampouco esclarecida por seus

comentadores Malgrado a escassez de informaccedilotildees expressas tais indiacutecios satildeo

18 ldquoConclusiones numero quingentae secundum opinionem propriam quae denaria diuisione diuiduntur in

Conclusiones Physicas Theologicas Platonicas Mathematicas Paradoxas dogmatizantes Paradoxas conciliantes Caldaicas Orphicas Magicas et Cabalisticasrdquo

19 Pico presume que Abucaten Avenan seja o autor de uma das mais ceacutelebres obras de cunho neoplatocircnico da filosofia medieval o Liber de Causis obra que Pico teria facilmente lido na versatildeo latina realizada por Gerardo de Cremona em torno a 1175 A questatildeo da identificaccedilatildeo desse autor que se manteve por muito tempo obscura foi talvez resolvida em 1998 quando se encontrou na lista de tradutores aacuterabes-islacircmicos presentes no grupo de al-Kindi (Bagdaacute seacuteculo IX ) fornecida no Cataacutelogo (Fihrist) do biblioacutegrafo aacuterabe medieval al-Nadim (m 987) o possiacutevel nome do personagem em questatildeo tratar-se-ia de Zaruba al-Nagravelsquoimi al-Himsi autor aacuterabe cristatildeo vivido no Iraque por volta do ano 850 (cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 188)

20 Oratio p147 ldquoAddidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo

21 Conforme foi visto no capiacutetulo anterior Pico iniciou seus estudos pelas portas das universidades de Paacutedua Pavia e Ferrara nuacutecleos aristoteacutelicos apenas mais tarde aproximou-se do Platonismo e ainda depois atraveacutes da influecircncia de Ficino aproximou-se ao estudo de Hermes no nuacutecleo de Florenccedila

57

confirmados pelo proacuteprio quando poucos meses apoacutes a publicaccedilatildeo das Conclusiones

para justificar-se da acusaccedilatildeo de que seu trabalho representava um amontoado

caoacutetico de enunciados o reacuteu faria menccedilatildeo em sua Apologia22 agrave existecircncia de uma

ldquoocculta concatenatiordquo que traria significado e unidade agraves Teses23 A revelaccedilatildeo de

existecircncia de uma concordacircncia oculta nunca esclarecida pede que o leitor olhe de

forma discernitiva para o conteuacutedo das teses bem como para a quantidade de

enunciados atribuiacutedos a cada campo de conhecimento Verifica-se que mesclados aos

assuntos que passam por conceituaccedilotildees de fiacutesica astronomia biologia ontologia e

matemaacutetica firma-se uma prevalecircncia de determinados temas que se interligam

mais do que uma terccedila parte da totalidade das teses encontra-se distribuiacuteda entre

questotildees pertinentes agrave alma humana e questotildees relacionadas ao processo hieraacuterquico

do cosmo ndash parte dessas dedicadas agrave astrologia de ordem esoteacuterica Ademais uma

fraccedilatildeo relevante das teses trata de questotildees teoloacutegicas Esses temas concorrem a

compor uma importante faceta do pensamento piquiano e como seraacute visto no uacuteltimo

toacutepico integram os nuacutecleos das doutrinas misterioloacutegicas abordadas por Pico sendo

a possiacutevel chave da secreta conexatildeo sinalizada

Embora natildeo caiba aqui a anaacutelise individual de cada Conclusio24 uma pequena

amostra de cada um dos dois primeiros temas acima mencionados eacute benvinda para

retratar o panorama geral das Conclusiones O terceiro tema referente agrave Teologia

seraacute abordado no toacutepico seguinte Dentre as 900 teses uma quantidade miacutenima25 de

167 satildeo dedicadas agraves questotildees relacionadas agrave Alma ndash universal humana e suas inter-

relaccedilotildees ndash nas especiacuteficas nomenclaturas e subdivisotildees que recebe como Intelecto

Agente Intelecto Possiacutevel ou Mente26 Eacute o caso das natildeo poucas proposiccedilotildees filosoacuteficas

pertinentes ao processo dialeacutetico que se realiza dentro de um cenaacuterio epistemoloacutegico

22 A Apologia foi o texto escrito imediatamente apoacutes a condenaccedilatildeo das Teses preparado por Pico para defender-

se das acusaccedilotildees perante a comissatildeo romana Nela satildeo apresentadas extensas confutaccedilotildees acerca de cada uma das 13 teses inicialmente condenadas que Pico reformula em um total de 45 Vejam-se detalhes na fundamental organizaccedilatildeo de Paolo Edoardo FORNACIARI (Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze 2010) A Apologia firma-se como ldquoum documento exemplar que anuncia a grande reviravolta intelectual da Idade Modernardquo de acordo com Giulio BUSI que assim narra ldquoFu dunque nel mese di aprile 1487 che il Conte della Mirandola scrisse di getto in latino un testo appassionato difficile a tratti insolente con cui voleva mettere fine una volta per tutte alle accuse e insinuazioni sul suo conto Nacque cosigrave lApologia una delle creazioni piugrave significative dellintero Rinascimentordquo (Pico fede ragione eInquisizione in ldquoIl Sole -24 Orerdquo 28082018)

23 PICO Apologia fol235 ldquoin omnibus meis conclusionibus semper occulta quaedam est concatenatiordquo 24 O esforccedilo hercuacuteleo foi realizado por Stephan Farmer que apresenta ateacute o momento presente a mais completa

ediccedilatildeo comentada das novecentas teses em seu Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) de 1998 Em termos de ediccedilotildees criacuteticas das Conclusiones existem outras duas obras entre as publicaccedilotildees modernas atuais a realizada por Bohdan Kieszkowski em 1973 baseada no manuscrito de Erlangen (que segundo Farmer parece conter vaacuterios erros) e a publicada por Albano Biondi em 1995 acompanhada de traduccedilatildeo italiana (a primeira em quinhentos anos) Essa se baseia no manuscrito de Erlangen e na editio princeps contraposto aos manuscritos de Viena e de Mocircnaco (cf BIONDI p3) tratando-se da ediccedilatildeo aqui majoritariamente empregada para as traduccedilotildees das citaccedilotildees A ediccedilatildeo de Farmer acima mencionada baseia-se na verificaccedilatildeo de duas coacutepias da editio princeps presentes na British Library de Londres e na Biblioteca Apostoacutelica Vaticana em Roma Os detalhes acerca das trecircs ediccedilotildees satildeo comentados na obra de FARMER (1998 pp186-188)

25 Trata-se de um valor miacutenimo possivelmente sendo de ordem maior A obscuridade de certas proposiccedilotildees natildeo permite sequer sua classificaccedilatildeo temaacutetica

26 Nas teses ldquosegundo opiniatildeo dos platocircnicosrdquo conclusio nr 19 (ed Biondi II p 97) o proacuteprio Pico esclarece que a parte racional da alma que ele chama de ldquoIntelecto Possiacutevel seguindo os peripateacuteticosrdquo eacute aquela capaz de operar ldquosem conjunccedilotildees com os produtos da fantasiardquo

58

como se vecirc em algumas das asserccedilotildees extraiacutedas do Aristotelismo ndash grego e aacuterabe ndash

do Neoplatonismo e da Matemaacutetica27

Quando Aristoacuteteles sustenta em Metafisica IX que as

realidades separadas e divinas satildeo por noacutes totalmente

conhecidas ou totalmente ignoradas deve ser entendido tratar-

se daquele conhecimento pertinente agravequeles que jaacute alcanccedilaram

a primeira atuaccedilatildeo do intelecto28

(Conclusio secundum Alexandrum 5)

Felicidade uacuteltima do homem eacute a contiguidade entre intelecto

agente e intelecto possiacutevel do qual esse se faz forma29

(Conclusio secundum Auenroen 3)

Felicidade uacuteltima do homem eacute quando o nosso intelecto

particular se conjuga completamente com o intelecto total e

primordial30 (Conclusio secundum Plotinum 7)

Como os objetos da matemaacutetica se assumidos absolutamente

natildeo completam em nada o intelecto se assumidos como

imagens das realidades superiores nos conduzem pela matildeo

imediatamente para a especulaccedilatildeo dos Inteligiacuteveis31

(Conclusio de mathematicis 4)

Ainda compondo as questotildees concernentes agrave Alma verifica-se que um nuacutemero

substancial de asserccedilotildees eacute reservado para tratar em linguagem teoloacutegica ou filosoacutefica

do tema da Queda ou distinccedilatildeo de um princiacutepio de unidade e de seu consequente

retorno agravequele estado de acordo com cada Escola Os exemplos abaixo satildeo tomados

de teses referentes ao Peripatetismo grego ao Neoplatonismo e ao misticismo

hebraico

27 A classificaccedilatildeo das teses segue a formataccedilatildeo estabelecida por Albano Biondi (Conclusiones Nongentae Le

novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995) que efetua uma divisatildeo conforme grupos doutrinaacuterios A traduccedilatildeo das teses para o portuguecircs eacute de nossa responsabilidade tendo sido utilizada como guia a ediccedilatildeo de Biondi

28 PICO Concl (I) III IV 5 (p34) ldquoCum dicit Aristoteles nono Metaphysicae separata et diuina aut totaliter scriri a nobis aut totaliter ignorari intelligendum est de ea cognitione quae his contigit qui iam ad summam intellectus actuationem perueneruntrdquo A ediccedilatildeo de FARMER apresenta diferente posiccedilatildeo das teses a quinta de Alexandre de Afrodiacutesia em BIONDI corresponde agrave sexta de FARMER

29 Concl (I) II I 3 (p20) ldquoFelicitas ultima hominis est cum continatur intellectus agens possibili ut forma quam continuationemrdquo Segundo Stephan FARMER o problema da ldquounidade do intelectordquo colocado por Averroacuteis nasce sobre o comentaacuterio do De Anima 35 provavelmente segundo o autor o texto aristoteacutelico mais debatido entre os escolaacutesticos medievais (1998 np 252)

30 Concl (I) IV I 7 (p36) ldquoFelicitas hominis ultima est cum particularis intellectus noster total primoque intellectui plene coniungiturrdquo Provavelmente a concepccedilatildeo eacute extraiacuteda de Eneacuteadas I4 embora colocada com palavras de Pico O Autor elaborou essas teses seis anos antes de Ficino publicar a sua traduccedilatildeo das Eneacuteadas ndash que o proacuteprio Pico o havia incitado a realizar em 1484 ndash fato que apoia a hipoacutetese de que Pico tenha sido o primeiro filoacutesofo em seacuteculos a debater publicamente aquelas opiniotildees (FARMER ibid np 296-298)

31 Concl (II) VII 4 (p106) ldquoSicut subiecta mathematicorum si absolute accipiantur intellectum nihil perficiunt ita si ut imagines accipiantur superiorum immediate nos ad intelligibilium speculationem manu ducuntrdquo

59

Creio que o intelecto agente que apenas ilumina seja em

Temiacutestio a mesma coisa que na Cabala eacute Metraton32

(Conclusio secundum Themistium 2)

Natildeo toda descende a alma quando descende33

(Conclusio secundum Plotinum 2)

O intelecto agente natildeo eacute outra coisa que a parte da alma que

permanece no alto e natildeo participa da Queda34

(Conclusio secundum Adelandum Arabem 1)35

Quando a alma teraacute compreendido tudo aquilo que poderaacute

compreender e se uniraacute agrave alma superior se despiraacute de suas

vestes terrenas se extirparaacute de seu lugar e se conjugaraacute com o

divino36 (Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum

hebraeorum 44)

Outro grupo temaacutetico pode ser delineado a partir das teses que abordam

questotildees relacionadas a teorias de organizaccedilatildeo do cosmo verificadas em quantidade

proeminente e de forma mais especiacutefica do processo de gradaccedilatildeo dentro do desenho

universal Tal tema encontra representaccedilatildeo entre outras doutrinas na escolaacutestica e

na neoplatocircnica bem como em todas as misterioloacutegicas mencionadas por Pico

(tratadas na parte final)

As processotildees nas realidades divinas se distinguem segundo

intelecto e vontade37

(Conclusio secundum Henricum Gandauensem 3)

O artiacutefice ou construtor do mundo sensiacutevel eacute o seacutetimo da

hierarquia intelectual38 (Conclusio secundum Jamblichum 2)

32 Concl (I) III V 2 (p34) ldquoIntellectus agens illuminans tantum credo sit allud apud Themistium quod est

Metraton in Cabalardquo FARMER (p294) comenta que Pico transforma o Metraton cabaliacutestico em princiacutepio filosoacutefico

33 Concl (I) IV I 2 (p36) ldquoNon tota descendit anima quum descenditrdquo Segundo FARMER os argumentos mais similares da proposiccedilatildeo encontram-se em Eneacuteadas IV81 ss (opcit np297)

34 Concl (I) IV II 1 (p36) ldquoIntellectus agens nicbil est aliud quam pars animae quae sursum manet et non caditrdquo

35 Adelando Aacuterabe eacute na verdade Adelardo di Bath (cf FORNACIARI 2010 p LXIV) 36 Concl (I) IX 44 (p60) ldquoCum anima comprehenderit quidquid poterit comprehendere et coniungetur

animae superiori expoliabit indumentum terrenum a se et exstirpabitur de loco suo et coniungetur cum diuinitaterdquo

37 Concl (I) IV 3 (p16) ldquoProcessiones distinguuntur in diuinis penes intellectum et voluntatemrdquo A biblioteca de Pico continha as principais obras de Henrique de Gand ndash Summa Theologica Quodlibeta e uma compilaccedilatildeo de seus escritos (Pearl KIBRE The library of Pico della Mirandola 1936)

38 Concl (I) IV IV 2 (p40) ldquoOpifex sensibilis mundi septimus est hierarchiae intellectualisrdquo Muitas das conclusiones atribuiacutedas a Jacircmblico foram extraiacutedas do comentaacuterio de Proclo ao Timeu que preserva fragmentos do comentaacuterio perdido de Jacircmblico para esse diaacutelogo Outras tantas foram extraiacutedas do primeiro livro do De Mysteriis parte do qual Ficino traduziu para o latim dois anos apoacutes Pico ter publicado as 900 teses (FARMER np 310)

60

A particular temaacutetica da continuidade hieraacuterquica do real encontra em Proclo

de Liacutecia seu principal emissaacuterio Agraves doutrinas daquele que representava o uacuteltimo anel

da cadeia dos platocircnicos Pico destina 55 teses que sintetizam alguns conteuacutedos que

abrangem natildeo somente as processotildees como complexas questotildees astroloacutegicas Apoacutes

ter realizado uma preliminar carreira filosoacutefica debruccedilado sobre as obras de

Aristoacuteteles o neoplatocircnico instalara-se sobre a filosofia hieraacutetica e teuacutergica39 passos

similares aos que Pico agora seguia Em relaccedilatildeo ao visiacutevel realce que lhe foi deferido

e como bem observa Albano Biondi esse ldquoeacute um caso em que a quantidade demonstra

adequadamente a relevacircncia atribuiacuteda a um estilo de pensamentordquo40

Os deuses intelectuais trazem os elementos unificantes do Uno

primevo as substacircncias das realidades inteligiacuteveis as vidas

(perfeitas compreensivas e generantes do divino) das

realidades inteligiacuteveis e intelectuais a propriedade intelectual

de si mesmos41 (Conclusio secundum Proclum 10)

Apoacutes a setemplicidade intelectual devem ser colocados

imediatamente os deuses supramundanos natildeo ligados a partes

do universo e natildeo coordenaacuteveis a este mundo que esses aliaacutes

abraccedilam por cada parte segundo causa42

(Conclusio secundum Proclum 20)

Juacutepiter Netuno e Plutatildeo dividindo-se o reino de Saturno natildeo

herdam o reino de Saturno se natildeo por mediaccedilatildeo do fundador

Juacutepiter43 (Conclusio secundum Proclum 26)

Olhando para a quaternidade do ser por si animado o demiurgo

fabrica as quatro partes principais do mundo44

(Conclusio secundum Proclum 39)

39 Proclo efetivamente comentou os versos atribuiacutedos a Orfeu ndash em cujos moldes compunha hinos ndash e os

Oraacuteculos caldeus nos quais via a essecircncia de toda a sabedoria (cf BIONDI 1995 pXXV) As teses referentes a Proclo agrave exceccedilatildeo de algumas foram extraiacutedas de sua obra-prima Theologia Platonica Pico aparentemente utilizou o texto grego (FARMER opcit npp314-315 318)

40 BIONDI opcit pXXV Proclo que havia sido esquecido apoacutes o fechamento da Academia em 529 dC ressurgindo uma primeira vez no ciacuterculo de Miguel Psello em Bizacircncio renascia agora em Florenccedila pelas matildeos de Giovanni Pico

41 Concl IVV 10 (p44) ldquoIntellectuales dii uniones habent ab uno primo substantiales ab intelligibilibus uitas perfectas et contentiuas generativas diuinorum ab intelligibilus et intellectualibus intellectuales proprietatem a se ipsisrdquo

42 Concl IVV 20 (p44) ldquoPost intellectualem hebodmadam ordinati sunt immediate supermundani Dei a partibus uniuersi exempti et incoordinabiles ad hunc mundum et secundum causam eum undique circumplectentesrdquo

43 Concl (I) IV V 26 (p46) ldquoIupiter Saturnus et Pluto Saturni regnum partientes a Saturno regnum non accipiunt nisi per medium conditoris Iouisrdquo Conforme Theologia Platonica 6 Trata-se dos trecircs liacutederes henads da ordem procliana de deuses supramundanos (FARMER np324)

44 Acerca da participaccedilatildeo do demiurgo no processo emanatoacuterio tratam ainda as teses referentes a Proclo nrs 40 41 e 42 Concl IVV 39 (p48) ldquoOpifex ad quatemitatem respiciens per se animalis quatuor fabricat partes principales mundirdquo

61

Dentro do quadro cosmoloacutegico Pico anuncia ainda em meio agraves teses e atraveacutes

daquele que se mostra um de seus autores mais estimados a existecircncia dos trecircs

Mundos cujas concepccedilotildees seriam esclarecidas devidamente no Heptaplus

Por lsquolugar supracelestersquo devemos entender aquilo que da

segunda triacuteade eacute mais inteligiacutevel que intelectual por

lsquoconcavidade sub-celestersquo aquilo que eacute mais intelectual que

inteligiacutevel por lsquoceacuteursquo aquilo que participa igualmente de uma e

de outra realidade45 (Conclusio secundum Proclum 52)

e que atraveacutes de outras Escolas encontram analogia com os corpos do homem

Atraveacutes do segredo do raio direto refletido e refratado na

ciecircncia da perspectiva somos informados acerca da triacuteplice

natureza intelectual animal e corporal46

(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 7)

A temaacutetica astroloacutegica tema que merece atenccedilatildeo por encontrar-se distribuiacutedo

entre vaacuterias seacuteries ocupa um espaccedilo natildeo pouco significativo47 Sua presenccedila na

maior parte das vezes expressa em linguagem velada contribui a firmar a

conceituaccedilatildeo da ordenaccedilatildeo universal tecida por Pico Eacute verificaacutevel particularmente

entre os representantes neoplatocircnicos e em conteuacutedo mais enigmaacutetico nas doutrinas

que fecham o segundo grupo de teses

Cada alma que participa de intelecto vulcacircnico eacute semeada na

Lua48 (Conclusio secundum Porphyrium 4)

Assim como Apolo eacute intelecto solar Ascleacutepio eacute intelecto lunar49

(Conclusio secundum Porphyrium 7)

Nos oito corpos do ceacuteu os elementos se encontram duas vezes

em modo celeste os encontraraacute aquele que proceder em ordem

retroacutegrada agravequela dupla numeraccedilatildeo de Binaacute50

(Conclusio secundum Jamblichum 4)

45 Concl IVV 52 (p50) ldquoPer supercoelestem locum habemus intelligere quod de secunda trinitate plus est

intelligibile quam intellectuale per subcoelestem concauitatem quod magis intellectuale quam intelligibile per coelum id quod aeque utroque participetrdquo Segundo Theologia Platonica 4

46 Concl (I) V 7 (p52) ldquoPer secretum radii recti reflexi et refracti in scientia perspectiuae triplicis naturae admonemur intellectualis animalis et corporalisrdquo

47 Trata-se de 37 teses que abordam de forma expressa a Astrologia A quantidade que pode natildeo parecer relevante eacute maior do que por exemplo o nuacutemero de teses atribuiacutedas a Tomaacutes de Aquino agrave matemaacutetica pitagoacuterica ou ao Orfismo entre alguns exemplos

48 Concl (I) IVIII 4 (p38) ldquoOmnia anima participans vulcanio intellectu seminatur in lunardquo 49 Concl IVIII 7 (p38) ldquoSicut Apollo est intellectus solaris ita Aesculapius est intellectus lunarisrdquo 50 Concl (I) IVIV 4 (p40) ldquoElementa in octo coeli corporibus coelesti modo bis inueniuntur quae quis

inueniet si retrogrado ordine in illa bina numeratione processeritrdquo De acordo com FARMER (opcit np311) essa proposiccedilatildeo eacute aparentemente inspirada no De mysteriis I17 A referecircncia agrave Binaacute ndash terceira dentre as Sefirot cabaliacutesticas ou numerationes correspondente agrave ldquoInteligecircnciardquo - que tem origens no Medioevo tardio natildeo poderia ser de Jacircmblico Pico provavelmente como ainda infere Farmer pretende derivar os ldquodois modos celestiaisrdquo dos

62

Provavelmente natildeo por coincidecircncia logo em seguida a Proclo satildeo tratadas as

doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do esoterismo representadas nas teses

ldquosegundo a matemaacutetica pitagoacutericardquo ldquosegundo a opiniatildeo dos teoacutelogos caldeusrdquo

ldquosegundo a doutrina de Mercuacuterio Trismegistordquo51 e ldquosegundo as doutrinas dos saacutebios

da Cabalardquo52 Pela ordenaccedilatildeo dada natildeo seria incorreto deduzir que Pico pretendesse

confirmar a afinidade entre o misticismo do uacuteltimo dos platocircnicos e as doutrinas que

se lhe seguem De fato nas teses hermeacuteticas e caldaicas Pico descreve pontual e

sinteticamente as diversas estruturas metafiacutesicas do real que embora natildeo expresso

se analogam com as neoplatocircnicas Por vezes as aacutereas do saber satildeo de duvidosa

classificaccedilatildeo dado seu caraacuteter de difiacutecil decifraccedilatildeo ou em razatildeo da presenccedila de dois

ou mais campos de conhecimento que se mesclam Eacute o caso da aacuterea teoloacutegica da qual

123 teses podem ser discernidas de forma inequiacutevoca mas cuja presenccedila se encontra

entrelaccedilada entre outros tantos conteuacutedos de forma obliacutequa ou obscura dificultando

sua classificaccedilatildeo como no exemplo abaixo

A ordenada seacuterie dos inteligiacuteveis natildeo reside na coordenada seacuterie

intelectual como sustenta Amasis o Egiacutepcio Essa eacute em

verdade acima de cada hierarquia intelectual no abismo da

unidade primaacuteria e abscocircndita aleacutem de qualquer possibilidade

de participaccedilatildeo sob a neacutevoa da escuridatildeo originaacuteria53

(Conclusio secundum Chaldeorum Theologorum 5)

A discussatildeo conceitual das teses apresentadas mesmo em seu nuacutemero

reduzido traria natildeo apenas prolixidade ao texto como um distanciamento

desnecessaacuterio da trajetoacuteria traccedilada A amostra dos poucos exemplos tem por

finalidade apontar para a prevalecircncia de determinados conteuacutedos e mostrar na

continuidade que os especiacuteficos temas indicados encontram-se natildeo por acaso

especialmente presentes nas mateacuterias esoteacutericas contidas na segunda parte da obra

Uma etapa pois necessaacuteria para alcanccedilarmos nosso intento final Entre as dispersas

teses que parecem natildeo se relacionar encontram-se elos que indicam a existecircncia de

um projeto de composiccedilatildeo que seleciona dentro de cada sistema doutrinal temas

caracteriacutesticos que confirmam a oculta concatenaccedilatildeo anunciada pelo autor Outros

fatores indicativos de tal concatenaccedilatildeo poderatildeo ser verificados de forma mais clara a

partir do segundo grupo de teses aquelas elaboradas ldquosegundo a opiniatildeo do autorrdquo a

serem verificados no toacutepico final deste Capiacutetulo Antes seratildeo vistas as teses teoloacutegicas

condenadas pela Igreja que abrem espaccedilo para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre Filosofia

elementos de Binaacute utilizando-se do meacutetodo de revolutio alphabetariae ou de alguma forma de gematria (concepccedilotildees a serem vistas no Capiacutetulo V)

51 Pico utiliza a versatildeo latina do nome de Hermes Trismegisto 52 Conclusiones [] ldquosecundum Mathematicam Pythagoraerdquo ldquosecundum opinionem Chaldeorum

Theologorumrdquo ldquosecundum priscam doctrinam Mercurii Trismegisti Aegyptiirdquo ldquosecundum doctrinam sapientum hebraeorum Cabalistarumrdquo

53 Concl (I) VII 5 (p54) ldquoCoordinatio intelligibilis non est in intellectuali coordination ut dixit Amasis Aegyptius sed est super omnem intellectualem hierarchiam in abysso primo unitatis et sub caligine primarum tenebrarum imparticipaliter absconditardquo Farmer ajuiacuteza que as proposiccedilotildees caldaicas tenham sido extraiacutedas de fontes neoplatocircnicas embora Pico afirmasse ter em sua posse manuscritos originais caldeus (np338)

63

e Teologia na estruturaccedilatildeo do pensamento de Pico reflexatildeo que serviraacute de preacircmbulo

natildeo apenas para o uacuteltimo item como particularmente para os Capiacutetulos VI e VII

2 Religiatildeo ou Filosofia

Em Veneza a ediccedilatildeo das Conclusiones foi publicamente queimada por 14 dias

consecutivos54 esse foi apenas o iniacutecio dos graves conflitos que Pico viria a ter com a

Igreja e que culminariam em sua ordem de julgamento pela Inquisiccedilatildeo ndash seguidos da

fuga prisatildeo parcial clemecircncia papal (sem absolviccedilatildeo) e finalmente a voluntaacuteria (e

vigiada) reclusatildeo ateacute quase o uacuteltimo ano de sua vida55 Afinal o que havia de ldquomalrdquo

nas Conclusiones Aos olhos da Cuacuteria Pontifiacutecia natildeo eram poucas as razotildees para

ensejar a proibiccedilatildeo daquela composiccedilatildeo que recolhia suficientes fatores para levar os

juiacutezes eclesiaacutesticos a se colocarem de sobreaviso

a) tanto a quantidade de inteacuterpretes aristoteacutelicos presentes entre as teses

quanto o estilo parisiense evocavam o racionalismo hereacutetico averroiacutesta e mais grave

alessandrino que se opunha agraves ideias humanist0-platocircnicas partilhadas pela

Igreja56

b) a menccedilatildeo a tradiccedilotildees pagatildes que traziam certos temas natildeo aceitos pelo

Cristianismo gerava uma situaccedilatildeo incocircmoda

Todos os saacutebios entre Indianos Persas Egiacutepcios e Caldeus

acreditaram na transmigraccedilatildeo das almas isto eacute na sua

passagem de um corpo a outro57

(Conclusio secundum Adelandum Arabem 8)

c) a menccedilatildeo a teologias natildeo comprovadamente divergentes como a pitagoacuterica

a oacuterfica e a hermeacutetica mas tambeacutem natildeo exatamente alinhadas com a doutrina cristatilde

54 Paolo Edoardo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p10 55 Graccedilas agraves descobertas feitas por Leacuteon Dorez em torno aos verbais das audiecircncias tidas pela Comissatildeo

Pontifiacutecia referentes agraves Teses de Pico eacute possiacutevel conhecer as condiccedilotildees que levaram agrave sua suspensatildeo e agrave supressatildeo do planejado debate (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole em France 1485-88 18971976) Veja-se tambeacutem para uma reconstruccedilatildeo pontual dos acontecimentos em torno ao julgamento eclesiaacutestico Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma 1965) ainda o item ldquoLe tappe del processo a Picordquo de FORNACIARI em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agrave Apologia lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 pp XIV-XXII

56 Pico apresentava a mesma necessidade de ldquoentenderrdquo o divino ultrapassando o veacuteu da Revelaccedilatildeo que outrora havia acometido Averroacuteis cujas doutrinas jaacute haviam sido condenadas ndash como a concepccedilatildeo de que apenas o Intelecto uacutenico poderia ser considerado imortal Os seguidores de Alessandro de Afrodiacutesia postulavam a mortalidade do corpo juntamente com a mortalidade do intelecto considerando a alma como uma funccedilatildeo do organismo portanto ligada a ele e agrave sua extinccedilatildeo Os alessandrinos chegaram a reconhecer posteriormente a presenccedila de certa imortalidade da alma mas tratar-se-ia de um tipo de imortalidade impessoal natildeo condizente com o Cristianismo Para outras informaccedilotildees veja-se GARIN 2011 pp 32 ss 140 ss

57 Concl (I) IV II 8 (p38) ldquoTranscorporationem animarum crediderunt omnes sapientes Indorum Persarum Aegyptiorum et Chaldaeorumrdquo

64

constituiacutea uma questatildeo delicada A complexidade de certos temas mesclados a

questotildees teoloacutegicas deveria ser devidamente avaliada e autorizada pela Igreja

Quem conheceraacute a sucessatildeo 1 2 3 4 5 12 teraacute nas matildeos com

precisatildeo a distribuiccedilatildeo da Providecircncia58

(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 4)

d) a presenccedila de vinte e nove Conclusiones theologicae intituladas ldquodiversas

do modo comum dos teoacutelogosrdquo59 era por si soacute ousada e soava arrogante aos olhos da

Cuacuteria Romana Ademais o conteuacutedo das asserccedilotildees teoloacutegicas ndash que compotildeem a

maior parte das teses inicialmente condenadas ndash era ofensivo e de alto teor hereacutetico

e) a presenccedila de Conclusiones Magicae e de um grande nuacutemero de

Conclusiones Cabalisticae cujo conteuacutedo entre outras coisas tentava demonstrar a

existecircncia de um sentido oculto nas Escrituras natildeo poderia ser tolerada

A Comissatildeo romana inicialmente condenou treze teses quase todas extraiacutedas

das Conclusiones in Theologia secundum opinionem propriam em sua maior parte

foram julgadas como falsas errocircneas hereacuteticas ou escandalosas sendo uma ou mais

dessas qualificaccedilotildees conjuntas60 A leitura de algumas entre as teses condenadas pode

dar uma amostra da complexidade do debate em que Pico pretendia se envolver

Se se segue a doutrina comum acerca da possiacutevel encarnaccedilatildeo

[de Deus] em qualquer criatura o corpo de Cristo pode estar

presente sobre o altar segundo a verdade do sacramento da

Eucaristia sem a conversatildeo do patildeo no corpo de Cristo ou sem a

anulaccedilatildeo da substacircncia do patildeo E isso seja dito em termos de

possibilidade natildeo de realidade61 (Conclusio in Theologia 2)

58 Concl (I) VI 4 (p52) ldquoQui I II III IV V XII ordines cognouerit prouidentiae distributionem exacte

tenebitrdquo 59 Conclusiones in Theologia numero XXIX secundum opinionem propriam a communi modo dicendi

Theologorum satis diuersam 60 No breve de Inocecircncio VIII de 20 de fevereiro de 1487 se lecirc ldquo[] segundo o juiacutezo de homens doutiacutessimos

algumas entre aquelas [teses] por efeito de sua formulaccedilatildeo desviam do reto caminho da ortodoxia algumas de tal forma obscuras confusas e intrincadas natildeo poderiam absolutamente ser apresentadas em puacuteblica discussatildeo sem preacutevios esclarecimentos outras satildeo tatildeo paradoxais que poderiam ser proibidas pela Igreja pelo sabor de heresia que emanam assim que se fossem apresentadas em debate puacuteblico poderiam engendrar escacircndalo entre as pessoas incultas e inexperientesrdquo (DOREZ-THUASNE opcit 1976 pp114-115)

61 Concl (II) IV 2 (p88) ldquoSi teneatur communis via de possibilitate suppositationis in respectu ad quamcumque creaturam dico quod sine conuersione panis in corpus Christi uel paneitatis annichilatione potest fieri ut in altari sit corpus Christi secundum veritatem sacramenti Eucharistiae quod sit dictum loquendo de possibili non de sic esserdquo De acordo com FARMER (opcit np 422) muitas das questotildees implicadas nas teses condenadas satildeo derivadas da vasta tradiccedilatildeo de comentaacuterios medievais encontrados nas Sentenccedilas de Petrus Lombardus nas quais Pico se fundamentou As principais oposiccedilotildees das teses teoloacutegicas satildeo endereccediladas a escritos de Tomaacutes de Aquino (FARMER idem) Outros comentaacuterios acerca das teses teoloacutegicas podem ser encontrados em Jader JACOBELLI Pico della Mirandola Longanesi 1986 pp 96-98

65

As palavras ldquoeste eacute o meu corpordquo e as demais pronunciadas

durante a Consagraccedilatildeo devem ser interpretadas materialmente

e natildeo indicativamente62 (Conclusio in Theologia 10)

Natildeo se deve adorar nem a cruz de Cristo nem outra imagem

alguma segundo adoraccedilatildeo de latria tampouco na forma como

a entende Tomaacutes63 (Conclusio in Theologia 14)

Um pecado mortal finito no tempo natildeo pode ser punido com

uma pena infinita segundo o tempo mas apenas com uma pena

temporalmente finita64 (Conclusio in Theologia 20)

Eacute mais racional acreditar que Oriacutegenes esteja salvo de que o

considerar condenado65 (Conclusio in Theologia 29)

Natildeo haacute ciecircncia que nos assegure mais sobre a divindade de

Cristo do que a Magia e a Cabala66 (Conclusio magica 9)

Como se vecirc satildeo todas proposiccedilotildees que discutem a Teologia cristatilde mas natildeo

apenas quase todas apresentam um conteuacutedo dificilmente compreensiacutevel ao crente

de pouca erudiccedilatildeo pois natildeo se referem a temas da ldquofeacute comumrdquo Pico sabia e tentara

advertir que suas afirmaccedilotildees deveriam ser examinadas e debatidas apenas entre os

sapientes da religiatildeo Contudo a partir da divulgaccedilatildeo das teses as prelazias

eclesiaacutesticas natildeo tardaram a se preocupar com as interpretaccedilotildees equivocadas que

aquelas declaraccedilotildees poderiam suscitar dentre ldquoos simplesrdquo podendo levar os fieacuteis a

uma confusatildeo em suas crenccedilas Natildeo se tratava apenas de discutir assuntos que a

Igreja considerava natildeo ser de alccedilada de um filoacutesofo Pico proclamava que ningueacutem

deve ser obrigado a crer se natildeo for persuadido defendia a salvaccedilatildeo de Oriacutegenes

62 Concl (II) IV 10 (p90) ldquoIlia verba Hoc est corpus etc quae in consecracione dicuntur materialiter

tenentur non significatiuerdquo Segundo FARMER (np427) Pico faz uso da ldquoteoria da suposiccedilatildeordquo medieval tardia postular algo ldquomaterialmenterdquo seria equivalente ao uso moderno de ldquocolocar aspasrdquo em torno agravequilo enquanto que postular algo em ldquosentido indicativordquo seria propocirc-lo absolutamente A tese de Pico nesse sentido significaria que se a foacutermula da Eucaristia natildeo fosse colocada ldquomaterialmenterdquo entatildeo a sentenccedila ldquoeste eacute o meu corpordquo referir-se-ia ao corpo do sacerdote e natildeo ao de Cristo Ou na forma sintetizada por JACOBELLI (opcit pp 96-98) tomar as palavras ldquomaterialmenterdquo significa ldquocomo se as dissesse Cristordquo A hostilidade da comissatildeo para com Pico reflete-se no julgamento de que tal tese aparentemente inoacutecua fosse ldquoescandalosa e contraacuteria agrave opiniatildeo comum dos sagrados doutoresrdquo

63 Concl (II) IV 14 (p90) ldquoNec crux Christi nec ulla imago adoranda est adoratione latriae etiam eo modo quo ponit Thomasrdquo A ldquoadoraccedilatildeo de latriardquo significa a idolatria conforme JACOBELLI opcit p97

64 Concl (II) IV 20 (p92) ldquoPeccato mortali finite temporis non debetur poena infinita secundum tempus sed finita tantumrdquo Aqui segundo GARIN (2011 p142) Pico se baseia em Oriacutegenes e Agostinho para os quais seria ldquoimpossiacutevel e absurdordquo um mal que fosse todo mal

65 Concl (II) IV 29 (p92) ldquoRationabilius est credere Origenem esse saluum quam credere ipsum esse damnatumrdquo Em sua resposta oral agrave comissatildeo papal Pico alegou que desde que Oriacutegenes natildeo errou por ldquopertinecircncia de vontaderdquo seria mais provaacutevel e piedoso acreditar que ele estaria salvo (DOREZ-THUASNE opcit pp 124-25) A comissatildeo declarou que a tese de Pico ldquotinha sabor de heresiardquo uma vez que se opunha agrave determinaccedilatildeo da Igreja universal (ibid p130) A resposta de Pico relatada em sua Apologia ganhou consideraacutevel popularidade no seacuteculo XVI admirada pelos reformadores da Igreja em razatildeo dos limites que impunha agrave autoridade eclesiaacutestica Para Farmer (np435) havia um sentido pessoal na afirmaccedilatildeo de Pico de que Oriacutegenes natildeo fora condenado por suas heresias mas sim pela ldquogloacuteria da sua eloquecircncia e conhecimentordquo

66 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et cabalardquo

66

negava a eternidade das penas do Inferno colocava-se contra a adoraccedilatildeo da cruz e de

qualquer imagem A busca por uma coerecircncia dentro dos dogmas o levava aleacutem de

limites tacitamente estabelecidos pela ortodoxia catoacutelica natildeo lhe permitindo parar

nem diante dos Sacramentos ingressando em sutilezas teoloacutegicas pretendia

submeter agrave discussatildeo a proacutepria questatildeo da transubstanciaccedilatildeo67 Aleacutem da condenaccedilatildeo

das teses seu artiacutefice foi declarado ldquoiacutempiordquo ldquoheregerdquo ldquomagordquo ldquoismaelitardquo e ldquojudeurdquo

Natildeo sou mago natildeo sou judeu nem ismaelita nem herege

Venero Jesus e trago sobre o meu corpo a cruz de Jesus atraveacutes

do qual o mundo eacute para mim crucifixo e eu sou crucifixo ao

mundo68

As razotildees que nos levam a abordar teses de especiacutefico teor teoloacutegico-cristatildeo em

uma investigaccedilatildeo que trata do uso de paradigmas esoteacutericos satildeo duas

Primeiramente para evidenciar que o Pico que se aproxima a teologias natildeo-cristatildes

natildeo o faz como um investigador desprovido de fundamentos pertinentes agrave teologia de

sua feacute mas sim como algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em

segundo lugar a abordagem do material teoloacutegico permite a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-

razatildeo no pensamento piquiano necessaacuteria para o fechamento do uacuteltimo capiacutetulo Sob

tal prisma a citaccedilatildeo acima deve ser entendida como uma efetiva prova de feacute do autor

longe de uma tentativa de contemporizar com seus arguidores Por outro lado as

comprovaccedilotildees de certas atitudes poderiam lanccedilar duacutevidas sobre o fato a saber a

maior parte das posiccedilotildees contestadas nas Conclusiones foi mantida na Apologia em

clara confirmaccedilatildeo de suas opiniotildees salvo poucas modificaccedilotildees69 algumas passagens

da defesa tanto oral quanto escrita mostram a incontida irritaccedilatildeo do autor e por

vezes certo escaacuternio que tomaria ares de provocaccedilatildeo agrave Igreja70 o reiterado interesse

por conteuacutedos pertencentes a outras tradiccedilotildees teoloacutegicas e sobretudo o fato de

fechar as duas partes de sua obra com um conteuacutedo relacionado a uma doutrina

religiosa ldquoestrangeirardquo poderia sugerir que Pico natildeo mais encontrasse conforto nas

crenccedilas cristatildes

67 Observe-se que toda a discussatildeo contraacuteria agrave adoraccedilatildeo da cruz e de outros siacutembolos bem como a criacutetica

piquiana ao sacramento da Eucaristia ndash a disputa De Eucharistiae Sacramento ndash seriam dois dos grandes debates travados pelos Reformadores do seacuteculo XVI (cf GARIN 2011 pp 32-33)

68 PICO Apologia (p 8) ldquoNon magus non iudaeus sum non ismaelita non haereticus sed Iesum solo et Iesu crucem in corpore meo porto per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundordquo

69 Os detalhes completos da defesa de cada tese condenada podem ser vistos em Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (FORNACIARI 2010)

70 Pico escreve na Apologia (p 33) ldquoExaminando as questotildees condenadas como hereacuteticas pelos mestres de Roma faz-se necessaacuterio que eu mude minha linguagem devo falar o idioma dos baacuterbaros pois como diz jocosamente o proveacuterbio os balbuciantes apenas entendem outros balbuciantesrdquo Na argumentaccedilatildeo referente agrave terceira Quaestio concernente agrave conclusio in Theologia 14 que trata da adoraccedilatildeo da cruz e de imagens Pico chama de hereacuteticos seus examinadores utilizando um artifiacutecio retoacuterico bastante simples sendo a sua tese catoacutelica quem a condena postulando o contraacuterio eacute propriamente hereacutetico (ibid p 132) Em outra passagem replicando as suspeitas sobre a Cabala lecirc-se ldquosuspeitam [os interrogadores] que os cabalistas natildeo sejam seres humanos mas hircocervos [animal miacutetico da Antiguidade claacutessica metade bode metade veado] ou centauros ou qualquer coisa de todo monstruosardquo (ibid pp176-77) Na sua quinta quaestio que trata da defesa da tese maacutegica nr 9 Pico diz ter ouvido algueacutem dizer que ldquoCabalardquo fosse o nome de um inimigo de Cristo e natildeo de uma doutrina (ibid pp176-77) esse fato seria mais tarde relatado por Johannes Reuchlin que em 1516 em seu tratado Arte della Cabala refere que algueacutem teria perguntado durante o interrogatoacuterio de Pico o que era a ldquocabalardquo recebendo como resposta tratar-se de um lsquohomem peacuterfido e diaboacutelico que havia escrito contra Cristorsquo sendo seus disciacutepulos chamados cabalistasrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

67

No entanto e como assegura Eugenio Garin Pico era um ldquogrande espiacuterito

religiosordquo e toda sua obra filosoacutefica esteve voltada ao conhecimento de Deus e agrave sua

relaccedilatildeo com o homem e com a realidade71 O proacuteprio subtiacutetulo que abre as

Conclusiones secundum opinionem propriam eacute forte indicador da intenccedilatildeo

respeitosa do autor e de sua vontade de submeter as teses agrave discussatildeo natildeo de impocirc-

las ldquo[] em nenhuma delas afirmo qualquer posiccedilatildeo como assertiva ou provaacutevel

senatildeo na medida em que as retenha verdadeiras ou provaacuteveis a Sagrada Igreja

Romanardquo72 O fato desconfortaacutevel para o magisteacuterio eclesiaacutestico eacute que apesar de sua

autecircntica ldquopietasrdquo que se manifestava em ldquoatitudes de sacerdote em haacutebitos laicosrdquo

Pico permanecia alheio agraves formas exteriores e cerimoniais da experiecircncia religiosa o

repuacutedio pela adoraccedilatildeo de imagens natildeo era apenas escrito (conclusio IV 14) mas

factual Tratava-se de um fiel que praticava o Cristianismo ldquosem ritos e sem

exterioridadesrdquo de um cristatildeo que ldquointroduzia a criacutetica inclusive nos Evangelhosrdquo73

Eis a razatildeo para Pico salvar Oriacutegenes com evidente inocecircncia e aproveitando de

breve momento de liberdade juvenil74 porque o erro do teoacutelogo fora feito em boa feacute

ele se arrependera e sofrera o martiacuterio porque se a condenaccedilatildeo de Oriacutegenes fosse

aceita deveriam ser condenados os Evangelhos os Apoacutestolos e os Santos jaacute que

tantas de suas doutrinas a Igreja natildeo admitia porque natildeo eacute a Igreja mas apenas

Deus que condena Na inflamada defesa de Oriacutegenes Pico mostrava tanto seu caraacuteter

pio quanto a iacutentima rebeliatildeo que vivia em relaccedilatildeo agraves doutrinas eclesiaacutesticas75

O que Pico buscava de fato era uma via de saiacuteda que permitisse a conciliaccedilatildeo

entre as exigecircncias do pensamento loacutegico e os conteuacutedos da ldquorevelaccedilatildeordquo sempre

como parte de seu projeto maior de concoacuterdia Sua viacutevida feacute cristatilde poderia tecirc-lo

levado a se acomodar diante do fasciacutenio oferecido pelas liturgias da Ecclesia ou da

coerecircncia dialeacutetica de seus teoacutelogos mas sua inteligecircncia havia sido nutrida em

demasia com textos hermeacuteticos e cabaliacutesticos ndash que intimamente o haviam

convencido da existecircncia de outros significados na literatura sagrada76 Natildeo se

tratava portanto de uma negaccedilatildeo da experiecircncia cristatilde mas da necessidade de

71 Uma ampla discussatildeo acerca da religiosidade de Pico pode ser encontrada na obra de GARIN Giovanni Pico

della Mirandola 2011 especialmente entre as pp37-48 A relaccedilatildeo entre feacute e razatildeo religiosidade e filosofia tem recebido destaque entre vaacuterios comentadores

72 Abertura agraves Conclusiones secundum opinionem propriam [] in quibus omnibus nihil assertiue uel probabiliter pono nisi quatenus id uerum uel probabile iudicat sacrosancta Romana ecclesia et caput eius benemeritus Summus Pontifex Innocentius octauus cuius iuditio qui mentis suae iuducium non summittit mentem non habet

73 GARIN 2011 p48 A tendecircncia a dar uma nova interpretaccedilatildeo agrave experiecircncia religiosa e ao conhecimento das culturas orientais seria o preluacutedio agrave profunda renovaccedilatildeo religiosa que o mundo moderno assistiria Os orientalistas de rsquo500 a rsquo700 viram em Pico seu grande percursor Atraveacutes de Reuchlin o exemplo de Pico repercutiu nas novas correntes da criacutetica religiosa que confluiacuteram ou foram conexas ao tema reformador Natildeo apenas pelo fato de ser precursor dos estudos orientais mas tambeacutem por seu acento independente e sua livre pesquisa das Escrituras dos ritos dos cultos dos siacutembolos da Igreja e das teorias jaacute aceitas atitudes e estudos que refletiriam na Reforma (Cf GARIN 2011 pp 100 105 135)

74 A atribuiccedilatildeo eacute emprestada do tradutor Albano Biondi que considera as Conclusiones uma obra ldquotanto ingecircnua quanto sofisticadardquo como um diaacuterio de viagem de um intelectual que aproveita de uma ldquobreve liberdade sem condicionamentosrdquo (BIONDI opcit pXXXVIII)

75 A tese condenada referente ao cristatildeo Oriacutegenes (Concl II 4 29) eacute a uacutenica em que Pico pretende defender um autor e natildeo sua doutrina Sua defesa ocupa na Apologia um espaccedilo muito mais extenso que as restantes com exceccedilatildeo da defesa da Magia e da Cabala (cf Apologia ldquoDe salute Origenisrdquo) Oriacutegenes foi um dos poucos pensadores entre filoacutesofos e teoacutelogos cristatildeos a se interessar pelo conhecimento do pensamento e idioma hebreus Essa talvez tenha sido uma das causas do interesse de Pico por sua filosofia (GARIN 2011 pp141 ss)

76 Alberto AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola ndash Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo Introduccedilatildeo ao Heptaplus Carmagnola 1996 p IV

68

ampliaacute-la Era um jovem entusiasmado com as recentes descobertas que

comprovavam as verdades de sua religiatildeo como havia escrito em sua introduccedilatildeo agraves

Teses procurando esclarecer aos Padres seu interesse pelas doutrinas cabaliacutesticas

ldquoas coisas tiradas dos antigos misteacuterios hebreus aleguei como confirmaccedilatildeo da

sacrossanta e catoacutelica feacuterdquo77 De fato atraveacutes de vaacuterios dos enunciados presentes na

seacuterie das Conclusiones Cabalisticae Pico propunha para debate comprovaccedilotildees ldquonatildeo

tanto da religiatildeo mosaica quanto da cristatilderdquo que dizia ter encontrado nos livros

sagrados78

Aqui os misteacuterios da Trindade aqui a encarnaccedilatildeo do Verbo

aqui a divindade do Messias aqui quanto diz respeito ao

pecado original agrave expiaccedilatildeo deste por meio de Cristo quanto

concerne agrave Jerusaleacutem Celeste agrave queda dos democircnios aos coros

angeacutelicos agraves penas do purgatoacuterio e do inferno li as mesmas

coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio em

Jerocircnimo e em Agostinho79

O entendimento da relaccedilatildeo religiatildeo-filosofia na obra de Pico natildeo estaacute isento de

dificuldades podendo denotar certa ambivalecircncia A inflamada defesa de sua proacutepria

filiaccedilatildeo religiosa como emerge na citaccedilatildeo acima deu margem a leituras puramente

cristoloacutegicas de sua obra80 No entanto haacute que se observar que na construccedilatildeo do

pensamento piquiano a religiatildeo representava a manifestaccedilatildeo final de conceitos

alcanccedilados plenamente apenas atraveacutes da Filosofia A feacute constituiacutea nesse sentido ldquoo

aacutepice de um processo racional que nela se manifesta e se potencializardquo Seu mais puro

sentimento a esse respeito emerge da carta escrita a Aldo Manuzio em 1491

ldquoPhilosophia veritatem quaerit Theologia invenit Religio Possidetrdquo81 A primazia da

Religiatildeo colocada acima da Teologia e da Filosofia conforme expressa na carta deve

ser entendida em sua correta dimensatildeo pois em outras passagens da obra piquiana a

dicotomia razatildeo-feacute apresenta-se em ordem invertida com a submissatildeo da religiatildeo agrave

77 Oratio pp 155-157 Para detalhes referentes ao confronto entre Cristianismo e Cabala veja-se Chaim

WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge 1989 78 Oratio pp159-161 79 Algumas das assertivas contidas na citaccedilatildeo encontram-se espalhadas entre as teses cabaliacutesticas (II) nrs 5 6

7 8 14 15 16 24 30 34 e 38 Aleacutem de presente na Oratio (idem) a citaccedilatildeo em questatildeo pode ser lida na Apologia (p30) ldquoHos ego libros non mediocri impensa mihi cum comparassem summa diligentia indefessis laboribus cum perlegissem vidi in illis - testis est Deus - religionem non tam Mosaicam quam Christianam Ibi Trinitatis mysterium ibi Verbi incarnatio ibi Messiae divinitas ibi de peccato originali de illius per Christum expiatione de caelesti Hierusalem de casu daemonum de ordinibus angelorum de purgatoriis de inferorum poenis eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimusrdquo

80 Para alguns que partilham do mesmo entendimento de William CRAVEN (Giovanni Pico della Mirandola symbol of his age modern interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107) o uacutenico interesse de Pico pela Cabala estava em demonstrar a verdade cristatilde ndash embora haja muitas divergecircncias quanto a esse ponto Outros como Michael SUDDUT vatildeo aleacutem defendendo uma ldquoCristologiardquo na obra de Pico (Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion in Pico della Mirandola-New Essays 2008) Por outro vieacutes Pier Cesare BORI que natildeo coloca duacutevidas sobre a religiosidade cristatilde de Pico estaacute convencido de que a utilizaccedilatildeo da Cabala e outras teologias orientais satildeo ldquobem mais do que um expediente apologeacutetico a serviccedilo de um universalismo cristocecircntricordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)

81 ldquoA Filosofia procura a verdade a Teologia a encontra e a Religiatildeo a possuirdquo Assim escrevia Pico (Epiacutestola I 6) em 11 de fevereiro de 1491 ao humanista e editor de textos raros Aldo Manuzio ldquoAccinge ad philosophiam sed hac lege ut memineris nullam esse philosophiam quae a mysteriorum veritate nos avocet Philosophia veritatem quaerit theologia invenit religio possidetrdquo (Oratio np37)

69

filosofia eacute o caso da passagem ldquoseria necessaacuterio que a Filosofia iluminasse as mentesrdquo

e que a Igreja soubesse reconhecer a sua forma capaz de ldquopersuadir e convencer

racionalmenterdquo82 A argumentaccedilatildeo alude que apenas quem conhece e sabe discutir

criticamente as fontes pode julgar seu conteuacutedo e sua eventual pretensatildeo de verdade

Segundo Pico de fato o ato de crer natildeo depende apenas da vontade mas tambeacutem do

intelecto83 Nesse caso contraacuterio ao conteuacutedo anterior expresso na carta a Manuzio a

necessidade de submeter a religiatildeo agrave razatildeo deve ser entendida em relaccedilatildeo a uma

dimensatildeo religiosa que se mostra em caraacuteter dogmaacutetico horizontal em oposiccedilatildeo agrave

dimensatildeo religiosa enquanto experiecircncia real Os indiacutecios de tal dimensatildeo da

experiecircncia de uma efetiva religiatildeo84 Pico teria encontrado em seus estudos

relacionados a teologias e teurgias tomadas da literatura neoplatocircnica

posteriormente complementadas com os Hinos Oacuterficos os Oraacuteculos Caldeus e a

praacutetica da Cabala Tratava-se pois de uma real vivecircncia religiosa que extrapolava os

dogmas de qualquer religiatildeo particular Sob tal entendimento quaisquer

correspondecircncias encontradas nas teses que se relacionem com as doutrinas da Igreja

natildeo devem ser interpretadas como uma defesa ortodoxa do Cristianismo mas como

um passo a mais em direccedilatildeo agrave conjunccedilatildeo dos ldquofinsrdquo que tendem ao Absoluto

Seguindo essa acepccedilatildeo Pico teria encontrado em Proclo sua definiccedilatildeo de ldquoverdadeira

religiatildeordquo

Assim como a feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior agrave

ciecircncia assim a feacute que eacute feacute verdadeira eacute supra

substancialmente superior agrave ciecircncia e ao intelecto conjugando-

nos imediatamente a Deus85

(Conclusio secundum Proclum 44)

3 Maritare Mundum

Nas 144 teses que distribuiacutedas em quatro seacuteries concluem as 500

Conclusiones secundum opinionem propriam eacute possiacutevel descobrir alguns elos que

datildeo sentido ao conjunto de forma que as secretas analogias apontadas na Apologia

possam ser delineadas A segunda metade da obra contempla os principais e mais

82 O tema eacute amplamente discutido em GARIN 2011 pp137-142 Ainda BUSI Pico fede ragione e

Inquisizione in Il Sole 24 Ore 28082018 83 Conclusiones in Theologia (II) IV 18 (p91) Como aponta GARIN (2011 pp137-142) natildeo por acaso o Padre

da Igreja que Pico mais amou e meditou sobre foi justamente Oriacutegenes Parecia-lhe absurda a ideia de impor uma feacute sem demonstraacute-la assim como castigar um herege e condenaacute-lo por erro teoacuterico (cf Apologia ldquoDe libertate credendirdquo)

84 A ideia contemporacircnea que se tem do termo ldquoreligiatildeordquo estaacute bastante esvaziada de seu sentido original a ponto de poder causar estranheza a dignidade que Pico lhe atribui colocando-a acima da Filosofia e da Teologia Nunca eacute tarde para recordar a origem etimoloacutegica do termo ldquoreligiatildeordquo proveniente do verbo ldquoreligarerdquo que aponta para a real uniatildeo com o divino um estado de plena vivecircncia espiritual que ultrapassa as questotildees teoreacuteticas relacionadas agrave Filosofia ou agrave Teologia

85 Concl (I) IVV 44 (p48) ldquoSicut fides quae est credulitas est infra scientiam ita fides quae est vere fides est supersubstantialiter supra scientiam et intellectum nos Deo inmediate coniungensrdquo

70

originais argumentos que seriam utilizados para debater uma teoria global da

representaccedilatildeo do mundo realizando a consonacircncia com os temas verificados no

primeiro toacutepico deste Capiacutetulo Observa-se que o realizador da obra estava seguro por

ter encontrado ocultas correspondecircncias que se mostram particularmente claras no

exame das seacuteries finais das Conclusiones intituladas ldquosegundo opiniatildeo dos

enunciados de Zoroastrordquo ldquomaacutegicasrdquo ldquosegundo os hinos de Orfeu [] e aquele saber

relativo agraves coisas divinas e agraves coisas naturaisrdquo e ldquoconsolidantes da religiatildeo cristatilde a

partir dos fundamentos colocados pelos saacutebios hebreusrdquo86 O complexo dessas quatro

seacuteries representa um corpo uacutenico no pensamento de Pico apresentando uma

substancial unidade entre os saberes da Magia da Teurgia e da Teologia

Vaacuterias correspondecircncias satildeo estabelecidas ainda entre as teses caldaicas

maacutegicas oacuterficas e cabaliacutesticas com os demais temas da inteira obra seguindo um

planejamento em que se destacam especiacuteficos teores o aceno aos trecircs mundos que

Pico havia mencionado atraveacutes de Proclo dentro de um cenaacuterio de organizaccedilatildeo do

cosmo87 a confirmaccedilatildeo de certa escolha temaacutetica que prestigia as questotildees

relacionadas ao conhecimento da alma a tonalidade teoloacutegica que se mostra

mesclada a vaacuterias teses e sobretudo o entrelaccedilamento entre distintos campos do

saber que afirmam a presenccedila da concoacuterdia buscada Os modelos temaacuteticos citados a

seguir todos extraiacutedos das ldquoteses segundo o significado das sentenccedilas de Zoroastro e

de seus exegetas caldeusrdquo apresentam natildeo somente aforismos que retratam os temas

mencionados como ainda um exemplo da multidisciplinariedade piquiana

verificaacutevel no uacuteltimo dos enunciados no qual se confirma a correspondecircncia entre as

teologias caldaica cristatilde e hebraica

No aforismo 17 [do enunciado de Zoroastro] com o triacuteplice

indumento de linho pano e pele os Magos natildeo entendem outra

coisa aleacutem da triacuteplice morada da alma celeste espiritual e

terrena88 (Conclusio secundum propriam opinionem de

intelligentia dictorum Zoroastris 8)

86 Conforme a sequecircncia e tiacutetulos completos dados por Pico temos Conclusiones secundum propriam

opinionem de intelligentia dictorum Zoroastris et expositorum eius Chaldaeorum Conclusiones Magicae Conclusiones secundum propriam opinionem de modo intelligendi hymnos Orphei secundum Magiam id est secretam diuinarum rerum naturaliumque sapientiam a me primum in eis repertam Conclusiones Cabalisticae secundum opinionem propriam ex ipsis Hebraeorum sapientum fundamentis Cristianam Religionem maxime confirmantes

87 Conclusio secundum Proclum 52 88 Concl (II) VIII 8 (p116) ldquoMagi in XVII aphorismo nichil aliud intelligunt per triplex indumentum ex lino

panno et pellibus quam triplex animae habitaculum coeleste spirituale et terrenumrdquo O trecho de acordo com FARMER (opcit np489) eacute extraiacutedo dos Oraacuteculos Caldeus A sessatildeo caldaica das Conclusiones conteacutem material natildeo encontrado no recolhimento de Miguel Psello ou George Plethon nem mesmo a numeraccedilatildeo dos Oraacuteculos de Pico coincide com a ordem encontrada naquelas coleccedilotildees anteriores A questatildeo das fontes que Pico consultou na sessatildeo caldaica eacute tatildeo misteriosa quanto a versatildeo dos Oraacuteculos que ele tinha em matildeos Em carta a Ficino de 1486 Pico fala de libellus de dogmatis Chaldaicae theologiae tum Persarum Graecorum et Chaldaeorum in illa divina et locupletissima enarratione [ldquoum pequeno livro sobre os ensinamentos da teologia caldaica naquela exposiccedilatildeo divina e opulenta dos persas gregos e caldeusrdquo] que lhe tinha chegado recentemente agraves matildeos (FARMER opcit pp486-487)

71

Aquilo que dizem os exegetas caldeus acerca do primeiro

enunciado de Zoroastro sobre a ldquoescala do taacutertaro ao primeiro

fogordquo natildeo significa outra coisa que a seacuterie das naturezas do

universo do natildeo grau da mateacuteria ao grau que gradualmente se

sobrepotildee acima de cada grau89 (idem 1)

Graccedilas ao enunciado de Zoroastro lsquosacrificareis ainda por trecircs

dias e natildeo maisrsquo me resultou evidente atraveacutes da aritmeacutetica do

caacutelculo dos dias da Mercavaacute superior que naquele enunciado

estava prevista expressamente a vinda de Cristo90

(idem 14)

A menccedilatildeo agrave aritmeacutetica da Mercavaacute superior alude agrave existecircncia de um campo

conceitual que requer um preparo especial tantas vezes guardado pelo segredo O

autor desse material mostra ter consciecircncia da necessidade de proteger certas aacutereas

conceituais que natildeo devem ser divulgadas ndash e dos riscos envolvidos em sua eventual

divulgaccedilatildeo Esse cuidado eacute referido de forma velada algumas vezes e de forma

expressa em outras Na abertura do penuacuteltimo grupo de suas teses intituladas

ldquoconforme o modo de interpretar os hinos de Orfeu segundo magiardquo Pico sugere ter

colhido nos Hinos Oacuterficos certas verdades cuja divulgaccedilatildeo seria arriscada por

necessidade em razatildeo da restriccedilatildeo pedida pelo segredo teria que expressar-se em

modo eliacuteptico utilizando-se de aforismos para conseguir despertar ldquoa mente dos

contemplativosrdquo91 Assim se lecirc em sua Conclusio oacuterfica nr 1

Expor em puacuteblico a magia secreta por mim extraiacuteda por

primeiro dos Hinos de Orfeu natildeo eacute liacutecito mas seraacute uacutetil delineaacute-

la para estimular as mentes dos contemplativos mesmo que por

meio de aforismos92

(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 1)

89 Concl (II) VIII 1 (p114) ldquoQuod dicunt interpretes chaldaei super primum dictum Zoroastris de scala a

tartaro ad primum ignem nichil aliud significat quam seriem naturarum universi a non gradu materiae ad eum qui est super omnem gradum graduate protensumrdquo

90 Concl (II) VIII 14 (p116) ldquoPer dictum illud Zoroastris ad huc tres dies sacrificabitis et non ultra apparuit michi per arithmeticam superioris merchaveacute illos computandi dies esse in eo dicto expresse praedictum aduentum Christirdquo A Mercavaacute superior (carruagem) representa a parte especulativa da Cabala concernente agraves coisas divinas como esclarece o escritor cabalista Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp 193-94)

91 Pico tinha consciecircncia dos riscos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea ou da utilizaccedilatildeo delituosa da teurgia oacuterfica Marsiacutelio Ficino que jaacute havia traduzido para o latim os Hinos Oacuterficos havia decidido evitar sua publicaccedilatildeo por julgaacute-los perigosos (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano 2009 pp 73-74) ainda do mesmo autor veja-se Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola p 630) O acesso de Pico aos Hinos oacuterficos eacute comprovado pela existecircncia em sua biblioteca de pelo menos um manuscrito contendo natildeo apenas aqueles hinos como tambeacutem os Hinos homeacutericos e os de Proclo (Pearl KIBRE opcit 1936 pp148 205)

92 Concl (II) X 1 (p120) ldquoSicut secretam magiam a nobis primum ex Orphei hymnis elicitam fas non est in publicum explicare ita nutu quodam ut in infrascriptis fiet conclusionibus eam per aphorismorum capita demonstrasse utile erit ad excitandas contemplatiuorum mentesrdquo

72

Depreende-se da asserccedilatildeo acima uma forte conotaccedilatildeo iniciaacutetica tocircnica que

conflui no complexo orgacircnico das uacuteltimas seacuteries revelando a existecircncia de uma

dimensatildeo ndash conhecida por Pico ndash que admite o adepto atraveacutes de graus que elevam

ao conhecimento ndash desde que ele seja capaz de ingressar por suas portas de iniciaccedilatildeo

A conclusio oacuterfica 7 conta que existe uma ldquoestrada de analogia secretardquo que soacute poderaacute

ser trilhada por aquele que souber ldquointelectualizar perfeitamente as propriedades

sensiacuteveisrdquo a serem extraiacutedas dos Hinos de Orfeu93 Vecirc-se que eacute dada ecircnfase seja na

primeira que na seacutetima tese acima ao uso intelectual ou contemplativo das

informaccedilotildees recebidas agrave guisa de precauccedilatildeo para natildeo ser aprisionado por elementos

negativos ndash advertecircncia que embora natildeo expressa nas teses acima encontra-se na

tese 10 segundo Hermes Trismegisto e na tese cabaliacutestica 1394 A conclusio maacutegica 17

sugere que para ultrapassar os limites estabelecidos pela natureza existem ldquodevidas

modalidades conhecidas pelos saacutebiosrdquo95 Nesse percurso a Magia representa o

primeiro grau96 por se tratar conforme a conclusio maacutegica 4 da parte ldquomais nobre

da ciecircncia naturalrdquo sendo o conhecimento do mundo fiacutesico em primeira etapa o

alimento da alma racional97

Se se verifica em noacutes uma natureza imediata que seja

simplesmente ou pelo menos prevalentemente racional essa

tem seu aacutepice na arte maacutegica E graccedilas agrave participaccedilatildeo maacutegica

tal natureza pode ascender nos homens a uma maior

perfeiccedilatildeo98 (Conclusio Magica 14)

A Magia conforme se depreende da explanaccedilatildeo realizada na De Hominis

Dignitate99 ocupa-se das relaccedilotildees da vida humana com a toda a criaccedilatildeo daiacute a

outorga de nobreza que Pico lhe concede em caraacuteter privilegiado tem por objeto a

93 Concl (II) X 7 (p122) 94 A tese cabaliacutestica 13 adverte que ldquoquem opera na Cabala se cometer erros durante o trabalho ou se aproximar

deste sem a devida purificaccedilatildeo preacutevia seraacute devorado por Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedilardquo A tese 10 segundo as doutrinas de Trismegisto informa sobre a existecircncia de uma maligna sequecircncia denaacuteria correspondente agrave existente na Cabala a respeito da qual Pico declara que natildeo poderaacute escrever nada ldquopor tratar-se de um segredordquo

95 Concl (II) IX 17 (p118) A inteira sentenccedila postula que ldquoa magia eacute proacutepria daquela natureza que eacute horizonte de tempo e eternidade e de laacute deve ser extraiacuteda segundo as devidas modalidades notas aos saacutebiosrdquo O significado da primeira oraccedilatildeo segundo FORNACIARI eacute que a natureza eacute o limite do tempo no sentido que o tempo intriacutenseco agrave natureza eacute limitado e natildeo eterno (Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 p64)

96 Na De Hominis Dignitate Pico dedica muitas linhas a esclarecer o que entende por ldquomagiardquo defendendo-a contra entendimentos equivocados eou preacute-concebidos

97 Cf FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 pp 58 63 98 Concl (II) IX 14 (p118) ldquoSi qua est natura immediata nobis quae sit uel simpliciter uel saltem ut multum

rationaliter rationalis magicam habet in summo et eius participatione potest in hominibus esse perfectiorrdquo FARMER (np498) comenta que a questatildeo concerne agrave alma purificada do mago capaz de reunir todas as forccedilas racionais distribuiacutedas entre o mundo celestial e terrestre e elevaacute-las Nesta tese lecirc-se que a magia envolve naturezas ldquoracionaisrdquo na correlata tese cabaliacutestica 12 encontra-se que a ldquoCabala purardquo (haacute tambeacutem variedades inferiores como seraacute visto no Capiacutetulo V) envolve a ldquoparte intelectualrdquo da alma racional

99 Aleacutem da ampla defesa da Magia realizada na Apologia (Quaestio V de magia naturali et cabala hebraeorum pp 154-193) Pico dedica natildeo poucas linhas para a questatildeo na De Hominis Dignitate ldquoRepleta de profundiacutessimos misteacuterios [a ldquoboa magiardquo] abraccedila a contemplaccedilatildeo mais alta das coisas mais secretas e por fim o conhecimento total da natureza Esta como que trazendo das profundidades agrave luz as virtudes dispersas e disseminadas no mundo pela bondade de Deus mais do que realizar milagres coloca-se ao serviccedilo da milagrosa natureza Esta perscrutando intimamente o secreto acordo do universo a que os Gregos chamam de uma maneira muito significativa sympateacuteia [ldquoharmonia do universordquo] explorando a muacutetua ligaccedilatildeo das naturezas traz agrave luz como se ela proacutepria fosse o artiacutefice as maravilhas escondidas nas profundezas do mundo no seio da natureza e dos misteacuterios de Deusrdquo (p153)

73

relaccedilatildeo entre o mundo fiacutesico e a alma imortal pois que o mago opera para realizar a

conexatildeo do mundo sublunar com os mundos superiores100 como seraacute visto adiante

Alguns dos meacutetodos agrave disposiccedilatildeo do sapiente praacutetico para alccedilar-se atraveacutes dos niacuteveis

intelectuais relacionam-se diretamente com o uso de sons e mantras ndash como se

extrai de algumas teses oacuterficas maacutegicas e cabaliacutesticas A tese oacuterfica 2 por exemplo

sinaliza que ldquonas operaccedilotildees de magia natural nada eacute mais eficaz que os Hinos de

Orfeurdquo acrescendo em tom de precauccedilatildeo ldquodesde que sejam aplicadas a correta

muacutesica a correta intenccedilatildeo de acircnimo e todas as demais circunstacircncias que os

sapientes conhecemrdquo101 A quarta tese oacuterfica confirma a analogia de praacuteticas e

resultados entre teologias distintas

Assim como os Hinos de Davi se prestam de forma admiraacutevel agraves

operaccedilotildees da Cabala assim os Hinos de Orfeu se prestam agraves

operaccedilotildees da magia autecircntica liacutecita e natural102

(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 4)

Observa-se uma relaccedilatildeo entre os resultados obtidos atraveacutes das praacuteticas oacuterficas

e as cabaliacutesticas pois que nos Salmos de Davi encontra-se uma aplicaccedilatildeo maacutegica

pertencente ao esoterismo hebraico que Pico certamente conhecia103 Embora se

situem em patamares distintos104 as duas dimensotildees operativas apresentam

analogias como revela a tese oacuterfica 6 ldquoa propriedade analoacutegica de qualquer virtuderdquo

(no sentido de qualidade poder ou potecircncia)105 seja natural ou divina eacute a mesma

ldquoguardadas as devidas proporccedilotildeesrdquo assim como satildeo os mesmos os nomes (utilizados

na magia natural) os hinos (na teurgia oacuterfica) e o operar (em sentido cabaliacutestico)

ldquoquem tentaraacute interpretaacute-los encontraraacute as correspondecircnciasrdquo completa o texto106

Pico alerta outrossim que para a aplicaccedilatildeo operativa de determinados hinos

oacuterficos107 seraacute necessaacuteria a participaccedilatildeo da operaccedilatildeo cabaliacutestica como postula a tese

oacuterfica 21 ldquoNatildeo haacute aplicaccedilatildeo operativa daqueles [especiacuteficos] hinos sem a operaccedilatildeo da

Cabalardquo108

100 Cf FORNACIARI 2009 p 58 101 Concl (II) X 2 (p120) Proclo em seu proecircmio ao Comentaacuterio ao Timeu atesta que os textos sagrados do

Orfismo continham indicaccedilotildees taumatuacutergicas Ademais ao proacuteprio Proclo foram atribuiacutedos o poder de auto-cura e de curar o proacuteximo atraveacutes do recurso a hinos inclusive os oacuterficos conforme se lecirc em Vita Procli de Marino Neapolis (apud FORNACIARI 2009 p74) Complementa Fornaciari (p75) que eacute a concentraccedilatildeo do pensamento no mago ou teurgo que propicia o movimento interior desde que acompanhado do cumprimento dos preceitos e das palavras certas pronunciadas nas oraccedilotildees

102 Concl (II) X 4 (p122) ldquoSicut hymni Dauid operi Cabalae mirabiliter deseruiunt ita hymni Orphei operae vere licitae et naturalis Magiaerdquo Os Hinos de Davi referem-se aos Salmos

103 A hinografia atribuiacuteda ao rei Davi exerce uma funccedilatildeo sagrada no Judaiacutesmo e houve uma sua aplicaccedilatildeo maacutegica chamada simmusy tehillim (ldquouso dos Salmosrdquo) Vejam-se esclarecimentos sobre a questatildeo e as implicaccedilotildees em acircmbito cabaliacutestico em FORNACIARI (2009 p76)

104 No capiacutetulo VI seratildeo esclarecidas as distinccedilotildees entre os procedimentos teuacutergicos e os procedimentos de tipo superior realizados em certo tipo de praacutetica cabaliacutestica

105 A complementaccedilatildeo ao termo ldquovirtuterdquo eacute de FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630)

106 Concl (II) X 6 (p122) ldquoQuarumcunque virtutum naturalium vel diuinarum eadem est proprietas analogica idem etiam nomen idem hymnus idem opus seruata proportione et qui temptauerit exponere uidebit correspondentiamrdquo

107 Trata-se dos Hinos aos quais Pico se refere na tese oacuterfica 20 (p125) endereccedilados agrave mente Paterna ldquoProtogeni Palladis Saturni Veneri Rheae Legis Bacchirdquo

108 Concl (II) X 21 (p124) A Cabala possui as propriedades para ldquocolocar em ato cada quantidade formal contiacutenua e discretardquo como estaacute complementado na mesma tese 21 Essa tese um tanto complexa recebeu de WIRSZUBSKI (opcit pp141-145) e de Brian COPENHAVER (Lrsquoocculto in Pico in Giovanni Pico della

74

Da mesma forma que efetua em relaccedilatildeo ao Orfismo Pico tece muacuteltiplas

analogias entre a Cabala e a Magia109 dois peculiares temas que exorbitam os limites

de seus proacuteprios grupos e que satildeo encontrados de forma esparsa correspondendo-se

natildeo apenas entre si como com outros dos demais elementos presentes nas Teses

Aleacutem da tese maacutegica 8 condenada pelos teoacutelogos de Inocecircncio VIII que conjuga

Magia e Cabala (no caso para afirmar a divindade de Cristo) as duas precedentes 6 e

7 tambeacutem comportam a assunccedilatildeo da Cabala ao lado da Magia ambas convergindo

para ingressar em um plano superior teoloacutegico Na conclusio maacutegica 6 Pico assume

que todas as operaccedilotildees maacutegicas eou cabaliacutesticas encontram sua referecircncia direta em

Deus

Qualquer obra que suscite estupor seja de tipo maacutegico

cabaliacutestico ou de qualquer outro gecircnero deve ser em

primeiriacutessima instacircncia referida a Deus glorioso e bendito

cuja graccedila espalha as superabundantes aacuteguas de milagrosas

virtudes sobre os homens contemplativos de boa vontade110

(Conclusio Magica 6)

A tese seguinte de nuacutemero 7 provavelmente surpreendente aos ouvidos

cristatildeos afirma que ldquoas obras de Cristo natildeo poderiam ter sido realizadas nem por via

de Magia nem por via de Cabalardquo111 A afirmaccedilatildeo parece significar que Cristo possuiria

virtudes superiores em respeito agrave Magia e agrave Cabala rendendo ambas inuacuteteis

Entretanto segundo a interpretaccedilatildeo de Paolo Fornaciari Pico estaria em verdade

sustentando que Cristo teria operado milagres graccedilas agrave forccedila da Magia e da Cabala

conjuntas112 Fato que parece sugerido na condenada tese de nuacutemero 9 amplamente

discutida na Apologia ldquonatildeo existe ciecircncia que nos afirme a divindade de Cristo mais

do que a Magia e a Cabalardquo113 A intriacutenseca relaccedilatildeo entre Magia e Cabala estaacute ainda

presente na tese maacutegica 15 que atribui agrave Cabala a propriedade tida como

imprescindiacutevel de consentir ao mago de operar com sucesso no mundo fiacutesico

Mirandola 1997 p98) interpretaccedilotildees acuradas e distintas o primeiro em acircmbito cabaliacutestico e o segundo em acircmbito matemaacutetico-geomeacutetrico Jaacute a interpretaccedilatildeo de FORNACIARI (2009 pp91-92) mais alinhada com o desenho geral da Conclusiones faz corresponder as trecircs quantidades formal contiacutenua e discreta aos trecircs mundos inteligiacutevel intermeacutedio e sublunar cujas formas podem ser operacionalizadas e quantificadas pela Cabala atraveacutes da gematria (tipologia a ser verificada no Capiacutetulo VI)

109 Uma maior aproximaccedilatildeo agrave Cabala seraacute feita nos capiacutetulos V e VI Em relaccedilatildeo agrave Magia as 26 teses maacutegicas foram objeto de anaacutelise em artigo de Frances YATES (Giovanni Pico della Mirandola and Magic in LrsquoOpera e il pensiero di G Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965 pp159-196) Para definiccedilotildees e esclarecimentos feitos pelo proacuteprio Pico remeter-se agrave parte da De Hominis Dignitate que trata de Magia e ainda agrave seccedilatildeo dedicada agrave quaestio ldquoDe magia naturalis et Cabala disputatiordquo na Apologia

110 Concl (II) IX 6 (p118) ldquoQuodcumque fiat opus mirabile siue sit magicum siue cabalisticum siue cuiuscunque alterius generis principalissime referendum est in Deum gloriosum et benedictum cuius gratia supercoelestes mirabilium uirtutum aquas super contemplatiuos homines bonae voluntatis quotidie pluit liberaliterrdquo Para Pico as operaccedilotildees maacutegicas natildeo funcionam de forma mecacircnica mas dependem da mediaccedilatildeo de uma alma purificada (FARMER p497)

111 Concl (II) IX 7 (p118) ldquoNon potuerunt opera Christi uel per uiam magiae uel per uiam Cabalae fierirdquo 112 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630 113 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et

cabalardquo Veja-se ampla discussatildeo dessa tese em FARMER (opcit pp126-128) que se remete agrave obra de Frances Yates Giovanni Pico della Mirandola and Magic 1965

75

Nenhuma operaccedilatildeo de Magia pode ser de eficaacutecia se natildeo tiver

conexa a obra cabaliacutestica expliacutecita ou impliacutecita114

(Conclusio Magica 15)

Finalmente nas trecircs teses maacutegicas finais a relaccedilatildeo entre a Cabala e a Magia eacute

precisada Na conclusio 24 a partir de quanto ensina a Cabala Pico posiciona

conforme ldquoprinciacutepios secretos da Filosofiardquo as qualidades formais inscritas nos

siacutembolos (caracteres et figuras) acima das qualidades materiais no que concerne agrave

operatividade maacutegica115 na sucessiva tese 25 afirma a correspondecircncia entre os

siacutembolos (caracteres) usados nas operaccedilotildees maacutegicas e os nuacutemeros (numeri) usados

nas operaccedilotildees cabaliacutesticas Na tese 26 Pico sustenta que agrave diferenccedila de quanto

ocorre no campo maacutegico-natural onde o nexo causa-efeito eacute respeitado em modo

rigoroso na atuaccedilatildeo cabaliacutestica pode ocorrer que um acontecimento natildeo dependa da

mediaccedilatildeo das causas Nesse sentido a uacuteltima tese maacutegica pontua assim a distinccedilatildeo

de gradaccedilatildeo entre os dois saberes atraveacutes da obra cabaliacutestica pode ocorrer algo que

nenhuma magia pode alcanccedilar desde que o operar cabaliacutestico seja ldquopuro e

imediatordquo116

Para aleacutem das inter-relaccedilotildees temaacuteticas uma especial atenccedilatildeo deve ser

dispensada agraves Teses Cabaliacutesticas117 agraves quais alguns privileacutegios foram concedidos118

satildeo elas que encerram as duas seccedilotildees da obra piquiana como a ocupar um espaccedilo

nobre a quantidade de teses cabaliacutesticas em seu total de 118 supera a quantidade de

teses de cada um dos outros grupos119 e quatro-quintos das correspondecircncias

efetuadas entre os vaacuterios conteuacutedos envolvem a Cabala120 Efetivamente o nuacutemero de

conexotildees da Cabala com outros temas ultrapassa aquelas efetuadas com as duas

seacuteries acima mencionadas Aleacutem das 47 teses cabaliacutesticas ad mentem cabalistarum e

das 71 secundum opinionem propriam121 ao menos outras cinquenta fazem

114 Concl (II) IX 15 (p118) ldquoNulla potest esse operatio magica alicuius efficaciae nisi annexum habeat opus

cabalae explicitum uel implicitumrdquo Acerca desta tese FARMER (np499) interpreta que o sentido primaacuterio que Pico quer esclarecer eacute que a parte racional da alma (pertinente agrave ldquomagia naturalrdquo) deriva da parte intelectual da alma (pertinente agrave ldquocabala purardquo) sob tal prisma a Cabala estaria impliacutecita em qualquer ato maacutegico

115 Concl(II) IX 24 (p121) ldquoEx secretioris philosophiae principiis necesse est confiteri plus posse caracteres et figuras in opere Magico quam possit quaecunque qualitas materialisrdquo

116 Respectivamente Concl (II) IX 25 e 26 (p121) Basicamente nessas trecircs uacuteltimas teses Pico postula que as palavras maacutegicas podem ser traduzidas em nuacutemeros e os nuacutemeros em palavras maacutegicas aparentemente conforme inferecircncia de FARMER (np503) atraveacutes de equaccedilotildees de gematria A menccedilatildeo agrave Cabala pura e imediata ldquosi sit pura cabala et imediatardquo envolve a parte intelectual da alma como ainda completa Farmer (idem)

117 Paolo FORNACIARI realizou a interpretaccedilatildeo da totalidade das Conclusiones Cabalisticae (2009) utilizando-se da obra de Chaim WIRSZUBSKY (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 19871989) como paracircmetro hermenecircutico para o misticismo hebraico

118 De todas as obras de Pico as Conclusiones cabalisticae parecem ter conhecido melhor destino visto que foram publicadas mais vezes geralmente em latim (veja-se por exemplo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano 2009 p13) Para Albano BIONDI as Teses cabaliacutesticas ldquosecundum opinionem propriamrdquo representam o coroamento do inteiro edifiacutecio piquiano (2013 p XXVI)

119 Dentro do primeiro grupo eacute atribuiacutedo a Proclo o maior nuacutemero de teses um total de 55 seguido do grupo dos ldquoSaacutebios da Cabalardquo com 47 teses No segundo grupo as ldquoTeses sobre a Matemaacuteticardquo e as ldquoTeses pessoais acerca da doutrina de Platatildeordquo satildeo as que apresentam maior nuacutemero respectivamente 85 e 80 teses cada Contudo na somatoacuteria dos dois grupos o conjunto das doutrinas cabaliacutesticas eacute detentor da maior quantidade de teses 118 no total

120 Cf William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age modern Interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107

121 O tiacutetulo do uacuteltimo grupo menciona 71 teses (Conclusiones Cabalisticae numero LXXI) embora sejam apresentadas de fato 72 Conforme Fornaciari (2009 p15) natildeo se trata de erro banal de Pico de seus editores de Roma e de Ingolstadt (com o qual esteve em relaccedilatildeo direta) dos inuacutemeros copistas e dos editores dos seacuteculos

76

referecircncia direta ao tema122 Embora a uacuteltima seacuterie cabaliacutestica ldquosegundo a opiniatildeo de

Picordquo apresente um grande nuacutemero de proposiccedilotildees teoloacutegicas que pretendem

confirmar as verdades do Cristianismo ndash originalidade da qual Pico se orgulhava em

razatildeo do triunfo da aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico ndash123 o conjunto formado

pelas duas seacuteries referentes aos misteacuterios hebraicos contempla a maior incidecircncia de

aforismos de conteuacutedo obscuro ou esoteacuterico alguns apenas acessiacuteveis ao ciacuterculo dos

cabalistas

O Grande Aquilo eacute de maneira geral a fonte de todas as almas

Outros dias satildeo de algumas mas natildeo de todas124

(Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum

hebraeorum 6)

Na Cabala quem penetrar o misteacuterio das Portas da Inteligecircncia

conheceraacute o misteacuterio do Grande Jubileu125 (idem 13)

Aquele que na sequecircncia coordenada da direita compreender a

propriedade do meridional tambeacutem saberaacute a razatildeo de cada

partida de Abraatildeo ir sempre em direccedilatildeo ao Austro126 (idem 14)

Quem penetrar o caraacuteter proacuteprio de hosec e laila que eacute o

segredo da escuridatildeo saberaacute o porquecirc de os maus democircnios

serem mais perigosos agrave noite do que durante o dia127 (idem 21)

As trecircs uacuteltimas seacuteries de teses contemplam a existecircncia ndash e sugerem a

transcendecircncia por parte do homem ndash do mundo fenomecircnico natural do

sucessivos A hipoacutetese do comentador eacute que Pico tenha evitado propositalmente de escrever o nuacutemero 72 por se tratar de cifra sagrada pertencente agrave versatildeo mais ampla do ldquonome expandidordquo de Deus de 72 letras (conforme Ecircxodo 346-7) habitualmente impronunciaacutevel e que apenas o Gran Sacerdote teria o direito de proferir uma vez ao ano

122 Sheila RABIN apresenta uma completa especificaccedilatildeo das teses que mesclam conteuacutedos cabaliacutesticos caso da conclusio 2 segundo Temistio da nr 10 segundo Hermes e das referecircncias presentes nas teses matemaacuteticas entre outras (Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays 2008 p 157)

123 Efetivamente atraveacutes de alguns meacutetodos como a gematria Pico consegue comprovar intrigantes relaccedilotildees entre os misteacuterios hebreus e a Teologia cristatilde Essas questotildees seratildeo verificadas nos capiacutetulos V e VI

124 Concl (I) VIII 6 (p56) ldquoMagnus Aquilo fons est animarum omnium simpliciter sicut alii Dies quarundam et non omniumrdquo Para explicar tal tese algumas interpretaccedilotildees foram tentadas Os ldquodiasrdquo da criaccedilatildeo satildeo concernentes a diferentes Sefirot (concepccedilatildeo a ser verificada adiante) O ldquoGrande Aquilordquo segundo FARMER representa um siacutembolo cabaliacutestico da quinta sefiraacute para FORNACIARI da quarta para WIRSZUBSKI (apud Farmer) o sentido eacute outro natildeo elucidado por Farmer

125 Concl (I) VIII 13 (p56) ldquoQui nouerit in Cabala mysterium portarum intelligentiae cognoscet mysterium Magni Iobelei rdquo

126 Concl (I) VIII 14 (p56) ldquoQui nouerit proprietatem meridionalem in dextrali coordinatione sciet cur omnis processio Abraam semper fit versus austrumrdquo Farmer procura esclarecer parte da tese informando que a ldquosequecircncia da direitardquo eacute uma distinccedilatildeo da emanaccedilatildeo das verdadeiras Sefirot da maleacutefica ldquosequecircncia da esquerdardquo que a reflete (np351) Wirszubski (1989 pp 32-33) cita uma longa passagem da traduccedilatildeo de Mitridate da Portae lustitiae de Gicatilla para tentar mostrar que ldquosequecircncia da direitardquo eacute simplesmente um siacutembolo para a quarta sefiraacute Farmer parece natildeo concordar com tal versatildeo pois afirma que a linguagem de Pico difere radicalmente da encontrada na traduccedilatildeo de Mitridate (que usa a palavra dextra mas nada diz sobre a coordenaccedilatildeo da ldquosequecircncia da direitardquo)

127 Concl (I) VIII 21 (p58) ldquoQui sciet proprietatem hosec et laila quae est secretum tenebrarum scit cur mali daemones plus in nocte quem in die nocentrdquo A ediccedilatildeo de Stephan Farmer (1998) suprime a expressatildeo ldquohosec et lailardquo

77

supramundano intermeacutedio e dos planos inteligiacuteveis bem como de uma dimensatildeo

epistemoloacutegica que permeia todos os planos A velada iniciaccedilatildeo sugerida por Pico tem

por principal intento alccedilar o homem ao entendimento do iacutentimo sistema de

correspondecircncias que se distribui entre os diversos niacuteveis O conhecimento do mundo

sublunar pode ser alcanccedilado pela Magia do celeste pela Teurgia oacuterfica e o acesso ao

Inteligiacutevel pela intermediaccedilatildeo da Cabala Sob esse prisma compreende-se que a

unificaccedilatildeo dos mundos eacute o objetivo final de toda a operaccedilatildeo seja maacutegica teuacutergica ou

cabaliacutestica

Natildeo existe nem no ceacuteu nem na terra virtude em estado

potencial e separada que o mago natildeo possa levar ao estado atual

e unificar128 (Conclusio Magica 5)

Entendendo o mundo como um complexo uacutenico articulado desde o mundano

aos sobremundanos o operador (ou iniciado) torna seu uacutenico escopo o aprendizado e

atuaccedilatildeo sobre os reinos que conjuga com seu proacuteprio intelecto elevando-se do saber

natural ao teoloacutegico atraveacutes de vaacuterios graus e meacutetodos O saacutebio eacute pois um

alquimista para quem ldquoa arte maacutegica natildeo adveacutem que por uniatildeo e atuaccedilatildeo de coisas

que na natureza existem em estado de potecircncia e separaccedilatildeordquo129 o ato de conjugar o

mundo ldquomaritare mundumrdquo torna-se assim sua meta preciacutepua e terminal130

Operar magia eacute simplesmente casar o mundo131

(Conclusio Magica 13)

Entender a natureza e ultrapassaacute-la elevando-se ateacute a mente divina esse eacute o

tema principal daquele texto escrito para servir de ldquointroduccedilatildeordquo agraves Teses Qualquer

das ferramentas operadas pelo homem para obter conhecimento soacute eacute digna se tiver

como finalidade sua elevaccedilatildeo Pois como lembra Pico ldquoa forma de todo o poder

maacutegico tem sua raiz na alma humanardquo mas somente ldquonaquela alma que se mostra

permanente e natildeo cadenterdquo132

A mensagem piquiana concernente ao conteuacutedo das Conclusiones de forma

particular no que se refere agraves uacuteltimas seacuteries natildeo pode ser adequadamente

elucidada133 Todavia o caminho para desvendar a occulta concatenatio mencionada

na Apologia pode ser trilhado a partir da constataccedilatildeo e subsequente averiguaccedilatildeo de

duas veementes marcas presentes dentre as novecentas teses ndash e que aqui foram

indicadas a primeira encontra-se na repeticcedilatildeo de temas relacionados agrave Cosmologia agrave

128 Concl (II) IX 5 (p118) ldquoNulla est virtus in coelo et in terra seminaliter et separata quam et actuare et

unire magus non possitrdquo 129 Concl (II) IX 11 (p118) ldquoMirabilia artis magicae non sunt nisi per unionem et actuacionem eorum quae

seminaliter et separate sunt in naturardquo 130 PICO Apologia pp 171-172 Veja-se discussatildeo aprofundada sobre o tema de ldquomaritarerdquo o mundo em Franco

BACCHELLI (2001 pp 72-73) 131 Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo FARMER bem observa

que ldquoo homo-magus eacute um sacerdote coacutesmicordquo (p498) 132 Concl (II) IX 12 (p118) ldquoForma totius magicae uirtutis est ab anima hominis stante et non cadenterdquo 133 Segundo admite Paolo FORNACIARI tradutor e comentador das Conclusiones cabalisticae ldquonatildeo estamos

ainda em grau de esclarecer plenamente no estado atual dos estudos o significado da mensagem piquianardquo (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p16)

78

Alma e agrave Teologia difusos entre as seacuteries da inteira obra a segunda pode ser

depreendida das correspondecircncias encontradas entre as seacuteries finais das

Conclusiones que se relacionam agravequeles trecircs temas Veremos no proacuteximo Capiacutetulo

que tais temas estatildeo expostos de forma mais evidenciada na Oratio De Hominis

Dignitate concorrendo para a construccedilatildeo do homem piquiano Ademais as

constataccedilotildees levantadas acrescem algumas peccedilas ao tema principal a ser sintetizado

nas paacuteginas finais Resta pontuar que o debate no qual Pico discutiria suas Teses

esclarecendo quem sabe muitos de seus obscuros temas natildeo aconteceu Muitas

dentre aquelas doutrinas que natildeo poderiam ter seus conteuacutedos divulgados

continuaram com seu segredo resguardado

79

CAPIacuteTULO IV

A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS

A Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concordiae Comitis134 foi considerada por

muitos a obra mais importante da literatura filosoacutefica do primeiro Renascimento135

Escrita para ser o discurso introdutoacuterio agraves Conclusiones a Oratio nunca foi

pronunciada e tampouco nominada foram seus editores e leitores a intitulaacute-la

ldquo(Oratio) De Hominis Dignitaterdquo (Discurso) Sobre a Dignidade do Homem nome

que apareceraacute apenas em sua ediccedilatildeo de 1557 Escrita em etapas que se alternaram

com a redaccedilatildeo das proacuteprias Conclusiones a Oratio foi definitivamente concluiacuteda

somente apoacutes a finalizaccedilatildeo das novecentas teses e quando algumas dentre elas jaacute

haviam sido submetidas a criacuteticas

Ultrapassando os limites do que seria uma simples introduccedilatildeo a obra natildeo

apenas esclarece a intenccedilatildeo pretendida com as Conclusiones como apresenta o

esboccedilo sinteacutetico daquele que seria o inteiro projeto de vida de seu autor razatildeo que

levou Burckhardt a chamaacute-la de ldquosuacutemulardquo do pensamento piquiano136 Com efeito o

breve texto guarda os principais motivos do pensamento de Pico a saber a

pluralidade das fontes a insistecircncia na conciliaccedilatildeo entre elementos considerados

usualmente diacutespares a presenccedila de elementos entatildeo considerados conservadores

tomados da tradiccedilatildeo medieval postos lado-a-lado com as frescas concepccedilotildees

humanistas da temaacutetica da dignidade a inovadora apresentaccedilatildeo da Cabala judaica A

Oratio natildeo apenas se ergue acima da ocasiatildeo para a qual foi criada como se apresenta

qual verdadeira declaraccedilatildeo filosoacutefica por si soacute razatildeo que a levou a ganhar fama

134 ldquoDiscurso de Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdiardquo Para o texto integral da Oratio veja-se o De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari trad Eugenio GARIN Vallecchi 1942 pp101-

165 O texto encontra-se tambeacutem disponiacutevel no site ldquoPico Projectrdquo convecircnio da Universidade de Bologna com a Brown University Haacute duas principais redaccedilotildees da Oratio a chamada Palatina copiada pelo humanista contemporacircneo de Pico Giovanni Nesi descoberta por Eugenio Garin e contida no codex Palatino 885 (ex 777) na Biblioteca Nazionale de Firenze (cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p56) e aquela entregue para ediccedilatildeo quase dois anos apoacutes a morte de Pico pelo sobrinho Gianfrancesco Haacute algumas (poucas) diferenccedilas entre as duas redaccedilotildees como o elogio de reconhecimento a Flavio Mitridate presente na primeira e que natildeo aparece em outras ediccedilotildees (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 p LXXIX) NOTA As traduccedilotildees aqui apresentadas das citaccedilotildees foram feitas a partir do texto latino traduzido para o italiano na ediccedilatildeo acima mencionada de Eugenio Garin considerada pelos especialistas como bastante fiel ao pensamento de Pico Garin utilizou-se especialmente da ediccedilatildeo da De Hominis Dignitate editada em Basileacuteia em 1537 Foram tambeacutem utilizadas como paracircmetros as traduccedilotildees para o portuguecircs de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Luiz Feracine ndash sendo que a autora portuguesa faz algumas omissotildees pouco relevantes em sua traduccedilatildeo Para os dados completos das vaacuterias ediccedilotildees veja-se ldquoPremessa ai Testirdquo na traduccedilatildeo das Conclusiones Nongentae de Albano Biondi 1995 pp3-5

135 Veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Meacutexico 1970 p 91 Tambeacutem Eugenio Garin e Ernst Cassirer consideram o Discurso como a obra mais famosa do lsquo400 Em outra obra Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi (1978 p132) reflete KRISTELLER que o Discurso conteacutem os fermentos mais patentes que caracterizam a eacutepoca do Renascimento Pier Cesare BORI considera que essas satildeo as paacuteginas ldquomais ceacutelebres do Humanismo italianordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564) Para Mariateresa BROCCHIERI trata-se do ldquocoroamento do trabalho de Picordquo em razatildeo de sua singular qualidade (Pico della Mirandola 2011 p78)

136 Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1927 vol II p95

80

proacutepria e a se firmar de forma independente das Teses ndash a ponto de Eugenio Garin

intitulaacute-la ldquoManifesto do Renascimentordquo137 expressatildeo muito bem aceita A Oratio eacute

essencialmente uma reflexatildeo sobre o homem construiacuteda a partir de uma enredada

estrutura que se apoia sobre um conjunto de doutrinas pertencentes a diferentes

periacuteodos da Histoacuteria do Pensamento

As duas principais linhas interpretativas concernentes ao todo da obra

piquiana podem ser tomadas como modelos de interpretaccedilatildeo de sua parte menor a

Oratio visto que nesta se encontram presentes vaacuterios elementos que se repetiratildeo nas

obras posteriores Uma tendecircncia dominante seguiu o influxo iniciado por Ernst

Cassirer e Giovanni Gentile confirmado anos depois por Eugenio Garin e Paul Oskar

Kristeller que sustenta as conexotildees entre Pico e a cultura maacutegica astroloacutegica

hermeacutetica e cabaliacutestica Outra tendecircncia protagonizada por Henri De Lubac em

seu Pic de la Mirandole138 afirmou sua continuidade com a tradiccedilatildeo teoloacutegica

fundamentada em uma heranccedila biacuteblica-judaica que perpassa os primeiros Padres e

alcanccedila a teologia escolaacutestica No entanto quaisquer diferenccedilas de perspectiva que

sigam tais orientaccedilotildees podem ser prontamente dirimidas quando unificadas sob a

aboacutebada da Concoacuterdia as linhas da obra mostram de forma bastante clara a

intenccedilatildeo de harmonizar entre si natildeo apenas doutrinas teoloacutegicas e filosoacuteficas

ocidentais como tambeacutem de harmonizaacute-las com o pensamento de outras culturas nos

moldes que o autor gostaria que houvesse em sua almejada pax filosoacutefica139

Entre os campos filosoacuteficos e teoloacutegicos associados a legados ocidentais e

orientais dois significativos temas podem ser observados no ldquomanifestordquo e tecircm sido

ressaltados pelos comentadores de forma quase unacircnime (a) a questatildeo da Dignidade

ndash que contempla o sub-tema da liberdade ndash e (b) a questatildeo da Concoacuterdia ambos

verificados a seguir com a finalidade de natildeo ocultar do leitor as interpretaccedilotildees mais

consensuais Seraacute proposto um terceiro tema parte preciacutepua deste Capiacutetulo presente

em vaacuterios momentos da obra e que natildeo tem recebido o devido destaque dos

comentadores (c) o percurso ascensional A aproximaccedilatildeo direta ao texto piquiano

mostra-se a melhor forma para constatar a presenccedila do elemento asceacutetico qual fio

condutor a unir as diferentes doutrinas trazidas no percurso histoacuterico percorrido por

Pico

137 GARIN ldquoIntroduzionerdquo a De Hominis Dignitate Heptaplus etc 1942 p23 138 Em nossa bibliografia utilizou-se a traduccedilatildeo italiana de Henri De LUBAC realizada por GColombo Pico

della Mirandola lrsquoalba incompiuta del Rinascimento 2016 139 Pier Cesare BORI apresenta uma anaacutelise pormenorizada das duas formas interpretativas citadas

segmentando de um lado as passagens biacuteblicas-teoloacutegicas da De Hominis Dignitate e de outro as maacutegicas etc (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996) Observa o autor que dentre as tendecircncias interpretativas dominantes destaca-se a originalidade de H Reinhardt em seu Freiheit zu Gott Der Grundgedanke des Systematikers Giovanni Pico della Mirandola que aponta para o caraacuteter preacute-moderno do pensamento sistemaacutetico de Pico

81

1 O tema da Dignidade do homem

Embora a Oratio tenha passado agrave Histoacuteria da Filosofia como o manifesto

acerca da dignidade do homem muito em razatildeo do nome dado agrave sua publicaccedilatildeo

realizada no seacuteculo XVI o tema da dignidade natildeo foi originalidade de Pico e algumas

variaccedilotildees de seu significado pedem uma reflexatildeo

Durante o Humanismo renascentista o tema da dignidade tornou-se bastante

precioso e levou alguns pensadores a buscarem fundamentos a partir dos primeiros

Padres para rebater a supressatildeo da questatildeo ocorrida em certos periacuteodos da Idade

Meacutedia Pode-se dizer que a ideia da Queda de Adatildeo encerra como consequecircncia a

perda de posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem que em alguns momentos literaacuterios foram

registrados como uma perda de valoraccedilatildeo da qualidade do proacuteprio homem140

Sobretudo no baixo Medievo natildeo poucos teoacutelogos foram tomados de certo

pessimismo metafiacutesico perante tal condiccedilatildeo Um exemplo emblemaacutetico da questatildeo foi

postulado por Lotharii Cardinalis o influente papa Inocecircncio III que no seacuteculo XIII

em De miseria humane conditionis afirmava que o homem eacute ldquoindigno produtor de

lecircndeas piolhos vermes urina e fezesrdquo Tal afirmaccedilatildeo apenas confirmava a de Pedro

Damiatildeo que no seacuteculo XI proclamava ser o homem ldquouma criatura vil massa de

podridatildeo poacute e cinzardquo141 Diante de tal desencanto poucos seacuteculos mais tarde alguns

humanistas sentiram-se levados a responder a Inocecircncio III buscando

fundamentaccedilatildeo especialmente em Lactacircncio e Agostinho que haviam promovido o

reconhecimento do valor do homem apoiados no princiacutepio de sua criaccedilatildeo agrave imagem

de Deus142

O tratado inaugural acerca da dignidade humana primeira resposta textual a

Inocecircncio III surge com Bartolomeo Fazio que o escreve em contexto religioso e sob

inspiraccedilatildeo monaacutestica143 Seu contemporacircneo Lorenzo Valla em De Libero Arbitrio

de 1436 acresce elementos agrave reflexatildeo ao promover a valorizaccedilatildeo do livre arbiacutetrio

voltado sobretudo para o domiacutenio que o homem pode ter das forccedilas da natureza

introduzindo assim a discussatildeo teoreacutetica renascentista acerca da liberdade e

140 A ideia de miserabilidade humana remonta ateacute onde se sabe a Moiseacutes o homem embora criado agrave imagem

de Deus traz em si ldquoo jumento o reacuteptil e a bestardquo (Henri de LUBAC Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016) O tema relacionado agrave concepccedilatildeo da Queda e as consequentes formas de ldquolerrdquo o homem em uma estrutura hieraacuterquica teoloacutegica permite a elaboraccedilatildeo de uma tese por si soacute O caraacuteter ldquogeneacutericordquo de nossa abordagem visa salientar algumas interpretaccedilotildees mais significativas e pontuais da questatildeo

141 Petrus Damianus ou mais tarde San Pier Damiani foi uma autoridade bastante considerada no preacute-Humanismo Dante situou o cardeal reformador que seria alccedilado a Doutor da Igreja em 1823 num dos mais altos ciacuterculos do Paraiacuteso como precursor de Satildeo Francisco de Assis A citaccedilatildeo encontra-se em NUNES 1978 p 64 apud Antonio VALVERDE ldquoAportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandolardquo in Revista de Filosofia Aurora v21 n29 2009 p464

142 Em relaccedilatildeo agrave valoraccedilatildeo do homem o influxo de Lactacircncio e Agostinho se manteve ateacute boa parte da Primeira Idade Meacutedia Algumas obras de Agostinho que abordam o tema satildeo De Doctrina Christiana e as Confissotildees Com relaccedilatildeo a tal influxo haacute que se observar que o valor do homem estava relacionado com sua criaccedilatildeo agrave imagem de Deus sendo sua salvaccedilatildeo advinda da redenccedilatildeo em Cristo O movimento humanista comeccedila de forma embrionaacuteria a vislumbrar ndash e postular ndash a valoraccedilatildeo do homem em razatildeo de sua liberdade ligada agrave proacutepria responsabilidade ndash o que levaria a uma concepccedilatildeo de salvaccedilatildeo relacionada agraves suas escolhas

143 O historiador Bartolomeo Fazio foi levado a escrever por certo monge beneditino que precisava de uma complementaccedilatildeo para o De miseria humane conditionis de Inocecircncio III Para maiores detalhes acerca de Fazio consultar Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902

82

necessidade ndash e dando o passo inicial para um longo processo de ruptura entre Feacute e

Filosofia144 Quase duas deacutecadas mais tarde Giannozzo Manetti amplia a questatildeo

com seu tratado De Dignitate et Excellentia Hominis escrito em 1452 no qual refuta

ponto a ponto o profundo pessimismo expresso por Inocecircncio III sobre a miseacuteria

humana estabelecendo o mundo intelectual do vir-a-ser oposto ao mundo natural

do que meramente eacute145 Manetti retoma ainda na mesma obra a questatildeo da

soberania do homem que havia sido lanccedilada por Valla ideia de cunho biacuteblico

expressa no Gecircnesis 2 (representada pela faculdade dada ao homem de atribuir

nomes) que seraacute mais tarde reafirmada por Marsilio Ficino e Pietro Pomponazzi146

Assim que embora o Discurso de Pico tenha sido quase unanimemente

celebrado em funccedilatildeo de certo entendimento ao redor da questatildeo da dignidade

humana fato eacute que o tema foi amplamente explorado bem antes do advento do

Mirandolano tendo continuado em discussatildeo nos seacuteculos XVI e XVII147 Contudo e

apesar de preservar pouca conexatildeo orgacircnica com o humanismo de sua eacutepoca o tema

da dignidade apresenta relevacircncia na obra de Pico natildeo obstante se faccedilam uacuteteis uma

ressalva e algumas distinccedilotildees entre seu desenvolvimento e o de seus antecessores

A ressalva situa-se no emprego e entendimento do termo ldquodignidaderdquo que

devido agraves variaccedilotildees sofridas ao longo da histoacuteria pode ter suscitado interpretaccedilotildees

tantas vezes equivocadas O tiacutetulo De Hominis Dignitate como foi visto natildeo foi obra

de Pico mas escolha poacutestuma O Autor ademais utiliza a palavra ldquodignidaderdquo apenas

uma vez em todo o seu Discurso ndash e natildeo para qualificar o homem148 No decorrer dos

seacuteculos o termo tem sido utilizado em grande parte das vezes como sinocircnimo de

virtude ou hombridade tendo sido essa sua principal acepccedilatildeo desde alguns escritos

da Antiguidade Entretanto no seacuteculo VI Boeacutecio deu novo rumo ao conceito de

dignitas ajudando a dirimir a ideia tradicional romana que dava agrave palavra a

envergadura de honradez e respeitabilidade que pressupunha a virtude modificando

a concepccedilatildeo trazida pelas leituras de Ciacutecero de considerar a honra como

144 Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 pp 131-132 145 Sobre o historiador Giannozzo Manetti veja-se BURCKHARDT 1991 p 170-179 LUBAC Pico della

Mirandola-LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016 pp 247-259 Acerca do conteuacutedo de Manetti comenta CASSIRER que ldquosomente no interior do vir-a-ser o espiacuterito do homem encontraria sua morada e daria provas de sua dignidade e liberdaderdquo (Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 p 135 Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se ainda Giovanni GENTILE Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento 1991 p66

146 Na ideia de soberania expressa por Ficino GENTILE aponta para a origem do ldquoregnum hominisrdquo (opcit p 66) Pomponazzi trata do tema em sua obra De incantationibus de 1520 Para outros detalhes veja-se GARIN Lo Zodiaco della Vita 2007 p116

147 Para toda a questatildeo veja-se em Antocircnio VALVERDE o toacutepico ldquoConcepccedilotildees distintas de dignidade humana da Antiguidade ao Renascimentordquo (Aportes a Oratio de Hominis Dignitate 2009) Ainda GARIN Lrsquoumanesimo Italiano 2008 Note-se que outros importantes autores aleacutem dos citados escreveram sobre o tema da dignidade como Petrarca (Scipio Africanus) Coluccio Salutati (De Herculegrave eiusque laboribus) Poggio Bracciolini (De Nobilitate) e Landino (De nobilitate animae) entre outros No seacuteculo XVI o tema da dignidade humana passa por forte criacutetica nas obras dos reformadores Lutero e Calvino e jaacute no XVII eacute retomado pelos platocircnicos de Cambridge

148 PICO Oratio p123 ldquo[]natildeo soacute os misteacuterios mosaicos ou os cristatildeos mas tambeacutem a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais que estou a discutirrdquo (ldquoVerum enimvero nec Mosaica tantum aut Christiana mysteria sed priscorum quoque teologia harum de quibus disputaturus accessi liberalium artium et emolumenta nobis et dignitatem ostenditrdquo)

83

manifestaccedilatildeo da dignidade149 Em seu De consolatione Philosophiae o termo

dignitas assume uma caracteriacutestica neutra perdendo a valecircncia positiva que lhe era

atribuiacuteda ateacute entatildeo (honor et dignitates non sunt summum bonum)150 Mais tarde jaacute

durante a Idade Meacutedia e a partir dos rastros de Boeacutecio a dignitas passa a ser

utilizada na terminologia teoloacutegico-filosoacutefica sob o significado de princiacutepio filosoacutefico

geral ou axioma postulado151 Por fim aquela que seria uma quarta acepccedilatildeo situa a

dignitas na especiacutefica categoria das hierarquias marcando assim uma posiccedilatildeo

dentro de um sistema hieraacuterquico Esse eacute o sentido que parece ser melhor extraiacutedo do

texto piquiano dentro de um contexto cosmoloacutegico que contempla uma seacuterie

ordenada de graus e dignidades ndash portanto de valoraccedilatildeo neutra ndash onde o homem eacute

colocado graccedilas a suas intriacutensecas caracteriacutesticas152

Quanto agraves principais dessemelhanccedilas observadas na reflexatildeo sobre o homem

realizada na Oratio em comparaccedilatildeo aos conteuacutedos verificados em obras de

humanistas anteriores chamam a atenccedilatildeo alguns pontos

a) As contribuiccedilotildees que os filoacutesofos humanistas deram agrave questatildeo da dignidade

ndash em se assumindo o entendimento que daacute ao termo a valecircncia positiva de virtude ndash

embora sem duacutevida dotadas de caracteriacutesticas que as distinguem entre si estiveram

voltadas em linhas gerais para a capacidade de utilizaccedilatildeo da razatildeo em acircmbito da

esfera civil ou do uso de uma potencial soberania sobre os reinos inferiores Sob tal

foco o homem era dignificado atraveacutes de valores como o respeito ao proacuteximo o

princiacutepio do dever e a busca pela felicidade Esse foi o caso da consistente reflexatildeo de

Giannozzo Manetti voltada sobretudo agrave questatildeo da atividade humana em termos

morais153 Tambeacutem para Coluccio Salutati e seu disciacutepulo Leonardo Bruni a perfeiccedilatildeo

moral do homem se traduzia de forma perfeita no ideal da vida ciacutevica Lorenzo Valla

por sua vez natildeo apenas se empenhou para afirmar a noccedilatildeo de soberania do homem

sobre a natureza anteriormente mencionada como valorizou a vida mundana em

todos os seus aspectos contra qualquer negaccedilatildeo asceacutetica Em uma famosa polecircmica

antiestoacuteica defendia que mesmo na natureza e na carne pode ser reconhecida a obra

de Deus154 A anaacutelise de Pico embora atuando no cenaacuterio antropoloacutegico que ocupava

espaccedilo cada vez maior dentro dos studia humanitatis acrescenta ao problema da

149 A fundamentaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo estaacute desenvolvida na obra de Mette LEBECH On the Problem of Human

Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg 2009 sobretudo p 62 150 BOEacuteCIO A Consolaccedilatildeo da Filosofia III 151 Veja-se Tomaacutes de AQUINO In Met III 5 390 VICO em Scienza Nuova manteacutem o uso de dignitas em seu

significado de ldquoaxiomardquo na parte em que trata ldquodos Elementosrdquo Essa utilizaccedilatildeo continuou ainda na Idade Moderna veja-se Galilei na passagem ldquoa terra natildeo pode separar-se de sua natureza de trecircs movimentos diversos ou seria necessaacuterio rejeitar muitas das dignidades manifestasrdquo (Cf Lettera a Francesco Ingoli in Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei (org) FAVARO 1933 pp 509-61)

152 Enquanto na Oratio Pico utiliza apenas uma vez o termo ldquodignidaderdquo (e natildeo no contexto de qualificaccedilatildeo do homem) no Heptaplus Pico falaraacute diretamente de dignidade do homem como posiccedilatildeo especial central dentro de uma escala ldquoNoacutes procuramos no homem uma nota que lhe seja peculiar com a qual se explique a dignidade que lhe eacute proacutepriardquo (Heptaplus V 6 ed 1942 p303) E ainda ldquoDevemos nos guardar em natildeo apreciar o grau de dignidade em que fomos colocadosrdquo (V 7 p307)

153 Cf De Dignitate et Excellentia Hominis Ver o toacutepico concernente a Manetti em GARIN Lrsquoumanesimo Italiano

154 GARIN LUmanesimo italiano 2008 respectivamente pp 69 e 62

84

filosofia moral uma dimensatildeo quase que estritamente metafiacutesica155 Essa distinccedilatildeo eacute

evidenciada logo na primeira paacutegina da Oratio em que o autor demonstra

insatisfaccedilatildeo com os enaltecimentos ateacute entatildeo proferidos aos atributos da natureza

humana certamente referindo-se agraves natildeo poucas obras anteriores escritas em seu

seacuteculo Entre os argumentos ldquoutilizados por muitosrdquo acerca da grandeza humana

Pico destaca o quase unacircnime elogio feito ao papel do homem qual ldquoviacutenculo das

criaturas superiores e inferioresrdquo ou ldquointeacuterprete da natureza em virtude da agudeza de

seus sentidos do poder indagador da razatildeo e da luz de seu intelectordquo Essas

qualidades no entanto natildeo o satisfazem e levam-no a um questionamento que natildeo

apenas sinaliza a criacutetica a seus antecessores como lhe permite ingressar em seu

argumento metafiacutesico

Grandes coisas estas sem duacutevida mas natildeo as mais importantes

isto eacute natildeo tais que consintam a reivindicaccedilatildeo do privileacutegio de

uma admiraccedilatildeo ilimitada Porque de fato natildeo deveremos noacutes

admirar mais os anjos e os beatiacutessimos coros celestes156

b) A pergunta introduz a reflexatildeo de Pico acerca da natureza indefinida do

homem nosso segundo ponto distintivo Em elaborado discurso o autor postula

atraveacutes de sua resposta a natureza ontologicamente indeterminada do homem que o

distingue tanto do mundo natural quanto do mundo angeacutelico abrind0-lhe a

possibilidade de se automodelar pelo uso que faz de sua faculdade de escolha Tal

natureza indeterminada natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo no homem mas ao contraacuterio um

privileacutegio que lhe permite natildeo ser constrangido por nenhuma limitaccedilatildeo e que lhe daacute o

atributo de em conformidade com sua vontade degenerar ou se regenerar A

concepccedilatildeo se erige atraveacutes das palavras proferidas ao primeiro homem pelo ldquodeus-

artiacuteficerdquo ndash personagem do Mito da Criaccedilatildeo piquiano

lsquoNatildeo te fizemos nem celeste nem terreno nem mortal nem

imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo

te plasmasses e te moldasses na forma que tivesses

155 A filosofia moral natildeo eacute irrelevante para Pico ao contraacuterio eacute um estaacutegio importante de evoluccedilatildeo da posiccedilatildeo

humana como seraacute visto Mas natildeo desfruta da mesma importacircncia que para seus colegas Coluccio Salutati por exemplo em discurso contra a filosofia teoacuterica-metafiacutesica e a favor da moral escreveria em seu De nobilitate legum et medicinae ldquoMuito me admira afirmares que a sabedoria consiste na contemplaccedilatildeo cuja serva seria a prudecircncia havendo entre elas a mesma relaccedilatildeo que haacute entre o administrador e o senhor e dizeres que a sapiecircncia eacute a maior das virtudes pertencente agrave melhor parte da alma que eacute do intelecto e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiecircncia E acrescentas que sendo a metafiacutesica a uacutenica ciecircncia livre o filoacutesofo quer que a especulaccedilatildeo preceda em tudo a accedilatildeo Mas a verdadeira sapiecircncia natildeo consiste como crecircs na especulaccedilatildeo pura Se tirares a prudecircncia natildeo acharaacutes nem sapiente nem sapiecircncia Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse co-nhecido coisas celestes e divinas sem que houvesse provido a si mesmo sem que houvesse sido uacutetil aos amigos agrave famiacutelia aos parentes e agrave paacutetriardquo No mesmo espiacuterito Leonardo Bruni em Isagogicon moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da filosofia moral sobre a filosofia teoacuterica Esse mostrou-se um vieacutes caracteriacutestico de muitos humanistas o de que soacute a filosofia moral seria ativa Veja-se ampla discussatildeo em GARIN LUmanesimo italiano 2008

156 PICO Oratio p102 ldquo(Horum dictorum rationem cogitanti mihi non satis illa faciebant quae multa de humanae naturae praestantia afferuntur a multis esse hominem creaturarum internuntium superis familiarem regem inferiorum sensuum perspicacia rationis indagine intellegentiae lumine naturae interpretem stabilis aevi et fluxi temporis interstitium er ndash quod Persae dicunt ndash mundi copulam immo hymenaeum ab angelis teste Davide paulo deminutum) Magna haec quidem sed non principalia id est quae summae admirationis privilegium sibi iure vindicent Cur enim non ipsos angelos er beatissimos caeli choros magis admiremurrdquo

85

seguramente escolhido Poderaacutes degenerar nas coisas inferiores

que satildeo os brutos poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades

superiores que satildeo divinas por decisatildeo da tua vontadersquo157

A passagem que se estabelece como a mais celebrada da inteira obra piquiana

ndash e sobre a qual recai a parte majoritaacuteria das leituras que afirmaram a dignificaccedilatildeo do

homem ndash apresenta um problema de ordem protoloacutegica que concerne agrave origem

teoloacutegica do homem Pico natildeo reafirma a dignidade do homem com base em sua

semelhanccedila em Deus sem prejuiacutezo de sua feacute a originalidade158 de seu homem

consiste conforme suas palavras em natildeo ter uma natureza predefinida mas em ser

ldquoopus indiscretae imaginisrdquo159 A natildeo-determinaccedilatildeo do homem mais do que uma

ausecircncia se daacute em razatildeo de uma demasia jaacute que nele encontram-se todas as

sementes situaccedilatildeo que natildeo ocorre com as bestas (que ldquotrazem consigo tudo [e

apenas] aquilo que depois teratildeordquo) e tampouco com os espiacuteritos superiores (que

ldquodesde o princiacutepio ou pouco depois foram o que seratildeo eternamenterdquo)160

c) O terceiro ponto de sutil diferenccedila em relaccedilatildeo ao anterior apresenta uma

distinccedilatildeo na posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem dentro do universo que ocupa ndash um

problema que chamariacuteamos de ordem cosmoloacutegica Embora sem negar a posiccedilatildeo

central do homem aceita na teologia medieval (ldquoo artiacutefice tomou o homem de

natureza indefinida e colocou-o no meio do mundordquo)161 Pico distancia-se

conscientemente da concepccedilatildeo hieraacuterquica mais usual conferindo ao homem um

novo status no universo Ele havia aprendido com seus principais mestres

escolaacutesticos que o lugar do homem estava determinado dentro da ordenaccedilatildeo

universal encontrando-se entre os reinos elementar celestial e angeacutelico Em sua

cosmovisatildeo o homem eacute retirado da fixidez escalar dos mundos ao ser-lhe

apresentada a possibilidade de ser e participar em todos os reinos No ponto (b)

acima trata-se de uma questatildeo de ldquosubstacircnciardquo jaacute que o homem carrega sementes

que os seres dos demais graus natildeo possuem Agora se trata de uma questatildeo de

mobilidade em razatildeo de seu proacuteprio arbiacutetrio Partindo de sua posiccedilatildeo central o

homem pode descer aos niacuteveis subumanos ou se elevar a niacuteveis supra-humanos

157 Oratio p 106 ldquoNec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius

quasi arbitrarius honorariusque plastes er fictor in quam malueris tu te formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo

158 A concepccedilatildeo da natureza indeterminada do homem foi considerada e aceita como originalidade de Pico della Mirandola Fato certo eacute que tal originalidade se houver deve ser admitida no que concerne agrave tradiccedilatildeo teoloacutegica ocidental ndash entenda-se na Era Cristatilde Antes desse periacuteodo haacute registros de concepccedilotildees similares em outras tradiccedilotildees que natildeo apenas eram conhecidas por Pico como foram utilizadas de forma aberta na De Hominis Dignitate Veja-se mais no toacutepico ldquoO tema da Concoacuterdiardquo

159 ldquoObra de imagem indeterminadardquo Conforme a Oratio ldquoIgitur hominem accepit indiscretae opus imaginis atque in mundi positum meditulliordquo Provavelmente ao escrever que o homem eacute ldquoobra de imagem indeterminadardquo Pico natildeo pretendia contradizer qualquer noccedilatildeo teoloacutegica referente agrave complexa problemaacutetica da ldquoimagem-semelhanccedilardquo de Deus fazendo apenas um uso retoacuterico das palavras Essa talvez tenha sido a razatildeo de Garin ter optado por traduzir o trecho ldquoindiscretae imaginisrdquo por ldquonatureza indeterminadardquo ao inveacutes de ldquoimagem indeterminadardquo ldquoPerciograve [lrsquoottimo artefice] accolse lrsquo uomo come opera di natura indefinitardquo (ed 1942 pp104-105)

160 Oratio p106 ldquoBruta simulatque nascuntur id secum afferunt (ut ait Lucilius) e bulga matris quod possessura sunt Supremi spiritus aut ab initio aut paulo mox id fuerunt quod sunt futuri in perpetuas aeternitates Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit paterrdquo

161 Oratio p106 ldquoMedium te mundi possuirdquo

86

condiccedilotildees que os elementos dos demais niacuteveis inclusos os anjos natildeo podem

experimentar

O tema da dignidade contempla ainda imbuiacutedo entre suas linhas um

importante desdobramento que concerne ao problema da liberdade do homem162 A

liberdade postulada por Pico natildeo se encontra pronta e soacute poderaacute ser adquirida

atraveacutes de constante exerciacutecio para sua efetivaccedilatildeo jaacute que a natureza humana abriga

vaacuterias formas de resistecircncia a tal efetivaccedilatildeo Uma mudanccedila de tocircnica que passa do

teor elogioso inicial para uma chamada de atenccedilatildeo em direccedilatildeo agraves fraquezas da

constituiccedilatildeo humana ndash com a subsequente prescriccedilatildeo do uso da liberdade como

soluccedilatildeo ndash pode ser observada nesse sentido quando se seguem as paacuteginas do

Discurso Ora pouco apoacutes afirmar que o homem pode ser tudo inclusive partiacutecipe da

vida angeacutelica Pico reflete que natildeo podemos atingir o modelo de vida dos Querubins

ldquonoacutes que somos carne e que temos o gosto das coisas terrenasrdquo Seraacute antes necessaacuterio

ldquodominar com a ciecircncia moral o iacutempeto das paixotildees dissipar a treva da razatildeo com a

dialeacutetica limpar a alma da ignoracircncia e do viacutecio para que as afecccedilotildees natildeo se

desencadeiem cegamente e tampouco a razatildeo imprudente algumas vezes delirerdquo163

Assim embora as primeiras paacuteginas do Discurso possam levar a qualificaacute-lo

como um tratado de otimismo em relaccedilatildeo ao homem o tom inicial de exaltaccedilatildeo (ldquooacute

suma e admiraacutevel felicidade do homem ao qual eacute concedido obter o que deseja ser

aquilo que querrdquo)164 eacute prontamente substituiacutedo pela constataccedilatildeo das dificuldades

ocasionadas por sua experiecircncia na mateacuteria seguida pela exortaccedilatildeo a assumir uma

responsabilidade eacutetica em relaccedilatildeo ao seu papel A argumentaccedilatildeo do tema se conclui

com a indicaccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio como meio de encetar sua necessaacuteria

transformaccedilatildeo Haacute pois nessa trajetoacuteria um pronunciado aspecto dialeacutetico165 na

medida em que Pico expotildee a necessidade do contiacutenuo exerciacutecio da razatildeo e de seu

poder indagador que o capacita a fazer escolhas Sob esse enfoque o problema

ontoloacutegico da natureza humana eacute colocado a posteriori nunca a priori diversamente

dos animais e anjos cuja natureza fixa natildeo pode ser modificada o homem pode de

acordo com suas escolhas transformar a proacutepria natureza

Finalmente haacute que se observar que tal possibilidade implica dois preceitos

por um lado essa ideia carrega uma exigecircncia aparentemente contraditoacuteria

162 A temaacutetica da liberdade presente no Discurso tem sido celebrada por comentadores ao longo dos uacuteltimos

seacuteculos Dentre os contemporacircneos por todos aqueles que seguiram os passos de Cassirer e Garin embora se verifiquem algumas poucas discordacircncias William Craven natildeo concorda com essa celebraccedilatildeo e Brian Copenhaver afirma que natildeo haacute na Oratio nada das noccedilotildees de liberdade criatividade e individualidade que lhe foram atribuiacutedas (acerca de Craven e Copenhaver veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 n p 78)

163 PICO Oratio p113 A reflexatildeo acerca da condiccedilatildeo instaacutevel do homem se manteraacute em obras posteriores em sua uacuteltima obra Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Pico fala de ldquonoacutes homuacutenculosrdquo (ed Vallecchi 1952 p444) No Heptaplus aquilo que rendia o homem um ldquodivino camaleatildeordquo era tambeacutem aquilo que o caracterizava como uma ldquotoupeira cegardquo o seu ser perenemente colocado no veacutertice da incerteza suspenso entre a ldquosuma miseacuteriardquo e a ldquosuma felicidaderdquo capaz mais de amar a verdade do que de possuiacute-la (De Hominis Dignitate etc 1942 p339)

164 Oratio p106 ldquoO summam dei patris liberalitatem summam et admirandam hominis felicitatem cui datum id habere quod optat id esse quod velitrdquo

165 Veja-se a propoacutesito a reflexatildeo de SIRGADO GANHO (ldquoComentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitaterdquo 2001 pp26-28) acerca da dimensatildeo dialeacutetica eacutetica e metafiacutesica que podem ser reconhecidas na obra de Pico

87

porquanto o livre-arbiacutetrio deveraacute ser ativado para que ocorra a autotransformaccedilatildeo

condiccedilatildeo que instaurando uma conjuntura ciacuteclica aumentaraacute o grau de sua liberdade

e consequentemente o poder de se transformar Por outro lado percebe-se nessa

situaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo do homem agrave liberdade jaacute que ele teraacute de escolher por si a

proacutepria condiccedilatildeo ndash tese notaacutevel para a eacutepoca Como explica o deus-artiacutefice

lsquoA natureza bem definida dos outros seres eacute refreada por leis por

noacutes prescritas Tu pelo contraacuterio natildeo constrangido por

nenhuma limitaccedilatildeo determina-la-aacutes para ti segundo o teu

arbiacutetriorsquo166

2 O tema da Concoacuterdia

As palavras iniciais que abrem o Discurso evidenciam a intenccedilatildeo de propor

uma filosofia conciliatoacuteria Dirigindo-se aos ldquopadri venerandirdquo (teoacutelogos e cardeais

para os quais satildeo apresentadas as justificativas) Pico dispotildee logo nas primeiras

linhas um autor da tradiccedilatildeo islacircmica acostado a outro da tradiccedilatildeo egiacutepcia O elogio

ao homem feito por Abdallah Sarraceno (ldquonada haacute de mais admiraacutevel do que o

homemrdquo) eacute comparado com a famosa sentenccedila de Hermes Trismegisto dirigida a

Ascleacutepio (ldquogrande milagre eacute o homemrdquo)167 Atraveacutes dessa escolha eacute dada autoridade a

um personagem proveniente do mundo islacircmico o maior dos antagonistas colocado

ao lado da entatildeo celebrada autoridade egiacutepcia dentro daquela Disputa que teria por

objetivo a paz filosoacutefica168

Li nos escritos dos Aacuterabes venerandos Padres que interrogado

Abdallah Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetaacuteculo

mais maravilhoso neste cenaacuterio do mundo tinha respondido

que nada via de mais admiraacutevel do que o homem Com esta

166 Oratio p106 ldquoTu nullis angustiis coercitus pro tuo arbitrio in cuius manu te posui tibi illam praefiniesrdquo 167 Eis a sentenccedila de Hermes na qual Pico se baseia ldquoPropter haec o Asclepi magnum miraculum est homo

animal adorandum et honorandum Hoc enim in naturam dei transit quasi ipse sit deus []rdquo (cf Corpus Hermeticum ed NOCK-FESTUGIEgraveRE Milano 2005 II)

168 Sobre Abdallah Sarraceno alguns comentadores acreditam tratar-se de Abd-Allah Ibn Al-Muquaffagrave escritor persa do seacuteculo VIII (cf FERACINE notas agrave Oratio 1999) Entretanto Pier Cesare Bori atraveacutes de uma pesquisa bastante aprofundada leva-nos a crer que se trate de Abdallah al-Tarjumacircn ou Anselmo Turmeda frade franciscano nascido em Palma de Maiorca no seacuteculo XIV estabelecido em Bolonha por razotildees de estudo Segundo sua autobiografia a Tuhfa ele teria recebido de um pio religioso a sugestatildeo de aproximar-se ao Islam e acabaria por converter-se na cidade de Tunis Em outra obra Disputa dellAsino de 1417 pode ser encontrada uma das fontes acerca da dignidade do homem na qual Turmeda apresenta um fundamento teoloacutegico muito similar agrave metaacutefora utilizada por Pico em seu Mito adacircmico Embora a Disputa dellAsino natildeo faccedila parte dos livros de Pico certamente a notiacutecia da disputa de Abdallah-Turmeda natildeo lhe era desconhecida Para maiores detalhes acerca de toda a questatildeo veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564 Do mesmo autor Pluralitagrave delle vie Milano 2000 pp43 ss Ainda ZAMBELLI Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lullina in Pico della Mirandola e seguaci 1995 p29

88

sentenccedila concorda aquela famosa de Hermes lsquoGrande milagre

oacute Ascleacutepio eacute o homemrsquo169

A passagem inaugura o elogio feito agrave filosofia de heterogecircneas escolas e

eacutepocas que perpassa todas as paacuteginas da Oratio como pode ser verificado atraveacutes de

variegadas tentativas de estabelecimento de acordo entre sistemas filosoacuteficos

considerados distintos170 Na passagem em que justifica a escolha dos temas das

Conclusiones Pico ressalta algumas dentre tais concordacircncias que natildeo se limitando

agrave Filosofia alcanccedilam a Teologia

[] insatisfeito por ter trazido aleacutem das doutrinas comuns

muitos assuntos da antiga teologia de Mercuacuterio Trismegisto

muitas das teorias dos Caldeus e de Pitaacutegoras muitos dos

escondidos misteacuterios dos Hebreus tambeacutem propus agrave discussatildeo

muitiacutessimos assuntos concernentes ao mundo natural e divino

encontrados e meditados por mim []Propus o acordo entre

Platatildeo e Aristoacuteteles [e] as sentenccedilas consideradas

contrastantes de Escoto e de Tomaacutes de Averroacuteis e de Avicena

que pelo contraacuterio satildeo concordantes171

Outras vaacuterias correspondecircncias satildeo efetuadas de forma fluiacuteda integrando

registros extraiacutedos do campo filosoacutefico teoloacutegico e misterioloacutegico em um estilo

literaacuterio proacuteprio Em meio agrave narrativa que trata da distribuiccedilatildeo de talentos feita por

Deus (ldquosummus pater architectus Deusrdquo) em seu Mito adacircmico Pico busca concordar

a tradiccedilatildeo biacuteblica com a pagatilde-filosoacutefica atraveacutes da menccedilatildeo agrave passagem inicial do

Gecircnesis (II 1) sobre a origem do mundo harmonizada com a passagem platocircnica

descrita no Timeu 41 (b-d) ldquouma vez tudo realizado como Moiseacutes e Timeu

atestam172 pensou por uacuteltimo criar o homemrdquo173 A concepccedilatildeo de distribuiccedilatildeo de

arqueacutetipos na mesma narrativa eacute emprestada de outro diaacutelogo platocircnico o

Protaacutegoras em que eacute narrado o ldquoMito da Criaccedilatildeo do Homemrdquo174 A analogia eacute clara

169 Oratio p 102 ldquoLegi Patres colendissimi in Arabum monumentis interrogatum Abdalam Sarracenum

quid in hac quasi mundana scena admirandum maxime spectaretur nihil spectari homine mirabilius respondisse Cui sententiae illud Mercuri adstipulatur lsquoMagnum o Asclepi miraculum est homorsquordquo

170 Para a questatildeo da Concoacuterdia filosoacutefica como sendo a principal intenccedilatildeo de Pico ao redigir a Oratio veja-se Cesare VASOLI Imagini Umanistiche 1983 p5

171 Oratio pp144-46 ldquoPropterea non contentus ego praeter communes doctrinas multa de Mercurii Trismegisti prisca theologia multa de Chaldaeorum de Pythagorae disciplinis multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mysteriis plurima quoque per nos inventa et meditata de naturalibus et divinis rebus disputanda proposuimus Proposuimus primo Platonis Aristotelisque [] Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo

172 Na passagem em questatildeo Pico refere-se a Moiseacutes como autor do Gecircnesis Ademais refere-se diretamente a Timeo di Locri filoacutesofo pitagoacuterico vivido no IV seacuteculo aC contemporacircneo de Platatildeo e autor da obra De Anima Mundi muito provavelmente o personagem que interage com Soacutecrates no diaacutelogo Timeu (Cf Enrico PEGONE tradutor de Timeu em Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010) O trecho de Platatildeo que trata do assunto estaacute em Timeu 41-b ss

173 Oratio p 104 ldquoIdcirco iam rebus omnibus (ut Moses Timaeusque testantur) absolutis de producendo homine postremo cogitavitrdquo

174 PLATAtildeO Protaacutegoras 320d-321e Conta o mito que apoacutes terem os deuses modelado dentro da terra os gecircneros mortais Epimeteu torna-se o responsaacutevel pela distribuiccedilatildeo de suas capacidades Ao terminar a tarefa seu irmatildeo Prometeu descobre que todos os animais receberam qualidades harmoniosamente enquanto o homem estaacute nu descalccedilo sem cobertas e sem armas

89

ldquodos arqueacutetipos natildeo restava nenhum sobre o qual moldar a nova criatura [o homem]

e nem dos lugares em todo o mundo restava algum em que pudesse sentar-se o

contemplador do universordquo175 Algumas paacuteginas adiante recorre mais uma vez agrave

concordacircncia entre a tradiccedilatildeo biacuteblica-cristatilde (agora representada por Moiseacutes e os

Padres da Igreja) e a platocircnica quando ao discorrer acerca do caminho eacutetico de

aperfeiccediloamento aponta para o amor como possibilidade regeneradora

Moiseacutes amou o Deus que viu e promulgou ao povo como juiz

aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplador

Eis porque no meio o Querubim com a sua luz nos prepara

para a chama seraacutefica [] Esse eacute o noacute das primeiras mentes a

ordem sapiencial que preside agrave filosofia contemplativa isso

devemos antes de tudo emular investigar e compreender 176

A menccedilatildeo agrave ordem angeacutelica eacute utilizada para acostar um teoacutelogo cristatildeo de

tradiccedilatildeo neoplatocircnica Dioniacutesio ao principal emissaacuterio da tradiccedilatildeo hebraica a

sublimidade dos Serafins seraacute alcanccedilada atraveacutes da luz querubiacutenica da mesma forma

que Moiseacutes atraveacutes do amor despertado pela visatildeo de Deus pocircde transmitir ao povo

o que havia visto quando se encontrava em estado de contemplaccedilatildeo A qualidade da

luz ndash atribuiacuteda aos querubins conforme se lecirc em Dioniacutesio177 ndash eacute diretamente

relacionada ao conhecimento advindo da contemplaccedilatildeo como seraacute verificado no

proacuteximo item Essa eacute uma funccedilatildeo intermediaacuteria entre as ordens angeacutelicas anterior e

posterior que busca alcanccedilar a dimensatildeo do amor absoluto tornando-a anaacuteloga agrave

funccedilatildeo intermeacutedia da alma humana Na continuidade da sentenccedila Pico efetua uma

analogia com o domiacutenio platocircnico ao prescrever que apoacutes se entregar agrave filosofia

contemplativa o homem poderaacute ser alccedilado ldquoaos fastiacutegios do amorrdquo retornando em

seguida devidamente preparado para as tarefas da accedilatildeo178

Uma concordacircncia de outra categoria eacute apontada na obra quando ao tratar do

problema da natureza do homem e de sua possibilidade de tudo ser Pico encontra

conformidades em tradiccedilotildees iacutempares como a hebraica a islacircmica a caldaica e a

grega esta uacuteltima representada pela filosofia pitagoacuterica e empedocliana e pela

religiosidade dos Misteacuterios helecircnicos Vejamos Pico se remete a alguns tipos de

transformaccedilotildees promovidas durante os cultos misteacutericos de antigas tradiccedilotildees Eacute o

caso da transformaccedilatildeo narrada por certo Ascleacutepio ateniense179 que durante os ritos

ldquodevido ao aspecto mutaacutevel e a uma natureza capaz de se transformarrdquo dizia-se

175 Oratio p104 ldquoVerum nec erat in archetypis unde novam subolem effingeret nec in thesauris quod novo

filio hereditarium largiretur nec in subselliis totius orbis ubi universi contemplator iste sederetrdquo 176 Oratio p112 ldquoAmavit Moses Deum quem vidit et administravit iudex in populo quae vidit prius

contemplator in monte Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos praeparat et ad Thronorum iudicium pariter Illuminat hic est nodus Primarum mentium ordo palladicus philosophiae contemplativae praeses hic nobis et aemulandus primo et ambiendus atque adeo comprehendendus estrdquo

177 PSDIONISIO AREOPAGITA De Coelesti Hierarchia VI-VII 178 O tema seraacute visto de forma aproximada no proacuteximo toacutepico 179 O Ascleacutepio ateniense citado por Pico natildeo eacute identificaacutevel conforme informa Luiz Feracine em sua traduccedilatildeo

da obra (1999) Certo eacute que Pico quer distingui-lo do conhecido Ascleacutepio de Trales na Liacutedia filoacutesofo neoplatocircnico e disciacutepulo de Amocircnio vivido no seacuteculo VI dC e que deixou um comentaacuterio sobre os primeiros sete livros da Metafiacutesica de Aristoacuteteles Pela referecircncia aos Misteacuterios que envolvem Proteu ndash no Hino oacuterfico 25 eacute feita menccedilatildeo a Proteu ndash eacute provaacutevel tratar-se de personagem de periacuteodo anterior agrave Era Cristatilde

90

simbolizado por Proteu180 Ou ainda das metamorfoses que ocorrem em cerimocircnias

secretas da misteriologia aramaica que ldquotransformam ora Enoch santo no anjo da

divindade e o chama malakh haacute-chekli-natildeh ora outros noutros espiacuteritos divinosrdquo181

Embora natildeo se tenha maiores esclarecimentos acerca dessas duas passagens eacute

possiacutevel afirmar que ambas corroboram como fundamentos acessoacuterios a concepccedilatildeo

piquiana da capacidade seja degenerativa que regenerativa do homem Tal ideia eacute

ilustrada na continuidade do texto pela referecircncia a Maomeacute (ldquoquem se afasta da lei

divina torna-se uma bestardquo) e em acircmbito grego pela referecircncia ao Pitagorismo e a

Empeacutedocles (ldquoe os Pitagoacutericos transformam os celerados em bestas e a acreditar em

Empeacutedocles ateacute mesmo em plantasrdquo)182 O trecho introduz um novo elemento entre

os temas lanccedilados na obra atraveacutes da alusatildeo agrave metempsicosis183 Em relaccedilatildeo ao

Pitagorismo Pico certamente se refere de forma direta ou indireta ao fragmento 21

de Xenoacutefanes quando alude agrave transformaccedilatildeo ldquodos celerados em bestasrdquo uacutenico

fragmento a trazer um conteuacutedo similar agrave passagem em questatildeo184 Jaacute Empeacutedocles

trata do tema em seu Purificaccedilotildees onde afirma que agrave semelhanccedila dos outros

daacuteimones fora tambeacutem ele condenado agrave mortalidade (mas que apoacutes um correto ciclo

de encarnaccedilotildees a divindade poderia ser novamente atingiacutevel)185 Embora Pico natildeo

aborde o tema da transmigraccedilatildeo diretamente em nenhuma de suas obras ndash nas

Conclusiones por exemplo a menccedilatildeo eacute feita por via obliacutequa ndash186 eacute bastante relevante

o aceno agrave possibilidade de que o processo de regeneraccedilatildeo e degeneraccedilatildeo do homem

pode se dar natildeo apenas no decurso de uma vida mas na decorrecircncia de vaacuterias ndash um

conteuacutedo que encontra correspondecircncias em algumas das principais doutrinas de

cunho esoteacuterico recepcionadas por Pico A passagem se conclui com uma fonte

extraiacuteda dos caldeus atraveacutes da qual o autor aproxima-se de sua principal concepccedilatildeo

a de que o homem carrega todas as sementes

180 Oratio p106 ldquoQuem non immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius ei se ipsam transformantis

naturae argumento per Proteum in mysteriis significari dixitrdquo 181 Oratio p108 ldquoNam et Hebraeorum theologia secretior nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis quem

vocant lsquomalakh haacute-chekli-natildehrsquo nunc in alia alios numina reformatrdquo Acerca da expressatildeo Malakh haacute-chekli-natildeh ndash escrita por Pico em ideogramas hebraicos e suprimida de vaacuterias traduccedilotildees inclusive da tradicional de Garin de 1942 ndash seu significado eacute ldquoo anjo de sheklinatildehrdquo De acordo com a Biacuteblia o patriarca Enoque natildeo teve a morte comum dos mortais (Gecircnesis V 21-24) o que o torna segundo a crenccedila um ldquoanjo da divindaderdquo Por isso a misteriologia aramaica conservada nos livros apoacutecrifos atribui a Enoque o nome de Metraton e assim eacute designado no Talmud e no Midrash De acordo com tal tradiccedilatildeo Metraton equivale a ldquoanjo em que subsiste o nome de Deusrdquo Por extensatildeo semacircntica chegou-se a identificar o nome Metraton com os atributos da divindade e com o proacuteprio ser divino resultando daiacute a figura do Mithra de Zaratustra Pico mais ortodoxo no assunto usa o termo sheklinatildeh no sentido figurado de esplendor ou manifestaccedilatildeo de Deus (cf nota agrave traduccedilatildeo de Luiz FERACINE 1999)

182 Oratio p108 ldquoEt Pythagorici scelestos homines in bruta deformant ei si Empedocli creditur etiam in plantasrdquo

183 A metempsicose doutrina de transmigraccedilatildeo da alma em corpos sucessivos manifesta-se no mundo grego por volta do final do seacuteculo VI aC de acordo com o mais antigo testemunho o de Piacutendaro em sua segunda Ode Oliacutempica de 476 aC (cf Walter BURKERT Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 p97 e Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica 1993 p568) Conferir para maiores detalhes a obra de Gabriele CORNELLI (O Pitagorismo como Categoria Historiograacutefica 2011 p145 ss)

184 No famoso fragmento (21 B7 DK Dioacutegenes Laeacutercio VIII 36) um dos mais antigos testemunhos sobre o assunto Xenoacutefanes estaria zombando de Pitaacutegoras ao insinuar que ele teria visto em um catildeo a alma de um amigo A crenccedila pitagoacuterica na metempsicose eacute ainda mencionada por Iacuteon de Chios Heroacutedoto Filolau Aristoacuteteles (que a descreve como faacutebula pitagoacuterica) e Platatildeo

185 O mote transmigracionista estaacute ainda presente no Poema lustral de Empeacutedocles que narra a aventura da alma-daacuteimon banida do Olimpo dos bem-aventurados jogada num corpo e ligada ao ciclo dos nascimentos durante tal jornada passa pela condiccedilatildeo de ldquomenino e menina arbusto passarinho e mudo peixe do marrdquo Vejam-se os fragmentos em KIRK RAVEN SCHOFIELD Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos Lisboa 2007 pp296 329-330

186 Vejam-se as Conclusiones nrs (I) IV II 8 (Adelando Aacuterabe) (I) VIII 4 (Zoroastro)

91

O persa Evantes onde expotildee a teoria caldaica escreve que o

homem natildeo possui uma sua especiacutefica e nativa imagem mas

muitas estranhas e adventiacutecias Daiacute o dito caldaico de que o

homem eacute animal de natureza vaacuteria multiforme e mutaacutevel187

Quase ao encerramento de seu Discurso e assim como o fez nas Conclusiones

Pico aborda a questatildeo da Cabala procurando mostrar atraveacutes de alguns de seus

maiores representantes a concoacuterdia com o Cristianismo (ldquoli as mesmas coisas que

todos os dias lemos em Paulo e Dioniacutesio em Jerocircnimo e em Agostinhordquo) e com a

Filosofia (ldquoparece-nos ouvir Pitaacutegoras e Platatildeordquo)188 A busca da paz final eacute segundo

Pico o ponto em que todas as filosofias se unem em concoacuterdia para regozijar-se na

ldquosantiacutessima pazrdquo apregoada pelos cristatildeos ldquodesfrutar da amizade concorderdquo

pitagoacuterica e alcanccedilar a ldquoindissoluacutevel uniatildeordquo apregoada por Averroacuteis Essa eacute a maneira

escrita em formas diferentes por meio da qual ldquotodas as almas natildeo soacute se acordam

numa uacutenica Mente que estaacute acima de cada mente mas tambeacutem de uma maneira

inefaacutevel se fundem em uma soacuterdquo189

O tema da Concoacuterdia ocupa espaccedilo proeminente no pensamento de Giovanni

Pico cuja proposta eacute reclamar a verdade atraveacutes do constante exerciacutecio dialeacutetico dos

pontos de vista Tendo sido alcanccedilado o objetivo referente a cada saber individual

cujas especiacuteficas concepccedilotildees foram escritas para a discussatildeo no debate romano o

proacuteximo passo do autor seria o de comprovar o acordo entre as vaacuterias tradiccedilotildees

abordadas prerrogativa para estabelecer a unidade da verdade O tema aqui iniciado

necessaacuterio para a siacutentese final seraacute retomado no Capiacutetulo VII pois que cada forma de

filosofar apresentada pelo autor mostra-se como um caminho de aproximaccedilatildeo agrave

verdade que uma vez alcanccedilada prescinde das particularidades de cada forma

Veremos a seguir que para estabelecer o caraacuteter universal da verdade Pico percorre

doutrinas que confluem em relaccedilatildeo a um paradigma que se estabelece pela

consecuccedilatildeo de estaacutegios relacionados a uma evoluccedilatildeo asceacutetica

3 O tema da Ascese

A liberdade preconizada sob o tema da dignidade encontra-se sujeita agrave

efetivaccedilatildeo e suplantaccedilatildeo de certos estaacutegios Meacutetodos para percorrer caminhos

187 Oratio p108 ldquoIdcirco scribit Euantes Persa ubi Chaldaicam theologiam enarrat non esse homini suam

ullam et nativam imaginem extrarias multas er adventicias Hinc illud Chaldaeorum lsquoEnosh hu shinnuim vekammah tebhaoth baal hajrsquo idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animalrdquo No texto original Pico apresenta em ideogramas aparentemente hebraicos a passagem referente ao dito caldaico Acerca de Evantes e de acordo com nota do tradutor FERACINE (1999) sua identidade eacute desconhecida

188 Oratio p160 ldquo[]eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimus In his vero quae spectant ad philosophiam Pythagoram prorsus audias et Platonem [hellip]rdquo

189 Oratio p118 ldquo[hellip]optata pace perfruemur pace sanctissima individua copula unanimi amicitia qua omnes animi in una mente quae est super omnem mentem non concordent adeo sed ineffabili quodam modo unum penitus evadantrdquo

92

asceacuteticos fazem parte das praacuteticas esoteacutericas apregoadas e utilizadas em natildeo poucas

tradiccedilotildees em sua maioria com o objetivo de alcanccedilar um estado de uniatildeo com o

Absoluto Pico utiliza-se de alguns exemplos ascensionais dentro do procedimento

escolhido para demonstrar a unidade da verdade exemplos cuja convergecircncia

doutrinaacuteria eacute esperada em esferas mais elevadas Na metade inicial da Oratio

evidenciam-se treze passagens distintas referentes a condutas asceacuteticas de

competecircncia teoloacutegica ou filosoacutefica as quais em se eliminando aquelas pertencentes

a uma mesma tradiccedilatildeo perfazem um total de sete tradiccedilotildees especiacuteficas Como

fundamentaccedilatildeo para o seu modelo de itineraacuterio asceacutetico Pico percorre as seguintes

doutrinas crenccedilas ou sistemas

1) A dialeacutetica segundo a filosofia platocircnica

2) O modelo angeacutelico postulado por Dioniacutesio Areopagita

3) As iniciaccedilotildees misteacutericas da tradiccedilatildeo grega

4) Os Mitos de Dioniso e de Osiacuteris

5) A simbologia do tabernaacuteculo de Moiseacutes pertencente agrave tradiccedilatildeo hebraica

6) As praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas

7) A misteriologia caldaica

Antes da verificaccedilatildeo de cada um desses itens cabe observar que ainda em

meio agrave narrativa de seu Mito adacircmico Pico introduz a primeira problemaacutetica de

percurso asceacutetico perfeitamente presente no coraccedilatildeo de sua reflexatildeo acerca da

dignidade humana Partindo da premissa de existecircncia de quatro niacuteveis hieraacuterquicos

existentes no homem entendidos como corpos efetivos ou como possibilidades eacute

efetuada uma analogia com os reinos que representam graus da hierarquia coacutesmica

postulada pelo autor ndash que seria mais tarde tratada no Heptaplus190 O mito chama

a atenccedilatildeo para a presenccedila de tais naturezas ou potencialidades que integram o

homem bem como de sua possibilidade de superaccedilatildeo ou regressatildeo atraveacutes da

passagem entre um e outro niacutevel Assim ao se comportar como vegetal utilizando

sua natureza entorpecida e insensiacutevel ldquoo homem seraacute como plantardquo se for sensiacutevel

ldquose tornaraacute bestardquo em razatildeo de sua alma bruta e sensual se racional ldquoelevar-se-aacute a

animal celesterdquo pois ldquonatildeo eacute a forma circular que faz o ceacuteu mas a reta razatildeordquo se

intelectual puro contemplante seraacute anjo e filho de Deus ldquopois natildeo eacute a separaccedilatildeo do

corpo que faz o anjo mas sua inteligecircncia espiritualrdquo191

190 Cf PICO Heptaplus Quinta Exposiccedilatildeo p305 191 Oratio pp106 108 Alguns anos mais tarde em 1516 talvez sob a influecircncia da obra de Pico Pietro

Pomponazzi apresentaraacute sua proacutepria concepccedilatildeo da ordem natural no De immortalitate animae ldquoA natureza procede por graus Os vegetais tecircm um pouco de alma seguem os animais dotados apenas de tato gosto e imaginaccedilatildeo indefinida depois os animais tatildeo perfeitos que parecem dotados de inteligecircncia que constroem asas

93

Entre as referecircncias percorridas Pico insere ademais um siacutembolo de ascensatildeo

iniciaacutetica representado pela imagem biacuteblica da escada de Jacoacute ldquoo sapientiacutessimo

patriarca ensinar-nos-aacute mediante um siacutembolo [] que existem escadas que sobem do

fundo da terra ateacute ao cume dos ceacuteus distintas numa longa seacuterie de degrausrdquo192 A

passagem eacute narrada no Gecircnesis referindo-se agrave revelaccedilatildeo recebida em sonho por Jacoacute

atraveacutes da visatildeo de uma escada ligando ceacuteu e terra193 Essa representaccedilatildeo permite que

se efetuem analogias com diversas tradiccedilotildees como a tradiccedilatildeo angeacutelica referida por

Pseudo Dioniacutesio os Misteacuterios gregos e a Cabala194 Ao ser retirada do campo da feacute

traz a exigecircncia de que todos os degraus sejam percorridos passando pelos graus

irredutiacuteveis da filosofia natural da filosofia moral e dos procedimentos dialeacuteticos Os

traccedilos de tal percurso estatildeo bem definidos na dialeacutetica platocircnica primeiro dos sete

modelos asceacuteticos verificados a seguir

1) A primeira referecircncia agrave dialeacutetica filosoacutefica no Discurso eacute colhida de fontes

platocircnicas e disposta em linguagem miacutetica atraveacutes do convite para que o homem

abandone o que eacute terreno e ldquovoerdquo para as regiotildees supramundanas em direccedilatildeo agrave

divindade A menccedilatildeo ao voo reafirmada na passagem em que alude ao ldquoceacutelere voo

para a Jerusaleacutem Celeste atraveacutes de um bater de asasrdquo embora natildeo mencionada

diretamente remete agraves asas da alma que proporcionam a sua libertaccedilatildeo como fora

exaltado por Platatildeo no Fedro195

Desdenhemos das coisas da terra desprezemos as astrais e

abandonando tudo o que eacute terreno voemos para a sede

supramundana proacuteximo da sumidade da divindade196

Observe-se que conforme as palavras acima a Esfera Astral eacute um reino

inserido em territoacuterio ligado ao mundano197 acima do sublunar que remete agrave

imagem de um eixo vertical cujas etapas devem ser superadas A passagem encerra a

ideia de um movimento dinacircmico que pode ser realizado pela alma humana graccedilas agrave

e se organizam em sociedades civis como as abelhas (tanto que muitos homens parecem inferiores aos brutos por inteligecircncia)rdquo Em continuidade o autor apresenta seu conceito de ldquomedianidaderdquo ou planos ldquosintetizantesrdquo entre os reinos ldquoHaacute animais meacutedios entre as plantas e os animais como as esponjas marinhas fixas como as plantas mas sensiacuteveis como os animais haacute o macaco que natildeo se sabe se eacute animal ou homem e haacute a alma intelectiva mediana entre o temporal e o eternordquo Para maiores detalhes veja-se GARIN LrsquoUmanesimo italiano 2008 pp156-160

192 Oratio p 114 193 Cf Gecircnesis 28 12-13 ldquoE sonhou e eis uma escada posta na terra cujo topo tocava nos ceacuteus e eis que os

anjos de Deus subiam e desciam por elardquo 194 Algumas distintas interpretaccedilotildees dessa passagem foram realizadas Para Luiz FERACINE (1999) a escada de

Jacoacute significa a necessidade de ascender do muacuteltiplo ao uno simbolizado pelo desmembramento titacircnico do deus Dioniso Giulio BUSI identifica a escada com a deacutecima sefiraacute da tradiccedilatildeo cabaliacutestica correspondente a malkut vista em seu duplo aspecto de oraccedilatildeo e presenccedila divina conforme o autor depreende do Sefer ha-Zohar (La Qabbalah 2011 p11) Para Albano BIONDI (1995 ldquoIntroduccedilatildeordquo) a escada apresenta um significado estritamente dialeacutetico relacionado agrave Filosofia e seus graus de conhecimento

195 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss A passagem da Oratio que cita o Fedro encontra-se na p122 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feraturrdquo

196 Oratio p110 ldquoDedignemur terrestria caelestia contemnamus et quicquid mundi est denique posthabentes ultramundanam curiam eminentissimae divinitati proximam advolemusrdquo

197 A mateacuteria referente agrave Esfera Astral eacute desenvolvida por Pico em suas Disputationes Adversus Astrologiam

94

sua posiccedilatildeo intermeacutedia dentro do desenho universal Agrave medida que se avanccedila no

texto torna-se patente que tal posiccedilatildeo consiste em uma tensatildeo vertical dialeacutetica

permanente que reporta ao Banquete Em seu Commento de lsquo86 Pico jaacute havia

explorado o diaacutelogo platocircnico e o tema da natureza carente de Eros intermediaacuteria

entre a ignoracircncia e a sabedoria sempre agrave procura desta uacuteltima198 O influxo daquela

obra pode ser agora percebido a partir da retomada do mesmo dinamismo que se

repete e percorre todo o Discurso Oriacutegenes havia feito menccedilatildeo ao mito contido no

Banquete e agrave sua analogia com a busca do homem por sabedoria e sabe-se que Pico

teve acesso agrave sua obra199 O Eros platocircnico assim como a alma piquiana ocupa uma

posiccedilatildeo intermeacutedia200 pois natildeo eacute divino nem terreno201 A potecircncia para atingir as

realidades supremas atraveacutes do amor pela sabedoria encontra-se nas representaccedilotildees

das duas obras Aleacutem da dinacircmica de atraccedilatildeo pelo saber o Discurso eacute perpassado

pela teoria platocircnica que distingue graus de conhecimento entre o sensiacutevel e o

inteligiacutevel e que postula a partir de tais pontos o meacutetodo dialeacutetico que permite a

passagem do grau inicial da pluralidade das opiniotildees ao grau final da unidade da

Ideia

A filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo e os dissiacute-

dios que atormentam dividem e dilaceram de modos diversos

a alma inquieta [] A dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo

tumultuosamente mortificada entre os contrastes das palavras e

dos silogismos capciosos202

Pico atribui ora agrave filosofia ldquonaturalrdquo ora agrave ldquomoralrdquo a competecircncia para tratar

das questotildees relacionadas agrave conduta humana203 Na primeira parte da passagem

acima ao tratar dos ldquoconflitos e opiniotildeesrdquo estabelece-se uma relaccedilatildeo com o segundo

grau de conhecimento apresentado na Repuacuteblica204 dimensatildeo da piacutestis e doxa cuja

superaccedilatildeo viraacute atraveacutes da filosofia moral Na segunda parte Pico coloca-se em grau

acima ao abordar a forma como a razatildeo poderaacute ser acalmada atraveacutes da dialeacutetica

Embora o meacutetodo dialeacutetico possa ser entendido como o sistema integral que abarca

todos os graus no sentido de movimento da consciecircncia que se move entre os graus

mais baixos e os mais altos ndash graccedilas agrave descoberta das contradiccedilotildees encontradas em

cada grau inferior de conhecimento ndash o mesmo pode tambeacutem ser dividido em duas

etapas a primeira dialeacutetica inferior opera com as contradiccedilotildees das opiniotildees e

crenccedilas isto eacute com a multiplicidade sensiacutevel moacutevel e dispersa a segunda superior

198 PLATAtildeO Banquete 203d-204c 199 A obra Contra Celsum do teoacutelogo Oriacutegenes havia sido publicada em latim em 1481 poucos anos antes da De

Hominis Dignitate A passagem em questatildeo encontra-se em IV 39 Ademais eacute conhecida a admiraccedilatildeo que Pico tinha por Oriacutegenes Para uma aprofundada reflexatildeo sobre a analogia entre o Banquete e a visatildeo dialeacutetica de Pico veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996 pp 551-564

200 PLATAtildeO Banquete 202d 201 PLATAtildeO ibid 203e 202 Oratio p119 A inversatildeo dos periacuteodos na citaccedilatildeo acima foi feita por uma questatildeo de ordenamento necessaacuterio

ao que estaacute sendo tratado ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et laceranterdquo

203 De fato na paacutegina 122 da Oratio que conteacutem a passagem citada encontra-se tanto o uso de ldquomoralisrdquo quanto ldquonaturalis philosophiardquo

204 Veja-se PLATAtildeO (Rep 509d-511e) e seu ldquoSiacutemile das duas linhasrdquo

95

ou verdadeira dialeacutetica opera ultrapassando demonstraccedilotildees baseadas em hipoacuteteses

na medida em que a multiplicidade vai sendo ordenada e sistematizada ateacute alcanccedilar o

incondicionado a unidade inteligiacutevel Essa a dialeacutetica superior capaz de elevar-se de

hipoacutetese em hipoacutetese ateacute alcanccedilar o natildeo hipoteacutetico205 eacute aquela agrave qual Pico se refere

como o aliacutevio para ldquoacalmar a razatildeordquo

Seremos arrebatados se primeiro tivermos realizado tudo

quanto estaacute em noacutes se de fato com a moral forem refreados

dentro dos justos limites os iacutempetos das paixotildees de tal modo

que se harmonizem reciprocamente com estaacutevel acordo e se a

razatildeo proceder ordenadamente mediante a dialeacutetica206

Finalmente no pinaacuteculo da ascensatildeo ocorre o ldquoarrebatamentordquo momento em

que como ainda mencionado no Banquete (210a) a alma filosoacutefica encontra-se com

a Ideia Suprema O contato direto e imediato da inteligecircncia com o inteligiacutevel se daacute

no plano noeacutetico em que ocorre a visatildeo intelectual de uma ideia em decorrecircncia do

conhecimento adquirido por meio dos atos de intuiccedilatildeo intelectual a episteacuteme Segue-

se assim o quinto grau de conhecimento postulado na Carta Seacutetima e proclamado

por Pico como final de uma trajetoacuteria de conhecimento207

Rejeitadas as impurezas com a moral e a dialeacutetica se adorne da

mais vasta Filosofia como se fosse um ornamento real208

2) A ideia de desenvolvimento vertical humano eacute encontrada outrossim na

narrativa feita por Pseudo-Dioniacutesio acerca do mundo angeacutelico Pico se fundamenta

em seu modelo de ascese miacutestica em trecircs estaacutegios (purgatio illuminatio e perfectio)

ndash conforme a visatildeo recebida em revelaccedilatildeo por Paulo relatada em Coriacutentios acerca do

triacuteplice coro angeacutelico209 Iniciando sua argumentaccedilatildeo eacute lanccedilada a questatildeo de como

proceder para chegar aos Serafins Querubins e Tronos seres pertencentes ao

primeiro ciacuterculo dentro da hierarquia cosmoloacutegica descrita por Dioniacutesio210 a melhor

205 PLATAtildeO na Carta VII (343e) descreve que a passagem contiacutenua entre os vaacuterios niacuteveis hipoteacuteticos com o

deslocamento para o alto e para baixo em cada niacutevel mesmo sob dificuldades leva ao conhecimento da coisa buscada

206 Oratio p122 ldquoAgemur ab illis utique si quid est in nobis ipsi prius egerimus nam si et per moralem affectuum vires ita per debitas competentias ad modulos fuerint intentae ut immota invicem consonent concinentia et per dialecticam ratio ad numerum se progrediendo moverit []rdquo

207 PLATAtildeO Carta VII 342b-343c Na Carta Seacutetima Platatildeo amplia o que havia estabelecido na Repuacuteblica sobre os quatro modos de conhecimento ensinando que o quinto modo de conhecimento eacute a coisa-em-si mesma ou a percepccedilatildeo intelectual direta da coisa cognosciacutevel A funccedilatildeo do quarto modo que eacute o conhecimento (342b) eacute preparar-nos para alcanccedilar o objeto real e soacute atraveacutes de uma fricccedilatildeo chegamos a ele Essa fricccedilatildeo produz uma faiacutesca como uma luz que surge na alma (341d) e nos faz ver a pura ideia da coisa Pico coloca no teacutermino de sua explanaccedilatildeo dialeacutetica o alcance da Filosofia (nesse sentido indicando o momento supremo do conhecimento) qual ldquoornamento realrdquo

208 Oratio p120 ldquo[] postquam per uroralem et dialecticam suas Bordes excusserit multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exornarit []

209 Cf Oratio p113 A passagem de Paulo que trata de seu ldquoarrebatamentordquo ao terceiro ceacuteu estaacute em 2 Coriacutentios 12 2-4 ldquoConheccedilo um homem em Cristo que haacute catorze anos[] foi arrebatado ao terceiro ceacuteu E sei que o tal homem[] foi arrebatado ao paraiacuteso e ouviu palavras inefaacuteveis que ao homem natildeo eacute liacutecito falarrdquo

210 Pico passa diretamente para o escalatildeo mais alto na hierarquia dos seres angeacutelicos a chamada Primeira Ordem Abaixo destes haacute a Segunda e Terceira Ordem composta cada qual por trecircs gecircneros de seres Dioniacutesio Areopagita esclarece em sua obra que as alegorias das formas angeacutelicas utilizadas pelos teoacutelogos satildeo apenas pontos de partida para permitir a contemplaccedilatildeo dos seres inteligiacuteveis Eacute tambeacutem uma forma de ocultar atraveacutes de

96

forma para alcanccedilaacute-los seraacute atraveacutes da observaccedilatildeo de seu protoacutetipo de vida pois ldquose

tambeacutem noacutes a vivermos jaacute estaremos partilhando de igual ventura e de fato

podemosrdquo211 Assim a destinaccedilatildeo humana consiste precisamente em imitar aquelas

vidas Primeiramente os Tronos mais proacuteximos de noacutes representantes da vida ativa

disciplinada em seguida os Querubins modelo de vida contemplativa finalmente

os Serafins mais proacuteximos de Deus representantes da uniatildeo miacutestica no amor Os

Querubins encontrando-se no ponto intermeacutedio entre os dois outros graus da ordem

agrave qual pertencem representam por analogia a funccedilatildeo intermeacutedia do homem e sua

capacidade contemplativa torna-se exemplo do ponto mais alto que pode ser

alcanccedilado atraveacutes da capacidade intelectiva humana

Se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins

devemos ter claro frente aos nossos olhos em que consiste tal

vida quais as accedilotildees e obras que devemos imitar212

Cada Ordem apreende da que lhe estaacute imediatamente superior tudo o que

concerne agraves suas operaccedilotildees retransmitindo agrave inferior aquilo que lhe eacute possiacutevel

transmitir (ldquoa ordem mediana eacute para a inferior inteacuterprete dos preceitos da ordem

superiorrdquo)213 Os Tronos tem seu nome originado a partir do conceito de sustentaacuteculo

Esse gecircnero de anjo eacute identificado pela total ausecircncia de qualquer concessatildeo aos

planos inferiores e a capacidade de se manter constante e firmemente tendendo para

os cumes Analogamente esse seria o estaacutegio da purgatio Os Querubins ldquoaqueles

que difundem sabedoriardquo satildeo tidos como a inteligecircncia mediadora entre o amor

divino e a reta razatildeo jaacute que sua inteligecircncia prepara o homem para o ardor seraacutefico e

ao mesmo tempo o ilumina pelo modelo da justiccedila dos Tronos (ldquoeis porque no meio o

Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seraacutefica e nos ilumina

juntamente com o juiacutezo dos Tronosrdquo)214 Os Querubins designam aptidotildees ao

conhecimento e agrave contemplaccedilatildeo do Absoluto e acolhem em si a plenitude dos dons

que transmitem sabedoria comunicando-os agraves essecircncias inferiores graccedilas agrave

capacidade de emanaccedilatildeo da proacutepria sabedoria que lhes foi transmitida Sua posiccedilatildeo eacute

anaacuteloga ao grau asceacutetico da illuminatio O Serafim eacute o que ocupa a mais alta posiccedilatildeo

aquele que ldquoqueimardquo na luz divina Os Serafins tecircm por qualidades o movimento

perpeacutetuo em torno dos segredos divinos o calor a profundidade e a qualidade de

comunicar aos niacuteveis que lhe sucedem a luz e o calor Detecircm o poder de auto-

purificaccedilatildeo e a aptidatildeo para conservarem a sua proacutepria luz daiacute sua relaccedilatildeo com o

uacuteltimo grau asceacutetico a perfectio215

enigmas a misteriosa unidade dessas Inteligecircncias Os nomes atribuiacutedos agraves Inteligecircncias designam suas capacidades (De Coelesti Hierarchia II-VII) Pico possuiacutea vaacuterias coacutepias em grego e latim das obras principais de Ps Dioniacutesio (cf Garin 2011 p110)

211 Oratio p111 O trecho em questatildeo encontra-se na traduccedilatildeo de Feracine tendo sido omitido na traduccedilatildeo de Sirgado Ganho ldquoSed qua ratione aut quid tandem agentes Videamus quid illi agant quam vivant vitam Eam si et nos vixerimus (possumus enim) illorum sortem iam aequaverimusrdquo

212 Oratio p112 ldquoAt vero operae precium si ad exemplar vitae cherubicae vita nostra formanda est quae illa et qualis sit quae actiones quae illorum Opera []rdquo

213 Oratio p116 ldquoEt quoniam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus interpretaturrdquo 214 Cf Oratio p113 215 PS DIONISIO De Coelesti Hierarchia VII Para detalhes adicionais veja-se nota da passagem em questatildeo

na traduccedilatildeo da Oratio de Luiz Feracine Informa o tradutor que Trono vem da raiz dar que passou para o sacircnscrito na palavra dhacircrana sustentaacuteculo O termo Querubim do hebraico kerub eacute considerado originaacuterio de

97

Pico pretende indicar a analogia existente entre as funccedilotildees angeacutelicas e o

caminho triaacutedico relacionado aos campos moral dialeacutetico e teoloacutegico que pode ser

verificado nas atribuiccedilotildees de cada Ordem Os Tronos se definem pelo reto

discernimento e a firmeza de juiacutezo qualidade que pode ser atingida atraveacutes do uso da

razatildeo e que em seu primeiro estaacutegio eacute capaz de encetar a filosofia moral No

Querubim estaacutegio intermediaacuterio apresenta-se a capacidade intelectual da

contemplaccedilatildeo ou o momento de ldquoesplendor da inteligecircnciardquo Finalmente no Serafim

tem-se o amor ao artiacutefice ao qual Pico em outras passagens ou obras refere-se

atraveacutes do termo ldquofeacuterdquo que o autor considera o uacuteltimo estaacutegio da ascese miacutestica

teoloacutegica216

Ainda que dedicados agrave vida ativa se assumirmos tratar as coisas

inferiores com reto discernimento afirmar-nos-emos com a

firmeza dos Tronos Se liberarmo-nos das accedilotildees meditando na

criaccedilatildeo o artiacutefice e no artiacutefice a criaccedilatildeo estaremos imersos na

paz da contemplaccedilatildeo e resplandeceremos rodeados de

querubiacutenica luz Se ardermos apenas por amor do artiacutefice

daquele fogo que consome todas as coisas inflamar-nos-emos

repentinamente com aspecto seraacutefico217

Ao ponto intermeacutedio querubiacutenico eleva-se a possibilidade humana alcanccedilaacutevel

pela dialeacutetica ldquoisso devemos emular investigar e compreender de modo a sermos

arrebatados ateacute aos fastiacutegios do amor descendo em seguida instruiacutedos e preparados

para as tarefas da accedilatildeordquo218 Assim para a pergunta ldquocomo se tornavam iluminados os

querubins como se elevavam ao estaacutegio seraacuteficordquo o autor indica o caminho da

contemplaccedilatildeo ldquoeste eacute o centro das primeiras mentes a ordem sapiencial que preside

agrave filosofia contemplativardquo219 Finalmente colocando palavras na boca do apoacutestolo

Paulo ndash se tivesse sido perguntado sobre o que faziam os exeacutercitos dos Querubins

enquanto esteve ele arrebatado no terceiro ceacuteu ndash responde Pico ldquopurificavam-se

eram iluminados e tornavam-se por fim perfeitosrdquo220 Repete-se o processo triaacutedico

intuiacutedo no modelo de ascetismo piquiano

Karibu que significa bendizente Em geral os Querubins satildeo associados aos gecircnios alados das mitologias egiacutepcias babilocircnicas e siro-feniacutecias O termo Serafim vem do hebraico sharaf serpente [ligado ao verbo saacuterof queimar] siacutembolo relacionado aos gecircnios e agrave divindade pelos cananeus Em geral nas representaccedilotildees lhes satildeo dadas as formas de serpente No livro Nuacutemeros (XXI 6-9) os Serafins indicam as serpentes venenosas enquanto em Isaiacuteas (VI) representam seres antropomorfos providos de seis asas Assim tanto os Serafins como os Querubins satildeo idealizaccedilotildees de seres superiores em que se fundem formas humanas com asas Essa heranccedila cultural influenciou a percepccedilatildeo dos autores biacuteblicos (FERACINE A Dignidade do Homem 1999)

216 Oratio pp111-113 217 Oratio p110 ldquoIgitur si actuosae addicti vitae inferiorum curam recto examine susceperimus Thronorum

stata soliditate firmabimur Si ab actionibus feriati in opificio opificem in opifice opificium meditantes in contemplandi otio negotiabimur luce Cherubica undique corruscabimus Si caritate ipsum opificem solum ardebimus illius igne qui edax est in Seraphicam effigiem repente flammabimurrdquo

218 Oratio p112 219 Oratio p113 Pier Cesare BORI relaciona a vida contemplativa dos Querubins com a vida intelectual que se

difunde nas vaacuterias disciplinas filosoacuteficas que seratildeo depois unificadas dialeticamente (I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564)

220 Oratio p113

98

3) A pureza dos graus angeacutelicos pede uma correta preparaccedilatildeo que Pico

vislumbra nos graus de iniciaccedilatildeo previstos nos Misteacuterios gregos ndash ldquoin Graecorum

arcanis observati initiatorum gradusrdquo

Se eacute nosso dever [] imitar a vida dos anjos pergunto quem

ousaraacute tocar as escadas do Senhor ou com peacute impuro ou com

matildeos por lavar Ao impuro segundo os Misteacuterios eacute-lhe vedado

tocar aquilo que eacute puro221

As matildeos e os peacutes conforme o proacuteprio Pico explica representam ldquotoda a parte

sensiacutevel onde estatildeo sediadas as seduccedilotildees corpoacutereasrdquo que subjugam a alma ldquoPara natildeo

sermos expulsos daquelas escadasrdquo ndash as de Jacoacute ndash ldquocomo profanos e imundosrdquo222 faz-

se necessaacuteria uma devida purificaccedilatildeo ideia que integra grande parte das religiotildees

gregas misteacutericas conhecidas ndash sobre as quais Pico certamente tinha

conhecimento223

Que outra coisa de fato querem significar nos misteacuterios gregos

os graus habituais dos iniciados admitidos no misteacuterio atraveacutes

de uma purificaccedilatildeo obtida com a moral e com a dialeacutetica artes

que jaacute dissemos serem quase purificatoacuterias [] Quando

estavam preparados sobrevinha aquela epopteia isto eacute a

visatildeo das coisas divinas atraveacutes da luz da teologia224

A epopteia corresponde a um estado de arrebatamento atribuiacutedo ao nuacutecleo dos

Misteacuterios de Elecircusis Apoacutes cerca de um ano ultrapassando os devidos estaacutegios o

adepto estaria pronto para atingir o estado supremo no qual ocorria a visatildeo

transcendente e transformadora correspondente ao rito final da iniciaccedilatildeo225 Embora

apenas se tenha conhecimento das manifestaccedilotildees exteriores dos misteacuterios eleusinos

e mesmo assim de forma imprecisa226 uma descriccedilatildeo aproximada da visatildeo eleusina

pode ser extraiacuteda das palavras de Platatildeo No Fedro eacute narrada a experiecircncia iniciaacutetica

de contemplaccedilatildeo que ilustra um estado bastante proacuteximo ao que provavelmente

ocorria na epopteia

221 Oratio p114 ldquoQuod si hoc idem nobis angelicam affectantibus vitam factitandum est quaeso quis Domini

scalas vel sordidato pede vel male mundis manibus attinget Impuro ut habent mysteria purum attingere nefasrdquo

222 Oratio p115 223 O tema da purificaccedilatildeo eacute central nos Misteacuterios de Elecircusis de Dioniso e nos Oacuterficos para citar os mais

conhecidos A Lacircmina de Turi por exemplo achado arqueoloacutegico pertencente ao seacuteculo IV ou III aC traz as inscriccedilotildees ldquoEu venho puro dentre os purosrdquo indicando a terminaccedilatildeo de um processo purificatoacuterio condiccedilatildeo obrigatoacuteria para a recepccedilatildeo do iniciado em dimensotildees superiores (cf KERN Orphicorum Fragmenta fr 32d)

224 Oratio p122 ldquoQuid enim aluid sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum gradus quibus primum per illas quas diximus quasi februales artes moralem et dialecticam purificatis contingebat mysteriorum susceptio Quae quid aluid esse potest quam secretioris per philosophiam naturae interpretatio Tum demum ita dispositis illa adveniebat lsquoἐ π ο π τ ε ί αrsquo idest rerum divinarum per theologiae lumen inspectiordquo

225 Giorgio COLLI A Sabedoria Grega 2012 p33 226 De acordo com Erwin RHODE (Psyche 2006 p239) apenas o lado exterior das cerimocircnias eleusinas

possuem registros Nas festividades conhecidas como ldquoPequenos Misteacuteriosrdquo de Elecircusis o adepto tambeacutem poderia vivenciar uma breve visatildeo reveladora Contudo era no interno dos ldquoGrandes Misteacuteriosrdquo ndash apreendidos pelos epoptas e mantidos em segredo ndash que se dava a visatildeo transformadora (COLLI opcit p31)

99

Eacuteramos iniciados naquela que justamente eacute chamada a mais

feliz das iniciaccedilotildees aquele rito secreto que celebraacutevamos []

Inteiramente perfeitas simples sem tremor e felizes eram as

apariccedilotildees ndash em um esplendor puro ndash em que eacuteramos iniciados e

atingiacuteamos o cume da contemplaccedilatildeo Noacutes mesmos puros natildeo

encerrados na tumba que agora levamos conosco e chamamos

corpo ligados estreitamente a ele como a ostra agrave sua concha227

Como forma complementar ou para dar relevo agrave questatildeo logo apoacutes a menccedilatildeo

agraves visotildees eleusinas Pico se remete ao conceito platocircnico da ldquoinspiraccedilatildeordquo socraacutetica

aproximando aqueles rituais do domiacutenio filosoacutefico (ldquoaquela iniciaccedilatildeo que outra coisa

pode ser senatildeo a interpretaccedilatildeo da mais oculta natureza mediante a Filosofiardquo)228

Quem natildeo quereraacute ser inspirado pelo furor socraacutetico exaltado

por Platatildeo no Fedro arrebatado em ceacutelere voo para a Jerusaleacutem

Celeste fugindo rapidamente com um bater de asas daqui isto

eacute do mundo reino do democircnio Arrebatar-nos-atildeo oacute Padres

arrebatar-nos-atildeo os furores socraacuteticos trazendo-nos para fora

da mente a tal ponto que nos coloquemos a noacutes e agrave nossa mente

em Deus229

A mencionada passagem do Fedro narra que atraveacutes de purificaccedilotildees e

iniciaccedilotildees seria possiacutevel encontrar uma libertaccedilatildeo dos males mas apenas para quem

estivesse ldquosob maniardquo ou ldquopossuiacutedordquo pelos deuses ldquona forma certardquo230 O ldquotrazer para

fora da menterdquo eacute outra forma de aludir ao veacutertice da experiecircncia miacutestica quando

ocorre o estado de ldquoecircxtaserdquo sem a mediaccedilatildeo da razatildeo O extasis literalmente lsquosair-de-

sirsquo era o instrumento para a liberaccedilatildeo cognoscitiva rompida a individualidade do

iniciado esse passava a ver aquilo que os natildeo iniciados natildeo viam231 ldquoLibertar-se da

existecircncia corporal conhecer o ecircxtase e elevar-se aos ceacuteusrdquo satildeo temas recorrentes nos

discursos socraacuteticos232 dizia Soacutecrates que ldquoos bacantes das iniciaccedilotildees natildeo satildeo senatildeo

aqueles que se entregam agrave filosofia no sentido exatordquo233 tecendo uma

correspondecircncia entre o campo filosoacutefico e os Misteacuterios que natildeo seria ignorada na

Oratio piquiana Os bacantes adeptos partiacutecipes dos misteacuterios dionisiacuteacos podiam

atingir um estado de maniacutea no qual se dava uma visatildeo do tipo relatado nas epopteias

de Elecircusis Tratar-se-ia assim como naqueles cultos de uma visatildeo de caraacuteter

227 PLATAtildeO Fedro 250 b-c 228 Cf Oratio p123 229 Oratio p123 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut

alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feratur Agemur Patres agemur Socraticis furoribus qui extra mentem ita nos ponant ut mentem nostram et nos ponant in Deordquo

230 PLATAtildeO Fedro 244c-245a 231 A questatildeo da saiacuteda de si promovida pelo ecircxtase encontra unanimidade entre vaacuterios inteacuterpretes Para maiores

detalhes veja-se recolhimento de Giorgio COLLI (2012 p18) tanto fontes antigas quanto mais recentes reconhecem a relaccedilatildeo entre ecircxtase e saiacuteda-de-si Niezsche foi um deles bem como Rodhe com seu Psiche

232 As palavras citadas estatildeo em Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro 2006 p10 O autor complementa que a preparaccedilatildeo por meio de vaacuterios tipos de exerciacutecios asceacuteticos utilizados para ldquodesatar os noacutesrdquo que prendem a alma ao corpo estatildeo na base do ensinamento socraacutetico Veja-se nesse sentido Feacutedon 64c-68b e Repuacuteblica VI 509b-c VII 517b-c

233 PLATAtildeO Feacutedon 69c-d

100

macircntico podendo assumir um aspecto de conhecimento da verdade234 Atraveacutes das

etapas iniciaacuteticas e entatildeo ldquotornados filoacutesofosrdquo conclui Pico que os iniciados seriam

ldquoinebriados na harmonia celesterdquo e por fim Baco senhor das Musas revelaria ldquoos

seus misteacuteriosrdquo ou ldquoos invisiacuteveis segredos de Deusrdquo235

4) Os mitos de Osiacuteris e de Dioniso respectivamente egiacutepcio e grego

representam partes das concepccedilotildees cosmogocircnicas presentes em algumas teogonias

que contemplam o conflito entre a Ordem e o Caos Pico certamente tinha em mente

elaborar uma siacutentese entre os dois mitos para ilustrar suas concepccedilotildees filosoacuteficas A

queda descrita no chamado ldquoMito dos Titatildesrdquo que narra o nascimento morte e

ressurreiccedilatildeo do deus Dioniso eacute parte da Teogonia das Rapsoacutedias que integra o

corpus da doutrina oacuterfica236 As Conclusiones oacuterficas mostram que Pico teve acesso

aos Hinos de Orfeu uma de suas provaacuteveis fontes de acesso ao mito Ambos os mitos

abordam a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da unidade universal e a criaccedilatildeo da

multiplicidade levando agrave necessidade assim como nas primeiras cosmogonias

filosoacuteficas de se suplantar a dualidade e retornar agrave unidade perdida Repetem nesse

sentido a ideia de usurpaccedilatildeo do trono que representa a unidade e a fragmentaccedilatildeo

daquele que o ocupava No caso de Osiacuteris seu irmatildeo Set o assassina apoacutes lhe tirar o

trono e posteriormente o esquarteja espalhando seus pedaccedilos por todo o Egito237

Jaacute Dioniso por encontrar-se no final da linhagem genealoacutegica dos deuses recebera

de seu pai Zeus o comando do mundo deixando enciumados os Titatildes ndash divindades

dos primeiros tempos ndash que terminam por atacaacute-lo e despedaccedilaacute-lo Dos resiacuteduos

finais de Dioniso e dos Titatildes ndash jaacute que estes tambeacutem acabam exterminados ndash nascem

natildeo apenas os homens como o novo Dioniso238

Na passagem ldquodesceremos dilacerando com forccedila titacircnica o um nos muitosrdquo239

Pico deixa evidente que estaacute a relatar a particcedilatildeo e a redistribuiccedilatildeo do Uno em seu

movimento de descese conteuacutedo que se encontra na raiz da ideia de ldquoquedardquo da

unidade ndash embora natildeo se trate da Queda original240 A concepccedilatildeo do distanciamento

da unidade encontra-se na origem do vetor que impulsiona os vaacuterios modelos de

movimento asceacutetico especialmente aqueles do paganismo Haacute que se observar que

grande parte dos mitos cosmogocircnicos lida com a reconstituiccedilatildeo da multiplicidade e o

necessaacuterio esforccedilo para que se refaccedila a unidade e para sua preservaccedilatildeo Assim em

paralelo ao nascimento de um novo Dioniso em acircmbito grego tem-se no mito

egiacutepcio a reconstituiccedilatildeo do corpo de Osiacuteris por sua esposa Iacutesis permitindo desse

234 COLLI opcit pp17-19 235 Cf Oratio p 123 236 Alberto BERNABEacute Hieros Logos - Poesia oacuterfica sobre os deuses a alma e o aleacutem Satildeo Paulo 2012 p24 237 O mito de Osiacuteris tem seu principal relato em Plutarco De Iside e Osiride Set eacute identificado com o Tifeu dos

gregos e seu parentesco com os Titatildes ndash que eliminam Dioniso ndash eacute revelado no livro LXIX Para o tema veja-se J Gwyn GRIFFITHS (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970

238 Em passagem de Olympiodoro lecirc-se ldquoIrritado contra eles [os Titatildes] Zeus os fulminou com um raio e do resiacuteduo dos vapores emitidos por eles produziu-se a mateacuteria da qual nasceram os homensrdquo (KERN Orphicorum Fragmenta fr 140 trad Alberto Bernabeacute) Para maiores detalhes veja-se BERNABEacute opcit p80 ss

239 PICO opcit p 116 ldquonunc unum in multitudinem vi titanica discerpentes descendemusrdquo 240 Alberto Bernabeacute provavelmente natildeo de forma isolada denomina a transgressatildeo cometida pelos Titatildes de

ldquopecado antecedenterdquo pelo fato de natildeo ter sido cometido pelo primeiro homem ndash caso em que seria ldquooriginalrdquo (Textos Oacuterficos y Filosofia Presocratica Edit Trotta Madrid 2004)

101

modo a concepccedilatildeo poacutestuma de seu filho Horus que representa a continuidade241

Nascimento Morte (desmembramento) e Ressurreiccedilatildeo (reconstituiccedilatildeo) constituem

em acircmbito miacutetico o triacuteplice movimento filosoacutefico que parte da Unidade fragmenta-

se na Multiplicidade e completa-se com o retorno agrave Unidade

5) A passagem biacuteblica do ldquoTabernaacuteculo de Moiseacutesrdquo narra a construccedilatildeo de um

santuaacuterio moacutevel ordenada por Deus que deveria ser realizada pelo povo hebreu

durante sua permanecircncia de quarenta anos no deserto242 A partir da estrutura

triacuteplice que se forma no templo da tradiccedilatildeo hebraica Pico concebe um percurso

asceacutetico que encontra correspondecircncia em seu modelo triaacutedico de dialeacutetica filosoacutefica

Assim como o Heptaplus apresenta a analogia do tabernaacuteculo com os trecircs mundos do

cosmo piquiano243 a Oratio faz corresponder em escala reduzida as trecircs partes do

santuaacuterio a trecircs elementos do corpo humano reafirmando a analogia mosaica entre o

homem-microcosmo e o universo-macrocosmo244 Nesse sentido a parte do

tabernaacuteculo que se encontra sob ceacuteu aberto sem proteccedilatildeo alguma corresponde aos

oacutergatildeos genitais representando o corpo material ligado aos sentidos a aacuterea

intermeacutedia do santuaacuterio jaacute protegida dos fenocircmenos da natureza encontra

correspondecircncia no coraccedilatildeo consonante agraves emoccedilotildees mas tambeacutem ao uso

instrumental da razatildeo finalmente a parte sagrada do tabernaacuteculo chamada ldquoSanto

dos Santosrdquo representa a cabeccedila sede do conhecimento superior245

Os que ainda impuros tecircm necessidade moral fiquem com o

vulgo fora do tabernaacuteculo sob o ceacuteu descoberto como os

sacerdotes da Tessaacutelia ateacute estarem purificados246

Na parte externa do tabernaacuteculo exposta a toda sorte de intempeacuteries

encontra-se o vulgo a ldquocorte inferiorrdquo247 povoada por espeacutecies animais e tambeacutem

por homens bons e maus Esse primeiro estaacutegio eacute correspondente ao grau de

conhecimento daqueles que precisam despertar atraveacutes da filosofia moral Jaacute no

interior do tabernaacuteculo niacutevel equivalente ao saber intermeacutedio inicia-se a utilizaccedilatildeo

do corpo racional embora ainda natildeo filosoacutefico

241 Osiacuteris passa a ser considerado deus dos mortos e revivendo a partir de seu filho Horus ndash associado ao Sol e

identificado por Heroacutedoto com Apolo (2 144) ndash tambeacutem o deus da renovaccedilatildeo Cabe ressaltar que a presenccedila de duas naturezas no homem que o fazem viver sob constante escolha eacute um tema eacutetico abordado por Pico em outras passagens e obras cuja derivaccedilatildeo eacute colhida de suas fontes platocircnicas Parte da natureza do homem eacute trazida dos restos de Dioniso ingeridos pelos Titatildes ndash o que lhe proporciona um componente positivo e celeste ansioso por reintegrar-se agrave sua natureza originaacuteria a outra parte eacute proveniente dos Titatildes o que inflige ao homem um elemento negativo e imbuiacutedo da marca da infraccedilatildeo por aqueles cometida

242 Cf Ecircxodo 25-27 243 Os detalhes acerca da relaccedilatildeo do tabernaacuteculo com os trecircs mundos ndash sublunar celeste e angeacutelico ndash seratildeo

abordados no Capiacutetulo VI Para um entendimento do tabernaacuteculo conforme a visatildeo miacutestica hebraica veja-se Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista 2008-b pp481-484

244 ldquoO mundo eacute chamado por Moiseacutes de homem grande de fato se o homem eacute um pequeno mundo necessariamente o mundo eacute um homem granderdquo escreveraacute Pico no Heptaplus (p 381)

245 BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 pp 348-349 246 Oratio p120 ldquoQui polluti adhuc morali indigent cum plebe habitent extra tabernaculum sub divo quasi

Thessali sacerdotes interim se expiantesrdquo 247 Expressatildeo utilizada por BUSI-EBGI opcit p 348

102

Os que jaacute atingiram uma vida reta acolhidos no santuaacuterio natildeo

se aproximem ainda das coisas sacras mas prestem-lhes pri-

meiro serviccedilo com um noviciado dialeacutetico como zelosos levitas

da filosofia248

Ao uacuteltimo grau de eminente caraacuteter teoloacutegico Pico outorga caracteriacutesticas

filosoacuteficas confirmando sua visatildeo de perfeita concoacuterdia entre a Teologia e a Filosofia

em seu grau superior As palavras ndash atribuiacutedas a Moiseacutes ndash que finalizam sua reflexatildeo

exortam para uma preparaccedilatildeo que permita o ingresso ldquona via para a futura gloacuteria dos

ceacuteus por meio da Filosofiardquo249 Estaacutegio alcanccedilado apoacutes o ingresso no uacuteltimo grau do

tabernaacuteculo o Santo dos Santos

Por fim admitidos tambeacutem eles contemplem agora no

sacerdoacutecio da Filosofia ora o multicolor quer dizer o sideacutereo

ornamento do palaacutecio de Deus ora o candelabro das sete

chamas ora os elementos de pele ateacute que acolhidos finalmente

no tabernaacuteculo do templo por meacuterito da sublimidade teoloacutegica

usufruam retirado totalmente o veacuteu da imagem da gloacuteria de

Deus250

6) A Escola pitagoacuterica se caracterizava por um longo processo percorrido

atraveacutes da passagem por graus parte integrante da ldquobios theoretikoacutesrdquo (vida

contemplativa) agrave qual os membros se dedicavam para alcanccedilar a purificaccedilatildeo da

alma251 Embora tenha tido acesso agraves informaccedilotildees acerca das praacuteticas pitagoacutericas252

tendo conhecimento portanto dos estaacutegios de iniciaccedilatildeo pertinentes ao aprendizado

da doutrina Pico se limita na Oratio a abordar algumas normas contidas nos

akouacutesmata pitagoacutericos Os akouacutesmata eram preceitos ouvidos e retransmitidos

atraveacutes dos quais a organizaccedilatildeo pitagoacuterica se perpetuava juntamente com os sinais

de reconhecimento entre os membros os symbola253 Vaacuterias das doutrinas relatadas

por autores tardios foram transmitidas verbalmente geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo graccedilas agrave

248 Oratio p120 ldquoQui mores iam composuerunt in sanctuarium recepti nondum quidem sacra attractent

sed prius dialectico famulatu seduli levitae philosophiae sacris ministrentrdquo 249 No texto biacuteblico Moiseacutes natildeo faz referecircncia agrave filosofia trata-se de interpretaccedilatildeo de Pico Cf Oratio p120

ldquoHaec nobis profecto Moses et imperat et imperando admonet excitat inhortatur ut per philosophiam ad futuram caelestem gloriam dum possums iter paremus nobisrdquo

250 Oratio p120 ldquoTum ad ea et ipsi admissi nunc superioris Dei regiae multicolorem idest sidereum aulicum ornatum nunc caelestem candelabrum septem luminibus distinctum nunc pellicea elementa in philosophiae sacerdotio contemplentur ut postremo per theologicae sublimitatis merita in templi adita recepti nullo imaginis intercedente velo divinitatis gloria perfruanturrdquo

251 Como relata Jacircmblico (Vita Pythagorica 71-72) os estaacutegios se dividiam em periacuteodo probatoacuterio dokimasiacutea periacuteodo preparatoacuterio paraskeiecirc e periacuteodo purificatoacuterio cathartisis no uacuteltimo grau o teleiocirctes correspondente ao fim telos eram reveladas as primeiras e uacuteltimas causas das coisas Esse testemunho eacute tambeacutem confirmado em Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) que o atribui a Timeu

252 Pico teve acesso agraves ldquoVidasrdquo pitagoacutericas atraveacutes da leitura de Porfiacuterio e Dioacutegenes Laeacutercio nas traduccedilotildees de Ficino e atraveacutes da leitura direta de Jacircmblico do qual possuiacutea a Vida de Pitaacutegoras (cf ldquoBiblioteca di Picordquo in GARIN 2011 p109)

253 Aristoacuteteles em sua obra Sobre os Pitagoacutericos (fr195) relatada por Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 34-5) expotildee e analisa vaacuterios akouacutesmata como a abstenccedilatildeo de favas e o impedimento de se tocar em galo branco ou em peixes sagrados O Estagirita contudo natildeo pocircde decifrar o que havia por baixo de seu simbolismo Alguns akouacutesmata foram recolhidos em uma lista conservada por Porfiacuterio em seu Vida de Pitaacutegoras com comentaacuterios de Aristoacuteteles referentes ao assunto Veja-se tambeacutem Jacircmblico Vita Pythagorica 82

103

manutenccedilatildeo de tal oralidade254 Como as doutrinas da escola eram consideradas um

segredo e sua propagaccedilatildeo estritamente reservada aos adeptos os iniciados

pitagoacutericos apreendiam seus conteuacutedos e os memorizavam A transmissatildeo dos

akouacutesmata se dava atraveacutes de enunciados enigmaacuteticos de indecifraacutevel entendimento

e Pico parece ter extraiacutedo suas interpretaccedilotildees de fontes neoplatocircnicas255

Exortar-nos-aacute [Pitaacutegoras] em primeiro lugar a natildeo nos

sentarmos em cima do alqueire isto eacute natildeo deixarmos inativa a

parte racional com a qual a alma tudo mede julga e examina

mas antes dirigi-la e mantecirc-la desperta com o exerciacutecio e as

regras da dialeacutetica256

Na passagem acima Pico leitor de Jacircmblico alude de forma indireta aos

especiacuteficos exerciacutecios (aacuteskesis) para o desenvolvimento da parte racional da alma

integrantes da biacuteos pitagoacuterica Dentre eles embora natildeo mencionados havia a

preocupaccedilatildeo com a dieteacutetica a utilizaccedilatildeo da muacutesica para fins terapecircuticos os

exerciacutecios voltados agrave contemplaccedilatildeo257 e os exerciacutecios para a memoacuteria258 Aleacutem desses

uma praacutetica necessaacuteria consistia apoacutes os graus iniciais do discipulado em

permanecer em silecircncio por cinco anos atraveacutes do qual as experiecircncias iniciaacuteticas se

mantinham como prerrogativas exclusivas de seus iniciados259 Voltando aos

preceitos da transmissatildeo oral Pico prossegue com a interpretaccedilatildeo de outro

akouacutesmata que se coaduna com sua proacutepria filosofia

Indicar-nos-aacute entatildeo duas coisas que acima de tudo devemos

evitar urinarmos voltados para o sol e cortarmos as unhas

durante o sacrifiacutecio Soacute quando tivermos expulso de noacutes

mediante a moral os turvos apetites da voluptuosidade e

tivermos cortado as garras aduncas da ira removidos os

aguilhotildees da alma soacute entatildeo comeccedilaremos a tomar parte nos

sacros misteacuterios de Baco260

254 Apoacutes o esfacelamento das comunidades pitagoacutericas os membros dispersos mais antigos continuavam a fazer

dos akouacutesmata seu guia (cf JAcircMBLICO Comm Mat) 255 Cf notas de Eugenio Garin agrave ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 256 Oratio p126 ldquoPraecipiet primo ne super modium sedeamus idest rationalem partem qua anima omnia

metitur iudicat et examinat ociosa desidia ne remittentes amittamus sed dialectica exercitatione ac regula et dirigamus assidue et excitemosrdquo

257 O vegetarianismo era praticado pelos pitagoacutericos numa eacutepoca em que o sacrifiacutecio animal era um dos pilares da cultura grega Os exerciacutecios de contemplaccedilatildeo estavam diretamente relacionados agraves especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas pitagoacutericas em clara sintonia com a concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία (theoriacutea) que carrega o significado de ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo Nesse sentido a tradiccedilatildeo reconhece as especulaccedilotildees engendradas na escola pitagoacuterica tendo aiacute se originado o ideal grego de philosophia e theoriacutea (cf JAcircMBLICO Vita Pythagorica respectivamente 85 163-164)

258 O membro da koinoniacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia para a praacutetica da anamneacutesis ldquoAcreditavam que se deveria reter e conservar na memoacuteria tudo aquilo que era ensinado e escutado[hellip] de forma que o pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado agrave memoacuteria aquilo que havia acontecido no dia anteriorrdquo (Aristoacutexeno 58 D1 DK Jacircmblico VP 164-166)

259 A propoacutesito dessa passagem lecirc-se em Jacircmblico que ldquode todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute certamente a mais dura como bem demonstram aqueles que instituiacuteram os Misteacuteriosrdquo (VP 71-72)

260 Oratio p126 ldquoTum cavenda in primis duo nobis significabit ne auf adversus Solem emingamus auf inter sacrificandum unguem resecemus Sed postquam per moralem et superfluentium voluptatum eminxerimus appetentias et unguium praesegmina quasi acutas irae prominentias et animorum aculeos resecuerimus tum demum sacris idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mysteriis []rdquo

104

Apesar de o iniacutecio do trecho acima natildeo poder ser elucidado a analogia com os

misteacuterios baacutequicos colocada como final do processo enfatiza o formato triaacutedico

repetido por Pico mais uma vez o adepto apoacutes ter passado pelos graus de purificaccedilatildeo

moral e intelectual-dialeacutetica eacute tomado por uma visatildeo final transformadora (os

sagrados misteacuterios de Baco) ou em termos filosoacuteficos consegue a unidade com o

Inteligiacutevel Apoacutes atingido tal estaacutegio seraacute necessaacuterio conservaacute-lo com a devida

alimentaccedilatildeo da alma

Aconselhar-nos-aacute por fim a alimentar o galo isto eacute a saciar

com soacutelida alimentaccedilatildeo e com a celeste ambrosia das coisas

divinas a parte divina da nossa alma261 []Eacute este o galo que

Soacutecrates na hora da morte no momento em que esperava

reunir o divino da sua alma agrave divindade de tudo e jaacute afastado do

perigo de qualquer doenccedila corpoacuterea considerava que devia a

Esculaacutepio isto eacute ao meacutedico da alma262

7) Em seus registros extraiacutedos dos Oraacuteculos Caldeus263 Pico encontra outro

modelo para comprovar sua concepccedilatildeo da triacuteplice via para a verdade em que se

repete o processo iniciado com a filosofia moral continuado com a dialeacutetica e

concluiacutedo nesse caso com a Teologia Observe-se a semelhanccedila do mito da alma

alada cuja narraccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Zoroastro com o Mito do Cocheiro narrado no

Fedro264

Escrevem os inteacuterpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a

alma alada e que quando lhe caem as asas se precipita no

corpo e volta a voar para o ceacuteu quando lhe tornam a crescer

Tendo-lhe os disciacutepulos perguntado de que modo poderiam

261 PORFIacuteRIO Vita Pythagorica 42 JAcircMBLICO Protrepticus 21 Vejam-se ainda os comentaacuterios de FICINO

acerca do simbolismo pitagoacuterico (Commentariolus in symbola Pyth in Supplementum Ficinianum II) Referecircncias conforme notas de GARIN agrave ediccedilatildeo de De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942

262 A passagem referida a Soacutecrates encontra-se em PLATAtildeO Feacutedon 118a Cf Oratio p126 ldquoPostremo ut gallum nutriamus nos admonebit idest ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrosia pascamus []Hunc gallum moriens Socrates cum divinitatem animi sui divinitati maioris mundi copulaturum se speraret Aesculapio idest animarum medicordquo []

263 A atribuiccedilatildeo feita a Zoroastro das sentenccedilas presentes nos Oraacuteculos Caldeus eacute uma provaacutevel inferecircncia de George Plethon no que foi seguido por Marsiacutelio Ficino em sua Theologia platocircnica (Cf BIDEZ - CUMONT Les Mages helleacuteniseacutes Paris 1938) Pico cita na Oratio os oraacuteculos dos Magos Ezra Zoroastro e Melchiar menciona tambeacutem ldquoEvantes o persa que explica a teologia caldeiardquo e entre essas fontes indica certos textos que ldquoentre os gregos circularam de forma incompletardquo Os textos que circularam entre os gregos de forma incompleta provavelmente satildeo os recolhidos inicialmente por Miguel Psello (que os denomina ldquoditos caldeusrdquo) e depois por George Plethon (que os atribuiacutea aos Magos descendentes de Zoroastro) Cf Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin 2013 pp9-61 Em carta a Ficino de 1486 Pico menciona ainda ldquoum livreto sobre os dogmas da teologia caldaica com uma divina e rica elucidaccedilatildeo dos Persas Gregos e Caldeus a propoacutesito de tais dogmasrdquo (apud KRISTELLER Supplementum Ficinianum 1937 pp 272-273) Uma nota na ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate etc (1942 p128) confirma Plethon juntamente com Miguel Psello como fontes de acesso de Pico aos Oraacuteculos

264 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss

105

tornar a alma apta para o voo com asas bem plumadas disse

lsquoregai as asas com a aacutegua da vidarsquo265

Na sequecircncia da narrativa piquiana os disciacutepulos de Zoroastro teriam lhe

perguntado como poderiam obter tais aacuteguas A resposta introduz por meio de uma

paraacutebola (ldquoparabolamrdquo) extraiacuteda da boca do profeta um nuacutecleo epistemoloacutegico que

Pico faraacute corresponder ao sistema que estaacute a defender

lsquoO paraiacuteso de Deus eacute banhado e irrigado por quatro rios a partir

daiacute podereis atingir as aacuteguas salutares O nome daquele que

corre de setentriatildeo eacute Pischon que significa justiccedila o que vem

do ocaso chama-se Dichon isto eacute expiaccedilatildeo o que vem do

oriente eacute Chiddekel e significa luz por fim aquele que corre do

sul chama-se Perath que podemos interpretar como feacutersquo266

O modelo de quatro rios encontra-se no Gecircnesis267 e natildeo se sabe de quais

fontes Pico colheu a passagem considerada caldaica268 Aos quatro paradigmas

relacionados agrave justiccedila expiaccedilatildeo luz e feacute o autor faz corresponder um processo

relacionaacutevel agrave tripartita philosophia

Devemos purificar a viscosidade dos olhos com a ciecircncia moral

como com ondas ocidentais devemos dirigir atentamente o

olhar com a dialeacutetica como com um niacutevel boreal devemos nos

habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca

luz da verdade primeiro indiacutecio do sol nascente ateacute que

finalmente com a meditaccedilatildeo teoloacutegica e o santiacutessimo culto de

Deus possamos aguentar vigorosamente como aacuteguias do ceacuteu o

fulgurante esplendor do sol do meio-dia269

265 Oratio p128 ldquoScribunt interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoroastris alatam esse animam cumque alae

exciderent ferre illam praeceps in Corpus tum illis subcrescentibus ad superos revolare Percunctantibus eum discipulis alis quo pacto bene plumantibus volucres animos sortirentur lsquoirrigetis dixit alas aquis vitaersquordquo

266 Conforme as palavras atribuiacutedas a Zoroastro (Oratio p 128) ldquoQuattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur indidem vobis salutares aquas hauriatis Nomen ei qui ab aquilone Pischon quod rectum denotat ei qui ab occasu Dichon quod expiationem significat ei qui ab ortu Chiddekel quod lumen sonat ei qui a meridie Perath quod pietatem interpretari possumusrdquo

267 Gecircnesis 2 10-14 ldquoNo Eacuteden nascia um rio que irrigava o jardim e depois se dividia em quatro O nome do primeiro eacute Pisom Ele percorre toda a terra de Havilaacute onde existe ouro [] O segundo que percorre toda a terra de Cuxe eacute o Giom O terceiro que corre pelo lado leste da Assiacuteria eacute o Tigre E o quarto rio eacute o Eufratesrdquo

268 No periacuteodo de redaccedilatildeo da Oratio Pico encontrava-se sob orientaccedilatildeo de Flavio Mitridate e cita em carta endereccedilada a Ficino n0 outono de 1486 seus estudos caldaicos (Supplementum Ficinianum pp 272-3) ldquoChaldaici hi libri sunt si libri sunt et non thesaurirdquo Pico tinha agrave disposiccedilatildeo alguns textos escritos em uma mescla de aramaico e hebraico conforme se extrai de alguns fragmentos Por exemplo os nomes dos rios paradisiacuteacos conforme constam no manuscrito Palatino parecem estar em caracteres etioacutepicos ou em liacutengua aramaico-hebraica conforme notou Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987) Veja-se para toda a questatildeo Stephen FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 pp 13 486-87

269 Oratio p128 ldquo[] profecto nihil aliud nisi ut morali scientia quasi undis hibericis oculorum sordes expiemus dialectica quasi boreali amussi illorum aciem liniemus ad rectum Tum in naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen quasi nascentis solis incunabula pati assuescamus ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum quasi caelestes aquilae meridiantis solis fulgidissimum iubar fortiter perferamusrdquo

106

Nesta uacuteltima passagem para conseguir estabelecer uma simetria entre seu

pressuposto processo triaacutedico e as quatro qualidades postuladas pelos caldeus Pico

insere um intervalo no lugar de um dos quatro elementos do modelo caldaico como

se fosse um niacutevel preparatoacuterio colocado antes da etapa final teoloacutegica ldquodevemos nos

habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca luz da verdaderdquo270 Tal

inserccedilatildeo que representa o primeiro contato com as ldquofaiacutescasrdquo iniciais da verdade

permite que seja mantida a analogia entre os trecircs ldquomomentosrdquo do processo filosoacutefico

e a misteriologia caldaica A despeito da impossibilidade de elucidaccedilatildeo do significado

dos rios no mito acima descrito torna-se relevante o esforccedilo realizado pelo escritor

para alcanccedilar uma simetria conceitual entre os conteuacutedos Sob tal prisma a resposta

para a questatildeo de como renovar as asas e tornaacute-las aptas para novos voos encontra-se

no caminho que se inicia com a filosofia moral se desenvolve por meio dos exerciacutecios

dialeacuteticos e se conclui na meditaccedilatildeo teoloacutegica O trecho faz menccedilatildeo ainda a ciclos

relacionados agrave luz solar o que leva Pico ao teacutermino de sua argumentaccedilatildeo a declarar

ter encontrado semelhanccedila com a concepccedilatildeo triaacutedica dos periacuteodos do dia ldquomatutinos

vespertinos e meridianosrdquo cantados primeiramente por Davi e em seguida

explicados por Agostinho271 Os trecircs periacuteodos se referem a fases do conhecimento do

homem sendo que o uacuteltimo referente agrave ofuscante luz do meio-dia encontra eco na

regiatildeo alcanccedilada atraveacutes da contemplaccedilatildeo conforme se conclui no final da exposiccedilatildeo

Esta eacute a luz meridional que inflama os Serafins e do mesmo

modo ilumina os Querubins272

Os sete modelos acima expostos cada qual pertencente a uma distinta

tradiccedilatildeo seja filosoacutefica teoloacutegica ou misterioloacutegica embora natildeo sistematizados pelo

Autor na forma aqui apresentada e aparentemente lanccedilados no texto qual uma

profusatildeo de referecircncias sem qualquer viacutenculo conceitual representam paradigmas

empregados para sustentar a ideia postulada na obra da existecircncia de formatos

270 Observe-se que nessa sentenccedila natildeo eacute feita correspondecircncia alguma com os niacuteveis da filosofia postulados pelo

autor enquanto agraves outras trecircs sentenccedilas Pico faz corresponder os graus da filosofia moral relacionada ao ocaso-ocidente-expiaccedilatildeo da passagem caldaica da dialeacutetica relacionada ao norte-boreal-justiccedila e por uacuteltimo da teologia que Pico relaciona ao sol do meio-dia e agrave feacute

271 Cf Oratio p128 ldquoHae illae forsan et a Davide decantatae primum et ab Augustino explicatae latius matutinae meridianae et vespertinae cognitionesrdquo As passagens mencionadas se encontram em Salmos 55 17 (Vulgata 54) Agostinho De Genesi ad Litteram IV 47 Conforme Agostinho em seu Comentaacuterio ao Gecircnesis ldquoo universo pode apresentar ao mesmo tempo o dia onde estaacute o sol a noite onde natildeo estaacute a tarde de onde o sol se afasta a manhatilde aonde se aproxima [] E noacutes natildeo podemos contemplar tudo isso ao mesmo tempo e natildeo devemos equiparar esta situaccedilatildeo terrena e o circuito temporal e local da luz corpoacuterea agravequela paacutetria celestial onde eacute sempre dia na contemplaccedilatildeo da Verdade incomutaacutevel sempre tarde no conhecimento da criatura em si mesma sempre manhatilde a partir deste conhecimento ao louvor do Criador Pois ali natildeo se fez tarde pela ausecircncia da luz superior mas pela diversidade de conhecimento inferior nem se faz manhatilde como o conhecimento matutino sucede agrave noite da ignoracircncia mas porque eleva para a gloacuteria do Criador o conhecimento vespertino Finalmente tambeacutem o salmista [Davi] natildeo mencionando a noite diz lsquode tarde pela manhatilde e ao meio dia cantarei e anunciarei e ouviraacutes a minha vozrsquordquo

272 Oratio p128 ldquoHaec est illa lux meridialis quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminatrdquo

107

triaacutedicos asceacuteticos que se repetem sob registros diacutespares A partir de tal enfoque a

concepccedilatildeo de domiacutenio da natureza sugerida por alguns dos autores humanistas que

trataram da dignidade do homem antes de Pico eacute suplantada pela ideia de

transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios (vegetal animal racional intelectual)

que encontra eco em um percurso de dignificaccedilatildeo (ou posicionamento espacial) em

acircmbito cosmoloacutegico Essa experiecircncia eacute entendida pelo escritor como um caminho a

ser percorrido com o auxiacutelio das corretas ferramentas ndash a teurgia dos Misteacuterios os

exerciacutecios dialeacuteticos filosoacuteficos a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo agostiniano

Os sete paradigmas confirmam que a uacuteltima etapa em qualquer dos caminhos

percorridos eacute preenchida pela experiecircncia de encontro com um centro de unidade

final da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o Absoluto Para Pico esse eacute

um momento de cunho teoloacutegico ndash descartado de qualquer dogma como visto na

discussatildeo do Capiacutetulo III Esse eacute o significado de apoacutes a ldquofilosofia ter acalmado os

conflitos da opiniatildeordquo apoacutes ldquoa dialeacutetica ter acalmado a razatildeordquo entatildeo sim ldquoa teologia

mostraraacute o caminhordquo273 Destarte ao termo de qualquer dos modelos encetados

conhece-se uma dissoluccedilatildeo ndash mesmo no percurso filosoacutefico caso da ldquofaiacutescardquo platocircnica

ndash em prol daquela uniatildeo A esse gecircnero de ocorrecircncia Pico remete a experiecircncia de

Moiseacutes no monte Sinai ao tratar da questatildeo filosoacutefica do amor-Eros ldquoMoiseacutes amou o

Deus que viu e promulgou ao povo aquilo que antes tinha visto na montanha como

contempladorrdquo274

A epopteia de Elecircusis a illuminatio angeacutelica a pertenccedila ao Santo dos Santos

do tabernaacuteculo Giovanni Pico natildeo estava a lanccedilar dados de forma aleatoacuteria em seu

texto Cada referecircncia eacute um tijolo colocado para erigir seu projeto e afirmar sua

mensagem dentro de um planejamento No caso dos paradigmas acima sua intenccedilatildeo

eacute mostrar que o percurso de etapas ascensionais se faz necessaacuterio para a descoberta

de ensinamentos que levam agrave Unidade e que em razatildeo de sua preciosidade

encontram-se custodiados pelo segredo De forma mais patente esse tema seraacute

estabelecido no Heptaplus como seraacute visto a partir do proacuteximo Capiacutetulo

273 Oratio p119 (ldquoA dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo a filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo a teologia

mostraraacute o caminhordquo) ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et lacerant []Ad illam [theologia] ipsa et viam monstrabit et comes ducet quae procul nos videns properantesrdquo

274 Oratio p112 Para esse modelo de experiecircncia de religaccedilatildeo com o Espiacuterito de Deus Pico se fundamenta em teoacutelogos como Fiacutelon Gregoacuterio de Nissa (La vita di Mosegrave II 182) e sobretudo Dioniacutesio Areopagita (Cf Pier Cesare BORI ldquoI tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandolardquo in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)

108

CAPIacuteTULO V

RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO

Ao redor de 1480 o papa Sisto IV promove a traduccedilatildeo para o latim de alguns

textos de conteuacutedo cabaliacutestico com o objetivo de apresentaacute-los ao mundo cristatildeo275

Giovanni Pico agrave eacutepoca muito jovem narraria em seu Discurso anos depois como

teria encontrado e adquirido tais livros ldquocom natildeo pequeno dispecircndio de dinheirordquo

lendo-os ldquocom suma diligecircncia e incansaacutevel estudordquo276 Embora essas traduccedilotildees natildeo

tenham sido utilizadas diretamente nas obras piquianas o intento do papa eacute

sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma naquele seacuteculo mesmo que de

forma muito tiacutemida277 Cerca de duzentos anos antes de Pico Ramon Llull na

Espanha havia tentado apresentar a Cabala judaica ao mundo latino mas sua

tentativa fora em breve esquecida278 no lsquo400 os estudos cabaliacutesticos ganharam certa

repercussatildeo entre alguns autores italianos especialmente em Florenccedila279 contudo e

de forma bastante consensual Pico foi o primeiro a introduzir com eficaacutecia a Cabala

no pensamento cristatildeo280 razatildeo suficiente para que o estudioso do Autor aproxime

seu olhar aos principais conceitos da doutrina

O Mirandolano define na Oratio o significado de ldquocabalardquo ldquoverdadeira

interpretaccedilatildeo da lei dada a Moiseacutes por Deus que para os Hebreus tem o mesmo

275 Cf PICO Oratio p159 Quais fossem esses textos e quem teria sido o tradutor natildeo eacute informado na obra

piquiana Entretanto sobre o mesmo argumento voltou-se o teoacutelogo alematildeo Konrad Summenhart em 1494 em sua obra Liber bipartitus informando que os textos cabaliacutesticos que interessaram ao papa teriam sido o Seder lsquoolam e o Neophastis A data de tais traduccedilotildees natildeo eacute informada mas deve ser estabelecida entre 1471 e 1484 periacuteodo do papado de Sisto IV Acerca da obra e comentaacuterios de Summenhart leia-se Guido BARTOLUCCI Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana in Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org F Lelli) 2014 p54

276 Cf PICO ibid p161 277 Eram poucos os que haviam ouvido falar das doutrinas cabaliacutesticas Tanto na corte pontifiacutecia quanto nas

universidades da Itaacutelia e da Europa nenhum cristatildeo fazia ideia do que fosse a Cabala ndash e nem estava interessado em saber (cf BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p296) O proacuteprio Pico conta na Apologia (ed Fornaciari 2010 p176-77) que um dos Padres ndash durante o interrogatoacuterio que se seguiu agrave publicaccedilatildeo das Conclusiones ndash perguntara quem era esse tal sujeito chamado ldquoCabalardquo Por outro lado nos casos em que a Cabala natildeo era completamente desconhecida seu estudo era visto como uma ldquobizarrice anedoacuteticardquo e natildeo como uma discussatildeo seacuteria conforme observou Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo (p XXV) a Giovanni Pico della Mirandola (GARIN 2011)

278 O teoacutelogo e filoacutesofo catalatildeo Ramon Llull florescido no seacuteculo XIII e conhecido em espanhol como Raimundo Lulio escreveu em aacuterabe latim e em occitano (langue doc) tendo recebido a alcunha de Arabicus Christianus (aacuterabe cristatildeo)

279 Interessaram-se pelo estudo da Cabala de forma a deixar registros Pier Leone da Spoleto Egidio da Viterbo e Domenico Grimani (Cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 56)

280 Efetivamente Pico mostra ter descoberto confirmaccedilotildees para a revelaccedilatildeo cristatilde no coraccedilatildeo da miacutestica hebraica como antecipado nas Conclusiones e confirmado no Heptaplus A teologia cabaliacutestico-cristatilde de Pico interessaria no Quinhentos a filoacutesofos e miacutesticos sobretudo do ambiente franciscano tendo sido aperfeiccediloada por Johann Reuchlin e Cornelius Agrippa e reutilizada mais tarde pelos ldquoplatocircnicos de Cambridgerdquo Esses autores se serviram de muitas traduccedilotildees latinas realizadas por judeus convertidos ao Cristianismo Na Cabala cristatilde foram mantidos elementos hermenecircuticos maacutegicos e de natureza teosoacutefica sendo retirados os elementos ritualiacutesticos da religiatildeo judaica Sua originalidade em apresentar a Cabala ao mundo cristatildeo eacute confirmada por FORNACIARI (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp 14 23) BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 np56) CASSUTO (Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p319) GARIN (Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 p101) SECRET (Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Cap) entre outros

109

significado que receptiordquo uma doutrina recebida ldquopor meio de sucessivas revelaccedilotildees

que um recebia do outro como por direito hereditaacuteriordquo281 De fato a palavra hebraica

qabbalah significa ldquorecepccedilatildeordquo ldquotradiccedilatildeordquo ou ldquoaceitaccedilatildeordquo indicando a transmissatildeo de

doutrinas secretas do misticismo judaico e particularmente caracterizando um

movimento de pensamento de conotaccedilatildeo esoteacuterica282 Em seu valor de ldquorecepccedilatildeordquo

enuncia o conceito de continuidade com o passado e tambeacutem o sentido de

responsabilidade que essa heranccedila espiritual comporta Cada geraccedilatildeo eacute chamada a

receber da precedente o conjunto de valores e ensinamentos secretos sobre os quais

se funda o Judaiacutesmo devendo transmiti-la agrave sucessiva283 O termo que pode ser

encontrado com diferentes grafias ndash entre as quais ldquocabalardquo forma latina empregada

por Giovanni Pico e aqui utilizada ndash284 teria aparecido na literatura apenas no seacuteculo

XI em um escrito do poeta e filoacutesofo Salomon Ibn Gabirol285 enquanto que sua plena

conotaccedilatildeo de conhecimento secreto ganharia corpo por volta do tardio seacuteculo XIII

partindo do ciacuterculo de Isaac o Cego no sul da Franccedila286

A Cabala italiana que desde sua origem ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVI exerceu

influxos mais efetivos sobre os pensadores cristatildeos renascentistas que se

interessaram pelo assunto tem sua ldquoespinha dorsalrdquo formada por trecircs cabalistas

como informa Moshe Idel Abraham Abulafia que compocircs a maior parte de suas

obras na Itaacutelia Menahem Recanati e o autor do livro Maarekhet haElohut (A Ordem

da Divindade)287 De acordo com o comentarista os trecircs tinham em comum a

caracteriacutestica conceitual da incompatibilidade com a tradicional visatildeo miacutetica da

divindade apresentando concepccedilotildees mais filosoacuteficas Tal forma diferenciada fez com

que por um lado os cabalistas espanhoacuteis que chegavam agrave Itaacutelia estranhassem as

interpretaccedilotildees da escola italiana por outro que os ciacuterculos neoplatocircnicos de Florenccedila

tivessem um encontro sem atritos com a teologia ldquoquaserdquo filosoacutefica dos rabinos

Abulafia e Recanati288 A forma de Cabala protagonizada na Itaacutelia de qualquer forma

manteve os temas fundamentais do movimento relacionados com a emanaccedilatildeo do

princiacutepio divino e com a concepccedilatildeo de que cada parte da criaccedilatildeo responde a uma

secreta harmonia de desenho transcendente Para melhor entender o emprego da

281 Cf PICO Oratio pp 157 159 Veja-se tambeacutem Apologia (ed Fornaciari 2010) p 29 282 De acordo com IDEL (2008-a p17) desde o seacuteculo X haacute testemunhos da existecircncia de uma forma especiacutefica

de tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica mas somente a partir do seacuteculo XII comeccedilam a se organizar registros a esse respeito 283 Giulio BUSI La Qabbalah 2011 p3 284 As grafias mais utilizadas para o termo proveniente do verbo hebraico LeCaBeL (ldquoreceberrdquo) satildeo qabbalah

kabbalah ou CaBaLaacute Eacute de se notar que esta palavra eacute oxiacutetona em Hebraico mas frequentemente falada em outros idiomas tanto como paroxiacutetona (inglecircs) como agraves vezes proparoxiacutetona (espanhol)

285 Salomon Ibn-Gebirol ou Schlomo ben Judah tornou-se conhecido no mundo cristatildeo como Avicebron A atribuiccedilatildeo de ter sido o primeiro a mencionar o termo ldquocabalardquo consta na ldquoIntroduccedilatildeordquo da ediccedilatildeo em espanhol do Zohar do comentarista Leoacuten DUJOVNE (El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires 1992 p XVII)

286 IDEL 2008a pp17-18 Para compor o quadro histoacuterico de desenvolvimento do misticismo hebraico satildeo relevantes tanto a obra de Gershom SCHOLEM As Grandes correntes da Miacutestica Judaica (opcit) quanto a de Giulio BUSI Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo 1995

287 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b p460 O autor do Sefer Maarekhet haElohut do qual Idel menciona a ediccedilatildeo de Mantova de 1558 natildeo eacute conhecido Sabe-se da existecircncia de uma traduccedilatildeo da obra realizada por Abulafia (ibid np461)

288 IDEL ibid p460 Efetivamente a Cabala italiana era mais ldquoextaacuteticardquo (especificaccedilatildeo que seraacute vista adiante) Para Abulafia por exemplo a crenccedila nas dez Sefirot (a ser verificada adiante) era pior do que a crenccedila cristatilde na Trindade Esse uacuteltimo toacutepico eacute tratado por IDEL em sua tese de doutoramento (As obras e a Doutrina de Abraatildeo Abulaacutefia Universidade Hebraica de Jerusaleacutem 1976 pp436 ss)

110

Cabala nos estudos realizados por Pico e as fontes por ele utilizadas se faz necessaacuterio

inicialmente entender como se deu sua transmissatildeo atraveacutes da histoacuteria e na

sequecircncia quais as principais concepccedilotildees e terminologias utilizadas pelos cabalistas

1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica

A transmissatildeo oral

A primazia da transmissatildeo de concepccedilotildees cabalistas natildeo deve ser creditada aos

escritos que lhe foram dedicados ao contraacuterio foi a tradiccedilatildeo oral a ajudar a perpetuar

tais concepccedilotildees sendo que a ocorrecircncia de manuscritos deve ser entendida como

uma seacuterie de episoacutedios excepcionais ocorridos dentro de uma longa histoacuteria de

transmissotildees orais Pressotildees externas como perseguiccedilotildees religiosas sociais e

poliacuteticas determinavam as variaccedilotildees entre as diferentes fases do misticismo judaico e

as consequentes disposiccedilotildees entre o que seria resguardado como esoteacuterico e o que se

tornaria puacuteblico289 A diaacutespora europeia responsaacutevel por fragmentar o judaiacutesmo em

pequenas comunidades criou circunstacircncias que exigiram que a experiecircncia miacutestica

fosse confiada agrave paacutegina escrita uma forma mais concreta de ampliar sua difusatildeo natildeo

sem que se mantivesse o cuidado em preservar uma linguagem simboacutelica que

protegesse os verdadeiros significados Eis a razatildeo como observa Giulio Busi de

serem frequentes nos textos cabaliacutesticos passagens como ldquoquem eacute dotado de intelecto

entenderaacuterdquo indicando a existecircncia de uma aacuterea conceitual reservada apenas agrave

transmissatildeo oral e deixando claro que o texto escrito natildeo apresenta todas as

respostas290 A necessidade histoacuterica de se registrar de forma escrita a tradiccedilatildeo oral

remete ao periacuteodo de exiacutelio babilocircnico e estaacute bem narrada por Giovanni Pico na

Oratio

Esdras291 ao ver claramente que natildeo se podia manter a tradiccedilatildeo

fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina

nos exiacutelios nos massacres nas fugas nos cativeiros do povo de

Israel dado que deste modo pereceriam os misteacuterios da celeste

doutrina concedidos por Deus e natildeo podendo se manter por

muito tempo a memoacuteria desta sem a interposiccedilatildeo de textos

escritos estabeleceu que reunidos os saacutebios entatildeo

sobreviventes cada um manifestasse quanto conservava

guardado na memoacuteria acerca dos misteacuterios da Lei Estes em

289 Tova SENDER Iniciaccedilatildeo agrave Cabala 1992 p9 290 BUSI La Qabbalah 2011 pp5-6 291 Pico refere-se aos livros biacuteblicos de Esdras Os dois primeiros o de Esdras e o de Neemias pertencem ao

elenco dos livros autecircnticos assumidos pela Igreja o terceiro eacute o Esdras grego o quarto eacute outro apoacutecrifo do gecircnero apocaliacuteptico Pico trabalha com o Esdras IV (cf Luiz FERACINE 1999 notas)

111

seguida chamados os escribas foram escritos em setenta

volumes292

Os primeiros sinais de uma reflexatildeo efetivamente miacutestica colocada em forma

escrita remetem ao iniacutecio do segundo seacuteculo de nossa Era periacuteodo em que se insere a

redaccedilatildeo da Mishnaacute ndash essencialmente um corpus juriacutedico Trata-se da ediccedilatildeo escrita

de grande parte da tradiccedilatildeo oral com o conteuacutedo das leis e dos costumes que foram

se enriquecendo atraveacutes de anos de convivecircncia293 Esse conjunto de tratados eacute

amplamente comentado por outro importante texto intitulado Guemaraacute Ao conjunto

Mishnaacute e Guemaraacute deu-se o nome de Talmud em suas duas versotildees uma de

Jerusaleacutem e outra da Babilocircnia294 Esses dois Talmudim (plural de Talmud)

constituem uma espeacutecie de enciclopeacutedia natildeo apenas das tradiccedilotildees legais como das

praacuteticas religiosas da exegese e das lendas difundidas em idade tardo-antiga

contendo consistentes elementos de reflexatildeo acerca de temas miacutesticos295 Ademais

era comum efetuar-se no Talmud referecircncias a partes da literatura que se

encontravam fora do Pentateuco ou seja aos conteuacutedos transmitidos oralmente Por

essa razatildeo as fontes talmuacutedicas embora escritas compotildeem o que seria a Toraacute oral

dentro da tradicional distinccedilatildeo entre lsquoToraacute escritarsquo e lsquoToraacute oralrsquo Conforme explica

Scholem296 a Toraacute escrita eacute o proacuteprio texto do Pentateuco297 jaacute a Toraacute oral eacute a soma

de tudo o que foi comentado por eruditos ou saacutebios acerca daquele corpus escrito

natildeo apenas pelos comentadores talmuacutedicos da Lei mas por todos os demais que

interpretaram o texto Retrocedendo aos tempos mosaicos e de acordo com a

tradiccedilatildeo rabiacutenica Moiseacutes teria recebido ao mesmo tempo ambas as Toraacutes no Monte

Sinai sendo que a parte referente aos ensinamentos natildeo escritos deveria ser

transmitida oralmente de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ndash de acordo com a antiga proibiccedilatildeo ldquoo

que eacute transmitido oralmente natildeo pode ser escritordquo298 Para o Judaiacutesmo rabiacutenico tudo

quanto um erudito de qualquer eacutepoca viesse a deduzir da Toraacute estaria incluso

naquela tradiccedilatildeo oral fornecida a Moiseacutes validando-se assim a concepccedilatildeo de que as

duas Toraacutes satildeo uma soacute tradiccedilatildeo oral e palavra escrita completam-se mutuamente

292 PICO Oratio p159 ldquoEsdras tunc ecclesiae praefectus post emendatum Moseos librum cum plane

cognosceret per exilia caedes fugas captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis doctrinae arcana perirent quorum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat constituit ut convocatis qui tunc supererant sapientibus afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat adhibitisque notariis in septuaginta volumina redigerenturrdquo

293 A Mishnaacute eacute composta por 63 tratados compilados pelo Rabino Yehudaacuteh Hanassiacute no seacuteculo II dC 294 A ediccedilatildeo do Talmud da Babilocircnia eacute considerada a mais completa pois sua composiccedilatildeo iniciou durante o

exiacutelio babilocircnico em 586 aC e chegou ateacute por volta do seacuteculo V dC (cf Marcelo MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute - A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014 p71)

295 Maiores detalhes acerca da discussatildeo histoacuterica em torno da Mishnaacute podem ser colhidos na obra La Qabbalah de Giulio BUSI (opcit pp38-40) aleacutem de o autor apresentar uma especiacutefica bibliografia para o tema Acerca do Talmud veja-se ainda SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978

296 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978 p61 297 A Toraacute eacute composta pelos 5 Livros de Moiseacutes (entre 1100 e 1300 aC) Bereshit Shemot Vaikraacute Bamidbar e

Devarim conhecidos respectivamente como Gecircnesis Ecircxodo Leviacutetico Nuacutemeros e Deuteronocircmio chamados anos depois de Antigo Testamento juntamente com os Livros de Profetas (Josueacute Juiacutezes Isaiacuteas Jeremias Ezequieletc) e Escritos (Salmos Proveacuterbios JoacuteDaniel Esdras etc) Todo esse conjunto de livros eacute chamado TaNaKh

298 MAGHIDMAN opcit p71

112

Dentre os pensadores cristatildeos Pico foi dos poucos a evidenciar o esoterismo

presente nas Escrituras como se infere a partir do destaque dado ao tema das duas

Leis recebidas por Moiseacutes A questatildeo da separaccedilatildeo entre a literalidade e oralidade

recebeu foco na Apologia depois de o tema ter se repetido em algumas passagens da

Oratio como a que narra o pedido do ldquoAltiacutessimordquo de tornar puacuteblico o primeiro

daqueles livros para ser lido pelos ldquodignos e indignosrdquo e de confiar os demais

[secretos e correspondentes agrave lei oral] ldquoapenas aos saacutebiosrdquo Em outra passagem Pico

afirma que aquele livro poderia se tornar puacuteblico ndash mantendo sua dimensatildeo secreta

preservada ndash desde que fossem observadas certas condiccedilotildees ldquoa Moiseacutes Deus ordenou

que divulgasse a lei mas que natildeo escrevesse a interpretaccedilatildeo da lei nem a divulgasse

mas a revelasse soacute a Jesus Nave [Josueacute] e este por sua vez aos sumos sacerdotes sob

o sagrado sigilo do absoluto silecircnciordquo299 Outros dois cristatildeos vaacuterios seacuteculos antes de

Pico haviam sido afetados pela temaacutetica da tradiccedilatildeo oral biacuteblica Hilaacuterio e Oriacutegenes

ambos mencionados na Oratio300

Com o passar do tempo os ensinamentos orais em geral passaram a ser

considerados como pertencentes agrave Cabala e o emprego do termo foi sendo cada vez

mais relacionado agrave transmissatildeo oral Exemplo de tal uso eacute verificado no comentaacuterio

feito por Judah Ben Barzilai no seacuteculo XII ao Secircfer Yetsiraacute ndash importante obra

cabaliacutestica a ser abordada adiante ndash ao narrar a criaccedilatildeo do Espiacuterito Santo conta o

talmudista que os saacutebios costumavam transmitir ldquoreservadamente num sussurro

atraveacutes da Cabala declaraccedilotildees dessa espeacutecierdquo301 O esoterismo deveria portanto ser

mantido por cada geraccedilatildeo em virtude da restriccedilatildeo em se confiar noccedilotildees mais

profundas aos textos escritos evitando-se que os segredos da Revelaccedilatildeo fossem

deturpados por leitores despreparados Por essa razatildeo a presenccedila de um mestre se

fazia necessaacuteria na transmissatildeo oral pois atraveacutes da relaccedilatildeo direta entre mestre e

disciacutepulo seria possiacutevel avaliar as intenccedilotildees e garantir as atitudes intelectuais e eacuteticas

do aprendiz preservava-se assim a verdade intacta

Em relaccedilatildeo aos graus que levam ao conhecimento miacutestico haacute informaccedilotildees de

que em eacutepocas mais remotas seguiam-se exigecircncias muito riacutegidas a respeito de

certos atributos morais e mesmo de traccedilos fisiognomocircnicos dos seus participantes302

Em tempos mais recentes ainda foram mantidas algumas limitaccedilotildees ao aprendizado

da Cabala como o limite miacutenimo de idade que dependendo da escola pode variar

dos trinta aos cinquenta anos Pico conhecia a restriccedilatildeo da idade mencionando-a na

Apologia ldquoEsses livros satildeo venerados com tanta devoccedilatildeo que ningueacutem pode tocaacute-los

antes de ter completado quarenta anosrdquo303 Quanto agrave trajetoacuteria iniciaacutetica natildeo haacute

evidecircncias da existecircncia de etapas preacute-definidas que o adepto devesse ou deva

299 PICO Oratio respectivamente pp159 e 155 Grifo nosso 300 Ibid p155 301 SCHOLEM Cabala-Enciclopeacutedia judaica opcit p 6 Grifo nosso 302 SENDER opcit p9 A menccedilatildeo agrave fisiognomia remete ao discipulado pitagoacuterico que talvez tenha exercido

alguma influecircncia em algum nuacutecleo cabaliacutestico posterior Natildeo encontramos em outras fontes quaisquer esclarecimentos nesse sentido

303 Apologia p31 ldquoHi libri apud hebraeos hac tempestate tanta religione coluntur ut neminem liceat nisi anos XL natum illos attingererdquo Paolo FORNACIARI informa que de acordo com a tradiccedilatildeo o estudo soacute pode ser enfrentado por indiviacuteduos do sexo masculino que tenham acima de quarenta anos (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p18)

113

cumprir para ingressar em niacuteveis distintos de conhecimento304 O que se depreende

dos comentaacuterios acerca do misticismo judaico em paralelismo com a forma de outros

percursos miacutesticos eacute que os segredos da transmissatildeo oral conduzem o proseacutelito a

atingir certo estado extaacutetico que lhe permite receber solitariamente uma Revelaccedilatildeo

Haacute portanto uma relaccedilatildeo estreita entre a transmissatildeo oral o segredo mantido

atraveacutes de tal oralidade e o estado de ecircxtase que antecede a recepccedilatildeo da Revelaccedilatildeo

O misticismo judaico e parte relevante dos exerciacutecios asceacuteticos organizam-se

de forma preciacutepua em torno agrave interpretaccedilatildeo das Escrituras Nelas se encerram os

segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral Em claro consenso todos os miacutesticos judeus

desde os Terapeutas descritos por Filon ateacute ao mais recente hassid concordam que a

Toraacute seja um organismo vivente animado por uma vida secreta que aguarda uma

interpretaccedilatildeo miacutestica305 Como explica Scholem a hermenecircutica dos textos sagrados

eacute uma das formas de alcanccedilar seu conteuacutedo ldquovivordquo possibilitando a ocorrecircncia de

dado momento em que a substacircncia de tal conteuacutedo eacute remodelada ao passar pela

ldquocorrente de fogo do sentimento miacutesticordquo Natildeo se contentando com um uacutenico ato

isolado de ecircxtase o miacutestico continuaraacute a buscar a revelaccedilatildeo de algo oculto que o

aproxime cada vez mais do divino306 A relaccedilatildeo entre as palavras sagradas e o segredo

que guardam estaacute tambeacutem descrita na obra cabaliacutestica Zohar ldquocada palavra da

Escritura encerra um misteacuterio supremordquo o sentido literal eacute ldquoapenas um invoacutelucrordquo e

tomaacute-lo por verdade pode ldquotrazer adversidadesrdquo agravequele que o recebe por essa forma

exterior307 Outra passagem do Zohar anuncia que nas mesmas palavras das

Escrituras com as quais se enxerga apenas o sentido literal em outro momento pode

ser enxergado um novo sentido miacutestico sendo cada palavra insubstituiacutevel para os

dois sentidos

ldquo[]assim como para o sentido literal cada palavra eacute

indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer

uma delas assim tambeacutem para o sentido miacutestico cada palavra eacute

indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer

palavrardquo308

O miacutestico portanto natildeo rejeita a autoridade do texto escrito ele apenas

invalida uma aparente verdade que possa se mostrar no significado literal

substituindo-a por uma interpretaccedilatildeo que decorre de intuiccedilatildeo a ser alcanccedilada

durante a reflexatildeo miacutestica309 Conforme complementa Scholem as exegeses miacutesticas

sempre partem de palavras exatas para em seguida ldquode forma genialrdquo transformar

304 BUSI opcit pp5-6 305 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit pp 15-16 Em De Vita Contemplativa obra em

que Fiacutelon aborda as seitas judaicas dos Terapeutas a Toraacute eacute relatada como algo afim a um ser vivo o sentido literal eacute o corpo enquanto a alma eacute o significado secreto debaixo da palavra escrita

306 SCHOLEM ibid p 11 Na concepccedilatildeo da ldquocorrente de fogordquo que une o adepto ao divino natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com a questatildeo filosoacutefica do ldquolampejordquo descrito por Platatildeo na Carta VII O processo filosoacutefico de conhecimento produz em dado momento uma faiacutesca e subitamente como num lampejo a alma tem uma visatildeo intelectual que pode ser comparada a uma intuiccedilatildeo

307 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 308 Zohar II 99a in VULLIAUD I pp137-38 309 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo opcit pp 21-22

114

as Escrituras em um corpus simboacutelico permitindo que se abra um portatildeo atraveacutes do

qual o miacutestico passa ldquoum portatildeo que se lhe abre sempre de novordquo Assim ldquoa exegese

miacutestica esta nova revelaccedilatildeo concedida ao miacutestico tem o caraacuteter de uma chaverdquo310

Como havia escrito Oriacutegenes em contexto concernente ao esoterismo ldquoachar as

chaves certas que abriratildeo as portas eacute a grande e aacuterdua tarefardquo311 As formas para se

encontrar ldquoa chave certardquo fazem parte dos segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral

A literatura miacutestica

O conjunto da tradiccedilatildeo escrita cabaliacutestica eacute sustentado por dois importantes

pilares ndash o Zohar e o Secircfer Yetsiraacute ndash aos quais se acrescentam como terceiro pilar

vaacuterios textos de eacutepocas diferenciadas O Secircfer Yetsiraacute (Livro da Formaccedilatildeo) eacute um

pequeno e antigo livro metafiacutesico com apenas seis capiacutetulos Escrito provavelmente

em Terra de Israel estima-se que sua data de composiccedilatildeo se situe entre os seacuteculos II

e III (podendo chegar ateacute o VI dC)312 estabelecendo-se assim como o texto judaico

mais antigo de caraacuteter propriamente miacutestico mesmo em se levando em conta a

possibilidade de ter sofrido alteraccedilotildees ao longo dos seacuteculos313 Sua primeira versatildeo

impressa realizada em Mantova e datada de 1562 tem sido a mais aceita embora

muitas coacutepias circulassem antes no universo judaico e principalmente nos ciacuterculos

fechados dos cabalistas sob formas natildeo impressas314

Os comentaacuterios ao Secircfer Yetsiraacute fazem parte integrante da literatura miacutestica

hebraica e foram amplamente utilizados por seus estudiosos Entre esses sabe-se da

existecircncia de um relevante comentaacuterio perdido realizado por Abulafia que se

fundamentou em sua admiraccedilatildeo por Maimocircnides ndash autor que mesmo natildeo tendo

produzido literatura miacutestica chegou a escrever um comentaacuterio ao primeiro capiacutetulo

do Secircfer Yetsiraacute315 Malgrado a significativa quantidade de comentaacuterios que ensejou

310 SCHOLEM ibid pp 20-23 311 A passagem referida a Oriacutegenes encontra-se em Selecta in Psalmos ref Salmo I in MIGNE Patrologia

Graeca XII 1080 apud SCHOLEM 1978 p 20 312 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit p83 Nome de Deus e Teoria da linguagem

opcit p21 Para BUSI a data de compilaccedilatildeo do Secircfer Yetsiraacute situa-se entre os seacuteculos VI e VII (2011 p9 e 46 ss) 313 O Secircfer Yetsiraacute pode ser classificado naquilo que os hebreus chamam de Maassecirc Bereshit (Atos de Criaccedilatildeo)

conjunto representado por textos cosmoloacutegicos ou cosmogocircnicos relacionados agrave Criaccedilatildeo do Universo ndash o todo ou os seres em particular ndash em distinccedilatildeo aos escritos de Maassecirc Mercavaacute relacionados agrave natureza divina ao trono celestial e agrave hierarquia dos Anjos O nome ldquomercavaacuterdquo relaciona-se agrave visatildeo da carruagem de fogo subindo aos ceacuteus que estaacute descrita em Ezequiel 101 e Isaiacuteas 61-2 (cf MAGHIDMAN opcit p107)

314 A ediccedilatildeo de Mantova apresenta tanto uma versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute acrescida de comentaacuterios quanto uma versatildeo longa inclusa em seu apecircndice embora existam bem mais do que duas versotildees do Secircfer Yetsiraacute como pode ser verificado em estudo comparativo efetuado por Hayman no qual satildeo apresentadas dezenove versotildees seis variaccedilotildees do texto longo dez da versatildeo curta e outras trecircs frutos do comentaacuterio de Saadia Gaon (892-943) A uacuteltima versatildeo comentada por Gaon tem a data precisa do ano 931 e eacute interessante observar que o proacuteprio Gaon aponta para algumas alteraccedilotildees que realizou no texto original (mudando por exemplo o nuacutemero de Portotildees da Sabedoria Divina de 221 para 231 no paraacutegrafo 19) assim alimentando duacutevidas se teria feito outras alteraccedilotildees Os manuscritos tomados como base para cada uma das versotildees satildeo o existente na Biblioteca do Vaticano (versatildeo longa) o de Parma (versatildeo curta) e a versatildeo comentada de Saadia Gaon proveniente da Guenizaacute do Cairo e atualmente na Biblioteca de Cambridge (Peter HAYMAN Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism 2004 pp2 12-14 31) Sobre as versotildees do Secircfer Yetsiraacute veja-se ainda SCHOLEM (1989 pp21 27) O Apecircndice II da obra de MAGHIDMAN (opcit) apresenta em portuguecircs a versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute

315 Para Abulafia no Guia dos Perplexos de Maimocircnides encontra-se a verdadeira teoria do Cabalismo (SCHOLEM 1995 pp 141-142) Para a averiguaccedilatildeo de outros comentaacuterios acerca do Secircfer Yetsiraacute veja-se HAYMAN opcit p31 BUSI opcit p48 SCHOLEM 1989 pp26 46

115

o autor do Secircfer Yetsiraacute permanece desconhecido Por muito tempo considerou-se

que tivesse sido Abraatildeo a concebecirc-lo ndash a obra de Pico mostra a aceitaccedilatildeo dessa

autoria ainda no lsquo400 ndash muito provavelmente em razatildeo da menccedilatildeo feita ao patriarca

no uacuteltimo paraacutegrafo do livro onde se lecirc ldquoe quando Abraham nosso pai olhou viu

entendeu perscrutou gravou e entalhou teve ecircxitordquo316 Por esse motivo o Livro da

Formaccedilatildeo eacute tambeacutem conhecido pelo nome Otiot Deavraham Avinu (O alfabeto do

patriarca Abraatildeo)317 De toda forma e embora sua autoria mantenha-se

desconhecida ainda hoje o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado o primeiro texto especulativo

escrito no idioma hebraico318 Sua peculiaridade encontra-se em estar voltado para a

alma individual humana ndash e natildeo para os judeus de modo particular ndash razatildeo de o

nuacutemero doze ser indicativo dos signos do zodiacuteaco por exemplo e natildeo das

tradicionais doze tribos de Israel Tambeacutem natildeo menciona Moiseacutes a Toraacute ou o

Messias Assim de forma incomum na literatura hebraica a obra traccedila o ldquodesenho

das forccedilas ocultas do cosmordquo sem fazer quase nenhuma referecircncia direta ao texto das

Escrituras ou agrave tradiccedilatildeo poacutes-biacuteblica como complementa Giulio Busi319

Em termos de conteuacutedo o Secircfer Yetsiraacute pode ser descrito em linhas bastante

sucintas320 como um apanhado de conhecimentos de cunho miacutestico com notas

filosoacuteficas astroloacutegicas e cosmoloacutegicas da Antiguidade em que predominam

princiacutepios de simetria reciprocidade e correspondecircncia Em linguagem enigmaacutetica

encontra-se delineado o paralelismo entre as letras do alfabeto hebraico com

categorias da criaccedilatildeo dos mundos (angeacutelico celeste e material) e com funccedilotildees de

natureza fiacutesica bioloacutegica e psiacutequica de forma a estabelecer uma relaccedilatildeo entre a

infinitude de Deus e a finitude de sua obra ou em outras palavras uma relaccedilatildeo entre

a dimensatildeo material e a espiritual O Secircfer Yetsiraacute introduz ainda a noccedilatildeo de Sefirot

ndash a ser verificada adiante ndash um dos nuacutecleos fundamentais do pensamento

cabaliacutestico capaz de presentear os miacutesticos com uma doutrina orgacircnica do aspecto

secreto da Criaccedilatildeo321

O Secircfer ha-Zohar (Livro do Esplendor) ndash ou apenas Zohar ndash embora

redigido vaacuterios seacuteculos apoacutes o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado por muitos como o

trabalho mais importante acerca da Cabala322 A despeito de ter tido sua autoria

estabelecida durante muito tempo no segundo seacuteculo e atribuiacuteda ao rabino Shimon

Bar Yohai ndash fato que tradicionalmente ainda prevalece mesmo em ediccedilotildees mais

recentes ndash alguns estudos acadecircmicos do seacuteculo passado especialmente de Gershom

316 Secircfer Yetsiraacute trad MAGHIDMAN Apecircndice II 2014 p174 317 SENDER 1992 p27 Dentre as hipoacuteteses de autoria do Secircfer Yetsiraacute Sender aponta para Rabi Akiva que

teria vivido em Israel no seacuteculo II de nossa Era (ibid pp27-28) 318 MAGHIDMAN opcit p19 319 BUSI opcit p9 320 Natildeo cabe nestas paacuteginas a anaacutelise do Secircfer Yetsiraacute ao qual literatura especializada tem se dedicado Na

sequecircncia seratildeo verificadas as principais concepccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute que exerceram influecircncia sobre Pico della Mirandola Para comentaacuterios referentes ao Secircfer Yetsiraacute em portuguecircs veja-se a obra de MAGHIDMAN (2014)

321 BUSI opcit pp9 e 46 ss SCHOLEM 1995 p83 322 SCHOLEM 1989 p 52 A importacircncia do Zohar pode ser medida pela relevacircncia que lhe foi dada por um

dos maiores cabalistas do seacuteculo XVI Isaac Luria (1534-1572) que o utilizou como principal base de seus estudos Luria foi o responsaacutevel por uma das mais importantes escolas de Cabala revolucionando o misticismo hebraico (inclusive com suas doutrinas de transmigraccedilatildeo) e todo o Cabalismo posterior

116

Scholem apontam para o judeu espanhol Moshe de Leoacuten como seu mais provaacutevel

autor aleacutem de responsaacutevel por sua publicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo no seacuteculo XIII323

Escrito em aramaico e hebraico medieval o Zohar natildeo eacute exatamente um livro

com um texto sistemaacutetico mas um conjunto de livros que reuacutene vaacuterios contos em que

os personagens utilizando-se da Biacuteblia como pretexto discutem e efetuam inserccedilotildees

narrativas O conjunto de textos aborda vaacuterios temas da vida judaica desde preceitos

e oraccedilotildees ateacute situaccedilotildees do cotidiano passando por anotaccedilotildees alquiacutemicas

astronocircmicas e astroloacutegicas As discussotildees progridem em direccedilatildeo a comentaacuterios

miacutesticos sobre a Toraacute revelando concepccedilotildees teosoacuteficas abrangentes acerca da

natureza de Deus da origem e da estrutura do universo da hierarquia dos mundos e

da transmigraccedilatildeo e destino das almas entre outros temas de natureza filosoacutefico-

metafiacutesica Seu fundo conceitual apoia-se na relaccedilatildeo entre as Sefirot e a regecircncia do

mundo desenvolvido a partir da ideia de que cada universo inferior reflete o seu

superior Cabe referir que em sua completude o Zohar natildeo trata apenas do bem

acolhe ainda uma intrincada representaccedilatildeo do domiacutenio das forccedilas negativas

designadas com a locuccedilatildeo sitra ahara que significa ldquoa outra parterdquo324

Aleacutem do Zohar e do Secircfer Yetsiraacute outras obras satildeo emblemaacuteticas e

obrigatoacuterias ao estudo do misticismo hebraico por apresentarem estreita relaccedilatildeo com

o Secircfer Yetsiraacute Quase todas se encontram entre as fontes de Giovanni Pico razatildeo de

nosso interesse Uma delas eacute o Secircfer ha-Bahir (Livro da Iluminaccedilatildeo) tambeacutem

conhecido como ldquoO Midrash do Rabino Nehuniah Ben Hakanahrdquo atribuiacutedo ao

rabino midraacuteshico que lhe daacute o nome325 O Bahir integra uma corrente estritamente

metafiacutesica da Cabala diretamente relacionada ao nuacutecleo de pensadores espanhoacuteis de

onde se originou Azriel de Gerona ndash que realizou um relevante escrito sobre as Sefirot

ndash mestre do notabilizado filoacutesofo e cabalista Nachmacircnides tambeacutem pertencente ao

mesmo grupo326 Aleacutem de tratar de questotildees acerca das emanaccedilotildees divinas o texto

aborda questotildees relacionadas agrave alma agrave transmigraccedilatildeo aos anjos e ao alfabeto

hebraico327

Compotildee ainda a construccedilatildeo do pensamento cabalista um rico repertoacuterio de

visotildees celestes guardado na chamada literatura dos ldquoaacutetrios celestiaisrdquo ou dos

Heikhalot (literalmente ldquopalaacuteciosrdquo) constituiacutedo por escritos enigmaacuteticos datados do

primeiro seacuteculo da era cristatilde ndash embora redigidos provavelmente em eacutepoca mais

323 Moshe de Leoacuten alegava ter descoberto (e natildeo escrito) o Zohar em Guadalajara cidade espanhola onde vivia SCHOLEM afirma que De Leoacuten ocultou-se atraacutes do nome de Shimon Bar Yohai para escrever aquela que seria sua obra maior (1989 p 52) Tambeacutem Pico atribuiacutea a autoria do Zohar a ldquoSimeon Antiquusrdquo

324 BUSI opcit pp 72-74 SENDER opcit p34 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p 630

325 Sheila RABIN Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays (org Dougherty MV) 2008 p 156 SCHOLEM considera o texto como pertencente provavelmente ao seacuteculo XI (1989 p 39)

326 GARIN 2011 p115 Azriel ben Menahem de Gerona foi mestre de Mosheh ben Nahman de Gerona conhecido por Nachmacircnides Este uacuteltimo notabilizou-se por seus comentaacuterios miacutesticos do Pentateuco e por seus comentaacuterios ao Talmud

327 O conceito de transmigraccedilatildeo das almas penetrou na Cabala dos seacuteculos sucessivos graccedilas ao Bahir Veja-se maiores detalhes em BUSI opcit pp 55 63 MAGHIDMAN opcit p91 Existe uma traduccedilatildeo em portuguecircs do Bahir originalmente traduzido e comentado por Arieh KAPLAN (Bahir o Livro da Iluminaccedilatildeo-atribuiacutedo ao Rabino Nehuniaacute ben haKana) realizada por Maria Regina Nogueira contendo o texto original hebraico (Ed Imago Rio de Janeiro 1992)

117

tardia O material conteacutem relatos de experiecircncias pessoais de ascensatildeo aos planos

superiores representados por uma estrutura arquitetocircnica de luzes A partir do

misticismo dos Heikhalot os cabalistas herdaram um complexo sistema angeoloacutegico

e a representaccedilatildeo de uma ascese da alma articulada em etapas cognitivas sempre

mais elevadas Efetivamente a ampla tratativa aborda as vaacuterias etapas de um

percurso asceacutetico sob um gradual processo de conhecimento328 Os tratados

apresentam algumas narrativas obscuras em que tantas vezes soberbos anjos estatildeo

colocados como guardiotildees dos palaacutecios das regiotildees celestes Por exemplo no

Heikhalot rabbati o mais ceacutelebre o miacutestico pode alcanccedilar os peacutes do trono superno

somente se ultrapassar uma sucessatildeo de sete edifiacutecios cujos portotildees representam

tantas outras etapas de seu percurso iniciaacutetico ldquopenetrar nos palaacutecios divinos

significa portanto apoderar-se de uma geografia transcendente que retrata o

invisiacutevel com a precisatildeo de um mapardquo329 Dado que os guardiotildees angeacutelicos ndash

obstaacuteculos na ldquoviagem em direccedilatildeo agrave gloacuteria excelsardquo ndash podem ser dominados agrave medida

que se conheccedilam seus nomes e atributos os tratados dos Heikhalot servem como um

guia que ensina seus nomes e as respostas necessaacuterias para superar as provas

colocadas por esses seres ldquofeitos de granizo e fogordquo330 Pico mostrava ter

familiaridade com os Heikhalot pois na De Hominis Dignitate faz menccedilatildeo agraves

transformaccedilotildees de Enoch conforme episoacutedio narrado em outro desses tratados331

Assim como o Zohar que aborda as forccedilas negativas uma natildeo irrelevante integraccedilatildeo

eacute apresentada dentro da arquitetura supramundana dos Heikhalot o Midrash Konen

informa a existecircncia sempre nas moradas superiores de uma seacuterie simeacutetrica de

palaacutecios infernais guardados por anjos do mal332

Finalmente natildeo poderia deixar de ser citada a literatura midraacuteshica O termo

ldquomidrashrdquo significa em hebraico ldquointerpretaccedilatildeordquo e indica um amplo nuacutemero de

histoacuterias e comentaacuterios biacuteblicos que se mesclam entre documentos e lendas redigidos

entre o iniacutecio do seacuteculo V e a metade da Idade Meacutedia Nos vaacuterios Midrashim o texto

das Escrituras eacute submetido a uma anaacutelise minuciosa mostrando as implicaccedilotildees

escondidas sob suas linhas Assim em contraste com a interpretaccedilatildeo

literal o Midrash designa uma exegese profunda que tenta revelar o espiacuterito velado

das Escrituras examinando possibilidades que natildeo se mostram em uma leitura

literal do texto Seu principal objetivo nesse sentido eacute o de propor o maior nuacutemero

de significados possiacuteveis de acordo com o ensinamento rabiacutenico que prescreve ldquogirar

e regirar a Toraacute pois que nessa estaacute absolutamente tudordquo333 Assim como nos demais

328 A imagem da carruagem celeste eacute bastante presente simbolizando como em outras tradiccedilotildees ndash inclusive a

platocircnica ndash o deslocamento do adepto atraveacutes do espaccedilo supramundano graccedilas ao qual ele alcanccedila a contemplaccedilatildeo de uma complexa arquitetura coacutesmica Cf BUSI opcit pp9-10 43 SENDER op cit p34

329 BUSI opcit p43 330 BUSI idem 331 Cf Oratio p107 O tratado Alfabeta derabbirsquoAqiva descreve o episoacutedio de Enoch patriarca biacuteblico

antediluviano alccedilado aos ceacuteus pelo Senhor e transformado no anjo Metraton dominante sobre as hierarquias angeacutelicas e ao qual satildeo atribuiacutedos setenta e dois nomes

332 BUSI opcit p45 np145 Comentaacuterios e textos acerca dos Heikhalot podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas na bibliografia de Giulio Busi GSCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960 PSCHAFER Hekhalot Studien Tubingen 1988 Para traduccedilotildees italianas veja-se RAVENNA-PIATELLI (org) Cabbala ebraica I sete santuari Milano 1990

333 BUSI opcit pp41-42

118

manuscritos de caraacuteter miacutestico utilizados pelos mekubalim334 os Midrashim incluem

natildeo poucas passagens de argumentaccedilotildees cosmogocircnicas que permitem especulaccedilotildees

acerca das origens da Criaccedilatildeo e da estrutura das moradas celestes A exposiccedilatildeo

midraacuteshica eacute comparada no Talmud a um ldquomartelo que desperta as faiacutescas

adormecidas na rochardquo335

As fontes cabaliacutesticas de Pico

Em carta endereccedilada ao sobrinho Gian Francesco Giovanni Pico informa

sobre alguns livros hebraicos que teria tomado emprestado de certo judeu siciliano

por um periacuteodo de vinte dias quando jaacute exercitava com relativa facilidade o

idioma336 O testemunho desse empreacutestimo junta-se a uma vasta documentaccedilatildeo que

comprova o fato de que o jovem aprendiz da Cabala teria lido todos os textos

hebraicos talmuacutedicos e midraacuteshicos que podia comprar encontrar ou pedir337 Parte

consideraacutevel desse material se lhe tornou disponiacutevel ou inteligiacutevel atraveacutes do auxiacutelio

de trecircs de seus principais mestres Elia Del Medigo Yohanan Alemanno e Flavio

Mitridate que desempenharam importante papel nas traduccedilotildees de muitos textos

seja do aacuterabe para o hebraico ou do hebraico para o latim338 A aquisiccedilatildeo da vasta

doutrina referente ao Hebraiacutesmo deve ser creditada ademais agraves conversaccedilotildees tidas

com tantos outros judeus eruditos e agraves leituras diretas de manuscritos hebraicos dos

quais comprovadamente possuiacutea um nuacutemero consideraacutevel339 Os manuscritos

foram sem duacutevidas o meio de acesso mais importante atraveacutes do qual o pensamento

judaico ndash especificamente o cabaliacutestico ndash se tornou disponiacutevel para Pico340

Nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XV seria possiacutevel encontrar em Florenccedila

um nuacutemero consideraacutevel de manuscritos de conteuacutedo especulativo judaico Havia os

volumosos escritos de Alemanno com abundantes citaccedilotildees de fontes medievais

hebraicas341 os textos de Abraham Farisol que passou um tempo em Florenccedila com

menccedilotildees a um grande nuacutemero de livros judaicos as epiacutestolas do cabalista espanhol

334 Mekubalim ou ainda Maskilim (iniciados) satildeo denominaccedilotildees que muitos autores cabalistas recebem (cf

IDEL 2008a p17) 335 BUSI opcit pp41-42 336 GARIN 2011 p 99 337 Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p143 338 Crofton BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 12 BUSI opcit p 84 339 Tatildeo ampla era a coleccedilatildeo de livros hebraicos de Pico que ensejou a criaccedilatildeo de obras especiacuteficas voltadas ao seu

estudo Veja-se por exemplo Pearl KIBRE The Library of Pico della Mirandola New York 1936 Giuliano TAMANI I libri ebraici di Pico della Mirandola in Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di studi del cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994) org G C Garfagnini Firenze 1997 pp 491-530 Giulio BUSI Chi non ammireragrave il nostro camaleonte La biblioteca cabbalistica di Giovanni Pico della Mirandola in Lenigma dellebraico nel Rinascimento Nino Aragno Editore Torino 2007 pp 25ndash45 Moshe IDEL The Throne and the Seven-Branched Candlestick Pico della Mirandolas Hebrew Source in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes XL 1977 pp 290-292 R SIMON Bibliotheca selecta I Um bom recolhimento do conteuacutedo da biblioteca de Pico pode ser encontrado ainda no ldquoAppendice La Biblioteca di Picordquo na obra Giovanni Pico della Mirandola de GARIN (2011 pp106 ss) Acerca dos hebreus com os quais Pico teve contato veja-se Umberto CASSUTO (opcit pp316-318)

340 Chaim WIRSZUBSKI com o auxiacutelio de seus alunos Moshe Idel e Carmia Schneider deteacutem o meacuterito de ter seguido o percurso intelectual de Pico identificando os textos e os autores atraveacutes dos quais estudou a Cabala daiacute resultando seu fundamental volume Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Veja-se ali em especial entre as paacuteginas 60 a 64 toda a questatildeo das fontes cabaliacutesticas de Pico

341 Para uma lista das fontes mais importantes do pensamento de Alemanno veja-se IDEL The Study Program of R Yohanan Alemanno in Tarbiz XLVIII 1979 pp 303-330

119

Isaac Mar Hayyim os escritos de Moshe ben Yoav342 E de suma relevacircncia o vasto

volume de material cabaliacutestico traduzido por Flavio Mitridate para o latim343 A

maioria dos manuscritos que chegou agraves matildeos de Pico foi-lhe elucidada justamente

por Mitridate A principal missatildeo do mestre convertido exercida com paixatildeo era

comprovar ao pupilo o argumento de que a Cabala provava a verdade do

Cristianismo para tanto procurou realizar traduccedilotildees que fossem literais mas ao

mesmo tempo capazes de lidar com as sutilezas do vocabulaacuterio cabaliacutestico344 Os

manuscritos apresentam vaacuterias anotaccedilotildees feitas pelo mestre agraves margens das

traduccedilotildees para servir de guia ao pupilo em suas possiacuteveis analogias Um desses

comentaacuterios anotado agraves margens da traduccedilatildeo do De Secretis Legis de Abulafia

relata que os dois ele e o conde se encontravam em ldquouma missatildeo comum de

profunda seriedaderdquo sendo bastante significativo do grau de comprometimento que

pretendiam dar agravequeles estudos345

De maneira mais abrangente que Mitridate como parece ser consensual o

mestre cabalista Alemanno estava bem familiarizado com a maioria dos escritos

miacutesticos judaicos provenientes tanto de autores contemporacircneos e medievais ndash da

Itaacutelia Espanha e Alemanha ndash como de fontes anteriores pertencentes agrave literatura dos

Heikhalot Agrave exceccedilatildeo do livro do Zohar do qual Alemanno natildeo tinha estreito

conhecimento haacute registros de seu acesso a uma numerosa quantidade de textos

relacionados agrave literatura biacuteblica talmuacutedica e midraacuteshica Notadamente versado nas

mais variadas correntes filosoacuteficas fossem hebraicas gregas ou aacuterabes observa-se

nas citaccedilotildees de seus trabalhos uma quantidade surpreendente de livros raros ou

pouco difusos o que constitui prova de uma erudiccedilatildeo pouco comum346

Dentre os trecircs professores mencionados no entanto o primeiro a abrir para

Pico as portas de fato ao universo da Cabala embora o tema natildeo lhe despertasse

maior interesse347 foi Elia Del Medigo Em longa carta enviada a Giovanni o rabino

antecipava ldquoVendo que Vsa Senhoria se empenha muitiacutessimo nessa bendita Cabala

342 IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in BemporadndashZatelli (org) La

Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 21 343 Entre tantos outros Mitridate traduziu o livro do conhecido rabino Eleazar de Worms o Hokhmat ha-

Nefesh sob o tiacutetulo Liber De Anima em 1486 traduziu um grupo de comentaacuterios sobre o Secircfer Yetsiraacute presentes no cod Vat hebr 191 tambeacutem o De Secretis Legis (Sitre Torah) de Abulafia presente no cod Vat hebr 190 (cf Franco BACCHELLI opcit pp 35 57) Uma lista completa das traduccedilotildees de Mitridate pode ser encontrada no livro de WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism (1987 pp 10-65)

344 Alguns desses textos natildeo existem mais Os que ainda restam encontram-se em cinco manuscritos mantidos na biblioteca do Vaticano que juntos contabilizam mais de 3500 paacuteginas Os manuscritos sobreviventes satildeo Vat Ebr 189 Vat Ebr 190 Vat Ebr 191 Chigi A VI 190 e Vat Lat 4273 (BLACK opcit p 16) Em relevante desenvolvimento nos estudos de Pico um trabalho tem sido realizado para editar esse corpus em uma seacuterie entitulada The Kabbalistic Library of Giovanni Pico della Mirandola sob direccedilatildeo de Giulio Busi O primeiro volume da seacuterie foi publicado em 2004 intitulado The Great Parchment Flavius Mithridatess Latin Translation the Hebrew Text and an English Version (org) G Busi S M Bondoni e S Campanini (Ed Nino Aragno Torino 2004)

345 WIRSZUBSKI opcit p 69 BACCHELLI opcit 2001 p 57 346 CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p315 IDEL 1998 p 34 347 Elia de Medigo presidia a escola talmuacutedica italiana de vieacutes decididamente aristoteacutelico e hostil ao

pensamento cabaliacutestico mais em razatildeo da orientaccedilatildeo filosoacutefica de cunho neoplatocircnico que apresentava do que por um antagonismo aos seus procedimentos Tal aspecto incomodava muitos outros intelectuais aristoteacutelicos como assinala BROCCHIERI (Pico della Mirandola 2011 p12) Entretanto e apesar de natildeo mostrar especial interesse pelo tema os escritos de Del Medigo tanto em hebraico quanto em latim constituem uma fonte muito confiaacutevel para uma descriccedilatildeo abrangente da Cabala como pontua IDEL (1998 p 20)

120

quero vos indicar algo que ateacute hoje natildeo quis vos mostrarrdquo A carta ajuda a lanccedilar luz

sobre as pesquisas literaacuterias de seu aluno uma vez que inclui trecircs listas colunadas

com sugestotildees de bibliografias sendo uma essencialmente cabaliacutestica a primeira

coluna apresenta obras que serviriam aos estudos aristoteacutelicos de Pico a segunda

mostra uma seacuterie de autores aacuterabes na terceira haacute uma lista entitulada ldquoqabalahrdquo

Nesta leem-se os nomes (sic) ldquoSefer Hazzocirchar MeirahrsquoEnayim Scharsquoarei Orah

Reqanati Marsquoarekheth ha Elohouth Pegraverousch Sefer Uetsirahrdquo e ao final deles a

admissatildeo ldquoe muitos outros cujos nomes natildeo me ocorrem porque estou com muitas

ocupaccedilotildeesrdquo348

Mantendo-se a ordem apresentada Del Medigo refere-se primeiramente ao

Zohar Em seguida ao texto Meirah Einayim um provaacutevel comentaacuterio sobre

Nachmacircnides feito por Isaac de Acre que pode ser estabelecido entre o final do

seacuteculo XIII e a metade do seacuteculo XIV O Scharsquoarei Orah eacute um texto do comentador

cabalista espanhol Joseph Gikatilla aluno de Abulafia compreendido em periacuteodo

aproximativo ao anterior A indicaccedilatildeo segue com a menccedilatildeo impliacutecita a algum ou a

alguns comentaacuterios atribuiacutedos ao rabino Menahem Recanati do seacuteculo XIII e o

tratado anocircnimo Maarekhet ha-Elohut do final do seacuteculo XIII e iniacutecio do XIV

contendo algumas interpretaccedilotildees cabaliacutesticas A lista se encerra com a sugestatildeo de

um comentaacuterio referente ao Secircfer Yetsiraacute As inuacutemeras recorrecircncias de marcas em

algumas seccedilotildees desses manuscritos evidenciam que Pico leu tais textos marcou as

passagens de interesse e as reutilizou em seus proacuteprios trabalhos tanto como fontes

para suas Conclusiones Cabalisticae quanto como bases para a elaboraccedilatildeo do

Heptaplus349

Quanto ao fundamental Secircfer Yetsiraacute o proacuteprio Pico conta tecirc-lo lido em lsquo86

juntamente ao comentaacuterio com o qual estava unido embora o mesmo natildeo conste da

lista de Elia Em relaccedilatildeo ao Zohar indicado na bibliografia de Elia natildeo se sabe

exatamente se o conheceu de forma direta ou indireta embora o tenha mencionado

tanto nas Conclusiones cabalisticae quanto no Heptaplus350 Tambeacutem a Oratio

apresenta certa analogia com o Zohar no que diz respeito agrave celebraccedilatildeo da liberdade e

potecircncia do espiacuterito humano o que poderia comprovar a leitura daquela obra351

348 ldquo[] et multa alia quorum nomina non occurunt mihi quia multas habeo ocupacionesrdquo O manuscrito estaacute

em Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v Fragmentos dessa carta foram transcritos e discutidos por Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 pp 48-65 O trecho com a citaccedilatildeo das bibliografias em questatildeo encontra-se em f75r e estaacute transcrito nas pp 56-57 de DUKAS (opcit) e em seu Bulletin du Bibliophile vol XLII 1875 p340 Sobre as relaccedilotildees entre Pico e Del Medigo e outros detalhes sobre a carta em questatildeo veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola 1964 pp 41-81

349 Efetivamente eacute consensual que Pico tenha utilizado Recanati como fonte principal para as Conclusiones Cabalisticae dois dos trabalhos do rabino foram traduzidos para Pico por Flavio Mitridate ndash os comentaacuterios ldquosobre o Pentateucordquo e ldquosobre as oraccedilotildeesrdquo Especialmente as 47 teses cabaliacutesticas do primeiro grupo satildeo quase todas inspiradas pelo Commento al Pentateuco (cf WIRSZUBSKI Picos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp53-56 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633 BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 17)

350 Respectivamente em Conclusiones II 24 p131 e em Heptaplus p180 No Heptaplus Pico faz alusatildeo ao presumiacutevel autor do Zohar Shimon Bar Yohai ldquoSimeon antiquusrdquo GARIN informa que ldquonatildeo se sabe ao certo se Pico conheceu o Zoharrdquo ou se o conheceu atraveacutes da leitura de Menahem Reca atribuindo a VULLIAUD (vol II p 19) a certeza de Pico ter lido o Zohar diretamente (2011 p102)

351 A celebraccedilatildeo da potecircncia humana no Zohar concentra-se na figura do Adam Kadmon o homem cuja natureza eacute determinada e estaacute acima de todos os anjos Em Pico diferentemente a natureza do homem natildeo eacute

121

Certeza eacute o fato que Pico possuiacutea o Secircfer ha-Bahir pertencente agrave corrente metafiacutesica

de cujo nuacutecleo saiacuteram os escritos de Nachmacircnides352 A obra consta do inventaacuterio de

seus livros integrado ainda por obras da corrente dos profetas miacutesticos como

Abraham ibn Ezra Moshe de Narbona Eleazar de Worms e Gikatilla este uacuteltimo

certamente estudado com atenccedilatildeo visto que fazia parte da lista de Del Medigo todas

essas obras jaacute estavam em sua posse no periacuteodo de redaccedilatildeo das Conclusiones Sua

biblioteca dispunha ainda de escritos dos comentaristas medievais Abulafia Azriel

de Gerona e do acima mencionado Menahem Recanati assim como de inuacutemeros

trabalhos anocircnimos353 Outrossim e antes de se dedicar aos estudos cabalistas Pico

havia meditado longamente sobre o pensamento de Maimocircnides e Avicebron judeus

ceacutelebres no mundo cristatildeo tendo encontrado neles algumas das raiacutezes da gnose

hebraica que reencontraria mais tarde Tambeacutem natildeo lhe passaram despercebidas as

ressonacircncias que certos procedimentos cabaliacutesticos exerceram sobre Ramon Llull na

Espanha a ponto de interessar-se pelos aspectos praacuteticos da Cabala como seraacute

visto354

2 O Cosmo Cabalista

Na mencionada carta de Elia Del Medigo na qual constam as indicaccedilotildees

bibliograacuteficas transmitidas ao pupilo Giovanni lecirc-se ldquoTrata-se de algo tatildeo secreto

que ningueacutem dentre os contemporacircneos tem se ocupado e poucos antigos

conheceram Eacute coisa pequena em quantidade mas grandiacutessima em qualidaderdquo

Antecipando seu conteuacutedo Elia complementaria ldquoOs devotos a estes textos obscuros

sustentam que o nome de Deus eacute infinito e que a um grau abaixo de Deus estatildeo as dez

Sefirot agentes da potecircncia que emana de Deus eacute atraveacutes dessas que o mundo

conserva a sua ordemrdquo355 Por meio dessas palavras o mestre descrevia in nuce os

elementos centrais da doutrina cabaliacutestica quais sejam a concepccedilatildeo do Infinito (Ein

Sof) e suas emanaccedilotildees as Sefirot

determinada e tanto ele pode continuar na indeterminaccedilatildeo quanto pode passar a ser tudo Apesar de preconizar que Pico tenha sido o primeiro divulgador do Zohar na cultura corrente da eacutepoca Garin sugere que a ideia de liberdade do homem defendida na Oratio tenha sido formada atraveacutes de leituras precedentes de obras ateacute mais significativas atribuiacutedas tanto a pensadores hebraicos tais quais Maimocircnides e Avicebron quanto a natildeo hebraicos como Fiacutelon Hermes e Honoacuterio de Autun A reflexatildeo estaacute em GARIN (2011 pp 90-91 93-105)

352 GARIN 2011 p115 RABIN opcit p 156 353 Cf Inventario delli libridel Conte Joanne de la Mirandola (pp 30 46 60 62 73 etc) elaborado por

Antonio Pizamano em 1498 em Florenccedila e editado em Memorie Storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandola Harvard University vol XI 1897 p46 (apud GARIN 2011 p103) Chaim WIRSZUBSKI comprovou que Pico fizera uso no iniacutecio de sua carreira das obras de Abulafia (Um cabalista Cristatildeo lecirc a Lei Jerusaleacutem 1977 pp11 17 e ss apud IDEL 2008-b p 461)

354 Em sua Apologia (p192) Pico comenta sobre a ldquoars Raymundirdquo segundo KIBRE (1936 p318) possuiria do filoacutesofo catalatildeo o Ars Brevis Em relaccedilatildeo aos estudos sobre Maimocircnides Avicebron e o influxo de Llull veja-se menccedilatildeo em GARIN 2011 pp 100-101 Para a relaccedilatildeo percebida por Pico entre Avicebron e as doutrinas cabalistas veja-se Salomon MUNK Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris 1857 pp275 ss que comporta ldquoDes Extraits Meacutethodiques de la Source de vie de Salomon Ibn-Gebirol (dit Avicebron) traduits de lrsquoarabe en heacutebreu par Ibn-Falaqueacuterardquo

355 DUKAS opcit pp 48-65 (Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v)

122

A emanaccedilatildeo sefiroacutetica

A estrutura metafiacutesica das Sefirot eacute uma das caracteriacutesticas medulares da

Cabala surgida por volta do seacuteculo III O termo ldquosefirotrdquo (ldquosefiraacuterdquo no singular)

ingressa de fato na miacutestica hebraica atraveacutes do Secircfer Yetsiraacute onde eacute mencionado

pela primeira vez356 Os cabalistas concordam em conceber as Sefirot como graus

ciclos ou niacuteveis atraveacutes dos quais o aspecto mais profundo do poder divino atua sobre

o universo criado ou em outras palavras como formas inteligiacuteveis atraveacutes das quais

o ldquoImanifestordquo passa a se manifestar357 Explica Paolo Fornaciari que a raiz de Sefirot

proveacutem do vocaacutebulo SFR que reconduz a uma aacuterea semacircntica que pode abranger trecircs

significados ldquoesferasrdquo ldquocifrasrdquo ou ldquosafirasrdquo Cada um desses termos remete agrave ideia

respectivamente de perfeiccedilatildeo geomeacutetrica-espacial de completude numeacuterica e de

beleza ou preciosidade ndash conceitos que se aplicam agraves qualificaccedilotildees atribuiacutedas agraves

Sefirot nas vaacuterias escolas358 Para Giulio Busi o termo hebraico pode ser traduzido

sucinta e literalmente por ldquonumeraccedilotildeesrdquo enquanto Tova Sender o traduz por

ldquocontagemrdquo em qualquer caso o nuacutemero eacute uma conotaccedilatildeo fundamental de seu

dinamismo359

O conceito de numeraccedilotildees estaacute diretamente relacionado ao nuacutemero dez

de acordo com o simbolismo numeacuterico que precede ao Secircfer Yetsiraacute e que

provavelmente recebeu influxos das doutrinas pitagoacutericas em razatildeo de sua relaccedilatildeo

com a estrutura profunda do ser e do cosmo360 Conforme sintetiza Scholem as

Sefirot satildeo os dez niacuteveis com que a natureza atuante de Deus se revela as dez forccedilas

elementares da Criaccedilatildeo os diversos aspectos da vida divina os estaacutegios pelos quais

essa vida passa ao se revelar na Criaccedilatildeo361 Na linguagem lacocircnica do Livro da

Formaccedilatildeo

ldquoDez Sefirot sem determinaccedilatildeo dez e natildeo nove dez e natildeo onze

[] a sua medida eacute dez que natildeo tecircm fimrdquo362

356 O texto integral do Secircfer Yetsiraacute pode ser visto nas seguintes obras Aryeh KAPLAN Secircfer Yetsiraacute- O Livro

da Criaccedilatildeo 2005 GRUENWALD A preliminary critical edition of the Sefer Yezirah in Israel oriental Studies 1 1971 pp132-177 A versatildeo curta do texto original em portuguecircs pode ser vista no apecircndice da obra de MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014

357 SENDER 1992 p45 BUSI La Qabbalah 2011 p14 Observa Crofton BLACK que tal concepccedilatildeo das Sefirot foi frequentemente considerada hereacutetica entre alguns meios rabiacutenicos por parecer contradizer o estrito monoteiacutesmo do Judaiacutesmo (2006 p 140)

358 FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 359 BUSI opcit p 47 SENDER opcit p28 KAPLAN contudo infere que natildeo eacute certo traduzir sefirot por

ldquonuacutemerosrdquo termo para o qual o hebraico tem uma palavra proacutepria (mispaacuter) seu significado aproxima-se mais de ldquocontardquo que remete ao conceito de nuacutemeros mas natildeo apenas (2005 p54) Flavio Mitridate em suas traduccedilotildees para o latim usava o termo numerationes

360 Gershom Scholem menciona a relaccedilatildeo com o Pitagorismo sem elucidar no entanto ndash ao menos nessa obra ndash se tal informaccedilatildeo eacute uma inferecircncia proacutepria ou se procede de fontes hebraicas (SCHOLEM Nome de Deus e Teoria da Linguagem 1999 p79) A pesquisa cabaliacutestica recolheu atraveacutes dos seacuteculos vasto material literaacuterio tanto para demonstrar o caraacuteter sagrado do dez quanto para encontrar nos antigos textos religiosos e na simbologia dos ritos a confirmaccedilatildeo de que esse nuacutemero fosse por si uma chave para o conhecimento Tudo aquilo que eacute numeraacutevel em dez representa na Cabala uma metaacutefora do mundo sefiroacutetico ndash os dedos das matildeos as enunciaccedilotildees de Deus no iniacutecio do Gecircnesis as dez esferas celestes da filosofia antiga (BUSI opcit pp 14-15)

361 SCHOLEM opcit p79 362 Secircfer Yetsiraacute I 4 5 (trad KAPLAN 2005 p283)

123

As dez Sefirot surgem ou satildeo criadas (o verbo natildeo estaacute estabelecido) a partir do

nada concepccedilatildeo repetida vaacuterias vezes no Capiacutetulo 1 do Secircfer Yetsiraacute ldquodez Sefirot do

nadardquo363 O texto trata outrossim ndash e conforme prometido em seu tiacutetulo ldquoyetsiraacuterdquo ndash

da formaccedilatildeo do universo (e natildeo criaccedilatildeo pois que o material para formar era

preexistente) por meio das vinte e duas letras do alfabeto hebraico que associadas agrave

deacutecada cabaliacutestica totalizam trinta e dois caminhos364 A combinaccedilatildeo das 22

consoantes hebraicas entre si por sua vez perfaz a totalidade de 231 resultados

possiacuteveis que representam 231 portotildees de saiacuteda do poder criador atraveacutes dos quais

ldquoo inexistente foi transformado em existenterdquo365 Agraves letras enquanto ldquofundaccedilatildeordquo do

universo satildeo dedicados quatro dos seis capiacutetulos da obra nos quais com linguagem

enigmaacutetica satildeo tratados seus significados e suas relaccedilotildees com os trecircs reinos da

criaccedilatildeo366

ldquoVinte e duas letras grava entalha pesa permuta transforma

e com elas descreve a alma de tudo o que foi formado e seraacute

formado no futurordquo367

Na maior parte das interpretaccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute como informa Moshe Idel

o surgimento do sistema das Sefirot eacute descrito em termos de emanaccedilatildeo Atzilut ou de

expansatildeo Hitpaschetut ambos os processos cumprindo certa forma de cadeia

Schalschelet que relaciona o reino mais alto divino aos mundos mais baixos

produzidos pelas Sefirot368 Observe-se que Idel usa a palavra ldquoproduzirrdquo mundos em

concordacircncia com a passagem ldquotudo o que foi formado e que seraacute formadordquo do Secircfer

Yetsiraacute (II1) Eacute possiacutevel inferir que a ideia de emanaccedilatildeo decorra da percepccedilatildeo do

incessante dinamismo contido na conotaccedilatildeo numeacuterica atraveacutes desse movimento o

fluxo divino percorre o cosmo Dentro desse sistema cada sefiraacute corresponde a um

grau provisoacuterio (porque o fluxo natildeo eacute extaacutetico) de agregaccedilatildeo da energia divina

inserido em um contiacutenuo dinamismo de descese e ascese369 Sua mais

importante designaccedilatildeo eacute assumida no Zohar no qual cada grau de emanaccedilatildeo passa a

ser relacionado a um atributo divino recebendo nomes especiacuteficos em parte

retirados do primeiro livro das Crocircnicas370 Assim embora haja variaccedilotildees semacircnticas

363 Secircfer Yetsiraacute I 2 3 4 5 6 7 8 9 (ibid pp 283-284) 364 Secircfer Yetsiraacute I1 ldquoCom 32 maravilhosos caminhos de Sabedoria grava Yah o Senhor dos Exeacutercitosrdquo (opcit

p 283) A menccedilatildeo ao termo ldquocaminhordquo natildeo eacute aleatoacuteria mas real indicaccedilatildeo de 32 sendas miacutesticas dentro de um processo iniciaacutetico A deacutecima esfera a mais nobre e primeira em posiccedilatildeo eacute onde circulam as 22 letras (MAGHIDMAN 2014 p124)

365 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 366 Cada uma das vinte e duas letras tem seu proacuteprio significado co-essencial com atribuiccedilotildees que satildeo

transmitidas agraves coisas por meio delas formadas (SENDER opcit p30) 367 Secircfer Yetsiraacute II 1 (opcit p285) 368 IDEL 2008-a p21 No iniacutecio do seacuteculo XIV na literatura de inspiraccedilatildeo zohaacuterica ndash em modo particular no

Tiqqune ha-zohar (Os Ornamentos do Esplendor) e no Masseket atzilut (Tratado sobre a Emanaccedilatildeo) ndash o processo de emanaccedilatildeo comeccedila a ser distinguido em suas sucessivas fases denotando a distacircncia que separa o mundo superno da inferior realidade material (BUSI 2011 p 19)

369 BUSI opcit pp14 47 IDEL afirma que o caraacuteter dinacircmico das Sefirot constitui uma das principais caracteriacutesticas da Cabala (2008b p515) SCHOLEM trata do caraacuteter gnoacutestico das Sefirot em sua obra Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960

370 O trecho no qual Davi bendiz Deus elencando seus atributos diz ldquotua eacute Senhor a magnificecircncia e o poder e a gloacuteria e o esplendor e a majestaderdquo (Crocircnicas 1 2911) Esses cinco atributos datildeo nomes a cinco das dez Sefirot Cf FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 SENDER opcit pp 28 45

124

e de traduccedilatildeo os termos e significados mais utilizados para distinguir cada sefiraacute satildeo

Keter (Coroa) Hokhmaacute (Sabedoria) Binaacute (Inteligecircncia ou Compreensatildeo) Hesed

(Amor ou Grandeza) Guevuraacute (Bravura ou Potecircncia) Tiferet (Beleza) Netsah

(Eternidade ou Vitoacuteria) Hod (Magnificecircncia) Yesod (Fundamento) Malkut

(Reino)371 Assim cada uma das esferas corresponde a uma forma especiacutefica de

manifestaccedilatildeo de Deus uma middah ou atribuiccedilatildeo divina que pode ser ainda

identificada com um de Seus dez nomes sagrados Sob tal luz compreende-se a

conclusio cabaliacutestica 36 ldquoDeus endossou dez vestimentas quando criou o mundordquo372

Apesar de diferenciadas em suas caracteriacutesticas as dez Sefirot constituem uma

unidade como dez matizes da mesma luz

Em termos de ordenaccedilatildeo a estrutura sefiroacutetica tem sido contemplada com

diversos tipos de representaccedilotildees como por exemplo em forma de esferas dispostas

sobre a circunferecircncia de um ciacuterculo ou de letras hebraicas encerradas uma dentro da

outra mas a imagem que se tornou mais conhecida ndash divulgada na ediccedilatildeo do Pardes

Rimmonim (O jardim das romatildes) de Cordovero no lsquo500 ndash eacute a chamada aacutervore

sefiroacutetica na qual ao longo de trecircs eixos principais e paralelos estatildeo dispostos os

ciacuterculos que simbolizam as Sefirot ligados por canais transversais que sinalizam os

reciacuteprocos influxos373 Segundo a tradiccedilatildeo cabaliacutestica a descida das forccedilas celestes

adveacutem ao longo do lado da direita atraveacutes de hokhmaacute hesed e netsah enquanto a

ascensatildeo percorre o lado esquerdo atraveacutes de binaacute guevuraacute e hod O eixo central

sobre o qual se alinham keter tiferet yesod e malkut eacute conotado pela ideia de

presenccedila e completude do divino374 Os traccedilos de ligaccedilatildeo entre as Sefirot em nuacutemero

de vinte e dois ndash e em perfeita simetria geomeacutetrica com o total de letras do alfabeto

hebraico ndash constituem as vias atraveacutes das quais a luz infinita e a forccedila criadora se

propagam A metaacutefora da propagaccedilatildeo da luz eacute tatildeo utilizada quanto a do

derramamento de aacuteguas em uma de suas representaccedilotildees tem-se a imagem de

recipientes que recebem os fluiacutedos e que depois de cheios derramam o excesso para

os recipientes inferiores sucessivamente Outro ponto importante para a

compreensatildeo do conceito de emanaccedilotildees eacute que em qualquer representaccedilatildeo cada

sefiraacute eacute considerada passiva em relaccedilatildeo agravequela que a precede e ativa em relaccedilatildeo agraveque-

la que a sucede375 Para melhor compreensatildeo desta ideia as Sefirot podem ser

representadas por trecircs triacircngulos sendo um superior ascendente e dois inferiores

descendentes O triacircngulo ascendente tambeacutem chamado espiritual recebe luz e forccedila

do Alto e corresponde ao Mundo da Emanaccedilatildeo Os triacircngulos descendentes

371 Veja-se BUSI 2011 p16 FORNACIARI 2009 p 19 np35 CROFTON pp140-141 A sequecircncia das Sefirot

mais aceita eacute aquela que foi estabelecida na escola de Isaac o Cego em Narbonne no seacuteculo XIII Acresce FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) que cada sefiraacute a uma forma de manifestaccedilatildeo ou a uma inteligecircncia angeacutelica Os cabalistas encontram uma seacuterie de correspondecircncias entre as Sefirot e cada niacutevel da realidade como os astros os oacutergatildeos vitais os personagens biacuteblicos (Abraatildeo seria Hesed ou Guedulaacute) as manifestaccedilotildees da natureza etc Como explica BUSI (opcit p16) a referecircncia ao sol a Jacoacute ou agrave noccedilatildeo abstrata de beleza correspondentes a uma mesma sefiraacute natildeo significa que esses elementos tenham equivalecircncia mas sim que estatildeo ligados por uma harmonia que institui um nexo iacutentimo e um grau comum entre eles

372 PICO Concl (II) XI 36 p134 ldquo[] deus induit se decem uestimentis quando creauit saeculumrdquo 373 Veja-se representaccedilatildeo da aacutervore sefiroacutetica em IDEL 2008a p21 MAGHIDMAN 2014 p175 374 BUSI opcit pp15-17 375 SENDER opcit pp 46 ss

125

respectivamente o intelectual e o formativo absorvem as influecircncias superiores as

transfazem e conduzem em direccedilatildeo aos mundos fiacutesicos376

O Ein Sof

Acima da concepccedilatildeo das Sefirot a doutrina cabaliacutestica concebe a enigmaacutetica

existecircncia de outros trecircs niacuteveis supra espaccedilo-temporais O mais distante e

incompreensiacutevel dentre os trecircs encerra-se na ideia de Ain que se traduz como ldquonadardquo

O Ain natildeo representa a negaccedilatildeo da existecircncia mas a afirmaccedilatildeo de que ldquonenhum

termo do vocabulaacuterio humano poderaacute definir tal abstraccedilatildeordquo como define Tova

Sender Essa ideia exclui qualquer relaccedilatildeo com os mundos pertencentes ao tempo e

ao espaccedilo O Ain natildeo existe e natildeo estaacute eacute o ldquoImanifestordquo ou a ldquoExistecircncia Negativardquo377

Em seguida haacute o Ein Sof literalmente ldquosem fimrdquo ou ldquoinfinitordquo uma concepccedilatildeo

levemente mais definida que o Ain Difere do primeiro na medida em que pressupotildee

uma participaccedilatildeo no tempo e espaccedilo em razatildeo da inclusatildeo do termo ldquosofrdquo (ldquofimrdquo)

Permanece como no princiacutepio anterior a ideia de existecircncia negativa O Ein Sof Or

(ldquoluz infinitardquo) terceiro conceito aproxima-se da apreensatildeo humana em razatildeo da

presenccedila do termo ldquoorrdquo (ldquoluzrdquo) Contudo o Ein Sof Or manteacutem-se incompreensiacutevel e

constitui o terceiro veacuteu de existecircncia negativa378 Diferentemente das Sefirot que

podem ser conhecidas atraveacutes do estudo e da contemplaccedilatildeo a teologia hebraica

negativa postula que a verdadeira essecircncia de Deus nunca seraacute conhecida Assim na

maior parte das obras cabaliacutesticas a manifestaccedilatildeo de Deus no cosmo eacute concebida

somente a partir da emanaccedilatildeo que parte do Ein Sof Or fazendo com que Aquele se

revele ldquono emanado estaacute a forccedila do Emanador mas Este natildeo sofre diminuiccedilatildeo

algumardquo379 O sistema cabaliacutestico contempla ainda uma quarta concepccedilatildeo que seria

a unidade absoluta sintetizada no Tetragrama YHWH ndash ou ldquonome sagrado de Deus

de quatro letrasrdquo380

Na emanaccedilatildeo ocorre um processo de distinccedilatildeo atraveacutes do qual os seres satildeo

formados por separaccedilatildeo da unidade absoluta De acordo com Giulio Busi o problema

da passagem do Ein Sof ao domiacutenio da emanaccedilatildeo representou um dos pontos mais

tormentosos da especulaccedilatildeo cabalista381 Especialmente na Cabala do lsquo500 difundiu-

se a reflexatildeo sobre o aspecto secreto do desencadeamento da emanaccedilatildeo passando a

376 SENDER ibid p50 377 No sentido descendente a Aacutervore da Vida constitui o trajeto atraveacutes do qual o poder criador atuou no ato da

Criaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo do AIN (ldquoNadardquo) em ANI (ldquoEurdquo) quando o Imanifesto torna-se Manifesto Note-se que AIN e ANI contecircm as mesmas letras e a permutaccedilatildeo entre elas segundo o meacutetodo cabalistico temuraacute ocorreu simultaneamente ao processo de involuccedilatildeo do poder criador (SENDER opcit p50)

378 SENDER opcit p46 Haacute registros de que o recurso agrave teologia negativa que opera com a impossibilidade de qualificar a iacutentima natureza do divino estava presente no iniacutecio do seacuteculo XIII nos ciacuterculos de Isaac o Cego (BUSI opcit p18)

379 A passagem eacute dos Sifre ha-lsquoiyyun (Livros da Contemplaccedilatildeo) redigidos na metade do seacuteculo XIII lecirc-se ainda ldquoEle eacute unido agraves suas forccedilas como a chama eacute unida agraves suas coresrdquo (cf Verman The Books of Contemplation Medieval Jewish Mystical Sources Albany 1992 apud BUSI opcit p18)

380 Paolo FORNACIARI (2009 p19) como outros autores pesquisados trata de forma bastante restrita o conceito de Tetragrama que tambeacutem eacute transliterado como IHVH Em outra qualificaccedilatildeo obscura informa SCHOLEM que o conjunto do universo estaacute selado em todos os seus seis lados com as seis permutaccedilotildees do nome IHVH e que todas as coisas existem por combinaccedilotildees dessas letras como assinaturas (1988 p201)

381 BUSI opcit p 20

126

ser bem aceita a concepccedilatildeo de que o impulso agrave manifestaccedilatildeo se deu como um

movimento espontacircneo da vontade divina expresso na ideia de expansatildeo Para que

tal manifestaccedilatildeo no cosmo fosse possiacutevel os cabalistas anuiacuteram que o Ein Sof tivesse

tido que se auto-limitar restringindo-se dentro do domiacutenio da compreensibilidade382

Tal ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina denominada Sekinah jaacute se encontrava

presente na literatura midraacuteshica e foi retomada no decorrer do seacuteculo XIII383 Mais

adiante no seacuteculo XVI Moshe Cordovero exprimiria o conceito de contraccedilatildeo divina

com um esclarecedor aforisma segundo o qual ldquoa emanaccedilatildeo eacute o espaccedilo de Sua

presenccedila no qual Ele se contraiurdquo de forma que ldquoSua grandeza mesmo que parcial

pudesse ser intuiacutedardquo Continuando dizia o cabalista que ldquoa razatildeo da emanaccedilatildeo eacute

dupla de uma parte Deus quis ocultar-se ateacute que as criaturas tivessem um limite de

outra parte Ele quis revelar-se para que as criaturas pudessem aferrar a Sua

grandezardquo384 As sentenccedilas confirmam conceitualmente o duplo movimento

presente na origem da Criaccedilatildeo o de ocultaccedilatildeo e o de manifestaccedilatildeo Ademais as

palavras de Cordovero que refletem uma posiccedilatildeo doutrinaacuteria aceita no Cabalismo

sustentam que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta

necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelos

seres finitos Sob esse prisma na concepccedilatildeo basilar de emanaccedilatildeo divina estaria

imbuiacuteda a ideia de uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade ou de sua parcial

ocultaccedilatildeo Acerca do tema e especificamente de sua atuaccedilatildeo sobre o universo fiacutesico

escreveu de forma elucidativa o mestre de Pico Alemanno

O poder [divino] se estende e emana sobre todas as criaturas em

geral ainda que elas difiram no tocante agraves suas capacidades

receptivas assim os vegetais e os animais satildeo mais receptivos

ao efluxo divino do que os minerais O ser humano tem a maior

receptividade de todos [Mas] tambeacutem na espeacutecie humana os

homens possuem distintos graus de receptividade385

A passagem conquanto se refira agraves diversas formas de recepccedilatildeo das

emanaccedilotildees no universo fiacutesico confirma a atuaccedilatildeo da divindade sobre os mundos

inferiores atraveacutes de seus canais as Sefirot Outra caracteriacutestica integrante do

movimento emanente estaacute em seu retorno A presenccedila de um fluxo descendente e

outro ascendente estaacute clara nesta outra passagem de Alemanno ldquoEle recebe todos os

canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe

aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees

382 Perceba-se que ao limitar-se em contraccedilatildeo ocorre uma queda de potecircncia Em cada subsequente estaacutegio ou

desniacutevel daacute-se uma consequente diminuiccedilatildeo da magnitude de poder da emanaccedilatildeo Essa concepccedilatildeo por si soacute pode propiciar algumas especulaccedilotildees teoloacutegicas

383 A contraccedilatildeo eacute definida em hebraico como simsum procedente da raiz simsem (BUSI 2011 p 20) A concepccedilatildeo da contraccedilatildeo divina sofre algumas variaccedilotildees ao longo do tempo Nachmacircnides trata do tema que tambeacutem consta do Midrash haacute-nersquoelam (O midrash escondido)

384 CORDOVERO Pardes Rimmonim A obra de Cordovero surgida pela primeira vez em Cracoacutevia em 1591 natildeo dispotildee atualmente de ediccedilatildeo comentada BUSI informa em sua bibliografia algumas traduccedilotildees da obra (2011 pp20-21 138)

385 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 105v Quanto aos graus de receptividade do homem a recepccedilatildeo de cada sefiraacute depende da estrutura do intelecto humano que pode participar do conhecimento apenas de forma gradual Sobre o tema veja-se BUSI 2011 p14

127

que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo386 Haacute pois um

retorno ldquoa Elerdquo um movimento contraacuterio e necessaacuterio para o equiliacutebrio universal O

fluxo de ascese e descese passando atraveacutes da aacutervore sefiroacutetica permite que os

estamentos universais se estabeleccedilam

As conceituaccedilotildees referentes ao processo de emanaccedilatildeo a partir do Ein Sof

especialmente as escritas por Alemanno certamente natildeo deixariam de ser notadas

por Pico Em pelo menos duas conclusiones o tema eacute abordado diretamente Na tese

oacuterfica 15 eacute estabelecida uma correspondecircncia ldquosatildeo a mesma coisa a Noite em Orfeu e

o Ein Sof na Cabalardquo387 Para estabelecer tal analogia Pico estaria acolhendo em

ambas as designaccedilotildees a representaccedilatildeo da existecircncia informe ou da ausecircncia de

forma e distinccedilatildeo O tema eacute retomado na tese cabaliacutestica 31 secundum opinionem

propriam ldquoQuando os cabalistas colocam com o termo Tesuvah a ausecircncia de

forma esta deve ser entendida como estado antecedente agrave formardquo388 A concepccedilatildeo de

uma contraccedilatildeo divina tambeacutem natildeo deixaria de ser mencionada

Se concebermos Deus como infinito e uno e segundo si mesmo

de modo a compreender que drsquoEle nada procede sendo apenas

distanciamento das coisas total fechamento de si em si mesmo

e extremo profundo e solitaacuterio contrair-se no recesso mais

remoto da proacutepria divindade ndash entatildeo teremos uma intuiccedilatildeo

drsquoEle que se cobre no abismo de sua profundidade389

3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade390

O vasto conjunto de materiais que foi sendo formado ao longo de seacuteculos

abrigando doutrinas que ora se complementavam ora natildeo dificilmente poderia

formar uma teoria unificada Assim que os milhares391 de textos e manuscritos

encontrados sob o leque do Cabalismo foram adquirindo tonalidades diferenciadas

que levaram agrave disposiccedilatildeo de alguns corpora com denominaccedilotildees distintas Embora

para Gershom Scholem toda a miacutestica judaica seja fundamentalmente uma teosofia ndash

386 ALEMANNO Einei haEdaacute (Os Olhos da Congregaccedilatildeo) Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51r-v 387 Concl (II) X 15 p122 ldquoIdem est Nox apud Orpheum et Ensoph in Cabalardquo 388 Concl (II) XI 31 p132 ldquoCum audis cabalistas ponere in lsquoThesuarsquo informitatem intellige informitatem per

antecedentiam ad formalitatem non per priuationemrdquo 389 PICO Concl (II) XI 35 p132 ldquoSi deus in se ut infinitum ut unum et secundum se intelligatur ut sic nihil

intelligimus ab eo procedere sed separationem a rebus et omnimodam sui in seipso clausionem et extremam in remotissimo suae diuinitatis recessu profundam ac solitariam retractionem de eo intelligimus ipso penitissime in abysso suarum tenebrarum se contegente et nullo modo in dilatatione ac profusione suarum bonitatum ac fontani splendoris se manifestanterdquo Pontua FARMER (op cit p535) que Pico distingue nessa tese a natureza transcendente de Deus (Ein-Sof) de sua natureza manifesta (as Sefirot)

390 O termo ldquodivindaderdquo pode ser atribuiacutedo a uma miriacuteade de possibilidades dentro de uma estrutura hieraacuterquica de acordo com o modelo de Cabala e com a intenccedilatildeo do operador O conceito pode ser empregado para caracterizar desde entidades mais terrenas dentro de uma visatildeo que se aproxima ao paganismo como para designar o grau maacuteximo da Unidade Absoluta

391 Embora a quantidade possa parecer exagerada o nuacutemero de manuscritos espalhados atualmente entre vaacuterias bibliotecas do mundo eacute efetivamente avultoso como confirmam as obras dos especialistas Scholem e Idel

128

jaacute que trata da imersatildeo nos misteacuterios do mundo divino e de suas relaccedilotildees com o

mundo da Criaccedilatildeo ndash392 o proacuteprio reconhece algumas divisotildees temaacuteticas existentes na

Cabala dentre as quais duas principais a chamada Cabala Praacutetica Qabalaacute Maassit

e a chamada Cabala Especulativa Qabalaacute Iiunit393 Em suas Conclusiones

Cabalisticae Giovanni Pico mostrava ter conhecimento dessas duas divisotildees

testemunhando que a distinccedilatildeo jaacute era bem aceita pelos cabalistas da eacutepoca394 A

Cabala Especulativa tomou outra subdivisatildeo a saber o modelo teuacutergico-teosoacutefico

mais difundido e considerado mais importante e o modelo extaacutetico-meditativo

tambeacutem chamado profeacutetico Essas se tornaram as trecircs principais distinccedilotildees aceitas

pelos atuais comentaristas cabaliacutesticos representando sucintamente trecircs formas de

se relacionar com a Cabala a praacutetica em alguns casos chamada ldquomaacutegicardquo a teuacutergica e

a extaacutetica395 A elucidaccedilatildeo de tais modelos seraacute uacutetil para a compreensatildeo de seus

propoacutesitos e consequentemente de seu uso na obra piquiana

A Cabala Praacutetica

Difundida especialmente a partir da escola askenazita florescida no seacuteculo XII

e responsaacutevel por levar o misticismo judaico a uma fase de transiccedilatildeo396 a Cabala

Praacutetica lida com formas ritualiacutesticas que poderiam ser organizadas ao longo de uma

reacutegua de graduaccedilotildees Tambeacutem chamada ldquomaacutegico-talismacircnicardquo contempla um

conjunto de procedimentos voltados agrave obtenccedilatildeo de determinados benefiacutecios que se

distribuem em graus variaacuteveis de densidade material relacionados agrave utilizaccedilatildeo de

praacuteticas maacutegicas Nesse sentido a magia deve ser entendida como elemento que faz

parte do saber miacutestico judaico apresentando-se sob uma profusatildeo de formas

presentes desde o final da Antiguidade397 Com o passar do tempo ocorreu a

despotencializaccedilatildeo da Cabala maacutegica em virtude da crescente manipulaccedilatildeo de

elementos externos para a obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais eou pessoais levando a

Cabala Praacutetica a aproximar-se do paganismo398 Efetivamente vaacuterias narrativas

recolhidas nos Talmudim e Midrashim de eacutepoca tardo-antiga descrevem foacutermulas

392 SCHOLEM 1999 pp 64-65 Malgrado qualquer definiccedilatildeo que o termo ldquoteosofiardquo possa ter tomado apoacutes o

seacuteculo XVIII cabe ressaltar que o uso empregado pelos comentadores ao tratar das concepccedilotildees presentes na Cabala relaciona-se agrave forma como o mesmo era utilizado pelos neoplatocircnicos para indicar o conhecimento das coisas divinas proveniente da inspiraccedilatildeo direta de Deus Nesse sentido veja-se por exemplo Proclo (Theologia Platonica V 35) e Porfiacuterio (De abstinentia ab esu animalium IV 17)

393 SCHOLEM 1989 p5 Foi a escola espanhola a produzir a primeira literatura apontando para uma dicotomia entre Cabala praacutetica e especulativa Essa distinccedilatildeo pode ter relaccedilatildeo com a divisatildeo formulada por Maimocircnides entre filosofia especulativa e filosofia praacutetica em seu tratado sobre loacutegica Milot ha-Higaion (IDEL 2008-a p32)

394 PICO Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum hebraeorum 1 ldquoIndependentemente do que digam todos os outros cabalistas eu distinguirei o conhecimento da Cabala na Ciecircncia da Numeraccedilatildeo ou Sephirot e na Ciecircncia de Semot ou Nomes em relaccedilatildeo agrave ciecircncia praacutetica e especulativardquo Pico toma emprestada tal distinccedilatildeo do cabalista Abraham Abulafia (cf IDEL Lrsquoesperienza mistica di Abraham Abulafia Milano 1992 p46 apud FORNACIARI 2009 np35)

395 IDEL 2008a p19 veja-se o inteiro artigo para detalhes acerca dos modelos de Cabala 396 Leia-se mais em BUSI opcit p49 397 Algumas partes desse tipo de conhecimento sobreviveram e encontram-se em textos hebraicos e aramaicos

como informa IDEL (2008-a pp32-33) 398 IDEL 2008a p38 Na paacutegina 37 da mesma obra Idel cita um trecho do Pardes Rimonim obra claacutessica da

literatura de Safed de Cordovero em que se encontra descrita a forma de utilizaccedilatildeo das cores para atrair as forccedilas sefiroacuteticas

129

maacutegicas e extraordinaacuterios poderes de antigos mestres confirmados por achados

arqueoloacutegicos que provam sua difusatildeo durante a diaacutespora do Oriente Proacuteximo399

Na Idade Meacutedia sob o impacto de concepccedilotildees filosoacuteficas reinantes entre os

aacuterabes surgiram elaboraccedilotildees que se sustentavam sobre a ideia que canalizando a

fonte espiritual que governa o mundo o operador poderia manipular os

acontecimentos do mundo sublunar Por conseguinte desenvolveu-se na magia

medieval aacuterabe e judaica o conceito de atraccedilatildeo das forccedilas dos corpos celestiais Tais

forccedilas denominadas Pneumata Ruhaniyyat ou Ruhaniot ndash respectivamente em

grego aacuterabe e hebraico ndash poderiam ser atraiacutedas e capturadas por meio de tipos

especiais de objetos e rituais cujas naturezas deveriam estar em concordacircncia com as

feiccedilotildees dos correspondentes corpos celestiais400 Entre as maneiras de atrair os vaacuterios

gecircneros de forccedilas existentes a linguagem mostrava-se a principal forma utilizada

sendo um procedimento que de acordo com o modelo de Cabala poderia ser

empregado em oitavas diferenciadas401

Os resultados dos chamados ldquoencantamentosrdquo passam a se difundir nos

ciacuterculos cabaliacutesticos sobretudo a partir do seacuteculo XII eacutepoca de difusatildeo da obra de

magia Secircfer Raziel (O Livro de Raziel) inclusive entre os cristatildeos402 Para muitos

sua autoria deveria ser atribuiacuteda a Eleazar de Worms que teria escrito tambeacutem um

comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute onde se leem algumas instruccedilotildees para a feitura de um

ser vivo intitulado Golem403 Ainda antes de difundir-se nos ciacuterculos renanos essa

intrigante concepccedilatildeo era conhecida entre os judeus da Itaacutelia meridional mesmo em

ambientes culturalmente elevados na obra Megillat Ahimarsquoas redigida na Puglia do

seacuteculo XI narra-se a criaccedilatildeo de um golem a partir da potecircncia do Tetragrama404

Contudo a maior absorccedilatildeo da literatura referente ao golem se daacute no Quattrocento

italiano certamente natildeo passaria despercebida aos ilustrados do Renascimento a

399 BUSI 2011 p27 Muitos dos achados arqueoloacutegicos traziam amuletos com nomes angeacutelicos frequentemente

agrupados em longas sequecircncias para reforccedilar seu valor apotropaico Maiores detalhes sobre a Cabala Praacutetica podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas por BUSI PATAI R Alchimisti ebrei-Storia e fonti trad S Bondoni Genova 1997 SEacuteD N Lrsquoalchimie e la Science sacreeacute des lettres Notes sur lrsquoalchimie juive agrave propos de lrsquo ldquoEgravesh mesarephrdquo in Alchimie Art Histoire et mythes Paris-Milan 1995 pp547-649

400 Maimocircnides embora natildeo simpatizante dessa espeacutecie de atividade foi quem melhor descreveu as formas de atraccedilatildeo de forccedilas para objetivos praacuteticos nas passagens em que trata sobre idolatria (IDEL 2008-a p34)

401 O uso da Cabala Praacutetica natildeo se restringe agrave obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais ou egoiacutesticos como poderia ser entendido Como conta Tova SENDER (opcit p82) o poder da linguagem relacionado agrave leitura dos Salmos para citar um exemplo constitui um recurso utilizado por comunidades judaicas em tempos de perigo natildeo apenas na Antiguidade como nos dias atuais

402 SENDER opcit p79 O Secircfer Raziel eacute um manual contendo instruccedilotildees para a confecccedilatildeo de amuletos Veja-se o amplo material coletado por Franccedilois SECRET Sur quelques traductions du Sefer Raziel in Revue des Eacutetudes Juives 128 1969 pp223-245

403 Considera-se que a recitaccedilatildeo correta dos versos do Secircfer Yetsiraacute tem a forccedila para produzir uma criatura e dotaacute-la de vitalidade hiut e alma neschamaacute Como no idioma hebraico eacute possiacutevel natildeo definir o tempo verbal em razatildeo de sua ausecircncia de vogais as sentenccedilas presentes naquela obra podem ser lidas como ldquoEle combinou Ele formourdquo ou de forma imperativa ldquoCombine Formerdquo (cf MAGHIDMAN 2014 p109) Acerca da criaccedilatildeo real de um ser animado conta-se que no seacuteculo XVI em Praga notabilizou-se o rabino Loumlew por criar um golem partindo do barro e utilizando o Livro da Criaccedilatildeo Sobre o tema a composiccedilatildeo intitulada Sod Peulat haYetsiraacute (O Segredo da Operaccedilatildeo da Criaccedilatildeo) eacute um dos textos que descreve a criaccedilatildeo de um golem (cf IDEL As obras e a doutrina de Abratildeo Abulafia opcit 1976 p131) Tambeacutem de IDEL Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid 1990 pp 54-80 96-118 127-163 Veja-se ainda SCHOLEM e seu capiacutetulo ldquoA ideia do Golemrdquo (A Cabala e seu Simbolismo 1978) BUSI e suas sugestotildees bibliograacuteficas acerca do tema (2011) SENDER (1992 p80)

404 BUSI idem

130

possibilidade de confeccionar um ser animado De fato como conta Franco Bacchelli

ldquonaqueles anos entre aqueles homens [do final do lsquo400] encontrava-se vivo natildeo

apenas o velho problema da possibilidade da geraccedilatildeo espontacircnea de animais

superiores mas tambeacutem a questatildeo da possibilidade de conferir vida para vaacuterios fins

operativos e sapienciais a mateacuterias inanimadasrdquo405 Satildeo justamente desse periacuteodo

as discussotildees ficinianas sobre as estaacutetuas que poderiam capturar daimons ou sobre a

geraccedilatildeo de ldquointelectosrdquo profeacuteticos estabelecidos por Lazzarelli a partir das receitas

para se confeccionar um golem406

O interesse pela magia eacute um elemento que compotildee a cena do seacuteculo XV como

visto no Capiacutetulo I e que mereceu destaque em obras piquianas como as

Conclusiones a Oratio e a Apologia O conhecimento de formas da magia hebraica

abriria espaccedilo para discussotildees mais profundas de teor eacutetico que envolveriam Pico

Alemanno e pronunciadas distinccedilotildees entre formas da Cabala consideradas puras e

impuras relacionadas aos lados ldquodireito e esquerdordquo407 A conceituaccedilatildeo do ldquolado

esquerdordquo tem suas origens ligadas muito provavelmente agrave ideia de sitra ahara

(ldquooutro ladordquo) expressa no Zohar Um manuscrito do seacuteculo XVI de autor anocircnimo

adverte para a necessidade de se preservar tais ensinamentos informando que ldquoa

Cabala praacutetica consiste em conjuraccedilotildees de anjos um saber que deve ser escondido

por causa daquelas pessoas que satildeo mestres da praacutexis [anschei baalei maaseacute]rdquo408

Alemanno demonstrara interesse pelo aspecto operativo da Cabala ainda antes

de conhecer seu disciacutepulo embora reconhecendo sua posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo agraves

formas mais elevadas de especulaccedilatildeo cabaliacutestica Pico por sua vez sabia que eram

proibidas as praacuteticas que empregavam nomes divinos para encantar democircnios

deixando claro em sua Tese maacutegica nr 26 que apenas a Cabala ldquopura e imediatardquo

poderia mover algo ldquoque nenhuma magia alcanccedilardquo409 Alemanno ndash e mais tarde

Cordovero que acolheria o influxo de seus procedimentos em Safed ndash tinha ciecircncia

da similaridade entre o tipo de Cabala que estava propondo e as praacuteticas maacutegicas

pagatildes ndash e natildeo pretendia quebrar a ordem natural recorrendo a forccedilas demoniacuteacas que

poderiam destruir tal ordem Ao contraacuterio propunha um tipo de atividade que

complementasse o curso natural das coisas adicionando uma dimensatildeo da praacutexis

baseada em leis jaacute existentes Para um cabalista como Alemanno que utilizava a

405 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione

cabaliacutestica 2001 p 62 406 BACCHELLI ibid p76 Na mesma obra em nota agrave p 82 o autor aborda a maneira como Lazzarelli em sua

obra Crater Hermetis absorveu a doutrina da criaccedilatildeo do Golem e a forma de utilizaccedilatildeo dos nomes divinos 407 Assim escreveria o Rabi Elias Menakhem Halfan mais tarde em uma epiacutestola do seacuteculo XVI ldquoa ciecircncia da

Cabala dividiu-se no iniacutecio em duas partes chamadas de lado direito e lado esquerdo O lado direito eacute todo pureza e santidade nomes divinos e angelicais e questotildees sagradas O lado esquerdo eacute todo [] democircnios e cascas do lado impurordquo (Manuscrito JTS 1822 f 153v)

408 IDEL 2008-a p32-33 O manuscrito em questatildeo originou-se na escola cabalista espanhola cuja tendecircncia agrave magia foi visiacutevel no seacuteculo XV Ao contraacuterio da magia naturalis aceita por Ficino Pico e Alemanno seus contemporacircneos espanhoacuteis cultivavam um tipo de magia diversa que lidava com conjuraccedilotildees de anjos e democircnios para uma variedade de desiacutegnios inclusive o escatoloacutegico Haacute relatos de que alguns cabalistas da Espanha cultivaram uma forma demoniacuteaca e violenta de Cabala maacutegica destinada a destruir a ordem histoacuterica e religiosa predominante que significava entre outras coisas tambeacutem o Cristianismo (IDEL Jewish Magic from the Renaissance to Early Hasidism in Neusner-Frerichs-McCracken (eds) New York-Oxford Oxford University Press 1989 pp 86-99)

409 PICO Concl (II) IX 26 p120 ldquo[] ita per opus Cabalae si sit pura Cabala et immediata fit aliquid ad quod nulla Magia attingitrdquo

131

magia em sua forma mais pura tal atividade era considerada sobrenatural apenas na

medida em que sua ordenaccedilatildeo se mostrava pertencente a uma ordem superior410 A

clara percepccedilatildeo da existecircncia de dimensotildees supracelestes puras e impuras bem como

de operadores cabalistas eticamente diferenciados em qualquer das formas

atribuiacuteveis agrave Cabala foi registrada pelo mestre de Pico

Qualquer homem bom ou mau que conheccedila a obra dos anjos

puros e impuros que satildeo superiores agraves estrelas pode atrair sua

fragracircncia sobre nossas cabeccedilas pois deu uma interpretaccedilatildeo

cabaliacutestica agrave Toraacute inteira Nisso estatildeo inclusos os mestres das

ciecircncias especulativas e praacuteticas das Sefirot411

A Cabala Teuacutergica

O modelo teuacutergico-teosoacutefico bastante amplo em relaccedilatildeo agrave quantidade de

material que lhe foi designado abrange de um lado o domiacutenio de especulaccedilatildeo que os

estudiosos descrevem como ldquoteosoacuteficordquo ndash pois lida com os diferentes e complexos

mapas do reino divino procurando revelar os misteacuterios da vida oculta de Deus suas

relaccedilotildees com a vida humana e as desta com a Criaccedilatildeo de outro a chamada ldquoteurgiardquo

ou a maneira atraveacutes da qual certos feitos religiosos humanos exercem impacto sobre

o referido reino412 Os teurgos entendem que o homem seja capaz de ativar o influxo

divino atraveacutes de cerimocircnias religiosas e invocaccedilotildees Um paradigma de pensamento

teuacutergico foi aquele desenvolvido por Jacircmblico baseado na eficaacutecia do rito como

ativador das forccedilas celestes Segundo o neoplatocircnico ldquograccedilas agraves forccedilas dos segredos

singulares que possui o teurgo natildeo comanda as potecircncias coacutesmicas como um

homemrdquo mas ldquocomo um ser que jaacute alcanccedilou o niacutevel dos deusesrdquo413 Esse eacute o

entendimento que se extrai das formas teuacutergicas mencionadas por Pico sobretudo

nas Conclusiones que tratam dos Hinos de Orfeu414 Sob o Cabalismo o conceito de

410 IDEL 2008-a pp 37-38 Em seu Collectanaea Alemanno elucida que o processo para a aquisiccedilatildeo de

poderes maacutegicos atraveacutes da emanaccedilatildeo das forccedilas superiores compreende dois estaacutegios em uma abordagem que parte do inferior ao superior inicialmente a pessoa receberia uma vibraccedilatildeo menos elevada do efluxo divino somente apoacutes habituar-se a ele poderia receber o efluxo adicional ldquoo espiacuterito do Deus vivordquo que caracterizaria o ldquodescenso da espiritualidaderdquo (horadat haRukhaniut) Para o autor se os atos para o descenso das forccedilas fossem feitos sob a utilizaccedilatildeo dos corretos mandamentos e ritos judaicos qualquer conduta ndash que em outra situaccedilatildeo seria irregular ndash tornar-se-ia atenuada Assim as consecuccedilotildees materiais e espirituais poderiam ser realizadas sem uma tentativa de ldquocurto-circuitarrdquo a ordem da natureza ou ldquosem forccedilar a vontade divinardquo (cf IDEL ibid p35) Note-se que em Florenccedila a ideia de descenso das forccedilas espirituais recebeu criacuteticas de Moiseacutes ben Yoav que considerava essa praacutetica idolatria em todos os aspectos Elia Del Medigo descartava completamente qualquer de suas formas Em sua obra Bekhinat haDat (O Exame da Religiatildeo) Del Medigo se opotildee agravequeles (como Alemanno provavelmente) que viam na Toraacute e nos preceitos meios para causar o descenso das forccedilas espirituais (ldquoeacute impossiacutevel que as forccedilas espirituais descendam para o mundo do modo que dizem os magos Ao examinarmos os dizeres da Toraacute vemos que ela se opotildee energicamente a tais praacuteticas idoacutelatrasrdquo) Cf IDEL 2008-b p 477 np 493

411 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Paris 849 f 7v 412 IDEL 2008a p 20 Essa forma de Cabala fez parte das discussotildees dos cabalistas espanhoacuteis encontrando no

Zohar uma forte expressatildeo florescendo posteriormente de forma mais vigorosa no ciacuterculo luriacircnico de Safed no seacuteculo XVI Para maiores detalhes acerca da notoacuteria escola desenvolvida por Isaac Luria veja-se IDEL 1998 pp 22-23

413 Apud BUSI (opcit p34) que natildeo cita a fonte de Jacircmblico 414 Veja-se por exemplo a Conclusio oacuterfica nr2 cf Cap III

132

Teurgia refere-se agrave crenccedila do cabalista em sua habilidade especiacutefica de influenciar no

processo e na condiccedilatildeo das Sefirot atribuindo ao rito uma especial forccedila operativa415

Tanto o fenocircmeno de recebimento do efluxo sefiroacutetico como a leitura dos

nomes divinos eram elementos familiares a Pico e integravam respectivamente a

ldquoCiecircncia das Sefirotrdquo e a ldquoCiecircncia Semotrdquo mencionadas nas Conclusiones416 A

conexatildeo entre esses dois aspectos eacute abordada no Takhlit heHakham obra conhecida

tanto por Pico como por Alemanno onde se lecirc ldquoAristoacuteteles disse que [] nos tempos

antigos os nomes divinos tinham uma certa capacidade para trazer a forccedila espiritual

agrave terra Agraves vezes essas forccedilas descendiam Outras vezes matavam o homem que as

utilizasserdquo417 A menccedilatildeo aos tempos de Aristoacuteteles eacute utilizada pelo autor do

manuscrito para prevenir contra o perigo envolvido nas praacuteticas de rituais teuacutergicos

quando natildeo eacute dada a devida atenccedilatildeo aos detalhes ndash advertecircncia referida em muitos

livros cabaliacutesticos O Sefer haAtzamin (f13) por exemplo determina ldquose a pessoa

natildeo for especialista e versada em causar o descenso das forccedilas e a execuccedilatildeo dos

rituais eles o mataratildeordquo418 Tambeacutem Pico era ciente dos riscos envolvidos nas

operaccedilotildees cabaliacutesticas tanto que assim escreveria em suas Teses ldquoQuem opera em

Cabala[] se cometer erros ao operar ou iniciar-se sem preacutevia purificaccedilatildeo seraacute

devorado por Azazel segundo as regras da justiccedilardquo419

Sob o prisma teuacutergico o estudo das estruturas das Sefirot natildeo denota apenas

uma ocupaccedilatildeo teoacuterica mas uma possibilidade de colocar o adepto em grau de intervir

diretamente sobre o mundo superno a ponto de influenciar a dinacircmica das forccedilas

divinas Enquanto a magia exercida na Cabala Praacutetica utiliza os efeitos da propagaccedilatildeo

de forccedilas superiores sobre o mundo material atraindo-as para baixo a Teurgia de

forma contraacuteria empurra o miacutestico em direccedilatildeo ao alto caracterizando-se assim

como uma forma de caminho iniciaacutetico420 O miacutestico-teurgo tem por objetivo elevar-

se ndash no caso dos cabalistas agrave dimensatildeo sefiroacutetica ndash usando como instrumentos os

especiacuteficos rituais destinados para influir sobre aquelas forccedilas Um importante

desdobramento da relaccedilatildeo causa-efeito entre as accedilotildees materiais e suas repercussotildees

celestes encerra-se na concepccedilatildeo cabaliacutestica de que as accedilotildees ritualiacutesticas natildeo satildeo as

415 IDEL 2008-b n p 461 416 Referentes agrave Cabala Especulativa e agrave Cabala Praacutetica cf Conclusio Cabalistica (II) XI 1 417 Cf Manuscrito de Munique 214 f51r apud IDEL 2008-b p474 Em outro artigo IDEL observa que a

magia heleniacutestica antiga lidava com o recebimento de forccedilas espirituais chamadas naquele contexto pneumata (2008-a p34)

418 IDEL 2008-b np 485 419 PICO Concl (II) XI 13 ldquoQui operatur in Cabalaet si errabit in opere aut non purificatus accesserit

deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudicii A primeira parte da conclusio 13 postula que aquele que operar em Cabala da forma correta encontraraacute a conjunccedilatildeo com Deus (ou com o Absoluto conforme a concepccedilatildeo da ldquoMorte do Beijordquo) Elucida FORNACIARI que assim como o ecircxito positivo traz um resultado de dimensotildees absolutas o eventual ecircxito negativo natildeo se limitaraacute a um simples fracasso mas ao completo extermiacutenio do operador inexperiente atraveacutes da ldquofagocitoserdquo por parte do democircnio (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001)

420 BUSI opcit p34 ss A magia da Cabala Praacutetica transformou-se em Teurgia tatildeo logo o objeto do efluxo espiritual passou a ser a sefiraacute de Malkhut ndash a esfera mais proacutexima ao reino material ndash e natildeo a pessoa do cabalista ou o do mago Contudo as duas formas apresentam-se como um caminho de matildeo dupla o atrair as forccedilas para baixo pode se dar em dois estaacutegios o ato teuacutergico inicial opera levando a emanaccedilatildeo da sefiraacute mais elevada ateacute a uacuteltima Malkut onde eacute possiacutevel ndash usando uma linguagem neoplatocircnica ndash a uniatildeo do intelecto com o inteligiacutevel em seguida o influxo da uacuteltima sefiraacute eacute atraiacutedo para o reino sublunar ocasionando o que se chama ldquotransbordordquo das Sefirot um ato ligado ao territoacuterio da praacutetica ou magia (cf IDEL 2008-a pp 38-43 2008-b p 471)

133

uacutenicas a reverberarem no ceacuteu como explica Giulio Busi cada ato humano mesmo o

mais simples obteacutem um resultado velado na outra dimensatildeo ldquopropagando-se como

uma onda ateacute o mais iacutentimo do misteacuterio transcendenterdquo421 Pode-se entender assim

porque a Cabala tem um papel especial no processo de dignificaccedilatildeo do homem

proposto por Pico em quase todas as suas obras a especulaccedilatildeo cabaliacutestica atribui ao

homem uma extraordinaacuteria responsabilidade na medida em que o torna partiacutecipe do

equiliacutebrio divino

A interpretaccedilatildeo das Escrituras eacute uma das ferramentas utilizadas para alcanccedilar

a comunhatildeo objetivada como abordado no item referente agrave tradiccedilatildeo oral Outras

formas ritualiacutesticas assim como na Cabala Praacutetica se datildeo pelo uso da linguagem em

virtude de sua qualidade de refletir seja pelas letras ou por seu som a estrutura

interna do reino divino ndash isto eacute do sistema sefiroacutetico ndash visto que dele participam

Essa qualidade criadora presente nas letras hebraicas permite sua atuaccedilatildeo na

mateacuteria como melhor explica Lipiner ldquoas letras do alfabeto hebraico seriam espiacuterito

derivado de espiacuterito que deslizam progressivamente da sutil sabedoria e pensamento

divinos ateacute converterem-se em substacircncias das coisas materiais jaacute presentes

integralmente nelas em potecircnciardquo422 Por conseguinte os corretos vocaacutebulos

juntamente com a correta forma de pronuacutencia natildeo apenas permitem ao teurgo influir

sobre aquela estrutura como restauram a harmonia no interior do reino divino423

A Cabala Extaacutetica

Embora a Cabala Teuacutergica tivesse adotado visotildees neoplatocircnicas importantes

os elementos aristoteacutelicos presentes na Cabala Extaacutetica foram essenciais para que

essa forma predominasse na Itaacutelia onde exerceu maiores repercussotildees sobre

pensadores do lsquo400 em razatildeo das nuances que a aproximava agrave Filosofia

Manifestando-se entre o final do seacuteculo XIII e o iniacutecio do XIV sobretudo atraveacutes dos

manuscritos dos cabalistas espanhoacuteis Abraham Abulafia Natan Saadia e Isaac de

Acre ndash os trecircs em linhagem sucessoacuteria mestre-disciacutepulo ndash a Cabala Extaacutetica

estabeleceu-se cuidando da questatildeo que envolve a comunhatildeo do homem com o

Espiacuterito divino424 Tanto Alemanno quanto Pico estavam bem familiarizados com

esse modelo de Cabala graccedilas aos estudos sobre os escritos de Abulafia que agregou

421 Como exemplifica Busi a uniatildeo sexual entre um homem e uma mulher sob a oacutetica cabalista provoca a

conjunccedilatildeo sefiroacutetica entre Malkut a sefiraacute que representa o princiacutepio feminino ligado ao Reino e Tiferet a sefiraacute da Beleza que conota o princiacutepio masculino (2011 p35)

422 Elias LIPINER As letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo - Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem 1992 p107 A essecircncia dinacircmica contida nas letras defendida e chamada de ldquoalma das letrasrdquo por Isaac o Cego relembra caracteriacutesticas platocircnicas de potecircncia criadora oriunda do mundo das Formas e das Ideias como justamente infere SCHOLEM (1999 p33)

423 A ideia de restauraccedilatildeo de harmonia no interior do reino divino concepccedilatildeo que pode soar incocircmoda eacute melhor entendida atraveacutes da explicaccedilatildeo de Yohanan Alemanno ldquoEle [o divino] recebe todos os canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo Depreende-se dessas palavras que o fluxo espiritual ocorre em duas vias o reino divino natildeo apenas emite como ldquoreceberdquo as emanaccedilotildees conferindo assim perfeiccedilatildeo ao mundo inferior e perpetuando a proacutepria harmonia (ALEMANNO Einei haEdaacute ndash Os Olhos da Congregaccedilatildeondash in Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51 r-v

424 IDEL 2008-a p29 No seacuteculo XVI a Cabala extaacutetica teraacute forte repercussatildeo atraveacutes dos escritos de Cordovero Iehudaacute Albotini e Haim Vital entre outros

134

elementos aristoteacutelicos significativos em suas concepccedilotildees fiacutesicas metafiacutesicas e

relacionadas agrave alma425 Diferentemente da Cabala Teuacutergica que atua na atraccedilatildeo de

forccedilas exteriores aqui o foco principal se concentra nos processos interiores que

ocorrem entre o intelecto humano e o coacutesmico por alguns denominado Intelecto

Ativo426

Assim como nas outras formas de Cabala a Extaacutetica utiliza algumas teacutecnicas

para atingir seus objetivos nesse caso voltados a alcanccedilar determinado estado de

ecircxtase ndash o chamado devekut ou uniatildeo com a Divindade ndash e excepcionalmente de

profecia427 Segundo Abulafia a profecia decorre do contato entre a inteligecircncia

pessoal e a inteligecircncia universal que envolve a Criaccedilatildeo A alma humana natildeo pode

suportar o influxo direto da inteligecircncia superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm

atada agrave mateacuteria O estado contemplativo permite que tais noacutes sejam desatados

atraveacutes da observaccedilatildeo extaacutetica de algum objeto sem sentido proacuteprio como por

exemplo a contemplaccedilatildeo das letras hebraicas ndash sem os riscos de outros

procedimentos Atraveacutes da escrita aleatoacuteria das letras sem a preocupaccedilatildeo de

formaccedilatildeo de algum sentido e da meditaccedilatildeo sobre cada uma de forma isolada evita-

se que a mente entre em processo de associaccedilotildees em cadeia A abstraccedilatildeo da mente

possibilita a rarefaccedilatildeo das faculdades sensoriais e a ocorrecircncia do estado de ecircxtase

com consequente abertura para o influxo da inteligecircncia superior Igualando-se na

forccedila espiritual de cada letra o miacutestico torna-se uno com ela vivenciando uma

experiecircncia de caraacuteter singular ndash conforme contam os relatos descritos em muitos

textos cabaliacutesticos428

Partes fundamentais desse processo satildeo os dispositivos e teacutecnicas para

assegurar sua consecuccedilatildeo Atraveacutes do relato de Isaac de Acre tem-se a informaccedilatildeo

das teacutecnicas conhecidas como ldquohitbodedutrdquo que se caracteriza pelo exerciacutecio da

solidatildeo e concentraccedilatildeo e ldquohischtavutrdquo a equanimidade ldquoAquele que merecer o

segredo da comunhatildeo [com o divino] mereceraacute o segredo da equanimidade se ele

425 Para elucidaccedilotildees sobre a forma que Abulafia e outros cabalistas italianos utilizaram o Aristotelismo em suas

filosofias veja-se IDEL The Study Program (opcit) pp 310-311 nota 68 para as leituras de Pico acerca de Abulafia veja-se em Wirszubski vaacuterias menccedilotildees (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism opcit) Ademais foge ao escopo traccedilado a abordagem das vaacuterias siacutenteses efetuadas entre as doutrinas cabaliacutesticas e as filosofias neoplatocircnica e aristoteacutelica no periacuteodo do Renascimento limitamo-nos portanto a apenas mencionar a existecircncia de tais inter-relaccedilotildees cujos estudos podem ser verificados nas obras de SCHOLEM Origins of the Kabbalah (Princeton University Press 1987 pp 316-320 327-330 363-364 389-390) e de IDEL Jewish Kabbalah and Neoplatonism in the Middle Ages and Renaissance (in Neoplatonism and Jewish Thought Albany Suny 1992 pp 319-351)

426 IDEL 1998 p 27 2008-a p28 427 IDEL 2008-a p29 Quando o fundador do hassidismo polonecircs Israel Baal-Schem expocircs no seacuteculo XVIII a

tese miacutestica de que a comunhatildeo com Deus (devekut) eacute mais importante do que o estudo de livros houve muita oposiccedilatildeo e sua ideia foi citada nas polecircmicas anti-hassiacutedicas como prova de tendecircncias subversivas e anti-rabiacutenicas do movimento A mesma teoria exposta duzentos anos antes por Isaac Luacuteria a grande autoridade miacutestica de Safed natildeo suscitara nenhum antagonismo Segundo SCHOLEM (1978) uma evidecircncia de mudanccedila no clima histoacuterico

428 Abraham Abursquol-Afiyah de Saragoza ndash ou Abulafia ndash que teve na ideia de profecia o propoacutesito fundamental de seu inteiro projeto cabaliacutestico realizou pesquisas acerca de tal fenocircmeno que resultaram em sua obra Chochmat Hatzeruf (A ciecircncia da combinaccedilatildeo das letras) Maiores detalhes acerca dessa forma de praacutetica cabalista podem ser encontrados em SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1988 Ainda em SCHOLEM o capiacutetulo sobre Abraham Abulafia na obra A Miacutestica Judaica conteacutem alguns registros antigos dessa experiecircncia com riqueza de detalhes Veja-se tambeacutem BUSI 2011 p 26 IDEL 2008-a pp28-30 IDEL The Mystical Experience in Abraham Abulafia 1987 IDEL Studies in Ecstatic Kabbalah 1988

135

receber esse segredo entatildeo conheceraacute tambeacutem o segredo de hitbodedut recebendo o

Espiacuterito Divino e daiacute a profeciardquo429 Essas teacutecnicas estatildeo relacionadas com a triacuteplice

purificaccedilatildeo ndash a limpeza do corpo a limpeza interior e a purificaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo ndash

descrita por Alemanno em seu Collectanaea como meacutetodo para operar a realizaccedilatildeo

de milagres Uma vez despido de todas as sensaccedilotildees e pensamentos materiais deveraacute

o operador ler apenas a Toraacute e os nomes divinos nela escritos para que entatildeo lhe

sejam revelados ldquosegredos impressionantes e visotildees divinas tais como as que podem

ser emanadas sobre as almas puras preparadas para recebecirc-losrdquo430 A alusatildeo de

Alemanno refere-se pois ao estado extaacutetico atingiacutevel atraveacutes da contemplaccedilatildeo dos

nomes divinos Se na Cabala Teuacutergica a interpretaccedilatildeo da Toraacute eacute utilizada como

elemento de aproximaccedilatildeo agrave divindade na Extaacutetica seraacute a contemplaccedilatildeo de cada letra

a propiciar a abstraccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ecircxtase

A praacutetica da contemplaccedilatildeo esteve presente desde a primeira fase do misticismo

judaico embora inicialmente relacionada agrave contemplaccedilatildeo dos mundos superiores

conforme os mencionados tratados dos Heikhalot os miacutesticos dedicavam-se entatildeo a

exerciacutecios meditativos que os permitissem visualizar os mundos celestiais a

ldquoCarruagemrdquo (Mercavaacute) o ldquoTrono da Gloacuteriardquo e os seres muitas vezes hostis que

correspondem agraves diversas ordens angelicais Apesar de essa jornada sugerir uma

ascensatildeo os visionaacuterios e exploradores dos planos celestiais eram chamados Iordei

Mercavaacute (ldquoos que descem agrave Carruagemrdquo) provavelmente aludindo natildeo a uma saiacuteda

de si mas a um aprofundamento dentro do proacuteprio ser431 A importacircncia da

contemplaccedilatildeo encontra-se ademais no centro do pensamento de Isaac o Cego

ldquotodos os atributos satildeo transmitidos para serem contempladosrdquo A descese do

princiacutepio divino eacute descrita como uma seacuterie de contemplaccedilotildees sucessivas que durante

suas ocorrecircncias plasmam as coisas e lhes fornecem o aspecto com o qual se

apresentam ao mundo O chamado ao silecircncio interior eacute frequente em sua obra ldquoo

caminho da contemplaccedilatildeo eacute de fato um absorver e natildeo um conhecer

discursivamenterdquo432 Eacute ainda atraveacutes da contemplaccedilatildeo que o homem pode percorrer

o caminho inverso da emanaccedilatildeo divina Esse eacute o ponto em que o Cabalismo mais se

aproxima do pensamento neoplatocircnico do qual se disse que ldquoa progressatildeo e a

inversatildeo constituem um processo uacutenicordquo a diaacutestole-siacutestole que movimenta o

universo433

Os trecircs modelos verificados costumam se apresentar mesclados nas praacuteticas

cabaliacutesticas e em raros casos foram tratados em abordagens completamente

429 Esse e outros relatos de experiecircncias extaacuteticas podem ser lidos em IDEL 2008-a 430 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Oxford 2234 f 164r 431 SENDER opcit pp 41-42 432 A principal obra teoacuterica de Isaac o Cego da qual se tem notiacutecia eacute o Comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute abordado

por BUSI (opcit p 53) 433 SCHOLEM 1995 p22

136

estanques Natildeo satildeo poucos os relatos de operadores que partindo da contemplaccedilatildeo e

seu subsequente alcance do reino divino ndash em claro emprego da forma Extaacutetica ndash

atraem em seguida o poder superno para realizar operaccedilotildees teuacutergicas Da mesma

forma a Cabala Teuacutergica foi combinada amiuacutede com operaccedilotildees maacutegicas de maneira

a permitir que as emanaccedilotildees das Sefirot mais altas prosseguissem sua descida sobre o

mundo extradivino Em comum tais operaccedilotildees utilizam-se da potecircncia desencadeada

pela correta escolha ou pronuacutencia de certos vocaacutebulos ou atraveacutes da meditaccedilatildeo sobre

suas formas434 Giovanni Pico utilizou-se dos trecircs modelos em suas argumentaccedilotildees A

eficaacutecia dos sons e palavras na obra maacutegica eacute defendida seja na Oratio que na

Apologia seu uso teuacutergico eacute apontado em vaacuterias conclusiones a dimensatildeo extaacutetica

encontra eco nas reflexotildees mais profundas do Mirandolano a serem retomadas no

uacuteltimo Capiacutetulo Contudo a evidecircncia do uso de fontes e conceitos extraiacutedos dos

modelos descritos entre as paacuteginas piquianas embora uma razatildeo suficiente natildeo eacute a

uacutenica para a apresentaccedilatildeo deste capiacutetulo digressivo Enquanto a outras tradiccedilotildees de

cunho esoteacuterico Pico natildeo destinou nenhuma obra em caraacuteter exclusivo ao

conhecimento cabaliacutestico mesmo que natildeo de forma expressa foi dedicado o

Heptaplus assim o esclarecimento de alguns conceitos natildeo usuais na linguagem

filosoacutefica se coloca como uma necessidade para uma aproximaccedilatildeo mais fluiacuteda e

aprofundada ao texto

434 Para uma reflexatildeo bastante aprofundada acerca do uso maacutegico-operacional da linguagem veja-se Franco

BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 pp 43-48 Veja-se tambeacutem para reflexotildees sobre a natureza da linguagem desenvolvidas por cabalistas e alguns comentadores do Secircfer Yetsiraacute VAJDA Un chapitre de lrsquohistoire du conflit entre la kabbale et la philosophie in ldquoArchives drsquohistoire doctrinale et littegraveraire du Moyen Agerdquo XXXI 1956 pp49-56 e 127-133 IDEL Language Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia Albany 1989 pp1-28 (apud BACCHELLI ibid n p 51)

137

CAPIacuteTULO VI

O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA

O Heptaplus435 vocaacutebulo que significa ldquosete vezes seterdquo nasce como um

comentaacuterio em sete partes ndash subdivididas em sete capiacutetulos cada ndash acerca dos seis

dias da criaccedilatildeo expostos no Gecircnesis 1 Antes de Giovanni Pico outros nomes entre

latinos gregos hebreus e caldeus se haviam lanccedilado a interpretar a mesma

passagem biacuteblica como o proacuteprio indicava no Primeiro Proecircmio que antecede sua

obra436 tinha portanto plena ciecircncia do fato de natildeo se tratar de originalidade sua

preocupando-se em avisar agora no Segundo Proecircmio que ldquonatildeo eacute o propoacutesito dessa

obra que quem natildeo tenha aprendido essas coisas em outro lugar as aprenda aqui

pela primeira vezrdquo437 A escolha do Gecircnesis como fundamento para ensejar uma obra

deveu-se agrave percepccedilatildeo de que sob aquela narrativa estariam guardados ldquosegredos de

todas as naturezasrdquo em mais uma evidecircncia de seu interesse em ter acesso a

realidades protegidas pela dimensatildeo esoteacuterica438 A opccedilatildeo por aquele especiacutefico livro

da Biacuteblia eacute esclarecida de forma a natildeo deixar duacutevidas se Moiseacutes tivesse sepultado

em alguma parte das Escrituras ldquoos tesouros de toda a filosofia verdadeirardquo teria

sido naquela parte que trata ldquoda emanaccedilatildeo de todas as coisas de Deus do grau do

nuacutemero da ordem das partes do mundo com elevadiacutessima capacidade filosoacuteficardquo439

Ou seja no Gecircnesis

A obra trata portanto de sete ldquoExposiccedilotildeesrdquo ou ldquoLivrosrdquo440 sucessivos que se

dedicam agrave narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo cada qual focado em uma das dimensotildees ndash ou

relaccedilotildees entre as dimensotildees ndash vislumbradas pelo autor As trecircs primeiras exposiccedilotildees

estabelecem respectivamente uma analogia entre os trecircs graus do real ndash o

elementar o celeste e o angeacutelico ndash com cada um dos trecircs mundos sub-divinos

admitidos pela Cabala descrevendo as devidas formas constitutivas de cada reino A

quarta exposiccedilatildeo trata do reino humano a quinta aponta para a sucessatildeo dos quatro

435 O Heptaplus ndash De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione ndash foi finalizado em 1489 e dedicado a

Lorenzo dersquoMedici A editio princeps consta de 1490 Quando Gianfrancesco Pico editou a primeira Opera Omnia referente agraves obras do tio optou por colocar o Heptaplus em seu iniacutecio uma posiccedilatildeo mantida nas ediccedilotildees subsequentes Em 1555 a obra foi traduzida para o italiano e em 1578 para o francecircs (cf Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 8-10) As traduccedilotildees para o portuguecircs presentes neste Capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade utilizando-se como guia a traduccedilatildeo de Eugenio Garin para o italiano (que em muitos trechos natildeo eacute estritamente literal mas adequada a um melhor entendimento do leitor)

436 Escreve Pico que diante de tantos inteacuterpretes quase natildeo ousaria ldquopensar em escrever algo de novo ou acrescer qualquer comentaacuterio original sobre o argumentordquo (Heptaplus p 177) Entre os inteacuterpretes do Gecircnesis citados em seu preacircmbulo encontram-se Ambroacutesio Agostinho Estrobeu Egiacutedio Fiacutelon Oriacutegenes e vaacuterios outros alguns menos conhecidos inclusive do ciacuterculo caldeu e hebraico (ibid pp179-181)

437 Heptaplus P2 p198 Para dar relecircvo a suas palavras Pico cita Agostinho que em sua exposiccedilatildeo sobre o Gecircnesis escrevera ldquoSe podes aprendes essas coisas se natildeo podes deixa-as a quem vale mais do que tirdquo (ldquoHaec tu si potes apprehendas si nondum potes relinquas valentioribusrdquo) A referecircncia de Agostinho encontra-se na nota agrave traduccedilatildeo de GARIN (Augustini De Gen ad litt V 3 (6) P L XXXIV 323)

438 Heptaplus P1 p170 439 Heptaplus P1 p177 A mesma alusatildeo jaacute havia sido feita por Pico em sua Apologia quando justificando suas

Conclusiones perante aos padres afirmara que ldquoos tesouros da lei espiritual estariam sepultados na obra de Moiseacutesrdquo

440 De fato Pico nomeia cada parte de sua obra de ldquoExpositiordquo ou ldquoLiberrdquo

138

mundos presentes na narrativa biacuteblica a sexta expotildee as relaccedilotildees entre esses mundos

e a seacutetima aponta para o destino que lhes cabe dentro do desenho universal O

objetivo nuclear do autor eacute demonstrar que os vaacuterios mundos natildeo satildeo membra

disiecta (membros dispersos) mas que estatildeo relacionados entre si e tecircm no homem

seu ponto de uniatildeo441 Cada uma das exposiccedilotildees por sua vez encontra-se dividida em

outras sete partes ndash correspondentes a cada um dos seis dias da Criaccedilatildeo narrados na

Biacuteblia acrescidas cada qual com o seacutetimo capiacutetulo ldquoem Cristordquo Explica o autor no

Segundo Proecircmio que o seacutetimo capiacutetulo de cada Livro representa ldquoo fim da Lei o

nosso saacutebado a nossa paz a nossa felicidaderdquo ndash assim como narrado no Gecircnesis em

que o saacutebado eacute o dia do repouso442

Segundo Eugenio Garin a redaccedilatildeo fluente e contiacutenua proposta por Pico no

Heptaplus faz parte de um meacutetodo em que a forma escrita remete agrave difusatildeo e agrave

interpenetraccedilatildeo entre os vaacuterios planos de existecircncia Os mundos com seus

variegados planos apresentam-se natildeo apenas correspondentes mas entrelaccedilados uns

aos outros quase como perspectivas muacuteltiplas (e intriacutensecas no homem) de uma

mesma realidade443 Ademais a obra apresenta um constante movimento dialeacutetico

que a faz transitar de forma harmoniosa entre a feacute e a razatildeo refletindo a perfeita

seguranccedila de Pico sobre a relaccedilatildeo entre as obras da Criaccedilatildeo e a racionalidade de suas

leis (ldquotoda obra da natureza eacute obra da inteligecircnciardquo)444 Retorna-se mais uma vez

para a relaccedilatildeo entre religiatildeo e filosofia ndash abordada no Capiacutetulo 3 ndash cuja centralidade

no pensamento piquiano seraacute retomada no Capiacutetulo final

Assim como em outras obras a dialeacutetica razatildeo-feacute eacute permeada por uma terceira

perspectiva relacionada agrave presenccedila do elemento esoteacuterico a ser verificada no decorrer

do Capiacutetulo Sob o prisma de uma hermenecircutica esoteacuterica o Heptaplus pode ser

dividido em trecircs leituras a) a primeira concentra-se no Primeiro Proecircmio escrito por

Pico agrave guisa de introduccedilatildeo em que satildeo apresentadas vaacuterias referecircncias utilizadas pelo

autor como instrumentos para a afirmaccedilatildeo da existecircncia de verdades que devem ser

preservadas da escrita b) a segunda concerne agrave alegoria do ldquoTabernaacuteculordquo de Moiseacutes

nuacutecleo do Segundo Proecircmio utilizada como fundamento metafoacuterico sobre o qual

ergue-se o projeto do Heptaplus porquanto conteacutem a representaccedilatildeo de trecircs dos

mundos tratados no conjunto da obra c) a terceira perspectiva eacute colhida da uacuteltima

parte da obra uma espeacutecie de ldquoapecircndicerdquo em que o autor apresenta de forma

detalhada a aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico Agraves trecircs partes mais nobres de sua

obra ndash os dois proecircmios em que a intenccedilatildeo do autor eacute expressa e o apecircndice que

finaliza o todo ndash junta-se a concepccedilatildeo do projeto como um todo (em seus sete Livros)

que embora natildeo tratado aqui eacute erigido sobre uma leitura que enxerga sob a letra das

Escrituras significados ocultos

441 Heptaplus V 7 p305 442 Heptaplus P2 p203 443 GARIN LUmanesimo italiano 2008 p 125 444 Heptaplus I 1 p207 ldquoomne opus naturae opus esse intelligentiaerdquo

139

1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio

Cocircnscio da dificuldade que teria em despertar qualquer interesse filosoacutefico por

seu trabalho de hermenecircutica biacuteblica Pico preocupou-se logo agrave abertura do

Heptaplus em dar credibilidade ao autor do Gecircnesis ndash que ele como os demais agrave

eacutepoca acreditava ser Moiseacutes Assim uma parte do Primeiro Proecircmio escrito como

preacircmbulo agrave obra eacute utilizada para justificar a autoridade de Moiseacutes perante um

grupo de oponentes (natildeo identificados) que teriam estabelecido uma distinccedilatildeo entre a

forma literaacuteria do texto mosaico (o Pentateuco) e a dos tradicionais escritos

filosoacuteficos ndash esses sob tal enfoque tidos como superiores

Sua defesa se divide em dois momentos Primeiramente eacute feita uma

argumentaccedilatildeo fundamentada sobre algumas autoridades da Antiguidade que de

alguma forma teriam contribuiacutedo para propagar o nome de Moiseacutes como mestre ldquode

conhecimento humano e de suma sabedoria em todas as doutrinas e literaturasrdquo445

Os indiacutecios utilizados para sustentar a reputaccedilatildeo do mencionado Profeta satildeo

provenientes a) de Lucas e Fiacutelon respeitaacuteveis testemunhos de que Moiseacutes fora

instruiacutedo em todas as doutrinas dos egiacutepcios446 b) dos egiacutepcios que teriam instruiacutedo

alguns dentre os mais celebrados filoacutesofos gregos ndash como Pitaacutegoras Platatildeo

Empeacutedocles e Demoacutecrito (menccedilatildeo que permite ao Autor inserir Moiseacutes no centro da

Filosofia grega)447 c) do neopitagoacuterico Numecircnio que chamara Platatildeo de ldquoo Moiseacutes

Aacuteticordquo (registro que chama a atenccedilatildeo para a similaridade entre as doutrinas dos dois

saacutebios)448 d) do pitagoacuterico Hermipo que teria afirmado que Pitaacutegoras transferira

muitas coisas da lei mosaica para sua proacutepria filosofia449

Em segundo lugar para explicar a disparidade existente entre a aparente rudez

do texto mosaico considerado comum e trivial (ldquomedio et trivialerdquo) e a complexidade

proacutepria de uma grande obra de Filosofia Pico recorre a referecircncias colhidas em

tradiccedilotildees erigidas sobre a oralidade e a misteriologia introduzindo no centro do

Primeiro Proecircmio uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de dimensatildeo esoteacuterica Nesse

sentido para se estabelecer em uma linha contraacuteria agrave consolidada entre os

acadecircmicos ndash a de que Moiseacutes seria inculto e pouco similar a um filoacutesofo ou

teoacutelogo450 ndash Pico se abastece de alguns fatos e personagens histoacutericos de forma a

justificar aquele tipo rude de escrita uma tentativa de demonstrar que tal estilo seria

445 Heptaplus P1 p171 446 Heptaplus idem O testemunho de Lucas estaacute em Atos 722 ldquoMoiseacutes foi instruiacutedo em toda a sabedoria dos

egiacutepciosrdquo o de Fiacutelon em De Vita Mosis 121-24 447 Heptaplus idem Na obra De mysteriis Aegyptiorum Chaldeorum Atque Assyriorum de Jacircmblico haacute uma

lista similar ldquoPythagoras Plato Democritus Eudoxus et multi ad sacerdotes Aegyptios accesseruntrdquo (traduccedilatildeo de Ficino Opera omnia repr Turin Bottega drsquoErasmo 1962)

448 Heptaplus P1 pp171-173 A referecircncia a Numecircnio encontra-se na obra de Euseacutebio Preparatio evangelica IX 6 e XI 10

449 Heptaplus P1 p173 Hermipo escreveu um Vida de Pitaacutegoras que serviu de fonte para Dioacutegenes Laerte Essa ideia contudo natildeo consta nos fragmentos atualmente existentes de Hermipo (cf Crofton BLACK 2006 p 96 e 145)

450 ldquoAut philosophus aut theologusrdquo (Hept P1 p172)

140

necessaacuterio para resguardar a preciosidade de determinado conteuacutedo451 Seu

argumento esoteacuterico se compotildee por uma sequecircncia de vaacuterias passagens452

a) ldquoExiste entre os hebreus sob o nome do sapientiacutessimo Salomatildeo um livro intitulado Sapientia natildeo esse que temos hoje obra de Fiacutelon mas outro escrito naquela linguagem secreta que chamamos lsquohierosolymarsquo cujo autor e inteacuterprete da natureza das coisas como se acredita declara ter recebido toda a sua sabedoria da profundidade da lei mosaicardquo453

b) ldquo[] devemos lembrar um famoso costume dos antigos saacutebios o de se abster de escrever acerca das coisas divinas ou sobre elas escrever veladamente e por isso satildeo chamados Misteacuterios Natildeo eacute misteacuterio o que natildeo eacute ocultordquo454

c) ldquo[Os segredos] foram observados por Indianos Etiacuteopes [] e Egiacutepcios Esse eacute o significado das Esfinges defronte aos templosrdquo455

d) ldquoInstruiacutedo por eles [os Egiacutepcios] Pitaacutegoras tornou-se mestre do silecircncio natildeo entregou suas doutrinas agrave escrita com exceccedilatildeo de muito pouco que ao morrer confiou agrave sua filha Damo De fato ele natildeo foi o verdadeiro autor de Aurea carmina mas sim Filolaurdquo [] ldquoA lei do silecircncio foi uma tradiccedilatildeo mantida ininterrupta ateacute que Hiparco a teria violado conforme deplorou Lysisrdquo456

e) ldquoSobre essa [a preservaccedilatildeo do silecircncio] juraram os disciacutepulos de Amocircnio Oriacutegenes Plotino e Herecircnio como testemunha Porfiacuteriordquo457

451 Heptaplus P1 pp 172 176 452 Para a discussatildeo das fontes utilizadas por Pico veja-se Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos

Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 123-132 453 Heptaplus P1 p170 ldquoExtat apud Hebraeos Salomonis illius cognomento sapientissimi liber cui Sapientia

titulus non qui nunc in manibus est Philonis opus sed alter hierosolyma quam vocant secretiore lingua compositus in quo vir naturae rerum sicuti putatur interpres omnem se illiusmodi disciplinam fatetur de Mosaicae legis penetralibus accepisserdquo Natildeo haacute fontes precisas sobre esse livro que Pico esclarece natildeo se tratar da obra homocircnima de Fiacutelon Referecircncia a tal trabalho pode ser encontrada no comentaacuterio de Nahmacircnides ao Pentateuco do qual uma coacutepia hebraica consta no inventaacuterio da biblioteca de Pico (Commentary of Nahmanides on Genesis ed Newman pp 25-27) Sobre o fato de Pico ter lido o comentaacuterio de Nahmacircnides veja-se BLACK opcit capiacutetulo 7 Veja-se ainda WIRSZUBSKI opcit p 219 Nahmacircnides na obra em questatildeo diz que o Livro da Sabedoria atribuiacutedo a Salomatildeo estaacute escrito em aramaico enquanto Pico escreve que estaacute na linguagem hierosolyma

454 Heptaplus P1 p172 ldquo[] revocemus eo mentem fuisse veterum sapientum celebre institutum res divinas ut aut plane non scriberent aut scriberent dissimulanter Hinc appellata mysteria (nec mysteria quae non occulta)rdquo

455 Heptaplus P1 p172 ldquohoc ab Indis hoc ab Aethiopibus [] hoc ab Aegyptiis observatum quod et Sphinges illae pro templis insinuabantrdquo A fonte utilizada por Pico para a informaccedilatildeo sobre os Indianos eacute provavelmente Euseacutebio (Preparatio evangelica IX 6 e 7) Sobre as Esfinges Pico dissera na Oratio (p157) que ldquoesculpidas nas frentes dos templos egiacutepcios advertiam que os ensinamentos miacutesticos deviam ser guardados com os noacutes dos enigmas inviolaacuteveis para a multidatildeo profanardquo A fonte de Pico para as Esfinges poderia ser Plutarco De Iside et Osiride 9

456 Idem ldquoab eis edoctus Pythagoras silentii factus est magister nec ipse quicquam litteris mandavit praeter omnino paucula quae Damae filiae moriens commendavit Non enim quae circumferuntur aurea carmina Pythagorae sunt ut vulgo etiam doctioribus persuasum est sed Philolairdquo [] ldquoLegem deinceps eam Pythagorici religiosissime tutati sunt Eam Lysis ab Hypparco violatam quaeriturrdquo A carta de Lysis para Hiparco mencionada por Pico diz ldquoMuitas pessoas dizem que vocecirc filosofa em puacuteblico o que Pitaacutegoras negou como indigno ele confiando suas notas escritas para sua filha Damo notificou que ela natildeo deveria entregaacute-los a ningueacutem fora da comunidaderdquo (Epistolographi Graeci org HERCHER Paris Ambrosio Firmin Didot 1873 p 603 apud BLACK 2006 n p146) Os pitagoacutericos efetivamente tornaram a postura da transmissatildeo unicamente oral uma exigecircncia de ordem praacutetica

457 Heptaplus P1 p172 ldquoIn eam denique iuratos Ammonii discipulos Origenem Plotinum et Herennium Porphyrius est auctorrdquo A fonte de Pico eacute Porfiacuterio que descreve tal pacto em seu Vida de Plotino 3 ldquoUm pacto foi feito por Herecircnio Oriacutegenes e Plotino para natildeo revelarem as doutrinas de Amocircnio que ele havia ensinado em palestras (PORPHYRE La vie de Plotin II ed Brisson Paris Vrin 1982) De acordo com Porfiacuterio Oriacutegenes foi

141

f) ldquoO nosso Platatildeo escondeu as proacuteprias crenccedilas sob veacuteus enigmaacuteticos siacutembolos

de mitos imagens matemaacuteticas e argumentos de sentido obscuro a ponto de contar nas epiacutestolas que apoiando-se em seus escritos ningueacutem teria compreendido claramente seu pensamento sobre as coisas divinasrdquo458

g) ldquoJesus Cristo natildeo escreveu o Evangelho mas o pregou Pregou para as massas atraveacutes de paraacutebolas e separadamente para poucos disciacutepulos aos quais era concedido compreender os misteacuterios do reino dos ceacuteus abertamente e sem imagens mesmo assim natildeo desvelou tudo agravequeles poucos uma vez que havia coisas que eles poderiam natildeo suportarrdquo459

h) ldquoJoatildeo [o apoacutestolo] revelou bem mais do que os outros sobre os segredos da divindade [] mas falou brevemente e de forma obscurardquo460

i) ldquoPaulo [] apenas aos perfeitos falaria a linguagem da sabedoriardquo461

j) ldquoDioniacutesio o Areopagita escreveu que nas Igrejas houve o sagrado e respeitado costume de natildeo transmitir doutrinas secretas por escrito mas apenas agrave voz e para os devidamente iniciadosrdquo462

pupilo de Amocircnio no mesmo tempo que Plotino e Herecircnio se eacute verdade que os trecircs fizeram um pacto de natildeo revelar em escritos as doutrinas de seu professor tanto Herecircnio quanto Oriacutegenes quebraram suas promessas

458 Idem ldquoPlato noster ita involucris aenigmatum fabularum velamine mathematicis imaginibus et subobscuris recedentium sensuum indiciis sua dogmata occultavit ut et ipse dixerit in Epistulis neminem ex his quae scripserit suam sententiam de divinis aperte intellecturum et re minus credentibus comprobaveritrdquo A passagem refere-se agrave Carta II (312 d-e) tambeacutem mencionada por Pico na Oratio (p157) na qual Platatildeo escrevendo a Dioniacutesio sobre os modos das substacircncias supremas afirma ldquoEacute necessaacuterio exprimir-nos mediante enigmas de modo que se alguma vez por acaso a carta cair na matildeo de um outro natildeo seja percebido pelos outros aquilo que escrevordquo Os segredos conceituais que Platatildeo natildeo teria submetido agrave escrita referem-se a questotildees tratadas em suas aulas ldquoSobre o Bemrdquo nas quais eram discutidos os Princiacutepios Parte de tais concepccedilotildees foram transmitidas atraveacutes da filosofia neoplatocircnica chegando a Pico atraveacutes das traduccedilotildees de Ficino Para toda a problemaacutetica em torno agraves ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo de Platatildeo veja-se o fundamental Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo de Giovanni Reale trad Marcelo Perine (Satildeo Paulo Loyola 1997)

459 Heptaplus P1 p174 ldquoIesus Christus imago substantiae Dei Evangelium non scripsit sed praedicavit praedicavit autem turbis quidem in parabolis seorsum autem paucis discipulis quibus datum erat nosse mysteria regni caelorum palam citraque figuras neque omnia paucis illis quia non omnium capaces et multa erant quae portare non poterant donec adveniens Spiritus docuit omnem veritatemrdquo A ideia de que Jesus teria revelado muitos misteacuterios apenas aos seus disciacutepulos eacute atribuiacuteda por Pico a Oriacutegenes no Commento na Apologia e na Oratio (p157) ldquoOriacutegenes afirma que Jesus Cristo mestre de vida revelou aos disciacutepulos muitas coisas que eles natildeo quiseram escrever para natildeo se tornarem vulgarizados Tal fato confirma-o sobretudo Dioniacutesio Areopagita o qual diz que os misteacuterios mais secretos foram transmitidos pelos fundadores da nossa religiatildeo ek nou eis noun dia meson logon isto eacute de mente a mente sem escritos mediante o Verbordquo

460 Pico complementa que Joatildeo revelou o misteacuterio do logos apenas com a finalidade de combater os Ebionitas que afirmavam o Cristo homem mas negavam sua divindade ldquoIoannes qui prae omnibus maxime divinitatis secreta revelavit tribus pridem vulgatis Evangeliis et a Domini cruce multis exactis annis coactus loqui quae diu tacuerat ad abolendam haeriesim Ebionitarum quae Christum hominem non etiam Deum asseverabat de aeterna Filii generatione sed paucis sed obscure pronunciavit inde exorsus in principio erat Verbumrdquo (ibid pp 174-176)

461 Heptaplus P1 p176 ldquoPaulus Corinthiis negat solidum cibum propterea quod adhuc carnis legibus vivant non autem spiritus et sapientiam loquitur ante perfectosrdquo A referecircncia (Cor I 511) encontra-se na proacutepria ediccedilatildeo Em outra passagem referida na Oratio (p157) Pico escreve ldquomanter portanto tudo isto oculto do vulgo a fim de o comunicar apenas aos perfeitos entre os quais unicamente Paulo (Cor I 2-6) afirma pronunciar palavras de sapiecircncia natildeo foi obra de humana prudecircncia mas de divina sabedoriardquo

462 Heptaplus P1 p176 ldquoDionysius Areopagita sanctum et ratum institutum fuisse scribit ecclesiis ne dogmata secretiora per litteras sed voce tantum iis qui rite essent initiati communicarenturrdquo A passagem de Pseudo Dioniacutesio encontra-se em De Coelesti Hierarchia II (cf ref na ediccedilatildeo do Heptaplus)

142

A presenccedila de vaacuterios registros relacionados agrave tradiccedilatildeo oral utilizados como

principal ferramenta de sustentaccedilatildeo para afirmar a autoridade de Moiseacutes mostra-se

um recurso introdutoacuterio necessaacuterio para dar credibilidade ao conjunto da obra

estruturada sobre uma linguagem alegoacuterica que pede uma maior acuidade daquele

que a lecirc Poreacutem longe de ser um artifiacutecio retoacuterico suas referecircncias refletem uma

categoria proacutepria e fluiacuteda do pensamento piquiano O denominador comum entre os

exemplos histoacutericos eacute a ideia de demarcaccedilatildeo entre os natildeo-iniciados e os iniciados

concepccedilatildeo que por sua vez conduz o leitor agrave aceitaccedilatildeo de uma divisatildeo da

interpretaccedilatildeo biacuteblica entre literal e natildeo-literal A leitura literal corresponde agrave

ldquomultidatildeordquo enquanto a natildeo-literal na terminologia que toma emprestado de Paulo e

dos primeiros cristatildeos ldquoaos perfeitosrdquo Seguindo as pistas de leituras relacionadas agrave

miacutestica hebraica Pico pretende evidenciar que essa dicotomia eacute fundamental para a

recepccedilatildeo das revelaccedilotildees contidas na Biacuteblia abrindo caminho para sua interpretaccedilatildeo

do Gecircnesis Esse tipo de procedimento hermenecircutico em que o fator esoteacuterico eacute

empregado como ponto de analogia entre representantes da Feacute de um lado e da

Filosofia de outro jaacute havia sido adotado em outras obras anteriores ao Heptaplus

postura filosoacutefica que se mostrara desenvolvida em torno a lsquo86 Por exemplo em sua

Conclusio cabalistica 63 Pico dizia

Assim como Aristoacuteteles dissimulou sob a superfiacutecie da

especulaccedilatildeo filosoacutefica aquela mais divina filosofia que os

filoacutesofos antigos haviam escondido com mitos e faacutebulas

mantendo-a obscura com a concisatildeo de suas palavras assim o

Rabbi Moiseacutes egiacutepcio no livro que os latinos intitulam O Guia

dos Perplexos atraveacutes da casca superficial das palavras daacute a

impressatildeo de caminhar com os filoacutesofos enquanto pelos

intentos velados de seu profundo sentir abraccedila os misteacuterios da

Cabala463

Apresentam-se ainda profusas indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo de fontes esoteacutericas

no Commento na De Hominis Dignitate ndash como verificado no Capiacutetulo IV ndash e na

Apologia Efetivamente repetem-se nas trecircs obras algumas das mesmas referecircncias

usadas por Pico no Heptaplus464 Entretanto haacute nessa obra uma diferenccedila

fundamental diversamente das obras anteriores a tradiccedilatildeo cabalista natildeo eacute citada

junto ao elenco esoteacuterico embora a mesma mantenha-se tatildeo central quanto nos

relatos anaacutelogos daquelas obras A ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo ldquocabalardquo

na inteira obra pode ter sido responsaacutevel pelo surgimento de certas interpretaccedilotildees

conflituosas embora a maior parte dos inteacuterpretes considere o conteuacutedo do

Heptaplus como exclusivamente cabalista465 Eugenio Garin em sua obra Giovanni

463 Concl (II) XI 63 Rabbi Moiseacutes egiacutepcio refere-se ao filoacutesofo medieval Maimocircnides ao qual Pico atribui trecircs

opiniotildees nas Conclusiones ldquoSicut Aristoteles diuiniorem philosophiam quam philosophi antiqui sub fabulis et apologis uelarunt ipse sub philosophicae speculationis facie dissimulauit et uerborum breuitate obscurauit ita Rabi Moyses aegyptius in libro qui a latinis dicitur dux neutrorum dum per superficialem uerborum corticem uidetur cum Philosophis ambulare per latentes profundi sensus intelligentias mysteria complectitur Cabalaerdquo

464 Veja-se por exemplo algumas das mesmas referecircncias esoteacutericas na Apologia (p27) e na Oratio (p 157) 465 Alguns dentre os relevantes inteacuterpretes que consideram o Heptaplus fundamentalmente cabalista satildeo

Matter Dorez Liebert e Vulliaud Guido MASSETANI (La Filosofia Cabalistica di Giovanni Pico della

143

Pico della Mirandola constata (a) que Pico coroou seus conhecimentos cabaliacutesticos

atraveacutes do Heptaplus (b) que as origens dessa obra estatildeo em seus profundos estudos

sobre a gnose hebraica e (c) que existe afinidade formal entre o Heptaplus e as obras

da Cabala466

De qualquer forma ao retomar em lsquo89 as concepccedilotildees de ordem esoteacuterica

propostas em seus trabalhos anteriores Pico decide remover deliberadamente a

utilizaccedilatildeo daquela palavra que poderia desencadear suspeitas de heresia e que

segundo ele teria sido a causa da condenaccedilatildeo papal que sofrera Cabe lembrar que

enquanto escrevia o Heptaplus ainda estava em vigor a bula emitida por Inocecircncio

VIII condenando as Conclusiones467 Assim eacute bastante provaacutevel que ao voltar a

redigir seus paracircmetros de fontes Pico tenha conscientemente eliminado as

referecircncias agrave Cabala por razotildees de prudecircncia Tal remoccedilatildeo parece ter sido mais

aparente do que substancial porquanto o nuacutecleo do conteuacutedo doutrinal cabaliacutestico foi

preservado (em alguns casos com as mesmas palavras das obras anteriores) como

seraacute visto a seguir Seu modelo hieraacuterquico de mundos encontra vaacuterios pontos de

convergecircncia com os mundos da doutrina cabaliacutestica utilizados para sustentar o

projeto pretendido Mais adiante atraveacutes da verificaccedilatildeo do apecircndice da obra

inteiramente consagrado a demonstrar a aplicabilidade do meacutetodo cabaliacutestico tem-se

a comprovaccedilatildeo definitiva de que a ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo Cabala

tenha sido apenas um expediente utilizado para natildeo acirrar os acircnimos ao seu redor

2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus

ldquoA Antiguidade imaginou trecircs mundosrdquo468 Com essas palavras Pico abre seu

Segundo Proecircmio em cuja narrativa confirma a posiccedilatildeo superna do mundo

suprassensiacutevel ldquoque os teoacutelogos chamam lsquoangeacutelicorsquo e os filoacutesofos lsquointeligiacutevelrsquo nunca

cantado por ningueacutem de forma adequadardquo segundo ldquoo que diz Platatildeo no Fedrordquo469

Abaixo desse haacute o mundo celeste e por uacuteltimo o nosso mundo sublunar ldquoEste ndash

continua Pico ndash eacute o mundo das trevas aquele da luz o celeste eacute composto de luz e

trevasrdquo O mundo sensiacutevel eacute representado pela aacutegua substacircncia mutaacutevel aquele pelo

fogo em razatildeo do esplendor da luz o ceacuteu natureza intermeacutedia eacute composto de aacutegua e

fogo e por tal razatildeo eacute chamado pelos hebreus de lsquoasciamaimrsquo termo composto de

Mirandola Empoli 1897) por sua vez natildeo se mostrou convencido com as correspondecircncias entre os mundos da Cabala e os propostos por Pico

466 As passagens encontram-se respectivamente (a) e (b) na paacutegina 39 (c) na paacutegina 158 (GARIN 2011) 467 A bula de Inocecircncio VIII foi emitida em 15 de dezembro de 1487 e permaneceu em vigor ateacute 18 de junho de

1493 A decisatildeo de omitir a palavra ldquocabalardquo do Heptaplus obteve um certo resultado positivo pois embora natildeo tenha ficado satisfeito com o surgimento da obra ndash considerando-a uma continuidade dos erros precedentes ndash o papa natildeo lhe conferiu o mesmo desprezo que agraves Conclusiones

468 Heptaplus P2 p185 ldquoTres mundos figurat antiquitasrdquo 469 Idem ldquoSupremum omnium ultramundanum quem theologi angelicum philosophi autem intellectualem

vocant quem a nemine satis pro dignitate decantatum Plato inquit in Phaedrordquo A passagem de Platatildeo encontra-se em Fedro 247c Na continuidade do trecho Pico complementa que as consideraccedilotildees acerca dos trecircs mundos natildeo possuem novidade alguma aos olhos dos estudiosos do mundo antigo

144

fogo (es) e aacutegua (maim)470 O caraacuteter intermeacutedio do mundo celeste eacute especialmente

acentuado por Pico que traz analogias extraiacutedas de suas fontes cabaliacutesticas Tal

caraacuteter eacute marcado pela mistura de propriedades presentes em cada um dos outros

dois mundos Assim tem-se no mundo terreno vida e morte no inteligiacutevel eterna

vida e contiacutenua atividade no celeste estabilidade de vida poreacutem com vicissitudes de

atividades e posiccedilotildees O mundo terrestre eacute constituiacutedo pela natureza caduca dos

corpos o mundo inteligiacutevel pela natureza divina da mente o ceacuteu pelo corpo embora

incorruptiacutevel e pela mente apesar de sujeita ao corpo O terceiro ldquoeacute movido pelo

segundo enquanto o segundo eacute governado pelo primeirordquo471 Continuando

os trecircs mundos satildeo apenas um natildeo apenas porque todos se

reportam de um uacutenico princiacutepio a um uacutenico fim ou em razatildeo

de sendo regulados por leis determinadas estarem coligados

por um certo liame harmonioso da natureza e por um

ordenamento em graus mas porque tudo aquilo que estaacute na

totalidade dos mundos estaacute tambeacutem em cada um e natildeo haacute algo

em qualquer um desses que natildeo esteja em cada um dos

outros472

No uacuteltimo trecho o autor fundamenta-se na concepccedilatildeo miacutestica judaica que

atribui agrave Unidade criadora a qualidade de se manifestar fora de si mesma em trecircs

planos de existecircncia que se encontram perfeitamente integrados ldquoo que se encontra

no mundo inferior estaacute incluso nos superiores mas em forma mais elevada por

analogia o que se encontra nos superiores estaacute no mundo inferior mas em condiccedilatildeo

degenerada e com uma natureza adulteradardquo473 Em linguagem que o aproxima ao

Platonismo o filoacutesofo complementa sua argumentaccedilatildeo por meio de exemplos

extraiacutedos da esfera dos fenocircmenos

470 Heptaplus P2 p187 Pico jaacute havia abordado a questatildeo do ceacuteu feito de fogo e aacutegua em sua Conclusio

cabalistica secundum opinionem propriam 67 ldquoHic tenebrarum mundus ille autem lucis caelum ex luce et tenebris temperatur Hic per aquas notatur fluxa instabilique substantia ille per ignem lucis candore et loci sublimitate caelum natura media idcirco ab Hebraeis asciamaim quasi ex es et maim idest ex igne et aqua quam diximus compositum nuncupaturrdquo

471 Heptaplus P2 pp185-187 ldquomovetur tertius a secundo secundus a primo regiturrdquo A analogia com a posiccedilatildeo mediana da alma humana entre corpo e espiacuterito natildeo eacute mencionada mas estaacute subentendida Em qualquer criatura (ou ente ou niacutevel de existecircncia) a trindade se manifesta No homem o aspecto superior eacute o Espiacuterito o aspecto mediano eacute a Alma ou princiacutepio animador o aspecto inferior eacute o corpo No corpo fiacutesico o aspecto superior eacute representado pelo ceacuterebro e sistema nervoso consciente o mediano pelo sistema nervoso simpaacutetico e os vasos sanguiacuteneos o inferior pelos demais oacutergatildeos e suas funccedilotildees vitais Veja-se em LORENZ outros detalhes das relaccedilotildees fiacutesicashumanas com os trecircs mundos (Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 pp 57-65)

472 Heptaplus P2 p189 ldquoHaec satis de tribus mundis in quibus illud in primis magnopere observandum unde et mostra fere tota pendet intentio esse hos tres mundos mundum unum non solum propterea quod ab uno principio et ad eumdem finem omnes referantur aut quoniam debitis numeris temperati et armonica quadam naturae cognatione atque ordinaria graduum serie colligentur sed quoniam quicquid in omnibus simul est mundis id et in singulis continetur neque est aliquis unus ex eis in quo non omnia sint quae sunt in singulis Quam Anaxagorae credo fuisse opinionem si recte eum sensisse putamus explicatam deinde a Pythagoricis et Platonicisrdquo Pico conclui essa passagem sugerindo que esse seria ldquoo pensamento de Anaxaacutegoras exposto pelos Pitagoacutericos e Platocircnicosrdquo Tal menccedilatildeo encontra-se em Simpliacutecio Phys 27 2 (cf ref na proacutepria ediccedilatildeo) A ideia de que ldquotudo estaacute em tudordquo encontra paralelos ademais em Proclo Elementos de Teologia proposiccedilotildees 170173 e 176

473 Heptaplus P2 p189 ldquoVerum quae in mundo sunt inferiori in superioribus sunt sed meliore nota quae itidem sunt in superioribus in postremis etiam visuntur sed degeneri conditione et adulterata ut sic dixerim naturardquo

145

O calor eacute em nosso mundo qualidade elementar nos ceacuteus

virtude caloriacutefica nas mentes angeacutelicas Ideia de calor Ou com

mais precisatildeo no mundo inferior o fogo eacute elemento o sol eacute o

fogo do ceacuteu na regiatildeo ultramundana o fogo seraacutefico eacute Intelecto

[] O fogo elementar queima o fogo celeste vivifica o fogo

supraceleste ama474

A escolha das palavras acima natildeo eacute feita ao acaso A anaacutelise do Gecircnesis feita

por Pico releva que a escolha das palavras ali empregadas para descrever a Criaccedilatildeo

natildeo eacute tampouco aleatoacuteria mas fruto da intenccedilatildeo em revelar verdades que natildeo

poderiam ser explicitadas de outra forma A eleiccedilatildeo do redator biacuteblico por palavras

simples ligadas aos elementos permitiria sua adequaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees em

virtude de seus significados metafoacutericos Assim conforme explica no Segundo

Proecircmio ldquoteria tratado Moiseacutes de cada um dos mundos de forma que nas mesmas

palavras e no mesmo contexto pudesse tratar de todosrdquo475 Eis a razatildeo da utilizaccedilatildeo de

certas palavras (no Gecircnesis) como ceacuteu terra aacutegua e luz A utilizaccedilatildeo de uma

linguagem filosoacutefica para tratar da Criaccedilatildeo com termos anaacutelogos a ldquocausa agenterdquo

ldquomateacuteriardquo ldquoqualidaderdquo e ldquoformardquo apenas serviriam para descrever o mundo

corruptiacutevel mas natildeo os demais Infere Pico que esse eacute um ldquosinal da admiraacutevel

habilidaderdquo de Moiseacutes na medida em que ele se serviu de determinados termos e os

dispocircs em uma ordem conveniente para representar todos os mundos ldquoassim no

Gecircnesis palavras contexto e ordem conveacutem plenamente a ilustrar os segredos de

todos os mundos e de toda a naturezardquo476

No percurso de suas expositiones o tema dos elementos eacute explorado por Pico

que descreve sua manifestaccedilatildeo em cada um dos mundos em oitavas diferenciadas Eacute

provaacutevel que uma de suas fontes principais para a reflexatildeo tenha sido Proclo e o Liber

de Causis que levara seu mestre Alemanno a escrever uma obra com o mesmo

conteuacutedo477 Abraatildeo Yaguel tempos depois retomaria o assunto reafirmando de

forma mais clara que os quatro elementos natildeo satildeo encontrados apenas no mundo

inferior mas existem igualmente nos corpos celestes e nas inteligecircncias separadas e

ainda ldquono que estaacute acima deles no arqueacutetipo do mundo a Causa de todas as Causas e

o Princiacutepio de todos os Princiacutepiosrdquo Contudo elucida o rabino no mundo sublunar

satildeo encontrados ldquocomo dejetos e mateacuteriardquo no ceacuteu satildeo potecircncias ou virtudes nos

mundos superiores satildeo formas arquetiacutepicas ldquomais perfeitas que no ceacuteurdquo478

474 Heptaplus P2 pp188-190 ldquo[] est apud nos calor qualitas elementaris est in caelestibus virtus

excalfactoria est in angelicis mentibus idea caloris Dicam aliquid expressius est apud nos ignis quod est elementum Sol ignis in caelo est est in regione ultramundana ignis saraphicus intellectus Sed vide quid differant Elementaris urit caelestis vivificat supercaelestis amatrdquo

475 Heptaplus P2 p195 476 Heptaplus Livro II ldquoSobre o Mundo Celesterdquo 477 A traduccedilatildeo aacuterabe de alguns trechos do Elementos de Teologia de Proclo conhecida como Liber de Causis

foi atribuiacuteda por muito tempo de forma errocircnea a Aristoacuteteles Sobre a relaccedilatildeo da obra de Alemanno Minkhat Yehudaacute e de outros textos anteriores que tratam do tema com o Liber de Causis veja-se IDEL 2008b p 509

478 Abraatildeo YAGUEL Beit Yaar haLevanon in Manuscrito de Oxford 1304 f 6r-6v (apud IDEL 2008b pp 512-513) Infere Idel que o texto de Yaguel em sua abordagem dos distintos estados dos quatro elementos primaacuterios apresenta noccedilotildees neoplatocircnicas que condizem com sua visatildeo sobre a essecircncia dos mundos noccedilotildees fortemente utilizadas por Alemanno

146

Para um melhor entendimento da mensagem do Heptaplus faz-se necessaacuterio

adentrar nas conceituaccedilotildees dos mundos manifestos segundo a miacutestica hebraica Em

uma passagem do Gecircnesis (Secircfer Bereshit) tem-se a revelaccedilatildeo da existecircncia de trecircs

mundos sob o prisma cabaliacutestico ldquoEntatildeo formou Deus o homem do poacute da terra e

soprou-lhe (ruach) nas narinas o focirclego de vida (neshamaacute) e o homem tornou-se

uma alma vivente (nefesh)rdquo479 O enunciado encerra trecircs princiacutepios que podem ser

relacionados tanto a partes concernentes agrave triacuteplice integridade do homem quanto agrave

existecircncia de trecircs mundos em sentido cosmoloacutegico Os trecircs princiacutepios satildeo Neshamaacute

o princiacutepio superior atinente ao Espiacuterito e agrave esfera das Inteligecircncias mais elevadas

Ruach o princiacutepio mediano relativo agrave Alma e agrave hierarquia dos seres astrais e

Nefesh o princiacutepio inferior relativo ao corpo vital e ao plano fiacutesico480 Entretanto no

seacuteculo XII o Zohar mencionaria quatro mundos acrescentando aos trecircs do Gecircnesis o

elemento relacionado diretamente agrave divindade Assim estabelecem-se sob registro

cabaliacutestico quatro concepccedilotildees a saber (a) o mundo da Emanaccedilatildeo do princiacutepio divino

(Olam HaAtzilut) (b) o mundo da Criaccedilatildeo (Olam HaBriaacute) no qual o homem

contemplativo colhe revelaccedilotildees atraveacutes do princiacutepio neshamaacute (c) o mundo da

Formaccedilatildeo (Olam HaYetsiraacute) relacionado a ruach e (d) o mundo da Produccedilatildeo (Olam

HaAssiaacute) correspondente a nefesh481

A quaacutedrupla concepccedilatildeo de existecircncia eacute extraiacuteda outrossim a partir de outra

passagem em Isaiacuteas ldquoa todos os que satildeo chamados pelo meu nome e os que criei

para a minha gloacuteria eu os formei e tambeacutem eu os fizrdquo482 Os cabalistas colhem nesse

versiacuteculo indicaccedilotildees das quatro dimensotildees ou reinos ndash partindo do divino emanente

e prosseguindo com os outros trecircs em ordem hieraacuterquica decrescente com suas

denominaccedilotildees inspiradas naquela sentenccedila os respectivos mundos da Criaccedilatildeo da

Formaccedilatildeo e da Realizaccedilatildeo conforme paraacutegrafo anterior Esses nomes indicam a

transformaccedilatildeo do tipo de influxo com as quais as Sefirot governam o mundo A

tradiccedilatildeo miacutestica associa a esses mundos as trecircs reparticcedilotildees da antiga cosmogonia

rabiacutenica Assim na Criaccedilatildeo Briaacute coloca-se o Trono da Gloacuteria ou a Ideia original da

Criaccedilatildeo onde se encontram as formas arquetiacutepicas e a dimensatildeo angeacutelica mais

elevada483 Na Formaccedilatildeo Yetsiraacute tambeacutem habitada por hostes angelicais a Ideia

adquire forma a mateacuteria astral se compotildee e a separaccedilatildeo se distingue em elementos

479 Gecircnesis 27 Encontram-se traduccedilotildees similares para dois dos termos hebraicos presentes na passagem

mencionada A palavra ruach significa espiacuterito e sopro de Deus neshamaacute eacute traduzido por ldquofocirclego de vidardquo e tambeacutem ldquosopro de Deusrdquo O paralelismo entre o ldquoespiacuterito de Deusrdquo e ldquoo sopro do Todo-poderosordquo eacute frequente na Biacuteblia

480 LORENZ Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 p60 481 LORENZ opcit p60 SENDER opcit pp 71-72 482 Isaiacuteas 437 483 LORENZ (opcit p61 ss) coloca na dimensatildeo da Criaccedilatildeo o movimento pelo qual o Espiacuterito saindo de seu

isolamento se manifesta como Espiacuterito em geral preceito da origem da multiplicidade A utilizaccedilatildeo do termo ldquoIdeiardquo que remete ao Platonismo eacute de Lorenz provavelmente fundamentado em escritos do rabino Abraatildeo Yaguel que no seacuteculo XVI se dirigia agraves emanaccedilotildees com o termo ldquoIdeiirdquo ldquoa forccedila que se encontra nos entes inferiores pode [igualmente] ser encontrada em maior pureza e limpidez nas Sefirot sagradas e puras que satildeo na verdade as Ideii (sic) para todas as coisasrdquo [] ldquoas Ideii satildeo uma forma simples superior aos corpos agraves almas e agraves inteligecircncias [] na terminologia dos platocircnicos aquela primeira configuraccedilatildeo eacute denominada Ideiirdquo Cf Manuscrito de Oxford 1304 f10v apud IDEL 2008-b pp 513-514

147

relativamente individuais484 Finalmente na Realizaccedilatildeo Assiaacute estabelecem-se os

mundos fiacutesico e sensiacutevel atraveacutes dos reinos mineral vegetal e animal485

Para ilustrar a concepccedilatildeo dos Trecircs Mundos no Heptaplus ndash e em

concomitacircncia confirmar a existecircncia de uma dimensatildeo esoteacuterica dentro da Biacuteblia ndash

Pico expotildee no Segundo Proecircmio uma amostra de como sob as palavras mosaicas

escritas em forma simples encontram-se revelaccedilotildees acerca da triacuteplice realidade

Referindo-se a alguns versiacuteculos biacuteblicos que tratam do ldquotabernaacuteculordquo construiacutedo por

Moiseacutes eacute efetuada uma analogia com os mundos subdivinos ali representados ldquoem

modo muito evidenterdquo como diria o autor486 Segundo a narrativa biacuteblica e como

visto no Capiacutetulo IV Moiseacutes dividira o tabernaacuteculo em trecircs partes cada uma delas

concernentes a um dos mundos A primeira parte sem teto ou proteccedilatildeo alguma

encontrava-se exposta aos vaacuterios fenocircmenos da natureza sendo frequentada por

homens tanto puros quanto impuros aleacutem de animais de toda espeacutecie assim como

no mundo sublunar as contiacutenuas vicissitudes de vida e morte se intercalavam As

outras duas partes do tabernaacuteculo estavam protegidas e imunes agraves questotildees

exteriores assim como ocorre com o mundo celeste e supraceleste As duas partes

eram chamadas ldquosantasrdquo poreacutem a mais protegida era chamada ldquoSanto dos Santosrdquo

Pico esclarece que embora os dois mundos celeste e angeacutelico sejam santos (ldquopois

apoacutes a queda de Luacutecifer natildeo restou pecado acima da luardquo) o mundo angeacutelico eacute

considerado de maior santidade e divindade487 Enquanto na Oratio o tema fora

tratado sob uma perspectiva relacionada ao homem dentro de um cenaacuterio que

contempla processos iniciaacuteticos individuais o enfoque dado no Heptaplus encontra-

se inteiramente voltado agrave confirmaccedilatildeo religiosa dos trecircs mundos em um acircmbito que

chamariacuteamos cosmoloacutegico488

484 Eacute nesse plano que ocorre a separaccedilatildeo dos aspectos masculino e feminino que no mundo antecedente

constituiacuteam uma unidade Isso explica o duplo relato biacuteblico da criaccedilatildeo do homem o primeiro em Gecircnesis 1-27 e o segundo em Gecircnesis 2-7 No primeiro relato ldquoe criou Deus o homem agrave sua imagem criou-o agrave imagem de Deus e criou-os masculino e femininordquo o verbo utilizado eacute ldquocriarrdquo referindo-se agrave Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo No segundo relato onde se lecirc ldquoo Senhor Deus formou pois o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vidardquo o verbo utilizado eacute ldquoformarrdquo o que o situa em Yetsiraacute o mundo da Formaccedilatildeo no qual o ser adquire forma e deixa de ser androacutegino (cf SENDER opcit pp 36-37)

485 As denominaccedilotildees e atribuiccedilotildees de cada Mundo sofrem pequenas variaccedilotildees semacircnticas dependendo do comentarista Uma das principais divergecircncias que podem ser encontradas refere-se agrave colocaccedilatildeo do sistema planetaacuterio que para alguns faz parte do Mundo da Formaccedilatildeo e para outros do mundo da Realizaccedilatildeo em razatildeo de sua materialidade ndash o que natildeo deixa de fazer sentido Veja-se IDEL 2008b pp 512-513 SCHOLEM 1978 p90 SENDER opcit pp 34-39 BUSI opcit p 19

486 Heptaplus P2 ldquoHoc non praetermiserim figuratos hos mundos trecircs a Mose evidentissime in admirabilis illius tabernaculi sui constructionerdquo Algumas passagens da Biacuteblia tratam do tema da construccedilatildeo do Tabernaacuteculo Em Ecircxodo 25 8-9 o Senhor daacute ordens a Moiseacutes para construir o Templo ou Tabernaacuteculo O Tabernaacuteculo (em hebraico mishkan ldquomoradiardquo ldquotenda da congregaccedilatildeordquo ou ldquosantuaacuterio conforme Ecircxodo 25 8) era a tenda usada pelos israelitas como lugar de adoraccedilatildeo enquanto viajavam pelo deserto Em Ecircxodo (29 42-46) o Senhor disse a Moiseacutes que seria no Tabernaacuteculo que Ele desceria para falar com ele e com Seu povo A tenda onde Moiseacutes se encontrava inicialmente com o Senhor foi armada fora do arraial (Ecircxodo 33 7) pois o povo tinha pecado e o Senhor lhe disse que natildeo mais seguiria no meio deles O Tabernaacuteculo era tambeacutem chamado de ldquotenda do Testemunhordquo porque nele estava guardado o Testemunho ou as taacutebuas da Lei (Ecircxodo 38 21 Nuacutemeros 1 50) Mais tarde o Tabernaacuteculo passou a ser conhecido como ldquoa Casa do Senhorrdquo (Deuteronocircmio 23 18) No lugar mais interior ficava o recinto conhecido como o ldquoSanto dos Santosrdquo pois aiacute era o local em que era colocada a arca e onde apenas o sumo sacerdote poderia entrar

487 Heptaplus P2 ldquoAmbae item sanctitatis nomine honestatae ita tamen ut quae erat secretior sancti sanctorum reliqua sancti tantum titulo decoraretur sicuti quamvis et caelestis et angelicus mundus uterque sanctus quoniam supra lunam post Luciferi casum nec macula nec peccatum aut est aut esse potest angelicus tamen caelesti longe sanctior et divinior habeturrdquo

488 A abordagem do tabernaacuteculo feita por Pico estaacute muito proacutexima daquela de alguns cabalistas que o italiano conheceu direta ou indiretamente como observou Chaim WIRSZUBSKI (Pic de la Mirandole et la Cabale 2007

148

Outra interpretaccedilatildeo do tema havia sido realizada pelo mestre de Pico Yohanan

Alemanno Ele encontrara paralelos entre a mesma narrativa biacuteblica e a questatildeo das

emanaccedilotildees sefiroacuteticas Em seu Collectanaea o tabernaacuteculo eacute descrito como

necessaacuterio para proteger os vasos que receberiam as emanaccedilotildees pois ldquoo povo havia

sido educado para crer na possibilidade de causar o descenso das forccedilas espirituais e

das emanaccedilotildees provenientes das alturas por meio de preparativos feitos pelo homem

para tal propoacutesito exatamente como quando Moiseacutes preparou o bezerro de ourordquo489

Embora Pico natildeo fale diretamente desse tipo de ritual a influecircncia de Alemanno

sobre ele eacute sabida O tabernaacuteculo eacute descrito portanto como um talismatilde complexo

que guarda e causa o descenso das forccedilas espirituais sendo uma das formas maacutegicas

descritas no Capiacutetulo anterior Ao descrever tal evento o mestre rabino se remete a

Moiseacutes como a um operador da Cabala Teuacutergica relacionando as emanaccedilotildees

sefiroacuteticas a ldquocanaisrdquo de transmissatildeo ldquoOs cabalistas acreditam que Moiseacutes tinha

conhecimento do mundo espiritual e das Sefirot [] e sabia como direcionar seus

pensamentos e aperfeiccediloar o efluxo divino que os cabalistas chamam de canaisrdquo490

Alemanno afirma ainda que o Profeta teria dito ldquolsquoascenderei ao Senhor para receber

instruccedilatildeo detalhada acerca dos preceitos pertinentes a duas instituiccedilotildeesrsquo ndash uma delas

salvaguarda o poder receptivo e diz respeito ao Tabernaacuteculo e aos seus vasosrdquo491 As

especulaccedilotildees de Alemanno conjugam o nuacutecleo conceitual cabaliacutestico ndash as emanaccedilotildees

sefiroacuteticas ndash com a geografia dos trecircs mundos depreendendo da figura de Moiseacutes o

arqueacutetipo do mago possuidor do domiacutenio das Sefirot ldquoa accedilatildeo de Moiseacutes fazia com

que os canais dirigissem a emanaccedilatildeo sobre o mundo inferior de acordo com a sua

vontaderdquo492 A ampla defesa de Moiseacutes realizada no Heptaplus por sua vez eacute

emblemaacutetica de uma percepccedilatildeo que somente se torna possiacutevel agrave luz da Cabala

Extaacutetica Pico leitor do cabalista Natan Saadia certamente via naquele personagem o

protoacutetipo do ser que realizou a uacuteltima etapa do processo extaacutetico algueacutem que ldquofoi

transformado em um ser universal depois de ser um ponto central particularrdquo

estabelecendo-se assim como o objetivo do homem inferior ldquoque ascende pela

virtude do poder do Nomerdquo493

As duas interpretaccedilotildees da passagem biacuteblica do tabernaacuteculo podem ser

inseridas em algum ou alguns dos niacuteveis hermenecircuticos atribuiacutedos pelos cabalistas agraves

Escrituras A necessidade de se manter oculta a Revelaccedilatildeo deu vazatildeo agrave ocorrecircncia de

graus de significaccedilatildeo dentro do texto biacuteblico que podem ser entendidos como veacuteus a

serem retirados de acordo com o desenvolvimento da percepccedilatildeo do leitor Haacute um

sentido literal chamado Peschat que se refere agrave compreensatildeo superficial e externa

do relato biacuteblico em que a atenccedilatildeo recai sobre o enredo e os personagens No niacutevel

p 401) Ainda sobre o tema da representaccedilatildeo do tabernaacuteculo em Pico veja-se Newton BIGNOTTO Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 pp146-47

489 ALEMANNO Manuscrito de Oxford 2234 f 22v Sobre a concepccedilatildeo do bezerro de ouro utilizado para causar o descenso das forccedilas veja-se IDEL (2008-b np 481)

490 ALEMANNO ibid f 8v IDEL atenta para a utilizaccedilatildeo do termo ldquocanaisrdquo Moiseacutes natildeo restaura a divindade mas sim os canais que transmitem as emanaccedilotildees divinas (2008-b np 480)

491 ALEMANNO ibid f 201b 492 ALEMANNO ibid f 8v apud BUSI Qabbalah 2011 p29 493 A passagem estaacute no livro Schaarei Tzedek do disciacutepulo direto do cabalista italiano Abulafia Natan Saadia e

fundamenta-se em Ezequiel I 26 (cf IDEL 2008-a p28)

149

chamado Remez embora preservada a interpretaccedilatildeo literal eacute maior a capacidade

abstrativa o enredo deixa de ser o objetivo principal da leitura e extrai-se um sentido

alegoacuterico A interpretaccedilatildeo talmuacutedica e midraacuteshica se refere a Derashaacute niacutevel que

indica um procedimento eacutetico ou religioso do qual deve ser extraiacutedo um

ldquoensinamentordquo Atraveacutes do relato biacuteblico o homem deduz o que eacute desejaacutevel ou

indesejaacutevel para o Divino o que eacute correto ou incorreto nas relaccedilotildees humanas

Finalmente no niacutevel chamado Sod que significa ldquosegredordquo eacute revelado o sentido

miacutestico que traz a revelaccedilatildeo dos mundos emanados e de seus habitantes O acesso do

miacutestico ao uacuteltimo niacutevel a partir da compreensatildeo de cada uma de suas dimensotildees

anteriores nunca eacute faacutecil ou raacutepido por tratar-se de um caminho cuja chave eacute

cifrada494

Retomando a concepccedilatildeo cabaliacutestica dos Quatro Mundos outra classificaccedilatildeo

bastante usual estabelece o mundo da Emanaccedilatildeo Atzilut em uma unidade distinta

dos demais enquanto os outros trecircs formam ndash como mundos em separaccedilatildeo ndash um

sistema triacuteplice tal conjunto conceitual alude ao aspecto duplo da Divindade ao

mesmo tempo imanente e transcendente495 A trindade derivando-se da unidade e

tendendo a reintegrar-se nela forma um ciclo quaternaacuterio que em tudo se manifesta

Ou em outras palavras os trecircs mundos manifestos somados agrave dimensatildeo primordial

do Absoluto integram os quatro mundos previstos no Zohar A divisatildeo apresentada

no Heptaplus encontra-se em analogia com a concepccedilatildeo inaugural de trecircs mundos

previstos na literatura cabaliacutestica contudo se for levada em conta a divisatildeo

quaternaacuteria do Zohar perceber-se-aacute que o meacutetodo piquiano natildeo espelha tal forma de

particcedilatildeo ndash natildeo por divergecircncia doutrinaacuteria mas em razatildeo de uma omissatildeo e de um

acreacutescimo Conforme as palavras do autor seu meacutetodo parte de ldquouma quaacutedrupla

exposiccedilatildeo de todo o texto mosaicordquo de maneira que em primeiro lugar eacute

interpretado ldquoo que escrito sobre o mundo angeacutelico e invisiacutevel em segundo lugar

como no primeiro cas0 sobre o mundo celeste depois sobre o sublunar e

corruptiacutevel em quarto sobre a natureza do homemrdquo496 Observe-se que o quarto

mundo de Pico sua principal originalidade em relaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees do

Gecircnesis refere-se ao homem ndash esse eacute seu acreacutescimo Embora a literatura cabaliacutestica

apresente vaacuterias analogias dos trecircs mundos com o aspecto triacuteplice do homem essas

satildeo um tanto distintas do tipo de interpretaccedilatildeo feita por Pico497 Por sua vez a divisatildeo

494 SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1978 p72 BUSI La Qabbalah 2011 pp10-11 SENDER pp15-16

A ideia da quaacutedrupla interpretaccedilatildeo do texto biacuteblico remete pelo menos ao seacuteculo XIII quando Moshe de Leacuteon o empregou em alguns matizes de seu significado De Leacuteon em um de seus textos mais tardios compara a Toraacute a uma noz composta de casca e cerne cujo acesso aos niacuteveis interiores se daacute atraveacutes do conhecimento das diferentes formas interpretativas Vejam-se maiores detalhes em SCHOLEM que discute amplamente a questatildeo do chamado Pardes com os vaacuterios significados histoacutericos do termo na seccedilatildeo II de seu livro Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (New York 1960)

495 SENDER opcit p37 Essa eacute uma visatildeo que se aproxima das concepccedilotildees neoplatocircnicas 496 Heptaplus P2 p194 ldquoUnde quadruplex statim totius mosaicae lectionis expositio nascitur ut primo loco

quicquid ibi est scriptum de angelico mundo et invisibili nullam omnino de aliis mentionem habentes enarremus Secundo loco itidem omnia de caelesti mundo tum de sublunari hoc et corruptibili quarto de natura hominisrdquo

497 O Judaiacutesmo admite trecircs princiacutepios para a alma humana Nefesh forccedila de vida inata presente em homens e animais permite a atividade coordenada do corpo fisico ao qual estaacute intimamente ligada o corpo sem nefesh significa a morte corresponde no homem ao mundo manifesto de Assiaacute Ruach niacutevel de alma acima de nefesh relaciona-se tambeacutem agraves emoccedilotildees tendo certa independecircncia do corpo fiacutesico ruach pode abandonaacute-lo nos estados oniacutericos ou contemplativos trazendo impressotildees de Yetsiraacute ao qual corresponde Neshamaacute niacutevel mais

150

dos quatro mundos na Cabala inicia-se com o Atzilut mundo da Emanaccedilatildeo omitido

por Pico no Heptaplus A omissatildeo natildeo se refere a qualquer tipo de contraste

doutrinaacuterio mas apenas agrave utilizaccedilatildeo de um estilo hermenecircutico que se desenrola a

partir dos mundos manifestos de forma a concordaacute-lo com o modelo do Gecircnesis

Vejamos de forma mais aproximada

O muacuteltiplo dispotildee-se em trecircs reinos elementar celeste e

angeacutelico que se desvelam como realidade mundana

inteligecircncias que governam e animam esferas e mundos498

Na passagem acima extraiacuteda dos Comentaacuterios aos Salmos verifica-se que

Pico aborda os trecircs mundos manifestos inserindo-os na dimensatildeo do muacuteltiplo Tal

informaccedilatildeo por simetria loacutegica remete agrave existecircncia de uma dimensatildeo de unidade A

Unidade ou Absoluto existente acima do reino angeacutelico perpassa toda a obra

piquiana e para Ela toda sua filosofia converge Admitindo-se essa afirmaccedilatildeo natildeo

haveria portanto a necessidade de Pico atribuir uma particular ldquoexpositiordquo agravequela

dimensatildeo de existecircncia Considerando-se que o reino angeacutelico eacute parte do muacuteltiplo lecirc-

se no Livro III que trata do ldquoMundo Angeacutelico e Invisiacutevelrdquo

Tudo aquilo que no anjo eacute imperfeito seraacute atribuiacutedo agrave sua

natureza muacuteltipla A imperfeiccedilatildeo [que existe no anjo] existe na

qualidade de multiplicidade enquanto a capacidade de elevaccedilatildeo

cumprida eacute devida agrave unidade que se lhe acosta do Alto Deus eacute a

Unidade de onde o anjo deriva seu ser sua vida e toda

perfeiccedilatildeo499

Assim a presenccedila da Unidade emanatoacuteria acima dos trecircs mundos embora natildeo

expressa diretamente eacute extraiacuteda das passagens que apontam para os aspectos de

gradaccedilatildeo no interior da dimensatildeo da multiplicidade A verificaccedilatildeo do terceiro Livro

do Heptaplus certifica que Pico natildeo suprimiu o mundo emanatoacuterio de Atzilut em sua

interpretaccedilatildeo dos momentos sucessivos da expansatildeo divina A sequecircncia entrevecirc a

analogia existente entre os nuacutemeros depreendidos de leituras cabaliacutesticas e

pitagoacutericas500 e o reino angeacutelico conforme estabelecido por Pseudo Dioniso ndash ambos

os grupos colocados como elementos intermediaacuterios entre o Uno e os mundos

inferiores

sutil e superior da alma eacute o princiacutepio que a liga ao plano da divindade e responsaacutevel pelo grau mais elevado de discernimento no homem tanto intelectual quanto espiritual circulando em Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo (cf SENDER 1992 p69 ss) Para Pico no homem ocorre o misto dos elementos ldquoonde reside o espiacuterito celeste a alma vegetal os sentidos dos brutos a razatildeo a mente angeacutelica e a imagem de Deusrdquo (Heptaplus P2 p193) A exposiccedilatildeo sobre a natureza ou ldquoreinordquo do homem eacute feita no Livro IV do Heptaplus

498 PICO Expositiones in Psalmos (trad Antonino Raspanti-Giacomo Raspanti Firenze 1997) Sobre os trecircs mundos elementaris coelestis et intellectuali veja-se Livro XLVII pp14-16

499 Heptaplus Livro III ldquoDe Mundo Angelico et Invisibilirdquo 1 p250 ldquoQuare quicquid in angelo imperfectum est angelicae multitudini quam inde habet unde est numerus idest creatura [] Utrumque igitur horum evenit angelo qua multitudo est Reliquum ut absolutio illi et consummatio ab accedente desuper fiat unitate Deus autem unitas unde ad angelum et esse et vita et omnis perfectio derivaturrdquo

500 Cf Heptaplus III 1 p249 ldquoRefiramos isso agraves coisas divinas segundo o costume pitagoacutericordquo

151

Tudo aquilo que depois da unidade eacute nuacutemero eacute perfeito e

completo por via da unidade A unidade de tudo simples por si

perfeita natildeo sai de si na sua indivisibilidade simples e solitaacuteria

adere a si mesma pois que basta a si [] O nuacutemero sendo por

sua proacutepria natureza muacuteltiplo eacute simples porquanto eacute capaz em

graccedila da unidade E embora cada nuacutemero que se afaste da

unidade caia em uma multiplicidade sempre mais extensa e em

uma sempre maior variedade e composiccedilatildeo de partes natildeo haacute

nada todavia tatildeo proacuteximo agrave unidade quanto tal multiplicidade

provida de unidade apenas acidentalmente natildeo por sua

natureza mas por composiccedilatildeo501

O desenvolvimento do tema conteacutem o modelo de emanaccedilatildeo proveniente de

Atzilut O anjo natildeo eacute unidade por si soacute do contraacuterio seria o Uno Resta que o anjo seja

nuacutemero (ldquoreliquum ut angelus numerus sitrdquo) E sendo nuacutemero ldquopor um aspecto eacute

muacuteltiplo e por outro eacute multiplicidade unificadardquo A descriccedilatildeo prossegue elucidando

que no anjo encontra-se uma dupla imperfeiccedilatildeo uma consiste no fato de natildeo ser o

proacuteprio Ser mas apenas uma essecircncia que pertence ao Ser por participaccedilatildeo a outra

se encontra no fato de natildeo ser a proacutepria Inteligecircncia mas sim participar agrave

Inteligecircncia porquanto sua natureza eacute intelecto capaz de entender Ambas as

imperfeiccedilotildees satildeo no anjo segundo sua multiplicidade enquanto a capacidade de

elevaccedilatildeo eacute devida agrave unidade que se lhe aproxima do alto Pico parece no entanto

atribuir ao nuacutemero uma possibilidade de perfeiccedilatildeo natildeo atribuiacuteda ao anjo ldquocada

nuacutemero eacute imperfeito enquanto multiplicidade embora perfeito enquanto

unidaderdquo502 A dimensatildeo angeacutelica mostra-se um dos momentos de difusatildeo do divino

um dos instrumentos atraveacutes dos quais a unidade se revela Sob tal perspectiva os

anjos as Sefirot as numeraccedilotildees se encontram em perene circularidade interligando

o Uno e o muacuteltiplo Em sua exposiccedilatildeo sobre os Anjos Pico cita fontes concordantes

como Averroacuteis (ldquoentre intelecto e inteligiacutevel cria-se uma unidade maior que entre

mateacuteria e formardquo) e Maimocircnides (ldquoa verdade se colhe de forma mais perfeita nos

anjos que no homemrdquo) para concluir que as espeacutecies inteligiacuteveis satildeo unidas na mente

angeacutelica por meio de uma ligaccedilatildeo eterna natildeo temporacircnea como ocorre no intelecto

humano503

A descriccedilatildeo acima natildeo apenas confirma a natildeo-supressatildeo do mundo da

emanaccedilatildeo primordial na obra piquiana como daacute-nos um modelo do meacutetodo

hermenecircutico utilizado para cada um dos mundos interpretados no Heptaplus Assim

como no Livro III eacute descrita a natureza angeacutelica e sua relaccedilatildeo com os outros planos ndash

501 Heptaplus III 1 p248 ldquoQuicquid est post unitatem numerus unitate perfectus et consummatus est Sola

unitas omnino simplex a se perfecta non egreditur se sed individua simplicitate et solitaria sibi cohaeret quia superest sibi nullius indiga plena suis divitiis Numerus sua natura cum sit multitudo unitatis beneficio sit simplex quantum ipse simplicitatis capax quamquam autem numerus quisque quo magis ab unitate sit procul in maiorem semper incidat multitudinem plusque in eo dissimilitudinis plus partium plus compositurae sit nullus est tamen ita unitati proximus qui multitudo non sit adventitiam habens unitatem unaque non natura sed compositionerdquo

502 Heptaplus III 1 p251 ldquoEst autem omnis numerus eatenus imperfectus quatenus multitudo perfectus autem quatenus unusrdquo

503 Heptaplus III 2 p255 A passagem de Averroacuteis estaacute em De an Beat IX 152 ab

152

em acircmbito de uma geografia universal ndash os demais Livros da obra descrevem a

natureza de cada particular mundo tratado em perfeita harmonia com os mundos

previstos na Cabala

3 A Occlusa Sapientia

Verificou-se no Capiacutetulo anterior a existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as letras

hebraicas e significados ocultos vislumbrada por Pico ainda em rsquo86 As

caracteriacutesticas inerentes ao idioma hebraico satildeo afirmadas no fechamento de suas

Conclusiones Philosophicae ldquose existe uma liacutengua originaacuteria e natildeo casual resulta

evidente sobre a base das muacuteltiplas conjecturas que essa eacute a liacutengua hebraicardquo504

Segundo essa proposiccedilatildeo o hebraico apresentaria uma relaccedilatildeo privilegiada com a

verdade instituindo com as coisas uma relaccedilatildeo imediata e necessaacuteria e natildeo mediata

como ocorre com as outras liacutenguas505 Pico percebera que as combinaccedilotildees numeacutericas

e as expressotildees linguiacutesticas apresentam iacutentimas articulaccedilotildees loacutegicas atestando natildeo

apenas a existecircncia de uma racionalidade escondida sob as formas como um processo

de manifestaccedilatildeo divina ldquoos nuacutemeros nos abrem uma estrada para a investigaccedilatildeo e

compreensatildeo de cada coisardquo506 As letras do alfabeto hebraico seriam nesse sentido

apenas ldquoveacuteusrdquo que selam o pensamento divino pedindo que seja efetuada uma

elevaccedilatildeo da letra ao espiacuterito Essa a razatildeo como ainda relembra Pico de Oriacutegenes

evitar traduzir certos vocaacutebulos hebraicos porquanto cada traduccedilatildeo representa uma

despotencializaccedilatildeo da palavra sagrada507

Na inteira Lei natildeo existem letras que em suas formas

conjunccedilotildees separaccedilotildees flexotildees direccedilotildees defeitos e excessos

grandezas maiores ou menores e em seu coroamento

fechamento abertura e ordem natildeo remetam aos segredos das

Dez Numeraccedilotildees [as Sefirot]508

A valorizaccedilatildeo da letra hebraica como fonte criadora focircra registrada pela

primeira vez no Secircfer Yetsiraacute como foi visto Cada uma das 22 letras representa um

princiacutepio gerador de energia que encerra uma chave cognitiva encontrando cor-

respondecircncia com os elementos formados por seu intermeacutedio de forma que toda a

criaccedilatildeo encontra-se relacionada a um fenocircmeno de linguagem Assim como cada

504 Concl (II) II 80 (p77) ldquoSi qua est lingua prima et non casualis illam esse hebraicam multis patet

coniecturisrdquo 505 A deduccedilatildeo eacute de Albano BIONDI tradutor das Conclusiones em seus comentaacuterios introdutoacuterios

(Conclusiones Nongentae ndash Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXIX) 506 PICO Conclusiones de mathematicis (II) VII 11 ldquoPer numeros habetur via ad omnis scibilis

investigationem et intellectionemrdquo 507 Para um aprofundamento da temaacutetica das letras hebraicas e sua recepccedilatildeo por Pico leia-se Eugenio GARIN

(2011 pp 145-49) 508 PICO Concl (I) IX 33 (p60) ldquoNullae sunt litterae in tota lege quae in formis coniunctionibus

separationibus tortuositate directione defectu superabundantis minoritate maioritate coronatione clausura apertura et ordine decem numerationum secreta non manifestentrdquo

153

sefiraacute cada letra encerra um poder criador proacuteprio recebido a partir da divindade e

emanado em direccedilatildeo agrave mateacuteria e em sentido contraacuterio permitindo o acesso e a

compreensatildeo do operador apoacutes o justo processo aos elementos inteligiacuteveis que

participam da divindade atraveacutes de sua chave cognitiva Esse eacute o significado

expresso no Secircfer Yetsiraacute de ldquocom as letras descreva a alma de tudo o que foi

formado e tudo o que seraacute formado no futurordquo509

A narrativa do Gecircnesis ndash em que Deus com uma seacuterie de ordenamentos daacute

vida agrave criaccedilatildeo ndash eacute considerada para os cabalistas testemunho fiel de como a

realidade foi desencadeada pela liacutengua divina Com a mesma ordem de letras que se

sucedem no texto biacuteblico realiza-se o desenho constitutivo da realidade que exprime

o plano divino no domiacutenio fiacutesico da criaccedilatildeo510 Conforme ainda o Secircfer Yetsiraacute

ldquotudo o que eacute formado emana de um nomerdquo511

De fato fundamentada sobre a relaccedilatildeo existente entre as letras hebraicas e a

criaccedilatildeo desenvolveu-se ao longo dos seacuteculos uma longa tradiccedilatildeo exegeacutetica voltada a

aprimorar uma habilidade que permitisse aos iniciados penetrar aleacutem da superfiacutecie

das palavras e descobrir dentro das Escrituras os segredos de toda a criaccedilatildeo512 Para

alcanccedilar os significados ocultos os cabalistas empregam algumas teacutecnicas

relacionadas a operaccedilotildees com as letras513 Os meacutetodos mais utilizados para descobrir

significaccedilotildees hermenecircuticas fundamentam-se no modelo de Abulafia que

compreendia trecircs teacutecnicas baacutesicas o notarico a gematria e a temuraacute A primeira

cujo nome proveacutem da palavra latina ldquonotariusrdquo baseia-se na teacutecnica que analisa

como formar novas palavras partindo das letras iniciais meacutedias ou finais de outras

palavras Na segunda cada letra hebraica eacute substituiacuteda por seu correspondente valor

numeacuterico interpretando-se as palavras atraveacutes dos nuacutemeros resultantes das somas

de cada letra Conhecendo-se o valor numeacuterico de uma palavra ou frase poderatildeo ser

criadas conexotildees com palavras ou frases que tenham o mesmo valor estabelecendo

com elas algumas analogias A temuraacute por sua vez eacute a arte do anagrama ou seja de

permutar a posiccedilatildeo das letras em uma mesma palavra Isso significa que uma palavra

pode ser decomposta e recomposta para formar novas palavras que revelem o

significado completo da primeira514

509 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 510 BUSI 2011 p 23-24 511 Secircfer Yetsiraacute II 512 BUSI ibid p 23-24 GARIN 2011 p146 513 Como explica BUSI (ibid p 23) a mesma palavra hebraica seraf indica tanto a transmutaccedilatildeo alquiacutemica dos

metais quanto a permutaccedilatildeo das letras do alfabeto ldquoAssim como o alquimista escolhe os liames da mateacuteria para procurar nos metais menos nobres o segredo do ouro assim o exegeta hebreu transforma a ordem das letras para descobrir por traacutes do sentido aparente o verdadeiro significado do textordquo

514 Cf Guido MASSETANI La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola 1897 pp 64-65 Um modelo de teacutecnica cabaliacutestica pode ser encontrado no Salmo 34 no qual cada verso inicia com uma das letras do alfabeto hebraico em sucessatildeo A sua funccedilatildeo cabaliacutestica estaacute esclarecida na obra Corona del buon nome de Avraham de Colonia que afirma seu valor cognitivo em relaccedilatildeo ao nome impronunciaacutevel de Deus o Tetragramma e agraves 10 Sefirot Esse aspecto impressiona Pico que utiliza o texto traduzido por Flavio Mitridate (FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) Outros exemplos de uso da gematria satildeo apresentados por Tova SENDER em seu capiacutetulo ldquoGuematriardquo (1992 p21)

154

Pico debruccedilou-se sobre algumas dentre aquelas teacutecnicas ndash como se lecirc na

Apologia e em algumas de suas Teses ndash515 e tentou permutar nomes inicialmente

atraveacutes do procedimento da ars combinatoria praticado por Ramon Llull no seacuteculo

XII que apresentava certa diferenccedila com os outros meacutetodos aprendidos Estava certo

que aquele que possuiacutesse o conhecimento da ordenaccedilatildeo da liacutengua hebraica

aprendendo a mantecirc-la ldquoem maneira analoacutegicardquo nos vaacuterios campos do saber

possuiria ldquonorma e regra para a perfeita descoberta de qualquer objeto possiacutevel do

saberrdquo conforme havia deixado claro em sua conclusio paradoxal 55516 A teacutecnica com

a qual melhor se adaptou e conseguiu obter resultados foi a temuraacute que lhe permitiu

confirmar alguns dogmas e colher descobertas originais como informam algumas

teses cabaliacutesticas

Se no nome de Abraatildeo natildeo tivesse sido inserida a letra He

Abraatildeo natildeo teria proliferado517

As letras do nome de Cacodaemon que eacute o Priacutencipe deste

Mundo e as letras do nome do Deus Triagramaacutetico satildeo as

mesmas quem souber fazer a transposiccedilatildeo ordenada inferiraacute

um do outro518

Os sinais da existecircncia de certas chaves secretas apenas esboccedilados nas obras

anteriores eram agora confirmados por Pico na uacuteltima parte do Heptaplus intitulada

ldquoExposiccedilatildeo das primeiras palavras isto eacute lsquoNo Princiacutepiorsquordquo A comprovaccedilatildeo do

meacutetodo cabaliacutestico surpreenderia o proacuteprio autor ldquopara aleacutem de minhas esperanccedilas e

de qualquer convicccedilatildeo encontrei aquilo que nem eu mesmo poderia acreditar ter

encontrado nem outros acreditariam facilmente digo uma coisa maravilhosa

inaudita e inacreditaacutevelrdquo519 Atraveacutes da permutaccedilatildeo de letras reafirmava que nos

cinco livros da lei mosaica estava encerrada a cogniccedilatildeo de todas as artes e da

sabedoria divina e humana ldquoembora dissimulada e oculta entre as mesmas letras

entre as quais a formulaccedilatildeo da lei se compotildeerdquo Agrave diferenccedila de outras obras anteriores

nas quais Pico havia mencionado tais segredos sem revelaacute-los o autor concluiacutea o

periacuteodo com a promessa ldquocomo agora seraacute demonstradordquo520

515 Cf Apologia (I p175) Conclusiones magicae secundum opinionem propriam 10 19 20 21 e 22

Conclusiones Cabalisticae Secundum secretam doctrinam 33 35 Conclusiones Cabalisticae Secundum opinionem propriam 60 70

516 Cf Conclusiones Paradoxae (II) III 55 517 Concl (I) IX 15 (p56) ldquoNisi nomini Abraam litera ה id est ha addita fuisset Abraam non generassetrdquo De

fato conta o Gecircnesis (175) que Abraatildeo e Sara soacute puderam ter filhos apoacutes mudarem os proacuteprios nomes AVRaM ficou AVRaHam e SaRaI ficou SaRaacuteH recebendo os dois a letra Hecirc que representa um dos nomes de Deus assim tornando-se feacuterteis Acerca de tal passagem do Gecircnesis conta Satildeo Jerocircnimo que o nome anterior Abram significa ldquoPai elevadordquo enquanto Abraham significa ldquoPai de muitas naccedilotildeesrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

518 Concl (I) IX 19 (p58) ldquoEaedem sunt literae nominis cacodaemonis qui est princeps mundi huius et nominis Dei Triagrammaton et qui sciuerit ordinare transpositionem deduceret unum ex aliordquo Veja-se em FORNACIARI detalhes metodoloacutegicos das contas efetuadas para analogar um nome ao outro (2009 p79)

519 Heptaplus Expositio Primae Dictionis idest lsquoIn Principiorsquo p376 Igitur praeter spem meam praeter opinionem inveni quod neque inveniens ipse credebam neque credere alii facile potuerunt [] Rem dico mirabilem inauditam et incredibilemrdquo

520 Ibid p374 ldquo[hellip] dissimulatam autem et occultatam in litteris ipsis quibus dictiones legis contextae sunt quo modo nunc declarabimusrdquo

155

Propondo-se dar ao leitor uma ideia do funcionamento do sistema de

interpretaccedilatildeo cabaliacutestico Pico parte do primeiro periacuteodo do Gecircnesis que vai desde

ldquoNo princiacutepiordquo (11) ateacute ldquoe viu Deus a luz que era um bem (14)rdquo ndash constituiacutedo de

cento e trecircs letras hebraicas como observa ndash para efetuar sua anaacutelise Em sua

ldquoaparecircncia comum e vulgarrdquo como informa o Autor ldquotal disposiccedilatildeo de letras forma

apenas a casca de uma essecircncia de misteacuterios conservados dentro do textordquo Contudo

se for realizada a decomposiccedilatildeo daquelas palavras tomadas as mesmas letras em

separado e recompostas em novas palavras que se possam formar ldquosegundo regras

apreendidas dos hebreusrdquo ldquoveremos em plena luz maravilhosas verdades

secretiacutessimas de uma sabedoria conservada a respeito de muitas coisasrdquo Mas

conforme complementa apenas ldquose formos capazes de uma selada sabedoriardquo521 Para

comprovar sua descoberta aos leitores o autor elege apenas uma das palavras que

compotildeem o periacuteodo mencionado suficiente para demonstrar seu intento

Tomando assim a primeira palavra hebraica do Gecircnesis ldquoberesitrdquo que Pico

transcreve em caracteres hebraicos segue-se uma detalhada explicaccedilatildeo de todas as

separaccedilotildees permutaccedilotildees e uniotildees efetuadas entre as letras daquela palavra surgem

novos vocaacutebulos compostos com as letras da palavra inicial dos quais satildeo dados os

significados em latim finalmente as novas palavras satildeo reordenadas em uma nova

expressatildeo da qual emerge ldquoo Pai no Filho e pelo Filho princiacutepio e fim ou seja

quietude criou a cabeccedila o fogo e o fundamento do homem grande com o pacto

bomrdquo522 Note-se que essa inteira oraccedilatildeo eacute o resultado extraiacutedo da resoluccedilatildeo e

recomposiccedilatildeo daquela uacutenica palavra mostrada passo a passo pelo autor523

Embora como infere Pico qualquer cristatildeo seja capaz de compreender o

significado de ldquoo Pai criou no Filho e atraveacutes do Filhordquo natildeo seraacute faacutecil para ldquoos ignaros

em filosofiardquo compreender o significado de ldquocabeccedila fogo e fundamento do homem

521 Ibid p374 ldquoSumamus gratia exempli primam particulam libri Geneseos videlicet ab exordio usque ad

locum ubi est scriptum lsquoEt vidit Deus lucem quod esset bonumrsquo Est tota illa scriptura tribus et centum elementis coagmentata quae eo modo disposita quo ibi sunt dictiones constituunt quas legimus nihil nisi commune et triviale prae se ferentes Corticem scilicet conflat hic litterarum ordo hoc textum medullae interius abditae latentium mysteriorum At vocabulis resolutis elementa eadem divulsa si capiamus et iuxta regulas quas ipsi tradunt quae de eis conflaridictiones possunt rite coagmentemus futurum dicunt ut elucescant nobis si simus capaces occlusae sapientiae mira de rebus multis sapientissima dogmata et si in tota hoc fiat lege tum demum ex elementorum hac quae rite statuatur et positione et nexu erui in lucem omnem doctrinam secretaque omnium liberalium disciplinarumrdquo

522 Heptaplus ibid p 378 ldquoPater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo

523 Veja-se a inteira ordenaccedilatildeo de palavras cf Heptaplus p378 (levando-se em conta que os termos hebraicos estatildeo aqui escritos em ordem inversa agrave original apresentando-se no sentido latino) ldquoDictio illa apud Hebraeos hoc modo scribitur תישארב Ex hac igitur si tertiam litteram primae coniumgamus fit dictio בא idest ab Si geminatae primae secundam addamus fit רבב idest bebar Si praeter primam omnes legamus fit תישאר idest resith Si quartam primae et ultimate connectamus fit שתב idest sciabat Si tres primas quo iacent ordine statuamus fit ארב idest bara Si prima omissa tres sequentes fit שאר idest rosc Si omissis prima et secunda duas sequentes fit שא idest es Si tribus primus omissis quartam ultimae copulemos fit תש idest seth Rursus si secundam primae fit בר idest rab Si post tertiam quintam tum quartam statuamus fit שיא idest hisc Si primas duas duabus ultimas coagmentemus fit תירב idest berith Si ultimam primae fit ultima dictio et duodecima quae est בת idest thob verso quod frequentissimum apud Hebraeos thau in thet elementum Videamus autem quid primo haec latine significent tum quae per ea non ignaris philosophiae de tota natura mysteria revelentur Ab patrem significat bebar in filio et per filium (utrumque enim significat beth praepositio) resit principium sabath quietem et finem bara creavit rosc caput es ignem seth fundamentum rab magni hisc hominis berith foedere tob bono Et totam si ordine consequenti orationem texamus erit huiusmodi Pater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo

156

granderdquo e tampouco de ldquopactordquo ndash termos que encerram cada uma das leis dos

quatro mundos tratados no Heptaplus524 A concepccedilatildeo de ldquohomem granderdquo remete a

Moiseacutes que assim chama o mundo em contraposiccedilatildeo ao homem ldquopequeno mundordquo

Aos outros elementos da oraccedilatildeo Pico faz corresponder os trecircs mundos postulados na

Cabala e na Antiga Filosofia inteligiacutevel celeste e corruptiacutevel Assim em analogia com

o corpo humano ldquopor meio de uma precisa leirdquo a cabeccedila fonte do conhecimento

representa a parte mais alta do mundo correspondente ao mundo angeacutelico ou

inteligiacutevel o fogo princiacutepio de vida e calor ligado ao coraccedilatildeo representa a parte

meacutedia qual o sol no mundo celeste o fundamento ou princiacutepio de geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo representa o mundo sublunar Essas partes no mundo e no homem se

correspondem reciprocamente Ao final da passagem Pico explica

Esse pacto eacute bom porque eacute dirigido e orientado para Deus que eacute

o Bem de forma que assim como o mundo eacute uno na totalidade

de suas partes assim tambeacutem no final possa se tornar uno com

o seu Autor525

A descoberta obtida sob o veacuteu de uma uacutenica palavra satisfaz o autor que natildeo

pretendendo ultrapassar essa conquista admite natildeo ter a experiecircncia necessaacuteria para

se aprofundar em investigaccedilotildees ldquopenso ter feito uma coisa apraziacutevel aos homens de

meu tempo tornando manifesta aquela riqueza de gemas que se me oferece sem

penetrar em seus abismos costeio as margens desse marrdquo526 Se a mesma teacutecnica for

aplicada para toda a Lei induz Pico surgiraacute toda a doutrina e os segredos de todas as

disciplinas liberais Poreacutem adverte ndash mais uma vez ndash ldquose formos capazes de

sabedoria ocultardquo (ldquosi simus capaces occlusae sapientiaerdquo) Pois pode acontecer que

ldquoaproximando-nos de dissolver e compor algumas palavras nasccedilam de nossa

atividade muitos vocaacutebulos e uma variedade de discursos rica de grandes

ensinamentos e profundos significados mas inuacutetil fortuita e despreziacutevel para quem

natildeo tendo apreendido o valor por outra via natildeo possa colher seu sentidordquo527

O caminho de descoberta das verdades veladas nas Escrituras atraveacutes de

qualquer dos meacutetodos indicados eacute o caminho miacutestico sugerido nos chamados Atos

da Criaccedilatildeo Maassecirc Bereshit isto significa que se a Criaccedilatildeo se deu por meio da

linguagem seraacute por meio da linguagem que se deveraacute retornar ao Criador528 Para os

cabalistas a arte combinatoacuteria natildeo eacute mais que uma reconfiguraccedilatildeo da palavra e da

obra de Deus A apreensatildeo da alma presente nas letras passa a ser sob esse prisma

uma das ferramentas que possibilita o regresso do homem agrave Unidade uma concepccedilatildeo

depreendida da especulaccedilatildeo alfabeacutetica de Abulafia529 que certamente se apoiara no

Zohar ldquoOs mandamentos formam o corpo das Escrituras suas vestes satildeo as

524 Cf Heptaplus ibid pp379 381 525 Heptaplus p382 ldquoQuod foedus ideo est bonum quia ad Deum qui est ipsum bonum ita dirigitur et

ordinatur ut quem admodum inter se totus mundus unus ita et cum suo auctore postremo sit unumrdquo 526 Heptaplus p376 527 PICO Heptaplus p377 528 MAGHIDMAN 2014 p108 529 BUSI 2011 p 26

157

narraccedilotildees e finalmente haacute uma almardquo530 O inteiro Heptaplus atraveacutes de seu

comentaacuterio sobre o Gecircnesis pretende provar o ponto de vista de Pico de que a

linguagem cabaliacutestica ou natildeo transcende suas proacuteprias terminologias configurando

um processo cognitivo O seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto por Pico encerra

um princiacutepio metafiacutesico de reciacuteproca contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de realidade entre

si culminando na unificaccedilatildeo com o Absoluto

Imitemos tambeacutem noacutes a santiacutessima alianccedila do mundo de

forma a estarmos unidos entre noacutes por reciacuteproco amor e a

alcanccedilarmos atraveacutes do verdadeiro amor de Deus a feliz

unificaccedilatildeo Nele531

530 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 531 Heptaplus p382 p 382 ldquoImitemur et nos sanctissimum foedus mundi ut et mutua caritate invicem simus

unum et simul omnes per veram Dei dilectionem cum illo unum feliciter evadamosrdquo

158

CAPIacuteTULO VII

FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA

O seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo tem por intento alinhavar as partes apresentadas

nos capiacutetulos anteriores buscando uma siacutentese interpretativa do que foi analisado

Para tanto alguns pontos aparentemente desconexos deveratildeo ser interligados e as

eventuais lacunas preenchidas Seraacute realizada inicialmente a elucidaccedilatildeo do

paradigma esoteacuterico verificando sua utilizaccedilatildeo em periacuteodos e escolas distintas em

seguida seratildeo vistos os tipos de conteuacutedos protegidos pelo sigilo apontando para sua

relaccedilatildeo com as tradiccedilotildees convergentes do projeto piquiano finalmente

fundamentando-nos em uma especiacutefica concepccedilatildeo utilizada por Pico della Mirandola

ndash a ldquoMorte do Beijordquo ndash seraacute proposta uma interpretaccedilatildeo capaz de lanccedilar uma

pequena luz na questatildeo da confluecircncia daquelas tradiccedilotildees para o mesmo fim

1 O Paradigma Esoteacuterico

A leitura das obras piquianas natildeo deixa duacutevidas acerca da utilizaccedilatildeo de uma

seacuterie de referecircncias de cunho esoteacuterico colhidas da leitura histoacuterica realizada pelo

Autor Como foi esboccedilado no Capiacutetulo II a praacutetica de uma atitude de proteccedilatildeo de

certos conteuacutedos encontra-se em registros relativos tanto a perspectivas teoloacutegicas

quanto filosoacuteficas denotando um modelo vaacutelido desde tempos antigos ndash seja do

periacuteodo pagatildeo quanto do cristatildeo Uma aproximaccedilatildeo a alguns modelos de

manifestaccedilotildees desse gecircnero de ocorrecircncia seraacute uacutetil para que se amplie a definiccedilatildeo de

ldquoesoterismordquo delineada na ldquoIntroduccedilatildeordquo desta tese

O adjetivo ldquoesoteacutericordquo (do grego esoterikoacutes) tem sido frequentemente atribuiacutedo

a Aristoacuteteles em verdade apenas a palavra ldquoexoteacutericordquo (exoterikoacutes) eacute encontrada nos

escritos que nos chegaram uma forma empregada para designar as obras destinadas

ao puacuteblico em contraposiccedilatildeo aos escritos acroamaacuteticos (ldquoakroacuteamardquo ldquoinstruccedilatildeo oralrdquo)

referidos agraves liccedilotildees apenas ouvidas ndash e tantas vezes anotadas532 Foi apenas no seacuteculo

II dC que o termo ldquoesoteacutericordquo e sua relaccedilatildeo com Aristoacuteteles fizeram sua primeira

apariccedilatildeo devidamente registrada atraveacutes de uma saacutetira de Luciano de Samoacutesata

Zeus e Hermes vendiam filoacutesofos como escravos no mercado anunciando que aquele

que comprasse um disciacutepulo de Aristoacuteteles receberia dois pelo preccedilo de um ldquoum visto

532 Veja-se por exemplo Politica 1278b 31 Metaphisica 1076a 28 Etica a Nicomaco 1102a 26 A

interpretaccedilatildeo heleniacutestica do termo exoterikoi logoi tomada como uma referecircncia aos escritos aristoteacutelicos eacute atribuiacuteda por Simpliacutecio mais tarde no seacuteculo VI a Eudemo de Rhodes em seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles referindo-se a uma passagem em que Aristoacuteteles teria lidado com um problema lsquoexoteacutericorsquo referente a uma questatildeo pertencente ao campo dialeacutetico (SIMPLICIUS In Ph 8327 8526 e 861 apud Wouter HANEGRAAFF Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism 2006 p 336)

159

de fora outro visto de dentrordquo [] ldquoportanto se vocecirc o comprar lembre-se de dar ao

primeiro o nome de exoteacuterico e ao segundo o de esoteacutericordquo533 Confirmando a

anedota Clemente de Alexandria escrevia pouco tempo depois ldquoos disciacutepulos de

Aristoacuteteles dizem que alguns de seus tratados satildeo esoteacutericos outros comuns e

exoteacutericosrdquo E consolidando o significado de ldquosegredordquo acrescia que ldquoaqueles que

instituiacuteram os misteacuterios sendo filoacutesofos enterraram suas doutrinas em mitos para

natildeo serem oacutebvias para todosrdquo534 Observe-se que Clemente mescla na uacuteltima

passagem o acircmbito misterioloacutegico com o filosoacutefico ndash como faraacute Pico seacuteculos depois

ndash introduzindo uma conotaccedilatildeo de misticismo ao termo Na mesma linha escreveram

Oriacutegenes o Cristatildeo e Gregoacuterio de Nissa utilizando o termo ldquoesoteacutericordquo para referir-se

a ensinamentos secretos reservados a uma ldquoelite miacutesticardquo535

Esses breves relatos fazem notar a existecircncia de duas significaccedilotildees para a

mesma palavra sendo uma concernente ao sentido de ldquosigilordquo e a outra agrave qualidade

do que eacute ldquomiacutesticordquo Embora o sinocircnimo que mais se adeque a ldquoesoteacutericordquo seja

ldquosecretordquo na maior parte das vezes as duas caracteriacutesticas encontram-se mescladas

Etimologicamente o campo semacircntico do misticismo eacute proacuteximo ao do esoterismo a

palavra ldquomisteacuteriordquo conforme sua raiz grega mus significa ldquosilecircnciordquo ou ldquofechar a

bocardquo o ldquomyacutestesrdquo ou ldquoiniciadordquo eacute pois aquele que manteacutem os laacutebios selados

enquanto mysteacuterion refere-se ao culto de iniciaccedilatildeo em que eacute mantido um caraacuteter

secreto536 Assim em seu sentido mais imediato eacute aquilo que natildeo deve ser falado que

deve ser recebido e guardado em silecircncio em sentido mais profundo aquilo que deve

ser contemplado no silecircncio537 Verifica-se ainda um aspecto de transformaccedilatildeo

aniacutemica encerrado na qualidade do que eacute miacutestico que se relaciona com uma

aproximaccedilatildeo da divindade Resta observar que embora nem toda a miacutestica seja

ensinamento secreto e nem todo ensinamento secreto seja miacutestico538 os dois gecircneros

de manifestaccedilatildeo a miacutestica e a secreta tecircm caminhado juntos e se completam na

definiccedilatildeo de esoterismo Prosseguindo seratildeo mostrados trecircs modelos de esoterismo

relacionados a doutrinas bastante distintas ndash que muito provavelmente

influenciaram diretamente Giovanni Pico

Um exemplo expressivo relacionado aos misteacuterios egiacutepcios e tracejado no

Capiacutetulo I pode ser encontrado no Hermetismo que embora supostamente

533 LUCIANO DE SAMOacuteSATA Vitarum Rustio 26 apud HANEGRAAFF opcit p 336 534 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata V 58 3-4 Jacircmblico mais tarde em Vida de Pitaacutegoras e em De

Comm Math (18) utilizaria a dicotomia para referir-se aos alunos de Pitaacutegoras divididos em duas classes ldquouma exoteacuterica e outra esoteacutericardquo

535 Vejam-se os detalhes e referecircncias em HANEGRAAFF opcit p 336 536 De acordo com Walter BURKERT encontra-se na traduccedilatildeo latina de mysteria myeis myesis a melhor

definiccedilatildeo para o termo que resulta em initia initiare initiatio introduzindo o conceito de ldquoiniciaccedilatildeordquo na linguagem ocidental Esse conceito ldquoeacute via de regra acompanhado pelo segredordquo (Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 pp19-20)

537 A uacuteltima definiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Reneacute Gueacutenon Aperccedilus sur lrsquoinitiation 2004 Paris Editions Traditionnelles p125 apud Pierre RIFFARD Dicionaacuterio do Esoterismo 1993 p241

538 Gershom SCHOLEM Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica 1999 pp64-65 Em contexto diverso do tratado por Scholem tambeacutem o especialista em religiotildees misteacutericas Walter BURKERT afirma que nem todos os cultos secretos detecircm um caraacuteter miacutestico Como exemplo cita o caso da magia privada que apesar de secreta natildeo deve receber a alcunha de miacutestica assim tambeacutem o acesso de certas hierarquias sacerdotais a objetos ou locais sagrados natildeo constitui uma miacutestica apesar de seu caraacuteter secreto Haacute por outro lado estados de misticismo que podem ser alcanccedilados durante cultos religiosos abertos que natildeo caracterizam necessariamente um segredo (op cit pp19-21)

160

pertencente a periacuteodo anterior ao cenaacuterio de significaccedilotildees acima mencionadas

encerra ao mesmo tempo o sentido secreto e o caraacuteter miacutestico sendo-nos uacutetil para

ilustrar um modelo de esoterismo natildeo-ocidental preacute-cristatildeo bem aceito no seacuteculo XV

Os escritos hermeacuteticos ocultam por detraacutes de uma manifesta clareza ndash referente agrave

forma e ao conteuacutedo ldquoexternordquo ndash uma obscuridade quanto ao sentido mais profundo

que se encontra ldquoseladordquo O material hermeacutetico contempla trecircs planos diversos em

estreita relaccedilatildeo entre eles uma forma externa clara e linear que pode se tornar mais

complexa conforme a dificuldade do argumento um conteuacutedo ldquoexternordquo e

correspondente agrave simplicidade ou complexidade do enunciado um conteuacutedo

absolutamente ldquointernordquo e oculto que natildeo possui uma possibilidade expressiva ou

leacutexica adequada reenviando a um saber recebido em revelaccedilatildeo539 Esse uacuteltimo

aspecto relaciona-se ao caraacuteter miacutestico que contempla uma regeneraccedilatildeo do ser No

Tratado XVI do Corpus Hermeticum Ascleacutepio relata ao Rei Amon

ldquoHermes meu mestre dialogando frequentemente comigo seja

em particular que na presenccedila de Tat costuma dizer-me que

aqueles que leratildeo os meus livros encontraratildeo uma composiccedilatildeo

muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute obscura e

esconde o sentido das palavras Ademais tornar-se-aacute

totalmente obscura quando sucessivamente os Gregos tentaratildeo

traduzir nossa liacutenguardquo540

Um segundo exemplo de natildeo-divulgaccedilatildeo de ensinamentos sagrados eacute

detectaacutevel em alguns registros da miacutestica cristatilde oficial541 embora o ensinamento

secreto natildeo tenha sido utilizado nesse caso como instrumento para propagar uma

tradiccedilatildeo como ocorreu no Judaiacutesmo542 Clemente de Alexandria pode ser tomado

como modelo de transmissatildeo esoteacuterica dentro da tradiccedilatildeo cristatilde tendo absorvido

ecos provenientes dos gregos perceptiacuteveis no uso que fez de termos como gnosis e

mysteria em suas discussotildees acerca dos sentidos literal e natildeo-literal da Biacuteblia543

539 Valeria SCHIAVONE trad e notas ao Corpus Hermeticum ed BUR-Rizzoli 2018 npp262-263 A

comentadora infere que a clareza da forma externa nos textos hermeacuteticos representa um sinal da luz da verdade profunda que vela mesmo que o conteuacutedo tenda a afastar o leitor do entendimento real da experiecircncia miacutestica que esconde Natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com os niacuteveis de leitura miacutestica hebraica explicados sob a conceituaccedilatildeo do chamado Pardes como verificado no Capiacutetulo V

540 CORPUS HERMETICUM Tratado XVI 1 ed Nock-Festugiegravere Bompiani 2005 p 429 Traduccedilatildeo do grego por Andregrave-Jean Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade ldquoΕρμής μεν γάρ ό διδάσκαλός μου πολλάκις μοι διαλεγόμενος καί ιδία καί τού Τάτ ένίοτε παρόντος έλεγεν ότι δόξει τοΐς έντυγχάνουσί μου τοΐς βιβλίοις άπλουστάτη είναι ή σύνταξις καί σαφής έκ δέ των έναντίων άσαφής ούσα καί κεκρυμμένον τόν νοΰν των λόγων έχουσα καί έτι άσαφεστάτη των Ελλήνων ύστερον βουληθέντων τήν ήμετέραν διάλεκτον εις τήν ιδίαν μεθερμηνεύσαι οπερ έσται των γεγραμμένων μεγίστη διαστροφή τε καί άσάφειαrdquo A obra hermeacutetica eacute bastante ampla e abrangente em termos de conteuacutedo Uma visatildeo geral de seu teor foi apresentada no primeiro capiacutetulo embora apenas em sua parte estrutural e ldquoexteriorrdquo Um maior aprofundamento do conteuacutedo hermeacutetico fugiria ao escopo aqui traccedilado Para uma anaacutelise bastante aprofundada do tema leia-se CORPUS HERMETICUM (Nock-Festugiegravere opcit) e HERMETICA (Scott-Ferguson Clarendon Press Oxford 1924-36) duas das mais abrangentes obras sobre o tema

541 A miacutestica cristatilde natildeo-oficial abarca o inteiro movimento gnoacutestico Sua tradiccedilatildeo se perpetuou atraveacutes de maior ou menor grau de sigilo conforme a eacutepoca e a especiacutefica subdivisatildeo

542 SCHOLEM opcit pp64-65 543 Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo de termos gregos como gnosis e mysteria Jean PEacutePIN argumenta que nesse

sentido percebe-se ldquouma inconsciente comunhatildeo de culturas mais do que marcas deliberadasrdquo (Mythe et alleacutegorie les origines grecques et les contestations judeacuteo-chreacutetiennes Paris Eacutetudes Augustiniennes 1976 p 251 apud Crofton BLACK 2006 p 103) Antes de Clemente Fiacutelon de Alexandria (De vita contemplativa) escrevera sobre o tema a ideia de que um grupo intelectualmente superior de crentes poderia extrair um niacutevel mais alto de

161

Como antecipado no Capiacutetulo II a postura hermenecircutica desenvolvida por Pico em

algumas obras tem certa afinidade com os primeiros inteacuterpretes cristatildeos gregos e

muito provavelmente alguns dos elementos esoteacutericos que utilizou receberam o

influxo da obra Stromata544 ndash na qual Clemente distingue duas classes de puacuteblico

um digno de receber ensinamentos secretos e outro natildeo

Stromateis englobaraacute a verdade misturada com opiniotildees sobre

Filosofia embora velada e oculta exatamente como a parte

comestiacutevel da noz na casca desta forma eacute mais aceitaacutevel eu

creio que as sementes da verdade sejam mantidas apenas para

os cultivadores da crenccedila545

Clemente reuacutene uma lista de exemplos histoacutericos para comprovar que escolas

filosoacuteficas diferentes estavam unidas em ocultar a verdade dos ldquoindignosrdquo546

utilizando-se de um quadro geral de referecircncias muito similar ao que seria utilizado

por Pico seacuteculos mais tarde (como a carta de Liacutesis para Hiparco e a Segunda Carta de

Platatildeo)547 Menciona entre aquelas os epicuristas os estoicos os aristoteacutelicos e os

ldquofundadores dos misteacuteriosrdquo Afastando-se dos pagatildeos volta-se para Cristo e alguns de

seus disciacutepulos como Paulo destacando o uso feito por alguns apoacutestolos de palavras

como μυστήριoν e σoφία548 O destaque a tais termos faz parte de sua sustentaccedilatildeo da

transmissatildeo natildeo-escrita aplicada essencialmente para a interpretaccedilatildeo das

Escrituras acerca da qual Clemente distingue duas formas de entendimento a

ldquocrenccedilardquo (πίστις) e o ldquoconhecimentordquo (γνωσις)549 Haacute pois uma dicotomia entre

ldquoaqueles que apenas apreciam as Escrituras os lsquocrentesrsquo (πιστοί) e aqueles que

foram aleacutem tornando-se examinadores precisos da verdade e portadores portanto

da gnose (γνωστιχοί)550 O termo ldquognoserdquo eacute definido em Stromata I na discussatildeo do

sentido de sigilo pedido por Cristo A gnose segundo Clemente ldquosabedoriardquo eacute o

ldquoconhecimento e compreensatildeo das coisas que satildeo que seratildeo e que foramrdquo

conhecimento das Escrituras jaacute estava presente em seu trabalho exegeacutetico Tambeacutem Oriacutegenes de Alexandria depois de Clemente distinguiu nitidamente os sentidos literal e natildeo-literal argumentando que a confianccedila no primeiro causaria erro teoloacutegico (vejam-se referecircncias e discussatildeo em BLACK np105 pp108-110)

544 Natildeo se tem certeza se Pico teve acesso direto agrave principal obra de Clemente Stromata na qual eacute elaborada uma linha argumentativa com recursos loacutegicos que se fundamentam tanto nas Escrituras quanto na Filosofia ndash um caminho traccedilado no Heptaplus piquiano Haacute uma sua citaccedilatildeo especiacutefica de Stromata nas Disputationes (44) e a referecircncia a um manuscrito denominado stromata graeca no elenco do inventaacuterio de sua biblioteca entretanto natildeo eacute certo se tal manuscrito se refere ao trabalho de Clemente Um uacutenico exemplar sobrevivente daquela obra foi encontrado na biblioteca de Lorenzo dersquo Medici podendo ter sido utilizado pelo Conde

545 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata IndashVI 708a-b (Les Stromates ed Le Boulluec 1981) Stromata ou Stromateis significa ldquoMiscelacircneasrdquo ldquoπεριέξουσι δέ οί Στρωματείς άναμεμιγμένην την αλήθειαν τοΐς φιλοσοφίας δόγμασι μάλλον δέ εγκεκαλυμμένην καί επικεκρυμμένην καθάπερ τω λεπύρω το εδώδιμον του καρύουmiddot αρμόζει γάρ οίμαι τής αληθείας τά σπέρματα μόνοις φυλάσσεσθαι τοΐς τής πίστεως γεωργοΐςrdquo

546 Cf CLEMENTE Stromata V 88b-101a 547 Ibid V 100a-b As referecircncias e conteuacutedos da carta de Liacutesis e da Segunda Carta de Platatildeo encontram-se

respectivamente em notas de rodapeacute dos Capiacutetulos IV e VI 548 Mysteacuterion e Sophia correspondem respectivamente a ldquoMisteacuteriordquo e ldquoSabedoriardquo Para a discussatildeo do tema

veja-se Salvatore LILLA Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford 1971 pp146-148

549 A distinccedilatildeo entre piacutestis e gnosis tem algumas ramificaccedilotildees Clemente usa piacutestis em diferentes sentidos dois dos quais concernentes agraves demonstraccedilotildees loacutegica e cientiacutefica e um dos quais referente agrave leitura das Escrituras Em geral ele usa os dois primeiros significados em suas polecircmicas contra os filoacutesofos e o uacuteltimo em suas polecircmicas contra os gnoacutesticos A ideia em cada caso eacute demonstrar que o Cristianismo natildeo eacute inferior nem agrave Filosofia nem ao Gnosticismo O tema eacute discutido por LILLA opcit pp 118-226

550 Cf CLEMENTE opcit VII 533a

162

apresentando-se sob veacuteus Dessa forma se ldquoa contemplaccedilatildeo eacute o objetivo do saacutebiordquo

entatildeo ldquoa contemplaccedilatildeo daqueles que ainda satildeo filoacutesofos [e natildeo ainda saacutebios]

procura com certeza a sabedoria divinardquo que poderaacute ser alcanccedilada por meio de um

aprendizado que permita a recepccedilatildeo da voz profeacutetica que se lhe revela atraveacutes da

qual ldquose compreende o que eacute seraacute e foirdquo Prosseguindo na mesma passagem o teoacutelogo

define que

ldquoa gnose em si eacute o que desceu por transmissatildeo a poucos

transmitida pelos apoacutestolos sem registro escritordquo551

O tipo de linguagem utilizado por Clemente caracteriza uma esfera que se

tornou reconhecida como esoteacuterica embora o uso de termos como Sophia Piacutestis e

Gnosis seja um convite para se adentrar em territoacuterio gnoacutestico Pico natildeo se utilizou

desse tipo de registro em seus procedimentos hermenecircuticos pelo menos natildeo de

forma direta552 De outras fontes fato certo colheu suas referecircncias pois que a

dicotomia iniciadonatildeo-iniciado se manteve preservada em outros ciacuterculos da

Antiguidade posterior a Clemente e no Medievo sobretudo nas tradiccedilotildees

neoplatocircnica e cabaliacutestica Em ambiente neoplatocircnico destacaram-se dois autores

em particular Macroacutebio e Pseudo-Dioniacutesio ambos presentes na biblioteca piquiana

O Commentarii in Somnium Scipionis de Macroacutebio e sobretudo o De Coelesti

Hierarchia de Dioniacutesio foram textos que ajudaram amplamente a disseminar a

postura esoteacuterica dos primeiros cristatildeos durante a Idade Meacutedia latina apoacutes alguns

escritos originais se terem tornado inacessiacuteveis553 Embora Dioniacutesio seja um bom

modelo de emprego do paradigma esoteacuterico em ambiente neoplatocircnico554 sua forma

de linguagem apesar de natildeo restrita agrave leitura das Escrituras apresenta semelhanccedilas

551 CLEMENTE Stromata VI 281c-284a Oriacutegenes (o Cristatildeo) tambeacutem se utilizou do termo ldquognoserdquo para

designar o entendimento do sentido natildeo-literal talvez porque tenha sido ensinado pelo proacuteprio Clemente (segundo Euseacutebio de Cesareia) Porfiacuterio por sua vez diz que Oriacutegenes foi ensinado por Amocircnio tendo sido seu pupilo ao mesmo tempo que Plotino (cf BLACK opcit p 110)

552 Um paralelismo foi tecido na obra de Jacques Matter Histoire critique du gnosticisme et de son influence publicada em 1828 entre o esoterismo e o gnosticismo do seacuteculo II ao efetuar consideraccedilotildees que partem de um sincretismo entre os ensinamentos de Cristo por um lado e as tradiccedilotildees religiosas orientais judaicas e gregas filosoacuteficas por outro Algumas das primeiras polecircmicas cristatildes contra os gnoacutesticos colocaram-se contra sua crenccedila de terem atingido uma esfera independente e mais alta de conhecimento ou revelaccedilatildeo inacessiacutevel ldquoa outrosrdquo (como os cristatildeos) A obra de Irineu de Lyon do seacuteculo II Contra as Heresias (I162) identifica e transcreve diversas escolas do gnosticismo efetuando uma exposiccedilatildeo em que contrasta suas crenccedilas com as que ele chama do cristianismo ortodoxo [ie o cristianismo ldquonatildeo hereacuteticordquo] assim refutando os ensinamentos de vaacuterios grupos gnoacutesticos (Adversus Haereses W FOERSTER Gnosis A Selection of Gnostic Texts Oxford Clarendon Press 1972 vol I pp138-139)

553 Em seu Comentaacuterio sobre o sonho de Cipiatildeo Macroacutebio postula que desde que a natureza se esconde do olhar da multidatildeo a discussatildeo de seus segredos deve ser velada da visatildeo comum (Commentarii in Somnium Scipionis I 24-18 Padova ed L Scarpa 1981 pp 76-80) Pico possuiacutea uma ediccedilatildeo impressa de tal obra (KIBRE The Library of Pico della Mirandola 1936 p 244) Uma exposiccedilatildeo de cunho esoteacuterico pode ser encontrada ainda em Simpliacutecio Euseacutebio Dioacutegenes Laeacutercio Plutarco Porfiacuterio e Jacircmblico Plotino tratara sobre a proibiccedilatildeo de tornar puacuteblico o conteuacutedo dos Misteacuterios (Eneacuteadas VI 9 11) mas suas referecircncias nesse sentido satildeo de menor expressatildeo

554 O corpus pseudo-dionisiacuteaco um grupo de obras de teor teoloacutegico escritas em grego por um autor desconhecido do final do quinto ou iniacutecio do seacuteculo VI de claro vieacutes neoplatocircnico foi atribuiacutedo (em sua primeira apariccedilatildeo registrada em 532) a outro autor Dioniacutesio o Areopagita Pico o considerava um convertido de Paulo vivido no seacuteculo I dC (ldquoDiscipulus Pauli Dionysius Areopagitardquo como mencionado em Heptaplus p176) A admiraccedilatildeo de Pico pelo Areopagita estaacute evidente no Commento onde o chama ldquopriacutencipe dos teoacutelogos cristatildeosrdquo (p462) e no qual muito provavelmente foram utilizadas as traduccedilotildees de parte do corpus dionisiacuteaco realizadas por Marsilio Ficino (cf BLACK opcit p 123) A recepccedilatildeo do corpus pseudo-dionisiacuteaco durante toda a Idade Meacutedia e Renascenccedila foi extremamente ampla pelo menos seis traduccedilotildees latinas diferentes do corpus (ou partes dele) foram feitas entre os seacuteculos IX e XV

163

com as colocaccedilotildees de Clemente555 Por essa razatildeo tomaremos como terceiro exemplo

outra tradiccedilatildeo a do misticismo hebraico

Os Capiacutetulos VI e VII apresentaram suficientes indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo do

esoterismo hebraico como forma de transmissatildeo de conhecimento entretanto a

forma de linguagem adotada por Yohanan Alemanno e Elia del Medigo para se referir

a um campo de conhecimento sigiloso ndash dimensatildeo que ambos defendiam ndash se

diferencia das abordagens hebraicas anteriores por expor um modelo que utiliza

paracircmetros retirados da linguagem filosoacutefica Diferentes em estilos e doutrinas os

dois mestres de Pico colocaram tal motivo em posiccedilatildeo de destaque nas introduccedilotildees de

suas principais obras Alemanno em seu Hay ha-olamim distingue trecircs tipos de

pessoas ldquoas que derivam seu conhecimento da demonstraccedilatildeo as que o apreendem

atraveacutes da dialeacutetica e as que ouvem a retoacutericardquo556 A mesma ideia eacute encontrada na

introduccedilatildeo do Behinat ha-dat de Elia del Medigo em que o escritor informa que haacute

ldquoprinciacutepios fundamentais que podem ser aceitos retoacuterica e dialeticamente ambos os

meacutetodos de estudo satildeo requeridos jaacute que o terceiro meacutetodo o demonstrativo eacute

impossiacutevel para as massas mas possiacutevel para os poucosrdquo Elia complementa que o

emprego do meacutetodo demonstrativo eacute beneacutefico para a comprovaccedilatildeo de alguns

princiacutepios fundamentais jaacute que leva ao conhecimento das coisas causadas e a partir

do conhecimento dessas ao conhecimento do Criador Em clara distinccedilatildeo entre um

padratildeo exoteacuterico e outro esoteacuterico conclui ser ldquoevidente que o meacutetodo demonstrativo

eacute obrigatoacuterio para o homem saacutebio mas natildeo para o judeu comumrdquo557

Nas especulaccedilotildees aacuterabe-judaicas medievais a retoacuterica era considerada com

base nos comentadores gregos tardios parte integrante das artes loacutegicas no entanto

sua aplicaccedilatildeo praacutetica na instruccedilatildeo de homens ldquolimitados intelectualmenterdquo diminuiacutea

o interesse dos filoacutesofos por essa disciplina558 A dialeacutetica por sua vez pode ser

entendida no caso dos exemplos acima citados como o procedimento racional

empregado em discussotildees com perguntas e respostas atraveacutes das quais se obteacutem

uma regra com a qual se julga o que eacute falso e verdadeiro O uacuteltimo tipo de

conhecimento derivado da demonstraccedilatildeo ldquoutiliza coisas compreensiacuteveis para

explicar as menos compreensiacuteveisrdquo559 Atraveacutes dela eacute possiacutevel demonstrar a essecircncia

das coisas por meio do conhecimento das suas causas remetendo como objetivo

555 Ao mencionar os Misteacuterios Pseudo-Dioniacutesio adverte que ldquonatildeo eacute correto interpretar por escrito as invocaccedilotildees

que pertencem aos misteacuterios nem trazer do sigilo para o conhecimento puacuteblico seu significado misteriosordquo (De ecclesiastica Hierarquia 565c) Ainda ldquoeacute necessaacuterio que as coisas sagradas natildeo sejam ditas comumente nem divulgadas aos natildeo-iniciadosrdquo (De divinis nominibus 597 c) e que ldquosejam envolvidas [as coisas sagradas] na parte mais secreta da mente protegendo-as como uma unidade da multidatildeo profanardquo (De caelesti hierarchia 145 c) Veja-se tambeacutem De ecclesiastica Hierarquia 372a onde trata da preservaccedilatildeo do Santo dos Santos mais tarde retomada por Pico (aqui abordado nos capiacutetulos IV e VI)

556 Hay ha-olamim ed Lelli p94 Fabrizio LELLI editor da obra para o italiano daacute-lhe o tiacutetulo ldquoLrsquoImmortalerdquo (Firenze Leo Olschki) O Hay ha-olamim compreende uma narrativa enciclopeacutedica de ascensatildeo individual atraveacutes das vaacuterias ciecircncias ateacute alcanccedilar o mais alto niacutevel atingiacutevel de perfeiccedilatildeo humana (IDEL The Study Program of R Jochanan Alemanno Tarbiz 48 (1979-1980) pp 303-331)

557 Sefer Behinat ha-Dat of Elijah Del-Medigo (Livro do Exame da Religiatildeo) Jacob Ross (org) Chaim Rosenberg School of Jewish Studies 1984

558 Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p64

559 A definiccedilatildeo encontra-se em Dioacutegenes Laeacutercio VII 1 45 bem como a anterior referente ao meacutetodo dialeacutetico ndash uma definiccedilatildeo bastante difundida na Idade Meacutedia que DL refere em seus estudos acerca das doutrinas estoacuteicas

164

final ao conhecimento das Causas Primeiras Os termos das discussotildees de Alemanno

e Del Medigo provecircm possivelmente da mesma fonte o Kitab fasl al-maqal (Livro

do Discurso Decisivo) em que Averroacuteis distingue os trecircs tipos de inteacuterpretes

apontados pelos mestres hebreus Para o aristoteacutelico a aquisiccedilatildeo do conhecimento

dos entes soacute poderia ser feita pela intervenccedilatildeo do silogismo racional ou seja atraveacutes

de um percurso demonstrativo560 O uso dessas formas nos modelos hebraicos

mencionados tem por propoacutesito distinguir campos de atuaccedilatildeo secretos de outros natildeo

secretos

Poderia se prosseguir com outros exemplos dada sua profusatildeo mas os trecircs

modelos apresentados satildeo suficientes para que se chegue logo adiante a algumas

conclusotildees Resta esclarecer que o substantivo ldquoesoterismordquo natildeo foi originalmente

uma autodenominaccedilatildeo atraveacutes da qual determinados autores ou ciacuterculos definiram

suas perspectivas O primeiro emprego do termo no sentido de um gecircnero de

procedimento vinculado a uma escolha de comportamento foi feito a posteriori em

1828 no trabalho de Jacques Matter sob contexto do Cristianismo inicial561

Contudo somente em 1990 por meio de Antoine Faivre o Esoterismo eacute introduzido

em acircmbito acadecircmico como ldquoforma de pensamentordquo sendo ampliada sua aceitaccedilatildeo

como um campo de estudos Em sua obra Accegraves de leacutesoteacuterisme occidental o autor

defende um paradigma que pode ser reconhecido pela presenccedila de quatro

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave proacutepria definiccedilatildeo de esoterismo agraves quais duas natildeo

intriacutensecas podem ser eventualmente acrescentadas As caracteriacutesticas intriacutensecas

propostas por Faivre tomadas aqui em empreacutestimo pela pertinecircncia agrave temaacutetica

traccedilada satildeo (a) a crenccedila em ldquocorrespondecircnciasrdquo invisiacuteveis e natildeo causais entre todas

as dimensotildees visiacuteveis e invisiacuteveis do cosmo (b) a percepccedilatildeo da natureza como

permeada e animada por uma presenccedila divina ou forccedila vital (c) a concentraccedilatildeo na

imaginaccedilatildeo religiosa como um poder que daacute acesso a niacuteveis de realidades

intermediaacuterios entre o mundo material e Deus e (d) a crenccedila em um processo de

transmutaccedilatildeo espiritual atraveacutes do qual o homem interior eacute regenerado e reconectado

com o divino As duas caracteriacutesticas natildeo intriacutensecas ndash frequentemente mas nem

sempre presentes ndash satildeo (e) a crenccedila em uma concordacircncia fundamental entre vaacuterias

ou todas as tradiccedilotildees espirituais e (f) a ideia de uma transmissatildeo mais ou menos

secreta do conhecimento espiritual562

Conforme sugerido por alguns o paradigma de Faivre melhor se adequa agrave

filosofia hermeacutetica da Renascenccedila e ao contexto romacircntico-iluminista do final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX563 De fato no que concerne ao ambiente renascentista a

560 AVERROacuteIS Discurso Decisivo IV No Artigo XVI Averroacuteis introduz os trecircs meacutetodos esclarecendo que cada

um eacute apropriado para determinada categoria da humanidade sendo o meacutetodo demonstrativo aplicado a um nuacutemero reduzido de pessoas (Artigo LII)

561 Jacques MATTER Histoire critique du gnosticisme et de son influence 1828 Menos de trecircs deacutecadas apoacutes ter sido empregado de forma ldquooficialrdquo na obra de Matter o substantivo ldquoesoterismordquo eacute reconhecido como uma nova palavra com direito a pertencer a um dicionaacuterio em 1852 atraveacutes do Novo Dicionaacuterio Universal de Maurice Lachacirctre onde eacute definido como ldquoa totalidade dos princiacutepios de uma doutrina secretardquo

562 Antoine FAIVRE Access to Western Esotericism 1994 pp10-15 Como aponta Hanegraaff (opcit p340) o valor heuriacutestico da definiccedilatildeo de Faivre eacute inegaacutevel e tem sido adotado por muitos estudiosos como ldquoo paradigma de Faivrerdquo

563 HANEGRAAFF opcit p 340

165

definiccedilatildeo acima condiz precisamente com a forma-pensamento de Pico della

Mirandola de acordo com os pontos destacados no decorrer desta tese Vejamos O

ponto lsquoarsquo referente agraves correspondecircncias invisiacuteveis entre as dimensotildees do cosmo

perpassa as vaacuterias obras de Pico encontrando-se seus sinais sobretudo no Heptaplus

no qual faz corresponder os vaacuterios reinos (ldquotudo que estaacute no mundo inferior estaacute nos

superiores de forma mais elevadardquo)564 A mesma profusatildeo de menccedilotildees se aplica ao

ponto lsquobrsquo sobre a percepccedilatildeo de uma natureza permeada pela presenccedila divina (ldquoo

mundo eacute uno na totalidade das suas partes por ser uno com o seu Autorrdquo)565 O ponto

lsquocrsquo que indica a utilizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo religiosa para o acesso agraves realidades

intermediaacuterias eacute verificaacutevel nos exemplos de praacuteticas teuacutergicas oacuterficas e cabaliacutesticas

postuladas ndash sobretudo mas natildeo exclusivamente ndash nas Conclusiones O ponto lsquodrsquo

referente a um processo de transmutaccedilatildeo espiritual que reconecta o homem ao

divino eacute o tema fundamental da De Hominis Dignitate Quanto aos dois pontos natildeo

intriacutensecos tem-se no ponto lsquoersquo concernente agrave concordacircncia entre as tradiccedilotildees

espirituais a descriccedilatildeo do projeto de concoacuterdia que justamente se consagrou como o

principal interesse da vida de Pico por fim o ponto lsquofrsquo acerca da transmissatildeo secreta

do conhecimento espiritual eacute o tema desenvolvido neste trabalho Assim se

devecircssemos classificar a obra de Pico de acordo com os paracircmetros de Faivre os seis

itens acima a fariam constar perfeitamente entre os conteuacutedos esoteacutericos

Natildeo se encontra indicado no paradigma de Faivre contudo nem tampouco em

definiccedilotildees usuais acerca do esoterismo quais conteuacutedos devem ser preservados O

tipo de linguagem que demarca o motivo da transmissatildeo secreta apesar das

diferenccedilas de eacutepoca e estilo apresenta claras similaridades em seus usos muitas

vezes repetitivas conforme as palavras de Ascleacutepio ldquoaqueles que leratildeo meus livros

encontraratildeo uma composiccedilatildeo muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute

obscura e esconde o sentido das palavrasrdquo em Clemente ldquoa verdade velada e oculta

estaraacute misturada com opiniotildees sobre Filosofiardquo em Del Medigo ldquoo meacutetodo

demonstrativo eacute impossiacutevel para as massasrdquo Pico absorvendo tais conteuacutedos os

utiliza de forma ampliada na Oratio tratando de Paulo escreve que o apoacutestolo

mantinha [tudo aquilo] ldquooculto do vulgordquo ldquoDioniacutesio Areopagita disse que os

misteacuterios mais secretos foram transmitidos de mente a mente sem escritosrdquo ldquoOrfeu

revestiu os misteacuterios dos seus dogmas com a veste das faacutebulasrdquo566 E acerca das

proacuteprias informaccedilotildees que iria transmitir o Mirandolano advertia que se fosse liacutecito

trazer a puacuteblico alguma coisa dos secretos misteacuterios o faria ldquosob o veacuteu do enigmardquo567

Observa-se que natildeo haacute menccedilatildeo aos conteuacutedos Em alguns casos esses nunca satildeo

revelados em outros apenas sugeridos Haacute no entanto alguns indiacutecios que apontam

para trecircs possiacuteveis conteuacutedos temaacuteticos a serem verificados a seguir

564 PICO Heptaplus p189 565 Ibid p383 566 As passagens da Oratio encontram-se respectivamente nas pgs 157 157 163 567 PICO Oratio p129

166

2 A Concordacircncia teleoloacutegica

Haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o Esoterismo e as tradiccedilotildees agraves quais Pico atribui

pontos de convergecircncia Colocado de outra forma os pontos de confluecircncia relativos

agraves tradiccedilotildees mencionadas na obra piquiana gravitam em torno a especiacuteficos nuacutecleos

de teor esoteacuterico Essa eacute a revitalizada intuiccedilatildeo do Autor que precede seu projeto de

Concoacuterdia Antes dele segundo sua proacutepria confirmaccedilatildeo outros jaacute haviam ingressado

em tal caminho Numecircnio tentara acordar bracircmanes magos egiacutepcios e hebreus

Moiseacutes Pitaacutegoras e Platatildeo Proclo apoacutes tentar a comunhatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles

abordara a filosofia hieraacutetica atraveacutes de seus comentaacuterios a Orfeu tentando

comprovar a convergecircncia entre as doutrinas caldaicas oacuterficas hermeacuteticas e

platocircnicas568 As tentativas desses autores em concordar doutrinas aparentemente

dessemelhantes seguem um criteacuterio de escolha a partir do qual as escolas ou

doutrinas eleitas participam de meacutetodos de transmissatildeo sigilosa do conhecimento

provavelmente natildeo por coincidecircncia Dentre os diversos registros verificados seja

nas referecircncias esoteacutericas empregadas por seus antecessores seja naquelas

retomadas por Pico consegue-se identificar trecircs niacuteveis ou campos temaacuteticos de

utilizaccedilatildeo do segredo na transmissatildeo (1) o primeiro niacutevel caracteriza-se pela

necessidade de se proteger poderes empregados em atos de trocas entre os reinos (2)

o segundo niacutevel trata de informaccedilotildees referentes aos mundos intermediaacuterios

distribuiacutedos entre o sublunar e a Unidade (3) o terceiro niacutevel protege conteuacutedos

relacionados aos Princiacutepios ou ao Absoluto

1 No primeiro niacutevel o segredo protege os atos que envolvem as trocas

efetuadas entre o mundo sublunar e os supralunares por intermeacutedio de accedilotildees

humanas caracteriza-se portanto como um niacutevel ldquopraacuteticordquo Eacute o caso dos usos de

magia ou teurgia que envolvem ritos para atrair o descenso de forccedilas pertencentes a

esferas superiores dos sons utilizados nos Hinos oacuterficos para certas funccedilotildees dos usos

da Cabala Praacutetica da teurgia de Jacircmblico e Proclo dos rituais realizados nos

Misteacuterios menores para uma regeneraccedilatildeo psiacutequica transitoacuteria todos temas

abordados nos capiacutetulos anteriores Em ambiente hermeacutetico o Asclepius traz

referecircncias claras de praacuteticas para o descenso das forccedilas ndash como o apelo agraves almas dos

daimons e dos anjos para fazecirc-las morar em imagens sagradas de forma que tais

imagens pudessem ter a forccedila de fazer o bem e o mal569 ndash embora os meacutetodos em si

568 Pico teria lido sobre Numecircnio de Apameia em Euseacutebio (Prep Ev IX 7 XI 10 XII 5) conforme indicaccedilatildeo

do proacuteprio em seu prefaacutecio ao Heptaplus (a identificaccedilatildeo da obra de Euseacutebio encontra-se em GARIN 2001 n p 75 que a extraiu de ZELLER a Filosofia dos Gregos (1881) e de MATTER Histoire de lrsquoEacutecole drsquoAlexandrie (Paris 1848 vol III pp234-37) Acerca de Proclo suas reflexotildees encontram-se em Elementos de Teologia conforme Albano BIONDI Conclusiones Nongentae-Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXV

569 CORPUS HERMETICUM VIII 24 ed Nock-Festugiegravere 2005 pp557-559 ldquoNossos primeiros antepassados [] inventaram a arte de fazer deuses logo assim que os fizeram vincularam a eles uma virtude adequada inferida da natureza material misturando essa virtude com a substacircncia das estaacutetuas dado que natildeo podiam criar almas propriamente ditas e depois de invocarem as almas de daimons as introduziam em seus iacutedolos por meio de rituais santos e divinos de modo que esses iacutedolos tivessem o poder de fazer o bem e o malrdquo Ainda do ldquoLivro sagrado dedicado a Asclepiusrdquo (opcit 37 p583) ldquoTrata-se de estaacutetuas dotadas de uma alma conscientes cheias de sopro vital e que realizam um nuacutemero incalculaacutevel de prodiacutegios estaacutetuas que conhecem o futuro e o predizem atraveacutes das sortes da inspiraccedilatildeo profeacutetica dos sonhos e de muitos outros meacutetodos que enviam aos homens as enfermidades e as curam que concedem segundo nossos meacuteritos a dor ou a fortunardquo

167

sejam mantidos em segredo Plotino retomaria esse interesse como se lecirc em Eneacuteadas

IV ldquoos antigos saacutebios que quiseram os deuses presentes entre eles construindo-lhes

templos e estaacutetuas entenderam que eacute sempre faacutecil atrair a alma universal mas que eacute

particularmente trabalhoso mantecirc-la a menos que se construa algo afim e capaz de

receber-lhe a participaccedilatildeordquo pois ldquoa imagem figurada de uma coisa estaacute sempre

predisposta a sofrer a influecircncia da coisa copiada como um espelho capaz de

aprisionar a imagem que refleterdquo570 Os modelos hermeacutetico e plotiniano encontram

eco na concepccedilatildeo do bezerro de ouro da versatildeo de Alemanno vista na abordagem do

Heptaplus571

Amostras de correspondecircncias dentro desse campo de atuaccedilatildeo satildeo

apresentadas na obra piquiana na qual satildeo apontadas especiacuteficas similaridades entre

praacuteticas pertencentes a nuacutecleos distintos sobretudo nas teses que compotildeem os

uacuteltimos grupos de suas Conclusiones572 Em muitos casos as formas de magia ou

teurgia protegidas pelo segredo servem para ldquocasar o mundordquo e a partir de entatildeo

ldquoorganizar o caosrdquo como intuiu Pico em 1486573 Esse niacutevel de atuaccedilatildeo eacute via de regra

protegido por elevado grau de sigilo necessaacuterio para uma seguranccedila social ou legal

conforme a eacutepoca e a cultura ou para proteger certos tipos de conhecimento dos

perigos que podem desencadear em matildeos incautas Embora haja certas similaridades

entre algumas praacuteticas nesse niacutevel encontram-se maiores divergecircncias entre os

meacutetodos pelo fato de haver um distanciamento maior da Unidade

2 O segundo domiacutenio de registros esoteacutericos contempla o vasto campo

especulativo que trata da sistematizaccedilatildeo do mundo emanado ou da criaccedilatildeo do reino

da multiplicidade a partir da Unidade Embora distintos sistemas apresentem

diferenccedilas conceituais e lexicais verificam-se iacutentimas correspondecircncias no que

concerne aos niacuteveis de graduaccedilotildees entre os diferentes mundos que foram destacadas

e confirmadas ampla e repetidamente por Pico ndash que caracterizou esse estudo como

ldquometafiacutesica das formas inteligiacuteveis e angeacutelicasrdquo574 A obra piquiana mostra seu esforccedilo

para comprovar que concepccedilotildees teoreacuteticas distintas se conciliam em harmonia

Aquele que entre os cabalistas se chama Metatron eacute sem

duacutevida o que eacute denominado por Orfeo lsquoPallasrsquo por Zoroastro

lsquomente paternarsquo por Mercuacuterio lsquofilho de Deusrsquo por Pitaacutegoras

lsquosabedoriarsquo por Parmecircnides lsquoesfera inteligiacutevelrsquo575

570 PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Bompiani Milano 2010 571 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 22v apud Moshe IDEL 2008b np 481 Na

concepccedilatildeo de Alemanno o preparo do bezerro de ouro por Moiseacutes eacute tido como necessaacuterio para o recebimento das emanaccedilotildees provenientes do descenso das forccedilas espirituais

572 Vejam-se algumas dessas correspondecircncias na uacuteltima parte do Capiacutetulo III 573 PICO Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo 574 Cf Apologia p 29 ldquointeligibilibus angelicisque formis exactam methaphysicamrdquo 575 Concl (II) XI 10 (p128) ldquoIllud quod apud Cabalistas dicitur Hochmah illud est sine dubio quod ab

Orpheo Pallas a Zoroastre paterna mens a Mercurio dei filius a Pythagora sapientia a Parmenide sphera intelligibilis nominaturrdquo O termo Hochmah assim traduzido por Biondi e escrito no original em caracteres de provaacutevel hebraico foi traduzido por Farmer como Metraton seguindo a interpretaccedilatildeo de Wirszubski que afirma utilizar outras evidecircncias para tal conclusatildeo (cf FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) - The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 np 524) Optamos pela utilizaccedilatildeo de ldquoMetratonrdquo em nossa traduccedilatildeo ao portuguecircs em razatildeo de sua presenccedila em outras passagens de Pico Com

168

Em sua prospecccedilatildeo da metafiacutesica do Inteligiacutevel Pico identifica as Sefirot

cabaliacutesticas com os nuacutemeros pitagoacutericos e com as dez esferas da ordenaccedilatildeo hermeacutetica

ndash ldquomomentos sucessivos da expansatildeo da divindaderdquo ou ldquoatosrdquo com os quais Deus se

faz presente nas coisas576ndash concepccedilotildees que encontram sustentaccedilatildeo em sua tese

cabaliacutestica 36 ldquoDeus cobriu-se com dez vestimentas quando criou o mundordquo577 Tece

ainda paralelos entre os ldquodez vingadoresrdquo da teoria hermeacutetica e a maligna sequecircncia

denaacuteria da cabala (situada ldquodo lado esquerdordquo) sobre os quais Pico nada escreveu

ldquopor se tratar de um segredordquo578 Outra simetria eacute verificaacutevel entre certos graus

ldquofuncionaisrdquo contemplados no Hermetismo e na Cabala na teoria hermeacutetica da

ascensatildeo da alma pelas esferas a regeneraccedilatildeo da alma se daacute na oitava esfera

chamada ogdoaacutedica ndash relacionada ao nuacutemero oito ndash conforme se depreende do

Corpus Hermeticum XIII tambeacutem na Cabala existe essa concepccedilatildeo relacionada a

uma determinada Sefiraacute conforme estudo de Scholem579 Outra fonte utilizada por

Pico para compor suas correspondecircncias de estratos metafiacutesicos encontra-se nos

textos caldaicos que apresentam passagens com elaboraccedilotildees que unificam os vaacuterios

planos conforme pode ser lido na ordenaccedilatildeo dos Oraacuteculos Caldeus realizada por

Miguel Psello

Sustentam que haacute sete mundos reais um iacutegneo e primeiro trecircs

eteacutereos e trecircs materiais o uacuteltimo dos quais denominado

terrestre e inimigo da luz trata-se da regiatildeo sublunar que aleacutem

do mais encerra em si mesma a mateacuteria a que denominam

abismo [] Homenageiam certo Abismo paterno composto

pela triacuteade Pai Potecircncia e Intelecto Segue-se a Iynga inteligiacutevel

depois os Conectores (compostos de elementos iacutegneos eteacutereos e

materiais) depois os Teletarcas Em seguida os Pais Fontes

referecircncia agrave passagem em questatildeo observa-se que embora com nomenclaturas diferenciadas e pertinentes a cada respectiva tradiccedilatildeo Pico as faz corresponder em termos de posiccedilatildeo ou graduaccedilatildeo dentro do plano do Inteligiacutevel Sobre o mesmo tema Pico escrevera no Commento descrevendo como a mente criada procede do bem primeiro ldquoEssa primeira criatura eacute chamada seja pelos platocircnicos que pelos antigos filoacutesofos Mercuacuterio Trismegisto e Zoroastro ora filho de Deus ora sabedoria mente ou razatildeo divina o qual alguns interpretaram inclusive como Verbordquo (Commento sopra una canzona drsquoamore I 5 1942 p 466) Pico se preocupa em diferenciar a emanaccedilatildeo do primeiro princiacutepio com ldquoaquele que foi chamado por nossos teoacutelogos como lsquofilho de Deusrsquordquo ldquoEd abbi ciascuno diligente avvertenzia di non intendere che questo sia quello che darsquo nostri Teologi egrave detto figliuolo di Dio perchegrave noi intendiamo per il figliuolo una medesima essenzia col padre a lui in ogni cosa equale creatore finalmente e non creatura ma debbesi comparare quello che ersquo Platonici chiamano figliuolo di Dio al primo e piugrave nobile angelo da Dio creatordquo (idem)

576 Cf Cesare VASOLI in ldquoIntroduzionerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (Garin 2011) Pico estabelece niacuteveis de correspondecircncias outrossim entre determinados niacuteveis angeacutelicos e certas potecircncias integrantes do Orfismo como pode ser verificado em anaacutelise de Paolo FORNACIARI (2001) ldquoSatildeo inteligecircncias angeacutelicas e divindades homoacutelogas em funccedilatildeo e poder pois entre outras coisas as Potestades satildeo uma lsquodisposiccedilatildeo angeacutelica de tipo intermediaacuterio que eacute purificada iluminada e aperfeiccediloada pelos esplendores da divindadersquo bem como os lsquoCuretirsquo indicados nos Hinos oacuterficos 31 e 38 Em ambos os casos satildeo entidades mediadoras entre o uno e o mundo sensiacutevel geralmente benignos embora com enorme poder sobre o qual o homem deve manter-se consciente e com temor reverencialrdquo

577 PICO Concl (II) XI 36 (p135) ldquo[] cur dicatur apud Cabalistas quod Deus induit se decem vestimentis quando creauit saeculumrdquo

578 PICO Concl (I) VIII 10 (p55) ldquo[] de quibus ego in cabalisticis conclusionibus nichil possui quia est secretumrdquo Na deacutecima tese hermeacutetica Pico denomina os dez vingadores de lsquomala coordinatiorsquo verdadeiras e proacuteprias entidades negativas que se apresentam como o espelho perverso das Sefirot como deduz FORNACIARI (2001)

579 Gershom SCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 1960

169

tambeacutem chamados de lsquoGuias do Mundorsquo sendo o primeiro deles

aquele que se costuma dizer lsquounitariamente mais distantersquo

Finalmente vecircm os trecircs Implacaacuteveis e por uacuteltimo lsquoaquele que

estaacute cercado por baixorsquo580

Embora possa ser tentador investigar os significados das concepccedilotildees

mencionadas buscando seu aprofundamento esse se mostraria um caminho longo e

desnecessaacuterio para o tema tratado O que se pretende relevar ndash aleacutem de expor alguns

exemplos que ilustram o domiacutenio tratado ndash eacute que muitos dos conteuacutedos pertinentes

agraves estratificaccedilotildees dos planos metafiacutesicos ndash niacutevel onde Pico encontra elaboraccedilotildees

espaciais em elevada conformidade ndash envolvem tradiccedilotildees que lidam com a

transmissatildeo esoteacuterica e que compotildeem um segundo tipo de caracterizaccedilatildeo temaacutetica

Esse gecircnero de conteuacutedo encontra mais transposiccedilotildees para a linguagem escrita do

que o modelo anterior e o seguinte apesar de suas abstraccedilotildees constituiacuterem em

muitos casos um veacuteu indecifraacutevel De fato natildeo obstante as temaacuteticas atinentes ao

movimento de criaccedilatildeo e estabelecimento dos graus do muacuteltiplo serem mais

facilmente encontradas em material escrito ndash e portanto menos protegidas pelo

segredo ndash a ocultaccedilatildeo de suas particularidades se daacute por meio do recurso a uma

linguagem miacutetica alegoacuterica ou obscura (fundada sobre semacircnticas e formas

linguiacutesticas diferenciadas conforme a tradiccedilatildeo)

3 O terceiro domiacutenio contemplado pelo Esoterismo inclui em caraacuteter

acessoacuterio as formas de proteccedilatildeo a praacuteticas iniciaacuteticas que visam suplantar estaacutegios do

mundo sensiacutevel e intelectual O tema da ascese em direccedilatildeo agrave Unidade integra as

doutrinas mencionadas na De Hominis Dignitate visitadas no Capiacutetulo IV eacute um dos

conteuacutedos principais tratados no Pimandro hermeacutetico (a ascese a partir ldquodo reino da

natureza e da morterdquo) eacute o objetivo dos atos de contemplaccedilatildeo almejados na Cabala

Extaacutetica As crenccedilas oacuterficas de retorno agrave Unidade apresentam claras analogias com a

soteriologia encontrada no Segundo Tratado hermeacutetico Trismegisto que passara

pela experiecircncia iniciaacutetica da regeneraccedilatildeo diz a seu filho Tat que o ldquohomem

renascido seraacute deusrdquo581 em evidente paralelismo com os dizeres encontrados na

lacircmina oacuterfica de Turi do seacuteculo IV aC ldquoAlegra-te por teres sofrido o que nunca antes

sofreste de homem nasceraacutes um deusrdquo582

Tais processos iniciaacuteticos que objetivam alcanccedilar o mais alto grau da divindade

devem ser vistos como caracteriacutesticas secundaacuterias ou acessoacuterias como acima

disposto A caracteriacutestica efetivamente preciacutepua do terceiro domiacutenio esoteacuterico

encontra-se na proteccedilatildeo ao nuacutecleo concernente agraves Causas Primeiras Em torno a essa

dimensatildeo verifica-se uma confluecircncia doutrinaacuteria observada e relatada por Pico o

580 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus 1991 p18 Trecho extraiacutedo da Exposiccedilatildeo

Caldaica de Miguel Psello [42 (54)] que tivera contato com os Oraacuteculos atraveacutes dos textos de Proclo Psello e Plethon realizaram comentaacuterios extensos sobre os Oraacuteculos Caldeus e suas coleccedilotildees foram aumentadas por Franciscus Patricuis que em 1593 publicou em latim aquele conteuacutedo sistematizado em 324 oraacuteculos (Zoroaster et eius 320 Oracula Chaldaica) acrescentando-lhes conceitos de Proclo Heacutermias Simpliacutecio Damaacutescio entre outros Essa obra foi a base da classificaccedilatildeo feita por Thomas Taylor (The Chaldean Oracles London 1806)

581 Corpus Hermeticum XIII opcit p 379 582 Otto KERN Orphicorum Fragmenta fr32 c-f

170

uacuteltimo grau de ordenaccedilatildeo do sistema caldeu coincide com o que se verifica em textos

hermeacuteticos oacuterficos pitagoacutericos e neoplatocircnicos pode-se dizer que seus fins

convergem em direccedilatildeo agravequele nuacutecleo ndash identificado como ldquoiniacuteciordquo e ldquofimrdquo583 Assim

tambeacutem se averigua em outros nuacutecleos investigativos para a possibilidade de tal

ldquoencontrordquo se volta Clemente ao buscar sentidos natildeo literais nas Escrituras de forma

paralela em relaccedilatildeo ao mesmo material voltam-se os cabalistas em suas buscas

interpretativas e contemplativas ndash almejando alcanccedilar o estado de devekut (uniatildeo

com a Divindade)584 e em acircmbito misterioloacutegico esse eacute o propoacutesito para o qual se

dirigem as orientaccedilotildees relacionadas ao alcance da epopteia eleusina Sob registro

filosoacutefico Elia Del Medigo escrevera que o emprego do meacutetodo demonstrativo seria

capaz de comprovar princiacutepios fundamentais ndash por conduzir ao conhecimento das

coisas causadas ldquoe finalmente do Criadorrdquo585

Em torno aos Princiacutepios tem-se pois o norte de chegada das doutrinas

teoloacutegicas filosoacuteficas e algumas ritualiacutesticas partiacutecipes do projeto vislumbrado por

Pico conforme os vaacuterios exemplos apontados na Oratio Para esse fim Pico

direcionou suas principais reflexotildees de teor filosoacutefico que denominou ldquocausas das

coisasrdquo586 como verificaacutevel no De Ente et Uno no qual procurou dirimir o conflito

entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash conforme delineado na abordagem das fundamentaccedilotildees

filosoacuteficas do Autor no Capiacutetulo II Para fazer confluir as doutrinas dos dois

Filoacutesofos foi encetada uma discussatildeo em torno agravequela esfera Da mesma forma para

fazer convergir doutrinas como as caldaicas as pitagoacutericas e as neoplatocircnicas foram

observadas as relaccedilotildees das mesmas com as Causas Primeiras atraveacutes de seus

registros comprovou que os saacutebios caldeus acreditavam ldquoem um Princiacutepio uacutenico de

todas as coisasrdquo celebrando-o ldquocomo Uno e Bemrdquondash587 claro exemplo de uma

protologia natildeo desconhecida As linhas doutrinais percorridas na obra piquiana

partilham pois por vias singulares de concepccedilotildees similares em torno aos ldquofinsrdquo de

formas convergentes de comunhatildeo com a Unidade Nesse grau o sigilo estaacute sempre

presente e seus conteuacutedos quando transmitidos ocorrem apoacutes aacuterdua trajetoacuteria Ora

Pitaacutegoras quando ensinava a seus disciacutepulos natildeo lhes dava o poder de interpretar as

causas das coisas nos primeiros estaacutegios de suas especulaccedilotildees ele lhes ensinava

primeiramente a ldquociecircnciardquo somente no uacuteltimo grau de discipulado ndash o grau de

teleiotecircs correspondente ao telos ndash lhes eram reveladas as Causas os Princiacutepios588

Nesse niacutevel de especulaccedilatildeo por sua proximidade com a proacutepria Unidade muitas das

divergecircncias satildeo diluiacutedas podendo-se falar de uma concordacircncia teleoloacutegica

583 Eugenio Garin (2011 p149) amplia a rede de afinidades acrescendo aos acima mencionados elementos do

pensamento cristatildeo do gnosticismo do platonismo da miacutestica de Satildeo Joatildeo de Paulo e Nicolau de Cusa (apesar como enfatiza das iacutentimas divergecircncias entre cada uma dessas correntes)

584 Veja-se o Capiacutetulo V 585 Veja-se o Item 1 586 Cf Oratio p131 587 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus opcit 1991 p18 Os Oraacuteculos Caldeus talvez

por terem tido entre um de seus primeiros comentadores o neopitagoacuterico Numecircnio apresentam muitos elementos pitagoacutericos como a colocaccedilatildeo de uma Mocircnada ndash ou princiacutepio de Unidade ndash no veacutertice das coisas e de uma Diacuteade como princiacutepio do muacuteltiplo

588 Veja-se nota sobre o tema no Item 3 Capiacutetulo IV Cf Jacircmblico Vita Pythagorica 71-72 Dioacutegenes Laeacutercio VIII 10

171

Qual a razatildeo para a natildeo divulgaccedilatildeo de questotildees conceituais referentes aos

uacuteltimos niacuteveis metafiacutesicos Para Oriacutegenes os misteacuterios das Escrituras estatildeo ocultos

sob um veacuteu de coisas ldquovisiacuteveisrdquo para proteger aqueles ldquoincapazes de suportaacute-losrdquo589

Segundo Abulafia ldquoa alma humana natildeo pode suportar o influxo direto da inteligecircncia

superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm atada agrave mateacuteriardquo Maimocircnides de

forma mais extrema dizia que a nocividade da sabedoria metafiacutesica requer sua

transmissatildeo em alegorias pois ldquoaqueles que tentam compreender seus segredos sem

a devida preparaccedilatildeo seratildeo destruiacutedosrdquo590 O que se depreende de vaacuterias passagens

desse gecircnero eacute que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta

necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelo

intelecto finito Em termos teoloacutegicos a divindade soacute pode ser apreendida atraveacutes de

uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade Pico utiliza uma linguagem mais requintada

para referir-se agrave mesma condiccedilatildeo ldquoAs doutrinas sagradas estatildeo escondidas sob

termos populares como dentro de uma concha para que os olhos menos agudos natildeo

sejam ofuscados Trazem pois a luz para beneficiar aos satildeos mas a trazem escondida

e velada para natildeo ofender aos homens de vista fraacutegilrdquo591

O ldquoponto de chegadardquo sugerido na argumentaccedilatildeo proposta constitui uma

justificativa para a utilizaccedilatildeo de categorias esoteacutericas Tal dimensatildeo natildeo se configura

como um patamar atingiacutevel por especulaccedilotildees filosoacuteficas As aporias encontradas ao

final de um percurso dialeacutetico natildeo se resolvem por aproximaccedilotildees da razatildeo mas pela

ocupaccedilatildeo de um espaccedilo proacuteprio caracterizado por todas as tradiccedilotildees que tratam com

fenocircmenos iniciaacuteticos Vislumbra-se pois a existecircncia de um ldquoabismordquo ndash um

ldquoespaccedilordquo entre o muacuteltiplo e o Uno natildeo ultrapassaacutevel por procedimentos intelectuais

ndash sugerido ou subentendido pelas formas linguiacutesticas utilizadas nas tradiccedilotildees

esoteacutericas Pico tentara elucidar a concepccedilatildeo ldquoo abismo eacute a capacidade inteligiacutevel no

profundo pois penetrante e perscrutadora acima dessa encontra-se a escuridatildeo ateacute

que seja iluminada pelos raios das cogniccedilotildees espirituaisrdquo592 Quando o intelecto se

apaga quando a escada utilizada para elevar-se eacute abandonada a funccedilatildeo da miacutestica eacute

entatildeo exercida aquele espaccedilo eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes das transformaccedilotildees do miacutestico

que decorrem de seu contato com a divindade ndash as denominadas proteccedilotildees

ldquoacessoacuteriasrdquo dentro dos modelos apresentados de Esoterismo A forma de alcanccedilar tal

fim havia sido ademais sinalizada na Oratio dos trecircs niacuteveis supra-humanos aos

quais o homem pode elevar-se o niacutevel celeste eacute acessiacutevel pela razatildeo o niacutevel angeacutelico

pela dialeacutetica que permite o alcance do Inteligiacutevel o uacuteltimo niacutevel de conhecimento

do Absoluto ou da ldquounidade do espiacuterito com Deusrdquo poderaacute ser alcanccedilado atraveacutes do

589 Apud BLACK op cit pp103-104 590 MAIMOcircNIDES Dux neutrorum (Guia dos Perplexos) III 54 apud Naomi GOLDFELD Elia del Medigo e

lrsquoaverroismo hebraico in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 45 Maimocircnides nessa passagem refere-se ao relato da entrada de quatro rabinos no Pardes nem todos preparados para receber ldquoa verdaderdquo conforme sua leitura do Talmud Babilocircnico Hagigah 15a

591 PICO Heptaplus P1 p180 ldquoNos credere possumus satisfactum rudibus auditoribus si lumen scientiae quod introspicerent sapientes crassioribus verbis quasi cornea texta circumdatum obduxerit ne hebetiores inde Oculi perstringerentur Attulerit ergo lumen ut sanis oculis proforet inclusum tamen et velatum attulerit ne lippientibus officeretrdquo

592 Heptaplus III p253 ldquoAbyssus intellectualis proprietas est profunda quaeque penetrans et perscrutans Super hanc tenebrae sunt donec spiritalium notionum quibus omnia videt et intuetur radiis non illustraturrdquo

172

processo asceacutetico que reconduz ao ldquocentro da proacutepria unidaderdquo593 Haacute pois uma

dimensatildeo natildeo ultrapassaacutevel para a qual a Theoriacutea594 conduz por intermeacutedio de suas

filhas a Filosofia e a Teologia a uacutenica forma de ir aleacutem eacute atraveacutes do ecircxtase miacutestico

situaccedilatildeo extrema apontada em vaacuterias das tradiccedilotildees pelas quais Giovanni Pico

transitou e para a qual encetou sua proacutepria reflexatildeo

3 A Morte do Beijo

Um dos pontos mais elevados da reflexatildeo piquiana encontra-se no recurso de

conceituaccedilatildeo biacuteblico-cabaliacutestica referente agrave ldquomors osculirdquo ldquomorte do beijordquo uma das

possiacuteveis definiccedilotildees do ecircxtase miacutestico O tema trata de uma relaccedilatildeo extaacutetica em que

dois amantes um terreno e outro celeste alcanccedilam a comunhatildeo A concepccedilatildeo

(poeacutetica miacutestica e filosoacutefica)595 descreve a morte figurada que ocorre por ocasiatildeo da

separaccedilatildeo da alma dos acidentes do mundo sensiacutevel quando essa se vecirc colhida em

um transporte transcendente simbolizado pela troca do beijo miacutestico O tema eacute

sintetizado por Pico nas teses cabaliacutesticas 11 e 13 ldquosecundum opinionem propriamrdquo e

ampliado no Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo

Benivieni Conforme a conclusio cabalistica 11

O modo atraveacutes do qual as almas racionais satildeo sacrificadas a

Deus por intermeacutedio do Arcanjo natildeo especificado pelos

Cabalistas somente ocorre por via da separaccedilatildeo da alma do

corpo natildeo do corpo da alma exceto por acidente como

acontece na Morte do Beijo sobre a qual estaacute escrito lsquoPreciosa

na presenccedila do Senhor a morte de seus santosrsquo596

O fenocircmeno da separaccedilatildeo da alma do corpo conforme acima mencionado eacute

melhor descrito no Commento ldquoAgraves vezes se diz que a alma estaacute separada do corpo

mas natildeo o corpo dela e isto eacute quando cada uma das forccedilas da alma exceto a que o

corpo nutre chamada vegetativa estaacute ligada mas natildeo opera em nada como se natildeo

593 PICO Oratio p107 ldquo[] in unitatis centrum suae se receperit unus cum Deo spiritus factus in solitaria

Patris caliginerdquo 594 O termo se adequa agrave concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo conforme a

tradiccedilatildeo pitagoacuterica 595 A colocaccedilatildeo eacute de Paolo Fornaciari que adiciona a qualificaccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo ao conteuacutedo O comentador

considera a recuperaccedilatildeo dessa ldquoverdadeira hierogamiardquo um dos aportes mais originais que Pico empresta da Cabala ao Cristianismo um dos instrumentos mais eficazes de sua tatildeo almejada ascensatildeo agrave pax unificardquo (FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp24-25)

596 Concl II XI 11 p128 ldquoModus quo rationabiles animae per archangelum Deo sacrificantur qui a Cabalistis non exprimitur non est nisi per separationem animae a corpore non corporis ab anima nisi per accidens ut contigit in morte osculi de quo scribitur lsquopraeciosa in conspectu domini mors sanctorum eiusrsquordquo Pico extrai o uacuteltimo trecho de Salmos 116 15-16 Como ajuiacuteza Paolo FORNACIARI (ibid np41) a ldquomorte do beijordquo em latim ldquomors osculirdquo em hebraico ldquomytat benesiqahrdquo eacute um tiacutepico exemplo de cruzamento entre temas platocircnicos [que podem ser melhor depreendidos da leitura do Commento] e cabaliacutesticos A relaccedilatildeo extaacutetica eacute tambeacutem retratada no Cacircntico dos Cacircnticos entre Salomatildeo e sua amada que a leitura anagoacutegica identifica como Deus e sua relaccedilatildeo com Israel inteiramente de acordo com o tema cabaliacutestico do matrimocircnio miacutestico entre a sefiraacute Yesod (o fundamento mas tambeacutem a virilidade) e Knesset Israrsquoel (a comunidade dos fieacuteis) (ibid p24)

173

estivesse em nadardquo Tal situaccedilatildeo ocorre continua o texto quando a parte intelectual ndash

chamada por Pico ldquorainha da almardquo ndash estaacute em ato e operante natildeo sofrendo em si o

ato de qualquer outra potecircncia597 Essa condiccedilatildeo entre a alma e o corpo eacute chamada

ldquoprimeira morterdquo598

Atraveacutes da primeira morte que eacute a separaccedilatildeo apenas da alma do

corpo e natildeo o contraacuterio a amada Vecircnus celestial poderaacute

portanto ver o amante e esse estar face a face com ela

contemplando sua imagem divina e com seus olhos purificados

assim se alimentar599

O amante representa a mente600 ou a parte intelectual da alma que se une

ldquoem amorrdquo com algum niacutevel natildeo esclarecido do Inteligiacutevel Pico chama ainda a

atenccedilatildeo para o fato de o eventual ecircxtase alcanccedilado envolver o risco de uma segunda

morte a final A excessiva prolongaccedilatildeo do estado de ecircxtase marca um dos eventos

capazes de ocasionar a segunda morte ldquose muito se fortalecer e prolongar a operaccedilatildeo

intelectual eacute necessaacuterio que desta uacuteltima parte vegetativa a alma tambeacutem se separe

de forma que ela do corpo e o corpo dela sejam separadosrdquo Haacute outra forma de

deflagrar a segunda morte indicada no Commento atraveacutes de uma obscura

advertecircncia em relaccedilatildeo a outro tipo de relaccedilatildeo que o praticante possa pretender ldquoE

note-se que a uniatildeo mais perfeita e iacutentima que o amante possa ter com a amada

celestial eacute denotada pela uniatildeo do beijo porque qualquer outro congresso ou coacutepula

usado no amor corporal natildeo eacute liacutecito usar em qualquer forma de transfiguraccedilatildeo601

neste santo e sagradiacutessimo amorrdquo602 Em caso de tal pretensatildeo o Autor daacute a entender

que a segunda morte pode ser almejada

Quem ainda mais intrinsecamente quiser possuiacute-la e natildeo

contente em vecirc-la e ouvi-la quiser ser digno dos seus abraccedilos

iacutentimos e beijos anelantes deve separar-se de si mesmo

totalmente atraveacutes da segunda morte do corpo e entatildeo natildeo soacute

ver e ouvir a Vecircnus celestial mas com um noacute indissoluacutevel

abraccedilaacute-la e com beijos de um ao outro sua proacutepria alma

597 A uacutenica potecircncia que ainda pode operar na alma nesse estado acresce Pico ldquoeacute a potecircncia nutritiva cujas

operaccedilotildees por seu grande distanciamento da alma natildeo satildeo de todo anuladas por seus atos embora muito debilitadasrdquo (Commento pp557-558)

598 Como informa Giulio BUSI (Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p66) a ldquoprimeira morterdquo do corpo no leacutexico neoplatocircnico eacute o resultado do encaminhar-se em um percurso contemplativo que leva agrave morte figurada ou filosoacutefica

599 Commento p557 O texto original natildeo foi escrito em latim mas em italiano ldquoPuograve dunque per la prima morte che egrave separazione solo dellrsquoanima dal corpo e non per lrsquoopposito vedere lo amante lrsquoamata venere celeste e a faccia a faccia con lei ragionando della divina immagine sua ersquo suoi purificati occhi felicemente pascererdquo

600 Cf nota de Eugenio Garin agrave sua traduccedilatildeo do Commento (1942 np 557) 601 No texto original a palavra utilizada eacute lsquotraslazionersquo que Garin corrige em nota agrave traduccedilatildeo como

lsquotransunzionersquo (ed Vallecchi 1942 p 558) 602 Commento pp557-558 ldquoE nota che la piugrave perfetta e intima unione che possa lrsquoamante avere della celeste

amata si denota per lrsquounione del bacio perchegrave ogni altro congresso o copula piugrave in lagrave usata nello amore corporale non egrave licito per alcuno modo per traslazione alcuna usare in questo santo e sacratissimo amorerdquo

174

transfigurar estando tatildeo perfeitamente unidas que ambas

podem ser chamadas de uma soacute alma603

Nas Conclusiones Pico retoma a questatildeo da segunda morte do corpo dessa

vez em razatildeo de algum tipo de imperiacutecia praticado durante o ldquointercursordquo O preccedilo a

pagar estaacute bem expresso na conclusio cabalistica 13

Quem operar em Cabala sem a presenccedila de algum estranho se

exporaacute agrave binsica [Morte do Beijo] caso se prolongue muito no

trabalho E se cometer erros durante o trabalho ou se

aproximar deste sem a devida purificaccedilatildeo seraacute devorado por

Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedila604

O Commento natildeo ultrapassa essas poucas indicaccedilotildees e seu autor deixa claro

que ldquonatildeo lereis nada a mais em seus livros [dos cabalistas] a natildeo ser que binsica isto

eacute a morte do beijo ocorre quando a alma no rapto intelectual se une agraves coisas

separadas e do corpo elevada em tudo o abandonardquo605 Provavelmente Pico obteve as

referecircncias sobre a Morte do Beijo atraveacutes de suas leituras de Maimocircnides que no

final do seacuteculo XI havia retomado do Talmud o tema do beijo divino oferecendo no

Guia dos Perplexos uma profunda exegese do assunto relacionando o uacuteltimo

intercurso ao desvanecimento do corpo na velhice condiccedilatildeo necessaacuteria para que o

impulso vital se transformasse em ldquopuro pensamentordquo606 Ou pode ter lido sobre o

assunto em Menachem Recanati outra de suas fontes que acerca do binsica elaborou

uma ldquoviagem extrema e alienanterdquo607 tendo legado um passo importante por

descrever de forma bastante detalhada o percurso miacutestico que pode conduzir ao

beijo beatificante e letal

Os padres morriam de um beijo Quando os pios e os homens de

accedilatildeo se encontravam em solidatildeo e imersos nos segredos

supernos a faculdade imaginativa de seus pensamentos fazia

que as coisas se mostrassem como gravadas perante eles E

603 Commento p557 ldquoma chi piugrave intrinsicamente ancora la vuole possedere e non contento del vederla e

udirla essere degnato dersquo suoi intimi amplessi e anelanti baci bisogna che per la seconda morte dal corpo per totale separazione si separi e allora non solo vede e ode la celeste Venere ma con nodo indissolubile a lei srsquoabbraccia e con baci lrsquouno in lrsquoaltro la propia anima trasfudendo non tanto cambiano quelle quanto che sigrave perfettamente insieme si uniscono che ciascheduna di loro dua anime e ambedue una sola anima chiamare si possonordquo

604 Concl II XI 13 p128 ldquoQui operatur in Cabala sine admixtione extranei si diu erit in opera morietur ex binsica et si errabit in opere aut non purificatus accesserit deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudiciirdquo Conforme FORNACIARI (2009 np42) para atingir o estado de ldquobinsicardquo ou a ldquomorte do beijordquo a alma racional que aspira agrave separaccedilatildeo da alma do corpo deve encontrar-se soacute Azazel na demonologia cristatilde eacute uma das sete epifanias do lado maligno Provavelmente Pico tomou o conceito de Azazel de Abulafia e de seu comentaacuterio ao Guia dos Perplexos de Maimocircnides que lhe foi traduzido por Mitridate

605 Commento p558 ldquonegrave piugrave nersquo loro libri leggerai se non che binsica cioegrave morte di bacio egrave quando lrsquoanima nel ratto intellettuale tanto alle cose separate si unisce che dal corpo elevata in tutto lrsquoabbandonardquo O Binsica que fecha o Commento eacute na opiniatildeo de BUSI (2014 p68) o mais afortunado entre os hiacutebridos piquianos retomado posteriormente por renomados como Baldassare Castiglione e Giordano Bruno Na continuidade da passagem Pico narra que os cabalistas mencionam que alguns de seus padres ldquomorreram de binsica como eacute o caso de Abraatildeo Jacoacute Moiseacutes Aaron Maria e alguns outrosrdquo Pico provavelmente extrai isso do Talmud da Babilocircnia que apresenta passos com essas menccedilotildees

606 BUSI opcit 2014 p69 607 Cf traduccedilatildeo de Giulio Busi 2014 p70

175

enquanto uniam suas almas agrave alma superior as coisas se

multiplicavam e se revelavam da fonte do pensamento como

quem abre uma cisterna drsquoaacutegua que comeccedila a fluir O

pensamento unido eacute de fato como fonte e cisterna que natildeo se

exaure [] Graccedilas agrave uniatildeo do pensamento com a emanaccedilatildeo as

palavras se multiplicam e crescem e surgem na alegria Por isso

foi ensinado que lsquoa Sekinah natildeo se manifesta na indolecircncia mas

na alegriarsquo608

As vaacuterias faces do misticismo de Giovanni Pico devem ser unificadas a partir

de evidecircncias amplamente dispersas nas Teses e confirmadas por discussotildees

retomadas em outras obras O tema da ascensatildeo miacutestica que ocorre antes da uniatildeo

extaacutetica sugerida pela imagem da Morte do Beijo eacute tambeacutem desenvolvido no

Commento Em uma interpretaccedilatildeo pessoal da tradicional escada platocircnica do

amor609 Pico relata a ascensatildeo em sete passos que envolvem uma progressatildeo ao

conhecimento ndash ldquoconhecimento reflexivordquo em seus termos ndash com a gradual

transformaccedilatildeo aniacutemica do sensual para o racional e sucessivamente para as

faculdades inteligiacuteveis Nos uacuteltimos graus de ascese o quinto e o sexto a alma

alcanccedila a ldquoVecircnus celestialrdquo (o inteligiacutevel ou a mente angeacutelica) que se lhe revela em sua

proacutepria imagem ndash embora ainda natildeo com a ldquoplenitude total de sua belezardquo pois que

esta natildeo pode ser apreendida pelo intelecto particular ou ldquoparcialrdquo da alma Assim

atraveacutes do amor a alma une seu intelecto parcial ao inteligiacutevel universal a ldquoprimeira

das criaturas a uacuteltima e universal hospedagem da beleza idealrdquo610

O seacutetimo passo da exposiccedilatildeo piquiana contempla o termo da trajetoacuteria um

estado de quietismo sugerido pela suacutebita mudanccedila de paradigma de linguagem ndash de

ativa durante o processo intelectual para passiva ao descrever o estaacutegio mais

elevado da ascensatildeo miacutestica ndash como bem observou Stephan Farmer611 ao final de seu

percurso quando o homem nada mais pode alcanccedilar por meio de seus proacuteprios

recursos a alma eacute ldquoatraiacutedardquo ldquopossuiacutedardquo ldquointoxicadardquo ldquoconsumidardquo ldquoinspiradardquo

ldquoiluminadardquo ldquoaperfeiccediloadardquo e finalmente ldquofelicitadardquo por Deus Em tal ponto

608 Menachem RECANATI Bersquour lsquoal ha-Torah Lemberg Wa-yehi 1880-81 c37d apud BUSI 2014 p70 A

fonte agrave qual Recanati recorre para dar um conteuacutedo teoacuterico agrave passagem eacute Azriel de Gerona atraveacutes de seu Comentario agraves aggadot talmuacutedicas A concepccedilatildeo de Sekinah estaacute relacionada com a ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina presente na literatura midraacuteshica conforme verificado no Capiacutetulo V Aqui quer significar o espaccedilo da emanaccedilatildeo divina Maiores detalhes podem ser vistos em BUSI 2011 p21

609 Cf FARMER opcit p110 610 Commento pp 567-569 Pico remete-se ao Banquete e ao Fedro para efetuar sua exposiccedilatildeo conforme sua

proacutepria indicaccedilatildeo (ibid p567) No primeiro dos sete passos de sua progressatildeo ao conhecimento a beleza particular de um objeto eacute percebida pelos sentidos e eacute desejada por si mesma No segundo passo a beleza sensual eacute abstraiacuteda pela capacidade inerente agrave alma embora ainda permanecendo distante de sua origem No terceiro passo a alma ldquoconsidera a proacutepria natureza da beleza corporal em si mesmardquo contemplando a ldquobeleza universal de todos os corpos compreendidos em conjuntordquo A beleza corpoacuterea desempenha um papel apenas nesses trecircs primeiros passos No quarto passo a alma conclui que a visatildeo da beleza corpoacuterea universal natildeo procede de um objeto exterior sensiacutevel mas de sua proacutepria luz e poder intriacutensecos e assim transformando-se em si mesma vecirc a imagem de beleza ideal que participa do intelecto No quinto passo fundamentando-se no conhecimento ldquoreflexivordquo a alma se eleva de sua parte racional para sua parte intelectual permitindo-se acolher a ldquoVecircnus celestialrdquo em sua proacutepria imagem Por fim a alma se une ao intelecto universal atraveacutes do amor A realizaccedilatildeo dessa uniatildeo na sexta etapa conclui sua jornada pois natildeo lhe eacute permitido ir mais longe no seacutetimo grau ndash no qual deve descansar com alegria ao lado do primeiro Pai a fonte da beleza

611 FARMER pp39 ss 112

176

terminal Pico faz convergir o percurso filosoacutefico com a experiecircncia religiosa ao

sugerir que no cume do processo gnosioloacutegico do homem ndash que atribui aos

platocircnicos chamar de ldquounidade da almardquo ndash a alma ldquose une imediatamente a Deusrdquo612

De suas leituras socraacuteticas apreendera que o ecircxtase miacutestico era comparaacutevel ao

reencontro com a eternidade inteligiacutevel em um estado de contemplaccedilatildeo que sacia a

alma e a coloca frente a frente com a plenitude de cada realidade613 Concepccedilatildeo

similar fora descrita em termos religiosos na De Hominis Dignitate na qual se lecirc

que em seu estado miacutestico mais elevado o homem eacute ldquofeito um soacute espiacuterito com Deusrdquo

deixando de ser ele mesmo e passando a ser ldquoAquele mesmo que o fezrdquo614

A concepccedilatildeo da Morte do Beijo pode ser tomada como um bom modelo do

ldquofimrdquo ndash temporaacuterio na ldquoprimeira morterdquo ou definitivo na ldquosegundardquo ndash para o qual

convergem muitas das argumentaccedilotildees piquianas de teor esoteacuterico Tal concepccedilatildeo de

caraacuteter precipuamente teoloacutegico coaduna-se com o seacutetimo grau do percurso

filosoacutefico dialeacutetico postulado no Commento estaacutegio que fora sinteticamente exposto

na Conclusio 58 in doctrina Platonis

A caccedilada de Soacutecrates[] pode ser adequadamente dividida em

seis graus o primeiro eacute a existecircncia de mateacuteria externa o

segundo a existecircncia particular imaterial o terceiro a existecircncia

universal o quarto a existecircncia racional o quinto a existecircncia

inteligiacutevel particular o sexto a existecircncia inteligiacutevel total No

seacutetimo grau eacute preciso desistir da caccedilada615

612 Commento p479 ldquoel sommo di questa parte intellectiva chiamano ersquo Platonici unitagrave della anima [hellip]rdquo 613 Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro pp57-58 60-61 Haacute vaacuterias passagens nas quais Soacutecrates tece

analogias entre o ecircxtase miacutestico e o reencontro da alma com o Inteligiacutevel As analogias se relacionam ao deliacuterio amoroso (Fedro 265 a-b) ao deliacuterio poeacutetico (Iacuteon 534 b-d) e tambeacutem ao deliacuterio loacutegico mesmo que ldquoem estado de deliacuteriordquo deve haver juacutebilo ldquoem sentir-se arrebatado pela eternidaderdquo (Feacutedon 69 c-d)

614 Oratio pp123-125 615 PICO Conclvsiones II V 58 (grifo nosso) ldquoVenatio illa Socratis de qua in Protagora conuenienter per sex

gradus potest sic distribui ut primus sit esse materiae extrinsecae secundus esse particulare immateriale tertius esse uniuersale quartus esse rationale quintus esse particulare intellectuale sextus esse totale intellectuale in septimo tanquam in sabbato cessandum est a uenationerdquo Eugenio Garin ao rodapeacute da passagem corrige ldquointelectualrdquo utilizado por Pico por ldquointeligiacutevelrdquo O tema eacute extraiacutedo do Protaacutegoras (321 b ss) conforme informado pelo proacuteprio Pico na mencionada passagem

177

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As obras de Pico della Mirandola analisadas ndash Conclusiones Nongentae De

Hominis Dignitate e Heptaplus ndash embora bastante distintas em termos de forma

conteuacutedo e propoacutesito apresentam em comum um amplo emprego de referecircncias

retiradas de doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do Esoterismo Os elementos

pertinentes a esse campo coletados nas trecircs obras evidenciam que as reflexotildees do

Autor se apropriam daqueles conteuacutedos reutilizando-os em formas hermenecircuticas

proacuteprias Conforme o intento proposto para esta tese foram identificadas tais

referecircncias cuja inserccedilatildeo em meio agraves argumentaccedilotildees se faz de forma fluiacuteda sem

instituir contrastes com categorias do universo filosoacutefico A verificaccedilatildeo de constantes

repeticcedilotildees desses modelos permite que seu conjunto seja estabelecido como uma

categoria proacutepria do pensamento piquiano Um objetivo secundaacuterio foi mostrar que o

recrutamento de tais elementos mostra-se no decorrer da leitura das obras uma

condiccedilatildeo essencial para o alcance de suas siacutenteses

A anaacutelise das Conclusiones realizada no Terceiro Capiacutetulo permitiu que

algumas constataccedilotildees fossem dispostas Entre o conglomerado de sistemas presentes

na obra foi visto que alguns temas despertam maior interesse do Autor vindo a se

condensar nas teses que integram os uacuteltimos grupos da obra Embora natildeo

apresentadas em formato argumentativo as teses dos quatro uacuteltimos grupos (que

tratam de doutrinas maacutegicas oacuterficas caldaicas e cabaliacutesticas) apresentam em seu

conjunto um postulado doutrinaacuterio de acentuado tom esoteacuterico cujos indiacutecios

conceituais satildeo verificaacuteveis no percurso das demais obras piquianas O mesmo

Capiacutetulo expotildee especiacuteficas teses de cunho teoloacutegico-cristatildeo que poderiam soar

estranhas dentro de uma investigaccedilatildeo que tem por objetivo tratar da utilizaccedilatildeo de

paradigmas esoteacutericos Essa abordagem mostrou-se uacutetil por permitir evidenciar

primeiramente que o Pico que se aproxima de teologias natildeo-cristatildes o faz como

algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em segundo lugar a

verificaccedilatildeo do material teoloacutegico permitiu a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-razatildeo no

pensamento piquiano necessaacuteria para a compreensatildeo da teleologia envolvida em sua

busca por convergecircncias doutrinaacuterias A partir dessa abordagem foi possiacutevel

constatar que a visatildeo piquiana de religiatildeo estaacute relacionada em um primeiro

momento a uma busca racional (pois ldquoa feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior

agrave razatildeordquo) busca essa que no entanto deve ser abandonada em seu uacuteltimo estaacutegio

(pois ldquoa feacute verdadeira eacute superior ao intelecto conjugando-nos imediatamente a

Deusrdquo)

Na De Hominis Dignitate tratada no Quarto Capiacutetulo verificou-se que a

concepccedilatildeo de dignidade do homem em Pico eacute diretamente relacionada agrave ideia de

transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios ndash vegetal animal racional intelectual

ndash apontando em direccedilatildeo agrave necessidade de exerciacutecios para a efetivaccedilatildeo de sua

liberdade ndash condiccedilatildeo que capacita o homem a encetar um percurso de auto

178

transformaccedilatildeo Assim o apregoado processo de transmutaccedilatildeo atraveacutes do qual o

homem inferior eacute regenerado e reconectado com o divino eacute entendido pelo Escritor

como um caminho a ser percorrido com o auxiacutelio de corretas ferramentas Os sete

modelos de processos triaacutedicos examinados extraiacutedos de registros histoacutericos

defendidos na obra ndash a dialeacutetica platocircnica o modelo angeacutelico pseudo-dionisiacuteaco a

misteriologia grega os paradigmas miacuteticos de Dioniso e Osiacuteris a representaccedilatildeo do

tabernaacuteculo da tradiccedilatildeo hebraica as praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas e a misteriologia

caldaica ndash fundamentam-se na tradiccedilatildeo oral ou na utilizaccedilatildeo de formas de linguagem

enigmaacuteticas que encobrem seus verdadeiros significados Os sete paradigmas de

trajetoacuterias asceacuteticas apontam na uacuteltima etapa para a experiecircncia de encontro com

um centro de unidade termo da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o

Absoluto

O mesmo fim eacute postulado atraveacutes do seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto

por Pico no Heptaplus que representa uma clara indicaccedilatildeo de preparaccedilatildeo do homem

ndash no qual se encerra um princiacutepio metafiacutesico de contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de

realidade ou dos Mundos analogados na obra ndash que culmina em sua unificaccedilatildeo com

o divino O Sexto Capiacutetulo testifica que para erigir seu projeto de teoria global de

representaccedilatildeo do mundo o Autor recruta registros que se fundamentam sobre

transmissotildees orais a comprovaccedilatildeo de idoneidade de Moiseacutes principal alicerce

referencial sobre o qual se edifica o projeto do Heptaplus eacute concebida a partir de

testemunhos retirados em sua totalidade de fontes esoteacutericas ndash ou tidas como

esoteacutericas ndash como os Misteacuterios gregos e egiacutepcios o pitagoacuterico Hermipo Pseudo-

Dioniacutesio os disciacutepulos de Amocircnio e ainda Platatildeo Jesus e seus disciacutepulos Paulo e

Joatildeo Satildeo assim utilizados mais uma vez paracircmetros utilizados em obras

anteriores ndash nesse caso para defender a autoridade de Moiseacutes paradigma essencial

em sua representaccedilatildeo do ser que alcanccedilou o uacuteltimo estaacutegio de uniatildeo com o divino

No uacuteltimo Capiacutetulo argumentou-se que o apelo a uma dimensatildeo alcanccedilada por

intermeacutedio de uma experiecircncia miacutestica pessoal eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que se

alcance o ldquofimrdquo apregoado nas obras piquianas Em De Ente et Uno Pico havia

refletido que soacute a razatildeo natildeo seria garantia de obtenccedilatildeo de qualquer resposta

postulando a impossibilidade de se colher Deus com o simples recurso do intelecto

ldquoo homem enquanto criatura racional se debate em vatildeo entre a necessidade de

afirmar a unidade que sente em sua proacutepria raiz e a impossibilidade derivada de sua

mesma subsistecircncia como natureza racional de alcanccedilaacute-la mantendo-se ele mesmordquo

Deparar-se com o abismo que o separa da Divindade mostra-se inevitaacutevel O ecircxtase

miacutestico eacute um caminho que possibilita realizar tal travessia A linguagem miacutetica ou

alegoacuterica por sua vez natildeo apenas protege tal dimensatildeo iniciaacutetica como permite a

apreensatildeo intelectual de tal fenocircmeno A Morte do Beijo a epopteia eleusina a visatildeo

de Moiseacutes no Sinai a illuminatio angeacutelica a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo

agostiniano o devekut cabaliacutestico representam momentos de unidade temporaacuteria ndash

a ldquoprimeira morterdquo descrita por Pico ndash que espelham a dissoluccedilatildeo na Unidade final

179

Apesar de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Giovanni Pico acolhe torna

suas e finalmente refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis A

sua tentativa de obter respostas eacute ampliada pelo acreacutescimo de um novo paradigma

categorial Mais do que isso a utilizaccedilatildeo da categoria esoteacuterica torna-se condiccedilatildeo

absolutamente necessaacuteria para o alcance do fim apontado em suas obras Resta

pontuar que o conjunto da obra piquiana natildeo se mostra algo distante pois de fato ali

estaacute relatada natildeo uma meta atingida mas uma perene busca Esse caminho encontra-

se descrito no De Ente et Uno qual uma previsatildeo pessoal natildeo intencional na qual o

Autor intui que ldquoo processo de colher Deus natildeo resulta em uma unidade que se

determina e resolve para sempre mas sim de um processo de unificaccedilatildeo que

procede ao infinitordquo

180

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

1 Fontes Primaacuterias

Traduccedilotildees de obras de Giovanni Pico della Mirandola

De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Eugenio Garin (org) Firenze Vallecchi 1942

Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Albano Biondi (org) Firenze Leo S Olschki 19952013

Conclusiones Cabalisticae Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009

Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009

Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Eugenio Garin (org) Vol I e II Firenze Vallecchi 1946-1952

Discorso sulla Dignitagrave dellrsquouomo Francesco Bausi (org) Parma Guanda 2003

Oratio de Hominis Dignitate Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001

A Dignidade do Homem Trad Luiz Feracine Campo Grande Solivros 1999

Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Trad Eugenio Garin Carmagnola Arktos 1996

Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Paolo Edoardo Fornaciari (org) Firenze Sismel Edizioni 2010

Expositiones in Psalmos Trad Antonino Raspanti - Giacomo Raspanti Firenze Leo Olschki 1997

Outras Fontes Primaacuterias

AGOSTINHO DE HIPONA Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2014

____ A Cidade de Deus Trad J Dias Pereira VolI Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996

CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Les Stromates Alain Le Boulluec (org) Trad Pierre Voulet Paris Eacuteditions du Cerf 1981

181

DIONIacuteSIO AREOPAGITA PSEUDO A Hierarquia Celeste Carin Zwilling (org) Satildeo Paulo Polar 2015

FICINO MARSILIO Theologia Platonica Milano Bompiani 2011

____ Opera Omnia Mario Sancipriano - Paul Oskar Kristeller (org) Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II

PICO DELLA MIRANDOLA GIANFRANCESCO Johannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consummatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta Bruno Andreolli (org) Modena Aedes Muratoriana 1994

PLATONE Tutte le opere Roma Newton Compton Editori 2010

PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Milano Bompiani 2010

POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006

CORPUS HERMETICUM Edizione e comento di Arthur Darby Nock Trad Andreacute-Jean Festugiegravere A cura di Ilaria Ramelli Milano Bompiani 2006

DE ORACULIS CHALDAICIS Trad Wilhelm Kroll Reprints from the collection of the University of Michigan Library [1894] Hildesheim G Olms 1962

SEcircFER YETSIRAacute O Livro da Criaccedilatildeo Aryeh Kaplan (org) Trad Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005

SEPHER HA-ZOHAR Trad Paul Vulliaud In Eacutetudes et Correspondance de Jean de Pauly Relatives au Sepher Ha-Zohar Paris Bibliothegraveque Chacornac 1933

ZOcircHAR RABI SHIMON BAR IOCHAI (atribuiacutedo a) Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume Editora 2013 (Tomo I) 2014 (Tomo II)

2 Fontes Secundaacuterias

AMBESI ALBERTO CESARE Giovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera In Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Carmagnola Arktos 1996

ANAGNINE EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico Bari Laterza 1937

BACON ROGER Opus maius IV Oxford JH Bridges 1897

BACCHELLI FRANCO Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica Cittagrave di Castello Leo S Olschki 2001

182

BARON HANS The Crisis of Early Italian Renaissance Civic Humanism and Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny New Jersey Princeton University PressNewberry Library 1966

____ En Busca del Humanismo Ciacutevico Florentino ndash Ensayos sobre el Cambio del Pensamiento Medieval al Moderno Trad Miguel Abelardo Camacho Ocampo Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Economica 1993

BARONE GIUSEPPE Antologia Giovanni Pico della Mirandola Milano Virgilio Editore 1973

BARTOLUCCI GUIDO Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana In Fabrizio Lelli (org) Giovanni Pico e la Cabbalagrave Firenze Leo Olschki 2014

BASTITTA HARRIET FRANCISCO Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Buffon-Drsquoamico (org) Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana Santa Feacute Ediciones UNL 2016

BATKIN LEONID M LrsquoIdea di Individualitagrave nel Rinascimento Italiano Trad Valentina Rossi Roma-Bari Laterza 1992

BAUSI FRANCESCO (org) Giovanni Pico della Mirandola Opere complete Torino Lexis Progetti Editoriali 2000

____ Nec rethor neque philosophus Fonti lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-87) Firenze Leo Olschki 1996

____ E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza Napoli Liguori 1998

BAZAacuteN FRANCISCO GARCIA ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus Madrid Biblioteca Claacutesica Gredos 1991

BEMPORAD DL ndash ZATELLI IDA (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Celebrazioni del V centenario della morte di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998

BERTI DOMENICO Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti In Rivista Contemporanea VII vol XVI Torino 1859

BERTOZZI MARCO (org) Nello specchio del cielo Giovanni Pico della Mirandola e le ldquoDisputationes contro lrsquoastrologia divinatoriardquo Firenze Leo Olschki 2008

BIDEZ JOSEPH ndash CUMONT FRANZ Les mages helleniseacutes Paris Belles Lettres 1938

BIGNOTTO NEWTON Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola In O que nos faz pensar nr 27 2010

BIONDI ALBANO ldquoIntroduzionerdquo alle Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 2013

183

BLACK CROFTON Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics Boston Brill 2006

BORI PIER CESARE I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola In Annali di storia dellrsquoesegesi 132 1996 pp 551-564

____ Pluralitagrave delle vie Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola Milano Feltrinelli 2000

BROCCHIERI MARIATERESA F B Pico della Mirandola Bari Laterza 2011

BURCHIELLARO GIANFRANCO ldquoIntroduzionerdquo a Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001

BURCKARDT JACOB La civiltagrave del Rinascimento in Italia Trad Valbusa Vol II Firenze Sansoni 1902

BURKERT WALTER Antigos Cultos de Misteacuterio Satildeo Paulo Edusp 1987

BUSI GIULIO La Qabbalah Roma-Bari Laterza 2011

____ Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001

____ Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo Torino Busi e Loewenthal (eds) 1995

____ Pico fede ragione e Inquisizione In Il Sole-24 Ore 28082018

BUSI GIULIO - EBGI RAPHAEL Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah Torino Giulio Einaudi Editore 2014

CASSIRER ERNST Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento Trad F Federici Firenze La Nuova Italia 19351977

CASSUTO UMBERTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze Leo Olschki 1918 (ristampa 1965)

CATAgrave CESARE ldquoLidea di lsquoanima stellatarsquo nel Quattrocento fiorentino Andrea da Barberino e la teoria psico-astrologica in Marsilio Ficinordquo In Bruniana amp Campanelliana XVI 2 2010 pp 629-639

CERETTI FELICE Biografie pichensi II Mirandola 1909

____ Giulia Boiardo In Atti e Memorie della Deput di Storia Patria dellEmilia Modena 1881

CHASTEL ANDREacute LrsquoArtista In Eugenio Garin (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016

COLLI GIORGIO A Sabedoria Grega ndash I (Fragmentos) Traduccedilatildeo Renato Ambroacutesio Satildeo Paulo Paulus 2012

COPENHAVER BRIAN Lrsquoocculto in Pico In Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Firenze Leo Olschki 1997

184

____ The Secret of Picorsquos Oratio Cabala and Renaissance Philosophy In Midwest Studies in Philosophy 26 2002

____ Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the

Renaissance In Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe Washington Associated University Presses 1988

COPENHAVER BRIAN ndash SCHMITT CHARLES Renaissance philosophy A History of Western Philosophy Oxford University Press 1992

CORAZZOL GIACOMO Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo In Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 pp9-61

CORBIN HENRY Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien Paris Eacuteditions Preacutesence 1971

CRAVEN WILLIAM G Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher Geacutenegraveve Librairie Droz 1981

CRINITO PIETRO De honesta disciplina Carlo Angeleri (org) Roma Fratelli Bocca 1955

CROCIANI LAMBERTO Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (orgs) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998 pp85-99

CROUZEL HENRY Pic de la Mirandole et Origegravene In Bulletin de litteacuterature eccleacutesiastique 66 1965 pp174-194 e pp272-288

DEacuteCARREAUX JEAN Les Grecs au Concile de lrsquo Union Ferrare-Florence 1438-1439 Paris A et J Picard 1970

DELLA TORRE ARNALDO Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze Firenze G Carnesecchi e Figli 1902

DE RUGGIERO GUIDO La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920

DES PLACES EDOUARD Oracles chaldaiumlques Paris Les Belles Lettres 1971

DI NAPOLI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma Desclee amp C Editori Pontifici 1965

____ LrsquoEssere e lrsquoUno in Pico della Mirandola In Rivista di Filosofia neoscolastica 46 1954 pp 356-389

DI NOLA ALFONSO MARIA Cabbala e mistica giudaica Roma Carucci 1984

DOREZ LEacuteON - THUASNE LOUIS Pic de la Mirandole em France (1485-88) Paris Ernest Leroux 1897 (Slatkine Reprints Genegraveve 1976)

185

DOREZ LEacuteON Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) In Giornale Storico della Letteratura italiana 25 1895

____ La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien In Giornale Storico della Letteratura italiana 32 1898

DOUGHERTY MICHAEL V (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

DUJOVNE LEOacuteN Kabbala Sefer Yetsiraacute El libro de la Creacion Buenos Aires Sigal 1992

____ El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires Sigal 1992

DUKAS JULES Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle Paris L Techener 1876

EDELHEIT AMOS Ficino Pico and Savonarola The evolution of Humanist Theology Leiden Brill 2008

FAIVRE ANTOINE Access to Western Esotericism Albany Suny Press 1994

FARMER STEPHAN ALAN Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems Temple Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies 1998

FAVARO A Lettera a Francesco Ingoli (org) In Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei v 6 Firenze Barbera Editore 1933

FERACINE LUIZ Prefaacutecio e Comentaacuterios a A Dignidade do Homem de Pico della Mirandola Campo Grande Solivros 1999

FESTUGIEgraveRE ANDREacute-JEAN Studia Mirandulana In Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge Paris Librairie Vrin 1933

____ La reacuteveacutelation drsquoHermegraves Trismeacutegiste 4 volumes Paris Les Belles Lettres 1950-1954

FIELD ARTHUR The Platonic Academy of Florence In Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy (Allen-Rees org) Leiden Brill 2002

FORNACIARI PAOLO EDOARDO Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano Mimesis 2009

____ Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano Mimesis 2009

____ Introduzione e Note a Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel 2010

____ Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola In Bruniana e Campanelliana 7 2001 pp627-633

186

GARFAGNINI GIAN CARLO (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) Firenze Leo Olschki 1997

GARIN EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina Roma Edizioni di Storia e Letteratura 2011

____ Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento 1965

____ La cultura del Rinascimento Bari Laterza 1967

____ Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975

____ Ermetismo del Rinascimento Pisa Della Normale 1986 (copia anastatica 2006)

____ Ritrati di Umanisti ndash Sette Protagonisti del Rinascimento Milano Bompiani 1996

____ Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento Bari Laterza 2007

____ LUmanesimo italiano Bari Laterza 2008

____ (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016

GENTILE GIOVANNI Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento Firenze Codignola 1991

GENTILE SEBASTIANO Il ritorno di Platone dei platonici e del corpus ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino In Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento Milano Mondadori 2002

GILL JOSEPH Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967

GILSON ETIENNE Les Meacutetamorphoses de la Citeacute de Dieu Publications Universitaires de Louvain Librairie Philosophique Louvain-Paris J Vrin 1952

GOLDFELD NAOMI VOGELMANN Elia del Medigo e lrsquoAverroismo hebraico In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

GRAFTON ANTHONY Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore In Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers Ann Arbor University of Michigan Press 1997

GRIFFITHS J GWYN (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970

187

GRIMALDI NICOLAS Soacutecrates o Feiticeiro Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006

GUICCIARDINI FRANCESCO Storie Fiorentine dal 1378 al 1509 Bari Laterza 1931

HANEGRAAFF WOUTER J (org) Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism Leiden Brill 2006

HANKINS JAMES Plato in the Italian Renaissance Leiden Brill 1990

HAYMAN A PETER Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism Tubingen Mohr Siebeck 2004

IDEL MOSHE Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

____ Kabbalah New Perspectives New Haven Yale University Press 1988

____ Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid Albany Suny 1990

____ Kabballah and Hermeticism in Dame Frances A Yatesrsquos Renaissance In Eacutesoterism gnoses et imaginaire symbolique Leuven 2001 pp71-90

____ Uma Introduccedilatildeo In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 2008-a

____ As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Eliana Langer e Margarida Goldsztajn Satildeo Paulo Perspectiva 2008-b

JACOBELLI JADER Pico della Mirandola Prefaacutecio de Eugenio Garin Milano Longabesi amp C 1986

KAPLAN ARIEH Secircfer Ietsiraacute O Livro da Criaccedilatildeo Teoria e Praacutetica Trad Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005

KEPLER JOHANNES De Stella Nova Harmonice Mundi In Gesammelte Werke Beck Muumlnchen Max Caspar 1938

KERN OTTO Orfici ndash Testimonianze e Frammenti nellrsquoedizione di Otto Kern A cura di Elena Verzura Milano Bompiani 2011

KIBRE PEARL The library of Pico della Mirandola New York Columbia University Press 1936

KIESZKOWSKI BOHDAN Averroismo e Platonismo in Italia negli ultimi decenni del sec XV In Giornale critico della Filosofia Italiana 1933 4

____ Averroismo e Platonismo in Italia In Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia Firenze 1936 capVII

188

____ Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia Firenze Sansoni 1936

____ Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola In Rinascimento XV 1964 pp 41-81

KRISTELLER PAUL OSKAR Supplementum ficinianum (org) Firenze Leo Olschki 1937

____ The scholastic background of Marsilio Ficino (1944) In Studies in Renaissance Thought and Letters Vol I Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1956

____ Movimenti filosofici del Rinascimento In Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29

____ La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento Firenze La Nuova Italia 1975

____ Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi Firenze La Nuova Italia 1978

____ Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Trad M Pentildealoza Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1970

____ El pensamiento renacentista y sus fuentes Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1982

____ Studies in Renaissance Thought and Letters Vol IV Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1996

KRISTELLER PAUL OSKAR - SANCIPRIANO MARIO (org) Marsilio Ficino Opera Omnia Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II

LEBECH METTE On the Problem of Human Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg Konigshausen amp Neumann 2009

LELLI FABRIZIO Alemanno Giovanni Pico della Mirandola e la cultura ebraica italiana del XV secolo In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola VolI Firenze Leo Olschki 1997

____ Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org) Firenze Leo Olschki 2014

____ Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

____ Pico della Mirandola Giovanni In Wouter Hanegraaf (org) Dictionary of Gnosis and Western Esotericism Leiden 2005 pp949-954

LILLA SALVATORE Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford Oxford University Press 1971

LIPINER ELIAS As Letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo ndash Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem Rio de Janeiro Imago 1992

LORENZ FV Cabala A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente Satildeo Paulo Pensamento 1997

189

LUBAC HENRI DE Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento Trad G Colombo - A dellrsquoAsta Vol 29 Milano Jaca Book 1977

____ Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions Paris Aubier Montaigne 1974

MAGHIDMAN MARCELO Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico Satildeo Paulo Annablume 2014

MAQUIAVEL NICOLAU Histoacuteria de Florenccedila Satildeo Paulo Martins Fontes 2007

MASAI FRANCcedilOIS Pleacutethon et le Platonisme de Mistra Paris Les Belles Lettres 1956

MASSETANI GUIDO La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola Empoli Tipografia di Edisso Traversari 1897

MATTER JACQUES Histoire critique du gnosticisme et de son influence Paris FG Levrault 1828 (reprint 2011)

MONFASANI JOHN Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte ldquoPrefassionerdquo In Accendere-Privitera (org) Milano Bompiani 2014

MOLINARI JONATHAN Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola Bologna Il Mulino 2015

MUNK SALOMON Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris A Franck 1857

PEGONE ENRICO Timeo Note e Trad In Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010

PINA MARTINS JOSEacute VITORINO Jean Pic de la Mirandole Un portrait inconnu de lrsquohumanisme une eacutedition trecircs rare de ses Conclusiones Paris Presses Universitaires de France 1976

____ Pico della Mirandola e o Humanismo Italiano nas origens do Humanismo Portuguecircs Lisboa Sep de Estudos Italianos em Portugal 1964

____ Cultura Italiana Lisboa Editorial Verbo 1971

RABI SHIMON BAR IOCHAI Zocirchar Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume 2013

RABIN SHEILA Pico on Magic and Astrology In Dougherty MV (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

____ Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic In Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750ndash70

RAGNISCO PIETRO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo In Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze Lettere ed Arti in Padova Padova 1891

190

RASPANTI ANTONINO Filosofia teologia religione lrsquounitagrave della visione in Giovanni Pico Palermo Edi Oftes 1991

REALE GIOVANNI Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo Trad Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 1997

RENAN ERNEST Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme Paris A Durand 1852

RHODE ERWIN Psyche Roma-Bari Laterza 2006

RIFFARD PIERRE Dicionaacuterio de Esoterismo Trad Maria Joatildeo Freire Lisboa Editorial Teorema 1993

ROTONDI SECCHI TARUGI LUISA LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998

RUGGIERO GUIDO DE La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920

RUTKIN H DARREL Giovanni Pico della Mirandolarsquos Early reform of Astrology an Interpretation of vera astrologia in the Cabalistic Conclusions In Bruniana e Campanelliana 10 2004 pp495-498

SARTORI ALBERTO Giovanni Pico della Mirandola Filosofia teologia concordia Padova Facoltagrave Teologica del Triveneto 2017

SCOTT WALTER - FERGUSON ALEXANDER STEWART Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which contain religious or philosophic teachings ascribed to Hermes Trismegistus Oxford Clarendon Press 1924-36

SCHIAVONE VALERIA Corpus Hermeticum Trad e Notas Milano BUR Rizzoli 2018

SCHMITT CHARLES Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle In (AAVV org) Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965

SCHNITZER JOSEPH Savonarola Vol1 Trad E Rutili Milano Fratelli Treves 1931

SCHOLEM GERSHOM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York Theological Seminary of America 1960

____ A Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg et al Satildeo Paulo Perspectiva 1972

____ A Cabala e seu simbolismo Trad Hans Borger e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1988

____ Cabala Enciclopeacutedia judaica Vol 9 Trad H Burlamaqui JC Guimaratildees e ML Braga Rio de Janeiro A Koogan 1989

____ As Grandes correntes da Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg e outros Satildeo Paulo Perspectiva 1995

191

____ Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica Trad Ruth Solon e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1999

SECRET FRANCcedilOIS Lrsquointerpretazione della Kabbala nel Rinascimento In ldquoConviviumrdquo 25 1956 pp541-552

____ Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance Milano Archegrave Arma artis 1985

SENDER TOVA Iniciaccedilatildeo agrave Cabala Rio de Janeiro Record 1991

SEMPRINI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola La Fenice degli Ingegni Todi Casa Editrice Atanograver 1921

SIRGADO GANHO MARIA LURDES Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate Lisboa Ediccedilotildees 70 2001

SUDDUT MICHAEL Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion In Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

TENENTI A Florence agrave lrsquoEacutepoque des Medicis Paris Flammarion 1968

THORNDIKE LYNN A History of Experimental Science Vol 4 Fourteenth and Fifteenth Centuries New York Columbia University Press 1934

VALCKE LOUIS Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique Paris Les Belles Lettres 2005

VALVERDE A J R Aportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandola In Revista de Filosofia Aurora Vol 21 29 pp 457-480 Curitiba Champagnat 2009

VASOLI CESARE Introduccedilatildeo agrave Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina (EGarin) Roma Edizioni Storia e Letteratura 2011

____ Imagini Umanistiche Napoli Morano 1983

____ Conclusioni In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) VolII Firenze Leo Olschki 1997 pp641-695

____ The Renaissance Concept of Philosophy In Charles Schmitt (org) The Cambridge History of Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1998

VILLARI PASQUALE Girolamo Savonarola Vol I Firenze Le Monnier 1910

WALKER DP Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958

WARBURG ABY La rinascita del paganesimo antico Contributi alla storia della cultura raccolti da G Bing Trad E Cantimori Firenze La Nuova Italia 1966

192

WEIL ERIC La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie Paris Editions Vrin 1986

WIRSZUBSKI CHAIM Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge Harvard University Press 19871989

____ Pic de la Mirandole et la Cabale Paris Eacuteditions de lrsquoeacuteclat 2007

WOODHOUSE CHRISTOPHER M George Gemistos Plethon The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986

YATES FRANCES A Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1995

____ Giovanni Pico della Mirandola and Magic In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo VolI Convegno Internazionale di Mirandola (1963) Firenze 1965 pp159-204

ZACCARIA RAFFAELLA MARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus In Paolo Viti (org) Pico Poliziano e lrsquoUmanesimo di fine Quattrocento Nr 16 Firenze Leo Olschki 1994

ZAMBELLI PAOLA Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lulliana in Pico della Mirandola e seguaci Venezia Saggi Marsilio 1995

ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola In Rinascimento ndash Rivista dellrsquoIstituto Nazionale di Studi sul Rinascimento nr48 Firenze Leo Olschki 2009

Page 3: ANNA MARIA CASORETTI

BANCA EXAMINADORA

____________________________

Prof Dr Antonio Joseacute Romera Valverde

____________________________

Prof Dr Jorge Luiz Rodrigues Gutiegraverrez

____________________________

Prof Dr Marcelo Perine

____________________________

Prof Dr Maacuterio Ariel Gonzalez Porta

____________________________

Prof Dr Pedro Monticelli

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash

Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Coacutedigo de Financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash

Brasil (CAPES) 888871518022017-00 ndash Finance Code 001

AGRADECIMENTOS

Duas pessoas em comum nascidas sob a marca estelar da

perseveranccedila foram fundamentais para que este trabalho chegasse a

termo meu orientador Professor Antonio Valverde e minha matildee

Adriana A ele devo natildeo apenas as sempre apropriadas elucidaccedilotildees no

decorrer do estudo como natildeo menos importante a sustentaccedilatildeo

ldquoespiritualrdquo para levaacute-lo adiante perante os inuacutemeros empecilhos

ensinou-me a ter como norte apenas a Filosofia Ela sempre presente

deu-me um auxiacutelio inestimaacutevel no suporte das questotildees cotidianas e com

sua sabedoria de vida me incentivou em meus momentos de fraqueza a

dar simplesmente ldquoo proacuteximo passordquo Aos dois minha eterna gratidatildeo

Agradeccedilo aos examinadores presentes na Banca do Exame de

Qualificaccedilatildeo Professores Jorge Gutieacuterrez Pedro Monticelli e Marcelo

Perine ndash trecircs mestres com os quais tive a feliz oportunidade de interagir

em outras circunstacircncias acadecircmicas ndash pelas preciosas sugestotildees

compartilhadas na ocasiatildeo Agradeccedilo ainda aos demais membros

partiacutecipes e suplentes agrave Banca Examinadora da Defesa Professores Luiz

Marcos da Silva Eduardo Kickhoumlfel e Maacuterio Porta pelo aceite de nosso

convite

Por fim natildeo posso deixar de agradecer a meu pai pelo silencioso

acolhimento a meu marido por sempre estar por aceitar minhas

ausecircncias e compreender minhas escolhas a meu filho por me incentivar

e compartilhar de minhas aspiraccedilotildees intelectuais e ainda pelo importante

auxiacutelio instrumental em ocasiotildees essenciais

RESUMO

CASORETTI Anna Maria Pico della Mirandola O Esoterismo como categoria

filosoacutefica 2020 192 p Tese (Doutorado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de

Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2020

O filoacutesofo renascentista Pico della Mirandola teve por principal intento

elaborar a conciliaccedilatildeo entre diferentes doutrinas e sistemas guiado pela

percepccedilatildeo da existecircncia de concepccedilotildees metafiacutesicas passiacuteveis de integraccedilatildeo

em seus graus mais elevados A paixatildeo pela comprovaccedilatildeo de

correspondecircncias leva-o a um percurso de aproximaccedilatildeo reconciliadora

com o passado e agrave consequente construccedilatildeo de estrateacutegias de correlaccedilatildeo

cujo princiacutepio-chave se encontra na ideia de que conceitos concernentes

aos niacuteveis mais altos da realidade se penetram reciprocamente Seu projeto

de convergecircncia teleoloacutegica contempla elementos derivados das mais

diversas perspectivas sejam filosoacuteficas teoloacutegicas ou misterioloacutegicas Em

meio a tais perspectivas identifica-se a presenccedila de tradiccedilotildees que se

perpetuaram em torno a formas de transmissatildeo esoteacuterica como eacute o caso

da misteriologia grega da Cabala judaica e do Hermetismo egiacutepcio bem

como de alguns registros de teor filosoacutefico e de manifestaccedilotildees do

Cristianismo primitivo e posterior que empregaram especiacuteficas formas de

linguagem relacionadas ao sigilo O objetivo desta investigaccedilatildeo eacute apontar

para tais elementos e mostrar que sua repeticcedilatildeo permite caracterizar seu

conjunto como uma categoria presente no pensamento piquiano utilizada

natildeo apenas como recurso retoacuterico mas como possibilidade de ampliaccedilatildeo e

de siacutentese das possibilidades interpretativas Satildeo adotadas como fonte de

investigaccedilatildeo as obras De Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae e

Heptaplus

Palavras-Chave Pico della Mirandola Renascimento Esoterismo Concoacuterdia

ABSTRACT

The main intention of the Renaissance philosopher Pico della Mirandola

was to conciliate different doctrines and systems guided by the perception

of the existence of metaphysical conceptions capable of integration in their

highest degrees The passion for the proof of correspondences leads him to

a path of reconciling with the past and the consequent construction of

correlation strategies whose key principle lies in the idea that concepts

concerning the highest levels of reality penetrate reciprocally His project

of teleological convergence contemplates elements derived from the most

diverse perspectives whether philosophical theological or mysteriological

The presence of traditions that have perpetuated themselves around forms

of esoteric transmission such as Greek mysteriology Jewish Kabbalah and

Egyptian Hermeticism is found in the midst of such perspectives as well

as some records of philosophical content and manifestations of primitive

Christianity that have employed specific forms of language related to

secrecy The aim of this investigation is to point out such elements and

show that their repetition allows us to characterize the set as a category

present in Picorsquos thought used not only as a rhetorical resource but as a

possibility of expansion and synthesis of interpretative possibilities De

Hominis Dignitate Conclusiones Nongentae and Heptaplus are adopted

as sources of investigation

Keywords Pico della Mirandola Renaissance Esotericism Concord

LISTA DE ABREVIATURAS

Concl (I) Giovanni PICO Conclusiones secundum opiniones aliorum Parte I in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013

Concl (II) Giovanni PICO Conclusiones secundum opinionem propriam Parte II in Albano Biondi (org) Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 19952013

Oratio Giovanni PICO De Hominis Dignitate in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Apologia Giovanni PICO Apologia in Paolo Edoardo Fornaciari (org) Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel Edizioni 2010

De Ente et Uno Giovanni PICO De Ente et Uno in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Commento Giovanni PICO Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo Benivieni in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Heptaplus Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione in Eugenio Garin (org) De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Firenze Vallecchi 1942

Heptaplus P1 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoPrimeiro Proecircmiordquo

Heptaplus P2 Giovanni PICO Heptaplus De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione (opcit) ldquoSegundo Proecircmiordquo

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 11

I ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO 14

II GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA 28

1 A Vida 30

2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu 41

3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos 47

III AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO 52

1 A Secreta Conexatildeo 55

2 Religiatildeo ou Filosofia 63

3 Maritare Mundum 69

IV A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS 79

1 O tema da Dignidade do homem 81

2 O tema da Concoacuterdia 87

3 O tema da Ascese 91

V RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO 108

1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica 110

2 O Cosmo Cabalista 121

3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade 127

VI O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA 137

1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio 139

2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus 143

3 A Occlusa Sapientia 152

VII FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA 158

1 O Paradigma Esoteacuterico 158

2 A Concordacircncia teleoloacutegica 166

3 A Morte do Beijo 172

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 177

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 180

Nulla res spiritualis descendens

inferius operatur sine indumento

Nenhuma realidade espiritual que

descenda aos mundos inferiores

opera sem se velar

(Pico della Mirandola Conclusio

secundum doctrinam sapientum

hebraeorum Cabalistarum XXV)

11

INTRODUCcedilAtildeO

A presente tese propotildee identificar a presenccedila de elementos esoteacutericos na obra

do filoacutesofo Giovanni Pico della Mirandola mostrando que a recorrecircncia de tais

indiacutecios permite que lhes seja atribuiacuteda a qualificaccedilatildeo de categoria filosoacutefica Com o

termo ldquocategoriardquo pretende-se significar a presenccedila de um padratildeo discerniacutevel dentro

de um processo reflexivo formado pelo agrupamento de determinadas caracteriacutesticas

que se repetem a ponto de poderem ser classificadas sob uma denominaccedilatildeo comum

O termo ldquoesoterismordquo por sua vez abriga dois principais significados tantas vezes

confundidos Contempla de um lado um conjunto de tradiccedilotildees ou interpretaccedilotildees ndash

de cunho filosoacutefico teoloacutegico ou misterioloacutegico ndash que buscam proteger do puacuteblico

determinados assuntos por meio da manutenccedilatildeo do segredo ou da transmissatildeo oral

comunicando-os apenas a um restrito nuacutemero de adeptos De outro admite amiuacutede

um sentido associado ao ldquomisticismordquo relacionado a praacuteticas que conduzem ao que

chamariacuteamos hoje de experiecircncias fenomenoloacutegicas pessoais As duas significaccedilotildees

encontram-se abrangidas pela obra piquiana Seus registros foram colhidos pelo

Autor a partir de fontes pagatildes cristatildes e hebraicas encontrando-se dispostos de

forma fluiacuteda e harmocircnica lado a lado com categorias do universo filosoacutefico e

teoloacutegico Apontar para a presenccedila de tais padrotildees eacute o intento pretendido Como

objetivo secundaacuterio seraacute sugerida no uacuteltimo Capiacutetulo a existecircncia de um propoacutesito

teleoloacutegico que pede a utilizaccedilatildeo de tais paradigmas para o fechamento de certas

hipoacuteteses sob o arco da estruturaccedilatildeo do pensamento piquiano

Trecircs razotildees permitem inserir esta contribuiccedilatildeo no campo de conhecimento da

Histoacuteria da Filosofia a saber (a) o papel proeminente de seu protagonista uacuteltimo

pensador do Quattrocento italiano no panorama do Pensamento do seacuteculo XV (b) os

aportes derivados da averiguaccedilatildeo de doutrinas pertencentes a culturas e tradiccedilotildees

ocidentais e natildeo-ocidentais e (c) a apuraccedilatildeo da utilizaccedilatildeo de elementos esoteacutericos ndash

tese aqui desenvolvida ndash em cenaacuterio filosoacutefico Em outras palavras (a) Giovanni Pico

natildeo sem fundamento foi elevado agrave condiccedilatildeo de um dos mais significativos

representantes de sua eacutepoca em virtude de sua obra manifestar muitos dos

relevantes fermentos e anseios que caracterizaram seu periacuteodo embora seu quadro

intelectual de referecircncias se encontrasse fora do alcance da maioria de seus

contemporacircneos suas reflexotildees natildeo estavam isentas das principais preocupaccedilotildees de

seu tempo Ademais (b) a adesatildeo do Autor a um novo esquema epistemoloacutegico de

revisatildeo dos saberes com os quais esteve em contato o leva muito aleacutem dos problemas

filosoacuteficos nucleares dos seacuteculos que o antecedem permitindo ao leitor conhecer

doutrinas pertencentes a culturas exteriores agrave Ocidental ndash caso do Hermetismo

egiacutepcio da Cabala judaica e do Zoroastrismo persa ndash integrantes da ampla unificaccedilatildeo

pretendida por Pico Alguns daqueles conteuacutedos ndash natildeo suficientemente estudados ndash

oferecem relevantes aportes agrave Filosofia sobretudo para as temaacuteticas que concernem agrave

sistematizaccedilatildeo do mundo inteligiacutevel Finalmente (c) o estudo de um padratildeo de

pensamento colhido de fontes esoteacutericas natildeo apenas nos coloca em contato com

12

tradiccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas que fizeram uso do segredo para se perpetuar como

fornece novos paradigmas de investigaccedilatildeo e de linguagem O emprego de elaboraccedilotildees

mentais extraiacutedas de tradiccedilotildees orais natildeo eacute simples recurso retoacuterico utilizado pelo

Autor mas aporte necessaacuterio para alcanccedilar certas siacutenteses Ao contraacuterio do que possa

acreditar o senso comum haacute uma forccedila racional presente em grande parte das

doutrinas que se erigem em torno agrave transmissatildeo esoteacuterica mostrando-se seu estudo

uma importante ampliaccedilatildeo das possibilidades interpretativas

A motivaccedilatildeo para apresentar tal conjunto de temas deve-se precipuamente ao

fato de a obra de Pico della Mirandola ter sido pouco estudada no cenaacuterio filosoacutefico

nacional Tanto as traduccedilotildees quanto as interpretaccedilotildees em portuguecircs satildeo escassas

Tem-se agrave disposiccedilatildeo em primeira linha apenas as traduccedilotildees da Oratio de Hominis

Dignitate realizadas por Luiz Feracine e Maria de Lurdes Sirgado nas quais os

autores apresentam prefaacutecios introdutoacuterios ao trabalho de traduccedilatildeo Com relaccedilatildeo agrave

obra Conclusiones Nongentae principal projeto do autor os conteuacutedos

interpretativos natildeo apenas satildeo inexistentes em acircmbito nacional como bastante

exiacuteguos em termos mundiais Ademais com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees orientais acolhidas

por Pico o material para discussatildeo de suas doutrinas mostra-se em ambiente paacutetrio

insuficiente o que contribui para manter sua obra em um patamar de

impenetrabilidade Essas mesmas condiccedilotildees determinaram a opccedilatildeo por uma

apresentaccedilatildeo mais ampla e integrativa da obra piquiana um trabalho desenvolvido

de forma pontual estruturado apenas em torno aos especiacuteficos pontos esoteacutericos

coletados dos textos piquianos traria uma especificidade soacute aceitaacutevel em um

territoacuterio onde tanto o autor quanto sua obra fossem suficientemente conhecidos

Em termos de divisatildeo dos capiacutetulos segue-se uma apresentaccedilatildeo que se inicia

com os aspectos exteriores ligados agrave sociedade e agrave vida do Autor para em seguida

abordar as produccedilotildees concernentes ao seu pensamento Assim embora natildeo se mostre

uma exigecircncia para o tema desenvolvido o Primeiro Capiacutetulo agrave guisa de ldquosegunda

introduccedilatildeordquo tem por funccedilatildeo dispor o cenaacuterio temaacutetico e reconstituir uma parte da

atmosfera intelectual renascentista preparando o leitor para o acolhimento de alguns

dos elementos fundamentais que compotildeem o universo do pensamento piquiano O

Segundo Capiacutetulo contempla a biografia de Giovanni Pico devida por estar

diretamente vinculada ao desenvolvimento de seu modus cogitandi essa a razatildeo de

ser abordada no mesmo capiacutetulo a formaccedilatildeo de seu pensamento atraveacutes da

apuraccedilatildeo das principais Escolas doutrinaacuterias com as quais o filoacutesofo teve contato

Esse percurso basilar evidencia que Pico natildeo se lanccedila a argumentaccedilotildees de cunho

esoteacuterico como algueacutem desprovido de qualquer bagagem acadecircmico-filosoacutefica Antes

o contraacuterio Eacute a dimensatildeo de tal bagagem que lhe permite vislumbrar os pontos de

convergecircncia entre vaacuterias escolas e linhagens de conhecimento ndash ocorrecircncia que

pouco se verifica nas investigaccedilotildees acerca da filosofia natural ou moral mas mostra-

se de forma significativa em torno aos pontos mais elevados de suas especulaccedilotildees

metafiacutesicas ndash protegidos mais das vezes pela transmissatildeo oral

13

Do Terceiro ao Sexto Capiacutetulos satildeo apresentadas e discutidas trecircs das

principais obras de Pico as Conclusiones Nongentae a Oratio De Hominis Dignitate

e o Heptaplus O influxo do Esoterismo na obra piquiana soacute poderia ser confirmado

por meio da abordagem de certo nuacutemero de obras em seu conjunto a verificaccedilatildeo de

uma uacutenica obra natildeo traria a dimensatildeo fiel de tal influxo podendo caracterizar um

caso isolado Entre os capiacutetulos mencionados o Quinto deve ser entendido como uma

necessaacuteria digressatildeo para introduzir a seccedilatildeo seguinte contentora de informaccedilotildees

pertinentes ao Cabalismo que requerem elucidaccedilotildees porquanto o leacutexico cabaliacutestico e

muitas de suas concepccedilotildees natildeo satildeo usuais na literatura filosoacutefica Finalmente no

Seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo satildeo alinhavados os capiacutetulos precedentes de forma a lhes

dar uma coerecircncia em forma de epiacuteteto

O desenho do conjunto conforme a sequecircncia de seus capiacutetulos segue um

formato que de certa forma acompanha o desenvolvimento intelectual do Autor

poderia outrossim designar um modelo de trajeto de desenvolvimento gnosioloacutegico

partindo da esfera puacuteblica na qual satildeo apreendidas informaccedilotildees pertinentes ao

ldquoespiacuteritordquo da proacutepria eacutepoca (I) passa pelas experiecircncias de aprendizado e estudos

pessoais (II) que levam agrave elaboraccedilatildeo de ordenaccedilotildees intelectuais decorrentes das

escolas e doutrinas assimiladas (III) permitindo vislumbrar a partir delas

possibilidades de elevaccedilatildeo e de dignificaccedilatildeo do homem (IV) alcanccedilado tal estaacutegio o

pensamento lanccedila-se em especulaccedilotildees metafiacutesicas em torno agraves esferas do Inteligiacutevel

(V e VI) ateacute finalmente alcanccedilar o fim para onde tendem todas as doutrinas (VII)

Sob tal perspectiva a ordem da leitura auxilia de forma complementar a vislumbrar

a siacutentese almejada por Pico della Mirandola norte de suas investigaccedilotildees mais

profundas e fundamento para a recepccedilatildeo das mais diversas doutrinas manifestas ou

natildeo

14

CAPIacuteTULO I

ASPECTOS POUCO LEMBRADOS DO RENASCIMENTO

No ano de 1440 Joatildeo VIII Imperador Bizantino era recebido na casa

florentina de Cosimo il Vecchio1 um dos mais proeminentes integrantes dos Medici

O encontro dos dois poderia ateacute natildeo ser digno de nota natildeo fosse o fato que ali se

encontravam os personagens siacutembolos de duas das mais fecundas ocorrecircncias que a

cidade de Florenccedila vivenciaria naquele seacuteculo para o campo do Pensamento o

Conciacutelio para unificaccedilatildeo das Igrejas e o Mecenato O soberano de Bizacircncio chegara agrave

cidade para aquele encontro ecumecircnico com o qual se esperava conter o avanccedilo dos

turcos2 no que foi seguido por consideraacutevel nuacutemero de teoacutelogos que traziam para o

solo italiano textos ineacuteditos Durante o periacuteodo em que durou ndash entre lsquo39 e lsquo44 em

meio agrave vigecircncia delrsquo Vecchio ndash3 deu-se o encontro entre as figuras mais

representativas do mundo cristatildeo (gregos e latinos) com profiacutecuas consequecircncias

para os seacuteculos XV e posteriores visto que se difundiram informaccedilotildees confrontaram-

se doutrinas e crenccedilas e abriram-se as portas para o afluxo de novos livros sobretudo

dos campos filosoacutefico e teoloacutegico Somada agrave iniciativa de mecenas como Cosimo ndash

que incentivou a aquisiccedilatildeo e traduccedilatildeo de manuscritos ndash as duas ldquoinstituiccedilotildeesrdquo

criaram as bases para a implementaccedilatildeo de um ambiente propiacutecio tanto para o retorno

a fontes antigas quanto para a abertura a novas doutrinas estranhas agrave cristatilde

O encontro de culturas foi um acontecimento sem antecedentes naquele

territoacuterio Embora a Florenccedila do seacuteculo XV natildeo possa ser comparada agrave Bagdaacute do

seacuteculo X ou agrave Toledo do seacuteculo XIII lugares onde ocorreram encontros significativos

entre as trecircs culturas monoteiacutestas mais importantes essa cidade deveria ser

mencionada como bem observa Moshe Idel imediatamente depois delas4 A urbe

toscana assistiu natildeo apenas agrave chegada dos bizantinos como acolheu um nuacutemero

significativo de judeus ndash alguns provenientes de Constantinopla mas a maior parte

expulsos da Espanha e de outros territoacuterios Ainda que a representatividade aacuterabe

natildeo tenha sido expressiva como nas outras duas cidades sua presenccedila em solo

florentino foi garantida atraveacutes dos gregos e judeus que traduziam e difundiam seus

textos entre os latinos As contribuiccedilotildees estrangeiras abriram as portas ao Platonismo

de teor miacutestico-teoloacutegico que dominou alguns ambientes intelectuais da segunda

metade do seacuteculo XV cujos rastros propiciaram a abertura para tradiccedilotildees de teor

esoteacuterico Vejamos como

1 A alcunha ldquoCosimo il Vecchiordquo eacute comumente traduzida por ldquoCosme o Velhordquo ndash assim sem viacutergula Optamos

por manter os nomes italianos em seu idioma original 2 O projeto como se sabe mostrou-se malogrado o seacuteculo XV assiste agrave tomada decisiva do Impeacuterio do Oriente

por Maomeacute II que agrave frente dos otomanos conquista Constantinopla em 1453 3 O Conciacutelio para a uniatildeo das Igrejas iniciara em Basileia em 1431 sendo depois transferido para Ferrara e

finalmente para Florenccedila em 1439 Cosimo dersquo Medici regeu a cidade de Florenccedila entre 1434 e 1464 Para maiores detalhes acerca do Conciacutelio leia-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967

4 Moshe IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 34

15

Apoacutes a tomada da capital de seu Impeacuterio pelos otomanos que ocorreria poucos

anos apoacutes o teacutermino do Conciacutelio muitos bizantinos permaneceram na Itaacutelia Alguns

dentre eles antes daquele periacuteodo vinham ajudando a incrementar o ensino do

grego necessaacuterio para o diaacutelogo com os Antigos5 contudo a contribuiccedilatildeo bizantina

mostrou-se bem mais significativa Dois personagens em particular corroboraram a

mudanccedila de paradigma intelectual que estava por vir Basiacutelio Bessarion e George

Gemistos ambos com papeacuteis seminais dentro da organizaccedilatildeo do Conciacutelio Bessarion

chegara agrave Itaacutelia em vestes de arcebispo acompanhado de Nicolau de Cusa revelando-

se um importante sustentador da uniatildeo das Igrejas Gemistos que se tornara

conhecido como George Plethon passara a integrar o Conselho de Florenccedila a partir

de rsquo38 tornando-se conselheiro do Imperador oriental Desde o iniacutecio daquelas

reuniotildees Bessarion mostrara-se preocupado em proteger os uacuteltimos vestiacutegios da

cultura grega de uma provaacutevel extinccedilatildeo assim ao mudar-se para a Itaacutelia de forma

definitiva decide transferir e doar agrave cidade de Veneza sua inteira biblioteca bizantina

exercendo ateacute o fim de seus dias uma incansaacutevel atividade de procura de textos

antigos6 O viacutenculo entre os dois eruditos iniciara ainda na Greacutecia quando durante

seis anos Bessarion frequentara em Mistra a escola de George Plethon mestre que o

introduzira agrave filosofia platocircnica7 Agrave eacutepoca Plethon se apresentava com um

comportamento profeacutetico atraveacutes do qual anunciava o fim das trecircs grandes religiotildees

e o consequente advento da cidade platocircnica8 Mais tarde seria ele o mestre de

Mistra um dos grandes responsaacuteveis pelo florescimento do Platonismo em Florenccedila

Sua presenccedila em solo toscano que de imediato provocaria uma profunda impressatildeo

no ciacuterculo de intelectuais florentinos lhe permitiria exercer um efetivo influxo sobre

seu pensamento sobretudo em duas frentes o estiacutemulo para uma mudanccedila de

orientaccedilatildeo filosoacutefica de Aristoacuteteles em direccedilatildeo a Platatildeo e a abertura para doutrinas

5 Alguns gregos de elevada erudiccedilatildeo como Argiropoulos George de Trebizonda Teodoro Gaza e seu disciacutepulo

Demetrio Calcondila alavancaram o ensino do grego entre os humanistas italianos (Eugenio GARIN Lo zodiaco della vita - La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63) A caacutetedra de grego focircra inaugurada por Manuel Chrysoloras em Florenccedila no seacuteculo anterior sendo recebida com exclamaccedilotildees por Leonardo Bruni ldquoEram setecentos anos que a Itaacutelia ignorava o grego fonte de todas as doutrinasrdquo (Leonardi ARETINI Rerum suo tempore gestarum commentarius in ldquoMuratorirdquo Rev Ital Script XIX 3 1926 p403 apud GARIN LUmanesimo italiano 2008 p48)

6 GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007 p63 Apoacutes a queda de Constantinopla Bessarion sentiu a necessidade de formar uma biblioteca que protegesse a sobrevivecircncia da civilizaccedilatildeo grega e bizantina Conseguiu comprar ou fazer copiar a maior parte das obras do Helenismo antigo e escolheu como abrigo a cidade de Veneza natildeo somente pela confianccedila em seu sistema constitucional republicano como pelo fato de que ali prosperava uma expressiva colocircnia grega que lhe parecia constituir uma segunda Bizacircncio Os inventaacuterios das vaacuterias doaccedilotildees que foram feitas agrave Biblioteca de San Marco foram elencados por Lotte LABOWSKY em Bessarions Library and the Biblioteca Marciana - Six early inventories Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1979 Para maiores informaccedilotildees acerca de Bessarion veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 sobretudo a nota 120 p 52 para amplas referecircncias bibliograacuteficas

7 Em Mistra antiga Esparta Plethon fundara uma escola filosoacutefico-religiosa de tendecircncias neoplatocircnicas antes de vir para a Itaacutelia participar do Grande Conciacutelio Em duas cartas (uma de 1446-47 e a outra de 1454) Bessarion se refere a seu mestre Plethon como ldquoo mais saacutebio dos homensrdquo e ldquomais semelhante a Platatildeo em sabedoria e qualquer outra virtude do que qualquer outro nascido na Greacutecia desde a Antiguidaderdquo Embora cristatildeo Bessarion sugeria que conforme a doutrina da transmigraccedilatildeo das almas adotada por seu mestre ldquonatildeo se poderaacute negar que a alma de Platatildeo tomou por morada o corpo de Plethonrdquo (John MONFASANI Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte Milano 2014 apud MOLINARI op cit np60)

8 Franccedilois MASAI Pleacutethon et le Platonisme de Mistra 1956 pp 300-314 Para maiores detalhes sobre a vida de George Plethon vejam-se as obras de Christopher WOODHOUSE George Gemistos Plethon - The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986 (pp 154-170) Arnaldo DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia platonica di Firenze Firenze 1902 Eugenio GARIN Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975

16

estrangeiras ndash de cunho misterioloacutegico ndash que apresentavam viacutenculos teoreacuteticos entre

si

Assim pode-se dizer que a presenccedila grega em territoacuterio italiano natildeo propiciou

apenas o aprendizado de um idioma e o afluxo de manuscritos trouxe outros

desdobramentos Nas discussotildees em que defendiam a originalidade do pensamento

grego frente aos latinos os padres gregos contribuiacuteram em algum niacutevel e mesmo que

de forma involuntaacuteria a acelerar a crise da filosofia escolaacutestica no Ocidente atraveacutes

da instauraccedilatildeo de um certo ambiente de repuacutedio a Aristoacuteteles em seus ciacuterculos em

linhas gerais difundiam a opiniatildeo que os silogismos do Estagirita nada acresciam agrave

Teologia estranhando a forma como seus contemporacircneos latinos sustentavam teses

a partir de arsenais dialeacuteticos9 Cabe observar que certos fundamentos da tradiccedilatildeo

monaacutestica bizantina corroboravam tal direcionamento seus mosteiros eram

marcados pela miacutestica e pelo pietismo faces de uma especiacutefica forma doutrinal que

levava muitos padres gregos a se identificarem mais intimamente com os teores

neoplatocircnicos10

As discussotildees teoloacutegicas somaram-se agraves entatildeo existentes discussotildees

acadecircmicas que dividiam humanistas e aristoteacutelicos11 Um dos principais atores a lhes

fornecer municcedilatildeo foi George Plethon ao escrever um polecircmico opuacutesculo que em

breve tempo se tornaria objeto de intenso debate nos ciacuterculos de imigrados gregos ndash

sobretudo aqueles reunidos em torno a Bessarion ndash passando a verter para os

nuacutecleos latinos12 O opuacutesculo sustentava o ldquoprimadordquo de Platatildeo o que provocou a

reaccedilatildeo de seu conterracircneo George de Trebizonda que sairia em defesa de Aristoacuteteles

atraveacutes de sua Comparatio philosophorum Aristotelis et Platonis de 1458 A questatildeo

assume ressonacircncia puacuteblica levando o entatildeo cardeal Bessarion a efetuar uma

contrarreacuteplica Surge assim em 1459 a primeira versatildeo em grego do In

calumniatorem Platonis texto de capital importacircncia no qual sem atacar Aristoacuteteles

ndash cujos escritos ensinados por dois seacuteculos nas universidades europeias eram

considerados superiores em clareza e ordem expositiva ndash Bessarion se esforccedila por

mostrar que as razotildees habitualmente utilizadas para justificar a preferecircncia pelo

Liceu eram inconsistentes pois originadas de uma incompreensatildeo das verdadeiras

9 Jean DEacuteCARREAUX Les Grecs au Concile de lrsquoUnion Ferrare-Florence 1438-1439 1970 p106 Ainda para

as reaccedilotildees contra o Aristotelismo veja-se Joseph GILL Il Concilio di Firenze 1967 p270 10 A partir de 1347 a igreja bizantina havia adotado a doutrina esicasta que representava mais do que uma

retomada de posiccedilotildees neoplatocircnicas Para muitos patriotas bizantinos era uma forma de inovaccedilatildeo que andava em direccedilatildeo contraacuteria tanto agrave Igreja ortodoxa quanto agrave antiga tradiccedilatildeo filosoacutefica ligada ao Aristotelismo (cf James HANKINS Plato in the Italian Renaissance Brill Leiden 1990 pp 193-197 apud MOLINARI opcit np60) Natildeo nos cabe aprofundar uma reflexatildeo em torno agraves complexas discussotildees teoloacutegicas entre gregos e latinos que influiriam em seus direcionamentos filosoacuteficos nossa intenccedilatildeo eacute pincelar alguns matizes que conduzem aos conteuacutedos a serem tratados

11 As disputas entre aristoteacutelicos e platonistas perpassam o seacuteculo XV sendo comprovadas atraveacutes de grande quantidade de material epistolar A Filosofia quattrocentesca eacute efetivamente marcada pela presenccedila de dois principais troncos a disputar o mesmo seacuteculo De um lado perpetua-se o pensamento escolaacutestico herdado dos medievais representado pela cidade de Paacutedua verdadeira rocha da tradiccedilatildeo aristoteacutelica-averroiacutesta de outro consolida-se o receacutem-nascido pensamento humanista com sua sede na eleita Florenccedila que em muitas narrativas define a ideologia do seacuteculo em questatildeo Maiores detalhes sobre o tema podem ser lidos em Paul Oskar KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996 Eugenio GARIN LUmanesimo italiano 2008 Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998

12 O opuacutesculo de George Plethon seria publicado em latim apenas no seacuteculo seguinte sob o tiacutetulo De differentiis Platonis et Aristotelis

17

intenccedilotildees que estavam na origem dos Diaacutelogos A forma enigmaacutetica da obra

platocircnica acentuada pelo uso de mitos e de imagens poeacuteticas nascia natildeo de uma

escassa preparaccedilatildeo loacutegica de seu Autor ou de um suposto desprezo pelo rigor

cientiacutefico mas sim em razatildeo da elevada altitude metafiacutesica de seu discurso que natildeo

poderia nem deveria ser expresso em termos a todos compreensiacuteveis A ideia de

conteuacutedos que natildeo poderiam ser revelados na obra de Platatildeo enfatizada por

Bessarion frutificaria sobretudo entre os ciacuterculos que viriam a frequentar a

Academia de Florenccedila

Outro fator concorrente para a orientaccedilatildeo da vida intelectual italiana que

tomaria um rumo de crescentes conotaccedilotildees miacutesticas foi a chegada de rabinos

miacutesticos e estudiosos de teosofia hebraica provenientes dos lugares mais distantes da

Diaacutespora que souberam desenvolver escolas de estudo e laboratoacuterios de escrita e

estampa a ponto de exercerem um influxo original sobre a cultura europeia13 Assim

enquanto a primeira metade do Quatrocentos presencia o influxo bizantino na

segunda metade do seacuteculo estreitam-se as relaccedilotildees entre os intelectuais cristatildeos e os

judeus sobretudo em razatildeo da toleracircncia exercida pelo neto de Cosimo Lorenzo e

pelos ciacuterculos ligados a Pico della Mirandola14 As trocas entre judeus e cristatildeos

gregos ndash ambos depositaacuterios da antiga sabedoria helecircnica ndash natildeo eram novidade

ocorrecircncia que podia ser verificada ainda em solos bizantinos15 Dessa vez as

contribuiccedilotildees do nuacutecleo intelectual hebraico somadas agrave bagagem trazida pelos

bizantinos voltavam-se agrave latinidade cristatilde Ademais uma significativa quantidade de

mestres hebreus tornou propiacutecia a divulgaccedilatildeo de textos ateacute entatildeo desconhecidos no

seacuteculo XV seja em razatildeo da dificuldade de traduccedilatildeo dos originais ndash gregos hebraicos

ou aacuterabes ndash seja em razatildeo do caraacuteter sigiloso de alguns textos hebraicos ndash que devido

a certas contingecircncias comeccedilaram a ser divulgados16

13 Gianfranco BURCHIELLARO ldquoIntroduccedilatildeordquo a Mantova e la Qabbalah 2001 14 IDEL opcit 1998 pp 39-40 Tais relaccedilotildees satildeo comprovadas por epiacutestolas como uma carta de Ficino de

1485 que relata os frutiacuteferos encontros entre doutos hebreus e cristatildeos (Ficino Opera I pp903-904 apud Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 64) Lorenzo dersquo Medici teve uma especial benevolecircncia com os judeus acolhendo em sua casa meacutedicos (a legislaccedilatildeo eclesiaacutestica proibia que cristatildeos fossem tratados por meacutedicos judeus mas as terras florentinas natildeo seguiram essa vedaccedilatildeo) muacutesicos como Guglielmo da Pesaro e filoacutesofos ligados ao seu amigo Pico della Mirandola Houve pregadores especialmente das Ordens Mendicantes que tentaram levantar a populaccedilatildeo contra os judeus como em outras eacutepocas mas as consequecircncias de suas pregaccedilotildees foram bastante limitadas e controladas nesse periacuteodo Sobre o teacutermino da benevolecircncia com os judeus a partir do advento de Savonarola leia-se Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p54 Para maiores detalhes acerca da aceitaccedilatildeo dos judeus em solo toscano veja-se Lamberto CROCIANI Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico ibid 1998 p85Veja-se ainda Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp56-61 Cesare VASOLI ldquoQuadro drsquoInsiemerdquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 5

15 George Plethon por exemplo antes de chegar agrave Itaacutelia estudara por muitos anos na escola de um renomado mestre hebreu Elisseo (Elischa) que por sua vez era sequaz dos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles Elisseo foi um importante transmissor natildeo apenas da cultura aacuterabe como da grega e persa tendo sido ele a iniciar Plethon no pensamento de Zoroastro que mais tarde chegaria agrave Academia florentina (cf MASAI opcit pp 57-60)

16 IDEL opcit 1998 p 34 Em resposta agrave nova segregaccedilatildeo dos judeus que viria no seacuteculo XV e da queima de seus livros sagrados houve um incremento de publicaccedilotildees de textos judaicos considerados segretos como forma de reaccedilatildeo agraves perseguiccedilotildees e frente ao perigo de aniquilamento da proacutepria cultura (Giulio BUSI Mantova e la Qabbalah 2001 p 28)

18

Conquanto desde o iniacutecio do lsquo400 alguns humanistas cristatildeos seguissem aulas

com professores de hebraico17 foi somente a partir da segunda metade do seacuteculo que

alguns doutos hebreus se tornariam renomados entre os ciacuterculos natildeo-hebraicos

passando a se expor em um clima de liberdade e de proficuidade sem precedentes na

histoacuteria intelectual judaica18 Antes desse periacuteodo o pensamento judaico natildeo havia

exercido nenhuma influecircncia decisiva sobre os maiores representantes do

pensamento cristatildeo salvo raras exceccedilotildees como foi o caso do influxo do Guia dos

Perplexos de Maimocircnides sobre Tomaacutes de Aquino e da influecircncia de A Fonte da

Vida de Avicebron sobre a teologia franciscana19 Agora bem mais que mediadores

linguiacutesticos os judeus mais ilustrados interpretavam textos criativamente e

capacitavam seus patronos cristatildeos a apreender formas de pensamento mais antigas e

ateacute entatildeo inacessiacuteveis em razatildeo de seus idiomas originais Alguns judeus tornaram-se

assim mestres requisitados como foi o caso dos ceacutelebres Flaacutevio Mitridate e Elia del

Medigo que mediavam o conhecimento hebraico e o aacuterabe bem como de Yohanan

Alemanno que teve acesso agraves mais importantes obras platocircnicas e neoplatocircnicas a

partir da tradiccedilatildeo filosoacutefica judaico-aacuterabe ndash trecircs autores aos quais seraacute feita uma

aproximaccedilatildeo nos proacuteximos capiacutetulos

A partir do uacuteltimo quartel do seacuteculo XV verifica-se uma significativa mudanccedila

de direccedilatildeo nas reflexotildees daqueles trecircs mestres sintomaacutetica da nova atmosfera

intelectual que se firmava ou quem sabe de uma maior liberdade que permitia o

afloramento de seus verdadeiros interesses temaacuteticos Conteuacutedos filosoacuteficos de teor

metafiacutesico passam a ser relacionados com conteuacutedos maacutegicos em diferentes

formatos que emergem em linha paralela com o interesse intelectual cristatildeo

passando a contaminar os ciacuterculos de Florenccedila A interpretaccedilatildeo com feiccedilotildees maacutegicas

da Cabala aparece seja nas traduccedilotildees latinas de Mitridate como nos escritos de

Alemanno na mesma eacutepoca em que Ficino traduz textos ldquomaacutegicosrdquo colhidos de obras

neoplatocircnicas e hermeacuteticas20 Contudo e apesar da reciacuteproca atraccedilatildeo por assuntos de

magia entre estudiosos dos dois grupos religiosos os autores judeus gozavam de

maior liberdade intelectual do que os autores cristatildeos que se encontravam sob a mira

da Igreja21 Assim fontes neoplatocircnicas e hermeacuteticas ndash e no caso de Giovanni Pico e

seus amigos judeus tambeacutem cabaliacutesticas ndash podem ser encontradas nos escritos da

eacutepoca unidas em amaacutelgamas que caracterizam uma forma original de pensamento

Da mesma forma como ocorreu com os gregos os judeus mais eruditos

receberam amplos incentivos de mecenas tanto cristatildeos quanto pertencentes ao

17 Caso de Poggio Bracciolini e Giannozzo Manetti 18 Sobre o tema leia-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 pp274-278 19 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e

Cabalistas 2008-b p 457 20 Moshe IDEL efetua uma anaacutelise acerca do significativo paralelo que se estabeleceu entre os intelectuais

judeus e cristatildeos precisamente no mesmo periacuteodo e na mesma aacuterea geograacutefica considerando esse um dilema interessante da histoacuteria intelectual ainda natildeo esclarecido (1998 pp 23-25) Franco BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 36) confirma a reciprocidade de tais influxos muitas marcas das discussotildees sobre Magia e Astrologia mantidas entre Pico e Ficino ndash no contexto das duas longas polecircmicas que perpassaram o seacuteculo ndash encontram-se nas obras posteriores de Alemanno

21 Segundo Idel existem registros de encontros entre magos cristatildeos e judeus durante o Renascimento (2008-b np464) Sobre a sutil fusatildeo de elementos neoplatocircnicos com aspectos do misticismo judaico vejam-se na mesma obra as paacuteginas 499-501 Ainda Giulio BUSI La Qabbalah 2011 pp28-29

19

nuacutecleo hebraico Agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici a tradiccedilatildeo familiar do mecenato

hebraico alcanccedilou seu maacuteximo esplendor atraindo para Florenccedila numerosas

personalidades do mundo hebraico no mesmo periacuteodo a Academia florentina se

abria para o mundo22 Suas contribuiccedilotildees juntamente com as discussotildees entre padres

gregos e latinos ajudaram a disseminar a filosofia neoplatocircnica enquanto em modo

simultacircneo se renovava o interesse pela mensagem velada natildeo-escrita George

Plethon de forma preciacutepua embora falecendo quase dez anos antes do surgimento

do ciacuterculo de estudos platocircnicos seria o responsaacutevel por transmitir consistentes

sementes que se desenvolveriam dentro daquele ambiente vindo a dar frutos a partir

da segunda metade do seacuteculo

A Academia antigas tradiccedilotildees novas traduccedilotildees

A chegada de Plethon agrave cidade dos Medici entusiasmou o velho Cosimo que

costumava estar entre aqueles que ouviam os discursos do filoacutesofo bizantino Plethon

vindo para o Conciacutelio que ajudaria a pacificar os acircnimos religiosos aproveitou para

dar a seus ouvintes latinos todos enamorados de Aristoacuteteles uma ideia da grandeza

de Platatildeo Cativado por tais discursos apaixonados foi sendo concebido no Patriarca

natildeo sem as devidas sugestotildees do amigo grego o desenho de um plano para instaurar

um centro de estudos de vieacutes platocircnico em solo toscano Em certo ponto Cosimo

decide realizar tal obra e escolhe o filho de seu meacutedico o ainda jovem Marsilio Ficino

para levar a termo tal empreitada Assim no ano de 1462 ndash ano considerado de

fundaccedilatildeo da Academia ndash Cosimo daacute a Ficino uma villa em Careggi incumbindo-o da

traduccedilatildeo e comentaacuterios de alguns diaacutelogos platocircnicos23 O proacuteprio Ficino batiza o

local com o nome ldquoacademiardquo homenagem agrave antiga escola fundada por Platatildeo A

Academia de Careggi preluacutedio da Academia de Florenccedila que floresceria mais tarde

sob os auspiacutecios drsquoil Magnifico Lorenzo natildeo foi um organismo legalmente

constituiacutedo como uma instituiccedilatildeo mas um simples convecircnio de doutos reunidos em

nome de um mesmo interesse cultural Suas portas se abriram para receber os mais

diversos interessados desde pensadores ilustres como Angelo Poliziano Cristoforo

Landino e os irmatildeos Benivieni ateacute poetas oradores sacerdotes homens de governo

muacutesicos juristas meacutedicos e o proacuteprio Lorenzo

Do lado de fora o cenaacuterio florentino era incrementado pelo despertar do

interesse e do envolvimento cultural de crescente nuacutemero de habitantes da cidade

tatildeo amplo na segunda metade do seacuteculo que ultrapassava os meios acadecircmicos

estendendo-se aos burgueses meacutedicos funcionaacuterios puacuteblicos artesatildeos A discussatildeo

de obras difiacuteceis como De Ente et Uno de Pico della Mirandola de temaacutetica abstrata

e aparentemente reservada a poucos especialistas despertava o interesse de um

22 CASSUTO opcit 1918 pp301-303 O patriarca Yehiel da Pisa foi um dos grandes dinamizadores de

literatura e poesia da eacutepoca e seu neto tambeacutem Yehiel que viveu agrave eacutepoca de Lorenzo dersquo Medici acolheu em sua casa florentina por vaacuterios anos uma verdadeira corte de literatos hebreus Na casa de Yehiel Yohanan Alemanno foi criado desde ainda menino educado e instruiacutedo de forma ldquoamorosardquo como conta em ldquoPrefaacuteciordquo ao seu livro Chesel Shelomograve (apud CASSUTO ibid np303)

23 GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 pp15-16

20

puacuteblico consideraacutevel a ponto de entusiasmaacute-lo24 O habitat florentino em si com seu

fervor cultural representava uma experiecircncia culturalmente importante para os

jovens estudantes que chegavam agrave cidade pela primeira vez como narraria Yohanan

Alemanno em uma de suas obras25 Enquanto isso dentro da Academia ocorria um

movimento de renovaccedilatildeo da feacute encabeccedilado por Ficino que fundamentando-se nas

especulaccedilotildees de Plethon postulava a comunhatildeo entre Religiatildeo e Filosofia buscando

acomodar aquela aos novos tempos26 A unificaccedilatildeo entre o Cristianismo e os

redescobertos temas da filosofia platocircnica e neoplatocircnica ndash em grande parte

originalidade sua ndash juntamente com sua vasta obra de traduccedilatildeo foram os dois

importantes legados deixados por Ficino

Efetivamente as traduccedilotildees foram uma dimensatildeo importante do Renascimento

florentino promovidas sobretudo pelo mecenato dos dois Medici avocirc e neto Dois

grandes conjuntos de obras foram traduzidos na comitiva de Lorenzo o de idioma

grego que incluiacutea textos neoplatocircnicos e hermeacuteticos e o hebraico que contemplava

tratados natildeo apenas filosoacuteficos como cabaliacutesticos27 Assim ao iniacutecio da deacutecada de lsquo60

Ficino traduz Alciacutenoo Especircusipo os ldquoVersosrdquo outorgados a Pitaacutegoras e o texto

lAssioco atribuiacutedo a Xenoacutecrates Mais adiante os hinos atribuiacutedos a Orfeu a

Homero os de Proclo e a Teologia de Hesiacuteodo Em lsquo84 inicia a traduccedilatildeo das

Eneacuteadas de Plotino e entre lsquo88 e lsquo93 traduz Teofrasto Porfiacuterio Jacircmblico Prisciano

Sineacutesio Miguel Psello Pseudo-Dioniacutesio e os fragmentos de Atenaacutegoras Junte-se a

essas a traduccedilatildeo de trinta e seis obras platocircnicas e vaacuterias outras28 A magnitude da

obra de traduccedilatildeo ficiniana natildeo suficientemente destacada viria a ter um notaacutevel

influxo no pensamento renascentista europeu aleacutem de propiciar agravequela cultura um

patrimocircnio ateacute entatildeo desconhecido em sua complexidade Ora nos seacuteculos anteriores

a essa eacutepoca os textos de Platatildeo natildeo eram lidos diretamente da fonte original trecircs

seacuteculos antes de Ficino o abade Guglielmo de Saint Thierry escrevia sobre o amor

24 Esses detalhes da vida na cidade podem ser avaliados atraveacutes de cartas trocadas entre Pico e cidadatildeos

comuns que natildeo apenas se mostravam interessados como estavam aptos muitas vezes a debater ideias filosoacuteficas bastante eruditas (cf Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p96)

25 Alemanno escreve na obra Hay ha-olamim (Lrsquoimmortale) que a cidade digna de se tornar a meca ideal de todo jovem desejoso de aprofundar seus conhecimentos era ldquoFirenze in terra di Toscanardquo O autor elenca as virtudes dos florentinos assim efetuando um verdadeiro elogio humanista agrave Repuacuteblica de Florenccedila (M MORTARA Catalogo dei manoscritti ebraici della biblioteca della comunitagrave israelitica di Mantova Livorno I Costa e C 1878 pp22-29 apud Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 51)

26 George Plethon vivera uma ldquofeacuterdquo neoplatocircnica procurando explicar questotildees teoloacutegicas de forma racional Ficino por sua vez torna-se padre catoacutelico e embora pretendendo seguir os cacircnones de sua feacute cristatilde natildeo consegue renunciar agrave formulaccedilatildeo de uma teologia racional capaz de dar agrave feacute religiosa um fundamento filosoacutefico (Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano p71) Sobre as afinidades entre o Platonismo e o Cristianismo veja-se COPENHAVERndashSCHMITT Renaissance philosophy A History of Western Philosophy 1992 p152

27 Segundo Moshe IDEL (1998 pp 19 24) a obra grega traduzida por Ficino e o conjunto cabaliacutestico traduzido por Mitridate foram as fontes mais importantes para o desenvolvimento intelectual dos pensadores florentinos do final do seacuteculo XV e da Europa como um todo Suas contribuiccedilotildees foram devidamente reconhecidas pelos estudiosos as traduccedilotildees de Ficino de forma especial por Paul Oskar KRISTELLER (La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento 1975) Jaacute as traduccedilotildees do hebraico mais recentemente foram analisadas detalhadamente por Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticis 19871989)

28 Como infere Mariateresa BROCCHIERI (opcit p24) ldquoem momentos proacutesperos da Histoacuteria ocorrem afortunados fenocircmenos de encontro entre o poder e a cultura trecircs seacuteculos antes na rica Andaluzia muccedilulmana o califa Abu Yarsquoqub Yusuf passara a Averroacuteis a tarefa de traduzir e comentar Aristoacutetelesrdquo dando o pontapeacute inicial para um longo periacuteodo de estudos aristoteacutelicos Agora era a vez de Cosimo Ficino e a abertura para os estudos platocircnicos

21

platocircnico baseado em fontes indiretas como Ciacutecero ou Agostinho Mas agora no

seacuteculo de Pico podia-se ler Platatildeo diretamente e as suas palavras tornavam-se pontos

de referecircncias primaacuterias29

Em meio ao material filosoacutefico houve ainda dentro da esfera intelectual da

Renascenccedila um amplo espaccedilo para temaacuteticas de cunho ldquotranscendenterdquo de

acentuado teor esoteacuterico apresentadas muitas das vezes revestidas por uma

roupagem filosoacutefica entretecida de tendecircncias neoplatocircnicas hermeacuteticas e ndash menos

perceptiacuteveis ndash cabaliacutesticas Um dos responsaacuteveis por instigar tal atmosfera fora

George Plethon cuja influecircncia natildeo se dera apenas em relaccedilatildeo ao Platonismo ele

tambeacutem trouxera Hermes Trismegisto e Zoroastro para Florenccedila jaacute devidamente

sistematizados pelo bizantino Miguel Psello no seacuteculo XI30 A partir das traduccedilotildees de

Ficino para o latim conteuacutedos permeados de misticismo e magia passam a ser

transmitidos a vaacuterios nuacutecleos da sociedade embora tal gecircnero de interesse se

mostrasse anterior tendo percorrido o seacuteculo por inteiro A relevacircncia dada ao tema

permite algumas especulaccedilotildees Para o homem meacutedio31 a religiatildeo apresentava uma

dicotomia mateacuteria-espiacuterito entatildeo natildeo mais tanto satisfatoacuteria a mateacuteria era causa de

afliccedilotildees e o reino do espiacuterito mostrava-se distante demais A intuiccedilatildeo de mundos

intermediaacuterios corroborada pelas discussotildees astroloacutegicas trazia possiacuteveis respostas agrave

sua precaacuteria existecircncia ao mesmo tempo em que o conhecimento de formas de magia

permitia natildeo se deixar dominar pelo fatuum32 Criava-se assim um espaccedilo entre a

religiatildeo e a mateacuteria preenchido pelo acesso agravequelas realidades intermeacutedias como

observou Eric Weil ldquoo homem renascentista iacutea agrave missa e depois ao astroacutelogordquo33

Ademais a crenccedila na Astrologia se intensifica em razatildeo de um difundido

anseio por unificaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o cosmo ao seu redor ndash tema estimado pelo

ldquoespiacuteritordquo do seacuteculo e razatildeo do incremento daquele estudo em meio aos humanistas

da Academia A invenccedilatildeo da prensa graacutefica tornou possiacutevel determinar com certo

grau de precisatildeo quais obras eram consideradas essenciais ou populares agrave eacutepoca

atraveacutes da detecccedilatildeo de quais conteuacutedos foram impressos mais cedo e em maior

nuacutemero a quantidade de volumes dedicados agrave Astrologia no Quattrocento italiano

aponta para a disseminaccedilatildeo de tal interesse juntamente com sua centralidade nas

29 COPENHAVER-SCHMITT opcit pp133 ss No ldquoPrefaacuteciordquo ao Supplementum ficinianum Giovanni

GENTILE escreve que Ficino eacute importante natildeo apenas para o entendimento do Renascimento italiano como do Platonismo europeu que sobreviveria dois seacuteculos depois dele portanto para o entendimento de muito da Filosofia Moderna de cujo desenrolar se plasmou o pensamento de nosso tempo (KRISTELLER Supplementum ficinianum 1937) Eugenio GARIN por sua vez ajuiacuteza que ldquoacerca da ressonacircncia enorme causada pela traduccedilatildeo de Ficino nunca se diraacute o suficienterdquo (op cit 2007 p73)

30 Arthur FIELD The Platonic Academy of Florence in Allen-Rees (org) Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy 2002 pp 359-376 Ainda para o tema veja-se IDEL 2008 p499

31 A menccedilatildeo ao homem ldquomeacutediordquo eacute usual em textos intelectuais da eacutepoca como os de Ficino e Pico para indicar homens natildeo partiacutecipes do mundo do pensamento Veja-se por exemplo De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno e scritti vari 1942 p396

32 Natildeo poucos textos de conteuacutedos declaradamente maacutegicos circulavam no Quattrocento Eugenio Garin considera que o tema da magia encontra-se no centro do quadro renascentista tal constataccedilatildeo faz o autor se distanciar sob esse quesito de Jacob Burckhardt e Giovanni Gentile (cf Michele CILIBERTO Prefaacutecio a GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006) Sobre o fatuum veja-se GARIN ibid p42

33 Eric WEIL La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie 1986 p66 Weil acrescenta que o homem do lsquo400 vivia em si uma divisatildeo interna estanque ele se via cristatildeo iacutea agrave igreja cumpria todos seus deveres religiosos ele sabia da existecircncia da alma e que essa tinha um valor mas era um saber ldquomortordquo pois o que ocorria no mundo material natildeo tinha relaccedilatildeo com a sua alma

22

discussotildees metafiacutesicas34 a presenccedila constante de instacircncias profeacuteticas na vida

poliacutetica as representaccedilotildees artiacutesticas (a imagem do homem coacutesmico onde cada parte

ou oacutergatildeo do corpo se encontra ligada a um corpo celeste torna-se comum nos

tratados astroloacutegicos) e a importacircncia do papel do astroacutelogo ndash que se torna um ator

social requisitado Todas indicaccedilotildees de um fenocircmeno central e caracterizante de uma

eacutepoca35

Sob tal clima homens letrados recepcionam o Picatrix manuscrito aacuterabe de

conteuacutedo maacutegico36 Bem mais que um manual de magia cerimonial o texto

contempla uma mescla de temas filosoacuteficos teoloacutegicos e praacuteticos apresentando um

nexo ldquoentre pressupostos teoacutericos e praacuteticas operativas entre hermetismo

especulativo de vieacutes platonizante e magia entre teurgia e teosofia orientalrdquo37 Lecirc-se

em suas linhas que ldquoa ciecircncia procede por graus conhecido um logo surge outro a

ser apreendidordquo e que ldquoatraveacutes da ciecircncia o homem faz milagres compreende tudo

consegue ser tudordquo38 Chamaria a atenccedilatildeo da Academia o conceito de ldquoNatureza

Perfeitardquo uma entidade espiritual agrave qual os filoacutesofos participam em graus diversos

qual um caminho iniciaacutetico que se desvela agrave medida que se caminha ndash um segredo

escondido dentro da Filosofia No proacuteprio Picatrix encontra-se sua definiccedilatildeo atraveacutes

de um belo discurso atribuiacutedo a Hermes Trismegisto ldquoA Natureza Perfeita eacute o

espiacuterito do filoacutesofo e do saacutebio conjugado ao planeta que o governa Eacute ele que abre as

portas da ciecircncia que o faz compreender as coisas que de outra forma natildeo poderia

compreender e das quais procedem as operaccedilotildees da natureza tanto em vigiacutelia como

no sono Daiacute resulta claro que a Natureza Perfeita se comporta no saacutebio e no filoacutesofo

como o mestre em relaccedilatildeo ao disciacutepulordquo39

O que interessa destacar eacute como as correspondecircncias entre conteuacutedos supra-

mundanos despertaram a atenccedilatildeo de estudiosos como Ficino levando-os a perceber

34 A chamada ldquopolecircmica da astrologiardquo colocaria em evidecircncia a multiplicidade de temas com ela convergentes

ou contrastantes deixando como heranccedila uma vasta quantidade de material literaacuterio O debate que perpassa todo o seacuteculo XV envolvendo um total de pelo menos trecircs seacuteculos torna partiacutecipes tanto homens de inegaacutevel conhecimento cientiacutefico como Paolo Toscanelli quanto homens de profunda religiosidade como Ficino cujas conhecidas praacuteticas astroloacutegicas contrastavam com seu pensamento cristatildeo Tanto Toscanelli quanto Ficino apesar de terem ambos colocado em duacutevida a validade das previsotildees astrais continuavam dependentes das prescriccedilotildees astroloacutegicas como observa Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo agrave obra de Garin (2011) A cidade de Ferrara um dos principais redutos de intelectuais abrigava ciacuterculos de doutos que se reuniam para tentar decifrar os significados que se escondiam nas intrincadas relaccedilotildees formadas entre os astros eram homens de razatildeo que comungavam da mesma ldquofeacuterdquo nas estrelas (Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1935 pp165 ss) Para os impactos sociais da Astrologia leia-se GARIN Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento 2007

35 Franz BOLL Sphaera Neue griechische Texte und Untersuchungen zur Geschichte der Sternbilder Hildesheim Georg Olms reprinted 1967 p415 ss (apud GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 p173)

36 O Ghayat al-hakim (O propoacutesito do Saacutebio) ou Picatrix foi um ceacutelebre tratado aacuterabe de autor incerto cuja versatildeo latina manuscrita circulou na Itaacutelia especialmente na segunda metade do lsquo400 ocasionando tanto admiraccedilatildeo quanto indignaccedilatildeo entre alguns cristatildeos e muccedilulmanos ndash como o estudioso Ibn Khaldun ndash por ser visto como um manual de necromancia Giovanni Pico possuiacutea uma coacutepia do manuscrito em sua biblioteca Ludovico Lazzarelli o utilizou bem como no seacuteculo seguinte Cornelio Agrippa Giordano Bruno e Tommaso Campanella A obra encontra-se atualmente no Manuscrito de Munique 214 f51r (Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b np463 p474) Para o tema leia-se GARIN La diffusione di un manuale di Magia la cultura filosofica del Rinascimento italiano Firenze 1961 pp159-165

37 Cf GARIN Ermetismo del Rinascimento 2006 p47 38 Picatrix III vi trad Henry CORBIN Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien 1971 pp29-46 39 Picatrix III vi trad CORBIN (opcit)

23

que muitos temas do Picatrix estavam expostos no Pimander hermeacutetico ndash a ser

abordado adiante ndash confirmando a estreita conexatildeo entre Hermetism0 Magia e

Astrologia Indo aleacutem o Picatrix expunha um saber operativo capaz de colocar em

praacutetica as doutrinas hermeacuteticas receacutem-descobertas Com efeito Ficino e Pico se

interessaram pela efetuaccedilatildeo das experiecircncias maacutegicas contidas na obra O clima

excepcional de abertura ao sincretismo de pensamento existente em Florenccedila natildeo

impediu contudo que Ficino sofresse perseguiccedilotildees da Igreja Vozes maliciosas

acusavam-no de ter continuado a realizar praacuteticas maacutegicas juntamente com Pico no

periacuteodo em que este se encontrava confinado apoacutes a condenaccedilatildeo de sua obra

Conclusiones Nongentae e mesmo depois de Ficino ter sido ameaccedilado de

condenaccedilatildeo eclesiaacutestica40 O proacuteprio padre confessava ter utilizado o Picatrix em seu

Terceiro Livro do De Vita ao tratar das propriedades terapecircuticas dos talismatildes

reconhecendo ldquoatraveacutes de longa experiecircnciardquo que a concentraccedilatildeo de influxos celestes

sobre uma imagem realizada segundo as corretas regras apresentava um singular

efeito terapecircutico41 Fato eacute que enquanto Ficino era acusado de praacutetica de magia a

obra De Vita via suas ediccedilotildees se multiplicarem

A Simetria entre as Antigas Teologias

Um ano apoacutes Cosimo ter pedido a Ficino que traduzisse algumas obras

platocircnicas eis que o monge Leonardo de Pistoacuteia chega da Macedocircnia trazendo para

Florenccedila uma coacutepia do Corpus Hermeticum O impacto do surgimento desse material

eacute tatildeo extraordinaacuterio que Ficino se vecirc obrigado a suspender a traduccedilatildeo das obras de

Platatildeo para dedicar-se imediatamente ao novo manuscrito Em uma tradiccedilatildeo que fora

inaugurada por Miguel Psello o pensamento bizantino vinha mantendo por seacuteculos

o Corpus Hermeticum em um lugar de honra dentro do ensinamento platocircnico42 e os

mestres chegados de Bizacircncio para o Conciacutelio de Florenccedila cerca de duas deacutecadas

antes haviam sido os primeiros a apontar para a afinidade existente entre o

Hermetismo e o Platonismo no que concernia agrave sistematizaccedilatildeo do cosmo e agrave

ldquoantropologiardquo presentes em seus textos43 A suposta anterioridade de Hermes

Trismegisto em relaccedilatildeo a Platatildeo e a superioridade espiritual dos egiacutepcios sobre os

gregos ndash entatildeo paradigma maacuteximo do conhecimento ndash sugerida nas palavras

40 GARIN 2006 pp42-49 Nas paacuteginas do Picatrix eacute possiacutevel encontrar um compecircndio de foacutermulas maacutegicas

nas quais satildeo utilizados ingredientes como o oacutepio o haxixe e outras plantas psicoativas cujo consumo induziria a estados alterados e favoraacuteveis agrave clarividecircncia (GARIN 2007 pp51 ss)

41 Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano 1970 p71 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 38

42 Miguel Psello foi uma das personalidades mais importantes da cultura bizantina poliacutetico conselheiro de imperadores professor da Universidade de Constantinopla autor de numerosos escritos e conhecido em particular por suas obras de Histoacuteria envolveu-se na recuperaccedilatildeo da cultura claacutessica ndash interesse que encontrou a hostilidade dos ciacuterculos tradicionalistas da Igreja Bizantina Comentador de Aristoacuteteles e Platatildeo Psello tambeacutem se interessou pelas obras dos neoplatocircnicos Psello efetuou um recolhimento das coleccedilotildees gregas referentes aos materiais hermeacutetico e caldeu a partir de fragmentos encontrados em Plotino Proclo e outras fontes similares tardias (cf Stephan FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp486-487 A relaccedilatildeo de seus escritos pode ser vista em Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p19

43 O tema eacute desenvolvido por Paul Oskar KRISTELLER em El pensamiento renacentista y sus fuentes (1982 pp 206-224)

24

atribuiacutedas ao rei-sacerdote44 talvez tenham sido duas entre as razotildees para que os

Diaacutelogos fossem deixados temporariamente de lado

Na medida em que tiveres o poder oacute rei que tudo pode

preserva a qualquer custo este discurso de toda traduccedilatildeo para

que misteacuterios assim grandes natildeo cheguem aos Gregos e a sua

orgulhosa fala com falta de forccedila natildeo faccedila empalidecer e natildeo

anule a gravidade a robustez a virtude operativa dos vocaacutebulos

de nossa liacutengua Pois que os Gregos oacute rei dispotildeem apenas de

discursos vazios afeitos a produzir demonstraccedilotildees e nisso na

realidade consiste toda a sua filosofia em um barulho de sons

Noacutes diversamente natildeo nos utilizamos simplesmente de

palavras mas de sons plenos de eficaacutecia45

O gesto de Cosimo de pedir a traduccedilatildeo de Hermes antes de Platatildeo natildeo estaria

livre de significados o contato com aqueles textos enigmaacuteticos marca com uma

impronta o acircmbito intelectual florentino e o Hermetismo passa a ser uma doutrina

cultuada em toda a sua complexidade maacutegica e teoloacutegica ademais seus ecos seratildeo

fortemente ouvidos no seacuteculo posterior como pode ser constatado atraveacutes de vasta

literatura46 Antes das novas traduccedilotildees o Asclepius um dos tratados hermeacuteticos

havia circulado no Medievo de forma que algumas de suas doutrinas natildeo eram

desconhecidas e vinham sendo estudadas por alguns sobretudo por intermeacutedio das

obras de Lactacircncio e Agostinho ndash o primeiro com seus elogios o segundo com suas

condenaccedilotildees47 Ficino conhecera o Asclepius sete anos antes de iniciar a traduccedilatildeo dos

demais tratados tendo copiado alguns de seus capiacutetulos em um manuscrito pessoal

De toda forma eacute somente a partir de seu amplo trabalho de traduccedilatildeo que o

44 Os humanistas do Renascimento natildeo tinham duacutevidas acerca da antiguidade e da autenticidade daqueles

textos ndash mais tarde revelados pseudoepigraacuteficos dos primeiros seacuteculos da era vulgar ndash e tampouco sobre Hermes ter sido um real sacerdote egiacutepcio

45 Corpus Hermeticum XVI 2 (ed NOCK-FESTUGIEgraveRE 2006 pp429 ss) όσον οΰν δυνατόν έστί σοι βασιλεΰ πάντα δέ δύνασαι τόν λόγον διατήρησον άνερμήνευτον ίνα μήτε είςΈλληνας έλθη τοιαΰτα μυστήρια μήτε ή τών Ελλήνων υπερήφανος φράσις καί έκλελυμένη καί ώσπερ κεκαλλωπισμένη έξίτηλον ποιήση τό σεμνόν καί στιβαρόν καί τήν ενεργητικήν τών ονομάτων φράσινΈλληνες γάρ ώ βασιλεΰ λόγους έχουσι κενούς αποδείξεων ενεργητικούς καί αΰτη έστίν Ελλήνων φιλοσοφία λόγων ψόφος ήμεΐς δέ ού λόγοις χρώμεθα άλλα φωναΐς μεστάΐς τών έργων Traduccedilatildeo do grego feita por Andregrave Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade

46 Agrave primeira ediccedilatildeo latina do Corpus Hermeticum publicada em 1471 e ateacute entatildeo desconhecida no Ocidente seguiram-se ao menos vinte e quatro ediccedilotildees nos dois seacuteculos posteriores Somente o Pimander primeiro dos tratados teve dezesseis ediccedilotildees entre o final do seacutec XV e o final do seacutec XVI (cf KRISTELLER Studies in Renaissance thought and letters 1956 p223 ss) O impacto da obra hermeacutetica natildeo poderia deixar de atingir o mundo das Artes uma bela representaccedilatildeo de Hermes Trismegisto encontra-se no mosaico de maacutermore feito por Giovanni di Stefano em 1488 para a Catedral de Siena comprovando a aceitaccedilatildeo do saacutebio pagatildeo em territoacuterio cristatildeo Para as repercussotildees do tema veja-se Frances YATES ldquoThe Hermetic Tradition in Renaissance Sciencerdquo in Art Science and History in the Renaissance Baltimore Johns Hopkins Press 1968 pp 255-274 Eugenio GARIN Ermetismo del Rinascimento Pisa ed Della Normale 2006 James HEISER Prisci Theologi and the Hermetic Reformation in the Fifteenth Century Texas Repristination Press 2011 Luisa ROTONDI SECCHI TARUGI LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998

47 As citaccedilotildees hermeacuteticas de Lactacircncio partem da versatildeo de um escrito grego o Loacutegos teacuteleios difundido tambeacutem em versatildeo copta Em carta a Cosimo (contida no Proacutelogo agrave traduccedilatildeo do Pimander) Ficino faz referecircncia agraves acusaccedilotildees de Agostinho acerca das possiacuteveis origens divinatoacuterias ou demoniacuteacas das doutrinas de Hermes no Asclepius (De civitate Dei VIII 23-26) Por tal razatildeo o padre-filoacutesofo teria optado por seguir os juiacutezos mais favoraacuteveis de Lactacircncio Petrarca Coluccio Salutati e Nicolau de Cusa tambeacutem atestam conhecer o conteuacutedo do Asclepius sempre atraveacutes dos olhos de Lactacircncio e Agostinho Para as referecircncias das obras desses autores veja-se GARIN 2006 pp10 ss

25

Hermetismo passa a contribuir e natildeo pouco com a disseminaccedilatildeo de ldquouma nova

sensibilidaderdquo que incrementa ldquoo gosto pelo misteacuterio e pelo ocultordquo conforme ajuiacuteza

Eugenio Garin48

Dentre os dezoito tratados que compotildeem o Corpus49 o Pimander primeiro a

iniciar a ordenaccedilatildeo expotildee um relato sobre a criaccedilatildeo do mundo o homem e sua

Queda Os tratados seguintes descrevem a ascensatildeo da alma pelas esferas dos

planetas para o reino divino e seus processos de regeneraccedilatildeo O Asclepius ou

Discurso Perfeito ndash opuacutesculo desassociado dos demais tratados cuja traduccedilatildeo foi

erroneamente atribuiacuteda a Apuleio de Madaura por natildeo poucos filoacutelogos ndash50 trata da

religiatildeo dos egiacutepcios e seus ritos sacerdotais alguns polecircmicos por serem destinados

a atrair as forccedilas do cosmo para as estaacutetuas de seus deuses O ensinamento nuclear

do Pimander mostra conformidades com o processo de uniatildeo ao Inteligiacutevel descrito

no manual de magia Picatrix que natildeo deixariam de ser percebidas nos dois textos

mestre e disciacutepulo se unificam o diaacutelogo do ser eacute com o noucircs no primeiro e com a

ldquoNatureza Perfeitardquo no segundo ldquoPimander eacute o noucircs que acompanha sempre o

disciacutepulo eacute pois a Natureza Perfeitardquo51

Esse tipo de conteuacutedo tanto em suas partes teoreacuteticas quanto teuacutergicas seria

reconhecido outrossim em meio aos enunciados caldeus introduzidos na urbe por

Plethon Os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos ao sacerdote persa Zoroastro foram

manuscritos muito bem recepcionados pelo seacuteculo XV tal como ocorreu com os

hermeacuteticos52 Seu conteuacutedo de acordo com juiacutezo de Darby Nock apresenta fortes

semelhanccedilas com escritos do Gnosticismo cristatildeo ndash que em muitos pontos

coincidem com o conteuacutedo do Platonismo dos seacuteculos II e III ndash como o anelo por

certeza e revelaccedilatildeo a propensatildeo agraves abstraccedilotildees metafiacutesicas e a preocupaccedilatildeo com a

alma e sua salvaccedilatildeo53 Des Places descreve o conteuacutedo dos Oraacuteculos como uma seacuterie

de ideias ldquosobre Deus os daimons a alma o cosmordquo aleacutem de indicaccedilotildees sobre ritos

teuacutergicos54 Algumas passagens satildeo descritivas revelando a natureza de Deus do

intelecto e das hipoacutestases derivadas do Uno outras prescritivas formulam

instruccedilotildees que o teurgo deve seguir para purificar suas almas racional e irracional e

o corpo com o objetivo de se juntar agrave fonte original55 Haacute um grande nuacutemero de

48 GARIN 2006 p74 49 A ordenaccedilatildeo foi realizada por Darby Nock que distingue o Corpus Hermeticum do Asclepius e de outros

fragmentos atribuiacutedos a Estobeu Entretanto o todo da obra hermeacutetica eacute chamado a grosso modo Corpus Hermeticum O manuscrito original encontra-se em Florenccedila na Biblioteca Riccardiana 709 ff10r-12r

50 A autoria do Asclepius manteacutem-se desconhecida Ficino atribui a Apuleio a traduccedilatildeo mais antiga do corpus ldquoE multis denique Mercurii libris duo sunt divini praecipue unus de voluntate divina alter de potestate et sapientia dei Ille Asclepius hic Pimander inscribitur Illum Apuleius platonicus latinum fecit alter usque ad haec tempora restitit apud graecosrdquo (Marsilio FICINO Pimander in Opera Omnia KRISTELLER-SANCIPRIANO 1962 p1836)

51 A siacutentese eacute de Eugenio GARIN (2006 pp45-46) conforme sua leitura do Picatrix 52 Ficino traduziu os Oraacuteculos a partir da versatildeo grega de Plethon acrescentando a eles seu proacuteprio comentaacuterio

(FARMER op cit p486) Fontes antigas propotildeem que o verdadeiro autor dos Oraacuteculos Caldeus ou Loacutegia Chaldaikaacute tenha sido Giuliano o Teurgo filho de Giuliano o Caldeu que viveu agrave eacutepoca de Marco Aureacutelio em cerca de 150 dC Sobre a recepccedilatildeo aos textos de Giuliano na Academia veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia 1936

53 Cf ldquoPrefaacuteciordquo de Arthur Darby Nock ao Corpus Hermeticum opcit p 16 54 Edouard DES PLACES Oracles chaldaiumlques 1971 p12 55 Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della

concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 p18

26

elementos que remetem ao Timeu platocircnico uma das razotildees que provavelmente

levou Plethon a colocar os Oraacuteculos como fundamento de sua teologia identificando-

os como a fonte das doutrinas zoroastrianas que se encontravam na origem da

teologia platocircnica Em resposta a George Scolario Plethon com efeito atestava ldquoQue

Platatildeo fez dessa filosofia a sua proacutepria eacute demonstrado pelos Oraacuteculos que nos

chegaram de Zoroastro e que concordam em todos os aspectos com as doutrinas de

Platatildeordquo56

Sabe-se que a mentalidade renascentista apreciava os arranjos simeacutetricos de

forma que todas essas traduccedilotildees pertencentes a tradiccedilotildees que natildeo somente detinham

uma prerrogativa de sabedoria como ainda apresentavam uma simetria entre seus

conteuacutedos seriam facilmente absorvidas pelos meios intelectuais sobretudo na

Academia Para muitos humanistas do lsquo400 as formas e os fenocircmenos religiosos

mais antigos eram em certo sentido verdadeiramente puros por se encontrarem

mais proacuteximos da forma original revelada pelo divino aos homens Assim havia um

terreno propiacutecio para o cultivo daqueles temas que contemplavam desde o fasciacutenio

do antigo Egito e seus rituais maacutegicos ateacute a concepccedilatildeo de uma renovaccedilatildeo religiosa

ademais proclamavam o lugar privilegiado do homem ndash tema que seria retomado

por alguns humanistas57 Ficino natildeo demora a incorporar aquelas doutrinas a seus

pensamentos percebendo semelhanccedilas com a filosofia platocircnica e descobrindo

correspondecircncias em Plotino Jacircmblico e Proclo reconhece simetrias teoreacuteticas

sobretudo nos enunciados pertinentes a sistemas cosmoloacutegicos e metafiacutesicos que

passariam a ser enfatizadas em suas obras58

A similaridade encontrada entre esses materiais constituiram para Ficino um

testemunho de arcana mysteria Na concepccedilatildeo ficiniana de inspiraccedilatildeo plethoniana

existiria uma antiga corrente de ensinamentos filosoacuteficos transmitidos por profetas-

teoacutelogos que teriam concebido uma organizaccedilatildeo dos planos inteligiacuteveis

fundamentada em revelaccedilotildees recebidas Sob seu olhar natildeo distante da visatildeo de

outros filoacutesofos ligados ao Neoplatonismo a atividade filosoacutefica coincide com a

teoloacutegica na medida em que prepara a alma-intelecto para acolher a ldquorevelaccedilatildeordquo Os

antigos teoacutelogos prisci theologi satildeo pois aqueles que conhecem por revelaccedilatildeo a

verdade sempre a mesma por se tratar de realidade natildeo sujeita ao devir Seguindo

uma tradiccedilatildeo ininterrupta as doutrinas de Trismegisto foram sendo transmitidas a

outros saacutebios da Antiguidade chegando ateacute Platatildeo compondo o que seria uma secta

philosophorum ndash como escreveria Ficino em sua carta a Cosimo dersquo Medici59

ldquoHermes por primeiro foi chamado teoacutelogo [primus igitur theologiae apellatus est

autor] o seguiu como segundo teoacutelogo Orfeu depois Aglaofemo Pitaacutegoras e

56 A passagem eacute citada e traduzida por S GENTILE Sulle prime traduzioni dal greco di Marsilio Ficino in

ldquoRinascimentordquo nr 30 1990 pp 64-65 apud CORAZZOL opcit p20 57 Para o influxo do Hermetismo sobre os Humanistas leia-se Paul Oskar KRISTELLER El pensamiento

renacentista y sus fuentes 1982 pp 206-219 58 Brian COPENHAVER Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the

Renaissance in Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe 1988 pp 79-110

59 KRISTELLER Studies in Renaissance Thought and Letters 1996

27

Filolau mestre de nosso divino Platatildeordquo60 Plethon havia antecedido Ficino em sua

Prisca Theologia iniciando seu elenco com Zoroastro Certamente o influxo da

concepccedilatildeo intuiacuteda pelo mestre bizantino faria efeito sobre Ficino visto que em seu

ldquoproecircmiordquo agrave traduccedilatildeo das Eneacuteadas plotinianas de 1492 Hermes e Zoroastro seriam

colocados juntos em primeiro lugar como iniciadores da pia philosophia61

Nos anos proacuteximos agrave composiccedilatildeo do De Vita Ficino volta-se cada vez mais

para a traduccedilatildeo de obras de maior cunho esoteacuterico como eacute o caso do De Mysteriis

atribuiacutedo a Jacircmblico e do texto hieraacutetico de Proclo De sacrificio et Magia62 As

concepccedilotildees acerca da existecircncia de uma cadeia formada por antigos ldquoteoacutelogosrdquo a

abertura ao Platonismo estimulada pelos mestres bizantinos as repercussotildees do

misticismo hebraico as traduccedilotildees de Ficino as polecircmicas acerca da Astrologia e da

Magia que perpassam o seacuteculo satildeo todas caracteriacutesticas que se aliam para compor

um ldquoesprit du siegraveclerdquo abrindo espaccedilo para teologias estrangeiras que natildeo poderiam

deixar de influir na composiccedilatildeo do pensamento de Pico della Mirandola Resta

observar que a paulatina mudanccedila de consciecircncia trazida pela renovatio do

Quatrocentos deve-se em grande parte aos pressupostos metafiacutesicos trazidos pela

redescoberta de antigas doutrinas que fundamentaram muitos dos postulados

filosoacuteficos e teoloacutegicos da eacutepoca

60 Marsilio FICINO Proacutelogo ao Pimander (Opera Omnia Kristeller-Sancipriano (org) 1962 vol II p1836)

Para um estudo completo acerca da Prisca Theologia ficiniana leia-se DPWALKER Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958

61 Marsilio FICINO Opera Omnia opcit vol II p1537 ldquoFactum est ut pia quaedam philosophia quondam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consona nutriretur deinde apud Traces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et Italos tandem vero a divo Platone consummaretur Athenisrdquo

62 GARIN 2006 p68

28

CAPIacuteTULO II

GIOVANNI PICO DELLA MIRANDOLA

Giovanni Pico foi um ser fascinante Mas natildeo feliz Seus mais intensos

projetos foram malogrados Todavia foi aclamado pelos criacuteticos como um dos mais

notaacuteveis representantes da Filosofia Renascentista por seus contemporacircneos como

o mais saacutebio filoacutesofo de sua eacutepoca1 Fruto de seu seacuteculo ou quem sabe de uma

personalidade marcada por contrastes seu pensamento natildeo estaacute livre de

contradiccedilotildees A mais visiacutevel que extravasa para a sua inteira obra encontra-se na

dicotomia entre feacute e ratio ou entre o piedoso servo da Igreja e o filoacutesofo que se liberta

de todo o dogma para investigar os mais diversos caminhos2 Tais contrastes ao se

aliarem a um forte carisma agrave fama de gecircnio multifacetado3 e a um conjunto de

circunstacircncias extraordinaacuterias ndash tais como uma vida marcada pela trageacutedia e a morte

prematura aos 31 anos ndash contribuiacuteram para criar uma atmosfera de encanto em

torno de seu nome a ponto de a cerca de trecircs deacutecadas de sua morte ainda ser

chamado de ldquohomem quase divinordquo por Maquiavel4

Enaltecimentos natildeo lhe faltaram A despeito dos elementos contrastantes em

sua obra ndash ou justamente por causa deles ndash seu legado pode ser considerado como a

siacutentese que agrega algumas das investigaccedilotildees mais marcantes de sua eacutepoca (ldquoas

causas das coisas os processos da natureza a razatildeo do universordquo)5 o que fez com que

ganhasse o interesse de famosos intelectuais europeus ao longo dos seacuteculos e

recebesse elogios de pensadores tatildeo diversos quanto Erasmo de Rotterdam Pierre

Gassendi Kepler e Voltaire6 O apreccedilo de Thomas More pela obra piquiana fez com

1 Giovanni Pico foi considerado ainda o mais jovem nobre e belo filoacutesofo de seu tempo O escolaacutestico Angelo

Poliziano se referia ao amigo em suas cartas como o ldquodivino Picordquo (sacer Picus) a ldquofecircnixrdquo (phoenix) o ldquosemideusrdquo (heros) a ldquoluz de todo o aprendizadordquo (lux omnium doctrinarum) e ldquoaquele que eacute bonito como ningueacutem e mais eminente em todos os ramos do aprendizadordquo (quo nec pulchrior alter mortalium nec in omnibus arbitror doctrinis excellentior) Para essa e outras passagens veja-se POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006 1 36-37 118-19 134-35 193 Acerca da beleza do conde avultam as descriccedilotildees ldquoEra cosigrave bello colle chiome doro svolazzanti sul volto radioso quasi novello Adone come ce lo dipinge il Ramusio [Girolamo Ramusio] in un carme latinordquo (FLAMINI Girolamo Ramusio in Atti e Memorie di R Acc di Padova 1899-1900 vol XVI pp 11-37 apud Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p9) Ver tambeacutem Joseacute Vitorino de PINA MARTINS Jean Pic de la Mirandole - Un portrait inconnu de lrsquohumanisme 1976

2 Como acentuou Newton BIGNOTTO Pico ldquofoi prisioneiro das duacutevidas que assaltavam os que se dispunham a lidar com novas ideias e continuar a viver no interior da feacute cristatilderdquo (Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 p147)

3 Tornou-se proverbial a prodigiosa memoacuteria de Pico Detinha na mente numerosas obras que o faziam ter uma habilidade enciclopeacutedica de oratoacuteria Sua capacidade de retenccedilatildeo era tal que podia recitar a inteira Divina Commedia de traacutes para frente iniciando do uacuteltimo verso ndash podendo fazer isso com qualquer poema que acabasse de ler (Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

4 Nicolau MAQUIAVEL Histoacuteria de Florenccedila livro VIII 2007 p557 Tal obra foi escrita entre 1520 e 1527 portanto nos uacuteltimos anos da vida de Maquiavel

5 PICO De Hominis Dignitate Heptaplus De Ente et Uno et scritti vari 1942 p130 ldquoQuasi rerum causas naturae vias universi rationem []rdquo

6 Veja-se respectivamente Marc LAUREYS The Reception of Giovanni Pico in the Low Countries in Gian Carlo GARFAGNINI Giovanni Pico della Mirandola Convegno internazionale di studi nel cinquecentesimo anniversario della morte (1494ndash1994) 1997 p629 Brian VICKERS Critical Reactions to the Occult Sciences during the Renaissance in The Scientific Enterprise - The Bar-Hillel Colloquium Studies in History Philosophy

29

que a difundisse ao puacuteblico inglecircs em larga escala seja atraveacutes das traduccedilotildees das

cartas e pequenos textos de Pico seja por sua livre traduccedilatildeo do livro Vita de

Gianfrancesco Pico que constitui a primeira biografia impressa em inglecircs7 Em

tempos contemporacircneos foi alccedilado ao tiacutetulo de ldquoFecircnix dos Engenhosrdquo por Giovanni

Semprini ldquoAlma do Renascimento italianordquo por Eugenio Garin e ldquoAurora

inacabadardquo por Henri de Lubac8

A principal marca de Pico foi natildeo se ter entregue inteiramente a nenhuma

corrente de pensamento fosse filosoacutefica ou teoloacutegica Com isso suas ideias o

colocaram em constante linha de fogo cruzado natildeo lhe permitindo pertencer de

forma plena a nenhum ciacuterculo Nem mesmo as vestes de sua cepa aristocraacutetica foram

vestidas de forma confortaacutevel seu entusiasmo por ideias novas a paixatildeo pela

investigaccedilatildeo e a rapidez febril com as quais expunha suas opiniotildees afastavam-no da

prudecircncia tiacutepica de um bom cortesatildeo9 ademais a escolha de uma vida filosoacutefica natildeo

fazia parte do repertoacuterio da nobreza no seacuteculo XV cujo caminho usual passava pelo

clero ou pela corte A resposta a Andrea Corneo que o exortava a abraccedilar esta uacuteltima

indica a verdadeira propensatildeo de Pico

Me escrevestes lsquoaproxima-se o tempo em que deveraacutes colocar-

te a serviccedilo de algum dos grandes [priacutencipes] da Itaacuteliarsquo Parece-

me que ignoras a opiniatildeo que tecircm de si os amantes da Filosofia

Esses de acordo com Horaacutecio se consideram reis natildeo sabem

servir e adequar-se aos costumes de outros vivem consigo

mesmos contentes da proacutepria serenidade se bastam e natildeo

precisam de nada que esteja fora de si mesmos [] E eu

partilhando dessa opiniatildeo anteponho a minha pequena cela [no

claustro] os meus estudos os prazeres que me propiciam os

meus livros agraves salas reais aos negoacutecios puacuteblicos aos favores da

corte10

Seus pensamentos e escritos determinaram os acontecimentos de sua

trajetoacuteria Veremos que as accedilotildees sofridas e o fato de sua obra mais grandiosa natildeo ter

tido a chance de ser concluiacuteda foram consequecircncias dramaticamente ligadas agrave

originalidade de suas premissas

and Sociology of Science ed Edna Ullmann-Margalit Dordrecht 1992 nr 4 p 75 Sheila RABIN Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic in Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750-70 Para as avaliaccedilotildees de Voltaire sobre Pico veja-se Henri De LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 p 13

7 Essa e outras referecircncias podem ser encontradas na ldquoIntroduccedilatildeordquo de Michael DOUGHERTY agrave sua obra Pico della Mirandola New Essays 2008 pp 1-2

8 As criacuteticas embora de menor vulto tambeacutem natildeo faltaram Dentre os comentaristas Lynn THORNDIKE eacute o que faz uma das mais duras avaliaccedilotildees da obra de Pico considerando o autor ldquoimaturordquo (A History of magic and a experimental science vol 4 1934 p485)

9 Conforme relata o sobrinho Gianfrancesco agrave velocidade intelectual de compreensatildeo e de apreensatildeo correspondia em Pico uma escrita raacutepida nervosa algumas vezes difiacutecil de entender Escrevia em toda a parte em folhas soltas tanto que apoacutes sua morte foi bastante trabalhoso para o sobrinho pocircr ordem naqueles escritos muitos deles incompletos (Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p97)

10 PICO Carta de 15 Outubro 1486 in Opera omnia ediccedilatildeo Basileia 1557 (apud Albano BIONDI Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pVIII) NOTA As traduccedilotildees para o portuguecircs das citaccedilotildees presentes neste capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade

30

1 A Vida

A primeira biografia de Giovanni Pico escrita pelo sobrinho-escritor

Gianfrancesco11 conta que durante seu nascimento foi visto um brilhante ciacuterculo

iacutegneo pairando sobre a cama da matildee parturiente ali permanecendo por algum

tempo O fato ocorreu em 24 de Fevereiro de 1463 no castelo do condado de

Mirandola12 A imagem foi prontamente associada agrave perfeiccedilatildeo do pensamento de

Pico que ldquocomo o fogo estaacute sempre voltado agraves coisas celestesrdquo Essas palavras

completam a narrativa incomum publicada apoacutes a morte do biografado o autor

sabia que a descriccedilatildeo soacute seria bem aceita pelo puacuteblico se o personagem central fosse

detentor de uma reputaccedilatildeo que permitisse tal associaccedilatildeo13

Filho temporatildeo Giovanni cresce sob estrito zecirclo da matildee donna Giulia dei

Boiardo no coraccedilatildeo de uma nobre famiacutelia em meio a conflitos familiares (que

levariam agrave morte anos mais tarde do sobrinho-bioacutegrafo)14 Aos catorze anos eacute

encaminhado para estudar Direito Canocircnico em Bolonha seguindo o costume que o

destinava agrave vida eclesiaacutestica A cidade conhecida por transmitir as ideias humanistas

da Itaacutelia para a Europa foi responsaacutevel por despertar a atraccedilatildeo do jovem pela ordem

dominicana aleacutem do gosto pelas preacutedicas dos frades envolvidos com assuntos

acadecircmicos Apoacutes dois anos da mudanccedila ocorre o falecimento da matildee e o rapaz

encontrando-se oacuterfatildeo vecirc-se obrigado a tomar suas decisotildees dali em frente sozinho15

11 A primeira biografia sobre Pico foi escrita por seu sobrinho Gianfrancesco Pico della Mirandola e publicada

na primeira ediccedilatildeo da Opera Omnia em Bolonha em 20 de marccedilo de 1496 Com base em sua obra e ainda com um conjunto de 120 cartas sobreviventes eacute possiacutevel estabelecer uma biografia de Pico bastante detalhada A Opera Omnia foi traduzida para o inglecircs posteriormente por Sir Thomas More e impressa em Londres em 1510 (Thomas MORE Giovanni Pico della Mirandola His Life by His Nephew Giovanni Francesco Pico ed J M Rigg- D Nutt London l89o) A moderna ediccedilatildeo chamada apenas Vita denomina-se Ioannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consumatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta (ed B Andreolli Aedes Muratoriana Modena 1994) Vejam-se mais dados biograacuteficos em E GARIN Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 L VALCKE Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique 2005 D BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola cenni e documenti inediti in Rivista contemporanea 1859 pp7-56 H de LUBAC Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions 1974 W CRAVEN Pico della Mirandola Bologna 1984 J JACOBELLI Pico della Mirandola 1986 G SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola-La Fenice degli Ingegni 1921

12 Daiacute ser chamado Giovanni Pico dos condes de Mirandola e Concoacuterdia 13 A reflexatildeo estaacute em BROCCHIERI opcit pp5-8 Natildeo se deve julgar precipitadamente o sobrinho-bioacutegrafo

por um suposto enaltecimento do tio Seus escritos mostram que natildeo haacute uma exaltaccedilatildeo mas antes o contraacuterio em muitos momentos Gianfrancesco eacute bastante severo e criacutetico acerca do pensamento de Pico Sobre as circunstacircncias do nascimento veja-se Felice CERETTI Giulia Boiardo in Atti e Memorie 1881 vol 4 part 3 p 213 Jacob BURCKARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902 pp 142 e 232 Acerca das relaccedilotildees com a matildee ldquoDonna Giuliardquo veja-se SEMPRINI op cit pp1-3

14 Conforme historiadores durante o periacuteodo de Senhorio da famiacutelia Pico que durou quatro seacuteculos (ateacute 1710) os habitantes do condado gozaram de prosperidade econocircmica e estabilidade legislativa e poliacutetica aleacutem de certa liberdade religiosa que levou ao florescimento de novas ordens como a dos ldquoMendicantirdquo Da colaboraccedilatildeo com os Mendicantes nasceu em Mirandola o ldquoDesco dei Poverirdquo e o Monte do Pietagrave aleacutem do mosteiro feminino das Clarissas (cf BROCCHIERI opcit p4) Apoacutes a morte do pai que ocorre quando Giovanni era crianccedila seus irmatildeos Galeotto e Anton Maria viveram em perene discoacuterdia em razatildeo da posse do feudo A luta familiar terminaria por extinguir o sobrinho de Giovanni Gianfrancesco assassinado em 1533 por um de seus parentes (cf Felice CERETTI Biografie pichensi 1909 pp91-127)

15 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 pp 21-23 SEMPRINI opcit pp3-4 BROCCHIERI opcit pp4-5 GARIN 2011 pp3-5 Vejam-se dados biograacuteficos em ldquoProgetto Picordquo convecircnio entre a Universitagrave degli Studi di Bologna e a Brown University

31

Assim aos dezesseis anos abandonando a futura carreira de jurista parte para

Ferrara cidade das mais pujantes e populosas da Itaacutelia prestigiada por seu

endereccedilamento ao estudo das Humanidades Ferrara passaria a ser o local em que

Giovanni daria seus primeiros passos em direccedilatildeo agraves disciplinas filosoacuteficas e para onde

voltaria vaacuterias vezes em seus uacuteltimos anos de vida16 Na nova cidade passa a

frequentar os ciacuterculos de discussotildees acadecircmicas chamando a atenccedilatildeo por ser o

integrante mais jovem Entre as principais pessoas que vem a ter conhecimento estatildeo

Battista Guarino mestre que lhe apresenta um tipo de conhecimento laico ateacute entatildeo

desconhecido e o frei Girolamo Savonarola encontro que mais tarde seraacute

determinante em sua vida17 Apoacutes dois anos de intenso aprendizado o nuacutecleo de

Ferrara antes repleto de novidades passa a mostrar-se limitado Pico cada vez mais

interessado em escarafunchar conventos e bibliotecas atraacutes de novos volumes18

sente-se atraiacutedo por um ambiente mais renomado e vivo de disputas acadecircmicas19

Paacutedua

Em 1480 agora com dezoito anos Pico chega a Paacutedua Na mais famosa

universidade italiana da eacutepoca onde permaneceraacute por dois anos estudando o pupilo

abraccedila definitivamente a Teologia e a Filosofia20 A formaccedilatildeo aristoteacutelica iniciada em

Ferrara seria mantida uma vez que a Escola de Paacutedua seguia uma linha de tradiccedilatildeo

notadamente averroiacutesta O ambiente de estudos padovanos o satisfaz amplamente

como demonstra uma carta escrita ao novo amigo Ermolao Barbaro21 Uma das

razotildees encontrava-se no fato de ter contato com pessoas que viriam a ter significado

fundamental em seu desenvolvimento e em sua vida Aleacutem de Barbaro tornado

doutor e titular da caacutetedra de Filosofia Moral aos vinte e trecircs anos com o qual a

identificaccedilatildeo foi imediata Pico conheceu Nicoletto Vernia original professor que o

fez conhecer a concepccedilatildeo averroiacutesta de unidade do intelecto pela primeira vez ndash tema

que teria forte impacto sobre sua formaccedilatildeo e ao qual voltaria tempos depois22 O

mestre aristoteacutelico foi de certa forma tambeacutem o primeiro a influenciaacute-lo sobre a

harmonia de pensamento entre Platatildeo e Aristoacuteteles projeto que seria perseguido por

Pico durante os proacuteximos anos de sua vida Ainda em Paacutedua Pico conhece o coetacircneo

Elia del Medigo23 jovem brilhante que como ele teraacute uma morte prematura O

cretense douto hebreu e precoce tradutor de Averroacuteis e de outros textos aacuterabes

16 GARIN ibid pp 3-8 SEMPRINI opcit p5 17 SIRGADO GANHO Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate 2001 pp 15-16 SEMPRINI opcit p4

GARIN 2011 p8 18 SEMPRINI ibid p6 19 As chamadas ldquodisputasrdquo eram debates de alto niacutevel que ocorriam nos ambientes acadecircmicos tendo o caraacuteter

do que hoje conhecemos por simpoacutesio ou congresso 20 BROCCHIERI op cit p9 DELLA TORRE Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze 1902 p752

GARIN 2011 p10 Sobre a importacircncia de Paacutedua como centro averroiacutesta veja-se BURCKHARDT op cit pp 242-244 SEMPRINI op cit p12

21 Na carta ao filoacutesofo aristoteacutelico Ermolao Barbaro lecirc-se que de todos os ldquoginaacutesiosrdquo da Itaacutelia aquele de Paacutedua era o que mais o agradava (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France 1879 p 9) Acerca das cartas de Pico deve-se frisar que graccedilas ao primoroso trabalho de recolhimento das epiacutestolas organizado por Leacuteon Dorez tornou-se possiacutevel acompanhar muitos detalhes da vida de Giovanni Pico

22 SEMPRINI op cit pp11-12 A concepccedilatildeo de unidade do intelecto eacute uma das marcas do pensamento do filoacutesofo aacuterabe Averroacuteis tradutor das obras de Aristoacuteteles no seacuteculo XII O tema seraacute retomado no proacuteximo item

23 Elia del Medigo mestre de filosofia oriental falece com apenas trinta e trecircs anos Maiores detalhes podem ser vistos em RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo Padova 1891 Para as circunstacircncias do encontro com Pico veja-se Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9

32

imediatamente aprecia a aguda inteligecircncia daquele jovem ldquoapesarrdquo do visiacutevel gosto

por Platatildeo que nele comeccedilava a despontar ndash coisa mal vista por um aristoteacutelico

ortodoxo como Elia Tal encontro se mostraraacute um dos principais elementos

responsaacuteveis pela aproximaccedilatildeo do Mirandolano ao pensamento aacuterabe-hebraico ndash que

o levaraacute por vias indiretas ao estudo da Cabala24

Pouco antes de completar vinte anos talvez em razatildeo da receacutem-editada obra

de Marsilio Ficino a Theologia Platonica de immortalitate animorum observa-se

uma mudanccedila de direcionamento doutrinaacuterio Pico comeccedila a voltar-se fortemente ao

Platonismo Uma carta de final de lsquo82 testemunha o pedido feito a Ficino para que

aceite ser seu guia no novo caminho de estudos atraveacutes do qual pretende integrar

Aristoacuteteles e Platatildeo25 Coincidecircncia ou natildeo nessa mesma eacutepoca seu amigo Angelo

Poliziano26 o convida a participar do movimento literaacuterio florentino Ademais chega-

lhe a notiacutecia de que uma forte tradiccedilatildeo de estudos hebraicos propaga-se em Florenccedila

Essas podem ter sido as principais motivaccedilotildees que o fizeram deixar o centro

padovano e partir para a cidade do Arno27 Assim em 1484 receacutem liberto de

preocupaccedilotildees de ordem financeira28 Pico muda-se para a urbe entatildeo regida por

Lorenzo dersquo Medici patrono de personalidades como Michelangelo e mecenas do

ciacuterculo platocircnico ndash que dava agora as boas-vindas a seu mais novo ingressante

Em pouco tempo comeccedilam a ocorrer encontros de cristatildeos e hebreus na casa

do mais novo morador da cidade Um ciacuterculo de orientalistas reuacutene-se com

frequecircncia para discutir o Aristotelismo29 Natildeo raro podia ser encontrado Elia del

Medigo ndash o jovem mestre que seguindo os passos do aluno foi ter em Florenccedila ndash

sustentando debates filosoacuteficos e religiosos com outro hebraiacutesta o entatildeo convertido

Flavio Mitridate ndash que mais adiante viria a ser o proacuteximo professor do Conde30

24 Para Elia del Medigo assim como para outros acadecircmicos padovanos Aristoacuteteles representava ldquoo pai de

todos os filoacutesofosrdquo e Averroacuteis era ldquoo seu mais fiel comentadorrdquo Assim que a atitude de Del Medigo em relaccedilatildeo agrave Cabala natildeo seria tatildeo positiva quanto a de Pico ou como seraacute visto a de seu outro mestre hebreu Yohanan Alemanno justamente em razatildeo do forte acento neoplatocircnico encontrado naqueles textos Cf Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p284 ss BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11

25 Para essa e outras cartas veja-se DOREZ-THUASNE opcit p 10 Para a chegada em Florenccedila DELLA TORRE opcit p 747 SEMPRINI opcit pp16-17 GARIN 2011 p15

26 Entre os Humanistas era comum a substituiccedilatildeo do proacuteprio nome por outros Acircngelo Ambrogini nascido em Montepulciano era conhecido como Poliziano Tinha cerca de dez anos a mais que Pico e morreu no mesmo ano que ele 1494 Poliziano aos trinta anos era um filoacutelogo rigoroso preceptor dos filhos de Lorenzo dersquo Medici e conhecido em toda a Europa por manter em alta o nome do Studium florentino com suas liccedilotildees de literatura grega e latina aleacutem de defensor incansaacutevel de Pico Cf SEMPRINI opcit p18 SIRGADO GANHO opcit p17 BROCCHIERI opcit pp31-33

27 O interesse pelo ciacuterculo hebraico eacute hipoacutetese alccedilada por DOREZ-THUASNE especialmente em razatildeo da repercussatildeo dos estudos hebraicos empreendidos pelo humanista Gianozzo Manetti (Pic de la Mirandole en France 1485-1488 Paris 1897 p13)

28 Em 1483 os irmatildeos de Pico chegam a um acordo em seu conflito testamentaacuterio e fazendo uma reparticcedilatildeo deixam um terccedilo das rendas para Pico Seu irmatildeo mais velho passaria a administrar seu patrimocircnio Assim livre de quaisquer preocupaccedilotildees de ordem praacutetica Pico pode continuar sua vida de estudos Cf SEMPRINI opcit pp14-15 GARIN 2011 p15 ldquoMemorie storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandolardquo tomo unico Mirandola 1874 II

29 GARIN 2011 p23 30 Flavio Mitridate era o nome do judeu siciliano convertido Guglielmo Raimondo di Moncada Trata-se de

figura enigmaacutetica tradutor de textos aacuterabes e hebraicos e favorito de Sexto IV Pico em suas cartas o apresenta como um mestre intransigente em relaccedilatildeo agrave natildeo-propagaccedilatildeo de seus ensinamentos tidos como misteacuterios sagrados Detentor de um caraacuteter irasciacutevel coleacuterico arrogante e impaciente inclusive com seus alunos de idiomas (os quais ele pretendia que passassem imediatamente agrave leitura dos textos antigos sem preacutevios estudos) desfrutava

33

Graccedilas em boa parte agrave influecircncia e ao estiacutemulo daqueles encontros a cidade de

Florenccedila se transforma sobretudo de lsquo86 em diante e assim permanecendo por

alguns anos em um local de relevantes contatos entre duas culturas em virtude das

eruditas discussotildees que corroboravam a formaccedilatildeo de intelectuais cristatildeos e hebreus

Dentre eles Yohanan Alemanno que tatildeo logo chega a Florenccedila pede para ser

apresentado ao entatildeo renomado conde de Mirandola31 ndash com o qual dividiraacute mais

tarde o entusiasmo pelos misteacuterios da Cabala Sob tal atmosfera natildeo eacute difiacutecil

entrever que a casa florentina de Pico transforma-se em um ambiente concorrido por

abrigar debates de vaacuterias vertentes ali podiam ser encontrados filoacutesofos de vaacuterias

correntes ndash aacuterabo-hebraicas aristoteacutelicas platocircnicas ndash poetas literatos estudiosos

de Petrarca e de Dante32

Durante o periacuteodo florentino Pico dedica-se ao aprendizado de idiomas como

o hebraico o caldeu e o aacuterabe A reconciliaccedilatildeo entre Aristoacuteteles e Platatildeo ndash cujas

afinidades haviam sido apontadas por Nicoletto Vernia ndash toma ares cada vez mais

concretos levando-o entre lsquo85 e lsquo86 a transferir-se para o nuacutecleo de Paris principal

centro de teologia escolaacutestica onde teria agrave disposiccedilatildeo uma quantidade maior de

material medieval para ampliar seus estudos O ambiente dos teoacutelogos da Sorbonne

acolhe fortemente suas ideias aqueles passam a consideraacute-lo um dos seus ndash a ponto

de defendecirc-lo diante do perigo em futuro natildeo muito distante33 De volta a Florenccedila

imerge nos textos neoplatocircnicos de Proclo e investiga os textos hebraicos contando

com a ajuda de Elia del Medigo e de seu mais recente mestre Flavio Mitridate34

Debruccedila-se sobre os misteacuterios platocircnicos hermeacuteticos e caldeus dos quais o amigo

Ficino era tenaz estudioso Em certo ponto convence-se de que suas reflexotildees jaacute

estatildeo maduras o suficiente para serem colocadas agrave prova Passa a preparar entatildeo

com certo iacutempeto vaacuterios textos pertinentes a um debate puacuteblico organizados de

forma a alcanccedilar grande ressonacircncia O que natildeo estava previsto eacute que a partir da

primavera do mesmo ano importantes acontecimentos alterariam o rumo de sua

vida de forma definitiva

de uma vida um tanto licenciosa de acordo com seus bioacutegrafos Cf CASSUTO opcit 1918 BROCCHIERI opcit pp 15-16

31 Uma das comprovaccedilotildees do renome de Pico nos ciacuterculos intelectuais encontra-se no fato que ao completar vinte e um anos eacute escrita uma comeacutedia em sua homenagem por Tommaso Mezzo (BROCCHIERI op cit pp 16 47) Sobre o encontro de Pico e Alemanno veja-se Umberto CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze 1918 p305 Alberto AMBESI Giovanni Pico della Mirandola-Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera 1996 p I Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 53

32 GARIN 2011 p23 Dante acolhido pelo Humanismo florentino do final do Quattrocento era finalmente perdoado por ter escrito em vulgar toscano Nas uacuteltimas deacutecadas daquele seacuteculo seus escritos eram retomados por muitos literatos e filoacutesofos de Florenccedila graccedilas ao impulso dado por Leonardo Bruni e sua obra Vita di Alighieri publicada em 1436 Dante que havia sido um aristoteacutelico estudioso de Tomaacutes transformava-se agora aos olhos dos humanistas em ldquoum platocircnico puro e profundo um delesrdquo (cf BROCCHIERI 2011 p51) Pico tambeacutem nutria profunda simpatia por Dante ldquoalma rude aacutespera mas atormentada por problemas mais amplosrdquo Seu vigor algumas vezes horridus asper strigosus sempre trazia uma ldquonutriccedilatildeo vitalrdquo (apud GARIN ibid p21)

33 GARIN 2011 p25 BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 p 7 34 BIONDI ldquoIntroduzionerdquo in Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995 pp X-XI

34

1486 o iniacutecio dos revezes

O ano de 1486 eacute crucial para Pico que se encontra com vinte e trecircs anos Nem

soacute de livros aulas e projetos extraordinaacuterios vive o jovem No mecircs de maio daquele

ano pouco depois de regressar de Paris Pico vive uma desafortunada e breviacutessima

aventura amorosa que tem Arezzo como pano de fundo Em rota para Roma para

onde se dirigia com o intuito de preparar sua proacutexima obra apaixona-se pela jovem e

bela ndash e casada com um Medici ndash Margherita Planeja um rapto que natildeo apenas

termina frustrado como expotildee de forma ampla os dois amantes impedindo-o de

prosseguir com a viagem35 O escacircndalo lhe traz aleacutem de arrependimento o ingresso

em um duradouro periacuteodo de austeridade com a consequente retomada dos estudos

Conforme juiacutezo de Garin ldquosua dor se transmuta em um iacutempeto de pesquisa capaz de

trazer renovadas forccedilasrdquo com as quais enfrentaria os obstaacuteculos que viriam no ano

sucessivo Acresce o historiador que aquele ldquoardor multiforme insaciaacutevel de gloacuteria

de amor de saber e no final de renuacutencia e miacutesticardquo formariam o ldquosubstrato

psicoloacutegico da celebraccedilatildeo piquiana da dignidade do homemrdquo36

Recolhido assim em seu retiro de Fratta proviacutencia de Perugia em meio aos

meses de veratildeo de rsquo86 o escritor comeccedila a elaborar aquele que seria seu projeto mais

audacioso Em complexa empreitada potildee-se a redigir inuacutemeras teses acerca de

muacuteltiplos temas passando da escolaacutestica ao averroiacutesmo das tradiccedilotildees hermeacuteticas e

persas agraves filosofias aacuterabe e judaica chegando agraves ciecircncias ocultas Tambeacutem nesse

periacuteodo esboccedila um elogio agrave concoacuterdia entre os vaacuterios sistemas filosoacuteficos parte do

qual viraacute a compor a segunda parte da De Hominis Dignitate A renovada motivaccedilatildeo

transparece em carta escrita a um amigo proacuteximo ldquoem breve saberaacutes quanto seu

amigo Pico colheu de vantagens da contemplaccedilatildeo durante esses meses de vida

obscura e solitaacuteriardquo37 Tendo por propoacutesito inicial organizar em Roma no mesmo

ano um convecircnio de intelectuais ndash a chamada Disputa Romana ndash para debater suas

proposiccedilotildees com doutos da Filosofia e da Teologia publica em 7 de dezembro de

1486 as Conclusiones Nongentae juntamente com o convite aos interessados no

debate O opuacutesculo fixado em vaacuterias universidades pode ter incomodado a alguns

levando-se em conta a idade do autor38

Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdia disputaraacute

publicamente acerca das seguintes novecentas proposiccedilotildees

dialeacuteticas morais fiacutesicas matemaacuteticas metafiacutesicas teoloacutegicas

maacutegicas e cabaliacutesticas sejam proacuteprias que dos sapientes

caldeus aacuterabes hebreus gregos egiacutepcios e latinos []39

35 Referente ao estado de acircnimo de Pico apoacutes o rapto de Margherita e os reflexos do episoacutedio sobre algumas

passagens da obra Commento sopra una Canzone drsquoamore composta da Girolamo Benivieni veja-se Pier Cesare BORI Pluralitagrave delle vie - Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola 2000 pp11-21 Para maiores detalhes sobre o episoacutedio veja-se DELLA TORRE opcit pp758-59 SEMPRINI opcit pp56 ss BROCCHIERI opcit pp55-56 CASSUTO opcit p289

36 GARIN 2011 p26 37 BROCCHIERI opcit p64 38 Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 np47 39 BIONDI opcit pXII Como esclarece o tradutor italiano das Conclusiones natildeo se tem informaccedilotildees sobre a

distribuiccedilatildeo do opuacutesculo na Itaacutelia Fora da Itaacutelia o material foi reproduzido em Ingolstadt no ano sucessivo 1487

35

A possibilidade da discussatildeo agita os ciacuterculos teoloacutegicos de Roma devido natildeo

apenas agrave presenccedila em meio ao opuacutesculo de alguns nomes ldquohereacuteticosrdquo como tambeacutem

de palavras suspeitosas como Magia Astrologia e Cabalismo Roma achava que ali

disfarccedilado sob o verniz do humanismo florentino encontrava-se o sequaz praticante

ldquodas escolas de Paacutedua e de Paris o disciacutepulo de Averroacuteis de Alexandre de Afrodiacutesia e

dos hebreusrdquo40 Assim a intenccedilatildeo original de travar uma contenda ldquosobre todas as

coisas conhecidasrdquo (omni scibili) termina por despertar opositores inclusive entre os

amigos41 tanto em razatildeo do projeto ser visto como fruto de orgulho pretencioso

quanto pela alegaccedilatildeo da presenccedila de supostas heresias naqueles conteuacutedos E as

coacutepias publicadas acabam gerando consequecircncias desdobradas em um crescendo de

gravidade cada vez maior

De iniacutecio o papa Inocecircncio VIII manda imediatamente suspender o debate das

Conclusiones e dois meses apoacutes a publicaccedilatildeo do opuacutesculo constitui uma comissatildeo

para examinaacute-lo sob a presidecircncia de Giovanni Monissart Em seu breve deixava

claro que ldquoalgumas dessas teses desviam do caminho da ortodoxia da feacute outras satildeo

obscuras confusas e intrincadas e outras tem ar de heresiardquo de forma que as

mesmas deveriam ser confiadas ao reverendo senhor Giovanni bispo de Tournai que

teria ldquoa tarefa de revecirc-las discuti-las e avaliaacute-lasrdquo42 Em um segundo momento Pico eacute

convidado a dar esclarecimentos acerca de algumas Teses nessa ocasiatildeo reafirma

vigorosamente seus pontos de vista acerca do conteuacutedo relacionado agrave Magia e agrave

Cabala aleacutem de acusar seus juiacutezes de padecerem de ignoracircncia Poucos dias depois o

trabalho da comissatildeo se conclui com a condenaccedilatildeo daquelas teses O acusado

convocado para apresentar-se novamente e escutar o veredicto final natildeo comparece

Em sua ausecircncia a comissatildeo decide proceder ao julgamento sem sua presenccedila

Enquanto isso rendendo-se ao fato de que as Teses natildeo seriam debatidas nem em

Roma nem em qualquer outro lugar cristatildeo Pico decide redigir a Apologia43

composta de treze disputationes que comporiam sua defesa Mesmo sem

conhecimento do novo texto Inocecircncio VIII autoriza o tribunal em 6 de Junho a

punir o culpado por heresia conforme as leis canocircnicas fato que o leva em 31 de

e um exemplar estaacute descrito no British Museum - General Catalogue of Printed Books vol 189 London 1963 col612 (ibid pXIII) ldquoDe adscriptis numero noningentis Dialecticis Moralibus Physicis Mathematicis Metaphysicis Theologicis Magicis Cabalisticis cum suis tum sapientum chaldeorum arabum hebreorum graecorum aegyptorum latinorumque placitis disputabit publice Johannes Picus Mirandolanus Concordiae Comes etc []rdquo

40 GARIN 2011 p32 41 Em carta a Roberto Salviati o veneziano Ermolao Barbaro escrevia que ldquosem duacutevida o nosso Pico obteraacute dessa

distinta iniciativa uma gloacuteria imortal dando aos seus amigos uma incomparaacutevel felicidaderdquo Por outro lado com certa maliacutecia comparava seu amigo Pico ao sofista Goacutergias dando a entender que tal promoccedilatildeo de discussotildees puacuteblicas visava apenas ao enaltecimento da vaidade do autor

42 A iacutentegra do breve papal pode ser vista em DOREZ-THUASNE op cit pp114-115 Os verbais das reuniotildees ocorridas para o questionamento das Teses foram descobertos por Dorez em um manuscrito da Biblioteca do Seminaacuterio arcebispal de Malines e publicados na obra compilada em parceria com Thuasne (Pic de la Mirandole en France 1897)

43 A primeira ediccedilatildeo da Apologia eacute datada 31 de Maio de 1487 (ldquoDie ultima Madij Anno Domini MCCCCLXXXVIIrdquo) A data correta de publicaccedilatildeo eacute posterior mas para natildeo parecer uma afronta agrave condenaccedilatildeo papal ela eacute retrodatada para antes da condenaccedilatildeo Na obra dedicada a Lorenzo dersquo Medici Pico retoma temas presentes na Oratio

36

Julho a fazer ato de submissatildeo agraves decisotildees dos comissaacuterios pontiacutefices jurando natildeo

mais sustentar posiccedilotildees que os juiacutezes natildeo julgassem aceitaacuteveis44

A submissatildeo contudo chega tarde a repercussatildeo da Apologia explodia

justamente nesse periacuteodo fazendo chegar aos ouvidos do Papa que Pico havia feito

circular novos escritos sem esperar o veredicto final45 A obra apesar do tom doacutecil

incentivava a investigaccedilatildeo da magia natural e da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica

reafirmando ainda a liberdade de crenccedila (libertas credendi)46 Com isso sua

situaccedilatildeo torna-se praticamente irreversiacutevel Em 5 de agosto do mesmo ano Inocecircncio

VIII natildeo apenas condena todas as Conclusiones como encarrega a comissatildeo de

intervir com um novo instrumento o da Inquisiccedilatildeo com ldquoautorizaccedilatildeo para citar

interrogar e punir conforme as faculdades canocircnicasrdquo47 Em paralelo o bispo de

Tournai impotildee que quem possua uma coacutepia das Conclusiones a entregue agraves

autoridades para serem ldquoanuladas pelo fogordquo Por fim o cardeal espanhol Pedro

Garzias que mais tarde escreveria uma confutaccedilatildeo formal da Apologia de Pico

solicita a intervenccedilatildeo do temido Torquemada entatildeo agrave frente da Inquisiccedilatildeo espanhola

para resolver a questatildeo Ora Pico lia com entusiasmo os textos hebraicos escutava e

comentava os ensinamentos de seus amigos e mestres hebreus acreditava que nos

segredos da Cabala podia-se encontrar explicaccedilotildees inclusive para a verdade dos

eventos cristatildeos o homem que magnificava a sabedoria dos hebreus dificilmente

seria absolvido48

Percebendo o perigo iminente o Conde decide afastar-se da Itaacutelia refugiando-

se na Franccedila torna-se com essa atitude um herege declaradamente reincidente um

relapsus um homem caccedilado que poderia ser capturado e lanccedilado ao caacutercere49 A

proibiccedilatildeo de discutir as treze teses condenadas por sua vez lanccedila todas as demais

teses em desgraccedila jaacute que ldquoum pouco de fermento pode corromper toda a massardquo

Com essa metaacutefora Antonio Flores membro da comissatildeo que havia condenado as

treze teses pede ajuda agrave Universidade de Paris para que Pico seja capturado na

Franccedila50 Entretanto os professores daquela universidade aleacutem de toda a corte do rei

Carlos VIII compartilham da mesma simpatia pelo ldquodoutiacutessimo e desventuradordquo

italiano a ponto de ajudaacute-lo pouco tempo depois51 em janeiro de lsquo88 quando Pico eacute

44 DOREZ-THUASNE op cit p140 ldquoEu Giovanni della Mirandola tendo sob os olhos aquilo que pensam e

decidem o nosso Senhor Santiacutessimo e os senhores deputados de Sua Santidade acerca de minhas teses confesso que as teses satildeo tais e quais determinam que sejam Sua Santidade e os juiacutezes e mantenho formalmente esta opiniatildeo Natildeo sustentarei mais nenhuma posiccedilatildeo sobre essas porque Sua Santidade e os juiacutezes julgam que natildeo devam ser sustentadas E assim jurordquo Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se DOREZ-THUASNE op cit ldquoBreve 6 Giugnordquo pp144-46 SEMPRINI op cit pp87-89

45 Quando recebe a notiacutecia da Apologia o papa descobre que outros teoacutelogos externos agrave comissatildeo ldquoe pouco prudentesrdquo haviam convalidado seu conteuacutedo

46 DOREZ-THUASNE op cit p125ss Veja-se Apologia - Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (org Paolo Edoardo FORNACIARI 2010)

47 DOREZ-THUASNE op cit pp144-146 BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti Torino 1859 p47 SEMPRINI opcit p89 BIONDI opcit pp XXI-XXII

48 Lembremos que na Espanha agrave mesma eacutepoca era feita a conversatildeo forccedilada dos judeus 49 BIONDI opcit p XXXI 50 BROCCHIERI opcit p68 51 No ano anterior agrave fuga para a Franccedila durante as discussotildees teoloacutegicas acerca da condenaccedilatildeo de Pico Jean

Cordier importante acadecircmico parisiense natildeo firmara o verbal de processo de Pico Apoacutes ter escutado as explicaccedilotildees do filoacutesofo italiano chegara agrave conclusatildeo de que as treze teses incriminadas eram ldquocatoacutelicasrdquo Poucos anos depois Cordier viria a ser reitor da Sorbonne (BROCCHIERI opcit pp 69 71)

37

feito prisioneiro no castelo de Vincennes satildeo daqueles nuacutecleos franceses juntamente

com alguns italianos que se levantam protestos contra sua prisatildeo Tais pressotildees

associadas com os pedidos de Lorenzo dersquo Medici ao Papa fazem que Pico seja

libertado ndash apesar de natildeo absolvido ndash com a condiccedilatildeo de permanecer apenas em

territoacuterio florentino sob a proteccedilatildeo do Magniacutefico Ali em Florenccedila Pico permaneceraacute

pelo resto de seus dias52

Apoacutes a proibiccedilatildeo da discussatildeo das Teses e sua consequente condenaccedilatildeo Pico

atravessa um momento difiacutecil de sua vida Como infere Garin os anos seguintes

presenciaram um homem ferido e ldquodobrado sobre si mesmordquo a condenaccedilatildeo do

supremo liacuteder do Cristianismo mesmo para um espiacuterito livre era recebida naquele

seacuteculo como um acontecimento graviacutessimo53 Mais do que o perdatildeo da Igreja Pico

esperava uma reparaccedilatildeo verbal atraveacutes da qual a Igreja o aceitasse novamente como

seu filho54

De toda forma os anos sob vigilacircncia em Florenccedila foram os de maior fervor

criativo O resultado eminente daquele periacuteodo de reclusatildeo seraacute o Heptaplus

dedicado a Lorenzo e publicado no outono de lsquo89 Uacuteltimo trabalho completo de Pico

o Heptaplus conhece imediato sucesso o que alivia em parte as frustraccedilotildees que havia

sofrido55 A obra eacute entusiasticamente recebida por um nuacutemero significativo de

intelectuais sobretudo humanistas muitos escrevem para expressar sua admiraccedilatildeo

entre eles Matteo Vero Girolamo Donato Cristoforo Landino Bartolomeo Fontio e

Ermolao Barbaro56 Poreacutem aos olhos do Papa o livro apresenta-se como uma

continuaccedilatildeo das tendecircncias hereacuteticas demonstradas nas Conclusiones fazendo que a

absolviccedilatildeo se mantenha como uma esperanccedila natildeo realizada No ano seguinte eacute

publicado o breve De Ente et Uno sobre alguns pontos da proposta de acordo entre

Platatildeo e Aristoacuteteles o texto contudo natildeo eacute finalizado Pouco tempo depois eacute

publicada a uacuteltima e mais longa obra piquiana a Disputationes adversus

astrologiam divinatricem acerca da qual o autor compotildee doze dos treze livros

pretendidos e sobre cujas circunstacircncias ainda hoje pairam duacutevidas entre os

inteacuterpretes como seraacute abordado adiante

Em 18 de Junho de 1493 o Papa Alessandro IV Borgia sucessor de Inocecircncio

VIII absolve Pico da condenaccedilatildeo de 148757 O novo Pontiacutefice mostra interesse por

alguns dos assuntos que haviam concorrido para a condenaccedilatildeo das Conclusiones

como a Magia e a Astrologia ademais vecirc o jovem filoacutesofo com simpatia sentindo-se

impelido a escrever um resumo contando suas desventuras ndash texto que

52 Crofton Black eacute de opiniatildeo que a atitude papal foi uma ldquosoluccedilatildeo pragmaacutetica para uma situaccedilatildeo

potencialmente embaraccedilosardquo Pico e suas ldquodoutrinas insalubresrdquo permaneceriam afastados de Roma e ele seria confinado agrave ldquoatmosfera rarefeita de bibliotecas florentinas e ao grupo de intelectuais agrave volta de Lorenzordquo (BLACK opcit pg 8) Para toda a questatildeo da fuga em Franccedila veja-se DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole en France (1485-1488) 1897 pp56-101

53 GARIN 2011 p39-40 54 BROCCHIERI opcit p41 55 BLACK opcit pg 8-9 BROCCHIERI op cit p86 56 Para as referecircncias das cartas trocadas a esse respeito veja-se BLACK ibid np10 57 Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura

italiana 1895 I pp358-361

38

posteriormente seraacute publicado junto agrave ediccedilatildeo das obras piquianas em 1572 Em sua

absolviccedilatildeo descreve-o ainda como homem iluminado pela ldquoDivina Piedade e um fiel

filho da Igrejardquo58 O erudito Papa parecia entrever no Hermetismo e na Cabala

preacircmbulos significativos e prestigiosos da religiatildeo cristatilde exatamente como havia

pretendido comprovar o conde de Mirandola59

Os uacuteltimos anos e a relaccedilatildeo com Savonarola

Nos uacuteltimos anos da vida de Pico entre rsquo90 e rsquo94 desenvolve-se uma relaccedilatildeo

complexa e intensa com Girolamo Savonarola Durante os anos de estudos iniciais

em Bolonha o frade predicador chamara a atenccedilatildeo do ainda muito jovem aprendiz

ldquoem razatildeo de suas maneiras simples e rudes os olhos viviacutessimos a fronte sulcada

pelas rugas e a pele morena que contrastava com suas vestes brancasrdquo60 Assim era

Savonarola em seus vinte e cinco anos tatildeo emagrecido pelos jejuns e abstinecircncias

que ldquoa vecirc-lo passear pelos claustros mais parecia uma sombra que um homem

vivordquo61 A atraccedilatildeo pelos discursos de vieacutes aristoteacutelico foi o iacutematilde que o ligou ao frei

quando teve a oportunidade de escutaacute-lo em uma disputa escolaacutestica Seria

improvaacutevel pensar naquela ocasiatildeo que aquele homem douto austero e riacutegido teria

importacircncia singular em sua vida62

O reencontro se daacute quando Pico natildeo obtendo a absolviccedilatildeo esperada da Igreja

decide procurar Savonarola que entatildeo pregava na Itaacutelia setentrional pedindo-lhe

para intervir por ele junto ao principal dos Dominicanos O pedido sobre o qual seu

amigo Lorenzo continuava a insistir com o Pontiacutefice63 eacute frustrado mas de alguma

forma serve para reaproximar aquelas duas personalidades de maneira definitiva a

pedido de Pico Savonarola acaba sendo chamado pelo Medici ndash a ldquocontragostordquo ndash

para reger a Igreja de San Marco em Florenccedila a partir de Abril de rsquo8964

Tal relaccedilatildeo teria exercido um poderoso influxo nas mudanccedilas de

direcionamento do pensamento de Pico ensejando especulaccedilotildees de cunho

58 BROCCHIERI opcit p100 59 Para Henri de LUBAC a absolviccedilatildeo definitiva de Pico e de seus escritos ocorreraacute apenas duas deacutecadas

adiante graccedilas ao gesto do entatildeo Papa Leatildeo X que em Abril de 1519 autorizaraacute Gianfrancesco a republicar integralmente as obras do tio (Pico della Mirandola Lrsquoalba incompiuta del Rinascimento p453)

60 SEMPRINI opcit p4 61 Pasquale VILLARI Girolamo Savonarola 1910 Essa e outras descriccedilotildees encontram-se nas pp 21-23 62 Para maiores detalhes veja-se Joseph SCHNITZER Savonarola 1931 vol1 sobretudo a partir de pp101 ss

BROCCHIERI op cit p39 63 Como elucida Giulio Busi Inocecircncio VIII levou muito a seacuterio o projeto de ldquoutopia sapiencialrdquo do Conde de

Mirandola Em resposta a Lorenzo que insistia para que o amigo Pico fosse perdoado escrevia que ldquoisso eacute um caso importantiacutessimo coisa diversa de gratificar o jovem filho de Lorenzo em questotildees que natildeo satildeo casos de feacuterdquo Ou seja para o Pontiacutefice era coisa de menor importacircncia conferir a dignidade de cardeal ao filho de treze anos de Lorenzo de que transigir sobre o escacircndalo provocado pelas Teses piquianas (BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in Il Sole-24 Ore 28082018)

64 AMBESI opcit p III Girolamo Savonarola tambeacutem conhecido como Jerocircnimo de Ferrara manteacutem-se agrave frente de San Marco ateacute 1994 Nesse ano apoacutes a morte de Pico e a queda de Piero filho de Lorenzo o frei toma o poder em Florenccedila Quatro anos depois em maio de 1498 seraacute enforcado e queimado (cf Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 54)

39

psicoloacutegico entre os estudiosos da obra piquiana65 A influecircncia de Savonarola natildeo

pode ser negada seja qual for seu vetor Em reflexatildeo sobre o tema ajuiacuteza Garin que

Pico e Savonarola eram ldquoduas almas tatildeo ardentes e originais quanto diferentes em

suas tendecircncias e atitudesrdquo No entanto ldquohavia algo na alma de Pico que somente

com o frei poderia ser identificadordquo66 Ambos amavam os livros de forma apaixonada

e neles viam natildeo apenas fontes de cultura mas respostas espirituais Moviam-se em

uma atmosfera distante daquela que respiravam os literatos contemporacircneos Os

problemas espirituais natildeo eram vistos como curiosidades intelectuais pertencentes ao

mundo dos doutos eram uma ldquoquestatildeo de vidardquo como prossegue Garin67 E ambos

buscavam verdades que natildeo enxergavam na Igreja do lsquo400 nem tampouco entre os

humanistas em geral Nas palavras do historiador

A existecircncia representava para ambos uma tarefa uma missatildeo

[] O mundo do espiacuterito natildeo se encontrava separado da vida

concreta a sua luz deveria permeaacute-la fundir-se a ela

transformaacute-la68

Certo eacute que durante o periacuteodo de isolamento acentuam-se em Pico claras

tendecircncias miacutesticas tornando-se Savonarola seu padre espiritual Tambeacutem chama a

atenccedilatildeo o fato de seus escritos do uacuteltimo periacuteodo apresentarem uma mudanccedila

substancial de concepccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas o autor chega a negar muitas das

teses anteriores e parece voltar-se a uma posiccedilatildeo mais ortodoxa Tal mudanccedila de

pensamento estaacute bem clara na obra Disputationes adversus astrologiam

divinatricem de forma acentuada nos uacuteltimos trecircs livros em que Pico trata com

desprezo a ciecircncia astroloacutegica dos egiacutepcios e caldeus fazendo uma minuciosa criacutetica

histoacuterica que parece lanccedilar por terra os ecircxitos daquelas antigas culturas Tal mudanccedila

de posicionamento natildeo passaria despercebida pelos criacuteticos levando a inuacutemeras

polecircmicas natildeo sem razatildeo a confutaccedilatildeo da Astrologia mateacuteria combatida de forma

ferrenha pelo frei e mentor dominicano representava um ataque que se colocava em

oposiccedilatildeo direta agraves doutrinas partilhadas pelas tradiccedilotildees agraves quais Pico prestara

homenagem em suas obras anteriores como o Hermetismo a Cabala o

Zoroastrismo o Neoplatonismo Em tentativa de esclarecer as mudanccedilas de rumo

da inacabada obra o editor Gianfrancesco Pico alegaria que as mesmas eram devidas

ao progressivo isolamento e agrave crescente religiosidade vividos por seu tio que o

levaram a passar por um processo de conversatildeo Entretanto essa afirmaccedilatildeo tem sido

colocada em duacutevida por alguns comentadores69

65 Para os efeitos psicoloacutegicos de Savonarola sobre Pico veja-se GARIN 2011 pp5-9 Para detalhes mais

completos sobre a relaccedilatildeo veja-se GARFAGNINI (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) 1997 pp 237-279 Ainda SEMPRINI opcit p4

66 GARIN 2011 p8 67 Idem 68 Idem As missotildees seja do mentor que do pupilo encontravam-se ligadas a certas formas de reaccedilatildeo a valores

religiosos e morais Suas atitudes contudo eram anacrocircnicas Pico buscava no passado a renovaccedilatildeo moral do presente Savonarola em suas preocupaccedilotildees doutrinais era um precursor das disputas religiosas que viriam no seacuteculo sucessivo (idem)

69 O tema da suposta conversatildeo de Pico e os comentaacuterios de vaacuterios inteacuterpretes podem ser conferidos na obra de William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher 1981 pp 77-87 131-154 Para maiores detalhes acerca da mudanccedila de direccedilatildeo nas Disputationes

40

A hipoacutetese de conversatildeo seja espontacircnea ou relacionada com o eventual

influxo de Savonarola eacute enfraquecida diante de um interessante testemunho que

expotildee as verdadeiras convicccedilotildees e o entusiasmo conciliador de Pico ndash o mesmo de

seus anos anteriores Pietro Crinito membro fervoroso dos piagnoni ndash nome dado

aos seguidores de Savonarola ndash relata um encontro entre o Frei e o Conde na

biblioteca de San Marco Nessa ocasiatildeo os dois travam um intenso debate acerca do

valor da sabedoria dos Antigos no qual o Frei posiciona-se entre outros contra

Platatildeo e Aristoacuteteles70 Em resposta e referindo-se agraves doutrinas cristatildes acerca da

imortalidade da alma e do caraacuteter absoluto de Deus Pico efetua uma ampla e

eloquente defesa dos Prisci Theologi muito semelhante agraves posiccedilotildees sustentadas por

Ficino71 ldquoao longo de toda a vida dos mortais existiram alguns priacutencipes os maiores

em juiacutezo e em conhecimento das coisas como Moiseacutes Pitaacutegoras Mercuacuterio Zoroastro

e Soacutelon os quais com consenso unacircnime (qui omnes pari consensu) natildeo apenas

creram nessas coisas como tambeacutem as afirmaram maximamenterdquo72 Seu discurso

pretendia sinalizar que muitos saacutebios entre pagatildeos e cristatildeos compartilhavam dos

mesmos princiacutepios Quando o debate termina como prossegue Crinito Savonarola

mostra estar rendido perante a erudiccedilatildeo do jovem abraccedila-o e reconhece que ele eacute o

uacutenico em seu tempo a conjugar um conhecimento exaustivo tanto da Filosofia dos

Antigos como das doutrinas e leis cristatildes comparaacutevel apenas ao dos grandes Padres

da Igreja do Oriente e Ocidente73

As palavras de Pico trazem por um lado a constataccedilatildeo de uma natildeo irrestrita

anuecircncia agraves orientaccedilotildees do dominicano por outro a confirmaccedilatildeo da preservaccedilatildeo das

mesmas certezas de outrora em relaccedilatildeo ao tema da concordacircncia entre antigas

tradiccedilotildees Sob a luz de tal testemunho arrefece a suposiccedilatildeo de conversatildeo e mudanccedila

de direcionamento doutrinaacuterio E solidifica-se a hipoacutetese alccedilada por alguns de

adulteraccedilatildeo de alguns textos publicados postumamente por parte de seu religioso

sobrinho e editor sob a eacutegide de Savonarola74 Outro sinal que afasta a possibilidade

de conversatildeo pode ser verificado no discurso de post-mortem do Mirandolano no

qual o Frei demonstra com desilusatildeo que ldquoesperava mais do jovemrdquo ldquoEle demorou a

veja-se Anthony GRAFTON Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore in Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers 1997 pp 93-134 Veja-se ainda Charles SCHMITT Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle in Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo pp 305-313 Stephen FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 pp 151-179 Eugenio GARIN Ricordando Giovanni e Gianfrancesco Pico della Mirandola in Giornale critico della filosofia italiana nr 74 1995 pp 5-19

70 Pietro CRINITO De honesta disciplina III 2 Roma Fratelli Bocca editori 1955 p 104 O debate eacute citado por Francisco BASTTITA HARRIET Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana 2016 p 218

71 Conforme expostas no Capiacutetulo I 72 CRINITO opcit pp 104-105 ldquoSed principes - inquit- in omni mortalium vita extiterunt aliquot et iudicio et

rerum cognitione maximi ut Moses Pythagoras Mercurius Zoroastres Solon qui omnes pari consensu non modo haec crediderunt sed maxime affirmaruntrdquo

73 CRINITO idem Na narrativa de Crinito dentre os Padres da Igreja aos quais Pico eacute igualado estatildeo Agostinho Gregoacuterio Dioniacutesio Jerocircnimo e Basiacutelio

74 BASTTITA HARRIET 2016 p 218 Para Alberto Cesare AMBESI a orientaccedilatildeo concordista de Pico contraacuteria agrave religiosidade de Savonarola que se manifestava de forma agressiva e intolerante elimina a hipoacutetese de conversatildeo que muitos quiseram crer (opcit p IV) Em razatildeo das incertezas de autoria que pairam sobre as Disputationes adversus astrologiam divinatricem preferimos nos abster de quaisquer comentaacuterios sobre a obra

41

abraccedilar a religiatildeo [] [mas] digo-vos que a alma dele em razatildeo das oraccedilotildees dos

frades e de algumas obras boas que realizou em vida estaacute no Purgatoacuteriordquo A ldquodemorardquo

em abraccedilar a religiatildeo deveu-se ao fato de o filoacutesofo natildeo se ter deixado convencer pelas

conversas com o padre que gostaria de tecirc-lo visto com o haacutebito dominicano75

Pico falece em 17 de novembro de 1494 em decorrecircncia de uma febre suacutebita e

violenta Logo surgem em Florenccedila suspeitas de assassinato76 Vestia na morte o

haacutebito dominicano aquele que em vida havia se recusado a usar No mesmo ano seu

sobrinho Gianfrancesco della Mirandola publica aquela que passaria agrave Histoacuteria da

Filosofia como a mais original contribuiccedilatildeo de Giovanni Pico a De Hominis

Dignitate

2 As bases filosoacuteficas entre a Academia e o Liceu

A recuperaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos transcorrida nos mesmos palcos em

que eram relidos os comentadores aristoteacutelicos levou ao nascimento de uma

polecircmica bastante aacutespera entre os sustentadores de cada uma daquelas linhagens

filosoacuteficas Apesar do florescente encantamento por Platatildeo sobretudo no nuacutecleo

florentino seria um equiacutevoco pensar que Aristoacuteteles tivesse sido esquecido na

segunda metade do seacuteculo XV Nas principais escolas por onde Pico passara ndash

Ferrara Bolonha Pavia e especialmente Paacutedua ndash os ensinamentos aristoteacutelicos

continuavam a fervilhar77 Mesmo entre os humanistas de vieacutes platocircnico mais

acentuado Aristoacuteteles era uma leitura obrigatoacuteria por representar a antiacutetese do

Platonismo servindo de fundamento aos mais amplos debates Tais debates

envolveriam alguns dos mais fundamentais filoacutesofos do periacuteodo de Nicolau de Cusa a

Pietro Pomponazzi passando por Ficino e deixando marcas em quase toda a

produccedilatildeo literaacuteria do seacuteculo78 A complexa temaacutetica da pressuposta antiacutetese entre o

pensamento de Platatildeo e o de Aristoacuteteles que dividia uma parcela dos acadecircmicos

ocupou uma relevante parte dos interesses de Giovanni Pico que trabalhou no

problema desde a De Hominis Dignitate ateacute o De Ente et Uno Aleacutem de todo seu

esforccedilo empregou na questatildeo a consistente bagagem que possuiacutea preenchida de

forma equacircnime pelo peso das duas vertentes que abasteciam sua biblioteca79

75 GARIN 2011 pp43 135 76 Leacuteon DOREZ apresenta a tese da morte por envenenamento por parte do secretaacuterio de Pico Cristoforo di

Casal Maggiore por razotildees financeiras ou poliacuteticas Pico havia feito empreacutestimos e destinado um lauto legado a Cristoforo (La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien in Giornale St Letteratura italiana vol 32 1898 pp360-364)

77 Tambeacutem Florenccedila respirava um clima aristoteacutelico Desde o final do seacuteculo XIII e ateacute parte do lsquoXV o filoacutesofo mais estudado pelos grandes cidadatildeos de Florenccedila havia sido Aristoacuteteles Soacute no lsquo400 foram feitas trinta e duas novas traduccedilotildees de suas obras a maior parte em Veneza e em Florenccedila nesta uacuteltima durante o periacuteodo em que jaacute prevalecia em seu solo a filosofia platocircnica (cf BROCCHIERI 2011 p24)

78 Paul Oskar KRISTELLER Movimenti filosofici del Rinascimento in Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29

79 A biblioteca de Pico tornou-se famosa por ser uma das maiores de seu seacuteculo Ademais suas fontes eram todos os livros das bibliotecas de seu tempo segundo Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo 1955) tornando seu leque de referecircncias fora do alcance de seus

42

Seus primeiros anos de estudos foram ocupados com as problemaacuteticas em

torno ao Aristotelismo e as subsequentes questotildees alccediladas por seus comentadores

Em uma carta de 1485 em resposta ao humanista Ermolao Barbaro tem-se o

importante testemunho do enraizado conhecimento de suas doutrinas e da gratidatildeo

que Pico nutria por aquela Escola em aberto elogio aos ldquograndes mestres aacuterabes e

latinos da Idade Meacutediardquo relata que a eles dedicou ldquotodos os dias e noitesrdquo daqueles

que por seis anos consecutivos teriam sido seus ldquomelhores anos de estudordquo A carta

reproduz ademais a defesa dos grandes conteuacutedos em detrimento da filologia e da

retoacuterica humanista ndash defendida por Barbaro ndash tendo se tornado um documento de

elogio agrave Filosofia ldquonatildeo seremos ceacutelebres nas escolas dos gramaacuteticos []mas sim

onde se indagam as razotildees das realidades humanas e divinasrdquo80 Seus argumentos e

justificativas somam-se para defender o meacutetodo escolaacutestico tornando-se

emblemaacuteticos das discussotildees ensejadas no periacuteodo renascentista ndash em que os

defensores da elegacircncia linguiacutestica encontravam-se em oposiccedilatildeo aos defensores dos

conteuacutedos filosoacuteficos81

Fato certo eacute que nas linhas da escolaacutestica latina especialmente a mais tardia

Pico encontrara uma riqueza de pensamento que o ajudaria a solucionar muitas de

suas duacutevidas filosoacuteficas Eis a razatildeo para dedicar ao periacuteodo nada menos que 94 de

suas Conclusiones entre as quais se encontram proposiccedilotildees dos principais

representantes do Aristotelismo cristatildeo estudados em Paacutedua e Paris como Alberto

Magno o teoacutelogo Enrico de Gand e seu contemporacircneo Egidio Romano o

dominicano Tomaacutes de Aquino o franciscano Duns Escoto e seu disciacutepulo Francisco

de Meyronnes Sua trajetoacuteria de estudos inicia-se com Tomaacutes com o qual passaria

um longo periacuteodo de instruccedilatildeo que continuaria com o percurso das demais

interpretaccedilotildees latinas82 Impulsionado por seu crescente interesse em torno ao Liceu

em breve tempo Pico seria conduzido ao encontro com o pensamento aacuterabe a

Universidade de Paacutedua sobretudo agrave sua eacutepoca seguia uma linha majoritariamente

averroiacutesta83 O relevo dispensado a essa corrente de pensamento reflete-se em suas

contemporacircneos Apoacutes sua morte e conforme deixado em testamento a biblioteca foi herdada por seu irmatildeo Anton Maria que a vendeu ao cardeal Domenico Grimani amigo de Pico e de Elia del Medigo estudioso de filosofia oriental Outras informaccedilotildees sobre a biblioteca de Pico podem ser colhidas de GARIN Giovanni Pico della Mirandola 2011 pp 106 ss

80 A carta de Junho de 1485 eacute reproduzida dentre outros por Eugenio GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952 pp804-823 Eugenio ANAGNINE examina com precisatildeo tal epiacutestola em seu Giovanni Pico della Mirandola 1937 pp 18 ss Veja-se ainda Francesco BAUSI E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza 1998 e alguns comentaacuterios de GARIN em sua traduccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 pp7 ss e em sua obra de 2011 p7

81 A carta para Barbaro tornou-se conhecida como De genere dicendi philosophorum ou ainda ldquoil manifesto del pensiero moderno allrsquouscire dalla sua infanzia drsquoun secolordquo (cf GARIN op cit pp22-23) O veneziano Ermolao Barbaro era disciacutepulo ferrenho de um novo Aristoacuteteles compreendido agrave luz do movimento humanista que rompia com a escolaacutestica medieval Em sua visatildeo aquela forma de interpretaccedilatildeo dogmatizava o Estagirita vinculando-o agrave loacutegica e a um padratildeo de pensamento teoloacutegico para ele ldquocoisa de conventordquo Acerca da polecircmica entre Ermolao Barbaro e Giovanni Pico veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos del Renacimiento Italiano p82 GARIN (org) Prosatori latini del Quattrocento Milano-Napoli 1952

82 Eugenio ANAGNINE (Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico 1937 p32) de forma singular acentua a influecircncia tomista no pensamento de Pico

83 Em Paacutedua a pesquisa universitaacuteria em torno do aristotelismo-averroiacutesta ganhara uma notoacuteria dimensatildeo especialmente na deacutecada de 70 do seacuteculo XV Esse fato contribuiu para que acorressem ao burgo diversos jovens humanistas aacutevidos em aprofundar o conhecimento aristoteacutelico Paralelamente diversos tipoacutegrafos introduziram sua arte na cidade no uacuteltimo quartel daquele seacuteculo e por via da accedilatildeo tipograacutefica foram grandes divulgadores dos

43

82 teses dedicadas aos inteacuterpretes aacuterabes de Aristoacuteteles quase se igualando em

nuacutemero agraves dedicadas aos comentadores cristatildeos Dentre aqueles o estudioso

debruccedilou-se sobre o filoacutesofo persa Ibn Sina conhecido como Avicenna e seu mestre

de origem turca Al-Farabi e de forma singular sobre o andaluz conhecido como

Averroacuteis cujas obras ocupavam grande parte de sua biblioteca84

Em seus estudos de especulaccedilatildeo oriental a obra de Averroacuteis desempenharia

um papel fundamental muito graccedilas a seus mestres de Paacutedua Nicoletto Vernia e

sobretudo Elia del Medigo que efetivamente incitaram Pico a aprofundar-se no

pensamento do comentador de Aristoacuteteles Eacute bastante provaacutevel que Elia leitor atento

da concepccedilatildeo da ordem metafiacutesica averroiacutesta tenha sido o primeiro a lanccedilar na

mente de seu aluno a semente da ldquoverdade uacutenicardquo sobretudo exposta por Averroacuteis em

seu De animae beatudine determinante para as primeiras concepccedilotildees piquianas em

torno da concordacircncia final entre doutrinas que se desenvolveria nos anos

seguintes85 Outras duas concepccedilotildees averroiacutestas certamente tiveram efeito em seus

escritos quais sejam o encontro da unidade da verdade com a unidade do espiacuterito

que a busca ndash e que define a unidade uacuteltima do intelecto inteligente e inteligiacutevel ndash e a

cogniccedilatildeo racional que ocorre entre pensadores individuais que formam uma

continuidade de pensamento levando a um complemento do real que apenas assim

se atua de forma plena Pico estava disposto a debater essa uacuteltima concepccedilatildeo durante

a pretendida Disputa Romana pois dentre as teses atribuiacutedas a Averroacuteis lecirc-se que ldquoa

alma intelectiva eacute uacutenica em todos os homensrdquo86 Mas de forma particular foi a

doutrina que postula a possibilidade de uniatildeo do intelecto humano com a mente

divina que mais fortemente ecoaria e se repetiria na obra de Pico87 Na forma

pressuposta pelo filoacutesofo aacuterabe

Aquele intelecto entatildeo ascenderaacute pelo ato agrave assimilaccedilatildeo das

realidades abstratas e compreenderaacute ser seu o que eacute pelo ato o

intelecto88

comentaacuterios de Averroacuteis a Aristoacuteteles Sobre a accedilatildeo tipograacutefica em Paacutedua veja-se G ANTONELLI Sulle Opere di Aristotele col commento dellrsquoAverroe impresse in Padova dal Canozio negli anni 1472 73 e 74 (Ferrara 1842) A Escola de Paacutedua graccedilas aos sistemas cientificistas adotados em seus estudos foi a responsaacutevel por cunhar a expressatildeo ldquomeacutetodo cientiacuteficordquo para questotildees de acircmbito filosoacutefico

84 Em seu ldquoAppendicerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (2011 pp 106 ss) no qual se encontra a relaccedilatildeo de obras que compunham a biblioteca de Pico escreve GARIN que o pensador do qual Pico ldquonatildeo sem significadordquo possuiacutea mais obras era justamente Averroacuteis (p118) Comentador de Aristoacuteteles por excelecircncia Abu al-Walid ibn Rushd mais frequentemente conhecido no Ocidente por Averroacuteis havia feito entre outras interpretaccedilotildees um comentaacuterio da Metafiacutesica agrave luz do Coratildeo A biblioteca de Pico continha vaacuterias de suas traduccedilotildees e comentaacuterios em aacuterabe hebraico e latim Para um maior enquadramento da problemaacutetica averroiacutesta veja-se a obra de Ernest RENAN Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme 1852

85 Acerca do influxo de Averroacuteis sobre a concepccedilatildeo de concoacuterdia piquiana veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss 86 PICO Concl (I) II I 2 (p20) ldquoUna est anima intellectiua in omnibus hominibusrdquo Dentre as teses

atribuiacutedas por Giovanni Pico aos comentadores aacuterabes de Aristoacuteteles 41 foram dedicadas a Averroacuteis O tema da unidade de alma dos filoacutesofos eacute tratado na obra do filoacutesofo aacuterabe Destructio destructionum disp I fol 20 I-21 a ldquoSoacutecrates eacute diverso de Platatildeo em nuacutemero e contudo ele mesmo [Soacutecrates] e Platatildeo satildeo o mesmo na forma que eacute almardquo (ldquoSocrates est alius a Platone numero et tamen ipse et Plato sunt idem in forma quae est animardquo)

87 A uniatildeo da mente humana com o divino eacute concepccedilatildeo presente na inteira obra piquiana colocada por outras vias e atraveacutes de outras formas filosoacuteficas ou teoloacutegicas como seu objetivo final Sobre a especiacutefica reflexatildeo do tema averroiacutesta na obra de Pico veja-se Guido DE RUGGIERO La filosofia del Cristianesimo 1920 p56

88 AVERROacuteIS De animae beatudine Opera volIX 153 AB ldquoAscendet tunc ille intellectus is actu ad assimilationem rerum abstractarum et intelligit suum esse quod est actu intellectus []rdquo O tratado De animae beatudine foi uma compilaccedilatildeo posterior de dois curtos textos de Averroacuteis sobre o intelecto (Tractatus De animae

44

A ideia da conciliaccedilatildeo do indiviacuteduo com o intelecto universal e a ideia da

unidade de alma existente entre os filoacutesofos seriam colhidas e ajudariam a compor o

substrato do pensamento piquiano89 Tais concepccedilotildees muito provavelmente

fizeram-no abraccedilar com mais veemecircncia o Platonismo com o qual encontraria

similitudes conceituais ndash como na questatildeo da afinidade existente entre a parte da

alma capaz de entender as Ideias e a realidade inteligiacutevel permitindo sua uniatildeo Cabe

ressaltar que a inspiraccedilatildeo averroiacutesta de Pico foi de tal profundidade que o levou a

afastar-se dos tradicionais nuacutecleos de Paacutedua em razatildeo de divergecircncias em relaccedilatildeo a

especificidades daquela doutrina A cisatildeo com o academicismo padovano fez com que

Barbaro o chamasse de ldquotraidorrdquo na famosa carta de rsquo85 incomodado pela

aproximaccedilatildeo do amigo ao Platonismo o peripateacutetico atribuiu seu afastamento a uma

suposta adesatildeo incondicional agrave filosofia do ciacuterculo de Ficino Mas ao contraacuterio do

que tantos quiseram crer seu afastamento foi mais consequecircncia dos argumentos

retirados de seus intensos estudos sobre o pensamento aacuterabe aliados a uma forma

diferenciada de ler Averroacuteis90 Mais do que ter sido ldquoroubadordquo de Averroacuteis por Platatildeo

Pico foi impelido pelo Comentador ao Platonismo pois havia algo naquela filosofia

que dava espaccedilo para a transcendecircncia91

Embora seja redutivo outorgar agrave filosofia de Averroacuteis o creacutedito por uma

aproximaccedilatildeo ao nuacutecleo de pensamento da Academia cabe lembrar que o Pico que se

lanccedila com interesse sobre a ficiniana Theologia Platonica em 1482 tem a mente jaacute

moldada por uma robusta bagagem averroiacutesta que natildeo seria desprezada Seu

primeiro texto relevante o Commento sopra una Canzona drsquoamore composta da

Girolamo Benivieni92 apresenta um claro vieacutes platocircnico A inegaacutevel orientaccedilatildeo de seu

primeiro escrito mostra que embora o nuacutemero total de teses dedicadas ao

Platonismo na sucessiva obra de rsquo86 tenha sido menor a admiraccedilatildeo por suas

concepccedilotildees natildeo se mostra inferior do que a experimentada com as correntes

aristoteacutelicas Eacute bastante possiacutevel que ao aproximar-se de Platatildeo e dos neoplatocircnicos

Pico jaacute o faccedila trajando as vestes do conciliador que busca harmonizar os motivos

centrais do Liceu e da Academia Sob tal enfoque chama a atenccedilatildeo o fato de Proclo

beatudine - Aristotelis Opera cum Averrois Commentariis Venetiaa Junctas 1562 [reprinted Frankfurt 1962] Vol IX pp 148r-155r)

89 A concepccedilatildeo de que o intelecto eacute capaz de entender o agente primeiro e a si mesmo a partir da virtude racional eacute uma tese de Al-Farabi que Pico encontra tambeacutem em Avempace e em Maimocircnides (Doctor perplexorum I 68) neste uacuteltimo conforme elucida Salomon MUNK Le Guide des Egareacutes Paris 1856 volI n p 304-308 (GARIN 2011 p65)

90 Um detalhamento da interpretaccedilatildeo de Pico que o levou a divergir dos demais averroiacutestas nos afastaria do tema traccedilado Para o tema veja-se GARIN 2011 pp12 ss 84 ss

91 Conforme infere Moshe IDEL Averroacuteis ldquoo mais ortodoxo entre os aristoteacutelicos medievais e ao mesmo tempo conhecido por permitir a possibilidade da uniatildeo epistecircmica do humano com o Agente Intelectordquo eacute entendido por oferecer uma metafiacutesica e uma epistemologia que podem conter alguns elementos miacutesticos Trata-se pois de ldquoum racionalista que natildeo conseguindo justificar todas as coisas plenamente atraveacutes da razatildeo aceita a revelaccedilatildeordquo (IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 28-29)

92 Durante sua permanecircncia em Fratta apoacutes o fracasso amoroso com Margherita Pico concluiu seu comentaacuterio agrave canccedilatildeo de amor redigida pelo amigo Benivieni o chamado Commento obra que se tornou famosa e foi bastante comentada nas cartas do periacuteodo O texto foi editado uma primeira vez em 1519 no contexto das obras piquianas e em 1731 como texto autocircnomo com o tiacutetulo Dellrsquoamore celeste e divino - Canzone di GB fiorentino col comento di G Pico della Mirandola (Alberto Cesare AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo in Heptaplus 1996 pV)

45

ser homenageado com 55 teses dez a mais que seu estimado Aquinate Essa

quantidade revela natildeo apenas o apreccedilo de Pico pelo filoacutesofo grego como muito

provavelmente a vontade de dar continuidade ao projeto que aquele havia iniciado

jaacute entatildeo uma tentativa de levar a termo a conciliaccedilatildeo entre as duas escolas

filosoacuteficas93 Ademais assim como ele o uacuteltimo grande mestre neoplatocircnico

considerava como elemento preliminar agrave carreira filosoacutefica o entendimento das obras

loacutegicas de Aristoacuteteles Certo eacute que a ideia de encetar um estudo de verificaccedilatildeo da

concoacuterdia entre os dois grandes da Antiguidade iniciara pouco antes de seu

estabelecimento em Florenccedila ocorrido em rsquo84 encontrando-se expressa na epiacutestola a

Barbaro do mesmo ano na qual afirma ser apenas aparente tal discoacuterdia

Parece-me que em Platatildeo haacute dois aspectos a eloquecircncia

homeacuterica que se ergue ateacute os ceacuteus da poesia e um total acordo

com Aristoacuteteles se se vai a fundo Portanto se olharmos a

forma nada concorda entre os dois mas se natildeo olharmos a

forma nada se opotildee entre os dois94

O momento para retomar aquele projeto maior mantido vivo desde antes da

elaboraccedilatildeo das novecentas teses ocorre apoacutes o fracasso de seu intento com as

Conclusiones Para levaacute-lo a termo muniu-se de fundamentos encontrados tanto nas

similitudes descritas pelos comentadores que o influenciaram quanto em sentido

contraacuterio nas diferenccedilas entre os dois Filoacutesofos acentuadas sobretudo por George

Gemistos Plethon anos antes95 Assim durante os anos de rsquo90 e lsquo91 Pico se dedica

exaustivamente agrave ldquoconcordia Platonis et Aristotelisrdquo conseguindo concluir em 1492

o texto embrionaacuterio De Ente et Uno dedicado ao amigo Poliziano96 Nesse percurso

ocorre seu retorno agrave Escolaacutestica que pode ter sido decisivo assim como o

Averroiacutesmo anos antes o aproximara a Platatildeo Tomaacutes de Aquino seu mestre inicial

o reaproximava agora a Aristoacuteteles ndash natildeo sem a influecircncia da convivecircncia com

93 Em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agraves Conclusiones Pico esclarece que o acordo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ldquopor muitos

considerado possiacutevelrdquo natildeo havia sido por ningueacutem ldquosuficientemente provadordquo Por ldquomuitosrdquo Pico referia-se a Boeacutecio Simpliacutecio Agostinho e Joatildeo Gramaacutetico ldquoBoeacutecio [] parece que nunca cumpriu o que sempre disse querer fazer Simpliacutecio entre os Gregos tinha sustentado a mesma coisa quem dera tivesse mantido quanto prometera Ateacute mesmo Agostinho no livro Contra os Acadecircmicos escreve que muitos foram os que tentaram provar que a filosofia de Platatildeo e de Aristoacuteteles satildeo uma mesma filosofia Assim Joatildeo Gramaacutetico que afirma que Platatildeo difere de Aristoacuteteles soacute para os que natildeo percebem o texto de Platatildeo deixou aos vindouros a demonstraccedilatildeordquo (Concl p145) Naomi GOLDFELD observa que o mestre Elia del Medigo foi outro dentre os que encontraram dificuldades para conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles seguindo os passos de Averroacuteis que por sua vez havia encontrado dificuldades quase trecircs seacuteculos antes ao tentar essa conciliaccedilatildeo (Elia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraico in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 pp 43-44)

94 PICO Carta de 6 de Dezembro de 1484 in De Hominis Dignitate etc p9 (I 22) ldquo[] duo in Platone agnoscere et homerican illam eloquenti facultatem supra prosam orationem sese attollentem et sensum si quis eos altius introspiciat cum omnino communionem Ita ut si verba spectes nihil pugnantius si res nihil concordiusrdquo

95 Eacute bastante provaacutevel que a polecircmica de algumas deacutecadas gerada pelo opuacutesculo posteriormente intitulado De Differentiis que exerceu forte influxo nas concernentes discussotildees do seacuteculo XV ndash no qual o mestre de Mistra aborda as diferenccedilas entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tenha afetado o jovem Pico Conforme foi visto no Capiacutetulo I a polecircmica sobre as divergecircncias ou similaridades entre os dois Filoacutesofos perpassou o seacuteculo de certa forma graccedilas agrave continuidade do debate mantida por George de Trebizonda e Basiacutelio Bessarion Para maiores detalhes acerca da questatildeo leia-se MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 James HANKINS Plato in the Italian Renaissance 1990 pp193 ss GARIN 2011 p128

96 A iacutentegra da obra pode ser encontrada na ediccedilatildeo de Vallecchi (org Eugenio Garin) da De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 Para dados adicionais sobre a discussatildeo do De Ente et Uno leia-se GARIN 2011 entre pp 79 e 98 sobretudo as pp80-81

46

Savonarola Como infere Di Napoli o retorno a Tomaacutes com sua ldquosiacutentese de superaccedilatildeo

da distinccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacutetelesrdquo seria ldquodeterminanterdquo para que Pico

embasasse sua concoacuterdia97 O esteio tomista traria a sustentaccedilatildeo necessaacuteria para

discorrer acerca da relaccedilatildeo entre o Uno e o Ser proscecircnio de uma das importantes

disputas entre acadecircmicos aristoteacutelicos e platocircnicos nas discussotildees teoloacutegicas do

seacuteculo Solucionar um dos grandes contrastes teoreacuteticos da eacutepoca cria o eixo de De

Ente et Uno para a fundamentaccedilatildeo do qual Pico apoia-se sobretudo na Metafiacutesica

de Aristoacuteteles e no Parmecircnides de Platatildeo98 Apesar de o intento natildeo ter sido

terminado e a concordacircncia portanto natildeo concluiacuteda nos moldes pretendidos a obra

aborda conceitos metafiacutesicos obrigatoacuterios para a questatildeo retratando de acordo com

Garin uma ldquonotaacutevel posiccedilatildeo especulativardquo99

A soacutelida estrutura preparada ao longo de anos para sustentar aquele que seria

um de seus mais importantes projetos filosoacuteficos o de dirimir as diferenccedilas entre os

dois Gregos permitiu-lhe especular sobre esferas metafiacutesicas elevadas Apesar de

uma exposiccedilatildeo mais ampla do De Ente et Uno mostrar-se secundaacuteria para a

composiccedilatildeo do tema aqui proposto tomar conhecimento de seu nuacutecleo e sobretudo

de para onde aponta seu fim eacute condiccedilatildeo devida para que se complete o cenaacuterio dos

alicerces que constituem o pensamento piquiano O nuacutecleo da obra concentra um

motivo de cunho ontoloacutegico visto que trata da discussatildeo acerca da unidade ou

multiplicidade do Ser tomando por base as visotildees aristoteacutelica e platocircnica referentes

ao Ser e ao Uno Partindo da passagem da Metafiacutesica ldquoo Ser eacute Unordquo100 que se opunha

agrave ldquoprioridade do Uno em relaccedilatildeo ao Enterdquo sustentada na Academia101 Pico pretende

averiguar se a Unidade eacute inerente ao Ser O fim de sua obra para o qual se orienta a

tentativa de dirimir o presumido conflito eleva-o para a esfera dos Princiacutepios ndash um

interesse relacionado agrave Origem protoloacutegico portanto Essa informaccedilatildeo deve ser

guardada Em torno a essa esfera e natildeo abaixo dela concentram-se muitas das

demais argumentaccedilotildees piquianas algumas de acircmbito supra filosoacutefico sobretudo as

que recorrem a argumentos retirados da dimensatildeo esoteacuterica como seraacute visto Seus

interesses de ordem religiosa ou miacutestica procuram justamente encontrar o ponto de

convergecircncia entre aquelas doutrinas e os Princiacutepios

97 Giovanni DI NAPOLI Pico e la problematica dottrinale del suo tempo 1965 p223 Para o influxo de Tomaacutes

de Aquino sobre o pensamento de Pico em seus uacuteltimos anos veja-se Andreacute-Jean FESTUGIEgraveRE Studia Mirandulana in Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge 1933 pp151 e ss ANAGNINE (opcit p32)

98 A discussatildeo do Parmecircnides envolveu muitos eruditos no seacuteculo XV como Bessarion e Ficino que enxergavam no diaacutelogo o coraccedilatildeo da teologia platocircnica Alguns pontos da obra contrapuseram Pico ndash que considerava a obra apenas como um exerciacutecio dialeacutetico ndash a Ficino que diria ldquono Parmecircnides Platatildeo encerrou a inteira teologiardquo (Ficino Opera Henricpetrina Basilea 1576 p1137 apud MOLINARI opcit p81) Ainda GARIN LrsquoUmanesimo Italiano 2008 pXVII As interpretaccedilotildees dos dois autores renascentistas sobre o pensamento de Platatildeo exerceraacute uma influecircncia profunda nos seacuteculos seguintes alcanccedilando desde os Platocircnicos de Cambridge ateacute a literatura alematilde atingindo Winckelmann Herder Goethe Schelling e Hegel (cf CASSIRER ldquoFicinorsquos Place in Intelectual Historyrdquo in Journal of the History of Ideas nr 6 1945)

99 GARIN 2011 p42 Como reflete o comentador em outra obra Pico mergulhou na problemaacutetica da discoacuterdia natildeo para eliminar seu dissenso mas para integrar ndash e distribuir em niacuteveis distintos ndash seus conteuacutedos (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17) Mesmo natildeo tendo concluiacutedo a obra de conciliaccedilatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash tema que continuaraacute em todo o seacuteculo XVI ndash soacute o fato de tecirc-la proposto em termos novos e tecirc-la iniciado mostram como era forte a necessidade de suplantar certas posiccedilotildees humanistas do lsquo400 e como jaacute despontavam em Pico questotildees que seriam a tocircnica do seacuteculo vindouro (GARIN 2008 p 98)

100 Metaphysica IV 2 1003b-23 ldquoens et unum idem et eadem natura suntrdquo 101 PICO De Ente et Uno p389

47

3 A aproximaccedilatildeo aos estudos miacutesticos

O contato com a consistente corrente d0 pensamento padovano natildeo trouxe

apenas a convicccedilatildeo de conciliar Platatildeo e Aristoacuteteles Jaacute agrave eacutepoca de seus estudos

iniciais havia-se encastelado na mente de Pico aquele que viria a ser seu desafio

maior encontrar os pontos de acordo entre sistemas filosoacuteficos e doutrinas religiosas

pertencentes a tradiccedilotildees distintas102 Natildeo por acaso observa-se em sua biografia uma

alternacircncia de temaacuteticas de pesquisa que transitam entre Filosofia e doutrinas ligadas

ao campo da Revelaccedilatildeo Essas uacuteltimas satildeo retomadas no periacuteodo imediato ao retorno

da Franccedila para Florenccedila quando ocorre a aproximaccedilatildeo ao misticismo hebraico

atraveacutes de uma renovaccedilatildeo nos estudos biacuteblicos Em fase de introspecccedilatildeo inicia-se a

redaccedilatildeo de uma seacuterie incompleta de comentaacuterios sobre os Salmos e embora natildeo

comprovado uma nova traduccedilatildeo e alguns comentaacuterios sobre partes do Livro de Joacute

Nessa fase tocado pelo estado de espiacuterito de seu amigo Lorenzo escreve para o

embaixador papal em Roma Giovanni Lanfredini contando que Pico ldquovive muito

piamente como um monge canta os Salmos e escreve conteuacutedos teoloacutegicosrdquo E

acresce que ldquopoucos satildeo os homensrdquo que lhe despertam ldquotanta estimardquo103 A carta ndash

uma tentativa para a reabilitaccedilatildeo do sentenciado ainda natildeo absolvido de sua

condenaccedilatildeo ndash termina sendo malsucedida pois Inocecircncio VIII considera intoleraacutevel o

interesse contiacutenuo de Pico em Teologia preferindo que ele ldquose dedique agrave poesiardquo104

Esse tipo de interesse pelas Escrituras natildeo era novo Quando ainda estudante

em Paacutedua lanccedilara-se com premecircncia ao estudo do idioma hebraico em um primeiro

momento buscava apenas compreender as traduccedilotildees e interpretaccedilotildees hebraicas dos

pensadores aacuterabes e seus comentaacuterios referentes a Aristoacuteteles contudo em fase

posterior os textos originais hebraicos foram objeto de profundo interesse para a

busca de confirmaccedilotildees da verdade de suas crenccedilas cristatildes ndash interesse despertado

sobretudo pelo contato com Elia del Medigo durante o periacuteodo florentino A

proficiecircncia do idioma seria incrementada por Flaacutevio Mitridate ndash mestre que natildeo

apenas o ajudaria nas traduccedilotildees de alguns textos como se tornaria seu principal

instrutor de liacutenguas orientais105 Aleacutem do hebraico iniciou-o no aramaico e no aacuterabe

este entre outras coisas para que pudesse ler Maomeacute no original Assim em dado

periacuteodo o aprendiz lia simultaneamente o Coratildeo os Oraacuteculos Caldeus atribuiacutedos a

102 GARIN 2011 p13 BROCCHIERI opcit p13 103 A carta foi escrita em 13 de junho de 1489 Os conteuacutedos teoloacutegicos referem-se tanto aos Salmos quanto

presumivelmente ao Heptaplus (BLACK opcit pg 9) As cartas entre Giovanni Lanfredini e Lorenzo dersquo Medici podem ser vistas em Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti 1859 pp51-52 Ainda para a questatildeo veja-se GARIN 2011 pp39-40

104 Em 2 de Outubro de 1489 o embaixador Giovanni Lanfredini assim responderia a Lorenzo ldquoEt dixe [il papa] lsquoQueste cose della fede sono troppo tenere et non posso tollerarle Se lui [Lorenzo] gli vuole molto bene [a Pico] che lo facci scrivere opere di poesia et non cose theologiche percheacute saranno piugrave de sua denti percheacute il conte non egrave bene fondato et non ha visto tanto quanto bisogna ad chi scrive theologiarsquordquo (MS Firenze Archivio di Stato MAP 58 96 apud Raffaella Maria ZACCARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus in Pico Poliziano e LrsquoUmanesimo di fine Quattrocento 1994 pp 76-77)

105 Para os estudos com Mitridate leia-se Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 p 88 Domenico BERTI Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti in Rivista contemporanea 1859 pp36-37

48

Zoroastro e o Livro da Criaccedilatildeo pilar do misticismo judaico ndash buscando extrair seus

pontos de conversatildeo106

O contato com os mestres hebreus que frequentavam o ciacuterculo florentino

ligado agrave Academia acentuou ademais seu interesse pelo Esoterismo Elia del

Medigo natildeo lhe apresentaria apenas Averroacuteis e as filosofias orientais em carta ao

aluno no provaacutevel ano de rsquo85 mencionava a principal doutrina miacutestica judaica

afirmando que ldquopoucos entre os Antigos entenderam a Cabalardquo107 Ademais

continuava a carta seus textos obscuros pediam uma hermenecircutica especial que

possibilitasse a decodificaccedilatildeo das doutrinas secretas laacute ocultas ele Elia seria o

mestre capaz de fornecer a Pico os preciosos elementos para a compreensatildeo da gnose

hebraica108 Assim embora natildeo se tendo limitado aos ensinamentos de Elia que

nesse sentido foram um tanto escassos as primeiras indicaccedilotildees para seus estudos da

Cabala foram-lhe transmitidas por aquele jovem mestre que insistia para que fossem

extraiacutedas as partes teoreticamente mais profundas da miacutestica hebraica Elia colocava

e ressaltava continuamente o problema da convergecircncia entre Filosofia e Teologia

(ldquoo outro caminho para acreditar-se na Lei aleacutem da feacute se daacute pela via filosoacuteficardquo)109 ndash

uma concepccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo do pensamento piquiano

Natildeo somente Elia lhe abriria as portas para esse gecircnero de interesse A forte

dicotomia entre a leitura literal e natildeo literal era uma caracteriacutestica constante e

enfaacutetica da tradiccedilatildeo judaica medieval ainda mantida viva no seacuteculo XV e

apresentava evidentes paralelos com os modelos de transmissatildeo esoteacuterica greco-

cristatildeos tais ideias tinham portanto uma ressonacircncia contemporacircnea sendo objeto

de discussotildees teoacutericas na Itaacutelia ainda agrave eacutepoca em que Pico escrevia o Heptaplus110 De

forma que a postura hermenecircutica ali desenvolvida natildeo se fundamenta apenas na

miacutestica judaica mas encontra raiacutezes entre os primeiros inteacuterpretes latinos e gregos

Dentre as vaacuterias fontes agraves quais Pico teve acesso e que foram certamente utilizadas

em suas pesquisas verificam-se desde representantes do Cristianismo primitivo

quanto do meacutedio e novo Platonismo como Plutarco Dioacutegenes Laeacutercio Clemente

106 A questatildeo do aprendizado de liacutenguas estaacute bem documentada em vaacuterias cartas Veja-se Gian Francesco PICO

Vita di Giovanni Pico (org Sorbelli) 1963 DUKAS opcit pp69-70 CASSUTO op cit pp 282 299-300 GARIN 2011 pp97-98 Em resposta a uma carta de Ficino de setembro de 1486 em que esse lhe pede de volta a versatildeo latina do Coratildeo Pico conta-lhe sobre seu mecircs de esforccedilos para aprender o hebraico aleacutem de levar adiante os estudos do aacuterabe e do aramaico A carta pode ser lida em Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 3-4 Escreve Wirszubski que ldquoo quanto Pico aprendeu em hebraico em termos de proficiecircncia eacute difiacutecil dizer natildeo eacute de forma alguma insignificanterdquo E na p 6 ldquoPico aprendeu muito com as traduccedilotildees de Mitridate infinitamente mais do que ele poderia ter aprendido com os originais hebraicos uma vez que tentou lecirc-los sem traduccedilotildeesrdquo

107 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi in RAGNISCO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo 1891 Veja-se ainda Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 BROCCHIERI opcit p9

108 CASSUTO opcit pp284 e ss Ainda para o tema BROCCHIERI opcit pp10-11 GARIN 2011 p11 SIRGADO GANHO opcit p17

109 HELIAE CRETENSIS De efficientia mundi fol 255 in RAGNISCO opcit A carta de Elia del Medigo foi publicada pela primeira vez por Jules DUKAS em Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 ldquo[] si quid tamen dictum sit contrarium Legi non mirum est quia tantum intentiones Philosophorum secundum fundamenta eorum dicere volui scitur nam quod via Legis cui magis creditur alia est a via Philosophicardquo Complementando a colocaccedilatildeo acima cabe observar que na visatildeo de Elia segundo Naomi GOLDFELD a feacute estaacute fundada sobre a razatildeo (ldquoElia del Medigo e lrsquoaverroismo hebraicordquo in La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze 1998 p 43-44)

110 BLACK opcit pp 131-132

49

Euseacutebio Plotino Porfiacuterio e Jacircmblico Tendo sido adotada por alguns dentre os

primeiros exegetas cristatildeos a abordagem esoteacuterica foi mantida em circulaccedilatildeo por

intermeacutedio da tradiccedilatildeo neoplatocircnica mais tardia ndash levada adiante por Macroacutebio

Pseudo-Dioniacutesio e Simpliacutecio ndash depois que a mesma havia deixado de ser utilizada111

Jaacute em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees relativas ao Gecircnesis cujos sinais se mostram

na De Hominis Dignitate e em caraacuteter preciacutepuo no Heptaplus eacute bastante certo que

um limitado nuacutemero de textos tenha sido extraiacutedo das exegeses gregas da escola

alexandrina particularmente referentes a escritos de Oriacutegenes e de Fiacutelon A obra De

opificio mundi de Fiacutelon foi bem recepcionada por Ambroacutesio cujo pensamento

influiria sobre Agostinho mas apoacutes essa recepccedilatildeo cristatilde no seacuteculo IV sua utilizaccedilatildeo

parece ter desaparecido em grande parte112 Eacute possiacutevel que Pico tenha tido acesso ao

conteuacutedo de Fiacutelon atraveacutes de Ambroacutesio ou Agostinho

Passar do esoterismo grego e cristatildeo ao oriental foi um passo Pico percebia

atraveacutes de suas leituras que havia outros sistemas que em comum com aqueles

partilhavam de certo pendor por questotildees de cunho teoloacutegico ndash quando natildeo

puramente miacutestico Ainda antes de chegar a Florenccedila o jovem de Mirandola fora

atraiacutedo pelo Platonismo de Ficino um Platonismo de vieacutes teoloacutegico que tentava a

conciliaccedilatildeo com o Cristianismo O entatildeo ordenado padre via na obra platocircnica uma

filosofia divinamente inspirada na qual estava sintetizada toda a tradiccedilatildeo

especulativa oriental e grega113 Na concepccedilatildeo ficiniana todos os campos do real

encontravam-se convergentes em virtude de uma uniatildeo vital do mundo tal reflexatildeo

contemplava a perspectiva de uma pia philosophia na qual estariam alinhados

Zoroastro e Moiseacutes Hermes Trismegisto e Platatildeo os pitagoacutericos e os neoplatocircnicos

O legado de Ficino natildeo deixaria de acrescer importantes elementos na construccedilatildeo do

pensamento piquiano embora natildeo sem ressalvas114

Sobretudo os textos hermeacuteticos de acordo com as traduccedilotildees ficinianas teriam

exercido influecircncia nas reflexotildees do Conde alguns de seus temas como a liberdade

da alma em relaccedilatildeo ao corpo e a natureza mediadora do homem seriam amplamente

desenvolvidos nas obras posteriores a lsquo86115 Para alguns comentadores a

111 BLACK ibid p 147 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo VII 112 BLACK idem Natildeo estaacute claro se esta obra foi incluiacuteda entre os manuscritos de Fiacutelon pertencentes agrave biblioteca

de Lorenzo Por outro lado ela estaacute atestada em dois manuscritos do Vaticano que foram incluiacutedos nos inventaacuterios de 1475 1481 e 1484

113 Para Ficino existia uma uacutenica Filosofia que consistia na ldquoreflexatildeo sobre as verdades eternas as Ideias que como tais permanecem inalteradas no tempo e transcendem a Histoacuteriardquo (cf Sebastiano GENTILE Il ritorno di Platone dei platonici e del lsquocorpusrsquo ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino in Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento 2002 pp 193-228)

114 Nem tudo foi apenas uniatildeo de ideias entre Ficino e Pico No Commento sopra una canzona drsquoamore da Girolamo Benivieni Pico faz aacutesperas criacuteticas a uma das obras de maior sucesso de Ficino o Commentarium in Convivium criticando a concoacuterdia estabelecida por Ficino de forma muito faacutecil entre o pensamento de Platatildeo e a doutrina cristatilde especialmente em pontos essenciais como a figura do Cristo Como escrevia Pico ldquoeacute preciso estar atento em natildeo confundir o filho de Deus [o demiurgo no texto de Platatildeo] com o filho de Deus dos teoacutelogos cristatildeos jaacute que este eacute de mesma essecircncia que o Pai criador e natildeo criaturardquo (GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento Firenze 1965 p28)

115 O conceito do homem-mediador na obra de Hermes Trismegisto eacute bem desenvolvido por SCOTT - FERGUSON em Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which Contain Religious or Philosophic Teachings Ascribed to Hermes Trismegistus 1924-36 p 120 ss

50

ldquoantropologiardquo foi um dentre os principais interesses extraiacutedos daquele

conhecimento em razatildeo do paraacutegrafo inicial da De Hominis Dignitate em que eacute

citada a ceacutelebre sentenccedila do Asclepius ldquoMagnum o Asclepi miraculum est homordquo116

uma entre diversas passagens hermeacuteticas que exaltam a grandeza do homem Ficino

havia citado a mesma passagem mais de dez anos antes em sua Theologia

Platonica117 mas com Pico a teoria hermeacutetica seraacute aprofundada e decisiva para a

questatildeo da dignidade Os escritos atribuiacutedos a Trismegisto foram ademais a fonte

utilizada para desenvolver seus pontos de vista sobre a magia branca capaz de

ldquocomungarrdquo o homem com o divino ndash tema a ser retomado no proacuteximo Capiacutetulo ndash

embora seus muacuteltiplos interesses o fizessem se envolver tambeacutem com certas

alquimias de conotaccedilatildeo praacutetica extraiacutedas do manual Picatrix118

Na Academia Pico inicia portanto a construir uma estrada proacutepria a partir ndash

natildeo da fusatildeo mas do encontro ndash de componentes comuns extraiacutedos de domiacutenios

distintos da teologia cristatilde da filosofia neoplatocircnica de escolas iniciaacuteticas egiacutepcias e

persas da miacutestica judaica A siacutentese daqueles estudos se mostraraacute na fase de reclusatildeo

no mosteiro de San Marco apoacutes o retorno da Franccedila uma nova etapa na qual o

pesquisador voltar-se-aacute para pensadores que fizeram da experiecircncia religiosa seu

campo de reflexatildeo Mergulhando de iniacutecio nas reflexotildees teoloacutegicas de Maimocircnides

adentra definitivamente pela porta do pensamento hebraico E ao trilhar essa

estrada comeccedila a vislumbrar a ideia de ter encontrado uma soluccedilatildeo para seus

problemas referentes agrave dificuldade em aliar Filosofia e Cristianismo119 A alegria de

encontrar no pensamento hebraico a confirmaccedilatildeo da identidade profunda entre

aquelas reflexotildees e suas crenccedilas ndash e ainda com as de outras culturas ndash seria relatada

posteriormente no Heptaplus

No ambiente de isolamento a cultura hebraica de Pico comeccedila efetivamente a

desabrochar Isso ocorre mormente atraveacutes das reflexotildees conduzidas junto a

Yohanan Alemanno Elia o tinha guiado em seus primeiros passos atraveacutes do

pensamento aacuterabe-hebraico mas o vieacutes aristoteacutelico de Elia natildeo permitia um maior

aprofundamento na Cabala com Flavio Mitridate natildeo haacute duacutevidas as cogniccedilotildees sobre

o tema se estenderam mas agora com Alemanno Pico consegue de modo efetivo

avanccedilar em suas intuiccedilotildees acerca da aplicaccedilatildeo dos meacutetodos cabaliacutesticos na soluccedilatildeo

das antiacuteteses entre Religiatildeo e Filosofia120 Os interesses de Alemanno comprovados

em sua bibliografia apresentavam muitos pontos de contato com a interpretaccedilatildeo

biacuteblica em geral e particularmente com o conteuacutedo desenvolvido no Heptaplus

116 PICO Oratio p 102 O tema seraacute retomado no Capiacutetulo IV 117 Marsilio FICINO Theologia platonica XIV 3 2 (ed Bompiani p1299) ldquoQuod admiratus Mercurius

Trismegistus inquit lsquoMagnum miraculum esse hominem animal venerandum et adorandum qui genus daemonum noverit quasi natura cognatum quive in deum transeat quasi ipse sit deusrsquordquo

118 Para a relaccedilatildeo de Pico com a magia extraiacuteda do Hermetismo leia-se Frances YATES Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica 1995 pp 84-116 Algumas questotildees relacionadas agrave magia praacutetica e alquimia satildeo descritas por Pietro CRINITO conta por exemplo que Pico ficou dias a preparar uma foacutermula alquiacutemica agrave base de certos venenos para curar Ermolao Barbaro E em eacutepoca de peste experimentou algumas misturas de venenos para encontrar a cura ldquoex oleo scorpionum linguisque aspidum et aliis eiusmodi venenis confectumrdquo (De honesta Disciplina I 7 p12 apud GARIN 2011 p44)

119 GARIN 2011 p27 120 GARIN 2011 pp38-39 WIRSZUBSKI op cit pp256-257

51

Atraveacutes da interpretaccedilatildeo cabaliacutestica poderia ser promovida a possiacutevel conciliaccedilatildeo

entre as Escrituras e a Filosofia como seraacute visto no Capiacutetulo VI Da mesma forma

que a Teologia cristatilde havia identificado ecos de suas doutrinas nos manuscritos de

caldeus e egiacutepcios como mostravam as recentes descobertas do Platonismo

florentino121 Pico tentaria encontrar nas Escrituras conteuacutedos que teriam derivado

das doutrinas cabaliacutesticas ndash natildeo com o intuito de subordinar umas agraves outras mas

com a firme vontade de dar verdade aos textos sagrados dentro da Filosofia que

buscava122

Com a apresentaccedilatildeo das Conclusiones Nongentae Giovanni Pico teria a

chance natildeo apenas de expor como de debater finalmente o cabedal de conhecimento

aprendido naqueles anos de estudos filosoacuteficos teoloacutegicos orientais e em parte

esoteacutericos Tendo sido apresentadas as circunstacircncias ao seu redor e os caminhos

atraveacutes dos quais se estruturou seu pensamento seraacute possiacutevel prosseguir em direccedilatildeo

ao objetivo traccedilado qual seja mostrar de que forma Pico mesclou em suas

argumentaccedilotildees paracircmetros de teor natildeo-filosoacutefico

121 Essa era a ideia prevalente no ciacuterculo de Ficino A relaccedilatildeo entre essas doutrinas e sua aceitaccedilatildeo na Academia

podem ser confirmadas pela recepccedilatildeo dos textos atribuiacutedos a Hermes do Egito e ao persa Zoroastro conforme abordado no Capiacutetulo I A aceitaccedilatildeo de Hermes como ldquoum dos seusrdquo pela Igreja pode ser comprovada atraveacutes do grande trabalho de marchetaria feito no piso do Duomo de Siena nos anos rsquo80 do seacuteculo XV onde Hermes Trismegisto estaacute representado de forma extraordinaacuteria mostrando sua recepccedilatildeo em territoacuterio cristatildeo

122 Bohdan KIESZKOWSKI Averroismo e Platonismo in Italia in Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia 1936 capVII

52

CAPIacuteTULO III

AS CONCLUSIONES NONGENTAE E SUA OCCULTA CONCATENATIO

As Conclusiones Nongentae1 ou Novecentas Teses formam em seu conjunto

a primeira obra de Giovanni Pico a ser estampada ndash e seu trabalho mais

desafortunado Os acontecimentos em torno ao assunto ocorreram em um ritmo

muito veloz A redaccedilatildeo foi concluiacuteda em 12 de Novembro de 1486 em 7 Dezembro o

manuscrito foi levado para ediccedilatildeo em Roma pelas matildeos de Eucharius Silber2 sem

que fosse aguardado o usual parecer de catolicidade por parte da comissatildeo pontifiacutecia

Em breve tempo algumas daquelas primeiras coacutepias seriam vetadas e em Marccedilo de

lsquo87 a comissatildeo ligada ao prelado proibiria definitivamente sua difusatildeo Treze teses

foram inicialmente censuradas Pico julgado e finalmente a totalidade das teses

condenada A proacutexima publicaccedilatildeo das Conclusiones somente ocorreria na segunda

metade do seacuteculo XVI na Basileacuteia terra natildeo catoacutelica3

Voltando-se atraacutes alguns meses para o periacuteodo de sua elaboraccedilatildeo verifica-se

que o principal projeto de Pico seguiu uma bem estruturada sistematizaccedilatildeo na

preparaccedilatildeo dos fundamentos erigida ao molde das construccedilotildees teoreacuteticas medievais

Em posse do conhecimento dos formatos escolaacutesticos o autor daria iniacutecio a uma

ordenaccedilatildeo das vaacuterias vertentes e escolas com as quais tivera contato com o objetivo

de apresentar seus pontos de analogia Assim a organizaccedilatildeo do conteuacutedo obedece a

uma sequecircncia de proposiccedilotildees extraiacutedas de sua criacutetica-histoacuterica organizada por

grupos de pensamento Em termos de estilo e aproveitando-se do meacutetodo de

argumentaccedilatildeo atraveacutes de nuacutemeros (calculationes) apreendido nos cursos de loacutegica

seguidos em Pavia Pico se serve do modelo de escrita ldquoparisiensisrdquo tendo por base a

loacutegica aristoteacutelica4 Tal estilo utilizado tanto nas Conclusiones quanto na Apologia

1 O tiacutetulo original conforme a editio princeps eacute Conclusiones DCCCC dialecticae morales physicae

mathematicae publice dispuntandae Romae Anno ab incarnatione Domini MCCCCLXXXVI die septime Decembris Sobre a escolha do nuacutemero de teses Pico explicaria em carta escrita a Girolamo Benivieni que seu intento inicial era o de escrever 700 teses chegando depois a 900 embora tivesse material para um nuacutemero maior O 900 seria o nuacutemero certo por seu significado miacutestico acerca do qual Pico apenas sinalizaria ldquose efetivamente a nossa ciecircncia dos nuacutemeros eacute digna de feacute tal cifra simboliza a alma que retorna a si apoacutes ter sido revolvida pela inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (cf Leacuteon DOREZ Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) in Giornale Storico della Letteratura italiana XXV 1895 p358)

2 Eucharius Silber alias Franck era considerado o melhor tipoacutegrafo de Roma (cf Giulio BUSI Pico fede ragione e Inquisizione in ldquoIl Sole-24 Orerdquo 28082018) O texto original das Conclusiones estaacute contido atualmente em quatro manuscritos conservados e distribuiacutedos entre as cidades de Viena Munique e Erlangen (respectivamente nas seguintes bibliotecas Osterreichische Nationalbibliothek lat 14708 Bayerische Staatsbibliothek lat 11807 Universitatsbibliothek lat 646) Cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 185

3 Para maiores detalhes sobre as circunstacircncias da publicaccedilatildeo veja-se Albano BIONDI ldquoIntroduzionerdquo a Conclusiones Nongentae 1995 ppV-XIII Ainda Edoardo FORNACIARI ldquoIntroduzionerdquo agrave traduccedilatildeo de Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p9 Mariateresa BROCCHIERI Pico della Mirandola 2011 p63 Por mais de cinco seacuteculos as Conclusiones permaneceram em olvido com acesso apenas a poucos especialistas suas poucas ediccedilotildees remetem quase todas ao seacuteculo XVI sendo que sua uacuteltima ediccedilatildeo completa eacute de 1619 Apoacutes essa data a obra passou por um longo periacuteodo de esquecimento ateacute ser finalmente editada por Kieszkowski em 1973

4 PICO Concl (I) p7 ldquo[] in quibus recitandis non Romanae linguae nitorem sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum dicendi genus est imitatusrdquo O ldquostylus parisiensesrdquo foi especialmente desenvolvido

53

constituiacutea a base da vulgata scholastica e comeccedilava a ser objeto de criacuteticas por parte

dos humanistas em razatildeo de sua linguagem considerada obstinadamente teacutecnica No

que concerne agrave discussatildeo puacuteblica para a qual as Teses haviam sido preparadas o

meacutetodo escolhido ndash sempre escolaacutestico ndash teria sido o das quaestiones5

A obra compotildee-se de novecentos aforismos ndash ou breves proposiccedilotildees ndash que natildeo

contemplam sua anaacutelise ou fundamentaccedilatildeo filosoacutefica Com efeito ao folhear as

paacuteginas das novecentas Conclusiones verifica-se uma sucessatildeo de sinteacuteticos

conteuacutedos filosoacuteficos teoloacutegicos cientiacuteficos e misterioloacutegicos6 que encerram aquilo

que seria uma revisatildeo de posiccedilotildees parte delas de autores ou escolas comentadas por

Pico (as primeiras quatrocentas) e as demais de autoria do proacuteprio Pico (as

quinhentas seguintes) O planejamento do conjunto previa pois a apresentaccedilatildeo de

propostas de discussatildeo ndash ponto fundamental para a compreensatildeo das consequecircncias

desencadeadas ndash e natildeo a discussatildeo em si Certamente obtendo o bom resultado que

o Autor esperava no debate o intento seria levado adiante

Contrariando no entanto aquela que seria a vontade de seu Escritor o vasto

material parte de um projeto natildeo finito e natildeo devidamente esclarecido difundiu-se

rapidamente A ediccedilatildeo das novecentas proposiccedilotildees embora tendo transgredido as

formalidades eclesiaacutesticas tinha por honesto intento uma devida apresentaccedilatildeo e

discussatildeo com os eruditos ndash antes de qualquer apresentaccedilatildeo puacuteblica A indevida

publicaccedilatildeo da obra de certa forma serviu para aumentar a notoriedade do jovem

conde que jaacute desfrutava de grande fama fazendo-o passar a ser reconhecido como

ldquodoutor universal dono de um saber privilegiado acerca do homem e da natureza dos

anjos e de Deusrdquo7 Mas nem todos naqueles finais do Quattrocento enxergaram as

Teses com tamanho otimismo Algumas vozes consideraram a obra na melhor das

hipoacuteteses uma tentativa superficial de fusatildeo de doutrinas outras a julgaram ldquoaudazrdquo

ldquotemeraacuteriardquo e ldquovangloriosardquo especialmente em razatildeo de sua imoderada dimensatildeo e do

abarcamento de vaacuterias aacutereas de conteuacutedos diversos em uma uacutenica obra8 Eacute irocircnico

durante a permanecircncia de Pico em Paris entre 1485 e 1486 (cf GARIN 2011 p24) Os ldquocalculatoresrdquo do seacuteculo XIV aplicaram a matemaacutetica para problemas tratados qualitativamente na fiacutesica aristoteacutelica (Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 np467) Veja-se ainda BIONDI (1995 pXI)

5 Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 7-8 Conforme observa o comentador as especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas dos trecircs seacuteculos anteriores foram fundamentadas sobre esse meacutetodo Para maiores detalhes sobre os meacutetodos mencionados veja-se BIONDI ldquoIntroduzionerdquo e ldquoPremessa ai testirdquo em Conclusiones Nongentae opcit ppXI 4

6 O nuacutemero de distinccedilotildees temaacuteticas mencionadas por Pico na abertura das Conclusiones eacute maior ldquosatildeo proposiccedilotildees dialeacuteticas morais fiacutesicas metafiacutesicas teoloacutegicas maacutegicas e cabaliacutesticasrdquo (ed BIONDI p7) As proposiccedilotildees do tipo que hoje aceitariacuteamos como cientiacuteficas ndash que contemplam campos da fiacutesica biologia e astronomia ndash apresentam-se em nuacutemero bastante limitado Veja-se como exemplo a Conclusio 7 segundo Alberto Magno ldquoO som eacute levado conforme seu ser real ateacute o ponto onde inicia o nervo oacuteticordquo (II 7) Ou ainda a Conclusio 9 segundo Egidio Romano ldquoO calor poderaacute gerar o fogo mesmo quando natildeo estiver em contato diretordquo (IIVI 9)

7 Albano Biondi extrai essa imagem outorgada a Pico de uma carta do famoso poeta carmelita Battista Spagnoli de Mantova mestre de Filosofia e Teologia em Bologna (BIONDI ldquoIntroduzionerdquo opcit p VI)

8 Na De Hominis Dignitate elaborada como introduccedilatildeo agraves Conclusiones Pico antecipara a defesa das provaacuteveis criacuteticas que receberia justificando que a ideia de realizar um debate no molde praticado por respeitados filoacutesofos como Platatildeo e Aristoacuteteles era uma forma favoraacutevel para a obtenccedilatildeo da verdade ldquodo mesmo modo que as forccedilas do corpo se robustecem com a ginaacutestica assim tambeacutem sem duacutevida nesta espeacutecie de palestra do espiacuterito a energia da alma se torna mais forte e firmerdquo (Oratio p135) Ademais seu debate natildeo tinha como intenccedilatildeo ldquomostrar engenho e erudiccedilatildeordquo (idem) mas ldquoapenas a formaccedilatildeo de sua alma e o conhecimento da verdaderdquo (ibid p133) Em relaccedilatildeo agrave elevada quantidade de teses escritas considerada por muitos ambiciosa e ldquoacima das forccedilasrdquo do autor (ibid pp 133 139 147) Pico escreveria ldquoProcurei reduzir a discussatildeo ao menor nuacutemero possiacutevel de pontos Se eu

54

observar que o Autor que tanta atenccedilatildeo dedicou agrave questatildeo doutrinaacuteria da natildeo-

divulgaccedilatildeo de certas concepccedilotildees sigilosas de ordem universal assistiu agrave indevida

publicaccedilatildeo das Teses e sua decorrente leitura por mentes despreparadas conjuntura

que o levou a sofrer consequecircncias nefastas e ateacute quase seu atestado de morte

A rejeiccedilatildeo agrave obra alcanccedilou a contemporaneidade porquanto as Conclusiones

foram pouco entendidas e muito criticadas Alguns criacuteticos talvez por natildeo terem

colhido a ideia seminal contida em seu projeto acreditaram tratar-se de uma

miscelacircnea de pensamentos que natildeo faziam sentido ou que se encontravam

inconclusos Outros viram nas Conclusiones uma combinaccedilatildeo excecircntrica de

problemas incompatiacuteveis uma curiosidade literaacuteria sem qualquer coerecircncia interna9

Eugenio Garin foi dos poucos a apontar que aquele conglomerado de sistemas deveria

ser apreciado a partir de suas referecircncias aos maiores problemas filosoacuteficos da

Histoacuteria do Pensamento O historiador completa que a tentativa de conciliaccedilatildeo de

diferentes doutrinas filosoacuteficas deve ser entendida como a consciente percepccedilatildeo da

existecircncia de uma pluralidade de pontos de vista que podem ser integrados10 Apesar

de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Pico acolhe torna suas e finalmente

refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis procurando em

sentido contraacuterio ao errocircneo julgamento de querer demonstrar uma magnitude de

conhecimentos ldquoreduzirrdquo todo o seu scibile a compactas 900 teses11

A quantidade de temas pertencentes a cada setor de pensamento natildeo estaacute

distribuiacuteda de forma uniforme dentro da recomposiccedilatildeo piquiana alguns eleitos pelo

escritor recebem mais atenccedilatildeo do que outros Eacute o caso do amplo espaccedilo dado a

questotildees de Teologia ndash concernentes a tradiccedilotildees distintas ndash a especiacuteficas aacutereas da

Filosofia ndash como a Metafiacutesica as questotildees acerca da Alma e o campo que chamamos

de Cosmologia ndash e a algumas doutrinas pertencentes ao campo da Misteriologia ndash

caso por exemplo do grupo de teses voltadas agrave Magia ao Orfismo e agrave Cabala Os

toacutepicos a seguir procuraratildeo mostrar que tais escolhas obedecem a um planejamento

Apoacutes a averiguaccedilatildeo da estrutura das Conclusiones necessaacuteria para o entendimento

do desenho geral da obra e de algumas teses relacionadas aos temas filosoacuteficos

mencionados seratildeo verificadas as questotildees teoloacutegicas condenadas e sua relaccedilatildeo com

as crenccedilas do autor por fim as disposiccedilotildees de acircmbito misterioloacutegico

tivesse querido dividir e desmembrar as suas partes mdash como eacute habitual outros fazerem mdash teria escrito certamente uma quantidade inumeraacutevel de tesesrdquo (ibid p163)

9 Um desses criacuteticos foi J BRUCKER (Historia critica Philosophiae Lipsia 1766 pp57 ss) que escreveria que a obra ldquomistura tudo inadequadamente e nos confunde uns aos outrosrdquo no que foi seguido por vaacuterios (apud GARIN 2011 n p 74)

10 GARIN Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico in Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo 1965 p17 Em outra obra Garin considera que o que pareceria um ldquofloreio filosoacuteficordquo eacute na verdade a ldquoexaltante procura da pequena mas lsquoimortal contribuiccedilatildeorsquo que cada homem grego romano cristatildeo aacuterabe judeu dava agrave eternidade do pensamentordquo (GARIN 2011 pp72-76)

11 Joseacute Vitorino PINA MARTINS julga ainda que a obra eacute fruto do amadurecimento do autor decorrente de suas profundas reflexotildees (Cultura Italiana Lisboa 1971)

55

1 A Secreta Conexatildeo

O conjunto de novecentas teses divide-se em dois grupos No primeiro

composto de quatrocentas proposiccedilotildees Pico apresenta as teorias de vaacuterios

pensadores que o marcaram ligados a diferentes Escolas12 Nessa seccedilatildeo eacute realizada

uma siacutentese histoacuterico-doutrinaacuteria que introduz ao leitor o nuacutecleo do pensamento

piquiano Pouco mais da metade das teses desse grupo satildeo dedicadas aos autores de

tradiccedilatildeo aristoteacutelica divididos entre os escolaacutesticos cristatildeos ndash entre eles Tomaacutes de

Aquino e Joatildeo Escoto ndash os peripateacuteticos orientais ndash como Avicena Averroacuteis e

Maimocircnides13 ndash e os gregos ndash Alexandre de Afrodiacutesia e Teofrasto entre outros14 A

outra metade da primeira parte eacute formada por filoacutesofos da Escola neoplatocircnica ndash com

Plotino e Proclo entre seus principais representantes ndash seguidos por quatro seacuteries de

doutrinas singulares Tais seacuteries finais destacam-se das precedentes por contemplar

temas ligados a teologias natildeo cristatildes De fato as uacuteltimas teses do primeiro grupo

tratam da matemaacutetica pitagoacuterica e das doutrinas caldaicas hermeacuteticas e cabaliacutesticas

Cabe observar que embora aos autores aristoteacutelicos seja dedicado enquanto

conjunto um nuacutemero relativamente maior de teses o autor isolado ao qual satildeo

destinadas mais proposiccedilotildees eacute Proclo seguido pelas doutrinas cabaliacutesticas que

fecham o grupo15

O segundo grupo com as quinhentas proposiccedilotildees seguintes constitui a

primeira delineaccedilatildeo precisa de uma doutrina da pax unifica marcando a especulaccedilatildeo

original de Pico16 Essa seacuterie de teses denominadas secundum opinionem propriam

detinha um caraacuteter de novidade ao lanccedilar em debate inusitados campos de reflexatildeo

Distribuiacutedos entre onze sessotildees os temas dividem-se entre os denominados

ldquoparadoxais voltados a conciliar os pronunciamentos de Aristoacuteteles e Platatildeo seguidos

de outros doutos que se encontram em maior discoacuterdiardquo os ldquoem dissenso com a

filosofia correnterdquo17 os ldquoparadoxais que introduzem novas posiccedilotildees na filosofiardquo e os

teoloacutegicos ldquobastante diversos da comum formulaccedilatildeo dos teoacutelogosrdquo completam o

12 Na primeira parte da obra Pico mostra seu reconhecimento agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica das Escolas porquanto a

sequecircncia de autores eacute ordenada por sua filiaccedilatildeo doutrinaacuteria Natildeo satildeo inseridas citaccedilotildees originais dos autores escolhidos mas interpretaccedilotildees pessoais de alguns passos ou doutrinas a eles atribuiacutedos (e que Pico poderia ter recebido atraveacutes de outras fontes) De qualquer forma os conteuacutedos correspondem com maior ou menor exatidatildeo a informaccedilotildees que podem ser encontradas nos escritos daqueles autores (cf ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 195)

13 Apesar de Maimocircnides ndash o chamado Moyse ldquoegiacutepciordquo - ser um filoacutesofo sefardita Pico o inclui no grupo dos aacuterabes (ldquosecundum doctrinam Arabumrdquo) possivelmente em razatildeo de Maimocircnides ter vivido no Egito e no Marrocos

14 As teses referentes agrave tradiccedilatildeo peripateacutetica estatildeo assim distribuiacutedas 94 dedicadas a seis autores escolaacutesticos latinos 82 distribuiacutedas entre oito filoacutesofos orientais e 29 dedicadas a cinco filoacutesofos gregos que professam o Aristotelismo O total de 205 teses que agraciam os disciacutepulos do Liceu reflete o acolhimento dado agravequela Escola durante os seis anos a ela dedicados conforme testemunha a carta escrita a Ermolao Barbaro vista no Capiacutetulo II

15 Dentre o elevado nuacutemero de fontes mencionadas por Pico (gregas latinas hebraicas e aacuterabes) algumas permanecem natildeo identificadas ateacute esta data Uma grande parte delas inclusos os autores aacuterabes e hebreus encontra-se identificada na obra de Stephan FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies Temple 1998

16 Eacute praticamente consensual a qualificaccedilatildeo da segunda parte das Conclusiones como sendo a expressatildeo da originalidade de Pico Veja-se BIONDI 1995 p XVIII

17 Natildeo apenas nesse especiacutefico grupo de teses como em linhas gerais Pico reconhecia que suas proposiccedilotildees apresentavam-se em linha contraacuteria aos haacutebitos argumentativos tradicionais tanto em relaccedilatildeo ao estilo quanto ao conteuacutedo (BIONDI idem)

56

conjunto as teses platocircnicas matemaacuteticas oacuterficas maacutegicas e mais uma vez outras

tantas relacionadas agraves teologias dos caldeus e dos cabalistas18 Curiosamente

constam nesse grupo dez teses sobre as doutrinas de certo filoacutesofo aacuterabe de nome

Abucaten Avenan19 Nas teses ldquoparadoxais conciliantesrdquo estatildeo lanccediladas as bases de

seu projeto de conciliaccedilatildeo entre pensadores e escolas que professavam doutrinas

tantas vezes entendidas como divergentes como os escolaacutesticos Tomaacutes e Duns

Escoto ou os aacuterabes Averroacuteis e Avicena ndash e que Pico mostraria em debate serem

concordantes20

A distribuiccedilatildeo estrutural das proposiccedilotildees certamente natildeo eacute ocasional

Tomando-se a primeira seacuterie de quatrocentas teses observa-se a seguinte sequecircncia

os pensadores aristoteacutelicos os neoplatocircnicos a teologia pitagoacuterica a caldaica a

hermeacutetica a cabalista Natildeo seria errado sugerir que essa ordenaccedilatildeo segue a

cronologia dos estudos percorridos por Pico21 Entretanto tal hipoacutetese natildeo explicaria

a colocaccedilatildeo da Cabala ao final de tudo visto que os estudos cabaliacutesticos iniciaram

muito provavelmente em periacuteodo anterior a alguns dentre aqueles Uma segunda

hipoacutetese pode ser proposta a partir do reconhecimento da existecircncia de uma

aproximaccedilatildeo gradual a filosofias relacionadas agrave Revelaccedilatildeo Ou seja a divisatildeo temaacutetica

responde a uma ordem sucessoacuteria que partindo do niacutevel aristoteacutelico-teoreacutetico vai ao

encontro das escolas neoplatocircnicas ndash em que a presenccedila de abstraccedilotildees metafiacutesicas eacute

maior de que no grupo anterior ndash e alcanccedila finalmente as uacuteltimas escolas de

proeminente conteuacutedo teoloacutegico-soterioloacutegico A hipoacutetese de uma gradativa

aproximaccedilatildeo a tais temaacuteticas se adequa ademais agrave criaccedilatildeo de condiccedilotildees

preparatoacuterias para receber o segundo grupo de teses aquelas tecidas ldquosegundo a

opiniatildeo do autorrdquo Essas iniciando-se com resoluccedilotildees e conciliaccedilotildees de acircmbito geral

filosoacutefico passam por questotildees de ordem teoloacutegica platocircnica e matemaacutetica

concluindo-se com aquele que seria um corpo uacutenico formado pelas doutrinas

misterioloacutegicas quais sejam o Zoroastrismo o Orfismo a Magia e a Cabala que

mais uma vez da mesma forma significativa como na primeira parte fecha a segunda

parte da obra

Nesse sentido a sequecircncia das proposiccedilotildees aponta para a existecircncia de uma

intencional organizaccedilatildeo ndash natildeo informada por Pico tampouco esclarecida por seus

comentadores Malgrado a escassez de informaccedilotildees expressas tais indiacutecios satildeo

18 ldquoConclusiones numero quingentae secundum opinionem propriam quae denaria diuisione diuiduntur in

Conclusiones Physicas Theologicas Platonicas Mathematicas Paradoxas dogmatizantes Paradoxas conciliantes Caldaicas Orphicas Magicas et Cabalisticasrdquo

19 Pico presume que Abucaten Avenan seja o autor de uma das mais ceacutelebres obras de cunho neoplatocircnico da filosofia medieval o Liber de Causis obra que Pico teria facilmente lido na versatildeo latina realizada por Gerardo de Cremona em torno a 1175 A questatildeo da identificaccedilatildeo desse autor que se manteve por muito tempo obscura foi talvez resolvida em 1998 quando se encontrou na lista de tradutores aacuterabes-islacircmicos presentes no grupo de al-Kindi (Bagdaacute seacuteculo IX ) fornecida no Cataacutelogo (Fihrist) do biblioacutegrafo aacuterabe medieval al-Nadim (m 987) o possiacutevel nome do personagem em questatildeo tratar-se-ia de Zaruba al-Nagravelsquoimi al-Himsi autor aacuterabe cristatildeo vivido no Iraque por volta do ano 850 (cf Mauro ZONTA Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola 2009 p 188)

20 Oratio p147 ldquoAddidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo

21 Conforme foi visto no capiacutetulo anterior Pico iniciou seus estudos pelas portas das universidades de Paacutedua Pavia e Ferrara nuacutecleos aristoteacutelicos apenas mais tarde aproximou-se do Platonismo e ainda depois atraveacutes da influecircncia de Ficino aproximou-se ao estudo de Hermes no nuacutecleo de Florenccedila

57

confirmados pelo proacuteprio quando poucos meses apoacutes a publicaccedilatildeo das Conclusiones

para justificar-se da acusaccedilatildeo de que seu trabalho representava um amontoado

caoacutetico de enunciados o reacuteu faria menccedilatildeo em sua Apologia22 agrave existecircncia de uma

ldquoocculta concatenatiordquo que traria significado e unidade agraves Teses23 A revelaccedilatildeo de

existecircncia de uma concordacircncia oculta nunca esclarecida pede que o leitor olhe de

forma discernitiva para o conteuacutedo das teses bem como para a quantidade de

enunciados atribuiacutedos a cada campo de conhecimento Verifica-se que mesclados aos

assuntos que passam por conceituaccedilotildees de fiacutesica astronomia biologia ontologia e

matemaacutetica firma-se uma prevalecircncia de determinados temas que se interligam

mais do que uma terccedila parte da totalidade das teses encontra-se distribuiacuteda entre

questotildees pertinentes agrave alma humana e questotildees relacionadas ao processo hieraacuterquico

do cosmo ndash parte dessas dedicadas agrave astrologia de ordem esoteacuterica Ademais uma

fraccedilatildeo relevante das teses trata de questotildees teoloacutegicas Esses temas concorrem a

compor uma importante faceta do pensamento piquiano e como seraacute visto no uacuteltimo

toacutepico integram os nuacutecleos das doutrinas misterioloacutegicas abordadas por Pico sendo

a possiacutevel chave da secreta conexatildeo sinalizada

Embora natildeo caiba aqui a anaacutelise individual de cada Conclusio24 uma pequena

amostra de cada um dos dois primeiros temas acima mencionados eacute benvinda para

retratar o panorama geral das Conclusiones O terceiro tema referente agrave Teologia

seraacute abordado no toacutepico seguinte Dentre as 900 teses uma quantidade miacutenima25 de

167 satildeo dedicadas agraves questotildees relacionadas agrave Alma ndash universal humana e suas inter-

relaccedilotildees ndash nas especiacuteficas nomenclaturas e subdivisotildees que recebe como Intelecto

Agente Intelecto Possiacutevel ou Mente26 Eacute o caso das natildeo poucas proposiccedilotildees filosoacuteficas

pertinentes ao processo dialeacutetico que se realiza dentro de um cenaacuterio epistemoloacutegico

22 A Apologia foi o texto escrito imediatamente apoacutes a condenaccedilatildeo das Teses preparado por Pico para defender-

se das acusaccedilotildees perante a comissatildeo romana Nela satildeo apresentadas extensas confutaccedilotildees acerca de cada uma das 13 teses inicialmente condenadas que Pico reformula em um total de 45 Vejam-se detalhes na fundamental organizaccedilatildeo de Paolo Edoardo FORNACIARI (Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze 2010) A Apologia firma-se como ldquoum documento exemplar que anuncia a grande reviravolta intelectual da Idade Modernardquo de acordo com Giulio BUSI que assim narra ldquoFu dunque nel mese di aprile 1487 che il Conte della Mirandola scrisse di getto in latino un testo appassionato difficile a tratti insolente con cui voleva mettere fine una volta per tutte alle accuse e insinuazioni sul suo conto Nacque cosigrave lApologia una delle creazioni piugrave significative dellintero Rinascimentordquo (Pico fede ragione eInquisizione in ldquoIl Sole -24 Orerdquo 28082018)

23 PICO Apologia fol235 ldquoin omnibus meis conclusionibus semper occulta quaedam est concatenatiordquo 24 O esforccedilo hercuacuteleo foi realizado por Stephan Farmer que apresenta ateacute o momento presente a mais completa

ediccedilatildeo comentada das novecentas teses em seu Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) de 1998 Em termos de ediccedilotildees criacuteticas das Conclusiones existem outras duas obras entre as publicaccedilotildees modernas atuais a realizada por Bohdan Kieszkowski em 1973 baseada no manuscrito de Erlangen (que segundo Farmer parece conter vaacuterios erros) e a publicada por Albano Biondi em 1995 acompanhada de traduccedilatildeo italiana (a primeira em quinhentos anos) Essa se baseia no manuscrito de Erlangen e na editio princeps contraposto aos manuscritos de Viena e de Mocircnaco (cf BIONDI p3) tratando-se da ediccedilatildeo aqui majoritariamente empregada para as traduccedilotildees das citaccedilotildees A ediccedilatildeo de Farmer acima mencionada baseia-se na verificaccedilatildeo de duas coacutepias da editio princeps presentes na British Library de Londres e na Biblioteca Apostoacutelica Vaticana em Roma Os detalhes acerca das trecircs ediccedilotildees satildeo comentados na obra de FARMER (1998 pp186-188)

25 Trata-se de um valor miacutenimo possivelmente sendo de ordem maior A obscuridade de certas proposiccedilotildees natildeo permite sequer sua classificaccedilatildeo temaacutetica

26 Nas teses ldquosegundo opiniatildeo dos platocircnicosrdquo conclusio nr 19 (ed Biondi II p 97) o proacuteprio Pico esclarece que a parte racional da alma que ele chama de ldquoIntelecto Possiacutevel seguindo os peripateacuteticosrdquo eacute aquela capaz de operar ldquosem conjunccedilotildees com os produtos da fantasiardquo

58

como se vecirc em algumas das asserccedilotildees extraiacutedas do Aristotelismo ndash grego e aacuterabe ndash

do Neoplatonismo e da Matemaacutetica27

Quando Aristoacuteteles sustenta em Metafisica IX que as

realidades separadas e divinas satildeo por noacutes totalmente

conhecidas ou totalmente ignoradas deve ser entendido tratar-

se daquele conhecimento pertinente agravequeles que jaacute alcanccedilaram

a primeira atuaccedilatildeo do intelecto28

(Conclusio secundum Alexandrum 5)

Felicidade uacuteltima do homem eacute a contiguidade entre intelecto

agente e intelecto possiacutevel do qual esse se faz forma29

(Conclusio secundum Auenroen 3)

Felicidade uacuteltima do homem eacute quando o nosso intelecto

particular se conjuga completamente com o intelecto total e

primordial30 (Conclusio secundum Plotinum 7)

Como os objetos da matemaacutetica se assumidos absolutamente

natildeo completam em nada o intelecto se assumidos como

imagens das realidades superiores nos conduzem pela matildeo

imediatamente para a especulaccedilatildeo dos Inteligiacuteveis31

(Conclusio de mathematicis 4)

Ainda compondo as questotildees concernentes agrave Alma verifica-se que um nuacutemero

substancial de asserccedilotildees eacute reservado para tratar em linguagem teoloacutegica ou filosoacutefica

do tema da Queda ou distinccedilatildeo de um princiacutepio de unidade e de seu consequente

retorno agravequele estado de acordo com cada Escola Os exemplos abaixo satildeo tomados

de teses referentes ao Peripatetismo grego ao Neoplatonismo e ao misticismo

hebraico

27 A classificaccedilatildeo das teses segue a formataccedilatildeo estabelecida por Albano Biondi (Conclusiones Nongentae Le

novecento Tesi dellrsquoanno 1486 1995) que efetua uma divisatildeo conforme grupos doutrinaacuterios A traduccedilatildeo das teses para o portuguecircs eacute de nossa responsabilidade tendo sido utilizada como guia a ediccedilatildeo de Biondi

28 PICO Concl (I) III IV 5 (p34) ldquoCum dicit Aristoteles nono Metaphysicae separata et diuina aut totaliter scriri a nobis aut totaliter ignorari intelligendum est de ea cognitione quae his contigit qui iam ad summam intellectus actuationem perueneruntrdquo A ediccedilatildeo de FARMER apresenta diferente posiccedilatildeo das teses a quinta de Alexandre de Afrodiacutesia em BIONDI corresponde agrave sexta de FARMER

29 Concl (I) II I 3 (p20) ldquoFelicitas ultima hominis est cum continatur intellectus agens possibili ut forma quam continuationemrdquo Segundo Stephan FARMER o problema da ldquounidade do intelectordquo colocado por Averroacuteis nasce sobre o comentaacuterio do De Anima 35 provavelmente segundo o autor o texto aristoteacutelico mais debatido entre os escolaacutesticos medievais (1998 np 252)

30 Concl (I) IV I 7 (p36) ldquoFelicitas hominis ultima est cum particularis intellectus noster total primoque intellectui plene coniungiturrdquo Provavelmente a concepccedilatildeo eacute extraiacuteda de Eneacuteadas I4 embora colocada com palavras de Pico O Autor elaborou essas teses seis anos antes de Ficino publicar a sua traduccedilatildeo das Eneacuteadas ndash que o proacuteprio Pico o havia incitado a realizar em 1484 ndash fato que apoia a hipoacutetese de que Pico tenha sido o primeiro filoacutesofo em seacuteculos a debater publicamente aquelas opiniotildees (FARMER ibid np 296-298)

31 Concl (II) VII 4 (p106) ldquoSicut subiecta mathematicorum si absolute accipiantur intellectum nihil perficiunt ita si ut imagines accipiantur superiorum immediate nos ad intelligibilium speculationem manu ducuntrdquo

59

Creio que o intelecto agente que apenas ilumina seja em

Temiacutestio a mesma coisa que na Cabala eacute Metraton32

(Conclusio secundum Themistium 2)

Natildeo toda descende a alma quando descende33

(Conclusio secundum Plotinum 2)

O intelecto agente natildeo eacute outra coisa que a parte da alma que

permanece no alto e natildeo participa da Queda34

(Conclusio secundum Adelandum Arabem 1)35

Quando a alma teraacute compreendido tudo aquilo que poderaacute

compreender e se uniraacute agrave alma superior se despiraacute de suas

vestes terrenas se extirparaacute de seu lugar e se conjugaraacute com o

divino36 (Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum

hebraeorum 44)

Outro grupo temaacutetico pode ser delineado a partir das teses que abordam

questotildees relacionadas a teorias de organizaccedilatildeo do cosmo verificadas em quantidade

proeminente e de forma mais especiacutefica do processo de gradaccedilatildeo dentro do desenho

universal Tal tema encontra representaccedilatildeo entre outras doutrinas na escolaacutestica e

na neoplatocircnica bem como em todas as misterioloacutegicas mencionadas por Pico

(tratadas na parte final)

As processotildees nas realidades divinas se distinguem segundo

intelecto e vontade37

(Conclusio secundum Henricum Gandauensem 3)

O artiacutefice ou construtor do mundo sensiacutevel eacute o seacutetimo da

hierarquia intelectual38 (Conclusio secundum Jamblichum 2)

32 Concl (I) III V 2 (p34) ldquoIntellectus agens illuminans tantum credo sit allud apud Themistium quod est

Metraton in Cabalardquo FARMER (p294) comenta que Pico transforma o Metraton cabaliacutestico em princiacutepio filosoacutefico

33 Concl (I) IV I 2 (p36) ldquoNon tota descendit anima quum descenditrdquo Segundo FARMER os argumentos mais similares da proposiccedilatildeo encontram-se em Eneacuteadas IV81 ss (opcit np297)

34 Concl (I) IV II 1 (p36) ldquoIntellectus agens nicbil est aliud quam pars animae quae sursum manet et non caditrdquo

35 Adelando Aacuterabe eacute na verdade Adelardo di Bath (cf FORNACIARI 2010 p LXIV) 36 Concl (I) IX 44 (p60) ldquoCum anima comprehenderit quidquid poterit comprehendere et coniungetur

animae superiori expoliabit indumentum terrenum a se et exstirpabitur de loco suo et coniungetur cum diuinitaterdquo

37 Concl (I) IV 3 (p16) ldquoProcessiones distinguuntur in diuinis penes intellectum et voluntatemrdquo A biblioteca de Pico continha as principais obras de Henrique de Gand ndash Summa Theologica Quodlibeta e uma compilaccedilatildeo de seus escritos (Pearl KIBRE The library of Pico della Mirandola 1936)

38 Concl (I) IV IV 2 (p40) ldquoOpifex sensibilis mundi septimus est hierarchiae intellectualisrdquo Muitas das conclusiones atribuiacutedas a Jacircmblico foram extraiacutedas do comentaacuterio de Proclo ao Timeu que preserva fragmentos do comentaacuterio perdido de Jacircmblico para esse diaacutelogo Outras tantas foram extraiacutedas do primeiro livro do De Mysteriis parte do qual Ficino traduziu para o latim dois anos apoacutes Pico ter publicado as 900 teses (FARMER np 310)

60

A particular temaacutetica da continuidade hieraacuterquica do real encontra em Proclo

de Liacutecia seu principal emissaacuterio Agraves doutrinas daquele que representava o uacuteltimo anel

da cadeia dos platocircnicos Pico destina 55 teses que sintetizam alguns conteuacutedos que

abrangem natildeo somente as processotildees como complexas questotildees astroloacutegicas Apoacutes

ter realizado uma preliminar carreira filosoacutefica debruccedilado sobre as obras de

Aristoacuteteles o neoplatocircnico instalara-se sobre a filosofia hieraacutetica e teuacutergica39 passos

similares aos que Pico agora seguia Em relaccedilatildeo ao visiacutevel realce que lhe foi deferido

e como bem observa Albano Biondi esse ldquoeacute um caso em que a quantidade demonstra

adequadamente a relevacircncia atribuiacuteda a um estilo de pensamentordquo40

Os deuses intelectuais trazem os elementos unificantes do Uno

primevo as substacircncias das realidades inteligiacuteveis as vidas

(perfeitas compreensivas e generantes do divino) das

realidades inteligiacuteveis e intelectuais a propriedade intelectual

de si mesmos41 (Conclusio secundum Proclum 10)

Apoacutes a setemplicidade intelectual devem ser colocados

imediatamente os deuses supramundanos natildeo ligados a partes

do universo e natildeo coordenaacuteveis a este mundo que esses aliaacutes

abraccedilam por cada parte segundo causa42

(Conclusio secundum Proclum 20)

Juacutepiter Netuno e Plutatildeo dividindo-se o reino de Saturno natildeo

herdam o reino de Saturno se natildeo por mediaccedilatildeo do fundador

Juacutepiter43 (Conclusio secundum Proclum 26)

Olhando para a quaternidade do ser por si animado o demiurgo

fabrica as quatro partes principais do mundo44

(Conclusio secundum Proclum 39)

39 Proclo efetivamente comentou os versos atribuiacutedos a Orfeu ndash em cujos moldes compunha hinos ndash e os

Oraacuteculos caldeus nos quais via a essecircncia de toda a sabedoria (cf BIONDI 1995 pXXV) As teses referentes a Proclo agrave exceccedilatildeo de algumas foram extraiacutedas de sua obra-prima Theologia Platonica Pico aparentemente utilizou o texto grego (FARMER opcit npp314-315 318)

40 BIONDI opcit pXXV Proclo que havia sido esquecido apoacutes o fechamento da Academia em 529 dC ressurgindo uma primeira vez no ciacuterculo de Miguel Psello em Bizacircncio renascia agora em Florenccedila pelas matildeos de Giovanni Pico

41 Concl IVV 10 (p44) ldquoIntellectuales dii uniones habent ab uno primo substantiales ab intelligibilibus uitas perfectas et contentiuas generativas diuinorum ab intelligibilus et intellectualibus intellectuales proprietatem a se ipsisrdquo

42 Concl IVV 20 (p44) ldquoPost intellectualem hebodmadam ordinati sunt immediate supermundani Dei a partibus uniuersi exempti et incoordinabiles ad hunc mundum et secundum causam eum undique circumplectentesrdquo

43 Concl (I) IV V 26 (p46) ldquoIupiter Saturnus et Pluto Saturni regnum partientes a Saturno regnum non accipiunt nisi per medium conditoris Iouisrdquo Conforme Theologia Platonica 6 Trata-se dos trecircs liacutederes henads da ordem procliana de deuses supramundanos (FARMER np324)

44 Acerca da participaccedilatildeo do demiurgo no processo emanatoacuterio tratam ainda as teses referentes a Proclo nrs 40 41 e 42 Concl IVV 39 (p48) ldquoOpifex ad quatemitatem respiciens per se animalis quatuor fabricat partes principales mundirdquo

61

Dentro do quadro cosmoloacutegico Pico anuncia ainda em meio agraves teses e atraveacutes

daquele que se mostra um de seus autores mais estimados a existecircncia dos trecircs

Mundos cujas concepccedilotildees seriam esclarecidas devidamente no Heptaplus

Por lsquolugar supracelestersquo devemos entender aquilo que da

segunda triacuteade eacute mais inteligiacutevel que intelectual por

lsquoconcavidade sub-celestersquo aquilo que eacute mais intelectual que

inteligiacutevel por lsquoceacuteursquo aquilo que participa igualmente de uma e

de outra realidade45 (Conclusio secundum Proclum 52)

e que atraveacutes de outras Escolas encontram analogia com os corpos do homem

Atraveacutes do segredo do raio direto refletido e refratado na

ciecircncia da perspectiva somos informados acerca da triacuteplice

natureza intelectual animal e corporal46

(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 7)

A temaacutetica astroloacutegica tema que merece atenccedilatildeo por encontrar-se distribuiacutedo

entre vaacuterias seacuteries ocupa um espaccedilo natildeo pouco significativo47 Sua presenccedila na

maior parte das vezes expressa em linguagem velada contribui a firmar a

conceituaccedilatildeo da ordenaccedilatildeo universal tecida por Pico Eacute verificaacutevel particularmente

entre os representantes neoplatocircnicos e em conteuacutedo mais enigmaacutetico nas doutrinas

que fecham o segundo grupo de teses

Cada alma que participa de intelecto vulcacircnico eacute semeada na

Lua48 (Conclusio secundum Porphyrium 4)

Assim como Apolo eacute intelecto solar Ascleacutepio eacute intelecto lunar49

(Conclusio secundum Porphyrium 7)

Nos oito corpos do ceacuteu os elementos se encontram duas vezes

em modo celeste os encontraraacute aquele que proceder em ordem

retroacutegrada agravequela dupla numeraccedilatildeo de Binaacute50

(Conclusio secundum Jamblichum 4)

45 Concl IVV 52 (p50) ldquoPer supercoelestem locum habemus intelligere quod de secunda trinitate plus est

intelligibile quam intellectuale per subcoelestem concauitatem quod magis intellectuale quam intelligibile per coelum id quod aeque utroque participetrdquo Segundo Theologia Platonica 4

46 Concl (I) V 7 (p52) ldquoPer secretum radii recti reflexi et refracti in scientia perspectiuae triplicis naturae admonemur intellectualis animalis et corporalisrdquo

47 Trata-se de 37 teses que abordam de forma expressa a Astrologia A quantidade que pode natildeo parecer relevante eacute maior do que por exemplo o nuacutemero de teses atribuiacutedas a Tomaacutes de Aquino agrave matemaacutetica pitagoacuterica ou ao Orfismo entre alguns exemplos

48 Concl (I) IVIII 4 (p38) ldquoOmnia anima participans vulcanio intellectu seminatur in lunardquo 49 Concl IVIII 7 (p38) ldquoSicut Apollo est intellectus solaris ita Aesculapius est intellectus lunarisrdquo 50 Concl (I) IVIV 4 (p40) ldquoElementa in octo coeli corporibus coelesti modo bis inueniuntur quae quis

inueniet si retrogrado ordine in illa bina numeratione processeritrdquo De acordo com FARMER (opcit np311) essa proposiccedilatildeo eacute aparentemente inspirada no De mysteriis I17 A referecircncia agrave Binaacute ndash terceira dentre as Sefirot cabaliacutesticas ou numerationes correspondente agrave ldquoInteligecircnciardquo - que tem origens no Medioevo tardio natildeo poderia ser de Jacircmblico Pico provavelmente como ainda infere Farmer pretende derivar os ldquodois modos celestiaisrdquo dos

62

Provavelmente natildeo por coincidecircncia logo em seguida a Proclo satildeo tratadas as

doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do esoterismo representadas nas teses

ldquosegundo a matemaacutetica pitagoacutericardquo ldquosegundo a opiniatildeo dos teoacutelogos caldeusrdquo

ldquosegundo a doutrina de Mercuacuterio Trismegistordquo51 e ldquosegundo as doutrinas dos saacutebios

da Cabalardquo52 Pela ordenaccedilatildeo dada natildeo seria incorreto deduzir que Pico pretendesse

confirmar a afinidade entre o misticismo do uacuteltimo dos platocircnicos e as doutrinas que

se lhe seguem De fato nas teses hermeacuteticas e caldaicas Pico descreve pontual e

sinteticamente as diversas estruturas metafiacutesicas do real que embora natildeo expresso

se analogam com as neoplatocircnicas Por vezes as aacutereas do saber satildeo de duvidosa

classificaccedilatildeo dado seu caraacuteter de difiacutecil decifraccedilatildeo ou em razatildeo da presenccedila de dois

ou mais campos de conhecimento que se mesclam Eacute o caso da aacuterea teoloacutegica da qual

123 teses podem ser discernidas de forma inequiacutevoca mas cuja presenccedila se encontra

entrelaccedilada entre outros tantos conteuacutedos de forma obliacutequa ou obscura dificultando

sua classificaccedilatildeo como no exemplo abaixo

A ordenada seacuterie dos inteligiacuteveis natildeo reside na coordenada seacuterie

intelectual como sustenta Amasis o Egiacutepcio Essa eacute em

verdade acima de cada hierarquia intelectual no abismo da

unidade primaacuteria e abscocircndita aleacutem de qualquer possibilidade

de participaccedilatildeo sob a neacutevoa da escuridatildeo originaacuteria53

(Conclusio secundum Chaldeorum Theologorum 5)

A discussatildeo conceitual das teses apresentadas mesmo em seu nuacutemero

reduzido traria natildeo apenas prolixidade ao texto como um distanciamento

desnecessaacuterio da trajetoacuteria traccedilada A amostra dos poucos exemplos tem por

finalidade apontar para a prevalecircncia de determinados conteuacutedos e mostrar na

continuidade que os especiacuteficos temas indicados encontram-se natildeo por acaso

especialmente presentes nas mateacuterias esoteacutericas contidas na segunda parte da obra

Uma etapa pois necessaacuteria para alcanccedilarmos nosso intento final Entre as dispersas

teses que parecem natildeo se relacionar encontram-se elos que indicam a existecircncia de

um projeto de composiccedilatildeo que seleciona dentro de cada sistema doutrinal temas

caracteriacutesticos que confirmam a oculta concatenaccedilatildeo anunciada pelo autor Outros

fatores indicativos de tal concatenaccedilatildeo poderatildeo ser verificados de forma mais clara a

partir do segundo grupo de teses aquelas elaboradas ldquosegundo a opiniatildeo do autorrdquo a

serem verificados no toacutepico final deste Capiacutetulo Antes seratildeo vistas as teses teoloacutegicas

condenadas pela Igreja que abrem espaccedilo para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre Filosofia

elementos de Binaacute utilizando-se do meacutetodo de revolutio alphabetariae ou de alguma forma de gematria (concepccedilotildees a serem vistas no Capiacutetulo V)

51 Pico utiliza a versatildeo latina do nome de Hermes Trismegisto 52 Conclusiones [] ldquosecundum Mathematicam Pythagoraerdquo ldquosecundum opinionem Chaldeorum

Theologorumrdquo ldquosecundum priscam doctrinam Mercurii Trismegisti Aegyptiirdquo ldquosecundum doctrinam sapientum hebraeorum Cabalistarumrdquo

53 Concl (I) VII 5 (p54) ldquoCoordinatio intelligibilis non est in intellectuali coordination ut dixit Amasis Aegyptius sed est super omnem intellectualem hierarchiam in abysso primo unitatis et sub caligine primarum tenebrarum imparticipaliter absconditardquo Farmer ajuiacuteza que as proposiccedilotildees caldaicas tenham sido extraiacutedas de fontes neoplatocircnicas embora Pico afirmasse ter em sua posse manuscritos originais caldeus (np338)

63

e Teologia na estruturaccedilatildeo do pensamento de Pico reflexatildeo que serviraacute de preacircmbulo

natildeo apenas para o uacuteltimo item como particularmente para os Capiacutetulos VI e VII

2 Religiatildeo ou Filosofia

Em Veneza a ediccedilatildeo das Conclusiones foi publicamente queimada por 14 dias

consecutivos54 esse foi apenas o iniacutecio dos graves conflitos que Pico viria a ter com a

Igreja e que culminariam em sua ordem de julgamento pela Inquisiccedilatildeo ndash seguidos da

fuga prisatildeo parcial clemecircncia papal (sem absolviccedilatildeo) e finalmente a voluntaacuteria (e

vigiada) reclusatildeo ateacute quase o uacuteltimo ano de sua vida55 Afinal o que havia de ldquomalrdquo

nas Conclusiones Aos olhos da Cuacuteria Pontifiacutecia natildeo eram poucas as razotildees para

ensejar a proibiccedilatildeo daquela composiccedilatildeo que recolhia suficientes fatores para levar os

juiacutezes eclesiaacutesticos a se colocarem de sobreaviso

a) tanto a quantidade de inteacuterpretes aristoteacutelicos presentes entre as teses

quanto o estilo parisiense evocavam o racionalismo hereacutetico averroiacutesta e mais grave

alessandrino que se opunha agraves ideias humanist0-platocircnicas partilhadas pela

Igreja56

b) a menccedilatildeo a tradiccedilotildees pagatildes que traziam certos temas natildeo aceitos pelo

Cristianismo gerava uma situaccedilatildeo incocircmoda

Todos os saacutebios entre Indianos Persas Egiacutepcios e Caldeus

acreditaram na transmigraccedilatildeo das almas isto eacute na sua

passagem de um corpo a outro57

(Conclusio secundum Adelandum Arabem 8)

c) a menccedilatildeo a teologias natildeo comprovadamente divergentes como a pitagoacuterica

a oacuterfica e a hermeacutetica mas tambeacutem natildeo exatamente alinhadas com a doutrina cristatilde

54 Paolo Edoardo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p10 55 Graccedilas agraves descobertas feitas por Leacuteon Dorez em torno aos verbais das audiecircncias tidas pela Comissatildeo

Pontifiacutecia referentes agraves Teses de Pico eacute possiacutevel conhecer as condiccedilotildees que levaram agrave sua suspensatildeo e agrave supressatildeo do planejado debate (DOREZ-THUASNE Pic de la Mirandole em France 1485-88 18971976) Veja-se tambeacutem para uma reconstruccedilatildeo pontual dos acontecimentos em torno ao julgamento eclesiaacutestico Giovanni DI NAPOLI (Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma 1965) ainda o item ldquoLe tappe del processo a Picordquo de FORNACIARI em sua ldquoIntroduccedilatildeordquo agrave Apologia lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 pp XIV-XXII

56 Pico apresentava a mesma necessidade de ldquoentenderrdquo o divino ultrapassando o veacuteu da Revelaccedilatildeo que outrora havia acometido Averroacuteis cujas doutrinas jaacute haviam sido condenadas ndash como a concepccedilatildeo de que apenas o Intelecto uacutenico poderia ser considerado imortal Os seguidores de Alessandro de Afrodiacutesia postulavam a mortalidade do corpo juntamente com a mortalidade do intelecto considerando a alma como uma funccedilatildeo do organismo portanto ligada a ele e agrave sua extinccedilatildeo Os alessandrinos chegaram a reconhecer posteriormente a presenccedila de certa imortalidade da alma mas tratar-se-ia de um tipo de imortalidade impessoal natildeo condizente com o Cristianismo Para outras informaccedilotildees veja-se GARIN 2011 pp 32 ss 140 ss

57 Concl (I) IV II 8 (p38) ldquoTranscorporationem animarum crediderunt omnes sapientes Indorum Persarum Aegyptiorum et Chaldaeorumrdquo

64

constituiacutea uma questatildeo delicada A complexidade de certos temas mesclados a

questotildees teoloacutegicas deveria ser devidamente avaliada e autorizada pela Igreja

Quem conheceraacute a sucessatildeo 1 2 3 4 5 12 teraacute nas matildeos com

precisatildeo a distribuiccedilatildeo da Providecircncia58

(Conclusio secundum Mathematicam Pythagorae 4)

d) a presenccedila de vinte e nove Conclusiones theologicae intituladas ldquodiversas

do modo comum dos teoacutelogosrdquo59 era por si soacute ousada e soava arrogante aos olhos da

Cuacuteria Romana Ademais o conteuacutedo das asserccedilotildees teoloacutegicas ndash que compotildeem a

maior parte das teses inicialmente condenadas ndash era ofensivo e de alto teor hereacutetico

e) a presenccedila de Conclusiones Magicae e de um grande nuacutemero de

Conclusiones Cabalisticae cujo conteuacutedo entre outras coisas tentava demonstrar a

existecircncia de um sentido oculto nas Escrituras natildeo poderia ser tolerada

A Comissatildeo romana inicialmente condenou treze teses quase todas extraiacutedas

das Conclusiones in Theologia secundum opinionem propriam em sua maior parte

foram julgadas como falsas errocircneas hereacuteticas ou escandalosas sendo uma ou mais

dessas qualificaccedilotildees conjuntas60 A leitura de algumas entre as teses condenadas pode

dar uma amostra da complexidade do debate em que Pico pretendia se envolver

Se se segue a doutrina comum acerca da possiacutevel encarnaccedilatildeo

[de Deus] em qualquer criatura o corpo de Cristo pode estar

presente sobre o altar segundo a verdade do sacramento da

Eucaristia sem a conversatildeo do patildeo no corpo de Cristo ou sem a

anulaccedilatildeo da substacircncia do patildeo E isso seja dito em termos de

possibilidade natildeo de realidade61 (Conclusio in Theologia 2)

58 Concl (I) VI 4 (p52) ldquoQui I II III IV V XII ordines cognouerit prouidentiae distributionem exacte

tenebitrdquo 59 Conclusiones in Theologia numero XXIX secundum opinionem propriam a communi modo dicendi

Theologorum satis diuersam 60 No breve de Inocecircncio VIII de 20 de fevereiro de 1487 se lecirc ldquo[] segundo o juiacutezo de homens doutiacutessimos

algumas entre aquelas [teses] por efeito de sua formulaccedilatildeo desviam do reto caminho da ortodoxia algumas de tal forma obscuras confusas e intrincadas natildeo poderiam absolutamente ser apresentadas em puacuteblica discussatildeo sem preacutevios esclarecimentos outras satildeo tatildeo paradoxais que poderiam ser proibidas pela Igreja pelo sabor de heresia que emanam assim que se fossem apresentadas em debate puacuteblico poderiam engendrar escacircndalo entre as pessoas incultas e inexperientesrdquo (DOREZ-THUASNE opcit 1976 pp114-115)

61 Concl (II) IV 2 (p88) ldquoSi teneatur communis via de possibilitate suppositationis in respectu ad quamcumque creaturam dico quod sine conuersione panis in corpus Christi uel paneitatis annichilatione potest fieri ut in altari sit corpus Christi secundum veritatem sacramenti Eucharistiae quod sit dictum loquendo de possibili non de sic esserdquo De acordo com FARMER (opcit np 422) muitas das questotildees implicadas nas teses condenadas satildeo derivadas da vasta tradiccedilatildeo de comentaacuterios medievais encontrados nas Sentenccedilas de Petrus Lombardus nas quais Pico se fundamentou As principais oposiccedilotildees das teses teoloacutegicas satildeo endereccediladas a escritos de Tomaacutes de Aquino (FARMER idem) Outros comentaacuterios acerca das teses teoloacutegicas podem ser encontrados em Jader JACOBELLI Pico della Mirandola Longanesi 1986 pp 96-98

65

As palavras ldquoeste eacute o meu corpordquo e as demais pronunciadas

durante a Consagraccedilatildeo devem ser interpretadas materialmente

e natildeo indicativamente62 (Conclusio in Theologia 10)

Natildeo se deve adorar nem a cruz de Cristo nem outra imagem

alguma segundo adoraccedilatildeo de latria tampouco na forma como

a entende Tomaacutes63 (Conclusio in Theologia 14)

Um pecado mortal finito no tempo natildeo pode ser punido com

uma pena infinita segundo o tempo mas apenas com uma pena

temporalmente finita64 (Conclusio in Theologia 20)

Eacute mais racional acreditar que Oriacutegenes esteja salvo de que o

considerar condenado65 (Conclusio in Theologia 29)

Natildeo haacute ciecircncia que nos assegure mais sobre a divindade de

Cristo do que a Magia e a Cabala66 (Conclusio magica 9)

Como se vecirc satildeo todas proposiccedilotildees que discutem a Teologia cristatilde mas natildeo

apenas quase todas apresentam um conteuacutedo dificilmente compreensiacutevel ao crente

de pouca erudiccedilatildeo pois natildeo se referem a temas da ldquofeacute comumrdquo Pico sabia e tentara

advertir que suas afirmaccedilotildees deveriam ser examinadas e debatidas apenas entre os

sapientes da religiatildeo Contudo a partir da divulgaccedilatildeo das teses as prelazias

eclesiaacutesticas natildeo tardaram a se preocupar com as interpretaccedilotildees equivocadas que

aquelas declaraccedilotildees poderiam suscitar dentre ldquoos simplesrdquo podendo levar os fieacuteis a

uma confusatildeo em suas crenccedilas Natildeo se tratava apenas de discutir assuntos que a

Igreja considerava natildeo ser de alccedilada de um filoacutesofo Pico proclamava que ningueacutem

deve ser obrigado a crer se natildeo for persuadido defendia a salvaccedilatildeo de Oriacutegenes

62 Concl (II) IV 10 (p90) ldquoIlia verba Hoc est corpus etc quae in consecracione dicuntur materialiter

tenentur non significatiuerdquo Segundo FARMER (np427) Pico faz uso da ldquoteoria da suposiccedilatildeordquo medieval tardia postular algo ldquomaterialmenterdquo seria equivalente ao uso moderno de ldquocolocar aspasrdquo em torno agravequilo enquanto que postular algo em ldquosentido indicativordquo seria propocirc-lo absolutamente A tese de Pico nesse sentido significaria que se a foacutermula da Eucaristia natildeo fosse colocada ldquomaterialmenterdquo entatildeo a sentenccedila ldquoeste eacute o meu corpordquo referir-se-ia ao corpo do sacerdote e natildeo ao de Cristo Ou na forma sintetizada por JACOBELLI (opcit pp 96-98) tomar as palavras ldquomaterialmenterdquo significa ldquocomo se as dissesse Cristordquo A hostilidade da comissatildeo para com Pico reflete-se no julgamento de que tal tese aparentemente inoacutecua fosse ldquoescandalosa e contraacuteria agrave opiniatildeo comum dos sagrados doutoresrdquo

63 Concl (II) IV 14 (p90) ldquoNec crux Christi nec ulla imago adoranda est adoratione latriae etiam eo modo quo ponit Thomasrdquo A ldquoadoraccedilatildeo de latriardquo significa a idolatria conforme JACOBELLI opcit p97

64 Concl (II) IV 20 (p92) ldquoPeccato mortali finite temporis non debetur poena infinita secundum tempus sed finita tantumrdquo Aqui segundo GARIN (2011 p142) Pico se baseia em Oriacutegenes e Agostinho para os quais seria ldquoimpossiacutevel e absurdordquo um mal que fosse todo mal

65 Concl (II) IV 29 (p92) ldquoRationabilius est credere Origenem esse saluum quam credere ipsum esse damnatumrdquo Em sua resposta oral agrave comissatildeo papal Pico alegou que desde que Oriacutegenes natildeo errou por ldquopertinecircncia de vontaderdquo seria mais provaacutevel e piedoso acreditar que ele estaria salvo (DOREZ-THUASNE opcit pp 124-25) A comissatildeo declarou que a tese de Pico ldquotinha sabor de heresiardquo uma vez que se opunha agrave determinaccedilatildeo da Igreja universal (ibid p130) A resposta de Pico relatada em sua Apologia ganhou consideraacutevel popularidade no seacuteculo XVI admirada pelos reformadores da Igreja em razatildeo dos limites que impunha agrave autoridade eclesiaacutestica Para Farmer (np435) havia um sentido pessoal na afirmaccedilatildeo de Pico de que Oriacutegenes natildeo fora condenado por suas heresias mas sim pela ldquogloacuteria da sua eloquecircncia e conhecimentordquo

66 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et cabalardquo

66

negava a eternidade das penas do Inferno colocava-se contra a adoraccedilatildeo da cruz e de

qualquer imagem A busca por uma coerecircncia dentro dos dogmas o levava aleacutem de

limites tacitamente estabelecidos pela ortodoxia catoacutelica natildeo lhe permitindo parar

nem diante dos Sacramentos ingressando em sutilezas teoloacutegicas pretendia

submeter agrave discussatildeo a proacutepria questatildeo da transubstanciaccedilatildeo67 Aleacutem da condenaccedilatildeo

das teses seu artiacutefice foi declarado ldquoiacutempiordquo ldquoheregerdquo ldquomagordquo ldquoismaelitardquo e ldquojudeurdquo

Natildeo sou mago natildeo sou judeu nem ismaelita nem herege

Venero Jesus e trago sobre o meu corpo a cruz de Jesus atraveacutes

do qual o mundo eacute para mim crucifixo e eu sou crucifixo ao

mundo68

As razotildees que nos levam a abordar teses de especiacutefico teor teoloacutegico-cristatildeo em

uma investigaccedilatildeo que trata do uso de paradigmas esoteacutericos satildeo duas

Primeiramente para evidenciar que o Pico que se aproxima a teologias natildeo-cristatildes

natildeo o faz como um investigador desprovido de fundamentos pertinentes agrave teologia de

sua feacute mas sim como algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em

segundo lugar a abordagem do material teoloacutegico permite a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-

razatildeo no pensamento piquiano necessaacuteria para o fechamento do uacuteltimo capiacutetulo Sob

tal prisma a citaccedilatildeo acima deve ser entendida como uma efetiva prova de feacute do autor

longe de uma tentativa de contemporizar com seus arguidores Por outro lado as

comprovaccedilotildees de certas atitudes poderiam lanccedilar duacutevidas sobre o fato a saber a

maior parte das posiccedilotildees contestadas nas Conclusiones foi mantida na Apologia em

clara confirmaccedilatildeo de suas opiniotildees salvo poucas modificaccedilotildees69 algumas passagens

da defesa tanto oral quanto escrita mostram a incontida irritaccedilatildeo do autor e por

vezes certo escaacuternio que tomaria ares de provocaccedilatildeo agrave Igreja70 o reiterado interesse

por conteuacutedos pertencentes a outras tradiccedilotildees teoloacutegicas e sobretudo o fato de

fechar as duas partes de sua obra com um conteuacutedo relacionado a uma doutrina

religiosa ldquoestrangeirardquo poderia sugerir que Pico natildeo mais encontrasse conforto nas

crenccedilas cristatildes

67 Observe-se que toda a discussatildeo contraacuteria agrave adoraccedilatildeo da cruz e de outros siacutembolos bem como a criacutetica

piquiana ao sacramento da Eucaristia ndash a disputa De Eucharistiae Sacramento ndash seriam dois dos grandes debates travados pelos Reformadores do seacuteculo XVI (cf GARIN 2011 pp 32-33)

68 PICO Apologia (p 8) ldquoNon magus non iudaeus sum non ismaelita non haereticus sed Iesum solo et Iesu crucem in corpore meo porto per quem mihi mundus crucifixus est et ego mundordquo

69 Os detalhes completos da defesa de cada tese condenada podem ser vistos em Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione (FORNACIARI 2010)

70 Pico escreve na Apologia (p 33) ldquoExaminando as questotildees condenadas como hereacuteticas pelos mestres de Roma faz-se necessaacuterio que eu mude minha linguagem devo falar o idioma dos baacuterbaros pois como diz jocosamente o proveacuterbio os balbuciantes apenas entendem outros balbuciantesrdquo Na argumentaccedilatildeo referente agrave terceira Quaestio concernente agrave conclusio in Theologia 14 que trata da adoraccedilatildeo da cruz e de imagens Pico chama de hereacuteticos seus examinadores utilizando um artifiacutecio retoacuterico bastante simples sendo a sua tese catoacutelica quem a condena postulando o contraacuterio eacute propriamente hereacutetico (ibid p 132) Em outra passagem replicando as suspeitas sobre a Cabala lecirc-se ldquosuspeitam [os interrogadores] que os cabalistas natildeo sejam seres humanos mas hircocervos [animal miacutetico da Antiguidade claacutessica metade bode metade veado] ou centauros ou qualquer coisa de todo monstruosardquo (ibid pp176-77) Na sua quinta quaestio que trata da defesa da tese maacutegica nr 9 Pico diz ter ouvido algueacutem dizer que ldquoCabalardquo fosse o nome de um inimigo de Cristo e natildeo de uma doutrina (ibid pp176-77) esse fato seria mais tarde relatado por Johannes Reuchlin que em 1516 em seu tratado Arte della Cabala refere que algueacutem teria perguntado durante o interrogatoacuterio de Pico o que era a ldquocabalardquo recebendo como resposta tratar-se de um lsquohomem peacuterfido e diaboacutelico que havia escrito contra Cristorsquo sendo seus disciacutepulos chamados cabalistasrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

67

No entanto e como assegura Eugenio Garin Pico era um ldquogrande espiacuterito

religiosordquo e toda sua obra filosoacutefica esteve voltada ao conhecimento de Deus e agrave sua

relaccedilatildeo com o homem e com a realidade71 O proacuteprio subtiacutetulo que abre as

Conclusiones secundum opinionem propriam eacute forte indicador da intenccedilatildeo

respeitosa do autor e de sua vontade de submeter as teses agrave discussatildeo natildeo de impocirc-

las ldquo[] em nenhuma delas afirmo qualquer posiccedilatildeo como assertiva ou provaacutevel

senatildeo na medida em que as retenha verdadeiras ou provaacuteveis a Sagrada Igreja

Romanardquo72 O fato desconfortaacutevel para o magisteacuterio eclesiaacutestico eacute que apesar de sua

autecircntica ldquopietasrdquo que se manifestava em ldquoatitudes de sacerdote em haacutebitos laicosrdquo

Pico permanecia alheio agraves formas exteriores e cerimoniais da experiecircncia religiosa o

repuacutedio pela adoraccedilatildeo de imagens natildeo era apenas escrito (conclusio IV 14) mas

factual Tratava-se de um fiel que praticava o Cristianismo ldquosem ritos e sem

exterioridadesrdquo de um cristatildeo que ldquointroduzia a criacutetica inclusive nos Evangelhosrdquo73

Eis a razatildeo para Pico salvar Oriacutegenes com evidente inocecircncia e aproveitando de

breve momento de liberdade juvenil74 porque o erro do teoacutelogo fora feito em boa feacute

ele se arrependera e sofrera o martiacuterio porque se a condenaccedilatildeo de Oriacutegenes fosse

aceita deveriam ser condenados os Evangelhos os Apoacutestolos e os Santos jaacute que

tantas de suas doutrinas a Igreja natildeo admitia porque natildeo eacute a Igreja mas apenas

Deus que condena Na inflamada defesa de Oriacutegenes Pico mostrava tanto seu caraacuteter

pio quanto a iacutentima rebeliatildeo que vivia em relaccedilatildeo agraves doutrinas eclesiaacutesticas75

O que Pico buscava de fato era uma via de saiacuteda que permitisse a conciliaccedilatildeo

entre as exigecircncias do pensamento loacutegico e os conteuacutedos da ldquorevelaccedilatildeordquo sempre

como parte de seu projeto maior de concoacuterdia Sua viacutevida feacute cristatilde poderia tecirc-lo

levado a se acomodar diante do fasciacutenio oferecido pelas liturgias da Ecclesia ou da

coerecircncia dialeacutetica de seus teoacutelogos mas sua inteligecircncia havia sido nutrida em

demasia com textos hermeacuteticos e cabaliacutesticos ndash que intimamente o haviam

convencido da existecircncia de outros significados na literatura sagrada76 Natildeo se

tratava portanto de uma negaccedilatildeo da experiecircncia cristatilde mas da necessidade de

71 Uma ampla discussatildeo acerca da religiosidade de Pico pode ser encontrada na obra de GARIN Giovanni Pico

della Mirandola 2011 especialmente entre as pp37-48 A relaccedilatildeo entre feacute e razatildeo religiosidade e filosofia tem recebido destaque entre vaacuterios comentadores

72 Abertura agraves Conclusiones secundum opinionem propriam [] in quibus omnibus nihil assertiue uel probabiliter pono nisi quatenus id uerum uel probabile iudicat sacrosancta Romana ecclesia et caput eius benemeritus Summus Pontifex Innocentius octauus cuius iuditio qui mentis suae iuducium non summittit mentem non habet

73 GARIN 2011 p48 A tendecircncia a dar uma nova interpretaccedilatildeo agrave experiecircncia religiosa e ao conhecimento das culturas orientais seria o preluacutedio agrave profunda renovaccedilatildeo religiosa que o mundo moderno assistiria Os orientalistas de rsquo500 a rsquo700 viram em Pico seu grande percursor Atraveacutes de Reuchlin o exemplo de Pico repercutiu nas novas correntes da criacutetica religiosa que confluiacuteram ou foram conexas ao tema reformador Natildeo apenas pelo fato de ser precursor dos estudos orientais mas tambeacutem por seu acento independente e sua livre pesquisa das Escrituras dos ritos dos cultos dos siacutembolos da Igreja e das teorias jaacute aceitas atitudes e estudos que refletiriam na Reforma (Cf GARIN 2011 pp 100 105 135)

74 A atribuiccedilatildeo eacute emprestada do tradutor Albano Biondi que considera as Conclusiones uma obra ldquotanto ingecircnua quanto sofisticadardquo como um diaacuterio de viagem de um intelectual que aproveita de uma ldquobreve liberdade sem condicionamentosrdquo (BIONDI opcit pXXXVIII)

75 A tese condenada referente ao cristatildeo Oriacutegenes (Concl II 4 29) eacute a uacutenica em que Pico pretende defender um autor e natildeo sua doutrina Sua defesa ocupa na Apologia um espaccedilo muito mais extenso que as restantes com exceccedilatildeo da defesa da Magia e da Cabala (cf Apologia ldquoDe salute Origenisrdquo) Oriacutegenes foi um dos poucos pensadores entre filoacutesofos e teoacutelogos cristatildeos a se interessar pelo conhecimento do pensamento e idioma hebreus Essa talvez tenha sido uma das causas do interesse de Pico por sua filosofia (GARIN 2011 pp141 ss)

76 Alberto AMBESI ldquoGiovanni Pico della Mirandola ndash Cenni biografici e presentazione dellrsquooperardquo Introduccedilatildeo ao Heptaplus Carmagnola 1996 p IV

68

ampliaacute-la Era um jovem entusiasmado com as recentes descobertas que

comprovavam as verdades de sua religiatildeo como havia escrito em sua introduccedilatildeo agraves

Teses procurando esclarecer aos Padres seu interesse pelas doutrinas cabaliacutesticas

ldquoas coisas tiradas dos antigos misteacuterios hebreus aleguei como confirmaccedilatildeo da

sacrossanta e catoacutelica feacuterdquo77 De fato atraveacutes de vaacuterios dos enunciados presentes na

seacuterie das Conclusiones Cabalisticae Pico propunha para debate comprovaccedilotildees ldquonatildeo

tanto da religiatildeo mosaica quanto da cristatilderdquo que dizia ter encontrado nos livros

sagrados78

Aqui os misteacuterios da Trindade aqui a encarnaccedilatildeo do Verbo

aqui a divindade do Messias aqui quanto diz respeito ao

pecado original agrave expiaccedilatildeo deste por meio de Cristo quanto

concerne agrave Jerusaleacutem Celeste agrave queda dos democircnios aos coros

angeacutelicos agraves penas do purgatoacuterio e do inferno li as mesmas

coisas que todos os dias lemos em Paulo e Dionisio em

Jerocircnimo e em Agostinho79

O entendimento da relaccedilatildeo religiatildeo-filosofia na obra de Pico natildeo estaacute isento de

dificuldades podendo denotar certa ambivalecircncia A inflamada defesa de sua proacutepria

filiaccedilatildeo religiosa como emerge na citaccedilatildeo acima deu margem a leituras puramente

cristoloacutegicas de sua obra80 No entanto haacute que se observar que na construccedilatildeo do

pensamento piquiano a religiatildeo representava a manifestaccedilatildeo final de conceitos

alcanccedilados plenamente apenas atraveacutes da Filosofia A feacute constituiacutea nesse sentido ldquoo

aacutepice de um processo racional que nela se manifesta e se potencializardquo Seu mais puro

sentimento a esse respeito emerge da carta escrita a Aldo Manuzio em 1491

ldquoPhilosophia veritatem quaerit Theologia invenit Religio Possidetrdquo81 A primazia da

Religiatildeo colocada acima da Teologia e da Filosofia conforme expressa na carta deve

ser entendida em sua correta dimensatildeo pois em outras passagens da obra piquiana a

dicotomia razatildeo-feacute apresenta-se em ordem invertida com a submissatildeo da religiatildeo agrave

77 Oratio pp 155-157 Para detalhes referentes ao confronto entre Cristianismo e Cabala veja-se Chaim

WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge 1989 78 Oratio pp159-161 79 Algumas das assertivas contidas na citaccedilatildeo encontram-se espalhadas entre as teses cabaliacutesticas (II) nrs 5 6

7 8 14 15 16 24 30 34 e 38 Aleacutem de presente na Oratio (idem) a citaccedilatildeo em questatildeo pode ser lida na Apologia (p30) ldquoHos ego libros non mediocri impensa mihi cum comparassem summa diligentia indefessis laboribus cum perlegissem vidi in illis - testis est Deus - religionem non tam Mosaicam quam Christianam Ibi Trinitatis mysterium ibi Verbi incarnatio ibi Messiae divinitas ibi de peccato originali de illius per Christum expiatione de caelesti Hierusalem de casu daemonum de ordinibus angelorum de purgatoriis de inferorum poenis eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimusrdquo

80 Para alguns que partilham do mesmo entendimento de William CRAVEN (Giovanni Pico della Mirandola symbol of his age modern interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107) o uacutenico interesse de Pico pela Cabala estava em demonstrar a verdade cristatilde ndash embora haja muitas divergecircncias quanto a esse ponto Outros como Michael SUDDUT vatildeo aleacutem defendendo uma ldquoCristologiardquo na obra de Pico (Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion in Pico della Mirandola-New Essays 2008) Por outro vieacutes Pier Cesare BORI que natildeo coloca duacutevidas sobre a religiosidade cristatilde de Pico estaacute convencido de que a utilizaccedilatildeo da Cabala e outras teologias orientais satildeo ldquobem mais do que um expediente apologeacutetico a serviccedilo de um universalismo cristocecircntricordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)

81 ldquoA Filosofia procura a verdade a Teologia a encontra e a Religiatildeo a possuirdquo Assim escrevia Pico (Epiacutestola I 6) em 11 de fevereiro de 1491 ao humanista e editor de textos raros Aldo Manuzio ldquoAccinge ad philosophiam sed hac lege ut memineris nullam esse philosophiam quae a mysteriorum veritate nos avocet Philosophia veritatem quaerit theologia invenit religio possidetrdquo (Oratio np37)

69

filosofia eacute o caso da passagem ldquoseria necessaacuterio que a Filosofia iluminasse as mentesrdquo

e que a Igreja soubesse reconhecer a sua forma capaz de ldquopersuadir e convencer

racionalmenterdquo82 A argumentaccedilatildeo alude que apenas quem conhece e sabe discutir

criticamente as fontes pode julgar seu conteuacutedo e sua eventual pretensatildeo de verdade

Segundo Pico de fato o ato de crer natildeo depende apenas da vontade mas tambeacutem do

intelecto83 Nesse caso contraacuterio ao conteuacutedo anterior expresso na carta a Manuzio a

necessidade de submeter a religiatildeo agrave razatildeo deve ser entendida em relaccedilatildeo a uma

dimensatildeo religiosa que se mostra em caraacuteter dogmaacutetico horizontal em oposiccedilatildeo agrave

dimensatildeo religiosa enquanto experiecircncia real Os indiacutecios de tal dimensatildeo da

experiecircncia de uma efetiva religiatildeo84 Pico teria encontrado em seus estudos

relacionados a teologias e teurgias tomadas da literatura neoplatocircnica

posteriormente complementadas com os Hinos Oacuterficos os Oraacuteculos Caldeus e a

praacutetica da Cabala Tratava-se pois de uma real vivecircncia religiosa que extrapolava os

dogmas de qualquer religiatildeo particular Sob tal entendimento quaisquer

correspondecircncias encontradas nas teses que se relacionem com as doutrinas da Igreja

natildeo devem ser interpretadas como uma defesa ortodoxa do Cristianismo mas como

um passo a mais em direccedilatildeo agrave conjunccedilatildeo dos ldquofinsrdquo que tendem ao Absoluto

Seguindo essa acepccedilatildeo Pico teria encontrado em Proclo sua definiccedilatildeo de ldquoverdadeira

religiatildeordquo

Assim como a feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior agrave

ciecircncia assim a feacute que eacute feacute verdadeira eacute supra

substancialmente superior agrave ciecircncia e ao intelecto conjugando-

nos imediatamente a Deus85

(Conclusio secundum Proclum 44)

3 Maritare Mundum

Nas 144 teses que distribuiacutedas em quatro seacuteries concluem as 500

Conclusiones secundum opinionem propriam eacute possiacutevel descobrir alguns elos que

datildeo sentido ao conjunto de forma que as secretas analogias apontadas na Apologia

possam ser delineadas A segunda metade da obra contempla os principais e mais

82 O tema eacute amplamente discutido em GARIN 2011 pp137-142 Ainda BUSI Pico fede ragione e

Inquisizione in Il Sole 24 Ore 28082018 83 Conclusiones in Theologia (II) IV 18 (p91) Como aponta GARIN (2011 pp137-142) natildeo por acaso o Padre

da Igreja que Pico mais amou e meditou sobre foi justamente Oriacutegenes Parecia-lhe absurda a ideia de impor uma feacute sem demonstraacute-la assim como castigar um herege e condenaacute-lo por erro teoacuterico (cf Apologia ldquoDe libertate credendirdquo)

84 A ideia contemporacircnea que se tem do termo ldquoreligiatildeordquo estaacute bastante esvaziada de seu sentido original a ponto de poder causar estranheza a dignidade que Pico lhe atribui colocando-a acima da Filosofia e da Teologia Nunca eacute tarde para recordar a origem etimoloacutegica do termo ldquoreligiatildeordquo proveniente do verbo ldquoreligarerdquo que aponta para a real uniatildeo com o divino um estado de plena vivecircncia espiritual que ultrapassa as questotildees teoreacuteticas relacionadas agrave Filosofia ou agrave Teologia

85 Concl (I) IVV 44 (p48) ldquoSicut fides quae est credulitas est infra scientiam ita fides quae est vere fides est supersubstantialiter supra scientiam et intellectum nos Deo inmediate coniungensrdquo

70

originais argumentos que seriam utilizados para debater uma teoria global da

representaccedilatildeo do mundo realizando a consonacircncia com os temas verificados no

primeiro toacutepico deste Capiacutetulo Observa-se que o realizador da obra estava seguro por

ter encontrado ocultas correspondecircncias que se mostram particularmente claras no

exame das seacuteries finais das Conclusiones intituladas ldquosegundo opiniatildeo dos

enunciados de Zoroastrordquo ldquomaacutegicasrdquo ldquosegundo os hinos de Orfeu [] e aquele saber

relativo agraves coisas divinas e agraves coisas naturaisrdquo e ldquoconsolidantes da religiatildeo cristatilde a

partir dos fundamentos colocados pelos saacutebios hebreusrdquo86 O complexo dessas quatro

seacuteries representa um corpo uacutenico no pensamento de Pico apresentando uma

substancial unidade entre os saberes da Magia da Teurgia e da Teologia

Vaacuterias correspondecircncias satildeo estabelecidas ainda entre as teses caldaicas

maacutegicas oacuterficas e cabaliacutesticas com os demais temas da inteira obra seguindo um

planejamento em que se destacam especiacuteficos teores o aceno aos trecircs mundos que

Pico havia mencionado atraveacutes de Proclo dentro de um cenaacuterio de organizaccedilatildeo do

cosmo87 a confirmaccedilatildeo de certa escolha temaacutetica que prestigia as questotildees

relacionadas ao conhecimento da alma a tonalidade teoloacutegica que se mostra

mesclada a vaacuterias teses e sobretudo o entrelaccedilamento entre distintos campos do

saber que afirmam a presenccedila da concoacuterdia buscada Os modelos temaacuteticos citados a

seguir todos extraiacutedos das ldquoteses segundo o significado das sentenccedilas de Zoroastro e

de seus exegetas caldeusrdquo apresentam natildeo somente aforismos que retratam os temas

mencionados como ainda um exemplo da multidisciplinariedade piquiana

verificaacutevel no uacuteltimo dos enunciados no qual se confirma a correspondecircncia entre as

teologias caldaica cristatilde e hebraica

No aforismo 17 [do enunciado de Zoroastro] com o triacuteplice

indumento de linho pano e pele os Magos natildeo entendem outra

coisa aleacutem da triacuteplice morada da alma celeste espiritual e

terrena88 (Conclusio secundum propriam opinionem de

intelligentia dictorum Zoroastris 8)

86 Conforme a sequecircncia e tiacutetulos completos dados por Pico temos Conclusiones secundum propriam

opinionem de intelligentia dictorum Zoroastris et expositorum eius Chaldaeorum Conclusiones Magicae Conclusiones secundum propriam opinionem de modo intelligendi hymnos Orphei secundum Magiam id est secretam diuinarum rerum naturaliumque sapientiam a me primum in eis repertam Conclusiones Cabalisticae secundum opinionem propriam ex ipsis Hebraeorum sapientum fundamentis Cristianam Religionem maxime confirmantes

87 Conclusio secundum Proclum 52 88 Concl (II) VIII 8 (p116) ldquoMagi in XVII aphorismo nichil aliud intelligunt per triplex indumentum ex lino

panno et pellibus quam triplex animae habitaculum coeleste spirituale et terrenumrdquo O trecho de acordo com FARMER (opcit np489) eacute extraiacutedo dos Oraacuteculos Caldeus A sessatildeo caldaica das Conclusiones conteacutem material natildeo encontrado no recolhimento de Miguel Psello ou George Plethon nem mesmo a numeraccedilatildeo dos Oraacuteculos de Pico coincide com a ordem encontrada naquelas coleccedilotildees anteriores A questatildeo das fontes que Pico consultou na sessatildeo caldaica eacute tatildeo misteriosa quanto a versatildeo dos Oraacuteculos que ele tinha em matildeos Em carta a Ficino de 1486 Pico fala de libellus de dogmatis Chaldaicae theologiae tum Persarum Graecorum et Chaldaeorum in illa divina et locupletissima enarratione [ldquoum pequeno livro sobre os ensinamentos da teologia caldaica naquela exposiccedilatildeo divina e opulenta dos persas gregos e caldeusrdquo] que lhe tinha chegado recentemente agraves matildeos (FARMER opcit pp486-487)

71

Aquilo que dizem os exegetas caldeus acerca do primeiro

enunciado de Zoroastro sobre a ldquoescala do taacutertaro ao primeiro

fogordquo natildeo significa outra coisa que a seacuterie das naturezas do

universo do natildeo grau da mateacuteria ao grau que gradualmente se

sobrepotildee acima de cada grau89 (idem 1)

Graccedilas ao enunciado de Zoroastro lsquosacrificareis ainda por trecircs

dias e natildeo maisrsquo me resultou evidente atraveacutes da aritmeacutetica do

caacutelculo dos dias da Mercavaacute superior que naquele enunciado

estava prevista expressamente a vinda de Cristo90

(idem 14)

A menccedilatildeo agrave aritmeacutetica da Mercavaacute superior alude agrave existecircncia de um campo

conceitual que requer um preparo especial tantas vezes guardado pelo segredo O

autor desse material mostra ter consciecircncia da necessidade de proteger certas aacutereas

conceituais que natildeo devem ser divulgadas ndash e dos riscos envolvidos em sua eventual

divulgaccedilatildeo Esse cuidado eacute referido de forma velada algumas vezes e de forma

expressa em outras Na abertura do penuacuteltimo grupo de suas teses intituladas

ldquoconforme o modo de interpretar os hinos de Orfeu segundo magiardquo Pico sugere ter

colhido nos Hinos Oacuterficos certas verdades cuja divulgaccedilatildeo seria arriscada por

necessidade em razatildeo da restriccedilatildeo pedida pelo segredo teria que expressar-se em

modo eliacuteptico utilizando-se de aforismos para conseguir despertar ldquoa mente dos

contemplativosrdquo91 Assim se lecirc em sua Conclusio oacuterfica nr 1

Expor em puacuteblico a magia secreta por mim extraiacuteda por

primeiro dos Hinos de Orfeu natildeo eacute liacutecito mas seraacute uacutetil delineaacute-

la para estimular as mentes dos contemplativos mesmo que por

meio de aforismos92

(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 1)

89 Concl (II) VIII 1 (p114) ldquoQuod dicunt interpretes chaldaei super primum dictum Zoroastris de scala a

tartaro ad primum ignem nichil aliud significat quam seriem naturarum universi a non gradu materiae ad eum qui est super omnem gradum graduate protensumrdquo

90 Concl (II) VIII 14 (p116) ldquoPer dictum illud Zoroastris ad huc tres dies sacrificabitis et non ultra apparuit michi per arithmeticam superioris merchaveacute illos computandi dies esse in eo dicto expresse praedictum aduentum Christirdquo A Mercavaacute superior (carruagem) representa a parte especulativa da Cabala concernente agraves coisas divinas como esclarece o escritor cabalista Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp 193-94)

91 Pico tinha consciecircncia dos riscos de uma interpretaccedilatildeo errocircnea ou da utilizaccedilatildeo delituosa da teurgia oacuterfica Marsiacutelio Ficino que jaacute havia traduzido para o latim os Hinos Oacuterficos havia decidido evitar sua publicaccedilatildeo por julgaacute-los perigosos (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano 2009 pp 73-74) ainda do mesmo autor veja-se Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola p 630) O acesso de Pico aos Hinos oacuterficos eacute comprovado pela existecircncia em sua biblioteca de pelo menos um manuscrito contendo natildeo apenas aqueles hinos como tambeacutem os Hinos homeacutericos e os de Proclo (Pearl KIBRE opcit 1936 pp148 205)

92 Concl (II) X 1 (p120) ldquoSicut secretam magiam a nobis primum ex Orphei hymnis elicitam fas non est in publicum explicare ita nutu quodam ut in infrascriptis fiet conclusionibus eam per aphorismorum capita demonstrasse utile erit ad excitandas contemplatiuorum mentesrdquo

72

Depreende-se da asserccedilatildeo acima uma forte conotaccedilatildeo iniciaacutetica tocircnica que

conflui no complexo orgacircnico das uacuteltimas seacuteries revelando a existecircncia de uma

dimensatildeo ndash conhecida por Pico ndash que admite o adepto atraveacutes de graus que elevam

ao conhecimento ndash desde que ele seja capaz de ingressar por suas portas de iniciaccedilatildeo

A conclusio oacuterfica 7 conta que existe uma ldquoestrada de analogia secretardquo que soacute poderaacute

ser trilhada por aquele que souber ldquointelectualizar perfeitamente as propriedades

sensiacuteveisrdquo a serem extraiacutedas dos Hinos de Orfeu93 Vecirc-se que eacute dada ecircnfase seja na

primeira que na seacutetima tese acima ao uso intelectual ou contemplativo das

informaccedilotildees recebidas agrave guisa de precauccedilatildeo para natildeo ser aprisionado por elementos

negativos ndash advertecircncia que embora natildeo expressa nas teses acima encontra-se na

tese 10 segundo Hermes Trismegisto e na tese cabaliacutestica 1394 A conclusio maacutegica 17

sugere que para ultrapassar os limites estabelecidos pela natureza existem ldquodevidas

modalidades conhecidas pelos saacutebiosrdquo95 Nesse percurso a Magia representa o

primeiro grau96 por se tratar conforme a conclusio maacutegica 4 da parte ldquomais nobre

da ciecircncia naturalrdquo sendo o conhecimento do mundo fiacutesico em primeira etapa o

alimento da alma racional97

Se se verifica em noacutes uma natureza imediata que seja

simplesmente ou pelo menos prevalentemente racional essa

tem seu aacutepice na arte maacutegica E graccedilas agrave participaccedilatildeo maacutegica

tal natureza pode ascender nos homens a uma maior

perfeiccedilatildeo98 (Conclusio Magica 14)

A Magia conforme se depreende da explanaccedilatildeo realizada na De Hominis

Dignitate99 ocupa-se das relaccedilotildees da vida humana com a toda a criaccedilatildeo daiacute a

outorga de nobreza que Pico lhe concede em caraacuteter privilegiado tem por objeto a

93 Concl (II) X 7 (p122) 94 A tese cabaliacutestica 13 adverte que ldquoquem opera na Cabala se cometer erros durante o trabalho ou se aproximar

deste sem a devida purificaccedilatildeo preacutevia seraacute devorado por Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedilardquo A tese 10 segundo as doutrinas de Trismegisto informa sobre a existecircncia de uma maligna sequecircncia denaacuteria correspondente agrave existente na Cabala a respeito da qual Pico declara que natildeo poderaacute escrever nada ldquopor tratar-se de um segredordquo

95 Concl (II) IX 17 (p118) A inteira sentenccedila postula que ldquoa magia eacute proacutepria daquela natureza que eacute horizonte de tempo e eternidade e de laacute deve ser extraiacuteda segundo as devidas modalidades notas aos saacutebiosrdquo O significado da primeira oraccedilatildeo segundo FORNACIARI eacute que a natureza eacute o limite do tempo no sentido que o tempo intriacutenseco agrave natureza eacute limitado e natildeo eterno (Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 p64)

96 Na De Hominis Dignitate Pico dedica muitas linhas a esclarecer o que entende por ldquomagiardquo defendendo-a contra entendimentos equivocados eou preacute-concebidos

97 Cf FORNACIARI Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche 2009 pp 58 63 98 Concl (II) IX 14 (p118) ldquoSi qua est natura immediata nobis quae sit uel simpliciter uel saltem ut multum

rationaliter rationalis magicam habet in summo et eius participatione potest in hominibus esse perfectiorrdquo FARMER (np498) comenta que a questatildeo concerne agrave alma purificada do mago capaz de reunir todas as forccedilas racionais distribuiacutedas entre o mundo celestial e terrestre e elevaacute-las Nesta tese lecirc-se que a magia envolve naturezas ldquoracionaisrdquo na correlata tese cabaliacutestica 12 encontra-se que a ldquoCabala purardquo (haacute tambeacutem variedades inferiores como seraacute visto no Capiacutetulo V) envolve a ldquoparte intelectualrdquo da alma racional

99 Aleacutem da ampla defesa da Magia realizada na Apologia (Quaestio V de magia naturali et cabala hebraeorum pp 154-193) Pico dedica natildeo poucas linhas para a questatildeo na De Hominis Dignitate ldquoRepleta de profundiacutessimos misteacuterios [a ldquoboa magiardquo] abraccedila a contemplaccedilatildeo mais alta das coisas mais secretas e por fim o conhecimento total da natureza Esta como que trazendo das profundidades agrave luz as virtudes dispersas e disseminadas no mundo pela bondade de Deus mais do que realizar milagres coloca-se ao serviccedilo da milagrosa natureza Esta perscrutando intimamente o secreto acordo do universo a que os Gregos chamam de uma maneira muito significativa sympateacuteia [ldquoharmonia do universordquo] explorando a muacutetua ligaccedilatildeo das naturezas traz agrave luz como se ela proacutepria fosse o artiacutefice as maravilhas escondidas nas profundezas do mundo no seio da natureza e dos misteacuterios de Deusrdquo (p153)

73

relaccedilatildeo entre o mundo fiacutesico e a alma imortal pois que o mago opera para realizar a

conexatildeo do mundo sublunar com os mundos superiores100 como seraacute visto adiante

Alguns dos meacutetodos agrave disposiccedilatildeo do sapiente praacutetico para alccedilar-se atraveacutes dos niacuteveis

intelectuais relacionam-se diretamente com o uso de sons e mantras ndash como se

extrai de algumas teses oacuterficas maacutegicas e cabaliacutesticas A tese oacuterfica 2 por exemplo

sinaliza que ldquonas operaccedilotildees de magia natural nada eacute mais eficaz que os Hinos de

Orfeurdquo acrescendo em tom de precauccedilatildeo ldquodesde que sejam aplicadas a correta

muacutesica a correta intenccedilatildeo de acircnimo e todas as demais circunstacircncias que os

sapientes conhecemrdquo101 A quarta tese oacuterfica confirma a analogia de praacuteticas e

resultados entre teologias distintas

Assim como os Hinos de Davi se prestam de forma admiraacutevel agraves

operaccedilotildees da Cabala assim os Hinos de Orfeu se prestam agraves

operaccedilotildees da magia autecircntica liacutecita e natural102

(Conclusio de modo intelligendi hymnos Orphei 4)

Observa-se uma relaccedilatildeo entre os resultados obtidos atraveacutes das praacuteticas oacuterficas

e as cabaliacutesticas pois que nos Salmos de Davi encontra-se uma aplicaccedilatildeo maacutegica

pertencente ao esoterismo hebraico que Pico certamente conhecia103 Embora se

situem em patamares distintos104 as duas dimensotildees operativas apresentam

analogias como revela a tese oacuterfica 6 ldquoa propriedade analoacutegica de qualquer virtuderdquo

(no sentido de qualidade poder ou potecircncia)105 seja natural ou divina eacute a mesma

ldquoguardadas as devidas proporccedilotildeesrdquo assim como satildeo os mesmos os nomes (utilizados

na magia natural) os hinos (na teurgia oacuterfica) e o operar (em sentido cabaliacutestico)

ldquoquem tentaraacute interpretaacute-los encontraraacute as correspondecircnciasrdquo completa o texto106

Pico alerta outrossim que para a aplicaccedilatildeo operativa de determinados hinos

oacuterficos107 seraacute necessaacuteria a participaccedilatildeo da operaccedilatildeo cabaliacutestica como postula a tese

oacuterfica 21 ldquoNatildeo haacute aplicaccedilatildeo operativa daqueles [especiacuteficos] hinos sem a operaccedilatildeo da

Cabalardquo108

100 Cf FORNACIARI 2009 p 58 101 Concl (II) X 2 (p120) Proclo em seu proecircmio ao Comentaacuterio ao Timeu atesta que os textos sagrados do

Orfismo continham indicaccedilotildees taumatuacutergicas Ademais ao proacuteprio Proclo foram atribuiacutedos o poder de auto-cura e de curar o proacuteximo atraveacutes do recurso a hinos inclusive os oacuterficos conforme se lecirc em Vita Procli de Marino Neapolis (apud FORNACIARI 2009 p74) Complementa Fornaciari (p75) que eacute a concentraccedilatildeo do pensamento no mago ou teurgo que propicia o movimento interior desde que acompanhado do cumprimento dos preceitos e das palavras certas pronunciadas nas oraccedilotildees

102 Concl (II) X 4 (p122) ldquoSicut hymni Dauid operi Cabalae mirabiliter deseruiunt ita hymni Orphei operae vere licitae et naturalis Magiaerdquo Os Hinos de Davi referem-se aos Salmos

103 A hinografia atribuiacuteda ao rei Davi exerce uma funccedilatildeo sagrada no Judaiacutesmo e houve uma sua aplicaccedilatildeo maacutegica chamada simmusy tehillim (ldquouso dos Salmosrdquo) Vejam-se esclarecimentos sobre a questatildeo e as implicaccedilotildees em acircmbito cabaliacutestico em FORNACIARI (2009 p76)

104 No capiacutetulo VI seratildeo esclarecidas as distinccedilotildees entre os procedimentos teuacutergicos e os procedimentos de tipo superior realizados em certo tipo de praacutetica cabaliacutestica

105 A complementaccedilatildeo ao termo ldquovirtuterdquo eacute de FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630)

106 Concl (II) X 6 (p122) ldquoQuarumcunque virtutum naturalium vel diuinarum eadem est proprietas analogica idem etiam nomen idem hymnus idem opus seruata proportione et qui temptauerit exponere uidebit correspondentiamrdquo

107 Trata-se dos Hinos aos quais Pico se refere na tese oacuterfica 20 (p125) endereccedilados agrave mente Paterna ldquoProtogeni Palladis Saturni Veneri Rheae Legis Bacchirdquo

108 Concl (II) X 21 (p124) A Cabala possui as propriedades para ldquocolocar em ato cada quantidade formal contiacutenua e discretardquo como estaacute complementado na mesma tese 21 Essa tese um tanto complexa recebeu de WIRSZUBSKI (opcit pp141-145) e de Brian COPENHAVER (Lrsquoocculto in Pico in Giovanni Pico della

74

Da mesma forma que efetua em relaccedilatildeo ao Orfismo Pico tece muacuteltiplas

analogias entre a Cabala e a Magia109 dois peculiares temas que exorbitam os limites

de seus proacuteprios grupos e que satildeo encontrados de forma esparsa correspondendo-se

natildeo apenas entre si como com outros dos demais elementos presentes nas Teses

Aleacutem da tese maacutegica 8 condenada pelos teoacutelogos de Inocecircncio VIII que conjuga

Magia e Cabala (no caso para afirmar a divindade de Cristo) as duas precedentes 6 e

7 tambeacutem comportam a assunccedilatildeo da Cabala ao lado da Magia ambas convergindo

para ingressar em um plano superior teoloacutegico Na conclusio maacutegica 6 Pico assume

que todas as operaccedilotildees maacutegicas eou cabaliacutesticas encontram sua referecircncia direta em

Deus

Qualquer obra que suscite estupor seja de tipo maacutegico

cabaliacutestico ou de qualquer outro gecircnero deve ser em

primeiriacutessima instacircncia referida a Deus glorioso e bendito

cuja graccedila espalha as superabundantes aacuteguas de milagrosas

virtudes sobre os homens contemplativos de boa vontade110

(Conclusio Magica 6)

A tese seguinte de nuacutemero 7 provavelmente surpreendente aos ouvidos

cristatildeos afirma que ldquoas obras de Cristo natildeo poderiam ter sido realizadas nem por via

de Magia nem por via de Cabalardquo111 A afirmaccedilatildeo parece significar que Cristo possuiria

virtudes superiores em respeito agrave Magia e agrave Cabala rendendo ambas inuacuteteis

Entretanto segundo a interpretaccedilatildeo de Paolo Fornaciari Pico estaria em verdade

sustentando que Cristo teria operado milagres graccedilas agrave forccedila da Magia e da Cabala

conjuntas112 Fato que parece sugerido na condenada tese de nuacutemero 9 amplamente

discutida na Apologia ldquonatildeo existe ciecircncia que nos afirme a divindade de Cristo mais

do que a Magia e a Cabalardquo113 A intriacutenseca relaccedilatildeo entre Magia e Cabala estaacute ainda

presente na tese maacutegica 15 que atribui agrave Cabala a propriedade tida como

imprescindiacutevel de consentir ao mago de operar com sucesso no mundo fiacutesico

Mirandola 1997 p98) interpretaccedilotildees acuradas e distintas o primeiro em acircmbito cabaliacutestico e o segundo em acircmbito matemaacutetico-geomeacutetrico Jaacute a interpretaccedilatildeo de FORNACIARI (2009 pp91-92) mais alinhada com o desenho geral da Conclusiones faz corresponder as trecircs quantidades formal contiacutenua e discreta aos trecircs mundos inteligiacutevel intermeacutedio e sublunar cujas formas podem ser operacionalizadas e quantificadas pela Cabala atraveacutes da gematria (tipologia a ser verificada no Capiacutetulo VI)

109 Uma maior aproximaccedilatildeo agrave Cabala seraacute feita nos capiacutetulos V e VI Em relaccedilatildeo agrave Magia as 26 teses maacutegicas foram objeto de anaacutelise em artigo de Frances YATES (Giovanni Pico della Mirandola and Magic in LrsquoOpera e il pensiero di G Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965 pp159-196) Para definiccedilotildees e esclarecimentos feitos pelo proacuteprio Pico remeter-se agrave parte da De Hominis Dignitate que trata de Magia e ainda agrave seccedilatildeo dedicada agrave quaestio ldquoDe magia naturalis et Cabala disputatiordquo na Apologia

110 Concl (II) IX 6 (p118) ldquoQuodcumque fiat opus mirabile siue sit magicum siue cabalisticum siue cuiuscunque alterius generis principalissime referendum est in Deum gloriosum et benedictum cuius gratia supercoelestes mirabilium uirtutum aquas super contemplatiuos homines bonae voluntatis quotidie pluit liberaliterrdquo Para Pico as operaccedilotildees maacutegicas natildeo funcionam de forma mecacircnica mas dependem da mediaccedilatildeo de uma alma purificada (FARMER p497)

111 Concl (II) IX 7 (p118) ldquoNon potuerunt opera Christi uel per uiam magiae uel per uiam Cabalae fierirdquo 112 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p630 113 Concl (II) IX 9 (p118) ldquoNulla est scientia quae nos magis certificet de diuinitate Christi quam magia et

cabalardquo Veja-se ampla discussatildeo dessa tese em FARMER (opcit pp126-128) que se remete agrave obra de Frances Yates Giovanni Pico della Mirandola and Magic 1965

75

Nenhuma operaccedilatildeo de Magia pode ser de eficaacutecia se natildeo tiver

conexa a obra cabaliacutestica expliacutecita ou impliacutecita114

(Conclusio Magica 15)

Finalmente nas trecircs teses maacutegicas finais a relaccedilatildeo entre a Cabala e a Magia eacute

precisada Na conclusio 24 a partir de quanto ensina a Cabala Pico posiciona

conforme ldquoprinciacutepios secretos da Filosofiardquo as qualidades formais inscritas nos

siacutembolos (caracteres et figuras) acima das qualidades materiais no que concerne agrave

operatividade maacutegica115 na sucessiva tese 25 afirma a correspondecircncia entre os

siacutembolos (caracteres) usados nas operaccedilotildees maacutegicas e os nuacutemeros (numeri) usados

nas operaccedilotildees cabaliacutesticas Na tese 26 Pico sustenta que agrave diferenccedila de quanto

ocorre no campo maacutegico-natural onde o nexo causa-efeito eacute respeitado em modo

rigoroso na atuaccedilatildeo cabaliacutestica pode ocorrer que um acontecimento natildeo dependa da

mediaccedilatildeo das causas Nesse sentido a uacuteltima tese maacutegica pontua assim a distinccedilatildeo

de gradaccedilatildeo entre os dois saberes atraveacutes da obra cabaliacutestica pode ocorrer algo que

nenhuma magia pode alcanccedilar desde que o operar cabaliacutestico seja ldquopuro e

imediatordquo116

Para aleacutem das inter-relaccedilotildees temaacuteticas uma especial atenccedilatildeo deve ser

dispensada agraves Teses Cabaliacutesticas117 agraves quais alguns privileacutegios foram concedidos118

satildeo elas que encerram as duas seccedilotildees da obra piquiana como a ocupar um espaccedilo

nobre a quantidade de teses cabaliacutesticas em seu total de 118 supera a quantidade de

teses de cada um dos outros grupos119 e quatro-quintos das correspondecircncias

efetuadas entre os vaacuterios conteuacutedos envolvem a Cabala120 Efetivamente o nuacutemero de

conexotildees da Cabala com outros temas ultrapassa aquelas efetuadas com as duas

seacuteries acima mencionadas Aleacutem das 47 teses cabaliacutesticas ad mentem cabalistarum e

das 71 secundum opinionem propriam121 ao menos outras cinquenta fazem

114 Concl (II) IX 15 (p118) ldquoNulla potest esse operatio magica alicuius efficaciae nisi annexum habeat opus

cabalae explicitum uel implicitumrdquo Acerca desta tese FARMER (np499) interpreta que o sentido primaacuterio que Pico quer esclarecer eacute que a parte racional da alma (pertinente agrave ldquomagia naturalrdquo) deriva da parte intelectual da alma (pertinente agrave ldquocabala purardquo) sob tal prisma a Cabala estaria impliacutecita em qualquer ato maacutegico

115 Concl(II) IX 24 (p121) ldquoEx secretioris philosophiae principiis necesse est confiteri plus posse caracteres et figuras in opere Magico quam possit quaecunque qualitas materialisrdquo

116 Respectivamente Concl (II) IX 25 e 26 (p121) Basicamente nessas trecircs uacuteltimas teses Pico postula que as palavras maacutegicas podem ser traduzidas em nuacutemeros e os nuacutemeros em palavras maacutegicas aparentemente conforme inferecircncia de FARMER (np503) atraveacutes de equaccedilotildees de gematria A menccedilatildeo agrave Cabala pura e imediata ldquosi sit pura cabala et imediatardquo envolve a parte intelectual da alma como ainda completa Farmer (idem)

117 Paolo FORNACIARI realizou a interpretaccedilatildeo da totalidade das Conclusiones Cabalisticae (2009) utilizando-se da obra de Chaim WIRSZUBSKY (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 19871989) como paracircmetro hermenecircutico para o misticismo hebraico

118 De todas as obras de Pico as Conclusiones cabalisticae parecem ter conhecido melhor destino visto que foram publicadas mais vezes geralmente em latim (veja-se por exemplo FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano 2009 p13) Para Albano BIONDI as Teses cabaliacutesticas ldquosecundum opinionem propriamrdquo representam o coroamento do inteiro edifiacutecio piquiano (2013 p XXVI)

119 Dentro do primeiro grupo eacute atribuiacutedo a Proclo o maior nuacutemero de teses um total de 55 seguido do grupo dos ldquoSaacutebios da Cabalardquo com 47 teses No segundo grupo as ldquoTeses sobre a Matemaacuteticardquo e as ldquoTeses pessoais acerca da doutrina de Platatildeordquo satildeo as que apresentam maior nuacutemero respectivamente 85 e 80 teses cada Contudo na somatoacuteria dos dois grupos o conjunto das doutrinas cabaliacutesticas eacute detentor da maior quantidade de teses 118 no total

120 Cf William CRAVEN Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age modern Interpretations of a Renaissance philosopher 1981 p107

121 O tiacutetulo do uacuteltimo grupo menciona 71 teses (Conclusiones Cabalisticae numero LXXI) embora sejam apresentadas de fato 72 Conforme Fornaciari (2009 p15) natildeo se trata de erro banal de Pico de seus editores de Roma e de Ingolstadt (com o qual esteve em relaccedilatildeo direta) dos inuacutemeros copistas e dos editores dos seacuteculos

76

referecircncia direta ao tema122 Embora a uacuteltima seacuterie cabaliacutestica ldquosegundo a opiniatildeo de

Picordquo apresente um grande nuacutemero de proposiccedilotildees teoloacutegicas que pretendem

confirmar as verdades do Cristianismo ndash originalidade da qual Pico se orgulhava em

razatildeo do triunfo da aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico ndash123 o conjunto formado

pelas duas seacuteries referentes aos misteacuterios hebraicos contempla a maior incidecircncia de

aforismos de conteuacutedo obscuro ou esoteacuterico alguns apenas acessiacuteveis ao ciacuterculo dos

cabalistas

O Grande Aquilo eacute de maneira geral a fonte de todas as almas

Outros dias satildeo de algumas mas natildeo de todas124

(Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum

hebraeorum 6)

Na Cabala quem penetrar o misteacuterio das Portas da Inteligecircncia

conheceraacute o misteacuterio do Grande Jubileu125 (idem 13)

Aquele que na sequecircncia coordenada da direita compreender a

propriedade do meridional tambeacutem saberaacute a razatildeo de cada

partida de Abraatildeo ir sempre em direccedilatildeo ao Austro126 (idem 14)

Quem penetrar o caraacuteter proacuteprio de hosec e laila que eacute o

segredo da escuridatildeo saberaacute o porquecirc de os maus democircnios

serem mais perigosos agrave noite do que durante o dia127 (idem 21)

As trecircs uacuteltimas seacuteries de teses contemplam a existecircncia ndash e sugerem a

transcendecircncia por parte do homem ndash do mundo fenomecircnico natural do

sucessivos A hipoacutetese do comentador eacute que Pico tenha evitado propositalmente de escrever o nuacutemero 72 por se tratar de cifra sagrada pertencente agrave versatildeo mais ampla do ldquonome expandidordquo de Deus de 72 letras (conforme Ecircxodo 346-7) habitualmente impronunciaacutevel e que apenas o Gran Sacerdote teria o direito de proferir uma vez ao ano

122 Sheila RABIN apresenta uma completa especificaccedilatildeo das teses que mesclam conteuacutedos cabaliacutesticos caso da conclusio 2 segundo Temistio da nr 10 segundo Hermes e das referecircncias presentes nas teses matemaacuteticas entre outras (Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays 2008 p 157)

123 Efetivamente atraveacutes de alguns meacutetodos como a gematria Pico consegue comprovar intrigantes relaccedilotildees entre os misteacuterios hebreus e a Teologia cristatilde Essas questotildees seratildeo verificadas nos capiacutetulos V e VI

124 Concl (I) VIII 6 (p56) ldquoMagnus Aquilo fons est animarum omnium simpliciter sicut alii Dies quarundam et non omniumrdquo Para explicar tal tese algumas interpretaccedilotildees foram tentadas Os ldquodiasrdquo da criaccedilatildeo satildeo concernentes a diferentes Sefirot (concepccedilatildeo a ser verificada adiante) O ldquoGrande Aquilordquo segundo FARMER representa um siacutembolo cabaliacutestico da quinta sefiraacute para FORNACIARI da quarta para WIRSZUBSKI (apud Farmer) o sentido eacute outro natildeo elucidado por Farmer

125 Concl (I) VIII 13 (p56) ldquoQui nouerit in Cabala mysterium portarum intelligentiae cognoscet mysterium Magni Iobelei rdquo

126 Concl (I) VIII 14 (p56) ldquoQui nouerit proprietatem meridionalem in dextrali coordinatione sciet cur omnis processio Abraam semper fit versus austrumrdquo Farmer procura esclarecer parte da tese informando que a ldquosequecircncia da direitardquo eacute uma distinccedilatildeo da emanaccedilatildeo das verdadeiras Sefirot da maleacutefica ldquosequecircncia da esquerdardquo que a reflete (np351) Wirszubski (1989 pp 32-33) cita uma longa passagem da traduccedilatildeo de Mitridate da Portae lustitiae de Gicatilla para tentar mostrar que ldquosequecircncia da direitardquo eacute simplesmente um siacutembolo para a quarta sefiraacute Farmer parece natildeo concordar com tal versatildeo pois afirma que a linguagem de Pico difere radicalmente da encontrada na traduccedilatildeo de Mitridate (que usa a palavra dextra mas nada diz sobre a coordenaccedilatildeo da ldquosequecircncia da direitardquo)

127 Concl (I) VIII 21 (p58) ldquoQui sciet proprietatem hosec et laila quae est secretum tenebrarum scit cur mali daemones plus in nocte quem in die nocentrdquo A ediccedilatildeo de Stephan Farmer (1998) suprime a expressatildeo ldquohosec et lailardquo

77

supramundano intermeacutedio e dos planos inteligiacuteveis bem como de uma dimensatildeo

epistemoloacutegica que permeia todos os planos A velada iniciaccedilatildeo sugerida por Pico tem

por principal intento alccedilar o homem ao entendimento do iacutentimo sistema de

correspondecircncias que se distribui entre os diversos niacuteveis O conhecimento do mundo

sublunar pode ser alcanccedilado pela Magia do celeste pela Teurgia oacuterfica e o acesso ao

Inteligiacutevel pela intermediaccedilatildeo da Cabala Sob esse prisma compreende-se que a

unificaccedilatildeo dos mundos eacute o objetivo final de toda a operaccedilatildeo seja maacutegica teuacutergica ou

cabaliacutestica

Natildeo existe nem no ceacuteu nem na terra virtude em estado

potencial e separada que o mago natildeo possa levar ao estado atual

e unificar128 (Conclusio Magica 5)

Entendendo o mundo como um complexo uacutenico articulado desde o mundano

aos sobremundanos o operador (ou iniciado) torna seu uacutenico escopo o aprendizado e

atuaccedilatildeo sobre os reinos que conjuga com seu proacuteprio intelecto elevando-se do saber

natural ao teoloacutegico atraveacutes de vaacuterios graus e meacutetodos O saacutebio eacute pois um

alquimista para quem ldquoa arte maacutegica natildeo adveacutem que por uniatildeo e atuaccedilatildeo de coisas

que na natureza existem em estado de potecircncia e separaccedilatildeordquo129 o ato de conjugar o

mundo ldquomaritare mundumrdquo torna-se assim sua meta preciacutepua e terminal130

Operar magia eacute simplesmente casar o mundo131

(Conclusio Magica 13)

Entender a natureza e ultrapassaacute-la elevando-se ateacute a mente divina esse eacute o

tema principal daquele texto escrito para servir de ldquointroduccedilatildeordquo agraves Teses Qualquer

das ferramentas operadas pelo homem para obter conhecimento soacute eacute digna se tiver

como finalidade sua elevaccedilatildeo Pois como lembra Pico ldquoa forma de todo o poder

maacutegico tem sua raiz na alma humanardquo mas somente ldquonaquela alma que se mostra

permanente e natildeo cadenterdquo132

A mensagem piquiana concernente ao conteuacutedo das Conclusiones de forma

particular no que se refere agraves uacuteltimas seacuteries natildeo pode ser adequadamente

elucidada133 Todavia o caminho para desvendar a occulta concatenatio mencionada

na Apologia pode ser trilhado a partir da constataccedilatildeo e subsequente averiguaccedilatildeo de

duas veementes marcas presentes dentre as novecentas teses ndash e que aqui foram

indicadas a primeira encontra-se na repeticcedilatildeo de temas relacionados agrave Cosmologia agrave

128 Concl (II) IX 5 (p118) ldquoNulla est virtus in coelo et in terra seminaliter et separata quam et actuare et

unire magus non possitrdquo 129 Concl (II) IX 11 (p118) ldquoMirabilia artis magicae non sunt nisi per unionem et actuacionem eorum quae

seminaliter et separate sunt in naturardquo 130 PICO Apologia pp 171-172 Veja-se discussatildeo aprofundada sobre o tema de ldquomaritarerdquo o mundo em Franco

BACCHELLI (2001 pp 72-73) 131 Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo FARMER bem observa

que ldquoo homo-magus eacute um sacerdote coacutesmicordquo (p498) 132 Concl (II) IX 12 (p118) ldquoForma totius magicae uirtutis est ab anima hominis stante et non cadenterdquo 133 Segundo admite Paolo FORNACIARI tradutor e comentador das Conclusiones cabalisticae ldquonatildeo estamos

ainda em grau de esclarecer plenamente no estado atual dos estudos o significado da mensagem piquianardquo (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p16)

78

Alma e agrave Teologia difusos entre as seacuteries da inteira obra a segunda pode ser

depreendida das correspondecircncias encontradas entre as seacuteries finais das

Conclusiones que se relacionam agravequeles trecircs temas Veremos no proacuteximo Capiacutetulo

que tais temas estatildeo expostos de forma mais evidenciada na Oratio De Hominis

Dignitate concorrendo para a construccedilatildeo do homem piquiano Ademais as

constataccedilotildees levantadas acrescem algumas peccedilas ao tema principal a ser sintetizado

nas paacuteginas finais Resta pontuar que o debate no qual Pico discutiria suas Teses

esclarecendo quem sabe muitos de seus obscuros temas natildeo aconteceu Muitas

dentre aquelas doutrinas que natildeo poderiam ter seus conteuacutedos divulgados

continuaram com seu segredo resguardado

79

CAPIacuteTULO IV

A ORATIO E SEUS ELEMENTOS ASCENSIONAIS

A Oratio Ioannis Pici Mirandulani Concordiae Comitis134 foi considerada por

muitos a obra mais importante da literatura filosoacutefica do primeiro Renascimento135

Escrita para ser o discurso introdutoacuterio agraves Conclusiones a Oratio nunca foi

pronunciada e tampouco nominada foram seus editores e leitores a intitulaacute-la

ldquo(Oratio) De Hominis Dignitaterdquo (Discurso) Sobre a Dignidade do Homem nome

que apareceraacute apenas em sua ediccedilatildeo de 1557 Escrita em etapas que se alternaram

com a redaccedilatildeo das proacuteprias Conclusiones a Oratio foi definitivamente concluiacuteda

somente apoacutes a finalizaccedilatildeo das novecentas teses e quando algumas dentre elas jaacute

haviam sido submetidas a criacuteticas

Ultrapassando os limites do que seria uma simples introduccedilatildeo a obra natildeo

apenas esclarece a intenccedilatildeo pretendida com as Conclusiones como apresenta o

esboccedilo sinteacutetico daquele que seria o inteiro projeto de vida de seu autor razatildeo que

levou Burckhardt a chamaacute-la de ldquosuacutemulardquo do pensamento piquiano136 Com efeito o

breve texto guarda os principais motivos do pensamento de Pico a saber a

pluralidade das fontes a insistecircncia na conciliaccedilatildeo entre elementos considerados

usualmente diacutespares a presenccedila de elementos entatildeo considerados conservadores

tomados da tradiccedilatildeo medieval postos lado-a-lado com as frescas concepccedilotildees

humanistas da temaacutetica da dignidade a inovadora apresentaccedilatildeo da Cabala judaica A

Oratio natildeo apenas se ergue acima da ocasiatildeo para a qual foi criada como se apresenta

qual verdadeira declaraccedilatildeo filosoacutefica por si soacute razatildeo que a levou a ganhar fama

134 ldquoDiscurso de Giovanni Pico Mirandolano Conde de Concoacuterdiardquo Para o texto integral da Oratio veja-se o De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari trad Eugenio GARIN Vallecchi 1942 pp101-

165 O texto encontra-se tambeacutem disponiacutevel no site ldquoPico Projectrdquo convecircnio da Universidade de Bologna com a Brown University Haacute duas principais redaccedilotildees da Oratio a chamada Palatina copiada pelo humanista contemporacircneo de Pico Giovanni Nesi descoberta por Eugenio Garin e contida no codex Palatino 885 (ex 777) na Biblioteca Nazionale de Firenze (cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p56) e aquela entregue para ediccedilatildeo quase dois anos apoacutes a morte de Pico pelo sobrinho Gianfrancesco Haacute algumas (poucas) diferenccedilas entre as duas redaccedilotildees como o elogio de reconhecimento a Flavio Mitridate presente na primeira e que natildeo aparece em outras ediccedilotildees (cf Paolo Edoardo FORNACIARI Apologia-Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione 2010 p LXXIX) NOTA As traduccedilotildees aqui apresentadas das citaccedilotildees foram feitas a partir do texto latino traduzido para o italiano na ediccedilatildeo acima mencionada de Eugenio Garin considerada pelos especialistas como bastante fiel ao pensamento de Pico Garin utilizou-se especialmente da ediccedilatildeo da De Hominis Dignitate editada em Basileacuteia em 1537 Foram tambeacutem utilizadas como paracircmetros as traduccedilotildees para o portuguecircs de Maria de Lurdes Sirgado Ganho e de Luiz Feracine ndash sendo que a autora portuguesa faz algumas omissotildees pouco relevantes em sua traduccedilatildeo Para os dados completos das vaacuterias ediccedilotildees veja-se ldquoPremessa ai Testirdquo na traduccedilatildeo das Conclusiones Nongentae de Albano Biondi 1995 pp3-5

135 Veja-se Paul Oskar KRISTELLER Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Meacutexico 1970 p 91 Tambeacutem Eugenio Garin e Ernst Cassirer consideram o Discurso como a obra mais famosa do lsquo400 Em outra obra Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi (1978 p132) reflete KRISTELLER que o Discurso conteacutem os fermentos mais patentes que caracterizam a eacutepoca do Renascimento Pier Cesare BORI considera que essas satildeo as paacuteginas ldquomais ceacutelebres do Humanismo italianordquo (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564) Para Mariateresa BROCCHIERI trata-se do ldquocoroamento do trabalho de Picordquo em razatildeo de sua singular qualidade (Pico della Mirandola 2011 p78)

136 Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1927 vol II p95

80

proacutepria e a se firmar de forma independente das Teses ndash a ponto de Eugenio Garin

intitulaacute-la ldquoManifesto do Renascimentordquo137 expressatildeo muito bem aceita A Oratio eacute

essencialmente uma reflexatildeo sobre o homem construiacuteda a partir de uma enredada

estrutura que se apoia sobre um conjunto de doutrinas pertencentes a diferentes

periacuteodos da Histoacuteria do Pensamento

As duas principais linhas interpretativas concernentes ao todo da obra

piquiana podem ser tomadas como modelos de interpretaccedilatildeo de sua parte menor a

Oratio visto que nesta se encontram presentes vaacuterios elementos que se repetiratildeo nas

obras posteriores Uma tendecircncia dominante seguiu o influxo iniciado por Ernst

Cassirer e Giovanni Gentile confirmado anos depois por Eugenio Garin e Paul Oskar

Kristeller que sustenta as conexotildees entre Pico e a cultura maacutegica astroloacutegica

hermeacutetica e cabaliacutestica Outra tendecircncia protagonizada por Henri De Lubac em

seu Pic de la Mirandole138 afirmou sua continuidade com a tradiccedilatildeo teoloacutegica

fundamentada em uma heranccedila biacuteblica-judaica que perpassa os primeiros Padres e

alcanccedila a teologia escolaacutestica No entanto quaisquer diferenccedilas de perspectiva que

sigam tais orientaccedilotildees podem ser prontamente dirimidas quando unificadas sob a

aboacutebada da Concoacuterdia as linhas da obra mostram de forma bastante clara a

intenccedilatildeo de harmonizar entre si natildeo apenas doutrinas teoloacutegicas e filosoacuteficas

ocidentais como tambeacutem de harmonizaacute-las com o pensamento de outras culturas nos

moldes que o autor gostaria que houvesse em sua almejada pax filosoacutefica139

Entre os campos filosoacuteficos e teoloacutegicos associados a legados ocidentais e

orientais dois significativos temas podem ser observados no ldquomanifestordquo e tecircm sido

ressaltados pelos comentadores de forma quase unacircnime (a) a questatildeo da Dignidade

ndash que contempla o sub-tema da liberdade ndash e (b) a questatildeo da Concoacuterdia ambos

verificados a seguir com a finalidade de natildeo ocultar do leitor as interpretaccedilotildees mais

consensuais Seraacute proposto um terceiro tema parte preciacutepua deste Capiacutetulo presente

em vaacuterios momentos da obra e que natildeo tem recebido o devido destaque dos

comentadores (c) o percurso ascensional A aproximaccedilatildeo direta ao texto piquiano

mostra-se a melhor forma para constatar a presenccedila do elemento asceacutetico qual fio

condutor a unir as diferentes doutrinas trazidas no percurso histoacuterico percorrido por

Pico

137 GARIN ldquoIntroduzionerdquo a De Hominis Dignitate Heptaplus etc 1942 p23 138 Em nossa bibliografia utilizou-se a traduccedilatildeo italiana de Henri De LUBAC realizada por GColombo Pico

della Mirandola lrsquoalba incompiuta del Rinascimento 2016 139 Pier Cesare BORI apresenta uma anaacutelise pormenorizada das duas formas interpretativas citadas

segmentando de um lado as passagens biacuteblicas-teoloacutegicas da De Hominis Dignitate e de outro as maacutegicas etc (I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996) Observa o autor que dentre as tendecircncias interpretativas dominantes destaca-se a originalidade de H Reinhardt em seu Freiheit zu Gott Der Grundgedanke des Systematikers Giovanni Pico della Mirandola que aponta para o caraacuteter preacute-moderno do pensamento sistemaacutetico de Pico

81

1 O tema da Dignidade do homem

Embora a Oratio tenha passado agrave Histoacuteria da Filosofia como o manifesto

acerca da dignidade do homem muito em razatildeo do nome dado agrave sua publicaccedilatildeo

realizada no seacuteculo XVI o tema da dignidade natildeo foi originalidade de Pico e algumas

variaccedilotildees de seu significado pedem uma reflexatildeo

Durante o Humanismo renascentista o tema da dignidade tornou-se bastante

precioso e levou alguns pensadores a buscarem fundamentos a partir dos primeiros

Padres para rebater a supressatildeo da questatildeo ocorrida em certos periacuteodos da Idade

Meacutedia Pode-se dizer que a ideia da Queda de Adatildeo encerra como consequecircncia a

perda de posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem que em alguns momentos literaacuterios foram

registrados como uma perda de valoraccedilatildeo da qualidade do proacuteprio homem140

Sobretudo no baixo Medievo natildeo poucos teoacutelogos foram tomados de certo

pessimismo metafiacutesico perante tal condiccedilatildeo Um exemplo emblemaacutetico da questatildeo foi

postulado por Lotharii Cardinalis o influente papa Inocecircncio III que no seacuteculo XIII

em De miseria humane conditionis afirmava que o homem eacute ldquoindigno produtor de

lecircndeas piolhos vermes urina e fezesrdquo Tal afirmaccedilatildeo apenas confirmava a de Pedro

Damiatildeo que no seacuteculo XI proclamava ser o homem ldquouma criatura vil massa de

podridatildeo poacute e cinzardquo141 Diante de tal desencanto poucos seacuteculos mais tarde alguns

humanistas sentiram-se levados a responder a Inocecircncio III buscando

fundamentaccedilatildeo especialmente em Lactacircncio e Agostinho que haviam promovido o

reconhecimento do valor do homem apoiados no princiacutepio de sua criaccedilatildeo agrave imagem

de Deus142

O tratado inaugural acerca da dignidade humana primeira resposta textual a

Inocecircncio III surge com Bartolomeo Fazio que o escreve em contexto religioso e sob

inspiraccedilatildeo monaacutestica143 Seu contemporacircneo Lorenzo Valla em De Libero Arbitrio

de 1436 acresce elementos agrave reflexatildeo ao promover a valorizaccedilatildeo do livre arbiacutetrio

voltado sobretudo para o domiacutenio que o homem pode ter das forccedilas da natureza

introduzindo assim a discussatildeo teoreacutetica renascentista acerca da liberdade e

140 A ideia de miserabilidade humana remonta ateacute onde se sabe a Moiseacutes o homem embora criado agrave imagem

de Deus traz em si ldquoo jumento o reacuteptil e a bestardquo (Henri de LUBAC Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016) O tema relacionado agrave concepccedilatildeo da Queda e as consequentes formas de ldquolerrdquo o homem em uma estrutura hieraacuterquica teoloacutegica permite a elaboraccedilatildeo de uma tese por si soacute O caraacuteter ldquogeneacutericordquo de nossa abordagem visa salientar algumas interpretaccedilotildees mais significativas e pontuais da questatildeo

141 Petrus Damianus ou mais tarde San Pier Damiani foi uma autoridade bastante considerada no preacute-Humanismo Dante situou o cardeal reformador que seria alccedilado a Doutor da Igreja em 1823 num dos mais altos ciacuterculos do Paraiacuteso como precursor de Satildeo Francisco de Assis A citaccedilatildeo encontra-se em NUNES 1978 p 64 apud Antonio VALVERDE ldquoAportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandolardquo in Revista de Filosofia Aurora v21 n29 2009 p464

142 Em relaccedilatildeo agrave valoraccedilatildeo do homem o influxo de Lactacircncio e Agostinho se manteve ateacute boa parte da Primeira Idade Meacutedia Algumas obras de Agostinho que abordam o tema satildeo De Doctrina Christiana e as Confissotildees Com relaccedilatildeo a tal influxo haacute que se observar que o valor do homem estava relacionado com sua criaccedilatildeo agrave imagem de Deus sendo sua salvaccedilatildeo advinda da redenccedilatildeo em Cristo O movimento humanista comeccedila de forma embrionaacuteria a vislumbrar ndash e postular ndash a valoraccedilatildeo do homem em razatildeo de sua liberdade ligada agrave proacutepria responsabilidade ndash o que levaria a uma concepccedilatildeo de salvaccedilatildeo relacionada agraves suas escolhas

143 O historiador Bartolomeo Fazio foi levado a escrever por certo monge beneditino que precisava de uma complementaccedilatildeo para o De miseria humane conditionis de Inocecircncio III Para maiores detalhes acerca de Fazio consultar Jacob BURCKHARDT La civiltagrave del Rinascimento in Italia 1902

82

necessidade ndash e dando o passo inicial para um longo processo de ruptura entre Feacute e

Filosofia144 Quase duas deacutecadas mais tarde Giannozzo Manetti amplia a questatildeo

com seu tratado De Dignitate et Excellentia Hominis escrito em 1452 no qual refuta

ponto a ponto o profundo pessimismo expresso por Inocecircncio III sobre a miseacuteria

humana estabelecendo o mundo intelectual do vir-a-ser oposto ao mundo natural

do que meramente eacute145 Manetti retoma ainda na mesma obra a questatildeo da

soberania do homem que havia sido lanccedilada por Valla ideia de cunho biacuteblico

expressa no Gecircnesis 2 (representada pela faculdade dada ao homem de atribuir

nomes) que seraacute mais tarde reafirmada por Marsilio Ficino e Pietro Pomponazzi146

Assim que embora o Discurso de Pico tenha sido quase unanimemente

celebrado em funccedilatildeo de certo entendimento ao redor da questatildeo da dignidade

humana fato eacute que o tema foi amplamente explorado bem antes do advento do

Mirandolano tendo continuado em discussatildeo nos seacuteculos XVI e XVII147 Contudo e

apesar de preservar pouca conexatildeo orgacircnica com o humanismo de sua eacutepoca o tema

da dignidade apresenta relevacircncia na obra de Pico natildeo obstante se faccedilam uacuteteis uma

ressalva e algumas distinccedilotildees entre seu desenvolvimento e o de seus antecessores

A ressalva situa-se no emprego e entendimento do termo ldquodignidaderdquo que

devido agraves variaccedilotildees sofridas ao longo da histoacuteria pode ter suscitado interpretaccedilotildees

tantas vezes equivocadas O tiacutetulo De Hominis Dignitate como foi visto natildeo foi obra

de Pico mas escolha poacutestuma O Autor ademais utiliza a palavra ldquodignidaderdquo apenas

uma vez em todo o seu Discurso ndash e natildeo para qualificar o homem148 No decorrer dos

seacuteculos o termo tem sido utilizado em grande parte das vezes como sinocircnimo de

virtude ou hombridade tendo sido essa sua principal acepccedilatildeo desde alguns escritos

da Antiguidade Entretanto no seacuteculo VI Boeacutecio deu novo rumo ao conceito de

dignitas ajudando a dirimir a ideia tradicional romana que dava agrave palavra a

envergadura de honradez e respeitabilidade que pressupunha a virtude modificando

a concepccedilatildeo trazida pelas leituras de Ciacutecero de considerar a honra como

144 Ernst CASSIRER Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 pp 131-132 145 Sobre o historiador Giannozzo Manetti veja-se BURCKHARDT 1991 p 170-179 LUBAC Pico della

Mirandola-LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento 2016 pp 247-259 Acerca do conteuacutedo de Manetti comenta CASSIRER que ldquosomente no interior do vir-a-ser o espiacuterito do homem encontraria sua morada e daria provas de sua dignidade e liberdaderdquo (Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento 1977 p 135 Para maiores detalhes sobre a questatildeo veja-se ainda Giovanni GENTILE Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento 1991 p66

146 Na ideia de soberania expressa por Ficino GENTILE aponta para a origem do ldquoregnum hominisrdquo (opcit p 66) Pomponazzi trata do tema em sua obra De incantationibus de 1520 Para outros detalhes veja-se GARIN Lo Zodiaco della Vita 2007 p116

147 Para toda a questatildeo veja-se em Antocircnio VALVERDE o toacutepico ldquoConcepccedilotildees distintas de dignidade humana da Antiguidade ao Renascimentordquo (Aportes a Oratio de Hominis Dignitate 2009) Ainda GARIN Lrsquoumanesimo Italiano 2008 Note-se que outros importantes autores aleacutem dos citados escreveram sobre o tema da dignidade como Petrarca (Scipio Africanus) Coluccio Salutati (De Herculegrave eiusque laboribus) Poggio Bracciolini (De Nobilitate) e Landino (De nobilitate animae) entre outros No seacuteculo XVI o tema da dignidade humana passa por forte criacutetica nas obras dos reformadores Lutero e Calvino e jaacute no XVII eacute retomado pelos platocircnicos de Cambridge

148 PICO Oratio p123 ldquo[]natildeo soacute os misteacuterios mosaicos ou os cristatildeos mas tambeacutem a teologia dos antigos nos mostra o valor e a dignidade das artes liberais que estou a discutirrdquo (ldquoVerum enimvero nec Mosaica tantum aut Christiana mysteria sed priscorum quoque teologia harum de quibus disputaturus accessi liberalium artium et emolumenta nobis et dignitatem ostenditrdquo)

83

manifestaccedilatildeo da dignidade149 Em seu De consolatione Philosophiae o termo

dignitas assume uma caracteriacutestica neutra perdendo a valecircncia positiva que lhe era

atribuiacuteda ateacute entatildeo (honor et dignitates non sunt summum bonum)150 Mais tarde jaacute

durante a Idade Meacutedia e a partir dos rastros de Boeacutecio a dignitas passa a ser

utilizada na terminologia teoloacutegico-filosoacutefica sob o significado de princiacutepio filosoacutefico

geral ou axioma postulado151 Por fim aquela que seria uma quarta acepccedilatildeo situa a

dignitas na especiacutefica categoria das hierarquias marcando assim uma posiccedilatildeo

dentro de um sistema hieraacuterquico Esse eacute o sentido que parece ser melhor extraiacutedo do

texto piquiano dentro de um contexto cosmoloacutegico que contempla uma seacuterie

ordenada de graus e dignidades ndash portanto de valoraccedilatildeo neutra ndash onde o homem eacute

colocado graccedilas a suas intriacutensecas caracteriacutesticas152

Quanto agraves principais dessemelhanccedilas observadas na reflexatildeo sobre o homem

realizada na Oratio em comparaccedilatildeo aos conteuacutedos verificados em obras de

humanistas anteriores chamam a atenccedilatildeo alguns pontos

a) As contribuiccedilotildees que os filoacutesofos humanistas deram agrave questatildeo da dignidade

ndash em se assumindo o entendimento que daacute ao termo a valecircncia positiva de virtude ndash

embora sem duacutevida dotadas de caracteriacutesticas que as distinguem entre si estiveram

voltadas em linhas gerais para a capacidade de utilizaccedilatildeo da razatildeo em acircmbito da

esfera civil ou do uso de uma potencial soberania sobre os reinos inferiores Sob tal

foco o homem era dignificado atraveacutes de valores como o respeito ao proacuteximo o

princiacutepio do dever e a busca pela felicidade Esse foi o caso da consistente reflexatildeo de

Giannozzo Manetti voltada sobretudo agrave questatildeo da atividade humana em termos

morais153 Tambeacutem para Coluccio Salutati e seu disciacutepulo Leonardo Bruni a perfeiccedilatildeo

moral do homem se traduzia de forma perfeita no ideal da vida ciacutevica Lorenzo Valla

por sua vez natildeo apenas se empenhou para afirmar a noccedilatildeo de soberania do homem

sobre a natureza anteriormente mencionada como valorizou a vida mundana em

todos os seus aspectos contra qualquer negaccedilatildeo asceacutetica Em uma famosa polecircmica

antiestoacuteica defendia que mesmo na natureza e na carne pode ser reconhecida a obra

de Deus154 A anaacutelise de Pico embora atuando no cenaacuterio antropoloacutegico que ocupava

espaccedilo cada vez maior dentro dos studia humanitatis acrescenta ao problema da

149 A fundamentaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo estaacute desenvolvida na obra de Mette LEBECH On the Problem of Human

Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg 2009 sobretudo p 62 150 BOEacuteCIO A Consolaccedilatildeo da Filosofia III 151 Veja-se Tomaacutes de AQUINO In Met III 5 390 VICO em Scienza Nuova manteacutem o uso de dignitas em seu

significado de ldquoaxiomardquo na parte em que trata ldquodos Elementosrdquo Essa utilizaccedilatildeo continuou ainda na Idade Moderna veja-se Galilei na passagem ldquoa terra natildeo pode separar-se de sua natureza de trecircs movimentos diversos ou seria necessaacuterio rejeitar muitas das dignidades manifestasrdquo (Cf Lettera a Francesco Ingoli in Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei (org) FAVARO 1933 pp 509-61)

152 Enquanto na Oratio Pico utiliza apenas uma vez o termo ldquodignidaderdquo (e natildeo no contexto de qualificaccedilatildeo do homem) no Heptaplus Pico falaraacute diretamente de dignidade do homem como posiccedilatildeo especial central dentro de uma escala ldquoNoacutes procuramos no homem uma nota que lhe seja peculiar com a qual se explique a dignidade que lhe eacute proacutepriardquo (Heptaplus V 6 ed 1942 p303) E ainda ldquoDevemos nos guardar em natildeo apreciar o grau de dignidade em que fomos colocadosrdquo (V 7 p307)

153 Cf De Dignitate et Excellentia Hominis Ver o toacutepico concernente a Manetti em GARIN Lrsquoumanesimo Italiano

154 GARIN LUmanesimo italiano 2008 respectivamente pp 69 e 62

84

filosofia moral uma dimensatildeo quase que estritamente metafiacutesica155 Essa distinccedilatildeo eacute

evidenciada logo na primeira paacutegina da Oratio em que o autor demonstra

insatisfaccedilatildeo com os enaltecimentos ateacute entatildeo proferidos aos atributos da natureza

humana certamente referindo-se agraves natildeo poucas obras anteriores escritas em seu

seacuteculo Entre os argumentos ldquoutilizados por muitosrdquo acerca da grandeza humana

Pico destaca o quase unacircnime elogio feito ao papel do homem qual ldquoviacutenculo das

criaturas superiores e inferioresrdquo ou ldquointeacuterprete da natureza em virtude da agudeza de

seus sentidos do poder indagador da razatildeo e da luz de seu intelectordquo Essas

qualidades no entanto natildeo o satisfazem e levam-no a um questionamento que natildeo

apenas sinaliza a criacutetica a seus antecessores como lhe permite ingressar em seu

argumento metafiacutesico

Grandes coisas estas sem duacutevida mas natildeo as mais importantes

isto eacute natildeo tais que consintam a reivindicaccedilatildeo do privileacutegio de

uma admiraccedilatildeo ilimitada Porque de fato natildeo deveremos noacutes

admirar mais os anjos e os beatiacutessimos coros celestes156

b) A pergunta introduz a reflexatildeo de Pico acerca da natureza indefinida do

homem nosso segundo ponto distintivo Em elaborado discurso o autor postula

atraveacutes de sua resposta a natureza ontologicamente indeterminada do homem que o

distingue tanto do mundo natural quanto do mundo angeacutelico abrind0-lhe a

possibilidade de se automodelar pelo uso que faz de sua faculdade de escolha Tal

natureza indeterminada natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo no homem mas ao contraacuterio um

privileacutegio que lhe permite natildeo ser constrangido por nenhuma limitaccedilatildeo e que lhe daacute o

atributo de em conformidade com sua vontade degenerar ou se regenerar A

concepccedilatildeo se erige atraveacutes das palavras proferidas ao primeiro homem pelo ldquodeus-

artiacuteficerdquo ndash personagem do Mito da Criaccedilatildeo piquiano

lsquoNatildeo te fizemos nem celeste nem terreno nem mortal nem

imortal a fim de que tu aacuterbitro e soberano artiacutefice de ti mesmo

te plasmasses e te moldasses na forma que tivesses

155 A filosofia moral natildeo eacute irrelevante para Pico ao contraacuterio eacute um estaacutegio importante de evoluccedilatildeo da posiccedilatildeo

humana como seraacute visto Mas natildeo desfruta da mesma importacircncia que para seus colegas Coluccio Salutati por exemplo em discurso contra a filosofia teoacuterica-metafiacutesica e a favor da moral escreveria em seu De nobilitate legum et medicinae ldquoMuito me admira afirmares que a sabedoria consiste na contemplaccedilatildeo cuja serva seria a prudecircncia havendo entre elas a mesma relaccedilatildeo que haacute entre o administrador e o senhor e dizeres que a sapiecircncia eacute a maior das virtudes pertencente agrave melhor parte da alma que eacute do intelecto e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiecircncia E acrescentas que sendo a metafiacutesica a uacutenica ciecircncia livre o filoacutesofo quer que a especulaccedilatildeo preceda em tudo a accedilatildeo Mas a verdadeira sapiecircncia natildeo consiste como crecircs na especulaccedilatildeo pura Se tirares a prudecircncia natildeo acharaacutes nem sapiente nem sapiecircncia Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse co-nhecido coisas celestes e divinas sem que houvesse provido a si mesmo sem que houvesse sido uacutetil aos amigos agrave famiacutelia aos parentes e agrave paacutetriardquo No mesmo espiacuterito Leonardo Bruni em Isagogicon moralis disciplinae (1424) afirmava a superioridade da filosofia moral sobre a filosofia teoacuterica Esse mostrou-se um vieacutes caracteriacutestico de muitos humanistas o de que soacute a filosofia moral seria ativa Veja-se ampla discussatildeo em GARIN LUmanesimo italiano 2008

156 PICO Oratio p102 ldquo(Horum dictorum rationem cogitanti mihi non satis illa faciebant quae multa de humanae naturae praestantia afferuntur a multis esse hominem creaturarum internuntium superis familiarem regem inferiorum sensuum perspicacia rationis indagine intellegentiae lumine naturae interpretem stabilis aevi et fluxi temporis interstitium er ndash quod Persae dicunt ndash mundi copulam immo hymenaeum ab angelis teste Davide paulo deminutum) Magna haec quidem sed non principalia id est quae summae admirationis privilegium sibi iure vindicent Cur enim non ipsos angelos er beatissimos caeli choros magis admiremurrdquo

85

seguramente escolhido Poderaacutes degenerar nas coisas inferiores

que satildeo os brutos poderaacutes regenerar-te ateacute agraves realidades

superiores que satildeo divinas por decisatildeo da tua vontadersquo157

A passagem que se estabelece como a mais celebrada da inteira obra piquiana

ndash e sobre a qual recai a parte majoritaacuteria das leituras que afirmaram a dignificaccedilatildeo do

homem ndash apresenta um problema de ordem protoloacutegica que concerne agrave origem

teoloacutegica do homem Pico natildeo reafirma a dignidade do homem com base em sua

semelhanccedila em Deus sem prejuiacutezo de sua feacute a originalidade158 de seu homem

consiste conforme suas palavras em natildeo ter uma natureza predefinida mas em ser

ldquoopus indiscretae imaginisrdquo159 A natildeo-determinaccedilatildeo do homem mais do que uma

ausecircncia se daacute em razatildeo de uma demasia jaacute que nele encontram-se todas as

sementes situaccedilatildeo que natildeo ocorre com as bestas (que ldquotrazem consigo tudo [e

apenas] aquilo que depois teratildeordquo) e tampouco com os espiacuteritos superiores (que

ldquodesde o princiacutepio ou pouco depois foram o que seratildeo eternamenterdquo)160

c) O terceiro ponto de sutil diferenccedila em relaccedilatildeo ao anterior apresenta uma

distinccedilatildeo na posiccedilatildeo hieraacuterquica do homem dentro do universo que ocupa ndash um

problema que chamariacuteamos de ordem cosmoloacutegica Embora sem negar a posiccedilatildeo

central do homem aceita na teologia medieval (ldquoo artiacutefice tomou o homem de

natureza indefinida e colocou-o no meio do mundordquo)161 Pico distancia-se

conscientemente da concepccedilatildeo hieraacuterquica mais usual conferindo ao homem um

novo status no universo Ele havia aprendido com seus principais mestres

escolaacutesticos que o lugar do homem estava determinado dentro da ordenaccedilatildeo

universal encontrando-se entre os reinos elementar celestial e angeacutelico Em sua

cosmovisatildeo o homem eacute retirado da fixidez escalar dos mundos ao ser-lhe

apresentada a possibilidade de ser e participar em todos os reinos No ponto (b)

acima trata-se de uma questatildeo de ldquosubstacircnciardquo jaacute que o homem carrega sementes

que os seres dos demais graus natildeo possuem Agora se trata de uma questatildeo de

mobilidade em razatildeo de seu proacuteprio arbiacutetrio Partindo de sua posiccedilatildeo central o

homem pode descer aos niacuteveis subumanos ou se elevar a niacuteveis supra-humanos

157 Oratio p 106 ldquoNec te caelestem neque terrenum neque mortalem neque immortalem fecimus ut tui ipsius

quasi arbitrarius honorariusque plastes er fictor in quam malueris tu te formam effingas Poteris in inferiora quae sunt bruta degenerare poteris in superiora quae sunt divina ex tui animi sententia regenerarirdquo

158 A concepccedilatildeo da natureza indeterminada do homem foi considerada e aceita como originalidade de Pico della Mirandola Fato certo eacute que tal originalidade se houver deve ser admitida no que concerne agrave tradiccedilatildeo teoloacutegica ocidental ndash entenda-se na Era Cristatilde Antes desse periacuteodo haacute registros de concepccedilotildees similares em outras tradiccedilotildees que natildeo apenas eram conhecidas por Pico como foram utilizadas de forma aberta na De Hominis Dignitate Veja-se mais no toacutepico ldquoO tema da Concoacuterdiardquo

159 ldquoObra de imagem indeterminadardquo Conforme a Oratio ldquoIgitur hominem accepit indiscretae opus imaginis atque in mundi positum meditulliordquo Provavelmente ao escrever que o homem eacute ldquoobra de imagem indeterminadardquo Pico natildeo pretendia contradizer qualquer noccedilatildeo teoloacutegica referente agrave complexa problemaacutetica da ldquoimagem-semelhanccedilardquo de Deus fazendo apenas um uso retoacuterico das palavras Essa talvez tenha sido a razatildeo de Garin ter optado por traduzir o trecho ldquoindiscretae imaginisrdquo por ldquonatureza indeterminadardquo ao inveacutes de ldquoimagem indeterminadardquo ldquoPerciograve [lrsquoottimo artefice] accolse lrsquo uomo come opera di natura indefinitardquo (ed 1942 pp104-105)

160 Oratio p106 ldquoBruta simulatque nascuntur id secum afferunt (ut ait Lucilius) e bulga matris quod possessura sunt Supremi spiritus aut ab initio aut paulo mox id fuerunt quod sunt futuri in perpetuas aeternitates Nascenti homini omnifaria semina et omnigenae vitae germina indidit paterrdquo

161 Oratio p106 ldquoMedium te mundi possuirdquo

86

condiccedilotildees que os elementos dos demais niacuteveis inclusos os anjos natildeo podem

experimentar

O tema da dignidade contempla ainda imbuiacutedo entre suas linhas um

importante desdobramento que concerne ao problema da liberdade do homem162 A

liberdade postulada por Pico natildeo se encontra pronta e soacute poderaacute ser adquirida

atraveacutes de constante exerciacutecio para sua efetivaccedilatildeo jaacute que a natureza humana abriga

vaacuterias formas de resistecircncia a tal efetivaccedilatildeo Uma mudanccedila de tocircnica que passa do

teor elogioso inicial para uma chamada de atenccedilatildeo em direccedilatildeo agraves fraquezas da

constituiccedilatildeo humana ndash com a subsequente prescriccedilatildeo do uso da liberdade como

soluccedilatildeo ndash pode ser observada nesse sentido quando se seguem as paacuteginas do

Discurso Ora pouco apoacutes afirmar que o homem pode ser tudo inclusive partiacutecipe da

vida angeacutelica Pico reflete que natildeo podemos atingir o modelo de vida dos Querubins

ldquonoacutes que somos carne e que temos o gosto das coisas terrenasrdquo Seraacute antes necessaacuterio

ldquodominar com a ciecircncia moral o iacutempeto das paixotildees dissipar a treva da razatildeo com a

dialeacutetica limpar a alma da ignoracircncia e do viacutecio para que as afecccedilotildees natildeo se

desencadeiem cegamente e tampouco a razatildeo imprudente algumas vezes delirerdquo163

Assim embora as primeiras paacuteginas do Discurso possam levar a qualificaacute-lo

como um tratado de otimismo em relaccedilatildeo ao homem o tom inicial de exaltaccedilatildeo (ldquooacute

suma e admiraacutevel felicidade do homem ao qual eacute concedido obter o que deseja ser

aquilo que querrdquo)164 eacute prontamente substituiacutedo pela constataccedilatildeo das dificuldades

ocasionadas por sua experiecircncia na mateacuteria seguida pela exortaccedilatildeo a assumir uma

responsabilidade eacutetica em relaccedilatildeo ao seu papel A argumentaccedilatildeo do tema se conclui

com a indicaccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do livre-arbiacutetrio como meio de encetar sua necessaacuteria

transformaccedilatildeo Haacute pois nessa trajetoacuteria um pronunciado aspecto dialeacutetico165 na

medida em que Pico expotildee a necessidade do contiacutenuo exerciacutecio da razatildeo e de seu

poder indagador que o capacita a fazer escolhas Sob esse enfoque o problema

ontoloacutegico da natureza humana eacute colocado a posteriori nunca a priori diversamente

dos animais e anjos cuja natureza fixa natildeo pode ser modificada o homem pode de

acordo com suas escolhas transformar a proacutepria natureza

Finalmente haacute que se observar que tal possibilidade implica dois preceitos

por um lado essa ideia carrega uma exigecircncia aparentemente contraditoacuteria

162 A temaacutetica da liberdade presente no Discurso tem sido celebrada por comentadores ao longo dos uacuteltimos

seacuteculos Dentre os contemporacircneos por todos aqueles que seguiram os passos de Cassirer e Garin embora se verifiquem algumas poucas discordacircncias William Craven natildeo concorda com essa celebraccedilatildeo e Brian Copenhaver afirma que natildeo haacute na Oratio nada das noccedilotildees de liberdade criatividade e individualidade que lhe foram atribuiacutedas (acerca de Craven e Copenhaver veja-se Jonathan MOLINARI Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola 2015 n p 78)

163 PICO Oratio p113 A reflexatildeo acerca da condiccedilatildeo instaacutevel do homem se manteraacute em obras posteriores em sua uacuteltima obra Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Pico fala de ldquonoacutes homuacutenculosrdquo (ed Vallecchi 1952 p444) No Heptaplus aquilo que rendia o homem um ldquodivino camaleatildeordquo era tambeacutem aquilo que o caracterizava como uma ldquotoupeira cegardquo o seu ser perenemente colocado no veacutertice da incerteza suspenso entre a ldquosuma miseacuteriardquo e a ldquosuma felicidaderdquo capaz mais de amar a verdade do que de possuiacute-la (De Hominis Dignitate etc 1942 p339)

164 Oratio p106 ldquoO summam dei patris liberalitatem summam et admirandam hominis felicitatem cui datum id habere quod optat id esse quod velitrdquo

165 Veja-se a propoacutesito a reflexatildeo de SIRGADO GANHO (ldquoComentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitaterdquo 2001 pp26-28) acerca da dimensatildeo dialeacutetica eacutetica e metafiacutesica que podem ser reconhecidas na obra de Pico

87

porquanto o livre-arbiacutetrio deveraacute ser ativado para que ocorra a autotransformaccedilatildeo

condiccedilatildeo que instaurando uma conjuntura ciacuteclica aumentaraacute o grau de sua liberdade

e consequentemente o poder de se transformar Por outro lado percebe-se nessa

situaccedilatildeo uma condenaccedilatildeo do homem agrave liberdade jaacute que ele teraacute de escolher por si a

proacutepria condiccedilatildeo ndash tese notaacutevel para a eacutepoca Como explica o deus-artiacutefice

lsquoA natureza bem definida dos outros seres eacute refreada por leis por

noacutes prescritas Tu pelo contraacuterio natildeo constrangido por

nenhuma limitaccedilatildeo determina-la-aacutes para ti segundo o teu

arbiacutetriorsquo166

2 O tema da Concoacuterdia

As palavras iniciais que abrem o Discurso evidenciam a intenccedilatildeo de propor

uma filosofia conciliatoacuteria Dirigindo-se aos ldquopadri venerandirdquo (teoacutelogos e cardeais

para os quais satildeo apresentadas as justificativas) Pico dispotildee logo nas primeiras

linhas um autor da tradiccedilatildeo islacircmica acostado a outro da tradiccedilatildeo egiacutepcia O elogio

ao homem feito por Abdallah Sarraceno (ldquonada haacute de mais admiraacutevel do que o

homemrdquo) eacute comparado com a famosa sentenccedila de Hermes Trismegisto dirigida a

Ascleacutepio (ldquogrande milagre eacute o homemrdquo)167 Atraveacutes dessa escolha eacute dada autoridade a

um personagem proveniente do mundo islacircmico o maior dos antagonistas colocado

ao lado da entatildeo celebrada autoridade egiacutepcia dentro daquela Disputa que teria por

objetivo a paz filosoacutefica168

Li nos escritos dos Aacuterabes venerandos Padres que interrogado

Abdallah Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetaacuteculo

mais maravilhoso neste cenaacuterio do mundo tinha respondido

que nada via de mais admiraacutevel do que o homem Com esta

166 Oratio p106 ldquoTu nullis angustiis coercitus pro tuo arbitrio in cuius manu te posui tibi illam praefiniesrdquo 167 Eis a sentenccedila de Hermes na qual Pico se baseia ldquoPropter haec o Asclepi magnum miraculum est homo

animal adorandum et honorandum Hoc enim in naturam dei transit quasi ipse sit deus []rdquo (cf Corpus Hermeticum ed NOCK-FESTUGIEgraveRE Milano 2005 II)

168 Sobre Abdallah Sarraceno alguns comentadores acreditam tratar-se de Abd-Allah Ibn Al-Muquaffagrave escritor persa do seacuteculo VIII (cf FERACINE notas agrave Oratio 1999) Entretanto Pier Cesare Bori atraveacutes de uma pesquisa bastante aprofundada leva-nos a crer que se trate de Abdallah al-Tarjumacircn ou Anselmo Turmeda frade franciscano nascido em Palma de Maiorca no seacuteculo XIV estabelecido em Bolonha por razotildees de estudo Segundo sua autobiografia a Tuhfa ele teria recebido de um pio religioso a sugestatildeo de aproximar-se ao Islam e acabaria por converter-se na cidade de Tunis Em outra obra Disputa dellAsino de 1417 pode ser encontrada uma das fontes acerca da dignidade do homem na qual Turmeda apresenta um fundamento teoloacutegico muito similar agrave metaacutefora utilizada por Pico em seu Mito adacircmico Embora a Disputa dellAsino natildeo faccedila parte dos livros de Pico certamente a notiacutecia da disputa de Abdallah-Turmeda natildeo lhe era desconhecida Para maiores detalhes acerca de toda a questatildeo veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564 Do mesmo autor Pluralitagrave delle vie Milano 2000 pp43 ss Ainda ZAMBELLI Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lullina in Pico della Mirandola e seguaci 1995 p29

88

sentenccedila concorda aquela famosa de Hermes lsquoGrande milagre

oacute Ascleacutepio eacute o homemrsquo169

A passagem inaugura o elogio feito agrave filosofia de heterogecircneas escolas e

eacutepocas que perpassa todas as paacuteginas da Oratio como pode ser verificado atraveacutes de

variegadas tentativas de estabelecimento de acordo entre sistemas filosoacuteficos

considerados distintos170 Na passagem em que justifica a escolha dos temas das

Conclusiones Pico ressalta algumas dentre tais concordacircncias que natildeo se limitando

agrave Filosofia alcanccedilam a Teologia

[] insatisfeito por ter trazido aleacutem das doutrinas comuns

muitos assuntos da antiga teologia de Mercuacuterio Trismegisto

muitas das teorias dos Caldeus e de Pitaacutegoras muitos dos

escondidos misteacuterios dos Hebreus tambeacutem propus agrave discussatildeo

muitiacutessimos assuntos concernentes ao mundo natural e divino

encontrados e meditados por mim []Propus o acordo entre

Platatildeo e Aristoacuteteles [e] as sentenccedilas consideradas

contrastantes de Escoto e de Tomaacutes de Averroacuteis e de Avicena

que pelo contraacuterio satildeo concordantes171

Outras vaacuterias correspondecircncias satildeo efetuadas de forma fluiacuteda integrando

registros extraiacutedos do campo filosoacutefico teoloacutegico e misterioloacutegico em um estilo

literaacuterio proacuteprio Em meio agrave narrativa que trata da distribuiccedilatildeo de talentos feita por

Deus (ldquosummus pater architectus Deusrdquo) em seu Mito adacircmico Pico busca concordar

a tradiccedilatildeo biacuteblica com a pagatilde-filosoacutefica atraveacutes da menccedilatildeo agrave passagem inicial do

Gecircnesis (II 1) sobre a origem do mundo harmonizada com a passagem platocircnica

descrita no Timeu 41 (b-d) ldquouma vez tudo realizado como Moiseacutes e Timeu

atestam172 pensou por uacuteltimo criar o homemrdquo173 A concepccedilatildeo de distribuiccedilatildeo de

arqueacutetipos na mesma narrativa eacute emprestada de outro diaacutelogo platocircnico o

Protaacutegoras em que eacute narrado o ldquoMito da Criaccedilatildeo do Homemrdquo174 A analogia eacute clara

169 Oratio p 102 ldquoLegi Patres colendissimi in Arabum monumentis interrogatum Abdalam Sarracenum

quid in hac quasi mundana scena admirandum maxime spectaretur nihil spectari homine mirabilius respondisse Cui sententiae illud Mercuri adstipulatur lsquoMagnum o Asclepi miraculum est homorsquordquo

170 Para a questatildeo da Concoacuterdia filosoacutefica como sendo a principal intenccedilatildeo de Pico ao redigir a Oratio veja-se Cesare VASOLI Imagini Umanistiche 1983 p5

171 Oratio pp144-46 ldquoPropterea non contentus ego praeter communes doctrinas multa de Mercurii Trismegisti prisca theologia multa de Chaldaeorum de Pythagorae disciplinis multa de secretioribus Hebraeorum addidisse mysteriis plurima quoque per nos inventa et meditata de naturalibus et divinis rebus disputanda proposuimus Proposuimus primo Platonis Aristotelisque [] Addidimus autem et plures locos in quibus Scoti et Thomae plures in quibus Averrois et Avicennae sententias quae discordes existimantur concordes esse nos asseveramusrdquo

172 Na passagem em questatildeo Pico refere-se a Moiseacutes como autor do Gecircnesis Ademais refere-se diretamente a Timeo di Locri filoacutesofo pitagoacuterico vivido no IV seacuteculo aC contemporacircneo de Platatildeo e autor da obra De Anima Mundi muito provavelmente o personagem que interage com Soacutecrates no diaacutelogo Timeu (Cf Enrico PEGONE tradutor de Timeu em Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010) O trecho de Platatildeo que trata do assunto estaacute em Timeu 41-b ss

173 Oratio p 104 ldquoIdcirco iam rebus omnibus (ut Moses Timaeusque testantur) absolutis de producendo homine postremo cogitavitrdquo

174 PLATAtildeO Protaacutegoras 320d-321e Conta o mito que apoacutes terem os deuses modelado dentro da terra os gecircneros mortais Epimeteu torna-se o responsaacutevel pela distribuiccedilatildeo de suas capacidades Ao terminar a tarefa seu irmatildeo Prometeu descobre que todos os animais receberam qualidades harmoniosamente enquanto o homem estaacute nu descalccedilo sem cobertas e sem armas

89

ldquodos arqueacutetipos natildeo restava nenhum sobre o qual moldar a nova criatura [o homem]

e nem dos lugares em todo o mundo restava algum em que pudesse sentar-se o

contemplador do universordquo175 Algumas paacuteginas adiante recorre mais uma vez agrave

concordacircncia entre a tradiccedilatildeo biacuteblica-cristatilde (agora representada por Moiseacutes e os

Padres da Igreja) e a platocircnica quando ao discorrer acerca do caminho eacutetico de

aperfeiccediloamento aponta para o amor como possibilidade regeneradora

Moiseacutes amou o Deus que viu e promulgou ao povo como juiz

aquilo que antes tinha visto na montanha como contemplador

Eis porque no meio o Querubim com a sua luz nos prepara

para a chama seraacutefica [] Esse eacute o noacute das primeiras mentes a

ordem sapiencial que preside agrave filosofia contemplativa isso

devemos antes de tudo emular investigar e compreender 176

A menccedilatildeo agrave ordem angeacutelica eacute utilizada para acostar um teoacutelogo cristatildeo de

tradiccedilatildeo neoplatocircnica Dioniacutesio ao principal emissaacuterio da tradiccedilatildeo hebraica a

sublimidade dos Serafins seraacute alcanccedilada atraveacutes da luz querubiacutenica da mesma forma

que Moiseacutes atraveacutes do amor despertado pela visatildeo de Deus pocircde transmitir ao povo

o que havia visto quando se encontrava em estado de contemplaccedilatildeo A qualidade da

luz ndash atribuiacuteda aos querubins conforme se lecirc em Dioniacutesio177 ndash eacute diretamente

relacionada ao conhecimento advindo da contemplaccedilatildeo como seraacute verificado no

proacuteximo item Essa eacute uma funccedilatildeo intermediaacuteria entre as ordens angeacutelicas anterior e

posterior que busca alcanccedilar a dimensatildeo do amor absoluto tornando-a anaacuteloga agrave

funccedilatildeo intermeacutedia da alma humana Na continuidade da sentenccedila Pico efetua uma

analogia com o domiacutenio platocircnico ao prescrever que apoacutes se entregar agrave filosofia

contemplativa o homem poderaacute ser alccedilado ldquoaos fastiacutegios do amorrdquo retornando em

seguida devidamente preparado para as tarefas da accedilatildeo178

Uma concordacircncia de outra categoria eacute apontada na obra quando ao tratar do

problema da natureza do homem e de sua possibilidade de tudo ser Pico encontra

conformidades em tradiccedilotildees iacutempares como a hebraica a islacircmica a caldaica e a

grega esta uacuteltima representada pela filosofia pitagoacuterica e empedocliana e pela

religiosidade dos Misteacuterios helecircnicos Vejamos Pico se remete a alguns tipos de

transformaccedilotildees promovidas durante os cultos misteacutericos de antigas tradiccedilotildees Eacute o

caso da transformaccedilatildeo narrada por certo Ascleacutepio ateniense179 que durante os ritos

ldquodevido ao aspecto mutaacutevel e a uma natureza capaz de se transformarrdquo dizia-se

175 Oratio p104 ldquoVerum nec erat in archetypis unde novam subolem effingeret nec in thesauris quod novo

filio hereditarium largiretur nec in subselliis totius orbis ubi universi contemplator iste sederetrdquo 176 Oratio p112 ldquoAmavit Moses Deum quem vidit et administravit iudex in populo quae vidit prius

contemplator in monte Ergo medius Cherub sua luce et saraphico igni nos praeparat et ad Thronorum iudicium pariter Illuminat hic est nodus Primarum mentium ordo palladicus philosophiae contemplativae praeses hic nobis et aemulandus primo et ambiendus atque adeo comprehendendus estrdquo

177 PSDIONISIO AREOPAGITA De Coelesti Hierarchia VI-VII 178 O tema seraacute visto de forma aproximada no proacuteximo toacutepico 179 O Ascleacutepio ateniense citado por Pico natildeo eacute identificaacutevel conforme informa Luiz Feracine em sua traduccedilatildeo

da obra (1999) Certo eacute que Pico quer distingui-lo do conhecido Ascleacutepio de Trales na Liacutedia filoacutesofo neoplatocircnico e disciacutepulo de Amocircnio vivido no seacuteculo VI dC e que deixou um comentaacuterio sobre os primeiros sete livros da Metafiacutesica de Aristoacuteteles Pela referecircncia aos Misteacuterios que envolvem Proteu ndash no Hino oacuterfico 25 eacute feita menccedilatildeo a Proteu ndash eacute provaacutevel tratar-se de personagem de periacuteodo anterior agrave Era Cristatilde

90

simbolizado por Proteu180 Ou ainda das metamorfoses que ocorrem em cerimocircnias

secretas da misteriologia aramaica que ldquotransformam ora Enoch santo no anjo da

divindade e o chama malakh haacute-chekli-natildeh ora outros noutros espiacuteritos divinosrdquo181

Embora natildeo se tenha maiores esclarecimentos acerca dessas duas passagens eacute

possiacutevel afirmar que ambas corroboram como fundamentos acessoacuterios a concepccedilatildeo

piquiana da capacidade seja degenerativa que regenerativa do homem Tal ideia eacute

ilustrada na continuidade do texto pela referecircncia a Maomeacute (ldquoquem se afasta da lei

divina torna-se uma bestardquo) e em acircmbito grego pela referecircncia ao Pitagorismo e a

Empeacutedocles (ldquoe os Pitagoacutericos transformam os celerados em bestas e a acreditar em

Empeacutedocles ateacute mesmo em plantasrdquo)182 O trecho introduz um novo elemento entre

os temas lanccedilados na obra atraveacutes da alusatildeo agrave metempsicosis183 Em relaccedilatildeo ao

Pitagorismo Pico certamente se refere de forma direta ou indireta ao fragmento 21

de Xenoacutefanes quando alude agrave transformaccedilatildeo ldquodos celerados em bestasrdquo uacutenico

fragmento a trazer um conteuacutedo similar agrave passagem em questatildeo184 Jaacute Empeacutedocles

trata do tema em seu Purificaccedilotildees onde afirma que agrave semelhanccedila dos outros

daacuteimones fora tambeacutem ele condenado agrave mortalidade (mas que apoacutes um correto ciclo

de encarnaccedilotildees a divindade poderia ser novamente atingiacutevel)185 Embora Pico natildeo

aborde o tema da transmigraccedilatildeo diretamente em nenhuma de suas obras ndash nas

Conclusiones por exemplo a menccedilatildeo eacute feita por via obliacutequa ndash186 eacute bastante relevante

o aceno agrave possibilidade de que o processo de regeneraccedilatildeo e degeneraccedilatildeo do homem

pode se dar natildeo apenas no decurso de uma vida mas na decorrecircncia de vaacuterias ndash um

conteuacutedo que encontra correspondecircncias em algumas das principais doutrinas de

cunho esoteacuterico recepcionadas por Pico A passagem se conclui com uma fonte

extraiacuteda dos caldeus atraveacutes da qual o autor aproxima-se de sua principal concepccedilatildeo

a de que o homem carrega todas as sementes

180 Oratio p106 ldquoQuem non immerito Asclepius Atheniensis versipellis huius ei se ipsam transformantis

naturae argumento per Proteum in mysteriis significari dixitrdquo 181 Oratio p108 ldquoNam et Hebraeorum theologia secretior nunc Enoch sanctum in angelum divinitatis quem

vocant lsquomalakh haacute-chekli-natildehrsquo nunc in alia alios numina reformatrdquo Acerca da expressatildeo Malakh haacute-chekli-natildeh ndash escrita por Pico em ideogramas hebraicos e suprimida de vaacuterias traduccedilotildees inclusive da tradicional de Garin de 1942 ndash seu significado eacute ldquoo anjo de sheklinatildehrdquo De acordo com a Biacuteblia o patriarca Enoque natildeo teve a morte comum dos mortais (Gecircnesis V 21-24) o que o torna segundo a crenccedila um ldquoanjo da divindaderdquo Por isso a misteriologia aramaica conservada nos livros apoacutecrifos atribui a Enoque o nome de Metraton e assim eacute designado no Talmud e no Midrash De acordo com tal tradiccedilatildeo Metraton equivale a ldquoanjo em que subsiste o nome de Deusrdquo Por extensatildeo semacircntica chegou-se a identificar o nome Metraton com os atributos da divindade e com o proacuteprio ser divino resultando daiacute a figura do Mithra de Zaratustra Pico mais ortodoxo no assunto usa o termo sheklinatildeh no sentido figurado de esplendor ou manifestaccedilatildeo de Deus (cf nota agrave traduccedilatildeo de Luiz FERACINE 1999)

182 Oratio p108 ldquoEt Pythagorici scelestos homines in bruta deformant ei si Empedocli creditur etiam in plantasrdquo

183 A metempsicose doutrina de transmigraccedilatildeo da alma em corpos sucessivos manifesta-se no mundo grego por volta do final do seacuteculo VI aC de acordo com o mais antigo testemunho o de Piacutendaro em sua segunda Ode Oliacutempica de 476 aC (cf Walter BURKERT Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 p97 e Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica 1993 p568) Conferir para maiores detalhes a obra de Gabriele CORNELLI (O Pitagorismo como Categoria Historiograacutefica 2011 p145 ss)

184 No famoso fragmento (21 B7 DK Dioacutegenes Laeacutercio VIII 36) um dos mais antigos testemunhos sobre o assunto Xenoacutefanes estaria zombando de Pitaacutegoras ao insinuar que ele teria visto em um catildeo a alma de um amigo A crenccedila pitagoacuterica na metempsicose eacute ainda mencionada por Iacuteon de Chios Heroacutedoto Filolau Aristoacuteteles (que a descreve como faacutebula pitagoacuterica) e Platatildeo

185 O mote transmigracionista estaacute ainda presente no Poema lustral de Empeacutedocles que narra a aventura da alma-daacuteimon banida do Olimpo dos bem-aventurados jogada num corpo e ligada ao ciclo dos nascimentos durante tal jornada passa pela condiccedilatildeo de ldquomenino e menina arbusto passarinho e mudo peixe do marrdquo Vejam-se os fragmentos em KIRK RAVEN SCHOFIELD Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos Lisboa 2007 pp296 329-330

186 Vejam-se as Conclusiones nrs (I) IV II 8 (Adelando Aacuterabe) (I) VIII 4 (Zoroastro)

91

O persa Evantes onde expotildee a teoria caldaica escreve que o

homem natildeo possui uma sua especiacutefica e nativa imagem mas

muitas estranhas e adventiacutecias Daiacute o dito caldaico de que o

homem eacute animal de natureza vaacuteria multiforme e mutaacutevel187

Quase ao encerramento de seu Discurso e assim como o fez nas Conclusiones

Pico aborda a questatildeo da Cabala procurando mostrar atraveacutes de alguns de seus

maiores representantes a concoacuterdia com o Cristianismo (ldquoli as mesmas coisas que

todos os dias lemos em Paulo e Dioniacutesio em Jerocircnimo e em Agostinhordquo) e com a

Filosofia (ldquoparece-nos ouvir Pitaacutegoras e Platatildeordquo)188 A busca da paz final eacute segundo

Pico o ponto em que todas as filosofias se unem em concoacuterdia para regozijar-se na

ldquosantiacutessima pazrdquo apregoada pelos cristatildeos ldquodesfrutar da amizade concorderdquo

pitagoacuterica e alcanccedilar a ldquoindissoluacutevel uniatildeordquo apregoada por Averroacuteis Essa eacute a maneira

escrita em formas diferentes por meio da qual ldquotodas as almas natildeo soacute se acordam

numa uacutenica Mente que estaacute acima de cada mente mas tambeacutem de uma maneira

inefaacutevel se fundem em uma soacuterdquo189

O tema da Concoacuterdia ocupa espaccedilo proeminente no pensamento de Giovanni

Pico cuja proposta eacute reclamar a verdade atraveacutes do constante exerciacutecio dialeacutetico dos

pontos de vista Tendo sido alcanccedilado o objetivo referente a cada saber individual

cujas especiacuteficas concepccedilotildees foram escritas para a discussatildeo no debate romano o

proacuteximo passo do autor seria o de comprovar o acordo entre as vaacuterias tradiccedilotildees

abordadas prerrogativa para estabelecer a unidade da verdade O tema aqui iniciado

necessaacuterio para a siacutentese final seraacute retomado no Capiacutetulo VII pois que cada forma de

filosofar apresentada pelo autor mostra-se como um caminho de aproximaccedilatildeo agrave

verdade que uma vez alcanccedilada prescinde das particularidades de cada forma

Veremos a seguir que para estabelecer o caraacuteter universal da verdade Pico percorre

doutrinas que confluem em relaccedilatildeo a um paradigma que se estabelece pela

consecuccedilatildeo de estaacutegios relacionados a uma evoluccedilatildeo asceacutetica

3 O tema da Ascese

A liberdade preconizada sob o tema da dignidade encontra-se sujeita agrave

efetivaccedilatildeo e suplantaccedilatildeo de certos estaacutegios Meacutetodos para percorrer caminhos

187 Oratio p108 ldquoIdcirco scribit Euantes Persa ubi Chaldaicam theologiam enarrat non esse homini suam

ullam et nativam imaginem extrarias multas er adventicias Hinc illud Chaldaeorum lsquoEnosh hu shinnuim vekammah tebhaoth baal hajrsquo idest homo variae ac multiformis et desultoriae naturae animalrdquo No texto original Pico apresenta em ideogramas aparentemente hebraicos a passagem referente ao dito caldaico Acerca de Evantes e de acordo com nota do tradutor FERACINE (1999) sua identidade eacute desconhecida

188 Oratio p160 ldquo[]eadem legi quae apud Paulum et Dionysium apud Hieronymum et Augustinum quotidie legimus In his vero quae spectant ad philosophiam Pythagoram prorsus audias et Platonem [hellip]rdquo

189 Oratio p118 ldquo[hellip]optata pace perfruemur pace sanctissima individua copula unanimi amicitia qua omnes animi in una mente quae est super omnem mentem non concordent adeo sed ineffabili quodam modo unum penitus evadantrdquo

92

asceacuteticos fazem parte das praacuteticas esoteacutericas apregoadas e utilizadas em natildeo poucas

tradiccedilotildees em sua maioria com o objetivo de alcanccedilar um estado de uniatildeo com o

Absoluto Pico utiliza-se de alguns exemplos ascensionais dentro do procedimento

escolhido para demonstrar a unidade da verdade exemplos cuja convergecircncia

doutrinaacuteria eacute esperada em esferas mais elevadas Na metade inicial da Oratio

evidenciam-se treze passagens distintas referentes a condutas asceacuteticas de

competecircncia teoloacutegica ou filosoacutefica as quais em se eliminando aquelas pertencentes

a uma mesma tradiccedilatildeo perfazem um total de sete tradiccedilotildees especiacuteficas Como

fundamentaccedilatildeo para o seu modelo de itineraacuterio asceacutetico Pico percorre as seguintes

doutrinas crenccedilas ou sistemas

1) A dialeacutetica segundo a filosofia platocircnica

2) O modelo angeacutelico postulado por Dioniacutesio Areopagita

3) As iniciaccedilotildees misteacutericas da tradiccedilatildeo grega

4) Os Mitos de Dioniso e de Osiacuteris

5) A simbologia do tabernaacuteculo de Moiseacutes pertencente agrave tradiccedilatildeo hebraica

6) As praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas

7) A misteriologia caldaica

Antes da verificaccedilatildeo de cada um desses itens cabe observar que ainda em

meio agrave narrativa de seu Mito adacircmico Pico introduz a primeira problemaacutetica de

percurso asceacutetico perfeitamente presente no coraccedilatildeo de sua reflexatildeo acerca da

dignidade humana Partindo da premissa de existecircncia de quatro niacuteveis hieraacuterquicos

existentes no homem entendidos como corpos efetivos ou como possibilidades eacute

efetuada uma analogia com os reinos que representam graus da hierarquia coacutesmica

postulada pelo autor ndash que seria mais tarde tratada no Heptaplus190 O mito chama

a atenccedilatildeo para a presenccedila de tais naturezas ou potencialidades que integram o

homem bem como de sua possibilidade de superaccedilatildeo ou regressatildeo atraveacutes da

passagem entre um e outro niacutevel Assim ao se comportar como vegetal utilizando

sua natureza entorpecida e insensiacutevel ldquoo homem seraacute como plantardquo se for sensiacutevel

ldquose tornaraacute bestardquo em razatildeo de sua alma bruta e sensual se racional ldquoelevar-se-aacute a

animal celesterdquo pois ldquonatildeo eacute a forma circular que faz o ceacuteu mas a reta razatildeordquo se

intelectual puro contemplante seraacute anjo e filho de Deus ldquopois natildeo eacute a separaccedilatildeo do

corpo que faz o anjo mas sua inteligecircncia espiritualrdquo191

190 Cf PICO Heptaplus Quinta Exposiccedilatildeo p305 191 Oratio pp106 108 Alguns anos mais tarde em 1516 talvez sob a influecircncia da obra de Pico Pietro

Pomponazzi apresentaraacute sua proacutepria concepccedilatildeo da ordem natural no De immortalitate animae ldquoA natureza procede por graus Os vegetais tecircm um pouco de alma seguem os animais dotados apenas de tato gosto e imaginaccedilatildeo indefinida depois os animais tatildeo perfeitos que parecem dotados de inteligecircncia que constroem asas

93

Entre as referecircncias percorridas Pico insere ademais um siacutembolo de ascensatildeo

iniciaacutetica representado pela imagem biacuteblica da escada de Jacoacute ldquoo sapientiacutessimo

patriarca ensinar-nos-aacute mediante um siacutembolo [] que existem escadas que sobem do

fundo da terra ateacute ao cume dos ceacuteus distintas numa longa seacuterie de degrausrdquo192 A

passagem eacute narrada no Gecircnesis referindo-se agrave revelaccedilatildeo recebida em sonho por Jacoacute

atraveacutes da visatildeo de uma escada ligando ceacuteu e terra193 Essa representaccedilatildeo permite que

se efetuem analogias com diversas tradiccedilotildees como a tradiccedilatildeo angeacutelica referida por

Pseudo Dioniacutesio os Misteacuterios gregos e a Cabala194 Ao ser retirada do campo da feacute

traz a exigecircncia de que todos os degraus sejam percorridos passando pelos graus

irredutiacuteveis da filosofia natural da filosofia moral e dos procedimentos dialeacuteticos Os

traccedilos de tal percurso estatildeo bem definidos na dialeacutetica platocircnica primeiro dos sete

modelos asceacuteticos verificados a seguir

1) A primeira referecircncia agrave dialeacutetica filosoacutefica no Discurso eacute colhida de fontes

platocircnicas e disposta em linguagem miacutetica atraveacutes do convite para que o homem

abandone o que eacute terreno e ldquovoerdquo para as regiotildees supramundanas em direccedilatildeo agrave

divindade A menccedilatildeo ao voo reafirmada na passagem em que alude ao ldquoceacutelere voo

para a Jerusaleacutem Celeste atraveacutes de um bater de asasrdquo embora natildeo mencionada

diretamente remete agraves asas da alma que proporcionam a sua libertaccedilatildeo como fora

exaltado por Platatildeo no Fedro195

Desdenhemos das coisas da terra desprezemos as astrais e

abandonando tudo o que eacute terreno voemos para a sede

supramundana proacuteximo da sumidade da divindade196

Observe-se que conforme as palavras acima a Esfera Astral eacute um reino

inserido em territoacuterio ligado ao mundano197 acima do sublunar que remete agrave

imagem de um eixo vertical cujas etapas devem ser superadas A passagem encerra a

ideia de um movimento dinacircmico que pode ser realizado pela alma humana graccedilas agrave

e se organizam em sociedades civis como as abelhas (tanto que muitos homens parecem inferiores aos brutos por inteligecircncia)rdquo Em continuidade o autor apresenta seu conceito de ldquomedianidaderdquo ou planos ldquosintetizantesrdquo entre os reinos ldquoHaacute animais meacutedios entre as plantas e os animais como as esponjas marinhas fixas como as plantas mas sensiacuteveis como os animais haacute o macaco que natildeo se sabe se eacute animal ou homem e haacute a alma intelectiva mediana entre o temporal e o eternordquo Para maiores detalhes veja-se GARIN LrsquoUmanesimo italiano 2008 pp156-160

192 Oratio p 114 193 Cf Gecircnesis 28 12-13 ldquoE sonhou e eis uma escada posta na terra cujo topo tocava nos ceacuteus e eis que os

anjos de Deus subiam e desciam por elardquo 194 Algumas distintas interpretaccedilotildees dessa passagem foram realizadas Para Luiz FERACINE (1999) a escada de

Jacoacute significa a necessidade de ascender do muacuteltiplo ao uno simbolizado pelo desmembramento titacircnico do deus Dioniso Giulio BUSI identifica a escada com a deacutecima sefiraacute da tradiccedilatildeo cabaliacutestica correspondente a malkut vista em seu duplo aspecto de oraccedilatildeo e presenccedila divina conforme o autor depreende do Sefer ha-Zohar (La Qabbalah 2011 p11) Para Albano BIONDI (1995 ldquoIntroduccedilatildeordquo) a escada apresenta um significado estritamente dialeacutetico relacionado agrave Filosofia e seus graus de conhecimento

195 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss A passagem da Oratio que cita o Fedro encontra-se na p122 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feraturrdquo

196 Oratio p110 ldquoDedignemur terrestria caelestia contemnamus et quicquid mundi est denique posthabentes ultramundanam curiam eminentissimae divinitati proximam advolemusrdquo

197 A mateacuteria referente agrave Esfera Astral eacute desenvolvida por Pico em suas Disputationes Adversus Astrologiam

94

sua posiccedilatildeo intermeacutedia dentro do desenho universal Agrave medida que se avanccedila no

texto torna-se patente que tal posiccedilatildeo consiste em uma tensatildeo vertical dialeacutetica

permanente que reporta ao Banquete Em seu Commento de lsquo86 Pico jaacute havia

explorado o diaacutelogo platocircnico e o tema da natureza carente de Eros intermediaacuteria

entre a ignoracircncia e a sabedoria sempre agrave procura desta uacuteltima198 O influxo daquela

obra pode ser agora percebido a partir da retomada do mesmo dinamismo que se

repete e percorre todo o Discurso Oriacutegenes havia feito menccedilatildeo ao mito contido no

Banquete e agrave sua analogia com a busca do homem por sabedoria e sabe-se que Pico

teve acesso agrave sua obra199 O Eros platocircnico assim como a alma piquiana ocupa uma

posiccedilatildeo intermeacutedia200 pois natildeo eacute divino nem terreno201 A potecircncia para atingir as

realidades supremas atraveacutes do amor pela sabedoria encontra-se nas representaccedilotildees

das duas obras Aleacutem da dinacircmica de atraccedilatildeo pelo saber o Discurso eacute perpassado

pela teoria platocircnica que distingue graus de conhecimento entre o sensiacutevel e o

inteligiacutevel e que postula a partir de tais pontos o meacutetodo dialeacutetico que permite a

passagem do grau inicial da pluralidade das opiniotildees ao grau final da unidade da

Ideia

A filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo e os dissiacute-

dios que atormentam dividem e dilaceram de modos diversos

a alma inquieta [] A dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo

tumultuosamente mortificada entre os contrastes das palavras e

dos silogismos capciosos202

Pico atribui ora agrave filosofia ldquonaturalrdquo ora agrave ldquomoralrdquo a competecircncia para tratar

das questotildees relacionadas agrave conduta humana203 Na primeira parte da passagem

acima ao tratar dos ldquoconflitos e opiniotildeesrdquo estabelece-se uma relaccedilatildeo com o segundo

grau de conhecimento apresentado na Repuacuteblica204 dimensatildeo da piacutestis e doxa cuja

superaccedilatildeo viraacute atraveacutes da filosofia moral Na segunda parte Pico coloca-se em grau

acima ao abordar a forma como a razatildeo poderaacute ser acalmada atraveacutes da dialeacutetica

Embora o meacutetodo dialeacutetico possa ser entendido como o sistema integral que abarca

todos os graus no sentido de movimento da consciecircncia que se move entre os graus

mais baixos e os mais altos ndash graccedilas agrave descoberta das contradiccedilotildees encontradas em

cada grau inferior de conhecimento ndash o mesmo pode tambeacutem ser dividido em duas

etapas a primeira dialeacutetica inferior opera com as contradiccedilotildees das opiniotildees e

crenccedilas isto eacute com a multiplicidade sensiacutevel moacutevel e dispersa a segunda superior

198 PLATAtildeO Banquete 203d-204c 199 A obra Contra Celsum do teoacutelogo Oriacutegenes havia sido publicada em latim em 1481 poucos anos antes da De

Hominis Dignitate A passagem em questatildeo encontra-se em IV 39 Ademais eacute conhecida a admiraccedilatildeo que Pico tinha por Oriacutegenes Para uma aprofundada reflexatildeo sobre a analogia entre o Banquete e a visatildeo dialeacutetica de Pico veja-se BORI I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996 pp 551-564

200 PLATAtildeO Banquete 202d 201 PLATAtildeO ibid 203e 202 Oratio p119 A inversatildeo dos periacuteodos na citaccedilatildeo acima foi feita por uma questatildeo de ordenamento necessaacuterio

ao que estaacute sendo tratado ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et laceranterdquo

203 De fato na paacutegina 122 da Oratio que conteacutem a passagem citada encontra-se tanto o uso de ldquomoralisrdquo quanto ldquonaturalis philosophiardquo

204 Veja-se PLATAtildeO (Rep 509d-511e) e seu ldquoSiacutemile das duas linhasrdquo

95

ou verdadeira dialeacutetica opera ultrapassando demonstraccedilotildees baseadas em hipoacuteteses

na medida em que a multiplicidade vai sendo ordenada e sistematizada ateacute alcanccedilar o

incondicionado a unidade inteligiacutevel Essa a dialeacutetica superior capaz de elevar-se de

hipoacutetese em hipoacutetese ateacute alcanccedilar o natildeo hipoteacutetico205 eacute aquela agrave qual Pico se refere

como o aliacutevio para ldquoacalmar a razatildeordquo

Seremos arrebatados se primeiro tivermos realizado tudo

quanto estaacute em noacutes se de fato com a moral forem refreados

dentro dos justos limites os iacutempetos das paixotildees de tal modo

que se harmonizem reciprocamente com estaacutevel acordo e se a

razatildeo proceder ordenadamente mediante a dialeacutetica206

Finalmente no pinaacuteculo da ascensatildeo ocorre o ldquoarrebatamentordquo momento em

que como ainda mencionado no Banquete (210a) a alma filosoacutefica encontra-se com

a Ideia Suprema O contato direto e imediato da inteligecircncia com o inteligiacutevel se daacute

no plano noeacutetico em que ocorre a visatildeo intelectual de uma ideia em decorrecircncia do

conhecimento adquirido por meio dos atos de intuiccedilatildeo intelectual a episteacuteme Segue-

se assim o quinto grau de conhecimento postulado na Carta Seacutetima e proclamado

por Pico como final de uma trajetoacuteria de conhecimento207

Rejeitadas as impurezas com a moral e a dialeacutetica se adorne da

mais vasta Filosofia como se fosse um ornamento real208

2) A ideia de desenvolvimento vertical humano eacute encontrada outrossim na

narrativa feita por Pseudo-Dioniacutesio acerca do mundo angeacutelico Pico se fundamenta

em seu modelo de ascese miacutestica em trecircs estaacutegios (purgatio illuminatio e perfectio)

ndash conforme a visatildeo recebida em revelaccedilatildeo por Paulo relatada em Coriacutentios acerca do

triacuteplice coro angeacutelico209 Iniciando sua argumentaccedilatildeo eacute lanccedilada a questatildeo de como

proceder para chegar aos Serafins Querubins e Tronos seres pertencentes ao

primeiro ciacuterculo dentro da hierarquia cosmoloacutegica descrita por Dioniacutesio210 a melhor

205 PLATAtildeO na Carta VII (343e) descreve que a passagem contiacutenua entre os vaacuterios niacuteveis hipoteacuteticos com o

deslocamento para o alto e para baixo em cada niacutevel mesmo sob dificuldades leva ao conhecimento da coisa buscada

206 Oratio p122 ldquoAgemur ab illis utique si quid est in nobis ipsi prius egerimus nam si et per moralem affectuum vires ita per debitas competentias ad modulos fuerint intentae ut immota invicem consonent concinentia et per dialecticam ratio ad numerum se progrediendo moverit []rdquo

207 PLATAtildeO Carta VII 342b-343c Na Carta Seacutetima Platatildeo amplia o que havia estabelecido na Repuacuteblica sobre os quatro modos de conhecimento ensinando que o quinto modo de conhecimento eacute a coisa-em-si mesma ou a percepccedilatildeo intelectual direta da coisa cognosciacutevel A funccedilatildeo do quarto modo que eacute o conhecimento (342b) eacute preparar-nos para alcanccedilar o objeto real e soacute atraveacutes de uma fricccedilatildeo chegamos a ele Essa fricccedilatildeo produz uma faiacutesca como uma luz que surge na alma (341d) e nos faz ver a pura ideia da coisa Pico coloca no teacutermino de sua explanaccedilatildeo dialeacutetica o alcance da Filosofia (nesse sentido indicando o momento supremo do conhecimento) qual ldquoornamento realrdquo

208 Oratio p120 ldquo[] postquam per uroralem et dialecticam suas Bordes excusserit multiplici philosophia quasi aulico apparatu se exornarit []

209 Cf Oratio p113 A passagem de Paulo que trata de seu ldquoarrebatamentordquo ao terceiro ceacuteu estaacute em 2 Coriacutentios 12 2-4 ldquoConheccedilo um homem em Cristo que haacute catorze anos[] foi arrebatado ao terceiro ceacuteu E sei que o tal homem[] foi arrebatado ao paraiacuteso e ouviu palavras inefaacuteveis que ao homem natildeo eacute liacutecito falarrdquo

210 Pico passa diretamente para o escalatildeo mais alto na hierarquia dos seres angeacutelicos a chamada Primeira Ordem Abaixo destes haacute a Segunda e Terceira Ordem composta cada qual por trecircs gecircneros de seres Dioniacutesio Areopagita esclarece em sua obra que as alegorias das formas angeacutelicas utilizadas pelos teoacutelogos satildeo apenas pontos de partida para permitir a contemplaccedilatildeo dos seres inteligiacuteveis Eacute tambeacutem uma forma de ocultar atraveacutes de

96

forma para alcanccedilaacute-los seraacute atraveacutes da observaccedilatildeo de seu protoacutetipo de vida pois ldquose

tambeacutem noacutes a vivermos jaacute estaremos partilhando de igual ventura e de fato

podemosrdquo211 Assim a destinaccedilatildeo humana consiste precisamente em imitar aquelas

vidas Primeiramente os Tronos mais proacuteximos de noacutes representantes da vida ativa

disciplinada em seguida os Querubins modelo de vida contemplativa finalmente

os Serafins mais proacuteximos de Deus representantes da uniatildeo miacutestica no amor Os

Querubins encontrando-se no ponto intermeacutedio entre os dois outros graus da ordem

agrave qual pertencem representam por analogia a funccedilatildeo intermeacutedia do homem e sua

capacidade contemplativa torna-se exemplo do ponto mais alto que pode ser

alcanccedilado atraveacutes da capacidade intelectiva humana

Se a nossa vida deve ser modelada sobre a vida dos Querubins

devemos ter claro frente aos nossos olhos em que consiste tal

vida quais as accedilotildees e obras que devemos imitar212

Cada Ordem apreende da que lhe estaacute imediatamente superior tudo o que

concerne agraves suas operaccedilotildees retransmitindo agrave inferior aquilo que lhe eacute possiacutevel

transmitir (ldquoa ordem mediana eacute para a inferior inteacuterprete dos preceitos da ordem

superiorrdquo)213 Os Tronos tem seu nome originado a partir do conceito de sustentaacuteculo

Esse gecircnero de anjo eacute identificado pela total ausecircncia de qualquer concessatildeo aos

planos inferiores e a capacidade de se manter constante e firmemente tendendo para

os cumes Analogamente esse seria o estaacutegio da purgatio Os Querubins ldquoaqueles

que difundem sabedoriardquo satildeo tidos como a inteligecircncia mediadora entre o amor

divino e a reta razatildeo jaacute que sua inteligecircncia prepara o homem para o ardor seraacutefico e

ao mesmo tempo o ilumina pelo modelo da justiccedila dos Tronos (ldquoeis porque no meio o

Querubim com a sua luz nos prepara para a chama seraacutefica e nos ilumina

juntamente com o juiacutezo dos Tronosrdquo)214 Os Querubins designam aptidotildees ao

conhecimento e agrave contemplaccedilatildeo do Absoluto e acolhem em si a plenitude dos dons

que transmitem sabedoria comunicando-os agraves essecircncias inferiores graccedilas agrave

capacidade de emanaccedilatildeo da proacutepria sabedoria que lhes foi transmitida Sua posiccedilatildeo eacute

anaacuteloga ao grau asceacutetico da illuminatio O Serafim eacute o que ocupa a mais alta posiccedilatildeo

aquele que ldquoqueimardquo na luz divina Os Serafins tecircm por qualidades o movimento

perpeacutetuo em torno dos segredos divinos o calor a profundidade e a qualidade de

comunicar aos niacuteveis que lhe sucedem a luz e o calor Detecircm o poder de auto-

purificaccedilatildeo e a aptidatildeo para conservarem a sua proacutepria luz daiacute sua relaccedilatildeo com o

uacuteltimo grau asceacutetico a perfectio215

enigmas a misteriosa unidade dessas Inteligecircncias Os nomes atribuiacutedos agraves Inteligecircncias designam suas capacidades (De Coelesti Hierarchia II-VII) Pico possuiacutea vaacuterias coacutepias em grego e latim das obras principais de Ps Dioniacutesio (cf Garin 2011 p110)

211 Oratio p111 O trecho em questatildeo encontra-se na traduccedilatildeo de Feracine tendo sido omitido na traduccedilatildeo de Sirgado Ganho ldquoSed qua ratione aut quid tandem agentes Videamus quid illi agant quam vivant vitam Eam si et nos vixerimus (possumus enim) illorum sortem iam aequaverimusrdquo

212 Oratio p112 ldquoAt vero operae precium si ad exemplar vitae cherubicae vita nostra formanda est quae illa et qualis sit quae actiones quae illorum Opera []rdquo

213 Oratio p116 ldquoEt quoniam supremi ordinis monita medius ordo inferioribus interpretaturrdquo 214 Cf Oratio p113 215 PS DIONISIO De Coelesti Hierarchia VII Para detalhes adicionais veja-se nota da passagem em questatildeo

na traduccedilatildeo da Oratio de Luiz Feracine Informa o tradutor que Trono vem da raiz dar que passou para o sacircnscrito na palavra dhacircrana sustentaacuteculo O termo Querubim do hebraico kerub eacute considerado originaacuterio de

97

Pico pretende indicar a analogia existente entre as funccedilotildees angeacutelicas e o

caminho triaacutedico relacionado aos campos moral dialeacutetico e teoloacutegico que pode ser

verificado nas atribuiccedilotildees de cada Ordem Os Tronos se definem pelo reto

discernimento e a firmeza de juiacutezo qualidade que pode ser atingida atraveacutes do uso da

razatildeo e que em seu primeiro estaacutegio eacute capaz de encetar a filosofia moral No

Querubim estaacutegio intermediaacuterio apresenta-se a capacidade intelectual da

contemplaccedilatildeo ou o momento de ldquoesplendor da inteligecircnciardquo Finalmente no Serafim

tem-se o amor ao artiacutefice ao qual Pico em outras passagens ou obras refere-se

atraveacutes do termo ldquofeacuterdquo que o autor considera o uacuteltimo estaacutegio da ascese miacutestica

teoloacutegica216

Ainda que dedicados agrave vida ativa se assumirmos tratar as coisas

inferiores com reto discernimento afirmar-nos-emos com a

firmeza dos Tronos Se liberarmo-nos das accedilotildees meditando na

criaccedilatildeo o artiacutefice e no artiacutefice a criaccedilatildeo estaremos imersos na

paz da contemplaccedilatildeo e resplandeceremos rodeados de

querubiacutenica luz Se ardermos apenas por amor do artiacutefice

daquele fogo que consome todas as coisas inflamar-nos-emos

repentinamente com aspecto seraacutefico217

Ao ponto intermeacutedio querubiacutenico eleva-se a possibilidade humana alcanccedilaacutevel

pela dialeacutetica ldquoisso devemos emular investigar e compreender de modo a sermos

arrebatados ateacute aos fastiacutegios do amor descendo em seguida instruiacutedos e preparados

para as tarefas da accedilatildeordquo218 Assim para a pergunta ldquocomo se tornavam iluminados os

querubins como se elevavam ao estaacutegio seraacuteficordquo o autor indica o caminho da

contemplaccedilatildeo ldquoeste eacute o centro das primeiras mentes a ordem sapiencial que preside

agrave filosofia contemplativardquo219 Finalmente colocando palavras na boca do apoacutestolo

Paulo ndash se tivesse sido perguntado sobre o que faziam os exeacutercitos dos Querubins

enquanto esteve ele arrebatado no terceiro ceacuteu ndash responde Pico ldquopurificavam-se

eram iluminados e tornavam-se por fim perfeitosrdquo220 Repete-se o processo triaacutedico

intuiacutedo no modelo de ascetismo piquiano

Karibu que significa bendizente Em geral os Querubins satildeo associados aos gecircnios alados das mitologias egiacutepcias babilocircnicas e siro-feniacutecias O termo Serafim vem do hebraico sharaf serpente [ligado ao verbo saacuterof queimar] siacutembolo relacionado aos gecircnios e agrave divindade pelos cananeus Em geral nas representaccedilotildees lhes satildeo dadas as formas de serpente No livro Nuacutemeros (XXI 6-9) os Serafins indicam as serpentes venenosas enquanto em Isaiacuteas (VI) representam seres antropomorfos providos de seis asas Assim tanto os Serafins como os Querubins satildeo idealizaccedilotildees de seres superiores em que se fundem formas humanas com asas Essa heranccedila cultural influenciou a percepccedilatildeo dos autores biacuteblicos (FERACINE A Dignidade do Homem 1999)

216 Oratio pp111-113 217 Oratio p110 ldquoIgitur si actuosae addicti vitae inferiorum curam recto examine susceperimus Thronorum

stata soliditate firmabimur Si ab actionibus feriati in opificio opificem in opifice opificium meditantes in contemplandi otio negotiabimur luce Cherubica undique corruscabimus Si caritate ipsum opificem solum ardebimus illius igne qui edax est in Seraphicam effigiem repente flammabimurrdquo

218 Oratio p112 219 Oratio p113 Pier Cesare BORI relaciona a vida contemplativa dos Querubins com a vida intelectual que se

difunde nas vaacuterias disciplinas filosoacuteficas que seratildeo depois unificadas dialeticamente (I tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola 1996 pp 551-564)

220 Oratio p113

98

3) A pureza dos graus angeacutelicos pede uma correta preparaccedilatildeo que Pico

vislumbra nos graus de iniciaccedilatildeo previstos nos Misteacuterios gregos ndash ldquoin Graecorum

arcanis observati initiatorum gradusrdquo

Se eacute nosso dever [] imitar a vida dos anjos pergunto quem

ousaraacute tocar as escadas do Senhor ou com peacute impuro ou com

matildeos por lavar Ao impuro segundo os Misteacuterios eacute-lhe vedado

tocar aquilo que eacute puro221

As matildeos e os peacutes conforme o proacuteprio Pico explica representam ldquotoda a parte

sensiacutevel onde estatildeo sediadas as seduccedilotildees corpoacutereasrdquo que subjugam a alma ldquoPara natildeo

sermos expulsos daquelas escadasrdquo ndash as de Jacoacute ndash ldquocomo profanos e imundosrdquo222 faz-

se necessaacuteria uma devida purificaccedilatildeo ideia que integra grande parte das religiotildees

gregas misteacutericas conhecidas ndash sobre as quais Pico certamente tinha

conhecimento223

Que outra coisa de fato querem significar nos misteacuterios gregos

os graus habituais dos iniciados admitidos no misteacuterio atraveacutes

de uma purificaccedilatildeo obtida com a moral e com a dialeacutetica artes

que jaacute dissemos serem quase purificatoacuterias [] Quando

estavam preparados sobrevinha aquela epopteia isto eacute a

visatildeo das coisas divinas atraveacutes da luz da teologia224

A epopteia corresponde a um estado de arrebatamento atribuiacutedo ao nuacutecleo dos

Misteacuterios de Elecircusis Apoacutes cerca de um ano ultrapassando os devidos estaacutegios o

adepto estaria pronto para atingir o estado supremo no qual ocorria a visatildeo

transcendente e transformadora correspondente ao rito final da iniciaccedilatildeo225 Embora

apenas se tenha conhecimento das manifestaccedilotildees exteriores dos misteacuterios eleusinos

e mesmo assim de forma imprecisa226 uma descriccedilatildeo aproximada da visatildeo eleusina

pode ser extraiacuteda das palavras de Platatildeo No Fedro eacute narrada a experiecircncia iniciaacutetica

de contemplaccedilatildeo que ilustra um estado bastante proacuteximo ao que provavelmente

ocorria na epopteia

221 Oratio p114 ldquoQuod si hoc idem nobis angelicam affectantibus vitam factitandum est quaeso quis Domini

scalas vel sordidato pede vel male mundis manibus attinget Impuro ut habent mysteria purum attingere nefasrdquo

222 Oratio p115 223 O tema da purificaccedilatildeo eacute central nos Misteacuterios de Elecircusis de Dioniso e nos Oacuterficos para citar os mais

conhecidos A Lacircmina de Turi por exemplo achado arqueoloacutegico pertencente ao seacuteculo IV ou III aC traz as inscriccedilotildees ldquoEu venho puro dentre os purosrdquo indicando a terminaccedilatildeo de um processo purificatoacuterio condiccedilatildeo obrigatoacuteria para a recepccedilatildeo do iniciado em dimensotildees superiores (cf KERN Orphicorum Fragmenta fr 32d)

224 Oratio p122 ldquoQuid enim aluid sibi volunt in Graecorum arcanis observati initiatorum gradus quibus primum per illas quas diximus quasi februales artes moralem et dialecticam purificatis contingebat mysteriorum susceptio Quae quid aluid esse potest quam secretioris per philosophiam naturae interpretatio Tum demum ita dispositis illa adveniebat lsquoἐ π ο π τ ε ί αrsquo idest rerum divinarum per theologiae lumen inspectiordquo

225 Giorgio COLLI A Sabedoria Grega 2012 p33 226 De acordo com Erwin RHODE (Psyche 2006 p239) apenas o lado exterior das cerimocircnias eleusinas

possuem registros Nas festividades conhecidas como ldquoPequenos Misteacuteriosrdquo de Elecircusis o adepto tambeacutem poderia vivenciar uma breve visatildeo reveladora Contudo era no interno dos ldquoGrandes Misteacuteriosrdquo ndash apreendidos pelos epoptas e mantidos em segredo ndash que se dava a visatildeo transformadora (COLLI opcit p31)

99

Eacuteramos iniciados naquela que justamente eacute chamada a mais

feliz das iniciaccedilotildees aquele rito secreto que celebraacutevamos []

Inteiramente perfeitas simples sem tremor e felizes eram as

apariccedilotildees ndash em um esplendor puro ndash em que eacuteramos iniciados e

atingiacuteamos o cume da contemplaccedilatildeo Noacutes mesmos puros natildeo

encerrados na tumba que agora levamos conosco e chamamos

corpo ligados estreitamente a ele como a ostra agrave sua concha227

Como forma complementar ou para dar relevo agrave questatildeo logo apoacutes a menccedilatildeo

agraves visotildees eleusinas Pico se remete ao conceito platocircnico da ldquoinspiraccedilatildeordquo socraacutetica

aproximando aqueles rituais do domiacutenio filosoacutefico (ldquoaquela iniciaccedilatildeo que outra coisa

pode ser senatildeo a interpretaccedilatildeo da mais oculta natureza mediante a Filosofiardquo)228

Quem natildeo quereraacute ser inspirado pelo furor socraacutetico exaltado

por Platatildeo no Fedro arrebatado em ceacutelere voo para a Jerusaleacutem

Celeste fugindo rapidamente com um bater de asas daqui isto

eacute do mundo reino do democircnio Arrebatar-nos-atildeo oacute Padres

arrebatar-nos-atildeo os furores socraacuteticos trazendo-nos para fora

da mente a tal ponto que nos coloquemos a noacutes e agrave nossa mente

em Deus229

A mencionada passagem do Fedro narra que atraveacutes de purificaccedilotildees e

iniciaccedilotildees seria possiacutevel encontrar uma libertaccedilatildeo dos males mas apenas para quem

estivesse ldquosob maniardquo ou ldquopossuiacutedordquo pelos deuses ldquona forma certardquo230 O ldquotrazer para

fora da menterdquo eacute outra forma de aludir ao veacutertice da experiecircncia miacutestica quando

ocorre o estado de ldquoecircxtaserdquo sem a mediaccedilatildeo da razatildeo O extasis literalmente lsquosair-de-

sirsquo era o instrumento para a liberaccedilatildeo cognoscitiva rompida a individualidade do

iniciado esse passava a ver aquilo que os natildeo iniciados natildeo viam231 ldquoLibertar-se da

existecircncia corporal conhecer o ecircxtase e elevar-se aos ceacuteusrdquo satildeo temas recorrentes nos

discursos socraacuteticos232 dizia Soacutecrates que ldquoos bacantes das iniciaccedilotildees natildeo satildeo senatildeo

aqueles que se entregam agrave filosofia no sentido exatordquo233 tecendo uma

correspondecircncia entre o campo filosoacutefico e os Misteacuterios que natildeo seria ignorada na

Oratio piquiana Os bacantes adeptos partiacutecipes dos misteacuterios dionisiacuteacos podiam

atingir um estado de maniacutea no qual se dava uma visatildeo do tipo relatado nas epopteias

de Elecircusis Tratar-se-ia assim como naqueles cultos de uma visatildeo de caraacuteter

227 PLATAtildeO Fedro 250 b-c 228 Cf Oratio p123 229 Oratio p123 ldquoQuis non Socraticis illis furoribus a Platone in Phaedro decantatis sic afflari non velit ut

alarum pedumque remigio hinc idest ex mundo qui est positus in maligno propere aufugiens ad caelestem Hierusalem concitatissimo cursu feratur Agemur Patres agemur Socraticis furoribus qui extra mentem ita nos ponant ut mentem nostram et nos ponant in Deordquo

230 PLATAtildeO Fedro 244c-245a 231 A questatildeo da saiacuteda de si promovida pelo ecircxtase encontra unanimidade entre vaacuterios inteacuterpretes Para maiores

detalhes veja-se recolhimento de Giorgio COLLI (2012 p18) tanto fontes antigas quanto mais recentes reconhecem a relaccedilatildeo entre ecircxtase e saiacuteda-de-si Niezsche foi um deles bem como Rodhe com seu Psiche

232 As palavras citadas estatildeo em Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro 2006 p10 O autor complementa que a preparaccedilatildeo por meio de vaacuterios tipos de exerciacutecios asceacuteticos utilizados para ldquodesatar os noacutesrdquo que prendem a alma ao corpo estatildeo na base do ensinamento socraacutetico Veja-se nesse sentido Feacutedon 64c-68b e Repuacuteblica VI 509b-c VII 517b-c

233 PLATAtildeO Feacutedon 69c-d

100

macircntico podendo assumir um aspecto de conhecimento da verdade234 Atraveacutes das

etapas iniciaacuteticas e entatildeo ldquotornados filoacutesofosrdquo conclui Pico que os iniciados seriam

ldquoinebriados na harmonia celesterdquo e por fim Baco senhor das Musas revelaria ldquoos

seus misteacuteriosrdquo ou ldquoos invisiacuteveis segredos de Deusrdquo235

4) Os mitos de Osiacuteris e de Dioniso respectivamente egiacutepcio e grego

representam partes das concepccedilotildees cosmogocircnicas presentes em algumas teogonias

que contemplam o conflito entre a Ordem e o Caos Pico certamente tinha em mente

elaborar uma siacutentese entre os dois mitos para ilustrar suas concepccedilotildees filosoacuteficas A

queda descrita no chamado ldquoMito dos Titatildesrdquo que narra o nascimento morte e

ressurreiccedilatildeo do deus Dioniso eacute parte da Teogonia das Rapsoacutedias que integra o

corpus da doutrina oacuterfica236 As Conclusiones oacuterficas mostram que Pico teve acesso

aos Hinos de Orfeu uma de suas provaacuteveis fontes de acesso ao mito Ambos os mitos

abordam a questatildeo da fragmentaccedilatildeo da unidade universal e a criaccedilatildeo da

multiplicidade levando agrave necessidade assim como nas primeiras cosmogonias

filosoacuteficas de se suplantar a dualidade e retornar agrave unidade perdida Repetem nesse

sentido a ideia de usurpaccedilatildeo do trono que representa a unidade e a fragmentaccedilatildeo

daquele que o ocupava No caso de Osiacuteris seu irmatildeo Set o assassina apoacutes lhe tirar o

trono e posteriormente o esquarteja espalhando seus pedaccedilos por todo o Egito237

Jaacute Dioniso por encontrar-se no final da linhagem genealoacutegica dos deuses recebera

de seu pai Zeus o comando do mundo deixando enciumados os Titatildes ndash divindades

dos primeiros tempos ndash que terminam por atacaacute-lo e despedaccedilaacute-lo Dos resiacuteduos

finais de Dioniso e dos Titatildes ndash jaacute que estes tambeacutem acabam exterminados ndash nascem

natildeo apenas os homens como o novo Dioniso238

Na passagem ldquodesceremos dilacerando com forccedila titacircnica o um nos muitosrdquo239

Pico deixa evidente que estaacute a relatar a particcedilatildeo e a redistribuiccedilatildeo do Uno em seu

movimento de descese conteuacutedo que se encontra na raiz da ideia de ldquoquedardquo da

unidade ndash embora natildeo se trate da Queda original240 A concepccedilatildeo do distanciamento

da unidade encontra-se na origem do vetor que impulsiona os vaacuterios modelos de

movimento asceacutetico especialmente aqueles do paganismo Haacute que se observar que

grande parte dos mitos cosmogocircnicos lida com a reconstituiccedilatildeo da multiplicidade e o

necessaacuterio esforccedilo para que se refaccedila a unidade e para sua preservaccedilatildeo Assim em

paralelo ao nascimento de um novo Dioniso em acircmbito grego tem-se no mito

egiacutepcio a reconstituiccedilatildeo do corpo de Osiacuteris por sua esposa Iacutesis permitindo desse

234 COLLI opcit pp17-19 235 Cf Oratio p 123 236 Alberto BERNABEacute Hieros Logos - Poesia oacuterfica sobre os deuses a alma e o aleacutem Satildeo Paulo 2012 p24 237 O mito de Osiacuteris tem seu principal relato em Plutarco De Iside e Osiride Set eacute identificado com o Tifeu dos

gregos e seu parentesco com os Titatildes ndash que eliminam Dioniso ndash eacute revelado no livro LXIX Para o tema veja-se J Gwyn GRIFFITHS (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970

238 Em passagem de Olympiodoro lecirc-se ldquoIrritado contra eles [os Titatildes] Zeus os fulminou com um raio e do resiacuteduo dos vapores emitidos por eles produziu-se a mateacuteria da qual nasceram os homensrdquo (KERN Orphicorum Fragmenta fr 140 trad Alberto Bernabeacute) Para maiores detalhes veja-se BERNABEacute opcit p80 ss

239 PICO opcit p 116 ldquonunc unum in multitudinem vi titanica discerpentes descendemusrdquo 240 Alberto Bernabeacute provavelmente natildeo de forma isolada denomina a transgressatildeo cometida pelos Titatildes de

ldquopecado antecedenterdquo pelo fato de natildeo ter sido cometido pelo primeiro homem ndash caso em que seria ldquooriginalrdquo (Textos Oacuterficos y Filosofia Presocratica Edit Trotta Madrid 2004)

101

modo a concepccedilatildeo poacutestuma de seu filho Horus que representa a continuidade241

Nascimento Morte (desmembramento) e Ressurreiccedilatildeo (reconstituiccedilatildeo) constituem

em acircmbito miacutetico o triacuteplice movimento filosoacutefico que parte da Unidade fragmenta-

se na Multiplicidade e completa-se com o retorno agrave Unidade

5) A passagem biacuteblica do ldquoTabernaacuteculo de Moiseacutesrdquo narra a construccedilatildeo de um

santuaacuterio moacutevel ordenada por Deus que deveria ser realizada pelo povo hebreu

durante sua permanecircncia de quarenta anos no deserto242 A partir da estrutura

triacuteplice que se forma no templo da tradiccedilatildeo hebraica Pico concebe um percurso

asceacutetico que encontra correspondecircncia em seu modelo triaacutedico de dialeacutetica filosoacutefica

Assim como o Heptaplus apresenta a analogia do tabernaacuteculo com os trecircs mundos do

cosmo piquiano243 a Oratio faz corresponder em escala reduzida as trecircs partes do

santuaacuterio a trecircs elementos do corpo humano reafirmando a analogia mosaica entre o

homem-microcosmo e o universo-macrocosmo244 Nesse sentido a parte do

tabernaacuteculo que se encontra sob ceacuteu aberto sem proteccedilatildeo alguma corresponde aos

oacutergatildeos genitais representando o corpo material ligado aos sentidos a aacuterea

intermeacutedia do santuaacuterio jaacute protegida dos fenocircmenos da natureza encontra

correspondecircncia no coraccedilatildeo consonante agraves emoccedilotildees mas tambeacutem ao uso

instrumental da razatildeo finalmente a parte sagrada do tabernaacuteculo chamada ldquoSanto

dos Santosrdquo representa a cabeccedila sede do conhecimento superior245

Os que ainda impuros tecircm necessidade moral fiquem com o

vulgo fora do tabernaacuteculo sob o ceacuteu descoberto como os

sacerdotes da Tessaacutelia ateacute estarem purificados246

Na parte externa do tabernaacuteculo exposta a toda sorte de intempeacuteries

encontra-se o vulgo a ldquocorte inferiorrdquo247 povoada por espeacutecies animais e tambeacutem

por homens bons e maus Esse primeiro estaacutegio eacute correspondente ao grau de

conhecimento daqueles que precisam despertar atraveacutes da filosofia moral Jaacute no

interior do tabernaacuteculo niacutevel equivalente ao saber intermeacutedio inicia-se a utilizaccedilatildeo

do corpo racional embora ainda natildeo filosoacutefico

241 Osiacuteris passa a ser considerado deus dos mortos e revivendo a partir de seu filho Horus ndash associado ao Sol e

identificado por Heroacutedoto com Apolo (2 144) ndash tambeacutem o deus da renovaccedilatildeo Cabe ressaltar que a presenccedila de duas naturezas no homem que o fazem viver sob constante escolha eacute um tema eacutetico abordado por Pico em outras passagens e obras cuja derivaccedilatildeo eacute colhida de suas fontes platocircnicas Parte da natureza do homem eacute trazida dos restos de Dioniso ingeridos pelos Titatildes ndash o que lhe proporciona um componente positivo e celeste ansioso por reintegrar-se agrave sua natureza originaacuteria a outra parte eacute proveniente dos Titatildes o que inflige ao homem um elemento negativo e imbuiacutedo da marca da infraccedilatildeo por aqueles cometida

242 Cf Ecircxodo 25-27 243 Os detalhes acerca da relaccedilatildeo do tabernaacuteculo com os trecircs mundos ndash sublunar celeste e angeacutelico ndash seratildeo

abordados no Capiacutetulo VI Para um entendimento do tabernaacuteculo conforme a visatildeo miacutestica hebraica veja-se Moshe IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista 2008-b pp481-484

244 ldquoO mundo eacute chamado por Moiseacutes de homem grande de fato se o homem eacute um pequeno mundo necessariamente o mundo eacute um homem granderdquo escreveraacute Pico no Heptaplus (p 381)

245 BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 pp 348-349 246 Oratio p120 ldquoQui polluti adhuc morali indigent cum plebe habitent extra tabernaculum sub divo quasi

Thessali sacerdotes interim se expiantesrdquo 247 Expressatildeo utilizada por BUSI-EBGI opcit p 348

102

Os que jaacute atingiram uma vida reta acolhidos no santuaacuterio natildeo

se aproximem ainda das coisas sacras mas prestem-lhes pri-

meiro serviccedilo com um noviciado dialeacutetico como zelosos levitas

da filosofia248

Ao uacuteltimo grau de eminente caraacuteter teoloacutegico Pico outorga caracteriacutesticas

filosoacuteficas confirmando sua visatildeo de perfeita concoacuterdia entre a Teologia e a Filosofia

em seu grau superior As palavras ndash atribuiacutedas a Moiseacutes ndash que finalizam sua reflexatildeo

exortam para uma preparaccedilatildeo que permita o ingresso ldquona via para a futura gloacuteria dos

ceacuteus por meio da Filosofiardquo249 Estaacutegio alcanccedilado apoacutes o ingresso no uacuteltimo grau do

tabernaacuteculo o Santo dos Santos

Por fim admitidos tambeacutem eles contemplem agora no

sacerdoacutecio da Filosofia ora o multicolor quer dizer o sideacutereo

ornamento do palaacutecio de Deus ora o candelabro das sete

chamas ora os elementos de pele ateacute que acolhidos finalmente

no tabernaacuteculo do templo por meacuterito da sublimidade teoloacutegica

usufruam retirado totalmente o veacuteu da imagem da gloacuteria de

Deus250

6) A Escola pitagoacuterica se caracterizava por um longo processo percorrido

atraveacutes da passagem por graus parte integrante da ldquobios theoretikoacutesrdquo (vida

contemplativa) agrave qual os membros se dedicavam para alcanccedilar a purificaccedilatildeo da

alma251 Embora tenha tido acesso agraves informaccedilotildees acerca das praacuteticas pitagoacutericas252

tendo conhecimento portanto dos estaacutegios de iniciaccedilatildeo pertinentes ao aprendizado

da doutrina Pico se limita na Oratio a abordar algumas normas contidas nos

akouacutesmata pitagoacutericos Os akouacutesmata eram preceitos ouvidos e retransmitidos

atraveacutes dos quais a organizaccedilatildeo pitagoacuterica se perpetuava juntamente com os sinais

de reconhecimento entre os membros os symbola253 Vaacuterias das doutrinas relatadas

por autores tardios foram transmitidas verbalmente geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo graccedilas agrave

248 Oratio p120 ldquoQui mores iam composuerunt in sanctuarium recepti nondum quidem sacra attractent

sed prius dialectico famulatu seduli levitae philosophiae sacris ministrentrdquo 249 No texto biacuteblico Moiseacutes natildeo faz referecircncia agrave filosofia trata-se de interpretaccedilatildeo de Pico Cf Oratio p120

ldquoHaec nobis profecto Moses et imperat et imperando admonet excitat inhortatur ut per philosophiam ad futuram caelestem gloriam dum possums iter paremus nobisrdquo

250 Oratio p120 ldquoTum ad ea et ipsi admissi nunc superioris Dei regiae multicolorem idest sidereum aulicum ornatum nunc caelestem candelabrum septem luminibus distinctum nunc pellicea elementa in philosophiae sacerdotio contemplentur ut postremo per theologicae sublimitatis merita in templi adita recepti nullo imaginis intercedente velo divinitatis gloria perfruanturrdquo

251 Como relata Jacircmblico (Vita Pythagorica 71-72) os estaacutegios se dividiam em periacuteodo probatoacuterio dokimasiacutea periacuteodo preparatoacuterio paraskeiecirc e periacuteodo purificatoacuterio cathartisis no uacuteltimo grau o teleiocirctes correspondente ao fim telos eram reveladas as primeiras e uacuteltimas causas das coisas Esse testemunho eacute tambeacutem confirmado em Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) que o atribui a Timeu

252 Pico teve acesso agraves ldquoVidasrdquo pitagoacutericas atraveacutes da leitura de Porfiacuterio e Dioacutegenes Laeacutercio nas traduccedilotildees de Ficino e atraveacutes da leitura direta de Jacircmblico do qual possuiacutea a Vida de Pitaacutegoras (cf ldquoBiblioteca di Picordquo in GARIN 2011 p109)

253 Aristoacuteteles em sua obra Sobre os Pitagoacutericos (fr195) relatada por Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 34-5) expotildee e analisa vaacuterios akouacutesmata como a abstenccedilatildeo de favas e o impedimento de se tocar em galo branco ou em peixes sagrados O Estagirita contudo natildeo pocircde decifrar o que havia por baixo de seu simbolismo Alguns akouacutesmata foram recolhidos em uma lista conservada por Porfiacuterio em seu Vida de Pitaacutegoras com comentaacuterios de Aristoacuteteles referentes ao assunto Veja-se tambeacutem Jacircmblico Vita Pythagorica 82

103

manutenccedilatildeo de tal oralidade254 Como as doutrinas da escola eram consideradas um

segredo e sua propagaccedilatildeo estritamente reservada aos adeptos os iniciados

pitagoacutericos apreendiam seus conteuacutedos e os memorizavam A transmissatildeo dos

akouacutesmata se dava atraveacutes de enunciados enigmaacuteticos de indecifraacutevel entendimento

e Pico parece ter extraiacutedo suas interpretaccedilotildees de fontes neoplatocircnicas255

Exortar-nos-aacute [Pitaacutegoras] em primeiro lugar a natildeo nos

sentarmos em cima do alqueire isto eacute natildeo deixarmos inativa a

parte racional com a qual a alma tudo mede julga e examina

mas antes dirigi-la e mantecirc-la desperta com o exerciacutecio e as

regras da dialeacutetica256

Na passagem acima Pico leitor de Jacircmblico alude de forma indireta aos

especiacuteficos exerciacutecios (aacuteskesis) para o desenvolvimento da parte racional da alma

integrantes da biacuteos pitagoacuterica Dentre eles embora natildeo mencionados havia a

preocupaccedilatildeo com a dieteacutetica a utilizaccedilatildeo da muacutesica para fins terapecircuticos os

exerciacutecios voltados agrave contemplaccedilatildeo257 e os exerciacutecios para a memoacuteria258 Aleacutem desses

uma praacutetica necessaacuteria consistia apoacutes os graus iniciais do discipulado em

permanecer em silecircncio por cinco anos atraveacutes do qual as experiecircncias iniciaacuteticas se

mantinham como prerrogativas exclusivas de seus iniciados259 Voltando aos

preceitos da transmissatildeo oral Pico prossegue com a interpretaccedilatildeo de outro

akouacutesmata que se coaduna com sua proacutepria filosofia

Indicar-nos-aacute entatildeo duas coisas que acima de tudo devemos

evitar urinarmos voltados para o sol e cortarmos as unhas

durante o sacrifiacutecio Soacute quando tivermos expulso de noacutes

mediante a moral os turvos apetites da voluptuosidade e

tivermos cortado as garras aduncas da ira removidos os

aguilhotildees da alma soacute entatildeo comeccedilaremos a tomar parte nos

sacros misteacuterios de Baco260

254 Apoacutes o esfacelamento das comunidades pitagoacutericas os membros dispersos mais antigos continuavam a fazer

dos akouacutesmata seu guia (cf JAcircMBLICO Comm Mat) 255 Cf notas de Eugenio Garin agrave ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942 256 Oratio p126 ldquoPraecipiet primo ne super modium sedeamus idest rationalem partem qua anima omnia

metitur iudicat et examinat ociosa desidia ne remittentes amittamus sed dialectica exercitatione ac regula et dirigamus assidue et excitemosrdquo

257 O vegetarianismo era praticado pelos pitagoacutericos numa eacutepoca em que o sacrifiacutecio animal era um dos pilares da cultura grega Os exerciacutecios de contemplaccedilatildeo estavam diretamente relacionados agraves especulaccedilotildees filosoacuteficas e teoloacutegicas pitagoacutericas em clara sintonia com a concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία (theoriacutea) que carrega o significado de ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo Nesse sentido a tradiccedilatildeo reconhece as especulaccedilotildees engendradas na escola pitagoacuterica tendo aiacute se originado o ideal grego de philosophia e theoriacutea (cf JAcircMBLICO Vita Pythagorica respectivamente 85 163-164)

258 O membro da koinoniacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia para a praacutetica da anamneacutesis ldquoAcreditavam que se deveria reter e conservar na memoacuteria tudo aquilo que era ensinado e escutado[hellip] de forma que o pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado agrave memoacuteria aquilo que havia acontecido no dia anteriorrdquo (Aristoacutexeno 58 D1 DK Jacircmblico VP 164-166)

259 A propoacutesito dessa passagem lecirc-se em Jacircmblico que ldquode todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute certamente a mais dura como bem demonstram aqueles que instituiacuteram os Misteacuteriosrdquo (VP 71-72)

260 Oratio p126 ldquoTum cavenda in primis duo nobis significabit ne auf adversus Solem emingamus auf inter sacrificandum unguem resecemus Sed postquam per moralem et superfluentium voluptatum eminxerimus appetentias et unguium praesegmina quasi acutas irae prominentias et animorum aculeos resecuerimus tum demum sacris idest de quibus mentionem fecimus Bacchi mysteriis []rdquo

104

Apesar de o iniacutecio do trecho acima natildeo poder ser elucidado a analogia com os

misteacuterios baacutequicos colocada como final do processo enfatiza o formato triaacutedico

repetido por Pico mais uma vez o adepto apoacutes ter passado pelos graus de purificaccedilatildeo

moral e intelectual-dialeacutetica eacute tomado por uma visatildeo final transformadora (os

sagrados misteacuterios de Baco) ou em termos filosoacuteficos consegue a unidade com o

Inteligiacutevel Apoacutes atingido tal estaacutegio seraacute necessaacuterio conservaacute-lo com a devida

alimentaccedilatildeo da alma

Aconselhar-nos-aacute por fim a alimentar o galo isto eacute a saciar

com soacutelida alimentaccedilatildeo e com a celeste ambrosia das coisas

divinas a parte divina da nossa alma261 []Eacute este o galo que

Soacutecrates na hora da morte no momento em que esperava

reunir o divino da sua alma agrave divindade de tudo e jaacute afastado do

perigo de qualquer doenccedila corpoacuterea considerava que devia a

Esculaacutepio isto eacute ao meacutedico da alma262

7) Em seus registros extraiacutedos dos Oraacuteculos Caldeus263 Pico encontra outro

modelo para comprovar sua concepccedilatildeo da triacuteplice via para a verdade em que se

repete o processo iniciado com a filosofia moral continuado com a dialeacutetica e

concluiacutedo nesse caso com a Teologia Observe-se a semelhanccedila do mito da alma

alada cuja narraccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Zoroastro com o Mito do Cocheiro narrado no

Fedro264

Escrevem os inteacuterpretes caldaicos que Zoroastro havia dito ser a

alma alada e que quando lhe caem as asas se precipita no

corpo e volta a voar para o ceacuteu quando lhe tornam a crescer

Tendo-lhe os disciacutepulos perguntado de que modo poderiam

261 PORFIacuteRIO Vita Pythagorica 42 JAcircMBLICO Protrepticus 21 Vejam-se ainda os comentaacuterios de FICINO

acerca do simbolismo pitagoacuterico (Commentariolus in symbola Pyth in Supplementum Ficinianum II) Referecircncias conforme notas de GARIN agrave ediccedilatildeo de De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari 1942

262 A passagem referida a Soacutecrates encontra-se em PLATAtildeO Feacutedon 118a Cf Oratio p126 ldquoPostremo ut gallum nutriamus nos admonebit idest ut divinam animae nostrae partem divinarum rerum cognitione quasi solido cibo et caelesti ambrosia pascamus []Hunc gallum moriens Socrates cum divinitatem animi sui divinitati maioris mundi copulaturum se speraret Aesculapio idest animarum medicordquo []

263 A atribuiccedilatildeo feita a Zoroastro das sentenccedilas presentes nos Oraacuteculos Caldeus eacute uma provaacutevel inferecircncia de George Plethon no que foi seguido por Marsiacutelio Ficino em sua Theologia platocircnica (Cf BIDEZ - CUMONT Les Mages helleacuteniseacutes Paris 1938) Pico cita na Oratio os oraacuteculos dos Magos Ezra Zoroastro e Melchiar menciona tambeacutem ldquoEvantes o persa que explica a teologia caldeiardquo e entre essas fontes indica certos textos que ldquoentre os gregos circularam de forma incompletardquo Os textos que circularam entre os gregos de forma incompleta provavelmente satildeo os recolhidos inicialmente por Miguel Psello (que os denomina ldquoditos caldeusrdquo) e depois por George Plethon (que os atribuiacutea aos Magos descendentes de Zoroastro) Cf Giacomo CORAZZOL Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquoOratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo in Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin 2013 pp9-61 Em carta a Ficino de 1486 Pico menciona ainda ldquoum livreto sobre os dogmas da teologia caldaica com uma divina e rica elucidaccedilatildeo dos Persas Gregos e Caldeus a propoacutesito de tais dogmasrdquo (apud KRISTELLER Supplementum Ficinianum 1937 pp 272-273) Uma nota na ediccedilatildeo do De Hominis Dignitate etc (1942 p128) confirma Plethon juntamente com Miguel Psello como fontes de acesso de Pico aos Oraacuteculos

264 Cf PLATAtildeO Fedro 246 ss

105

tornar a alma apta para o voo com asas bem plumadas disse

lsquoregai as asas com a aacutegua da vidarsquo265

Na sequecircncia da narrativa piquiana os disciacutepulos de Zoroastro teriam lhe

perguntado como poderiam obter tais aacuteguas A resposta introduz por meio de uma

paraacutebola (ldquoparabolamrdquo) extraiacuteda da boca do profeta um nuacutecleo epistemoloacutegico que

Pico faraacute corresponder ao sistema que estaacute a defender

lsquoO paraiacuteso de Deus eacute banhado e irrigado por quatro rios a partir

daiacute podereis atingir as aacuteguas salutares O nome daquele que

corre de setentriatildeo eacute Pischon que significa justiccedila o que vem

do ocaso chama-se Dichon isto eacute expiaccedilatildeo o que vem do

oriente eacute Chiddekel e significa luz por fim aquele que corre do

sul chama-se Perath que podemos interpretar como feacutersquo266

O modelo de quatro rios encontra-se no Gecircnesis267 e natildeo se sabe de quais

fontes Pico colheu a passagem considerada caldaica268 Aos quatro paradigmas

relacionados agrave justiccedila expiaccedilatildeo luz e feacute o autor faz corresponder um processo

relacionaacutevel agrave tripartita philosophia

Devemos purificar a viscosidade dos olhos com a ciecircncia moral

como com ondas ocidentais devemos dirigir atentamente o

olhar com a dialeacutetica como com um niacutevel boreal devemos nos

habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca

luz da verdade primeiro indiacutecio do sol nascente ateacute que

finalmente com a meditaccedilatildeo teoloacutegica e o santiacutessimo culto de

Deus possamos aguentar vigorosamente como aacuteguias do ceacuteu o

fulgurante esplendor do sol do meio-dia269

265 Oratio p128 ldquoScribunt interpretes Chaldaei verbum fuisse Zoroastris alatam esse animam cumque alae

exciderent ferre illam praeceps in Corpus tum illis subcrescentibus ad superos revolare Percunctantibus eum discipulis alis quo pacto bene plumantibus volucres animos sortirentur lsquoirrigetis dixit alas aquis vitaersquordquo

266 Conforme as palavras atribuiacutedas a Zoroastro (Oratio p 128) ldquoQuattuor amnibus paradisus Dei abluitur et irrigatur indidem vobis salutares aquas hauriatis Nomen ei qui ab aquilone Pischon quod rectum denotat ei qui ab occasu Dichon quod expiationem significat ei qui ab ortu Chiddekel quod lumen sonat ei qui a meridie Perath quod pietatem interpretari possumusrdquo

267 Gecircnesis 2 10-14 ldquoNo Eacuteden nascia um rio que irrigava o jardim e depois se dividia em quatro O nome do primeiro eacute Pisom Ele percorre toda a terra de Havilaacute onde existe ouro [] O segundo que percorre toda a terra de Cuxe eacute o Giom O terceiro que corre pelo lado leste da Assiacuteria eacute o Tigre E o quarto rio eacute o Eufratesrdquo

268 No periacuteodo de redaccedilatildeo da Oratio Pico encontrava-se sob orientaccedilatildeo de Flavio Mitridate e cita em carta endereccedilada a Ficino n0 outono de 1486 seus estudos caldaicos (Supplementum Ficinianum pp 272-3) ldquoChaldaici hi libri sunt si libri sunt et non thesaurirdquo Pico tinha agrave disposiccedilatildeo alguns textos escritos em uma mescla de aramaico e hebraico conforme se extrai de alguns fragmentos Por exemplo os nomes dos rios paradisiacuteacos conforme constam no manuscrito Palatino parecem estar em caracteres etioacutepicos ou em liacutengua aramaico-hebraica conforme notou Chaim WIRSZUBSKI (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism 1987) Veja-se para toda a questatildeo Stephen FARMER Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) 1998 pp 13 486-87

269 Oratio p128 ldquo[] profecto nihil aliud nisi ut morali scientia quasi undis hibericis oculorum sordes expiemus dialectica quasi boreali amussi illorum aciem liniemus ad rectum Tum in naturali contemplatione debile adhuc veritatis lumen quasi nascentis solis incunabula pati assuescamus ut tandem per theologicam pietatem et sacratissimum Dei cultum quasi caelestes aquilae meridiantis solis fulgidissimum iubar fortiter perferamusrdquo

106

Nesta uacuteltima passagem para conseguir estabelecer uma simetria entre seu

pressuposto processo triaacutedico e as quatro qualidades postuladas pelos caldeus Pico

insere um intervalo no lugar de um dos quatro elementos do modelo caldaico como

se fosse um niacutevel preparatoacuterio colocado antes da etapa final teoloacutegica ldquodevemos nos

habituar a suportar na contemplaccedilatildeo da natureza a ainda fraca luz da verdaderdquo270 Tal

inserccedilatildeo que representa o primeiro contato com as ldquofaiacutescasrdquo iniciais da verdade

permite que seja mantida a analogia entre os trecircs ldquomomentosrdquo do processo filosoacutefico

e a misteriologia caldaica A despeito da impossibilidade de elucidaccedilatildeo do significado

dos rios no mito acima descrito torna-se relevante o esforccedilo realizado pelo escritor

para alcanccedilar uma simetria conceitual entre os conteuacutedos Sob tal prisma a resposta

para a questatildeo de como renovar as asas e tornaacute-las aptas para novos voos encontra-se

no caminho que se inicia com a filosofia moral se desenvolve por meio dos exerciacutecios

dialeacuteticos e se conclui na meditaccedilatildeo teoloacutegica O trecho faz menccedilatildeo ainda a ciclos

relacionados agrave luz solar o que leva Pico ao teacutermino de sua argumentaccedilatildeo a declarar

ter encontrado semelhanccedila com a concepccedilatildeo triaacutedica dos periacuteodos do dia ldquomatutinos

vespertinos e meridianosrdquo cantados primeiramente por Davi e em seguida

explicados por Agostinho271 Os trecircs periacuteodos se referem a fases do conhecimento do

homem sendo que o uacuteltimo referente agrave ofuscante luz do meio-dia encontra eco na

regiatildeo alcanccedilada atraveacutes da contemplaccedilatildeo conforme se conclui no final da exposiccedilatildeo

Esta eacute a luz meridional que inflama os Serafins e do mesmo

modo ilumina os Querubins272

Os sete modelos acima expostos cada qual pertencente a uma distinta

tradiccedilatildeo seja filosoacutefica teoloacutegica ou misterioloacutegica embora natildeo sistematizados pelo

Autor na forma aqui apresentada e aparentemente lanccedilados no texto qual uma

profusatildeo de referecircncias sem qualquer viacutenculo conceitual representam paradigmas

empregados para sustentar a ideia postulada na obra da existecircncia de formatos

270 Observe-se que nessa sentenccedila natildeo eacute feita correspondecircncia alguma com os niacuteveis da filosofia postulados pelo

autor enquanto agraves outras trecircs sentenccedilas Pico faz corresponder os graus da filosofia moral relacionada ao ocaso-ocidente-expiaccedilatildeo da passagem caldaica da dialeacutetica relacionada ao norte-boreal-justiccedila e por uacuteltimo da teologia que Pico relaciona ao sol do meio-dia e agrave feacute

271 Cf Oratio p128 ldquoHae illae forsan et a Davide decantatae primum et ab Augustino explicatae latius matutinae meridianae et vespertinae cognitionesrdquo As passagens mencionadas se encontram em Salmos 55 17 (Vulgata 54) Agostinho De Genesi ad Litteram IV 47 Conforme Agostinho em seu Comentaacuterio ao Gecircnesis ldquoo universo pode apresentar ao mesmo tempo o dia onde estaacute o sol a noite onde natildeo estaacute a tarde de onde o sol se afasta a manhatilde aonde se aproxima [] E noacutes natildeo podemos contemplar tudo isso ao mesmo tempo e natildeo devemos equiparar esta situaccedilatildeo terrena e o circuito temporal e local da luz corpoacuterea agravequela paacutetria celestial onde eacute sempre dia na contemplaccedilatildeo da Verdade incomutaacutevel sempre tarde no conhecimento da criatura em si mesma sempre manhatilde a partir deste conhecimento ao louvor do Criador Pois ali natildeo se fez tarde pela ausecircncia da luz superior mas pela diversidade de conhecimento inferior nem se faz manhatilde como o conhecimento matutino sucede agrave noite da ignoracircncia mas porque eleva para a gloacuteria do Criador o conhecimento vespertino Finalmente tambeacutem o salmista [Davi] natildeo mencionando a noite diz lsquode tarde pela manhatilde e ao meio dia cantarei e anunciarei e ouviraacutes a minha vozrsquordquo

272 Oratio p128 ldquoHaec est illa lux meridialis quae Seraphinos ad lineam inflammat et Cherubinos pariter illuminatrdquo

107

triaacutedicos asceacuteticos que se repetem sob registros diacutespares A partir de tal enfoque a

concepccedilatildeo de domiacutenio da natureza sugerida por alguns dos autores humanistas que

trataram da dignidade do homem antes de Pico eacute suplantada pela ideia de

transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios (vegetal animal racional intelectual)

que encontra eco em um percurso de dignificaccedilatildeo (ou posicionamento espacial) em

acircmbito cosmoloacutegico Essa experiecircncia eacute entendida pelo escritor como um caminho a

ser percorrido com o auxiacutelio das corretas ferramentas ndash a teurgia dos Misteacuterios os

exerciacutecios dialeacuteticos filosoacuteficos a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo agostiniano

Os sete paradigmas confirmam que a uacuteltima etapa em qualquer dos caminhos

percorridos eacute preenchida pela experiecircncia de encontro com um centro de unidade

final da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o Absoluto Para Pico esse eacute

um momento de cunho teoloacutegico ndash descartado de qualquer dogma como visto na

discussatildeo do Capiacutetulo III Esse eacute o significado de apoacutes a ldquofilosofia ter acalmado os

conflitos da opiniatildeordquo apoacutes ldquoa dialeacutetica ter acalmado a razatildeordquo entatildeo sim ldquoa teologia

mostraraacute o caminhordquo273 Destarte ao termo de qualquer dos modelos encetados

conhece-se uma dissoluccedilatildeo ndash mesmo no percurso filosoacutefico caso da ldquofaiacutescardquo platocircnica

ndash em prol daquela uniatildeo A esse gecircnero de ocorrecircncia Pico remete a experiecircncia de

Moiseacutes no monte Sinai ao tratar da questatildeo filosoacutefica do amor-Eros ldquoMoiseacutes amou o

Deus que viu e promulgou ao povo aquilo que antes tinha visto na montanha como

contempladorrdquo274

A epopteia de Elecircusis a illuminatio angeacutelica a pertenccedila ao Santo dos Santos

do tabernaacuteculo Giovanni Pico natildeo estava a lanccedilar dados de forma aleatoacuteria em seu

texto Cada referecircncia eacute um tijolo colocado para erigir seu projeto e afirmar sua

mensagem dentro de um planejamento No caso dos paradigmas acima sua intenccedilatildeo

eacute mostrar que o percurso de etapas ascensionais se faz necessaacuterio para a descoberta

de ensinamentos que levam agrave Unidade e que em razatildeo de sua preciosidade

encontram-se custodiados pelo segredo De forma mais patente esse tema seraacute

estabelecido no Heptaplus como seraacute visto a partir do proacuteximo Capiacutetulo

273 Oratio p119 (ldquoA dialeacutetica acalmaraacute a razatildeo a filosofia natural acalmaraacute os conflitos da opiniatildeo a teologia

mostraraacute o caminhordquo) ldquoSedabit dialectica rationis turbas inter orationum pugnantias et syllogismorum captiones anxie tumultuantis Sedabit naturalis philosophia opinionis lites et dissidia quae inquietam hinc inde animam vexant distrahunt et lacerant []Ad illam [theologia] ipsa et viam monstrabit et comes ducet quae procul nos videns properantesrdquo

274 Oratio p112 Para esse modelo de experiecircncia de religaccedilatildeo com o Espiacuterito de Deus Pico se fundamenta em teoacutelogos como Fiacutelon Gregoacuterio de Nissa (La vita di Mosegrave II 182) e sobretudo Dioniacutesio Areopagita (Cf Pier Cesare BORI ldquoI tre Giardini nella scena paradisiacuteaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandolardquo in Annali di storia dellrsquoesegesi 1996)

108

CAPIacuteTULO V

RESSONAcircNCIAS CABALIacuteSTICAS E SEU INFLUXO SOBRE PICO

Ao redor de 1480 o papa Sisto IV promove a traduccedilatildeo para o latim de alguns

textos de conteuacutedo cabaliacutestico com o objetivo de apresentaacute-los ao mundo cristatildeo275

Giovanni Pico agrave eacutepoca muito jovem narraria em seu Discurso anos depois como

teria encontrado e adquirido tais livros ldquocom natildeo pequeno dispecircndio de dinheirordquo

lendo-os ldquocom suma diligecircncia e incansaacutevel estudordquo276 Embora essas traduccedilotildees natildeo

tenham sido utilizadas diretamente nas obras piquianas o intento do papa eacute

sugestivo de um tipo de interesse que tomava forma naquele seacuteculo mesmo que de

forma muito tiacutemida277 Cerca de duzentos anos antes de Pico Ramon Llull na

Espanha havia tentado apresentar a Cabala judaica ao mundo latino mas sua

tentativa fora em breve esquecida278 no lsquo400 os estudos cabaliacutesticos ganharam certa

repercussatildeo entre alguns autores italianos especialmente em Florenccedila279 contudo e

de forma bastante consensual Pico foi o primeiro a introduzir com eficaacutecia a Cabala

no pensamento cristatildeo280 razatildeo suficiente para que o estudioso do Autor aproxime

seu olhar aos principais conceitos da doutrina

O Mirandolano define na Oratio o significado de ldquocabalardquo ldquoverdadeira

interpretaccedilatildeo da lei dada a Moiseacutes por Deus que para os Hebreus tem o mesmo

275 Cf PICO Oratio p159 Quais fossem esses textos e quem teria sido o tradutor natildeo eacute informado na obra

piquiana Entretanto sobre o mesmo argumento voltou-se o teoacutelogo alematildeo Konrad Summenhart em 1494 em sua obra Liber bipartitus informando que os textos cabaliacutesticos que interessaram ao papa teriam sido o Seder lsquoolam e o Neophastis A data de tais traduccedilotildees natildeo eacute informada mas deve ser estabelecida entre 1471 e 1484 periacuteodo do papado de Sisto IV Acerca da obra e comentaacuterios de Summenhart leia-se Guido BARTOLUCCI Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana in Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org F Lelli) 2014 p54

276 Cf PICO ibid p161 277 Eram poucos os que haviam ouvido falar das doutrinas cabaliacutesticas Tanto na corte pontifiacutecia quanto nas

universidades da Itaacutelia e da Europa nenhum cristatildeo fazia ideia do que fosse a Cabala ndash e nem estava interessado em saber (cf BUSI-EBGI Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p296) O proacuteprio Pico conta na Apologia (ed Fornaciari 2010 p176-77) que um dos Padres ndash durante o interrogatoacuterio que se seguiu agrave publicaccedilatildeo das Conclusiones ndash perguntara quem era esse tal sujeito chamado ldquoCabalardquo Por outro lado nos casos em que a Cabala natildeo era completamente desconhecida seu estudo era visto como uma ldquobizarrice anedoacuteticardquo e natildeo como uma discussatildeo seacuteria conforme observou Cesare VASOLI em seu ldquoPrefaacuteciordquo (p XXV) a Giovanni Pico della Mirandola (GARIN 2011)

278 O teoacutelogo e filoacutesofo catalatildeo Ramon Llull florescido no seacuteculo XIII e conhecido em espanhol como Raimundo Lulio escreveu em aacuterabe latim e em occitano (langue doc) tendo recebido a alcunha de Arabicus Christianus (aacuterabe cristatildeo)

279 Interessaram-se pelo estudo da Cabala de forma a deixar registros Pier Leone da Spoleto Egidio da Viterbo e Domenico Grimani (Cf Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 p 56)

280 Efetivamente Pico mostra ter descoberto confirmaccedilotildees para a revelaccedilatildeo cristatilde no coraccedilatildeo da miacutestica hebraica como antecipado nas Conclusiones e confirmado no Heptaplus A teologia cabaliacutestico-cristatilde de Pico interessaria no Quinhentos a filoacutesofos e miacutesticos sobretudo do ambiente franciscano tendo sido aperfeiccediloada por Johann Reuchlin e Cornelius Agrippa e reutilizada mais tarde pelos ldquoplatocircnicos de Cambridgerdquo Esses autores se serviram de muitas traduccedilotildees latinas realizadas por judeus convertidos ao Cristianismo Na Cabala cristatilde foram mantidos elementos hermenecircuticos maacutegicos e de natureza teosoacutefica sendo retirados os elementos ritualiacutesticos da religiatildeo judaica Sua originalidade em apresentar a Cabala ao mundo cristatildeo eacute confirmada por FORNACIARI (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp 14 23) BACCHELLI (Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabaliacutestica 2001 np56) CASSUTO (Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p319) GARIN (Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina 2011 p101) SECRET (Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Cap) entre outros

109

significado que receptiordquo uma doutrina recebida ldquopor meio de sucessivas revelaccedilotildees

que um recebia do outro como por direito hereditaacuteriordquo281 De fato a palavra hebraica

qabbalah significa ldquorecepccedilatildeordquo ldquotradiccedilatildeordquo ou ldquoaceitaccedilatildeordquo indicando a transmissatildeo de

doutrinas secretas do misticismo judaico e particularmente caracterizando um

movimento de pensamento de conotaccedilatildeo esoteacuterica282 Em seu valor de ldquorecepccedilatildeordquo

enuncia o conceito de continuidade com o passado e tambeacutem o sentido de

responsabilidade que essa heranccedila espiritual comporta Cada geraccedilatildeo eacute chamada a

receber da precedente o conjunto de valores e ensinamentos secretos sobre os quais

se funda o Judaiacutesmo devendo transmiti-la agrave sucessiva283 O termo que pode ser

encontrado com diferentes grafias ndash entre as quais ldquocabalardquo forma latina empregada

por Giovanni Pico e aqui utilizada ndash284 teria aparecido na literatura apenas no seacuteculo

XI em um escrito do poeta e filoacutesofo Salomon Ibn Gabirol285 enquanto que sua plena

conotaccedilatildeo de conhecimento secreto ganharia corpo por volta do tardio seacuteculo XIII

partindo do ciacuterculo de Isaac o Cego no sul da Franccedila286

A Cabala italiana que desde sua origem ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVI exerceu

influxos mais efetivos sobre os pensadores cristatildeos renascentistas que se

interessaram pelo assunto tem sua ldquoespinha dorsalrdquo formada por trecircs cabalistas

como informa Moshe Idel Abraham Abulafia que compocircs a maior parte de suas

obras na Itaacutelia Menahem Recanati e o autor do livro Maarekhet haElohut (A Ordem

da Divindade)287 De acordo com o comentarista os trecircs tinham em comum a

caracteriacutestica conceitual da incompatibilidade com a tradicional visatildeo miacutetica da

divindade apresentando concepccedilotildees mais filosoacuteficas Tal forma diferenciada fez com

que por um lado os cabalistas espanhoacuteis que chegavam agrave Itaacutelia estranhassem as

interpretaccedilotildees da escola italiana por outro que os ciacuterculos neoplatocircnicos de Florenccedila

tivessem um encontro sem atritos com a teologia ldquoquaserdquo filosoacutefica dos rabinos

Abulafia e Recanati288 A forma de Cabala protagonizada na Itaacutelia de qualquer forma

manteve os temas fundamentais do movimento relacionados com a emanaccedilatildeo do

princiacutepio divino e com a concepccedilatildeo de que cada parte da criaccedilatildeo responde a uma

secreta harmonia de desenho transcendente Para melhor entender o emprego da

281 Cf PICO Oratio pp 157 159 Veja-se tambeacutem Apologia (ed Fornaciari 2010) p 29 282 De acordo com IDEL (2008-a p17) desde o seacuteculo X haacute testemunhos da existecircncia de uma forma especiacutefica

de tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica mas somente a partir do seacuteculo XII comeccedilam a se organizar registros a esse respeito 283 Giulio BUSI La Qabbalah 2011 p3 284 As grafias mais utilizadas para o termo proveniente do verbo hebraico LeCaBeL (ldquoreceberrdquo) satildeo qabbalah

kabbalah ou CaBaLaacute Eacute de se notar que esta palavra eacute oxiacutetona em Hebraico mas frequentemente falada em outros idiomas tanto como paroxiacutetona (inglecircs) como agraves vezes proparoxiacutetona (espanhol)

285 Salomon Ibn-Gebirol ou Schlomo ben Judah tornou-se conhecido no mundo cristatildeo como Avicebron A atribuiccedilatildeo de ter sido o primeiro a mencionar o termo ldquocabalardquo consta na ldquoIntroduccedilatildeordquo da ediccedilatildeo em espanhol do Zohar do comentarista Leoacuten DUJOVNE (El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires 1992 p XVII)

286 IDEL 2008a pp17-18 Para compor o quadro histoacuterico de desenvolvimento do misticismo hebraico satildeo relevantes tanto a obra de Gershom SCHOLEM As Grandes correntes da Miacutestica Judaica (opcit) quanto a de Giulio BUSI Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo 1995

287 IDEL As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista in Cabala Cabalismo e Cabalistas 2008-b p460 O autor do Sefer Maarekhet haElohut do qual Idel menciona a ediccedilatildeo de Mantova de 1558 natildeo eacute conhecido Sabe-se da existecircncia de uma traduccedilatildeo da obra realizada por Abulafia (ibid np461)

288 IDEL ibid p460 Efetivamente a Cabala italiana era mais ldquoextaacuteticardquo (especificaccedilatildeo que seraacute vista adiante) Para Abulafia por exemplo a crenccedila nas dez Sefirot (a ser verificada adiante) era pior do que a crenccedila cristatilde na Trindade Esse uacuteltimo toacutepico eacute tratado por IDEL em sua tese de doutoramento (As obras e a Doutrina de Abraatildeo Abulaacutefia Universidade Hebraica de Jerusaleacutem 1976 pp436 ss)

110

Cabala nos estudos realizados por Pico e as fontes por ele utilizadas se faz necessaacuterio

inicialmente entender como se deu sua transmissatildeo atraveacutes da histoacuteria e na

sequecircncia quais as principais concepccedilotildees e terminologias utilizadas pelos cabalistas

1 As fontes hebraicas da tradiccedilatildeo esoteacuterica

A transmissatildeo oral

A primazia da transmissatildeo de concepccedilotildees cabalistas natildeo deve ser creditada aos

escritos que lhe foram dedicados ao contraacuterio foi a tradiccedilatildeo oral a ajudar a perpetuar

tais concepccedilotildees sendo que a ocorrecircncia de manuscritos deve ser entendida como

uma seacuterie de episoacutedios excepcionais ocorridos dentro de uma longa histoacuteria de

transmissotildees orais Pressotildees externas como perseguiccedilotildees religiosas sociais e

poliacuteticas determinavam as variaccedilotildees entre as diferentes fases do misticismo judaico e

as consequentes disposiccedilotildees entre o que seria resguardado como esoteacuterico e o que se

tornaria puacuteblico289 A diaacutespora europeia responsaacutevel por fragmentar o judaiacutesmo em

pequenas comunidades criou circunstacircncias que exigiram que a experiecircncia miacutestica

fosse confiada agrave paacutegina escrita uma forma mais concreta de ampliar sua difusatildeo natildeo

sem que se mantivesse o cuidado em preservar uma linguagem simboacutelica que

protegesse os verdadeiros significados Eis a razatildeo como observa Giulio Busi de

serem frequentes nos textos cabaliacutesticos passagens como ldquoquem eacute dotado de intelecto

entenderaacuterdquo indicando a existecircncia de uma aacuterea conceitual reservada apenas agrave

transmissatildeo oral e deixando claro que o texto escrito natildeo apresenta todas as

respostas290 A necessidade histoacuterica de se registrar de forma escrita a tradiccedilatildeo oral

remete ao periacuteodo de exiacutelio babilocircnico e estaacute bem narrada por Giovanni Pico na

Oratio

Esdras291 ao ver claramente que natildeo se podia manter a tradiccedilatildeo

fixada pelos antepassados de transmitir oralmente a doutrina

nos exiacutelios nos massacres nas fugas nos cativeiros do povo de

Israel dado que deste modo pereceriam os misteacuterios da celeste

doutrina concedidos por Deus e natildeo podendo se manter por

muito tempo a memoacuteria desta sem a interposiccedilatildeo de textos

escritos estabeleceu que reunidos os saacutebios entatildeo

sobreviventes cada um manifestasse quanto conservava

guardado na memoacuteria acerca dos misteacuterios da Lei Estes em

289 Tova SENDER Iniciaccedilatildeo agrave Cabala 1992 p9 290 BUSI La Qabbalah 2011 pp5-6 291 Pico refere-se aos livros biacuteblicos de Esdras Os dois primeiros o de Esdras e o de Neemias pertencem ao

elenco dos livros autecircnticos assumidos pela Igreja o terceiro eacute o Esdras grego o quarto eacute outro apoacutecrifo do gecircnero apocaliacuteptico Pico trabalha com o Esdras IV (cf Luiz FERACINE 1999 notas)

111

seguida chamados os escribas foram escritos em setenta

volumes292

Os primeiros sinais de uma reflexatildeo efetivamente miacutestica colocada em forma

escrita remetem ao iniacutecio do segundo seacuteculo de nossa Era periacuteodo em que se insere a

redaccedilatildeo da Mishnaacute ndash essencialmente um corpus juriacutedico Trata-se da ediccedilatildeo escrita

de grande parte da tradiccedilatildeo oral com o conteuacutedo das leis e dos costumes que foram

se enriquecendo atraveacutes de anos de convivecircncia293 Esse conjunto de tratados eacute

amplamente comentado por outro importante texto intitulado Guemaraacute Ao conjunto

Mishnaacute e Guemaraacute deu-se o nome de Talmud em suas duas versotildees uma de

Jerusaleacutem e outra da Babilocircnia294 Esses dois Talmudim (plural de Talmud)

constituem uma espeacutecie de enciclopeacutedia natildeo apenas das tradiccedilotildees legais como das

praacuteticas religiosas da exegese e das lendas difundidas em idade tardo-antiga

contendo consistentes elementos de reflexatildeo acerca de temas miacutesticos295 Ademais

era comum efetuar-se no Talmud referecircncias a partes da literatura que se

encontravam fora do Pentateuco ou seja aos conteuacutedos transmitidos oralmente Por

essa razatildeo as fontes talmuacutedicas embora escritas compotildeem o que seria a Toraacute oral

dentro da tradicional distinccedilatildeo entre lsquoToraacute escritarsquo e lsquoToraacute oralrsquo Conforme explica

Scholem296 a Toraacute escrita eacute o proacuteprio texto do Pentateuco297 jaacute a Toraacute oral eacute a soma

de tudo o que foi comentado por eruditos ou saacutebios acerca daquele corpus escrito

natildeo apenas pelos comentadores talmuacutedicos da Lei mas por todos os demais que

interpretaram o texto Retrocedendo aos tempos mosaicos e de acordo com a

tradiccedilatildeo rabiacutenica Moiseacutes teria recebido ao mesmo tempo ambas as Toraacutes no Monte

Sinai sendo que a parte referente aos ensinamentos natildeo escritos deveria ser

transmitida oralmente de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ndash de acordo com a antiga proibiccedilatildeo ldquoo

que eacute transmitido oralmente natildeo pode ser escritordquo298 Para o Judaiacutesmo rabiacutenico tudo

quanto um erudito de qualquer eacutepoca viesse a deduzir da Toraacute estaria incluso

naquela tradiccedilatildeo oral fornecida a Moiseacutes validando-se assim a concepccedilatildeo de que as

duas Toraacutes satildeo uma soacute tradiccedilatildeo oral e palavra escrita completam-se mutuamente

292 PICO Oratio p159 ldquoEsdras tunc ecclesiae praefectus post emendatum Moseos librum cum plane

cognosceret per exilia caedes fugas captivitatem gentis Israeliticae institutum a maioribus morem tradendae per manus doctrinae servari non posse futurumque ut sibi divinitus indulta caelestis doctrinae arcana perirent quorum commentariis non intercedentibus durare diu memoria non poterat constituit ut convocatis qui tunc supererant sapientibus afferret unusquisque in medium quae de mysteriis legis memoriter tenebat adhibitisque notariis in septuaginta volumina redigerenturrdquo

293 A Mishnaacute eacute composta por 63 tratados compilados pelo Rabino Yehudaacuteh Hanassiacute no seacuteculo II dC 294 A ediccedilatildeo do Talmud da Babilocircnia eacute considerada a mais completa pois sua composiccedilatildeo iniciou durante o

exiacutelio babilocircnico em 586 aC e chegou ateacute por volta do seacuteculo V dC (cf Marcelo MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute - A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014 p71)

295 Maiores detalhes acerca da discussatildeo histoacuterica em torno da Mishnaacute podem ser colhidos na obra La Qabbalah de Giulio BUSI (opcit pp38-40) aleacutem de o autor apresentar uma especiacutefica bibliografia para o tema Acerca do Talmud veja-se ainda SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978

296 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo 1978 p61 297 A Toraacute eacute composta pelos 5 Livros de Moiseacutes (entre 1100 e 1300 aC) Bereshit Shemot Vaikraacute Bamidbar e

Devarim conhecidos respectivamente como Gecircnesis Ecircxodo Leviacutetico Nuacutemeros e Deuteronocircmio chamados anos depois de Antigo Testamento juntamente com os Livros de Profetas (Josueacute Juiacutezes Isaiacuteas Jeremias Ezequieletc) e Escritos (Salmos Proveacuterbios JoacuteDaniel Esdras etc) Todo esse conjunto de livros eacute chamado TaNaKh

298 MAGHIDMAN opcit p71

112

Dentre os pensadores cristatildeos Pico foi dos poucos a evidenciar o esoterismo

presente nas Escrituras como se infere a partir do destaque dado ao tema das duas

Leis recebidas por Moiseacutes A questatildeo da separaccedilatildeo entre a literalidade e oralidade

recebeu foco na Apologia depois de o tema ter se repetido em algumas passagens da

Oratio como a que narra o pedido do ldquoAltiacutessimordquo de tornar puacuteblico o primeiro

daqueles livros para ser lido pelos ldquodignos e indignosrdquo e de confiar os demais

[secretos e correspondentes agrave lei oral] ldquoapenas aos saacutebiosrdquo Em outra passagem Pico

afirma que aquele livro poderia se tornar puacuteblico ndash mantendo sua dimensatildeo secreta

preservada ndash desde que fossem observadas certas condiccedilotildees ldquoa Moiseacutes Deus ordenou

que divulgasse a lei mas que natildeo escrevesse a interpretaccedilatildeo da lei nem a divulgasse

mas a revelasse soacute a Jesus Nave [Josueacute] e este por sua vez aos sumos sacerdotes sob

o sagrado sigilo do absoluto silecircnciordquo299 Outros dois cristatildeos vaacuterios seacuteculos antes de

Pico haviam sido afetados pela temaacutetica da tradiccedilatildeo oral biacuteblica Hilaacuterio e Oriacutegenes

ambos mencionados na Oratio300

Com o passar do tempo os ensinamentos orais em geral passaram a ser

considerados como pertencentes agrave Cabala e o emprego do termo foi sendo cada vez

mais relacionado agrave transmissatildeo oral Exemplo de tal uso eacute verificado no comentaacuterio

feito por Judah Ben Barzilai no seacuteculo XII ao Secircfer Yetsiraacute ndash importante obra

cabaliacutestica a ser abordada adiante ndash ao narrar a criaccedilatildeo do Espiacuterito Santo conta o

talmudista que os saacutebios costumavam transmitir ldquoreservadamente num sussurro

atraveacutes da Cabala declaraccedilotildees dessa espeacutecierdquo301 O esoterismo deveria portanto ser

mantido por cada geraccedilatildeo em virtude da restriccedilatildeo em se confiar noccedilotildees mais

profundas aos textos escritos evitando-se que os segredos da Revelaccedilatildeo fossem

deturpados por leitores despreparados Por essa razatildeo a presenccedila de um mestre se

fazia necessaacuteria na transmissatildeo oral pois atraveacutes da relaccedilatildeo direta entre mestre e

disciacutepulo seria possiacutevel avaliar as intenccedilotildees e garantir as atitudes intelectuais e eacuteticas

do aprendiz preservava-se assim a verdade intacta

Em relaccedilatildeo aos graus que levam ao conhecimento miacutestico haacute informaccedilotildees de

que em eacutepocas mais remotas seguiam-se exigecircncias muito riacutegidas a respeito de

certos atributos morais e mesmo de traccedilos fisiognomocircnicos dos seus participantes302

Em tempos mais recentes ainda foram mantidas algumas limitaccedilotildees ao aprendizado

da Cabala como o limite miacutenimo de idade que dependendo da escola pode variar

dos trinta aos cinquenta anos Pico conhecia a restriccedilatildeo da idade mencionando-a na

Apologia ldquoEsses livros satildeo venerados com tanta devoccedilatildeo que ningueacutem pode tocaacute-los

antes de ter completado quarenta anosrdquo303 Quanto agrave trajetoacuteria iniciaacutetica natildeo haacute

evidecircncias da existecircncia de etapas preacute-definidas que o adepto devesse ou deva

299 PICO Oratio respectivamente pp159 e 155 Grifo nosso 300 Ibid p155 301 SCHOLEM Cabala-Enciclopeacutedia judaica opcit p 6 Grifo nosso 302 SENDER opcit p9 A menccedilatildeo agrave fisiognomia remete ao discipulado pitagoacuterico que talvez tenha exercido

alguma influecircncia em algum nuacutecleo cabaliacutestico posterior Natildeo encontramos em outras fontes quaisquer esclarecimentos nesse sentido

303 Apologia p31 ldquoHi libri apud hebraeos hac tempestate tanta religione coluntur ut neminem liceat nisi anos XL natum illos attingererdquo Paolo FORNACIARI informa que de acordo com a tradiccedilatildeo o estudo soacute pode ser enfrentado por indiviacuteduos do sexo masculino que tenham acima de quarenta anos (Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 p18)

113

cumprir para ingressar em niacuteveis distintos de conhecimento304 O que se depreende

dos comentaacuterios acerca do misticismo judaico em paralelismo com a forma de outros

percursos miacutesticos eacute que os segredos da transmissatildeo oral conduzem o proseacutelito a

atingir certo estado extaacutetico que lhe permite receber solitariamente uma Revelaccedilatildeo

Haacute portanto uma relaccedilatildeo estreita entre a transmissatildeo oral o segredo mantido

atraveacutes de tal oralidade e o estado de ecircxtase que antecede a recepccedilatildeo da Revelaccedilatildeo

O misticismo judaico e parte relevante dos exerciacutecios asceacuteticos organizam-se

de forma preciacutepua em torno agrave interpretaccedilatildeo das Escrituras Nelas se encerram os

segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral Em claro consenso todos os miacutesticos judeus

desde os Terapeutas descritos por Filon ateacute ao mais recente hassid concordam que a

Toraacute seja um organismo vivente animado por uma vida secreta que aguarda uma

interpretaccedilatildeo miacutestica305 Como explica Scholem a hermenecircutica dos textos sagrados

eacute uma das formas de alcanccedilar seu conteuacutedo ldquovivordquo possibilitando a ocorrecircncia de

dado momento em que a substacircncia de tal conteuacutedo eacute remodelada ao passar pela

ldquocorrente de fogo do sentimento miacutesticordquo Natildeo se contentando com um uacutenico ato

isolado de ecircxtase o miacutestico continuaraacute a buscar a revelaccedilatildeo de algo oculto que o

aproxime cada vez mais do divino306 A relaccedilatildeo entre as palavras sagradas e o segredo

que guardam estaacute tambeacutem descrita na obra cabaliacutestica Zohar ldquocada palavra da

Escritura encerra um misteacuterio supremordquo o sentido literal eacute ldquoapenas um invoacutelucrordquo e

tomaacute-lo por verdade pode ldquotrazer adversidadesrdquo agravequele que o recebe por essa forma

exterior307 Outra passagem do Zohar anuncia que nas mesmas palavras das

Escrituras com as quais se enxerga apenas o sentido literal em outro momento pode

ser enxergado um novo sentido miacutestico sendo cada palavra insubstituiacutevel para os

dois sentidos

ldquo[]assim como para o sentido literal cada palavra eacute

indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer

uma delas assim tambeacutem para o sentido miacutestico cada palavra eacute

indispensaacutevel sem que se possa acrescer ou eliminar qualquer

palavrardquo308

O miacutestico portanto natildeo rejeita a autoridade do texto escrito ele apenas

invalida uma aparente verdade que possa se mostrar no significado literal

substituindo-a por uma interpretaccedilatildeo que decorre de intuiccedilatildeo a ser alcanccedilada

durante a reflexatildeo miacutestica309 Conforme complementa Scholem as exegeses miacutesticas

sempre partem de palavras exatas para em seguida ldquode forma genialrdquo transformar

304 BUSI opcit pp5-6 305 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit pp 15-16 Em De Vita Contemplativa obra em

que Fiacutelon aborda as seitas judaicas dos Terapeutas a Toraacute eacute relatada como algo afim a um ser vivo o sentido literal eacute o corpo enquanto a alma eacute o significado secreto debaixo da palavra escrita

306 SCHOLEM ibid p 11 Na concepccedilatildeo da ldquocorrente de fogordquo que une o adepto ao divino natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com a questatildeo filosoacutefica do ldquolampejordquo descrito por Platatildeo na Carta VII O processo filosoacutefico de conhecimento produz em dado momento uma faiacutesca e subitamente como num lampejo a alma tem uma visatildeo intelectual que pode ser comparada a uma intuiccedilatildeo

307 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 308 Zohar II 99a in VULLIAUD I pp137-38 309 SCHOLEM A Cabala e seu simbolismo opcit pp 21-22

114

as Escrituras em um corpus simboacutelico permitindo que se abra um portatildeo atraveacutes do

qual o miacutestico passa ldquoum portatildeo que se lhe abre sempre de novordquo Assim ldquoa exegese

miacutestica esta nova revelaccedilatildeo concedida ao miacutestico tem o caraacuteter de uma chaverdquo310

Como havia escrito Oriacutegenes em contexto concernente ao esoterismo ldquoachar as

chaves certas que abriratildeo as portas eacute a grande e aacuterdua tarefardquo311 As formas para se

encontrar ldquoa chave certardquo fazem parte dos segredos protegidos pela tradiccedilatildeo oral

A literatura miacutestica

O conjunto da tradiccedilatildeo escrita cabaliacutestica eacute sustentado por dois importantes

pilares ndash o Zohar e o Secircfer Yetsiraacute ndash aos quais se acrescentam como terceiro pilar

vaacuterios textos de eacutepocas diferenciadas O Secircfer Yetsiraacute (Livro da Formaccedilatildeo) eacute um

pequeno e antigo livro metafiacutesico com apenas seis capiacutetulos Escrito provavelmente

em Terra de Israel estima-se que sua data de composiccedilatildeo se situe entre os seacuteculos II

e III (podendo chegar ateacute o VI dC)312 estabelecendo-se assim como o texto judaico

mais antigo de caraacuteter propriamente miacutestico mesmo em se levando em conta a

possibilidade de ter sofrido alteraccedilotildees ao longo dos seacuteculos313 Sua primeira versatildeo

impressa realizada em Mantova e datada de 1562 tem sido a mais aceita embora

muitas coacutepias circulassem antes no universo judaico e principalmente nos ciacuterculos

fechados dos cabalistas sob formas natildeo impressas314

Os comentaacuterios ao Secircfer Yetsiraacute fazem parte integrante da literatura miacutestica

hebraica e foram amplamente utilizados por seus estudiosos Entre esses sabe-se da

existecircncia de um relevante comentaacuterio perdido realizado por Abulafia que se

fundamentou em sua admiraccedilatildeo por Maimocircnides ndash autor que mesmo natildeo tendo

produzido literatura miacutestica chegou a escrever um comentaacuterio ao primeiro capiacutetulo

do Secircfer Yetsiraacute315 Malgrado a significativa quantidade de comentaacuterios que ensejou

310 SCHOLEM ibid pp 20-23 311 A passagem referida a Oriacutegenes encontra-se em Selecta in Psalmos ref Salmo I in MIGNE Patrologia

Graeca XII 1080 apud SCHOLEM 1978 p 20 312 SCHOLEM As grandes correntes da miacutestica judaica opcit p83 Nome de Deus e Teoria da linguagem

opcit p21 Para BUSI a data de compilaccedilatildeo do Secircfer Yetsiraacute situa-se entre os seacuteculos VI e VII (2011 p9 e 46 ss) 313 O Secircfer Yetsiraacute pode ser classificado naquilo que os hebreus chamam de Maassecirc Bereshit (Atos de Criaccedilatildeo)

conjunto representado por textos cosmoloacutegicos ou cosmogocircnicos relacionados agrave Criaccedilatildeo do Universo ndash o todo ou os seres em particular ndash em distinccedilatildeo aos escritos de Maassecirc Mercavaacute relacionados agrave natureza divina ao trono celestial e agrave hierarquia dos Anjos O nome ldquomercavaacuterdquo relaciona-se agrave visatildeo da carruagem de fogo subindo aos ceacuteus que estaacute descrita em Ezequiel 101 e Isaiacuteas 61-2 (cf MAGHIDMAN opcit p107)

314 A ediccedilatildeo de Mantova apresenta tanto uma versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute acrescida de comentaacuterios quanto uma versatildeo longa inclusa em seu apecircndice embora existam bem mais do que duas versotildees do Secircfer Yetsiraacute como pode ser verificado em estudo comparativo efetuado por Hayman no qual satildeo apresentadas dezenove versotildees seis variaccedilotildees do texto longo dez da versatildeo curta e outras trecircs frutos do comentaacuterio de Saadia Gaon (892-943) A uacuteltima versatildeo comentada por Gaon tem a data precisa do ano 931 e eacute interessante observar que o proacuteprio Gaon aponta para algumas alteraccedilotildees que realizou no texto original (mudando por exemplo o nuacutemero de Portotildees da Sabedoria Divina de 221 para 231 no paraacutegrafo 19) assim alimentando duacutevidas se teria feito outras alteraccedilotildees Os manuscritos tomados como base para cada uma das versotildees satildeo o existente na Biblioteca do Vaticano (versatildeo longa) o de Parma (versatildeo curta) e a versatildeo comentada de Saadia Gaon proveniente da Guenizaacute do Cairo e atualmente na Biblioteca de Cambridge (Peter HAYMAN Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism 2004 pp2 12-14 31) Sobre as versotildees do Secircfer Yetsiraacute veja-se ainda SCHOLEM (1989 pp21 27) O Apecircndice II da obra de MAGHIDMAN (opcit) apresenta em portuguecircs a versatildeo curta do Secircfer Yetsiraacute

315 Para Abulafia no Guia dos Perplexos de Maimocircnides encontra-se a verdadeira teoria do Cabalismo (SCHOLEM 1995 pp 141-142) Para a averiguaccedilatildeo de outros comentaacuterios acerca do Secircfer Yetsiraacute veja-se HAYMAN opcit p31 BUSI opcit p48 SCHOLEM 1989 pp26 46

115

o autor do Secircfer Yetsiraacute permanece desconhecido Por muito tempo considerou-se

que tivesse sido Abraatildeo a concebecirc-lo ndash a obra de Pico mostra a aceitaccedilatildeo dessa

autoria ainda no lsquo400 ndash muito provavelmente em razatildeo da menccedilatildeo feita ao patriarca

no uacuteltimo paraacutegrafo do livro onde se lecirc ldquoe quando Abraham nosso pai olhou viu

entendeu perscrutou gravou e entalhou teve ecircxitordquo316 Por esse motivo o Livro da

Formaccedilatildeo eacute tambeacutem conhecido pelo nome Otiot Deavraham Avinu (O alfabeto do

patriarca Abraatildeo)317 De toda forma e embora sua autoria mantenha-se

desconhecida ainda hoje o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado o primeiro texto especulativo

escrito no idioma hebraico318 Sua peculiaridade encontra-se em estar voltado para a

alma individual humana ndash e natildeo para os judeus de modo particular ndash razatildeo de o

nuacutemero doze ser indicativo dos signos do zodiacuteaco por exemplo e natildeo das

tradicionais doze tribos de Israel Tambeacutem natildeo menciona Moiseacutes a Toraacute ou o

Messias Assim de forma incomum na literatura hebraica a obra traccedila o ldquodesenho

das forccedilas ocultas do cosmordquo sem fazer quase nenhuma referecircncia direta ao texto das

Escrituras ou agrave tradiccedilatildeo poacutes-biacuteblica como complementa Giulio Busi319

Em termos de conteuacutedo o Secircfer Yetsiraacute pode ser descrito em linhas bastante

sucintas320 como um apanhado de conhecimentos de cunho miacutestico com notas

filosoacuteficas astroloacutegicas e cosmoloacutegicas da Antiguidade em que predominam

princiacutepios de simetria reciprocidade e correspondecircncia Em linguagem enigmaacutetica

encontra-se delineado o paralelismo entre as letras do alfabeto hebraico com

categorias da criaccedilatildeo dos mundos (angeacutelico celeste e material) e com funccedilotildees de

natureza fiacutesica bioloacutegica e psiacutequica de forma a estabelecer uma relaccedilatildeo entre a

infinitude de Deus e a finitude de sua obra ou em outras palavras uma relaccedilatildeo entre

a dimensatildeo material e a espiritual O Secircfer Yetsiraacute introduz ainda a noccedilatildeo de Sefirot

ndash a ser verificada adiante ndash um dos nuacutecleos fundamentais do pensamento

cabaliacutestico capaz de presentear os miacutesticos com uma doutrina orgacircnica do aspecto

secreto da Criaccedilatildeo321

O Secircfer ha-Zohar (Livro do Esplendor) ndash ou apenas Zohar ndash embora

redigido vaacuterios seacuteculos apoacutes o Secircfer Yetsiraacute eacute considerado por muitos como o

trabalho mais importante acerca da Cabala322 A despeito de ter tido sua autoria

estabelecida durante muito tempo no segundo seacuteculo e atribuiacuteda ao rabino Shimon

Bar Yohai ndash fato que tradicionalmente ainda prevalece mesmo em ediccedilotildees mais

recentes ndash alguns estudos acadecircmicos do seacuteculo passado especialmente de Gershom

316 Secircfer Yetsiraacute trad MAGHIDMAN Apecircndice II 2014 p174 317 SENDER 1992 p27 Dentre as hipoacuteteses de autoria do Secircfer Yetsiraacute Sender aponta para Rabi Akiva que

teria vivido em Israel no seacuteculo II de nossa Era (ibid pp27-28) 318 MAGHIDMAN opcit p19 319 BUSI opcit p9 320 Natildeo cabe nestas paacuteginas a anaacutelise do Secircfer Yetsiraacute ao qual literatura especializada tem se dedicado Na

sequecircncia seratildeo verificadas as principais concepccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute que exerceram influecircncia sobre Pico della Mirandola Para comentaacuterios referentes ao Secircfer Yetsiraacute em portuguecircs veja-se a obra de MAGHIDMAN (2014)

321 BUSI opcit pp9 e 46 ss SCHOLEM 1995 p83 322 SCHOLEM 1989 p 52 A importacircncia do Zohar pode ser medida pela relevacircncia que lhe foi dada por um

dos maiores cabalistas do seacuteculo XVI Isaac Luria (1534-1572) que o utilizou como principal base de seus estudos Luria foi o responsaacutevel por uma das mais importantes escolas de Cabala revolucionando o misticismo hebraico (inclusive com suas doutrinas de transmigraccedilatildeo) e todo o Cabalismo posterior

116

Scholem apontam para o judeu espanhol Moshe de Leoacuten como seu mais provaacutevel

autor aleacutem de responsaacutevel por sua publicaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo no seacuteculo XIII323

Escrito em aramaico e hebraico medieval o Zohar natildeo eacute exatamente um livro

com um texto sistemaacutetico mas um conjunto de livros que reuacutene vaacuterios contos em que

os personagens utilizando-se da Biacuteblia como pretexto discutem e efetuam inserccedilotildees

narrativas O conjunto de textos aborda vaacuterios temas da vida judaica desde preceitos

e oraccedilotildees ateacute situaccedilotildees do cotidiano passando por anotaccedilotildees alquiacutemicas

astronocircmicas e astroloacutegicas As discussotildees progridem em direccedilatildeo a comentaacuterios

miacutesticos sobre a Toraacute revelando concepccedilotildees teosoacuteficas abrangentes acerca da

natureza de Deus da origem e da estrutura do universo da hierarquia dos mundos e

da transmigraccedilatildeo e destino das almas entre outros temas de natureza filosoacutefico-

metafiacutesica Seu fundo conceitual apoia-se na relaccedilatildeo entre as Sefirot e a regecircncia do

mundo desenvolvido a partir da ideia de que cada universo inferior reflete o seu

superior Cabe referir que em sua completude o Zohar natildeo trata apenas do bem

acolhe ainda uma intrincada representaccedilatildeo do domiacutenio das forccedilas negativas

designadas com a locuccedilatildeo sitra ahara que significa ldquoa outra parterdquo324

Aleacutem do Zohar e do Secircfer Yetsiraacute outras obras satildeo emblemaacuteticas e

obrigatoacuterias ao estudo do misticismo hebraico por apresentarem estreita relaccedilatildeo com

o Secircfer Yetsiraacute Quase todas se encontram entre as fontes de Giovanni Pico razatildeo de

nosso interesse Uma delas eacute o Secircfer ha-Bahir (Livro da Iluminaccedilatildeo) tambeacutem

conhecido como ldquoO Midrash do Rabino Nehuniah Ben Hakanahrdquo atribuiacutedo ao

rabino midraacuteshico que lhe daacute o nome325 O Bahir integra uma corrente estritamente

metafiacutesica da Cabala diretamente relacionada ao nuacutecleo de pensadores espanhoacuteis de

onde se originou Azriel de Gerona ndash que realizou um relevante escrito sobre as Sefirot

ndash mestre do notabilizado filoacutesofo e cabalista Nachmacircnides tambeacutem pertencente ao

mesmo grupo326 Aleacutem de tratar de questotildees acerca das emanaccedilotildees divinas o texto

aborda questotildees relacionadas agrave alma agrave transmigraccedilatildeo aos anjos e ao alfabeto

hebraico327

Compotildee ainda a construccedilatildeo do pensamento cabalista um rico repertoacuterio de

visotildees celestes guardado na chamada literatura dos ldquoaacutetrios celestiaisrdquo ou dos

Heikhalot (literalmente ldquopalaacuteciosrdquo) constituiacutedo por escritos enigmaacuteticos datados do

primeiro seacuteculo da era cristatilde ndash embora redigidos provavelmente em eacutepoca mais

323 Moshe de Leoacuten alegava ter descoberto (e natildeo escrito) o Zohar em Guadalajara cidade espanhola onde vivia SCHOLEM afirma que De Leoacuten ocultou-se atraacutes do nome de Shimon Bar Yohai para escrever aquela que seria sua obra maior (1989 p 52) Tambeacutem Pico atribuiacutea a autoria do Zohar a ldquoSimeon Antiquusrdquo

324 BUSI opcit pp 72-74 SENDER opcit p34 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 p 630

325 Sheila RABIN Pico on Magic and Astrology in Pico della Mirandola New Essays (org Dougherty MV) 2008 p 156 SCHOLEM considera o texto como pertencente provavelmente ao seacuteculo XI (1989 p 39)

326 GARIN 2011 p115 Azriel ben Menahem de Gerona foi mestre de Mosheh ben Nahman de Gerona conhecido por Nachmacircnides Este uacuteltimo notabilizou-se por seus comentaacuterios miacutesticos do Pentateuco e por seus comentaacuterios ao Talmud

327 O conceito de transmigraccedilatildeo das almas penetrou na Cabala dos seacuteculos sucessivos graccedilas ao Bahir Veja-se maiores detalhes em BUSI opcit pp 55 63 MAGHIDMAN opcit p91 Existe uma traduccedilatildeo em portuguecircs do Bahir originalmente traduzido e comentado por Arieh KAPLAN (Bahir o Livro da Iluminaccedilatildeo-atribuiacutedo ao Rabino Nehuniaacute ben haKana) realizada por Maria Regina Nogueira contendo o texto original hebraico (Ed Imago Rio de Janeiro 1992)

117

tardia O material conteacutem relatos de experiecircncias pessoais de ascensatildeo aos planos

superiores representados por uma estrutura arquitetocircnica de luzes A partir do

misticismo dos Heikhalot os cabalistas herdaram um complexo sistema angeoloacutegico

e a representaccedilatildeo de uma ascese da alma articulada em etapas cognitivas sempre

mais elevadas Efetivamente a ampla tratativa aborda as vaacuterias etapas de um

percurso asceacutetico sob um gradual processo de conhecimento328 Os tratados

apresentam algumas narrativas obscuras em que tantas vezes soberbos anjos estatildeo

colocados como guardiotildees dos palaacutecios das regiotildees celestes Por exemplo no

Heikhalot rabbati o mais ceacutelebre o miacutestico pode alcanccedilar os peacutes do trono superno

somente se ultrapassar uma sucessatildeo de sete edifiacutecios cujos portotildees representam

tantas outras etapas de seu percurso iniciaacutetico ldquopenetrar nos palaacutecios divinos

significa portanto apoderar-se de uma geografia transcendente que retrata o

invisiacutevel com a precisatildeo de um mapardquo329 Dado que os guardiotildees angeacutelicos ndash

obstaacuteculos na ldquoviagem em direccedilatildeo agrave gloacuteria excelsardquo ndash podem ser dominados agrave medida

que se conheccedilam seus nomes e atributos os tratados dos Heikhalot servem como um

guia que ensina seus nomes e as respostas necessaacuterias para superar as provas

colocadas por esses seres ldquofeitos de granizo e fogordquo330 Pico mostrava ter

familiaridade com os Heikhalot pois na De Hominis Dignitate faz menccedilatildeo agraves

transformaccedilotildees de Enoch conforme episoacutedio narrado em outro desses tratados331

Assim como o Zohar que aborda as forccedilas negativas uma natildeo irrelevante integraccedilatildeo

eacute apresentada dentro da arquitetura supramundana dos Heikhalot o Midrash Konen

informa a existecircncia sempre nas moradas superiores de uma seacuterie simeacutetrica de

palaacutecios infernais guardados por anjos do mal332

Finalmente natildeo poderia deixar de ser citada a literatura midraacuteshica O termo

ldquomidrashrdquo significa em hebraico ldquointerpretaccedilatildeordquo e indica um amplo nuacutemero de

histoacuterias e comentaacuterios biacuteblicos que se mesclam entre documentos e lendas redigidos

entre o iniacutecio do seacuteculo V e a metade da Idade Meacutedia Nos vaacuterios Midrashim o texto

das Escrituras eacute submetido a uma anaacutelise minuciosa mostrando as implicaccedilotildees

escondidas sob suas linhas Assim em contraste com a interpretaccedilatildeo

literal o Midrash designa uma exegese profunda que tenta revelar o espiacuterito velado

das Escrituras examinando possibilidades que natildeo se mostram em uma leitura

literal do texto Seu principal objetivo nesse sentido eacute o de propor o maior nuacutemero

de significados possiacuteveis de acordo com o ensinamento rabiacutenico que prescreve ldquogirar

e regirar a Toraacute pois que nessa estaacute absolutamente tudordquo333 Assim como nos demais

328 A imagem da carruagem celeste eacute bastante presente simbolizando como em outras tradiccedilotildees ndash inclusive a

platocircnica ndash o deslocamento do adepto atraveacutes do espaccedilo supramundano graccedilas ao qual ele alcanccedila a contemplaccedilatildeo de uma complexa arquitetura coacutesmica Cf BUSI opcit pp9-10 43 SENDER op cit p34

329 BUSI opcit p43 330 BUSI idem 331 Cf Oratio p107 O tratado Alfabeta derabbirsquoAqiva descreve o episoacutedio de Enoch patriarca biacuteblico

antediluviano alccedilado aos ceacuteus pelo Senhor e transformado no anjo Metraton dominante sobre as hierarquias angeacutelicas e ao qual satildeo atribuiacutedos setenta e dois nomes

332 BUSI opcit p45 np145 Comentaacuterios e textos acerca dos Heikhalot podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas na bibliografia de Giulio Busi GSCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960 PSCHAFER Hekhalot Studien Tubingen 1988 Para traduccedilotildees italianas veja-se RAVENNA-PIATELLI (org) Cabbala ebraica I sete santuari Milano 1990

333 BUSI opcit pp41-42

118

manuscritos de caraacuteter miacutestico utilizados pelos mekubalim334 os Midrashim incluem

natildeo poucas passagens de argumentaccedilotildees cosmogocircnicas que permitem especulaccedilotildees

acerca das origens da Criaccedilatildeo e da estrutura das moradas celestes A exposiccedilatildeo

midraacuteshica eacute comparada no Talmud a um ldquomartelo que desperta as faiacutescas

adormecidas na rochardquo335

As fontes cabaliacutesticas de Pico

Em carta endereccedilada ao sobrinho Gian Francesco Giovanni Pico informa

sobre alguns livros hebraicos que teria tomado emprestado de certo judeu siciliano

por um periacuteodo de vinte dias quando jaacute exercitava com relativa facilidade o

idioma336 O testemunho desse empreacutestimo junta-se a uma vasta documentaccedilatildeo que

comprova o fato de que o jovem aprendiz da Cabala teria lido todos os textos

hebraicos talmuacutedicos e midraacuteshicos que podia comprar encontrar ou pedir337 Parte

consideraacutevel desse material se lhe tornou disponiacutevel ou inteligiacutevel atraveacutes do auxiacutelio

de trecircs de seus principais mestres Elia Del Medigo Yohanan Alemanno e Flavio

Mitridate que desempenharam importante papel nas traduccedilotildees de muitos textos

seja do aacuterabe para o hebraico ou do hebraico para o latim338 A aquisiccedilatildeo da vasta

doutrina referente ao Hebraiacutesmo deve ser creditada ademais agraves conversaccedilotildees tidas

com tantos outros judeus eruditos e agraves leituras diretas de manuscritos hebraicos dos

quais comprovadamente possuiacutea um nuacutemero consideraacutevel339 Os manuscritos

foram sem duacutevidas o meio de acesso mais importante atraveacutes do qual o pensamento

judaico ndash especificamente o cabaliacutestico ndash se tornou disponiacutevel para Pico340

Nas duas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XV seria possiacutevel encontrar em Florenccedila

um nuacutemero consideraacutevel de manuscritos de conteuacutedo especulativo judaico Havia os

volumosos escritos de Alemanno com abundantes citaccedilotildees de fontes medievais

hebraicas341 os textos de Abraham Farisol que passou um tempo em Florenccedila com

menccedilotildees a um grande nuacutemero de livros judaicos as epiacutestolas do cabalista espanhol

334 Mekubalim ou ainda Maskilim (iniciados) satildeo denominaccedilotildees que muitos autores cabalistas recebem (cf

IDEL 2008a p17) 335 BUSI opcit pp41-42 336 GARIN 2011 p 99 337 Giovanni SEMPRINI Giovanni Pico della Mirandola - La Fenice degli Ingegni 1921 p143 338 Crofton BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 12 BUSI opcit p 84 339 Tatildeo ampla era a coleccedilatildeo de livros hebraicos de Pico que ensejou a criaccedilatildeo de obras especiacuteficas voltadas ao seu

estudo Veja-se por exemplo Pearl KIBRE The Library of Pico della Mirandola New York 1936 Giuliano TAMANI I libri ebraici di Pico della Mirandola in Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di studi del cinquecentesimo anniversario della morte (1494-1994) org G C Garfagnini Firenze 1997 pp 491-530 Giulio BUSI Chi non ammireragrave il nostro camaleonte La biblioteca cabbalistica di Giovanni Pico della Mirandola in Lenigma dellebraico nel Rinascimento Nino Aragno Editore Torino 2007 pp 25ndash45 Moshe IDEL The Throne and the Seven-Branched Candlestick Pico della Mirandolas Hebrew Source in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes XL 1977 pp 290-292 R SIMON Bibliotheca selecta I Um bom recolhimento do conteuacutedo da biblioteca de Pico pode ser encontrado ainda no ldquoAppendice La Biblioteca di Picordquo na obra Giovanni Pico della Mirandola de GARIN (2011 pp106 ss) Acerca dos hebreus com os quais Pico teve contato veja-se Umberto CASSUTO (opcit pp316-318)

340 Chaim WIRSZUBSKI com o auxiacutelio de seus alunos Moshe Idel e Carmia Schneider deteacutem o meacuterito de ter seguido o percurso intelectual de Pico identificando os textos e os autores atraveacutes dos quais estudou a Cabala daiacute resultando seu fundamental volume Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Veja-se ali em especial entre as paacuteginas 60 a 64 toda a questatildeo das fontes cabaliacutesticas de Pico

341 Para uma lista das fontes mais importantes do pensamento de Alemanno veja-se IDEL The Study Program of R Yohanan Alemanno in Tarbiz XLVIII 1979 pp 303-330

119

Isaac Mar Hayyim os escritos de Moshe ben Yoav342 E de suma relevacircncia o vasto

volume de material cabaliacutestico traduzido por Flavio Mitridate para o latim343 A

maioria dos manuscritos que chegou agraves matildeos de Pico foi-lhe elucidada justamente

por Mitridate A principal missatildeo do mestre convertido exercida com paixatildeo era

comprovar ao pupilo o argumento de que a Cabala provava a verdade do

Cristianismo para tanto procurou realizar traduccedilotildees que fossem literais mas ao

mesmo tempo capazes de lidar com as sutilezas do vocabulaacuterio cabaliacutestico344 Os

manuscritos apresentam vaacuterias anotaccedilotildees feitas pelo mestre agraves margens das

traduccedilotildees para servir de guia ao pupilo em suas possiacuteveis analogias Um desses

comentaacuterios anotado agraves margens da traduccedilatildeo do De Secretis Legis de Abulafia

relata que os dois ele e o conde se encontravam em ldquouma missatildeo comum de

profunda seriedaderdquo sendo bastante significativo do grau de comprometimento que

pretendiam dar agravequeles estudos345

De maneira mais abrangente que Mitridate como parece ser consensual o

mestre cabalista Alemanno estava bem familiarizado com a maioria dos escritos

miacutesticos judaicos provenientes tanto de autores contemporacircneos e medievais ndash da

Itaacutelia Espanha e Alemanha ndash como de fontes anteriores pertencentes agrave literatura dos

Heikhalot Agrave exceccedilatildeo do livro do Zohar do qual Alemanno natildeo tinha estreito

conhecimento haacute registros de seu acesso a uma numerosa quantidade de textos

relacionados agrave literatura biacuteblica talmuacutedica e midraacuteshica Notadamente versado nas

mais variadas correntes filosoacuteficas fossem hebraicas gregas ou aacuterabes observa-se

nas citaccedilotildees de seus trabalhos uma quantidade surpreendente de livros raros ou

pouco difusos o que constitui prova de uma erudiccedilatildeo pouco comum346

Dentre os trecircs professores mencionados no entanto o primeiro a abrir para

Pico as portas de fato ao universo da Cabala embora o tema natildeo lhe despertasse

maior interesse347 foi Elia Del Medigo Em longa carta enviada a Giovanni o rabino

antecipava ldquoVendo que Vsa Senhoria se empenha muitiacutessimo nessa bendita Cabala

342 IDEL Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico in BemporadndashZatelli (org) La

Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 21 343 Entre tantos outros Mitridate traduziu o livro do conhecido rabino Eleazar de Worms o Hokhmat ha-

Nefesh sob o tiacutetulo Liber De Anima em 1486 traduziu um grupo de comentaacuterios sobre o Secircfer Yetsiraacute presentes no cod Vat hebr 191 tambeacutem o De Secretis Legis (Sitre Torah) de Abulafia presente no cod Vat hebr 190 (cf Franco BACCHELLI opcit pp 35 57) Uma lista completa das traduccedilotildees de Mitridate pode ser encontrada no livro de WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism (1987 pp 10-65)

344 Alguns desses textos natildeo existem mais Os que ainda restam encontram-se em cinco manuscritos mantidos na biblioteca do Vaticano que juntos contabilizam mais de 3500 paacuteginas Os manuscritos sobreviventes satildeo Vat Ebr 189 Vat Ebr 190 Vat Ebr 191 Chigi A VI 190 e Vat Lat 4273 (BLACK opcit p 16) Em relevante desenvolvimento nos estudos de Pico um trabalho tem sido realizado para editar esse corpus em uma seacuterie entitulada The Kabbalistic Library of Giovanni Pico della Mirandola sob direccedilatildeo de Giulio Busi O primeiro volume da seacuterie foi publicado em 2004 intitulado The Great Parchment Flavius Mithridatess Latin Translation the Hebrew Text and an English Version (org) G Busi S M Bondoni e S Campanini (Ed Nino Aragno Torino 2004)

345 WIRSZUBSKI opcit p 69 BACCHELLI opcit 2001 p 57 346 CASSUTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento 1918 p315 IDEL 1998 p 34 347 Elia de Medigo presidia a escola talmuacutedica italiana de vieacutes decididamente aristoteacutelico e hostil ao

pensamento cabaliacutestico mais em razatildeo da orientaccedilatildeo filosoacutefica de cunho neoplatocircnico que apresentava do que por um antagonismo aos seus procedimentos Tal aspecto incomodava muitos outros intelectuais aristoteacutelicos como assinala BROCCHIERI (Pico della Mirandola 2011 p12) Entretanto e apesar de natildeo mostrar especial interesse pelo tema os escritos de Del Medigo tanto em hebraico quanto em latim constituem uma fonte muito confiaacutevel para uma descriccedilatildeo abrangente da Cabala como pontua IDEL (1998 p 20)

120

quero vos indicar algo que ateacute hoje natildeo quis vos mostrarrdquo A carta ajuda a lanccedilar luz

sobre as pesquisas literaacuterias de seu aluno uma vez que inclui trecircs listas colunadas

com sugestotildees de bibliografias sendo uma essencialmente cabaliacutestica a primeira

coluna apresenta obras que serviriam aos estudos aristoteacutelicos de Pico a segunda

mostra uma seacuterie de autores aacuterabes na terceira haacute uma lista entitulada ldquoqabalahrdquo

Nesta leem-se os nomes (sic) ldquoSefer Hazzocirchar MeirahrsquoEnayim Scharsquoarei Orah

Reqanati Marsquoarekheth ha Elohouth Pegraverousch Sefer Uetsirahrdquo e ao final deles a

admissatildeo ldquoe muitos outros cujos nomes natildeo me ocorrem porque estou com muitas

ocupaccedilotildeesrdquo348

Mantendo-se a ordem apresentada Del Medigo refere-se primeiramente ao

Zohar Em seguida ao texto Meirah Einayim um provaacutevel comentaacuterio sobre

Nachmacircnides feito por Isaac de Acre que pode ser estabelecido entre o final do

seacuteculo XIII e a metade do seacuteculo XIV O Scharsquoarei Orah eacute um texto do comentador

cabalista espanhol Joseph Gikatilla aluno de Abulafia compreendido em periacuteodo

aproximativo ao anterior A indicaccedilatildeo segue com a menccedilatildeo impliacutecita a algum ou a

alguns comentaacuterios atribuiacutedos ao rabino Menahem Recanati do seacuteculo XIII e o

tratado anocircnimo Maarekhet ha-Elohut do final do seacuteculo XIII e iniacutecio do XIV

contendo algumas interpretaccedilotildees cabaliacutesticas A lista se encerra com a sugestatildeo de

um comentaacuterio referente ao Secircfer Yetsiraacute As inuacutemeras recorrecircncias de marcas em

algumas seccedilotildees desses manuscritos evidenciam que Pico leu tais textos marcou as

passagens de interesse e as reutilizou em seus proacuteprios trabalhos tanto como fontes

para suas Conclusiones Cabalisticae quanto como bases para a elaboraccedilatildeo do

Heptaplus349

Quanto ao fundamental Secircfer Yetsiraacute o proacuteprio Pico conta tecirc-lo lido em lsquo86

juntamente ao comentaacuterio com o qual estava unido embora o mesmo natildeo conste da

lista de Elia Em relaccedilatildeo ao Zohar indicado na bibliografia de Elia natildeo se sabe

exatamente se o conheceu de forma direta ou indireta embora o tenha mencionado

tanto nas Conclusiones cabalisticae quanto no Heptaplus350 Tambeacutem a Oratio

apresenta certa analogia com o Zohar no que diz respeito agrave celebraccedilatildeo da liberdade e

potecircncia do espiacuterito humano o que poderia comprovar a leitura daquela obra351

348 ldquo[] et multa alia quorum nomina non occurunt mihi quia multas habeo ocupacionesrdquo O manuscrito estaacute

em Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v Fragmentos dessa carta foram transcritos e discutidos por Jules DUKAS Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle 1876 pp 48-65 O trecho com a citaccedilatildeo das bibliografias em questatildeo encontra-se em f75r e estaacute transcrito nas pp 56-57 de DUKAS (opcit) e em seu Bulletin du Bibliophile vol XLII 1875 p340 Sobre as relaccedilotildees entre Pico e Del Medigo e outros detalhes sobre a carta em questatildeo veja-se Bohdan KIESZKOWSKI Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola 1964 pp 41-81

349 Efetivamente eacute consensual que Pico tenha utilizado Recanati como fonte principal para as Conclusiones Cabalisticae dois dos trabalhos do rabino foram traduzidos para Pico por Flavio Mitridate ndash os comentaacuterios ldquosobre o Pentateucordquo e ldquosobre as oraccedilotildeesrdquo Especialmente as 47 teses cabaliacutesticas do primeiro grupo satildeo quase todas inspiradas pelo Commento al Pentateuco (cf WIRSZUBSKI Picos Encounter with Jewish Mysticism 1989 pp53-56 FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633 BLACK Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics 2006 p 17)

350 Respectivamente em Conclusiones II 24 p131 e em Heptaplus p180 No Heptaplus Pico faz alusatildeo ao presumiacutevel autor do Zohar Shimon Bar Yohai ldquoSimeon antiquusrdquo GARIN informa que ldquonatildeo se sabe ao certo se Pico conheceu o Zoharrdquo ou se o conheceu atraveacutes da leitura de Menahem Reca atribuindo a VULLIAUD (vol II p 19) a certeza de Pico ter lido o Zohar diretamente (2011 p102)

351 A celebraccedilatildeo da potecircncia humana no Zohar concentra-se na figura do Adam Kadmon o homem cuja natureza eacute determinada e estaacute acima de todos os anjos Em Pico diferentemente a natureza do homem natildeo eacute

121

Certeza eacute o fato que Pico possuiacutea o Secircfer ha-Bahir pertencente agrave corrente metafiacutesica

de cujo nuacutecleo saiacuteram os escritos de Nachmacircnides352 A obra consta do inventaacuterio de

seus livros integrado ainda por obras da corrente dos profetas miacutesticos como

Abraham ibn Ezra Moshe de Narbona Eleazar de Worms e Gikatilla este uacuteltimo

certamente estudado com atenccedilatildeo visto que fazia parte da lista de Del Medigo todas

essas obras jaacute estavam em sua posse no periacuteodo de redaccedilatildeo das Conclusiones Sua

biblioteca dispunha ainda de escritos dos comentaristas medievais Abulafia Azriel

de Gerona e do acima mencionado Menahem Recanati assim como de inuacutemeros

trabalhos anocircnimos353 Outrossim e antes de se dedicar aos estudos cabalistas Pico

havia meditado longamente sobre o pensamento de Maimocircnides e Avicebron judeus

ceacutelebres no mundo cristatildeo tendo encontrado neles algumas das raiacutezes da gnose

hebraica que reencontraria mais tarde Tambeacutem natildeo lhe passaram despercebidas as

ressonacircncias que certos procedimentos cabaliacutesticos exerceram sobre Ramon Llull na

Espanha a ponto de interessar-se pelos aspectos praacuteticos da Cabala como seraacute

visto354

2 O Cosmo Cabalista

Na mencionada carta de Elia Del Medigo na qual constam as indicaccedilotildees

bibliograacuteficas transmitidas ao pupilo Giovanni lecirc-se ldquoTrata-se de algo tatildeo secreto

que ningueacutem dentre os contemporacircneos tem se ocupado e poucos antigos

conheceram Eacute coisa pequena em quantidade mas grandiacutessima em qualidaderdquo

Antecipando seu conteuacutedo Elia complementaria ldquoOs devotos a estes textos obscuros

sustentam que o nome de Deus eacute infinito e que a um grau abaixo de Deus estatildeo as dez

Sefirot agentes da potecircncia que emana de Deus eacute atraveacutes dessas que o mundo

conserva a sua ordemrdquo355 Por meio dessas palavras o mestre descrevia in nuce os

elementos centrais da doutrina cabaliacutestica quais sejam a concepccedilatildeo do Infinito (Ein

Sof) e suas emanaccedilotildees as Sefirot

determinada e tanto ele pode continuar na indeterminaccedilatildeo quanto pode passar a ser tudo Apesar de preconizar que Pico tenha sido o primeiro divulgador do Zohar na cultura corrente da eacutepoca Garin sugere que a ideia de liberdade do homem defendida na Oratio tenha sido formada atraveacutes de leituras precedentes de obras ateacute mais significativas atribuiacutedas tanto a pensadores hebraicos tais quais Maimocircnides e Avicebron quanto a natildeo hebraicos como Fiacutelon Hermes e Honoacuterio de Autun A reflexatildeo estaacute em GARIN (2011 pp 90-91 93-105)

352 GARIN 2011 p115 RABIN opcit p 156 353 Cf Inventario delli libridel Conte Joanne de la Mirandola (pp 30 46 60 62 73 etc) elaborado por

Antonio Pizamano em 1498 em Florenccedila e editado em Memorie Storiche della cittagrave e dellantico ducato della Mirandola Harvard University vol XI 1897 p46 (apud GARIN 2011 p103) Chaim WIRSZUBSKI comprovou que Pico fizera uso no iniacutecio de sua carreira das obras de Abulafia (Um cabalista Cristatildeo lecirc a Lei Jerusaleacutem 1977 pp11 17 e ss apud IDEL 2008-b p 461)

354 Em sua Apologia (p192) Pico comenta sobre a ldquoars Raymundirdquo segundo KIBRE (1936 p318) possuiria do filoacutesofo catalatildeo o Ars Brevis Em relaccedilatildeo aos estudos sobre Maimocircnides Avicebron e o influxo de Llull veja-se menccedilatildeo em GARIN 2011 pp 100-101 Para a relaccedilatildeo percebida por Pico entre Avicebron e as doutrinas cabalistas veja-se Salomon MUNK Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris 1857 pp275 ss que comporta ldquoDes Extraits Meacutethodiques de la Source de vie de Salomon Ibn-Gebirol (dit Avicebron) traduits de lrsquoarabe en heacutebreu par Ibn-Falaqueacuterardquo

355 DUKAS opcit pp 48-65 (Paris Bibliothegraveque Nationale Lat 6508 ff 71r -77v)

122

A emanaccedilatildeo sefiroacutetica

A estrutura metafiacutesica das Sefirot eacute uma das caracteriacutesticas medulares da

Cabala surgida por volta do seacuteculo III O termo ldquosefirotrdquo (ldquosefiraacuterdquo no singular)

ingressa de fato na miacutestica hebraica atraveacutes do Secircfer Yetsiraacute onde eacute mencionado

pela primeira vez356 Os cabalistas concordam em conceber as Sefirot como graus

ciclos ou niacuteveis atraveacutes dos quais o aspecto mais profundo do poder divino atua sobre

o universo criado ou em outras palavras como formas inteligiacuteveis atraveacutes das quais

o ldquoImanifestordquo passa a se manifestar357 Explica Paolo Fornaciari que a raiz de Sefirot

proveacutem do vocaacutebulo SFR que reconduz a uma aacuterea semacircntica que pode abranger trecircs

significados ldquoesferasrdquo ldquocifrasrdquo ou ldquosafirasrdquo Cada um desses termos remete agrave ideia

respectivamente de perfeiccedilatildeo geomeacutetrica-espacial de completude numeacuterica e de

beleza ou preciosidade ndash conceitos que se aplicam agraves qualificaccedilotildees atribuiacutedas agraves

Sefirot nas vaacuterias escolas358 Para Giulio Busi o termo hebraico pode ser traduzido

sucinta e literalmente por ldquonumeraccedilotildeesrdquo enquanto Tova Sender o traduz por

ldquocontagemrdquo em qualquer caso o nuacutemero eacute uma conotaccedilatildeo fundamental de seu

dinamismo359

O conceito de numeraccedilotildees estaacute diretamente relacionado ao nuacutemero dez

de acordo com o simbolismo numeacuterico que precede ao Secircfer Yetsiraacute e que

provavelmente recebeu influxos das doutrinas pitagoacutericas em razatildeo de sua relaccedilatildeo

com a estrutura profunda do ser e do cosmo360 Conforme sintetiza Scholem as

Sefirot satildeo os dez niacuteveis com que a natureza atuante de Deus se revela as dez forccedilas

elementares da Criaccedilatildeo os diversos aspectos da vida divina os estaacutegios pelos quais

essa vida passa ao se revelar na Criaccedilatildeo361 Na linguagem lacocircnica do Livro da

Formaccedilatildeo

ldquoDez Sefirot sem determinaccedilatildeo dez e natildeo nove dez e natildeo onze

[] a sua medida eacute dez que natildeo tecircm fimrdquo362

356 O texto integral do Secircfer Yetsiraacute pode ser visto nas seguintes obras Aryeh KAPLAN Secircfer Yetsiraacute- O Livro

da Criaccedilatildeo 2005 GRUENWALD A preliminary critical edition of the Sefer Yezirah in Israel oriental Studies 1 1971 pp132-177 A versatildeo curta do texto original em portuguecircs pode ser vista no apecircndice da obra de MAGHIDMAN Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico 2014

357 SENDER 1992 p45 BUSI La Qabbalah 2011 p14 Observa Crofton BLACK que tal concepccedilatildeo das Sefirot foi frequentemente considerada hereacutetica entre alguns meios rabiacutenicos por parecer contradizer o estrito monoteiacutesmo do Judaiacutesmo (2006 p 140)

358 FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 359 BUSI opcit p 47 SENDER opcit p28 KAPLAN contudo infere que natildeo eacute certo traduzir sefirot por

ldquonuacutemerosrdquo termo para o qual o hebraico tem uma palavra proacutepria (mispaacuter) seu significado aproxima-se mais de ldquocontardquo que remete ao conceito de nuacutemeros mas natildeo apenas (2005 p54) Flavio Mitridate em suas traduccedilotildees para o latim usava o termo numerationes

360 Gershom Scholem menciona a relaccedilatildeo com o Pitagorismo sem elucidar no entanto ndash ao menos nessa obra ndash se tal informaccedilatildeo eacute uma inferecircncia proacutepria ou se procede de fontes hebraicas (SCHOLEM Nome de Deus e Teoria da Linguagem 1999 p79) A pesquisa cabaliacutestica recolheu atraveacutes dos seacuteculos vasto material literaacuterio tanto para demonstrar o caraacuteter sagrado do dez quanto para encontrar nos antigos textos religiosos e na simbologia dos ritos a confirmaccedilatildeo de que esse nuacutemero fosse por si uma chave para o conhecimento Tudo aquilo que eacute numeraacutevel em dez representa na Cabala uma metaacutefora do mundo sefiroacutetico ndash os dedos das matildeos as enunciaccedilotildees de Deus no iniacutecio do Gecircnesis as dez esferas celestes da filosofia antiga (BUSI opcit pp 14-15)

361 SCHOLEM opcit p79 362 Secircfer Yetsiraacute I 4 5 (trad KAPLAN 2005 p283)

123

As dez Sefirot surgem ou satildeo criadas (o verbo natildeo estaacute estabelecido) a partir do

nada concepccedilatildeo repetida vaacuterias vezes no Capiacutetulo 1 do Secircfer Yetsiraacute ldquodez Sefirot do

nadardquo363 O texto trata outrossim ndash e conforme prometido em seu tiacutetulo ldquoyetsiraacuterdquo ndash

da formaccedilatildeo do universo (e natildeo criaccedilatildeo pois que o material para formar era

preexistente) por meio das vinte e duas letras do alfabeto hebraico que associadas agrave

deacutecada cabaliacutestica totalizam trinta e dois caminhos364 A combinaccedilatildeo das 22

consoantes hebraicas entre si por sua vez perfaz a totalidade de 231 resultados

possiacuteveis que representam 231 portotildees de saiacuteda do poder criador atraveacutes dos quais

ldquoo inexistente foi transformado em existenterdquo365 Agraves letras enquanto ldquofundaccedilatildeordquo do

universo satildeo dedicados quatro dos seis capiacutetulos da obra nos quais com linguagem

enigmaacutetica satildeo tratados seus significados e suas relaccedilotildees com os trecircs reinos da

criaccedilatildeo366

ldquoVinte e duas letras grava entalha pesa permuta transforma

e com elas descreve a alma de tudo o que foi formado e seraacute

formado no futurordquo367

Na maior parte das interpretaccedilotildees do Secircfer Yetsiraacute como informa Moshe Idel

o surgimento do sistema das Sefirot eacute descrito em termos de emanaccedilatildeo Atzilut ou de

expansatildeo Hitpaschetut ambos os processos cumprindo certa forma de cadeia

Schalschelet que relaciona o reino mais alto divino aos mundos mais baixos

produzidos pelas Sefirot368 Observe-se que Idel usa a palavra ldquoproduzirrdquo mundos em

concordacircncia com a passagem ldquotudo o que foi formado e que seraacute formadordquo do Secircfer

Yetsiraacute (II1) Eacute possiacutevel inferir que a ideia de emanaccedilatildeo decorra da percepccedilatildeo do

incessante dinamismo contido na conotaccedilatildeo numeacuterica atraveacutes desse movimento o

fluxo divino percorre o cosmo Dentro desse sistema cada sefiraacute corresponde a um

grau provisoacuterio (porque o fluxo natildeo eacute extaacutetico) de agregaccedilatildeo da energia divina

inserido em um contiacutenuo dinamismo de descese e ascese369 Sua mais

importante designaccedilatildeo eacute assumida no Zohar no qual cada grau de emanaccedilatildeo passa a

ser relacionado a um atributo divino recebendo nomes especiacuteficos em parte

retirados do primeiro livro das Crocircnicas370 Assim embora haja variaccedilotildees semacircnticas

363 Secircfer Yetsiraacute I 2 3 4 5 6 7 8 9 (ibid pp 283-284) 364 Secircfer Yetsiraacute I1 ldquoCom 32 maravilhosos caminhos de Sabedoria grava Yah o Senhor dos Exeacutercitosrdquo (opcit

p 283) A menccedilatildeo ao termo ldquocaminhordquo natildeo eacute aleatoacuteria mas real indicaccedilatildeo de 32 sendas miacutesticas dentro de um processo iniciaacutetico A deacutecima esfera a mais nobre e primeira em posiccedilatildeo eacute onde circulam as 22 letras (MAGHIDMAN 2014 p124)

365 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 366 Cada uma das vinte e duas letras tem seu proacuteprio significado co-essencial com atribuiccedilotildees que satildeo

transmitidas agraves coisas por meio delas formadas (SENDER opcit p30) 367 Secircfer Yetsiraacute II 1 (opcit p285) 368 IDEL 2008-a p21 No iniacutecio do seacuteculo XIV na literatura de inspiraccedilatildeo zohaacuterica ndash em modo particular no

Tiqqune ha-zohar (Os Ornamentos do Esplendor) e no Masseket atzilut (Tratado sobre a Emanaccedilatildeo) ndash o processo de emanaccedilatildeo comeccedila a ser distinguido em suas sucessivas fases denotando a distacircncia que separa o mundo superno da inferior realidade material (BUSI 2011 p 19)

369 BUSI opcit pp14 47 IDEL afirma que o caraacuteter dinacircmico das Sefirot constitui uma das principais caracteriacutesticas da Cabala (2008b p515) SCHOLEM trata do caraacuteter gnoacutestico das Sefirot em sua obra Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York 1960

370 O trecho no qual Davi bendiz Deus elencando seus atributos diz ldquotua eacute Senhor a magnificecircncia e o poder e a gloacuteria e o esplendor e a majestaderdquo (Crocircnicas 1 2911) Esses cinco atributos datildeo nomes a cinco das dez Sefirot Cf FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 np35 SENDER opcit pp 28 45

124

e de traduccedilatildeo os termos e significados mais utilizados para distinguir cada sefiraacute satildeo

Keter (Coroa) Hokhmaacute (Sabedoria) Binaacute (Inteligecircncia ou Compreensatildeo) Hesed

(Amor ou Grandeza) Guevuraacute (Bravura ou Potecircncia) Tiferet (Beleza) Netsah

(Eternidade ou Vitoacuteria) Hod (Magnificecircncia) Yesod (Fundamento) Malkut

(Reino)371 Assim cada uma das esferas corresponde a uma forma especiacutefica de

manifestaccedilatildeo de Deus uma middah ou atribuiccedilatildeo divina que pode ser ainda

identificada com um de Seus dez nomes sagrados Sob tal luz compreende-se a

conclusio cabaliacutestica 36 ldquoDeus endossou dez vestimentas quando criou o mundordquo372

Apesar de diferenciadas em suas caracteriacutesticas as dez Sefirot constituem uma

unidade como dez matizes da mesma luz

Em termos de ordenaccedilatildeo a estrutura sefiroacutetica tem sido contemplada com

diversos tipos de representaccedilotildees como por exemplo em forma de esferas dispostas

sobre a circunferecircncia de um ciacuterculo ou de letras hebraicas encerradas uma dentro da

outra mas a imagem que se tornou mais conhecida ndash divulgada na ediccedilatildeo do Pardes

Rimmonim (O jardim das romatildes) de Cordovero no lsquo500 ndash eacute a chamada aacutervore

sefiroacutetica na qual ao longo de trecircs eixos principais e paralelos estatildeo dispostos os

ciacuterculos que simbolizam as Sefirot ligados por canais transversais que sinalizam os

reciacuteprocos influxos373 Segundo a tradiccedilatildeo cabaliacutestica a descida das forccedilas celestes

adveacutem ao longo do lado da direita atraveacutes de hokhmaacute hesed e netsah enquanto a

ascensatildeo percorre o lado esquerdo atraveacutes de binaacute guevuraacute e hod O eixo central

sobre o qual se alinham keter tiferet yesod e malkut eacute conotado pela ideia de

presenccedila e completude do divino374 Os traccedilos de ligaccedilatildeo entre as Sefirot em nuacutemero

de vinte e dois ndash e em perfeita simetria geomeacutetrica com o total de letras do alfabeto

hebraico ndash constituem as vias atraveacutes das quais a luz infinita e a forccedila criadora se

propagam A metaacutefora da propagaccedilatildeo da luz eacute tatildeo utilizada quanto a do

derramamento de aacuteguas em uma de suas representaccedilotildees tem-se a imagem de

recipientes que recebem os fluiacutedos e que depois de cheios derramam o excesso para

os recipientes inferiores sucessivamente Outro ponto importante para a

compreensatildeo do conceito de emanaccedilotildees eacute que em qualquer representaccedilatildeo cada

sefiraacute eacute considerada passiva em relaccedilatildeo agravequela que a precede e ativa em relaccedilatildeo agraveque-

la que a sucede375 Para melhor compreensatildeo desta ideia as Sefirot podem ser

representadas por trecircs triacircngulos sendo um superior ascendente e dois inferiores

descendentes O triacircngulo ascendente tambeacutem chamado espiritual recebe luz e forccedila

do Alto e corresponde ao Mundo da Emanaccedilatildeo Os triacircngulos descendentes

371 Veja-se BUSI 2011 p16 FORNACIARI 2009 p 19 np35 CROFTON pp140-141 A sequecircncia das Sefirot

mais aceita eacute aquela que foi estabelecida na escola de Isaac o Cego em Narbonne no seacuteculo XIII Acresce FORNACIARI (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) que cada sefiraacute a uma forma de manifestaccedilatildeo ou a uma inteligecircncia angeacutelica Os cabalistas encontram uma seacuterie de correspondecircncias entre as Sefirot e cada niacutevel da realidade como os astros os oacutergatildeos vitais os personagens biacuteblicos (Abraatildeo seria Hesed ou Guedulaacute) as manifestaccedilotildees da natureza etc Como explica BUSI (opcit p16) a referecircncia ao sol a Jacoacute ou agrave noccedilatildeo abstrata de beleza correspondentes a uma mesma sefiraacute natildeo significa que esses elementos tenham equivalecircncia mas sim que estatildeo ligados por uma harmonia que institui um nexo iacutentimo e um grau comum entre eles

372 PICO Concl (II) XI 36 p134 ldquo[] deus induit se decem uestimentis quando creauit saeculumrdquo 373 Veja-se representaccedilatildeo da aacutervore sefiroacutetica em IDEL 2008a p21 MAGHIDMAN 2014 p175 374 BUSI opcit pp15-17 375 SENDER opcit pp 46 ss

125

respectivamente o intelectual e o formativo absorvem as influecircncias superiores as

transfazem e conduzem em direccedilatildeo aos mundos fiacutesicos376

O Ein Sof

Acima da concepccedilatildeo das Sefirot a doutrina cabaliacutestica concebe a enigmaacutetica

existecircncia de outros trecircs niacuteveis supra espaccedilo-temporais O mais distante e

incompreensiacutevel dentre os trecircs encerra-se na ideia de Ain que se traduz como ldquonadardquo

O Ain natildeo representa a negaccedilatildeo da existecircncia mas a afirmaccedilatildeo de que ldquonenhum

termo do vocabulaacuterio humano poderaacute definir tal abstraccedilatildeordquo como define Tova

Sender Essa ideia exclui qualquer relaccedilatildeo com os mundos pertencentes ao tempo e

ao espaccedilo O Ain natildeo existe e natildeo estaacute eacute o ldquoImanifestordquo ou a ldquoExistecircncia Negativardquo377

Em seguida haacute o Ein Sof literalmente ldquosem fimrdquo ou ldquoinfinitordquo uma concepccedilatildeo

levemente mais definida que o Ain Difere do primeiro na medida em que pressupotildee

uma participaccedilatildeo no tempo e espaccedilo em razatildeo da inclusatildeo do termo ldquosofrdquo (ldquofimrdquo)

Permanece como no princiacutepio anterior a ideia de existecircncia negativa O Ein Sof Or

(ldquoluz infinitardquo) terceiro conceito aproxima-se da apreensatildeo humana em razatildeo da

presenccedila do termo ldquoorrdquo (ldquoluzrdquo) Contudo o Ein Sof Or manteacutem-se incompreensiacutevel e

constitui o terceiro veacuteu de existecircncia negativa378 Diferentemente das Sefirot que

podem ser conhecidas atraveacutes do estudo e da contemplaccedilatildeo a teologia hebraica

negativa postula que a verdadeira essecircncia de Deus nunca seraacute conhecida Assim na

maior parte das obras cabaliacutesticas a manifestaccedilatildeo de Deus no cosmo eacute concebida

somente a partir da emanaccedilatildeo que parte do Ein Sof Or fazendo com que Aquele se

revele ldquono emanado estaacute a forccedila do Emanador mas Este natildeo sofre diminuiccedilatildeo

algumardquo379 O sistema cabaliacutestico contempla ainda uma quarta concepccedilatildeo que seria

a unidade absoluta sintetizada no Tetragrama YHWH ndash ou ldquonome sagrado de Deus

de quatro letrasrdquo380

Na emanaccedilatildeo ocorre um processo de distinccedilatildeo atraveacutes do qual os seres satildeo

formados por separaccedilatildeo da unidade absoluta De acordo com Giulio Busi o problema

da passagem do Ein Sof ao domiacutenio da emanaccedilatildeo representou um dos pontos mais

tormentosos da especulaccedilatildeo cabalista381 Especialmente na Cabala do lsquo500 difundiu-

se a reflexatildeo sobre o aspecto secreto do desencadeamento da emanaccedilatildeo passando a

376 SENDER ibid p50 377 No sentido descendente a Aacutervore da Vida constitui o trajeto atraveacutes do qual o poder criador atuou no ato da

Criaccedilatildeo eacute a transformaccedilatildeo do AIN (ldquoNadardquo) em ANI (ldquoEurdquo) quando o Imanifesto torna-se Manifesto Note-se que AIN e ANI contecircm as mesmas letras e a permutaccedilatildeo entre elas segundo o meacutetodo cabalistico temuraacute ocorreu simultaneamente ao processo de involuccedilatildeo do poder criador (SENDER opcit p50)

378 SENDER opcit p46 Haacute registros de que o recurso agrave teologia negativa que opera com a impossibilidade de qualificar a iacutentima natureza do divino estava presente no iniacutecio do seacuteculo XIII nos ciacuterculos de Isaac o Cego (BUSI opcit p18)

379 A passagem eacute dos Sifre ha-lsquoiyyun (Livros da Contemplaccedilatildeo) redigidos na metade do seacuteculo XIII lecirc-se ainda ldquoEle eacute unido agraves suas forccedilas como a chama eacute unida agraves suas coresrdquo (cf Verman The Books of Contemplation Medieval Jewish Mystical Sources Albany 1992 apud BUSI opcit p18)

380 Paolo FORNACIARI (2009 p19) como outros autores pesquisados trata de forma bastante restrita o conceito de Tetragrama que tambeacutem eacute transliterado como IHVH Em outra qualificaccedilatildeo obscura informa SCHOLEM que o conjunto do universo estaacute selado em todos os seus seis lados com as seis permutaccedilotildees do nome IHVH e que todas as coisas existem por combinaccedilotildees dessas letras como assinaturas (1988 p201)

381 BUSI opcit p 20

126

ser bem aceita a concepccedilatildeo de que o impulso agrave manifestaccedilatildeo se deu como um

movimento espontacircneo da vontade divina expresso na ideia de expansatildeo Para que

tal manifestaccedilatildeo no cosmo fosse possiacutevel os cabalistas anuiacuteram que o Ein Sof tivesse

tido que se auto-limitar restringindo-se dentro do domiacutenio da compreensibilidade382

Tal ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina denominada Sekinah jaacute se encontrava

presente na literatura midraacuteshica e foi retomada no decorrer do seacuteculo XIII383 Mais

adiante no seacuteculo XVI Moshe Cordovero exprimiria o conceito de contraccedilatildeo divina

com um esclarecedor aforisma segundo o qual ldquoa emanaccedilatildeo eacute o espaccedilo de Sua

presenccedila no qual Ele se contraiurdquo de forma que ldquoSua grandeza mesmo que parcial

pudesse ser intuiacutedardquo Continuando dizia o cabalista que ldquoa razatildeo da emanaccedilatildeo eacute

dupla de uma parte Deus quis ocultar-se ateacute que as criaturas tivessem um limite de

outra parte Ele quis revelar-se para que as criaturas pudessem aferrar a Sua

grandezardquo384 As sentenccedilas confirmam conceitualmente o duplo movimento

presente na origem da Criaccedilatildeo o de ocultaccedilatildeo e o de manifestaccedilatildeo Ademais as

palavras de Cordovero que refletem uma posiccedilatildeo doutrinaacuteria aceita no Cabalismo

sustentam que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta

necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelos

seres finitos Sob esse prisma na concepccedilatildeo basilar de emanaccedilatildeo divina estaria

imbuiacuteda a ideia de uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade ou de sua parcial

ocultaccedilatildeo Acerca do tema e especificamente de sua atuaccedilatildeo sobre o universo fiacutesico

escreveu de forma elucidativa o mestre de Pico Alemanno

O poder [divino] se estende e emana sobre todas as criaturas em

geral ainda que elas difiram no tocante agraves suas capacidades

receptivas assim os vegetais e os animais satildeo mais receptivos

ao efluxo divino do que os minerais O ser humano tem a maior

receptividade de todos [Mas] tambeacutem na espeacutecie humana os

homens possuem distintos graus de receptividade385

A passagem conquanto se refira agraves diversas formas de recepccedilatildeo das

emanaccedilotildees no universo fiacutesico confirma a atuaccedilatildeo da divindade sobre os mundos

inferiores atraveacutes de seus canais as Sefirot Outra caracteriacutestica integrante do

movimento emanente estaacute em seu retorno A presenccedila de um fluxo descendente e

outro ascendente estaacute clara nesta outra passagem de Alemanno ldquoEle recebe todos os

canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe

aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees

382 Perceba-se que ao limitar-se em contraccedilatildeo ocorre uma queda de potecircncia Em cada subsequente estaacutegio ou

desniacutevel daacute-se uma consequente diminuiccedilatildeo da magnitude de poder da emanaccedilatildeo Essa concepccedilatildeo por si soacute pode propiciar algumas especulaccedilotildees teoloacutegicas

383 A contraccedilatildeo eacute definida em hebraico como simsum procedente da raiz simsem (BUSI 2011 p 20) A concepccedilatildeo da contraccedilatildeo divina sofre algumas variaccedilotildees ao longo do tempo Nachmacircnides trata do tema que tambeacutem consta do Midrash haacute-nersquoelam (O midrash escondido)

384 CORDOVERO Pardes Rimmonim A obra de Cordovero surgida pela primeira vez em Cracoacutevia em 1591 natildeo dispotildee atualmente de ediccedilatildeo comentada BUSI informa em sua bibliografia algumas traduccedilotildees da obra (2011 pp20-21 138)

385 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 105v Quanto aos graus de receptividade do homem a recepccedilatildeo de cada sefiraacute depende da estrutura do intelecto humano que pode participar do conhecimento apenas de forma gradual Sobre o tema veja-se BUSI 2011 p14

127

que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo386 Haacute pois um

retorno ldquoa Elerdquo um movimento contraacuterio e necessaacuterio para o equiliacutebrio universal O

fluxo de ascese e descese passando atraveacutes da aacutervore sefiroacutetica permite que os

estamentos universais se estabeleccedilam

As conceituaccedilotildees referentes ao processo de emanaccedilatildeo a partir do Ein Sof

especialmente as escritas por Alemanno certamente natildeo deixariam de ser notadas

por Pico Em pelo menos duas conclusiones o tema eacute abordado diretamente Na tese

oacuterfica 15 eacute estabelecida uma correspondecircncia ldquosatildeo a mesma coisa a Noite em Orfeu e

o Ein Sof na Cabalardquo387 Para estabelecer tal analogia Pico estaria acolhendo em

ambas as designaccedilotildees a representaccedilatildeo da existecircncia informe ou da ausecircncia de

forma e distinccedilatildeo O tema eacute retomado na tese cabaliacutestica 31 secundum opinionem

propriam ldquoQuando os cabalistas colocam com o termo Tesuvah a ausecircncia de

forma esta deve ser entendida como estado antecedente agrave formardquo388 A concepccedilatildeo de

uma contraccedilatildeo divina tambeacutem natildeo deixaria de ser mencionada

Se concebermos Deus como infinito e uno e segundo si mesmo

de modo a compreender que drsquoEle nada procede sendo apenas

distanciamento das coisas total fechamento de si em si mesmo

e extremo profundo e solitaacuterio contrair-se no recesso mais

remoto da proacutepria divindade ndash entatildeo teremos uma intuiccedilatildeo

drsquoEle que se cobre no abismo de sua profundidade389

3 As divisotildees da Cabala e suas formas de aproximaccedilatildeo agrave divindade390

O vasto conjunto de materiais que foi sendo formado ao longo de seacuteculos

abrigando doutrinas que ora se complementavam ora natildeo dificilmente poderia

formar uma teoria unificada Assim que os milhares391 de textos e manuscritos

encontrados sob o leque do Cabalismo foram adquirindo tonalidades diferenciadas

que levaram agrave disposiccedilatildeo de alguns corpora com denominaccedilotildees distintas Embora

para Gershom Scholem toda a miacutestica judaica seja fundamentalmente uma teosofia ndash

386 ALEMANNO Einei haEdaacute (Os Olhos da Congregaccedilatildeo) Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51r-v 387 Concl (II) X 15 p122 ldquoIdem est Nox apud Orpheum et Ensoph in Cabalardquo 388 Concl (II) XI 31 p132 ldquoCum audis cabalistas ponere in lsquoThesuarsquo informitatem intellige informitatem per

antecedentiam ad formalitatem non per priuationemrdquo 389 PICO Concl (II) XI 35 p132 ldquoSi deus in se ut infinitum ut unum et secundum se intelligatur ut sic nihil

intelligimus ab eo procedere sed separationem a rebus et omnimodam sui in seipso clausionem et extremam in remotissimo suae diuinitatis recessu profundam ac solitariam retractionem de eo intelligimus ipso penitissime in abysso suarum tenebrarum se contegente et nullo modo in dilatatione ac profusione suarum bonitatum ac fontani splendoris se manifestanterdquo Pontua FARMER (op cit p535) que Pico distingue nessa tese a natureza transcendente de Deus (Ein-Sof) de sua natureza manifesta (as Sefirot)

390 O termo ldquodivindaderdquo pode ser atribuiacutedo a uma miriacuteade de possibilidades dentro de uma estrutura hieraacuterquica de acordo com o modelo de Cabala e com a intenccedilatildeo do operador O conceito pode ser empregado para caracterizar desde entidades mais terrenas dentro de uma visatildeo que se aproxima ao paganismo como para designar o grau maacuteximo da Unidade Absoluta

391 Embora a quantidade possa parecer exagerada o nuacutemero de manuscritos espalhados atualmente entre vaacuterias bibliotecas do mundo eacute efetivamente avultoso como confirmam as obras dos especialistas Scholem e Idel

128

jaacute que trata da imersatildeo nos misteacuterios do mundo divino e de suas relaccedilotildees com o

mundo da Criaccedilatildeo ndash392 o proacuteprio reconhece algumas divisotildees temaacuteticas existentes na

Cabala dentre as quais duas principais a chamada Cabala Praacutetica Qabalaacute Maassit

e a chamada Cabala Especulativa Qabalaacute Iiunit393 Em suas Conclusiones

Cabalisticae Giovanni Pico mostrava ter conhecimento dessas duas divisotildees

testemunhando que a distinccedilatildeo jaacute era bem aceita pelos cabalistas da eacutepoca394 A

Cabala Especulativa tomou outra subdivisatildeo a saber o modelo teuacutergico-teosoacutefico

mais difundido e considerado mais importante e o modelo extaacutetico-meditativo

tambeacutem chamado profeacutetico Essas se tornaram as trecircs principais distinccedilotildees aceitas

pelos atuais comentaristas cabaliacutesticos representando sucintamente trecircs formas de

se relacionar com a Cabala a praacutetica em alguns casos chamada ldquomaacutegicardquo a teuacutergica e

a extaacutetica395 A elucidaccedilatildeo de tais modelos seraacute uacutetil para a compreensatildeo de seus

propoacutesitos e consequentemente de seu uso na obra piquiana

A Cabala Praacutetica

Difundida especialmente a partir da escola askenazita florescida no seacuteculo XII

e responsaacutevel por levar o misticismo judaico a uma fase de transiccedilatildeo396 a Cabala

Praacutetica lida com formas ritualiacutesticas que poderiam ser organizadas ao longo de uma

reacutegua de graduaccedilotildees Tambeacutem chamada ldquomaacutegico-talismacircnicardquo contempla um

conjunto de procedimentos voltados agrave obtenccedilatildeo de determinados benefiacutecios que se

distribuem em graus variaacuteveis de densidade material relacionados agrave utilizaccedilatildeo de

praacuteticas maacutegicas Nesse sentido a magia deve ser entendida como elemento que faz

parte do saber miacutestico judaico apresentando-se sob uma profusatildeo de formas

presentes desde o final da Antiguidade397 Com o passar do tempo ocorreu a

despotencializaccedilatildeo da Cabala maacutegica em virtude da crescente manipulaccedilatildeo de

elementos externos para a obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais eou pessoais levando a

Cabala Praacutetica a aproximar-se do paganismo398 Efetivamente vaacuterias narrativas

recolhidas nos Talmudim e Midrashim de eacutepoca tardo-antiga descrevem foacutermulas

392 SCHOLEM 1999 pp 64-65 Malgrado qualquer definiccedilatildeo que o termo ldquoteosofiardquo possa ter tomado apoacutes o

seacuteculo XVIII cabe ressaltar que o uso empregado pelos comentadores ao tratar das concepccedilotildees presentes na Cabala relaciona-se agrave forma como o mesmo era utilizado pelos neoplatocircnicos para indicar o conhecimento das coisas divinas proveniente da inspiraccedilatildeo direta de Deus Nesse sentido veja-se por exemplo Proclo (Theologia Platonica V 35) e Porfiacuterio (De abstinentia ab esu animalium IV 17)

393 SCHOLEM 1989 p5 Foi a escola espanhola a produzir a primeira literatura apontando para uma dicotomia entre Cabala praacutetica e especulativa Essa distinccedilatildeo pode ter relaccedilatildeo com a divisatildeo formulada por Maimocircnides entre filosofia especulativa e filosofia praacutetica em seu tratado sobre loacutegica Milot ha-Higaion (IDEL 2008-a p32)

394 PICO Conclusio secundum secretam doctrinam sapientum hebraeorum 1 ldquoIndependentemente do que digam todos os outros cabalistas eu distinguirei o conhecimento da Cabala na Ciecircncia da Numeraccedilatildeo ou Sephirot e na Ciecircncia de Semot ou Nomes em relaccedilatildeo agrave ciecircncia praacutetica e especulativardquo Pico toma emprestada tal distinccedilatildeo do cabalista Abraham Abulafia (cf IDEL Lrsquoesperienza mistica di Abraham Abulafia Milano 1992 p46 apud FORNACIARI 2009 np35)

395 IDEL 2008a p19 veja-se o inteiro artigo para detalhes acerca dos modelos de Cabala 396 Leia-se mais em BUSI opcit p49 397 Algumas partes desse tipo de conhecimento sobreviveram e encontram-se em textos hebraicos e aramaicos

como informa IDEL (2008-a pp32-33) 398 IDEL 2008a p38 Na paacutegina 37 da mesma obra Idel cita um trecho do Pardes Rimonim obra claacutessica da

literatura de Safed de Cordovero em que se encontra descrita a forma de utilizaccedilatildeo das cores para atrair as forccedilas sefiroacuteticas

129

maacutegicas e extraordinaacuterios poderes de antigos mestres confirmados por achados

arqueoloacutegicos que provam sua difusatildeo durante a diaacutespora do Oriente Proacuteximo399

Na Idade Meacutedia sob o impacto de concepccedilotildees filosoacuteficas reinantes entre os

aacuterabes surgiram elaboraccedilotildees que se sustentavam sobre a ideia que canalizando a

fonte espiritual que governa o mundo o operador poderia manipular os

acontecimentos do mundo sublunar Por conseguinte desenvolveu-se na magia

medieval aacuterabe e judaica o conceito de atraccedilatildeo das forccedilas dos corpos celestiais Tais

forccedilas denominadas Pneumata Ruhaniyyat ou Ruhaniot ndash respectivamente em

grego aacuterabe e hebraico ndash poderiam ser atraiacutedas e capturadas por meio de tipos

especiais de objetos e rituais cujas naturezas deveriam estar em concordacircncia com as

feiccedilotildees dos correspondentes corpos celestiais400 Entre as maneiras de atrair os vaacuterios

gecircneros de forccedilas existentes a linguagem mostrava-se a principal forma utilizada

sendo um procedimento que de acordo com o modelo de Cabala poderia ser

empregado em oitavas diferenciadas401

Os resultados dos chamados ldquoencantamentosrdquo passam a se difundir nos

ciacuterculos cabaliacutesticos sobretudo a partir do seacuteculo XII eacutepoca de difusatildeo da obra de

magia Secircfer Raziel (O Livro de Raziel) inclusive entre os cristatildeos402 Para muitos

sua autoria deveria ser atribuiacuteda a Eleazar de Worms que teria escrito tambeacutem um

comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute onde se leem algumas instruccedilotildees para a feitura de um

ser vivo intitulado Golem403 Ainda antes de difundir-se nos ciacuterculos renanos essa

intrigante concepccedilatildeo era conhecida entre os judeus da Itaacutelia meridional mesmo em

ambientes culturalmente elevados na obra Megillat Ahimarsquoas redigida na Puglia do

seacuteculo XI narra-se a criaccedilatildeo de um golem a partir da potecircncia do Tetragrama404

Contudo a maior absorccedilatildeo da literatura referente ao golem se daacute no Quattrocento

italiano certamente natildeo passaria despercebida aos ilustrados do Renascimento a

399 BUSI 2011 p27 Muitos dos achados arqueoloacutegicos traziam amuletos com nomes angeacutelicos frequentemente

agrupados em longas sequecircncias para reforccedilar seu valor apotropaico Maiores detalhes sobre a Cabala Praacutetica podem ser encontrados nas seguintes obras indicadas por BUSI PATAI R Alchimisti ebrei-Storia e fonti trad S Bondoni Genova 1997 SEacuteD N Lrsquoalchimie e la Science sacreeacute des lettres Notes sur lrsquoalchimie juive agrave propos de lrsquo ldquoEgravesh mesarephrdquo in Alchimie Art Histoire et mythes Paris-Milan 1995 pp547-649

400 Maimocircnides embora natildeo simpatizante dessa espeacutecie de atividade foi quem melhor descreveu as formas de atraccedilatildeo de forccedilas para objetivos praacuteticos nas passagens em que trata sobre idolatria (IDEL 2008-a p34)

401 O uso da Cabala Praacutetica natildeo se restringe agrave obtenccedilatildeo de benefiacutecios materiais ou egoiacutesticos como poderia ser entendido Como conta Tova SENDER (opcit p82) o poder da linguagem relacionado agrave leitura dos Salmos para citar um exemplo constitui um recurso utilizado por comunidades judaicas em tempos de perigo natildeo apenas na Antiguidade como nos dias atuais

402 SENDER opcit p79 O Secircfer Raziel eacute um manual contendo instruccedilotildees para a confecccedilatildeo de amuletos Veja-se o amplo material coletado por Franccedilois SECRET Sur quelques traductions du Sefer Raziel in Revue des Eacutetudes Juives 128 1969 pp223-245

403 Considera-se que a recitaccedilatildeo correta dos versos do Secircfer Yetsiraacute tem a forccedila para produzir uma criatura e dotaacute-la de vitalidade hiut e alma neschamaacute Como no idioma hebraico eacute possiacutevel natildeo definir o tempo verbal em razatildeo de sua ausecircncia de vogais as sentenccedilas presentes naquela obra podem ser lidas como ldquoEle combinou Ele formourdquo ou de forma imperativa ldquoCombine Formerdquo (cf MAGHIDMAN 2014 p109) Acerca da criaccedilatildeo real de um ser animado conta-se que no seacuteculo XVI em Praga notabilizou-se o rabino Loumlew por criar um golem partindo do barro e utilizando o Livro da Criaccedilatildeo Sobre o tema a composiccedilatildeo intitulada Sod Peulat haYetsiraacute (O Segredo da Operaccedilatildeo da Criaccedilatildeo) eacute um dos textos que descreve a criaccedilatildeo de um golem (cf IDEL As obras e a doutrina de Abratildeo Abulafia opcit 1976 p131) Tambeacutem de IDEL Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid 1990 pp 54-80 96-118 127-163 Veja-se ainda SCHOLEM e seu capiacutetulo ldquoA ideia do Golemrdquo (A Cabala e seu Simbolismo 1978) BUSI e suas sugestotildees bibliograacuteficas acerca do tema (2011) SENDER (1992 p80)

404 BUSI idem

130

possibilidade de confeccionar um ser animado De fato como conta Franco Bacchelli

ldquonaqueles anos entre aqueles homens [do final do lsquo400] encontrava-se vivo natildeo

apenas o velho problema da possibilidade da geraccedilatildeo espontacircnea de animais

superiores mas tambeacutem a questatildeo da possibilidade de conferir vida para vaacuterios fins

operativos e sapienciais a mateacuterias inanimadasrdquo405 Satildeo justamente desse periacuteodo

as discussotildees ficinianas sobre as estaacutetuas que poderiam capturar daimons ou sobre a

geraccedilatildeo de ldquointelectosrdquo profeacuteticos estabelecidos por Lazzarelli a partir das receitas

para se confeccionar um golem406

O interesse pela magia eacute um elemento que compotildee a cena do seacuteculo XV como

visto no Capiacutetulo I e que mereceu destaque em obras piquianas como as

Conclusiones a Oratio e a Apologia O conhecimento de formas da magia hebraica

abriria espaccedilo para discussotildees mais profundas de teor eacutetico que envolveriam Pico

Alemanno e pronunciadas distinccedilotildees entre formas da Cabala consideradas puras e

impuras relacionadas aos lados ldquodireito e esquerdordquo407 A conceituaccedilatildeo do ldquolado

esquerdordquo tem suas origens ligadas muito provavelmente agrave ideia de sitra ahara

(ldquooutro ladordquo) expressa no Zohar Um manuscrito do seacuteculo XVI de autor anocircnimo

adverte para a necessidade de se preservar tais ensinamentos informando que ldquoa

Cabala praacutetica consiste em conjuraccedilotildees de anjos um saber que deve ser escondido

por causa daquelas pessoas que satildeo mestres da praacutexis [anschei baalei maaseacute]rdquo408

Alemanno demonstrara interesse pelo aspecto operativo da Cabala ainda antes

de conhecer seu disciacutepulo embora reconhecendo sua posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo agraves

formas mais elevadas de especulaccedilatildeo cabaliacutestica Pico por sua vez sabia que eram

proibidas as praacuteticas que empregavam nomes divinos para encantar democircnios

deixando claro em sua Tese maacutegica nr 26 que apenas a Cabala ldquopura e imediatardquo

poderia mover algo ldquoque nenhuma magia alcanccedilardquo409 Alemanno ndash e mais tarde

Cordovero que acolheria o influxo de seus procedimentos em Safed ndash tinha ciecircncia

da similaridade entre o tipo de Cabala que estava propondo e as praacuteticas maacutegicas

pagatildes ndash e natildeo pretendia quebrar a ordem natural recorrendo a forccedilas demoniacuteacas que

poderiam destruir tal ordem Ao contraacuterio propunha um tipo de atividade que

complementasse o curso natural das coisas adicionando uma dimensatildeo da praacutexis

baseada em leis jaacute existentes Para um cabalista como Alemanno que utilizava a

405 Franco BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione

cabaliacutestica 2001 p 62 406 BACCHELLI ibid p76 Na mesma obra em nota agrave p 82 o autor aborda a maneira como Lazzarelli em sua

obra Crater Hermetis absorveu a doutrina da criaccedilatildeo do Golem e a forma de utilizaccedilatildeo dos nomes divinos 407 Assim escreveria o Rabi Elias Menakhem Halfan mais tarde em uma epiacutestola do seacuteculo XVI ldquoa ciecircncia da

Cabala dividiu-se no iniacutecio em duas partes chamadas de lado direito e lado esquerdo O lado direito eacute todo pureza e santidade nomes divinos e angelicais e questotildees sagradas O lado esquerdo eacute todo [] democircnios e cascas do lado impurordquo (Manuscrito JTS 1822 f 153v)

408 IDEL 2008-a p32-33 O manuscrito em questatildeo originou-se na escola cabalista espanhola cuja tendecircncia agrave magia foi visiacutevel no seacuteculo XV Ao contraacuterio da magia naturalis aceita por Ficino Pico e Alemanno seus contemporacircneos espanhoacuteis cultivavam um tipo de magia diversa que lidava com conjuraccedilotildees de anjos e democircnios para uma variedade de desiacutegnios inclusive o escatoloacutegico Haacute relatos de que alguns cabalistas da Espanha cultivaram uma forma demoniacuteaca e violenta de Cabala maacutegica destinada a destruir a ordem histoacuterica e religiosa predominante que significava entre outras coisas tambeacutem o Cristianismo (IDEL Jewish Magic from the Renaissance to Early Hasidism in Neusner-Frerichs-McCracken (eds) New York-Oxford Oxford University Press 1989 pp 86-99)

409 PICO Concl (II) IX 26 p120 ldquo[] ita per opus Cabalae si sit pura Cabala et immediata fit aliquid ad quod nulla Magia attingitrdquo

131

magia em sua forma mais pura tal atividade era considerada sobrenatural apenas na

medida em que sua ordenaccedilatildeo se mostrava pertencente a uma ordem superior410 A

clara percepccedilatildeo da existecircncia de dimensotildees supracelestes puras e impuras bem como

de operadores cabalistas eticamente diferenciados em qualquer das formas

atribuiacuteveis agrave Cabala foi registrada pelo mestre de Pico

Qualquer homem bom ou mau que conheccedila a obra dos anjos

puros e impuros que satildeo superiores agraves estrelas pode atrair sua

fragracircncia sobre nossas cabeccedilas pois deu uma interpretaccedilatildeo

cabaliacutestica agrave Toraacute inteira Nisso estatildeo inclusos os mestres das

ciecircncias especulativas e praacuteticas das Sefirot411

A Cabala Teuacutergica

O modelo teuacutergico-teosoacutefico bastante amplo em relaccedilatildeo agrave quantidade de

material que lhe foi designado abrange de um lado o domiacutenio de especulaccedilatildeo que os

estudiosos descrevem como ldquoteosoacuteficordquo ndash pois lida com os diferentes e complexos

mapas do reino divino procurando revelar os misteacuterios da vida oculta de Deus suas

relaccedilotildees com a vida humana e as desta com a Criaccedilatildeo de outro a chamada ldquoteurgiardquo

ou a maneira atraveacutes da qual certos feitos religiosos humanos exercem impacto sobre

o referido reino412 Os teurgos entendem que o homem seja capaz de ativar o influxo

divino atraveacutes de cerimocircnias religiosas e invocaccedilotildees Um paradigma de pensamento

teuacutergico foi aquele desenvolvido por Jacircmblico baseado na eficaacutecia do rito como

ativador das forccedilas celestes Segundo o neoplatocircnico ldquograccedilas agraves forccedilas dos segredos

singulares que possui o teurgo natildeo comanda as potecircncias coacutesmicas como um

homemrdquo mas ldquocomo um ser que jaacute alcanccedilou o niacutevel dos deusesrdquo413 Esse eacute o

entendimento que se extrai das formas teuacutergicas mencionadas por Pico sobretudo

nas Conclusiones que tratam dos Hinos de Orfeu414 Sob o Cabalismo o conceito de

410 IDEL 2008-a pp 37-38 Em seu Collectanaea Alemanno elucida que o processo para a aquisiccedilatildeo de

poderes maacutegicos atraveacutes da emanaccedilatildeo das forccedilas superiores compreende dois estaacutegios em uma abordagem que parte do inferior ao superior inicialmente a pessoa receberia uma vibraccedilatildeo menos elevada do efluxo divino somente apoacutes habituar-se a ele poderia receber o efluxo adicional ldquoo espiacuterito do Deus vivordquo que caracterizaria o ldquodescenso da espiritualidaderdquo (horadat haRukhaniut) Para o autor se os atos para o descenso das forccedilas fossem feitos sob a utilizaccedilatildeo dos corretos mandamentos e ritos judaicos qualquer conduta ndash que em outra situaccedilatildeo seria irregular ndash tornar-se-ia atenuada Assim as consecuccedilotildees materiais e espirituais poderiam ser realizadas sem uma tentativa de ldquocurto-circuitarrdquo a ordem da natureza ou ldquosem forccedilar a vontade divinardquo (cf IDEL ibid p35) Note-se que em Florenccedila a ideia de descenso das forccedilas espirituais recebeu criacuteticas de Moiseacutes ben Yoav que considerava essa praacutetica idolatria em todos os aspectos Elia Del Medigo descartava completamente qualquer de suas formas Em sua obra Bekhinat haDat (O Exame da Religiatildeo) Del Medigo se opotildee agravequeles (como Alemanno provavelmente) que viam na Toraacute e nos preceitos meios para causar o descenso das forccedilas espirituais (ldquoeacute impossiacutevel que as forccedilas espirituais descendam para o mundo do modo que dizem os magos Ao examinarmos os dizeres da Toraacute vemos que ela se opotildee energicamente a tais praacuteticas idoacutelatrasrdquo) Cf IDEL 2008-b p 477 np 493

411 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Paris 849 f 7v 412 IDEL 2008a p 20 Essa forma de Cabala fez parte das discussotildees dos cabalistas espanhoacuteis encontrando no

Zohar uma forte expressatildeo florescendo posteriormente de forma mais vigorosa no ciacuterculo luriacircnico de Safed no seacuteculo XVI Para maiores detalhes acerca da notoacuteria escola desenvolvida por Isaac Luria veja-se IDEL 1998 pp 22-23

413 Apud BUSI (opcit p34) que natildeo cita a fonte de Jacircmblico 414 Veja-se por exemplo a Conclusio oacuterfica nr2 cf Cap III

132

Teurgia refere-se agrave crenccedila do cabalista em sua habilidade especiacutefica de influenciar no

processo e na condiccedilatildeo das Sefirot atribuindo ao rito uma especial forccedila operativa415

Tanto o fenocircmeno de recebimento do efluxo sefiroacutetico como a leitura dos

nomes divinos eram elementos familiares a Pico e integravam respectivamente a

ldquoCiecircncia das Sefirotrdquo e a ldquoCiecircncia Semotrdquo mencionadas nas Conclusiones416 A

conexatildeo entre esses dois aspectos eacute abordada no Takhlit heHakham obra conhecida

tanto por Pico como por Alemanno onde se lecirc ldquoAristoacuteteles disse que [] nos tempos

antigos os nomes divinos tinham uma certa capacidade para trazer a forccedila espiritual

agrave terra Agraves vezes essas forccedilas descendiam Outras vezes matavam o homem que as

utilizasserdquo417 A menccedilatildeo aos tempos de Aristoacuteteles eacute utilizada pelo autor do

manuscrito para prevenir contra o perigo envolvido nas praacuteticas de rituais teuacutergicos

quando natildeo eacute dada a devida atenccedilatildeo aos detalhes ndash advertecircncia referida em muitos

livros cabaliacutesticos O Sefer haAtzamin (f13) por exemplo determina ldquose a pessoa

natildeo for especialista e versada em causar o descenso das forccedilas e a execuccedilatildeo dos

rituais eles o mataratildeordquo418 Tambeacutem Pico era ciente dos riscos envolvidos nas

operaccedilotildees cabaliacutesticas tanto que assim escreveria em suas Teses ldquoQuem opera em

Cabala[] se cometer erros ao operar ou iniciar-se sem preacutevia purificaccedilatildeo seraacute

devorado por Azazel segundo as regras da justiccedilardquo419

Sob o prisma teuacutergico o estudo das estruturas das Sefirot natildeo denota apenas

uma ocupaccedilatildeo teoacuterica mas uma possibilidade de colocar o adepto em grau de intervir

diretamente sobre o mundo superno a ponto de influenciar a dinacircmica das forccedilas

divinas Enquanto a magia exercida na Cabala Praacutetica utiliza os efeitos da propagaccedilatildeo

de forccedilas superiores sobre o mundo material atraindo-as para baixo a Teurgia de

forma contraacuteria empurra o miacutestico em direccedilatildeo ao alto caracterizando-se assim

como uma forma de caminho iniciaacutetico420 O miacutestico-teurgo tem por objetivo elevar-

se ndash no caso dos cabalistas agrave dimensatildeo sefiroacutetica ndash usando como instrumentos os

especiacuteficos rituais destinados para influir sobre aquelas forccedilas Um importante

desdobramento da relaccedilatildeo causa-efeito entre as accedilotildees materiais e suas repercussotildees

celestes encerra-se na concepccedilatildeo cabaliacutestica de que as accedilotildees ritualiacutesticas natildeo satildeo as

415 IDEL 2008-b n p 461 416 Referentes agrave Cabala Especulativa e agrave Cabala Praacutetica cf Conclusio Cabalistica (II) XI 1 417 Cf Manuscrito de Munique 214 f51r apud IDEL 2008-b p474 Em outro artigo IDEL observa que a

magia heleniacutestica antiga lidava com o recebimento de forccedilas espirituais chamadas naquele contexto pneumata (2008-a p34)

418 IDEL 2008-b np 485 419 PICO Concl (II) XI 13 ldquoQui operatur in Cabalaet si errabit in opere aut non purificatus accesserit

deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudicii A primeira parte da conclusio 13 postula que aquele que operar em Cabala da forma correta encontraraacute a conjunccedilatildeo com Deus (ou com o Absoluto conforme a concepccedilatildeo da ldquoMorte do Beijordquo) Elucida FORNACIARI que assim como o ecircxito positivo traz um resultado de dimensotildees absolutas o eventual ecircxito negativo natildeo se limitaraacute a um simples fracasso mas ao completo extermiacutenio do operador inexperiente atraveacutes da ldquofagocitoserdquo por parte do democircnio (Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001)

420 BUSI opcit p34 ss A magia da Cabala Praacutetica transformou-se em Teurgia tatildeo logo o objeto do efluxo espiritual passou a ser a sefiraacute de Malkhut ndash a esfera mais proacutexima ao reino material ndash e natildeo a pessoa do cabalista ou o do mago Contudo as duas formas apresentam-se como um caminho de matildeo dupla o atrair as forccedilas para baixo pode se dar em dois estaacutegios o ato teuacutergico inicial opera levando a emanaccedilatildeo da sefiraacute mais elevada ateacute a uacuteltima Malkut onde eacute possiacutevel ndash usando uma linguagem neoplatocircnica ndash a uniatildeo do intelecto com o inteligiacutevel em seguida o influxo da uacuteltima sefiraacute eacute atraiacutedo para o reino sublunar ocasionando o que se chama ldquotransbordordquo das Sefirot um ato ligado ao territoacuterio da praacutetica ou magia (cf IDEL 2008-a pp 38-43 2008-b p 471)

133

uacutenicas a reverberarem no ceacuteu como explica Giulio Busi cada ato humano mesmo o

mais simples obteacutem um resultado velado na outra dimensatildeo ldquopropagando-se como

uma onda ateacute o mais iacutentimo do misteacuterio transcendenterdquo421 Pode-se entender assim

porque a Cabala tem um papel especial no processo de dignificaccedilatildeo do homem

proposto por Pico em quase todas as suas obras a especulaccedilatildeo cabaliacutestica atribui ao

homem uma extraordinaacuteria responsabilidade na medida em que o torna partiacutecipe do

equiliacutebrio divino

A interpretaccedilatildeo das Escrituras eacute uma das ferramentas utilizadas para alcanccedilar

a comunhatildeo objetivada como abordado no item referente agrave tradiccedilatildeo oral Outras

formas ritualiacutesticas assim como na Cabala Praacutetica se datildeo pelo uso da linguagem em

virtude de sua qualidade de refletir seja pelas letras ou por seu som a estrutura

interna do reino divino ndash isto eacute do sistema sefiroacutetico ndash visto que dele participam

Essa qualidade criadora presente nas letras hebraicas permite sua atuaccedilatildeo na

mateacuteria como melhor explica Lipiner ldquoas letras do alfabeto hebraico seriam espiacuterito

derivado de espiacuterito que deslizam progressivamente da sutil sabedoria e pensamento

divinos ateacute converterem-se em substacircncias das coisas materiais jaacute presentes

integralmente nelas em potecircnciardquo422 Por conseguinte os corretos vocaacutebulos

juntamente com a correta forma de pronuacutencia natildeo apenas permitem ao teurgo influir

sobre aquela estrutura como restauram a harmonia no interior do reino divino423

A Cabala Extaacutetica

Embora a Cabala Teuacutergica tivesse adotado visotildees neoplatocircnicas importantes

os elementos aristoteacutelicos presentes na Cabala Extaacutetica foram essenciais para que

essa forma predominasse na Itaacutelia onde exerceu maiores repercussotildees sobre

pensadores do lsquo400 em razatildeo das nuances que a aproximava agrave Filosofia

Manifestando-se entre o final do seacuteculo XIII e o iniacutecio do XIV sobretudo atraveacutes dos

manuscritos dos cabalistas espanhoacuteis Abraham Abulafia Natan Saadia e Isaac de

Acre ndash os trecircs em linhagem sucessoacuteria mestre-disciacutepulo ndash a Cabala Extaacutetica

estabeleceu-se cuidando da questatildeo que envolve a comunhatildeo do homem com o

Espiacuterito divino424 Tanto Alemanno quanto Pico estavam bem familiarizados com

esse modelo de Cabala graccedilas aos estudos sobre os escritos de Abulafia que agregou

421 Como exemplifica Busi a uniatildeo sexual entre um homem e uma mulher sob a oacutetica cabalista provoca a

conjunccedilatildeo sefiroacutetica entre Malkut a sefiraacute que representa o princiacutepio feminino ligado ao Reino e Tiferet a sefiraacute da Beleza que conota o princiacutepio masculino (2011 p35)

422 Elias LIPINER As letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo - Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem 1992 p107 A essecircncia dinacircmica contida nas letras defendida e chamada de ldquoalma das letrasrdquo por Isaac o Cego relembra caracteriacutesticas platocircnicas de potecircncia criadora oriunda do mundo das Formas e das Ideias como justamente infere SCHOLEM (1999 p33)

423 A ideia de restauraccedilatildeo de harmonia no interior do reino divino concepccedilatildeo que pode soar incocircmoda eacute melhor entendida atraveacutes da explicaccedilatildeo de Yohanan Alemanno ldquoEle [o divino] recebe todos os canais e as emanaccedilotildees dos mundos supernos e intermediaacuterios pois ningueacutem recebe aquele bem na sua inteireza a natildeo ser Ele Quando Ele o recebe todas as emanaccedilotildees que descendem agrave terra estatildeo em equiliacutebrio e operam na perfeiccedilatildeordquo Depreende-se dessas palavras que o fluxo espiritual ocorre em duas vias o reino divino natildeo apenas emite como ldquoreceberdquo as emanaccedilotildees conferindo assim perfeiccedilatildeo ao mundo inferior e perpetuando a proacutepria harmonia (ALEMANNO Einei haEdaacute ndash Os Olhos da Congregaccedilatildeondash in Manuscrito de Jerusaleacutem 598 f 51 r-v

424 IDEL 2008-a p29 No seacuteculo XVI a Cabala extaacutetica teraacute forte repercussatildeo atraveacutes dos escritos de Cordovero Iehudaacute Albotini e Haim Vital entre outros

134

elementos aristoteacutelicos significativos em suas concepccedilotildees fiacutesicas metafiacutesicas e

relacionadas agrave alma425 Diferentemente da Cabala Teuacutergica que atua na atraccedilatildeo de

forccedilas exteriores aqui o foco principal se concentra nos processos interiores que

ocorrem entre o intelecto humano e o coacutesmico por alguns denominado Intelecto

Ativo426

Assim como nas outras formas de Cabala a Extaacutetica utiliza algumas teacutecnicas

para atingir seus objetivos nesse caso voltados a alcanccedilar determinado estado de

ecircxtase ndash o chamado devekut ou uniatildeo com a Divindade ndash e excepcionalmente de

profecia427 Segundo Abulafia a profecia decorre do contato entre a inteligecircncia

pessoal e a inteligecircncia universal que envolve a Criaccedilatildeo A alma humana natildeo pode

suportar o influxo direto da inteligecircncia superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm

atada agrave mateacuteria O estado contemplativo permite que tais noacutes sejam desatados

atraveacutes da observaccedilatildeo extaacutetica de algum objeto sem sentido proacuteprio como por

exemplo a contemplaccedilatildeo das letras hebraicas ndash sem os riscos de outros

procedimentos Atraveacutes da escrita aleatoacuteria das letras sem a preocupaccedilatildeo de

formaccedilatildeo de algum sentido e da meditaccedilatildeo sobre cada uma de forma isolada evita-

se que a mente entre em processo de associaccedilotildees em cadeia A abstraccedilatildeo da mente

possibilita a rarefaccedilatildeo das faculdades sensoriais e a ocorrecircncia do estado de ecircxtase

com consequente abertura para o influxo da inteligecircncia superior Igualando-se na

forccedila espiritual de cada letra o miacutestico torna-se uno com ela vivenciando uma

experiecircncia de caraacuteter singular ndash conforme contam os relatos descritos em muitos

textos cabaliacutesticos428

Partes fundamentais desse processo satildeo os dispositivos e teacutecnicas para

assegurar sua consecuccedilatildeo Atraveacutes do relato de Isaac de Acre tem-se a informaccedilatildeo

das teacutecnicas conhecidas como ldquohitbodedutrdquo que se caracteriza pelo exerciacutecio da

solidatildeo e concentraccedilatildeo e ldquohischtavutrdquo a equanimidade ldquoAquele que merecer o

segredo da comunhatildeo [com o divino] mereceraacute o segredo da equanimidade se ele

425 Para elucidaccedilotildees sobre a forma que Abulafia e outros cabalistas italianos utilizaram o Aristotelismo em suas

filosofias veja-se IDEL The Study Program (opcit) pp 310-311 nota 68 para as leituras de Pico acerca de Abulafia veja-se em Wirszubski vaacuterias menccedilotildees (Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism opcit) Ademais foge ao escopo traccedilado a abordagem das vaacuterias siacutenteses efetuadas entre as doutrinas cabaliacutesticas e as filosofias neoplatocircnica e aristoteacutelica no periacuteodo do Renascimento limitamo-nos portanto a apenas mencionar a existecircncia de tais inter-relaccedilotildees cujos estudos podem ser verificados nas obras de SCHOLEM Origins of the Kabbalah (Princeton University Press 1987 pp 316-320 327-330 363-364 389-390) e de IDEL Jewish Kabbalah and Neoplatonism in the Middle Ages and Renaissance (in Neoplatonism and Jewish Thought Albany Suny 1992 pp 319-351)

426 IDEL 1998 p 27 2008-a p28 427 IDEL 2008-a p29 Quando o fundador do hassidismo polonecircs Israel Baal-Schem expocircs no seacuteculo XVIII a

tese miacutestica de que a comunhatildeo com Deus (devekut) eacute mais importante do que o estudo de livros houve muita oposiccedilatildeo e sua ideia foi citada nas polecircmicas anti-hassiacutedicas como prova de tendecircncias subversivas e anti-rabiacutenicas do movimento A mesma teoria exposta duzentos anos antes por Isaac Luacuteria a grande autoridade miacutestica de Safed natildeo suscitara nenhum antagonismo Segundo SCHOLEM (1978) uma evidecircncia de mudanccedila no clima histoacuterico

428 Abraham Abursquol-Afiyah de Saragoza ndash ou Abulafia ndash que teve na ideia de profecia o propoacutesito fundamental de seu inteiro projeto cabaliacutestico realizou pesquisas acerca de tal fenocircmeno que resultaram em sua obra Chochmat Hatzeruf (A ciecircncia da combinaccedilatildeo das letras) Maiores detalhes acerca dessa forma de praacutetica cabalista podem ser encontrados em SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1988 Ainda em SCHOLEM o capiacutetulo sobre Abraham Abulafia na obra A Miacutestica Judaica conteacutem alguns registros antigos dessa experiecircncia com riqueza de detalhes Veja-se tambeacutem BUSI 2011 p 26 IDEL 2008-a pp28-30 IDEL The Mystical Experience in Abraham Abulafia 1987 IDEL Studies in Ecstatic Kabbalah 1988

135

receber esse segredo entatildeo conheceraacute tambeacutem o segredo de hitbodedut recebendo o

Espiacuterito Divino e daiacute a profeciardquo429 Essas teacutecnicas estatildeo relacionadas com a triacuteplice

purificaccedilatildeo ndash a limpeza do corpo a limpeza interior e a purificaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo ndash

descrita por Alemanno em seu Collectanaea como meacutetodo para operar a realizaccedilatildeo

de milagres Uma vez despido de todas as sensaccedilotildees e pensamentos materiais deveraacute

o operador ler apenas a Toraacute e os nomes divinos nela escritos para que entatildeo lhe

sejam revelados ldquosegredos impressionantes e visotildees divinas tais como as que podem

ser emanadas sobre as almas puras preparadas para recebecirc-losrdquo430 A alusatildeo de

Alemanno refere-se pois ao estado extaacutetico atingiacutevel atraveacutes da contemplaccedilatildeo dos

nomes divinos Se na Cabala Teuacutergica a interpretaccedilatildeo da Toraacute eacute utilizada como

elemento de aproximaccedilatildeo agrave divindade na Extaacutetica seraacute a contemplaccedilatildeo de cada letra

a propiciar a abstraccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ecircxtase

A praacutetica da contemplaccedilatildeo esteve presente desde a primeira fase do misticismo

judaico embora inicialmente relacionada agrave contemplaccedilatildeo dos mundos superiores

conforme os mencionados tratados dos Heikhalot os miacutesticos dedicavam-se entatildeo a

exerciacutecios meditativos que os permitissem visualizar os mundos celestiais a

ldquoCarruagemrdquo (Mercavaacute) o ldquoTrono da Gloacuteriardquo e os seres muitas vezes hostis que

correspondem agraves diversas ordens angelicais Apesar de essa jornada sugerir uma

ascensatildeo os visionaacuterios e exploradores dos planos celestiais eram chamados Iordei

Mercavaacute (ldquoos que descem agrave Carruagemrdquo) provavelmente aludindo natildeo a uma saiacuteda

de si mas a um aprofundamento dentro do proacuteprio ser431 A importacircncia da

contemplaccedilatildeo encontra-se ademais no centro do pensamento de Isaac o Cego

ldquotodos os atributos satildeo transmitidos para serem contempladosrdquo A descese do

princiacutepio divino eacute descrita como uma seacuterie de contemplaccedilotildees sucessivas que durante

suas ocorrecircncias plasmam as coisas e lhes fornecem o aspecto com o qual se

apresentam ao mundo O chamado ao silecircncio interior eacute frequente em sua obra ldquoo

caminho da contemplaccedilatildeo eacute de fato um absorver e natildeo um conhecer

discursivamenterdquo432 Eacute ainda atraveacutes da contemplaccedilatildeo que o homem pode percorrer

o caminho inverso da emanaccedilatildeo divina Esse eacute o ponto em que o Cabalismo mais se

aproxima do pensamento neoplatocircnico do qual se disse que ldquoa progressatildeo e a

inversatildeo constituem um processo uacutenicordquo a diaacutestole-siacutestole que movimenta o

universo433

Os trecircs modelos verificados costumam se apresentar mesclados nas praacuteticas

cabaliacutesticas e em raros casos foram tratados em abordagens completamente

429 Esse e outros relatos de experiecircncias extaacuteticas podem ser lidos em IDEL 2008-a 430 ALEMANNO Collectanaea in Manuscrito de Oxford 2234 f 164r 431 SENDER opcit pp 41-42 432 A principal obra teoacuterica de Isaac o Cego da qual se tem notiacutecia eacute o Comentaacuterio ao Secircfer Yetsiraacute abordado

por BUSI (opcit p 53) 433 SCHOLEM 1995 p22

136

estanques Natildeo satildeo poucos os relatos de operadores que partindo da contemplaccedilatildeo e

seu subsequente alcance do reino divino ndash em claro emprego da forma Extaacutetica ndash

atraem em seguida o poder superno para realizar operaccedilotildees teuacutergicas Da mesma

forma a Cabala Teuacutergica foi combinada amiuacutede com operaccedilotildees maacutegicas de maneira

a permitir que as emanaccedilotildees das Sefirot mais altas prosseguissem sua descida sobre o

mundo extradivino Em comum tais operaccedilotildees utilizam-se da potecircncia desencadeada

pela correta escolha ou pronuacutencia de certos vocaacutebulos ou atraveacutes da meditaccedilatildeo sobre

suas formas434 Giovanni Pico utilizou-se dos trecircs modelos em suas argumentaccedilotildees A

eficaacutecia dos sons e palavras na obra maacutegica eacute defendida seja na Oratio que na

Apologia seu uso teuacutergico eacute apontado em vaacuterias conclusiones a dimensatildeo extaacutetica

encontra eco nas reflexotildees mais profundas do Mirandolano a serem retomadas no

uacuteltimo Capiacutetulo Contudo a evidecircncia do uso de fontes e conceitos extraiacutedos dos

modelos descritos entre as paacuteginas piquianas embora uma razatildeo suficiente natildeo eacute a

uacutenica para a apresentaccedilatildeo deste capiacutetulo digressivo Enquanto a outras tradiccedilotildees de

cunho esoteacuterico Pico natildeo destinou nenhuma obra em caraacuteter exclusivo ao

conhecimento cabaliacutestico mesmo que natildeo de forma expressa foi dedicado o

Heptaplus assim o esclarecimento de alguns conceitos natildeo usuais na linguagem

filosoacutefica se coloca como uma necessidade para uma aproximaccedilatildeo mais fluiacuteda e

aprofundada ao texto

434 Para uma reflexatildeo bastante aprofundada acerca do uso maacutegico-operacional da linguagem veja-se Franco

BACCHELLI Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto - Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica 2001 pp 43-48 Veja-se tambeacutem para reflexotildees sobre a natureza da linguagem desenvolvidas por cabalistas e alguns comentadores do Secircfer Yetsiraacute VAJDA Un chapitre de lrsquohistoire du conflit entre la kabbale et la philosophie in ldquoArchives drsquohistoire doctrinale et littegraveraire du Moyen Agerdquo XXXI 1956 pp49-56 e 127-133 IDEL Language Torah and Hermeneutics in Abraham Abulafia Albany 1989 pp1-28 (apud BACCHELLI ibid n p 51)

137

CAPIacuteTULO VI

O HEPTAPLUS Agrave LUZ DA CABALA

O Heptaplus435 vocaacutebulo que significa ldquosete vezes seterdquo nasce como um

comentaacuterio em sete partes ndash subdivididas em sete capiacutetulos cada ndash acerca dos seis

dias da criaccedilatildeo expostos no Gecircnesis 1 Antes de Giovanni Pico outros nomes entre

latinos gregos hebreus e caldeus se haviam lanccedilado a interpretar a mesma

passagem biacuteblica como o proacuteprio indicava no Primeiro Proecircmio que antecede sua

obra436 tinha portanto plena ciecircncia do fato de natildeo se tratar de originalidade sua

preocupando-se em avisar agora no Segundo Proecircmio que ldquonatildeo eacute o propoacutesito dessa

obra que quem natildeo tenha aprendido essas coisas em outro lugar as aprenda aqui

pela primeira vezrdquo437 A escolha do Gecircnesis como fundamento para ensejar uma obra

deveu-se agrave percepccedilatildeo de que sob aquela narrativa estariam guardados ldquosegredos de

todas as naturezasrdquo em mais uma evidecircncia de seu interesse em ter acesso a

realidades protegidas pela dimensatildeo esoteacuterica438 A opccedilatildeo por aquele especiacutefico livro

da Biacuteblia eacute esclarecida de forma a natildeo deixar duacutevidas se Moiseacutes tivesse sepultado

em alguma parte das Escrituras ldquoos tesouros de toda a filosofia verdadeirardquo teria

sido naquela parte que trata ldquoda emanaccedilatildeo de todas as coisas de Deus do grau do

nuacutemero da ordem das partes do mundo com elevadiacutessima capacidade filosoacuteficardquo439

Ou seja no Gecircnesis

A obra trata portanto de sete ldquoExposiccedilotildeesrdquo ou ldquoLivrosrdquo440 sucessivos que se

dedicam agrave narrativa biacuteblica da criaccedilatildeo cada qual focado em uma das dimensotildees ndash ou

relaccedilotildees entre as dimensotildees ndash vislumbradas pelo autor As trecircs primeiras exposiccedilotildees

estabelecem respectivamente uma analogia entre os trecircs graus do real ndash o

elementar o celeste e o angeacutelico ndash com cada um dos trecircs mundos sub-divinos

admitidos pela Cabala descrevendo as devidas formas constitutivas de cada reino A

quarta exposiccedilatildeo trata do reino humano a quinta aponta para a sucessatildeo dos quatro

435 O Heptaplus ndash De Septiformi sex dierum Geneseos enarratione ndash foi finalizado em 1489 e dedicado a

Lorenzo dersquoMedici A editio princeps consta de 1490 Quando Gianfrancesco Pico editou a primeira Opera Omnia referente agraves obras do tio optou por colocar o Heptaplus em seu iniacutecio uma posiccedilatildeo mantida nas ediccedilotildees subsequentes Em 1555 a obra foi traduzida para o italiano e em 1578 para o francecircs (cf Crofton BLACK Picos Heptaplus and Biblical Hermeneutics 2006 pp 8-10) As traduccedilotildees para o portuguecircs presentes neste Capiacutetulo satildeo de nossa responsabilidade utilizando-se como guia a traduccedilatildeo de Eugenio Garin para o italiano (que em muitos trechos natildeo eacute estritamente literal mas adequada a um melhor entendimento do leitor)

436 Escreve Pico que diante de tantos inteacuterpretes quase natildeo ousaria ldquopensar em escrever algo de novo ou acrescer qualquer comentaacuterio original sobre o argumentordquo (Heptaplus p 177) Entre os inteacuterpretes do Gecircnesis citados em seu preacircmbulo encontram-se Ambroacutesio Agostinho Estrobeu Egiacutedio Fiacutelon Oriacutegenes e vaacuterios outros alguns menos conhecidos inclusive do ciacuterculo caldeu e hebraico (ibid pp179-181)

437 Heptaplus P2 p198 Para dar relecircvo a suas palavras Pico cita Agostinho que em sua exposiccedilatildeo sobre o Gecircnesis escrevera ldquoSe podes aprendes essas coisas se natildeo podes deixa-as a quem vale mais do que tirdquo (ldquoHaec tu si potes apprehendas si nondum potes relinquas valentioribusrdquo) A referecircncia de Agostinho encontra-se na nota agrave traduccedilatildeo de GARIN (Augustini De Gen ad litt V 3 (6) P L XXXIV 323)

438 Heptaplus P1 p170 439 Heptaplus P1 p177 A mesma alusatildeo jaacute havia sido feita por Pico em sua Apologia quando justificando suas

Conclusiones perante aos padres afirmara que ldquoos tesouros da lei espiritual estariam sepultados na obra de Moiseacutesrdquo

440 De fato Pico nomeia cada parte de sua obra de ldquoExpositiordquo ou ldquoLiberrdquo

138

mundos presentes na narrativa biacuteblica a sexta expotildee as relaccedilotildees entre esses mundos

e a seacutetima aponta para o destino que lhes cabe dentro do desenho universal O

objetivo nuclear do autor eacute demonstrar que os vaacuterios mundos natildeo satildeo membra

disiecta (membros dispersos) mas que estatildeo relacionados entre si e tecircm no homem

seu ponto de uniatildeo441 Cada uma das exposiccedilotildees por sua vez encontra-se dividida em

outras sete partes ndash correspondentes a cada um dos seis dias da Criaccedilatildeo narrados na

Biacuteblia acrescidas cada qual com o seacutetimo capiacutetulo ldquoem Cristordquo Explica o autor no

Segundo Proecircmio que o seacutetimo capiacutetulo de cada Livro representa ldquoo fim da Lei o

nosso saacutebado a nossa paz a nossa felicidaderdquo ndash assim como narrado no Gecircnesis em

que o saacutebado eacute o dia do repouso442

Segundo Eugenio Garin a redaccedilatildeo fluente e contiacutenua proposta por Pico no

Heptaplus faz parte de um meacutetodo em que a forma escrita remete agrave difusatildeo e agrave

interpenetraccedilatildeo entre os vaacuterios planos de existecircncia Os mundos com seus

variegados planos apresentam-se natildeo apenas correspondentes mas entrelaccedilados uns

aos outros quase como perspectivas muacuteltiplas (e intriacutensecas no homem) de uma

mesma realidade443 Ademais a obra apresenta um constante movimento dialeacutetico

que a faz transitar de forma harmoniosa entre a feacute e a razatildeo refletindo a perfeita

seguranccedila de Pico sobre a relaccedilatildeo entre as obras da Criaccedilatildeo e a racionalidade de suas

leis (ldquotoda obra da natureza eacute obra da inteligecircnciardquo)444 Retorna-se mais uma vez

para a relaccedilatildeo entre religiatildeo e filosofia ndash abordada no Capiacutetulo 3 ndash cuja centralidade

no pensamento piquiano seraacute retomada no Capiacutetulo final

Assim como em outras obras a dialeacutetica razatildeo-feacute eacute permeada por uma terceira

perspectiva relacionada agrave presenccedila do elemento esoteacuterico a ser verificada no decorrer

do Capiacutetulo Sob o prisma de uma hermenecircutica esoteacuterica o Heptaplus pode ser

dividido em trecircs leituras a) a primeira concentra-se no Primeiro Proecircmio escrito por

Pico agrave guisa de introduccedilatildeo em que satildeo apresentadas vaacuterias referecircncias utilizadas pelo

autor como instrumentos para a afirmaccedilatildeo da existecircncia de verdades que devem ser

preservadas da escrita b) a segunda concerne agrave alegoria do ldquoTabernaacuteculordquo de Moiseacutes

nuacutecleo do Segundo Proecircmio utilizada como fundamento metafoacuterico sobre o qual

ergue-se o projeto do Heptaplus porquanto conteacutem a representaccedilatildeo de trecircs dos

mundos tratados no conjunto da obra c) a terceira perspectiva eacute colhida da uacuteltima

parte da obra uma espeacutecie de ldquoapecircndicerdquo em que o autor apresenta de forma

detalhada a aplicaccedilatildeo de seu meacutetodo cabaliacutestico Agraves trecircs partes mais nobres de sua

obra ndash os dois proecircmios em que a intenccedilatildeo do autor eacute expressa e o apecircndice que

finaliza o todo ndash junta-se a concepccedilatildeo do projeto como um todo (em seus sete Livros)

que embora natildeo tratado aqui eacute erigido sobre uma leitura que enxerga sob a letra das

Escrituras significados ocultos

441 Heptaplus V 7 p305 442 Heptaplus P2 p203 443 GARIN LUmanesimo italiano 2008 p 125 444 Heptaplus I 1 p207 ldquoomne opus naturae opus esse intelligentiaerdquo

139

1 As referecircncias esoteacutericas do Primeiro Proecircmio

Cocircnscio da dificuldade que teria em despertar qualquer interesse filosoacutefico por

seu trabalho de hermenecircutica biacuteblica Pico preocupou-se logo agrave abertura do

Heptaplus em dar credibilidade ao autor do Gecircnesis ndash que ele como os demais agrave

eacutepoca acreditava ser Moiseacutes Assim uma parte do Primeiro Proecircmio escrito como

preacircmbulo agrave obra eacute utilizada para justificar a autoridade de Moiseacutes perante um

grupo de oponentes (natildeo identificados) que teriam estabelecido uma distinccedilatildeo entre a

forma literaacuteria do texto mosaico (o Pentateuco) e a dos tradicionais escritos

filosoacuteficos ndash esses sob tal enfoque tidos como superiores

Sua defesa se divide em dois momentos Primeiramente eacute feita uma

argumentaccedilatildeo fundamentada sobre algumas autoridades da Antiguidade que de

alguma forma teriam contribuiacutedo para propagar o nome de Moiseacutes como mestre ldquode

conhecimento humano e de suma sabedoria em todas as doutrinas e literaturasrdquo445

Os indiacutecios utilizados para sustentar a reputaccedilatildeo do mencionado Profeta satildeo

provenientes a) de Lucas e Fiacutelon respeitaacuteveis testemunhos de que Moiseacutes fora

instruiacutedo em todas as doutrinas dos egiacutepcios446 b) dos egiacutepcios que teriam instruiacutedo

alguns dentre os mais celebrados filoacutesofos gregos ndash como Pitaacutegoras Platatildeo

Empeacutedocles e Demoacutecrito (menccedilatildeo que permite ao Autor inserir Moiseacutes no centro da

Filosofia grega)447 c) do neopitagoacuterico Numecircnio que chamara Platatildeo de ldquoo Moiseacutes

Aacuteticordquo (registro que chama a atenccedilatildeo para a similaridade entre as doutrinas dos dois

saacutebios)448 d) do pitagoacuterico Hermipo que teria afirmado que Pitaacutegoras transferira

muitas coisas da lei mosaica para sua proacutepria filosofia449

Em segundo lugar para explicar a disparidade existente entre a aparente rudez

do texto mosaico considerado comum e trivial (ldquomedio et trivialerdquo) e a complexidade

proacutepria de uma grande obra de Filosofia Pico recorre a referecircncias colhidas em

tradiccedilotildees erigidas sobre a oralidade e a misteriologia introduzindo no centro do

Primeiro Proecircmio uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de dimensatildeo esoteacuterica Nesse

sentido para se estabelecer em uma linha contraacuteria agrave consolidada entre os

acadecircmicos ndash a de que Moiseacutes seria inculto e pouco similar a um filoacutesofo ou

teoacutelogo450 ndash Pico se abastece de alguns fatos e personagens histoacutericos de forma a

justificar aquele tipo rude de escrita uma tentativa de demonstrar que tal estilo seria

445 Heptaplus P1 p171 446 Heptaplus idem O testemunho de Lucas estaacute em Atos 722 ldquoMoiseacutes foi instruiacutedo em toda a sabedoria dos

egiacutepciosrdquo o de Fiacutelon em De Vita Mosis 121-24 447 Heptaplus idem Na obra De mysteriis Aegyptiorum Chaldeorum Atque Assyriorum de Jacircmblico haacute uma

lista similar ldquoPythagoras Plato Democritus Eudoxus et multi ad sacerdotes Aegyptios accesseruntrdquo (traduccedilatildeo de Ficino Opera omnia repr Turin Bottega drsquoErasmo 1962)

448 Heptaplus P1 pp171-173 A referecircncia a Numecircnio encontra-se na obra de Euseacutebio Preparatio evangelica IX 6 e XI 10

449 Heptaplus P1 p173 Hermipo escreveu um Vida de Pitaacutegoras que serviu de fonte para Dioacutegenes Laerte Essa ideia contudo natildeo consta nos fragmentos atualmente existentes de Hermipo (cf Crofton BLACK 2006 p 96 e 145)

450 ldquoAut philosophus aut theologusrdquo (Hept P1 p172)

140

necessaacuterio para resguardar a preciosidade de determinado conteuacutedo451 Seu

argumento esoteacuterico se compotildee por uma sequecircncia de vaacuterias passagens452

a) ldquoExiste entre os hebreus sob o nome do sapientiacutessimo Salomatildeo um livro intitulado Sapientia natildeo esse que temos hoje obra de Fiacutelon mas outro escrito naquela linguagem secreta que chamamos lsquohierosolymarsquo cujo autor e inteacuterprete da natureza das coisas como se acredita declara ter recebido toda a sua sabedoria da profundidade da lei mosaicardquo453

b) ldquo[] devemos lembrar um famoso costume dos antigos saacutebios o de se abster de escrever acerca das coisas divinas ou sobre elas escrever veladamente e por isso satildeo chamados Misteacuterios Natildeo eacute misteacuterio o que natildeo eacute ocultordquo454

c) ldquo[Os segredos] foram observados por Indianos Etiacuteopes [] e Egiacutepcios Esse eacute o significado das Esfinges defronte aos templosrdquo455

d) ldquoInstruiacutedo por eles [os Egiacutepcios] Pitaacutegoras tornou-se mestre do silecircncio natildeo entregou suas doutrinas agrave escrita com exceccedilatildeo de muito pouco que ao morrer confiou agrave sua filha Damo De fato ele natildeo foi o verdadeiro autor de Aurea carmina mas sim Filolaurdquo [] ldquoA lei do silecircncio foi uma tradiccedilatildeo mantida ininterrupta ateacute que Hiparco a teria violado conforme deplorou Lysisrdquo456

e) ldquoSobre essa [a preservaccedilatildeo do silecircncio] juraram os disciacutepulos de Amocircnio Oriacutegenes Plotino e Herecircnio como testemunha Porfiacuteriordquo457

451 Heptaplus P1 pp 172 176 452 Para a discussatildeo das fontes utilizadas por Pico veja-se Chaim WIRSZUBSKI Pico della Mirandolarsquos

Encounter with Jewish Mysticism 1987 pp 123-132 453 Heptaplus P1 p170 ldquoExtat apud Hebraeos Salomonis illius cognomento sapientissimi liber cui Sapientia

titulus non qui nunc in manibus est Philonis opus sed alter hierosolyma quam vocant secretiore lingua compositus in quo vir naturae rerum sicuti putatur interpres omnem se illiusmodi disciplinam fatetur de Mosaicae legis penetralibus accepisserdquo Natildeo haacute fontes precisas sobre esse livro que Pico esclarece natildeo se tratar da obra homocircnima de Fiacutelon Referecircncia a tal trabalho pode ser encontrada no comentaacuterio de Nahmacircnides ao Pentateuco do qual uma coacutepia hebraica consta no inventaacuterio da biblioteca de Pico (Commentary of Nahmanides on Genesis ed Newman pp 25-27) Sobre o fato de Pico ter lido o comentaacuterio de Nahmacircnides veja-se BLACK opcit capiacutetulo 7 Veja-se ainda WIRSZUBSKI opcit p 219 Nahmacircnides na obra em questatildeo diz que o Livro da Sabedoria atribuiacutedo a Salomatildeo estaacute escrito em aramaico enquanto Pico escreve que estaacute na linguagem hierosolyma

454 Heptaplus P1 p172 ldquo[] revocemus eo mentem fuisse veterum sapientum celebre institutum res divinas ut aut plane non scriberent aut scriberent dissimulanter Hinc appellata mysteria (nec mysteria quae non occulta)rdquo

455 Heptaplus P1 p172 ldquohoc ab Indis hoc ab Aethiopibus [] hoc ab Aegyptiis observatum quod et Sphinges illae pro templis insinuabantrdquo A fonte utilizada por Pico para a informaccedilatildeo sobre os Indianos eacute provavelmente Euseacutebio (Preparatio evangelica IX 6 e 7) Sobre as Esfinges Pico dissera na Oratio (p157) que ldquoesculpidas nas frentes dos templos egiacutepcios advertiam que os ensinamentos miacutesticos deviam ser guardados com os noacutes dos enigmas inviolaacuteveis para a multidatildeo profanardquo A fonte de Pico para as Esfinges poderia ser Plutarco De Iside et Osiride 9

456 Idem ldquoab eis edoctus Pythagoras silentii factus est magister nec ipse quicquam litteris mandavit praeter omnino paucula quae Damae filiae moriens commendavit Non enim quae circumferuntur aurea carmina Pythagorae sunt ut vulgo etiam doctioribus persuasum est sed Philolairdquo [] ldquoLegem deinceps eam Pythagorici religiosissime tutati sunt Eam Lysis ab Hypparco violatam quaeriturrdquo A carta de Lysis para Hiparco mencionada por Pico diz ldquoMuitas pessoas dizem que vocecirc filosofa em puacuteblico o que Pitaacutegoras negou como indigno ele confiando suas notas escritas para sua filha Damo notificou que ela natildeo deveria entregaacute-los a ningueacutem fora da comunidaderdquo (Epistolographi Graeci org HERCHER Paris Ambrosio Firmin Didot 1873 p 603 apud BLACK 2006 n p146) Os pitagoacutericos efetivamente tornaram a postura da transmissatildeo unicamente oral uma exigecircncia de ordem praacutetica

457 Heptaplus P1 p172 ldquoIn eam denique iuratos Ammonii discipulos Origenem Plotinum et Herennium Porphyrius est auctorrdquo A fonte de Pico eacute Porfiacuterio que descreve tal pacto em seu Vida de Plotino 3 ldquoUm pacto foi feito por Herecircnio Oriacutegenes e Plotino para natildeo revelarem as doutrinas de Amocircnio que ele havia ensinado em palestras (PORPHYRE La vie de Plotin II ed Brisson Paris Vrin 1982) De acordo com Porfiacuterio Oriacutegenes foi

141

f) ldquoO nosso Platatildeo escondeu as proacuteprias crenccedilas sob veacuteus enigmaacuteticos siacutembolos

de mitos imagens matemaacuteticas e argumentos de sentido obscuro a ponto de contar nas epiacutestolas que apoiando-se em seus escritos ningueacutem teria compreendido claramente seu pensamento sobre as coisas divinasrdquo458

g) ldquoJesus Cristo natildeo escreveu o Evangelho mas o pregou Pregou para as massas atraveacutes de paraacutebolas e separadamente para poucos disciacutepulos aos quais era concedido compreender os misteacuterios do reino dos ceacuteus abertamente e sem imagens mesmo assim natildeo desvelou tudo agravequeles poucos uma vez que havia coisas que eles poderiam natildeo suportarrdquo459

h) ldquoJoatildeo [o apoacutestolo] revelou bem mais do que os outros sobre os segredos da divindade [] mas falou brevemente e de forma obscurardquo460

i) ldquoPaulo [] apenas aos perfeitos falaria a linguagem da sabedoriardquo461

j) ldquoDioniacutesio o Areopagita escreveu que nas Igrejas houve o sagrado e respeitado costume de natildeo transmitir doutrinas secretas por escrito mas apenas agrave voz e para os devidamente iniciadosrdquo462

pupilo de Amocircnio no mesmo tempo que Plotino e Herecircnio se eacute verdade que os trecircs fizeram um pacto de natildeo revelar em escritos as doutrinas de seu professor tanto Herecircnio quanto Oriacutegenes quebraram suas promessas

458 Idem ldquoPlato noster ita involucris aenigmatum fabularum velamine mathematicis imaginibus et subobscuris recedentium sensuum indiciis sua dogmata occultavit ut et ipse dixerit in Epistulis neminem ex his quae scripserit suam sententiam de divinis aperte intellecturum et re minus credentibus comprobaveritrdquo A passagem refere-se agrave Carta II (312 d-e) tambeacutem mencionada por Pico na Oratio (p157) na qual Platatildeo escrevendo a Dioniacutesio sobre os modos das substacircncias supremas afirma ldquoEacute necessaacuterio exprimir-nos mediante enigmas de modo que se alguma vez por acaso a carta cair na matildeo de um outro natildeo seja percebido pelos outros aquilo que escrevordquo Os segredos conceituais que Platatildeo natildeo teria submetido agrave escrita referem-se a questotildees tratadas em suas aulas ldquoSobre o Bemrdquo nas quais eram discutidos os Princiacutepios Parte de tais concepccedilotildees foram transmitidas atraveacutes da filosofia neoplatocircnica chegando a Pico atraveacutes das traduccedilotildees de Ficino Para toda a problemaacutetica em torno agraves ldquodoutrinas natildeo-escritasrdquo de Platatildeo veja-se o fundamental Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo de Giovanni Reale trad Marcelo Perine (Satildeo Paulo Loyola 1997)

459 Heptaplus P1 p174 ldquoIesus Christus imago substantiae Dei Evangelium non scripsit sed praedicavit praedicavit autem turbis quidem in parabolis seorsum autem paucis discipulis quibus datum erat nosse mysteria regni caelorum palam citraque figuras neque omnia paucis illis quia non omnium capaces et multa erant quae portare non poterant donec adveniens Spiritus docuit omnem veritatemrdquo A ideia de que Jesus teria revelado muitos misteacuterios apenas aos seus disciacutepulos eacute atribuiacuteda por Pico a Oriacutegenes no Commento na Apologia e na Oratio (p157) ldquoOriacutegenes afirma que Jesus Cristo mestre de vida revelou aos disciacutepulos muitas coisas que eles natildeo quiseram escrever para natildeo se tornarem vulgarizados Tal fato confirma-o sobretudo Dioniacutesio Areopagita o qual diz que os misteacuterios mais secretos foram transmitidos pelos fundadores da nossa religiatildeo ek nou eis noun dia meson logon isto eacute de mente a mente sem escritos mediante o Verbordquo

460 Pico complementa que Joatildeo revelou o misteacuterio do logos apenas com a finalidade de combater os Ebionitas que afirmavam o Cristo homem mas negavam sua divindade ldquoIoannes qui prae omnibus maxime divinitatis secreta revelavit tribus pridem vulgatis Evangeliis et a Domini cruce multis exactis annis coactus loqui quae diu tacuerat ad abolendam haeriesim Ebionitarum quae Christum hominem non etiam Deum asseverabat de aeterna Filii generatione sed paucis sed obscure pronunciavit inde exorsus in principio erat Verbumrdquo (ibid pp 174-176)

461 Heptaplus P1 p176 ldquoPaulus Corinthiis negat solidum cibum propterea quod adhuc carnis legibus vivant non autem spiritus et sapientiam loquitur ante perfectosrdquo A referecircncia (Cor I 511) encontra-se na proacutepria ediccedilatildeo Em outra passagem referida na Oratio (p157) Pico escreve ldquomanter portanto tudo isto oculto do vulgo a fim de o comunicar apenas aos perfeitos entre os quais unicamente Paulo (Cor I 2-6) afirma pronunciar palavras de sapiecircncia natildeo foi obra de humana prudecircncia mas de divina sabedoriardquo

462 Heptaplus P1 p176 ldquoDionysius Areopagita sanctum et ratum institutum fuisse scribit ecclesiis ne dogmata secretiora per litteras sed voce tantum iis qui rite essent initiati communicarenturrdquo A passagem de Pseudo Dioniacutesio encontra-se em De Coelesti Hierarchia II (cf ref na ediccedilatildeo do Heptaplus)

142

A presenccedila de vaacuterios registros relacionados agrave tradiccedilatildeo oral utilizados como

principal ferramenta de sustentaccedilatildeo para afirmar a autoridade de Moiseacutes mostra-se

um recurso introdutoacuterio necessaacuterio para dar credibilidade ao conjunto da obra

estruturada sobre uma linguagem alegoacuterica que pede uma maior acuidade daquele

que a lecirc Poreacutem longe de ser um artifiacutecio retoacuterico suas referecircncias refletem uma

categoria proacutepria e fluiacuteda do pensamento piquiano O denominador comum entre os

exemplos histoacutericos eacute a ideia de demarcaccedilatildeo entre os natildeo-iniciados e os iniciados

concepccedilatildeo que por sua vez conduz o leitor agrave aceitaccedilatildeo de uma divisatildeo da

interpretaccedilatildeo biacuteblica entre literal e natildeo-literal A leitura literal corresponde agrave

ldquomultidatildeordquo enquanto a natildeo-literal na terminologia que toma emprestado de Paulo e

dos primeiros cristatildeos ldquoaos perfeitosrdquo Seguindo as pistas de leituras relacionadas agrave

miacutestica hebraica Pico pretende evidenciar que essa dicotomia eacute fundamental para a

recepccedilatildeo das revelaccedilotildees contidas na Biacuteblia abrindo caminho para sua interpretaccedilatildeo

do Gecircnesis Esse tipo de procedimento hermenecircutico em que o fator esoteacuterico eacute

empregado como ponto de analogia entre representantes da Feacute de um lado e da

Filosofia de outro jaacute havia sido adotado em outras obras anteriores ao Heptaplus

postura filosoacutefica que se mostrara desenvolvida em torno a lsquo86 Por exemplo em sua

Conclusio cabalistica 63 Pico dizia

Assim como Aristoacuteteles dissimulou sob a superfiacutecie da

especulaccedilatildeo filosoacutefica aquela mais divina filosofia que os

filoacutesofos antigos haviam escondido com mitos e faacutebulas

mantendo-a obscura com a concisatildeo de suas palavras assim o

Rabbi Moiseacutes egiacutepcio no livro que os latinos intitulam O Guia

dos Perplexos atraveacutes da casca superficial das palavras daacute a

impressatildeo de caminhar com os filoacutesofos enquanto pelos

intentos velados de seu profundo sentir abraccedila os misteacuterios da

Cabala463

Apresentam-se ainda profusas indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo de fontes esoteacutericas

no Commento na De Hominis Dignitate ndash como verificado no Capiacutetulo IV ndash e na

Apologia Efetivamente repetem-se nas trecircs obras algumas das mesmas referecircncias

usadas por Pico no Heptaplus464 Entretanto haacute nessa obra uma diferenccedila

fundamental diversamente das obras anteriores a tradiccedilatildeo cabalista natildeo eacute citada

junto ao elenco esoteacuterico embora a mesma mantenha-se tatildeo central quanto nos

relatos anaacutelogos daquelas obras A ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo ldquocabalardquo

na inteira obra pode ter sido responsaacutevel pelo surgimento de certas interpretaccedilotildees

conflituosas embora a maior parte dos inteacuterpretes considere o conteuacutedo do

Heptaplus como exclusivamente cabalista465 Eugenio Garin em sua obra Giovanni

463 Concl (II) XI 63 Rabbi Moiseacutes egiacutepcio refere-se ao filoacutesofo medieval Maimocircnides ao qual Pico atribui trecircs

opiniotildees nas Conclusiones ldquoSicut Aristoteles diuiniorem philosophiam quam philosophi antiqui sub fabulis et apologis uelarunt ipse sub philosophicae speculationis facie dissimulauit et uerborum breuitate obscurauit ita Rabi Moyses aegyptius in libro qui a latinis dicitur dux neutrorum dum per superficialem uerborum corticem uidetur cum Philosophis ambulare per latentes profundi sensus intelligentias mysteria complectitur Cabalaerdquo

464 Veja-se por exemplo algumas das mesmas referecircncias esoteacutericas na Apologia (p27) e na Oratio (p 157) 465 Alguns dentre os relevantes inteacuterpretes que consideram o Heptaplus fundamentalmente cabalista satildeo

Matter Dorez Liebert e Vulliaud Guido MASSETANI (La Filosofia Cabalistica di Giovanni Pico della

143

Pico della Mirandola constata (a) que Pico coroou seus conhecimentos cabaliacutesticos

atraveacutes do Heptaplus (b) que as origens dessa obra estatildeo em seus profundos estudos

sobre a gnose hebraica e (c) que existe afinidade formal entre o Heptaplus e as obras

da Cabala466

De qualquer forma ao retomar em lsquo89 as concepccedilotildees de ordem esoteacuterica

propostas em seus trabalhos anteriores Pico decide remover deliberadamente a

utilizaccedilatildeo daquela palavra que poderia desencadear suspeitas de heresia e que

segundo ele teria sido a causa da condenaccedilatildeo papal que sofrera Cabe lembrar que

enquanto escrevia o Heptaplus ainda estava em vigor a bula emitida por Inocecircncio

VIII condenando as Conclusiones467 Assim eacute bastante provaacutevel que ao voltar a

redigir seus paracircmetros de fontes Pico tenha conscientemente eliminado as

referecircncias agrave Cabala por razotildees de prudecircncia Tal remoccedilatildeo parece ter sido mais

aparente do que substancial porquanto o nuacutecleo do conteuacutedo doutrinal cabaliacutestico foi

preservado (em alguns casos com as mesmas palavras das obras anteriores) como

seraacute visto a seguir Seu modelo hieraacuterquico de mundos encontra vaacuterios pontos de

convergecircncia com os mundos da doutrina cabaliacutestica utilizados para sustentar o

projeto pretendido Mais adiante atraveacutes da verificaccedilatildeo do apecircndice da obra

inteiramente consagrado a demonstrar a aplicabilidade do meacutetodo cabaliacutestico tem-se

a comprovaccedilatildeo definitiva de que a ausecircncia de qualquer menccedilatildeo ao termo Cabala

tenha sido apenas um expediente utilizado para natildeo acirrar os acircnimos ao seu redor

2 Os Mundos na Cabala no Heptaplus

ldquoA Antiguidade imaginou trecircs mundosrdquo468 Com essas palavras Pico abre seu

Segundo Proecircmio em cuja narrativa confirma a posiccedilatildeo superna do mundo

suprassensiacutevel ldquoque os teoacutelogos chamam lsquoangeacutelicorsquo e os filoacutesofos lsquointeligiacutevelrsquo nunca

cantado por ningueacutem de forma adequadardquo segundo ldquoo que diz Platatildeo no Fedrordquo469

Abaixo desse haacute o mundo celeste e por uacuteltimo o nosso mundo sublunar ldquoEste ndash

continua Pico ndash eacute o mundo das trevas aquele da luz o celeste eacute composto de luz e

trevasrdquo O mundo sensiacutevel eacute representado pela aacutegua substacircncia mutaacutevel aquele pelo

fogo em razatildeo do esplendor da luz o ceacuteu natureza intermeacutedia eacute composto de aacutegua e

fogo e por tal razatildeo eacute chamado pelos hebreus de lsquoasciamaimrsquo termo composto de

Mirandola Empoli 1897) por sua vez natildeo se mostrou convencido com as correspondecircncias entre os mundos da Cabala e os propostos por Pico

466 As passagens encontram-se respectivamente (a) e (b) na paacutegina 39 (c) na paacutegina 158 (GARIN 2011) 467 A bula de Inocecircncio VIII foi emitida em 15 de dezembro de 1487 e permaneceu em vigor ateacute 18 de junho de

1493 A decisatildeo de omitir a palavra ldquocabalardquo do Heptaplus obteve um certo resultado positivo pois embora natildeo tenha ficado satisfeito com o surgimento da obra ndash considerando-a uma continuidade dos erros precedentes ndash o papa natildeo lhe conferiu o mesmo desprezo que agraves Conclusiones

468 Heptaplus P2 p185 ldquoTres mundos figurat antiquitasrdquo 469 Idem ldquoSupremum omnium ultramundanum quem theologi angelicum philosophi autem intellectualem

vocant quem a nemine satis pro dignitate decantatum Plato inquit in Phaedrordquo A passagem de Platatildeo encontra-se em Fedro 247c Na continuidade do trecho Pico complementa que as consideraccedilotildees acerca dos trecircs mundos natildeo possuem novidade alguma aos olhos dos estudiosos do mundo antigo

144

fogo (es) e aacutegua (maim)470 O caraacuteter intermeacutedio do mundo celeste eacute especialmente

acentuado por Pico que traz analogias extraiacutedas de suas fontes cabaliacutesticas Tal

caraacuteter eacute marcado pela mistura de propriedades presentes em cada um dos outros

dois mundos Assim tem-se no mundo terreno vida e morte no inteligiacutevel eterna

vida e contiacutenua atividade no celeste estabilidade de vida poreacutem com vicissitudes de

atividades e posiccedilotildees O mundo terrestre eacute constituiacutedo pela natureza caduca dos

corpos o mundo inteligiacutevel pela natureza divina da mente o ceacuteu pelo corpo embora

incorruptiacutevel e pela mente apesar de sujeita ao corpo O terceiro ldquoeacute movido pelo

segundo enquanto o segundo eacute governado pelo primeirordquo471 Continuando

os trecircs mundos satildeo apenas um natildeo apenas porque todos se

reportam de um uacutenico princiacutepio a um uacutenico fim ou em razatildeo

de sendo regulados por leis determinadas estarem coligados

por um certo liame harmonioso da natureza e por um

ordenamento em graus mas porque tudo aquilo que estaacute na

totalidade dos mundos estaacute tambeacutem em cada um e natildeo haacute algo

em qualquer um desses que natildeo esteja em cada um dos

outros472

No uacuteltimo trecho o autor fundamenta-se na concepccedilatildeo miacutestica judaica que

atribui agrave Unidade criadora a qualidade de se manifestar fora de si mesma em trecircs

planos de existecircncia que se encontram perfeitamente integrados ldquoo que se encontra

no mundo inferior estaacute incluso nos superiores mas em forma mais elevada por

analogia o que se encontra nos superiores estaacute no mundo inferior mas em condiccedilatildeo

degenerada e com uma natureza adulteradardquo473 Em linguagem que o aproxima ao

Platonismo o filoacutesofo complementa sua argumentaccedilatildeo por meio de exemplos

extraiacutedos da esfera dos fenocircmenos

470 Heptaplus P2 p187 Pico jaacute havia abordado a questatildeo do ceacuteu feito de fogo e aacutegua em sua Conclusio

cabalistica secundum opinionem propriam 67 ldquoHic tenebrarum mundus ille autem lucis caelum ex luce et tenebris temperatur Hic per aquas notatur fluxa instabilique substantia ille per ignem lucis candore et loci sublimitate caelum natura media idcirco ab Hebraeis asciamaim quasi ex es et maim idest ex igne et aqua quam diximus compositum nuncupaturrdquo

471 Heptaplus P2 pp185-187 ldquomovetur tertius a secundo secundus a primo regiturrdquo A analogia com a posiccedilatildeo mediana da alma humana entre corpo e espiacuterito natildeo eacute mencionada mas estaacute subentendida Em qualquer criatura (ou ente ou niacutevel de existecircncia) a trindade se manifesta No homem o aspecto superior eacute o Espiacuterito o aspecto mediano eacute a Alma ou princiacutepio animador o aspecto inferior eacute o corpo No corpo fiacutesico o aspecto superior eacute representado pelo ceacuterebro e sistema nervoso consciente o mediano pelo sistema nervoso simpaacutetico e os vasos sanguiacuteneos o inferior pelos demais oacutergatildeos e suas funccedilotildees vitais Veja-se em LORENZ outros detalhes das relaccedilotildees fiacutesicashumanas com os trecircs mundos (Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 pp 57-65)

472 Heptaplus P2 p189 ldquoHaec satis de tribus mundis in quibus illud in primis magnopere observandum unde et mostra fere tota pendet intentio esse hos tres mundos mundum unum non solum propterea quod ab uno principio et ad eumdem finem omnes referantur aut quoniam debitis numeris temperati et armonica quadam naturae cognatione atque ordinaria graduum serie colligentur sed quoniam quicquid in omnibus simul est mundis id et in singulis continetur neque est aliquis unus ex eis in quo non omnia sint quae sunt in singulis Quam Anaxagorae credo fuisse opinionem si recte eum sensisse putamus explicatam deinde a Pythagoricis et Platonicisrdquo Pico conclui essa passagem sugerindo que esse seria ldquoo pensamento de Anaxaacutegoras exposto pelos Pitagoacutericos e Platocircnicosrdquo Tal menccedilatildeo encontra-se em Simpliacutecio Phys 27 2 (cf ref na proacutepria ediccedilatildeo) A ideia de que ldquotudo estaacute em tudordquo encontra paralelos ademais em Proclo Elementos de Teologia proposiccedilotildees 170173 e 176

473 Heptaplus P2 p189 ldquoVerum quae in mundo sunt inferiori in superioribus sunt sed meliore nota quae itidem sunt in superioribus in postremis etiam visuntur sed degeneri conditione et adulterata ut sic dixerim naturardquo

145

O calor eacute em nosso mundo qualidade elementar nos ceacuteus

virtude caloriacutefica nas mentes angeacutelicas Ideia de calor Ou com

mais precisatildeo no mundo inferior o fogo eacute elemento o sol eacute o

fogo do ceacuteu na regiatildeo ultramundana o fogo seraacutefico eacute Intelecto

[] O fogo elementar queima o fogo celeste vivifica o fogo

supraceleste ama474

A escolha das palavras acima natildeo eacute feita ao acaso A anaacutelise do Gecircnesis feita

por Pico releva que a escolha das palavras ali empregadas para descrever a Criaccedilatildeo

natildeo eacute tampouco aleatoacuteria mas fruto da intenccedilatildeo em revelar verdades que natildeo

poderiam ser explicitadas de outra forma A eleiccedilatildeo do redator biacuteblico por palavras

simples ligadas aos elementos permitiria sua adequaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees em

virtude de seus significados metafoacutericos Assim conforme explica no Segundo

Proecircmio ldquoteria tratado Moiseacutes de cada um dos mundos de forma que nas mesmas

palavras e no mesmo contexto pudesse tratar de todosrdquo475 Eis a razatildeo da utilizaccedilatildeo de

certas palavras (no Gecircnesis) como ceacuteu terra aacutegua e luz A utilizaccedilatildeo de uma

linguagem filosoacutefica para tratar da Criaccedilatildeo com termos anaacutelogos a ldquocausa agenterdquo

ldquomateacuteriardquo ldquoqualidaderdquo e ldquoformardquo apenas serviriam para descrever o mundo

corruptiacutevel mas natildeo os demais Infere Pico que esse eacute um ldquosinal da admiraacutevel

habilidaderdquo de Moiseacutes na medida em que ele se serviu de determinados termos e os

dispocircs em uma ordem conveniente para representar todos os mundos ldquoassim no

Gecircnesis palavras contexto e ordem conveacutem plenamente a ilustrar os segredos de

todos os mundos e de toda a naturezardquo476

No percurso de suas expositiones o tema dos elementos eacute explorado por Pico

que descreve sua manifestaccedilatildeo em cada um dos mundos em oitavas diferenciadas Eacute

provaacutevel que uma de suas fontes principais para a reflexatildeo tenha sido Proclo e o Liber

de Causis que levara seu mestre Alemanno a escrever uma obra com o mesmo

conteuacutedo477 Abraatildeo Yaguel tempos depois retomaria o assunto reafirmando de

forma mais clara que os quatro elementos natildeo satildeo encontrados apenas no mundo

inferior mas existem igualmente nos corpos celestes e nas inteligecircncias separadas e

ainda ldquono que estaacute acima deles no arqueacutetipo do mundo a Causa de todas as Causas e

o Princiacutepio de todos os Princiacutepiosrdquo Contudo elucida o rabino no mundo sublunar

satildeo encontrados ldquocomo dejetos e mateacuteriardquo no ceacuteu satildeo potecircncias ou virtudes nos

mundos superiores satildeo formas arquetiacutepicas ldquomais perfeitas que no ceacuteurdquo478

474 Heptaplus P2 pp188-190 ldquo[] est apud nos calor qualitas elementaris est in caelestibus virtus

excalfactoria est in angelicis mentibus idea caloris Dicam aliquid expressius est apud nos ignis quod est elementum Sol ignis in caelo est est in regione ultramundana ignis saraphicus intellectus Sed vide quid differant Elementaris urit caelestis vivificat supercaelestis amatrdquo

475 Heptaplus P2 p195 476 Heptaplus Livro II ldquoSobre o Mundo Celesterdquo 477 A traduccedilatildeo aacuterabe de alguns trechos do Elementos de Teologia de Proclo conhecida como Liber de Causis

foi atribuiacuteda por muito tempo de forma errocircnea a Aristoacuteteles Sobre a relaccedilatildeo da obra de Alemanno Minkhat Yehudaacute e de outros textos anteriores que tratam do tema com o Liber de Causis veja-se IDEL 2008b p 509

478 Abraatildeo YAGUEL Beit Yaar haLevanon in Manuscrito de Oxford 1304 f 6r-6v (apud IDEL 2008b pp 512-513) Infere Idel que o texto de Yaguel em sua abordagem dos distintos estados dos quatro elementos primaacuterios apresenta noccedilotildees neoplatocircnicas que condizem com sua visatildeo sobre a essecircncia dos mundos noccedilotildees fortemente utilizadas por Alemanno

146

Para um melhor entendimento da mensagem do Heptaplus faz-se necessaacuterio

adentrar nas conceituaccedilotildees dos mundos manifestos segundo a miacutestica hebraica Em

uma passagem do Gecircnesis (Secircfer Bereshit) tem-se a revelaccedilatildeo da existecircncia de trecircs

mundos sob o prisma cabaliacutestico ldquoEntatildeo formou Deus o homem do poacute da terra e

soprou-lhe (ruach) nas narinas o focirclego de vida (neshamaacute) e o homem tornou-se

uma alma vivente (nefesh)rdquo479 O enunciado encerra trecircs princiacutepios que podem ser

relacionados tanto a partes concernentes agrave triacuteplice integridade do homem quanto agrave

existecircncia de trecircs mundos em sentido cosmoloacutegico Os trecircs princiacutepios satildeo Neshamaacute

o princiacutepio superior atinente ao Espiacuterito e agrave esfera das Inteligecircncias mais elevadas

Ruach o princiacutepio mediano relativo agrave Alma e agrave hierarquia dos seres astrais e

Nefesh o princiacutepio inferior relativo ao corpo vital e ao plano fiacutesico480 Entretanto no

seacuteculo XII o Zohar mencionaria quatro mundos acrescentando aos trecircs do Gecircnesis o

elemento relacionado diretamente agrave divindade Assim estabelecem-se sob registro

cabaliacutestico quatro concepccedilotildees a saber (a) o mundo da Emanaccedilatildeo do princiacutepio divino

(Olam HaAtzilut) (b) o mundo da Criaccedilatildeo (Olam HaBriaacute) no qual o homem

contemplativo colhe revelaccedilotildees atraveacutes do princiacutepio neshamaacute (c) o mundo da

Formaccedilatildeo (Olam HaYetsiraacute) relacionado a ruach e (d) o mundo da Produccedilatildeo (Olam

HaAssiaacute) correspondente a nefesh481

A quaacutedrupla concepccedilatildeo de existecircncia eacute extraiacuteda outrossim a partir de outra

passagem em Isaiacuteas ldquoa todos os que satildeo chamados pelo meu nome e os que criei

para a minha gloacuteria eu os formei e tambeacutem eu os fizrdquo482 Os cabalistas colhem nesse

versiacuteculo indicaccedilotildees das quatro dimensotildees ou reinos ndash partindo do divino emanente

e prosseguindo com os outros trecircs em ordem hieraacuterquica decrescente com suas

denominaccedilotildees inspiradas naquela sentenccedila os respectivos mundos da Criaccedilatildeo da

Formaccedilatildeo e da Realizaccedilatildeo conforme paraacutegrafo anterior Esses nomes indicam a

transformaccedilatildeo do tipo de influxo com as quais as Sefirot governam o mundo A

tradiccedilatildeo miacutestica associa a esses mundos as trecircs reparticcedilotildees da antiga cosmogonia

rabiacutenica Assim na Criaccedilatildeo Briaacute coloca-se o Trono da Gloacuteria ou a Ideia original da

Criaccedilatildeo onde se encontram as formas arquetiacutepicas e a dimensatildeo angeacutelica mais

elevada483 Na Formaccedilatildeo Yetsiraacute tambeacutem habitada por hostes angelicais a Ideia

adquire forma a mateacuteria astral se compotildee e a separaccedilatildeo se distingue em elementos

479 Gecircnesis 27 Encontram-se traduccedilotildees similares para dois dos termos hebraicos presentes na passagem

mencionada A palavra ruach significa espiacuterito e sopro de Deus neshamaacute eacute traduzido por ldquofocirclego de vidardquo e tambeacutem ldquosopro de Deusrdquo O paralelismo entre o ldquoespiacuterito de Deusrdquo e ldquoo sopro do Todo-poderosordquo eacute frequente na Biacuteblia

480 LORENZ Cabala - A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente 1997 p60 481 LORENZ opcit p60 SENDER opcit pp 71-72 482 Isaiacuteas 437 483 LORENZ (opcit p61 ss) coloca na dimensatildeo da Criaccedilatildeo o movimento pelo qual o Espiacuterito saindo de seu

isolamento se manifesta como Espiacuterito em geral preceito da origem da multiplicidade A utilizaccedilatildeo do termo ldquoIdeiardquo que remete ao Platonismo eacute de Lorenz provavelmente fundamentado em escritos do rabino Abraatildeo Yaguel que no seacuteculo XVI se dirigia agraves emanaccedilotildees com o termo ldquoIdeiirdquo ldquoa forccedila que se encontra nos entes inferiores pode [igualmente] ser encontrada em maior pureza e limpidez nas Sefirot sagradas e puras que satildeo na verdade as Ideii (sic) para todas as coisasrdquo [] ldquoas Ideii satildeo uma forma simples superior aos corpos agraves almas e agraves inteligecircncias [] na terminologia dos platocircnicos aquela primeira configuraccedilatildeo eacute denominada Ideiirdquo Cf Manuscrito de Oxford 1304 f10v apud IDEL 2008-b pp 513-514

147

relativamente individuais484 Finalmente na Realizaccedilatildeo Assiaacute estabelecem-se os

mundos fiacutesico e sensiacutevel atraveacutes dos reinos mineral vegetal e animal485

Para ilustrar a concepccedilatildeo dos Trecircs Mundos no Heptaplus ndash e em

concomitacircncia confirmar a existecircncia de uma dimensatildeo esoteacuterica dentro da Biacuteblia ndash

Pico expotildee no Segundo Proecircmio uma amostra de como sob as palavras mosaicas

escritas em forma simples encontram-se revelaccedilotildees acerca da triacuteplice realidade

Referindo-se a alguns versiacuteculos biacuteblicos que tratam do ldquotabernaacuteculordquo construiacutedo por

Moiseacutes eacute efetuada uma analogia com os mundos subdivinos ali representados ldquoem

modo muito evidenterdquo como diria o autor486 Segundo a narrativa biacuteblica e como

visto no Capiacutetulo IV Moiseacutes dividira o tabernaacuteculo em trecircs partes cada uma delas

concernentes a um dos mundos A primeira parte sem teto ou proteccedilatildeo alguma

encontrava-se exposta aos vaacuterios fenocircmenos da natureza sendo frequentada por

homens tanto puros quanto impuros aleacutem de animais de toda espeacutecie assim como

no mundo sublunar as contiacutenuas vicissitudes de vida e morte se intercalavam As

outras duas partes do tabernaacuteculo estavam protegidas e imunes agraves questotildees

exteriores assim como ocorre com o mundo celeste e supraceleste As duas partes

eram chamadas ldquosantasrdquo poreacutem a mais protegida era chamada ldquoSanto dos Santosrdquo

Pico esclarece que embora os dois mundos celeste e angeacutelico sejam santos (ldquopois

apoacutes a queda de Luacutecifer natildeo restou pecado acima da luardquo) o mundo angeacutelico eacute

considerado de maior santidade e divindade487 Enquanto na Oratio o tema fora

tratado sob uma perspectiva relacionada ao homem dentro de um cenaacuterio que

contempla processos iniciaacuteticos individuais o enfoque dado no Heptaplus encontra-

se inteiramente voltado agrave confirmaccedilatildeo religiosa dos trecircs mundos em um acircmbito que

chamariacuteamos cosmoloacutegico488

484 Eacute nesse plano que ocorre a separaccedilatildeo dos aspectos masculino e feminino que no mundo antecedente

constituiacuteam uma unidade Isso explica o duplo relato biacuteblico da criaccedilatildeo do homem o primeiro em Gecircnesis 1-27 e o segundo em Gecircnesis 2-7 No primeiro relato ldquoe criou Deus o homem agrave sua imagem criou-o agrave imagem de Deus e criou-os masculino e femininordquo o verbo utilizado eacute ldquocriarrdquo referindo-se agrave Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo No segundo relato onde se lecirc ldquoo Senhor Deus formou pois o homem do barro da terra e inspirou no seu rosto um sopro de vidardquo o verbo utilizado eacute ldquoformarrdquo o que o situa em Yetsiraacute o mundo da Formaccedilatildeo no qual o ser adquire forma e deixa de ser androacutegino (cf SENDER opcit pp 36-37)

485 As denominaccedilotildees e atribuiccedilotildees de cada Mundo sofrem pequenas variaccedilotildees semacircnticas dependendo do comentarista Uma das principais divergecircncias que podem ser encontradas refere-se agrave colocaccedilatildeo do sistema planetaacuterio que para alguns faz parte do Mundo da Formaccedilatildeo e para outros do mundo da Realizaccedilatildeo em razatildeo de sua materialidade ndash o que natildeo deixa de fazer sentido Veja-se IDEL 2008b pp 512-513 SCHOLEM 1978 p90 SENDER opcit pp 34-39 BUSI opcit p 19

486 Heptaplus P2 ldquoHoc non praetermiserim figuratos hos mundos trecircs a Mose evidentissime in admirabilis illius tabernaculi sui constructionerdquo Algumas passagens da Biacuteblia tratam do tema da construccedilatildeo do Tabernaacuteculo Em Ecircxodo 25 8-9 o Senhor daacute ordens a Moiseacutes para construir o Templo ou Tabernaacuteculo O Tabernaacuteculo (em hebraico mishkan ldquomoradiardquo ldquotenda da congregaccedilatildeordquo ou ldquosantuaacuterio conforme Ecircxodo 25 8) era a tenda usada pelos israelitas como lugar de adoraccedilatildeo enquanto viajavam pelo deserto Em Ecircxodo (29 42-46) o Senhor disse a Moiseacutes que seria no Tabernaacuteculo que Ele desceria para falar com ele e com Seu povo A tenda onde Moiseacutes se encontrava inicialmente com o Senhor foi armada fora do arraial (Ecircxodo 33 7) pois o povo tinha pecado e o Senhor lhe disse que natildeo mais seguiria no meio deles O Tabernaacuteculo era tambeacutem chamado de ldquotenda do Testemunhordquo porque nele estava guardado o Testemunho ou as taacutebuas da Lei (Ecircxodo 38 21 Nuacutemeros 1 50) Mais tarde o Tabernaacuteculo passou a ser conhecido como ldquoa Casa do Senhorrdquo (Deuteronocircmio 23 18) No lugar mais interior ficava o recinto conhecido como o ldquoSanto dos Santosrdquo pois aiacute era o local em que era colocada a arca e onde apenas o sumo sacerdote poderia entrar

487 Heptaplus P2 ldquoAmbae item sanctitatis nomine honestatae ita tamen ut quae erat secretior sancti sanctorum reliqua sancti tantum titulo decoraretur sicuti quamvis et caelestis et angelicus mundus uterque sanctus quoniam supra lunam post Luciferi casum nec macula nec peccatum aut est aut esse potest angelicus tamen caelesti longe sanctior et divinior habeturrdquo

488 A abordagem do tabernaacuteculo feita por Pico estaacute muito proacutexima daquela de alguns cabalistas que o italiano conheceu direta ou indiretamente como observou Chaim WIRSZUBSKI (Pic de la Mirandole et la Cabale 2007

148

Outra interpretaccedilatildeo do tema havia sido realizada pelo mestre de Pico Yohanan

Alemanno Ele encontrara paralelos entre a mesma narrativa biacuteblica e a questatildeo das

emanaccedilotildees sefiroacuteticas Em seu Collectanaea o tabernaacuteculo eacute descrito como

necessaacuterio para proteger os vasos que receberiam as emanaccedilotildees pois ldquoo povo havia

sido educado para crer na possibilidade de causar o descenso das forccedilas espirituais e

das emanaccedilotildees provenientes das alturas por meio de preparativos feitos pelo homem

para tal propoacutesito exatamente como quando Moiseacutes preparou o bezerro de ourordquo489

Embora Pico natildeo fale diretamente desse tipo de ritual a influecircncia de Alemanno

sobre ele eacute sabida O tabernaacuteculo eacute descrito portanto como um talismatilde complexo

que guarda e causa o descenso das forccedilas espirituais sendo uma das formas maacutegicas

descritas no Capiacutetulo anterior Ao descrever tal evento o mestre rabino se remete a

Moiseacutes como a um operador da Cabala Teuacutergica relacionando as emanaccedilotildees

sefiroacuteticas a ldquocanaisrdquo de transmissatildeo ldquoOs cabalistas acreditam que Moiseacutes tinha

conhecimento do mundo espiritual e das Sefirot [] e sabia como direcionar seus

pensamentos e aperfeiccediloar o efluxo divino que os cabalistas chamam de canaisrdquo490

Alemanno afirma ainda que o Profeta teria dito ldquolsquoascenderei ao Senhor para receber

instruccedilatildeo detalhada acerca dos preceitos pertinentes a duas instituiccedilotildeesrsquo ndash uma delas

salvaguarda o poder receptivo e diz respeito ao Tabernaacuteculo e aos seus vasosrdquo491 As

especulaccedilotildees de Alemanno conjugam o nuacutecleo conceitual cabaliacutestico ndash as emanaccedilotildees

sefiroacuteticas ndash com a geografia dos trecircs mundos depreendendo da figura de Moiseacutes o

arqueacutetipo do mago possuidor do domiacutenio das Sefirot ldquoa accedilatildeo de Moiseacutes fazia com

que os canais dirigissem a emanaccedilatildeo sobre o mundo inferior de acordo com a sua

vontaderdquo492 A ampla defesa de Moiseacutes realizada no Heptaplus por sua vez eacute

emblemaacutetica de uma percepccedilatildeo que somente se torna possiacutevel agrave luz da Cabala

Extaacutetica Pico leitor do cabalista Natan Saadia certamente via naquele personagem o

protoacutetipo do ser que realizou a uacuteltima etapa do processo extaacutetico algueacutem que ldquofoi

transformado em um ser universal depois de ser um ponto central particularrdquo

estabelecendo-se assim como o objetivo do homem inferior ldquoque ascende pela

virtude do poder do Nomerdquo493

As duas interpretaccedilotildees da passagem biacuteblica do tabernaacuteculo podem ser

inseridas em algum ou alguns dos niacuteveis hermenecircuticos atribuiacutedos pelos cabalistas agraves

Escrituras A necessidade de se manter oculta a Revelaccedilatildeo deu vazatildeo agrave ocorrecircncia de

graus de significaccedilatildeo dentro do texto biacuteblico que podem ser entendidos como veacuteus a

serem retirados de acordo com o desenvolvimento da percepccedilatildeo do leitor Haacute um

sentido literal chamado Peschat que se refere agrave compreensatildeo superficial e externa

do relato biacuteblico em que a atenccedilatildeo recai sobre o enredo e os personagens No niacutevel

p 401) Ainda sobre o tema da representaccedilatildeo do tabernaacuteculo em Pico veja-se Newton BIGNOTTO Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola 2010 pp146-47

489 ALEMANNO Manuscrito de Oxford 2234 f 22v Sobre a concepccedilatildeo do bezerro de ouro utilizado para causar o descenso das forccedilas veja-se IDEL (2008-b np 481)

490 ALEMANNO ibid f 8v IDEL atenta para a utilizaccedilatildeo do termo ldquocanaisrdquo Moiseacutes natildeo restaura a divindade mas sim os canais que transmitem as emanaccedilotildees divinas (2008-b np 480)

491 ALEMANNO ibid f 201b 492 ALEMANNO ibid f 8v apud BUSI Qabbalah 2011 p29 493 A passagem estaacute no livro Schaarei Tzedek do disciacutepulo direto do cabalista italiano Abulafia Natan Saadia e

fundamenta-se em Ezequiel I 26 (cf IDEL 2008-a p28)

149

chamado Remez embora preservada a interpretaccedilatildeo literal eacute maior a capacidade

abstrativa o enredo deixa de ser o objetivo principal da leitura e extrai-se um sentido

alegoacuterico A interpretaccedilatildeo talmuacutedica e midraacuteshica se refere a Derashaacute niacutevel que

indica um procedimento eacutetico ou religioso do qual deve ser extraiacutedo um

ldquoensinamentordquo Atraveacutes do relato biacuteblico o homem deduz o que eacute desejaacutevel ou

indesejaacutevel para o Divino o que eacute correto ou incorreto nas relaccedilotildees humanas

Finalmente no niacutevel chamado Sod que significa ldquosegredordquo eacute revelado o sentido

miacutestico que traz a revelaccedilatildeo dos mundos emanados e de seus habitantes O acesso do

miacutestico ao uacuteltimo niacutevel a partir da compreensatildeo de cada uma de suas dimensotildees

anteriores nunca eacute faacutecil ou raacutepido por tratar-se de um caminho cuja chave eacute

cifrada494

Retomando a concepccedilatildeo cabaliacutestica dos Quatro Mundos outra classificaccedilatildeo

bastante usual estabelece o mundo da Emanaccedilatildeo Atzilut em uma unidade distinta

dos demais enquanto os outros trecircs formam ndash como mundos em separaccedilatildeo ndash um

sistema triacuteplice tal conjunto conceitual alude ao aspecto duplo da Divindade ao

mesmo tempo imanente e transcendente495 A trindade derivando-se da unidade e

tendendo a reintegrar-se nela forma um ciclo quaternaacuterio que em tudo se manifesta

Ou em outras palavras os trecircs mundos manifestos somados agrave dimensatildeo primordial

do Absoluto integram os quatro mundos previstos no Zohar A divisatildeo apresentada

no Heptaplus encontra-se em analogia com a concepccedilatildeo inaugural de trecircs mundos

previstos na literatura cabaliacutestica contudo se for levada em conta a divisatildeo

quaternaacuteria do Zohar perceber-se-aacute que o meacutetodo piquiano natildeo espelha tal forma de

particcedilatildeo ndash natildeo por divergecircncia doutrinaacuteria mas em razatildeo de uma omissatildeo e de um

acreacutescimo Conforme as palavras do autor seu meacutetodo parte de ldquouma quaacutedrupla

exposiccedilatildeo de todo o texto mosaicordquo de maneira que em primeiro lugar eacute

interpretado ldquoo que escrito sobre o mundo angeacutelico e invisiacutevel em segundo lugar

como no primeiro cas0 sobre o mundo celeste depois sobre o sublunar e

corruptiacutevel em quarto sobre a natureza do homemrdquo496 Observe-se que o quarto

mundo de Pico sua principal originalidade em relaccedilatildeo a outras interpretaccedilotildees do

Gecircnesis refere-se ao homem ndash esse eacute seu acreacutescimo Embora a literatura cabaliacutestica

apresente vaacuterias analogias dos trecircs mundos com o aspecto triacuteplice do homem essas

satildeo um tanto distintas do tipo de interpretaccedilatildeo feita por Pico497 Por sua vez a divisatildeo

494 SCHOLEM A Cabala e seu Simbolismo 1978 p72 BUSI La Qabbalah 2011 pp10-11 SENDER pp15-16

A ideia da quaacutedrupla interpretaccedilatildeo do texto biacuteblico remete pelo menos ao seacuteculo XIII quando Moshe de Leacuteon o empregou em alguns matizes de seu significado De Leacuteon em um de seus textos mais tardios compara a Toraacute a uma noz composta de casca e cerne cujo acesso aos niacuteveis interiores se daacute atraveacutes do conhecimento das diferentes formas interpretativas Vejam-se maiores detalhes em SCHOLEM que discute amplamente a questatildeo do chamado Pardes com os vaacuterios significados histoacutericos do termo na seccedilatildeo II de seu livro Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition (New York 1960)

495 SENDER opcit p37 Essa eacute uma visatildeo que se aproxima das concepccedilotildees neoplatocircnicas 496 Heptaplus P2 p194 ldquoUnde quadruplex statim totius mosaicae lectionis expositio nascitur ut primo loco

quicquid ibi est scriptum de angelico mundo et invisibili nullam omnino de aliis mentionem habentes enarremus Secundo loco itidem omnia de caelesti mundo tum de sublunari hoc et corruptibili quarto de natura hominisrdquo

497 O Judaiacutesmo admite trecircs princiacutepios para a alma humana Nefesh forccedila de vida inata presente em homens e animais permite a atividade coordenada do corpo fisico ao qual estaacute intimamente ligada o corpo sem nefesh significa a morte corresponde no homem ao mundo manifesto de Assiaacute Ruach niacutevel de alma acima de nefesh relaciona-se tambeacutem agraves emoccedilotildees tendo certa independecircncia do corpo fiacutesico ruach pode abandonaacute-lo nos estados oniacutericos ou contemplativos trazendo impressotildees de Yetsiraacute ao qual corresponde Neshamaacute niacutevel mais

150

dos quatro mundos na Cabala inicia-se com o Atzilut mundo da Emanaccedilatildeo omitido

por Pico no Heptaplus A omissatildeo natildeo se refere a qualquer tipo de contraste

doutrinaacuterio mas apenas agrave utilizaccedilatildeo de um estilo hermenecircutico que se desenrola a

partir dos mundos manifestos de forma a concordaacute-lo com o modelo do Gecircnesis

Vejamos de forma mais aproximada

O muacuteltiplo dispotildee-se em trecircs reinos elementar celeste e

angeacutelico que se desvelam como realidade mundana

inteligecircncias que governam e animam esferas e mundos498

Na passagem acima extraiacuteda dos Comentaacuterios aos Salmos verifica-se que

Pico aborda os trecircs mundos manifestos inserindo-os na dimensatildeo do muacuteltiplo Tal

informaccedilatildeo por simetria loacutegica remete agrave existecircncia de uma dimensatildeo de unidade A

Unidade ou Absoluto existente acima do reino angeacutelico perpassa toda a obra

piquiana e para Ela toda sua filosofia converge Admitindo-se essa afirmaccedilatildeo natildeo

haveria portanto a necessidade de Pico atribuir uma particular ldquoexpositiordquo agravequela

dimensatildeo de existecircncia Considerando-se que o reino angeacutelico eacute parte do muacuteltiplo lecirc-

se no Livro III que trata do ldquoMundo Angeacutelico e Invisiacutevelrdquo

Tudo aquilo que no anjo eacute imperfeito seraacute atribuiacutedo agrave sua

natureza muacuteltipla A imperfeiccedilatildeo [que existe no anjo] existe na

qualidade de multiplicidade enquanto a capacidade de elevaccedilatildeo

cumprida eacute devida agrave unidade que se lhe acosta do Alto Deus eacute a

Unidade de onde o anjo deriva seu ser sua vida e toda

perfeiccedilatildeo499

Assim a presenccedila da Unidade emanatoacuteria acima dos trecircs mundos embora natildeo

expressa diretamente eacute extraiacuteda das passagens que apontam para os aspectos de

gradaccedilatildeo no interior da dimensatildeo da multiplicidade A verificaccedilatildeo do terceiro Livro

do Heptaplus certifica que Pico natildeo suprimiu o mundo emanatoacuterio de Atzilut em sua

interpretaccedilatildeo dos momentos sucessivos da expansatildeo divina A sequecircncia entrevecirc a

analogia existente entre os nuacutemeros depreendidos de leituras cabaliacutesticas e

pitagoacutericas500 e o reino angeacutelico conforme estabelecido por Pseudo Dioniso ndash ambos

os grupos colocados como elementos intermediaacuterios entre o Uno e os mundos

inferiores

sutil e superior da alma eacute o princiacutepio que a liga ao plano da divindade e responsaacutevel pelo grau mais elevado de discernimento no homem tanto intelectual quanto espiritual circulando em Briaacute o mundo da Criaccedilatildeo (cf SENDER 1992 p69 ss) Para Pico no homem ocorre o misto dos elementos ldquoonde reside o espiacuterito celeste a alma vegetal os sentidos dos brutos a razatildeo a mente angeacutelica e a imagem de Deusrdquo (Heptaplus P2 p193) A exposiccedilatildeo sobre a natureza ou ldquoreinordquo do homem eacute feita no Livro IV do Heptaplus

498 PICO Expositiones in Psalmos (trad Antonino Raspanti-Giacomo Raspanti Firenze 1997) Sobre os trecircs mundos elementaris coelestis et intellectuali veja-se Livro XLVII pp14-16

499 Heptaplus Livro III ldquoDe Mundo Angelico et Invisibilirdquo 1 p250 ldquoQuare quicquid in angelo imperfectum est angelicae multitudini quam inde habet unde est numerus idest creatura [] Utrumque igitur horum evenit angelo qua multitudo est Reliquum ut absolutio illi et consummatio ab accedente desuper fiat unitate Deus autem unitas unde ad angelum et esse et vita et omnis perfectio derivaturrdquo

500 Cf Heptaplus III 1 p249 ldquoRefiramos isso agraves coisas divinas segundo o costume pitagoacutericordquo

151

Tudo aquilo que depois da unidade eacute nuacutemero eacute perfeito e

completo por via da unidade A unidade de tudo simples por si

perfeita natildeo sai de si na sua indivisibilidade simples e solitaacuteria

adere a si mesma pois que basta a si [] O nuacutemero sendo por

sua proacutepria natureza muacuteltiplo eacute simples porquanto eacute capaz em

graccedila da unidade E embora cada nuacutemero que se afaste da

unidade caia em uma multiplicidade sempre mais extensa e em

uma sempre maior variedade e composiccedilatildeo de partes natildeo haacute

nada todavia tatildeo proacuteximo agrave unidade quanto tal multiplicidade

provida de unidade apenas acidentalmente natildeo por sua

natureza mas por composiccedilatildeo501

O desenvolvimento do tema conteacutem o modelo de emanaccedilatildeo proveniente de

Atzilut O anjo natildeo eacute unidade por si soacute do contraacuterio seria o Uno Resta que o anjo seja

nuacutemero (ldquoreliquum ut angelus numerus sitrdquo) E sendo nuacutemero ldquopor um aspecto eacute

muacuteltiplo e por outro eacute multiplicidade unificadardquo A descriccedilatildeo prossegue elucidando

que no anjo encontra-se uma dupla imperfeiccedilatildeo uma consiste no fato de natildeo ser o

proacuteprio Ser mas apenas uma essecircncia que pertence ao Ser por participaccedilatildeo a outra

se encontra no fato de natildeo ser a proacutepria Inteligecircncia mas sim participar agrave

Inteligecircncia porquanto sua natureza eacute intelecto capaz de entender Ambas as

imperfeiccedilotildees satildeo no anjo segundo sua multiplicidade enquanto a capacidade de

elevaccedilatildeo eacute devida agrave unidade que se lhe aproxima do alto Pico parece no entanto

atribuir ao nuacutemero uma possibilidade de perfeiccedilatildeo natildeo atribuiacuteda ao anjo ldquocada

nuacutemero eacute imperfeito enquanto multiplicidade embora perfeito enquanto

unidaderdquo502 A dimensatildeo angeacutelica mostra-se um dos momentos de difusatildeo do divino

um dos instrumentos atraveacutes dos quais a unidade se revela Sob tal perspectiva os

anjos as Sefirot as numeraccedilotildees se encontram em perene circularidade interligando

o Uno e o muacuteltiplo Em sua exposiccedilatildeo sobre os Anjos Pico cita fontes concordantes

como Averroacuteis (ldquoentre intelecto e inteligiacutevel cria-se uma unidade maior que entre

mateacuteria e formardquo) e Maimocircnides (ldquoa verdade se colhe de forma mais perfeita nos

anjos que no homemrdquo) para concluir que as espeacutecies inteligiacuteveis satildeo unidas na mente

angeacutelica por meio de uma ligaccedilatildeo eterna natildeo temporacircnea como ocorre no intelecto

humano503

A descriccedilatildeo acima natildeo apenas confirma a natildeo-supressatildeo do mundo da

emanaccedilatildeo primordial na obra piquiana como daacute-nos um modelo do meacutetodo

hermenecircutico utilizado para cada um dos mundos interpretados no Heptaplus Assim

como no Livro III eacute descrita a natureza angeacutelica e sua relaccedilatildeo com os outros planos ndash

501 Heptaplus III 1 p248 ldquoQuicquid est post unitatem numerus unitate perfectus et consummatus est Sola

unitas omnino simplex a se perfecta non egreditur se sed individua simplicitate et solitaria sibi cohaeret quia superest sibi nullius indiga plena suis divitiis Numerus sua natura cum sit multitudo unitatis beneficio sit simplex quantum ipse simplicitatis capax quamquam autem numerus quisque quo magis ab unitate sit procul in maiorem semper incidat multitudinem plusque in eo dissimilitudinis plus partium plus compositurae sit nullus est tamen ita unitati proximus qui multitudo non sit adventitiam habens unitatem unaque non natura sed compositionerdquo

502 Heptaplus III 1 p251 ldquoEst autem omnis numerus eatenus imperfectus quatenus multitudo perfectus autem quatenus unusrdquo

503 Heptaplus III 2 p255 A passagem de Averroacuteis estaacute em De an Beat IX 152 ab

152

em acircmbito de uma geografia universal ndash os demais Livros da obra descrevem a

natureza de cada particular mundo tratado em perfeita harmonia com os mundos

previstos na Cabala

3 A Occlusa Sapientia

Verificou-se no Capiacutetulo anterior a existecircncia de uma relaccedilatildeo entre as letras

hebraicas e significados ocultos vislumbrada por Pico ainda em rsquo86 As

caracteriacutesticas inerentes ao idioma hebraico satildeo afirmadas no fechamento de suas

Conclusiones Philosophicae ldquose existe uma liacutengua originaacuteria e natildeo casual resulta

evidente sobre a base das muacuteltiplas conjecturas que essa eacute a liacutengua hebraicardquo504

Segundo essa proposiccedilatildeo o hebraico apresentaria uma relaccedilatildeo privilegiada com a

verdade instituindo com as coisas uma relaccedilatildeo imediata e necessaacuteria e natildeo mediata

como ocorre com as outras liacutenguas505 Pico percebera que as combinaccedilotildees numeacutericas

e as expressotildees linguiacutesticas apresentam iacutentimas articulaccedilotildees loacutegicas atestando natildeo

apenas a existecircncia de uma racionalidade escondida sob as formas como um processo

de manifestaccedilatildeo divina ldquoos nuacutemeros nos abrem uma estrada para a investigaccedilatildeo e

compreensatildeo de cada coisardquo506 As letras do alfabeto hebraico seriam nesse sentido

apenas ldquoveacuteusrdquo que selam o pensamento divino pedindo que seja efetuada uma

elevaccedilatildeo da letra ao espiacuterito Essa a razatildeo como ainda relembra Pico de Oriacutegenes

evitar traduzir certos vocaacutebulos hebraicos porquanto cada traduccedilatildeo representa uma

despotencializaccedilatildeo da palavra sagrada507

Na inteira Lei natildeo existem letras que em suas formas

conjunccedilotildees separaccedilotildees flexotildees direccedilotildees defeitos e excessos

grandezas maiores ou menores e em seu coroamento

fechamento abertura e ordem natildeo remetam aos segredos das

Dez Numeraccedilotildees [as Sefirot]508

A valorizaccedilatildeo da letra hebraica como fonte criadora focircra registrada pela

primeira vez no Secircfer Yetsiraacute como foi visto Cada uma das 22 letras representa um

princiacutepio gerador de energia que encerra uma chave cognitiva encontrando cor-

respondecircncia com os elementos formados por seu intermeacutedio de forma que toda a

criaccedilatildeo encontra-se relacionada a um fenocircmeno de linguagem Assim como cada

504 Concl (II) II 80 (p77) ldquoSi qua est lingua prima et non casualis illam esse hebraicam multis patet

coniecturisrdquo 505 A deduccedilatildeo eacute de Albano BIONDI tradutor das Conclusiones em seus comentaacuterios introdutoacuterios

(Conclusiones Nongentae ndash Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXIX) 506 PICO Conclusiones de mathematicis (II) VII 11 ldquoPer numeros habetur via ad omnis scibilis

investigationem et intellectionemrdquo 507 Para um aprofundamento da temaacutetica das letras hebraicas e sua recepccedilatildeo por Pico leia-se Eugenio GARIN

(2011 pp 145-49) 508 PICO Concl (I) IX 33 (p60) ldquoNullae sunt litterae in tota lege quae in formis coniunctionibus

separationibus tortuositate directione defectu superabundantis minoritate maioritate coronatione clausura apertura et ordine decem numerationum secreta non manifestentrdquo

153

sefiraacute cada letra encerra um poder criador proacuteprio recebido a partir da divindade e

emanado em direccedilatildeo agrave mateacuteria e em sentido contraacuterio permitindo o acesso e a

compreensatildeo do operador apoacutes o justo processo aos elementos inteligiacuteveis que

participam da divindade atraveacutes de sua chave cognitiva Esse eacute o significado

expresso no Secircfer Yetsiraacute de ldquocom as letras descreva a alma de tudo o que foi

formado e tudo o que seraacute formado no futurordquo509

A narrativa do Gecircnesis ndash em que Deus com uma seacuterie de ordenamentos daacute

vida agrave criaccedilatildeo ndash eacute considerada para os cabalistas testemunho fiel de como a

realidade foi desencadeada pela liacutengua divina Com a mesma ordem de letras que se

sucedem no texto biacuteblico realiza-se o desenho constitutivo da realidade que exprime

o plano divino no domiacutenio fiacutesico da criaccedilatildeo510 Conforme ainda o Secircfer Yetsiraacute

ldquotudo o que eacute formado emana de um nomerdquo511

De fato fundamentada sobre a relaccedilatildeo existente entre as letras hebraicas e a

criaccedilatildeo desenvolveu-se ao longo dos seacuteculos uma longa tradiccedilatildeo exegeacutetica voltada a

aprimorar uma habilidade que permitisse aos iniciados penetrar aleacutem da superfiacutecie

das palavras e descobrir dentro das Escrituras os segredos de toda a criaccedilatildeo512 Para

alcanccedilar os significados ocultos os cabalistas empregam algumas teacutecnicas

relacionadas a operaccedilotildees com as letras513 Os meacutetodos mais utilizados para descobrir

significaccedilotildees hermenecircuticas fundamentam-se no modelo de Abulafia que

compreendia trecircs teacutecnicas baacutesicas o notarico a gematria e a temuraacute A primeira

cujo nome proveacutem da palavra latina ldquonotariusrdquo baseia-se na teacutecnica que analisa

como formar novas palavras partindo das letras iniciais meacutedias ou finais de outras

palavras Na segunda cada letra hebraica eacute substituiacuteda por seu correspondente valor

numeacuterico interpretando-se as palavras atraveacutes dos nuacutemeros resultantes das somas

de cada letra Conhecendo-se o valor numeacuterico de uma palavra ou frase poderatildeo ser

criadas conexotildees com palavras ou frases que tenham o mesmo valor estabelecendo

com elas algumas analogias A temuraacute por sua vez eacute a arte do anagrama ou seja de

permutar a posiccedilatildeo das letras em uma mesma palavra Isso significa que uma palavra

pode ser decomposta e recomposta para formar novas palavras que revelem o

significado completo da primeira514

509 Secircfer Yetsiraacute II 1 (trad KAPLAN 2005 p283) 510 BUSI 2011 p 23-24 511 Secircfer Yetsiraacute II 512 BUSI ibid p 23-24 GARIN 2011 p146 513 Como explica BUSI (ibid p 23) a mesma palavra hebraica seraf indica tanto a transmutaccedilatildeo alquiacutemica dos

metais quanto a permutaccedilatildeo das letras do alfabeto ldquoAssim como o alquimista escolhe os liames da mateacuteria para procurar nos metais menos nobres o segredo do ouro assim o exegeta hebreu transforma a ordem das letras para descobrir por traacutes do sentido aparente o verdadeiro significado do textordquo

514 Cf Guido MASSETANI La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola 1897 pp 64-65 Um modelo de teacutecnica cabaliacutestica pode ser encontrado no Salmo 34 no qual cada verso inicia com uma das letras do alfabeto hebraico em sucessatildeo A sua funccedilatildeo cabaliacutestica estaacute esclarecida na obra Corona del buon nome de Avraham de Colonia que afirma seu valor cognitivo em relaccedilatildeo ao nome impronunciaacutevel de Deus o Tetragramma e agraves 10 Sefirot Esse aspecto impressiona Pico que utiliza o texto traduzido por Flavio Mitridate (FORNACIARI Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola 2001 pp627-633) Outros exemplos de uso da gematria satildeo apresentados por Tova SENDER em seu capiacutetulo ldquoGuematriardquo (1992 p21)

154

Pico debruccedilou-se sobre algumas dentre aquelas teacutecnicas ndash como se lecirc na

Apologia e em algumas de suas Teses ndash515 e tentou permutar nomes inicialmente

atraveacutes do procedimento da ars combinatoria praticado por Ramon Llull no seacuteculo

XII que apresentava certa diferenccedila com os outros meacutetodos aprendidos Estava certo

que aquele que possuiacutesse o conhecimento da ordenaccedilatildeo da liacutengua hebraica

aprendendo a mantecirc-la ldquoem maneira analoacutegicardquo nos vaacuterios campos do saber

possuiria ldquonorma e regra para a perfeita descoberta de qualquer objeto possiacutevel do

saberrdquo conforme havia deixado claro em sua conclusio paradoxal 55516 A teacutecnica com

a qual melhor se adaptou e conseguiu obter resultados foi a temuraacute que lhe permitiu

confirmar alguns dogmas e colher descobertas originais como informam algumas

teses cabaliacutesticas

Se no nome de Abraatildeo natildeo tivesse sido inserida a letra He

Abraatildeo natildeo teria proliferado517

As letras do nome de Cacodaemon que eacute o Priacutencipe deste

Mundo e as letras do nome do Deus Triagramaacutetico satildeo as

mesmas quem souber fazer a transposiccedilatildeo ordenada inferiraacute

um do outro518

Os sinais da existecircncia de certas chaves secretas apenas esboccedilados nas obras

anteriores eram agora confirmados por Pico na uacuteltima parte do Heptaplus intitulada

ldquoExposiccedilatildeo das primeiras palavras isto eacute lsquoNo Princiacutepiorsquordquo A comprovaccedilatildeo do

meacutetodo cabaliacutestico surpreenderia o proacuteprio autor ldquopara aleacutem de minhas esperanccedilas e

de qualquer convicccedilatildeo encontrei aquilo que nem eu mesmo poderia acreditar ter

encontrado nem outros acreditariam facilmente digo uma coisa maravilhosa

inaudita e inacreditaacutevelrdquo519 Atraveacutes da permutaccedilatildeo de letras reafirmava que nos

cinco livros da lei mosaica estava encerrada a cogniccedilatildeo de todas as artes e da

sabedoria divina e humana ldquoembora dissimulada e oculta entre as mesmas letras

entre as quais a formulaccedilatildeo da lei se compotildeerdquo Agrave diferenccedila de outras obras anteriores

nas quais Pico havia mencionado tais segredos sem revelaacute-los o autor concluiacutea o

periacuteodo com a promessa ldquocomo agora seraacute demonstradordquo520

515 Cf Apologia (I p175) Conclusiones magicae secundum opinionem propriam 10 19 20 21 e 22

Conclusiones Cabalisticae Secundum secretam doctrinam 33 35 Conclusiones Cabalisticae Secundum opinionem propriam 60 70

516 Cf Conclusiones Paradoxae (II) III 55 517 Concl (I) IX 15 (p56) ldquoNisi nomini Abraam litera ה id est ha addita fuisset Abraam non generassetrdquo De

fato conta o Gecircnesis (175) que Abraatildeo e Sara soacute puderam ter filhos apoacutes mudarem os proacuteprios nomes AVRaM ficou AVRaHam e SaRaI ficou SaRaacuteH recebendo os dois a letra Hecirc que representa um dos nomes de Deus assim tornando-se feacuterteis Acerca de tal passagem do Gecircnesis conta Satildeo Jerocircnimo que o nome anterior Abram significa ldquoPai elevadordquo enquanto Abraham significa ldquoPai de muitas naccedilotildeesrdquo (apud Franccedilois SECRET Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance 1985 1ordm Capiacutetulo)

518 Concl (I) IX 19 (p58) ldquoEaedem sunt literae nominis cacodaemonis qui est princeps mundi huius et nominis Dei Triagrammaton et qui sciuerit ordinare transpositionem deduceret unum ex aliordquo Veja-se em FORNACIARI detalhes metodoloacutegicos das contas efetuadas para analogar um nome ao outro (2009 p79)

519 Heptaplus Expositio Primae Dictionis idest lsquoIn Principiorsquo p376 Igitur praeter spem meam praeter opinionem inveni quod neque inveniens ipse credebam neque credere alii facile potuerunt [] Rem dico mirabilem inauditam et incredibilemrdquo

520 Ibid p374 ldquo[hellip] dissimulatam autem et occultatam in litteris ipsis quibus dictiones legis contextae sunt quo modo nunc declarabimusrdquo

155

Propondo-se dar ao leitor uma ideia do funcionamento do sistema de

interpretaccedilatildeo cabaliacutestico Pico parte do primeiro periacuteodo do Gecircnesis que vai desde

ldquoNo princiacutepiordquo (11) ateacute ldquoe viu Deus a luz que era um bem (14)rdquo ndash constituiacutedo de

cento e trecircs letras hebraicas como observa ndash para efetuar sua anaacutelise Em sua

ldquoaparecircncia comum e vulgarrdquo como informa o Autor ldquotal disposiccedilatildeo de letras forma

apenas a casca de uma essecircncia de misteacuterios conservados dentro do textordquo Contudo

se for realizada a decomposiccedilatildeo daquelas palavras tomadas as mesmas letras em

separado e recompostas em novas palavras que se possam formar ldquosegundo regras

apreendidas dos hebreusrdquo ldquoveremos em plena luz maravilhosas verdades

secretiacutessimas de uma sabedoria conservada a respeito de muitas coisasrdquo Mas

conforme complementa apenas ldquose formos capazes de uma selada sabedoriardquo521 Para

comprovar sua descoberta aos leitores o autor elege apenas uma das palavras que

compotildeem o periacuteodo mencionado suficiente para demonstrar seu intento

Tomando assim a primeira palavra hebraica do Gecircnesis ldquoberesitrdquo que Pico

transcreve em caracteres hebraicos segue-se uma detalhada explicaccedilatildeo de todas as

separaccedilotildees permutaccedilotildees e uniotildees efetuadas entre as letras daquela palavra surgem

novos vocaacutebulos compostos com as letras da palavra inicial dos quais satildeo dados os

significados em latim finalmente as novas palavras satildeo reordenadas em uma nova

expressatildeo da qual emerge ldquoo Pai no Filho e pelo Filho princiacutepio e fim ou seja

quietude criou a cabeccedila o fogo e o fundamento do homem grande com o pacto

bomrdquo522 Note-se que essa inteira oraccedilatildeo eacute o resultado extraiacutedo da resoluccedilatildeo e

recomposiccedilatildeo daquela uacutenica palavra mostrada passo a passo pelo autor523

Embora como infere Pico qualquer cristatildeo seja capaz de compreender o

significado de ldquoo Pai criou no Filho e atraveacutes do Filhordquo natildeo seraacute faacutecil para ldquoos ignaros

em filosofiardquo compreender o significado de ldquocabeccedila fogo e fundamento do homem

521 Ibid p374 ldquoSumamus gratia exempli primam particulam libri Geneseos videlicet ab exordio usque ad

locum ubi est scriptum lsquoEt vidit Deus lucem quod esset bonumrsquo Est tota illa scriptura tribus et centum elementis coagmentata quae eo modo disposita quo ibi sunt dictiones constituunt quas legimus nihil nisi commune et triviale prae se ferentes Corticem scilicet conflat hic litterarum ordo hoc textum medullae interius abditae latentium mysteriorum At vocabulis resolutis elementa eadem divulsa si capiamus et iuxta regulas quas ipsi tradunt quae de eis conflaridictiones possunt rite coagmentemus futurum dicunt ut elucescant nobis si simus capaces occlusae sapientiae mira de rebus multis sapientissima dogmata et si in tota hoc fiat lege tum demum ex elementorum hac quae rite statuatur et positione et nexu erui in lucem omnem doctrinam secretaque omnium liberalium disciplinarumrdquo

522 Heptaplus ibid p 378 ldquoPater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo

523 Veja-se a inteira ordenaccedilatildeo de palavras cf Heptaplus p378 (levando-se em conta que os termos hebraicos estatildeo aqui escritos em ordem inversa agrave original apresentando-se no sentido latino) ldquoDictio illa apud Hebraeos hoc modo scribitur תישארב Ex hac igitur si tertiam litteram primae coniumgamus fit dictio בא idest ab Si geminatae primae secundam addamus fit רבב idest bebar Si praeter primam omnes legamus fit תישאר idest resith Si quartam primae et ultimate connectamus fit שתב idest sciabat Si tres primas quo iacent ordine statuamus fit ארב idest bara Si prima omissa tres sequentes fit שאר idest rosc Si omissis prima et secunda duas sequentes fit שא idest es Si tribus primus omissis quartam ultimae copulemos fit תש idest seth Rursus si secundam primae fit בר idest rab Si post tertiam quintam tum quartam statuamus fit שיא idest hisc Si primas duas duabus ultimas coagmentemus fit תירב idest berith Si ultimam primae fit ultima dictio et duodecima quae est בת idest thob verso quod frequentissimum apud Hebraeos thau in thet elementum Videamus autem quid primo haec latine significent tum quae per ea non ignaris philosophiae de tota natura mysteria revelentur Ab patrem significat bebar in filio et per filium (utrumque enim significat beth praepositio) resit principium sabath quietem et finem bara creavit rosc caput es ignem seth fundamentum rab magni hisc hominis berith foedere tob bono Et totam si ordine consequenti orationem texamus erit huiusmodi Pater in Filio et per Filium principium et finem sive quietem creavit caput ignem et fundamentum magni hominis foedere bonordquo

156

granderdquo e tampouco de ldquopactordquo ndash termos que encerram cada uma das leis dos

quatro mundos tratados no Heptaplus524 A concepccedilatildeo de ldquohomem granderdquo remete a

Moiseacutes que assim chama o mundo em contraposiccedilatildeo ao homem ldquopequeno mundordquo

Aos outros elementos da oraccedilatildeo Pico faz corresponder os trecircs mundos postulados na

Cabala e na Antiga Filosofia inteligiacutevel celeste e corruptiacutevel Assim em analogia com

o corpo humano ldquopor meio de uma precisa leirdquo a cabeccedila fonte do conhecimento

representa a parte mais alta do mundo correspondente ao mundo angeacutelico ou

inteligiacutevel o fogo princiacutepio de vida e calor ligado ao coraccedilatildeo representa a parte

meacutedia qual o sol no mundo celeste o fundamento ou princiacutepio de geraccedilatildeo e

corrupccedilatildeo representa o mundo sublunar Essas partes no mundo e no homem se

correspondem reciprocamente Ao final da passagem Pico explica

Esse pacto eacute bom porque eacute dirigido e orientado para Deus que eacute

o Bem de forma que assim como o mundo eacute uno na totalidade

de suas partes assim tambeacutem no final possa se tornar uno com

o seu Autor525

A descoberta obtida sob o veacuteu de uma uacutenica palavra satisfaz o autor que natildeo

pretendendo ultrapassar essa conquista admite natildeo ter a experiecircncia necessaacuteria para

se aprofundar em investigaccedilotildees ldquopenso ter feito uma coisa apraziacutevel aos homens de

meu tempo tornando manifesta aquela riqueza de gemas que se me oferece sem

penetrar em seus abismos costeio as margens desse marrdquo526 Se a mesma teacutecnica for

aplicada para toda a Lei induz Pico surgiraacute toda a doutrina e os segredos de todas as

disciplinas liberais Poreacutem adverte ndash mais uma vez ndash ldquose formos capazes de

sabedoria ocultardquo (ldquosi simus capaces occlusae sapientiaerdquo) Pois pode acontecer que

ldquoaproximando-nos de dissolver e compor algumas palavras nasccedilam de nossa

atividade muitos vocaacutebulos e uma variedade de discursos rica de grandes

ensinamentos e profundos significados mas inuacutetil fortuita e despreziacutevel para quem

natildeo tendo apreendido o valor por outra via natildeo possa colher seu sentidordquo527

O caminho de descoberta das verdades veladas nas Escrituras atraveacutes de

qualquer dos meacutetodos indicados eacute o caminho miacutestico sugerido nos chamados Atos

da Criaccedilatildeo Maassecirc Bereshit isto significa que se a Criaccedilatildeo se deu por meio da

linguagem seraacute por meio da linguagem que se deveraacute retornar ao Criador528 Para os

cabalistas a arte combinatoacuteria natildeo eacute mais que uma reconfiguraccedilatildeo da palavra e da

obra de Deus A apreensatildeo da alma presente nas letras passa a ser sob esse prisma

uma das ferramentas que possibilita o regresso do homem agrave Unidade uma concepccedilatildeo

depreendida da especulaccedilatildeo alfabeacutetica de Abulafia529 que certamente se apoiara no

Zohar ldquoOs mandamentos formam o corpo das Escrituras suas vestes satildeo as

524 Cf Heptaplus ibid pp379 381 525 Heptaplus p382 ldquoQuod foedus ideo est bonum quia ad Deum qui est ipsum bonum ita dirigitur et

ordinatur ut quem admodum inter se totus mundus unus ita et cum suo auctore postremo sit unumrdquo 526 Heptaplus p376 527 PICO Heptaplus p377 528 MAGHIDMAN 2014 p108 529 BUSI 2011 p 26

157

narraccedilotildees e finalmente haacute uma almardquo530 O inteiro Heptaplus atraveacutes de seu

comentaacuterio sobre o Gecircnesis pretende provar o ponto de vista de Pico de que a

linguagem cabaliacutestica ou natildeo transcende suas proacuteprias terminologias configurando

um processo cognitivo O seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto por Pico encerra

um princiacutepio metafiacutesico de reciacuteproca contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de realidade entre

si culminando na unificaccedilatildeo com o Absoluto

Imitemos tambeacutem noacutes a santiacutessima alianccedila do mundo de

forma a estarmos unidos entre noacutes por reciacuteproco amor e a

alcanccedilarmos atraveacutes do verdadeiro amor de Deus a feliz

unificaccedilatildeo Nele531

530 Zohar III 152a in VULLIAUD I p135 531 Heptaplus p382 p 382 ldquoImitemur et nos sanctissimum foedus mundi ut et mutua caritate invicem simus

unum et simul omnes per veram Dei dilectionem cum illo unum feliciter evadamosrdquo

158

CAPIacuteTULO VII

FILOSOFIA ESOTERISMO CONCOacuteRDIA

O seacutetimo e uacuteltimo Capiacutetulo tem por intento alinhavar as partes apresentadas

nos capiacutetulos anteriores buscando uma siacutentese interpretativa do que foi analisado

Para tanto alguns pontos aparentemente desconexos deveratildeo ser interligados e as

eventuais lacunas preenchidas Seraacute realizada inicialmente a elucidaccedilatildeo do

paradigma esoteacuterico verificando sua utilizaccedilatildeo em periacuteodos e escolas distintas em

seguida seratildeo vistos os tipos de conteuacutedos protegidos pelo sigilo apontando para sua

relaccedilatildeo com as tradiccedilotildees convergentes do projeto piquiano finalmente

fundamentando-nos em uma especiacutefica concepccedilatildeo utilizada por Pico della Mirandola

ndash a ldquoMorte do Beijordquo ndash seraacute proposta uma interpretaccedilatildeo capaz de lanccedilar uma

pequena luz na questatildeo da confluecircncia daquelas tradiccedilotildees para o mesmo fim

1 O Paradigma Esoteacuterico

A leitura das obras piquianas natildeo deixa duacutevidas acerca da utilizaccedilatildeo de uma

seacuterie de referecircncias de cunho esoteacuterico colhidas da leitura histoacuterica realizada pelo

Autor Como foi esboccedilado no Capiacutetulo II a praacutetica de uma atitude de proteccedilatildeo de

certos conteuacutedos encontra-se em registros relativos tanto a perspectivas teoloacutegicas

quanto filosoacuteficas denotando um modelo vaacutelido desde tempos antigos ndash seja do

periacuteodo pagatildeo quanto do cristatildeo Uma aproximaccedilatildeo a alguns modelos de

manifestaccedilotildees desse gecircnero de ocorrecircncia seraacute uacutetil para que se amplie a definiccedilatildeo de

ldquoesoterismordquo delineada na ldquoIntroduccedilatildeordquo desta tese

O adjetivo ldquoesoteacutericordquo (do grego esoterikoacutes) tem sido frequentemente atribuiacutedo

a Aristoacuteteles em verdade apenas a palavra ldquoexoteacutericordquo (exoterikoacutes) eacute encontrada nos

escritos que nos chegaram uma forma empregada para designar as obras destinadas

ao puacuteblico em contraposiccedilatildeo aos escritos acroamaacuteticos (ldquoakroacuteamardquo ldquoinstruccedilatildeo oralrdquo)

referidos agraves liccedilotildees apenas ouvidas ndash e tantas vezes anotadas532 Foi apenas no seacuteculo

II dC que o termo ldquoesoteacutericordquo e sua relaccedilatildeo com Aristoacuteteles fizeram sua primeira

apariccedilatildeo devidamente registrada atraveacutes de uma saacutetira de Luciano de Samoacutesata

Zeus e Hermes vendiam filoacutesofos como escravos no mercado anunciando que aquele

que comprasse um disciacutepulo de Aristoacuteteles receberia dois pelo preccedilo de um ldquoum visto

532 Veja-se por exemplo Politica 1278b 31 Metaphisica 1076a 28 Etica a Nicomaco 1102a 26 A

interpretaccedilatildeo heleniacutestica do termo exoterikoi logoi tomada como uma referecircncia aos escritos aristoteacutelicos eacute atribuiacuteda por Simpliacutecio mais tarde no seacuteculo VI a Eudemo de Rhodes em seu comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles referindo-se a uma passagem em que Aristoacuteteles teria lidado com um problema lsquoexoteacutericorsquo referente a uma questatildeo pertencente ao campo dialeacutetico (SIMPLICIUS In Ph 8327 8526 e 861 apud Wouter HANEGRAAFF Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism 2006 p 336)

159

de fora outro visto de dentrordquo [] ldquoportanto se vocecirc o comprar lembre-se de dar ao

primeiro o nome de exoteacuterico e ao segundo o de esoteacutericordquo533 Confirmando a

anedota Clemente de Alexandria escrevia pouco tempo depois ldquoos disciacutepulos de

Aristoacuteteles dizem que alguns de seus tratados satildeo esoteacutericos outros comuns e

exoteacutericosrdquo E consolidando o significado de ldquosegredordquo acrescia que ldquoaqueles que

instituiacuteram os misteacuterios sendo filoacutesofos enterraram suas doutrinas em mitos para

natildeo serem oacutebvias para todosrdquo534 Observe-se que Clemente mescla na uacuteltima

passagem o acircmbito misterioloacutegico com o filosoacutefico ndash como faraacute Pico seacuteculos depois

ndash introduzindo uma conotaccedilatildeo de misticismo ao termo Na mesma linha escreveram

Oriacutegenes o Cristatildeo e Gregoacuterio de Nissa utilizando o termo ldquoesoteacutericordquo para referir-se

a ensinamentos secretos reservados a uma ldquoelite miacutesticardquo535

Esses breves relatos fazem notar a existecircncia de duas significaccedilotildees para a

mesma palavra sendo uma concernente ao sentido de ldquosigilordquo e a outra agrave qualidade

do que eacute ldquomiacutesticordquo Embora o sinocircnimo que mais se adeque a ldquoesoteacutericordquo seja

ldquosecretordquo na maior parte das vezes as duas caracteriacutesticas encontram-se mescladas

Etimologicamente o campo semacircntico do misticismo eacute proacuteximo ao do esoterismo a

palavra ldquomisteacuteriordquo conforme sua raiz grega mus significa ldquosilecircnciordquo ou ldquofechar a

bocardquo o ldquomyacutestesrdquo ou ldquoiniciadordquo eacute pois aquele que manteacutem os laacutebios selados

enquanto mysteacuterion refere-se ao culto de iniciaccedilatildeo em que eacute mantido um caraacuteter

secreto536 Assim em seu sentido mais imediato eacute aquilo que natildeo deve ser falado que

deve ser recebido e guardado em silecircncio em sentido mais profundo aquilo que deve

ser contemplado no silecircncio537 Verifica-se ainda um aspecto de transformaccedilatildeo

aniacutemica encerrado na qualidade do que eacute miacutestico que se relaciona com uma

aproximaccedilatildeo da divindade Resta observar que embora nem toda a miacutestica seja

ensinamento secreto e nem todo ensinamento secreto seja miacutestico538 os dois gecircneros

de manifestaccedilatildeo a miacutestica e a secreta tecircm caminhado juntos e se completam na

definiccedilatildeo de esoterismo Prosseguindo seratildeo mostrados trecircs modelos de esoterismo

relacionados a doutrinas bastante distintas ndash que muito provavelmente

influenciaram diretamente Giovanni Pico

Um exemplo expressivo relacionado aos misteacuterios egiacutepcios e tracejado no

Capiacutetulo I pode ser encontrado no Hermetismo que embora supostamente

533 LUCIANO DE SAMOacuteSATA Vitarum Rustio 26 apud HANEGRAAFF opcit p 336 534 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata V 58 3-4 Jacircmblico mais tarde em Vida de Pitaacutegoras e em De

Comm Math (18) utilizaria a dicotomia para referir-se aos alunos de Pitaacutegoras divididos em duas classes ldquouma exoteacuterica e outra esoteacutericardquo

535 Vejam-se os detalhes e referecircncias em HANEGRAAFF opcit p 336 536 De acordo com Walter BURKERT encontra-se na traduccedilatildeo latina de mysteria myeis myesis a melhor

definiccedilatildeo para o termo que resulta em initia initiare initiatio introduzindo o conceito de ldquoiniciaccedilatildeordquo na linguagem ocidental Esse conceito ldquoeacute via de regra acompanhado pelo segredordquo (Antigos Cultos de Misteacuterio 1987 pp19-20)

537 A uacuteltima definiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Reneacute Gueacutenon Aperccedilus sur lrsquoinitiation 2004 Paris Editions Traditionnelles p125 apud Pierre RIFFARD Dicionaacuterio do Esoterismo 1993 p241

538 Gershom SCHOLEM Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica 1999 pp64-65 Em contexto diverso do tratado por Scholem tambeacutem o especialista em religiotildees misteacutericas Walter BURKERT afirma que nem todos os cultos secretos detecircm um caraacuteter miacutestico Como exemplo cita o caso da magia privada que apesar de secreta natildeo deve receber a alcunha de miacutestica assim tambeacutem o acesso de certas hierarquias sacerdotais a objetos ou locais sagrados natildeo constitui uma miacutestica apesar de seu caraacuteter secreto Haacute por outro lado estados de misticismo que podem ser alcanccedilados durante cultos religiosos abertos que natildeo caracterizam necessariamente um segredo (op cit pp19-21)

160

pertencente a periacuteodo anterior ao cenaacuterio de significaccedilotildees acima mencionadas

encerra ao mesmo tempo o sentido secreto e o caraacuteter miacutestico sendo-nos uacutetil para

ilustrar um modelo de esoterismo natildeo-ocidental preacute-cristatildeo bem aceito no seacuteculo XV

Os escritos hermeacuteticos ocultam por detraacutes de uma manifesta clareza ndash referente agrave

forma e ao conteuacutedo ldquoexternordquo ndash uma obscuridade quanto ao sentido mais profundo

que se encontra ldquoseladordquo O material hermeacutetico contempla trecircs planos diversos em

estreita relaccedilatildeo entre eles uma forma externa clara e linear que pode se tornar mais

complexa conforme a dificuldade do argumento um conteuacutedo ldquoexternordquo e

correspondente agrave simplicidade ou complexidade do enunciado um conteuacutedo

absolutamente ldquointernordquo e oculto que natildeo possui uma possibilidade expressiva ou

leacutexica adequada reenviando a um saber recebido em revelaccedilatildeo539 Esse uacuteltimo

aspecto relaciona-se ao caraacuteter miacutestico que contempla uma regeneraccedilatildeo do ser No

Tratado XVI do Corpus Hermeticum Ascleacutepio relata ao Rei Amon

ldquoHermes meu mestre dialogando frequentemente comigo seja

em particular que na presenccedila de Tat costuma dizer-me que

aqueles que leratildeo os meus livros encontraratildeo uma composiccedilatildeo

muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute obscura e

esconde o sentido das palavras Ademais tornar-se-aacute

totalmente obscura quando sucessivamente os Gregos tentaratildeo

traduzir nossa liacutenguardquo540

Um segundo exemplo de natildeo-divulgaccedilatildeo de ensinamentos sagrados eacute

detectaacutevel em alguns registros da miacutestica cristatilde oficial541 embora o ensinamento

secreto natildeo tenha sido utilizado nesse caso como instrumento para propagar uma

tradiccedilatildeo como ocorreu no Judaiacutesmo542 Clemente de Alexandria pode ser tomado

como modelo de transmissatildeo esoteacuterica dentro da tradiccedilatildeo cristatilde tendo absorvido

ecos provenientes dos gregos perceptiacuteveis no uso que fez de termos como gnosis e

mysteria em suas discussotildees acerca dos sentidos literal e natildeo-literal da Biacuteblia543

539 Valeria SCHIAVONE trad e notas ao Corpus Hermeticum ed BUR-Rizzoli 2018 npp262-263 A

comentadora infere que a clareza da forma externa nos textos hermeacuteticos representa um sinal da luz da verdade profunda que vela mesmo que o conteuacutedo tenda a afastar o leitor do entendimento real da experiecircncia miacutestica que esconde Natildeo haacute como deixar de estabelecer uma analogia com os niacuteveis de leitura miacutestica hebraica explicados sob a conceituaccedilatildeo do chamado Pardes como verificado no Capiacutetulo V

540 CORPUS HERMETICUM Tratado XVI 1 ed Nock-Festugiegravere Bompiani 2005 p 429 Traduccedilatildeo do grego por Andregrave-Jean Festugiegravere traduccedilatildeo para o portuguecircs de nossa responsabilidade ldquoΕρμής μεν γάρ ό διδάσκαλός μου πολλάκις μοι διαλεγόμενος καί ιδία καί τού Τάτ ένίοτε παρόντος έλεγεν ότι δόξει τοΐς έντυγχάνουσί μου τοΐς βιβλίοις άπλουστάτη είναι ή σύνταξις καί σαφής έκ δέ των έναντίων άσαφής ούσα καί κεκρυμμένον τόν νοΰν των λόγων έχουσα καί έτι άσαφεστάτη των Ελλήνων ύστερον βουληθέντων τήν ήμετέραν διάλεκτον εις τήν ιδίαν μεθερμηνεύσαι οπερ έσται των γεγραμμένων μεγίστη διαστροφή τε καί άσάφειαrdquo A obra hermeacutetica eacute bastante ampla e abrangente em termos de conteuacutedo Uma visatildeo geral de seu teor foi apresentada no primeiro capiacutetulo embora apenas em sua parte estrutural e ldquoexteriorrdquo Um maior aprofundamento do conteuacutedo hermeacutetico fugiria ao escopo aqui traccedilado Para uma anaacutelise bastante aprofundada do tema leia-se CORPUS HERMETICUM (Nock-Festugiegravere opcit) e HERMETICA (Scott-Ferguson Clarendon Press Oxford 1924-36) duas das mais abrangentes obras sobre o tema

541 A miacutestica cristatilde natildeo-oficial abarca o inteiro movimento gnoacutestico Sua tradiccedilatildeo se perpetuou atraveacutes de maior ou menor grau de sigilo conforme a eacutepoca e a especiacutefica subdivisatildeo

542 SCHOLEM opcit pp64-65 543 Em relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo de termos gregos como gnosis e mysteria Jean PEacutePIN argumenta que nesse

sentido percebe-se ldquouma inconsciente comunhatildeo de culturas mais do que marcas deliberadasrdquo (Mythe et alleacutegorie les origines grecques et les contestations judeacuteo-chreacutetiennes Paris Eacutetudes Augustiniennes 1976 p 251 apud Crofton BLACK 2006 p 103) Antes de Clemente Fiacutelon de Alexandria (De vita contemplativa) escrevera sobre o tema a ideia de que um grupo intelectualmente superior de crentes poderia extrair um niacutevel mais alto de

161

Como antecipado no Capiacutetulo II a postura hermenecircutica desenvolvida por Pico em

algumas obras tem certa afinidade com os primeiros inteacuterpretes cristatildeos gregos e

muito provavelmente alguns dos elementos esoteacutericos que utilizou receberam o

influxo da obra Stromata544 ndash na qual Clemente distingue duas classes de puacuteblico

um digno de receber ensinamentos secretos e outro natildeo

Stromateis englobaraacute a verdade misturada com opiniotildees sobre

Filosofia embora velada e oculta exatamente como a parte

comestiacutevel da noz na casca desta forma eacute mais aceitaacutevel eu

creio que as sementes da verdade sejam mantidas apenas para

os cultivadores da crenccedila545

Clemente reuacutene uma lista de exemplos histoacutericos para comprovar que escolas

filosoacuteficas diferentes estavam unidas em ocultar a verdade dos ldquoindignosrdquo546

utilizando-se de um quadro geral de referecircncias muito similar ao que seria utilizado

por Pico seacuteculos mais tarde (como a carta de Liacutesis para Hiparco e a Segunda Carta de

Platatildeo)547 Menciona entre aquelas os epicuristas os estoicos os aristoteacutelicos e os

ldquofundadores dos misteacuteriosrdquo Afastando-se dos pagatildeos volta-se para Cristo e alguns de

seus disciacutepulos como Paulo destacando o uso feito por alguns apoacutestolos de palavras

como μυστήριoν e σoφία548 O destaque a tais termos faz parte de sua sustentaccedilatildeo da

transmissatildeo natildeo-escrita aplicada essencialmente para a interpretaccedilatildeo das

Escrituras acerca da qual Clemente distingue duas formas de entendimento a

ldquocrenccedilardquo (πίστις) e o ldquoconhecimentordquo (γνωσις)549 Haacute pois uma dicotomia entre

ldquoaqueles que apenas apreciam as Escrituras os lsquocrentesrsquo (πιστοί) e aqueles que

foram aleacutem tornando-se examinadores precisos da verdade e portadores portanto

da gnose (γνωστιχοί)550 O termo ldquognoserdquo eacute definido em Stromata I na discussatildeo do

sentido de sigilo pedido por Cristo A gnose segundo Clemente ldquosabedoriardquo eacute o

ldquoconhecimento e compreensatildeo das coisas que satildeo que seratildeo e que foramrdquo

conhecimento das Escrituras jaacute estava presente em seu trabalho exegeacutetico Tambeacutem Oriacutegenes de Alexandria depois de Clemente distinguiu nitidamente os sentidos literal e natildeo-literal argumentando que a confianccedila no primeiro causaria erro teoloacutegico (vejam-se referecircncias e discussatildeo em BLACK np105 pp108-110)

544 Natildeo se tem certeza se Pico teve acesso direto agrave principal obra de Clemente Stromata na qual eacute elaborada uma linha argumentativa com recursos loacutegicos que se fundamentam tanto nas Escrituras quanto na Filosofia ndash um caminho traccedilado no Heptaplus piquiano Haacute uma sua citaccedilatildeo especiacutefica de Stromata nas Disputationes (44) e a referecircncia a um manuscrito denominado stromata graeca no elenco do inventaacuterio de sua biblioteca entretanto natildeo eacute certo se tal manuscrito se refere ao trabalho de Clemente Um uacutenico exemplar sobrevivente daquela obra foi encontrado na biblioteca de Lorenzo dersquo Medici podendo ter sido utilizado pelo Conde

545 CLEMENTE DE ALEXANDRIA Stromata IndashVI 708a-b (Les Stromates ed Le Boulluec 1981) Stromata ou Stromateis significa ldquoMiscelacircneasrdquo ldquoπεριέξουσι δέ οί Στρωματείς άναμεμιγμένην την αλήθειαν τοΐς φιλοσοφίας δόγμασι μάλλον δέ εγκεκαλυμμένην καί επικεκρυμμένην καθάπερ τω λεπύρω το εδώδιμον του καρύουmiddot αρμόζει γάρ οίμαι τής αληθείας τά σπέρματα μόνοις φυλάσσεσθαι τοΐς τής πίστεως γεωργοΐςrdquo

546 Cf CLEMENTE Stromata V 88b-101a 547 Ibid V 100a-b As referecircncias e conteuacutedos da carta de Liacutesis e da Segunda Carta de Platatildeo encontram-se

respectivamente em notas de rodapeacute dos Capiacutetulos IV e VI 548 Mysteacuterion e Sophia correspondem respectivamente a ldquoMisteacuteriordquo e ldquoSabedoriardquo Para a discussatildeo do tema

veja-se Salvatore LILLA Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford 1971 pp146-148

549 A distinccedilatildeo entre piacutestis e gnosis tem algumas ramificaccedilotildees Clemente usa piacutestis em diferentes sentidos dois dos quais concernentes agraves demonstraccedilotildees loacutegica e cientiacutefica e um dos quais referente agrave leitura das Escrituras Em geral ele usa os dois primeiros significados em suas polecircmicas contra os filoacutesofos e o uacuteltimo em suas polecircmicas contra os gnoacutesticos A ideia em cada caso eacute demonstrar que o Cristianismo natildeo eacute inferior nem agrave Filosofia nem ao Gnosticismo O tema eacute discutido por LILLA opcit pp 118-226

550 Cf CLEMENTE opcit VII 533a

162

apresentando-se sob veacuteus Dessa forma se ldquoa contemplaccedilatildeo eacute o objetivo do saacutebiordquo

entatildeo ldquoa contemplaccedilatildeo daqueles que ainda satildeo filoacutesofos [e natildeo ainda saacutebios]

procura com certeza a sabedoria divinardquo que poderaacute ser alcanccedilada por meio de um

aprendizado que permita a recepccedilatildeo da voz profeacutetica que se lhe revela atraveacutes da

qual ldquose compreende o que eacute seraacute e foirdquo Prosseguindo na mesma passagem o teoacutelogo

define que

ldquoa gnose em si eacute o que desceu por transmissatildeo a poucos

transmitida pelos apoacutestolos sem registro escritordquo551

O tipo de linguagem utilizado por Clemente caracteriza uma esfera que se

tornou reconhecida como esoteacuterica embora o uso de termos como Sophia Piacutestis e

Gnosis seja um convite para se adentrar em territoacuterio gnoacutestico Pico natildeo se utilizou

desse tipo de registro em seus procedimentos hermenecircuticos pelo menos natildeo de

forma direta552 De outras fontes fato certo colheu suas referecircncias pois que a

dicotomia iniciadonatildeo-iniciado se manteve preservada em outros ciacuterculos da

Antiguidade posterior a Clemente e no Medievo sobretudo nas tradiccedilotildees

neoplatocircnica e cabaliacutestica Em ambiente neoplatocircnico destacaram-se dois autores

em particular Macroacutebio e Pseudo-Dioniacutesio ambos presentes na biblioteca piquiana

O Commentarii in Somnium Scipionis de Macroacutebio e sobretudo o De Coelesti

Hierarchia de Dioniacutesio foram textos que ajudaram amplamente a disseminar a

postura esoteacuterica dos primeiros cristatildeos durante a Idade Meacutedia latina apoacutes alguns

escritos originais se terem tornado inacessiacuteveis553 Embora Dioniacutesio seja um bom

modelo de emprego do paradigma esoteacuterico em ambiente neoplatocircnico554 sua forma

de linguagem apesar de natildeo restrita agrave leitura das Escrituras apresenta semelhanccedilas

551 CLEMENTE Stromata VI 281c-284a Oriacutegenes (o Cristatildeo) tambeacutem se utilizou do termo ldquognoserdquo para

designar o entendimento do sentido natildeo-literal talvez porque tenha sido ensinado pelo proacuteprio Clemente (segundo Euseacutebio de Cesareia) Porfiacuterio por sua vez diz que Oriacutegenes foi ensinado por Amocircnio tendo sido seu pupilo ao mesmo tempo que Plotino (cf BLACK opcit p 110)

552 Um paralelismo foi tecido na obra de Jacques Matter Histoire critique du gnosticisme et de son influence publicada em 1828 entre o esoterismo e o gnosticismo do seacuteculo II ao efetuar consideraccedilotildees que partem de um sincretismo entre os ensinamentos de Cristo por um lado e as tradiccedilotildees religiosas orientais judaicas e gregas filosoacuteficas por outro Algumas das primeiras polecircmicas cristatildes contra os gnoacutesticos colocaram-se contra sua crenccedila de terem atingido uma esfera independente e mais alta de conhecimento ou revelaccedilatildeo inacessiacutevel ldquoa outrosrdquo (como os cristatildeos) A obra de Irineu de Lyon do seacuteculo II Contra as Heresias (I162) identifica e transcreve diversas escolas do gnosticismo efetuando uma exposiccedilatildeo em que contrasta suas crenccedilas com as que ele chama do cristianismo ortodoxo [ie o cristianismo ldquonatildeo hereacuteticordquo] assim refutando os ensinamentos de vaacuterios grupos gnoacutesticos (Adversus Haereses W FOERSTER Gnosis A Selection of Gnostic Texts Oxford Clarendon Press 1972 vol I pp138-139)

553 Em seu Comentaacuterio sobre o sonho de Cipiatildeo Macroacutebio postula que desde que a natureza se esconde do olhar da multidatildeo a discussatildeo de seus segredos deve ser velada da visatildeo comum (Commentarii in Somnium Scipionis I 24-18 Padova ed L Scarpa 1981 pp 76-80) Pico possuiacutea uma ediccedilatildeo impressa de tal obra (KIBRE The Library of Pico della Mirandola 1936 p 244) Uma exposiccedilatildeo de cunho esoteacuterico pode ser encontrada ainda em Simpliacutecio Euseacutebio Dioacutegenes Laeacutercio Plutarco Porfiacuterio e Jacircmblico Plotino tratara sobre a proibiccedilatildeo de tornar puacuteblico o conteuacutedo dos Misteacuterios (Eneacuteadas VI 9 11) mas suas referecircncias nesse sentido satildeo de menor expressatildeo

554 O corpus pseudo-dionisiacuteaco um grupo de obras de teor teoloacutegico escritas em grego por um autor desconhecido do final do quinto ou iniacutecio do seacuteculo VI de claro vieacutes neoplatocircnico foi atribuiacutedo (em sua primeira apariccedilatildeo registrada em 532) a outro autor Dioniacutesio o Areopagita Pico o considerava um convertido de Paulo vivido no seacuteculo I dC (ldquoDiscipulus Pauli Dionysius Areopagitardquo como mencionado em Heptaplus p176) A admiraccedilatildeo de Pico pelo Areopagita estaacute evidente no Commento onde o chama ldquopriacutencipe dos teoacutelogos cristatildeosrdquo (p462) e no qual muito provavelmente foram utilizadas as traduccedilotildees de parte do corpus dionisiacuteaco realizadas por Marsilio Ficino (cf BLACK opcit p 123) A recepccedilatildeo do corpus pseudo-dionisiacuteaco durante toda a Idade Meacutedia e Renascenccedila foi extremamente ampla pelo menos seis traduccedilotildees latinas diferentes do corpus (ou partes dele) foram feitas entre os seacuteculos IX e XV

163

com as colocaccedilotildees de Clemente555 Por essa razatildeo tomaremos como terceiro exemplo

outra tradiccedilatildeo a do misticismo hebraico

Os Capiacutetulos VI e VII apresentaram suficientes indicaccedilotildees da utilizaccedilatildeo do

esoterismo hebraico como forma de transmissatildeo de conhecimento entretanto a

forma de linguagem adotada por Yohanan Alemanno e Elia del Medigo para se referir

a um campo de conhecimento sigiloso ndash dimensatildeo que ambos defendiam ndash se

diferencia das abordagens hebraicas anteriores por expor um modelo que utiliza

paracircmetros retirados da linguagem filosoacutefica Diferentes em estilos e doutrinas os

dois mestres de Pico colocaram tal motivo em posiccedilatildeo de destaque nas introduccedilotildees de

suas principais obras Alemanno em seu Hay ha-olamim distingue trecircs tipos de

pessoas ldquoas que derivam seu conhecimento da demonstraccedilatildeo as que o apreendem

atraveacutes da dialeacutetica e as que ouvem a retoacutericardquo556 A mesma ideia eacute encontrada na

introduccedilatildeo do Behinat ha-dat de Elia del Medigo em que o escritor informa que haacute

ldquoprinciacutepios fundamentais que podem ser aceitos retoacuterica e dialeticamente ambos os

meacutetodos de estudo satildeo requeridos jaacute que o terceiro meacutetodo o demonstrativo eacute

impossiacutevel para as massas mas possiacutevel para os poucosrdquo Elia complementa que o

emprego do meacutetodo demonstrativo eacute beneacutefico para a comprovaccedilatildeo de alguns

princiacutepios fundamentais jaacute que leva ao conhecimento das coisas causadas e a partir

do conhecimento dessas ao conhecimento do Criador Em clara distinccedilatildeo entre um

padratildeo exoteacuterico e outro esoteacuterico conclui ser ldquoevidente que o meacutetodo demonstrativo

eacute obrigatoacuterio para o homem saacutebio mas natildeo para o judeu comumrdquo557

Nas especulaccedilotildees aacuterabe-judaicas medievais a retoacuterica era considerada com

base nos comentadores gregos tardios parte integrante das artes loacutegicas no entanto

sua aplicaccedilatildeo praacutetica na instruccedilatildeo de homens ldquolimitados intelectualmenterdquo diminuiacutea

o interesse dos filoacutesofos por essa disciplina558 A dialeacutetica por sua vez pode ser

entendida no caso dos exemplos acima citados como o procedimento racional

empregado em discussotildees com perguntas e respostas atraveacutes das quais se obteacutem

uma regra com a qual se julga o que eacute falso e verdadeiro O uacuteltimo tipo de

conhecimento derivado da demonstraccedilatildeo ldquoutiliza coisas compreensiacuteveis para

explicar as menos compreensiacuteveisrdquo559 Atraveacutes dela eacute possiacutevel demonstrar a essecircncia

das coisas por meio do conhecimento das suas causas remetendo como objetivo

555 Ao mencionar os Misteacuterios Pseudo-Dioniacutesio adverte que ldquonatildeo eacute correto interpretar por escrito as invocaccedilotildees

que pertencem aos misteacuterios nem trazer do sigilo para o conhecimento puacuteblico seu significado misteriosordquo (De ecclesiastica Hierarquia 565c) Ainda ldquoeacute necessaacuterio que as coisas sagradas natildeo sejam ditas comumente nem divulgadas aos natildeo-iniciadosrdquo (De divinis nominibus 597 c) e que ldquosejam envolvidas [as coisas sagradas] na parte mais secreta da mente protegendo-as como uma unidade da multidatildeo profanardquo (De caelesti hierarchia 145 c) Veja-se tambeacutem De ecclesiastica Hierarquia 372a onde trata da preservaccedilatildeo do Santo dos Santos mais tarde retomada por Pico (aqui abordado nos capiacutetulos IV e VI)

556 Hay ha-olamim ed Lelli p94 Fabrizio LELLI editor da obra para o italiano daacute-lhe o tiacutetulo ldquoLrsquoImmortalerdquo (Firenze Leo Olschki) O Hay ha-olamim compreende uma narrativa enciclopeacutedica de ascensatildeo individual atraveacutes das vaacuterias ciecircncias ateacute alcanccedilar o mais alto niacutevel atingiacutevel de perfeiccedilatildeo humana (IDEL The Study Program of R Jochanan Alemanno Tarbiz 48 (1979-1980) pp 303-331)

557 Sefer Behinat ha-Dat of Elijah Del-Medigo (Livro do Exame da Religiatildeo) Jacob Ross (org) Chaim Rosenberg School of Jewish Studies 1984

558 Fabrizio LELLI Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p64

559 A definiccedilatildeo encontra-se em Dioacutegenes Laeacutercio VII 1 45 bem como a anterior referente ao meacutetodo dialeacutetico ndash uma definiccedilatildeo bastante difundida na Idade Meacutedia que DL refere em seus estudos acerca das doutrinas estoacuteicas

164

final ao conhecimento das Causas Primeiras Os termos das discussotildees de Alemanno

e Del Medigo provecircm possivelmente da mesma fonte o Kitab fasl al-maqal (Livro

do Discurso Decisivo) em que Averroacuteis distingue os trecircs tipos de inteacuterpretes

apontados pelos mestres hebreus Para o aristoteacutelico a aquisiccedilatildeo do conhecimento

dos entes soacute poderia ser feita pela intervenccedilatildeo do silogismo racional ou seja atraveacutes

de um percurso demonstrativo560 O uso dessas formas nos modelos hebraicos

mencionados tem por propoacutesito distinguir campos de atuaccedilatildeo secretos de outros natildeo

secretos

Poderia se prosseguir com outros exemplos dada sua profusatildeo mas os trecircs

modelos apresentados satildeo suficientes para que se chegue logo adiante a algumas

conclusotildees Resta esclarecer que o substantivo ldquoesoterismordquo natildeo foi originalmente

uma autodenominaccedilatildeo atraveacutes da qual determinados autores ou ciacuterculos definiram

suas perspectivas O primeiro emprego do termo no sentido de um gecircnero de

procedimento vinculado a uma escolha de comportamento foi feito a posteriori em

1828 no trabalho de Jacques Matter sob contexto do Cristianismo inicial561

Contudo somente em 1990 por meio de Antoine Faivre o Esoterismo eacute introduzido

em acircmbito acadecircmico como ldquoforma de pensamentordquo sendo ampliada sua aceitaccedilatildeo

como um campo de estudos Em sua obra Accegraves de leacutesoteacuterisme occidental o autor

defende um paradigma que pode ser reconhecido pela presenccedila de quatro

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave proacutepria definiccedilatildeo de esoterismo agraves quais duas natildeo

intriacutensecas podem ser eventualmente acrescentadas As caracteriacutesticas intriacutensecas

propostas por Faivre tomadas aqui em empreacutestimo pela pertinecircncia agrave temaacutetica

traccedilada satildeo (a) a crenccedila em ldquocorrespondecircnciasrdquo invisiacuteveis e natildeo causais entre todas

as dimensotildees visiacuteveis e invisiacuteveis do cosmo (b) a percepccedilatildeo da natureza como

permeada e animada por uma presenccedila divina ou forccedila vital (c) a concentraccedilatildeo na

imaginaccedilatildeo religiosa como um poder que daacute acesso a niacuteveis de realidades

intermediaacuterios entre o mundo material e Deus e (d) a crenccedila em um processo de

transmutaccedilatildeo espiritual atraveacutes do qual o homem interior eacute regenerado e reconectado

com o divino As duas caracteriacutesticas natildeo intriacutensecas ndash frequentemente mas nem

sempre presentes ndash satildeo (e) a crenccedila em uma concordacircncia fundamental entre vaacuterias

ou todas as tradiccedilotildees espirituais e (f) a ideia de uma transmissatildeo mais ou menos

secreta do conhecimento espiritual562

Conforme sugerido por alguns o paradigma de Faivre melhor se adequa agrave

filosofia hermeacutetica da Renascenccedila e ao contexto romacircntico-iluminista do final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX563 De fato no que concerne ao ambiente renascentista a

560 AVERROacuteIS Discurso Decisivo IV No Artigo XVI Averroacuteis introduz os trecircs meacutetodos esclarecendo que cada

um eacute apropriado para determinada categoria da humanidade sendo o meacutetodo demonstrativo aplicado a um nuacutemero reduzido de pessoas (Artigo LII)

561 Jacques MATTER Histoire critique du gnosticisme et de son influence 1828 Menos de trecircs deacutecadas apoacutes ter sido empregado de forma ldquooficialrdquo na obra de Matter o substantivo ldquoesoterismordquo eacute reconhecido como uma nova palavra com direito a pertencer a um dicionaacuterio em 1852 atraveacutes do Novo Dicionaacuterio Universal de Maurice Lachacirctre onde eacute definido como ldquoa totalidade dos princiacutepios de uma doutrina secretardquo

562 Antoine FAIVRE Access to Western Esotericism 1994 pp10-15 Como aponta Hanegraaff (opcit p340) o valor heuriacutestico da definiccedilatildeo de Faivre eacute inegaacutevel e tem sido adotado por muitos estudiosos como ldquoo paradigma de Faivrerdquo

563 HANEGRAAFF opcit p 340

165

definiccedilatildeo acima condiz precisamente com a forma-pensamento de Pico della

Mirandola de acordo com os pontos destacados no decorrer desta tese Vejamos O

ponto lsquoarsquo referente agraves correspondecircncias invisiacuteveis entre as dimensotildees do cosmo

perpassa as vaacuterias obras de Pico encontrando-se seus sinais sobretudo no Heptaplus

no qual faz corresponder os vaacuterios reinos (ldquotudo que estaacute no mundo inferior estaacute nos

superiores de forma mais elevadardquo)564 A mesma profusatildeo de menccedilotildees se aplica ao

ponto lsquobrsquo sobre a percepccedilatildeo de uma natureza permeada pela presenccedila divina (ldquoo

mundo eacute uno na totalidade das suas partes por ser uno com o seu Autorrdquo)565 O ponto

lsquocrsquo que indica a utilizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo religiosa para o acesso agraves realidades

intermediaacuterias eacute verificaacutevel nos exemplos de praacuteticas teuacutergicas oacuterficas e cabaliacutesticas

postuladas ndash sobretudo mas natildeo exclusivamente ndash nas Conclusiones O ponto lsquodrsquo

referente a um processo de transmutaccedilatildeo espiritual que reconecta o homem ao

divino eacute o tema fundamental da De Hominis Dignitate Quanto aos dois pontos natildeo

intriacutensecos tem-se no ponto lsquoersquo concernente agrave concordacircncia entre as tradiccedilotildees

espirituais a descriccedilatildeo do projeto de concoacuterdia que justamente se consagrou como o

principal interesse da vida de Pico por fim o ponto lsquofrsquo acerca da transmissatildeo secreta

do conhecimento espiritual eacute o tema desenvolvido neste trabalho Assim se

devecircssemos classificar a obra de Pico de acordo com os paracircmetros de Faivre os seis

itens acima a fariam constar perfeitamente entre os conteuacutedos esoteacutericos

Natildeo se encontra indicado no paradigma de Faivre contudo nem tampouco em

definiccedilotildees usuais acerca do esoterismo quais conteuacutedos devem ser preservados O

tipo de linguagem que demarca o motivo da transmissatildeo secreta apesar das

diferenccedilas de eacutepoca e estilo apresenta claras similaridades em seus usos muitas

vezes repetitivas conforme as palavras de Ascleacutepio ldquoaqueles que leratildeo meus livros

encontraratildeo uma composiccedilatildeo muito simples e clara enquanto ao contraacuterio essa eacute

obscura e esconde o sentido das palavrasrdquo em Clemente ldquoa verdade velada e oculta

estaraacute misturada com opiniotildees sobre Filosofiardquo em Del Medigo ldquoo meacutetodo

demonstrativo eacute impossiacutevel para as massasrdquo Pico absorvendo tais conteuacutedos os

utiliza de forma ampliada na Oratio tratando de Paulo escreve que o apoacutestolo

mantinha [tudo aquilo] ldquooculto do vulgordquo ldquoDioniacutesio Areopagita disse que os

misteacuterios mais secretos foram transmitidos de mente a mente sem escritosrdquo ldquoOrfeu

revestiu os misteacuterios dos seus dogmas com a veste das faacutebulasrdquo566 E acerca das

proacuteprias informaccedilotildees que iria transmitir o Mirandolano advertia que se fosse liacutecito

trazer a puacuteblico alguma coisa dos secretos misteacuterios o faria ldquosob o veacuteu do enigmardquo567

Observa-se que natildeo haacute menccedilatildeo aos conteuacutedos Em alguns casos esses nunca satildeo

revelados em outros apenas sugeridos Haacute no entanto alguns indiacutecios que apontam

para trecircs possiacuteveis conteuacutedos temaacuteticos a serem verificados a seguir

564 PICO Heptaplus p189 565 Ibid p383 566 As passagens da Oratio encontram-se respectivamente nas pgs 157 157 163 567 PICO Oratio p129

166

2 A Concordacircncia teleoloacutegica

Haacute uma estreita relaccedilatildeo entre o Esoterismo e as tradiccedilotildees agraves quais Pico atribui

pontos de convergecircncia Colocado de outra forma os pontos de confluecircncia relativos

agraves tradiccedilotildees mencionadas na obra piquiana gravitam em torno a especiacuteficos nuacutecleos

de teor esoteacuterico Essa eacute a revitalizada intuiccedilatildeo do Autor que precede seu projeto de

Concoacuterdia Antes dele segundo sua proacutepria confirmaccedilatildeo outros jaacute haviam ingressado

em tal caminho Numecircnio tentara acordar bracircmanes magos egiacutepcios e hebreus

Moiseacutes Pitaacutegoras e Platatildeo Proclo apoacutes tentar a comunhatildeo entre Platatildeo e Aristoacuteteles

abordara a filosofia hieraacutetica atraveacutes de seus comentaacuterios a Orfeu tentando

comprovar a convergecircncia entre as doutrinas caldaicas oacuterficas hermeacuteticas e

platocircnicas568 As tentativas desses autores em concordar doutrinas aparentemente

dessemelhantes seguem um criteacuterio de escolha a partir do qual as escolas ou

doutrinas eleitas participam de meacutetodos de transmissatildeo sigilosa do conhecimento

provavelmente natildeo por coincidecircncia Dentre os diversos registros verificados seja

nas referecircncias esoteacutericas empregadas por seus antecessores seja naquelas

retomadas por Pico consegue-se identificar trecircs niacuteveis ou campos temaacuteticos de

utilizaccedilatildeo do segredo na transmissatildeo (1) o primeiro niacutevel caracteriza-se pela

necessidade de se proteger poderes empregados em atos de trocas entre os reinos (2)

o segundo niacutevel trata de informaccedilotildees referentes aos mundos intermediaacuterios

distribuiacutedos entre o sublunar e a Unidade (3) o terceiro niacutevel protege conteuacutedos

relacionados aos Princiacutepios ou ao Absoluto

1 No primeiro niacutevel o segredo protege os atos que envolvem as trocas

efetuadas entre o mundo sublunar e os supralunares por intermeacutedio de accedilotildees

humanas caracteriza-se portanto como um niacutevel ldquopraacuteticordquo Eacute o caso dos usos de

magia ou teurgia que envolvem ritos para atrair o descenso de forccedilas pertencentes a

esferas superiores dos sons utilizados nos Hinos oacuterficos para certas funccedilotildees dos usos

da Cabala Praacutetica da teurgia de Jacircmblico e Proclo dos rituais realizados nos

Misteacuterios menores para uma regeneraccedilatildeo psiacutequica transitoacuteria todos temas

abordados nos capiacutetulos anteriores Em ambiente hermeacutetico o Asclepius traz

referecircncias claras de praacuteticas para o descenso das forccedilas ndash como o apelo agraves almas dos

daimons e dos anjos para fazecirc-las morar em imagens sagradas de forma que tais

imagens pudessem ter a forccedila de fazer o bem e o mal569 ndash embora os meacutetodos em si

568 Pico teria lido sobre Numecircnio de Apameia em Euseacutebio (Prep Ev IX 7 XI 10 XII 5) conforme indicaccedilatildeo

do proacuteprio em seu prefaacutecio ao Heptaplus (a identificaccedilatildeo da obra de Euseacutebio encontra-se em GARIN 2001 n p 75 que a extraiu de ZELLER a Filosofia dos Gregos (1881) e de MATTER Histoire de lrsquoEacutecole drsquoAlexandrie (Paris 1848 vol III pp234-37) Acerca de Proclo suas reflexotildees encontram-se em Elementos de Teologia conforme Albano BIONDI Conclusiones Nongentae-Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 2013 pXXV

569 CORPUS HERMETICUM VIII 24 ed Nock-Festugiegravere 2005 pp557-559 ldquoNossos primeiros antepassados [] inventaram a arte de fazer deuses logo assim que os fizeram vincularam a eles uma virtude adequada inferida da natureza material misturando essa virtude com a substacircncia das estaacutetuas dado que natildeo podiam criar almas propriamente ditas e depois de invocarem as almas de daimons as introduziam em seus iacutedolos por meio de rituais santos e divinos de modo que esses iacutedolos tivessem o poder de fazer o bem e o malrdquo Ainda do ldquoLivro sagrado dedicado a Asclepiusrdquo (opcit 37 p583) ldquoTrata-se de estaacutetuas dotadas de uma alma conscientes cheias de sopro vital e que realizam um nuacutemero incalculaacutevel de prodiacutegios estaacutetuas que conhecem o futuro e o predizem atraveacutes das sortes da inspiraccedilatildeo profeacutetica dos sonhos e de muitos outros meacutetodos que enviam aos homens as enfermidades e as curam que concedem segundo nossos meacuteritos a dor ou a fortunardquo

167

sejam mantidos em segredo Plotino retomaria esse interesse como se lecirc em Eneacuteadas

IV ldquoos antigos saacutebios que quiseram os deuses presentes entre eles construindo-lhes

templos e estaacutetuas entenderam que eacute sempre faacutecil atrair a alma universal mas que eacute

particularmente trabalhoso mantecirc-la a menos que se construa algo afim e capaz de

receber-lhe a participaccedilatildeordquo pois ldquoa imagem figurada de uma coisa estaacute sempre

predisposta a sofrer a influecircncia da coisa copiada como um espelho capaz de

aprisionar a imagem que refleterdquo570 Os modelos hermeacutetico e plotiniano encontram

eco na concepccedilatildeo do bezerro de ouro da versatildeo de Alemanno vista na abordagem do

Heptaplus571

Amostras de correspondecircncias dentro desse campo de atuaccedilatildeo satildeo

apresentadas na obra piquiana na qual satildeo apontadas especiacuteficas similaridades entre

praacuteticas pertencentes a nuacutecleos distintos sobretudo nas teses que compotildeem os

uacuteltimos grupos de suas Conclusiones572 Em muitos casos as formas de magia ou

teurgia protegidas pelo segredo servem para ldquocasar o mundordquo e a partir de entatildeo

ldquoorganizar o caosrdquo como intuiu Pico em 1486573 Esse niacutevel de atuaccedilatildeo eacute via de regra

protegido por elevado grau de sigilo necessaacuterio para uma seguranccedila social ou legal

conforme a eacutepoca e a cultura ou para proteger certos tipos de conhecimento dos

perigos que podem desencadear em matildeos incautas Embora haja certas similaridades

entre algumas praacuteticas nesse niacutevel encontram-se maiores divergecircncias entre os

meacutetodos pelo fato de haver um distanciamento maior da Unidade

2 O segundo domiacutenio de registros esoteacutericos contempla o vasto campo

especulativo que trata da sistematizaccedilatildeo do mundo emanado ou da criaccedilatildeo do reino

da multiplicidade a partir da Unidade Embora distintos sistemas apresentem

diferenccedilas conceituais e lexicais verificam-se iacutentimas correspondecircncias no que

concerne aos niacuteveis de graduaccedilotildees entre os diferentes mundos que foram destacadas

e confirmadas ampla e repetidamente por Pico ndash que caracterizou esse estudo como

ldquometafiacutesica das formas inteligiacuteveis e angeacutelicasrdquo574 A obra piquiana mostra seu esforccedilo

para comprovar que concepccedilotildees teoreacuteticas distintas se conciliam em harmonia

Aquele que entre os cabalistas se chama Metatron eacute sem

duacutevida o que eacute denominado por Orfeo lsquoPallasrsquo por Zoroastro

lsquomente paternarsquo por Mercuacuterio lsquofilho de Deusrsquo por Pitaacutegoras

lsquosabedoriarsquo por Parmecircnides lsquoesfera inteligiacutevelrsquo575

570 PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Bompiani Milano 2010 571 ALEMANNO Collectanaea Manuscrito de Oxford 2234 f 22v apud Moshe IDEL 2008b np 481 Na

concepccedilatildeo de Alemanno o preparo do bezerro de ouro por Moiseacutes eacute tido como necessaacuterio para o recebimento das emanaccedilotildees provenientes do descenso das forccedilas espirituais

572 Vejam-se algumas dessas correspondecircncias na uacuteltima parte do Capiacutetulo III 573 PICO Concl (II) IX 13 (p118) ldquoMagicam operari non est aliud quam maritare mundumrdquo 574 Cf Apologia p 29 ldquointeligibilibus angelicisque formis exactam methaphysicamrdquo 575 Concl (II) XI 10 (p128) ldquoIllud quod apud Cabalistas dicitur Hochmah illud est sine dubio quod ab

Orpheo Pallas a Zoroastre paterna mens a Mercurio dei filius a Pythagora sapientia a Parmenide sphera intelligibilis nominaturrdquo O termo Hochmah assim traduzido por Biondi e escrito no original em caracteres de provaacutevel hebraico foi traduzido por Farmer como Metraton seguindo a interpretaccedilatildeo de Wirszubski que afirma utilizar outras evidecircncias para tal conclusatildeo (cf FARMER Syncretism in the West Picos 900 Theses (1486) - The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems 1998 np 524) Optamos pela utilizaccedilatildeo de ldquoMetratonrdquo em nossa traduccedilatildeo ao portuguecircs em razatildeo de sua presenccedila em outras passagens de Pico Com

168

Em sua prospecccedilatildeo da metafiacutesica do Inteligiacutevel Pico identifica as Sefirot

cabaliacutesticas com os nuacutemeros pitagoacutericos e com as dez esferas da ordenaccedilatildeo hermeacutetica

ndash ldquomomentos sucessivos da expansatildeo da divindaderdquo ou ldquoatosrdquo com os quais Deus se

faz presente nas coisas576ndash concepccedilotildees que encontram sustentaccedilatildeo em sua tese

cabaliacutestica 36 ldquoDeus cobriu-se com dez vestimentas quando criou o mundordquo577 Tece

ainda paralelos entre os ldquodez vingadoresrdquo da teoria hermeacutetica e a maligna sequecircncia

denaacuteria da cabala (situada ldquodo lado esquerdordquo) sobre os quais Pico nada escreveu

ldquopor se tratar de um segredordquo578 Outra simetria eacute verificaacutevel entre certos graus

ldquofuncionaisrdquo contemplados no Hermetismo e na Cabala na teoria hermeacutetica da

ascensatildeo da alma pelas esferas a regeneraccedilatildeo da alma se daacute na oitava esfera

chamada ogdoaacutedica ndash relacionada ao nuacutemero oito ndash conforme se depreende do

Corpus Hermeticum XIII tambeacutem na Cabala existe essa concepccedilatildeo relacionada a

uma determinada Sefiraacute conforme estudo de Scholem579 Outra fonte utilizada por

Pico para compor suas correspondecircncias de estratos metafiacutesicos encontra-se nos

textos caldaicos que apresentam passagens com elaboraccedilotildees que unificam os vaacuterios

planos conforme pode ser lido na ordenaccedilatildeo dos Oraacuteculos Caldeus realizada por

Miguel Psello

Sustentam que haacute sete mundos reais um iacutegneo e primeiro trecircs

eteacutereos e trecircs materiais o uacuteltimo dos quais denominado

terrestre e inimigo da luz trata-se da regiatildeo sublunar que aleacutem

do mais encerra em si mesma a mateacuteria a que denominam

abismo [] Homenageiam certo Abismo paterno composto

pela triacuteade Pai Potecircncia e Intelecto Segue-se a Iynga inteligiacutevel

depois os Conectores (compostos de elementos iacutegneos eteacutereos e

materiais) depois os Teletarcas Em seguida os Pais Fontes

referecircncia agrave passagem em questatildeo observa-se que embora com nomenclaturas diferenciadas e pertinentes a cada respectiva tradiccedilatildeo Pico as faz corresponder em termos de posiccedilatildeo ou graduaccedilatildeo dentro do plano do Inteligiacutevel Sobre o mesmo tema Pico escrevera no Commento descrevendo como a mente criada procede do bem primeiro ldquoEssa primeira criatura eacute chamada seja pelos platocircnicos que pelos antigos filoacutesofos Mercuacuterio Trismegisto e Zoroastro ora filho de Deus ora sabedoria mente ou razatildeo divina o qual alguns interpretaram inclusive como Verbordquo (Commento sopra una canzona drsquoamore I 5 1942 p 466) Pico se preocupa em diferenciar a emanaccedilatildeo do primeiro princiacutepio com ldquoaquele que foi chamado por nossos teoacutelogos como lsquofilho de Deusrsquordquo ldquoEd abbi ciascuno diligente avvertenzia di non intendere che questo sia quello che darsquo nostri Teologi egrave detto figliuolo di Dio perchegrave noi intendiamo per il figliuolo una medesima essenzia col padre a lui in ogni cosa equale creatore finalmente e non creatura ma debbesi comparare quello che ersquo Platonici chiamano figliuolo di Dio al primo e piugrave nobile angelo da Dio creatordquo (idem)

576 Cf Cesare VASOLI in ldquoIntroduzionerdquo a Giovanni Pico della Mirandola (Garin 2011) Pico estabelece niacuteveis de correspondecircncias outrossim entre determinados niacuteveis angeacutelicos e certas potecircncias integrantes do Orfismo como pode ser verificado em anaacutelise de Paolo FORNACIARI (2001) ldquoSatildeo inteligecircncias angeacutelicas e divindades homoacutelogas em funccedilatildeo e poder pois entre outras coisas as Potestades satildeo uma lsquodisposiccedilatildeo angeacutelica de tipo intermediaacuterio que eacute purificada iluminada e aperfeiccediloada pelos esplendores da divindadersquo bem como os lsquoCuretirsquo indicados nos Hinos oacuterficos 31 e 38 Em ambos os casos satildeo entidades mediadoras entre o uno e o mundo sensiacutevel geralmente benignos embora com enorme poder sobre o qual o homem deve manter-se consciente e com temor reverencialrdquo

577 PICO Concl (II) XI 36 (p135) ldquo[] cur dicatur apud Cabalistas quod Deus induit se decem vestimentis quando creauit saeculumrdquo

578 PICO Concl (I) VIII 10 (p55) ldquo[] de quibus ego in cabalisticis conclusionibus nichil possui quia est secretumrdquo Na deacutecima tese hermeacutetica Pico denomina os dez vingadores de lsquomala coordinatiorsquo verdadeiras e proacuteprias entidades negativas que se apresentam como o espelho perverso das Sefirot como deduz FORNACIARI (2001)

579 Gershom SCHOLEM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 1960

169

tambeacutem chamados de lsquoGuias do Mundorsquo sendo o primeiro deles

aquele que se costuma dizer lsquounitariamente mais distantersquo

Finalmente vecircm os trecircs Implacaacuteveis e por uacuteltimo lsquoaquele que

estaacute cercado por baixorsquo580

Embora possa ser tentador investigar os significados das concepccedilotildees

mencionadas buscando seu aprofundamento esse se mostraria um caminho longo e

desnecessaacuterio para o tema tratado O que se pretende relevar ndash aleacutem de expor alguns

exemplos que ilustram o domiacutenio tratado ndash eacute que muitos dos conteuacutedos pertinentes

agraves estratificaccedilotildees dos planos metafiacutesicos ndash niacutevel onde Pico encontra elaboraccedilotildees

espaciais em elevada conformidade ndash envolvem tradiccedilotildees que lidam com a

transmissatildeo esoteacuterica e que compotildeem um segundo tipo de caracterizaccedilatildeo temaacutetica

Esse gecircnero de conteuacutedo encontra mais transposiccedilotildees para a linguagem escrita do

que o modelo anterior e o seguinte apesar de suas abstraccedilotildees constituiacuterem em

muitos casos um veacuteu indecifraacutevel De fato natildeo obstante as temaacuteticas atinentes ao

movimento de criaccedilatildeo e estabelecimento dos graus do muacuteltiplo serem mais

facilmente encontradas em material escrito ndash e portanto menos protegidas pelo

segredo ndash a ocultaccedilatildeo de suas particularidades se daacute por meio do recurso a uma

linguagem miacutetica alegoacuterica ou obscura (fundada sobre semacircnticas e formas

linguiacutesticas diferenciadas conforme a tradiccedilatildeo)

3 O terceiro domiacutenio contemplado pelo Esoterismo inclui em caraacuteter

acessoacuterio as formas de proteccedilatildeo a praacuteticas iniciaacuteticas que visam suplantar estaacutegios do

mundo sensiacutevel e intelectual O tema da ascese em direccedilatildeo agrave Unidade integra as

doutrinas mencionadas na De Hominis Dignitate visitadas no Capiacutetulo IV eacute um dos

conteuacutedos principais tratados no Pimandro hermeacutetico (a ascese a partir ldquodo reino da

natureza e da morterdquo) eacute o objetivo dos atos de contemplaccedilatildeo almejados na Cabala

Extaacutetica As crenccedilas oacuterficas de retorno agrave Unidade apresentam claras analogias com a

soteriologia encontrada no Segundo Tratado hermeacutetico Trismegisto que passara

pela experiecircncia iniciaacutetica da regeneraccedilatildeo diz a seu filho Tat que o ldquohomem

renascido seraacute deusrdquo581 em evidente paralelismo com os dizeres encontrados na

lacircmina oacuterfica de Turi do seacuteculo IV aC ldquoAlegra-te por teres sofrido o que nunca antes

sofreste de homem nasceraacutes um deusrdquo582

Tais processos iniciaacuteticos que objetivam alcanccedilar o mais alto grau da divindade

devem ser vistos como caracteriacutesticas secundaacuterias ou acessoacuterias como acima

disposto A caracteriacutestica efetivamente preciacutepua do terceiro domiacutenio esoteacuterico

encontra-se na proteccedilatildeo ao nuacutecleo concernente agraves Causas Primeiras Em torno a essa

dimensatildeo verifica-se uma confluecircncia doutrinaacuteria observada e relatada por Pico o

580 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus 1991 p18 Trecho extraiacutedo da Exposiccedilatildeo

Caldaica de Miguel Psello [42 (54)] que tivera contato com os Oraacuteculos atraveacutes dos textos de Proclo Psello e Plethon realizaram comentaacuterios extensos sobre os Oraacuteculos Caldeus e suas coleccedilotildees foram aumentadas por Franciscus Patricuis que em 1593 publicou em latim aquele conteuacutedo sistematizado em 324 oraacuteculos (Zoroaster et eius 320 Oracula Chaldaica) acrescentando-lhes conceitos de Proclo Heacutermias Simpliacutecio Damaacutescio entre outros Essa obra foi a base da classificaccedilatildeo feita por Thomas Taylor (The Chaldean Oracles London 1806)

581 Corpus Hermeticum XIII opcit p 379 582 Otto KERN Orphicorum Fragmenta fr32 c-f

170

uacuteltimo grau de ordenaccedilatildeo do sistema caldeu coincide com o que se verifica em textos

hermeacuteticos oacuterficos pitagoacutericos e neoplatocircnicos pode-se dizer que seus fins

convergem em direccedilatildeo agravequele nuacutecleo ndash identificado como ldquoiniacuteciordquo e ldquofimrdquo583 Assim

tambeacutem se averigua em outros nuacutecleos investigativos para a possibilidade de tal

ldquoencontrordquo se volta Clemente ao buscar sentidos natildeo literais nas Escrituras de forma

paralela em relaccedilatildeo ao mesmo material voltam-se os cabalistas em suas buscas

interpretativas e contemplativas ndash almejando alcanccedilar o estado de devekut (uniatildeo

com a Divindade)584 e em acircmbito misterioloacutegico esse eacute o propoacutesito para o qual se

dirigem as orientaccedilotildees relacionadas ao alcance da epopteia eleusina Sob registro

filosoacutefico Elia Del Medigo escrevera que o emprego do meacutetodo demonstrativo seria

capaz de comprovar princiacutepios fundamentais ndash por conduzir ao conhecimento das

coisas causadas ldquoe finalmente do Criadorrdquo585

Em torno aos Princiacutepios tem-se pois o norte de chegada das doutrinas

teoloacutegicas filosoacuteficas e algumas ritualiacutesticas partiacutecipes do projeto vislumbrado por

Pico conforme os vaacuterios exemplos apontados na Oratio Para esse fim Pico

direcionou suas principais reflexotildees de teor filosoacutefico que denominou ldquocausas das

coisasrdquo586 como verificaacutevel no De Ente et Uno no qual procurou dirimir o conflito

entre Platatildeo e Aristoacuteteles ndash conforme delineado na abordagem das fundamentaccedilotildees

filosoacuteficas do Autor no Capiacutetulo II Para fazer confluir as doutrinas dos dois

Filoacutesofos foi encetada uma discussatildeo em torno agravequela esfera Da mesma forma para

fazer convergir doutrinas como as caldaicas as pitagoacutericas e as neoplatocircnicas foram

observadas as relaccedilotildees das mesmas com as Causas Primeiras atraveacutes de seus

registros comprovou que os saacutebios caldeus acreditavam ldquoem um Princiacutepio uacutenico de

todas as coisasrdquo celebrando-o ldquocomo Uno e Bemrdquondash587 claro exemplo de uma

protologia natildeo desconhecida As linhas doutrinais percorridas na obra piquiana

partilham pois por vias singulares de concepccedilotildees similares em torno aos ldquofinsrdquo de

formas convergentes de comunhatildeo com a Unidade Nesse grau o sigilo estaacute sempre

presente e seus conteuacutedos quando transmitidos ocorrem apoacutes aacuterdua trajetoacuteria Ora

Pitaacutegoras quando ensinava a seus disciacutepulos natildeo lhes dava o poder de interpretar as

causas das coisas nos primeiros estaacutegios de suas especulaccedilotildees ele lhes ensinava

primeiramente a ldquociecircnciardquo somente no uacuteltimo grau de discipulado ndash o grau de

teleiotecircs correspondente ao telos ndash lhes eram reveladas as Causas os Princiacutepios588

Nesse niacutevel de especulaccedilatildeo por sua proximidade com a proacutepria Unidade muitas das

divergecircncias satildeo diluiacutedas podendo-se falar de uma concordacircncia teleoloacutegica

583 Eugenio Garin (2011 p149) amplia a rede de afinidades acrescendo aos acima mencionados elementos do

pensamento cristatildeo do gnosticismo do platonismo da miacutestica de Satildeo Joatildeo de Paulo e Nicolau de Cusa (apesar como enfatiza das iacutentimas divergecircncias entre cada uma dessas correntes)

584 Veja-se o Capiacutetulo V 585 Veja-se o Item 1 586 Cf Oratio p131 587 Francisco Garcia BAZAacuteN ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus opcit 1991 p18 Os Oraacuteculos Caldeus talvez

por terem tido entre um de seus primeiros comentadores o neopitagoacuterico Numecircnio apresentam muitos elementos pitagoacutericos como a colocaccedilatildeo de uma Mocircnada ndash ou princiacutepio de Unidade ndash no veacutertice das coisas e de uma Diacuteade como princiacutepio do muacuteltiplo

588 Veja-se nota sobre o tema no Item 3 Capiacutetulo IV Cf Jacircmblico Vita Pythagorica 71-72 Dioacutegenes Laeacutercio VIII 10

171

Qual a razatildeo para a natildeo divulgaccedilatildeo de questotildees conceituais referentes aos

uacuteltimos niacuteveis metafiacutesicos Para Oriacutegenes os misteacuterios das Escrituras estatildeo ocultos

sob um veacuteu de coisas ldquovisiacuteveisrdquo para proteger aqueles ldquoincapazes de suportaacute-losrdquo589

Segundo Abulafia ldquoa alma humana natildeo pode suportar o influxo direto da inteligecircncia

superior graccedilas a certos ldquonoacutesrdquo que a mantecircm atada agrave mateacuteriardquo Maimocircnides de

forma mais extrema dizia que a nocividade da sabedoria metafiacutesica requer sua

transmissatildeo em alegorias pois ldquoaqueles que tentam compreender seus segredos sem

a devida preparaccedilatildeo seratildeo destruiacutedosrdquo590 O que se depreende de vaacuterias passagens

desse gecircnero eacute que o movimento em direccedilatildeo agrave cognoscibilidade comporta

necessariamente a ocultaccedilatildeo de tudo aquilo que natildeo pode ser compreendido pelo

intelecto finito Em termos teoloacutegicos a divindade soacute pode ser apreendida atraveacutes de

uma paulatina revelaccedilatildeo de sua verdade Pico utiliza uma linguagem mais requintada

para referir-se agrave mesma condiccedilatildeo ldquoAs doutrinas sagradas estatildeo escondidas sob

termos populares como dentro de uma concha para que os olhos menos agudos natildeo

sejam ofuscados Trazem pois a luz para beneficiar aos satildeos mas a trazem escondida

e velada para natildeo ofender aos homens de vista fraacutegilrdquo591

O ldquoponto de chegadardquo sugerido na argumentaccedilatildeo proposta constitui uma

justificativa para a utilizaccedilatildeo de categorias esoteacutericas Tal dimensatildeo natildeo se configura

como um patamar atingiacutevel por especulaccedilotildees filosoacuteficas As aporias encontradas ao

final de um percurso dialeacutetico natildeo se resolvem por aproximaccedilotildees da razatildeo mas pela

ocupaccedilatildeo de um espaccedilo proacuteprio caracterizado por todas as tradiccedilotildees que tratam com

fenocircmenos iniciaacuteticos Vislumbra-se pois a existecircncia de um ldquoabismordquo ndash um

ldquoespaccedilordquo entre o muacuteltiplo e o Uno natildeo ultrapassaacutevel por procedimentos intelectuais

ndash sugerido ou subentendido pelas formas linguiacutesticas utilizadas nas tradiccedilotildees

esoteacutericas Pico tentara elucidar a concepccedilatildeo ldquoo abismo eacute a capacidade inteligiacutevel no

profundo pois penetrante e perscrutadora acima dessa encontra-se a escuridatildeo ateacute

que seja iluminada pelos raios das cogniccedilotildees espirituaisrdquo592 Quando o intelecto se

apaga quando a escada utilizada para elevar-se eacute abandonada a funccedilatildeo da miacutestica eacute

entatildeo exercida aquele espaccedilo eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes das transformaccedilotildees do miacutestico

que decorrem de seu contato com a divindade ndash as denominadas proteccedilotildees

ldquoacessoacuteriasrdquo dentro dos modelos apresentados de Esoterismo A forma de alcanccedilar tal

fim havia sido ademais sinalizada na Oratio dos trecircs niacuteveis supra-humanos aos

quais o homem pode elevar-se o niacutevel celeste eacute acessiacutevel pela razatildeo o niacutevel angeacutelico

pela dialeacutetica que permite o alcance do Inteligiacutevel o uacuteltimo niacutevel de conhecimento

do Absoluto ou da ldquounidade do espiacuterito com Deusrdquo poderaacute ser alcanccedilado atraveacutes do

589 Apud BLACK op cit pp103-104 590 MAIMOcircNIDES Dux neutrorum (Guia dos Perplexos) III 54 apud Naomi GOLDFELD Elia del Medigo e

lrsquoaverroismo hebraico in BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico 1998 p 45 Maimocircnides nessa passagem refere-se ao relato da entrada de quatro rabinos no Pardes nem todos preparados para receber ldquoa verdaderdquo conforme sua leitura do Talmud Babilocircnico Hagigah 15a

591 PICO Heptaplus P1 p180 ldquoNos credere possumus satisfactum rudibus auditoribus si lumen scientiae quod introspicerent sapientes crassioribus verbis quasi cornea texta circumdatum obduxerit ne hebetiores inde Oculi perstringerentur Attulerit ergo lumen ut sanis oculis proforet inclusum tamen et velatum attulerit ne lippientibus officeretrdquo

592 Heptaplus III p253 ldquoAbyssus intellectualis proprietas est profunda quaeque penetrans et perscrutans Super hanc tenebrae sunt donec spiritalium notionum quibus omnia videt et intuetur radiis non illustraturrdquo

172

processo asceacutetico que reconduz ao ldquocentro da proacutepria unidaderdquo593 Haacute pois uma

dimensatildeo natildeo ultrapassaacutevel para a qual a Theoriacutea594 conduz por intermeacutedio de suas

filhas a Filosofia e a Teologia a uacutenica forma de ir aleacutem eacute atraveacutes do ecircxtase miacutestico

situaccedilatildeo extrema apontada em vaacuterias das tradiccedilotildees pelas quais Giovanni Pico

transitou e para a qual encetou sua proacutepria reflexatildeo

3 A Morte do Beijo

Um dos pontos mais elevados da reflexatildeo piquiana encontra-se no recurso de

conceituaccedilatildeo biacuteblico-cabaliacutestica referente agrave ldquomors osculirdquo ldquomorte do beijordquo uma das

possiacuteveis definiccedilotildees do ecircxtase miacutestico O tema trata de uma relaccedilatildeo extaacutetica em que

dois amantes um terreno e outro celeste alcanccedilam a comunhatildeo A concepccedilatildeo

(poeacutetica miacutestica e filosoacutefica)595 descreve a morte figurada que ocorre por ocasiatildeo da

separaccedilatildeo da alma dos acidentes do mundo sensiacutevel quando essa se vecirc colhida em

um transporte transcendente simbolizado pela troca do beijo miacutestico O tema eacute

sintetizado por Pico nas teses cabaliacutesticas 11 e 13 ldquosecundum opinionem propriamrdquo e

ampliado no Commento sopra una canzona drsquoamore composta da Girolamo

Benivieni Conforme a conclusio cabalistica 11

O modo atraveacutes do qual as almas racionais satildeo sacrificadas a

Deus por intermeacutedio do Arcanjo natildeo especificado pelos

Cabalistas somente ocorre por via da separaccedilatildeo da alma do

corpo natildeo do corpo da alma exceto por acidente como

acontece na Morte do Beijo sobre a qual estaacute escrito lsquoPreciosa

na presenccedila do Senhor a morte de seus santosrsquo596

O fenocircmeno da separaccedilatildeo da alma do corpo conforme acima mencionado eacute

melhor descrito no Commento ldquoAgraves vezes se diz que a alma estaacute separada do corpo

mas natildeo o corpo dela e isto eacute quando cada uma das forccedilas da alma exceto a que o

corpo nutre chamada vegetativa estaacute ligada mas natildeo opera em nada como se natildeo

593 PICO Oratio p107 ldquo[] in unitatis centrum suae se receperit unus cum Deo spiritus factus in solitaria

Patris caliginerdquo 594 O termo se adequa agrave concepccedilatildeo grega do vocaacutebulo θεωρία ldquoespeculaccedilatildeo ou vida contemplativardquo conforme a

tradiccedilatildeo pitagoacuterica 595 A colocaccedilatildeo eacute de Paolo Fornaciari que adiciona a qualificaccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo ao conteuacutedo O comentador

considera a recuperaccedilatildeo dessa ldquoverdadeira hierogamiardquo um dos aportes mais originais que Pico empresta da Cabala ao Cristianismo um dos instrumentos mais eficazes de sua tatildeo almejada ascensatildeo agrave pax unificardquo (FORNACIARI Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche 2009 pp24-25)

596 Concl II XI 11 p128 ldquoModus quo rationabiles animae per archangelum Deo sacrificantur qui a Cabalistis non exprimitur non est nisi per separationem animae a corpore non corporis ab anima nisi per accidens ut contigit in morte osculi de quo scribitur lsquopraeciosa in conspectu domini mors sanctorum eiusrsquordquo Pico extrai o uacuteltimo trecho de Salmos 116 15-16 Como ajuiacuteza Paolo FORNACIARI (ibid np41) a ldquomorte do beijordquo em latim ldquomors osculirdquo em hebraico ldquomytat benesiqahrdquo eacute um tiacutepico exemplo de cruzamento entre temas platocircnicos [que podem ser melhor depreendidos da leitura do Commento] e cabaliacutesticos A relaccedilatildeo extaacutetica eacute tambeacutem retratada no Cacircntico dos Cacircnticos entre Salomatildeo e sua amada que a leitura anagoacutegica identifica como Deus e sua relaccedilatildeo com Israel inteiramente de acordo com o tema cabaliacutestico do matrimocircnio miacutestico entre a sefiraacute Yesod (o fundamento mas tambeacutem a virilidade) e Knesset Israrsquoel (a comunidade dos fieacuteis) (ibid p24)

173

estivesse em nadardquo Tal situaccedilatildeo ocorre continua o texto quando a parte intelectual ndash

chamada por Pico ldquorainha da almardquo ndash estaacute em ato e operante natildeo sofrendo em si o

ato de qualquer outra potecircncia597 Essa condiccedilatildeo entre a alma e o corpo eacute chamada

ldquoprimeira morterdquo598

Atraveacutes da primeira morte que eacute a separaccedilatildeo apenas da alma do

corpo e natildeo o contraacuterio a amada Vecircnus celestial poderaacute

portanto ver o amante e esse estar face a face com ela

contemplando sua imagem divina e com seus olhos purificados

assim se alimentar599

O amante representa a mente600 ou a parte intelectual da alma que se une

ldquoem amorrdquo com algum niacutevel natildeo esclarecido do Inteligiacutevel Pico chama ainda a

atenccedilatildeo para o fato de o eventual ecircxtase alcanccedilado envolver o risco de uma segunda

morte a final A excessiva prolongaccedilatildeo do estado de ecircxtase marca um dos eventos

capazes de ocasionar a segunda morte ldquose muito se fortalecer e prolongar a operaccedilatildeo

intelectual eacute necessaacuterio que desta uacuteltima parte vegetativa a alma tambeacutem se separe

de forma que ela do corpo e o corpo dela sejam separadosrdquo Haacute outra forma de

deflagrar a segunda morte indicada no Commento atraveacutes de uma obscura

advertecircncia em relaccedilatildeo a outro tipo de relaccedilatildeo que o praticante possa pretender ldquoE

note-se que a uniatildeo mais perfeita e iacutentima que o amante possa ter com a amada

celestial eacute denotada pela uniatildeo do beijo porque qualquer outro congresso ou coacutepula

usado no amor corporal natildeo eacute liacutecito usar em qualquer forma de transfiguraccedilatildeo601

neste santo e sagradiacutessimo amorrdquo602 Em caso de tal pretensatildeo o Autor daacute a entender

que a segunda morte pode ser almejada

Quem ainda mais intrinsecamente quiser possuiacute-la e natildeo

contente em vecirc-la e ouvi-la quiser ser digno dos seus abraccedilos

iacutentimos e beijos anelantes deve separar-se de si mesmo

totalmente atraveacutes da segunda morte do corpo e entatildeo natildeo soacute

ver e ouvir a Vecircnus celestial mas com um noacute indissoluacutevel

abraccedilaacute-la e com beijos de um ao outro sua proacutepria alma

597 A uacutenica potecircncia que ainda pode operar na alma nesse estado acresce Pico ldquoeacute a potecircncia nutritiva cujas

operaccedilotildees por seu grande distanciamento da alma natildeo satildeo de todo anuladas por seus atos embora muito debilitadasrdquo (Commento pp557-558)

598 Como informa Giulio BUSI (Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah 2014 p66) a ldquoprimeira morterdquo do corpo no leacutexico neoplatocircnico eacute o resultado do encaminhar-se em um percurso contemplativo que leva agrave morte figurada ou filosoacutefica

599 Commento p557 O texto original natildeo foi escrito em latim mas em italiano ldquoPuograve dunque per la prima morte che egrave separazione solo dellrsquoanima dal corpo e non per lrsquoopposito vedere lo amante lrsquoamata venere celeste e a faccia a faccia con lei ragionando della divina immagine sua ersquo suoi purificati occhi felicemente pascererdquo

600 Cf nota de Eugenio Garin agrave sua traduccedilatildeo do Commento (1942 np 557) 601 No texto original a palavra utilizada eacute lsquotraslazionersquo que Garin corrige em nota agrave traduccedilatildeo como

lsquotransunzionersquo (ed Vallecchi 1942 p 558) 602 Commento pp557-558 ldquoE nota che la piugrave perfetta e intima unione che possa lrsquoamante avere della celeste

amata si denota per lrsquounione del bacio perchegrave ogni altro congresso o copula piugrave in lagrave usata nello amore corporale non egrave licito per alcuno modo per traslazione alcuna usare in questo santo e sacratissimo amorerdquo

174

transfigurar estando tatildeo perfeitamente unidas que ambas

podem ser chamadas de uma soacute alma603

Nas Conclusiones Pico retoma a questatildeo da segunda morte do corpo dessa

vez em razatildeo de algum tipo de imperiacutecia praticado durante o ldquointercursordquo O preccedilo a

pagar estaacute bem expresso na conclusio cabalistica 13

Quem operar em Cabala sem a presenccedila de algum estranho se

exporaacute agrave binsica [Morte do Beijo] caso se prolongue muito no

trabalho E se cometer erros durante o trabalho ou se

aproximar deste sem a devida purificaccedilatildeo seraacute devorado por

Azazel de acordo com suas proacuteprias regras de justiccedila604

O Commento natildeo ultrapassa essas poucas indicaccedilotildees e seu autor deixa claro

que ldquonatildeo lereis nada a mais em seus livros [dos cabalistas] a natildeo ser que binsica isto

eacute a morte do beijo ocorre quando a alma no rapto intelectual se une agraves coisas

separadas e do corpo elevada em tudo o abandonardquo605 Provavelmente Pico obteve as

referecircncias sobre a Morte do Beijo atraveacutes de suas leituras de Maimocircnides que no

final do seacuteculo XI havia retomado do Talmud o tema do beijo divino oferecendo no

Guia dos Perplexos uma profunda exegese do assunto relacionando o uacuteltimo

intercurso ao desvanecimento do corpo na velhice condiccedilatildeo necessaacuteria para que o

impulso vital se transformasse em ldquopuro pensamentordquo606 Ou pode ter lido sobre o

assunto em Menachem Recanati outra de suas fontes que acerca do binsica elaborou

uma ldquoviagem extrema e alienanterdquo607 tendo legado um passo importante por

descrever de forma bastante detalhada o percurso miacutestico que pode conduzir ao

beijo beatificante e letal

Os padres morriam de um beijo Quando os pios e os homens de

accedilatildeo se encontravam em solidatildeo e imersos nos segredos

supernos a faculdade imaginativa de seus pensamentos fazia

que as coisas se mostrassem como gravadas perante eles E

603 Commento p557 ldquoma chi piugrave intrinsicamente ancora la vuole possedere e non contento del vederla e

udirla essere degnato dersquo suoi intimi amplessi e anelanti baci bisogna che per la seconda morte dal corpo per totale separazione si separi e allora non solo vede e ode la celeste Venere ma con nodo indissolubile a lei srsquoabbraccia e con baci lrsquouno in lrsquoaltro la propia anima trasfudendo non tanto cambiano quelle quanto che sigrave perfettamente insieme si uniscono che ciascheduna di loro dua anime e ambedue una sola anima chiamare si possonordquo

604 Concl II XI 13 p128 ldquoQui operatur in Cabala sine admixtione extranei si diu erit in opera morietur ex binsica et si errabit in opere aut non purificatus accesserit deuorabitur ab Azazele per proprietatem iudiciirdquo Conforme FORNACIARI (2009 np42) para atingir o estado de ldquobinsicardquo ou a ldquomorte do beijordquo a alma racional que aspira agrave separaccedilatildeo da alma do corpo deve encontrar-se soacute Azazel na demonologia cristatilde eacute uma das sete epifanias do lado maligno Provavelmente Pico tomou o conceito de Azazel de Abulafia e de seu comentaacuterio ao Guia dos Perplexos de Maimocircnides que lhe foi traduzido por Mitridate

605 Commento p558 ldquonegrave piugrave nersquo loro libri leggerai se non che binsica cioegrave morte di bacio egrave quando lrsquoanima nel ratto intellettuale tanto alle cose separate si unisce che dal corpo elevata in tutto lrsquoabbandonardquo O Binsica que fecha o Commento eacute na opiniatildeo de BUSI (2014 p68) o mais afortunado entre os hiacutebridos piquianos retomado posteriormente por renomados como Baldassare Castiglione e Giordano Bruno Na continuidade da passagem Pico narra que os cabalistas mencionam que alguns de seus padres ldquomorreram de binsica como eacute o caso de Abraatildeo Jacoacute Moiseacutes Aaron Maria e alguns outrosrdquo Pico provavelmente extrai isso do Talmud da Babilocircnia que apresenta passos com essas menccedilotildees

606 BUSI opcit 2014 p69 607 Cf traduccedilatildeo de Giulio Busi 2014 p70

175

enquanto uniam suas almas agrave alma superior as coisas se

multiplicavam e se revelavam da fonte do pensamento como

quem abre uma cisterna drsquoaacutegua que comeccedila a fluir O

pensamento unido eacute de fato como fonte e cisterna que natildeo se

exaure [] Graccedilas agrave uniatildeo do pensamento com a emanaccedilatildeo as

palavras se multiplicam e crescem e surgem na alegria Por isso

foi ensinado que lsquoa Sekinah natildeo se manifesta na indolecircncia mas

na alegriarsquo608

As vaacuterias faces do misticismo de Giovanni Pico devem ser unificadas a partir

de evidecircncias amplamente dispersas nas Teses e confirmadas por discussotildees

retomadas em outras obras O tema da ascensatildeo miacutestica que ocorre antes da uniatildeo

extaacutetica sugerida pela imagem da Morte do Beijo eacute tambeacutem desenvolvido no

Commento Em uma interpretaccedilatildeo pessoal da tradicional escada platocircnica do

amor609 Pico relata a ascensatildeo em sete passos que envolvem uma progressatildeo ao

conhecimento ndash ldquoconhecimento reflexivordquo em seus termos ndash com a gradual

transformaccedilatildeo aniacutemica do sensual para o racional e sucessivamente para as

faculdades inteligiacuteveis Nos uacuteltimos graus de ascese o quinto e o sexto a alma

alcanccedila a ldquoVecircnus celestialrdquo (o inteligiacutevel ou a mente angeacutelica) que se lhe revela em sua

proacutepria imagem ndash embora ainda natildeo com a ldquoplenitude total de sua belezardquo pois que

esta natildeo pode ser apreendida pelo intelecto particular ou ldquoparcialrdquo da alma Assim

atraveacutes do amor a alma une seu intelecto parcial ao inteligiacutevel universal a ldquoprimeira

das criaturas a uacuteltima e universal hospedagem da beleza idealrdquo610

O seacutetimo passo da exposiccedilatildeo piquiana contempla o termo da trajetoacuteria um

estado de quietismo sugerido pela suacutebita mudanccedila de paradigma de linguagem ndash de

ativa durante o processo intelectual para passiva ao descrever o estaacutegio mais

elevado da ascensatildeo miacutestica ndash como bem observou Stephan Farmer611 ao final de seu

percurso quando o homem nada mais pode alcanccedilar por meio de seus proacuteprios

recursos a alma eacute ldquoatraiacutedardquo ldquopossuiacutedardquo ldquointoxicadardquo ldquoconsumidardquo ldquoinspiradardquo

ldquoiluminadardquo ldquoaperfeiccediloadardquo e finalmente ldquofelicitadardquo por Deus Em tal ponto

608 Menachem RECANATI Bersquour lsquoal ha-Torah Lemberg Wa-yehi 1880-81 c37d apud BUSI 2014 p70 A

fonte agrave qual Recanati recorre para dar um conteuacutedo teoacuterico agrave passagem eacute Azriel de Gerona atraveacutes de seu Comentario agraves aggadot talmuacutedicas A concepccedilatildeo de Sekinah estaacute relacionada com a ideia de contraccedilatildeo da Presenccedila Divina presente na literatura midraacuteshica conforme verificado no Capiacutetulo V Aqui quer significar o espaccedilo da emanaccedilatildeo divina Maiores detalhes podem ser vistos em BUSI 2011 p21

609 Cf FARMER opcit p110 610 Commento pp 567-569 Pico remete-se ao Banquete e ao Fedro para efetuar sua exposiccedilatildeo conforme sua

proacutepria indicaccedilatildeo (ibid p567) No primeiro dos sete passos de sua progressatildeo ao conhecimento a beleza particular de um objeto eacute percebida pelos sentidos e eacute desejada por si mesma No segundo passo a beleza sensual eacute abstraiacuteda pela capacidade inerente agrave alma embora ainda permanecendo distante de sua origem No terceiro passo a alma ldquoconsidera a proacutepria natureza da beleza corporal em si mesmardquo contemplando a ldquobeleza universal de todos os corpos compreendidos em conjuntordquo A beleza corpoacuterea desempenha um papel apenas nesses trecircs primeiros passos No quarto passo a alma conclui que a visatildeo da beleza corpoacuterea universal natildeo procede de um objeto exterior sensiacutevel mas de sua proacutepria luz e poder intriacutensecos e assim transformando-se em si mesma vecirc a imagem de beleza ideal que participa do intelecto No quinto passo fundamentando-se no conhecimento ldquoreflexivordquo a alma se eleva de sua parte racional para sua parte intelectual permitindo-se acolher a ldquoVecircnus celestialrdquo em sua proacutepria imagem Por fim a alma se une ao intelecto universal atraveacutes do amor A realizaccedilatildeo dessa uniatildeo na sexta etapa conclui sua jornada pois natildeo lhe eacute permitido ir mais longe no seacutetimo grau ndash no qual deve descansar com alegria ao lado do primeiro Pai a fonte da beleza

611 FARMER pp39 ss 112

176

terminal Pico faz convergir o percurso filosoacutefico com a experiecircncia religiosa ao

sugerir que no cume do processo gnosioloacutegico do homem ndash que atribui aos

platocircnicos chamar de ldquounidade da almardquo ndash a alma ldquose une imediatamente a Deusrdquo612

De suas leituras socraacuteticas apreendera que o ecircxtase miacutestico era comparaacutevel ao

reencontro com a eternidade inteligiacutevel em um estado de contemplaccedilatildeo que sacia a

alma e a coloca frente a frente com a plenitude de cada realidade613 Concepccedilatildeo

similar fora descrita em termos religiosos na De Hominis Dignitate na qual se lecirc

que em seu estado miacutestico mais elevado o homem eacute ldquofeito um soacute espiacuterito com Deusrdquo

deixando de ser ele mesmo e passando a ser ldquoAquele mesmo que o fezrdquo614

A concepccedilatildeo da Morte do Beijo pode ser tomada como um bom modelo do

ldquofimrdquo ndash temporaacuterio na ldquoprimeira morterdquo ou definitivo na ldquosegundardquo ndash para o qual

convergem muitas das argumentaccedilotildees piquianas de teor esoteacuterico Tal concepccedilatildeo de

caraacuteter precipuamente teoloacutegico coaduna-se com o seacutetimo grau do percurso

filosoacutefico dialeacutetico postulado no Commento estaacutegio que fora sinteticamente exposto

na Conclusio 58 in doctrina Platonis

A caccedilada de Soacutecrates[] pode ser adequadamente dividida em

seis graus o primeiro eacute a existecircncia de mateacuteria externa o

segundo a existecircncia particular imaterial o terceiro a existecircncia

universal o quarto a existecircncia racional o quinto a existecircncia

inteligiacutevel particular o sexto a existecircncia inteligiacutevel total No

seacutetimo grau eacute preciso desistir da caccedilada615

612 Commento p479 ldquoel sommo di questa parte intellectiva chiamano ersquo Platonici unitagrave della anima [hellip]rdquo 613 Nicolas GRIMALDI Soacutecrates o Feiticeiro pp57-58 60-61 Haacute vaacuterias passagens nas quais Soacutecrates tece

analogias entre o ecircxtase miacutestico e o reencontro da alma com o Inteligiacutevel As analogias se relacionam ao deliacuterio amoroso (Fedro 265 a-b) ao deliacuterio poeacutetico (Iacuteon 534 b-d) e tambeacutem ao deliacuterio loacutegico mesmo que ldquoem estado de deliacuteriordquo deve haver juacutebilo ldquoem sentir-se arrebatado pela eternidaderdquo (Feacutedon 69 c-d)

614 Oratio pp123-125 615 PICO Conclvsiones II V 58 (grifo nosso) ldquoVenatio illa Socratis de qua in Protagora conuenienter per sex

gradus potest sic distribui ut primus sit esse materiae extrinsecae secundus esse particulare immateriale tertius esse uniuersale quartus esse rationale quintus esse particulare intellectuale sextus esse totale intellectuale in septimo tanquam in sabbato cessandum est a uenationerdquo Eugenio Garin ao rodapeacute da passagem corrige ldquointelectualrdquo utilizado por Pico por ldquointeligiacutevelrdquo O tema eacute extraiacutedo do Protaacutegoras (321 b ss) conforme informado pelo proacuteprio Pico na mencionada passagem

177

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

As obras de Pico della Mirandola analisadas ndash Conclusiones Nongentae De

Hominis Dignitate e Heptaplus ndash embora bastante distintas em termos de forma

conteuacutedo e propoacutesito apresentam em comum um amplo emprego de referecircncias

retiradas de doutrinas que se perpetuaram atraveacutes do Esoterismo Os elementos

pertinentes a esse campo coletados nas trecircs obras evidenciam que as reflexotildees do

Autor se apropriam daqueles conteuacutedos reutilizando-os em formas hermenecircuticas

proacuteprias Conforme o intento proposto para esta tese foram identificadas tais

referecircncias cuja inserccedilatildeo em meio agraves argumentaccedilotildees se faz de forma fluiacuteda sem

instituir contrastes com categorias do universo filosoacutefico A verificaccedilatildeo de constantes

repeticcedilotildees desses modelos permite que seu conjunto seja estabelecido como uma

categoria proacutepria do pensamento piquiano Um objetivo secundaacuterio foi mostrar que o

recrutamento de tais elementos mostra-se no decorrer da leitura das obras uma

condiccedilatildeo essencial para o alcance de suas siacutenteses

A anaacutelise das Conclusiones realizada no Terceiro Capiacutetulo permitiu que

algumas constataccedilotildees fossem dispostas Entre o conglomerado de sistemas presentes

na obra foi visto que alguns temas despertam maior interesse do Autor vindo a se

condensar nas teses que integram os uacuteltimos grupos da obra Embora natildeo

apresentadas em formato argumentativo as teses dos quatro uacuteltimos grupos (que

tratam de doutrinas maacutegicas oacuterficas caldaicas e cabaliacutesticas) apresentam em seu

conjunto um postulado doutrinaacuterio de acentuado tom esoteacuterico cujos indiacutecios

conceituais satildeo verificaacuteveis no percurso das demais obras piquianas O mesmo

Capiacutetulo expotildee especiacuteficas teses de cunho teoloacutegico-cristatildeo que poderiam soar

estranhas dentro de uma investigaccedilatildeo que tem por objetivo tratar da utilizaccedilatildeo de

paradigmas esoteacutericos Essa abordagem mostrou-se uacutetil por permitir evidenciar

primeiramente que o Pico que se aproxima de teologias natildeo-cristatildes o faz como

algueacutem em posse de efetivo conhecimento daquele campo em segundo lugar a

verificaccedilatildeo do material teoloacutegico permitiu a discussatildeo da relaccedilatildeo feacute-razatildeo no

pensamento piquiano necessaacuteria para a compreensatildeo da teleologia envolvida em sua

busca por convergecircncias doutrinaacuterias A partir dessa abordagem foi possiacutevel

constatar que a visatildeo piquiana de religiatildeo estaacute relacionada em um primeiro

momento a uma busca racional (pois ldquoa feacute que eacute simples disposiccedilatildeo a crer eacute inferior

agrave razatildeordquo) busca essa que no entanto deve ser abandonada em seu uacuteltimo estaacutegio

(pois ldquoa feacute verdadeira eacute superior ao intelecto conjugando-nos imediatamente a

Deusrdquo)

Na De Hominis Dignitate tratada no Quarto Capiacutetulo verificou-se que a

concepccedilatildeo de dignidade do homem em Pico eacute diretamente relacionada agrave ideia de

transcendecircncia de cada um de seus princiacutepios ndash vegetal animal racional intelectual

ndash apontando em direccedilatildeo agrave necessidade de exerciacutecios para a efetivaccedilatildeo de sua

liberdade ndash condiccedilatildeo que capacita o homem a encetar um percurso de auto

178

transformaccedilatildeo Assim o apregoado processo de transmutaccedilatildeo atraveacutes do qual o

homem inferior eacute regenerado e reconectado com o divino eacute entendido pelo Escritor

como um caminho a ser percorrido com o auxiacutelio de corretas ferramentas Os sete

modelos de processos triaacutedicos examinados extraiacutedos de registros histoacutericos

defendidos na obra ndash a dialeacutetica platocircnica o modelo angeacutelico pseudo-dionisiacuteaco a

misteriologia grega os paradigmas miacuteticos de Dioniso e Osiacuteris a representaccedilatildeo do

tabernaacuteculo da tradiccedilatildeo hebraica as praacuteticas asceacuteticas pitagoacutericas e a misteriologia

caldaica ndash fundamentam-se na tradiccedilatildeo oral ou na utilizaccedilatildeo de formas de linguagem

enigmaacuteticas que encobrem seus verdadeiros significados Os sete paradigmas de

trajetoacuterias asceacuteticas apontam na uacuteltima etapa para a experiecircncia de encontro com

um centro de unidade termo da trajetoacuteria em que o movimento asceacutetico atinge o

Absoluto

O mesmo fim eacute postulado atraveacutes do seacutetuplo meacutetodo de interpretaccedilatildeo proposto

por Pico no Heptaplus que representa uma clara indicaccedilatildeo de preparaccedilatildeo do homem

ndash no qual se encerra um princiacutepio metafiacutesico de contenccedilatildeo de todos os niacuteveis de

realidade ou dos Mundos analogados na obra ndash que culmina em sua unificaccedilatildeo com

o divino O Sexto Capiacutetulo testifica que para erigir seu projeto de teoria global de

representaccedilatildeo do mundo o Autor recruta registros que se fundamentam sobre

transmissotildees orais a comprovaccedilatildeo de idoneidade de Moiseacutes principal alicerce

referencial sobre o qual se edifica o projeto do Heptaplus eacute concebida a partir de

testemunhos retirados em sua totalidade de fontes esoteacutericas ndash ou tidas como

esoteacutericas ndash como os Misteacuterios gregos e egiacutepcios o pitagoacuterico Hermipo Pseudo-

Dioniacutesio os disciacutepulos de Amocircnio e ainda Platatildeo Jesus e seus disciacutepulos Paulo e

Joatildeo Satildeo assim utilizados mais uma vez paracircmetros utilizados em obras

anteriores ndash nesse caso para defender a autoridade de Moiseacutes paradigma essencial

em sua representaccedilatildeo do ser que alcanccedilou o uacuteltimo estaacutegio de uniatildeo com o divino

No uacuteltimo Capiacutetulo argumentou-se que o apelo a uma dimensatildeo alcanccedilada por

intermeacutedio de uma experiecircncia miacutestica pessoal eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para que se

alcance o ldquofimrdquo apregoado nas obras piquianas Em De Ente et Uno Pico havia

refletido que soacute a razatildeo natildeo seria garantia de obtenccedilatildeo de qualquer resposta

postulando a impossibilidade de se colher Deus com o simples recurso do intelecto

ldquoo homem enquanto criatura racional se debate em vatildeo entre a necessidade de

afirmar a unidade que sente em sua proacutepria raiz e a impossibilidade derivada de sua

mesma subsistecircncia como natureza racional de alcanccedilaacute-la mantendo-se ele mesmordquo

Deparar-se com o abismo que o separa da Divindade mostra-se inevitaacutevel O ecircxtase

miacutestico eacute um caminho que possibilita realizar tal travessia A linguagem miacutetica ou

alegoacuterica por sua vez natildeo apenas protege tal dimensatildeo iniciaacutetica como permite a

apreensatildeo intelectual de tal fenocircmeno A Morte do Beijo a epopteia eleusina a visatildeo

de Moiseacutes no Sinai a illuminatio angeacutelica a contemplaccedilatildeo do ldquosol do meio-diardquo

agostiniano o devekut cabaliacutestico representam momentos de unidade temporaacuteria ndash

a ldquoprimeira morterdquo descrita por Pico ndash que espelham a dissoluccedilatildeo na Unidade final

179

Apesar de aparentemente fragmentaacuteria a obra de Giovanni Pico acolhe torna

suas e finalmente refaz sob outros prismas as perguntas filosoacuteficas mais difiacuteceis A

sua tentativa de obter respostas eacute ampliada pelo acreacutescimo de um novo paradigma

categorial Mais do que isso a utilizaccedilatildeo da categoria esoteacuterica torna-se condiccedilatildeo

absolutamente necessaacuteria para o alcance do fim apontado em suas obras Resta

pontuar que o conjunto da obra piquiana natildeo se mostra algo distante pois de fato ali

estaacute relatada natildeo uma meta atingida mas uma perene busca Esse caminho encontra-

se descrito no De Ente et Uno qual uma previsatildeo pessoal natildeo intencional na qual o

Autor intui que ldquoo processo de colher Deus natildeo resulta em uma unidade que se

determina e resolve para sempre mas sim de um processo de unificaccedilatildeo que

procede ao infinitordquo

180

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

1 Fontes Primaacuterias

Traduccedilotildees de obras de Giovanni Pico della Mirandola

De Hominis Dignitate Heptaplus De ente et Uno e scritti vari Eugenio Garin (org) Firenze Vallecchi 1942

Conclusiones Nongentae Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Albano Biondi (org) Firenze Leo S Olschki 19952013

Conclusiones Cabalisticae Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009

Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Paolo Edoardo Fornaciari (org) Milano Mimesis 2009

Disputationes adversus Astrologiam Divinatricem Eugenio Garin (org) Vol I e II Firenze Vallecchi 1946-1952

Discorso sulla Dignitagrave dellrsquouomo Francesco Bausi (org) Parma Guanda 2003

Oratio de Hominis Dignitate Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Ediccedilotildees 70 2001

A Dignidade do Homem Trad Luiz Feracine Campo Grande Solivros 1999

Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Trad Eugenio Garin Carmagnola Arktos 1996

Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Paolo Edoardo Fornaciari (org) Firenze Sismel Edizioni 2010

Expositiones in Psalmos Trad Antonino Raspanti - Giacomo Raspanti Firenze Leo Olschki 1997

Outras Fontes Primaacuterias

AGOSTINHO DE HIPONA Comentaacuterio ao Gecircnesis Trad Agustinho Belmonte Satildeo Paulo Paulus 2014

____ A Cidade de Deus Trad J Dias Pereira VolI Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1996

CLEacuteMENT DrsquoALEXANDRIE Les Stromates Alain Le Boulluec (org) Trad Pierre Voulet Paris Eacuteditions du Cerf 1981

181

DIONIacuteSIO AREOPAGITA PSEUDO A Hierarquia Celeste Carin Zwilling (org) Satildeo Paulo Polar 2015

FICINO MARSILIO Theologia Platonica Milano Bompiani 2011

____ Opera Omnia Mario Sancipriano - Paul Oskar Kristeller (org) Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II

PICO DELLA MIRANDOLA GIANFRANCESCO Johannis Pici Mirandulae viri omni disciplinarum genere consummatissimi vita per Ioannem Franciscum illustris principis Galeotti Pici filium conscripta Bruno Andreolli (org) Modena Aedes Muratoriana 1994

PLATONE Tutte le opere Roma Newton Compton Editori 2010

PLOTINO Enneadi ed Giuseppe Faggin Milano Bompiani 2010

POLIZIANO Letters Shane Butler (org) Cambridge Harvard University Press 2006

CORPUS HERMETICUM Edizione e comento di Arthur Darby Nock Trad Andreacute-Jean Festugiegravere A cura di Ilaria Ramelli Milano Bompiani 2006

DE ORACULIS CHALDAICIS Trad Wilhelm Kroll Reprints from the collection of the University of Michigan Library [1894] Hildesheim G Olms 1962

SEcircFER YETSIRAacute O Livro da Criaccedilatildeo Aryeh Kaplan (org) Trad Erwin Von-Rommel Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005

SEPHER HA-ZOHAR Trad Paul Vulliaud In Eacutetudes et Correspondance de Jean de Pauly Relatives au Sepher Ha-Zohar Paris Bibliothegraveque Chacornac 1933

ZOcircHAR RABI SHIMON BAR IOCHAI (atribuiacutedo a) Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume Editora 2013 (Tomo I) 2014 (Tomo II)

2 Fontes Secundaacuterias

AMBESI ALBERTO CESARE Giovanni Pico della Mirandola Cenni biografici e presentazione dellrsquoopera In Heptaplus La Settemplice Interpretazione dei sei giorni della Genesi Carmagnola Arktos 1996

ANAGNINE EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Sincretismo religioso-filosofico Bari Laterza 1937

BACON ROGER Opus maius IV Oxford JH Bridges 1897

BACCHELLI FRANCO Giovanni Pico e Pier Leone da Spoleto Tra Filosofia dellrsquoamore e tradizione cabalistica Cittagrave di Castello Leo S Olschki 2001

182

BARON HANS The Crisis of Early Italian Renaissance Civic Humanism and Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny New Jersey Princeton University PressNewberry Library 1966

____ En Busca del Humanismo Ciacutevico Florentino ndash Ensayos sobre el Cambio del Pensamiento Medieval al Moderno Trad Miguel Abelardo Camacho Ocampo Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Economica 1993

BARONE GIUSEPPE Antologia Giovanni Pico della Mirandola Milano Virgilio Editore 1973

BARTOLUCCI GUIDO Marsilio Ficino e le Origini della Cabala Cristiana In Fabrizio Lelli (org) Giovanni Pico e la Cabbalagrave Firenze Leo Olschki 2014

BASTITTA HARRIET FRANCISCO Recepcioacuten de los textos hermeacuteticos en el platonismo florentino del Quattrocento Marsilio Ficino y Giovanni Pico della Mirandola In Buffon-Drsquoamico (org) Hermes Platonicus Hermetismo y Platonismo en el Medioevo y la Modernidad temprana Santa Feacute Ediciones UNL 2016

BATKIN LEONID M LrsquoIdea di Individualitagrave nel Rinascimento Italiano Trad Valentina Rossi Roma-Bari Laterza 1992

BAUSI FRANCESCO (org) Giovanni Pico della Mirandola Opere complete Torino Lexis Progetti Editoriali 2000

____ Nec rethor neque philosophus Fonti lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-87) Firenze Leo Olschki 1996

____ E Barbaro G Pico della Mirandola Filosofia o eloquenza Napoli Liguori 1998

BAZAacuteN FRANCISCO GARCIA ldquoIntroduccedilatildeordquo a Oraacuteculos Caldeus Madrid Biblioteca Claacutesica Gredos 1991

BEMPORAD DL ndash ZATELLI IDA (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Celebrazioni del V centenario della morte di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998

BERTI DOMENICO Intorno a Giovanni Pico della Mirandola Cenni e documenti In Rivista Contemporanea VII vol XVI Torino 1859

BERTOZZI MARCO (org) Nello specchio del cielo Giovanni Pico della Mirandola e le ldquoDisputationes contro lrsquoastrologia divinatoriardquo Firenze Leo Olschki 2008

BIDEZ JOSEPH ndash CUMONT FRANZ Les mages helleniseacutes Paris Belles Lettres 1938

BIGNOTTO NEWTON Consideraccedilotildees sobre a antropologia de Pico della Mirandola In O que nos faz pensar nr 27 2010

BIONDI ALBANO ldquoIntroduzionerdquo alle Conclusiones Nongentae - Le Novecento Tesi dellrsquoanno 1486 Firenze Leo S Olschki 2013

183

BLACK CROFTON Picorsquos Heptaplus and Biblical hermeneutics Boston Brill 2006

BORI PIER CESARE I tre Giardini nella scena paradisiaca del De hominis dignitate di Pico della Mirandola In Annali di storia dellrsquoesegesi 132 1996 pp 551-564

____ Pluralitagrave delle vie Alle origine del Discordo sulla Dignitagrave umana di Pico della Mirandola Milano Feltrinelli 2000

BROCCHIERI MARIATERESA F B Pico della Mirandola Bari Laterza 2011

BURCHIELLARO GIANFRANCO ldquoIntroduzionerdquo a Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001

BURCKARDT JACOB La civiltagrave del Rinascimento in Italia Trad Valbusa Vol II Firenze Sansoni 1902

BURKERT WALTER Antigos Cultos de Misteacuterio Satildeo Paulo Edusp 1987

BUSI GIULIO La Qabbalah Roma-Bari Laterza 2011

____ Mantova e la Qabbalah Milano Skira 2001

____ Introduzione a Mistica ebraica Testi della tradizione segreta del giudaismo dal III al XVIII secolo Torino Busi e Loewenthal (eds) 1995

____ Pico fede ragione e Inquisizione In Il Sole-24 Ore 28082018

BUSI GIULIO - EBGI RAPHAEL Giovanni Pico dela Mirandola Mito Magia Qabbalah Torino Giulio Einaudi Editore 2014

CASSIRER ERNST Individuo e Cosmo nella Filosofia del Rinascimento Trad F Federici Firenze La Nuova Italia 19351977

CASSUTO UMBERTO Gli ebrei a Firenze nellrsquoetagrave del Rinascimento Firenze Leo Olschki 1918 (ristampa 1965)

CATAgrave CESARE ldquoLidea di lsquoanima stellatarsquo nel Quattrocento fiorentino Andrea da Barberino e la teoria psico-astrologica in Marsilio Ficinordquo In Bruniana amp Campanelliana XVI 2 2010 pp 629-639

CERETTI FELICE Biografie pichensi II Mirandola 1909

____ Giulia Boiardo In Atti e Memorie della Deput di Storia Patria dellEmilia Modena 1881

CHASTEL ANDREacute LrsquoArtista In Eugenio Garin (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016

COLLI GIORGIO A Sabedoria Grega ndash I (Fragmentos) Traduccedilatildeo Renato Ambroacutesio Satildeo Paulo Paulus 2012

COPENHAVER BRIAN Lrsquoocculto in Pico In Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Firenze Leo Olschki 1997

184

____ The Secret of Picorsquos Oratio Cabala and Renaissance Philosophy In Midwest Studies in Philosophy 26 2002

____ Hermes Trismegistus Proclus and the Question of a Philosophy of Magic in the

Renaissance In Merkel-Debus (org) Hermeticism and the Renaissance Intellectual History and the Occult in Early Modern Europe Washington Associated University Presses 1988

COPENHAVER BRIAN ndash SCHMITT CHARLES Renaissance philosophy A History of Western Philosophy Oxford University Press 1992

CORAZZOL GIACOMO Le Fonti ldquoCaldaicherdquo dellrsquo Oratio indagine sui presupposti cabbalistici della concezione pichiana dellrsquouomo In Accademia Revue de la Societeacute Marsile Ficin XV 2013 pp9-61

CORBIN HENRY Lrsquohomme de lumiegravere dans le soufisme iranien Paris Eacuteditions Preacutesence 1971

CRAVEN WILLIAM G Giovanni Pico della Mirandola Symbol of his age Modern Interpretations of a Renaissance Philosopher Geacutenegraveve Librairie Droz 1981

CRINITO PIETRO De honesta disciplina Carlo Angeleri (org) Roma Fratelli Bocca 1955

CROCIANI LAMBERTO Chiesa fiorentina e comunitagrave ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (orgs) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Olschki 1998 pp85-99

CROUZEL HENRY Pic de la Mirandole et Origegravene In Bulletin de litteacuterature eccleacutesiastique 66 1965 pp174-194 e pp272-288

DEacuteCARREAUX JEAN Les Grecs au Concile de lrsquo Union Ferrare-Florence 1438-1439 Paris A et J Picard 1970

DELLA TORRE ARNALDO Storia dellrsquoAccademia Platonica di Firenze Firenze G Carnesecchi e Figli 1902

DE RUGGIERO GUIDO La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920

DES PLACES EDOUARD Oracles chaldaiumlques Paris Les Belles Lettres 1971

DI NAPOLI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola e la problematica dottrinale del suo tempo Roma Desclee amp C Editori Pontifici 1965

____ LrsquoEssere e lrsquoUno in Pico della Mirandola In Rivista di Filosofia neoscolastica 46 1954 pp 356-389

DI NOLA ALFONSO MARIA Cabbala e mistica giudaica Roma Carucci 1984

DOREZ LEacuteON - THUASNE LOUIS Pic de la Mirandole em France (1485-88) Paris Ernest Leroux 1897 (Slatkine Reprints Genegraveve 1976)

185

DOREZ LEacuteON Lettres ineacutedites de Jean Pic de la Mirandole (1482-1492) In Giornale Storico della Letteratura italiana 25 1895

____ La mort de Pic de la Mirandole et lrsquoeacutedition aldine des oeuvres drsquoA Politien In Giornale Storico della Letteratura italiana 32 1898

DOUGHERTY MICHAEL V (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

DUJOVNE LEOacuteN Kabbala Sefer Yetsiraacute El libro de la Creacion Buenos Aires Sigal 1992

____ El Zohar Versioacuten Castellana Buenos Aires Sigal 1992

DUKAS JULES Recherches sur lhistoire litteacuteraire du quinziegraveme siegravecle Paris L Techener 1876

EDELHEIT AMOS Ficino Pico and Savonarola The evolution of Humanist Theology Leiden Brill 2008

FAIVRE ANTOINE Access to Western Esotericism Albany Suny Press 1994

FARMER STEPHAN ALAN Syncretism in the West Picorsquos 900 Theses (1486) The Evolution of Traditional Religious and Philosophical Systems Temple Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies 1998

FAVARO A Lettera a Francesco Ingoli (org) In Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei v 6 Firenze Barbera Editore 1933

FERACINE LUIZ Prefaacutecio e Comentaacuterios a A Dignidade do Homem de Pico della Mirandola Campo Grande Solivros 1999

FESTUGIEgraveRE ANDREacute-JEAN Studia Mirandulana In Archives drsquohistoire doctrinale e litteraire du Moyen acircge Paris Librairie Vrin 1933

____ La reacuteveacutelation drsquoHermegraves Trismeacutegiste 4 volumes Paris Les Belles Lettres 1950-1954

FIELD ARTHUR The Platonic Academy of Florence In Marsilio Ficino his Theology his Philosophy his Legacy (Allen-Rees org) Leiden Brill 2002

FORNACIARI PAOLO EDOARDO Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Cabalistiche Milano Mimesis 2009

____ Introduzione e Note a Giovanni Pico della Mirandola Conclusioni Ermetiche Magiche e Orfiche Milano Mimesis 2009

____ Introduzione e Note a Apologia Lautodifesa di Pico di fronte al tribunale dellInquisizione Firenze Sismel 2010

____ Aspetti dellrsquoitinerario cabbalistico di Giovanni Pico della Mirandola In Bruniana e Campanelliana 7 2001 pp627-633

186

GARFAGNINI GIAN CARLO (org) Savonarola tra Giovanni e Gianfrancesco Pico In Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) Firenze Leo Olschki 1997

GARIN EUGENIO Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina Roma Edizioni di Storia e Letteratura 2011

____ Le Interpretazioni del pensiero di Giovanni Pico In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento 1965

____ La cultura del Rinascimento Bari Laterza 1967

____ Rinascite e Rivoluzioni Bari Laterza 1975

____ Ermetismo del Rinascimento Pisa Della Normale 1986 (copia anastatica 2006)

____ Ritrati di Umanisti ndash Sette Protagonisti del Rinascimento Milano Bompiani 1996

____ Lo zodiaco della vita La polemica sullastrologia dal Trecento al Cinquecento Bari Laterza 2007

____ LUmanesimo italiano Bari Laterza 2008

____ (org) LrsquoUomo del Rinascimento Bari Laterza 2016

GENTILE GIOVANNI Giordano Bruno e il pensiero del Rinascimento Firenze Codignola 1991

GENTILE SEBASTIANO Il ritorno di Platone dei platonici e del corpus ermetico Filosofia teologia e astrologia nellopera di Marsilio Ficino In Vasoli-Pissavino (org) Le filosofie del Rinascimento Milano Mondadori 2002

GILL JOSEPH Il Concilio di Firenze Firenze Sansoni 1967

GILSON ETIENNE Les Meacutetamorphoses de la Citeacute de Dieu Publications Universitaires de Louvain Librairie Philosophique Louvain-Paris J Vrin 1952

GOLDFELD NAOMI VOGELMANN Elia del Medigo e lrsquoAverroismo hebraico In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

GRAFTON ANTHONY Giovanni Pico della Mirandola Trials and Triumphs of an Omnivore In Commerce with the classics Ancient Books and Renaissance Readers Ann Arbor University of Michigan Press 1997

GRIFFITHS J GWYN (org) Plutarchs De Iside et Osiride University of Wales Press 1970

187

GRIMALDI NICOLAS Soacutecrates o Feiticeiro Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006

GUICCIARDINI FRANCESCO Storie Fiorentine dal 1378 al 1509 Bari Laterza 1931

HANEGRAAFF WOUTER J (org) Dictionary of Gnosis amp Western Esotericism Leiden Brill 2006

HANKINS JAMES Plato in the Italian Renaissance Leiden Brill 1990

HAYMAN A PETER Sefer Yetsira Texts and Studies in Ancient Judaism Tubingen Mohr Siebeck 2004

IDEL MOSHE Jewish mystical thought in the Florence of Lorenzo il Magnifico In Bemporad-Zatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

____ Kabbalah New Perspectives New Haven Yale University Press 1988

____ Golem Jewish Magical and Mystical Traditions on the artificial Anthropoid Albany Suny 1990

____ Kabballah and Hermeticism in Dame Frances A Yatesrsquos Renaissance In Eacutesoterism gnoses et imaginaire symbolique Leuven 2001 pp71-90

____ Uma Introduccedilatildeo In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 2008-a

____ As Interpretaccedilotildees Maacutegica e Neoplatocircnica da Cabala no periacuteodo renascentista In Cabala Cabalismo e Cabalistas (Idel et al org) Trad Eliana Langer e Margarida Goldsztajn Satildeo Paulo Perspectiva 2008-b

JACOBELLI JADER Pico della Mirandola Prefaacutecio de Eugenio Garin Milano Longabesi amp C 1986

KAPLAN ARIEH Secircfer Ietsiraacute O Livro da Criaccedilatildeo Teoria e Praacutetica Trad Vianna Pamplona Satildeo Paulo Secircfer 2005

KEPLER JOHANNES De Stella Nova Harmonice Mundi In Gesammelte Werke Beck Muumlnchen Max Caspar 1938

KERN OTTO Orfici ndash Testimonianze e Frammenti nellrsquoedizione di Otto Kern A cura di Elena Verzura Milano Bompiani 2011

KIBRE PEARL The library of Pico della Mirandola New York Columbia University Press 1936

KIESZKOWSKI BOHDAN Averroismo e Platonismo in Italia negli ultimi decenni del sec XV In Giornale critico della Filosofia Italiana 1933 4

____ Averroismo e Platonismo in Italia In Studi sul Platonismo del Rinascimento in Italia Firenze 1936 capVII

188

____ Studi sul platonismo del Rinascimento in Italia Firenze Sansoni 1936

____ Les Rapports entre Elie del Medigo e Pic de la Mirandola In Rinascimento XV 1964 pp 41-81

KRISTELLER PAUL OSKAR Supplementum ficinianum (org) Firenze Leo Olschki 1937

____ The scholastic background of Marsilio Ficino (1944) In Studies in Renaissance Thought and Letters Vol I Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1956

____ Movimenti filosofici del Rinascimento In Giornale critico della Filosofia Italiana 1950 29

____ La tradizione classica nel pensiero del Rinascimento Firenze La Nuova Italia 1975

____ Concetti Rinascimentali dellrsquouomo ed altri saggi Firenze La Nuova Italia 1978

____ Ocho filoacutesofos Del Renacimiento italiano Trad M Pentildealoza Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1970

____ El pensamiento renacentista y sus fuentes Ciudad de Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1982

____ Studies in Renaissance Thought and Letters Vol IV Roma Edizioni di Storia e Letteratura 1996

KRISTELLER PAUL OSKAR - SANCIPRIANO MARIO (org) Marsilio Ficino Opera Omnia Torino Botega drsquoErasmo 1962 vol II

LEBECH METTE On the Problem of Human Dignity A Hermeneutical and Phenomenological Investigation Wurzburg Konigshausen amp Neumann 2009

LELLI FABRIZIO Alemanno Giovanni Pico della Mirandola e la cultura ebraica italiana del XV secolo In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola VolI Firenze Leo Olschki 1997

____ Giovanni Pico e la Cabbalagrave (org) Firenze Leo Olschki 2014

____ Umanesimo Laurenziano nellrsquoopera di Yohanan Alemanno In BemporadndashZatelli (org) La Cultura Ebraica allrsquoepoca di Lorenzo il Magnifico Firenze Leo Olschki 1998

____ Pico della Mirandola Giovanni In Wouter Hanegraaf (org) Dictionary of Gnosis and Western Esotericism Leiden 2005 pp949-954

LILLA SALVATORE Clement of Alexandria A Study in Christian Platonism and Gnosticism Oxford Oxford University Press 1971

LIPINER ELIAS As Letras do Alfabeto na criaccedilatildeo do mundo ndash Contribuiccedilatildeo agrave pesquisa da natureza da linguagem Rio de Janeiro Imago 1992

LORENZ FV Cabala A tradiccedilatildeo esoteacuterica do Ocidente Satildeo Paulo Pensamento 1997

189

LUBAC HENRI DE Pico della Mirandola LrsquoAlba incompiuta del Rinascimento Trad G Colombo - A dellrsquoAsta Vol 29 Milano Jaca Book 1977

____ Pic de la Mirandole Eacutetudes et discussions Paris Aubier Montaigne 1974

MAGHIDMAN MARCELO Secircfer Yetsiraacute A natureza da linguagem na criaccedilatildeo do mundo e sua manutenccedilatildeo atraveacutes do alfabeto Hebraico Satildeo Paulo Annablume 2014

MAQUIAVEL NICOLAU Histoacuteria de Florenccedila Satildeo Paulo Martins Fontes 2007

MASAI FRANCcedilOIS Pleacutethon et le Platonisme de Mistra Paris Les Belles Lettres 1956

MASSETANI GUIDO La Filosofia cabbalistica di Giovanni Pico Della Mirandola Empoli Tipografia di Edisso Traversari 1897

MATTER JACQUES Histoire critique du gnosticisme et de son influence Paris FG Levrault 1828 (reprint 2011)

MONFASANI JOHN Bessarione La Natura delibera la Natura e lrsquoArte ldquoPrefassionerdquo In Accendere-Privitera (org) Milano Bompiani 2014

MOLINARI JONATHAN Libertagrave e Discordia Pletone Bessarione Pico della Mirandola Bologna Il Mulino 2015

MUNK SALOMON Meacutelanges de philosophie juive et aacuterabe Paris A Franck 1857

PEGONE ENRICO Timeo Note e Trad In Platone Tutte le Opere Roma Newton Compton Editori 2010

PINA MARTINS JOSEacute VITORINO Jean Pic de la Mirandole Un portrait inconnu de lrsquohumanisme une eacutedition trecircs rare de ses Conclusiones Paris Presses Universitaires de France 1976

____ Pico della Mirandola e o Humanismo Italiano nas origens do Humanismo Portuguecircs Lisboa Sep de Estudos Italianos em Portugal 1964

____ Cultura Italiana Lisboa Editorial Verbo 1971

RABI SHIMON BAR IOCHAI Zocirchar Trad Diego Raigorodsky Satildeo Paulo Annablume 2013

RABIN SHEILA Pico on Magic and Astrology In Dougherty MV (org) Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

____ Keplerrsquos Attitude toward Pico and the Anti-Astrology Polemic In Renaissance Quarterly 50 1997 pp 750ndash70

RAGNISCO PIETRO Documenti inediti e rari intorno alla vita ed agli scritti di Nicoletto Vernia e di Elia del Medigo In Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze Lettere ed Arti in Padova Padova 1891

190

RASPANTI ANTONINO Filosofia teologia religione lrsquounitagrave della visione in Giovanni Pico Palermo Edi Oftes 1991

REALE GIOVANNI Para uma nova Interpretaccedilatildeo de Platatildeo Trad Marcelo Perine Satildeo Paulo Loyola 1997

RENAN ERNEST Averroegraves et lrsquoAverroiumlsme Paris A Durand 1852

RHODE ERWIN Psyche Roma-Bari Laterza 2006

RIFFARD PIERRE Dicionaacuterio de Esoterismo Trad Maria Joatildeo Freire Lisboa Editorial Teorema 1993

ROTONDI SECCHI TARUGI LUISA LErmetismo nellrsquo Antichitagrave e nel Rinascimento Milano Nuovi Orizzonti 1998

RUGGIERO GUIDO DE La filosofia del Cristianesimo Vol III Bari Laterza 1920

RUTKIN H DARREL Giovanni Pico della Mirandolarsquos Early reform of Astrology an Interpretation of vera astrologia in the Cabalistic Conclusions In Bruniana e Campanelliana 10 2004 pp495-498

SARTORI ALBERTO Giovanni Pico della Mirandola Filosofia teologia concordia Padova Facoltagrave Teologica del Triveneto 2017

SCOTT WALTER - FERGUSON ALEXANDER STEWART Hermetica The Ancient Greek and Latin Writings which contain religious or philosophic teachings ascribed to Hermes Trismegistus Oxford Clarendon Press 1924-36

SCHIAVONE VALERIA Corpus Hermeticum Trad e Notas Milano BUR Rizzoli 2018

SCHMITT CHARLES Gianfrancesco Picorsquos Attitude toward his Uncle In (AAVV org) Llsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo Firenze 1965

SCHNITZER JOSEPH Savonarola Vol1 Trad E Rutili Milano Fratelli Treves 1931

SCHOLEM GERSHOM Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition New York Theological Seminary of America 1960

____ A Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg et al Satildeo Paulo Perspectiva 1972

____ A Cabala e seu simbolismo Trad Hans Borger e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1988

____ Cabala Enciclopeacutedia judaica Vol 9 Trad H Burlamaqui JC Guimaratildees e ML Braga Rio de Janeiro A Koogan 1989

____ As Grandes correntes da Miacutestica Judaica Trad Jacob Guinsburg e outros Satildeo Paulo Perspectiva 1995

191

____ Nome de Deus a Teoria da Linguagem e Outros estudos de Cabala e Miacutestica Judaica Trad Ruth Solon e Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Perspectiva 1999

SECRET FRANCcedilOIS Lrsquointerpretazione della Kabbala nel Rinascimento In ldquoConviviumrdquo 25 1956 pp541-552

____ Les Kabbalistes Chreacutetiens de la Reacutenaissance Milano Archegrave Arma artis 1985

SENDER TOVA Iniciaccedilatildeo agrave Cabala Rio de Janeiro Record 1991

SEMPRINI GIOVANNI Giovanni Pico della Mirandola La Fenice degli Ingegni Todi Casa Editrice Atanograver 1921

SIRGADO GANHO MARIA LURDES Comentaacuterios agrave Oratio de Hominis Dignitate Lisboa Ediccedilotildees 70 2001

SUDDUT MICHAEL Pico della Mirandolarsquos Philosophy of Religion In Pico della Mirandola New Essays New York Cambridge University Press 2008

TENENTI A Florence agrave lrsquoEacutepoque des Medicis Paris Flammarion 1968

THORNDIKE LYNN A History of Experimental Science Vol 4 Fourteenth and Fifteenth Centuries New York Columbia University Press 1934

VALCKE LOUIS Pic de la Mirandole un itineacuteraire philosophique Paris Les Belles Lettres 2005

VALVERDE A J R Aportes a Oratio de Hominis Dignitate de Pico della Mirandola In Revista de Filosofia Aurora Vol 21 29 pp 457-480 Curitiba Champagnat 2009

VASOLI CESARE Introduccedilatildeo agrave Giovanni Pico della Mirandola Vita e Dottrina (EGarin) Roma Edizioni Storia e Letteratura 2011

____ Imagini Umanistiche Napoli Morano 1983

____ Conclusioni In Gian Carlo Garfagnini (org) Giovanni Pico della Mirandola Convegno Internazionale di Studi nel Cinquecentesimo Anniversario della Morte (1494-1994) VolII Firenze Leo Olschki 1997 pp641-695

____ The Renaissance Concept of Philosophy In Charles Schmitt (org) The Cambridge History of Renaissance Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1998

VILLARI PASQUALE Girolamo Savonarola Vol I Firenze Le Monnier 1910

WALKER DP Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella London The Warburg Institute 1958

WARBURG ABY La rinascita del paganesimo antico Contributi alla storia della cultura raccolti da G Bing Trad E Cantimori Firenze La Nuova Italia 1966

192

WEIL ERIC La Philosophie de Pietro Pomponazzi Pic de la Mirandole et la Critique de lrsquoAstrologie Paris Editions Vrin 1986

WIRSZUBSKI CHAIM Pico della Mirandolarsquos Encounter with Jewish Mysticism Cambridge Harvard University Press 19871989

____ Pic de la Mirandole et la Cabale Paris Eacuteditions de lrsquoeacuteclat 2007

WOODHOUSE CHRISTOPHER M George Gemistos Plethon The last of the Hellenes Oxford Clarendon Press 1986

YATES FRANCES A Giordano Bruno e a Tradiccedilatildeo Hermeacutetica Satildeo Paulo Cultrix 1995

____ Giovanni Pico della Mirandola and Magic In Lrsquoopera e il pensiero di Giovanni Pico della Mirandola nella storia dellrsquoUmanesimo VolI Convegno Internazionale di Mirandola (1963) Firenze 1965 pp159-204

ZACCARIA RAFFAELLA MARIA Critiche e difesa dellrsquoHeptaplus In Paolo Viti (org) Pico Poliziano e lrsquoUmanesimo di fine Quattrocento Nr 16 Firenze Leo Olschki 1994

ZAMBELLI PAOLA Lapprendista stregone Astrologia cabala e arte lulliana in Pico della Mirandola e seguaci Venezia Saggi Marsilio 1995

ZONTA MAURO Due nuove fonti filosofiche giudeo-arabe conosciute e impiegate da Giovanni Pico della Mirandola In Rinascimento ndash Rivista dellrsquoIstituto Nazionale di Studi sul Rinascimento nr48 Firenze Leo Olschki 2009

Page 4: ANNA MARIA CASORETTI
Page 5: ANNA MARIA CASORETTI
Page 6: ANNA MARIA CASORETTI
Page 7: ANNA MARIA CASORETTI
Page 8: ANNA MARIA CASORETTI
Page 9: ANNA MARIA CASORETTI
Page 10: ANNA MARIA CASORETTI
Page 11: ANNA MARIA CASORETTI
Page 12: ANNA MARIA CASORETTI
Page 13: ANNA MARIA CASORETTI
Page 14: ANNA MARIA CASORETTI
Page 15: ANNA MARIA CASORETTI
Page 16: ANNA MARIA CASORETTI
Page 17: ANNA MARIA CASORETTI
Page 18: ANNA MARIA CASORETTI
Page 19: ANNA MARIA CASORETTI
Page 20: ANNA MARIA CASORETTI
Page 21: ANNA MARIA CASORETTI
Page 22: ANNA MARIA CASORETTI
Page 23: ANNA MARIA CASORETTI
Page 24: ANNA MARIA CASORETTI
Page 25: ANNA MARIA CASORETTI
Page 26: ANNA MARIA CASORETTI
Page 27: ANNA MARIA CASORETTI
Page 28: ANNA MARIA CASORETTI
Page 29: ANNA MARIA CASORETTI
Page 30: ANNA MARIA CASORETTI
Page 31: ANNA MARIA CASORETTI
Page 32: ANNA MARIA CASORETTI
Page 33: ANNA MARIA CASORETTI
Page 34: ANNA MARIA CASORETTI
Page 35: ANNA MARIA CASORETTI
Page 36: ANNA MARIA CASORETTI
Page 37: ANNA MARIA CASORETTI
Page 38: ANNA MARIA CASORETTI
Page 39: ANNA MARIA CASORETTI
Page 40: ANNA MARIA CASORETTI
Page 41: ANNA MARIA CASORETTI
Page 42: ANNA MARIA CASORETTI
Page 43: ANNA MARIA CASORETTI
Page 44: ANNA MARIA CASORETTI
Page 45: ANNA MARIA CASORETTI
Page 46: ANNA MARIA CASORETTI
Page 47: ANNA MARIA CASORETTI
Page 48: ANNA MARIA CASORETTI
Page 49: ANNA MARIA CASORETTI
Page 50: ANNA MARIA CASORETTI
Page 51: ANNA MARIA CASORETTI
Page 52: ANNA MARIA CASORETTI
Page 53: ANNA MARIA CASORETTI
Page 54: ANNA MARIA CASORETTI
Page 55: ANNA MARIA CASORETTI
Page 56: ANNA MARIA CASORETTI
Page 57: ANNA MARIA CASORETTI
Page 58: ANNA MARIA CASORETTI
Page 59: ANNA MARIA CASORETTI
Page 60: ANNA MARIA CASORETTI
Page 61: ANNA MARIA CASORETTI
Page 62: ANNA MARIA CASORETTI
Page 63: ANNA MARIA CASORETTI
Page 64: ANNA MARIA CASORETTI
Page 65: ANNA MARIA CASORETTI
Page 66: ANNA MARIA CASORETTI
Page 67: ANNA MARIA CASORETTI
Page 68: ANNA MARIA CASORETTI
Page 69: ANNA MARIA CASORETTI
Page 70: ANNA MARIA CASORETTI
Page 71: ANNA MARIA CASORETTI
Page 72: ANNA MARIA CASORETTI
Page 73: ANNA MARIA CASORETTI
Page 74: ANNA MARIA CASORETTI
Page 75: ANNA MARIA CASORETTI
Page 76: ANNA MARIA CASORETTI
Page 77: ANNA MARIA CASORETTI
Page 78: ANNA MARIA CASORETTI
Page 79: ANNA MARIA CASORETTI
Page 80: ANNA MARIA CASORETTI
Page 81: ANNA MARIA CASORETTI
Page 82: ANNA MARIA CASORETTI
Page 83: ANNA MARIA CASORETTI
Page 84: ANNA MARIA CASORETTI
Page 85: ANNA MARIA CASORETTI
Page 86: ANNA MARIA CASORETTI
Page 87: ANNA MARIA CASORETTI
Page 88: ANNA MARIA CASORETTI
Page 89: ANNA MARIA CASORETTI
Page 90: ANNA MARIA CASORETTI
Page 91: ANNA MARIA CASORETTI
Page 92: ANNA MARIA CASORETTI
Page 93: ANNA MARIA CASORETTI
Page 94: ANNA MARIA CASORETTI
Page 95: ANNA MARIA CASORETTI
Page 96: ANNA MARIA CASORETTI
Page 97: ANNA MARIA CASORETTI
Page 98: ANNA MARIA CASORETTI
Page 99: ANNA MARIA CASORETTI
Page 100: ANNA MARIA CASORETTI
Page 101: ANNA MARIA CASORETTI
Page 102: ANNA MARIA CASORETTI
Page 103: ANNA MARIA CASORETTI
Page 104: ANNA MARIA CASORETTI
Page 105: ANNA MARIA CASORETTI
Page 106: ANNA MARIA CASORETTI
Page 107: ANNA MARIA CASORETTI
Page 108: ANNA MARIA CASORETTI
Page 109: ANNA MARIA CASORETTI
Page 110: ANNA MARIA CASORETTI
Page 111: ANNA MARIA CASORETTI
Page 112: ANNA MARIA CASORETTI
Page 113: ANNA MARIA CASORETTI
Page 114: ANNA MARIA CASORETTI
Page 115: ANNA MARIA CASORETTI
Page 116: ANNA MARIA CASORETTI
Page 117: ANNA MARIA CASORETTI
Page 118: ANNA MARIA CASORETTI
Page 119: ANNA MARIA CASORETTI
Page 120: ANNA MARIA CASORETTI
Page 121: ANNA MARIA CASORETTI
Page 122: ANNA MARIA CASORETTI
Page 123: ANNA MARIA CASORETTI
Page 124: ANNA MARIA CASORETTI
Page 125: ANNA MARIA CASORETTI
Page 126: ANNA MARIA CASORETTI
Page 127: ANNA MARIA CASORETTI
Page 128: ANNA MARIA CASORETTI
Page 129: ANNA MARIA CASORETTI
Page 130: ANNA MARIA CASORETTI
Page 131: ANNA MARIA CASORETTI
Page 132: ANNA MARIA CASORETTI
Page 133: ANNA MARIA CASORETTI
Page 134: ANNA MARIA CASORETTI
Page 135: ANNA MARIA CASORETTI
Page 136: ANNA MARIA CASORETTI
Page 137: ANNA MARIA CASORETTI
Page 138: ANNA MARIA CASORETTI
Page 139: ANNA MARIA CASORETTI
Page 140: ANNA MARIA CASORETTI
Page 141: ANNA MARIA CASORETTI
Page 142: ANNA MARIA CASORETTI
Page 143: ANNA MARIA CASORETTI
Page 144: ANNA MARIA CASORETTI
Page 145: ANNA MARIA CASORETTI
Page 146: ANNA MARIA CASORETTI
Page 147: ANNA MARIA CASORETTI
Page 148: ANNA MARIA CASORETTI
Page 149: ANNA MARIA CASORETTI
Page 150: ANNA MARIA CASORETTI
Page 151: ANNA MARIA CASORETTI
Page 152: ANNA MARIA CASORETTI
Page 153: ANNA MARIA CASORETTI
Page 154: ANNA MARIA CASORETTI
Page 155: ANNA MARIA CASORETTI
Page 156: ANNA MARIA CASORETTI
Page 157: ANNA MARIA CASORETTI
Page 158: ANNA MARIA CASORETTI
Page 159: ANNA MARIA CASORETTI
Page 160: ANNA MARIA CASORETTI
Page 161: ANNA MARIA CASORETTI
Page 162: ANNA MARIA CASORETTI
Page 163: ANNA MARIA CASORETTI
Page 164: ANNA MARIA CASORETTI
Page 165: ANNA MARIA CASORETTI
Page 166: ANNA MARIA CASORETTI
Page 167: ANNA MARIA CASORETTI
Page 168: ANNA MARIA CASORETTI
Page 169: ANNA MARIA CASORETTI
Page 170: ANNA MARIA CASORETTI
Page 171: ANNA MARIA CASORETTI
Page 172: ANNA MARIA CASORETTI
Page 173: ANNA MARIA CASORETTI
Page 174: ANNA MARIA CASORETTI
Page 175: ANNA MARIA CASORETTI
Page 176: ANNA MARIA CASORETTI
Page 177: ANNA MARIA CASORETTI
Page 178: ANNA MARIA CASORETTI
Page 179: ANNA MARIA CASORETTI
Page 180: ANNA MARIA CASORETTI
Page 181: ANNA MARIA CASORETTI
Page 182: ANNA MARIA CASORETTI
Page 183: ANNA MARIA CASORETTI
Page 184: ANNA MARIA CASORETTI
Page 185: ANNA MARIA CASORETTI
Page 186: ANNA MARIA CASORETTI
Page 187: ANNA MARIA CASORETTI
Page 188: ANNA MARIA CASORETTI
Page 189: ANNA MARIA CASORETTI
Page 190: ANNA MARIA CASORETTI
Page 191: ANNA MARIA CASORETTI
Page 192: ANNA MARIA CASORETTI