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A ética de John Stuart Mill Faustino Vaz Escola Secundária Manuel Laranjeira, Espinho O princípio da maior felicidade O utilitarismo é um tipo de ética consequencialista. O seu princípio básico, conhecido como o Princípio da Utilidade ou da Maior Felicidade, é o seguinte: a acção moralmente certa é aquela que maximiza a felicidade para o maior número. E deve fazê-lo de uma forma imparcial: a tua felicidade não conta mais do que a felicidade de qualquer outra pessoa. Saber por quem se distribui a felicidade é indiferente. O que realmente conta e não é indiferente é saber se uma determinada acção maximiza a felicidade. Saber se a avaliação moral de uma acção a partir do Princípio da Maior Felicidade depende das consequências que de facto tem ou das consequências esperadas é um aspecto da ética de Mill que permanece em aberto. Apesar de haver pessoas que não o aceitam, o princípio básico dos utilitaristas é hoje central nas disputas morais. Mas há cento e cinquenta anos foi uma ideia revolucionária. Pela primeira vez, filósofos defendiam que a moralidade não dependia de Deus nem de regras abstractas. A felicidade do maior número é tudo o que se deve perseguir com a ajuda da experiência. Isto explica que os utilitaristas tenham sido reformadores sociais empenhados em mudanças como a abolição da escravatura, a igualdade entre homens e mulheres e o direito de voto para todos, independentemente de deterem ou não propriedade. O que é a felicidade? Mill tem uma perspectiva hedonista de felicidade. Segundo esta perspectiva, a felicidade consiste no prazer e na ausência de dor. O prazer pode ser mais ou menos intenso e mais ou menos duradouro. Mas a novidade de Mill está em dizer que há prazeres superiores e inferiores, o que significa que há prazeres intrinsecamente melhores do que outros. Mas o que quer isto dizer? Simplesmente que há prazeres que têm mais valor do que outros devido à sua natureza. Mill defende que os tipos de prazer que têm mais valor são os prazeres do pensamento, sentimento e imaginação; tais prazeres resultam da experiência de apreciar a beleza, a verdade, o amor, a liberdade, o conhecimento, a criação artística. Qualquer prazer destes terá mais valor e fará as pessoas mais felizes do que a maior quantidade imaginável de prazeres inferiores. Quais são os prazeres inferiores? Os prazeres ligados às necessidades físicas, como beber, comer e sexo. Diz-se que o hedonismo de Mill é sofisticado por ter em conta a qualidade dos prazeres na promoção da felicidade para o maior número; a consequência disso é deixar em segundo plano a ideia de que o prazer é algo que tem uma quantidade que se pode medir meramente em termos de duração e intensidade. É a qualidade do prazer que é relevante e decisiva. Daí Mill dizer que é preferível ser um "Sócrates insatisfeito a um tolo satisfeito". Sócrates é capaz de prazeres elevados e prazeres baixos e escolheu os primeiros; o tolo só é capaz de prazeres baixos e está limitado a uma vida sem qualidade. Mas será que é realmente preferível ser um "Sócrates insatisfeito"? Mill afirma que, se fizéssemos a pergunta às pessoas com experiência destes dois tipos de prazer, elas responderiam que os prazeres elevados produzem mais felicidade que os prazeres baixos. Todas fariam a escolha de Sócrates. Há filósofos que consideram a distinção entre prazeres inferiores e superiores incompatível com o hedonismo. Se, como afirma o hedonismo, uma experiência vale mais do que outra apenas em virtude de ser mais aprazível, ao aumentarmos progressivamente a aprazibilidade do prazer inferior, chegaremos a um ponto em que este pesará mais do que um prazer superior na balança dos prazeres; e nesse caso, se quisermos manter o hedonismo, a distinção entre prazeres inferiores e superiores deixará de fazer sentido e terá de ser abandonada. Convido-te a imaginar que resposta poderá ser dada a esta objecção em defesa da ética de Mill. 1

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A ética de John Stuart Mill

Faustino VazEscola Secundária Manuel Laranjeira, Espinho

O princípio da maior felicidade

O utilitarismo é um tipo de ética consequencialista. O seu princípio básico, conhecido como o Princípio da Utilidade ou da Maior Felicidade, é o seguinte: a acção moralmente certa é aquela que maximiza a felicidade para o maior número. E deve fazê-lo de uma forma imparcial: a tua felicidade não conta mais do que a felicidade de qualquer outra pessoa. Saber por quem se distribui a felicidade é indiferente. O que realmente conta e não é indiferente é saber se uma determinada acção maximiza a felicidade. Saber se a avaliação moral de uma acção a partir do Princípio da Maior Felicidade depende das consequências que de facto tem ou das consequências esperadas é um aspecto da ética de Mill que permanece em aberto.

Apesar de haver pessoas que não o aceitam, o princípio básico dos utilitaristas é hoje central nas disputas morais. Mas há cento e cinquenta anos foi uma ideia revolucionária. Pela primeira vez, filósofos defendiam que a moralidade não dependia de Deus nem de regras abstractas. A felicidade do maior número é tudo o que se deve perseguir com a ajuda da experiência. Isto explica que os utilitaristas tenham sido reformadores sociais empenhados em mudanças como a abolição da escravatura, a igualdade entre homens e mulheres e o direito de voto para todos, independentemente de deterem ou não propriedade.

O que é a felicidade?

Mill tem uma perspectiva hedonista de felicidade. Segundo esta perspectiva, a felicidade consiste no prazer e na ausência de dor. O prazer pode ser mais ou menos intenso e mais ou menos duradouro. Mas a novidade de Mill está em dizer que há prazeres superiores e inferiores, o que significa que há prazeres intrinsecamente melhores do que outros. Mas o que quer isto dizer? Simplesmente que há prazeres que têm mais valor do que outros devido à sua natureza. Mill defende que os tipos de prazer que têm mais valor são os prazeres do pensamento, sentimento e imaginação; tais prazeres resultam da experiência de apreciar a beleza, a verdade, o amor, a liberdade, o conhecimento, a criação artística. Qualquer prazer destes terá mais valor e fará as pessoas mais felizes do que a maior quantidade imaginável de prazeres inferiores. Quais são os prazeres inferiores? Os prazeres ligados às necessidades físicas, como beber, comer e sexo.

Diz-se que o hedonismo de Mill é sofisticado por ter em conta a qualidade dos prazeres na promoção da felicidade para o maior número; a consequência disso é deixar em segundo plano a ideia de que o prazer é algo que tem uma quantidade que se pode medir meramente em termos de duração e intensidade. É a qualidade do prazer que é relevante e decisiva. Daí Mill dizer que é preferível ser um "Sócrates insatisfeito a um tolo satisfeito". Sócrates é capaz de prazeres elevados e prazeres baixos e escolheu os primeiros; o tolo só é capaz de prazeres baixos e está limitado a uma vida sem qualidade. Mas será que é realmente preferível ser um "Sócrates insatisfeito"? Mill afirma que, se fizéssemos a pergunta às pessoas com experiência destes dois tipos de prazer, elas responderiam que os prazeres elevados produzem mais felicidade que os prazeres baixos. Todas fariam a escolha de Sócrates.

Há filósofos que consideram a distinção entre prazeres inferiores e superiores incompatível com o hedonismo. Se, como afirma o hedonismo, uma experiência vale mais do que outra apenas em virtude de ser mais aprazível, ao aumentarmos progressivamente a aprazibilidade do prazer inferior, chegaremos a um ponto em que este pesará mais do que um prazer superior na balança dos prazeres; e nesse caso, se quisermos manter o hedonismo, a distinção entre prazeres inferiores e superiores deixará de fazer sentido e terá de ser abandonada. Convido-te a imaginar que resposta poderá ser dada a esta objecção em defesa da ética de Mill.

A defesa de mill do princípio da maior felicidade

A prova de Mill do Princípio da Maior Felicidade consiste num argumento que parte da analogia entre visibilidade e desiderabilidade. Podemos reconstruí-lo da seguinte maneira:

Ver uma coisa prova que ela é visível.

Logo, desejar uma coisa prova que ela é desejável.

A seguir a esta conclusão afirma-se:

A única coisa que cada pessoa deseja como fim último é a sua própria felicidade.

Logo, a única coisa que é desejável como fim último para cada pessoa é a sua própria felicidade.

Da conclusão afirmada em 4 resulta uma outra:

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Logo, cada pessoa deve realizar as acções que promovem a maior felicidade.

Que avaliação podemos fazer deste argumento? Desde logo, é provável que vejas o seguinte problema: 1 não é uma razão para aceitar 2; se podes ver uma coisa, isso significa que ela é visível; mas se podes desejar uma coisa, isso não significa que ela seja desejável, isto é, que deva ser desejada. Por que razão a analogia não resulta? Porque o conceito de visibilidade é um conceito descritivo enquanto o conceito de desiderabilidade é um conceito normativo.

Vejamos agora a premissa 3. Trata-se de uma premissa falsa ou pelo menos bastante duvidosa. Dizer que a felicidade é o fim último de cada pessoa significa que tudo o que as pessoas desejam é um meio para assegurar esse fim. Se desejares que as crianças sujeitas a maus-tratos recebam amor e protecção, Mill diz que queres isto como um meio para assegurar a tua felicidade. Mas a verdade é que o bem-estar dos outros tem uma importância que não depende da importância que dás à tua felicidade. Como ninguém pode negar que muitas pessoas têm preferências deste tipo, a premissa 3 é falsa. Por outro lado, pessoas deprimidas parecem por vezes não desejar a sua própria felicidade.

E o que dizer do raciocínio que conclui 4 a partir de 3? Se reparares bem, verás que é o mesmo tipo de raciocínio que conclui 2 a partir de 1. Logo, o problema que levanta é o mesmo. Do facto de desejares como fim último a tua própria felicidade não se segue que a coisa mais desejável para ti é veres os teus desejos satisfeitos. Isso depende do tipo de desejos que tens. Se tiveres desejos violentos, o melhor para ti é abandoná-los.

De qualquer modo, imagina que 4 é verdadeira. Será que daí se pode concluir 5? Mesmo que a tua felicidade seja a coisa mais desejável para ti, isso não implica que deves maximizar a felicidade geral. Em certas circunstâncias, a felicidade dos outros exige que sacrifiques a tua felicidade, e não que a persigas. Acresce que 5 parece contradizer 3. Ao dizer de maneira descritiva, e não normativa, que cada um deseja apenas a sua felicidade, 3 exprime um egoísmo psicológico; e nesse caso, como os seres humanos de facto apenas podem desejar a sua própria felicidade, segue-se que não lhes é possível ter como fim a felicidade geral. Logo, se de todo não podem ter como fim a felicidade geral, é absurdo dizer que o fim último é maximizar a felicidade geral.

Há filósofos que vêem uma maneira de defender o argumento de Mill deste ataque devastador. O erro de deduzir que uma coisa é desejável a partir do facto de ser desejada é demasiado elementar para ser o que realmente está em jogo no argumento. Para eles, Mill simplesmente consultou os nossos desejos para ver que coisas são desejáveis. O facto de haver homens que desejam acima de tudo a felicidade e não vêem nisso nada de errado é apenas um indício a favor da ideia de que a felicidade é desejável como fim último. Nada mais. Assim, Mill teria o objectivo mais modesto de apresentar uma boa razão a favor do Princípio da Maior Felicidade, e não uma prova que o garantisse.

Algumas objecções

As objecções que irás considerar têm uma estratégia em comum. A ideia é partir dos juízos que fazes acerca de casos particulares. Se esses juízos afirmam que uma acção é errada e a ética de Mill implica que é certa, terás indícios para defender que a teoria é falsa.

A objecção da máquina de experiências

Esta objecção foi formulada pelo filósofo Robert Nozick. Imagina que tens à tua disposição um computador capaz de te fornecer todas as experiências que mais desejas. Passarás a ser uma pessoa absolutamente feliz e não alguém que ora sente alegria e entusiasmo pela vida, ora tristeza e tédio. A tua felicidade não terá interrupções. Mas tens de escolher entre ligar-te à máquina de experiências ou prosseguir a vida que já tens. Lembra-te que, se o fizeres, poderás viver a ilusão de seres, por exemplo, um ídolo pop, um revolucionário que transforma o mundo num lugar perfeito ou até um jogador de futebol milionário, informado e com gosto. Qual é a tua escolha?

Se o utilitarismo de Mill for verdadeiro, a escolha certa é estabelecer a ligação à máquina. Mas muito provavelmente não vais ser capaz de esquecer o valor que tem o facto de viveres uma vida real e dar o salto para a doce ilusão. Parece claro que fazer certas coisas tem valor para além do sentimento de felicidade que produz em ti. Não queres perder a autonomia e a realidade de fazer as coisas. Isto é eticamente crucial e está acima da felicidade.

A objecção da justiça

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Um crime horrível ocorreu numa cidade. O chefe da polícia descobriu que o assassino está morto. Todavia, ninguém acreditará nele caso apresente os indícios conclusivos que tem em sua posse. O estado de pânico na cidade é incontrolável. Rapidamente um suspeito terá de ser julgado e condenado. Se tal não acontecer, revoltas semearão o caos e a violência. Haverá certamente mortos e feridos.

Estava o angustiado chefe da polícia a pensar no caso e eis que entra no seu gabinete um desconhecido que lhe diz vaguear pela cidade e não ter relações ou amizades que o prendam ao mundo. O chefe da polícia tem de repente a solução para o caso. Por que não prender o vagabundo solitário e manipular as provas de maneira a que ele seja julgado, condenado e executado, uma vez que a lei estabelece a pena de morte para casos do género? Ninguém saberá o que de facto se passou. Se for esta a opção, morrerá uma pessoa mas a vida e o bem-estar de outras serão preservados. A consequência será claramente mais felicidade para o maior número. Ora, se o utilitarismo for verdadeiro, esta é a opção certa. Mas será esta a opção justa? Não haverá aqui um conflito muito sério entre o padrão utilitarista e o valor da justiça? Se para ti o valor da justiça é mais importante que o Princípio da Maior Felicidade, verás nesta história uma razão para rejeitar o utilitarismo de Mill.

A objecção da integridade

Esta objecção foi formulada por Bernard Williams, um importante filósofo moral. As histórias em que se baseia poderiam passar-se contigo. Os dilemas que elas apresentam são genuínos e não deixam pessoa alguma indiferente.

George fez um doutoramento em química mas não tem emprego. A sua saúde frágil limita as opções de trabalho. Tem dois filhos. É o trabalho da sua mulher que garante a subsistência de uma família que vive dificuldades e tensões. Os filhos ressentem-se de tudo isto e tomar conta deles tornou-se um problema. Mas um dia um químico mais velho propõe-lhe um emprego num laboratório que faz investigação em guerra química e biológica. George é contra este tipo de guerra. Já a sua mulher nada vê de incorrecto na investigação em questão. Quer aceite quer não, a investigação prosseguirá. George não é realmente necessário.

Os acasos de uma expedição botânica atiram Jim para o centro de uma aldeia sul-americana. De repente, vê à sua frente uma série de homens atados e alinhados contra uma parede. Estão prestes a ser fuzilados. Mas tudo dependerá de Jim. Por cortesia, o capitão que comanda as operações concede a Jim o privilégio de matar um dos índios. Se o fizer os outros serão libertados. Se recusar a proposta, todos os índios morrerão.

Segundo a teoria moral de Mill, George deve aceitar o emprego e Jim deve matar o índio. Não se trata apenas de dizer que nada há de errado nisso, mas de afirmar que essas são as opções correctas. E óbvias. Mas será que são realmente correctas e óbvias? Serão as considerações utilitaristas as únicas relevantes para tratar destes casos? Se a tua resposta for não, é porque te sentes especialmente responsável não só pelo que és, mas também pelo que deves ser, pelo tipo de pessoa que deves ser. E nesse caso é a tua integridade que está em jogo. Se admitires que uma teoria ética não pode limitar-se a ponderar consequências e terá de incluir considerações sobre o tipo de pessoa que devemos ser, o utilitarismo de Mill é claramente insatisfatório.

Conclusão

Estas e outras objecções obrigaram o utilitarismo a modificações significativas. Depois de século e meio de debate, o utilitarismo é hoje uma teoria mais sofisticada. Apesar de recusado por muitos, continua a ser influente e indispensável nas disputas morais. Também tu terás de tomar posição e avaliar os méritos e problemas da teoria. Considera de seguida alguns dos méritos apontados à teoria.

Simplicidade

Curiosamente, alguns filósofos vêem no utilitarismo a simplicidade indispensável para tratar de casos complexos. Se pensares em problemas como o da Palestina, verás que a sua discussão política apela a conceitos morais como os de "dever", "direitos", "obrigações" e "culpa" e faz juízos morais sobre o carácter das pessoas, o que é sempre delicado. Ao ignorar as complicações que daqui resultam, o utilitarismo pode olhar para o futuro e perguntar simplesmente: Que opções são realizáveis? Para cada uma das opções realizáveis, quantas pessoas beneficiarão e quantas sofrerão? E quanto? Não é que as respostas a estas questões sejam fáceis. Todavia, é inegável que as questões são simples e claras.

Naturalismo

Direitos humanos, regras absolutas, mandamentos divinos, princípios abstractos podem ser centrais para muitas pessoas, mas os problemas de saber o que são realmente e que conexão têm com as nossas vidas são difíceis. Ora, o prazer e a dor que estão na base do utilitarismo são, por contraste, bem reais na nossa vida. Ninguém parece ter dúvidas acerca disso. Daí que o utilitarista perante perguntas do género "A moralidade é acerca de quê?", "Tem

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alguma coisa a ver com o mundo?", responda tranquilamente que é acerca do prazer e como alcançá-lo e acerca da dor e como evitá-la.

Pesar o prazer e a dor

Como o utilitarismo tem de pesar as boas e as más consequências umas em relação às outras e essa avaliação pode depender de detalhes subtis, poucas são as regras gerais que ele aprova. Regras como "Não mates", "Não mintas" ou "Cumpre promessas" até podem aplicar-se em muitos casos, mas por vezes são maneiras de fugir às questões e de evitar pensar seriamente sobre elas. Quebrar promessas ou matar ocasionalmente pode parecer geralmente repulsivo, mas há alguns casos em que parece intuitivamente correcto quebrar promessas ou matar.

O utilitarista defende que a única coisa valiosa é estados mentais de felicidade, e que a acção correcta é aquela que faz pender a balança do prazer e da dor para o lado do prazer. Desse modo, não há lugar para conflitos de valor no seu interior e tomar decisões morais parece mais simples.

Faustino [email protected]

Questões de revisão

Qual é o princípio básico da ética de Mill?

O que significa dizer que é indiferente saber como se distribui a felicidade?

Terá o princípio básico do utilitarismo de Mill alguma coisa a ver com o facto de ele ter sido um reformador social? Porquê?

Qual é, segundo Mill, a coisa que tem mais valor na vida de cada um de nós?

"Mais vale passar a vida a ver TELEVISÃO  com um saco de pipocas na mão do que passar a vida a apreciar a música de Schubert." Mill concordaria com a afirmação? Porquê?

Será que desejar uma coisa a torna desejável? Porquê? Dá exemplos.

Por que razão a afirmação 3 do argumento é falsa?

Será que a afirmação 5 do argumento se segue da 4? Porquê?

Que defesa pode ser feita do argumento a favor do Princípio da Maior Felicidade?

O que mostra a objecção da máquina de experiências?

Que consequência tem a objecção da justiça?

O que mostra a objecção da integridade?

Segundo alguns filósofos, o utilitarismo de Mill tem o mérito da simplicidade. Porquê?

"Um dos méritos do utilitarismo é ele ser menos abstracto do que outras teorias." Concordas? Porquê?

Questões de discussão

O utilitarismo não dá lugar a conflitos de valor. Isso será uma vantagem ou desvantagem?

A teoria moral de Kant defende que os homens são fins em si. Será que esta ideia pode corrigir alguns defeitos do utilitarismo? Justifica.

"O utilitarismo é uma teoria que na prática não funciona porque é impossível estar a avaliar cada caso em particular." Concordas? Porquê?

"A moralidade de senso comum é utilitarista. As regras em que se baseia resultam do facto da experiência mostrar que assim as pessoas são mais felizes." Concordas? Porquê?

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Será que um Sócrates insatisfeito conhece realmente os prazeres do tolo satisfeito? Justifica.

Imagina que um utilitarista estabeleceu algumas regras gerais para não ter de estar sempre a pensar caso a caso. Como chegou ele a essas regras? Através de raciocínios a priori, isto é, que não se baseiam na experiência, ou através da experiência?

Discute a seguinte afirmação: "Há casos em que a coisa certa a fazer não é aumentar a felicidade do maior número mas diminuir a dor de uma só pessoa".

"Quando se trata de tomar decisões morais, nada mais conta para além das consequências." Concordas? Porquê? O que conta realmente para ti?

Viver bem: a ética de Aristóteles

Christopher ShieldsUniversidade de OxfordTradução de Desidério Murcho

O bem final para seres humanos

Os seres humanos entregam-se a comportamentos com propósitos. Fazemos coisas com razões e agimos tendo

fins em vista. Assim, caminhamos para a LOJA  com a intenção de comprar leite. Se um amigo que encontramos na rua nos perguntar no caminho por que estamos a caminhar na direcção da loja, a resposta sensata e correcta é a verdadeira: “Para comprar leite.” Se o nosso amigo for divertido e começar a regalar-nos com piadas e histórias de modo tão entusiasmante que nos esquecemos de para onde íamos e porquê, podemos ficar confundidos, esquecendo temporariamente o que estávamos a fazer e tentando recordar com que propósito estávamos na rua. Se não nos conseguirmos recordar, deixaremos de caminhar para a loja, pois não teremos qualquer propósito que nos motive a isso. Quando nos recordarmos do nosso propósito, retomamos então a nossa actividade com um sorriso nos lábios.

Suponha-se, em contraste, que o nosso amigo não é divertido, mas antes um filósofo de intenções sérias que quer saber por que queremos comprar leite. Se respondermos séria e honestamente que queremos comprar leite para comer os nossos flocos de aveia matinais, e ele insistir, querendo saber por que temos a intenção de comer flocos de aveia de manhã, podemos então muito bem responder que consideramos os flocos de aveia saudáveis e deliciosos, especialmente com leite, que nos damos então a liberdade de comprar. Sem dar atenção à nossa falta de interesse, o filósofo pode insistir, querendo saber por que desejamos comer comida deliciosa e saudável. Uma vez mais, podemos responder que isso é porque gostamos de comida deliciosa, comê-la dá-nos prazer, e que desejamos a saúde pela razão óbvia de que a saúde é boa — e, para que não nos faça essa pergunta, todos desejamos coisas boas para nós. Se até este momento não nos tivermos escapado, podemos ouvir o filósofo a fazer a mesma pergunta, seriamente, suponhamos, ad nauseam, ou pelo menos até dizermos, exasperados, que fazemos todas essas coisas que fazemos em nome da felicidade. Se nos perguntar agora por que desejamos a felicidade, talvez a má-educação seja apropriada. Podemos limitar-nos a voltar as costas, encolhendo os ombros e dizendo que temos mesmo de ir comprar leite.

Apesar de o nosso comportamento ser dotado de propósito, parece que estas perguntas têm de parar algures. Aristóteles considera haver algo de relevante nestas facetas relacionadas do nosso comportamento, que fazemos coisas por razões e que as nossas razões podem subordinar-se a razões de ordem superior até chegarmos a uma razão final e última subjacente a todas as nossas acções intencionais. Aristóteles abre a sua Ética a Nicómaco precisamente com este compromisso, apesar de usar o que parece um argumento desastroso a seu favor:

Toda a arte e toda a investigação, e similarmente toda a acção e escolha, parecem visar um qualquer bem; de acordo com isto, declarou-se correctamente que o bem é aquilo que todas as coisas visam. (Ética a Nicómaco 1094a 1-3)

Mesmo que seja verdade que há um qualquer bem último para toda a acção humana, este argumento, à primeira vista, não permite concluir tal coisa. Pois pode ser verdade que toda a acção visa um fim, apesar de não haver qualquer fim único que seja visado por todas as acções. Afinal, todo o arqueiro visa um alvo, apesar de não haver um alvo único que todos os arqueiros visem. Se Aristóteles está a argumentar assim, então cometeu uma falácia simples ao fazer notar que tudo tem uma característica e inferindo nessa base que há apenas uma característica que tudo tem.1

Dito isto, talvez seja possível compreender estas linhas de um modo mais favorável a Aristóteles, numa de duas maneiras. Primeiro, talvez ele esteja já a pressupor na primeira linha que toda a acção intencional visa em última análise a um dado fim, o bem, comentando depois que é então apropriado que se tenha caracterizado o bem como aquilo que todas as coisas visam.2 Neste modo de compreender estas linhas, Aristóteles não argumenta falaciosamente, porque nem sequer argumenta.3Alternativamente, podemos considerar que Aristóteles está a apresentar um argumento que não fica imediatamente sujeito à objecção dada. Talvez queira afirmar que porque toda a acção visa um ou outro género de fim, cada um dos quais é um género qualquer de bem, o que estes fins

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têm em comum é o serem bens. Capitalistas diferentes comercializam carros, cabides e grãos de café, cada um deles visando o lucro no seu sector; assim, chama-se correctamente ao lucro o fim de todos os capitalistas. Similarmente, o exercício visa a saúde porque a saúde é um bem, o estudo vida o conhecimento porque o conhecimento é um bem, e a recreação visa a descontracção porque a descontracção é um bem. O que estes diferentes géneros de bens têm em comum é precisamente o serem bens. Tal inferência exige trabalho adicional, e pode não combinar muito bem com os escrúpulos de Aristóteles com respeito à univocidade do bem.4 Mesmo assim, não compromete Aristóteles com a falácia formal que tantas vezes se pensa que estas linhas cometem.

Em qualquer caso, se concordarmos que as acções dotadas de propósito visam fins bons, ou pelo menos aparentemente bons, e se além disso concordarmos que estes fins podem estar subordinados entre si de modo a haver um bem final que todos os seres humanos procuram, é uma boa ideia reflectir sobre as características que é de esperar que este bem final tenha.

Para começar, quando se pergunta qual é o seu bem final, é provável que as pessoas discordem. Algumas, os hedonistas, dirão honestamente que procuram o prazer acima de qualquer outra coisa. Outras, com prioridades diferentes, podem dizer que desejam acima de tudo ser amadas, ou que se esforçam por conduzir as suas vidas com honradez, ou que as riquezas ou o poder são o que mais lhes importa, e assim por diante. É importante ver que quando discordam deste modo, as pessoas podem estar a discordar quanto a qualquer um de dois níveis diferentes, ou quanto a ambos. Primeiro, as pessoas podem concordar quanto às características do bem último, mas discordar quanto aos estados ou actividades que exibem essas características. Ou a sua discordância pode ser de ordem superior: talvez estas respostas diferentes resultem de pressupostos não equivalentes sobre o que seria necessário para que um estado ou actividade fosse considerado um bem final. Assim, por exemplo, duas pessoas podem discordar quanto ao que é relaxante, sugerindo uma que ler sossegadamente na biblioteca é relaxante, ao passo que a outra recomenda o esqui aquático com um barco a motor como a maneira mais relaxante de passar uma tarde. Ambas podem concordar quanto ao que consiste o relaxamento, mas discordar quanto à melhor maneira de o alcançar; ou podem discordar quanto à natureza do relaxamento, supondo uma que qualquer actividade que não se relacione com o trabalho é relaxante, por mais vigorosa e cansativa que seja, ao passo que a outra entende que o relaxamento se restringe a pedaços de tranquila inactividade sossegada e sem tensão. Para resolver a discordância, precisariam, no segundo caso, de chegar primeiro a um acordo quanto às características gerais do relaxamento. Similarmente, quem discorda quanto ao bem final para os seres humanos, precisará em alguns casos de reflectir primeiro sobre os critérios abstractos para que se considere antes de mais que algo é um bem final.

Aristóteles começa neste nível mais abstracto. O seu método recomenda que para determinar o bem final, devemos primeiro concordar quanto aos critérios que terá de satisfazer (Ética a Nicómaco, 1094a 22-27). Só deste modo, supõe, será possível que uma concordância substancial prepare o caminho para um verdadeiro progresso. Aristóteles estabelece como condições para o bem final que:

Seja procurado por si mesmo (Ética a Nicómaco 1094a 1);

Desejemos outras coisas por causa de si (Ética a Nicómaco 1094a 19);

Não o desejemos em função de outras coisas (Ética a Nicómaco 1094a 21);

Seja completo (teleion), no sentido de ser sempre digno de escolha e de ser sempre escolhido por si mesmo (Ética a Nicómaco 1097a 26-33); e

Seja auto-suficiente (autarkês), no sentido de a sua presença ser suficiente para que nada falte na vida (Ética a Nicómaco 1097b 6-16).

As primeiras três destas condições são razoavelmente óbvias, apesar de ser necessário notar que 1 e 3 são distintas, dado que 1 sustenta que o bem seja procurado por si mesmo, ao passo que 3 exige que o bem não seja feito por coisa alguma além de si mesmo. Uma pessoa pode, por exemplo, procurar a saúde por si mesma, por ser um bem intrínseco, mas também em função de algo mais final do que a saúde, por ser considerada uma componente necessária de uma vida feliz, resultando então daqui que se quer a saúde tanto por si mesma como em função da felicidade. A saúde satisfaria assim 1, mas não 3, e por isso não poderia ser um fim último, segundo os critérios dados.

Os últimos dois critérios são um pouco mais difíceis, dado que Aristóteles os caracteriza muito brevemente. Para que um fim seja completo (teleion, também por vezes traduzido por “último” ou “perfeito”), não tem apenas de ser desejado por nada além de si, mas ser sempre tal que seja em si mesmo digno de escolha. Aristóteles sugere que algo poderá ser desejado por si e por nada além de si, e no entanto não ser completo porque as circunstâncias poderiam alterar o seu estatuto. Uma maneira de um fim último ser invulnerável a contingências seria sendo inteiramente abrangente. Assim, se a felicidade for o bem final, isto pode dever-se ao facto de abranger todos os bens humanos possíveis. Contraste-se isto com o prazer, que poderia normalmente ser bom, desejado por si e por nada mais senão por si mas, apesar disso, competir com outros bens, como a honra, talvez, e assim ser considerado menos digno de escolha nessa circunstância. Similarmente, um fim considerado auto-suficiente (autarkês) é um critério extremamente exigente. Algo é auto-suficiente se a sua presença sem mais é suficiente para que nada falte a uma vida. Uma vez mais, uma coisa poderia ser auto-suficiente por ser um bem especialmente abrangente, abarcando todas as formas do bem humano.

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Poderá parecer, dada a severidade destas exigências, que nada irá emergir que possa constituir o bem final para os seres humanos. Afinal, que coisa é sempre digna de escolha por si mesma, fazendo só por si que nada falte à vida? Vistos desta maneira, os critérios de Aristóteles podem parecer tão austeros que estarão condenados a não se aplicar a coisa alguma. Vistos de outra maneira, contudo, estas exigências parecem perfeitamente correctas. Pois nesta fase são apenas hipotéticas. Se há algum bem que seja final, o bem único e omniabrangente que procuramos em todas as nossas acções, então deve realmente obedecer aos elevados padrões que estes critérios impõem. Desta perspectiva, é fácil concordar com estes critérios do bem final, pois até agora não concordamos que algo os satisfaz realmente. Do mesmo modo, se surgir algum bem que os satisfaça a todos, teremos uma razão poderosa para concordar que este bem merece o seu elevado estatuto.

O carácter da felicidade humana: considerações preliminares

Por mais que os critérios de Aristóteles pareçam exigentes, talvez possamos todavia supor que há um candidato óbvio a bem último para os seres humanos. Esta razão final e última para toda a nossa acção é simplesmente a nossa felicidade: todos desejamos ser felizes. Desejamos a felicidade por si mesma, e não em função de qualquer outra coisa além dela; procuramos outros bens em função da felicidade; se tivermos atingido a felicidade, a felicidade genuína, então as nossas vidas estão completas e nada lhes falta; a felicidade, só por si, é suficiente para fazer das nossas vidas vidas boas (Ética a Nicómaco 1097a 30-b8). É por isso, na verdade, que desejamos a felicidade acima de tudo o mais. Além disso, é por isso que a pergunta “Sim, mas por que queres ser feliz?” é ociosa. No domínio do comportamento dotado de propósito, as perguntas “por que” chegam ao fim com a felicidade.

Tudo isto parece aceitável. Desejamos a felicidade. O que é, contudo, que desejamos? Compete ao filósofo que se entrega à filosofia prática responder a esta pergunta. Pois apesar de todos concordarmos que procuramos a felicidade, na verdade a nossa concordância obscurece formas importantes de discordância, porque discordamos afinal quanto à natureza da felicidade (Ética a Nicómaco 1095a 14-21). Postos perante a questão, alguns de nós dirão que a felicidade consiste numa auto-estima cálida e vaga; outros supõem que a felicidade é a fama; outros o poder; e muitos mais estão certos de que a felicidade é o prazer. Aristóteles argumenta que todas estas respostas estão erradas.

Para algumas sensibilidades modernas, a sugestão de que alguém possa estar enganado quanto à sua própria felicidade parece prepóstera à primeira vista. Afinal, eudecido o que me faz feliz; e eu sei quando estou feliz e quando não o estou. Só euposso ajuizar se estou feliz, e sempre que esse é o meu juízo, então estou de facto feliz. Com certeza que não cabe ao filósofo, sentado no seu gabinete de trabalho da universidade, decidir essas questões por mim.

Pelo contrário, contesta Aristóteles, cabe ao filósofo determinar a natureza da felicidade, dado que esta, como outros conceitos éticos centrais, é susceptível de análise. Duas características desta abordagem ajudam a explicar por que razão Aristóteles dá continuidade ao seu trabalho partindo deste pressuposto.

Para ver correctamente a explicação de Aristóteles, é primeiro de tudo necessário compreender uma característica central da sua abordagem. Aristóteles está comprometido com uma concepção objectiva da felicidade. Podemos contrastar dois modos de pensar sobre a felicidade.5 Digamos que uma concepção de felicidade ésubjectiva se pressupõe que a felicidade consiste na satisfação dos desejos do agente, sejam esses desejos o que forem. Tipicamente, suponhamos, a satisfação de desejos tem como resultado um sentimento de satisfação cálida ou mesmo ardente, e cálida auto-estima. Assim, numa concepção subjectiva de felicidade, é de esperar que um agente saiba quando é feliz e que tenha autoridade quanto à sua própria felicidade. Se ele se sente feliz, então é feliz, e não o é caso contrário. Numa concepção subjectiva da felicidade, dificilmente faz sentido imaginar alguém a dizer: “Pensava que era feliz, mas estava enganado.” Em contraste, uma concepção objectiva de felicidade sustenta que esta consiste em satisfazer alguns critérios que não são determinados pelos desejos do agente. Ser feliz, na concepção objectiva, exige que uma pessoa tenha uma vida bem-sucedida e de florescimento, na qual, uma vez mais, as condições de uma vida bem-sucedida ou de florescimento não competem ao agente. Com respeito a este aspecto, é proveitoso pensar sobre juízos de felicidade do ponto de vista da terceira pessoa. Podemos considerar que um vizinho ou familiar vive bem, e tem uma vida humana de florescimento, mesmo sem saber muitas coisas sobre a sua vida interior. Ademais, podemos ajuizar prontamente que um amigo ou pessoa próxima não está a viver a melhor vida ao seu alcance, podemos lamentar que estejam num caminho de autodestruição porque, digamos, abusam de drogas, ainda que, se lhes perguntarmos, respondam sinceramente que se sentem muitíssimo bem, que são felizes. Na concepção objectiva da felicidade, temos em princípio o direito, em alguns casos, de concluir que as pessoas estão enganadas quanto às suas próprias auto-atribuições de felicidade. Do mesmo modo, podemos olhar para um período anterior das nossas vidas e ajuizar correctamente que apesar de pensarmos que éramos felizes, estávamos enganados.

Ora bem, a este respeito faz-se muitas vezes notar que aquilo a que temos vindo a chamar “felicidade” é por estas razões uma tradução infeliz da palavra eudaimonia de Aristóteles, que seria mais adequadamente traduzida por “florescimento” ou “vida boa” ou “vida bem-sucedida.” Esta questão quanto à tradução pode contudo tornar-se facilmente um exagero: Aristóteles tem consciência de que as pessoas discordam quanto à natureza da eudemonia, que “a multidão não responde como os sábios” (Ética a Nicómaco 1095a 21-22), porque pensam que “é uma coisa óbvia e manifesta” (Ética a Nicómaco 1095a 22). Ora, isto é o mesmo que dizer que as pessoas discordam quanto ao que é a felicidade, e que algumas pessoas, irreflectidas, presumem pura e simplesmente, sem qualquer garantia, que a sua natureza é simples e visível para todos. Da perspectiva de Aristóteles, não se deve aceitar esta posição sem debate.

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O que realmente conta nesta discussão não é se traduzimos eudaimonia por “felicidade” nem se não, mas se, concordando chamar “felicidade” a seja o que for que satisfaça os critérios do bem último, podemos evidenciar um estado ou actividade à altura desse papel. A primeira posição de Aristóteles com respeito a isto é que as concepções subjectivas de felicidade não cumprem este papel. Por vezes os nossos desejos são satisfeitos, mas em vez de sentirmos prazer ou satisfação, ficamos na verdade perplexos connosco mesmos, por vezes até ao ponto de nos alienarmos de nós mesmos. Um homem que deseja mais do que tudo um carro desportivo amarelo, tudo sacrificando para o obter, pode perguntar-se, depois de o ter, por que razão exactamente o queria com tanta intensidade. Além disso, mesmo quando nos sentimos realmente satisfeitos por satisfazer os nossos desejos, podemos na verdade ter desejos que não são dignos de nós. Este aspecto é menos óbvio, mas uma vez mais pode valer a pena adoptar a perspectiva da terceira pessoa para ver por que razão Aristóteles procede deste modo. Uma mulher pode estar preocupada com o seu filho querido, porque ele não está a viver de modo a fazer jus ao seu potencial. Ela sabe de modo imparcial que o seu filho é muito inteligente, excepcionalmente talentoso, e superior nas suas capacidades atléticas naturais. Contudo, também vê que o seu filho está tão ansioso por impressionar os seus amigos boémios que está propositadamente a ter maus resultados, por desejar ardentemente sentir-se aceite. Uma mãe assim ajuizará correctamente que o seu filho não está a florescer, que não está a viver a vida rica que poderia viver. Se o filho a considerar intrometida e lhe disser que é feliz e que quer que o deixem em paz, poderá muito bem não estar em posição de ajuizar correctamente a sua circunstância, em virtude da sua obstinação cega. Se alguém agora quiser insistir que o adolescente é contudo feliz, então basta sublinhar que não está em condição de satisfazer os critérios do bem último que aceitámos. Uma vez mais, não vale a pena fazer uma questiúncula sobre se devemos traduzir eudaimoniapor felicidade. O que conta quanto ao caso em questão é se o rapaz está a ter a melhor vida que pode, se aquilo a que chama felicidade satisfaz de facto os critérios do bem humano último que aceitámos.

Na verdade, insiste Aristóteles, podemos ver que algumas concepções comuns de felicidade não obedecem a estes critérios, e consequentemente têm de ser postos de lado. Um desses é obviamente a vida de quem se dedica a fazer dinheiro (Ética a Nicómaco 1096a 6-11). Aristóteles não desacredita neste contexto o dinheiro em si mas observa, correctamente, que é um bem instrumental. Se é meramente um instrumento, então o dinheiro não é digno de escolha em si mesmo e portanto viola o primeiro dos nossos critérios, nomeadamente que o bem último seja escolhido por si. Caso se responda que o dinheiro é mesmo assim uma coisa boa, em virtude do que permite obter, Aristóteles poderá estar disposto a concordar; mas então teremos de voltar a nossa atenção para as coisas que o dinheiro compra para determinar se podem constituir o bem último. Aristóteles tem outras reservas sobre a vida de honra (Ética a Nicómaco 1095b 23-1096a 4). Certamente que viver honradamente é uma coisa boa. Mesmo assim, se procurarmos a honra como um bem em si, estaremos a ceder a nossa felicidade aos caprichos alheios: as pessoas podem ser volúveis e tolas, honrando por vezes quem não tem valor e não honrando quem o tem. O bem final, em contraste, é algo “genuinamente nosso e difícil de nos ser tirado” (Ética a Nicómaco 1095b 24-26). Parece, então, que a honra não é completa (teleion) nem auto-suficiente (autarkês). Em qualquer caso, a sua presença, que poderá ser ardilosa, não é suficiente para que nada falte a uma vida.

Talvez o candidato mais forte ao estatuto de bem final seja o prazer. Afinal, o prazer é uma coisa boa, e é escolhido por si mesmo e não por qualquer outra coisa além de si. Além disso, é geralmente encarado como a melhor coisa da vida, aquilo que na verdade procuramos acima de qualquer outra coisa. Para compreendermos a atitude de Aristóteles perante o prazer é necessário e instrutivo reconhecer até que ponto o seu objectivismo ético se baseia na sua teoria psicológica subjacente.6 Vimos que Aristóteles reconhece que todos os seres vivos têm alma, mas supõe também haver uma hierarquia entre os seres vivos, começando com as plantas, que têm apenas nutrição, passando pelos animais inumanos, que acrescentam a percepção à nutrição, e acabando nos seres humanos, que são também racionais. Isto explica por que razão Aristóteles usa uma linguagem bastante dura com respeito aos hedonistas:

A multidão mais grosseira considera que o bem e a felicidade é o prazer, e consequentemente adoram uma vida de gratificação […] Assim, parecem completamente escravizados, dado escolherem uma vida que pertence aos ruminantes. Mas têm realmente um argumento em sua defensa, dado que muitos dos poderosos […] têm a mesma convicção. (Ética a Nicómaco 1095b 16-23)

Os hedonistas encaram-se como vacas, ruminando nos campos, vivendo pelo prazer e por nada mais.

Ao rejeitar a perspectiva da multidão, Aristóteles não está apenas a ser desdenhoso com a sua retórica arrogante. O que ele quer dizer é que quem procura apenas o prazer ignora o facto de serem animais racionais, dando-se ao invés a si mesmos o género de gratificação possível para quem é destituído de mente. Ao falar desse modo, Aristóteles parece sublinhar o prazer físico em detrimento do intelectual, e parece sugerir que quem procura o prazer se situa numa posição inferior na hierarquia das almas, pois limita-se à gratificação sensual na ausência de actividade intelectual. Um modo de ajuizar a correcção da perspectiva de Aristóteles é conceber a possibilidade (talvez não muito distante) de um comprimido cor-de-rosa do prazer. Dão-nos a possibilidade de tomar um comprimido cor-de-rosa do prazer. Se o fizermos, sentiremos prazer físico para o resto dos nossos dias. Contudo, nada faremos, não formaremos planos, não procuraremos atingir fins. Limitar-nos-emos a sentar-nos num sofá para o resto dos nossos dias, sentindo prazer, sendo alimentados, e sendo lavados uma vez e outra. Todos os nossos dias serão de prazer, apesar de termos abdicado de toda a actividade e de toda a associação autêntica.

Escolhemos tomar o comprimido cor-de-rosa do prazer ou não?

A pergunta não é, é claro, um argumento, mas um simples apelo à intuição. Mesmo assim, se não escolhemos tomar o comprimido cor-de-rosa do prazer, isso indica que não estamos inclinados a encarar pelo menos esta forma de prazer como o melhor que a vida tem para oferecer. Pensamos que as nossas vidas têm possibilidades mais

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elevadas, que o bem final para os seres humanos nos leva para lá do domínio do prazer físico. O prazer, note-se de novo, é de facto bom. Não é isso que está em questão. O que está em questão é saber se é o bem último para os seres humanos. A teoria psicológica de Aristóteles fornece razões para adoptar uma teoria ética que não eleve o prazer a essa posição.

Vimos assim até agora Aristóteles fazer o seguinte: argumentou que há um bem último para os seres humanos; estabeleceu critérios pelos quais quaisquer pretendentes a este papel possam ser avaliados; e permitiu que possamos considerar que o bem último é a felicidade, ou eudemonia, mas insistindo que algumas concepções de felicidade, consideradas como o bem humano último, podem ser superiores a outras; insistiu que as concepções subjectivas de felicidade devem ser rejeitadas a favor de concepções objectivas; e argumentou que, dadas estas exigências, há três concepções amplamente aceites de felicidade — vidas de dedicação ao dinheiro, à honra e ao prazer físico — não estão à altura do que se pretende. A sua rejeição do prazer físico foi especialmente importante na medida em que usou livremente a metafísica da psicologia humana desenvolvida no enquadramento hilomórfico do seu De Anima. Neste ponto, Aristóteles pressupõe que tem justificação para apelar às características essenciais dos seres humanos para tentar explicar qual é a melhor forma de vida à nossa disposição. Aristóteles não tenta mostrar que devemos de facto desejar a melhor forma de vida à nossa disposição, pois dá como garantido que as pessoas querem o que é de facto bom para elas e não apenas o que parece bom sem que o seja de facto. O que é realmente bom para os seres humanos, contudo, é determinado pelo que os seres humanos são por natureza. A natureza dos seres humanos só se revela, contudo, reflectindo nas estruturas teleológicas em termos das quais a função humana pode ser especificada e compreendida.

Felicidade e a função humana

Pode ser surpreendente que os seres humanos tenham uma função. Os computadores e os abre-latas têm funções: computar e abrir latas. Sabemos que estes tipos de artefactos têm funções, e não temos dificuldade em identificá-las, pela simples razão de que lhes demos as suas funções. Concebemo-los com os propósitos que têm.7Aristóteles nega que os seres humanos tenham sido concebidos por qualquer forma de agente intencional; mas insiste mesmo assim que as causas finais ocorrem na natureza na ausência de desígnio inteligente.8 Sendo assim, deverá ser possível identificar uma função humana, que por sua vez forneça uma base de uma concepção funcional do bem humano. Isto é, tal como podemos facilmente dizer que um bom abre-latas é um abre-latas que abre latas bem, deveremos igualmente ser capazes de dizer que um bom ser humano é um ser humano que executa bem a função humana. A chave é, então, especificar a função humana.

Aristóteles tem consciência de que poderá haver dúvidas quanto a isto, mas pensa que as podemos ultrapassar:

Dizer que a felicidade é o bem mais elevado talvez pareça uma trivialidade e o que se quer é uma expressão muito mais clara do que é tal coisa. Talvez isto surja caso se identifique a função [ergon] de um ser humano. Pois tal como o bem, e o bom sucesso, de um flautista, de uma estátua e de todo o tipo de profissão — e, em geral, de seja o que for que tenha uma função e uma acção característica — parece depender da função, o mesmo parece verdade no que respeita ao ser humano, se de facto um ser humano tiver uma função. Ou terão o carpinteiro e o sapateiro as suas funções, ao passo que um ser humano nenhuma tem, sendo ao invés naturalmente sem função [argon]? Ou então, tal como parece haver uma função particular para o olho e para a mão e em geral para cada uma das partes de um ser humano, deveremos igualmente postular uma função particular para o ser humano, além de todas essas funções particulares? O que poderia ser tal coisa? Pois viver é comum até às plantas, ao passo que queremos algo característico [idion]; assim, devemos pôr de lado a vida de nutrição e crescimento. Depois viria um género qualquer de vida de percepção, mas também isto é comum ao cavalo e ao boi e a todos os animais. O que resta, consequentemente, é uma vida de acção que pertença ao género de alma que tem razão. (Ética a Nicómaco 1097b 22-1098a 4)

Aristóteles começa por fazer notar que tal como os artesãos têm funções (um canalizador trata dos canos, um programador faz programação), também as partes do corpo as têm; além disso, quanto às coisas que têm funções, ajuizamos o seu bem em termos funcionais (um bom canalizador trata bem dos canos, um mau trata mal deles, e um bom olho vê bem, e um mau vê mal). Consequentemente, se os seres humanos têm uma função, saberemos qual é o seu bem quando soubermos qual é essa função. E sabemos que função é essa, defende Aristóteles, quando sabemos o que é único ou característico (idion) dos seres humanos — sendo que, contudo, o que se admite como peculiar ou único irá receber um tratamento técnico.

A identificação do bem humano assume por isso a forma do seu argumento da função(AF):

A função de qualquer categoria x é determinada isolando a sua actividade única e característica;

A actividade única e característica do ser humano é o raciocínio;

Logo, a função dos seres humanos é (ou envolve principalmente) o raciocínio;

Exercer uma função é uma actividade (sendo que, nos seres humanos, isto será a actualização de uma capacidade da alma);

Logo, o exercício da função humana é uma actividade da alma de acordo com a razão.

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O argumento da função revelou-se controverso, nomeadamente porque muitas pessoas pensam que não é persuasivo. Algumas das dificuldades do argumento — mas nem todas — resultam de incompreensões.

Tratando primeiro de objecções que se baseiam em incompreensões, deve-se ter consciência primeiro de tudo que o AF não está em si a tentar provar que os seres humanos têm uma função. Pelo contrário, nesta parte da Ética a Nicómaco Aristóteles está a usar a análise hilomórfica dos seres humanos como substâncias, análise articulada e defendida na sua Física, Metafísica e De Anima. Um aspecto central desta concepção é que os tipos, incluindo os organismos, são individuados funcionalmente em virtude de terem causas finais. O argumento pressupõe, mas não tenta apoiar, o esquema explicativo de Aristóteles baseado nas quatro causas, fazendo um uso especial do papel nele desempenhado pela explicação teológica. Assim, o argumento propõe-se identificar a função que a teleologia de Aristóteles lhe dá autorização para pressupor que temos.

Podemos reconhecer isto, ou pelo menos conceder os pressupostos teleológicos do argumento, mas considerar que é objectável nos seus próprios termos. Em particular, AF-1, a afirmação de que a função de qualquer categoria dada x se determina isolando a actividade única e característica de x, parece perversa. Um tipo de entidade pode obviamente fazer várias coisas únicas sem que essa actividade seja considerada a sua função. Só os seres humanos, ao que parece, conduzem Cadillacs enormes. Sendo assim, será conduzir Cadillacs a função humana? Outro exemplo: talvez só os membros da espécie humana troquem dinheiro pela gratificação sexual. Se da AF-1 se segue que a função dos seres humanos é a prostituição, então o AF já descarrilou mesmo antes de começar.

Mas a AF-1 não implica tal coisa. Ao defender que procuramos a actividade única ou característica de uma categoria, Aristóteles tem em mente algo muitíssimo mais forte. Primeiro, que alguns membros de uma espécie se entreguem a actividades que nenhuns membros de outras espécies executem dificilmente faz dessa uma actividadecaracterística da primeira espécie. Na verdade, a palavra que foi parafrasticamente traduzida por “único ou característico” em FA-1, nomeadamente idion, é algo que já vimos a desempenhar o seu trabalho técnico na teoria da essência de Aristóteles.9Recorde-se que um idion é um género especial de propriedade, uma propriedade necessária mas não essencial que emana da essência de uma coisa; por exemplo, é umidion dos seres humanos o serem capazes de entender gramáticas ou de rir, sendo que ambos estes traços são explicáveis pela essência dos seres humanos, nomeadamente a racionalidade. Neste contexto, é duvidoso que Aristóteles esteja a apelar ao sentido técnico completo do termo, mas é claro que tem em mente consideravelmente mais do que seja o que for de único que por acaso, contingentemente, algo faz. Ao invés, Aristóteles visa identificar a função quando nos concentramos no que a coisa faz caracteristicamente, de modo central. Os abre-latas podem também servir de pesa-papéis, mas o seu idion não é desempenhar este papel. Se por acaso acontecesse que todos os ruivos e só eles fossem flautistas profissionais, não seria mesmo assim idiondos flautistas ter cabelo ruivo. No mínimo, temos a expectativa de que o que é característico de uma categoria F funcionalmente determinada tenha conexão com a função e essência dessa categoria. É por isso que Aristóteles recomenda que quando estamos interessados em identificar a função dos seres humanos devemos dar atenção ao que é peculiar ou característico dos seres humanos. Fazê-lo fornecerá uma via para a essência, e assim uma via para a causalidade final.

AF-2 afirma que o que fazemos permite-nos identificar a actividade única e característica dos seres humanos como raciocínio. De um certo ponto de vista mais distanciado, podemos perguntar-nos se Aristóteles não estará a ser injusto para com os animais inumanos, dado que como aprendemos com a etologia cognitiva, há muitas outras espécies que se entregam a todo o tipo de raciocínio meios-fins, podem manipular símbolos simples, etc. Ora, Aristóteles simpatiza afinal com estes géneros de sugestões, dado ter ficado tão impressionado com o comportamento animal que considera que as suas actividades perceptuais são cognitivamente ricas (De Generatione Animalium 733a 1); mas por outro lado Aristóteles não simpatiza com tais ideias, pois aceita que é óbvio que só os seres humanos se entregam à filosofia natural, à matemática superior e à especulação metafísica. Não é preciso aceitar que há uma distinção radical entre actividades cognitivas superiores e inferiores para aceitar que há uma distinção relevante a fazer. Além disso, dada a tese da determinação funcional de Aristóteles, caso se viesse a revelar que alguns animais inumanos, fossem animais ou alienígenas, eram racionais, então eles partilhariam simplesmente o bem humano funcionalmente determinado. A plasticidade da sua concepção de pertença a uma categoria combate automaticamente o provincianismo.

Em qualquer caso, o bem humano é o raciocínio. AF-3 usa esse compromisso, mas está concebida para não se comprometer quanto à questão de como compreender o exercício da função humana, em termos estritos ou latos. Ou seja, tal como está formulada, esta conclusão provisória sustenta que a função dos seres humanos é idêntica ao raciocínio ou apenas o envolve centralmente. Em termos estritos, isto seria o mesmo que afirmar que o bem humano se esgota na actividade racional, que o bem humano consiste no raciocínio matemático ou em filosofar. Tomado de modo abrangente, o bem humano pode ser simplesmente uma expressão da razão numa vida bem ordenada, de modo que, por exemplo, uma vida dedicada à política pode ser conduzida racional ou irracionalmente, sendo que a realização racional de uma vida política seria considerada uma expressão admirável do bem humano. Neste ponto, não precisamos de decidir como Aristóteles poderá estar a conceber a actividade racional,10notando apenas que AF tem como resultado a conclusão de que a função humana é uma actividade da alma conduzida de acordo com a razão, ou seja, consiste em viver uma vida que seja uma expressão da natureza essencial do género humano, nomeadamente a racionalidade.

Assim, conclui Aristóteles, o bem humano consiste em conduzir um género de vida característica e completamente humano. Esta conclusão sublinha três características distintivas da concepção que Aristóteles tem da felicidade humana. Primeiro, a felicidade humana é um tipo de vida e é por isso uma actividade e não um estado passivo ou uma experiência de afecção; a felicidade é um fazer e não um ser. Isto é, a melhor forma de vida é activa e não passiva. Esta é outra razão pela qual um ser humano não aceitaria, depois de reflectir, um comprimido cor-de-rosa do prazer: sentir prazer é um estado de afecção, ao passo que a melhor forma de vida humana envolve a execução

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de planos e projectos. Se nos parece que não estaríamos a viver a melhor vida que podemos viver ficando sentados num sofá, catatónicos, mas sentindo-nos bem, então isto pode reflectir alguma aceitação do pensamento de Aristóteles de que a melhor vida consiste em ter uma actividade e não em ser afectado.

A segunda característica distintiva já a encontrámos, mas podemos agora compreendê-la melhor: as condições da felicidade são objectivamente dadas. Não escolhemos as nossas essências. Se um existencialista tentasse inverter esta ordem sugerindo com bravura que “a existência precede a essência,”11 Aristóteles objectaria apenas que chegamos a este mundo como seres racionais, capazes de nos entregarmos às actividades características do nosso género. Dado que não escolhemos o nosso género, não escolhemos os nossos fins; e dado que não escolhemos os nossos fins, não escolhemos o nosso bem mais elevado. Claro que Aristóteles não sugeriu em lugar algum que não podemos escolher como queremos procurar o nosso bem. Pensando no bem humano em termos abrangentes, vemos que há miríades de caminhos para exprimir a nossa essência, em filosofia, nas artes, na política, na engenharia, e assim por diante. Há muitas maneiras de um harpista tocar harpa bem, mas soprar numa tuba não é uma delas.

Finalmente, estas duas características distintivas combinam-se para dar origem a uma terceira. Aristóteles pensa que a felicidade humana abrangerá grandes porções da vida, talvez até toda uma vida. Cita aprovadoramente um dictum famoso de Sólon: “Olha para o fim” (Ética a Nicómaco 1100a 10-11). Apesar de ser possível ajuizar um estado de afecção episodicamente, a expressão de uma essência parece prolongar-se necessariamente no tempo. Isto é, podemos dizer, sem temer a contradição, que tivemos uma experiência de prazer ontem à noite às 22:15 quando comíamos a sobremesa. A felicidade, enquanto expressão activa de um fim objectivamente dado, não é desse modo. Não consideramos que alguém é um grande violinista com base em algumas notas bem interpretadas, mesmo que consideremos que foram excepcionalmente bem interpretadas; o juízo de que alguém é um grande violinista exige mais. Nem diremos que alguém é vegetariano por não ter comido carne no período entre o pequeno-almoço e o almoço, especialmente se comeu salsichas ao pequeno-almoço e conta comer um hambúrguer ao almoço. Tal juízo só pode ser feito na base de um padrão estável de actividade ao longo de um período adequadamente longo de tempo. O mesmo ocorre com os juízos de felicidade. Se esta sugestão provoca alguma indignação, trata-se na verdade apenas de uma consequência do carácter objectivo da felicidade aristotélica. Dizemos na verdade, por exemplo, “Estava feliz antes de teres telefonado esta manhã.” Uma vez mais, não vale a pena ser picuinhas quanto à nossa maneira irreflectida de falar. Contudo, para captar o modo como Aristóteles concebe a felicidade como a melhor vida para os seres humanos, podemos fazer notar que seria estranho dizer “Estava a ter uma vida que era a expressão activa da minha essência enquanto ser racional antes de teres telefonado esta manhã.” Claro que podemos imaginar uma situação em que alguém poderia ser induzido a proferir tal frase, mas não é fácil.

Em qualquer caso, uma vez identificada a função humana nestes termos, é um pequeno passo para Aristóteles caracterizar o bem humano na sua expressão canónica (Ética a Nicómaco 1098a 161-17):

O bem humano =df uma actividade da alma que exprime a razão de um modo virtuoso.

O súbito aparecimento de um apelo à virtude pode ser perturbador. Até agora temos falado do bem humano e do nosso impulso para a felicidade sem mencionar de modo algum a conduta virtuosa. Na verdade, o apelo de Aristóteles à virtude neste contexto não é de modo algum deslocado. Ao falar de “virtude” neste contexto, Aristóteles está antes de mais a pensar em virtude no sentido de excelência. Isto é, a palavra de Aristóteles para “virtude,” aretê, permite-lhe facilmente conceber a virtude não apenas no sentido moral estrito, mas também num sentido não moral mais lato também presente na semântica da língua portuguesa, apesar de não tão proeminentemente quanto em grego (“Uma das suas virtudes como médica era que a sua técnica de diagnostico era rápida e irrepreensível.”) Assim, a sua concepção do bem humano é equivalente à afirmação de que consiste na mais excelente expressão das características racionais essenciais à alma humana. A melhor vida para os seres humanos é uma vida que exprime, do modo mais excelente, aquelas características que nos fazem distintamente humanos. Dado que a felicidade, ou eudemonia, é este bem mais elevado, é de esperar que seja desejado por si mesmo e por nenhuma outra coisa, ao passo que os outros bens são desejados pela felicidade, e é de esperar que a sua presença torne a vida completa e sem nada lhe faltar. Pois estas são, afinal, as condições estabelecidas para a felicidade, e em termos das quais outros candidatos foram afastados.

As virtudes de carácter

Uma vida feliz é uma vida excelentemente, ou virtuosamente, vivida. Segue-se, sugere Aristóteles, que uma concepção da felicidade exige uma concepção da virtude ou excelência (aretê) (Ética a Nicómaco 1102a 5-7). Visto que, contudo, a felicidade é uma expressão das faculdades da alma, as formas da excelência a investigar não abrangem as que dizem respeito ao corpo. Um corpo excelente poderá ser o que tem um bom sistema cardiovascular ou um tracto digestivo eficiente, mas temos estes géneros de excelências em comum com os animais inumanos, de modo que dificilmente são únicos ou característicos dos seres humanos. As formas da excelência ou da virtude que exigem consideração são as que dizem respeito à alma humana, que é uma alma racional. Uma concepção da felicidade irá dar lugar a uma concepção das virtudes que pertencem à alma racional (Ética a Nicómaco 1106a 16-26).12

É um lugar-comum que a alma humana não é pura ou exaustivamente racional. É natural e fácil distinguir entre a razão e a paixão, entre a razão e o desejo ou apetite, ou entre a cabeça e o coração, para usar uma expressão popular. Estes contrastes não são idênticos; e carecem de precisão. Pelo contrário, cada um exige clarificação e defesa, especialmente quando os agentes fazem apelo a tais distinções ao procurar desculpabilizar a sua má

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conduta (“Desculpa. Não sei o que me deu. Estava tão zangado. Não estava em mim.”). No entanto, é natural supor, como Platão insistiu naRepública, que diferentes partes da alma podem entrar em conflito e dar origem a diferentes géneros de acções. O apetite impele-me a beber esta água, ao passo que a razão me faz parar para considerar se esta água estará contaminada. Outros tomaram de assalto este pensamento popular e filosófico insistindo, com Hume,13 que a razão e as paixões não podem entrar em conflito, porque a razão é motivacionalmente inerte, ao passo que as paixões compelem por natureza. Os indícios favoráveis a este modo de pensar surgem supostamente do facto de que podemos raciocinar correctamente que uma mudança quase imperceptível nos padrões de vida do primeiro mundo poderia eliminar a pobreza do terceiro sem que se faça algo nessa direcção. A razão calcula mas não dirige; as paixões motivam, mas não reflectem sobre os seus fins.

Estas atitudes diferentes perante a motivação humana evidenciam as areias movediças da psicologia moral. Aristóteles aceita uma posição moderada, afastando-se dos extremos de Hume, mas reconhecendo a perspectiva popular de que algumas partes da alma são racionais e outras não. É fácil ver que algumas partes não são racionais, dada a teoria proposta no De Anima: a alma nutritiva não é racional nem irracional, mas apenas arracional. Mesmo assim, sugere Aristóteles, podemos identificar correctamente uma parte arracional da alma, o lugar do apetite e do desejo, que pode realmente entrar em conflito com a razão, apesar de poder também responder à razão e ser integrada nos seus planos práticos numa vida bem ordenada. Aristóteles oferece como indício a favor desta perspectiva o facto de falarmos livremente de pessoas que controlam os seus impulsos e desejos, contrastando-as com quem sucumbe habitualmente às pontadas do desejo, ficando depois cheios de arrependimento e remorsos (Ética a Nicómaco 1102a 28-1103a 3).14 Aristóteles sugere que a menos que estejamos prontos a rever fortemente o modo como encaramos a psicologia motivacional, devemos aceitar tanto as partes racionais quanto as partes arracionais da alma, aceitando que podem entrar em conflito mas que podem também ser harmonizadas entre si num agente unificado.

Estas distinções no seio da alma encontram correlatos na nossa concepção da virtude. Dado que identificámos uma parte da alma que é puramente racional e outra que é arracional mas que pode ouvir a razão, é de prever que os tipos de virtude atribuídos a cada uma delas são diferentes. Em geral, vemos no De Anima que a razão pode ser teórica ou prática (De Anima 431a 8-17, 432b 27-433a 1, 433a 14-16), e Aristóteles reafirma-o na Ética a Nicómaco (1139a 26-35). A esfera teórica não lida com a acção, mas antes com a compreensão; a esfera prática, em contraste, diz respeito ao que fazer, à acção a levar a cabo e quando. Assim, conclui Aristóteles: “A virtude é de dois géneros, intelectual e moral” (Ética a Nicómaco 1103a 14-16). As virtudes morais são as que dizem respeito ao carácter,15 mas não se limitam à parte arracional da alma tomada isoladamente da racional. Pelo contrário, uma pessoa que seja totalmente virtuosa em termos do seu carácter integrará na sua parte arracional os fins da sua parte racional. Centrando-se primeiro nas virtudes de carácter, Aristóteles desenvolve uma análise geral da virtude moral visando não a análise teórica como fim em si, mas a melhor rota para nos tornarmos pessoas melhores. Afinal, argumenta, o propósito da teoria ética é ajudar-nos a tornarmo-nos bons (Ética a Nicómaco 1103b 26-34). Tendo este fim em vista, Aristóteles apela a uma doutrina sui generis ancorada no pensamento de que a virtude visa um tipo de habituação, o inculcar de estados de carácter fortes e profundamente enraizados, de um modo semelhante ao que encontramos na produção dos diferentes ofícios. Isto é, se o nosso objectivo for produzir pessoas boas e decentes, e se a sua bondade e decência de carácter consiste em exprimir virtudes estáveis de carácter, podemos guiar-nos pelo que acontece na produção de ofícios para ver a melhor maneira de sermos bem-sucedidos. Aristóteles observa que quando vemos a produção bem-sucedida de um ofício qualquer, digamos uma mesa bonita executada com mestria por um carpinteiro jornaleiro, vemos que concordamos que se atingiu um tipo de equilíbrio ou proporção: acrescentar ou subtrair algo iria piorar o produto (Ética a Nicómaco 1106b 8-16). Assim, talvez com base nesta analogia demasiado ténue, Aristóteles argumenta que uma virtude realizada alcança um meio-termo entre o excesso e a deficiência.

Juntando estes diferentes aspectos, Aristóteles oferece uma concepção geral da virtude moral, ou da virtude de carácter:

A virtude é um estado do género que emite decisões, consistindo no meio-termo relativo a nós, determinado por um raciocínio do género certo, que é a razão em termos da qual uma pessoa sábia (o phronimos) o determinaria. É um meio-termo entre dois vícios, o do excesso e o da deficiência. (Ética a Nicómaco 1106b 36-1107a 6; cf. 1138b 18-20)

Apesar de Aristóteles não apresentar um argumento cuidadoso a favor da sua concepção, oferece considerações a favor de cada uma das suas componentes. Para compreender a sua concepção temos de ter em consideração pelo menos brevemente cada um dos seguintes aspectos:

A primeira componente é que a virtude é um estado (hexis). Aristóteles argumenta brevemente que a virtude tem de ser ou um sentimento (pathos), ou uma capacidade (dunamis) ou um estado (hexis). Não pode ser um sentimento, porque se considera que as pessoas são excelentes ou terríveis com base na sua manifestação da virtude ou do vício, mas não por terem sentimentos de um ou outro género. Além disso, a virtude não pode ser uma mera capacidade, dado que somos por natureza dotados de capacidades e só nos tornamos virtuosos pelo exercício e pela habituação. Logo, a virtude tem de ser um estado (hexis), uma condição de carácter adquirida mas enraizada, que se alcança por meio do desenvolvimento guiado e da habituação (Ética a Nicómaco 1105b 20-1106a 13).

A virtude é o tipo de estado que emite decisões (hexis prohairetikê). Aristóteles está aqui a falar de um modo bastante técnico, usando um termo que noutros passos indica que envolve estarmos num estado que pressupõe uma deliberação anterior (Ética a Nicómaco1112a 14-16). Não está a sugerir, contudo, que a conduta virtuosa exige deliberação imediatamente antes da acção. Pelo contrário, a acção virtuosa resulta directamente de um estado

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enraizado. O que Aristóteles quer dizer é que um estado virtuoso é aquele que, tendo sido guiado pela deliberação ao ser inculcado, é o género de estado que tem como resultado a acção decisiva.

A virtude é determinada pelo raciocínio do género certo (orthos logos), raciocínio que pode ter como resultado uma direcção geral da conduta numa situação geral, apesar de não numa regra determinada ou de pormenor para todas as situações (cf. Ética a Nicómaco 1138b 18-1140b 24).

Este género de raciocínio certo é precisamente o que uma pessoa inteligente, ou uma pessoa de entendimento ou de sabedoria prática (phronimos), faria na situação em causa. Tal pessoa consegue apreender o que é realmente verdadeiro quanto ao que é bom ou mau para um ser humano, de modo que não será vítima de confusões imprudentes. Aristóteles não está a dizer que a pessoa inteligente determina por fiat o que é certo, mas antes que, dado que essa pessoa inteligente caracteristicamente reconhece o que é certo, é uma boa ideia seguir na sua peugada (cf. Ética a Nicómaco 1140a 25-b6).

Finalmente, a virtude é o meio-termo (mesotês) entre extremos, mas apenas relativamente a nós. Ao falar de um meio-termo relativo a nós, Aristóteles está a sugerir que um agente tem de olhar para si mesmo e para o seu contexto ao fazer uma determinação. Assim, seria errado apoiar-se numa fórmula puramente quantitativa. Se seis é o meio-termo entre dez e dois, não devemos inferir que devemos comer seis pedaços de pizza, com base na ideia de que dez seria excessivo e duas seria pouco. O que devemos comer depende dos factos que nos são peculiares, do nosso peso, da rapidez do nosso metabolismo e assim por diante. Talvez o lutador Milo deva comer seis pedaços de pizza, porque isso seria saudável para ele; mas isto não seria a quantidade média para a maior parte das pessoas. Aplicada às virtudes de carácter, a sugestão de Aristóteles seria que não há, por exemplo, uma quantidade determinada de indignação moral adequada a todos os agentes em todos os contextos. Uma grande indignação é excessiva quando um criado nos dá uma colher errada para comer uma toranja, mas não é inadequada se o mesmo criado, sem qualquer provocação, nos disser que gostaria de abusar sexualmente da nossa filha.

Entre estas componentes, a mais peculiar é a doutrina do meio-termo, que por isso requer mais desenvolvimentos.

Aristóteles observa que não procuramos o meio-termo em todas as circunstâncias, nem procuramos o meio-termo sob qualquer descrição possível da acção em causa. Algumas acções são vis, independentemente do resto: não praticamos adultério com a vizinha certa no momento certo e na quantidade certa. Como o seu próprio nome sugere, o adultério é um vício (Ética a Nicómaco 1107a 9-25). O que Aristóteles tem em vista aqui tem uma dimensão substancial e outra não substancial. No lado não substancial, Aristóteles está pura e simplesmente a assinalar que um meio-termo só existe relativamente a algumas descrições de acções, mas não a outras. Apesar disso, um juízo sobre que descrições se deve usar reflecte já um juízo sobre o que se deve considerar bom ou não — tal como o adultério é sempre considerado vil. Talvez, contudo, aceitemos o que Aristóteles pensa quando discutimos, por exemplo, se uma morte foi homicídio voluntário ou involuntário, pressupondo-se nesse caso que se foi voluntário é mais repreensível do que se foi involuntário. Mesmo assim, há alguma dificuldade sobre quando é apropriado seleccionar descrições que pressupõem que uma acção é tão completamente viciosa que não se situa em qualquer contínuo no qual a virtude ocupe a posição do meio.

Reconhecendo isso, a doutrina do meio-termo de Aristóteles compreende-se melhor em relação às virtudes individuais, como ele mesmo insiste. Ao apresentar a sua teoria, Aristóteles descobre ser necessário recorrer a neologismos e apropriações da linguagem comum. Aristóteles não pensa que isto é problemático, dado comentar que em alguns casos os extremos não têm nome (Ética a Nicómaco 1107b 2). Isto pode resultar simplesmente do facto de que raramente ou nunca encontramos pessoas com deficiências em algumas dimensões. Em qualquer caso, Aristóteles irá sugerir que onde a temeridade e a cobardia são a deficiência e o excesso, a coragem é o meio-termo; entre a autocomplacência e a privação, a moderação é o meio-termo; onde se controlam grandes somas de dinheiro, entre os excessos da ostentação e da avareza está o meio-termo da magnificência; mas quando estão em causa somas menores, entre o esbanjamento e a sovinice está a generosidade (Ética a Nicómaco 1107a 32-1108a 31). Nestes e noutros casos semelhantes Aristóteles pensa que é em princípio possível pôr a acção virtuosa num contínuo, ainda que as suas extremidades não sejam reconhecidas no discurso popular.

Consequentemente, a doutrina do meio-termo de Aristóteles foi objecto de críticas, por vezes com base na ideia de que é forçada ou artificial, e consequentemente talvez insuficientemente geral. O primeiro tipo de crítica nesta direcção não tem grande peso. O facto simples de não termos nomes para alguns dos excessos ou deficiências tem pouca importância a menos que se possa mostrar que os únicos excessos ou deficiências de carácter são as que por acaso reconhecemos ou nomeámos. O segundo género de crítica tem mais repercussões.16 Para ver o problema, considere-se a virtude da honestidade. Se concordarmos que é uma virtude, então não parece haver um excesso óbvio relativamente ao qual a deficiência correspondente seja um vício. Isto é, o vício associado à honestidade é mentir, que é o seu oposto. Assim, mesmo que se inventasse um excesso, como dizer verdades dolorosas (“Meu Deus, engordaste imenso”), por exemplo, não parece haver qualquer contínuo que não seja forçado e no final do qual esteja a mentira. Ora bem, saber quão sério é este problema depende em parte do âmbito das virtudes que estamos dispostos a ter em consideração. O género de honestidade que Aristóteles discute na Ética a Nicómaco é apenas um tipo de honestidade relacionada com a auto-estima, que parece razoavelmente adequada ao seu tratamento preferido. Trata-se de honestidade relativa aos nossos próprios feitos, caso em que os excessos são a gabarolice e a autodepreciação (Ética a Nicómaco 1108a 20-23). Contudo, é difícil determinar que virtudes afinal de contas devemos ter em conta. Numa certa direcção, seria inapropriado permitir que Aristóteles seleccionasse apenas as virtudes passíveis de tratamento usando a noção de meio-termo; noutra direcção, sem garantia externa, seria prematuro concluir que o seu enquadramento desaba por não poder lidar com algumas virtudes aparentes às quais não se adequa. Em qualquer caso, contudo, cabe a Aristóteles o ónus de fornecer um

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processo de decisão legítimo para lidar com os casos disputados. Sem isso, Aristóteles será no mínimo culpado de um infeliz provincianismo de vistas curtas.17

Um quebra-cabeças sobre a acrasia

As virtudes de carácter não esgotam a virtude humana, dado haver igualmente virtudes do intelecto, que pertencem à parte racional da alma, e que serão também tidas em consideração. Aristóteles dedica o livro VI de Ética a Nicómaco a esta tarefa, dando lugar no livro seguinte a uma emaranhada e cativante discussão da acrasia —incontinência ou fraqueza da vontade, ou simplesmente falta de autodomínio. Recorde-se que nas suas discussões das virtudes de carácter Aristóteles insistiu que há duas partes da alma, uma racional e uma receptiva à razão. Um pequeno indício a favor dessa distinção apelava à experiência comum, em que por vezes damos connosco a violar as nossas próprias decisões racionais, a ponto de darmos connosco a fazer coisas que decidimos não fazer (Ética a Nicómaco 1102a 28-1103a 3). Apesar de comuns, tais experiências são enigmáticas, em parte porque levantam questões sobre as relações entre as diferentes partes das nossas almas ou dos nossos eus. Suponha-se que decido fazer exercício físico hoje. Visto o fato de treino e dirijo-me ao ginásio — mas então decido, a meio do caminho, entrar num bar para tomar uma bebida. Acabo por socializar em vez de fazer exercício, e de manhã arrependo-me de não ter cumprido, uma vez mais, o que tinha decidido fazer. Podemos muito bem perguntar-nos: se decidi anteriormente fazer Φ e agora me arrependo de não ter feito Ψ, que relação tenho com a pessoa que decidiu, entre antes e depois, fazer Ψ em vez de Φ? Certamente que sou a mesma pessoa (daí que me arrependa), e entretanto limitei-me a abandonar a minha decisão anterior de fazer Φ (mas então porquê arrepender-me?). Talvez eu deseje não ser o género de pessoa que sou; mas então compete-me a mim não ser tal pessoa.

Estes géneros de questões são importantes para Aristóteles porque ele tem a esperança de captar os fenómenos das nossas vidas tal como as vivemos e porque precisa de mostrar como as faculdades racionais e não racionais das nossas almas se intersectam para tornar praticável uma vida humana plena de florescimento. Aristóteles tem algumas dificuldades na caracterização da acrasia, e exibe alguma ambivalência quanto à melhor maneira de a conceber. Por um lado, critica Sócrates, que tinha argumentado no Protágoras contra a possibilidade da acrasia, pelo menos contra o pano de fundo de um certo tipo de agência muitíssimo unificada.18 O argumento de Sócrates nesta direcção, adverte Aristóteles, “contradiz as aparências manifestas” (Ética a Nicómaco 1145b 27-28). Isto pode parecer razoável: certamente que temos por vezes falta de força de vontade. Na verdade, para muitos de nós, o ciclo da acrasia é infelizmente bem conhecido: resolvemos adoptar um curso de acção a de preferência a b porque acreditamos que a é, tendo tudo o resto em consideração, preferível a b, e no entanto, quando chega o momento da acção, escolhemos b, para logo de seguida nos recriminarmos e arrependermos duramente, resolvendo então uma vez mais ser mais fortes e melhores na próxima oportunidade. Certamente que se Sócrates quisesse negar este género de experiência teria de explicar eliminativamente grande parte da nossa experiência comum. É isto que Aristóteles tem em mente quando o critica por negar os fenómenos. Contudo, curiosamente, no final do seu tratamento da acrasia, Aristóteles acaba por fazer um juízo bastante mais amigável de Sócrates. De certo modo, afirma, a sua própria concepção parece dar a Sócrates o que este procurava: que o conhecimento não pode ser arrastado como um escravo pelas paixões senhoriais (Ética a Nicómaco 1145b324-25, 1147b15). Uma maneira de compreender a posição de Aristóteles é, então, determinar como Sócrates tem e não tem razão quanto à acrasia.

A questão é complicada porque temos duas camadas de interpretação em interacção, nomeadamente a nossa perspectiva do que Sócrates defende no Protágoras e o modo como Aristóteles o apresenta, talvez com base no mesmo diálogo.19 Tal como Aristóteles o apresenta, Sócrates negava o fenómeno da acrasia por tratar todos os casos de fraqueza como casos de imperfeição cognitiva. Aceitaremos fundamentalmente o modo como Aristóteles o apresenta, dado que neste contexto queremos compreender a perspectiva de Aristóteles sobre a questão. Segundo Sócrates, não devemos atribuir a uma deficiência da vontade as causas da nossa fraqueza, nem a um desejo dominador de qualquer tipo, mas a um erro de cálculo. Na verdade, relativamente a um certo grupo de pressupostos de fundo, isto pode parecer perfeitamente correcto. Suponha-se que estamos muitíssimo unificados, no sentido em que submetemos todas as decisões a uma única faculdade inconsútil que rege as acções. Além disso, se somos hedonistas egocêntricos sempre preocupados com a maximização do nosso próprio prazer, e fixando sempre a atenção no único género de prazer que há, é difícil ver como podemos errar — a menos que não compreendamos os resultados prováveis das nossas acções. É como se fôssemos investidores dedicados da bolsa de valores que, tendo determinado a melhor maneira de maximizar os lucros, decidíssemos contudo investir o nosso dinheiro em acções que prevemos que não darão os melhores resultados. Tal conduta seria estranha. No mínimo, exigiria explicação. Afinal, não teríamos motivo para nos entregarmos a tal conduta nessas circunstâncias. Mais provável é o pensamento de que se de facto comprámos as piores acções, a única explicação plausível para isso reside no erro de cálculo. Mas isso é um erro cognitivo.

É muito fácil ver por que pensa Aristóteles que esta imagem socrática está errada. Será menos fácil ver como pode estar certa. Para começar, segundo Aristóteles, a imagem socrática baseia-se numa psicologia moral falsa, segundo a qual somos de facto agentes muitíssimo unificados. Na verdade, não o somos. Como vimos, as nossas almas têm facetas racionais e arracionais e estas podem entrar em conflito ao compelir-nos a agir. Assim, Aristóteles começa por objectar à psicologia subjacente que dá origem à impossibilidade da acrasia.

Aristóteles argumenta que há mais complexidades que têm também de entrar na nossa concepção. Para começar, é preciso observar duas distinções de fundo. Primeiro, tanto podemos falar de ter como de usar conhecimento, uma distinção já presente no De Anima (417a 21-b1), no qual foi feita em termos de primeira e segunda efectividade (Ética a Nicómaco 1146b 31). Claire pode ter conhecimento da existência de um desvio no seu caminho para casa, mas não o usar, no sentido em que não está agora a pensar nele, por várias razões. Essas razões não são relevantes se ela agora não está a dirigir-se para casa, estando antes na sua clínica, recebendo os seus doentes e concentrando-se no seu cuidado e tratamento. Tornam-se relevantes se, ao dirigir-se para casa, estiver tão distraída

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debatendo de si para si se terá prescrito o melhor tratamento para um dado paciente que não usa o seu conhecimento; é então plausível que se culpe a si mesma, ao ficar presa no trânsito, lamentando-se por saber que havia um desvio que poderia ter usado.

A segunda distinção preliminar é um pouco mais complexa, envolvendo o que no espírito de Aristóteles parece uma reconstrução racional dos antecedentes da nossa acção. De cada vez que fazemos algo intencionalmente, sugere, podemos encarar a nossa acção como se fosse precedida, pelo menos implicitamente, por um tipo de silogismo prático, feito de uma premissa universal e outra particular.20 A premissa universal recomenda um dado fim, por exemplo, que se coma coisas doces (Ética a Nicómaco 1144a 31-33). A premissa particular situa quem age na situação a que a premissa universal se aplica, por exemplo, isto é doce. Na melhor das hipóteses, Aristóteles está a oferecer uma reconstrução racional, pois não ensaiamos efectivamente tal silogismo de nós para nós de cada vez que agimos. Mesmo assim, num vasto domínio de casos, é plausível que tal representação seja possível e adequada.

Com estas distinções, o perfil básico da abordagem de Aristóteles da acrasia é claro, apesar de os pormenores serem depois objecto de intensos debates. A ideia básica de Aristóteles é que, combinando estas duas distinções preliminares, os erros de conhecimento podem assumir diferentes formas. Podemos 1) ter conhecimento da premissa universal mas não o usar, 2) ter conhecimento da premissa particular mas não o usar; ou em princípio 3) ter e usar o conhecimento das duas premissas, mas não as usar simultaneamente. Esta última sugestão pode ser algo surpreendente, mas a ideia tem um análogo lógico natural. O Rafael pode saber que todos os mamíferos têm pulmões e que este golfinho é um mamífero, mas ficar surpreendido que o veterinário se proponha fazer um transplante de pulmão no seu golfinho por não ter de algum modo conectado os dois pedaços de informação, não se tendo por isso dado conta de que este golfinho tem pulmões. Se isto é possível, então o seu erro de conhecimento é de algum modo uma questão de gestalt e não uma questão localizada.

Aristóteles chama a atenção para este tipo de questão de gestalt (Ética a Nicómaco1147a 31-b 5), e também para ambas as premissas individualmente, sublinhando por vezes erros de conhecimento que dizem respeito à particular e outras vezes à universal. Seja onde for que localizemos o erro de conhecimento em causa, a acrasia é possível, sugere, porque “sabemos e não sabemos” (Ética a Nicómaco 1147b 17-18). Nesta medida, Sócrates fica afinal vindicado: a acrasia envolve realmente um erro de conhecimento, ainda que não o erro simples de conhecimento que ele tinha em mente (Ética a Nicómaco 1147a 14-19).

O tratamento que Aristóteles dá à acrasia resiste a uma interpretação fácil; consequentemente, também é difícil avaliar a sua defensibilidade. Há pouco consenso académico quanto aos contornos precisos da sua perspectiva, apesar de isto se dever em parte à falta de clareza com que tanto ele como nós vemos os fenómenos em causa. Não é pedir uma especial benevolência em nome de Aristóteles se notarmos que os quebra-cabeças sobre a acrasia admitem várias formulações, algumas das quais recônditas e longe da experiência e outras surpreendentes pela sua simplicidade. Assim, se algumas das dificuldades com o tratamento de Aristóteles resultam da sua própria hesitação e falta de clareza, parece justo concluir que algumas dificuldades resultam também do carácter permanentemente enigmático do fenómeno.21

Amizade

Aristóteles ocupa-se de muitas virtudes, tanto morais quanto intelectuais, ao longo daÉtica a Nicómaco. Um género de virtude, ou concomitante da virtude (Ética a Nicómaco1155a 3-5), merece especial atenção porque tem tendência para corrigir uma impressão errada que se poderá formar quanto à teoria ética de Aristóteles. A impressão errada é que a teoria de Aristóteles é completamente egoísta: centrámo-nos na felicidade (eudemonia) e na melhor maneira de a assegurar. Seria natural concluir, nesta base, que a teoria ética começa e acaba com uma concepção das atitudes que se referem a nós mesmos. Para corrigir esta impressão errada o melhor é ver o tratamento dado por Aristóteles à amizade (philia).

Podemos muito bem perguntar, de um modo interesseiro, por que haveremos de querer amigos, se tê-los exige que cuidemos do seu bem-estar mesmo que isso signifique em alguns casos o sacrifício do nosso bem-estar. Mesmo que consideremos que os amigos são necessários para a nossa felicidade, poderia no entanto parecer que é melhor encarar os amigos como meros instrumentos do nosso próprio prazer, brinquedos para usar quando isso nos interessa e para pôr na prateleira caso contrário. Aristóteles identifica tipos diferentes de amizade (Ética a Nicómaco 1156a 6-b33), alguns dos quais podem parecer nada esperar senão este género de instrumentalismo:

Amizades baseadas na utilidade, onde um laço se forma primariamente na base do benefício mútuo, do género que caracteriza as relações profissionais.

Amizades baseadas no prazer, sendo a base do prazer os prazeres partilhados, como quando pessoas de espírito gostam de trocar comentários astutos.

Amizades baseadas na bondade, amizades completas ou perfeitas, nas quais duas pessoas iguais em virtude gostam uma da outra por elas mesmas, e formam as suas amizades na base do carácter.

Aristóteles observa que as primeiras duas formas de amizade, que considera secundárias, se dissolvem facilmente e tendem a desaparecer quando a fonte da amizade se esgota.

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Se estes tipos de relações são casos de amizade, então a amizade não exige cuidado pelo outro por si mesmo (cf. Ética a Nicómaco 1155b 31-1156a 5, onde Aristóteles todavia parece sugerir que toda a amizade exige tal cuidado). Pois nem as amizades utilitárias nem as amizades do prazer parecem exigir qualquer consideração referente ao outro por parte dos envolvidos. Sugere-se por vezes que a estranheza que esta posição nos faz sentir resulta do âmbito muito vasto que Aristóteles tem em mente com a philia, que ultrapassa a amizade num sentido moderno e reconhecível. A tradução, contudo, não parece má, dado que também falamos de amizades nas relações empresariais (“Tenho um amigo no serviço de transportes que pode verificar o estado da encomenda”) e nas relações baseadas no prazer (“O Marco era o género de amigo que eu procurava quando estava em baixo e queria esquecer os meus problemas”). A questão principal destas amizades é que são formas secundárias de amizade, como Aristóteles sugere: apesar de úteis, ou até mesmo necessárias, para uma vida agradável, não representam o interesse primário de Aristóteles na amizade, que ele restringe ao tipo melhor, as amizades baseadas na bondade. Na sua melhor forma, a amizade perdura enquanto perdurar a virtude; mas dado que a virtude é um estado de carácter estável e se alarga essencialmente no tempo, as verdadeiras amizades não são fáceis de dissolver.

Na verdade, na amizade perfeita, é de esperar que os amigos se encarem entre si como segundos eus. Parcialmente nesta base, Aristóteles argumenta que temos razão para amar os outros como nos amamos a nós — e temos realmente razão para nos amarmos a nós. Uma vez feita a distinção entre a auto-estima apropriada, que se funda numa concepção correcta do eu como ser racional, e não como um egocêntrico que procura o prazer, o dinheiro ou a honra, temos razão para considerar que temos valor intrínseco (Ética a Nicómaco 1168b 11-1169a 7). Nas amizades perfeitas entre parceiros igualmente virtuosos, contudo, um amigo irá partilhar o carácter do outro, de modo que o que um valoriza em si reconhecerá também no outro. O bem amado em nós será então igualmente realizado e amado no nosso segundo eu. Não havendo qualquer distinção relevante entre estas formas de bondade, um amigo, sugere Aristóteles, terá razão para sacrificar bens, riqueza e até a vida, pelo outro. Isto, é claro, é a passagem crucial, ou tentativa de o fazer, do eu para o outro, e portanto do egoísmo estrito para uma forma inegável de altruísmo, envolvendo um amigo na conduta centrada no outro.

Aristóteles sustenta esta sugestão apelando às condições originais do bem mais elevado, argumentando que a amizade é necessária para a auto-suficiência, a condição que quando é satisfeita dá origem a uma vida a que nada falta (Ética a Nicómaco 1097b 6-16).22 Como eudemonistas temos então motivação para procurar a nossa própria felicidade; alcançamos o florescimento humano, contudo, apenas na companhia de amigos indispensáveis. Quando temos amigos de grande bondade e carácter, reconhecemos previamente o seu valor: não são bons por serem nossos amigos, são nossos amigos por serem bons, e manifestam os traços que correctamente reconhecemos como bons em nós mesmos. Objectar que estaríamos assim a usar tais amigos em virtude da nossa própria felicidade é confundir a amizade perfeita com as amizades utilitárias.

De facto, o tratamento que Aristóteles dá ao fundamento filial do altruísmo tem dois aspectos discerníveis, que dependem talvez um do outro. Não os apresenta como argumentos diferentes, apesar de parecer que dependem de considerações crucialmente diferentes. É melhor apresentá-los emparelhados, de modo a sublinhar as suas diferentes fontes. Este processo ajuda também a destacar uma componente dos seus argumentos que muitas vezes passa despercebida, nomeadamente que se apoiam no que Aristóteles encara agora como doutrinas estabelecidas nas suas teorias metafísicas e psicológicas.

O primeiro argumento leva a sério a linguagem dos amigos como segundos eus (SE) (Ética a Nicómaco 1107b5-14):

Se somos bons e virtuosos, então encaramo-nos adequadamente com amor-próprio.

Se essas características são dignas de amor tal como ocorrem em nós, então não são menos dignas de amor se ocorrerem nos nossos amigos, que são os nossos segundos eus.

Porque são nossos iguais em virtude, os nossos amigos manifestam na verdade as mesmas boas características que nós manifestamos.

Logo, as boas características manifestadas pelos nossos amigos são dignas de amor.

Se as suas características são dignas de amor, então isto dá-nos razão para cuidar dos nossos amigos por causa de quem são.

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Logo, temos razão para cuidar dos nossos amigos por causa de quem são (Ética a Nicómaco 1156a 19-11, 1156b 10, 1156a 17-18).

Com este género de base, Aristóteles conclui que “tal como o ser de cada pessoa é digo de escolha, também o ser de um amigo o é” (Ética a Nicómaco 1170b 7-8).

A primeira premissa, SE-1, reafirma que o amor-próprio apropriado é perfeitamente virtuoso. Se negarmos falsamente o nosso valor racional, então estaremos a vilipendiar-nos; se exagerarmos o nosso valor, então seremos fanfarrões com a mania das grandezas. Se é realmente verdade que estamos em condições de responder aos critérios estabelecidos para a melhor vida humana, então é trivial que atingimos uma condição boa em si, e apropriadamente reconhecida como tal. SE-2 defende que os traços virtuosos não são melhores pelo facto de serem nossos, nem piores por seremdos outros. Sobretudo se o outro for o meu segundo eu. Ora, é tentador insistir neste ponto que a conversa sobre “segundos eus” é um oximoro: um eu é necessariamente um indivíduo e não pode haver mais de um de cada. É duvidoso que Aristóteles esteja a tentar negar isto. Ao invés, os amigos de igual virtude são exemplificações de um tipo; e o tipo é algo digno de amor. É difícil determinar por que não seria arbitrário amar uma exemplificação de um tipo mas não outra. Se um compositor considera correctamente que a sua obra-prima exemplifica uma grande beleza, mas reconhece esta mesma beleza na composição de outro, parece haver pouco espaço para insistir que a beleza da sua obra é mais bela, ou mais valiosa, porque se manifesta na sua obra.

Ao avaliar SE-2 e as premissas seguintes é importante darmo-nos conta de que neste argumento Aristóteles se apoia na sua concepção geral da felicidade humana, como algo objectivamente dado e determinado pela essência dos seres humanos. Se neste ponto recordarmos a concepção objectiva que Aristóteles tem da felicidade,23 então podemos ver que os juízos sobre a felicidade são juízos sobre o florescimento humano. Se pensarmos que o florescimento humano é uma coisa boa, então considerá-la-emos uma coisa boa tanto nos nossos amigos como em nós mesmos. Segue-se, é claro, que quando mostramos cuidado pelos nossos amigos não estamos interessados em ajudá-los a garantir os fins dos seus desejos, independentemente do que forem. Pelo contrário, se os nossos amigos desejarem coisas más para o seu florescimento, então dizemos-lhes isso mesmo, precisamente porque são nossos amigos e nos preocupamos com eles.

O segundo aspecto da defesa da amizade levada a cabo por Aristóteles faz também uso da sua concepção geral de felicidade e das suas bases metafísicas. Aristóteles argumenta que uma condição estabelecida para a melhor vida é especialmente significante quando ponderamos sobre a razão de ser da amizade. O bem final para os seres humanos tem de ser auto-suficiente (autarkês), de tal modo que a sua presença seja suficiente para que nada falte na vida (Ética a Nicómaco 1097b 6-16). Aristóteles argumenta agora corajosamente que não se pode ser auto-suficiente sem amizade:

Se o ser é de valor em si para a pessoa abençoada, por ser naturalmente bom e agradável, e se o ser do seu amigo é muito semelhante ao seu, então também o seu amigo será de valor. O que for de valor para si, seja isso o que for, ele tem de ter, dado que de outro modo terá falta de algo. Logo, para qualquer pessoa ser feliz é necessário ter amigos excelentes. (Ética a Nicómaco 1170b 14-19)

Em alguns aspectos, este argumento depende da perspectiva de Aristóteles de que os amigos são segundos eus; mas também acrescenta uma afirmação mais forte.

A afirmação que acrescenta é que quem não tem amigos não tem auto-suficiência (FSE):

Se S não tem um amigo de valor, então falta-lhe algo de valor.

Se a S lhe falta algo de valor, então não é auto-suficiente.

Se S não é auto-suficiente, então não é feliz.

Logo, se S não tem um amigo de valor, não é feliz.

FSE-1 parece basear-se nas reflexões de Aristóteles sobre a interacção entre o amor-próprio adequado e o reconhecimento dos fundamentos desse amor tal como este se manifesta noutra pessoa. Aristóteles volta uma vez mais ao enquadramento geral da sua concepção objectiva da felicidade recordando que a melhor vida, seja ela qual for, será a que for auto-suficiente. Se os amigos são necessários para a auto-suficiência, então os amigos são igualmente necessários para a felicidade.

Num certo sentido, FSE-4 não parece levar-nos do egoísmo estrito para uma forma qualquer de altruísmo. Afinal, quando alguém tem um amigo, poderá observar-se, essa pessoa poderá ser feliz; caso exista a ameaça de perder esse amigo a menos que se faça sacrifícios, então bastará substituir esse amigo por outro. Assim, a exigência de auto-suficiência, mesmo interpretada deste modo, continua a ser compatível com um instrumentalismo indecente.

A atitude de Aristóteles perante este género de crítica tem várias partes. Para começar, Aristóteles sugere que este género de queixa pode trair simplesmente uma espécie especialmente fátua de egoísmo psicológico: parece pressupor que é sempre possível, ou talvez até necessário, encarar os outros em termos inteiramente instrumentais.

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Aristóteles põe isto em dúvida, porque depois de se concordar que um amigo, por ser virtuoso, adquiriu valor objectivo intrínseco, torna-se difícil imaginar por que razão se deveria pôr isto de lado quando vamos agir, ou na verdade como poderíamos pôr isso de lado — se, bem entendido, formámos uma amizade perfeita com essa pessoa. Se temos razão para sermos virtuosos, e se a amizade é uma virtude, então temos uma razão para desenvolver amizades perfeitas. Tendo desenvolvido tais laços, iremos agir pelos outros como expressão da amizade que nutrimos por eles. Se estivermos a pensar na sua utilidade para nós, então estaremos também a pensar neles não em termos da amizade perfeita, mas em termos da utilidade. Parece desnecessário concordar que todas as amizades têm de se restringir a meras amizades de utilidade. Além disso, parece implausível que um ser humano em pleno florescimento no sentido aristotélico estivesse disposto a encarar todos os outros — todos os amigos íntimos, todos os membros da família, todas as pessoas que ama — nesses termos estritamente instrumentais.

Parte da razão pela qual isto parece implausível a Aristóteles é que é provável que tenhamos géneros bastante diferentes de respostas afectivas às amizades baseadas na utilidade e às amizades baseadas na bondade. Para ilustrar os géneros de respostas afectivas que é de esperar que os amigos perfeitos invoquem entre si, Aristóteles apela frequentemente ao género de cuidado terno que uma mãe tem pelos seus filhos (Ética a Nicómaco 1159a 28, 1161b 27, 1166a 5-9). É um lugar-comum que os pais sofrem e sacrificam-se voluntariamente pelo bem-estar dos seus filhos. Do ponto de vista do objector, talvez o comportamento dos pais seja irracional. Do ponto de vista de Aristóteles, representa a resposta afectiva humana normal a um objecto de amor.

O bem final para os seres humanos reconsiderado

Depois de completar as suas concepções das virtudes, Aristóteles regressa no último livro da Ética a Nicómaco à questão da melhor vida para os seres humanos, como tinha feito no primeiro livro. Apesar de começar como um resumo reconhecível, a recapitulação traz consigo uma surpresa. À medida que Aristóteles expõe a sua perspectiva, introduz elementos que não só não foram mencionados no seu tratamento anterior, como são tão singulares e distintivos que ameaçam contradizer directamente a concepção anterior. Para alguns académicos, a contradição é tão óbvia e palpável que mostra claramente que o livro X da Ética a Nicómaco não pode ser parte de uma única obra, juntamente com os outros nove. Para outros, as coisas parecem menos extremas; apesar de parecer haver alguma tensão, é possível reconciliar o que se diz nestas diferentes partes da obra se atendermos ao modo como Aristóteles apresenta as questões.

O problema surge mais directamente quando Aristóteles revisita a sua concepção da melhor vida:

Se a felicidade é uma actividade de acordo com a virtude, é razoável que isto seja a virtude suprema; mas esta será a virtude do que é melhor. Se isto será a razão ou outra coisa que por natureza pareça governar e conduzir e ter pensamentos de coisas excelentes e divinas — seja ela mesma divina ou o mais divino elemento em nós — a sua actividade própria será a felicidade completa. Como foi dito, esta actividade é a actividade da contemplação. Isto concordaria com o que se disse antes, e também com a verdade. (Ética a Nicómaco 1177a 12-19)

É surpreendente ver Aristóteles defender que a perspectiva aqui expressa se harmoniza com o que foi dito alhures. Pois, pelo contrário, independentemente de saber se o que aqui afirma está de acordo com a verdade, não parece estar de acordo com o que se disse antes, pois não se disse que o bem humano consiste na contemplação. Ao invés, tendo dividido a alma racional no racional e no arracional, o grosso da Ética a Nicómaco dedicou-se à discussão das virtudes morais, ou virtudes de carácter, seguida de uma discussão das virtudes teóricas. Se a expressão de tais virtudes se exclui agora do domínio da felicidade, então esta afirmação não só não se harmoniza com o que se disse anteriormente, como não poderá sequer reconciliar-se com isso.

Vê-se de modo mais nítido o problema que Aristóteles enfrenta ao aceitar o seguinte par de proposições inconsistentes, sendo uma delas uma concepção abrangente do bem e a outra uma concepção restrita:

Um bem abrangente: o bem humano consiste na expressão da virtude humana, incluindo esta um vasto domínio de actividades, abrangendo todo o domínio de virtudes morais e intelectuais.

Um bem restrito: o bem humano consiste na expressão da virtude humana, limitando-se esta à melhor virtude intelectual, nomeadamente a contemplação.

Expresso nestes termos, se Aristóteles sustenta que o bem humano é um bem abrangente ao longo da maior parte da Ética a Nicómaco afirmando depois no último livro uma concepção restrita, encontra-se numa situação desconfortável.

Ainda antes de levantarmos questões de consistência, contudo, a concepção restrita do bem humano é motivo de preocupação em si mesma. Certamente que se pode temer que a concepção restrita seja excessivamente restrita. Afinal, é de esperar que a pessoa virtuosa tenha amigos, e que seja justa, e que o faça porque a realização humana consiste na expressão de virtudes que têm um carácter inevitavelmente social. Alhures, Aristóteles afirma, em harmonia com a sua concepção lata de bem humano, que os seres humanos são por natureza animais políticos, que na verdade os seus traços essenciais os levam a formar associações sociais (Política 1353a 7-18, 178b 15-30).24 Mas se agora, afinal de contas, o bem humano é apenas a contemplação, e se tudo o que fazemos o fazemos pela contemplação, então quase todas as nossas acções visarão em última análise algo solitário e fundamentalmente associal, algo mais próprio de deuses do que de seres humanos.

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De facto, Aristóteles parece realmente asserir que devemos tentar ser tão parecidos com os deuses quanto possível (Ética a Nicómaco 1177b 26-1178a 2), concebendo a actividade dos deuses como algo que se restringe a uma forma curiosamente austera de contemplação auto-referencial (Metafísica 1074b 29-30). Se tudo é feito em nome desses raros momentos em que podemos erguer-nos e ultrapassar o limiar intelectual, entrando no domínio do divino, então raramente podemos florescer, dado que os nossos momentos de contemplação só raramente irão interromper o restante das nossas vidas animais que consistem em comer, beber e socializar. Além disso, parecerá que nesta concepção restrita nada senão esta forma majestosa de actividade será intrinsecamente valiosa, dado que tudo será feito em nome de outra coisa. E isto parece ignorar que somos animais, preferindo ao invés fingir que somos deuses humanos menores.

Ora bem, a tensão geral presente nas concepções lata e restrita do bem humano deu origem a uma vasta bibliografia.25 Não podemos fazer mais aqui do que apontar para dois géneros de resoluções, dando a primeira lugar às complexidades da segunda. Estas resoluções tentam evitar a conclusão directa de que Aristóteles se contradisse. Coisa que é, evidentemente, possível. Outra possibilidade dentro da mesma tendência geral não atribuiria uma contradição a Aristóteles mas permitiria que ele teria simplesmente mudado de ideias a dado ponto, como muitas vezes nos acontece, dado que as perspectivas são inconsistentes entre si, e temos em qualquer caso razões independentes para pensar que o último livro de Ética a Nicómaco não pode fazer parte de uma obra unitária cujas outras partes incluam os primeiros nove livros.26Independentemente do peso dessas razões independentes, devemos dar-nos conta de que o problema aqui introduzido admite em princípio várias resoluções.

Isto pode acontecer porque a (aparente) contradição entre a concepção abrangente e a restrita dá origem a vários problemas diferentes. O primeiro género de resolução é bastante deflacionária, apesar de isso não ser em si mau. É imediatamente visível que Aristóteles está ciente de alguma tensão nesta direcção e que está disposto a classificar simplesmente formas de felicidade. Depois do capítulo 7 do livro X da Ética a Nicómaco, insistindo que a vida de contemplação “será a mais feliz” (1178a 8), Aristóteles começa o capítulo seguinte com a seguinte observação:

A segunda vida mais feliz é a que está de acordo com o outro género de virtude; pois as actividades deste género são humanas. Pois fazemos apenas coisas justas e corajosas e os outros tipos de coisas de acordo com este género de virtude em relação uns aos outros […] e todas parecem humanas. (Ética a Nicómaco 1178a 9-14)

Um pensamento simples seria então o seguinte: a felicidade admite graus, sendo a melhor felicidade a contemplação, mas a segunda melhor felicidade, que é à mesma genuína, é o género de felicidade que abrange todas as formas de virtude humana, tanto intelectuais quanto morais. Haverá então um limiar a ultrapassar para ser feliz, a partir do qual algumas vidas serão mais felizes do que outras apesar de todas serem, digamos, totalmente felizes. Suponha-se que para obter nota A um aluno tem de ter mais de 95% nos seus exames finais. Um estudante tem uns admiráveis 95,1% e outro uns incríveis 99,9%. Ambos ganharam total e completamente a nota A; nenhum pode ser mais classificado como nota A do que qualquer outro. Todavia, há um sentido correcto em que um deles foi mais longe do que os outros, sendo por isso mais digno. No caso da felicidade humana, os juízos de escala são totalmente apropriados, pois a felicidade consiste na efectivação de um bem final funcionalmente específico, e as categorias funcionais são categorias com escalas.

Claro que este género de resolução deflacionária é boa em certa medida, mas não vai suficientemente longe. Isto é, mesmo que esteja correcta, não dá conta de uma preocupação subjacente quanto à questão de as acções feitas por causa da felicidade terem ou não de ser encaradas como tendo um valor meramente instrumental. Pois certamente que as acções feitas por causa de um fim além de si mesmas podem também ser valorizadas em si. Além disso, é de esperar que uma vida humana abranja todo o género de actividades boas, coisas feitas por causa de si mesmas, não se subordinando todas exclusivamente a um objectivo unificado. Neste sentido, a nossa preocupação quanto às concepções restritas e abrangentes do bem dá lugar a uma preocupação que talvez venha já a incomodar-nos desde as primeiras frases da Ética a Nicómaco: na abertura da obra, afirma-se que toda a acção visa, em última análise, um bem qualquer.27 Qual é então a relação entre as coisas feitas por causa deste bem e o bem em si?

Já no primeiro livro da Ética a Nicómaco Aristóteles tinha sustentado que o bem humano é “uma actividade da alma de acordo com a virtude (ou excelência, aretê) e, se houver muitas virtudes, então de acordo com as melhores e mais completas” (Ética a Nicómaco 1098a 16-18). Vista de uma maneira, isto pode ser parafraseado como “… e, se houver muitas virtudes, então o bem humano será uma actividade identificada com aquela que for a melhor e a mais completa de entre elas.” Mas vista de outra maneira pode querer dizer “… e, se houver muitas virtudes, o bem humano é uma actividade identificada com as melhores e as mais completas virtudes.” Do ponto de vista da primeira paráfrase, há uma só virtude, seleccionada entre as melhores, e o bem humano consistirá na sua expressão. Do ponto de vista da segunda, a melhor virtude não está em competição, digamos, com as outras. Ao invés, há uma pluralidade de virtudes, e o pacote mais completo delas será o bem humano. Esta é aproximadamente a diferença entre dizer que se há muitas flores bonitas, a melhor será a flor única mais bonita de entre elas, em vez de dizer que a melhor será o mais bonito bouquet de todas, que seguramente incluirá as mais bonitas.

Qual delas tinha Aristóteles em mente? A questão é muito disputada, e de certo modo depende de uma questão linguística sobre o que significa dizer que S faz a por causa de b.28 Parece haver pelo menos duas maneiras de S poder fazer a por causa de b. S pode perfurar os dentes de um modo doloroso por causa da saúde mental. Neste caso, o objectivo é extrínseco à acção levada a cabo. Por outro lado, S pode ir à ópera, ter depois um agradável jantar e passar o dia seguinte visitando uma grande catedral — tudo isto por causa de querer ter umas boas férias. Quando S faz estas coisas, não as faz por causa de algo extrínseco às próprias acções; as actividades são pelo contrário em parte constitutivas de umas boas férias.

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Dado que alguns meios são constitutivos dos seus fins, fica em aberto se Aristóteles está a pensar numa série de bens humanos realizados tanto por causa da felicidade como por serem desejáveis em si. Presumivelmente, dada a ênfase inconfundível de Aristóteles na centralidade da racionalidade na sua caracterização do bem humano, é de esperar que qualquer colecção de meios constitutivos será, no mínimo, forçosamente, uma expressão bem estruturada da virtude intelectual, e não uma misturada sortida amontoada sem qualquer ordem interna. Neste caso, pode-se considerar a concepção de Aristóteles do bem humano como simultaneamente intelectual e abrangente: intelectual no sentido de dar prioridade à contemplação e abrangente no sentido em que a actividade virtuosa não contemplativa exibirá uma estrutura racionalmente equilibrada, resultando presumivelmente da deliberação quanto à forma de vida óptima para criaturas com as características do género que os seres humanos manifestam essencialmente.

Claro que estas sugestões iniciais visam abrir e não fechar a controvérsia central que rodeia a teoria da felicidade humana proposta na Ética a Nicómaco de Aristóteles. Quando se investiga estas matérias mais profundamente, tem o efeito de fazer reflectir sobre um aspecto por vezes injustamente negligenciado da teoria que Aristóteles desenvolve nessa obra, nomeadamente que a sua concepção do bem humano não está apartado da psicologia metafísica que lhe subjaz. A questão da felicidade humana, tal como Aristóteles a entende, é sobre seres humanos, e por isso é uma questão cuja resposta tem de estar enraizada em factos sobre tais seres, incluindo crucialmente o facto de os seres humanos serem agentes intencionais que agem em função de fins. Do seu essencialismo resulta que os fins humanos não são escolhidos em função de caprichos humanos, sendo antes dados pela natureza humana. Consequentemente, conclui Aristóteles, quem procura a felicidade descobre os seus fins humanos, mas não os engendra; quando o fazem, podem ordenar as suas acções correctamente, isto é, em direcção à efectivação das suas capacidades especificamente humanas.

Conclusões

Comparada com outras obras menos amigáveis de Aristóteles, a Ética a Nicómacopode parecer relativamente acessível e não técnica. Em alguns aspectos, esta aparência é correcta. A obra não está pesadamente repleta da terminologia característica de Aristóteles, como acontece noutros casos. Além disso, em parte porque se baseia na observação cuidada das psicologias morais efectivas, algumas passagens da Ética a Nicómaco encontram rapidamente eco nas nossas próprias observações do virtuoso e do vicioso. Até certo ponto, o carácter não técnico da obra reflecte o próprio juízo de Aristóteles de que a precisão indevida é inapropriada na ética, dado que a exactidão excessiva impõe exigências nas ciências humanas que são mais apropriadas apenas para outras empresas mais austeras e abstractas, como a matemática (Ética a Nicómaco 1094b 11-14, 1098a 28-34). O estudo da ética tem de responder às vicissitudes contingentes que resultam da acção humana; ter a expectativa de produzir fórmulas precisas adequadas a qualquer circunstância possível irá predispor-nos a perder tempo em digressões ociosas incapazes de nos fornecer os princípios orientadores da acção que procuramos.

Aceitando isto, é também necessário dizer que em muitos mais aspectos importantes a aparência de acessibilidade e não tecnicismo da Ética a Nicómaco é ilusória e enganadora. Apesar de Aristóteles não parar para chamar atenção para isso, a sua teoria ética faz um uso intenso das suas teorias metafísicas e psicológicas. Porque Aristóteles está interessado na melhor vida para seres humanos, toma como garantido que isso será a vida daqueles seres cujas essências e naturezas já explorou e caracterizou alhures. Na verdade, no primeiro caso, a teoria ética de Aristóteles pressupõe que os seres humanos têm uma essência de um género determinado e estável, e que consequentemente quando é chegado o tempo de determinar o que é melhor para tais criaturas será necessário chamar a atenção para as suas características nucleares, essenciais. É por isso que Aristóteles não sente necessidade de invectivar longamente contra as concepções subjectivistas da felicidade: dado estarmos a falar do bem para os seres humanos, e dado que os seres humanos são de um certo modo por natureza, quem supõe que a felicidade consiste na simples satisfação do desejo não conseguirá dar conta de um facto central e inevitável quanto ao desejo: as pessoas podem desejar, e desejam, coisas que são más para elas, e o resultado infeliz disso é que podem viver, e vivem, vidas abaixo do que para elas seria o melhor. Estas são, pois, vidas que seria melhor não viverem desse modo, vidas que não teriam desejado caso tivessem apreendido a melhor maneira de procurar o seu próprio florescimento.

Deste ponto de vista, o célebre argumento da função de Aristóteles é ao mesmo tempo menos ambicioso e mais bem-sucedido do que por vezes se pensa. Aristóteles não presume que com este argumento pode provar que os seres humanos têm uma natureza determinada, uma função especificável e um bem característico. Ao invés, procura principalmente identificar com este argumento a função humana que já analisou alhures e assim caracterizar esse bem que é o melhor para os seres humanos. Este bem, argumenta, será o que for um bem em si, um bem para nada senão ele mesmo, completo e tal que a sua presença faz que nada falte a uma vida. Podemos chamar a tal bem eudemonia — felicidade ou florescimento humano. Sem explicação, contudo, nenhum termo desses é particularmente informativo. Todos dizemos que queremos a felicidade. Se discordamos quanto ao que é a felicidade, então a nossa concordância verbal limita-se a esconder outras discordâncias profundas e importantes quanto à mais preciosa conquista da vida. Se aceitarmos uma concepção objectiva da felicidade enraizada nas características da essência humana, então faz sentido investigar, como Aristóteles, essas características humanas de cuja melhor expressão resulta o género óptimo de vida disponível para nós.

Aristóteles considera óbvio, quase inquestionável, que cada um de nós deseja a melhor vida que podemos assegurar para nós mesmos. Assim, uma vez ultrapassado o pensamento simplista de que a melhor vida é seja o que for que supomos que é, então as investigações sobre a virtude humana (ou excelência; aretê) do género a que Aristóteles se entrega na Ética a Nicómaco fazem perfeito sentido e são, para quem é iluminado pela reflexão, quase inevitáveis. Afinal, sugere Aristóteles, se queremos o que é bom para nós, o que é realmente bom e não o que por acaso é atraente à luz do capricho do momento, então compete-nos explorar o que esse bem poderá ser.

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Qualquer dessas explorações conduzir-nos-á para lá das nossas preferências subjectivas actuais, que podem ser iluminadas ou não, fazendo-nos considerar qual será o carácter da excelência humana.

Dado que tal excelência é trivialmente a excelência dos seres humanos, seria sábio começar a nossa investigação do bem humano com uma concepção bem delimitada do carácter da natureza humana. Ao entregar-se a esta investigação, Aristóteles pressupõe um enquadramento essencialista articulado no seio do seu esquema explicativo das quatro causas, com as suas componentes teleológicas que não podem ser eliminadas. Apesar de quase nada fazer para defender este enquadramento na Ética a Nicómaco, Aristóteles pressupõe claramente uma familiaridade com os seus preceitos básicos quando defende este tipo de ética das virtudes. Por esta razão, a Ética a Nicómaco é, digamos, uma obra sub-repticiamente técnica. Consequentemente, uma eventual avaliação da teoria ética de Aristóteles irá envolver igualmente o crítico compreensivo numa consideração das teorias psicológicas e metafísicas que lhe subjazem e a caracterizam. Na medida em que tais teorias forem defensáveis, a teoria ética de Aristóteles terá muito de recomendável. Do mesmo modo, onde essas teorias não resistem à crítica, podem tender a deixar o eudemonismo ético de Aristóteles encalhado, à procura de um ancoradouro sem o qual será melhor abandoná-la.

Christopher ShieldsTradução de Desidério MurchoRetirado de Aristotle, de Christopher Shields (Londres: Routledge, 2006)

Notas

Na lógica de predicados contemporânea, o erro analisa-se facilmente: consiste em trocar ilicitamente os quantificadores, afirmando (∀x)(∃y), e inferindo (∃y)(∀x). Uma vez mais, na linguagem natural este é o erro de defender que tem de haver uma rapariga na turma que beijou muitos rapazes diferentes porque todos os rapazes da turma beijaram uma rapariga.

Uma pessoa que Aristóteles pode ter em mente é Eudoxo, que depois identifica como a pessoa que defende tal perspectiva (Ética a Nicómaco 1172b 9-10).

Pode contar a favor desta interpretação o facto de Aristóteles sentir necessidade de oferecer um argumento a favor desta conclusão no próximo capítulo, Ética a Nicómaco I2, menos de vinte linhas depois de fazer a afirmação.

Aristóteles argumenta contra a univocidade do bem em Ética a Nicómaco I6.

Veja-se Kraut (1979) para uma excelente e completa discussão da distinção entre duas concepções rivais de felicidade. A concepção aqui oferecida é próxima da de Kraut mas difere dela em vários aspectos.

Sobre a alma e as suas capacidades, veja-se §§7.4 e 7.6.

Sobre a teleologia de Aristóteles veja-se §§2.7 e 2.8.

Para compreender a concepção da função humana que tem Aristóteles é consequentemente importante compreender a sua concepção geral da causalidade inintencional teleológica. Veja-se §2.7 e 2.8 para uma elucidação e defesa parcial da sua perspectiva, dando-se especial atenção à sua tese da determinação funcional.

Veja-se §3.2.

Este tema é retomado em §8.7.

Sartre, Jean-Paul (1993) Being and Nothingness, trad. H Barnes (Nova Iorque).

Adoptarei a partir daqui a tradução comum de aretê, mas deve-se ter em mente que no grego de Aristóteles esta palavra tem um âmbito mais lato do que as virtudes morais, apesar de as incluir. O mesmo acontece, como sugerimos, com a palavra portuguesa “virtude”; apesar disso, é fácil deixar passar este facto.

Hume, Tratado da Natureza Humana II.iii: “A razão é, e deve apenas ser, a escrava das paixões, e nunca pode pretender qualquer outra função senão servi-las e obedecer-lhes.”

Estas duas características são: a pessoa encrática, dotada de autodomínio, e a acrática, a incontinente. Veja-se §8.5 para uma discussão da acrática.

Assim, a noção da virtude “moral” tratada por Aristóteles é razoavelmente lata, correspondendo à noção de “moral” no inglês antiquado, dizendo em geral respeito ao carácter e hábitos de conduta. Assim, Shakespeare, All's Well That Ends Well I. Ii. 2: “Youth, thou bear'st thy father's face […] thy father's moral parts may'st thou inherit too.”

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Bostock (2000, 50, 70-1) conclui nesta base que a doutrina do meio-termo “não pode ser mantida.”

Este parece o juízo de Ross, David (1949) Aristotle (Methuen): “Esta parte da Éticaapresenta uma concepção vivaz e muitas vezes divertida das qualidades admiradas ou desprezadas pelos gregos cultos do tempo de Aristóteles.” (p. 202)

Veja-se Shields, Christopher (2005) "Aristotle: Psychology," Stanford Encyclopedia of Philosophy.

Note-se, contudo, que algumas características da linguagem de Aristóteles sugerem fortemente que não está a falar da personagem do diálogo mas antes da própria figura histórica.

Sobre a silogística de Aristóteles veja-se §3.4.

Para uma excelente visão geral de alguns dos pormenores na discussão subsequente de Aristóteles veja-se Mele, Alfred (2004) "Motivated Irrationality" in A. Mele e P. Rawlings, orgs., The Oxford Handbook of Rationality (Oxford University Press), pp. 240-56. Para um tratamento invulgarmente claro de Aristóteles, veja-se Dahl, Norman (1984) Pratical Reason, Aristotle and Weakness of Will (University of Minnesota Press).

Sobre os critérios do bem mais elevado, veja-se §8.1 e 8.2.

Sobre a concepção objectiva de felicidade veja-se §8.2 e 8.3.

Sobre os seres humanos como animais políticos, veja-se §9.2.

Contribuições especialmente valiosas são as de Hardie, W. E. R. (1980) Aristotle's Ethical Theory, segunda edição (Clarendon Press), que estabeleceu os termos do debate dos tempos modernos, Ackrill, J. L. (1997) "Aristotle on Eudaimonia," Essays on Plato and Aristotle (Oxford University Press), pp. 179-200, e Kraut, Richard (1989) Aristotle on the Human Good (Princeton University Press).

Barnes, Jonathan (1997) "Roman Aristotle", in Philosophia Togata II, org. J. Barnes e M. Griffith (Oxford University Press) afirma que a “Ética a Nicómaco é um absurdo, sem dúvida amontoado por um escriba desesperado ou um livreiro sem escrúpulos e não por um autor ou um organizador,” insistindo “Que a nossa Ética a Nicómaco não é uma unidade está para lá de qualquer controvérsia — a existência de dois tratamentos do prazer é suficiente para provar o facto. As únicas questões dizem respeito a saber quem inventou o nosso texto, e quando, e com base em que materiais, e por que motivos.” (pp. 58-9)

Sobre as frases de abertura veja-se §8.1.

Há, pois, uma questão académica quanto à linguagem de Aristóteles que não iremos abordar. Veja-se Kraut, Richard (1989) Aristotle on the Human Good (Princeton University Press), pp. 200-25, inteligentemente discutido de um modo acessível por Hughes, Gerald (2001) Aristotle on Ethics (Routledge), pp. 27-31.

Leituras complementares

Assinala-se com asterisco as leituras especialmente adequadas para iniciantes, em termos de clareza e acessibilidade.

Fontes primárias

Aristóteles, Ética a Nicómaco, esp. I, II 1-6, III 1-7, V 1-2, 7-10, VI 1-8, 12-13, VII 1-3, VIII 1-3, 9, IX 4, 7-9, 12, X 4-9.

Fontes secundárias

Bostock, David, Aristotle's Ethics (Oxford University Press: 2000)

Broadie, S. e Rowe, C. J., Aristotle: Nicomachean Ethics, tradução, introdução e comentário (Oxford University Press: 2002)

*Hughes, Gerald J., Aristotle on Ethics (Routledge: 2001)

Irwin, Terence, Aristotle, Nichomachean Ethics, com notas e glossário anotado (Hackett: 1985)

*Kraut, Richard, “Aristotle: Ethics”, Stanford Encyclopedia of Philosophy

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Page 23: antologia de ética do critica na rede

Kraut, Richard, “Two Conceptions of Happiness”, Philosophical Review 88 (1979), pp. 167-97

Kraut, Richard, org., The Blackwell Guide to Aristotle's Ethics (Blackwell: 2005)

Pakaluk, Michael, Aristotle: Nicomachean Ethics BOOKS  VIII and IX, tradução e comentário (Clarendon Press: 1998)

Woods, Michael, Aristotle's Eudemian Ethics BOOKS  I, II and VIII, tradução e comentário (Clarendon Press: 1982)

Moore e os intuicionistas contra o naturalismo

Matheus SilvaUniversidade Federal de Ouro Preto

Este artigo aborda uma importante discussão em metaética: o debate entre os partidários do intuicionismo moral e os naturalistas. Num primeiro momento, apresentamos brevemente o naturalismo e as objeções mais frequentes dirigidas a esta teoria, mais especificamente as críticas de Moore com o seu "Argumento da Questão em Aberto". Num segundo momento, apresentam-se diversas objeções naturalistas a esse argumento e réplicas não-naturalistas a essas objeções. Para concluir, fazem-se observações sobre a plausibilidade das teorias em debate.

Introdução

Antes de tudo, cabe explicitar alguns conceitos importantes. A metaética é a disciplina que investiga os fundamentos e a natureza da própria ética. A metaética não pretende nos dizer quais ações são boas ou como devemos agir, pois a resposta dessas questões é o objetivo da ética normativa (Miller, 2005). A metaética lida com questões sobre essas questões: qual é o estado motivacional de alguém que faz um juízo moral? Que tipo de conexão há entre fazer um juízo moral e agir de acordo com as prescrições desse juízo? Será que o juízo moral é apenas uma expressão de atitudes ou será que os juízos morais são crenças? Existe conhecimento moral? Se existe conhecimento moral, como sabemos quando um juízo moral é verdadeiro ou falso? Será que existem valores morais objetivos ou os princípios que norteiam nosso agir moral são apenas invenções sociais, juízos que em última instância não passam de convenções? Afinal, a ética é uma invenção ou uma descoberta?

As propostas em metaética são diversificadas e tanto tendem para o realismo - a idéia de que os valores morais existem objetivamente e não dependem de nossas opiniões sobre eles - como para o anti-realismo. Os realistas admitem necessariamente o cognitivismo, que é a tese de que os juízos morais são afirmações, podendo ser verdadeiros ou falsos. Além disso, os realistas estão comprometidos com a idéia de que pelo menos alguns juízos morais são verdadeiros. Já os anti-realistas podem ser cognitivistas, e nesse caso sustentam que todos os juízos morais são falsos, ou podem professar o não cognitivismo, a idéia de que os juízos morais não são verdadeiros ou falsos e têm outra função que não a de veicular conhecimento (Miller, p. 3). Neste artigo, as duas propostas apresentadas, naturalismo e intuicionismo, são ambas realistas, diferindo de posição apenas no que concerne à natureza dos fatos morais.

O naturalismo e o "Argumento da Questão em Aberto"

O naturalismo ético é uma versão de realismo que declara que os valores morais podem ser identificados com uma dada propriedade natural ou reduzidos a uma propriedade dada natural. Para o naturalista, propriedades morais tais como bondade e correção são idênticas a propriedades que figuram nas descrições e explicações científicas das coisas. Para o naturalista, a moralidade não é uma convenção passível de ser descartada, mas um corpo de conhecimento. Existem verdades morais, mas não há fatos morais peculiares além dos fatos que podem ser especificados por meio de terminologia não-moral (Pidgen, 1993).

Um defensor dessa posição é Richard Boyd (1988), que defende que a propriedade de ser bom é a propriedade de conduzir ao predomínio de um grupo complexo e homeostaticamente organizado de propriedades de coisas que satisfazem necessidades humanas importantes. Para fins de exposição podemos adotar uma definição naturalista mais simples - alguém poderia dizer, por exemplo, que bom é aquilo que produz prazer (esta é a via seguida pelos utilitaristas, nomeadamente John Stuart Mill).

Uma das vantagens das teorias naturalistas é que a partir delas a ética é passível de conhecimento: podemos conhecer os fatos moralmente relevantes pelos mesmos meios sensoriais comuns que utilizamos para conhecer os fatos naturais - afinal de contas, os fatos moralmente relevantes são, em última instância, apenas os fatos naturais. Ao dizermos que o bom é aquilo que produz prazer, por exemplo, poderíamos tentar constatar essa afirmação observando o que dá prazer às pessoas. Contudo, a despeito dessa plausibilidade inicial, o naturalismo foi alvo de inúmeras críticas e enfrenta uma série de dificuldades.

Um de seus maiores críticos foi George Edward Moore (1873-1958). Em uma obra que influenciou decisivamente as reflexões da metaética do século XX, Principia Ethica(1903), Moore chegou à conclusão de que é impossível fornecer uma definição do predicado "bom", pois "bom" seria uma qualidade simples, indecomponível e não analisável (Moore, 1903, parágrafos 7 e 9). Mais do que isso, Moore concluiu que todos os filósofos que o

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antecederam incorreram no que ele denominou de "falácia naturalista", pois todos tentaram definir "bom" em termos de algo mais, quando na verdade qualquer tentativa de definir o predicado "bom" estaria fadada ao fracasso. Moore não pretende dizer que não podemos saber que coisas são boas (para ele, a amizade e a contemplação da beleza, por exemplo, são coisas boas), mas sim que o predicado "bom", que exprime aquela qualidade que atribuímos a uma coisa quando dizemos que ela é boa, não admite qualquer definição.

Em sentido estrito, o termo "falácia naturalista" é inadequado, já que Moore visa tanto atacar a pretensão de definir o predicado "bom" como a tentativa de identificar o predicado "bom" com uma propriedade natural ou metafísica. No entanto, se os argumentos de Moore se aplicam ou não a definições metafísicas de "bom" não será objeto de exame nesse artigo — o que nos interessa aqui é saber se o predicado "bom" pode ou não ser identificado com uma propriedade natural. De seguida, irei abordar discussões posteriores do argumento, a partir do embate entre naturalistas e intuicionistas.

Propostas metaéticas como as de Moore são chamadas de "intuicionistas" porque defendem que as propriedades morais, a despeito de não serem acessíveis à investigação empírica, seriam acessíveis por intuição moral. Intuir algo é apreendê-lo diretamente, sem necessidade de algum processo de raciocínio, como a dedução, por exemplo (Frazier, 1998). Assim o intuicionismo em ética propõe que, por intuição, podemos reconhecer certas proposições morais como auto-evidentes. Outra característica das doutrinas intuicionistas é a aceitação da autonomia da ética: associada ao realismo moral, a tese da autonomia da ética propõe que os fatos morais não podem ser explicados ou reduzidos a termos não éticos. Esta última tese já é o bastante para entendermos o enorme desacordo que separa intuicionistas e naturalistas. Para os naturalistas, um fato moral irredutível é algo que não existe.

O Argumento da Questão em Aberto

O objetivo do Argumento da Questão em Aberto (AQA) é demonstrar que as definições naturalistas de "bem" têm de estar sempre erradas (Moore, 1903, parágrafo 13). O seu argumento pretende mostrar que qualquer que seja a definição que se dê ao predicado "bom", é sempre possível perguntar se um ato que possui as propriedades oferecidas pela definição é realmente bom, sem que a pergunta seja sem sentido ou despropositada. A questão "O triângulo é uma figura com três lados?" é fechada, por oposição à questão "O bom é X?", no sentido em que a primeira pergunta é susceptível de resposta definitiva, dado que a negação da proposição em causa (x é um triângulo mas não tem 3 lados) é uma falsidade conceptual, ao passo que "x é bom mas não dá prazer" não é uma falsidade conceptual. Se alguém que sabe o que é um triângulo perguntasse "Isso é um triângulo, mas tem três lados?", estaria fazendo uma pergunta completamente irrazoável, pois o conceito de triângulo é fechado: porque sabemos que todo o triângulo tem três lados, ninguém em sã consciência faria tal pergunta. Contudo, o mesmo não se aplica às definições naturalistas de bom. Vale ressaltar que o que Moore entendia por propriedade natural é qualquer propriedade cujo estudo compete às ciências naturais ou à psicologia.

Tomemos como exemplo a definição de "bom" como aquilo que produz prazer, uma típica propriedade natural. O problema é que sempre que nos depararmos com a referida propriedade será lícito ainda perguntar: "Isso produz prazer, mas é bom?" A questão é aberta, pois nos parece sempre razoável perguntar se aquilo que produz prazer é realmente bom, o que é uma afirmação significativa. Mas se aquilo que produz prazer fosse idêntico ao que é bom poderíamos também perguntar: "Isso produz prazer, mas produz prazer?" Assim, dizer que "X é bom porque produz prazer" seria o mesmo que dizer "X produz prazer porque produz prazer". Contudo, quando alguém define bom como aquilo que produz prazer, é claro que não pretende que essa definição seja uma tautologia. O mesmo argumento pode ser aplicado a qualquer tentativa de identificar o bem com outra propriedade. Isso levou Moore a concluir que não é possível uma definição de bom ou de qualquer outra propriedade moral.

As objeções naturalistas ao argumento de Moore

A objeção da circularidade

Um das principais objeções contra o Argumento da Questão em Aberto é a de que este seria circular (Frankena, 1939). Será que para qualquer propriedade X a questão "Isso é X, mas é bom?" será sempre uma questão aberta? A resposta é sim, se a definição X em questão for má. Se a definição for boa, então a questão será tão fechada como perguntar "Isso é um triângulo, mas tem três lados?". Sabemos que a questão será fechada porque todo triângulo tem três lados. Do mesmo modo, não poderemos dizer que uma coisa produz prazer, mas não é boa, sem nos contradizermos. Isso só seria possível se a definição em questão fosse má, mas se for uma boa definição, cairemos em contradição ao fazer a pergunta. As definições naturalistas somente seriam falácias quando as propriedades em questão fossem distintas, mas é exatamente isso que está sob disputa. Portanto o argumento é uma petição de princípio, que pode ser resumido do seguinte modo:

Só poderíamos apelar para as nossas intuições de que a questão é aberta se as nossas intuições fossem bem fundadas.

Mas para que essas intuições sejam bem fundadas o naturalismo tem de ser incorreto.

Portanto, só podemos recorrer à questão em aberto para demonstrar o erro do naturalismo se já tivermos estabelecido que o naturalismo é incorreto, o que é um raciocínio circular.

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Uma resposta a essa objeção é que o aspecto importante do argumento não é a questão em causa estar ou não em aberto, mas sim a questão parecer estar ou não em aberto para qualquer falante comum que utilize os conceitos morais (Ball, 1988). O argumento na verdade retiraria a sua força das nossas intuições comuns, que nos dá indícios de que o que produz prazer e o que é bom seriam duas coisas bem diferentes. Neste caso, o que o argumento pretende dizer é que a qualquer falante comum parece razoável perguntar se algo que produz prazer é bom, mas parece despropositado perguntar se um triângulo tem três lados. Assim o AQA escaparia da acusação de petição de princípio, embora perca muito de sua força. Nessa reformulação, o AQA apresentaria apenas uma conjectura contra o naturalismo, já que sua idéia principal é a seguinte:

Acharíamos natural guiar a nossa prática de acordo com uma análise que seja informativa e esclarecedora.

Um falante que utilize os conceitos morais de forma competente pode, mesmo após reflexão conceitual, não achar natural guiar sua prática de juízos de valor a partir da definição naturalista.

Portanto, a definição naturalista é incorreta.

Os naturalistas, por sua vez, objetam que é preciso mais para demonstrar que essas intuições comuns não passam de uma ilusão ou até mesmo um resquício não reconhecido de crença religiosa. Além disso, o naturalista pode replicar que se o naturalismo é correto, então qualquer um que não pense ser natural guiar sua prática pela análise naturalista, mesmo após reflexão conceitual, não está utilizando de modo competente os conceitos relevantes em questão. Contudo, essas respostas têm um inconveniente caráter ad hoc e não fazem justiça à reformulação do AQA.

O que Moore parecia ter em mente é que termos morais como "bom" têm uma característica intrinsecamente motivadora, que é seu elemento prescritivo. O que coloca em suspeita o naturalismo, mesmo após todas as réplicas de seus defensores, é justamente a ausência desse elemento. Portanto, ainda parece haver uma conjectura contra o naturalismo, já que ele ignora esse aspecto semântico da ética. No que se segue, veremos como essa conjectura atinge apenas uma versão de naturalismo, o semântico, que sustenta que "bom" é equivalente a uma propriedade natural, mas que essa é uma verdade analítica, uma questão de definição.

O naturalismo sintético e o alcance do Argumento da Questão em Aberto

Uma forte objeção naturalista é que o argumento de Moore não consegue estabelecer a autonomia do juízo ético e a falsidade do naturalismo. Na melhor das hipóteses, apenas demonstra um aspecto semântico que diferencia os juízos que contêm termos morais dos que não contêm - dizer "X é bom" contém um elemento de normatividade, mas dizer "X dá prazer" não contém. Mas isto apenas demonstraria a falsidade do naturalismo semântico, o que não tem muita importância. O naturalismo sintético, por exemplo, resiste à essa crítica, pois identifica o bem com uma propriedade natural, mas acrescenta que essa identidade é sintética e não apenas uma questão de definição.

Podemos ilustrar melhor essa versão do naturalismo com um famoso exemplo de Frege acerca de dois elementos na constituição do significado: sentido e referência. Ele utilizou o exemplo da Estrela da Manhã e da Estrela da Tarde (Miller. p 17). Sabemos hoje que o corpo celeste que é visto ao amanhecer (Véspero) e o corpo celeste que é visto ao entardecer (Fósforo) são o mesmo, pelo que os termos "Estrela da Manhã" e "Estrela da Tarde" têm a mesma referência. Mas dizer que a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde é informativo — porquê?

A resposta de Frege é que Véspero e Fósforo têm a mesma referência, mas sentidos diferentes. Os nomes respectivos possuem sentidos diferentes, mas podemos descobrir que possuem a mesma referência, porque podemos compreender o sentido de uma expressão sem saber sua referência. Eu compreendo o sentido da expressão "O vencedor do próximo Prêmio de Ensaio Filosófico Vasco Magalhães", mas não sei quem é a pessoa mencionada na expressão, isso é algo que tenho de descobrir. Do mesmo modo, dirá o naturalista, podemos aplicar a distinção sentido-referência ao caso das definições naturalistas de "bem". O argumento de Moore parece pressupor que se dois termos têm a mesma referência, então têm o mesmo sentido; mas um naturalista poderia dizer que os termos "maximiza o prazer" e "é bom" têm a mesma referência, embora tenham sentidos diferentes.

Tanto o fato de que Véspero é Fósforo como o fato de que a água é H2O não podem ser descobertos pela simples análise dos termos envolvidos, pois são identidades não-analíticas, que só podemos descobrir fazendo ciência. Uma questão como "É a Estrela da Manhã a Estrela da Tarde?" permaneceu em aberto por muitos séculos, mas hoje sabemos que são estrelas idênticas. E podemos razoavelmente perguntar se água não é H2O, mas isso não

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demonstra que água não é H2O. De maneira análoga, o naturalismo sintético propõe que o predicado "bom" pode ser idêntico a uma propriedade natural, mas isso não é algo que vamos descobrir apenas consultando as intuições lingüísticas dos falantes. Assim, o argumento de Moore levanta uma conjectura contra o naturalismo semântico, mas isso não é muito relevante. O AQA apenas mostra que se as propriedades morais são idênticas a propriedades naturais, não o são por definição analítica (Harman, 1977, Cap. 2). Os intuicionistas, por sua vez, formularam um novo argumento para refutar tanto o naturalismo semântico como o naturalismo sintético, o chamado "argumento da Terra Gêmea Moral". Por razões de espaço não vou apresentar esse argumento e suas possíveis objeções. Para fins de exposição, basta afirmar que o Argumento da Terra Gêmea Moral enfrenta o mesmo problema do Argumento Clássico da Questão em Aberto: é um raciocínio circular. O argumento só funciona se aceitarmos que as nossas intuições sobre a Terra Gêmea são bem fundadas (para mais detalhes, veja-se Horgan e Timmons, 1992 e Miller, 2005, pp. 162-168).

Outro argumento freqüentemente utilizado contra as definições naturalistas, tanto por não-cognitivistas como por intuicionistas, é conhecido como "a lei de Hume" (Hume, 1740, Livro III, Parte I). O argumento, que na verdade é uma interpretação da passagem do livro de Hume, avança a tese de que conclusões morais não podem ser derivadas de premissas não-morais — não podemos derivar "deve" de "é". Como não podemos derivar valores de fatos, o naturalismo é falso, conclui o argumento.

Essa conclusão é estranha, uma vez que o próprio Hume foi um naturalista. De fato, esse argumento apenas demonstra um aspecto conservador da lógica: uma conclusão que contenha o termo "deve" não pode ser válida e não trivialmente derivada de premissas que não contêm o termo "deve". Por conseguinte, se "deve" aparece na conclusão de um argumento, mas não nas premissas, a inferência não é logicamente válida. A lacuna entre "deve" e "é" não se dá por uma diferença ontológica (isto é, factual) entre juízos morais e proposições não-morais, mas por uma questão de lógica.

Outro argumento, este contrário ao argumento da questão em aberto, ficou conhecido como "Argumento da Análise Não-Interessante", que pretende demonstrar que a estratégia do AQA pressupõe que é impossível que uma análise conceitual seja verdadeira, mas informativa e interessante ao mesmo tempo. A análise informativa de qualquer conceito sempre acabaria por nos remeter a uma questão em aberto. Mas isso é um erro, pois de fato a análise conceitual pode ser informativa e interessante. Portanto, deve haver algo de errado com o AQA. Moore, por sua vez, replicou a essa objeção insistindo que de fato é impossível que qualquer análise seja correta e ao mesmo tempo informativa e interessante. Esse último argumento ficou conhecido como "Paradoxo da Análise" (para mais detalhes, veja Smith, 1994, secção 2.7).

Observações finais

A obra de Moore foi uma contribuição decisiva para as reflexões metaéticas do século XX. Publicado pela primeira vez em 1903, Principia Ethica influenciou até mesmo correntes de pensamento anti-realistas, como os não-cognitivistas. Como mencionámos, Moore não duvidava da existência de valores morais objetivos, que seriam propriedades sui generis, acessíveis por intuição e não analisáveis. Assim como o amarelo, o bom seria uma propriedade das coisas que poderia ser percebida, mas não decomposta ou analisada. Mas diferentemente do amarelo, o bom não seria uma propriedade natural; seria uma qualidade não redutível a outra propriedade qualquer, seja ela sobrenatural ou natural. Na verdade, as propriedades morais, a despeito de não serem acessíveis à investigação empírica, seriam acessíveis por intuição moral. Por intuição podemos reconhecer certas proposições morais como auto-evidentes. Assim, a linhagem intuicionista foi inaugurada na filosofia moral contemporânea, que teve como seus maiores representantes W. D. Ross (1930) e H. A. Prichard (1912).

A influência de Moore acabou por revelar diversos problemas no projeto intuicionista, que seriam bem explorados por seus críticos. Sob o pretexto de corrigir os erros de seus antecessores, Moore trouxe ainda mais problemas para os realistas. O intuicionismo levanta uma aura de mistério em torno da moral, além de revelar uma incapacidade para explicar a mais simples discordância em ética: se eu penso que comer carne é errado por intuição moral, como posso convencer alguém que pensa exatamente o contrário e que também se sente justificado em acreditar nisso por intuição moral?

Uma réplica intuicionista é que só deveríamos levar em consideração a intuição de pessoas ponderadas e bem educadas, pois somente essas intuições seriam confiáveis (Ross, 1930, p. 41). O problema desse argumento é o seu caráter evidentemente circular; afinal, quem deve ser considerado bem educado? Somente aquelas pessoas que estão em acordo com minhas intuições? Pode haver uma tendência, se pensarmos assim, de acusar de cegueira moral quem estiver em desacordo moral connosco. Além disso, dizer que captamos verdades morais por intuição levanta muitas suspeitas, pois parece postular a existência de uma estranha capacidade para captar essas verdades, algo como um sexto sentido.

Outro problema do intuicionismo é a sua impossibilidade de encaixar os fatos morais no quadro do mundo apresentado pela ciência moderna: se a nossa forma de compreender a natureza do mundo não abre espaço para a moral, tanto pior para a ciência, nos diria Moore. Mas é fácil perceber como esse excesso de confiança epistemológica pode ter o efeito inverso: para muitos, descartar o naturalismo seria pagar um preço alto demais para sustentar a objetividade da moral. Tendo esses problemas em mente, muitos críticos argumentaram que os pressupostos do intuicionismo moral deveriam ser revistos; outros, como os anti-realistas, optaram pela saída mais econômica: descartar a existência de valores morais objetivos.

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Por outro lado, as tentativas formais de refutar o naturalismo têm falhado. Não podemos utilizar a tática comum entre os críticos do naturalismo de descartá-lo como falacioso, quase por definição. Argumentos como a lei de Hume e o AQA não fornecem qualquer problema para o projecto naturalista, que continua sendo uma hipótese interessante. Os intuicionistas têm frequentemente insistido na distinção entre conceitos como a água e o bem, que é um conceito normativo. Argumentam que as afirmações morais são normativas; elas nos dizem o que devemos fazer. Mas as explicações naturalistas são meramente descritivas; elas apenas nos dizem como as coisas são. A ética seria autônoma, com critérios próprios de verdade e justificação. Contudo o naturalista pode replicar que desconsidera o elemento normativo da ética, porque o naturalismo é uma visão a partir "de fora", que explica o que acontece quando pensamos eticamente. O aspecto normativo só pode ser conhecido a partir de dentro da própria atividade ética; mas só a partir de fora podemos explicar adequadamente a natureza da ética (Rachels, 2000, p. 90).

De fato, é estranho pensar que a metaética seja independente das ciências. Poderíamos esperar que os filósofos morais trabalhassem no contexto da informação fornecida por ciências que incluem a sociologia e a antropologia, que descrevem as formas de vida social, e a biologia evolucionista, que nos diz algo sobre a natureza e origem dos seres humanos. Mas, de acordo com o intuicionismo, todos esses assuntos seriam irrelevantes para o entendimento da moralidade (Rachels, 2000, p. 74).

Contudo, o fato de que o naturalismo não pode ser refutado em bases puramente formais, também não implica que seja verdadeiro, pois podem existir alternativas. Filósofos anti-realistas como Gilbert Harman, por exemplo, argumentam que as propriedades morais não devem ser incluídas em nossa imagem do mundo, pois não precisamos postular a existência de fatos morais para explicar a nossa experiência moral: os fatos morais são explanatoriamente irrelevantes (Harman, 1977, cap. 2).

Além disso, as teorias naturalistas têm apresentado um grave problema nas suas formulações. Os naturalistas frequentemente afirmam que as pessoas partilham muitos dos mesmos valores porque as pessoas são basicamente semelhantes em suas necessidades e estrutura psicológica. Um apoio para essas afirmações vem da idéia de uma natureza humana, que por ser comum a todas as pessoas daria origem a valores básicos. Assim, filósofos naturalistas como Hume afirmaram que quando ajuizamos qualquer ação ou caráter como vicioso, apenas expressamos o sentimento de reprovação que é próprio da constituição de nossa natureza (Hume, 1740, livro III, parte I, seção I). O problema aqui é como tornar a idéia de constituição de nossa natureza algo não trivial, pois definir a constituição de nossa natureza como aquilo que é natural nada nos diz.

As teorias naturalistas parecem ter poucos fundamentos científicos para suas alegações. Moore já tinha antecipado esse problema ao argumentar que é impossível, a partir das éticas naturalistas, demonstrar que definição está correta (Moore, 1903, parágrafo 11). Se um indivíduo A define "bom" como aquilo que produz felicidade para o maior número de pessoas e um indivíduo B discorda, pois define "bom" como aquilo que seria aprovado por um observador imparcial, torna-se impossível provar qual dos dois está errado, já que A define "bom" como o que produz a felicidade para o maior número e B como o que é aprovado por um observador imparcial. Essa é a circularidade das definições naturalistas: na ausência de qualquer fundamentação científica, todas as definições são igualmente plausíveis.

Alguns filósofos naturalistas têm procurando mostrar como suas teorias morais podem evitar essa acusação de circularidade. Rachels, por exemplo, afirma que desde Darwin uma das fontes de informação mais frutíferas sobre a natureza humana tem sido o evolucionismo. O comportamento moral poderia ser compreendido de modo plausível como um produto da seleção natural (2000, p. 81). Todavia isso é apenas um começo. Trata-se de um recurso independente, neste caso um recurso científico, a que a filosofia deve lançar mão. Como diz Pidgen, em que medida tais tentativas são justificadas ou não, apenas o tempo e argumentação adicional poderão dizer (1993, p. 430).

Matheus [email protected]

Nota

Agradeço à direção da Crítica as inúmeras sugestões e críticas que me possibilitaram evitar vários erros.

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A filosofia moral de Kant

Anthony KennyUniversidade de Oxford

Assim como a primeira Crítica estabeleceu criticamente os princípios sintéticos a priori da razão teórica, aFundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) estabelece criticamente os princípios sintéticos a priori da razão prática. Trata-se de uma breve e eloquente apresentação do sistema moral de Kant.

Na moral, o ponto de partida de Kant é o de que o único bem irrestrito é uma vontade boa. Talento, carácter, autodomínio e fortuna podem ser usados para alcançar maus fins; até mesmo a felicidade pode corromper. O que constitui o bem de uma vontade boa não é o que esta alcança; a vontade boa é um bem em si e por si.

Ainda que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade […] ela ficaria brilhando por si como uma jóia, como coisa que em si tem o seu pleno valor.

Não foi para procurar a felicidade que os seres humanos foram dotados de vontade; para isso, o instinto teria sido muito mais eficiente. A razão foi-nos dada para originar uma vontade boa não enquanto meio para outro fim qualquer, mas boa em si. A vontade boa é o mais elevado bem e a condição de possibilidade de todos os outros bens, incluindo a felicidade.

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Que faz, pois, uma vontade ser boa em si? Para responder a esta questão, temos de investigar o conceito de dever. Agir por dever é exibir uma vontade boa face à adversidade. Mas temos de distinguir entre agir de acordo com o dever e agir por dever. Um merceeiro destituído de interesse pessoal ou um filantropo que se deleite com o contentamento alheio podem agir de acordo com o dever. Mas acções deste tipo, por melhores e por mais agradáveis que sejam não têm, de acordo com Kant, valor moral. O nosso carácter só mostra ter valor quando alguém pratica o bem não por inclinação mas por dever — quando, por exemplo, um homem que perdeu o gosto pela vida e anseia pela morte continua a dar o seu melhor para preservar a sua própria vida, de acordo com a lei moral.

A doutrina de Kant é, a este respeito, completamente oposta à de Aristóteles, que defendia não serem as pessoas realmente virtuosas desde que o exercício da virtude fosse contra a sua natureza; a pessoa verdadeiramente virtuosa gosta decididamente de praticar actos virtuosos. Para Kant, por outro lado, é a dificuldade de praticar o bem que é a verdadeira marca da virtude. Kant dá-se conta de ter estabelecido padrões intimidadores de conduta moral — e está perfeitamente disposto a considerar a possibilidade de nunca ter havido, de facto, uma acção levada a cabo unicamente com base na moral e em função do sentido do dever.

O que é, pois, agir por dever? Agir por dever é agir em função da reverência pela lei moral; e a maneira de testar se estamos a agir assim é procurar a máxima, ou princípio, com base na qual agimos, isto é, o imperativo ao qual as nossas acções se conformam. Há dois tipos de imperativos: os hipotéticos e os categóricos. O imperativo hipotético afirma o seguinte: se quisermos atingir determinado fim, age desta ou daquela maneira. O imperativo categórico diz o seguinte: independentemente do fim que desejamos atingir, age desta ou daquela maneira. Há muitos imperativos hipotéticos porque há muitos fins diferentes que os seres humanos podem propor-se alcançar. Há um só imperativo categórico, que é o seguinte: "Age apenas de acordo com uma máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se torne uma lei universal".

Kant ilustra este princípio com vários exemplos, dos quais podemos mencionar dois. O primeiro é este: tendo ficado sem fundos, posso cair na tentação de pedir dinheiro emprestado, apesar de saber que não serei capaz de o devolver. Estou a agir segundo a máxima "Sempre que pensar que tenho pouco dinheiro, peço dinheiro emprestado e prometo pagá-lo, apesar de saber que nunca o devolverei". Não posso querer que toda a gente aja segundo esta máxima, pois, nesse caso, toda a instituição da promessa sucumbiria. Assim, pedir dinheiro emprestado nestas circunstâncias violaria o imperativo categórico.

Um segundo exemplo é este: uma pessoa que esteja bem na vida e a quem alguém em dificuldades peça ajuda pode cair na tentação de responder "Que me interessa isso? Que todos sejam tão felizes quanto os céus quiserem ou quanto o conseguirem; não o prejudicarei, mas também não o ajudo". Esta pessoa não pode querer que esta máxima seja universalizada porque pode surgir uma situação na qual ela própria precise do amor e da simpatia de outras.

Estes casos ilustram duas maneiras diferentes a que o imperativo categórico se aplica. No primeiro caso, a máxima não pode ser universalizada porque a sua universalização implicaria uma contradição (se ninguém cumprir as suas promessas, as próprias promessas deixam de existir). No segundo caso, a máxima pode ser universalizada sem contradição, mas ninguém poderia racionalmente querer a situação que resultaria da sua universalização. Kant afirma que os dois casos correspondem a dois tipos diferentes de deveres: deveres estritos e deveres meritórios.

Nem todos os exemplos de Kant são convincentes. Ele defende, por exemplo, que o imperativo categórico exclui o suicídio. Mas, por mais que o suicídio seja um mal, nada há de autocontraditório na perspectiva do suicídio universal; e uma pessoa suficientemente desesperada pode considerá-lo um fim a desejar piedosamente.

Kant oferece uma formulação complementar do imperativo categórico. "Age de tal modo que trates sempre a humanidade, quer seja na tua pessoa quer na dos outros, nunca unicamente como meios, mas sempre ao mesmo tempo como um fim." Kant pretende, apesar de não ter convencido muitos dos seus leitores, que este imperativo é equivalente ao anterior e que permite retirar as mesmas conclusões práticas. Na verdade, é mais eficaz do que o anterior para expulsar o suicídio. Tirar a nossa própria vida, insiste Kant, é usar a nossa própria pessoa como um meio de acabar com o nosso desconforto e angústia.

Como ser humano, afirma Kant, não sou apenas um fim em mim mesmo, sou um membro do reino dos fins — uma associação de seres racionais sob leis comuns a todos. A minha vontade, como se disse, é racional na medida em que as suas máximas puderem transformar-se em leis universais. A conversa desta afirmação diz que a lei universal é a lei feita por vontades racionais como a minha. Um ser racional "só está sujeito a leis feitas por si mesmo e que, no entanto, sejam universais". No reino dos fins, todos somos igualmente legisladores e súbditos. Isto faz lembrar a vontade geral de Rousseau.

Kant conclui a exposição do seu sistema moral com um panegírico à dignidade da virtude. No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Se algo tem um preço, pode ser trocado por qualquer outra coisa. O que tem dignidade é único e não pode ser trocado; está além do preço. Há dois tipos de preços, afirma Kant: o preço venal, que está relacionado com a satisfação da necessidade; e o preço de sentimento, relacionado com a satisfação do gosto. A moralidade está para lá e acima de ambos os tipos de preço.

A "moralidade, e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. A destreza e a diligência no trabalho têm um preço venal; a argúcia de espírito, a imaginação viva e as fantasias têm um preço

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de sentimento; pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bem querer fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor intrínseco." As palavras de Kant ecoaram ao longo do século XIX e ainda emocionam muitas pessoas hoje em dia/

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