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1 CURSO DE MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA AXIOLOGIA E ÉTICA PRIMEIRA LIÇÃO Considerações preliminares Ao longo da história do pensamento humano, único que conhecemos, foram surgindo muitas formas diferentes de construção doutrinal acerca do que seja a ética. Podemos encontrar fundamentalmente duas grandes linhagens, uma que liga indissociavelmente ética e ontologia, nomeadamente a ontologia humana, profundamente interdependente da mesma ética; outra que, de formas variadas, procura afastar ética e ontologia, produzindo, assim, formas de pensamento ético necessariamente alienado da realidade ontológica humana. Optamos por seguir uma linha de pensamento introdutório ao próprio da ética que liga esta indissociavelmente à mesma ontologia humana e, através desta, à ontologia geral do mundo. Assim, procuraremos fazer um percurso científico e pedagógico que mostre o surgir da especial forma ontológica da ética, como forma própria da interioridade da mesma pessoa, sem esquecer as dimensões ontológicas em que se amarra ou a transcensão para o domínio do possível contacto com outras realidades éticas, no que constitui o domínio da política, «topos» do encontro entre as diferentes intimidades éticas, agora transcendidas. Dado que o âmbito da ética, apesar de se tratar precisamente de isso de onde promana toda a possível acção humana, isto é, a mesma prática humana, pode ser tratado de formas altamente teórico-abstractas, prejudiciais, se usadas de formas exclusiva num curso como o nosso, trataremos algumas questões fundamentais a partir de histórias-narrativas

O absoluto do acto e a ética

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Page 1: O absoluto do acto e a ética

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CURSO DE MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA

AXIOLOGIA E ÉTICA

PRIMEIRA LIÇÃO

Considerações preliminares

Ao longo da história do pensamento humano, único que conhecemos,

foram surgindo muitas formas diferentes de construção doutrinal acerca do

que seja a ética. Podemos encontrar fundamentalmente duas grandes

linhagens, uma que liga indissociavelmente ética e ontologia,

nomeadamente a ontologia humana, profundamente interdependente da

mesma ética; outra que, de formas variadas, procura afastar ética e

ontologia, produzindo, assim, formas de pensamento ético necessariamente

alienado da realidade ontológica humana.

Optamos por seguir uma linha de pensamento introdutório ao próprio

da ética que liga esta indissociavelmente à mesma ontologia humana e,

através desta, à ontologia geral do mundo. Assim, procuraremos fazer um

percurso científico e pedagógico que mostre o surgir da especial forma

ontológica da ética, como forma própria da interioridade da mesma pessoa,

sem esquecer as dimensões ontológicas em que se amarra ou a transcensão

para o domínio do possível contacto com outras realidades éticas, no que

constitui o domínio da política, «topos» do encontro entre as diferentes

intimidades éticas, agora transcendidas.

Dado que o âmbito da ética, apesar de se tratar precisamente de isso de

onde promana toda a possível acção humana, isto é, a mesma prática

humana, pode ser tratado de formas altamente teórico-abstractas,

prejudiciais, se usadas de formas exclusiva num curso como o nosso,

trataremos algumas questões fundamentais a partir de histórias-narrativas

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paradigmáticas que coincidem com avanços éticos fundamentais da

humanidade, avanços que permitiram criar o que de melhor há em termos

teóricos no tratamento das questões relativas à prática humana.

Perceberemos que, apesar de se terem estes avanços acrescentado ao

património fundamental da humanidade, no que esta tem de melhor, muitos

deles permanecem esquecidos, alguns inutilizados.

Não trataremos a ética de uma forma adjectival, como é costume,

epistemologicamente nefasto, quando, por exemplo, se diz algo como:

«aquela acção não é etica». Toda a acção é ética ou não seria acção alguma.

A questão da correcção da acção é de outra grandeza, nunca adjectival,

sempre substantiva, como veremos. A ética não é, assim, um adorno

adjectival para a acção, mas o próprio domínio substantivo da acção do ser

humano no que respeita à sua interioridade fontal pessoal.

Iremos também distinguir muito bem entre o que é o domínio da ética

e o que são domínios não éticos, como a política ou a deontologia ou o

direito, por exemplo. Embora toda a acção humana diga respeito

fontalmente à ética, nem toda ela pode ser vista por meio de uma bitola

ética apenas. Iremos dar, no entanto, uma grande importância quer à

relação da ética com a política, quer à mesma política, como forma única

necessária da possibilidade de relacionamento da pessoa humana com tudo

o que não seja a sua mesma pura interioridade, esta, sim, puro âmbito da

pura ética. Para um melhor esclarecimento destas questões da relação da

ética com política, anexamos a esta lição um texto científico nosso onde

esta questão é desenvolvida.

A ética permite, assim, não a recepção passiva de um qualquer

conjunto de normas – algo próprio de deontologias ou do direito, que, ainda

assim, deveriam depender da ética para produzir tais normas –, mas a

construção pessoal de uma tese própria acerca do ser humano como

essencial e substantivamente um acto cujo fundamento próprio, para além

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do que recebeu aquando da sua vinda à existência e que dele não depende,

é a sua mesma acção, seja ela qual ou como for. A ética estuda e manifesta

o fundamento próprio da acção do ser humano, não fornece normas de

conduta. Estas devem ser descobertas eticamente, isto é, através do estudo

da acção do ser humano. Um estudo atento, como veremos detalhadamente,

descobre que a acção própria de um ser humano não é uma acção qualquer,

mas uma acção que possa permitir o desenvolvimento do melhor de suas

possibilidades ontológicas próprias, mas não como se estivesse só no

mundo, antes no respeito pela mesma exacta possibilidade para todos os

outros seres humanos que vai descobrindo precisamente por meio de sua

acção em transcensão política: a este único desenvolvimento

verdadeiramente humano da ética, com consequêrncias políticas chama-se

bem-comum.

Deste modo, todo o nosso percurso será delineado no estudo da ética

como possibilitação do único bem humano digno desse nome, o bem-

comum. Não ignoramos que há outras formas de entender a ética, mas

consideramos que não são formas de ética, antes formas de justificação de

realidades que não dizem respeito ao bem-comum.

A ética não é apenas mais uma disciplina científica, anódina e

inconsequente: pelo seu âmbito passa todo o destino humanamente

informado e informável dos seres humanos. Assim, perceberemos que o

que iremos discutir no âmbito desta disciplina tem implicações sempre

dramáticas e por vezes trágicas sobre a vida e a possibilidade de vida das

pessoas.

Por fim, apenas mais uma palavra introdutória: a ética, sendo o mesmo

fundo ontológico de onde promana toda a acção humana, como realidade,

é, como disciplina, o único laboratório intelectual onde qualquer pessoa se

pode preparar de forma indolor para a acção, pensando a sua mesma

essência, substância e natureza. O treino ético teórico é, assim,

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fundamental, pois é o único que pode permitir o encontro mediato de

princípios orientadores da acção que são imediatamente necessários em

muitas situações, onde não há possibilidade de mediação outra que não a da

prévia interiorização desses mesmos princípios. Sem estes, sem a sua

orientação, muitas vezes a acção humana converte-se em mero movimento

bestial de seres humanos, que têm a humana obrigação de agir de modo

concentâneo com a sua mesma humanidade, humanidade que se

desqualifica sem a perseguição do sentido do bem.

O bem é, assim, o farol-guia de toda a ética e política possíveis, como

veremos ao longo das nossas lições. Uma ética que prescinda do sentido do

bem, ainda que apenas como eventual utopia inatingível, mais não é do que

um registo de actos quaisquer, indiscerníveis em seres humanos e bestas.

Começaremos, pois, precisamente pela questão do absoluto do bem e seu

sentido.

Da intuição do irredutível absoluto ontológico: o bem.

Constitui erro grave pensar-se que o bem objecto de estudo da ética se

esgota essencial e substancialmente como algo de meramente ético/moral.1

São várias, aliás, as tentativas de encontrar um qualquer eixo fundamental

para apresentar como garantia do bem. Todas falham, pois o único modo

possível para encontrar uma fundação do bem e uma fundamentação da

ética e da política tem de ser necessariamente objectivo e isso que se

encontre tem de também ser necessariamente objectivo.

Assim, ou se encontra algo de real que fundamente o bem ou é

impossível a sua fundamentação, sendo impossível uma qualquer ética e

uma qualquer política ortonormada. Todas as formas que dispensam a

objectividade do fundamento da ética mais não são do que construções que

1 Usaremos indistintamente estes dois termos, «ética» e «moral» no âmbito desta nossa disciplina. Alguma distinção que é feita entre ética e moral limita-se a confundir moral com política. Remetemos para o estudo em anexo sobre ética e política e sua relação.

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intentam justificar artificiosamente uma qualquer posição arbitrária de tipo

deontológico ou, no pior dos casos, tirânico, assumindo-se um qualquer

detentor de um poder político esmagador como o ditador absoluto das

tábuas de valores éticos e políticos dados como absolutamente bons aos e

para os sujeitos interessados. Não há nem pode haver nestes casos qualquer

garantia de bondade destas tábuas ou daquelas deontologias. O século XX

foi um laboratório terrível para estas experiências, de que se podem

salientar o hitlerismo e o estalinismo.

Nas primeiras lições, iremos reflectir sobre textos muito antigos,

textos paradigmáticos, onde vozes e cálamos da humanidade deixaram

expressas preocupações e descobertas, todas elas válidas até aos dias de

hoje, acerca da essência prática da pessoa humana quer entendida na sua

pura pessoalidade estritamente interior, em seu mesmo seio ético, de onde

promana toda a acção, quer como comunidade ou tendência para essa

mesma comunidade, onde se pode encontrar e se encontra cada acto

pessoal com todos os outros possíveis e reais actos pessoais.

Perceberemos que a humanidade – perceberemos também que aqui

não há distinções culturais que importem – foi intuindo princípios e

estruturas próprias suas, que a distinguiam quer, na expressão de Pascal,

das bestas quer dos anjos. Há um próprio do ser humano, que o ergue

activamente como tal e que passa pelo seu acto próprio, irredutível a

qualquer outra coisa, acto ou pessoa. Estas descobertas são as descobertas

mais profundas de sempre da humanidade e constituem momentos

fundamentais na construção da mesma humanidade como humanidade. Em

vários momentos da sua história, a humnidade foi posta à prova, em termos

de sentido, por provações espirituais, teoricamente estabelecidas, mas

também por provações físicas, de que também possuímos relatos.

Cada um destes momentos e cada uma destas provas e provações

eliminaram do âmbito definitório do humano muita da ganga não humana

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que impedia a humanidade de se afirmar como tal, mas também trouxe à

luz do dia capacidades e actos que patentearam à mesma humanidade a sua

mesma potência e grandeza actual como propriamente humanidade e não

outra coisa qualquer. Quando se fala de «natureza humana» fala-se de isto

que foi sendo descoberto como propriamente humano. Não se trata de uma

qualquer estrutura fixa e anquilosada, mas de um conjunto imenso de

potencialidades próprias de cada pessoa e de todas as pessoas, sem

excepção, e que marcam os limites ontológicos, pela negativa, mas também

pela positiva, da pessoa humana. Tais limites não são estáticos, tal natureza

é dinâmica. E de tal modo o é que podemos dizer, com o filósofo Louis

Lavelle, que o homem foi criado criador.

Perceberemos que o ser humano é dotado de capacidades

propriamente criadoras, pois, através de sua acção, há novidade, absoluta

no que de novo traz ao mundo, que é posta no âmbito do ser, do acto.

Reside aqui, nesta capacidade criadora, a grandeza fundamental do ser

humano, grandeza que depende apenas de si próprio, independentemente

das condicionantes ambientais de tipo político ou outras, como teremos

oportunidade de discutir ao longo do nosso curso.

Só é possível construir uma ética e uma política ortonormada sobre a

intuição de um qualquer absoluto real objectivo. Se tal intuição não for

possível, é impossível uma qualquer ética e uma qualquer política

ortonormada. Valerá apenas o poder do ser humano com maior capacidade

de exercício da violência.

Como veremos, desde tempos imemoriais que o ser humano intuiu não

apenas a espuma dos acontecimentos, numa espécie de fenomenologia da

mera exterioridade das coisas, mas isso mesmo que é ser, em absoluto. Ser

por oposição a não ser, absolutamente. O estar aí das coisas não como mera

sombra ou reflexo de coisa nenhuma, mas como floração de algo de mais

radical, que, assim, se manifestava. Toda a religião pode ser vista como a

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celebração variada desta descoberta, porque toda a religião é uma

celebração do absoluto ou não faz qualquer sentido.

Mas o mesmo se pode dizer da ética, pois, quando o ser humano

começou a reflectir acerca da sua acção começou a perceber o que de

absoluto cada seu acto possuía, o quão modificava o mundo. Mesmo em

âmbito mítico, tal é por demais patente. Na aurora da civilização escrita,

encontramos reflexões definitivas acerca da grandeza absoluta de cada acto

de cada ser humano.

Assim, na base da possibilidade da ética está esta intuição acerca da

grandeza absoluta de cada acto, mormente do acto de cada ser humano.

Isso que há de absoluto em cada acto, isso que faz dele algo e não nada,

isso é o bem, em seu sentido ontológico. A ética é para cada ser humano o

lugar dinâmico próprio da possibilidade de fazer o bem. É sobre esta

intuição fundamental que toda a ética pode constituir-se. A ética tem uma

fundamentação ontológica ou não tem qualquer fundamentação real válida.

Da intuição primeira do facto ético.

Historicamente, será impossível a descoberta de quando se deu a

primeira intuição de um facto ético, o que é, aliás, irrelevante. Podemos,

sem margem de erro notável, especular que tal acontecimento coincidiu

precisamente com o momento do surgimento da humanidade, não como

mais uma outra forma animal, mais uma espécie de bestas entre todas as

outras, mas exactamente como ser humano: com quem essa intuição se deu

primeiro, esse foi o primeiro ser humano.

A hominização não é, assim, um processo, ainda mágico, de passagem

de uma não humanidade a uma humanidade, por saltos qualitativos, mas

dá-se precisamente quando e só quando surge o primeiro ser que tem a

primeira intuição de si próprio como agente ético, isto é, como senhor de

sua mesma interioridade como fonte de acção própria. Sem isto, é-se

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indiscernível das bestas, por mais duro que este juízo seja e por mais

desagradável que possa parecer, o que em ciência não tem qualquer

interesse.

Tal privilegiada criatura, que teve de existir ou não estaríamos nós

aqui a pensar sobre isto, ficará para sempre nos anais do desconhecido, mas

é ela o famoso «missing link», o famoso elo perdido. Quer isto dizer que

não há humanidade sem intuição ética, que um ser humano sem intuição

ética não faz qualquer sentido e que o que define o ser humano como

humano é precisamente a intuição ética. De tal modo é isto verdade que o

sonho de qualquer candidato a tirano que se preze consiste precisamente

em condicionar ou mesmo eliminar esta possibilidade de intuição ética,

reduzindo, assim, imediatamente, todos os seus tiranizados de pessoas a

escravos.2

Mas esta intuição primeira do facto ético não é algo de histórico-

arqueológico, antes diz respeito ao modo próprio de ser de cada ser

humano: assim, há um primeiro momento na existência de cada ser humano

em que se dá pela primeira vez uma intuição acerca da sua mesma grandeza

ontológica como fonte e motor primeiro de sua mesma acção. É a partir

desta primeira intuição ética fundamental que passa a haver um sujeito

ético propriamente dito em acto e que temos uma pessoa não já apenas

potencial, mas actual, porque já verdadeiramente autónoma.

Esta intuição coincide também com isso que é o sentido do absoluto de

bondade de nosso próprio acto, sentido que, por exemplo, dá o chamado

valor da vida própria, bem supremo ontológico que cada ser possui,

melhor, não possui, é. Na primeira intuição ética, o ser humano coincide

espiritualmente com o que é, passa a ser uma entidade espiritual, um acto

2 Não se quer dizer com isto que o escravo não é pessoa, mas que o tirano pensa que o escravo não é pessoa, pois pensa ter-lhe retirado toda a possibilidade de intuição ética. Como veremos com Job, para eliminar a possibilidade da intuição ética é necessário eliminar a própria pessoa, razão pela qual o escravo real pode sempre retomar a sua condição verdadeiramente pessoal de não-escravo.

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de sentido, acto de sentido de que passa a fazer parte não apenas, por

exemplo, o seu próprio corpo, mas todo o mundo, pois corpo e mundo

fazem parte de isso que é o único mundo do espírito, onde tudo, mas

mesmo tudo sem qualquer excepção, vem ao sentido, vem ao ser na forma

do sentido. Compreende-se melhor, agora, o sentido humano da sentença

joanina «no princípio era o logos», não um verbo ou uma palavra qualquer,

mas o sentido, na forma de seu absoluto, de que o ser é indistinguível.

Como podemos ver, a ética não é apenas a pobre normatividade a que

estamos habituados.

Da irredutibilidade do facto ético.

Muitas são as tentativas de redução do facto ético a outras categorias

que não a propriamente ética. Como veremos abundantemente, o facto

ético, embora possa ter diferentes leituras, algumas cientificamente bem

intencionadas, outras função de agendas tirânicas, não é redutível. Um ser

humano em acto próprio é isto mesmo: um ser humano em acto próprio.

Tal acto, na sua mesma actual realidade, é o que é e teria sido necessário

não ser absolutamente para que pudesse não ser. Não se trata de um jogo de

palavras, mas do raciocínio lógico necessário para evidenciar a grandeza

ontológica do acto próprio de cada ser humano, quando em acto.

A única maneira de reduzir totalmente a dimensão ética de um acto de

ser humano é este nunca ter sido. Pode haver as influências que houver, se

houve um acto de um ser humano qualquer, esse acto é um acto ético. Tal

evidência é honestamente incontrovertível.

No entanto, há quem pense que «ético» é apenas o acto que se

conforma com tais ou tais tabelas. Tal posição imediatamente divide a

humanidade real em duas secções: a primeira, a dos verdadeiros humanos,

isto é, a dos que cumprem os preceitos da tabela, sendo «éticos»; a

segunda, a dos que não cumprem os preceitos da tabela, sendo não

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«éticos». Estas posições, que não têm em consideração a fundação

ontológica da ética, remontam a estruturas antropológicas muito antigas, de

tipo etnocêntrico, em que se reclama a humanidade para um determinado

tipo de seres humanos (habitualmente aquele a que precisamente

pertencemos) e se a nega ao restante. Nelas se fundamentou, por exemplo,

o regime nazi.

Sejamos claros, se diz respeito ao acto que tem origem no seio de uma

qualquer pessoa, é um acto ético. Pode é ser um acto mau, mas é ético: é

ético e é mau. A ética não é a ciência da bondade, é a ciência da acção

humana, boa ou má. O facto de a ética, ontologicamente entendida, como

âmbito da acção do ser humano, definir o domínio da possibilidade do bem

a realizar, não implica que este bem tenha de ser realizado. Estamos aqui,

naquilo a que se costuma chamar «o mistério do mal», mistério a que obras

de reflexão fundamental, como O livro de Job, já há muito tempo deram

resposta.

Bom trabalho

Américo Pereira

ANEXO:

Ética e política: essência e relação3

Muitas vezes nos deparamos com expressões como «a necessidade de uma política ética», em que o termo «política» aparece como substantivo e o termo «ética» como adjectivo. Este tipo de expressões ignora o absoluto da importância relativa, não de cada um destes termos, enquanto tais4 – o 3 Reflexão feita a partir de uma lição ministrada no âmbito de um seminário subordinado à temática da Paz e guerra, UCP, Faculdade de Ciências Humanas, Licenciatura em Filosofia, 2005. 4 Desde sempre, se assistiu à confusão entre a realidade substantiva dos actos, isto é, a actualidade própria de cada ser e a linguagem que a pretende designar. Esta última não é mais do que um ensaio semântico de representação daquela, ficando dela sempre infinitamente distante, porque com ela incoincidente: as palavras, por mais correctas (ou mesmo poéticas), nunca são mais do que aquilo que são, enquanto palavras – por exemplo, o grito de dor ou a narração da dor nunca serão dor alguma. Semelhantes considerações se podem fazer acerca de qualquer ensaio de tradução (redução) da realidade extra-linguística à linguagem. O real, quando se dá, dá-se sob a forma de sentido, mas este logos não é

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que não é relevante –, mas das actualidades próprias dos actos a que se refere. Se há uma dimensão necessariamente substantiva na política,5 também há uma dimensão necessariamente substantiva na ética.

A ética nunca pode ser utilizada como adjectivação seja do que for.6 A ética possui e constitui uma irredutível dimensão ontológica própria, a dimensão da actualidade do homem, individual e pessoalmente entendido. A expressão acima referenciada nada mais de substancial exprime do que a profunda incompreensão quer do que são, na essência de seu substantivo acto, política e ética quer da sua relação. Porque as essências de tais substantivos actos configuram absolutos próprios, esta última nunca é adjectival, mas sempre substantiva, essencial, fundamental, radical. Não há, pois, qualquer «política ética» assim como não há qualquer «ética política».7

A política não é eticamente qualificável e a ética não é politicamente qualificável. A relação entre ambas não é exterior, de modo a que uma possa qualificar a outra, sendo dita dela, a partir de uma fonte judicativa exterior.8 A sua relação é demasiado profunda para que seja passível de ser

linguístico, antes coincide com o mesmo acto do advento de isso, antes irreferenciado e irreferenciável, que, agora, é o mesmo sentido dando-se. Este sentido é a única realidade que nos é acessível, exactamente neste mesmo acto. A linguagem limita-se a procurar uma expressão deste mesmo sentido, expressão que nunca é o próprio sentido, mas apenas uma sua exo-especulação. Engana-se, pois, quem se deixa seduzir pelo canto de sereia da linguagem, pensando que ouve a voz do ser: Odisseu bem pressentiu que havia uma perversidade essencial no som da voz de tais híbridos seres. O ser é o sentido do acto, não o que do acto se diz. O ser dá-se no fulgor do absoluto da presença do acto, não numa qualquer moralização linguística, já pretérita, já fundamentalmente cadáver. 5 Exactamente, a da sua mesma actualidade, no absoluto de seu acto próprio, irredutível seja ao que for. 6 O mesmo se diz da política. 7 Estas expressões, que usam referências linguísticas a realidades propriamente substantivas como formas adjectivais, são tão assignificativas quanto estas outras, talvez mais evidentes: «gato candeeiro», «sol batata», etc. Como é óbvio, um gato, enquanto tal, nunca pode ser adjectivado de candeeiro nem um sol, enquanto tal, de batata. E não é aceitável que se diga que pode haver candeeiros com a “forma” de gatos, por exemplo, pois esta “forma” será de tudo menos de gato, que possui uma «forma» própria: exactamente a que faz dele um gato, algo que, também exactamente, nunca pode ser um candeeiro. Há, aqui, gravíssima confusão, do ponto de vista da ontologia própria das realidades, que radica num falso sentido, equívoco ou de falsa analogia, do ser. 8 O juízo é sempre exterior relativamente a isso que pretende ajuizar: supõe uma entidade capaz de ligar logicamente dois termos, mas independente desses mesmos dois termos. Se, nos juízos analíticos, há uma necessária pertença intrínseca, essencial e substantiva do predicado ao sujeito, explicitada aquando do momento do acto predicativo, este último transcende a mesma relação que explicita, a qual, sem o juízo, ficaria, para sempre, implícita. O juízo não é produzido pela relação S – P, mas, de algum modo, produz semanticamente aquela relação, não enquanto sentido à relação interior, mas como sentido exteriorizado, explicitando-a. Sem o juízo, não se saberia da sua actualidade. No caso de possíveis juízos sintéticos, quer a relação atributiva quer o juízo que a faz ressaltar são externos ao sujeito. Deste modo, a relação de predicação é, enquanto relação própria do predicado ao sujeito, como relação, interior ao próprio sujeito, no caso dos juízos analíticos; exterior, no caso dos juízos sintéticos. Em ambos os casos, a relação de predicação, enquanto relevada pelo e no juízo, é exterior ao sujeito e supõe uma entidade, transcendente ao mesmo, que a actualize. A sua coincidência, para ser aferida quanto à sua validade ontológica, necessitaria de uma outra operação de comparação, e assim sucessivamente. O logos da linguagem está confinado ao interior da própria linguagem; o logos do acto, que dá o ser, nunca é redutível a qualquer forma de linguagem, sendo, por isso mesmo, incomunicável, enquanto tal: tragicamente, o sentido literalmente ontológico da minha experiência nunca é comunicável, enquanto tal. A minha experiência é o que eu sou e ambos não somos comunicáveis. Tragicamente, também, o que se comunica é exactamente a

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ditada por qualquer fonte judicativa, interna ou externa, tanto monta. Os termos «ética» e «política», por causa daquilo a que se referem e que veiculam semanticamente, não se relacionam como, por exemplo, os termos «cavalo» e «veloz», «física» e «quântica» ou «batata» e «frita», em que temos meras qualificações gerais, mas restritivas.9

Ética e política são os dois únicos modos de possibilidade de ser – e, nisto, são necessárias – do acto do homem. De possibilidade, pois estes dois modos definem absolutamente, metafisicamente, – isto é, enquanto realmente, actualmente possíveis –, a totalidade do domínio de possibilidade do acto do homem: o homem só pode ser ética e politicamente.10 Sem qualquer destas duas dimensões ou sem ambas concomitantemente, não há possibilidade de haver homem algum e, portanto, não há homem algum. Assim sendo, nenhum destes modos pode ser meramente qualificativo do outro: são os dois substantivamente necessários para que possa haver homem. A essência própria de cada modo e a essência da sua relação dependem do absoluto do acto do homem, não de uma qualquer conjunção atributivo-judicativa a tal acto exterior. Ética e política relacionam-se, porque se relacionam no acto e como partes do acto do homem, não porque sejam emparelháveis facticiamente num qualquer acto judicativo. São actos componentes do acto maior integral do homem, não podendo ser ditas uma da outra, pois não faz qualquer sentido predicar um acto, enquanto tal concreto, insubstituível acto, de um outro acto.11

linguagem, que não coincide com o sentido real da minha experiência. O universo de possibilidades e de impossibilidades que se pode daqui deduzir é imenso, espantoso e necessariamente trágico, como os antigos bem perceberam. Na história da humanidade, o acontecimento do amor de Cristo serve de paradigma para o único modo de romper esta barreira ontológica, tendo acesso ao ser do outro, não gnoseologicamente, mas pelo bem que se devota ao seu ser, unicamente pelo seu ser. 9 Qualificações gerais, quando se afirma de um determinado conjunto de objectos algo que é comum a todos (aqui, o geral coincide, como deveria, aliás, sempre acontecer com o universal), estas qualificações são restritivas porque não contemplam tudo o que ultrapasse isso mesmo que usam como qualificativo, prescindindo necessariamente de tudo resto. 10 Esta conjunção é propositada: a disjunção inclusiva também é possível, mas exactamente no singular caso em que coincide com uma conjunção; a disjunção exclusiva é inaceitável – não é possível homem algum que seja ou apenas ético ou apenas político. Um “homem” «não ético» e «não político» é indiscernível de um cadáver; um “homem” «ético», mas não «político», seria uma espécie de “anjo” de pura interioridade, mas totalmente incomunicável; um “homem” «político», mas não «ético», seria algo como um “reflexo sem objecto”. Note-se que esta impossibilidade não é “prática”, mas teórica, isto é, metafísica. Note-se, ainda, que tudo aquilo que vulgarmente se designa como «impossibilidade “prática”», mais não é do que o reflexo “prático” de uma condição metafísica, que é sempre necessariamente de ordem teórica: como muito bem viu Platão, o possível é sempre do domínio do teórico. 11 É óbvio que a predicação é um acto. Mas é um acto que, muitas vezes, pretende o impossível e se ilude com os resultados do labor exercido para realizar tal pretensão. Não se trata apenas da evidente impossibilidade de (para utilizar linguagem aristotélica) predicar substâncias primeiras de outras substâncias primeiras, mas da impossibilidade de predicar actos de actos, pois o acto, qualquer que seja, é impredicável para além do que é, e, no que é, qualquer predicação é meramente tautológica, logo, desnecessária e espúria. Quando digo de uma bola que é redonda, enuncio uma inútil tautologia, pois não pode haver bolas “não-redondas” (para não mencionar o, ainda mais óbvio, «a bola é esférica»). Verdadeiramente, não predico coisa alguma, antes me limito a expressar algo que faz parte da substantiva

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O domínio primeiro da possibilidade do homem é o do seu acto próprio, ontologicamente próprio, absolutamente próprio, irredutivelmente próprio, em que tudo o que é a sua possibilidade, e a correlativa possibilidade do mundo que o acompanha, pode manifestar-se, dar-se: sem este acto, nada é referenciável, absolutamente nada,12 nada pode ter sentido algum, não há qualquer possibilidade de referência ontológica. Isto percebe-se perfeitamente bem e com facilidade, se se pensar o que seria se nunca tivesse havido acto algum de homem algum: necessariamente, nunca teria havido ontologia alguma, dado que esta é, literalmente, a colheita do sentido e esta colheita só é passível de ser operada pelo acto do homem. Sem este acto, não é possível qualquer referência ontológica, absolutamente. Tudo o que foi dito de ontologia ou sobre a ontologia passou, de algum modo, pelo acto de um qualquer homem. Negar isto é, nesse mesmo acto de negação, prová-lo e provar que nada se entende acerca do que se está negando.

Este domínio – o do ético – é o domínio exclusivo da interioridade13 do homem, é neste domínio que se dá, melhor, é este domínio que é tudo o

essência da mesma bola: o ser “redondo”. Poderia estar calado. Mas, quando digo «a caneta é vermelha», sabendo perfeitamente que não há uma “caneta universal” ou algo de semelhantemente absurdo, refiro-me necessariamente a esta qualquer caneta. Ora, esta qualquer caneta é vermelha, independentemente do que quer que seja, enquanto é vermelha. Se não fosse vermelha, não seria esta caneta, pelo que esta caneta não pode ser senão vermelha, para que seja esta caneta e não uma outra, virtualmente infinitamente possível, coisa qualquer. Para este «acto de caneta», o ser vermelho não é acidental, é absolutamente substancial, pois esta caneta é absolutamente o indivíduo que é e é só isso, e, se não fosse isso, seria tudo ou nada, mas não seria isso que é, no que é, absolutamente. Esta caneta nunca é confundível com um misto de indivíduo e espécie: é absolutamente o indivíduo que é. Neste sentido, todos os juízos possíveis acerca de actos singulares e concretos, irredutíveis e insecáveis, são necessariamente juízos analíticos. Assim sendo, e, no acto que é, absolutamente como é, nada é acrescentável “de fora”, muito menos predicamentalmente. Toda a predicação possível é uma mera tautologia de voz, sem pertinência ontológica: meramente descritiva. Não afecta o acto a que se refere ou o ser que reporta. Ora, cada acto constitui, assim, uma unidade ontológica dotada com uma essencial substância própria, apenas de si mesma tautologicamente predicável e impredicável de qualquer outro acto. O estudo dos actos por predicação é uma vã tentativa de “encaixar bolas de bilhar sem contexto”. Há uma comunidade dos actos, mas não é da ordem da predicação, é da ordem da participação, comunidade metafísica fundamental, de que a predicação mais não é do que um fantasma (e não apenas no sentido técnico do termo). 12 A prova é muito simples: se se eliminar este quadro de possibilidade do homem, com tudo o que tal quadro de possibilidade necessariamente implica e comporta, toda e qualquer referência, seja ao que for, mesmo que apenas como possível, desaparece absolutamente. Tudo o que é o universo da racionalidade, no seu sentido mais lato possível, desaparece, sem deixar qualquer rasto, qualquer indício. Deixa de haver “mundo”, “homem”, “Deus”, “etc.”, porque, desde o “etc.”, passando pelas outras “referências”, tudo é aniquilado. «Mundo», «homem», «Deus», etc.: tudo são presenças semânticas no seio desta única capacidade de semântica que é o homem. Sem este, tudo, do ponto de vista semântico, é nada. Retire-se, pois, o homem... 13 Interioridade obviamente não física, mas semântica, topos do sentido, lugar da literal onto-logia, isto é, em que o acto se dá como ser, ou seja, em que o sentido emerge, na actualidade da presença comum do acto do homem e do acto do que transcende o homem, mas nele se manifesta. Esta entidade, sempre misteriosa, que é o homem, é o lugar metafísico da coincidência de transcendência e imanência e o seu ser é o mesmo exacto quiasma de ambas: o homem é o ponto de encontro de uma imanência infinitamente potente de actualização e de uma transcendência infinitamente activa, toque infinitesimal, que é metáfora dessa outra metáfora maior do pensamento, que é a participação. O homem é, pela participação, o ponto de encontro entre o seu possível universo, apenas potencial (em acto de potência), e o “universo” de infinita actualidade, que, no toque, se potencializa, a fim da actualização do homem. Imagem outra do

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que o homem pode ser e ser com o mundo que lhe corresponde. Esta afirmação tem validade individual e universal. Todo o ser é sentido, significado e todo o sentido é interior ao homem. Neste, desaparecido o que que é o seu interior semântico, desaparece tudo, absolutamente. Cada homem é, na sua interioridade, a possibilidade, não só de si mesmo, mas do infinito virtual de que essa mesma interioridade é capaz. Tudo o que é se apresenta, se dá, se manifesta, no seio desta interioridade. Sem ela, nunca teria havido manifestação alguma.

Esta interioridade semântica é o absoluto da possibilidade e da realização da relação. Não, apenas, de uma relação com, no sentido exterior da expressão, mas no sentido do absoluto do que é, como relação. O acto interior semântico do homem é o absoluto da relação, como pura possibilidade de actualidade. Por outras palavras, o acto do homem é a pura possibilidade de relação. É a actualização desta possibilidade que realiza o homem, mas como relação com o absoluto da sua possibilidade. Sem esta relação, nunca haveria manifestação alguma. O acto do homem, como interioridade semântica e, assim, possibilidade do ser, é pura abertura à manifestação e esta pura abertura é a relação.14

É, pois, neste absoluto de possibilidade relacional, que o acto do homem tem a sua fonte mais profunda. O acto do homem radica no absoluto, fonte de toda a possibilidade de relação. É esta radicação, esta ligação, esta relação que mantém o acto do homem.15 Cortada, é este acto

sentido da infinita graça e do infinito dom de amor, que a filosofia e a teologia cristãs, na sequência da metafísica platónica, se têm esforçado (um tanto em vão) por anunciar. 14 O imenso Aristóteles que nos perdõe, mas a relação não é secundária, categoria acidental de uma primacial substância matriz e suporte. E não o é exactamente segundo o que de mais profundo o maior discípulo de Platão intuiu, aliás, na sequência do próprio Mestre (cfr. Platão, República, livros VI e VII): se, em última análise, todo o ser natural – exactamente o ser de que somos cabalmente capazes –, na sequência tensional dialéctica de potência-acto-potência... e de matéria-forma-matéria..., é indiscernível quer lógica quer formalmente dessa mesma sequência (o metafísico movimento, que se opõe ao nada), pois, sem ela, não haveria ser natural algum, então, toda a physis mais não é do que uma tensão para um telos último, inatingivelmente último, porque essencialmente modelo de infinita perfeição para um infinito caminho de aperfeiçoamento físico (isto é, da ontologia de que somos capazes). Ora, esta tensão é, substantiva e essencialmente, uma relação: é uma relação que substantifica, em contínuo processo e progresso ontológico. Sem esta relação fundante com a perfeição (Acto Puro, Motor Imóvel), não haveria ser algum em progresso. Para Aristóteles, mesmo que contra um certo Aristóteles de manual, o cerne do real de que somos capazes (o físico) é a relação com o Acto Puro (ou M. I.). Sem ela, nada mais do que o simples Acto Puro, sem relação alguma. A relação predicamental matricia-se nesta e refere-se, já, a um nível mais superficial da ontologia. 15 Sem este acto de fundação semântica, não há homem: o que diferencia um homem, isto é, um vivente humano, de um cadáver com aspecto humano não é, obviamente, qualquer diferenciação quantitativa material, dado que o imediato cadáver possui toda e a mesma matéria do também seu imediato, agora, ex-vivente humano, ou seja, materialmente, quantitativamente, nada distingue o morto, acabado de morrer, do vivo, no momento exacto antes de morrer, a não ser esta especial “funcionalidade” que é a vida, exactamente não redutível a uma mera quantidade, pois, quantitativamamente, nada distingue os dois objectos em causa, só que o vivo possui, pelo menos potencialmente, capacidade semântica, algo que o cadáver obviamente não possui: a vida é uma questão semântica, se bem que também materialmente sustentada. O que o monstro frankensteineano não possui, apesar de ter toda a matéria necessária para que funcione, é acto semântico. Aqui, Aristóteles tem toda a razão: é a alma que é matriz do corpo (de que é forma), não o contrário. A haver uma qualquer relação de produção, será a “alma” que produz o corpo e

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simplesmente aniquilado. Mantida, é todo o infinito de possibilidades que fica, que está à sua disposição, para ser transformado em ser, isto é, em absoluto de sentido. É este absoluto de sentido que realiza a interioridade do homem. E esta interioridade nada mais é do que este absoluto de sentido. Sem ele, não há interioridade alguma, homem algum. É no seio desta interioridade que tudo se manifesta, se pode manifestar. Não se trata de uma redução «imaginal» ou semelhante da “realidade”, de uma “realidade”, que existisse independentemente do sentido, que é o seu e que a constitui, mas da intuição de que tudo ou é sentido interior ao homem ou não é coisa alguma.16

Também não equivale a dizer algo como “o mundo está na ideia” ou “o mundo está no pensamento” ou o menos subtil “o mundo está dentro do homem”, mas «o mundo é o que se manifesta na interioridade que é o homem». Mas, se o mundo não está no interior do homem, o mundo é o interior do homem. Esta interioridade é virtualmente infinita, o que se percebe sem dificuldade, se se pensar que, não lhe assinalando fim, este não tem como advir: por palavras simples, se nos deixassem “viver para sempre”, a capacidade de manifestação realizável seria infinita,17 não já virtualmente, mas actualmente.

Tudo o que, virtualmente infinitamente, é manifestável nesta interioridade e como esta mesma exacta interioridade, é tudo o que é humanamente passível de absoluta referência. Tudo: do mais “insignificante” ser, a Deus. Tudo o que há, há como sentido, e apenas porque é manifestável na interioridade do acto do homem, e como tal. Tudo o mais é nada. A única alternativa é o nada. Ou há esta possibilidade de actualidade semântica, que é o acto do homem – até Deus –, ou há o nada. Como não há o nada, o que há é esta possibilidade e sua realização, dadas na actualidade mesma do acto do homem. Não admira, pois, o deslumbramento maravilhado de grandes homens que tal entenderam (só não o contrário, dado que o corpo, sem isso que é a “alma”, é um exacto cadáver: pura, estúpida matéria. As teses materialistas reduzem a imagem do homem a este mesmo cadáver estranhamente “animado”. 16 A questão da realidade do que transcende o homem não pode ser posta, com sentido, em termos de uma referência real absolutamente independente do homem: sem a referência ao homem, não há referência seja ao que for, não no sentido em que seja o homem a «criar» o todo da referência possível, mas no sentido em que qualquer possível referência só é possível passando pela mediação semântica do homem. É exactamente a necessidade desta mediação, co-criadora de sentido, que fundamenta, por exemplo, o sentido criacionista, na metafísica gnoseológica de Leonardo Coimbra. O que o puro Acto absoluto, infinitamente afastando o nada, possa ser, sem esta referência necessária ao homem, nunca se saberá. É esta mesma distância infinita de não coincidência com o que o Acto possa ser, sem a mediação do homem, qua constitui o «mistério de Deus». Tudo o que sobre o Acto se sabe, sabe-se humanamente e não misteriosamente. O mistério é exactamente o que não se sabe, isto é, o que não passou pela fieira do homem. Ora, esta fieira não provoca qualquer tipo de “idealismo”, antes “cria” a realidade humanamente possível, a do mesmo sentido interior ao e do homem. Esta é a única realidade que alguma vez o homem pode ser e ter, pois é a única de que é capaz. Tudo o mais é verdadeiramente irreal, porque irrelativo ao único dador possível de realidade: a esfera ética do homem. 17 É evidente que se trataria de um “infinito linear”, isto é, de uma possibilidade de movimento de acto em acto, sem fim possível. Não se trata, pois, de um infinito infinitamente actual, não já “linear”, mas “esférico”, passem as imagens. Este último é o absoluto de actualidade, que está em vez do nada.

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comparável com a desilusão que sentiram por verem tão grande riqueza tão frequentemente malbaratada).

Este domínio, que temos vindo a caracterizar, é o domínio da ética. A ética não é, pois, primariamente uma ciência, que o é secundariamente, nem uma forma, menor, de adjectivação de substantividades alheias, é a mesma absoluta forma do acto próprio do homem: o homem é eticamente. Esta afirmação não quer dizer que o homem só é quando é “ético”, isto é, quando “procede bem”, como se o homem pudesse ser, também, nos “interregnos”,18 não-ético. O sentido profundo de ético é necessariamente ontológico. A ética é o domínio da ontologia profunda do homem: não há ontologia humana para além ou para aquém da ética. Não há um acto do homem, mais fundo do que o seu acto ético, que possa ora ser ético ora não ser ético.19 É neste sentido que a ética não é adjectiva, mas substantiva.

Os actos do homem, definidores absolutos da sua mesma ontologia e, portanto, necessariamente humanos, não são eticamente qualificáveis, como se houvesse actos do homem antes da sua substancial qualidade ética, que uma ética adjectival viesse, posteriormente, preteritamente, qualificar. Esta qualificação seria já segunda e irrelevante, porque segunda, posterior e pretérita. Os actos são absolutamente a sua mesma qualificação

18 Que seriam estes “interregnos”? A simples ideia de um “interregno no ser”, no sentido de um interregno no acto desse ser é um absurdo ontológico: o único interregno que pode haver no acto é o nada. Havido este, nem de interregno se pode falar, pois «interregno» implica que algo em acto deixe de o ser e, depois de ter deixado de o ser, volte a sê-lo. Ora, o acto, depois de deixar de o ser, passa a nada e não há, como é óbvio, qualquer sequência actual ao nada: a este, “apenas este se pode seguir”. Não há, pois, interregno possível para o acto. Pois bem, o acto do ser do homem não escapa (não pode escapar) a esta mesma fundamental lei metafísica, pelo que também não há interregnos para o acto do homem. O que pode haver – e todo o sentido trágico aqui se funda – é uma aniquilação deste acto, como tal, isto é, uma “dispersão” qualquer de seus “componentes”, como defendido, por exemplo, pelas teorias ditas materialistas. Ainda assim, metafisicamente, fica por explicar o que substitui isso de específico que se perdeu, quando tal dispersão ocorreu. Se houve algo verdadeiramente aniquilado, isto é, “feito nada”, como não se instalou o nada, por via desta abertura proporcionada pela aniquilação? Não há resposta. Razão pela qual, para que se possa guardar todo o tesouro metafísico de todo o acto a haver e havido, o Acto, isso que se opõe absolutamente ao nada, tem de ser actualmente infinito, guardando em si o que, para nós, corresponde ao presente, passado e futuro, num outro “presente” eterno, algo bem “imaginado” por Platão na figura do Bem e por Santo Agostinho na figura da eternidade do Pai, imagens insuperadas. 19 No fundo, trata-se de uma imagem de tipo mágico da actualidade própria do homem, em que, a uma dimensão manifestada, em que manifestamente se observam intervalos, coincidentes com tempos relativos em que a acção do homem não é manifesta ou é-o de um modo atenuado, mas em que não se pode dizer que o acto do homem não seja, se acrescenta uma dimensão “oculta”, que assume diversas modalidades, essa sim, “actual” e “real”, essa sim, que “é”. O homem aparece, deste modo, necessariamente dividido em um acto real não manifestado e um acto manifestado, mas irreal. Esta manifestação irreal é como que o produto mágico de uma realidade outra, não apenas diferente, mas disjunta, autêntica hipóstase factícia, elaborada a partir da tal irrealidade manifesta. Deste modo, quer a manifestação, no manifestado, quer o que se manifesta, na manifestação, não são reais. Assim sendo, há um ser do homem, abscôndito e irreal, que, mesmo não podendo ser, uma vezes é ético, outras o não é. Não há coincidência entre o real acto do homem e a sua mesma manifestação. Ora, o acto real do homem é a exacta presença sua como manifestação e em manifestação. Esta manifestação não é projecção de coisa alguma “por detrás” dela, mas possui uma profundidade ontológica, interior e contínua, que a amarra ao absoluto do acto total. Não há, pois, um manifesto homem aparente, imagem insubstante de um imanifesto homem oculto, mas uma manifestação onto-poiética, cujo acto de ser próprio lança imediatamente as suas raízes no mais profundo da actualidade total, melhor, infinita.

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ética, isto é, são qualificados no que são e pelo que são, em seu acto mesmo, a sua qualidade é a sua mesma substância e esta a sua mesma realidade total. Ética é a actualidade do acto. Sem juízo. Aquela não depende de um julgamento exterior, mas é o exacto valor do acto, isto é, o absoluto ontológico que nele se manifesta.20 Este absoluto ontológico recebe o nome de bem. O bem não é, pois, produto da avaliação de qualquer entidade,21 mas o exacto acto que se manifesta. O que é é o seu valor. A objectividade é absoluta. O bem manifesta-se absolutamente no acto interior do homem e só nele e, se depende dele para a sua manifestação, dele não depende para a determinação do seu valor, pois o seu valor é a sua mesma exacta manifestação: é o acto do homem que dela depende, pois, o que é é também essa mesma exacta manifestação.

O absoluto do bem, isto é, o bem enquanto bem manifestado no acto do homem é exactamente o e pelo que é. É este absoluto que determina o que o acto do homem é: se este acto for sempre a manifestação de um bem absoluto, o acto do homem é absolutamente bom (o paradigma é Cristo, independendentemente de se ter fé religiosa ou não: é o paradigma cultural da impecabilidade, da radical e inquebrantável bondade). Se o acto do homem for sempre uma manifestação imperfeita do bem, é este absoluto de um bem menor que o constitui e classifica. Mas há sempre um bem, isto é, uma positividade ontológica qualquer manifestada, por “mais mínimo” que o bem manifestado seja: a ultrapassagem deste mínimo, negativamente entendida, seria a queda no nada, ou seja, no não-bem absoluto. Como consequência, nenhum homem pode ser considerado absolutamente mau, pois, em seu acto, há sempre um bem manifesto, mesmo que seja apenas o de estar em acto, por contraposição a nada ser. Neste sentido, o paradigma do Cristo não tem contraditório ou mesmo contrário possível, para além do absoluto nada. O Logos tem como contraditório o nada e o nada é o mal.

20 Isto é, não se manifesta um “acto qualquer”, depois, eticamente qualificável como tal ou tal (por exemplo, «bom» ou «mau»), mas, o que se manifesta, na pura positividade da manifestação (e o que não se manifesta, não é, exactamente porque não se manifesta), é o mesmo absoluto actual emergente, o «bem», em seu acto absoluto de pura presença, contra a única alternativa possível, o nada. O bem, o absoluto da presença do acto (na forma semântica do ser – a única de que somos capazes), o valor, não é, pois, fruto de um juízo, factício e posterior, acerca de qualquer acto, mas o mesmo acto, na sua absoluta presença. O bem é ontológico: por tal, sendo, em si mesmo, no acto que é, por si mesmo desejável e para si movendo. O mero produto de um juízo nunca moveria... A “atracção” da “vontade” não é teleologicamente motivada pelo fascínio do produto de um juízo, mas pela realidade absoluta da perfeição ontológica manifesta, por manifestada, ou seja, o homem, que é movido pelo bem, sabe que esse bem foi possível e é actual, logo, que vale a pena actualizar a possibilidade do bem em bem real. Esta é a grande lição de Sócrates para a humanidade (cfr. Platão, Apologia de Sócrates: a obra toda). 21 No relato inicial da criação, no Genesis (cfr. Genesis, 1), Deus, ao dizer que o produto da criação é bom, não está a autocomprazer-se (narcisisticamente ou não) com a sua habilidade – o que seria blasfemamente infantil, mesmo para um não crente com um mínimo de pensamento lógico –, mas a manifestar e a revelar – no sentido mais forte possível – o carácter absoluto da actualidade do que é: o que é, porque é, e porque é perfeito em seu momento auroral, instaura uma presença absoluta, no que é e contra o “possível” nada – é este absoluto que é o bem. Estar em acto é bom. O juízo capta e manifesta este absoluto do acto de ser, a nada redutível, ainda que a Deus: panteísmo.

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Assim se compreende como o acto do homem é exactamente o que nele se manifesta: quanto mais actualidade, isto é, mais positividade ontológica aí se manifesta, mais bom é esse acto e melhor o homem. Aqui, não há qualquer avaliação “subjectiva”, mas o sentido absoluto do absoluto do acto manifestado. Ao homem compete actualizar a sua possibilidade, na e pela actualização do que nele se manifesta, abrindo-se à manifestação do absoluto de positividade: foi esta essência de abertura, como abertura, que os grandes pensadores sempre perceberam – e perceberam porque assim foram – e que podemos encontrar patenteada em tradições diferentes e várias, como a básica afirmação do absoluto sim.22

Neste âmbito ético, não se encontra qualquer dualidade possível. Não há “eu” e o “mundo”, pois eu e o mundo somos o mesmo acto, que se manifesta e acontece, como isso que é o acto de sentido que sou eu. A própria definição do que eu sou não pode ir mais além de isto mesmo: o que é este acto de unidade de sentido,23 em que “isso que sou eu” e “isso que é o mundo” se encontram.

Esta é a única posição realista com sentido: no acto que constitui o todo absoluto e irredutível de meu ser – e que é uma forma transcendental, pois deve poder acompanhar toda a manifestação ontológica, semelhante ao

22 Interessante a fundamental e aparentemente estranha e paradoxal coincidência entre os famosos «sim» da Mãe de Cristo e do profeta do anticristo Nietzsche. Maria é o símbolo e o acto portante da ligação entre o físico da criação e o metafísico do Criador, tendo permitido, com o seu sim, que se estabelecesse uma ponte ontológica entre um e o outro: essa ponte é Cristo. Esta abertura é o absoluto sim ao acto, à possibilidade, absolutamente entendida, de ser. A pureza imaculada do sim, ventre da possibilidade da presença manifesta, física, do infinito no finito, permite o horizonte de infinitude de actualização do ser do homem: é este o sentido ontológico profundo da salvação – o absoluto do sim de Maria é o absoluto não ao nada. Ora, é também no sim puro e absoluto ao que está para vir que Nietzsche põe todo o seu enlevo, verdadeiramente metafísico. Não o, ainda limitado, sim do super-homem, mas o ilimitado sim da criança, criador de todos os absolutos inocentes actos. Estranha, sintomática e fundamental coincidência esta.

23 Esta “unidade de sentido” (propositadamente escrita com aspas altas) constitui um óbvio mistério, pois, coincidindo com o mesmo acto que sou, como sua mesma continuidade actual, possibilitadora de uma real semântica, isto é, de um sentido próprio para o acto que sou, que vou sendo, não é objectivável, pelo menos, não por mim, que com ela coincido. Quer isto dizer que o fulcro e garante da minha mesma profunda eticidade não é, por mim, dominável como objecto de intuição unitária sequente ao acto mesmo que a constitui. As tentativas metafóricas de aprisionamento deste heracliteano fluido de acto (que não meramente de consciência) de, por exemplo, Kant (cfr. Kritik der reinen Vernünft, «Die transzendentale Logik», § 16 «Von der ursprünglich-syntetischen Einheit der Apperzeption») e seu mais consequente discípulo (neste assunto), Sartre (cfr. La transcendence de l’égo: esquisse d’une description phénoménologique»), mais não fazem do que ensaiar delimitar linguisticamente (que não nocional ou conceptualmente) esta mesma realidade: isso que deve poder acompanhar o fluxo representacional do “sujeito” transcendental é uma “entidade” factícia, exterior a esse mesmo fluxo. É uma resolução política para uma questão ética. A raiz do problema reside na concepção empiricista, que supõe uma entidade – que parece ser física, mas que funciona como suposto metafísico – logicamente (e ontologicamente) anterior aos actos do homem, que os suporta e acompanha passivamente, remetendo toda a actividade para fontes materiais externas. O que não é explicado pelas correntes empiricistas (e pelas demais, aliás), ainda hoje, é o modo exacto da transformação de tais materialidades, em si mesmas necessariamente assemânticas, em realidades semânticas. Ora, mesmo a própria suposta realidade assemântica só se “manifesta” semanticamente, como assemântica, no seio da unidade semântica em causa, que os empiricistas negam. Estes esperam poder assistir ao milagre da pedra que pensa...

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que é a minha própria, como sentido –, manifestam-se concomitantemente, em um mesmo acto, o ser interior, que é o meu próprio, e o ser exterior, que é isso a que se chama o ser do mundo. E não há aqui nem aqui pode haver qualquer cesura ou solução de continuidade, à maneira cartesiana ou outra, que introduz sempre um nada entre a forma de ser interior e a exterior. Platão percebeu a comunidade ontológica entre estes dois domínios, dada pela imagem dos raios do sol, gratuitamente dando ser e inteligibilidade, esta como a forma interior daquele, mas aquele como o seu necessário correlato objectivo. Assim, o que há é uma unidade semântica entre sujeito e objecto, ontificadora e irredutível a uma separação sujeito “psicológico”/objecto “físico”. Não se trata de um “idealismo”, que já pressupõe uma radical separação sujeito/objecto, mas da única forma de realismo possível, que não é também um “realismo das ideias” ou “ideal”, mas um realismo onto-lógico ou semântico, em que o ser se dá como significado e a realidade, interna ou externa, como a objectualização desse mesmo significado – um destes objectos é o próprio “sujeito”. A visão ingénua de uma realidade material ou física, bruta, a que uma inteligência a ela inconsubstancial se adeque, como leitura, não percebe que tal inconsubstancialidade implica o tal nada mediador, o que é absurdo. Aqui se encontra, aliás, a fragilidade da posição conciliatória de Descartes, que só acerta nas ideias inatas, as únicas consubstanciais.

Toda a referência possível se reduz necessariamente ao seio semântico desta unidade inadjectivável. Deste ponto de vista, isto é tudo, não como quem diz “eu sou tudo”, mas como quem experimenta que tudo o que é é na presença que em si se dá. Este tudo que é “um nada”, pois, sendo virtualmente infinitamente tudo, é de uma fragilidade absoluta. Sempre que esta unidade de sentido desaparece – e desaparece quotidianamente, para voltar a reaparecer, até “ver”... – tudo desaparece. E cada acordar é o milagre do infinito, que se renova em absoluta graça, em absoluta dádiva, em absoluto acto.24

24 Do ponto de vista de cada homem, esta sua continuidade semântica é verdadeiramente misteriosa: quando, quotidianamente, morre para o mundo do sentido, nada lhe garante que volte a nascer para ele. Do ponto de vista de possíveis terceiros – que, do ponto de vista do nosso homem, fazem parte da tal unidade semântica em causa e, portanto, não resolvem a questão –, pode-se dizer que há um testemunho independente de continuidade, pois podemos, por exemplo, teorizar acerca de uma experiência em que o “adormecido” seja acompanhado continuamente por uma série de testemunhas. O que não é possível garantir, nem mesmo assim, é que isso que era a unidade semântica, desaparecida no início da efectivação da experiência, seja ainda a mesma, quando aquele “corpo” acordar, pois não são os corpos que acordam, mas as unidades semânticas de que esses corpos fazem parte. Mas a experiência não faz qualquer sentido, pois, o que interessa é exactamente aquilo que nenhum testemunho exterior pode fornecer, isto é, o como da continuidade interior própria de cada homem, em que mesmo os resultados de qualquer experiência têm de receber sentido, isto é, em que têm de estar presentes, levantando, assim, um círculo lógico vicioso, impossível de romper. A questão acerca do homem como unidade de sentido é, mesmo, uma questão interior a esta mesma unidade de sentido, isto é, uma questão verdadeiramente pessoal e intransmissível, ou seja, para o que importa nesta reflexão, não política.

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Esta graça, esta dádiva, este acto do absoluto semântico da interioridade humana é a ética. Assim, compreende-se o fundamental ridículo de uma expressão como «uma política ética». A ética não pode ser usada como adjectivação, seja do que for, porque, ontologicamente, a ética é tudo. Não há aqui qualquer equivocidade, pois não se confunde, num mesmo registo e âmbito, realidades que a este registo e âmbito não pertençam, antes se assinala o exacto domínio profundo de pertença dessas mesmas realidades. A luta contra a equivocidade começa a jusante, na caracterização dessas mesmas realidades. Aqui, é o trabalho secular das disciplinas éticas que interessa e se valida, não como doutrina adquirida, mas como esforço de discernimento, discernimento intangível e doutrina informulável, pois a realidade em estudo é infinita e quaisquer regularidades encontradas ou tipificações feitas apenas marcam os limites da capacidade e incapacidade do homem para avaliar o seu mesmo acto.

A grande delimitação a realizar é a que relaciona ética com política. Do ponto de vista do acto do homem, o domínio do ético é o domínio da sua mesma ontologia, entendida como actualidade semântica sua constituinte, fora da qual nada há, pois não há qualquer referência possível. Mas, sendo este âmbito definido como a fonte radical de tudo o que o homem é ou pode ser, enquanto acto e acto semântico, apenas define a sua exacta interioridade e a ela se reduz, se não houver qualquer referência a uma transcendência dessa mesma estreita interioridade. Note-se que não se trata de “sair” da interioridade, como se esta fosse entendível espacialmente e espacialmente fossem definíveis uma “interioridade” e uma “exterioridade”, relativamente às quais fosse possível transitar de uma para outra,25 como se transita de dentro de casa para fora de casa, mas sempre dentro de uma mesma referência espacial envolvente e englobante unificadora, o espaço.

25 Neste sentido, e na versão comum da realidade do espaço, este constitui um “mundo” pluridimensional (a física das supercordas já vai em dez ou mais dimensões), em que tudo se move, menos o espaço, que não tem um “super-espaço” em que se mova. Necessariamente, o próprio pensamento “existe” “dentro” (literalmente) deste espaço, sendo correlato de tudo o mais que, no espaço, “existe”, de si próprio, como acto reflexivo sobre si mesmo, e como acto sobre o próprio espaço, como um todo. Deste modo – e trata-se do pressuposto do empiricismo –, o pensamento mais não é do que a forma semântica auto-reflexiva do próprio espaço: é o espaço que se auto-contempla. Ora, o que não é explicado é como é que este espaço (ou matéria) se trans-substancia em sentido: por exemplo, como é que se passa dos elementos químicos à reflexão sobre eles, mas com eles e por meio deles. Todas as respostas que existem são, em última análise, mágicas, pois são incapazes de dar o mapa completo e total das transformações necessárias, como um engenheiro informático pode dar um tal mapa para as transformações que levam um computador a passar de uns e zeros a, por exemplo, uma fotografia, dada como fotografia e não como mapa numérico, no seu monitor. O tempo e o espaço (como a forma, etc.) são modos formais de explicação, de distensão do acto que em nós se manifesta, não de estatuto mecânico (mais do que arquitectónico), como em Kant, mas como dimensões, não do “sujeito” transcendental, mas do mesmo acto: o acto dispõe de n dimensões, necessárias para a sua manifestação como sentido, sendo que, se Leibniz tiver razão, este n é infinito. Só Deus pode, pois, compreender cabalmente qualquer acto, nas suas infinitas dimensões (necessariamente relacionais).

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O papel do espaço, neste dado exemplo, é assumido, na realidade do acto do homem, pela mesma interioridade, como unidade de sentido, unidade que é a própria definição da interioridade. Assim, esta não é “interior” nem “exterior”, mas é o todo da possibilidade de actualidade de significação, quer esta se refira à mesma pura interioridade quer se refira a algo que a transcenda. É, pois, na interioridade que tudo pode advir ao sentido e instituir-se como parte do grande significado e sua unidade, que é cada homem. Quer isto dizer que toda a referência transcendente se dá, ainda, no seio desta interioridade e é nela que a transcendência, nas suas diversas formas se manifesta, se dá. Para o que nos interessa nesta meditação, é no seio da interioridade ética que a exterioridade política se manifesta e é apenas aqui que pode manifestar-se. O domínio do político é, pois, uma parte, um sub-conjunto do domínio universal do ético.

Se toda a acção se origina no seio ético do acto humano e nela também se vem manifestar, há necessariamente uma preeminência do ético sobre o político, esta preeminência é ontológica: o ser, entendido como acto, como actualidade ontológica do político é da ordem do ético. Não faz, pois, qualquer sentido definir alguns actos políticos como éticos e outros como não-éticos: eles são todos éticos e a sua eticidade é ontológica, nada tem a ver com a sua correcção, que, fundamental, é de outra ordem.

Deste modo, todos os actos nascem eticamente e ou transitam eticamente – se disserem respeito apenas à pura interioridade do acto humano que constituem – ou transitam politicamente – se interessarem outros actos àquele transcendentes. É esta a distinção ontológica fundamental entre ética e política: encontra-se no destino ontológico do trânsito dos actos que constituem cada homem. É claro que é muito difícil imaginar e impossível encontrar algum homem que seja puramente ético, neste sentido: isso implicaria que nunca tivesse tido relação alguma com algo transcendente à sua pura interioridade e, assim, nem homem poderia, sequer, absolutamente, ser. Por outro lado, também não é possível encontrar homem algum que seja meramente político, pois, como já vimos, toda a sua dimensão política nasce ou reflecte-se na sua interioridade ética, no acto que é interiormente, como unidade de sentido irredutível, enquanto tal.

Outra forma de identificar a essência política do acto do homem é dizer que o domínio político é o domínio da relação transcendente desse mesmo acto. Se o todo relacional do acto do homem fosse redutível à sua pura interioridade ética, nunca existiria domínio político algum, o homem seria apenas uma pura relação interna de si consigo mesmo, indiscernível de um puro espírito absolutamente auto-suficiente, auto-contido e totalmente incomunicável. Assim, a questão da própria matéria torna-se

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uma questão política,26 isto é, de relação com o que transcende a pura interioridade semântica do homem. Não admira, pois, a importância que a matéria assume no domínio político, como possibilidade de veículação de relacionamento e de manifestação. É, por exemplo, por meio das suas virtualidades vectoriais de sentido que podemos entrar em contacto com os possíveis «semelhantes» a nós, nunca directamente, interioridade a interioridade, que é impenetrável como tal. Mas a mesma matéria serve para nos recordar a fundamental dimensão política do nosso próprio ser, irredutível a uma pura interioridade ética, através do simples facto de dela necessitarmos para continuarmos como interioridade, por exemplo, entre outras, através da económica necessidade da alimentação.

Algumas das nossas necessidades mais básicas são de índole política, isto é, de necessária relacionabilidade com o que transcende a nossa mesma pura interioridade ética: esta redução não necessitaria obviamente, por exemplo, de comer ou de se vestir...

Deste modo se percebe que o homem não é uma realidade não tempo-espacial em busca de relacionabilidade com uma outra, “exterior”, que o seja, mas de uma realidade semântica, isto é, que é sentido ou não é coisa alguma, em que tudo o que é se manifesta, incluindo os mesmos tempo e espaço, que assumem uma realidade relacional transcendente, isto é, política. Não se trata de “sair” de um puro “espírito” para um “exterior” tempo e espaço, mas de aprofundar a inteligibilidade e a inteligência de um único acto de sentido, em que tudo o que é e é possível ser vem ao mesmo ontológico, substancial e criador sentido, incluindo o que se refere a possíveis entidades cuja possibilidade própria parece não se esgotar na pura interioridade do acto em que se manifestam e cuja manifestação auxilia a ser.27

26 A matéria é a matriz única possível para a comunicação interpessoal, pois não há e não é possível uma qualquer comunicação interpessoal que possa prescindir de uma qualquer dimensão material. A unidade binomial da matriz física fundamental, inaugurada por Einstein, dada no par (energia-matéria), permite melhor compreender esta dependência política relativamente à matéria por parte da possibilidade de comunicação interpessoal: seja pelo uso do par na sua integralidade, isto é, por meio de energia e matéria, seja por meio de cada um de seus elementos singulares, é apenas possível comunicar, desde o foro ético, com outro possível – e é apenas possível, antes de o acto de comunicação ser bem sucedido – foro ético, por seu intermédio. Desde este ponto de vista, a matéria e a energia são os pressupostos veiculares necessários para qualquer comunicação, funcionam como um transcendental comunicacional necessário. Matéria e energia são, deste modo, anteriores ao homem, não como base material da sua existência, mas como base transcendental da sua comunicação. De um ponto de vista estritamente lógico, não é impossível imaginar seres puramente éticos, sem dimensão política e sem dimensão material (ou de energia, como sua contraparte binomial), incomunicáveis, mas não é possível, de um ponto de vista existencial, imaginar homens sem matéria, pois seriam indiscerníveis daqueles. Se a matéria não é tudo, também não é mal algum, antes, pelo contrário, constitui potencialmente um dos maiores bens ontológicos possíveis do acto do homem, que não pode ser não-político. 27 Um acto cuja actualidade exclusiva própria pudesse explicar cabalmente tudo o que é de índole política, isto é, o transcende – ou parece transcender –, seria necessariamente indiscernível do acto total, por oposição ao nada: algo como um solipsista deus de pura imanência panteísta.

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Assim, o «ético» deixa de ser algo de meramente instrumental e qualificativo, para passar a ser o cerne mesmo do acto próprio de cada homem e, em cada homem, o todo do ser que lhe cabe em parte, mas, no mesmo acto, o todo da possibilidade total do acto, relativo a si. É nesta relação que se pode dar o que é o político, como forma de referência ao que transcende necessariamente, como possibilidade, a pura interioridade do acto singular de cada homem, mas se manifesta nesta mesma sigularidade. Sem esta manifestação, não haveria referência transcendente alguma possível e não haveria domínio político algum, isto é, não haveria humanidade. Basta, para tal compreender, pensar no que seria uma “humanidade” em que não houvesse esta hetero-manifestação, em que cada “homem” não tivesse, na sua mesma interioridade constituinte, qualquer referência política, isto é, àquilo que transcende a sua mesma reduzida e, nesse caso, irrefenciada, para além de si mesma, interioridade.

É esta mútua referência que faz com que haja humanidade e, com ela e nela, homens. Mas esta mútua referência acontece em uma especialíssima praça pública que é, não o espaço exterior de um largo material – que já faz parte da questão –, mas o forum da interioridade semântica, que é cada homem: a humanidade ou se encontra no seio da interioridade de cada homem ou não se encontra em sítio algum, pois todos os sítios possíveis se encontram no seio daquela mesma interioridade.

É esta interioridade a possibilidade do mundo: este é o sub-conjunto político da ética constituinte de cada homem. Não só não dispensável, como indispensável para a sua plena realização. O mundo é a parte política do nosso ser, a sua parte relacional transcendente. A sua unidade de sentido transcendente, presente no seio do acto total do homem.

O domínio do político, ontologicamente, ético-ontologicamente entendido, não é, pois, o domínio das relações de poder entre potências, qualquer que seja o seu entendimento, mas o domínio da relacionabilidade do acto ético do homem, que é o próprio homem, com o que o transcende. Mas com o que o transcende na e pela relação, relação que não é prescindível, mas constituinte do seu mesmo acto. O domínio do político não é, deste modo, um domínio opcional ou menor do acto do homem, mas um seu domínio radical, fundamental e irredutível.

Se esta parte do político tem origem no domínio ético, como originado na interioridade de algum homem, antes de transitar para o domínio da sua transcendência, esta mesma transcendência, quando em acto, já não é redutível a uma pura ética: esta redução implicaria que não tivesse havido qualquer transcendência e, assim, a dimensão política não teria emergido.

Há dimensões relacionais políticas que não dependem do âmbito ético, nomeadamente aquelas que dizem respeito à actualização de possibilidades que não têm a sua origem em qualquer âmbito ético: aquilo a que habitualmente se chama «natureza bruta», a fim de a distinguir da outra, a

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“não-bruta”, a tipicamente humana. Desta não nos ocuparemos aqui, dado que não tem relevância primária para a questão da guerra e da paz.

Interessa-nos, outrossim, o fulcro da relação entre o cadinho ético do acto humano e a possibilidade da sua transcendência: está aqui o nascimento da política e está, também, aqui a origem do bem e do mal,28 humanamente entendidos, na ontologia desta mesma relação.

A outra dimensão política fundamental do homem, também não redutível a uma pura origem ética, diz respeito à fonte primeira de seu ser, isto é, ao acto absoluto do surgimento da sua possibilidade semântica, acto que dele não depende e que, deste modo, tem uma necessária etiologia política. Também aqui não nos ocuparemos dele, salvo para dizer que, deste ponto de vista, quer uma solução ateia quer uma não ateia para esta questão não pode necessariamente fugir da evidência da natureza política do acto de “criação” ou de criação (conforme a posição teórica) do homem. Ao contrário do que se pensa habitualmente, quer uma biologia radical totalitária do homem quer uma teologia do homem são necessariamente políticas. Muitas das virtualidades e defeitos destas disciplinas por aqui passam, sobretudo por não assumirem esta necessária dimensão fundante de seus objectos e métodos.

Uma aplicação prática desta relação: a guerra e a paz. Estabelecemos, já, que tudo o que é actualidade humana coincide com

a mesma eticidade, outra designação para a ontologia do homem, semanticamente entendida, isto é, como unidade de sentido constituinte do acto que cada homem é. Deste modo, tudo o que o homem é, é-o, primeiramente, eticamente. Este ser ético, ontologia própria do acto do homem, coincide com o puro âmbito da interioridade do homem: é neste âmbito que tudo o que o homem é, como sentido, se actualiza – fundamentalmente, nenhum homem é, para além desta mesma interioridade. Mesmo a referência possível a uma qualquer possível transcendência se dá, se manifesta nesta mesma interioridade ou não se manifesta absolutamente.

Ora, o acto do homem apresenta uma referência a algo de transcendente, isto é, a algo que não coincide nem pode, de modo algum, coincidir com a pureza da sua interioridade. Isto, que assim se manifesta, constitui o âmbito da relação entre aquilo que, no acto do homem, é puramente ético e interior com actos outros que o transcendem. Constitui o âmbito do político. Este define-se como o universo das relações actuais ou possíveis com o que transcende a pura actualidade ética do acto de cada

28 Tema a tratar em posterior trabalho, a partir desta mesma perspectiva enformadora.

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homem. No caso do estudo da vida política do homem, interessa-nos o conjunto das relações estabelecidas com a parte do universo da transcendência possível, que assume formas semelhantes àquelas que constituem a interioridade ética própria de cada homem, sem o que não é possível estabelecer uma relação significativa. Assim, interessam-nos as relações com seres que manifestam características de interioridade semelhantes às do homem, especialmente os outros homens, isto é, o que, na interioridade de cada homem, se manifesta com características semelhantes às suas.29

Podemos, agora, afirmar que a guerra e a paz são necessariamente éticas e políticas. Todo o acto de guerra é um acto necessariamente ético, pois tem necessariamente a sua origem na interioridade de quem o pratica e que é o seu verdadeiro criador.30 A guerra é criação do homem. Não do

29 É óbvio que não é possível estabelecer-se comunicação com quaisquer possíveis entidades que não disponham de uma capacidade interna própria de significação idêntica ou, pelo menos, semelhante à que é própria do homem. Dizer que se comunica, por exemplo, com o computador, mais não quer dizer que se está a comunicar consigo mesmo ou com outro homem, por meio do computador. Este, não dotado de interioridade (onto-lógica, semântica), não pode intuir o sentido do que se lhe quer comunicar. Também não é comunicar com o computador inserir nele quaisquer dados: aquilo com que se está a comunicar, neste acto, é a inteligência humana consubstanciada no programa informático que recebe e processa os dados. Ora, este programa mais não é do que o fruto do labor humano, pelo que, comunicar com o computador, neste caso, quer dizer comunicar com um produto (diferido) da inteligência humana, capaz, assim, de receber dados provenientes dessa mesma inteligência. É, ainda, o homem a comunicar com o homem, por interposta manifestação mecânica e cibernética da sua inteligência. Quando se comunica mesmo algo com qualquer outra entidade, sabemos que, por isso mesmo, há entre nós e ela uma qualquer semelhança, mesmo que seja, como no caso dos computadores, não “natural”. A comunicação com, por exemplo, os animais (ou outras formas de vida) suscita, assim, a questão da existência de um comum paradigma geral de inteligência e de inteligibilidade, sem o qual qualquer comunicação seria impossível. Parece haver um só paradigma geral de inteligência e de inteligibilidade, escalonado, mas contínuo, de que as diversas formas comunicantes participam, cada uma em seu nível e a seu modo. A este propósito, uma leitura da Monadologia de Leibniz pode ser estimulante. Ainda a este propósito, a questão de uma possível inteligência artificial ganha outra inteligibilidade, pois, natural ou artificial, a inteligência é sempre matricialmente inteligência. Para haver uma qualquer possível inter-referência de inteligência a inteligência, é esta necessária como matricialidade comunicacional possível. 30 O uso do termo forte «criador» é intencional. A criação, qualquer que seja, nunca provém de um absoluto nada, o que seria absurdo, mas sempre de algo capaz de criar, isto é, cuja realidade metafísica própria tenha, em si, isso que é necessário ao acto de criação e sem o que nunca haveria acto de criação algum. Isto que se manifesta como criado por meio de tal acto é o absolutamente novo, no plano em que, ora, emerge. Implica necessariamente um absoluto de diferença – sem o que seria redutível a algo que já tinha ser – relativamente a tudo o que era antes dele. É este absoluto de diferença, constitutivo do que é novo como ser (verdadeiramente, o ser novo) que é o fruto de cada acto de criação. Ora, toda a diferença que emerge é fruto de um tal acto, por isso, é necessário fruto de criação. Toda ela. Pensar o contrário, é pensar que o novo já era, já tinha sido antes de ser, o que é absurdo. Assim sendo, todo o devir não é apenas uma produção, necessariamente repetitiva, do que já foi, mas a perene criação do novo, novo que se acrescenta ao dado arqueológico já havido e perecido, mantendo-o em acto: é pelo acto da contínua renovação que o ser, como um todo, se mantém em acto, ou seja, é no presente do acto que todo o acto ganha consistência ontológica. Esta consistência é a mesma criação em acto, sem a qual tudo colapsaria no nada. Como não poderia deixar de ser, cada acto constituinte do acto próprio do homem é, também ele, participante desta criação. Se toda a realidade, em sua actividade, é criadora, a parte que cabe ao homem confere-lhe uma responsabilidade fundamental, pois, se o acto que o transcende não é seu fruto criativo, o acto que consigo coincide – ética e politicamente – depende, em grande parte, das escolhas que realiza, todas elas com capacidade positiva ou negativa de interferir no sentido positivo da novidade do todo do ser, isto é, de bem e de mal. O bem é o saldo ontologicamente positivo da acção criadora do homem; o mal o saldo negativo. Um e o outro dependem exclusivamente das escolhas do homem ou não são

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homem considerado especificamente – que não tem realidade própria –,31 mas de cada homem que der origem àquele mesmo acto. A prova é simples: se nenhum homem originasse acto de guerra algum, obviamente não haveria acto de guerra algum e a guerra nunca teria conhecido o dia.

Assim, apesar de todos os motivos que se possam aduzir para qualquer acto de guerra – e são possíveis infinitos,32 dado que basta imaginá-los –, o único que é necessariamente real é o acto do homem que o desencadeou: sem este, apesar de qualquer outro possível invocável motivo, não poderia haver acto de guerra. Por outro lado, podem existir todos os motivos, mas, se não houver acto humano, não há guerra. A guerra é uma realidade puramente humana: depende e necessita do acto do homem para poder existir; sem ele, nada é. As aproximações com fenómenos extra-humanos, em última análise, mais não servem do que para desculpar a única culpa humana na sua actualização.

Percebe-se, pois, que todo o acto de guerra tem origem na interioridade do homem que o pratica – verdadeiramente, que o é, pois o

qualificáveis como bem e mal, mas apenas como acidentes trans-humanos. Note-se que a intuição metafísica subjacente é a de uma necessária criação continuada, sem a qual o nada sobreviria imediatamente. É este o sentido profundo de uma providência divina, sempre de matriz onto-poiética. A graça criadora consiste, não num impulso inicial, seguido de abandono, mas no dom da possibilidade de a criação participar de si mesma, de seu mesmo acto profundo, isto é, de se poder co-criar a si mesma, a partir do dom criador daquela mesma possibilidade: a criação é criada criadora, livre. 31 Os chamados «universais» são uma tentativa de mediação intelectual entre as ideias paradigmáticas de Platão (modelos metafísicos da realidade, ou seja, absolutos de possibilidade de ser, isso sem o que nada poderia ser, com realidade própria, em si, mas apenas intuíveis depois da concretização real, o que Aristóteles nunca percebeu) e os indivíduos, entidades necessariamente atómicas, se deixadas singulares e sem uma qualquer mútua referência. O processo de acesso não platónico aos «universais» usa um instrumento lógico chamado indução, que tenta perceber o que é comum entre um determinado grupo de indivíduos. No caso de haver sucesso universal, no conjunto considerado, diz-se que tal característica é “universal” ao conjunto. É claro que, se tal característica universal não for exclusiva de tal conjunto, nada nos diz de especial em relação a ele, sendo o investigador obrigado a alargar a extensão do conjunto segundo a compreensão do “universal” em causa. Para o “universal” «ser», o processo é infinito, dizendo-se que o «ser» é o “universal” de maior compreensão e extensão. Mas estes «universais» apenas caracterizam os entes, não lhes são ontologicamente consubstanciais, pelo que serão sempre deles distintos, mesmo no caso do ser. Este, como produto de indução universal (que, aliás, é impossível de executar), mais não é do que um achado lógico, não tem qualquer realidade própria. O que tem realidade própria é o ser de cada ente ou cada ente enquanto é. Ora, o ser «universal» induzido não coincide com a soma destes “seres” reais. É apenas uma sua representação lógica e meramente tautológica. O sentido platónico é muito diferente: diz que é um mesmo ser real que se manifesta em cada ser. O que dificulta a compreensão é o limite racional em que Platão se situa e em que não é possível estender a racionalidade analítica mais além, pelo que se recorre à metáfora: deste modo, cada ser é um modo diferencial de um mesmo ser total, do mesmo modo que (analogicamente) cada raio de sol é raio de um mesmo sol – uno quanto à origem e à essência primeira, diverso, enquanto este ou aquele raio. Aqui, o universal é um verdadeiro universal real, pois é parte essencial e substantiva de cada ente. O homem, como espécie, pertence ao tipo de universal induzido, não sendo, pois, real enquanto tal: real é cada homem, em seu ser. É esta realidade ontológica profunda (nela, manifestam-se os outros possíveis homens, analogamente, por semelhança com o seu ser próprio, e de nenhum outro modo) que faz de cada homem homem, não um processo lógico-representacional, que mais não dá do que uma abstracção insubstantiva, para além da sua substância lógica. 32 A economia, a ideologia, a ambição, etc, mais não são do que contextos ou pretextos para o desencadear do acto de guerra, que nunca ocorreria, apesar destes condicionamentos, se não houvesse um homem que o actualizasse.

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acto do homem, entendido como um todo, é cada um de seus actos – e dele irradia para o domínio da sua transcendência, para o domínio do político. Se quisermos usar uma linguagem metafórica, podemos dizer que o acto emerge da fonte ética da interioridade humana para a praça pública em que essa fonte se situa. Deste modo, a responsabilidade primeira e última pelo acto de guerra é sempre ética e, portanto, pessoal. Cada acto de guerra perpretado implica a transição do âmbito puramente ético de quem o actualizou para o seu âmbito relacional: acto que apenas ele, por definição, pode realizar. Não há qualquer outra razão fundamental; muitas vezes, são apresentadas “razões”, que, por não serem fundamentais, mais não são do que desculpas. Estas nunca são aceitáveis, pois, o trânsito do ético para o político implica uma transcendência ontológica, que tem necessariamente repercussões sobre o acto de terceiros, acto que podemos, até, aniquilar, mas que não podemos “des-aniquilar”, isto é, sobre o qual podemos ter um poder de destruição absoluta, mas sobre o qual não temos um poder de criação ou de “re-criação”, o que torna a responsabilidade pelo primeiro poder – e único efectivo – algo de absoluto e de extremamente melindroso, pois nada há no acto constituinte de cada homem que lhe dê, “de direito”, a possibilidade política de ter o poder ontológico sobre terceiros.33

Ora, o acto de guerra configura, exactamente, este inadmissível poder ontológico absoluto sobre o acto de terceiros. Por vezes, o próprio universo político, como comummente entendido – porque é grandemente reduzido ao relato de actos de guerra, sob os mais variados tipos –, parece o exacto reino da guerra. Mas tal não é, pois o universo político é apenas, na sua pureza ontológica, o universo da possibilidade e da actualidade das relações entre ontologias éticas: nesta sua pureza, é a própria «cidade de Deus» ou o «paraíso». A guerra consubstancia a sua perversão: se nos quisermos situar no âmbito do mito genético e genesíaco hebraico, a guerra consubstancia o pecado primeiro, dado na morte de Abel, decorrência e tradução real e carnal da morte da pureza da relação, como fidelidade, feita pelo casal primeiro, ao cortar o absoluto do laço relacional com Deus, na famosa cena da maçã. O que se seguiu decorre da morte deste laço. O acto do pomo foi, miticamente, o primeiro e fundamental acto ontológico de guerra do homem, ao aniquilar a pureza ontológica da ligação do homem com Deus, isto é, do homem com a fonte do seu ser. Todos os outros actos de guerra têm aqui o seu simbólico paradigma.

33 Aqui se funda o famoso «não matarás», fundamental mandamento bíblico, também presente em muitas outras tradições, e que reflecte a não menos fundamental intuição do homem – e tem de ser de cada um – acerca do carácter ontológico absoluto do domínio ético de cada um, não passível de interferência política absoluta. Antes de ser um «mandamento religioso», o não matarás é um imperativo categórico fundamental, indispensável para a continuidade da humanidade. «Matar o outro», por absurdo transformado num imperativo categórico, se seguido, eliminaria, quase instantaneamente, a humanidade. O décimo primeiro mandamento cristão, se transformado em imperativo categórico, consequentemente seguido, originaria uma autêntica «cidade de Deus».

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Se cada homem é os actos que é, o homem que comete um acto de guerra é também o acto de guerra que comete. Se a sua actualidade for uma sucessão de actos de guerra, o seu acto é também essa mesma sucessão de actos de guerra. Embora não seja possível, na concretude do acto real, é possível pensar um acto humano que fosse apenas constituído por actos de guerra. Como este é o acto dirigido para a aniquilação de um outro homem, aquele acto humano poderia ser definido como o acto que é a virtual destruição de todos os outros.34 Se lhe fosse concedida actualidade suficiente, certamente concretizaria aquela sua possibilidade. Ora, este ensaio teórico mostra-nos, teoricamente – como todas as mostrações –, que a guerra é, em última instância, a possibilidade de aniquilação da humanidade, entendida como a actualidade presente de todos os actos humanos, com a consequente aniquilação da possibilidade de futuros actos humanos. A guerra é, pois, o maior perigo de origem humana que ameaça a humanidade. Mas, se a humanidade não pode dominar muitos dos outros perigos que a ameaçam, este pode. Trata-se, aqui, da necessidade de uma pedagogia da e para a paz.

Américo Pereira

34 Esta é uma possível, mas bastante exacta, definição de tirano. Este é exactamente o que quer construir a grandeza de seu acto próprio às custas da grandeza possível dos actos dos outros, necessariamente empobrecendo-os e aniquilando a sua possível actualidade, podendo, no limite, aniquilar esta mesma possibilidade. Daqui, a impossibilidade da existência de tiranos: a sua presença significa sempre a instauração do reino da guerra, que se consubstancia na aniquilação da possibilidade de actualidade daqueles a quem o tirano tiraniza.