Antopofagia - Único Sistema Capaz de Resistir Quando Acabar No Mundo a Tinta - Alexandre Nodari

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    Antropofagia. nico sistema capaz de resistirquando acabar no mundo a tinta de escrever1

    Alexandre Nodari2

    A Marco Antonio Valentim,por me chamar a ateno aranha metafsica que est sobre nossas cabeas

    Uma rede um modo de ser. (...) [A]s redes abundam, e parece que essa proliferao atinge o

    seu pice nos momentos em que os eventos histricos (...) esto intolerveise deve-se notar que

    os eventos histricos tm uma uma propenso a serem intolerveis. (...) Se eu quisesse indicar

    uma das constantes da rede, eu diria que o lado-de-fora um de seus componentes necessrios.

    (...) [Q]uando o espao se torna um campo de concentrao, a formao de uma rede cria uma

    espcie de lado-de-fora que permite humanidade sobreviver.(Fernand Deligny)

    1. Em um romance de terror recente, Samanta Schweblin (2015)3apresenta uma variante

    distpica do presente. Situada no campo argentino, a fico ecoa, de modo

    inquietantemente familiar, praticamente qualquer zona rural do mundo padronizado: um

    ambiente dominado por plantaes de soja a perder de vista, com o solo e a gua

    envenenados pelos agrotxicos, e este um dos elementos que hiperbolizam a

    atualidade, mostrando sua face monstruosa crianas deformadas por tais defensivos

    qumicos. O ttulo do livro, Distncia de resgate, a forma como a narradora e

    protagonista se refere a uma espcie de princpio da precauomaterno: Eu sempre

    penso no pior dos casos. Agora mesmo estou calculando quanto demoraria para sair

    correndo do carro e chegar at Nina [sua filha] se ela corresse imediatamente ao poo e

    se atirasse nele. Chamo isso de distncia de resgate, essa distncia varivel que me

    separa da minha filha e passo a metade do dia calculando-a, embora sempre arrisque mais

    do que deveria. Descrita como um fio invisvel que se tensiona e se estira fazendo-se

    sentir no corpo4, a distncia de resgate que liga me filha parece operar como metonmia

    para uma espcie de tessitura entre as pessoas e entre elas e as coisas, que deve ser

    constantemente tramada para que o mundo no se desfaa. Assim, prximo do fim da

    1Texto apresentado no Simpsio Haroldo de Campos 2015 (setembro, So Paulo). A citao que o intitulafoi extrado de antropofagia e cultura, de Oswald de Andrade, publicado em 15 de maio de 1929, nasegunda dentio daRevista de Antropofagia. Todas as citaes no referenciadas dos antropfagos foramextradas da edio facsimiliar da publicao referida na bibliografia.2 Professor de Teoria Literria e Literatura Brasileira da UFPR. Co-fundador do species ncleo deantropologia especulativa.3Utilizo aqui a edio digital no paginada, e agradeo Matas Raia pela indicao do romance e o auxlio

    na traduo de uma das passagens.4O fio est to tenso que o sinto desde o estmago; como se [o fio] amarrasse o estmago a partir doexterior; algo puxa com ainda mais fora o fio e os laos se apertam.O fio vai partir meu estmago.

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    narrativa, nos deparamos com um cmodo em que estranhamente fotos e outros objetos

    esto ligados uns aos outros por um barbante: Um nico prego sustenta o conjunto, cada

    foto dependura-se da anterior atada pelo mesmo fio de barbante. (...) muitas outras coisas

    esto penduradas pelo fio de barbante, ou amarradas entre si. (...) No parece uma

    quantidade desproporcional de coisas; antes, parece que, a seu modo, voc estivesse

    tratando de fazer alguma coisa em relao ao estado deplorvel da casa, e tudo o que h

    nela. O romance trata do rompimento desses fiosmetonmias de todos os fios , que

    se convertem em rastros de plvora prestes a consumir tudo aquilo que antes uniam. A

    figura dos fios e de seus rompimentos faz com que a fico no isole o terror l fora,

    no campo, para alm dos limites das homogeneizadas cidades globais; pelo contrrio, ela

    entrelaa de forma horrorosa ambos os espaos, como lemos nas linhas finais, em que o

    marido da protagonista foge da zona rural, mas no do perigo:

    No se detm no vilarejo. No olha para trs. No v os campos de soja, os riachosentremeando as terras secas, os quilmetros de campo aberto sem gado, as favelas e asfbricas, j prximo cidade. No repara que a viagem de volta foi se tornando cada vezmais lenta. Que h carros demais, carros e mais carros cobrindo cada ranhura do asfalto.E que o trnsito est estancado, paralisado h horas, fumegando efervescente. No v oimportante: o fio finalmente rompido, como um pavio aceso em algum lugar; a pragaimvel na iminncia de se irritar.

    O romance termina justamente aqui, ou seja, em nosso presente, beira de uma catstrofeambiental, que, porm, j est em curso desde o rompimento da trama de fios invisveis.

    2. Talvez possamos descrever o projeto motor da modernidade, o des-envolvimento,

    como o rompimento dessa tessitura que co-relaciona os seres e as coisas, essa teia vital

    invisvel que se forma entre os seres o inter-esse. Nesse sentido, a modernidade no

    seria s um processo de desencantamento do mundo, como o formulou Max Weber, mas

    tambm um processo de des-interessamento do homem em relao ao mundo. O mundose torna um objetoexterno e disponvel, matria morta separada do homem, que, por sua

    vez, convertido em umsujeitoautnomo e individual. Entre eles, parece no haver mais

    um lao, uma relao, mas apenas domnio, sujeio, propriedade. Fechado em si mesmo,

    o autossuficiente sujeito humano, o homo autotelus, acredita dispor das coisas do mundo,

    inclusive outros humanos, como se fossem seus objetos, como se seu agir sobre o mundo

    no implicasse em uma reao.5Tal processo no poupou nem mesmo os sentidos, com

    5Desenvolvi esse ponto um pouco mais detidamente em Nodari, 2013. Sobre o mito kantiano do homoautotelus, cf. Buck-Morss, 1996.

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    a tentativa de submisso da arte quilo que Kant chamou de prazer desinteressado. Mas

    o des-interessamento no des-envolve completamente o Humano da Terra: como mostra

    Distncia de resgate,o entrelaamento na forma de uma fina teia delicada e invisvel d

    lugar a uma re-implicao do homem no mundo por meio da catstrofe e do horror: o fio

    se torna um pavio prestes a incandescer. A isso, destruio das nuanas que constituem

    essa espcie de lquido intersticial das sociedades humanas, desse espao intermdio

    responsvel pela circulao vital, a isso, eu dizia, Araripe Jr. (1891:19) chamou de

    Terror, de modo que talvez possamos dizer que o Terror poltico e ecolgico, a

    catstrofe social e ambiental, seja a face invertida disso que estamos chamando de

    interesse. Portanto, se o horizonte em que Haroldo de Campos (1997) postulou a idia de

    uma poesia ps-utpica era o da crise dos grandes relatos (Lyotard, 1990), talvez se

    possa dizer que o Antropoceno, a atual era geolgica da Terra, em que histria humana e

    histria natural se confundem6, seja uma crise do grande Relator, o Homem, e de seus

    avataresa civilizao, a idia de Universal, a suposta relao especial do homem com

    a linguagem e o mundo, etc. Ou seja, no se trata mais apenas de uma crise do humanismo,

    mas de uma crise do Humano. A pergunta que nos move aqui : se e de que modo a

    Antropofagia pode ser vista como uma estratgia diante dessa crise civilizacional e

    ambiental?

    3.Em vrios textos, os integrantes da Antropofagia a definiam como uma prxis anti-

    civilizacional: Todas as nossas reformas, todas as nossas reaes costumam ser dentro

    do bonde da civilizao. Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde; Se

    enganam os que pensam que somos contra somente os abusos da civilizao ocidental.

    Ns somos contra os usos dela. Nesse sentido, um dos alvos do movimento era

    justamente o ndice do af civilizatrio colonialista, o Humano, e seus corolrios, como

    o Esprito, e a roupa, metfora do isolamento do homem em relao ao mundo: O queatropelava a verdade era a roupa, o impermevel entre o mundo interior e o mundo

    exterior. Contra o homem vestido, os antropfagos reivindicavam o homem nu, o

    homem natural, o homem biolgico, o animal humano. Todavia, deve-se tomar o

    cuidado de no tomar tais figuras conceituais como ndices de uma identidade natural

    prvia, de uma estabilidade instintual ou de um determinismo biolgico, ou seja, um

    mundo animal perdido ao qual se deveria retornar: Antropofagia simplesmente a ida

    6Cf. Chakrabarty, 2013. Estou me fiando, no que diz respeito catstrofe ambiental, a recente obra deDanowski e Viveiros de Castro, 2014 de cuja perspectiva sou muito devedor.

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    (no o regresso) ao homem natural. Essas figuras, portanto, buscavam justamente

    deslocar a identidade do humano, despi-lo de sua ipseidade e da iluso do auto-interesse

    narcisista, abrindo-o exterioridade (a exogamia dos antropfagos). Isto , consistiam

    em tentativas de criar uma no-coincidncia da figura do humano consigo mesma.

    Vejamos dois exemplos.

    bem conhecida a verso anedtica da origem do movimento antropfago

    divulgada por Raul Bopp (2008: 57-58):

    Uma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar um grupo de amigos, que frequentavamsua casa, a um restaurante situado nas bandas de Santa Ana. Especialidade: rs. (...)Quando, entre aplausos, chegou o prato com a esperada iguaria, Oswald levantou-se,comeou a fazer o elogio da r, explicando, com uma alta percentagem de burla, a

    doutrina da evoluo das espcies. Citou autores imaginrios, os ovistas holandeses, ateoria dos homnculos, para provar que a linha da evoluo biolgica do homem, na sualonga fase pr-antropide, passava pela r essa mesma r que estvamos saboreando(...). Tarsila interveio:

    Com esse argumento, chega-se teoricamente concluso de que estamos sendoagora uns... quase-antropfagos.

    provvel que a burla oswaldiana sobre a evoluo fosse sria. Anos mais tarde, quando

    tenta formular filosoficamente as teses antropfagas emA crise da filosofia messinica,

    Oswald de Andrade (2011:147-149) resgata a teoria dos homnculos e d nome quele

    que Bopp acreditava ser um dos autores imaginrios, Edgard Dacqu:

    Antes de continuar a histria do homem vestido, vejamos por um instante o que ohomem. (...) Uma interveno espetacular no campo do Evolucionismo veio constituir ade Edgard Dacqu, cujo valor cultural enciclopdico se enriquece de uma imaginaopotica sem par. Segundo as suas concepes, no difcil chegar-se teoria do homempr-estrelar. (...) Desse modo, no correr das transformaes dos seres, o homem teria sidomolusco, peixe, surio, ave e mamfero. E dele teriam derivado, como colaterais, os tiposfixados dessas espcies.

    (...) Seria a promiscuidade heterclita, onde se podia colocar o aparecimento do

    homnculo de Bolk. Este sbio anatomista holands proclama que o homem afetalizao do macaco. E nada impede que se adapte ao folhetim da vida que submete amatria criadora de Paracelso s aventuras estruturais de Dacqu, esse feto do macacoque teria, enfim, realizado noHomo sapiens o seu fim de linha, pois no evoluo e simregresso. No por ser o feto de Bolk, mas o simples produto do cruzamento de umaespcie superioro antropopiteco com as larvas homindeas onde se acentuariam asmarcaes de cada arcano ancestral. E o homem de cara ctia, como o homem-ave e obatrquio, seriam a rplica de seus arqutipos perdidos na fixao dos colaterais deDacqu. Ter-se-ia, portanto, assistido por toda a terra habitvel, a um funambulesco Reinodo Macaco. Na promiscuidade estabelecida entre o antropopiteco e essas sombras daespcie humana, qual seria o enxerto, o cavalo?

    Se conservarmos, numa marcada biotipologia, os traos da evoluo de Dacqu,

    certo que numa confirmao paralela h muito de humano em cada espcie de animal.

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    O papagaio fala, a abelha se organiza em sociedade obreira como a trmita, o pavoconfirma Freud, a formiga economiza e o tangar dana. (...)

    Campo para polmica e para pesquisa fica o romance biolgico quedesenvolvemos da teoria de Dacqu, juntando-se agora de Bolk, no menossurpreendente e fabuloso do que foi A origem das espcies, de Darwin, no seu incio.Poder-se-ia talvez fixar atravs da iconografia histrica, das artes e mesmo da fotografia,quanto o homem de certa poca ou de certa civilizao e at quando, reproduziu a suaorigem felina, ctia ou porcina. No inoportuno criar-se uma Dacquana e lev-la ssuas ltimas consequncias antropolgicas e culturais. Seria aceitar o ponto de vista doprimitivo que se identificava com o totem.

    Como pudemos ver na citao oswaldiana, Dacqu (1929:231) era adepto de uma

    estranha forma de criacionismo, segundo a qual uma Ur-forma humana havia sido

    intencionada por Deus e atravessado todas as espcies at chegar a sua forma atual : A

    proto-forma [Urform] humana estava presente metafisicamente, i.e., por Deus

    intencionada,j no reino orgnico, quando num perodo primitivo as primeiras criaturas

    se manifestaram. Humanos, embora tendo aparecido no tempo como seres humanos

    completos somente no ltimo perodo glacial, estavam l, contudo, j em todos os

    organismos incontveis milhes de anos atrs.Na verso oswaldiana, que cruza Dacqu

    com Bolk, o homem atual seria o resultado do cruzamento do antropopiteco com as tais

    larvas homindeas, as proto-formas do homem presentes em outras espcies, derivando

    da as semelhanas totmicas entre certos homens e animais. Assim, as larvas humanas

    sem forma definida, cujo nico atributo era o de se acasalarem com outras formas,

    verdadeiras larvas coiteiras, teriam sido a primeira forma de vida; diferenciando-se de

    acordo com o ambiente e acasalando-se apesar dessas distines, teriam resultado, por

    fim, em sua forma atual, o homem. No se trata, aqui, somente de biologia, mas tambm

    de mitologia, algo sublinhado por outro interessado no pensamento de Dacqu, Walter

    Benjamin (s/d:534), aps assistir a uma conferncia daquele: Todos os ouvintes

    entenderam que a palestra no tratou somente de assuntos biolgicos. A biologia de

    Dacqu rompe com o Darwinismo. Alm disso, contudo, constri uma srie de estranhas

    conexes com a mitologia, a Metafsica e a antropologia filosfica. A metafsica ou

    mitologia em jogo acena para aquele Antropomorfismoapregoado noManifesto, uma

    espcie de proto-antropomorfismo dos animais, o qual tornaria possvel, por sua vez, o

    teriomorfismo atual dos humanos. No limite, portanto, qualquer espcie que comamos

    faz de ns quase-antropfagos, como-canibaise curioso que, ao menos nessa verso

    mtico-anedtica, a Antropofagia surja referida devorao de um animal teoricamente

    no-humano.

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    Como se fosse uma metfora lancinante, a teoria dacqueanaparece estar em

    ressonncia com o antropomorfismo originrio postulado pelas cosmologias indgenas, e

    da qual deriva a prtica terica que Tnia Stolze Lima e Eduardo Viveiros de Castros

    chamaram de perspectivismo amerndio. Um dos mitos mais apreciados pelos

    antropfagos era o dos tupis amaznicos referentes origem da noite, e que Bopp, ao

    reescrev-lo, caracterizou como livro da gnese indgena. O mito comea justamente

    afirmando a condio antropomrfica originria: No princpio no havia noite dia

    somente havia em todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das guas. No havia

    animais; todas as coisas falavam (Couto de Magalhes,1935: 172).7 Bopp publicou uma

    verso desse mito na Revista de Antropofagia,batizando-o de Yperungaua(a primeira

    palavra tupi do relato, traduzida por princpio ou antigamente o tempo no-datado

    de que fala oManifesto). O Yperungaua, bem como a referncia a Dacqu, revelam que

    a temtica antropfaga da naturalizao da cultura, ou seja, da animalizao do homem,

    implicava, direta ou indiretamente, a culturalizao da natureza e a hominizao do

    animal melhor dizendo, implicava uma zona de contato, de inter-esse entre ambos.

    Talvez seja por isso que Oswald tenha associado a sua crtica ao homem vestido ao mito

    tupi, ou seja, tenha ligado a crtica civilizao no s Terra, mas a uma Terra

    entrelaadacom um subsolo cultural, mtico: o ndio despido a imagem decisiva do

    ingnuo, do sincero, do realmente justo. a expulso de todos os adornos que sobravam.

    E que, por isso mesmo, no fazem falta. a fisionomia que se caracteriza por si mesma.

    Agressiva. Brbara. Como a prpria terra. Mas a terra boiando nas lendas da cobra grande

    e ainda com aquele imaginrio fio umbilical que prendia ao yperungaua que o princpio

    mais longe de todas as coisas.

    5.O segundo exemplo de homem biolgico dos antropfagos que eu gostaria de invocar

    aparece em um texto annimo publicado no Dirio da Manhdo Esprito Santo, em 18de agosto de 1929. Intitulado A descida antropofgica, ali lemos a adeso s sugestes

    de Uexkll para uma nova concepo biolgica das sociedades humanas.8Talvez seja a

    nica referncia dos antropfagos a Jakob von Uexkll, tido como um dos fundadores da

    moderna ecologia, e mais conhecido pelo seu conceito de Umwelt. Geralmente vertido

    7Cf. Lvi-Strauss, 2004: 391ss para uma anlise desse mito e para a diferenciao entre culturalizao danatureza e naturalizao da cultura (que, no plano mtico, aparecem nas respectivas formas de ausncia

    originria da noite e do dia).8Uma transcrio desse texto aparecer no primeiro volume da dubiarevista de antropologia especulativa(setembro/2015).

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    como mundo-prprio, o termo talvez se traduza melhor por mundo-ao-redor, o

    mundo que cada espcie ou mesmo indivduo forma, configura, tece: Cada sujeito fia as

    suas correlaes como os fios de uma aranha, relativamente a determinadas propriedades

    das coisas, e tece-as numa slida teia que suporta a sua existncia (Uexkll, s/d:42).

    Detenhamo-nos na formulao, de surpreendente teor antropfago, para tentar

    compreend-la melhor. Em primeiro lugar, a posio da subjetividade coincide com a

    condio vital, o que quer dizer que cada ser vivo tece o seu Umwelt: cada ser vivo um

    sujeito, que vive num mundo que lhe particular, de que ele constitui o centro (ibid.:31).

    Na medida em que o sujeito que fia seu ambiente existencial, armando uma teia de

    sentido, a objetividade no um dado fixo: as coisas de que fala o bilogo, e de cujas

    propriedades os sujeitos se apropriam para formar seu mundo, variam de acordo com sua

    relao com o ser vivo, ou seja, de acordo com asignificao que adquirem nessa relao,

    e at mesmo objetos imaginrios podem ter significao e compor um mundoinclusive

    de uma galinha (ibid.:126). O sujeito no constitui seu mundo a partir de objetos, mas de

    significantes, que determinam a natureza daqueles. A isso, o bilogo chamou de a

    inconstncia dos objectos, que dentro de cada mundo-prprio, mudam tambm de

    conformao, sempre que mudam de significado (ibid.:212). Tal variao dos objetos,

    acrescente-se, no diz respeito apenas quilo que acidental neles, mas a sua prpria

    essncia9: Nem uma nica propriedade da matria se conserva a mesma quando

    percorremos a srie de mundos-prprios das diferentes espcies, afirma Uexkll:De

    mundo para mundo, em cada um dos objectos que observamos, muda no s o teor

    significante mas tambm o arranjo de todas as suas propriedades, tanto materiais como

    formais. O mundo-ao-redor um mundo indiscernvel de uma perspectiva, mundo-de-

    um-sujeito (perspectivismo) e no mundo-para-um-sujeito (relativismo), para lanar

    mo da diferenciao de Danowski e Viveiros de Castro (2014: 33). O cosmos parte do

    Eu, diria Oswald. A consequncia disso que o que chamamos de mundo, o ambientesupostamente nico em que estariam dispostos sujeitos e objetos, seria, na verdade, um

    caleidoscpio disforme e conflitante de mundos, ou melhor, uma entre-trama imbricada

    de teias existenciais:

    S por excessiva leviandade alimentamos a iluso de as correlaes do sujeito, outro queno ns, com as coisas do seu mundo-prprio existirem no mesmo espao e no mesmo

    9Trata-se de uma verdadeira transubstanciao, pois mesmo a diferenciao metafsica do ser entre essncia

    e acidente perde aqui, todo seu sentido, pois ela tambm depende do ponto de vista: S a ligao mais oumenos estreita do objecto significante com o sujeito permite dividir as propriedades em essenciais(essentia)e acessrias(accidentia) (ibid.:142).

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    tempo que as que nos ligam s coisas do nosso prprio mundo humano. Esta iluso alimentada pela suposio da existncia de um mundo nico em que todos os seres vivosesto encerrados. Da a convico geralmente aceite, de que deve haver um nico espaoe um nico tempo para todos os seres vivos. (...) No existem s as multiplicidades deespao e tempo, em que as coisas podem alargar-se; existe tambm a multiplicidade dosmundos-prprios, em que as coisas subsistem sob formas sempre novas (ibid.:42, 225-6).

    No h, na teoria de Uexkll, um ponto de vista exterior aos demais que permita dar uma

    unidade objetiva multiplicidade de mundos-prprios, convertendo-os em um mundo; ou

    seja, no h um ponto de vista extra-terreno, fora do mundo, como Deus, ou, na verso

    kantiana, uma possvel espcie de ETs moralmente mais elevada que a humana. 10 Isso

    no quer dizer, porm, que esses mundos-prprios no entrem em contato, no se

    impliquem, se dobrem uns sobre os outros. Pelo contrrio, se a correlao sujeito-objeto

    constitui cada mundo-ao-redor, ento, como j indica a raiz Um-, aparentada ao nosso

    prefixo ambi-, e de sentido prximo a circum-,estamos num caminho de mo dupla: no

    s o sujeito de um mundo objeto de outros, mas entre ambos existe um lao que no

    transcendental aos mundos, mas imanente a eles. O que h, portanto, uma com-posio:

    Logo que cada componente de um objecto orgnico ou inorgnico surge, como objecto

    significante, no cenrio da vida de um sujeito animal, esse componente posto em

    contacto com um, digamos, complemento, situado no corpo do sujeito que intervm

    como utilizador do significado (ibid.:145). Mais adiante, ao tentar responder porque aaranha consegue fiar um padro vazio, eficiente, de uma mosca (ibid.:163), isto , a

    produzir uma rplica fiel da mosca (ibid.:164), sua vtima, mas uma rplica em

    negativo, os vazios da teia, tecida proporcionalmente ao tamanho e peso da inimiga que

    ela jamais conheceu, ao tentar responder como a aranha consegue faz-la, Uexkll

    apresenta uma formulao que poderamos muito bem tomar como uma definio da

    Antropofagia: claro que a teia de aranha de estrutura ajustvel mosca, porque a

    prpria aranha j o tambm. Ser ajustvel mosca significa, neste caso, que, na suaestrutura, a aranha adoptou certos elementos da mosca. (...) Para nos exprimirmos melhor:

    quando dizemos que a aranha ajustvel mosca, queremos significar que, na sua

    10Cf. Szendy, 2011. verdade que, se Uexkll no afirma nenhuma objetividade prvia, postula sim umasubjetividade primordial: E no entanto todos estes diferentes mundos-prprios esto includos e arrastadosnum uno que se conserva eternamente vedado a todos os mundos-prprios. Por trs de todos os mundos porele criados, oculta-se eternamente o sujeito inatingvelaNatureza (ibid.:137). Todavia, a Natureza aquino parece constituir um super-sujeito transcendente multiplicidade de mundos, mas uma subjetividadeimanente a elas, a condio da prpria multiplicidade, uma espcie de partitura musical, para usar uma

    figura cara ao autor. Talvez se possa dizer, assim, que o sujeito Natureza seja aquilo que torna possvel ascorrelaes, a prpria possibilidade do ponto de vista, e de sua variao.

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    constituio corprea, aquela adoptou para si certos motivos ou determinismos da

    melodia da mosca (ibid.:204). Aquilo que o sujeito no , seu inimigo, a mosca, agora

    se apresenta como constitutivo da aranha, da sua subjetividade, de sua possibilidade de

    constituir mundo. Se o mundo-ao-redor uma teia, um texto tramado pelo sujeito (a

    aranha), ento a exterioridade lhe imanente: os vazios da teia, as entre-linhas do texto

    todo mundo implica um fora, todo mundo uma texterioridade.

    6. Como dissemos, a formulao de Uexkll ressoa as definies da Antropofagia, em

    especial uma: a transformao do Tabu em totem, do desfavorvel em favorvel, do valor

    negativo em valor positivo, do mundo mtrico, extenso, em mundo no-mtrico,

    intenso.11O inimigo, o Tabu, o limite, seria introvertido para constituir totemicamente o

    sujeito, e abri-lo por dentro exterioridade, exogamia, como o chamavam os

    antropfagos: no exemplo em questo, por meio de uma introverso objetiva, a mosca

    passaria a com-por tambm a aranha, numa correlao (reversvel) sujeito-objeto. Assim,

    o cogito canibal talvez seja: eu como outro nos dois sentidos de como, verbo e

    advrbio, ao e metfora, contedo e forma. Devorar o outro, transformando-o em um

    totem, diferente deser o outro; ser comoo outro, quase o outrosimultaneamente

    prximo e distante, igual e distinto: identidade ao contrrio, na magnfica frmula de

    Viveiros de Castro. O como, afirma Haroldo de Campos (2004: 150, 149), torna lbil

    o estatuto da identidade (da continuidade, da verdade), abrindo nele a brecha vertiginosa

    da associao por analogia, guiando-se pela no lgica do terceiro includo, onde uma

    coisa pode deixar de ser igual a si mesma para incorporar o outro, a diferena. O ato de

    comer (e o de metaforizar) ignora o princpio da no-contradio, pois envolve sempre

    uma via de mo dupla, uma transformao recproca: ao comermos, estamos nos

    transformando naquilo que comemos, ao mesmo tempo em que aquilo que comemos est

    se transformando em ns. A avidez canibal, desse modo, no constitui um acmulonarcsico, pelo contrrio. Isso transparece em um dos aforismos iniciais do Manifesto:

    S me interessa o que no meu. Lei do homem. Lei do Antropfago. A frmula

    permitee mesmo demandao seu dobrar-se sobre si mesma: inclusive em mim, s me

    interessa o que no meu; ou seja, em mim, s me interessa aquilo que no sou, que

    outro em mim, que no me prprio. Se essa a Lei do Homem, tambm o que faz

    o humano se converter em Antropfago, ou seja, tambm a Lei do Antropfago:

    11Detive-me nessa frmula antropofgica em Nodari, 2015.

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    enquanto homem, s me interessa o inumano (em mim), justamente aquilo que no

    prprio minha condio humana e nada mais inumano e primitivona tradio

    ocidental que o canibal. O Antropfago o humano que tece uma texterioridade, que

    estabelece com a alteridade uma relao imanente de entrelaamento, de implicao.

    Assim, talvez no seja um acaso o incessante uso do verbo interessar pelos

    antropfagos para designar a variante canibal do desejo: s h inter-esse onde h

    diferena, onde a identidade no sinnimo de ipseidade.12EmInteressere, um belssimo

    12 Talvez se possa dizer que at mesmo a figura do ndio interessa aos antropfagos menos pela suaidentidade que pelo seu devir, menos pelo seuser que pelos seus modos de ser, suas intensidades. Um fatosobre o qual a crtica pouco se deteve que, no Manifesto Antropfago, um dos termos mais usados parase referir ao mundo amerndio caraba, usado, ademais, como adjetivo (Queremos a RevoluoCaraba. Maior que a Revoluo Francesa. A unificao de todas as revoltas eficazes na direo do homem.

    Sem ns a Europa no teria sequer a sua pobre declarao dos direitos do homem; Filiao. O contatocom o Brasil Caraba; O instinto Caraba) e no substantivo, exceto em uma ocasio, que talvez seja achave para compreender as demais ocorrncias: preciso partir de um profundo atesmo para se chegar ideia de Deus. Mas o caraba no precisava. Porque tinha Guaraci (passagem que se conecta com outra:Se Deus a conscincia do Universo Incriado, Guaraci a me dos viventes). O termo caraba, oukarai, no mundo tupi-guarani da poca da Conquista, designava dois tipos de ser (ou modos de ser),conectados entre si. Por um lado, era como se chamavam certos demiurgos criadores e sequestradores de

    bens culturais (a sabedoria poltica indgena ensina que todo poder perigoso e que nada dura pra sempre);por outro, e por extenso desse sentido, era o nome dado a uma alta intensidade transformacional de quealguns xams eram dotados: Os poderes que lhes atribuam evocavam os dos carabas mticos; assim comoesses ltimos, passavam por transformadores: capazes, por exemplo, como narra Thevet, de mudar oshomens em pssaros ou animais, ou de metamorfosear a si prprios (de preferncia em jaguar, entre oschiriguanos) (Clastres, 2007:53). O xam-caraba, porm, diferenciava-se dos demais xams por sua

    exterioridade geogrfica e genealgica, seu no-pertencimento: viviam isolados e eram nmades. [E]sseisolamento deliberado, comenta Hlne Clastres (ibid.:50, 51), era uma maneira de marcar que elespossuam um estatuto parte, que, de fato, no pertenciam verdadeiramente a uma comunidade, que noeram de lugar algum. Com efeito, eles no s viviam afastados numa morada feita para seu uso exclusivo,como ainda permaneciam pouco tempo na mesma aldeia. Todos os autores insistem na sua vida errante eThevet, por exemplo, trata-os de vagabundos (...) Essa dupla liberdade dos carasquanto ao espao (...) o sinal de um estatuto duplamente marginal. Pelo menos idealmente, seu estatuto tornava-os exteriores salianas polticas e exteriores ao parentesco. Pois estar fora da comunidade no significa apenas morarafastado; ou melhor, esse prprio afastamento s comparece para manifestar uma exterioridade mais

    profunda: a que situa o profeta fora, do ponto de vista social (e no apenas espacial), do que precisamenteconstitui uma comunidade: da rede de parentesco (dizendo-se nascidos s de me, sem pai e por issofora do sistema de parentesco patrilinear, como era o tupi: seriam os carabas um dos elos da relao entreAntropofagia e Matriarcado, que Oswald no cansou de sugerir, mas jamais chegou a desenvolver com

    preciso?). A exterioridade e o poder transformacional permitia aos carabas literal e metaforicamenteatravessar a constituio das aldeias, ensinando nelas, em meio a festas, o caminho de ida Terra sem Mal,que, como veremos no comentrio de Clastres ao relato de Nbrega, tem um sentido semelhante a ida aohomem natural dos antropfagos: a Terra sem Mal ali aparece como A terra em que tudo produto daabundncia sem que seja necessrio trabalhar, onde se goza de perptua juventude, etc. o advento delaque prometem. So eles os fiadores de que ela possvel aqui e agora, pois podem comprometer-se aconduzir os outros at l. Sem dvida, esse texto no trata de migrao: no se incitam as pessoas aabandonar as aldeias e pr-se a caminho da Terra sem Mal. Mas dessa prpria terra que os carabas sosenhores, sua realizao possvel neste mundo que eles anunciam: para isso, apenas cabe aos outrosconformar-se a regras de vida especficas, submeter-se aos exerccios necessrios do esprito ou do corpo.O saber dos profetas consiste em possuir a chave desse novo lugar: eles conhecem o caminho da Terra semMal, o que no quer dizer propriamente sua localizao geogrfica, mas sim as regras ticas nicas a

    propiciarem o acesso a ela (ibid.:59). provvel que a Revoluo Caraba seja uma referncia a esse

    roteiro transformacional do mundo que leva Terra sem Mal; ela seria Maior que a Revoluo Francesa,porque implica ao mesmo tempo uma transformao total eimediata: uma revoluo dessee nessemundo,aqui e agora sem adiamento messinicoassim como o Brasil Caraba no outro Brasil a ser construdo

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    poema provavelmente inspirado na frmula oswaldiana, Dcio Pignatari (2004:220)

    sublinha de modo magistral essa relao entre interesse e diferena: No homem interessa

    o que no homem / Na mulher interessa o que no mulher / No animal interessa o que

    no animal.S h interesse onde o ser no coincide consigo, onde a ipseidade d lugar

    ao diferimento e implicao: s o escritor interessado pode interessar (Andrade,

    2009:152).

    7.Na atual crise civilizacional e ecolgica, a prpria noo de produo, depoiesiscomo

    fazer humano, est posta em xeque, enquanto obra desse mesmo homo faber que,

    supostamente rico de mundo, no cessa de destruir mundos, inclusive o prprio. Um dos

    traos mais caractersticos da potica antropofgica justamente o seu minimalismo, o

    seuprocedimento de reduo, constituindo uma verdadeira poesia menos, pra usar

    formulaes de Haroldo (Campos, 1972:xxxiii-xxxiv; 2004:221-230). Mas, e isso um

    dado fundamental, na Antropofagia, o maior o menor, como dir Ral Antelo

    (2006:27): o mnimo adquire efeito mximo a menor extenso equivale uma

    intensividade imensurvel. Some-se a isso o fato desse procedimento se operar sobre

    materiais j dados, transformando-os por meio da apropriao, como no famoso Tupy or

    not tupy. Ao elencar os quatro erros de Marx, Oswald(2009:81) parece ter resumido

    essa potica antropofgica: O que interessa ao homem no a produo e sim o

    (o pas do futuro), mas a transformao radical desse no presente (trata-se de um modelo de utopia queconsiste na alterao da topicidade mesma do mundo: uma variao, no um horizonte). Dito isso, o queimporta salientar que a figura do caraba permite pensar a estratgia antropfaga de Virar ndio(Andrade, 2007:200-1) como anloga quela que Deleuze e Guattari (2004:141-2) atribuem ao pensamento:o pensador Torna-se ndio, no pra de se tornar, talvez "para que" o ndio, que ndio, se torne ele mesmooutra coisa. evidente que o argumento teria de ser melhor desenvolvido, em contraste com dois fatoresque at agora eu havia omitido por motivos retricos. Primeiro: por extenso desses dois sentidos odemirgico e o xamnico, caraba veio a designar tambm o homem branco (especialmente os padres,

    por motivos bvios): dotado de bens culturais de alto poder (construtivo e destrutivo), parecia, assim,

    possuir habilidades mticas e transformacionaisdentre eles, a morte pelas armas e doenas, e talvez atmesmo a imortalidade. Sobre isso, vale a pena reproduzir o trecho de um dilogo de Japy-Au (um caraba-xam) com Claude dAbbeville (caraba-branco), citado por Oswaldo Costa em A descida antropfaga:O venervel ancio Japy-a prestou muita ateno, bem como todos os ndios ali presentes, e replicouassim: Alegrei-me muito quando vos vi, e no faltarei minha palavra. Admiro-me muito como vs outrosPadres no quereis mulheres. Descestes do Cu? Nascestes de Pai e de Me? E ento! no sois mortaiscomo ns? E como, no s no quereis mulheres como os outros franceses que conosco negociam hquarenta e tantos anos, mas tambm impedis agora que eles se sirvam de nossas filhas, o que reputamosgrande honra e nobreza, pois podem ter filhos? (DAbbeville, 1874:78-79; traduo modificada). Mesmodividindo o aspecto de carabas, o xam indgena e o sacerdote branco tm perspectivas radicalmentedistintas e conflitantes: um parte do corpo, o outro, do puro esprito. Segundo: por completa falta decompetncia, no pude entrar no tema dos movimentos migratrios iniciados por alguns carabas, bemcomo da concentrao de poder poltico que talvez estivessem promovendo (salvo engano, Japy-a um

    exemplo nesse sentido), e que, segundo Pierre Clastres, poderia ser o embrio da formao do Estadocf.,para uma leitura atualizada do debate, Sztutman, 2012, especialmente as pp. 411-430.

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    consumo. Poderamos arriscar dizer que a produo entendida como passagem do no-

    ser ao ser, a criao de produtos, como se fosse do nada, a converso do textodo mundo

    em uma escrita, cuja etimologia remete justamente ao ato de cortar (na imagem que

    estamos usando: cortar os fios, a tessitura). A escrita, ao separar aquilo que o texto ligava,

    produz posies fixas, uma extensodo sujeito sobre o mundo, a projeo narcsica de

    sua identidade sobre ela, a passagem do texto obra: a criao do Tabu. Na outra ponta

    da escala termomtrica do instinto antropofgicoestaria o consumo, entendido aqui

    com suas conotaes alimentares, ou seja, como aquela peculiar forma de uso que

    transforma completamente a obra, destruindo-a enquanto objeto, para intensificar sua

    significao, no mesmo gesto em que transforma o sujeito consumidor: a totemizao, a

    passagem da obra ao texto. Do ser ao no ser aos modos de ser, tupy or not tupy: do

    ontolgico, substancialista, ao modal, vale dizer, simultaneamente diferencial e

    dialgicoubicado, desubicado e ubquo(Campos, 1997:250). Na natureza, como na

    arte, nada se cria, nada se destri, tudo se devora.

    Essa oposio entre modo de fazer e modo de usar, escrita e texto, que aparece

    nos escritos antropfagos como aquela entre homo faber e homo ludens, recebe ainda

    outra formulao quando Oswald se detm sobre o que chama de fluxo de sentimento

    animal (stream of unconsciousness ou stream of animalness, poderamos dizer).

    Segundo ele, isso que o homem no , sua animalidade, lhe assalta desde dentro, e se no

    se gastar em arte, em poltica, ou em esporte, ter, sem dvida, que adotar o equvoco de

    uma religio confessional(Andrade, 1992:248). Aqui, devemos entender a religio no

    sentido prprio que Oswald lhe d, isto , como filosofia messinica: a teoria e a prtica

    de um poder que nega este mundo atual em nome de um futuro mundo totalmente humano

    a ser construdo ou conquistado fsica ou metafisicamente. Ou seja, diante de sua

    constante ldica, animal, o humano pode optar porneg-la por meio do messianismo,

    ou exerc-la por meio, entre outros, da arte, constituindo, assim, um mundo neste mundo.Mas em que sentido a arte seria um fluxo de animalidade?

    8.Talvez em nenhuma arte como a poesia se evidencie e tematize o carter imprprio e

    mesmo inumano daquilo que a modernidade considerou prerrogativa exclusiva do

    homem, a linguageme, por extenso, ao prprio ser do homem. Apoesia como furor

    divino, como imantao que liga a Musa aos ouvintes por intermdio do poeta (Oliveira,

    2014), como produto da influncia de um gnio impessoal sobre o sujeito criador, comogeomorfismo e canto da Terra (Link, 2012): em todas essas declinaes, a poesia

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    aparece como um dom extra-humano (natural ou sobre-natural) ao homem. Dom perigoso

    que ele deve saber retribuir, por meio do texto que implica (i.e., dobra) tudo aquilo que

    ele no , aquilo que est fora de si (o mundo), e cujas formulaes mais conhecidas

    talvez sejam a de Rimbaud (2015): Est errado dizer: Eu penso. Deveramos dizer:

    Pensam-me (...) EU um outro; e a de Pessoa: Sinto-me mltiplo. Sou como um quarto

    com inmeros espelhos fantsticos que torcem para reflexes falsas uma nica anterior

    realidade que no est em nenhuma e est em todas. Como o pantesa que se sente rvore

    e at flor, eu sinto-me vrios seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim,

    incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente

    de cada, por uma suma de no-eus sintetizados num eu postio. Desse modo, poderamos

    seguir a via percorrida por Marco Antonio Valentim (2012:27), e ler o jogo entre som e

    sentido, entre a prosdia e a semntica da palavra, que caracteriza a poesia, como um

    jogo entre as dimenses humana e animal, cultural e natural da palavra: articulao

    entre o som e o sentido responde, em outro plano, a articulao entre natureza e cultura,

    afirmava Lvi-Strauss. Ou, em sentido ligeiramente distinto, poderamos dizer, conforme

    sugesto de Guilherme Gontijo Flores, que a poesia tem algo de animal porque insiste

    em sempre relanar o corpo no jogo da linguagem, ao evocar o ritmo e a materialidade

    vinculados aos sentidos, implicando, assim, o corpo (o irracional) na linguagem.

    Talvez seja esse o sentido profundo da recomendao aristotlica do uso de

    estrangeirismos e metforas na linguagem potica, pois, afirma Emmanuel Taub (2015),

    O poeta o estrangeiro na linguagem: A poesia (e as artes) nos desumanizam da

    humanidade do humano. A poesia seria, assim, o nome de um fazer impropriamente

    humano, um artifcio natural, e a tarefa do poeta no seria a de produzir algo, mas a de

    tramar aquelas correspondncias de que falava Baudelaire, tecendo uma floresta de

    correspondncias, um mundo. Em tempos de terror e catstrofe, a poesia mais necessria

    do que nunca: ela o paradigma de um fazer que um dos direitos originrios dosviventes, a tessitura de mundos ela co-implica sujeito e objeto, interioridade e

    exterioridade, humano e inumano, produzindo uma linha de fuga ao projeto

    antropocntrico que tentou converter a Terra em uma grande casa-grande padronizada

    sem fora. Em um registro diferente do que estamos tratando aqui, mas tambm se

    referindo a um regime de ps-escrita(Flusser, 2010), um dos lderes do Partido Pirata

    alemo afirmou que A web o nosso campo de existncia. A Antropofagia no cessa

    de nos recordar disso, de que o mundo a resultante de um jogo recproco de implicaese remisses: Nada existe fora da Devorao. O ser a Devorao pura e eterna

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    (Andrade, 1992:286).Nada existe fora da Devorao, porque a devorao que implica

    a exterioridade (o fora) no sujeito. A Antropofagia e a poesia so nomes distintos para

    uma mesma atividade: a confeco de uma texterioridade. E tal atividade talvez seja

    mesmo o nico sistema capaz de resistir quando acabar no mundo a tinta de escrever.

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