Upload
hananiasv
View
556
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
AO LADO DA CRÍTICA
Presidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaPresidente da RepúblicaLUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Ministro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaMinistro da CulturaJUCA FERREIRA
Fundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteFundação Nacional de Artes – FunarteSÉRGIO MAMBERTI
Presidente
Diretoria ExecutivaMYRIAM LEWIN
Diretora
Centro de Programas IntegradosTADEU DI PIETRO
Diretor
Gerência de EdiçõesMARISTELA RANGEL
Gerente
Centro de Artes CênicasMARCELO BONES
Diretor
Coordenação de DançaLEONEL BRUM
Coordenador
Coordenação Geral dePlanejamento e AdministraçãoANAGILSA NÓBREGA
Coordenadora Geral
AO LADO DA CRÍTICAA história recente da dança
carioca através dacrítica jornalística – 1999-2009
VOLUME 22005-2009
Roberto PereiraOrganização
Rio de Janeiro – 2009
Ao lado da crítica10 anos de crítica de dança – 1999-2009
© 2009 Roberto Pereira
Todos os direitos reservados
Fundação Nacional de Artes – FunarteRua da Imprensa, 16 – Centro – 20030-120 – Rio de Janeiro – RJ
Tels.: (21) 2279-8053 – (21) [email protected] – www.funarte.gov.br
Produção editorial e projeto gráficoJOSÉ CARLOS MARTINS
Produção gráficaJOÃO CARLOS GUIMARÃES
Assistentes editoriaisSIMONE MUNIZ
SUELEN BARBOZA TEIXEIRA
RevisãoANALUIZA MAGALHÃES
CapaPAULA NOGUEIRA
(recortes do Jornal do Brasil)
Arte-final digitalCARLOS ALBERTO RIOS
Volume 2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Funarte / Coordenação de Documentação e Informação
Ao lado da crítica : 10 anos de crítica de dança : 1999-2009 / Organização de Roberto Pereira. – Rio de Janeiro, Funarte,2009.
2 v.213 p.; 26cm
ISBN 978-85-7507-123-6 978-85-7507-125-0
1. Dança – Brasil – História e crítica. I. Pereira Roberto.
CDD 792.80981
Agradeço a todos que meajudaram nesse percurso da crítica.Nayse López, por ter me convidado
a escrever a primeira crítica.A todos os editores e colegasdo Jornal do Brasil com quem
tive o prazer de trabalhar nessesdez anos. Silvia Soter, colega
de ofício, amiga querida.Sonja Gradel, por tudo, disso tudo.
...e que o mesmo signo que eu
tento ler e ser é apenas um possível
ou impossível em mim em mim
em mil em mil em mil...
CAETANO VELOSO
Sumário
Apresentação / 15/ 15/ 15/ 15/ 15JUCA FERREIRA
Ministro da Cultura
Ao lado da crítica / 1/ 1/ 1/ 1/ 177777SÉRGIO MAMBERTI
Presidente da Funarte
O ofício da crítica em dose dupla / 19/ 19/ 19/ 19/ 19(para nossa sorte e deleite)AIRTON TOMAZZONI
Introdução / 21/ 21/ 21/ 21/ 21ROBERTO PEREIRA
20202020200505050505Um tratado coreográfico / 31/ 31/ 31/ 31/ 31
O acaso como umimportante parceiro / 33/ 33/ 33/ 33/ 33
O fim do Dança Brasil / / / / / 3535353535
Operação arriscadano palco do Rival / 37/ 37/ 37/ 37/ 37
Coragem de apostar no novo / 39/ 39/ 39/ 39/ 39
Coreógrafos ebailarinos em sincronia / 41/ 41/ 41/ 41/ 41
O balé do desencontro / 43/ 43/ 43/ 43/ 43
Companhia de Goiásdança com Elis e Tom / 45/ 45/ 45/ 45/ 45
Mimetismo da bossa nova / 46/ 46/ 46/ 46/ 46
A lição da bailarina / 47/ 47/ 47/ 47/ 47
Falta coerência e coesão / 49/ 49/ 49/ 49/ 49
Espetáculo Esquecidosde Catharina Gadelha / 51/ 51/ 51/ 51/ 51
Tempo de despertar / 52/ 52/ 52/ 52/ 52
Empenho e capricho nãofazem obra transbordar / 53/ 53/ 53/ 53/ 53
Poético e orgânico / 55/ 55/ 55/ 55/ 55
Uma leve renovaçãona dança-espetáculo / 57/ 57/ 57/ 57/ 57
Visita musical a um certoBrasil, um “país imaginário” / 59/ 59/ 59/ 59/ 59
Objetos como parceiros / 61/ 61/ 61/ 61/ 61
Descompassos / 62/ 62/ 62/ 62/ 62
Schoenberg transfigurado / 63/ 63/ 63/ 63/ 63
O corpo fala / 65/ 65/ 65/ 65/ 65
O poder detransformação do Grupo Corpo / 67/ 67/ 67/ 67/ 67
A mão dupla do corpo / 69/ 69/ 69/ 69/ 69
Na onda do revival / 71/ 71/ 71/ 71/ 71
O jazzdance sem alegria e sedução / 73/ 73/ 73/ 73/ 73
Um divisor de águas / 75/ 75/ 75/ 75/ 75
Ideia de mundonorteia o espetáculo / 77/ 77/ 77/ 77/ 77
Noite sem sutilezas / 79/ 79/ 79/ 79/ 79
Garimpagem do corpo / 81/ 81/ 81/ 81/ 81
Fragilidades / 83/ 83/ 83/ 83/ 83
Espetáculo Orfeude Regina Miranda / 85/ 85/ 85/ 85/ 85
Eloquência sem limites / 87/ 87/ 87/ 87/ 87
Força da dançaapenas se insinua / 89/ 89/ 89/ 89/ 89
Belos saltos entreescorregadas feias / 91/ 91/ 91/ 91/ 91
20202020200606060606Tradição em corpo brasileiro / 95/ 95/ 95/ 95/ 95
Versão 2006 traznovidades importantes / 97/ 97/ 97/ 97/ 97
Conexões em trânsito / 99/ 99/ 99/ 99/ 99
Quando intérpretesroubam a cena / 10/ 10/ 10/ 10/ 1011111
Presença de espírito do corpo / 103/ 103/ 103/ 103/ 103
O vice-versa de Márcia Rubin / 105/ 105/ 105/ 105/ 105
Espetáculo Maratona Quintanade Regina Miranda / 107/ 107/ 107/ 107/ 107
Balé confirma talentodos bailarinos profissionais / 109/ 109/ 109/ 109/ 109
Descompasso entredesejo e realização / 110/ 110/ 110/ 110/ 110
Frágil identidade / 111/ 111/ 111/ 111/ 111
Bertazzo de esqueceude suas próprias lições / 112/ 112/ 112/ 112/ 112
A caminho da felicidade / 113/ 113/ 113/ 113/ 113
Entre o fio da ciência e da arte / 114/ 114/ 114/ 114/ 114
Maracanã sem a paixãoe a surpresa do festival / 115/ 115/ 115/ 115/ 115
Quando a dança correatrás do brilho da música / 11/ 11/ 11/ 11/ 1177777
Projeto corajoso trazpreciosos momentosem meio a excessos / 119/ 119/ 119/ 119/ 119
Territórios abertospara a expressão masculina / 121/ 121/ 121/ 121/ 121
A força da presença docoreógrafo Bill T. Jones / 123/ 123/ 123/ 123/ 123
A viagem existencialistae solitária de um coreógrafo / 125/ 125/ 125/ 125/ 125
Pas-de-deux dehistória e renovação / 126/ 126/ 126/ 126/ 126
Dança brasileiraem ritmo de inovação / 127/ 127/ 127/ 127/ 127
Tradução elegante dascurvas arquitetônicas modernistas / 129/ 129/ 129/ 129/ 129
As curvas de Niemeyerem corpos que dançam / 130/ 130/ 130/ 130/ 130
Carisma e talento dasolista salvam a noite / 131/ 131/ 131/ 131/ 131
Para acertar o passo da dança / 132/ 132/ 132/ 132/ 132
No sentido darenovação constante / 134/ 134/ 134/ 134/ 134
Ensaios de uma políticapara a dança no país / 136/ 136/ 136/ 136/ 136
20202020200707070707Entre o clássicoe o contemporâneo / 141/ 141/ 141/ 141/ 141
Pretensão de menosfaz bem ao grupo / 142/ 142/ 142/ 142/ 142
Bailarinos em busca deuma filosofia para os movimentos / 143/ 143/ 143/ 143/ 143
Novo palco revelalimites do trabalho / 144/ 144/ 144/ 144/ 144
Novas alquimias entrebailarinos e coreógrafos / 145/ 145/ 145/ 145/ 145
As grandes estrelassão os bailarinos / 147/ 147/ 147/ 147/ 147
Festa brasileira nomelhor dos sentidos / 149/ 149/ 149/ 149/ 149
Reverência aopassado de olho no futuro / 150/ 150/ 150/ 150/ 150
Tons monotemáticosabrem temporada deapresentações no CCBB / 151/ 151/ 151/ 151/ 151
Festival revela o trabalhoda ótima Focus Cia. de Dança / 1/ 1/ 1/ 1/ 15252525252
Sintomas e clichês contemporâneos / 153/ 153/ 153/ 153/ 153
Festival apresentoupluralidade mas ficoudevendo em coerência / 155/ 155/ 155/ 155/ 155
Projeto joga novasluzes sobre o exercíciodo papel da bailarina / 156/ 156/ 156/ 156/ 156
Presença, vigor e segurança emobras a serviço de uma bailarina / 157/ 157/ 157/ 157/ 157
De complexonão há nada. Só exagero / 158/ 158/ 158/ 158/ 158
Vigor e beleza que, sozinhos, nãofazem um bom espetáculo de dança / 159/ 159/ 159/ 159/ 159
Municipal respiraar contemporâneo / 161/ 161/ 161/ 161/ 161
Bailarinos de até 22 anosfirmes como veteranos / 163/ 163/ 163/ 163/ 163
Tubos de ensaio ainda em estudo / 1/ 1/ 1/ 1/ 16464646464
A poética semconcessões de Marcela Levi / 165/ 165/ 165/ 165/ 165
Lia Rodrigues fazobra-prima da dor / 166/ 166/ 166/ 166/ 166
Bailarino visionárioem mais um belo desafio / 167/ 167/ 167/ 167/ 167
O mestre diante do mestre / 169/ 169/ 169/ 169/ 169
Mistura de gêneros que não dá liga / 1/ 1/ 1/ 1/ 17171717171
A construção deum novo vocabulário / 1/ 1/ 1/ 1/ 17272727272
Estranhamento e fricção numcaldeirão de referências urbanas / 1/ 1/ 1/ 1/ 17373737373
Nem a dama do teatro se ajusta / 1/ 1/ 1/ 1/ 17575757575
O desafio de se tornar profissional / 1/ 1/ 1/ 1/ 17777777777
No programa, uma boadose de humor eficiente / 1/ 1/ 1/ 1/ 17979797979
O mapa da dança contemporânea / 180/ 180/ 180/ 180/ 180
Estreia da Cia. da Ideia surpreende / 181/ 181/ 181/ 181/ 181
A dança baila entre / 182/ 182/ 182/ 182/ 182linhas e entrelinhas
Descompasso entre o / 184/ 184/ 184/ 184/ 184tema e a coreografia
Criação comodiálogo de diferenças / 186/ 186/ 186/ 186/ 186
Excesso de devoção emespetáculo sem desafios / 187/ 187/ 187/ 187/ 187
A proposta é clara, masa dança é sem ousadia / 188/ 188/ 188/ 188/ 188
Bela récita, apensar dos nós / 189/ 189/ 189/ 189/ 189
O balé de uma nota só / 190/ 190/ 190/ 190/ 190
Alegria para encerrara temporada de balé / 192/ 192/ 192/ 192/ 192
A coreografiacomo organismo vivo / 193/ 193/ 193/ 193/ 193
Coreografia precisa,como um ato cirúrgico / 194/ 194/ 194/ 194/ 194
Os melhoresespetáculos de dança de 2007 / 1/ 1/ 1/ 1/ 19595959595
20202020200808080808Muita literatura para pouca dança / 20/ 20/ 20/ 20/ 2011111
Em busca de uma identidade / 203/ 203/ 203/ 203/ 203
Voo rasante de umacompanhia com história / 205/ 205/ 205/ 205/ 205
Falta ensaio, falta coesão / 206/ 206/ 206/ 206/ 206
Coreografia cai naarmadilha da literatura / 207/ 207/ 207/ 207/ 207
Elenco de primeira,repertório discutível / 208/ 208/ 208/ 208/ 208
Veteranos do movimentoalternam tecnologia,‘nonsense’ e elegância / 209/ 209/ 209/ 209/ 209
Uma celebração pautadapelo frescor da criação / 211/ 211/ 211/ 211/ 211
Coreografias inéditasapresentam risco esurpresa no Espaço SESC / 213/ 213/ 213/ 213/ 213
Gesto vira pilar coreográfico / 215/ 215/ 215/ 215/ 215
Mistura irregularde épocas e estilos / 21/ 21/ 21/ 21/ 2177777
Giselle mantém a aura de clássico / 219/ 219/ 219/ 219/ 219
Ânimo renovado para a temporada / 221/ 221/ 221/ 221/ 221
Verborragia de movimentosno flerte de Deborah Colkercom a dança-teatro / 223/ 223/ 223/ 223/ 223
Falta habilidade na coreografia / 225/ 225/ 225/ 225/ 225
Entretenimento profissional / 227/ 227/ 227/ 227/ 227
Dois caminhospossíveis de apoio à dança / 228/ 228/ 228/ 228/ 228
Metade doespetáculo já bastaria / 230/ 230/ 230/ 230/ 230
Bailarinos se entregam / 231/ 231/ 231/ 231/ 231
“Transcriação” shakespeareana / 232/ 232/ 232/ 232/ 232
Desafio é desfazer máimpressão da companhiaRussian State Ballet / 233/ 233/ 233/ 233/ 233
Russos continuam devendo / 234/ 234/ 234/ 234/ 234
Balé para gente pequena / 235/ 235/ 235/ 235/ 235
Sobre o palco, umofício que se leva a sério / 236/ 236/ 236/ 236/ 236
Rigor sem espaço para o desvio / 237/ 237/ 237/ 237/ 237
Começo bom, mas comfim frustrante e triste de ver / 239/ 239/ 239/ 239/ 239
Qu’eu isse / 240/ 240/ 240/ 240/ 240
Recriação que vira futuro / 241/ 241/ 241/ 241/ 241
Em processo deconhecer seus próprios limites / 243/ 243/ 243/ 243/ 243
Parceria exploraos limites corpóreos / 244/ 244/ 244/ 244/ 244
Na Bienal de Lyon,passado e futuro em harmonia / 245/ 245/ 245/ 245/ 245
Uma construção cristalina / 247/ 247/ 247/ 247/ 247
Quatro corpos descrevem o amor / 249/ 249/ 249/ 249/ 249
A dimensão exata da dança atual / 250/ 250/ 250/ 250/ 250
Espetáculo H3 de Bruno Beltrão / 251/ 251/ 251/ 251/ 251
Cada gesto é um pequeno mundo / 252/ 252/ 252/ 252/ 252
Visão genial do cotidiano / 253/ 253/ 253/ 253/ 253
Longe dos estereótipos da rua / 254/ 254/ 254/ 254/ 254
Uma lição deobviedade e perda de tempo / 255/ 255/ 255/ 255/ 255
De frente para o público / 256/ 256/ 256/ 256/ 256
A atualidade que a obrasugere, mas não mostra / 257/ 257/ 257/ 257/ 257
João Saldanha abre oseu processo de criação / 258/ 258/ 258/ 258/ 258
Poder público quasemata o ofício da dança / 259/ 259/ 259/ 259/ 259
20202020200909090909Falta ritmo àcompanhia de Andrea Jabor / 265/ 265/ 265/ 265/ 265
Mostra que cruzaa fronteira dos solos / 266/ 266/ 266/ 266/ 266
Começou mal, mas / 268/ 268/ 268/ 268/ 268terminou com brilho
Outros textosOutros textosOutros textosOutros textosOutros textos
Dança: imitaçãoe metáfora / 273/ 273/ 273/ 273/ 273
O meme na carne / 276/ 276/ 276/ 276/ 276
Quando a dançafala de si mesma / 277/ 277/ 277/ 277/ 277
A formação de plateias / 279/ 279/ 279/ 279/ 279
Die Verwirrungendes Luiz de Abreu / 280/ 280/ 280/ 280/ 280
A arte de criticar / 282/ 282/ 282/ 282/ 282
As agruras de umprojeto não selecionado / 284/ 284/ 284/ 284/ 284
Bibliografia / 291/ 291/ 291/ 291/ 291
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 4
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 5
Apresentação
JUCA FERREIRA
Ministro da Cultura
urante o processo de criação artística, o momento de reflexão epesquisa se faz indispensável para o desenvolvimento da obra. A
partir da produção teórica e crítica, a prática é repensada, aperfeiçoa-da e adequada a novos contextos. Ao editar o livro A o lado da crítica:10 anos de crítica de dança – 1999-20 09, o Ministério da Cultura e aFunarte apresentam a artistas, curadores, produtores, pesquisadores e crí-ticos um poderoso instrumento de trabalho e oferecem ao espectador dedança a oportunidade de ampliar seu conhecimento sobre o tema.
O livro reúne críticas, publicadas originalmente em jornais de grandecirculação. Juntas, elas revelam um panorama das ideias, práticas e ex-periências que marcaram a dança brasileira nos últimos dez anos. Osautores analisam em detalhes espetáculos que exploram linguagens di-versas do corpo em movimento. Dessa forma, é possível acompanhar astrajetórias de renomadas companhias, coreógrafos e bailarinos, nacio-nais e internacionais, em busca de inovações técnicas e estéticas quedessem fôlego às suas obras e às suas marcas autorais.
Além disso, são traçados os percursos de alguns dos principais festi-vais brasileiros, que se destacaram por servir de palco a grandes nomesda dança, a novos talentos e coreógrafos de vanguarda, por terem setornado espaços privilegiados de debate de idéias e por ajudarem a for-mar novas plateias para a dança no Brasil. Esta coletânea traz aindatextos teóricos que ajudam a inserir o trabalho do crítico no contextomaior da história da dança.
Com esta publicação, o Ministério da Cultura e a Funarte reafirmamos compromissos de preservar a memória das artes e promover a refle-xão sobre as manifestações da cultura brasileira, investindo assim naformação de consciências críticas e no desenvolvimento do país.
D
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 6
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 7
Ao lado da crítica
SÉRGIO MAMBERTI
Presidente da Funarte
o lado da crítica oferece ao leitor registros minuciosos dos principaisespetáculos de dança apresentados nos palcos cariocas nos últimos
dez anos. A obra, que vem preencher uma lacuna da produção intelectualbrasileira, tão carente de títulos que promovam uma reflexão sobre a dançano país, servirá como ferramenta de pesquisa e referência histórica paratodos aqueles que desejem ampliar seu conhecimento sobre o tema.
A edição deste livro faz parte de um conjunto extenso de ações daFundação Nacional de Artes – Funarte voltadas para o incentivo à dan-ça. Desde 2005, quando o Ministério da Cultura criou o Colegiado Seto-rial de Dança – espaço de debate entre Estado e sociedade civil –, a árearecebeu impulso inédito. Para atender a reivindicações da categoria,foram desenvolvidos programas específicos de estímulo à produção, cir-culação, formação, pesquisa e preservação da memória, contemplandosempre a diversidade criativa dessa linguagem.
Diretores, bailarinos, coreógrafos, produtores, técnicos e outros pro-fissionais ligados à cadeia produtiva da dança encontram, por meio daspolíticas da Funarte, formas de se capacitar, viabilizar projetos, levar seusespetáculos a outros estados e realizar pesquisas.
Com a publicação de livros como A o lado da crítica, que estimulam opensamento sobre a cultura brasileira, a Funarte beneficia artistas, es-tudiosos e espectadores, a um só tempo. Além disso, ratifica a importân-cia de sua atuação como órgão fomentador das artes no país.
A
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 8
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
1 9
O ofício da crítica em dose dupla(para nossa sorte e deleite)
AIRTON TOMAZZONICoreógrafo, jornalista e diretor do
Centro Municipal de Dança de Porto Alegre
palavra crítica vem do grego krimein, que significa “quebrar”, sentido quetambém influenciou a formação da palavra “crise.” E, provavelmente, es-
tabelecer uma crise seja o papel decisivo de um crítico. Uma crise pode gerar,por sua vez, vários estados: percepção, transformação, e até mesmo choque ereação. Por isso, uma crise, mesmo que em primeira instância possa pareceralgo negativo, tem um papel determinante e fundamental, ainda mais quandose fala em arte, ainda mais quando se fala em dança, num País de pouca memó-ria e tão carente de informação qualificada sobre esta arte.
Por isso, é tão importante e significativa a publicação desta obra, reunindodez anos de produção sistemática dos críticos de dança Roberto Pereira (Jornaldo Brasil) e Silvia Soter (O Globo). Seus textos foram decisivos tanto para fazerum retrato da dança na cidade do Rio de Janeiro, no período de 1999 a 2009,quanto para um refinado exercício de reconhecimento e provocação do que ecomo se produzia, do que se assistia, do que se fazia e se deixava de fazer nospalcos e nos bastidores, na arte e na política do Brasil. Sim, porque o espaçoaberto por estes dois críticos não foi apenas para dar opinião a respeito de es-petáculos e eventos. Ambos estiveram sempre atentos e dispostos a alertar, co-brar, revelar ações e omissões que reverberavam diretamente na dança.
Talvez, por esses motivos, eu fale com certa inveja. Com a inveja de quem atuaem um cenário cultural (de Porto Alegre) que não possui, como outros tantos es-tados desse País, um crítico atuando sistematicamente e com o mínimo conheci-mento e vocação para tal ofício. Talvez por isso eu perceba com maior ênfase afalta que faz o acesso a textos de uma escrita clara e precisa, que analisem a produ-ção de dança, textos com posições devidamente argumentadas, textos que, quandonecessário, se permitem vibrar, amar, odiar, pois são textos de quem vive a dança,conhece a dança e torce pela dança. Esses atributos fazem a diferença em umcenário que, muitas vezes, é o de pseudocríticas de dança redigidas por alguémsem o mínimo conhecimento da história da dança (sim, não apenas temos uma comovárias), de suas referências, de sua realidade local e global e que acha que emitirimpressões com uma escrita “bacaninha” dá conta do recado.
A
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 0
As críticas de Silvia e Roberto são a constatação da diferença que umapostura consistente faz e traz. Para tal, não precisamos concordar sempre comsuas opiniões, que não estão ali em busca de uma unanimidade, mas sim deuma pequena (pois breve) e necessária porção de alteridade. Alteridade nosentido de também compreender o mundo a partir do olhar outro, sensibiliza-do pela experiência do contato com a(s) obra(s). E aqui não falo apenas doscriadores, “alvo” das críticas, mas de todos os leitores que fazem do exercícioda crítica jornalística uma possibilidade de troca de experiência em dança, enão só o público carioca. Quantas vezes me interessei por coreógrafos sobreos quais li nos textos de Roberto e Silvia, quantas vezes descobri que os des-conhecia, quantas vezes levei seus textos para sala de aula, quantas vezesacolhi apontamentos que serviam como uma luva para o meu trabalho, quan-tas vezes discordei e estabeleci argumentos para “no dia em que eu falar comeles”. Enfim, que coisa mais saudável esta que uma boa crítica produz.
Também por isso a importância desta publicação. Por valorizar um ofício cadavez mais raro. Pela oportunidade de ler esses textos tão fugidios no jornal queno outro dia pode estar enrolando peixe. Pela chance de lê-los em conjunto. Depoder relê-los. De poder lê-los complementarmente a partir de duas perspecti-vas tão singulares e capacitadas. Essa coletânea de críticas é um legado, numcenário ainda árido da produção bibliográfica sobre dança no Brasil e pratica-mente nulo no que se refere à crítica fora dos jornais e sites. Mas,independente de tudo isso, o leitor poderá se deleitar com um generoso exercí-cio de análise e com o olhar apurado de Roberto e Silvia.
Esta obra também pode ser uma forma de talvez começar a perceber a im-prensa como um dos vértices fundamentais para que uma produção consistentede dança se firme. Esta publicação, enfim, é um retrato de dois profundos co-nhecedores, de dois sensíveis cronistas do seu tempo, donos de um texto perspi-caz e inteligente, de dois apaixonados que fizeram, nesse período, um bocadodaquilo que precisa ser feito, mas poucos se arvoram, pois o ofício da crítica nãoé só feito de louros e exige coragem e rigor. Coragem e rigor que sempre pri-maram tanto Roberto, que nos deixou tão prematuramente e que tanta falta jáfaz, quanto Silvia, que espero que prossiga compartilhando com a gente por maisum bom tempo seus textos.
E que bom que o Roberto teve a ideia desta publicação, bem como a paciên-cia de organizar seu material e o da Silvia, além de digitar todas as críticas.Se ele não tivesse pensado e trabalhado por isso, estas continuariam nos arqui-vos pessoais e não à nossa disposição. E crédito especial à Sonja Gradel, incan-sável até descobrir uma forma de não ver engavetado todo o trabalho já feitopelo Roberto.
Parabéns à Funarte, por assumir essa iniciativa e torná-la possível, com sen-sibilidade e agilidade. Tenho a certeza de que a dança brasileira agradece.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 1
Introdução
ROBERTO PEREIRA
ez anos de crítica de dança na cidade do Rio de Janeiro. Oferecer ao pú-blico a possibilidade de ter reunidas todas as críticas escritas por mim nesse
período, publicadas ou não, é também traçar um diagrama histórico possível,cujos personagens compartilham com o narrador o mesmo espaço e o mesmotempo. Compartilham a contemporaneidade. Tal fato concede, sem dúvida, umtom peculiar à leitura dos textos que seguem. E corrobora a ideia de que essediagrama não está pronto, e nunca estará, felizmente. Aqui, ele aparece recor-tado, assumindo, de imediato, todas as falibilidades desse recorte.
Reunir críticas jornalísticas em um mesmo volume, em formato de livro, não éuma novidade. Mesmo em dança, trata-se de uma prática que vem sendo disse-minada sobretudo a partir do século passado. A importantíssima produção doséculo XIX, por exemplo, que encontra no nome do poeta Théophile Gautier umade suas maiores expressões, ganhou versão em livro, inclusive em outros idiomasque não apenas o original francês. Sua organização vem facilitando e muito o acessode pesquisadores ao ainda tão presente balé romântico, numa leitura que garan-te, através dos arroubos poéticos de Gautier, uma reconstrução possível de ima-gens do que foi aquele período tão caro à dança cênica ocidental.
Se no caso do poeta mais de 150 anos separam suas primeiras críticas jor-nalísticas de sua organização e posterior publicação, neste livro que ora seapresenta ao público, esse hiato simplesmente não existe. Tingindo a históriarecente da dança carioca com a tinta própria de um olhar crítico que se disse-mina através de um dos mais importantes jornais da cidade, aqui se promoveum diagrama.
Um diagrama que, ao mesmo tempo, resulta numa leitura plenamente si-multânea dessa história, mesmo tendo sido organizado com base em um per-curso absolutamente cronológico, critério assumidamente sintagmático que
D
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 2
tenta conceder a essa mesma leitura quase um caráter narrativo. E disso, cer-tamente, um sabor especial advém.
Esse sabor, que muitas vezes deve ter causado dissabores também aos per-sonagens que habitam essas páginas, está latente em cada uma de suas linhas,em cada parágrafo. Apenas não se deve esquecer de que, ao retirar essas críti-cas do seu hábitat original e reagrupá-las em outro lugar, estamos falando mesmoquase que de uma aventura romântica de preservação. Jornalismo cultural, quecarrega consigo a noção de cotidiano, do aqui e agora, ganha feições de umaextensão no tempo e no espaço que não fazem parte de sua especificidade.Implicados aí estão ganhos e perdas. O leitor não deve perder isso de vista, jamais.
* * *A crítica de dança que se apresenta aqui é o exercício diário que permitiu mi-nha formação profissional na área. Na verdade, trata-se de um exercício com-partilhado principalmente com minha colega, e antes de tudo, amiga, Silvia So-ter. Escrevemos há dez anos para os dois principais jornais da cidade do Rio deJaneiro, ela para O Globo e eu para o Jornal do Brasil.
No início, o desafio era novo para ela e para mim: o de se fazer entender porum público anônimo, de cuja amplitude não tínhamos qualquer dimensão. O al-cance de cada palavra escrita por nós era algo pouco traçável, nos dois senti-dos: tanto em direção ao artista criticado, quanto em direção ao público.
Nessa tarefa, a aprendizagem do código se tornou quase um enigma a serdecifrado dia a dia, texto a texto. O “como se fazer entender por esse públicoamplo” teria de vir aliado a outras tantas determinações, muitas vezes alheiasà nossa vontade, ou ao que ainda ingenuamente chamávamos de “estilo”. Dei-xar claro de que espetáculo está se falando, quem é o artista, onde e até quan-do ele se apresenta fazia pesar a prática do lead jornalístico quase como umabomba num texto que se queria algumas vezes puramente poético. Negocia-ções começaram a ser feitas. Aqui e ali.
Ou mesmo o tamanho destinado para cada texto determinava a eficácia deseu conteúdo. Dimensionar isso, exatamente, talvez tenha sido a aprendizagemmais demorada para mim. Se o espaço é pequeno, cada palavra começava a valerimediatamente mais. Quase ouro puro. E nada, nada mesmo a tornava substi-tuível por qualquer outra palavra. A saída era ir sempre testando. Até hoje setesta. E não há um resultado, um diagnóstico. Há a prática de quem realiza umofício cuja formação é um amontoado de aptidões: a facilidade em escrever, oolhar aguçado, o incessante pesquisar sobre dança, e mais tantos etcs. pertinen-tes que possam porventura caber aqui.
Outra informação que poucos leitores, e artistas, sabem: não somos nós queescolhemos os títulos e as legendas que acompanham nossos textos. E tambémnão escolhemos as fotos que os ilustram. Algumas vezes, o título é pinçado de
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 3
alguma passagem de nossa autoria. Outras, ganha um colorido estranho, pró-prio de um título que jamais seria dado por nós. Isso tudo fazia parte do modode acontecer de uma redação de jornal. Tudo. Algo muito simples de se enten-der, mas que fincava de uma só vez uma bandeira que demarcava especificida-des jornalísticas em minha escrita, área em que não sou formado.
Aliás, qual poderia ser minha formação como crítico? Tinha feito muitas emuitas aulas de dança, começando meus estudos numa academia de minha ci-dade natal, São José dos Campos, interior de São Paulo. Como acontecia comtodo rapaz em plena década de 1980, ganhei uma bolsa de estudos de minhaprimeira professora, Damares Antelmo, e me lancei ao balé, ao jazz e ao sapa-teado, mesmo que este último eu tenha abandonado logo de início. Em 1982,lembro ter ficado impressionado ao assistir na televisão a uma jornalista falan-do sobre dança de um modo inteiramente novo para mim. Helena Katz, na T VCultura, comentava o impacto da movimentação de Michael Jackson nos vide-oclipes que acompanhavam o lançamento de seu álbum Thriller. E esse modoreverberou em mim, e o faz até hoje, a certeza de que ali residia uma outrapossibilidade, absolutamente legítima, de se fazer dança também. Fui para acapital paulista, onde me formei em Letras pela PUC/SP, e parei definitivamentede fazer aulas de dança. Comecei, então, a participar do grupo de estudos or-ganizado por Helena. Algumas coisas começaram a se encaixar.
Saí do País, fiz meu mestrado na Universidade de Viena, Áustria, cuja disser-tação tinha como tema uma antiga paixão: o balé Giselle. Voltei ao Brasil, maisespecificamente ao Rio de Janeiro, em 1997, como convidado de minha irmã quejá era quase uma carioca. Nesse mesmo ano, conheci Silvia. Em dezembro, numareunião realizada na sala de ensaio de Lia Rodrigues, localizada no Teatro Villa-Lobos, combinamos a primeira reunião daquele que viria a ser conhecido comoGrupo de Estudos em Dança do Rio de Janeiro. Começaríamos a nos reunir logono dia 19 de janeiro do ano seguinte, no estúdio da Silvia, no Jardim Botânico.
A existência desse grupo foi absolutamente fundamental para meu futuroexercício da crítica. E logo nas primeiras reuniões, realizadas sempre àssegundas-feiras, às 19 horas, começou-se a delinear um núcleo que seguiriaadiante por mais seis anos: além de mim e da Silvia estavam Beatriz Cerbino,Dani Lima e Lia Rodrigues.
As leituras, sempre combinadas de antemão, faziam um percurso sugerido noinício por Helena Katz. Depois, nossos desejos foram sendo naturalmente des-pertos pela própria dinâmica das discussões que se davam nos encontros. Auto-res como Antonio Damasio, Daniel Dennett e Richard Dawkins apresentavamum novo universo a todos nós, que ficávamos incumbidos em traçar paralelos entretoda aquela teoria e a dança. Fazíamos isso, claro, ao nosso modo. E fomos cons-truindo ali uma ética da pesquisa, mas, sobretudo, uma estética do estar junto.
Lá no finzinho de 1999, em outubro, sai a primeira crítica da Silvia no Segun-do Caderno do jornal O Globo. Sua incursão naquele universo complementaria
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 4
de forma exemplar o espaço dado por esse jornal à dança, sobretudo pelo em-penho da jornalista Adriana Pavlova, responsável pela área até o ano de 2005.Uma parceria e tanto foi construída ali, dia a dia, ano a ano. E o jornal passoua desempenhar um papel fundamental nas questões sobretudo políticas que cir-cundavam a dança carioca. E essa dança ganhou um outro status, diferentedaquele provindo de visitas esporádicas da crítica teatral Bárbara Heliodora aapresentações de dança, geralmente restritas ao Theatro Municipal. A dançavirou uma prática jornalística também.
Logo em seguida, ainda no mês de outubro, Silvia começou a escrever sobreo Panorama RioArte de Dança, um dos mais importantes festivais brasileirosque, naquele momento, era dirigido por sua idealizadora, a coreógrafa Lia Ro-drigues. Eu, desde o ano anterior, desempenhava ao lado dela o ofício de suacuradoria. Pouco mais tarde, fui entendendo que curadoria e crítica eram ape-nas interfaces de uma mesma mediação entre artista, obra e público. Mas comonão havia também nenhuma formação própria para “curador de dança”, tudo oque eu fazia era ao mesmo tempo testado. E as maiores aulas que tive nessesentido vinham da experiência da própria Lia, que também aprendeu fazendoaquele festival, mesmo que a duras penas, desde 1992.
Era uma experiência nova para mim e para Silvia: meu trabalho estava sen-do, de alguma forma, criticado por ela. Curioso. Muito curioso.
Para o bem do Panorama e de toda a classe artística da dança carioca, críti-cas sobre o festival passaram a ser constantes até o ano anterior ao que estelivro contempla. Escritas por Silvia, por Beatriz Cerbino, e mais tarde por mim,quando deixei a curadoria do festival em 2004, todas as edições dos anos pos-teriores, excetuando 2005, foram contempladas com críticas nos dois jornais. Esua leitura, hoje, traça curiosos percursos de um festival que promovia, a cadaano, estranhamentos poderosos num público que vinha lentamente se formando.
Por outro lado, infelizmente, nenhum dos importantes festivais e mostras queexistiram ou ainda existem na cidade do Rio de Janeiro foram contempladoscom críticas nossas desde seu início ou sem interrupções. O saudoso festivalD ança Brasil, por exemplo, teve sua primeira edição em 1997, com curadoriade Leonel Brum, e foi a principal e muitas vezes a única investida em dança doCentro Cultural do Banco do Brasil carioca. Sua última edição foi em 2004,dando fim a um processo interessante de observação de imbricações entre dançae outras linguagens artísticas, recorte eleito para balizar sua curadoria. De suasoito edições, apenas as dos anos de 2000, 2001, 2003 e 2004 ganharam críticaminha ou da Silvia. E uma inversão outra vez curiosa se deu aí: a partir de suasexta edição, Leonel convidou Silvia para dividir com ele a curadoria do festi-val. E eu, como crítico, passei a criticar o trabalho dela, exatamente o inversode como havia acontecido há alguns anos.
E também os Solos de Dança no SESC, mostra de formato inédito entre nós,e um dos principais eventos de dança do primeiro semestre carioca, que havia
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 5
se iniciado em 2000, pelas mãos de Beatriz Radunsky, só ganharam aprecia-ções críticas nossas a partir do ano de 2002. Desde então, até o ano passado,esta passou a ser uma ação ininterrupta, felizmente.
Mas o Rio de Janeiro contava, sim, com crítica de dança antes de começar-mos, eu e Silvia, em 1999. Nayse López, então editora do Caderno B do Jornaldo Brasil, acumulava também a função de escrever críticas para sua editoria. Efoi justamente Nayse quem me convidou para escrever minha primeira crítica(e única daquele ano), que saiu em dezembro de 1999. A partir de então, passeia, timidamente ainda, dividir com ela esse espaço no Jornal do Brasil, até que,depois de sua saída do jornal em abril de 2001, assumi sozinho o ofício.
Bem, não totalmente sozinho. Nessas trocas incessantes de posição, algumasvezes crítico, algumas vezes curador, surgiu a oportunidade de convidar a pes-quisadora Beatriz Cerbino para que me substituísse no Caderno B, em escritassobre o Panorama ou sobre algum espetáculo a que eu não poderia assistir poruma razão ou outra. Beatriz havia sido minha aluna no Curso de Dança daUniverCidade, e na época em que começou a escrever, me substituindo, em 2001,cursava o mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
Em nosso segundo ano como críticos de dança, Silvia escreveu 15 textos,e eu, o dobro do que havia escrito no ano anterior, ou seja, apenas dois textos.E no ano seguinte, foram dez da Silvia e eu continuava dobrando minha quan-tidade: quatro textos. Esse número passou lentamente a aumentar, para nós dois.E nossa prática passou a ser uma dinâmica.
Começamos a perceber o que representava o fato corriqueiro, por exemplo,de sentarmos lado a lado em uma estreia. Ou como nossos gestos eram lidosdurante ou após os espetáculos. Cada pequeno gesto. E como nossos textos fo-ram demarcando dois estilos tão diferentes de leituras. E ainda, o que significa-va fazer parte de um rol tão restrito no País de críticos de dança atuantes, queencerrou o ano passado contando apenas com Helena Katz, em São Paulo (OEstado de S. Paulo) e Marcelo Castilho Avellar, em Belo Horizonte (O Estadode Minas).
Formação? Ela se dá ainda em continuidade. Silvia concluiu o mestradoem Artes Cênicas pela UniRio em 2005 e eu, o doutorado em Comunicaçãoe Semiótica pela PUC/SP em 2003. Ambos sobre dança. E ambos os resulta-dos foram publicados. Organizamos livros, participamos de festivais, comis-sões, produzimos eventos e continuamos a dar aulas no mesmo curso supe-rior de dança na UniverCidade. Um repertório que se alarga desde quecomeçou a existir. No caso da Silvia, quando ela tinha 13 anos e, no meu, quandotinha 17. Muita dança de lá pra cá. Muita. E num desses mistérios que noscercam, essa quantidade toda, pelo menos quando se enfrenta a tela vaziado computador ao iniciar a escrita de uma nova crítica, se transforma mila-grosamente em qualidade.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 6
Esse livro reúne críticas escritas por mim em dez anos. Curiosamente, nes-te ano comemorativo de 2009, uma bailarina rasgou em cena a folha de jor-nal que estampava uma crítica minha sobre seu espetáculo. Todas as leiturasde atos que se desdobram: algumas mais elegantes, outras mais emergenciais.Todas legítimas.
Entre tantos erros e acertos, os textos aqui apresentados contam um poucoda história e da percepção dessa história da dança entre nós, moradores da ci-dade do Rio de Janeiro, ou apenas brasileiros. Para tanto, resolvi manter mi-nhas versões originais dos textos. Assim, algumas vezes, temos uma misturainteressante de títulos e legendas tal como figuram nos jornais e textos em ver-sões que muito diferem daqueles publicados. Ou mesmo textos que seriam mes-clados com outros textos de autoria de jornalistas, especialmente em balançosde fim de ano, e que aparecem aqui apenas nas versões escritas por mim. Estaera, finalmente, a (única?) chance de eles serem lidos como foram concebidosoriginalmente. Resolvi também trazer aqui críticas que, por uma razão ou ou-tra, não foram publicadas.
Ao leitor, resta meu pedido de lembrar, sempre, que se trata aqui não maisapenas da crítica de dança, que tem tantas qualidades quando estampada nosuporte do jornal. Mas, antes, trata-se de um registro de um registro e, como tal,só poderia existir admitindo seu recorte e as falibilidades decorrentes dele, assimcomo assumindo as especificidades deste outro suporte, um livro.
Bom diagrama a todos. Um outro jeito absolutamente legítimo de se fazerdança se inicia na página seguinte.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 7
2005 CRÍTICAS
JORNAL DO BRASIL - 10 DE JANEIRO DE 2005Um tratado coreográfico
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 15 DE JANEIRO DE 2005O acaso como um importante parceiro
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 5 DE FEVEREIRO DE 2005O fim do Dança Brasil
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 25 DE FEVEREIRO DE 2005Operação arriscada no palco do Rival
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 5 DE MARÇO DE 2005Coragem de apostar no novo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 12 DE MARÇO DE 2005Coreógrafos e bailarinos em sincronia
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 7 DE ABRIL DE 2005O balé do desencontro
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 10 DE ABRIL DE 2005Companhia de Goiás dança com Elis e Tom
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 10 DE ABRIL DE 2005Mimetismo da bossa nova
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 15 DE ABRIL DE 2005A lição da bailarina
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 8
JORNAL DO BRASIL - 22 DE ABRIL DE 2005Falta coerência e coesão
ROBERTO PEREIRA
CRÍTICA NÃO PUBLICADA – 1 DE MAIO DE 2005Espetáculo Esquecidos de Catharina Gadelha
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 27 DE MAIO DE 2005Tempo de despertar
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 4 DE JUNHO DE 2005Empenho e capricho não fazem obra transbordar
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 4 DE JUNHO DE 2005Poético e orgânico
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 9 DE JUNHO DE 2005Uma leve renovação na dança-espetáculo
SILVIA SOTER
O GLOBO - 12 DE JUNHO DE 2005Visita musical a um certo Brasil, um “país imaginário”
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 13 DE JUNHO DE 2005Objetos como parceiros
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 23 DE AGOSTO DE 2005Descompassos
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 24 DE AGOSTO DE 2005Schoenberg transfigurado
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 27 DE AGOSTO DE 2005O corpo fala
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 2 DE SETEMBRO DE 2005O poder de transformação do Grupo Corpo
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 3 DE SETEMBRO DE 2005A mão dupla do corpo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 14 DE SETEMBRO DE 2005Na onda do revival
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 30 DE SETEMBRO DE 2005O jazzdance sem alegria e sedução
SILVIA SOTER
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
2 9
JORNAL DO BRASIL - 4 DE OUTUBRO DE 2005Um divisor de águas
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 7 DE OUTUBRO DE 2005Ideia de mundo norteia o espetáculo
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 7 DE OUTUBRO DE 2005Noite sem sutilezas
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 28 DE OUTUBRO DE 2005Garimpagem do corpo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 29 DE OUTUBRO DE 2005Fragilidades
ROBERTO PEREIRA
CRÍTICA NÃO PUBLICADA – 12 DE NOVEMBRO DE 2005Espetáculo Orfeu de Regina Miranda
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 22 DE NOVEMBRO DE 2005Eloquência sem limites
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 24 DE NOVEMBRO DE 2005Força da dança apenas se insinua
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 28 DE DEZEMBRO DE 2005Belos saltos entre escorregadas feias
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 0
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 1
Um tratado coreográficoSofisticado espetáculo de João Saldanha,
Soma investiga as estruturas e os códigos da dança
ROBERTO PEREIRA
ano começa muito bem para a dança
do Rio de Janeiro! Pela segunda vez
consecutiva, o coreógrafo João Saldanha
inaugura a temporada carioca, tendo como
abrigo o Espaço SESC, em Copacabana. Na
verdade, mais do que abrigo, não apenas
para Saldanha, mas para tantos outros
coreógrafos importantes da cidade, o SESC
tem funcionado também como um estimu-
lador essencial nesse deserto político em
que se encontra a dança por aqui.
Soma, que estreou na última quinta-feira
e permanece em temporada até o final do
mês, é um tratado coreográfico que se volta
para as questões próprias da dança, como suas
estruturas, seus códigos, seu pensamento.
Quase que revestindo a dança moderna de
dança contemporânea, João Saldanha ultra-
passa os desafios óbvios da metalinguagem
para investir num tratamento absolutamen-
te atual de uma ideia que só poderia vir ao
mundo naquela mídia, naquele movimento,
na soma daqueles elementos.
Lembrando que dança não é mera se-
quência de passos, para a soma “gestálti-
ca” do coreógrafo a ordem dos fatores
altera o produto, construindo uma malha
espessa de sincronias de movimentos que
se deslindam pelo espaço. Aliás, o todo pra-
teado que o público e os bailarinos compar-
tilham da nova sala do mezanino do Espa-
ço SESC, é muito mais do que apenas invó-
lucro: é espaço que se transforma em con-
tinuidade daquilo que se constrói coreogra-
ficamente.
Esse procedimento já havia sido experi-
mentado por João, desde A fase do pato sel-
vagem e Sopa, suas obras de 1998 e 2000,
respectivamente. Mas em Soma, o espaço
vira ambiente, dividindo com a luz sutil e
com os delicados figurinos o papel que sem-
pre lhe coube: o de ser parte necessária da
composição. Quase que uma condição para
sua existência.
A qualidade dos bailarinos é algo que
salta aos olhos. Exigência mínima para a
sofisticação gestual que ali se articula, essa
qualidade faz com que eles possam contri-
buir cada um a seu modo ao que se propõe o
espetáculo. Mas, ao mesmo tempo, não lhes
escapa, hora alguma, a noção de compor
organicamente um todo. Mesmo que alguns
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • • • • • SEGUNDA-FEIRASEGUNDA-FEIRASEGUNDA-FEIRASEGUNDA-FEIRASEGUNDA-FEIRA• 10 DE JANEIRO • 2005• 10 DE JANEIRO • 2005• 10 DE JANEIRO • 2005• 10 DE JANEIRO • 2005• 10 DE JANEIRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 2
bailarinos estejam mais familiarizados com
a linguagem do coreógrafo do que outros,
como os veteranos Marcelo Braga e Laura
Sämy, existe entre eles uma ainda tímida
relação de cumplicidade que desponta em
olhares entre si, e em uma presentidade de
dança que se dinamiza em processos até o
fim do espetáculo.
Com Soma, aquela velha lição que en-
sina que uma parte de um organismo car-
rega consigo as informações de seu todo é
relembrada. Mais que isso: é redimensio-
nada em dança, tarefa nada simples, mas
absolutamente possível, como prova a in-
teligência esperta de um coreógrafo como
João Saldanha.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 3
O acaso como umimportante parceiro
Soma: Espetáculo que não se submete a clichêsou classificações e que fica na memória do espectador
SILVIA SOTER
or mais um ano, coube ao Espaço SESC
abrir a temporada carioca de dança.
Soma, a mais nova criação de João Salda-
nha, inaugura ao mesmo tempo um novo e
promissor espaço: um teatro totalmente re-
formado e adaptado para a dança, no meza-
nino do prédio de Copacabana. Nos últimos
dois anos, felizmente para o público cario-
ca, o Espaço SESC tem acolhido João Sal-
danha e sua companhia.
A palavra Soma, como sugere o coreó-
grafo no programa, refere-se aqui às di-
versas combinações propostas pelo en-
contro entre as estruturas de base da co-
reografia e o acaso. O acaso tem sido par-
ceiro importante nos últimos trabalhos de
João Saldanha, assim como nos de outros
criadores contemporâneos que lançam
mão do acaso como recurso para deixar a
dança sempre viva e com frescor. A soma
dessas partes produz, a cada momento, um
resultado único que se desmancha para
se combinar de outro modo, adiante. Em
Afirmações intencionais: Acidentes, últi-
mo trabalho de João Saldanha, essa pes-
quisa já germinava.
Dança que funciona como um processa-
dor de alimentos. Seguindo à risca uma das
importantes lições da dança moderna, de que
não há espaço anterior ao movimento, já que
é o movimento que o produz, Saldanha vai
tecendo solos, duos, trios, quartetos e danças
de conjunto que recortam o espaço em dese-
nhos geométricos. Mas a força e a beleza de
Soma vão além das figuras espaciais. Soma
é também a experiência do corpo vivido. O
corpo como lugar de cruzamento e de trans-
formação das mais diversas informações. Em
tempos em que os criadores parecem com-
pelidos a assumir suas inspirações e referên-
cias de maneira explícita e até emblemáti-
ca, Saldanha as assume para transformá-las
em algo íntimo e pessoal. Ele traz à tona re-
ferências e memórias que vão dos primór-
dios da dança moderna aos dias de hoje, in-
corporando traços que sugerem Wigman,
Graham, Paxton, ou ainda as polcas do baile
finlandês de sua adolescência. No entanto,
essas referências não se organizam como
narrativa, colagem ou sobreposição. A dan-
ça de João Saldanha parece secretada por um
corpo que funciona como um processador de
P
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • SÁBADO• 15 DE JANE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 15 DE JANE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 15 DE JANE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 15 DE JANE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 15 DE JANE IRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 4
alimentos. Nesse caso, os alimentos são dan-
ças, no plural. Referências e memórias que,
depois de transformadas, surgem materiali-
zadas na movimentação dos intérpretes e no
habilidoso projeto de composição. A peça de
Saldanha é tecida, então, por linhas de movi-
mentos de diversos tempos, que se misturam
e se fundem, umas nas outras, tramadas pelas
mãos experientes do artista.
Em Soma, o coreógrafo realiza a façanha
de fazer uma dança que não se submete a
clichês ou classificações. Seus seis ótimos e
experientes intérpretes – alguns como Mar-
celo Braga e Laura Sämy, parceiros de lon-
ga data e outros recém-incorporados para
essa experiência – conseguem circular pe-
las diferentes e muitas vezes opostas quali-
dades somáticas que a coreografia solicita,
trocando de intensidades, direções e tônus
como quem troca de roupa. A trilha de Sa-
cha Amback e os figurinos de Francisco
Costa têm o mérito de criar, junto com o
espaço cênico metalizado, uma ambienta-
ção visual e sonora que dá conta de ser, ao
mesmo tempo, absolutamente contemporâ-
nea e atemporal. Do quarteto ao som de
Elvis Costello ao final, Soma tem seu ponto
alto, fazendo com que a dança que vaza para
a plateia siga na memória do espectador
muito tempo depois da noite terminada.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 5
O fim do Dança Brasil
ROBERTO PEREIRA
dança carioca, e por que não dizer
também a dança brasileira, acaba de
perder um de seus mais importantes luga-
res de resistência artística e política. Neste
último dia 2 de fevereiro, o Centro Cultural
do Banco do Brasil anunciou a lista de seus
projetos selecionados e o festival Dança
Brasil não foi mencionado.
Tudo bem que o Dança Brasil iria repre-
sentar em sua nona edição deste ano de
2005 um feito mais que importante neste
país de descontinuidades, sobretudo quan-
do o assunto é arte e cultura. E que todo o
sentido de tradição, que dialoga com o sen-
tido de transformação, só se constrói numa
sociedade quando o tempo passa a ser a
chave mestra.
Tudo bem também que o Dança Brasil
era, se não o único, pelo menos o mais im-
portante evento dedicado especificamente
à dança numa instituição tão importante
como o Centro Cultural do Banco do Brasil.
Mas, mesmo assim, mesmo com o indiscutí-
vel sucesso de suas edições, nunca foi alça-
do à categoria de um evento digno de ser
apresentado em seu teatro maior. Tudo bem
que a curadoria do festival tentava se ade-
quar como podia às dimensões nem sempre
ótimas do Teatro II, afinal, curadoria no Bra-
sil só acontece se esse tipo de adequação for
feita, porque as condições quase nunca são
as melhores, isso em todas as linguagens
artísticas.
Claro, tudo bem que o Dança Brasil di-
vidia a cena dos eventos mais importan-
tes no primeiro semestre da cidade com
o Solos de Dança no SESC, contrapondo
com o Panorama RioArte de Dança, que
acontece no segundo semestre. Juntos,
esses três festivais compunham um calen-
dário invejável que só o Rio de Janeiro
possuía no Brasil.
E tudo bem também que o Dança Bra-
sil era assinado por dois importantes pes-
quisadores como Leonel Brum e Silvia
Soter, além de ter contado com a primoro-
sa produção de Rossine Freitas e Ailton
Franco. E que, sempre temático, promovia
discussões que instigavam a reflexão de
toda a classe da dança junto com seu públi-
co, através do projeto Palco Aberto. Em sua
primeira edição, em 1997, observou-se a
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • SÁBADO• 5 DE FEVERE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 5 DE FEVERE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 5 DE FEVERE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 5 DE FEVERE IRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO• 5 DE FEVERE IRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 6
relação da dança com a literatura, em 1998,
com as artes plásticas, em 1999, com a iden-
tidade cultural e a noção de brasilidade, em
2000, com o teatro, em 2001, com a tecno-
logia, em 2002, com as “Seis propostas para
o próximo milênio” de Italo Calvino, em
2003, com a música e, finalmente, em 2004,
com a ideia de espaço: todos temas muito
relevantes transformados em um festival de
uma sabedoria muitas vezes pioneira, que
reuniu não menos de 50 grupos e companhi-
as ao longo desses 8 anos.
Tudo bem que uma galeria de importan-
tes coreógrafos cariocas ali se apresenta-
ram, como Lia Rodrigues, João Saldanha,
Márcia Milhazes, Paula Nestorov, Márcia
Rubin, Ana Vitória, Dani Lima, Paulo Cal-
das, Esther Weitzman e Carlota Portella. E
tudo bem que a mostra paralela de vídeo
trazia, reunida pela primeira vez na cidade,
uma gama internacional enorme de produ-
ção de vídeo-dança, oferecida a preços mui-
to acessíveis ao público.
Tudo bem tudo isso. Mas é o que o Dan-
ça Brasil representava como lugar de re-
sistência num país cuja política cultural
para a dança é quase nula o mais premen-
te a ser pensado. Há muito, os festivais se
tornaram a única possibilidade de nossos
artistas circularem com seus trabalhos
para fora de suas cidades. E os cachês pa-
gos por esses festivais representavam, e
ainda representam, muitas vezes, a sobre-
vivência de companhias durante um tem-
po considerável. Essa é a grande perda. Ir-
remediável, para um instituto que agrega
em seu próprio nome a ideia de cultura e
a palavra Brasil.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 7
Operação arriscadano palco do Rival
Isto é Brasil: Carlinhos de Jesus cria showem que o destaque é a qualidade dos bailarinos
SILVIA SOTER
nova criação de Carlinhos de Jesus, em
cartaz no Teatro Rival até dia 6 de
março, traz para um palco italiano algumas
das chamadas danças populares brasileiras.
A operação de retirar danças que se desen-
volvem em seus ambientes, em situações
onde há apenas uma eventual separação
entre aqueles que dançam e aqueles que
assistem, e levá-las ao palco é sempre tare-
fa arriscada. Em geral, essa transposição do
que acontece nas ruas e nos salões para a
situação de espetáculo acaba por carregá-
lo de cores folclóricas. Dessa armadilha, Isto
é Brasil não escapa.
O coreógrafo e diretor opta, então, pela
estrutura de show, assumindo a frontalida-
de da cena e apresentando as diferentes
danças em quadros que se sucedem. É a
partir desse lugar que Isto é Brasil pode ser
compreendido: como show. Tudo é derrama-
do para a plateia: a movimentação, as ex-
pressões faciais e a iluminação colorida e
exagerada. Essa escolha justifica plenamen-
te sua presença no Teatro Rival ainda que o
palco, estreito e pouco profundo, restrinja vi-
sivelmente a movimentação dos bailarinos.
O Brasil do coreógrafo gira especial-
mente em torno do Rio de Janeiro e tem no
samba sua marca mais forte. Passeia por
suas diversas origens e formas. Carlinhos de
Jesus cria diversas situações teatrais, apoi-
ando-se na pantomima para ambientar cada
quadro e tentar costurar uma cena à outra.
Sem escapar de alguns clichês, estão presen-
tes em cena ícones desse Brasil para inglês
ver: mulheres lindíssimas, sorridentes e sen-
suais; homens com ginga e a malandragem
carioca. Nesse show em homenagem ao Rio
de Janeiro, Carlinhos de Jesus não poderia
deixar de fora a Mangueira. A escola de
samba é contemplada com um quadro que
se constrói pelas diversas comissões de fren-
te criadas pelo coreógrafo.
Carlinhos de Jesus tem plena consciên-
cia de que ele também é hoje um ícone do
Rio de Janeiro e faz uso disso, em cena, com
muita competência. Usa a sua presença no
lugar de intérprete e de personagem (brin-
cando, por exemplo, com a paródia que
Marcelo Madureira faz dele) e traz para
acompanhá-lo outra artista que é um dos
orgulhos da cidade: a bailarina clássica Ana
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE FEVEREIRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE FEVEREIRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE FEVEREIRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE FEVEREIRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE FEVEREIRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 8
Botafogo. A sempre bem-humorada e sedu-
tora presença de Ana imprime mais tempe-
ro às misturas que são exploradas no show.
Misturas e influências que tecem o Brasil do
coreógrafo. Talvez Carlinhos de Jesus este-
ja igualmente afirmando o importante lu-
gar do balé clássico na dança carioca.
Ainda que Isto é Brasil não escape das
armadilhas desse tipo de empreitada, não
conseguindo trazer novos ares para o for-
mato que se utiliza ele se destaca pela qua-
lidade dos bailarinos. Todos acompanham
Carlinhos de Jesus com competência e boa
presença cênica, com destaque para Shei-
la Aquino.
A qualidade da equipe e da produção já
aponta para o desafio que se impõe a Carli-
nhos de Jesus: conseguir trazer para o palco
o brilho e a originalidade com que brinda o
público carioca no Sambódromo, a cada ano.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
3 9
Coragem de apostar no novoSolos de Dança no SESC estreia no Rio
com grandes atuações de quatro bailarinos
ROBERTO PEREIRA
m espetáculo de bailarinos, mais do
que de dança: talvez seja essa a im-
pressão que resulta dos quatro trabalhos da
primeira semana da nova edição do Solos
de Dança no SESC, que se iniciou nesta quin-
ta-feira. Trabalhando com o novo absoluto,
tanto do ponto de vista do ineditismo das
obras, criadas especialmente para o evento,
quanto dos encontros de coreógrafos e bai-
larinos, que nunca trabalharam juntos, o So-
los de Dança no SESC, com curadoria assi-
nada por Beatriz Radunsky, tem, entre outros
méritos, o da coragem de apostar em ideias.
E assim apostando, traz consigo algo funda-
mental para a dança, ou seja, deixa eviden-
tes as qualidades daquele que cria, tanto na
coreografia, quanto em sua execução.
Nesta primeira semana, o que saltou aos
olhos foi, sem dúvida, a excelência da dan-
ça dos quatro bailarinos ali reunidos em
quatro trabalhos tão distintos. Abrindo a
noite, o bailarino Daniel Calvet mostrou
Vela a pilha, resultado de sua parceria com
o coreógrafo Henrique Rodovalho. Seu vo-
cabulário de movimentos, já bastante conhe-
cido, ganha facilmente o corpo de Calvet, o
que muito se deve ao fato do bailarino já ter
feito parte da companhia de Rodovalho, a
Quasar Cia. de Dança. Entretanto, a ques-
tão que ali se impõe é que em momento al-
gum esse vocabulário é amalgamado em
ideia, o que comprova que coreografia não
é dança, e que movimento pode se transfor-
mar meramente em passo. A exatidão da
execução desse vocabulário faz do bailari-
no algo ímpar, mesmo que o frescor de sua
juventude deixe visível que ele vem desco-
brindo, dia a dia, o que é sua dança e como
ela acontece em seu corpo.
Clébio Oliveira assina o segundo e o mais
frágil trabalho da noite. Em Há coisas que só
os olhos podem sentir, fica exposta a inabili-
dade de Clébio diante da maturidade da
mulher e da bailarina Isa Kokay. A dança se
constrói a partir apenas de uma narrativa
recheada de truques e maneirismos, que vão
desde o tema até os movimentos ainda pou-
co consistentes que o jovem bailarino cisma
em testar em seus incursos de criação. O ex-
cesso de referências usadas por ele, felizmen-
te, ainda deixa uma brecha para que se pos-
sa observar a qualidade de Kokay, bailarina
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 5 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 5 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 5 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 5 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 5 D E M A R Ç O • 2 0 0 5
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 0
que já merecia um solo em sua carreira tão
especial na cena da dança carioca.
Este parece ter sido também o caso de
Toni Rodrigues ao executar o terceiro
solo da noite, criado por Alexandre Fran-
co: Corpo de papel nº 1. Marca do coreó-
grafo, a prolixidade que ali impera não
consegue reverberar na dança de Toni,
embora esse bailarino venha provando,
ao longo de sua carreira, que sabe dialo-
gar com diferentes estilos de diferentes
criadores. Esse deveria ser um dos gran-
des méritos de qualquer bom bailarino
que, nessa obra, ganha pouca chance de
acontecer. Entre os textos quase incom-
preensíveis assinados e narrados pelo
próprio Alexandre e a superposição de
elementos coreográficos, a ideia não se
constrói, mas delineia-se apenas, resul-
tando num tratado de múltiplas referên-
cias muito confuso.
O trabalho mais consistente da noite foi
o último a se apresentar, A vida fora da bio-
grafia, de Esther W eitzman. Duas qualida-
des estão presentes ali: ternura e honestida-
de, que se transformam belamente em dan-
ça. A ternura da (re)construção de uma vida
(da bailarina? da coreógrafa?) fora de sua
biografia, como tão bem fala o título da obra,
remete ao encontro inédito entre Esther e
Sueli Guerra. E a honestidade perpassa todo
o trabalho, mostrando ao público como Sue-
li vestiu-se justamente de Esther, trajando
apenas o que lhe cabia. O resultado é a
medida exata de uma bailarina que se en-
trega à coreógrafa, deixando que a maturi-
dade das duas faça a dança vir à tona, mais
do que qualquer outra coisa.
O crítico francês Roland Barthes, ao fa-
lar de literatura, propunha uma distinção
daquilo que denominava de “texto erótico”
de “texto pornográfico”: enquanto o segun-
do esforçava-se por tudo mostrar, fazendo
uso do excesso e do previsível, o primeiro
guardava consigo a qualidade de apenas
insinuar, de propor, convidando o leitor a
preencher suas lacunas deliberadamente
ali presentes. Esta talvez seja uma lição para
esse primeiro programa dos Solos de Dan-
ça no SESC. A sorte, porém, é que o texto
dos corpos que ali dançam ainda resguarda
o erótico barthesiano, aguardando uma ou-
tra oportunidade para se tornarem um tex-
to artístico, em todas as suas propriedades.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 1
Coreógrafos e bailarinosem sincronia
Segunda semana do Solos de Dançasurpreende pela qualidade
ROBERTO PEREIRA
segunda e última semana da mostra
Solos de Dança no SESC, que se ini-
ciou nesta quinta-feira e se encerra amanhã,
comporta características bastante distintas
da primeira, cuja marca era a preponderân-
cia da qualidade dos bailarinos sobre a de
seus coreógrafos. Nesta semana, continuam
ainda o ineditismo das obras apresentadas
e o ineditismo das parcerias entre bailari-
nos e coreógrafos, mas os ajustes entre um e
outro que tal desafio impõe, encontrados an-
tes apenas no trabalho assinado por Esther
Weitzman, fazem parte da maioria das qua-
tro obras apresentadas.
A noite, entretanto, não começa bem. A
bailarina solista do Theatro Municipal, Bet-
tina do Dalcanale, trouxe para o palco inti-
mista do Espaço SESC todo o peso do gesto
dramático característico dos grandes balés
que costuma dançar, sem notar que ali, pela
proximidade com o público, o excesso de
dramaticidade deveria ser regulado a par-
tir de outras bases, já que se tratava de um
outro canal e de uma outra dança. Assim, seu
corpo parecia postiço num ambiente que a
bailarina ainda desconhece, deixando seu
desconforto aparente. A coreografia, Desa-
pego, de Mônica Barbosa, com parco voca-
bulário de movimentos, permitia que as po-
ses e os passos de balé surgissem ali quase
como uma solução apressada, e não como
uma necessidade de representação de um
pensamento, ou do tema tão forte que se
impôs sobre a obra.
O segundo trabalho da noite mostra
novos caminhos na tenra carreira do jo-
vem e promissor coreógrafo Carlos Laer-
te. Dono de uma habilidade inteligente de
construir células de movimentos de forma
orgânica, Laerte pesquisa em Vida a dois
uma possibilidade cênica para seu exer-
cício, ao qual o excelente bailarino Mar-
celo Moraes se presta com justeza. Talvez,
exatamente por essa sua habilidade, o
coreógrafo devesse tentar minimizar o ex-
cesso de ideias esgarçadas no que resvala
em seu maior mérito que é o próprio fa-
zer coreográfico: a música, excessivamen-
te narrativa, a iluminação, eloquente de-
mais, e o figurino. Pelo talento que ali se
confirma, nada disso se torna tão especial
como o movimento que ele tão bem conhe-
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 2 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 1 2 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 1 2 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 1 2 D E M A R Ç O • 2 0 0 5• S Á B A D O • 1 2 D E M A R Ç O • 2 0 0 5
A
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 2
ce e que traduz sua busca por uma lingua-
gem toda particular.
Misturando duas referências muito dis-
tintas e ao mesmo tempo tão complemen-
tares, Pra continuar a diversão chama a aten-
ção pelo frescor que esse tipo de encontro
entre bailarina e coreógrafa pode suscitar.
A primeira, Taís Vieira, traz consigo as in-
formações da dança de rua. Ou seja, em seu
corpo está a inscrição de uma vitalidade
desafiadora e pouco conformada, caracte-
rística dessa técnica e, sobretudo, dessa es-
tética de dança. A segunda, Cristina Moura,
vem de uma dança contemporânea que
dialoga firmemente com a performance,
sempre no intuito de questionar valores so-
ciais importantes e, ao mesmo tempo, polê-
micos. A mistura é absolutamente corajosa,
permitindo que explodam ali ideias novas
e provocadoras. Não à toa, a bailarina conta
em cena que o solo iria se chamar Pitbull.
A ferocidade está lá. E sempre esteve, nas
duas, cada uma a seu modo. E surge em es-
tado bruto como dança.
O último trabalho da noite encerra a
mostra com um deslumbramento. O substan-
tivo aqui, carregado de sua qualidade de ad-
jetivo, serve apenas para tentar traduzir o que
João Saldanha, em fase brilhante de sua car-
reira de coreógrafo, consegue tecer no corpo
da jovem bailarina Mônica Burity. Tudo pa-
rece convergir para a elegância de uma ideia
que vem ao mundo já configurada em sua
plenitude como coreografia, como movimen-
to, como dança. O que é jovem e ao mesmo
tempo competente em Mônica assimila o que
é experiência e marca de João, num desses
encontros que só se pode agradecer aos deu-
ses por ter um dia ocorrido. A sabedoria que
se pode ver em Eles assistem e eu danço de-
sarranja. Comove, no puro sentido do verbo.
A noite de quinta-feira foi dedicada ao
nosso grande mestre Dennis Gray, que ha-
via falecido naquele dia, aos 81 anos. Um
de seus principais papéis sempre foi o Dr.
Coppelius, do balé Coppélia, um fabricante
de bonecas. Na verdade, um fabricante de
sonhos, que se adequava tão bem à qualida-
de da dança do bailarino Dennis. E à quali-
dade do professor Dennis, cujo trabalho se
espraia, de um jeito ou de outro, entre todos
os solos desta mostra e de tantas outras que
ainda estão por vir, fazendo a história da
dança nesta cidade.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 3
O balé do desencontroFalta unidade no programa e entre bailarinos
marca espetáculo de Julio Bocca
ROBERTO PEREIRA
primeiro dos dois programas apresen-
tados pelo bailarino Julio Bocca e sua
companhia, o Ballet Argentino, no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, na terça-feira
e ontem, respectivamente, deixou eviden-
ciado um problema sério de coesão, em duas
instâncias.
A primeira delas, mais geral, relaciona-
se diretamente com a escolha das obras para
compor um programa, ou seja, é quase um
problema de curadoria. A falta de coesão dos
trabalhos esbarra, neste caso, justamente nos
dois pas-de-deux clássicos apresentados, ab-
solutamente dispensáveis no contexto que
se formou a partir das três obras mais con-
temporâneas. De qualidades muito diversas
dos clássicos, elas sozinhas teriam compos-
to um todo mais orgânico, num timing mais
preciso, que faltou em todo o espetáculo, lon-
go demais.
A segunda delas, mais específica, refe-
re-se à qualidade da performance dos bai-
larinos. O jovem grupo carece de unidade,
numa visível falta de entrosamento entre
eles, qualidade que, na dança, é alcançada
pelo tempo de convivência e também pela
dedicação aos ensaios. A falta de coesão
aqui deixou marcas profundas principal-
mente na obra Anjos sem asas, quando o
grupo, bastante desconectado entre si, difi-
cultava a apreensão do público que lotava
o teatro da instigante e complicada coreo-
grafia de Attila Eherházi. Problema de
fácil solução, quando se trata de uma boa
companhia como essa.
A noite não começou bem, com o Pas-
de-deux Tchaikowsky, dançado pelo pró-
prio Julio Bocca com a bailarina Cecilia
Figaredo. Faltou aos dois o quesito mais im-
portante para uma obra de Balanchine: a
precisão musical. Embora Bocca apresen-
tasse sua excelente qualidade técnica, ela
não foi suficiente para amenizar a pouca
habilidade balanchiniana da bailarina.
Já a segunda obra clássica do programa, o
grand pas-de-deux do balé O corsário, deu
oportunidade a Hernan Piquin de mostrar
todo seu vigor técnico, perfeito no papel, e
que infelizmente não encontrava na jovem
bailarina o seu par mais adequado. Resul-
tado: nos dois pas-de-deux, o destaque ficou
com os rapazes.
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 7 DE ABRIL • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 7 DE ABRIL • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 7 DE ABRIL • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 7 DE ABRIL • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 7 DE ABRIL • 2005
A
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 4
Já a obra De longe foi, sem dúvida, o
ponto alto da noite. Com curiosas forma-
ções de conjunto, a coreografia exigia da
companhia um desempenho que, sobretu-
do ali, foi correspondido com toda precisão.
Os ótimos bailarinos estavam em plena
sintonia entre si e com a obra, principal-
mente nos belos duos, num momento pon-
tual de todo o programa.
Finalizando, Piazzola tango vivo era
mais uma daquelas obras que facilmente en-
cantam o público, mesmo que repleta de cli-
chês e obviedades. Os indefectíveis objetos
de cena, quando o assunto é tango, como a
cadeira e a mesa, além dos figurinos e da
própria coreografia, deixavam claro que ali
era a vez do tango tipo exportação e dos
momentos de virtuosismo técnico, especial-
mente do próprio Julio Bocca.
Aliás, Bocca deixou evidente em todo
o programa que continua sendo um dos
grandes bailarinos da atualidade. Os domí-
nios técnico e cênico ganharam com a ma-
turidade uma qualidade ímpar no bailari-
no. Para nós, brasileiros, essa foi, sem dúvi-
da, uma boa oportunidade de revê-lo e de
conhecer um pouco a ótima dança que nos-
so país vizinho desenvolve.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 5
Companhia de Goiásdança com Elis e Tom
Só tinha de ser com você: Quasar encontra a MPB
SILVIA SOTER
ó tinha de ser com você, da Quasar Cia.de Dança é o primeiro espetáculo da
série 4 Movimentos – Cias. de Dança noCCBB, que a partir desse ano ocupa a pro-gramação da instituição no rastro do cami-nho aberto e consolidado pelos oito anos daMostra Dança Brasil.
A Quasar, em seus quase vinte anos deexistência, tem o mérito de ser uma das pou-cas referências de dança brasileira de altaqualidade que sobrevive e cresce fora doeixo Rio-São Paulo. Tarefa árdua que me-rece sempre ser lembrada e aplaudida.
Nessa peça, Henrique Rodovalho tomacomo ponto de partida o clássico álbum Elis
& Tom para ir à busca dos desdobramentosque essas músicas podem ganhar em dança.Não é a primeira vez que o coreógrafo inves-te nas relações entre música popular e dança– Coreografia para ouvir já brincava em de-safiá-las –, mas é nesse trabalho que Rodova-lho chega em algo que consegue não ser lite-ral ou narrativo e, ao mesmo tempo, estar li-gado de forma íntima à música em questão.
Em suas últimas criações, a Quasar teminvestido em tratar de temas contemporâ-neos como a solidão ou a velhice e vem os-cilando entre uma abordagem ou por de-mais narrativa ou que guardava uma dis-
tância inexplicável entre o tema aborda-do e tratamento coreográfico. Só tinha que
ser você mostra que Rodovalho deu umpasso importante no sentido de trazer no-vos ares e estímulos para flexibilizar seumaterial coreográfico, já com característi-cas bem próprias.
Em cena, os excelentes bailarinos explo-ram com languidez e até humor as qualida-des rítmicas da música de Tom Jobim, brin-cando com a dança a partir do mesmo “des-pojamento sofisticado” da bossa nova. O quechega aos ouvidos e aos olhos do públicoentra em harmoniosa sintonia. Os bonitos eeficientes figurinos de Cássio Brasil colabo-ram como um elemento fundamental paraacentuar o volume e a leveza da música eda movimentação.
É pena que, no entanto, a peça perca qua-lidade todas as vezes que um grupo maiorde bailarinos está em cena, já que a insufi-ciente profundidade do palco do Teatro IIimpede que a dança se desenvolva espaci-almente de forma plena.
Ouvir o álbum Elis & Tom é sempre umprazer. Através da dança da Quasar, as vo-zes de Elis Regina e de Tom Jobim ganhammaterialidade agradável, tranquila, bonita
e despretensiosa.
S
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 10 DE ABR I L R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 10 DE ABR I L R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 10 DE ABR I L R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 10 DE ABR I L R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 10 DE ABR I L • 2005• 2005• 2005• 2005• 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 6
Mimetismo da bossa novaCoreografia de Rodovalho envolve
Tom e Elis nos movimentos da Quasar
ROBERTO PEREIRA
Centro Cultural do Banco do Brasiliniciou na quarta-feira o novo forma-
to de sua programação de dança, agora inti-tulada 4 Movimentos, com o grupo goiano
Quasar Cia. de Dança, em cartaz até hoje.
D urante quatro semanas, quatro grupos se
apresentam, em projeto semelhante ao fes-
tival Dança Brasil, que o Centro Cultural
abrigava e que foi abruptamente extinto
neste ano.
Henrique Rodovalho, coreógrafo e di-
retor da Quasar, é um daqueles raros artis-
tas da dança que se dedica a construir um
vocabulário próprio de movimento. O re-
sultado coreográfico disso, entretanto, nos
trabalhos anteriores de sua companhia,
emperrava numa encruzilhada entre o
compromisso de sempre se comprometer
a tratar de um tema e um outro, muito mais
instigante, do aprofundamento da pesquisa
de vocabulário, justamente. Em Só tinha deser com você, esse segundo compromisso
prevalece e a dança de Rodovalho pôde,
finalmente, respirar livremente em sua
especificidade, sem se impor à tarefa de
contar algo.
Talvez um dos grandes responsáveis por
esse ato de coragem de aprofundamento de
pesquisa de movimento seja o desafio a que
o coreógrafo se lançou ao escolher como
trilha do espetáculo o antológico disco que
Elis Regina e Tom Jobim gravaram juntosem 1974. Ciente do risco que corria com afácil armadilha de legendar a música ou asletras das canções, Rodovalho transformou,antes, música em trilha sonora. E os movi-mentos assinados por ele puderam ser, so-bretudo, dança, justamente através dessapassagem tão desafiadora. O que é movi-mento impera em diálogo com a trilha, fa-zendo com que a dissonância da bossa novaapareça no corpo que traça percursos inver-tidos, revestidos de som.
Isso fica claro principalmente porque odesempenho dos bailarinos carrega consi-go a construção desse burilamento de pes-quisa de vocabulário a que Rodovalho sededica. É o caso, por exemplo, de GleidsonVigne, que traz em seu corpo a informaçãoencarnada do coreógrafo, a informação efi-ciente, aquela que comunica fazendo uso,inclusive, de seus ruídos. Coisa de artistas.
O cenário e principalmente os belos figu-rinos, assinados por Shell Jr. e Cássio Brasil,respectivamente, contribuem nesse trajetoentre simplicidade, exatidão, elegância e com-plexidade, quase mimetizando a bossa nova.Com Só tinha de ser com você, são as compe-tências que importam: do coreógrafo, dos bai-larinos, e, para nossos ouvidos, de Tom e Elis.Essa é, com certeza, a verdadeira coreografia
para ouvir de Henrique Rodovalho.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • DOM INGO • 10 DE ABR I L • 2005• DOM INGO • 10 DE ABR I L • 2005• DOM INGO • 10 DE ABR I L • 2005• DOM INGO • 10 DE ABR I L • 2005• DOM INGO • 10 DE ABR I L • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 7
A lição da bailarinaFlávia Tápias revela coragemdançando cinco coreografias
ROBERTO PEREIRA
proposta não é exatamente nova. A
experiência de um bailarino convi-
dar diferentes criadores para coreografar
especialmente para ele, e esse conjunto de
obras virar um único espetáculo, já havia
sido testada pelo excelente bailarino
Vincent Dunoyer há alguns anos. E, aqui
no Brasil, a bailarina mineira Thembi Rosa
elaborou seu Ajuntamento, em 2002, com
a mesma proposta. Entretanto, o que cha-
ma a atenção em Cinco coreógrafos e 1
corpo, que Flávia Tápias apresenta no
Centro Cultural do Banco do Brasil até do-
mingo, é sua coragem e sua generosidade
como bailarina.
Num momento em que vários jovens se
dedicam apressadamente à função de co-
reógrafos, tarefa nada fácil, Flávia revela
em sua dança, neste espetáculo, um orgu-
lho pelo seu ofício de bailarina. E como ela
é uma bailarina de qualidades múltiplas, a
coragem com que enfrenta o desafio de
visitar diferentes assinaturas coreográficas
e a generosidade como deixa seu corpo
estar a serviço dessas assinaturas é sua bela
lição ao público.
A primeira obra da noite, Ballet meca-
nique, de Ana Vitória, é quase um tratado
sobre o tempo. Só que, como é marca desta
coreógrafa, a exatidão dos movimentos, num
fluxo contido que se espasma em respirações
e pausas, traduz esse tempo em espaço, um
espaço que se constrói a partir e no corpo
de Flávia. É nítido que este solo ainda pre-
cisa ser amaciado na bailarina, algo que vem
apenas com o convívio entre ela e a obra. A
iluminação, dada a precisão de como tudo
se dá no palco, precisa ser mais exata, mais
sutil. E o figurino interfere demais no que
deveria ser apenas o mecânico do tempo e
do espaço, metamorfoseados em corpo e nas
ampulhetas do cenário.
Semelhante, de Henrique Rodovalho,
solo que a bailarina já dança há mais tem-
po, mostra que a familiaridade dela com a
obra concede um caráter diferente das ou-
tras apresentadas na noite. Mas o interes-
sante dessa obra de Rodovalho, que apre-
sentou sua companhia, a Quasar, na sema-
na passada também no CCBB, é como já
nela o vocabulário de movimentos do co-
reógrafo solicita que ele, e apenas ele, seja
a matéria-prima de sua criação, o que ga-
nha sua maturidade máxima em Só tinha de
ser com você.
O solo mais interessante da noite pare-
ce ser justamente Solo, do coreógrafo israe-
lense Rami Levi. A elegância do fluxo de
movimentos, que contrasta com a precisão
contida dos solos anteriores, encontra no
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 15 DE ABRIL • 2005• 15 DE ABRIL • 2005• 15 DE ABRIL • 2005• 15 DE ABRIL • 2005• 15 DE ABRIL • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 8
corpo de Flávia um abrigo próprio de uma
bailarina que acolhe a dança de seu coreó-
grafo. Já em Da família dos crocodilos, a fra-
gilidade da obra do diretor de teatro Paulo
de Moraes está em impor a essa bailarina
uma dramaticidade que escapa ao que é
movimento, ou seja, escapa à sua habilida-
de que é a dramaturgia construída pelo e no
próprio movimento, em sua dança.
Finalizando a noite, Giselle Tápias, mãe
de Flávia, assina Rede. A beleza da primei-
ra cena, em que a bailarina parece flutuar
sobre uma rede, infelizmente se desman-
cha no momento em que se obriga a dança
a se relacionar, de modo mais óbvio, com
esse objeto cênico. E a literalidade do tema
fica ainda mais óbvia com a canção que le-
genda o movimento e vice-versa, no final
do solo.
A dança de Flávia Tápias merece toda a
atenção. Uma jovem bailarina que sustenta
em seu corpo tal desafio, com todas as fragi-
lidades que esses encontros impõem, mas
também com todos seus acertos, ensina para
os também jovens da dança que ser uma
verdadeira bailarina, por si só, é um ato de
criação. E que apenas alguns estão realmen-
te preparados para isso.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
4 9
Falta coerência e coesãoA meio caminho do teatro e da dança, o espetáculo
Éticas se perde em clichês moralizantes
ROBERTO PEREIRA
Centro Cultural do Banco do Brasil
promove, durante todo o mês de abril,
o evento 4 Movimentos – Cias. de dança no
CCBB que, como o nome deixa claro, inten-
ta ser um evento de dança. Como tal, esse
evento, ao reunir quatro diferentes trabalhos,
possui uma curadoria e curadoria, sabemos
nós, é uma ideia que se interpõe entre o pú-
blico e a obra antes mesmo dessa ter sido
apresentada.
É a partir dessa observação que se pode
entender a inclusão do espetáculo teatral
Éticas, de Eduardo Wotzik, em cartaz até
domingo, neste evento de dança. E é a par-
tir dela também que se pode olhar para esse
trabalho tentando tecer algumas considera-
ções no que ele se aproxima e no que ele se
distancia da própria dança. Movimento e
gesto parecem ser as chaves para isso.
O diretor Wotzik intenta, aqui, dar cabo
a uma tarefa nada simples: através do que
ele denomina “método da aspiração”, algo
que pretende “desenvolver uma narrativa
corporal fundada no movimento, a partir de
princípios da dança e do teatro”, há que se
abordar o tema da ética. O problema, entre-
tanto, começa antes no movimento e pouco
chega a abordar o que se pretende.
A construção do movimento no corpo dos
jovens atores em cena é ainda incipiente, o
que transforma esse movimento em gesto
ensaiado, postiço, carente de uma elaboração
dramática. Tudo ainda está por ser feito an-
tes desses corpos encontrarem a cena. Tudo
ainda deve ser estudado, burilado como mo-
vimento, como gesto e como dramaturgia.
A dança, também sabemos nós, permite que
o movimento não faleça pela doença do cli-
chê. E Wotzik não faz dança neste seu espe-
táculo teatral. Nem dança-teatro.
As cenas, desconexas entre si, embora
haja explicitamente a vontade se falar so-
bre um tema tão espinhoso como a ética,
padecem pela obviedade com que as ideias
são articuladas. Isso é flagrante sobretudo
na cena da dançarina de dança do ventre
(vestida como tal) e na interminável cena
do haraquiri (também devidamente muni-
da com todos os elementos cênicos que tal
cena sugere). Em ambas, tudo contribui para
o entendimento unívoco do que se quer di-
zer, numa estrutura de legenda. Entre todas
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • • • • • 2222222222 DE ABRIL • 2005 DE ABRIL • 2005 DE ABRIL • 2005 DE ABRIL • 2005 DE ABRIL • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 0
as cenas, fragilizando ainda mais o todo da
obra, textos recheados de efeitos moralizan-
tes teimavam em costurá-las, evidenciando
que coesão e coerência, palavrinhas mági-
cas para um espetáculo (de teatro e de dan-
ça), haviam sido esquecidas.
Elaborar um método de construção
dramática, a partir de princípios da dança
e do teatro, como quer Wotzik, demanda
tempo. Éticas pode ser visto como uma
etapa nessa ainda longa trajetória que o
diretor tem pela frente. Trata-se, então, de
uma experiência. A nós, resta torcer para
que o movimento e o gesto que dali pos-
sam nascer não tenham vida curta por cau-
sa do clichê.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 1
Espetáculo Esquecidosde Catharina Gadelha
ROBERTO PEREIRA
ma frase contida no texto do progra-
ma de Esquecidos, espetáculo solo de
Catharina Gadelha que encerrou ontem a
mostra de dança 4 Movimentos, do Centro
Cultural do Banco do Brasil, revela o modo
como a bailarina e coreógrafa entende
e constrói seu próprio trabalho: “As peças
de Catharina Gadelha não devem ser en-
tendidas somente como atos corporais, mas
sim, cada vez mais, como um movimento
político”.
Esquecidos fala de fronteiras, de culturas,
e claro, toca em questões que envolvem es-
sas duas instâncias, sobretudo em seu cará-
ter político. O problema dessa fala, justa-
mente, está na crença de Catharina, como
ilustra a frase citada, que o movimento, por
si só, não é uma escolha e um ato políticos, e
que, para assim torná-lo, é necessário reves-
ti-lo de um gesto teatral e, ainda mais com-
plicado, revesti-lo de um gesto denunciador,
explícito, que deixa o poder de qualquer
metáfora artística se esvair.
O explícito do espetáculo, que tanto o
fragiliza, permite que pequenas brechas de
poeticidade apareçam, mostrando que ali
sim o tratamento político que tanto se an-
seia está em sua forma mais acabada e
mais eficaz. O solo do início, por exemplo,
belamente retomado no final do espetácu-
lo, é tecido com sutilezas gestuais que con-
trastam com a obviedade dos tiros que vêm
logo em seguida. Ou com a cena quase pa-
tética ao som de um miserere nobis. A qua-
lidade da bailarina parece ser antes a de
transitar com toda a competência entre a
técnica de dança que seu corpo abriga e
uma dramaticidade que não é necessaria-
mente aquela do teatro, como bem mostra
o solo acima citado.
Fazer dança, desde sempre, é um ato
político. As escolhas estéticas, técnicas e éti-
cas são escolhas com as quais um artista se
compromete desde o momento em que de-
cide seu caminho profissional. A dança não
precisa se revestir de dança-teatro para al-
cançar isso. E pela qualidade da artista Ca-
tharina Gadelha, parece que lhe falta acre-
ditar que é na sutileza e na poeticidade de
sua dança que respira a mais veemente po-
lítica de fronteiras, de culturas e de esqueci-
dos, que ela tanto anseia retratar.
U
CRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADARIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • SEGUNDA-FEIRA • SEGUNDA-FEIRA • SEGUNDA-FEIRA • SEGUNDA-FEIRA • 11111 D D D D DE MAIOE MAIOE MAIOE MAIOE MAIO • 200 • 200 • 200 • 200 • 20055555
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 2
Tempo de despertarMontagem de A bela adormecida
imprime fôlego ao Ballet do Municipal
ROBERTO PEREIRA
Ballet do Theatro Municipal abriu suatemporada 2005 na quarta-feira com
uma obra muito bem escolhida: A bela
adormecida, balé da dupla infalível Petipa/
Tchaikovsky, estreado em 1890 na Rús-
sia e até hoje um grande desafio para as
companhias que se dedicam ao repertó-
rio clássico.
Para a companhia carioca, sua estreia com
a versão integral foi em 1998 e é dela que
vemos agora uma nova versão, também assi-
nada pelo tcheco Jaroslav Slavicky, que re-
montou o balé naquela ocasião. Nesse senti-
do, essas duas montagens desse grande balé
feérico servem como balizadores para se pen-
sar a atual situação dessa nossa primeira e
única companhia de balé clássico no Brasil.
Se na montagem de sete anos atrás o
esplendor característico da obra casava
perfeitamente com a excelente fase que o
corpo de baile atravessava, na desse ano
esse mesmo corpo de baile deixa flagrar
uma ainda tímida retomada de suas funções,
após uma atribulada direção artística, subs-
tituída muito recentemente, em janeiro. O
novo diretor, Fauzi Mansur, parece acenar
com sua A bela adormecida para um proces-
so animador de colocar nos eixos o que an-
tes cambaleava em termos artísticos.
A estreia foi correta e nada mais. Se a prin-
cesa Aurora foi competentemente desempe-
nhada pela bailarina Teresa Augusta, que fe-lizmente encontrou nesse papel o tom exatode sua interpretação, Francisco Timbó, comoo príncipe Désiré mostrou que sua experiên-cia faz dele um ótimo partner nos pas-de-deux,mas pouco além disso. O brilhantismo dos ar-roubos técnicos e a elegância do personagemnem de longe encontram no bailarino suamelhor versão, o que torna arriscada sua es-colha para uma estreia desse peso.
Cristiane Quintan como a Fada Lilás eCésar Lima como a Fada Carabosse mostra-ram profissionalismo técnico. Mas o únicobailarino que realmente conseguiu deixara plateia sem fôlego, tal era a perfeição deseus saltos e de sua vigorosa interpretaçãodo Pássaro Azul foi Vítor Luiz, ao lado daexcelente Norma Pinna.
Os cenários assinados por Hélio Eich-bauer e a luz precisa de Maneco Quinderégarantem um tom sépia que resulta numclima de algo precioso, como esse balé, mastambém de nostalgia de alguma coisa queainda não foi recuperada. A música, numandamento mais lento que de costume, pa-rece contribuir para esse clima. E o balé,que se encerra sem ter mesmo consegui-do fazer a bela companhia despertar, mos-tra que sua nova direção artística inicia-se correta e que daqui em diante tudo
deve, e pode, melhorar. Aguardemos.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE MAIO • 2005• 27 DE MAIO • 2005• 27 DE MAIO • 2005• 27 DE MAIO • 2005• 27 DE MAIO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 3
Empenho e caprichonão fazem obra transbordar
A bela adormecida:À excelência do Ballet do Theatro Municipal,
agora sob os cuidados de Fauzi Mansur,falta integração com a orquestra
SILVIA SOTER
estreia de A bela adormecida, na se-
mana passada, não foi simplesmente
a abertura da temporada do Ballet do The-
atro Municipal em 2005. Foi também a es-
treia da mais importante companhia na-
cional de repertório clássico sob os cuida-
dos de Fauzi Mansur, que passou a dirigi-
la desde a saída de Richard Cragun, no
final do ano. Essa versão da obra de
Marius Petipa tem coreografia de Jaros-
lav Slavicky, como aconteceu em 1998, úl-
tima vez que a peça foi apresentada pela
companhia carioca.
Fauzi Mansur manteve o movimento in-
tensificado na gestão anterior de garantir o
revezamento de diferentes elencos na linha
de frente das montagens da casa. Assim,
além das estrelas habituais, outros talento-
sos solistas experimentam em A bela ador-
mecida os primeiros papéis. Por exemplo, a
princesa Aurora será interpretada, ao lon-
go da temporada, por nomes como Teresa
Augusta, Claudia Mota, Márcia Jaqueline,
Renata Tubarão além da experiente Cecília
Kerche. Cada elenco imprime, evidentemen-
te, marca própria em cada récita.
Coube à bailarina Teresa Augusta o pa-
pel de Aurora na noite de estreia. Não é di-
fícil tomar Teresa pela jovem Aurora. Sua
construção da personagem se apoia em suas
evidentes qualidades físicas para o papel e
em sua juventude. A bailarina equilibra ain-
da suavidade de gestos e técnica segura e
mostra que essa nova geração já está pron-
ta para o desafio. Cristiane Quintan cumpre
com eficiência o papel da Fada Lilás sem,
no entanto, emprestar-lhe ainda seu brilho
especial. Visivelmente tenso, Francisco
Timbó não aproveita todas as suas qualida-
des como o Príncipe Desiré. Nesse elenco, o
destaque masculino é sem dúvida Vitor Luiz
que numa passagem meteórica no terceiro
ato como o pássaro azul, mais uma vez se
confirma como um dos melhores bailarinos
da companhia.
Há um evidente cuidado na montagem
atual, que reúne vários elementos repre-
sentativos da excelência do Ballet do The-
atro. Os figurinos são elegantes, adequa-
dos e bem acabados, assim como o cená-
rio assinado por Hélio Eichbauer, que
optou por situar o enredo em desenhos que
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 4
poderiam estar nas páginas dos livros das
fábulas de Perrault. A iluminação de Ma-
neco Quinderé consegue integrar de ma-
neira harmônica os figurinos da Ópera de
Paris – cheios de pequenos detalhes – ao
despojamento dos traços do cenário de
Eichbauer. Cenário, figurino e iluminação
constroem uma imagem convincente e
atualizada do brilho e da grandiosidade da
corte de Luís XIV. A companhia, visivel-
mente bem ensaiada, mostra grande en-
trosamento nas danças de conjunto, em
especial na valsa do primeiro ato. Essa
precisão do conjunto é especialmente im-
portante para a geometria dos desenhos
construídos nas obras de Petipa.
No entanto, a soma dessas qualidades
não resulta num espetáculo de fato grandi-
oso. Apesar do empenho da companhia e
do capricho da montagem, a força de A bela
adormecida não transborda o palco para
conquistar a plateia. Mesmo o terceiro ato,
com sua sequência de variações em estilos
distintos, não consegue ganhar ritmo e ga-
rantir um final à altura de A bela adorme-
cida. Para valorizar a colaboração única de
gênios como Petipa e Tchaikovsky, melhor
integração entre orquestra e balé é neces-
sária. Numa obra em que música e coreo-
grafia não têm vida independente, esse
desajuste acaba por obscurecer as inúme-
ras outras qualidades da montagem.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 5
Poético e orgânicoPor minha parte envolve a plateia
ROBERTO PEREIRA
cor ocre que permeia a mais nova
obra da coreógrafa carioca Esther
Weitzman, Por minha parte, que estreou
quinta-feira no Espaço SESC, parece ser a
senha para que se adentre no universo co-
reográfico que ali se organiza. Uma das mais
fortes características da assinatura de Es-
ther sempre foi a relação quase orgânica com
o solo, acentuando poeticamente o peso dos
corpos de seus bailarinos. Nesta obra, esse
solo, todo ocre, é desvelado na inspiração da
coreógrafa – a Região Norte do Brasil –,
traduzida no cenário, no figurino e, sobretu-
do, no próprio movimento.
Nesse sentido, chama atenção a ambiên-
cia construída no mezanino do Espaço
SESC, sobretudo o piso rústico, de madeira,
que além de registrar rastros de suor dos
bailarinos, ainda os encarde ao longo do
espetáculo. Como a disposição das arqui-
bancadas é em círculo e muito próxima, as
manchas que vão se formando ali parecem
misturar organicamente o público à dança,
aproximados também com a delicadeza dos
cochichos e dos abraços dos bailarinos. Uma
intimidade e uma cumplicidade se arranjam
num mesmo terreno, entre quem dança e
quem assiste. Também o figurino, assinado
por Gerah Diaz, permite que o ocre e o solo
se traduzam em tecidos, também rústicos,
como o algodão, mas sempre exatos em sua
elegância de cores e texturas.
Mas é no movimento e em sua qualida-
de que Por minha parte se distingue. Exis-
tem lá continuidades da pesquisa a qual
Esther Weitzman vem se dedicando, como
sua relação com o peso, com o corpo que se
move deixando que o som desse mover seja
matéria bruta a ser tratada, com o par si-
lêncio/música, com sua dramaticidade.
Assim, a trilha musical, tocada ao vivo pelo
grupo Craquelê, ao mesmo tempo que dei-
xa mais evidente tais relações, ocupa um
espaço por vezes amplo demais para aque-
le ambiente tão íntimo, sobretudo por sua
eloquência melódica. Parece ser mesmo no
silêncio que Esther alcança momentos de
exatidão, de justeza de seu pensamento
coreográfico.
Neste espetáculo, a coreógrafa pela pri-
meira vez não toma parte dançando, o que,
com certeza, confere a seu trabalho um aca-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5 • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5 • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5 • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5 • 4 D E J U N H O • 2 0 0 5
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 6
bamento mais refinado, pela chance de ela
estar de fora dele, esculpindo o espaço de
modo tão delicado e ao mesmo tempo tão
vigoroso. A partir disso, mesmo com maturi-
dades tão diversas de seus cinco bailarinos,
Esther vem conseguindo imprimir neles seu
vocabulário de movimentos, fruto de anos
de pesquisa. Claro, falta ainda amalgamá-
lo naqueles corpos, naqueles movimentos,
para que o todo dos bailarinos se torne or-
gânico como o todo do próprio espetáculo.
Para tanto, nada melhor que o tempo: o cor-
po precisa aprender com calma o que é te-
cido ali em poeticidade. Por minha parte
parece ser, então, apenas uma parte desse
rico processo.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 7
Uma leve renovaçãona dança-espetáculoNó: pela primeira vez no trabalho de
Deborah Colker, uso de objetos, marcada coreógrafa, afeta os movimentos no palco
SILVIA SOTER
obra coreográfica de Deborah Colker,
desenvolvida nesses 11 anos de cria-
ção, possui algumas características recorren-
tes. O traço mais essencial é que a coreógra-
fa constrói suas peças a partir da explora-
ção de um suporte concreto, de um objeto,
na interação com o qual sua coreografia
emerge. Explorar as relações do corpo com
algum objeto não é um procedimento inco-
mum na dança contemporânea. Mas para
muitos artistas, uma vez constituída a dança
provocada pelo encontro com o objeto, esse
é deixado de lado. Ele é meio, não é fim. Já
Deborah o traz para a cena. Suas coreogra-
fias se constroem através desse elemento, em
torno dele, sobre ele, dentro dele, embaixo
dele. É o que mais uma vez acontece em Nó,
que estreou na semana passada e fica em
cartaz até o fim de julho, no Teatro João
Caetano. Em Nó, também se constata outra
importante característica da coreógrafa: tra-
balhar com ótimos bailarinos, belos, vigoro-
sos e possuidores das qualidades plásticas e
atléticas que sua dança demanda.
Para tratar do tema desse espetáculo, o
desejo humano, Deborah mais uma vez o tra-
duziu, a seu modo, a partir da relação com
suportes materiais. A primeira parte se de-
senvolve na interação dos bailarinos com
uma enorme quantidade de cordas que pen-
dem do teto, ora agrupadas, ora não. As cor-
das e a presença de um longo cabelo reme-
tem, inevitavelmente, a obra do artista plás-
tico Tunga. Impossível não pensar em suas
tranças evocadas pela cenografia de Grin-
go Cardia.
Ainda que as formas de uso da corda
sejam, em geral, óbvias, como amarrar a
si mesmo, amarrar o outro, pendurar, tra-
cionar, unir um corpo ao outro, nessa pri-
meira parte se opera algo importante em
se tratando do trabalho de Deborah. Tal-
vez seja ali que, pela primeira vez, o ob-
jeto comece também a afetar, mesmo que
de forma descontínua, a dança. As cordas
encontram ressonância na movimentação
que atravessa os bailarinos, provocando
uma qualidade sinuosa nos dorsos, fazen-
do emergir, de fato, novas possibilidades
no repertório de movimentos da coreógra-
fa. Isso surge em paralelo, quase que de
forma subliminar e é o mais interessante.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 9 DE JUNHO • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 9 DE JUNHO • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 9 DE JUNHO • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 9 DE JUNHO • 2005RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 9 DE JUNHO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 8
O figurino de Alexandre Herchcovitch e
o desenho de luz de Jorginho de Carvalho
trazem uma cor sombria e tribal à cena. Duas
bailarinas são envolvidas pelo longo cabe-
lo. As Xipófogas capilares de Tunga são
citadas e surgem numa nova versão.
Já no segundo ato, o elemento explora-
do é uma caixa de paredes transparentes, um
grande aquário situado no centro do palco.
Para essa cena, Deborah se inspirou nas vi-
trines que expõem garotas de programa em
Amsterdã. É a coreógrafa a primeira a ocu-
par a caixa num bonito solo que acontece,
de início, dentro dela. Nesse primeiro mo-
mento, a caixa funciona como uma prisão,
talvez numa referência à condição de apri-
sionamento imposta por alguns desejos, mas
essa ideia se perde. Até o final da coreogra-
fia, a caixa deixa de ser tratada pela sua
possibilidade de restrição e passa a ser ex-
plorada como suporte. Ela é preenchida por
homens e mulheres sensuais, ela é escala-
da, contornada, empurrada e, finalmente,
girada. Nesse segundo momento, o desejo –
força arrebatadora que desorganiza e faz
mover – assume contornos apolíneos e a
coreógrafa volta a circular por onde domi-
na e de onde seduz. Na primeira parte, fe-
lizmente, o desejo leva a dança de Debo-
rah a flertar com o desconhecido e começa
a ventilar seu vocabulário coreográfico.
Se muitos coreógrafos contemporâneos
apontam para direções diferentes a cada
nova criação, o trabalho de Deborah pode
ser caracterizado pela permanência de
marcas claras. A coreógrafa tem operado
no registro da dança-espetáculo. Suas pe-
ças são sempre grandiosas, contam com a
participação de muitos bailarinos, com ce-
nários e figurinos sofisticados e com trilhas
sonoras diversificadas onde o silêncio não
tem lugar. Espetáculos que atraem até
aqueles que no resto do ano não acompa-
nham os caminhos da dança contemporâ-
nea. Uma criação de Deborah é como um
jogo da seleção brasileira na final da Copa
do Mundo. Até os nada aficionados não
deixam de ver.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
5 9
Visita musical a um certoBrasil, um “país imaginário”
Por minha parte: Novo trabalho daEsther Weitzman Companhia de Dança é um importante
passo à frente de Terras, peça da coreógrafa de 1999
SILVIA SOTER
or minha parte, a mais recente criação
da Esther Weitzman Companhia de
Dança, que encerra temporada hoje no
mezanino do Espaço SESC, deve ser enten-
dida como um passo importante num cami-
nho inaugurado em Terras, peça da coreó-
grafa de 1999. Assim como no anterior, nes-
se novo trabalho é a força do coletivo que
constrói o terreno para a dança. Em Terras,
a experiência do exílio fortalecia os elos
entre o grupo – formado apenas por mulhe-
res – cuja dança criava um território itine-
rante. Em Por minha parte, dois homens e
três mulheres exploram o terreno a partir
de seus encontros e desencontros.
A coreógrafa deixa de lado as referên-
cias à cultura judaica, presença central em
outras peças, e se aproxima de um certo
Brasil, um “país imaginário”, como ela expli-
ca no programa. A música vigorosa do Cra-
quelê e os bonitos figurinos de Gera Dias
ajudam a construir a brasilidade que na
dança se materializa. A coreógrafa estrutu-
rou o mezanino do Espaço SESC – local des-
tinado à dança incorporado aos palcos da
cidade no início do ano – como uma arena.
O chão, cor de terra, remete aos terreiros
onde as danças populares acontecem. De
qualquer lugar da plateia, o espectador vê
a dança e, obrigatoriamente, o público. Essa
escolha, em se tratando desse trabalho, aju-
da a criar fricções entre a dança cênica – em
que palco e plateia se distinguem – e as
danças populares onde essa distinção não se
coloca. O modo como os cinco bailarinos
entram em cena sublinha esse aspecto: eles
surgem de trás das arquibancadas, se ali-
nham a elas e ao público, para só depois
ocuparem o centro da cena.
A companhia, composta atualmente por
Alysson Amâncio, Carla Reichelt, Edney
D’conti, Milena Codeço e Roberta Repetto,
mostra familiaridade com as bases do tra-
balho da coreógrafa – que dessa vez não está
em cena – ainda que em alguns momentos
não consiga garantir a precisão de gestos e
ritmo, centrais na dança de Esther.
Em Por minha parte, Esther visita figu-
ras e células coreográficas de suas criações
anteriores. Desse modo, ela inscreve a nova
criação numa trajetória marcada por memó-
rias e recorrências. O uso do chão como
P
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE JUNHO • 2005R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE JUNHO • 2005R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE JUNHO • 2005R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE JUNHO • 2005R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE JUNHO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 0
superfície que atrai e acolhe o corpo intei-
ro, as batidas ritmadas de pés e mãos no
chão, sacudindo a poeira, e os gestos que
acariciam a terra, retornam renovados,
nessa peça. O silêncio entrecortado pela
regularidade da percussão do corpo no chão
está ali, só que dessa vez, dialogando com a
música ao vivo do grupo Craquelê. A música
ajuda a criar um recorte dentro da cena. Em
alguns momentos, ela deixa de acompanhar
a coreografia e ganha o primeiro plano,
fazendo surgir uma dança diferente, mais
fluida e mais simples, evocando novamente
as danças populares brasileiras.
O reaparecimento de elementos já
trabalhados em suas criações anteriores
não significa, de modo algum, congela-
mento. Esther costura essas diversas refe-
rências a novos elementos com mãos sá-
bias. Essas questões de fundo se oferecem
como um fértil território onde a dança de
Esther Weitzman se desenvolve e se renova.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 1
Objetos como parceirosEspetáculo da Os Dois Cia. de Dança
usa caixa d’água e bancos na coreografia
ROBERTO PEREIRA
bjeto partner, título do novo trabalho
da Os Dois Cia. de Dança, composta
pela coreógrafa e bailarina Giselda Fernan-
des e seu marido, o artista plástico Hilton
Berredo, estabelece o ponto comum entre as
duas coreografias que compõem a noite:
Castelo d’água e Às vezes banco. Esse ponto
comum, o objeto cênico que tenta um diálo-
go coreográfico com o corpo, talvez pela
própria natureza da companhia, parece vir
antes do lugar das artes plásticas, permane-
cendo ainda em pleno processo de encon-
trar na dança o seu lugar.
Castelo d’água, obra mais antiga, estrea-
da na 11ª edição de Panorama RioArte de
Dança, em 2002, é um belo solo em que
Giselda e uma caixa d’água parecem divi-
dir a cena, mas não o espaço em que ela acon-
tece. Tal é a relação ali tecida, que objeto se
transforma realmente em partner, tornando
o espaço há um só tempo volume e dinâmi-
ca. Trata-se de um solo com fortes tons de
dança moderna, à qual a bailarina tão bela-
mente se presta. E esses tons modernos se
espraiam tanto pela própria movimentação,
grave e precisa, pelo figurino e pela trilha
musical, quanto pelo anseio em deixar a dança
falar de si mesma, através de sua relação me-
talinguística com a coreografia e com o flu-
xo de pensamento que ali de desvela.
Já em Às vezes banco, o objeto parece
ainda não ter sido transformado completa-
mente em partner, pertencendo mais à cena
que ao próprio corpo que dança. Configuran-
do-se antes como um experimento, essa obra
ainda precisa deixar que o objeto, muitos
bancos de plástico branco, deixe-se tingir
pelo que é orgânico do movimento. Em cer-
tos momentos, esse processo se efetiva, mas
é logo interrompido por uma outra informa-
ção, que não lhe concede tempo para sua
conclusão. É nesse sentido que as artes plás-
ticas, a partir de Berredo, imprimem na obra
uma forte noção espacial, deixando que o
tempo venha em segundo plano. Talvez
quando esses dois elementos encontrarem
um equilíbrio, o movimento, sobretudo aque-
le do cotidiano que ali se oferece como
matéria-prima, esteja apto a ser o amálga-
ma do corpo com o objeto.
A sofisticação da proposta que se apre-
senta e a qualidade técnica tanto de Giselda
quanto da bailarina convidada, Aline Tei-
xeira, fazem da Os Dois Cia. de Dança um
lugar onde a história do moderno e de sua
dança seja revisitada com competência. Um
lugar que, por ser pouco investigado hoje,
concede à iniciativa, por si mesma, um ca-
ráter absolutamente importante e inédito na
cena da dança carioca.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRARIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 13 DE JUNHO • 2005 • 13 DE JUNHO • 2005 • 13 DE JUNHO • 2005 • 13 DE JUNHO • 2005 • 13 DE JUNHO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 2
DescompassosDesarmonia generalizada marca Noite transfigurada
ROBERTO PEREIRA
homenagem que o Theatro Municipale seus corpos estáveis prestam a Ar-
nold Schoenberg, com espetáculo compos-to por uma ópera, Erwartung, e um balé,
Noite transfigurada, mostrou em sua estreia
na última sexta-feira que a grande estrela,
ao lado da música do compositor austríaco,
são mesmo os cenários assinados pelo artis-
ta plástico W altercio Caldas. Trazendo para
a cena um diálogo com o que há de moder-
no na música, Caldas inaugura espacialida-
des contemporâneas que, principalmente
no caso do balé, ganham papel maior do que
o de mero cenário. E é justamente nesta ou-
tra dimensão adquirida por sua obra que
descompassos com os outros artistas, como
coreógrafo e figurinista, são criados.
O balé, assinado por Fábio de Mello, tenta
resgatar a poeticidade do texto de Richard
Dehmel, que havia inspirado Schoenberg a
compor Noite transfigurada. Para tal tarefa,
foram chamadas as três primeiras-bailarinas
da casa, Ana Botafogo, Nora Esteves e Áurea
Hämmerli, e a solista Sandra Queiroz, que
compunham pares com os bailarinos Marce-
lo Misailidis, Paulo Ricardo, Vítor Luiz e Jo-
seny Coutinho, respectivamente. O que já re-
presentava um desafio ao coreógrafo no que
se referia à complexidade e à riqueza musi-
cal ficou ainda mais grave devido à heteroge-
neidade do elenco escolhido. Maturidades di-
versas dos bailarinos foram antes empecilhos
para Fábio de Mello e não chegaram a lheservir como matéria-prima.
O parco vocabulário de movimentos, atra-vessado por clichês coreográficos e arroubosdramáticos muito em voga nos balés do sécu-lo XIX, pouco estabelecia conexões com o quehá de moderno na música e de contemporâ-neo no cenário. Mas essa disparidade aumen-ta ainda mais com a atuação desigual do gru-po de 11 bailarinos que, como intenta Fábiode Mello, representaria a noite. Lembrandoque tanto o coreógrafo quanto a figurinista,Rosa Magalhães, são conhecidos pelos seustrabalhos em desfiles do carnaval carioca,percebe-se que não é mero acaso que essegrupo evolui em cena de forma a lembrar com-posições típicas de comissões de frente em es-colas de samba. O descompasso aí é evidente.
O que salva a noite é a atuação de VítorLuiz, pelo ótimo bailarino que é e não pelacoreografia que executa, e o último pas-de-
deux, com Botafogo e Misailidis, dupla quemostra como a convivência nesses casos podeser a chave mestra para tornar uma dança algoalém de uma simples sequência de passos.
Assim, Noite transfigurada de Schoenbergganha sua atualização em Waltercio Caldas,que, infelizmente, permanece sozinho emcena. Tudo mais fica postiço e não compõe, deforma alguma, um todo orgânico. A homena-gem, desse modo, fica por conta da ótima en-
cenação da ópera, que antecede o balé.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 23 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 23 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 23 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 23 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 23 DE AGOSTO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 3
Schoenberg transfiguradoCenários valorizam obra do
compositor alemão, mas não mascaramfragilidade da coreografia
SILVIA SOTER
uando as cortinas se abrem, o cenário
de Waltercio Caldas sugere um bos-
que durante a noite, uma das ambientações
icônicas das peças do balé romântico. Em se-
guida, os riscos negros e verticais que esbo-
çavam longos troncos de árvores atravessa-
dos por um fio de estrelas, se desfazem, já que
eram as dobras de uma outra cortina. Outro
plano é então revelado. O bosque romântico
se despe e dá lugar a uma noite contemporâ-
nea. Para situar a dança, o cenário de Walter-
cio Caldas consegue traduzir visualmente
essa obra de Schoenberg que, sem abando-
nar o neorromantismo alemão, já apontava
para outros caminhos. Mas a força da promis-
sora imagem que dá início à Noite transfigu-
rada anuncia algo que, infelizmente, não se
produz em termos coreográficos.
A proposta de Fábio de Mello também
opera na passagem do tempo, na transição
do passado para o presente. A partir do
poema de Dehmel, o coreógrafo optou por
dividir a peça em quatro momentos distin-
tos: os encontros de quatro mulheres com
seus homens e um segredo, que se sucedem
durante um século, de 1899 – ano em que a
obra de Schoenberg foi criada – a 1999. Pa-
ralelamente, cada casal representa um mo-
mento da noite: o anoitecer, a própria noite,
a madrugada e a alvorada. Costurando as
cenas, 11 bailarinos representam a noite, to-
dos coloridos de azul dos pés à cabeça.
Fabio de Mello é um dos coreógrafos
brasileiros que têm investido na flexibiliza-
ção da técnica clássica a partir da introdu-
ção de elementos contemporâneos. Em Noi-
te transfigurada, essa tentativa se revela
pouco eficiente. A presença da dança con-
temporânea parece ser entendida aqui
como o enxerto de um conjunto de passos
que não caberiam no vocabulário do balé
clássico. E apenas isso. Essa impressão é
agravada pelo fato dos bailarinos parece-
rem, por exemplo, ainda pouco à vontade
com os rolamentos e entradas no chão, acen-
tuando o aspecto artificial dessa outra mo-
vimentação para a coreografia.
As primeiras bailarinas Nora Esteves,
Áurea Hämmerli e Ana Botafogo com-
põem o grupo de mulheres, junto com a
solista Sandra Queiroz. São acompanhadas
por Paulo Ricardo, Vítor Luiz, Marcelo
Q
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 4
Misailidis e Joseny Coutinho, respectiva-
mente. Apesar de pouco inventivos em ter-
mos coreográficos, os duos conseguem
guardar uma elegância que se encaixa com
eficiência na obra de Schoenberg e no ce-
nário de Caldas. O casal de 1999, Ana Bo-
tafogo e Marcelo Misailidis, é responsável
pelo momento mais convincente da noite.
A afinidade entre ambos e a sensualidade
contida que imprimem no casal da alvora-
da saltam aos olhos.
Já a coreografia e os figurinos do grupo
de rapazes que interpretam a noite se cho-
cam de frente com a elegância dos duos. A
caracterização do grupo parece completa-
mente fora do tom. Os figurinos de Rosa
Magalhães, exagerados e cheios de brilho,
operam num outro registro, carnavalizando
a cena. A coreografia do grupo, cheia de pas-
sos que parecem lá estar apenas para apro-
veitar os figurinos, aposta no óbvio. Pela bus-
ca de efeitos – como o da imagem que encer-
ra a peça – a delicadeza é abandonada. É
pena que o coreógrafo não tenha apostado
que, em se tratando de Schoenberg e de
Waltercio Caldas, menos poderia ser mais.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 5
O corpo falaCompanhia criada há 30 anos criou
vocabulário coreográfico próprio
ROBERTO PEREIRA
s trinta anos do Grupo Corpo, come-
morados em 2005, revelam uma tra-
jetória ímpar de uma companhia de dança
dentro da história brasileira. O que se con-
figurou ali como uma ideia é fruto da ousa-
dia de jovens irmãos, os Pederneiras, aliada
à busca de uma qualidade que foi sempre
sua marca desde o início.
Sabendo-se que a dança no Brasil che-
gou pelas suas margens, vinda da Europa e
aportando no litoral, uma companhia nasci-
da no interior do País, fora do famigerado
eixo Rio-São Paulo, mostrava que a máxi-
ma mineira daquele que “come quieto” pa-
rece ser mesmo verdade. E desde 1975, além
de ter colocado Belo Horizonte no mapa da
dança que se fazia por aqui, o Grupo Corpo
colocou o Brasil no mapa da dança que se
faz no mundo.
Se a primeira sede da companhia foi a
própria casa da família Pederneiras, com
pais “expulsos” pelos próprios filhos para
que eles pudessem quebrar paredes e cons-
truir uma sala de ensaios, hoje, a companhia
tem uma sede invejável, com salas amplas,
e um teatro onde os ensaios se dão. Uma obra
de dança que já nasce no palco traz consigo
a marca de seu hábitat em seu DNA. E tal-
vez tenha sido esse um dos diferenciais que
proporcionaram hoje ao Grupo Corpo lan-
çar-se hoje à construção de um complexo de
18 mil metros quadrados, destinados a cine-
ma e artes plásticas além de abrigar a com-
panhia, denominado Centro de Arte Corpo.
Mas o que sempre legitimou a trajetória
dessa companhia foi o que ali se constrói em
termos de qualidade estética. Fruto de uma
conjunção de talentos que estabeleceram
um diálogo fino entre criadores (Rodrigo
Pederneiras, como coreógrafo, Paulo Perder-
neiras como produtor e iluminador, Freusa
Zechmeister como figurinista e Fernando
Velloso como cenógrafo), a história da com-
panhia mostrava a um Brasil perplexo com
o que dali nascia que tudo parecia ter vindo
de uma só pessoa, tal era a harmonia alcan-
çada entre as áreas diversas que fazem da
dança uma arte tão híbrida. Somado a isso,
a qualidade irretocável dos bailarinos ga-
rantia um padrão que mostrava um ensino
de dança sistematizado e competente tam-
bém fora do eixo.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • SÁBADORIO DE JANE IRO • SÁBADORIO DE JANE IRO • SÁBADORIO DE JANE IRO • SÁBADORIO DE JANE IRO • SÁBADO • 27 DE AGOSTO • 2005 • 27 DE AGOSTO • 2005 • 27 DE AGOSTO • 2005 • 27 DE AGOSTO • 2005 • 27 DE AGOSTO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 6
Mas, se é para se lançar um olhar agu-
çado sobre a dança do Grupo Corpo, é o que
há ali de absolutamente original em ter-
mos coreográficos o que salta aos olhos.
Rodrigo Pederneiras vem construindo o
que raríssimos coreógrafos conseguiram
ao longo do século passado em termos de
dança contemporânea: um vocabulário
próprio de movimento. O desafio, além de
sua assinatura no corpo que se move, era
saber que esse corpo vinha (e vem) carre-
gando informações de mais de 500 anos da
técnica (e, portanto, da estética) do balé
clássico. Pederneiras conseguiu imprimir
nessa marca tão forte e tão poderosa o seu
próprio pensamento. Um pensamento de
dança brasileiro.
E esse “brasileiro”, que tanto tem adjeti-
vado a produção dessa companhia mineira,
vem se desenvolvendo desde 1976, com
Maria Maria, de Oscar Araiz, primeiro su-
cesso que a lançou ao Brasil e ao mundo. De
lá para cá, alguns marcos importantes: Pre-
lúdios, com música de Chopin, quando a com-
panhia completava dez anos, em 1985, e Mis-
sa do orfanato, com música de Mozart, qua-
tro anos depois, foram desembocar numa
lista de obras que passaram a ganhar trilhas
especialmente compostas. Nomes como
Uakti, José Miguel Wisnik, Tom Zé, João
Bosco, Arnaldo Antunes e agora Caetano
Veloso propuseram caminhos traduzidos em
dança por Rodrigo e toda a equipe de cria-
dores que o cerca.
O vocabulário coreográfico, no caso do
Grupo Corpo, propõe, para quem acompa-
nha seus espetáculos, um desafio nada fácil:
o de saber percorrer com os olhos o que ali
se configura nos corpos que dançam como
aprofundamento de questões que intrigam
o coreógrafo há anos. Um aprofundamento
quase obsessivo, mas que garante a excelên-
cia da maior companhia de dança brasilei-
ra no próprio Brasil.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 7
O poder de transformaçãodo Grupo Corpo
Onqotô: Nova coreografia da companhia mineira mostra certainovação de movimentos criados por Rodrigo Pederneiras
SILVIA SOTER
uebrando o ritmo de estreias a cada
dois anos, chega ao Rio Onqotô, espe-
táculo da merecida comemoração dos 30
anos do Grupo Corpo, apenas um ano depois
de Lecuona. Como a cada vez, as coreogra-
fias vêm aos pares. Onqotô é precedido pelo
arrebatador, colorido e já maduro Lecuona.
O programa segue em cartaz no Theatro
Municipal até segunda-feira.
Caetano Veloso e Zé Miguel Wisnik cri-
aram a música, em inédita parceria. O big
bang, o termo anglo-saxão que nomeia a
explosão que deu início ao universo, veio
junto com a música como tema para a peça.
Onqotô – corruptela à mineira de “onde
que eu estou?” – toca em questões filosófi-
cas e existenciais pertinentes tanto para re-
flexão sobre o universo, quanto para pen-
sar sobre os 30 anos bem vividos da com-
panhia mineira.
Depois das cores e da sensualidade de
Lecuona, Onqotô contrasta pela densidade
e pelo tom cinzento e sombrio da cena. A
música ganha suporte percussivo no sapa-
tear dos bailarinos. A agilidade e a leveza
da movimentação de Rodrigo Pederneiras
se inova, numa relação dos pés com o chão
antes pouco explorada na dança do Corpo.
O cinza das franjas que cercam o palco, o
negro dos figurinos e a força do coletivo
reforçam a ideia de comunidade. Aos pou-
cos, os figurinos de Freusa Zechmeister co-
lorem os corpos, recortando-os do ambiente
cinzento. O cenário de Paulo Pederneiras é
eficiente ao criar uma parede permeável
que faz com que os bailarinos irrompam em
cena e dela desapareçam, com velocidade.
Da massa – nem sempre regular – que dan-
ça e percute o chão, alguns bailarinos se
destacam sem perder o pulsar comum. Ao
longo da peça, essa comunidade ganha ares
mais ou menos primitivos ou urbanos. Ela é,
ao mesmo tempo, tribo e multidão. Ela se
presta ao sacrifício e ao carnaval.
Se para muitos criadores, a música não é
mais parceira inseparável da dança, isso não
é verdade em se tratando de Rodrigo Peder-
neiras e seus colaboradores. Uma das infi-
nitas qualidades do Corpo é encontrar o
ponto de equilíbrio exato entre trilha sono-
ra e coreografia. Esse equilíbrio se dá, em
geral, quando a coreografia não está lá ape-
Q
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE SETEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 8
nas para dar visibilidade à música e à dan-
ça, sem poder ser imaginada dissociada da-
quela música, consegue existir sem a esta
se sobrepor. É o que ocorre, por exemplo, em
Lecuona. Já em Onqotô, esse não é sempre
o caso. Em alguns momentos, a potência da
música de W isnik e de Caetano não encon-
tra equivalente na dança. Mas quando en-
contra como, por exemplo, nos dois belos
duos ao som de Mortal loucura de W isnik, a
partir do poema de Gregório de Matos, On-
qotô é de tirar o fôlego.
Sabendo que nada é acaso na dança dos
Pederneiras, o contraste entre Onqotô e Le-
cuona tem efeito de provocação e obriga
também o espectador a se perguntar: afinal,
onde é que estou? Diante do Grupo Corpo,
é claro, que há 30 anos se transforma, saco-
de o que antes foi visto e, felizmente, segue
na estrada.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
6 9
A mão dupla do corpoHarmonia entre ordem e liberdade
criadora salta de Onqotô
ROBERTO PEREIRA
ntre o big bang e o big mac, a corrup-
tela mineira que pergunta “onde que
eu estou”. Do quintal de casa para o mun-
do. O Grupo Corpo comemora seus 30 anos
com uma pergunta: Onqotô, espetáculo que
estreou no Theatro Municipal do Rio de Ja-
neiro, na quarta-feira. Na verdade, a per-
gunta filosófica aplica-se, como toda per-
gunta filosófica, ao micro e ao macro ao
mesmo tempo: ao próprio Grupo Corpo e à
dança, àquele que vem de Minas Gerais e
àquele que vem de qualquer parte do mun-
do. Em tudo, a questão da origem e do des-
tino como setas em mão dupla, sem hierar-
quias, sem causalidades.
Para tanto, o velho time mineiro se alia
a novos parceiros, além de um já conheci-
do: José Miguel Wisnik comparece nova-
mente para compor a música, num traba-
lho conjunto com Caetano Veloso e, com
eles, nomes como Luís de Camões e Gre-
gório de Matos. Um outro parceiro inédi-
to ainda: Nelson Rodrigues, que, ao afir-
mar que o jogo do Fla-Flu começou 40
minutos antes do nada, inspira os músicos
e o coreógrafo. As flechas do tempo dispa-
radas em sincronias são, assim, transforma-
das em dança.
Para falar de origem, Rodrigo Pedernei-
ras, coreógrafo da companhia, enriqueceu
ainda mais seu vocabulário de dança e, se-
melhante ao que acontece no próprio título
da obra, cria neologismos de seus próprios
movimentos. O chão aparece forte, como
que (re)estabelecendo uma ligação com a
terra. Para esse retorno, um outro novo ele-
mento: a queda. Ou ainda o som das batidas
dos pés dos bailarinos logo no início, quase
tribal, numa percussão de pulso, de pulsão.
Ao mesmo tempo, peso e leveza convivem
em massas quase uniformes e em pequenos
solos e duos, resgatando, a um só tempo, o
individual e o coletivo.
E mesmo que haja uma liberdade quase
despudorada no uso da frontalidade, e uma
certa obviedade no solo do bailarino ao som
dos versos de Camões musicados por Cae-
tano, o que se organiza ali coreograficamen-
te é uma harmonia entre a ordem e a liber-
dade criadora. Coisa de artista, enfim.
O figurino, assinado por Freusa
Zechmeister, é minimalista e indicial,
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRR IO DE JANE IRR IO DE JANE IRR IO DE JANE IRR IO DE JANE IROOOOO • • • • • SÁBADOSÁBADOSÁBADOSÁBADOSÁBADO ••••• 3 DE SETEMBRO • 20053 DE SETEMBRO • 20053 DE SETEMBRO • 20053 DE SETEMBRO • 20053 DE SETEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 0
formando blocos de cores, mas também
sugerindo sutilmente o Fla-Flu nas meias
dos bailarinos, num breve momento.
O cenário, ou o “não-cenário” como quer
Paulo Pederneiras, mesmo fazendo lem-
brar outras soluções semelhantes (como
o já clássico Stamping Ground, de Jirí
Kylián ou Rain, de Anne Teresa de Keer-
smaeker), cria um lugar de não referen-
cialidade, sem a marca do tempo, refor-
çando ainda mais a questão que nomeia
a obra, ou seja, aquela indaga sobre o
onde (e o quando) se está.
Comemorar 30 anos de dança num país
como o Brasil, colocando-se uma pergunta,
parece aliar certezas e desafios e transformá-
los em matéria-prima para a criação. Onqo-
tô é essa aliança. Mas como toda aliança que
nasce por essas terras, essa também vem cer-
cada de mistérios, como diz o verso do poeta
Gregório de Matos que compõe o espetácu-
lo: “Mistérios mil que desenterra... enterra.”
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 1
Na onda do revivalMergulho de Renato Vieira no
jazzdance poderia ter sido mais profundo
ROBERTO PEREIRA
sabedoria e a habilidade coreográfi-
cas de Renato Vieira parecem recu-
perar o seu ambiente em Memória do cor-
po nº 2 – Suíte jazz, espetáculo que estreou
na semana passada no Espaço SESC e que
permanece em temporada até dia 2 de ou-
tubro. O que Vieira desvela ali é sua histó-
ria, talvez de um modo muito mais reconhe-
cível do que a primeira versão de Memória
do corpo, do ano passado.
Há uma razão para isso e essa razão é
justamente o próprio corpo. Não o corpo
qualquer, mas aquele que carrega inscri-
ções de uma técnica e de uma estética ab-
solutamente importante para a história da
dança que se faz nesse país, o jazzdance.
Mesmo que seu tempo áureo tenha sido as
décadas de 1970 e 1980, esse modo de pen-
sar e fazer dança continua bastante eficaz
na formação de grandes bailarinos que fi-
guram nas melhores companhias da cha-
mada “dança contemporânea” atual. E é
dessa eficácia, e com ela, que Renato Vieira
constrói seu trabalho.
O retorno é corajoso. Vieira deixou-se
ouvir o que seus mestres e sua carreira
foram escrevendo como memória em seu
próprio corpo, pelo excelente bailarino
que foi. Lennie Dale, Carlota Portella e
Marly Tavares são três desses mestres que
merecem ser mencionados. E essa última ain-
da reencontrou o coreógrafo e ministrou au-
las de jazz para sua companhia, num exercí-
cio de recuperar um pouco daquela história.
O resultado, porém, é ainda tímido,
como alguém que apalpa seu terreno para
quase reaprender a andar nele. O jazz vem
misturado, como não poderia deixar de ser,
com tudo o que o coreógrafo vivenciou em
seus 30 anos de carreira, com hibridações
com a dança contemporânea, por exemplo.
Mas Vieira poderia ter avançado mais, e
oferecido realmente ao público o que ele
várias vezes apenas insinua: a estética do
jazz, com sua frontalidade e sua dança em
conjuntos, além de tantos outros elementos.
Nesse sentido, todos os recursos cênicos,
como música, cenário e iluminação, tor-
nam-se secundários ao se deparar com a
habilidade puramente coreográfica que é
apontada ao longo do espetáculo. Isso pode
ser visto, sobretudo, no quarteto formado por
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE SETEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 14 DE SETEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 2
três rapazes e uma moça, ponto alto do
espetáculo, amálgama de história com o
presente, de memória com coragem.
Para esse retorno, Renato Vieira pôde
contar com uma companhia muito com-
petente, mesmo que o elenco masculino
seja um tanto desigual. Mas é por meio
de Soraya Bastos e Arthur Marques que
se pode reconhecer com mais apuro a
ideia do coreógrafo. Esses corpos ali con-
tam histórias em movimento.
Nesta atual onda de revival dos anos 80,
olhar para o jazzdance acaba tendo duas
funções: contar a história de sua estética, ao
mesmo tempo que reconhecer sua eficácia
enquanto possibilidade de formação técni-
ca de bailarinos. Parece que estamos viven-
do esse momento, desde Espaço de luz, da
mestra Carlota Portella, do ano passado.
Agora é Renato Vieira quem mostra sua
memória, um arsenal de matéria-prima que
merece ser novamente utilizada.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 3
O jazzdance semalegria e sedução
Memória do corpo nº 2 – Suíte jazz:Renato Vieira faz releitura hábil e distanciada
da técnica que marcou os anos 80
SILVIA SOTER
ando sequência a seu projeto de inves-
tigação da memória inscrita no corpo,
Renato Vieira criou Memória do corpo nº 2
– Suíte jazz, em cartaz no mezanino do Es-
paço SESC, até este domingo. Na etapa an-
terior da pesquisa, o coreógrafo havia mer-
gulhado no corpo como receptáculo das ex-
periências biográficas de seus bailarinos. En-
tre essas experiências, a prática de uma téc-
nica de dança como algo que deixa marcas
estruturantes no funcionamento do corpo já
aparecia como algo importante. Para esse
segundo trabalho, sobre um estilo de dança
organizado como técnica, Renato traz para
a cena uma etapa fundamental de sua his-
tória na dança: sua grande experiência com
o jazzdance, de cujo boom no Rio de Janei-
ro, do fim dos anos 70 ao fim dos 80, foi im-
portante personagem. É sobre esse estilo, es-
pecialmente relevante na história da dan-
ça carioca, que o coreógrafo se debruça.
Mas nem tudo é jazz na peça de Renato.
A sedução sorridente e sensual do jazzdan-
ce e seu caráter espetacular ficam de fora
no tratamento que a cena recebe. Na primei-
ra parte, vemos os bailarinos sentados em
cadeiras cujos pés se apoiam na parede do
fundo do palco. Essa imagem, que tira o es-
pectador da percepção frontal da cena, ser-
ve como transporte para um outro lugar e
um outro tempo e, sobretudo, obriga o espec-
tador a não se esquecer espectador. Essa
báscula de ponto de vista – o público vê o
alto da cabeça dos bailarinos, como se esti-
vesse num outro plano – já anuncia que o
coreógrafo não tomou o caminho mais fácil
para trazer o jazzdance de volta ao seu tra-
balho. Ele opta por abordá-lo como técnica
corporal e como linguagem de movimentos,
em vez de tomá-lo como clima ou na sua
forma sedutora de espetáculo. Renato Viei-
ra lança mão de grande habilidade coreo-
gráfica para produzir estranhamento entre
o que é apresentado: o jazzdance, e a forma
distanciada como é mostrado. Essa mesma
tensão ganha correspondência na trilha so-
nora assinada por Nino Carlos que apenas
insinua, sem ir até o fim, alguns dos hits que
embalaram os movimentos ondulantes des-
se estilo, nos anos 70 e 80.
Apesar de ter investido para que seus
jovens bailarinos tivessem uma prática do
D
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORRRRRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 30 DE SETEMBRO • 2005IO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 30 DE SETEMBRO • 2005IO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 30 DE SETEMBRO • 2005IO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 30 DE SETEMBRO • 2005IO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 30 DE SETEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 4
velho e bom jazzdance, convidando a gran-
de mestra Marly Tavares para dar aulas
para a companhia durante a criação, a pou-
ca familiaridade de alguns em relação ao
estilo fica evidente já que a técnica não
está de fato inscrita em seus corpos, o que
enfraquece a proposta. Por outro lado, os
ótimos Soraya Bastos e Arthur Marques se
mostram absolutamente à vontade em
cena, pois em seus corpos o jazzdance é
memória viva.
Para os amantes do jazz, nostálgicos de
alegria e sedução, Memória do corpo nº 2 –
Suíte jazz não deixa de ser um pouco frus-
trante. Nessa releitura de Renato Vieira o
jazz passa ao largo do divertimento. É de
longe e de cima, como na primeira cena das
cadeiras, que Renato Vieira visita sua his-
tória em que o jazz teve um lugar importan-
te. Um lugar de onde ele partiu para expe-
rimentar outras formas de criar e para onde
ele volta com cuidado, carinho e reticências.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 5
Um divisor de águasA criação leva contemporaneidade
ao Ballet do Municipal
ROBERTO PEREIRA
criação, obra do coreógrafo alemão
Uwe Scholz, que faleceu prematura-
mente aos 45 anos de idade no ano passado,
em meio a uma produção coreográfica
profícua, pode representar uma espécie de
divisor de águas na história do Ballet do
Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Estre-
ado no dia 26 e permanecendo em tempo-
rada até o dia 11 de outubro, esse balé, com
música de Haydn e participação do coro e
da orquestra do teatro, vem agregar um sen-
tido bastante oportuno ao desenvolvimen-
to de uma companhia de repertório como
essa: o sentido de contemporaneidade.
Esse sentido dialoga com as obras clás-
sicas, mas concede aos bailarinos, ao mes-
mo tempo, a oportunidade de experimentar
um desafio absolutamente coreográfico, fa-
zendo da execução técnica o sentido estéti-
co de todo o espetáculo. Scholz, em A cria-
ção, mostra que sua habilidade de conhece-
dor de dança manifesta-se no movimento,
em sentido coreográfico puro. Para a nossa
companhia, essa é a deixa para que o esme-
ro na atualização desse pensamento seja o
objetivo maior, para que a obra possa emer-
gir inteira, em sua plenitude. Tal desafio,
nesse sentido, obriga os bailarinos a marca-
rem em sua dança a noção de contempora-
neidade, mesmo que a obra complete 20
anos em 2005.
Aos solistas e ao corpo de baile, a
chance de vencer os desafios técnicos que
a obra propõe também promove uma
cumplicidade entre eles, visível ao públi-
co. Claro, ainda há ajustes a serem feitos,
mas nada que o tempo e a intimidade da
companhia com o que se está dançando
não possam vencê-los. Nesse sentido, vale
destacar o desempenho dos bailarinos
Reginaldo Oliveira, Renê Salazar, Bruno
Rocha e Vítor Luiz, provando que o elen-
co masculino vem se desenvolvendo
qualitativamente. Cristiane Quintan,
Norma Pinna e Bettina do Dalcanale mos-
tram como diferentes gerações de baila-
rinas podem dividir o palco numa mesmo
obra, construindo uma unidade artística.
Mas é a presença da primeira-bailari-
na Cecília Kerche que arrebata o público
pela perfeição de sua dança. Absolutamen-
te inserida no ambiente que vem sendo
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRARIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE OUTUBRO • 2005 • 4 DE OUTUBRO • 2005 • 4 DE OUTUBRO • 2005 • 4 DE OUTUBRO • 2005 • 4 DE OUTUBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 6
construído, sua aparição no segundo ato
aponta para a ideia divina da criação a que
a obra se refere. Ali, tudo faz sentido, e os
três corpos estáveis do Theatro Municipal,
balé, coro e orquestra, atingem sua coesão
máxima. A sensação no público é, no míni-
mo, de orgulho, nesse momento.
A criação faz parte da história de vida
do atual diretor artístico da companhia,
Fauzi Mansur. Quando ainda bailarino, no
Ballet da Ópera de Zurich, Suíça, pôde ex-
perimentar trabalhar diretamente com
Scholz e aprendeu com ele a coreografia.
Talvez seja esse o melhor caminho a ser
percorrido por ele em sua gestão à frente
de nossa primeira e única companhia de
balé de repertório do Brasil: deixar que a
história de dança inscrita em seu corpo seja
um mapa que guie seus bailarinos no sen-
tido de uma contemporaneidade. E o ver-
dadeiro sentido de contemporaneidade
dialoga, inevitavelmente, como sabemos,
com o sentido de tradição, a marca do
Ballet do Theatro Municipal.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 7
Ideia de mundonorteia o espetáculo
A criação: com coreografia de Uwe Scholz,Ballet do Theatro Municipal faz montagem competente
SILVIA SOTER
nome do coreógrafo Uwe Scholz –
cuja obra foi interrompida no ano pas-
sado por sua morte prematura aos 45 anos –
remete imediatamente à tentativa de en-
contrar a correspondência perfeita entre o
desenvolvimento musical e a escrita core-
ográfica. No caso de A criação, um orató-
rio de Haydn a partir dos livros Gênesis e
Paraíso perdido, Scholz trouxe para a cena
33 quadros que representam os sete dias de
criação do universo. A peça, cuja remonta-
gem é assinada por Tatjana Thierbach para
o Theatro Municipal, segue em cartaz até
dia 11 de outubro. É a primeira vez que essa
obra de Scholz é montada fora da Europa.
Na leitura do coreógrafo alemão, a ideia
de mundo se mistura com a ideia de espetá-
culo. Quando a cortina se abre, veem-se os
bailarinos se aquecendo ao fundo do palco,
na barra, com roupas de ensaio. Antes do
toque divino, algo já existe. Diante dos olhos
do público, a cena é finalizada para que dan-
ça e música possam, então, desenvolver-se.
Pela dança o mundo será criado.
A escolha de A criação para a tempora-
da 2005 do Ballet já é um grande acerto.
Uma peça como esta é um presente para
uma companhia do porte da carioca. Além
da presença do Ballet, a montagem conta
com a participação da Orquestra e do Coro
do Theatro Municipal. A criação é um da-
queles raros balés em que há grande equilí-
brio entre música e coreografia, e também
entre variações para grandes conjuntos e di-
ferentes solistas.
Scholz consegue escapar dos possíveis
aspectos narrativos do tema. A simplicida-
de dos figurinos e as coloridas aquarelas do
italiano Francesco Clementes ambientam a
coreografia com elegância, criando um es-
paço atemporal que coloca em valor músi-
ca e dança. É na articulação engenhosa en-
tre as duas que Scholz se apoia. Uma primei-
ra correspondência é construída pela rela-
ção direta entre as vozes do coro e a pre-
sença do corpo de baile e pela aparição dos
solistas quando os cantores se destacam em
duetos. Inúmeras outras correspondências
acontecem ao longo das duas horas de mú-
sica e dança, pelo uso criativo dos cânones,
dos silêncios e pela generosidade com que
Scholz se dobra à exuberância de Haydn.
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005 SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005 SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005 SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005 SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 8
Tanto os solistas como o corpo de bai-
le garantem uma performance à altura da
coreografia de Scholz. Em forma e muito
bem ensaiada, a companhia se mostra à
vontade em cena, respondendo com agili-
dade e segurança às exigências técnicas
e artísticas de A criação. Alguns bailari-
nos que muitas vezes não encontram lu-
gar adequado em peças de repertório fo-
ram muito bem aproveitados nessa mon-
tagem. É o caso dos competentes Bettina
do Dalcanale e Bruno Rocha. Outros como
Norma Pinna, Cristiane Quintan, Claudia
Motta, Reginaldo Oliveira, René Salazar
e Vítor Luiz confirmam, mais uma vez,
seus lugares especiais na companhia. To-
talmente integrada no conjunto, Cecília
Kerche se destaca trazendo sua luz de es-
trela a cada aparição. A familiaridade com
que a companhia sempre circulou pelas
peças de repertório aparece em A criação.
A competência dessa montagem abre no-
vas possibilidades à única companhia clás-
sica do Brasil.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
7 9
Noite sem sutilezasMárcia Haydée erra a mão e o tom
em espetáculo no Theatro Municipal
ROBERTO PEREIRA
Parece ter sido exatamente isso o que
ocorreu com a companhia chilena: o exces-
so de dramaticidade para contar mais uma
vez a conhecida história da espanhola se-
dutora buscou fáceis soluções em ritmos cê-
nicos oscilantes. E, ainda mais grave, não en-
controu eco na preparação técnica de seus
bailarinos.
Mesmo com um elenco bastante desi-
gual tecnicamente, o que mais chamou a
atenção no Ballet de Santiago foi a fragi-
lidade na atuação de seus solistas. Na ré-
cita de quarta-feira, por exemplo, a ótima
primeira bailarina Natalia Berríos apos-
tava numa interpretação óbvia da perso-
nagem Carmen, em que o exagero torna-
va da falta de sutileza dramática seu prin-
cipal problema. Por outro lado, incorren-
do no perigo inverso, a atuação ainda ima-
tura de Rodrigo Guzmán nem de longe
captou a intensidade solicitada pela per-
sonagem de Don José.
Além disso, o que era explícito demais
coreograficamente ficava ainda mais estri-
dente com o figurino, que infelizmente não
dialogava com a apenas sugestiva e efici-
principal dificuldade em se criar um
balé nos dias de hoje refere-se jus-
tamente àquilo que é uma de suas maio-
res características, ou seja, a tarefa de se
contar uma história, lançando mão, em
sentido coreográfico, da combinação de
apenas dois elementos: a pantomima e o
passo de dança. Essa parece ter sido a di-
ficuldade enfrentada por Márcia Haydée,
ao escolher coreografar um balé para a
companhia da qual é hoje diretora artísti-
ca, o Ballet de Santiago, do Chile, que se
apresentou no Theatro Municipal na ter-
ça e na quarta-feira últimas.
No caso de Haydée, entretanto, a esco-
lha do tema, a tão decantada história de
Carmen, a mulher romântica de Merimée,
imortalizada na ópera homônima de Bizet,
faz da dificuldade de se contar uma história
a armadilha a qual a coreógrafa facilmente
sucumbe. Em Carmen, fica evidente que o
atrito entre pantomima e passo de dança não
resulta necessariamente em balé, e o senti-
do de narratividade, que tão bem se identi-
ficou com a estética do século XIX, aos nos-
sos olhos hoje pode parecer clichê.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 DE OUTUBRO • 2005DE OUTUBRO • 2005DE OUTUBRO • 2005DE OUTUBRO • 2005DE OUTUBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 0
ente cenografia, ambos assinados curiosa-
mente pelo mesmo Pablo Nuñez.
Na noite de quarta-feira, após terem
transcorridos alguns 15 minutos do início
do balé, Márcia Haydée adentrou tempes-
tivamente o palco e interrompeu o espetá-
culo, reclamando da qualidade técnica da
iluminação ali disponibilizada, diante de
um Theatro Municipal lotado. Afora a cons-
tatação da falta de preparação de ambos, a
do teatro em receber uma companhia de
dança com deficiências em suas condições
técnicas e a do Ballet de Santiago em se
apresentar com um balé como esse, o que
nesta noite certamente chamou mais aten-
ção do público, principalmente por sua dra-
maticidade, foi a forma como a diretora
Haydée se dirigiu à casa onde ela, justa-
mente, iniciou sua carreira na dança, ain-
da como bailarina. A partir desse momen-
to, a deixa de como a noite iria continuar
estava dada, inexoravelmente.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 1
Garimpagem do corpoEm sua quarta edição, projeto baiano
em torno da coreografia abre novos caminhos para a dançabrasileira, mas começa a exigir revisão no formato
ROBERTO PEREIRA
m novo formato de festival de dança
contemporânea se consolida em Sal-
vador, BA, e ganha projeção nacional por
sua importância e pelo seu ineditismo. Tra-
ta-se do Ateliê de Coreógrafos Brasileiros,
idealizado e produzido por Eliana Pedro-
so, uma ex-bailarina do Ballet do Teatro
Castro Alves e que há muito vem se inda-
gando sobre como a dança contemporânea
poderia conquistar um espaço e um públi-
co mais amplos do que aqueles confina
dos em festivais quase sempre voltados
para si mesmos.
Em sua quarta edição, realizada entre os
dias 14 e 19 deste mês, o Ateliê provou que
pertence ao calendário oficial da dança bra-
sileira, ao mesmo tempo em que já demons-
tra necessidades de transformações urgen-
tes em seu projeto inicial, que permaneceu
praticamente imutável nos quatro anos de
sua existência.
A ideia é instigante: coreógrafos, ou
aprendizes de coreógrafos, enviam suas ideias
para uma obra coreográfica na forma de
projetos a serem selecionados por uma
comissão formada por quatro especialistas,
de todos os cantos do País, chefiados por
Pedroso. Tarefa nada simples, já que se tra-
ta aí de selecionar ideias que irão tomar o
espaço do principal teatro da capital baiana,
o Teatro Castro Alves, de 1.200 lugares. Dan-
ça contemporânea nem sempre rima bem
com amplos palcos e esse detalhe torna o pro-
jeto do Ateliê, de cara, algo incomum.
Cinco projetos são selecionados (embo-
ra, neste ano, tenham sido selecionados ape-
nas quatro) e, durante dois meses, os coreó-
grafos permanecem em Salvador para trans-
formar sua ideia em espetáculo. E a pala-
vra “espetáculo” aqui deve ser lida exacer-
bando ao máximo seu sentido mesmo de es-
petacularidade.
Uma audição de bailarinos para cada co-
reógrafo (que pode escolher até dez elemen-
tos para sua obra), cenógrafo, compositor para
a trilha musical, figurinista e uma produção
arrojadíssima ficam à disposição para que tudo
seja desenvolvido da maneira mais competen-
te e profissional possível. Uma rara oportuni-
dade para qualquer coreógrafo brasileiro, que
sabe muito bem o quanto custa produzir um
espetáculo, salvo dois ou três que contam com
patrocínios de petrobrases da vida.
Tudo parece perfeito, mas se complica
quando a palavra de ordem é a tal “espeta-
cularidade”. A maturidade do coreógrafo
deve ser tamanha a ponto de não sucumbir
à enorme possibilidade de aparatos cênicos
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JRIO DE JRIO DE JRIO DE JRIO DE JANEIROANEIROANEIROANEIROANEIRO • • • • • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • 28 DE OUTUBRO • 200528 DE OUTUBRO • 200528 DE OUTUBRO • 200528 DE OUTUBRO • 200528 DE OUTUBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 2
oferecidos. E maturidade nem sempre se
mede em projetos.
Permanecer dois meses em uma outra
cidade, ganhando R$ 5 mil pelo trabalho,
pode parecer sedutor. Mas para nomes con-
sagrados da dança contemporânea brasilei-
ra pode parecer também complicado, por ter
de se distanciar de seus projetos pessoais
para se dedicar a um outro produto. O que
daí advém é a maciça participação de jo-
vens coreógrafos, que, uma vez seleciona-
dos, deslumbram-se facilmente com as opor-
tunidades oferecidas. Não é o caso, por
exemplo, de Carlos Laerte, do Rio de Janei-
ro, que no ano passado apresentou um belo
e coerente resultado de seu trabalho. Mas
salvo exceções de nomes experientes como
Luiz de Abreu (SP), Andrea Maciel (RJ),
Jussara Miranda (RS), Márcia Duarte (DF)
e Maria Paula (PE), quase todos os outros
projetos foram de expoentes que nem sem-
pre sabiam o lugar que ali ocupavam.
Um outro desafio importante com o qual
o Ateliê de Coreógrafos Brasileiros já se de-
para é o tempo exíguo de dois meses para
produzir uma ideia de dança, num outro am-
biente, com outros corpos e com outros estí-
mulos. A dança, sabemos todos, precisa de tem-
po para que sua informação ganhe, literalmen-
te, corpo. Se não é o caso aqui, como assistir a
esses resultados? Esse dado é compartilhado
com um público de cerca de 8,5 mil especta-
dores que lotam o teatro a cada edição?
Talvez seja justamente esse o ponto do
qual trata Self service, obra que faz parte des-
ta edição 2005, do piauiense Marcelo Evelin,
que reside há mais de 15 anos na Bélgica. Sem
dúvida, tem-se aqui o produto mais bem-aca-
bado do Ateliê neste ano, numa edição forma-
da por estreantes (Jorge Alencar e Clara Trigo,
ambos da Bahia, e Edvan Monteiro, do Ceará).
Contando com a narração de Tom Zé do
Manifesto antropofágico, de Oswald de An-
drade, a obra se volta, quase que metalin-
guisticamente, à própria estrutura do Ate-
liê. Quem “come” quem nesse jogo de infor-
mações? O coreógrafo digere o que os bai-
larinos apresentam como material possível
de composição ou vice-versa?
Mesmo no caso de Evelin, com uma es-
tética europeizante absolutamente presen-
te, e, em seu caso, impossível de ser desven-
cilhada por ele, a antropofagia foi engolida
pelo tempo. E o Ateliê nos deu, corajosamen-
te, mais essa lição: digerir, em dança, antro-
pofagicamente, tem uma duração própria.
Talvez esse seja o caso de uma outra obra,
pertencente a um projeto que ocorre em pa-
ralelo ao Ateliê, chamado Solos maior de 40,
que reúne curtas coreografias com bailarinos
importantes com mais de 40 anos. Essa peque-
na obra mencionada foi assinada por Luiz de
Abreu para a bailarina, baiana e negra, Fafá
Carvalho. Os adjetivos aqui são necessários
por serem eles o tema sobre o que se quer fa-
lar ali: o que um corpo como aquele pode?
A coerência e a coesão explicitadas no
que a dupla Luiz/Fafá apresentam, num
teatro pequeno, sem nenhum recurso cê-
nico especial, colocam uma pergunta ao
Ateliê de Coreógrafos Brasileiros e à pró-
pria dança contemporânea brasileira: qual
é a competência espetacular de uma ideia
que vem ao mundo em forma de dança
contemporânea?
Pela pergunta certeira, que deve perma-
necer ainda por muito tempo sem resposta,
a dança brasileira só tem a agradecer ao
projeto corajoso e inédito de Eliana Pedro-
so. Um projeto que, ao se deixar perguntar
sobre suas competências, se lança ao exer-
cício inevitável da antropofagia.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 3
FragilidadesRecurso de fazer graça não funciona em O+, do Quasar
ROBERTO PEREIRA
ireto ao ponto: a habilidade do coreó-
grafo Henrique Rodovalho em “fazer
graça” como recurso para tratar de um
tema específico mostra seu esgotamento
em O+, obra de 2004, para a companhia
que dirige, a Quasar Cia. de Dança, que
finalmente estreou no Rio de Janeiro, no
Teatro João Caetano, anteontem. A ex-
pressão parece ser mesmo essa, a de “fa-
zer graça”, como se quisesse instaurar um
fácil canal de comunicação com o público,
em fórmulas já testadas em tantos traba-
lhos anteriores seus.
No caso de O+, esse recurso se esgarça
até mostrar suas fragilidades, embora não
pareça ser essa a intenção do coreógrafo.
A tarefa à qual ele se impôs dessa vez é
quase banal: tratar da dança contemporâ-
nea, num viés metalinguístico primário,
deslocado de seu tempo, recheado de anti-
gas questões. A inda mais porque não se
sabe bem à qual dança contemporânea se
refere. A generalização, nesses casos, tor-
na quase vulgar o lugar da reflexão, tentan-
do mostrar o patético onde na verdade é
puro espelho do que o próprio coreógrafo
vem instituindo como sendo a sua “dança
contemporânea”.
Se o modo de tratar esse universo é tra-
mando o “fazer graça” com metalinguagem,
o que se organiza cenicamente carrega pro-
blemas sérios quando justamente a (ótima)
companhia se lança ao que melhor sabe fa-
zer: dançar. O que comparece como dança,
além de ser o que Rodovalho sabe muito
bem fazer, revela, quase a contragosto seu,
que investigar (mesmo que comicamente)
sobre as questões de uma suposta “dança
contemporânea” deveria ser algo intrínse-
co à coreografia. Como não é, ele lança mão
de recursos que imprimem um ritmo desi-
gual ao espetáculo, deixando que cenas ape-
nas intercaladas não se resolvam, não se
tornem nada além de alternâncias de comi-
cidade e de sequências coreográficas.
Os clichês que são explicitados, as ci-
tações claras a outros coreógrafos, tanto
estrangeiros como até cariocas, tudo isso
vem de forma pueril à cena. E acaba por
não contaminar o próprio movimento, há-
bitat quase natural de Rodovalho. Essa
apropriação do movimento, a habilidade
D
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • SÁBADO • 29 DE OUTUBRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 29 DE OUTUBRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 29 DE OUTUBRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 29 DE OUTUBRO • 2005R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 29 DE OUTUBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 4
em tecê-lo, encontra-se de forma exemplar
em seu último trabalho, Só tinha de ser com
você, apresentado na cidade no primeiro se-
mestre. Tudo se configura ali como algo que
(até) pode ser lido como metalinguagem. E
o “fazer graça”, felizmente, deu espaço à
simplicidade e à elegância.
Em O+, existe a figura de um super-
herói, um “protetor da dança contemporâ-
nea”. Talvez a personagem seja a própria
encarnação metalinguística do coreógra-
fo, que tenta proteger também seu legado
de fazer rir como recurso para tratar de seus
tantos temas. No fundo, esse super-herói-co-
reógrafo sabe que é no movimento que re-
side sua sabedoria. E que talvez quanto
mais desprotegido, e menos engraçado,
mais esse movimento se torne definitiva-
mente tema de sua dança. Uma dança, de
qualquer modo, contemporânea.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 5
Espetáculo Orfeude Regina Miranda
ROBERTO PEREIRA
competência da encenação da co-
reógrafa carioca Regina Miranda
pode ser mais uma vez comprovada em
Orfeu, espetáculo comemorativo dos 25
anos de sua Companhia Regina Miranda
Atores Bailarinos e que esteve em tempo-
rada nas duas últimas semanas no Parque
Lage. Tal competência, que compõe sua
assinatura coreográfica, faz com que a dan-
ça seja um ponto de partida para dialogar
hibridamente com outros elementos, como
a arquitetura, o teatro, a literatura e neste
caso, também com a psicanálise.
Em Orfeu, esse hibridismo aparece como
rica possibilidade de construção cênica que
o mito sugere. O país dos mortos, lugar do
subterrâneo para onde se dirige o herói em
busca de sua esposa, é metaforizado na pis-
cina do Parque Lage, onde toda ação se pas-
sa, o que faz com que a cena seja vista pelo
público de cima, para dentro. Esse movimen-
to do olhar proposto por Regina recupera
sinestesicamente o movimento do mito e
tudo parece ter um sentido de dança, mas
uma dança dissolvida num acontecimento
maior, de simultaneidades de linguagens
artísticas. Essa é sua marca. E a tradução do
mito parece ter encontrado seu ambiente.
Entretanto, se esse ambiente é quase
mágico, construído com maestria pela co-
reógrafa, o corpo que o habita encontra-se
ainda pulverizado demais pelo seu entorno,
sem chances de mostrar o que carrega como
construção possível da ideia em movimento
e gesto. Não à toa, quando a companhia traz
em seu nome a senha “atores bailarinos”, es-
pera-se aí um zigue-zague entre teatro e dan-
ça que, por vezes, em Orfeu, não se efetiva.
Em alguns momentos pode-se ver, sim, ato-
res-bailarinos e, em outros, bailarinos-atores.
Mas, com maior frequência, vê-se atores e
bailarinos isolados em seu ofício. O trânsito
entre linguagens em cada um deles é bastan-
te desigual, o que dificulta a construção cêni-
ca no corpo que dança. O descompasso entre
a cena e o corpo fica evidente.
Isso acontece, talvez, pela escolha de se
trabalhar com bailarinos de maturidades
diversas. Alguns deles, que já convivem há
anos com a assinatura da coreógrafa, como
a excelente Marina Salomon, parecem es-
tar à vontade para administrar dramaturgi-
A
CRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADARIO DE JANEIRO • SÁBADO • 12 DE RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 12 DE RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 12 DE RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 12 DE RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 12 DE NOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRONOVEMBRO • 2005 • 2005 • 2005 • 2005 • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 6
camente o espaço que lhe é oferecido ceni-
camente. Mas, quando esse desafio é enca-
rado por integrantes mais novatos, a com-
petência do gesto transforma-se em mera
execução de movimento.
Quando isso acontece, o que é coreogra-
ficamente construído desvela a elementa-
ridade escolar das sequências de movimen-
tos, experimentadas à exaustão por Regina
em todos os seus trabalhos, pouco transfor-
madas ao longo desses 25 anos de sua com-
panhia. Desse modo, é no gesto que está,
efetivamente, sua verdadeira invenção. E
para ele, poucos de seus atores-bailarinos
estão realmente aptos.
Comemorar tantos anos de existência de
uma companhia de dança hoje no Brasil é,
sem dúvida, um feito. No caso desta compa-
nhia, talvez valha a pena agora investir
numa cena que leve em conta as inevitáveis
diferenças de gerações de bailarinos. Com
certeza, esse dado pode ser também maté-
ria-prima para a construção do gesto híbri-
do que Regina Miranda tanto investiga.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 7
Eloquência sem limitesExcesso de elementos cênicos ofusca o corpo da artista
ROBERTO PEREIRA
e uma palavra pudesse traduzir o novo
espetáculo da bailarina e coreógrafa
Ana Vitória, O exercício de Dom Quixote,
que estreou nesta última quinta-feira no
Espaço SESC, em Copacabana, essa palavra
seria eloquência. E parece ser no limite
dessa eloquência com seu excesso que tran-
sita, de forma desigual, o que ali se compõe
cenicamente.
A empreitada não é a das mais simples:
a busca de traduções em dança do clássico
de Miguel de Cervantes, que neste ano co-
memora seus 400 anos, transformou-se em
matéria-prima para a coreógrafa, que, feliz-
mente, descartou a literalidade no gesto
para investigar a literatura no corpo. O que
resulta disso é um estado quixotesco, como
se o personagem viesse revestido de inten-
ção no corpo que dança, como um Dom
Quixote contemporâneo, de qualquer um, de
todos. Essa intenção de Ana Vitória pode ser
vista com precisão. Mas é quando esse se dar
a ver passa a ser quase explícito é que a su-
tileza da tradução, por vezes, se perde.
O vocabulário próprio de movimento e
o vigor de sua execução, que se transforma-
ram em assinatura da coreógrafa-bailarina,
ou da criadora-intérprete, aparecem nova-
mente em solo, terreno fértil para ela, que
conhece muito bem os meandros de um cor-
po sozinho em cena, dançando. Aqui, ambos
aparecem de forma madura, revelando uma
propriedade que parece abolir o hífen que
separa a criadora da intérprete.
Mas ajustar qualquer outro elemento
cênico a esse corpo não é tarefa das mais
fáceis e a armadilha de sublinhá-lo (sem
necessidade, pela riqueza que lhe é ineren-
te) é quase inevitável nesse espetáculo. O
figurino assinado por Cláudia Diniz, a ilu-
minação de Renato Machado e, sobretudo,
a trilha sonora de Márcio Tinoco transfor-
mam eloquência numa espécie de verbor-
ragia. E o excesso dessa sobreposição de
informações embaça o corpo, já tão sofisti-
cado em sua pureza coreográfica.
Já o belo cenário, de Sérgio Marimba,
oferece à coreógrafa planos que metafori-
zam a trajetória da personagem em ques-
tão, em pleno exercício de seu ofício, como
sugere o título do espetáculo. Trata-se de
uma trajetória mimetizada na cena, numa
S
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2005RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 22 DE NOVEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 8
simbiose de corpo e espaço, de dança e ce-
nografia. A riqueza já está ali. E a tradu-
ção, também.
Pela felicidade do retorno de Ana Vitó-
ria às suas investidas coreográficas em
solo, O exercício de Dom Quixote é bem-
vindo. É nesse lugar que a dança promove
o que o seu corpo está habilitado a falar em
movimento. Pela sua competência nesse
falar, há que se buscar agora o registro
exato do que o circunda, que pode estar,
também, no silêncio, ou na pausa. No gesto
exato da coreógrafa, não há espaço para
excessos.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
8 9
Força da dançaapenas se insinua
O exercício de Dom Quixote: Montagem bem cuidadanão gera outro olhar sobre o herói de Cervantes
SILVIA SOTER
na Vitória é símbolo do que se chama,
na dança contemporânea, de criador
intérprete. Desde cedo, sua carreira estru-
turou-se na prática de solos. Construídos por
ela e para ela. Valises, Corpo provisório ou
Sobre o começo e o fim revelam sua habili-
dade em entender os caminhos de seu cor-
po e, a partir de seus limites e de suas possi-
bilidades, fazer dança. Sua assinatura como
coreógrafa e inevitavelmente, nesse caso,
como intérprete, caracteriza-se pelo rigor e
pela precisão dos gestos que, trabalhados em
diferentes intensidades e dimensões, ga-
nham abstração e viram movimentos de
dança. Depois de experimentar suas marcas
em outros corpos em algumas de suas peças
mais recentes criadas para grupos, Ana Vi-
tória retoma o solo em O exercício de Dom
Quixote como síntese maior de suas ques-
tões na dança.
Instalada no centro da arena do Espaço
SESC, uma plataforma inclinada de madei-
ra e metal define um palco dentro do palco.
A estrutura elevada aproxima a dança do
público e cria um outro plano para as ações
e os devaneios de Quixote. Ao fundo, venti-
ladores de ferro insinuam os moinhos. O ce-
nário de Sergio Marimba participa da tri-
lha sonora, já que o trabalho da plataforma
produz ruído de ferragens ao longo de todo
o espetáculo, interagindo com a música. A
iluminação joga com as sombras, projetan-
do no chão os moinhos em movimento, por
exemplo. O figurino e o visagismo reforçam
a ideia de personagem. O primeiro referin-
do-se ao metal da armadura e o segundo
marcando traços do rosto, como a barba, fa-
zendo do Quixote de Ana Vitória uma figu-
ra andrógina e contemporânea. Os signos
visuais e sonoros criam o ambiente onde a
coreógrafa faz o exercício de mergulhar no
personagem, o cavaleiro sonhador e solitá-
rio. Impossível não pensar na analogia en-
tre a solidão de Quixote e a da própria ar-
tista em cena.
É do personagem Quixote e da história
de Cervantes que a coreógrafa vai extrair
os gestos e as ações que se transformam no
vocabulário de movimentos dessa peça.
Transformadas pela habilidade da coreó-
grafa, ações como cavalgar, lutar ou deba-
ter-se diante da loucura desfilam pelo cor-
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 24 DE NOVEMBRO • 2005 • QUINTA-FEIRA • 24 DE NOVEMBRO • 2005 • QUINTA-FEIRA • 24 DE NOVEMBRO • 2005 • QUINTA-FEIRA • 24 DE NOVEMBRO • 2005 • QUINTA-FEIRA • 24 DE NOVEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 0
po da artista como referências explícitas
e até ilustrativas do personagem de Cer-
vantes. Mas é nessa fronteira entre ilustra-
ção e abstração que o exercício de Ana
Vitória esbarra. Presa demais a seu ponto
de partida, a peça tem dificuldade em
avançar além da correspondência imedi-
ata entre dança e personagem. Na pele de
Quixote, a força habitual da dança de Ana
Vitória apenas se insinua, ficando atada
demais às citações dos traços que consti-
tuem o herói que este ano completa 400
anos. Esse é o risco que se corre ao se tra-
tar de um personagem desse peso. Talvez
por excesso de reverência, em O exercí-
cio de Dom Quixote é apenas o persona-
gem que imprime sua marca na intérpre-
te-criadora, já que o exercício de Ana
Vitória, apesar de chegar a uma monta-
gem coerente, elegante e bem cuidada,
não chega a gerar um outro olhar sobre o
herói de Cervantes.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 1
Belos saltos entreescorregadas feias
Cancelamento de projetos e apoios não impediucriação de coreografias enxutas em 2005
ROBERTO PEREIRA
m 2005, a cidade do Rio de Janeiro foi
palco de grandes momentos da dança
não apenas brasileira, mas também interna-
cional, ao mesmo tempo em que testemu-
nhou duas significativas perdas na área. Co-
meçando por elas, vale registrar, de imedi-
ato, o cancelamento por parte do Centro
Cultural do Banco do Brasil, do festival
Dança Brasil, após oito bem-sucedidas edi-
ções, comandadas por Leonel Brum. Em seu
lugar, em formato semelhante, mas sem uma
linha curatorial definida, foi oferecido 4 Mo-
vimentos, cujo espetáculo que merece men-
ção é Só tinha de ser com você, assinado por
Henrique Rodovalho, da Quasar Cia. de
D ança, de Goiás. Aliás, trata-se aqui de um
dos melhores espetáculos do ano, com trilha
musical calcada no histórico disco de To m
Jobim e Elis Regina, de 1974.
Outra grande perda, ecoando historica-
mente como um retrocesso na política cul-
tural da cidade, foi a inexplicável saída da
Secretaria das Culturas como uma das prin-
cipais realizadoras do principal e mais an-
tigo festival de dança carioca, o Panorama
Rio Dança. Mesmo sem o apoio desta ges-
tão míope que se diz ocupar da dança por
essas terras, sua 14ª edição veio comprovar
que é um dos poucos lugares em que a infor-
mação de qualidade circula, tendo já colo-
cado o Rio de Janeiro na rota dos grandes
festivais do mundo.
Com direção artística de Lia Rodrigues,
sua criadora, e curadoria acertada de Nay-
se López e Eduardo Bonito, o Panorama
agrupou espetáculos, performances e pales-
tras. Dois valem a pena ser citados: Isabel
Torres, solo que leva o nome de uma baila-
rina do Theatro Municipal, idealizado pelo
francês Jérôme Bel, e H2 2005, do jovem
Bruno Beltrão.
Aliás, ambos puderam ser assistidos no
próprio Theatro Municipal, o que representa
um ganho inestimável para o festival, assi-
nalando o já conhecido cuidado de sua dire-
tora, Helena Severo, com a dança dessa ci-
dade, desde seus tempos de secretária da
cultura. Não à toa, visionariamente, ela tam-
bém abriu as portas desse mesmo teatro para
a dança contemporânea carioca, reunindo em
8 domingos os principais nomes da área, em
espetáculos com ingressos a R$ 1.
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 28 DE DEZEMBRO • 2005• 28 DE DEZEMBRO • 2005• 28 DE DEZEMBRO • 2005• 28 DE DEZEMBRO • 2005• 28 DE DEZEMBRO • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 2
Entretanto, o seu Ballet do Theatro Mu-
nicipal apresentou poucas novidades, num
ano bastante incipiente para essa que é a
mais antiga companhia de dança brasilei-
ra. Superado o péssimo efeito deixado por
Noite transfigurada, a qualidade que baliza
as produções da casa pôde ser novamente
vista em A criação, do alemão Uwe Scholz,
num dos momentos mais sublimes da histó-
ria dessa companhia.
Um outro elemento que veio se agregar
ao Panorama, como uma de suas múltiplas
frentes, foi o Espaço SESC, que, na verdade,
funcionou durante todo o ano como uma es-
pécie de “centro coreográfico” da cidade.
Reunindo importantes estreias, encontros
teóricos e funcionando como espaço de ensaio
para companhias cariocas, o Espaço SESC foi
o endereço oficial da dança em 2005.
Dirigido por Beatriz Radunsky, apresen-
tou o já tradicional primeiro evento do ano,
o Solos de Dança no SESC, cujo trabalho do
coreógrafo João Saldanha para a excelente
bailarina Mônica Burity, Eles assistem e eu
danço, merece destaque. Saldanha também
foi responsável por outro espetáculo, Soma,
estreado no mesmo espaço, que, com certe-
za, figura na lista dos melhores do ano.
Mas o Espaço SESC ainda abrigou outras
estreias importantes, como Por minha par-
te, de Esther W eitzman, Memória do corpo
nº 2 – Suíte jazz, de Renato Vieira e O exer-
cício Dom Quixote, de Ana Vitória. Abrigou
ainda, pioneiramente, o 1O Encontro Inter-
nacional de Dança e Filosofia, que reuniu
nomes como Michel Bernard, José Gil e
André Lepecki, além do Projeto dança em
foco, voltado para a produção de videodan-
ça nacional e internacional.
Onqotô, a mais recente obra de Rodrigo
Pederneiras, representou outro grande mo-
mento da dança, comemorando os 30 anos da
principal companhia de dança contemporâ-
nea brasileira, o Grupo Corpo. Entre outras
estreias relevantes, está Nó, de Deborah Co-
lker, e Orfeu, que também comemorou 25
anos da Companhia Regina Miranda e Ato-
res Bailarinos, além de outros eventos impor-
tantes como Dança em trânsito, a Conferên-
cia Internacional da Dança, realizada pelo
Itaú Cultural e pelo British Council, as ações
do Cahier de la danse, do Consulado Francês,
e o mais novo, inédito e bem-vindo festival, o
Dança criança, fruto da profícua parceria
entre os pequisadores Leonel Brum e Silvia
Soter, com a Caixa Econômica Federal.
Das atrações internacionais, o parco car-
dápio oferecido aos cariocas não impede de
citar o momento histórico que foi a apresen-
tação da Martha Graham Dance Company,
ao mesmo tempo em que se prefere esque-
cer a lamentável atitude de Márcia Haydée
ao interromper o seu também lamentável
espetáculo Carmen, do Ballet de Santiago,
para reclamar publicamente das condições
do nosso principal teatro.
Entre perdas e ganhos, a dança carioca
mostrou seu fôlego em 2005. Não perdeu
seu posto de centro agregador de informa-
ção na área no País. E mostrou que, mesmo
sem a devida política em sua esfera muni-
cipal, ainda é possível fazer um ano de dan-
ça com qualidade.
MELHORES ESPETÁCULOS
H2 2005 – de Bruno Beltrão (Grupo de Rua deNiterói)Onqotô – de Rodrigo Pederneiras (Grupo Cor-po)Soma – de João SaldanhaA criação – de Uwe Scholz (Ballet do TheatroMunicipal do Rio de Janeiro)Só tinha de ser com você – de Henrique Rodo-valho (Quasar Cia. de Dança)
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 3
2006 CRÍTICAS
JORNAL DO BRASIL - 16 DE JANEIRO DE 2006Tradição em corpo brasileiro
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 12 DE MARÇO DE 2006Versão 2006 traz novidades importantes
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 12 DE MARÇO DE 2006Conexões em trânsito
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 19 DE MARÇO DE 2006Quando intérpretes roubam a cena
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 19 DE MARÇO DE 2006Presença de espírito do corpo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 8 DE ABRIL DE 2006O vice-versa de Márcia Rubin
ROBERTO PEREIRA
CRÍTICA NÃO PUBLICADA 27 DE ABRIL DE 2006Espetáculo Maratona Quintana de Regina Miranda
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 4 DE JUNHO DE 2006Balé confirma talento dos bailarinos profissionais
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 6 DE JUNHO DE 2006Descompasso entre desejo e realização
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 7 DE JULHO DE 2006Frágil identidade
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 15 DE JULHO DE 2006Bertazzo se esqueceu de suas próprias lições
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 18 DE JULHO DE 2006A caminho da felicidade
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 4
JORNAL DO BRASIL - 20 DE JULHO DE 2006Entre o fio da ciência e da arte
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 22 DE JULHO DE 2006Maracanã sem a paixão e a surpresa do festival
SILVIA SOTER
O GLOBO - 23 DE JULHO DE 2006Quando a dança corre atrás do brilho da música
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 5 DE AGOSTO DE 2006Projeto corajoso traz preciosos momentos em meio a excessos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 11 DE AGOSTO DE 2006Territórios abertos para a expressão masculina
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 28 DE AGOSTO DE 2006A força da presença do coreógrafo Bill T. Jones
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 6 DE SETEMBRO DE 2006A viagem existencialista e solitária de um coreógrafo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 12 DE SETEMBRO DE 2006Pas-de-deux de história e renovação
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 26 DE SETEMBRO DE 2006Dança brasileira em ritmo de inovação
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 4 DE NOVEMBRO DE 2006Tradução elegante das curvas arquitetônicas modernistas
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 5 DE NOVEMBRO DE 2006As curvas de Niemeyer em corpos que dançam
SILVIA SOTER
O GLOBO - 16 DE NOVEMBRO DE 2006Carisma e talento da solista salvam a noite
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 21 DE NOVEMBRO DE 2006Para acertar o passo da dança
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 25 DE NOVEMBRO DE 2006No sentido da renovação constante
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 27 DE DEZEMBRO DE 2006Ensaios de uma política para a dança no País
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 5
Tradição emcorpo brasileiro
ROBERTO PEREIRA
cepção de dança, ou melhor, de balé, cons-
truía-se, também, uma história, um sentido
de tradição.
Hoje, além de primeira companhia, tra-
ta-se da única oficial a dedicar-se a remon-
tagens de obras do repertório clássico, de-
safio nada fácil para nós, brasileiros. Além
desses balés virem carregados de uma no-
ção de nobreza europeia que pouco falava
de nossa realidade, na época em que essa
companhia foi criada assistia-se também à
criação do samba e suas implicações físi-
cas no corpo que dançava. Desde o início,
bailarinos mal pagos no Theatro Municipal
engordavam um pouco seus cachês em
apresentações em teatros de revista, na
Praça Tiradentes. O diálogo entre o erudi-
to e o popular acontecia aqui, então, num
corpo formado pelo balé, mas que deveria
saber sambar. E isso, claro, concedia à nos-
sa tenra tradição em dança ares de uma
brasilidade como forma de legitimar essa
arte entre nós.
Além disso, grandes mitos foram cria-
dos, como é da especificidade desse tipo
de companhia. Madeleine Rosay, nossa
m 1927, a russa Maria Olenewa, baila-
rina egressa das companhias de Anna
Pavlova e Leonide Massine, conseguiu im-
plementar a primeira escola oficial de dan-
ça do País, em sua então capital federal, o
Rio de Janeiro. O propósito era, de início,
que bailarinos fossem preparados para in-
tegrar as óperas que vinham da Europa,
uma medida de economia, ao se trazer me-
nos artistas para o Brasil. Dez anos mais
tarde, em 1936, inevitavelmente, a mesma
Olenewa conseguia oficializar esse grupo,
batizando-o de Corpo de Baile, hoje, 70 anos
depois, Ballet do Theatro Municipal do Rio
de Janeiro.
Ao longo de sua história, essa companhia
foi delineando para nós uma ideia de tradi-
ção, algo ainda plenamente desconhecido
ao se pensar em dança por aqui. Primeiro, a
criação de uma escola, que garantia a for-
mação de artistas brasileiros, depois, a cria-
ção da companhia, e como consequência, a
formação gradual de um público e, ainda, a
de uma crítica jornalística que, desde o iní-
cio, já se queria especializada. Como se vê,
nesse sistema articulado de produção e re-
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 16 DE JANEIRO • 20066666
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 6
primeira bailarina genuinamente brasi-
leira, simbolizava essa mistura, dançando
Tico-tico no fubá nas pontas dos pés. Anos
mais tarde, o casal Bertha Rosanova e
Aldo Lotufo impressionavam plateias ao
estrelarem com exímia competência o
clássico O lago dos cisnes, numa primeira
montagem integral nas três Américas, as-
sinada por Eugenia Feodorova. O reina-
do absoluto da mestra Tatiana Leskova
imprimia profissionalismo, sobretudo no
corpo de baile. E assim a tradição ganha-
va, naquele templo de erudição, um corpo.
Um corpo brasileiro.
Hoje, 70 anos depois, mesmo sabendo
que para sua criação, Olenewa precisou
empenhar suas joias e tapetes para que seu
sonho se tornasse realidade, tudo parece ter
valido a pena. O empenho continua, com
todas as dificuldades de se remontar gran-
des obras, e os gastos que isso representa.
Mas a figura da bailarina clássica, por nós
popularizada pela diva Ana Botafogo, ain-
da paira num imaginário que aceita, e mui-
to bem, que uma bela adormecida desfile
numa escola de samba em plena Marquês
de Sapucaí. Esse é o nosso modo de cons-
truir nossa tradição. Vamos comemorar?
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 7
Versão 2006 traznovidades importantes
Solos de Dança: Este ano, projeto no SESC apresentacoreógrafos de outros estados e investe no ecletismo de estilos
SILVIA SOTER
da iluminação ganha águas coloridas e mo-
ventes. Apesar da literalidade na forma
como o tema é tratado, tanto espacialmente
quanto em termos coreográficos, O peixe é
agradável e seduz, sobretudo, pela juventu-
de e pela energia de Rafael. Este trabalho
sugere uma outra qualidade positiva dos
Solos de dança: a possibilidade de engaja-
mento dos artistas em propostas que pela
própria situação não devem e não podem
ser pretensiosas. E Deborah Colker soube
aproveitar bem a oportunidade. Apenas ao
fim, no momento dos aplausos, Rafael erra
na mão, abandonando a simplicidade com
que conquistou o público e exagerando no
tom e na importância dos agradecimentos.
Já cai na armadilha do excesso e da pre-
tensão. A participação de Steven Harper sob
a direção de Stela Miranda inaugura a pre-
sença do sapateado nos Solos de Dança. A
peça começa bem, numa espécie de crítica
divertida ao próprio universo do sapateado
americano, mas rapidamente se desvia e sai
atirando para todos os lados, trazendo entre-
vistas de rua sobre o que as pessoas conhe-
cem de sapateado e comentários da própria
s Solos de Dança no SESC inaugu-
rar uma temporada carioca da dan-
ça contemporânea 2006 trazendo novida-
des importantes. O resultado das últimas
edições já apontava a necessidade de mu-
danças para que a proposta de proporcionar
encontros, em geral inéditos, entre intérpre-
tes e coreógrafos contemporâneos pudesse
produzir algo único, fruto destas parcerias
muitas vezes recentes e provisórias. Trazer
coreógrafos de outros estados e investir no
ecletismo de estilos foram pontos essenci-
ais para que os Solos seguissem desafiando
intérpretes, coreógrafos e público.
Nesta primeira semana da mostra, O
peixe, solo coreografado por Deborah
Colker para o jovem integrante de sua com-
panhia, Rafael Gomes, abre a noite. O Con-
certo no 5 de Vivaldi acentua a colagem de
referências que compõe a peça. Na coreo-
grafia de Deborah Colker, os passos do clás-
sico são mesclados a passos identificados
como dança contemporânea. A circularida-
de da arena do teatro é acentuada pelo es-
pelho redondo no centro da cena. O peixe
de Rafael se desloca neste lago que através
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 8
diretora sobre arte contemporânea e ciên-
cia. A competência de Harper como sapa-
teador fica tolhida pela profusão de infor-
mações, pela ausência de costura entre as
ideias e pela falta de desenvolvimento de
cada elemento apresentado.
Para aqueles que vêm acompanhando
a dança contemporânea carioca, os dois úl-
timos solos da noite trazem questões inte-
ressantes sobre a relação quase simbiótica
entre coreógrafos e seus intérpretes de lon-
ga data. No terceiro solo da noite, Ana
Amélia Vianna, bailarina ícone da Márcia
Milhazes Companhia de Dança, põe sua
maestria a serviço do coreógrafo Rodrigo
Negri. Por dentro aborda o universo femi-
nino e é construída de gestos pequenos e
delicados, ao som de Heitor Villa-Lobos.
Ana Amélia transita com correção e fami-
liaridade pela proposta do coreógrafo, no
entanto, o que se percebe é a impregnação
das referências do trabalho de sua compa-
nhia de origem – na gestualidade e tam-
bém na música – sobrepondo-se e abafan-
do algo de novo que poderia surgir deste
encontro. As deficiências de Por dentro
apenas confirmam como é necessário tem-
po de convívio entre coreógrafos e intér-
pretes para que a troca de experiências
possa levar a um caminho único e interes-
sante. E como os anos de convívio deixam
marcas que também precisam de tempo
para esmaecerem.
Em Tempo líquido, coreografia de Mau-
rício de Oliveira para Maria Alice Poppe, o
que se vê é uma bailarina experiente e de
uma vitalidade rara virar uma página de
sua história. Sem abandonar o legado de sua
experiência de anos junto à Staccato, com-
panhia de dança que ajudou a fundar com
Paulo Caldas, Maria Alice inaugura nesta
peça uma outra etapa como intérprete. A
inteligente coreografia de Mauricio de Oli-
veira, nome pouco conhecido no cenário da
dança carioca, parece tratar também desta
mudança, explorando as possibilidades de
desarticulação dos movimentos para recom-
biná-los, em seguida. O corpo é investigado
sem estar submetido a regras impostas pela
própria anatomia que parece aqui também
ser colocada em questão. A tensão entre
desarticulação e recombinação que se pro-
duz no corpo da bailarina encontra perfeita
correspondência na ótima música de Tato
Taborda, fazendo de Tempo líquido o ponto
alto da noite.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
9 9
Conexões em trânsitoSolos de Dança no SESC abre diálogo
entre bailarinos e coreógrafos
ROBERTO PEREIRA
estreia da sétima edição do Solos de
Dança no SESC, na última quinta-fei-
ra, no Espaço SESC, em Copacabana, deixou
claro que o ponto de partida tanto da cura-
doria, realizada por Beatriz Radunsky, quan-
to das produções das primeiras quatro pe-
ças apresentadas partem dos bailarinos es-
colhidos e de suas qualidades, sobretudo téc-
nicas. Sendo esse o ponto de partida, o que
fica interessante observar é como os coreó-
grafos, quase todos trabalhando pela primei-
ra vez com aqueles corpos, estabelecem
diálogos com as informações ali existentes.
É o trânsito, portanto, entre o repertório (do
bailarino) e a assinatura (do coreógrafo)
que estabelece o jogo proposto, marca des-
sa instigante mostra que abre o calendário
de dança da cidade.
Se é, então, no trânsito que está o desa-
fio, pois dali emergem novas conexões, e
muitas vezes novos fluxos de pensamentos
de dança, vale investigar como esses jogos
se dão nos quatro trabalhos. A noite abre
com uma peça bastante frágil assinada por
Deborah Colker, para o bailarino de sua
companhia, Rafael Gomes. Em O peixe,
intenta-se uma relação fluida com a impe-
riosa música de Vivaldi, através da imagem
de um peixe, mas o que se constata é uma
construção coreográfica quase pueril de
mera sequência de passos. E como já é quase
marca da coreógrafa, a ideia fica aprisio-
nada em uma literalidade que se espalha
no gesto mimético do bailarino, na luz,
no cenário, no figurino, por toda obra, en-
fim. Até mesmo nos agradecimentos, a gran-
diloquência do que se pretende ocupa o
espaço da metáfora que escorre pelo ralo,
sem chance de fazer a ideia traduzir-se
em dança.
Já o segundo trabalho, com o sapateador
americano Steven Harper, e com a direção
da atriz Stella Miranda, propõe um check-
up da recepção do sapateado no Brasil. Se
parte metaliguisticamente do clichê dessa
recepção para justamente avaliá-lo, Harper
não percebe que acaba sucumbindo a outros
tantos clichês, sobretudo da dança contem-
porânea, linguagem com que há tempos ele
almeja dialogar. O que constrange é que a
imagem do sapateador é mais valorizada
que sua própria dança, como se essa fosse
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 12 DE MARÇO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
100
quase um pretexto para o que ele pretende
exibir, sobretudo tecnicamente. E é justa-
mente esse caráter de show que dificulta a
passagem para que a obra exista em sua
inteireza e não esteja a serviço de uma exi-
bição. Sem se dar conta, a obra reitera o que
pretenderia denunciar criticamente.
Os dois últimos trabalhos apresentados
têm em comum não apenas a excelência de
suas bailarinas, mas também a oportunida-
de que oferecem de reflexão sobre o trânsi-
to comentado anteriormente. Por dentro traz
Ana Amélia Vianna coreografada pelo jo-
vem Rodrigo Negri. A qui, a riqueza de vo-
cabulário de movimentos que a bailarina
carrega em seu corpo, elaborado através dos
anos de trabalho, sobretudo com a coreógra-
fa Márcia Milhazes, parece ter sido um en-
trave para o diálogo. Negri, bailarino que
ainda se encontra em plena formação como
coreógrafo, não possui ainda uma marca
com força suficiente para poder extrair da
diferença a riqueza de sua criação. O resul-
tado é a intransponibilidade que se impõe
pela qualidade da bailarina, deixando que
pouco se perceba qual o espaço construído
ali pelo coreógrafo.
Por fim, Tempo líquido, com Maria Ali-
ce Poppe e Maurício de Oliveira, foi, com
certeza, o grande momento dessa primei-
ra parte dos Solos. A maneira pela qual a
bailarina, que também detém um vocabu-
lário solidamente construído em seu corpo
pelos tantos anos de parceria com o coreó-
grafo Paulo Caldas, poderia inaugurar no-
vas possibilidades de movimento era, sem
dúvida, a grande expectativa da noite. O
que se pôde assistir é a conjunção perfeita
de ideias, tanto da assinatura do coreógra-
fo quanto da dança da bailarina, amalga-
mada em um corpo inteligente, que é mui-
to mais que suporte, é espaço de fluxo, é
lugar de passagem, limpo, desimpedido.
Tudo se constrói em coesão: a excelente
trilha, assinada por Tato Taborda, o figuri-
no e a iluminação são também dança, como
a bailarina. E o tempo, tema da obra, encon-
tra sua tradução em espaço preciso (e pre-
cioso) nesta que é uma das maiores baila-
rinas que esse país já produziu.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
101
Quando intérpretesroubam a cena
Solos de Dança: Segunda semana deprojeto é mais fraca que a primeira
SILVIA SOTER
s peças que compõem a segunda se-
mana dos Solos de Dança no SESC não
formam um conjunto tão interessante quan-
to o da semana de estreia. Como na primei-
ra parte da mostra, o ponto forte também
está nos intérpretes. Mas esta semana, a ca-
racterística em comum a quase todos os so-
los é o fato de a dança tratar de temas exter-
nos a seu próprio fazer.
O trabalho mais bem-sucedido da noite,
Abaixo do equador, coreografia de Airton
Tenório para Jean Gama, aborda a frontei-
ra entre o religioso e o profano das festas
populares, a partir do Círio de Nazaré. Apoi-
ado na segurança de interpretação do bai-
larino, Airton Tenório consegue se aproxi-
mar de seu objeto com simplicidade, sem
cair no caricato e sem abusar dos clichês.
Jean Gama transita com sobriedade nestes
corpos do ritual e do carnaval e se revela
um intérprete maduro, conseguindo transfe-
rir sua larga experiência de dançar em gru-
po para sua nova condição de solista.
É pena, no entanto, que a coreografia de
Airton Tenório não consiga realizar sempre
a costura necessária entre o vocabulário de
movimento e o tema tratado, perdendo for-
ça quando esbarra em sequências que se
parecem muito com as de aula de dança.
O encontro de duas bailarinas da mes-
ma geração, Paula Águas na posição de co-
reógrafa e Fernanda Cavalcanti no lugar
de intérprete, resultou em Eu também não
sou. Ainda que trate da situação das baila-
rinas que tiveram uma formação em balé
clássico e que migraram para a dança con-
temporânea, tema do universo da dança, a
abordagem narrativa de Paula Águas não
dá conta de trazer um novo olhar sobre a
ideia. O início da peça em que a intérprete
constrói e desconstrói uma segunda posi-
ção de braços do balé, modulando o tônus
e a direção de seus gestos, sugere um cami-
nho interessante que, infelizmente, a core-
ógrafa abandona em seguida. A busca de
se fazer entender pelo espectador fez a
coreógrafa partir para um tratamento bas-
tante didático do tema o que acabou por
esvaziar Eu também não sou. Mesmo assim,
resta o prazer de ver a precisão e delica-
deza da movimentação de Fernanda
Cavalcanti.
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
102
OPNI – objeto poético não identificado
é a única peça da noite que parte de uma
démarche distinta das outras. O coreógrafo
mineiro Rui Moreira, a convite de João Pau-
lo Gross, inspirou-se no barroco, no exagero
de linhas, círculos e espirais para criar este
solo, a peça mais densa da noite. A circula-
ridade dos gestos de braços e a repetição das
espirais que se inserem em planos do espa-
ço distintos a cada vez, sugerem uma gran-
de influência de Paulo Caldas na movimen-
tação do talentoso João Paulo Gross. A tri-
lha sonora acentua a repetição e os desdo-
bramentos provocados a cada nova investi-
da. Ainda que a repetição seja um elemen-
to central nesta coreografia de Rui Moreira,
o trabalho se beneficiaria se fosse mais en-
xuto e não se estendesse demais no tempo.
Fechando a noite, Curta-metragem cria-
do por Ana Andréa para Fernanda Reis traz
a dança para “falar” de cinema. A proposta
é explorar alguns gêneros de filmes através
da música, do clima e, como não podia dei-
xar de ser, da qualidade de movimentação
da intérprete. Infelizmente, a relação que a
coreógrafa pretende criar entre a dança e o
cinema se dá de forma muito superficial e
caricata. A escolha dos gêneros e das trilhas
sonoras não ajuda a aprofundar a proposta,
se restringindo a seus aspectos mais óbvios.
A peça exige qualidades teatrais que Fer-
nanda Reis ainda não desenvolveu e, ao
mesmo tempo, não aproveita bem suas evi-
dentes qualidades de bailarina.
O exercício de combinar intérpretes e
coreógrafos em encontros inéditos é sempre
arriscado. Este risco deve ser entendido
como uma qualidade e um importante ali-
mento para que os Solos de Dança cheguem
a mais uma edição sem perder seu interes-
se. Como cada peça é criada para o evento,
cada semana dos Solos de Dança reserva
surpresas ao público. Às vezes, esta mistura
inédita resulta em encontros férteis e pro-
dutivos, outras vezes fica evidente a neces-
sidade de um desenvolvimento maior das
colaborações para que as danças criadas
cheguem mais maduras à cena.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
103
Presença deespírito do corpo
Talento e técnica de bailarinos superamfragilidade de coreografias nos Solos de Dança
ROBERTO PEREIRA
qualidade irretocável dos quatro bai-
larinos que se apresentam na segun-
da parte da mostra Solos de Dança no SESC,
que estreou nesta última quinta-feira no Es-
paço SESC, em Copacabana, denuncia uma
lacuna séria na formação de coreógrafos,
não apenas no Rio de Janeiro, mas certa-
mente em todo o País.
O que ficou evidente foi que força advin-
da das aptidões tanto técnicas quanto dra-
máticas de Jean Gama, Fernanda Cavalcan-
te, João Paulo Gross e Fernanda Reis con-
seguiu, para alívio do público, sobrepujar o
que ali se configurava como elaboração
coreográfica, ao todo bastante frágil. Uma
prova dessa fragilidade está, justamente, na
necessidade quase ingênua de uma narrati-
vidade, marcada principalmente pelo exces-
so de recursos cênicos, em quase todos os
trabalhos apresentados.
Abaixo do Equador abre a noite, com
Jean Gama coreografado pelo notável pro-
fessor A irton Tenório. A honestidade que
permeia todo o solo constrói um universo
fortemente masculino muito bem interpre-
tado pelo bailarino. Assim, as referências às
manifestações populares, como o Círio de
Nazaré, indiciado pela corda, por exemplo,
já possuem uma densidade imagética que
poderia ter sido mais bem desenvolvida por
Tenório. No lugar disso, o coreógrafo prefe-
riu se apoiar no figurino, nos elementos cê-
nicos e, sobretudo, na música para contar sua
história, não percebendo a riqueza de pos-
sibilidades ofertadas somente no corpo que
ali se movimentava.
O segundo trabalho é de autoria da
grande bailarina Paula Águas, para outra
bailarina, a ótima Fernanda Cavalcanti:
Eu também não sou. Se a intenção era
abordar justamente a imagem da bailari-
na, universo compartilhado por Paula e
Fernanda, com citações bastante óbvias
tanto da técnica quanto de obras do balé
clássico, tentando em seguida se dissolver
numa suposta “dança contemporânea”,
essa intenção não apresentou coesão su-
ficiente para sustentar os 15 minutos da
obra. E, novamente, o excesso da cena que
circunda o corpo da excelente bailarina
sufoca suas capacidades que permanecem,
infelizmente, em estado latente.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 19 DE MARÇO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
104
O. P. N. I – Objeto poético não identifi-
cado, dançado pelo novo talento João Pau-
lo Gross e assinado pelo bailarino e, segun-
do o programa, “investigador cultural” Rui
Moreira, é o trabalho, de todos os trabalhos
apresentados, que menos investe na narra-
tiva. A ideia era revisitar o barroco, mas o
que se vê é uma construção coreográfica
com fortes tons modernos. O início do solo
sugere um claro-escuro que poderia ter es-
tabelecido uma ponte interessante entre
esse moderno e o barroco pretendido, mas
que logo se desmancha sem conseguir es-
boçar uma ideia. E o vigor do jovem baila-
rino não encontra seu lugar na elaboração
coreográfica.
Por fim, Curta-metragem marca o encon-
tro novamente de duas grandes bailarinas:
a experiente Fernanda Reis e a inquieta
Ana Andréa. Aqui, o excesso do linear e do
facilmente identificável não funciona como
matéria-prima para falar da linguagem do
cinema, funcionando como mero recurso
que aponta diretamente para objeto sobre
o qual se quer falar. E o narrativo espraiado
na música, no figurino e, sobretudo, na ilu-
minação implode com o que seria um desa-
fio de ser construído no corpo repleto de
história da bailarina Fernanda.
A mostra Solos de Dança no SESC, ao
promover encontros inéditos entre bailari-
nos e coreógrafos, instaura questões sempre
instigantes para a dança carioca. Nessa edi-
ção, duas ficaram claras: a primeira é a de
que existe ainda uma necessidade de uma
formação mais sólida de novos coreógrafos;
e a segunda, talvez causa ou talvez conse-
quência da primeira, é a de que existe uma
crença de que ser coreógrafo é ser algo a
mais do que simplesmente bailarino. Os
quatro excelentes bailarinos que se apresen-
taram nessa noite puderam provar muito
bem que se trata de um equívoco. Ao detec-
tar esses problemas, já vale a mostra.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
105
O vice-versade Márcia Rubin
Teatro é dança e dança é teatro na gramática de Teorema,espetáculo da coreógrafa inspirado na poesia concretista
OBERTO PEREIRA
Centro Cultural do Banco do Brasil
abriu nesta quinta-feira sua única in-
vestida anual no mundo da dança: a mostra
4 Movimentos, que neste ano é temática,
apresentando obras que relacionem a arte
coreográfica à literatura. Na verdade, tra-
ta-se de um formato já experimentado pelo
extinto e saudoso festival Dança Brasil, do
próprio CCBB, que inclusive, no ano de 1997,
em sua primeira edição, já propunha a mes-
ma relação entre dança e literatura, perpas-
sado por um pensamento de curadoria bas-
tante apurado.
Para a abertura da mostra, foi convida-
da a coreógrafa e bailarina carioca Márcia
Rubin, que apresenta seu Teorema até ama-
nhã, às 19 horas. A qui, a ideia original se-
ria uma pesquisa sobre a poesia concreta,
movimento liderado pelos irmãos Campos,
Haroldo e Augusto, e Décio Pignatari na dé-
cada de 1950, e que propunha, entre outras
coisas, uma relação pictórica e lúdica com a
palavra escrita no poema. Bastante instigan-
te, tal desafio, entretanto, não parece ter sido
levado a cabo pela coreógrafa, que mostra
sua pesquisa ainda em pleno processo de
elaboração. Nem por isso, seu trabalho dei-
xa de suscitar questões importantes.
Mais do que estabelecer conexões com
a literatura, interesse antigo na carreira de
Márcia, que já trabalhou com o universo
poético de Ana Cristina César, por exemplo,
Teorema apresenta uma íntima relação com
uma outra linguagem, o teatro, fazendo do
espetáculo um mapa de investigação que
coloca a palavra entre o gesto e o movimen-
to de dança. Nada mais concreto. Um acer-
to, portanto.
Márcia Rubin, além da literatura, sempre
flertou com o teatro, não apenas em seus pró-
prios trabalhos, que contavam com atores em
cena, tal como acontece com esse, mas em
trabalhos em que participa como diretora de
movimento para atores. Sua competência
nesse tipo de articulação parece tê-la habili-
tado a compor sua assinatura coreográfica
como suporte de uma trama onde teatro e
dança são interstícios de uma mesma cena,
sempre ricamente estruturada.
Ao lado de dois competentes atores,
César Augusto e Oscar Saraiva, ambos já
familiarizados com o formato cênico da co-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 8 D E A B R I L • 2 0 0 6• S Á B A D O • 8 D E A B R I L • 2 0 0 6• S Á B A D O • 8 D E A B R I L • 2 0 0 6• S Á B A D O • 8 D E A B R I L • 2 0 0 6• S Á B A D O • 8 D E A B R I L • 2 0 0 6
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
106
reógrafa, Márcia coloca no palco uma bela
questão: como o gesto dos atores se trans-
forma em movimento dançado pela baila-
rina? E como isso se processa em vice-ver-
sa? O que parece ficar bastante evidente é
que existe ainda um largo trajeto a ser con-
quistado para que as competências de
quem dança e de quem atua estejam em
absoluta sintonia. O que ainda por vezes se
torna evidente, sobretudo nos momentos
mais coreografados, é que o movimento
marcado não está ainda organicamente as-
similado pelos atores, deixando que a opor-
tunidade de mantê-los apenas como gesto
se esvaia. E essa brecha é ainda mais acen-
tuada, por exemplo, com o complicado fi-
gurino usado por Márcia, que destoa de
modo drástico daquele usado pelos atores:
o que poderia ser um diagrama de ideias
torna-se fissura nas continguidades entre
dança e teatro.
Assim, o que parece unir esses dois univer-
sos é a própria palavra, transformada em cam-
po comum entre os dois atores e a bailarina/
coreógrafa. Quem acompanha a trajetória de
Márcia Rubin, pode perceber que sua inteire-
za em Teorema está toda em cena, não ape-
nas como artista, mas como mulher, mãe, pro-
fessora, e, sobretudo, como pensadora da cena
contemporânea. Trata-se, portanto, de uma
grafia de sua vida. No namoro com a literatu-
ra, é possível falar aqui em bio-coreografia.
E é justamente nos hifens entre bio, coreo e
grafia que esse espetáculo emociona.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
107
Espetáculo Maratona Quintanade Regina Miranda
OBERTO PEREIRA
aratona Quintana, último espetá-
culo da mostra de dança 4 Movi-
mentos, do CCBB, estreou nesta quarta-feira
trazendo a marca da coreógrafa carioca Re-
gina Miranda e suas conhecidas hibridações
cênicas com dança, teatro, psicanálise e, nes-
te caso, literatura. Aqui, o poeta gaúcho Ma-
rio Quintana foi chamado à cena para ocu-
par um lugar que deveria ser o destaque no
espetáculo, desafio bastante complicado nes-
sas investidas de traduções entre linguagens
artísticas. E é justamente em como sua lírica
é tratada nessas hibridações o ponto frágil
neste solo assinado por Miranda, responsá-
vel por sua direção e pelo texto.
A idealização, a interpretação e a cria-
ção de movimento (ao lado de Camila Fer-
si) foram os três ofícios que ficaram a car-
go da jovem Natasha Corbelino, que de-
monstrou em seu desempenho uma imatu-
ridade constrangedora na difícil tarefa de
estar sozinha num palco, dançando, atuan-
do e, até, cantando (outras três importan-
tes habilidades).
Se tais ofícios forem observados com acui-
dade, alguns sérios problemas saltariam aos
olhos, a começar pela chamada “criação de
movimento”, passaporte para esse espetácu-
lo poder constar na programação de uma
mostra de dança. Coreograficamente pueril,
quase óbvio e quase elementar, lembrando
exercícios de sala de aula, o que se configura
ali como pesquisa beira o inacreditável,
quando se pensa no lugar que ocupa, ou seja,
um palco de um dos mais importantes cen-
tros culturais da cidade. O que torna tal “cri-
ação” ainda mais problemática é que o cor-
po da atriz/bailarina (?) não possui maturi-
dade técnica para executá-la, deixando que
a pouca qualidade de movimento transforme-
se em algo ainda mais postiço, não incorpo-
rado e, também aqui, não poético.
Já a “interpretação” fica fadada à incom-
preensibilidade do texto de autoria de Mi-
randa, que carrega em tons psicologizantes
a poética de Quintana. Num registro de le-
genda entre fala e gesto, Natasha parece ter
confundido literatura com literalidade. As-
sim, o que não se consegue, por pura falta
de habilidade, no que se apresenta como
sendo dança, tenta-se apressadamente recu-
perar no que sobra como teatro. Não há re-
M
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRAQUINTA-FEIRAQUINTA-FEIRAQUINTA-FEIRAQUINTA-FEIRA • • • • • 27 DE ABRIL • 200627 DE ABRIL • 200627 DE ABRIL • 200627 DE ABRIL • 200627 DE ABRIL • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
108
lação entre as duas linguagens. E, novamen-
te, o poético se esvai.
Por fim, a “idealização” do espetáculo: o
intrincado processo de tradução entre lin-
guagens artísticas, ou “transcriação”, como
quis outro poeta, exige que o artista conhe-
ça suficientemente bem os universos com os
quais elegeu trabalhar. Nada como o tem-
po para isso, coisa que Regina Miranda cer-
tamente conhece, como evidenciam seus
tantos trabalhos que trazem essa marca.
Em Maratona Quintana, entretanto, não
existe esse tempo, nem o processo de cons-
trução dele, nem o lugar propício. O corpo da
atriz/bailarina precisa antes aprender qual
é sua habilidade, para somente então se lan-
çar a tantas tarefas difíceis. A maturidade de
Miranda não dialoga com a imaturidade de
Corbelino. E nem como processo isso se insi-
nua. E a poética de Quintana, desse modo, não
poderia estar também em nenhum lugar e
em nenhum tempo do espetáculo.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
109
Balé confirma talentodos bailarinos profissionais
OBERTO PEREIRA
Ballet do Theatro Municipal do Rio de
Janeiro comemora seus 70 anos apos-
tando no futuro, mas sem deixar de olhar seu
passado. Ao menos foi isso que se pôde ver
na estreia de Coppélia, na quinta-feira, por
si só uma ótima escolha para festejar uma
data tão importante para esta que ainda é a
primeira e a única companhia de balé clás-
sico do País.
Coppélia é importante para a história do
Theatro Municipal por várias razões. Como
vem sendo apresentado desde a década de
1950, em diferentes versões, transformou-se
em ótima oportunidade para revelar novos
talentos da casa, sobretudo por seu papel
feminino, Swanilda. Eleonora Oliosi e Ana
Botafogo são dois belos exemplos, duas de
nossas melhores intérpretes que deixaram
sua marca na história da companhia justa-
mente por seu desempenho neste balé.
Como não poderia deixar de ser, a ver-
são desse ano revelou para o público cario-
ca o nome de Karina Dias, que mostrou, na
estreia, possuir todos os atributos para uma
verdadeira primeira bailarina. Tecnicamen-
te impecável, tem timing para as pantomi-
mas, como foi comprovado no 2º ato, quan-
do contracena com Dr. Coppelius (muito
bem construído por Paulo Arguelles). Vitor
Luiz, como Franz, pôde apenas mais uma
vez mostrar que é nosso primeiro bailarino,
já que a cada temporada se mostra mais se-
guro e artisticamente mais refinado.
Entretanto, se os papéis principais foram
muito bem desempenhados, o mesmo não se
pode falar do corpo de baile, que carece ain-
da de maior acuidade em sua coesão. Pelas
constantes trocas de direção artística que a
companhia sofreu recentemente, é justa-
mente no conjunto que se vê refletidas suas
consequências. Nada grave, apenas uma
questão de afinação.
Este é o primeiro resultado da curta ges-
tão de Marcelo Misailidis à frente da dire-
ção. Bailarino que se formou artisticamen-
te no próprio Theatro Municipal, conhece
seus meandros e sua história. A julgar pela
noite de estreia, tão emocionante com as ho-
menagens aos 25 anos de carreira de Ana
Botafogo e ao excelente Dennis Gray, fale-
cido no ano passado e um dos maiores Dr.
Coppelius que esse mundo já conheceu, os
sete meses que ainda restam a Misailidis
prometem. Passado, futuro, história e tradi-
ção: quando se fala em balé, esse movimen-
to parece ser mesmo fundamental.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE I RO • DOMINGO • 4 DE JUNHO • 2006R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 4 DE JUNHO • 2006R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 4 DE JUNHO • 2006R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 4 DE JUNHO • 2006R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 4 DE JUNHO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
110
Descompasso entredesejo e realização
OBERTO PEREIRA
extensão do corpo em sua relação coma tecnologia parece ser mesmo um
tema inevitável para a dança contemporâ-nea que investiga a imagem através das no-vas possibilidades midiáticas. E é nesse de-sejo que se insere o trabalho da coreógra-fa gaúcha, residente no Rio de Janeiro, An-dréa Maciel. Ao longo de sua carreira, acultura pop esteve sempre presente, fun-cionando como uma marca que se afina aosregistros que o ambiente virtual tem a ofe-recer à cena que constrói. Essa é sua pes-quisa e sua assinatura.
Seu mais novo trabalho, Gravidade zero,estreado no último dia 2 e que fica em tem-porada até o dia 18 de junho, na Sala Multiu-so do Espaço SESC, em Copacabana, tambémnão escapa desse seu desejo. Mas sucumbe aele. Tecnologia fica fora do corpo que dança,um corpo que ainda precisa se construir apartir de algo que parece lhe ser mais pre-mente nesse momento: a própria técnica.
Se a vontade é estabelecer contatos en-tre dança e vídeo, essas linguagens perma-necem ainda justapostas em Gravidade
zero. Não há a técnica que faz a tecnolo-gia ser incorporada e o vídeo se tornamero adereço. Nenhuma nova possibilida-de se apresenta e a tal gravidade, mesmonos truques quase primários de imagem,está lá, bem presente, mas longe do zero,como intenta o título da obra.
Desvelando ainda mais o descompas-so, todo o investimento metalinguísticode um espetáculo que se revela falandodele mesmo é ainda mais postiço. As bai-larinas que acompanham a experienteAndréa Maciel carecem de ajustes bási-cos que só a maturidade poderia conce-der. Ouvi-las conceituar sobre a felicida-de, por exemplo, ou combinar sequênciasde movimentos como se estivessem numensaio, soa quase pueril, deixando esca-par não o “de dentro” do espetáculo, massim sua fragilidade mais óbvia.
Nesse sentido, mesmo a pesquisa coreo-gráfica precisaria ser repensada. AndréaMaciel, ótima bailarina e inteligente coreó-grafa, sempre indiciou em suas obras uminstigante percurso de qualidade de movi-mento, que assumia sua relação com o popao mesmo tempo em que oferecia um novoolhar sobre ele. Em Gravidade zero, tudoparece reciclagem do que ela já tanto ex-perimentou. Mas reciclagem que assim per-manece, sem resultar em novo produto.
Pelo uso da tecnologia que escolheu, acoreógrafa talvez necessitasse rever o que,antes, se materializa como técnica em seucorpo e transformá-la em ideia. Ou seja,precisa entender que para lançar-se à aven-tura de ser pós-moderna, ou contemporânea,teria que revisitar o que o moderno ainda
poderia lhe render.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 6 DRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 6 DRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 6 DRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 6 DRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 6 DE JUNHO • 2006E JUNHO • 2006E JUNHO • 2006E JUNHO • 2006E JUNHO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
111
Frágil identidade
OBERTO PEREIRA
Algumas cenas permanecem em esta-
do latente, solicitando à coreógrafa que as
dissolva em dança. A questão da frontali-
dade, por exemplo, um mal que assola a
dança cênica há tantos séculos e que bidi-
mensionaliza os corpos em cena, é um belo
tema a ser explorado, mas se desmancha
sem se ajustar, sequer, à questão da identi-
dade. Seria o caso, aqui, de se falar de uma
identidade da dança? O que essa frontali-
dade nos acusa e nos causa como pensa-
mento, como dança?
Dani Lima parece experimentar possi-
bilidades e expor seus experimentos ao pú-
blico, deixando-os em estados mesmo de
meras possibilidades. A pergunta é se isso
não pode se transformar em maneirismo
dela mesma, que contaria sempre com a
eficácia de truques na cena e deixaria a
coragem para aprofundamentos – coreográ-
ficos, inclusive – em segundo plano.
Para que não se transforme em um da-
queles indecifráveis, e por isso mesmo pou-
co eficazes, manuais de instruções que acom-
panham nossos produtos de consumo, seu
novo espetáculo mereceria traçar uma re-
lação mais exata entre o que se discute e o
que se apresenta. Para que nós, e até os pró-
prios bailarinos, saibamos para que servem
todos os comandos de ação naquela dança
que ali se apresenta.
anual de instruções é o novo espetá-
culo da coreógrafa carioca Dani Lima,
em temporada no Teatro Nelson Rodrigues
até domingo. Na verdade, ele faz parte de um
projeto maior, denominado Vida real de 3 ca-
pítulos, que conta ainda com uma performan-
ce e uma instalação. Costurando as três ações,
a discussão sobre a identidade torna-se tema
central que, aliás, já faz parte das investiga-
ções artísticas de Dani desde seu espetáculo
anterior, Falam as partes do todo?.
Em Manual de instruções, entretanto, a
identidade aparece problematizada em ou-
tros modos de pensá-la, denunciando, inclu-
sive, suas perguntas no próprio corpo que
dança. Nesse sentido, outro elemento, bas-
tante caro à dança, ganha a cena: o espaço e
suas implicações tanto físicas (para esse
corpo) quanto simbólicas (para essa dança).
O problema, justamente, é como essas
duas questões, identidade e espaço, se articu-
lam no espetáculo. Algumas vezes, o que pa-
rece é que Dani Lima ficou atada em seu
levantamento de dados sobre essas questões,
denunciando a séria pesquisadora que sem-
pre foi, mas que não conseguiu transformá-
los em matéria-prima de sua obra. O resulta-
do permanece quase que como uma justapo-
sição de elementos que ora se ajustam à ideia
de identidade e ora à de espaço. E a dança,
intercambiante, cambaleante, não se dá.
M
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO R IO DE JANEIRO R IO DE JANEIRO R IO DE JANEIRO R IO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2006• SEXTA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2006• SEXTA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2006• SEXTA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2006• SEXTA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
112
Bertazzo se esqueceude suas próprias lições
OBERTO PEREIRA
alvez uma trilha bastante intrigantepara se entender o espetáculo Milá-
grimas, concebido e dirigido por Ivaldo Ber-tazzo, seja aquela aberta pelo pequeno dis-curso proferido pela representante da áreade cultura da maior empresa brasileira, pa-trocinadora desse projeto de São Paulo, cha-mado Dança Comunidade. Convidada pelopróprio coreógrafo a falar na noite de es-treia para convidados, na última terça-fei-ra, no SESC Tijuca, suas palavras foram re-veladoras no que tange um ponto funda-mental que pode nos ajudar a pensar emcomo esse espetáculo – ou projeto – deveser assistido pelo público. Vamos a ele.
Apresentado como uma companhia pro-fissional de dança, sua qualidade seria, segun-do esse discurso, “igual ou melhor” se compa-rada a outras companhias de dança contem-porânea profissionais do País. Se assim for,nosso olhar deveria ficar livre, definitivamen-te, de qualquer resquício de algo que se co-necte com o fato de se tratar de um projetosocial. Questão antiga e empoeirada, desdeque projetos sociais com dança pulularam aofinal da década passada, ela faz com que oentrecruzar de especificidades da arte (dadança) e do social clame ainda por revisões.
Desse modo, aliando profissionalismo econtinuidade (outro item mencionado nodiscurso), o olhar que se dirige ao espetácu-lo, com “bailarinos profissionais”, não deve
ser complacente com o que ali fragilmentese organiza. Para atermos apenas a um dado,o que se constrói naquele corpo-cidadão,usando uma ideia bertazziana, é um mistopouco eficaz de técnicas que resulta quaseque num espetáculo de justaposições. Nãohá amálgama possível que faça falar sobreo tema que se propõe, ou seja, a África.
Resultado: ficamos esbarrando nas cita-ções de danças. Estão lá a dança indiana, aafricana, o balé, o funk, o jazz, adornadoscom o que supostamente seria “africano”para nós. A questão é se essas danças estãomesmo construídas habilmente como técni-ca naqueles corpos e não como adereço parao discurso que se intenta. Bertazzo pareceter sucumbido, infelizmente, ao passo dedança. E, com ele, a todas as suas mazelas,como a praga da frontalidade e da simetriaperspectívica, por exemplo.
Falta ali o que o educador Bertazzo sabefazer com destreza: falta coreograficamen-te ser coerente, a partir de um corpo que,sabemos nós, não muda seus registros assimtão rapidamente para dar conta de um dis-curso que se impõe. Se falta antes essa ques-tão primordial da educação, não se pode –ou não se deve – falar de uma suposta com-panhia profissional. Nada que diminua aimportância do projeto. Mas que a sinalizenuma outra dimensão, também cara à dan-
ça e, por que não, à arte.
T
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 5 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 5 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 5 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 5 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 1 5 D E J U L H O • 2 0 0 6
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
113
A caminho da felicidade
OBERTO PEREIRA
renderiam alguns outros tantos espetáculos,
se devidamente buriladas. Há ainda resquí-
cios de uma dança quase frontal, que esbo-
ça um sorriso para a plateia, cacoetes de
uma antiga forma de dançar que ainda as-
sola as academias de balé do nosso país. Mas
há também uma qualidade inegável de
quem sabe o que está fazendo.
Tal qualidade pode ser flagrada, sobretu-
do, na excelente performance de dois bailari-
nos da companhia, Rodolfo Saraiva e Márcio
Jahú, que carregam em sua movimentação a
propriedade do que Laerte intenta em sua
dança de rastros históricos. Mas não rastros
que apontam para o passado, mas aqueles que
se lançam em possibilidades para o futuro.
Carlos Laerte merece nossa atenção
pelo que ainda pode ser, pelo que suporta
como potencialidade. Esse futuro, embre-
nhado de história, que nos faz ler um pouco
da dança dessa cidade, já está em Relações.
Esse espetáculo, portanto, deve ser conside-
rado apenas como uma primeira via de aces-
so a uma assinatura coreográfica ainda a ser
alcançada, nessa rede de relações de dança
que se pretende tecer.
m Relações, espetáculo que o jovem
coreógrafo carioca Carlos Laerte
apresenta com sua também jovem Laso
Companhia de Dança, no Teatro Carlos
Gomes até o dia 27 deste mês, rastros de uma
dança que poderia ser chamada de “tipica-
mente carioca” são revelados.
Bailarino egresso das companhias de Re-
nato Vieira e Deborah Colker, Laerte arrasta
consigo, em sua franca habilidade coreográfi-
ca, vestígios físicos e cênicos daqueles com
quem teve longo contato artístico. De Renato,
uma forma de fazer dialogar no corpo estru-
turas de balé, jazz e dança contemporânea,
numa ainda busca de como isso se configura
como vocabulário de movimento. E de Debo-
rah, um vigor cênico que coloca os bailarinos
e o público em estado de constante prontidão.
Neste espetáculo, entretanto, consegue-
se vislumbrar um modo próprio de articu-
lação desses elementos que estão na histó-
ria da dança de Laerte, o que concede ao
seu trabalho uma curiosa, ainda que muito
tenra, identidade coreográfica. Percebe-se
um jorro incontrolável de ideas, típico da-
queles que se iniciam nessa arte, e que
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • • • • • TERÇA-FEIRATERÇA-FEIRATERÇA-FEIRATERÇA-FEIRATERÇA-FEIRA • 18 DE JULHO • 2006 • 18 DE JULHO • 2006 • 18 DE JULHO • 2006 • 18 DE JULHO • 2006 • 18 DE JULHO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
114
Entre o fio da ciência e da arte
OBERTO PEREIRA
mesma ideia. A bailarina americana Isado-
ra Duncan, a grande iniciadora de uma dan-
ça moderna, que diz ter vindo da lua, compa-
rece como uma nave que redimensiona es-
paços no corpo, na cena, e nas metáforas da
vida. Tudo se encaixa com uma justeza fina
em cena: ciência, arte, humor, dança, disser-
tação de mestrado, vídeo, trilha sonora...
Apenas dois ajustes poderiam ser repen-
sados. O primeiro deles é a citação da dan-
ça de Isadora, que poderia ser mais bem
estudada por Jabor. Detalhes coreográficos
importantes de execução deveriam ser le-
vados em conta, porque cabem na precisão
do espetáculo e são hoje detalhes acessíveis
aos pesquisadores. E o segundo é o tempo
(essencial para se falar de espaço, não?) do
próprio espetáculo, que se dilata e, algumas
vezes, rediz o que já está lá elucidado. A
metáfora não comporta redizeres...
Pela inteligência que se articula nesse
espetáculo-dissertação, vale a pena assistir
ao espaço que ali se inaugura. A dança faz
dele matéria-prima. E devolve para a ciên-
cia noções que poderiam fazer de qualquer
astronauta um exímio bailarino.
e a ideia da metáfora parte sempre de
sua relação com o corpo, como defen-
dem os autores George Lakoff e Mark John-
son (no livro Metáforas da vida cotidiana), o
novo espetáculo de Andréa Jabor e Ricky Sea-
bra, Isadora.orb, em temporada na Caixa Cul-
tural até dia 23 deste mês, parece ser um lugar
privilegiado de constatação dessa premissa.
Para se falar do espaço, aquele dos astro-
nautas, foi configurado cenicamente um
outro espaço, aquele da dança e da arte.
Metaforicamente, ainda um terceiro espa-
ço se compôs: aquele cravado entre signifi-
cante e significado, onde a criação respira.
Isadora.orb, que tem como subtítulo A me-
táfora final, estabelece um contato entre o
fio da ciência e o da arte, não sem provocar
curtos-circuitos interessantes.
Pensar a exploração do espaço como pos-
sibilidade não apenas para astronautas, mas
para artistas, para que esses experienciem,
por exemplo, a noção de gravidade zero, foi
o ponto de partida. O resultado foi desde uma
dissertação de mestrado, de Seabra, até esse
espetáculo que encontra na dança de Jabor
sua tradução. Quase que interfaces de uma
S
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 20 DE JULHO • 2006• QUINTA-FEIRA• 20 DE JULHO • 2006• QUINTA-FEIRA• 20 DE JULHO • 2006• QUINTA-FEIRA• 20 DE JULHO • 2006• QUINTA-FEIRA• 20 DE JULHO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
115
Maracanã sem a paixãoe a surpresa do festival
Dínamo: O esporte é tema de duascoreografias com resultado desigual
ILVIA SOTER
lho em que o esporte serve como inspiração
para a movimentação. Já no terceiro movi-
mento, quando a dança ganha a parede ver-
tical no fundo da cena, Deborah Colker
explora com êxito as possibilidades do supor-
te só viáveis por essa outra relação com a gra-
vidade. A coreógrafa sublinha a potência
gráfica da dança e a parede de Velox trans-
forma-se numa bonita tela onde os corpos que
dançam constroem seus desenhos. O último
movimento de Velox é um gol de placa.
Em Maracanã, há também uma parede
vertical ao fundo, neste caso, representando
as linhas de um campo de futebol. Os baila-
rinos também se apoiam nela, desta vez
usando a técnica de rappel, suspensos pela
cintura através de um cabo. O futebol é tema
e, também aqui, serve de fonte para a movi-
mentação. Ora os bailarinos reproduzem
gestos que remetem ao esporte como o chu-
te, o drible e mesmo a formação da barrei-
ra, ora transformam-se, por exemplo, em
bola. A chuteira aparece como sapatilha de
ponta nos pés de Renata Versiani que bate
um bolão em sua movimentação clássica.
Mas, diferente do que ocorre em Velox, Ma-
les são lindos, atléticos, têm cabelos
bem cortados e parecem saídos de
uma revista de moda internacional. Dançam
muito bem e encantam o público com a pre-
cisão com que realizam suas proezas. É a
Companhia de Dança Deborah Colker que
faz sua temporada anual no Teatro João Cae-
tano. Dínamo reúne as coreografias Velox, de
1995, e Maracanã, criada em 2006 para inte-
grar o projeto cultural da Copa do Mundo.
Unindo as duas peças, há mais do que o
fato de terem o esporte como tema. Deborah
Colker trabalha desde a criação de sua com-
panhia com um grupo de competentes cola-
boradores estáveis como Gringo Cardia, que
assina a direção de arte de ambas as peças, e
os músicos Berna Ceppas e Sergio Mekler,
responsáveis pela direção musical. Junto com
a coreógrafa, esta equipe compõe o projeto
estético da companhia que se afirma a cada
nova criação como marca registrada.
Pode-se dizer que Velox tem três movi-
mentos. Nos dois primeiros, os gestos espor-
tivos – do atletismo à natação – se associam
a gestos cotidianos, e a beleza dos corpos atlé-
ticos é ressaltada numa coreografia sem bri-
E
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 2 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 2 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 2 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 2 D E J U L H O • 2 0 0 6R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 2 2 D E J U L H O • 2 0 0 6
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
116
racanã não consegue ir muito além de uma
investida literal. Mesmo a parede não se
integra ao que se desenvolve sobre o palco.
A frontalidade excessiva das coreografias
impede a incorporação do plano vertical
como continuação da cena, do campo.
Deborah e sua equipe extraem deste
esporte a sofisticação visual das formas, das
bandeiras e dos uniformes, mas não conse-
guem despertar a paixão e a surpresa que
são bem-vindas quando se trata de dança e
de futebol.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
117
Quando a dança correatrás do brilho da música
Milágrimas: Projeto social tocado por Ivaldo Bertazzoprecisa ser diferenciado do resultado cênico
ILVIA SOTER
ça profissional e estável. Já Bertazzo, de for-
ma mais lúcida e realista, afirma estar foca-
do na formação de professores que poderão
no futuro multiplicar suas ações, difundindo
seus ensinamentos em suas comunidades de
origem. Esta aparente confusão está na base
de muitas ações sociais através da arte, so-
bretudo, quando o resultado dessas ações é
colocado em cena na forma de um espetá-
culo grandioso, contando com a colaboração
de importantes artistas da música e da dan-
ça profissional. E isso tende igualmente a
determinar o tipo de olhar que se porta so-
bre o espetáculo. Se por um lado, só a persis-
tência e a continuidade de iniciativas como
a de Bertazzo já merecem reconhecimento
e comemoração, por outro lado, é necessá-
rio que esta percepção não acabe por enco-
brir a qualidade do que é levado em cena.
Como aconteceu em Samwaad, peça
anterior do mesmo grupo, o encontro musi-
cal antecedeu o espetáculo. A convivência
de músicos africanos e brasileiros está na
origem da bela trilha sonora da peça, sob
direção de Benjamin Taubkin e Arthur Nes-
trovski. Enquanto em Samwaad, Bertazzo
frente de seu projeto Dança Comuni-
dade, Ivaldo Bertazzo é um dos pou-
cos remanescentes do movimento que asso-
cia dança e ação social que teve, no Rio de
Janeiro, seu auge no início dos anos 2000. O
coreógrafo esteve por três anos no Rio onde
criou o Corpo de Dança da Maré junto ao
Centro de Estudos e Ações Solidárias da
Maré (Ceasm), e onde produziu três espetá-
culos em que este Corpo de Dança conviveu
em cena com atores, cantores e músicos pro-
fissionais. De volta a São Paulo, Bertazzo re-
petiu a experiência associando-se a ONGS
locais e inaugurou o projeto Dança Comuni-
dade, que apresenta no ginásio do SESC da
Tijuca – mesmo espaço que recebeu os espe-
táculos de experiência carioca – Milágrimas,
sua segunda criação com o novo grupo.
Não parece ser por acaso que nas falas
que precederam o espetáculo na noite de
pré-estreia de Milágrimas, o trabalho de
Bertazzo tenha sido apresentado de manei-
ra diferente pela representante da Petrobras
Cultural, patrocinadora das ações, e pelo
próprio coreógrafo. A Petrobras acredita
estar patrocinando uma companhia de dan-
À
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE JULHO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE JULHO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE JULHO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE JULHO • 2006R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 23 DE JULHO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
118
foi ao encontro de referências indianas, Mi-
lágrimas propõe um diálogo entre Brasil e
África. De que África e de que Brasil Milá-
grimas trata? Este é um de seus problemas.
Um outro ponto delicado é que ao propor
uma estrutura dialógica entre culturas, Ber-
tazzo perde uma das grandes forças de seu
trabalho: a hibridação. Há mais de 30 anos, o
coreógrafo vem desenvolvendo uma lingua-
gem única de movimentos em que funde
danças tradicionais de diferentes origens e
culturas, transformando-as. Esta é uma de
suas marcas: uma dança que se faz como tra-
ma das várias danças e técnicas corporais que
estudou a fundo ao longo da vida. A o fazer
dialogar África e Brasil, o coreógrafo acaba
por separar estas referências em sua própria
dança, sublinhando o que é África, no caso,
representada pelas estruturas rítmicas com-
plexas, pelos pés que percutem o chão, ou ain-
da pela ideia de tribo; daquilo que entende
como Brasil. Para que os dois pólos sejam
identificados, o diretor acaba por reforçar
clichês, enfatizados pelos figurinos nada su-
tis. Neste diálogo, o vocabulário de Bertazzo
se descaracteriza e se empobrece, atraves-
sado por referências óbvias da dança cênica
ocidental, apoiado em passos de balé e de
dança moderna, por exemplo.
Não há dúvida de que experiências
como a do Dança Comunidade tem enorme
valor quando conseguem manter-se no tem-
po. Como bem trata Ferréz no livro lançado
junto com o espetáculo. Referindo-se às pes-
soas que integram projetos como esse, o es-
critor lembra: “Ela volta para a cidade-dor-
mitório, mas sabe que, quando for ensaiar no
outro dia, o projeto vai estar lá, e isso, meu
querido, ninguém pode medir o valor que
tem.” No entanto, a dança de Milágrimas não
consegue atingir o brilho da música e ape-
sar de mostrar que os jovens atendidos pelo
projeto seguem desenvolvendo suas compe-
tências, nem de longe o grupo pode ser iden-
tificado como uma companhia profissional.
Isso importa? Talvez sim, sobretudo quan-
do o resultado das ações é apresentado como
superprodução.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
119
Projeto corajoso traz preciososmomentos em meio a excessos
OBERTO PEREIRA
rar em nada menos que Vidas secas, ro-
mance de Graciliano Ramos. Tudo pare-
ce, até aí, bastante orgânico, já que o
próprio Clébio, de origem nordestina,
sempre buscou em suas investidas core-
ográficas um retorno a suas origens. En-
tretanto, mesmo que busque se inspirar
livremente no romance, o espetáculo
sucumbe diante da monumentalidade da
obra literária.
Talvez pela própria sede de se apro-
priar da ideia do escritor, Clébio não se
ateve como deveria à estrutura do ro-
mance, seco e árido, econômico nas pa-
lavras, que traduz iconicamente o sertão
na própria prosa. O espetáculo, algumas
vezes, peca pelo excesso, tanto de movi-
mentos quanto na trilha sonora. Uma
pena, já que alguns momentos delicados
se ofertam como preciosidades de algo
que aponta para o clima do romance. E
é justamente nesses momentos que se
pode vislumbrar o que um dia será seu
vocabulário de movimento.
O sanfoneiro, que infelizmente não divi-
de a cena com as bailarinas, é responsável
ideia é interessante. Duas bailarinas,
um coreógrafo e uma produtora se
uniram em torno de um mesmo desejo: mon-
tar um espetáculo, Tudo o que se espera..., que
estreou quarta-feira no Teatro Cacilda
Becker. Não se trata de uma companhia de
dança, mas de um projeto, denominado Par-
cerias, que acena com novas possibilidades
de produção nesse deserto de política para
a dança em que se encontra a cidade do Rio
de Janeiro hoje.
Se a ideia é interessante e, sobretudo,
válida, o resultado ainda denota fragilida-
des naturais desse tipo de empreitada que
se inaugura por aqui. Nada a ver com a
qualidade das quatro excelentes bailari-
nas, ou com a produção cuidadosa e nem
mesmo com o pensamento estético que
atravessa o espetáculo. Faltam ali ajustes
que só poderiam vir com o tempo, mas
num outro tempo que se inaugura com a
efemeridade latente de um tipo de proje-
to como esse.
Clébio Oliveira, jovem bailarino que
ainda tateia o ofício de coreógrafo, se
lançou a um desafio e tanto, ao se inspi-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 5 D E A G O S T O • 2 0 0 65 D E A G O S T O • 2 0 0 65 D E A G O S T O • 2 0 0 65 D E A G O S T O • 2 0 0 65 D E A G O S T O • 2 0 0 6
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
120
pela maioria desses momentos, com sua
singela contribuição ao espetáculo. Seria
necessário ter coragem para fazer de sua
música o alinhavo enxuto que o tema so-
licita. Mas a coragem já está em bancar
um projeto como esse. Como um jovem
aprendiz de coreógrafo, Clébio Oliveira
ainda aprenderá a importante lição de
jogar suas tantas boas ideias fora, para
perseguir apaixonadamente aquela que
seria sua verdadeira pesquisa. Pela quali-
dade que já se apresenta em Tudo que se
espera..., esta é, com certeza, apenas uma
questão de tempo.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
121
Territórios abertospara a expressão masculina
OBERTO PEREIRA
Isso pode ser visto logo no início, quan-
do a brincadeira Escravos de Jó é trazida à
cena. O sentido de responsabilidade para
que o jogo dê certo, a partir de uma contri-
buição individual que aponta para o coleti-
vo, já traça o caminho do espetáculo no ca-
minho dessa tradição. As referências às dan-
ças de origem judaica, matéria-prima que
já vem sendo burilada por Esther desde Ter-
ras, seu espetáculo de 1999, ganham a di-
mensão do corpo masculino, fincando ainda
mais o pé nesse sentido de tradição. Uma
tradição de hoje, pulverizada, diversa, glo-
balizada. Uma tradição contemporânea.
E disso resultam momentos muito espe-
ciais, como os que oferecem o privilégio de
poder ver dançar um experiente Alexandre
Franco, bailarino e coreógrafo que possui
todo um pensamento de dança já estrutura-
do, ao lado do jovem, e excelente, Felipe
Padilha. Dois lugares tão repletos de singu-
laridades estão ali desvelados. Ou mesmo
quando se pode ver a maturidade com que
os bailarinos Marcellus Ferreira e Marcelo
Lopes doam à cena sua parcela de história,
de modo tão generoso.
ito bailarinos. Oito homens. Oito ter-
ritórios diferentes. É assim que a cena
se constrói no novo trabalho da coreógrafa
Esther Weitzman, Territórios, que cumpriu
recente temporada na cidade em três tea-
tros diferentes (Nelson Rodrigues, Sérgio
Porto e Centro Coreográfico). Uma dança
estritamente masculina e ao mesmo tempo
absolutamente contemporânea cria a opor-
tunidade de se observar como o vigor do vo-
cabulário de movimentos de Esther encon-
tra um paradeiro seguro naqueles corpos.
Os bailarinos, especialmente convida-
dos para esse trabalho, aceitaram o desa-
fio de estarem juntos no palco, mas nunca
construindo um corpo só, como o de baile,
do balé, com a qual estamos acostumados.
São corpos com histórias diversas, com
musculaturas e qualidades cinéticas tão
singulares que se ofertam como mapas de
danças sempre plurais. Toda essa palheta
de possibilidades físicas foi inteligente-
mente pensada pela coreógrafa, que ad-
ministra maturidades (e, por isso, compe-
tências) diversas através do uso de uma
ideia de tradição.
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTRIO DE JANEIRO • SEXTRIO DE JANEIRO • SEXTRIO DE JANEIRO • SEXTRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRAA-FEIRAA-FEIRAA-FEIRAA-FEIRA • 1 • 1 • 1 • 1 • 11 DE AGOST1 DE AGOST1 DE AGOST1 DE AGOST1 DE AGOSTO • 2006O • 2006O • 2006O • 2006O • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
122
Os territórios que se desvendam através
da coreografia de Esther Weitzman estão ali
ao mesmo tempo em estado bruto e em es-
tado de prontidão. Os movimentos percus-
sivos, os silêncios e as danças em conjunto,
elementos que se tornaram sua marca, ga-
nharam agora uma tradução vigorosa de
corpos masculinos. E fomentam ainda mais
a esperança de que esses territórios, sem
perder sua tradição e sua história, um dia
possam mesmo dividir um mesmo espaço. É
disso que essa dança fala.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
123
A força da presençado coreógrafo Bill T. Jones
ILVIA SOTER
próprio universo. Se a ideia é interessante,
a visão de Jones sobre as questões que abor-
da e a forma como as aborda são, em vários
momentos, de uma ingenuidade desconcer-
tante.
No universo de Another evening – I bow
down, o Bem se opõe ao Mal, o branco às co-
res, o Oriente ao Ocidente. A desorganiza-
ção das águas é representada pelo som de
uma banda de rock que permanece dentro
de uma caixa no fundo da cena, cujas por-
tas/comportas são abertas e fechadas pelo
coreógrafo, em oposição à música acústica
tocada também ao vivo. A peça se constrói
sobre metáforas como estas e nelas a dança
se aprisiona.
A companhia é formada por um belo
grupo de bailarinos, competentes tecnica-
mente e muito distintos entre si. Bill T. Jo-
nes sempre teve como princípio trabalhar
com bailarinos de morfologias diversas. Este
é o caso aqui. A movimentação do grupo
sugere ora águas mais ou menos revoltas, ora
uma comunidade primitiva. A religiosida-
de implícita na proposta de Jones carrega
dramaticamente o grupo, mas num registro
pós a morte de Arnie Zane, seu par-
ceiro de vida e criação, no fim dos anos
80, Bill T. Jones vem carregando no tom po-
lítico de seus trabalhos. Desde então, o fato
de ser negro, homossexual e soropositivo tor-
nou-se quase uma bandeira, um cartão de
visita que acompanha e antecede sua dan-
ça. Suas criações são sempre atravessadas
por referências autobiográficas, mesmo
quando o coreógrafo não está em cena.
Another evening – I bow down, sua peça
mais recente, apresentada no Theatro Mu-
nicipal no último fim de semana, trata das
grandes catástrofes provocadas pela água
e se estrutura sobre a palavra narrada. No
texto assinado por Bill T. Jones e Andrea
Smith, e falado pelo coreógrafo em cena, en-
trelaçam-se relatos pessoais a referências
a algumas passagens bíblicas em torno da
Arca de Noé e outras tragédias. Presente
durante todo o tempo, Bill T. Jones é ao mes-
mo tempo narrador e demiurgo. A relação
entre a palavra do diretor e coreógrafo e a
cena que se desenha, associada à espiritua-
lidade evocada pelos textos, faz da figura do
coreógrafo este deus que cria e destrói seu
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 28 DE AGOSTO • 2006 SEGUNDA-FEIRA • 28 DE AGOSTO • 2006 SEGUNDA-FEIRA • 28 DE AGOSTO • 2006 SEGUNDA-FEIRA • 28 DE AGOSTO • 2006 SEGUNDA-FEIRA • 28 DE AGOSTO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
124
único. Suas interpretações – apesar de cor-
retas – não conseguem ganhar densidade,
ficando apenas na superfície.
No entanto, algo consegue escapar da
superficialidade e do evidente anacro-
nismo em Another evening – I bow down:
a força da presença de Bill T. Jones. A
convicção com que defende seus gestos e
palavras não deixa de ser tocante. É em
sua experiência de vida, na serenidade e
na economia com que se movimenta que
a mensagem otimista que o coreógrafo
pretende passar encontra sua forma mais
precisa.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
125
A viagem existencialistae solitária de um coreógrafo
OBERTO PEREIRA
nato. Mas, por outro lado, há uma simultanei-
dade que borra limites, há uma sincronici-
dade que é antes movida por uma sensação
e não por uma mera marcação coreográfi-
ca. Há o silêncio, registro inédito até então.
Há a respiração. Há um suspiro contido.
Como o silêncio do rio. Como a solidão da
personagem na canoa.
Todo esse novo registro foi sabiamen-
te assimilado pela companhia composta
por cinco bailarinos, de longe a melhor for-
mação que Renato já contou nos últimos
anos. Mas é na experiente Soraya Bastos
que o amálgama entre ideia e sua corpo-
rificação torna-se emocionantemente vi-
sível. Sua dança, pelos anos de convívio
com o coreógrafo, é sua testemunha, seu
relato, sua cúmplice, coisa rara de se ver
hoje em dia.
Na qualidade daquele que se lança a
um novo universo de dança, “aquilo que
não havia, acontecia”, citando o conto que
nos serve de guia nesse espetáculo. Está
lá o “demoramento” de Guimarães Rosa.
Está lá o “devagar depressa dos tempos”.
Alcançar tal delicadeza de sentidos é
como buscar mesmo uma terceira mar-
gem possível na dança. No caso de Rena-
to Vieira, essa dança tão sua e ao mesmo
tempo tão contemporânea parece ter sido
encontrada.
espetáculo Terceira margem, estreado
nesta última sexta-feira no Espaço
SESC, em Copacabana, marca um impor-
tante ponto de transição na carreira do co-
reógrafo Renato Vieira. Não uma transi-
ção de mão única, mas aquela cujos veto-
res apontam tanto para um reconhecimen-
to de sua história como também para pos-
sibilidades até então nunca experimenta-
das por ele.
O conto de Guimarães Rosa, A tercei-
ra margem do rio, foi a inspiração. Entre-
tanto, longe de buscar uma tradução da-
quela riqueza literária, Renato optou por
nutrir-se dela para ele mesmo lançar-se
em uma canoa, solitário em sua dança, em
seu rio, como metáfora de um lugar de cri-
se, de um lugar quase existencialista. O
resultado dessa tomada de posição que o
coreógrafo assume é novo em sua carrei-
ra, talvez porque ele tenha se lançado ao
que ele não domina, e sua sede de apro-
priação disso que lhe é tão absolutamen-
te desconhecido tornou-se matéria-prima
para sua criação. A sede está lá, à margem
e ao mesmo tempo tão incorporada.
Coreograficamente, o passo de dança
dissolve-se em movimento, mas um movi-
mento que não se nomeia. Estão lá as per-
nas altas, os pés devidamente estendidos,
sempre tão presentes nos trabalhos de Re-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA •RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA •RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA •RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA •RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 6 DE SETEMBRO • 2006 6 DE SETEMBRO • 2006 6 DE SETEMBRO • 2006 6 DE SETEMBRO • 2006 6 DE SETEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
126
Pas-de-deux dehistória e renovação
OBERTO PEREIRA
anos de dedicação, por um burilamento finode sua arte. E Vitor, ainda tão jovem, apren-de com sua companheira de palcos e pas-de-deux a ser cada vez mais preciso em seu
desempenho técnico e artístico. História e
renovação dançando juntos.
O corpo de baile ainda carece de pe-
quenos ajustes, mas nada que não se con-
quiste com a prática de se apresentar du-
rante uma temporada. Marcelo Misailidis
concedeu força exata a seu bruxo Rothbart,
enquanto Rodrigo Negri perdeu a mão em
sua caracterização do bobo da corte, bei-
rando muitas vezes o caricato. Mas é em seu
todo que a companhia prova porque detém
a qualidade de uma grande companhia de
balé, sabendo, inclusive, o que significa isso
num país como o Brasil.
Talvez seja essa qualidade, fina, e não
tão fácil para principiantes, que Pankova, a
artista russa convidada a remontar a obra,
ainda tenha dificuldade de perceber, como
prova a deselegância de suas declarações
à imprensa no dia da estreia do Lago. Tra-
ta-se, com certeza, de uma nova equação
que coloca o Brasil e o balé lado a lado.
Descobrir ali qual é o “x” dessa equação é
tarefa que nós, brasileiros, artistas, críticos
e público, fazemos a cada instante, reinven-
tando soluções, e concedendo a obras como
O lago dos cisnes um pouco da cara do fu-
turo que esse balé tanto merece.
arte do balé está viva. A difícil equa-ção entre o que se renova e o que
permanece como eixo da tradição pode serobservada a cada nova versão bem-suce-dida, a cada desempenho de uma estrela oude um corpo de baile. Basta que exista essaequação, uma equação cuja elegância deveser reestruturada ao longo da história deuma companhia de dança que se dedique àarte do balé.
Entre nós, apenas o Ballet do TheatroMunicipal se dedica a isso, primeira e ain-da única companhia com esse perfil no País.E assisti-la em sua mais nova versão de Olago dos cisnes, estreada na última sexta-feira, comprova sua habilidade em resol-ver equações artísticas.
A obra já faz parte da história daqueleteatro desde 1959, quando da primeiramontagem completa no continente ameri-cano, o que se tornou um marco da compe-tência da companhia. Desta vez, volta comoutra roupagem, através da versão ensina-da e ensaiada pela russa Yelena Pankova.O saldo é positivo. A equação, justa.
Os dois primeiros bailarinos, CecíliaKerche e Vitor Luiz, provaram porque sãoos mais indicados para os papéis desse balédentro do grupo. Cecília, com sua maturi-dade, está no auge do apuramento de suaqualidade de dança. Tudo nela se revelacomo detalhe estudado, conquistado por
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2006 • TERÇA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2006 • TERÇA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2006 • TERÇA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2006 • TERÇA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
127
Dança brasileiraem ritmo de inovação
Os grupos cariocas Atelier de Coreografia eCompanhia Urbana de Dança e o
mineiro Mimulus exibiram na XII Bienal de Lyon,na França, um panorama da diversidade
que se produz no Brasil
OBERTO PEREIRA
Com certeza, para nós brasileiros, a
estreia mais esperada foi a do carioca
João Saldanha e seu Atelier de Coreo-
grafia, que apresentou Extracorpo, resul-
tado de uma pesquisa coreográfica a
partir da obra de Oscar Niemeyer, e fru-
to de uma parceria entre a própria Bie-
nal e o Espaço SESC. Lançando um
olhar sofisticadíssimo sobre a ideia ar-
quitetônica do mestre, Saldanha causou
estranhamento num público formado
pelos mais importantes críticos de dan-
ça do mundo todo, propondo formas e, so-
bretudo, tempos diferentes de se olhar
para um Brasil que se pretendia antes
moderno que exótico. Ponto para nós,
que tivemos a oportunidade de mostrar
que a dança por aqui vai muito bem,
obrigado, salvo todas as dificuldades que
já conhecemos.
As outras duas companhias brasileiras, a
mineira Mimulus e a carioca Companhia
Urbana de Dança, completaram muito bem
um diagrama da diversidade de danças que
o pequeno Café Danse em Lyon, na
França, o que se ouvia ao fundo era,
durante quase todos os dias deste mês de se-
tembro, música brasileira. No caso, Caetano
Veloso. Ponto de encontro oficial da XII Bie-
nal de Dança, reunindo bailarinos, coreógra-
fos, críticos, produtores e curadores do mundo
todo, já ali podia se ter um pouco da impres-
são de como o Brasil, através de sua música e,
sobretudo, através de sua dança se fazia mar-
cante durante toda a edição deste que é um
dos festivais mais importantes da atualidade.
O tema desse ano, proposto por seu
curador, o francês Guy Darmet, é a gran-
de cidade. São 40 companhias vindas de
metrópoles de todos os continentes, cu-
jos trabalhos possuem o ponto comum
na temática, que resvala em questões
como o urbano, a cultura da cidade e seus
meandros. O Brasil compareceu com
três companhias, duas do Rio e uma de
Belo Horizonte, além de estar presente
indiretamente em outras apresentações.
O Brasil estava em Lyon.
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE SETEMBRO • 2006• TERÇA-FEIRA • 26 DE SETEMBRO • 2006• TERÇA-FEIRA • 26 DE SETEMBRO • 2006• TERÇA-FEIRA • 26 DE SETEMBRO • 2006• TERÇA-FEIRA • 26 DE SETEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
128
se produz por aqui. A primeira, que articula
de forma inovadora as danças contemporâ-
nea e de salão, é velha conhecida dos fran-
ceses, fazendo sempre muito sucesso por lá,
além de promover concorridos workshops
nas praças da cidade, ministrados pelo seu
coreógrafo Jomar Mesquita. Já a Compa-
nhia Urbana mostrou a qualidade da dança
de rua desenvolvida no Brasil. O público,
como mostrou a noite de estreia, aprovou.
Mas, na verdade, a primeira aparição de
um representante brasileiro na Bienal foi a
de Bruno Cezário, ex-integrante do Ballet
do Theatro Municipal e um dos melhores e
mais singulares bailarinos que já tivemos
por aqui. Integrante do Ballet Nacional de
Lyon, Bruno foi responsável por um dos so-
los mais emocionantes na obra do francês
Rachid Ouramdane, que estreou na própria
Bienal, chamada Superstars. Além da im-
pressionante dança de Bruno, o que intrigou,
para não dizer, de certa forma, constrangeu
o público, foi quando, numa entrevista sua
gravada em vídeo, declarou que seus docu-
mentos não tinham sido aceitos para que ele,
trabalhador francês, obtivesse seu seguro de
saúde. Ao procurar saber o motivo, deparou-
se com a insólita resposta de que em sua cer-
tidão de nascimento não constava o nome
do pai. Esclarecendo que seu pai não o ha-
via reconhecido, foi solicitada, então, uma
carta, explicando o porquê deste não reco-
nhecimento. Bruno, perplexo, ao ouvir a aten-
dente dizer com um ar blasé, “na França é
assim!”, desligou o telefone. Trajando um
short verde e uma camiseta amarela, Bru-
no parecia, em seu solo, mais um trabalha-
dor brasileiro.
DESFILE PELA CIDADE
SE INSPIRA NA TRADIÇÃO DAS
ESCOLAS DE SA M BA CARIOCAS
Não apenas em bailarinos e compa-nhias pode-se perceber a presença doBrasil no festival francês. O que parece
mesmo ter deixado definitivamente marcabrasileira na Bienal de Dança de Lyon é ogrande Défilé, desfile que toma a princi-
pal rua da cidade, reunindo 20 comunida-des locais que se organizam em danças,músicas, cenários e figurinos. Assumida-
mente inspirado no desfile das escolas desamba cariocas, desde que o Brasil foitema da Bienal em 1996, o desfile comple-
ta, curiosamente, dez anos. Curiosamen-te, porque, para nós brasileiros, é intrigan-te observar como uma ideia tão nossa foi
sendo culturalmente traduzida por cida-dãos lionenses.
Aos nossos olhos, claro, é gritante a faltade um responsável pela harmonia do des-file. Mas, por outro lado, fica a pergunta se
não seria aquele um outro modo de seolhar um tema que já apresenta suas pró-prias soluções. Apenas para que possamos
entender que na França, como foi mostra-do no solo de Bruno Cezário, “é assim”.
E a nós, brasileiros, assinando a pater-
nidade dessa ideia do desfile, resta ter or-gulho de como nossa dança se faz nãoapenas presente nesse importante festival,
mas tem a capacidade de se transformarem referência. Não uma referência do exó-tico, essa praga romântica que ainda nos
assola, mas moderna, como bem provou ocoreógrafo carioca João Saldanha.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
129
Tradução elegante das curvasarquitetônicas modernistas
OBERTO PEREIRA
essenciais na obra. A tal justeza já está
aí. Mas é nos corpos o lugar onde as li-
nhas sinuosas e modernas de Niemeyer
são deslindadas como continuidades, nun-
ca como passos de dança. Não há conces-
são a ser feita: coisa de coreógrafo ma-
duro e inteligente.
Isso é evidenciado, sobretudo, no trio
formado pelas bailarinas Carol Pires, Cla-
rice Silva e Flávia Meireles. Neste mo-
mento, a tradução se efetiva em seu regis-
tro mais puro. O fato de estarem entrando
em contato apenas recentemente com a
linguagem coreográfica de João Saldanha
indicia em seus corpos um vigor que aco-
lhe o sentido de novo, de moderno, tão
caro ao arquiteto. Ali explode aos nossos
olhos a potencialidade de uma nova cons-
trução, em todos os sentidos que essa pa-
lavra pode ganhar nesse contexto.
O tempo e o espaço de Niemeyer e Sal-
danha estão redimensionados. Em Extracor-
po, o espectador é transformado em flaneur,
que caminha desvendando formas, preen-
chendo ambientes e se surpreendendo a
cada nova paisagem. O olhar é quase tátil.
E é essa sinestesia que comanda o proces-
so de tradução. Arquitetura e dança se tor-
nam, portanto, apenas dois modos de nome-
ar o mesmo pensamento.
elegância do pensamento arquitetô-
nico de Oscar Niemeyer ganha sua
tradução em dança pelas mãos, e pelos cor-
pos, de João Saldanha. Não uma tradução
daquelas presas a uma literalidade sufo-
cante e estéril, mas sim aquela que investi-
ga pontos comuns entre as duas artes: for-
mas, volumes, densidades, dimensões, pesos,
gravidades, linhas e planos. Essa tradução,
também elegante, é o novo espetáculo do
coreógrafo carioca, Extracorpo, que fica em
temporada no Espaço SESC, em Copaca-
bana, até o dia 26 deste mês.
O que se constrói no movimento de
dança são estruturas modulares que sina-
lizam uma forma de organização de tem-
po e espaço típica da arquitetura. A ideia
de entorno, ou seja, de ambiente, faz o cor-
po preenchê-lo e ser preenchido pelo que
o habita a um só tempo. Há uma simbiose
entre o orgânico e o concreto e isso, core-
ograficamente, é pensado com justeza
por Saldanha.
O cenário, que torna solo e céu um pa-
ralelo branco, anulação de referências
onde tudo ainda pode ser construído, o fi-
gurino cinza que tinge de cimento a cena,
e o som que estende ao máximo um esta-
do de observação de quem adentra esse
ambiente/movimento são três elementos
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
130
As curvas de Niemeyerem corpos que dançam
Extracorpo: Uma singular experiência de tempo
ILVIA SOTER
nha este espaço e dá a ver o que se encontraentre cada corpo ou objeto. A ambientaçãosonora de Sasha Amback opera com eficá-cia neste mesmo princípio. O som se insinuasem que o espectador perceba, cresce emvolume e vigor, para depois desaparecer,deixando o silêncio ainda mais potente.
Saldanha experimenta devolver ao corpohumano as curvas orgânicas que Niemeyerdele extraiu e experimentou no concreto. Bra-ços, troncos, torsos e quadris apoiam as espiraise os círculos dos traços do modernista, crian-do um interessante vocabulário de formas epassos que se articulam e se combinam numaestrutura modular. As linhas sinuosas, preci-sas e simples, marcas do arquiteto, ganhamuma bonita correspondência nos trajetos es-paciais e nos corpos dos seis intérpretes. Masé no trio composto por Clarice Silva, FláviaMeireles e Carol Pires que a pesquisa de Sal-danha encontra sua melhor síntese.
Também na movimentação, o contrasteacontece na alternância entre os momentosde aceleração e deslocamento, e de para-gem. Extracorpo se constrói de vazios e si-lêncios. Sem fazer concessões, o coreógrafo
obriga o espectador a uma singular expe-
riência de tempo. É por meio do silêncio e
da paragem que João Saldanha o conduz a
apreciar sua dança rigorosa. A o mergulhar
no universo de Oscar Niemeyer, o coreógra-
fo rende a este uma merecida homenagem,
mas, sobretudo, cria para si novas e promis-
soras possibilidades de investigação.
obra de Oscar Niemeyer – arquitetoque dispensa apresentações – é a
experiência seminal de Extracorpo, novacriação de João Saldanha, em cartaz no Es-paço SESC até 26 de novembro. A peça re-sume um longo período de pesquisa inicia-da com uma bolsa vitae no Brasil e continu-ada, por meses, na França.
A relação entre dança e arquitetura foibastante explorada ao longo do século XX.Oskar Schlemmer, Rudolf Laban, MerceCunningham, cada um a seu modo, foram al-guns dos artistas que consideravam que, comoambas as disciplinas tratavam das relaçõesentre corpo, espaço e movimento, aproximá-las levaria a dança a visitar novos lugares.
Como não poderia deixar de acontecer,Extracorpo se apresenta numa arena, am-biente que impede uma leitura bidimensio-nal da cena. O linóleo branco se destaca doentorno cor de chumbo do mezanino do Es-paço SESC e os figurinos cor de pedra subli-nham a aproximação entre o corpo que dan-ça e as formas esculturais inspiradas em Ni-emeyer. A cena se desenha como um cam-po plano e vazio, remetendo a Brasília, ce-nário importante da obra do arquiteto.
Talvez o traço essencial de Niemeyerque atravessa toda a démarche de Extracor-po seja a compreensão de que cada formatem a força do que é, e de revelar a paisa-gem que recorta, numa relação de figura efundo sem hierarquia. A linha, o plano ou ovolume que se inscreve no espaço, redese-
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • DOMINGO • 5 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 5 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 5 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 5 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 5 DE NOVEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
131
Carisma e talentoda solista salvam a noiteBallet Nacional de Cuba: Palco inadequado
ILVIA SOTER
da perspectiva. Mas o palco do Canecão,estreito e pouco profundo, espremeu o cor-po de baile, impedindo que as figuras es-paciais fossem realizadas e percebidas. Aproximidade com o público também nãoajudou a disfarçar as deficiências dos ce-nários – os telões de fundo cheios de pre-gas –, das caracterizações e dos figurinos –barbas postiças e perucas mal-acabadas –já que balés não são concebidos para se-rem vistos de tão perto. Na noite da estreia,ainda era possível acompanhar a movi-mentação dos técnicos nas coxias acesas.
Apesar de todos esses limites, Alonso trou-xe uma companhia marcada pela juventudee com alguns verdadeiros talentos, como Vi-engsay Valdés e Joel Carreño. No terceiro ato,melhor momento da noite, o jovem Joel Car-reño, pôde mostrar suas evidentes qualidadestécnicas, defendendo seu Basílio com seguran-ça e humor. Mas o grande destaque da noitefoi Viengsay Valdés. A bonita solista construiusua Kitri de forma primorosa, equilibrandosensualidade e alegria e, principalmente, pas-sando ao largo da vulgaridade, como muitasvezes ocorre. Sua competência técnica alia-da a sua presença carismática em cena foidecisiva para salvar a meteórica passagem dacompanhia cubana pelo Rio de Janeiro.
Uma pena que o Rio de Janeiro não te-nha merecido, dos produtores brasileiros daturnê, o mesmo cuidado das outras capitais,onde o Ballet Nacional de Cuba será apre-sentado em palcos de qualidade.
estreia da temporada sul-americanado Ballet Nacional de Cuba no Rio de
Janeiro, na última terça-feira, foi marcada poruma grande frustração. Mais ou menos comoquando ocorre um eclipse total do sol, fenô-meno pouco frequente, e as nuvens cobrem océu. Uma das mais importantes companhiasde balé do mundo e uma das poucas – já quehoje é cada vez mais rara a existência decompanhias de repertório clássico como acubana – esteve em temporada no Rio numacasa de shows: o Canecão. A inadequação dolocal ao propósito já ficou evidente no horá-rio das apresentações, marcadas para as21h30. O balé entrou em cena quase às 22h,para um Dom Quixote completo, em três atos,e com intervalos de 15 minutos entre cada.
A proximidade excessiva do palco, o
público sentado ao redor de mesas, a ausên-
cia de uma orquestra para acompanhar
uma companhia deste porte, a péssima
qualidade acústica da sala e o exíguo ta-
manho do palco impediram que o público
carioca pudesse, de fato, conhecer e até
apreciar a versão de Dom Quixote assina-da por Alicia Alonso – a ainda ativa legen-
da viva da dança do século XX – a partir
da coreografia de Petipa. Mestre da utili-
zação do corpo de baile, Petipa soube como
ninguém organizar os conjuntos de baila-
rinos em linhas geométricas que, ao recor-
tarem a cena, conduziam o olhar do espec-
tador na direção das variações realizadas
pelos solistas, apoiadas nas linhas de fuga
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE NOVEMBRO • 2006 • 16 DE NOVEMBRO • 2006 • 16 DE NOVEMBRO • 2006 • 16 DE NOVEMBRO • 2006 • 16 DE NOVEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
132
Para acertaro passo da dança
I Encontro Nacional de Companhias Oficiais, realizado emSalvador com grupos de todo o País, se transforma em
palco histórico de mobilização
OBERTO PEREIRA
dades do ensino da dança por aqui, preten-
deu mapear problemas e soluções desse tipo
tão próprio, e ao mesmo tempo tão antigo,
de constituição de um grupo de dança, ain-
da mais num país como o Brasil.
Esse encontro já nasceu histórico. Con-
seguiu reunir diretores de companhias ofi-
ciais de norte a sul do País, além de contar
com pequenas apresentações no principal
teatro da cidade, onde se deu a estreia de
Devir, obra especialmente coreografada por
Mário Nascimento para a companhia baia-
na. São as seguintes companhias que parti-
ciparam do encontro: Ballet do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, a mais antiga,
que neste ano completou 70 anos, Cia. de
Dança do Palácio das Artes (MG), Balé da
Cidade de São Paulo, Balé do Teatro Guaí-
ra (PR), Balé do Teatro Castro Alves (BA),
Cia. de Dança do Amazonas, Companhia de
Danças de Diadema (SP), Ballet de Londri-
na, Cia. de Dança de São José dos Campos
(SP), a mais jovem delas, com apenas um
ano de existência, e o Balé da Cidade de
Teresina, no Piauí. Ausentes ficaram apenas
três: Ballet de Niterói, Companhia de Dan-
m 1961, na cidade de Curitiba (PR),
aconteceu um histórico encontro das es-
colas de dança do Brasil. Era o momento em
que os profissionais ligados a essa linguagem
artística começaram a perceber que algumas
relações deveriam ser tecidas no ensino das
técnicas de dança, que se intensificava sem
muito controle de norte a sul do País. Além de
discussões, vários artistas importantes se apre-
sentaram, fazendo daquele evento uma espé-
cie de congresso de dança. Nada mais urgen-
te naquele momento, quando se lembra que a
primeira escola brasileira de dança havia sido
criada 37 anos antes, no Rio de Janeiro.
Neste último fim de semana, em Salva-
dor (BA), um encontro semelhante e de
igual importância e contando com o mesmo
pioneirismo foi criado, fazendo parte das co-
memorações dos 25 anos do Balé do Teatro
Castro Alves. Trata-se do I Encontro Nacio-
nal de Companhias Oficiais, que reuniu,
durante três dias, dez companhias que têm
em comum o fato de pertencerem a órgãos
públicos, sejam eles da instância municipal
ou estadual. Um evento que, assim como
aquele que pretendia discutir as especifici-
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 21 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 21 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 21 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 21 DE NOVEMBRO • 2006RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 21 DE NOVEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
133
ça de Caxias do Sul (RS) e Companhia de
Dança de Natal (RN). Embora tão distan-
tes e muitas vezes com perfis artísticos bas-
tante diferenciados, ficou evidente que al-
guns problemas, alguns deles muito sérios,
são compartilhados por todas elas.
Este encontro serviu então como uma es-
pécie de um check-up dessa estrutura tão com-
plicada de companhia oficial, que remonta os
tempos barrocos franceses de Luís XIV e que
ganha sua tradução brasileira nos dias de hoje.
Os problemas são ainda bastante barrocos no
sentido de ainda estarem, muitas vezes, atre-
lados ao poder público e às sucessivas gestões
políticas que frequentemente não garantem
uma continuidade nos processos. Isso, em arte,
e em dança mais especificamente, resulta num
grave problema. As ideias para se tornarem
dança, e para ganharem corpo, literalmente
falando, levam tempo.
Mas dentre todos os acertos e desafios,
dois se tornaram pauta desse primeiro en-
contro. O primeiro se refere a um grave e
urgente problema na forma de contratação
dos artistas ligados diretamente a esse tipo
de empreendimento artístico, como bailari-
nos, diretores, ensaiadores e técnicos. Várias
estratégias são adotadas pelas companhias,
muitas vezes de forma não totalmente de
acordo com as leis trabalhistas brasileiras,
como forma de driblar, por exemplo, a práti-
ca de concurso público que legitimaria esse
artista como um funcionário estatutário. Des-
se modo, para muitas companhias públicas,
seus bailarinos ficam à mercê das intempé-
ries políticas, o que gera uma insegurança
refletida diretamente na produção artística.
Outro problema daí resultante é o da
aposentadoria, sobretudo para bailarinos, que
deveriam ser considerados uma categoria
especial, já que para o tipo de dança desen-
volvido nesse tipo de companhia o vigor físi-
co é condição primeira. A discussão tocou na
possibilidade de se requerer uma aposenta-
doria com 20 anos de exercício profissional
e deste desejo resultou uma carta solicitan-
do à câmara setorial de dança, junto à Funar-
te, uma atenção maior para essa questão.
O segundo desafio foi o da circulação
desse tipo de companhia, muitas vezes com
um staff enorme de profissionais, o que in-
viabiliza apresentações fora da cidade onde
estão sediadas. Só o Ballet de nosso Theatro
Municipal, por exemplo, conta hoje com
cerca de 100 profissionais envolvidos dire-
tamente em suas produções. Mas nem todas
as companhias são assim. O Ballet de Lon-
drina, com seus 10 bailarinos, viaja o Brasil
todo de ônibus, apresentando-se muito lon-
ge da cidade paranaense que o sedia: tantos
perfis de companhias quanto brasis.
Dessa questão, ficou o projeto a ser lide-
rado por Eliana Pedroso, ex-bailarina do Te-
atro Castro Alves e atual produtora cultural
de Salvador, que tem a perspicácia de ante-
ver como uma iniciativa como essa, também
pioneira, pode ganhar força artística, e por
que não política, nesses próximos quatro anos
de uma nova configuração governamental.
Esse I Encontro Nacional de Companhi-
as Oficiais deu oportunidade a todos os seus
diretores de perceber como suas práticas ar-
tísticas estão comprometidas com uma atitu-
de política e de como isso, salvaguardadas as
devidas diferenças regionais, é comum a to-
das elas. Para o bem e para o mal. Até mes-
mo para se perguntar qual é a verdadeira
viabilidade desse modelo de companhia que
hoje reúne cerca de 500 profissionais em todo
o País. Profissionais que podem dizer, com
orgulho ou não, que sobrevivem trabalhan-
do naquilo que mais amam: a dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
134
No sentido darenovação constante
OBERTO PEREIRA
pensamento, as imbricações da dança com
outras linguagens. Nayse e Eduardo resguar-
dam na continuidade da história do festival
o que lhe é mais caro: o sentido de renova-
ção, de transformação constante.
Entendendo essa premissa, entende-se
também porque não há como julgar um fes-
tival como esse com critérios apenas em
apreciações individuais dos espetáculos. Há
que se pensar no todo, no sentido de pam que
ele abriga, para perceber que o que ali é
apresentado não tem, de modo algum, a von-
tade ou a necessidade de agradar, mas a pos-
sibilidade de promover discussão. E isso, nes-
sa edição, foi alcançado, mais uma vez.
Assim, pensar que trabalhos mais frágeis,
como Feique – Em algum lugar, porém aqui,
da companhia paranaense Verve, ou alguns
mais maneiristas de um tipo de dança contem-
porânea, como Médelei: Eu sou brasileiro e não
existo nunca, do paulistano Christian Duarte,
torna-se quase que um segundo momento,
menos importante. Mais proveitoso seria en-
tendê-los num todo que redimensiona cada
obra, pelo fato de pertencer a um festival, por
ter passado por uma curadoria como essa.
ara pensar a importância dentro do ce-
nário nacional da 15ª edição do festi-
val Panorama de Dança, há que nunca se
afastar do sentido etimológico da palavra
que lhe dá o nome: pam, do grego, significa
tudo ou todos, enquanto orama carrega o
sentido de espetáculo. Ao se juntarem essas
duas ideias, entende-se exatamente o que se
propõe esse festival desde sua criação, em
1992, pela coreógrafa Lia Rodrigues: fazer
com que o público possa se servir do que
existe hoje, no mundo, de uma dança con-
temporânea de ponta. Tarefa árdua, porque
ao ser panorama, o festival não pretende
trazer consigo tudo do que se nomeia dança
contemporânea, mas antes aquela que inco-
moda, ou melhor, que comove, no sentido
também de fazer mover algo naquele que
entra em contato com ela. Uma dança que
faz pensar.
Essa edição de 2006 não foi diferente.
Contando com Nayse López e Eduardo Bo-
nito na curadoria desde que Lia deixou o
festival no ano passado, o Panorama segue
seu curso, pois mesmo com as mudanças, sua
linha mestra ainda está lá. A diversidade, o
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • • • • • SÁBADO SÁBADO SÁBADO SÁBADO SÁBADO • 25 DE NOVEMBRO • 2006• 25 DE NOVEMBRO • 2006• 25 DE NOVEMBRO • 2006• 25 DE NOVEMBRO • 2006• 25 DE NOVEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
135
Funcionando assim, entende-se como a
obra Lehmen Lernt, do alemão Thomas
Lehmen, reflete, já com claros sintomas de
exaustão da própria linguagem que inaugu-
rou, o que o coreógrafo aqui deixou num
workshop em 2002, influenciando trabalhos
de artistas importantes como Dani Lima,
Marcela Levi, Gustavo Ciríaco e Denise
Stutz. Fazer essa conexão é aprender a ler
esse panorama. Possibilita ao público chan-
ces de aprendizagem.
E dentro desse fio de continuidade, de
conexões, há sempre o lugar para o absolu-
tamente novo. No caso dessa última edição,
dois exemplos podem ser pinçados, por con-
terem em comum o viés de uma simplicida-
de tão sofisticada, que assusta pelo que há
de contrassenso nisso: I am here, do por-
tuguês João Fiadeiro, e Porta das mãos, do
carioca Michel Groisman. Essas amostras
apontam para o sentido do festival como um
todo. Estão nelas as potencialidades de tudo
o que faz pensar, para que o Panorama pos-
sa continuar sendo panorama.
Mais um último ponto para se pensar: o
Panorama de Dança não conta mais com o
apoio da Prefeitura da cidade. Que bom que
ele conseguiu sobreviver a esse descaso.
Mas tal fato nos faz indagar: onde estaria
mesmo a dança no âmbito municipal?
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
136
Ensaios de umapolítica para a dança no País
OBERTO PEREIRA
da não mostrou a que veio. Um oásis nesse
deserto ainda continua sendo o Espaço
SESC, endereço oficial da dança carioca.
Mesmo assim, nossos artistas mostraram
excelentes trabalhos nesse ano. Destacam-
se Extracorpo, de João Saldanha, Terceira
margem, de Renato Vieira, Isadora.orb, de
Andréa Jabor e Teorema, de Márcia Rubin.
Entre os mais frágeis, ficaram o oportunista
Dínamo, de Deborah Colker, e o amadores-
co Maratona Quintana, de Regina Miranda.
Já o Ballet do Theatro Municipal, mesmo
com sucessivas direções artísticas, acer-
tou com seu Lago dos cisnes, provando que
Cecília Kerche é nossa primeira bailari-
na absoluta.
Os festivais importantes continuam os
mesmos: o Solos de Dança no SESC e o Pa-
norama de Dança, ressaltando ainda o Dan-
ça em Foco, único no País dedicado apenas
ao vídeo-dança.
O parco cardápio de atrações internacio-
nais deixou apenas uma Louise Lecavallier
como a melhor opção, do lado oposto de um
histórico Ballet de Cuba ofertado no inapro-
priadíssimo Canecão.
O ano de 2006 foi para a dança brasilei-
ra. Melhor assim. E a dança carioca, como
sempre, figurou vigorosa, mesmo com todas
as adversidades que a cercam em sua pró-
pria cidade.
ovas esperanças de uma política cul-
tural efetiva para a dança foram a
marca mais significativa do ano de 2006.
Mas atenção: estamos falando de uma polí-
tica no âmbito federal! Com o “ressuscita-
mento” da Funarte, prêmios de produção e
circulação de espetáculos de companhias
brasileiras trouxeram novos ânimos para a
área. Só o Prêmio Funarte Klauss Vianna,
centrado na produção, agraciou 140 proje-
tos em todo o Brasil, sendo 18 do Rio de Ja-
neiro, como os de João Saldanha e Márcia
Milhazes.
Já o prêmio dedicado à circulação das
companhias, algo até então muito difícil
nesse país, a Caravana Funarte Petrobras de
Circulação Nacional, contou com 30 ganha-
dores; entre eles, 6 daqui, como a jovem Fo-
cus Cia. de Dança e Andréa Jabor. Além
disso, a Funarte apoiou festivais de dança
pelo País, entre os quais o carioca Panora-
ma de Dança, nosso mais importante festi-
val, que completou 15 anos de existência.
Se essa situação nos deixa otimistas, o
proporcionalmente inverso acontece a ní-
vel municipal: não há mais a histórica sub-
venção das companhias da cidade, não há
mais bolsas de pesquisa (como as do faleci-
do Instituto RioArte) e não há mais política
de ocupação dos teatros, restando apenas um
subutilizado Centro Coreográfico, que ain-
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRARIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2006• 27 DE DEZEMBRO • 2006• 27 DE DEZEMBRO • 2006• 27 DE DEZEMBRO • 2006• 27 DE DEZEMBRO • 2006
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
137
2007 CRÍTICAS
JORNAL DO BRASIL - 16 DE JANEIRO DE 2007Entre o clássico e o contemporâneo
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 19 DE JANEIRO DE 2007Pretensão de menos faz bem ao grupo
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 22 DE JANEIRO DE 2007Bailarinos em busca de uma filosofia para os movimentos
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 26 DE JANEIRO DE 2007Novo palco revela limites do trabalho
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 11 DE MARÇO DE 2007Novas alquimias entre bailarinos e coreógrafos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 19 DE MARÇO DE 2007As grandes estrelas são os bailarinos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 21 DE MARÇO DE 2007Festa brasileira no melhor dos sentidos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 7 DE ABRIL DE 2007Reverência ao passado de olho no futuro
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 9 DE ABRIL DE 2007Tons monotemáticos abrem temporada de apresentações no CCBB
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 13 DE ABRIL DE 2007Festival revela o trabalho da ótima Focus Cia. de Dança
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 20 DE ABRIL DE 2007Sintomas e clichês contemporâneos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 27 DE ABRIL DE 2007Festival apresentou pluralidade, mas ficou devendo em coerência
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
138
JORNAL DO BRASIL - 7 DE MAIO DE 2007Projeto joga novas luzes sobre o exercício do papel da bailarina
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 13 DE MAIO DE 2007Presença, vigor e segurança em obras a serviço de uma bailarina
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 25 DE MAIO DE 2007De complexo não há nada. Só exagero
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 28 DE MAIO DE 2007Vigor e beleza que, sozinhos, não fazem um bom espetáculo de dança
SILVIA SOTER
O GLOBO - 14 DE JUNHO DE 2007Municipal respira ar contemporâneo
SILVIA SOTER
O GLOBO - 20 DE JUNHO DE 2007Bailarinos de até 22 anos firmes como veteranos
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 26 DE JUNHO DE 2007Tubos de ensaio ainda em estudo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 27 DE JUNHO DE 2007A poética sem concessões de Marcela Levi
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 9 DE JULHO DE 2007Lia Rodrigues faz obra-prima da dor
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 20 DE JULHO DE 2007Bailarino visionário em mais um belo desafio
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 20 DE JULHO DE 2007O mestre diante do mestre
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 27 DE JULHO DE 2007Mistura de gêneros que não dá liga
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 17 DE AGOSTO DE 2007A construção de um novo vocabulário
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 18 DE AGOSTO DE 2007Estranhamento e fricção num caldeirão de referências urbanas
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 20 DE AGOSTO DE 2007Nem a dama do teatro se ajusta
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
139
O GLOBO - 24 DE AGOSTO DE 2007O desafio de se tornar profissional
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 20 DE SETEMBRO DE 2007No programa, uma boa dose de humor eficiente
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 5 DE OUTUBRO DE 2007O mapa da dança contemporânea
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 10 DE OUTUBRO DE 2007Estreia da Cia. da Ideia surpreende
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 13 DE NOVEMBRO DE 2007A dança baila entre linhas e entrelinhas
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 2 DE NOVEMBRO DE 2007Descompasso entre o tema e a coreografia
SILVIA SOTER
O GLOBO - 4 DE NOVEMBRO DE 2007Criação como diálogo de diferenças
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 10 DE DEZEMBRO DE 2007Excesso de devoção em espetáculo sem desafios
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 13 DE DEZEMBRO DE 2007A proposta é clara, mas a dança é sem ousadia
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 17 DE DEZEMBRO DE 2007Bela récita, apesar dos nós
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 18 DE DEZEMBRO DE 2007O balé de uma nota só
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 20 DE DEZEMBRO DE 2007Alegria para encerrar a temporada de balé
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 21 DE DEZEMBRO DE 2007A coreografia como organismo vivo
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 22 DE DEZEMBRO DE 2007Coreografia precisa, como um ato cirúrgico
SILVIA SOTER
O GLOBO - 27 DE DEZEMBRO DE 2007Os melhores espetáculos de dança de 2007
SILVIA SOTER E SUZANA VELASCO
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
140
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
141
Entre o clássicoe o contemporâneo
OBERTO PEREIRA
que dialogue com o que há de contemporâ-
neo na gramática tão sistematizada do balé
clássico, tal como vem fazendo o coreógrafo
William Forsythe, sua grande fonte de inspi-
ração, com certeza. Isso fica claro em Drumming.
Já os bailarinos, todos muito jovens e vi-
gorosos tecnicamente, sobretudo o naipe
feminino, precisam aprender uma lição fun-
damental para se tornarem profissionais:
não confundir dança com exibicionismo.
Porque quem padece com esse mal é a pró-
pria obra, que não ganha dimensão artísti-
ca e passa a ser mero pretexto para bailari-
nos mostrem suas habilidades técnicas.
Na coreografia Duas ou três coisas sobre
o amor, felizmente, esse tom de exibição fica
mais esmaecido e a qualidade de movimen-
to pretendida por Oliveira tem mais chan-
ce de aparecer. O solo do excelente Éliton
Barros prova isso. Nele, só a dança aparece.
Uma dança que pode ser cada vez mais con-
temporânea se encontrar um modo todo seu
de estar no mundo. Oliveira parece ter en-
tendido isso. Falta agora a tarefa mais árdua:
fazer desse entendimento sua assinatura
coreográfica.
temporada de dança de 2007 foi aber-
ta nesta última sexta-feira pela
DeAnima Ballet Contemporâneo, compa-
nhia dirigida pelo lendário bailarino Ri-
chard Cragun, com o espetáculo Duas ou três
coisas sobre o amor, no Teatro Cacilda Be-
cker. Simbolicamente, seria importante que
tal temporada começasse mesmo no único
teatro exclusivo para a dança no Rio de Ja-
neiro, não fossem alguns problemas sérios que
teimam em persistir por lá. Um deles é a ine-
xistência de ar-condicionado, sobretudo em
tempos de verão como esses. E outro, mais
persistente, é o barulho inoportuno de seus
funcionários no foyer durante os espetáculos.
Para a temporada do DeAnima, o teatro ain-
da não se adequa esteticamente, já que esse
tipo de companhia pede um palco mais am-
plo e com maior distância da plateia.
Contando com duas obras, Drumming e
outra que dá nome ao espetáculo, ambas
assinadas por Roberto de Oliveira, a
DeAnima parece ainda tatear um lugar de
intersecção entre o balé e a dança contem-
porânea. Oliveira encontra-se em pleno
processo de busca de um vocabulário seu,
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 16 DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA• 16 DE JANEIRO • 20077777
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
142
Pretensão de menosfaz bem ao grupo
Duas ou três coisas sobre o amor: Novo espetáculo daDeAnima mostra um rumo para a companhia
ILVIA SOTER
al produzida nos rostos. Outro ponto que
prejudica Drumming é a situação de are-
na do Teatro Cacilda Becker, inadequada
para o desenvolvimento espacial da coreo-
grafia. O que Oliveira consegue construir no
diálogo entre música e movimentação, ape-
nas fica sugerido nas figuras e nos desenhos
no espaço. A peça ganharia força num palco
maior e numa situação de cena italiana.
Em Duas ou três coisas sobre o amor,
Roberto de Oliveira discorre sobre algumas
facetas do amor. O amor que pode ressuci-
tar, o amor entre homem e mulher ou o amor
entre pessoas do mesmo sexo são algumas
das situações sugeridas em solos, duos, trios
e conjuntos. Apesar da literalidade na abor-
dagem do tema, a coreografia possui alguns
bons momentos, sobretudo nos duos.
Desde sua criação a DeAnima tem bus-
cado seu lugar na cena da dança carioca.
Neste sentido, Duas ou três coisas sobre o
amor é um acerto. Menos pretensioso que os
projetos anteriores, o espetáculo apresenta
uma companhia que se caracteriza pela ju-
ventude dos bailarinos e pela boa qualida-
de técnica.
novo espetáculo da DeAnima se re-
sume a duas curtas coreografias assi-
nadas por Roberto de Oliveira. A compa-
nhia que tem direção artística de Richard
Cragun está em cartaz até domingo no Tea-
tro Cacilda Becker com Duas ou três coisas
sobre o amor.
Drumming, a primeira coreografia da
noite, tem música de Steve Reich. Apoian-
do-se na estrutura seriada da música, Oli-
veira parte de uma frase de movimento para
desdobrá-la, tornando-a ora mais simples,
ora mais complexa e perseguindo os cami-
nhos apontados pela base inicial. Nesta peça,
a mais abstrata do espetáculo, Roberto de
Oliveira consegue construir um vocabulário
de movimento coerente, apoiado na ondula-
ção de braços e tronco, na marcação rítmica
dos quadris e na desarticulação dos gestos, a
última de evidente inspiração forsytheana.
Pena, no entanto, que a linha de interpre-
tação dos bailarinos carregue nos sorrisos e
nas expressões faciais. A coreografia de
Roberto de Oliveira tem qualidades sufi-
cientes para provocar diferentes emoções
no espectador e dispensa a alegria artifici-
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE JANEIRO • 200• SEXTA-FEIRA • 19 DE JANEIRO • 200• SEXTA-FEIRA • 19 DE JANEIRO • 200• SEXTA-FEIRA • 19 DE JANEIRO • 200• SEXTA-FEIRA • 19 DE JANEIRO • 20077777
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
143
Bailarinos em busca de umafilosofia para os movimentos
OBERTO PEREIRA
tros de alguma coisa que ainda precisa tomar
o corpo e se tornar dança, se tornar movente,
no que há de continuum disso.
A segunda palavra, adorno, aparece
como conceito negativo no texto do progra-
ma: o espetáculo “prescindiria de adornos”. O
que se pode ler aqui, talvez, é que a palavra
adorno seja justamente o que falta àquela pes-
quisa para se tornar orgânica como espetácu-
lo de dança, como ela o intenta. Esses adornos,
necessários enfim, deveriam ser resgatados
por Nestorov para que suas inquietações tão
pertinentes possam ser apresentadas numa
cena, num palco, para um público.
Curiosamente, movente e adorno apare-
cem de forma exemplar na qualidade da
dança do bailarino Boris Hennion. Estão ali
as imbricações do que é só movimento com
o que o faz mover. E esse desejo aparente é
adornado pela atitude de se saber em cena,
de maneira tão completa, tão singular, e
sobretudo tão respeitosa a quem o assiste.
Seria, desse modo, essa qualidade uma pos-
sível matéria-prima para que Paula Nesto-
rov comece a transformar sua pesquisa, tão
séria, em espetáculo?
Espaço SESC, endereço oficial da
dança carioca, abriu sua temporada de
2007 na quinta-feira, com o espetáculo Moven-
te, de Paula Nestorov. Preocupada em investi-
gar as especificidades do movimento a partir
de conceitos filosóficos, a coreógrafa expõe, ao
lado de seus três bailarinos e do músico Anto-
nio Saraiva, o resultado de sua pesquisa.
Duas palavras ajudam a entender um
pouco como esse resultado chega à cena. A
primeira é o próprio título do espetáculo
(movente) e a segunda está presente no tex-
to do programa (adorno). Para o que se or-
ganiza ali como espetáculo, torna-se neces-
sário pensar o que poderia ou não estar
imbricado entre esses dois conceitos.
Ao tomar o próprio movimento e suas es-
truturas, combinadas e recombinadas no pró-
prio fazer da cena, como sua preocupação pri-
meira, Nestorov parece deixar pouco visível,
infelizmente, o que as faz mover. A ideia pro-
pulsora, ou ainda, o desejo do movimento, que
também o é, sobretudo na dança, não apare-
ce, não se desvela. Isso se torna ainda mais
claro quando a própria coreógrafa dança. O
que se consegue apreender são vestígios, ras-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA•RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA•RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA•RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA•RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 22 DE JANEIRO • 2007 22 DE JANEIRO • 2007 22 DE JANEIRO • 2007 22 DE JANEIRO • 2007 22 DE JANEIRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
144
Novo palco revelalimites do trabalho
Movente: Colaboração entre Paula Nestorov eAntonio Saraiva estreita os laços entre gesto e voz
ILVIA SOTER
é seu ponto forte, é também sua maior ques-
tão. Todo o esforço da coreógrafa parece se
concentrar na tentativa de eliminar o que
poderia remeter a peça à artificialidade da
representação. Na forma como o palco é ocu-
pado, nos tempos de entrada e saída dos in-
térpretes de cena, no figurino, ou ainda na
escuta que cada um estabelece com seu pró-
prio movimento e com o do outro, esta preo-
cupação está presente. Paradoxalmente, pou-
cas propostas são mais ambiciosas do que a
aposta neste despojamento. Se o galpão da
Casa de Cultura da Maré-(Ceasm), onde a
peça fez sua pré-estreia, se prestava com efi-
ciência para o projeto, o mezanino do Espa-
ço SESC aponta suas fragilidades e limites.
Dentro de um teatro, com divisão entre pal-
co e plateia, público presente e iluminação,
criar esta atmosfera torna-se uma tarefa ár-
dua que Movente nem sempre realiza. A in-
da que a música de Antonio Saraiva e a pre-
sença dos intérpretes, sobretudo de Boris
Hennion, garantam momentos de intensida-
de, o despojamento e a aparente simplicida-
de da peça acabam por mascarar as nuances
que garantiriam seu interesse e sua beleza.
esultado dos últimos três anos de in-
vestigação de Paula Nestorov e de sua
companhia, Movente está em cartaz até dia
11 de fevereiro no mezanino do Espaço SESC.
O que interessa em Movente é o que
emerge de cada corpo, no momento em que
emerge. Uma dança que se insinua, se desen-
volve e se desmancha e que, muitas vezes,
permanece apenas como potência. A maté-
ria de Movente é a forma única que cada
corpo tem de mover-se, construindo uma
melodia cinética própria e pessoal, como o
tom da voz. A beleza da peça se dirige àque-
les cujo olhar mais treinado é capaz de per-
ceber e de apreciar esse gesto que tem a sin-
gularidade de uma impressão digital. A co-
laboração entre Paula Nestorov e o músico
Antonio Saraiva estreita os laços entre ges-
to e voz. Esta relação é enfatizada pela in-
tervenção de alguns dos intérpretes que po-
dem estar no centro do palco, em paragem
ou em movimento, ou nas margens da cena,
contribuindo vocalmente. Em Movente, até
o palco vazio reverbera som e movimento.
No entanto, talvez não seja apropriado
tratar Movente como um espetáculo. Se esse
R
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 26 DE JANEIRO • 2007• SEXTA-FEIRA • 26 DE JANEIRO • 2007• SEXTA-FEIRA • 26 DE JANEIRO • 2007• SEXTA-FEIRA • 26 DE JANEIRO • 2007• SEXTA-FEIRA • 26 DE JANEIRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
145
Novas alquimias entrebailarinos e coreógrafos
OBERTO PEREIRA
Ou ainda, entre coreógrafos e bailarinos,
relação não tão óbvia quanto parece.
O primeiro solo da noite, Acídia, do pau-
lista Luís Fernando Bongiovanni, trouxe as
reflexões de São Tomás de Aquino à cena,
para discutir uma tristeza que se poderia tra-
duzir em uma espécie de preguiça. Para tan-
to, o coreógrafo contou com a precisão físi-
ca da excelente bailarina Fabiana Nunes,
numa adequação elegante de seus propósi-
tos num corpo que dança. Apenas uma cer-
ta previsibilidade poderia ter sido driblada
para que a ideia de ausência de perspecti-
va presente no conceito de acídia pudesse
ser traduzida coreograficamente com
maior justeza. E a noção de repetição não
se confundiria com a de previsível.
Em Unheimlich, Natasha Mesquita en-
controu-se com a coreógrafa mineira Suely
Machado num passeio inquietante pela lu-
xúria e pela gula, não sem recuperar o sen-
tido da palavra alemã que dá título à obra:
estranho. Aqui, sem dúvida, trata-se de um
bom exemplo de como o tempo de convívio
entre criador e intérprete às vezes é crucial.
Natasha ainda carece de uma entrega mais
principal mostra de dança do primei-
ro semestre da cidade do Rio de Ja-
neiro teve início na última quinta-feira, tra-
zendo, como sempre, ótimas possibilidades
de discussão, próprias da dança contempo-
rânea. O Solos de Dança no SESC mostrou,
mais uma vez, novas combinações de co-
reógrafos e bailarinos que nunca, ou quase
nunca, haviam trabalhado juntos. O resulta-
do é sempre um lugar híbrido de linguagens
que os dois artistas inauguram em um curto
tempo de convívio. E, para entendê-lo, há
que se lembrar sempre desse último dado.
A edição desse ano tem uma novida-
de: sua idealizadora e curadora, Beatriz
Radunsky, lançou um desafio temático aos
16 bailarinos e coreógrafos que tomam par-
te da mostra, dividida em duas semanas, com
quatro solos cada uma. A partir de um poe-
ma de autoria de Alice Ruiz, Acertar o alvo,
todos tiveram de se deparar com os sete pe-
cados capitais como fonte primeira de seus
trabalhos. Tal desafio, aliado ao ineditismo
das parcerias, mostrou logo nessa primeira
semana o quão difícil é estabelecer pactos
temporários entre criadores e intérpretes.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • DOMIDOMIDOMIDOMIDOMINNNNNGOGOGOGOGO• 1• 1• 1• 1• 111111 DE MARÇO • 200 DE MARÇO • 200 DE MARÇO • 200 DE MARÇO • 200 DE MARÇO • 20077777
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
146
visceral ao que se propõe em cena, para que
o tema a inunde realmente, tomando seus
movimentos. Nada que Suely não pudesse
burilar em mais alguns ensaios. Mas o que
aparece é ainda quase postiço. E os passos
de dança, dispensáveis ao final do trabalho,
poderiam dar lugar ao puro gozo que se
anuncia em todo seu belo início.
O mais belo momento da noite veio com
Caminho aberto, numa parceria instigante
entre Paula Águas e o coreógrafo Mário
Nascimento. O retorno de Paula à dança que
sempre lhe coube provou mais uma vez que
se trata de uma das mais completas bailari-
nas brasileiras. Seu vigor técnico atingiu
maturidade que compreende com uma ra-
pidez desconcertante a ideia do coreógrafo.
Mario parece ter percebido isso também
rapidamente. E o que se vê em cena é um
arroubo milimétrico de novas relações en-
tre o movimento e a própria interpretação
deles. Aqui, a presença de Daniela Visco para
auxiliar nessa equação mostrou-se funda-
mental. O público ficou com a respiração
suspensa. Era o mínimo que podia acontecer.
Fechando a noite, Bruno Cezário, baila-
rino ímpar que constrói uma sólida carrei-
ra no exterior (hoje no Ballet de Lyon –
França) convidou o coreógrafo japonês
Shintaro Oue para compor Feche os olhos
e você verá o que não pode ver. Sem dúvi-
da, trata-se do trabalho mais frágil de todo
o programa. A exuberância da dança de
Bruno não encontrou ressonância na ideia
de Oue e o resultado, confuso e cambale-
ante, fica aquém da potencialidade do bai-
larino, infelizmente. Um bom começo para
se decupar a ideia que ali apenas se insi-
nua seria avaliar, com urgência, a perti-
nência daquele figurino.
A primeira semana no Solos prova que
sua importância para a cena carioca irriga
pensamentos. Não há outra função mais fun-
damental. Não nesse momento, quando o
SESC continua sendo a única casa da dança
nessa cidade.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
147
As grandes estrelassão os bailarinos
OBERTO PEREIRA
to, há como se detectar no corpo que ali dan-
ça suas influências a partir dos coreógrafos
com quem já trabalhou, mostrando sua ma-
turidade. Apenas a duração do solo, um tanto
esgarçada, poderia ser repensada a partir de
uma coerência na trilha sonora, o que faria
estar em sintonia com a luz certeira assina-
da por Luiz Oliva e pelo próprio Paulo.
Maturidade também parece ser a pala-
vra-chave para se depreender as ideias que
estão por trás de Percurso coerente para um
corpo impertinente, solo que traz a bailari-
na Andrea Bergallo coreografada por outra
bailarina, Denise Stutz. O interessante é o
entrecruzar de maturidades dessas duas ar-
tistas presente em toda a coreografia, fazen-
do saltar aos olhos o lugar do bailarino, do
intérprete, ofício que as duas conhecem tão
bem. O resultado é o puro estado desse ele-
mento fundamental do fazer coreográfico e
isso é desvelado com precisão e poesia por
Denise e Andréa.
Fechando a noite e a mostra, a mestra
Carlota Portella reencontra um ex-integran-
te de sua companhia, Inho Sena, no solo
O prato da balança. Toda cumplicidade de
segunda semana dos Solos de dança
no SESC trouxe quatro novos traba-
lhos que fazem dela um programa sem dú-
vida mais interessante do que a primeira
semana. Novamente, a grande estrela da
noite são os próprios bailarinos, apontando
para uma possível crise pela qual devem
estar passando nossos coreógrafos.
O primeiro solo, intitulado Lado B, tenta
expurgar uma ferida histórica, aliando co-
micidade e ironia ácida. João Wlamir, en-
saiador do Ballet do Theatro Municipal, mos-
trou a excelente Laura Prochet, sua colega
de companhia, como uma típica bailarina de
corpo de baile, desnudando seus pensamen-
tos durante um ensaio geral. Não há como
negar que boa parte da plateia da noite de
estreia sabia do que se tratava, o que com-
prova a pertinência de se exorcizar esse tipo
de pensamento entre os bailarinos de uma
companhia. Apenas uma coesão maior po-
deria deixar esse solo mais enxuto e talvez
assim mais impactante.
Em ...algum início..., Paulo Marques cons-
trói uma elegante trajetória coreográfica
para o bailarino Rodrigo Maia. Nesse traje-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 19 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 19 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 19 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 19 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA• 19 DE MARÇO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
148
anos trabalhando juntos reaparece em cena,
formando um elo intenso de compreensão
mútua entre bailarino e coreógrafo. A bela
investida em movimentos precisos contras-
taria com primazia com a ira estampada no
ato de quebrar pratos, se não fosse truncada
pela trilha sonora que excede às vezes em
seu sentido narrativo e também por peque-
nos gestos por demais dramáticos de Inho.
Em sua balança, Carlota ainda deveria per-
seguir o peso justo desses elementos. Há que
se comentar a poética iluminação de Deise
Calaça, sobretudo ao final da obra.
Aliás, na noite de estreia, justamente
o final dessa obra sugeriu um interessan-
te modo de se olhar toda a programação
da noite. Um dos pratos usados por Carlo-
ta/Inho é oferecido pelo bailarino a uma
pessoa da plateia. Na ocasião, essa pessoa
era ninguém menos que Tatiana Leskova,
a grande mestra do balé. Ela, em sua sa-
gacidade, não hesitou em também arre-
messar seu prato ao centro do palco, que-
brando-o. Seu gesto inteligente de ira con-
versa com o primeiro (e por que não, com
todos) solo da noite, deixando-a redonda.
Tanto Leskova quanto os Solos de Dança
no SESC acertaram seu alvo, recuperan-
do o título do poema de Alice Ruiz que
norteia toda a mostra.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
149
Festa brasileira nomelhor dos sentidos
OBERTO PEREIRA
também ilustrativo de um mundo que nos
pertence ao mesmo tempo que ainda nos é
desconhecido, infelizmente. Apenas a cena
da morte do boi com a personagem da mé-
dica travestida torna-se absolutamente dis-
pensável nesse contexto, pois não combina
com a elegância de todo o resto. E, contan-
do com músicos tão competentes, há que se
repensar o uso de música gravada em pou-
cos momentos.
A grande responsável pelo espetáculo é
Eleonora Gabriel, pesquisadora séria e apai-
xonada. E há que se lembrar que esse pro-
jeto, que bravamente existe há 20 anos, per-
tence a uma universidade pública. Os méri-
tos dessa composição fazem desse espetá-
culo uma comemoração em seu sentido
mais amplo. Num sentido de consagração
mesmo. Uma consagração brasileira.
arece uma festa barroca: música, dan-
ça e poesia entrelaçando-se. Parece
uma festa romântica, daquelas que acredi-
tam poder conservar o que há de mais puro
da cultura popular. Na verdade, Pelos ma-
res da vida, espetáculo que comemora 20
anos da Companhia Folclórica do Rio –
UFRJ, que esteve em temporada no Teatro
Cacilda Becker, é uma festa brasileira, no
melhor dos sentidos.
Aliás, todos os sentidos são mesmo agu-
çados nos 90 minutos em que danças e can-
tos tornam-se uma teia rica e colorida para
tratar de um desafio muito grande e perigo-
so: o folclore brasileiro. Sem cair em dida-
tismos estéreis, o espetáculo flui com uma
desenvoltura ao mesmo tempo correta de
pesquisa engajada de todos os seus 45 com-
ponentes. O resultado é contagiante. Mas é
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 21 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 21 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 21 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 21 DE MARÇO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA• 21 DE MARÇO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
150
Reverência aopassado de olho no futuro
OBERTO PEREIRA
bos, pequenos ajustes podem ainda ser buri-
lados, e não há escola melhor para isso do
que a própria companhia, com suas tantas
estrelas tão competentes.
Mas a noite serviu mesmo para revelar
um novo grande talento, num papel menor
dentro do ballet: o jovem Cícero Gomes, bai-
larino contratado para a temporada. Vibran-
te, com técnica arrojada, concedeu o tom
exato a seu bobo da corte. Merece, desde já,
integrar a companhia de forma efetiva.
Já o corpo de baile se mostra orgânico,
apontando que, com uma direção segura e
sobretudo estável, tudo pode melhorar ain-
da mais em termos de qualidade de dança
ali solidamente construída.
O próximo programa do Ballet do Thea-
tro Municipal deve visitar a dança con-
temporânea brasileira. Nomes como o do
carioca João Saldanha, do goiano Henrique
Rodovalho e da paulista Roseli Rodrigues
foram levantados, demonstrando mais um
acerto da nova direção. Apenas o resgate do
espetáculo Isabel Torres, de autoria de um
dos mais importantes coreógrafos da atua-
lidade, o francês Jérôme Bel, apresentado
uma única vez naquele teatro e feito espe-
cialmente para ele, merece ser considera-
do. Fica aqui a dica.
nova gestão do primeiro bailarino
Marcelo Misailidis como diretor do
Ballet do Theatro Municipal se mostra, des-
de o início, promissora. Pela primeira vez na
história desta que é a única companhia de
repertório clássico do País, um bailarino que
fez carreira dentro dela fica à frente de seus
colegas, o que lhe permite tecer uma estrutu-
ra que respeite seus meandros, justamente por
conhecê-los tão bem.
Uma das provas disso é a escolha de O
lago dos cisnes para abrir a temporada de
2007, quando esse ballet completa 130 anos.
Ao homenagear essa que é uma das princi-
pais obras-primas da história da dança,
Misailidis não apenas reverencia o passa-
do como também lança flechas para o futu-
ro. Foi exatamente isso o que foi mostrado
na récita desta última quarta-feira, quando
um elenco totalmente jovem foi designado
para seus principais papéis.
Filipe Moreira, como o príncipe Siegfried,
mostrou que tem belas linhas e elegância
para o papel. Sua visível imaturidade deve
ser vencida com o tempo e por isso se tor-
nam imprescindíveis chances como essas. Já
Márcia Jacqueline, no duplo papel Odette/
Odile, evidencia que a companhia já conta
com uma nova primeira bailarina. Em am-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O •R I O D E J A N E I R O •R I O D E J A N E I R O •R I O D E J A N E I R O •R I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 7 S Á B A D O • 7 S Á B A D O • 7 S Á B A D O • 7 S Á B A D O • 7 D E A B R I L • 2 0 0 7D E A B R I L • 2 0 0 7D E A B R I L • 2 0 0 7D E A B R I L • 2 0 0 7D E A B R I L • 2 0 0 7
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
151
Tons monotemáticos abrem temporadade apresentações no CCBB
OBERTO PEREIRA
para a dança, três companhias foram con-
vidadas, mas apenas duas se apresentaram.
Alexandre Franco mostrou seu Corpo de
papel no 2 na rotunda do prédio, promovendo
uma bela abertura da programação. Maduro,
soube adequar sua dança ao espaço, desafio
sempre grande nesse tipo de proposta.
Já no palco, apresentou-se a dupla espa-
nhola Damián Muñoz e Virgínia García
com extratos de duas peças, A los ojos e Sta-
ff. Mesmo com tons monotemáticos em am-
bas, sem dúvida, a segunda peça foi bem
mais interessante, sobretudo pela presen-
ça do excelente bailarino Alexis Fernán-
dez. Já a terceira atração da noite, que vol-
taria a ocupar a rotunda, o paulista Marce-
lo Cirino, responsável por uma estética
bastante peculiar de dança de rua, desen-
volvida para sua companhia da cidade de
Santos (SP), inexplicavelmente não acon-
teceu, fato raro na cuidadosa programação
do CCBB.
As mostras 4 Movimentos e Dança em
trânsito têm a difícil tarefa de se mostra-
rem orgânicas entre si e ao mesmo tempo
representar a dança naquele espaço tão
importante da cidade que é o CCBB. To-
mara que dê conta disso. A dança carioca,
tão carente de espaços e iniciativas polí-
ticas, agradece.
inalmente, o Centro Cultural do Ban-
co do Brasil decidiu revelar ao públi-
co o nome do responsável pela curadoria de
seu único evento de dança do ano, o festival
4 Movimentos, que veio substituir o impor-
tantíssimo e saudoso Dança Brasil, desde
2005. Trata-se de Giselle Tápias, conhecida
entre nós como promotora de diversos even-
tos de dança. Tal revelação é importante,
pois denota, a partir do nome que assina sua
curadoria, um modo específico de agrupar
determinadas obras de dança, formando (ou
não) um pensamento sobre elas.
No caso de Tápias, tal pensamento ain-
da é uma incógnita. Ao optar por aglome-
rar duas diferentes mostras, a do CCBB, 4
Movimentos, e uma outra, que já vinha di-
rigindo há quatro anos, a Dança em trânsi-
to, deixa uma brecha de incerteza sobre a
pertinência desse convívio. Essa incerteza
só poderá ser avaliada ao final deste mês,
sua duração, mas uma primeira olhada em
como sua programação se estrutura já in-
dicia poucas possibilidades de se perceber
uma clara linha curatorial ali. Em todos os
casos, aguardemos.
Para a primeira noite do evento em que
o Teatro I do Centro Cultural foi usado, fato
inédito e louvável, já que antes apenas o
Teatro II era usado, embora inapropriado
F
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE ABRIL • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
152
Festival revela o trabalho daótima Focus Cia. de Dança
OBERTO PEREIRA
qualidades específicas de suas danças. O quesalta aos olhos nessa obra é a capacidadeexplícita de Neoral em saber usar tão bemsua matéria-prima, o movimento, em umaadequação perfeita aos seus bailarinos. To-dos ali, sem exceção, fazem de Outro lugara certeza de que a cidade conta com umadas mais promissoras companhias de dan-ça, mostrando a face da nova geração, nãosem causar alívio a todos nós.
Já o segundo espetáculo, Basso ostinato,da Compagnie Caterina Sagna, da França,ocupou o palco do Teatro I, com três ótimosbailarinos e uma proposta instigante. Mes-mo com o visível problema de coesão daobra, que merece ser revista em sua dura-ção, pôde-se perceber a maturidade de seusintérpretes para o desafio nada simples quea coreógrafa lhes propõe. Imperdoável, noentanto, é o fato de não haver legenda ouqualquer espécie de tradução do importan-te texto falado por eles em italiano, o quefaz a obra perder, e muito, seu sentido parao público carioca.
Com ótima programação, essa segundasemana nos reanima para as próximas duasque ainda temos pela frente. Torçamos.
segunda semana do único evento dedança do Centro Cultural do Banco do
Brasil, 4 Movimentos, que ocupa todo o mêsde abril, começou anteontem mostrando-semais coesa que a primeira. Com uma pro-gramação um tanto confusa e com um en-cerramento incompreensível no último do-mingo, ao juntar no mesmo palco a coreo-grafia tão escolar Um pouco de possível se-
não eu sufoco, do iniciante Alexandre Bado,com a excelente e, sobretudo, profissionalCie. Passerelle, da Bélgica, a semana passa-da pouco tem a ver com essa que se inicia.
Apenas duas companhias compõem anoite deste “2º movimento”. A primeira, acarioca Focus Cia. de Dança apresentou-sena rotunda do Centro Cultural, estreandoOutro lugar, do coreógrafo, bailarino e seudiretor Alex Neoral. Mesmo ocupando comperfeição o espaço que lhe foi destinado (tal-vez a melhor a fazê-lo até agora), sem dúvi-da nenhuma essa companhia deveria ter seapresentado no palco do Teatro I, já que, elasim, tem qualidade para tanto.
Todos os sete jovens bailarinos formamum grupo ao mesmo tempo homogêneo emsuas competências, mas que resguardam as
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 13 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 13 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 13 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 13 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 13 DE ABRIL • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
153
Sintomas e clichêscontemporâneos
OBERTO PEREIRA
para não fazer uso de recursos já tão des-
gastados.
A segunda obra, RG 123-4, assinada pela
jovem bailarina Flávia Tápias, presença obri-
gatória em todos os eventos que sua mãe pro-
move (Giselle Tápias é curadora
do 4 Movimentos), traz a cara chancela do
Ballet do Theatro Municipal. Três excelen-
tes e maduras bailarinas, Betina do Dalca-
nale, Laura Prochet e Sandra Queiroz, são
utilizadas de modo insípido nessa tentativa
tosca de se discutir temas como a descons-
trução do que existe de balé clássico naque-
les corpos e suas identidades, tentativa de
uma jovem bailarina que agora se arvora
como coreógrafa – tudo isso em apenas oito
ensaios, como denuncia o próprio programa
(único impresso extra). Repleta de clichês de
movimentos e truques fáceis de encenação,
tal iniciativa coloca uma pergunta premen-
te: Por que nossa principal companhia de balé,
a primeira e a única do Brasil, se presta a esse
tipo de empreendimento?
Fechando a noite, o coreógrafo Carlos
Laerte traz sua companhia, a Laso Cia. de
Dança, com Identidade deslocada. Pade-
rês frágeis obras compõem o progra-
ma da terceira semana da mostra de
dança 4 Movimentos, do Centro Cultural do
Banco do Brasil, iniciada anteontem. Em
comum, o uso excessivo de clichês, que po-
deriam ser chamados aqui de “passos de
dança contemporânea”, o que acaba sendo,
nesse caso, quase um oximoro.
A noite começa com Dama, solo de
Paula Águas, coreografado por Daniela
Visco. A bailarina, que se apresentou mui-
to recentemente com um excelente solo
assinado por Mario Nascimento, retorna ao
palco mostrando que, mesmo sendo, sem
dúvida nenhuma, ótima intérprete, com
técnica arrojada, não foi capaz de conce-
der a Dama o tom exato do que se preten-
dia ali. Problemas como falta de vocabulá-
rio de movimentos, falta de coesão, dura-
ção por demais estendida, figurino, além de
uma sequência de músicas assinada por
Lan Lan que nada tem de trilha sonora, tão
distante que está da proposta, devem ser
revistos com urgência. E mesmo o objeto
que ali se investiga, a questão da técnica
de dança, precisa ser mais bem estudado,
T
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEXTA-FE IRA• 20 DE ABR IL • 2007 • SEXTA-FE IRA• 20 DE ABR IL • 2007 • SEXTA-FE IRA• 20 DE ABR IL • 2007 • SEXTA-FE IRA• 20 DE ABR IL • 2007 • SEXTA-FE IRA• 20 DE ABR IL • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
154
cendo do mesmo mal das obras anteriores,
Laerte se contenta em formular o que já
domina como encadeamento de passos, sem
se arriscar em novas possibilidades coreo-
gráficas. O resultado fica próximo ao já
visto, não investindo nem na qualidade
evidente de suas bailarinas, nem no diálo-
go entre o movimento e o texto, mesmo que
um tanto prolixo, falado pelo ator Sérgio
Menezes. E é justamente nele que essa fal-
ta de diálogo fica ainda mais clara, já que
suas habilidades para a dança são visivel-
mente poucas.
Uma mostra de dança como 4 Movimen-
tos sabe que os problemas de um progra-
ma como esse são suscetíveis a qualquer
curadoria. Trata-se aqui de denunciar um
sintoma. Apenas o preço dessa denúncia
fica esperando que alguém se mostre apto
a pagá-lo. Até quando?
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
155
Festival apresentou pluralidade,mas ficou devendo em coerência
OBERTO PEREIRA
espetáculo ímpar em sua carreira. Em Can-
ção, a primeira questão que salta aos olhos
é seu caminhar pela mesma trilha já aberta
por Henrique Rodovalho em sua obra se-
minal Só tinha de ser com você, para sua
companhia, Quasar. A ideia genial apre-
sentada pelo coreógrafo goiano de fazer di-
alogar movimento com canção, escapando
ao máximo das armadilhas do literal e da
legenda, reaparece de certa forma em Vi-
eira, mas trazendo pouco de sua assinatura
coreográfica.
Todo o empreendimento no sentido de
uma economia de movimentos e de recur-
sos cênicos como trilha sonora, iluminação
e figurino, já sentido em sua obra anterior, o
que representava um grande avanço em
sua pesquisa, parece ter sido deixado de
lado. Renato Vieira talvez devesse recupe-
rar sua terceira margem novamente, e fa-
zer dela seu mapa de criação.
4 Movimentos termina colocando uma
pergunta sobre a ideia de curadoria. Lon-
ge de ser apenas quatro, a pluralidade que
se instaurou ali permitiu várias discus-
sões, tarefa primordial para uma mostra
de dança. Apenas não se pode esquecer
que, mesmo sendo plural, existe a possibi-
lidade de ser coeso. E de ser coerente. Es-
peremos, pois, sua próxima edição.
última semana da Mostra 4 Movi-
mentos, único evento de dança do
Centro Cultural do Banco do Brasil, trouxe
ao público duas companhias: Cie. Pernette,
da França, e o grupo do carioca Renato Vi-
eira. Dois modos bastante distintos de se fa-
zer e de se pensar dança contemporânea, a
junção que se estabelece nesta programa-
ção, que estreou anteontem, consagra a li-
nha de curadoria eleita por Giselle Tápias.
A companhia francesa mostrou dois tra-
balhos, ambos na rotunda do prédio do Cen-
tro Cultural: Pedigree e Le solo du coq. Mais
uma vez, ficou evidente que a escolha de tra-
balhos para serem apresentados naquele es-
paço deve ser ainda burilada pela curadora.
Pouco adequado por ser uma obra intimista,
a primeira tornou-se quase incompreensível,
pois não se podia ouvir bem o texto, chave da
peça. Já a segunda, deslocada de seu contex-
to original, pouco ofereceu de material para
reflexão. A questão que fica é a da pertinên-
cia da escolha dessa companhia, vinda de tão
longe, para se apresentar nestas condições.
O trabalho que ocupou o palco do Tea-
tro I é Canção, com coreografia de Vieira
para sua cada vez mais afinada companhia.
Sem dúvida, trata-se de uma obra de entres-
safra do coreógrafo, que no ano passado brin-
dou o público com seu A terceira margem,
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 27 DE ABRIL • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
156
Projeto joga novas luzes sobre oexercício do papel da bailarina
OBERTO PEREIRA
seria apenas subserviente ao coreógrafo, não
imprimindo nada de seu na obra. E ainda pior:
ao tentar driblar essa falsa ideia, seria neces-sário que ele, bailarino, se lançasse também
ao ofício de coreografar. Flávia é a prova da
falácia desse pensamento, já que, nesse es-petáculo, reconhece de onde parte sua cria-
ção, lançando com competência novas luzes
sobre o exercício do papel da bailarina.A segunda questão é pensar como um
único corpo é capaz de visitar diferentes
estéticas (e por que não dizer também, di-ferentes técnicas), propondo pactos mo-
mentâneos entre o que é a assinatura do
coreógrafo e as possibilidades midiáticasdo corpo de um único intérprete. Trata-se
de uma questão contemporânea, propos-
ta, em outros termos e com precisão, porZygmunt Bauman: “como alcançar a unida-
de na (apesar da?) diferença e como preser-
var a diferença na (apesar da?) unidade”. Emnosso caso: Como essa bailarina apresenta-
se carregando em sua dança sua noção de
identidade?Talvez a ideia de um corpo mestiço,
aparelhado em sua habilidade múltipla de
dialogar com o diverso, possa ajudar apensar a questão. Flávia Tápias parece ser
a prova concreta dessa mestiçagem, já que
seu corpo visita com propriedade cada umdos solos que apresenta, o que torna esse
projeto-espetáculo um ato de recuperação
da importância vital do papel do bailari-
no na dança que se faz hoje.
nova versão do projeto 5 Coreógrafos
el corpo traz novamente à cena a ex-
celente bailarina Flávia Tápias, apresentan-
do também uma boa oportunidade para a
discussão de duas questões importantes para
a dança contemporânea hoje: a ideia de in-
térprete-criador e a de um corpo mestiço.
Nesta versão, que estreou quinta-feira
passada no Espaço SESC, são apresentados
quatro novos solos – A light piece/copy that,
de Pol Coussement; Living room, de Stépha-
nie Thiersch; Je m’apelle Flávia Tápias, de
Nicole Seiller e On ne se connait pas encore
mai, de Thomas Lebrun – e um já visto por
nós – Solo, de Rami Levi – tendo em comum
o fato de serem todos de autoria de coreó-
grafos estrangeiros e especialmente com-
postos para a bailarina.
Essa experiência não é uma novidade.
Flávia já havia se lançado a esse desafio em
2005, obtendo grande êxito com outros cin-
co solos, sendo quatro de artistas brasileiros.
Agora, mais madura em seu lugar de baila-
rina, retorna solidificando questões que são
resolvidas em seu próprio corpo.
A primeira delas, e que deve ser comemo-
rada, é poder observar como Flávia tem a qua-
lidade de quem cria a partir do seu lugar de
intérprete, o que traduz a exata justaposição
dos termos intérprete-criador (nesta ordem e
não o inverso), proposta certa vez, com total
pertinência, pela pesquisadora Silvia Soter.
Entender isso liquida de vez com o mito
de que o bailarino, na dança contemporânea,
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE MAIO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE MAIO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE MAIO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE MAIO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE MAIO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
157
Presença, vigor e segurança emobras a serviço de uma bailarina
5 coreógrafos e um corpo:Flávia Tápias dança solos contemporâneos
ILVIA SOTER
porâneos, a competência de um intérprete
pode ser medida pela capacidade do mes-
mo em adaptar-se a uma linguagem, dandovisibilidade, através de seus movimentos e
de sua presença, à corporeidade proposta
como assinatura do criador, a realidade pro-fissional do intérprete nos dias de hoje é
outra. O longo convívio com uma mesmaproposta estética, o que garantiu por muitas
gerações a quase perfeita integração entre
bailarino e coreógrafo, tem sido substituídopor encontros de curto prazo que geram ape-
nas alguns resultados e criações. O ponto in-
teressante do projeto do Grupo Tápias é jus-tamente sublinhar essas novas relações e afir-
mar o lugar do bailarino no centro da obra.
Neste espetáculo, não vemos um intér-prete a serviço de cinco coreógrafos e sim o
contrário. Cada uma das peças serve para
solicitar, para depois exibir, competênciasdistintas da bailarina. Flávia Tápias dá con-
ta, com bastante eficiência, deste desafio e
se garante até nas propostas mais teatrais,como nos solos Living room e On ne se
connait pas encore mai. Seu amadureci-
mento como intérprete é evidente. 5 Co-
reógrafos e 1 corpo mostra uma bailarina
capaz de circular pelas praias propostas
pelos coreógrafos com bela presença, vi-gor e segurança.
m cartaz no mezanino do Espaço
SESC, a bailarina Flávia Tápias dá se-
guimento a uma ideia iniciada em 2005: co-locar suas qualidades de intérprete a servi-
ço de cinco diferentes coreógrafos. A primei-
ra experiência contou com quatro criadoresbrasileiros, um deles Giselle Tápias, mãe da
bailarina. Na versão 2007, Flávia apresentasolos construídos para ela pelos coreógra-
fos Pol Coussement (Bélgica), Stéphanie
Thiersch (Alemanha), Nicole Seiller (Suí-ça), e Thomas Lebrun (França), durante uma
residência artística de três meses na Fran-
ça e um de Rami Levi (Israel), já presentena versão anterior. O trabalho em cartaz dis-
cute os limites e as possibilidades de troca
entre a assinatura de um coreógrafo e ascompetências de um intérprete.
Os solos que compõem o espetáculo
apontam para tendências diversas da dan-ça contemporânea, passando pela já um
pouco desgastada copresença da intérprete
e de sua imagem em projeção, como em Alight piece-copy that ou pela discussão da
identidade como marca e ficção, como nas
peças Je m’apelle Flávia Tápias e On ne se
connait pas encore mai, também na agenda
da dança europeia e brasileira.
Se para muitos projetos da dança moder-na e talvez para muitos coreógrafos contem-
E
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE I RO • DOMINGO • 13 DE MA IO • 2007R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 13 DE MA IO • 2007R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 13 DE MA IO • 2007R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 13 DE MA IO • 2007R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 13 DE MA IO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
158
De complexo nãohá nada. Só exagero
OBERTO PEREIRA
Assim, talvez seja por esse motivo que
nos dois duos colocados de última hora no
programa, This heart e Set rise fall, se pos-
sa ver pequenos lampejos de ousadia de
Rhoden, o que os torna os dois melhores mo-
mentos da noite. Neles, existem o risco e a
tentativa, mesmo que dissolvidos no que o
coreógrafo domina e repete sem parecer se
dar conta disso.
Mas tanto a peça que abre o espetáculo,
Red, A força e a que o encerra, Pretty gritty
suite, são emblemáticas de um tipo de fa-
zer coreográfico que aposta em truques
fáceis para se fazer entender a qualquer
preço, sempre contando com o deslumbra-
mento do público pelo desempenho exibi-
cionista de seus competentíssimos bailari-
nos. Na primeira, ao remeter-se às três co-
res da bandeira norte-americana, tudo se
torna absolutamente escancarado no figu-
rino e na iluminação, além de contar com
uma gestualidade que muito se aproxima
da pantomima do balé. Já na última coreo-
grafia, toda feita com músicas da cantora
Nina Simone, a palavra Nina aparece pro-
jetada ao fundo, quando a dança termina,
numa espécie de grand finale. Rhoden pare-
ce não ter escapado ainda das armadilhas da
legenda e tudo se torna entretenimento puro.
Conclusão: De complexo, a Complexions não
tem mesmo nada.
recorrência de dois elementos coreo-
gráficos, a frontalidade e a simetria,
em todas as sete peças apresentadas na tem-
porada da companhia de dança nova-iorqui-
na Complexions, no Theatro Municipal, pa-
rece denunciar seu desejo de se fazer enten-
der e também o de tornar visível a qualida-
de de seus bailarinos. Tal química nem sem-
pre resulta em um bom espetáculo, mas com
certeza agrada em cheio a plateias leigas
ou pouco acostumadas a assistir dança.
Dwight Rhoden, coreógrafo-residente da
companhia, não se acanha em iniciar todas
as suas coreografias com uma frontalidade
quase obscena, porque aposta tudo no nível
técnico de seus integrantes, que realmente
respondem com eficácia ao que lhes é pro-
posto por ele. Entretanto, o exagero nas
grandes extensões de pernas, saltos e giros,
e no virtuosismo incessante que escapole à
linha tênue entre habilidade e exibição, faz
das coreografias um mesmo modo de tratar
qualquer questão, se é que realmente exis-
te alguma que o mova a coreografar.
Já a simetria coloca em evidência uma
formação quase balética do pensamento de
dança que se constrói ali, perpassando todo
o espetáculo e concedendo um equilíbrio cê-
nico tosco e antigo, que remete a uma har-
monia empoeirada que pouco tem a ver
com a complexidade contemporânea.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IROR IO DE JANE IROR IO DE JANE IROR IO DE JANE IROR IO DE JANE IRO • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 25 DE MAIO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
159
Vigor e beleza que, sozinhos,não fazem um bomespetáculo de dançaComplexions Contemporary Ballet:
Pouco se salvou na apresentação do grupo
ILVIA SOTER
pela profusão de movimentos nos limites ar-
ticulares, pernas altíssimas em todas as di-
reções e giros intermináveis. Nada possui
nuance ou é sutil em Red. O tratamento dado
à sonoridade segue a mesma orientação:
Não há silêncio nem respiração, e sim uma
série de músicas que desembocam umas nas
outras. Em termos espaciais, Red também
não vai longe. A frontalidade quase escolar
das formações de grupo é quebrada apenas
em breves momentos.
O segundo ato é composto por peças cur-
tas e mais eficientes, ainda que sem grande
brilho coreográfico. Os solos, duos e trios
permitem que o público aprecie a compe-
tência de alguns dos intérpretes. O duo Set
rise fall, que entrou no programa no último
momento substituindo a peça Frankly, feliz-
mente quebra o padrão de agitação das co-
reografias anteriores, trazendo um pouco de
lirismo à cena e explorando outras qualida-
des dos intérpretes, além de seus corpos es-
culturais e atléticos. A presença de Desmond
Richardson em Solo – intérprete e um dos
diretores artísticos da Complexions – evi-
dencia a bela herança que traz de Alvin
om duas apresentações no Theatro
Municipal, na semana passada, o Com-
plexions Contemporary Ballet finalmente
deu a partida na temporada internacional
de dança. A marca da companhia ameri-
cana é a reunir bailarinos vigorosos e, o
mais importante, representantes de várias
etnias. O programa da turnê brasileira
traz, em três atos, extratos de peças cria-
das a partir de 1998, sempre assinadas
pelo diretor artístico e coreógrafo Dwight
Rhoden. Apesar da beleza de alguns bai-
larinos e de suas qualidades técnicas, pou-
co se salvou na breve passagem da Com-
plexions pelo Rio de Janeiro.
Em Red, extrato da coreografia Anthem
que trata das cores da bandeira americana,
fica clara a superficialidade com que Rhoden
trata de suas questões. Com trilha sonora
que vai de Jimi Hendrix a Astor Piazzola,
com tambores africanos no meio, a peça
parece sublinhar a força das influências his-
pânica e africana no continente americano.
O vermelho dos figurinos é redundado pelo
exagero da sensualidade demonstrada pe-
los bailarinos. A coreografia se caracteriza
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 2RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 2RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 2RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 2RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 288888 DE MAIO • 2007 DE MAIO • 2007 DE MAIO • 2007 DE MAIO • 2007 DE MAIO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
160
Ailey, na companhia de quem trabalhou
como primeiro bailarino por sete anos.
No terceiro ato, Pretty gritty suíte, tri-
buto a Nina Simone, pretende funcionar
como um grand finale, com a companhia
entusiasmada e sorridente desfilando seus
talentos pelo palco. No entanto, cai na ar-
madilha que arma. A voz de Nina Simone
é tão poderosa que a dança não acrescen-
ta mais nada à cena. Ainda que seja agra-
dável apreciar o swing do grupo, neste úl-
timo ato, em muitos momentos, a vontade
é de se deixar fechar os olhos e ouvir a
música.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
161
Municipal respiraar contemporâneo
Coreógrafos brasileiros: Bailarinos da casa têmalguns bons momentos dançando criadores convidados
ILVIA SOTER
ção para o desenho dos espaços. A música
se mistura a ruídos urbanos e as esquinas por
onde circulam os bailarinos são sempre de-
limitadas pela luz. Ainda que a ideia seja
interessante, a peça acaba por sofrer do pe-
cado comum aos criadores iniciantes. Mar-
cella Gil abusa do recurso da iluminação e
não consegue dar um desenvolvimento
mais rico à sua proposta em termos de mo-
vimentação. O encontro entre a dança e a
vida cotidiana não chega aos corpos.
Ao despir totalmente o enorme palco do
teatro, valorizando pela iluminação o fun-
do da cena e a passarela que atravessa a rua
e liga o teatro ao seu prédio anexo, João Sal-
danha consegue inverter a perspectiva do
olhar do espectador em Manipulações sobre
as forças do vazio. A boca de cena transfor-
ma-se em um fundo de corredor e o palco é
deste modo travestido em estúdio de dança.
Os traços anacrônicos da arquitetura do
teatro ganham correspondência nos figuri-
nos. As saias longas parecem remeter aos
tempos da dança moderna. Este trabalho
segue na linha de investigação das últimas
criações de João Saldanha, ao trazer a dan-
programa Coreógrafos brasileiros do
Ballet do Theatro Municipal recupe-
ra uma bem-sucedida experiência de 1997.
Se naquela ocasião, os coreógrafos convida-
dos já carregavam uma grande bagagem de
criações, nessa nova versão, coreógrafos ex-
perientes como Roseli Rodrigues, Henrique
Rodovalho e João Saldanha são acompa-
nhados pelas debutantes Marcella Gil e
Priscila Albuquerque. Das cinco peças apre-
sentadas, apenas duas foram criadas espe-
cialmente para a ocasião: Manipulações so-
bre as forças do vazio, de João Saldanha e
Tão próximos, de Henrique Rodovalho.
Novos ventos, de Roseli Rodrigues não é
inédita e está desde 1999 no repertório da
Raça Companhia de Dança, dirigida por
Roseli. Já Caos’arte de Marcella Gil e Folia
de Priscila Albuquerque, ambas bailarinas
da casa, já foram apresentadas, ainda que em
estado embrionário, no espetáculo de encer-
ramento do Primeiro workshop do Ballet do
Theatro Municipal, no final do ano passado.
A peça de Marcella Gil inspirada na
movimentação dos trabalhadores do centro
da cidade apoia-se nos recursos da ilumina-
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 14 DE JUNHO • 2007QUINTA-FEIRA • 14 DE JUNHO • 2007QUINTA-FEIRA • 14 DE JUNHO • 2007QUINTA-FEIRA • 14 DE JUNHO • 2007QUINTA-FEIRA • 14 DE JUNHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
162
ça como exercício do espaço, afastando-a da
sedução fácil e do espetacular. Com apenas
cinco intérpretes em cena, a densidade da
dança consegue vencer a desproporção en-
tre a presença humana e a arquitetura do
lugar. O silêncio e as pausas valorizam os
gestos de cada intérprete.
Folia, de Priscila Albuquerque dá con-
ta do que se propõe. Circulando bem pró-
xima do universo da dança clássica, a co-
reógrafa constrói uma peça correta, bem in-
terpretada, mas sem grande pretensão ou
ousadia. Em Folia, como também em
Caos’arte, ficam evidentes a seriedade, o
empenho e o prazer com que todos os bai-
larinos defendem o trabalho de cada um
dos criadores.
O ponto mais frágil do programa talvez
seja Tão próximos, de Henrique Rodovalho.
A proposta simples apenas na aparência –
mostrar ao mesmo tempo a proximidade e
a distância entre a intimidade do teatro e
sua vizinhança, a Cinelândia – não chega a
se realizar em cena. O que se vê é ainda uma
tentativa de contaminação de linguagens já
que a movimentação tão particular do co-
reógrafo da Quasar Cia. de Dança não pa-
rece minimamente consolidada nos corpos
que dançam. A ideia fica restrita apenas à
trilha sonora.
Novos ventos fecha o programa com ele-
gância. A coreografia de Roseli Rodrigues
ganha um tratamento preciso por parte da
companhia. Talvez seja nessa peça em que
os intérpretes se mostrem mais à vontade.
É pena, no entanto, que uma estreia tão
importante para o Ballet do Theatro Muni-
cipal tenha acontecido numa matinê e no
meio de um feriado. A boa qualidade do
programa, que tem sua última apresentação
hoje, merecia um lugar de mais destaque na
agenda da casa.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
163
Bailarinos de até 22 anosfirmes como veteranos
Nederlands Dans Theater: Uma das companhiasjovens mais impressionantes do mundo no Rio
ILVIA SOTER
interessante ver como o estado de tensão queoscila sem se desmanchar ao longo da peçaconsegue ser carregado por bailarinos tão jo-vens. Vale lembrar que a NDT II é compostapor bailarinos de até 22 anos.
Henrique Rodovalho criou para a NDTII uma peça de exportação, para o bem e parao mal. Se por um lado, a trilha de bossa novae a movimentação suingada resultam numapeça agradável e de rápida comunicaçãocom o público, por outro lado Sob a pele nãovoa mais alto. O material humano que teve àsua disposição não conseguiu desviar o core-ógrafo de suas trilhas já percorridas.
Spit reúne extratos de vários trabalhosanteriores de Ohad Naharin, diretor artísti-co da companhia israelense Batsheva. Éinteressante ver o vigor e a potência da dan-ça de Naharin em corpos tão jovens. O ca-ráter coletivo de algumas das coreografi-as ganha neles um sabor especial. Maisuma vez, impressiona o engajamento dosbailarinos que conseguem ir fundo em cadauma das propostas apresentadas. No entan-to, é provável que Spit funcionasse melhorcomo um pot-pourri mais assumido. A ten-tativa de costura entre um extrato e outroenfraquece o todo. Ainda mais quando fe-cha uma noite que foi inaugurada pela es-crita genial de Jiri Kylian.
este último fim de semana, um Thea-tro Municipal lotado acolheu caloro-
samente a passagem da Nederlands DansTheater II pelo Rio de Janeiro. Nesta turnê,o programa de uma das companhias jovensmais impressionantes do mundo tem doisapelos especiais para os brasileiros: umacoreografia de Henrique Rodovalho, diretorda Quasar, e a bela presença da – cada diamais competente – carioca Nina Botkay.
27’52’’, de Jiri Kylian – artista que criou aNDT II e dela foi diretor artístico até 1999 –abriu a noite mostrando que o coreógrafo nãose deixou acomodar. Com o rigor e a criativi-dade de sempre, a peça de Kylian surpreendepela simplicidade e pela contemporaneidade.A técnica de base clássica da companhia, ter-reno onde mais de 50 coreografias de Kylianse desenvolveram, se coloca de lado para dei-xar emergir corpos que se movimentam nolimite do descontrole, como que movidos defora e em tensão permanente. O título da peçajoga com a ideia de que aquela quase meiahora de coreografia é fruto de um grande nú-mero de horas de trabalho que poderiam nemaparecer. Não é o caso aqui. A precisão e aeconomia da peça são o evidente resultado daexperiência de um artista inspirado que man-tém cada um dos bailarinos no limite de suaspossibilidades e de seu comprometimento. É
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
164
Tubos de ensaio ainda em estudoOBERTO PEREIRA
quando se lembra que dança contemporâneacarrega em sua definição a relação diretacom o mundo. Para cada nova pergunta a serfeita nesse mundo, novos modos de elabora-ção de conceitos são exigidos. Na dança doCena 11, técnica e tecnologia são interfacesde um mesmo modo de elaboração coreográ-fica. Robôs, corpos e um cachorro, todos emcena, compartilham a insatisfação dessa per-gunta quase sempre sem resposta. É assim. Eesse assim está lá, traduzido em dança.
A caixa de Skinner, que dá nome à obra,é um lugar de isolamento de animais emlaboratório para que se estude ali, em con-dições ditas ideais, seu comportamento,segundo seu idealizador, o americanoBurrhus Skinner. Essa caixa-lugar está nacena de Alejandro, é o espaço de sua dan-ça. Um espaço que é metamorfoseado, auma só vez, em palco e nos corpos de seus(todos excelentes) bailarinos. Tudo ali com-porta a construção de um pensamento, deuma investigação.
Mas, como tempo-espaço não se dis-solvem jamais, parece que agora esse énovo desafio que se impõe: como fazer deSkinnerbox eficiente em sua trajetóriaentre arte e ciência, sem esquecer queexiste um tempo imperante, que não ne-cessita de tantas recorrências para confir-mar uma proposição. Esse tempo aindanão está lá, preciso, como o espaço está. Asinvestigações devem continuar, portanto.
desafio de tratar da ideia de liberda-de a partir de conceitos como compor-
tamento, condicionamento e adestramento,exige quase uma investigação científica. Éjustamente neste atrito, entre ciência e arte,que ziguezagueia o pensamento coreográ-fico de Alejandro Ahmed em Skinnerbox,sua mais nova obra de para seu Grupo Cena11 Cia. de Dança, apresentada neste fim desemana no Rio, no Teatro Nelson Rodrigues.A dança, e mais especificamente o corpo,transformam-se em lugares de observação,estudos de caso, tubos de ensaios.
Todo seu processo de elaboração carre-gou essa intenção científica. Sob o título deProjeto-SKR, procedimentos teórico-práticosde investigação voltaram-se para questõescomo as relações homem-máquina, sujeito-objeto e controle-comunicação. E tais proce-dimentos, sempre apresentados ao público, emforma de espetáculo (mesmo que à revelia docoreógrafo, que não os vê assim), foram, aolongo de um período, servindo como testes deelaboração de uma dança que desse conta detal desafio, cujo o resultado é justamente o es-petáculo Skinnerbox. Mesmo vencido, elepermanece ainda em aberto, escancaradoem sua incompletude: O que é da arte faz osopro de vida do que é da ciência.
Para compor sua ideia, Alejandro criouuma técnica de dança. Ou talvez um compor-tamento, ou um condicionamento, ou aindaum adestramento. Nada mais arrojado hoje,
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
165
A poética sem concessõesde Marcela Levi
OBERTO PEREIRA
enhuma concessão a ser feita e mes-
mo assim a poesia ali está, presente
quase como matéria bruta, pronta para ser
destilada. É assim que Marcela Levi faz a
trama de sua última peça-solo que compõe
uma trilogia, e que leva o nome de in-orga-
nic, estreada no Espaço SESC nesta última
quinta-feira.
O que salta aos olhos, logo de cara, é que
não se trata apenas de uma bailarina, mas de
uma criadora que cria não para si, mas em si;
que não usa seu corpo para sua dança, mas
seu corpo é sua dança, absolutamente inun-
dado de uma presentidade desconcertante.
Cada objeto em cena, desde um enorme co-
lar de pérolas até uma cabeça empalhada de
um boi, compartilha com sua habilidade de
construir cenicamente sua ideia como con-
dição, nunca como complemento. É isso que
faz in-organic ser tão orgânico para alcan-
çar a dose certa de ironia, de uma justa e fina
fisgada na percepção de quem a assiste.
Marcela carrega em seu processo de
criação o DNA da coreógrafa Lia Rodri-
gues, com quem trabalhou durante oito anos.
A mesma perspicácia em perceber como
algumas informações no mundo revelam
sua crueldade mesmo tacitamente aceitas so-
cialmente, numa crítica fina e aguda, alinha-
va suas cenas, tão áridas, tão secas, e ao mes-
mo tempo tão cheias de poesia, cortantes em
sua justeza, exatas em seu timing. Quase uma
poesia de João Cabral de Melo Neto.
Um dos pontos de partida é uma premia-
da foto de um jornalista em que uma mãe
aparece sentada numa calçada velando o
corpo de seu filho brutalmente assassinado
no centro da cidade. O espaço que há entre a
dor estampada na imagem e as declarações
de satisfação do fotógrafo por ter ganho o tal
prêmio é o espaço em que a ideia se constrói,
ou seja, um espaço exíguo e desconfortá-
vel. A dança de Marcela Levi é assim: não
fazendo concessão, aumenta a nossa chan-
ce, como público, de entender que a dança,
há muito tempo, deixou de ser como tanto
querem os saudosos das harmonias e dos
belos movimentos na música. Sua dança,
estando no mundo, carrega consigo a impe-
ratividade desse mesmo mundo, em que
harmonias e movimentos também se dão
pelos seus avessos.
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 27 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 27 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 27 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 27 DE JUNHO • 2007RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 27 DE JUNHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
166
Lia Rodrigues fazobra-prima da dor
OBERTO PEREIRA
direito, porque é ela a matéria-prima que faz
mover os bailarinos.
Mas não há como negar que exista uma
beleza em cena, uma beleza quase plásti-
ca, ou mesmo provocada por um espanto,
por uma respiração suspensa, condensada,
que permanece em pausa violenta e crua,
tanto na cena quanto no público. Há o chei-
ro de catchup, escancarado em seu uso para
simular sangue, que logo toma todo o re-
cinto. Sim, se há a simulação, ela também é
desnuda. E não há como negar que exista a
crueldade de nunca, mas nunca mesmo,
promover-se um alento, mínimo que seja,
de uma chance para se retomar um nova,
ou outra, respiração.
Encarnado, de Lia Rodrigues, em sua
agudeza, nasce transformando matéria-pri-
ma em obra-prima, sem nunca abrir mão do
que há de bruto na primeira para logo ser
metamorfoseada na segunda. Para nós, não
há apenas o olhar ou o ouvir. O olfato e o tato,
de tantas dores, irrompem em coreografia. E
isso, no final das contas, também é dança.
ão há música, apenas o som que os cor-
pos produzem. Não há figurino. A luz
é econômica e a espetacularidade é de ou-
tra ordem. O que há, na verdade, é apenas –
e, sobretudo – a ideia. Uma ideia às vezes
bruta, às vezes perfilando nuances. E essa
ideia é a dor, só isso. Uma dor que toma o
corpo que dança e faz a coreógrafa Lia Ro-
drigues nomear seu espetáculo, que estreou
nesta última quinta-feira no Espaço SESC,
de Encarnado.
Na cena, essa dor se torna dança pela sua
absoluta presentidade. O aqui e o agora são
explodidos sem nenhuma outra chance de
aparecer, se não em seu estado de pura la-
tência. Está lá o livro Diante da dor dos ou-
tros, de Susan Sontag, que inspirou a coreó-
grafa. Mas estão lá também Lygia Clark,
Deleuze, Pollock, Deus, e tantos outros, amal-
gamados em um tempo enxuto, em um mo-
vimento que conta muitas vezes com passos
de balé para logo se diluírem em êxtase.
Aliás, o que é passo logo se deforma em
gesto para conceder à ideia seu espaço por
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JULHO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JULHO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JULHO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JULHO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JULHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
167
Bailarino visionárioem mais um belo desafio
Hell’s Kitchen Dance com Mikhail Baryshnikov:Estrela do balé clássico mostra estar a serviço do futuro
na abertura do 25º Festival de Dança de Joinville
ILVIA SOTER
ção contemporânea, e sim de dois jovens e
talentosos coreógrafos: o francês Benjamin
Millepied e a canadense Aszure Barton.
A passagem do tempo está no centro
de Years later, dançada por Baryshnikov,
com coreografia de Benjamim Millepied e
videografia de Olivier Simola. O bailarino
é visitado, através do vídeo, por imagens em
preto-e-branco de um Baryshnikov adolescen-
te, desenvolvendo numa sala de dança as com-
petências exigidas pelo balé clássico. Mas não
há uma gota de nostalgia. O passado aparece
somente como citação, como bagagem carre-
gada sem esforço por um bailarino que se
mostra em plena forma no presente, preciso e
delicado em cada gesto, movendo-se com sim-
plicidade, bom humor e maestria.
No gesto simpático, Baryshnikov convi-
dou três estudantes da Escola do Teatro
Bolshoi do Brasil para fazer uma breve par-
ticipação nessa noite de estreia. Concentra-
díssimos, eles foram a única presença do
balé clássico na noite.
Dançada pelo ótimo William Briscoe,
Rom, que substituiu Leap to tall no último
momento, joga de forma inteligente com
á mais de 20 anos imerso no ambien-
te da dança contemporânea, a grande
estrela do balé clássico Mikhail Baryshnikov
não para de se colocar em situação de desa-
fio. Artista visionário, também interessado
em outras linguagens como a fotografia e o
teatro, ele tem hoje como projeto maior co-
locar-se a serviço do futuro. Sua fundação, a
Baryshnikov Arts Center (BAC), vem ser-
vindo com celeiro de novos talentos, não
apenas na área da dança. A Hell’s Kitchen
Dance, companhia jovem que criou e que o
acompanha na turnê brasileira, é um dos
frutos do BAC. Baryshnikov abriu, anteon-
tem, o 25º Festival de Dança de Joinville,
em Santa Catarina, e se apresenta hoje no
Theatro Municipal do Rio.
Baryshnikov está em cena com esses bai-
larinos – universitários e estudantes em for-
mação – e isto é uma postura de vida: abrir
caminhos e pôr no mercado artistas interes-
sados e interessantes, que, ao seu lado, podem
conquistar novos espaços. A escolha dos co-
reógrafos segue os mesmos critérios. As pe-
ças dançadas pela Hell’s Kitchen Dance no
Brasil não são de grandes estrelas da cria-
H
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
168
a tensão entre o ritmo da música tradicio-
nal húngara e a força deste jovem bailari-
no negro. Nada sobra e nada falta na peça,
criada por Aszure, ou na forma como
Briscoe a defende.
A única peça de conjunto, Come in, de
Aszure Barton, fecha a noite. Pela primeira
vez, Baryshnikov se integra ao grupo. A qui
também o tempo e a memória irrigam a
dança. As imagens assinadas por Kevin
Freeman criam a atmosfera desvanecimen-
to que a coreografia seguirá. Nessa traves-
sia de corpos, cheia de silêncios e breves en-
contros, é possível ver a boa qualidade dos
bailarinos da Hell’s Kitchen Dance.
No fim da noite, resta a sensação de que o
tempo só trabalhou a favor de Baryshnikov.
Sua marca está em tudo o que passou pela
cena. E, nela, a dança é feita de beleza, so-
briedade, elegância e muita delicadeza.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
169
O mestre diante do mestreMikhail Baryshnikov se apresenta em Joinville confrontado
numa tela com o início de carreira e prova, aos 59 anos,que o virtuosismo está na inteligência
OBERTO PEREIRA
assado e futuro aparecem como inter-
face de um mesmo pensamento de dan-
ça: O russo Mikhail Baryshnikov e sua com-
panhia Hell’s Kitchen Dance evidenciam o
tempo em seu caráter de simultaneidade,
nunca em sentido causal ou cronológico. Em
sua estreia na turnê brasileira, anteontem à
noite, no Centreventos Cau Hansen, come-
morando os 25 anos do Festival de Dança de
Joinville, em Santa Catarina, um dos grandes
mitos da dança ocidental do século XX
mostrou como sua maturidade pode vir à
cena entremeando maturidade e arrojo es-
tético numa dança de qualidade. É a partir
desse jogo que tudo se constrói. E o público,
cerca de 4.500 pessoas, aprende definitiva-
mente como um bailarino pode, sim, saber
envelhecer sendo ainda bailarino. No Rio,
Baryshnikov faz apresentação única hoje, às
20h30, no Theatro Municipal, das coreogra-
fias Years later, Come in, Sweet dream, Ron.
O que mais saltou aos olhos em todo es-
petáculo em Joinville foi o vigor de todos os
muitos jovens (e excelentes!) integrantes,
em contraponto com a experiência de um
senhor de quase 60 anos que divide com
eles o palco. Essa primeira impressão logo
se esclarece quando se sabe que se trata, na
verdade, não apenas de mais uma compa-
nhia criada por um bailarino para que ele
possa se apresentar, mas de um projeto de
educação.
A partir da constatação de que um ver-
dadeiro bailarino encontra sua formação
profissional de dança apenas dentro de uma
companhia, Baryshnikov resolveu criar uma
espécie de etapa intermediária: sua Hell’s
Kitchen Dance reúne estudantes, que ainda
frequentam seus cursos superiores, para que
a partir dessa experiência possam se lançar
ao mercado de trabalho. De bailarino, o mito
agora é também um formador. Coisa de ar-
tista maduro e inteligente.
Saber disso modifica totalmente o modo
de se assistir ao espetáculo. Na peça Come
in, por exemplo, de autoria de uma das bai-
larinas do grupo, Aszure Barton, de apenas
32 anos, fica evidente o caráter de uma eta-
pa, mas sem nunca abrir mão da qualidade
artística. E é justamente na simplicidade co-
reográfica que ali se esboça que reside uma
ideia do “entre”: o entre-lugar e o entre-
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JULHO • 2007ULHO • 2007ULHO • 2007ULHO • 2007ULHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
170
tempo. O maduro bailarino entre jovens bai-
larinos. Os jovens bailarinos entre suas eta-
pas de formação. A relação coreográfica
entre todos.
É na abertura do espetáculo que esse “en-
tre” já aparece como senha para tudo que
ainda está por vir. Numa peça (auto) bio-
gráfica, com o título Years later, o bailarino,
sozinho em cena, divide sua dança com ele
mesmo, ainda muito jovem, num filme em
preto-e-branco de seus tempos de Rússia.
Apesar da aparente obviedade que ali se de-
lineia, não há como não se emocionar com a
coragem de estampar as ações do tempo
numa dança que foi sempre tão virtuosa.
Hoje, o que se pode verificar é que esse vir-
tuosismo de Baryshnikov está em sua inteli-
gência. E isso, especialmente para bailarinos
e por que não, para todos nós, é a lição maior
que ele e sua companhia nos ofertam.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
171
Mistura de gêneros que não dá ligaAs cinco peles do samba: Linguagens
se cruzam sem formar um todo
ILVIA SOTER
energias das divindades africanas. A maior
parte do elenco, todo feminino, mostra ter
uma larga experiência anterior no samba
como será evidente na cena seguinte. Mas
é nesta antessala, quando o samba ainda se
insinua, que a movimentação atinge sua for-
ma menos codificada e mais interessante.
Em seguida, o público se acomoda em
outro ambiente, uma ampla sala de estar onde
a maior parte da peça se desenrola para de-
pois ganhar o jardim, para a parte final.
Se a proposta de convívio entre público
e obra consegue ser realizada com eficiên-
cia, assim como a integração do espetáculo
à casa, a visita que a dança contemporânea
faz ao samba não assume contornos nítidos
o tempo todo nesta sala. A dança contem-
porânea se borra de samba, mas o samba
guarda por demais seus traços característi-
cos. Talvez As cinco peles do samba ganhas-
se força e profundidade se apostasse mais
na síntese e abrisse mão de parte do vasto
material de pesquisa levantado pela equi-
pe. Infelizmente, o que é interessante e agra-
dável acaba por se esgarçar pelo excesso de
ícones, de imagens, de referências e de cenas.
O tratamento quase didático de algumas
cenas acaba por esvaziar o aspecto festivo
da noite que poderia ser garantido pela boa
ideia, pela beleza e pela energia do elenco.
Casa da Glória, espaço cultural que
começa a receber artistas abriga As
cinco peles do samba, novo espetáculo de
Andréa Jabor. Para esta peça, a improvisa-
ção, área em que Andréa circula há muitos
anos, é alimentada por três fontes comple-
mentares: a arquitetura do casarão, dentro
da linha do sitespecific, o conceito das cinco
camadas do corpo desenvolvido pelo artis-
ta austríaco Hundertwasser e o samba, mú-
sica e universo que a dança contemporânea
se propõe a visitar. O espetáculo se desen-
volve em três cômodos diferentes da casa.
Para Hundertwasser, a casa é considerada
a terceira pele, aquela que vem depois da
epiderme e da vestimenta.
É esperado do público que ele seja
mais do que mero espectador. Ele irá ora
assistir ora entrar literalmente no samba.
As portas do espaço estão abertas uma
hora antes e se fecham uma hora depois do
espetáculo. Um bar reúne os visitantes e
busca criar o ambiente de convívio neces-
sário à proposta.
A primeira cena acontece num cômodo
que serve de antessala tanto para o espetá-
culo quanto para o próprio samba. Neste
local, a movimentação se desenvolve ain-
da em estado embrionário. É o samba como
potência, emergindo da incorporação das
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 • SEXTA-FEIRA • 2 • SEXTA-FEIRA • 2 • SEXTA-FEIRA • 2 • SEXTA-FEIRA • 277777 DE JULHO • 2007 DE JULHO • 2007 DE JULHO • 2007 DE JULHO • 2007 DE JULHO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
172
A construção deum novo vocabulário
OBERTO PEREIRA
A trilha, assinada por Lenine, confir-ma a prática da companhia em trabalharcom grandes compositores brasileiros.Nesse caso, o diálogo que se estabeleceentre tradição e contemporaneidade, en-tre o quintal e o mundo, entre frevos des-mantelados por efeitos tecnológicos e abateria de um Iggor Cavalera cria o es-paço da dança que se faz em cena. Numcenário asséptico composto por azulejospretos, figurinos que desmancham fronta-lidades e uma iluminação que borra con-tornos, o que se vê é algo que brilha nobreu. Quase como o fio de uma navalha.Cortante. Seco. Preciso.
E o que mais impressiona é como a com-panhia responde com eficiência àquilo queainda é novo entre a criação e a descobertacoreográficas em Breu. Novas possibilida-des de movimentos no solo, algo que Peder-neiras parece ainda experimentar e que jáse esboçava em sua obra anterior, Onqotô,comprovam como seu vocabulário pulsavivo, mostrando que nele reside a possibili-dade plena de se tratar de novos temas, detraduzir novas ideias.
Esse é o desafio vencido pelo GrupoCorpo. Mas não uma vitória que se firma emsua certeza, mas aquela que se lança a umconstante teste de sua eficácia. Aquela queentende a criação com crise, e a descobertacomo sua única saída.
a dança, a criação de um vocabuláriopróprio de movimentos é um desafio
que poucos coreógrafos conseguem vencer.O grande problema, além de sua pertinên-cia em traduzir uma ideia, conservando umaassinatura daquele que cria ao longo de suasobras, é a capacidade de tornar esse voca-bulário, assim como uma língua, algo vivo,algo que evolui com o mundo.
Rodrigo Pederneiras talvez seja um dosúnicos artistas brasileiros a se dedicar à cons-trução desse vocabulário, ferramenta que lhepermite tecer uma trama coreográfica que jáconta com neologismos e licenças poéticasnuma estrutura que ele mesmo inventou. Maisuma prova disso é sua nova obra, Breu, queestreou quinta-feira no Theatro Municipal,com sua companhia, o Grupo Corpo.
Como tudo se organiza ali é a chave paraque se entenda que, em dança, criação e des-coberta são apenas interfaces de um pensa-mento que se estrutura no corpo. Não seriapouco reconhecer isso em Breu. Mas o queé colocado em cena como ideia tambémencontra na trilha sonora, no figurino (deFreusa Zechmeister), na iluminação e nocenário (de Paulo Pederneiras) a possibili-dade de entendê-los como extensões dessecorpo que dança, alargando a qualidadedessa dança ainda mais. O que se vê é umacoesão de ideias amalgamadas em uma só.Nada escapa, nada sobra.
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2007SEXTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2007SEXTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2007SEXTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2007SEXTA-FEIRA • 17 DE AGOSTO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
173
Estranhamento efricção em um caldeirãode referências urbanas
Breu: Novo espetáculo doCorpo é intenso, passando rápido
como um raio
ILVIA SOTER
vitavelmente modificado ao ser combina-
do com o que ele acaba de criar, faz com
que cada nova peça seja colocada numa
estrada de mão dupla, que pode ser percor-
rida do passado para o futuro, ou no outro
sentido. Dessa vez, Sete ou oito peças para
um ballet, coreografia criada em 1994 e
deixada em repouso pela companhia des-
de 1999, serve para dar ainda mais visibi-
lidade ao contraste e à tensão de Breu. A
estrutura de variações a partir de uma par-
titura repetitiva – proposta pela trilha de
Philip Glass e Uakti – traz já em Sete ou
oito peças para um ballet um corpo-autô-
mato que vai ganhando o gingado de Pe-
derneiras, em momentos de quase descon-
trole. As cores da bandeira brasileira são
aos poucos acrescidas pelo terra e pelo roxo
dos figurinos.
Em Breu, a dança de Pederneiras vira
mais uma curva. A depuração das linhas, a
fluidez de entradas e de saídas de cena, a
brasilidade impressa nos quadris e nos tron-
cos ganham novos contornos nesta peça. As
linhas se amalgamam e o grupo se transfor-
ma em massa, uma massa quase sempre dis-
omo manda a tradição, o público cario-
ca recebe no inverno a esperada visi-
ta do Grupo Corpo. A cada dois anos, essa
curiosidade aumenta pela expectativa de
uma nova criação. Este ano, a trilha sonora
– sempre o chão onde Rodrigo Pederneiras
e sua equipe alicerçam suas peças – é com-
posta pelo pernambucano pop Lenine. Breu
é feito de sombras, do jogo entre o preto e o
branco, de tensão e de quedas. O cenário e a
iluminação de Paulo Pederneiras criam um
ambiente ladrilhado em negro, cujas paredes
são continuadas pelo piso que brilha, reflete
e distorce a pouca luz que incide em cena. Os
figurinos de Freusa Zechmeister criam, atra-
vés de grafismos, a gradação entre o preto e
o branco e conseguem fazer com que os cor-
pos dos bailarinos ora se destaquem, ora se
confundam com o chão que os atrai a maior
parte do tempo da coreografia.
Ao trazer uma peça antiga para abrir a
noite, antecedendo a nova criação, Rodri-
go Pederneiras mostra o quanto sua escri-
ta se desenvolve sem perder seus traços
absolutamente particulares. A ideia de um
repertório que é sempre atualizado e ine-
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • SÁBADO • 18 DE AGOSTO • 2007R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 18 DE AGOSTO • 2007R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 18 DE AGOSTO • 2007R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 18 DE AGOSTO • 2007R IO DE JANE IRO • SÁBADO • 18 DE AGOSTO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
174
forme, que pulsa, explode e retorna exausta
ao chão, muitas vezes com violência. Os
corpos se atraem e se repelem também nos
duos. O País colorido e brejeiro de várias
peças da companhia é invadido por um
Brasil mais urbano, competitivo, parte de
um mundo-caldeirão de referências e rit-
mos, sublinhado pela música de Lenine.
Tem frevo dançado no chão, tem hard rock
e caboclinho. Tem rebolado, silêncio e im-
pacto de corpos.
Na fusão da luz com a escuridão, Breu é
intenso e seus 40 minutos passam rápido
como um raio. Pederneiras cria estranha-
mento e fricção; adultera o que já havia fei-
to antes, lança-se um novo desafio e traduz
tudo isso em dança, com a competência e a
criatividade de sempre.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
175
Nem a dama doteatro se ajusta
OBERTO PEREIRA
clamam por novas chaves. E elas ainda
devem ser descobertas por um público
que vem acompanhando a produção de
Bertazzo e por isso mesmo acostumado
com outros parâmetros. Sendo assim, as fra-
gilidades são evidentes e elas devem ser
tratadas como tal.
A séria pesquisa corporal que Bertazzo
desenvolve comprova que se trata de um
mestre. O que está claro em cena é que te-
mos um grupo de jovens conscientes de sua
performance, numa concentração e numa
entrega que chegam a emocionar. Tudo ali
comporta uma organicidade física que, des-
ta vez, infelizmente, não encontrou um bom
lugar na dança. E isso fica ainda mais à
mostra quando se leva em conta a ilumi-
nação, o figurino e, sobretudo, a desigual
trilha sonora que mistura peças do reper-
tório clássico com efeitos sintetizados, num
resultado que beira o inacreditável. Por
vezes, tem-se a impressão de que se está à
frente de uma cena de figurantes de filmes
épicos hollywoodianos de 1950.
Nem mesmo a grande dama do teatro
brasileiro, Fernanda Montenegro, ajusta-se
modo de assistir ao novo espetáculo
de dança assinado pelo coreógrafo
paulista Ivaldo Bertazzo, Mar de gente, que
estreou nesta quinta-feira no Teatro Carlos
Gomes, deve, enfim, se modificar. Apresen-
tando-se agora como uma companhia pro-
fissional (recém-criada em junho deste
ano), que leva seu nome e que reúne nada
menos de 30 bailarinos, o grupo deixou de
ser um projeto social para entrar no rol do
profissionalismo da dança brasileira.
Tal passagem já havia sido esboçada no
ano passado, quando da apresentação do
espetáculo Milágrimas, em que a represen-
tante de seu maior patrocinador, a Petro-
bras, anunciava que se tratava ali de uma
companhia de dança profissional, embora
isso ainda não constasse no programa. Era,
de fato, um espetáculo feito a partir de um
projeto social com dança, denominado Pro-
jeto Dança Comunidade. E isso mudava ab-
solutamente todo o modo de olhar o resul-
tado que se dá em cena.
Agora, enfim, assumindo esse novo ca-
ráter, os critérios de análise do que se cons-
trói coreograficamente em Mar de gente
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2007• SEGUNDA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2007• SEGUNDA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2007• SEGUNDA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2007• SEGUNDA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
176
plenamente com a cena coreográfica.
Uma pena, pois sua competência dramá-
tica poderia ter se espraiado melhor em
todo o espetáculo, e não apenas funcio-
nar como pontuações esparsas. Além dis-
so, o palco do Carlos Gomes não se mos-
tra adequado às variações coreográficas
típicas de Bertazzo, que funcionam me-
lhor em espaços de arena maiores. A pro-
va disso é o convite feito pela própria
atriz à plateia para ocupar as arquiban-
cadas no palco.
Mar de gente não é o melhor trabalho
dessa nova companhia que já possui um his-
tórico como projeto social. Mas é suficien-
temente capaz de provocar saudades dos
três grandes espetáculos que o mesmo Ber-
tazzo produziu por aqui, entre 2000 e 2002,
quando ainda trabalhava com o extinto
Corpo de Dança da Maré.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
177
O desafio de setornar profissional
Mar de gente: Em nova fase, companhia criada porIvaldo Bertazzo começa a mostrar singularidades
ILVIA SOTER
a cena, sublinha ainda mais a participação
dos jovens como coro. A atriz que contrace-
na com o grupo é responsável pela maioria
dos textos que servem como costura entre
as cenas e as músicas.
O coro, essa massa humana, esse mar de
gente, acentua um dos interesses centrais de
Bertazzo: a complexidade e a suposta uni-
versalidade do gesto humano. Se antes, em
Samwaad, o grupo visitou músicas e danças
da Índia e, em Milágrimas, tinha um colori-
do africano, agora, em Mar de gente, preten-
de borrar as referências locais para se apro-
ximar de um mundo atemporal, berço da ci-
vilização. A coreografia de Bertazzo também
mescla referências variadas e ganha mais
força quanto maior é o grupo que dança.
Curiosamente, é justamente neste mo-
mento em que o projeto se pretende pro-
fissional, que algumas características que
sempre imprimiram grandiosidade às pe-
ças de Bertazzo – como trilha sonora de
alta qualidade composta especialmente
para o espetáculo ou uma iluminação ade-
quada e criativa – se fragilizam. A trilha so-
nora de Mar de gente, além de não valorizar
educador e coreógrafo Ivaldo Bertaz-
zo inaugura com Mar de gente, em
cartaz no Teatro Carlos Gomes, uma nova
fase em sua carreira. Em seus 30 anos de prá-
tica profissional, uma de suas principais
marcas foi misturar, em seus espetáculos,
amadores iniciados em sua linguagem de
dança e métodos somáticos, seus cidadãos-
dançantes – termo cunhado por Bertazzo –
e artistas profissionais. Desde 2000, inves-
tindo prioritariamente em cidadãos-dançan-
tes moradores de espaços populares e, a
partir 2003, de volta a São Paulo, o coreó-
grafo decidiu transformar esse elenco no que
define como uma companhia de teatro-dan-
ça profissional. Os jovens que hoje com-
põem essa equipe foram capacitados no seio
do projeto Dança Comunidade, um projeto
sócio-artístico dirigido a grupos de várias re-
giões da periferia de São Paulo.
Neste primeiro espetáculo, a companhia
guarda como traço das produções anterio-
res o fato de ser utilizada como um corpo de
dança, um grande coro que apenas em pou-
cos momentos se recorta em formações di-
ferentes. Trazer Fernanda Montenegro para
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 24 DE AGOSTO • 2007• 24 DE AGOSTO • 2007• 24 DE AGOSTO • 2007• 24 DE AGOSTO • 2007• 24 DE AGOSTO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
178
a dança, em muitos momentos prejudica a
passagem de uma coreografia a outra. A
peça parece espremida no palco italiano do
Teatro Carlos Gomes, levando a crer que foi
desenvolvida para outro tipo de espaço cê-
nico, enquanto a iluminação achata ainda
mais o espaço.
Para aqueles que acompanham o grupo
desde Samwaad é impossível não notar o
crescimento de alguns jovens e o desenvol-
vimento de suas competências físicas e téc-
nicas. O uníssono, a busca pelo homogêneo
e a sincronia de gestos, que por algumas
peças caracterizou boa parte das coreogra-
fias de Bertazzo, perdem-se um pouco para
tornar possível o surgimento de singulari-
dades. Alguns jovens começam a se desta-
car ao imprimir traços bem pessoais à core-
ografia.
A continuidade da experiência com
Bertazzo ao longo do período de amadure-
cimento desses cidadãos-dançantes mostra
que, se ainda há um longo caminho a ser tri-
lhado para que o grupo possa ser visto como
uma companhia profissional por suas quali-
dades artísticas, muito já foi percorrido. A
partir de agora, o grande desafio é saber
desdobrar o material já incorporado e dar
maior visibilidade a cada um dos jovens que,
dançando, chegaram até aqui.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
179
No programa, umaboa dose de humor eficiente
OBERTO PEREIRA
tanto, sua execução é surpreendente, mes-
mo que deixe ainda mais claro porque essa
técnica de pontas deve mesmo ser desenvol-
vida apenas pelas mulheres.
O programa, de quase duas horas e
meia, foi um tanto extenso, contando com
mais três obras que não estavam previstas.
Mas valeu a pena assistir à impagável
Morte do cisne, um ícone no repertório clás-
sico. E é claro que quem mais tirou provei-
to e se divertiu com o espetáculo foram
aqueles que conhecem a fundo os ballets
parodiados. Os pequenos detalhes, que es-
cracham com os trejeitos e os maneirismos
das grandes estrelas, são, sem dúvida, os
mais engraçados.
Diante da lastimável situação finan-
ceira da nossa primeira e única compa-
nhia de ballet, a do Theatro Municipal jus-
tamente, que quase não se apresentou ain-
da nesse ano, assistir aos Trocks permitiu
que o ballet fizesse o público carioca rir.
Nada mais oportuno, para que se esqueça
um pouco de lamentar o que acontece por
aqui. Afinal, essa não é mesmo uma das
funções da comédia?
que se deve ter bem claro ao assistir
às apresentações da companhia
nova-iorquina Les Ballets Trockadero
de Monte Carlo, que se apresentou nesse
fim de semana no Theatro Municipal, é que
se trata puramente de entretenimento.
E como tal, ela é absolutamente eficiente,
como se pôde comprovar em sua passagem
por aqui.
Tal eficiência aposta num elemento que
muitas vezes fica distante da dança, seja ela
qual for: o humor. Tudo bem que o humor dos
Trocks, como são conhecidos, é quase paste-
lão. Tudo bem também que eles traduzem
em comédia quase chanchadesca os gran-
des ballets clássicos de repertório. Ao fazê-
lo, o que os legitima é a técnica arrojada de
seus bailarinos, todos homens, o que conce-
de ainda mais graça às suas apresentações.
Nessa técnica pode se ver ainda o timing
perfeito, exigência para qualquer iniciativa
que pretende fazer rir.
Estão lá os dificílimos fouettés, as pirue-
tas e as sequências de saltos, executados to-
dos sobre as pontas dos pés, o que não é, jus-
tamente, tarefa dos homens no ballet. Entre-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE SETEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE SETEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE SETEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE SETEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE SETEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
180
O mapa da dançacontemporânea
OBERTO PEREIRA
Tudo isso está reunido numa belíssima
caixa que foi recém-lançada pelo Itaú Cul-
tural: os textos mapeadores dos pesquisado-
res, 5 video-danças, todos em DVDs, as 25 co-
reografias, também em 5 DVDs, fotografias
das obras e ainda artigos reflexivos sobre
todo o projeto. Para tanto fôlego assim, há
que se relevar algumas lacunas no mapea-
mento, além de uma certa desigualdade na
qualidade dos trabalhos apresentados. Mas,
dentro desse contexto, até mesmo tais cons-
tatações já se servem como índices de como
está a dança contemporânea brasileira.
O Rio de Janeiro está bem representado
em todo o projeto. Além dos ótimos trabalhos
de Marcela Levi (in-organic) e Helena Viei-
ra (Maria José), há que se destacar o instigan-
te video-dança Jornada ao umbigo do mundo,
de Alex Cassal, Alice Ripoll e Theo Dubeux.
Geografizar o que é, por definição, algo
inconstante coloca a dança contemporânea
como lugar de reflexão e de história. Sônia
Sobral, viabilizadora do projeto, sabe desse
desafio ontológico. E por isso mesmo nos
permite ter esse mapa movente que se re-
faz a cada instante.
apeamento, cartografia: termos que
em sua origem carregam a ideia de
geografia são emprestados para tratar de
um espaço que se move continuamente,
numa relação quase absoluta com o tempo,
a dança. Como adequar essa relação de um
espaço que se cria a cada momento e de um
tempo que é sua causa e consequência em
dança, e mais especificamente em dança
contemporânea, é o desafio que se impõe o
projeto Rumos Dança, do Itaú Cultural. Um
projeto absolutamente pioneiro, ambicioso
e, acima de tudo, necessário.
A ideia parece simples: reunir num mes-
mo catálogo uma situação da dança contem-
porânea no Brasil. Tal reunião se deu em três
frentes: um levantamento de informações
sobre essa dança, elaborado por 14 pesqui-
sadores que tentaram cobrir todas as
regiões do País; uma amostra do que já está
sendo produzida por aqui num dos mais re-
centes mídias artísticos, o video-dança; e por
fim a reunião de 25 trabalhos de caráter in-
vestigativo, previamente selecionados por
uma comissão e que abarcam a produção na-
cional na área.
M
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE OUTUBRO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 5 DE OUTUBRO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 5 DE OUTUBRO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 5 DE OUTUBRO • 2007 • SEXTA-FEIRA • 5 DE OUTUBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
181
Estreia daCia. da Ideia surpreende
OBERTO PEREIRA
Estação é um trabalho que tem como
semente uma pesquisa universitária de
Sueli, que se expandiu e se tornou um espe-
táculo. Nesse sentido, carrega a envergadu-
ra da pesquisa, condição primeira da dança
contemporânea. E, mesmo com maturidades
tão diversas, os cinco bailarinos em cena
conseguem defender bem as ideias que es-
tão no próprio nome do grupo que os agluti-
na. Entretanto, é o jovem talento Thiago
Sancho quem se destaca, apontando para
uma promissora carreira como bailarino e
intérprete.
Já o espaço do Teatro II do SESC Tiju-
ca, ao mesmo tempo que é, sem dúvida,
pequeno demais para a coreografia que ali
se desenvolve, parece denotar o cuidado
com que a Cia. da Ideia entra na cena cari-
oca: tudo deve ser do tamanho deles, mos-
trando que desde o início a ideia é mesmo
a de construir um percurso, sem queimar
etapas. O início dessa viagem, com Estação,
começou muito bem. Metafórica e profis-
sionalmente.
ma nova companhia surge no cenário
da dança contemporânea carioca, tra-
zendo uma boa questão para se pensar qual
é o estado dessa dança hoje. Trata-se da Cia.
da Ideia, que tem como idealizadores os bai-
larinos Sueli Guerra e Jean Gama, ambos
oriundos de importantes e históricas com-
panhias da cidade e que acabou de estrear,
neste último sábado, no Teatro II do SESC
Tijuca, o espetáculo Estação, permanecen-
do em temporada até o final do mês.
A questão trazida pela companhia é a
vontade de experientes bailarinos, como são
Sueli e Jean, em viabilizar sua dança, algo
que parece simples, mas que se tornou um
verdadeiro desafio nesses tempos de políti-
ca quase zero para a dança, sobretudo no
âmbito municipal. Dessa vontade, surgiu o
empenho de se juntar a outros bailarinos e
tornar real um trabalho que carregasse a
qualidade da dança atada ao senso de pro-
fissionalismo. Essa primeira batalha, ao que
tudo indica, a Cia. da Ideia venceu, e com
muitos méritos.
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 10 DE OUTUBRO • 2007• QUARTA-FEIRA • 10 DE OUTUBRO • 2007• QUARTA-FEIRA • 10 DE OUTUBRO • 2007• QUARTA-FEIRA • 10 DE OUTUBRO • 2007• QUARTA-FEIRA • 10 DE OUTUBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
182
A dança baila entrelinhas e entrelinhas
OBERTO PEREIRA
o lançamento, somente nesse primeiro se-
mestre de 2007, de três livros muito signifi-
cativos dessa produção.
Bastante distintos entre si, esses livros
contemplam públicos diferentes, com modos
de tratar a dança também diferentes, inclu-
sive com formatos diferentes, mas todos
apontando sempre para o crescimento des-
sa demanda entre nós. São eles: Angel Vian-
na: a pedagoga do corpo, de Enamar Ramos
(Summus); Contos de balé, de Inês Bogéa
(Cosac & Naify); e Cisne Negro: 30 anos de
vida na dança, de Cássia Navas (Retrato
Editora).
O primeiro é resultado de um doutora-
mento feito na área de teatro na UniRio e
mostra um perfil muito importante da mes-
tra da dança Angel Vianna: como seu mé-
todo corporal, denominado Conscientiza-
ção do Movimento, pode ser útil para a for-
mação de atores. A pesquisadora Enamar
provou ter fôlego para a pesquisa, articu-
lando informações históricas, estéticas e pe-
dagógicas, sem nunca perder seu objeto de
vista. Entretanto, algumas imprecisões, so-
bretudo no que se refere ao curso superior
produção bibliográfica sobre a arte da
dança tem crescido muito no Brasil,
ainda que as prateleiras dedicadas a ela,
mesmo nas melhores livrarias da cidade,
ainda se resumam a, no máximo, alguns tí-
midos centímetros que reúnem alguns pou-
cos títulos. Se reunir o que existe nessa área
nem sempre é tarefa das mais fáceis para
nosso mercado de livros, tal fato vai na con-
tramão das expectativas de um perfil de
pesquisadores que cresce a cada ano, sobre-
tudo em razão da existência de cursos su-
periores de dança (no Brasil, já contamos
com 12 deles, de norte a sul do país), um
mestrado (na Universidade Federal da
Bahia, o primeiro específico de dança por
essas terras) e algumas especializações
lato sensu.
Para dar conta dessa produção científi-
ca, uma bibliografia voltada para área urge.
Hoje, dissertações e teses são publicadas e
coletâneas de artigos são consumidas rapi-
damente por um público ávido por referên-
cias teóricas para seus trabalhos tanto teó-
ricos quanto práticos. Um bom sinal disso é
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 13 DE NOVEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
183
em dança idealizado por Angel, não com-
binam com a meticulosidade do texto
quando se dedica a explorar com afinco a
relação entre o corpo pensado pela mestra
e o ator em cena.
O segundo é um livro escrito por uma
bailarina e isso faz toda a diferença. A capi-
xaba Inês Bogéa foi, durante anos, bailari-
na do Grupo Corpo e hoje se dedica, em São
Paulo, à crítica de dança e a um doutorado
na área. Com seu Contos de balé, ela preten-
de atingir um público ainda pouco servido
de livros sobre dança: o infantil. Essa é a
segunda empreitada de Inês nesse sentido,
que já havia lançado em 2002, O livro da
dança (Cia. das Letras). Agora, a originali-
dade fica por conta de sua proposta: narrar,
do ponto de vista de algum personagem ou
não, a história de cinco balés do repertório
clássico. Com belíssimo formato e ricamen-
te ilustrado, sua iniciativa é louvável. Ape-
nas alguns dados históricos sofrem por al-
gumas imprecisões que merecem ser revis-
tas. E, claro, a ausência de mais fotos de bai-
larinos brasileiros assim como a de algumas
referências sobre as montagens no Brasil
(como, por exemplo, a clássica montagem
integral de O lago dos cisnes, no Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, em 1959, a
primeira nas três Américas) podem ser sen-
tidas por um leitor mais exigente.
Já o terceiro livro comemora um feito: a
existência, ou por que não dizer, a sobrevi-
vência de uma companhia particular de
dança no Brasil, que completa seus 30 anos:
a companhia Cisne Negro, dirigida por
Hulda Bittencourt. A pesquisadora paulista
Cássia Navas debruçou-se em contar essa
história num texto fluido, mas que hora
alguma deixa escapar informações tanto ca-
talográficas, quanto históricas e estéticas.
Trata-se de um típico livro de mesa, com
requintado projeto gráfico e belas fotos das
coreografias históricas do grupo. Um livro
que já nasce como documento de uma his-
tória que se faz a cada dia, encarando o de-
safio de se produzir dança hoje nesse país.
E é nesse sentido que o texto de Cássia tra-
fega, tornando a dança do Cisne Negro uma
dança viva nas páginas que escreveu.
Três produções bibliográficas distintas
para públicos os mais diversos. Em comum,
a certeza de que a produção teórica sobre
dança cresce no Brasil, mesmo que na mão
inversa das políticas públicas para essa área.
Pelo menos, pensa-se mais sobre a dança
hoje, entre nós, deixando estampados esses
pensamentos, sempre plurais, em livros que
devem, em muito pouco tempo, rechear as
prateleiras das livrarias mais cuidadosas
com seu público.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
184
Descompasso entreo tema e a coreografia
Nós, os outros: Companhia “oficial” da cidade,Ateliê Coreográfico estreia com espetáculo fraco
tidade postiça, construída de fora. O tema
vem sendo visitado com frequência e com-
petência por muitos coreógrafos cariocas
nos últimos anos como, por exemplo, Gusta-
vo Ciríaco, Fred Paredes, Dani Lima, para
citar apenas alguns.
É Regina Miranda quem assina roteiro,
direção e encenação de Nós, os outros. O es-
petáculo reúne pequenas coreografias criadas
tanto pelos componentes da própria compa-
nhia, como por outros coreógrafos e professo-
res do Ateliê, como Duda Maia, Marina Mar-
tins, Paulo Marques, Renata Diniz e João Pau-
lo Gross. Dois momentos de autoria da pró-
pria Regina Miranda abrem e fecham a peça,
tentando habilmente dar unidade ao conjun-
to. Mesmo que se perceba uma busca de cos-
tura entre uma cena e outra, na noite de es-
treia, a peça pecava pela falta de um fio con-
dutor mais claro. Algumas cenas trazem de
forma explícita a discussão pretendida, como
aquela em que uma das bailarinas se apresen-
ta misturando sua identidade a uma lista de
clichês sobre a mulher brasileira, mas o trata-
mento da questão também não escapa ao cli-
chê. A complexidade da discussão sobre bra-
ILVIA SOTER
uma noite de chuva e caos na cidade,
os discursos de Ricardo Macieira e de
Regina Miranda, Secretário das Culturas e
Diretora do Centro Coreográfico do Rio de
Janeiro, respectivamente, antecederam a
estreia de Nós, os outros, primeiro espetácu-
lo da Ateliê Coreográfico Companhia de
Dança. Segundo Macieira, o grupo estrea-
va também como a companhia oficial da ci-
dade do Rio, ou “corpo estável”, nas palavras
do secretário.
O Ateliê Coreográfico, carro-chefe do
Centro Coreográfico, nasceu como um proje-
to de formação em dança, e suas ações foram
assistidas pelo público em outras ocasiões, no
formato de encerramento das oficinas de cri-
ação. Nesta segunda fase, um grupo de 11 jo-
vens foi selecionado para formar a companhia.
Nós, os outros pretende discutir a identi-
dade brasileira a partir do olhar do outro. No
programa do espetáculo, citações de Oswald
de Andrade e referências a Roberto da
Matta, Darcy Ribeiro e aos registros que
Debret fez sobre o Brasil reforçam a pro-
posta de exploração e rejeição de uma iden-
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 2 DE NOVEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
185
silidade e alteridade não ganha em momento
algum terreno fértil na cena. A diversidade do
povo brasileiro presente nesta companhia –
como, aliás, na maior parte das companhias de
dança do país afora – não dá conta de acres-
centar nada de novo ou de singular à questão.
Neste caso, parece apenas reforçar o aspecto
de integração social a que a ação do Ateliê se
propõe. Na maior parte das cenas, o tema se-
gue alheio ao que é dançado.
O grupo, visivelmente empenhado e de-
dicado à tarefa que lhe cabe, não encontra
nesta peça oportunidade para mostrar suas
possíveis competências nem como intérpre-
te nem como criador.
Como etapa de conclusão de mais um
ano de atividades de formação do Centro
Coreográfico, o espetáculo já seria fraco.
Mas se compreendido como o Secretário das
Culturas anunciou, enquanto a coroação da
política pública de apoio à dança contem-
porânea iniciada na primeira gestão do Pre-
feito César Maia, a fragilidade de Nós, os
outros se torna ainda maior.
A política municipal de subvenção a 13
companhias de dança – suspensa em 2005
– foi durante anos referência no País e no
exterior. Essa nova etapa que reduz o apoio
municipal a somente a Ateliê Coreográfico
Companhia de Dança não reflete nem de
longe a criatividade, a riqueza e a diversi-
dade que a política anterior garantiu ao
panorama da dança do Brasil.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
186
Criação comodiálogo de diferenças
Paradise city: Espetáculo australiano promoveencontro, troca e poesia no ginásio do SESC Tijuca
ILVIA SOTER
vocação com flexibilidade e habilidade
para girar, e a rampa é invadida pelo ska-
tista e pelo ciclista, que são atrapalhados pe-
los obstáculos criados pelos outros. Aquela
possível conversa de surdos sugerida no iní-
cio da peça se transforma, assim, numa in-
tensa e, na maioria das vezes, divertida tro-
ca de provocações. Um verdadeiro diálogo
se estabelece. A improvisação, o erro e, prin-
cipalmente, o nonsense alimentam o jogo.
Por exemplo, a descida da imensa cortina de
veludo vermelho, aparentemente estranha
à pista, ajuda a inserir a diva decadente na
cena. A música, gerada por computadores
e executada ao vivo, não deixa que o jogo
se desmanche mesmo nas pausas.
O espaço urbano, com frequência tratado
como ambiente de exacerbação do individu-
alismo, ganha em Paradise city outros tons. A
juventude dos intérpretes reforça a potência
criativa deste espaço e justifica o título da
peça. Ainda que cada um ali seja diferente e
que, sobretudo, fale uma língua cinética dis-
tinta, não há nada que impeça que haja encon-
tro, troca, poesia e dança. Paradise city tem
também o mérito de atrair para a dança con-
temporânea espectadores de todas as idades.
Ginásio do SESC Tijuca transformou-
se numa inusitada pista de skate para
acolher Paradise city, do grupo australia-
no Branch Nebula. O espetáculo, uma das
atrações do Panorama de Dança, faz sua
última apresentação hoje, no mesmo local,
às 17 horas.
Nesta arena, um ciclista de BMX, um
skatista, um b-boy, uma bailarina loura e
atlética e uma acrobata são acompanhados
por uma cantora com ares decadentes.
Como espaço público, a cena é lugar de
coabitação das diferenças destes persona-
gens do imaginário urbano, mas também faz
emergir o que lhes é comum: o movimento.
Num primeiro momento da peça, suas es-
pecificidades cinéticas e suas competên-
cias são exibidas e confrontadas com as dos
outros. Cada corpo é sublinhado pela sua
movimentação característica e por suas ex-
tensões: o figurino, a voz, o microfone, a bi-
cicleta, o skate, a rampa etc. Não é possí-
vel imaginar o ciclista sem as rodas ou a
cantora sem sua cortina vermelha.
Aos poucos, no vazio desta pista, um jogo
é estabelecido. O dançarino de break desa-
fia a bailarina loura, que responde à sua pro-
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE NOVEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 4 DE NOVEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
187
Excesso de devoçãoem espetáculo sem desafios
Excelência da bailarina MariaAlice Poppe sobressai
OBERTO PEREIRA
tes da dança brasileira. Existe aí, sem dúvi-
da, um caminho amaciado pela emoção que
sua figura provoca. O perigo está justamen-
te quando essa emoção beira a devoção,
entupindo os canais dos desafios mais difí-
ceis se não houvesse tal facilidade. Talvez
Maria Alice precisasse, freudianamente,
processar, tal como o filho o faz com sua mãe,
sua relação com a mestra. E, assim, acredi-
tar também que seu corpo já abriga essa
mestra e a carrega como informação e re-
conhecimento.
A coreografia, assinada por Alexandre
Franco, parece também sucumbir a essas fa-
cilidades, o que a torna quase como um de-
calque no corpo da bailarina. É interessan-
te perceber como são nos movimentos lar-
gos e amplos que Maria Alice deixa esca-
par suas habilidades técnicas mais históri-
cas, entregando-se aos olhos dos familiari-
zados com sua dança. E é justamente nesses
pequenos momentos que ela nos prova o que
Ilya Prigogine nos mostrou através da ciên-
cia: o tempo é mesmo irreversível.
xistem dois facilitadores que funcio-
nam como eixos para o espetáculo
Atempo, que Tato Taborda concebeu e di-
rigiu para a bailarina Maria Alice Poppe,
que estreou na última quinta-feira no Es-
paço SESC. Como trata do tempo, tentou-
se escapar a qualquer custo de sua dimen-
são cronológica e causal, mas a escolha de
se trabalhar com uma criança e uma mes-
tra da dança, que aparecem dançando em
vídeos projetados em telões, de certa for-
ma a recupera.
Como não cair nas armadilhas da linea-
ridade temporal, estampando na cena três
fases tão simbólicas da vida de uma mulher,
como a infância, a maturidade e a velhice?
Será que a própria dança de Maria Alice,
cuja excelência arremata em simultaneida-
de essas três fases, não daria conta sozinha
de discuti-las? Esse primeiro facilitador se-
ria mesmo necessário?
Outra questão: essa é a terceira vez que
Maria Alice trabalha com sua mestra An-
gel Vianna, um dos nomes mais importan-
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 10 • 10 • 10 • 10 • 10 DE DEZEMBRODE DEZEMBRODE DEZEMBRODE DEZEMBRODE DEZEMBRO • 2007 • 2007 • 2007 • 2007 • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
188
A proposta é clara,mas a dança é sem ousadiaAtempo: Maria Alice Poppe refaz sua trajetória
ILVIA SOTER
gel e a criança Sofia Arruda como desdo-bramentos da própria intérprete. Sofia apa-
rece dançando vestida de bailarina numa
das salas da Escola Angel Vianna. Esta casa-ventre materno reforça a ideia de origem.
A proposta de Atempo aparece em cena
de forma clara, mas, apesar da clareza e dacoerência com que é construído, o espetá-
culo se vê amarrado no que pretende tratar.
A estrutura da dramaturgia, regular em ex-cesso, não vai além de expor sua ideia. Em
tempo real, Maria Alice busca uma movi-mentação apenas possível, muitas vezes mí-
nima, como se seu corpo estivesse apertado
neste tempo presente. Na tela, o tempo es-corre para frente e para trás, na criança, em
Angel que ali é passado, origem e também
um possível devir. Em outros momentos, abailarina se funde com a sua própria ima-
gem projetada ou dela se descola.
Ainda que assistir a Maria Alice Poppedançar seja sempre uma experiência enri-
quecedora e prazerosa, a coreografia de Ale-
xandre Franco não ousa ou se arrisca e aca-ba apenas por reforçar o que dela é conheci-
do. Nem a paralisia é assumida integralmen-
te, nem a dança irrompe para impor a MariaAlice novos e merecidos desafios ou ainda
para jogar de forma mais livre com as diver-
sas temporalidades de sua dança. Tempora-lidades que convivem inevitavelmente em
qualquer corpo, mas que aqui são sublinha-
das de forma excessivamente didática.
esde que saiu da Staccato Dança Con-
temporânea, companhia que fundou
com o coreógrafo Paulo Caldas, Maria Alice
Poppe vem buscando outra inserção no ce-nário da dança carioca. Sem embarcar na tri-
lha dos intérpretes-criadores, a bailarina tem
colocado suas inúmeras qualidades a serviçode outros coreógrafos. Ainda que não assine
as peças que dança, nem por isso deixa de es-
tar no centro de seus novos projetos. No anopassado, dançou o ótimo Tempo líquido, que
Maurício de Oliveira criou a seu convite para
os Solos de Dança no SESC. Já em Atempo –em cartaz no mezanino do Espaço SESC até
domingo –, é em torno de sua trajetória como
bailarina que o espetáculo se constrói.O texto do programa expõe a mudança
da ideia inicial, a de trabalhar a partir de
Alice através do espelho, para a de tratardesta outra Alice, a Maria Alice “na vida
real”. Para tal, a intérprete recorre a parce-
rias anteriores e fundadoras de sua histó-ria, como sua mestra Angel Vianna, o co-
reógrafo Alexandre Franco, que já coreo-
grafou intérprete e mestra em outra oca-sião, e o músico Tato Taborda, autor da tri-
lha de Tempo líquido, que, além da música,
agora assina roteiro e direção.Nesta peça, três telões – uma possível
referência aos espelhos do texto de Lewis
Carroll – multiplicam o número de mulhe-res em cena. Além de Maria Alice, presen-
te e em vídeo, outras imagens trazem An-
D
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 13 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 13 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 13 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 13 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 13 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
189
Bela récita, apesar dos nósRoberta Márquez e Thiago Soares perdem a sincronia
OBERTO PEREIRA
Alguns pequenos problemas de remonta-gem, como o andamento dramatúrgico um tan-
to esgarçado da cena dos festejos na casa dos
barões, ou a da falta de ensaios na cena dossoldadinhos, ambas do prólogo, não impediram
que a récita contasse com ótimos momentos. Os
alunos da Escola de Dança Maria Olenewamerecem o primeiro destaque. Hélio Bejani
acertou em sua atuação como Drosselmeyer,
o trio dos Mirlitons formado por Karina Dias,Filipe Moreira e Rodrigo Negri estava impe-
cável e todo o corpo de baile mostrou-se coe-
so. Vale ressaltar dois jovens de grande futuro:Irlan Santos, que brilhou na dança russa, e
Amanda Assucena, perfeita como Clara.
Já Roberta Márquez e Thiago Soares pro-varam porque ocupam hoje postos de desta-
que em uma das mais importantes companhi-
as de ballet do mundo. No grand pas-de-deux,
mostraram suas evidentes qualidades: en-
quanto Thiago executou sua variação com
elegância, minúcia e aplomb, Roberta dei-
xou que exatidão e graça fossem a marca da
sua. Entretanto, na coda, uma evidente des-
sintonia entre os dois não permitiu a perfei-
ção que essa parte do balé demanda.
Trazer O quebra-nozes de volta à sua casa
carioca, e brasileira, é dar à cidade e ao País
um excelente presente de Natal. Outro exce-
lente presente seria a certeza de que essa com-
panhia contará com dias melhores no ano que
se anuncia, com temporadas que façam jus ao
papel que ocupa no cenário nacional.
ode-se dizer que o ballet O quebra-no-
zes é parte obrigatória dos festejos na-
talinos em todos os países em que essa data
é comemorada e em que exista uma com-panhia apta a encená-lo. E como não existe
apenas uma versão oficial, cada companhia
em cada país concede à sua remontagem ca-racterísticas próprias a essa tradicional
composição de Tchaikovsky.
No Brasil, não seria diferente. A primei-ra e única companhia de balé clássico do País,
a do Theatro Municipal do Rio de Janeiro,
abriga em seu repertório por mais de 25 anosuma versão que já ganhou um selo nacional
e que possui ainda tons cariocas, assim como
a árvore de Natal da Lagoa. Assinada porDalal Achcar, essa versão foi felizmente res-
gatada após seis anos de ausência no princi-
pal palco da cidade, graças à gestão de Mar-celo Misailidis e sua equipe na direção da
companhia, e graças também às novas e pro-
missoras gestões da Secretaria Estadual deCultura, de Adriana Rattes, e da Fundação
Teatro Municipal, de Carla Camurati.
A segunda récita da temporada contoucom casa cheia e muita expectativa com as
participações especialíssimas de Roberta
Márquez e Thiago Soares, bailarinos forma-dos aqui e que pertenceram ao Theatro
Municipal, hoje primeiros bailarinos no
Royal Ballet de Londres. Sem dúvida, tra-tou-se de uma comemoração natalina e tan-
to e o público soube reconhecer isso.
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
190
O balé de uma nota sóPanorama da dança não muda em relação a 2006,e companhias lutam com criatividade para driblar
a falta de investimento do poder público
OBERTO PEREIRA
Em âmbito estadual, a esperança come-
ça a surgir com a nova secretária da cultu-
ra, que tem em seu passado ligações com a
dança. Desse modo, espera-se que desastres
como a curta gestão passada à frente da
Fundação Teatro Municipal, que fez com
que a única companhia de balé clássico do
País se apresentasse em três parcas tempo-
radas, possam ser evitados. Projetos como
apresentações de dança contemporânea
aos domingos ao preço de R$ 1 no Munici-
pal, assim como o de circulação de compa-
nhias pelo Estado devem ser urgentemente
reconsiderados.
Já em nível federal, os prêmios da par-
ceria Funarte/Petrobras continuam salvan-
do a pele daqueles que ainda teimam em
viver de dança. Há, entretanto que se lem-
brar: salvar a pele é algo que se cumpre
durante um curto espaço de tempo, e a dan-
ça, sabemos nós, carece de permanências e
continuidades para existir.
Como se vê, pouco mudou. Mesmo as-
sim, tivemos muita dança de qualidade pela
cidade. Os principais festivais continuam
os mesmos três: Festival Panorama de Dan-
assando os olhos sobre a retrospectiva
do ano de 2006, publicada pelo Jornal
do Brasil (em 27 de dezembro), pode-se
constatar um quadro bastante similar ao
que aconteceu nas danças carioca e brasi-
leira neste ano de 2007. Algumas dessas per-
manências são absolutamente lamentáveis,
e outras representam um alívio por sua con-
tinuidade.
A política, ou melhor, a ausência de po-
lítica para esta área em nível municipal con-
tinua catastrófica. Nada de pertinente foi
realizado e ainda por cima há que se engo-
lir goela abaixo a recém-criada Atelier
Coreográfico Companhia de Dança, justa-
mente numa época em que todas as compa-
nhias públicas do Brasil estão se reunindo
para questionar seus modos de existência e
enquanto importantes companhias cariocas
lutam de todos os modos para sobreviver.
Fora isso, não há projetos consideráveis e
mesmo os teatros que outrora abrigavam
espetáculos de dança, como o Espaço Sér-
gio Porto e o Teatro Carlos Gomes, hoje es-
tão absolutamente esquecidos pelos artistas
e pelo público, infelizmente.
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 18 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 18 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 18 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 18 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 18 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
191
ça, Dança em Foco e Solos de Dança no
SESC. Aliás, vale ressaltar a atuação do Es-
paço SESC, palco que abrigou as mais im-
portantes estreias cariocas e continua
cumprindo com as funções de um centro co-
reográfico, abrigando também ensaios de
companhias, promovendo aulas de dança e
formando plateias.
Das atrações internacionais, vale mencio-
nar a vinda de Baryshnikov e sua nova
companhia, assim como a Nederlands Dans
Theater II, que apresentou 27’52’’, uma obra-
prima de Jiri Kylián. Em contraposição, ques-
tiona-se a iniciativa de se apresentar compa-
nhias como a nova-iorquina Complexions,
com seu jazzdance empoeirado e, sobretudo,
a Momix Dance Theatre, que fez aqui uma
de suas piores e mais amadoras apresenta-
ções, numa verdadeira ação caça-níqueis.
Um grande motivo de comemoração é
o aniversário de 80 anos da Escola Estadual
de Dança Maria Olenewa, a primeira esco-
la oficial de dança do Brasil e representan-
te máxima de sua tradição nessas terras.
João Saldanha, Lia Rodrigues e Grupo
Corpo são os brasileiros que merecem sem-
pre destaque por tudo que representam de
qualidade em dança. Já os novos ares trazi-
dos por Marcela Levi e pela jovem Focus
Cia. de Dança (há que se relevar a inade-
quação do nome dessa companhia, por fa-
vor) nos dão boas esperanças do que ainda
teremos por vir.
A maior de todas as esperanças da dan-
ça brasileira é que a próxima retrospectiva
do ano seja diferente nos pontos que assim
mereçam. E também que a dança carioca,
feita aqui e apresentada pelo mundo afora,
continue sendo destaque em mais tantas
outras retrospectivas.
MELHORES DO A N O
1 – Ballet do Theatro Municipal em Manipulações sobre as forças do vazio, de JoãoSaldanha
2 – Lia Rodrigues Companhia de Danças em Encarnado
3 – Grupo Corpo em Breu
4 – Nederlands Dans Theater II
5 – Baryshnikov e a Hell’s Kitchen Dance
6 – Paula Águas em Caminho aberto, de Mário Nascimento
7 – Flávia Tápias em 5 coreógrafos e 1 corpo
8 – Marcela Levi em in-organic
9 – Focus Cia. de Dança em Outro lugar
10– Boris Charmatz em Gala
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
192
Alegria para encerrara temporada de balé
O quebra-nozes: Montagem conquista o público
ILVIA SOTER
até o reino das neves, a integração do grupocustou a acontecer.
Apesar do cenário e dos figurinos detons excessivamente infantis, a dança cres-ce com mais ritmo e precisão nas variaçõesde todo o segundo ato, com destaque paraos Mirlitons.
Os papéis principais estiveram a cargo deRoberta Márquez e Thiago Soares, dois ta-lentos brasileiros egressos do Ballet do The-atro que hoje fazem parte do hall de bailari-nos principais do Royal Ballet de Londres eque estiveram no Rio, como convidados, es-pecialmente para estas apresentações. Visi-velmente nervosa, a competente RobertaMárquez teve uma performance correta, po-rém tímida, na sua reestreia no palco onde jábrilhou por tantos anos. Seguro e tranquilo,Thiago Soares garantiu bons momentoscomo o príncipe, mostrando seu amadureci-mento e suas inúmeras qualidades, sem afe-tação. Provavelmente prejudicados pelo pou-co tempo de ensaio, faltou ainda maior inte-gração entre os dois no grand pas-de-deux.
Num ano de “vacas magras” para a dan-
ça, a montagem de O quebra-nozes, em car-
taz até o dia 28, cumpre com dignidade a fun-
ção de encerrar a temporada desta impor-
tante companhia com alegria e uma casa
cheia – da plateia à galeria –, como rara-
mente aconteceu em 2007.
omo manda a tradição, O quebra-
nozes encerra a temporada 2007 doTheatro Municipal, presente com seu balé,orquestra e coro. A montagem de Dalal Ach-car é velha conhecida do público carioca,apesar de ter estado fora dos palcos nos úl-timos seis anos. Seu ponto forte é a ênfasena teatralidade. Este balé, especialmentesedutor para o público infantil, ganha ape-los maiores com a presença de um grandeelenco de crianças e com a garantia do hu-mor, na versão de Dalal.
Já no prólogo, a riqueza de detalhes daambientação se faz presente. A iluminaçãode Maneco Quinderé reforça a magia docenário de José Varona, especialmente ade-quado na cena do interior da casa. O elencoadulto e infantil, numeroso e bem caracteri-zado, convence nesta festa de Natal europeia.Para esta montagem, além dos solistas e docorpo de baile do Theatro, o elenco foi refor-çado pela presença de convidados como, porexemplo, o ótimo Irlan Santos, além das cri-anças da Escola de Dança Maria Olenewa.
Mas alguns ajustes ainda se fazem neces-sários para que a grandiosidade da parte te-atral possa achar equivalente na dança. Noúltimo fim de semana, sobretudo no prólo-go e no primeiro ato, as cenas de conjuntodemoraram a encontrar a harmonia neces-sária. A cada cena, da batalha dos soldados
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 20 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA • 20 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA • 20 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA • 20 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA • 20 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
193
A coreografia como organismo vivoJoão Saldanha prova competência
ímpar em novo espetáculo
OBERTO PEREIRA
mos poucos no Brasil hoje assim. E isso se
vê na dança na qual ele acredita e executa
com competência ímpar.
O elenco está afinadíssimo, mas vale
ressaltar a performance de Thiago Grana-
to, cujo movimento é tradução fina e exata
da ideia que ali se propõe. O figurino, a am-
biência cênica, a iluminação, tudo é coeso,
numa economia que torna cada passo um
teorema sobre a própria arte da dança. A
trilha sonora com composições de Ligeti
auxilia na confecção de espaços às vezes
densos, às vezes fluidos, que são preenchi-
dos pelos bailarinos.
A discussão sobre o espaço e o vazio
está lá. Mas o que mais impressiona é ver
um artista fazer de suas ideias prolonga-
mentos elegantes de algo cujo ambiente,
em tempo e em espaço, temos o privilégio
de compartilhar.
onocromos, nova obra do coreógrafo
João Saldanha que estreou anteontem
no Espaço SESC, é uma daquelas provas
elegantes de que uma boa ideia é um orga-
nismo vivo que necessita apenas de um am-
biente propício que a permita continuar
existindo. Neste caso, essa boa ideia é Ma-
nipulações sobre as forças do vazio, excelen-
te obra que João compôs para o Ballet do
Theatro Municipal no início do ano. E seu
continuar existindo aparece com todo o vi-
gor de uma dança acabada, cênica e coreo-
graficamente, nessa obra de agora.
Embora pronta, espetacularmente aca-
bada, Monocromos é uma obra viva que se
desdobra nela mesma ao estabelecer diálo-
gos com a obra que a gestou e com tudo o
que poderá ainda vir dali como pensamen-
to de dança. João Saldanha é um daqueles
artistas que não se rende a tendências. Te-
M
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 21 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
194
Coreografia precisa,como um ato cirúrgico
Monocromos: Uma joia rara no Espaço SESC
ILVIA SOTER
o teatro e se estabelece como presença equi-
valente à de um dançarino, relação quemanterá até o fim da peça. Uma vez ilumi-
nada, a dimensão do espaço cênico – muito
maior do que a plateia – subverte a propor-cionalidade habitual. A música de Ligeti e
a luz de Adelmo Lapa não são adicionais à
escrita de Saldanha, mas pulsam em cenacomo pontos fundamentais.
Num primeiro momento, Monocromos
se desenha como um mesmo solo que a
cada vez que é dançado se diferencia de
modo sutil. A presença, ao mesmo tempo
intensa e sóbria, de Jamil Cardoso, Laura
Samy, Marcelo Braga, Thiago Granato e
Vivian Miller instaura um ambiente de
solenidade coerente e necessário à peça.
A os poucos, as figuras como duos, trios, va-
zios e conjuntos se desdobram, sem deixar
que a singularidade de cada intérprete seja
deixada à sombra. O espaço se condensa e
se dilata, dentro e fora do corpo que dança,
em trajetos regulares, desvios, linhas retas,
curvas e espirais. E é dessas estruturas co-
reográficas, simples apenas na superfície,
que a sofisticação da escrita de João Sal-
danha vai emergir. O título da peça pode
ser entendido quase como uma provocação
já que é na insistência numa aparente re-
gularidade que a variação explode. Mono-
cromos é uma joia rara que mostra que co-
reografar pode ser um gesto preciso como
um ato cirúrgico.
oão Saldanha é um destes artistas cujas
questões que persegue podem ser reco-nhecidas de peça em peça. Cada uma de suas
criações deve ser lida como etapa de uma
pesquisa que faz questão de manter-se sem-pre em estado de processo, toda coreogra-
fia trazendo algo que aponta para a seguin-
te. Quando há proximidade no tempo entreelas, como é o caso em Monocromos – nova
etapa da pesquisa iniciada em Manipula-
ções sobre as forças do vazio, peça que criou
para o programa Coreógrafos brasileiros
para o Ballet do Theatro Municipal no pri-
meiro semestre –, essa ideia de desdobra-
mento se faz ainda mais evidente. Monocro-
mos teve sua pré-estreia no último Festival
Panorama de Dança e, felizmente, voltou
para uma curta temporada, até amanhã, no
mezanino do Espaço SESC.
Já há alguns anos, o interesse de João Sal-
danha se voltou para a relação do corpo que
dança e o espaço que esta dança secreta para
depois ocupar, questão fundadora do projeto
da dança moderna. Não é também por acaso
que a obra de Oscar Niemeyer esteve no cen-
tro de Extracorpo, seu penúltimo trabalho.
Proporção, volume, tensão entre figura e fun-
do são apenas algumas das ideias que vêm
servindo de matéria para as últimas criações
do coreógrafo e que, em Monocromos, estão
sintetizadas com maestria.
Antes mesmo de a luz se insinuar na
cena, a música cresce em volume, preenche
J
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2007RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 22 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
195
Os melhores espetáculosde dança de 2007
ILVIA SOTER E SUZANA VELASCO
EncarnadoEncarnadoEncarnadoEncarnadoEncarnadoLia RodriguesLia RodriguesLia RodriguesLia RodriguesLia RodriguesCompanhia de DançasCompanhia de DançasCompanhia de DançasCompanhia de DançasCompanhia de DançasDepois de dois anos de turnê interna-cional, desde sua estreia na França em 2007,
o mais recente espetáculo da Lia Rodrigues
Companhia de Danças chegou ao Rio, nopalco do Espaço SESC. Baseada no livro Di-
ante da dor dos outros, de Susan Sontag, a
peça tratava a dor de maneira seca, poéticae contundente.
BreuBreuBreuBreuBreuO Grupo Corpo fez a sua temporada anual
no Rio apresentando o novíssimo Breu.
Nesta peça, o coreógrafo Rodrigo Peder-
neiras adulterou o que já havia feito antes,
lançou-se num novo desafio e traduziu tudoem dança, com a competência de sempre.
O quebra-nozesO quebra-nozesO quebra-nozesO quebra-nozesO quebra-nozesClássico incontestável das temporadas
natalinas, O quebra-nozes, na versão deDalal Achcar, foi remontado pelo Thea-
tro Municipal, depois de uma ausência
de seis anos, e comprovou que, antes detudo, é uma obra popular. O público lo-
tou as récitas e provocou a prorrogação
do balé, que ganhou apresentações ex-tras em 2008.
Mikhail BaryshnikovMikhail BaryshnikovMikhail BaryshnikovMikhail BaryshnikovMikhail BaryshnikovÀ frente da Hell’s Kitchen Dance, compa-
nhia de dança contemporânea que criou com
jovens bailarinos, o grande dançarino e co-reógrafo russo provou, no Theatro Munici-
pal, que o tempo trabalhou a seu favor. Ele
se mostrou em forma, preciso e delicado emcada gesto, movendo-se com simplicidade,
bom humor e maestria.
Nederlands DNederlands DNederlands DNederlands DNederlands Danse anse anse anse anse TTTTTheater IIheater IIheater IIheater IIheater IICom idades entre 17 e 22 anos, os integrantesda companhia holandesa – entre eles, a cario-
ca Nina Botkay – mostraram no Rio porque
formam um dos mais festejados grupos dedança da atualidade. No programa, destacou-
se 27’52’’, peça do tcheco Jiri Kylian, criador
do grupo que, em sua origem, tinha o objetivode alimentar posteriormente a companhia-
mãe Nederlands Danse Theater. Mas isso é
passado. A NDT 2 esbanjou brilho próprio.
MonocromosMonocromosMonocromosMonocromosMonocromosÚltima estreia de 2007, Monocromos apre-
sentado no Espaço SESC, é uma joia rara.
João Saldanha sintetizou, nesta peça, as ques-tões que lhe têm servido de matéria – pro-
porção, volume e tensão entre figura e fun-
do – e demonstrou que coreografar pode serum gesto preciso como um ato cirúrgico.
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2007• QUINTA-FEIRA• 27 DE DEZEMBRO • 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
196
Bull DancingBull DancingBull DancingBull DancingBull DancingDividindo seu tempo entre Brasil e Holanda,
o piauiense Marcelo Evelin debruçou-se so-
bre a manifestação folclórica do Bumba meuboi para recombinar os elementos da festa
popular a partir da ótica da desconstrução.
ClandestinoClandestinoClandestinoClandestinoClandestino e e e e e Como?Como?Como?Como?Como?Numa curtíssima temporada no Espaço
SESC, com seus espetáculos Clandestino e
Como?, a dupla de coreógrafos e bailarinosÂngelo Madureira e Ana Catarina Vieira
mostrou a sofisticação com que vem tratan-
do das misturas possíveis entre as danças
populares e a investigação contemporânea.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
197
2008 CRÍTICAS
O GLOBO - 27 DE JANEIRO DE 2008Muita literatura para pouca dança
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 15 DE FEVEREIRO DE 2008Em busca de uma identidade
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 17 DE FEVEREIRO DE 2008Voo rasante de uma companhia com história
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 18 DE FEVEREIRO DE 2008Falta ensaio, falta coesão
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 22 DE FEVEREIRO DE 2008Coreografia cai na armadilha da literatura
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 24 DE FEVEREIRO DE 2008Elenco de primeira, repertório discutível
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 9 DE MARÇO DE 2008Veteranos do movimento alternam tecnologia, nonsense e elegância
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 9 DE MARÇO DE 2008Uma celebração pautada pelo frescor da criação
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 16 DE MARÇO DE 2008Coreografias inéditas apresentam risco e surpresa no Espaço SESC
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 21 DE MARÇO DE 2008Gesto vira pilar coreográfico
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 31 DE MARÇO DE 2008Mistura irregular de épocas e estilos
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 14 DE ABRIL DE 2008Giselle mantém a aura de clássico
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 16 DE ABRIL DE 2008Ânimo renovado para a temporada
SILVIA SOTER
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
198
O GLOBO - 27 DE ABRIL DE 2008Verborragia de movimentos no flerte de
Deborah Colker com a dança-teatroSILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 27 DE ABRIL DE 2008Falta habilidade na coreografia
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 16 DE MAIO DE 2008Entretenimento profissional
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 18 DE MAIO DE 2008Dois caminhos possíveis de apoio à dança
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 1 DE JUNHO DE 2008Metade do espetáculo já bastaria
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - SEGUNDA-FEIRA, 09 DE JUNHO DE 2008Bailarinos se entregam
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 20 DE JUNHO DE 2008Transcriação shakespeariana
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 26 DE JUNHO DE 2008Desafio é desfazer má impressão da companhia Russian State Ballet
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 6 DE JULHO DE 2008Russos continuam devendo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 7 DE JULHO DE 2008Balé para gente pequena
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 9 DE AGOSTO DE 2008Sobre o palco, um ofício que se leva a sério
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 15 DE AGOSTO DE 2008Rigor sem espaço para o desvio
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 20 DE AGOSTO DE 2008Começo bom, mas com fim frustrante e triste de ver
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 12 DE SETEMBRO DE 2008Qu’eu isse
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 7 DE SETEMBRO DE 2008Recriação que vira futuro
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
199
JORNAL DO BRASIL - 9 DE SETEMBRO DE 2008Em processo de conhecer seus próprios limites
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 13 DE SETEMBRO DE 2008Parceria explora os limites corpóreos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 18 DE SETEMBRO DE 2008Na Bienal de Lyon, passado e futuro em harmonia
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 20 DE SETEMBRO DE 2008Uma construção cristalina
SILVIA SOTER
O GLOBO - 28 DE SETEMBRO DE 2008Quatro corpos descrevem o amor
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 31 DE OUTUBRO DE 2008A dimensão exata da dança atual
ROBERTO PEREIRA
CRÍTICA NÃO PUBLICADAEspetáculo H3 de Bruno Beltrão
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 2 DE NOVEMBRO DE 2008Cada gesto é um pequeno mundo
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 03 DE NOVEMBRO DE 2008Visão genial do cotidiano
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 4 DE NOVEMBRO DE 2008Longe dos estereótipos da rua
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 17 DE NOVEMBRO DE 2008Uma lição de obviedade e perda de tempo
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 5 DE DEZEMBRO DE 2008De frente para o público
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 15 DE DEZEMBRO DE 2008A atualidade que a obra sugere, mas não mostra
ROBERTO PEREIRA
O GLOBO - 19 DE DEZEMBRO DE 2008João Saldanha abre o seu processo de criação
SILVIA SOTER
JORNAL DO BRASIL - 27 DE DEZEMBRO DE 2008Poder público quase mata o ofício da dança
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
200
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
201
Muita literaturapara pouca dança
Algum lugar fora do mundo: Excesso de citaçõescompromete espetáculo da Cia. Corpos Nômades
ILVIA SOTER
tribuídas diversas barracas de camping,
“relicários” segundo a companhia. O pú-
blico é levado – de modo muitas vezes
bastante impositivo e autoritário – a par-
ticipar e a entrar nas barracas, já que
parte da peça acontece dentro delas.
Cada barraca abriga o universo de um dos
artistas cujos textos alimentam o espetá-
culo, o que faz com que a experiência de
cada espectador seja única, impedindo
que a peça seja vista e experimentada em
sua totalidade. Uma prática que denun-
cia a fragmentação do olhar e a parciali-
dade das experiências, mas que já foi
exaustivamente utilizada pelo teatro e
pela dança nas últimas décadas.
Na profusão de acontecimentos, textos
falados, deslocamentos pelo espaço, perso-
nagens teatralmente construídos e defen-
didos, projeção de vídeos e barracas que
se pretendem instalações de artes plásti-
cas, a dança acaba por ocupar um lugar
bastante secundário no espetáculo, apesar
da boa qualidade do trabalho de alguns
bailarinos. Sempre no centro do palco, a
dança parece apenas preencher as lacu-
coreógrafo João Andreazzi, radicado
em São Paulo, e a Cia. Corpos Nôma-
des chegaram ao Rio de Janeiro com o es-
petáculo Algum lugar fora do mundo que en-
cerra hoje sua curta temporada no Teatro
Nelson Rodrigues. Definida no convite
como um “espetáculo multidisciplinar onde
a dança contemporânea dialoga com o tea-
tro e as palavras de Rimbaud, Artaud, Bau-
delaire, Cocteau, Fernando Pessoa e Buñuel”,
a peça pretende tratar de questões impor-
tantes da vida contemporânea.
Já no foyer, o público é convidado a se
relacionar com os atores/músicos/baila-
rinos que buscam estabelecer um diálo-
go, olhos nos olhos e mesmo através de
contato físico, com boa parte dos espec-
tadores. A cena se desenvolve, então, den-
tro do teatro onde atores e público circu-
lam entre a plateia e o palco. A estrutura
italiana do Teatro Nelson Rodrigues pa-
rece pouquíssimo funcional para a pro-
posta do grupo, o que deixa imaginar que
o espetáculo tenha sido concebido para
outro tipo de espaço cênico. No fundo do
palco, dispostas em semicírculo, estão dis-
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • • • • • DOMINGODOMINGODOMINGODOMINGODOMINGO • • • • • 27 DE JANEIRO • 200827 DE JANEIRO • 200827 DE JANEIRO • 200827 DE JANEIRO • 200827 DE JANEIRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
202
nas deixadas pela descostura da dramatur-
gia e não chega a ganhar uma força mai-
or. Não seria possível imaginar Algum lu-
gar fora do mundo sem seus personagens
e textos, mas sem a dança a peça não per-
deria sua identidade. E Algum lugar fora
do mundo se perde na forma como trata o
multidisciplinar. O que poderia servir
como ampliação dos recursos empregados
para construir um sentido – ainda que não
linear – para a dramaturgia se esgarça
num excesso de referências e de citações
que se diluem sem antes ser suficiente-
mente exploradas.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
203
Em busca deuma identidade
OBERTO PEREIRA
que vão ganhando a cena coreográfica na
cidade. A Focus Cia. de Dança apresenta,
através de B612 – O essencial é invisível
aos olhos, um futuro interessante, porque
carrega consigo, de forma exemplar, um
passado, em corpos tão jovens. Não à toa, a
plateia da estreia misturava ícones do balé
clássico com artistas arrojados da dança
contemporânea carioca. Um feito, há que
se dizer.
Justamente por ser tão jovem, a Focus co-
loca como questão para o público qual é o tem-
po que se deve conceder para que seu coreó-
grafo, Alex Neoral, ainda possa encontrar sua
assinatura coreográfica. No espetáculo apre-
sentado, por exemplo, é possível rastrear, de
forma nítida, os artistas a quem Neoral pede
as bênçãos para poder criar. Mesmo com sua
evidente competência em coreografar, talvez
seja sua hora de abandonar um certo “saber-
fazer” para buscar o risco de novas possibili-
dades. É justamente agora, nesse momento em
que a companhia é tão jovem, coesa e talen-
tosa, que esse risco deveria aparecer.
A o contrário, Neoral aposta em certos
truques de dança contemporânea um tanto
temporada de dança de 2008 no Rio
de Janeiro teve início nessa última
quarta-feira, no Espaço SESC, pela jovem
Focus Cia. de Dança. Pela importância sim-
bólica desse momento, vale pensar como o
lugar e o espetáculo onde ele aconteceu
são emblemáticos hoje na cidade. O lugar
reafirma mais uma vez a importância, qua-
se vital, que o Espaço SESC adquiriu para
a dança carioca. Além de funcionar como
uma espécie de centro coreográfico, abri-
gando importantes estreias e ensaios de
companhias, agora lançou-se também, em
mais uma de suas felizes iniciativas, como
um fomentador de companhias, subsidian-
do cinco delas, com verbas que as permi-
tem um pouco mais do que a simples sobre-
vivência. Vale lembrar de um projeto se-
melhante, abandonado pela Secretaria das
Culturas, que, tempos atrás, distinguiu a
dança que se fazia por aqui da do resto do
País. Hoje, o SESC tomou para si essa tare-
fa e a Focus, por exemplo, é uma dessas cin-
co companhias.
Já o espetáculo é emblemático, porque
sinaliza a potencialidade de jovens talentos
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO • 2008 • SEXTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO • 2008 • SEXTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO • 2008 • SEXTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO • 2008 • SEXTA-FEIRA • 15 DE FEVEREIRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
204
gastos. A trilha sonora, por exemplo, assina-
da por Lucas Marcier e Rodrigo Marçal,
prima pela narratividade, algo imperdoável,
pois apenas funciona como legenda ao es-
petáculo. Os figurinos, sobretudo as calças,
merecem ser rapidamente revistos, pois su-
blinham um modo empoeirado de compre-
ender cenicamente a dança, que não com-
bina com o vigor da companhia.
Talvez o momento em que se pode fla-
grar um respiro de algo realmente novo no
espetáculo seja o duo executado pelos ex-
celentes Clarice Silva e Márcio Jahú. Sem
música, o que se vê ali é uma busca, algo
essencial para a dança contemporânea.
Alex Neoral e sua Focus Cia. de Dança
ainda têm tempo para testar novas danças.
Por isso, foram apontados no fim do ano pas-
sado pelo Jornal do Brasil como uma promes-
sa. Assim, esse espetáculo pode ser encarado
como um exercício para sua consolidação
como coreógrafo e como companhia.
E finalmente: sobre a obra O pequeno
príncipe, que deveria ter inspirado o espe-
táculo, esqueça. Ela simplesmente não apa-
rece em cena.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
205
Voo rasante de umacompanhia com história
Revoada: Espetáculo que comemora 30 anosda companhia Cisne Negro não honra sua trajetória
ILVIA SOTER
Presente do mesmo coreógrafo à Hulda
Bittencourt pelos 30 anos da Cisne Negro,
1,2...7, também com música de Stravinsky, é
uma peça só para homens. Mais teatral que
a primeira, a peça apoia-se numa tentativa
de humor que só a fragiliza. O elenco mas-
culino, tecnicamente menos competente que
o elenco feminino, não dá conta nem dos
aspectos teatrais nem das variações com
precisão. A poesia e o humor pretendidos
ficam apenas como promessa.
Anéis, de Dany Bittencourt, com trilha es-
pecialmente composta por Adriana Calcanho-
to, tem um início promissor, em que o swing
da música ganha uma movimentação simples
e ondulante nos corpos das bailarinas. Infeliz-
mente, essa simplicidade se perde numa co-
reografia repleta de clichês que não se desen-
volve nem nas figuras espaciais, nem na rela-
ção com a música ou com os objetos. Os figuri-
nos reforçam na peça seu aspecto escolar,
como se a coreografia fosse apenas uma
amálgama de sequências de sala de aula.
Completar 30 anos de atividades de dan-
ça no Brasil é para pouquíssimos. É pena que
a merecida comemoração deste feito não
tenha sido à altura.
á muito sem se apresentar no Rio de
Janeiro, a Cisne Negro Cia. de Dan-
ça encerra hoje uma curtíssima temporada
no Teatro SESC Ginástico. Comemorando os
seus 30 anos de existência, com Hulda Bit-
tencourt como diretora artística, a Cisne Ne-
gro é símbolo de qualidade, bons bailarinos
e resistência, neste ambiente da dança bra-
sileira sempre sujeito a marés cambiantes.
Diante disso, Revoada não honra o histórico
dessa companhia e não parece representa-
tivo de sua trajetória.
A coreografia Revoada, de Gigi Caciule-
anu, primeira do programa e criada por en-
comenda para a companhia, traz a figura do
pássaro – do cisne mais especificamente –
alimentada por duas obras de Igor Stravinsky:
Firebird e Fireworks. Jogando com o negro e
o vermelho nos figurinos, a peça explora os
movimentos ondulantes dos braços, ícone do
cisne na dança cênica e já explorado à exaus-
tão por inúmeros coreógrafos ao longo do
século passado. Excessivamente frontal e
previsível, e visivelmente mal adaptada ao
palco do SESC Ginástico, a coreografia não
consegue nem de longe se aproximar da for-
ça da música de Stravinsky.
H
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • DOMINGO DOMINGO DOMINGO DOMINGO DOMINGO • 17 DE FEVEREIRO • 2008• 17 DE FEVEREIRO • 2008• 17 DE FEVEREIRO • 2008• 17 DE FEVEREIRO • 2008• 17 DE FEVEREIRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
206
Falta ensaio, falta coesãoCisne Negro apresenta trêsobras em espetáculo pueril
OBERTO PEREIRA
Visivelmente carente de ensaios, a
companhia não estava coesa na estreia.
Assim, a fragilidade dos três trabalhos ga-
nhou ainda mais evidência. As obras de
Caciuleanu são um amontoado de sequên-
cias de passos que pouco contribui para a
elaboração de uma ideia coreográfica. Já
Anéis, de Bittencourt, deveria ser imedia-
tamente repensada se merece mesmo es-
tar no repertório da companhia. Tudo na
obra se torna mais canhestro quando se
sabe o que a motivou: um convite à compa-
nhia para participar do lançamento publi-
citário de um anticoncepcional feminino. A
obviedade com que o tema aparece é pue-
ril tanto na iluminação e no figurino quan-
to na frontalidade exagerada e demonstra-
tiva que permeia toda a coreografia.
Por ser uma das mais importantes com-
panhias brasileiras, a Cisne Negro mere-
ce ser apresentada de forma mais condi-
zente com essa sua importância. E isso que
dizer apuro na qualidade da encenação e
pertinência na escolha de seu repertório.
eriam dois bons motivos a se comemo-
rar: o feito de uma companhia privada
de dança completar 30 anos e seu retorno
ao Rio de Janeiro, após seis anos. O fato é
que a paulistana Cisne Negro Cia. de Dan-
ça, que se apresenta no Teatro SESC Ginás-
tico neste fim de semana, concede poucas
chances para que essa comemoração real-
mente aconteça.
O espetáculo em cartaz reúne três obras,
duas assinadas pelo francês Gigi Caciulea-
nu, Revoada e 1,2... 7, e Anéis, de Dany Bit-
tencourt. Nas três, contudo, o que se tem é
um modo bastante elementar de como pen-
sar coreografia nos dias de hoje. Tudo bem
que a companhia esteja voltada, historica-
mente, para um estilo de dança que se cons-
trói a partir de elementos como o passo de
dança, sobretudo calcados na técnica de
balé clássico. Tudo bem também que tente
resolver os desafios daí provenientes de
maneira conservadora. O problema mais
grave é quando os requisitos básicos para
isso não aparecem em cena.
S
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 18 DE FEVEREIRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 18 DE FEVEREIRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 18 DE FEVEREIRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 18 DE FEVEREIRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 18 DE FEVEREIRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
207
Coreografia cai naarmadilha da literaturaB612 – O essencial é invisível aos olhos:
Ênfase na relação com O pequeno príncipe intimidatrabalho da Focus
ILVIA SOTER
ry, não serve apenas como material subjacen-te à criação, mas está no título e é dela que apeça se propõe a tratar. É nítida a preocupa-ção do coreógrafo de tentar escapar da linea-ridade narrativa da obra, mas fica igualmen-te nítida a preocupação de deixar claro que olivro está lá, na base da coreografia. Ao jogarcom luz e projeções em sombra, com a cor azulque caracteriza as ilustrações do livro e, so-bretudo, atendo-se às formas e aos personagensde Exupéry, a criatividade da Focus se intimi-da e a coreografia acaba por se restringir ailustrar em dança alguns aspectos de O peque-
no príncipe. A trilha sonora também não es-
capa desta armadilha.
Se por um lado é verdade que a juventu-
de e a ingenuidade do personagem de Exu-
péry podem encontrar correspondência na
Focus – o que talvez justifique a escolha des-
te livro –, por outro lado, o livro parece acres-
centar pouco para o avanço do trabalho co-
reográfico. Apesar da ótima qualidade dos in-
térpretes e de alguns momentos que se des-
tacam como o duo de Clarice Silva e Marcio
Jahú, o excesso de ênfase em demonstrar a
relação com o livro revela que faltou confiar
na frase de Exupéry que dá título ao espetá-
culo: “o essencial é invisível aos olhos. ”
ma das companhias agraciadas peloprojeto de Residência Artística SESC
Rio, a Focus não nasceu hoje, apesar de terganhado uma maior visibilidade apenasrecentemente. Composta por jovens ecompetentes bailarinos e sob a direção deAlex Neoral, o grupo funciona já há al-guns anos como um coletivo criativo quenão deixou de atuar, ainda que nas brechasdas agendas de seus componentes. Somen-te no ano passado a Focus passou a termaior centralidade na vida do coreógra-fo e de seu grupo. O apoio do SESC serácertamente fundamental para que estecoletivo promissor tenha boas condiçõespara desenvolver sua pesquisa.
Em B612 – O essencial é invisível aosolhos, em cartaz no mezanino do EspaçoSESC até domingo, Alex Neoral se colocanovos desafios como o de partir da literatu-ra e também o de trabalhar com uma trilhasonora original, o que não havia experimen-tado em suas criações anteriores.
Literatura e dança dialogam há muito tem-po no cenário da dança carioca, mas o modocomo esse diálogo se dá nem sempre é evi-dente. No caso da Focus, a conhecidíssima obraO pequeno príncipe, de Antoine Saint-Exupé-
U
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 22 DE FEVEREIRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 22 DE FEVEREIRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 22 DE FEVEREIRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 22 DE FEVEREIRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 22 DE FEVEREIRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
208
Elenco de primeira,repertório discutível
OBERTO PEREIRA
gurino e a iluminação não avançam nada
em relação às outras obras de Rodovalho,
embora nesta a situação fique ainda mais
grave por causa dos textos que, falados pelos
pobres bailarinos, beiram a mediocridade.
Já em Caixa de cores, de Luiz Fernando
Bongiovanni, a coreografia respira novos
ares e permite que a companhia apareça
com o que ela tem de melhor: seu apuro téc-
nico. Através de movimentações novas,
pode-se notar como os bailarinos correspon-
dem com competência aos desafios que o
coreógrafo impõe. A partir disso, fica abso-
lutamente dispensável o modo previsível e
excessivamente didático com que as cores
são apresentadas, pois seria na coreografia
que as cores poderiam ser desveladas em
suas características.
A Companhia de Ballet da Cidade de
Niterói, mesmo com o frágil programa, mos-
tra seu talento em aglutinar ótimos bailari-
nos, tarefa de seu diretor Roberto Lima.
Nesse sentido, Lara Dantas, Fabiana Nunes
e Gregory Lorenzutti devem ser citados. A
mesma competência deve estar na escolha
de seu repertório. Não sem urgência.
esse momento em que a existência das
companhias de dança estatais do País
está sendo colocada em xeque, questionan-
do-se desde a forma de contratação de seus
bailarinos até seus projetos artísticos, vale
a pena olhar com atenção para a Companhia
de Ballet da Cidade de Niterói, que se apre-
senta até domingo no Teatro Ginástico.
Tal oportunidade revela como uma
companhia pública deve articular com pre-
cisão suas escolhas, e isso quer dizer, basi-
camente, formação de seus bailarinos e cons-
tituição de seu repertório. A partir das duas
obras apresentadas, a companhia de Nite-
rói deixa claro que avançou no primeiro
item, mas que ainda tateia quando a ques-
tão é a escolha dos coreógrafos com quem
trabalha.
A primeira obra da noite, Enquanto dure,
de Henrique Rodovalho, comprova, mais
uma vez, que o coreógrafo não está empe-
nhado em fazer absolutamente nada além
do que já sabe fazer. Tudo ali já foi exausti-
vamente experimentado e não há espaço
para novas tentativas, não há criação. O vo-
cabulário de movimentos, assim como o fi-
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • DOMINGORIO DE JANEIRO • DOMINGORIO DE JANEIRO • DOMINGORIO DE JANEIRO • DOMINGORIO DE JANEIRO • DOMINGO • 24 DE • 24 DE • 24 DE • 24 DE • 24 DE FEVEREIRO FEVEREIRO FEVEREIRO FEVEREIRO FEVEREIRO • 2008• 2008• 2008• 2008• 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
209
Veteranos do movimentoalternam tecnologia,nonsense e elegância
Solos de Dança no SESC: Nona ediçãoprivilegia bailarinos experientes
ILVIA SOTER
cursos tecnológicos em cena, sem explorá-
los o suficiente.
Em seguida, em Dança, Paula Nestorov
opõe uma ambientação bem estruturada de
música e iluminação a uma dança que sur-
ge no limite do despojamento acentuado
pela forma como ela própria ocupa a cena.
Uma dança que se pretende em estado de
estudo e que se materializa em breves, bo-
nitas e potentes sequências que são desman-
chadas antes de se desenvolverem. Mas
Dança também de desmancha antes que
uma ideia ali fique colocada. A escuridão e
a impossibilidade do público em ver o que
está em cena ao final, a bailarina deitada e
imóvel, pouco acrescentam além da sensa-
ção de que algo que poderia acontecer não
aconteceu.
Em Baldio, o humor particular e inteli-
gente de Fred Paredes é orquestrado pelo
coreógrafo Toni Rodrigues. A familiarida-
de de Fred com a cena, sua presença tea-
tral que quase impede que se distinga in-
térprete de personagem e o limite do non-
sense que caracterizou muitos de seus tra-
balhos estão na peça. A inda que deste en-
programação da primeira semana dos
Solos de Dança no SESC tem como tra-
ço comum a presença de artistas que já pos-
suem uma grande bagagem de dança. Dos
quatro solos em cartaz até hoje no Espaço
SESC, apenas Helder Vasconcelos, de Per-
nambuco, é presença inédita nos palcos ca-
riocas.
A parceria de Helder Vasconcelos com
o italiano radicado na França Armando
Menicacci traz à luz uma questão especial-
mente sensível no ambiente da dança das
Regiões Nordeste e Sul do Brasil: o diálogo
entre as danças populares ou tradicionais e
a contemporânea. Dançarino de Cavalo-
Marinho e de Maracatu Rural, na peça apre-
sentada – um concentrado de 20 minutos de
seu espetáculo Por si só –, ele explora algu-
mas das possibilidades da tecnologia para
borrar os contornos da dança popular e
mostrar elementos importantes da constru-
ção de sua própria identidade. A cativante
presença do dançarino e a relação olho no
olho que estabelece com o público são os
pontos fortes da peça que acaba por fazer
desfilar de maneira bastante didática os re-
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE I RO • DOMINGO •R IO DE JANE I RO • DOMINGO •R IO DE JANE I RO • DOMINGO •R IO DE JANE I RO • DOMINGO •R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 9 DE MARÇO • 2008 9 DE MARÇO • 2008 9 DE MARÇO • 2008 9 DE MARÇO • 2008 9 DE MARÇO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
210
contro não pareça nascer o novo, é sempre
prazeroso vê-lo em cena.
A noite se encerra com a elegância
de Quase como se fosse amor, de Márcia
Rubin. A o som dos Beatles, a solidão existe
como um estado sereno, visitado pelas lem-
branças da presença do outro, de outros, mas
ao mesmo tempo como um estado de pleni-
tude. E essa plenitude se percebe também
na bailarina. A movimentação de braços e
tronco em espiral que caracteriza a dança
de Márcia aparece mais madura nesta peça,
mais eloquente, com mais nuances e desdo-
bramentos. Márcia Rubin domina a cena
com segurança e tranquilidade. Figurino e
iluminação arrematam a peça, fazendo de
Quase como se fosse amor um delicado pre-
sente para os olhos e os ouvidos.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
211
Uma celebração pautadapelo frescor da criaçãoMostra de coreografia é marcada porunião entre autoria e interpretação
OBERTO PEREIRA
noite. Aliando autobiografia e dança, Por si
só talvez precisasse mesmo de seus 40 minu-
tos originais para que a articulação entre
dança, música e vídeo pudesse se dar.
O segundo solo da noite aponta para ou-
tra mudança na mostra que agora permite que
coreógrafos criem para si próprios. Dança traz
a excelente Paula Nestorov em mais um de
seus exercícios de despimento da espetacula-
ridade, já iniciado em Movente, sua obra do
ano passado. Quando permite que seu movi-
mento seja dança, sua maior habilidade, Pau-
la acessa, mesmo a contragosto, o registro de
espetáculo, ainda que por momentos esparsos.
Mas infelizmente isso vem atado ao desejo
ainda pouco articulado de não mostrar o que
ali se faz como dança. Uma pena. Fica apenas
a questão, então, da pertinência de se aceitar
participar, justamente, de uma mostra de dan-
ça, de estar sobre um palco e, sobretudo, de
estar à frente de um público e ciente do res-
peito que isso demanda. Tomara que a artista
encontre uma saída para esse impasse em que
ela própria se colocou.
Baldio, coreografia de Toni Rodrigues,
trafega pelas áreas que Frederico Paredes
estreia da 9ª edição da mostra Solos
de Dança no SESC nesta última quin-
ta-feira funcionou, mais uma vez, como uma
espécie de celebração da dança carioca.
Trata-se de um lugar especial que foi sendo
construído a cada edição e que abriga o fres-
cor da criação em seu estado permanente
de latência. Por isso, provoca tantas discus-
sões e por isso deixa tantos rastros. Beatriz
Radunsky, sua curadora, sempre preocupa-
da em manter esse frescor, busca novos for-
matos que, a cada ano, renovam o perfil da
mostra. E este ano não foi diferente.
A primeira semana trouxe um pouco des-
sa transformação que pôde ser constatada no
convite feito ao pernambucano Helder Vas-
concelos para mostrar seu solo já pronto há
tempos, Por si só, dirigido pelo italiano Ar-
mando Menicacci. O interessante na presen-
ça desse solo numa mostra que até então só
apresentava artistas residentes no Rio de
Janeiro é observar como algo feito longe
daqui carrega outros modos de composição,
o que areja, sem dúvida, os modos de percep-
ção tanto da obra desse artista quanto a dos
cariocas a serem apresentadas na mesma
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • D O M I N G O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 8R I O D E J A N E I R O • D O M I N G O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 8R I O D E J A N E I R O • D O M I N G O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 8R I O D E J A N E I R O • D O M I N G O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 8R I O D E J A N E I R O • D O M I N G O • 9 D E M A R Ç O • 2 0 0 8
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
212
vem desenvolvendo ao longo de sua carrei-
ra. A cena, desse modo, faz compartilhar dan-
ça, música e teatro, tendo como costura uma
ironia fina que perpassa todo o discurso ali
construído. Essa transição de uma linguagem
a outra, marca de Paredes, está cada vez mais
nítida, o que às vezes aparece como justapo-
sição e outras vezes como hibridismo. É jus-
tamente essa incerteza que perturba. Mas é
nela que reside a qualidade de Baldio.
Outro momento em que autoria e inter-
pretação aparecem juntas na noite é Quase
como se fosse amor, de Márcia Rubin. O mais
inquietante é que justamente as noções de
autoria e interpretação são borradas em seus
limites na cena que ali se constrói. Delicado,
porém tão contundente, o solo de Rubin exi-
be um corpo que trai sua aparente fragilida-
de no gesto maduro de uma artista que, ao
interpretar o que ela mesma cria, inaugura
exatidões. E essas exatidões aparecem na
incerteza provocada pelo que ali é borrado,
pelo que está fora do limite, algo que, em
dança, se vê apenas em grandes criadores.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
213
Coreografias inéditasapresentam risco e surpresa
no Espaço SESCSolos de Dança: Um projeto com qualidades,
mas com suas fragilidades
ILVIA SOTER
ta peça, Thiago consegue estabelecer uma
relação cúmplice com o público e aparece
menos tímido e bastante à vontade em
cena. Jogando com poucos elementos, um
microfone, um lenço e purpurina vermelha,
e explorando em seu corpo, com destreza,
as possibilidades de reversibilidade e repe-
tição do movimento, ele constrói uma dan-
ça que chega a ser provocadora e sensual,
sem cair no lugar-comum.
Em Ela e mais alguma coisa, Dani Lima,
em parceria com Micheline Torres, busca
criar um ambiente em que a dança perca
qualquer qualidade extraordinária. A lista
de acontecimentos que compõem um dia,
quase todos aparentemente sem importân-
cia, serve de pano de fundo para tratar a
dança como um desses eventos. Nessa peça,
visivelmente em estado de esboço, percebe-
se o início de uma discussão entre a banali-
dade e a relevância, na dança como na vida.
A presença de Dani Lima oscila entre esse
estado de tranquilidade quase regular e
outros em que se deixa invadir pela dança
e mostra que em seu corpo ela aponta para
novos desenhos.
segunda semana dos Solos de Dança
foi bem representativa das qualida-
des e das fragilidades que este projeto car-
rega desde suas primeiras edições.
La Mariée, coreografado por Ana Vitó-
ria para Ana Botafogo, abriu a noite. Quan-
do o público entra, se vê diante de uma qua-
se instalação, em que a bailarina aparece
envolta em seu enorme vestido estrutura-
do. Inspirada na escultura homônima de
Nicki de Saint-Phalle, Ana Vitória coloca
a bailarina no limiar da imobilidade e do
movimento. É admirável a forma como Ana
Botafogo entra no jogo e se dispõe a circu-
lar por um terreno menos conhecido por
ela, o da dança contemporânea e do uni-
verso desta coreógrafa. Se os pequenos e
contidos gestos que caracterizam a escrita
de Ana Vitória ainda pareçam, em alguns
momentos, frágeis e menos precisos em
Ana Botafogo, a intérprete constrói La
Mariée com propriedade e apoiada nessa
sua disponibilidade e em suas muitas qua-
lidades expressivas.
Thiago Granato e Cristian Duarte se
encontram no bem-humorado Plano B. Nes-
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 16 DE MARÇO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
214
Na dobra do tempo encerra a noite com
Lavínia Bizzotto coreografada por Juliana
Moraes, em mais um encontro inédito. La-
vínia, ex-bailarina da Quasar, cria uma mu-
lher no limite da tensão e do descontrole. In-
térprete com uma bonita e eficiente presen-
ça em cena, seu virtuosismo aparece atra-
vés do modo como explora os pequenos ges-
tos desarticulados. No entanto, Na dobra do
tempo fica apenas aí, apoiado na competên-
cia dessa intérprete e sem acrescentar a isso
uma ideia que o levasse adiante.
A proposta dos Solos de Dança de ser-
vir como catalisador de encontros entre cri-
adores e intérpretes que ainda não haviam
trabalhado juntos e que por apenas dois
meses convivem e produzem a peça que ali
é apresentada é, sem dúvida, marcada pelo
risco e pela surpresa. Nesta edição não foi
diferente. Foram vistos alguns trabalhos que
chegaram ao palco com um grau maior de
resolução e outros ainda como um esboço
de algo que poderá (ou não) ser melhor de-
senvolvido posteriormente.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
215
Gesto virapilar coreográfico
Recurso transforma o tratamento cênico da série
OBERTO PEREIRA
ço cênico mais intimista como a arena do
Espaço SESC, tão distinto dos grandes pal-
cos aos quais está acostumada. A estranha
figura da noiva da escultura está lá, em cena,
esgarçando a imagem de uma primeira bai-
larina em intrigantes achados coreográficos
com as quais ela tão bem dialoga.
O excelente bailarino Thiago Granato
aparece em Plano B, segundo solo da noite,
fruto de uma parceria com o paulistano Cris-
tian Duarte. O vigor de sua dança, a cada
novo trabalho ainda mais burilado, tem ago-
ra como desafio uma cena que lhe cobra
algo com o qual parece não estar acostuma-
do: uma presentidade física que deve esta-
belecer uma relação direta com a plateia.
Isso ainda é para Thiago, visivelmente, uma
dificuldade, enquanto é ação frequente nas
obras de Cristian. Mas essa dificuldade se
torna elemento a mais para se detectar na-
quele corpo tão preparado a qualidade de
uma dança que está para além do que ali se
constrói cenicamente, felizmente.
Em Ela e mais alguma coisa, Dani Lima
e Micheline Torres investigam o gesto fe-
minino mais cotidiano, aquele que perpas-
segunda semana da 9ª edição da mos-
tra Solos de Dança no Sesc foi marca-
da, curiosamente, pela presença do gesto
como uma espécie de agenciador coreográ-
fico em todos os quatro solos da noite, tão
distintos esteticamente. A cada novo uso des-
se gesto uma nova possibilidade de tratamen-
to cênico da ideia se traduz em dança podia
ser observada.
O trabalho que abre o programa traz a
grande dama do balé brasileiro, Ana Bota-
fogo, em sua aventura mais radical de incur-
são na dança contemporânea até o momen-
to. A escultura La Mariée, da franco-ameri-
cana Niki de Saint-Phallé, concedeu à coreó-
grafa Ana Vitória subsídios para discutir
temas caros ao universo feminino, empres-
tando-se também como título da obra. Para
tanto, a exatidão do gesto, sua marca, apare-
ce traduzida no corpo treinado pelas rédeas
do balé clássico de Botafogo de modo sur-
preendente, pois é antes em sua dramatici-
dade que essa exatidão acontece. Trata-se,
portanto, de uma equação justa, fruto de uma
habilidade técnica da bailarina em adaptar
a qualidade de sua performance a um espa-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • SEXTA-FEIRA • 21 DE MARÇO • 2008• 21 DE MARÇO • 2008• 21 DE MARÇO • 2008• 21 DE MARÇO • 2008• 21 DE MARÇO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
216
sa os dias, mas que quase nunca é desvela-
do. A qualidade do que se apresenta, ainda
em forma de pleno processo de elaboração
coreográfica, é a da delicadeza enxuta de
quem experimenta esse gesto não como um
produto, mas antes como algo que está ali
em sua dimensão própria, usual, quase ba-
nal, quase imperceptível de tão corriquei-
ra. E essa delicadeza está na dança de Dani,
que poderia ter investido ainda mais nessa
preciosidade e menos numa cena já tão vis-
ta de uma suposta “dança contemporânea”.
Fechando a noite, a bailarina Lavínia
Bizzoto aparece em Na dobra do tempo, de
Juliana Moraes. A qui, o gesto é tratado em
sua dimensão de espasmos, em uma suspen-
são de um estado de percepção que é qua-
se êxtase. O corpo de Lavínia, visivelmen-
te apto a investidas técnicas arrojadas, en-
trega-se nesse solo a um outro desafio cuja
dificuldade torna-se matéria para a própria
composição coreográfica. É desse estado,
nessa dificuldade do embate, que os espas-
mos surgem e permanecem, sempre em re-
corrências.
Os Solos de Dança no SESC se confirmam
como a mais importante mostra do primeiro
semestre em terras cariocas. Que venha sua
décima edição, o que, em tempos como esses
que a cidade vive, é quase um milagre.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
217
Mistura irregularde épocas e estilos
Joias do ballet russo: Repertório e artistas nãosalvam a apresentação do Russian State Ballet
ILVIA SOTER
confusão da noite e de que algo ficou pelo
meio do caminho.
Isso já ficou claro no início da primeira
parte do programa. No pas-de-deux do segun-
do ato de O lago dos cisnes, em vez de assu-
mir apresentar apenas o casal de solistas, a
companhia trouxe para a cena seis bailari-
nas, na tentativa de representar a importan-
tíssima participação do corpo de baile nesta
cena, revelando a pretensão de se aproximar
ao máximo de cada balé, o que, neste tipo de
espetáculo, não é apenas desnecessário, mas,
sobretudo, impossível. A inda na primeira
parte, problemas de iluminação deixaram
literalmente na sombra a peça Pas-de-qua-
tre. Fechando a primeira parte, a entrada dos
convidados especiais Thiago Soares e Mari-
anela Nuñez só deixou mais evidente as fra-
gilidades da companhia russa. O casal de
convidados, ambos do Royal Ballet de Lon-
dres, fez uma impecável apresentação do
pas-de-deux do Corsário, mostrando seguran-
ça absoluta e integração entre si, assim como
precisão técnica e musical. O que faltou na
maior parte da noite sobrou na breve passa-
gem do casal. Sem nenhuma explicação, infe-
riado há 30 anos, o Russian State Bal-
let, companhia estatal russa que este-
ve no Theatro Municipal neste fim de sema-
na, trouxe ao Rio de Janeiro o espetáculo
Joias do ballet russo, um pot-pourri de extra-
tos de alguns balés importantes e outros
menos expressivos. O mérito do programa
foi mostrar pequenos trechos de balés pou-
co conhecidos do público carioca. Mas a es-
tratégia de apresentar numa mesma noite
16 extratos (seriam 17, mas um foi suprimi-
do sem explicação) de épocas e estilos dife-
rentes e, sobretudo, de qualidade artística ir-
regular, mostrou-se pouco eficiente.
Ciente da necessidade de tentar criar o
clima necessário para a apreciação dos ba-
lés, já que o desfile de pequenas peças e a
ausência de acompanhamento da orques-
tra estão longe do que seria ideal para fa-
zer com que o público fosse envolvido pelo
espetáculo, a companhia optou por adotar
dois cenários que ora se revezavam, ora se
combinavam. A maioria das peças aconte-
ceu tendo ao fundo um telão representan-
do um palácio ou uma lua, cenários gené-
ricos que só aumentaram a sensação de
C
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 31 DE MARÇO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 31 DE MARÇO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 31 DE MARÇO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 31 DE MARÇO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 31 DE MARÇO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
218
lizmente, Thiago Soares não voltou para o
Dom Quixote, como anunciado no programa.
A segunda parte da longuíssima noite foi
igualmente irregular. Num determinado
momento, graças a um problema técnico, a
música simplesmente parou de tocar, en-
quanto os bailarinos tentavam, em vão, con-
tinuar dançando. O ponto alto foram dois
solos que atraem pela curiosidade do ponto
de vista histórico, já que carregam nomes
importantes do balé. Foi interessante poder
assistir a Amapola da Califórnia, de Anna
Pavlova, e O diabo coxo, de Fanny Elssler,
dançados com adequação, ainda que te-
nham ficado perdidos no meio de tantas
mudanças de coreógrafos, músicas, momen-
tos históricos e registros.
O programa do Russian State Ballet mais
uma vez mostrou que este tipo de proposta
só se torna de fato interessante quando tan-
to as peças apresentadas quanto os intérpre-
tes que as defendem têm a excelência que
justifica um espetáculo de gala. No caso de
Joias do ballet russo, nem o repertório esco-
lhido nem os artistas da companhia russa
fizeram com que as fragilidades da propos-
ta não se colocassem à frente de suas possí-
veis qualidades.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
219
Giselle mantéma aura de clássicoBalé se impõe com segurança,
a mesma de Silvio Viegas
OBERTO PEREIRA
do para algumas promissoras carreiras.
A companhia parece renovar-se e isso é
um passo certeiro dado por seu diretor
Marcelo Misailidis.
Se todo o balé transcorreu correto, há
que se ressaltar o desempenho dos seis bai-
larinos que formavam o pas-de-six do pri-
meiro ato (Priscilla Mota, Taís Diana, Cíce-
ro Gomes, René Salazar e Rodrigo Negri),
destacando-se aí o nome de Karina Dias,
com certeza uma das grandes estrelas des-
sa récita e uma futura primeira bailarina. No
segundo ato, entretanto, Priscila Albuquerque
não se mostrou ainda madura o suficiente
para desempenhar o difícil papel da rainha
das wilis, enquanto Edifranc Alves construiu
com justeza seu Hilarion, papel nada fácil e
que nem sempre ganha atenção devida dos
remontadores desse balé.
Mas a grande estrela da noite foi mes-
mo a nossa primeira bailarina Ana Botafo-
go desempenhando mais uma vez aquele
que é, com certeza, o principal papel de sua
carreira. Bailarina romântica por excelên-
cia, Ana concede a cada interpretação de
Giselle minúcias dramáticas que ganham
Theatro Municipal abre a temporada
de balé apresentando sua companhia
em Giselle, pérola do romantismo e ainda
hoje um grande desafio do repertório clás-
sico. Por tudo que representa, esse balé se
torna sempre uma boa oportunidade para
que se avalie as condições dessa que é a
principal companhia clássica do País.
A versão que temos aqui desde 1982,
assinada por Peter Wright, com certeza não
é a das melhores, mas consegue ainda assim
bons resultados. E isso pôde ser visto na es-
treia, no último sábado, que contou com um
teatro cheio e uma companhia afinada e
coesa. Giselle ainda é um sucesso.
Cenários e figurinos muito apropriados,
que acertavam em seu tom de marrom no
primeiro ato, e de verde no segundo, conce-
deram qualidade à encenação. E a orques-
tra do Theatro, regida com segurança pelo
maestro Silvio Viegas, completava com com-
petência esse quadro.
Entretanto, a grande novidade da noi-
te estava no corpo de baile: novos rostos,
sobretudo no naipe masculino, desperta-
ram a curiosidade do público, já apontan-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 14 DE ABRIL • 2008SEGUNDA-FEIRA • 14 DE ABRIL • 2008SEGUNDA-FEIRA • 14 DE ABRIL • 2008SEGUNDA-FEIRA • 14 DE ABRIL • 2008SEGUNDA-FEIRA • 14 DE ABRIL • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
220
ainda novas nuances quanto mais madura a
bailarina se torna.
Pena que ela tenha dividido a cena com
Jesús Pastor, bailarino espanhol convida-
do, cujo desempenho nem de longe dialo-
ga com a qualidade de sua dança. Visivel-
mente despreparado para o papel, sem
qualidades dramáticas e tecnicamente
frágil, Pastor deixa a questão no ar sobre
a pertinência de se convidar bailarinos es-
trangeiros, já que possuímos tantos com
talento no País.
Giselle é mesmo um sucesso. E é também
uma grande lição para jovens bailarinos
que têm a oportunidade de dividir a cena
com os mais experientes. Esse é o sentido
de tradição, imprescindível para uma com-
panhia como essa do Theatro Municipal.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
221
Ânimo renovadopara a temporada
Giselle: Theatro Municipal apresentamontagem caprichada do balé
ILVIA SOTER
construindo o drama de Giselle em cada
mudança de olhar, em cada pequeno ges-
to. Nem mesmo quando agradece entre as
cenas do primeiro ato a intérprete se se-
para da personagem.
Jesús Pastor, bailarino espanhol com pas-
sagem pelos English National Ballet e Ame-
rican Ballet Theatre, emprestou sua bonita
figura a Albrecht, e apesar de ter dado con-
ta de suas variações de forma correta, mes-
mo que sem grande brilho, parecia não es-
tar no auge de sua forma. No papel de Hila-
rion, constata-se o amadurecimento de Edi-
franc Alves, ainda que ele não pareça sem-
pre à vontade nos momentos de pantomima.
O corpo de baile mostrou-se afinado já
no primeiro ato, garantindo o espírito de
festa e de alegria da vindima, com desta-
que para a segurança e a precisão de Kari-
na Dias no pas-de-six. No entanto, para o
corpo de baile, a prova de fogo de Giselle
encontra-se no segundo ato. E o Ballet do
Theatro Municipal saiu-se bastante bem.
Priscila Albuquerque construiu sua Myrtha
de forma correta, com frieza e rigidez. O
corpo de baile deu conta das figuras preci-
ma montagem bem cuidada e compe-
tente de Giselle abriu no último sába-
do a temporada do Ballet do Theatro Muni-
cipal do Rio de Janeiro. Este balé, que há 5
anos não era dançado pela companhia, apre-
sentou um corpo de baile revitalizado, bem
ensaiado e com boa integração com a or-
questra. A escalação desta montagem mos-
tra a preocupação da direção em, ao mes-
mo tempo, valorizar os já consagrados intér-
pretes deste balé e dar oportunidade a ou-
tros artistas da casa, renovando a participa-
ção dos solistas nos papéis de destaque. Es-
colha que se mostrou acertada.
Na noite de estreia, Giselle e Albrecht
foram Ana Botafogo e o convidado espe-
cial Jesús Pastor (dupla que se repete hoje).
Ana Botafogo, com vasta experiência nes-
te papel, mais uma vez apoia-se em seu
absoluto domínio da cena e constrói sua
Giselle dando visibilidade a todas as nu-
ances da personagem. Num crescente, seu
rendimento é ainda maior no segundo ato.
Acompanhá-la neste papel, ao longo dos
anos, é confirmar que seu virtuosismo se
dá na forma como encarna a personagem,
U
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 16 DE ABRIL • 2008RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 16 DE ABRIL • 2008RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 16 DE ABRIL • 2008RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 16 DE ABRIL • 2008RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 16 DE ABRIL • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
222
sas das wilis, e, no segundo ato, Ana Botafo-
go e Jesús Pastor tiveram seus melhores
momentos de integração.
Independentemente de um destaque
ou de outro, o que mais saltou aos olhos
nesta estreia foi o conjunto da obra: o ca-
pricho da montagem – levando-se em con-
ta cenários, iluminação e figurinos; o tra-
balho harmônico e bem orientado da com-
panhia e o ânimo com que os bailarinos
defenderam seus papéis. Em tempos de
“vacas magras” na área da cultura, assis-
tir a Giselle é ganhar esperanças para a
temporada que se inicia.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
223
Verborragia de movimentosno flerte de Deborah Colker
com a dança-teatroCruel: Nova peça da coreógrafa
confirma sua busca por linguagem
ILVIA SOTER
É possível reconhecer em Cruel o desen-
volvimento de algo que já apontava em Nó,
como a preocupação de encontrar um voca-
bulário próprio e coerente com o tema em
questão, durante toda a peça. Neste sentido,
Cruel é mais arriscado e avança. Do baile à
mesa, Deborah Colker vai utilizando seus
recursos coreográficos na construção dessa
identidade, ainda que o que se vê nesse sen-
tido não tenha o impacto de algumas de suas
peças anteriores, apoiadas na exploração de
grandes suportes arquiteturais. A compa-
nhia guarda o vigor e a boa qualidade téc-
nica dos espetáculos anteriores e sobretu-
do o elenco feminino garante a teatralida-
de perseguida. Em Cruel, pela primeira vez
Deborah Colker não está em cena.
Não deixa de ser curioso o fato de que a
coreógrafa tenha se apropriado de uma
mesa justamente no momento em que mais
tenta se aproximar da dança-teatro. É ine-
vitável pensar na coreografia Mesa verde,
de Kurt Jooss, emblemática do primeiro
momento da dança-teatro alemã nos anos
1930. Enquanto esse marco da dança moder-
na tratava dos horrores da guerra a partir
ara aqueles que esperam mais uma
peripécia da Companhia de Dança
Deborah Colker, talvez Cruel possa causar
estranhamento. Em cartaz no Theatro Mu-
nicipal do Rio de Janeiro até amanhã, a
nova peça da coreógrafa mais pop do Rio
flerta mais com a dança-teatro do que com
seu lado mais acrobático. Sobretudo na sua
primeira parte. Não é por acaso que desta
vez ela contou com a ajuda do diretor de
teatro Gilberto Gawronski, responsável
pelo trabalho com os bailarinos na busca
de conduzi-los à densidade dramática que
ela persegue ao longo da peça. Ainda que
não haja uma narrativa linear no sentido
de libreto, existem personagens mais ou
menos identificáveis que atravessam os 90
minutos do espetáculo em dois atos. Cruel
começa num baile que anuncia o clima das
relações entre os casais. A partir da entra-
da de pratos e, em seguida, de uma grande
mesa, as situações de tensão são conduzi-
das para o ambiente familiar. Ainda que
uma trama clara não seja contada, identi-
fica-se a mãe, o pai, a outra, o amante, os
filhos, etc.
P
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
224
das negociações que ocorriam em torno da
mesa, a mesa de Cruel aborda os dramas
familiares. Do baile à mesa de Cruel, as pos-
síveis nuances das relações entre esses per-
sonagens são, no entanto, achatadas por uma
verborragia de movimentos e pela trilha
sonora acachapante que se impõe pelo ex-
cesso, sem silêncios ou respirações. Os figu-
rinos de Samuel Cirnansck reforçam a ide-
éia de opulência, já que operam entre um
desfile de alta costura e a roupa de aula de
dança, não achando o tom, nem num caso
nem no outro.
Na segunda parte de Cruel, os mesmos
personagens voltam à cena, num cenário
diferente, em que espelhos pivotantes fun-
cionam como um novo suporte. Aqui, Debo-
rah parece mais à vontade, circulando pela
exploração de bonitas imagens que o espe-
lho permite. Mas este segundo ato se man-
tém completamente descolado do anterior
e poderia servir como uma peça indepen-
dente, ou como partida para uma nova pes-
quisa, pois pouco acrescenta ao que aconte-
ceu na primeira parte. Se por um lado, a
dança de Deborah Colker em Cruel avança
por outros caminhos, seu jeito de trilhá-los
se apoia ainda num certo exagero e numa
intensidade sem pausas, onde não cabe o não
dito, o que nasce nas entrelinhas, o que é sutil.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
225
Falta habilidadena coreografia
Deborah Colker expõe fragilidade na montagem,materializada em passos de dança mal conectados
OBERTO PEREIRA
tileza de um olhar, o timing preciso de uma
cena bem construída, ou seja, elementos su-
tis (e muitas vezes mais cruéis), são substitu-
ídos por passos de dança mal conectados, que
prezam pela máxima extensão dos bailari-
nos, como se quisesse (e precisasse) mera-
mente provar suas habilidades técnicas.
Uma inabilidade com o ofício coreográ-
fico fica evidente em todo o espetáculo. O
excesso de frontalidade e simetria, por
exemplo, revela recursos pueris na constru-
ção da cena, sobretudo na primeira parte. E
o parco vocabulário de movimentos, justa-
mente aí, na cena do baile, traz à memória
do público, para o bem e para o mal, irreme-
diavelmente, a sofisticação de um Lecuona
(2004), espetáculo de Rodrigo Pederneiras
para seu Grupo Corpo, que por si já lembra-
va Nine Sinatra songs (1982), da americana
Twyla Tharp. Lembranças e saudades, claro,
tomam conta de quem assiste.
Já na segunda parte, o recurso dos biom-
bos, já tão explorado na dança, ainda fica
restrito pelo uso que pode render mais um
impacto visual do que um verdadeiro modo
de tratar do tema. Mesmo espelhados e
novo espetáculo da coreógrafa cario-
ca Deborah Colker, Cruel, estreado na
quinta-feira no Theatro Municipal, apresen-
ta um avanço estético e muitos problemas.
Para tratar do tema “crueldade”, ousou-se,
pela primeira vez, investir no gesto teatral,
buscando na dramaturgia uma possibilida-
de coreográfica. Esse avanço, notável quan-
do se observa a produção de Colker, revela
uma certa coragem de se aventurar em
campos ainda desconhecidos para ela, e
também o reconhecimento disso, a ponto de
admitir que necessita de auxílio, no caso,
chamando Gilberto Gawronsky, parceria
que ainda pode render bons frutos.
Mas os problemas que assolam Cruel
quase impedem que se note essa nova expe-
riência da coreógrafa, deixando apenas que
suas fragilidades ganhem a cena. Aliás, é jus-
tamente na cena e suas implicações no cor-
po o que mais merece atenção de Colker, que
ainda acredita que a embalagem pode ser
mais importante que o próprio produto.
Talvez o mais grave de todo o espetáculo
seja apostar no exagero e no explícito para
se falar da crueldade. O pequeno gesto, a su-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008R IO DE JANE IRO • DOMINGO • 27 DE ABR I L • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
226
mesmo com o recurso vazado (simetrica-
mente) no meio, eles não se justificam
como metáfora de crueldade. Novamente,
a embalagem no lugar do produto.
O exagero e o explícito estão, por fim,
nos cenários óbvios de Gringo Cardia, nos
figurinos que funcionam muito mal, de Sa-
muel Cirnansck e, sobretudo, na trilha so-
nora absolutamente imperativa de Berna
Ceppas, que teima em preencher todo o es-
paço sem deixar nenhuma brecha para a
dança que ali se constrói.
Cruel aponta para a coragem da core-
ógrafa em buscar novas possibilidades
cênicas. Talvez seja cedo ainda para se
falar em crise, algo que vem se mostran-
do absolutamente necessário e urgente
em sua carreira. Além, é claro, do fato de
que ela precisa se lembrar de que, no
exagero e no explícito, não há lugar para
o espectador, pois tudo está dado, sem
chances para interlocução, tornando re-
almente cruel a própria experiência de
assistir a esse espetáculo.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
227
Entretenimento profissionalCoreografia não interessa.A palavra de ordem é efeito
OBERTO PEREIRA
liza, não investindo hora nenhuma em ou-
tras possibilidades cinéticas que não seja o
ato de se exibir, no que há de mais ingênuo
e pueril nisso. Mas, admite-se, num show
como esse, faz parte do código ser tudo isso,
para que o espetáculo e o exibicionismo
sejam apenas dois nomes para uma mes-
ma investida. E nisso, Waterwall é absolu-
tamente honesto, pois cumpre exatamente
com o que se propõe, o que é comprovado
pela própria escolha do local de apresen-
tação, uma casa de show.
Em alguns momentos, chega-se a lamen-
tar que o diretor artístico, Ivan Manzoni, não
tenha ousado um pouco e aproveitado os
ótimos efeitos que consegue com a água.
Dentro do seu senso de espetacularidade,
bem que cabiam algumas novas tentativas
de surpreender o público sem privá-lo de sua
inteligência. Em todos os casos, em Wa-
terwall há música, iluminação, figurino, ce-
nário e muito, mas muito movimento. E tudo
isso enche mesmo os olhos. Quem vai assis-
tir com o mero intuito de se divertir sai dali
muito satisfeito. E não há mesmo nada a se
questionar sobre isso.
ara quem vive esbravejando contra a
tal dança contemporânea, talvez uma
boa sugestão seja assistir ao espetáculo (de
dança?) Waterwall, em cartaz até domingo
no Citibank Hall, na Barra da Tijuca. Não
há sobre o que pensar e nem o que enten-
der: trata-se de entretenimento puro. E, nes-
sa perspectiva, a tarefa é cumprida com to-
tal profissionalismo.
Se pensarmos em termos coreográficos,
tudo ali é palpérrimo. Mas quem está inte-
ressado em coreografia? A palavra de or-
dem é efeito. E há vários deles, todos a par-
tir de um muro feito de água que escorre in-
cessantemente durante os 70 minutos do es-
petáculo. Isso sem contar as evoluções fei-
tas pelos bailarinos-acrobatas (sic), todos
muito bons, e que, entre um número mais ou-
sado e outro, escorregam de bruços na água,
de frente para o público, soltando um inevi-
tável sorriso.
Assim, tudo é também frontal e por de-
mais simétrico e a previsibilidade é quase
insuportável. Mas há talvez que se expli-
car o que é ser frontal em dança? Basta
pensar em como o corpo se bidimensiona-
P
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO • SEXTA-FE IRA • 16 DE MAI• SEXTA-FE IRA • 16 DE MAI• SEXTA-FE IRA • 16 DE MAI• SEXTA-FE IRA • 16 DE MAI• SEXTA-FE IRA • 16 DE MAIOOOOO • 2008 • 2008 • 2008 • 2008 • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
228
Dois caminhos possíveisde apoio à dança
OBERTO PEREIRA
artística Mônica Mion e sua assistente, Ana
Teixeira. A primeira ação foi reunir num
encontro, pela primeira vez na história da
companhia, todos os que nela exerceram o
cargo de direção desde seu início, em 1968.
Nomes importantes, como José Possi Neto e
Luis Arrieta, puderam compartilhar com
seus colegas suas experiências muitas ve-
zes comuns a todos, as mesmas dificuldades
enfrentadas, próprias de qualquer órgão ar-
tístico ligado ao poder público. O que ficou
evidente, entretanto, foi a disposição de to-
dos eles em tornar possível esse projeto de
dança que hoje representa um patrimônio
artístico brasileiro. Uma disposição que per-
manece até os dias de hoje e que deverá
permanecer enquanto a companhia existir.
Outra ação que merece menção foi o
lançamento do bem-vindo vídeo 4 Décadas de
movimento, de autoria de Osmar Zampieri,
que conta com imagens do acervo do grupo,
toda sua trajetória. E, ainda, a ação mais
aguardada: a companhia no palco, dançan-
do, mostrando seu vigor e profissionalismo
ao misturar, com habilidade ímpar a tradi-
ção e a contemporaneidade, através de
uas formas absolutamente distintas de
organização e produção de dança:
uma está estreitamente ligada à tradição,
enquanto a outra está atravessada pela con-
temporaneidade. Uma remonta os tempos
barrocos de Luís XIV, na França, e diz res-
peito às companhias de dança oficiais, liga-
das ao poder público, tendo a Ópera de Pa-
ris como matriz. A outra é sintoma de uma
modernidade líquida, como advoga o soci-
ólogo polonês Zygmunt Bauman, e se cons-
titui em forma de coletivos de artistas inde-
pendentes. Essas duas formas estiveram em
pauta na programação deste fim de sema-
na em São Paulo e revelaram que podem
sim estabelecer um convívio estético possí-
vel e bastante revelador.
A forma tradicional foi muito bem re-
presentada através da comemoração dos 40
anos do Balé da Cidade de São Paulo, segun-
da companhia oficial do País (a primeira é
o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Ja-
neiro). Para contar um pouco dessa história
e traçar os percursos de tradição trilhados
por ela, foram organizadas algumas ações
numa iniciativa acertada de sua diretora
D
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE I RO • DOMINGO • 18 DE MA IO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 18 DE MA IO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 18 DE MA IO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 18 DE MA IO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 18 DE MA IO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
229
obras assinadas por Arrieta e Sandro Bore-
lli. Uma comemoração que aponta dois sen-
tidos em sincronia: para a história e para o
futuro, ambos carregados de uma qualida-
de que está na dança do Balé da Cidade e
nos corpos de seus excelentes bailarinos.
A segunda forma de organização cami-
nha justamente na contramão dessa que é
tão estabelecida e consagrada ligada ao
poder público como são as companhias ofi-
ciais: trata-se dos coletivos, grupos de artis-
tas independentes que se juntam para tor-
nar possível sua produção, em cooperações
mútuas. Através de estratégias sempre no-
vas, móveis e sobretudo instáveis, acabam
por inaugurar, a cada nova criação, modos
de sobrevivência artística. Não há hierar-
quias, não há regras preestabelecidas e car-
gos a serem ocupados, mas apenas o desejo
comum de viabilizar ideias em dança.
Esses grupos, que surgem nos quatro can-
tos do País e que se autonomeiam coletivos
puderam se encontrar pela primeira vez
através da mostra pioneira organizada por
Sonia Sobral, no Itaú Cultural, denominada
Coletivo Corpo Autônomo, iniciada no dia 7
e que se estende até o dia 18 deste mês.
Através de apresentações, sobretudo dos
coletivos com mais tempo de existência,
como o Couve-flor – Microcomunidade ar-
tística mundial, de Curitiba, e o Centro de
Criação do Dirceu, de Teresina, seis grupos
dividiram também o palco do Centro Cul-
tural para que pudessem falar de suas es-
tratégias de sobrevivência. Tal apresenta-
ção ajudou a entender como os resultados
estéticos são absolutamente contaminados
pelos modos de produção que os per-
meiam. Trabalhos arrojados, muitas vezes
desmedidos em sua profusão de ideias, denun-
ciam uma busca bastante jovem de novos
resultados cênicos.
Duas propostas diferentes de fazer a
dança existir nesse país de poucas investi-
das em políticas públicas para a área: uma
companhia oficial, com bailarinos devida-
mente empregados e cargos muito bem de-
finidos convive com mostras de coletivos
que se perguntam, a cada dia, como será a
criação de amanhã. Nem por isso, as dificul-
dades e os desafios – estéticos e financeiros
– para uma são maiores ou menores que
para outra. São diversos, como deve mesmo
ser a arte contemporânea.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
230
Metade doespetáculo já bastaria
Batalha é secundária diante de Suíte Funk,o atual em estado puro
OBERTO PEREIRA
seus corpos um lugar privilegiado de obser-
vação de como esse movimento se atualiza
sempre numa perspectiva contemporânea.
Talvez justamente por isso Suíte Funk
seja um tanto superior a Batalha, porque faz
da dança, ela mesma, sua matéria-prima.
Tudo que está em cena converge para um
pensamento coreográfico. E o desempenho
dos bailarinos, o figurino e o cenário corres-
pondem com perfeição à proposta. Apenas
a luz precisa ainda de contornos mais preci-
sos e talvez as falas, já usadas na obra ante-
rior, possam ser prescindidas. É a dança que
se atualiza ali o mais importante.
Já em Batalha, o excesso de referências
exteriores esbarra nos clichês de uma pos-
tura corporal bélica, próprias dos bailarinos
de hiphop, que hoje já merece ser revista.
Daí, a previsibilidade coreográfica e os tru-
ques de se usar depoimentos não cooperam
com o que se pretende.
Suíte Funk merece ser apresentada so-
zinha. Até porque comprova que o vocabu-
lário de dança de rua é algo vivo, vibrante,
e absolutamente contemporâneo. E todos os
bailarinos ali, sem exceção, sabem muito
bem como nos mostrar isso.
á muito a dança de rua, ou o hiphop,
vem se contaminando com as ques-
tões da dança contemporânea e desse pro-
cesso alguns ótimos saldos já podem ser de-
tectados. Nomes como Bruno Beltrão e Pau-
lo Azevedo aqui no Rio e Frank Ejara, em
São Paulo, já se tornaram referências nessa
busca absolutamente nova de colocar a dan-
ça da rua no palco e estabelecer novas con-
figurações cênicas que essa passagem de-
manda.
Nesse sentido, a existência da Compa-
nhia Urbana de Dança, capitaneada por
Sonia Destri, é mais uma bem-vinda incur-
são nesse ainda tão profícuo diálogo. Em seu
recém-estreado espetáculo, que reúne duas
obras, Suíte Funk e Batalha, ambas assina-
das por ela, em temporada até domingo no
Espaço SESC, pode-se ver um modo bastan-
te próprio de se tomar parte nesse processo.
O que mais chama a atenção no trabalho
de Destri e sua companhia é que o contem-
porâneo está lá em estado bruto, no puro
movimento, no vocabulário específico da
dança de rua. E para isso, conta-se com dez
excelentes bailarinos, todos homens, que con-
cedem ao espetáculo um vigor que faz de
H
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE I RO • DOMINGO • 1 DE JUNHO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 1 DE JUNHO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 1 DE JUNHO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 1 DE JUNHO • 2008R IO DE JANE I RO • DOMINGO • 1 DE JUNHO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
231
Bailarinos se entregamEspetáculo em Santa Teresa é uma grande celebração
OBERTO PEREIRA
cuidado para que todos os ambientes sejamdevidamente criados. Apenas o excesso defumaça, num ambiente um tanto pequeno,deveria ser revisto, porque inclusive dificul-ta a visão de algumas danças.
Mas o que há de melhor no espetáculosão justamente os bailarinos. Observarcomo eles se entregam à tarefa propostapor Barbot é comovente. E os desempe-nhos de Ulisses Oliveira, como Iansã, eHugo Luís da Silva, como Xangô, merecemdestaque, pois seus corpos estão ali a ser-viço de uma causa maior, funcionando ha-bilmente como um trânsito entre dança ereligiosidade. Já outros momentos, comoo de Iemanjá, por exemplo, devem ser re-vistos, tanto no uso de músicas tão gastascomo as Vangelis, quanto na própria per-formance um tanto inexpressiva da baila-rina Sara Hana.
O reino do outro mundo é contempo-râneo sim. Porque se apresenta naquele lu-
gar, naquele bairro, nessa cidade, porque
se apresenta hoje. E porque se apresenta
de um modo absolutamente digno, respei-
toso e honesto. Tudo é uma grande cele-
bração, coroada ao final pela presença do
próprio Barbot, como Oxalufã, o Oxalá
mais velho. Não há como não se emocio-
nar nesse momento. E uma parte dessa
emoção, assim como na fé, não tem mes-
mo explicação.
programa faz questão de deixar cla-ro: O reino do outro mundo, que a
Companhia Rubens Barbot Teatro de Dan-ça apresenta até dia 29 deste mês na Cate-dral Anglicana São Paulo Apóstolo, em SantaTeresa, é “um espetáculo contemporâneosobre as danças dos Orixás.” Tal aviso assi-nala um modo de composição cênica que re-almente pouco tem a ver com a dança con-temporânea, mas antes com um entendi-mento, nos dias de hoje, da corporeidade deuma dança que está intimamente ligada àreligiosidade.
Na verdade, trata-se quase de uma aula.A lista dos 13 orixás funciona como um ro-teiro didático para que cada um se apresen-te, um após o outro, de modo que seja facil-mente reconhecido pelo público. Nenhummal nisso, se lembrarmos que não se tratamesmo de dança contemporânea, que nãosuportaria esse didatismo. E por isso mesmoreleva-se o uso simplório do figurino e damúsica, que apenas reiteram o que se quertratar. Não há metáfora, não há releitura.Mas há uma honestidade impressionante emcomo tudo ali se articula.
Rubens Barbot consegue, nos quase 90minutos de espetáculo, tirar o máximo pro-veito do local onde ele acontece, uma igre-ja, cuja escolha já perturba quando o assun-to a ser tratado são temas de uma outra re-ligião. E a iluminação também coopera com
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JUNHO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JUNHO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JUNHO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JUNHO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 9 DE JUNHO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
232
“Transcriação”shakespeariana
Balé de Londrina relêRomeu e Julieta em desafio difícil
OBERTO PEREIRA
tão bem o que se quer dizer nessa transcria-
ção shakespeariana: tudo pertence àquele uni-
verso porque foi posto ali, mas em estado de
decalque, de colagem, de uma leitura possí-
vel. Não à toa, quase toda movimentação se
dá rente ao chão, em decalques que vão sendo
construídos e desconstruídos a todo o momento.
A companhia responde muito bem ao
desafio proposto por Leonardo Ramos. Afi-
nada e coesa, indentifica-se nela a cumpli-
cidade com o trabalho do coreógrafo, opor-
tunidade rara de convivência nos dias de
hoje. Ressalta-se, entretanto, a atuação pre-
cisa e madura do bailarino Cláudio de Sou-
za, um dos responsáveis pelos momentos
mais arrojados do espetáculo.
Um excesso de luzes coloridas na ilumi-
nação, uma falta de silêncio que se oponha à
grandiloquência da música de Prokofiev e
um esgarçamento no tempo coreográfico são
alguns elementos que merecem revisão. Mas
nem de longe fazem de Decalque menos da-
quilo que ele é: uma transcriação possível,
que vai do teatro à dança, sem nenhum re-
ceio de transitar no espaço que há entre es-
sas duas linguagens.
grande mérito de Decalque, espetácu-lo que o Balé de Londrina apresenta
no Teatro Cacilda Becker até domingo, é aideia de tradução que ele carrega, ao partirda obra de Shakespeare, Romeu e Julieta, paraorganizar em dança uma possibilidade de lei-tura. Desafio nada fácil, o que se pode verifi-car na cena que se constrói é não apenas essaideia de tradução, mas antes, recuperando opoeta Haroldo de Campos, a ideia de transcria-
ção. É nesse terreno que o coreógrafo e dire-tor da companhia, Leonardo Ramos, atua: nolugar de “entre-linguagens”, para construirseu vocabulário de movimentos.
Assim, não há espaço para literalidades.Julieta e Romeu são personagens visitadospor todos os bailarinos e cabe ao públicoestar atento para identificar, ou não, quemos representa no momento. E mesmo o sen-tido de representação é trazido aqui numaoutra esfera, em que há menos o gesto dra-mático, já que a cena se constrói no puro mo-vimento. Um avanço e tanto na carreira docoreógrafo e de sua companhia.
Justamente por essa primazia do movimen-to, o título do espetáculo, Decalque, configura
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 20 DE JUNHO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
233
Desafio é desfazermá impressão da companhia
Russian State Ballet
OBERTO PEREIRA
ra um balé como A bela adormecida, cujo tour
de force é justamente aliar o que nele tem detradição, já que se trata de uma obra inspira-da nos tempos barrocos de Luís XIV, com osarroubos técnicos conquistados hoje em dia.A célebre dupla que assinou esse balé, Peti-pa/Tchaikovsky, imprimiu claramente as exi-gências de uma companhia tradicional debalé para seu desempenho, dada a magnitu-de do projeto dos dois. É esperar para ver.
Se apostarmos na fama que vem con-quistando sua primeira bailarina, IrinaKolesnikova, tudo pode ser uma agradá-vel surpresa. A Dance Magazine, uma dasrevistas mais importantes da área, reco-nheceu recentemente seu talento, mesmoque sua professora, Elvira Kokorina, dafamosa Vaganova Ballet Academy ondese formou, a tenha humilhado diversasvezes frente aos colegas, tentando conven-cê-la do contrário.
Vale a pena conferir, por se tratar de umacompanhia de balé jovem e privada e quetraz uma obra de peso. Talvez sirva comoremédio para tirar da lembrança o estragoque seus compatriotas fizeram por aqui re-
centemente.
Rio de Janeiro ainda está traumatiza-do com a última investida russa na
cidade na área do balé: em março deste ano,a passagem desastrosa do Russian State Bal-let pelo Theatro Municipal, com o espetácu-lo Joias do ballet russo, deixou claro que mes-mo um país com fama de ser a capital mun-dial dessa arte pode muito bem ter suas com-panhias de segundo (ou terceiro) escalão.Agora, a vinda de mais um exemplar russotem pela frente a missão de desfazer mini-mamente a péssima impressão deixada pe-los seus conterrâneos em terras brasileiras.
A Konstantin Tachkin’s Ballet Theatre ofSaint Petersburg (um dos nomes para a mes-ma Saint Petersburg Ballet Theatre, apenaslevando o nome de seu fundador), além deser uma jovem companhia para os padrõesrussos, já que conta apenas com 14 anos, étambém uma companhia privada de balé. Aolado de um Kirov, ou mesmo de um Musor-gsky Theatre Opera and Ballet, ambos sedia-dos na mesma São Petersburgo, e do Bolshoi,em Moscou, ela é praticamente uma inician-te e já por isso desperta curiosidade.
E essa curiosidade apenas aumenta ao sa-ber que escolheram para sua turnê brasilei-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2008 QUINTA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2008 QUINTA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2008 QUINTA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2008 QUINTA-FEIRA • 26 DE JUNHO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
234
Russos continuam devendoSt. Petersburg Ballet passa em branco no Municipal
OBERTO PEREIRA
vem para o término da turnê, deixando
uma lacuna irremediável na qualidade
artística do que foi apresentado. Sua subs-
tituta, a solista Ana Khabarova, apesar de
correta, não conseguiu imprimir em sua
Princesa Aurora as tonalidades interpre-
tativas que a personagem demanda. E
tecnicamente apresentava falhas que se tor-
navam ainda mais visíveis nos dessincroni-
zados pas-de-deux com o ótimo Vyacheslav
Sunegin, sobretudo nas piruetas, todas fora
do eixo.
Se os cenários e figurinos correspon-
diam à suntuosidade barroca exigida
pelo balé, o mesmo não aconteceu com
a coreografia. Privilegiando a pantomi-
ma em detrimento da própria dança,
essa versão deixou muito a desejar quan-
do se trata de um balé que leva a assina-
tura de um mestre como Marius Petipa,
que soube como poucos aliar o gesto ao
movimento.
Não foi desta vez, portanto, que os russos
conseguiram mostrar para o Rio de Janeiro,
a capital do balé no Brasil, o que eles têm
de melhor na área. Saudades do Kirov.
ão foi desta vez que os russos conse-
guiram tirar a péssima impressão no
público carioca deixada pelos seus compa-
triotas do Russian State Ballet em março
deste ano. A St. Petersburg Ballet Theatre,
que apresentou o balé A bela adormecida,
embora infinitamente melhor que a outra,
ainda assim não empolgou o público que
lotava o Theatro Municipal nesta última
quinta-feira.
Talvez duas importantes ausências pos-
sam ter contribuído para isso: a da prometi-
da orquestra com 38 músicos e a da primei-
ra bailarina Irina Kolesnikova. Não houve
explicação da produção sobre isso e, levan-
do em conta os altíssimos preços dos ingres-
sos, essas faltas se tornaram imperdoáveis.
Para o público carioca, único no Brasil a
estar acostumado a assistir balés do reper-
tório clássico com música ao vivo, a expe-
riência de fazê-lo com música gravada soou
quase como uma heresia.
Mas foi sobretudo a ausência de Koles-
nikova que se fez sentir durante todo o es-
petáculo. Bailarina de fama mundial, ela
chega ao Brasil apenas na semana que
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • D O M I N G O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 8D O M I N G O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 8D O M I N G O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 8D O M I N G O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 8D O M I N G O • 6 D E J U L H O • 2 0 0 8
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
235
Balé para gente pequenaAna Vitória extrai beleza do fértil gênero infantil
OBERTO PEREIRA
de Renato Machado e os figurinos de Ana
Paula Moniz e Cláudia Diniz impressionam
por funcionarem com tal harmonia em con-
junto que parecem ter sido feitos por ape-
nas um artista. Raramente se vê uma con-
cepção cênica tão coesa assim, o que, sem
dúvida, deve ser creditado à direção segura
de Marcelo Aquino.
Já a coreografia tem achados muito
interessantes, embora algumas vezes per-
ca o ritmo, problema imperdoável em se
tratando de um espetáculo voltado para
crianças. Ana Vitória aparece dançando
com a propriedade de sempre e é acom-
panhada com competência pelo bailari-
no Márcio Cunha. Já Alexandre Bado e
Renata Costa necessitam ainda encon-
trar um tom mais preciso em suas inter-
pretações, que ainda esbarram num cer-
to exibicionismo.
Cirandas cirandinhas é um primeiro e
importante passo para a dança carioca por
contribuir na formação de um público. Um
desafio vencido com a qualidade e com o
esmero que merecem a atenção não só das
crianças mas de todos nós.
ma importante lacuna na dança con-
temporânea carioca é finalmente
preenchida com Cirandas cirandinhas, espe-
táculo assinado pela coreógrafa e bailari-
na Ana Vitória, que estreou neste sábado
no Espaço SESC: a dança dedicada às cri-
anças. Tarefa das mais difíceis, já que o pú-
blico a ser conquistado costuma ser um tan-
to exigente, trata-se de uma bela oportuni-
dade para se conferir como esse campo é
ainda bastante fértil para as investidas co-
reográficas.
Cirandas cirandinhas tem ainda muitos
outros méritos. O primeiro deles é trazer à
cena a música de Villa-Lobos de uma for-
ma absolutamente inovadora, sem perder
de vista o que há de lúdico nela. E também
por visitar contemporaneamente várias das
brincadeiras infantis que habitam o imagi-
nário brasileiro, mesmo que um tanto esmae-
cidas nos tempos excessivamente tecnoló-
gicos de hoje.
Além disso, o espetáculo tem qualidades
cênicas que saltam aos olhos e que com cer-
teza conseguirão seduzir seu público alvo:
o cenário de Sérgio Marimba, a iluminação
U
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 7 DE JULHO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
236
Sobre o palco, um ofícioque se leva a sério
Paulo Caldas e sua dançaabsolutamente contemporânea
OBERTO PEREIRA
gia de dança. Novos apoios são inaugu-
rados, novas conexões são testadas, novas
saídas para que o movimento não se es-
vaia nunca em clichês são apontadas. A
iluminação precisa de Renato Machado
auxilia nos recortes de espaços, enquan-
to a trilha sonora redimensiona o tempo.
Tudo se encaixa. Não há sobra, nem faci-
lidades.
Além dos excelentes bailarinos Caro-
lina Wiehoff, Natasha Mesquita e Toni Ro-
drigues, que já introjetaram em seus cor-
pos o que coreógrafo obsessivamente
constrói em cena, tem-se o privilégio de
testemunhar a consolidação de um novo
talento, o bailarino João Paulo Gross, e a
impressionante atuação da já experiente
Paula Maracajá.
Essa parece ser uma nova fase do traba-
lho de Paulo Caldas. O mais importante dis-
so tudo, quase na esteira modernista das es-
pecificidades, é sua habilidade no vocabu-
lário de movimento, é seu ofício levado às
últimas consequências. Além do fato de ele
fazer respirar ali uma dança absolutamen-
te contemporânea.
que há de mais específico na habilida-
de em se construir uma grafia do mo-
vimento parece ser o mote de Quinteto,
espetáculo do coreógrafo carioca Paulo
Caldas para sua companhia Staccato, que
estreou nesta quinta-feira no Espaço SESC.
Não há espaço para referências que não
sejam aquelas próprias do que se constrói
como vocabulário de dança. E é nesse lu-
gar específico que a cena se dá: madura,
consistente, e por vezes absolutamente gra-
ve. Um ofício que se leva a sério está es-
tampado no palco.
Entretanto, a busca pelo “em si” do mo-
vimento não impede que rastros de uma ges-
tualidade se pulverizem nos corpos que
dançam. Eles estão nos detalhes, na mão que
se articula de modo peculiar, ou na sincro-
nia sensível das tramas coreográficas. Mas
essa gestualidade aparece apenas impul-
sionando o que dela pode ser extraído como
movimento. Nada mais que isso. E é nisso que
se reside sua maior riqueza.
Os intrincados duos, por exemplo, pa-
recem querer-se quase pas-de-deux, abu-
sando aqui da boa vontade da terminolo-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D OR I O D E J A N E I R O • S Á B A D O • 9 D E A G O S T O • 2 0 0 8 • 9 D E A G O S T O • 2 0 0 8 • 9 D E A G O S T O • 2 0 0 8 • 9 D E A G O S T O • 2 0 0 8 • 9 D E A G O S T O • 2 0 0 8
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
237
Rigor sem espaçopara o desvio
Quinteto: Paulo Caldas investigapossibilidades de exploração do movimento
ILVIA SOTER
vezes, nessas linhas sugeridas, que se ilumi-
nam e depois desaparecem, braços, tronco e
pernas se inscrevem, podendo ali permane-
cer, experimentando suas possibilidades
nesta geometria.
Em Quinteto, as espirais, os loopings, os
movimentos circulares repetidos até a qua-
se vertigem, as entradas e saídas dos corpos
no chão que se davam sem arestas, marcas
recorrentes da dança da Stacatto, não estão
mais no centro. Já no primeiro e bonito solo
de Carolina Wiehoff, as extremidades –
mãos e pés – ganham um outro valor. O tra-
balho das mãos e dos punhos acaba por im-
primir uma qualidade expressiva que ape-
nas se insinua, decorrente dos momentos em
que o movimento se aproxima do gesto.
As mãos falam muito mais do que nas suas
criações anteriores, e essa teatralidade que
apenas se esboça, por contraste, acaba por
sublinhar a busca de recursos do movimen-
to pelo e para movimento. Cada um dos cin-
co intérpretes tem o domínio absoluto do que
lhe cabe em cena. Desta vez, o competente
elenco masculino é formado apenas por
Toni Rodrigues e João Paulo Gross, já que o
cada nova criação, o coreógrafo Pau-
lo Caldas aprofunda sua pesquisa so-
bre as possibilidades cinéticas do corpo que
dança. Se em Filme, trabalho do ano passa-
do, ele parecia concluir um ciclo em que se
dedicou a experimentar as potências do
kine, cruzando referências da dança e do ci-
nema, Quinteto revela uma outra faceta
desta pesquisa. As preocupações do coreó-
grafo nesta peça parecem flertar com algu-
mas questões modernistas já que as combi-
nações entre linhas, planos, figura, fundo e a
presença dos cinco intérpretes servem de
partida e chegada para a obra. Com o mes-
mo rigor de sempre, nesta nova peça, Paulo
Caldas investe na exploração de outras pos-
sibilidades de movimento de dança e, sem
se desviar da estrada que trilha há muitos
anos, consegue trazer sangue novo para o
seu vocabulário.
A iluminação insinua linhas que dese-
nham os planos ortogonais. Mais do que
marcas no espaço, essas linhas surgem como
projeção dos bailarinos, continuando as for-
mas desenhadas pelas diagonais que se cru-
zam nos corpos e entre os corpos. Outras
A
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 15 DE AGOSTO • 2008SEXTA-FEIRA • 15 DE AGOSTO • 2008SEXTA-FEIRA • 15 DE AGOSTO • 2008SEXTA-FEIRA • 15 DE AGOSTO • 2008SEXTA-FEIRA • 15 DE AGOSTO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
238
coreógrafo não está presente. A familiari-
dade de Carolina Wiehoff com a escrita de
Paulo Caldas aumenta a cada nova peça, o
que também acontece com Natasha Mesqui-
ta. É nas duas que as mudanças da Staccato
se tornam mais visíveis. A chegada de Pau-
la Maracajá à companhia, intérprete expe-
riente, trouxe ainda mais brilho ao grupo.
Na linha de artistas como, por exemplo,
Merce Cunningham – a presença de John
Cage na trilha sonora reforça a referência
ao coreógrafo americano –, Paulo Caldas
parece interessado em verticalizar sua in-
vestigação e não faz concessões. Para o
mergulho que dá na forma, ele acaba por
evacuar a expressividade que poderia bor-
rar sua proposta. Ganha em rigor e preci-
são, mas talvez deixe escapar o desvio que
poderia transformá-la e apontar novos e tal-
vez interessantes desdobramentos.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
239
Começo bom, mas comfim frustrante e triste de ver
OBERTO PEREIRA
gil, descritivo e óbvio, mostrou como Thiago
se porta muito bem sozinho em cena, num
palco como o do Theatro Municipal.
Já na segunda parte, o ponto alto foi
Winter dreams, do grande mestre Kenne-
th MacMillan, primorosamente dançado
por Thiago e Marianela. O entrosamento
dos dois era evidente, e a cena pôde ser
construída de forma legítima, clara, coesa
e sem afetação.
O mesmo não se pode dizer do pas-de-
deux de Giselle e, sobretudo, do problemáti-
co solo El cisne, com coreografia de Ricar-
do Cué. O bailarino David Makhateli não
encontrou ainda a dosagem precisa de sua
interpretação, deixando que um excesso de
dramaticidade inundasse sua dança.
Mas talvez o mais frustrante tenha sido o
final. Claro que o público esperava ansiosa-
mente por um brilhante e vigoroso grand pas-
de-deux, típico de noites como essas e que até
então não tinha sido apresentado. Isso ficou
claro nos primeiros acordes do balé Dom Qui-
xote, com a entrada triunfal do casal Thiago e
Roberta. Mas inexplicavelmente as variações
não foram apresentadas e a coda foi dividida
entre todos os bailarinos, cada um com seu fi-
gurino. Triste de ver. O público merecia ver os
dois brasileiros, aliás, cariocas, dançando jun-
tos outra vez, com competência e graça de
sempre. Não foi desta vez. Uma pena.
que mais se destacou anteontem no
Theatro Municipal durante a apresen-
tação do espetáculo encabeçado pelo bra-
sileiro Thiago Soares, primeiro bailarino do
Royal Ballet de Londres, curiosamente in-
titulado Thiago Soares and friends, foi justa-
mente o apuro técnico e a maturidade artís-
tica alcançados pelo anfitrião da noite. Não
deixa de ser motivo de orgulho para o Bra-
sil ter formado um bailarino que, tendo en-
trado relativamente tarde na dança, e ain-
da pela porta do hip hop, se tornou uma es-
trela mundial do balé.
Entretanto, um programa pouco convin-
cente não permitiu que os bailarinos convi-
dados, e mesmo o próprio Thiago, mostras-
sem sua arte. Sobretudo as ótimas Roberta
Marquez, outra brasileira a ocupar a primei-
ra posição no Royal Ballet, e Marianela
Nuñez tiveram poucas chances de apresen-
tar sua competência e seu talento.
Um programa modificado de última
hora frustrou a expectativa do público em ver
Thiago e Marianela dançando Tchaikovsky
pas-de-deux, de Balanchine. A noite foi aber-
ta com o emblemático pas-de-deux do balé A
Floresta Amazônica, de Dalal Achcar, um
ícone da dança carioca. Com certeza, esta foi
a melhor peça da primeira parte da noite, que
ainda teve o solo Les Bourgeois, de Cauwen-
bergh, que, embora coreograficamente frá-
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • RIO DE JANEIRO • QUARTA-FEIRA • 20 DE AGOSTO • 200820 DE AGOSTO • 200820 DE AGOSTO • 200820 DE AGOSTO • 200820 DE AGOSTO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
240
Qu’eu isse
ILVIA SOTER
acontece. O jogo entre o que se faz visível e oque fica escondido pelas caixas mostra a boaintegração entre cenário e iluminação. É pena,no entanto, que no palco do Teatro I estes vo-lumes ocupem espaço demais e acabem pordeixar a dança espremida.
A companhia composta de bailarinos deformação bastante diversa mostra grandeprazer em estar em cena, assim como enga-jamento com o projeto de Rui Moreira. Afalta de unidade no grupo, ainda que se tor-ne um problema em muitos momentos, nãodeixa de ser coerente com a proposta docoreógrafo de assumir a identidade localcomo um amálgama de diferenças.
No entanto, quando se trata da coreografia,esta identidade se transforma numa colagemde referências distintas que se sobrepõem semse misturarem. Passos de danças urbanas,movimentos de capoeira, danças e cantos in-dígenas e africanos convivem em cena sem,de fato, criarem algo de novo. Ao longo de todoo espetáculo, ainda é possível identificar a ori-gem de cada passo e seus estilos. É curioso, porexemplo, observar a frontalidade do grupo ea sincronia dos passos, como se a ênfase no sin-gular fosse subitamente abandonada.
A forte presença de Rui Moreira em cena,torso nu e vestido com uma bonita e sonorasaia de folhas secas é, sem dúvida, o ponto altoda peça. Sua bela figura – que ondula e pon-tua as danças de grupo – faz o público matar asaudade deste intérprete que, por anos, foi um
dos ícones da dança mineira.
u’eu isse, curruptela de “que eu fosse”,é o titulo do espetáculo de dança da
companhia SeráQuê?, dirigida por Rui Mo-reira, em cartaz no Teatro I do CCBB até odia 21 de setembro. É quase impossível nãorelacionar este título ao da penúltima peçado Grupo Corpo, Onqotô, forma de se per-guntar onde é que eu estou, sobretudo quan-
do se sabe que o diretor da SeráQuê? é
egresso desta outra companhia mineira.
Cercado de um time de primeira, enca-
beçado por Milton Nascimento, que assina a
trilha sonora, Bia Lessa, responsável por ce-
nários e figurinos, e Pedro Pederneiras na ilu-
minação, Qu’eu isse busca nas manifestaçõespopulares e regionais a matéria para a sua
dança. A peça é a segunda parte de uma tri-
logia que trata da influência indígena e afri-
cana na identidade brasileira, tema decorren-
te da pesquisa que o coreógrafo desenvolveu
com apoio do Instituto Vitae em 2005.
Esta dupla influência está bastante presen-
te na música de Milton Nascimento, enquanto
a cenografia e os figurinos se apoiam em tra-
ços mais urbanos e trazem marcas contempo-
râneas para o olhar que Rui Moreira lança
sobre nossa identidade. Os figurinos, em co-
res claras, ganham uma textura especial pe-
las palavras marcadas nas roupas, como se os
bailarinos estivessem envoltos em páginas já
escritas. As caixas de papelão que compõem
o cenário são manipuladas pelos bailarinos
que criam, a cada momento, volumes diferen-
tes, demarcando os territórios onde a dança
Q
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2008• SEXTA-FEIRA • 12 DE SETEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
241
Recriação que vira futuroCom 42 grupos, mostra de dança tem a memória como tema
OBERTO PEREIRA
subvenções públicas e privadas. Seu curador,Guy Darmet, propõe olhar para essa produ-ção no que ele chama de Retour en avant, ouseja, uma memória acionada em cada obra,lançando flechas do tempo para o futuro.
Para nós, brasileiros, um sabor todo espe-cial nos toma quando se fala da Bienal, des-de 1996, quando o Brasil e sua dança foramseu tema. Para o Rio de Janeiro, mais especi-ficamente, essa edição histórica ajudou a ala-vancar o principal festival da cidade, o Pa-norama, tornando-o internacional, assimcomo a impulsionar a ação política de fomen-to às companhias de dança em âmbito muni-cipal, que hoje foi reduzida a pó.
E desde lá, os brasileiros estiveram pre-sentes na programação francesa. Nesta edi-ção, por exemplo, são duas as companhiasconvidadas por Darmet: a carioca Compa-nhia Urbana de Dança, dedicada em pes-quisar diálogos entre as danças de rua e acontemporânea, apresenta a já conhecidaSuíte Funk, de sua diretora, Sonia Destri, ea estreia de Agwa, de Mourad Merzouk, umartista da própria cidade de Lyon, ambas emcoprodução com a Bienal; e também a pau-listana Companhia Sociedade Masculina,composta apenas de homens, que apresentaPalpable, do grego Andonis Foniadakis, e Tro-picália, do goiano Henrique Rodovalho, di-retor e coreógrafo da Quasar Cia. de Dança.
Tudo isso ao lado de artistas importan-tes que também compõem a grade de pro-gramação, como Anne Teresa de Keersma-
omemorando sua 25a edição, a Bienalde Dança de Lyon, na França, que co-
meça hoje e se estende ao longo de 25 dias,volta-se para sua própria história, tendocomo mote a memória, o repertório e a re-criação. Nada mais contemporâneo, em setratando de dança. Há alguns anos, os modosde como o que se produz hoje pensamentocoreográfico estão se dando conta das habi-lidades do corpo em contar histórias e, maisdesafiante, registrar sua própria história.
Aqui no Brasil, o tema já perpassou im-portantes festivais, como o Panorama deDança, do Rio, a Bienal de Santos e a deFortaleza, e também o Festival Internacio-nal de Recife, sobretudo nas edições do anopassado. A Bienal de Lyon aparece dialo-gando com as mesmas questões, mostrandoque se trata de questões que estão no mun-do da dança. Sobretudo porque estão apon-tando para o que é possível continuar a serproduzido em dança a partir de um passadoque apenas é interface do futuro. Isso numaarte que sempre foi vista como atada irre-mediavelmente ao presente.
Reunindo 42 companhias de 19 países,em 54 obras, sendo que delas, 19 são novasco produções, além do já tradicional Défilé,um desfile que acontece nas ruas da cidade,claramente inspirado nos desfiles das esco-las de samba brasileiros, a Bienal de Lyonoferece uma palheta bastante diversificadada produção coreográfica atual, tendo comoorçamento mais de 6 milhões de euros, entre
C
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • DOMINGO • 7 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 7 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 7 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 7 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 7 DE SETEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
242
eker (da companhia belga Rosas), MaguyMarin, Suzane Linke (que apresenta a Re-construção de uma obra sua de 1985), Caro-lyn Carlson e Angelin Prejlocaj, todos eles
já conhecidos do público carioca.
Mas talvez o mais curioso em toda a
Bienal fique por conta da própria companhia
pública da cidade, o Ballet de L’Opéra de Lyon,
que apresenta entre outras coisas um progra-
ma inteiramente dedicado a W illiam For-
sythe. Mas o curioso está na remontagem deThe show must go on, do francês Jérôme Bel, aque nós pudemos assistir aqui em 2002, noPanorama de Dança. Uma obra absolutamen-te atual, que fala da cultura pop, sobretudo namúsica e, como consequência, na dança, derepente vira “repertório”. Nada mais Retour enavant, como quis Guy Darmet. Nada maispara provar que o presente já é, por si só, his-
tória, mesmo na dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
243
Em processo de conhecerseus próprios limites
OBERTO PEREIRA
convívio não possam abrandar e imprimir um
modo próprio à companhia ser num futuro
próximo. Seus currículos deixam flagrar uma
competência técnica reconhecida em festivais
competitivos de dança, o que denota certa ina-
bilidade para o espetáculo inteiro, para uma
obra completa. Mas talvez justamente por isso,
por essa fresca imaturidade, a companhia des-
perte curiosidade.
Numa obra com claras influências de
W illiam Forsythe, Silvestrin lançou mão de
uma releitura da Oferenda musical de Bach,
feita pelo conjunto belga Het Collectief,
para mostrar a dança de 39 bailarinos que
se esmeraram, algumas vezes até demais,
em cumprir o que era proposto. Mesmo que
um sorriso para a plateia ou uma amostra
de virtuosismo escape aqui e ali de vez em
quando, foi uma companhia com vontade de
acertar o que se pôde assistir. E dessa von-
tade compartilha quem se interessa pela
dança no Brasil.
Para o próximo programa, com estreia
marcada já para novembro, Bronislava
Nijinska, George Balanchine e o carioca Pau-
lo Caldas foram escolhidos para dividir a
mesma noite. Tomara que Polígono tenha sido
útil para que esse próximo desafio nos mostre
uma companhia de dança mais coesa e, na
medida do possível, mais madura. Torçamos.
mais nova companhia pública de dan-
ça do País sobe ao palco pela primei-
ra vez: trata-se da São Paulo Companhia de
Dança, que apresentou a obra Polígono, em
uma temporada nesse último fim de semana
no Teatro Sérgio Cardoso, na capital paulis-
ta. Sem dúvida, uma estreia bastante aguar-
dada não só pelo público daquela cidade, mas
de todo o País. A razão para isso é simples:
além de ser um projeto que pretende colo-
car em cena obras do repertório clássico dos
séculos XIX, XX e XXI, tarefa que o Ballet
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro cum-
pria até então sozinho, é também composta
de jovens bailarinos garimpados por todo o
Brasil e alguns do exterior, sob a direção ex-
periente de Iracity Cardoso e Inês Bogéa.
Formada em fevereiro deste ano, a com-
panhia exala todos os índices de um jovem
grupo que ainda se encontra em pleno pro-
cesso de autoconhecimento. Isso é absolu-
tamente imprescindível para esse tipo de
empreendimento coreográfico e, nesse sen-
tido, Polígono, do coreógrafo italiano Ales-
sio Silvestrin, parece ser exemplar para esse
primeiro exercício.
Ainda sem um perfil definido, os jovens
bailarinos estão juntos no palco dividindo ape-
nas a ansiedade de pertencer a uma compa-
nhia de peso como essa. Nada que o tempo e o
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 9 DE • TERÇA-FEIRA • 9 DE • TERÇA-FEIRA • 9 DE • TERÇA-FEIRA • 9 DE • TERÇA-FEIRA • 9 DE SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO SETEMBRO • 2008• 2008• 2008• 2008• 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
244
Parceria exploraos limites corpóreos
Vieira e Cezário vão além de diretore bailarino e atingem cocriação
OBERTO PEREIRA
É gratificante observar como Renatogenerosamente abriu espaço em sua as-sinatura coreográfica para que seu novo-velho parceiro pudesse arejá-la com ou-tras possibilidades de movimento. O re-sultado é um ritornelo do que já é con-quistado como estilo de um coreógrafomaduro em relação com o que é experi-mentado de novo.
Os cinco bailarinos, todos excelentes,entenderam fisicamente a proposta. Masé em Soraya Bastos onde se pode detec-tar com minúcia essa percepção, sobretu-do no impactante duo com Thiago Sanchoe em seu solo. Já Bruno Cezário, bailarinoímpar de sua geração, nos mostra que oque aprendeu em convivências com osmais importantes coreógrafos em suaspassagens em companhias pelo mundoestá não apenas em seu ofício como bai-larino, mas indiciado em sua promissoraentrada no mundo da criação.
Ritornelo representa um lugar especialna carreira de Renato, pois evidencia seu
percurso, em retornos constantes e avanços
significativos. Tudo ali confere legitimida-
de a isso: a ótima luz, a trilha sonora precisa,
mas sobretudo a dança que retorna a ela
mesma, sem nenhum receio disso. E isso, sa-
bemos nós, não é pouca coisa.
ideia de ritornelo, tão ligada ao uni-verso musical e que já foi motivo de
reflexão por parte de filósofos como GillesDeleuze, ganha sua tradução física em dan-ça. Dotado de uma materialidade outra, osentido de retorno e repetição numa com-posição é investigado coreograficamente,em espetáculo batizado com o termo, e queleva a assinatura do veterano Renato Viei-ra em parceria com seu bailarino BrunoCezário. O espetáculo que estreou nestaquinta-feira no mezanino do Espaço SESCfica em cartaz até 12 de outubro.
O conteúdo dessa nova materialidadeque traduz o conceito de ritornelo é físico,cinesiológico, corpóreo. Nesse sentido, acomposição coreográfica investe tanto emprecisões de execução de passos já conhe-cidos de dança (estão lá piruetas, déboulés,e até a prática de uma dança que se faz emconjunto) quanto em movimentos que bor-ram os limites de início e fim, tornando seupercurso o mais importante. O corpóreoaqui explode nos interstícios dos tons depele que escapolem pelo ótimo figurinoidealizado por Cezário e Marine Levesque.As várias texturas do preto acentuam atextura dos corpos dos bailarinos, que orase controlam em absoluta sincronia, ora sederramam em espasmos pela cena.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SÁBADO • 13 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 13 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 13 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 13 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 13 DE SETEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
245
Na Bienal de Lyon,passado e futuro em harmonia
Là laià là laià!!!Là laià là laià!!!
Lá la laiá la laiá!!!
OBERTO PEREIRA
pia dos desfiles de escolas de samba cari-
ocas, como fez questão de frisar o curador
da Bienal, Guy Darmet, durante a coleti-
va de imprensa. O Brasil, como tem sido
em suas últimas edições, esteve presente
de forma contundente por aqui,neste que
é um dos eventos mais importantes de
dança do mundo.
Sua presença, entretanto, não foi senti-
da apenas no desfile. Um dos espetáculos
mais interessantes até o momento de toda
a programação foi apresentado pela cari-
oca Companhia Urbana de Dança, dirigi-
da por Sonia Destri, que reuniu duas obras
em seu programa: Suíte funk e Agwa, esta
última ainda inédita no Brasil. Não fez feio.
De autoria de um artista lionense, Mourad
Merzouki, Agwa é uma coprodução da
Bienal e com certeza trata-se de um dos
mais interessantes trabalhos de todo o
evento. Apresentada no belíssimo Teatro
Célestins, com seus dez integrantes, a com-
panhia mostrou o que vem sendo desenvol-
vido em terras brasileiras de forma exem-
plar: o hip hop em diálogo com a dança
contemporânea.
ssa é a grafia francesa do nosso corri-
queiro laialaiá que embala os estribi-
lhos de sambas-enredos. Aqui na Bienal de
Dança de Lyon não poderia ser diferente:
durante seu Défilé, no último domingo, a
escola de samba Ombres e Lumieres (Som-
bras e Luzes) tomou a famosa Rue de Re-
publique com seus 250 participantes, fazen-
do ecoar pela cidade francesa um samba
cantado em português, composto por Léo
Viana: Da sombra veio pra luz / Veio provar
o que era bom / O carnaval que hoje em dia
nos seduz /No Rio ou na Ville de Lyon.
Tudo estava lá: comissão de frente, por-
ta-estandarte, abre-alas, porta-bandeira e
mestre-sala, carro alegórico, rainha da ba-
teria, uma ala com 21 baianas francesas e
uma bateria com 100 integrantes, também
todos franceses. Não era de se surpreen-
der que tenha sido, de longe, o momento
mais empolgante do desfile que, além da
escola de samba, reuniu pequenos blocos
de cidades vizinhas e bairros de Lyon, que
desenvolveram seus temas, com figurino,
música e coreografia. Trata-se, claro, de
uma óbvia “inspiração” e não de uma có-
E
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE SETEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 18 DE SETEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
246
E isso ainda não é tudo. A partir de sex-
ta-feira, a paulista Companhia Sociedade
Masculina apresenta a versão de Henrique
Rodovalho para a Tropicália, uma criação
de 2008, denunciando uma clara deferên-
cia de Darmet à dança brasileira, sobretu-
do a partir de 1996, quando foi tema de toda
a Bienal.
Além das participações brasileiras, ou-
tras tantas atrações mostraram um festival
com seus altos e baixos absolutamente cor-
riqueiros. Se os melhores momentos até ago-
ra ficaram por conta do Ballet da Ópera de
Lyon, que apresentou com competência um
programa todo dedicado a William Forsythe
e outro com a ainda polêmica obra The show
must go on, de Jérôme Bel, ou mesmo com o
Ballet de Lorraine, que recriou uma obra
histórica de 20 anos atrás do coreógrafo Do-
minique Bagouet, Les petites pièces de Ber-
lin, os mais frágeis foram apresentados pela
Compagnie Montalvo-Hervieu (com Ger-
shwin) e pela companhia do americano
Ronald K. Brown, com três pequenas obras
pouco articuladas.
Entretanto, no sentido de dialogar com
o tema proposto pela Bienal deste ano, a
ideia de memória, nada foi mais instigante
do que o apresentado nesta terça-feira, no
Teatro da Ópera da cidade, pela companhia
belga Rosas, dirigida por Anne Teresa de
Keersmaeker. Em D’un soir un jour, a clás-
sica cena do jogo de tênis do filme de Anto-
nioni, Blow up, de 1966, projetada no palco,
entra em diálogo com a misteriosa coreo-
grafia de Nijinsky, Jeux, com música de De-
bussy, de 1913, que também tratava do mes-
mo esporte. Tudo essencialmente contem-
porâneo em termos coreográficos, em dois
tempos distintos de citação. E de uma bele-
za cênica impressionante. Tudo condizente
ao mote da própria Bienal: Retour em avant.
Ou seja, o passado e o futuro, em dança, hoje.
E ao mesmo tempo.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
247
Uma construçãocristalina
Ritornelo: Uma peçacom ótimos bailarinos edensidade coreográfica
ILVIA SOTER
como metáfora da história da própria com-
panhia. Após uma temporada de repetidos
sucessos na Europa, o bailarino Bruno Ce-
zário está de volta ao grupo onde cresceu e
de onde partiu, para dividir com Renato
Vieira a assinatura dessa peça em que tam-
bém dança, com destaque.
É ele quem começa sozinho em cena.
Paragem e agitação, corpos que se fundem
ou que se encaixam sem se tocarem, músi-
ca e silêncio, sombra e luz vão construindo
solos – quase sempre de Bruno –, duos, trios
e conjuntos. Essas diversas cenas sugerem
relações de casais, triângulos amorosos, ou
ainda pássaros que partem e retornam aos
seus ninhos, sempre com uma certa densi-
dade teatral que surge da atitude dos intér-
pretes em cena. A construção coreográfica
e dramatúrgica de Ritornelo é tão cristali-
na que acaba por denunciar que a peça ga-
nharia se não se estendesse no tempo. Os úl-
timos quadros funcionam quase como um
prólogo, num espetáculo que prima justa-
mente por ser conciso e enxuto, dançado por
uma companhia cheia de qualidades como
conjunto e individualmente.
O jogo harmônico que os intérpretes
estabelecem é visivelmente fruto da es-
ão são muitas as companhias cariocas
que como a Renato Vieira Cia. de
Dança podem se orgulhar de ter 20 anos de
atividades ininterruptas. Ritornelo, a peça
que comemora esse feito, mostra quanto a
escrita de Renato Vieira depurou-se ao lon-
go dos últimos anos. Se em Terceira margem,
criação anterior, já estava claro que a temá-
tica podia ser abordada pelo coreógrafo de
modo menos narrativo, em Ritornelo, a dan-
ça e suas questões intrínsecas são o diagra-
ma sobre o qual os sentidos e as interpreta-
ções são construídos. Ritornelo apoia-se em
cinco ótimos bailarinos, em um espaço cê-
nico limpo, em figurinos simples, uma ilumi-
nação quase sempre branca que joga com o
contraste entre claro e escuro, bem como em
uma trilha sonora que reforça a densidade
da coreografia, dando o tom dos diferentes
momentos. A dança ganha ao ser reduzida
àquilo que parece ser o essencial na abor-
dagem coreográfica.
Os sóbrios figurinos em negro reforçam
os ares de dança moderna desta peça de
Renato Vieira, talvez a sua obra mais abs-
trata. No retorno dos temas musicais e de
situações que sempre voltam com pequenas
variações, Ritornelo também pode ser lida
N
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SÁBADO • 20 DE SETEMBRO • 2008 • SÁBADO • 20 DE SETEMBRO • 2008 • SÁBADO • 20 DE SETEMBRO • 2008 • SÁBADO • 20 DE SETEMBRO • 2008 • SÁBADO • 20 DE SETEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
248
tabilidade dessa companhia. A presença
segura de Soraya Bastos colore de tons
quase expressionistas suas cenas. Joaquim
Tomé, Laura Ávila e Thiago Sancho ali-
am vigor e precisão técnica e mostram-se
também perfeitamente integrados à pro-
posta de Renato Vieira e Bruno Cezário.
Não é surpresa constatar que Bruno Ce-
zário segue como um dos intérpretes mais
competentes de sua geração. Em tempos
em que há grande evasão de talentos bra-
sileiros para companhias estrangeiras não
é possível deixar também de festejar este
feliz retorno.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
249
Quatro corpos descrevem o amorMeu prazer: Ótima estreia dos novosnomes do grupo de Márcia Milhazes
ILVIA SOTER
Na dança de Márcia, o corpo é prolixo,como se desse visibilidade a cada estímu-lo e reação vitais, mesmo quando não dan-çam. Neste trabalho, o que se destaca é asutileza como a escrita revela cada umdesses personagens, do início ao fim. AlCrisppim oscila entre uma marcha irregu-lar, pouco determinada, e a paralisia. Apresença doce, serena e lânguida de AnaAmélia Vianna se opõe e, por vezes, seencaixa na movimentação agitada e no li-mite do descontrole de Felipe Padilha. Osúltimos são responsáveis pelo duo maisinteressante da peça. Mas é com raro mag-netismo que Fernanda Reis atrai pra si oolhar do público. Sua personagem, que ar-rebata o corpo e o rosto da intérprete semtrégua, sempre no limiar da loucura e dador, aumenta a carga dramática da peça.
Em Meu prazer, diferente, por exemplo,das anteriores Joaquim Maria, onde osduos trazem os encontros e as relações decasal, ou ainda Tempo de verão, em que adança sugere triângulos amorosos, o amormuito raramente chega a algum momentode comunhão ou de alívio. E a estrutura dapeça segue a mesma lógica. No final, é ape-nas a personagem de Fernanda Reis que,por exaustão, resta em cena. Assim termi-na Meu prazer, como a experiência de amar,sem conclusão.
m jardim suspenso feito de grandesflores e círculos coloridos, uma dessas
joias de Beatriz Milhazes, é o cenário deMeu prazer, criação de Márcia Milhazesque vem quebrar o jejum de três anos de-pois de Tempo de verão. Nesta nova forma-ção da companhia, Ana Amélia Vianna e AlCrisppim – intérpretes que já têm as mar-cas de Milhazes no corpo – são acompanha-dos por dois novos integrantes, o promissorFelipe Padilha e a ótima Fernanda Reis,bailarina que tem em seu currículo quaseuma década no Grupo Corpo.
O amor é o tema deste trabalho. E, comoo título da peça já aponta, ele é apresentadopela coreógrafa como um sentimento quepertence aos que amam e que muito poucotem a ver com o objeto do amor. O pronomepossessivo já aponta o que se desenha emcena: quatro intérpretes/personagens em si-tuação de isolamento. Apesar da iluminaçãoensolarada de Glauce Milhazes, da trilhasonora romântica e das muitas cores do ce-nário, Meu prazer é sombrio. O amor agita oscorpos sem trégua, os paralisa, produz sereserrantes, o amor se apresenta como obsessão.Os olhares que eventualmente se cruzam eos escassos e breves encontros entre os cor-pos só deixam mais evidente a solidão. Cadaum desses personagens traduz um estado pos-sível daqueles que amam.
U
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • DOMINGO • 28 DE SETEMBRO • 2008 • DOMINGO • 28 DE SETEMBRO • 2008 • DOMINGO • 28 DE SETEMBRO • 2008 • DOMINGO • 28 DE SETEMBRO • 2008 • DOMINGO • 28 DE SETEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
250
A dimensão exatada dança atual
OBERTO PEREIRA
Artistas de mais de dez países, alguns
pela primeira vez no festival, e estreias de
artistas brasileiros formam uma seqüência
elegante de espetáculos que garantem a
pluralidade contemporânea. Mas como o Pa-
norama está para além de ser uma mera pro-
gramação de espetáculos, toda a investida
paralela acaba por conceder a ele um tom
formativo e performativo a um só tempo, o
que fica evidente na 3ª edição da Mostra
Universitária, nas residências dos artistas
convidados, nas oficinas gratuitas, no proje-
to louvável de formação de público e na
novidade da programação dedicada ao pú-
blico infantil.
Ainda aí, vale verificar a proposta do
seminário sobre um tema tão necessário
quanto inédito: “A economia da dança,” que
reúne profissionais em torno das questões
próprias da produção dessa arte.
Este é o panorama que o Panorama de
Dança apresenta. Sua qualidade é partilhar,
mais uma vez, diferenças.
ideia de um panorama é criar uma di-
mensão de um estado de coisas. Em
dança, esse estado é algo móvel, em cons-
tante transformação, o que quase impos-
sibilita a perspectiva exata de sua cons-
tituição. Os 11 dias ininterruptos de uma
agenda lotada do festival Panorama de
Dança que começou ontem tratam dessa
incapacidade legítima de dar a dimensão
exata do estado da dança contemporânea.
E é justamente aí que reside sua maior
riqueza.
Em sua 17ª edição, o que salta aos olhos
é a continuidade de um pensamento que
coloca em diálogo diversidades, sua marca
desde que nasceu, ainda sob a rubrica de Lia
Rodrigues. Mas dentro dessa continuidade,
estão seus avanços, algo natural por se tra-
tar de um evento de dança. A noite de aber-
tura com a já consagrada companhia fran-
cesa de Maguy Marin sinaliza o tom que
perpassa o festival: o novo como interface
de uma tradição e vice-versa.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 31 DE OUTUBRO • 2008• 31 DE OUTUBRO • 2008• 31 DE OUTUBRO • 2008• 31 DE OUTUBRO • 2008• 31 DE OUTUBRO • 2008REVISTA PROGRAMAREVISTA PROGRAMAREVISTA PROGRAMAREVISTA PROGRAMAREVISTA PROGRAMA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
251
Espetáculo H3 de Bruno Beltrão
ILVIA SOTER
técnicas de dança de rua, para desdobrá-losem um vocabulário rico e próprio. Isso se dánão apenas nos corpos dos bailarinos –aliás, todos ótimos –, mas inevitavelmentena relação com o espaço e com a música.
Não há, por exemplo, uma relação auto-ritária e ilustrativa entre música e dança. Atrilha de Lucas Marcier e Rodrigo Marçalambienta, contextualiza a dança e com essadialoga sem a ela se impor. A iluminaçãode Renato Machado segue a mesma linha,o que reforça a sobriedade que acompanhatoda peça. Desta vez, o palco está nu e deforma suave cada um dos nove jovens rapa-zes – todos vindos da dança de rua – ocu-pam a cena sem pressa. A dança ganha opalco aos poucos, em solos, duos e trios emque um pode apenas observar o que o outrofaz, ou ainda construir um diálogo de corpose fluxos. Essa expansão do vocabulário ga-nha correspondência nos espaços varridospelos bailarinos em deslocamentos velozes.Suavidade, lentidão, paragem e explosão sealternam sempre com elegância.
H3 é um mergulho na forma, no fazercoreográfico, nas possibilidades do desdo-brar e do compor, e mostra o amadurecimen-to de Bruno Beltrão nesta função. Se ficaevidente a competência do Grupo de Ruade Niterói, fica também a torcida para queum possível H4 agregue a todas essas con-
quistas a irreverência e o humor que mar-
cam a trajetória da companhia.
m rara passagem pelo Rio, o Grupo deRua de Niterói – presença cada vez
mais constante nos palcos europeus – apre-sentou H3, a mais nova criação de BrunoBeltrão. Já há alguns anos Bruno Beltrãovem investindo nas possibilidades que adança contemporânea e a dança de rua têmde se contaminarem mutuamente. H2-2005e outras de suas peças anteriores já coloca-vam alguns dos pressupostos do hip hop emquestão. É esse insistente desrespeito pelopurismo da dança de rua uma das caracte-rísticas que faz de Bruno Beltrão um dos co-reógrafos mais consistentes de sua geração.
Do hip hop – no caso de H3, mais de suatécnica do que de seu universo – o coreó-grafo tem extraído material que explora,desenvolve e consegue desdobrar em resul-tados pra lá de interessantes. Sem abando-nar o virtuosismo e a grande dose de testos-terona da dança de rua, Bruno vem conse-guindo estender as margens da técnica do hip
hop sem ter a ingenuidade de que ao fazê-lopossa ainda guardar essa identidade.
Nessas outras paisagens por onde circu-la, a dança de Bruno jamais esteve restritaàs batalhas, à batida regular e insistente ouao espaço circunscrito do hip hop. Em H3,Bruno Beltrão faz uma escolha e verticali-za sua pesquisa.
Deixando de lado os aparatos tecnoló-gicos, ele investe na exploração de movi-mentos, fluxos, qualidades e intensidades das
E
CRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADACRÍTICA NÃO PUBLICADARIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 200RIO DE JANEIRO • 20088888
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
252
Cada gesto é umpequeno mundo
Espetáculo da coreógrafa francesafaz interação física e intelectual
OBERTO PEREIRA
fado, milimetricamente composto, deflagra-do em detalhes nas execuções sincroniza-das dos ótimos bailarinos.
Através de um corredor de espelhos, esseambiente restrito, repetitivo, é reproduzidopelos bailarinos ao mesmo tempo em que éreproduzido por sua imagem refletida, àexaustão. O sentimento que desperta, claro,é o de um certo desconforto. Um desconfor-to que está no reconhecimento da dimensãode nosso Umwelt, da complexidade de nos-sas relações com o mundo, de que tamanho
ele seja.
Por isso, o lugar tão demarcado onde a
cena acontece. Por isso, os rastros dessa rela-
ção que vão sendo depositados fora desse lu-
gar. Por isso, um vento forte que sopra inces-
santemente durante toda a cena e que teima
em desfazer esses mesmos rastros, aventura
moderna de um homem em relação com seu
ambiente. Não à toa, a trilha sonora, executa-
da “ao vivo” por uma corda que esbarra em
guitarras elétricas depositadas na beira do
palco, prescinde do ser “vivo” ao mesmo
tempo em que desvela seu mecanismo aní-
mico. O “ao vivo”, assim, é mecânico.
O ambiente, para Maguy Marin, está
abalroado de gestos. Cada um desses gestos,
um pequeno mundo. Mesmo que repetitivo,
mesmo que às vezes insano. É disso que sua
dança fala.
palavra alemã Umwelt (mundo à vol-
ta, entorno, ambiente) dá nome ao es-petáculo que a coreógrafa francesa MaguyMarin apresentou ontem na abertura doFestival Panorama de Dança para um Tea-tro João Caetano absolutamente lotado. Amesma palavra traduz também um concei-to interessante que ajuda a pensar o mesmoespetáculo, desenvolvido pelo etólogo esto-niano, Jakob von Uexküll.
A ideia é pensar o Umwelt como a for-ma que cada espécie interage com o ambi-ente, entendido aqui como uma rede de lu-gares que provoca a interação física, emo-cional e intelectual. Essa interação se dá,para cada espécie, de modo próprio, o quefaz desse ambiente uma contrução a partirde necessidades e interesses individuais.Assim, a complexidade de cada Umwelt édiretamente proporcional à complexidadede cada sistema vivo.
É exatamente deste ambiente que trataa obra de Maguy Marin. Um de seus pontosde partida é a habilidade de Samuel Beckettem construir sua linguagem cênica a partirdas variações de poucos elementos. Assim,em cena, um restrito repertório de gestos,mais do que de movimentos, tece essa redede relações. Esses gestos, cotidianos, banais,da vida ordinária, transformam-se magica-mente em material que aparece coreogra-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • DOMINGO • 2 DE NOVEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 2 DE NOVEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 2 DE NOVEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 2 DE NOVEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • DOMINGO • 2 DE NOVEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
253
Visão genial do cotidianoUmwelt: Maguy Marin abre Panorama de
Dança com contundência e poesia
ILVIA SOTER
Isolados quase que o tempo todo, masacompanhados pela sincronia com que rea-lizam diversos gestos cotidianos mais ou me-nos banais, os bailarinos se deslocam emsentido anti-horário. Para o público, eles apa-recem caminhando para trás e simultanea-mente realizando ações simples como ves-tir-se, despir-se, comer, subir as calças, bei-jar-se etc. Figurinos, objetos, pequenas vari-ações e combinações de ações vão ampli-ando os significados de cada uma das voltasdesses homens e mulheres. Aquele quenuma primeira vez experimenta na cabeçauma infantil coroa de papel na próxima vezcata as migalhas no chão com a coroa. O quepode parecer ingênuo como descrição nãoo é em cena. Vestidos de noiva, vestidos debaile, uniformes militares, roupas baratas,armas ou bebês vão ampliando os sentidosde cada cena breve.
E a vida, dia a dia, vai se construindo narepetição do igual, que ganha a cada veznovas implicações. O que entra nesse fluxomuitas vezes é descartado. O tempo passa ese faz notar também pelos resíduos deixa-dos pelos homens.
A maturidade da companhia dá densida-de à peça escrita com primor a partir de umaideia simples. O genial em Umwelt está naforma clara, direta, sintética e econômica comque Maguy Marin afirma sua visão contun-dente do mundo contemporâneo. E sem dei-xar de nela imprimir poesia e delicadeza.
170 Panorama de Dança abriu seus tra-balhos com Umwelt, da Compagnie Ma-
guy Marin. Pela terceira vez no Brasil, essacompanhia francesa pode ser comparada à al-deia gaulesa do personagem Asterix: um re-duto de resistência repleto de bravos guerrei-ros. Maguy Marin faz parte daquele seleto gru-po de artistas cuja prática jamais separa éticade estética. Cada uma de suas ações está liga-da a essa postura como, por exemplo, a esco-lha de instalar-se no Centro Coreográfico deRillieux-la-Pape, subúrbio da cidade de Lyon– tenso e repleto de desigualdades sociais –ou de seguir um caminho coreográfico pró-prio, avesso aos modismos e aos maneirismostão presentes hoje na dança contemporânea.
Segundo a coreógrafa, o teatro de SamuelBeckett foi inspiração para essa peça, assimcomo foi o caso em May B. Tempo e espaço,instâncias indissociáveis, são tratados emUmwelt a partir do vazio da experiência hu-mana. O cenário é composto de espelhos dis-postos paralelamente que criam os nichos eos corredores por onde os bailarinos circulam.Um vento constante e a iluminação fazemessas estruturas vibrarem, e a imagem espe-cular jamais se dá de forma nítida. Em cadalado da boca de cena, dois carretéis tencionamum fio que começa a se mover no início dapeça. O fio do tempo, uma corda sempre tensae em movimento que em Umwelt irrita trêsguitarras elétricas e produz um ruído tambémtenso, ao longo de toda a peça.
O
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO •RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 3 DE NOVEMBRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 3 DE NOVEMBRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 3 DE NOVEMBRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 3 DE NOVEMBRO • 2008 SEGUNDA-FEIRA • 3 DE NOVEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
254
Longe dosestereótipos da rua
Espetáculo transcende os arremedosde videoclipe do hip hop
OBERTO PEREIRA
de em nuanças que são pensamentos co-
reográficos.
A iluminação é de uma sofisticação ímpar.
O figurino é mais do que a roupa usual de quem
faz dança de rua. A trilha sonora funciona
mesmo como uma espécie de trilha a ser per-
seguida. E o cenário é eficaz em sua econo-
mia. Mas o que impacta são as novas investi-
das de uma ocupação de espaço que os exce-
lentes bailarinos vão imprimindo na cena. O
duo de Eduardo Hermanson e Danilo Perei-
ra atesta isso com a propriedade de quem sabe
exatamente de que textura sua dança é feita.
Todo o movimento que se apresenta é
perpassado por um pensamento de uma dan-
ça tão viva, tão contaminada pelas questões
atuais do mundo, que não há como não re-
conhecer que não se trata de dança de rua
em diálogo com a dança contemporânea,
embora esteja ocupando lugar na progra-
mação de um festival dedicado a essa últi-
ma. Em H3, o que se tem é dança de rua con-
temporânea. Mas, para muito além disso, se
tem na verdade uma dança cuja qualidade
é algo intrínseco, o que a faz prescindir defi-
nitivamente de rótulos.
oda referência ao trabalho que o co-
reógrafo Bruno Beltrão vem desen-
volvendo sempre aponta para uma suposta
relação que ele estaria inaugurando de for-
ma exemplar entre a dança de rua, seu pon-
to de partida, e a dança contemporânea.
Com H3, seu novo espetáculo que estreou
no Rio de Janeiro como parte da programa-
ção do Festival Panorama de Arte, na sex-
ta-feira e no sábado, no Teatro Villa-Lobos,
tem-se a oportunidade de perceber que essa
suposta relação é apenas um modo mais cô-
modo de se lidar com algo absolutamente
novo que Beltrão nos oferece.
Na verdade, trata-se antes de uma
“dança de rua contemporânea”, alcunha
que talvez nos auxiliasse a pensar o que
se promove na cena em H3. O que ali é
mostrado é uma dança de rua viva, mutan-
te, por isso contemporânea, como assim o
é qualquer gênero de dança em que cria-
ção e descoberta façam parte de sua cons-
tituição. Esqueça um hip hop envelhecido,
que ainda teima em parecer arremedo de
videoclipe. Na cena de Beltrão, a discus-
são é outra, e o velho vocabulário explo-
T
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2008• TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2008• TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2008• TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2008• TERÇA-FEIRA • 4 DE NOVEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
255
Uma lição de obviedadee perda de tempo
OBERTO PEREIRA
que lembra Vidas secas de Graciliano
Ramos, sem se dar conta de que por lá já
aconteceu algo como o movimento Man-
guebeat, por exemplo. E o Sudeste, região
das grandes metrópoles, sucumbiu à ar-
madilha fácil de retratá-la apenas atra-
vés de sua urbanidade. Até mesmo a obra
Clara Crocodilo, ícone paulistano da dé-
cada de 1980, de Arrigo Barnabé, apare-
ce na trilha sem nenhum tratamento co-
reográfico.
Mas o maior problema de Plural não é
a obviedade e nem mesmo a qualidade
evidentemente irregular de seus bailari-
nos. O que merece mesmo revisão é a in-
tenção de se tratar cada região do Brasil
como uma unidade identificável, sem le-
var em conta o que há de diverso em cada
uma delas.
Assim, pergunta-se qual é a intenção de
um espetáculo de dança contemporânea ao
tratar de um tema que mais lembra as em-
poeiradas lições da disciplina Educação
Moral e Cívica, ministrada nos colégios, no
auge da ditadura militar. Mais acachapan-
te impossível.
maior problema de Plural, espetácu-
lo que o Grupo Tápias estreou nesta
quinta-feira no Espaço SESC, é o enten-
dimento da ideia de plural como algo to-
talizante e não, justamente o contrário,
de algo que atente para a diversidade.
A proposta é bastante simples, para não
dizer pueril: cada região do Brasil foi
confiada a um coreógrafo diferente para
ser traduzida coreograficamente. Nessa
primeira versão, Norte, Nordeste e Su-
deste ficaram a cargo de Ricardo Risu-
enho, Ana Vitória e Giselle Tápias, res-
pectivamente.
Triste observar que todos os três core-
ógrafos apostaram antes na obviedade,
afogando-se nela, sem atentar para as nu-
anças do desafio que tinham pela frente.
O Norte, menos problemático de todos,
não escapou de contar em sua trilha com
uma inevitável música indígena, embo-
ra pudesse prescindir dela, sobretudo con-
tando com a bela cena da moça da plateia
sendo amarrada com barbante por um dos
bailarinos. Já o Nordeste ficou atolado
numa visão antiga, atada a uma estética
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 17 DE NOVEMBRO • 2008• SEGUNDA-FEIRA • 17 DE NOVEMBRO • 2008• SEGUNDA-FEIRA • 17 DE NOVEMBRO • 2008• SEGUNDA-FEIRA • 17 DE NOVEMBRO • 2008• SEGUNDA-FEIRA • 17 DE NOVEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
256
De frente para o públicoAna Botafogo encara a platéia
na Maison de France
OBERTO PEREIRA
das quatro estações do ano, misturando dan-
ça, música e poesia. Ana divide o palco com
o excelente e maduro bailarino Joseny Cou-
tinho, seu colega do Theatro Municipal. A
química entre os dois é evidente. E Lilian
Barretto assume, com segurança, a condu-
ção de seus três ótimos músicos, dos quais se
destaca o gaitista José Staneck.
A direção de Luis Arrieta, que tam-
bém assina as coreografias ao lado de
Hélio Bejani, é precisa, coisa de quem
domina os códigos da cena. Apenas os fi-
gurinos merecem ser revistos, sobretudo
o do bailarino e o último vestido usado
por Botafogo.
Mas em todo o espetáculo o que mais
impressiona é uma cena em que não há
música e nem movimento: a bailarina
chega à boca de cena, descalça, cabelos
soltos, e encara a plateia de frente. Nessa
hora, em poucos segundos, através de
uma dramaticidade impactante, se enten-
de perfeitamente por que Ana Botafogo
é uma verdadeira artista.
grande mérito de Suíte floral, novo es-
petáculo da dupla formada pela pri-
meira bailarina Ana Botafogo e a pianis-
ta Lilian Barretto, em cartaz no Teatro
Maison de France até o dia 10 de dezem-
bro, é a busca por um novo formato que
intenta não apenas um equilíbrio entre
música e dança, mas também configurar
uma espécie de concerto camerístico
mesclado por essas duas linguagens.
Há desafios a serem enfrentados nessa
empreitada. Sobretudo Ana Botafogo, baila-
rina de grandes palcos e acostumada a fazer
com que a eficácia de sua interpretação em
balés de repertório chegue até as últimas fi-
las das galerias do Theatro Municipal, ainda
deixa escapar aqui e ali alguns exageros num
palco mais intimista. Mas é louvável que es-
teja buscando outras dimensões em sua dan-
ça e em sua atuação, o que a faz uma artista
ímpar no País dentro do panorama tão restri-
to do balé clássico.
A ideia do espetáculo é simples, mas fun-
ciona com presteza ao que se propõe: tratar
O
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 5 DE DEZEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
257
A atualidade que a obrasugere, mas não mostra
OBERTO PEREIRA
bre autoria e memória, tão atuais, estão es-
tampadas antes no gesto que pronuncia a
dança, do que numa dança que se dá a ver.
Nada mais contemporâneo.
Neste solo, Denise não mostra, sugere. E
o ato de sugerir está na precisão quase eró-
tica do termo, porque se constrói a partir de
uma brecha possível entre o coreógrafo e a
bailarina. Para tanto, estão lá Rodrigo Per-
derneiras, do Grupo Corpo, e Lia Rodrigues,
dois com quem a bailarina dançou. Mas eles
estão lá de uma forma que só ela poderia os
ter e poderia os evidenciar. Naquele corpo,
naquele momento. Um aqui e agora que se
dissolve em impressões.
A única música do espetáculo, Clair de Lune,
de Debussy, comprova isso. Impressionistica-
mente. Só assim se conhece o lado da bailari-
na. A quela que, generosamente, se dá a ver.
primeira vista, o espetáculo 3 solos em
um tempo, que a bailarina Denise
Stutz apresentou neste fim de semana no
Teatro Gláucio Gil, poderia ser visto como
uma empreitada moderna, na medida em
que desvela seu fazer, pulverizando impres-
sões na própria ação metalinguística. Mas,
ao se dedicar um pouco mais de atenção
àquilo que se organiza em cena, chega-se
inevitavelmente à conclusão de que se tra-
ta de um projeto contemporâneo, com ques-
tões contemporâneas.
Na verdade, tem-se uma espécie de co-
letânea de seus três últimos trabalhos, todos
solos: DeCor, de 2003, Absolutamente só, de
2005 e Estudo para impressões, de 2007. Em
todos os eles, perpassa uma fala que a fala da
bailarina, quando essa bailarina tem o direi-
to a ela. Desse modo, todas as questões so-
À
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 15 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 15 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 15 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 15 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 15 DE DEZEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
258
João Saldanha abreo seu processo de criação
III Danças: Intimidade e maturidade em seis solos
ILVIA SOTER
exemplo, o Wim Wenders de Paris Texas, a fi-
losofia de Deleuze, o pop e a discoteca.
O primeiro solo é de João Saldanha.Seu assumido desconforto como intérpre-
te, bem como seu jeito meio gauche de
abordar os movimentos que há muitosanos só se via em outros corpos só aumen-
tam a sedução que exerce sobre o públi-
co. Já nos solos de Marcelo Braga surgealgo interessante e divertido, bem distan-
te da escrita habitual de João. Marcelo é
mais do que intérprete: em cena, ele seconstrói como um personagem que dança,
faz mágica e canta, tudo no limite do kits-
ch. Os dois solos de Laura Samy tambémrevelam uma forma distinta de se movi-
mentar, ainda que dentro de uma constru-
ção mais familiar à companhia, mas comtoques de humor elegante. Em III Danças,
João Saldanha e seus dois parceiros de lon-
ga data exploram com maestria seu lado B.Toda a peça é atravessada por este humor
fino decorrente, sobretudo, da capacidade dos
três de rirem de si próprios e da dança. Isso,acompanhado da competência destes artistas,
já garante um bom espetáculo. Porém, para
aqueles que acompanham a trajetória do Ate-lier de Coreografia, III Danças tem uma gra-
ça a mais, a de visitar, através dessa peça, ele-
mentos criações anteriores da companhia epoder fazer parte da celebração do encontro
e da intimidade de seu núcleo criativo.
m III Danças é possível reconhecer
muitos dos traços que identificam o
trabalho do Atelier de Coreografia nestas
quase duas décadas de atividade. Lá estão,por exemplo, a economia e a elegância do es-
paço cênico, os figurinos da ótima Pia Franca,
o projeto sempre preciso de iluminação deAdelmo Lapa – que, desta vez, joga com as
relações entre cor-luz e cor-pigmento, provo-
cando interessantes efeitos na retina dos es-pectadores – e a trilha de Sacha Amback. João
Saldanha orquestra todos estes elementos
com sua competência e seu domínio da com-posição coreográfica. Mas, sem se deixar aco-
modar naquilo que poderia ser sua zona de
conforto, o coreógrafo volta à cena como in-térprete, ao lado de seus dois fiéis escudei-
ros, os bailarinos Laura Samy e Marcelo Bra-
ga. Sua presença traz um novo equilíbrio aessa balança. Um equilíbrio mais instável e
nem por isso menos interessante.
III Danças aborda a intimidade do proces-so de criar e de se expor, mas, sobretudo, toca
nas vantagens e nas desvantagens – as primei-
ras muito maiores do que as últimas – da ma-turidade de intérpretes e criador. A peça reú-
ne seis solos, dois de cada um, e imagens de
vídeo que vão desde o registro inteligente deconversas informais entre os três ao longo do
processo dessa criação, até extratos de filmes,
referências mais ou menos explícitas do queos inspira. Entre os vídeos e a cena estão, por
E
O GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBOO GLOBORIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SEXTA-FEIRA • 19 DE DEZEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
259
Poder público quasemata o ofício da dança
OBERTO PEREIRA
necessidade de ajustes em seus termos, esse
edital não deixou de ser uma atitude louvá-vel da Secretaria de Estado da Cultura, que
merece continuidade e aprimoramento. Ou-
tra ação importante dessa secretaria foi teracolhido em seus teatros o Festival Panora-
ma de Dança, mais um dos projetos abando-
nados pela Prefeitura há anos.Desse modo, a dança carioca se tornou
refém dos editais para a dança para poder
existir, e a Funarte representa aqui um pa-pel importante, sobretudo com seu Prêmio
de Dança Klauss Vianna, através da gestão
lúcida de Leonel Brum, seu coordenador.Muito do que foi visto na cidade foi graças à
existência desse prêmio.
Mas o oásis desse deserto continua mes-mo sendo o Espaço SESC, em Copacabana.
Além de ações no sentido de manutenção
de companhias (ler texto ao lado), foi palcodas principais estreias do ano. E elas não
foram poucas, mesmo diante desse cenário
tão adverso. No próprio Espaço SESC, tive-mos ótimos espetáculos, como os de Alex
Neoral com a Focus Cia. de Dança (B612),
Ana Vitória Dança Contemporânea (Ciran-
das cirandinhas), João Saldanha e seu Ate-
lier de Coreografia (III Danças), Paulo Cal-
das e a Staccato Cia. de Dança (Quinteto),Renato Vieira Cia. de Dança (Ritornelo) e
Sônia Destri e sua Companhia Urbana de
Dança (Suíte Funk).
ão. A dança no Rio de Janeiro não vai
bem, obrigado. Em 2008, dando con-tinuidade ao seu processo de encolhimento
no que se refere às condições reais de pro-
dução, a dança carioca sobrevive graças àação incansável de seus artistas, curadores
e produtores. Foram eles que deram o tom
do que aconteceu nesses últimos meses,provando mais uma vez que é possível sim
fazer dança de qualidade, mesmo que as
adversidades imperem.Para uma cidade que já foi modelo
nacional de política pública para a dança
em âmbito municipal, o que se tem hojenesse sentido é praticamente nada. Com
uma Secretaria de Cultura agonizante em
seus últimos meses, afogada até o pescoçopelo desastre orçamentário que provou ser
a não necessária Cidade da Música, o que
se tem é apenas um Centro Coreográficoque apenas serviu de espaço para ensaios
de companhias, mas pouco contribuiu efe-
tivamente para o desenvolvimento nosetor. Nada foi feito. Aliás, tudo foi des-
feito. A torcida fica para que a nova Pre-
feitura que entra em poucos dias saibaresgatar toda a história de uma política
para a dança já experimentada na cidade.
Já em âmbito estadual, nos últimos minu-tos do segundo tempo, um edital foi lançado,
dividindo os parcos R$ 750 mil para artistas
não apenas do Rio. Embora contasse com a
N
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE DEZEMBRO • 2008RIO DE JANEIRO • SÁBADO • 27 DE DEZEMBRO • 2008
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
260
Fora dos domínios do SESC, ainda foipossível assistir a dois importantes espetá-
culos: O reino do outro mundo, da Compa-
nhia Rubens Barbot Teatro de Dança, em
plena igreja anglicana de Santa Teresa, e o
delicado relato de uma excelente bailarina
como Denise Stutz, em 3 Solos em um tem-
po. Já Deborah Colker não chegou a empol-
gar com seu Cruel, com certeza um de seus
espetáculos mais frágeis.
Os festivais continuam os mesmos, além
da novidade da Mostra Carioca de Dança
Contemporânea, da Caixa Cultural, que ser-
viu como uma espécie de balanço do que
aconteceu de mais representativo no ano na
cidade. O Festival Panorama de Dança, que
teve em sua programação dois dos melho-
res espetáculos do ano, Umwelt, da francesa
Maguy Marin, e H3, de Bruno Beltrão, con-
tinua seguindo sozinho em seu perfil. Os
Solos de Dança no SESC também mostrou
trabalhos que mereceram atenção, como os
de Márcia Rubin em Quase como se fosse
amor, além de uma Ana Botafogo surpre-
endente, em La Mariée. Além deles, há de
se ressaltar a contínua ação do Dança em
Foco, mostra dedicada à produção de vídeo-dança nacional e internacional.
As atrações internacionais, salvo a pro-
gramação do Panorama, foram desastrosas.Uma invasão de companhias russas de ter-
ceiro escalão mostrou o que há de pior em
termos de balé naquele país, numa verda-deira ação caça-níqueis por aqui. E, falando
em balé, nossa principal companhia, o Bal-
let do Theatro Municipal, que deixou nesteano de ser a única brasileira a se dedicar a
esse segmento, desde a criação da São Pau-
lo Companhia de Dança, apresentou umaGiselle correta em abril, mas acabou o ano
inexplicavelmente apertada num palco de
um shopping center da zona sul, apresentan-do extratos de O quebra-nozes, já que sua
casa encontra-se em reformas.
Nesse próximo ano, fica a esperançade novas possibilidades para que a dança
carioca volte a florescer como já foi um dia.Já do ano que passou, fica a certeza de queas pessoas envolvidas com essa arte, nessa
cidade, são, além de artistas da dança, artis-
tas que inventam seus próprios modos de so-brevivência.
Além de ser palco das principais estreias de
dança na cidade e de abrigar dois de seus fes-
tivais mais importantes, os Solos de Dança no
SESC (produção própria) e o Festival Panora-
ma de Dança, o SESC Rio, através do Espaço
SESC, lançou-se, desde novembro do ano pas-
sado, a uma nova empreitada absolutamente
louvável: apoiar companhias de dança. O que
um dia foi atributo da Prefeitura, hoje é uma ação
que garante um mínimo de dignidade e trabalho
a cinco artistas cariocas: João Saldanha, Pau-
lo Caldas e Renato Vieira, que receberam por
um ano o valor de R$ 100 mil, e Alex Neoral e
Sonia Destri, que receberam R$ 50 mil, apoios
que já foram garantidos novamente para o pró-
ximo ano. Além dessa ajuda financeira substan-
cial, o SESC ainda oferece a essas companhias
espaço para ensaios, palco para as estreias e
circulação pelas unidades do estado. Nesse
próximo ano, como contrapartida, esses artis-
tas deverão oferecer oficinas práticas ao pú-
blico e, após uma avaliação dos resultados,
outros nomes poderão ser incluídos. Todo esse
projeto é assinado por Beatriz Radunsky e sua
equipe, que vêm desenvolvendo um trabalho
ímpar na história da dança do Rio de Janeiro.
B OXE 1
(não publicado)
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
261
ainda com mais duas mostras voltadas espe-
cificamente para esse nicho: o Festival Dança
Criança, que felizmente voltou a ocupar a Cai-
xa Cultural em outubro deste ano, oferecendo
espetáculos, oficinas e mostra de vídeos; e o
Panoraminha, novidade do Festival Panorama
de Dança, com dois espetáculos: Chuá, da Di-
menti, companhia baiana, e Matrioska, do por-
tuguês Tiago Guedes. São investimentos como
esses que podem garantir que, no futuro, o
público de dança se alargue e que a demanda
no setor, consequentemente, aumente. Todos
sairiam ganhando.
Um dos grandes desafios para a dança, não
apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o mun-
do, é a formação de plateia. Na Europa, por
exemplo, profissionais especialmente contra-
tados para se dedicar a descobrir e implemen-
tar estratégias nesse sentido estão sendo for-
mados e contratos. Mas entre nós, algumas
iniciativas também estão sendo tomadas, so-
bretudo no que se refere ao público infantil, o
que não deixa de ser uma ótima investida para
que um público venha a se formar no futuro.
Além da ótima estreia da coreógrafa Ana Vitó-
ria com Cirandas cirandinhas, o Rio contou
B OXE 2
(não publicado)
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
262
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
263
2009 CRÍTICAS
JORNAL DO BRASIL - 9 DE FEVEREIRO DE 2009Falta ritmo à companhia de Andrea Jabor
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 15 DE MARÇO DE 2009Mostra que cruza a fronteira dos solos
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 15 DE MARÇO DE 2009Começou mal, mas terminou com brilho
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
264
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
265
Falta ritmo à companhiade Andrea Jabor
Construção dramatúrgica é falha, e hiatosdo espetáculo no Espaço SESC são enormes
OBERTO PEREIRA
vel ao instaurar a dúvida de que lugar o
samba passará a ser tratado dali em diante.
Além do ritmo, atentar para uma certa
elegância que o samba exige talvez seja o
próximo desafio de Jabor. Os figurinos, o ce-
nário, mas sobretudo o gesto, que esbarra o
tempo todo no caricatural, precisam ser re-
vistos com urgência para se chegar à maté-
ria fina da dança que se quer mostrar. Tudo
está demasiadamente evidenciado, sem que
seja, hora alguma, apenas insinuado. O sam-
ba no pé, sabemos nós, tem dessas sutilezas.
Talvez falte a Andrea Jabor e suas seis
bailarinas tratar o samba não de forma rei-
terativa, que chafurda no excesso de reve-
rência estereotipada aos grandes mestres e
esquece a construção cênica em si. Tal como
acontece com esses mesmos mestres, vale
agora encontrar a essência, tanto da cena
quanto do próprio tema. Para isso, há que se
maturar muita coisa ainda nessa pesquisa.
Apenas uma pergunta, que fica depois de
tudo: Andrea Jabor, e o seu samba no pé,
onde está mesmo?
coreógrafa carioca Andrea Jabor e sua
companhia Arquitetura do Movimen-
to apresentam no Espaço SESC, até 8 de
março, a segunda parte de uma trilogia de-
dicada à pesquisa do samba. Tarefa nada
fácil, tal empreitada demanda qualidades
que ainda aparecem turvas em Ao samba –
A cruz, o xis e o esplendor, justamente no que
se refere ao que é intrínseco do próprio
samba.
Um dos principais problemas é justa-
mente a questão do ritmo, quase um contras-
senso, lembrando-se do tema que aborda.
Nada de errado com o ritmo nos pés das óti-
mas bailarinas que, aliás, sambam muito
bem. O problema está no ritmo de sua cons-
trução dramatúrgica. Os hiatos são enormes.
Alguns deles tornam evidente que os des-
necessários 90 minutos do espetáculo abri-
gam material suficiente para alguns enxu-
tos 40, talvez. Isso é flagrante no texto por
demais autorreferente da coreógrafa, logo
no início. Tão desarticulado do que viria a
seguir, sua pertinência se torna questioná-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRORIO DE JANEIRO • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE • SEGUNDA-FEIRA • 9 DE FEVEREIRO FEVEREIRO FEVEREIRO FEVEREIRO FEVEREIRO • 200• 200• 200• 200• 20099999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
266
Mostra que cruzaa fronteira dos solos
As cinco obras exigem maisinteração entre os intérpretes
OBERTO PEREIRA
pantes de cada uma das peças. Nenhum pro-
blema, tratando-se de uma comemoração e,
sobretudo, levando-se em conta que essa
mostra sempre buscou novos formatos.
ZAP, que abriu a noite, reuniu três exce-
lentes bailarinos de uma mesma companhia,
a Focus: Alex Neoral, Carol Pires e Clarice
Silva. Cada um coreografou um extrato que
foi dançado pelo colega. A qualidade alcan-
çada é admirável, sobretudo no solo de Ca-
rol, defendido por Alex: interessante, vigo-
roso, com um timing perfeito.
O segundo solo, Arena, foi, sem dúvida, o
mais arrojado do programa. Flávia Meire-
les, Gustavo Ciríaco e Marcela Levi apre-
sentaram uma mistura de vídeo-instalação
e dança absolutamente curiosa, discutindo
a relação entre o espaço da arena, o artista
e o público. O resultado é novo, corajoso, in-
quietante.
O trabalho mais frágil ficou por conta de
Esther W eitzman, Frederico Paredes e Ma-
ria Alice Poppe, em Ela, ela também. A o
aproximar duas bailarinas tão distintas,
como Esther e Alice, buscou-se, infelizmen-
te, o que havia de semelhança possível en-
primeira noite da décima edição da
mostra Solos de Dança no SESC, nes-
ta quinta-feira, no Espaço SESC em Copa-
cabana, foi uma celebração. Mais do que a
constatação das diferenças artísticas, o que
se pôde festejar é a possibilidade de que
todas possam coexistir, graças a ação de
uma instituição como o SESC e do empre-
endimento de seus dirigentes.
Para comemorar seus dez anos, a mostra
propôs novidades. Através da curadoria da
coreógrafa Márcia Rubin e de Beatriz Ra-
dunsky, mentora do projeto, duas grandes
modificações foram notadas: em vez dos
quatro solos compondo a noite, foram apre-
sentados cinco; e, mais, interessante: em cada
peça, mais artistas foram envolvidos, dife-
rentemente dos outros anos, em que a rela-
ção era apenas a de coreógrafo-bailarino.
O resultado, bastante intrigante, fez com
que se chegasse à conclusão de que todos os
trabalhos apresentados não são, em defini-
tivo, solos, embora no palco sempre estives-
se apenas uma pessoa dançando de cada
vez. O que se viu foram duos e trios, levan-
do-se em conta a relação entre os partici-
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO R IO DE JANE IRO • • • • • DOMINGO DOMINGO DOMINGO DOMINGO DOMINGO • 15 DE MARÇO • 2009• 15 DE MARÇO • 2009• 15 DE MARÇO • 2009• 15 DE MARÇO • 2009• 15 DE MARÇO • 2009
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
267
tre elas, e não suas qualidades individuais.
E o tempo, por demais esgarçado, contribuiu
para que essas diferenças não exploradas
apenas fossem soltas na cena, sem nenhum
tratamento coreográfico.
A coreógrafa Ana Vitória decidiu revi-
sitar uma antiga obra sua, 1, segundo, com
as bailarinas Andréa Bergallo e Soraya
Bastos. Para além da certeza de que se trata
mesmo de três excelentes artistas, é o solo
de Ana que mais impressiona, pois se pode
ver a relação direta entre criador e intérpre-
te. Seu vigor físico, sua marca, cede espaço
agora para uma maturidade bonita de se ver
em cena, tingindo a dança da coreógrafa
com novas nuances.
E, por fim, Catábases, de Renato Vieira,
reúne Bruno Cezário e Joaquim Tomé num
duo bastante interessante. O único ponto a
se burilar, em se tratando da excelência dos
intérpretes em questão, é a medida exata de
uma dança que resvala, às vezes, na quali-
dade da mera exibição das habilidades dos
bailarinos.
Dez anos da principal mostra de dança do
primeiro semestre são motivo de comemora-
ção. Parabéns ao SESC. Esse espaço continua
sendo o endereço oficial da dança carioca.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
268
Começou mal,mas terminou com brilho
João Wlamir faz trabalho óbvio, eMárcia Milhazes supreende
OBERTO PEREIRA
A dupla João Saldanha e Marcelo Bra-
ga foi responsável por um dos dois solos
apresentados na noite. Bambi, dançado pelo
excelente Jamil Cardoso, é um comentário
sutil sobre a feminilidade masculina e sua
relação com a dança. Poético, preciso, com
ótimo figurino, foi um dos ótimos encontros
proporcionados pela mostra.
Pas deux, de Paulo Caldas, mostra a con-
tinuidade na pesquisa de movimento do co-
reógrafo, que vem apontando novos rumos,
desde Quinteto, seu último espetáculo. Tra-
ta-se de um duo, defendido por Carolina
W iehoff e João Paulo Gross, bailarino que
deu mostras de seu apuramento técnico e
artístico de forma impressionante.
Paula Águas resolveu dar nova roupa-
gem ao seu já “clássico” Qual é a música?, e
convidou a bailarina Monica Burity e a DJ
D aniela V isco para interagir com ela. A
partir de estímulos deflagrados pela plateia,
convidada a falar num microfone uma pa-
lavra ou frase, música e dança deveriam
interagir. Nem sempre isso aconteceu, infe-
lizmente. Mas valeu a oportunidade de ver
Monica numa performance inteligente por
segunda semana dos Solos de Dança
no SESC, comemorando sua décima
edição, trouxe mais cinco trabalhos à cena,
misturando solos, duos, trios e até quartetos,
sempre tentando cumprir com a exigência
de que apenas uma pessoa dançasse a cada
vez. O resultado, novamente, foi interessan-
te pelo que carrega de diferenças nas pro-
postas coreográficas e tece um painel da pro-
dução carioca de dança.
A noite não começou bem. Uma em qua-
tro, obra assinada por João Wlamir, sucum-
biu à obviedade de um tema que o coreógra-
fo vem perseguindo há tempos, o universo da
bailarina clássica, mas que ainda não conse-
guiu desenvolvê-lo, se é que isso merece
realmente ser feito. A opção pelo excesso e
pelo absolutamente explícito, e uma teatra-
lidade exagerada, que mais combina com a
dimensão do palco do Theatro Municipal e
não com a arena do SESC, impediram que
qualquer proposta pudesse ser desenvolvida.
Nem mesmo bailarinas do quilate de Ana
Botafogo, Bettina Dalcanale, Laura Prochet
e Mônica Barbosa puderam salvar a obra da
falácia de sua pretensão. Uma pena.
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILR I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • R I O D E J A N E I R O • DOMINGO DOMINGO DOMINGO DOMINGO DOMINGO • • • • • 1515151515 D E D E D E D E D E MARÇO MARÇO MARÇO MARÇO MARÇO • 2 0 0• 2 0 0• 2 0 0• 2 0 0• 2 0 0 99999
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
269
sua ironia fina e rapidez nas soluções de
improviso.
Encerrando de forma especial a longa
noite, Márcia Milhazes trouxe A moça, o
segundo solo do programa. Delicadíssima
textura de movimento que retrata o esta-
do feminino, a coreografia foi interpreta-
da com exatidão e doçura por Ana Amé-
lia Vianna. O requintado figurino e a tri-
lha sofisticada dialogam intimamente
com a movimentação desenvolvida por
Márcia. Com certeza, um dos momentos
especiais da noite.
A mostra Solos de Dança no SESC com-
pleta dez anos e se consagra como o prin-
cipal evento de dança na cidade do primeiro
semestre. Graças à sua idealizadora, Beatriz
Radunsky, ao longo desses anos, vários for-
matos foram testados, todos interessantes.
Agora é aguardar qual o perfil que essa
mostra fundamental para o Rio de Janeiro
vai tomar no futuro.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
270
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
271
1999-2007 OUTROS TEXTOS
JORNAL DO BRASIL - 16 DE OUTUBRO DE 1999Dança: imitação e metáfora
ROBERTO PEREIRA
REVISTA BALLET/TANZ – BERLIM – NOVEMBRO DE 2000O meme na carne
ROBERTO PEREIRA
JORNAL A NOTÍCIA – SANTA CATARINA - 8 DE JUNHO DE 2002Quando a dança fala de si mesma
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DO BRASIL - 16 DE MARÇO DE 2004A formação de plateias
ROBERTO PEREIRA
REVISTA BALLET/TANZ – BERLIM - ABRIL DE 2005Die Verwirrungen des Luiz de Abreu
ROBERTO PEREIRA
JORNAL DIÁRIO DO NORDESTE – FORTALEZA - 14 DE OUTUBRO DE 2007A arte de criticar
ROBERTO PEREIRA
WWW.IDANCA.NET - 10 DE SETEMBRO DE 2007As agruras de um projeto não selecionado
ROBERTO PEREIRA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
272
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
273
Dança: imitação e metáforaHoje aberta a todo tipo de experimentação com o corpo nacena, a dança contemporânea não responde mais o que é
ou o que diz o corpo, mas se concentra – como afirmaRoberto Pereira em texto inédito – em como o corpo fala
OBERTO PEREIRA
polo. O bailarino técnico, e por isso frio, e por
isso sem alma, era responsável por uma
dança bastante diferente daquela do baila-
rino expressivo. O verdadeiro desafio, entre-
tanto, era perceber exatamente como essas
lacunas eram visíveis, e o que elas queriam
mesmo dizer.
Enquanto o grande reformador da dan-
ça Jean-Georges Noverre (1727-1810) ten-
tava discutir, ainda no século XVIII, talvez
na primeira vez, teoricamente, como a dan-
ça deveria se tornar expressiva, em nosso
século, o grande coreógrafo Georges Balan-
chine (1904-1983) garantia ser impossível
dizer, em dança, que uma bailarina era a
sogra da outra. Ao mesmo tempo, Balanchi-
ne reivindicava para si o direito de fazer
uma dança que ele dizia não ser “abstrata”,
já que era construída em corpos absoluta-
mente concretos.
Deste impasse na diversidade de tarefas,
o corpo que dançava foi atrás de suas espe-
cificidades. Acuado na esquina da natureza
e da cultura, emprestava de cada uma delas
o que fez e faz da dança ser dança. Uma
dança que iria lançando mão de metáforas
dança também não ficou imune à von-
tade iluminista de conhecer o mundo.
À pergunta enciclopedista do século XVIII,
“o que é dança?”, propunham-se inevitavel-
mente mais outras duas perguntas: “como e
o que ela quer dizer?”. Pensando em garan-
tias de comunicação, começou-se a pensar
numa dança que era de ação, em detrimen-
to de uma outra, da corte. Essa última esta-
va preocupada com a beleza de sequências
de passos cada vez mais sofisticadas, o que
lhe rendeu a comparação com os fogos de
artifícios: o corpo técnico a serviço da bele-
za. Já a outra tinha como preocupação falar
à alma: o corpo expressivo.
A dualidade “técnica e expressão” daí
decorrente acomoda-se na dualidade carte-
siana: o corpo e alma deveriam, em algum
momento, encontrar a perfeita harmonia na
dança. Enquanto o corpo, mero instrumento
de trabalho de uma alma inteligente, des-
lindava-se em passos e divertissements, a
dramaticidade encontrava seu terreno na
pantomima. E essa cadeia dicotomizada iria
promovendo adjetivos para um bailarino
que estivesse mais próximo de um ou outro
A
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE OUTUBRO • 1999RIO DE JANEIRO • QUINTA-FEIRA • 16 DE OUTUBRO • 1999CADERNO IDEIASCADERNO IDEIASCADERNO IDEIASCADERNO IDEIASCADERNO IDEIAS
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
274
e metonímias, para que sua inteligibilidade
fosse certeira a um público anônimo e pa-
gante e, por isso mesmo, exigente.
O balé romântico foi o grande cristali-
zador de ideias quando se decidiu encarar
essa empreitada de significações. O que se
dançava no palco era uma representação,
em dança, no que se podia ler no libreto.
Chamamos isto confortavelmente de balé:
o que escapasse da tirania narrativa do tex-
to era o que fazia os espectadores-leitores
levantarem os olhos e lerem movimentos. A
dança empunha-se, sem querer estar a ser-
viço apenas de tarefas que estavam à mar-
gem de suas especificidades.
Entre este texto e o gesto no palco, as re-
lações metonímicas imperavam. A relação
causal diminuía ao máximo as chances de
interpretações que pudessem funcionar como
ruído de comunicação. O que me fazia acei-
tar aquela mulher que se chama Odete e que
dança como um cisne estava codificado em
gesto e, sobretudo, em contiguidades em seu
figurino: as peninhas do cisne que adornavam
sua cabeça e seu tutu. Ingênuo? Em todos os
casos, absolutamente eficaz.
Mas nada disso, entretanto, evitou que a
minha amiga Inês Rodrigues Assumpção, de
dez anos, perguntasse espertamente à sua
mãe-coreógrafa ao assistir ao mesmo balé:
“O que a Odete está dizendo para o Sigfried
agora?” No eixo das combinações, são es-
sas as perguntas possíveis. Já o outro eixo, o
da seleção, torna instantânea a relação do
objeto e a sua representação por meio de
contatos metafóricos: semelhança sincrôni-
ca, substituição poética. E é saltando do ou-
tro para este eixo que a dança garantiu seu
passaporte para a Modernidade.
A pergunta agora jamais seria “o que
é?”, mas injetaria no movimento do corpo
que dança uma pluralidade de “como é?”.
Mesmo com resistência, a facilidade de se
rotular um bailarino de técnico ou expres-
sivo e todos os julgamentos subsequentes
cedem lentamente espaço para um enten-
dimento outro do que seja dramaticidade
neste corpo que dança. Primeiro requisito
para tanto: perceber que a poética desse
corpo é antes de tudo construção, e que aque-
la esquina natureza-cultura não deve ser
confundida por um beco sem saída.
Susan Blackmore, em seu livro The
Meme Machine (1999), garante que o que
diferencia a espécie humana das outras es-
pécies é sua capacidade de imitação. Se-
guindo as trilhas da memética, ciência que
estuda as unidades culturais/ideias repli-
cantes (os memes), proposta pelo neo darwi-
nista Richard Dawkins, a autora mostra o
quão fluido pode ser o ângulo entre as duas
instâncias citadas acima. Contar uma histó-
ria e recontá-la é, sem dúvida, um caso de
tradução, mas antes de tudo de imitação.
Corpo natural e corpo cultural encontram,
então, na dança, não mais emblemas de frio
ou quente, técnico e expressivo, mas de
modos de construção, metafóricos e/ou me-
tonímicos.
Os cariocas poderão, neste mês de outu-
bro, entrar em contato com esses modos de
construção através de dois espetáculos em
especial. O primeiro deles é o já famoso
Casa, da coreógrafa Deborah Colker. Nessa
casa, movimentos do cotidiano continuam
sendo movimentos do cotidiano, conectan-
do-se contiguamente ao cenário, à música e
ao figurino. Inclusive, todos estes elementos,
sem si mesmos, trazem também essa rela-
ção causal que garante entendimentos: a
música, por exemplo, também é ruído de
porta que se bate. Mas esta mesma relação
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
275
não se dá nos movimentos. O divertissement
está lá, ao lado do gesto codificado, sem
muitas contaminações. Bater bolo, como mo-
vimento, não se transforma, metalinguisti-
camente, num movimento esvaziado da
ideia de “bater bolo”. A inteligibilidade aí
garante o revestimento pop deste trabalho,
rascunhando na dança contemporânea con-
tornos de balé. Neste sentido, Noverre po-
deria ser, com certeza, um morador ilustre
dessa casa.
O outro espetáculo, que trafega por um
caminho inverso do traçado por Colker, é
Non donné par l’auteur, do coreógrafo fran-
cês Jérôme Bel, e que faz parte do 8o Pano-
rama RioArte de Dança, do dia 27 de outu-
bro no Teatro Carlos Gomes. Aqui, o movi-
mento banal de segurar um objeto cria sua
própria “dramaturgia”, no sentido em que se
torna “movimento por” e não mais “movi-
mento para”. Significação não está no gesto
de segurar um dicionário ou uma bola ou um
par de patins. Gesto é, antes, movimento.
Gesto esvaziado para ser preenchido por ele
mesmo, como movimento. Metalinguistica-
mente. A questão aqui é a da autoria, tal
como já denuncia o título da obra: todos nós
podemos segurar um dicionário, mas nem
todos podemos executar uma pirueta. O que
separa um do outro não é apenas o seu grau
de dificuldade enquanto execução. E o que
os aproxima é justamente o que Bel propõe
minimalisticamente: o movimento, seja ele
qual for, com possibilidade de um movimen-
to dançado. Mesmo que ele também tenha
sido o ato de segurar um objeto.
A tarefa da dança é mais plural do que
querer dizer algo. O que quer e o que pode
a língua era a pergunta que Caetano Veloso
fez há 15 anos. A dança ainda precisa desta
mesma questão seu hit parade. Para que ad-
jetivos como técnico e expressivo não
sejam excludentes e não continuem constru-
indo um corpo cartesiano quebracabeça-
mente. E para que metáfora e metonímia
possam ser poéticas de um corpo que dança,
sempre, mimeticamente, por imitação. Uma
imitação reinventada a cada execução, mas
sendo sempre consequência-causa de outras
danças. Pois parafraseando livremente o
coreógrafo francês Boris Charmatz, o corpo
é a alma da dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
276
O meme na carneOBERTO PEREIRA
O corpo fragmentado vai virando, assim,pouco a pouco, o lugar em que a informaçãotambém fragmentada se instaura. Estão láas grandes calamidades como Kosovo, Etió-pia, Carandiru, Vigário Geral, ao lado demarcas e pessoas que, sem que a gente sedê conta, fazem parte de nossas vidas. Abre-viando o que seria uma lista infinita de fa-tos e nomes, um dos bailarinos reproduz umslogan irônico: “Just do it!”
O corpo como mídia da evolução carre-ga com ele a propriedade simbólica de ar-mazenar a informação de seu ambiente. Tal-vez por isso a dança seja um instrumentoque funciona aqui com a precisão de umbisturi médico na operação de seu reconhe-cimento. Na dança de Lia Rodrigues, estecorpo se constrói disso: a técnica do balécompartilha com a fofoca do artista que sesubmeteu a uma lipoaspiração, publicadanuma dessas revistas populares. A ideia des-tas duas informações traduzidas em dançaespanta justamente por trazer tão perto da-quele que assiste o reconhecimento aindamaior: a de que ele também está ali, nu.
O espetáculo de Lia Rodrigues é um ma-nifesto. O preço do ingresso, cerca de 1 dólar,e a prestação de contas do dinheiro que a com-panhia recebe anualmente da Secretaria Mu-nicipal de Cultura, cerca de 25 mil dólares,publicada no programa, dão a dimensão exa-ta disso. Quanto vale o corpo que dança?
Ou melhor: Quanto vale o corpo? Quantovale uma ideia? As respostas vêm em formade pergunta, indignação e movimento. E são
sempre, e assim sempre serão, insuficientes.
dança não trafega mais confortavel-
mente entre natureza-cultura. A dançaé a prova de que a esquina entre estas duasinstâncias é o lugar de contaminações em mãodupla. O novo trabalho da coreógrafa Lia Ro-drigues, apresentado no último mês de julhono Rio de Janeiro, Aquilo de que somos feitos,alarga a dimensão desse trânsito e mostra que
o corpo que dança está comprometido, sem-
pre, com seu ambiente. Nas novas noções de
evolução que estudam a cultura, este trânsito
é o que se chama de coevolucionismo.
O espetáculo de Lia Rodrigues é um ma-
nifesto. Recupera a imprevisibilidade da per-
formance, instaurando nela o engajamento
político e social misturado com uma esperan-
ça naive dos anos 70. Let the sun shine in, a
canção emblema de uma geração, aparece em
contraponto a uma avalanche de ícones do
desenho animado infantil japonês. O espetá-
culo de Lia é uma constatação: o corpo, qual-
quer corpo, contaminado pela informação, é
mídia de ideias. O que o neo evolucionista
Richard Dawkins chama de meme, ideia que
se replica na cultura, assim como o gene, na
natureza, na cena de Lia, ganha a carne.
No começo, os corpos dos oito bailarinos
nus não estão mais nus. Após alguns segun-
dos, cabe ao público, lançado em uma sala
sem cadeiras, revesti-los de outros figurinos,
assim como reveste o silêncio de outra mu-
sicalidade. Numa das cenas, esses mesmos
corpos nus avançam pela plateia em espas-
mos pelo chão e se amontoam contra uma
parede: a carne que havia ganho significa-
ções torna-se simplesmente carne.
A
REVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZBERLIM • NOVEMBRO • 200BERLIM • NOVEMBRO • 200BERLIM • NOVEMBRO • 200BERLIM • NOVEMBRO • 200BERLIM • NOVEMBRO • 20000000
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
277
Quando a dançafala de si mesma
OBERTO PEREIRA
gem da bailarina nas pontas, girando em tor-no de si mesma, perdurar por tanto tempo, demaneira tão popular: ela simboliza o momen-to em que a dança, ainda sob a alcunha dobalé, vira dança, apenas e sobretudo.
Quando a fotografia foi inventada, a cri-se por ela imposta no universo das artesanunciava o projeto da Modernidade: era ahora de cada linguagem artística buscar suaespecificidade. A dança, que a partir do sé-culo XX começa a contar com a sua verten-te moderna via Ballets Russos e IsadoraDuncan, principalmente, também lançou-seao desafio de se perguntar: O que e comoeu quero dizer? O que é da propriedade dadança, e somente dela?
As respostas foram sendo buscadas enesse processo muita coisa aconteceu. Nes-sa “muita coisa”, o balé e a dança modernativeram de passar a conviver com a dançacontemporânea, com o butô, a dança-teatro,a new dance e tantas outras possibilidadesque o cruzamento entre corpo e cena per-
mite. Agora, a questão não se voltava mais
apenas para o que era específico da dança,
mas como ela ia se tingindo com outras lin-
guagens, assim como o mundo ia se tingin-
do pelas informações disponibilizadas pela
globalização.
Mas, mesmo com tantas transformações,
a dança precisou saber antes o que lhe cabia
uando uma pessoa é convidada a re-produzir a primeira imagem que lhe
vem à cabeça quando ouve a palavra balé,ela imediatamente coloca os braços acimada cabeça e começa a rodopiar no lugar, si-mulando uma bailarina nas pontas, com osbraços em terceira posição. Essa imagem,ainda tão forte nos dias de hoje, é uma he-rança romântica, e sua permanência no ima-ginário popular deve muito ao que o balédesenvolvido no século XIX promoveu emavanços técnicos e estéticos na dança. Essaimagem, que ainda deverá perdurar pormuito tempo, é aquela descrita por ChicoBuarque e Edu Lobo, em O Grande Circo
Místico, na canção Ciranda da bailarina, ouaquela que se pode ver a cada vez que umacaixinha de música é aberta: a bailarinapura, branca, inatingível.
Para que essa figura pudesse ser ideali-zada, uma trama bastante complexa de comoo corpo se movia e por que ele assim se mo-via começou a ser tecida. Uma trama cêni-ca, mas que começava a garantir para a dan-ça a sua maioridade: a dança, ocidental ecênica, tal como é conhecida hoje, ganhousua sistematização, sua autonomia enquantolinguagem a partir do balé romântico, aque-le povoado por sílfides, elfos e wilis. E, nessaépoca, ela já contava com mais de três sécu-los! Talvez seja essa a razão de aquela ima-
Q
JORNAL A NOTÍCIAJORNAL A NOTÍCIAJORNAL A NOTÍCIAJORNAL A NOTÍCIAJORNAL A NOTÍCIASANTA CATAR INA • SÁBADO • 8 DE JUNHO • 2002SANTA CATAR INA • SÁBADO • 8 DE JUNHO • 2002SANTA CATAR INA • SÁBADO • 8 DE JUNHO • 2002SANTA CATAR INA • SÁBADO • 8 DE JUNHO • 2002SANTA CATAR INA • SÁBADO • 8 DE JUNHO • 2002
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
278
enquanto tarefa nesse mundo: a construçãode um corpo (a técnica) e sua configuraçãocênica (a estética), algo que começou lá, na-quele corpinho que girava (e ainda gira, parafelicidade da própria dança) em torno de simesmo. Assim, a dança fala de si mesmaquando a ela é permitida a construção de umaimagem. Resta a nós, que percebemos nelaum lugar privilegiado de desvelamento do
mundo, aprender a ler essa imagem: a cadanovo corpo, a cada nova cena. Resta a nós en-tender que ali trafegam, numa via de mão du-pla, informações da natureza (corpo) e dacultura (dança). Só assim esse mundo pode serentendido como um lugar em que as ideias,as boas ideias, devem permanecer. Tal comoaquela ideia da bailarina da caixinha de mú-sica. Tal como a dança.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
279
A formação de plateias
OBERTO PEREIRA
de dança do País, em 1939, a imprensa cario-ca contava com pelo menos oito críticos que,uma vez entendedores de música, se aven-turavam a escrever sobre dança.
Dentro desse contexto, o crítico JaquesCorseuil (1913-2000), um dos primeiros re-almente especializados no assunto, deve sermencionado como peça fundamental nessaconstrução de uma história da dança brasi-leira e de seu público. Outros o seguiram eformaram uma tímida história paralela dacrítica de dança brasileira. Nesse sentido,valem ser citados Antonio José Faro, SuzanaBraga e, em São Paulo, Nicanor Miranda eLineu Dias, entre tantos outros. Hoje, nãoapenas naquela cidade, mas em todo o País,o nome de Helena Katz representa essa açãode continuidade de se fazer pensar a dançadentro do circuito do jornalismo cultural.
Assim, com quase um século de ativida-de, a crítica de dança no Brasil ainda tempela frente o mesmo desafio de ser um doselementos de formação dessa tradição, apon-tando setas para diferentes alvos: no públi-co, no artista e na própria obra. Se a palavracrítica conta em sua raiz etimológica com apalavra grega krinein, que significa “que-brar” e, ao mesmo tempo, “colocar em cri-se”, ela parece caber nesse empenho de sepensar uma dança brasileira: ajuda a que-brar automatismos no entendimento do queo adjetivo “brasileira” significa para a dan-ça, ao mesmo tempo que coloca em crise,num processo contínuo e profícuo, o que seproduz e o que se pensa na área no País.
ogo no início de seu clássico estudosobre a Formação da Literatura Bra-
sileira, o crítico Antonio Candido propõe suanoção de formação a partir da ideia de sis-tema: obras ligadas por denominadores co-
muns, com características internas, como lín-
gua, temas e imagens, além de característi-
cas de ordem social e psíquica, como “a exis-
tência de um conjunto de produtores literá-
rios, mais ou menos conscientes do seu pa-
pel; um conjunto de receptores, formando os
diferentes tipos de público, sem os quais a
obra não vive, e um mecanismo transmis-
sor (...) que liga uns aos outros”. Embutidos
nessa noção, estão o sentido de tradição e aideia de continuidade que cria padrões de
pensamentos e comportamentos.
A dança brasileira, embora tenha inicia-
do esse processo proposto por Candido
quase um século depois da literatura (que,
para o crítico, se dá no período romântico),
teve, e ainda tem, vários desafios e, entre
eles, o da formação de seu público, elemen-to citado acima como parte dessa cadeia sis-
têmica proposta. Historicamente, como essa
tradição começa a ser delineada no Rio de
Janeiro no início do século XX (sobretudo a
partir da fundação de sua primeira escola
oficial de dança em 1927), a necessidade de
uma crítica de dança foi fundamental. Ha-
via de se entender como aquela linguagem
cênica poderia ser produzida aqui e pode-
ria ganhar contornos “brasileiros”. Na oca-
sião da primeira temporada oficial do balé
do Theatro Municipal, primeira companhia
L
JORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILJORNAL DO BRASILRIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 16 DE MARÇO • 2004RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 16 DE MARÇO • 2004RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 16 DE MARÇO • 2004RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 16 DE MARÇO • 2004RIO DE JANEIRO • TERÇA-FEIRA • 16 DE MARÇO • 2004
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
280
Die Verwirrungendes Luiz de Abreu
OBERTO PEREIRA
amba do crioulo doido é uma expressão
que no Brasil quer dizer confusão. Não
à toa é o título do novo trabalho do bailari-
no e coreógrafo brasileiro Luiz de Abreu,
que reside hoje na cidade de São Paulo. A
confusão provocada por ele nesse trabalho
mistura assuntos caros num país com tantas
desigualdades sociais. E o que mais impres-
siona é que esta mistura está mimetizada no
corpo do bailarino, cuja construção e orga-
nização de técnicas diversas é o próprio
“samba do crioulo doido”.
Esta é uma peça de 20 minutos, assinada
e dançada por Abreu, e desenvolvida com o
apoio do programa Rumos Dança 2003 do
Itaú Cultural, sob a sábia coordenação de
Sônia Sobral. Apresentado pela primeira vez
em 5 março de 2004, na capital paulista, de
imediato causou também confusão entre o
público que lotava o teatro naquela noite.
Nu, calçando apenas um par de botas
prateadas de salto altíssimo, o bailarino ao
som de uma batida grave de samba deixa
entrever suas formas. A os poucos era possí-
vel ouvir a voz da cantora Elza Soares, num
grito de arranhar a garganta, proclamando
S o verso da canção: “a carne mais barata do
mercado é a carne negra”. Luiz de Abreu é
negro. Homossexual. Bailarino. E brasilei-
ro. Ao fundo, um grande painel repleto de
pequenas bandeiras do Brasil fazem o ce-
nário. Tudo é verde e amarelo. Exceto a car-
ne que ali se movimenta.
O que se desenvolve no palco é uma
habilidade de olhar de fora o que é de den-
tro. O olhar estrangeiro, alimentado pelo
sabor do exótico, mistura-se com o olhar do
próprio brasileiro que discrimina, que ex-
clui. À primeira vista, parece tratar-se de
uma estética típica de boate gay e seus sho-
ws de transformistas. Mas achar que é ape-
nas isso é não entender exatamente o que
Luiz de Abreu provoca, ao tratar dessa mes-
ma estética, metalinguisticamente, para de-
nunciar esses olhares, estrangeiros ou não,
sempre comprometidos com uma visão do
que quer dizer ser negro, gay e bailarino
hoje num país como o Brasil.
A confusão que reside no corpo de Abreu
borra qualquer tentativa de classificação
daquilo que se move no palco. O que ocorre
é a confusão típica de um bailarino de hoje:
REVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZREVISTA BALLET/TANZBERLIM • ABRIL • 2005BERLIM • ABRIL • 2005BERLIM • ABRIL • 2005BERLIM • ABRIL • 2005BERLIM • ABRIL • 2005
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
281
não há a ideia de passo ali, mas a dança de
um samba que acontece tramando armadi-
lhas com o balé e a dança contemporânea.
Nada mais inquietante para se pensar a
dança brasileira. Uma dança de avesso. Nua.
E de exotismos avessos.
Ao final do espetáculo, ouve-se uma ver-
são em ritmo de batucada da abertura da
ópera O Guarany, de Carlos Gomes. Obra
típica de um olhar estrangeiro que se cons-
truiu no próprio compositor brasileiro que
ansiava por falar de si a partir do código do
outro, essa música funciona quase como um
hino nacional. Neste momento, Luiz de
Abreu enfia um pedaço da bandeira brasi-
leira no ânus e transforma o resto do tecido
em um estandarte de escola de samba. Des-
fila pelo palco. Seu pênis balança ao ritmo
de samba. Corpo e bandeira são quase um
parangolé de Hélio Oiticica, que brinca
com a questão da obra de arte na instabili-
dade do momento, do que se reveste e do
que se toma estabelecido. A carne mais ba-
rata do mercado é embrulhada pelo símbo-
lo de uma pátria. É a apoteose.
Luiz de Abreu provoca a confusão de
olhares na plateia: reconhece-se o que é ser
brasileiro, por dentro; e reconhece-se o que
é ser brasileiro por fora, a partir do olhar
estrangeiro introjetado, do olhar coloniza-
do, (quase) para sempre.
* * *
Em outubro desse mesmo ano de 2004,
Abreu foi convidado a remontar o Samba
do crioulo doido em Salvador, capital do
Estado da Bahia, dentro da terceira edição
do projeto Ateliê de Coreógrafos Brasilei-
ros, idealizado por Eliana Pedroso. O que era
um solo transformou-se em uma peça para
dez bailarinos, nove homens e uma mulher –,
todos negros, e todos igualmente nus.
Essa versão foi mostrada no Teatro Cas-
tro Alves, o maior e mais importante tea-
tro da cidade, reservado sempre para gran-
des espetáculos. Simbolicamente, há de se
pensar: Castro Alves, poeta romântico bai-
ano, escreveu “Navio negreiro”, um de seus
mais conhecidos poemas, que trata justa-
mente da questão do negro sendo trazido
da África para o Brasil. Hoje, Salvador é
uma cidade composta, em sua maioria po-
pulacional de negros.
O teatro estava lotado na estreia do dia
16. Risos nervosos durante a peça eram ou-
vidos. Ao final, uma massa de mais de mil
pessoas se levanta e aplaude. Ou, para ser
mais legítimo, consagra uma conquista da-
quele espaço. E mostra que um teatro não
poderia levar aquele nome impunemente.
A performance tinha sido elevada à potên-
cia máxima. O samba do crioulo doido, a
partir de então, não é mais apenas confusão
e passa a ser entendido, antes de mais nada,
como um manifesto.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
282
F
JORNAL DIÁRIO DO NORDESTEJORNAL DIÁRIO DO NORDESTEJORNAL DIÁRIO DO NORDESTEJORNAL DIÁRIO DO NORDESTEJORNAL DIÁRIO DO NORDESTEF O R T A L E Z A • D O M I N G O • 1 4 D E O U T U B R O • 2 0 0 7F O R T A L E Z A • D O M I N G O • 1 4 D E O U T U B R O • 2 0 0 7F O R T A L E Z A • D O M I N G O • 1 4 D E O U T U B R O • 2 0 0 7F O R T A L E Z A • D O M I N G O • 1 4 D E O U T U B R O • 2 0 0 7F O R T A L E Z A • D O M I N G O • 1 4 D E O U T U B R O • 2 0 0 7
A arte de criticar
OBERTO PEREIRA
alar de crítica de dança hoje, no Bra-sil, é falar de um projeto de resistên-
cia. Efetivamente, escrevendo e publicandocrítica de dança em periódicos, temos, que eusaiba e até o presente momento, apenas cin-co críticos, que nomeio agora: Helena Katz,no jornal O Estado de São Paulo, a primeiraentre nós, Inês Bogéa, da Folha de São Paulo,Marcello Castilho Avellar, no O Estado de
Minas, Silvia Soter, no jornal O Globo e euno Jornal do Brasil, ambos no Rio de Janeiro.
Muito diferente do início do século XX,quando a dança e mais especificamente obalé aportou por em terras brasileiras, e quan-do existiam dezenas de jornais na então ca-pital federal, cada um deles com um críticode dança, hoje esse ofício beira o exíguo. Seantes havia espaço nos jornais para críticasextensas, que muitas vezes começavamnuma edição e terminavam noutra, em outrodia da semana, tão grande era o texto, hojeas possibilidades de que elas saiam e quetenham um tamanho condizente com suaimportância são bem menores. Em quase to-dos os jornais. Com quase todos os editores.
Do início deste ano até o final do mês desetembro, por exemplo, os dados numéricos
apontam para essa crise. Helena Katz foi quemmais publicou, com 29 textos (dados segundoseu site: www.helenakatz.pro.br), Inês apare-ce com 9 textos, Marcello com 20, Silvia com7 e eu com 20 textos (dados fornecidos pelospróprios colegas). Tudo isso é ínfimo, se a crí-tica de cinema, por exemplo, é tomada comotermo de comparação. Mas é um dado interes-sante e que se deve levar em conta quando sefala de dança brasileira hoje.
A idéia de crítica, que tem sua origemna palavra grega krinein, carrega consigodois sentidos interessantes: a de quebra e ade crise. Essa seria sua tarefa quase ontoló-gica. Quebrar a obra em pedaços, colocan-do em crise os sentidos pré-organizados quese colam a ela. É fazer com que a obra res-pire em outros modos, em outros registros.
Não à toa, a crítica de dança surgiu empleno século XIX, quando essa arte, atravésdo balé romântico, sistematizava sua ima-gem tornando-se o que hoje conhecemoscomo dança cênica ocidental. Não à toa, foinesse mesmo século que a história ganhavaseu estatuto de área de conhecimento, de ci-ência. A crítica começava a fazer parte des-sa história. E começava a contá-la também.
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
283
Hoje, sua função vem se transformando.Como tudo no mundo. Hoje, por exemplo,existe o espaço virtual que subverte as exi-gências de tamanhos de textos e espaçosdelimitados. E também que permite umareação instantânea dos leitores, estabele-cendo diálogos vivos, num ziguezague deidéias. O site idança (www.idanca.net) é umótimo exemplo de lugares de ação e de tro-ca de idéias no Brasil. Mas é curioso: quan-do escrevi meu mais recente artigo para essesite, senti uma estranheza aguda por poderescrever o quanto desejava e precisava. Umoutro registro, uma outra mídia, com certeza.
Mas se estamos falando em crítica den-tro de um ambiente de festival de dança,como o é a Bienal de Dança do Ceará, seriainteressante colocá-la em contraponto comuma outra instância, que hoje divide com acrítica um lugar decisivo entre a obra, o ar-tista e o público: a curadoria.
Um ofício muito mais recente que o docrítico, o curador aparece em fins do século XX,para cuidar de algo que não se aprisionavamais em ismos: a arte contemporânea. Para adança, se formos também levar em conside-ração a recente prática de festivais de dançaque carregam a idéia de uma curadoria, po-deremos constatar que se trata, em sua gran-de maioria, de festivais de dança contempo-rânea, pelo menos no Brasil. A tarefa seria ade administrar o que era quase inadministrá-vel, o que não se classificava mais como as-sim o permitiu um dia o balé e a dança moder-na, por exemplo. E administrar está na origemlatina da palavra curador, curator, que signifi-ca tutor, ou aquele que administra.
Pensar em curadoria e crítica hoje é pen-sar em ações da dança contemporânea, so-bretudo no Brasil, onde essas ações comun-gam com os festivais de dança estratégiasde sobrevivência. Apenas cada uma delas
age de formas diferentes, mas sempre com-plementares, na relação entre a obra, o ar-tista e o público.
A curadoria, de alguma forma, propõeflechas de sentidos da e na obra, antes mes-mo que o público entre em contato com ela.É um a priori que en-forma sua percepção:por que essa determinada obra está nessedeterminado festival? como ela dialogacom as outras obras que também compõemsua programação? onde ela é apresentada?quando? como? em que ordem? o que euassisti ontem “contamina” o que eu assisti-rei hoje, que já está “contaminado” pelo queverei amanhã?
A crítica desmancha os itinerários des-sas flechas de sentidos. Quebra seu percur-so, colocando em crise o que se pensou, exi-gindo que se repense. É um posteriori. Umdepois que redimensiona o antes.
Na Bienal de Dança do Ceará, esses doislugares tão importantes hoje quando se falaem dança contemporânea estarão clamandopor urgências: a urgência de se fazer enten-der o que são todas essas informações que seviabilizam apenas com a existência de umfestival como esse nesse ambiente, entenden-do quais são suas pertinências e suas reverbe-rações; e, ao mesmo tempo, estampa a lacunado outro pólo, que seria a do exercício crítico.
Tomando as proporções continentaisbrasileiras, a existência de apenas cinco crí-ticos atualmente é quase risível. Se o senti-do de tradição em dança que se faz no Bra-sil hoje necessita da formação de artistas ede seus públicos, suas estratégias são clarase muitas vezes impiedosas. Tenhamos cadavez mais críticos, para que os tantos festivaisque já existem pelo país afora sejam colo-cados em crise. Numa crise, entretanto, queos co-mova, ou promova transformações.Nada mais contemporâneo, certo?
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
284
N
As agruras de umprojeto não selecionado
OBERTO PEREIRA
o dia 25 de junho deste ano, mais pre-
cisamente às 9h48 horas, postei meu
projeto denominado O Jazzdance no Bra-
sil: histórias de um corpo em swing, para
participar da edição de 2007 do Prêmio
Funarte Klauss Vianna de Dança. Não se
tratava de um projeto e de uma tentativa ab-
solutamente inéditos: eu já havia inscrito
esse mesmo projeto no último edital das
Bolsas Vitae de Arte, no ano de 2004, e ele,
como se pôde rapidamente concluir, não foi
selecionado.
No último dia 6 deste mês de setembro,
pude verificar que, novamente, esse meu
projeto não foi selecionado, agora então
pelo edital da Funarte. E tal constatação
(negativa, em vários sentidos) me levou a
pensar alguns pontos que merecem reflexão
sobre a viabilidade da pesquisa teórica de
dança no Brasil, quando não vinculada di-
retamente ao ambiente universitário. Tal
constatação, longe de ser um caso particu-
lar meu, poderia ser tomada como um caso
bastante comum a todos aqueles que se lan-
çam a essa aventura de fazer pesquisa teó-
rica de dança neste país e, mais ainda, acre-
ditam que editais como esses da Funarte
podem representar uma saída (quase única)
nesse deserto de opções que nos cerca.
Bem, vamos às reflexões possíveis, todas
elas meras conjeturas que levanto, mas que
podem servir para colocar em questão al-
guns pontos que merecem atenção hoje de
todos nós. Bem, sendo assim, parto do seguin-
te: meu projeto não foi selecionado nova-
mente. Diante desse fato, conto apenas com
duas possibilidades que justificariam sua
não seleção e é a partir delas que gostaria
de propor a feitura deste artigo.
Antes, porém, de me dedicar a elas, gos-
taria de deixar claro que, ao ter aceitado sub-
meter um projeto meu a uma comissão que
eu não conhecia, mas que conheci depois
(quando da publicação dos nomes de seus
integrantes no site da Funarte no mesmo dia
6 de setembro), e que respeito profundamen-
te, hora nenhuma tive ou tenho a intenção de
colocar sua constituição em questão. Todos ali
me parecem, e devem parecer a todos da clas-
se da dança brasileira, legitimados de algum
modo para ocuparem o lugar que estavam
ocupando. Ponto. Pronto.
WWW.IDANCA.NETWWW.IDANCA.NETWWW.IDANCA.NETWWW.IDANCA.NETWWW.IDANCA.NETRIO DE JANEIRO E SÃO PAULO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE SETEMBRO DE 2007RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE SETEMBRO DE 2007RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE SETEMBRO DE 2007RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE SETEMBRO DE 2007RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO • SEGUNDA-FEIRA • 10 DE SETEMBRO DE 2007
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
285
Assim, a primeira possibilidade que me
veio à cabeça que justificaria a não seleção
de meu projeto é a mais óbvia: o projeto não
é bom. Simples assim. Ou porque o tema não
parece ser pertinente, ou porque sua elabo-
ração não está de acordo com as exigências
do edital, ou ainda porque seu orçamento
não está digno e/ou compatível ao que ele
se propõe. Ou ainda: o projeto era “até” bom,
mas havia outros melhores. E como a cota
era restrita, os outros projetos (“melhores”)
poderiam ter sido priorizados. Como já par-
ticipei de várias comissões que analisam
projetos como esse meu, inclusive na pró-
pria Funarte (Prêmio Funarte Petrobras de
Fomento à Dança, entre os dias 21 e 25 de
novembro de 2005), fico pensando que es-
ses são critérios absolutamente legítimos.
Todos três. Vamos a eles:
A pertinência de se estudar a história da
dança no Brasil e do Brasil me parece, pelo
menos num primeiro momento, inquestioná-
vel. Num país onde ainda muito há de ser
feito nesse sentido, uma iniciativa de se es-
tudar a história de uma estética tão impor-
tante como o jazzdance sempre me veio
como obviamente necessária. Por várias
razões, eu diria. E eu poderia elencá-las aqui.
Mas acho que bastaria dizer que existiram
ainda poucas iniciativas nesse sentido, com
projetos pontuais que não abarcaram a gran-
deza de se estudar esse momento tão caro à
nossa dança em sua dimensão histórica e em
suas mais diversas vertentes, sobretudo nas
cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Nomes fundamentais de nossa dança,
que se encontram devidamente citados no
meu projeto (que propositalmente coloquei
como um anexo a esse texto), mereciam,
hoje, quase 20 depois do auge dessa estéti-
ca entre nós, um estudo aprofundado. Nomes
inclusive que compõem o quadro de criado-
res de dança contemporânea de hoje, como
Alejandro Ahmed, Mário Nascimento e
Henrique Rodovalho, apenas para citar al-
guns. Além desse estudo, a captura e o regis-
tro de suas imagens em suas mais diversas
possibilidades também se fazem prementes,
eu acreditava. Enfim, o que existe é a cons-
tatação de que quase tudo ainda está por ser
feito no que se refere ao jazzdance no Bra-
sil. Mas a comissão pode não ter concorda-
do comigo, e isso é (e deve ser, já que con-
cordei em submetê-lo a ela) compreensível
e deveria ser aceitável.
Então, o segundo critério, que toca no
ponto da elaboração do meu projeto propri-
amente dita. Talvez eu tenha pecado em
algo crucial que fez a exigente comissão não
aceitá-lo. Alguma omissão grave, algum
ponto que não estava suficientemente cla-
ro, ou mesmo sua articulação pode não ter
parecido satisfatória. Mas estava tudo ali:
objetivo, histórico, justificativa, cronograma,
orçamento, currículo. Será, meu Deus, que me
esqueci de algo? Outro fato que seria abso-
lutamente legítimo.
Como coloquei o projeto em questão em
seguida a esse texto, peço aos leitores mais
dedicados que, por favor, me ajudem, apon-
tando falhas, para eu possa, então, e definiti-
vamente, aprender, se for mesmo esse o caso,
como se elabora um texto que se pretende
projeto. Talvez o meu histórico de mais de
20 anos de pesquisa de dança não tenha ain-
da me habilitado a elaborar um texto digno
de ser selecionado por uma comissão como
a desse edital. Talvez. Isso é absolutamente
aceitável, também.
O fato de eu ser um doutor (e por uma
dessas coincidências, pelo menos quatro das
integrantes dessa comissão são minhas co-
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
286
legas de programa de doutorado da mesma
universidade), com a pesquisa lançada em
livro pela editora da Fundação Getulio Var-
gas, talvez não tenha me auxiliado nesse
desafio. O fato de eu ser mestre em filosofia
pela Universidade de Viena, com a pesqui-
sa também lançada em livro (já em sua se-
gunda edição), também não.
E também não, o fato de eu ser crítico de
dança do Jornal do Brasil já há quase 10
anos, ou o fato de eu ter nove livros publica-
dos sobre dança, além de cinco coletâneas
de artigos sobre dança co-organizadas por
mim, todos elas esgotadas e quase unânimes
em seu uso nos cursos superiores de dança
pelo país afora; ou o fato de eu ter sido por
seis anos curador de um festival da impor-
tância que tem o Panorama de Dança; ou o
fato de eu viajar pelo País ministrando pa-
lestras e cursos ou participando de comis-
sões (apenas nesse ano de 2007, já pude es-
tar em cidades como Vitória – ES, Belo Hori-
zonte – MG, Caxias do Sul – RS, Porto Alegre
– RS, Londrina – PR, São José dos Campos –
SP, Fortaleza – CE, Uberlândia – MG, Joinvi-
lle – SC, São Paulo – SP e Campo Grande –
MS); enfim, todos esses fatos juntos não de-
vem ter me ensinado a elaborar um projeto
digno. Claro, isso é absolutamente possível e
legítimo. Talvez eu tenha que aprendê-lo. Ou
desistir definitivamente disso.
Mas esse artigo, ao tocar nessa possibili-
dade, coloca a oportunidade de todos nós sa-
bermos como é elaborar um bom projeto de
pesquisa histórica em dança no Brasil. Aten-
ção: essa é a chance!
Bem, resta ainda meu orçamento. Como
os leitores podem constatar, solicitei a ver-
ba de 50 mil reais, que ainda julgo ser sufi-
ciente para um projeto como o meu, mesmo
abarcando a história de duas grandes cida-
des, como o Rio e São Paulo, sem excluir Belo
Horizonte. E acredito ser honesto como di-
vidi os pagamentos de todos aqueles que me
auxiliariam no que eu havia me proposto.
Talvez eu tenha me equivocado em algum
ponto. E peço, então, que me ajudem. Lem-
brem-se, novamente: essa ajuda pode ser
valiosa para todos aqueles que estão lendo
esse texto e que tenham (ou não) seus proje-
tos reprovados em editais como esses. Como
já comentei aqui, fiz parte de comissões como
essa e para mim os orçamentos eram sem-
pre muito “reveladores”. Parecia que se po-
deria fazer um raio X da verdadeira índole
de alguns proponentes ao se entrar em con-
tato apenas com seus orçamentos...
Bom, vamos então à segunda possibili-
dade ou à segunda hipótese: o meu projeto
talvez tenha sido cancelado. Simplesmente
assim: cancelado. E aí vamos tentar enten-
der o que me leva a tal suposição.
Como é de conhecimento do todos, abso-
lutamente todos que fazem arte neste país
(e talvez não daqueles que a financiam, in-
felizmente), muitos dos artistas e dos pesqui-
sadores não possuem uma firma que os re-
presente. Não somos pessoa jurídica, não
temos CNPJ, por tudo o que justifica as difi-
culdades legais de se ter e se manter uma
firma hoje em dia.
O que mais da metade desses artistas e
pesquisadores fazem? Procuram por firmas
(muitas vezes de idoneidade questionável)
para que possam servir como “proponentes”
de seus projetos, para que os representem
juridicamente. Tal fato não é novo e é uma
realidade concretíssima em nosso meio. É
assim. E pronto.
Como todos fazem, também saí atrás de
uma firma que pudesse ser minha propo-
nente e que pudesse me representar junto a
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
287
esse edital da Funarte. Achei que seria mais
prudente procurar a firma de uma pessoa
amiga, conhecida minha, com quem eu, in-
clusive, trabalho. Mesmo tendo que pagar
impostos na ordem de 18%, achei que seria
mais seguro e honesto contar como uma fir-
ma idônea como essa que eu havia escolhi-
do. Assimilei esses impostos em meu orça-
mento e acreditei que estava tudo absolu-
tamente correto.
Um detalhe muitíssimo importante: nin-
guém desta firma tinha absolutamente al-
guma coisa a ver com a elaboração e a efe-
tivação de meu projeto. Todos os que eu
havia convidado a integrá-lo como meus
assistentes (cujos nomes, cuidadosamente,
retirei da versão do meu projeto que segue
em anexo, por motivos os mais óbvios) não
estavam ligados à firma em questão.
No final do mês de agosto (portanto, qua-
se dois meses depois de eu ter postado meu
projeto no correio), numa dessas coincidên-
cias da vida, soube por essa minha amiga
que ela havia sido convidada a compor a tal
comissão que avaliaria os projetos do edi-
tal em questão. E esse convite teria sido fei-
to pouco tempo antes da comissão se reunir.
Ela aceitou o convite, como eu acho mesmo
que deveria. E eu ganhei um problema.
Na mesma hora em que me dei conta de
que o fato de ela ter aceitado participar da
comissão comprometeria o meu projeto,
porque a firma dela (mesmo que ela seja
apenas uma entre cinco sócios) não pode-
ria ser proponente ao mesmo tempo em
que ela participava da comissão, tentei
achar uma saída para o problema que se
instaurava.
Liguei para o então coordenador de dan-
ça da Funarte e expus meu problema. Essa
ligação se deu exatamente no dia 27 de
agosto. A minha proposta é que me fosse
concedida a chance de simplesmente trocar
a firma que seria a minha proponente, pois
acreditava apenas na pertinência do meu
projeto, da minha ideia e da minha compe-
tência, que o assinava. Ingenuamente, eu
acreditava que isso seria possível na medi-
da em que a firma em nada comprometeria
a efetivação de meu projeto, caso ele fosse
selecionado, pelos motivos já expostos. En-
fim, tratar-se-ia apenas de um recurso me-
ramente burocrático que me permitiria re-
ceber a verba. De novo: caso meu projeto
fosse selecionado.
A resposta que obtive foi negativa. Não
havia essa possibilidade de troca, embora o
edital não considerasse essa situação em
específico (o da troca de CNPJ em casos
como esse). E o meu projeto, assim posso
intuir, deve ter sido desclassificado por esse
motivo. Ou pela soma dos tantos outros
motivos que expus ao longo desse texto. Não
sei e não deverei nunca saber: no site da
Funarte não há essa resposta.
O pesquisador, que não tem uma firma,
talvez tenha ficado sem a oportunidade de
sua ideia ter sido sequer lida, considerada,
avaliada. O proponente passa a ser mais
importante que aquele que concebe e exe-
cuta o projeto. Pior ainda: passa a ser mais
importante, que a própria ideia em questão.
No meu caso, se for esse mesmo o caso, o
pesquisador fica sem a pesquisa. E o País
fica sem a oportunidade de ter contada uma
pequena, mas tão importante, parte da his-
tória de sua dança.
Fiquei pensando se não seria o momento
de revermos os editais e tentarmos trazê-los
mais para perto da realidade daqueles que
realizam a dança, em suas mais diversas
interfaces, neste país. Fiquei me lembrando
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
288
do edital de bolsas do extinto e saudoso Ins-
tituto RioArte, da Secretaria das Culturas
da Cidade do Rio de Janeiro, que concedia
suas bolsas a pessoas físicas. Eu mesmo tive
a oportunidade de ser agraciado com uma,
no ano de 2002, quando fiz uma pesquisa
sobre a importante contribuição da bailari-
na Eros Volusia (1914-2004) para nossa
dança, e que foi, inclusive, transformada em
livro, compondo a coleção Perfis do Rio, da
editora carioca Relume Dumará, no ano de
2004. Ah, e também me lembrei da bolsa
que recebi entre 1998 e o início de 2002, do
CNPq, para que eu pudesse fazer meu dou-
torado. A ajuda mensal era depositada numa
conta bancária aberta em meu nome. E as-
sim pude fazer minha pesquisa.
Quem são as pessoas jurídicas que fari-
am uma pesquisa sobre a vida de uma bai-
larina como a Eros Volusia? Ou que se de-
dicariam a pesquisar o jazzdance no Brasil?
Como solucionar esse caso e deixar mais
transparente o que é uma realidade que to-
dos conhecemos, mas que simplesmente
não é levada em conta na elaboração de
editais como esses?
Eu gostaria, confesso, de ser o proponen-
te – físico – do meu projeto, ser responsável
por ele, responder por ele, receber por ele.
Acho que é isso. E sei que isso pode ser pos-
sível.
Enfim, meu projeto não foi, pela segun-
da vez, selecionado. Todos os livros que
comprei pensando em sua futura realização,
e todo o material que venho colecionando
ao longo desses três anos, acreditando que
ele um dia seria viabilizado financeiramen-
te, tudo isso deve ganhar apenas um lugar
em minha estante.
Pelas evidências que se impõem, acho
mesmo que está na hora de desistir dele. E
ficar torcendo, por mim e por todos os pes-
quisadores de teoria da dança no Brasil, que
a desistência seja apenas deste projeto.
ENTÃO , O PROJETO
O Jazzdance no BrasilHistórias de um corpo em swing
Introdução
A história da dança no Brasil, em sua
amplitude e complexidade, deixa flagrar
uma situação um tanto urgente: muito
ainda está por ser realizado, levando-se
em conta estéticas diversas, momentos
históricos diversos e especificidades con-
textuais diversas.
Há mais de 20 anos venho me dedi-
cando a contar um pouco dessa história.
Em minha pesquisa de doutorado, por
exemplo, debrucei-me sobre a análise
dos balés do começo do século XX, perí-
odo de sua formação no País, relacionan-
do-os com toda a influência de um perío-
do histórico determinado, a saber, o Es-
tado Novo e sua ideia de brasilidade. Em
paralelo a esse trabalho, pude escrever e
publicar a biografia de cinco grandes bai-
CONTINUA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
289
larinos (ver currículo em anexo), que, em
suas vidas, narravam também a própria
história da dança brasileira.
Ao ter trafegado, em meus estudos, ine-
vitavelmente, pela dança que se fazia em te-
atros de revista, shows de cassinos e em fil-
mes musicais (ou chanchadas), pude perce-
ber como toda uma produção de dança
voltada principalmente para o entreteni-
mento carecia ainda de uma investigação
histórica.
Nesse sentido, mais adiante, comecei
a me interessar por um movimento que
assaltou a dança brasileira, sobretudo
nas décadas de 1970 e 1980, e que se
tornou o lugar desse mesmo entreteni-
mento (sobretudo através de programas
de televisão), ao mesmo tempo que
apontava novos caminhos para essa
mesma dança brasileira: o jazzdance.
Passados alguns anos, pude observar
que esse movimento poderia, enfim, ser
observado historicamente. Tal observa-
ção, contudo, não deveria ser tomada
como a necessidade de um mero levan-
tamento de dados, mas antes como uma
rica ferramenta para se entender muito
do que se promove em dança hoje no País,
sobretudo no que diz respeito à formação
de bailarinos de importantes companhi-
as contemporâneas.
Assim, a abertura do programa Fantás-
tico, da Rede Globo de Televisão, o grupo
Dzi Croquetes, composto apenas de ho-
mens travestidos, a novela Baila Comigo,
as companhias de dança Bandança e Va-
cilou Dançou, no Rio de Janeiro, e Raça
Cia. de Dança, em São Paulo, a remonta-
gem brasileira de Chorus Line, as acade-
mias de Joyce Kermman, a extinta revis-
ta Dançar e as influências de Lenny Dale
no Rio de Janeiro e Redha Benteifour em
São Paulo configuram-se como alguns dos
muitos ícones de uma época em que o
chamado “boom do corpo” tomou a cena
da dança brasileira, ao mesmo tempo que
ainda se vivia sob os rastros fortes da cen-
sura de uma ditadura militar vigente.
Este projeto anseia visitar esse mo-
mento bastante peculiar da dança brasi-
leira, pois além de representar um capí-
tulo ainda não escrito em sua história,
nele também é possível detectar algumas
pistas para o entendimento da formação
de um determinado tipo de bailarino
hoje, muitas vezes requisitado em com-
panhias de dança contemporânea que se
faz no País.
JJJJJustificativustificativustificativustificativustificativaaaaaPensar a história desse movimento, o
jazzdance, dentro da história da dança
do Brasil e no Brasil, permite observar
como tanto sua estética quanto sua téc-
nica ainda perduram nos tempos atuais,
pensando basicamente em duas frentes:
na dança contemporânea e na dança de
rua. Como essa estética resiste ainda
hoje? Quais são os grupos e/ou coreó-
grafos que ainda assinam composições
assumidamente feitas sob sua rubrica?
Como sua técnica é hoje ensinada? Que
tipo de bailarino ela forma? Onde eles
estão dançando hoje?
Responder tais perguntas, já por se-
rem elaboradas, justifica a pertinência
desse projeto hoje no contexto de pes-
quisa não apenas histórica, mas estética,
CONTINUA
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
290
de boa parte da dança que se faz hoje
neste país.
ObjetivoObjetivoObjetivoObjetivoObjetivo
Este projeto tem como objetivo fazer um
levantamento histórico do jazzdance na
dança brasileira, especialmente nas três
últimas décadas do século XX, nas cida-
des de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Entrevistas filmadas com os princi-
pais personagens desta história, levan-
tamento do material iconográfico, como
programas, cartazes e fotografias, levan-
tamento das críticas e reportagens de
jornais e revistas, assim como levanta-
mento dos registros em vídeos, tanto dos
acervos pessoais como dos programas
de televisão, sobretudo os da Rede Glo-
bo, do SBT e da TV Cultura, formam a
matéria-prima dessa pesquisa, que deve
ser apresentada em forma de texto, de
CD-ROM contendo as imagens em ge-
ral, além de uma compilação dos vídeos
em DVD. Todo esse rico material pode-
rá ser transformado em publicação pos-
teriormente.
MetodologiaMetodologiaMetodologiaMetodologiaMetodologia
A pesquisa histórica será feita a partir de:
• Pesquisa nos acervos da Biblioteca
Nacional.
• Pesquisa no Banco de Dados da Rede
Globo de Televisão, do SBT e da TV
Cultura.
• Pesquisa iconográfica e histórica nos
acervos pessoais dos personagens des-
sa história.
• Entrevistas com personagens residen-
tes nas cidades do Rio de Janeiro, de
São Paulo e de Belo Horizonte, assim
como no exterior.
• Pesquisa e leitura de bibliografia espe-
cializada.
Alguns nomes de possíveisAlguns nomes de possíveisAlguns nomes de possíveisAlguns nomes de possíveisAlguns nomes de possíveis
entrevistados podem ser citadosentrevistados podem ser citadosentrevistados podem ser citadosentrevistados podem ser citadosentrevistados podem ser citados
Alejandro Ahmed, Alexandre Magno,
André Vidal, Betina Guelman, Betty Fa-
ria, Caio Nunes, Carlota Portella, Ciro
Barcelos, Cláudia Raia, Cláudio Tovar,
Cristina Helena, Dalal Achcar, Daniela
e Denise Panessa, Déborah Bastos, De-
nise Millet, Djenane Machado, Elizabe-
th Oliosi, Fernanda Chama, Henrique
Rodovalho, Ismael Guiser, Jacqueline
Motta, João Saldanha, Jorge Fernando,
Juan Carlo Berardi, Luiz Boronini, Már-
cia Barros, Maria Lúcia Priolli, Marly
Tavares, Mário Nascimento, Maysa Tem-
pesta, Nádia Nardini, Nino Giovanetti,
Priscila Teixeira, Regina Sauer, Renato
Vieira, Rose Calheiros, Roseli Rodrigues,
Silvia Matos, Silvia Soter, Soraya Bastos,
Suzana Braga, Tânia Nardini, Tatiana
Leskova, Tony Nardini, Vilma Vernon e
Washington Cardoso.
Ficha técnica e número deFicha técnica e número deFicha técnica e número deFicha técnica e número deFicha técnica e número de
pessoas envolvidas no projetopessoas envolvidas no projetopessoas envolvidas no projetopessoas envolvidas no projetopessoas envolvidas no projeto
• Idealizador, coordenador e
pesquisador: Roberto Pereira
• Escaneamento e produção de imagem
• Produção de CD ROM
• Produção de DVD
• Revisão de texto
Número de pessoas envolvidas
no projeto: 5 (cinco)
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
291
Bibliografia
ALZER, Luiz André e CLAUDINO, Mariana. Al-manaque anos 80, Rio de Janeiro: Ediouro, 2004BA H I A NA, Ana Maria. Almanaque anos 70, Riode Janeiro: Ediouro, 2006CAYO U, Dolores Kirton. Modern Jazz Dance, SanFrancisco: National Press Books, 1971F O RT U NATO, Joanne. “A new perspective of JazzD ance” In: Encores for Dance, W ashington:AAHPER publication, 1978GÜNTHER, Helmut. Jazz Dance – Geschichte,Theorie, Praxis, Berlin: Henschel Verlag, 2005KOEGLER, Horst. The concise Oxford Dictionaryof Ballet, Oxford: Oxford University Press, 1987MAIOR, Marcelo Souto. Almanaque da TV Globo,Rio de Janeiro: Editora Globo, 2007MARX, Henry. Die Broadway Story, Viena: Econ,1986
NOVAES, Adauto. Anos 70 – Ainda sob a tempes-tade, Rio de Janeiro: Aeroplano e Senac Rio, 2005PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Viva o rebolado!Vida e morte do teatro derevista brasileiro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1991
PEREIRA, Roberto. A formação do balé bra-sileiro, Rio de Janeiro: FGV, 2003SEGUIN, Eliane. Histoire de la danse jazz, Paris:Chiron, 2005SEVCENKO, Nicolau et alli. Anos 70: Trajetórias,São Paulo: Iluminuras, 2006STEARNS, Marshaal e STEARNS, Jean. JazzDance: The Story of AmericanVernacular Dance, Nova York: Shirmer Books, 1968SUCENA, Eduardo. A dança teatral no Brasil, Rio
de Janeiro: Minc/Fundacen, 1988
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
292
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
293
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
294
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
295
Este livro foi produzidona cidade do Rio de Janeiro
pela Fundação Nacional de Artes – Funartee impresso na Imo’s Gráfica e Editora, Rio de Janeiro – RJ
no quarto trimestre de dois mil e novecom fotolitos fornecidos pela Funarte
AO LADO DA CRÍTICA: 10 ANOS DE CRÍTICA DE DANÇA – 1999-2009
296