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Apontamentos para pensar a articulação entre Cultura e Tecnologia no campo da Comunicação Fernanda Gonçalves Caldas 1 Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar apontamentos sobre a relação entre Cultura e Tecnologia no campo da comunicação. Por meio de Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman (Paul Du Gay et al, 1997), da Televisão: tecnologia e forma cultural (2016) de Raymond Williams e Dos meios às mediações: comunicação, cultura e sociedade (2008) e Deconstrucción de la crítica: Nuevos itinerarios de la investigación ( 2001) de Martín-Barbero, busca-se traçar propostas metodológicas que contribuam para o entendimento dessa articulação, a partir dos Estudos Culturais. Palavras-chave: Cultura, Tecnologia, Estudos Culturais, Tecnicidades. Em seu livro Palavra-Chaves, Raymond Williams demonstra a instabilidade e vinculação ao tempo de ideias e conceitos considerados universais e eternos. Entre outros, os termos cultura e tecnologia são abordados de forma a demonstrar o caráter dinâmico e de produção social contínua da linguagem. Cultura aparece então apresentada como uma das palavras mais complicadas da língua inglesa. Willians examina suas transformações históricas não somente em inglês, como também em francês e alemão e define três categorias de uso: (I) descreve processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético; (II) indica um modo particular de vida, seja de um povo, período, geração e (III) de forma próxima ao (I), expõe as obras e as práticas da atividade particular, em especial, a artística. Já Tecnologia aparece, no século XVII como sendo “estudo sistemático das artes (cf, ARTE) ou a terminologia de uma arte específica”, a partir do século XVIII, 1 Mestranda em Comunicação Social pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas Faculdade de Comunicação Universidade Federal da Bahia (Póscom/Facom/UFBA). [email protected]

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Apontamentos para pensar a articulação entre Cultura e Tecnologia no

campo da Comunicação

Fernanda Gonçalves Caldas1

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar apontamentos sobre a relação entre Cultura e Tecnologia no campo da comunicação. Por meio de Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman (Paul Du Gay et al, 1997), da Televisão: tecnologia e forma cultural (2016) de Raymond Williams e Dos meios às mediações: comunicação, cultura e sociedade (2008) e Deconstrucción de la crítica: Nuevos itinerarios de la investigación ( 2001) de Martín-Barbero, busca-se traçar propostas metodológicas que contribuam para o entendimento dessa articulação, a partir dos Estudos Culturais. Palavras-chave: Cultura, Tecnologia, Estudos Culturais, Tecnicidades.

Em seu livro Palavra-Chaves, Raymond Williams demonstra a

instabilidade e vinculação ao tempo de ideias e conceitos considerados

universais e eternos. Entre outros, os termos cultura e tecnologia são

abordados de forma a demonstrar o caráter dinâmico e de produção social

contínua da linguagem. Cultura aparece então apresentada como uma das

palavras mais complicadas da língua inglesa. Willians examina suas

transformações históricas não somente em inglês, como também em francês e

alemão e define três categorias de uso: (I) descreve processo de

desenvolvimento intelectual, espiritual e estético; (II) indica um modo particular

de vida, seja de um povo, período, geração e (III) de forma próxima ao (I),

expõe as obras e as práticas da atividade particular, em especial, a artística. Já

Tecnologia aparece, no século XVII como sendo “estudo sistemático das artes

(cf, ARTE) ou a terminologia de uma arte específica”, a partir do século XVIII,

1 Mestranda em Comunicação Social pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas – Faculdade de Comunicação – Universidade Federal da Bahia (Póscom/Facom/UFBA). [email protected]

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como “descrição das artes, especialmente as mecânicas”. Posteriormente, sua

associação com a área de Ciências atribui uma distinção entre ciências,

atrelada a conhecimento, e sua aplicação prática, denominada de Tecnologia

(WILLIAMS, 2007, p. 392). O autor ainda diferencia técnica, construção ou

método específico, tecnologia, um sistema desses meios e métodos, e

tecnológico, como sistema crucial em qualquer produção que se distinguiria de

aplicações específicas. Aqui vale destacar a observação de Williams, no

conjunto de entrevistas publicado em A Política e as Letras de 2013: “[...]

historicamente há certas situações da linguagem que são repressivas. Fala-se

da linguagem como um meio de expressão, mas ela é também, evidentemente,

um meio de seleção” (ibidem, p. 178).

O autor retorna sua abordagem histórica dos conceitos, em especial da

cultura, em outras obras, entre elas Marxismo e Literatura e The Long

Revolution, onde apresenta a cultura definida enquanto processo, que se

modifica e se produz nas relações com a sociedade. Lugar de tensões e

disputas de poder, no qual nada está fixado ou pré-estabelecido. Mesmo

quando há continuidades, existem pressões constantes. Em resumo, “(...) não

é apenas um corpo de trabalho intelectual e imaginativo; ela é também e

essencialmente todo um modo de vida” (Williams, 2016, p. 349). Itania Gomes

(2011) complementa esse entendimento:

Williams procede a uma transformação radical do conceito de cultura e dos modos possíveis de se fazer análise cultural: enquanto resposta a novos desenvolvimentos políticos e sociais, a cultura articula, ao mesmo tempo, elementos exteriores, da estrutura, e elementos da experiência pessoal, privada (p.31).

Para ampliar a definição, Barbero (2008):

[...] a cultura escapa a toda compartimentalização, irrigando a visa social por inteiro. Hoje são/sujeito objeto de cultura tanto a arte quanto a saúde, o trabalho ou a violência, e há também cultura política, do narcotráfico, cultura organizacional, urbana, juvenil, de gênero, cultura científica, audiovisual, tecnológica etc (p.14).

Já tecnologia abrange diversas áreas e pode ser pensada para fins

específicos, que, não necessariamente, irão definir seus usos. São diversas as

áreas em que a tecnologia pode ser produzida e operar, no entanto, o termo

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será aqui utilizado para pensar as tecnologias da comunicação. Sua análise

articulada à cultura buscará lançar um olhar sobre a tecnologia e seu papel na

sociedade, de modo a enfraquecer uma concepção meramente instrumental,

evidenciando que, mais que uma ferramenta ou simples recurso, um objeto

mediático é uma formação cultural.

Partindo desse entendimento, o presente artigo busca analisar como se

constitui as relações entre tecnologia e cultura no campo da Comunicação.

Antecipa-se que a abordagem analítica será feita à luz dos Estudos Culturais,

campo de estudo que considera o processo ativo e consciente de construção

de sentido na cultura como foco central.

Algumas questões servirão como guia para o entendimento dessa

complexa articulação que será aqui abordada: como a tecnologia opera em sua

relação com a cultura e a comunicação? Como pensá-la para além de

materialidade técnica? Obras que fizeram referências a objetos mediáticos

tidos como “revolucionários” serão aqui trabalhados, a exemplo do Walkman e

da Televisão. No entanto, o esforço aqui empenhado não pretende se limitar a

um objeto real ou virtual, seja ele novo ou não. Anseia-se, por ora, a

aproximação de estudos que abordem a relação dialética entre tecnologia e

cultura no campo da comunicação.

Para além dos artefatos técnicos

Em Doing cultural studies: The Story of the Sony Walkman, Paul Du Gay

et al (1997) traz o entendimento da técnica/artefato para além do objeto em si.

A análise do produto é feita por meio da apresentação do circuito da cultura.

Metodologia que utiliza a divisão em cinco instâncias, representação,

identidade, produção, consumo e regulação, sua estrutura é pensada de forma

que a interpretação do artefato seja feita considerando a totalidade do

processo. Com seu caráter interdisciplinar, o circuito se configura como um

importante mecanismo analítico para compreensão de qualquer artefato

cultural, seja ele técnico ou representativo, afastando-se, assim, de um viés

meramente tecnológico.

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Assim, para estudar o Walkman, os autores pensaram em: como ele é

representado, quais identidades sociais são associadas a ele, como é

produzido e consumido, por fim, quais mecanismos regulam sua distribuição e

uso. Da obra, conclui-se que o objeto em si não possui significado, ele é

configurado por meio da representação da linguagem, tanto oral quanto visual,

e surge a partir das práticas sociais, ou seja, dos usos que se faz dele. O

Walkman é apresentando então como um artefato cultural, responsável

também por práticas de significação, como tornar a música mais móvel ou

promover uma experiência privada de apreciação musical, por exemplo. É,

assim, fundamentalmente cultural.

O Walkman se encaixa num mundo em que as pessoas estão literalmente se movendo mais. Mas também é projetado para um mundo em que a mobilidade social do indivíduo com relação ao seu grupo social também aumentou. O Walkman maximiza a escolha individual e a flexibilidade (DU GAY et al., 1997, p. 24, tradução nossa)2.

No subcapítulo “a cultura na era da reprodução eletrônica”, Du Gay et al.

(1997, p. 21-24) fazem referência ao uso da tecnologia, ao comentarem sobre

o ensaio “The work of art in the age of mechanical reproduction” (1970) de

2 “The Walkman fits a world in which people are literally moving about more. But it is also designed for a world in which the social mobility of the individual with respect to his or her social group has also increased. The Walkman maximizes individual choice and flexibility” (DU GAY et al., 1997, p. 24).

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Walter Benjamin, que apontava que a reprodução mecânica afetaria a

unicidade e autenticidade da obra de arte e resultaria na perda da “aura” dos

objetos artísticos, porém, o fenômeno também propiciava à população uma

nova interação com a obra. Du Gay et al abordam que as novas tecnologias, a

serviço da produção cultural, trazem uma reprodutibilidade eletrônica que

interfere não apenas como esse artefato é produzido tecnicamente, mas

também como ele é produzido culturalmente. Presume-se, então, que

tecnologias de comunicação e informação estimulam as formas pelas quais

enxergamos e experimentamos o mundo, mas também produzem e são os

próprios produtos da sociedade em que vivemos.

Em toda a parte, você vai encontrar uma ligação estreita entre a cultura e a mídia, entre os significados e práticas que formam a base de toda a cultura moderna e os meios tecnológicos - a mídia - pelo qual muito (embora não toda) dessa cultura é agora produzido, circulado, usado ou apropriado. Nenhum estudo da cultura tardia moderna poderia permitir-se negligenciar - como parte essencial do estudo da cultura como um todo - o rápido desenvolvimento de novas mídias. Nós incluímos neste termo as tecnologias reais, as instituições corporativas (como a Sony) que fabricam, vendem e distribuem - agora em escala global - os "meios" e os "significados" que sustentam o processo cultural, bem como seu papel econômico e função. Hoje, a produção e o consumo em escala global de "bens culturais" representam uma das atividades econômicas mais importantes. Além disso, cada uma dessas novas tecnologias de mídia tem um conjunto particular de práticas associadas a ele - uma maneira de usá-las, um conjunto de conhecimentos, ou "know-how", o que às vezes é chamado de tecnologia social. Cada nova tecnologia, por outras palavras, sustenta a cultura e produz ou reproduz culturas. Cada um gera, por sua vez, um pouco de "cultura" própria3 (DU GAY et al, 1997, p.23, tradução nossa).

3 “Throughout, you will find a close connection being drawn between culture and the media, between the meanings and practices which form the basis of all modern culture and the technological means - the media - by which much (though not all) of that culture is now produced, circulated, used or appropriated. No study of late-modern culture could afford to neglect - as an essential part of the study of the culture as a whole - the rapid development of new media. We include in this term the actual technologies, the corporate institutions (like Sony) which manufacture, sell and distribute - now on a global scale - both the "means" and the "meanings" which sustain the cultural process as well as their economic role and function. Today, the production and consumption on a global scale of 'cultural goods' represents one of the most important economic activities. In addition, each of these new media technologies has a particular set of practices associated whit it - a way of using them, a set of knowledges, or "know-how", what is sometimes called a social technology. Each new technology, in other words, both sustains culture and produces or reproduces cultures. Each spawns, in turn, a little 'culture' of its own” (DU GAY et al, 1997).

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A articulação intrínseca entre Tecnologia e Cultural é relatada também

em Televisão: tecnologia e forma cultural (2016) de Raymond Williams. Na

obra, a TV e a esfera social são vistas como instâncias indissociáveis. Como o

subtítulo do livro retrata, Williams utiliza dois caminhos para estudar a

Televisão: o primeiro aborda a tecnologia a partir de seu desenvolvimento

histórico, ou seja, enquanto invenção associada a outras inovações

tecnológicas; o segundo enquanto forma de expressão de cultura, abordando

seus discursos e aspectos constitutivos, a exemplo do fluxo televisivo e as

formas da TV. Expoente do Materialismo Cultural – conceito que faz analogia

ao materialismo econômico, porém rejeita a separação entre vida material e

vida cultural e critica as noções estáticas de infraestrutura e superestrutura, no

qual o último seria um reflexo determinado do primeiro –, Williams trouxe a

reflexão sobre a nova tecnologia presente em sua época e a sua inserção na

cultura cotidiana. Ele fugiu do caráter determinista do meio e ampliou o olhar

social da TV a partir de um mecanismo de reflexão social, cultural, política e

científica. Considerou, dessa forma, o conjunto de práticas materiais e

discursivas, os quais, como parte de um processo de constituição mútua, estão

inseridos produtores, telespectadores, instituições sociais e agentes diversos.

Assim, Williams, complexificou as noções de causa e efeito do campo

comunicacional, destacando a necessidade analítica de fugir do senso comum

que considerava um “novo mundo”, “nova sociedade” ou “nova fase da história

sendo criada” em razão de determinada tecnologia. De forma crítica, apresenta

duas premissas de senso comum que isolam a tecnologia da sua relação com

a sociedade, ambas sob o ponto de vista de olhar a TV como artefato que

alterou o mundo que vivemos: a primeira marcada pela descoberta da

tecnologia em um âmbito essencialmente interno de pesquisa e produção seria

responsável por estabelecer mudanças sociais e de progresso, é classificada

no campo do determinismo tecnológico; já a segunda, de caráter menos

determinista, considera a tecnologia como decorrente de um sintoma ou de

alguma necessidade da sociedade, e traz afirmações, por exemplo, de que se

não fosse a TV, alguma outra mídia exerceria a função manipuladora ou de

entretenimento.

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Williams busca fugir desse lugar comum. Mais do que um projeto

autônomo, a tecnologia é definida por questões sociais e culturais. Reconhece-

se o papel das grandes corporações no seu desenvolvimento técnico, no

entanto, ela não depende “das propriedades fixadas do meio de comunicação

nem do caráter necessário de suas instituições, mas de ação e lutas sociais

continuamente renováveis” (WILLIAMS, 2016, p. 143).

Compartilhando a olhar de Williams, Jesus-Martín Barbeiro, citando

Ordónez (1995), informa que entender a TV é entender a nossa época.

Adiciona ainda que a TV existiria para cumprir muitas das funções que eram

atribuídas à literatura (informação, entretenimento, gostos etc). Outra de suas

contribuições é pensar os fenômenos da comunicação a partir do Mapa das

Mediações.

A mediação da tecnicidade

Para Martín-Barbero (2001), a premissa que designa à técnica o núcleo

central da chamada Era da Informação confunde e não considera as

complexas mediações existentes na sociedade. “Uma coisa é reconhecer o

peso decisivo dos processos e das tecnologias de comunicação na

transformação da sociedade e outra bem distinta é afirmar aquela enganosa

centralidade e suas pretensões de totalização do social" (MARTÍN-BARBERO,

1990, p.10 apud KNEWITZ, 2010, p. 27). Desvaloriza, assim, a memória

histórica, confere ingenuamente o poder de remediar todos os males cotidianos

e reduz a comunicação ao campo da inovação tecnológica.

A questão tecnológica suscita a reflexão sobre a comunicação um de seus desafios mais graves. Concebida como um mero instrumento por séculos - acidente e nenhuma substância, exterior e não interior, manifestação e não verdade - a técnica supera esta divisão que apaga seu lugar no pensar apenas quando a antropologia (Mauss, 1970 / Leroi-Gourhan, 1971, 1989 ) reflete sobre a tecnicidade como uma dimensão constitutiva de qualquer sociedade: organizador perceptual, que articula na prática a transformação material com a inovação discursiva. Mais do que os aparelhos, a tecnicidade, em seguida, encaminhará o projeto de novas práticas e, ao invés de

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habilidades, a competência na linguagem4 (MARTÍN-BARBERO, 2001, p.22, tradução nossa).

Visualizando a necessidade de ultrapassar a perspectiva midiacêntrica,

Martín-Barbero escreve Dos meios às mediações (2008). Na obra, o autor

apresenta o Mapa das Mediações como uma proposta metodológica de análise

que abrange as “complexidades nas relações constitutivas entre comunicação,

cultura e política” (ibidem, p.15). O esquema é projetado pela união de dois

eixos: o diacrônico, entre Matrizes Culturais e Formatos Industriais, e o eixo

sincrônico, entre Lógicas de Produção e Competências de Recepção. As

mediações da institucionalidade, tecnicidade, sociabilidade e ritualidade, por

sua vez, encontram-se presentes nessas articulações.

Figura 2: Reprodução do Mapa das Mediações (MARTÍN-BARBERO, 2008, p.16).

Para o estudo aqui realizado, faz-se importante a exploração da

tecnicidade5, operador de análise que medeia as Lógicas de Produção e

4 “La cuestión tecnológica plantea a la reflexión sobre la comunicación uno de sus desafios más sérios. Pensada como mero instrumental durante siglos – acidente y no substancia, exterior y no interior, manifestación y no verdade – la técnica supera esa escisión que borra su lugar em el pensar sólo cuando la antropologia (Mauss, 1970/ Leroi-Gourhan,1971;1989) reflexiona sobre la tecnicidade como dimensión constitutiva de cualquier sociedad: organizador perceptivo, que articula em la prática la transformación material com la innovación discursiva. Más que a los aparatos, la tecnicidade remitirá entonces al diseño de nuevas prácticas y, más que a las destrezas, a la competência en el linguaje” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p.22). 5 A mediação da ritualidade está entre os formatos industriais e competências de consumo, diz respeito às gramáticas de uso. A socialidade, entre matrizes culturais e competências de recepção, resulta dos modos e usos coletivos de comunicação. A institucionalidade, por sua

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Formatos Industriais, Martín-Barbero é categórico ao falar que é “menos

assunto de aparatos do que de operadores perceptivos e destrezas

discursivas” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p.18). Ele ressalta a importância de

não confundir comunicação com os meios ou as técnicas e afirma que o papel

da tecnicidade é operar como um sensorium que conecta as inovações com os

modos de percepção e experiência social. Sendo mais que aparatos técnicos, a

tecnicidade é entendida como competência de linguagem e se configura como

uma importante mediação para entender as transformações no campo da

cultura relacionados à articulação com diversas mídias, sejam elas novas ou

velhas.

Gutmann (2013) esclarece que:

São as materialidades no discurso que remetem à constituição de gramáticas que dão origem aos formatos midiáticos, recuperando o original sentido do termo grego techné, que remetia ao saber fazer, à habilidade de expressar através de formas materiais, destreza que se atualiza com base nos modos de lidar com a linguagem. A tecnicidade não se refere aos instrumentos, mas aos saberes, à constituição de práticas discursivas, aos modos de percepção social (GUTMANN, 2014, p.111).

As tecnicidades não apenas dialogam com os novos dispositivos

tecnológicos, como também com os novos contextos econômicos, políticos e

sociais provenientes da globalização. Ao mesmo tempo, enquanto

competências de leitura, a mediação da tecnicidade tenciona formações

discursas.

[...] A estratégica mediação da tecnicidade se delineia atualmente em um novo cenário: o da globalização, e em sua conversão em conector universal no global (Milton Santos). Isso se dá não só no espaço das redes informáticas como também na conexão dos meios – televisão e telefone – com o computador, restabelecendo aceleradamente a relação dos discursos públicos e relatos (gêneros) midiáticos com os formatos industriais e os textos virtuais. As perguntas geradas pela tecnicidade indicam então o novo estatuto social da técnica, o restabelecimento do sentido do discurso e da práxis política, o novo estatuto da cultura e os avatares da estética” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 37-38)6.

vez, aparece entre lógicas de produção e matrizes culturais, é lugar de disputas de interesses, demarcada por grupos, maiorias e minorias. 6 “[…]La mediación estratégica de la tecnicidad se plantea actualmnete en un Nuevo escebario: el de la globalización, y su convertirse em conector universal em lo global (Santos, 1996). Ello no sólo em el espacio de las redes informáticas sino em la conexión de los médios – televisión y telefono – com la computadora, replanteando de manera acelerada la relación de los

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O autor aborda o desafio de assumir o que ele chama de espessura

social e cultural das novas tecnologias da comunicação, seus modos

transversais de presença em diversas esferas da sociedade, sem, contudo, cair

no discurso fantasioso de converter a comunicação em mera tecnologia,

esgotando assim questões como a luta de classe, por exemplo. A

transformação da sensibilidade que emerge da configuração de objetos

nômades e maleáveis são, para Martín-Barbero, um desafio para as Ciências

Sociais. Há a crise do espaço nacional em razão da globalização, que

destituiria o laço orgânico da cultura por meio de seu território e da língua, fator

que acarretaria uma séria ameaça à sobrevivência da diversidade cultural, ao

mesmo tempo que proporcionaria uma desocultação do diferente. Os atuais

processos de comunicação seriam responsáveis, é importante destacar, pela

intensificação do intercâmbio entre as culturas, de uma forma, nunca vista

antes. Esta abertura, o contato com experiências e linguagens, implica na

transformação da própria cultura. A tecnologia é, assim, convertida em

Ecossistema Comunicativo, rearticulando relações entre a comunicação e a

cultura.

Uma das consequências importantes dessa mudança na visão da

relação entre cultura, tecnologia e comunicação é que há uma reintegração de

uma dimensão que tinha sido desvalorizada no contexto de uma

tradicionalidade ocidental: as dimensões estéticas. A partir dessas

transformações, Martín-Barbero também define a tecnologia a partir do ponto

de vista antropológico: como um organizador perceptivo, ou seja, que “[...]

articula a transformação material com a inovação discursiva”7 (2001, p. 37,

tradução nossa).

A aproximação entre a experimentação tecnológica e estética faz surgir, neste fim desencantado de século, um novo parâmetro de

discursos públicos y los relatos (géneros) mediáticos com los formatos industriales y los textos virtuales. Las preguntas abiertas por la tecnicidade apuntan entonces al nuevo estatuto social de la técnica (Vários autores, 1996), al replanteamento del sentido del discurso y la práxis política, al nuevo estatuto de la cultura, y a los avatares de la estética” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 37-38). 7 “[...] articula la transformación material com la innovación discursiva” (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 37).

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avaliação da técnica, além de sua mera instrumentalidade econômica ou sua funcionalidade transformacional de época que experimenta nossa sociedade, e o desviar/subverter a fatalidade destrutiva de uma revolução tecnológica prioritariamente dedicada, de uma maneira direta ou indireta, para aumentar o poderio militar. A relação entre arte e pontos de comunicação, assinala, em seguida, tanto mais que um processo de difusão de estilos e de modas, a reafirmação da criação cultural como espaço próprio daquele mínimo de utopia sem o qual o progresso material perde o sentido da emancipação e se transforma na pior das alienações (MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 34, tradução nossa)8.

Também para Navarro (2001), a investigação da comunicação não pode

se limitar aos estudos dos meios, “sejam eles tecnológicos ou não, novos ou

não”. De forma semelhante aos autores citados anteriormente, ele afirma que o

campo comunicacional deve ser reconhecido como lugar de produção social de

sentido. Neste espaço, não caberia à tecnologia ser reduzida somente a um

objeto externo às práticas socioculturais. Mais do que pensar os meios e as

mensagens, o autor acredita em um movimento epistemológico e metodológico

que envolva os sujeitos sociais e os processos de produção de sentido,

deslocando a perspectiva tecnológica, formada por elementos positivistas, para

a lógica do sensível.

A complexa dialética tecnologia/cultura exige ser repensada, revista, redefinida e "vuelta a dar" [...] Nunca como hoje foram tão grandes as possibilidades que oferece a tecnologia e nunca como hoje essas possibilidades foram ignoradas, ocultadas ou desperdiçadas. A questão da tecnologia - feita por excelência filosófica, como apontada por Heidegger -, merece um tratamento mais matizado e sutil do que a história da tecnologia ou a cegueira sociológica que geralmente se prestam. A etnotecnologia põe em manifesto as principais interferências entre a produção da subjetividade por parte dos meios [...] e as formas concretas de encarnação do indivíduo no mundo social com os meios ou contra eles. (PISCITELLI, 1995, p. 19-20 apud NAVARRO, 2001, p. 237)9.

8 “El acercamiento entre la experimentación tecnológica y la estética hace emerger, em este desencantado fin de siglo, um nuevo parâmetro de evaluación de la técnica, distinto al de su mera instrumentalidade económica o su funcionalidade transformaciones de época que experimenta nuestra sociedade, y el de desviar/subvertir la fatalidade destructiva de uma revolución tecnológica prioritariamente dedicada, de manera directa o indirecta, a acrecentar el poderio militar. La relación entre arte y comunicatión senãla entonces, tanto a más que um processo de difusión de estilos y de modas, la reafirmación de la creación cultural como el espacio próprio de aquel mínimo de utopia sin el cual el progresso material perde el sentido de emancipación y se transforma em la peor de las alienaciones” ( MARTÍN-BARBERO, 2001, p. 34).

9 “La compleja dialética tecnologia/cultura exige ser repensada, revisada, redefinida y “vuleta a dar” [...] Nunca como hoy fuero tan grandes las possibilidades que oferece la tecnologia y

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Conclusão

Para pensar quaisquer aparatos técnicos relacionados aos meios de

comunicação, é de suma importância reconhecer que existem sim

determinações de diferentes tipos, mas elas existem enquanto pressões e não

como formas de controle. Pois a mídia ou artefato fazem parte de um

emaranhado de escolhas, seus usos podem ser dar de maneira não prevista.

As tecnologias midiáticas encontram-se, portanto, por meio dessas definições,

em aberto.

O “novo mundo” gerado pelas “novas tecnologias” mostra-se

fundamentado em diversas temporalidades que convocam tradições e

inovações, mas que passam longe dos elementos da mera instrumentalidade.

Nesse lugar, operam elementos arcaicos, residuais, emergentes e dominantes,

que convivem entre permanências e rupturas. Logo, há disputas já que o

surgimento de uma nova tecnologia sustenta, produz e/ou reproduz culturas.

Foi assim com o Walkman, com a Televisão e, para trazer para um espaço

temporal mais próximo, com os Smartphones, Ipads, Computadores, TV Digital

etc.

Em tempos de recursos cada vez mais móveis, de integração e

convergência, é fácil usar o discurso que a sociedade estaria sendo moldada

unilateralmente por esses artefatos, que eles seriam responsáveis pela

separação de indivíduos e mudanças de narrativas. No entanto, expomos aqui

a necessidade, especialmente para investigadores sociais, de recusar tanto a

visão de um determinismo tecnológico quanto de uma tecnologia determinada.

nunca como hoy estas possibilidades se ignoraron, ocultaron o despilfarraron, La cuestión de la tecnologia – hecho filosófico por antonomásia, como bién senãla Heidegger-, merece um tratamento más matizado y sutil que el que la historia de la tecnologia o la cegueira sociológica generalmente le prestan. La etnotecnología pone de manifesto las principales interferências entre la producción de la subjetividade por parte de los médios [...] y las formas concretas de encarnación del individuo em el mundo social com los médios o contra ellos” (PISCITELLI, 1995, p 19-20 apud NAVARRO, 2001, p. 237).

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Ambas as visões eliminam a história e, consequentemente, o mundo

contemporâneo.

Em suma, pelas contribuições ofertadas pelos autores aqui

apresentados, evidencia-se que as tecnologias, inseridas no contexto de meios

de comunicação, não podem ser separadas da sua relação com a cultura,

configurando-se como organizadores perceptivos, tanto individuais quanto

coletivos, que acionam competências de leituras. O olhar sobre eles deve

considerar sua presença transversal na sociedade e as complexas mediações

produzidas neste espaço.

Referências

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GUTMANN, J.F. Entre tecnicidades e ritualidades: formas contemporâneas

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