Apostila de História, Arte e Cultura - 2013-2-1ª Parte_P1

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  • Cultura e Literaturas

    Africanas e Afro-Brasileira

    Universidade Veiga de Almeida

    Curso de Letras

    RJ, 2013 - 2 semestre

    Professora: Cristina Prates

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    Mapas Polticos do Continente e Africano

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    Texto I Mia Couto: Um retrato sem moldura1

    Aconteceu num debate, num pas europeu. Da assistncia, algum me lanou a seguinte pergunta: Para si, o que ser africano? Falava-se, inevitavelmente, de identidade versus globalizao. Respondi com uma pergunta: E para si, o que ser europeu? O homem gaguejou. No sabia responder. Mas o interessante que, para ele, a questo da definio de uma identidade se colocava naturalmente para os africanos. Nunca para os europeus. Ele nunca tinha colocado a questo ao espelho. Recordo o episdio porque me parece que ele toca uma questo central: quando se fala de frica, de que frica estamos falando? Ter o continente africano uma essncia facilmente capturvel? Haver uma substncia extica que os caadores de identidades possam recolher como sendo a alma africana? Leila Leite Hernandez conhece a resposta. Ou melhor, a impossibilidade da resposta. Afinal, a prpria pergunta que necessita ser interrogada. So os pressupostos que carecem ser abalados. E onde se enxergam essncias devemos aprender a ver processos histricos, dinmicas sociais e culturas em movimento. A frica vive uma tripla condio restritiva: prisioneira de um passado inventado por outros, amarrada a um presente imposto pelo exterior e, ainda, refm de metas construdas por instituies internacionais que comandam a economia. A esses mal-entendidos somou-se uma outra armadilha: a assimilao da identidade por razes da raa. Alguns africanos morderam essa isca. A afirmao afrocentrista sofre, afinal, do mesmo erro bsico do racismo branco: acreditar que os africanos so uma coisa simples, uma categoria uniforme, capaz de ser reduzida a uma cor de pele. Ambos os racismos partilham o mesmo equvoco bsico. Ambos se entre ajudaram numa ao redutora e simplificadora da enorme diversidade e da complexidade do continente. Ambos sugerem que o ser africano no deriva da histria, mas da gentica. E no lugar da cultura tomou posse a biologia. Outro lugar-comum nesses exerccios de dar rosto ao continente africano o peso concedido tradio. Como se outros povos, nos outros continentes, no tivessem tradies, como se o passado, nesses outros lugares, no marcasse o passo do presente. Os africanos tornam-se, assim, facilmente explicveis. Basta invocar razes antropolgicas, tnicas ou etnogrficas. Os outros, europeus ou americanos, so entidades complexas, reservatrio de relaes sociais, histricas, econmicas e familiares. Leila Leite Hernandez esteve atenta a todo este universo de equvocos. Seu texto percorre esse mar de enganos e constitui-se como um permanente alerta. Como ela escreve a dado passo: [...] a frica ao sul do Saara, at hoje conhecida como frica negra, identificada por um

    1 IN: HERNANDEZ, Leila Leite. Prefcio para o livro A frica em sala de aula- visita histria contempornea.

    So Paulo: Selo Negro 2005.

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    conjunto de imagens que resulta em um todo indiferenciado, extico, primitivo, dominado, regido pelo caos e geograficamente impenetrvel. esta a marca primeira e mais profunda dessa procura em Leila Hernandez: o desfazer permanente de esteretipos e o convite para um olhar aberto, disponvel e crtico. Leila Leite Hernandez conhece bem os terrenos minados dessa procura de identidades. Todo seu percurso, ao longo deste texto, um aviso aos falsos navegantes. O destino, aqui, a prpria viagem. So as dinmicas prprias e os conflitos particulares que definem identidades plurais, complexas e contraditrias. O rosto do continente s existe em movimento, no conflito entre o retrato e a moldura. A sala de aula para a qual Leila est conduzindo a frica no um lugar fechado, mas uma proposta de uma relao nova com algo que se pensava, de antemo, j conhecer.

    Mia Couto

    Texto II Continente africano: uma ferida ocidental

    Cristina Prates

    Para visitarmos o continente africano, preciso, antes de mais nada, aproximarmo-nos da complexidade que envolve conceitos como capitalismo e colonizao, cultura e etnias, identidades e diferenas, positivismo, multiculturalismo, interdisciplinaridade e tantos outros. S atravs dessa conceituao terica torna-se possvel delinear o contexto scio-poltico, econmico e cultural capaz de elucidar o trajeto e o projeto da to dramtica e conturbada histria da frica. Selecionamos, para iniciar os nossos estudos, o texto O olhar imperial e a inveno da frica, primeiro captulo do livro frica na sala de aula visita histria contempornea, da cientista poltica, pesquisadora e professora da PUC de So Paulo, Doutora Leila Leite Hernandez, que comentaremos a partir de agora. Dividido em trs segmentos A frica inventada, Repensando o continente africano e frica: um continente em movimento, o texto de Hernandez provoca a reviso dos conceitos preconceituosos incutidos pela viso eurocntrica a respeito do continente africano. Para desconstru-los, a autora se vale de segurssima argumentao, fundamentada numa ampla bibliografia, rigorosamente selecionada, no sentido de manter uma coerncia ideolgica em todo o percurso textual. Questionando a perspectiva ocidental que nos apresenta a viso deturpada de uma frica branca e desenvolvida (as regies setentrionais e meridionais do continente) e uma frica Negra selvagem, sem povo nem histria (a regio subsaariana), a autora desenvolve uma profunda reviso crtica desses conceitos, conseguindo comprovar a presena de um continente multifacetado, plurigeogrfico, pluritnico e multicultural, com imprios riqussimos como os de Mali, um comrcio ativo de mercadorias, um representativo intercmbio cultural de vrios povos. Nesse sentido, as informaes provocam e inquietam o leitor que, seduzido pela complexidade do tema, desejar se inscrever nas margens do texto, estabelecendo com ele um dilogo produtivo. Foi exatamente isso que ocorreu com a nossa leitura, quando, algumas vezes, movidos pela curiosidade, vagueamos por outras fontes em busca de conceitos que alargassem nossos conhecimentos. Sabemos ser esse apenas o incio de um longo trajeto, mas fica-nos a certeza de que o caminho foi aberto por pesquisadores que verdadeiramente acreditaram numa viagem histrica de imerso, da qual nos trouxeram essa frica que, lutando contra todas as adversidades, alimenta seus filhos com uma rica tradio cultural, e no aquela frica como um continente marcado pela

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    incompetncia para conduzir a si prprio, reduzida ao locus mundial da misria humana, condenado dor e ao sofrimento sem fim, como encerra o texto de Leila Hernandez.

    1. SCULO XIX: UMA FRICA SEM HISTRIA 1.1. O paradigma aristotlico Para compreendermos o longo e cruel domnio da Europa sobre o continente africano, faz-se necessria uma reflexo de como o pensamento ocidental tem conseguido manter, durante sculos, a certeza de sua superioridade e de seu poder hegemnico. Esse binmio superior/inferior encontra-se amplamente defendido j no sculo V a.C quando Aristteles justificava e defendia a escravido. Pautando-se nos princpios da noo biolgica da hierarquia inaltervel das espcies fixas, cincia e sociedade se mesclam oportunamente a ponto de, no seu livro Potica, o filsofo distinguir o senhor do servo a partir apenas das diferenas corporais, como podemos comprovar nesta passagem do Livro I:

    19. A natureza distinguiu os corpos dos escravos e do senhor, fazendo o primeiro forte para o trabalho servil e o segundo esguio e, se bem que til para trabalho fsico, til para a vida poltica e para as artes, tanto na guerra quanto na paz. Contudo, o contrrio muitas vezes acontece isto , que alguns tenham a alma e outros tenham o corpo dos homens livres. E, sem dvida, se os homens diferem uns dos outros, na mera forma de seus corpos tanto quanto as esttuas dos deuses diferem dos homens, tudo indica que as classes inferiores devem ser escravos das superiores. Se isso verdade quanto ao corpo, no mais do que justo que diferena similar exista entre almas? Mas a beleza do corpo pode ser vista e a da alma, no. 20. evidente, portanto, que alguns homens so livres por natureza, enquanto outros so escravos, e que para estes ltimos a escravido conveniente e justa. (ARISTTELES, Livro I,19)

    A forma diferente dos corpos implica, segundo o fragmento transcrito, diferena similar entre as almas, ou seja, noes biolgicas e fsicas se estendem, inclusive, metafsica, para se corroborar o fato de, tendo o escravo alma de escravo, estar, pois, destitudo do poder de fazer cincia ou filosofia, de investigar, enfim, o sentido e a finalidade da vida... Como mestre de Alexandre, Aristteles se ope ao domnio do imperador sobre o Oriente, cujos povos brbaros jamais se adaptariam ao regime poltico dos gregos, inseparvel do seu temperamento, confirmando inelutvel segurana na superioridade da plis. O pensamento aristotlico impe, portanto, verdades absolutas, e, ao defender uma certa aptido de alguns sobre a incapacidade de outros, torna-se seno a matriz, mas o paradigma do olhar imperial que o Ocidente lana sobre o universo, como veremos a seguir.

    1.2. Cincia e superioridade No captulo O olhar imperial e a inveno da frica, a escritora Leila Leite Hernandez tece comentrios sobre equvocos, pr-noes e preconceitos sobre a frica apresentados em um conjunto de textos, particularmente aqueles escritos nas ltimas dcadas do sculo XIX at meados do sculo XX. (HERNANDEZ, 2005, p.187) Uma das razes para tal viso equivocada assenta-se, exatamente, no conceito de superioridade do Ocidente sobre o Oriente que, de Aristteles, passando pelo pensamento

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    racionalista do Renascimento, chega ao sculo XVIII sob as luzes de sistemas classificatrios que, pautados nas Cincias Naturais, buscaram enquadrar o gnero humano em categorias ou variedades. Estarrece-nos, hoje, por exemplo, a sistema criado pelo mdico sueco Carl Linn (1707 1778) que, utilizando o esquema reprodutor das plantas como classificador, estabelece um conjunto hierrquico que agrupa os seres vivos em grupos mais abrangentes. Hernandez cita um fragmento do livro Systema naturae exatamente no momento em que Linn apresenta as cinco variedades do Homo Sapiens: o homem selvagem, o americano, o europeu, o asitico e na quinta categoria, viria o africano, cuja descrio aqui transcrevemos:

    e) Africano. Negro, fleumtico, relaxado. Cabelos negros, crespos: pele acetinada; nariz achatado, lbios tmidos; engenhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo capricho. (HERNANDEZ, 2005, p.119)

    Eis a plasmada a inferioridade do africano cuja incapacidade revela-se nos adjetivos pejorativos como fleumtico, relaxado, indolente, negligente e que, dominado pelas paixes, contrape-se ao modelo do racionalismo ocidental. Prosseguindo a apresentao do pensamento europeu, a autora inclui as idias que o filsofo alemo Friedrich Hegel (1770 1831) defendeu a respeito da superioridade europia em relao sia e frica, sob o ponto de vista geogrfico, material e espiritual. Hegel concebe, ainda, a diviso do continente africano em trs partes distintas: a parte setentrional, ligada Europa pelo Mediterrneo, e que, segundo ele, pertenceria no frica, mas sim Espanha; a segunda parte do continente seria representado pela frica meridional, que contm o Egito e, finalmente, a frica propriamente dita, aquela que fica ao sul do Saara, identificada pela escurido, barbrie e selvageria: No tem interesse histrico prprio, seno o de que os homens vivem ali na barbrie e na selvageria, sem fornecer nenhum elemento civilizao.(...) Nesta parte principal da frica, no pode haver histria, afirma, convicto, o filsofo alemo.(Hernandez, 2005, p. 20) Dessa forma, o pensamento hegeliano confirma, mais uma vez, a viso deturpada do pensamento europeu que, autocentrado, estigmatiza como inferior aquilo que lhe desconhecido. Cria-se, assim, a idia de uma frica branca, ocidentalizada e mediterrnea, distinta e separada pelo deserto do Saara, de uma outra frica, cujos habitantes so biologicamente classificados atravs de uma noo de raa, marcada pela inferioridade e primitivismo. Alis, essa relao classificatria solidifica-se no final do sculo XIX, quando as teorias do bilogo ingls Charles Darwin (1809 1882), a respeito da origem das espcies por meio da seleo natural, foram apropriadas por pensadores, como o filsofo e historiador francs Hyppolyte Taine (1828 1893), que tentou explicar tanto as obras artsticas como os fatos histricos atravs dos trs fatores, raa, meio e tempo. Surgem, a partir de ento, ideias que reforam o preconceito racial, que fortalecem as relaes entre o tipo fsico e o carter moral, tais quais as defendidas pelo mdico e psiquiatra italiano Cesare Lombroso (1835 1909), fundador da antropologia criminal, que tentou relacionar certas caractersticas fsicas psicopatologia criminal, ou a tendncia inata de certos indivduos sociopatas com o comportamento criminal. Trata-se, aqui, do apogeu da filosofia positivista, do pensamento determinista, amplamente apoiados pela classe burguesa que neles encontrava subsdios contra as classes perigosas, ou seja, as classes menos favorecidas que levariam dentro de si o germe da degenerao e do crime. De fato, retomando ao excelente estudo de Leila Leite Hernandez, o conjunto de pensamentos que norteou o discurso poltico ideolgico do final do sculo XIX e incio do sculo XX garantia ao Velho Mundo conceitos que legitimavam o seu domnio sobre os povos brbaros, justificando-se, assim, as relaes de poder atravs do mito de um liberalismo salvador, que iria iluminar, por exemplo, a escurido africana.

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    Passamos, ento, a compreender melhor a proposta do Ocidente em relao frica subsaariana: fortalecidos em teorias que reforam os esteretipos raciais, os europeus inventaram uma frica para justificar tanto o trfico atlntico de escravos, como os genocdios na frica do Sul praticados pelos beres, e tambm a violncia colonialista contra as revoltas de escravos nas Amricas. (Hernandez, 2005, p.19) Dessa forma, o trfico negreiro e a colonizao da Amrica reforaram, mais uma vez, o binmio dominador/dominado, pautado, agora, no s na posio de poder, mas tambm no argumento de uma raa superior: o negro, marcado pela pigmentao da pele e transformado em mercadoria, torna-se smbolo de uma essncia racial, imaginria, ilusoriamente inferior, como constata, finalmente, Leila Leite Hernandez. (HERNANDEZ, 2005, p.23) Somente a partir dos meados do sculo XX, surgir uma nova historiografia capaz de questionar a viso eurocntrica, responsvel por uma ideologia discriminatria e preconceituosa atravs da qual se edificou um conhecimento tendencioso sobre a frica. No segmento Repensando o continente africano, a professora Leila Leite Hernandez ir abordar essa nova histria agora contada pelas narrativas orais, ou recriada pelos estudos antropolgicos da herana artstica e cultural da frica.

    2. SCULO XX: A FRICA E SUA HISTRIA 2.1. Identidades e diferenas

    Contrariando os pressupostos histrico-poltico da ciso entre as fricas, a no-historicidade da frica Negra e os esteretipos raciais, surgem, nos meados do sculo XX, novas fontes de estudos que resgatam o passado africano, buscando elementos de identidade cultural solapados pelo colonialismo. (Hernandez, 2005, p.23) At o fim do sculo XVIII, os europeus que freqentavam as costas do continente apresentavam, predominantemente, interesses privados, havendo soberania estrangeira apenas na costa de Angola e Moambique (portugueses), na Gmbia britnica e no Senegal francs. a partir de 1870 que se inicia a valorizao da frica Negra, com a explorao comercial, a construo de ferrovias, a explorao de minas, ou seja, a denominada colonizao moderna. Interesses europeus provocaram a realizao da Conferncia de Berlim, realizada entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, da qual participaram quatorze pases europeus, Estados Unidos e Rssia e cujas decises resultaram em um mapa geopoltico da frica que desconsiderava completamente os direitos dos povos africanos e suas especificidades histricas, religiosas e lingsticas, ou seja, que traava fronteiras desconhecendo as da frica pr-colonial. Estava criada, assim, a estratgia para que a conquista do continente tivesse uma base legal. Feita a partilha da frica, os europeus promovem o choque cultural e acirram as contradies, como pudemos constatar, por exemplo, de forma dramtica, em Ruanda, onde, para dominarem, provocaram o dio e o radicalismo entre os hutus e os tootsies, o que resultou num dos maiores massacres da histria, uma chacina que, durante trs meses, vitimou entre meio a um milho de mortos, naquela terrvel primavera de 1994, como lamentavelmente constata Rysard Kapucinski (KAPUCINSSKI, 1998, pp. 189-208). So clssicos ainda os recentes casos dos srios conflitos em Serra Leoa, em Angola, na Libria, na Repblica Democrtica do Congo e no Sudo. Passamos, pois, a compreender melhor que a questo tnica, apontada como causa de praticamente todas as guerras internas na frica (seria) fruto da manipulao poltica, em grande parte das vezes, segundo interesses econmicos e polticos de alguns setores das elites africanas associados s empresas europeias e norte-americanas (HERNANDEZ, 2005, p. 69), como faz questo de ressaltar a historiadora. Somente com final da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu-se o processo de descolonizao: entre 1950 e 1960, mais de quarenta pases afro-asiticos conseguiram sua independncia, impulsionados pelo nacionalismo, pelo declnio do poderio europeu aps a guerra e pelo apoio da Organizao das Naes Unidas, que reconhecia seus direitos.

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    Para reconstruir a frica, ferida pelo capitalismo predador do Ocidente, ou, pelo processo de roedura, expresso de J. Ki-Zerbo, especialista em metodologia da Histria da frica (Hernandez, 2005, p. 44), necessrio se fez construir um discurso histrico africanista, ou seja, um discurso que questionasse os esteretipos criados pelo olhar do colonizador. Destacam-se, ento, as pesquisas que se debruam sobre a documentao encontrada em arquivos da frica e da Europa e que, atravs de uma viso crtica, comprovam o intercmbio entre as duas fricas e ressaltam a historicidade das sociedades subsaarianas, vistas at ento de forma simplista e preconceituosa. Alm desses trabalhos de investigao histrica, Leila Hernandez tambm registra a importncia da criao de sociedades e revistas cujos ensaios se voltam para a elaborao da histria da frica descolonizada. o caso, por exemplo, da Socit Africaine que, a partir de 1947, dedicou-se a elaborar uma histria da frica descolonizada. Fortalecendo a histria, tradio e cultura africanas, surge, ainda, o pan-africanismo, que, como movimento formal poltico, inaugura-se em 1900, na Conferncia Pan-Africana, realizada em Londres, organizada pelo advogado de Trinidad, Sylvester Willians, e da qual participa W. E. B. Dubois (1868 1963), responsvel pela organizao dos quatro congressos Pan-Africanos que seriam realizados ao longo de meio sculo, conforme nos afirma Elisa Larkin Nascimento. (NASCIMENTO, 1981, p.87) No discurso proferido por Dubois, em julho de 1900, o autor apelava conscincia humana da Civilizao Ocidental, atravs de mensagens Rainha da Inglaterra, no sentido de corrigir os males provocados pelo colonialismo, como o sistema degradante e ilegal de trabalho, a servido legalizada dos nativos assim como a humilhante segregao racial. Apesar do carter ainda conservador dessa Conferncia, Larkin Nascimento a ela atribui relevante importncia por ter sido a primeira reunio poltica de intelectuais negros do mundo africano inteiro, convocada explicitamente na base de sua histria e herana comum. (NASCIMENTO, 1981, p.92) Ressalta-se, ainda, a importncia do garveysmo, corrente fundada pelo jamaicano Marcus Garvey (1919 1927), atravs da Associao Universal para o Avano Negro (UNIA), que conseguiu organizar o proletariado e as massas negras marginalizadas, englobando em suas fileiras muitos pases e milhares de pessoas. De fundamental importncia para a legitimao da histria africana, foi tambm o papel do movimento cultural da Negritude, palavra empregada pela primeira vez no jornal L tudiant Noir, fundado em setembro de 1934, pelo antilhano Aim Csaire (1913 ), pelo senegals Lopold Senghor (1906 2001), ambos estudantes, em Paris, do Lyce Louis Le Grand, e que, junto com outros jovens africanos como Damas, Birago Diop, manifestaram-se contra a imagem do negro pacfico, incapaz de construir uma civilizao, deixando-se assimilar culturalmente. Trata-se, pois, de valorizar a cultura e os valores espirituais africanos e demonstrar uma reao opresso cultural do sistema colonial francs. Vale a pena, registrar aqui, o depoimento de Aim Csaire que, entrevistado pela escritora guadalupeana Maryse Conde, relata-nos, agora aos 90 anos, as circunstancias histricas em que surgiu a Negritude.

    AC: Jamais me coloquei esta questo. No tenho nenhuma pretenso particular. Disse o que pensava, disse o que eu acreditava. No sei se tenho ou no razo, mas permaneo fiel a isso e frica fundamental. J me deformaram, transformaram, caricaturaram muito. Acredito simplesmente no homem. No sou de maneira alguma racista. Respeito o homem europeu. Conheo sua histria. Respeito o povo francs. Respeito todos os homens quaisquer que eles sejam, mas penso tambm que preciso lhes fazer a lio e lhes dizer que o homem negro, isso existe, e que a ele tambm preciso respeitar. Por que eu disse Negritude? No de maneira alguma porque eu acredito na cor. No de maneira alguma isso. preciso sempre ressituar as coisas no tempo, na Histria, nas circunstancias. No se esquea de que, quando a negritude nasceu, na

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    vspera da segunda guerra mundial, a crena geral, no liceu, na rua, era uma espcie de racismo subjacente. H a selvageria e a civilizao, a dos europeus todos os outros eram selvagens. claro, h pessoas mais ou menos brutais ou mais ou menos inteligentes. Lisez Gobineau. At mesmo em Renan, fiquei perturbado, encontrei pginas absolutamente extraordinrias. Bem entendido, a opinio pblica deforma, vulgariza. At mesmo os negros... Lembro-me ainda que, um dia eu estava perto da biblioteca Sainte-Genevive, um grande tipo vem em direo a mim, um homem de cor.Ele me diz: Csaire, gosto muito de voc, mas h uma coisa que eu reprovo em voc. Por que fala assim da frica? um bando de selvagens. No temos mais nada a ver com eles. Eis o que ele me disse. terrvel! At mesmo os negros estavam convencidos disso. Eles estavam penetrados de valores falsos. contra isso que se tratava, e que se trata, ainda, de reagir. E depois, um belo dia, Lopold Sedar Senghor disse: Estamos pouco nos lixando! Negro? Mas sim, sou um negro! E da?! E eis aqui como nasceu a negritude: o que era proferido e lanado na cara como um insulto trazia a resposta: Mas sim, sou negro,e da?!. ( Em: 26/07/2007. pp.7-8)

    De fato, a ocidentalizao do continente africano provocava o que Csaire denominou de valores falsos, a deformao e a caricatura contra os quais se insurgem os movimentos pan-africanistas e as lutas antiimperialistas a partir dos quais se inicia uma aliana concreta e progressista com uma dispora unida, o que, contemporaneamente, Stuart Hall denominar de Traduo, ou seja, homens que so o produto das novas disporas criadas pelas migraes ps-coloniais. (HALL, 2005, p. 89) Reformulam-se, agora, na ps-modernidade, ou modernidade tardia, os conceitos de etnia e tradio, a idia de nao e cultura, num mundo em que, rompidas as fronteiras, criam-se novas identidades, de forma que a identidade e a diferena esto inextrincavelmente articuladas ou entrelaadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra. (HALL, 2005, p. 87) As culturas hbridas, como as denomina Hall, talvez possam, simbolicamente, estar representadas atravs da belssima cena que o escritor Kwame Anthony Appiah, nascido em Gana e hoje professor titular de estudos africanos e de filosofia na Universidade de Havard, descreve no prefcio do seu livro Na casa de meu pai, quando relata sua experincia pessoal ao presenciar a convivncia de seus sobrinhos e afilhados, nove crianas das mais variadas origens, identificando, nesse quadro, o que deveria ser o rumo de novos tempos: Ao v-las brincando juntas e falando umas com as outras com seus sotaques variados, sinto, pelo menos, uma certa esperana no futuro humano. a essas nove crianas a quem Appiah, alm do seu pai, dedica o seu livro :Essas crianas, meus sobrinhos e afilhados, tm aparncias que vo da cores dos cabelos dos parentes achantis de meu pai at os ancestrais vikings de meu cunhado noruegus; tm nomes provenientes do Iorub, de Achanti, dos Estados Unidos, da Noruega e da Inglaterra. (APPIAH, 2008, p.11). Retornando, mais uma vez ao texto de Leila Leite Hernandez, a autora, aps eleger o pan-africanismo como movimento que aprofundou as especialidades histrico-culturais na frica (HERNANDEZ, 2005, p. 25), o que comprovamos nas pginas anteriores, ressalta a importncia da releitura crtica dos textos de autores do Velho Mundo como Zurara, Cadamosto, Diogo Gomes, Andr lvares DAlmada e Leo, o africano, nos seus relatos de viagens pelo Saara e suas incurses pela costa do Atlntico. Destacam-se, ainda, as obras de I.B.N. Battuta e I.B.N. Khaldun, datadas do sculo XIV que trazem tona conhecimentos sobre as regies ocidental-central da frica, assim como relatos do Imprio do Mali. Tais conhecimentos, junto com outros manuscritos de viajantes das mais diversas profisses e interesses, traam um papel da heterogeneidade do continente africano, suas especificidades, fortalecendo a identidade dos Estados-Nao, recm-formados a partir de 1960, e desconstruindo, assim, a homogeneidade das tribos africanas.

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    Compe ainda, esse novo perfil de uma frica plural, a constatao da variedade e qualidade das cermicas, peas de osso, ferro, vidro e metal cujo estudo arqueolgico aponta preciosas informaes sobre regies e povos, sobretudo daqueles que no possuam nem escrita, nem crnicas orais. Finalmente, caber s narrativas orais a responsabilidade de esclarecer as diferentes organizaes sociais e polticas, a natureza dos movimentes migratrios e as mudanas histricas dos sculos XVIII e XIX dos vrios povos grafos que compunham o continente. (Hernandez, 2005, p. 28) importncia, dos guardies da palavra falada, soma-se o papel dos tradicionalistas, ou seja, aqueles encarregados de transmitir a palavra como elemento sagrado. Como lhes dado o poder da revelao, cumpre-lhes a obrigao de nunca se desviar da verdade. Conhecedores das tradies, exercem um importante papel de integrao, tanto no campo religioso quanto na rea profissional, dos elementos da sua comunidade. Quanto oralidade, a autora destaca ainda a figura dos griots, contadores de histria que, auxiliados pela msica e pela coreografia, tornam-se os animadores pblicos, transmitindo as tradies, os feitos dos valorosos heris, modelos de honra e coragem para o seu povo. Tambm como ruptura com o eurocentrismo, Hernandez ressalta o trabalho de Georges Balandier (HERNANDEZ, 2005, p. 33) e das pesquisas que questionam o conhecimento do continente sob o vis da escravido atlntica e do colonialismo dos sculos XV XVI, a partir do qual a frica e os africanos entrariam como objetos para a civilizao ocidental. Nesse sentido, vale a pena transcrevermos as consequncias de tais estudos, segundo a pesquisadora Lilian Hernandez:

    Vale dizer que, pouco a pouco, ainda que com avanos e recuos, foram postos em xeque os estudos que buscavam estabelecer uma correspondncia da cultura africana com a cultura ocidental. O eurocentrismo tornou-se sinnimo de sectarismo. Quanto s reflexes historiogrfica e antropolgica, passaram a apresentar novas perspectivas de compreenso da frica e dos africanos, numa tendncia chamada saber transformador. Descartam a existncia de uma frica subsaariana definida como um todo homogneo, indiviso e esttico, marcado pelo primitivismo. H maior preocupao em identificar mitos fundadores, datas prprias e processos de transformao das sociedades pela capacidade de criarem-se e recriarem-se. (HERNANDEZ, 2005, p.33)

    Dessa forma, somente observando a frica de dentro da frica, tornou-se possvel constatar a heterogeneidade, a complexidade e o dinamismo sociocultural, como caractersticas prprias da historicidade africana, palavras de Balandier, citadas aqui por Leila Leite Hernandez (HERNANDEZ, 2005 pp. 32-3), sobre as quais buscaremos refletir a seguir.

    3.2. Uma complexa pluralidade O segmento, frica: um continente em movimento (HERNANDEZ, 2005, pp. 33-4) apresenta-nos, atravs de dados extrados de testemunhos escritos, como na frica pr-colonial de 1500 a 1800, estabeleceu-se um rico comrcio entre diferentes cidades e regies do continente, destacando-se, nas rotas transaarianas, o comrcio de escravos. A autora aponta trs possveis razes para a presena dessa escravido: as guerras internas causadas pelo rapto de mulheres, conflitos entre Estados e as guerras de expanso; a fome, ou a penhora humana, como forma de pagamento. Essa modalidade de escravido difere-se, entretanto, do trfico atlntico e do sistema de escravismo, no s em termos numricos, mas, sobretudo, por razes sociais e polticas. Na frica, filhos de escravos, por exemplo, alm de no serem vendidos, trabalharem nas esferas administrativas e militares ou, em outros casos, como o da penhora humana, podiam casar-se com pessoas livres, tinham acesso terra, sendo considerados membros da famlia do senhor.

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    Por outro lado, havia ainda a escravido resultante de acordos como, no caso entre o Egito e os reis da Nbia; no Segu, como meio de subjugar os pagos, ou a exportao do Sudo de homens e mulheres para as cortes egpcias e magrebinas. Mas era o mercado do ouro superior ao dos escravos, sendo, tambm, representativa a comercializao do sal, dos produtos agrcolas, do cobre, dos produtos manufaturados, da noz de cola, do gado bovino, das pedras preciosas, todos responsveis por importantes rotas que cortavam todo o continente. As pesquisas registram, ainda, a presena dos objetos de luxo, marfim, minrios de ferro e, no sculo XIV, o importante centro de Kilwa como importador de porcelana chinesa. Devido a essa complexa rede comercial, ocorre, claro, o dinamismo cultural, atravs do encontro dos mais diversos povos como os rabes, indianos, egpcios, persas, chineses, iraquianos, europeus, comprovando-se, pois, a existncia de uma frica plural, mas que mantm uma unidade histrica, desconstruindo, dessa forma, a idia de homogeneidade do continente africano, e demolindo, de forma radical, o preconceito de uma frica pobre, selvagem e primitiva, to necessitada dos cuidados do Ocidente. Encerrando, aqui, nossos comentrios sobre o captulo O olhar imperial e a inveno da frica, chegamos concluso da necessidade de revermos a histria desse continente, cujas riquezas e diversidades culturais foram, durante sculos, apagadas pela pretensa superioridade ocidental. Nesse sentido, torna-se relevante observarmos o continente africano a partir de dois eixos o que direcionou o pensamento do sculo XIX e o que orientou o do sculo XX a fim de confrontamos, de uma forma geral, duas linhas de pensamento antagnicas: no primeiro eixo, a viso positivista e que, pautada nas experincias das cincias naturais, ocasionou srias distores e preconceitos etnocntricos quando adaptada s cincias humanas; no segundo eixo, a presena de um novo olhar sobre a histria, que, de forma interdisciplinar, dialogando com a sociologia, a antropologia, a lingstica, a psicanlise e outros ramos do saber, desconstri a lgica linear, rompe hierarquias, abala modelos cannicos e classificatrios. De um lado, surge-nos a frica como lugar selvagem, atrasado, inculto; por outro lado, constri-se uma noo diferente do continente africano, rico em cultura e religiosidade, minrios e artes, como pudemos comprovar no texto de Leila Hernandez. Buscamos tambm ressaltar a questo da identidade africana que se fortalece com as lutas de independncia e que se expande atravs dos movimentos pan-africanistas, dos ideais da negritude, ou da complexidade identitria presente na dispora negra, com as culturas hbridas, como assim as nomeia Stuart Hall. Resta-nos muito a pesquisar, a conhecer... Ouvir as vozes de Aim Csaire, Leopold Senghor; ler romances de Mia Couto, os livros de Pepetela, e tantas sugestes apresentadas nessa nossa primeira incurso pelas terras africanas e pelas experincias dos afro-descendentes. Para trazer a frica ao cotidiano brasileiro, as mltiplas fricas com as quais diariamente convivemos, para verdadeiramente africanizar a histria brasileira, sabemos ser necessrio, antes de tudo, empreender essa expedio ao continente africano, aguar nossos ouvidos para escutar as histrias dos griots, compreender o uso das mscaras, incursionar na to complexa cosmogonia da religiosidade africana.

    3. BIBLIOGRAFIA ARISTTELES. Poltica. In: Os pensadores. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1989. APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. HERNANDEZ, Leila Leite. A frica na sala de aula visita histria contempornea. So Paulo: Editora Selo Negro, 2005. KAPUCINSKI, Rysard. bano Febre africana. So Paulo: Editora tica, 1998.NASCIMENTO, Eliseu Larkin. Pan-africanismo na Amrica do Sul. Petrpolis: Editora Vozes, 1981.

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    frica: uma ferida ocidental (Fichamento)

    1. SCULO XIX: UMA FRICA SEM HISTRIA

    Aristteles: Sculo V a.C > certa aptido de alguns sobre a incapacidade de outros; Carl Linn: (1707 1778) pelo mdico sueco > as cinco variedades do Homo Sapiens; Friedrich Hegel: (1770 1831): superioridade europia em relao sia e frica; Charles Darwin: (1809 1882) > origem das espcies por meio da seleo natural; Cesare Lombroso: (1835 1909), psiquiatra italiano; Velho Mundo: conceitos que legitimavam o seu domnio sobre os povos brbaros.

    2. SCULO XX: A FRICA E SUA HISTRIA

    Conferncia de Berlim (1884/1885) > Partilha da frica. Processo de descolonizao: final da Segunda Guerra Mundial. Discurso histrico africanista:

    Pesquisas que se debruam sobre a documentao encontrada em arquivos da frica e da Europa; Criao de sociedades e revistas cujos ensaios se voltam para a elaborao da histria da frica descolonizada. o caso, por exemplo, da Socit Africaine que, a partir de 1947, dedicou-se a elaborar uma histria da frica descolonizada.

    Pan-africanismo: 1. 1900, na Conferncia Pan-Africana, realizada em Londres, organizada pelo advogado de Trinidad, Sylvester Willians, e da qual participa W. E. B. Dubois (1868 1963), responsvel pela organizao dos quatro congressos Pan-Africanos; 2. Garveysmo, corrente fundada pelo jamaicano Marcus Garvey (1919 1927), atravs da Associao Universal para o Avano Negro (UNIA), que conseguiu organizar o proletariado e as massas negras marginalizadas, englobando em suas fileiras muitos pases e milhares de pessoas.

    Movimento da Negritude L tudiant Noir, fundado em setembro de 1934, pelo antilhano Aim Csaire (1913) pelo senegals Lopold Senghor (1906 2001), ambos estudantes, em Paris, do Lyce Louis Le Grand.

    Importncia da releitura crtica dos textos de autores do Velho Mundo como Zurara, Cadamosto, Diogo Gomes, Andr lvares DAlmada e Leo, o africano, nos seus relatos de viagens pelo Saara e suas incurses pela costa do Atlntico. Destacam-se, ainda, as obras de I.B.N. Battuta e I.B.N. Khaldun, datadas do sculo XIV que trazem tona conhecimentos sobre as regies ocidental-central da frica, assim como relatos do Imprio do Mali.

    frica plural: Variedade e qualidade das cermicas, peas de osso, ferro, vidro e metal cujo estudo arqueolgico aponta preciosas informaes sobre regies e povos, sobretudo daqueles que no possuam nem escrita, nem crnicas orais.

    Os guardies da palavra falada e os tradicionalistas, ou seja, aqueles encarregados de transmitir a palavra como elemento sagrado.

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    Figura dos griots, contadores de histria que, auxiliados pela msica e pela coreografia, tornam-se os animadores pblicos, transmitindo as tradies, os feitos dos valorosos heris, modelos de honra e coragem para o seu povo.

    Georges Balandier > saber transformador: a heterogeneidade, a complexidade e o dinamismo sociocultural, como caractersticas prprias da historicidade africana..

    frica pr-colonial de 1500 a 1800: estabeleceu-se um rico comrcio entre diferentes cidades e regies do continente, destacando-se, nas rotas transaarianas, o comrcio de escravos.

    Causas da escravido: 1. Guerras internas causadas pelo rapto de mulheres; 2. Conflitos entre estados e as guerras de expanso; 3. Penhora humana, como forma de pagamento. Escravido resultante de acordos como, no caso entre o Egito e os reis da Nbia; no Segu, como meio de subjugar os pagos.

    Complexa rede comercial: mercado do ouro, sal, dos produtos agrcolas, do cobre, dos produtos manufaturados, da noz de cola, do gado bovino, das pedras preciosas; objetos de luxo, marfim, minrios de ferro e, no sculo XIV, o importante centro de Kilwa como importador de porcelana chinesa.

    frica complexa e heterognea: complexa rede comercial, ocorre, claro, o dinamismo cultural, atravs do encontro dos mais diversos povos como os rabes, indianos, egpcios, persas, chineses, iraquianos, europeus, comprovando-se, pois, a existncia de uma frica plural, mas que mantm uma unidade histrica, desconstruindo, dessa forma, a idia de homogeneidade do continente africano, e demolindo, de forma radical, o preconceito de uma frica pobre, selvagem e primitiva, to necessitada dos cuidados do Ocidente.

    Sculo XIX: viso positivista e que, pautada nas experincias das cincias naturais, ocasionou srias distores e preconceitos etnocntricos quando adaptada s cincias humanas frica como lugar selvagem, atrasado, inculto.

    Sculo XX: novo olhar sobre a histria, que, de forma interdisciplinar, dialogando com a sociologia, a antropologia, a lingustica, a psicanlise e outros ramos do saber, desconstri a lgica linear, rompe hierarquias, abala modelos cannicos e classificatrios Continente africano, rico em cultura e religiosidade, minrios e artes.

    Texto III: O olhar imperial e a inveno da frica 2 Leila Leite Hernandez

    1. frica inventada (pp.17-23) 2. Repensando o continente africano (pp.23-33) 3. frica: um continente em movimento (pp. 33- 44)

    2 Hernandez, Leila Leite. frica na sala de aula: visita histria contempornea. So Paulo: Selo Negro. 2005

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    Texto IV: Fichamento do Texto III: o olhar imperial e a inveno da frica, Leila Leite Hernandez

    Cristina Prates Trs Ideias bsicas

    1 parte: A frica inventada frica como uma inveno construda por um olhar imperial.

    A viso preconceituosa como se a Histria estivesse comeando com a chegada dos europeus;

    Influncia das ideias racialistas: Aristteles, Xenofonte (sculo V a.C), Hegel, Darwin, Linn, Augusto Comte e as teorias evolucionistas frica Branca versus frica Negra;

    Conhecimento hegemnico e privilegiado do Ocidente: desconhecimento da complexidade do continente africano A frica no tem povo, no tem nao e nem Estado; no tem passado, logo, no tem histria;

    Ciso entre as fricas e esteretipos raciais: pretexto para justificar a barbrie ocidental.

    2 parte: Repensando o continente africano Uma nova historiografia, uma nova arqueologia, criao de centros

    de estudo, valorizao da oralidade, valorizao da histria por historiadores africanos;

    frica: continente multifacetado, multicultural, plurigeogrfico; Plurigeogrficos: desertos (Saara, Calahari); floresta tropical;

    savanas; rios (Nilo, Nger, Volta, Congo, Zambizi, Kwanza) Ruanda: Tibet da frica;

    Variedade de povos, lnguas, culturas. Norte: egpcios, lbios, nbios, etopes e uma variedade de povos nmades. Oeste: outros grandes imprios como Gana, Reino do Mali, Songhai;

    No Mali, uma grande cidade como elo entre a frica negra e o mundo muulmano, centro comercial de sal, ouro, tecidos, marfim: Tombuctu. frica Ocidental: muito afetada pelo comrcio de escravos com povos como os bambaras, mandingas, fulas e iorubs (Daom), em reas como Senegal, Benin, Nigria, Guin Bissau.

    Historicidade das sociedades subsaarianas: complexidade social e poltica; a frica tem uma histria antes da chegada dos europeus estudos arqueolgicos, complexidade tcnica e artstica (iorubs de If, Oi, Benin); tradio oral (os tradicionalistas e o conhecimento esotrico e os griots, contadores de histrias).

    3 parte: frica: um continente em movimento frica pr-colonial: de 1500 a 1800 redes comerciais internas

    desde o sculo VII, com o apogeu nos sculos XII a XVI; As diferenas entre a escravido na frica e o escravismo colonial e

    neocolonial; Os movimentos de descolonizao;

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    A importncia e a valorizao do comrcio intra-africano que a historiografia desconhecia;

    A pluralidade das atividades comerciais; Desconstri-se a idia de homogeneidade do continente africano A articulao entre colonialismo e racismo; Processo de roedura do continente africano desde o sculo XV,

    reforado pelo imperialismo colonial de fins do sculo XIX.

    Algumas observaes

    O capitalismo e sua histria 1) Pr-capitalismo: sculos XVI a XVII.

    Sculo XV * Mercantilismo / revoluo comercial; * Comrcio de longo curso / intercontinental; * Teoria de acumulao primitiva matrias primas; * Pr-capitalismo: relao metrpole / colnia. Sculo XVI

    * J havia um grande comrcio na frica; * Portugueses que negociam com os rabes; * Reis africanos (sobas) com portugueses;

    Exemplo: Rainha Ginga (ou Nzinga), rainha dos reinos de Ndongo e Matamba (Angola): viveu no sculo XVII, mesma poca de Zumbi: ora diplomtica, ora guerreira > catoliciza-se com o nome de Ana Souza, quando percebe que est perdendo o seu poder para os portugueses.

    2) Sculos XIX e XX: evoluo histrica do capitalismo Binmio razo / cincia: conceitos que legitimam e justificam as relaes de

    poder; Imperialismo Afro-Asitico; A partilha da frica; At o fim do sculo XVII, os europeus que frequentavam as costas africanas representavam antes interesses privados do que dos Estados; S havia soberania estrangeira na costa de Angola e Moambique (portugueses), na Gmbia britnica e no Senegal francs; A partir de 1870, inicia-se a colonizao moderna de valorizao da frica Negra, com explorao comercial, de minas e ferrovias.

    Os grandes tratados para as zonas de influncia: Conferncia de Berlim (15/11/1884 26/02/1885 rivalidades anglo-germnicas); Tratado Germano-Britnico (01/07/1890); Tratado Franco-Britnico (08/04/1904).

    A descolonizao Afro-Asitica * A importncia da independncia do Haiti (Toussant Louverture)

    * O Pan-Africanismo e sua trajetria 1- Movimentos da dispora;

    2 Tericos do Pan-Africanismo: Edward Blyden (1832-1912), antilhano; Du Bois (1868-1963) escritor americano e socilogo; Jarvey (1887-1940), jamaicano; Leopold Senghor (1926), senegals; Aime Csaire (1939), antilhiano da Martinica; Associao Africana.

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    3) Ideias Gerais: valorizao da ancestralidade; crtica tripla opresso (como negro , colonizado e trabalhador) ; aps a Segunda Guerra Conferncia de Bandung (1955) ; Revoluo Cubana (1959) ; Guerra Fria ( Estados Unidos e Unio Sovitica: 1950-1970) ; Questes contraditrias do prprio continente africano.

    4) Critica ps-colonial

    Ps-colonialismo (ou pscolonialismo) um conjunto de teorias que analisa os efeitos polticos, filosficos, artsticos e literrios deixados pelo colonialismo nos pases colonizados.

    Como teoria literria (ou abordagem crtica), lida com a literatura produzida em pases que outrora foram colnias de outros pases, especialmente das potncias coloniais europeias Gr-Bretanha, Frana e Espanha; em alguns contextos, inclui pases ainda em situao colonial. Tambm lida com a literatura escrita em pases coloniais e por seus cidados, que possuam integrantes das colnias como tema. Nativos das colnias, principalmente do Imprio Britnico, freqentaram universidades britnicas; seu acesso educao, ainda indisponvel nas colnias, criou uma nova forma de crtica, particularmente literria, e especialmente em romances. A teoria ps-colonial tornou-se parte dos recursos do crticos nos anos 1970; o livro Orientalism de Edward Said tido como a obra fundadora.

    Pensadores do Ps-colonialismo

    Edward Said: 3(1935- Jerusalm- Nova Iorque, 2003: nascido na Palestina, bero das trs maiores religies monotestas do planeta, e "exilado" desde a adolescncia nos Estados Unidos - onde construiu uma slida carreira acadmica -, Edward W. Said foi com certeza o intelectual palestino de maior e influncia no mundo. Orientalismo - o Oriente como inveno do Ocidente (Companhia das Letras, 1989)

    Stuart Hall (Kingston, 3 de fevereiro de 1932) um terico cultural jamaicano que trabalha no Reino Unido. Ele contribuiu com obras chave para os estudos culturais.

    A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A editora4 O livro compe-se de seis partes: 1 - A Identidade em questo; 2 - Nascimento e morte do sujeito moderno; 3 - As culturas nacionais como comunidades imaginadas; 4 - Globalizao; 5 - O global, o local e o retorno da etnia; 6 - Fundamentalismo, dispora e hibridismo. Segundo Stuart Hall, as "velhas identidades, que por longo tempo estabilizaram o mundo social, esto em declnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivduo. Na primeira parte do livro Hall trata das mudanas que vem ocorrendo nos conceitos de identidade e de sujeito. Stuart Hall desenvolve o argumento sobre identidades culturais sob o prisma de trs concepes de sujeito: a) o sujeito do Iluminismo; b) o sujeito sociolgico; c) o sujeito ps-moderno. O segundo captulo trata do descentramento do sujeito resultando em identidades mutantes, inacabadas e at contraditrias. No captulo 3, Stuart Hall discute as identidades nacionais como possibilidades de unificao e homogenizao. O captulo 4 pe em pauta a questo da globalizao e as possveis tenses entre o "global" e o "local" na transformao das identidades. O captulo 5 examina os efeitos da globalizao sobre as identidades.

    3 http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=568

    4 http://pt.shvoong.com/humanities/1785175-identidade-cultural-na-p%C3%B3s-modernidade/#ixzz1ViAxLjkP

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    Aponta ainda para a possibilidade de a globalizao produzir, simultaneamente, novas formas de identificaes globais quanto locais. O captulo 6 faz uma abordagem sobre o fundamentalismo, dispora e hibridismo. Segundo Stuart Hall, cada vez mais emergem-se identidades culturais que no so fixas, que esto em constante processo de transio. Hall conclui que, embora alimentada sob muitos aspectos, "a globalizao pode acabar sendo fonte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente".

    Da dispora: identidade e meditaes culturais. Liv Sovik (Org.) Belo Horizonte: Editor UFMG.

    Homi Bhabha.5 (1949, ndia-) o professor Anne F. Rothenberg de Literatura Inglesa e Americana, de Estudos AfroAmericanos e diretor do Centro de Humanidades na Universidade de Harvard. Conceito do entre - lugar da subjetividade ps-colonial O local da cultura, Belo Horizonte: UFMG O terico afirma que a cultura de referncia do lugar ps-colonial torna-se uma prtica de sobrevivncia e suplementaridade, reinscrevendo as "relaes culturais entre esferas de antagonismo social" (2003, p. 244). O conceito de cultura distancia-se, pois, do paradigma esttico ocidental e emerge de formas culturais no-cannicas produzidas no ato da sobrevivncia social: Reconstituir o discurso da diferena cultural exige no apenas uma mudana de contedos e smbolos culturais [...]. Isto demanda uma viso radical da temporalidade social na qual histrias emergentes possam ser escritas; demanda tambm a rearticulao do "signo" no qual se possam inscrever identidades culturais (2003, p. 240-1).

    Kwame Anthony Appiah6 APPIAH, Kwame Anthony. (Gana, 1954. Titular de estudos afro-americanos na Universidade de Harvard). Na casa de meu pai: a frica na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

    Publicado pela primeira vez em 1993, Na casa de meu pai recebeu trs prmios: o James Russel (da Modern Language Association), o Herskovits (melhor obra publicada em lngua inglesa sobre frica) e o Annisfield-Wolf Book. O livro de autoria do filsofo Kwame Anthony Appiah. Nascido na Inglaterra em 1954, e criado em Gana, Appiah j publicou centenas de artigos e dezenas de livros, que tratam de conceitos como raa, poltica, semntica, filosofia e literatura. O livro foi escolhido pelo grande nmero de professores e pesquisadores de histria da frica que o indicam como leitura de apoio. Alm disso, as anlises realizadas por Appiah so de extrema importncia para a compreenso da histria e da sociedade africana e enriquecem o conhecimento do historiador atravs de temas que, muitas vezes, no constituem objeto de sua pesquisa. Em Na casa de meu pai, Appiah faz uma coletnea de ensaios, cada um com um problema central, que apresentam grande interdisciplinaridade e discutem conceitos estudados e criados por autores de diversas nacionalidades, como norte-americanos, africanos e europeus. O autor realiza uma ampla abordagem das teorias e problemas das identidades raciais, tnicas, pan-africanas e nacionais e de como o papel assumido pelos intelectuais na vida poltica pode ser conhecido atravs desses.

    Texto IV Arte Africana

    5 http://www.ufrgs.br/cdrom/bhabha/comentarios.htm

    http://www.cefetsp.br/edu/eso/culturainformacao/sugestoespos.html 6 http://www.historiagora.com/dmdocuments/Historia7_resenha_appiah.pdf

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    1. Por dentro e ao redor da arte africana7

    Marta Helosa Leuba Salum (Lisy)

    Artigo baseado no texto de apoio do Caderno de Leituras da Ao Educativa (Monitoria) da exposio Arte da frica: obras-primas do Museu Etnolgico de Berlin no Centro Cultural Banco do Brasil, So Paulo. Revisto e adaptado em 6 de abril de 2004 para publicao neste site.

    Ao dizermos "artes da frica" (no plural), em vez de "arte africana", podemos estar enfatizando: a frica tem Arte. Isso de certa forma minimiza o modo como tem sido tratada a produo esttica dos africanos at nossos dias: como objeto cientfico. Sob o lema conhecer para melhor dominar, dizia-se que ela servia a rituais e sacrifcios selvagens e que era feita apenas de dolos toscos e disformes de fetiches. Mas, se todas as sociedades - antigas ou atuais - tm sua arte, ento por que a necessidade dessa nfase? Antes de mais nada, importante percebemos que, mesmo indiscriminada nos depsitos dos museus da Europa, essa - que se convencionou um dia chamar de arte africana - nunca deixou de resplandecer sua vitalidade eloquente. Apesar da depreciao e preconceito com que foi antes julgada, ela , hoje, procurada pelos grandes colecionadores e apreciadores internacionais de arte. Alm da produo dos artistas modernos e contemporneos da frica (alis, muito pouco difundidos entre ns) so muitas as artes desse grande continente, entre elas, as chamadas tradicionais. a essas criaes, vindas de centenas de culturas que se d o nome de arte africana como se fosse uma s! Atualmente so reconhecidas suas tcnicas milenares, suas formas sofisticadas e suas mos de artistas. A recente exposio das obras-primas da frica trazida ao Brasil pelo Museu Etnolgico de Berlim tentou mostrar que no h mscaras sem msica nem dana, e que h um design digno de nota desde tempos imemoriais na frica. Pois, de fato, a arte africana plural e multidimensional. Mas exposio nenhuma jamais poderia recuperar a fora das rochas, fontes e matas que abrigavam esttuas, nem o ambiente dos palcios, templos, altares em que se situavam. Formavam conjunto com outras peas e seu entorno: eram arquiteturais e espaciais, porm muitas no podiam ser tocadas, nem ao menos vistas. E da tirarmos: nem toda produo plstica da frica era visual.

    A arte africana no primitiva nem esttica. H peas datadas desde o sculo V a.C. atestando uma histria da arte africana, mesmo que ainda no escrita por palavras. certo que muitos dados esto irremediavelmente perdidos: objetos foram destrudos, queimados ou fragmentados ao gosto ocidental e moral crist; atelis renomados foram extintos e muitas produes interrompidas durante o perodo colonial na frica (1894-c. 1960). Mesmo assim, as peas dessa arte africana remanescente falam de dentro de si e por si mesmas atravs de volumes, texturas e materiais; veiculam um discurso estruturado reservado aos ancios, sbios e sacerdotes. Alguns artistas, como os do Reino de Benim, exerciam funo de escriba, descrevendo a histria do reino por meio de cones figurativos em placas de lato que teriam recoberto as pilastras do palcio real.

    O desenho de jias e as texturas entalhadas na superfcie de certos objetos da arte africana tambm constituem uma linguagem grfica particular. So padres e modelos sinalizando origem e

    7 Disponvel em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/textos_didaticos.html

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    identidade que aparecem tambm na arquitetura, na tecelagem ou na arte corporal. A arte africana multivocal.

    Por exemplo, o tratamento do penteado dado a esttuas e estatuetas pelos escultores revela, muitas vezes, o elaborado tranado do cabelo das pessoas, e, mesmo, a prtica cultural, em algumas sociedades, da modelagem paulatina do crnio dos que tinham status (caso dos mangbetu, do ex-Congo Belga, atual Repblica Democrtica do Congo-RDC). , para eles, ao mesmo tempo, expresso do belo. Atribuia-se significado at as matrias-primas empregadas na criao esttica elas davam fora obra, acrescida, por fim, quando ela ganhava um nome, uma destinao. Tornava-se, ento, parte integrante da vida coletiva. Por isso, diz-se que a arte africana uma arte funcional.

    A arte africana, porm, no apenas religiosa como se diz, mas, sobretudo, filosfica. A evocao dos mitos nas artes da frica um tributo s origens ao passado , com vistas perpetuao no futuro da cultura, da sociedade, do territrio. E, assim, essas artes relatam o tempo transcorrido; tocam no problema da espacialidade e da oralidade.

    Muitas esculturas, como a mscara kpeli dos senufo, no so feitas apenas para danar, mas para celebrar mitos. A estatueta feminina que vai no alto do crnio da face esculpida de que se constitui essa mscara, parece estar gestando, prestes a dar luz a um filho. O interessante que, em muitos exemplares similares, essa forma superior da mscara kpelino o de uma mulher, mas de um pssaro associado origem dessa cultura. Ela, assim como outras criaes estticas da frica, constela aspectos da existncia e do cosmo, ou seja, tudo o que envolve a humanidade o Homem em sua interioridade sensorial e na sua relao com o mundo ao redor. E nisso, vemos tambm que a arte africana dual.

    Algumas peas da arte africana, como as impressionantes esttuas de pregos dos bakongo, ou as dos basonge (ou ba-songye) (ambas sociedades da D.Congo), so, na verdade, um conglomerado composto por uma figura humana de madeira e uma parafernlia de outros materiais vegetais, minerais e animais. uma clara aluso conscincia do Homem sobre a magnitude da Natureza e de sua relao intrnseca com ela. Podemos dizer que vem desse dilogo entre continente- contedo, matria-pensamento, espao-energia - dilogo que caracteriza a arte na frica - o sopro que renova a Arte Mundial.

    2. frica: culturas e sociedades8 Marta Helosa Leuba Salum (Lisy)

    Texto do guia temtico para professores frica: culturas e sociedades, da srie Formas de humanidade, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo. Escrito em janeiro de 1999 e revisto e adaptado em julho de 2005 para publicao neste site.

    1. Parte: frica: cultura material e histria

    8 Disponvel em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/textos_didaticos.html

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    Para compreendermos a cultura material das sociedades africanas, a primeira questo que se impe a imagem que at hoje perdura da frica, como se at uma "descoberta", fosse esse continente perdido na obscuridade dos primrdios da civilizao, em plena barbrie numa luta entre Homem e natureza.

    De fato, a histria dos povos africanos a mesma de toda humanidade: a da sobrevivncia material, mas tambm espiritual, intelectual e artstica, o que ficou margem da compreenso nas bases do pensamento ocidental, como se a reflexo entre Homem e Cultura fosse seu atributo exclusivo, e como se Natureza e Cultura fossem fatores antagnicos.

    E isso que fez com que a distoro da imagem do continente africano, atingisse tambm os povos que ali habitavam. De acordo com as cincias do sculo XIX, inspiradas no evolucionismo biolgico de Charles Darwin, povos como os africanos estariam num estgio cultural e histrico correspondente aos ancestrais da Humanidade. Dotados do alfabeto como instrumento de dominao no apenas cultural, mas econmica tambm, os europeus estavam em busca de suas origens, sentindo-se no vrtice da pirmide do desenvolvimento humano e da Histria. Vem da as relaes estabelecidas entre Raa e Cultura, corroborando com essa distoro.

    Por isso, a histria da frica, pelo menos antes do contato com o mundo ocidental, em particular antes da colonizao, no pode ser compreendida tomando-se como referncia a organizao dominante adotada pelas sociedades ocidentais. Normalmente fica no esquecimento, dado ao fato colonial, que no existe uma frica anterior, a que se convencionou chamar frica tradicional, diversa e independente, com suas particularidades sociais, econmicas e culturais.

    As sociedades ocidentais, assim chamadas por oposio s no-ocidentais (no-europeias), se estruturaram fundamentalmente sob o modo de produo capitalista. Alm disso, o modo de produo dominante (no existe apenas um) numa sociedade pode nos dizer muito sobre a vida dessa sociedade, mas certamente no comporta explicaes de todas as dimenses de como os homens que a constituem compreendem sua vida e modelam sua existncia.

    A degenerao da imagem das sociedades africanas, de suas cincias, e de seus produtos resultado do projeto do Capitalismo, que difundiu a ideia de que o continente africano trrido e cheio de tribos perdidas na Histria e na Civilizao. resultado tambm do etnocentrismo das cincias europeias do sculo XIX. necessrio, pois, ver de que Histria e de que Civilizao se trata. E do ponto de vista histrico-econmico, o imperialismo colonial na frica meio e produto do Capital, uma das grandes invenes que vem desde a era dos Descobrimentos reforada ainda mais pela consolidao do Liberalismo.

    O vis econmico da Histria um importante instrumento da Ideologia do Desenvolvimento, tipicamente ocidental. Dentro dessa linha de raciocnio, o Capital emerge de fora das sociedades de que tratamos para regrar suas atividades econmicas de modo diferente, conforme interesses externos aos dessas sociedades produtoras e dos povos que as constituem, modificando as relaes sociais e impondo um novo modelo de pensar e agir.

    As sociedades africanas tradicionais (ou pr-coloniais) tinham em suas atividades econmicas uma das formas de sobrevivncia, de acordo com o meio ambiente em que viviam, de suas necessidades materiais e espirituais, e de toda uma tradio anterior de vrias tcnicas e tipos de produo. Havia muitos povos nmades, que precisavam se deslocar periodicamente, e havia povos sedentrios, que, fundando seus territrios,

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    chegaram a constituir grandes reinos, desenvolvendo atividades econmicas produtivas, tanto de bens de consumo como de bens de prestgio (em que se destacam vrias de suas artes de escultura e metalurgia).

    O que a histria oficial procurou velar que os africanos desenvolveram vrias formas de governo muito complexas, baseando-se seja em uma ordem genealgica (cls e linhagens), seja em processos iniciticos (classes de idade), seja, ainda, por chefias (unidades polticas, sob vrias formas). Algumas grandes chefias, consideradas Estados tradicionais, so conhecidas desde o sculo IV (como a primeira dinastia de Gana), mesmo assim posteriores a grandes civilizaes, cuja existncia pode ser testemunhada pela arte, como a cermica de Nok (Nigria), datada do sculo V a.C. ao II sculo d.C. Alis, ela uma das produes mais atingidas pelo trfico do mercado negro das artes na frica que coloca em risco toda uma histria ainda no completamente estudada (cf. esse assunto veja dois exemplares da cermica de Nok dos mais clebres:

    Ttes Nok, terre cuite National Commission for Museums and Monuments (Nigeria)

    O conjunto de objetos agrupados sob a denominao Nok abrange, sem dvida, uma grande diversidade cultural no tempo e no espao. Efetivamente, se constatamos os traos dessa cultura desde o sculo IX a.C. faremos a relao com uma das culturas mais antigas da metalurgia do continente da qual teremos testemunhas at fim do primeiro milnio de nossa era. (http://icom.museum/redlist/afrique/french/page01.htm)

    Os imprios de Gana, Mali e outros se sucederam na frica ocidental durante toda a Idade Mdia europia; reinos da frica oriental e central (como os Lunda e Luba) se disputam entre os sculos XVI e XIX, sendo considerados semelhantes aos estados de modelo monrquico ou imperial. Outros estados centralizados marcam relaes de longa data com o exterior, como o reino Kongo (a partir do sculo XIII). Ento, importante relativizar o peso conferido ao continente africano enquanto um dos territrios das "descobertas", como tambm o caso das Amricas. Em ambos os casos, a histria dos povos que l e aqui habitavam era considerada como inexistente pelos europeus, como se a histria fosse resultado de uma cultura a europia.

    Normalmente se esquece de pensar que a "ao civilizadora" europia era para tirar suas elites da emergncia de sua prpria falncia econmica: os europeus precisavam se apropriar de novas terras e mercados para alcanar hegemonia. E fizeram isso na perspectiva da explorao, sob pretexto de "descobrir" o que estava "perdido", tanto no globo terrestre (como se fosse seu quintal) como na histria (como se ela fosse um produto acabado), sendo eles os sujeitos, no presente, do tempo e do espao - passado e futuro. Ignoraram que os africanos j mantinham contatos seculares (provavelmente milenares) com outras civilizaes: a egpcia, por exemplo, africana, apesar das relaes estabelecidas, e reconhecidas historicamente, com o Mediterrneo antigo.

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    Devemos ainda lembrar que a penetrao rabe no territrio africano vem do sculo VII, enquanto os primeiros contatos dos europeus com os africanos foram estabelecidos a partir do sculo XV. E tais contatos foram de viajantes e mercenrios, do lado ocidental, e chefias bem estruturadas, do lado africano, resultando, em alguns casos, e durante alguns sculos, num comrcio ativo, dada a fora de grandes estados tradicionais na frica, num clima muito diferente da situao colonial que sobreveio apenas no fim do sculo passado. Essa explorao teve o apoio da Etnologia da poca, mas tornou-se um dos fundamentos da Antropologia, cujo desenvolvimento, atravs de vrias teorias sobre as relaes do Homem com a Natureza e a Cultura, permite-nos perceber as diferenas como caractersticas e valores fundamentais para a permanncia e dinmica da Humanidade.

    atravs dela que se permitiu reconhecer que os estados tradicionais africanos no foram apenas instrumentos de governo eficazes e agentes da histria, mas estimularam a produo de grandes patrimnios materiais. o caso das artes de If e Benin, bem como das artes luba e kuba.

    Confira uma terracota de if cuja rplica j foi exposta no Brasil:

    Human head Ife, Nigeria 12th-15th century acquired from Leo Frobenius, 1913 (http://www.smb.spk-berlin.de/mv/afrika/e/kunst1.htm)

    Da arte de Benin e da arte luba, confira as FIGURAS 1 e 2:

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    FIGURA 1:Figura de rei, arte de Benin, Nigria, acervo MAE-USP(http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/002/1.jpg)

    Estatueta do tipo chamada "de ancestral", arte luba-hemba, Republica Democrtica do Congo, acervo MAE-USP. (http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/002/2.jpg)

    H muitas outras modalidades da arte africana que dominam, junto com essas, a gnese de uma histria da arte africana, mesmo que sempre apartada da histria universal da arte. Por isso, no deixe de conferir a linha do tempo da histria da arte no continente africano proposta pelo Museu Metropolitano de Nova Iorque.

    O fato de no terem escrito sua histria anteriormente, no quer dizer que os africanos, bem como os povos autctones das Amricas e da Oceania, no tinham histria, muito menos que no tinham escrita. Objetos de arte considerados apenas decorativos esto plenos de

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    mensagens codificadas por signos e smbolos que podem ser "traduzidos", ou interpretados verbalmente, como o caso de muitos objetos proverbiais (FIG 3).

    FIGURA 3: Pesos de lato para medio de p de ouro, arte ashanti, acervo MAE (http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/002/3.jpg)

    Confira tambm o artigo de Lucia Harumi Borba Chirinos.

    Inclumos aqui um fragmento do artigo citado pela ensasta:

    Ao estudar a cultura material dos ashanti, observamos que eles so conhecidos, na literatura, por sua tradio metalrgica, em especial pela sua produo de pequenas figuras de metal: os chamados pesos de ouro. Fundidos pelo mtodo da cera perdida e com uma infinita variedade de formas, essas peas, que no so de ouro, mas de bronze ou lato, serviam como contrapeso para medir o p de ouro. Mais do que pesos, elas veiculam provrbios e so smbolos cosmognicos da cultura ashanti. Nesta exposio, vamos focalizar essas peas como transmissoras de idias que concernem no a uma escrita formal, mas a uma oralidade que plstica, visual e ttil. H na frica outras produes de arte tradicional que tambm possuem esse carter no verbal expresso em formas e smbolos; como exemplo, podemos citar os discos de madeira produzidos pelos bawoyo de Cabinda, Angola estudados por Carlos Serrano (1993) e que possuem uma linguagem proverbial impressa em escultura.

    necessrio dizer que o contexto histrico de comrcio do ouro de escravos na regio de onde esses pesos provm coincide com o perodo do trfico negreiro para o Brasil. Tem-se inclusive a indicao da presena da cultura ashanti, na autodenominao do terreiro Fanti-Ashanti l existente.

    Os fanti, assim como os ashanti, so grupos tnicos pertencentes ao complexo cultural akan, que abrange diversos outros grupos localizados em Gana e oeste da Costa do Marfim, na frica ocidental. Os ashanti, de que trata este artigo, se localizam na regio centro-sul do atual territrio de Gana.9

    9 Arte e oralidade entre os ashanti: classificao e interpretao dos pesos de ouro, por Lucia Harumi Borba Chirinos.

    Disponvel em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/artigos/001/arte_oralidade_ashanti.htm

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    Alm disso, na tradio oral, ou no registro oral da histria dos povos africanos, podemos constatar que o tempo marcado pelo evento, e que esse evento no se situa num vazio: ele supe um lugar exato, um instante nico (p. ex., a queda de um cometa clebre, uma enchente inusitada, marcando feitos de um governo determinado, de um chefe conhecido e nominado). Do mesmo modo, podemos pensar na revalidao da informao histrica em objetos que expressam, atravs de mesclas de estilo ou da prpria iconografia, deslocamentos das comunidades africanas, formando grandes correntes migratrias pelo continente, sejam de carter cultural, comercial ou outro.

    Esses contatos, determinando combinaes de elementos originais de um povo com outro(s), promoveram um dinamismo externo e explicam a unidade cultural da frica. Por outro lado, a histria desses povos pelo continente uma histria de conquistas, de legitimao do territrio a ser habitado e cultivado, explicando a diversidade cultural existente.

    A mudana social provocada pelo fato colonial faz parte dessa histria, mesmo que a inteno da colonizao fosse acabar com ela. O perodo colonial africano recente, durando de 1883-1885 at pouco mais da metade do sculo XX. Nesse perodo, os governos europeus dividiram e reagruparam as sociedades tradicionais da frica em colnias, cujas fronteiras no correspondiam aos seus territrios originais.

    Nas dcadas de 1950 e 1960, depois das independncias conquistadas individualmente, mas num grande movimento de solidariedade entre naes, as linhas de divisa colonial foram de modo geral absorvidas na configurao dos pases atuais, a partir de ento com seus prprios governos. Mesmo assim, at hoje so pases que lutam com dificuldade, tentando recuperar suas origens ancestrais, e prosseguir suas vidas dentro do quadro da globalizao imposto mundialmente. As lutas civis, e a presena de ditadores compactuados com potncias estrangeiras na frica atual refletem ainda os problemas que a explorao europia e a ideologia do desenvolvimento causaram aos povos africanos, esgotando seus minrios e suas florestas, degradando seu meio ambiente, alterando seu ecossistema, estabelecendo uma ordem completamente diferente sobre uma experincia secular de vida.

    evidente que a explorao da frica no se deu apenas na sua colonizao, esta j to truculenta em si mesma, lembrando que durante esse perodo os africanos no foram apenas usurpados em suas economias e territrios, mas em seus modos de existncia e de pensamento, principalmente atravs de aes missionrias. Sabemos como a Igreja manipulou o Cristianismo sob pretexto de uma ao civilizatria compactuada com pases europeus.

    Aqui estamos falando apenas daqueles que permaneceram no continente e no dos que foram sequestrados para a indstria da escravido que durou pelo menos quatro sculos. Podemos dizer que se o futuro de alguns africanos (os que foram feitos escravos) continuou aqui no Brasil (e nas Amricas), e o passado de povos africanos na frica ficou na memria coletiva e no silncio da cultura material, temos muito a repensar sobre a nossa histria em comum, encontrando, oxal, nossos valores para o futuro.

    Por isso, no podemos admitir nada de primitivo na histria e na cultura material dos povos africanos, vez que se trata de sociedades que tm atrs de si mesmas existncias milenares. Temos testemunhos plsticos e iconogrficos dos sculos V, VI e at VII a.C. nos pases do Mediterrneo antigo, que demonstram no apenas a presena da civilizao egpcia, como tambm das civilizaes da frica subsaariana, esta chamada de frica negra. V-se aqui a antiguidade das culturas africanas, bem como sua dinmica, alimentada no apenas por fluxos internos, mas tambm externos, desde longa data. Ao lado de tudo isso, lembrar que descobertas arqueolgicas vm demonstrando a precedncia da espcie humana e de suas

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    indstrias no continente africano, antes dos seus vestgios em territrio europeu, como o caso do exemplar mais antigo do homo sapiens (nossa espcie) descoberto no Qunia, datado de 130 mil anos atrs.

    importante, portanto, ter sempre em vista que o continente africano imenso, com centenas de grupos tnicos ou sociedades, que no devemos chamar de tribos, pois o sistema de parentesco, alm de no ser a nica forma de organizao, manifesta-se em grande diversidade e complexidade na composio dos grupos culturais. Hoje as sociedades africanas so sociedades modernizadas, o que no quer dizer que antes elas no tinham organizao. Com uma hierarquia de obrigaes e direitos, e com uma tecnologia prpria ditada pela sua economia, seja ela de subsistncia ou de comrcio, algumas sociedades tradicionais voltavam-se mais para a agricultura, outras para a caa e pesca, e no raro, essas atividades eram mescladas. No h conhecimento de grupos africanos sem um tipo de organizao, seja em pequenas chefias a grandes repblicas e reinos, at que as grandes potncias ocidentais invadiram e colonizarem o territrio africano.

    Em contrapartida, devemos tambm estar alerta para no nos valermos do que, entre ns, tido como premissa de civilizao, achando que com isso chegamos compreenso de outros povos. Ao lado de tcnicas de metalurgia ou cultivo, ao lado de chefias ou de um comrcio ativo, cada sociedade, cada cultura tem um sistema de categorias prprias de pensamento e existncia, sendo ele o que a diferencia das outras, e o que lhe d real relevncia perante a Humanidade. A cultura material e a arte, pelo seu carter concreto (de "coisas", objetos), podem ser veculos eficientes para que tais categorias no fiquem to vulnerveis ao destruidora de nosso etnocentrismo, desde que sejam enfocadas como produtos de sociedades diferentes e no desiguais.

    2 Parte frica: cultura material e artes africanas As artes plsticas da frica que vemos nos livros e colees so produtos desenvolvidos ao longo de sculos. Sejam esculpidos, fundidos, modelados, pintados, tranados ou tecidos, os objetos da frica nos mostram a diversidade de tcnicas artsticas que eram usadas nesse continente imenso, e nos do a dimenso da quantidade de estilos criados pelos povos africanos.

    Tais estilos so a marca da origem dos objetos, isto , cada estilo ou grupo de estilos corresponde a um produtor (sociedade, ateli, artista) e localidade (regio, reino, aldeia). Mesmo assim, devemos lembrar que os grupos sociais no podem ser considerados no seu isolamento, e, portanto, natural que a esttica de cada sociedade africana compreenda elementos de contato. Alm disso, cada objeto apenas uma parte da manifestao esttica a que pertence, constituda por um conjunto de atitudes (gestos, palavras), danas e msicas. Isso pode determinar as diferenas entre a arte de um grupo e de outro, tendo-se em vista tambm o lugar e a poca ou perodo em que o objeto esttico-artstico era visto ou usado, de acordo com sua funo.

    Portanto, a primeira coisa a reter que, na frica, cada esttua, cada mscara, tinha uma funo estabelecida, e no eram expostas em vitrines, nem em conjunto, nem separadamente, como vemos dos museus. Outra coisa deve ser lembrada: a arte africana um termo criado por estrangeiros na interpretao da cultura material esttica dos povos africanos tradicionais, diferente das artes plsticas da frica contempornea que se integram, como as nossas, brasileiras e atuais, no circuito internacional das exposies. Se hoje ainda h uma produo

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    similar aos objetos tradicionais, ela deve-se no maior das vezes s demandas de um mercado turstico, motivado pela curiosidade e exotismo.

    Com referncia aos objetos muito semelhantes aos tradicionais ainda em uso em rituais religiosos ou festas populares h, assim como no Brasil, na frica atual, uma cultura material, que, apesar de sua qualidade esttica, considerada, tambm pelos africanos de hoje, "religiosa" ou "popular" nos moldes ocidentais, onde o antigo e moderno so historicamente discernveis. Isso no quer dizer, no entanto, que, atravs de contedos e smbolos, a arte africana atual no esteja impregnada do tradicional, ainda que se manifestando em novas formas. Ao contrrio, as especificidades da esttica tradicional africana so visveis tambm, nos dias atuais, nas produes artsticas dos pases de fora da frica, principalmente daqueles, como o Brasil, cuja populao e cultura foram formadas por grandes contingentes africanos.

    Mas aqui, neste texto, estaremos tratando sempre dessas produes realizadas pelos africanos antes da ruptura entre tradio e modernidade. Daqui para frente, devemos relativizar o uso do tempo verbal, e lembrar que a expresso arte africana , queiramos ou no, um reducionismo inventado por estrangeiros, mas que est cristalizada entre ns, relativa a toda produo material esttica da frica produzida antes e durante a colonizao, at meados do sculo XX, trazida Europa por viajantes, missionrios e administradores coloniais.

    No seria difcil encontrarmos nessa arte africana alguns elementos de aproximao com os de correntes da arte ocidental, do naturalismo ao abstracionismo. Mas esse tipo de comparao no capaz de nos desvendar o verdadeiro sentido da arte africana tradicional, porque esta no foi feita para ser realista ou cubista, isto , ela no era um exerccio de reflexo sobre a forma, ou sobre a matria, como nas artes plsticas entre ns. Apesar disso, podemos identificar na arte africana os elementos que permitiram a artistas, como Picasso, a revolucionar a arte ocidental.

    O cubismo, entretanto, uma inveno intelectual dos europeus, que nada tem a ver com a inteno dos africanos: enquanto no cubismo a representao do objeto se d de diversos pontos de vista, em diversas de suas dimenses formais ao mesmo tempo, a esttica africana busca, ao contrrio, uma sntese do objeto ou do tema construdo materialmente, plena de objetivo inspirao e contedo.

    Uma esttua no representa, normalmente, um Homem, mas um Ser Humano integral, que tem uma parte fsica e espiritual - do passado e do futuro. Tem, por isso, um lado sagrado, ligado s foras da Natureza e do Universo. Uma mscara ou uma esttua concentram foras inerentes do prprio material de que so constitudas, ou que comportam em seu interior ou superfcie, alm de sua prpria fora esttica. Elas no tm, portanto, uma funo meramente formal.

    Ainda assim, podemos observar que algumas produes so mais realistas ou mais geomtricas. O realismo ocorre com frequncia nas esttuas, talvez por seu carter representativo (de uma figura humana, da imagem onrica de um antepassado), enquanto que o geometrismo aparece muito nas mscaras, principalmente naquelas que representam espritos e seres sobrenaturais, melhor dizendo, o desconhecido (mas existente no plano consciente e inconsciente). Mesmo assim, nada disso permite dizer ou no isso que determina haver uma linha divisria clara entre uma forma e outra, ou um estilo e outro.

    Mas podemos distinguir uma arte produzida na frica ocidental e a produzida na frica central. E dentro dessas grandes reas geogrficas, podemos distinguir estilos seja pelos detalhes, seja pelo tema ou tipo do objeto produzido. Por exemplo, as produes artsticas dos

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    Dogon e Bambara so muito distintas embora situadas, por alguns autores, dentro de uma mesma faixa estilstica (chamada de "sudanesa"), j que elas apresentam certa continuidade formal ou temtica, alm do fato de que tais sociedades ocupam territrios contguos permeados por identidades histricas, geogrficas e ambientais. No entanto, as portas de celeiro so renomadas entre os Dogon (FIG 4), e o tema do antlope mais reconhecido, embora no exclusivo, na arte Bambara (FIG 5).

    FIGURA 4: Porta de celeiro, arte dogon, Mali, acervo MAE-USP.

    FIGURA 5: Topo de mscara "tyi-wara", arte bambara, Mali, acervo MAE-USP.

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    Esse tipo de objeto (porta de celeiro) e esse tema (antlope) celebram a arte dos Dogon e dos Bambara respectivamente no apenas porque foram encontrados em abundncia entre eles, mas tambm porque so considerados por esses povos como signos especficos de sua cultura em circunstncias dadas na sua tradio oral.

    oportuno lembrar que a distino entre os estilos s pode ser determinada por uma srie de estudos interdisciplinares que apoiam a anlise morfo-estilstica. Entre essas disciplinas esto arqueologia e etno-histria, que, apesar de suas especificidades, esto intimamente ligadas etnografia e Antropologia.

    Os procedimentos tcnicos e a matria-prima usada na produo material podem "falar" muito sobre o estilo, assim como sobre o meio ambiente em que determinadas sociedades vivem. A madeira era muito usada nas regies de floresta. por isso que a estaturia africana est concentrada na chamada frica ocidental e na frica central, regies onde predominava a floresta equatorial e tropical, e onde se conservam apenas partes dela hoje em dia.

    O uso do metal, embora tenha sido corrente em todo o continente, caracterizou as produes artsticas da savana, onde floresceram grandes reinos, tanto na frica ocidental quanto na central, onde a arte era fundamentalmente ligada organizao social e poltica, a servio de mandatrios, atravs de atelis oficiais - caso da chamada "arte de corte" de If e Benin (j ilustrada acima) ou da escultura da associao Ogboni feita pelo sofisticado processo de fundio pela cera perdida (FIGURA 6)

    FIGURA 6: Ilustrao das etapas da fundio de um par de "edan" pela tcnica da cera perdida, arte ogboni/ioruba, Nigria, acervo MAE-USP.

    Junto a essas produes de metal, devemos mencionar a escultura em marfim, renomada no apenas entre povos do Golfo da Guin e do Benin (como os iorubas), mas tambm entre os da embocadura do Rio Congo (como os Bakongo), que desde o sculo XV era requerida pelos "gabinetes de curiosidade" da Europa,como podemos ver abaixo:

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    Saltcellar: Portuguese Figures, 15th16th century Nigeria; Edo peoples, court of Benin IvorySource: Saltcellar: Portuguese Figures [Nigeria; Edo peoples, court of Benin] (1972.63a,b) | Heilbrunn Timeline of Art History | The Metropolitan Museum of Art http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1972.63a,b

    Bruto ou trabalhado, o marfim, assim como o cobre, era considerado precioso em todas as sociedades africanas, desde muito antes do trfico (desde a antiguidade, pelo Vale do Nilo e pelo Saara), mas certo que o contato com o mundo ocidental, desde o Renascimento europeu, promoveu um desenvolvimento de uma arte africana em marfim j voltada para o comrcio e turismo como a da atualidade.

    Outras artes, como a cermica, cestaria, adornos corporais, eram feitas tradicionalmente por todas as sociedades, respondendo s necessidades cotidianas e rituais, sendo que podemos destacar algumas em que essas tcnicas eram mais usadas do que a escultura, de acordo com o modelo de organizao social e as formas de expresso esttica. Nesses casos, os recursos grficos eram mais aplicados do que os recursos representativos da escultura. Aqui podem ser compreendidos, particularmente, os produtos de sociedades situadas em regies semiridas, que, em busca peridica de novos territrios, no podiam transportar com facilidade bens mveis de grande porte. Mas, s vezes, esses modelos de anlise se mostram arbitrrios, pois a arte decorativa pode imperar tambm onde as figurativas e realistas so muito destacadas, e onde a produo esttica est voltada legitimao de um poder monrquico e centralizado como dos Bakuba (FIG 7), e que tambm comporta uma importante estaturia conforme ilustrado abaixo.

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    FIGURA 7: Montagem de objetos utilitrios com decorao tpica, arte kuba, Republica Democrtica do Congo, acervo MAE-USP.

    http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/002/7.jpg

    Assim, o material nem sempre era usado por sua abundncia ecolgica e a escolha do material no era arbitrria: como o objeto que iria ser produzido, o material tinha um valor simblico em cada centro de produo. Algumas mscaras e esttuas deveriam ser esculpidas em madeira de rvores determinadas; a confeco de adornos implicava no uso de determinadas fibras e sementes, e, em alguns casos, de tipos diferentes de contas, se no de um tipo de liga metlica, de marfim e outros materiais de origem inorgnica e animal.

    Certos detalhes morfolgicos dos objetos, como a posio, o tamanho, a distribuio de cores, entre outros, so caractersticas diferenciais do estilo com que cada sociedade representa uma forma e um tema. Mas existe uma srie de caractersticas culturais comuns entre os povos da frica e diversas das de sociedades de outros continentes que permeiam suas artes tradicionais de uma forma singular: seus sistemas de pensamento e de crenas.

    3. Parte frica: cultura material, filosofia e religio Antes de mais nada, devemos lembrar que a dissociao entre Religio e outras esferas da Cultura existente no Ocidente, e na Modernidade, no faz parte da natureza da Humanidade. E, como vimos, as sociedades da frica pertencem a complexos culturais muito antigos, reciclando valores arraigados pela Tradio, caracterizando-se por uma maneira de produzir bens espirituais e materiais de acordo com sua histria e com o meio ambiente onde se formaram.

    Para compreendermos os sistemas de pensamento e de crenas das sociedades africanas, devemos ter sempre em mente a dinmica tradio-modernidade, e, como fizemos com respeito arte, relativizar o que pertenceu ao passado e o que, e sob que forma permanece no presente.

    Cada cultura africana tinha, antes da ruptura social, sua forma de conceber o mundo, de explicar suas origens e de formular o que lhes convm, conforme mostram os mitos e lendas, bem como o discurso das pessoas mais antigas, que viveram antes ou durante a situao colonial. Isso demonstra a grande diversidade cultural no continente, correspondente diversidade de formas e estilos na arte tradicional.

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    Apesar disso, no plano filosfico, podemos assinalar um aspecto que d unidade aos povos da frica tradicional: o indivduo considerado vivo porque tem um ascendente ( filho, neto de algum), e quem vai lhe garantir a finalidade e memria de sua vida e existncia a perspectiva de seu descendente (seu futuro filho e neto). Portanto a noo de morte est concretamente ligada de vida: morrer significa no procriar. Sem filhos, a linhagem familiar se extingue - vida e morte no so apenas biolgicas, mas sociais principalmente.

    A existncia do indivduo se traduz atravs do seu ser-estar (o que implica tempo e espao ou lugar) no mundo, atravs do cotidiano, no trabalho ou no lazer, sempre conectado ao universo social, csmico, natural e sobrenatural ao mesmo tempo, sendo impossvel separar o que concreto e espiritual, ou determinar o que sagrado ou profano, na vida desses povos.

    Nesse contexto, o exerccio da existncia volta-se para questes que vo alm do poder econmico, o que no exclui a preocupao social e individual com o status (disputado e atribudo a indivduos de prestgio como sbios e dirigentes), j que ele uma das chaves para que o grupo tenha uma estrutura para permanecer unido e forte visando ao advento de futuras geraes.

    Da, a profuso de imagens antropomrficas esculpidas a que se chama de "ancestrais", j que normalmente, mas nem sempre como se divulga atravs de publicaes, eram relacionadas, e usadas, no culto de antepassados. Os chamados "fetiches", a colocados em oposio aos "ancestrais", so objetos, esculpidos ou no, constitudos de vrios materiais agregados. O conceito de fetiche discutvel, pois, significando "coisa feita", relacionado equivocadamente magia e a feitiaria.

    FIGURA 8: Estatueta "buti", do tipo chamada de "fetiche", arte teke, Republica Democrtica do Congo, acervo MAE-USP. http://www.arteafricana.usp.br/codigos/textos_didaticos/002/8.jpg

    Na verdade, os materiais dos "fetiches" entre os quais so tambm classificadas estatuetas dos Bateke (FIG 8, acima) - simbolizam partes dos mundos animal, vegetal e mineral, aludindo uma idia de totalidade construda pelos africanos, baseada em seu conhecimento sobre as foras da Natureza, (muitas vezes relacionados cura medicinal) e do Cosmo. Isso explica porque muitas das estatuetas chamadas de "fetiches", em

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    contrapartida, tinham relaes diretas com o culto de antepassados, fundado na ideia de acmulo de foras atravs de geraes sucessivas e da apropriao do territrio.

    Outras duas caractersticas nos sistemas filosficos e de crenas das sociedades africanas tradicionais a conscincia de periodicidade e infinitude, isto , a ideia de que o descendente vem do ascendente e a idia, que vem em decorrncia disso, de que o passado est intimamente ligado ao futuro, passando pelo presente.

    Um indivduo vivendo em sociedade em um determinado perodo histrico supe a existncia de outro ou outro indivduo (filho, neto, bisneto, etc.) em perodos subsequentes, graas existncia daqueles que vieram antes dele, e criaram regras para que seus contemporneos e conterrneos pudessem seguir vivendo, articulando-se conforme as condies de sobrevivncia. H um provrbio de origem africana em que podemos constatar essa caracterstica de