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peça teatral
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DECIO DE ALMEIDA PRADO E O PAPEL DO TEATRO NO SISTEMA DA CULTURA BRASILEIRA.*
Paulo Eduardo Arantes **
a versão original do ensaio intitulado "Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo"
(cf. nota l), em que examinava as diferentes manifestações da obsessão brasileira pelo problema da
formação, Paulo Eduardo Arantes introduzira uma nota sobre o trabalho do crítico Dedo de Almeida
Prado no âmbito da história da nossa literatura dramática, pensada sob esse mesmo ângulo. Justamente cm função da
importância do assunto, essa nota cresceu e acabou .se transformando numa digressão que não podia mais aparecer
como simples rodapé no texto publicado.
N
Por razões que agora não cabe especular, o autor não desenvolveu a digressão que agora
publicamos como texto completo que realmente é. Em nossa avaliação, mesmo neste formato,
ele ilumina tanto o alcance do nosso problema de formação, tal como examinado no ensaio
T E A T R O
* Autorizando a publica-ção, o Autor se associa à revista de Cultura Vozes nesta pequena homenagem à obra do nosso Crítico Maior.(Nota da Rcdação).
** Professor Doutor de Fi-losofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP); publi-c ou Um Departamento Francês de Ultramar, ed. Paz e Terra (1994); Senti-mento da Dialética, (1992), ed. Paz e Terra; um dos au-tores publicados na coletâ-nea A Filosofia e Seu Ensi-no, ed. Vozes (1995).
l. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo. In D'Incao, M. A. & Scarabotolo, E.F. (orgs.). Dentro do texto, dentro da vida - Ensaios sobre António Cândido. São Paulo: Companhia das Letras/Casa de Cultura de Poços de Caldas/Instituto Moreira Salles, 1992.
sobre António Cândido, quanto as dificuldades ainda hoje não resolvidas pêlos estudiosos da
experiência teatral no Brasil.
Podemos dizer que cuidando apenas de literatura, António Cândido acabou encontrando a
fórmula geral do problema da formação enquanto cifra de um impasse cultural de nascença,
como indicado no início deste estudo . É que este "apenas" na verdade é tudo - sem contar, é
claro, o golpe de vista histórico que é do mérito próprio do Autor. Ao qual devemos, em conse-
quência, a identificação da literatura como fermento central da vida mental brasileira: "Entre
nós, tudo se banhou de literatura, desde o formalismo jurídico até o senso humanitário e a
expressão familiar dos sentimentos". Pois é justamente a essa "inflação
literária" que devemos o primeiro grande impulso na exploração e revelação do Brasil aos
brasileiros. Nestas condições, quem escrevesse uma Formação da Literatura Brasileira, nos
termos conhecidos, estaria ao mesmo tempo oferecendo a chave geral para se apreender o
mecanismo de implantação e funcionamento do próprio sistema da cultura brasileira,
entendendo "sistema" na acepção que lhe deu o Autor.
Comecemos pelo caso mais próximo, o do Teatro. Como
se sabe, António Cândido excluiu-o do livro, mas depois se
arrependeu, conforme deixou registrado no Prefácio:
escrúpulos de não-especialista roubaram-lhe uma chance
suplementar de reforçar seu ponto de vista, revelando
também na literatura dramática a disposição construtiva de
nossos escritores. Encarregou-se da tarefa Décio de Almeida
Prado. Mais exatamente, o capítulo sobre o teatro que
publicou em 1955, numa obra coletiva sobre a literatura no
Brasil, é na verdade o resumo de uma formação2. O roteiro é
familiar. No começo, apenas "manifestações isoladas,
esporádicas", nada que se assemelhe a uma vida teatral
relativamente organizada e com repercussão social
duradoura. Custa inclusive a nascer, vistas as coisas do
ângulo mais exigente do amadurecimento de um "sistema",
isto é: como "atividade contínua, alicerçada nos três
elementos constitutivos da vida teatral - atores, autores e
público estáveis", o teatro brasileiro só começa mesmo com o
Romantismo, depois da Independência, que exigia uma cena
nacional correspondente às fantasias de emancipação
recente. Para variar, nasceu de chofre: João Caetano, Martins
Pena e Gonçalves de Magalhães (cuja obra teatral foi "uma série
de equívocos") irrompem da noite para o dia, numa "espécie de
eclosão, de florescimento súbito". Neste diapasão, sucedem-se os
2. Cf. Décio ile Almeida Prado. A evolução da litera-tura dramática, in Afrânio Coutinho (org.), A literatura no Brasil. Rio de Janeiro, Stil Americana, l1)??. Vol.il. pp.249-283.
Fncarrepou-se da tarefa Dério cie Almeida Prado. Mais exatamente, o capítulo sobre o teatro que publicou em 1955, numa ohm coletiva sobre a literatura no Brasil, é na verdade o resumo de uma formação, l oln: Man i,i 7oct, reprodução arquivo ( Hl l URA VOZCS.
surtos de fôlego curto, os ápices efémeros. O autor não conclui assim, mas seria o caso de se
dizer que de recomeço em recomeço, se uma formação propriamente dita não chega a se
completar, acabou se firmando como única tradição a "cornediazinha de costumes", por onde o
nosso teatro sempre recomeça. Toda vez que se exaure o arremedo anterior, "renasce a nossa
comédia, inocente
C U L T U R A V O Z E S 6, N O V E M B R O - D E Z E M B R O 1 9 9 5
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de tudo o que se passa no resto do mundo". Como se uma falha recorrente de formação
assegurasse o funcionamento em continuidade de um filão teatral que pelo menos não ofendia o
sentimento de verossimilhança do público - como diria, no seu tempo, um José Veríssimo,
vexado pelo espetáculo de uma sociedade incoerente e canhestra e que portanto não se
prestava, sem evidente impressão de artificialidade, à estilização elevada do drama moderno3.
3. Procurando responder ü pergunta, por ele mesmo formulada a propósito do teatro de Alencar - por que, no Brasil, o drama não deu certo e a comédia deu? -, Flávio Aguiar prefere racio-cinar em termos de "alteri-dade", o "outro" colonial defrontando o "eu" metro-politano. Se não me engano, uma variante da perspectiva em questão, entrevista neste caso do ângulo da dualidade inerente àquele processo formativo de dois gumes. Cf. Flávio Aguiar, A comé-dia nacional no teatro de José de Alencar. São Paulo, Ática, 1984.
4. Estou variando livremente uma observaçóo de Vil-ma Áreas que, retomando o fio "formativo" de Décio de Almeida Prado, dá um breve balanço nos efeitos dessa "ausência de uma constru-ção progressiva do teatro brasileiro". Cf. V i l m a Áreas, Iniciação à comédia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, cap.IV.
5. Cf. Décio de Almeida Prado, Teatro em progresso. São Paulo, Martins, 1964, p.39, apud Vilma Áreas, op.cit., p.85. - As irnplicaçdes desse derradeiro salto, afinal o último re-começo de uma "formação" que ficou para trás sem ter se completado ou pelo me-nos firmado enquanto hori-zonte de problemas, não pa-recem ter comovido a ima-ginação do Crítico que, no entanto, como se sabe, acompanhou as peripécias de nosso teatro moderno desde a primeira hora, na forma de estudos e crónicas hoje clássicos. Quando muito, além das possíveis datas de nascimento do mo-derno teatro brasileiro (Nel-son Rodrigues, TBC, A mo-ratória etc.), anotou cir-cunstâncias que colabora-ram para a mutação da sen-sibilidade. Visível, por exemplo, na lembrança de
Em suma, no que se refere aos momentos decisivos da formação desequilibrada da vida teatral
numa sociedade mal-acabada como a nossa, a frágil linha de continuidade lhe vem da tradição
cómica popular, cuja vitalidade no entanto é da ordem da repetição, uma espécie de baixo
contínuo que antes embaraça do que facilita uma "evolução" perseguida com tanto afinco4. Daí a
marcha realmente forçada rumo ao gosto moderno, como costuma salientar o próprio Décio de
Almeida Prado, lembrando, por exemplo, da nossa vanguarda de boca para fora, obrigada a
afetar apreço pela atualidade internacional, porém se entregando, não sem algum remorso, à
graça rudimentar das chanchadas nacionais: é que, tendo o nosso teatro crescido no ritmo
sincopado que se assinalou, passamos abruptamente demais da comediazinha de costumes
para o grande teatro de problemas5. Outra prova de que o "sistema", mesmo não se articulando
por inteiro, continua a um tempo norma de maturação e referência para o juízo crítico. - Se esta
primeira verificação de parentesco procede, ressalta ainda mais do modelo estabelecido por
António Cândido que a função exercida pela literatura na evolução de nossa cultura configura
um fenómeno tanto mais expressivo e abrangente porquanto se trata a bem dizer de uma
formação precoce, aliás em todos os sentidos: não só o desconjuntamento social do país
persistiria sob outras formas, como as demais esferas de nossa vida mental só começariam a
enlrar nos eixos a partir da "normalização" da reviravolta modernista.
Daí a marcha realmente forcada rumo ao gosto moderno, como costuma s.ilienl.ir o próprio Décio de Almeida 1'rndo, lembrando, por exemplo, da nossa vanguarda fie
boca para fora, obrigada a afetar apreço pela atualidade internacional, porém seentregando, não sem algum remorso, à graça rudimentar cias chanchadas nacionais...
Foto: Mareia Zoet, reprodução arquivo CULTURA VOZES.
que só a encenação de Ves-tido de noiva por Ziembins-ki chamou a atenção da in-teligência brasileira remo-delada pelo Modernismo para o uso local da nova lin-guagem internacional do teatro: sendo ainda predo-rninantemente literários os padrões de gosto e juízo crí-tico entre nos. lembra Décio de Almeida Prado que o elogio consistiu em elevar o teatro, considerado até en-lão arte de segunda classe, à dignidade dos outros géneros literários (cf. O teatro brasileiro moderno. São Paulo, Perspectiva. 1988. pp.'10 •) l). Hnliin. começa vá o teatro iiuxlerno no Bra-sil, soque, como observado, o inventário simpático dos pequenos progressos nau cuidou mais de deslindar os fios de uma possível lógica evolutiva, mesmo alicerçada nos desajustes próprios da dependência. Se existir tal lógica, creio que o primeiro passo foi dado por um estudo de Iná Camargo Costa (do qual se publicou a parte inicial no n" 18 da revista Discurso, 1991), onde a caracterização da fase de importação e acli-matação do teatro moderno no Brasil depende, para a compreensão dos equívocos que balizam a trajetória do similar nacional, da re-constituição de um circuito internacional prévio, ao longo do qual gerou-se a forma ambígua "teatro mo-derno" por neutral i zaçãoo estético-política do "teatro épico" enquanto forma re-solutiva geral da crise do drama burguês. Teria ajxir-tado entre nós uma forma esvaziada e politicamente derrotada: desenvolvimento deslocado que no entanto dava continuidade às práti-cas regressivas nos países de origem, esse o cardápio de onde retiraríamos os "pratos básicos da nossa dieta moderna". Cf. Iná Ca-margo Costa, Dias Comes: um dramaturgo nacional-popular. U S P, m i me o., caps I e II.
Referência bibliográfica do texto:Cultura Vozes. Nº 6 – ano 89 / volume 89 novembro-dezembro de 1995.