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  • 8/8/2019 AReordenacaoDoMundo_MarcelinoPeixoto

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    A reordenao do mundo: Arthur Bispo do Rosrio e Tony Cragg

    Marcelino Peixoto

    Na coleo a prosa cotidiana dos objetos se torna poesia.

    Baudrillard

    Todo e qualquer inventrio guarda elementos de uma escolha do

    inventariante. Subjetivados, os sistemas cientficos de classificao do mundo e

    do conhecimento, apontam para sua prpria falncia na busca de uma ordenao

    precisa do mundo existente. Conscientes da falibilidade de tais sistemas

    taxonmicos, inmeros artistas ao longo do sculo XX deles se apropriaram para,

    no rearranjo dos objetos/smbolos inventariados, propor uma outra ordenao.

    Segundo Maria Esther Maciel todo recenseamento tende, em seus limites, a

    revelar o carter do que naturalmente incontrolvel e ilimitado.Inventrio: detalhamento, levantamento, listagem. Inventar: descobrir,

    imaginar, criar, arquitetar. Inventor: o que acha, o que descobre, o autor-primeiro.

    Uma questo: Onde o inventor procura, onde encontra a matria para suas

    invenes?

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    No ato de inventariar, o inventor seleciona, cataloga desde o seu mundo -

    as coisas do mundo institudo, constituindo, dessa maneira, seu prprio inventrio.

    Inventa com o inventariado. Da manipulao do inventariado constri um outro

    sentido, inaugurando um deslocamento, uma transformao da cadeia de

    significaes estabelecida.

    Artistas como Arthur Bispo do Rosrio e Tony Cragg se valeram dos

    modelos taxonmicos (listagens, catalogaes, mapeamentos, estatsticas,

    enumeraes), criando um curto-circuito na lgica ordenadora de tais modelos.

    Listando, inventariando, Bispo e Cragg desenvolveram trabalhos que guardam

    entre si semelhanas e dessemelhanas.

    O que poderia haver de semelhana entre a obra de artistas com realidades

    to distintas quanto Arthur Bispo do Rosrio e Tony Cragg? No se sabe de

    registros de qualquer dilogo explicitado entre a obra de ambos os artistas.

    Consta em um possvel inventrio da vida de Bispo o ofcio de fuzileiro da

    marinha de guerra, pugilista (campeo sul-americano da categoria peso-leve),

    empregado domstico, porteiro, segurana, interno da Colnia Juliano Moreira,

    artista, brasileiro... Inventariando a vida do britnico Anthony Cragg, temos

    laboratorista da National Rubber Producers Research Association, estudante de

    arte nos anos 60 (momento em que a arte conceitual, minimal e a arte povera se

    desenvolviam), artista, professor na Academia de Arte de Dsseldorf e um dos

    mais bem sucedidos escultores da sua gerao.

    Produzindo a partir de realidades diversas e motivaes distintas, Arthur

    Bispo do Rosrio e Tony Cragg encontraram no ato de colecionar e nos modelos

    classificatrios a forma possvel para a tarefa, pr ambos compartilhada, de

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    reordenao do mundo. Uma reordenao que guarda caractersticas

    enciclopdicas, pois como aponta Umberto Eco, o que caracteriza o conhecimento

    enciclopdico justamente sua natureza desordenada, construda a partir de

    algum critrio provisrio de ordem que busca construir uma compreenso de um

    mundo desordenado.

    Bispo do Rosrio! Consta que o rosrio um agrupamento de contas, uma

    enfiada de 165 contas dispostas de maneira sucessiva, correspondente ao

    nmero de 15 dezenas de ave-marias e 15 padre-nossos. Mas rosrio tambm

    sucesso, srie, seqncia ininterrupta, listagem, uma coleo. O bispo o vigia,

    o inspetor. Figura que em pleno sacerdcio tem poderes de conferir os

    sacramentos da confirmao e da ordem. Assim foi o territrio de Arthur Bispo do

    Rosrio: um mundo ordenado. Nascido em 1911 e falecido em 1989, sua

    passagem pelo mundo traou uma diagonal no tabuleiro das questes comuns

    aos homens do sculo XX, abordadas com seu ordenamento vertiginoso.

    Nascido na cidade de Liverpool, na Inglaterra no ano de 1949, Tony Cragg,

    talvez o artista mais importante da chamada Nova Escultura inglesa, inova no

    mapeamento de seu territrio. Leve e precria, essa Nova Escultura desenvolvida

    nos finais dos anos setenta teve sua tnica numa espcie de bricolagem mental.

    As obras funcionavam como eventos ou como pequenos sinais modificadores do

    espao. Tais esculturas nunca se erguiam verticalmente sobre o piso, estando

    quase sempre bem rentes ao cho, como animais rastejantes ou que se grudam

    parede. A Nova Escultura inglesa, pr seus procedimentos, indica um recuo do

    volumtrico ao pictrico e ao bidimensional.

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    A matria-prima da obra tanto de Arthur Bispo do Rosrio quanto de Tony

    Cragg constituda pr resduos, detritos da civilizao industrial: brinquedos,

    talheres, ferramentas, pentes, engrenagens, sapatos, canecas e copos, garrafas,

    latas, embalagens, papelo, pano, madeira, linhas, botes enfim, o que foi

    desprezado pela sociedade. Interessam-se pelo universo das coisas. So

    colecionadores que tiveram em comum, sobretudo, o procedimento empreendido:

    ordenao, catalogao para reconstruo de uma outra ordem. Inventam

    inventariando. Nesse percurso, constroem verdadeiros mapeamentos de territrios

    percorridos/vividos. Os materiais inventariados se fundem e se confundem, se

    adicionam e se interferem, criando ressonncias que norteiam um caminho

    marcado pela ausncia de linearidade. O que une essa variada gama de objetos

    o fato pertencerem a um mesmo inventrio, a uma mesma coleo.

    O ato de colecionar de ambos aponta para o hbito, comum ao homem ps-

    industrial, de juntar coisas. Com extrema ironia, Marcel Duchamp no incio do

    sculo XX criticou tal gosto, atacando com suas aes, a prpria noo de obra de

    arte. Retirando objetos das funes para as quais foram produzidos, Duchamp os

    transforma em obra de arte ao inseri-los no ambiente artstico. A tais objetos ele

    d o nome de ready made, objetos annimos que o gesto gratuito do artista, pelo

    nico fato de escolh-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo esse gesto

    dissolve a noo de obra como excelncia da tcnica ou de uma genialidade

    criadora.

    Como ocorre com qualquer objeto colecionado, o objeto ready madeao ser

    desalojado de sua significao inicial transforma-se em um objeto vazio. Porm,

    como afirma Otvio Paz, se o objeto annimo, no o aquele que o escolhe,

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    que o retira de seu lugar de origem. Tambm Jean Baudrillard, em ensaio sobre o

    ato de colecionar afirma que todo objeto ao ser colecionado deixa de ser definido

    pela sua funo para entrar na ordem da subjetividade do colecionador. Nesse

    sentido, o territrio de Arthur Bispo do Rosrio e de Tony Cragg so definidores da

    obra de ambos, sintomas de realidades vividas pr dois homens do sculo XX.

    O ato de recolher distinto do ato de escolher. Ao eleger um objeto, como

    no caso dos ready made, o ato de escolher guarda certa semelhana com um

    encontro: dia e hora precisa, um instante exato. Recolher, pr sua vez, um

    momento-ps, juntar o que estava disperso. E, no caso de Bispo e Cragg, o que

    foi dispensado, objetos escolhidos para serem descartados. O mtodo de trabalho

    de ambos os artistas d nfase ao arranjo de algo recolhido e no

    necessariamente, fatura. So manipuladores, reordenadores e no construtores

    de objetos.

    Enclausurado de 1939 a 1989 na Colnia Juliano Moreira, no Rio de

    Janeiro, Bispo do Rosrio recolheu os objetos que o cercava para colecion-los e

    reorden-los. Tal ambincia se no definitiva definidora da espacialidade da

    obra de Bispo. Na limitao de seus domnios territoriais ele recolhe materiais que

    indiciam alm de seu prprio tempo, sua vida marcada pela pobreza, pela loucura

    e pela excluso. Tais objetos recolhidos so, nos dizeres do prprio Bispo, tudo

    material existente na Terra dos homens.

    No final dos anos 70, Tony Cragg tornou-se aclamado para suas esculturas

    e retratos que consistiram em coisas que encontrou, objetos cotidianos feitos de

    materiais distintos, recolhidos pelo prprio artista e reordenados pr suas formas e

    cores. Como Bispo em sua clausura, desenvolveu os seus trabalhos

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    habitualmente recluso em seu ateli, onde trabalhou com idias, raciocnios,

    gestos, sentimentos, humores e tenses.

    Ao contrrio de Tony Cragg, Bispo do Rosrio no trabalhou a favor ou

    contra quaisquer correntes estticas, visto que seu isolamento o impedira de ter

    contato com o universo intelectualizado dos sales de arte e dos movimentos

    estticos, mas seu procedimento como artista e homem esbarram em questes

    estticas que caracterizaram os experimentos na arte de seu tempo, chegando

    mesmo a apontar algumas tendncias da produo contempornea dos finais do

    sculo XX, dentre as quais situa-se a obra de Tony Cragg.

    A viagem esttica de Bispo era norteada pr uma misso: reapresentar o

    mundo para Deus na hora do juzo final. Acreditando ter sido o escolhido de Deus

    para reconstruir o mundo aps o fim de tudo, Bispo se dedicou, obstinadamente,

    sua misso: Quando eu subir, os cus se abriro e vai comear a contagem do

    mundo (...) vou me apresentar. Como aponta Maria Esther Maciel para Bispo, o

    mundo no se afigurava de forma naturalizada, mas artificialmente moldado a

    partir do que nele foi depositado pela cultura. Interessava-lhe, particularmente,

    coletar a multiplicidade das coisas fabricadas e das nomenclaturas que as

    acompanham (...) para depois, ordenar tudo, fazer tudo coexistir em um todo finito,

    a partir de uma lgica desconcertante, na qual se conjugam, paradoxalmente, a

    lucidez e o delrio. Assim, Arthur Bispo do Rosrio, engolido pelo seu prprio

    processo vai construindo uma textura instauradora de sentidos outros que no os

    j institudos e aceitos.

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    Como vimos, as semelhanas entre a obra de Bispo e de Cragg esto

    relacionadas, sobretudo, com o procedimento empreendido. Quando entramos no

    campo das dessemelhanas fica evidenciado a distino entre as motivaes de

    ambos. Ao contrrio do cariz mstico da obra de Bispo, marcada pr seu intento de

    reapresentar mundo, Tony Cragg se prope uma investigao prpria do universo

    das artes. Seu interesse mais marcante passa pr uma redefinio da escultura,

    colocando-a como mais um objeto do mundo. Seus trabalhos intentam representar

    o mundo e sua fragmentao. Nos dizeres do prprio Cragg, seus trabalhos

    tambm so coisas, "esto l e querem um dilogo na base de todas as coisas

    restantes que esto no mundo, e no na base de um grupo particular dos objetos

    que se chamou, no passado, escultura". Talvez pr essa concepo de Cragg as

    suas esculturas, como ele mesmo aponta, "funcionam como metforas de clula,

    rgo, organismo ou corpo".

    Em artigo publicado no catlogo de 1996 intitulado The Articulated Column,

    aponta que seu ofcio escultrico: " uma tentativa de fazer com que material

    inanimado expresse sentimentos e pensamentos humanos (...), no apenas de

    projetar a inteligncia no material como tambm de se valer do material para

    pensar". Cragg define sua sistemtica de trabalho como uma mistura de mtodo e

    loucura. "Na maior parte das vezes, no sei quem est no comando, se a

    escultura ou eu prprio. Virando a mesma luva, vemos que a sistemtica de Bispo

    do Rosrio igualmente mescla loucura e mtodo.

    Tony Cragg e Arthur Bispo do Rosrio ao trabalharem com os resduos ou

    detritos da civilizao industrial, acabam pr recobrir seus trabalhos com uma

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    dimenso crtica em relao produo seriada e prpria sociedade. A

    comparao entre o gesto de ambos os artistas revela a negatividade do objeto

    manufaturado. Os objetos, ao contrrio dos homens, no nascem e tampouco

    morrem. So fabricados, gastam-se, tornam-se inteis e tem como fim o lixo. E

    mais: o componente mtico nas inquietaes de Arthur Bispo do Rosrio, prprio

    dos primrdios da arte, apontam para a questo ainda atual da perda da aura nos

    objetos produzidos em srie. A dimenso religiosa das artes deu aos objetos

    artsticos uma qualidade que foi estudada pelo filsofo alemo Walter Benjamim: a

    aura, essa absoluta singularidade do ser (irrepetvel). A obra de arte aurtica seria

    aquela que torna distante o que est perto, porque transfigura a realidade, dando-

    lhe a qualidade da transcendncia.

    Houve um tempo em que as artes tiveram como finalidade sacralizar e

    divinizar o mundo tornando-o distante e transcendente e, ao mesmo tempo,

    presentificar os deuses, tornado o que est longe (o divino) prximo. A origem

    religiosa transmitiu s obras de arte a qualidade aurtica mesmo quando deixaram

    de ser parte da religio para se tornarem autnomas.

    Quando entramos no territrio Bispo do Rosrio, vemos que alm dos

    procedimentos, sua fala, seu texto bordado desfiado para construir outra trama

    no corpo da obra ecoa, ressoa de alguma maneira tal questo. A quem quisesse

    adentrar nos seus aposentos e experienciar o contato com seu territrio, uma

    pergunta:Qual a cor da minha aura?

    Ao reordenar o mundo inventariado Bispo e Cragg propem um retorno,

    cada um a seu modo, dos objetos coletados prpria sociedade que os

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    descartou. Tal ato artstico restitui, de alguma maneira, a aura perdida dos

    mesmos objetos recolhidos, uma vez que em uma nova ordenao os objetos

    trazem consigo resduos de sua origem e inauguram uma outra realidade, que

    ganha ainda, ilimitadamente, outros contornos na medida em que se apresentam

    subjetividade do fruidor. A presena fsica do outro, impondo-se como necessria

    para presentificar o fenmeno arte, faz do ato de experienciar o fenmeno um

    momento nico e intransponvel.

    A arte de Arthur Bispo do Rosrio e Anthony Cragg possibilita aos nossos

    sentidos viciados fatias, fragmentos, pedaos inesperados do mundo. E esse o

    sentido do qual a obra de Bispo e Cragg se revestem. Em seus trabalhos, os

    signos da arte agem sobre todos os outros signos, perpassando-os, como um

    bispo, na diagonal do xadrez contemporneo.

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