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Jerusalém: uma Cidade, Três Religiões KAREN ARMSTRONG Apresentação Em Jerusalém, mais que em qualquer outro lugar que conheço, a História constitui uma dimensão do presente. Talvez isso ocorra em qualquer território sob disputa, porém fiquei profundamente impressionada quando fui trabalhar em Jerusalém pela primeira vez, em 1983. A força de minha reação à cidade me surpreendeu. Era estranho caminhar por um lugar que fazia parte de meu imaginário desde a infância, quando ouvi histórias do rei Davi e de Jesus. Mais tarde, no convento, ensinaram-me a iniciar minha meditação matinal visualizando a passagem bíblica sobre a qual devia refletir; assim criei minhas próprias imagens do Getsêmani, do monte das Oliveiras, da Via Dolorosa. Circulando por esses locais, descobri que a cidade real era muito mais tumultuada e confusa. Tinha de admitir, por exemplo, que Jerusalém era muito importante também para os judeus e os muçulmanos. Os judeus de túnica ou de farda que beijavam as pedras do Muro das Lamentações, as multidões de famílias muçulmanas que, trajando suas melhores roupas, se dirigiam ao Haram al-Sharif para fazer suas orações às sextas-feiras mostraram-me, pela primeira vez, o desafio do pluralismo religioso. As pessoas conseguiam ver o mesmo símbolo de maneiras totalmente diversas. Sem dúvida, veneravam sua cidade santa, porém sempre estiveram ausentes de minha Jerusalém. E, no entanto, a cidade continuava sendo minha: as velhas imagens de cenas bíblicas que eu visualizava no passado muitas vezes se contrapunham a minha experiência direta da Jerusalém do século XX. Relacionada com alguns dos fatos mais importantes de minha vida, Jerusalém era parte inseparável de minha própria identidade. Como cidadã britânica, eu não tinha nenhuma pretensão política em relação a Jerusalém, ao contrário de meus novos colegas e amigos. Enquanto israelenses e palestinos me expunham seus argumentos, eu me surpreendia com a presença vívida de fatos do passado. Todos falavam, às vezes com minúcias, dos acontecimentos que levaram à criação do Estado de Israel, em 1948, ou à Guerra dos Seis Dias, em 1967. Percebi que esses retratos do passado com freqüência giravam em torno da mesma pergunta: quem fez o que Primeiro? Quem recorreu primeiro à violência: os sionistas ou os árabes? Quem percebeu primeiro o potencial da Palestina e tratou de desenvolver o país? Quem viveu primeiro em Jerusalém: os judeus ou os palestinos? Ao discutir o presente conturbado, israelenses e palestinos instintivamente se voltavam para o passado, e sua polêmica estendia-se da Idade do Bronze ao século XX. E, quando orgulhosamente me mostravam sua cidade, os próprios monumentos passavam a fazer parte do conflito. Em meu primeiro dia em Jerusalém meus colegas israelenses me ensinaram a identificar as pedras utilizadas pelo rei Herodes, com seus característicos bordos chanfrados. Eles pareciam onipresentes, lembrando eternamente um compromisso dos judeus com Jerusalém que (neste caso) remonta ao século I a. C. - e, portanto, é muito anterior ao surgimento do Islã. Sempre que passávamos por um canteiro de obras, na Cidade Velha, contavam-me que Jerusalém havia se estagnado completamente durante a dominação otomana e só voltara à vida no século XIX, em boa parte graças a investimentos de judeus - bastava ver

ARMSTRONG Jerusalém Uma Cidade, Três Religiões

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texto de Karen Armstrong sobre a convivencia do cristianismo, do islamismo e o judaísno na cidade de Jerusalém

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  • Jerusalm: uma Cidade, Trs Religies

    KAREN ARMSTRONG Apresentao

    Em Jerusalm, mais que em qualquer outro lugar que conheo, a Histria constitui uma dimenso do presente. Talvez isso ocorra em qualquer territrio sob disputa, porm fiquei profundamente impressionada quando fui trabalhar em Jerusalm pela primeira vez, em 1983. A fora de minha reao cidade me surpreendeu. Era estranho caminhar por um lugar que fazia parte de meu imaginrio desde a infncia, quando ouvi histrias do rei Davi e de Jesus. Mais tarde, no convento, ensinaram-me a iniciar minha meditao matinal visualizando a passagem bblica sobre a qual devia refletir; assim criei minhas prprias imagens do Getsmani, do monte das Oliveiras, da Via Dolorosa. Circulando por esses locais, descobri que a cidade real era muito mais tumultuada e confusa. Tinha de admitir, por exemplo, que Jerusalm era muito importante tambm para os judeus e os muulmanos. Os judeus de tnica ou de farda que beijavam as pedras do Muro das Lamentaes, as multides de famlias muulmanas que, trajando suas melhores roupas, se dirigiam ao Haram al-Sharif para fazer suas oraes s sextas-feiras mostraram-me, pela primeira vez, o desafio do pluralismo religioso. As pessoas conseguiam ver o mesmo smbolo de maneiras totalmente diversas. Sem dvida, veneravam sua cidade santa, porm sempre estiveram ausentes de minha Jerusalm. E, no entanto, a cidade continuava sendo minha: as velhas imagens de cenas bblicas que eu visualizava no passado muitas vezes se contrapunham a minha experincia direta da Jerusalm do sculo XX. Relacionada com alguns dos fatos mais importantes de minha vida, Jerusalm era parte inseparvel de minha prpria identidade. Como cidad britnica, eu no tinha nenhuma pretenso poltica em relao a Jerusalm, ao contrrio de meus novos colegas e amigos. Enquanto israelenses e palestinos me expunham seus argumentos, eu me surpreendia com a presena vvida de fatos do passado. Todos falavam, s vezes com mincias, dos acontecimentos que levaram criao do Estado de Israel, em 1948, ou Guerra dos Seis Dias, em 1967. Percebi que esses retratos do passado com freqncia giravam em torno da mesma pergunta: quem fez o que Primeiro? Quem recorreu primeiro violncia: os sionistas ou os rabes? Quem percebeu primeiro o potencial da Palestina e tratou de desenvolver o pas? Quem viveu primeiro em Jerusalm: os judeus ou os palestinos? Ao discutir o presente conturbado, israelenses e palestinos instintivamente se voltavam para o passado, e sua polmica estendia-se da Idade do Bronze ao sculo XX. E, quando orgulhosamente me mostravam sua cidade, os prprios monumentos passavam a fazer parte do conflito. Em meu primeiro dia em Jerusalm meus colegas israelenses me ensinaram a identificar as pedras utilizadas pelo rei Herodes, com seus caractersticos bordos chanfrados. Eles pareciam onipresentes, lembrando eternamente um compromisso dos judeus com Jerusalm que (neste caso) remonta ao sculo I a. C. - e, portanto, muito anterior ao surgimento do Isl. Sempre que passvamos por um canteiro de obras, na Cidade Velha, contavam-me que Jerusalm havia se estagnado completamente durante a dominao otomana e s voltara vida no sculo XIX, em boa parte graas a investimentos de judeus - bastava ver

  • o moinho construdo por Sir Moses Montefiore e os hospitais fundados pela famlia Rothschild. Graas a Israel a cidade prosperava como nunca. Meus amigos palestinos me mostravam uma Jerusalm muito diferente. Para eles, o esplendor do Haram al-Sharif e as primorosas madaris - escolas muulmanas -, construdas pelos mamelucos em suas bordas, evidenciavam o compromisso dos maometanos com a cidade. Eles me levaram ao santurio de Nebi Musa, erguido nos arredores de Jeric para defender Jerusalm dos cristos, e aos extraordinrios palcios que a dinastia dos Omadas edificara nas proximidades. Uma vez, quando passvamos por Belm, meu anfitrio parou o carro na beira da estrada, junto tumba de Raquel, para informar-me de modo passional que os palestinos cuidaram desse santurio judaico durante sculos, tendo sido muito mal recompensados por sua piedosa dedicao. Uma palavra reaparecia com freqncia. At os israelenses e palestinos mais cticos salientavam que Jerusalm era "santa" para seu povo. Os palestinos a chamavam de al-Quds, "a Santa" - designao que os israelenses refutavam com desdm, argumentando que a cidade foi considerada santa primeiro pelos judeus e que para os muulmanos ela nunca teve a mesma importncia de Meca e Medina. Mas o que a palavra santa significa nesse contexto? Como pode ser sagrada uma cidade igual a qualquer outra, cheia de seres humanos falveis e de atividades profanas? Por que judeus que se declaram ateus se importam com a cidade santa e se mostram to possessivos em relao ao Muro das Lamentaes? Por que um rabe incrdulo se comove at as lgrimas ao entrar pela primeira vez na mesquita de al-Aqs? Eu entendia por que Jerusalm santa para os cristos: a cidade presenciou a morte e a ressurreio de Jesus, testemunhou o nascimento da f. No entanto, os fatos que plasmaram o judasmo e o islamismo ocorreram muito longe dali, na pennsula do Sinai ou na regio rabe do Hedjaz. Por que um dos locais sagrados do judasmo o monte Sio, em Jerusalm, e no o monte Sinai, onde Deus entregou as Tbuas da Lei a Moiss e selou seu pacto com Israel? Evidentemente eu me enganara ao supor que a santidade de um local depende de suas associaes com os fatos da histria da salvao, o relato mtico da interveno divina nos assuntos humanos. Foi para descobrir o que uma cidade santa que decidi escrever este livro. Constatei que, em se tratando de Jerusalm, apesar de a palavra santa ser utilizada a torto e a direito, como se possusse um significado clarssimo, ela na verdade muito complexa. Cada uma das trs religies monotestas desenvolveu tradies bem semelhantes a respeito da cidade. Ademais, a devoo a um lugar santo ou a uma cidade santa um fenmeno praticamente universal. Os historiadores das religies acreditam que constitui uma das primeiras manifestaes da f em todas as culturas. As pessoas criaram uma geografia sagrada que nada tem a ver com o mapa cientfico do mundo, mas que se refere a sua vida interior. Cidades terrenas, bosques e montanhas passaram a simbolizar essa espiritualidade to onipresente que parece atender a uma profunda necessidade humana, independentemente de nossas crenas em relao a "Deus" ou ao sobrenatural. Por vrios motivos Jerusalm tornou-se fundamental na geografia sagrada dos judeus, dos cristos e dos muulmanos, que por isso mesmo tm dificuldade em v-la objetivamente, pois ela se tornou inseparvel da concepo de si mesmos e da realidade suprema - "Deus" ou o sagrado - que confere significado e valor a nossa vida

  • na terra. Trs conceitos interligados aparecem com freqncia nestas pginas. Primeiro, a noo de Deus ou do sagrado. No mundo ocidental tendemos a uma viso antropomrfica e personalizada de Deus, de modo que muitas vezes toda a noo do divino parece incoerente e incrvel. Como a palavra Deus perdeu seu crdito para muitos, por causa das tolices inaceitveis que tm sido ditas e feitas em "Seu" nome, talvez seja melhor substitu-la pelo termo sagrado. Ao refletir sobre o mundo, os seres humanos sempre experimentam no mago da existncia uma transcendncia, um mistrio. Sentem que essa transcendncia est profundamente relacionada com eles e com o mundo natural, mas que tambm os ultrapassa. Ela constitui um fato da vida humana, no importa o nome que lhe damos - Deus, Brahma, Nirvana. No importa quais sejam as nossas opinies teolgicas, todos experimentamos algo semelhante quando ouvimos uma grande pea musical ou lemos um belo poema, e nos sentimos tocados por dentro, guindados acima de ns mesmos. Tendemos a procurar essa experincia e, se no a encontramos em determinado local - numa igreja, por exemplo, ou numa sinagoga -, buscamos em outro. Vivenciado de muitas formas, o sagrado inspira medo, admirao, entusiasmo, paz, terror, atos edificantes. Representa uma existncia mais plena, mais elevada, que nos completar. No o vemos apenas como uma fora "externa", mas o sentimos tambm nas profundezas de nosso ser. Precisamos, entretanto, cultivar a percepo do sagrado, como fazemos com qualquer experincia esttica. Em nossa sociedade moderna, secular, nem sempre tal percepo prioritria e, assim, como qualquer aptido no utilizada, ela tende a embotar-se. Em sociedades mais tradicionais, a capacidade de apreender o sagrado reveste-se de extrema importncia. Na verdade, muitas vezes achamos que sem a percepo do divino a vida no vale a pena. Isso se deve, em parte, a nossa viso do mundo como um vale de lgrimas. Somos vtimas de desastres naturais, mortalidade, extino, injustia, crueldade. A busca religiosa geralmente comea com a constatao de que alguma coisa deu errado, de que, como disse Buda, "a existncia errnea". Alm dos choques que todos experimentamos no plano fsico, enfrentamos sofrimentos pessoais quase insuportveis. Uma sensao de abandono faz com que experincias como luto, divrcio, rupturas ou at mesmo a perda de um objeto querido paream s vezes parte de um mal bsico e universal. Com freqncia esse desconforto interior se caracteriza por um sentimento de separao. Parece que nos falta alguma coisa, que nossa existncia fragmentada e incompleta, que a vida no devia ser assim e que perdemos algo essencial a nosso bem-estar - ainda que tenhamos dificuldade para explicar isso racionalmente. Essa sensao de perda j foi expressa de muitas maneiras. Evidencia-se na imagem platnica da alma gmea da qual fomos separados ao nascer e no mito universal do paraso perdido. Em sculos passados, homens e mulheres voltaram-se para a religio a fim de mitigar essa dor, encontrando remdio na experincia do sagrado. No Ocidente moderno, recorre-se eventualmente psicanlise, que expressa num idioma mais cientfico essa conscincia de uma separao primordial, relacionando-a com lembranas do ventre materno e com o trauma do nascimento. Seja como for, essa idia de separao e o desejo de algum tipo de reconciliao esto na prpria essncia da devoo a um local sagrado. O segundo conceito que precisamos discutir o de mito. Quando o homem tentou falar sobre o

  • sagrado ou sobre a dor da condio humana, no conseguiu expressar sua experincia em termos lgicos, discursivos, e recorreu mitologia. Mesmo Freud e Jung, que foram os primeiros a mapear a chamada busca cientfica da alma, empregaram os mitos da Antiguidade clssica ou da religio ao tentar descrever esses eventos interiores e elaboraram tambm alguns mitos prprios. Hoje a palavra mito tem sido um tanto aviltada em nossa cultura, que em geral a utiliza para designar algo que no verdadeiro. Fatos que so "apenas" mitos no merecem considerao. o que ocorre no debate acerca de Jerusalm. Os palestinos argumentam que no existe nenhuma evidncia arqueolgica do reino judeu fundado por Davi e que nunca se encontrou um nico vestgio do Templo de Salomo. Com exceo da Bblia, nenhum texto contemporneo menciona o reino de Israel - o qual, portanto, provavelmente no passa de "mito". Os israelenses consideram absurda e no demonstrvel a histria de que o profeta Maom subiu ao cu a partir do Haram al-Sharif de Jerusalm - um mito que est no prprio cerne da devoo dos muulmanos a al-Quds. Conclu que isso denota ignorncia. A mitologia surgiu no para descrever fatos historicamente verificveis, e sim para tentar expressar seu significado interior ou ressaltar realidades por demais elusivas para serem discutidas de maneira coerente. Porque aborda dimenses internas do eu - to misteriosas e ao mesmo tempo to fascinantes para ns -, ela bem definida como uma forma antiga de psicologia. Assim, os mitos da "geografia sagrada" expressam verdades a respeito da vida interior. Tocando nas fontes obscuras da dor e do desejo humano, podem desencadear emoes intensas. No se devem descartar certas histrias de Jerusalm porque "no passam de mitos": sua importncia se deve justamente ao fato de serem mitos. A questo de Jerusalm explosiva porque a cidade adquiriu status de mito. Ambos os lados do atual conflito e a comunidade internacional muitas vezes reclamam um debate racional acerca de direitos e de soberania, um debate livre de toda fico emocional. Seria timo, se fosse possvel. Mas nunca podemos dizer que transcendemos nossa necessidade de mitologia. No passado tentou-se muitas vezes extirpar o mito da religio. No antigo Israel, por exemplo, profetas e reformadores se empenharam em separar sua f da mitologia dos nativos cananeus, porm no conseguiram. As velhas histrias e lendas ressurgiram com pleno vigor no misticismo da Cabala, um processo que j foi descrito como o triunfo do mito sobre as formas mais racionais de religio. Na histria de Jerusalm encontraremos a recorrncia instintiva ao mito sempre que as dificuldades da vida aumentam e no se consegue encontrar consolo numa ideologia mais racional. Por vezes, fatos exteriores pareciam expressar to bem uma realidade interior que imediatamente ganhavam status de mito e inspiravam uma exploso de entusiasmo. Um desses fatos foi a descoberta da tumba de Cristo, no sculo IV: o outro, a conquista de Jerusalm por Israel em 1967. Em ambos os casos as pessoas envolvidas acharam que haviam deixado para trs esse modo primitivo de pensar, mas o curso dos acontecimentos tece um custo alto demais para elas. As catstrofes que em nosso sculo se abateram sobre judeus e palestinos adquiriram tal magnitude que o mito mais uma vez passou a ocupar lugar de destaque. Portanto, essencial considerar a mitologia de Jerusalm, ao menos para elucidar os desejos e o comportamento dos indivduos afetados por esse tipo de espiritualidade. O ltimo conceito que temos de analisar antes de embarcar

  • na histria de Jerusalm o de simbolismo. Em nossa sociedade norteada pela cincia j no pensamos naturalmente em termos de imagens e smbolos. Desenvolvemos um modo de pensar mais lgico e discursivo. Em vez de observar os fenmenos fsicos com olhos imaginativos, despojamos um objeto de todas as suas associaes emocionais e nos atemos coisa em si. No Ocidente isso modificou a experincia religiosa de muita gente - um processo que, como veremos, comeou no sculo XVI. Tendemos a dizer que determinada coisa "apenas" um smbolo, essencialmente separado da realidade mais misteriosa que representa. O mundo pr-moderno, entretanto, no compartilhava essa concepo. Um smbolo fazia parte da realidade a que se referia; um smbolo religioso tinha, por conseguinte, o poder de introduzir os devotos no reino do sagrado. Ao longo da histria a experincia do sagrado nunca foi direta - exceto, talvez, para alguns indivduos extraordinrios -, mas sempre ocorreu atravs de outra coisa. Assim, a experincia do divino se d por intermdio de uma criatura humana - homem ou mulher - que se torna um avatar ou encarnao do sagrado, bem como de um texto sacro, um cdigo legal ou uma doutrina. Um de seus smbolos mais antigos e onipresentes um lugar. As pessoas percebem o sagrado nas montanhas, nos bosques, nas cidades e nos templos, onde se sentem entrando numa dimenso diferente, separada do mundo fsico que habitam normalmente, porm compatvel com ele. Para judeus, cristos e muulmanos, Jerusalm esse smbolo do divino. Isso no acontece automaticamente. Depois que um lugar passa a ser visto como sagrado, como capaz de dar acesso ao divino, os devotos acionam sua energia criativa para ajudar os demais a cultivar esse senso de transcendncia. Veremos que a arquitetura de templos, igrejas e mesquitas simbolicamente importante, muitas vezes mapeando o roteiro interior que um peregrino deve percorrer para chegar a Deus. A liturgia tambm intensifica essa percepo do espao sagrado. O Ocidente protestante tem como hbito desconfiar do cerimonial religioso, vendo-o como pura mitificao. No entanto, provavelmente mais exato ver a liturgia como uma forma de teatro, capaz de proporcionar uma forte experincia do transcendente mesmo num contexto secular. O teatro ocidental teve origem na religio: nos festivais sacros da Grcia antiga e nas celebraes pascais das igrejas e catedrais da Europa medieval. Tambm surgiram mitos para expressar o significado oculto de Jerusalm e seus diversos santurios. Um desses mitos o que Mircea Eliade, falecido estudioso romeno radicado nos Estados Unidos, encontrou em quase todas as culturas, e chamou de mito do eterno retorno. Nessa linha de pensamento, todos os objetos que vemos aqui na terra tm sua contrapartida na esfera divina. Podemos entender esse mito como uma tentativa de expressar a sensao de que nossa vida aqui embaixo incompleta e dissociada de uma existncia mais plena e mais satisfatria alhures. Todas as atividades e aptides humanas tambm possuem um prottipo divido: mimetizando as aes dos deuses, os homens podem participar de sua vida divina. Ainda hoje se observa essa imitatio dei. Os fiis continuam repousando no Sab ou comendo po e tomando vinho na igreja - atos que por si mesmos so insignificantes -, pois acreditam que um dia Deus praticou essas aes. Os rituais num lugar sagrado constituem outra maneira simblica de imitar a divindade e participar de sua existncia mais plena. O mesmo mito tambm crucial para o culto da cidade santa, que pode ser

  • vista como uma rplica da morada dos deuses no cu. Um templo reproduz o palcio celestial de uma divindade especfica; copiando o mais minuciosamente possvel seu arqutipo celeste, ele poderia abrigar essa divindade aqui na terra. luz da modernidade racional tais mitos parecem ridculos. Essas idias, no entanto, no tiveram uma origem separada para depois serem atribudas a determinado lugar "santo". Elas constituem uma tentativa de explicar uma experincia. Na religio a experincia sempre antecede a explicao teolgica. As pessoas primeiro sentem que apreenderam o sagrado num bosque ou no cume de uma montanha. Os artifcios estticos da arquitetura, da msica e da liturgia s vezes as ajudam, fazendo-as transcender a si mesmas. Depois elas procuram explicar essa experincia na linguagem potica da mitologia ou nos smbolos da geografia sagrada. Jerusalm revelou-se um desses lugares que "funcionam" para judeus, cristos e muulmanos porque parece introduzi-los na esfera do divino. Um ltimo comentrio precisa ser feito. As prticas religiosas assemelham-se muito s artsticas. Arte e religio tentam entender um mundo imperfeito e trgico. Contudo, a religio difere da arte porque precisa ter uma dimenso tica. Talvez se possa defini-la como uma esttica moral. No basta experimentar o divino ou o transcendente; preciso que a experincia se incorpore a nossa conduta em relao aos outros. Todas as grandes religies frisam que a prova da verdadeira espiritualidade a prtica da compaixo. Buda disse certa vez que, tendo alcanado a sabedoria, o indivduo deve deixar o cume da montanha e voltar ao mercado, para ali praticar a compaixo com todos os seres vivos. Isso se aplica tambm espiritualidade de um local santo. Crucial para o culto de Jerusalm, desde o incio, a importncia da caridade concreta e da justia social. A cidade s pode ser santa se for tambm justa e compassiva com os fracos e os indefesos. Infelizmente, porm, esse imperativo moral muitas vezes cai no esquecimento. Algumas das piores atrocidades ocorreram quando a pureza de Jerusalm e o desejo de conquistar sua grande santidade precederam a busca da justia e da caridade. Todas essas correntes tiveram seu papel na longa e turbulenta histria da cidade. Este livro no tentar ditar regras sobre o futuro de Jerusalm. Seria presuno. Apenas procurar descobrir o que judeus, cristos e muulmanos querem dizer quando declaram que a cidade "santa" para eles, e apontar algumas das implicaes da santidade de Jerusalm em cada tradio. Isso parece to importante quanto decidir quem esteve l primeiro e quem, portanto, pode reivindicar a posse da cidade, sobretudo porque as origens de Jerusalm esto envoltas na obscuridade.