ARQUITECTURA BARROCA EM PORTUGAL Biblioteca Breve

Embed Size (px)

Citation preview

Microsoft Word - bb103.doc

ARQUITECTURA BARROCA

EM PORTUGAL

Biblioteca Breve

SRIE ARTES VISUAIS

ISBN 972 566 171 0

DIRECTOR DA PUBLICAO

ANTNIO QUADROS

JOS FERNANDES PEREIRA

Arquitectura Barroca

em Portugal

MINISTRIO DA EDUCAO

Ttulo Arquitectura Barroca em Portugal ___________________________________________ Biblioteca Breve /Volume 103 ___________________________________________ 1. edio 1986 2. edio 1992 ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao ___________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14-1., 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases __________________________________________ Tiragem 4 000 exemplares ___________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira ___________________________________________ Orientao grfica Lus Correia ___________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal __________________________________________ Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA ISSN 0871 519 X

NDICE

Pg. Introduo ........................................................................... 6

I / Perodo de experimentao (1651-1690)...................... 14

II / Perodo de definio (1690-1711)............................... 28

III / Barroco da Corte (1717-1750) ................................... 50

IV / O Barroco no Norte (1725-1769) ............................ 117

V / Persistncias e declnio (1750-1779) ........................ 151

VI / Barroco Provincial................................................... 166

VII / A Casa Nobre ......................................................... 187

Concluso ....................................................................... 200

Bibliografia ..................................................................... 205

ndice de Ilustraes ....................................................... 214

6

INTRODUO

A anlise da arquitectura barroca coloca ainda hoje ao analista o dilema da utilidade. No da utilidade enquanto necessidade de escrita sobre um tema de arte num pas de historiografia deficitria mas porqu escrever sobre o barroco?

Emoes contraditrias para quem escreve e antev incredulidades, alguns sorrisos e desconfianas ideolgicas O barroco suscita, ainda, paixes viscerais. Falar de barroco referir inevitavelmente o seu julgamento em termos de dicotomia. Reassumir esse maniquesmo hoje paralisante e interessou-nos sobretudo reflectir ideias ou meras opinies e elaborar uma viso pessoal que decorre de estudos anteriores e de outros em que actualmente trabalhamos. No se pretenda ver neste livrinho, contudo, uma Histria, que no o nem podia ser face exiguidade de estudos parcelares e ao desconhecimento que paira sobre muitas obras, nem sequer inventariadas. Acresce ainda que, no invocando lamentaes compensatrias sobre deficientes condies de trabalho, o autor no tem tambm idade para fazer Histrias.

Pertencemos a uma gerao escolar a quem ensinaram a amar os castelos medievais, as igrejinhas

7

romnicas implantadas em locais verdejantes, cuja importncia a idade provecta caucionava, a pureza exemplar de Alcobaa, o rendilhado gtico da Batalha (como j no se faz!) ou ainda a gloriosa e herica exuberncia manuelina, cheirando a oceanos desbravados por intrpidos marinheiros. Depois era obviamente o declnio estril, cujo smbolo era Mafra (monumento maior que o Reino, na expresso famosa de Oliveira Martins), referncia ltima antes do silncio sobre a ignbil arte moderna, pois como tambm escolarmente se dizia, aps 1820 no se tratava de Histria mas de poltica.

Restrinjamo-nos porm ao barroco. Como noutro local dissemos, a m fama desta arte tem razes oitocentistas, iniciando-se em Cirillo e conhecendo ampla divulgao nas obras de Herculano, Antero e Oliveira Martins. Tambm Garrett ao viajar at Santarm referenciara apenas o gtico da cidade e de modo paradigmtico o fez. Romnticos e liberais, nostlgicos da Idade Mdia heroicizada, reagiam contra o passado recente, absolutista e clerical.

Reaco ambgua, que alis Garrett pressentiu. Era uma questo ideolgica que esteticamente se definia enquanto gosto. Mas o anti-clericalismo militante dos romnticos extasiava-se, porm, perante Alcobaa ou a Batalha menos clericais que Mafra? No, certamente; mas Mafra referenciava o universo absolutista dos Braganas e este era tambm um argumento decisivo. Alis as referncias artsticas so mero pretexto ilustrativo, entidades passivas. Mafra era sobretudo a lembrana de D. Joo V, fradesco, beato e devasso. O processo ento instaurado ao rei visava efeitos moralizantes sendo contraposto ao carcter vigoroso,

8

enrgico e imaculado dos monarcas medievais. Era a Histria como lio de moral de que falava Oliveira Martins, moral que os Braganas no tinham. Se aps a Idade Mdia Portugal era um pas decadente, como o no seria a sua arte?

Romnticos, liberais, positivistas, anti-clericais de tradio jacobina, forjaram os seus heris e no-heris, separando miticamente o trigo do joio. Operao bem sucedida a julgar pela sua longevidade e perdurabilidade na memria colectiva.

No sculo XX introduz-se uma nova componente glorificadora, o manuelino, nascendo do ambiente nacionalista do Estado Novo e tendo relaes directas com a poltica oficial ento seguida.

Quanto ao barroco joanino no constitua sequer um estilo, porque no existia ento, como no reinado de D. Manuel, um ambiente de glria e exaltao (Reinaldo dos Santos, 1950). Ento se comemorava o bicentenrio da morte do Rei, discretamente assinalado. Governo e oposio no se reviam em D. Joo V, to pouco no barroco. Dez anos antes, na Exposio do Mundo Portugus, barmetro do gosto oficial, era o romnico, o gtico e o manuelino que informavam os vrios pavilhes do certame. O estilo D. Joo V que os irmos Rebelos de Andrade podiam protagonizar, ficou de fora. Informava ainda anacronicamente obras civis e religiosas, em situao oficiosa que no entanto era contraditria. Relembrem-se a propsito os restauros a que se dedicaram com esprito de cruzada os Monumentos Nacionais e que visavam a reposio da pureza medieval com prejuzo e destruio das nefastas intromisses barrocas. Estilo anacrnico no sculo XX? Sem dvida, mas nunca o preferido

9

oficialmente, pois a referncia esttica era medieval em continuao do gosto oitocentista.

De qualquer modo, o sculo XVIII tem sido um sculo de heris, D. Joo V e Pombal, de que se apoderaram reaccionrios e progressistas em viso redutora. Neste contexto, que futuro para o estudo desapaixonado da arte barroca, que alis no se inicia com D. Joo V? A sua valorizao veio de fora: Robert Smith, Bazin, entre outros, e Bottineau (mais tarde), salientam a originalidade da arquitectura barroca nacional no contexto europeu. Importncia que se acentuou aps os estudos sobre a arte sul-americana, verificando-se ento as analogias civilizacionais. Arte ibero-americana se dir ento com mais propriedade, com Portugal e Brasil a valorizarem-se mutuamente. Em todo este processo Robert Smith nome cimeiro e, durante dcadas, cientificamente estudar e divulgar a arte barroca recordem-se os seus estudos sobre Mafra, Nasoni e a revelao de Andr Soares como arquitecto de Braga.

Do lado portugus, o silncio, parcialmente explicado pela carga cultural negativa do barroco, aqui e alm referido em comunicaes ou artigos de ocasio. Depreciativos eram-no sempre, embora sem a virulncia de Oitocentos.

Historiadores com ou sem formao especfica em Histria de Arte produziram no entanto algumas ideias-chave, repetidas depois saciedade. Assim, o barroco nacional sobretudo decorativo, vivendo da excelncia da talha e azulejo; era mais exuberante e negro no Norte, mais clssico e claro no Sul; arte decorativa, um eon lusitano, anunciado no manuelino e sua janela-emblema de Tomar (DOrs). Definiam-se igualmente a

10

sua geografia: Mafra e a Lisboa cortes influenciavam a zona sul do pas, e o territrio abaixo do Mondego; o Porto, com o vale do Douro e as terras prximas, constitua o segundo foco importante; Braga, terceiro centro importante, irradiava para o Alto Minho. Numa poca de nacionalismos, era o barroco do Norte genuinamente portugus porque mais decorativo que estrutural, enquanto o Sul registava os estrangeirismos desejados e favorecidos por D. Joo V. J na dcada de 70, e num Congresso dedicado a Andr Soares, Pais da Silva resume o estado da questo ao definir a igreja barroca como um paralelippedo animado pela decorao no frontispcio e no interior, exclusivamente. Condensava assim a noo tradicional seguida nas raras Histrias de Arte entre ns publicadas e que resumiam a arquitectura decorao. Planimetria longitudinal, sobrecarregada, seno absorvida pela decorao, assim era vista a arquitectura barroca, se bem que os exemplos sempre citados, como St.a Engrcia, Bom Jesus da Cruz; Clrigos ou a Falperra neguem o enunciado anterior. De facto, se considerarmos que a arquitectura no se resume ou esgota na decorao, verificamos por simples listagem que uma outra realidade domina o barroco produzido: a grande diversidade de plantas, propondo espaos diversificados e variados.

Mas a decorao assim valorizada motivava sobretudo estudos no domnio do azulejo (Santos Simes) e talha (R. Smith e Flvio Gonalves). Era o corolrio natural de velhas ideias tendentes a afirmarem o portuguesismo decorativo em oposio ao estrangeirismo mafrense. Esta oposio animava ainda Ayres de Carvalho em 62, levando-o a condenar o tudesco Frederico. O D. Joo V e a arte do seu tempo

11

representava um ponto de chegada, alicerado ainda em vasta documentao, parcialmente transcrita, sonegando-se ainda aos leitores a sua origem arquivstica. O positivismos documental, necessrio mas insuficiente, revia-se tambm nesta obra que, vinte e trs anos passados, representa a ltima publicao individual dedicada arquitectura barroca.

Ao longo destas duas dcadas somente as Actas do Congresso Andr Soares (publicadas em 74) permitiram uma mise-au-point notvel, abrindo simultaneamente pistas interpretativas que em grande parte estancam velhos preconceitos e metodologias.

Entretanto, com o desaparecimento de R. Smith, e sem a formao de uma gerao de historiadores que retomasse o seu trabalho, o estudo da arquitectura barroca ficou numa situao de orfandade tanto mais grave quanto permanecem tarefas em atraso: pesquisa documental sobre obras e autores, inventariao de exemplares, problematizao de dados, formulao de novas snteses, etc. Sem desesperos inteis tarefa complexa neste lugar e tempo, no realizvel escala individual. O autor pode alis constatar que em instituio universitria onde adquiriu formao especfica em Histria de Arte (FCSH), nem s circunstancialismos de momento explicam a exiguidade de teses apresentadas sobre o barroco.

A reconquista do barroco de que falava Charpentrat, referindo-se a Tapie e ao seu famoso livro de 57, teve entre ns apenas um obreiro de mrito em Robert Smith. A situao actual de quase desertificao. No est completamente ultrapassada a querela entre os herdeiros do anti-clericalismo versus herdeiros do nacionalismo conservador, ambos

12

amantes, contudo, da arte medieval (do romnico ao manuelino). To pouco o barroco seduz historiadores de vocao marxista que vem preferencialmente no maneirismo um perodo privilegiado de lutas laborais pela dignificao do artista. E, neste momento, pedir um novo olhar sobre o barroco aos historiadores do perodo contemporneo ser ainda pedir de mais, mesmo em fase ps-modernista

Assim o crculo se fecha e retornamos m f oitocentista e seus tenazes prolongamentos. Falar do barroco ainda retomar velhas querelas. Se o Dicionrio de Histria de Portugal, publicado a partir de 61, era lamentavelmente omisso quanto arte barroca (nico estilo anterior ao sculo XIX que no mereceu tratamento) o autor da entrada D. Joo V convidava anlise de estruturas e circunstncias epocais. Em vo, sabemo-lo hoje. Nenhum estudo recente tratou da primeira metade de Setecentos ou do ltimo quartel de Seiscentos, em termos globais. O historiador de arte, procurando informaes noutras reas, em atitude raramente retribuda, v-se desamparado pela histria social, econmica, mental, etc. Os estudos literrios tm comungado da mesma desconfiana anti-barroca, embora um estudo recente de Ana Hatherly (A experincia do prodgio) abra novas pistas interpretativas, valorizando a produo da poca.

Mas qual a importncia do barroco na cultura portuguesa? Ele , na sua criatividade e nas iluses criadas, o estilo que se segue Restaurao e a consolida. imagem das igrejas bvaras, dos castelos checos, smbolos de um nacionalismo que se afirma, a arquitectura barroca em Portugal tem um valor simblico de rebelio anti-espanhola, procurando

13

simultaneamente, e por isso mesmo, uma europeizao diversificada. Por outro lado, e na sequncia do maneirismo, o barroco bem um estilo escala do Imprio. Para alm das oscilaes de gosto, tambm um estilo de longa durao, nascido da difcil conjuntura da guerra, expandindo-se a coberto de uma ilusria prosperidade de raiz colonial, perpetuando-se em anacronismo significativo mas retrgrado para alm da sua morte natural.

Vitalidade, longevidade, fervor construtivo, na exacta proporo das azedas crticas que suscitou

Possa a leitura do que se segue esconjurar alguns fantasmas e suscitar olhares desapaixonados.

14

I / PERODO DE EXPERIMENTAO (1651-1690)

Seguindo a regra geral verificvel para outros perodos arquitectnicos, o barroco inicia-se fragmentadamente: motivos dispersos, de feio no-estrutural, decorativos, inseridos em edifcios j existentes. um perodo de experimentao de formas e das suas potencialidades, fenmeno minoritrio que lentamente ir desalojar um maneirismo persistente e duradouro, at se transformar em discurso dominante. A segunda metade do sculo XVII conhecer uma justaposio de tempos artsticos, quando a modernidade barroca inicia, em substituio, um processo necessrio de renovao do panorama arquitectnico portugus.

O primeiro exemplo conhecido de aplicao de formas decorativas barrocas fornecido pela desaparecida igreja de Nossa Senhora do Loreto em Lisboa, pertencente comunidade italiana da capital. Pinturas e esculturas que ornavam a igreja, foram importadas de Gnova, anunciando um processo de italianizao que ser particularmente importante no

15

reinado joanino. A principal novidade trazida por essa decorao foram as colunas salomnicas em pedra verde, instaladas em 1671, e que se celebrizaram em Itlia a partir do baldaquino berniniano para S. Pedro de Roma. Potencialmente essas colunas, devido ao seu dinamismo formal, interessavam a uma arquitectura que pretendia quebrar padres espaciais estticos. Ter sido grande o impacto produzido por esta novidade, embora os artistas portugueses estivessem alheios s obras do Loreto, certamente porque mal balbuciavam ainda a linguagem barroca. Para alm do mais, os artistas portugueses tinham necessidades mais urgentes a que acudir, como veremos. A igreja era, pois, um fenmeno estranho que se introduzia, por importao, na arte e na sociedade portuguesas. A decorao privilegiava os mrmores de tonalidades diversas, as esttuas de jaspe (vindas de Gnova e executadas por Filippo Parodi), as pinturas no tecto (1681) figurando histria do Velho Testamento. Tal obra, s era possvel, ao tempo, devido riqueza dos mercadores italianos e s informaes artsticas veiculadas do seu pas. Os arquitectos portugueses no estavam em condies de desenvolver a linguagem barroca que se iria esboar por vias mais decorativas do que arquitectnicas neste perodo inicial.

As salomnicas da igreja do Loreto achavam-se despojadas de quaisquer elementos decorativos. Mas logo em 1676, na igreja de S. Nicolau do Porto, os retbulos perdidos combinavam a salomnica com elementos decorativos vegetalistas multiplicados indefinidamente e fornecendo um padro esttico que a partir da dcada de 80 se popularizar. Ento dar-se- incio ao denominado estilo nacional em que a salomnica de ordem corntia ou compsita se combina

16

com elementos naturalistas cachos, folhas, aves ou de simbologia crist fnixes, pequenos anjos em colheita eucarstica. Procura-se uma unidade na infinita diversidade e os pequenos apontamentos decorativos, prova do gosto pelo detalhe, inserem-se numa ordenao geral que os enquadra e lhes d justificao. A talha seguir um percurso prprio, relegando para plano menor uma escultura subalternizada e gozando dos favores de uma clientela eclesistica que se comprazia no infinito maravilhamento visual da madeira dourada. A relao da talha com a arquitectura precisa neste perodo de experimentao, e assim se manter ao longo de todo o perodo barroco: destina-se a dinamizar espaos internos estticos e austeros j existentes, que se conservam, e cuja fisionomia assim alterada. Os exemplos multiplicam-se em nmero infinito por todo o territrio nacional. Uma outra variante desta dinamizao e ampliao espacial feita pela decorao, encontra-se em pequenas igrejas, geralmente de uma nave, que, construdas estaticamente, se destinavam a receber os citados elementos decorativos.

Um dos primeiros e mais requintados ensaios constitudo pela igreja do Convento de Nossa Senhora da Conceio dos Cardais, em Lisboa, iniciada em 1681 e cuja concluso data de 1703. uma igreja de propores modestas, externamente sbria, com duas portas de feio barroca a quebrarem a austeridade: a de S. Jos, de fronto triangular, e a de Nossa Senhora da Conceio, de fronto quebrado. Internamente consagra uma nave articulada a uma capela-mor, ambas rectangulares, com abbada de bero. A simplicidade do plano fazia certamente prever uma decorao que substitusse o tradicionalismo arquitectnico: os

17

elementos de talha, azulejos, pinturas, imagens sacras, embutidos, preenchem totalmente os alados do edifcio, definindo um espao interior com predominncia de valores sensveis e pitorescos. A arquitectura subordina-se decorao, erigida a primeiro plano do programa construtivo. Aos primeiros ensaios em que a talha se continha nos altares, sucede-se uma progressiva apropriao do espao pela decorao, que cada vez mais invade a totalidade do edifcio. Na igreja dos Cardais assiste-se a um dos primeiros ensaios das igrejas forradas de ouro que tero um desenvolvimento prprio e constituiro uma das tipologias do discurso barroco. Aqui se combinam elementos variados, se multiplicam os focos visuais destinados a convencer emocionalmente os espectadores que se pretende seduzir e dominar.

Exemplos subsequentes, como a igreja da Nossa Senhora da Conceio de Marvila (1690-1700), a igreja do Convento da Madre de Deus em Lisboa, ou, no Porto, as igrejas de Santa Clara e S. Francisco, constituem a prova da fortuna decorativa dos interiores pr-existentes ou no data da interveno dos decoradores. Mas a igreja dos Cardais relembra ainda o favor que o azulejo tem (no ltimo quartel do sculo XVII torna-se naturalista, figurativo), similar ao discurso da talha. Pretende-se, isoladamente ou em combinao com outras formas decorativas, a ampliao espacial de pequenas igrejas, paroquiais ou de conventos religiosos. Um dos primeiros exemplos dado pela igreja das Domnicas de Elvas, cujas paredes, abbadas e zimbrio foram, em 1659, revestidas a azulejos polcromos de dois padres. Em Santa Maria de bidos, a decorao azulejar (1661?) mostra j uma evoluo para a

18

policromia de azul e branco que ser dominante no sculo XVIII, em substituio da paleta variada apresentada pelos azulejos de perodo anterior. A novidade do azul e branco foi introduzida pelos azulejos holandeses que em finais de Seiscentos gozavam dos favores do pblico, correspondendo s necessidades e gosto de uma sociedade em mudana, vida de padres ulicos que destronassem a severidade geomtrica e abstracta dos azulejos maneiristas.

Para alm de aspectos relacionados com a feitura e preos, os azulejos holandeses introduziam uma nova iconografia. Surge uma imaginria pitoresca, graciosa, com figuras movimentando-se sobre fundos paisagsticos. Aplicados em alados interiores de igrejas, dinamizam tambm os espaos comprimidos. A cronologia destas igrejas forradas a talha e azulejo ainda obscura, constituindo uma srie infindvel que informa sobretudo a decorao. Mas o seu grande nmero e importncia no podem fazer esquecer outras hipteses que se colocaram aos artistas portugueses neste perodo de arranque da arquitectura barroca. Outras vias se esboam e, das mais importantes, que se procura integrar na corrente italianizante do barroco europeu. Neste processo distingue-se o intrigante problema da igreja da Divina Providncia em Lisboa, realizada em trs meses no ano de 1653 e destruda em 1689, por ameaar runa, ser pequena e irregular. Ora no Tratado de Arquitectura do padre teatino Guarino Guanini (1624-1683) figura uma igreja da Divina Providncia para a cidade de Lisboa, concebida nos moldes usuais do arquitecto italiano, e cuja ambio no se coadunava com a difcil conjuntura portuguesa. Seria, a ter existido, uma obra mpar e extremamente precoce,

19

s possvel por ser de importao. Mas as razes aventadas para a demolio da igreja de 1653 e incio de uma nova em 1698, excluem, por absurda, a hiptese de construo do projecto de Guanini. O projecto no ter passado disso mesmo mas um anncio tambm prematuro da corrente italianizante que D. Joo V oficializar.

Neste inqurito ao perodo de experimentao nota-se a ausncia de uma obra inovadora que desse a medida das potencialidades renovadoras dos arquitectos portugueses. Tal ausncia ter que entender-se dentro da conjuntura extremamente difcil que o pas vivia. De facto, em 1640 rompia-se uma aliana de 60 anos com a vizinha Espanha em que Portugal figurava como dominado. Se a Restaurao da Independncia, fruto sobretudo da parte da nobreza e clero mais influente, fora possvel numa manh do primeiro dia de Dezembro, a manuteno da mesma exigira longos anos de esforo reorganizativo militar, cultural e econmico dentro de uma situao interna particularmente instvel. Para a nova dinastia tratava-se, antes de mais, de estabelecer uma autoridade forte. Mas as vicissitudes e necessidades do momento levavam a solues de compromisso. Assim, as Cortes sucedem-se, todas em Lisboa: 1641, 42, 45, 53, 68, 74, 77, 79. D. Joo IV, ao morrer em 1656, deixa uma herana difcil em termos de sucesso. O primognito, D. Teodsio, falecera trs anos antes. D. Lusa de Gusmo ser regente na menoridade de D. Afonso VI, at 1663, ano em que Castelo Melhor protagoniza um golpe de Estado palaciano a favor de um monarca doente e incapaz. O 3. Conde de Castelo Melhor, Lus de Vasconcelos e Sousa, desenvolve a sua aco poltica segundo dois

20

vectores fundamentais firmar o seu poder e reorganizar o mais depressa possvel o exrcito. Mas ele prprio ser apeado do poder por D. Pedro II, conluiado com a cunhada, D. Maria Francisca Isabel de Sabia, com quem D. Pedro acabar por casar, depois da anulao do casamento (1668), a que se seguiu a deportao de D. Afonso VI para os Aores (1669). A periclitante situao sucessria da coroa s se resolver definitivamente aps o segundo casamento de D. Pedro II, em 1687, com D. Maria Sofia de Neuburgo e o nascimento do futuro D. Joo V.

Entretanto, a situao econmica e financeira do Reino acusava entre 1670-1690 um perodo de crise como resultado da quebra comercial do acar brasileiro, ensaiando-se ento uma poltica manufactureira patrocinada pelo Conde da Ericeira. Como pano de fundo, a guerra. Portugal carecia data da Restaurao de um sistema de fortificaes, de exrcito organizado, de chefes militares. Por isso a tctica blica dos portugueses ser sobretudo defensiva o importante no conquistar, mas afirmar a soberania nacional. A guerra explica tambm a ofensiva diplomtica empreendida e destinada a obter o reconhecimento por parte dos pases europeus bem como as periclitantes alianas e tratados que se fazem e desfazem ao sabor dos circunstancialismos do momento. uma guerra lenta e longa, oportunamente longa, pois a Espanha teve de acudir a outras frentes, permitindo a reorganizao portuguesa. Montijo (1644), Linhas de Elvas (1658), Ameixial (1663), Castelo Rodrigo (1664) e Montes Claros (1665), constituem as batalhas mais importantes, a par de outros incidentes militares de menor monta: cerco de Elvas (1644),

21

recontro de Arronches (1653), cerco de Badajoz (1658). Para alm do territrio europeu, com o teatro da guerra a situar-se sobretudo no Alentejo, Portugal defrontou ainda uma longa guerra nos territrios de alm-mar, em especial no Brasil e Angola. Ao fim de vinte e oito anos a paz com a Espanha ser assinada por D. Pedro II (27 /V/ 1668), pondo-se fim a uma guerra que condicionou negativamente o desenvolvimento da arquitectura.

Note-se que entre 1640 e o incio do reinado joanino no h um programa construtivo por parte da Coroa, substituda ento pelo clero que empreendia pequenas igrejas de que vimos o significado. A conjuntura da guerra, aliada instabilidade poltica e econmica, dificulta e impede a ecloso de um programa arquitectnico rgio, s possvel de alcanar em tempo de paz e desafogo financeiro. Nos anos subsequentes a 1640 a urgncia governativa a consolidao da independncia. O ensino da arquitectura privilegia o imediato, isto , as construes militares. Em 1647 cria-se a Aula de Fortificaes e Arquitectura Militar na Ribeira das Naus, cujo inspirador e Mestre principal foi Lus Serro Pimentel (1613-1678). Pimentel, especializado em matemtica e nutica, professor da classe de Fortificao, ser Engenheiro-Mor do Reino, exercendo grande actividade na consolidao de fortificaes. Em 1680 publicava o Mtodo Lusitano de Desenhar Fortificaes, onde ter reunido matria ensinada nas aulas. uma obra emblemtica pois revela as preocupaes fundamentais que ento se punham aos arquitectos. Estes eram sobretudo engenheiros militares e a sua profisso assim exercida, juntamente com uma carreira definida dentro da hierarquia castrense, so factores primordiais que explicam o desenvolvimento da

22

arquitectura nos finais do sculo XVII e cujos ecos iremos encontrar no perodo joanino e ainda na Lisboa pombalina.

A guerra pois o fulcro, a pedra basilar em torno da qual se define a magra produo arquitectnica do perodo de experimentao. A batalha do Ameixial, em 8 de Junho de 1663, representou o episdio militar decisivo, pela ameaa efectiva trazida pelos exrcitos espanhis chefiados por D. Joo de ustria. Derrotados, os espanhis atacaro ainda no ano seguinte em Castelo Rodrigo e em 1665 em Montes Claros. Mas o Ameixial representou efectivamente a batalha mais importante do confronto ibrico. Por isso mesmo ser o pretexto para a edificao de uma obra decisiva para o eclodir da espacialidade interna do barroco: a igreja de Nossa Senhora da Piedade em Santarm, planeada e comeada em 1664. Uma crena milagrosa atribuir aos poderes da imagem da santa, exposta numa pequena ermida junto muralha, o desenrolar vitorioso do Ameixial mais do que fora das armas Confirmado o milagre (na gnese da grande maioria das obras barrocas) pelas autoridades eclesisticas, logo se pensou em habitao mais condigna para a imagem. Em 1664 D. Afonso VI empreende a viagem at Santarm, levando consigo os planos da nova igreja, devidos a Jcome Mendes, que tambm dirigir as obras. Lanada a primeira pedra a 26 de Janeiro desse ano, a obra avanar at cimalha real. As vicissitudes da poltica interna impediram o normal prosseguimento das obras, s terminadas no reinado de D. Pedro II. A nica obra comemorativa da vitria na guerra, tal como esta, arrastou-se no tempo, apesar das

23

suas pequenas propores tempo de dificuldades, afinal.

A igreja de Santarm, de plano centralizado, define uma planta em cruz grega, sendo trs dos topos dos braos livres pontuados por portas, e o quarto pelo altar. Na porta principal o escudo real mostra a iniciativa que lhe est na gnese; as portas laterais so encimadas por tabelas emolduradas, com inscries latinas alusivas guerra da Restaurao. Estas portas definem-se estaticamente, num formulrio de raiz classicizante. So, ainda assim, a melhor contribuio para a definio externa do edifcio as janelas so simples aberturas. A secura dos ngulos rectos sublinhada por pilastras. Sobriedade e austeridade so tambm apangio do espao interno, concordando com os tempos difceis da dcada de 60. Todo o conjunto encimado por cpula octogonal, coroada por alto pinculo, projectando-se enquanto foco visual sobre o tecido urbano circundante, embora em escala modesta. Kubler avaliou esta igreja plain and severe, filiando-a no gosto portugus da Restaurao. Mas a sua importncia no pode ser encontrada na decorao, ou na sua ausncia, mas na novidade que representa o retomar de planos centralizados aps o tempo longo do longitudinal que caracterizou a produo maneirista na sua vertente oficial. O barroco vai ser tempo de renovao, de diversidade planimtrica, de espacialidade diversa. A planta, de raiz renascentista, representou o retomar de uma prtica mal enraizada.

Se, como observou Tapi, os arquitectos barrocos so os filhos emancipados do Renascimento, mas de modo nenhum infiis ou ingratos, compreender-se- a procura de, no caso portugus, um tempo perdido,

24

abruptamente terminado pelo dirigismo ideolgico-artstico maneirista. Trs mundos e trs tempos se cruzam na pequena igreja de Santarm: a longnqua referncia a solues planimtricas renascentistas, austeridade decorativa vinda do maneirismo (ambas representando o passado), e o futuro do barroco proposto pela variedade de pontos visuais de referncia envolvendo os espectadores. Do Renascimento, a referncia so os planos centralizados que em Portugal conheceram alguma aplicao: Claustro de Manga (1533-34), ermida de Santo Amaro (1549), igreja do Bom Jesus de Valverde em vora (1544) A austeridade decorativa, na tradio secular portuguesa que Kubler designou por ch, harmonizava-se com o tempo e o lugar. A planta era e da a sua primordial importncia a interrupo oficial dos esquemas do passado recente e o anncio da diversidade que o barroco trar. A pluralidade de centros visuais quebra o dirigismo uni-direccional e envolve o espectador num espao mais fluido, aqui enunciado. Quando a decorao mostrar as suas potencialidades sedutoras, o barroco ter atingido os seus objectivos de modo total. Entretanto registe-se o papel pioneiro desta igreja, comemorativa do facto mais importante do sculo XVII: a Restaurao. Se da pequena obra se trata porque difceis eram os tempos. Ser necessrio esperar a recuperao das vrias crises para que o barroco apresente obras de maiores propores. Ento o barroco assinalar um perodo de paz, de boom financeiro e a segura continuidade de uma nova dinastia. Como simbolicamente mostra a igreja de Nossa Senhora da Piedade, s o fim da guerra abriria novas possibilidades de renovao arquitectura portuguesa.

25

Lisboa, que perdera a corte por sessenta anos, que assistia edificao de uma igreja comemorativa em Santarm, ter neste perodo nulo papel, aguardando as renovaes joaninas. Ser pois na provncia que o barroco ir ensaiando as suas propostas, mngua de um programa rgio. As dcadas de setenta e oitenta, dada a crise comercial existente, no taro novidades importantes. Os Braganas, que desde 1635 patrocinavam em Vila Viosa a igreja do Mosteiro de Santo Agostinho, levaro tempo a concluir a obra (sagrada em 1677), destinando a capela-mor e cruzeiro a Panteo de famlia. Os ossos, trasladados ento, foram encerrados em tmulos simples e sbrios, de reduzido interesse artstico. A igreja , no seu conjunto, uma massa pesada e austera, com uma frontaria flanqueada por duas torres, um prtico atarracado e um zimbrio octogonal de grandes propores. Internamente consagra-se a planta longitudinal e uma decorao sbria em tons neutros. Esta igreja, apesar da data da sua concluso, simboliza ainda o passado sobriedade e estatismo apenas contrariado por um pequeno elemento minoritrio: o zimbrio poligonal de grandes propores impondo-se ao casario baixo da vila alentejana. Uma outra igreja alentejana, a do Carmo de vora (1670-1691), revela as mesmas ambiguidades: no interior uma nave rectangular sbria, com uma entrada em arco redondo de algum poder cenogrfico. A encimar o conjunto, uma torre poligonal projectando-se tambm sobre o espao urbano envolvente.

Hesitaes, dificuldades de ordenao geral dos elementos decorativos, esboam-se em Braga desde a dcada de 50. Em 1652 iniciava-se a construo da igreja das Beatas Capuchas. O seu interesse fundamental

26

reside na fachada, desenvolvendo-se em altura, e onde afloram, de modo pouco articulado ainda, formas de grande plasticidade. O conjunto aditivo, sendo a fachada um pretexto para a colagem de elementos, multiplicados simetricamente. Definem-se enquanto resduos, que Andr Soares, um sculo depois, desenvolver exaustivamente. Pela data de construo a igreja pioneira na definio das fachadas principais como peas privilegiadas das igrejas barrocas, onde a decorao aspira a ocupar, seno a substituir, a estrutura. A partir de um eixo central pontuado por cruz, nicho, escudo, culo circular, porta, rasgam-se duas grandes janelas separadas por cornija da porta superior. Esta projecta-se ascensionalmente atravs de pinculos enquadrando um nicho central ladeado por volutas. Dir-se-ia que os artistas nortenhos ansiavam libertar as suas potencialidades decorativas aps um longo perodo cerceador apesar de as igrejas maneiristas do Norte privilegiarem, mais do que no Sul, tmidas solues decorativas.

O desenvolvimento da arquitectura bracarense prejudicado pela existncia de uma sede vacante entre 1641-1671, na sequncia da participao de D. Sebastio de Mattos e Noronha na conspirao contra D. Joo IV, logo no ano seguinte Restaurao. A igreja das Beatas Capuchas, sinal das potencialidades futuras da arquitectura de Braga, assumiu cunho decorativo prprio, ficando isolada at 1686 quando o Arcebispo D. Lus de Sousa refaz inteiramente sua custa a igreja de S. Vtor, onde a fachada tambm unidade fundamental. Em 1691, a igreja de S. Vicente repete a estrutura enunciada nas Beatas Capuchas: a decorao

27

tende para uma organizao mais precisa e apodera-se totalmente de uma fachada de pequenas dimenses.

Experimentadas as potencialidades das novas formas, restava aos arquitectos barrocos definirem uma arquitectura renovadora e rumarem para novas e mais slidas propostas.

28

II / PERODO DE DEFINIO (1690-1711)

A igreja de Santa Engrcia, em Lisboa, assinala o incio das grandes construes e afirma o novo estilo. No entanto, a sua histria atribulada e do facto se retiram concluses importantes para a sequncia cronolgica do barroco. No local existiu uma primeira igreja construda por iniciativa da Infanta D. Maria, ltima filha de D. Manuel e da sua terceira mulher, D. Leonor. D. Maria, princesa da Renascena, habitava no Campo de Santa Clara. Em 1577 trabalhava-se j na igreja qual a Infanta fez avultados donativos. A igreja, em cujas obras ter trabalhado Jernimo de Ruo (Ayres de Carvalho), era de uma s nave com 5 altares e com porta do lado ocidental. A esta construo anda associado um clebre e pcaro episdio de roubo de sacrrio perpetrado pelo cristo-novo Gabriel Pereira de Castro, cuja presena no local parece antes ligar-se a amores freirticos. De qualquer modo foi queimado pela Inquisio e a igreja foi interdita (1630).

Cria-se entretanto uma confraria de fidalgos, chamada de Escravos do Santssimo Sacramento, cujo

29

presidente era o Rei e que em 1632 decide arrasar a capela-mor e fundar uma outra. A primeira pedra lanada logo nesse ano, mas a difcil conjuntura da Restaurao tornou-as obras morosas, sendo mesmo interrompidas em 1664. Em noite de temporal de 1681 a nova capela-mor desmorona-se e arrasta consigo o corpo da velha igreja, decidindo-se ento, e aps audio de arquitectos, fazer-se uma igreja completamente de novo. A Irmandade abriu concurso para a planta da nova obra tendo sido vencedor o arquitecto Joo Antunes. Santa Engrcia surpreende imediatamente pela planta, um quadrado em que as arestas so assinaladas por torrees, definindo anteriormente um plano centralizado sob cpula (s recentemente foi concluda) e em forma de cruz grega. Vimos j o significado que tal proposta contm, a propsito da igreja da Piedade em Santarm, embora a igreja de Santa Engrcia a exceda em dimenses e qualidade. Significativamente, ambas as igrejas pontuam diferentes conjunturas artsticas e sociais. A uma arquitectura de crise em tempo de guerra, sucedem-se obras de pendor ulico, afirmando valores que rompem decisivamente com o passado. Apesar da primeira pedra ter sido lanada em 1682 por D. Pedro, na dcada de 80 as obras praticamente no avanam. Logo em 85, em memorial dirigido ao Rei, a Irmandade se queixa de falta de verbas. Apesar da resposta favorvel de D. Pedro, cremos que o incio real das obras se situar em 1690, e ao longo da dcada ter sido construda a maior parte do edifcio. No foi grande o impulso dado em 86 pelo Conde de Tarouca, ento nomeado Superintendente das obras.

30

S em 1690, o pas inicia a recuperao de uma grave crise comercial que a quebra aucareira provocara. Os anos de 1690 a 1705 foram de incontestvel incremento e prosperidade mercantil para Portugal (V. M. Godinho). Os anos de paz e a resoluo definitiva do problema sucessrio (o futuro D. Joo V nasceu em 1689 e ser declarado herdeiro do trono pelas ltimas Cortes, expressamente convocadas para o efeito em 1697), trazem ao pas, e Corte, uma tranquilidade necessria ao delinear de um programa construtivo. St.a Engrcia por isso um sinal anunciador de uma mudana conjuntural desde logo pela planta, inspirada certamente na proposta de Bramante para S. Pedro de Roma e que, figurando no tratado de Srlio, conhecer ampla divulgao. De facto, Donato Bramante dera um impulso decisivo s igrejas de planta em cruz grega centralizadas sob cpula. Tal acontece na igreja de San Satiro de Milo (1479-1483), na catedral de Pavia (1488, de que foi apenas consultor nomeado pelo Cardeal Ascanio Sforza). Antes de S. Pedro, Bramante delineou o templete de S. Pedro em Montrio (1503), para a Casa Real Espanhola, obra de pequena escala, com planta circular e espao interior centrado sob cpula. O templete, cujo desenho figura tambm no tratado de Srlio , ao contrrio de St. Engrcia, um pequeno relicrio dentro de um ptio privado e destinado a consumo restrito. Em sentido oposto se define a grande escala procurada para S. Pedro (1506), ampla rea de servio para multides e cuja cpula instaura um poder ordenador e referenciador sobre a cidade.

escala lisboeta seriam estes tambm os desgnios propostos por Joo Antunes. Se a planta acusa a

31

influncia de Bramante, logo aqui pressentimos o fascnio que a arquitectura romana no deixar de exercer no barroco em Portugal, constituindo no reinado seguinte um autntico discurso oficial. Por agora registe-se que a sua escolha em concurso no deixa de constituir alguma surpresa dado o carcter particular do encomendador uma Irmandade composta, no entanto, por fidalgos que se moviam no crculo corteso e a que presidia o Rei. Como S. Pedro, tambm St. Engrcia construo que se impe sobre a malha urbana. Kubler, pitorescamente, achava-a, mais que uma igreja, um farol para a navegao do Tejo. Descontado o bizarro da afirmao, indubitvel que no fortuito o aproveitamento do enquadramento paisagstico lisboeta. St. Engrcia situa-se numa plataforma da encosta de St. Clara, com admirvel paisagem sobre o Tejo e a margem sul e sabe-se a importncia em que os arquitectos barrocos tinham os enquadramentos naturais e urbanos das suas obras. Acresce que St. Engrcia se situava ento no limite oriental de Lisboa, inserida num bairro novo de cariz aristocrtico que se delineava fora da apertada malha medieval da velha cidade, a qual dificultava a renovao. Os novos arranjos urbansticos procuravam sobretudo reas livres onde era mais fcil romper com estruturas do passado. Tal o caso do Campo de St. Clara, de forma irregular, e onde desde o sculo XVI e sobretudo no sculo XVIII, uma clientela nobre vem erigir os seus palcios, sendo o Palcio Lavradio e o Barbacena os exemplos mais notveis. O projecto de St. Engrcia considerou esta nova realidade emergente, procurando instaurar poder ordenador sobre o casario circundante e ser seu smbolo anunciador.

32

Com St. Engrcia, e pela primeira vez, assiste-se em Portugal manifestao do ideal barroco romano convertido numa linguagem internacionalizada. A planta desde logo uma citao histrica e clssica, que a presena das ordens refora. No portal do vestbulo definem-se colunas salomnicas com capitis de ordem compsita, ordem que se repete nas pilastras do interior. As ordens sero utilizadas sobretudo em obras reais ou de crculos prximos da Corte, e o reportrio clssico um emblema de poder, uma manifestao erudita, tanto mais eficaz quanto se afasta do gosto popular. Os valores clssicos presentes na obra e assumidos por Joo Antunes distanciam-se no entanto da dimenso humana de cariz renascentista ou da crise de valores do maneirismo. So uma herana cultural, uma referncia histrica. Mas St. Engrcia pelas propores e volumetria uma obra barroca fundamental. Externamente a igreja apresenta uma novidade rara a ondulao dos alados, geradora de dinamismo visual e proporcionando contrastes de claro/ escuro. Tal proposta pressupe informaes sobre a obra de Borromini cuja influncia menor entre ns que a de Bernini. A ondulao dos alados um facto surpreendente: nada o fazia prever em obras anteriores e a sua materializao s se explica por importao de influncias. Fenmeno revolucionrio, proporciona o ritmo cncavo-convexo-cncavo. Nesta perspectiva a influncia de St. Engrcia quase nula e incompreendida. A alternncia entre cncavo e convexo distribui-se pelas quatro fachadas, embora a fachada principal seja naturalmente assinalada por maior fora decorativa de elementos extrados do reportrio

33

clssico. As restantes fachadas so pesadas massas ondulantes de decorao praticamente inexistente.

A obra barroca assume e desenvolve a importncia que a arquitectura europeia confere fachada principal. St. Engrcia confirma essa constante. A sua fachada principal pontuada lateralmente pela presumvel base de duas torres, enquadrando o ritmo da parte central. Ritmo e variedade so tambm propostos pela alternncia de frontes, janelas e nichos. Quatro colunas gigantes introduzem a galil, contraponto visual escuro claridade geral da fachada. A porta principal ladeada por colunas torsas acentuando a ideia de movimento que o edifcio no seu conjunto prope. O interior anunciado pelo vestbulo, onde se rasgam portas de recorte clssico. O espao interno prope valores sensveis. A decorao de talha e azulejo est ausente, ao contrrio do verificado nas pequenas igrejas longitudinais das ordens religiosas do perodo anterior. O mrmore (material nobre e caro, e utilizado sobretudo em obras reais) de colorao rosa, amarelo e cinza, distribui-se pelo interior, no de modo aditivo mas inserido na ordenao geral proposta pela arquitectura. Harmonizando-se com a cor clara do calcrio, os mrmores definem o tom alegre, quase jovial, deste interior que prope valores profanos para comprazimento dos olhos. A decorao marmrea de St. Engrcia anuncia Mafra, onde os tons de rosa caracterizaram a policromia da igreja, que assume toda a sua plenitude em dias de sol intenso. Tambm em St. Engrcia o colorido dos mrmores pressupunha profusa iluminao assegurada por amplos janeles e pela presumvel cpula. A nacionalidade e o prestgio histrico da planta conjugavam-se com os valores

34

sensveis da decorao numa simbiose que o barroco sempre perseguiu. O interior pressupunha ampla utilizao pblica o barroco uma arte de massas que se enquadram em construes de prestgio. Procurava-se dirigir multides, capt-las emotiva e sensivelmente. St. Engrcia propunha um envolvimento em disperso visual. A escala no humana da obra completava o efeito geral a que as quatro meias cpulas (construdas) e a cpula central (no realizada) emprestavam pela escala um efeito de grande peso visual.

Mas a importncia e o significado de St. Engrcia tm de procurar-se tambm no percurso acidentado da sua construo. As obras decorreram com lentido e algumas paragens. Em 1712, data da morte de Joo Antunes, achava-se ainda incompleta, tendo as obras continuado sob a direco de Manuel de Couto. As primeiras dcadas do sculo XVIII sero decisivas para a arquitectura barroca. Em 17 iniciam-se as obras de Mafra, que mobilizam enormes recursos humanos e materiais e que em parte podero explicar o desinteresse de D. Joo V em completar St. Engrcia, apesar de se inserir na corrente esttica oficial. Tambm a falta de recursos da Irmandade para uma obra de tais dimenses, a par da estrutural vocao nacional pelo inacabado, so factores a considerar. Mas a explicao final residir na novidade extempornea que St. Engrcia representava e cuja ondulao de alados no foi assimilada por estranha sensibilidade nacional. St. Engrcia uma novidade precoce que corta definitivamente com a planimetria maneirista, facto que a arquitectura posterior no deixar de registar, mas nem sempre de modo to consequente.

35

Obra de qualidade, St. Engrcia afirma o arranque definitivo da arquitectura barroca e mostra a importncia fundamental que Joo Antunes teve nesse processo. Um inqurito sistemtico sua obra permitir porventura confirmar a sua actividade fundamental na definio de um novo estilo, harmonizando-se com as novas necessidades de uma sociedade em mudana. Quando inicia St. Engrcia, Joo Antunes rene um notvel nmero de cargos, indicadores de fama alcanada Arquitecto Rgio, da Casa do Infantado, das Casas da Rainha, da Ordem Militar de Cristo, da Ordem de S. Tiago e S. Bento de Aviz. Tal realidade, de que avulta o cargo de Arquitecto Rgio, define-o como o mais importante arquitecto de finais do sculo XVII, momento crucial na definio de uma nova arquitectura. Para alm de hipotticas atribuies, sabemos ter sido autor do famoso palcio dos Condes de Tarouca (1698), do Pao da Bemposta (1701) e da pequena ermida da Senhora da Sade (1705), obras situadas em Lisboa, e ainda do Convento do Lourial (1690). Trabalhou igualmente em Braga, em 1698, quando o arcebispo D. Joo de Sousa decidiu reconstruir a sacristia da S. Joo Antunes construiu em granito uma abbada de volta inteira dividida em caixotes, tendo a sacristia dois grandes prticos nas extremidades, inserindo-se a obra no formulrio barroco. Em Aveiro reformulou a partir de 1699 o coro da igreja do Mosteiro de Jesus, para onde concebeu o tmulo da Princesa Santa Joana. Enquadrado por uma decorao de mrmore, talha e azulejo, o tmulo (em forma de arca) um repositrio polcromo de embutidos de mrmore. A arca tumular assenta em pequenos anjos e um bloco figurando fnixes. Nas faces da arca figuram elementos vegetalistas

36

e simblicos. certamente um curto inventrio (o possvel) para um arquitecto que demonstrara tal maturidade em St. Engrcia. de presumir que a sua formao se tenha repartido entre uma prtica que, semelhana de outros, se dividia entre a engenharia militar e a arquitectura, e uma teoria que num pas sem reflexo esttica prpria teria de se fazer, por importao, sobretudo de Itlia por via da tratadstica. Em St. Engrcia, porm, foi o labor do arquitecto que esteve presente e no o do engenheiro militar que faz arquitectura.

O facto de os modelos orientadores de renovao serem importados no uma fatalidade nacional. Numa zona europeia ruralizada e catlica, como a Europa Central, encontramos situao semelhante. As primeiras manifestaes do barroco devem-se a arquitectos italianos Carlo Caneval projectou a igreja das Servas (Viena, 1651), Barelli e Zuccali a igreja dos Teatinos (Munique, 1663), Lurago a Catedral de Passau (1668), Petrini a Haug Kirche em Wrzbourg, Francesco Caratti a fachada do palcio Czernin (Praga, 1667), Domenico Martinelli o corpo central do palcio Liechtenstein (Viena, 1692), etc. S a partir da dcada de 90 se assiste ao despoletar de uma notvel primeira gerao de arquitectos autctones, ainda assim com aprendizagem e estadia romana Fisher Von Erlach, Lukas Von Hildebrandt, Andreas Schter. Posteriormente, ainda Leopoldo I chama a Viena o irmo Andr Pozzo, que ali morre em 1709. Note-se que de todo improvvel que Joo Antunes tenha beneficiado de uma aprendizagem fora do pas pelo que a sua obra ainda mais surpreendente. Mas Joo Antunes figura isolada nos finais de Seiscentos e a sua

37

aco ser continuada no por um portugus mas por Ludovice.

No findar do sculo, dois artistas estrangeiros trabalhavam em Portugal: o malts Carlos Gimac e o francs Claude Laprade. O acolhimento de ambos insere-se na necessidade de renovao e formulao de novas propostas. A actividade de Gimac desenvolve-se a partir de 1695, quando ter chegado a Portugal para responder solicitao de D. Antnio Correia de Sousa Montenegro (1618-96), Bailio de Lea e de Negroponto, que pretendia os seus servios para a edificao de um palcio rural em Noves, perto de S. Salvador de Talvado. O que resta dessa obra inacabada permite perceber uma casa modesta de planta quadrada, circundando um ptio central, com a tradicional torre dos solares nortenhos. A morte do Bailio ter feito gorar a empresa e feito cair Gimac em demandas com o herdeiro. Mais importante se afigura o trabalho que realizou para o arruinado Mosteiro de Arouca. Em Maro de 1703 delineou a planta longitudinal da nova igreja, cujas obras prosseguiro at 1708 sob a direco dos monges. A igreja uma vasta edificao, com decorao de talha. As directrizes da obra deixam perceber um arquitecto informado mas sem originalidade de qualquer modo til para a conjuntura nacional. Gimac trabalhar seguidamente em Lisboa, onde se destacou na realizao de obras efmeras como o clebre Arco Triunfal que fez para a nao inglesa em 1708, quando do casamento de D. Joo V e D. Maria Ana de ustria. Em 1712 parte para Roma integrado na embaixada do Marqus de Fontes, como gentil-homem. Em 21 a reconstri a igreja de Santa Anastcia (com

38

interior de mrmores coloridos), por solicitao do Inquisidor-Mor do Reino, D. Nuno da Cunha.

Tambm a actividade de Claude Laprade (1682-1738), francs de origem provenal, permanece por precisar em toda a sua extenso. Como Gimac, trabalhou em decorao de festas, a mais clebre das quais ter sido a procisso lisboeta de Corpo de Deus em 1719. No centro do pas trabalhou em Coimbra, para cuja universidade esculpiu as figuras da Medicina, Cnones, Leis e Sabedoria. O seu trabalho na regio levou alguns historiadores a atribuirem-lhe o portal da Biblioteca da Universidade e o da igreja aveirense do Senhor Jesus das Barrocas, dada a fora decorativa de ambos. A principal obra conhecida de Laprade revela, de facto, o domnio correcto da linguagem decorativa barroca. Referimo-nos ao tmulo do Bispo D. Manuel de Moura Manuel, colocado no lado direito da Capela de Nossa Senhora da Penha em lhavo. D. Manuel de Moura Manuel (1632-1699) era um alto dignatrio eclesistico, doutorado em Cnones (1659), Reitor da Universidade de Coimbra (1685-90), Bispo de Miranda do Douro (1689), e instituiu na sua quinta de Vista Alegre um morgadio-capela. Nas disposies testamentrias exigia que lhe reservassem para jazigo um espao na capela, construda por ter a santa intercedido em doena do prelado. Em 1699 as obras da pequena capela estavam concludas. um edifcio de pequena escala, com plano longitudinal e uma s nave. Mrmores embutidos, talha e azulejo decoram o interior. Externamente, apenas a fachada principal condensa algum interesse artstico, desenvolvendo o tradicional esquema simtrico. No seu conjunto a pequena capela nada acrescenta evoluo arquitectnica, filiando-se na

39

tradio das pequenas construes de espao interior exguo e condensado, animado aditivamente por apontamentos decorativos. Apenas o zelo do Bispo e as suas capacidades financeiras permitiram maior cuidado no tratamento de formas. Ser o tmulo de Laprade a justificar a importncia da obra. Numa igreja de pequenas dimenses o tmulo v desde logo prejudicado o seu impacto, incrustando-se na parede perto do altar-mor. enquadrado por um arco de recorte simples anunciando a concavidade onde se alberga a arca fnebre. Sobre a tampa desta, perfila-se o corpo do Bispo, mo sobre o peito, olhando para a cena narrativa que tem diante de si e da qual, simultaneamente, personagem principal a sua prpria ressurreio entre pequenos anjos e a imponente figura do Tempo na forma de um velho calvo de barbas longas, surgindo de entre nuvens. uma cena de bom efeito teatral, com dinmica prpria que lhe dada pelo tratamento dos panejamentos e pela organizao de linhas-fora oblquas: o corpo do Tempo e do Bispo, o olhar deste projectado ascensionalmente. Pequenas caveiras dispersas pela composio e dois minsculos baixos relevos representando a F e a Esperana sublinham a tenso dramtica existente entre a vida e a morte, sublimada no tempo futuro pela ressurreio final.

A obra de Laprade surpreende pela correcta qualidade e pela novidade que no deixou de constituir. Tal pea escultrica no deixou rasto e a reflexo sobre a morte expressa em monumentos funerrios de reduzido interesse no barroco portugus. A obra de Laprade revela a actualidade da sua linguagem, introduzindo tambm a influncia francesa no barroco

40

portugus de que importa precisar os contornos. Ao contrrio da influncia italiana, essa sim maioritria, diminuta a importao de artistas franceses. Laprade praticamente o nico exemplo e interessando sobretudo escultura. No reinado joanino receberemos pintores e obras decorativas em prata e ouro. A influncia francesa deve entender-se como uma poltica geral de europeizao com fontes diversificadas, prefigurada j em finais do sculo XVII e sendo apangio da poltica externa joanina. As vrias embaixadas que neste perodo se enviam a vrias capitais da Europa cumprem essa funo a par de prestigiarem a nova dinastia e o pas restaurado: Viena (1707), Roma (1709), Paris (1715), Roma (1716), Roma (1718). Tal atitude compreende-se numa Europa de equilbrio poltico instvel, onde as alianas so precrias e marcadas por convenincias imediatas. O movimento artstico no deixar de acompanhar tal poltica.

A falta de uma poltica rgia de construes sob D. Pedro II um facto que permanece at ao final do seu reinado. Rei em tempo de crise e de guerra, no soube adaptar-se aos novos condicionalismos de finais do sculo e dos primeiros anos do sculo XVIII. Sero por isso os encomendadores particulares que do continuidade afirmao do barroco no seguimento de St. Engrcia. Joo Antunes prosseguir a via de propor plantas diversificadas que favoream espaos fluidos e dinmicos. Nessa linha se deve entender a igreja do Bom Jesus da Cruz em Barcelos, iniciada em 1704 (como consta de inscrio em duas cartelas lavradas, ladeando a porta principal) e na qual reconhecemos ntidas influncias de St. Engrcia. As obras nascem sobre runas de uma antiga ermida que no local

41

perpetuava a lembrana de um milagre (o clebre milagre das cruzes) de que o sapateiro Joo Pires foi principal protagonista em 1504. A nova igreja consagra interiormente um plano centralizado em forma de cruz grega, circunscrito externamente por forma poligonal octogonal, em que quatro dos lados so arredondados. A decorao interior privilegia a talha e o azulejo (colocados em 1730) e painis pintados. A planta, variao sobre um tema erudito, concilia-se com expresses decorativas, onde melhor se revia o gosto nacional. O resultado obtido de belo efeito cenogrfico: envolvncia que tais plantas propem juntam-se os efeitos fericos de uma decorao variada que se compraz na repetio infinita de pequenos apontamentos. A ampliao espacial ainda reforada pelas cenas perspectivadas dos azulejos. A falta de um estudo sobre a igreja, impede-nos de seguir a evoluo das obras e, para alm da planta, de conhecer verdadeiramente os propsitos iniciais de Joo Antunes e ulteriores distores. Desconhecemos se uma tal decorao estava prevista pelo arquitecto ou se resulta de uma imposio do clero local. Igrejas com tal plano e construdas totalmente de novo s excepcionalmente admitem tal decorao. De qualquer modo, a igreja de Barcelos um dos raros casos de igrejas forradas a ouro e azul que foge da planimetria longitudinal. Exteriormente, o templo define-se como uma massa de propores medianas, realando o claro/escuro pela dspar colorao de materiais utilizados: pedra grantica escura e cal branca. A ausncia de movimentao dos alados compensada pela decorao. Os quatro lados em forma de semi-circunferncia so realmente um compromisso entre um real movimento e o seu esboo.

42

Ainda assim indicam a predileco de Joo Antunes pelos alados curvos e, na forma poligonal, tal exemplo no ser repetido. Em propores mais modestas a igreja de Barcelos, lado a lado com St. Engrcia, informa sobre a capacidade renovadora de Joo Antunes, arquitecto que afirma decisivamente uma nova arquitectura. Os alados exteriores so superfcies que, para alm de simples recortes de janelas, portas (estaticamente concebidas), e pilastras separadas das vrias faces, no acolhem outros motivos decorativos. Estes reservam-se para a parte superior do edifcio, com pinculos pontuando uma platibanda contnua. A fachada principal assinalada pela torre sineira e culo encimando o portal. A feitura da obra apresenta uma ruralizao acentuada e no corresponde s expectativas criadas pela planta. A igreja continua, apesar de tudo, um discurso arquitectnico nascido em condies particularmente difceis e imbudo de esprito diferenciador. Ser necessrio esperar por um novo reinado e por um aumento de prosperidade financeira para que surja uma obra que polarize as capacidades neste perodo anunciadas.

St. Engrcia e o Bom Jesus da Cruz afirmam desde j que as plantas centralizadas constituem a realidade decisiva da arquitectura barroca e a deve ser encontrada a sua especialidade no na talha ou no azulejo. Se tal novidade no apangio exclusivo da arquitectura portuguesa, filia-a por outro lado numa linguagem internacionalizada com variantes regionais, referenciada ao centro romano de Bernini e Borromini, e desenvolvida consoante as capacidades temporais. A especificidade portuguesa resulta da generalizada adopo de formas poligonais, regulares ou no, com

43

nmero de lados varivel. A explicao para o facto costuma encontrar-se na associao com a arquitectura militar, conhecida a dupla funo dos nossos arquitectos. Mas o plano centralizado anuncia a nova cultura esttica e pretende destronar um maneirismo persistente. Para a vizinha Espanha, onde so mais comuns as solues ovais, Kubler havia j notado que tais planos constituem la ms vigorosa prueba que podemos apresentar respecto a la reaccin contra los rectangulares y severos perfiles del estilo herreriano. E se tais solues so j enunciadas em algumas construes platerescas, os modelos espanhis no deixaro igualmente de assinalar a influncia do Tratado de Srlio, cuja l. edio castelhana se deve a Francisco de Villalpando em 1552. A existncia de uma Corte aglutinadora e a fora econmica do pas (apesar da decadncia), justificaram o mais rpido surgimento de tais planos que num Portugal dependente que ter que se libertar por meio de uma guerra dispendiosa. Por isso a Espanha ter a sua primeira planta oval na igreja das Bernardas de Alcal de Henares (1617-26), aps a significativa rejeio do plano oval (1570) de Viceno Danti para uma das dependncias do Escorial. A continuidade assegurada com a sacristia do Mosteiro de Guadalupe (1638-47) que articula peas octogonais com quadrados, a igreja das Comendadeiras, em cruz grega, a igreja dos Desamparados em Valncia (1652-67) com plano oval de Diego Martinez Ponce de Urrana, a igreja do Colgio Real de Loyola (1681) de Carlo Fontana, a jesutica igreja de S. Lus em Sevilha (1699-1731) com planta em cruz grega atribuda a Leonardo de Figueroa, etc.

44

D. Pedro morre em 1706 e D. Joo V, declarado herdeiro do trono em 1697, aclamado rei aps a morte do pai, governando at 1750, num dos mais longos reinados da histria de Portugal. As condies econmicas do Reino haviam entretanto mudado. A baixa de acar cerca de 1670 compensada pela descoberta do ouro brasileiro em qualquer dos casos ser sempre um produto colonial a dominar a economia portuguesa. A prosperidade mercantil um facto desde 1690. Cerca de 1695 surgem as primeiras remessas de ouro que atingem 725 kg em 1699, 1 785 kg em 1701, 4 350 kg em 1703, 14 500 kg em 1712 At ao fim do reinado joanino, a chegada de ouro ser constante, sujeita embora a naturais oscilaes. O ouro brasileiro ultrapassa de longe todo o ouro que, em conjunto, Portugal conseguiu da Mina, ou a Espanha nas ndias de Castela, em cada ano do sculo XVI (V. M. Godinho). Tal riqueza colonial explica em grande parte o incremento de obras arquitectnicas. Mas tambm a produo vinhateira, sobretudo na regio duriense e tambm na Madeira, sofre grande impulso, em especial a partir do tratado de Methwen. Este polmico acordo comercial consignava o envio do nosso vinho em troca dos panos de l ingleses, sendo a diferena coberta com o ouro brasileiro. Representava tambm a secundarizao da poltica manufactureira do Conde de Ericeira (cujo suicdio ocorre, simbolicamente, em 1690), mas no o seu estancar definitivo. De facto, ao longo do reinado joanino, em especial no perodo entre 1720-1740, surge um novo surto industrial na periferia lisboeta, destinado a resolver episdicas dificuldades de governao manufacturas de couros em Alenquer (1728), de vidro em Coina (1722), Real Fbrica das

45

Sedas do Rato (1730-35), da plvora em Barcarena Mas o sector manufactureiro era minoritrio e no provocar mudanas estruturais, como as no provoca o afluxo da riqueza aurfera, orientada numa via providencialista da economia e dando suporte a um regime absolutista eivado de paternalismo, que tem em D. Joo V um derradeiro cultor. As cortes no mais se reuniro e logo em 1706, e depois em 1722, D. Joo V decreta aumentos de impostos sem consulta prvia. O Imprio suportava e justificava o absolutismo joanino que em tempo de paz (pesem pontuais episdios de conflito), procurar lanar atravs de uma arquitectura de prestgio a renovao do pas. A renovao far-se- em termos barrocos, num quadro geral de alguma complexidade. Como pano de fundo, as arcaicas estruturas do velho Portugal rural.

A europeizao ser preocupao dominante do Rei que, ainda jovem, ambicionou viajar pela Europa sonho que os circunstancialismos do pas lhe no permitiram realizar. De Roma, ponto crucial de referncias, chegava a Lisboa em 1701 Joo Frederico Ludwig. Nascera em Hohenhart, filho de Peter e Elizabeth Ludwig. Com 19 anos o jovem Ludwig est em Augsburgo onde ter adquirido conhecimentos rudimentares de arquitectura, servindo tambm nas armas imperiais contra Lus XIV. Firmada a paz em 1697, parte para Roma onde trabalha ao servio dos Jesutas na igreja de Ges, e muda o nome para Ludovisi. Provavelmente ter frequentado ateliers de arquitectos, talvez mesmo de Carlo Fontana. De qualquer modo nada prova que tenha erigido qualquer obra at 1717, ano do incio das obras de Mafra. Quando chega a Lisboa vem contratado pelos Jesutas

46

como ourives, encarregado de construir um sacrrio para Santo Anto e outras obras para igrejas da Companhia. Mas, o ento Ludovice quebrar o contrato e v-lo-emos erigido em arquitecto oficial de D. Joo V e responsvel pela principal obra do seu reinado. Tal mutao de um simples ourives em famoso arquitecto tem originado polmicas interpretativas. A fortuna de Ludovice seria justificada pelos favores dos Jesutas e do meio alemo da corte. A presena prxima de alemes datava de 1687 quando do segundo casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia Isabel de Neubourg, nascida em Brevath, ducado de Juliens, filha do eleitor palatino Filipe Guilherme, duque de Neubourg, ento recebida em Lisboa com grandes festas. A rainha vem acompanhada de damas que casam com nobres portugueses. D. Joo V casar com uma princesa austraca, D. Maria Ana de ustria, filha do Imperador Leopoldo I, coroando uma fase de aproximao poltica com aquele pas. volta da rainha, que em 1708 fundou o Convento dos Carmelitas Descalos Alemes em Lisboa, forma-se um milieu onde pontificavam numerosos religiosos, como o seu confessor, o jesuta Antnio Stieff que havia concebido as iluminaes da casa do Residente D. Jos Zignony, quando do nascimento do Arquiduque Carlos.

Permaneceram misteriosas as influncias que tal meio pde exercer no panorama artstico e sobretudo na hipottica promoo de Ludovice. Mas esta ter que ser procurada na orientao geral que D. Joo V dar s artes e em especial arquitectura. Ludovice vinha de Roma e seria portador de informaes actualizadas que o Rei desejava e essa circunstncia ter pesado definitivamente a favor do arquitecto. A velhice de Joo

47

Antunes (que de qualquer modo no frequentou Roma), a permanncia j antiga de Gimac, tero imposto nos decisivos anos 10 a figura de Ludovice. O desejo de colher informaes de Roma motiva tambm a deslocao em 1712 cidade papal de D. Rodrigo Annes de S Almeida e Menezes, 3. Marqus de Fontes (que o Rei far 1. Marqus de Abrantes em 1718) e na qual se inclui Gimac. O Marqus de Fontes ter desempenhado junto do Rei funes de conselheiro artstico. Dotado de conhecimentos de pintura, escultura e arquitectura, desenhou fortificaes, logo em 1697, com 20 anos, e em 1704, quando da guerra com a Espanha. De Roma foi portador de plantas e maquetes de monumentos para apreciao do Rei e que informam o rumo italianizante da arquitectura de corte. Em todo este processo Ludovice ser uma pea importante e as obras futuras justificaro a escolha.

Mas antes do incio da sua actividade, j D. Joo V fundava em Lisboa uma igreja que testemunha ainda solues de compromisso, apesar de apontar uma italianizao j afirmada em St. Engrcia. Referimo-nos igreja do Menino Deus, edificada junto cerca do castelo de Lisboa. uma obra real, resultado provvel de um voto joanino a favor da sua sucesso. Do casamento do Rei no resultaram frutos imediatos, ou pelo menos com a rapidez pretendida. O nascimento da Infanta D. Maria Brbara poder estar relacionado com a construo do Menino Deus, num prenncio de igual motivao para as obras de Mafra. Providencialismo, milagrismo esto na origem dessas obras, enquanto o poder real absoluto se dignifica e prestigia. Seis anos antes de Mafra, a 14 de Julho de 1711, lanada a primeira pedra da nova igreja e apesar de obra real ficar

48

inacabada externamente. A inaugurao contou com a presena do Rei e com festejos tradicionais. Desconhece-se o autor do projecto e est fora do nosso propsito embrenharmo-nos no paralizante processo das atribuies. Tradicionalmente a igreja atribuda a Joo Antunes, cuja morte logo em 12 tem suscitado opinies diversas. Quanto planta, este templo de recolhimento das Mantelatas da Ordem Terceira de S. Francisco de Xabregas adopta a forma rectangular com capela-mor profunda. No entanto a secura dos ngulos rectos acentuada pelo seu corte (resultando um octgono irregular com evidente propsito de animao espacial, tmida embora). Tal facto evidencia uma involuo se recordamos St. Engrcia e o Bom Jesus da Cruz, mostrando simultaneamente que no h uma linearidade na sequncia cronolgica das obras. Porm isso no significa menoridade do Menino Deus que, na expresso francasteliana uma cabea-de-srie, inaugurando uma tipologia de que encontraremos outros exemplos. O facto bastaria para mostrar sua importncia, acrescida pela qualidade e beleza da decorao. Predomina a ordem corntia nas colunas, e a drica e a jnica nas pilastras. Mas so tambm utilizadas telas, talha, esculturas, mrmores embutidos, ou em largas superfcies, numa simbiose a que s falta o azulejo. A capela-mor profunda, introduzida por grande arco, com dois painis pintados (imagens de S. Marcos e S. Lucas), e colunas conjugadas com pilastras, iluminada por culo que anima tambm os mrmores embutidos. Estes, na tradio seiscentista portuguesa, distribuem-se tambm pelo corpo da igreja (com motivos geomtricos e florais), e a sua colorao cinza, amarelo e, predominantemente, rosa. Traduzem sem

49

dvida o gosto real, associado a solues tradicionais nos 8 altares de talha e painis pintados, separados por colunas corntias. Dois plpitos centralizam o espao e recordam a importncia que a palavra assume na liturgia barroca. As restantes dependncias, como a sacristia de paredes brancas e pequena cpula, ou a parte conventual, com claustro, no oferecem especial interesse. O nfase posto na parte pblica, prestigiante do seu promotor. No exterior a fachada principal, inacabada, condensa toda a decorao. A ordenao faz-se segundo a tipologia eixo central com nicho, culo, janelo, portal, sendo este enquadrado por colunas corntias. A escadaria de acesso obra provvel de Custdio Vieira. O alado lateral livre banaliza-se apenas superfcie caiada de branco, acusando a capela-mor. Filia-se na bem vincada tendncia nacional em que os alados laterais so apenas muros separadores.

Nas suas ambiguidades ou compromissos, bem como na sua qualidade, a igreja do Menino Deus contribui para a definio dos propsitos culturais de D. Joo V, sendo a sua obra mais renovadora na arquitectura da capital. As resistncias fsicas e mentais que a cidade impunha a novas propostas sero afinal resolvidas fora da sua malha urbana e na periferia mafrense, ponto fulcral da maturidade barroca.

50

III / BARROCO DA CORTE (1717-1750)

Por decreto de 26-XI-1711, D. Joo V autorizava a fundao na vila de Mafra de um convento dedicado a St. Antnio e a Nossa Senhora que ficaria pertena dos frades Capuchos Arrbidos. A fundao da que seria a maior construo do perodo joanino e sua obra emblemtica, tem como gnese a dificuldade da Rainha em procriar. S uma interveno divina podia resolver tal situao. Assim era, para a mentalidade da poca, exemplarmente interpretada por Frei Antnio de S. Jos. Este frade pertencia Ordem dos Arrbidos, de severa disciplina, vida frugal, vivendo em completa pobreza. Tais qualidades agradavam ao Rei devoto e a Ordem gozava por isso dos seus favores. Frei Antnio movimentava-se no seio de famlias nobres lisboetas que caritativamente o sustentavam e tinha acesso directo ao Pao. Conhecedor das dificuldades sucessrias existentes, lembrou a D. Nuno da Cunha que o Rei teria filhos se prometesse a Deus erigir em Mafra um convento dedicado a St. Antnio. A promessa entretanto formulada pelo Rei e as incessantes rezas dos Arrbidos (ordenadas pelo Provincial da Ordem, Frei

51

Joo dos Mrtires), deram o resultado desejado e logo em 1711 nascia a Infanta D. Maria Brbara. No teria sido completamente satisfeito o desejo do Rei, que certamente preferia um filho. De qualquer modo, o nascimento da Infanta tinha uma explicao milagrosa e os milagres agradecem-se. Aps o nascimento trs Arrbidos vo humildemente viver para Mafra, alojando-se em pequenas cabanas de madeira, ncleo longnquo do futuro edifcio.

Inicialmente seriam modestos os propsitos do Rei que pretendia um Convento para 30 frades. O projecto alterado por duas vezes em ordem a engrandec-lo, em datas e por razes que desconhecemos. Note-se que a fundao do Convento anda associada a um voto, satisfeito em 1711, e que logo em 1712 nasce um segundo filho (D. Pedro, falecido em 1714), e dois anos depois nasce o futuro D. Jos. Significativamente, o projecto inicial sofreu tambm dois aumentos e de 30 passar para 300 frades. Tal coincidncia no ser inteiramente fortuita. Mas entre 1711 e 1717 o prprio projecto e sonho do Rei foi aumentando. Ter ganho corpo a ideia de fazer de Mafra o smbolo grandioso, duradouro e renovador de um reinado marcado pelo extraordinrio afluxo de riquezas coloniais. De facto, desde o incio que o Rei se ocupa do projecto, mandatando Antnio Rebelo da Fonseca para tratar da escolha e aquisio de terrenos, rejeitando ao mesmo tempo a oferta da quinta que o Visconde de Vila Nova de Cerveira possua em Mafra. O processo arrastou-se por dois anos, sendo principal demora os pagamentos aos vrios donos dos terrenos. Entretanto o Rei ordenava a Ludovice a realizao do plano da obra (desconhecido) que ter sofrido inevitveis modificaes

52

ou ajustamentos. Da humildade inicial passou-se para um projecto grandioso cuja gestao nos escapa. Informaes laterais permitem compreender que o Rei desejava um projecto romana, de modo a integrar a arquitectura portuguesa na corrente europeia. Era um modo de prestigiar o reinado e o pas. Assinalmos j a importncia das informaes trazidas pelo Marqus de Fontes da sua estadia em Roma (desenhos, miniaturas). O fascnio por Roma ter ainda motivado a escolha de Ludovice. Durante os seis anos em que o arquitecto trabalhou no projecto, outras informaes so pedidas para Roma. Tal atitude cultural e artstica no deixar de informar maioritariamente o edifcio.

A primeira pedra lanada a 17 de Novembro de 1717 na presena do Rei, do Patriarca de Lisboa e da Corte. As cerimnias duram seis dias. O Patriarca sagra o terreno da futura igreja onde se erguera uma outra, provisria, em madeira. um acontecimento corteso, a que no faltam banquetes. Estava-se j distante da singeleza do projecto inicial e no ser difcil perceber o menor agrado que sentiriam os ascetas Arrbidos pelo novo rumo que as obras tomavam. O projecto ulico, eivado de pompa real, afasta-se da filosofia da vida dos frades. Ultrapassados pelos acontecimentos, vero surgir em Mafra uma verdadeira povoao de construes de madeira, a que no faltava um hospital, destinada a alojar trabalhadores vindos de vrios cantos do pas. uma enorme multido de canteiros, torneiros, serradores, carpinteiros, vidraceiros, etc. Um cronista do sculo XVIII (Frei Joo de S. Jos do Prado) fala numa nuvem de p permanentemente sobre o local sinal do trabalho intenso desenvolvido. Para alm dos homens, mais de um milhar de bois foi utilizado na

53

remoo de materiais. Em 1729 trabalhavam no local cerca de 45 000 operrios e a sua alimentao custava 9 000 cruzados por dia.

Mafra um gigantesco empreendimento econmico, destinado glria de Deus e do Rei. Tal a orientao econmica da poca. A riqueza comercial permite uma obra de tal envergadura, mas insuficiente como explicao. Mafra pressupe tambm um firme propsito renovador e uma grande exigncia de qualidade. Era um empreendimento que partia do nada, sem necessidade de se removerem velhas estruturas. Tal como era mais fcil erigir novas cidades nas colnias americanas do que numa Europa presa ao espartilho urbano medieval, era tambm mais eficaz dar em Mafra, que no em Lisboa, a medida exacta dos sonhos e potencialidades do Rei D. Joo V. O gigantesco empreendimento mobiliza por isso grandes recursos, humanos e materiais. A pedra-lioz, extrada na regio, ser o material mais utilizado. Mrmores so enviados de Pero Pinheiro e das pedrarias alentejanas, para colunas, vergas e peitoris; os mais raros so importados de Itlia e destinam-se s partes mais nobres do conjunto, como a igreja. As madeiras mais raras vm do Brasil (como a de angelim), sobretudo para portas e janelas, enquanto pranchas de nogueira so importadas de Itlia. Mais tarde os prprio sinos, carrilhes, baixelas, indumentrias para o culto, chegam de Itlia, Frana, Blgica e Holanda.

Apesar do empenhamento do Rei, a grandeza da obra exigia um ncleo coordenador. Um oficial da corte, Jos Correia de Abreu, trocava correspondncia com o embaixador em Roma, Jos Maria da Fonseca e vora, para obteno de informaes sempre necessrias face

54

aos objectivos pretendidos. Leandro de Mello e Faria nomeado Superintendente das obras, sendo Antnio Soares de Faria e Maximo de Carvalho os fiscais. Entretanto o Rei ter nomeado Ludovice para chefiar a equipa de arquitectos, se bem que se desconhea a confirmao documental. Com ele trabalharam Custdio Vieira, Manuel da Maia e o prprio filho, Joo Pedro Ludovice, para alm de outros arquitectos que aqui se iro formar, reforando a importncia pedaggica fundamental da obra de Mafra. No estado actual dos nossos conhecimentos impossvel individualizar funes, conhecer a hierarquizao dos arquitectos, eventuais discusses, exigncias do Rei, possveis modificaes face s notcias sempre pedidas para Roma, etc. no entanto indubitvel que preside uma unidade ao vasto conjunto mafrense. Tal realidade refora a ideia de uma autoria individual ou, pelo menos, de uma direco individualizada dos trabalhos que sintetizasse projectos ou meras opinies. Essa unidade, a par do esprito italianizante da obra e da qualidade alcanada, refora a ideia de uma chefia ludoviciana. O mau feitio do alemo (tantas vezes criticado) pode ter tido efeitos disciplinadores Mas tambm o empenhamento do Rei e as disponibilidades materiais favoreceram a rapidez da obra (terminada no essencial em 1730), evitando futuras intervenes feitas com diferentes pressupostos artsticos. Mafra dos raros monumentos portugueses a que preside uma unidade e donde est excludo o inacabado consideraes que reforam favoravelmente o perfil do seu promotor.

O plano do vasto conjunto mafrense articula um palcio, uma igreja e a parte conventual, distribudos por

55

dois rectngulos articulados entre si: rectngulo posterior, o palcio e a igreja; o da rectaguarda reservou-se aos monges. volta de tal plano criou-se uma lenda comparativa com o Mosteiro do Escorial em Espanha, feito para Filipe II entre 1563 e 1584. Cirillo iniciou a comparao, afirmando que D. Joo V desejava fazer de Mafra um segundo, e talvez melhor, Escorial. No sculo XIX citou-se abundantemente a informao de Cirillo, irmanando-se os dois monumentos. A semelhana servia os desgnios da historiografia romntica e positivista e Antero no deixar de a aproveitar para tirar concluses sobre o catolicismo e absolutismo peninsulares, deplorando ainda as somas gastas na edificao de monumentos to gigantescos. Mas a comparao no resiste simples observao das duas obras, como o notou Watson e depois Robert Smith. Desde logo, o Escorial e Mafra separam-se por um intervalo de cerca de 150 anos e o tempo em histria de arte um elemento decisivo. Na Serra do Guadarrana o arquitecto Juan Baptista de Toledo (at 1567) e o seu sucessor Juan de Herrera, fizeram um monumento austero. Da igreja-panteo esto ausentes os mrmores e a pedra utilizada o granito, cuja plasticidade e cromatismo produz efeito bem diverso do que veremos na marmrea igreja de Mafra. Por outro lado, a decorao mnima, em harmonia com o clima mental e religioso da austera e mstica Espanha filipina. Tambm na longa fachada predomina a austeridade: as torres terminais no se salientam, as janelas repetem-se infindavelmente com grande rigor geomtrico, sem molduras nem cornija. Esse tom geomtrico era indispensvel funo de gigantesco mausolu que o Escorial. A combinao

56

das vrias unidades dspar: no Escorial a igreja interior, tendo acesso por um vasto ptio, o palcio real reduzido, e a parte conventual privilegiada. Sero outras as propostas de Mafra e as semelhanas do plano em grelha, da devoo dos monarcas (mas com diferentes propostas religiosas), tornam intil insistir na comparao. Watson demonstrara-o e Roberto Smith, ao assinalar as influncias romanas de Mafra, permitiu mais correctamente filiar o monumento e definir as suas linhas orientadoras.

Em Mafra a longa fachada principal orienta-se a oeste. Tem cerca de 220 m de comprimento e articula a fachada da igreja com o palcio real, enquadrados lateralmente por dois torrees avanados. A combinao destes elementos introduz variedade na fachada e acentua a importncia da parte pblica do monumento. Prope tambm uma aliana entre o poder real e o poder religioso, sintetizando no essencial a teoria e prtica poltica de D. Joo V. Tal teoria pressupunha ainda a importncia da componente militar nas monarquias absolutas. Significativamente, os torrees terminais recordam, pelo seu aspecto macio, construes castrenses e homenageiam a sempre importante arquitectura militar em Portugal. O Rei, a Igreja, o Exrcito, so a trilogia dominante no absolutismo, regime poltico de que Mafra construo emblemtica.

Robert Smith encontrou na articulao igreja-palcio na fachada principal, com o consequente arredar das dependncias monsticas para a retaguarda, uma influncia alem veiculada por Ludovice. Cita a propsito os mosteiros alpinos e a Dreifaltigkeitskirche (1694) em Salzburgo, de Fisher Von Erlach, cujas

57

propores so semelhantes s de Mafra. De qualquer modo tais planos tinham como inspirao comum a igreja de St. Agnese, na Praa Navona, em Roma. Mas a parte conventual o reverso do mundo da corte. Imensos corredores formando autntico labirinto, conduzem s celas monsticas donde a decorao est praticamente ausente, em harmonia com a filosofia de vida dos Arrbidos. Dois mundos se definem em Mafra o da Corte e Igreja secular, ulica, glorificante e triunfante, e o da austera vida monstica.

So mltiplas as referncias romanas que encontramos em Mafra. Robert Smith sistematizou-as e enquadrou-as no plano mais vasto de intercmbio artstico em que Portugal funciona como receptor perifrico do centro romano. As duas seces entre a igreja e os pavilhes laterais lembram o palcio de Montecitori de Bernini e Carlo Fontana. So similares os materiais, as propores das fachadas, os prticos, e apenas as largas janelas distinguem Mafra do palcio romano. Tambm o entablamento central, quebrado por consolas duplas alongadas, revela a influncia de Ferdinando Fuga no Palcio Corsini em Roma, ou do Palcio do Caramanico em Npoles.

A longa fachada em que as janelas se repetem algo monotonamente animada pela aplicao de alguns ornatos borrominescos que, pontualmente, surgiro em outras reas. Borromini suplantado em Mafra pela influncia de Bernini. Na fachada da igreja as torres lembram St. Agnese de Roma, embora o coroamento bolboso lhes d fisionomia prpria, bem como a combinao de forma oval com colunas duplas no 2. piso, provvel inveno ludoviciana. Os vrios pisos das torres so influncia de Borromini. A conjugao das

58

duas torres pode significar tanto uma influncia alem como o eco longnquo da lisboeta igreja de S. Vicente de Fora. Ainda na fachada principal se sintetizam influncias variadas em ordem a um equilbrio final. Os materiais combinam os mrmores com materiais locais, como o tijolo rebocado e a pedra lioz (na entrada da igreja, portas, janelas, pavilhes laterais), cuja patine lhe d cor prpria e a valoriza plasticamente.

Os macios torrees laterais lembram o clebre Torreo que Trcio construiu para o Terreiro do Pao. Destrudo pelo terramoto, deixou em Mafra a sua influncia duradoira que se repercute tambm na pombalina Praa do Comrcio. A sua fortuna sinal de aceitao de uma arquitectura militarizada e que nem s os engenheiros militares influenciaram. Os torrees de Mafra, apesar da alternncia de frontes nas janelas do 2. andar (triangular-curvo-triangular), do coroamento bolboso e da qualidade construtiva, introduzem nota dissonante, mas significativa, no conjunto ulico. De aspecto fortificado, os torrees destinavam-se inicialmente aos aposentos do Rei (lado norte) e da Rainha (lado sul). No primeiro andar separava-os um extenso corredor a que o sol poente empresta uma potica simbiose de claro-escuro. Para alm dessas qualidades poticas, o corredor tem o seu ponto mdio exactamente sobre a galil, definindo-se uma zona de mrmores rosa que valorizada pela luz. Esse ncleo central comunica com a igreja por uma tribuna fronteira do altar-mor donde a famlia real assistia s cerimnias de culto e tambm com o exterior atravs das janelas das benos. pois um ponto fulcral do edifcio, onde se cruzam igrejas e palcio e onde se cruzam igualmente os representantes do poder

59

oferecendo-se vista da multido que espera benesses. Arte de massas, o barroco procura sempre espaos de representao simblica do todo social em que as vrias classes se revem nas suas posies relativas. A Igreja e o Estado (isto , o Rei) funcionam em perfeita unidade, definindo uma poltica oficial de pleno significado ideolgico e artstico. Este ponto de encontro tem nas janelas das benos a sntese fulcral, numa simbiose de poderes que informa o Estado Absoluto do perodo joanino.

A fachada tem tambm, pelo que enuncimos, um pendor urbano inegvel que as grandes dimenses (em tudo contrrias ao gosto nacional) proporcionam. sintomtico que este fenmeno urbano se situe em zona ruralizada e se instaure a partir da fachada principal de uma unidade arquitectnica mobilizadora. A escadaria de acesso igreja abre-se em leque, fazendo do monumento um centro irradiador. A vila de Mafra desenha-se em ruas perpendiculares a esta fachada ordenadora. O monumento impe-se ao perto e ao longe, pelas aldeias circunvizinhas, onde as pequenas igrejas paroquiais registam de modo simplificado e ruralizado as suas influncias formais. O seu impacto visual de tal modo gigantesco que foi j afirmado que s era grandioso quando visto do mar (Mrio Chic) pitoresco exagero A horizontalidade predominante nas linhas exteriores contrariada pelas torres e pelo zimbrio onde afloram alguns motivos de Borromini: um zimbrio oitavado, com janelas perspectivadas e frontes dinmicos. Ao contrrio da inacabada St. Engrcia e da generalidade das igrejas portuguesas, o zimbrio de Mafra referencia a arquitectura romana, em especial S. Pedro.

60

O interior da igreja tem acesso pela galil, como em S. Pedro (e S. Vicente de Fora), e impe-se pela monumentalidade de linhas. um espao de decorao marmrea, em cores sbrias e penitenciais, contrastando com o ar festivo da sala das benos. Na galil, Ludovice fez uso da sua anterior actividade de ourives (Robert Smith), pela mincia de execuo. Mas tambm na galil que encontramos um verdadeiro repositrio de escultura italiana da poca: S. Vicente, S. Sebastio, S. Bento, S. Bruno, S. Joo, S. Joo, S. Bernardo, S. Filipe Nry, S. Pedro, S. Flix de Valois, S. Francisco de Paula, S. Caetano. So obras importantes de Itlia, devidas a nomes como Joanes Baratta, Carlos Monaldi, Giosepe Frascari, Petrus Bracci, Agostinho Corssini, Joseph Broccettri, Baptista Vaca, Vicctorius Barbierus, etc. Em 1747 chega a Portugal Alessandro Giusti. Trabalha em Mafra, onde dirige uma verdadeira escola de escultura, frequentada por portugueses e onde se forma Machado de Castro. A importao de esculturas e escultores entende-se bem num pas que privilegia as formas e processos artesanais. A aco do Rei neste campo inoperante. Mas necessrio entender tambm que o programa joanino privilegiava em especial a arquitectura, cuja fora pblica mais prestgio proporcionava.

A igreja interiormente uma vasta construo, medindo 35 cm de comprimento e 12 m de largura. Insere-se na tradio europeia das igrejas de cruz latina, j consagrada em S. Pedro, onde vingaram os planos de Bramante. Se recordarmos que no a planta em cruz latina que tipifica o barroco portugus, a excepo mafrense s encontra explicaes na influncia no modelo paradigmtico de S. Pedro. A vasta nave , no

61

entanto, algo estreita e com grande altura caractersticas nacionais. Define um espao condensado, alterado no cruzeiro merc das dimenses do transepto e da altura da cpula. Por isso a igreja proporciona uma leitura imediata que nem a decorao dificulta.

Na nave predomina a ordem corntia. A abbada em forma goiva, dando lugar aos vos das janelas que vasam a luz. Os elementos decorativos alternam com vastas superfcies de mrmore; a decorao no anula a estrutura arquitectnica. Esta realidade acentua a validade dos objectivos joaninos na renovao da arquitectura. O barroco de Mafra no desordem nem caos mas no tambm a conteno decorativa do maneirismo ou a racionalidade estrita do pombalino. Conjuga o racional e o sensvel e prope fruio total das potencialidades humanas. Que isso acontea num templo no fortuito em Portugal onde o bem e o mal, a dor e o prazer, a vida em suma, s tm justificao dentro das coordenadas orientadoras do catolicismo. Mas o homem tem nas suas profundezas, ou no seu inconsciente freudiano, capacidades latentes que afloram na arte barroca de modo inequvoco. O tom festivo da igreja de Mafra relembra certamente uma liturgia assumida como acontecimento e tambm a instaurao dos prazeres terrenos que se atingem por via dos sentidos. A aplicao de mrmores coloridos, a intensa luz vinda de amplas janelas e da cpula, definem um ambiente em que o olhar se compraz.

Lateralmente nave definem-se capelas comunicantes, cada uma com invocao prpria. So zonas de menor iluminao, decoradas com mrmores escuros, proporcionando recolhimento devocional.

62

Funcionam como anttese luminosa e cromtica da nave o claro/escuro caro ao barroco.

Na capela-mor predomina a verticalidade (influncia alem?) que tambm presidir ao palcio Ludovice em Lisboa. O espao da capela-mor dominado pelo altar, com grandes dimenses. Num primeiro registo, uma composio arquitectnica de duas grandes colunas e fronto tria