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    REVISANDO O CONCEITO DE CARISMA: LIDERES PENTECOSTAIS, ENTRE OVIRTUOSISMO E O CAPITAL RELIGIOSO, DA DOMINAO

    PERFORMANCE.1

    Cleonardo Mauricio Junior2

    Resumo: proposta deste artigo superar a antinomia subjetivismo-objetivismo noentendimento do carisma oriundo dos trabalhos de Weber e Bourdieu. Ao analisar a

    performance dos lderes pentecostais, nos trabalhos de Simon Coleman e Joel Robbins,

    podemos verificar uma retroalimentao entre os aspectos subjetivos e objetivos no exercciodo carisma. Pretendo ainda apresentar o carisma para alm da dominao, analisando-o emtermos da performatividade que o lder pentecostal pe em ao atravs dos usos que faz dotexto, em especial a transformao do texto em algo vivido e performado e que se estende emcadeias rituais de intensa energia emocional. Tal entendimento do carisma colabora ainda paracompreendermos a ascenso dos lderes pentecostais a uma posio de autoridade religiosaacima de seus pares.

    Palavras-chave: Carisma, objetividade, subjetividade, performance, interao ritual.

    Um dos princpios fulcrais da Reforma Protestante do sc. XVI a ausncia de

    mediao entre os homens e o sagrado. A partir de ento todo crente, de posse das escrituras,

    estaria apto a construir uma relao com o divino por si s, no necessitando mais do clero

    para intermedi-la. A relao radicalmente hierarquizada entre clero e leigos flexibilizada,

    democratizando o acesso a um Deus que outrora podia ser alcanado somente atravs da

    instituio, por meio do trabalho de seus representantes oficiais. A autonomia d-se tambm

    em relao aos santos catlicos. Estes no so mais requeridos como meios de acesso

    divindade, muito menos tomados como objeto de culto e venerao. A santidade passa a ser

    um alvo buscado por todos: No h santos protestantes, porque todos os crentes so santos

    (WEBER, 1967, 1974).

    No pentecostalismo - sobretudo na sua verso mais atual, o neopentecostalismo -,

    descendente da Reforma, vrios lderes carismticos tem se destacado transformando-se em

    1Trabalho de Iniciao Cientfica. Vinculado ao projeto O Pastor, a palavra e a circulao do carisma

    pentecostal coordenado pela Prof(a). Dr(a). Roberta Campos.2Bolsista do PET (Programa de Educao Tutorial) do curso de Cincias Sociais da Universidade Federal dePernambuco (UFPE). E-mail: [email protected]

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    verdadeiras celebridades. Geralmente possuindo suas prprias denominaes repletas de

    filiais, programas televisivos de alcance nacional e eventos itinerantes que atraem centenas de

    pessoas, alguns destes lderes so intitulados bispos, como Edir Macedo, da Igreja Universal

    do Reino de Deus, ou apstolos, como Estevam Hernandes, da Renascer em Cristo, indicando

    o que seria, na contramo da Reforma, um retorno intensificao da hierarquia, tanto em

    relao aos fiis quanto em relao aos pastores normais, ou seja, aqueles que no so lderes

    denominacionais, no possuem exposio na mdia, nem protagonizam eventos freqentados

    por multides, enfim, pregadores que no alcanaram o posto de celebridades (MARIANO,

    2005).

    A atuao destes lderes nos leva a pensar, tambm, num retorno intermediao

    entre os leigos e a divindade. Os programas que veiculam as mensagens destes pastores

    substituiriam a leitura sistemtica das escrituras, gerando uma oralizao do que antes se

    configurava numa relao predominante com as fontes escritas. Alm disso, a congregao

    consideraria tais pastores munidos de uma autoridade maior que os seus prprios lderes

    religiosos locais e de um virtuosismo religioso difcil de ser alcanado por eles prprios.

    Se a Reforma superou a mediao pelo clero e aboliu o culto dos santos e se o

    pentecostalismo invoca a relao com um Jesus vivo, cultivada atravs de preenchimentos

    espirituais conectados ontologicamente com a queda original do Esprito Santo, qualquer tipo

    de intermediao se configuraria como uma barreira impedindo a conexo direta com a

    divindade. Constitui-se, portanto, num paradoxo observarmos lderes adquirindo um status de

    virtuosismo religioso que o eleva acima dos outros crentes e pastores comuns. Entendo ser

    primordial a reviso do conceito de carisma para compreendermos este paradoxo no

    pentecostalismo.

    Max Weber (1999, 2000) expe o carisma como uma qualidade pessoal extracotidiana

    que confere poderes ou qualidades sobrenaturais a quem o detm. Bourdieu (2007a) acusa

    Weber de enganar-se ao entender o carisma como uma qualidade estritamente pessoal e,

    trabalhando com seus conhecidos conceitos de habitus, capital social e campo, elabora sua

    teoria do campo religioso no intuito de superar de vez a concepo weberiana do carisma,

    taxada por Bourdieu de subjetivista.

    Analisando a atuao dos lderes pentecostais, utilizando-me dos trabalhos de Simon

    Coleman (2009) e Joel Robbins (2009), viso, primeiramente, empreender uma superao daantinomia subjetivismo-objetivismo na compreenso do conceito de carisma oriunda dos

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    trabalhos de Weber e Bordieu. perceptvel, nas abordagens do exerccio da liderana

    carismtica realizadas por Coleman e Robbins, uma dialtica entre caractersticas pessoais,

    ainda que adquiridas, e acumulao de capital social. No obstante o trabalho destes autores

    no tratarem diretamente da questo do carisma, seus escritos nos levam a perceber a

    necessidade deste ser incessantemente performado nas interaes entre lderes carismticos e

    crentes comuns. Assim, proposta deste artigo, ainda, abordar o carisma para alm da

    dominao, analisando-o na sua qualidade performativa, onde prticas corporais e energia

    emocional so fundamentais para o estabelecimento da autoridade e legitimidade do lder

    carismtico. Tal abordagem possibilita entendermos que o carisma pode ser apreendido e

    mimetizado, e, portanto, distribudo e compartilhado3, esclarecendo, com isso, como se do,

    mais do que seus efeitos de dominao, sua transmisso e circulao, elementosindispensveis para a construo da autoridade do lder pentecostal.

    Weber e o Carisma

    Max Weber define por carisma

    uma qualidade pessoal considerada extracotidiana e em virtude da qual se atribuem auma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos,extracotidianos especficos, ou ento se a toma como pessoa enviada por Deus,como exemplar e, portanto, como lder(WEBER, 2000, p. 158, 159).

    O poder carismtico satisfaz necessidades que transcendem as exigncias da vidaeconmica, em contraponto s estruturas patriarcais e burocrticas, as quais tm seu lugar

    originrio na economia, servindo, portanto, para satisfazer as necessidades cotidianas,

    normais e recorrentes (WEBER, 1999, p. 323). Esta faceta anti-econmica do carisma uma

    de suas principais caractersticas, segundo Weber. O carisma puro o contrrio de toda

    economia ordenada e jamais , para seus portadores, uma fonte de ganhos privados. Em suma,

    apesar de viver neste mundo, o carisma no vive dele (WEBER, 1999, p. 324, 325).

    3Devo o entendimento do carisma como mimetizvel ao artigo Para alm da dominao: Carisma e modo devida entre os Ave de Jesus da Prof(a). Dr(a). Roberta Campos. (Religio e Sociedade, Rio de Janeiro, 25 (1):117-130, 2005)

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    Opondo o poder carismtico racionalizao burocrtica, Weber diz que esta

    revoluciona os preceitos da dominao tradicional por meios tcnicos, de fora para dentro,

    ou seja, modificando as coisas e as ordens e, a partir da, os homens. Enquanto isso, o poder

    do carisma, ao contrrio, revoluciona de dentro para forae procura transformar as coisas e

    as ordens segundo o seu querer revolucionrio (WEBER, 1999, p. 327). o carter de

    mudana central no modo de pensar, uma verdadeira metania4, a principal caracterstica das

    mudanas impostas pelo carisma, enquanto que a racionalizao impe aos liderados a

    apreenso dos resultados exteriores, tcnicos, ignorando o teor de idia das mudanas. (p.

    328). Assim, para Weber, o carisma , de fato, o poder revolucionrio especificamente

    criadorda histria, por romper todas as normas da tradio impondo uma sujeio ntima ao

    nunca visto, ao invs de, simplesmente, substituir os preceitos da santidade da tradio pelasregras modificveis da burocracia.

    O teor anti-econmico e extracotidiano por excelncia do carisma ressaltado mais

    uma vez por Weber quando este fala sobre sua rotinizao. Antes, Weber esclarece que a

    existncia de uma autoridade puramente carismtica no significa uma situao amorfa com

    falta de estrutura, sendo, ao contrrio, uma formao social com estrutura claramente

    definida, baseada na vida comunitria do lder carismtico com seus seguidores. Qualquer

    mudana nesta estrutura, qualquer desvio destes costumes, deturpa a pureza da estrutura

    carismtica e conduz a outras formas estruturais. A rotinizao do carisma inevitvel na

    medida em que h sempre o desejo do lder carismtico, dos seus seguidores, e tambm dos

    carismaticamente dominados, de transformar o carisma em uma propriedade permanente da

    vida cotidiana. Alm disso, os seguidores do lder procuram sempre satisfazer as necessidades

    econmicas sem depender mais do estilo de vida comunitrio. Sendo assim, a forma de

    existncia do carisma acaba por ser subvertida pelo domnio do cotidiano, sobretudo aos

    interesses econmicos. (WEBER, 1999, p. 332)

    Fica claro, ento, que o carisma, em Weber, seria um elemento majoritariamente

    individual, qualitativamente singular, determinado por fatores internos e, ainda, alheio

    economia. A dominao nos termos carismticos se daria na medida em que aqueles a quem o

    lder carismtico se sente enviado reconhecem sua misso. Este reconhecimento no a razo

    da legitimidade, antes, as pessoas so chamadas a reconhecer essa qualidade em virtude da

    4 Segundo a primeira definio do Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa, metania significa mudanaessencial de pensamento ou de carter.

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    vocao do lder e das provas de seu carisma. Se as pessoas no o fazem, o lder fracassa, se

    h o reconhecimento da misso, o lder os domina. (WEBER, 2000, p. 159).

    Bordieu e o Carisma

    Pierre Bourdieu (2007a) faz uma crtica ao conceito de carisma trabalhado por Weber

    dizendo que este autor se ilude ao considerar o lder carismtico como portador de autonomia

    absoluta, entendendo, a partir disso, a mensagem religiosa como apario inspirada. Para

    Bourdieu, ao tentar fugir do extremo reducionista que considera a religio como reflexo diretodas condies econmicas e sociais, Weber cai no outro extremo, o subjetivista (BOURDIEU,

    2007a). Ainda assim, segundo Bourdieu, o prprio Weber traria em seu trabalho os elementos

    para escapar desta oposio, mesmo que este no o soubesse, havendo, por isso, a necessidade

    de se ler nas entrelinhas a inteno profunda da investigao weberiana (p. 80).

    Esta inteno profunda a que Bourdieu se refere e que deve ser extrada da

    metodologia de Weber, constituindo-se tambm como uma ruptura com esta mesma

    metodologia, seria a representao interacionista das relaes entre os agentes religiosos. Ouseja, consiste em perceber as relaes entre estes agentes a partir da tica do interacionismo

    simblico. nas relaes recprocas entre profetas, sacerdotes e leigos, portanto, que

    podemos entender como se estrutura o campo religioso. Uma segunda ruptura, desta vez com

    o prprio interacionismo, seria necessria para superar as dificuldades que, diz Bourdieu,

    Weber teria encontrado: subordinar a lgica das interaes entre os agentes estrutura das

    relaes objetivas entre as posies que tais agentes ocupam no campo religioso.

    Esclarecendo: a interao entre os agentes religiosos seria, na verdade, entre posiesdistribudas numa estrutura e no entre os indivduos per si. Os indivduos no poderiam

    definir a situao na interao, pois esta j estaria fixada previamente.

    A crtica de Bourdieu ao interacionismo colocada de maneira bastante esclarecedora

    por Renato Ortiz (1983), reconhecido comentarista do autor francs. O que o interacionismo

    simblico considera como determinao do agente, conforme nos mostra a anlise

    dramatrgica de Goffman, Bourdieu apreende como objetivamente estruturado dentro do

    campo,esclarece Ortiz (1983). O campo seria o espao onde as posies dos agentes seencontram a priori fixadas, configurando-se como o locus onde se trava uma luta

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    concorrencial entre os atores em torno de interesses especficos que caracterizam a rea em

    questo. O campo estruturado a partir da distribuio desigual de elementos

    determinantes da posio que um agente especfico ocupa em seu seio. Estes elementos so

    chamados por Bourdieu de capital social (ORTIZ, 1983, p. 19, 21).

    Bourdieu explica que a constituio do campo religioso resultado da monopolizao

    da gesto dos bens de salvao por um corpo de especialistas religiosos, acompanhada pela

    desapropriao dos bens religiosos dos excludos deste corpo, os leigos. Para ele, a principal

    caracterstica do campo religioso a de ser uma reproduo das estruturas sociais. Os

    sistemas simblicos so, alm de estruturas estruturadas, categorias de entendimento

    (estruturas estruturantes). Sendo assim, partindo do princpio durkheimiano de que as

    categorias de entendimento so construdas socialmente, a religio, sistema simblico e,

    portanto, categoria de entendimento, no poderia fugir de sua funo poltica: representar,

    legitimar e reproduzir a estrutura social que a construiu. (BOURDIEU, 2007a). A religio

    cumpriria este papel, primeiro, atravs da manipulao simblica das aspiraes, ajustando as

    esperanas s oportunidades objetivas, e, depois, atravs da inculcao de um habitus

    religioso cuja estrutura (estruturada) uma reproduo das relaes econmicas e sociais.

    Resumindo, a religio tem o papel de justificar a existncia numa posio social determinada,

    legitimando tanto a posio das classes dominantes, consagrando sua distino, quanto

    posio das classes dominadas, ao introjetar nestas o ethos da resignao e da renncia.

    (BOURDIEU, 2007a, p. 46, 53).

    pelo monoplio desta funo poltica da religio que se configura a concorrncia no

    campo religioso, concorrncia que se d principalmente na oposio entre o sacerdote e o

    profeta. O primeiro representa a Igreja, detentora do monoplio vigente dos bens de salvao

    e que visa perpetuar a estrutura do campo religioso. O profeta ambiciona subverter as

    posies no campo religioso e questiona o monoplio da Igreja, estando obrigado, para fazer

    frente ao capital detido por esta, a realizar a acumulao inicial do capital religioso. neste

    mbito que se deve entender o carisma em Bourdieu, como sendo o capital religioso por

    excelncia do profeta. O carisma no fruto de caractersticas anmicas, mas deve ser

    entendido como um recurso do profeta com vistas consecuo de seu interesse religioso:

    questionar a autoridade da Igreja e de seus sacerdotes e subverter as posies vigentes no

    campo religioso. Com isso, Bourdieu quer afastar completamente a idia de que o carisma

    seja uma propriedade ligada natureza de um indivduo singular, surgindo aleatoriamente de

    suas capacidades individuais. E ainda, o profeta traria ao nvel do discurso ou da conduta

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    exemplar representaes, sentimentos e aspiraes j existentes, porm ainda no trazidos

    tona. Existentes tanto no interesse de possveis grupos de leigos insatisfeitos com a Igreja e

    predispostos heresia, quanto no cenrio de crise, determinante para o enfraquecimento das

    tradies e para, conseqentemente, o surgimento da profecia. No se deve confundir, ento,

    as causas orgnicas com a ao dos indivduos. Para Bourdieu, os profetas so, na verdade,

    intrpretes destas causas e no senhores delas. Alm disso, e, segundo Bourdieu, para acabar

    de vez com a concepo subjetivista do carisma, seria necessrio determinar as

    caractersticas sociologicamente pertinentes de uma biografia particular que fariam um

    indivduo sentir e exprimir disposies ticas j presentes, de modo implcito, em todos os

    membros da classe ou do grupo de seus destinatrios (BOURDIEU, 2007a, p. 94).

    Carisma como subjetividade e objetividade

    Na tentativa de superarmos a antinomia subjetivismo-objetivismo no entendimento do

    carisma, pretendo utilizar a atuao dos lderes carismticos pentecostais para iluminar como

    se d a retroalimentao entre subjetividade e capital social no exerccio do carisma. precisolevar em conta, ainda, que classifico o lder carismtico pentecostal, dentro da tipologia dos

    agentes religiosos de Weber, como um profeta e no como sacerdote, devido sua forte

    liderana carismtica e por, de alguma forma, anunciar um novo modo de viver a palavra.

    Em seu artigo sobre os santos protestantes, Coleman (2009) enumera alguns

    princpios que os lderes carismticos precisam cumprir para se tornarem grandes homens de

    Deus. O primeiro deles o princpio da Mobilidade. Os pastores devem servir como

    mediadores entre territrios, marcando-os com sua presena fsica. Um lder carismticoprecisa ser um pregador itinerante ouvido por multides, a fim de se elevar dentre os outros

    pastores e crentes normais. Outro princpio o da Narrativa. Coleman esclarece que os

    santos carismticos so suas histrias, como se suas vidas fossem transformadas em textos.

    As narrativas de vida dos pregadores emergem de suas pessoas numa tentativa, que precisa ser

    bem sucedida, de justaposio entre estas histrias e as narrativas dos heris bblicos. Para

    Coleman, os lderes carismticos precisam ser mestres da fala. Por ltimo, Coleman apresenta

    o prncipio de reaching out. A ao de um pregador deve alcanar seus seguidores,

    extender-se at os seus ouvintes, tocando-os. A interao entre pregadores e crentes normais

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    deve ser baseada na capacidade daqueles de prover cura fsica e espiritual, xtase religioso,

    motivao para uma misso, entre outros. O poder dos pregadores carismticos consiste na

    habilidade de penetrar na resistncia carnal que os fiis, e eles mesmos, possuem de constituir

    e reconstituir suas personalidades espirituais. A linguagem dos pregadores emergiria de seus

    corpos e seria assimilada pelos corpos dos ouvintes, consistindo na combinao de uma

    relao mimtica, j que os crentes normais imitam seus grandes lderes, com a ingesto

    corporal da palavra dos pregadores pelos ouvintes. Coleman diz ainda que esta relao entre

    pregador e ouvinte se transforma numa cadeia verbal, pois cada ouvinte chamado a replicar

    o princpio de reaching out, numa escala menor, para aqueles que estiverem ao seu a lcance.

    Nisto, nas palavras do prprio Coleman, a interao entre pregadores e crentes normais se

    configura como um ritual enraizado na pessoa do pregador gerando um fluxo espiritual queparte deste, e numa cadeia de interaes rituais, alcana as pessoas (COLEMAN, 2009).

    Podemos perceber a relao intrnseca entre subjetividade e capital social nestas

    caractersticas levantadas por Coleman como necessrias para o sucesso dos lderes

    pentecostais. necessrio ter certo poderio econmico para praticar o princpio da mobilidade

    e conduzir eventos itinerantes que arrastam multides. A educao diferenciada pode

    colaborar, certamente, para que os lderes carismticos tornem-se mestres da palavra, o que

    no exclui, porm, a necessidade da convico em sua vocao de serem prolongamentos das

    narrativas bblicas. Se, como diz Weber, a diferena entre o profeta e o sacerdote se d pela

    convico deste da sua vocao pessoal, estamos num campo em que a subjetividade no

    pode ser eliminada da discusso. Alm do mais, exercitando o princpio chamado por

    Coleman de reaching out, osprofetas conseguem indexicar, eles mesmos, a presena divina,

    instaurando a autoridade carismtica atravs da performatividade da mensagem religiosa de

    forma independente da palavra escrita. Resumindo, entendo que o carisma no est limitado

    s qualidades individuais do pastor, como Weber tece em suas consideraes classificatrias eanalticas, mas tampouco essas caractersticas podem ser reduzidas a capital social, como em

    Bourdieu. A crtica de Bourdieu a Weber fundamental para no cairmos num subjetivismo

    extremo das qualidades individuais carismticas do pastor, mas a anlise bourdiana restringe

    nosso olhar esfera estritamente objetiva da desigualdade no acmulo de capital social.

    (CAMPOS, 2011)

    Carisma como performance

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    Uma caracterstica comum aos trabalhos de Weber e Bourdieu entender o carisma

    estritamente como dominao. Weber nos mostra, como j foi dito, que uma vez reconhecidosos poderes extracotidianos do profeta pelos leigos, estes so dominados. Bourdieu diz, como

    tambm j foi mostrado, que a inteno do profeta subverter o domnio dos sacerdotes e

    oferecer aos leigos bens religiosos mais eficazes na transformao da teodicia em

    sociodicia. Os leigos, tanto em Weber (2009) quanto em Bourdieu (2007), aparecem

    desprovidos de carisma, desapropriados, de acordo com o segundo, de qualquer capital desde

    a origem do campo religioso. Entender os fiis como dominados e destitudos de carisma

    simplificar a relao entre lder carismtico e fiel. O panorama mais complexo e paracompreend-lo necessrio, primeiro, mostrarmos que o carisma vem tona em meio a

    energia emocional advinda de uma interao coletiva. Ou seja, o carisma performado

    coletivamente e o fiel participa ativamente desta performance. Robbins (2009) nos guiar

    neste objetivo. Segundo, necessrio enfatizar o desejo do fiel de ter carisma para si, o que

    explicarei baseando-me nos princpios elencados por Coleman, e aqui j apresentados, para

    que o lder carismtico, na performance do que a comunidade pentecostal considera ser seu

    carisma, se eleve acima de seus pares. Isso no significa que estou negando a faceta de

    dominao do carisma, mas que estou mais preocupado em mostrar a necessidade deste ser

    performado, pelo pastor juntamente com os fiis, e construir, a partir disto, argumento em

    favor de uma abordagem que explore um novo entendimento da economia do carisma, nos

    ajudando a esclarecer, tambm, como o profeta instaura sua autoridade. Vejamos.

    No trabalho de Joel Robbins (2009) podemos nos certificar do carter coletivo da

    performance do carisma, refutando a possibilidade de seu monoplio pelo lder, ou da

    passividade dos fiis na construo da autoridade deste. Para Robbins, so falhas as

    abordagens que explicam o sucesso das igrejas pentecostais num contexto onde outras

    instituies, sejam elas polticas, econmicas ou sociais, tm declinado ou simplesmente

    sumido, como conseqncia exclusiva da compensao oferecida por estas igrejas s perdas e

    privaes sofridas pelas pessoas nas mos da ordem global. O verdadeiro motivo do sucesso

    das igrejas pentecostais a sua produtividade social, ou seja, sua capacidade de serem bem

    sucedidas como instituies. Esta institution-building ability citada por Robbins, acontece,

    por sua vez, devido ao papel fundamental que o ritual ocupa entre os pentecostais. Para

    explicar como isto acontece, Robbins toma emprestada de Randall Collins (2004) a noo de

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    interao ritual. Collins generaliza o conceito durkheimiano de efervescncia coletiva e

    explica que toda interao bem sucedida produz um tipo de efervescncia que ele chama de

    energia emocional. Ainda mais, todo indivduo busca interaes onde possa obter esta energia

    emocional, mudando de interao em interao at que possa encontr-la, criando o que

    Collins chama de uma cadeia de interaes rituais que d forma sociedade. Robbins utiliza-

    se desta explanao de Collins para argumentar que o sucesso pentecostal se d por este

    movimento ser especialista em produzir interaes rituais bem sucedidas, ou seja,

    fornecedoras de energia emocional (ROBBINS, 2009).

    Ainda na trilha dos conceitos de Collins, Robbins explica o que exatamente deve haver

    na interao para que ela se configure como produtora de energia emocional. So dois os

    aspectos: Primeiro, necessrio haver foco mtuo de ateno, uma conscincia por parte dos

    participantes que eles compartilham intersubjetivamente uma definio comum do que eles

    esto fazendo juntos5 (ROBBINS, 2009, p. 61, traduo nossa). Em segundo lugar,

    necessrio um alto grau de emotional entrainment6, ou seja, a noo de que os participantes

    esto, de forma coordenada, entrando numa corrente emocional. E isso se daria,

    principalmente, atravs da sincronia corporal. Robbins acrescenta, ainda, que o

    pentecostalismo especialmente adequado para lanar mo destes dois aspectos da interao

    ritual bem sucedida. O conhecimento compartilhado de seus rituais, tais como o louvor,

    orao, cnticos e cura, assegura o foco mtuo de ateno e

    uma vez que os pentecostais estejam juntos em uma estrutura de interao eles estopreparados para gerar emotional entrainment atravs da sincronia corporal, o

    segundo constituinte de uma interao ritual bem sucedida7 (ROBBINS, 2009, p.61, traduo nossa).

    Fica claro nesta explanao de Robbins que o carisma ultrapassa a pessoa do lder

    carismtico para se manifestar em uma sincronia corporal entre o pastor e os fiis nos cultos

    pentecostais. V-se que o carisma, aqui entendido como energia emocional, fruto de uma

    interao coletiva, no podendo ser considerado como de posse exclusiva do lder, pelo

    5a sense on the part of participants that they intersubjectively share a common definition of what they are doingtogether6 Entrainment pode ser traduzido como embarque em trem ou carreamento. Na falta de um termo em

    portugus que rena o sentido desta ao de embarcar num trem de emoes, mantenho o termo em ingls.7once pentecostals are in a interational frame together, they are well prepared to generate emotional entraimentthrough bodily sincronization, the second constituent of a successfull interaction ritual

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    contrrio, est entre os participantes de uma comunidade religiosa envolta em interaes

    rituais.

    Vimos, baseando-nos em Coleman (2009) que o lder carismtico precisa reunir alguns

    princpios para alcanar o sucesso carismtico. Como dominar a prtica da narrativa, onde o

    profeta precisa transformar o texto em algo vivido, e realizar o reaching out, situao onde

    o pregador precisa promover uma interao ritual com o crente comum, gerando um fluxo

    espiritual que nele se origina e vai at seus ouvintes, que, por sua vez, do continuidade a este

    fluxo em interaes com as pessoas ao seu alcance. Se o fiel mimetiza o carisma do lder para

    depois replic-lo dando continuidade ao fluxo, pode-se depreender da que ele tambm est

    em busca de carisma para si. Campos (2011) desenvolve argumento para apresentar como o

    carisma pentecostal circula na comunidade pentecostal, concluindo que esta cadeia citada por

    Coleman s possvel devido ao desejo do fiel de desenvolver seu prprio carisma. Oro

    (2010) j chamava ateno no seu trabalho de campo para o fato de que os lderes de menor

    porte vo aos grandes congressos buscando apre(e)nder o carisma dos grandes lderes.

    Assim, pode-se dizer que a mmesis do carisma do lder pelo fiel um recurso deste ltimo na

    busca por ser revestido de poder. Esta interao face a face entre pastor e fiel configura -se,

    conforme diz Seguy (1982) (apud ORO, 2010), em um ritual pedaggico do carisma, a fim de

    que cada crente construa sua identidade carismtica e se habilite a participar desta cadeia de

    interaes rituais.

    Chega-se, atravs destas explanaes, a uma mudana clara de perspectiva quanto ao

    que chamei de economia do carisma. A performance que d origem ao carisma, energia

    emocional nos moldes de Robbins, fruto de uma interao coletiva. Se o fiel percebe o

    carisma como uma qualidade espiritual do lder, ele pode, ainda assim, mimetiz-lo do numa

    interao ritual e, posteriormente, distribu-lo numa cadeia de interaes rituais performando

    seu prprio carisma. E neste fluxo performtico e emocional entre o pastor e sua audincia

    que se estabelece a autoridade e o reforo da crena na profecia (CAMPOS, 2011). na sua

    performance que o lder carismtico constri sua autoridade. Como est frente do ritual

    pedaggico do carisma, servindo de gatilho para que se d incio ao fluxo carismtico, o

    pastor coloca-se como mediador do poder que viria da divindade de uma forma aceitvel pela

    comunidade pentecostal saindo, com isto, destas interaes rituais por ele comandadas numa

    posio de santidade superior aos demais.

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    Consideraes finais

    Analisando a performance dos pastores e crentes pentecostais, entendo que no se

    pode resumir o carisma nem s suas caractersticas objetivas, muito menos sua esfera

    subjetiva. O carisma no est limitado s qualidades individuais do pastor, nos moldes de

    Weber, mas tampouco essas caractersticas podem ser reduzidas a capital social, como em

    Bourdieu. H uma dialtica entre subjetividade e capital social no exerccio do carisma pelos

    lderes carismticos. E, principalmente, no se pode reduzir o entendimento do carisma ao

    mbito da dominao. Ele precisa ser performado numa interao ritual geradora de energia

    emocional entre o lder carismtico e os crentes comuns. Robbins e Coleman mostram umanova percepo na economia do carisma. O primeiro nos direciona a entendermos o carter

    coletivo da produo do carisma. Coleman consolida o entendimento de que os leigos, ao

    mimetizarem o carisma, distribuindo-o numa cadeia de interaes rituais, no podem ser

    tratados meramente como grupo passivamente dominado ou simplesmente como

    desapropriados de capital religioso.

    Assim, deve-se entender o carisma para alm da dominao, e, sobretudo, como

    performance presente nas cadeias de interaes rituais pentecostais. No se pode anular, noentanto, o fato de que estas interaes tm como conseqncia a construo de uma

    estratificao carismtica na qual os pastores de multides se encontram no topo. Como disse,

    no pode haver santos protestantes, posto que todos so santos. Porm, pode-se ver nas

    interaes entre lderes carismticos e fiis que uns so mais santos que os outros.

    Bibliografia

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