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 A ARTE DE FAZER  H ST GEORGES DUBY (1919-1996) Maria Eurydice de Barros Ribeiro No inverno de 1996, por ocasião da morte de Georges Duby, emoção o choque pela perda vertiginosa daquele que foi o maior medievalista da segunda metade do  séc XX 1 . Emblema mesmo da historiografia francesa destas  úl cinco  d Duby, admi rador de Michelet  e  discí fiel de Bloch e de Febvre, personificou como nenhum outro historiador o movimento de renovação metodo lógica que passou a definir  o  fazer  H óri a n a  F desde a cria ção dos Annales. A  H stóri foi para ele a  p óp vida, uma fonte áv de prazer  e p o r  isso,  não podia ser resumida na interpretação fria dos documentos, escrita com estudada erudição ou imobilizada em sistemas  t obcecados por verdades absolutas. Para ele, a documentação  p vida. O pergaminho oferecia ao historiador a oportunidade de penetrar em um lugar reservado e secreto , de cujo silêncio exalava o perfume de vidas há muito desaparecidas'' 2 . No lugar de um discurso pesado de erudição, ele transformou a  H istória em uma obra de arte, cujo estilo  aperf eiçoo ao longo de sua vida, imprimindo qualidade à gu e  fazendo uso de uma rara capacidade de sedução. Convertendo a escrita da  H stóri no lugar  p de expressão de sua independência, ousou escrever para  o  grande  p * Hom enagem feita a Georges Duby na mesa de abertura do II Encontro Internacional de Estudos Medievais, Porto Alegre, setembro, 1997. ** Departamento de  História - UnB. Textos de  Hst ri v.  5, n 1 (1997): 118-126. 1  Le Monde,  5 de dezembro de 1996. 2 UHistoire continue,  Odile Jacob, 1991, p. 35.

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  • A ARTE DE FAZER HISTRIA* GEORGES DUBY (1919-1996)

    Maria Eurydice de Barros Ribeiro"

    No inverno de 1996, por ocasio da morte de Georges Duby, Jacques Le Goff, em depoimento ao jornal Le Monde, expressou com emoo o "choque pela perda vertiginosa" daquele que foi "o maior medievalista da segunda metade do sculo XX"1. Emblema mesmo da historiografia francesa destas ltimas cinco dcadas, Duby, admi-rador de Michelet e discpulo fiel de Bloch e de Febvre, personificou como nenhum outro historiador o movimento de renovao metodo-lgica que passou a definir o "fazer Histria" na Frana desde a cria-o dos Annales.

    A Histria foi para ele a prpria vida, uma fonte inesgotvel de prazer e, por isso, no podia ser resumida na interpretao fria dos documentos, escrita com estudada erudio ou imobilizada em sistemas tericos obcecados por verdades absolutas. Para ele, a documentao possua vida. O pergaminho oferecia ao historiador a oportunidade de penetrar em um "lugar reservado e secreto", de cujo "silncio exalava o perfume de vidas h muito desaparecidas''2. No lugar de um discurso pesado de erudio, ele transformou a Histria em uma obra de arte, cujo estilo aperfeioou ao longo de sua vida, imprimindo qualidade lngua e fazendo uso de uma rara capacidade de seduo. Convertendo a escrita da Histria no lugar possvel de expresso de sua independncia, ousou escrever para o grande pbli-

    * Homenagem feita a Georges Duby na mesa de abertura do II Encontro Internacional de Estudos Medievais, Porto Alegre, setembro, 1997.

    ** Departamento de Histria - UnB. Textos de Histria, v. 5, n" 1 (1997): 118-126.

    1 Le Monde, 5 de dezembro de 1996. 2 UHistoire continue, Odile Jacob, 1991, p. 35.

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    co esclarecido, no hesitando em manifestar seu prazer em poder "escapar" do "pequeno mundo universitrio".3

    Pioneiro na abertura de vrias frentes, encarnou a conscincia de uma gerao de historiadores, para quem a relatividade do conhe-cimento histrico se tornou cada vez mais evidente4. Declarando seguidamente sua dvida com o marxismo, "um prodigioso instru-mento de anlise"5, no deixou tambm de afirmar com igual convic-o a sua descrena na objetividade do historiador e no absoluto das fontes6. Fiel frmula de que o testemunho deve ser interrogado, no sobre os fatos que relata, mas sobre a forma como o faz, reafirmou at o final a impossibilidade de acesso ao passado: "ontem, como hoje, a sociedade s mostra de si mesma o que julga correto exibir"7.

    A leitura dos seus vrios depoimentos e entrevistas emociona pela simplicidade e clareza com que se refere a sua infncia em Paris, s boas recordaes da escola secundria em Mcon, ao ingresso em 1937 na faculdade de letras de Lyon, onde seu interesse inicial pela Geografia o aproximou da Histria. A, motivado pela leitura dos Annales e estimulado por Jean Deniau, definiu seu campo de interes-se na Idade Mdia. Aps uma curta passagem pelo ensino secund-rio, tornou-se assistente na mesma faculdade, dedicando-se elabo-rao da tese de doutorado, orientada por Charles Edmond Perrin, antigo companheiro de Marc Bloch em Estrasburgo. Com Perrin, adquiriu a prtica de uma erudio escrupulosa, moda alem, carac-terstica da Escola des Chartes. A tese entituladaZa socit auXIe. et Xlle. Sicle dans la rgion Mconnaise inscreveu-se no quadro de um estudo regional influenciado pela Geografia.

    Nunca encontrou Bloch pessoalmente, o que todavia no impediu que este tenha sido um guia invisvel, sempre presente. O encontro com Febvre veio no outono-inverno de 1944. Bloch e Feb-vre foram influncias decisivas na carreira de Duby, que saboreia em suas lembranas as advertncias e conselhos deste ltimo.

    3 Pierre Nora, Essais d'Ego Histoire, Gallimard, Paris, 1987, p. 135. 4 "Orientations das recherches historiques en France" m.Mle Moyen Age, Flammarion, 1988. 5 UHistoire continue, p. 107. 6 Dames du XIIsicle, Gallimard, Paris, 1995. 7 Idem, p. 11.

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    Em 1950 iniciou uma carreira universitria exemplar, marca-da pelo desejo de autonomia e independncia que to bem transmitiu aos seus escritos. Convidado a ingressar na Sorbonne, permaneceu em Aix-en-Provence que, graas a ele, se tornou um dos principais centros de estudos medievalistas universitrios da Europa nos anos de 1950 e 60. Em suas idas a Paris, aproximou-se da 5a. seo da Ecole Pratique des Hautes tudes, conhecendo em 1953 Fernand Brau-del e logo a seguir Robert Mandrou e Jacques Le Goff, estreitamente ligados, na poca, a Braudel. Com o apoio de Mandrou comeou a escrever nos Annales, seguindo as indicaes de Febvre e exploran-do o ento incerto territrio das mentalidades8.

    Enquanto Lemerle pressionava-o a ir para a Sorbonne, Brau-del no exercia menor presso para atra-lo para a Ecole des Hautes tudes en Sciences Sociales. Duby, no entanto, resistia, obstinado no desejo de manter sua independncia. Apenas em 1970 deixou Aix por Paris. No o fez nem pela Sorbonne nem pela cole, mas pelo Collge de France, onde ocupou a cadeira de Histria das Sociedades Medievais at 1992. Em sua aula inaugural, Des Socits Mdiva-les, reafirmou o "triunfo da Histria social", concluindo que "o ho-mem em sociedade constitui o objeto final da pesquisa histrica [...] a histria social , de fato, toda a histria".9

    Primeiro historiador a entrar na Academia Francesa, a clebre "coupole", desde a morte de Fernand Braudel, Georges Duby no s foi o representante de uma Histria universitria rigorosa e erudita, mas tambm de uma nova metodologia. Erudio e rigor no o afas-taram do grande pblico, cujo reconhecimento veio no incio dos anos 80, quando da difuso para a televiso do Tempo das Catedrais, con-sagrado arte medieval. Desenvolvendo uma verdadeira pedagogia da imagem, o programa conquistou mais de trs milhes de telespec-tadores na primeira difuso. Convencido da importncia da TV, olhada at ento com desconfiana pela universidade, Duby aceitou presidir o Conselho de Proteo da Sociedade de Edio de Programas de televiso de 1986 a 1993.

    8 Pierre Nora, op. cit., pp. 134-135. 9 Des Socits Mdivales, Leon inaugurale au Collge de France, Gallimard, Paris, 1971, p. 33.

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    Fiel a Bloch na mxima de "compreender o presente pelo pas-sado e o passado pelo presente", Duby no cessou de convocar os historiadores a refletirem sobre os problemas de seu prprio tempo, evitando o confinamento no passado. Segundo ele, os homens e as mulheres que viveram h mil anos no esto to distantes de ns, o que certamente, permite estabelecer analogias, porm, so com as diferenas que aprendemos mais10. Confrontando o passado com o presente, Duby declarou sobre a morte:

    "Quando ningum duvida da existncia de um alm, a mor-te uma passagem que deve ser celebrada com cerimnia entre parentes e vizinhos. O homem da Idade Mdia possua certeza de no desaparecer completamente, aguardando a ressurreio. Porque nada pra e tudo prossegue na eternidade. A perda con-tempornea do sentimento religioso fez da morte uma prova ater-rorizadora, um balanar nas trevas e no desconhecido. A solida-riedade em torno da passagem da vida desapareceu, e hoje apres-samo-nos em nos desvencilhar do cadver. Mais do que a morte, nossos ancestrais temiam o julgamento, o castigo do alm e os tormentos do inferno. Um medo do invisvel sempre presente, bem implantado nas profundezas do homem de hoje, o faz vacilar di-ante da impotncia face ao seu destino. ""

    Reticente em ser considerado um historiador da Idade Mdia e mesmo quanto expresso Idade Mdia - "quem pode pretender abraar um milnio?"12 - Duby preferia ser definido como um histo-riador do mundo feudal, ao qual dedicou uma pesquisa rigorosa, incansvel, mas sempre levada a cabo com prazer.

    O ponto de partida foi a tese La socit au Xle. et Xlle. sicle dans la rgion Mconnaiseu em que foram definidas as questes - o que a sociedade feudal? - a periodizao - o sculo XI e XII -o espao - a Frana do Norte - , nos quais toda sua obra futura se inscreveria. Escrita no contexto de uma poca em que a Histria se encontrava mais prxima da Geografia e da Economia e tendo como

    10 L' an Mil. lan deux Mille, sur le.i traces des nos peurs, Textuel, Paris, 1995, p. 13. 11 Idem. 12 Entrevista concedida a Le Dbat", Paris, novembro-dezembro de 1996, n 92, p. 53. 13 La socit au Xle. et Xlle. sicle dans la rgion Mconnaise, Sevpen, 1953.

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    fonte de inspirao A sociedade feudal de Marc Bloch, a tese distin-guiu-se pela originalidade em identificar o regime feudal pela predo-minncia do senhorio castelo e ao propor uma cronologia que, par-tindo do ano mil, diferia de Bloch14.

    Originalidade, criatividade, so traos marcantes da obra de Duby e se revelam sobretudo no tratamento concedido s fontes e no distanciamento que tomou em relao a uma metodologia definida a priori. Todavia, ao declarar sua desconfiana com relao teoria, ele manifestou tambm, por mais de uma vez, sua crena na impossi-bilidade de o historiador abordar a documentao livre de idias pre-concebidas. Segundo ele, toda sua pesquisa foi pensada dentro de um "quadro conceituai" construdo "com base na idia de que a socieda-de um sistema, cujos elementos solidrios se articulam"15.

    A economia, a arte, a ideologia, as relaes de parentesco, a sexualidade, a historiografia, a biografia constituem as vrias frentes abertas quase sempre com pioneirismo por Duby que defendeu a pri-mazia da Histria social, cujo ponto de convergncia se encontraria entre uma Histria da civilizao material e uma histria mental co-letiva. As mentalidades, conceito consagrado no clebre escrito para o volume da Pliade, organizado por Charles Samaran, foi mais tarde abandonado por Duby que, partindo da Geografia e insatisfeito com os mtodos da Economia, avanou em direo Etnografia e An-tropologia. O reconhecimento da Geografia sempre acompanhou Duby, que autor de vrios atlas histricos. Para alm dos livros publicados individualmente, organizou vrias colees que sinaliza-ram igualmente a mudana de temtica e de mtodo.

    A classificao desta vasta obra por ele mesmo realizada no itinerrio transmitido nas autobiografias ou nas diversas entrevistas concedidas. O primeiro momento dedicado Histria econmica foi influenciado pelo marxismo e pela leitura assdua de Althusser. Per-tencem a esta poca A economia rural e a vida nos campos e Guer-14 Marc Bloch, em A sociedade feudal, data o incio do regime feudal por volta de meados do sculo

    IX. Uma "segunda idade feudal" comearia no sculo XII. Para Duby o ponto de ruptura se situa no ano mil. A expresso "revoluo feudal" utilizada por Duby em sua tese foi recentemente contestada por Dominique Barthlemi em La Socit dans le Comt de Vendme de V an mil au XIV sicle, Paris, Fayard, 1993.

    15 UHistoire Continue, p. 106.

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    reiros e camponeses^. No primeiro, Duby abandonou as fronteiras da Frana para, num esforo deliberado, estabelecer uma ampla sn-tese sobre a economia rural na Europa medieval dos sculos IX ao XIII. No segundo ensaio, recuou a cronologia at o sculo VII e ba-seou-se quase que inteiramente nos conceitos de classe e de relao de produo. Privilegiando sempre o dilogo com a fonte, manifes-tou, ento, sua desconfiana pelo "abuso do determinismo" e pela "rigidez das estruturas"17, advertindo o leitor quanto s dificuldades prprias a uma histria da economia medieval, cuja documentao restrita ao fechado crculo da Igreja carece de dados numricos. A ausncia de tais informaes impossibilita, segundo ele, o historia-dor de fundamentar consistentemente a sua anlise, demonstrando o quanto pode ser precria a aplicao de modelos construdos pela economia moderna.

    Ao longo das reflexes subseqentes Duby concluiria que "co-locar os fenmenos sociais como simples prolongamento dos fen-menos econmicos reduzir o campo de interrogao, empobrecer singularmente a problemtica e renunciar a perceber claramente de-terminadas ligaes de foras essenciais"18.

    O ato de interrogar a fonte no quadro de uma histria-proble-ma caracteriza toda a obra de Duby, cujos momentos de desvio, ou mesmo de ruptura, ocorreram na produo de trabalhos fora do cir-cuito universitrio e que se destinaram ao grande pblico. Foram eles os livros sobre a arte19, O ano mil, O domingo de Bouvines e Guilher-me, o Marechal.

    Adolescncia da cristandade, A Europa das catedrais e Fun-damentos de um novo humanismo, publicados a convite das edies Skira de Genebra, assinalaram na carreira de Duby no s a explora-

    16 Historiador da economia, Georges Duby foi convidado para escrever na coleo World Economic History organizada por Charles Wilson. A verso francesa deste ensaio foi publicada em 1973 com o ttulo de Guerriers et Paysans. Na Inglaterra Duby ligou-se principalmente a Rodney Hil-ton e aos historiadores de "Past and Present". Faz parte ainda do perodo voltado para a economia a organizao da Histoire de la France rurale.

    17 Vconomie rurale et la vie des campagnes dans 1'occident medieval. Flammarion, Paris, 1962, vol. II, p. 15.

    18 Des Socits Mdivales, pp. 10-11. 19 Adolescente de la chrtient occidentale, 980-1140. L 'Europe des Cathdrales, 1140-1280. Fon-

    dements d'un nouvel humanisme, 1280-1440. Skira, Genebra, 1966-1967.

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    o de uma nova temtica, a arte, mas o incio do desenvolvimento de um estilo cuidadoso que aprimorou ao longo dos anos. A arte sem-pre ocupou uma parte importante de sua vida. Ao escrever para o grande pblico, ele buscou compartilhar a sua prpria emoo face obra de arte. Desvencilhando-se das notas de p de pgina, das cita-es de arquivo, mas no do uso criterioso das fontes, com rigorosa erudio, passou a introduzir o leitor nos procedimentos da pesquisa, outro trao que passaria a caracterizar sua obra. Fiel concepo de que a sociedade deve ser pensada como um sistema dinmico, de-monstrou de que forma a arte insere-se no todo de uma organizao social, chamando a ateno dos historiadores da arte quanto s rela-es que se formam entre "a histria dos monumentos" e "as outras histrias", relaes que aqueles que se dedicam ao estudo do signifi-cado das obras de arte no podem ignorar.

    Se os livros sobre arte abriram para Duby a via para o desen-volvimento de um estilo prprio, O ano mil, escrito para a coleo Archives, constitui o preldio de uma nova etapa. Tal como o escultor "que ao trocar a madeira pelo mrmore" necessita de novos instru-mentos20, afastando-se dos diplomas, cartas, inventrios e testemu-nhos breves para se dedicar anlise de narrativas e de poemas, Duby se convenceu da inutilidade de interrogar as fontes sobre as condi-es de vida material no ano mil. "O cotidiano no interessa de forma alguma, nem aos historiadores, nem aos cronistas e ainda menos aos analistas"21. A anlise dos seus escritos e testemunhos fornecem, po-rm, "uma contribuio insubstituvel histria das atitudes mentais e das representaes da psicologia coletiva"22. Cada texto se relacio-na com sistemas de valores, com modelos de comportamento, que expressam a forma como seus autores se preparavam para afrontar o que para eles foi "a nova primavera do mundo"23.

    A gestao de O ano mil resultou no esboo de uma histria das ideologias, cuja reflexo foi desenvolvida em um captulo da tri-logia Faire de l 'Histoire (traduzida no Brasil com os ttulos de Hist-

    20 L' an Mil, l'an deux Mille, sur les traces des nospeurs, Textuel, Paris, 1995. 21 Idem, p. 26. 22 Idem, p. 26. 23 Idem, p. 26.

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    ria: novos problemas; Histria: novas abordagens; Histria: novos objetos), organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora24, e mais tar-de no As trs ordens ou o imaginrio do feudalismo25 produzido no decorrer de um seminrio do Collge de France e influenciado pela obra de Georges Dumzil.

    Com O domingo de Bouvines, Georges Duby surpreendeu a todos ao propor o retorno do acontecimento e da histria poltica, banidos do territrio do historiador pela Escola dos Annales. Demons-trando, atravs de uma antropologia da guerra feudal, a relao com-plexa entre a histria e a memria, ele afirmou ento, que os aconte-cimentos so como "a nata da histria"26. Bouvines assinala na obra de Duby uma dupla ruptura. Ruptura com a forma universitria de fazer Histria - "Bouvines c 'tait pour moi la liberte"27. E ruptura mais profunda, no nvel da erudio, no tratamento concedido fon-te, cuja natureza exigia uma nova abordagem. Mais do que o aconte-cimento, o olhar atento do historiador buscou no testemunho a forma como o acontecimento foi narrado. A ruptura se processava na re-construo dos discursos elaborados pela sociedade feudal como um todo, ou por tal grupo em particular, assinalava-se por uma mudana radical na temtica, que deixava para trs a histria econmica para se dedicar ao estudo das ideologias, da sexualidade, abrindo novas frentes28.

    A cadeira assumida por ele no Collge de France foi, na feliz expresso de Jacques Le Goff, um verdadeiro farol29 cuja luz no s guiou os medievalistas, mas tambm os outros historiadores. Instiga-do pela leitura dos antroplogos e motivado pelas bruscas mudanas que atingiam a famlia contempornea, Duby elegeu como tema, para o seminrio universitrio 1973/74, as estruturas de parentesco e sexualidade na cristandade ocidental. Apoiado nos conceitos da antropologia elaborou um estudo rigoroso das regras matrimoniais

    24 "Histoire sociale et idologies des socits" in: Jacques Le Goff e Pierre Nora.Fa/re de l 'Histoire, Nouveaux Problmes, Gallimard, 1974, pp. 147-168.

    25 Les trois ordres ou 1'imaginaire du fodalisme, Gallimard, Paris, 1978. 26 Le Dimanche de Bouvines, Paris, 1973, p. 14. 27 Entrevista concedida a "Le Dbat", p. 185. 28 Idem, p. 186. 29 Jacques Le Goff, Le Monde, 5 de dezembro de 1996.

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    concebidas pela Igreja latina no quadro da oposio violenta da duas moralidades: a dos guerreiros e a dos padres. De tal estudo resultouO cavaleiro, a mulher e o padre10.

    Ao mesmo tempo em que se preocupava com a reabilitao da histria "vnementielle", "pelo qu o acontecimento pode revelar e que sem ele permaneceria desapercebido"31, a biografia tambm passou a chamar a ateno de Duby, que considerava que o homem, ao deixar para trs vestgios importantes de sua passagem, tornava-se, da mesma forma que o acontecimento, um elemento revelador. O lanamento de Guilherme, o Marechal mais uma vez surpreendeu o meio universitrio. No se trata de uma obra para especialistas, diri-am alguns. Duby retomava a narrativa e dedicava-se a um estudo biogrfico. Longe, porm, de uma biografia tradicional, a histria-problema se mantinha e a vida de Guilherme servia de pretexto para ele mais uma vez colocar a questo fundamental que norteou toda sua obra: o que a sociedade feudal? O marechal, personagem ex-cepcional e como tal reconhecido por seus contemporneos, permitia atravs de sua relao com a glria, a honra e as mulheres ver como funcionava a sociedade cavaleiresca. Ao mesmo tempo, o campo da anlise deslocava-se de uma antropologia social para uma psicologia mais individual, pessoal, desenvolvida plenamente em Damas do Sculo XII.

    Utilizando os mesmos textos de O cavaleiro, a mulher e o padre e respondendo a uma antiga questo a formulada - qual o papel das mulheres na sociedade feudal? - a abordagem mais psicolgica e intimista desenvolvida com grande estilo resultou na trilogia que en-cerra sua obra. O projeto chegava ao seu termo e a misso estava cumprida.

    30 Le chevalier, la femme et le prtre, Hachette, Paris, 1981. 31 Entrevista a "Le Dbat", p. 187.