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A prática de planejamento familiar em mulhe- res de baixa renda no município do Rio de Ja- neiro Sarah Hawker Costa* Ignez Ramos Martins* Cristiane Schuch Pinto* Sylvia Regina da Silva Freitas* Este trabalho examina a prática contraceptiva e os problemas que as mulheres de baixa renda enfrentam no controle de sua fecundidade. A discussão é baseada nos dados de uma pesquisa coletados entre 1984 e 1985 em sete favelas situadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar da ausência de um programa de planejamento familiar na área do estudo, foi encontrada uma alta prevalência de uso de contraceptivos entre as mulheres em união (67%). A análise revela porém, que a alta prevalência foi resultado quase que exclusivamente do uso de dois métodos femininos altamente eficazes contracepção oral e esterilização feminina. A forma como estes métodos vêm sendo utilizados está associada a altos riscos desnecessários à saúde da mulher. Foi concluído que é necessário que os cuidados de planejamento familiar façam parte de um programa integral à saúde da mulher, um programa que ofereça um amplo leque de métodos contraceptivos reversíveis e que dê ênfase às atividades de práticas educativas. De fato, esses princípios estão contidos no PAISM, mas a sua implementação efetiva depende não só de mudanças no setor saúde, mas principalmente de transformações amplas dentro da sociedade brasileira. INTRODUÇÃO Apesar da inexistência, até meados dos anos 80, de um programa governamental de planejamento fami- liar, estudos recentes indicam que o uso de métodos contraceptivos contribuiu efetivamente para o declínio acelerado da fertilidade no Brasil (MERRICK, 1983). Um estudo realizado em 1986, a nível nacional, reve- lou que 65% das mulheres em união, de 15 a 44 anos, usavam métodos contraceptivos (BENFAM, 1986). Em áreas urbanas, particularmente nas regiões mais ARTIGO

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A prática de planejamento familiar em mulhe-res de baixa renda no município do Rio de Ja-neiro

Sarah Hawker Costa*Ignez Ramos Martins*

Cristiane Schuch Pinto*Sylvia Regina da Silva Freitas*

Este trabalho examina a prática contraceptiva e osproblemas que as mulheres de baixa renda enfrentamno controle de sua fecundidade. A discussão é baseadanos dados de uma pesquisa coletados entre 1984 e1985 em sete favelas situadas na Região Metropolitanado Rio de Janeiro. Apesar da ausência de um programade planejamento familiar na área do estudo, foiencontrada uma alta prevalência de uso decontraceptivos entre as mulheres em união (67%). Aanálise revela porém, que a alta prevalência foiresultado quase que exclusivamente do uso de doismétodos femininos altamente eficazes — contracepçãooral e esterilização feminina. A forma como estesmétodos vêm sendo utilizados está associada a altosriscos desnecessários à saúde da mulher. Foiconcluído que é necessário que os cuidados deplanejamento familiar façam parte de um programaintegral à saúde da mulher, um programa que ofereçaum amplo leque de métodos contraceptivos reversíveise que dê ênfase às atividades de práticas educativas.De fato, esses princípios estão contidos no PAISM,mas a sua implementação efetiva depende não só demudanças no setor saúde, mas principalmente detransformações amplas dentro da sociedade brasileira.

INTRODUÇÃO

Apesar da inexistência, até meados dos anos 80,de um programa governamental de planejamento fami-liar, estudos recentes indicam que o uso de métodoscontraceptivos contribuiu efetivamente para o declínioacelerado da fertilidade no Brasil (MERRICK, 1983).Um estudo realizado em 1986, a nível nacional, reve-lou que 65% das mulheres em união, de 15 a 44 anos,usavam métodos contraceptivos (BENFAM, 1986).Em áreas urbanas, particularmente nas regiões mais

ARTIGO

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desenvolvidas do Sul e do Sudeste, a prevalência deuso de contracepção ultrapassou 70%. (THOMÉ etal; 1982)

Embora os dados apontem para o aumento daprática contraceptiva, inclusive entre mulheres de bai-xa renda, poucos estudos têm abordado as populaçõesfaveladas, enfocando os problemas específicos enfren-tados pelas mulheres residentes nestas áreas para ocontrole da sua fecundidade. (WAWER et al.; 1986)

Atualmente, quase um terço da população dosgrandes centros urbanos, particularmente no Rio deJaneiro e São Paulo, reside em favelas (IBASE, 1982).Esta população é a que tem maior dificuldade de acessoaos bens em geral, inclusive aos serviços de saúde,merecendo portanto receber um tratamento prioritáriono planejamento da atenção à saúde, englobando pla-nejamento familiar.

Dentro desta ótica, entre 1974 e 1985, a EscolaNacional de Saúde Pública com o apoio do "SpecialProgamme of Research, Development and ResearchTraining in Human Reproduction" da OrganizaçãoMundial da Saúde, realizou um estudo com o objetivode contribuir para que, a partir de uma melhor com-preensão da prática contraceptiva das mulheres de bai-xa renda e do papel desempenhado pelos serviços desaúde, seja possível uma oferta mais adequada de servi-ços de planejamento familiar pelas unidades prestado-ras de serviço de saúde, em consonância com as diretri-zes do Programa de Atenção à Saúde da Mulher doMinistério da Saúde, programa este que vem sendomorosamente implantado a partir de 1985. (MS, 1983)

Este artigo relata os resultados principais destapesquisa, analisando também a atuação dos serviçosde saúde e as conseqüências para a saúde da mulherda política oficial quanto ao planejamento familiar.

Embora tenham sido estudadas todas as mulheres,independentemente da situação conjugal, para facilitara comparação com a maioria dos estudos existentes,optou-se por, ao discutir os resultados da prevalênciacontraceptiva geral, focalizar de modo especial as mu-lheres em união consensual ou legal. Os demais resulta-dos se referem à totalidade da amostra.

METODOLOGIA

A pesquisa foi conduzida em sete comunidadeslocalizadas na X Região Administrativa do Municípiodo Rio de Janeiro, na área sob a responsabilidadeda Unidade de Treinamento Germano Silval Fariada ENSP/FIOCRUZ. Realizou-se um estudo seccionalatravés de amostragem estratificada aleatória, cada fa-vela constituindo um estrato e se considerando elegí-

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veis todas as mulheres de 15 a 49 anos independenteda situação conjugal. Tendo-se encontrado 1900 mu-lheres nessa faixa etária nos 2019 domicílios selecio-nados. Foram entrevistadas 1783, alcançando assimum índice de resposta de 92%.

Do total de mulheres entrevistadas, 1163 viviamem união (casadas ou com companheiro fixo), corres-pondendo a 62% da amostra. Vivendo só, na condiçãode solteiras, foram encontradas 538 mulheres, (30%),sendo que 7,2% nunca tiveram relação sexual. Umgrupo menor, 4,5% das entevistadas, eram viúvas,separadas ou divorciadas que também viviam sozinhas.

O instumento utilizado foi um questionário pré-codificado que incluía algumas questões abertas. Oquestionário foi composto de duas partes: uma seçãocobrindo as características gerais do domicílio e mora-dores e outra para ser respondida pelas mulheres elegí-veis, abordando informações sobre a história reprodu-tiva, o conhecimento e uso de métodos contraceptivos,história de abortos e o uso dos serviços de saúde.O questionário da mulher se dividia em seções deacordo com o tipo de método em uso: pílula, esterili-zação feminina, outros métodos, assim como uma se-ção para as que não usavam métodos contraceptivos.

De acordo com o método em uso foram estudadosos pontos mais importantes sobre: a escolha do méto-do , informação das mulheres sobre o mesmo, orienta-ção recebida, fonte de obtenção, efeitos colaterais eo papel desempenhado pelos serviços de saúde.

As mulheres foram também interrogadas sobre odesejo de ter mais filhos no futuro, assim como sobreo número de filhos que consideravam ideal.

Uma descrição mais detalhada da metodologia éapresentada no relatório final do projeto. (COSTAet al; 1987).

Na tabela l são apresentadas algumas caracte-rísticas sócio-econôrnicas e demográficas das mulheresentrevistadas.

CONHECIMENTO E USO DE MÉTODOS CON-TRACEPTIVOS

A metodologia utilizada para avaliar o conheci-mento de métodos contraceptivos foi similar à usadano World Fertility Survey (1979). As mulheres respon-deram primeiro espontaneamente sobre os métodos queconheciam, sendo complementada a informação apósa leitura de uma lista.

Como pode ser observado na figura l , o conheci-mento da pílula entre as mulheres em união é quaseuniversal (99,7%). Acima de 90% conheciam a esterili-zação feminina, o condom e a tabela. Mais de um

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terço estavam familiarizadas com dois métodos mascu-linos: coito interrompido e vasectomia. Somente umapequena parte, cerca de 27%, declarou conhecer odiafragma. Os métodos naturais, Billings e tempera-tura, foram citados por uma proporção ainda menor,22%.

Foi interessante constatar que o conhecimentodos métodos para todas as mulheres segue o padrãosemelhante, sendo que para as solteiras as proporçõeseram menores.

É surpreendente observar que apesar do uso difun-dido da ligadura tubária, foi bastante reduzida a pro-porção de mulheres que a ela se referiu de forma espon-tânea, sendo este método somente lembrado após aleitura da lista. Este dado sugere que as mulheresassociam a esterilização muito mais com o fim da vidareprodutiva do que propriamente a um método contra-ceptivo.

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EXPERIÊNCIA DE USO DE MÉTODOS CONTRA-CEPTIVOS E PRIMEIRO MÉTODO USADO

Cerca de 91% das mulheres em união declararamter usado algum método contraceptivo; a pílula tinhasido usada por 83% das mulheres; menos de 20% rela-taram experiência de uso do condom, tabela, coitointerrompido, cremes ou geléias espermicidas e apenasuma pequena proporção, 5%, já havia experimentadoo DIU.

A pílula constituiu o primeiro método para 83%desse grupo de mulheres, mas cabe ressaltar no entan-to, que na faixa de 40 anos e mais, este padrão foidistinto, já que muitas iniciaram a contracepção atra-vés de outros métodos, e 8% optaram diretamentepela ligadura.

As marcantes diferenças encontradas entre ascoortes quanto ao início da contracepção sugerem mu-danças no comportamento reprodutivo. Na tabela 2,

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observa-se que 46% das mulheres com menos de 20anos já haviam iniciado o uso de métodos, enquantono grupo de 45 a 49 anos, somente 3,5% declararamter iniciado a contracepção antes dos 20 anos. Já entreas mulheres de 25 a 29 anos, 85% já haviam usadométodos, em contraste com o observado no grupo de45 a 49 anos, onde somente 53% haviam iniciadoo uso de métodos contraceptivos quando tinham 30anos de idade.

Esta tendência ao início precoce da contracepçãoestá também refletida no número de primogênitos antesdo uso de métodos. Conforme ilustra a tabela 3, amaioria das mulheres com menos de 25 anos iniciouo uso antes do primeiro filho, comparado com apenas23% de mulheres com idade entre 40 e 44 anos ecom 16% na faixa de 45 a 49 anos. Outrossim, maisde 90% das informantes com menos de 25 anos jáhaviam iniciado o uso de contraceptivos antes do nasci-mento de seu segundo filho, comparado com somente53% das mulheres de 40 a 44 anos e 40% das de45 a 49 anos.

USO ATUAL DE MÉTODOS CONTRACEPTIVOS

Quarenta e oito por cento de todas as mulheresentrevistadas e 35% das solteiras que já tiveram rela-ção sexual faziam uso de contraceptivos. No entanto,como pode ser visto na tabela 4, entre as mulheresem união esta cifra é mais elevada (67%). O uso de

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ARTIGOmétodos segundo a idade segue o padrão de U inverti-do, alcançando o pico na faixa etária entre 25 e 39anos.

A proporção de mulheres não fazendo uso da con-tracepção cresce a partir dos 35 anos, sendo elevadoo percentual de não usuárias com mais de 40 anos.Da mesma forma, para as muito jovens, essa taxaé alta pois 50% das menores de 20 anos não usavammétodos contraceptivos. Esse padrão de uso é seme-lhante ao encontrado em uma pesquisa nacional. (BEN-FAM, 1986)

A pílula foi o método mais prevalente, usadopor 36% das mulheres em união. O uso foi mais eleva-do entre as jovens de 20 a 24 anos, decrescendo rapida-mente com a idade, permanecendo no entanto, preocu-pantemente alto (16%) e (8%) para as idades de 40a 44 anos e 45 a 49 anos, respectivamente (tabela4).

A ligadura tubária, usada por 22% das mulheres,foi o segundo método mais prevalente, passando apredominar a partir dos 35 anos de idade.

A diferença entre a proporção de mulheres esteri-lizadas em cada faixa etária indica que o maior impactodesta prática ocorreu nas mulheres com menos de 40anos. Isso é ilustrado no grupo etário de 35 a 39anos. Assim sendo, mesmo que nenhuma mulher amais nesta faixa etária fosse esterilizada até alcançara idade de 45 a 49 anos, ainda assim, a taxa de 35%seria elevada se comparada com a de 22% encontradaentre as mulheres neste grupo etário na ocasião da

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entrevista (tabela 4). Esses resultados revelam quea opção por este método irreversível é uma práticarecente.

Aproximadamente 10% das mulheres em uniãoestavam fazendo uso dos demais métodos, variandoesta taxa entre 5 e 14% de acordo com a idade. Estedado reflete, de um lado, a falta de acesso a métodosmodernos eficazes alternativos, como o DIU e o dia-fragma e, por outro lado a rejeição aos métodos tradi-cionais, tabela e coito interrompido, pela maioria dasmulheres.

A figura 2 demonstra o peso da pílula e da ligadu-ra diante dos outros métodos. Entre as mulheres usan-do contraceptivos, esses métodos eficazes eram adota-dos por mais de 80%, enquanto apenas 7,5% delasusavam os métodos tradicionais. Essa tendência é maisou menos comum a todas as idades, exceto para ogrupo de 45 a 49 anos, onde esses outros métodossão responsáveis por 17% do total de us Em estudorecente sobre a anticoncepção em quatro municípiosno estado de São Paulo foram encontrados resultadossemelhantes. (BERQUO, 1986)

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A predominância de dois métodos, pílula e esteri-lização feminina, é de fato uma característica da práti-ca de contracepção da maioria das mulheres brasileiras,segundo dados do IBGE/PNAD-86. (OLIVEIRA &SIMÕES, 1988)

Chama a atenção o fato de que 33% das mulheresem união não usavam métodos. Observando no entantoa figura 3, nota-se que várias dessas mulheres nãonecessitavam aparentemente de contracepção por di-versas razões: seja por estarem grávidas ou então ame-norréicas por algum outro motivo. Um grupo menorentre as que estavam menstruando, justificou o nãouso por não engravidarem há pelo menos três anos,ainda que sexualmente ativas. Excluídas as 3,5% quena ocasião da entrevista tentavam engravidar, restamde fato 13,5% de não usuárias que poderiam ser consi-deradas expostas a risco. Destas, 69%, justificaramo não uso por razões tais como: não estarem tendorelações sexuais, pensarem que não podiam engravidar,terem tido parto ou aborto recente, ou simplesmenteacharem o uso de contraceptivos desnecessário. Comotodas estavam menstruando, possivelmente muitas de-las se consideravam erroneamente protegidas. As de-mais relataram razões diretamente relacionadas comos métodos contraceptivos: experiência negativa oumedo de efeitos colaterais, desaprovação do uso decontraceptivos e falta de experiência contraceptiva,razões citadas por 15, 13 e 3 por cento, respecti-vamente.

FONTE DE OBTENÇÃO

A tabela 5 relaciona as fontes de obtenção dosmétodos em uso relativo a todas a mulheres. A farmá-cia se destaca como principal fornecedora da pílula(85%) e do condom (63%). A BENFAM e o CPAIMC,agências privadas de planejamento familiar foram res-ponsáveis por 9% do fornecimento da pílula e aparecemcomo os únicos fornecedores do DIU. Estas agênciasdistribuem métodos gratuitamente ou mediante umataxa simbólica.

Em relação à esterilização feminina, foi observadoque 73% das mulheres foram operadas em serviçosfinanciados pelos cofres públicos, sendo que 50% dascirurgias foram efetuados nos serviços privados conve-niados com o INAMPS.

A PÍLULA ANTICONCEPCIONAL: USO E RISCOS

Como foi mencionado, a maioria das mulheresobtém a pílula diretamente nas farmácias, quase a tota-lidade sem a prescrição médica (96%). Menos da meta-

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de das usuárias da pílula recebeu orientação médicaantes de fazer uso do método. É igualmente preocu-pante constatar que apesar de 64% das mulheres usan-do contraceptivo oral terem consultado serviços desaúde nos 12 meses que antecederam ao inquérito,praticamente a metade relatou que o uso da pílulanão foi discutido na consulta. Esses fatos revelamgrave omissão por parte dos profissionais de saúdee demandam reflexão de todos os envolvidos na presta-ção de serviços.

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São portanto, justificadas as preocupações comos riscos decorrentes do uso da pílula, nas circuns-tâncias atuais, onde existem poucos serviços de saúdeofertando cuidados de planejamento familiar, e ondeo acesso a métodos alternativos eficientes é pratica-mente inexistente.

Alguns resultados ilustram bem essa preocupação:Em primeiro lugar, 34% das mulheres estavam simulta-neamente usando pílula e amamentando, 2/3 destasfazendo uso de pílulas combinadas.

Em segundo lugar, a constatação de que umagrande proporção de mulheres acima de 35 anos (17%)tomavam pílula, sendo que 9% delas tinham mais de40 anos. Entre as usuárias da pílula, 40% eram fuman-tes, sendo que 10% consumiam mais de 20 cigarrospor dia.

Em terceiro lugar, como a tabela 6 demonstra,entre as usuárias da pílula é bastante alta a prevalênciade cinco dos principais problemas considerados con-tra-indicações formais (doenças cardiovasculares, vari-zes, diabetes, hipertensão arterial, problemas renais).Como era esperado, a prevalência cresce com a idade.

Embora não se tenha realizado nenhuma compro-vação clínica, foi interessante observar a semelhançaencontrada entre a prevalência de hipertensão arterial

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ARTIGOe de diabetes em usuárias de contraceptivos orais,com as informações levantadas em outros inquéritosepidemiológicos no Brasil. (SZWARCWALD et al,1985; CENSO NACIONAL DE DIABETES, 1988)

É preocupante constatar que quase a metade dasmulheres fazendo uso de contraceptivos orais afirma-ram sofrer de pelo menos um dos problemas relaciona-dos na tabela 6. Já que a idade é por si só um impor-tante fator de risco, causa apreensão saber que 12%das usuárias com mais de 35 anos relataram ter nomínimo um problema de saúde e, ainda 5% afirmaramter dois ou mais desses problemas. Da mesma forma,ao se analisar em relação ao hábito de fumar, consta-tou-se que 17% de todas as usuárias da pílula eramfumantes com pelo menos um problema de saúde relata-do, ou seja estavam expostas ao efeitos conjugadosde mais de um fator de risco. Aprimorando a análise,foi encontrado um grupo menor, representando 3,6%de todas as usuárias desse método, que apresentou,além desse risco, o agravante de ter mais de 35 anosde idade.

Esses dados ilustram como as mulheres vêm sendoexpostas a riscos desnecessários por falta de orientaçãoe assistência médica adequada. Resultados tambémconfirmados em estudo realizado em Campinas(FAUNDES et al, 1986).

A PRÁTICA DE ESTERILIZAÇÃO

Salvo em algumas situações especiais, a legislaçãovigente condena a laqueadura tubária, por considerá-lacontrária aos preceitos da ética medica. Não obstante,a demanda por este método tem sido cada vez maior.

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A metade das mulheres esterilizadas sofreu a in-tervenção antes de completar 30 anos de idade. Umterço dessas mulheres tinha menos de 3 filhos e 50%menos de quatro (tabela 7). Esses dados tendem aconfirmar as preocupações e denúncias veiculadas porgrupos feministas e por profissionais de saúde sobreo uso inadequado da esterilização.

Um dos aspectos mais relevantes da prática deesterilização pode ser observado na tabela 7. De todasas ligaduras, 66% ocorreram na ocasião do parto; 63%através de cesariana. Somente 28% das esterilizaçõesforam realizadas em outro momento, por laparoscopia.

O tipo de esterilização e a fonte de acesso estãorelacionadas à idade com que as mulheres se submete-ram a cirurgia. Entre as mulheres esterilizadas antesde completar 30 anos a maioria o foi na ocasião do

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parto e em serviços públicos ou conveniados com oINAMPS. Já entre mulheres de 35 anos ou mais ouso da laparoscopia aumentou significativamente, che-gando a 42% do total de esterilizações. As que foramesterilizadas nos hospitais e clínicas conveniadas ti-nham idade média de 29,4 e em média 3,5 filhos,enquanto que a média de idade para as mulheres quefizeram a laqueadura tubária no CPAIMC era de 34,7anos e a paridade média 4,1 filhos. Esse dado demons-tra que as mulheres no auge de sua vida reprodutivatêm maior acesso a ligadura por ocasião do parto,nos serviços financiados com recursos públicos, (espe-cialmente os conveniados), enquanto que aquelas, maisvelhas ou que cessaram sua procriação há mais tempo,recorrem à laparoscopia, através de serviços especiali-zados como os oferecidos pelo CPAIMC.

Em geral, estes resultados apontam para a existên-cia de um acesso diferenciado para a esterilização,envolvendo critérios de seleção baseados em variáveiscomo idade, paridade e tipo de parto. Na realidadepouco se conhece sobre os critérios adotados pelosserviços, particularmente no caso do setor conveniado.

Como já é sabido, o Brasil ostenta uma das maio-res taxas de cesarianas do mundo. Na tentativa deelucidar, se, de alguma forma, essas altas taxas esta-vam associadas à prática de esterilização por ocasiãodo parto, foi indagado o motivo para a cesariana noúltimo parto. As duas razões relatadas com maior fre-qüência foram: indicação médica e ligadura de trom-pas, citadas por 49 e 47% das mulheres respectiva-mente.

A tabela 8 apresenta a proporção de partos cesa-rianas e esterilizações por serviço de saúde. Nos cincoanos que antecederam o estudo, os serviços convenia-dos foram os principais provedores dos partos, respon-dendo por 42% deles. Do total de partos, 32% forampor cesariana. Por outro lado, nos serviços privadoso porcentual de partos cirúrgicos foi mais do que odobro que no setor público. Outro aspecto relevantefoi o fato de terem sido realizadas concomitantementelaqueaduras tubárias em 54% das cesarianas, variandoa proporção significativamente segundo o tipo de servi-ço, sendo 64% para os conveniados com o INAMPScontra 36% para os públicos.

Ainda que os profissionais que realizam esterili-zações não confirmem, talvez por ser essa intervençãopraticada freqüentemente de forma ilegal, a maioriadas mulheres se submeteram a esta cirurgia nos servi-ços financiados com recursos públicos animaram quehaviam pago alguma quantia. Algumas mulheres inclu-sive ao iniciarem o pré-natal combinaram o preço como médico e pagaram antecipadamente através de crediá-rio. Das mulheres que informaram que haviam pago

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ARTIGOalgo pela cirurgia, 65% foram esterilizadas nos servi-ços conveniados, 15% no CPAIMC e menos de 3%nos serviços públicos (estaduais, federais e munici-pais). Diante disso, é difícil avaliar o quanto a esterili-zação está sendo estimulada pelos médicos e até queponto ela é, de fato, uma demanda real das mulherespor uma contracepção eficaz, face à ausência de outrassoluções alternativas adequadas e viáveis. Reforça essaconstatação o fato de que 24% das mulheres esterili-zadas afirmarem que "orientação médica" e "proble-mas de saúde" foram os motivos que as levaram aoptar por esse método irreversível, ilustrando o impor-tante papel desempenhado pelos médicos nesta prática.Barroso, discute as duas faces que envolvem a "liber-dade" de opção das mulheres no caso da esterilização.Por um lado, a coerção direta com que o poder daautoridade médica influi na decisão e por outro ladoa possibilidade real de que muitas desejem sincera-mente essa solução definitiva, escolha essa, segura-mente determinada por variáveis sociais (BARROSO,1984).

São candidatas em potencial à esterilização, asmulheres que não toleram os efeitos colaterais da pílulae enfrentam dificuldades reais de acesso a métodos

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alternativos. Além disso fatores culturais, juntamentecom a influência exercida pelos médicos, também con-tribuem para a demanda crescente pela laqueadura tu-bária.

Entre as usuárias da pílula, 14% estavam insatis-feitas com o método, sendo que 8% declararam quegostariam de ser esterilizadas. No grupo de usuáriasde outros métodos contraceptivos, 26% estavam insa-tisfeitas e 11% gostariam de ter a esterilização comoalternativa. Ainda entre as que não faziam uso denenhum método, 14% desejavam a laqueadura tubária.Ao todo, 11% das mulheres em união, não grávidase fecundas manifestaram o desejo de se submeteremà esterilização. Se por hipótese, essa intenção se man-tivesse e essa demanda reprimida fosse atendida, aproporção de mulheres em união entre 15 e 49 anosesterilizadas cresceria para 3%.

Além dos possíveis danos à saúde, foi surpreen-dente constatar o alto grau de desinformação a respeitodas conseqüências da laqueadura tubária, já que 15%das mulheres esterilizadas manifestaram desejo de termais filhos no futuro e 11% pensavam que ainda pode-riam engravidar.

CONCLUSÕES

Este trabalho mostra a alta prevalência de usode métodos contraceptivos entre as mulheres residentesem sete favelas do município do Rio de Janeiro. Defato, a prevalência encontrada, não somente é maiordo que a média nacional, mas também é comparávelaos níveis observados em países que apresentam taxasde fecundidade consideradas tradicionalmente baixas.

Desta forma, pode-se concluir que a maioria dasmulheres, mesmo aquelas com dificuldades de acessoaos bens de consumo em geral, vêm participando dasmudanças de comportamento reprodutivo que têmocorrido no país nos últimos anos. Não só o uso dosmétodos contraceptivos vem sendo amplamente difun-dido no Brasil, como está fazendo parte da vida dessasmulheres cada vez mais cedo, ilustrando a preocupaçãoe motivação em controlar o número de filhos.

Esta constatação é de certa forma surpreendente,face à ausência da oferta institucional de planejamentofamiliar pelos serviços públicos. Ao analisar porém,a prática contraceptiva, fica evidente que essa altaprevalência se deve, quase que exclusivamente, aouso de dois métodos femininos altamente eficazes edisponíveis: por um lado a pílula, obtida em qualquerfarmácia, na maioria das vezes sem receita médica,e, por outro lado, a ligadura de trompas, efetuadaprincipalmente através do setor público por ocasiãoda cesariana.

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A forma como esses métodos são oferecidos expõeas mulheres a sérios riscos de saúde. Riscos estesdesnecessários decorrente do uso inadequado e impró-prio dos referidos métodos.

A discussão levanta uma série de problemas quepodem ser mais atribuídos a falhas na organizaçãoda atenção à saúde, do que propriamente aos aspectoscomportamentais das mulheres de baixa renda quantoà contracepção. É evidente não somente a falta deacesso aos métodos reversíveis, como também é muitoprecária a informação sobre os métodos em geral, quan-to aos efeitos colaterais e contra-indicações dos mes-mos. A omissão dos serviços de saúde quanto a estesaspectos é, sem dúvida nenhuma, grave e preocupante.

Estes problemas não constituem fatos isoladosporém integram um contexto sócio-econômico maisamplo, que afeta todo o processo de adoção e utiliza-ção da contracepção pelas mulheres de baixa renda.

Não é portanto estranho constatar que a contra-cepção através da pílula ou da laqueadura tubária sejao padrão predominante no país. Em última análise,esse quadro é fruto da incapacidade do setor públicode fornecer ações de saúde integradas em que o plane-jamento familiar esteja incluído, e de atender de formasatisfatória à pressão da crescente demanda por contra-cepção.

A solução não é simplesmente oferecer um lequeamplo de métodos, em um ambiente onde predominauma prática distorcida, permeada por desconhecimen-tos e preconceitos sobre a anticoncepção. Exige umaproposta que atenda às necessidades femininas, dandoênfase a um processo educativo abrangente, dirigidoà todas as mulheres, independentemente da fase davida reprodutiva em que se encontrem, contemplandotanto as que desejam como as que não desejam termais filhos. Proposta esta que deve ser inserida emum programa integrado.

Estes princípios estão previstos no PAISM masa sua implantação definitiva depende, não só de avan-ços no sistema de saúde, mas também de uma transfor-mação ampla na sociedade brasileira, transformaçãoessa que garanta os direitos básicos, resgatando a cida-dania da mulher no Brasil.

This paper examines contraceptive practice and theproblems low income women face in controlling theirfertility. The discussion is based on survey datacollected between 1984 and 1985 in seven slumcommunities (favelas) situated in the metropolitan areaof Rio de Janeiro, Brazil. Despite the absence of family

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planning care, in the study area, a contraceptiveprevalence rates of 67% among women in union wasobserved. The analysis reveals, however, that highprevalence was achieved almost exclusively, throughthe use of two effective female methods — oralcontraception and female sterilization. Use of thesemethods was seen to be associated with unnecessarilyhigh health risks. It is concluded that family planningcare, as part of an integral health care programmefor women is required, that places emphasis on healtheducation activities and offers the full range ofreversible contraceptives. Although PAISMcontemplates such a programme, its effectiveimplementation depends not only on changes withinthe health sector but more importantly on ampletransformations within Brazilian society.

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