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6 Caro editor, aconteceu-me de novo. E desta vez, ainda por cima, de um modo completamente inesperado. Depois de ter procurado traduzir e pôr em ordem os diários de Ulysses Moore e o seu baú cheio de objetos estranhos, pensava que não haveria mais nada a acrescentar sobre ele e sobre a terra onde vive. Aceitei todos os elogios e todas as críticas que me fizeram, sabendo muitíssimo bem que em muitas passagens eu não estive à altura do escritor que me tinha enviado todo aquele material. Assim, depois de tanto escrever sobre as suas aventuras, senti vontade de fazer qualquer coisa só minha. Foi então que me permiti empreender uma longa viagem à Escócia, até uma pequena localidade chamada Applecross, onde desejava centrar o local narrativo de uma história de magia, e preenchi com aponta- mentos um saco de cadernos (isto sim, consegui fazê-lo bem!). Depois resolvi prolongar a viagem e dei um salto a Belfast, a cidade natal de C. S. Lewis, o autor de As Crónicas de Nárnia. E foi precisamente ali, num pub próximo da universidade, que me esqueci do casaco e, claro, do caderno que tinha dentro do bolso. «O distraído do costume!», disse para comigo. Voltei atrás para ir buscar o casaco, mas alguém já o tinha levado, talvez confundindo-o com o seu. Não fiquei muito desanimado: quem sabe se, ao encontrarem o meu nome e a minha morada na primeira página do caderno, mo devolvessem. Se não o casaco, pelo menos o caderno! Mas nada disso aconteceu, pelo menos durante três meses. De repente, eis que me chega pelo correio um pacote bastante volumoso. Desembrulhei-o e deparei com uma

As Crónicas de Nárnia pub · tinha roído os braços e um armário antigo de madeira escura, que Murray só uma vez tinha aberto, ... aqui referir ‑se ao conto «A Gaveta Secreta»,

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Caro editor,aconteceu-me de novo. E desta vez, ainda por cima, de

um modo completamente inesperado. Depois de ter procurado traduzir e pôr em ordem os diários de Ulysses Moore e o seu baú cheio de objetos estranhos, pensava que não haveria mais nada a acrescentar sobre ele e sobre a terra onde vive. Aceitei todos os elogios e todas as críticas que me fizeram, sabendo muitíssimo bem que em muitas passagens eu não estive à altura do escritor que me tinha enviado todo aquele material. Assim, depois de tanto escrever sobre as suas aventuras, senti vontade de fazer qualquer coisa só minha. Foi então que me permiti empreender uma longa viagem à Escócia, até uma pequena localidade chamada Applecross, onde desejava centrar o local narrativo de uma história de magia, e preenchi com aponta-mentos um saco de cadernos (isto sim, consegui fazê-lo bem!). Depois resolvi prolongar a viagem e dei um salto a Belfast, a cidade natal de C. S. Lewis, o autor de As Crónicas de Nárnia. E foi precisamente ali, num pub próximo da universidade, que me esqueci do casaco e, claro, do caderno que tinha dentro do bolso. «O distraído do costume!», disse para comigo. Voltei atrás para ir buscar o casaco, mas alguém já o tinha levado, talvez confundindo-o com o seu. Não fiquei muito desanimado: quem sabe se, ao encontrarem o meu nome e a minha morada na primeira página do caderno, mo devolvessem. Se não o casaco, pelo menos o caderno! Mas nada disso aconteceu, pelo menos durante três meses. De repente, eis que me chega pelo correio um pacote bastante volumoso. Desembrulhei-o e deparei com uma

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caixa de madeira, ou antes, uma escrivaninha portátil, dessas que se usavam muito no século xix, especialmente quem via-java de barco. Juntamente com a escrivaninha portátil havia uma carta, que me convidava (de novo!) a ler atentamente, a avaliar, a traduzir e a organizar o manuscrito anónimo que estava metido no fundo falso da caixa.

E foi o que eu fiz.Como verão, permiti-me anotar, aqui e ali, o texto de cada

vez que encontrei referências a outras histórias. Tenho a certeza de que me escaparam outras tantas e que o misterioso remetente do pacote, bem como o anónimo autor do manuscrito, não é outro senão o meu velho e inalcansável… Ulysses Moore.

Cordialmente,Pierdomenico Baccalario

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Era uma divisão onde se entrava raramente. Havia qualquer coisa de misterioso no matiz ténue das suas cortinas desbotadas, no cinzento deslavado

da alcatifa e no cheiro delicado, a velho, das pétalas dei‑xadas a secar no grande recipiente por baixo da janela.

De cada vez que encontrava a porta entreaberta, Murray parava e ficava a olhar lá para dentro. Como se houvesse sempre ali alguma coisa que nunca tinha notado antes.

Um quadro.Uma peça de porcelana que alguém tinha mudado

de sítio.Uma mancha recente no papel de parede.A mãe de Murray, por seu lado, nunca entrava naquele

quarto. Se fosse mesmo obrigada a isso, para o limpar, por exemplo, fazia ‑o muito rapidamente e, quando saía, fechava logo a porta atrás dela.

Um pouco depois, no entanto, a porta abria ‑se sozi‑nha, mesmo que estivesse bem trancada, mesmo que não houvesse correntes de ar, mesmo que ninguém tivesse subido lá acima. O quarto era nas águas ‑furtadas. No primeiro andar ficava o quarto de Murray, o da mãe e a casa de banho. No rés do chão, tudo o resto. Dentro desse quarto não havia nada de especial, a não ser a velha secretária. Tinha sido comprada pelo pai de Murray ao malandro do Fanny, dono da casa de velharias do bairro, para que Murray tivesse um lugar onde escrever e fazer os trabalhos de casa. Tinham ‑na levado para cima bufando como cavalos, tão pesada era.

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O quarto da secretária

Murray nunca a utilizou.Além da secretária, havia no quarto cadeiras de pernas

altas e finas, com espaldares de palhinha. Num canto encontrava ‑se um sofá ao qual o gato de antigos moradores tinha roído os braços e um armário antigo de madeira escura, que Murray só uma vez tinha aberto, ficando muito dececionado: dentro havia apenas velhos bibelôs de prata protegidos por papel fino de seda.

O quarto tinha uma grande janela, com os vidros tão pouco lavados ao longo do tempo que haviam adquirido a cor do pergaminho, mas ainda se podia ver daqui o céu majestoso do Norte e, debruçando ‑nos um pouco, uma nesga de mar à beira do porto.

No quarto, por conseguinte, não havia nada de miste‑rioso ou de terrível. No entanto, Murray deixava ‑se fasci‑nar por ele. Aquele quarto tinha o poder de o fazer sentir um intruso. Ou de o levar a acreditar que, um instante antes de se assomar à porta, alguém estivera sentado àquela secretária.

Mas não era simplesmente como se fosse um fantasma.Era como se, de cada vez, o fantasma fosse obrigado

a ir ‑se embora por causa dele, Murray.

Até àquele dia, Murray experimentou sempre a mesma sensação. Porém, tudo parecia estar nos seus lugares.

A velha alcatifa coçada.O sofá com os braços roídos e arranhados.As cortinas gastas na janela.

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E a secretária com as suas pernas altas e arqueadas, o tampo de couro verde ‑escuro e as pequenas gavetas cheias de lápis onde nunca alguém tinha mexido. Ele e o pai estavam convencidos de que haveria naquela secretária uma gaveta secreta*, mas o certo era que nunca a tinham encontrado.

«Vês?», tentou convencer ‑se Murray. «Não há aqui nada de misterioso. Não há qualquer segredo neste quarto.»

Talvez.A cadeira da secretária estava um pouco deslocada,

como se até um momento antes estivesse lá sentado al‑guém a escrever uma carta secreta.

E depois tivesse desaparecido.Murray sorriu.E olhou para baixo, para o fundo da escada.Tinha ouvido barulho: alguém estava a meter o correio

pela abertura da porta de entrada.«A carta secreta», pensou.Fechou bruscamente a porta do quarto da secretária

e deitou a correr pelas escadas abaixo.— Murray? — chamou ‑o a mãe da cozinha. — Vais tu

buscar o correio?No chão em frente da porta estava um grande envelope

amarelo. Murray correu rapidamente a pequena corrente

* Nota do tradutor. Creio que o autor do manuscrito pretende aqui referir ‑se ao conto «A Gaveta Secreta», incluído no livro A Idade de Ouro, do senhor Kenneth Grahame.

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O quarto da secretária

dourada do fecho de segurança, abriu a porta de entrada de par em par, convencido de que já não estava ali nin‑guém: — Apanheeei ‑te!

— Eh, Murray! — cumprimentou ‑o o carteiro, ainda no jardinzinho diante da casa.

Murray procurou rapidamente disfarçar, dar ‑se um ar de compostura. — Bom dia, Pete.

— Senhor Pete! — corrigiu ‑o a mãe, de dentro de casa.— Senhor Pete — emendou Murray.O carteiro arrumou uma encomenda no seu carrinho

ainda cheio de correspondência. — Então, não há escola hoje?

— Esta segunda ‑feira é feriado — respondeu Murray, que não se lembrava exatamente de que feriado se tratava: o dia de alguma nação, a efeméride de uma guerra, de uma rainha?

— Mas para os carteiros não é feriado. — O senhor Pete piscou ‑lhe o olho. — Acho que aquele envelope é para ti.

Murray fez ‑lhe a continência e fechou a porta de en‑trada.

— Com a corrente de segurança! — ouviu de novo a voz da mãe.

Murray prendeu a corrente dourada e verificou o enve‑lope que estava no chão. Não havia dúvidas: estava escrito «Murray» no lugar do destinatário. O envelope era grosso, da espessura de dois dedos, almofadado com bolhas de ar, como os usados para proteção dos conteúdos frágeis

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ou especiais. Murray pegou nele, sentou ‑se no banco do piano e colocou ‑o na estante das partituras, olhando para ele com atenção.

Tentou adivinhar o que poderia conter.Quem lho teria enviado?E donde? Quando?Tocou numa tecla branca do piano, a seguir numa preta.Depois lembrou ‑se.Naturalmente. Só podia ser...Percorreu as teclas do piano com os dedos, executando

uma escala.— Então? Chegou alguma coisa interessante? — per‑

guntou ‑lhe a mãe.Murray não lhe respondeu.Pegou, de cima do sofá, no casaco de náilon amarro tado,

verificou se tinha no saco o livro e a máquina foto gráfica, meteu lá dentro o envelope e parou ao fundo da escada.

Tivera a impressão de que ouvira, no andar de cima, o leve rangido de alguém que andasse em bicos de pés. Isso não era possível, evidentemente, uma vez que em casa só estavam ele e a mãe.

A mãe apareceu ao fundo do corredor. — Vais sair? — perguntou ‑lhe?

— Vou — respondeu ele. E calçou os sapatos.— Onde vais?— Buscar o Shane. E depois vamos ter com o Connor.— Outra vez para aquele lugar terrível ao pé do rio?— Não é terrível.

1 5

O quarto da secretária

Murray olhou para os degraus que levavam para cima. Ouviu a velha casa de madeira a ranger baixinho. — Volto para jantar — acrescentou. Depois saiu.

Os sussurros da casa foram abafados pelo barulho cinzento da rua.