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142 Estudos de Psicanálise • Salvador • n. 31 • p. 141 - 148 • Outubro. 2008 As máscaras de Menotti del’Picchia: Arlequim, o desejo - Colombina, a mulher - Pierrot, o sonho. Stetina Trani de Meneses Dacorso * Palavras-chave: desejo; escolha de objeto; erotismo; amor platônico; Pierrot; Arlequim; Colombina. Resumo: O presente artigo retoma a ligação feita através de símbolos entre literatura e psicanálise. Analisa-se o poema “Máscaras”(1920) de Menotti del’Picchia, um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. A autora desliza pelas personagens da Commédia dell’Arte”: Pierrot, Arlequim e Colombina articulando-os com a mulher, escolha de objeto, desejo, erotismo, amor platônico. Mesmo sendo errados os amantes, Seus amores serão bons. (Choro Bandido,Chico Buarque/Edu Lobo) * Psicanalista. CBP-RJ; Professora titular do curso de Psicologia CES-JF; Mestranda Letras.CES-JF; Mestre em Psicologia AWU-USA; Supervisora e professora na Formação em Psicanálise Sobrap-JF; Coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise CES-JF. “Máscaras” é um poema lírico, ro- mântico e escrito na forma de peça de teatro. Transcreve o encantamento de dois homens, Arlequim e Pierrot, por uma mulher, Colombina. Cada um deles, percebendo-a sob sua ótica par- ticular e partindo deste olhar, a descre- ve e ao sentimento que ela lhes desper- tou. A literatura origina-se da imagina- ção de seu autor com o objetivo de pro- vocar um estado emocional, um estado de prazer em seu leitor. É uma transfi- guração do real que utiliza de símbolos para melhor transmitir a idéia de seu criador. Devido a este dado é que a li- teratura resiste ao passar do tempo. Eliot (1972) observa que uma das funções da poesia que perdurou é a de fornecer prazer, trazer um novo enten- dimento para o familiar, enfim, apurar a nossa sensibilidade. O apuro da sensibilidade está im- pregnado em um texto que é capaz de despertar uma angústia, um sentimen- to de ter sido compreendido sem na realidade ser capaz de se explicar no que se foi compreendido. É o dizer de algo que naquele momento traduz a nossa subjetividade. Um texto nunca é lido, nem interpretado, da mesma for- ma como um sonho que, trazido a uma sessão várias vezes, terá tantas análises quantas vezes for investigado. Sigmund Freud sempre utilizou a literatura como forma de aplicação e demonstração dos conceitos psicanalí- ticos, referindo-se ao universal do psiquismo dos seres humanos. A psicaná- lise foi criada como método terapêutico e,

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As máscaras de Menotti del’Picchia:Arlequim, o desejo - Colombina, a mulher - Pierrot, o sonho.

Stetina Trani de Meneses Dacorso*

Palavras-chave: desejo; escolha de objeto; erotismo; amor platônico; Pierrot; Arlequim;Colombina.

Resumo: O presente artigo retoma a ligação feita através de símbolos entre literatura epsicanálise. Analisa-se o poema “Máscaras”(1920) de Menotti del’Picchia, um dosidealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. A autora desliza pelas personagens daCommédia dell’Arte”: Pierrot, Arlequim e Colombina articulando-os com a mulher, escolhade objeto, desejo, erotismo, amor platônico.

Mesmo sendo errados os amantes,Seus amores serão bons.

(Choro Bandido,Chico Buarque/Edu Lobo)

* Psicanalista. CBP-RJ; Professora titular do curso de Psicologia CES-JF; Mestranda Letras.CES-JF; Mestreem Psicologia AWU-USA; Supervisora e professora na Formação em Psicanálise Sobrap-JF; Coordenadorado Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise CES-JF.

“Máscaras” é um poema lírico, ro-mântico e escrito na forma de peça deteatro. Transcreve o encantamento dedois homens, Arlequim e Pierrot, poruma mulher, Colombina. Cada umdeles, percebendo-a sob sua ótica par-ticular e partindo deste olhar, a descre-ve e ao sentimento que ela lhes desper-tou.

A literatura origina-se da imagina-ção de seu autor com o objetivo de pro-vocar um estado emocional, um estadode prazer em seu leitor. É uma transfi-guração do real que utiliza de símbolospara melhor transmitir a idéia de seucriador. Devido a este dado é que a li-teratura resiste ao passar do tempo.

Eliot (1972) observa que uma dasfunções da poesia que perdurou é a defornecer prazer, trazer um novo enten-

dimento para o familiar, enfim, apurara nossa sensibilidade.

O apuro da sensibilidade está im-pregnado em um texto que é capaz dedespertar uma angústia, um sentimen-to de ter sido compreendido sem narealidade ser capaz de se explicar noque se foi compreendido. É o dizer dealgo que naquele momento traduz anossa subjetividade. Um texto nuncaé lido, nem interpretado, da mesma for-ma como um sonho que, trazido a umasessão várias vezes, terá tantas análisesquantas vezes for investigado.

Sigmund Freud sempre utilizou aliteratura como forma de aplicação edemonstração dos conceitos psicanalí-ticos, referindo-se ao universal dopsiquismo dos seres humanos. Apsicaná-lise foi criada como método terapêutico e,

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seu corpo teórico e técnico, tem comoobjetivo a abordagem das patologias psí-quicas. A psicanálise trabalha com ossímbolos produzidos pelo psiquismo hu-mano e assim também o faz a literatu-ra, conseqüentemente as duas têmcomo objeto a subjetividade. A psica-nálise é o sujeito e o texto literário é oobjeto.

Seguindo esse raciocínio, uma obratem valor de metáfora geral e universal;ao ler se constrói um sentido que perten-ce ao leitor. O texto-manifesto é umasuperfície, fachada, máscara, e uma pro-fundidade deve ser aperfeiçoada para seraplicada ao texto (KAUF MANN,1996).

O poema de Menotti é carregadode símbolos começando pelo título,“Máscaras”, até seus personagens: Ar-lequim, Pierrot e Colombina, que guar-dam por si mesmos ampla simbologia.O texto se refere ao amor, desejo, per-cepção e escolha de objeto, e às fanta-sias que cada um cria em torno do ob-jeto que provocou a captura.

O livro Máscaras: o amor de Dulcinéia(1920), de Menotti del Picchia, me foipresenteado por uma aluna há algunsanos e a cada vez que o lia me sentiaprovocada e o lia novamente, buscan-do o que me capturava no poema. Nes-te ponto, as palavras de Barthes (1973)sobre o texto me assaltam:

Ele (o texto) produz em mim o me-lhor prazer se consegue fazer-se ouvirindiretamente; se, lendo-o, sou arras-tado a levantar muitas vezes a cabe-ça, a ouvir outra coisa. Não sounecessariamente cativado pelo texto deprazer; pode ser um ato ligeiro, com-plexo, tênue, quase aturdido:movimentobrusco da cabeça, como o do pássaroque não ouve nada daquilo que nósescutamos, que escuta aquilo que nósnão ouvimos.Neste artigo, não vou discorrer so-

bre máscaras. Mas sobre o desejo, so-

bre a tristeza do amor-sonho, o lugarde Colombina ante a exigência do de-sejo. Antes, considero pertinente fazerum breve histórico da origem destespersonagens que foram a fonte de ins-piração para Menotti.

Paulo Menotti del Picchia nasceuem São Paulo no ano de 1892 e fale-ceu em 1988, e foi poeta, ficcionista,ensaísta, editor, jornalista, industrial,banqueiro, deputado estadual e fede-ral, escultor. Ficou conhecido ao pro-jetar a Semana de Arte Moderna de1922, da qual fez um diário na impren-sa entre 20 e 30, tendo sido membrodas Academias Paulista e Brasileira deLetras. Ao completar 85 anos, Menotticoncedeu entrevistas das quais trans-crevemos dois trechos, que pensamostraduzirem sua escrita:

Em matéria de arte não admitopressão externa: a arte deve ser pesso-al, independente e livre; é ela que tirao ser humano da animalidade. (Folhade S.Paulo, 20 mar.1982).

Acho que as coisas devem ser clarase simples, gosto de luzes e luminosidades.Às vezes, num verso solto, aparece frag-mentada toda a beleza do mundo, masé preciso que o poeta seja um lírico apai-xonado. (O Globo, 20 mar.1982).

De acordo com Menotti, o textofoi escrito em 1920 quando ele e qua-tro amigos – Martins Fontes, IbrahimNobre, Armando Pamplona e Assun-ção Filho – junto a uma dama paulista,não nomeada pelo autor, assistem deuma mesa de bar à alegria carnavalesca. Del Picchia esclarece no prefácio queaquela alegria platônica fez surgir a idéiade se escrever um poema para marcarum momento tão alegre da mocidade.

Os personagens têm sua origem naCommedia dell’arte, séc.XVIII, na Itá-lia, também chamada Comédia de Ofí-cio, Comédia Artesã. Nascida do povo,improvisada e com roteiros simples, seus

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personagens eram fixos e típicos,e usa-vam máscaras que os identificavam. Eraa resposta do povo aos clássicos queaconteciam nos salões da nobreza ita-liana, sendo uma ampliação das pan-tomimas que já existiam há dois sécu-los. A Commedia sostenutta era aquelado texto, em que os atores sabem antesdo espetáculo o que vai ser dito emcena. A sostenutta nasceu da pastoral,passou para o religioso, transformando-se no típico mistério medieval. Emcontrapartida na Commedia dell’arte sóhá surpresas, tudo depende da ocasião,da platéia, temas locais. A sostenuttasorri e a dell’arte gargalha. A dell’arteusa máscaras, movimenta-se no meiodo povo, vive de suas moedas. Tudo ésímbolo, como o são Pierrot, Arlequime Colombina. Os intelectuais italianosa consideravam uma arte menor, dopovo. Porém seu caráter revolucioná-rio, vigoroso, espontâneo foi registra-do pelos de fora(RUIZ,1987).

Os franceses vão-se deslumbrar, dan-do projeção ao gênero e, muitos artistasfranceses cruzam a fronteira para delaparticipar, antes mesmo que a dell’artechegasse à França. São eles que classifi-cam, identificam e reúnem característi-cas essenciais aos vários tipos. Interessam-nos três e suas respectivas transformações...Zanni – em latim sannio, farsantes – eramdescendentes de escravos e são criados.Aqui podemos fazer inferências, porque farsantes? Por serem servos? Fazemde conta que servem? Continuemos.Não têm escrúpulos, desmancham astramas dos patrões, respeitam apenas oamor em todas as suas formas. Mais umparêntese: servem ao amor, ao desejo,à força da pulsão e os respeitam, masnão servem a Lei representada pelospatrões, nem a respeitam. São bufões,ligados tradicionalmente à dupla depalhaços. São dois e se complementamcomo o lado direito/esquerdo, cara/co-

roa, dia/noite, estúpido/inteligente...O primeiro zanni é malandro, con-

duz a ação, atento às possibilidades deiludir e extrair favores, socorre namo-rados tornando possível os encontros,suas trapaças são sempre engenhosas.O segundo zanni é estúpido, imbecil, ir-remediável, sua idiotice é o oposto daesperteza de seu compadre. Os persona-gens foram-se modificando e aperfeiço-ando ao longo de três séculos, sendo-lhesacrescentadas outras características(RUIZ,1987).

O palhaço ou clown é uma combina-ção de trágico e cômico. É a encarnaçãodo trágico na vida cotidiana; é o homemassumindo sua humanidade e sua fraquezae, por isso, cômico. Lembremo-nos dotexto de Freud nomeado de “O Humor”(1927), quando diz ser um dom por sepoder rir da própria condição humana,característica de um superego benevo-lente e que apenas algumas pessoaspossuem.

Continuando com a recuperaçãohistórica de nossos personagens, a in-fluência francesa vai provocar transfor-mações, refinamentos e surge a alma daCommedia dell’arte:Arlequim,Arlecchino.O mais famoso Arlequim da Commedia,Evaristo Gherardi, escreveu em 1700um livro de memórias em que pergun-ta: “O que é o Arlequim?” e responde:“É tudo o que se queira que ele seja”.Como o desejo pulsional que não temnome nem endereço.. Envolve o obje-to e o molda às fantasias.

De um personagem obscuro da pri-mitiva comédia, surge Pierrot. Sua to-lice é delicada e restrita ao terreno doamor, sempre envolto em devaneios esuspiros. Pierrot só se vai firmar quan-do a literatura, principalmente a poe-sia e a pintura, dele se ocupam trans-formando-o no imortal símbolo doamor incompreendido (RUIZ,1987).

Não vou entrar em detalhes histó-

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ricos sobre a construção do triânguloArlequim, Pierrot e Colombina. MasArlequim, tem uma origem interessan-te, segundo pesquisa realizada porAffonso Romano de Sant’anna (2003),que, fazendo um estudo da palavra en-controu Hallequim. Este, por sua vez,é uma deformação de Harila-King – reidos exércitos. Comandava um exérci-to de mortos, invadia aldeias, violen-tava mulheres e humilhava os venci-dos. Vestiam-se de peles selvagens,assemelhavam-se a ursos e não tinhampropriedades pessoais. Apresentavamagressividade sexual e exigências sexu-ais. Segundo Romano de Sant’Anna,há uma comprovação de sua existên-cia que remonta a 1100, sendo oriun-do da Normandia. Se retomarmosFreud, a modificação denuncia a suaorigem, vejamos o texto “O Estranho”(1919). Ambivalências: o sedutor Ar-lequim, antes um violador, em vez deamante um estuprador, em vez de dan-çarino, um guerreiro bárbaro. Arle-quim, o desejo, o erótico. Em sua ori-gem, aviolência, o terrorquea sexualidadeprovoca. Motivo de sintoma, recalque.O bárbaro e assustador da força daspulsões.

Arlequim é o conquistador que nãoperde uma e Pierrot perde todas, por-que espera demais da fidelidade femi-nina (RUIZ,1987). Os italianos esta-vam mais preocupados em aplaudir ahumilhação dos espertos e poderosos,mas, para os franceses, triunfava o amorcontrariado. Desta forma, é o triângu-lo amoroso que será o centro daCommedia dell’arte na França.

Passemos a trechos do poema deMenotti, iniciando com sua epígrafe:

Em qualquer terra que os homensamemEm qualquer tempo onde os homenssonhemNa vida

Menotti já nos denuncia seu cami-nhar, a fantasia que recobre o objetode desejo e de amor, e a expectativa doencontro do objeto idealizado. E queesta é a busca enquanto houver vida:demanda de amor em suas várias for-mas.

O poema trata de uma festa à fan-tasia, quando em momentos distintoscada um de nossos três personagens vaiao jardim descansar. O texto é o relatoda captura de cada um deles pela pai-xão. Arlequim e Pierrot se encontram,passando a relatar a sua experiência deabrupto enamoramento.

Passemos a palavra a Arlequim:Entre a noite e a mulher, eu trêmulohesitava,Se a noite seduzia, a mulher deslum-brava...Vinha do seio dela...um cheiro de mu-lherA volúpia infernal de seus olhos de-vassos....Todo homem enamoradoSe arrepende afinal de não ter tudoousadoNo ardor desse beijo, que é todo umromance de amor!...Toda história de amor só presta se ti-ver no final um beijo de mulher.Assim canta Arlequim sobre seu

desejo para Pierrot. Rouba um beijo!Lembremos a origem de Arlequim, sal-teador!

Pierrot, por sua vez, refere-se aosonho que sua Colombina despertou,ao medo de seus olhos assustadores ecomo ele, Pierrot, prefere a fantasia àconcretização do beijo:

É tão doce sonhar...A vida nesta ter-ra, vale, apenasPelo sonho que encerra..Sua íris ardia verdoenga...com o si-nistro olhar de uma pantera..Pareciam duas bocas de treva... tivemedo..tinha a sensação

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De estar num abismo...Para que bei-jar?Para ver tristonho no tédio do meulábio o vácuo do meu sonho...A história desse olhar é toda a minhahistória...Colombina adentra o poema can-

tando e é desta forma que faz sua apari-ção, sendo ouvida a Voz (é Menottiquem escreve com letra maiúscula).Canta a perda de dois amores um deolhos tristes e outro de beijo ardente.No primeiro momento, é o som queinterrompe o relato de Pierrot, mas elesnão a reconhecem pela audição e nemse vêem na sua cantiga-lamento:

Foi um moço audaz que vejoNo meu sonho claro e doce,O amor que primeiro amei...Abraçou-me, deu-me um beijo,E, depois, lento afastou-se, e nuncamais o encontreiNum ser pálido e doenteResume-se o que consisteO segundo amor que amei.Ele olhou-me tristemente...Eu olhei-o muito triste...E nunca mais o encontrei!Não a reconhecem porque cada um

deles a revestiu de sua própria forma deamar, e deformando-a de tal forma quenão vêem que sua respectiva Colombinaé a mesma mulher.

Em momento posterior, Colombinase aproxima dos dois que, estarrecidos,percebem ser a mesma pessoa e exigemque ela escolha. A paixão é busca decerteza, seu objeto é aquele que podepreencher a falta ou garantir a existên-cia do desejo.

Pierrot: Ai de mim que, tristonho, tra-zia à tua vida a oferta de meu sonho.Pouca coisa porém... Uma alma ar-dente e inquieta arrastando na terraum coração de poeta!Arlequim: E a mim, cujo desejo teabriu o coração com a chave de meu

beijo? A tua alma era como a BelaAdormecida: o meu beijo a acordoupara a glória da vida!Vejam como Arlequim se refere ao

desejo que desperta a alma e o coração!E Pierrot com seu sonho e alma arden-te se posiciona como sendo pouca coi-sa. O poema se encerra com a fala deColombina:

Este olhar deu-me o desejoDaquele beijo encontrarMas nunca, reunidas, vejoa volúpia desse beijoe a tristeza desse olhar!...Pudesse eu reparti-me e encontrar mi-nha calma,dando a Arlequim meu corpo..e aPierrot minh’alma!Quando tenho Arlequim, queroPierrot tristonho,pois um dá-me o prazer e o outro dá-me o sonho!Nesta duplicidade o amor todo se en-cerra:um me fala do céu...outro fala da ter-ra!Eu amo, porque amar é variar, e emverdadetoda a razão do amor está na varie-dade....Penso que morreria o desejo da gentese Arlequim e Pierrot fossem um sersomente.Colombina, sonhada e desejada, diz

de si no final. Oferece-se como objetode adoração. Submete-se ao toque dodesejo e ao olhar do sonho. Colombinaapresenta-se passiva, submetida às pai-xões que desperta e suas falas são reaçõesaos desejantes Arlequim e Pierrot. Freud(1932) nos encaminhou aos poetaspara sabermos da mulher, Del’Picchiaparece ter intuído (?) que a mulher édesejo, desejo de ser objeto de desejode um outro (SOLER, 2005). Antes desua fala final, Colombina faz crer, tan-to a Pierrot quanto a Arlequim, que seu

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desejo é único e total em direção a cadaum... Mas quando os dois surgem jun-tos, ela diz do prazer que a falta de cadaum lhe produz...quando está sonhan-do, deseja o frêmito do corpo e, quan-do seu corpo estremece de volúpia,anseia pela tristeza e poesia do olharde Pierrot. A incompletude de cada umaumenta-lhe a ânsia e diz textualmen-te do tédio se os dois fossem um só:“morreria o desejo da gente”.

Neste ponto, relembremos uma falade Carmem de Bizet, na voz de MariaCallas (1968): “O amor é um pássarorebelde que não se pode aprisionar, éinútil apelar se lhe convém recusar. Oamor é filho da boêmia e jamais, jamaissabe da lei mas se me amares cuide-se”.

Estar apaixonadoéestar açambarcadoporumobjetoecontraasuavontade.Sabe-se quem ama, mas não o que ama nele ounela. A paixão é o sentimento do súbito, aiminência de uma ruptura imediata comtudo que se vive, nada é olhado como an-tes, tudo é revisto.

Freud (1905) diz que o amor advémde uma perversão do olhar e da voz. Aíconstruímos a nossa paixão, enfeitamoso objeto, o idealizamos e nos submete-mos. Fica- se nas mãos do objetoconstruído sobre nossos sonhos, fantasi-as, organização psíquica e história de vida.Esta submissão instala o destino maso-quista das paixões. Assoun (1999) diz quecheirar, ver e tocar é o coktail sensorial,origem animal da relação de objeto.Pierrot e Arlequim correspondem aos doislados da atração que o objeto encerra: afantasia que o recobre, e o desejo dos sen-tidos, que é a denúncia de nosso corpoerógeno. O último é olhado com despre-zo, correspondendo à cisão do paradigmamoderno: corpo/espírito; homem/natu-reza. O corpo supliciado desde sempre,a alma e o espírito tendo mais valor, ahistória da humanidade denuncia oquanto o corpo é objeto de tortura,

penitências, desprezo, experiências,controle. O corpo é matéria, é perecí-vel, mera roupagem para o mais impor-tante: alma, espírito.

O conceito freudiano de pulsão(1915) unifica o ser humano. Aspulsões estabelecem estilos de relaçãodo sujeito consigo e com o mundo deacordo com o circuito pulsional. Apressão exercida pela pulsão sobre amente constitui uma idéia e/ou imagemque vai trazer um certo alívio, já quevai levar a uma ação. A este elementoideacional se junta o afeto. A históriade cada um, suas vivências, como cadasujeito se constitui possibilitará as es-colhas objetais.

Em Fragmentos de um discurso amo-roso, Roland Barthes (1981) afirma:“Encontro pela vida milhões de corpos;desses milhões posso desejar centenas;mas dessas centenas, amo apenas um.O outro pelo qual estou apaixonadome designa a especialidade do meu de-sejo” (1981).

Como se faz esta escolha e como adeformamos?

Pierrot: Mãos mimosas, liriais.Arlequim: Em minúcias te expan-des... Pierrot: Um pé muito pequenoArlequim: Uns olhos muito grandes!Uma mulher igual a que encontrei navida?Pierrot, ofendido: Enganas-te, Arle-quim, nem mesmo parecida.Recebemos percepções de fora,

através dos órgãos dos sentidos e dedentro dos mais profundos extratos doaparelho mental. São mais elementa-res do que as percepções externas. So-mente algo que já foi percepção cons-ciente é capaz de tornar-se consciente,e qualquer coisa proveniente de den-tro que procure tornar-se consciente,deve tentar transformar-se em percep-ção externa mediante traços mnêmicos.Assim, existe a sensação de um reco-

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nhecimento, de um reencontro. O tra-ço mnêmico não corresponde necessa-riamente ao percebido. A ilusão é a re-cuperação de um traço mnêmicodeformado (FREUD,1923). O objetivoprimeiro e imediato do teste da reali-dade é não encontrar na percepção realum objeto que corresponda ao repre-sentado, mas reencontrar tal objeto,convencer-se de que ele está ali. A re-produção de uma percepção não é fiel,pode ser modificada por omissões oualterada pela fusão de vários elementos(FREUD, 1925).

Diz Pierrot: “Tinha a fascinação sa-tânica, envolvente, que tem por umbatráquio o olhar duma serpente, e fi-quei, mudo e só, deslumbrado e tristonho,sentindo que era real o que eu julgavaum sonho!”

Amor, desejo, paixão ensejam mui-tas outras possibilidades de análise, assimcomo Arlequim, Pierrot e Colombina,mas, a festa está chegando ao fim; as más-caras estão tortas e as fantasias amassa-das:

Decidir quando é mais oportuno do-minar as próprias paixões é curvar-seà realidade ou ao contrário, aceitá-las e preparar-se para defendê-las con-tra o mundo externo e isto constitui oalfa e o ômega da experiência davida.(FREUD,1926-1927).

Menotti de’Picchia’s masks: Arlequim,the desire- Colombina, the woman -Pierrot, the dream

Key-words: desire; the choice of theobject; erotism; platonic love; Arlequim;Pierrot; Colombina.

AbstractThis article takes back a link made throughthe symbols between Literature andPsychoanalisis. It uses the poem “Máscaras”(1920) by Paulo Menotti del Picchia, oneof the founders of the Modern Art Weekin 1922. The authoress goes throughCommédia dell’art characters: Pierrot,Arlequim, Colombina, relating them to thewoman, the choice of the object, desire,erotism and platonic love.

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Recebido em 02/02/2008.

Endereço para correspondência:

Rua Padre Nóbrega, 35/201 - Paineiras36016-140 - Juiz de Fora - MGE-mail: [email protected]