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JOSEPH R. STRAYER As Origens Medievais do Estado Moderno Tradução de CARLOS DA VEIGA FERREIRA grodivok

As Origens Medievais do Estado Moderno · o destino pode reservar a um ser humano é reduzi-lo à condição de apátrida. ... baseoa O estudo das origens do moderno estado europeu

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JOSEPH R. STRAYER

As Origens Medievais do Estado Moderno

Tradução deCARLOS DA VEIGA FERREIRA

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Actualmente aceitamos o estado como um dado adquirido e fora de questão. Queixamo-nos das suas exigências, lamen­tamos o facto de ele se imiscuir cada vez mais em assuntos que costumávamos considerar privados, mas dificilmente concebe­mos a vida sem a sua existência. No mundo de hoje, o pior que o destino pode reservar a um ser humano é reduzi-lo à condição de apátrida. As antigas formas de identificação social já não são de todo em todo necessárias. Um homem pode levar uma vida razoavelmente satisfatória sem família, sem um local fixo de residência, sem confissão religiosa; sem o estado, porém, não é nada. Carece de direitos e de segurança e as suas oportunida­des de desenvolver uma actividade útil são escassas. Não há salvação na Terra fora do quadro de um estado organizado.

Nem sempre foi assim. Épocas houve, não muito remotas, de acordo com o conceito de medição do tempo partilhado pelos historiadores, em que o estado não existia e em que nin­guém se preocupava com isso. Nesses tempos era o homem sem família ou sem senhoi; sem vinculaçâo a uma comunidade local ou a um grupo religioso dominante, que não tinha segurança nem oportunidades, que só podia sobreviver covertendo-se em servo ou escravo. Os valores desse tipo de sociedade eram dife­rentes dos nossos; os supremos sacrifícios da propriedade e da vida faziam-se pela família, pelo senhor, pela comunidade ou pela religião, e não pelo estado. A capacidade de organização dessas sociedades era menor que a nossa; era difícil conseguir

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que um número considerável de pessoas trabalhasse em con­junto durante algum tempo. Havia um forte sentimento da existência de obrigações recíprocas entre os que se conheciam pessoalmente» mas a distância rapidamente fazia desaparecer esse sentimento. 0 carácter imperfeito e limitado no espaço desses tipos de organização traduzia-se na incapacidade da sociedade para extrair o melhor proveito dos seus recursos humanos e naturais, no baixo nível de vida e no facto de os indivíduos capazes se verem impossibilitados de desenvolver plenamente as suas potencialidades. O desenvolvimento do estado moderno» por outro lado, tornou possível uma tal con­centração da utilização dos recursos humanos que nenhum outro tipo de organização social pode evitar ser relegado para um papel secundário. Pagamos um preço — um preço por vezes perigosamente a lto— por essa concentração de poder. Teo­ricamente, é possível conservar os benefícios de tão complexa organização, limitando simultaneamente o papel que cabe ao estado no enquadramento da mesma; na prática, porém, nunca ninguém conseguiu realizar essa façanha. Só os povos mais re­motos e primitivos podem prescindir do estado. No entanto, logo que o mundo moderno entra em contacto com uma dessas áreas remotas, o$ seus habitantes vêem-se forçados a constituir um estado ou a acolherem-se à sombra de algum outro já existente.

Uma vez Çue não podemos escapar ao estado, tem uma certa importância procurarmos compreendê-lo. Uma das for­mas de o compreender consiste em estudar a sua história: ver como e quando surgiu esta forma de organização, quais as neccessidades que veio satisfazer, quais os princípios em que se baseoa O estudo das origens do moderno estado europeu pode fazer alguma luz sobre as características e os problemas do estado actual e será, com certeza, particularmente útil para es­clarecer as diferenças entre diversos tipos de estado e explicar as razões pelas quais o tipo de organização de alguns desses es­tados é mais equilibrado e eficaz do que o de outros.

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Deveríamos talvez começar por uma definição de estado, mas a maioria das tentativas feitas nesse sentido revelou-se pouco satisfatória. Um estado existe sobretudo no coração e no espírito do seu povo; se este não acreditar na existência do estado, nenhum exercício de lógica lhe poderá dar a vida. Tem havido alguns estados, e florescentes, que não satisfazem ne­nhum dos critérios estabelecidos pelos especialistas das ciências políticas; é o caso, por exemplo, dos Países Baixos no século XVII. Assim, em lugar de nos preocuparmos com definições, vamos procurar identificar alguns dos sinais que revelam o nascimento de um estado. Tais sinais serão particularmente úteis para o nosso trabalho, uma vez que estão relacionados com as origens dos estados, e não com a sua forma definitiva.

O primeiro desses sinais é fácil de reconhecer devido às suas características puramente externas. É necessária uma certa permanência no espaço e no tempo para que uma comunidade humana sc transforme num estado. Um grupo de pessoas só pode desenvolver os modelos de organização essenciais para a construção de um estado se viver e trabalhar em conjunto, numa dada região, ao longo de muitas gerações. As coligações temporárias de grupos unidos por alguns interesses comuns não costumam ser núcleos de estados, a menos que a emergência que deu origem a essa união se prolongue durante o tempo necessário, ou se repita com a frequência suficiente, para que a coligação se tome, pouco a pouco, permanente, como acon­teceu, por exemplo, no caso dos Francos. Mesmo os encoptros regulares e as repetidas alianças entre grupos que se reconhe­cem uma origem comum não bastam para constituir um estado; os contactos devem ser contínuos, e não intermitentes. A histó­ria da Grécia antiga é um exemplo destes dois pontos: nem as coligações contra a Pérsia, nem os Jogos Olímpicos foram suficientes para reunir num estado único as cidades gregas. Geograficamente, tem de existir uma zona central no interior da qual o grupo possa construir o seu sistema político, embora uma certa flutuação das fronteiras seja aceitável. Os estados

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requerem instituições permanentes e é difícil estabelecer tais instituições se o território em que devem vigorar se alterar constantemente, ou se a coesão do grupo variar conforme as estações do ano. É por isso que os verdadeiros nômadas não criam estados1; é necessário que uma boa parte desses nôma­das se tome sedentária para que seja possível um grau elevado de organização política. Mesmo os povos não nômadas perdem, em geral, parte da sua coesão política, quando - voluntária ou involuntariamente - abandonam o seu território e têm de reto­mar, a partir do zero, o processo de construção do estado, como o demonstra a história do Oeste americano.

Estabelecida a continuidade no espaço e no tempo, surge o sinal seguinte da possível emergência de um estado: a forma­ção de instituições políticas impessoais relativamente perma­nentes. Os agrupamentos políticos primitivos ou temporários podem funcionar através de relações pessoais não estruturadas, tais como as reuniões de homens preeminentes ou as assem­bleias de vizinhos; mas, mesmo a este nível, estabelecem-se certas formas consuetudinárias de tratar os assuntos de carác­ter geral; haverá processos para resolver disputas internas e para organizar grupos armados em caso de guerra. Contudo, só isso não chega para a comunidade poder perdurar no tempo e manter o seu domínio sobre uma dada área geográfica, para os débeis laços de vizinhança se converterem numa efectiva uni­dade política £ para que seja possível uma utilização mais eficaz dos variados recursos e potencialidades do povo. Terá de haver instituições capazes de sobreviver às alterações da lide­rança e às flutuações do grau de cooperação entre os vários subgrupos, instituições que permitam um certo grau de especia­lização nas questões políticas, aumentando assim a eficiência do processo político, instituições que fortaleçam o sentimento 1

1 Ver Philip C. Salzman. «Political Organization among Nomadic Peoples», in Proceedings o f the American Philosophical Society, ill, 1967, pp. 115-131. c as referências ciladas na sua bibliografia.

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de identidade política do grupo. Quando tais instituições sur­gem, atingiu-se um ponto-chave na constituição do estado.

Por outro lado, o aparecimento de instituições especiali­zadas não conduz inevitavelmente à criação de um estado. As instituições podem desenvolver-se simplesmente, para pro­teger os interesses privados dos ricos e dos poderosos. Um chefe tribal, por exemplo, pode pretender ter uma contabili­dade regular da renda das suas terras e rebanhos, como qual­quer proprietário. Uma contabilidade desse tipo não estabe­lece necessariamente as bases de um Ministério das Finanças. Um grupo de terratenentes aristocráticos, desejando resolver antigas disputas que prejudicam as suas propriedades ou dizi­mam os seus homens, pode ser levado a constituir um sistema de tribunais. Como o demonstra, porém, a história antiga da Islândia, a existência desses tribunais não conduz forçosamente à aceitação da supremacia da lei, nem ao aparecimento de uma autoridade que a faça cumprir. Os tribunais podem ser apenas um instrumento cómodo, susceptível de ser utilizado ou não, conforme as circunstâncias.

No entanto, precisamente porque, na época anterior ao aparecimento do estado, não é possível traçar uma distinção clara entre público e privado, qualquer instituição duradoura pode, com o tempo, vir a tomar-se parte de uma estrutura estatal, ainda que originalmente não tenha sido criada para desempenhar essa função. Assistimos a um processo semelhante om tempos relativamente recentes. A Commonwealth de. Mas- nichusetts e o Império Britânico da índia tiveram origem em instituições estabelecidas por corporações privadas. Actual- mente. um dos cargos públicos mais antigos do mundo é o de xerife (oficial de justiça): os primeiros xerifes, porém, mais não eram do que simples administradores das propriedades dos reis anglo-saxónicos.

Urna objecção de peso à tendência para exagerar a impor­tância das instituições permanentes consiste no facto de essas InxlituiçÔes poderem ser apenas instrumentos puramente exter­

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nos, graças aos quais um governante (ou uma classe governante) domina um povo subjugado. A existência de instituições per­manentes não prova que os indivíduos tenham aceite a sua necessidade, nem que tais instituições tenham dado origem ao clima de opinião que é essencial para a existência do estado. As instituições duradouras provocarão, porém, naturalmente uma modificação gradual das estruturas e podem vir a servir de suporte ao desenvolvimento da ideia de estado. Mesmo as insti­tuições coloniais que não criaram raizes profundas nas popula­ções subjugadas podem ser. e têm sido, utilizadas como esque­leto da estrutura de um novo estado.

Mais importante do que a simples existência de instituições estáveis é o facto de estas irem crescendo em prestígio e auto­ridade. Por exemplo: existem tribunais capazes de tomar decisões definitivas que obriguem todos os habitantes de uma dada região e não possam ser revogadas por nenhuma outra autoridade? Os papas medievais proclamavam o seu poder de «julgar toda a gente e não serem julgados por ninguém»2 ; quando se encontraram certas autoridades seculares em condi­ções de fazer semelhante afirmação? Em termos mais gerais: quando começou a surgir a ideia de soberania? Ê mais difícil provar a existência de uma ideia do que a existência de uma instituição, e a essa dificuldade vem juntar-se o carácter inade­quado do vocabulário político europeu dos primeiros tempos. A soberania existia, de facto, muito antes de se poder descre- 3

3 Esíâ é a doutrina básica do Dictates Pupae de 1075, artigos J8-21. Veja-se a tradução inglesa de Ewart Lewis. Medieval Political Ideas, Nova Ior­que, 19S4. II, p. 381: «[...) that hi$ decision ought to be reviewed by no one, and that he alone can review the decisions of everyone; that he ought to be judged by no one» («que a sua decisão nSo deve ser revista por ninguém e que só ele pode rever as decisões de todos; que ele nio deve ser julgado por nin­guém»]! Inocéncio III utiliza uma fórmula mais concisa: ele é aquele «qui de omnibus judtcat et a nemine judicature Ver K. W. e A. J. Carly, A History o f Mediaeval Political Theory; Edimburgo, 1928, IV, 153.

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vê-la em teoria (1300 e 1550» respectivamente)3. Também é certo que nem sempre os governantes que reivindicavam o que na realidade era o poder soberano foram capazes de impor essa reivindicação. Mas a etapa decisiva foi o reconhecimento da necessidade de uma autoridade suprema, e não a existên­cia de um «monopólio do poder». A partir do momento em que a maior parte da população politicamente activa passou a admitir que devia haver uma autoridade capaz de tomar deci- sOes de carácter definitivo foi possível, na prática, tolerar muitas violações desse princípio.

Tudo isto nos conduz ao último dos nossos critérios, que é simultaneamente o mais importante e nebuloso: a substitui­ção dos laços de lealdade à família, à comunidade local ou à organização religiosa por idênticos laços, agora em relação ao estado, e a aquisição por parte deste de uma autoridade moral capaz de servir de suporte à sua estrutura organizativa e à sua teórica supremacia legal. No final de todo este processo, os súbditos passam a aceitar a ideia de que os interesses do estado devem prevalecer sobre todos os outros e a considerar que a preservação do estado é o maior dos bens sociais. Porém, essa mudança é, em regra, tão gradual que se tom a difícil documen­tar as suas sucessivas fases; é impossível afirmar que, num deter­minado momento, a lealdade ao estado se tomou dominante. O problema complica-se pelo facto de a lealdade ao estado não ser o mesmo que nacionalismo; na realidade, nalgumas zonas, o

* Sobre este problema ver Gaines Post, Studies in Medieval Legal Thought, 1’tlnceton, 1964, caps. 5,8 e 10, e cspecialmcntc pp. 280-289,301 -309.445-453 c 463-478; E. H. Kantorowicz, TheKing‘s Two fíodies. Princeton. 1957, cap. 5, c»peeialmente pp. 236-258. Convém notar que o Estatuto de Westminstcr I 11275), cap. 17, especifica que, mesmo no País de Gales, onde os mandatos do rei nlo eram válidos, este, como soberano, podia administrar justiça a todos. Em I'rança, mais ou menos na mesma época, Beaumanoir afirma na sua obra Cou- tumei de Heauvaisis, parágrafo 1043, que o rei é o supremo soberano, que pode la/er tantas leis (esfablissemensf quantas lhe pareçam necessárias para o bem minuni e que todos estáo sujeitos á sua justiça.

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nacionalismo opôs-se tenazmente à lealdade aos estados exis­tentes . Mesmo nos países afortunados, em que o nacionalismo veio reforçar a lealdade ao estado, esta já existia anteriormente e suscitava sentimentos muito mais frios. Tais sentimentos eram semelhantes aos que, em regra, andam ligados à ideia de humanitarismo, e, de certa forma, essa lealdade era uma espécie de humanitarismo. O estado vinha proporcionar uma paz e uma segurança maiores e melhores oportunidades de uma vida desafogada do que as frágeis associações de comunidades; por isso, devia ser apoiado.

Para resumir esta primeira parte, diremos que os nossos critérios são os seguintes: o aparecimento de unidades políticas persistentes no tempo e geograficamente estáveis, o desenvol­vimento de instituições permanentes e impessoais, o consenso em relação à necessidade de uma autoridade suprema e a acei­tação da ideia de que esta autoridade deve ser objecto da lealdade básica dos seus súbditos. Vamos agora percorrer o período que medeia entre os anos de 1100 e 1600, em busca de sinais dessas transformações na Europa ocidental. Não porque não existissem estados em épocas anteriores ou no mundo não europeu — a polis grega era, incontestavelmente, um estado, tal como o Império Han, na China, e o Império Romano. Mas o objecto do nosso estudo centra-se nas origens do estado mo4pmo e este não teve origem directa em nenhum desses exemplos primitivos. Os homens que lançaram as bases dos primeiros estados europeus nada sabiam do Extremo Oriente e estavam muito longe, no tempo, da Grécia e de Roma. Embora conhecessem alguma coisa acerca de Roma, graças ao estudo do Direito Romano, e da Grécia, através dos tratados aristotélicos, tiveram de reinventar o estado pelos seus próprios meios e, no final de contas, o tipo de estado que criaram acabou por funcionar melhor do que a maioria dos antigos modelos. No mundo antigo, os estados dividiam-se, de um modo geral, em duas categorias: os impérios grandes, mas deficientemente integrados, e as unidades pequenas, mas com um elevado grau

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de coesão, como as cidades-estado gregas. Qualquer desse tipos de estado tinha os seus pontos fracos. Os impérios eram militar­mente fortes, mas apenas uma pequena parte dos seus habitan­tes podia participar no processo político ou em qualquer outra actividade que transcendesse os imediatos interesses locais. Isso representava um considerável desperdício de recursos humanos e não permitia a existência de um forte sentimento de lealdade ao estado. Para a grande maioria dos súbditos de um império, a preservação do estado não constituía o supremo bem social; cm inúmeros casos, as populações assistiram serenamente à queda dos impérios e ou passaram a fazer parte de unidades políticas de menor dimensão, ou aceitaram, sem protestar, a sua integração num novo império dirigido por uma nova élite. A cidade-estado utilizava muito melhor os seus habitantes do que o império; todos os cidadãos participavam activamente na vida política e nas actividades comunitárias que lhe estavam associadas. O sentimento de lealdade ao estado era forte e atingia, por vezes, a intensidade do moderno nacionalismo. Mos nenhuma cidade-estado resolveu jamais o problema de incorporar novos territórios e novas populações na sua estru­tura, nem conseguiu fazer participar na vida política um nú­mero realmente elevado de pessoas. A cidade-estado ou se converteu no núcleo de um império (como no caso de Roma), iornando-se assim vítima de todos os males do império, ou ie manteve pequena e militarmente fraca, acabando, mais Urde ou mais cedo, por ser vítima de uma conquista.

Os estados europeus surgidos depois de 1100 combinaram, cm certa medida, as virtudes quer dos impérios, quer das cida- doft-estado. Eram suficientemente vastos e poderosos para terem excelentes possibilidades de sobrevivência — alguns deles estão prestes a atingir os 1000 anos, o que é uma idade respei­tável para qualquer organização humana. Simultaneamente, conseguiram integrar ou, pelo menos, envolver no processo político uma boa parte dos seus habitantes e criar nas comuni- iludes locais um certo sentimento de identidade comum. Conse­

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guiram mais dos seus povos, quer no que diz respeito à activi* dade política e social, quer no tocante à lealdade, do que os antigos impérios, sem contudo terem alcançado a participação total que caracterizava uma cidade como Atenas.

A distinção que fizemos atrás entre os grandes e pouco integrados impérios e as pequenas, mas coesas, unidades políti- cas aplica-se perfeitamente ao Médio Oriente, á Asia central e a índia. Já o mesmo não acontece nos casos da China e, mais tarde, do Japão. Mas a capacidade do estado de tipo europeu para alcançar a superioridade económica e política demonstrou ser tão grande que acabou por fazer parecer irrelevantes a expe­riência chinesa e outras experiências não europeias de estado. O modelo europeu tomou-se o modelo da moda. Nenhum estado europeu imitou um modelo não europeu; os estados não europeus, porém, ou adoptarám o modelo europeu para sobreviver, ou então atravessaram uma experiência colonial que neles introduziu importantes elementos do sistema euro­peu. O estado moderno, tal como o conhecemos actualmente, tem sempre por base o modelo surgido na Europa, no período que vai de 1100 a 1600.

Os europeus, como já foi dito, viram-se forçados a reinven­tar o estado à sua própria custa e durante muitos séculos, após a queda do Império Romano do Ocidente, nada fazia pensar que viessem a ter êxito nessa tarefa. A ideia romana de estado não tardou a cair no esquecimento, no turbulento período das invasões e migrações; os próprios dirigentes da Igreja, que pre­servaram muitas das tradições romanas, não foram capazes de transmitir esse conceito com suficiente clareza. Na alta Idade Média, a forma dominante de organização política na Europa ocidental foi o reino germânico, que, nalguns aspectos, repre­sentava a perfeita antítese daquilo que é um estado moderno. Baseava-se num sistema de lealdade a pessoas, e não a conceitos abstractos ou a instituições impessoais. Um reino era cons­tituído por todos aqueles que aceitavam um determinado homem como rei, ou que, nas sociedades mais estáveis, reco-

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nheciam o direito hereditário de uma determinada família a reinar. Esses reinos careciam de continuidade no tempo e de estabilidade geográfica. Alguns deles eram tão efémeros que apenas os conseguimos identificar pelo nome de um soberano» como» por exemplo, o «reino de Samo», que floresceu durante um breve período na Alemanha Oriental4 . Outros, embora tenham durado mais algum tempo, foram-se deslocando geo* graficamente de uma forma fantástica; em poucas gerações, o reino dos Visigodos passou da região do Báltico para a do mar Negro e daí para o golfo da Biscaia. Não é possível encontrar­mos, em tais sociedades, instituições que funcionem de uma forma regular, nem sinais de soberania. O rei existia para resol­ver casos de emergência» e não para dirigir um sistema legal ou administrativo. Falava em nome do seu povo com os deuses, conduzia-o na batalha com outros reis, mas cada comunidade resolvia os seus próprios assuntos internos. A segurança provi­nha da família, da vizinhança e do senhor, não do rei.

O reino franco dos séculos VIU e IX e o reino anglo-saxó- nico dos séculos X e XI atingiram um nível ligeiramente supe­rior. Ambos $e tinham estabelecido numa zona fixa e mantido durante um respeitável período de tempo. Nos dois casos, o rei tinha aceitado a responsabilidade geral de preservar a paz e administrar justiça, criando um sistema uniforme de tribunais locais para este último fim5. No entanto, esses passos rumo à constituição do estado foram prematuros; as estruturas sociais e económicas básicas não conseguiam suportar o peso de insti­tuições políticas minimamente centralizadas. Os interesses e ui lealdades eram, em primeiro lugar, locais e limitados à famí-

4 Acerca de Samo ver J . Peiskcr, in Cambridge MedievalHistory, Cambridge, Inglaterra, 1926,11, pp. 451-452.

* No que respeita a Inglaterra, ver F. M. Stenton, Anglo-Saxon England, Oaíord. 1943, pp. 289-296. 389. 485-495 e 538-539, e J. E. A. Joltffe, OwtJ- Hfulkmal History o f Medieval England, Londres, 1937, pp. 57-74 e 107-127: per» o caso da França ver F. L Ganshoí, Frankah Institutions under Charle-

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magne, Providence. 1968, pp. 71-97.

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lia, à vizinhança, ao condado. Os funcionários do rei — duques, condes (counts) e vassi dominici em território franco, condes (earts) e thegns* em Inglaterra — tinham uma maior tendência para se converter em senhores de comunidades locais autóno- mas do que para se limitar ao papei de agentes da autoridade central. Entre os Francos, os condes e duques, por volta de 900, tinham-se já tornado praticamente independentes, mas a sua própria autoridade viu-se, por seu tumo, desgastada pela acção de viscondes, castelãos e outros senhores de comuni­dades mais pequenas. Esta fragmentação do poder polftico é uma das características do primeiro feudalismo. De facto, o feudalismo aparece, em regra, sempre que o esforço necessá­rio para a preservação de uma unidade relativamente vasta está para além dos recursos económicos e psíquicos da socie­dade. E o primeiro feudalismo só conseguiu reduzir esse esforço recorrendo à simplificação das instituições e à perso­nalização das lealdades; tem de começar por actuar contra a consolidação do estado, ainda que acabe por se transformar num dos seus fundamentos.

A fragmentação do poder processou-se a um ritmo dife­rente e atingiu graus diversos em cada uma das partes do antigo reino franco, mas chegou a um ponto tal que, por volta do ano 1000, seria difícil encontrar qualquer coisa parecida com um estado em todo o continente europeu (com excepção do Impé­rio Bizantino). A Inglaterra, cuja unificação foi posterior à do reino franco, só mais tarde, naturalmente, começou a apresentar sinais de desintegração. Entregue à sua própria sorte, a Ingla­terra do século xii poderia ter acabado por se dividir, como a França do século XI, mas a conquista normanda, ao aniquilar a velha aristrocacia anglo-saxónica, eliminou uma das forças que conduziam à fragmentação. Fizeram-se, e hão-de continuar a

* Thfgn ou rhanc, membro do séguito de um senhor: vassalo do rei ou de um senhor. Este título conservou-se durante muito tempo na Escócia.^V. áoT .)

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fazer-se, especulações sem fim acerca dos efeitos dessa con­quista; mas uma coisa é certa: ao introduzir uma nova classe dirigente de orientação francesa, veio reduzir em grande parte a diferença do ritmo da evolução no continente e na Inglaterra. A partir do ano de 1066, as forças que, no continente, favore­ciam ou, peio contrário, se opunham ao aparecimento do estado passaram a exercer-se com igual eficácia em Inglaterra.

É difícil dizer quais as ideias e os acontecimentos que relançaram o processo de constituição do estado na Europa ocidental nos finais do século XI. É incontestável que a difusão do cristianismo entre os povos germânicos ainda pagãos ou heterodoxos e a melhor organização da Igreja constituíram fac- lores importantes. A Europa ocidental só passou a ser realmente cristã nos finais do século X. Até então, muitos cristãos de nome poucos contactos tinham com a Igreja e um dos grupos germânicos mais fortes - o s Normandos— nem sequer era nominalmente cristão. A Igreja já tinha muitos dos atributos de um estado — instituições duradouras, por exemplo - e es­tava a desenvolver outros - por exemplo, uma teoria da sobe- iania papal6. O facto de os homens da Igreja se encontrarem profundamente envolvidos na política secular e de nenhum governante poder exceder as suas funções sem o seu conselho e upoio demonstra que as teorias políticas e as técnicas adminis- trutivas da Igreja Unham uma influência directa sobre o governo laico. A Igreja ensinava também que os governantes tinham o dever de garantir a paz e a justiça aos seus súbditos7, doutrina que exigia logicamente a criação de novas instituições judiciais e administrativas. Mas o processo foi lento; era mais fácil admi- i nr os instituições da Igreja do que imitá-las, era mais fácil admitir a responsabilidade dos reis pela administração da justiça

• W. I/liman, The Growth o f Papal Government in the Middle Ages, Lon* iltH, 1955, pp. 276-299 «414-437.

’ Kantorowicz, The King's two Bodies, pp. 93-97; Carlyle. History o f tSdltUvl Theory, ll. parte II, caps. 3. 5 e 8.

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do que organizar um sistema judicial. A influência da Igreja, só por si, náo era suficiente para criar estados.

Outro factor de importância quase idêntica foi a gradual estabilização da Europa, o fim de um longo período de migra­ções, invasões e conquistas. Os primeiros reis germânicos tinham acabado com o Império do Ocidente, mas em seguida começaram a destruir-se uns aos outros com a ajuda de novos invasores. Os Francos conquistaram reinos rivais, na Gália e na Germânia, apenas para se encontrarem eles próprios dividi­dos pela guerra civil e debilitados pelos ataques dosNormandos. Os Ostrogodos e os Vândalos foram varridos pelo Império Romano do Oriente e os Visigodos por uma invasão muçul­mana. Os Dinamarqueses acabaram com a maioria dos reinos anglo-saxónicos. Só no século X, o único reino sobrevivente, o de Wessex, estabeleceu a sua hegemonia sobre a maior parte da Inglaterra. Mas, a partir do ano 1000, modificações dessa envergadura tornaram-se raras. Os principais reinos que conse­guiram sobreviver —o de Inglaterra, o dos Francos ocidentais (a futura França) e o dos Francos orientais (o núcleo da Ale­manha— conservaram-se, de uma forma ou de outra, até aos nossos dias. A mesma coisa aconteceu ao nível local; as grandes famílias nobres ganharam raízes em determinadas zonas, dei­xando de vaguear em busca de poder ou de despojos. Já náo era possível um conde da Renânia tomar-se senhor de França, como fizera o antepassado dos Capetos; já náo era possível um chefe viquingue dominar uma província francesa, como fez Rolion na Normandia.

Esta crescente estabilidade política veio dar lugar ao aparecimento de uma das condições essenciais para a consti­tuição do estado, a continuidade no espaço e no tempo. Pelo simples facto de se manterem de pé, alguns reinos e principados começaram a adquirir solidez. Certos povos, ocupando deter­minadas áreas, permaneceram, durante séculos, integrados num mesmo conjunto político. Era de esperar que um reino que existia há várias gerações continuasse a existir; tal reino tinha

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passado a fazer parte do panorama político. E os governantes de reinos e principados que se mantinham no espaço e no tempo t inham oportunidades e incentivos para desenvolver instituições permanentes. Ainda que apenas por interesses próprios e egoís- lus, esses governantes desejavam assegurar a segurança interna e a existência de laços organizados entre as comunidades locais o as suas cortes. Uma segurança maior e formas de controlo mais rígidas viriam incrementar, quase de certeza, os rendimen­tos do soberano, aumentar o seu prestígio e ampliar as suas possibilidades de transmitir o poder e as suas possessões aos seus herdeiros. As ambições dos governantes coincidiam com ai necessidades dos seus súbditos. Numa época de violência, a maioria dos homens desejava, acima de tudo, a paz e a segurança. Verificavam-se pressões a todos os níveis para for­talecer governos débeis, de forma a permitir-lhes cumprir os m us deveres mínimos de defesa, perante os perturbadores, internos e externos, da paz. Assim, em qualquer unidade polí­tica em que houvesse alguma estabilidade e continuidade era natural esperar que se fizessem esforços no sentido de criar Instituições judiciais, para consolidar a segurança interna, e Instituições financeiras capazes de fornecer os rendimentos ne­cessários para a defesa contra inimigos externos.

('uriosamente, este movimento a favor de instituições pidlciais e financeiras mais eficazes foi especialmente forte nalguns dos maiores senhorios feudais. O feudalismo tinha destruído o Império Franco, mas não acabara com todas as Instituições sociopolíticas a ele devidas, e até o mais atrasado dos senhorios feudais constituía uma unidade política mais sofisticada do que uma primitiva tribo germânica. Aqueles <pi* desempenhavam papéis políticos encontravam-se clara- moiite separados do resto da comunidade. A estrutura política eia uma criação artificial — por exemplo, o condado, o cargo de conde, o tribunal condal - e podia ser alterada através de m ios deliberadamente premeditados — por exemplo, a trans- Uiduclo de um tribunal, ou de parte da sua jurisdição, de um

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senhor para outro. O governo era uma coisa distinta dos cos­tumes da comunidade e a consciência dessa diferença foi essencial para a constituição do estado. Para além disso, o feudalismo veio eliminar o esforço que representava preservar unidades políticas inviáveis, criando assim um clima de opinião mais propício à experimentação política. A efectiva unidade do governo feudal adequava-se bastante bem à unidade econô­mica e social que já existia; os súbditos de um mesmo senhor tinham geralmente muita coisa em comum. Em numerosos principados feudais desenvolveu-se um forte sentimento de lealdade em relação ao senhor, coisa que tinha faltado quer no Baixo Império Romano^ quer em muitos dos reinos germânicos. Por fim, o senhor feudal, como outros soberanos, contava com um forte estimulo para tentar melhorar os seus métodos de governo: o desejo de obter maiores rendimentos e maior segu­rança, para si próprio e para os seus herdeiros. Assim, nalgumas zonas, nomeadamente no Norte da França, os senhores feudais mais capazes deram alguns dos primeiros passos para a consti­tuição do estado.

Segundo os critérios modernos, não parece possível afirmar que tenha havido um notável incremento de estabilidade e de segurança no período que se seguiu ao ano 1000. No entanto, em comparação com as condições anteriores, o progresso foi inegável e suficiente para permitir um impressionante ressur­gimento na maior parte da Europa ocidental. A produção agrícola aumentou; o comércio entre zonas distantes aumentou; a população cresceu; os homens passaram a interessar-se mais pela religião e pela política. Nem sempre foi fácil harmonizar todos esses interesses; foi particularmente difícil conciliar o desejo de ter um governo mais forte e melhor com o desejo de reformar a Igreja e de viver de uma forma mais cristã. Um exemplo da primeira época serve-nos para ilustrar este ponto. A Paz de Deus começou a impor-se nas conflituosas regiões da França central, no século x, como uma tentativa feita pela Igreja no sentido de organizar os camponeses e outros não

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combatentes numa espécie de associação de vigilância, com o objectivo de reprimir a violência e as pilhagens praticadas pelos senhores feudais8. Não teve muito sucesso porque os senhores eram, em geral, militarmente superiores aos exércitos, mal (reinados e mal equipados, das associações de paz. Esse projecto foi também encarado com alguma desconfiança pelos leigos, e até pelo clero mais conservador, porque vinha envolver a Igreja em assuntos tão seculares como a guerra e a justiça criminal. Mas, quando a ideia foi abraçada por senhores poderosos, como o duque da Normandia, quando a Igreja acedeu a representar um papel secundário e a limitar-se a sancionar os esforços de um governante laico, a Paz de Deus demonstrou a sua utilidade. Veio dar a duques e condes um pretexto para intervirem em assuntos locais e reprimirem os actos de violência que ameaça- vum a estabilidade política9.

A longo prazo, os homens da Igreja e os leigos chegaram gcrulmente a acordo acerca dos métodos a usar para diminuir a incidência dos actos de violência. Mas, ao longo do século XI, o seu desacordo quanto a uma questão muito mais fundamen­tal as relações entre a autoridade secular e a autoridade reli­giosa foi-se tomando cada vez maior. Ambas tinham estado profundamente interligadas nos séculos anteriores. Os reis eram considerados personagens semi-religiosas e tinham uma pro- lunda influência nos assuntos da Igreja. Designavam os abades, •

• !.. Hubert, Studien zur Rechtsgeschichte der Gottesfrieden und Landes• f>lnlen, Ansbach, 1892. Georges Molinie, L ‘organization Judiciaire, militaire et fltMth i+rr des associations de la paix, Toulouse, 1912; L. C. Mackinney, «The l’a<r|i|« and Public Opinion in the Eleventh Century Peace Movement», in t/H« ulum, v, 1930, pp. 181-206; Haitiunt Hoffman. Gottesfried und Truga fv<, I «lugarda, 1964.

' No que diz respeito à Normandie, ver H. Prentont. «La trêve de Dieu en Nnitnamlie«. in Mémoires de TAcadémie de Caen, n. s. VI, 1931. pp. 1-32; I >vti, «l'interdiction de 1a guerre privée en Normandie», in Travaux de la semaine iThlttoire de droit normand 1927, Caen, 1928, pp. 307-348.

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os bispos e, muitas vezes, os papas; chegavam a intervir (como fez Carlos Magno) em questões de doutrina10 11. Os dirigentes religiosos, por outro lado, desempenhavam um importante papel nos assuntos seculares como conselheiros dos reis, admi­nistradores e soberanos dos principados eclesiásticos. A nova orientação que surgiu na Igreja no século XI limitou-se de inicio a procurar reformar o clero. Mas, gradualmente, tomou-se evidente que, para reformar o clero, a Igreja precisava de ser mais independente da autoridade secular e que, para conseguir preservar a sua independência, a Igreja tinha de estar centra­lizada sob a égide do papa. Uma Igreja reformada e fortemente centralizada estava destinada a ter uma larga influência nos assuntos seculares. Alguns reformadores pensavam até que a Igreja devería deter a autoridade suprema sobre todas as ques­tões de relação social e política. Se se pretendia que a Europa fosse realmente cristã, era necessário que ela estivesse sob a autoridade dos dirigentes da cristandade11.

Este programa, muito energicamente enunciado pelo papa Gregório VII (1073-85), vinha destruir partes essenciais da anterior estrutura política da Europa. Os soberanos laicos negaram-se a satisfazer as exigências da Igreja e o conflito que daí resultou (a Questão das Investiduras) prolongou-se por quase meio século. Essa luta enfraqueceu consideravelmente a antiga simbiose que existia entre as autoridades religiosas e seculares. Os reis perderam o carácter semieclesiástico que tinham e parte da sua influência sobre a nomeação dos cargos eclesiásticos. A Igreja obteve a liderança, se não o domínio absoluto, da sociedade europeia. A Igreja tinha-se separado

10 Kantorowicz. The King's Two Bodies, cap. 3; J. W. Thompson. Feudal Germany, Chicago, 1928, caps. 1 « 2; E. Amann e A. Dumas, L ’Église au pouvoir des laïques, 888-1057, Paris, 1984, liv. i,cap. 2, liv. il, caps. 2 e 3, liv. ui, cap. 1.

11 Gerd Tellenbach, Church, State and Christian Society at the Investiture Conflict, Oxford, 1940, pp. 147-161; UUmann, Growth o f Papal Government, pp. 272*299; A. Fliche, La réforme grégorienne, Paris, 1946, pp. 55-64 e 76-83.

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nitidamente da$ autoridades políticas seculares; totalmente Independente ao mais alto nível, pode assim garantir um con­siderável grau de autonomia nos níveis mais baixos. 0$ refor­madores gregorianos tinham conseguido uma vitória, ainda que parcial12.

Como todas as vitórias, a vitória da Igreja na Questão das Investiduras teve consequências imprevistas. Ao afirmar o seu CMrácter singular, ao separar-se tão claramente dos governos seculares, a Igreja veio aperfeiçoar, inconscientemente, os con­ceitos acerca da natureza da autoridade secular. As definições e os argumentos podiam variar, mas mesmo os mais fervorosos gregorianos tinham de admitir que a Igreja não podia desem­penhar todas as funções políticas e que os soberanos laicos eram necessários, havendo uma esfera de acção que lhes estava lenorvada. Podiam estar submetidos à condução e às repreensões du Igreja, mas não faziam parte da estrutura administrativa da mesma. Estavam à cabeça de outro tipo de organização, para o quiil não se tinha criado ainda um termo que genericamente o Identificasse. Hm resumo, oconceito gregoriano de Igreja quase exigia a invenção do conceito de estado; e exigia-a com tal Intensidade que é extremamente difícil para os modernos auto­res evitarem descrever a Questão das Investiduras como uma luta entre a Igreja e o estado.

Ceder a essa tentação seria errado, mas a reorganização da estrutura política da Europa, durante e após esse conflito, pieparou de facto o caminho para o aparecimento do estado. I'ni ulguma coisa deixou de ser possível levar a sério as aspira- çtv*» do ressuscitado Império Romano do Ocidente a exercer o domínio universal. Quando a Igreja e o Império colaboravam intlmumentc, como aconteceu no tempo de Carlos Magno e 11

11 1'ara além das obras mencionadas na nota 11, ver G. Barraclough. The ttrffim <>f Modem <iermany, Oxford, 1949, pp. 127-155.« N. Cantor, Church, k <*t|*hlp and Imv Investiture in Knghnd, Princeton, 1958, caps. I e S.

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dos vários Otãos da dinastia de Otão-o-Grande, a supremacia imperial podia ser admitida, pelo menos em teoria; mas a Ques­tão das Investiduras debilitou mais o Império do que qualquer outra organização política secular. Outros soberanos consegui* ram resolver as suas disputas com os reformadores de uma forma independente e em melhores termos do que o imperador. A Europa ocidental formava talvez uma unidade religiosa, mas não era claramente uma unidade política. Cada reino ou prin­cipado tinha de ser tratado como uma entidade separada; as bases para a criação de um sistema pluriestatal acabavam de ser lançadas.

Ao mesmo tempo, a Questão das Investiduras veio reforçar uma tendência que já existia antes: a tendência para considerar o senhor laico, antes do mais, o garante e distribuidor da justiça. Os reformadores gregorianos acreditavam que à Igreja competia definir a justiça, mas até eles admitiam que, em condições normais, era dever dos senhores seculares velar para que os seus súbditos tivessem garantido o acesso à justiça. Para os reis era ainda mais importante destacarem essa função. Se já não parti­lhavam a responsabilidade pela condução e pelo governo da Igreja, se tinham deixado de ser «bispos para os assuntos exter­nos», então a única desculpa para a sua existência era a neces­sidade de fazerem respeitar a justiça. Mas, se era seu dever faze­rem respeitar a justiça, então tinham de desenvolver os códigos de leis e~melhorar as instituições judiciais. Estas medidas são, sem dúvida, úteis para a constituição do estado, mas nem sem­pre surgem tão cedo nem têm tanta importância como aconte­ceu na Europa ocidental.

O facto de, logo desde as origens dos estados da Europa ocidental, se atribuir uma tal importância à lei ia ter uma pro­funda influência no seu desenvolvimento futuro. O estado baseava-se na lei e existia para a fazer cumprir. O soberano estava obrigado moralmente (e, muitas vezes, politicamente) pela lei e o direito europeu não era meramente penal, como em muitas outras regiões; regulava as relações familiares e comer-

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ciais e a posse e o uso da propriedade. Em nenhum outro sis­tema político a lei era tão importante; em nenhuma outra sociedade os juristas iriam desempenhar um papel tão funda­mental. Os estados europeus nem sempre conseguiam atingir o seu ideal, que consistia em serem basicamente estados de direito, mos o facto de possuírem tal ideal representou um importante factor para conseguirem a lealdade e o apoio dos seus súbditos.

Talvez o mais tardio dos estímulos que conduziram ao aparecimento do estado europeu tenha sido o rápido aumento do número de homens instruídos durante o século x n 13. f, difícil criar instituições impessoais permanentes sem se poder dispor de arquivos escritos e de documentos oficiais. De facto, o documento escrito constitui a melhor garantia de perdura- hilidade e o melhor isolador entre um administrador e as pres­sões pessoais; é precisamente por isso que os cidadãos que pre­tendem fazer inclinar a lei a seu favor se escudam sempre num documento escrito quando se dirigem à pessoa que vai aplicar ouu lei. Nos princípios do século Xll, o número de homens capazes de manter arquivos e elaborar documentos era muito reduzido e, por isso, o desenvolvimento das instituições era lamhém limitado. Porém, o ressurgimento europeu ficou a dever-se, em parte, a um espantoso incremento do desejo de aprender. Milhares de jovens afluíram às escolas e, depois de formados, entraram ao serviço de funcionários eclesiásticos «oculares. No final do século XII, a falta de escriturários e contabilistas estava praticamente superada; cem anos mais farde já havia provavelmente excedentes de pessoal capaz de loidlzar esse tipo de tarefas.

liá um tipo de educação que merece uma menção especial: o oiludo do Direito. A maior parte dos jovens limitava-se a 11

11 (' II. Haskins. Renaissance o f the Twelth Century, Cambridge, Mass.,I W M i, Paré, A. Brunet e P. Tremblay, renaissance du XU* siècle, Paris, I'M I, I) Knowles, The Evolution o f Medieval Thought, Londres, 1962, pp.I I 17I.K W. Southern, The Making o f the Middle Ages, cap. 4.

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estudar Artes, em que a maior ênfase era dada ao uso correcto da linguagem e da lógica. Daqueles que prosseguiam os estudos e frequentavam cursos superiores, a maior parte matriculava-se nas escolas dc Leis. Aprendiam Direito Canónico, Direito Romano (segundo o Corpus luris GVtto, de Justiniano), ou ambos. Os professores dessas escolas eram famosos em toda a Europa e os seus alunos atingiam posições elevadas, especial­mente na Igreja. No entanto, a influência do estudo académico do Direito não deve ser exagerada. As primeiras instituições de carácter estatal já existiam antes de as escolas de Leis terem começado a funcionar e o direito romano era de fraca utilidade imediata na maioria da Europa a norte dos Alpes. A Inglaterra, a Alemanha e o Norte da França regiam-se pelo direito consue- tudinário, que não se ensinava nas escolas; os especialistas nesse tipo de direito, com poucos ou nenhuns conhecimentos de direito romano, conseguiam resultados notáveis. A importância do estudo do Direito Romano radicava no facto de esse estudo fornecer um conjunto de categorias, em que era possível inte­grar as novas ideias e vocabulário para as definir. Assim, a dis­tinção feita pelos Romanos entre lei civil e lei penal foi muito útil para os juízes ingleses, que então estavam a tentar reduzir a escrito o rápido desenvolvimento do direito consuetudinário do seu país14 15. A ideia de bem comum e o dever que o soberano tinha de velar por esse bem serviram para justificar inovações como a tributação universal1 s . Os Romanos nSo tinham uma palavra que fosse exactamente equivalente a «estado», mas os termos res publica, ou «coisa pública», aproximavam-se-lhe bastante e formavam um núcleo em redor do qual a ideia de

14 OMnvÜlDcLegibusetCoruuetudinesRegniAngliae.eá.dtG. E.Wood- bine, New Haven, 1932; neste obra, escrita em 1167. Glanvill inicia a sua sólida argumentação com esta afirmação: «Placitorum aliud criminale aliud civile»(p.42).

15 Pott, Studies, pp. 2S8-290.

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estado podia cristalizar. Porém, nada disso teria passado de uma mera abstracção se na Europa ocidental não se tivesse Iniciado já o processo de criação de instituições legais. Foi devido ao facto de já possuírem normas de direito civil, impôs* tos e até uma vaga ideia de estado que os Europeus do século XIII puderam utilizar e entender conceitos romanos paralelos, cuja existência contribuiu, por certo, para aperfeiçoar as defi­nições e clarificar o pensamento de juízes e administradores. A prática de as discussões de teoria política utilizarem frequen­temente termos de direito romano veio reforçar a tendência, que já existia antes, para utilizar o direito como base e justifi­cação da criação dos estados. Mas, se é verdade que o renascer do direito romano facilitou e acelerou, talvez, o processo de constituição do estado, esse renascimento não constitui decerto a sua causa primeira, nem representou provavelmente uma con­dição necessária para esse processo.

Estas considerações acerca da influência do direito romano alasluram-nos do nosso ponto de partida. Voltemos aos come­ços do século XII e passemos a analisar as estruturas políticas que então surgiram. Podemos começar por uma importante generalização: as primeiras instituições permanentes que exis- Iham na Europa ocidental ocupavam-se de assuntos internos, e nlo de questões internacionais. Os Supremos Tribunais de Imtlça e os Departamentos do Tesouro surgiram muito antes dm Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa. A prio­ridade concedida às instituições de carácter interno foi, em iimllos sentidos, benéfica. Essa prioridade era a que correspon­dia melhor aos ideais seculares dominantes da justiça e império da lei, fáceis de aplicar aos problemas internos, mas que só mm muita dificuldade se podiam aplicar às questões externas. A cnnirituição de um sistema de tribunais eficaz trazia vanta­gem evidentes para todos; tomava-se, porém, mais difícil deimmitrar os benefícios provenientes da existência de um Mérclto regular. Finalmente, permitindo que os funcionários mui» competentes e inteligentes se especializassem, na sua

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maioria, em assuntos internos, conseguia-se reduzir a pressão sobre os escassos recursos humanos. A título de comparação, basta pensarmos na inquietante situação dos estados contem­porâneos recentemente criados, que se véem forçados a empre­gar os seus quadros mais capazes na diplomacia ou no exército.

As razões pelas quais se concedeu prioridade aos assuntos internos são óbvias. A fragmentação da Europa e a debilidade das unidades políticas que as constituíam não permitiam qual­quer acção continuada, ou a longo prazo, em matéria de assun­tos externos. Nenhum soberano era capaz de levantar um exército de mais de alguns milhares de homens, nem de manter esse exército para além de uns meses. A existência de exércitos regulares, ou de um corpo permanente de oficiais, era impen­sável. Na sua maioria, os soberanos preocupavam-se apenas com as relações com os seus vizinhos mais próximos. A Ingla­terra tinha muito pouco a ver com Aragão, tal como a França com a Suécia. Mesmo entre vizinhos, havia uma tendência maior para resolver conflitos através de incursões armadas e de acções de represálias do que pela via diplomática; as tréguas e as pazes eram estabelecidas por acordos adhoc. Numa Europa sem estados nem fronteiras, o conceito de «negócios estrangei­ros» não tinha qualquer significado e, portanto, não havia necessidade de uma máquina burocrática para tratar dessas questões.»

Pelo contrário, precisamente pelo facto de o sistema polí­tico europeu ser tão fraco e fragmentário, os soberanos que pretendiam preservar a sua posição e transmiti-la aos filhos tinham de fazer algum esforço no sentido de constituir unida­des políticas coerentes a partir das terras dispersas e dos direi­tos de governo que possuíam. Isso implicava, primeiro e antes de mais nada, o aperfeiçoamento da arte de governarem os seus domínios. Uma vez que a tributação universal era praticamente desconhecida, os rendimentos dos reis e dos príncipes provi­nham, na quase totalidade, das suas terras, dos direitos de por­tagem e de mercado e da parte que lhes cabia das multas apli­

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cadas por determinados tribunais por certos delitos16. Porém, visto que as terras que possuíam nunca eram contíguas e os proventos dos direitos de portagem e de justiça tinham de ser partilhados com membros da aristocracia, os reis sentiam grande dificuldade em conhecer com exactidão o montante dos seus rendimentos e, quando o conheciam, enfrentavam dificuldades quase idênticas para cobrar esses rendimentos. Oi primeiros funcionários permanentes foram o$ administra­dores das terras senhoriais: os reeves e shire-reeves (sheriffs), em Inglaterra, os prévôts, em França, os ministeriais, na Alemanha. Esses funcionários centralizavam as rendas dispersas dos seus territórios e colocavam-nas à disposição dos seus ■mos. Para isso tinham de registar de alguma forma essas operações e submeter-se a um sistema qualquer de controlo contabilístico. Esta evolução foi muito mais rápida em Ingla­terra do que em qualquer outro sítio, mas, na maioria dos países, as instituições financeiras centrais tiveram origem no trabalho desses administradores.

Os proventos da justiça constituíam uma parte apreciável Oi» rendimentos locais (uma vez que a pena aplicada à maioria dos delitos consistia numa multa) e fazia parte das atribuições doa ■ gentes locais do governo presidir aos tribunais que geravam Ula rendimentos. Este sistema revelou-se satisfatório, enquanto ni tribunais se limitavam a julgar fundamentalmente conflitos ■iitie camponeses, e as multas impostas eram fixas e represen-

IA Mcinio no século xii, muna época em que já se Unha iniciado o processo d» t oMtiliuiçSo do estado, e até nas unidades políticas mais avançadas, como a lu|Uliua, a Normandie e a Flandres, os rendimentos eram, na sua maioria, desse Mt"' Vei, para o que diz respeito aos rendimentos reais na Inglaterra em 1130: h I yon e A. E. Verhulst, Medieval Finances, Providence, 1967; L. Deliste. ►Mm levem» publics en Normandie au XIIe et XIIIe siècles», in Bibliothèque th lb \o le des Chartes, X, XI, XII (1848-1849, 1852); Magnum rotulum. SI Hanrv /, e«l por S. Hun ter, Londres. 1833. A França encontra va-se ainda nessa •Unavln em 1202; ver F. Lot e R. Fawtier, Le premier budget de h monarchie /hptttm* Le compte général de !202'12QS, Paris. 1932.

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tavam, em geral, quantias pequenas. A relação entre a adminis­tração da justiça e a colecta dos rendimentos foi muito estreita durante toda a Idade Média e, mesmo quando surgiram grupos de juizes especializados, esses juizes foram muitas vezes utiliza­dos como cobradores de rendas17, e os antigos funcionários que se dedicavam a essa tarefa (sheriffs, prévôts e similares) continuaram a julgar pequenos delitos. No entanto, os sobera­nos começaram gradualmente a perceber que a justiça não era só uma fonte de rendimentos, era também uma forma de afir­mar a autoridade e de aumentar o poder do rei e dos grandes senhores. Por conseguinte, os soberanos mais capazes trataram de alargar a competência dos seus tribunais.

Vários recursos podiam ser utilizados para ampliar a juris­dição de um tribunal. O julgamento de crimes graves, como o assassinato, podia ser reservado para o tribunal do rei ( ou de um duque, ou de um conde). A reserva do julgamento desses casos — chamados casos da coroa (pleas o f the crown) ou casos da espada (pleas o f the sword) - permitia ao soberano intervir em territórios nos quais não possuía terras, nem direitos locais de justiçau . Em casos de direito civil era possível instituir processos especiais que permitissem às partes em litígio ultra­passar o tribunal do senhor local e apresentar-se directamente perante um tribunal real (ou ducal, ou condal). Tais processos baseavam-sev em geral, em duas ideias que andavam ligadas: manter a paz e proteger a propriedade. Uma vez que as altera­ções da propriedade, sem o devido processo legal, provocavam geralmente desordem, a instância superior podia intervir,

,T W. Stubbs. Select Charters, Oxford, 192!, pp. 251 -257. Os juízes itinerantes ingleses tinham por funçSo ouvir todas as causas e também inquirir acerca de heranças que devessem reverter para o tesouro, tutelas e demais direi* tos reais, e cobrar impostos nas cidades do rei.

'* Glanvill, De Legibtts, p. 42, caps. I e 2; Le très ancien coutumier Je Normandie, texte Latin, ed. por E. J. Tardif. RuSo, 1881. p. 43, cap. $3: «(...] de placitis ensis ad Duccm pertinentibus»; E. Perrot. Les cas royaux, Paris, 1910.

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emitindo uma ordem judicial, para manter ou restabelecer o statu quo 19. Teoricamente, os tribunais inferiores (dos barbes) conservavam a sua jurisdição; na prática, era uma decisão do tribunal superior que geralmente resolvia o caso. Assim, os vassalos de nível mais baixo podiam ser protegidos do seu suse- rano imediato pelo rei, pelo duque ou pelo conde e a sua leal­dade acabava por ir para o homem que os protegia. Finalmente, era dever de um rei velar por que se fizesse justiça em todo o «eu reino. Se um tribunal inferior tomava uma decisão injusta, a única forma de remediar a injustiça era a possibilidade de interpor recurso para o tribunal do suserano. Um senhor cujas decisOes podiam ser revogadas era um senhor que tinha perdido uma boa parte da sua autoridade 20.

Todos estes processos foram utilizados, em maior ou menor grau, pelos homens que edificaram estados nos séculos Xll e XIII. A intervenção directa do rei foi mais frequente em Inglaterra do que em França; os recursos das decisOes dos tri- luinuls menores para o tribunal do rei foram porém muito mais comuns em França do que na Inglaterra. Mas, em maior mi menor grau, a supremacia teórica do rei foi-se impondo, »mi todos os países, década após década e a distinção entre imisdição directa de soberano e a dos bardes foi-se atenuando, ijiiando este processo atingiu a sua conclusão natural, a geo- **

** Irata-se di protecção da posse, conceito fundamental do direito consue- tiollnlrio Inglês; ver F. Pollock e F. W. Maitland, History o f English Law, Cam­bridge. Inglaterra, 1923, i, pp. 145-149. Esse conceito era também importante • im I «uv«, ver L Buisson, König Ludwig IX. der Heilige. und das Recht. Fri- Ihiiih. 1954. pp. 10-19 e 99-118.

'* O direito de apelar para uma instância superior foi especialmente impor- teu«« no processo de desenvolvimento doestado francês; ver F. Lot e R. Fawtier, Hlti' •ftt »1rs institutions françaises au Moyen Age, vol. U. Institutions Royales, hlm, 19'K. pp 296-323. Um jurista do século xill, Philippe de Beaumanoir, Mial’Sleveu ciaramente esse principio na obra Coutumes de Beauvaisis, ed. por h XilimiM, Paris, 1899, parágrafo nP 1043; «Et si n’i a nul si grant dessous li Iti i*i I <|iil ne puise estre très en sa court pour defaute de droit ou pour faus jugement et pour tous les cas qui touchent le roi.»

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grafia política de um reino (ou de um principado) tinha sofrido drásticas alterações. As ilhas dispersas de poder político, cada uma delas praticamente isolada das outras, tinham sido suplan­tadas pelo aparecimento de um sóiido bloco territorial em que um soberano único detinha a autoridade suprema. Chegar a esse resultado levou séculos, mas os primeiros passos para a edificação de um sistema judicial contribuíram imenso para melhorar a posição daqueles que estavam à frente dos estados em formação. Os senhores que pretendiam conquistar a inde­pendência só podiam alcançá-la através do aumento dos seus recursos militares e económicos, e esse aumento só podia, em geral, ser conseguido graças à utilização da violência contra os seus vizinhos e a exigências sem precedentes feitas aos seus subordinados. Existindo um tribunal superior com condições para evitar as guerras locais, impondo soluções pacíficas aos conflitos, e para impedir que um senhor explorasse indevida­mente os seus súbditos, então o estabelecimento de um novo principado autónomo tornar-se-ia mais difícil.

Em geral, a opinião pública era favorável ao estabeleci­mento de tribunais com uma efectiva autoridade. Como já vimos, a Igreja insistia em que a justiça era o atributo essencial dos soberanos seculares. No acto da sua coroação, os reis jura­vam fazer justiça e os teóricos políticos sustentavam que um rei injusto não era um rei, mas um tirano31. Os reis estavam perfeitamente dispostos a aceitar a ideia de que a justiça era importantíssima, já que esta representava um sinal da sua autoridade e uma arma graças à qual podiam alcançar a supre­macia nos seus reinos. Para o povo, e mesmo para muitos mem-

Jl Carlyle, History o f Political Theory. II. pp. 125-140. Sobre os juramen-tos proferidos no acto da coroa çío ver os artigos de P. E. Schramm, que m encontram reunidos, com o título Kaiser, Könige und Päpste. O vol. II (Estu- garda, 1968X PP- 99-257, contém os seus estudos sobre as cerimónias de coroaçSo até aos princípios do século X; o volume III (Estugarda. I969X pp 33-131.181* 189 e 390-394, inclui alguns outros.

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hros da baixa nobreza, a justiça significava uma protecção contra a violência e a possibilidade de perderem as suas terras. Por isso, os soberanos que se esforçavam por criar tribunais i|ue funcionassem com regularidade tinham a certeza de receber uma aprovação quase universal. Os mais belicosos barões não podiam opor-se à existência dos tribunais, ainda que só acatas­sem as suas decisões com uma certa lentidão.

Por todas essas razões, as instituições judiciais permanentes deicnvolveram-se quase tão cedo como as instituições financei- mi permanentes. As instituições eram um pouco mais especia­lizadas do que o seu pessoal. O mesmo homem podia ser simultaneamente juiz e cobrador de rendas; porém, quando acltiava como juiz, utilizava determinados procedimentos e formalidades que não era obrigado a respeitar quando recebia m rendas. E, à medida que o tempo foi passando, as leis aplica­das nos tribunais foram-se tornando mais precisas, mais com­plexos e mais difíceis de interpretar sem uma preparação m |« dfíca. Por volta de 1200 foram escritos os primeiros tra­tados sobre o direito consuetudinário da Inglaterra e da Nor- unindlQ33; a partir de 1250, os juízes começaram a basear-se hm pirispnidência para tomar as suas decisões 33. A competên-

tramitação dos processos nos tribunais foram-se defi­nindo com maior precisão, graças a sucessivas gerações de *«|teclalistas em leis. Por volta de 1300 já havia homens que dedicavam quase todo o seu tempo ao direito; os juízes dos iillninals centrais ingleses, no tempo de Eduardo I, conheciam Mo Item o Direito Consuetudinário inglês como um professor da llolonha conhecia o Direito Romano. Os dois pilares em

M (»lanvtll em Inglaterra; ver nota 14. O autor anónimo de Très ancien nmhtniltr, na Normandia;ver nota 18.

M Hrut ton's Note Book, ed. por F. W. Maitland, 3 vols., Londres, 1887. I um m île uma colecçfo de notas sobre os primeiros casos apreciados por um Iiihmmi |tiir jnglés do século XIII, que escreveu um importante tratado de direito tngle*

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que assentava o estado medieval eram o Tesouro e o Supremo Tribunal; nos finais do século Xlll, ambas as instituições esta­vam já nas mãos de funcionários experientes e com espírito profissional.

Os governos dos séculos xu ou xm não utilizavam todos os seus funcionários exclusivamente na administração de terras, na administração local e na administração da justiça. Tinha de existir também um organismo central que coordenasse o traba­lho dos funcionários encarregados de funções especiais» que distribuísse ordens aos cobradores de rendimentos e juízes e que pudesse tratar directamente com os prelados e os barões» os quais mantinham consideráveis responsabilidades no que respeita quer à manutenção da ordem interna quer è defesa contra as ameaças externas. Esse organismo, a Chancelaria, encarregava-se também de executar todas as tarefas que ainda não tinham sido confiadas a departamentos organizados, como a correspondência com o papa e com os soberanos estrangeiros. O homem que dirigia esse organismo, o chanceler, era, no dizer de Stubbs, ministro de todas as pastas34. Era sempre um clérigo de elevada hierarquia -geralmente um bispo, no século x m -, muitas vezes com experiência anterior de governo, em cargos menos importantes. Mesmo nos casos em que o chanceler não dispunha dessa experiência, os homens que trabalhavam sob as suas ordens eram amanuenses competentes que souberam criar e fhanter processos burocráticos e administrativos regu­lares e fórmulas epistolares precisas e adequadas. Esses funcio­nários das chancelarias desempenharam um papel essencial no desenvolvimento dos estados medievais. A administração central dependia da diligência com que realizavam o seu tra­balho e da precisão com que formulavam as suas ordens e instruções. O século XII assistiu a um notável progresso do nível de qualificação profissional do pessoal da maioria das

84 W. Stubbs. Constitutional History o f England. Oxford, 1891,1, p. 381.

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chancelarias. As frases vagas e genéricas foram substituídas por fórmulas específicas que não pudessem ser mal interpre­tadas. A Chancelaria do papa estava muito mais avançada do (pie as outras e, em certa medida, serviu-lhes de modelo; porém, na época de Henrique ti (1154-89) a chancelaria Inglesa não lhe ficava muito atrás. A França, que manifestava uni certo atraso, neste aspecto, em relação à Inglaterra, come­çava a evidenciar inconfundíveis sinais de melhoria da sua illuação 1S. Pelo século xm, quase todos os governos europeus illipunham de uma chancelaria eficiente.

Assim, nos séculos que decorreram entre 1000 e 1300 começaram a surgir alguns dos elementos essenciais do estado moderno. As entidades políticas, cada uma das quais com o •ou núcleo básico de gentes e de terras, adquiriram legitimidade pelo facto de se manterem ao longo de muitas gerações. Esta- heleceram-se instituições permanentes para os assuntos finan­ceiros e jurídicos. Surgiram grupos de administradores profis­sionais. Tinha nascido um organismo central de coordenação, n choncelaria, com uma equipa de funcionários extremamente «piiiliflcados. Esses administradores profissionais não eram «Inda muito numerosos e, por isso, não podiam ser altamente Mpcclalizados. Tinham de ser auxiliados por funcionários •ventuais ou em tempo parcial - homens que seguiam funda- iiuHilnlmente uma carreira eclesiástica, barões de menor cate­goria, cavaleiros e burgueses ricos. Muitos deles estavam dispostos a trabalhar alguns anos, ou uma parte do ano, como «diulnlstradores de terras, agentes financeiros, administradores Iin (iIb ou juízes. Dessa forma podiam ganhar os favores reais e

*' \ (Jiiy, Manuel de diplomathjue, Paris, 192S, pp. 661-704 e 731 -764, !•«(• o que diz respeito às chancelarias do papa e dm Capetos. No que se refere a Inglaterra ver a «IntroduçSo» de L Delisie à sua obra Recuetí des actes de U»nt* II, Paris. 1916, especialmente pp. 1 e 151. Embora essa obra inclua •|wiiaa actas relacionadas com as possessões francesas de Henrique II, as obser-

referentes i chancelaria aplicam-se igualmette i Inglaterra.

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aumentar os seus rendimentos, ainda que não estivesse nos seus planos ficarem ao serviço do governo toda a vida. Porém, em todo o lado havia homens que consagravam a maior parte da sua existência à profissão de administrador e o seu número aumentou consideravelmente no século Xlll.

Os elementos básicos do estado apareceram, em quase toda a Europa ocidental, durante 0$ séculos XII e Xin, mas o seu nível de desenvolvimento não foi o mesmo em todas as regiões. Esse desenvolvimento foi mais rápido em Inglaterra, na França e nos reinos hispânicos, muito mais lento na Alema- nha e rápido, mas com distorções, na Itália. Os reinos hispáni- cos, ocupados com o seu problema muito especifico da con­quista e assimilação dos territórios mouros, tiveram pouca influencia sobre as instituições uo resto da Europa até finais do século XV. Os Alemães não conseguiram constituir estados vastos e duradouros; a sua unidade política típica foi o princi­pado, em cujas instituições imitaram mais do que inovaram. Na Itália, a brilhante promessa que, no século Xll, constituía o reino da Sicília não conseguiu sobreviver às catástrofes e erros políticos do século Xlll. As organizações políticas que em Itália tiveram mais êxito, a partir de 1300, foram as cidades- -estado; porém, estas não tiveram de enfrentar os mesmos pro­blemas que os grandes reinos e muita da sua experiência não encontrava possibilidade de aplicação a norte dos Alpes. Assim, a Inglaterra^ a França desenvolveram, sem dúvida, os modelos de estado europeu mais influentes; as suas ideias e instituições políticas foram mais largamente imitadas do que as de qualquer outro país europeu. O seu exemplo foi particularmente impor­tante no período crucial de finais do século Xlll e princípios do século Xiv, época em que surgiu o conceito de soberania (se não mesmo a própria palavra), época em que o sentimento de lealdade em relação à Igreja, à comunidade e à família foi definitivamente ultrapassado pelo sentimento de lealdade a um estado que começava a surgir. Por conseguinte, temos todo o interesse em analisar com algum pormenor o processo

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de constituição do estado em Inglaterra e em França, entre 1100 e 1300.

Os soberanos ingleses tiveram menos dificuldades do que i» seus primos franceses para alcançar a soberania interna. A Inglaterra era um reino pequeno, pouco maior do que alguns dos grandes ducados da França ou da Alemanha. Um rei activo podia visitar a maior parte do seu reino com alguma regulari­dade. Para além disso, uma vasta série de conquistas tinha Impedido o aparecimento de senhores fortes ao nível das pro­víncias, ou o desenvolvimento de instituições provinciais piofundamente enraizadas. As invasões dinamarquesas tinham «i abado com todas as antigas dinastias anglo-saxónicas, com «»acepção da Casa de Wessex. A lenta reconquista da Inglaterra i entrai e do Norte, levada a cabo pelos reis da Casa de Wessex, •liminou, por seu turno, as tamílias reinantes dinamarquesas. I «ida região continuava a manter os seus costumes próprios, mm tinha deixado de haver um rei de Kent, de Mercia ou de Itancluw* que, com base nesses diferentes costumes, pudesse tiimitruir instituições duradouras. As instituições existentes aluiu idênticas em todo o país —o tribunal do condado (shire- iourt), o tribunal de cantão (hundred<ourt)y o tribunal do immicípio (borough-court). Os funcionários locais —nobres (iondes) e magistrados (reeves) — representavam mais os inte-

do rei do que o das comunidades locais. E, quando, resultado da segunda conquista dinamarquesa, no século

Ui. algumas grandes famílias começaram a ganhar raízes em <H»ih>R condados, tais famílias acabaram por ser rapidamente 'loMlojadas por Guilherme-o-Conquistador. Embora Guilherme gumedesse extensos poderes aos condes de certos condados fhiiiielriços, esses homens não foram capazes de criar dinastias |Hiivincluis poderosas; de resto, a maioria deles não receberam

♦ 1'aiia da Inglaterra submetida è jurisdição dinamarquesa a partir do Tra- !•«(" Wedmorc (878). ÍN. do T. /

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unidades territoriais compactas, mas apenas feudos e direitos de governo muito dispersos. Á partir de 1100 tomou-se claro que nenhum conde nem nenhum barão dispunham da con­centração de terras ou do poder necessários para criar uma administração provincial autónoma. Se a Inglaterra devia ter instituições permanentes, essas instituições seriam insti­tuições reais.

Também nisso a Inglaterra teve sorte. Devido ao facto de nenhuma zona ter sido monopolizada por nenhuma dinastia provincial, o rei conservava ainda terras e direitos de justiça em todas as partes do reino. Uma vez que as suas terras e direi­tos se encontravam tão dispersos, o rei tinha de ter represen­tantes em toda a parte - xerifes e bailios, alcaides e adminis­tradores florestais. A necessidade de um departamento finan­ceiro central, que permitisse seguir a pista de rendimentos provenientes de centenas de fontes diferentes, tomava-se evidente. Verificar a existência de uma carência e empreender qualquer acção para a resolver são evidentemente duas coisas muito diferentes, mas os últimos reis anglo-saxóntcos tinham já implementado importantes elementos de um sistema de contabilidade central. Guilherme e os seus sucessores desen­volveram muito esse sistema e no principio do século XII surgiu em Inglaterra a Tesouraria do Reino (ExchequerX instituição que desempenhava funções várias, mas que tinha como atri­buição fundamental e mais organizada a responsabilidade de verificar as contas apresentadas pelos funcionários reais de todas as partes do reino. O Exchequer mantinha registos meticulosamente pormenorizados e os seus funcionários pos­suíam um elevado nível profissional. Tomou-se uma institui­ção tão sólida que conseguia funcionar mesmo em períodos de guerra civil. Essa solidez terá sido, provavelmente, um pouco prematura. O Exchequer estava demasiado preso pelas suas próprias regras, que o podiam levar a gastar 10 libras para cobrar uma dívida de 10 pence, mas foi, sem dúvida alguma, uma instituição unificadora e duradoura, cuja acção veio

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alectar, directa ou indirectamente, todos os habitantes do pa íiM.

As mesmas circunstancias históricas contribuem para expli­car o aparecimento de um sistema de tribunais reais que cobria lodo o país. Guilherme n£o só herdou extensos direitos de (uitiça dos seus antecessores anglo-saxónicos, como aumentou Imenso quer os seus problemas, quer os seus poderes, ao con- lucar e redistribuir grande parte das terras do reino. Uma vez que todos os títulos eram outorgados ou confirmados pelo rei, era natural que este e a sua corte fossem chamados a resolver i»« conflitos que se levantavam a propósito da posse da terra e «fm direitos que lhe estavam ligados. «Corte» é evidentemente um termo ambíguo. Originalmente designava apenas o con­junto dos homens de elevada posição — bispos, barões e fun­cionários da casa re a l- que faziam parte do séquito do rei. Mus, já no século XI, alguns desses homens, pela sua competên- Ha, eram chamados, com maior frequência do que outros, a laiolver questões legais e, no século xn, um grupo de juízes isnIr fez a sua aparição. O tribunal do soberano inglês era um tilhunal muito ocupado -m u ito mais do que a maioria dos iillmnais idênticos seus contemporâneos— e, por isso, come- si ui a fixar regras e normas processuais para tratar dos casos mniR frequentes. Essas normas tornaram o tribunal bastante mitii eficiente e popular. Por volta de 1215, a opinião dos barões ingleses era favorável à existência de um tribunal cen- iml e permanente, o qual consideravam necessário ao bom governo da Inglaterra37.

O tribunal central, porém, destinava-se, de início, a jul­gai apenas os grandes senhores e os casos mais importantes.

u A ccrca d o E x chequer ver R . L . P oo le , The Exchequer in the Twelfth • eutury, O x fo rd , 1 9 1 2 ; C. Jo h n so n , Dialogus de Scaccario: The Count o f the i %*htyuer, L ondres, 1 9 5 0 ; L yon e V erh u ls t, A fa //e ra /Finance, pp . 5 7 -7 1 .

” Magna C arta , artigo 17: « [...] com m unia p lac ita n o n seq u an tu r curiam » m ltam aed ten ea n tu r in a liq u o lo co ce rto .a

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Não podia resolver todas as questões relacionadas com a posse de terras e ainda menos encarregar-se dos casos de crime — as­sassinato, fogo posto, violação, ro u b o -, que, em quase todo o país, eram da exclusiva competência do tribunal do rei. No entanto, a justiça era uma fonte de rendimentos e constituía um sinal de poder; por isso, convinha ao rei que o seu tribunal ouvisse o maior número de casos possível. A solução desse problema consistia em enviar juízes - delegados do tribunal centra] - munidos de processos de actuação novos e eficazes. Esses juízes podiam aliviar os xerifes que estivessem sobre­carregados de trabalho de grande parte das suas obrigações judiciais, podendo encarregar-se também das causas que não fossem da competência dos tribunais dos barões feudais. Estes tribunais eram débeis e ineficazes; em geral, procuravam chegar a uma solução de compromisso e raramente conseguiam reme­diar com rapidez os casos de espoliação. Os juízes do rei não competiam exactamente com os tribunais dos barões; em geral, tomavam a seu cargo áreas em que estes não actuavam. As novas normas processuais dos tribunais do rei visavam encurtar os prazos e tomar decisões, rápidas e facilmente aplicáveis, em casos difíceis. Tratava-se de uma tentativa deliberada de reduzir problemas complexos a perguntas simples, que pudessem ser respondidas por homens que tinham um escasso conhecimento da lei ou de acontecimentos remotos. Assim, em casos que envolviam*a posse de terras, a pergunta mais frequente era: «Quem foi o seu último ocupante pacífico?», e não: «Quem possui o melhor título de propriedade?» Essa pergunta era res­pondida por um grupo de vizinhos escolhidos entre as pessoas respeitadoras da lei do distrito em que estivesse situada a pro­priedade. Davam uma resposta colectiva com base nos seus próprios conhecimentos e observações; não havia necessidade de testemunhas e as oportunidades para polémicas legais eram escassas. Este sistema rapidamente conduziu aos julgamentos feitos por um júri; as questões postas ao júri tornaram-se mais variadas e complexas, até que, por fim, quase todos os litígios

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iHacionados com a terra ou com os direitos a ela ligados pauaram a ser resolvidos pelo veredicto de um júri.

Os júris eram também utilizados para reunir as acusações de crime. As gentes da vizinhança davam conhecimento dos i limes às autoridades, através do seu júri de acusação (grand fttrv); os implicados eram presos e julgados pelos juízes da cir- riimtcriçáo. Os funcionários reais manifestavam maiores reti- i ('nelas em aceitar o veredicto de um júri em casos de crime do i|tie em questões de direito civil, o que era perfeitamente Miilural, já que um erro acerca da propriedade de uma terra |Muliu sempre ser remediado, o que não acontecia com uma ■ ondenação à morte. No entanto, a partir de meados do século H ui, a maior parte dos casos de crime eram abertos com uma anuação formulada por um grand jury e concluídos com um iHlgtimento levado a cabo por um júri.

A existência de júris compostos por jurados tomou possí­vel que os juízes ouvissem vários casos no mesmo dia. Como lamncnte havia mais de vinte juízes, essa era a única forma de milmitar o aumento contínuo do trabalho dos tribunais. Além iIImo, os jurados contribuíam para tomar popular a justiça do hm Dudas as características das comunidades rurais, em geral mmiHo unidas, um júri constituído por vizinhos conhecia imimiilmente os factos; isso representava um progresso em i«l*si(> u processos irracionais anteriormente utilizados, como >" juí/.os de Deus, ou ordálias. Uma vez que o júri falava em uHino de toda a comunidade e proferia colectivamente o seu vmmllcto, estava menos sujeito a pressões do que as testemu- nlhii leuricamente, o sistema utilizado pela Igreja (posterior- montr udoptado pelos juízes franceses), e que consistia em hiiMiMigur as testemunhas uma a uma, era mais imparcial. Na HMlIUmlo, porém, o homem medieval encarava os processos |iiilii iiili como uma mera continuação do combate por outros Mieloi o as testemunhas eram geralmente tão parciais que se iMMittvii duvidoso que o seu testemunho se aproximasse mais da verdade do que um julgamento colectivo efectuado por um

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júri constituído por elementos da vizinhança. Em qualquer caso, os cavaleiros, os pequenos terratenentes e os homens livres da Inglaterra consideravam que o júri lhes proporcionava alguma protecção contra os ricos e os poderosos. Todos cies acorriam em massa aos tribunais do rei; no século XID, todos os casos com alguma importância e muitos outros sem importam cia nenhuma eram levados aos tribunais reais. O governo do rei tinha conseguido envolver quase todos os homens livres do país na actividade dos tribunais, quer na qualidade de litigam tes, quer na qualidade de jurados28.

0 desenvolvimento do Exchequer e dos tribunais reais teve como consequência secundária o desenvolvimento da Chancelaria. Uma contabilidade precisa exigia não só relató- rios correctos dos xerifes, mas também um registo meticuloso e uma formulação precisa das ordens que os autorizavam a pagar certas somas, ou a receber outras, em troca de terras ou de direitos alienados pelo rei. O sistema inglês de justiça também dependia bastante do trabalho dos funcionários da Chancelaria. Todas as acções se iniciavam com um mandato emanado da Chancelaria, no qual se definiam as questões em litígio e o procedimento a seguir. Os mandatos ingleses de finais do século XII são documentos admiráveis, concisos, claros e enérgicos. Não podiam ser mal interpretados e, por isso, as hipóteses de não serem cumpridos tomavam-se menores.

De~uma forma mais geral, nos finais do século xn, todos os ramos do governo inglês mantinham cuidadosos arquivos. O Exchequer conservava os relatórios dos xerifes; os juízes possuíam arquivos das suas decisões; a chancelaria mantinha registos de todas as cartas que enviava. A abundância de ar- 29

29 No que respeiU ao desenvolvimento dos tribunais ingleses no século XII ver Pollok e Maitland, History o f English Law. I, pp. 79-110 e 136*173, W. S. Holdsworth, History o f English Law, Bóston, 1922, I, pp. 32-54; T. I- Plucknett. A Concisa History o f the Common Law, Bóston, 1956, pp. 101 • 113 e 139-150.

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<|ulvoi veio contribuir para uma rápida consolidação das ins­tituições nascentes. Havia fórmulas estereotipadas para quase IihIai as ocasiões, o que poupava uma grande quantidade de («uipn e deixava os administradores livres para tratarem das i|iin»tões não rotineiras.

Tornava-se fácil consultar os antecedentes de qualquer •»unto, de forma que a acção do governo se revelava coerente• pievisível. De facto, as instituições inglesas estavam tão bem impluntadas que o governo podia funcionar por si só, sem h*< ruldade de grandes intervenções do trono, como se tornou «vidente, durante os dez anos do reinado de Eduardo I (1189-

dos quais o soberano apenas passou no pais alguns meses.A Inglaterra, por volta de 1200, contava, pois, com insti­

tuições permanentes, dirigidas por funcionários profissionais m Hrmiprofissionais, e assistiu também ao estabelecimento de liiftft medidas que mais tarde seriam naturalmente entendidas «mo afirmações de soberania. Uma dessas medidas foi a for-

•uulaçao de uma norma segundo a qual nenhum processo Milaiente à posse de terras podia ser aberto sem um mandato •In iilbimal do rei39. A outra foi a introdução dos impostos •IIhuIoi em todo o reino30. A norma que impunha a existên-• i* do um mandato real para a abertura dos processos inspira- «o «o, nuturalmente, na doutrina segundo a qual todas as terras M diioilos que estavam nas mãos de homens livres dependiam, •Iiiim Iu ou indirectamente, do rei e, portanto, este constituía >i ao unte de toda a propriedade legitima. O direito de lançar liM|H>Riut encontrava a sua origem no direito, que o suserano |l •miarlormente detinha, de pedir ajuda financeira aos seus vMMidoi em casos de emergência. Houve imensos casos desse

(tlmivtll, De Legibus, cap. 25: «[...} nemo tenetur respondere in curia......... imo une prieceplo domini regia vel eius capitales iustitiae.» Ver comen*............ na ileiia norma na edição de Woodbine, p. 273.

' l- K Mitchell. Taxation in Medieval England, New Haven. 1951, pp. I " I ’if

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tipo nos finais do século XII - a Terceira Cruzada, o resgate do rei Ricardo do seu cativeiro na Alemanha, a longa guerra com Filipe Augusto de França — e é provável que o auxílio pres­tado pelos vassalos não fosse suficiente para cobrir as neces­sidades do rei. O sistema tinha, pois, de ser ampliado e trans­formado num sistema de tributação geral. Esses dois actos de afirmação da autoridade real encontravam-se, portanto, justi­ficados pelo facto de constituírem extensões lógicas de doutrinas que estavam implícitas nas relações feudais, já que é pouco provável que alguém pensasse, nessa época, em termos de soberania. Mas, uma vez que a teoria do feudalismo se desenvolveu até ao ponto de permitir ao rei controlar por completo a justiça e impor tributo a toda a população, a suse- rania começava a aproximar-se bastante da soberania. O rei tinha, indiscutivelmente, a autoridade final em todas as ques­tões legais; como diz Glanvill, as decisões tomadas pelo rei e pelo seu conselho eram tâo vinculativas como as leges dos imperadores romanos31. Além disso, era também a suprema autoridade em matéria financeira. Não podia evidentemente, exigir tributos de uma forma discricionária, embora fosse muito difícil opor-lhe uma recusa total quando pedia ajuda financeira. De qualquer maneira, uma vez que se chegasse à conclusão de que se tornava necessário determinado imposto, era o rei que determinava a natureza do mesmo, o processo de cobrança e as isenções permitidas3Í. Talvez ainda mais impor­tante do que isso é o facto de ninguém mais, em todo o reino, poder impor nada parecido com um imposto sem uma auto­rização real. Um barão que pretendesse receber a escudagem

91 Glanvill, De Legibus, «(Prólogo», p. 24 da ediçio de Woodbine: «Legei namque Anglicanas licet non scripta* leges appellari non videatur absurdum (...) eas scilicei quas super dubtis in concilio defmiendis, procerum quitlem contilio et principis accedcnte auctoritate conitat esse promulgatas.»

92 Ver exemplos em Stubbs, Select Charters, pp. 277,348,351,356 e 358

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fwutage) dos seus homens, ou uma cidade que desejasse roparar as suas muralhas, necessitavam, para isso, de um imindato real prévio 33.

O século Xin fez um excelente uso destes precedentes. tU tribunais reais ampliaram a sua jurisdição e os impostos paasaram a recair sobre os bens de todos os habitantes do reino. A partir de 1300, o rei de Inglaterra não só possuía muitos dos atributos da soberania, como tinha, e sabia que tinha, o poder «ihorano. Promulgava leis de um modo formal e delibe- «mio - le is que afectavam não só o processo judicial, mas umbém a própria essência das normas que regulavam a pro- piindade das terras - e essas leis eram vinculativas para todos «■a habitantes do reino34. Impunha tributos aos seus súbditos Ulcos, directa e repetidamente, e afirmava também o seu •IiipIIo de tributar o clero sem consentimento do papa35. IVlcria, sem dúvida alguma, obter a concordância do seu povo piMuiitc tais medidas, quando mais não fosse, para facilitar a nplu ação das leis e a cobrança dos impostos; mas os meios utlli/iidos para obter essa concordância demonstram que a Inglaterra era um estado unificado, com um soberano reconhe-• i(b> • detentor da suprema autoridade. O rei podia pedir a npInlAo ou o acordo da corte, do seu conselho ou dos seus haiflM. A partir de 1260 passou a consultar, com uma frequên-• In unia vez maior, o Parlamento, assembleia constituída pelos giiimlei senhores, pelos cavaleiros eleitos pelos condados e p*h»i representantes dos municípios. Mas cra a vontade do rei qu# conferia autoridade às decisões tomadas na corte, no Com

11 No (jue rcspciia á scutage ver Poolock e Maitland. History o f English i •’ I I* 274. e T. Madox. History o f the Exchequer, Londres, 1711. pp. 0 ' 4 '4 No que diz respeito à capacidade das cidades para lançarem impostos, pMii.. i * Maitland, 1. pp. 662*663.

1 Matutei o f the Realm, l, pp. 7 1 e 106. No que respeita à legistaçfo de vai T K T. Plucknett, Legislation o f Edward /, Oxford. 1949, pp. 2-10.

W Stubbs, Constitutional History o f England. Oxford, 1906. It, pp. tl> I «' 140, 144.145 e 147.

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selho e no Parlamento, que era, no fundo e simultaneamente, um Conselho alargado e o Supremo Tribunal. Só devido ao facto de a Inglaterra ser um estado com um forte sentido de identidade própria é que algumas centenas de homens reunidos no Parlamento podiam permitir-se sancionar qualquer decisão em nome de toda a comunidade. E só devido ao poder sobe­rano do rei a posição assumida pelo Parlamento adquiria algum significado. Tal como Bracton dissera, duas gerações antes, o rei detinha todos os direitos correspondentes ao poder secular e ao governo do reino36.

Por último, e este aspecto é particularmente significativo, tomou-se claro, durante o século XUl, que a lealdade funda­mental do povo inglês (ou, pelo menos, daqueles que eram politicamente activos) tinha passado da família, da comunidade e da Igreja para o estado37. As antigas fidelidades não tinham desaparecido: os homens continuavam a trabalhar em prol da riqueza e do poder da sua família; procuravam obter ou con­servar privilégios pessoais ou comunitários; e obedeciam, em muitos aspectos, aos preceitos do clero e às decisões dos tribu­nais eclesiásticos. Porém, todas essas lealdades menores coexis­tiam dentro do quadro geral do estado inglês c estavam subor­dinadas à sua continuidade e prosperidade. Assim, quando os barões se revoltavam, como fizeram em 1215 ou em 1258, ou conspiravam nesse sentido, como em 1297, não era com a intenção~de destruir a unidade da Inglaterra, nem a continui­dade das instituições inglesas. Quando consideravam que a política do governo central era errada ou injusta, procuravam remediá-la, apoderando-se do poder necessário, para utilizar

M Post, Studies, p. 342: o rei tem «omnia iuia [...] quae ad coronam et laicalem pertinent potestatem et materialom gladium qui pertinet ad regni gubeinaculum». Ver Helen Cam, «The Mediaeval English Franchise», in Spe­culum. XXXII, 1957. p. 440.

97 J. R. Straycr, «Laicization o f French and English Society in the Dm teenth Century», in Speculum, xv. 1940. pp. 76*86.

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HIBI.IUTKCA PAULO FREIRE-FPTI

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pmc mesmo governo central no sentido de reparai os erros cometidos38. Esperavam que os tribunais reais, devidamente Instruídos, protegessem os seus direitos e que o conselho real, convenientemente apoiado pelos barões, anulasse as decisões piradas. As suas esperanças não se viram frustradas: obtiveram umu grande parte do que pretendiam recorrendo às instituições existentes, e estas funcionavam tão bem sob o controlo dos hurões como sob o controlo do rei.

Para sublinhar este ponto basta dizermos que os protestos do único grupo privilegiado que não se manteve integrado no quadro do estado inglês —o clero — encontraram muito menos p io . Com efeito, o clero tinha de reconhecer duas soberanias: a eclesiástica, encarnada pelo papa, e a temporal, representada pelo rei. Quando ambas estavam de acordo, o clero encontra­va ic indefeso. O clero não estava totalmente integrado na »«liulura do governo inglês e não podia recorrer a instituições IMinuncnte nacionais para sc defender das instituições da igreja universal. O rei e o papa podiam estabelecer acordos para repar- Mi os tributos impostos ao clero, acordos aos quais este não se tiodlfl opor. Quando os dois soberanos se encontravam em '1'iwcordo, como aconteceu em 1297, quando Eduardo I pre* lurnlou cobrar tributos aos clérigos sem o consentimento do

o clero via-se igualmente indefeso. A Igreja não tinha < iiiullções para proteger os seus clérigos do poder temporal do "»* As suas propriedades foram confiscadas; a protecção dos iilluinals reais estava-lhes explicitamente negada e o rei conse- «iilu iQccber quase tudo o que pretendia. O clero não recolheu IHuiiuimcnte qualquer apoio das outras classes e muitos dos |Mõ|nlos clérigos pareciam não estar muito convictos do seu 'litHfo de recusar pagar tributo ao re i39. 0 principio segundo

“ A melhor exposição acerca desta situaçSo encontra-se em R. F. Tre-im.n, Ih f itamnial Plan o f Reform, Manchester, 1932.

** Vai nota 35 e F. M. Powicke, The Tirteenth Century, Oxford, 1953, l<l< i f*7H

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o qual o rei tinha direito a cobrar os fundos necessários para a defesa do reino e esse direito se sobrepunha a todas as outras obrigaç&es ficou plcnamente estabelecido e acabou por ser aceite pelo papa40. Convém notar que a precedência desse direito não poderia ter sido reconhecida se não tivesse ocor- rido primeiro uma alteração na escala das várias lealdades. O primeiro dever de todo o súbdito era agora o de concorrer para a preservação e a prosperidade do estado.

A Inglaterra atravessou os primeiros estádios da consti­tuição do estado com uma rapidez considerável. Essa veloci­dade, por seu turno, tornou possível a existência de um grau pouco corrente de uniformidade na estrutura institucional inglesa. Os privilégios e costumes locais não tiveram tempo para se consolidar em instituições que viessem a gerar divi- sionismos. Os sistemas judicial e financeiro criados nos sé­culos XI e XI! puderam funcionar uniformemente em todo o país. A ausência de instituições provinciais profundamente enraizadas contribuiu para aumentar a eficiência do governo inglês e para reduzir o número de administradores profissionais necessários. Tornou-se desnecessária a existência de uma hie­rarquia de tribunais, com um sistema elaborado de recursos que remetesse das autoridades distritais para as autoridades provinciais e destas para as autoridades centrais. Os juízes do rei, sedentários ou itinerantes, podiam proferir uma sentença definitivá' de imediato e em qualquer lugar. Não se tomavam necessárias complicadas negociações individuais com cente­nas de senhores e de comunidades locais quando se pretendia aumentar um imposto, já que o Conselho e, mais tarde, o Parlamento podiam falar em nome de todo o reino. Assim, a Inglaterra pode dispensar um vasto aparelho burocrático que controlasse províncias semiautónomas e funcionasse como um

40 Registres de Roniface VIU, nP 2354; a bula Etsi de statu permitia que o clero fosse tributado quando tal se tornasse necessário para a defesa.

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elo de ligação entre as autoridades provinciais e centrais. Por exemplo, raros foram os momentos em que, durante o século Xllt, houve mais de vinte ou vinte c cinco juízes reais em toda■ Inglaterra41 *. Uma simples província francesa necessitava de limito mais homens43. O governo inglês, pelo contrário, podia tecorrer gratuitamente aos serviços dos notáveis locais (cava­leiros, proprietários, magistrados municipais) para a realização de uma grande parte do trabalho de administração local. Ai energias que noutros países eram desperdiçadas na defesa de privilégios locais podiam, em Inglaterra, ser empregadas pNiu auxiliar o governo central a levar a cabo a sua política. A confiança depositada pelo governo nas personalidades locais loi evidente desde os primeiros passos da edificação do estado Inglês e constituiu até ao século XIX uma característica típica <U Inglaterra.

A absoluta singularidade da experiência inglesa converteu-a,■ mitudo, num mau modelo. Poucos países puderam evoluir tão 1«pldamente ou estavam tão pouco divididos como a Inglaterra. I mnu já dissemos, a Inglaterra assemelhava-se mais a uma vasta IMiivíncia francesa do que a um reino do continente. A França, dividida em províncias com instituições extremamente diferen- < iiidas, era muito mais representativa da realidade política euro- 1**1« K, como a França foi o primeiro país a resolver o pro- Manta, quase universal, da criação de um estado a partir de piovíncias virtualmente independentes, o modelo francês aca- timi por se impor na Europa. A maior parte dos estados euro- l<#ui dos fins da Idade Média e do princípio da época moderna •»giilu, pois, com maior ou menor rigor, o modelo francês.

Fm França, como na Inglaterra, os dois domínios essen­

41 I 1’algrave, Parliamentary Writs, L ondres, 1827, |, p . 3 8 2 : em 1278 Im »i* l i f i Ju ízes n o T ribunal d o R ei (K ing’s BenchX c inco n o T ribunal de

C om uns (C o u rt o f C om m on Picas) e doze ju íz e s itinerantes.** Ver w m eu e s tu d o Les gens de justice du Languedoc, T oulouse. 197 0Unais d o sécu lo XII havia u ns q u aren ta ju ize s reais s6 n o Languedoc.

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ciais de toda essa evolução foram a justiça e as finanças. Os reis franceses» porém, viram-se obrigados a proceder com uma certa lentidão, e as suas primeiras instituições eram muito mais sim­ples e menos formalizadas do que as da Inglaterra. For exemplo^ embora existisse uma espécie de sistema de revisão central de contas em fins do século xu, nada havia que se parecesse com os métodos especializados praticados pelo Exchequer. O tribu­nal real francês, em 1200» era muito mais activo e possuía um prestígio muito maior do que em 1100, mas não dispunha nem da ampla jurisdição nem das formas legais estabelecidas com que funcionavam os tribunais da Inglaterra. A Chancelaria francesa não era tão activa nas suas relações com as autoridades locais, nem tão precisa na sua linguagem e nos seus métodos, como a Chancelaria inglesa. Até ao ano de 1200, as instituições reais francesas só foram plenamente eficazes no interior do domínio real da tie de France, zona em que o rei detinha o senhorio sobre a quase totalidade das terras. O rei não recebia praticamente nenhum rendimento proveniente de fora do seu domínio e os litigantes que não viviam na tie de France só raras vezes recorriam ao seu tribunal. Em grande parte do país, a autoridade suprema não era o rei, mas sim o duque, o conde ou o senhor que dominava um principado feudal.

No entanto, o estabelecimento de instituições cujo funcio­namento «efectivo se limitava essencialmente ao território sob o seu domínio pessoal veio aumentar os rendimentos, o poder e o prestígio do rei. Por volta de 1200, o soberano era já sufi­cientemente forte para atacar e vencer o mais poderoso doi chefes provinciais, o rei de Inglaterra, que ocupava a maior parte da França ocidental As províncias da Normandia, do Anju e do Poitou foram tomadas pelo rei de França e, assim, ini­ciou-se um processo de anexação que se prolongou durante todo o século seguinte. Através de guerras, casamentos o heranças, quase todas as províncias mais importantes se foram juntando ao domínio real. Só a Bretanha, a Guyenne, a Borgo nha e a Flandres escaparam.

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Esta série de anexações veio levantar grandes problemas ao governo francês. As instituições, relativamente simples, que se Unham revelado adequadas para reger um pequeno domínio real tinham evidentemente de ser ampliadas e aperfeiçoadas para se encarregarem do governo de uma área e de uma popula­ção muito maiores que passavam a estar sob o domínio do rei. As novas províncias possuíam as suas instituições e os seus costumes próprios que, muitas vezes, eram mais sofisticados e especializados do que os do governo real. Era perigoso tentar •Iterar ou suprimir essas instituições. Porém, como podería o governo central funcionar, quando cada administração local se regia por normas diferentes? O direito consuetudinário de Paris era muito distinto do da Normandia e as disparidades existentes entre as leis e os costumes do Norte e do Sul, o qual estava íortemente influenciado pelo direito romano, eram ainda nwiores.

A solução básica para todos estes problemas foi descoberta por Filipe Augusto (1180-1223X rei que foi o verdadeiro

fundador do estado francês. Filipe Augusto permitiu a cada província conservar os seus costumes e instituições, mas mandou lie Paris homens para preencherem todos os cargos provinciais importantes. Assim, os tribunais normandos continuaram a •pllcar a lei normanda, mas os funcionários que os presidiam iiflo eram normandos, mas sim agentes do rei vindos, na sua maioria, do antigo domínio do monarca 43. Aplacando assim n orgulho das várias províncias, o rei conseguia exercer, simul­taneamente, um efectivo controlo sobre as suas novas posses- l A r a

l isa fórmula era engenhosa e veio tornar possível unir liimrmente as novas províncias ao reino, por mais peculiares >|U0 loiacm as suas instituições e por mais arraigadas que esti-

n I K Strayer. The Administration o f Normandy under St. Louis, < «»ilwulgt, Miss.. 1932, pp, 91-99; «Normandy and Languedoc», in Spent- fc.-M 11 IV. 1969, pp. M 2 .

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vessem. Tal técnica continuou a demonstrar a sua utilidade até ao século XVU, época em que a França adquiriu a Alsácia. O estado inglês, pelo contrário, ao privilegiar a uniformidade das instituições e das leis, experimentou grandes dificuldades para assimilar regiões com uma tradição política diferente, como, por exemplo, o principado de Gales e os pequenos reinos da Irlanda. Mas o jovem estado francês teve de pagar um alto preço pela sua flexibilidade. Os chefes locais estavam fundamentalmente interessados em manter os seus costumes e privilégios e não confiavam no governo central, tal como este não confiava neles. Não podiam, pois, ser aproveitados na administração local. Com efeito, o princípio básico da admi­nistração francesa era o princípio segundo oqual ninguém devia exercer qualquer cargo na sua província natal44. O rei teve de criar um aparelho burocrático para se encarregar da administra­ção das províncias, aparelho que se desenvolveu rapidamente durante o período de formação do estado francês. Para além disso, embora o governo francês estivesse disposto a tolerar um amplo grau de diversidade de práticas locais, tinha de haver alguma uniformidade em matérias como os impostos, alguma forma de conciliar interesses locais em conflito e algum meio de afirmar a autoridade definitiva do rei. Assim, a França viu-se levada a criar e desenvolver uma estrutura administrativa

44 Ord., I, pp. 67-75; nem os bailios, nem os scnescais podiam adquirir propriedades, para si próprios ou para a sua família, na regido cm que desem­penhavam os seus cargos (ordenação de 1254, muitas vezes repelida). Archivr* de la Vitte de MontpeWer, ed. por F. Caslets e J. Berthelé, 1895. l. p. 51; cm 1317, Filipe V demitiu o presidente do tribunal da sénéchaussée de Beaucaiic Nimes porque era natural desse lugar e as ordenações reais proibiam quern quer que fosse de desempenhar as funções de juiz no distrito de que era natural Em Inglaterra, pelo contrário, um xerife tinha de possuir terras no condado que administrava; ver Rot. Parí., I. pp. 282,353 e 465;Srantres o f thc Realm. i, pp 160 e 174; Cal. Fine Rolh, IV. pp. 463 e 467-468: um xerife com muita expe­riência, que tinha servido em Wiltshire de 1330 a 1332 e em Dorsetshire de 133.1 a 133$, não foi autorizado a ocupar o lugar de xerife de Devonshire. em 1335, porque não possuía terras nesse condado.

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hierarquizada. Os funcionários locais dependiam de funciona- ilos provinciais, que dependiam de funcionários regionais, que, por sua vez, eram supervisionados por conselhos, tribunais e « Amaras com sede em Paris. Havia um fluxo constante de uidens, repreensões, decisões judiciais e pedidos de informação «la» autoridades centrais para as locais e um outro fluxo, igual- mente constante, de protestos; recursos, desculpas e explicações no sentido inverso. A complexidade do sistema administrativo liancés foi particularmente prejudicial numa época de comuni- i nçAcs lentas e impediu o governo central de fazer a melhor tiilll/.ação possível dos seus meios materiais e humanos. A Ingla- !«'nu, com uma população inferior a um quinto da população Inmccsa e dispondo, provavelmente, de muito menos de um i|ii»rto das riquezas da França, foi muitas vezes capaz de se lhe npnr, homem a homem e libra a libra, em épocas de conflito.

Isto não significa que o sistema francês tenha constituído um fracasso. Dadas as condições existentes, era mesmo o único i nni possibilidades de funcionar. A França era um estado-mo- mu o, constituído por muitas peças, e a burocracia o cimento i|iir mantinha essas forças unidas. Por vezes, esse cimento l"iimva-se tão espesso que ocultava os objectivos do governo,

apesar disso, era melhor do que permitir que o estado se tlatiiiucgasse por causa de o cimento ser demasiado fluido. Ih métodos franceses tornaram possível a criação de um MMdn a partir de províncias e regiões com características de lima enorme diversidade. Ora, uma vez que a maioria dos esta- tm « dados na Europa eram, como a França, estados-mosaicos; I ttia londéncia foi seguirem o modelo francês.

A loberania do rei de França estabeleceu-se claramente ao llNigo «lo século Xlii. No exterior, quase todos os soberanos, iMulmlo o papa, reconheceram que ele não tinha nenhum

im no plano temporal4s.

fVi f tireg., IX, pp. 4. 17 e I3;em 1202, Inocéncio UI afirmava que o * •J* I mis* «»upcrlorem in temporalibus minrnic rccognoscit»;essa afirmaçlo

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No plano interno» o rei proclamava-se juiz supremo de todas as causas. Fossem quais fossem a importância dos direi­tos e a extensão dos privilégios de uma província ou de um senhor» todos os recursos deviam subir, em última instância, ao tribunal do rei, em Paris. Na realidade, esse direito de pro­ferir o veredicto final era o único que se mantinha constan­temente em vigorem regiões em que o rei, de resto, tinha pouco poder, como o ducado da Aquitânia ou o condado da Flan- dres* 46. Igualmente extenso em teoria, mas mais restrito na prática, era o direito que cabia ao rei de fazer ordenações tendo em vista o bem comum47. As ordenações reais podiam não ser respeitadas com muito zelo em todo o território do reino, mas era difícil negar a sua validade. Da mesma forma, o direito do rei de impor tributos, sobretudo quando se desti­navam à defesa do reino, era geralmente reconhecido48.

converteu-se em doutrina oficial da Igreja. Um pouco mais tarde, alguém for­mulou a frase: «rex (o rei de França] cst imperator in regno suo», isto é. o rei possuía o poder temporal supremo, Esta interpretação foi posta em questão por F. Calasso. / Ghssatori e la teoria delia sovranità, Milão, 1951; ver porém a posição contrária de Sérgio Mochi Onory, Fonti Canonistiche delVidea moderna dello stato, Milão. 1951, e Post, Studies, pp. 453-480.

46 Olim, li, pp. 142-244 e 300, Flandres, I, p. 284, II, pp. 94,97.138,148 c 236 (Aquitânia) Olim, II, pp. 3-8: uma convocação feita a Eduardo I para com­parecer peranto o Parlamento foi a desculpa para a ocupação da Gasconha, em 1294; ibid., pp. 394-396: o Parlamento, ao intervir nas cidades flamengas em 1295, debilitou a corte e abriu o caminho para a posterior ocupação da Flandres.

47 A referência essencial encontra-se em Beaumanoir, Coutumcsde fieau- vaisis, parágrafos 1512-1515:o rei pode fazerestablissemenspara o bem comum; todos lhes devem obediência; o rei pode punir quem os infringir; mas os novos establissemens devem ser feitos com uma causa razoável e «par grant conseil». Até 1300, a legislação francesa foi menos significativa do que a inglesa, mas a autoridade da uma ordenação real era tão grande como a de um statute em Inglaterra; por exemplo, os embargos que recaíam sobre a exportação de cavalos e armas eram respeitados, mesmo nas províncias mais remotas (Ord., XI, p. 353; Champollion-Figeac, Lettres de rois, Paris. 1839,1, pp. 285 e 298).

4* Para uma visão de conjunto ler o meu artigo «Consent to Taxation under Philip the Fair», in J. K. Strayer e C. H. Taylor, Studies in Early French

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Na prática, podia haver algum regateio acerca das taxas a apli­car, alguma partilha do seu produto com os senhores mais poderosos, mas era quase impossível recusar dinheiro ao rei.

Em França verificou-se também, tal como em Inglaterra, que o principal objecto da lealdade das gentes passou a ser o rei. Tal como em Inglaterra, o papa não conseguiu qualquer apoio popular quando tentou impedir a imposição de tributos ao clero. De facto verificava-se a existência de um grande res­sentimento em relação ao clero, devido à sua falta de participa­ção nas despesas efectuadas com a defesa do reino, ressenti­mento tão intenso que preocupava muito os bispos49. Uma vez resolvida a questão dos impostos a contento do rei, surgiu uma nova controvérsia acerca do direito que assistia às autoridades seculares de prenderem e julgarem um bispo acusado de traição. Na guerra de propaganda que se seguiu, o papa ficou clara­mente por baixo. As acusações que fazia à coroa não produziram qualquer efeito visível em nenhum sector da população francesa. Os agentes do rei, por outro lado, conseguiram o apoio de to­dos os grupos politicamente significativos do país, mesmo quando produziram as acusações mais fantásticas acerca da ortodoxia e da moralidade do papa. A nobreza, as cidades e quase todo o clero aprovaram um plano para convocar um con­cílio da Igreja e julgar o papa50. O apoio dos nobres e das gen­tes das cidades a essa medida correspondia, sem dúvida, aos seus

taxation, C am bridge, Mass., 1939. Para um a análise m ais p o rm enorizada, Hist. Iltt., x x x v i , p . 5 1 5 ; P ierre Jam e , leg ista d e M ontpellier q u e n io tin h a grande •M ima p o r FUipe-o-Belo, reconhecia q u e o re i p o d ia im p o r tr ib u to s , sem con- M iitim ento d e n inguém , p a ra a defesa d o re ino . Jam e nâo fazia m ais d o que repetir o q u e já B onifácio V III tin h a reco n h ec id o em 1297 (Reg. Bonif. VIII, i«t* 2354): o rei pod ia tr ib u ta r in d u siv am en te o c le ro pa ra a defesa d o reino .

4# P. D upuy, Histoire du différend. Paris, 1655, preuves, p. 26 .Os principais d o cu m en to s e s t io ed itad o s em G . P ico t, Documents

relatifs aux États Généraux et Assemblées réunis sous Philippe ie Bel. Paris, 1901.

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verdadeiros sentimentos; acreditavam com toda a honestidade que o papa se propunha destruir a França e sentiam-se na obri­gação de defender o reino, mesmo contra o herdeiro de S. Pedra O clero encontrava-se indubitavelmente sujeito a fortes pressões; mas deve ter tido muitas dúvidas quanto à validade das acusa­ções de que o papa era alvo. Mas» se os membros do clero não eram partidários muito entusiastas do rei» também não demons­traram possuir um grande zelo pela causa do papa. Não houve mártires e nem sequer houve críticas da sua parte à política do rei. Aparentemente, o clero considerava mais importante preservar a harmonia e a unidade da França do que defender a reputação do papa. Na crise final, quando o rei enviou um grupo armado para prender o pontífice e este morreu, em con­sequência do choque e dos maus tratos sofridos, não se verifi­cou nenhuma onda de indignação em França, nem sequer entre os membros do clero. Os papas que se seguiram não consegui­ram reavivar qualquer interesse pelo caso. Por fim, o rei foi completamente ilibado de qualquer culpa e os seus agentes viram-se condenados a penas rclativamente leves (penas que nunca cumpriram)51. Do ponto de vista prático, tomou-se evidente que era mais seguro ser leal ao rei do que ao papa.

Contudo, outras causas entraram em jogo, para além da segurança pessoal e do desejo de progresso. Alguns homens - n a sua maioria homens de leis e funcionários reais - come­çavam a idealizar o estado. Há muito que havia em França um culto pelo rei, o único monarca europeu que se podia vangloriar de ter sido ungido com óleos vindos directamente dos céus, o herdeiro de Carlos Magno, a esperança dos doen­tes52. Por volta de 1300 passou a prestar-se culto ao reino de França. A França era uma terra santa, onde floresciam a

51 R. Holtzmam, Wilhelm von Nogaret. Friburgo. i. B., I898fc caps. 4 e 7.5Í Existem duas excelentes obras sobre este tema: M. Bloch, Les rvis

thaumaturges, Paris, 1961, e P. E. Schramm, Der König von Frankreich, Veimar, 1939, caps. 5-8.

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piedade» a justiça e o saber. Como antigamente os Israelitas, os Franceses constituíam um povo eleito, merecedor e objecto do favor divino. Proteger a França era servir a D euss3. À me­dida que estas ideias se foram espalhando - e pouco depois de 1400 chegaram ao conhecimento de uma jovem camponesa que vivia na extrema fronteira oriental do reino — , a lealdade ao estado tornou-se mais do que uma necessidade ou uma conveniência;passou a ser, desde entío, uma virtude.

11 }. R. S tray er. « F ran ce : T he H o ly L an d , th e C hosen People, an d The Moat C hris tian King». Action and Conviction in Early Modem Europe, ed . I . K- R ab b e J. E. Siege), P rin ce to n . 1969, p p . 3-16.

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