13

Click here to load reader

Ascite

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Ascite

www.medicinaatual.com.br

Ascite

Autor(es) Roberto J. de Carvalho Filho1

Set-2007 1 - Qual o conceito de ascite?

O termo “ascite” deriva do grego askos, que significa “bolsa” ou “saco”, e traduz o acúmulo patológico de líquido na cavidade peritoneal.

2 - Quais as bases fisiopatogênicas da ascite da ci rrose hepática?

Na ascite associada à cirrose hepática, há um aumento global do volume de líquido extracelular e seu subseqüente acúmulo nos interstícios e nas cavidades pleural e peritoneal. O principal fator associado a este fenômeno é o aumento anormal da reabsorção renal de sódio. A teoria que melhor explica a origem da retenção sódica e a formação da ascite cirrótica é chamada de “teoria da vasodilatação arterial”. De acordo com esta teoria, a hipertensão portal geraria vasodilatação do leito arterial esplâncnico e redução do volume intravascular efetivo, por mecanismos ainda não completamente compreendidos (óxido nítrico, prostaciclinas, glucagon, substância P e peptídeo associado ao gene da calcitonina já foram implicados). A redução do volume arterial efetivo seria detectada por receptores arteriais e cardiopulmonares que ativariam mecanismos antinatriuréticos, tais como o sistema renina-angiotensina-aldosterona, sistema nervoso simpático e sistema arginina-vasopressina. Entretanto, o extravazsamento contínuo de líquido para a cavidade peritoneal faz com que a retenção de água e sódio resultante da ativação dos sistemas antinatriuréticos não seja suficiente para compensar o déficit volumétrico do compartimento intravascular, perpetuando o círculo vicioso.

3 - Quais as bases fisiopatogênicas da ascite não a ssociada à cirrose hepática?

Nas ascites não-cirróticas, a fisiopatogenia varia conforme a etiologia:

Ascite neoplásica Produção de líquido proteináceo pelas células tumorais implantadas no peritônio, obstrução de ductos linfáticos e aumento da permeabilidade vascular por atividade parácrina. Ascite associada a linfoma Obstrução e ruptura de ductos linfáticos invadidos por células tumorais. Ascite infecciosa (M. tuberculosis, Chlamydia sp., Coccidiodes sp. etc) Aumento da permeabilidade vascular e exsudação de líquido proteináceo. Ascite associada à síndrome nefrótica Redução do volume intravascular efetivo secundária à hipoproteinemia, ativação dos sistemas antinatriuréticos e retenção de água e sódio. Ascite pancreática Ruptura de pseudocisto ou fístula pancreática. Ascite biliar Ruptura de ducto biliar por lesão iatrogênica (cirurgia, biópsia hepática etc.) ou por erosão associada à litíase biliar. Ascite mixedematosa Hipotireoidismo crônico causando retardo de drenagem linfática e aumento da permeabilidade vascular. Ascite da síndrome de hiperestimulação ovariana Secreção aumentada ou exsudação de líquido proteináceo pela superfície dos ovários estimulados por gonadotrofina exógena.

1 Doutor em Gastroenterologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Médico da Pró-Reitoria de Graduação da Unifesp; Coordenador da Liga de Hepatites da Disciplina de Gastroenterologia da Unifesp.

Page 2: Ascite

www.medicinaatual.com.br

Ascite associada à hipertensão portal não-cirrótica (síndrome de Budd-Chiari, doença veno-oclusiva, trombose da veia porta, compressões intra-hepáticas) Bloqueio do efluxo venoso, aumento da formação de linfa e exsudação de líquido proteináceo a partir da superfície do fígado e/ou do vasos do sistema venoso esplâncnico.

4 - Quais os dados de anamnese que sugerem o diagnó stico de ascite?

Os pacientes com ascite habitualmente apresentam como queixa principal o aumento abrupto ou insidioso do volume abdominal, comumente acompanhado de dor abdominal de leve a moderada intensidade, dispepsia, anorexia e emagrecimento. História de edema de membros inferiores é mais freqüente, mas edema generalizado pode ocorrer. Eventualmente, o paciente queixa-se de dispnéia, a qual poderá estar associada à restrição da expansão pulmonar, hidrotórax hepático, síndrome hépato-pulmonar ou secundária à doença pulmonar ou cardíaca subjacente. Nos casos associados à insuficiência hepática (aguda ou crônica), as queixas de escleras amareladas, urina escura e alterações de comportamento são também freqüentes.

5 - Quais os dados de exame físico que auxiliam no diagnóstico da ascite?

Quanto maior o volume da ascite, maior é a acurácia do exame físico para sua identificação. Num contexto clínico pertinente, pode-se suspeitar da presença de ascite já durante a inspeção, com a observação de um abdome obviamente globoso associado a eversão da cicatriz umbilical. Quatro outros sinais podem ser sugerir a presença de ascite:

Abdome de batráquio Abaulamento dos flancos causado pela pressão do líquido ascítico sobre a parede abdominal. Macicez em flancos e círculo de Skoda O acúmulo de líquido ascítico em flancos, fossas ilíacas e hipogástrio e a concentração periumbilical de alças intestinais contendo gases delimitam, à percussão a partir do epigástrio, uma área de timpanismo cercada por um círculo de macicez. Macicez móvel Após o mapeamento das áreas de timpanismo e macicez com o paciente em decúbito dorsal, pede-se que o paciente assuma decúbito lateral e identifica-se deslocamento da área de timpanismo para o flanco superior e macicez na porção inferior do abdome. Sinal do piparote Um assistente pressiona as bordas de suas mãos firmemente na linha média do abdome. O examinador, então, posiciona uma de suas mãos de um lado do abdome e dá pequenos golpes com as pontas dos dedos da outra mão no flanco oposto. A percepção da propagação da onda líquida de um lado ao outro do abdome sugere a presença de ascite. Este sinal é pouco sensível, pois somente é identificado nas ascites volumosas. Além disso, carece também de especificidade, pois pode ser positivo em indivíduos sem ascite, como obesos e gestantes.

Dentre os sinais descritos acima, a identificação de macicez em flancos parece ser o indício mais sensível para o diagnóstico de ascite, já que a probabilidade de ascite na ausência do sinal é inferior a 10%.

6 - Quanto ao diagnóstico etiológico da ascite, que dados do exame clínico são úteis?

A anamnese fornece informações essenciais para o diagnóstico diferencial das ascites. Aproximadamente 80% dos casos de ascite estão relacionados a uma doença hepática crônica. As hepatopatias mais freqüentemente envolvidas são a doença hepática alcoólica e as hepatites virais crônicas C e B. Desta forma, durante a entrevista médica, torna-se fundamental a caracterização de ingestão etílica abusiva e a identificação de antecedentes pessoais ou familiares que possam sugerir contato com os vírus das hepatites B e/ou C, tais como procedimentos cirúrgicos, transfusão prévia de hemoderivados, uso de drogas intravenosas, promiscuidade sexual, contato íntimo com portador de hepatite B ou C ou história familiar positiva para estas infecções.

Outras informações da entrevista dão pistas para o diagnóstico etiológico:

• Emagrecimento significativo sem causa aparente ou diagnóstico prévio de neoplasia maligna (ovário, cólon, reto, estômago, pâncreas, mama e, menos freqüentemente, linfoma, mesotelioma, próstata, colangiocarcinoma e esôfago): ascite neoplásica.

• Ortopnéia, dispnéia paroxística noturna ou diagnóstico prévio de cardiopatia: ascite cardíaca.

Page 3: Ascite

www.medicinaatual.com.br

• Emagrecimento, dor abdominal, febre e sudorese noturna: tuberculose peritoneal. • Edema generalizado e diagnóstico prévio de diabetes mellitus: ascite nefrótica. • Letargia, intolerância ao frio, constipação, depressão, rouquidão, menorragia, pele

seca: ascite mixedematosa.

Quanto ao diagnóstico etiológico, o exame físico sugere ascite cirrótica quando são encontrados sinais de insuficiência hepatocelular crônica, tais como aranhas vasculares, eritema palmar, ginecomastia, hálito hepático, circulação colateral abdominal, rarefação de pêlos, atrofia testicular, unhas brancas e outros. Turgência jugular patológica com ou sem refluxo hépato-jugular, hiperfonese de P2 e ritmo de galope (B3 e freqüentemente B4) à ausculta cardíaca sugerem insuficiência cardíaca congestiva. Massa endurecida e imóvel na região umbilical, chamado de “nódulo da Irmã Maria José” (Sister Mary Joseph nodule), sugere carcinomatose peritoneal.

7 - Quais os exames complementares que podem confir mar a presença de ascite?

Embora o achado de macicez em flancos seja bastante sensível para o diagnóstico da ascite, é necessário o acúmulo de aproximadamente 1,5 L de líquido ascítico antes que se torne identificável à percussão do abdome. Além disso, a pesquisa de macicez em flancos em indivíduos obesos comumente produz resultados falso-positivos. Por isso, freqüentemente, exames complementares são solicitados para confirmar o diagnóstico e investigar a etiologia da ascite:

Ultra-sonografia (USG) de abdome com Doppler Pode detectar ascites com volume de apenas 50 a 100 mL. Além disso, a USG pode fornecer indícios de hepatopatia avançada (ecotextura hepática aumentada e irregular/multinodular e atrofia hepática), avaliar as veias esplênica, porta e supra-hepáticas à procura de sinais de hipertensão portal e identificar lesões tumorais que sugiram ascite neoplásica. Deve ser o primeiro exame de imagem a ser solicitado. Tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM) do abdome Métodos indicados nos casos em que há dúvidas no diagnóstico de hepatopatia avançada e/ou hipertensão portal, para o diagnóstico diferencial de nódulos hepáticos e outras tumorações previamente identificados pela USG e para complementar o estadiamento de neoplasias intra-abdominais. Laparoscopia e biópsia peritoneal Indicadas nos casos de etiologia duvidosa, particularmente naqueles pacientes em que várias causas neoplásicas e infecciosas são possíveis, tais como indivíduos cirróticos e portadores de insuficiência renal crônica. Paracentese diagnóstica e análise do líquido ascítico Principal exame complementar utilizado na propedêutica do paciente com ascite. Habitualmente, a paracentese é feita “às cegas”; entretanto, nas ascites de pequeno volume e nas ascites septadas, deve ser guiada por USG. 8 - Quais as contra-indicações para a realização da paracentese?

Existem poucas contra-indicações à realização da paracentese diagnóstica. Algumas relativas podem ser listadas:

• gravidez, • coagulopatia grave, • múltiplas cirurgias prévias abdominais (ascite septada), • distensão intensa de alças intestinais ou da bexiga, • lesões cutâneas infectadas na região proposta da punção.

Em geral, estas contra-indicações podem ser contornadas pela administração de plasma fresco congelado e concentrado de plaquetas e pelo uso de punção guiada por ultra-som. Com relação à coagulopatia, comum em pacientes cirróticos, não há dados na literatura que estabeleçam um ponto de corte a partir do qual a paracentese seria contra-indicada. Contudo, este procedimento deve ser evitado na presença de coagulação intravascular disseminada clinicamente evidente.

Page 4: Ascite

www.medicinaatual.com.br

9 - O aspecto do líquido ascítico auxilia no diagnó stico diferencial das ascites?

O líquido ascítico não neutrocítico (contagem de neutrófilos inferior a 250/mm3) é claro e discretamente amarelado (“amarelo-citrino”). Quanto maior a concentração de neutrófilos, mais opaco é o líquido ascítico e quanto maior a concentração de triglicérides, seu aspecto se aproxima mais da cor branca. Algumas associações entre aspecto e etiologia da ascite são listadas abaixo:

Hemorrágico (contagem de hemácias maior que 10.000/mm3) Acidente de punção, cirrose hepática com hipertensão portal acentuada e hepatocarcinoma são as etiologias mais comuns. Nos acidentes de punção há formação de coágulos, o que não ocorre nas demais condições que cursam com ascite de aspecto hemorrágico. Vale lembrar que apenas 10% das ascites neoplásicas possuem aspecto hemorrágico, a qual é também identificada em menos de 5% dos casos de tuberculose peritoneal. Quilosa (concentração de triglicérides maior que 200 mg/dL) Cirrose hepática (causa mais comum), ascites neoplásicas e ascites de causa infecciosa (tuberculose e paracoccidioidomicose) são as principais condições associadas. Mais raramente, a ascite cardíaca e a ascite associada à síndrome nefrótica podem se apresentar com aspecto quiloso.

Marrom: ascite biliar.

Negra: ascite pancreática.

Purulenta: peritonite secundária (ruptura de víscera oca).

Gelatinoso: pseudomixoma peritoneal, adenocarcinoma muco-secretor.

10 - Para a análise laboratorial do líquido ascític o, quais exames devem ser solicitados?

A solicitação de número exagerado de testes pode gerar custos desnecessários e tornar a análise do líquido ascítico confusa e demorada. Assim, são sugeridos: Exames de rotina

• citometria (contagem de hemácias e diferencial de leucócitos), • proteínas totais e albumina, • glicose, • desidrogenase lática (DHL), • amilase, • bacterioscopia após coloração de Gram, • cultura em frascos de hemocultura.

Exames adicionais para contextos específicos

• citologia oncótica (se suspeita de ascite neoplásica), • dosagem de triglicérides (se aspecto quiloso), • bilirrubinas (se suspeita de ascite biliar), • adenosina deaminase (ADA, na suspeita de tuberculose peritoneal), • pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR), • colorações e culturas para fungos, • outros exames microbiológicos pertinentes.

11 - Como interpretar os exames de rotina na anális e laboratorial do líquido ascítico?

Citometria No líquido ascítico estéril da cirrose hepática, a contagem de hemácias é inferior a 1.000/mm3 e o número de leucócitos é menor que 500/mm3, com predomínio de linfócitos (>70%). Na peritonite bacteriana espontânea (PBE), há elevação da contagem total de leucócitos e o número de polimorfonucleares (PMN) é maior que 250/mm3, os quais passam a representar mais de 70% da leucometria global. Nas ascites hemorrágicas, para o diagnóstico presuntivo de PBE, deve-se corrigir a contagem de leucócitos e de PMN subtraindo-se 1 leucócito para cada 750 hemácias e 1 PMN para cada 250 hemácias. Nas ascites carcinomatosas e na tuberculose peritoneal, há elevação da contagem de leucócitos, mas geralmente mantém-se o predomínio de linfócitos. Constituem exceção os portadores de insuficiência renal crônica, que podem evoluir com tuberculose peritoneal com predomínio de PMN.

Page 5: Ascite

www.medicinaatual.com.br

Glicose Geralmente, a concentração da glicose no líquido ascítico acompanha a concentração sérica. Valores reduzidos de glicose (muitas vezes próximos de 0 mg/dL) sugerem a presença de ascite infecciosa.

DHL Sua concentração na ascite da cirrose não complicada é habitualmente inferior a 50% do seu nível sérico. Níveis ascíticos de DHL superiores aos níveis séricos são encontrados em mais de 70% das ascites infecciosas, na carcinomatose peritoneal e na ascite pancreática e em aproximadamente 20% dos cirróticos e das ascites cardíacas. Os níveis mais elevados de DHL (várias vezes superior ao nível sérico) são encontrados nas peritonites secundárias.

Amilase Sua concentração na ascite da cirrose não complicada é habitualmente igual a 50% do seu nível sérico. Nas ascites pancreáticas (mas também nas perfurações de víscera oca), a concentração de amilase no líquido ascítico é geralmente 5 ou mais vezes maior que a concentração sérica e acima de 1.000 UI/L.

Bacterioscopia após coloração de Gram Possui uma baixa sensibilidade, demonstrando positividade somente na presença de concentração superior a 10.000 bactérias/mL. Assim, se negativa, não exclui a presença de PBE, já que nesta condição a concentração bacteriana média no líquido ascítico é de cerca de 1 bactéria/mL. Cultura em frascos de hemocultura Sensibilidade de aproximadamente 80% quando a semeadura é feita à beira do leito (10 mL). Permite o diagnóstico de certeza da PBE e a identificação do padrão de sensibilidade antimicrobiana do agente envolvido. 12 - Como interpretar as dosagens de proteínas e al bumina no líquido ascítico?

Antes da década de 80, a dosagem das proteínas totais no líquido ascítico era usada para classificar as ascites em exsudatos (> 2,5 g/dL) e transudatos (< 2,5 g/dL), sendo incluída neste último grupo as ascites cirróticas. Entretanto, a concentração protéica do líquido ascítico da cirrose hepática depende basicamente de sua concentração sérica e da pressão venosa portal. Assim, 15% a 30% das ascites cirróticas não complicadas apresentam concentrações protéicas > 2,5 g/dL, o que as classificaria “erroneamente” em exsudatos. Da mesma forma, os pacientes com ascite cardíaca seriam incluídos no grupo dos exsudatos e grande parte das ascites malignas seria categorizada como transudato. Por estes motivos, a classificação das ascites em exsudatos e transudatos é inacurada e não deve ser utilizada. Todavia, a dosagem das proteínas no líquido ascítico pode ser útil na identificação de peritonite bacteriana secundária por ruptura de víscera oca, nos casos de ascite neutrocítica com pelo menos dois dos seguintes critérios:

• proteínas totais > 1 g/dL, • glicose < 50 mg/dL, • DHL > limite superior do normal para dosagem sérica.

Juntamente com a citometria, a dosagem da concentração da albumina constitui a principal análise do líquido ascítico, pois permite o cálculo do gradiente de albumina soro-ascite (GASA). O GASA é baseado no balanço oncótico-hidrostático e se correlaciona diretamente com a pressão portal, sendo capaz de categorizar os diversos tipos de ascite de maneira mais acurada do que a antiga classificação baseada na concentração de proteínas totais (97% versus 55%). Seu cálculo é feito subtraindo-se a concentração de albumina no líquido ascítico da concentração sérica da albumina (que, via de regra, possui o maior valor). A acurácia do GASA é de aproximadamente 97%, mesmo na presença de ascite infecciosa, diurese forçada, paracentese terapêutica, infusão intravenosa de albumina e não varia conforme a etiologia da hepatopatia de base. Entretanto, para garantir o máximo desempenho do GASA, é fundamental assegurar que o teste usado para a dosagem da albumina seja acurado mesmo na presença de concentrações muito baixas de albumina (<1,0 g/dL, por exemplo), ou o GASA poderá ser subestimado. Hipotensão arterial e hiperglobulinemia (> 5 g/dL) podem também reduzir o GASA. Além disso, as ascites quilosas podem produzir GASAs falsamente elevados, por interferência dos triglicérides na dosagem bioquímica da albumina.

Page 6: Ascite

www.medicinaatual.com.br

13 - Como classificar as ascites?

Quanto ao volume, a ascite pode ser categorizada em:

• Grau 1 (ascite leve): clinicamente inaparente, somente detectada por exame de imagem.

• Grau 2 (ascite moderada): distensão moderada e simétrica do abdome. • Grau 3 (ascite volumosa): grande distensão abdominal.

A classificação das ascites conforme o GASA é mais útil, já que orienta a propedêutica a ser conduzida. Os principais exemplos estão listados na tabela 1.

Tabela 1. Principais causas de ascite nos dois níve is de GASA GASA < 1,1 g/dL GASA > 1,1 g/dL

Carcinomatose peritoneal Tuberculose peritoneal Peritonite bacteriana secundária Síndrome nefrótica Ascite pancreática Ascite biliar Colagenoses (p.ex., serosite lúpica) Lesão linfática iatrogênica (pós-cirúrgica)

Cirrose hepática Ascite mista (cirrose + tuberculose ou câncer) Síndrome de Budd-Chiari Doença veno-oclusiva Trombose da veia porta Compressões intra-hepáticas (tumores/cistos) Insuficiência hepática aguda Ascite cardíaca Ascite mixedematosa

14 - Quais exames complementares devem ser inicialm ente solicitados para a investigação de ascite enquanto aguardam-se os resu ltados do líquido ascítico?

Devem ser solicitados os seguintes exames laboratoriais: hemograma, tempo e atividade de protrombina e RNI, bilirrubinas, proteínas totais e albumina, AST, ALT, fosfatase alcalina, gama-glutamiltransferase, DHL, glicemia, amilase, sódio, potássio, uréia, creatinina e análise do sedimento urinário (EAS ou urina tipo 1).

Esses exames devem ser coletados no mesmo dia da realização da paracentese diagnóstica e, idealmente, com um intervalo máximo de uma hora desta, para comparação adequada dos parâmetros bioquímicos.

15 - Qual a abordagem diagnóstica da ascite com GAS A <1,1 g/dL?

Considerando as causas mais comuns de ascite dentro deste grupo, devemos providenciar, inicialmente:

• Nova paracentese diagnóstica, com envio de amostras para dosagem de ADA, pesquisa de BAAR, cultura para M. tuberculosis e citologia oncótica.

• Exames laboratoriais: CA 19-9, CA 125, antígeno prostático específico (PSA) e fator antinuclear (FAN).

• Radiografia de tórax em PA e perfil. • TC ou RM de abdome.

Posteriormente, de acordo com os resultados dos exames anteriores, considerar a realização de:

• Exames laboratoriais: HBsAg, anti-HBc total, anti-HCV, colesterol e frações e triglicérides.

• Urina de 24 horas: clearance de creatinina e quantificação de proteinúria. • Endoscopia digestiva alta. • Avaliação ginecológica com USG transvaginal. • Avaliação urológica com USG transretal. • Colonoscopia. • Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE). • Laparoscopia com biópsias de peritônio.

16 - Qual a abordagem diagnóstica da ascite com GAS A >1,1 g/dL?

Considerando as causas mais comuns de ascite dentro deste grupo, devemos providenciar, inicialmente:

Page 7: Ascite

www.medicinaatual.com.br

• Exames laboratoriais: HBsAg, anti-HBc total, anti-HBs, anti-HAV total (e anti-HAV IgM se icterícia presente), anti-HCV, alfa-fetoproteína, TSH e T4 livre, FAN e eletroforese de proteínas.

• Hemoculturas: se PMN > 250/mm3 • Urina: sedimento urinário, clearance de creatinina, excreção urinária de sódio em 24

horas. • Endoscopia digestiva alta: para rastreamento de sinais de hipertensão portal, tais como

varizes esôfago-gástricas e gastropatia hipertensiva. • TC ou RM de abdome: se USG com Doppler não tiver sido conclusiva.

Posteriormente, de acordo com os resultados dos exames anteriores, considerar a realização de:

• Pesquisa de outras hepatopatias: cinética do ferro, anticorpo antimitocôncria, ceruloplasmina, exame de lâmpada de fenda (para pesquisa de anéis de Kayser-Fleischer), excreção de cobre em urina de 24 horas

• Pesquisa de trombofilias: pesquisa de mutações fator V Leiden e fator II, dosagem de proteína C, proteína S e antitrombina III, pesquisa de anticorpos anticoagulante lúpico e anticardiolipina.

• Ecocardiograma transtorácico. • Angioressonância e/ou venografia direta. • Biópsia hepática: preferencialmente após controle da ascite, pois há risco adicional de

complicações na presença de ascite significativa. 17 - Como tratar as ascites com GASA <1,1 g/dL?

Em geral, as ascites deste grupo respondem mal ao uso de diuréticos, embora possam ser utilizados em casos selecionados. As demais medidas terapêuticas variam conforme a condição de base.

Carcinomatose peritoneal Com exceção de alguns casos de câncer de ovário que podem responder a quimioterapia, as medidas terapêuticas são paliativas e restritas à analgesia e paracenteses de alívio conforme a demanda. Tuberculose peritoneal Isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol por 2 meses, seguidos de isoniazida e rifampicina por 4 meses adicionais. A duração do tratamento é controversa, mas não há dados que sustentem a indicação de períodos mais longos do que 6 meses. Peritonite bacteriana secundária Controle hemodinâmico (reposição volêmica e uso de drogas vasoativas, se necessário), dieta zero, nutrição parenteral total (NPT), sonda nasogástrica aberta, antibioticoterapia de largo espectro (ex., cefotaxima e metronidazol) e intervenção cirúrgica após estabilização clínica. Síndrome nefrótica Restrição hídrica e protéica (0,6 g/kg/dia se cl1earance de creatinina < 25 mL/min), diuréticos (diurético de alça associado ou não a tiazídico), controle da dislipidemia (dieta, exercícios físicos e tratamento farmacológico) e profilaxia de fenômenos tromboembólicos (principalmente se albumina <2 g/dL). Terapia imunossupressora poderá ser indicada, dependendo da doença de base. Ascite pancreática Na presença de dilatação simples do ducto pancreático principal (DPP), o tratamento conservador pode ser tentado por 2 a 3 semanas, instituindo-se dieta zero, NPT, octreotide por via subcutânea e múltiplas paracenteses. Não havendo resposta, pode-se tentar a colocação transpapilar de stent no DPP por CPRE. Este procedimento também poderá ser usado nos casos de ruptura/estenose parcial do DPP. Nos pacientes com ascite secundária à ruptura de pseudocistos, a drenagem endoscópica deve ser considerada. O tratamento cirúrgico fica reservado para os casos de ruptura/estenose total do DPP e na falha terapêutica após a colocação de stent transpapilar ou drenagem endoscópica nos demais casos.

Page 8: Ascite

www.medicinaatual.com.br

Ascite biliar Intervenção cirúrgica é geralmente necessária, embora casos oligossintomáticos possam responder a tratamento conservador com antibioticoterapia. Ascite lúpica Pulsoterapia com corticosteróide ou ciclofosfamida, seguida de terapia oral com corticosteróide, azatioprina ou micofenolato mofetil. Lesão linfática pós-cirúrgica Dieta hiperprotéica e hipolipídica, enriquecida com triglicérides de cadeia média. Em caso de não-reposta, iniciar dieta zero, NPT, somatostatina ou octreotide e paracenteses conforme a demanda. Se ainda assim não for obtida resposta clínica, o tratamento cirúrgico se impõe, após a localização do vazamento por linfangiograma ou linfocintilografia. 18 - Como tratar as ascites com GASA > 1,1 g/dL não-cirróticas? Síndrome de Budd-Chiari Analgésicos, diuréticos, paracenteses de demanda e anticoagulação. Em caso de não-resposta, tentar angioplastia associada ou não à trombólise in situ. Derivação porto-sistêmica intra-hepática transjugular (TIPS) e transplante hepático devem ser considerados como terapias de resgate. Doença veno-oclusiva Resolução espontânea ocorre em 70% a 80% dos casos. Nos casos persistentes, dieta hipossódica, diuréticos e paracenteses de demanda são indicados. Transplante hepático é raramente necessário. Trombose da veia porta Ascite é geralmente leve e apresenta resolução espontânea com freqüência. Nos casos persistentes, além de dieta hipossódica, diuréticos e paracenteses de demanda, a anticoagulação deve ser utilizada (recanalização em mais de 80% das vezes). Compressões intra-hepáticas Nódulos benignos ou cistos devem ser abordados cirurgicamente ou com punção guiada. Tratamento paliativo é reservado para compressões malignas. Insuficiência hepática aguda Providenciar suporte especializado em unidade de terapia intensiva de instituição que possa viabilizar a realização de transplante hepático. Ascite cardíaca: tratar a cardiopatia de base, quando possível. A resposta aos diuréticos é habitualmente ruim e deve-se considerar o grau de disfunção hepática para a indicação de transplante cardíaco. Ascite mixedematosa Resolução da ascite em semanas após início de reposição hormonal apropriada. 19 - Como tratar a ascite do paciente cirrótico?

Ascite é a complicação mais comum da cirrose hepática e aproximadamente 60% dos pacientes com cirrose compensada desenvolvem ascite dentro de um intervalo de 10 anos, se a doença de base não for tratada. O aparecimento de ascite define mau prognóstico da cirrose hepática, já que cerca de 50% destes pacientes evoluem para óbito em 2 a 3 anos, se não forem submetidos a transplante hepático. Assim, a identificação de ascite em um paciente cirrótico significa indicação de transplante hepático. Além disso, devem também ser fornecidos suporte nutricional adequado e vacinação contra os vírus da hepatite B e hepatite A, pneumococo e influenza.

O manejo específico da ascite é baseado em seu volume

Ascite grau 1

Dieta hipossódica (70 a 90 mEq/dia).

Page 9: Ascite

www.medicinaatual.com.br

Ascite grau 2

Dieta hipossódica e diurético(s). A presença ou não de edema de membros inferiores auxilia na condução da ascite com diuréticos:

• Sem edema de membros inferiores: dose inicial de espironolactona 100 a 200 mg/dia ou amilorida 5 a 10 mg/dia (se ginecomastia dolorosa). Objetivo: perda de 0,5 kg/dia.

• Com edema de membros inferiores: dose inicial de espironolactona 100 a 200 mg/dia ou amilorida 5 a 10 mg/dia (se ginecomastia dolorosa) + furosemida 20 a 40 mg/dia. Objetivo: perda de 1,0 kg/dia.

Deve-se checar peso a cada 7 dias. Não havendo perda satisfatória de peso, dosa-se a excreção urinária de sódio: se acima de 90 mEq/dia indica má aderência à dieta hipossódica. Se necessário, as doses de diuréticos poderão ser aumentadas até doses máximas de 400 mg/dia de espironolactona, 160 mg/dia de furosemida e 40 mg/dia de amilorida.

Ascite grau 3

Paracentese é a base do tratamento, que deve ser feito em âmbito hospitalar com os seguintes esquemas:

• Se albumina disponível para reposição: paracentese total e infusão intravenosa de albumina humana, na proporção de 8 g para cada litro de líquido ascítico retirado.

• Se albumina não disponível para reposição: paracentese parcial (até 5 L) e infusão intravenosa de soro fisiológico (1 a 2 L), dextran-70 ou poligelina, na proporção de 8 g e 150 mL por litro de líquido ascítico retirado, respectivamente.

Em seguida, iniciar dieta hipossódica (70 a 90 mEq/dia) e diuréticos, com o objetivo de perder 1,0 kg/dia até a obtenção de ascite grau 1 a 2:

• Paciente sem diureticoterapia prévia: dose inicial de espironolactona 200 mg/dia + furosemida 40 mg/dia.

• Paciente anteriormente sob diureticoterapia: reiniciar espironolactona + furosemida com doses superiores às doses anteriores.

Checar peso diariamente. Novas paracenteses poderão ser necessárias. Não havendo perda satisfatória de peso, dosar excreção urinária de sódio: se acima de 90 mEq/dia indica má aderência à dieta hipossódica. Se necessário, as doses de diuréticos poderão ser aumentadas até doses máximas de 400 mg/dia de espironolactona e 160 mg/dia de furosemida.

20 - O que é ascite refratária?

Ascite refratária é o nome dado à ascite na qual a retenção orgânica de sódio não pode ser superada pelo aumento da excreção urinária de sódio induzida farmacologicamente. Distinguem-se dois tipos de ascite refratária:

Ascite diurético-resistente Ascite que não pode ser mobilizada ou cuja recorrência não pode ser evitada, ainda que o paciente esteja sob doses máximas de diuréticos e sob dieta hipossódica adequada. Ascite diurético-intratável Ascite que não pode ser mobilizada ou cuja recorrência não pode ser evitada em virtude do desenvolvimento de complicações da diureticoterapia que impedem a utilização de doses efetivas de diuréticos. Exemplos de complicações: encefalopatia hepática, insuficiência renal, hiponatremia dilucional e hipo ou hipercalemia. 21 - Como abordar a ascite refratária?

A terapêutica da ascite refratária deve ser encarada como ponte até a realização do transplante hepático e se baseia na realização de paracenteses totais periódicas, conforme a demanda, com reposição de albumina na proporção habitual. Se a reposição de albumina não for disponível, paracenteses parciais em intervalos menores constituem alternativa. Para se reduzir a freqüência das paracenteses, deverão ser mantidas a dieta hipossódica (70 a 90 mEq/dia) e a diureticoterapia. Esta última deverá ser suspensa na presença de complicações ou se a excreção urinária de sódio for menor que 30 mEq/dia.

Page 10: Ascite

www.medicinaatual.com.br

22 - Qual o papel do TIPS na ascite refratária?

O alto custo e a freqüente ocorrência de estenose/obstrução da prótese (~70% em 1 ano) e encefalopatia hepática (~30%) colocam o TIPS como segunda opção no manejo da ascite refratária. A colocação de TIPS deve ser considerada nos seguintes casos:

• ascite septada; • necessidade de 3 ou mais paracenteses por mês; • desejo do paciente de evitar paracenteses de repetição.

No entanto, o candidato ao TIPS deve preencher os critérios abaixo:

• idade < 70 anos; • ausência de cardiopatia ou pneumopatia concomitante; • reserva funcional hepática mínima: bilirrubinas < 5 mg/dL, RNI < 3,0, escore de Child <

12 e escore MELD < 14 (ver no tema Cirrose hepática); • ausência de encefalopatia hepática.

23 - Quais são as principais complicações da ascite ?

São três as principais complicações da ascite em pacientes cirróticos:

Herniações da parede abdominal (~ 20% dos cirróticos com ascite) As mais freqüentes são as hérnias periumbilicais, incisionais e inguinais. Perfuração pode ocorrer nas ascites tensas não-tratadas e encarceramento pode surgir nas rápidas mobilizações de ascites grau 3. Tentativas de correção cirúrgica podem ser feitas, mas apenas após o controle satisfatório da ascite e com máxima atenção para intercorrências infecciosas. Hidrotórax hepático (5% a 10% dos cirróticos) Definido pela presença de derrame pleural com mais de 500 mL identificado em pacientes com cirrose hepática e sem doença cardiopulmonar coexistente. O provável mecanismo fisiopatogênico envolve a passagem de líquido ascítico da cavidade peritoneal para a pleural através de pertuitos transdiafragmáticos com diâmetro inferior a 1 cm. É mais comumente encontrado de forma unilateral, à direita, mas ocasionalmente pode ser bilateral, com maior volume em hemitórax direito. Não é raro o seu diagnóstico em indivíduos cirróticos com dispnéia e sem ascite clinicamente evidente. O tratamento definitivo do hidrotórax hepático é o transplante de fígado. As opções terapêuticas até a realização deste incluem: dieta hipossódica + diureticoterapia, toracocenteses de repetição e, eventualmente, TIPS.

Infecções do líquido ascítico.

24 - Quais os tipos de infecção do líquido ascítico ?

Conforme a contagem de PMN, os resultados das culturas e a presença ou não de fonte intra-abdominal de infecção passível de tratamento cirúrgico, podem ser divididas em cinco grupos:

Ascite neutrocítica cultura-negativa Cultura do líquido ascítico negativa; PMN > 250/mm3; ausência de antibioticoterapia prévia (mesmo uma única dose); ausência de explicações alternativas para uma contagem elevada de PMN (hemorragia, carcinomatose, tuberculose, pancreatite, etc.). Cefalosporina de 3ª geração por 5 dias é indicada (p.ex., cefotaxima 2 g q8h). Bacterascite não-neutrocítica monomicrobiana Cultura do líquido ascítico positiva para um único patógeno; PMN < 250/mm3; ausência de fonte infecciosa intra-abdominal cirurgicamente tratável. Considerar antibioticoterapia guiada pelo teste de sensibilidade antimicrobiana por 5 dias nos pacientes sintomáticos ou se culturas persistentemente positivas. Bacterascite polimicrobiana Múltiplos patógenos identificados pelo Gram e/ou cultura; PMN < 250/mm3. Geralmente representa perfuração de alça intestinal durante a paracentese. Indica-se associação de cefalosporina de 3ª geração (p.ex., cefotaxima 2 g q8h) e agente anaerobicida (p.ex., metronidazol), com duração guiada pela resposta clínica e pelas paracenteses de controle.

Page 11: Ascite

www.medicinaatual.com.br

Peritonite bacteriana secundária Cultura positiva (usualmente por múltiplas bactérias); PMN > 250/mm3; presença de fonte infecciosa intra-abdominal cirurgicamente tratável (p.ex., abscesso intra-abdominal, ruptura/perfuração de víscera oca). Requer associação de cefalosporina de 3ª geração (p.ex., cefotaxima 2 g q8h) e agente anaerobicida (p.ex., metronidazol) por cerca de 2 semanas e intervenção cirúrgica imediata. Peritonite bacteriana espontânea Cultura positiva (geralmente monomicrobiana); PMN > 250/mm3; ausência de fonte infecciosa intra-abdominal cirurgicamente tratável. Uma contagem de PMN > 500/mm3 é ainda mais específica para o seu diagnóstico. O diagnóstico através de fitas reagentes é promissor, mas ainda carece de padronização. Corresponde à aproximadamente 25% das infecções que incidem sobre pacientes cirróticos. 25 - Qual a fisiopatogenia da peritonite bacteriana espontânea (PBE)?

Ao longo das últimas décadas, foi demonstrado que a PBE é resultante do processo denominado translocação bacteriana, que consiste na migração de bactérias Gram-negativas provenientes das alças intestinais para os linfonodos mesentéricos, após atravessarem a barreira mucosa intestinal. Na cirrose hepática, a hiperatividade do sistema nervoso simpático gera hipomotilidade intestinal, a qual propicia supercrescimento bacteriano e lesão mucosa mediada por endotoxinas. Além disso, a hipertensão portal causa edema da submucosa intestinal, rompendo a sua integridade protetora e facilitando a translocação. Subseqüentemente, surgem bacteremia e colonização do líquido ascítico, configurando uma bacterascite não-neutrocítica monomicrobiana. Em seguida, dois desfechos são possíveis, a partir da interação entre fatores de virulência da bactéria translocada e a resposta imune do hospedeiro: resolução da bacterascite ou desenvolvimento de PBE. A redução da atividade de opsonização do líquido ascítico (expressa indiretamente por uma concentração total de proteínas no líquido ascítico < 1 g/dL) é considerada a principal alteração imunológica envolvida na instalação da PBE em pacientes cirróticos.

26 - Qual a apresentação clínica da peritonite bact eriana espontânea (PBE)?

Até 50% dos cirróticos com PBE são assintomáticos. Este fato, juntamente com a alta mortalidade associada ao manejo inadequado da infecção (até 80%), serve de base para a recomendação de submeter todo cirrótico com ascite a uma paracentese diagnóstica.

Dentre os pacientes sintomáticos, os achados mais prevalentes são:

Febre: ~ 70%

Alteração do nível de consciência: ~ 55%

Dor abdominal: ~ 50%

Sinais de irritação peritoneal: ~ 10%

27 - Quais os principais microorganismos envolvidos na peritonite bacteriana espontânea (PBE)?

Em pacientes que não se encontram sob esquema de descontaminação intestinal seletiva, os três patógenos mais freqüentemente encontrados na PBE são:

• Escherichia coli: ~ 37% • Klebsiella pneumoniae: ~ 17% • Streptococcus sp. (principalmente S. pneumoniae): ~ 12%

A participação de bactérias anaeróbias é estimada em apenas 1% dos casos, mesma proporção de casos associados a infecções polimicrobianas.

O uso crônico de antibióticos (norfloxacina ou neomicina) como descontaminação intestinal seletiva profilática muda o perfil bacteriológico da PBE, havendo predomínio de bactérias Gram-positivas neste contexto (> 80%).

Page 12: Ascite

www.medicinaatual.com.br

28 - Qual o tratamento da peritonite bacteriana esp ontânea (PBE)?

A base da terapêutica da PBE é a administração imediata de antibioticoterapia empírica, tão logo seja identificada no líquido ascítico com GASA > 1,1 g/dL uma contagem de PMN > 250/mm3. São opções:

• Cefalosporinas de terceira geração, por via intravenosa (IV): o Cefotaxima: 2 g de 12-12 horas o Ceftriaxone 2 g de 24-24 horas

• Amoxacilina/clavulanato: 1 g/0,2 g de 8-8 horas IV, substituindo-se para via oral após resposta clínica, na dose de 500 mg/125 mg de 8-8 horas.

Duas situações especiais podem modificar o tratamento habitual da PBE:

• PBE “não-complicada”, definida pela ausência dos seguintes fatores: hemorragia digestiva associada, encefalopatia hepática, íleo paralítico, choque séptico, insuficiência renal aguda (creatinina > 3 mg/dL), ou história pregressa de PBE. Nestes casos, pode-se utilizar ofloxacina por via oral na dose de 400 mg q12h.

• PBE complicada com insuficiência renal, definida como creatinina > 1 mg/dL e bilirrubina total > 4 mg/dL: associar infusão IV de albumina na dose de 1,5 g/kg no Dia 1 e 1,0 g/kg no Dia 3, com o limite máximo de 100 g/dia.

A duração da antibioticoterapia deve ser entre 5 e 8 dias.

29 - Qual o papel da paracentese de controle no man ejo da peritonite bacteriana espontânea (PBE)?

Classicamente, propõe-se uma paracentese de controle cerca de 48 horas após o início da antibioticoterapia, a fim de comprovar a obtenção de resposta terapêutica, definida pela redução na contagem de PMN superior a 25% da contagem basal. Na ausência desta resposta, deve-se considerar:

• Peritonite bacteriana secundária (perfuração de víscera oca): providenciar radiografia de abdome em ortostatismo e/ou TC de abdome.

• Infecção por bactéria resistente: considerar troca por amoxacilina/clavulanato, ampicilina/sulbactam ou vancomicina.

Em pacientes com resposta clínica óbvia à antibioticoterapia, a paracentese de controle é dispensável.

30 - Quais outras medidas são importantes no tratam ento da peritonite bacteriana espontânea (PBE)?

São elas:

• suspender diuréticos; • evitar paracenteses de grande volume (> 5 l); • inscrever o paciente em programa de transplante hepático (se não previamente

inscrito). 31 - Como prevenir a peritonite bacteriana espontân ea (PBE)?

Três são os contextos onde a profilaxia da PBE se aplica:

Após episódio de PBE Iniciar logo após a antibioticoterapia. Opções: norfloxacina 400 mg/dia (clássica), ciprofloxacina, levofloxacina e sulfametoxazol/trimetoprima, todas por via oral. Manter indefinidamente até o transplante hepático, óbito ou resolução da ascite. Após hemorragia digestiva varicosa A profilaxia da PBE é indicada independentemente da presença de ascite. Opções: norfloxacina 400 mg q12h ou ciprofloxacina 500 mg q12h, se via oral viável; ciprofloxacina 200 mg q12h, se a via oral não for possível. Manter por 7 dias ou até a alta hospitalar. Profilaxia primária (pacientes que nunca tiveram PBE) Para pacientes com concentração total de proteínas no líquido ascítico < 1 g/dL. Pode ser também considerada em indivíduos com bilirrubinemia total > 3,2 mg/dL e/ou contagem plaquetária < 98.000/mm3. Opções: norfloxacina 400 mg/dia ou ciprofloxacina 500 mg/dia, ambas por via oral. Para evitar a seleção de cepas resistentes, alguns autores preconizam a

Page 13: Ascite

www.medicinaatual.com.br

restrição da profilaxia primária para pacientes de risco apenas durante hospitalizações, com suspensão após a alta hospitalar. 32 - Qual o prognóstico da PBE?

A taxa de recorrência após um episódio de PBE é de 70% em 1 ano. A mediana de sobrevida de cirróticos com PBE é de 9 meses. As sobrevidas em 1 ano e 2 anos são estimadas em 30-50% e 25-30%, respectivamente.

33 - Leitura recomendada

American Society for Reproductive Medicine. Ovarian hyperstimulation syndrome – The Practice Committee of the American Society for Reproductive Medicine. Fertil Steril 2006;86(Suppl 4):S178-S183.

Cárdenas A, Arroyo V. Management of ascites and hepatic hydrothorax. Best Pract Res Clin Gastroenterol 2007;21:55–75.

Cárdenas A, Chopra S. Chylous Ascites. Am J Gastroenterol 2002;97:1896–1900.

Chebli JMF, Gaburri PD, Souza AFM et al. Internal Pancreatic Fistulas – Proposal of a Management Algorithm Based on a Case Series Analysis. J Clin Gastroenterol 2004;38:795–800.

Ghassemi S, Garcia-Tsao G. Prevention and treatment of infections in patients with cirrhosis Best Pract Res Clin Gastroenterol 2007;21:77–93.

Helmy A. Review article: updates in the pathogenesis and therapy of hepatic sinusoidal obstruction syndrome. Aliment Pharmacol Ther 2006;23:11–25.

Moore KP, Aithal GP. Guidelines on the management of ascites in cirrhosis. Gut 2006;55(Suppl VI):vi1–vi12.

Moore KP, Wong F, Ginès P et al. The Management of Ascites in Cirrhosis: Report on the Consensus Conference of the International Ascites Club. Hepatology 2003;38:258–66.

Sanai FM, Bzeizi KI. Systematic review: tuberculous peritonitis – presenting features, diagnostic strategies and treatment. Aliment Pharmacol Ther 2005;22:685–700.

Sandhu BS, Sanyal AJ. Management of Ascites in Cirrhosis. Clin Liver Dis 2005;9:715–32.