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Aspectos do Trabalho Policial - Cap 5 - pdf pesquisável · Pesquisa Aplicada em Justiça Criminal e ... No capítulo I me propus a ... mas também dos padrões de prestação de

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Há um livro indispensável, tanto para policiais como para pesquisadores, na

bibliografia eonremporânea sobre poli­ ciamento: a obra de Egon Bittner, ils­ pWOJ do Tral.iatho Poliáal. Ao contrário de muitos outros autores que se especializa­

ram nos estudos da polícia, Bittner ja­ mais deixou de se envolver em outros

projetos acadêmicos além das práticas policiais, estudando o funcionamento da justiça, as estratégias para enfrentar a criminalidade, a construção da paz e o limites da legalidade. n ... r; ••..•.. iro impacto de quem lê os es-

e Bittner é sua extrema clareza, 1sue t:\ rta qualquer jargão. As funções da pnlí,·,~ 11.1 sociedade moderna, as avalia­

çnt~ de inovações (como o policiamen­

to comumcário), a cultura das corpora-

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Biblioteca

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

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Série Polida e Sociedade S O rganização; Nancy C1 rdia

NEV :,!ÚCLEO OE ESTIJ00S DA VIO~CTA-CEPIO.FAPESP-USP

Coordenador do i\'EV·USP CoorderradIJro /ldj1mta do NEV-USP

Paqui.sador Emérito G!m1te da Projeto

Sérgio Adorno Nancy Cardia Paulo Sérgio Pinheiro Eduardo Brito

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor Vire-reitor

Adolpho José Melfi Hélio Nogueira da Cruz.

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Diretor-presidente Plínio Martins Filho

CO\ilSSÃO EDITORIAL

Presidente José M indl i n Yice-presidente Oswaldo Paulo Forauíni

Brasílio João Sallum Júnior Carlos Albeno Barbosa Dantas Guilherme Leite da Silva Dias Laura de Mello e Souza Murillo Marx Plioío Martins Filho

Diretora Editorial Síívana Biral Diretora Comercial Eliana Urabayashi

Diretora Admi1tlsrrariva Angela Maria Conceição Torres Edltora-assistente Marileaa Vizenün

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Egon Bittner

ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

TRADUÇÃO

Ana Luísa Amêndola Pinheiro

FORO NEV - Núcleo de FOUNDATION Estudos da Violência-USP

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Título do original cm ingMs Aspws of Police Work

"O Coneeuo de Anormalidade Men1:il lt.fortn/Abmm11a/ityl nn Administração da JustiÇ'J Fora dos Tribunais", Ciba Foundation S1·m~ium oir 1/ie Mmmlly Ab111,mU1I Of!cndcr. Copyright C 1968 b)• Ciba Foundation.

"Polícia Urbana", Et1'>-dopttli11 Qf vime mrtl /ustire l, Sanford Kadish, ed. Copyright O 1983 by Thc Free Press.a Division ofMacmilhm,lnc.

"Pesquisa Policial e Trabalho Policial", Po/irc )'r!lrbook. Copyri&ht O 1973 by The lntcrnational /\$5.0Ci3lion of Chkfs of Pohee, lnc.

"Questões Policiais Emerg<?ntcs•, LoralGo1·erm1mrt Polict Mmragemmt, 2. ed, Copyright Q 1982 by Toe lntcmational City Management Association.

"Asccnslo e Queda da. 'Tênue Llnha Azul"; Revit1vs i11 Amcriam History6, n. 3 (sei. de 1978). "Lei:,i)idade e Capacitação: Introdução ao Controle na Organização Policial'; Co111rol itt tlic Police

O,gani.:.1tion. Copyright C 1983 by Thc M LT Press, ·o Poder Discricionário da Polícia na Detenção de Emergência de Pessoas Mentalmente Perturbadas",

Soci,11 Problmrs 14, n, 3. Copyright Q 1967 by thc Society for the Study of Social Problems. "Policiando jovens: O Contexto Social ela Pr.l1ica DiMia': P11rmi11g J1wice for tire Orild. Cop)'right O

1976 by The Univers! ty of Chicago Press, "O Impacto das Relações entre a Polícia e a Ccrnunldade no Sistema Policial" Community Relatiam

,md rhe Admini.strorio11 of Jus1ice. Copyright O 1979 by John Wiley & Sons, lnc. Para os demais artigos Coprrigh t C 1990 Northeaster n Uni\-crsity Press, Boston.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) [Càmara Brasileira do Livro,SP, Brasil)

Biuner.Egon, 1911- Aspcctos do Trabalho Policial / Egon Bittner; tradução Ana Luísa

Ammdola Pinheiro. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. - (Série Policia e Sociedade; n. 8/0rganizaçí!o: Nancy Cardia)

Ti1 ulo original: Aspects of Police Work Bibliografia. ISBN 85-314-0759-1

l. Polícia 2. Pol feia -Aspectos sociais J. Titulo. ll. Série.

OJ-0254 CDD-363.2

Índices para catálogo sistem.llico: 1. Polícia.: Trabalho: Problemas sociais 363.2 2. Trabalho policial: Problemas sociais 363.2

Direitos em língua portuguesa reservados à

Edusp- Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa), 374 ff> andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universilária 05508-900 - São Paulo- SP - Brasil Fax (Oxx 11) 3091 -1151 ra. (Oxxl 1) 3091-4008 / 3091-4150 www.usp.br/edusp -e-mail: [email protected]

Printed ín Brazil 2003

Foi feito o depósito legal

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P11ra meus fiéis companheiros Jean, Tom e Débora,

que tornaram este tr11balho possível e necessário.

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SUMÁRIO

Agradecimentos 11

Introdução 13

1. Polícia Urbana 29

2. Policiamento em Áreas Deterioradas: Um Estudo da Manutenção da Paz 41

3. O Poder Discricionário da Polícia na Detenção de Emergência de Pessoas Mentalmente

Perturbadas 71

4. As Funções da Polícia na Sociedade Moderna: Uma Revisão dos Fatores Históricos,

das Práticas Atuais e dos Possíveis Modelos do Papel da Polícia 93

5. Florence Nightingale Procurando Willie Sutton: Uma Teoria da Polícia 219

6. Questões Policiais Emergentes 251

7. O Impacto das Relações entre a Polícia e a Comunidade no Sistema Policial 273

8. Pesquisa Policial e Trabalho Policial 293

9. Policiando Jovens: O Contexto Social da Prática Diária 303

10. Legalidade e Capacitação: Introdução ao Controle na Organização Policial 327

11. Ascensão e Queda da "Tênue Linha Azul" 335

l 2. A Insígnia Partida: Reuss-Ianní e a Cultura do Policiamento 345

13. Pesquisa Aplicada em Justiça Criminal e Considerações Éticas 355

14. O Conceito de Anormalidade Mental [Me11tal Abnormality] na Administração da Justiça fora dos Tribunais 365

f ndice Remissivo 379

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5 fWRENCE NIGHTINGALE PROCURANDO

WILLIE SUTTON: UMA TEORIA DA POLÍCIA

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Entre as instituições do governo moderno, a polícia ocupa uma posição quedes­ perta um interesse especial: Ela é, ao mesmo tempo, a mais conhecida e a menos com­ preendida de todas elas. A mais conhecida porque, mesmo os membros minimamen­ te competentes da sociedade sabem de sua existência, são capazes de pedir pelos serviços que ela proporciona com notável competência, e sabem como se conduzir na presença dela. Até que ponto a polícia é conhecida, e como ela interfere nas vidas das pessoas, isso varia consideravelmente na escala da desigualdade social. Mas, para con­ ceber pessoas que não tenham contato com a polícia, é preciso trazer à mente ima­ gens de um isolamento virtualmente completo ou de enorme riqueza e poder. Ao mesmo tempo ela é a menos compreendida porque, ao serem convocadas para expli­ car em que termos e para que fins o serviço policial é estabelecido, as pessoas são in­ capazes de ir além do lugar comum mais superficial e equivocado que, além disso, está totalmente fora da habilidade de interação que manifestaria suas experiências com os policiais. O que é verdade acerca das pessoas, é também verdade no que toca à polícia. Os policiais não foram bem sucedidos em formular uma justificativa para sua existência que, de modo reconhecível, pudesse ser relacionada ao que eles de fato fa­ zem (sem contar aquelas atividades de seu labor que eles desaprovam ou condenam). A situação é semelhante à de uma pessoa que, quando solicitada a explicar corno fala, dá uma descrição que, embora esteja em perfeita ordem lingüística, não chega nem perto de fazer justiça à habilidade envolvida na produção de um enunciado.

No capítulo I me propus a explicar a função da polícia, chamando a atenção para o que sua existência pode oferecer à sociedade. Tudo continuando como é, não poderia

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

er feito de outra maneira, e isso demonstra que, quando considerado no âmbito desse relacionamento, tudo o que os policiais são solicitados a fazer se encaixa. Minha tese é que a polícia é autorizada e requisitada para impor - ou, conforme o caso, utilizar - medidas coercivas para estabelecer uma solução provisória para problemas emergen­ tes, sem ter de tolerar oposições de nenhum tipo ou submeter-se a das; e que, além dis- o, sua competência para intervir se estende para qualquer tipo de emergência, sem qualquer exceção. Isso, e somente isso, é o que a existência da polícia por si só propor­ ciona, e é nessa base que se deve exigir que ela faça seu trabalho, seja de agentes na cap­ tura de ladrões, seja de enfermeiros, dependendo da ocasião. E embora as chances de que um policial reconheça qualquer problema ( como um assunto que lhe diz respeito) dependam não só de regulamentação externa e de certos interesses sociais estruturados mas também dos padrões de prestação de contas e responsabilidade historicamente estabelecidos, cada limitação proveniente desses fatores é revogável em cada caso espe­ dfico do trabalho policial. Isso significa que a conveniência da ação policial é, em pri­ meiro lugar, determinada em relação à natureza particular e real do caso em questão, e apenas de modo secundário pelas normas gerais. Vai além do escopo da argumentação avaliar se é ou não desejável (em termos das, vamos dizer, aspirações a uma política democrática) o serviço que a polícia é a única considerada competente para fornecer. Mas, ao fazer a revisão da prática e da organização, considero o que está em oposição ao que deveria acontecer, através de certos critérios internos do empreendimento.

Este capítulo é francamente argumentativo, e pretende fornecer lenha para a fo­ gueira do debate. Assim, não vou tentar analisar todas as questões por todos os ângu­ los, e em especial, não vou levar em consideração expedientes simplesmente adminis­ trativos ou fazer concessões às pretensões de racionalidade que estão relacionadas com a atitude do tipo viva e deixe viver. Com certeza, tudo isso conta, mas tento impedir que influencie o que tenho a dizer; e, mesmo argumentando com todas as minhas forças, não pretendo me descartar de meus oponentes nessa polêmica, mas pagar um tributo a eles. Meu plano é começar com uma revisão superficial de algumas prelimi­ nares - tratando principalmente a idéia de polícia - através dos meios que considero indispensáveis seguir. Em seguida, esboçando um evento bastante corriqueiro eco­ mum dentro do trabalho policial, utilizo-o para explicar o que se exige que o policial faça nessa situação, em situações semelhantes a essa e, por extensão, em qualquer ou­ tra situação. Finalmente, tento caracterizar os problemas que parecem exigir a inter­ venção policial e definir o papel que a força representa nessas intervenções. Para con­ cluir, comento o significado prático do trabalho policial na sociedade e as habilidades a ele relacionadas que estão em jogo, ou deveriam estar.

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FLORENCE NIGHTíNCALE PROCURANDO WILLIE SUTTOt-:: ...

A BASE OFICIAL DOS MANDATOS DE APLICAÇÃO DAS LEIS

Embora o termo polícia seja utilizado para se referir às corporações específicas de funcionários públicos, vale a pena mencionar que seu uso original engloba todo o âmbito interno do governo, contrapondo-se à condução dos assuntos estrangeiros. Sir Francis Bacon, por exemplo, afirmou que uma nação, ao ser «civil ou politizada" 1 civil or policied], adquire o direito de subjugar outras que forem "totalmente incapa­ zes ou indignas de governar" (Bacon, 1859, p. 29). Com o tempo, esse uso deu lugar a um outro, limitado ao exercício do controle para manter a legalidade [ e punir as trans­ gressões] em questões que afetam o interesse público. Blackstone estabelece que "a economia pública e o exercício público do controle [police] [ ... J dispõem a regula­ mentação e a ordem interna apropriadas para o Reino, embora os indivíduos do Esta­ do, como os membros de uma família bem governada, devam conformar seus com­ portamentos gerais a leis de propriedade, boa vizinhança e boas maneiras, e serem decentes, trabalhadores e inofensivos em suas respectivas posições" (Blackstone, s.d., p.161). Essa definição aparece no volume que trata dos erros públicos relacionados a uma classe específica de delitos, chamados de crimes contra a administração [police] e a economia públicas. Por volta do final do século XIX, Sir James Fitzjames Stephen trata essa classe de delitos como alheia ao âmbito da legislação criminal, mas sendo explicitamente relacionada, entretanto, com a polícia então existente na Inglaterra (Stephen, 1833, p. 246). Embora tanto Blackstone como Stephen tratem a categoria de crimes administrativos superficialmente, eles de fato dão autoridade legal para cada item discutido. A intenção de legalizar escrupulosamente o controle das condenações também está inerente ao "léxico próprio [idiom] da apologética, que pertence ao vo­ cabulário da legislação constitucional" (Hamilton e Rodee, 1937, p. 192), comumente invocado para justificar cerceamentos das liberdades civis no interesse da "saúde, moral e segurança públicas" (Mugler vs, Kansas, 1887). De fato, mantendo-se nos con­ ceitos americanos de legalidade, o juiz Harlan, falando pela maioria no caso Mugler, reservou o direito de revisão judicial dos estatutos estabelecidos no exercício dopo­ der policial.

A maioria das infrações [offenses] contra a "policia" pública mencionadas por Blackstone não são mais consideradas como tal. Mas, desde que seus comentários apa­ receram, expandiu-se enormemente o domínio legalmente sancionado, que ele dis­ cutiu, do controle da transgressão, assim como as cláusulas da legislação criminal. Dificilmente vai haver alguma atividade humana, algum relacionamento interpessoal, algum arranjo social que não esteja sob alguma forma de regulamentação governa-

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

mental, cuja violação é ligada a penalidades. Dizer que a vida moderna é controlada desse modo não significa dizer que é mais controlada do que a vida de antigamente. Com toda certeza, os homens das tribos, os camponeses ou os cidadãos das cidades coloniais não viviam cm um paraíso em termos de liberdade. De fato, no que toca à proliferação do controle formal, a explicação mais aceita - que o associa ao cresci­ mento de uma ordem industrial, urbana, orientada para o mercado - implica primei­ ramente uma mudança da confiança nos mecanismos informais da autoridade tra­ dicional para a confiança em meios legais racionais (Weber, 1947, p. 324).

A urbanização trouxe consigo a necessidade de regulamentações formais explíci­ tas, porque as vidas das pessoas que moram nas cidades são repletas de oportunida­ des de infrações, uns contra os outros, e praticamente destituídas de incentivos para evitar isso. A primeira afirmação se deve ao total amontoado de um grande número de pessoas, a segunda ao distanciamento social existente entre elas. Mais importante, talvez, seja que, esses urbanos estranhos entre si [ urban stra11gers] não podem confiar seus destinos à esperança de que toda essa confusão leve a alguma ordem, devido ao modo como atuam em seus negócios para garantir a sobrevivência, e em função da permanente importância disso para suas vidas.

Duas condições devem ser preenchidas para satisfazer a necessidade de um con­ trole governamental formal, ligando de maneira eficaz o comportamento dos indiví­ duos às leis da propriedade. A primeira, já reconhecida no tratamento que Blackstone deu ao assunto, é que todo controle esteja baseado numa autorização precisa, estabelecida por normas legais altamente específicas. A segunda, reconhecida explici­ tarnent, por Stephen, é que, implementada a norma da autorização, sua execução seja incumbência de burocracias impessoais. Em suma, no nosso tempo, "a regulamenta­ ção devida e a ordem interna" é tarefa de inúmeras burocracias de aplicação da lei, cada uma delas utilizando procedimentos legitimados, e ocasionados, pela capacida­ de de cumprir os objetivos legais explicitamente formulados.

aturalmente, o interesse e as práticas reais dos funcionários que aplicam as leis raramente são tão explícitos e específicos como as formulações verbais de seus res­ pectivos mandatos. Assim, por exemplo, embora a autorização formal do trabalho de um inspetor de saúde possa ser clara e específica, as coisas podem se tornar um pouco difíceis quando ele quiser combinar a realidade dos fatos com as cláusulas e os estatu­ tos. Provavelmente varia, de uma burocracia para outra, o tanto de liberdade discri­ cionária necessária para preencher as brechas existentes na formulação legal da com­ petência policial. Os agentes preocupados com pesos e medidas são provavelmente menos livres do que os inspetores de construções. Em geral, entretanto, é mais seguro

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FLORENCE NIGHTINGALE PROCURANDO WIU!E SUTTON: ...

assumir que nenhum vai trabalhar, nem vai ter permissão para trabalhar, fora da es­ fera de seu mandato. E o mais importante é que não haja mistério sobre qual o traba­ lho próprio de tais agentes do policiamento, pois os cidadãos geralmente são bastan­ te capazes de mantê-los dentro de seus limites. Por exemplo, embora as atividades de um policial encarregado de estudantes que cabulam as aulas sejam ricas e variadas, especialmente se ele for dedicado a suas tarefas, ele só pode reivindicar um legítimo interesse na saúde da criança, nas condições de sua casa, ou em quaisquer outras ques­ tões desde que tal interesse possa ser ligado com a ida à escola. Na prática, pode-se debater se a conexão que ele estabelece para isso é possível de ser defendida ou não, mas não haverá debate sobre os termos em que a questão é decidida. Como se sabe o que um policial encarregado de estudantes que cabulam aulas deve fazer, ele pode ser submetido a uma prestação de contas por fazer mais, ou menos, do que seu mandato autoriza ou exige que ele faça; e, pelo mesmo motivo, o policial pode rejeitar exigên­ cias que considerar como estando além de seu poder legal [ ultra vires].

Parece ser razoável esperar que o trabalho próprio da policia - Isto é, da corpo­ ração de policiais que herdou o nome outrora usado para se referir a todo o domínio interno de regulamentação para punir as transgressões- deveria ser determinado do mesmo modo como ocorre com o trabalho de todas as outras burocracias de aplica­ ção da lei. Isto é, pode-se esperar que seus serviços e seus poderes derivem de alguma norma substantiva de autorização. E, realmente, em geral se assume que o código pe­ nal contém tal autorização, além do fato de a polícia ter de aplicar outras leis, em par­ ticular as que regulam o trânsito de veículos. Além disso, a polícia pode ter algumas responsabilidades relativas a outras questões, como licenças para a posse de armas de fogo ou para a operar certos negócios, que variam grandemente de lugar para lugar, Entretanto, no seu todo, as atividades relacionadas ao controle do crime em geral são consideradas básicas para o mandato da polícia, tanto pelos cidadães como pelos po­ liciais, ao menos no sentido de que tais necessidades são consideradas como sendo prioritárias em relação a outras (Gorman et al.; 1973_; Leonard e More, 1971 )1• Embo­ ra eu argumente que essa pressuposição não é correta e leva a interpretações equivoca­ das, e que, se a aceitarmos, não é possível compreender ou controlar o que os policiais de fato realizam, deve-se salientar que há nela aJguns fundamentos cuidadosamente estabelecidos, cuja importância é difícil de superar.

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l. A maioria dos textos sobre a polícia enfütil.a esse ponto e enumera as obrigações adicionais do políclamemo: ver, por exe,nplo,A. C. Gorman, F. D. lay e R. R, J. Gallati, 1973: V. A. Leonard e li. W. More, 1971.

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

As considerações a seguir parecem justificar a pressuposição de que a polícia é um órgão de aplicação da lei, cujo mandato é basicamente derivado das cláusulas dos códigos penais. Primeira, a polícia, seguida por muitos outros, cultiva e faz propagan­ da da imagem do policia] como um combatente de vanguarda na guerra contra o cri­ me. Os americanos - desde os membros do congresso até os leitores de tablóides - estão convencidos de que a atuação da polícia na Juta contra o crime constitui a prin­ cipal parte dessa luta e que, portanto, fazer algo em relação a isso é a principal preocu­ pação do policial. Em segundo lugar, a organização burocrática formal do trabalho policial reforça firmemente a opinião de que a polícia se dedica, principalmente, ao policiamento criminal. O treinamento policial, tal como ele se apresenta, enfatiza os criminalistas, a legislação criminal e os assuntos a ela relacionados; administrativa­ mente, a divisão interna dos departamentos tende a refletir, em primeiro lugar, ases­ pecializações que dizem respeito ao cumprimento da lei criminal formal e as unida­ des são designadas pelos nomes das espécies de crimes; e os registros da polícia são quase que totalmente dedicados às atividades de aplicação da lei em que o controle do crime é o único resultado do trabalho policial passível ser documentado. E, talvez mais importante, o avanço da carreira nos departamentos é determinado, em grande parte, pelo fato de o policial demonstrar iniciativa e habilidade no policiamento criminal; ou, pelo menos, um policial que tenha algumas boas prisões (assim chamadas) a seu crédito sempre pode esperar que isso pese a seu favor (mais do que qualquer outro fator) quando chegar a hora de avaliar seu desempenho geral. Em terceiro lugar, pra­ ticamente sempre, o processo criminal é iniciado pela polícia e, para permanecerem ocupados, os promotores,juízes e o pessoal correcional são altamente dependentes da polícia.Além disso, o papel da polícia na administração da justiça é muito específico e indispensável. Ela é incumbida não só da responsabilidade de realizar investigações que levam à identificação de suspeitos mas também de assegurar a evidência exigida ~~ara que a instauração do processo de acusação seja bem sucedida. E a polícia é obri­ gada a apreender e deter os suspeitos identificados e, no decorrer dessas tarefas, está autorizada a usar a força se ela se fizer necessária. Em quarto lugar, o trabalho de um certo número de policiais - o número provavelmente não é muito grande, mas é gran­ de o suficiente para ser significante - é determinado de fato de modo bastante evi­ dente pelas dáusulas do código penal (mais ou menos da mesma maneira que o tra­ balho dos inspetores das construções é determinado pelo código de construção). Tais policiais são designados para vários setores de investigação, cujas rotinas diárias con­ sistem em investigar de crimes, prender criminosos, e então se engajar em questões relacionadas a esforços para obter condenações.

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FLORENCE NIGHTINGALE PROCURANDO WILLIE SUTTON: .•.

Em suma, o exercício de controle interno, prescritivo nos governos modernos, tem sido altamente legalizado, pelo menos desde o final do século dezoito. O exercício desse controle é atribuído a burocracias especificamente autorizadas, cada uma das quais tem um campo substantivamente limitado de competência policial. Mesmo sen­ do permitido que os policiais retenham uma certa dose de liberdade discricionãría, os termos em que as decisões substantivas podem ser feitas não entram em disputa. De acordo com esse ponto de vista, a polícia freqüentemente é vista como uma das várias burocracias de cumprimento da lei, cujo domínio de competência é determinado pe­ los códigos penais e outras delegações estatutárias.

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A POLÍCIA E A APLICAÇÃO DA LEI CRIMINAL

Assumindo como verdade tudo o que foi dito, por que o mandato policial não pode ser concebido como incorporando o mandato de cumprimento da lei inerente à aplicação da lei criminal? A resposta é muito simples. A despeito de quão profunda­ mente o policiamento criminal seja enfatizado na imagem do policial e na da admi­ nistração da polícia, e a despeito de quão importante de fato o trabalho policial possa ser para manter em funcionamento a administração da justiça criminal, a atividade do policiamento criminal não é, de modo algum, característica das práticas da ocupa­ ção diária, comum, da maioria dos policiais. Em outras palavras, quando se olha o que os policiais de fato fazem, descobre-se que o policiamento criminal é algo que a maior parte deles faz com uma freqüência que fica entre virtualmente nunca e muito raramente.

Mais adiante, neste capítulo, tal paradoxo é diretamente discutido e tento indicar o lugar apropriado do policiamento criminal no trabalho policial. Antes de fazer isso, entretanto, devo discutir algumas questões relacionadas com a alocação de mão-de­ obra, oportunidade de controle do crime, e orientação do trabalho de rotina. Infeliz­ mente, os dados que servem de base para as duas primeiras observações são fracos, em parte porque a informação disponível sobre os assuntos não seja tão rica quanto poderia, mas em grande medida porque os cálculos atuariais [actuarial ratiosJ e as freqüências que menciono foram retiradas de dados produzidos para enfrentar as exigências securitárias de responsabilização mais do que para relatar estritamente o fatos. Aqui é necessária uma certa precaução; é sempre muito fácil cair na tentação de assumir uma atitude de crítica superficial em relação à escassez de dados. O fato é que não se deve esperar nem que a polícia nem que os funcionários de outras ativi­ dades práticas guardem registros que sejam convenientes para acadêmicos estudarem.

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

Em geral eles têm, realmente, boas razões para guardarem aquilo que, aos olhos do aca­ dêmico, parece um conjunto fraco de registros (Carfinkel e Bittner, l 967, pp, 186-207).

De acordo com uma pesquisa dos departamentos municipais de polícia decida­ des com populações entre 300 mil e Imilhão de habitantes, classificação que infeliz­ mente não é nem exaustiva nem completa, 86,5 o/o de todos os policiais de rua - isto é, excluindo os policiais que ocupam posições de supervisão de sargento para cima-. são designados para patrulhas fardadas (Kansas City Police Dcpartment, 1971; Wil­ son, 1963, p. 293)2. Apesar de esses dados excluírem o pessoal que, embora designado para a divisão de detetives, trabalha nos postos de serviço da patrulha civil, provavel­ mente eles superestimam o tamanho relativo da força de patrulheiros que de fato tra­ balham nas ruas. Mas certamente seria seguro assumir que, de cada cinco membros do pessoal que trabalha nas ruas, quatro fazem o trabalho de patrulha, especialmente porque os sargentos da patrulha, cujo trabalho é essencialmente da mesma natureza do trabalho daqueles que eles supervisionam, não estão incluídos nos 86,5%. Mas, dentro da polícia, a importância dos policiais fardados não é inteiramente derivada da preponderância de seu número. Eles representam {numa medida até mesmo maior do que a sua quantidade indica) a presença policial na sociedade. De fato, acredito que todos os outros membros da polícia - em particular as várias espécies de desta­ camentos não fardados - são refinamentos especiais do trabalho policial de patrulha­ mento e melhor entendidos como derivados do mandato de patrulha, mesmo que suas atividades muitas vezes assumam formas que seriam improváveis nas atividades de patrulhamento. Mas gostaria de deixar claro, neste momento, que ao subordinar, concei=olmeme; o trabalho dos detetives ao trabalho do patrulheiro, não tenho a in­ tenção de levantar dúvidas sobre a importância especial que o trabalho dos primeiros têm para os promotores e os juízes. Realmente, espero deixar claras quais são as cir­ cunstâncias em que os promotores e os juízes vêm a ser os beneficiários de um serviço que eles normalmente têm como certo, mas que - em alguns raros momentos de sin­ ceridade - eles confessam não entender.

Pelas razões indicadas, e pelas razões que espero acrescentar daqui para a frente, as observações que se seguem tratam principalmente do trabalho da patrulha fardada. Mas, de fato, sempre que tais referências forem necessárias, pretendo fazer referências

2. Kansas City Police Dcpartmcnt, t971. A pesquisa contém informação sobre 41 cidades com populações entre 300 mil e Irnilhão. Mas a percentagem citada no texto foi computada apenas para as cidades de Atlanta, Boston, BuffaJo, Dallas, Denver, EI Paso, Forl Worth, 1 lonolulu, Kansas City, Memphis, Minneapolis, Oklahoma City, Pittsburgh, Portland, Ore.,SL Paul,.e San Antonio, porque os dados das outras cidades não eram suficicntcme111e detalhados. A estimativa de que os detetives constitulam 13,5% do pessoal da rua condiz com a estimativa de O. W. Wilson ( 1963, p. 293), que estabeleceu constituírem aproximadamente 10% do "pessoal juramentado"

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a outras partes das polícia. Realmente, a primeira observação sobre o policiamento criminal pertence tanto ao trabalho dos detetives quanto ao dos patrulheiros.

É bem conhecido o fato de que os códigos penais que a polícia precisa aplicar contêm milhares de artigos. Embora muitos desses artigos sejam obscuros, desconhe­ cidos ou até mesmo atualmente irrelevantes, e a administração da justiça criminal esteja concentrada em torno de urna fração relativamente pequena de todos os atos condenáveis, mesmo a partir desse conjunto, a polícia seleciona apenas algumas leis para aplicar. Levando em conta principalmente minhas observações, acredito que a polícia tende a evitar o envolvimento com crimes em que se assume que os réus, acu­ sados ou suspeitos, não tentarão evitar o processo criminal através da fuga. É caracte­ rístico, por exemplo, eles remeterem diretamente ao promotor os cidadãos que se queixam por terem sido fraudados pelos negociantes ou locatários. Tal recomenda­ ção freqüentemente também é dada em casos relacionados a outros tipos de alega­ ções de crimes de propriedade, que envolvam pessoas (reais ou fictícias) que têm pro­ priedades substanciais. Certamente, em alguns desses casos, é possível que a ofensa seja de natureza civil e não de natureza criminal, e deve-se também levar em conta que nesse caso funciona um princípio de economia, pois a polícia não admite respon­ sabilidade por alguns delitos simplesmente em função da falta de recursos para lidar com eles. É razoável sugerir, entretanto, que o interesse policial no cumprimento da lei criminal é limitado àqueles crimes em que é necessário capturar o perpetrador e isso pode envolver o uso da força física. O principal em tudo isso é que a polícia sim­ plesmente ignora e não se interessa pela maioria das cláusulas do código penal, mas que sua seletividade segue um princípio específico, isto é, que ela se sente obrigada a agir apenas quando sua competência especial é exigida, e tal competência especial está relacionada com a possibilidade de que a força possa ter de ser usada para assegurar que o acusado compareça ao tribunal. Essa restrição não é certamente refratária, e é freqüente acontecer que os policiais sejam, por uma série de razões circunstanciais, requeridos a atuar em casos cm que não está sendo colocado em dúvida que o acusa­ do vá aparecer voluntariamente no tribunal. :Ê interessante, entretanto, que em mui­ tos desses casos, a polícia provavelmente dê um show simbólico de força, algemando sem qualquer motivo uma pessoa presa.

Tornou-se comum dizer que não é freqüente os policiais do patrulhamento in­ vocarem a lei. Mas este não é um modo muito bom de encarar o que ocorre, poi pode-se também dizer que os neurocirurgiões não operam com freqüência, pelo me­ nos em comparação com a freqüência com que os motoristas de táxis transportam passageiros. Portanto, é conveniente tentar ser um pouco mais específico sobre esse

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assunto. De acordo com estimativas publicadas pela divisão de pesquisa da Associa­ ção Internacional dos Chefes de Polícia, "a percentagem do esforço policial devotada a matérias da legislação criminal tradicional provavelmente não excede os dez por cento" (Niederhoffer, 1969, p. 75). Reiss, que estudou as práticas de patrulhamento em inúmeros centros metropolitanos americanos tentando caracterizar um trabalho cotidiano típico, afirmou que desafia qualquer esforço de tipificação "exceto no senti­ do de que o turno de trabalho regular 11ilo envolve a prisão de nenhuma pessoa" (Reiss 1971, p. 19). E: óbvio que observações acerca de prisões não costumam ser uma fonte muito boa de informação a respeito de preocupações policiais. Mas, embora devam er encaradas com ceticismo, elas merecem menção. De acordo com os Uniform Cri­ me Reports [Relatórios Uniformizados de Crime], 97 mil detetives e policiais reali­ zam 2 597 000 prisões, incluindo 548 mil relacionadas a crimes indexados', Isso sig­ nifica que um membro médio do conjunto de policiais de rua realiza anualmente vinte e seis prisões, das quais pouco mais do que cinco envolvem crimes graves. Embora evidentemente se trate grosso modo de urna suposição, parece ser razoável dizer (assu­ mindo-se o fato de que os detetives presumidamente não façam mais nada) que um policial realiza cerca de uma prisão por homem por mês e, certamente, não mais do que três prisões por crimes indexados por homem por mês. De qualquer modo, esses números são da mesma ordem de grandeza que os registrados na minuta de um rela­ tório sobre a produtividade policial, em que consta que era de cerca de quinze prisões por homem por ano a média dos policiais designados para o Esquadrão Anti-Crime da Cidade de Nova York, embora um "policial fardado típico realize apenas cerca de três pnsves de bandidos por ano". Em Detroit, membros da Special Crime A ttack Team [Equipe Especial de Combate ao Crime] realizam dez prisões de bandidos por ho­ mem por ano, "bem mais do que a média policial" (National Commission on Productivíty, 1973, pp. 39 e ss.). E os números também estão de acordo com as esti­ mativas relatadas pela Presídent's Commission 011 Law Enforccment and Adminis­ tration of Justice [ Comissão Presidencial de Policiamento e Administração da Iusti-

3. Federal Bureau of lnvestigatíons, Unifonn Crime Rcports (1971). Os dados são de 57 cidades com populações superiores a 250 mil, cujos números pelo menos correspondem, grosso modo, aos dados sobre mão de obra tira­ dos das fontes citadas na nota 2. Devo acrescentar que o índice médio de prisão cm todas as cidades restantes é aproximadamenle da mesma ordem que aquela dos números utilizados na argumentação. Os assim chamados crimes que estão no índice ou crimes indexados [ índex crimes] compreendem homicídio, estupro forçado, rou­ bo, assalto com agravante, arrombamento, furto e roubo de automóvel. Poderia também ser mencionado que as prisões com acusação de crime indexado não querem dizer condenação e é freqüente que uma pessoa seja acusa­ da, por exemplo, de assalto com agravante, para induzi-la a se declarar culpada de assalto simples, o que f bem diferente de não haver processo ou de dispensa de inquérito ou de absolvição no julgamento.

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ça], onde se calculou, com base cm dados extraídos das operações do Departamento de Polícia de Los Angeles, que "um policial individual de patrulhamento pode esperar ter oportunidade de solucionar um arrombamento não mais do que uma vez a cada três meses e um roubo não mais do que uma vez a cada quatorze anos" (Institute for DefenseAnalysis, 1967, p. 12).

Poderia se dizer ( e deveria ser levado em consideração) que a mera freqüência de prisões não reflete adequadamente o trabalho policial na área de policiamento crimi­ nal. A esse respeito, dois pontos merecem atenção: primeiro, que o índice de solução de crimes e a localização de suspeitos toma tempo; e segundo, que os policiais com freqüência não invocam a lei quando a lei poderia ser invocada e, portanto, estão en­ volvidos no cumprimento da lei, se bem que de uma maneira não autorizada.

A respeito do primeiro ponto, certamente é verdade que há alguns casos que es­ tão sujeitos a investigações perseverantes e prolongadas. Nem mesmo é difícil que policiais fardados, enquanto respondem por outras atividades, trabalhem por longos períodos em algum crime. Isso, entretanto, não é uma característica do trabalho nem dos detetives nem dos patrulheiros em geral. Por exemplo, na maioria dos arromba­ mentos denunciados, o policial ou a equipe de policiais é despachada para pesquisar a cena do crime; isso é seguido de investigações realizadas por detetives que> na majoria dos casos, depois de escreverem um relatório sobre suas investigações, vão para o pró­ ximo caso (Conklin e Bittner, 1973, pp. 206-223)4. Nesse estudo, Conklín relata que investigações criminais de roubos produzem esclarecimentos de crimes em apenas um de cada cinqüenta casos (Conklin, 1972, pp. 148 e ss.). E mesmo se fosse necessário assumir que os detetives se engajam em cinco investigações para cada uma que eles concluem com sucesso - sem dúvida um grande exagero - ainda permaneceria o fato de não ser característico da policia, o tipo de investigação comumente conhecido as­ sociado ao trabalho de detetive no crime corriqueiro [ run-of-the-mill crime], e nem poderia ser, mesmo porque a pressão de novos serviços empurra os casos velhos para dentro de um arquivo morto. Ê necessário acrescentar que todo assunto relativo a in­ vestigações criminais é complicado, envolvendo atividades não mencionadas aqui

4. Acompanhei alguns policiais de patrulha e alguns detetives na investjgação de arrombamentos em duas cidades e gostaria de acrescentar, com base em minhas observações e nas entrevistas com os policiais, qu~ em quase todos esses casos não h,1 virtualmente nenhuma promessa de esclarecimento, que na maior parte deles até mes­ mo o custo de uma investigação de rotina que ocorra excede a perda de muitas outras horas, e que, de qualquer modo, os detetives sempre têm um acumulo de denúncias de arrombamentos em que ,1 vítima denunciante es­ pera uma consideração imediata. Posso também acrescentar que me parece que esse tipo de trubefho altamente infrutífero desmoraliza os detetives e faz com que realizem menos trabalhe do que considero ser possível. Ver 1. E. Conklin e E. Bittner ( 1973 ).

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

Mas o que se pretende demonstrar é que o espaçamento de prisões não acontece ape­ nas pelo fato de os policiais necessitarem de tempo para chegar a uma solução. O sig­ nificado de tudo isso é que os casos são resolvidos (quando são resolvidos) ou no momento em que o crime acontece ou pouco depois de ter acontecido ou, então, de modo geral, nunca mais. A informação exigida para tal solução deve estar ao alcance no momento, ou o pedido será abandonado. Em outras palavras, ou um detetive sabe, om bastante clareza, para onde se voltar naquele caso ou não tentará esclarecer o assunto. Que ele saiba freqüentemente para onde se voltar faz parte de sua profissão (Bíttner, 1970, pp. 65 e ss.)5•

Outro ponto alegado em grande parte da literatura é que, na aplicação da lei, os policiais tomam decisões de "baixa visibilidade'". De acordo com o ponto de vista predominante aí expresso, em inúmeros crimes menores os policiais arrogam-se di­ reitos de juízes e, por não invocar a lei, absolvem o criminoso. Embora muitos autores achem tais práticas razoáveis, e a maior parte deles até desejável, eles também reco­ mendam que o exercício de tais juízos possa ser colocado sob a regulamentação ad­ ministrativa, se não a estatutária (Davis, 1971). E defendem que, embora pareça fazer sentido que os policiais, em cada caso em que possam ser aplicados, não cumpram literalmente estatutos ligados a jogos, não é certo que a decisão de instaurar processo ou de abrir mão dele possa ser deixada inteiramente nas mãos do policial enquanto indivíduo. Munidos de instruções mais detalhadas, presume-se que os policiais pode­ riam fazê-lo com bases mais firmes (e, espera-se, menos arbitrárias). Infelizmente, enfatizar o enfoque é uma pressuposição que leva à questão principal; isto é, se ao fazer ai, prisões que realizam, e não fazer as prisões que não realizam, os policiais es­ tão agindo corno funcionários da lei, que, conforme o caso, eles invocam ou deixam de invocar. Todas as informações disponíveis sobre as práticas dos policiais colocam essa pressuposição em dúvida grave, especialmente em relação às leis relacionadas a cri­ mes menores. Não conheço nenhuma descrição do trabalho policial nas ruas que sir­ va de apoio à idéia de que os policiais percorram as ruas - seja respondendo às solici­ tações de serviço, seja intervindo em situações - tendo em mente as cláusulas do código penal, combinando o que eles vêem com um ou outro artigo, e decidindo se alguma infração particular aparente é suficientemente grave para garantir um pro-

5. Tenho referência de sistemas de informação ramificados, alimentados por detetives individuais, envolvendo in­ formantes e informadores, que não são compartilhados entre uns e os outros. Há referência a este tópico cm E. Bittner (1970).

6. O trabalho que ressaJta essa observação é J. Goldstein ( 1960); uma revisão extensiva do problema pode ser en­ contrada em W. l.aFave (1965).

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cesso futuro. Embora ocasionalmente ocorra, de fato, que os policiais prendam algu­ ma pessoa apenas porque foram levados a pensar que fosse criminosa, esse meio não é utilizado senão para realizar uma pequena parte das prisões, Nos casos típicos, a acusação formal justifica a prisão que o policial realiza, mas não é a razão de ela se realizar. O Professor Wilson cita que a necessidade "de tratar a situação"? e invocar a lei é apenas um instrumento para levar isso a cabo. Pelo fato de pessoas que são presas apostando num jogo de dados num fundo de quintal não serem presas porque esta­ vam jogando, mas em função de um complexo de fatores situacionais não menciona­ dos formalmente na acusação elaborada, poderia ser plausível que se tentasse aperfei­ çoar a legislação relacionada à acusação, para que qualquer policial bom de verdade, quando acredita que a situação exige uma prisão, praticamente estivesse sempre em condição de encontrar uma acusação bem fundada de algum tipo. Se o policiamento criminal significa agir com base nas cláusulas da legislação, e de acordo com elas, en­ tão isso é algo que os policiais fazem apenas ocasionalmente; mas, em seu trabalho de rotina, eles apenas se utilizam das cláusulas corno meios para obter seus objetivos.

Em suma, um número preponderante e enorme de policiais é designado para ati­ vidades em que eles não têm praticamente nenhuma oportunidade de policiamento criminal, e os dados disponíveis indicam que estão engajados nisso com uma freqüên­ cia que certamente não deixa dúvidas a respeito da difundida crença de ser esta a subs­ tância ou mesmo a parte principal de seus mandatos. Além disso, o policiamento cri­ minal pela polícia está limitado àqueles crimes em que se assume que pode se ter de utilizar a força para levar o criminoso à justiça. Finalmente, na maioria dos casos em que a legislação é invocada, a decisão de invocá-la não é baseada em considerações de legalidade. Ao contrário, os policiais utilizam-se das cláusulas da lei como um recurso para tratar problemas de todo tipo, sem que seja feita qualquer menção a alguma acu­ sação formal.

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OS ELEMENTOS DA PRÁ TTCA POLICIAL DE ROTINA

Para explicar qual a concepção de dever que faz com que os policiais se sintam convocados para a ação, e quais os objetivos que eles buscam obter, gostaria de utili-

7. J. Q. Wilson ( 1968, 31, cap.z). Muitos autores têm registrado a observução de que n.1 prática os policiais realizam mais freqüentemente prisões ilegais do que legais; cf.; por exemplo). D. Lohman e G. E. Misner ( 1966, 196S 5$.). Eu discuti este assunto extensivaments em E. Biuncr ( 196711). Discussões sérias esclarecendo tal tópico são en­ contradas, entre outros, cm J. Hall (1953); ). V. Henry (1966); C. D. Robinson (1965).

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ASPECTOS DO TRABALHO POLIC[AL

zar um exemplo da prática cotidiana. Uma das experiências mais comuns da vida ur­ bana é a visão de um policial orientando o trânsito em um movimentado cruzamen­ to de rua. Esse serviço é muito desgastante e uma designação geralmente detestada entre os policiais. Entretanto, estabelece-se em bases regulares. A razão disso não é tão difícil de adivinhar. Fora os interesses privados dos cidadãos em manter seguras ou convenientes as condições de uso de seus automóveis, há a consideração de que a via­ bilidade da vida urbana, como nós a conhecemos, depende muito da mobilidade do veículo no trânsito. Em geral, ninguém sabe, naturalmente, até que ponto o controle do trânsito pelos policiais é eficiente, muito menos no caso especial de um único po­ licial orientando o trânsito em um lugar e um momento particulares. Embora o valor do controle do trânsito seja incerto, a incerteza é resolvida a favor dele, simplesmente em função de antecipar a gravidade das conseqüências que sua ausência poderia en­ gendrar. Em suma, o controle do trânsito é um assunto da maior seriedade. A despei­ to de sua seriedade e provável necessidade, a despeito do fato de as designações serem estabelecidas e especificamente fundadas, nenhuma designação para um posto de controle de trânsito jamais foi considerada como sendo absolutamente fixa. O policial designado deve estar lá, tudo sendo igual, mas ele também deve ter uma avaliação independente da necessídade de sua presença. O que importa não é que isso abre a possibilidade de uma atitude de algum modo mais casual em relação ao controle do trânsito do que a polícia quer admitir, mas sim que existe uma compreensão tácita de que não importa quão importante o posto possa ser, é sempre possível acontecer al­ guma outra coisa que possa distrair a atenção do policial do trânsito e fazer com que ele suspenda o atendimento da tarefa que lhe foi designada.

Tal compreensão não está confinada às designações de controle do trânsito, mas funciona sem absolutamente nenhuma exceção em todas as atribuições anteriores de tarefas, não importando se a designação envolve investigar um crime hediondo ou oferecer um sorvete a uma criança perdida, e isso sem levar em conta se a designação derivava de algum mandamento mais solene da legislação ou estava baseada em or­ dens mundanas de superiores imediatos. Quero afirmar que, como todas as outras pessoas, para voltar-se para alguma exigência extraordinária, os policiais vão suspen­ der o desempenho de uma tarefa para a qual foram designados. Embora todo mundo responda a solicitações de emergência, o ouvido vocacional do policial está perma­ nente e especificamente sintonizado a tais solicitações, e toda a sua atitude de trabalho é permeada por uma preparação para responder a elas, não importa o que esteja fazen­ do. No caso em questão, é praticamente certo que qualquer policial medianamente competente - se ele se deparasse com um crime que estivesse sendo cometido em ai-

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gum lugar não tão distante para que pudesse chegar a tempo, seja para impedir o crime, seja para prender o perpetrador - iria abandonar o posto no trânsito a que estava designado sem um momento de hesitação e sem se preocupar com o estado do trânsito que teria de monitorar. E é quase certo que todos os policiais abando­ nariam seus postos, mesmo quando a probabilidade de impedir o crime ou de pren­ der o perpetrador não fosse muito alta, e mesmo quando o crime fosse de um tipo que, denunciado para a polícia como é comum - isto é, algum tempo depois que aconteceu - apenas iria receber uma atenção bastante superficial e tenderia a perma­ necer sem solução, como em nove de cada dez casos denunciados. Finalmente, não há dúvidas de que o policial que não respondesse dessa maneira, estada, assim, ex­ pondo-se ao risco de uma reprimenda oficial e a expressões de escárnio de seus cole­ gas de trabalho e do público.

Além disso, não há nenhuma legislação, nenhuma regulamentação, nenhum re­ querimento formal de qualquer tipo que determine tal prática. Ao contrário, aceita­ se, comurnente, que o controle do crime não pode ser total, deve ser seletivo, e que não se pode esperar que os policiais corram para a cena de todos os crimes e prendam todos os criminosos. Por que, então, todos os interessados, dentro e fora da polícia, consideram como totalmente apropriado e desejável que um policial abandone seu posto, expondo muitas pessoas a graves inconveniências e a cidade toda a sérios ris­ cos, para partir numa busca duvidosa para capturar um ladrão insignificante?

Racionalmente, o próprio policial pode decidir agir, sendo que sua ação apenas segue o impulso de largar tudo para capturar um crápula. E parece perfeitamente ra­ zoável que os policiais sigam seus impulsos mais prontamente do que os outros, pois são pagos para isso. Devido a essa consideração, a ação extrai sua justificativa do sen­ timento do público - de que não se deve permitir que um crime aconteça sem que pelo menos se faça uma tentativa de impedi-lo - e da obrigação especial do policial a esse respeito. Tal sentimento certamente constitui um aspecto muito importante da estrutura mental do policial; direciona seus interesses, estabelece suas prioridades, fornece as justificativas para as ações, governa as expectativas de recompensa e honra, e, em ultima análise, alimenta a retórica com que se explica sua agressividade imediata.

Mas, como argumentado anteriormente, não obstante a força desse sentimento, 0 policiamento criminal possivelmente não poderia ser o sustentáculo sobre o qual se estabelece o mandato policial. Como, então explicar o entusiasmo da resposta dopo­ licialj Ê necessário começar por um aparte que, por si só, é importante, mas que não é central para a argumentação. Para o policial, correr para a cena do crime é uma opor­ tunidade de fazer algo notável, que vai atrair a atenção dos seus superiores para ele, de

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

um modo que pode significar um avanço em sua carreira. Esse aspecto de seu inte­ resse vocacional não tem raízes no trabalho que realiza, mas no cenário administra­ tivo em que tal trabalho é feito. Skolnick (1966, p. 231) fornece urna documentação extensiva para a importância desse fator no trabalho policial. Ainda assim, não im­ porta quão importante seja a explicação, ela deixa 'de explicar as rotinas policiais em geral.

Quando afirmei anteriormente que o policial vai abandonar seu posto e correr para a cena de um crime, assumi, sem mencionar, que o crime seria algo como um ato de vandalismo, um assalto, um roubo. Mas se o crime que chamou a atenção do policial for algo como uma conspiração de um grupo de diretores de um negócio para emitir ações com a intenção de fraudar os investidores, ou um locatário que esteja extorquindo criminalmente dinheiro de um inquilino, ou um vendedor de carros usados que esteja criminalmente adulterando o marcador de quilometra­ gem de um automóvel que ele está preparando para vender, o policial dificilmente iria levantar o olhar ou ter o incômodo de entrar em ação. A razão real que faz com que o policial se mobilize não é o fato de estar acontecendo algo que, em termos gerais, é um crime, mas porque o crime em particular é de uma classe de problemas cujo tratamento não será aturado. De fato, o policial que, sem hesitação, deixa seu posto para perseguir um assaltante terá deixado seu posto com tão pequena hesita­ ção como a de puxar urna pessoa que está se afogando para fora da água, ou evitar alguém de pular de um telhado de um prédio, ou proteger uma pessoa severamente desorientada de se machucar, ou salvar pessoas de um incêndio, ou dispersar uma multidão que esteja atrapaJhando a missão de resgate de uma ambulância, ou to­ mar providêncías para evitar um desastre que possa resultar de tubulações de gás quebradas ou condutores de água, e assim por diante, quase infinitamente, e intei­ ramente sem olhar a natureza substantiva do problema, desde que possa se dizer que envolvia algo que não deveria acontecer e sobre o que seria bom alguém fazer alguma coisa imediatamente! Tais eventos extraordinários, e as necessidades direta­ mente intuídas para controlar sua ocorrência, constituem os assuntos em que estão sintonizados os interesses vocacionais do policial. E, diante das circunstâncias de tais eventos, os cidadãos se sentem autorizados e obrigados a convocar a ajuda da polícia. Naturalmente, em retrospecto é sempre possível questionar se este ou aquele problema deveria ou não ter-se tornado alvo de atenção policial, mas a maioria das pessoas vai concordar que a vida urbana está repleta de situações em que a necessida­ de de tais serviços não é colocada em dúvida, e cm que, da mesma maneira, é indis­ pensável o serviço da polícia.

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É difícil deixar de observar que a definição do mandato policial ignorou o Prin­ cípio de Ockharn". Não há nada a ser feito; presenciei policiais ajudando um inquili­ no em débito a ter acesso a um recurso que um locatário tinha conseguido para ou­ tras propriedades, em uma hipoteca aparentemente legal; vi policiais conseguirem um acordo entre parentes que brigavam se uma criança doente deveria ou não receber tratamento médico; vi um policial julgar uma briga entre um padre e um organista, a respeito do acesso deste último à igreja. Tudo isso sugere mais do que a afirmação óbvia de que os deveres do policial são de uma variedade extraordinária, leva à inferência, mais forte, de que não existe problema humano, ou não se pode imaginar um, sobre o qual se possa dizer, decisivamente, que não poderá, com certeza, vir a se tornar um assunto de polícia.

É justo dizer que isso é bem sabido, mesmo que o trabalho policial não seja con­ siderado nesses termos. Deve-se assumir que é assim porque, em quase todos os ca­ sos, o serviço policial é uma resposta a exigências dos cidadãos, que devem ser toma­ das como um reflexo do que público conhece e espera da polícia. Mas evidentemente, não é assim quando se trata de escrever livros a respeito da polícia, de fazer orçamen­ tos para a polícia, e de treinar os policiais, administrar- os departamentos e recompen­ sar o seu desempenho. E, mesmo assim, o fato de os policiais serem "bons" para aju­ dar pessoas em dificuldades e lidar com pessoas problemáticas tem, recentemente, gerado maior reconhecimento público"; os aplausos são dados de maneira que lem­ bra aquelas "histórias de interesse humano" que podem ser encontradas na página de trás dos jornais. Mais importante é, ao se perguntar em que termos esse serviço poli­ cial se torna disponível para todo tipo concebível de emergência, a resposta usual ser que isso ocorre em função de uma ausência, pois os policiais são os únicos funcioná­ rios, profissionais, agentes públicos - chame-os do que se quiser - que estão disponí­ veis a toda e qualquer hora e que podem ser contatados por telefonemas feitos de casa. Além disso, é freqüente ouvir que seria bem melhor se os policiais não fossem tão solicitados a fazer tarefas tediosas na esfera da competência vocacional de médicos, enfermeiras e assistentes sociais, e não tivessem de ser todas as coisas para todas as pessoas. Acredito que tais opiniões estão baseadas em uma concepção profundamen­ te errônea do que os policiais fazem, e proponho demonstrar que, não importa quan­ to uma atividade policial se assemelhe com o que os médicos e os assistentes sociais

' Também escrito Occarn; princípio cientifico segundo o qual, ao explicar-se algo, não devem ser feitas proposi­ ções dcsneccssári~s (N. da T.).

8. A primeira expressão de reconhecimento está contida cm E. Cumming, L Cumrning e L Edell ( 1965); cf t .. im­ bérn E. Bittncr (1967b).

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ASPECTOS no TRABALHO POLICIAL

possam realizar (e mesmo se o que os policiais de fato têm de fazer com freqüência possa ser feito pelos médicos ou pelos assistentes sociais), o serviço que desempenham nvolve o exercício de urna competência única, não compartilhada com mais ninguém na sociedade. Mesmo se os médicos e os assistentes sociais trabalhassem em tempo integral e atendessem telefonemas vindos das casas, a necessidade de serviço policial em suas áreas permaneceria substancial, embora, com certeza, diminuísse de volume. Embora os policiais freqüentemente realizem o que psicólogos, médicos e assistentes ociais possam fazer, seus envolvimentos nos casos nunca substituem os psicólogos, médicos ou assistentes sociais. Eles são - em todos esses casos, o tempo todo e em última análise - policiais, e seus interesses e objetivos são de uma natureza absoluta­ mente distinta. Portanto, dizer que os policiais são "bons para" tratar com pessoas problemáticas e com aquelas que estão com dificuldades não significa que sejam bons para representar o papel de outros especialistas. De fato, somente assumindo um tipo distinto de competência policial pode-se entender porque os psicólogos, médicos e assistentes sociais, quando encontram problemas em seus trabalhos, procuram a ajuda dos policias. Em outras palavras, quando um assistente social "chama a polícia" para ajudá-lo em seu trabalho, está mobilizando o tipo de intervenção que é caracte­ rístico do trabalho policial, mesmo que pareça ser trabalho para um assistente social.

Para deixar claro em que consiste a competência especial e única da polícia, gos­ taria de caracterizar os eventos que estão contidos em "algo que não deveria estar acontecendo e sobre o qual alguém deve fazer algo imediatamente", e os meios utiliza­ dos pela polícia para responder a isso. Uma palavra de precaução: não pretendo sugerir que tudo que os policiais realizam pode ser caracterizado dessa maneira. Isto é, a competência especial e única da polícia entra em jogo todas as vezes que praticar medicina, trabalhar com engenharia ou ensinar - nos significados estritos desses ter­ mos - entra em jogo no que os médicos, engenheiros e professores fazem.

Em primeiro lugar, e antes de mais nada, a necessidade de fazer alguma coisa é avaliada levando em conta as combinações de circunstâncias realmente existentes. Mesmo que as circunstâncias dessas necessidades de fato se tornem estereotipadas, de modo que alguns problemas pareçam ter uma urgência maior do que outros, a regra da dependência tem precedência na tipificação, e a atenção será dirigida para aquilo que for singular e particular no aqui e agora. Os policiais freqüentemente dizem que seus trabalhos são quase que inteiramente imprevisíveis; seria mais correto dizer que qualquer coisa imprevisível que não possa ser normalmente dispensada ou assimila­ da é, por isso mesmo, um alvo apropriado para a atenção policial. Não é preciso dizer que a experiência representa uma parte importante na tomada de decisão, mas não é

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0 tipo de experiência que se adapte facilmente à sistematização associada a um con­ junto de conhecimentos técnicos. Com maior freqüência, o conhecimento em que o policial se baseia é o contato pessoal com lugares, pessoas e acontecimentos particula­ res. Os policiais do patrulhamento parecem possuir memórias impressionantemente prodigiosas e são capazes de, com uma precisão incrível, especificar nomes, endere­ ços, e outros detalhes factuais de experiências passadas. De fato, algumas vezes é até difícil acreditar que todas essas informações possam ser corretas. Entretanto, pode ser que o fato de eles registrarem suas atividades dessa maneira - e de parecerem acredi­ tar nesses termos - possa ser tomado como indicativo do tipo de conhecimento de que dependem em seus trabalhos. Poder-se-ia dizer que, embora nada possa tornar­ se a ocupação própria da polícia, o policial só depois de "chegar lá" e examinar a ocor­ rência pode decidir se alguma coisa em particular é uma ocupação propriamente dele.

Em segundo lugar, é muito freqüente pessoas que solicitam seu serviço respon­ derem à questão de saber se alguma necessidade situacional requer justificadamente a atenção policial. A demanda do cidadão é um fator de extraordinária importância para a distribuição do serviço policial, e o fato de alguém realmente ter "chamado a polícia" é, por si e em si, causa de preocupação. Certamente, em quase todos os turnos do trabalho há alguns alarmes falsos, e uma das razões para os departamentos poli­ ciais insistirem em empregar policiais experientes como encarregados dos atendi­ mentos às chamadas é que eles supostamente são hábeis em detectar solicitações que não merecem crédito. Geralmente, entretanto, a determinação de que algum aconte­ cimento alcançou um estágio crítico, pronto para o interesse policial, é relacionado com as atitudes das pessoas envolvidas, e depende de um senso comum de raciocí­ nio. Por exemplo, num caso envolvendo uma queixa sobre barulho excessivo, não é o volume do barulho que cria os riscos de vida e luta e ameaçam a propriedade e a ordem pública, mas que as pessoas envolvidas digam ( ou, por outro lado, demons­ trem) que o problema alcançou um estágio crítico no qual "é melhor que seja feito algo a respeito". Em relação próxima à característica de emergência crítica está a ex­ pectativa de que os policiais vão lidar com o problema "imediatamente': Embora possa parecer óbvio, merece ser enfatizado o fato de que o trabalho policial não envol­ ve continuidade nem compromisso, e sua estrutura temporal tem como norma o "as­ sim que puder chegar"; e que sua agenda deriva do curso natural dos eventos, e não de uma ordem externamente imposta, como é o caso de quase todos os outros tipos de trabalho ou ocupação. Os bombeiros também estão em permanente alerta, mas a coisas que são solicitados a fazer limitam-se a alguns serviços técnicos. Um policial está sempre em posição para ir atender qualquer contingência, sem saber o que ela

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ASPECT DO TRABALHO POLICIAL

pode vir a ser, mas sabendo ser mais freqüente ele dever fazer alguma coisa do que 0 contrário. A expectativa de fazer alguma coisa é projetada sobre a cena e o instinto de diagnóstico do policial é bastante influenciado por ela. Literalmente, o policial v~ as coisas sob a luz da expectativa de que, de algum modo, ele tem de lidar com a situa­ ção. A habilidade da polícia de pensar rapidamente e de agir com decisão está relacio­ nada ao fato de os policiais estarem sintonizados a lidar com emergências; e, em mui­ tos casos, a prontidão da resposta dos policiais satisfaz convenientemente o caráter de emergência da necessidade para a qual a resposta foi dirigida.

Terceiro, embora os departamentos de polícia sejam altamente burocratizados e os policiais estejam envolvidos em um esquema de estrita regulamentação interna, paradoxalmente, eles estão bastante sozinhos e independentes em seus afazeres junto aos cidadãos .. Por isso, a obrigação de fazer algo quando enfrenta problemas - isto é, quando ele realiza o trabalho policial - é algo que um policial não compartilha com ninguém. EJe pode pedir ajuda quando há risco de poder ser derrotado, e vai recebê­ la; fora desses casos de risco, entretanto, ele está sozinho e recebe pouquíssima orien­ tação e quase nenhuma supervisão; recebe conselhos quando os pede, mas, como os policiais não trocam informações, pedir ou dar conselhos não é muito bem elaborado em suas relações; suas decisões são revistas apenas quando existem razões especiais para revisão, e apenas quando realiza prisões são guardados os registros do que ele faz. Desse modo, na maioria dos casos, os problemas e as necessidades são vistos em relação à capacidade de resposta de um policial individual ou de equipes de dois poli­ ciais, e não da polícia como uma empresa organizada. Relacionada com a expectativa de que, por de mesmo, fará o que for preciso ser feito está a expectativa de que ele se limitará a dar soluções provisórias aos problemas. Embora sempre expressem frustra­ ções por nunca solucionar nada - especialmente quando prendem pessoas e logo em =eguida as encontram de volta nas ruas-, fazem o que fazem com um abandono ca­ racterístico de todos os especialistas que desprezam os efeitos colaterais de suas ativi­ dades. Como eles a vêem, não é assunto deles que muitas das suas soluções provisórias tenham conseqüências duradouras. De fato, estaria correto dizer que eles estão total­ mente absorvidos em fazer prisões, no sentido literal do termo. Isto é, eles estão sem­ pre tentando salvar as coisas da eminência do desastre, destruir um desenvolvimento inicialmente adverso, e impedir, em geral, qualquer coisa que não tenha permissão de continuar; e, ao executar tudo isso, se as circunstâncias parecem exigir, algumas vezes eles prendem pessoas.

E por fim, em quarto lugar, como todo mundo, os policiais querem ser bem su­ cedidos no que fazem. Mas, diferente de outras pessoas, nunca recuam. Uma vez que

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tenham definido uma situação como sendo algo que lhes diz respeito, e resolvam to­ mar alguma providência acerca disso, eles não vão desistir até conseguirem prevale­ cer. A característica estrutural central do trabalho policial é o fato de os policiais, dian­ te dos problemas de emergência, serem os únicos autorizados a agir e dos quais se exige a execução de suas decisões "de imediato". Não pode haver dúvida de que o ca­ ráter decisivo e incessante da intervenção policial é o que está presente nas mentes das pessoas que a solicitam, e que as pessoas contra as quais a polícia atua estão dentes dessa característica e comportam-se de acordo com isso. O dever policial de não recuar em face a resistências é combinado com o dever dos cidadãos de não se opor à polícia. Embora sob a legislação comum os cidadãos tenham o direito de resistir à ação ilegal da polícia, pelo menos em princípio, as recomendações contidas na Uniform Arrest Act [Leida Prisão Uniforme], cuja adoção ou é completa ou penden­ te na maioria das legislaturas estaduais, estipulam que eles devem se submeter. Com certeza, a lei diz respeito apenas ao poder de prisão, mas não é preciso muita imagi­ nação para se perceber que isso é suficiente para dar apoio a qualquer opção coerciva que um policial possa eleger".

A observação de que a polícia têm prevalência no que faz deve ser entendida como uma capacidade mas não urna prática necessariamente invariável, Quando, por exemplo, um policial ordena a um cidadão para dispersar ou parar de fazer o que está fazendo, ele pode, na realidade, conseguir persuadir o policial a voltar atrás. Mas, ao contrário dos juízes, não se exige que os policiais dêem atenção a moções de ordem judicial, nem se exige que eles suspendam suas ordens enquanto a moção estiver sen­ do racionalmente considerada. Na realidade, mesmo se a objeção do cidadão receber uma consideração favorável em uma revisão subsequente, ainda assim se diria que "sob aquelas circunstâncias" ele deveria ter obedecido. E mesmo que se possa provar que a ação do policial foi ilegal ou violou liberdades civis, ele só poderá ser responsabiliza­ do se também ficar provado que agiu com malícia ou com frivolidade temerária 1°.

Em suma, o que os policiais fazem parece ser correr para a cena de qualquer crise que haja, julgar suas necessidades de acordo com os cânones e a razão do senso co­ mum, e impor soluções a ela, sem considerar a resistência ou a oposição. Durante tudo isso, eles agem grandemente como praticantes individuais de uma profissão.

9· ~- ~- Warner (1942); Corpus luri: Sm111d11111 (vol. 6, pp. 613 e 1>.S.); M. Hochnage! e H. \\'. Stcge (1966). IO. Existe uma doutrina legal que apóia o argumento de que resistir ou se opor à polícia em uma situação de emer­

gfocia é ilegal, ver H. Kelsen (1961, pp. 278 ss.), e H. LA. Hart (1961, pp. 20 ss.), Cito essas referências para mostrar que a policia cst.1 legalruente auroriz.1d.1 a fazer o que for necessário. de acordo com ;1 natureza das cir­ cun~1âncias.

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

A NATUREZA ESPECIFICA DA co:r,rPETENCIA POLICIAL

As considerações precedentes sugerem concluir que a existência da polícia torna disponível na sociedade uma capacidade única e poderosa de lidar com todos os tipos de emergências: única porque ela, mais do que qualquer outra instituição, está per­ manentemente preparada para lidar com assuntos que não admitem nenhum atraso; poderosa, porque sua capacidade de lidar com eles parece estar totalmente livre de impedimento. Mas a noção de emergência traz uma certa circularidade à definição do mandato. Isso porque, como já indiquei, discernir os fatos de emergência assenta-se em critérios de julgamento baseados no senso comum, e isso também torna muito fácil a mudança de se dizer que a polícia trata de emergências, para se afirmar que tudo o que a polícia trata é, ipso facto, uma emergência. E, portanto, embora seja útil invocar a noção de emergência para se fazer certas observações, agora isso pode ser completamente dispensado.

Situações como as que envolvem um criminoso em fuga, uma pessoa presa em um edifício em chamas, uma criança em desesperada necessidade de cuidados médi­ cos, uma tubulação de gás rompida, e assim por diante, são convenientes para de­ monstrar porque os policiais são levados decisivamente a lhes impor limites. Tendo explorado este enfoque tão longe quanto ele pôde nos levar, agora quero sugerir que a competência específica da polícia está totalmente contida em sua capacidade de ação decisiva. Mais especificamente, que essa decisão característica deriva da autoridade de qualquer oposição ser subjugada pelo caráter "imediato" da situação de ação. O poli­ cial, e apenas o policial, está equipado, autorizado e é necessário para lidar com toda emergeacia em que possa ter de ser usada força para enfrentá-la. Além disso, a autoriza­ ção para o uso da força é conferida ao policial com a única restrição [proviso] de que ela só será utilizada em quantidades adequadas, que não excedam o mínimo necessá­ rio, como for determinado por uma apreciação intuitiva da situação. E apenas o uso de força fatal é regulado com um pouco mais de rigor11•

À explicação precedente devem ser acrescentadas mais três observações. Em pri­ meiro lugar, não estou dizendo que o trabalho policial consiste no uso da força para

11. "Vário$ casos modernos impuseram [um] padrão de responsabilidade estrita [ ... ] ao policial ao condicionar a justificação do uso de força fatal ao fato de a vítima ter cometido realmente um crime grave, e muitos estados aprovaram estatutos que parecem adotar essa responsabilidade estrita. Entretanto, muitas jurisdições, tal como a da Califórnia, têm estatutos de homicídio que permitem que o policial use a força fatal para a prisão de uma pessoa 'aCU53da' de um crime grave. Tem sido sugerido que essa exigência apenas indica a necessidade de uma crença razoável do policial de que a vitima cometeu um crime grave" (Note, Stanford Law Review , )961,pp. 566· 609).

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criminosos sórdidos. .

resolver problemas, mas apenas que o trabalho policial consiste cm lidar com proble mas em que a força pode ter de ser utilizada. Essa distinção tem uma Irnportânci.i ex traordinária. Em segundo lugar, certamente não se pode afirmar que essa característl, ca esteja refletida em tudo que se exige que os policiais realizem. Por várias razú,•., especialmente em função dos meios utilizados pelos departamentos de polícia par. administrá-los-, os policiais freqüentemente são solicitados a realizar tarefas que nada têm a ver com o trabalho policial. É interessante, entretanto, que o fato de um policial estar sempre à disposição do seu superior e poder ser obrigado a fazer trabalhos me­ nores não atenue seu poder, pelo menos não em refação aos cidadãos. Em terceiro lugar, a definição de competência policial proposta engloba integralmente aquelas for­ mas de policiamento criminal em que os policiais se engajam. Mencionei, anterior­ mente, que o papel especial que a polícia representa na administração da justiça cri­ minal tem a ver com a circunstância de os "criminosos" - ao contrário das pessoa respeitáveis e de posses que violam as cláusulas dos códigos penais ao fazerem um negócio - poderem ser considerados corno pessoas que tentarão fugir ou se opor à prisão. Porque as coisas ocorrem dessa maneira, e para que a polícia seja capaz de li­ dar de maneira eficaz com os criminosos, ela é autorizada a utilizar a força. Os policiai também se engajam em ineestigações criminais sempre que tais investigações possam ser consideradas. racionalmente, como instmmentos para a realização de prisões. Ma. a concepção do papel da policia em tudo isso está de cabeça para baixo. O que acontc­

rizados a utilizar a força porque devem lidar com ·er de lidar com criminosos sórdidos re-

usonoace mais geral de utilizar a força quando neces­ sário para conseguir os objern"Os desejados, !\ão é, afinal de contas, nada mais do que um assunto de simples emedíen que isso é assim diant

criminosos a respeito dos quais urados, e que a força não vai ser

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

existência de tal poder não recebe a consideração que merece? Em terceiro, porque 0 exercício desse poder foi confiado a pessoas recrutadas a partir de um grupo do qual e excluiu todos aqueles com talento e ambição, e que provavelmente freqüentaram uma faculdade e, em conseqüência disso, vão para outras ocupações? Tentarei res­ ponder essas questões na ordem em que aparecem.

O traço distintivo do período histórico que abrange os últimos cento e cinqüen­ ta anos é uma sucessão de um grande número de eclosões internas e internacionais de violência, mescladas de maneira incongruente a uma aspiração forte, sem prece­ dentes, de instaurar a paz como uma condição estável da vida social 12• Não há dúvida de que, durante esse período, a consciência da necessidade moral e prática de paz tomou conta das mentes de quase todas as pessoas do nosso mundo e, embora não tenha desaparecido totalmente a defesa da guerra e da revolução violenta, ela era fei­ ta cada vez menos abertamente, e parece que os argumentos a seu favor perdiam ter­ reno para os argumentos que condenavam a violência. Os sentimentos a favor da paz em parte eram tirados dos motivos humanitários, mas, basicamente, derivavam de uma mudança profunda de valores, afastando-se de virtudes associadas ao orgulho e à combatividade, e inclinando-se para virtudes associadas ao trabalho assíduo e ao progresso material. Ainda havia algum glamour em ser aventureiro ou guerreiro, mas o verdadeiro sucesso pertencia ao homem de negócios e ao profissional 13• Recorrer à violência - fora de suas ocasiões restritas, principalmente as de guerra ou de recrea­ ção - era considerado um sinal de imaturidade ou de cultura da classe mais baixa (Miller, 1958, pp. 5-19; Adorno et al., 1950). A violência ter sido banida do domínio da v11.J •• privada - se comparada, por exemplo, com seu cultivo deliberado pelos cava­ lheiros medievais- é a parte menos importante da história. Mais importante é a mu­ dança nos métodos de governar, que passaram para uma forma de administração quase que completamente civil e pacífica. A força física ou foi totalmente banida ou foi cuidadosamente escondida na administração da justiça criminal, e foi esquecido o uso de guardas armados para a coleta de impostos e para o recrutamento militar. O papel, e não a espada, passou a ser o instrumento de coerção de nossos dias. Mas não importa quão fielmente e quão metodicamente os ditames dessa cultura civil e do

12. A aspiração recebeu uma formulação brilhante em um dos documentos mais influentes da filosofia política mo­ derna, lmmanuel Kant (1913); uma revisão do crescimento do ideal de paz aparece cm P. Reiwald ( 1944).

13. A g.lorificaç;'lo literária da violência nunca desapareceu inteiramente, como os trabalhos de autores corno Nletzche e Sorel atestam. No passado mais recente, essas opiniões ganharam novamente uma expressão eloquente crn co­ nexão com os movimentos revolucionários nas nações do Terceiro Mundo. As considerações mais notáveis sobre esses acontecimentos podem ser encontradas nos trabalhos de Franz Panon.

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estado de direito tenham sido seguidos, e não importa quão fundo (e até que ponto)

0 sistema de controle da paz e a regulamentação possam ter chegado, é necessário que permaneçam alguns mecanismos para tratar com problemas na base do corpo­ a-corpo [catch-as-catch-can]. De fato, parecia que o único modo prático de banir o uso da força da vida em geral era designar seu exercício residual - onde, de acordo com as circunstâncias, parecesse inevitável - para uma corporação de funcionários autorizados, isto é, para a polícia como nós a conhecemos. Muito simplesmente, do mesmo modo que sempre vão existir tolos que insistem que seu conforto e seu pra­ zer têm precedência sobre as necessidades de espaço dos bombeiros no combate a um incêndio, e não vão abrir passagem para eles, do mesmo modo, sempre vai haver necessidade de policiais.

Deixo de fora uma possível explicação para negligenciar a capacidade do uso da força como base do mandato policial; isto é, que estou errado ao avaliar que sua im­ portância é fundamental. Não tenho idéia por que os autores de muitos estudos ma­ gistrais de vários aspectos do trabalho policial não chegaram a esta conclusão. Talvez eles estivessem ou muito perto ou muito longe do que estavam pesquisando. Mas acre­ dito que sei porque essa característica do trabalho policial escapou da observação ge­ ral. Até recentemente, as pessoas que a polícia tinha motivos para perseguir, especial­ mente para perseguir através do uso da força, vinham quase que exclusivamente dos meios constituídos por negros, pobres, jovens, falantes de espanhol, e o restante do proletariado urbano (e elas ainda vêm preponderantemente desses segmentos da so­ ciedade). Isso é bem conhecido, muito comentado, e não tenho nada a acrescentar ao que já foi dito sobre as expressões de preconceito de classe e preconceitos raciais. Por outro lado, gostaria de chamar a atenção para urna conseqüência peculiar dessa con­ centração. As vidas das pessoas que mencionei são freqüente.mente consideradas como as fontes de problemas nos quais pode ter de ser usada a força. Não apenas a maioria dos criminosos com que a polícia lida se originam desse meio, mas, com mais fre­ qüência do que outros membros da sociedade, elas envolvem-se em toda sorte de pro­ blemas e têm menos recursos para lidar com eles. E, portanto, pode-se dizer que a polícia apenas segue os problemas em seu habitat natural e que não se pode tirar ne­ nhuma outra conclusão disso, exceto, talvez, que os policiais são de algum modo mui­ to rápidos em recorrer à força e recorrem a ela com muita freqüência por razões que parecem ser inadequadas, pelo menos em retrospecto. Naturalmente, o aparecimento da contracultura, a penetração do uso de drogas nas classes médias, os movimento de direitos civis dos anos 1960 e o movimento estudantil provaram que a polícia não hesita cm agir de modo coercivo contra membros de outras camadas da sociedade.

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ASPECTOS DO TRABALHO POLICIAL

Mas isso também tem sido, principalmente, alvo de crítica, e não de esforços de inter­ pretação. E as expressões de indignação que ouvimos têm aproximadamente o mes­ mo efeito que gritar "saúde!" em relação a qualquer coisa que faça uma pessoa espir­ rar. A polícia fica naturalmente frustrada pelas reações que provoca, na medida em que consegue perceber que sempre fez o que estava acostumada a fazer quando era olicitada a intervir. De fato, os policiais fizeram, mutatis niutandis, o que os médicos fazem sob circunstâncias similares. Como todo mundo sabe, os médicos devem curar a doença através da prática da medicina. Mas quando são consultados sobre algum problema de natureza ambígua, eles o definem como doença e tentam curá-la. E pro­ fessores não hesitam em tratar tudo como problema educacional. Certamente é pos­ sível dizer que médicos e professores têm tanta probabilidade de passar dos limites quanto os policiais. Isso não significa, entretanto, que não se possa encontrar nesses exemplos a verdadeira natureza de seus respectivos conjuntos de técnicas, mais clara­ mente revelados do que nos exemplos de práticas mais padronizadas. No caso da po­ lícia, apenas vai complicar ainda mais o assunto dizer que eles se valem da força ape­ nas contra as pessoas sem poder, ou porque é mais freqüentemente necessário ou porque é mais fácil- mesmo que esses fatores sejam importantes para determinar a freqüência - pois de fato, eles definem todos os motivos para a ação, pois contêm a possibilidade do uso da força.

São extraordinariamente complicadas as razões de serem atribuídos imensos po­ deres nas vidas dos cidadãos a homens que são recrutados com a expectativa de engajar-se em uma ocupação de baixo grau educacional, e delas posso ocupar-me apenas de algumas resumidamente. Talvez o fator mais importante seja a polícia ter sido criada como um mecanismo de se lidar com as classes ditas "perigosas" (Silver, 1967, pp. 1-24). Na luta para controlar o inimigo externo e nos esforços para contro­ lar a violência, a depredação, e o mal, o trabalho policial assume algumas das caracte­ rísticas de seus alvos e torna-se uma ocupação degradada. Embora possa parecer per­ verso, não é difícil compreender que, numa sociedade que procura banir o uso da força, o resíduo indispensável relacionado a ela recaia sobre aqueles que se responsa­ bilizam a exercer tal tarefa, tornando-os sujeitos à desaprovação. Além disso, nos Es­ tados Unidos, a polícia foi utilizada abertamente como um instrumento da máquina política urbana, o que potencializou, e muito, as oportunidades de práticas corruptas. Assim, o policial urbano americano passou a ser considerado, em geral, como um policial burro, bruto e corrupto. Essa imagem é ligada a histórias ocasionais, de inte­ resse humano, em que o trabalho policial eficaz e humano é retratado como uma ex­ ceção à regra. Os esforços de alguns reformadores para deixar a polícia livre da bruta-

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]idade e da corrupção têm, inadvertidamente, fortalecido a opinião de que o trabalho do policial consiste em fazer o que mandam que ele faça e manter-se limpo. Para asse­ gurar O controle da preguiça, da indolência, da brutalidade e da corrupção, os chefes de polícia, como o Chefe William Parker de Los Angeles, militarizaram os departa­ mentos sob seu comando. Mas o desenvolvimento de uma estrita regulamentação in­ terna apenas obscureceu a verdadeira natureza do trabalho policial. A nova imagem do policial como um soldado burocrata ágil e simples não conseguiu convencer as pessoas, que consideram ser preferível que os policiais escolhessem tal trabalho por vocação. Além disso, a definição do trabalho policial permaneceu associada à tarefa menos importante que se pode atribuir a um policial. Finalmente, tem havido resis­ tência às mais recentes tentativas de elevar o nível na seleção dos policiais, e elas pro­ duziram resultados que desapontaram. A resistência se deve, em grande parte, aos in­ teresses do atual quadro de funcionários. Parece bastante compreensível que os chefes, os capitães, e mesmo os policiais veteranos não fiquem contentes com a perspectiva de ter que trabalhar com recrutas que os ultrapassam em termos educacionais. Além disso, poucas pessoas que se empenharam em ter o diploma universitário gostariam de eleger uma ocupação que exija apenas um diploma de segundo grau. E essas pou­ cas pessoas provavelmente venham a ser aqueles menos competentes entre os gradua­ dos, demonstrando, desse modo, que uma educação mais elevada teria mais proba­ bilidades de atrapalhar do que de ajudar. E é verdade, naturalmente, que nada do que se aprende na faculdade é particularmente útil para o trabalho policial. De fato, como a maioria dos que obtêm diploma universitário têm suas origens na classe média, en­ quanto a maioria do trabalho policial está direcionada para os membros das classes mais baixas, existe um risco de surgir um distanciamento cultural entre aqueles que realizam o policiamento e aqueles que são policiados.

Mas, se é correto dizer que a policia veio para ficar, pelo menos até onde pode­ mos prever o futuro, e que o mandato dos policiais consiste em lidar com todos aqueles problemas em que pode se ter de utilizar a força, e se, ainda, reconhecermo que realizar tal tarefa de uma maneira socialmente útil exige habilidades as rnai complexas, então poderia parecer razoável que apenas as pessoas mais dotadas, com as mais elevadas aspirações, e as mais bem equilibradas dentre nós pudessem ser escolhidas para pertencer à polícia. Para se chegar a tal percepção são necessário apenas três passos. Primeiro, quando os policiais realizam aquilo que somente o policiais podem fazer, invariavelmente eles lidam com assuntos de importância ab­ solutamente crítica, pelo menos para as pessoas com que estão lidando . Ê verdade que em geral essas pessoas não são aquelas cujo bem-estar é cuidadosamente consi-

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derado. Mas, mesmo não se podendo confiar apenas nos ideais democráticos para assegurar que essas pessoas vão ser tratadas com a mesma consideração que se dá aos poderosos, a experiência recomendaria que aqueles que nunca tiveram uma voz no passado agora se expressassem e se fizessem ouvir. Em suma, o trabalho policial, na sua essência, envolve assuntos de extraordinária seriedade, importância e necessidade. Segundo, embora os advogados, médicos, professores, assistentes so­ da is e sacerdotes também lidem com problemas críticos, eles têm um conjunto de conhecimento técnico ou esquemas de normas elaborados para guiá-los em suas respectivas tarefas. Mas no trabalho policial existe pouco mais do que uma coletâ­ nea de saber incipiente, e um policial tem de aprender por si só a maior parte da­ quilo que precisa saber para realizar seu trabalho. Desse modo, o que acaba sendo feito depende, em última análise, principalmente da perspicácia, capacidade de jul­ gamento e iniciativa do próprio policial. Terceiro, o mandato para lidar com pro­ blemas em que a força pode ter de ser utilizada implica em um acordo especial de que ela vai ser utilizada apenas nos casos extremos. A habilidade envolvida no tra­ balho policial, portanto, consiste em manter o recurso da força, embora se procure não utilizá-la, ou apenas em quantidades mínimas.

É quase desnecessário mencionar que esses três pontos não estão claros no tra­ balho policial. Grande quantidade deles são desrespeitosos em relação às pessoas com que lidam, e relapsos em relação à seriedade de suas tarefas. Apenas poucos policiais possuem a perspicácia e a capacidade de julgamento que seu trabalho exige. E, no policiamento, freqüentemente a força não apenas é utilizada onde desnecessária, mas tarnl- -rn a violência gratuita e a opressão são um vício que aí prevalece. Embora tudo ísso seja verdade, não cheguei a tais pontos através de especulação sobre como deveria ser o trabalho policial. Ao contrário, ouvi tudo a respeito deles contado pelos próprios policiais, e presenciei mesmo sua realização no trabalho da polícia. Não digo isso para reafirmar o óbvio, isto é, que de fato existem, em muitos departamentos, policiais cujo trabalho já incorpora os ideais que mencionei. O mais importante é que há policiais (com os quais aprendi tudo que escrevi) sabedores do que o trabalho policial exige muito melhor do que eu posso dizer. Até onde pude perceber, são homens experientes que aprenderam a realizar o trabalho policial porque tiveram que aprender. Não há dúvida de que foram motivados pelo respeito e pela dignidade humana, mas sua preocupação principal foi a eficácia e o profissionalismo. Talvez possa descrevê-los melhor dizendo que têm, através de suas próprias práticas, colocado o trabalho poli­ cial em uma base totalmente racional, indo de caso para caso como praticantes indi­ viduais de uma vocação altamente complexa.

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Embora não possa estar certo disso, acredito que escrevi como um porta voz des­ ses policiais porque acredito que é para eles que devemos olhar para transformar o trabalho policial naquilo que o trabalho policial deve ser. Mas as chances de que eles prevaleçam não são muito boas. O principal obstáculo para seu sucesso é a organiza­ ção dos departamentos policiais atualmente existentes. Não posso entrar em detalhes para demonstrar que a maneira como o trabalho policial é administrativamente re­ gulado constitui um impedimento sério para o surgimento de um policial responsá­ vel; sem considerar o fato de que a maioria do seu trabalho não é nem reconhecido nem recompensado!'. Mas gostaria de concluir dizendo que, longe de propiciar um controle disciplinar adequado sobre a má conduta evidente, as estruturas organiza­ cionais existentes encorajam o mau trabalho policial. Por trás disso está uma dose comum de interesse mercenário e de ostentação, e a inércia em relação à maneira como as coisas se encontram. Mas a principal causa é uma ilusão. Acreditando que a base real para sua existência seja a busca permanente daqueles criminosos como Willie Sutton - busca em que se perde tanto tempo como recursos - os policiais se sentem compelidos a minimizar o significado daqueles exemplos de desempenho em que pa­ recem ter seguido os passos de Florence Nightingale". Temendo o papel de uma en­ fermeira ou, pior ainda, o papel de uma assistente social, o policial combina o ressen­ timento contra esse trabalho constante, entra dia sai dia, com a necessidade de realizá-lo. E nisso perde sua vocação verdadeira.

Fica ainda um ponto para ser discutido. Este texto inicia com uma afirmação relacionada ao exercício, pelo governo, do controle da ação de coibir comumente re­ ferida como aplicação da lei ou policiamento. Em todos os casos, exceto no da polí­ cia, o cumprimento das leis é atribuído a burocracias especiais, cuja competência é limitada por autorização específica substantiva. Há uma tendência, compreensível, de interpretar o mandato policial segundo esse modelo. A busca de uma norma de autorização apropriada para a polícia leva à suposição de que o código criminal a forneceria. Argumentei que isso era um erro. O policiamento criminal é apenas parte incidental e derivada do trabalho policial. Acontece simplesmente porque está den­ tro do escopo de seus deveres maiores - isto é, torna-se parte do trabalho policial exatamente na mesma medida de tudo aquilo em que possa se ter de utilizar a força, e apenas nessa medida. Se a polícia deve também ser considerada como uma agência

14. Mas eu j:1. dei a este assunto uma consideração extensa em F.. Birtner (1970). Florence Nightingalc (' l820-tl910). Enfermeira britânica, considerada fundador.i da enfermagem moderna, conhecida como"The Ladywith the Lamp" [a dama com a Ump.1daj.que,em 1854, durante a Guerra da Crirnéia, organizou e dirigiu uma unidade de campo de enfermagem.

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ASPECT DO TRABALHO POLlCIAL

de cumprimento da Jei é uma questão puramente classificatória, de pouco interesse. Tudo o que quis defender é que não se pode interpretar o mandato policial como estando baseado em autorizações substantivas contidas nos códigos penais ou em quaisquer outros códigos. Concordo que colocar as coisas dessa maneira pode levan­ tar todos os tipos de questões na cabeça de pessoas que abraçam o ideal da letra da lei [Rule of Law]. E também concordo que a letra da lei sempre tirou parte de sua força alegando (pretense] direitos adquiridos sabe-se lá com que fundamentos; mas não acredito que alegações dêem direito à imunidade.

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