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Autores da abolição: Resistência e luta dos escravos.

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Autores da abolição:

Resistência e luta dos

escravos.

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Este projeto fora criado como trabalho didático final da disciplina Brasil

Independente I, ministrado pela professora Dr.ª Zilda Marcia Grícoli Iokoi, do

departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

(FFLCH) da Universidade de São Paulo. Esta atividade fora pensada para

constituir um capítulo de livro paradidático a ser apresentado pelos integrantes

do grupo a alunos que estejam cursando o primeiro ou segundo ano do ensino

médio. Através das leituras realizadas em sala de aula e, sobretudo, por

intermédio da pesquisa de campo feita nas Instituições públicas que promovem

a manutenção e conservação da memória histórica no Rio de Janeiro – como a

Biblioteca nacional, ou o Museu Nacional –, o grupo pode delimitar seu campo

temático e problematizar suas questões centrais: Qual tipo de história do negro

esses órgãos costumam contar? De que forma o negro é representado: como

passivo às ações da elite nacional, ou como agente político e social? Quem

foram os negros que lutaram por sua classe nos instrumentos legitimados pelo

poder? Desta forma, o presente trabalho busca fazer o aluno refletir na

representação e papel dos negros no final do século XIX, assim como questionar

a representação do negro nos dias atuais, através do universo midiático

(cinema, música, televisão, publicidade) a que o aluno está conectado.

Renan Lacerda da Silva n° USP: 8031292

Fellipe Chabuh n° USP: 8575413

Vinicius Quintas n° USP: 8016923

Bruno Torrano n° USP: 4104816

Pedro Hallack n° USP: 8031041

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Olá galera!

O livro que você tem em mãos foi pensado para discutir um pouco nossa

memória em relação ao que foi o final do período da escravidão. Por isso,

levantamos uma questão de início que esperamos que você possa responder no

final do material: Quem são os principais atores da escravidão? Algumas vezes

ouvimos que a Princesa Isabel é a responsável por esse ato, mas e os escravos?

Pensando nessas questões, o material vem para discutir e propor o debate

de pensarmos o protagonismo do povo negro na abolição da escravidão, indo um

além da visão de passividade do escravo que algumas vezes são dadas para nós na

abolição da escravidão.

Dito tudo isso, gostaríamos que você conhecesse um pouco das lutas

cotidianas que os negros tinham na sociedade escravista brasileira e assim poder

responder as perguntas e reflexões que o material propõe. Além disso, também

propomos pensar um pouco na nossa realidade e a atualidade, depois de pensar o

passado e ver como os negros são representados hoje, se suas lutas se mantêm e

por que lutam?

Lembrem-se de que pensar o passado é muito importante para pensar no

presente, pois a memória nos diz muito do que somos e nos ajuda a nos posicionar,

por isso pensar como pensamos nossa memória da sociedade brasileira é

importante para compreendermos e posicionarmos hoje. É isso que buscamos com

esse material, ajudá-lo a repensar nosso passado, nossa memória, para

compreendermos melhor o presente e podermos nos posicionar melhor.

Os autores

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1. Para vencer na vida ...................................................5 Trabalhe ................................................................. 12

2. Contra enganadores ............................................... 13 Elabore ................................................................... 18

3. As visões sobre a escravidão.....................................19 Reflita ..................................................................... 25

4. Luís Gama!................................................................ 26 5. O intelectual branco e suas concepções ................. 36

Reflita ..................................................................... 39 Exercício de análise .................................................... 40 Exercício de escrita ..................................................... 41

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Mesmo sofrendo os horrores do trafico negreiro e da escravidão, uma africana

conseguiu comprar sua liberdade, adquirir bens e ainda abrir um

processo de divórcio.

lustração: Jean Batiste Debret

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Ilustração de Jean Baptiste-Debret.

“A travessia do Atlântico durava mais de dois meses. Espremidos nos porões dos navios negreiros, milhares de homens, mulheres e crianças suportavam calor, sede, fome, sujeira, ataque de ratos e piolhos, surtos de sarampo ou escorbuto.

Mas nem mesmo tantos maus-tratos impediam o nascimento de novas vidas. Em princípios do século XIX, uma jovem africana que estava vindo para o Rio de Janeiro deu à luz em plena viagem. Foi seu filho, Manole José da Conceição Coimbra, quem lembrou essa história a muitos anos depois.

Para provar que a africana, batizada no Rio com o nome

A B c d

de Rita Maria da Conceição, era mesmo sua mãe, ele juntou fios de histórias que ainda guardava na memória a alguns registros escritos, como certidões de batismo, casamento e óbito. O relato – anexado ao processo que abriu em 1846 para garantir a herança materna na Vara Cível do Rio de Janeiro – podia até parecer seco e muitas vezes impreciso. Ainda sim, reconstituía, como poucos, parte de suas experiências naquele ‘infame comércio’ de africanos.

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"Você Sabia? A Lei Eusébio de Queirós de 1850, que proibiu o tráfico interatlântico de escravos, só foi se fazendo na prática lenta e gradativamente por pressão da Inglaterra, que não participava dos lucros deste comércio. Leis posteriores como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários mostram o temor das elites pela mudança radical que a abolição representava. A Lei Áurea de 1888, que aboliu a escravidão, não terminou com a exclusão dos negros da sociedade tampouco com a situação de trabalho compulsório que continua até hoje."

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Rita saíra de Cabinda, no Centro-Oeste da África, ao norte do Rio Zaire . Boa parte desses negreiros que chegavam ao Rio de Janeiro vinha dessa região. Ao cruzarem o oceano, eles deixavam para trás pátria, família, casa e deuses; tinham que encarar uma nova vida numa terra desconhecida. Mas já nos “tumbeiros” (como também eram chamadas essas embarcações), começavam a formar novos laços.

Acomodados num dos armazéns que se espalhavam pela Rua do Valongo, maior entreposto do comércio escravista do país,

A jovem africana e seu filho recém-nascido conseguiram aportar na capital do Império brasileiro. Segundo Manoel José, ‘chegando a esta cidade o navio em que vinham’, foram vendidos ‘no Valongo a Miguel José Taveira, que fez batizar a ambos por seus escravos’.

P Q r s

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“Valongo ou Vallongo era o nome de uma antiga enseada da cidade do Rio de Janeiro. Por extensão, acabou por denominar também a região no entorno. As sucessivas ondas de urbanização que a cidade experimentou acabaram por aterrar a enseada, em meados do século XIX, e o nome valongo desapareceu gradativamente como topônimo, persistindo hoje em dia apenas no Jardim Suspenso do Valongo e no Observatório do Valongo. Atualmente, toda a região faz parte do bairro Saúde.” Fonte:https://pt.wikipedia.org/wiki/

Valongo_(Rio_de_Janeiro)

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devem ter ficado por algum tempo expostos à curiosidade dos possíveis compradores. Arrematados por um senhor português, logo receberam nomes cristãos na igreja da freguesia de Santana: Rita e Manoel José.

Os dois ficaram juntos durante todo o tempo em que trabalharam na casa de Miguel Taveira. Depois de conseguir arranjar ‘o valor de ambos’, a africana comprou, na década de 1820, suas cartas de liberdade. Manoel preferiu seguir para Macaé, cidade no Norte fluminense. Já sua mãe permaneceu no Rio de Janeiro. E não demorou a encontrar um amor. Em 29 de novembro de 1828, casou-se com Antonio José de Santa Rosa, também ex-escravo, que nascera na freguesia de São Miguel de Ipojuca, em Pernambuco.

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Durante quase sete anos, o casal vendeu hortaliças, legumes e aves em duas bancas na Praça do Mercado, também conhecida como Mercado da Praia do Peixe. Instalado à beira da Baía da Guanabara, nas proximidades do Largo do Paço (atual Praça XV de Novembro), esse grande centro e abastecimento de gêneros de primeira necessidade reunia quitandeiras, mercadores e carregadores africanas, pequenos lavradores e vendedores brasileiros e portugueses. Para incrementar seus negócios, Antonio e Rita ainda contavam com seis escravos. Maria Angola e Joaquina Benguela dedicavam-se aos ‘serviços de quitanda’. Já José Moçambique estava empregado como marinheiro. Juntando os ‘jornais’ (dinheiro que os cativos deviam entregar ao senhor no fim de cada dia – ou de uma semana – de trabalho) com os rendimentos das barracas, eles acumulavam um bom patrimônio. Em pouco mais de um ano, a quitandeira Joaquina rendeu 180 mil-réis. E nas bancas, o lucro anual podia chegar a mais de um conto. Com este valor, podiam comprar pelo menos duas cativas como Joaquina, que, em 1846, teve seu preço de venda estipulado em 400 mil-réis.

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J h o r

Além dos ganhos na praça, os dois também se uniam na devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Na irmandade, criada no Rio de Janeiro pelos africanos angolas, eles participavam de missas, festas e procissões em homenagem aos santos católicos e ainda encontravam apoio nos momentos mais difíceis, como em casso de doença ou morte. Só que, mais de seis anos após o casamento, a relação de Rita e Antônio andava mal. Cansada de ser maltratada pelo marido, a africana decidiu abrir um processo de divórcio. Antônio até se defendeu das acusações, mas acabou concordando

VOCÊ SABIA?

“Os escravos de ganho eram escravos

que, no período colonial e no Império,

realizavam tarefas remuneradas,

entregando ao senhor uma quantia diária

do pagamento recebido. Foi relativamente

comum este tipo de escravo conseguir

formar um pecúlio, que empregava na

compra de sua liberdade, pagando ao

senhor por sua alforria. Embora conhecida

desde o século XVII nas áreas urbanas, na

época do Império a prática foi mais

controlada pelo estado, que concedia

licença aos proprietários para o seu uso.

As principais atividades a que se

dedicavam eram as de carregadores,

doceiras e pequenos consertos, embora

alguns senhores induzissem as escravas à

prostituição, o que era proibido por lei.”

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em romper a união em fevereiro de 1835. De acordo com os autos da partilha amigável, Rita – que não teve mais filhos – ficou com uma ‘morada de casas’ na cidade de Campos, no Norte do estado, três escravas e um conjunto de joias de ouro e prata. Divida entre a Corte e o interior do Rio de Janeiro, ela voltava a ficar mais perto de seu filho, que morava em Macaé, na mesma região fluminense. Não se sabe se ela ainda vendia suas quitandas. Mas quando faleceu, em 28 de maio de 1842, conservava todos os bens reunidos ao longo de tantos anos. Como seu único herdeiro, Manoel José precisou confirmar que era mesmo seu ‘parente de sangue’. E foi assim que, mais uma vez, refez suas histórias.”

Com a palavra, Rita Cabinda:

“(...) que ultimamente (e foi esta a ocasião que originou o presente divórcio) vindo o

Réu de fora, e batendo na porta, por que esta não lhe foi aberta incontinente pela

escrava, a passos o R. entrou e foi levando de bofetadas, pontapés e finalmente de

chicotes em termos tais, que acudindo um vizinho, o Réu a nada atendeu, apesar de

asseverar-lhe a negrinha que estava lavando no quintal, por isso não podia acudir

logo.(...) que entrando nesse momento a Autora, vindo de suas quitandas e vendo

aquela desordem filha ou da embriaguez ou do seu costumado mau gênio, tratou de

apaziguar o Réu, e acudir a escrava, porém o Réu em vez de atende-la a vergalhou,

dando-lhe tantas chicotadas quantas as que levaria a mesma negra, se por ventura

não tivesse escapado a esse momento. (...) Porque semelhante procedimento assim

a de ser oposto à harmonia conjugal, ameaça de morte à Autora que não pode por lei

alguma divina ou humana viver na companhia de um bárbaro, com o assumido nome

de marido”. (trecho do Libelo de Divórcio apresentado à Justiça Eclesiástica do Rio e

redigido pelo advogado Ovídio Saraiva de Carvalho. Fonte: Arquivo da Cúria

Metropolitana do Rio de Janeiro, Libelo de Divórcio, 766).

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Trabalhe!

Agora é com você! Utilize o texto para pensar na imagem que você tem do escravo negro no século XIX, e responda as questões sobre como a história desses escravos é mostrada!

Quais outros veículos de informação e/ou mídias você já viu tentarem essa inversão de olhares? Por que acha que o fizeram?

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Você acha que uma mudança de perspectiva ao se falar sobre escravidão (ver pelo olhar do escravo, não do escravizador) ajuda para um entendimento completo daquele período?

Ao se tratar questões importantes apenas pela chamada "visão dos vencedores", que tipos de problemas você acha que podem surgir ao se abordar tias questões?

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O dono de Liberata prometeu-lhe a liberdade, mas não cumpriu.

Resultado: foi processado pela escrava.

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Tudo indicava que Liberata teria o mesmo destino de tantos outros descendentes de africanos no Brasil: o cativeiro. Nascida por volta de 1780, de pais desconhecidos, ela foi comprada cerca de dez anos depois por José Vieira Rebello, morador do termo de Desterro (atual Florianópolis). Mas Liberata conseguiu trilhar um caminho diferente. Desde muito nova, a escrava era assediada por seu senhor. Como Vieira costumava seduzi-la com promessas de liberdade, ela passou a conceder-lhe favores sexuais, mesmo de mal grado, logo tendo dois filhos. O primeiro, João, foi batizado e reconhecido como fruto do casal. O segundo não chegou a ser declarado, pelo medo que Liberata sentia das perseguições da família Rebello. Uma das razoes de seu medo era o fato de ter sido testemunha ocular dos crimes cometidos por Anna, filha de seu senhor: ajudada pelo pai, a sinhazinha matou seus filhos recém-nascidos, todos ilegítimos, que havia tido com moradores da região.

VEJA TAMBÉM

A fina ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravatura. Na crônica , o saudoso escritor aborda a questão do “fim da escravidão”, que havia ocorrido oficialmente no dia 13 de maio de 1888. Acesse: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/machado-de-assis-abolicao-escravidao.html

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Liberata estava disposta a mudar de vida. Arrumou um noivo que, além de querer casar, ainda se dispunha a pagar por sua alforria. Mesmo oferecendo uma boa quantia e contando com a simpática do pároco local, a oferta foi recusada pelo senhor Vieira. Nesse momento, ela recorreu à sua última alternativa: procurou a Justiça para dar inicio a uma ação de liberdade, processando seu senhor.

Em 1813, Liberata iniciou um processo em Desterro, argumentando que Vieira havia prometido libertá-la e não havia cumprido a promessa. Antes que a ação seguisse seu rumo, Vieira fez uso de um recurso então muito comum: doou a escrava para seu enteado Floriano José Marques. Como as promessas de liberdade haviam sido feitas por Vieira, que, teoricamente, não seria mais seu senhor, elas teriam perdido o valor. O processo ficou um bom tempo emperrado por conta disso, mas acabou finalizando de forma inusitada. Liberata desistiu da luta judicial em troca da liberdade incondicional

Sugestões de leitura

COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. Editora Unesp, São Paulo, 2012. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Cia das Letras, São Paulo, 1990. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. Editora Unicamp, São Paulo, 2008

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por Floriano José Marques. Este teria feito um acordo com Vieira Rebello, recebendo terras em troca da libertação. Embora não se conheçam bem os motivos que levaram à desistência da ação, sabe-se que Vieira temia ver os segredos da filha serem divulgados no tribunal, e por isso teria com cordado com a libertação, ocorrida em 1814. O que ninguém então podia imaginar é que a relação de Liberata com a Justiça estava longe do fim. Ao conseguir a liberdade, ela se casou e teve mais dois filhos, José e Joaquina, já nascidos libres. Impossibilitada de mantê-los, deixou-os com o major Antônio Luís de Andrade, para que os criasse e ensinasse o ofício de alfaiate ao seu filho varão. Mas as crianças tiveram outra sina, tristemente comum no Brasil do século XIX: ao morrer o major, sua viúva tentou vendê-las como escravas. José e Joaquina agiram como a mãe. Procuraram a Justiça alegando serem livres de

nascença. Em 1835, os dois conseguiram a alforria. A trajetória de Liberata e seus filhos foi uma dentre as muitas querelas pela liberdade concorridas no Brasil colonial e imperial. Somente n a Corte de Apelação do Rio de Janeiro, tribunal de segunda instancia, 400 ações de liberdade foram julgadas entre 1808 e 1888, e metade delas resultou na alforria dos escravos envolvidos. A ocorrência de outras tantas ações vem sendo registrada por pesquisadores de todo o Brasil, ao analisarem a documentação judicial dos tribunais de Bahia, Rio Grande do Sul, Campos dos Goytacazes e Vassouras, apenas para citar alguns exemplos. Entre os motivos alegados pelos escravos destacam-se as promessas de liberdade, como fez Liberata, ou o nascimento de ventre livre, como fizeram seus filhos. Mas também eram comuns os argumentos de recebimento

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de carta de alforria, de chegada ao Brasil após a lei de 1831 – a primeira que estabeleceu a ilegalidade da entrada de escravos no país -, os maus-tratos e a tentativa, muitas vezes recusada pelo senhor, de compra da própria alforria. Ao longo do século XIX, as ações de liberdade tornaram-se um importante recurso para a libertação dos cativos que acreditavam ter reunido condições que lhes permitiriam mudar de status.

Para você, qual a verdadeira importância que a então regente Princesa Isabel teve no processo de abolição da escravatura? E como ela costuma aparecer nos livros de história, nos museus, nos filmes? Produza um texto mostrando quais personagens contribuíram para o dia 13 de maio e diga o que ele representa nos dias de hoje.

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ELABORE Resíduos

As principais atribuições da Fundação Biblioteca Nacional são:

Captar, preservar e difundir os registros da memória bibliográfica e documental nacional;

Adotar as medidas necessárias para a conservação e proteção do patrimônio bibliográfico e digital sob sua custódia;

atuar como centro referencial de informações bibliográficas;

atuar como órgão responsável pelo controle bibliográfico nacional;

ser depositária e assegurar o cumprimento da legislação relativa ao depósito legal;

registrar obras intelectuais e averbar a cessão dos direitos patrimoniais do autor;

promover a cooperação e a difusão nacionais e internacionais relativas à missão da Fundação Biblioteca Nacional; e

fomentar a produção de conhecimento por meio de pesquisa, elaboração e circulação bibliográficas referentes à missão da Fundação Biblioteca Nacional.

Fonte: http://www.bn.br/bibliotecanacional/missao

Como você pensa que isso ajuda na preservação da história da população negra?

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Em seu livro Visões da Liberdade, publicado em 1989, Sidney Chalhoub oferece um quadro completo sobre os diferentes ideais existentes na discussão envolvendo a abolição da escravidão. Através de uma série de exemplos, o autor nos mostra as opiniões dos mais diversos atores sociais que participaram deste processo no século XIX, passando pela elite abolicionista, os proprietários de escravos e os negros na época. Um ponto fundamental nos debates em torno da abolição dizia respeito à disputa entre a liberdade do escravo e o direito à propriedade privada do proprietário. Apesar de ser considerado um bem do senhor, o cativo, obviamente, não poderia ser tratado como um objeto qualquer, dada sua condição humana. Porém, as leis asseguravam que ele deveria pertencer a um senhor. Neste caso, como definir até onde iriam os limites do direito à propriedade e, principalmente, qual seria o limite para definir o que seria um comportamento considerado abusivo em relação ao escravo. Chalhoub mostra processos jurídicos que envolviam ações em prol da alforria na segunda metade do século XIX apontando que, em última instância, era a posição política dos juízes, a favor ou contra a abolição, que definia sua decisão final. Nessa época, já não era mais possível se omitir neste debate.

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Agora, mesmo levando em consideração a atuação de juízes e bacharéis em direito pró-liberdade, nos cabe ressaltar um elemento importante nesse campo jurídico: a liberdade deveria ser conquistada e tratada respeitando as leis, sem rebeliões populares, o que reflete a visão da elite abolicionista, como podemos verificar em Joaquim Nabuco, um dos principais nomes a favor da abolição no Brasil. Na opinião desta parcela, a luta contra a escravidão deveria ocorrer nos conformes da lei, sendo guiada por uma camada de pessoas esclarecidas intelectualmente, tutelando e guiando os escravos. Para Nabuco, estes não tinham condição de conduzir o processo pelo seu estado de degradação, sem estarem inseridos na sociedade como cidadãos. Chalhoub, mesmo respeitando esta posição para um homem da época, discorda desta visão ao apresentar uma série de situações e documentos que mostram os negros assumindo posições de protagonismo nesta luta, como veremos mais para

frente. 21

Questões para fixação

1. Explique com suas palavras o

que significava a alforria como

forma de "controle social"

2. Na sua opinião, a resistência

à escravidão por via de leis

oferecia um caminho melhor

do que por meio de rebeliões?

Justifique.

3. Você considera que existem

pontos em comum entre a

situação do negro na segunda

metade do século XIX e o

que se vê hoje em dia?

Explique.

Joaquim Aurélio Barreto

Nabuco de Araújo (Recife,

19 de agosto de 1849 —

Washington, 17 de janeiro de

1910) foi um político,

diplomata, historiador, jurista

e jornalista brasileiro formado

pela Faculdade de Direito do

Recife. Foi um dos grandes

diplomatas do Império do

Brasil (1822-1889), além de

orador, poeta e memorialista.

Além de O Abolicionismo,

Minha Formação figura como

uma importante obra de

memórias, onde se percebe o

paradoxo de quem foi

educado por uma família

escravocrata, mas optou pela

luta em favor dos escravos.

“A escravidão permanecerá

por muito tempo como a

característica nacional do

Brasil” – Nabuco.

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Olhando para uma elite mais conservadora, proprietária de escravos, analisamos outra visão em relação aos negros e à própria alforria. A concessão da liberdade, que até a Lei do Ventre Livre, em 1871, dependia da autorização do senhor, era muitas vezes usada na tentativa de disciplinar o escravo e criar uma relação de dependência deste com o seu dono. Explica-se: como o alforria tinha que estar de acordo com a vontade do senhor, este contava com o bom comportamento e a obediência do cativo para libertá-lo, o que garantiria sua subordinação e lealdade, mesmo após sua libertação. Um instrumento muito usado para manter o vínculo com o negro era conceder alforrias condicionais, que estipulavam determinada data para a liberdade, mas que ainda garantiriam obrigações com o proprietário durante vigência do acordo. Processos jurídicos mostram senhores que tentaram revogar alforria por "mau comportamento" do escravo. 22

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E como os negros apareciam neste momento de grande agitação política? Sidney Chalhoub se utiliza de várias fontes para desconstruir a visão de que estes teriam assistido ao processo abolicionista de forma passiva, sem lutar ativamente pela liberdade. Pelo contrário, os processos analisado pelo autor mostram esta luta como iniciativa dos próprios, sem a orientação obrigatória de uma elite letrada. Tendo isso em vista, podemos abrir um parênteses interessante aqui. A alforria, vista como um meio de controle social por parte da elite senhorial, é compreendida pelo autor como mais um campo de batalha para os escravos em suas aspirações pela liberdade. Vários casos são relatados nesse sentido: negros (com seus respectivos curadores, necessários para ajudá-los em um processo jurídico) mostrando engajamento nas ações que reivindicavam sua liberdade, mostrando contrariedade com sua situação ao mostrar rebeldia e fugir durante o andamento de processos na justiça; a denúncia para juízes de maus tratos por parte dos donos; aproveitamento de brechas e confusões quando envolvidos em disputas por heranças entre descendentes do seu antigo proprietário para tentar ganhar alforria; após a Lei do Ventre Livre, a disputa com senhores para abaixar o preço de indenização, entre infindáveis exemplos que poderíamos citar nesse sentido.

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O fato de se utilizar de um expediente que garantia a supremacia da vontade senhorial, como a alforria, para atingir a liberdade não fazia da resistência algo submisso

SUGESTÕES Filme: Amistad (1997), Steven Spilberg Música: Negro Drama (Racionais MC’s) Leitura: Escravo e Abolucionista (Eduardo Nonomura)

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REFLITA

E hoje em dia? Quais são as formas de resistência que

você percebe hoje pela população negra? Quais

instrumentos são apropriados por eles para promoverem

suas causas? Pense e escreva nos quadros suas reflexões

sobre o espaço de representatividade dos negros na:

Cinema e Televisão:

Em quais papeis os personagens

negros costumam aparecer? Eles

costumam ocupar papéis centrais

nas tramas? Qual é o

alinhamento moral destes

personagens?

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Música:

Que tipo de música você ouve? Você costuma ouvir rap ou funk? E o samba? Você conseguiria dizer quais instrumentos do samba de roda são de matriz africana?

Publicidade:

Você costuma ver muitas propagandas com pessoas negras nas tv’s ou outdoor?

Quantas bonecas ou bonecos de cor preta ou parda você tem na sua casa?

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Carta de Luís Gama a Lúcio de Mendonça

Meu Caro Lúcio,

Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito. Não me posso negar ao teu pedido, porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, pelas ocultar, de envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de memória.

Nasci na cidade de S. Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado na rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant'Ana, a 21 de junho de 1830, por às 7 horas da manhã, e fui batizado,

8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de ltaparica. Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de nação), de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio - era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia,

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foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma "casa de dar fortuna” em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses "amotinados" fossem mandados por fora pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores. Nada mais pude alcançar a respeito dela.

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Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que nesta carta envio-te.

Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste país, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome. Ele foi rico, e nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luís Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao longo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho "Saraiva".

Remetido para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era um negociante de estatura baixa, circunspeto e enérgico, que recebia escravos da Bahia, à comissão, tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito compassivas, principalmente a mais velha.

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A senhora Vieira era uma perfeita matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais nova, deram-me de cear e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia, que era mucama da casa.

Sempre que me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos, porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns dias. Dali saí derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir. Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos mártires.

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Dono de uma ”biografia de novela”,

Luis Gonzaga Pinto da Gama, ou Luís Gama, Foi um dos raros intelectuais negros no Brasil escravocrata do século XIX, o único autodidata e o único a ter passado pela experiência do cativeiro; pautou sua vida na defesa da liberdade e da república, ativo opositor da monarquia, veio a morrer seis anos antes de ver seus sonhos concretizados. Fora criança livre e feito escravo, e depois a homem livre; de analfabeto a integrante do mundo das letras; exerceu diversas profissões e posições sociais: escravo do lar, soldado, ordenança, copista, secretário, tipógrafo, jornalista, advogado, autoridade da maçonaria.

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Nesta casa, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a fome, em cárcere privado, e já com a idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio. Este alferes Antônio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos escravos;

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e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta Província. Como já disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu "baiano". Valeu-me a pecha! O ultimo recusante foi a venerando e simpático ancião Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do exmo. Conde de Três Rios, meu respeitável amigo. Este, depois de haver-me escolhido, afagando-me disse: " - Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; diz-me: onde nasceste? - Na Bahia, respondi eu. - Baiano?

- exclamou admirado o excelente velho. - Nem de graça o quero. “Já não foi por bom que o venderam tão pequeno”. Repelido como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro, voltei para casa do Sr. Cardoso, nesta cidade, à Rua do Comércio n. 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia. Aí aprendi a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar. Em 1847, contava eu 17 anos, quando para a casa do Sr. Cardoso veio morar, como hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade

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tendo deixado a cidade de Campinas, onde morava, o menino Antônio Rodrigues do Prado Júnior, hoje doutor em direito, ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi-Guaçu, onde é fazendeiro. Fizemos amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras. Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosamente e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial insolente, que me havia insultado e que soube conter-se.

Estive, então, preso 39 dias, de 1o. de junho

a 9 de agosto. Passava os dias lendo e, às noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em sonho vi que a levaram presa. Pareceu-me ouvi-Ia distintamente que chamava por mim. Dei um grito, espavorido saltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à grade, enfiei a cabeça pelo xadrez. Era solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado pela luz amarelenta de enfumarada lanterna. Voltei par aminha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me também os fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.

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Durante o meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje, pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do Governo; e, como amanuense, no gabinete do exmo. Sr. Conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de letras e de civismo, que conservo com orgulho.

Em 1856, depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais, fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço público", pelos conservadores, que então haviam subido ac poder. A portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antônio Manuel dos Reis, meu particular amigo, então secretário de polícia, e assinada pelo exmo. dr.

Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros 34

“Em 1869, Luiz Gama obteve autorização para exercer a profissão de advogado em primeira instância, mesmo ano em que funda o Clube Radical Paulistano com outros membros da Loja América. Com sólidos argumentos, Gama revela a fragilidade do sistema judiciário. De acordo com a pesquisadora (Ligia Fonseca Ferreira), além das críticas, tratou de inovar no plano jurídico, como quando desenterrou a Lei de 7 de novembro de 1831, que extinguiu o tráfico negreiro, para conseguir libertar africanos comercializados depois dessa data. Em um processo de 1869, entrou em choque com um dos principais juízes da capital, Rego Freitas, a quem exigiu que “respeita[sse] o direito e cumpri[sse] seu dever, para o que é pago com o suor da nação”. O discurso de Gama continua atualíssimo.”

Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/05/15/escravo-e-abolicionista/

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semelhantes, foi nomeado desembargador da relação da Corte. A turbulência consistia em fazer parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas idéias; e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis.

Desde que fiz-me soldado, comecei a ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado. Fiz versos; escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos. E redigi alguns. Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no "Ipiranga" à rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante; eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime.

Eis o que te posso dizer, às pressas, sem importância e

sem valor; menos para ti, que me estimas deveras. Teu Luis, Luís Gama.”

In: Novos Estudos, n. 25. São Paulo, CEBRAP, outubro de 1989.

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Texto sobre a visão que a elite intelectual branca tinha sobre o lugar da cultura africana e do escravo e liberto na sociedade

brasileira.

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Quando o tema da abolição começa a ser algo inevitável, a elite intelectual brasileira passa a debater qual seria o lugar da cultura africana e do escravo e liberto na sociedade brasileira, Joaquim Nabuco, abolicionista, e José de Alencar, escravista, fizeram um debate sobre como deveria ser tratado o tema da escravidão na cultura brasileira.

Nabuco, apesar de ser conhecido como um abolicionista famoso, pensava que o tema da escravidão não deveria ser tratado pela cultura brasileira porque isso comprometeria o teatro de um grande país e sua civilização, além de ofender os estrangeiros e, na sua visão, humilhar os brasileiros.

Já José de Alencar, mesmo não apoiando a abolição imediata da escravidão, tratava da escravidão em suas obras, mas que pouco tinham de representatividade aos negros em cativeiro, o que também será alvo de crítica de Nabuco. Fato é que se por um lado Alencar não acreditava na capacidade do escravo para ser liberto, pois em sua visão isso comprometeria a lição, para Nabuco, apesar de ser a favor da abolição, não acreditava no negro, escravo ou liberto, capaz de construir um projeto de civilização participando da formação cultural brasileira. Outros intelectuais que participaram desse debate foram Sílvio Romero e Nina Rodrigues. Romero preocupou-se com a influência das raças na cultura brasileira, reconhecendo o mestiço como uma figura tipicamente brasileira e o criador da cultura brasileira, no entanto, estaria racialmente determinado ao mimetismo ou adaptação do estrangeiro já que seriam incapazes de produzir como os brancos puros. Apesar de tudo, Romero considerava-se abolicionista, mas apoiando a abolição gradual, ou seja, através da liberdade concedida pelos senhores, atitude que Machado de Assis, um mulato, ironizaria.

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Centro academico do da Faculdade de Direto do Largo São Francisco, 1866

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Nina Rodrigues, um médico, etnólogo e intelectual branco da época, fundador da disciplina de etnologia afro-brasileira, buscou estudar o negro ou o africano, porém apesar da simpatia que o negro brasileiro inspirava nele, utilizou da evidência científica para apontar a inferioridade do negro e da sua incapacidade de assimilar os ideais de uma civilização republicana e liberal. Propondo que o negro devia ser tutelado, como um louco ou uma criança, para que pudesse participar de um regime liberal.

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OS SENTIDOS DE 13 DE MAIO Qual o sentido do 13 de maio? Há vários sentidos, dependendo da visão de quem analisa

a data. Vejamos três sentidos principais: 13 de Maio “libertação”: a data é vista positivamente, como o momento da abolição da

escravatura. É comemorada como doaão de liberdade da monarquia, representada pela princesa Osabel, a “Redentora”.

13 de Maio “enganação”: a data é vista negativamente, pois a “abolição” legal da escravidão não aboliu efetivamente a opressão sobre o negro. Para substituir esse 13 de maio “enganação” constrói-se outra data histórica, o 20 de novembro, data provável da morte de Zumbi, que os movimentos negros procuraram instituir como o Dia da Consciencia Negra.

13 de Maio “critico”: a data é vista positivamente, mas sob novo enfoque. Não se valoriza a “dádiva” da monarquia abolindo a escravidão, mas sim a pressão do movimento popular (incluindo os próprios escravos) exigindo a extinção legal da escravidão. Em vez de doação real, a data é vista como conquista popular.

José Murilo de Carvalho. In: Folha de S. Paulo, 13 de maio 1988. p. B 8-9 – adaptado

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REFLITA Agora é com você! Pense no texto e responda acerca das perguntas chaves nos boxes. Lembre-se que as setas indicam que há ligação entre as reflexões, portanto se esforce para relacioná-los. Bom trabalho!

Diante da visão que a elite intelectual branca tinha sobre o lugar do negro na sociedade brasileira e das narrativas lidas por você, você concorda ou discorda com a visão desses intelectuais ou discorda? Justifique

A quem você atribuiria maior importância na abolição da escravidão? A esses intelectuais, como Nabuco e Sílvio Romero, ou às lutas dos negros que você leu nas páginas anteriores. Por quê essa escolha?

Pensando na leitura das narrativas anteriores e na opinião desses intelectuais sobre o lugar do negro na sociedade brasileira. Você acredita que a mestiçagem e a presença dos negros na sociedade tiveram um impacto positivo ou negativo sobre a formação da sociedade brasileira? Justifique sua resposta. 39

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Você consegue identificar um ou mais temas que perpassam todos

esses contos? Escreva sobre.

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Depois de estudar com bastante atenção os temas relativos à escravidão e ao processo abolicionista, agora é a sua vez de dar as suas impressões sobre o período histórico analisado. Com base em tudo que foi visto no capítulo anterior, elabore uma narrativa sobre a história de um negro na segunda metade do século XIX. Lembre que o texto deve ser factível com as situações e costumes da época, pegando exemplos citados ao longo do capítulo.

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