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AYTRON SENNA – APENAS O MÁXIMO !
Como personalidade, Ayrton Senna é um tema polêmico. Na imagem de bom
moço reside um piloto misterioso, de poucas palavras. Um homem solitário,
místico e obsessivamente dedicado ao trabalho. Deus ou diabo. Príncipe ou sapo.
Impossível dizer. Mas na pista...
Texto: Paulo Markun Ilustração: Marcelo Cipis
Existem pelo menos dois Ayrton Senna: o bom moço que a gente vê no vídeo,
sorridente, simpático, afável, pagando a conta de um jantar, comprando uma
camisa, destacando a competência e rapidez do seu patrocinador, e o piloto pouco
dado às palavras, misterioso, obsessivamente dedicado ao trabalho. Entre um e
outro oscila o solteiro (em verdade, divorciado) que resume os sonhos de todas as
mocinhas e de suas mamães. Príncipe ou sapo, herói ou vilão, bom menino à la
Roberto Carlos ou esquisitão tipo Mequinho e Howard Hughes, não há uma só
resposta, até porque entre os estereótipos existe, com certeza, um terceiro Senna,
real, de carne e osso. Mas tão inalcançável quanto nos inspirados momentos em
que entra num circuito para cumprir mais uma de suas Flying Laps – as voltas
voadoras, prodígios de perícia e ousadia que já lhe valeram 50 poles positions em
Grandes Prêmios de Fórmula Um - , mas um recorde para a sua coleção
particular.
Acontece que, separando o verdadeiro Ayrton Senna da Silva do resto de nós,
meros mortais, existe um círculo de ferro, em que, não por acaso, as peças-
chaves levam um mesmo Silva como sobrenome. O comando de seus negócios,
bem como o acesso ao piloto, é responsabilidade exclusiva do pai dele, Milton da
Silva. E o dia-a-dia da Ayrton Senna Promoções Ltda. fica com o primo Fabio da
Silva Machado. Tanto um como outro não se cansam de explicar que Senna tem
pouco tempo de descanso entre um campeonato e outro e não pode, nesses
intervalos, atender às dezenas de solicitações de repórteres e jornalistas, não
apenas do Brasil mas do mundo todo, etc. etc. etc...
Quem romper essa barreira não vai encontrar uma intimidade tão surpreendente.
Senna não coleciona escândalos como Mick Jagger, nem excentricidades como
Prince. Desde muito pequeno, seu passatempo, quando não estava correndo de
Kart, montando ou desmontando o carrinho ou treinando, era apenas e tão
somente... o automobilismo. E no circo da Fórmula Um ele encarna o papel do
trapezista – aquele que suspende a respiração do respeitável público com suas
façanhas, mas que não se digna a lhe oferecer mais que um gesto rápido de
agradecimento e um sorriso protocolar ao término de suas apresentações. Assim,
o trapezista Senna perde sempre os campeonatos de simpatia, charme, sedução,
até porque está sempre empenhado em conseguir o melhor resultado, em andar
cada vez mais depressa nas pistas, em ser o número um.
Bicho do mato
Pra complicar ainda mais as coisas, nessa última temporada de descanso, um
estranho e mal explicado seqüestro fechou ainda mais o cerco em torno do piloto,
a ponto de obrigar os jornalistas a um plantão diante de sua zona eleitora., porque
sua entourage negou-se a informar até mesmo em que horário o piloto iria votar,
temendo um cinematográfico rapto cívico. A vigília acabou resultando na previsível
e prosaica foto do bicampeão depositando seu voto na urna, exatamente como
tantos outros milhões de brasileiros – alguns pouco mais ou menos famosos e
igualmente sujeitos aos riscos de um improvável seqüestro bem na cabine de
votação.
A paranóia do seqüestro começou na própria imprensa, devidamente insuflada
pela notícia de que o Comando Vermelho estaria com tudo pronto para sumir com
o campeão tão logo ele chegasse a Angra dos Reis, onde costuma pilotar um jet-
ski, esquiar ou descansar simplesmente. Ao contrário de tantos outros casos,
desta vez, a polícia carioca foi realmente eficiente: descobriu a trama antes que
ela fosse posta em ação, avisou o piloto e permitiu que as polícias Civil e Militar de
São Paulo montassem um aparato ruidoso em torno de Senna. Se já era difícil
arrancar uma entrevista ou obter um simples autógrafo do bicampeão antes disso,
ficou realmente impossível. A tal ponto que o presidente da TAS – Torcida Ayrton
Senna - , Adilson Carvalho de Almeida, continua torcendo para seu Milton dê o
sinal verde e marque o jantar de confraternização entre o pessoal da TAS e o
campeão, quando será entregue em mãos o troféu especialmente confeccionado
em honra ao bicampeonato.
Mas não é fácil fazer com que Ayrton segure algo mais do que o volante de seus
carros. As cartas de fãs, por exemplo. São cuidadosamente arquivadas em seu
escritório...longe de suas mãos – e olhos. Quando muito, cuida-se para que o(a)
tiete receba uma foto autografada, um calendário, um poster, retribuição nem
sempre capaz de aplacar as declarações de amor, entusiasmados elogios,
pedidos os mais diversos e votos de boa sorte que chegam diariamente, às
dezenas, dos quatro cantos do país.
Fim de romance
Quando eu quis saber de seu pai o nome de um fã do piloto, seu Milton lembrou
logo da eterna secretária da Federação Paulista de Automobilismo, Marília de
Souza Lima. Ela trabalha na Federação desde 1973 e tem realmente muito
carinho pelo piloto. Agora, contato mesmo, nenhum. Quando muito, um cartão de
Boas-Festas aqui ou acolá.
O padrão Greta Garbo seria justificável se fosse permanente, completo. Mas ele
não se confirma nas páginas da nossa imprensa ou no noticiário do rádio e da
televisão, onde o campeão aparece sempre, esteja ou não nas pistas. Uma
pesquisa feita pela Lux Jornais, que ganha a vida recortando notícias, garante:
Senna é o esportista que tem o maior espaço na nossa mídia. Há um explicação,
além de seu desempenho nas corridas: ele é o único piloto da Fórmula Um a Ter
seu próprio esquema de assessoria de imprensa. Outros campeões geram
notícias, mas usam apenas o esquema de comunicação de seus patrocinadores.
Senna não. Tem, além disso, quatro jornalistas que trabalham para ele em período
integral, e, desde os tempos da Fórmula Três, repórteres e editores se
acostumaram a receber os press-releases bem cuidados registrando todos os
momentos (evidentemente, de um ponto de vista favorável) do piloto promissor, do
estreante sortudo e, finalmente, do campeão do mundo. Naqueles tempos
bicudos, Senna beirava a figura do chato de redação. Costumava aparecer nos
principais jornais e revistas de São Paulo em busca de repórteres e comentaristas,
que hoje esnoba completamente, pedindo uma forcinha aqui, um espaçozinho ali.
E mais de uma vez estacionou de surpresa na casa de alguns jornalistas, no dia
do seu aniversário. Um repórter que prefere devolver o desdém com que tem sido
tratado, mantendo-se no anonimato, garante: o atual bicampeão esperou por ele
durante quatro horas, no saguão de seu prédio, apenas para pedir um favor, no
começo de sua carreira internacional.
O Senna de hoje imagina que pode construir e controlar sua imagem. Na
entrevista para a revista Playboy, garimpada com muito esforço pela repórter
Monica Bergamo e publicada em agosto do ano passado, ele credita o fim de seu
namoro com Xuxa (transformado num show de notícias) à faz-tudo da rainha dos
baixinhos, Marlene Mattos, que teria dado demasiada divulgação ao affaire. E
explica: “Ela (a Xuxa) não controla a própria imagem, como eu controlo a minha. E
existiu, no início, a tendência de usar nosso namoro para fazer notícia. Fui contra.
Cheguei a me indispor com certas pessoas...”
Pare ele, indispor-se com as pessoas é simples. Ao longo da carreira na Fórmula
Um, trombou com Keke Rosberg, Nigell Mansel, Michelete Alboretto, Derek
Warwwick, Andrea De Angelis, o cartola Jean Marie Balestre (que quase o põe a
nocaute, obrigando Senna a engolir em público suas declarações críticas ao
dirigente da Fisa), Nelson Piquet e, claro, Alain Prost. Raspou de leve com Jackie
Stewart, ex-campeão e hoje comentarista, com Bernie Ecclestone. Quis acabar
com a carreira do repórter Reginaldo Leme, da Globo, recusando-se a dar
entrevistas para ele, sob a alegação de que Reinaldo era amigo de Piquet. E
fundiu a cuca do comendador Enzo Ferrari, criador da mais importante escuderia
de corrida, a ponto de ele registrar em suas memórias o seguinte: “Brasileiro,
jovem, audaz exibicionista a qualquer hora. Veio me encontrar em Maranello.
Depois de um colóquio de meia hora, me perguntei se poderia entender o que ele
desejava, porque não consegui interpretá-lo”.
Controle de imagem
O jornalista Milton Coelho da Graça, que o acompanhou com a Fórmula Um
durante duas temporadas, colecionou opiniões de jornalistas do mundo todo sobre
ele. A melhorzinha diz que Senna é árido nas entrevistas. Carlo Marincovich, do
La República de Roma, resumiu a ópera: “Como piloto, quase perfeito. Como
pessoa, um desastre”.
Nas pistas, anda com o pé no fundo e é ousado, agressivo. Nas entrevistas,
esquivo, um pé atrás, sempre achando que por trás de qualquer pergunta existe
uma armadilha. Assim, é mais fácil enumerar seus inimigos do que amigos ou ex-
namoradas, embora volta e meia seus casos amorosos transformem –se em
manchete de jornal e páginas e páginas de revistas. Senna garante que teve
outras namoradas, que conseguiu manter longe das curiosidade dos jornalistas,
mas tamanha publicidade faz supor que até esses relacionamentos têm muito a
ver com a tal construção da imagem.
A lista de supostos amigos não acrescenta muita coisa ao que se sabe. A ex-
mulher não dá entrevistas, e o ex-assessor, Americo Jacoto Junior, com quem
viveu na Europa, também escapa das declarações.
De qualquer modo, esse controle da imagem vai além dos press-releases ou da
disposição de não falar sobre outro assunto que não o automobilismo. Basta dar
uma olhada no material fotográfico do nosso herói. São fotos muito bem-feitas,
sempre registrando flagrantes do campeão em ação, dentro ou fora das pistas.
Numa, ele comanda um jet-sky. Noutra, pilota uma moto (de boné do
patrocinador). Numa terceira, sorri, escarrapachado numa poltrona do papai,
segurando a miniatura de um helicóptero, com a sola do tênis em primeiro plano,
onde se lê, claramente, a marca do produto. Senna aparece ainda compenetrado
diante de um aeromodelo ou examinando um mapa encostado na porta de seu
helicóptero. Mas o detalhe curioso está à margem de todas essas fotos: uma
mesma assinatura – Koike-Marguera/Kich Off Productions. Nada mais, nada
menos que uma agência fotográfica que ele comprou e a quem entregou a
exclusividade dos clics disparados sobre si mesmo. Fotos do campeão fora desse
esquema, só com um pouco de sorte ou sem que o piloto pose para o trabalho.
Será que ele é?
A estratégia seria perfeita se não enfrentasse obstáculos como a deselegância de
Nelson Piquet, que declarou em alto e bom som sua incerteza quanto à virilidade
do campeão, incorporou uma fama difícil de eliminar, que o levou a tentar uma
retratação de Piquet na Justiça e a declarar, na mesma entrevista da Playboy, que
a razão das insinuações de seu companheiro de profissão é que ele, Senna,
conheceu a atual mulher de Piquet. Conheceu como, perguntou a repórter. E
Senna: “Eu a conheci como mulher. É curto e grosso. Eu a conheci como mulher”.
Essa é uma expressão comum na Bíblia, um dos poucos livros que Senna admite
Ter lido na vida. De uns anos pra cá, suas relações com a fé têm se tornado mais
e mais intensas e inusitadas. Ele já admitiu, numa entrevista coletiva, diante de
jornalistas especi8alizados do mundo todo, que costuma ver Jesus Cristo
levitando sobre seu carro ou surgindo na frente da máquina, na hora de fazer uma
curva. Senna considera que falar sobre essas experiências é parte de sua missão
na terra. A religiosidade do piloto não o impede de encontrar uma boa explicação
para o fato de um não-fumante e antitabagista ser patrocinado por uma fábrica de
cigarros. Mas jamais se conseguirá dele uma declaração tão sincera quanto a de
Piquet (ele, outra vez) – que levou à lona o irreverente repórter de TV Ernesto
Varela, que perguntou atrás do que Piquet corria - , com apenas quatro palavras:
“Da grana, meu amigo”.
Senna não fuma pra não prejudicar a saúde. E ele se preocupa muito com sua
condição física. Há oito anos, entregou seu corpo às mãos do professor Nuno
Cobra, pós-graduado em Educação Física pela USP, com especialização em
fisiologia, e que cuida de uma legião de atletas. Nuno Cobra diz que Senna é seu
melhor discípulo – o mais atento, o mais disciplinado e o mais bem-sucedido
também. Corre no mínimo oito quilômetros por dia – todos os dias. E dedica mais
uma hora pelo menos a exercícios para o pescoço, braços e pernas. São
movimentos especialmente idealizados para fortalecer a massa muscular sem
aumentar seu volume – um detalhe decisivo para quem tem no minúsculo cockpit
seu lar, digamos assim.
A aplicação valeu: Senna tem uma força incomum nos braços e pode ganhar
qualquer competição com os mais taludos fisicultores – o que lhe vale alguma
vantagem na hora de fazer as curvas. Por se canhoto, ganha uns pontinhos mais,
já que segura o volante com a esquerda na hora de mudar de marcha – e isso
permite que ele troque de marcha no meio das curvas. Dos seus 67 quilos e meio
espalhados por um metro e 72 centímetros, só 7,134 quilos são de gorduras, o
que vale dizer que a massa muscular de Senna representa 45,3% de seu peso,
quando um atleta normal não passa dos 40%. Seu desempenho em corridas de 10
ou 11 quilômetros é tão bom que, se um dia ele quisesse, poderia deixar a
Fórmula Um e entrar para o atletismo profissional sem grandes problemas. Ah, e
seu coração também bate mais devagar. Ou seja, precisa fazer menos esforço
para bombear o sangue para o organismo todo na hora crítica das corridas. Em
repouso, registra 60 batidas por minuto, contra 80 dos mortais comuns. Na pista,
onde os outros pilotos funcionam com um ritmo quase insuportável de 160 a 180
batidas por minuto, ele vai a 130. Mas o professor Nuno Cobra não se limita a
mexer no físico: dá sua contribuição em temos fisiológicos, mentais. E faz segredo
sobre esse lado de sua relação com Senna, de quem confessa gostar muito.
Quarto de solteiro
Quem cuida assim do corpo foge da bebida com o diabo da cruz. Senna gosta
mesmo é de guaraná Antartica. Diz o pai que é um bom garfo e que seu prato
preferido é o feijão com arroz e bife da mãe. Não é a única fidelidade aos tempos
em que vivia com os pais e era um garotinho. Seus passatempos também são de
garoto: Kart (construiu um Kartódromo profissional e melhor que a maioria dos
oficiais do país em sua fazenda no Interior de São Paulo, onde corre com alguns
amigos, de brincadeirinha), aeromodelismo (ficou amigo do campeão mundial e
tem aviõezinhos inacreditáveis), motos, jet-sky. Até a última temporada brasileira
continuava ocupando quarto de solteiro na casa da família Silva, quando em São
Paulo. Tem um apartamento em Mônaco, mas não tinha um em São Paulo. Mas
andou comprando alguns imóveis nesse final de ano – entre eles, a mansão de
Braguinha, ex-Bradesco, em Angra dos Reis, por quatro milhões de dólares.
O destino de Ayrton estava pronto na cabeça de seu pai, quando ele nasceu, no
dia 21 de abril de 1960, na zona Norte de São Paulo. Segundo filho, três anos
mais novo que Viviane, ele continuaria os negócios da família Silva, fazenda,
metalúrgica, fábrica de acessórios para automóveis. Mas quando o garoto fez
quatro anos seu Milton pôs em prática o estranho conceito que tinha do que
deveria ser um brinquedinho de um menino dessa idade: construiu um Kart de
verdade, com motor e tudo, e deu para o filho. E o que para muito garoto poderia
ser um passatempo exótico, passageiro, transformou-se em religião. Aos oito
anos, entrou numa pista pela primeira vez, correndo com garotos mais velhos.
Liderou a prova até ser posto para fora por um moleque mais irritado com o
desplante do pivete. Aos treze, começou a correr de verdade e em pouco tempo
inventou um estilo radical, que lhe valeu muitas vitórias.
Era levado às corridas por um motorista da família. O pai pouco aparecia. Os
outros garotos lembram dele como um moleque calado, meio pernóstico, tristonho
e extremamente competitivo. Recuperou a moral de um espanhol preparador de
motores, o Tchê, que passou a lhe dedicar um carinho extra na afinação dos
motores. Vivia sujo de graxa, montando e desmontando o kart, mas não
participava das brincadeiras, não dormia na casa dos outros, como era normal,
nem se expunha demais. Era conhecido como o 42, número de seu cpacete fora
de moda. Mario Covas Neto, o Zuzinha, filho do senador do PSDB e rival de
Senna na época (foi campeão brasileiro de kart em 75, tendo Senna como vice),
tem certeza: “Pra ele, era mais importante ganhar uma corrida, a que estava
disputando naquele momento, do que vencer o campeonato. Nove e meio não
servia, tinha quer ser dez”.
Isso na pista. Na escola, os dez eram bem mais raros. Deixou vagas lembranças
no Rio Branco – garoto caladão, regular, fraco em Física, péssima letra como
tantos canhotos, sentado no fundo da classe - , menos ainda no Ginásio Santana,
onde fez o primário – o magrela que não parava de correr no recreio – e branco
total no Externato Jardim São Paulo, dos tempos da pré-escola, onde não sobrou
nem a foto obrigatória com os cotovelos sobre a mesa, boininha no cocuruto da
cabeça, gravata com o nó meio de banda, caneta na mão direita e as bandeirinhas
do Brasil e de São Paulo, com a placa anotando 1965.
Rei do autorama
Em 1979, estava se aproximando o momento de cumprir o veredicto paterno e
trocar as pistas por um lugar na firma dos Silva quando Senna foi ver os treinos
para a Fórmula Um, em Interlagos. Ali teve certeza: iria passar os melhores anos
de sua vida num cockpit de um carro daqueles, a 200, 300 quilômetros por hora.
Pra quem só viu o tal cockpit de uma Fórmula Um pela televisão, isso pode ser um
sonho. Quem já entrou naquela lata de sardinhas criada por algum torturador
medieval transposto para os dias de hoje, o sonho é pesadelo. É tão espremido
que alguém mais alto ou mais gordo acaba a corrida com câimbras terríveis. O
carro ronca como um demônio, vibra como a Cidade do México sob os efeitos de
um terremoto e recusa-se a obedecer aos comandos de quem acha que sabe
dirigir um automóvel. Uma só corrida significa uma perda de dois, três quilos. Faz
calor, toma-se chuva, arrisca-se o pescoço. Mas, enfim, era isso que ele queria. E,
por isso, seu Milton veria derrapar para sempre seus planos para o filhote.
O primeiro convite internacional para correr na Fórmula 1600 foi brecado. O
segundo, aceito, sob a condição de ser por um ano apenas. Nessa época, Senna
casou-se com Liliane, uma namoradinha. E foi para a Inglaterra.
Fez bonito nas pistas, acabou o casamento, voltou para o Brasil. Entrou para
Administração de Empresas na Faap, assumiu uma escrivaninha no escritório do
pai. E sabe-se lá a que preço, dobrou a vontade aparentemente indobrável de seu
Milton. Armando Botelho, amigo da família, foi nomeado uma espécie de curador
do menino e passou a tomar conta da carreira. Senna voltou para a Europa, para
correr na Fórmula 2000. Deu certo: 27 corridas, 21 vitórias. No ano seguinte, a
Fórumula 3: 21 corridas, 13 vitórias. Depois, a Fórmula Um. O resto da história
está nos jornais. Em Mônaco, com um carro de quinta categoria, largou em 13º,
passou Niki Lauda como quem ultrapassa um Fusquinha na ladeira e só ficou
atrás de Alain Prost porque o francês pediu e obteve a suspensão da prova, que
acontecia debaixo de um toró. Terminou o campeonato em décimo, foi quarto no
ano seguinte, repetiu a dose em 86, terceiro em 87 e campeão do mundo em 88.
Armando Botelho, o superprotetor, morreu em julho de 89. Senna correu o GP da
Alemanha sem saber de sua morte. Só foi confortado pela irmã, Viviane, sua
amiga e confidente (e que também é mantida à distância da curiosidade dos
repórteres). Saiu da experiência ainda mais arisco, e seu Milton assumiu o
comando dos negócios no Brasil.
Sobre os jornalistas, tem também uma definição: “Acho que o jornalista deve
relatar os fatos como são na realidade, com ética. A grande dificuldade do
jornalista é seguir uma linha real daquilo que acontece e deixar a fantasia de lado”.
Falou e disse. Ainda mais quando a realidade fica fechada a sete chaves e a
fantasia lhe é oferecida de bandeja, pronta pra ser consumida.
BOX:
CONTA CORRENTE
Ayrton Senna tem um enorme telhado de vidro – um dos maiores do Brasil. Não,
não é o que você está pensando. O telhado fica na casa que ele comprou no final
do ano, em Angra dos Reis. Mais uma pérola, a maior de todas, no patrimônio
desse veloz bilionário. É difícil saber o tamanho exato da fortuna de Ayrton Senna.
O piloto, que já não gosta de falar sobre sua vida pessoal, é ainda mais lacônico
em relação a seu dinheiro. De qualquer modo, os últimos movimentos de Senna
no mercado imobiliário deixam claro onde e como ele prefere aplicar os dólares
que recebe todo ano por suas conquistas na Fórmula Um. No final do ano
passado, comprou, por quatro milhões e meio de dólares – oficialmente, sgundo
as melhores fontes - , a mansão de Braguinha em Angra dos Reis, onde tinha
passado parte de suas férias como convidado, nos últimos anos. E ainda sobrou
caixa para adquirir um punhado de apartamentos em São Paulo. Há quem
assegure, contudo, que a mansão de Angra não saiu por menos de 40 milhões –
acrescentando uma pitada de mistério e polêmico na já carregada fórmula do
campeão.
Sua fazenda, em Tatuí, tem kartódromo profissional, lago para jet sky e outras
comodidades. Seu apartamento, em Mônaco, é relativamente grande. Senna não
diz nem quantos carros possui – quase todos, presentes das fábricas, ou prêmios
de competições. Diz apenas que “a gente tem de Honda a Mercedez, Ford, Volks,
General Motors, um de cada um, etre o Exterior e o Brasil”. O avião é um British
Aerospace HS – 125 – 800, e ele ainda tem um helicóptero.
Senna preserva seu espaço no mundo dos negócios. Seu avião faz manutenção
de graça no hangar da Líder, em troca de uma gentileza – e ali que ele dá as raras
entrevistas no aeroporto. Peitou a Gurgel, que pretendia batizar de Cena – Carro
Econômico Nacional – seu primeiro automóvel, ameaçando ir à Justiça para
cobrar alguns milhões de dólares pelo som do nome.
Por trás do chamado circo da Fórmula Um, há o interesse de grandes
corporações. A McLaren e Senna são patrocinados pela Phillip Morris. Só o
mercado brasileiro de cigarros é algo em torno dos 160 bilhões de cigarros.
Mas que ninguém imagine que o dinheiro corre solto para todo mundo na Fórmula
Um. Como explica o nosso campeão: “Dos 30 pilotos, cinco ou seis ganham bem,
entre 3 e 8 milhões de dólares por ano. Outros quatro ganham 1 milhão de
dólares. Daí para baixo, muitos pagam para correr, através de seus
patrocinadores. É um negócio maluco. No meu primeiro ano de Fórmula Um eu
queria um carro, queria guiar, correr, não queria nem saber se iria ganhar dinheiro.
Isso a gente conversava depois”. Como se vê, a conversa agora é outra.