Baquero, Marcello Construindo Uma Outra Sociedade

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 21: 83-108 NOV. 2003

    RESUMO

    Rev. Sociol. Polt., Curitiba, 21, p. 83-108, nov. 2003

    Marcello Baquero

    Este artigo examina a relao entre democracia, cultura poltica e capital social no Brasil. O tema

    abordado de maneira compreensiva, pois acredita-se que esses conceitos interagem permanentemente. No

    caso brasileiro possvel, entretanto, identificar alguns fatores que historicamente tm incidido na

    configurao de um tipo de cultura poltica, de carter hbrido, que mistura posturas favorveis democracia

    e predisposies negativas em relao s instituies polticas. Esse mal-estar, argumenta-se, no

    conjuntural nem temporrio, mas de carter estrutural e danoso para o fortalecimento democrtico. Em tal

    cenrio o desenvolvimento do capital social, aumentaria, prtica e teoricamente, o poder dos cidados permitindo-lhes maior insero e participao na arena poltica. So utilizados como fonte dados de

    pesquisas qualitativas e quantitativas coletados no Rio Grande do Sul no perodo de 1974 a 2000. Os

    resultados do estudo sugerem uma ausncia de capacidade cooperativa entre os brasileiros, o que poderia

    explicar os dficits de participao poltica e a conseqente instabilidade democrtica.

    PALAVRAS-CHAVE: cultura poltica; democracia; capital social; participao poltica.

    Recebido em 28 de maro de 2003.Aceito em 17 de julho de 2003.

    CONSTRUINDO UMA OUTRA SOCIEDADE:O CAPITAL SOCIAL NA ESTRUTURAO

    DE UMA CULTURA POLTICA PARTICIPATIVA NO BRASIL

    I. INTRODUO

    Os esforos empreendidos no Brasil para for-talecer sua democracia, desde o incio do processo

    de redemocratizao, tm convergido para a de-fesa de maior participao da cidadania nos pro-cessos de deciso poltica e na fiscalizao dosgestores pblicos. Tais esforos tm visadoreverter o crescente processo de desintegraosocial, resultado, entre outros fatores, da diminui-o do Estado como fruto da adoo de uma pers-pectiva neoliberal que desestruturou a sociedadesem gerar uma contrapartida criativa que possi-bilitasse articular um espao comum sob novasregras. Segundo Lechner (1990), o que est clarona Amrica Latina e que se considera aplicveltambm ao Brasil o fracasso da tentativa deinstituir a coordenao social baseada na racionali-dade do mercado, conquanto esta no se sustentapor si s nem sustenta uma ordem e uma orientaocomunitria que favoream a integrao social.

    Tal situao estimulou a realizao de estudose pesquisas de carter multidisciplinar que passa-ram a refletir sobre a importncia de redescobrire recuperar o Estado e a sociedade, valorizando,sobretudo, a participao cidad. Como sugere Sen(1998, p. 597), a relevncia intrnseca dos direitoscivis e polticos [acrescenta-se: os direitos huma-

    nos, tambm] garantidos pela democracia, autorizaa defender sua vigncia sem que seja necessriodemonstrar se essa forma de democracia fomentaou no o crescimento econmico. Esse posiciona-

    mento no deixa de ser uma novidade se consi-derando que por muito tempo a teoria democrticaliberal vigente recomendou sacrificar alguns direi-tos polticos e civis, por os considerar como obst-culos para o desenvolvimento.

    Assim, o reconhecimento e valorizao de fa-tores subjetivos na democracia tm levado atoressociais e polticos a um consenso, cada vez maior,sobre a necessidade de evitar a fragmentao dasociedade e, em decorrncia, evitar o questiona-mento da validade do sistema democrtico. Osdesafios imediatos relacionados a essa problemticadizem respeito a como estimular e motivar os cida-dos a participar politicamente em um contextode fragmentao e crescente desigualdade social?Como criar e/ou reconstituir um ambiente estimu-lante para a participao poltica? Tais desafiosso gigantescos, pois o Estado, ao longo de suahistria, tem perdido a credibilidade em convocarseus cidados para enfrentar essa tarefa. Tornou-se imperativo, portanto, refletir sobre mecanismosque proporcionem o retorno do cidado esferapoltica.

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    A despeito disso, deve-se salientar que se temmodificado, substancialmente, o pensamentoortodoxo sobre a participao cidad, que a limitavaa aes convencionais. Atualmente, verifica-seuma reorientao terico-prtica significativa nopas, que reabilita, no s na retrica, mas tambmna prtica, a noo de sociedade em que as pes-soas deveriam ter mais poder e ingerncia na fisca-lizao dos gestores pblicos. Em tal cenrio, quaisso as ramificaes dessa reorientao tanto nadimenso dos gestores pblicos como na dimensoda sociedade civil? A tenso da relao entre Esta-do e sociedade que caracteriza o Brasil est ate-nuando-se por esse movimento? possvel afirmarque h um revigoramento do papel do cidado naesfera pblica? Existe capital social? E, se existe,contribui para melhorar a qualidade da democracia?

    Na tentativa de responder a essas indagaestem-se verificado uma produo substancial deestudos e pesquisas dedicada temtica de revalo-rizao da participao poltica dos cidados. Noentanto, parece que, apesar do reconhecimentodo papel do indivduo no processo poltico, poucosesforos tm sido empreendidos para materializaresse papel na realidade cotidiana. Constatam-selacunas e deficincias na compreenso sobre quaismecanismos funcionam (ou no) na dinmica decapacitar os cidados para uma maior e mais

    qualificada participao na poltica. Uma dessaslacunas refere-se ao papel do capital social e suainfluncia (ou sua ausncia) na estruturao deuma sociedade mais democrtica que precisa serexaminado. Dessa forma, este artigo busca com-preender como se d o processo de desenvolvi-mento de interesses polticos em um contextocaracterizado pela desigualdade social e crescentepobreza e analisa as possibilidades de constituircapital social como fator de empowermentdossetores excludos. Isso deve ser entendido comoum instrumento complementar e no como subs-tituto de mecanismos convencionais de ingernciapoltica, capaz de agregar os cidados na buscade objetivos comuns e no em um sentido de isola-mento corporativo. Trata-se, portanto, de sugerircaminhos que proporcionem a visibilidade e reso-luo das demandas desses setores pblicos quehistoricamente estiveram margem da preocupa-o dos governantes, juntocom aqueles gruposque gozam de privilgios, em virtude de suacapacidade associativa e corporativa. Essencial-mente, pretende-se responder seguinte pergunta: possvel dar poder (to empower) aos cidados

    individualmente, aumentando sua capacidade co-laborativa em contextos caracterizados por prticaspolticas tradicionais, por padres de desigualdadesocial e em ambiente de desconfiana generalizada?E, se afirmativo, esse processo contribui para amelhoria da qualidade da democracia no pas? Pararesponder a essas perguntas utilizam-se dados depesquisas qualitativas e quantitativas realizadas noRio Grande do Sul1.

    II. O CIDADO NA POLTICA

    Pensar em mecanismos que proporcionem u-ma democracia social mais justa implica trazer aspessoas para a esfera pblica. Tal transio depen-de, fundamentalmente, da capacidade do Estadoe de suas instituies de aceitar e valorizar essaparticipao. Uma democracia social sem polticos

    ou cidados democrticos est fadada ao fracasso.

    Nessa linha de anlise, para alguns autores(KRISHNA, 2002, p. 437), a mera existncia deinstituies democrticas criadas de cima parabaixo no suficiente para garantir a estabilidadepoltica, e, menos ainda, a justia social. A menosque os cidados tenham f nessas instituies eenvolvam-se em atividades de auto-governana, ademocracia enquanto conceito e enquanto prticapode tornar-se algo destitudo de significado, usadopara legitimar prticas autoritrias e de corrupo

    institucionalizada, pois a cidadania social no sefaz presente. Segundo Iazzetta (2000, p. 40), sila ausencia de ciudadana social nos conmueve,

    1 Apesar da existncia de bancos de dados sobre a culturapoltica na Amrica Latina (Latinobarmetro, World ValuesSurvey, Encuesta Panamericana, Cesop), ainda se verificamproblemas de continuidade e de padronizao de perguntas.As questes formuladas nem sempre correspondem sdefinies que alguns autores do aos mesmos conceitos.Assim, prender-se a esses dados poderia limitar algumasreflexes tericas que vo alm dessas dimenses, quandose incorporam indicadores pontuais de atitudes ecomportamentos. Como nosso objetivo de naturezacompreensiva, optou-se por utilizar vrias fontes regionaispara tentar responder s questes formuladas neste artigo.Acredita-se que as inferncias que se fazem a partir dessesdados encontram respaldo na teoria e, fundamentalmente,na histria de grande parte dos pases da regio latino-americana. Pesquisas qualitativas e quantitativas levadas acabo em cidades do Rio Grande do Sul, tanto comadolescentes quanto com eleitores adultos, so utilizadaspara apreender como se d o processo de constituio denormas, valores e crenas a respeito da dimenso poltica,bem como se esses elementos contribuem (ou no) para aconstituio de capital social.

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    no es solo porque ofende a la dignidad humanasino porque socava las posibilidades de aquellosde actuar autnomamente en su relacin con otrosciudadanos y con el Estado e, continua, el ver-dadero desafo reside por consiguiente en construiruna sociedad ms justa y hacerlo democr-ticamente.

    Historicamente, a ausncia de uma maiorparticipao das pessoas no Brasil tem mostradoque a democracia de procedimentos no temconseguido legitimar-se por seus prprios valores,pois, presentemente, o grau de contestao altoe a participao das pessoas em atividadesconvencionais (pertencer a partidos, participar decomcios, discutir poltica, entre outros) redu-zida. O dilema enfrentado pelo pas de que os

    recursos econmicos para satisfazer as demandasmateriais bsicas so insuficientes, levando a umprocesso acelerado de desagregao da vida social.A histria recente tem mostrado que sociedadesnessas condies dificilmente promovem o estabe-lecimento de culturas polticas participativas aocontrrio, caracterizam-se pela ineficincia, cor-rupo ou regimes despticos.

    Dessa forma, a crise da democracia formal seu sistema histrico-social acumula contradiesque no se podem resolver por meio de ajustesdentro dos padres institucionais vigentes pode

    ser identificada como resultado de quatro fatores(HIRST, 2002, p. 412-414): a) um declnio daparticipao poltica com evidncia de uma cres-cente alienao da poltica e insatisfao com ospolticos; b) a perda da capacidade de governana,por parte dos estados, em virtude tanto do pro-cesso de globalizao quanto da mudana da esferapblica para o mercado. Particularmente, as polti-cas neoliberais tm estimulado a instalao de umamoldura legal que favorece e garante a livre circu-lao de bens e capitais que possibilitaram, comsucesso, a retirada crescente do Estado das reas

    sociais com a privatizao dos servios pblicos,beneficiando as empresas transnacionais. A formacomo tem aparecido a contradio entre a racionali-dade do mercado e a racionalidade local tem sidoem termos do crescente desemprego, de umaexcluso social macia, da expanso da pobreza,da supresso de garantias pblicas para a terceiraidade e para a juventude, da reduo de gastosnas reas sociais, da desmobilizao social e nadescrena em projetos emancipatrios. Nesse con-texto de crise, o grande desafio como resgatar adignidade humana (MARGULIS, 1996, p. 8).

    Geralmente os efeitos da globalizao tem sido e utilizada por governantes para implementarpolticas pblicas, consideradas inevitveis, masque resultam no agravamento do quadro social;c) as bases sociais da participao democrtica eo pluralismo poltico em culturas caracterizadaspor associaes fortes esto ameaadas por seuperceptvel declnio, como tambm da participaono poltica (social). Os cidados comeam arelacionar-se com o mundo muito mais via meiosde comunicao eletrnicos, passando mais tempoisolados uns dos outros e em um consumo privado.Em pases como o Brasil, essa fase convive para-lelamente com uma crescente excluso social; d) fato que a amplitude tanto da democracia formalquanto das associaes voluntrias mais umacaracterstica das sociedades avanadas, por seremelas sociedades organizacionais. Tal cenrio afastaa sociedade civil como ente de controle e fiscaliza-o tanto das instituies estatais quanto das orga-nizaes privadas. Dessa forma, os cidados per-dem poder tanto como empregados quanto comoconsumidores. Assim, a democracia organizacionalno promove valores democrticos de consultasobre os interesses das pessoas afetadas por suasdecises. Outrossim, este tipo de democracia en-coraja o controle hierrquico, gerando, a passivida-de por parte dos controlados. Embora essas condi-es no sejam propcias solidez democrtica,

    esses pases tm conseguido manter uma certaestabilidade poltica longitudinal, em virtude daspolticas pblicas que incidem positivamente naqualidade de vida dos seus cidados. O problemasurge quando esses elementos aparecem em socie-dades como a brasileira, em que a dimenso mate-rial essencial (sade, moradia, emprego) est longede ser resolvida.

    No caso do Brasil, constata-se uma contradioentre um avano tecnolgico acelerado simulta-neamente com o agravamento do quadro social, oque tem levado a que quanto mais aumente a ex-cluso social e o contingente de excludos, menor a capacidade do Estado em responder s deman-das desses grupos. O resultado tem sido o de queas pessoas tm comeado a inventare encontrarmecanismos informais de transmitir suas deman-das sociais e, cada vez mais, tentam resolver essasreivindicaes sem a ingerncia do Estado. Consta-ta-se, assim, o desenvolvimento crescente de no-vas formas de mobilizao cultural e formasalternativas de construo de identidades e partici-pao coletivas no contexto da precariedade do

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    Estado, necessrias para a sobrevivncia dos ex-cludos, em condies de carncia, privao e desi-gualdade2.

    As perspectivas para o futuro nessas circuns-

    tncias no so promissoras, se examinado o lega-do histrico que privilegiava caminhos e soluesmeramente tcnicos. Por exemplo, nas dcadasde 1980 e 1990 a nao brasileira enfrentou gravs-simos problemas sociais e econmicos que influen-ciaram decisivamente a produo acadmica, queat ento privilegiava solues tcnicas e institu-cionais, colocando o cidado apenas como espec-tador ou em um papel no-protagnico. A criseeconmica e o crescimento da pobreza e da exclu-so social catalisaram o interesse, por parte dacomunidade acadmica e de organismos nacionais

    e internacionais, pelas redes sociais como elemen-tos geradores de solues. Institucionalizou-se uminteresse sobre o tipo de capital social que seriarelevante para as camadas tradicionalmente exclu-das das polticas sociais e passou-se a reconhecere aceitar a idia de que a democracia requer, pelomenos, um nvel mnimo de capital social, ou seja,normas e formas de associao que possibilitariamo surgimento de confiana dos cidados nas autori-dades constitudas e nas instituies vigentes.

    Essas reflexes levaram ao questionamento damodernizao do capitalismo, pois seu pressuposto

    de que somente a tecnologia pode trazer vantagenspara o desenvolvimento social mostrou-se falso.Prova disso que a maior parte do mundo temseguido esse modelo e o problema social no temsido resolvido. As tentativas de explicar o fracassodas instituies polticas como geradoras nicase eficientes de legitimidade vo desde os tericosda modernizao, que atribuem o atraso polticoaos baixos nveis de alfabetizao, urbanizao edesenvolvimento industrial, at, em uma outraperspectiva, os tericos do desenvolvimento, taiscomo Huntington (1975), que considerava a

    instabilidade poltica como resultado de umaparticipao crescente e descontrolada, em virtudeda capacidade limitada de respostas por parte doEstado, bem como de um desenvolvimento insti-tucional inadequado. Por sua vez, os tericos dadependncia argumentavam que a estruturaeconmica internacional e nacional produzia entre

    os pases da Amrica Latina e os outros pasesdesenvolvidos foras inimigas ao desenvolvimentodemocrtico. Por sua vez, a perspectiva de culturapoltica tentava explicar como o legado culturalibrico gerou valores deletrios para o ama-durecimento democrtico.

    Nesta ltima perspectiva, atribuiu-se uma rele-vncia especial coeso da famlia e da comunida-de como elemento tangvel na possibilidade de umdesenvolvimento econmico eficiente, em reasem que o Estado tem fracassado. Para alguns auto-res (HIRST, 2002, p. 409), esses elementos propi-ciaram o surgimento da chamada democracia as-sociativa; esse tipo de democracia ao contrrioda doutrina econmica liberal, que tenta limitar asfunes do Estado e privilegia o mercado como

    regulador das relaes sociais busca a expansoda governana democrtica e da sociedade civil.A nfase que se coloca no associativismo procuraresponder crise da eficincia declinante da demo-cracia por procedimentos e o crescente desconten-tamento dos cidados com um Estado centraliza-dor e padronizado nas suas aes; ao mesmotempo, propicia elementos de fiscalizao para oscidados (accountability). Busca-se, por esse ca-minho, democratizar o Estado e a sociedade aomesmo tempo em que os fortalece.

    importante ressaltar que as dificuldades das

    abordagens alternativas em fortalecerem-seresulta, tambm, da tenacidade com que o mundoacadmico aderiu s linhas estabelecidas de anlise,negligenciando, nesse processo, o exame do novoou no-antecipado. Um desses fenmenos dizrespeito a formas alternativas de participao emobilizao poltica margem das instituiesconvencionais e socialmente aceitas. No entanto,a bibliografia at recentemente teimou em negarseu significado ou tm-nas colocado em segundoplano em relao s anlises de engenharia insti-tucional. A conseqncia tem sido a prevalncia

    de um conhecimento reativo que parece estarsempre comeando do zero. Parece que estamossempre reagindo s teorizaes que vm de fora,ao invs de refletir, de maneira autctone, utilizandoo dilogo com o conhecimento estabelecido comocontra-argumento construo de explicaestericas alternativas.

    III. A REINVENO DA CIDADANIA

    A materializao do cidado no processopoltico tem sido constatado particularmente nocontexto do fortalecimento de entidades locais,

    2 Esse fenmeno conhecido como resilincia, isto , acapacidade de as pessoas adaptarem-se positivamente sociedade, em condies adversas (MELILLO & OJEDA,2001).

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    organizaes no-governamentais (ONGs), asso-ciaes de moradores e organizaes voluntrias,entre outras. No campo do reativamento do poderlocal, por exemplo, vrias experincias tm mos-trado que a guinada para o seu revigoramento tempossibilitado uma ingerncia maior dos cidadosna poltica (FACHIN & CHARLAT, 1998). De fato,tem-se argumentado que as polticas para odesenvolvimento local so mais eficientes quandoformuladas e implementadas por uma cooperaoprxima entre os atores pblicos e privados(COUTO, 1995; SOARES, 1996; COOKE &MORGAN, 1998; MOURA, 1998; SOARES &PONTES, 1998; PEREIRA, 1999).

    Uma das razes desse movimento da reativaodo local pode ser atribudo ao desencanto das pes-

    soas com os programas sociais do governo, prin-cipalmente em relao pobreza, ao desempregoe decadncia comunitria. A conseqncia temsido a busca das organizaes engendradas infor-malmente na sociedade, por parte dos cidados,como alternativas preferenciais na resoluo dosproblemas, evidenciando o distanciamento docidado das instituies polticas convencionaisda democracia formal como seus interlocutoresefetivos.

    As organizaes alternativas s tradicionais(partidos) so vistas crescentemente como sendo

    mais flexveis e efetivas do que os programaspatrocinados pelo Estado. Tambm so considera-das mais capazes de estruturar suas atividades snecessidades e circunstncias comunitrias.Assim, em virtude das deficincias da democraciarepresentativa, um nmero crescente de pessoasparece depositar f na ao da sociedade civil noprocesso de regenerao poltica. A esse respeitoSmuloviz e Peruzzotti (2000), propem o conceitode accountability societal como complementarao de accountability horizontal que ocorredentro do Estado, como mecanismo que possibilita

    o controle e a fiscalizao dos gestores pblicos,por meio de recursos no institucionais e cuja efe-tividade est baseada em sanes simblicas.

    Esse movimento relativamente recente, poiso enfoque predominante na Cincia Poltica era, e, institucionalista e de procedimentos ou a cha-mada democracia minimalista. Por muito tempo,tornou-se consensual que regimes democrticosso mais bem definidos em termos de procedi-mentos e no em termos de substncia. Emble-mtico desse posicionamento o estudo de Ros-

    tow (1970) sobre transies democrticas, em queafirmava peremptoriamente que h um reconhe-cimento geral de que a democracia essencial-mente um assunto de procedimento e no de subs-tncia (idem, p. 421). Na mesma linha de anliseDiamond (1996, p. 3) afirma que felizmente, amaioria das definies sobre democracia atualmen-te (em contraste com as das dcadas de 1960 e1970) convergem para definir a democracia comoum sistema de autoridade poltica, separada dequalquer elemento econmico e social. Essasperspectivas sobre democracia tm sido questiona-das, particularmente no que diz respeito AmricaLatina, onde, por exemplo, segundo Camp (2001,p. 9), o que mais distingue a verso latino-ame-ricana de democracia daquela dos Estados Unidos a nfase na igualdade econmica e social e noprogresso.

    Parte significativa da produo contemporneasobre democracia na Amrica Latina rejeita afir-maes de carter minimalista por as considerarpouco teis na reflexo dos dilemas desses pases,bem como por terem sido derrubadas pelos fatoscontemporneos. A histria encarregou-se demostrar as limitaes desses argumentos, pois asdemocracias, nessa regio, continuam a evidenciarsrios problemas sociais, portanto de substncia,o que obrigou uma reavaliao das referidas

    perspectivas tericas, redirecionando a discussono sentido de resgatar o cidado para a esfera pol-tica. Atualmente est claro que as pessoas que notm poder (empowerment) submetem-se facilmentea discursos populistas ou simplesmente caem emuma passividade permanente. Tais elementos sodanosos para a democracia. Esse fenmeno no monoplio dos pases em desenvolvimento, mastambm comea a ser observado nas economiascentrais. Por exemplo, para alguns autores (KARL,BANDUCCI & BOWLER, 2003), o declnio doengajamento cvico na Unio Europia umsintoma do descontentamento da populao e umacrise de legitimidade.

    Tal situao tem-se estendido de maneiranegativa para os pases da Amrica Latina, ondese verifica o precrio grau de legitimidade que osgovernos latino-americanos tm experimentadonos ltimos anos e que se tem materializado emaes que no respeitam os direitos humanos detodos os cidados, bem como em uma crescenteindiferena dos governantes pelos problemas dospases. Esse processo, que para alguns autorescaracteriza a desinstitucionalizao do Estado

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    (GARAY, 2001), tem levado a uma perda da noodo bem comum e prevalncia de interessesparticulares, fragilizando, dessa maneira, a convi-vncia cidad e acarretando uma vulnerabilidadedo contrato social. Constata-se nesse cenrio umaaculturao (formao prtica de princpios efundamentos que regem comportamentos doscidados) de atitudes e comportamentos quedesvalorizam as prticas democrticas e levam auma eroso de princpios bsicos de convivnciapacfica. Tal situao tem levado a que la enraizadafragmentacin del tejido social, la deslegitimacindel Estado y la perdida de convivencia ciudadanase manifiestan no slo en el deterioro de comporta-miento y conductas ciudadanas sino en las rela-ciones polticas, econmicas, sociales y culturales,al hacerlas proclives a la configuracin de lo quese puede denominar como un proceso de acul-turacin de la ilegalidad y en ciertos campos, hastauna aculturacin mafiosa a cargo de grupos po-derosos que van superditando y condicionandopaulatinamente actitudes e inclusive algunos valo-res de otros grupos y estratos de la sociedad. Loque, entre otras cosas, va afectando la misma cul-tura cvica o la civilidad en amplios sectores de lasociedad (idem, p. 3).

    Cabe ressaltar que tal comportamento o resul-tado no de uma predisposio dos cidados em

    privilegiar a informalidade, a apatia ou a alienao,mas da atual desordem poltica, econmica, sociale cultural que caracteriza a sociedade contem-pornea. ODonnell (1994) tem chamado asdemocracias latino-americanas com essas carac-tersticas de democracias delegativas. Nademocracia representativa, os governantes elei-tos representam os eleitores, enquanto na demo-cracia delegativa os governantes, uma vez eleitos,fazem prevalecer sua vontade particular em de-trimento da comunidade em um sentido amplo.Tais elementos tambm contribuem para o surgi-mento do que Parga (2001) denomina de processode corrupo da democracia, o qual no ser resol-vido com mais leis, mais regras ou mais proce-dimentos democrticos formais. Nessa linha deanlise, Touraine (1997) argumenta que alguns ato-res e observadores consideram a volta de pro-cessos eleitorais livres como uma comprovaoda vitria da democracia. Segundo ele, essaconcluso no pode ser aceita como verdadeira.A decadncia das idias e dos movimentos revolu-cionrios e contra-revolucionrios pode significarum retrocesso da poltica desvinculada da maior

    parte da sociedade, o que positivo, porm noindica, deper se, a criao ou o fortalecimento dademocracia. Naturalmente esses argumentos noimplicam sugerir que instituies no sejam consi-deradas importantes ou coloc-las em segundo pla-no tal posicionamento seria ingnuo. Trata-se,sim, de incorporar explicaes alternativas aosdficits democrticos observados no pas, indoalm da engenharia institucional. A esse respeitoLechner (1994) defende que a menos que se desen-volva uma racionalidade normativa, vale dizer, umacultura poltica que valorize a democracia comovalor, junto a uma racionalidade tcnico-instru-mental, o processo de modernizao democrticasomente poder assentar-se em bases autoritriasde dominao. Deve-se reconhecer, entretanto, queo processo de reorientao terica lento e insatis-fatrio. Os chamados modelos alternativos so ain-da frgeis e dependem de respaldo emprico.

    A nfase nas instituies foi necessrio, e ine-vitvel, em uma determinada poca, particular-mente durante a redemocratizao do pas, poisuma das primeiras etapas era a reconstituio dasinstituies polticas. Tal tarefa era imperativa noestgio inicial da construo democrtica; a insti-tucionalizao dessas organizaes, entretanto, nosanos posteriores, no implicou a resoluo dosproblemas de estabilidade e fortalecimento demo-

    crtico. A histria mostra que, mesmo com insti-tuies polticas polirquicas, o pas no conseguiureverter seuspadres tradicionais de autoritarismoe prticas populistas. Tal comportamento redun-dou no distanciamento deliberado dos governantesem relao aos problemas mais urgentes, levandoao seu isolamento e reincidncia de prticas auto-ritrias no trato da coisa pblica. Evidenciou, por-tanto, a impossibilidade desses governos em utilizaras instituies vigentes para realizar mediaesefetivas de relaes sociais autnomas. Dessaforma, a democracia contempornea no pas tem-se tornado excessivamente padronizada, em queo respeito s instituies limita-se a uma funolegitimadora das autoridades polticas. SegundoValds, necessrio superar o mito que reduz ademocracia ao processo tcnico, sem examinarseu verdadeiro contedo, que o resultado dasoma de valores ticos e culturais historicamentedeterminados (VALDS, 2002, p. 36). por essarazo que se tornou imperativo buscar outrasexplicaes e solues para esses problemas.

    A revalorizao da poltica da sociedade civile, conseqentemente, do papel atribudo ao

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    cidado como sujeito integrante das polticaspblicas no se restringe dimenso institucional-formal, segundo a qual os procedimentos polir-quicos servem como fatores de empowermentdaspessoas, principalmente por meio das eleiescomo principal fator de controle popular dosrepresentantes eleitos. A esse respeito Joslyn eLigler (2001) argumentam que, embora as eleiesofeream aos cidados um mecanismo institucionalpara expressar seu ponto de vista pr ou contra ogoverno, implicitamente proporcionam os meiospara afirmar a crena na legitimidade do sistemapoltico vigente. A histria recente do Brasil, entre-tanto, tem mostrado que esse procedimento polir-quico, sem negar sua importncia, no se temconstitudo no fator de poder do cidado. Pelocontrrio, a despeito da existncia de eleies,segundo dados de pesquisas eleitorais levadas acabo na Amrica Latina nos ltimos quinze anos(BAQUERO, 2001), os eleitores parecem maisdesconfiados e mais decepcionados com a poltica a conseqncia parece ter sido a instituciona-lizao de uma apatia generalizada em relao aosmeios convencionais da poltica (partidos, eleiese procedimentos formais, de maneira geral).

    Em relao a isso, Young (2000, p. 4) afirmaque chegamos a um momento histrico paradoxal,em que quase todos parecem ser favorveis

    democracia, mas poucos acreditam que um gover-no democrtico possa fazer alguma coisa. Os pro-cessos democrticos, em muitos casos, parecemparalisar o processo de tomada de decises. Atual-mente vista com ceticismo a noo de que comboas instituies e com boas intenes e predisposi-es das pessoas para engajarem-se politicamentegarante-se a estabilidade democrtica.

    Ao mesmo tempo em que a perspectiva insti-tucional questionada, vrias e distintas formasalternativas de participao poltica, que no encon-tram explicaes tericas adequadas no conheci-

    mento estabelecido, tm surgido. Por exemplo, omovimento de Chiapas no Mxico, o movimentoindgena no Equador, o Movimento dos Trabalha-dores Rurais Sem Terra no Brasil, alm das milha-res de iniciativas documentadas em relao a gru-pos da sociedade que se organizam espontanea-mente em prol de objetivos comuns (Revista doTerceiro Setor, 2003). A ausncia de marcos expli-cativos sobre esses movimentos, possibilitaramdiscusses sobre o papel das associaes volun-trias e/ou informais como entidades geradorasde reflexes e prticas de incluso cidad. Assim,

    as associaes cvicas e voluntrias so crescen-temente vistas como sendo importantes no resgatedo cidado para a esfera pblica e na promooda discusso poltica e das polticas do governo.De modo geral, essas organizaes, por meio daestruturao e dedicao margem de um apoioinstitucional, em muitos casos tm conseguidomobilizar os cidados marginalizados socialmentepara pressionar o Estado a responder s suasdemandas.

    Nesse sentido, uma segunda dimenso de valo-rizao do cidado tem emergido recentemente,relacionando-se possibilidade de empowermentdos cidados por meio do capital social, o qual serefere ao envolvimento dos indivduos em ativi-dades coletivas que geram benefcios em um es-

    pectro mais amplo. Essa guinada para explicaesalternativas de empowermente participao polticatm gerado uma produo cientfica significativasobre a validade ou no do paradigma de capitalsocial no processo de fortalecimento da democra-cia contempornea. Um corolrio resultante quequando h, de fato, um processo interativo paradecidir sobre assuntos comunitrios, o lado per-dedor no questiona a legitimidade do resultado,pois a deciso passou por uma discusso pblica,inclusiva e regular do ponto de vista de proce-dimentos. Uma das conseqncias desse debate

    tem sido a proliferao de estudos que tem orien-tado sua preocupao para avaliar a qualidade dademocracia nos pases em desenvolvimento (BA-KER, 1999; BAQUERO, 2003).

    Estudos iniciais cuja preocupao era encontrarmecanismos de ampliao da democracia em umsentido maximalista defendiam o processo dedescentralizao, pois, por meio desse instru-mento, as relaes entre o Estado, o mercado e asociedade civil seriam mais eficientes. SegundoGuallida e Perez (2002), a democracia fundamen-tada nos princpios da descentralizao transcende

    a definio que particulariza a dimenso processualcaracterizada pela existncia de eleies livres,liberdade de associao, accountability e o con-trole civil da instituio militar como defendidopela abordagem institucionalista.

    Outrossim, a democracia resultante de um pro-cesso de descentralizao transcende a democraciarepresentativa, pois implica que o processo detomadas de decises resulte da negociao estabe-lecida diretamente entre os vrios atores scio-polticos que influenciam a agenda poltica (GUA-

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    DILLA & PEREZ, 2002, p. 90). Outrossim, umdos objetivos da descentralizao a eliminaode procedimentos clientelsticos na relao Estado-sociedade. O problema, entretanto, o pressupos-to da descentralizao que visualiza o cidadocomum como um ator social com poder e capazde fazer prevalecer seu ponto de vista, em umcontexto de deliberao, o que est longe da reali-dade, pois, de maneira geral, a maior parte da po-pulao no v nos mecanismos de deliberao,por no estar preparada, uma sada para seusproblemas.

    Assim, ampliar a participao dos cidados napoltica tem a ver com a forma como eles desco-dificam e internalizam normas e valores em relao poltica, ou seja, o tipo de cultura poltica. Em

    uma avaliao retrospectiva sobre a importnciada cultura poltica na explicao dos fenmenospolticos e sociais, constata-se que ela era vistacomo algo secundrio, negligenciando uma discus-so mais aprofundada sobre seu papel na configu-rao de um sistema democrtico e participativo.

    IV. O RESSURGIMENTO DA CULTURA POL-TICA

    A retomada de estudos sobre cultura polticapode ser atribuda ao colapso do marxismo e aoressurgimento do nacionalismo, por um lado, e s

    deficincias explicativas das abordagensinstitucionais, por outro, estimulando o interessesobre como os regimes polticos legitimam-se ecomo os cidados posicionam-se frente a esseselementos. Nas ltimas duas dcadas tem-seinstitucionalizado o axioma de que os regimesdemocrticos dependem, para sua sobrevivncia,do apoio dos cidados bem como de sua confiananas instituies e nos governantes. Isso se aplica,sobretudo, aos regimes que esto no processo deamadurecer e estabilizar suas democracias.Embora no seja possvel estabelecer o grau deapoio necessrio para fortalecer a estabilidadepoltica, o consenso de que, sem ele, os regimespolticos sero ineficientes e com pouca cre-dibilidade, mesmo tendo sido eleitos pelo votopopular e funcionando dentro dos marcospolirquicos da legalidade.

    A premissa que vincula o apoio poltico estabilidade democrtica remonta aos clssicos,porm sua materializao emprica teve incio comDavid Easton (1965), que diferenciou apoio espe-cifico (s instituies e aos governantes), que oresultado de um quid pro quo pela satisfao do

    atendimento s demandas da populao, de apoiodifuso, que significa uma lealdade generalizada nocontingenciada pelas recompensas de curto prazo.O importante a ressaltar que essas duas dimen-ses esto organicamente ligadas e que a esta-bilidade democrtica depende de ambas.

    A importncia atribuda cultura poltica e sociedade civil est presente em quase todos osclssicos da democracia (Tocqueville, Rousseau,Aristteles, Plato) e nas mais recentes reflexessobre a importncia de trazer de volta o cidadopara a esfera poltica (Habermas, Pateman,Mouffe, Giddens, Touraine). Do ponto de vistadessas perspectivas alternativas, a cultura vistacomo dinmica e no esttica e que evolui cons-tantemente sob a influncia de fatores externos e

    internos. Sua base, no entanto, constitui-se defatores duradouros que a tornam diferente de ou-tras culturas. Tal sntese materializa-se em crenas,predisposies, motivaes e normas de fazer ascoisas de um povo. No entanto, junto com valorespositivos so construdos valores que influenciama forma como as pessoas fazem e vem as coisasem um determinado contexto.

    Assim, mesmo que conceitos como atraso,misria, fome, clientelismo, personalismo, patrimo-nialismo no possam ser considerados comovalores culturais, eles so assimilados pela cultura

    e naturalizados, gerando, no campo da poltica,uma cultura passiva, silenciosa e pouco partici-pativa. o que se denomina de fatores histrico-estruturais (BAQUERO & PRA, 1995).

    Esses fatores historicamente possibilitaram asubordinao poltica dos cidados a determinadoscandidatos em troca de favores do Estado que,em princpio e segundo o marco jurdico, deve-riam estar disponveis para todos. No , entre-tanto, o que ocorre. Via de regra, o comum queo poltico aproprie-se de recursos pblicos (patri-monialismo) para conseguir a subordinao pol-tica, pois desse mecanismo depende sua reeleio mas os que se subordinam obtm, de maneiraprivilegiada, o que deveriam ser bens de acessopblico. Dessa forma, o clientelismo funciona co-mo um espelho, pois ao particularismo dos polti-cos corresponde o particularismo dos eleitores.Em tal cenrio o tipo de cultura poltica que surgepermite que o assistencialismo atue como ummecanismo poderoso de cooptao e controle doscidados. O paradoxal da situao que essaprtica funciona em virtude das deficincias e

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    incapacidade do Estado em responder s deman-das da populao.

    Foram essas preocupaes que fizeram queressurgisse o interesse sobre a cultura poltica

    pois a constatao da crise da democracia repre-sentativa, com sua nfase no mercado e na racio-nalidade dos atores como enfoque predominante,no consegue explicar o crescente descontenta-mento dos cidados com as instituies polticase sociais.

    Tal situao estimulou na Cincia Poltica umredirecionamento para pesquisas de cultura polti-ca, que assumem posicionamento ontolgico clarode que a cultura fundamental na compreensodos fenmenos polticos. No se trata da defesade posicionamento monoltico sobre a supremacia

    da abordagem da cultura poltica vis--vis outrasperspectivas tericas, mas de uma abordagemcompreensiva que incorpora as explicaes institu-cionais. A esse respeito, Inglehart (1988, p. 1223)argumenta que est, cada vez mais, evidente a pre-cariedade dos modelos que ignoram os aspectosculturais.

    O primeiro passo na direo de valorizar acultura poltica surgiu no trabalho de Almond eVerba (1965), em uma perspectiva comparativaemprica sobre a cultura poltica de cinco pases.

    Apesar das criticas feitas a esse trabalho (esttico,normativo, voluntarista) muitas delas plenamentejustificveis uma contribuio importante e queprevalece ao longo do tempo diz respeito impor-tncia atribuda, pelos autores, a normas e valoresculturais como fundamentais na persistncia dademocracia de massa. Na perspectiva da culturapoltica so as atitudes e as expectativas em relaoao sistema poltico que mantm a comunidadenacional integrada. Os valores e atitudes so avalia-dos em termos de como agem no sentido da manu-teno da comunidade em um sentido nacional.Nessa perspectiva, quando se observam polari-zaes de atitudes a conseqncia a desordem ea instabilidade. Visto dessa forma, a teoria dacultura poltica centra-se na problemtica da esta-bilidade. Os autores da cultura cvica preocupam-se com o estabelecimento das condies sob asquais as democracias so estveis e detm umaautoridade legtima. Outrossim, do ponto de vistada teoria da cultura poltica, Estado e sociedadeso entidades separadas que so integradas pormeio de instituies intermedirias (formais e infor-mais) via processo de socializao poltica. As pes-

    quisas de opinio so fundamentais para avaliarcomo os cidados internalizam crenas em relaoa essas instituies e deduz-se dessas crenas ograu de legitimidade do sistema poltico. No casodo Brasil, vrias pesquisas tm sido levadas a cabonessa direo (LAMOUNIER & SOUZA, 1991;MOISS, 1995; BAQUERO, 2001). Tais pesquisasconstataram que o legado histrico tem uma in-fluncia fundamental na compreenso das razesque levaram ao surgimento e manuteno de umacultura poltica fragmentada e silenciosa no Brasil.Como conseqncia, estabeleceu-se a importnciade reconhecer as singularidades de sua cultura comvistas a buscar respostas eficientes aos seus pro-blemas.

    Segundo a teoria da cultura poltica, a con-

    fiana interpessoal e a confiana nas instituiespolticas so pr-condies para a formao deassociaes secundrias que, por sua vez, podemagir como promotoras da participao poltica e,conseqentemente, no aperfeioamento da demo-cracia. Para o bom funcionamento das instituiespolticas imperativa a confiana dos cidadosnelas. Se em um sentido causal no se pode espe-cificar o que antecede o qu, do ponto de vistamais compreensivo essa relao inegvel. O de-safio est em encontrar mecanismos que possi-bilitem uma integrao entre esses conceitos de

    modo a conferir poder aos cidados para uma inge-rncia maior na poltica. A esse respeito Prze-worski (1999) tem argumentado que os defensoresdo capitalismo concluem equivocadamente que amaneira tima de gerar resultados econmicosseria reduzir a funo econmica do governo,quando o que necessrio garantir que a condutado governo seja submetida a uma fiscalizaoatenta por parte dos cidados. Em sntese, a eco-nomia melhora quando melhora a qualidade da de-mocracia, garantindo aos cidados que possamexigir do governo responsabilidades pela conduoeconmica e social do pas.

    A capacidade de fiscalizao, entretanto, passapor um processo de capacitao (educao pol-tica) das pessoas para no s se interessarem nosassuntos de natureza poltica, como tambm, fun-damentalmente, participarem dessa arena. Alcanaresse objetivo, entretanto, tarefa gigantesca seavaliados os indicadores de escolaridade no pas.Em pesquisa divulgada pela Organizao das Na-es Unidas para a Educao, a Cincia e a Cul-tura (UNESCO) em julho de 2003 (ABRAMOVAY& CASTRO, 2003), constatou-se que cerca de

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    50% dos alunos brasileiros na faixa dos 15 anos,esto abaixo ou no chamado nvel 1 de alfabe-tizao, marca estabelecida pela UNESCO queclassifica os alunos que conseguem apenas lidarcom tarefas muito bsicas de leitura. Ao mesmotempo, em uma escala sobre nveis de compreen-so de leitura englobando 41 pases, o Brasil estquase no fim da fila: 37a posio frente (e nomuito) na Amrica Latina somente do Peru (Revis-ta do Terceiro Setor, 2003). O que est claro,atualmente, que educao para a democracia noexiste. Como constituir cidados crticos e orienta-dos para uma participao poltica maior em talcenrio? Esse parece um dos principais desafiosque os cientistas polticos tm que responder, poiso que se verifica na prtica uma situao de apatiae um senso de impotncia para resolver as coisas.Esse tipo de comportamento parece um fenmenoglobal. Por exemplo, segundo alguns autores(PUTNAM & GOSS, 2002) existe atualmente umprocesso generalizado de desengajamento cvico.No caso brasileiro, tal eroso dos laos sociaismanifesta-se em uma cultura da lealdade que rara-mente vai alm da famlia e do grupo de amigosmais prximos. O setor pblico visto com des-confiana e a noo de bem comum frgil. Maso que mais surpreende a aparente indiferenadas pessoas em relao a essas prticas. O resul-tado concreto a ausncia de polticas de incluso

    social e uma tendncia a desestimular a partici-pao dos cidados.

    Nesse cenrio, deparamo-nos com um regimedemocrtico convivendo com um Estado oligr-quico. O regime promove o respeito Constituio,s leis, s instituies e aos procedimentos demo-crticos. No entanto, controlado por poderespatrimonialistas de grupos minoritrios que agemem detrimento do bem coletivo, promovendo, des-sa forma, uma concentrao maior de riquezas desetores privilegiados, acentuando a desigualdadee a excluso social. Para tentar reverter esse pro-cesso, Putnam e Gross (idem), baseados emteorias desenvolvidas h mais de um sculo e, emnossa opinio, de aplicao universal, tmproposto que os graves problemas econmicos,polticos e sociais de um sistema poltico no po-dem ser resolvidos pela mera existncia de insti-tuies, mas necessrio fortalecer as redes desolidariedade entre os cidados. Nessa mesma linhade pensamento, Young argumenta que at assupostamente sociedades mais democrticas domundo na maior parte do tempo so democracias

    plebiscitrias: os candidatos posicionam-se vaga-mente sobre os assuntos polticos, os cidadosapiam-se uns aos outros e tm pouca relao como processo poltico, at a prxima eleio(YOUNG, 2000, p. 5) e acrescenta que o espritoe a prtica democrticos inspiram muitas organiza-es voluntrias; movimentos compostos de taisgrupos algumas vezes influenciam as aes dogoverno e as aes de outras instituies podero-sas (ibidem).

    Segundo Putnam, o conceito que enfoca a im-portncia da promoo e do fortalecimento da soli-dariedade capital social no novo, pois temsido reinventado pelo menos seis vezes desde queapareceu nos trabalhos de Hanifan (1916). Emtempos recentes o conceito de capital social tem

    sido utilizado de maneira multidisciplinar, levandoa um consenso de que a evidncia gerada por essesestudos permite afirmar que as caractersticas dasociedade civil afetam a sade da democracia, dascomunidades e das pessoas (PUTNAM & GOSS,2002).

    Tal constatao difere das abordagens tradi-cionais cujo enfoque sobre a democracia geral-mente se davam mais no campo acadmico, ne-gligenciando uma discusso mais aprofundadasobre como os cidados percebem a democraciae suas experincias em um regime desse tipo. Uma

    forma de estudar como as pessoas concebem esseconceito tem sido via pesquisas quantitativas quebuscam a confirmao (ou no) de hipteses pr-elaboradas. No entanto, quando o conceito de de-mocracia analisado qualitativamente, do pontode vista de como os cidados experimentam-na,geralmente as teorias estabelecidas e os conceitosmostram-se estreitos e incompletos.

    Emblemtico dessa situao so os estudosproduzidos por Powers (1999), na Argentina, ondeconstatou que o uso do paradigma polirquico dedemocracia insuficiente para captar a riquezaou a insuficincia desse conceito. Nesse sentido,a abordagem qualitativa parece a mais indicadapara tentar captar a noo de capital social. Pes-quisas que mostrem como as pessoas constremo significado do mundo poltico tornam-se oportu-nas e relevantes. No Brasil, principalmente no RioGrande do Sul e Paran, vrios pesquisadores tmorientado suas preocupaes para essa temtica,pontualmente com adolescentes. Os dados apre-sentados na Tabela 1 mostram como, ao longodos anos, a juventude tem descodificado a poltica.

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    TABELA 1 AVALIAES NEGATIVAS DE CATEGORIAS POLTICAS (RIO GRANDEDO SUL)

    FONTES: para 1994 e 2000: pesquisas sobre socializao poltica do Ncleo de Pesquisassobre Amrica Latina (NUPESALUFRGS); para 2003: pesquisa sobre o universo poltico da juventude no inicio do sculo XXI, em Caxias do Sul (LUCAS, 2003).

    NOTAS: 1. A tabela refere-se s respostas seguinte questo: Gostaramos que voccolocasse ao lado de cada palavra outra que seja, na sua opinio, parecida, prxima, dapalavra sugerida (dimenso negativa).

    2. As respostas agrupadas na dimenso negativa foram: corrupo, roubalheira, mentira,suja, ladra, poder, falsa, injusta, desonesta, briga, interesseira, ruim,enganadora, sem carter, chata, confuso, pssima, podre e mal.

    3. Na varivel democracia, as categorias so na dimenso positiva.

    Os sintomas de um processo de desconsoli-dao democrtica e, conseqentemente, de crisede legitimidade do sistema poltico brasileirotornam-se evidentes em trs reas, a saber: a per-cepo negativa e hostil dos cidados em relaoaos partidos polticos, aos agentes polticos e s

    instituies polticas.H um consenso de que quando as pessoas

    desconfiam permanentemente da classe polticaas possibilidades de construir uma democraciaeficiente diminuem substancialmente. Se, alm des-sa desconfiana, os partidos polticos no se cons-tituem em pontos de referncia para a construode identidades coletivas, as relaes sociais e pol-ticas do-se em uma dimenso terciria, ou seja,estabelecem-se relaes diretas entre o cidado eo Estado (Presidente da Repblica), margem dospartidos. Talvez essa constatao seja a que mais

    aproxima-se de um teorema, pois a evidncia em-prica a esse respeito incontestvel.

    Outrossim, o fracasso das instituies policiale judiciria em proteger os cidados tem propicia-do o surgimento de organizaes para-estatais queacabam contribuindo para uma imagem negativado Estado. Como conseqncia, presentementeos cidados vivem sob condies de mais inse-gurana e pobreza.

    Essas condies tm criado o que se denomina

    de um mercado de desencanto, particularmentecom a poltica e com os polticos. Tal contextopossibilita a desvalorizao das virtudes demo-crticas, que aparecem mais como fico do querealidade, agravada com o esvaziamento das pro-messas democrticas. Embora esse desencanto

    no tenha produzido tolerncia pelo autoritarismo,tem gerado sociedades desmobilizadas e apticas.As pessoas crescentemente se tm retirado da are-na pblica para a privada, fragilizando qualquerpossibilidade de construir uma cidadania democr-tica, bem como instituies polticas eficientes eestveis.

    Os dados da Tabela 1 confirmam esse diagns-tico, pois constata-se a forma negativa que a ju-ventude internalizou a dimenso poltica, na ltimadcada. As flutuaes longitudinais so mnimase esto dentro da margem de erro. O que est evi-

    dente nesse resultado a prevalncia de opiniespreponderantemente hostis em relao s trs ins-tituies mencionadas e que so consideradas es-senciais na democracia representativa (na mdia72% para a atividade poltica, 69% para os partidospolticos e 70% para o governo). Em relao aoitem democracia os dados so opostos, pois severifica uma orientao majoritria pr-democra-cia, ou seja, apoio difuso (mdia 84% de respostaspositivas).

    Categoria/ano 1994 2000 2003 Mdia

    Poltica 71 69 75 72

    Partidos 72 71 65 69

    Governo 70 72 69 70

    Democracia 86 84 82 84

    TOTAL (N) (600) (580) (1118) -

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    Os dados refletem, no mbito da proposta desteartigo, a dificuldade da transio de uma sociedadeclientelstica para uma sociedade com relaeshorizontais. Nesse processo, a consolidao dacidadania no um processo sem dificuldades.Depende de fatores mltiplos que esto envolvidosna transformao de uma cultura poltica para umadimenso mais participativa; depende tambm daproliferao de organizaes sociais autnomas eda capacidade dessas associaes em representara pluralidade e diversidade dos distintos interessesexistentes na sociedade como um todo; dependetambm da existncia de movimentos sociaisdemocrticos e mecanismos institucionalizadosque sejam aplicados para tornar a democraciaparticipativa vivel, tais como o referendo, a revo-gao de mandato e a liberdade de associao.

    A leitura dos dados da Tabela 1 sugere que ademocracia possvel se existem indivduoscapazes de abstrair-se do particularismo e assumira imparcialidade, colocando-se no lugar dos outros.Uma democracia de indivduos racionais, pormauto-interessados, inconcebvel, visto que aracionalidade emerge da cooperao contratual.Os procedimentos dessa cooperao so: a) aparticipao direta, b) em deliberaes pblicas,c) das assemblias que ocorrem periodicamente,d) que legislam por meio de consenso ou maioria,

    e) que designam representantes f) sempre sujeitosa revogao de mandato. Em virtude dessas regrasgeram-se resultados coletivamente vinculantes, ouseja, decises moralmente justas. Esse processono sugere que a sociedade civil constitua-se emuma alternativa ao governo democrtico, mas nacesso de um espao livre em que as atitudes soconservadas e um comportamento democrtico condicionado (BARBER, 1999, p. 9). Alcanar talobjetivo, em um contexto de descrena genera-lizada, no entanto, quase impossvel. Torna-seimperativo, portanto, examinar elementos quepromovam cidados ativos. O conceito de capitalsocial parece til nessa direo.

    V. CAPITAL SOCIAL

    O capital social um potencial e poderosoconceito explicativo nas Cincias Sociais. Aocontrrio da cultura poltica, que enfatiza aestabilidade ideolgica e a estabilidade das demo-cracias, a teoria do capital social tem no magode sua anlise o desempenho das instituiesdemocrticas. Putnam (1993) argumenta que as

    instituies so instrumentos para alcanarpropsitos e no meramente concordncias. Oscidados querem que o governo faa coisas e nosimplesmente decida coisas. Poder-se-ia dizer ques atitudes e normas propostas pela teoria decultura poltica acrescenta-se uma dimensoavaliativa de como faz-las, de maneira eficiente: nisso que se constitui o capital social. Esse fatordistinto da teoria de capital social levou Foley eEdwards (1997, p. 550) a sustentar que o capitalsocial faz parte da busca por novos paradigmascom os quais confrontar os problemas das socie-dades contemporneas. Para o Banco Mundial,por exemplo, esse conceito est sendo conside-rado como o elo perdido do desenvolvimento(FINE, 1999), inclusive promovendo uma novaagenda de anlise na reduo da pobreza e napromoo da democracia social. Assim, seu usotem possibilitado reflexes alternativas terico-prticas, conceituaes e pesquisas empricas quepermitem que vrias reas de polticas pblicassejam melhor compreendidas. Ao mesmo tempo, um conceito problemtico em vrios aspectos,tais como: seu significado, sua medio, se antecedente ou conseqente e sua dependnciacontextual. Suas razes, alm de serem histricas,so multidisciplinares (Putnam na Cincia Poltica;Coleman na Sociologia; Fukuyama na HistriaEconmica e na Sociologia). Do ponto de vista

    ideolgico, em uma dimenso contnua, o capitalsocial pode ser o empowermentda cidadania, opluralismo e a democratizao. Em uma dimensomais conservadora, o capital social localiza-se emum compromisso com estruturas familiarestradicionais e em uma ordem moral coletivafundada em valores tradicionais (GAMARNIKOV& GREEN, 1999). As definies mais conhecidasso aquelas que vinculam o capital social confiana nas relaes sociais (FUKUYAMA,1995), como engajamento cvico via participaoem associaes voluntrias (PUTNAM, 1995),

    como uma fbrica social que cria o desejo decooperar no desenvolvimento de capital fsico(OSTROM, 1994) como uma varivel na geraode capital humano entre geraes e como umaspecto da estrutura social que facilita determi-nadas formas de ao e cooperao.

    Uma diferena importante entre capital sociale outras formas de capital que o capital socialexiste em uma relao social. Reside nas rela-es e no no indivduo sozinho, como o caso

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    de habilidades de capital humano. construdoem coletividades institucionalizadas tais como:universidades, corporaes, governos, associa-es informais de pessoas em que o conhecimentoe as vises de mundo formam-se e so trans-feridas.

    Obrigaes, confiana, fluxo de informaes,amigos, cultura, normas, redes e engajamentocvico constituem-se em indicadores parciais sobreo que o capital social e onde reside. Se a metforade bens e capitais til para analisar as relaessociais, deve ter em conta a habilidade transfor-madora do capital de uma coisa para outra. O quenas relaes sociais funciona como um catalisadorde aes coletivas e cooperativas? Os economistastm enfatizado principalmente o motivo individual

    ou a maximizao de utilidades (ambio). Se aspessoas confiam umas nas outras, honram as obri-gaes, seguem as normas e tornam-se amigosuns dos outros, somente para maximizar sua pr-pria a utilidade, esses elementos so simplesmentecommodities adicionais para serem inter-cambiados.

    necessrio, portanto, acrescentar outrasvariveis que esclaream como o capital socialfunciona. Por exemplo, a simpatia, um indicadordifcil de ser operacionalizado quantitativamente,pode gerar envolvimentos unilineares que no so

    calculados necessariamente com a expectativa deretorno. A esse respeito, os socilogos e os analistaspolticos afirmam que o comportamento que seguenormas e obrigaes no calculado estritamente,mas apreendido na socializao, um esforoparcialmente inconsciente. Os indivduos intera-gem, formam e so formados por esses processosculturais.

    Visto dessa perspectiva, o capital social umrecurso complexo que oferece explicaes sobrecomo os dilemas da ao coletiva podem sersuperados; muitos autores sustentam que tm umimpacto significativo e relevante na obteno deresultados importantes de polticas pblicas emreas como: educao, sade, criminalidade, bem-estar, crescimento econmico, desempenho deinstituies polticas e desenvolvimento degovernos efetivos e democrticos (MALLONEY,SMITH & STOKER, 2000, p. 802). Apesar dascriticas ao conceito, Trigilia (2001, p. 428) argu-menta que, se usado com cuidado e preciso e seno estiver sobrecarregado, o conceito de capitalsocial pode ajudar-nos a compreender no s o

    desenvolvimento local, mas principalmente aformulao de polticas mais apropriadas emboraressalte que o capital social no deve ser visto emtermos de cultura ou civilidade, mas em termosde relaes e redes sociais.

    A premissa essencial do capital social a deque permite aes cooperativas comunitrias eresolve os problemas comuns da coletividade. As-sim, o conceito de capital social atraente porqueagrega um nmero de caractersticas da vida socialprincipalmente para aspectos negligenciados ouescondidos da vida poltica de uma cidade. Desa-fia-nos a explorar a infraestrutura da sociedadecivil e sugere que dentro dela podemos encontrarexplicaes sobre como em algumas localidadesa atividade poltica e, principalmente, econmica

    e social mostram grande vitalidade e parecem sermais efetivas. Tal hiptese tem-se consolidado aolongo do tempo com estudos que tm verificadotal relao (PUTNAM, 1995; principalmente,NARAYAN & CASSIDY, 2001).

    Paradoxalmente, a polmica e a controvrsia arespeito do significado do capital social tem-seconstitudo uma fonte de estmulo realizao deestudos e pesquisas, ao invs de marcar seudeclnio. Do ponto de vista terico, por exemplo,tenta-se construir conceitos intermedirios, dentrodos quais se incluem anomalias empricas e

    analticas que inevitavelmente surgem da existnciade redes e da confiana. Outrossim, a noo decausalidade entre capital social e resultados espe-cficos pode ser revertida ou redefinida.

    Est claro que, presentemente, as dimensesde capital social (tais como: confiana das relaesentre os indivduos e instituies; redes e canaisinformativos; normas e sanes efetivas) so deimportncia fundamental na formao da vidaeconmica e social. O capital social consideradoprodutivo, pois torna possvel alcanar determi-nados objetivos que na sua ausncia no seriapossvel.

    A valorizao das associaes livres comoingredientes verdadeiros dos sistemas democr-ticos, portanto de capital social, no novo:remonta a Montesquieu, Tocqueville e Weber. Oltimo, por exemplo, embora no utilizasse otermo capital social no seu trabalho sobre a ticaprotestante, j concebia a idia de redes sociaiscomo instrumento para influenciar a formao deatividades empresariais, facilitando assim odesenvolvimento econmico em uma rea parti-

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    CONSTRUINDO UMA OUTRA SOCIEDADE

    cular. O que importa ressaltar que, da mesmaforma que muitos autores contemporneos, Weberavaliou positivamente os resultados e as conse-qncias dessas redes de relaes sociais para aatividade econmica.

    De fato, todas as constituies do mundo libe-ral-democrtico explicitam, de alguma forma, anecessidade de assegurar e garantir a liberdade deassociao. Nos ltimos anos, essa idia tem ocu-pado grande espao de debate, principalmente apremissa central de Putnam (1993; 2000), paraquem a problemtica central da sade das socie-dades contemporneas localiza-se no envolvimentodos cidados com associaes no-polticas comorequisito essencial da constituio de normas evalores de adeso democracia. Nesse sentido,

    as associaes so as principais escalas da demo-cracia na sociedade (ROBTEUTSCHER, 2002,p. 514).

    Essa afirmao, no entanto, tem sido contes-tada do ponto de vista quantitativo, pois argu-menta-se que existe pouca evidncia de que fazerparte de associaes voluntrias est relacionadoa atitudes individuais de confiana (NEWTON,2001, p. 201). Baseado nesses resultados afirma-se que as teorias que associam capital social,sociedade civil e estabilidade democrtica sofrgeis. Creio que a questo no est na ausncia

    de solidez terica, mas sim na forma, ainda noresolvida, de como se mede a confiana e o capitalsocial. mais provvel que os indicadoresempricos no estejam captando essa associao,pois seria inconsistente defender que a integraosocial, a eficincia econmica e a estabilidadedemocrtica possam ser alcanadas, embora ahistria mostre que em alguns casos seja possvel,mesmo sem confiana por parte dos cidados nasinstituies e nos governantes. A existncia deconfiana no s cria um ambiente de credibilidadee, conseqentemente, de legitimidade, como

    fortalece o contrato social. A ausncia desseelemento gera tenso permanente e instabilidadena sociedade que, no mximo, pode aspirar a umademocracia instvel em que mecanismos de

    engenharia institucional no raro parecem medidascasusticas e descontextualizadas. A esse respeitoDaMatta tem observado que achar que nsvamos modificar profundamente e sanar deter-minados males modificando simplesmente aarquitetura institucional, eu realmente acho umacoisa terrvel (DAMATTA, 1993, p. 55). Esseseria um dos elementos, segundo o autor, queexplicaria porque os brasileiros sistematicamentevivem sob regimes cujo funcionamento auto-ritrio, embora democraticamente eleitos.

    Talvez por isso tanto Tocqueville como Putnamtenham estabelecido uma associao prxima entreconfiana, normas, virtudes cvicas em geral eassociaes, de um lado, e um processo demo-crtico eficiente, por outro. A credibilidade de um

    sistema poltico e seu eficiente desempenho, por-tanto, depende do grau de confiana que aspessoas tm nas instituies.

    Assim, a legitimidade de um sistema poltico construda por meio de fatores institucionais, his-tricos e culturais. Na dimenso da cultura polticaso as atitudes de satisfao demonstrada peloscidados em relao democracia que nos doindcios sobre o grau de legitimidade e credibili-dade do sistema poltico. Esse indicador clssicoe vem dos tempos de David Easton (1965), paraquem essas atitudes possibilitam determinar o que

    ele denominou de apoio difuso, que era consideradoessencial no processo de construo de legitimida-de das instituies polticas. Apesar das crticasfeitas aos conceitos de apoio difuso e apoio espec-fico, consideramos que, pelo menos at os diasde hoje, os aspectos positivos e sua contribuiona compreenso das bases de legitimidade superamas deficincias apontadas por vrios autores(NORRIS, 1999). Porm, o conceito mais impor-tante na compreenso da estabilidade de um sis-tema poltico tem a ver com o apoio dos cidadoss instituies da poliarquia.

    A esse respeito torna-se oportuno examinar ograu de confiana dos brasileiros em suas insti-tuies polticas; esses dados esto apresentadosna Tabela 2.

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    FONTE: Pesquisas eleitorais em Porto Alegre (NUPESAL-UFRGS).

    NOTA: A tabela refere-se pouca ou nenhuma confiana dos entrevistados nas instituies indicadas.

    As respostas dos entrevistados em relao aograu de confiana que eles depositam nasinstituies polticas neste caso o governo, oPoder Legislativo e os partidos mostram que oscidados no confiam nelas. A confiana nasinstituies no somente uma dimenso atitudinalde valor positivo do ponto de vista moral e tico, tambm imperativo para o fortalecimento dademocracia. Em sociedades caracterizadas peladesconfiana prevalecem as atitudes e compor-tamentos polticos tradicionais, em que o cliente-lismo, o personalismo e o patrimonialismo so pr-ticas do cotidiano poltico. O mais preocupantedos dados acima o gradual crescimento dessadesconfiana, mesmo no mbito de um regimedemocrtico. A persistncia desses nveis elevadosde desconfiana pode constituir-se em um indciofundamental para entender a crise permanente dosgovernos popularmente eleitos no pas, nos ltimosanos. Quando menos de 20% da populao confianas suas instituies (de 1996 a 2002), difcilfalar em consolidao democrtica.

    Segundo essa evidncia que mostra as insti-

    tuies polticas margem da vida das pessoas, inevitvel que os cidados voltem-se para outrosinterlocutores nas suas reivindicaes as asso-ciaes informais. Esse comportamento no no-vo, pois desde a publicao do livroPolitical Cul-ture de Almond e Verba, tem-se acumulado grandequantidade de evidncias empricas que mostramque as associaes tm um impacto positivo nasade democrtica dos pases. Constatou-se quea correlao est condicionada pelas condieshistricas estruturais de um pas, ou seja, no sepode concluir que a relao participao em asso-ciaes voluntrias fortalecimento democrticoseja causal. Isso se deve ao fato de que as associa-es no fomentam, por si ss, um tipo de culturapoltica, mas so um reflexo de e amplificam ostraos culturais dominantes de seu ambiente. Naverdade, constituem-se no espelho da cultura po-ltica vigente.

    Robteutscher (2002, p. 516) apresenta oseguinte esquema para avaliar a diferena entre aperspectiva do capital social e a perspectivahistrica.

    FIGURA 1 ASSOCIAES ENTRE O CAPITAL SOCIAL E O DISCURSOHISTRICO

    FONTE: Robteutscher (2000, p. 516).

    TABELA 2 GRAU DE CONFIANA DOS BRASILEIROS NAS INSTITUIES POLTICAS (%)

    Instituies/

    ano1968 1974 1985 1994 1996 1998 2000 2002

    Governo

    Federal 40 48 56 70 83 82 92 87

    Congresso

    Nacional- - - 84 87 86 92 89

    Partidos

    Polticos- - 40 66 60 90 89 91

    TOTAL (N) 367 380 488 600 600 600 600 600

    Associaesdemocrticas

    Todas asAssociaes

    Associaes no-democrticas

    Vnculo do capital social

    Vnculo histrico

    Reflexo

    Cultura Poltica(cvica)democrtica

    Cultura (cvica)democrtica

    Cultura no-democrtica

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    Esse esquema valioso na compreenso decomo uma cultura poltica construda, pois ilustracomo os chamados fatores histrico-estruturaisincidem nessa configurao. No se trata de umdeterminismo histrico ou cultural, mas sim da

    influncia de um legado que incide na forma comoos valores e crenas internalizados pelas pessoasafetam a qualidade da democracia de um pas. Seesses valores e normas so negativos a possi-bilidade de substituir uma ordem social remota,pois valores e crenas so o fundamento da insti-tucionalidade democrtica. No Brasil, segundoFernandes (1968), o problema histrico da poltica o ethos patrimonialista. Segundo o autor, soquatro sculos de mandos e desmandos cliente-listas. Isso fez que o conflito (a lgica da poltica)fosse tratado desde os primrdios da Repblica

    como caso de polcia, excluso e antagonismosocial exacerbado, produzindo uma estruturapoltica autoritria que vige at os dias atuais. Talcontexto histrico no pode ser negligenciado paracompreender porque os cidados brasileiros noconfiam nas suas instituies polticas, ao mesmotempo que permite compreender porque a meraexistncia de condies estruturais para que ademocracia fortifique-se insuficiente.

    Por exemplo, se se institucionaliza na sociedadeo medo e a insegurana coletivos, as clulas sociaisso praticamente destrudas, no possibilitando o

    desenvolvimento de normas, tais como: solidarie-dade, confiana e tolerncia. No seu lugar, cons-titui-se uma cultura poltica de resignao a prticasautoritrias, verticais, hierarquizadas, mesmo emum regime democrtico. Tais atitudes e compor-tamentos negam a possibilidade de produzir meca-nismos institucionais de mediao poltica comcredibilidade. Tal situao dificilmente contribuipara a solidificao de uma cultura poltica parti-cipativa.

    Esse dilema fez que a agenda do perodo recen-

    te de democratizao no Brasil tenha-se voltadopara a busca de diretrizes de incluso social e pol-tica dos cidados na sociedade moderna. Essatarefa, entretanto, exigiu o resgate de conceitosque haviam sido considerados pouco teis nacompreenso dos dilemas democrticos, taiscomo: clientelismo, personalismo e patrimonia-lismo. Esses conceitos, por exemplo, so utilizadospor Bruso, Nazareno e Stokes (2001) para exa-minar por que na Argentina os eleitores, apesar deterem sido trados por promessas eleitorais queno se materializaram aps seus candidatos serem

    eleitos, continuaram a apoiar o partido poltico eos polticos que frustraram suas expectativas; aexplicao dos autores que o clientelismo deMenem funcionou na cooptao dos pobres. Omesmo fenmeno ocorreu no Peru, com Fujimori,

    e no Equador, com Bucharam e depois comMahuad. Exemplos como esses no so incomunsnos pases da Amrica Latina, e o Brasil no aexceo. Candidatos notoriamente conhecidos porsuas prticas autoritrias, populistas e com poucoteor tico e moral continuam a ser eleitos. Nessecontexto, o legado cultural das instituies tantoformais quanto informais so o reflexo da formacomo as relaes sociais so absorvidas pelacultura em um sentido clientelstico.

    Esse contexto faz que a poltica e suas institui-es sejam vistas de maneira negativa, propiciandoa emergncia de modos alternativos de transmis-so de demandas; esses canais alternativos funda-mentam-se, em parte, na corrupo, em umaburocracia ineficiente, na supresso de liberdadescivis, nas falhas na esfera dos direitos de pro-priedade e no fracasso na manuteno da coeso.No caso do Brasil, tais fatores caracterizaram suahistria obrigando as comunidades a tentar resolverpor si mesmas problemas que so da responsa-bilidade do Estado, em um sentido privado e infor-mal. Isso se deve ao fato de que as pessoas novem nessas instituies mritos ou vem-nas com

    desconfiana, de modo que o distanciamento delas inevitvel. Quando os mecanismos de repre-sentao convencionais (partidos polticos) noconseguem expressar ou agregar os interesses dapopulao, por meio de um consenso democrtico,a crise decorrente dessa situao leva a um funcio-namento atpico das instituies democrticas os grupos tradicionalmente marginalizados conti-nuam a ser excludos da agenda dos partidos. Talsituao conduz prevalncia do clientelismo edo particularismo (os interesse particular sobre-pe-se ao bem pblico) que, por sua vez, possi-

    bilita um cinismo generalizado em relao s insti-tuies formais da poliarquia (PARAMIO, 1999).Nesse contexto, os partidos servem para agregarvotos e no preferncias, no possibilitando aformulao de polticas pblicas de interesse geral(LYNE, 1997). No surpreende que, nessascircunstncias, as pessoas no demonstreminteresse em filiar-se ou identificar-se com partidospolticos. Os dados da Tabela 3 so ilustrativosdesse distanciamento, no caso do Rio Grande doSul.

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    No perodo de 1994-2000, a magnitude daidentificao partidria favorece claramente oPartido dos Trabalhadores (PT), em detrimentode todos os outros partidos, que experimentamum declnio ou estagnao constantes. O quechama ateno, entretanto, manuteno da noidentificao partidria acima de 30% nesses quase20 anos, revelando que os partidos pouco tm feitopara motivar os cidados a filiarem-se ou mesmoidentificarem-se com eles. Como se sabe, um dos

    elementos considerados essenciais para aestabilidade poltica de uma nao o grau e aestabilidade com que as pessoas se identificamcom as organizaes mediadoras de seusinteresses. Presume-se que com o processo deconvivncia democrtica, ao longo do tempo, essaidentificao tenda a aumentar. O que se observa,entretanto uma estagnao e at um processode desinstitucionalizao dos partidos. Esses dadosmostram que a possibilidade de desenvolverestmulos para um engajamento poltico maior dos

    cidados no se d por meio dos partidos polticos.A produo de capital social, tendo comocatalisador os partidos, mnima. Os eleitoresprocuram outras fontes de motivao paraenvolver-se politicamente. De maneira geral, pode-se afirmar que os partidos, inclusive em um estadoconsiderado politizado como o Rio Grande do Sul,baseiam a representao de interesses muito maisno intercmbio particularizado, razo por que amaioria dos eleitores carece de identidade

    ideolgica. No surpreende, portanto, que oscidados procurem outros mecanismos deagregao de seus interesses. Nesse caso, podemser apontadas as associaes secundrias evoluntrias.

    A hiptese na literatura que a participaoem associaes produz capital social relevante, oque significa que promove e facilita o engajamentopoltico. Esse tipo de capital social produzidocomo conseqncia da experincia poltica e da

    TABELA 3 IDENTIFICAO PARTIDRIA NO RIO GRANDE DO SUL (%)

    FONTE: Pesquisas eleitorais em Porto Alegre (NUPESAL-UFRGS).

    NOTAS: 1. Os totais podem no somar 100% em virtude da no incluso de preferncia abaixo de 1%.

    2. N/S ou N/R: no sabe ou no respondeu.

    Partido/ano 1974 1985 1994 1996 1998 2000

    ARENA 18 - - - - -

    MDB 41 - - - - -

    N/S ou N/R 11 - - - - -

    PDS - 6 - - - -

    PDT - 28 8 5 7 8

    PT - 6 29 41 33 40

    PTB - 2 2 2 3 4

    PMDB - 21 11 3 10 5

    PFL - 2 2 3 1 -

    PCdoB - 1 0,5 - 0,4 -

    PFL - 2 2 3 1 1

    PSDB - - 1 2 1 -

    Nenhum 28 30 41 32 34 30

    TOTAL (N) 380 600 600 600 600 600

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    informao que regularmente comunicada dentroda rede de relaes sociais do indivduo.

    Uma das postulaes mais consistentes que setem estabelecido na discusso sobre a democracia

    a de que, sem confiana, ela no sobrevive. Seufortalecimento, portanto, depende do fim do mono-plio da representao e agregao de interessescentrada nos partidos. As circunstncias atuaisexigem outras formas de agregar demandas. Em-bora o capital social seja fomentado por uma varie-dade ampla de interaes formais e informais entreos membros de uma comunidade, uma anliseplena dessas interaes no observvel. O quese pode observar a prevalncia de filiao emorganizaes voluntrias em um determinadocontexto. Como resultado, ser membro de asso-

    ciaes tem-se tornado o indicador mais adequadopara examinar a formao ou destruio de capitalsocial. Acredita-se que, ao fazer parte de associa-es, as pessoas desenvolvem interaes entre si,aumentando a possibilidade do desenvolvimentode confiana recproca entre elas. O resultado,segundo pesquisas (YAMAGISHI & YAMA-GISHI, 1994), o aumento da capacidade da aocoletiva, cooperao e confiana intragrupo, possi-bilitando que os objetivos coletivos sejam alcan-ados mais facilmente. A questo fundamental,

    entretanto, saber se a participao em grupos eassociaes tambm contribui para o processo deconstruo de uma sociedade em que a cooperaopara todo e qualquer propsito no somente dosgrupos facilitado (STOLLE & ROCHON,1998). Nessa direo, as associaes, em um sen-tido amplo, podem ser o caminho a seguir. Outros-sim, pressupe-se que a experincia de ser mem-bro de associaes formais ou informais contribuipara o desenvolvimento da tolerncia e cooperaoentre os cidados de maneira geral. O teorema de que quanto mais a pessoa participa de asso-ciaes, maior a tendncia a solidificar um civismopblico e, conseqentemente, o fortalecimento dademocracia. Tais qualidades, tolerncia e coopera-o, somente geram confiana generalizada quandose orientam para a comunidade como um todo, oque no o caso de bandos, a mfia, ou gruposfanticos que podem produzir capital social perso-nalizado, mas no produzem capital social pblicoque o que conta para o amadurecimento demo-crtico de um pas.

    Nessa direo, o que nos interessou foi exa-minar a experincia das pessoas em associaesem um sentido mais genrico e pblico na capitalgacha, pois o capital social pblico constitui-sena essncia da tese do capital social.

    Embora a anlise dos dados diga respeito spessoas, o capital social pressupe objetivostangveis de natureza coletiva (por exemplo, uniresforos para conseguir o asfaltamento de ruas);assim, o capital social pblico refere-se unidadede anlise macro e no micro. Os dadosexaminados nos anos 1974, 1998 e 2000 sugeremnveis reduzidos de associatividade dos cidadosem Porto Alegre. O que chama a ateno apercentagem relativamente elevada de pessoas queresponderam participar de algum tipo de

    associao em 1974 (34%): seria lgico esperarque tal nvel fosse mais razovel para os anossubseqentes, pois foi a poca da chamadaconsolidao democrtica (1998-2000). Paratentar compreender o que estava acontecendo, essavarivel foi cruzada com o tipo de associao aque o cidado vinculou sua participao. A respostafoi esclarecedora. Em 1974, 76% das pessoasresponderam participar de algum tipo deassociao religiosa, indicando sua igreja como afonte primria de tal vnculo, caindo para 67%

    TABELA 4 GRAU DE ASSOCIATIVIDADE EM PORTO ALEGRE(1974-2000) (EM %)

    FONTE: Pesquisas eleitorais em Porto Alegre (NUPESAL-UFRGS).

    NOTA: A tabela refere-se s respostas seguinte questo: O(a)sr(a). participa de algum tipo de associao (religiosa, esportiva,outra)?.

    Ano/resposta 1974 1998 2000

    Sim 34 17 22

    No 68 83 78

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    em 1998 e 51% em 2000. O que se depreendedessas informaes que, a partir de 1974, odeclnio em associatividade dos cidados coincidecom o declnio da credibilidade das instituiespolticas como fontes de construo de identidadescoletivas. Esse declnio, no entanto, aparentementeno foi substitudo por vnculos com outro tipode associaes que experimenta, ao contrriodo esperado, uma reduo. O ideal seria podercontar com dados de pesquisa do tipo painel quenos possibilitassem uma avaliao das flutuaesatitudinais em relao s razes que levaram aspessoas a no se interessarem em participar deoutras associaes. Na ausncia dessasinformaes, no entanto, pode-se levantar umahiptese de que pertencer ou ser membro de igrejas uma atividade quase formal e obrigatria, noproduzindo estoques de capital social pblico quese possam transferir para outras associaes,conforme os dados parecem sugerir. Do ponto devista emprico, pelo menos, a evidncia de umatradio de associatividade pblica em Porto Alegredeve ser vista com cautela.

    A hiptese que aqui se levanta que im-perativo fomentar e fortalecer as associaes vo-luntrias e pblicas existentes como instrumentosvitais do amadurecimento democrtico pelaparticipao ativa e propositiva, da intelectualidade

    do pas, indo alm de uma prtica meramentedescritiva e de diagnstico. Para Verba et alli(1995), por exemplo, um dos principais resultadosda existncia de associaes que elas pro-porcionam um espao para que as pessoas dis-cutam a poltica mais freqentemente, estimulandoseu interesse, sofisticao e participao poltica.

    A associao, por outro lado, quando espon-tnea e voluntria, ao contrrio de obrigatria,possibilita conhecer outras pessoas, aumentandono s a possibilidade de mais discusses polticas,como aumenta a percepo do indivduo do que

    est ocorrendo na sociedade e a maneira domi-nante e aceita da forma de pensar e agir.

    Assim, pressupe-se que as associaes civisso mais democrticas e mais cvicas porqueexistem em sociedades que so mais democrticase mais cvicas do que sociedades do passado. Asevidncias mais citadas na Amrica Latina dessasituao so: a criao de Villa el Salvador, no Peru;as feiras de consumo popular, na Venezuela, e ooramento participativo, em Porto Alegre(KLIKSBERG, 2000).

    No entanto, vrios autores tm alertado para aimportncia de reavaliar a relao causal entreassociaes e bom governo. Portes (1998), porexemplo, tem sugerido que o impacto de redessociais nas atividades econmicas pode ser muitodiferente. Segundo ele, se, de um lado, em muitoscasos a informao e confiana que circulam pormeio das relaes pessoais podem limitar ooportunismo e facilitar a cooperao econmica,de outro lado podem agir como limitadores decompetitividade e assim reduzir a eficincia comoresultado dos conflitos entre os atores. Portanto,para compreender de que forma as funespositivas decorrentes da existncia de redes sociaispodem ser materializadas primordial conhecerno s as condies culturais, mas tambm aspolticas.

    A reflexo de Portes valiosa no sentido deapontar a necessidade de levar-se em consideraoo contexto histrico e cultural dentro do que ocapital social (ou no) gerado. No caso brasileiro,apesar de os dados no englobarem o conjunto dopas, pode-se inferir teoricamente que no h umatradio associativa e a que existe no proporcionaas bases de produo de capital social pblico.Dessa forma, apesar da existncia de centenas deassociaes informais e voluntrias que organizam-se em torno de objetivos comuns, elas parecem

    no gerar redes associativas mais amplas, pois seusmembros centram-se em questes particulares.Esse, por exemplo, tem sido o problema do ora-mento participativo em Porto Alegre (GENRO,2001; RICCI, 2001).

    Assim, a histria mostra que o monoplio darepresentao e participao poltica no Estado enos partidos polticos no Brasil est longe deconstituir-se no elemento catalisador de umaqualidade democrtica melhor, contribuindo parao crescente ceticismo do cidado em relao sinstituies polticas. Nesse contexto, o Estado

    de Direito permanentemente questionado e imprevisvel e as estruturas burocrticas nofuncionam de acordo com valores universais. Ditode outra forma, em um contexto em que o Estado ineficiente e com pouca credibilidade, as redessociais podem aumentar o desenvolvimento doconflito tanto na atividade econmica como nasinstituies pblicas em uma dimenso negativa,levando apropriao de recursos polticos econseqentemente institucionalizao de relaespautadas por clientelismo e paternalismo. Esseparece o caso do Brasil contemporneo.

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    Nesse sentido, a construo de capital socialpblico deve ser analisada dentro de umacompreenso da evoluo histrica e das condiesmateriais do pas, alm de considerar-se como umprocesso de interaes sociais que levam aresultados construtivos. No depende, portanto,de um nico fator e tambm no uma relaolinear (BANKSTON & ZHOU, 2002, p. 285).

    VI. AS BASES DE LEGITIMIDADE DO SIS-TEMA POLTICO BRASILEIRO

    Vrios autores brasileiros, ao longo do tempo,tm argumentado que o legado histrico do pasno possibilitou o estabelecimento de bases slidaspara constituio de uma democracia duradourano sentido social (Viana, Amaral, Tavares, Hollan-da, Uricochea). Um dos elementos responsveis

    por tal situao , segundo os autores, a incapa-cidade das instituies em constiturem-se empontos de referncia para a construo de identida-des coletivas na sociedade. Os dados da Tabela 4,acima, demonstram claramente que, longitudinal-mente, a desconfiana nessas instituies, mesmona vigncia da redemocratizao, mantm-seinalterada.

    Para o caso do Brasil, quando se examina quala contribuio das instituies governamentais dademocracia formal na produo de capital social

    pblico, constata-se que, ao contrrio do que seesperava, o que essas instituies produzem no capital social mas fragmentao e apatia por partedos cidados.

    O argumento de Eduards e Foley (1997) deque o capital social especfico de um determinadocontexto, existindo nas relaes e normas sociaisque facilitam a ao cooperativa e que existemdentro dos grupos no necessariamente trans-fervel para outros contextos oportuno a esserespeito. Se aceito o argumento de contextua-lidade, ento no h sentido em medir o capital

    social no nvel individual fora da comunidadeespecfica. Talvez isso ocorra porque a atenotem-se orientado para o papel das associaesvoluntrias e civis, negligenciando parcialmente opapel da famlia, da escola e do lugar de trabalhono debate sobre capital social.

    Em um sentido mais abrangente, o capital socialdeve incorporar a famlia, os amigos e os colegasde trabalho como elementos constituidores de umrecurso importante se que pode catalisar em pocasde crise ou em situaes que requeiram alcanar

    bens materiais coletivos. Assim, aquelas comuni-dades com elevados estoques de redes sociais eassociaes cvicas esto em uma posio maisslida para enfrentar vulnerabilidades, a pobreza,resolver disputas e/ou tirar partido de novasoportunidades (WOOLCOCK, 2001). esse, porexemplo, um dos argumentos utilizados paraexplicar o sucesso do oramento participativo emPorto Alegre. Afirma-se que essa cidade detmuma dimenso de sociabilidade igualitria quecontribuiu na formao de elementos associativosmais fortes que no resto do Brasil (AVRITZER,2003, p. 20), promovendo, assim, predisposiesassociativas que facilitaram a implantao de umademocracia mais participativa.

    A evidncia mais slida em apoio da tese do

    capital social vem de estudos no nvel comunitrios(cvico), que se utilizam de medidas sofisticadasde redes comunitrias, da natureza e da abrangn-cia da participao cvica e dos intercmbios entrevizinhos. Dessa forma, para que a democraciafuncione a confiana e as redes representam pr-condies necessrias, porm no suficientes.Uma sociedade pode ter elevados ndices de con-fiana entre os cidados, ou pode estar interconec-tada com redes sociais horizontais, mas para queesses recursos sejam relevantes para a democraciaas pessoas devem preocupar-se com assuntos que

    vo alm de suas vidas privadas. Aqui o papel doEstado, nos seus vrios nveis, e a comunidadeacadmica tornam-se insubstituveis, pois soesses agentes que podem articular a construode capital social em um sentido mais amplo e maisabrangente.

    Essa participao pode gerar efeitos internos eexternos no sistema poltico. Externamente asassociaes podem passar a ser vistas como ca-nais alternativos de influncia, pois proporcionamvnculos institucionais entre os membros e o siste-ma poltico e servem como instituies intermedi-

    rias. A articulao e agregao de interesses, bemcomo de valores, facilitada pela presena de den-sas redes de associaes secundrias (PUTNAM,1993).

    No nvel interno, o resultado pode se dar nagerao de hbitos de cooperao, solidariedade eesprito pblico. um processo de socializao.Outrossim, tem tambm um efeito educacionalporque os participantes adquirem habilidades ecompetncias que so importantes para a demo-cracia: por exemplo, conhecimento sobre tem-

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    ticas especficas ou como as instituies pblicasfuncionam, como administrar a organizao,como discutir assuntos de maneira civilizada...dessa forma, as associaes podem constituir-seem escolas de democracia.

    Nos ltimos anos tm proliferado associaestercirias cujo apoio d-se por meio de contribui-es monetrias ao invs da participao comtempo. Assim, constata-se que h um declnio naintensidade de envolvimento associacional. Sabe-se que o capital social pode formar-se e transmitir-se por interao direta; por outro lado, grupostercirios consistem em redes verticais e no hori-zontais, conseqentemente no contribuindo parao desenvolvimento de redes horizontais ou da con-fiana social.

    Assim, redes verticais contribuem pouco pararesolver problemas coletivos. Segundo Putnam(1993, p. 74) uma rede vertical, independentemen-te de sua densidade e da importncia para seusparticipantes, no pode sustentar confiana ecooperao. Em contrapartida, as associaesfomentam um maior grau de horizontalidade. Aassociao cria redes secundrias que promovema interao face-a-face com poucas barreiras paraos de fora e com os participantes envolvidosem associaes mltiplas. No nvel individual,afiliaes mltiplas significam uma interao mais

    ampla. Conseqentemente, deve ter um efeitocumulativo no nvel de confiana e engajamentocvico e deve ampliar o escopo de redes quefacilitam sua difuso na sociedade. Em pesquisaempric