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SÉRIE ANTROPOLOGIA 355 BASES PARA UMA ALIANÇA NEGRO-BRANCO-INDÍGENA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO ÉTNICA E RACIAL NO BRASIL José Jorge de Carvalho Brasília 2004

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SÉRIE ANTROPOLOGIA

355

BASES PARA UMA ALIANÇANEGRO-BRANCO-INDÍGENACONTRA A DISCRIMINAÇÃO

ÉTNICA E RACIAL NO BRASIL

José Jorge de Carvalho

Brasília2004

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BASES PARA UMA ALIANÇA NEGRO-BRANCO-INDÍGENA CONTRAA DISCRIMINAÇÃO ÉTNICA E RACIAL NO BRASIL

José Jorge de Carvalho Departamento de Antropologia

Universidade de Brasília

Este texto visa responder a um conjunto de questões a mim dirigidas para avaliaras ações realizadas pelo CERIS no seu esforço por contribuir para a consolidação doPlano de Ação de Durban 2001 e pensar as possibilidades de futuros encaminhamentosna mesma direção.1 Optei por apresentar um conjunto de reflexões acerca da conjunturadas atuais demandas por ações afirmativas, informado basicamente pelos dados eobservações que coletei desde 2001, no contexto da luta pela implementação de cotaspara negros e índios no ensino superior público. A novidade do tema em questão noBrasil permite que os esforços de compreensão da conjuntura abram caminhos parareflexões de maior alcance e abrangência. Ressalto o caráter sempre provisório, frágil eesquemático de qualquer análise de conjuntura e esclareço que falo de uma realidadeque me pertence exclusivamente na condição de branco, condição essa cindida eproblemática, como também o são as condições de negro e de indígena em nossasociedade. Eis porque julgo importante a construção de uma aliança negro-branco-indígena que favoreça a explicitação dos problemas de nossas respectivas identidadespara assim intensificar o combate à discriminação étnica e racial no país, tarefa que noscompete a todos, cada um a partir de sua condição específica.

I. Os Conflitos étnico-raciais no Brasil de 2004

Para pensar como melhorar a condição das minorias étnicas e raciais e dosdespossuídos em um país que amarga há décadas os piores índices de desigualdadesocial, econômica, racial e étnica do planeta, é preciso lutar contra a prática dopensamento circular e essencialista. Circular, primeiro, porque podemos invocar o efeitopara concluir a causa: se as intervenções diagnosticadas tivessem ocorrido, adesigualdade já teria diminuído. Identificar, portanto, os pontos de intervenção é apenasconstatar e concluir mais uma vez que a desigualdade é conseqüência da falta deintervenção... que deveria ter sido realizada pelo mesmo grupo social ou racial (osbrancos) que fez o diagnóstico da repetição da desigualdade. Em outras palavras, não hámais por que postular mistério sociológico algum no Brasil, do ponto de vista da elitebranca. A própria Declaração de Durban é apenas mais uma prova, certificada pordocumentos oficiais assinados, de que a classe governante sabe o que deveria fazer,caso quisesse de fato mudar o país, ainda que segundo agendas reformistas. Como 1Agradeço a Márcio André pelo convite para participar do livro e aos amigos e colegas que meestimularam a desenvolver essas reflexões: Mônica Pechincha, Luís Ferreira, Carlos Henrique Siqueira,Francisca Pareci e Stephen Baines.

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argumenta muito bem Slavoj Zizek, todos (neste caso os poderosos) sabem muito bem oque fazem. Aquele que poderia intervir e não intervém conhece os efeitos que seriamproduzidos por uma intervenção sua que ele mesmo decidiu que não virá. Um ponto departida bem fundamentado, então, para uma avaliação dos impactos (ou não) de Durbané a condição de cinismo - entendido aqui no sentido estritamente ideológico, tal como ousam Slavoj Zizek e Peter Sloterdijk - da elite branca brasileira. Sua inação diante daprática cotidiana do racismo engana e desfoca o conflito racial exposto, porqueapresenta uma fachada de inconsciência que de fato não existe.

Sloterdijk considera o cinismo político contemporâneo como uma forma de“falsa consciência esclarecida”, assim definida: “próspera e miserável ao mesmo tempo,essa consciência já não se sente afetada por nenhuma crítica ideológica; sua falsidade jáestá reflexivamente amortecida” (Sloterdijk 1987:5). A essa atitude cínica (da elitesocial branca obviamente), que reconhece as conseqüências emancipadoras daintervenção para a qual se preparou em nome da modernização iluminista e ainda assimse nega a intervir, Sloterdijk opõe a atitude do filósofo grego Diógenes, que ele definecomo kynismus (digamos, kinismo), que opta pelo caminho da sátira, da risada, dasatisfação corporal ao recusar os projetos (supostamente éticos) de construção da pólisparticipativa, da justiça do estado e da firmeza da verdade platônica. Insisto em quesomente esse tipo de consciência cínica pode, no Brasil de 2004, ser indiferente àquantidade de dados sobre desigualdade racial tabulados e divulgados nacionalmentepelo IBGE, IPEA, INSPIR, CEERT, etc. Quanto ao cotidiano, somente nos últimos doismeses foram amplamente divulgados, pela imprensa, rádio e televisão, inúmeros casosgraves de racismo, tais como: assassinato de um jovem odontólogo, inocente, porpoliciais em São Paulo; assédio a um jovem negro por parte de um segurança em umshopping da Zona Sul do Rio de Janeiro; expulsão arbitrária de um grupo dequilombolas de uma pensão em Brasília; discriminação contra o Secretário do Ministrodo Esporte por um taxista em Brasília; discriminação contra um grupo de mulheres emum restaurante do Hotel Nacional em Brasília. Tantos casos escandalosos (os doisúltimos implicaram em uma reclamação oficial da UNESCO contra o estado brasileiro)parecem não causar nenhum impacto na consciência da nossa elite branca do poder,tanto político quanto judiciário, pois a impunidade é a garantia da continuidade dadiscriminação racial no Brasil.

Quanto ao argumento essencialista, viria da construção de um perfil definido, a-histórico e psicologizante das classes dominantes no Brasil: egoístas, predatórias,insensíveis, indiferentes, violentas. Se caíssemos nessa linha de argumentação teríamosque postular e demonstrar a existência e o funcionamento de uma pedagogia perversa,segundo a qual as elites dominantes passariam a seus descendentes os valores e oexercício da predação, da insensibilidade, da indiferença, da violência, como se esseethos não se reproduzisse a cada vez em uma dialética tensa com os negros em revolta,ou em resistência camuflada. Enfim, ao essencialismo do país cordial, misturado erelacional, segundo o modelo de Gilberto Freyre e sua reprodução simplificada emseguidores como Roberto da Matta, contrapõe-se um outro essencialismo igualmenteinfértil e paralisante (e, no limite, tão racista quanto o modelo freyreano, porque silenciaa capacidade de agenciamento dos negros na reprodução constante dessa estrutura) dossociólogos críticos da classe dominante brasileira.

Historicizar, portanto, como diz Fredric Jameson, é justamente recusar o convitesedutor da essencialização e mergulhar nos conflitos conjunturais específicos quepermitiram a definição das estratégias de dominação e resistência, em geral bastanteestáveis em um país que jamais passou por uma revolução social capaz de desestabilizar

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a sua estrutura de classes e a sua hierarquia racial gerada após a abolição da escravatura.Diferente dos argumentos circulares e essencializantes, podemos propor que vige, então,no Brasil, uma conjuntura de tipo pós-escravista, consolidada nas primeiras décadas doséculo XX com a ascensão social e econômica dos imigrantes europeus que aquichegaram no final do século XIX e que jamais foi desfeita, ainda que sempre marcadapor uma tensão racial e étnica manifesta. Ou seja, os movimentos negros e indígenaspressionam intermitentemente por justiça e igualdade; até agora, porém, o sistema depoder branco tem conseguido resistir a essa pressão. Por tal motivo, acredito que seriaútil a construção de uma aliança profunda entre o Movimento Negro e o MovimentoIndígena e foi essa crença que motivou as reflexões que aqui ofereço. Enfim,o desafio éproduzir uma resposta ao cinismo da elite branca que não seja somente o kinismo deuma atitude burlesca frente ao estado, mas uma pressão concreta por cidadania e açõesafirmativas que possibilitem justiça social para todos, respeitando a auto-determinaçãode cada grupo étnico ou racial, em todas as esferas da vida.

II. Pós-Durban: A conjuntura dos negros e índios

Espera-se que a agenda de Durban seja concretizada no contexto das relaçõessociais específicas de cada país que a assinou. Desse modo, sua implementação noBrasil dependerá de uma negociação interna diferente daquele vigente no Uruguai, porexemplo. Eis porque parece-me relevante elaborar um modelo conceitual decompreensão do universo de relações raciais no Brasil na primeira década do séculoXXI para melhor formular as estratégias de cobrança de implementação do Plano deAção da III Conferência Mundial contra o Racismo.

O Plano de Ação de Durban poderá encontrar dificuldade de implementação noBrasil também porque foi formulado de modo direto, consistente e auto-evidente (comocorresponde a um acordo escrito e formalizado após uma longa negociação diplomáticade escala mundial), modo discursivo que não consegue impactar ou coibir moralmente arazão cínica do nosso racismo, o qual é apresentado por ela em termos paradoxalmenteintegradores. O discurso de Durban traz a transparência da posição dos que seapresentaram publicamente demandando justiça racial, atitude de franqueza que érebatida imediatamente pela ambiguidade da posição branca que não se reconhece comotal, porém que também não ousa afirmar o seu oposto. Acuada pelas evidências externasde racismo, ela produz um discurso que transfere o problema inteiramente para osnegros, visando incapacitá-los de formular um quadro de vitimizador e vitimizado, semo qual qualquer idéia de reparação ou discriminação positiva (cerne mesmo do esforçopolítico de Durban) perde o sentido.

Essa correlação atual de forças foi gerada nos primórdios da República econsolidada na era Vargas, sobretudo pelas obras de Gilberto Freyre. Algumas poucasfraturas nesse modelo foram esboçadas nos anos sessenta, porém a velha ordem racistafoi recomposta pela elite após a ditadura militar (e de novo a atuação de Freyre foidefinitiva ao denunciar o discurso anti-racista de intelectuais negros e brancos como sefosse comunista e anti-patriota) e praticamente não foi mais desafiada pela frágil ordemdemocrática em que vivemos desde a Nova República até o ano 2001, quando surgiu apressão internacional causada pela Conferência de Durban.

Acredito que o governo federal ainda não está nem nunca esteve, no passado,convencido da necessidade de incorporar os negros e os índios nas esferas decisórias enos espaços de riqueza da nação. O Brasil foi obrigado a apresentar uma proposta deações afirmativas na Conferência de Durban, principalmente como resposta, não

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somente às demandas do Movimento Negro, como também a pressões da comunidadeinternacional. Mesmo após Durban; mesmo após a ampla divulgação dos dadosestarrecedores de desigualdade racial sistematizados pelo IPEA; e mesmo após ointenso trabalho feito pelas lideranças negras durante o período de transição de governo,de outubro a dezembro de 2002; ainda assim, o presidente Lula tomou posse em janeirode 2003 “esquecendo-se” de instalar a Secretaria Especial para Políticas de Promoçãoda Igualdade Racial (SEPPIR), que somente passou a existir em março daquele ano,com meia dúzia de pessoas e sem nenhum orçamento para todo o ano. Isso indicaclaramente a não absorção da urgência do combate ao racismo, que havia sido amensagem consolidada na Conferência de Durban e feita promessa de campanha doatual Presidente.

Com a provisoriedade que caracteriza toda análise de conjuntura, avalio que oquadro governamental ainda se apresenta branco como sempre. Benedita da Silva, queassumiu seu ministério concentrando as intervenções na área social do governo Lula, foiexonerada em janeiro de 2004 do seu cargo de ministra. Gilberto Gil iniciou sua gestãoafirmando ser um “negro mestiço” (uma forma clara de despolitizar sua condição deministro negro) e chegou a posicionar-se veementemente contra as cotas para negrosnas universidades no discurso de instalação do Presidente da Fundação CulturalPalmares, em março de 2003, esgrimindo o velho argumento de que o Brasíl é diferente(leia-se: dos Estados Unidos), porque aqui não há ódio nem polaridade racial.2 Nomomento em que escrevo, saiu de licença por dois meses para dar shows de músicapopular no Sudeste Asiático, sem ter expressado publicamente nenhum apoio à luta daSEPPIR junto ao MEC para preparar uma medida geral de ações afirmativas para asuniversidades. Tampouco se manifestou quando o Presidente Lula se recusou a assinar areferida Medida Provisória das Ações Afirmativas em janeiro de 2003. E mesmo nomomento atual, dois meses após a reforma ministerial, o Ministro da Cultura continuaindiferente à polêmica causada pela proposta de “compra de vagas” para negros, índios,ex-presidiários e incapacitados físicos nas universidades privadas, como se não lhedissesse respeito.

É comum entre ativistas e líderes negros incluir a Ministra Marina Silva comouma entre os quatro ministros negros do governo Lula. Não fica claro se a Ministra seassume como negra e ela tem concentrado suas forças (com grande dificuldade e muitosreveses) em defender uma política de preservação do meio ambiente contra os ataquesda ala neo-liberal e agroexportadora do governo atual. Tal como o vejo, portanto, ogoverno conta com apenas um(a) único(a) ministro(a) negro(a), definindo o termo comuma identidade política: Matilde Ribeiro, titular da SEPPIR. Uma negra entre mais detrinta ministros brancos está longe de significar uma mudança dramática no quadro dedesigualdade racial crônico da nossa elite política. Por outro lado, a mera existência daSEPPIR é um dos atos mais ousados e revolucionários de toda a história do BrasilRepública e o atual governo deve ser celebrado por isso. Resta saber que apoio concretoreceberá a SEPPIR e que políticas terá condições de implementar.

A relação do governo com os grupos minoritários assumiu um perfil singular esem precedentes na nossa história republicana. No caso específico do MovimentoNegro, que fez crescer sua agenda de reivindicações e sua capacidade de mobilização aolongo das décadas de 80 e 90, desde 2003 muitas das suas principais lideranças fazemagora parte do governo. Essa chegada ao poder foi algo planejado pelas liderançasnegras, que se concentraram em participar das lutas sindicais e em afiliar-se aos partidos 2Ver Gil (2003).

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de esquerda, sobretudo ao Partido dos Trabalhadores. Então, pela primeira vez nahistória do país, em um certo grau, uma parcela dos negros está no poder: as suaslideranças políticas.

Essa posição governista permite aos negros o acesso a certas esferas de decisãoaté então inacessíveis. Ao mesmo tempo, esse mesmo acesso consciente e procuradoatrela os passos do Movimento Negro, ainda que parcialmente, às decisões de governo –gerais, estratégicas, ou prioritárias. Isso condiciona, de vários modos, a concretizaçãodos projetos inscritos na agenda negra. É altamente significativo, por exemplo, a totalausência de manifestações e protestos, por parte do Movimento Negro, diante da recusado Presidente Lula, sem haver dado qualquer justificativa à sociedade, em assinar aMedida Provisória sobre as ações afirmativas em janeiro de 2004. Se pensamos que talMedida Provisória havia sido proposta por um Grupo de Trabalho Interministerial apósquase seis meses de esforço contínuo, podemos interpretar esse silêncio do MovimentoNegro pelo menos como uma perplexidade diante de uma conjuntura política queenvolve as lideranças negras em uma condição ambivalente, nem mais representantes dasociedade civil, nem inteiramente integradas à estrutura de poder do governo Lula. Paraavaliar em que medida essa ambivalência afeta a auto-imagem da população negra,sugiro duas linhas de reflexão: uma análise sistêmica da psicopatologia do racismobrasileiro em sua fase atual e uma comparação com as estratégias de resistência eenfrentamento com o estado brasileiro utilizadas pelas nações indígenas.

O Movimento Negro tem agora a tarefa de transferir a luta reivindicatória dosnegros nas ruas para dentro do governo. E toda a estratégia e toda a cultura institucionaldo estado brasileiro é eurocêntrica. Participar do estado significa (pelo menos nomomento atual) exercer essa perspectiva eurocêntrica e, evidentemente, branca. Assim,esta é a primeira prova da capacidade das lideranças negras de resistirem à assimilaçãoao eurocentrismo, ou paralelamente, ao branqueamento mental-institucional. Até nocampo da gestão e da administração, todo o modelo de relações interpessoais e deavaliação de desempenho está montado a partir de padrões práticos de sociologia epsicologia ocidentais, marcadamente norte-americanos. A pressão passa a ser maiorpara o negro, portanto, porque, para desempenhar-se “bem” na esfera de governo, eledeve renunciar a certos aspectos e estilos de conduta e de comunicação aprendidos nasua interação, senão exclusiva, pelo menos concentrada, com membros da comunidadenegra.

Uma questão central, e mais geral, portanto, a ser pensada com cuidado na lutapor implementar o programa de Durban, é a conversão das minorias étnico-raciais a umtipo de estado eurocêntrico e monológico. Eurocêntrico por sua própria origem coloniale imperial sem revisão alguma da simbologia européia do poder e dos aparelhosideológicos do estado; e monológico porque não há nenhum sinal do governo, até opresente momento, de um real interesse por implementar uma agenda multiculturalistano Brasil. Em outras palavras, a palavra diversidade é até agora uma palavra vazia naboca de nossos governantes.

Esse desafio de participar do governo, em um momento em que não existemmanifestações explícitas do Movimento Negro na base cobrando mudanças nas relaçõesraciais no país, traz consigo uma dimensão de alto risco, qual seja, o da cooptaçãoestatal das lideranças negras um pouco ao estilo do que sucedeu nos Estados Unidos.Em uma perspectiva otimista, há agora uma dimensão de oportunidade histórica, debrecha emancipadora para combater o racismo estrutural da sociedade e valorizar acultura africana preservada no país, afirmando, a partir dela, uma diferença civilizatória

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ou simbólica com um vigor que até agora os negros não tiveram oportunidade demanifestar.

Do lado dos índios, a situação não é nem um pouco mais promissora. Defevereiro a outubro de 2003, morreram assassinados 28 indígenas brasileiros, váriosdeles lideranças políticas das nações. Nenhum dos assassinos (todos eles agindo amando das elites econômicas locais invasoras de terras e ligadas às oligarquias políticasregionais) foi sequer processado. Registramos assim um genocídio recorde da históriacontemporânea brasileira das relações das nações indígenas com o estado, em um climade punição zero. Todos aqueles que vociferavam nos dias da ditadura diante dos maustratos sofridos pelos índios calaram-se ano passado, quando ocorreu o que nunca haviaocorrido durante o período militar. O Brasil pós-Durban de Lula, portanto, retrocedeuem relação a todo os governos pós-ditadura militar no trato com os índios.

É ainda mais frustrante ter que relatar a pressão dos produtores de soja do MatoGrosso (incluindo o seu próprio governador) para retirar o estado da Amazônia Legal, oque deixaria mais livres os donos dos agro-negócios para predar mais florestas e delasexpulsar um número maior de nações indígenas e remanescentes de quilombos de seusterritórios.

O Brasil de 2004, visto da perspectiva internacional da luta por assegurar a auto-gestão e o apoio à autonomia dos grupos étnicos diferentes da etnia hegemônica (nocaso brasileiro, os brancos ocidentalizados), caminha na contramão do que o paísfirmou em 2001 na África do Sul.

A discussão de Durban teve como uma de suas novidades que, talvez pelaprimeira vez em décadas de uma intensa propaganda da luta vitoriosa dos negros norte-americanos oferecida como modelo para os países como o Brasil, justamente adelegação dos Estados Unidos não conseguiu se impor e nem pautou construtivamenteas reivindicações mais revolucionárias e politizadas da Conferência. Muito pelocontrário, o próprio modo como os Estados Unidos se retiraram da Conferênciaevidencia, para os que se interessam em ler esses eventos criticamente, o grau decooptação e de rendição dos negros desse país à lógica de dominação e intolerância dogrupo étnico branco norte-americano contra todos os povos do mundo. Foi CondoleezaRice, negra e assessora direta do Presidente dos Estados Unidos para assuntosinternacionais, beneficiada pessoalmente pela política de ações afirmativas do seu paíspara o ensino superior nos anos setenta, que conduziu a retirada abrupta e arrogante dadelegação norte-americana da Conferência, rejeitando justamente a discussão do temada reparação aos povos e países que foram vítimas da escravidão, que entre os quais seincluíam seus próprios ancestrais.

O exemplo norte-americano de políticas de ação afirmativa é claramente umaestratégia de cooptação, neutralização e finalmente de apagamento dos modelosalternativos de estado que as comunidades negras da Diáspora pós-escravista possamtentar formular. Acredito que essa cooptação foi mais fácil e totalizante porque oconflito racial foi confinado ideologicamente em uma briga entre brancos e negros,deixando de fora as outras populações marginalizadas e oprimidas. A própria decisãodos negros norte-americanos por absolutizar sua luta e exigir uma reparação isoladapelos horrores da exploração escravista abriu as portas para uma solução conservadora,que não se propôs a refazer o pacto social como um todo – nem mesmo no interior daordem capitalista; muito menos, então, de questionar as bases imperialistas da sociedadea que pertencem e a cujos interesses de dominação mundial aceitaram então aderir comocidadãos e soldados inteiramente integrados, tanto ao estado, como às corporações e àmáquina de guerra dos Estados Unidos.

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Assim, apesar da importância da saga dos negros norte-americanos, eles nãoconseguiram estabelecer uma aliança com os índios e concentraram suas energias emalcançar as mesmas posições dos brancos. Pelo que sei, também os índios não seaproximaram dos negros escravos. A chave discursiva da saga indígena não incorpora aescravidão negra, assim como a saga dos negros não faz menção ao massacre dosíndios. Essa cisão pode ser observada nas obras importantes que narram essas duassagas. Os livros de John Hope Franklin e Martin Luther King e a Autobiografia deMalcolm X, por exemplo, que historiam toda a luta dos negros por igualdade dedireitos, não se referem à luta dos índios.3 Paralelamente, as obras lapidares daconsciência indígena atual, como Trail of Tears de Gloria Jahoda e Enterrem meuCoração na Curva do Rio, de Dee Brown, traçam a geografia do genocídio dos índiossem mencionar a geografia, justaposta à sua, do massacre dos negros.4 Na verdade, asminorias étnicas e raciais nos Estados Unidos – negros, índios, hispânicos, asiáticos –jamais fizeram uma frente comum, solidária e politizada, daí o tom politicamenteconservador que assumiu a ação afirmativa nese país. Enquanto não houver essa união,as ações afirmativas continuarão ocorrendo dentro de um clima racista: os brancoslidam separadamente com as demandas de cada minoria. Com essa focalização ecircunscrição, não se chega perto do espírito de Durban. O caso norte-americano reforçanossa idéia de que uma aliança negro-indígena coloca um grau de politização na lutaanti-racista brasileira que pode evitar, ou pelo menos dificultar a cooptação, tanto dosnegros como dos índios, por parte dos brancos no poder, quando negociamseparadamente com cada um dos dois grupos minoritários. Essa cooptação foi a marcada política norte-americana para as minorias desde os anos setenta do século vinte. Daía necessidade de reflexão e análise para evitar que se repita no Brasil no início doséculo vinte e um.

III. O racismo brasileiro como um sistema de duplo vínculo

Uma das características dessa ordem dominante branca no Brasil (cujaespecificidade em nada altera a intensidade do nosso racismo) é que ela tem forçado osnegros a entrarem cindidos no discurso social, submetendo-os a um duplo vínculo(tomado aqui no sentido proposto por Gregory Bateson) mais paralisante, em termos deresguardar uma alteridade individual e coletiva, que a célebre condição de duplaconsciência (com a qual é muitas vezes confundida), tal como a definiu W. E. Du Bois,no início do século XX, para caracterizar a experiência de discriminação sofrida pelosnegros norte-americanos.

Du Bois assinalava uma superposição de identidades, sendo porém cada umadelas inequivocamente colocada e reconhecida. Eis a sua frase famosa: “É umasensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar comos olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua amirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre sentir a duplicidade - americano eNegro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que secombatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que sedestroce” (Du Bois 1999:54).

3Ver John Hope Franklin (1998), Martin Luther King (1990) e Alex Haley (sd).

4Ver Gloria Jahoda (1975) e Dee Brown (2004).

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É possível pensar, inclusive, que essa consciência dupla formulada por Du Boisestá mais claramente presente na experiência de certos índios brasileiros do que na dosnegros. Muitas das atuais lideranças indígenas, que foram criadas entre os brancos(geralmente missionários) e depois de adultos recobraram seus vínculos com seusparentes ou suas nações de origem, experimentaram exatamente essa condição de duplaconsciência, de ser índio e ao mesmo tempo “brasileiro” (porque.assim se vêm e assimsão vistos).

A frase de Du Bois, ainda que dramática, confirma a existência de um olhar defora (do branco) que constrói o negro enquanto negro. Ele reclama da “sensação de estarsempre a se olhar com os olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de ummundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo” (p.54). O olhar do branco sobreo negro de que fala Du Bois é um olhar negativo, porém um olhar que o identifica comonegro. A luta do negro norte-americano baseou-se, naquele contexto, em desfazer essaimagem negativa que ele mesmo havia introjetado para em seguida construir umaimagem positiva de si mesmo. Primeiro para seu próprio benefício, isto é, para sua auto-afirmação de ser humano com dignidade e merecedor de respeito; logo, para enfrentar obranco e forçá-lo a mudar a imagem que construiu do negro. E é no bojo desseconfronto com o branco que a demanda por reparações (incluindo ações afirmativas) foicolocada. Houve aqui sofrimento, humilhação e neurose; porém, a patologia do duplovínculo não foi estruturante da relação com o branco, porque a mensagem do branco,apesar de unilateral, foi basicamente unívoca e consistente: o negro é um inferior,porém é também uma alteridade – e como tal, sua referência é a identidade do brancoque foi auto-afirmada de um modo inequívico. E foi fincando o pé nessa condição dealteridade – isto é, de não-branco – que a luta anti-racista se estruturou com a finalidadede reverter esse discurso unilateral.

W. E. Du Bois escreveu sobre um mundo em que os brancos se apresentam naarena do confronto. A arena de Durban é um espaço político exatamente desse tipo.Quando os negros brasileiros regressaram esperançosos de Durban, reencontraram ummundo em que o branco se recusa a mostrar-se na arena do confronto. Há uma forteideologia assimilacionista no Brasil, que faz com que a discriminação não entre jamaisno discurso histórico da nação. Isso dificulta até a reivindicação, porque o únicoargumento “irrefutável” de que se pode lançar mão é o censo do IBGE e as correlaçõesdo IPEA, amplamente difundidos desde 2001. Não existe um discurso brancolegitimador da discriminação disponível na arena pública que os negros possam invocarpara pressionar a agenda de Durban. O discurso legitimador do racismo mais próximode se converter em um discurso público são as piadas sobre negros, que circulamsocialmente muitas vezes em espaços públicos, porém sob o álibi do anonimato. Alémdisso, não é possível processar alguém por piadas.

Analisemos essa estrutura de duplo vínculo que constitui as relações no Brasilapós a abolição da escravatura. Há, de saída, a injunção primária negativa, afirmada naposição do branco que recusa identificar-se com o negro porque ele é pré-definido comoum ser inferior. Aqui as causas invocadas para a inferioridade do negro podem servárias, e do ponto de vista sistêmico pouco importa se o branco inferioriza o negrolançando mão de teorias biologizantes da hierarquia racial ou de outros estereótipos deinferiorização, tais como ignorância, feiúra, pobreza, linguagem, etc.

Frente a essa injunção primária ativada, somente resta ao negro contentar-se compermanecer nas posições mais inferiores da pirâmide social, pois são os lugares maishumildes que corroboram a desigualdade fundante do discurso branco que querconstruir o negro de modo aberto segundo essa hierarquia.

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Assim, porém, que o negro resolve afirmar-se em sua condição de negro(condição prescrita justamente pela injunção primária do discurso branco), o branco nãoaceita essa afirmação, lançando mão de uma injunção secundária em conflito com aprimeira: não, não há diferença entre um negro e um branco, você é igual a mim, logonão tem o direito de marcar essa diferença irredutível. Esse duplo vínculo específicoaprisiona o negro brasileiro em uma relação que mina a sua auto-estima porque não lhepermite responder a uma mensagem que simultaneamente nega e afirma a sua condiçãode alteridade (ou de identidade) frente ao branco. Completa-se aqui o sentido do duplovínculo tal como formulado por Bateson: se permanecer vinculado a essa estruturadesigual de comunicação, sairá perdendo sempre, independente da posição que escolhaassumir.

Uma das expressões literárias mais dramáticas e intensas do efeito negativo doduplo vínculo na psique do negro brasileiro está contida no extraordinário textointitulado O Emparedado, do poeta catarinense Cruz e Sousa: seu esforço de ilustraçãoé afirmado e negado simultaneamente, pois é a própria condição de ilustração européiaadquirida na escola dos brancos que lhe empurra a afirmar que pertence a uma condiçãoinexoravelmente não ilustrada: a condição de africano.5 Não nos deve causar surpresa ofato de que praticamente nenhum dos autores brancos que escreveram sobre escravidãoe relações raciais tenha oferecido, até hoje, alguma consideração sobre os efeitos desseduplo vínculo na consciência do negro brasileiro. Igualmente se recusaram a consideraras consequência dessa relação patológica também para a coletividade dos brancos. Naverdade, foram autores negros que produziram ensaios notáveis sobre o problema dobranco brasileiro: Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento e mais recentemente, MariaAparecida Bento.6

Se o negro é pressionado para entrar paralisado no discurso hegemônico dobranco, também o branco brasileiro sofre as conseqüências negativas de sustentar essaambivalência em relação ao negro. Uma conseqüência visível é sua incapacidade deincluir o outro. E essa rejeição conduz a uma mentalidade de sítio, que no Brasil temsido menos explícita que em países como África do Sul, Zimbabwe e Estados Unidos,porém não menos intensa. Afinal, somente essa sensação de sitiado pode produzir tantaviolência racial “preventiva”, por assim dizer. Junto com a prepotência “cordial” dosbrancos brasileiros, manifesta-se uma violência racial brutal. E essa violência, de umgrau de destrutividade tão ou mais alto do que o praticado nos países diabolizados comoemblemáticos do racismo (os Estados Unidos pré-movimentos pelos direitos civis e aÁfrica do Sul durante o regime de apartheid) é também praticada sob a égide de umoutro duplo vínculo, potencializando assim a pressão esquizofrenizante dos negros noBrasil: as vítimas de assassinato são majoritariamente negras; o discurso brancoprimeiro traz a injunção do crime contra os negros; logo em seguida rejeita que o crimecometido contra os negros seja um crime racial. Ao fazê-lo, o branco empilha ainda umterceiro duplo vínculo ostensivo: nega a chegada do negro ao discurso, encurralando-o eestimulando-o a que apele para a última condição restante de expressão, qual seja, aviolência; e logo em seguida ameaça-o com o uso da força (ou seja, anuncia que estádisposto a duplicar os crimes contra os negros “rebeldes”) caso o negro se torneviolento.

5Ver Cruz e Sousa (1961).

6Ver Guerreiro Ramos (1995), Abdias do Nascimento (1961) e Maria Aparecida Silva Bento (2002).

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O negro “violento” que se insubordinar contra esse racismo amordaçadorbrasileiro, passa a ser então a profecia branca que se auto-cumpre: não há como acolherum ser que não dialoga, um incivilizado que não conhece limites; no limite, umterrorista.

Essa dimensão de encurralamento do duplo vínculo que joga o negro contra aparede do silêncio da qual somente pode sair lançando mão de uma violência quejustificará a intensificação da violência dos brancos contra si é praticamente equivalenteao que diz Slavoj Zizek sobre o ato terrorista, quando tenta entendê-lo como ato contra-hegemônico, à luz da teoria lacaniana da violência simbólica. Talvez uma boa definiçãodo racismo brasileiro seja: trata-se de um ato terrorista dos brancos contra os negros aoqual os negros não podem reagir sob pena de serem tachados, eles, negros, de terroristase como tais serem punidos violentamente pela lei construída pelos e para os brancos.

Zizek dirige sua argumentação para ressaltar que a hegemonia do campo ditodemocrático legitima uma violência simbólica que os grupos subalternos não maispercebem como violenta. “Hegemonia significa, portanto, usurpar a violência cujocaráter violento é superado. É neste quadro que devemos abordar o problema dos assimchamados “atos terroristas”, da tentativa desesperada de se desvincular do duplo-vínculo do discurso hegemônico em que a mais alta violência posa com consentimento ediálogo não-violentos – o verdadeiro alvo das atuações (acting-outs) terroristas é aviolência implícita que sustenta o próprio quadro de referência tido como neutro, nãoviolento” (Zizek 1994:204).

Deste modo, o branco justifica plenamente a sua condição hegemônica e tornaimpune o crime inicial contra os negros, porque o despolitiza, jogando-o na vala comumda “ violência social” de raízes econômicas ou de classe, cuja solução é postergada sinedie e que não dependerá de nenhum rearranjo das relações raciais no país, simplesmenteporque não surgiu de nenhum desarranjo das mesmas. O discurso branco hegemônicoavança, então, impondo mais silêncio e colocando ainda mais pressão destrutiva sobre acomunidade negra. A contrapartida negativa dessa atitude na psique dos brancos éesgarçar ainda mais a armadura hipócrita de sua proposta “civilizatória”, que é cada vezmenos pacificadora.

Não é de surpreender, nessa conjuntura, que uma entrada no discurso pararesistir assuma a forma de denúncia em chave poética e performática, como é o caso dodiscurso do hip hop. Daí a pressão e a demonização constante do hip hop, estigmatizadoporque representa uma das poucas tentativas políticas não institucionais de formularuma resolução positiva do duplo vínculo negro no Brasil.

Há um outro lugar, porém, em que o branco hegemônico aceita colocar o negro,percorrendo agora o outro pólo da linha esquizóide que vai da ameaça ao estímulo:instando o negro a que sorria, que performe alegremente sua dança e sua música. Em talcaso, a alteridade negra é então aceita e até celebrada, pois aqui será o branco queconstruirá o cerco em que o negro estará, paradoxalmente, alegre e sitiado: o negroperforma; o palco, porém, da arena pública, pertence ao branco. O aparente “kinismo”do negro que aposta ostensivamente no corpo e no prazer é apenas mais uma manobrade controle ideológico perpetrada pelo cinismo branco.

Poderíamos acrescentar aqui a ambivalência esquizofrenizante da auto-declaração do Ministro Gilberto Gil como um “negromestiço”, acima mencionada. Aoemitir essa definição contraditória, coloca os milhões de negros brasileiros que oadmiram também em uma injunção psíquica de duplo-vínculo. Por um lado, admiram-no enquanto um negro, grande artista, modelo de sucesso e auto-estima raríssimo entreos membros de sua comunidade. Por outro lado, o mesmo Gilberto Gil avisa que que

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não é negro e nega a oferta de identificação que ele mesmo emitiu para seus irmãosnegros ao se declarar mestiço, isto é: sem nenhuma identidade racial confrontadora,alguém famoso que não incomoda, atitude bem ao gosto dos brancos racistas. Aideologia freyreana dos “antagonismos equilibrados” e da democracia racial é aqui maisuma vez usada na contra-mão de um momento político de afirmação da comunidadenegra brasileira extremamente importante como o atual, e justamente por um músico(negro?) brasileiro mundialmente famoso.

Tal como o vejo, cobrar a implementação de Durban é encontrar um caminhoenviesado e surpreendente de entrada no discurso hegemônico no Brasil. É muitoprovável que a fina ironia e o humor ferino de Luiz Gama tenham sido tão eficazesporque ele se moveu em um sistema de comunicação menos hipócrita, mais preso a umaliteralidade das posições em confronto que lhe permitiu maior margem de manobra. Jáos negros brasileiros da era de Durban encontram-se com a árdua tarefa de atravessar afria parede de setenta anos de duplo vínculo freyreano, atualizado por três gerações deideólogos brancos até os dias de hoje. O grau de esquizofrenia nas nossas relaçõesraciais é, portanto, penso eu, o mais agudo de toda a nossa história: nunca foi tão fácilcomprovar a existência da violência racial, devido aos dados objetivos acumulados edivulgados; e nunca foi tão intenso o duplo vínculo lançado para os negros, na tentativade impedir que solicitem finalmente dos brancos um reconhecimento público e ativo doracismo por nós praticado.

O sítio político em que os brancos se vêm imersos tem seu contraponto noestado de sítio discursivo em que estão os negros confinados: nunca houve tanto paraanunciar e nunca foi tão difícil impactar a realidade com a denúncia – visto que arealidade é constituída pela denúncia. E é justamente a consolidação discursiva dadenúncia o que tem sido especialmente difícil. E aqui devemos introduzir a importânciada discussão sobre as cotas para negros nas universidade. Essa campanha expressa umademanda por cidadania que surgiu e que corre independente da tentativa de controle porparte das Ciências Sociais enquanto reprodutora da ideologia da elite branca brasileira,que deixa agora de ser a principal emissora do discurso sobre as relações raciais noBrasil e passa a ser interpelada de fora (mesmo que uma parte dos brancos apóie areivindicação da comunidade negra). Por tal motivo, a reivindicação de cotas coloca,penso que pela primeira vez, uma pressão de duplo vínculo sobre a elite brancabrasileira: se ela for contra as cotas, confirmará as denúncias de racismo ora em curso; ese for a favor, também as confirmará. Esta é a razão pela qual considero especialmenteestratégica a luta pelas cotas no Brasil, que tanta polêmica tem gerado e que éjustamente um dos pontos centrais das recomendações de Durban.

IV. A Reivindicação Indígena

Uma grande parte da mitologia viva atual e dinâmica dos índios já incorpora ahistória (sempre traumática) dos quinhentos anos de contato com os brancos. Sua pautade reivindicações parte sempre da alteridade e impõe a diferença como horizonte denegociação. Primeiramente, reconhece como irreversíveis os vínculos resultantes dosquinhentos anos de massacre e visa construir um horizonte realista de projetos de futurosem fugir para uma fantasia de reconstituição de uma realidade paradisíaca pré-cabralina. Igualmente descarta a ilusão de alcançar uma integração tranqüila com osbrancos, baseada em alguma comunhão de interesses. De fato, apesar da enormevariedade de situações vividas pelas centenas de nações indígenas brasileiras, nenhumadelas propõe a assimilação ao mundo branco como horizonte de reivindicação ou como

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possibilidade de resultado das negociações. A preservação de uma autonomia para gerire até mesmo intensificar a diferença é o denominador comum entre as pautasapresentadas pelos principais movimentos indígenas aos brancos: a COIAB, a FOIRN, aAPOINME, a COPIAM, a APIR, a ATIX, entre várias outras associações, enfatizam anecessidade de manter uma distância e uma autonomia estratégica de seus projetos.7

Guardadas as devidas proporções entre os dois contingentes de dimensõesdemográficas tão dessemelhantes, acredito que a consciência e a informação específicasobre essa pauta chega a ser mais difundida e presente entre os índios que entre osnegros. Ou seja, mesmo havendo entre os índios um grande déficit de recursos e depoder de influência na sociedade branca, isso não acarretou necessariamente um déficitde consciência ou de auto-imagem enquanto alteridade originária da nação. Os índios sevêm com direito de reivindicar e cobrar o que lhes foi retirado pelo estado branco pormeio de atos imorais e violentos ao longo de cinco séculos. Uma questão, portanto, a sercolocada para reflexão por parte dos ativistas e pesquisadores da área é avaliar qual oimpacto das injustiças e dos genocídios na auto-estima das populações indígenas. Aprópria tenacidade e a resistência incessante, apesar de tantos massacres e traições deacordos, leva-nos a postular que a reserva simbólica própria dos patrimônios culturaisespecíficos das sociedades indígenas ainda assegura a cada um, individualmente,enquanto membro de uma nação ideologicamente autônoma, um mínimo de auto-estima.

O recurso simbólico principal dos índios para a preservação de uma auto-imagem positiva em sua diferença consiste em ativar narrativas míticas que possibilitemaos grupos desconstruir as imagens negativas que deles fizeram os brancos para logoreconstruir-se de um modo favorável e em geral superior aos próprios brancos. É assimque Davi Kopenawa pode contar que, para o seu povo Yanomami, os brancos foramcriados na floresta dos índios, porém o criador os expulsou de lá por sua absoluta faltade sabedoria; e essa ignorância branca pode ser perigosa para todos os indígenas.8Igualmente, Ailton Krenak resume a percepção que têm do branco diversos gruposindígenas da América do Sul, como os Tikuna e os Guaranis, ao retratá-los como umirmão que se afastou há muito tempo atrás e com isso perdeu a chance de evoluir em suahumanidade como o fizeram os indígenas. Daí a frase lapidar de Ailton sobre o homembranco: “Ele é um sujeito que aprendeu muita coisa longe de casa, esqueceu muitasvezes de onde ele é, e tem dificuldade de saber para onde está indo”.9 Não é fácilencontrar, entre as lideranças negras atuais (só posso pensar no Quilombismo de Abdiasdo Nascimento e o estudo da patologia social do branco brasileiro de Guerreiro Ramos),uma avaliação tão demolidora e um questionamento tão explícito e pertinente dacondição e dos valores dos brancos quanto essas de Davi Yanomami e Ailton Krenak, aque se somam declarações análogas de Álvaro Tukano, Marcos Terena, KujameKuikuro e tantos outros. 7Existem atualmente dezenas de associações indígenas em todas as regiões do país. COIAB:Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira; FOIRN: Federação das OrganizaçõesIndígenas do Rio Negro; APOINME: Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste,Minas Gerais e Espírito Santo; COPIAM: Confederação dos Professores Indígenas da Amazônia; APIR:Associação dos Povos Indígenas do Roraima; ATIX: Associação Terra Indígena Xingu. Sobre omovimento indígena brasileiro e sua posição quando comparado com os movimentos indígenas daAustrália e do Canadá, ver Baines (2003).

8Ver Davi Kopenawa (2000:21).

9Ver Ailton Krenak (2000:47).

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Já no caso dos negros, a parte mais forte da sua simbólica de alteridade (como ocandomblé, o xangô, o batuque, o congado, etc.) não toca nem absorve a longa históriade lutas e resistência contra os brancos durante os séculos de escravidão. Conformeargumentei em outro ensaio sobre a memória histórica no xangô do Recife, os episódiosda escravidão são excluídos dos relatos históricos, provavelmente porque não haveriacomo justificar porque os orixás, com todos os seus poderes extraordinários, não foramcapazes de impedir os horrores da escravidão.10

Obviamente, isso não quer dizer que outras metáforas de resistência não tenhamsido ativadas pelas comunidades afro-brasileiras a partir de seus discursos culturaistradicionais (o que Rita Segato chama de códice afro-brasileiro, exemplificado peloxangô, o candomblé, o congado, o maracatu, etc).11 A questão é que as metáforas derecorte mítico, acionadas pelos negros em um espaço urbano e integrado à ordempolítica e econômica dominantes, tornam-se mais distantes do tipo explícito, reflexivo eracionalizado de discurso requerido para formular uma reparação em termos legais, aser demandada de um estado ocidental moderno.

Quando se chega a esse ponto crítico do conflito político, fica difícil para amaioria dos negros, crescidos e formados em um universo de instituiçõesocidentalizadas altamente secularizadas, invocar a memória ancestral africana comoapoio instrumental à persona pública que terão que exercer. A cultura política requeridapelos negros excluiu quase inteiramente a dimensão do mito. Em contrapartida, acultura política dos índios nunca deixou de integrar o mito, a ponto de que até o inimigobranco representante do estado já aprendeu, mal ou bem, a contar com essas diferençasradicais de visão de mundo invocadas por todas as lideranças indígenas. Nesse sentido,a alteridade negra é debilitada em sua reprodução discursiva e isso condiciona a eficácia(relativamente menor) de sua mobilização, que em geral não consegue angariar amesma simpatia da sociedade que os índios conseguem, apesar de todos os preconceitosvigentes. O exemplo maior dessa insensibilidade é justamente a repetição, banalizadacomo o mal de que fala Hannah Arendt, dos casos de discriminação racial que apenassurgem para cair na impunidade perfeitamente previsível.

É comum que os índios interpretem as reivindicações dos negros como propostastotalmente assimilacionistas, a ponto de vários líderes indígenas terem afirmado que osnegros querem branquear-se, isto é, ocupar todos os espaços ocupados hoje pelosbrancos e assumir todas as suas funções. Dito de outro modo, na perspectiva da suaalteridade mais radical, as lideranças indígenas vêm os negros do mesmo modo que osbrancos: os negros estão mais próximos do poder, desejam introduzir-se nas mesmasredes construídas pelos brancos e por eles controladas e, se necessário (pensam osíndios), serão tão opressores com eles quanto o são os brancos. Uma tarefa importante,portanto, neste contexto, é desarmar os índios em relação à desconfiança que alguns têmdos negros em geral. É possível também que ressoe, na memória coletiva de muitasnações, inúmeros episódios dramáticos da história colonial e imperial brasileira, em queos negros, na qualidade de capitães do mato, perseguiram os índios a mando dossenhores brancos. Os negros participaram dos exércitos e da caça aos índios nosepisódios das entradas e bandeiras, por exemplo, que tantas conseqüências traumáticastiveram na consciência histórica de inúmeras nações indígenas do Centro Oeste e daAmazônia 10Ver José Jorge de Carvalho (1988).

11Ver Rita Segato (1999).

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Em inúmeros casos conhecidos, porém, os negros são incluídos nos relatosmíticos como parte da categoria de brancos enquanto não-índios; isto é, como humanospouco desenvolvidos. Por outro lado, vários grupos, como os Waimiri-Atroari, porexemplo, reproduzem os mesmos preconceitos veiculados pelos brancos sobre osnegros, como feios, sujos e inferiores. Enfim, até onde conheço, parece haver poucapercepção de uma alteridade específica negra na consciência de muitos gruposindígenas; ou então, essa percepção é negativa, contaminada pelo discurso brancoracista. Contudo, valeria a pena dialogar mais acerca dos negros com os gruposindígenas que, por sua localização geográfica, tiveram contato mais prolongado com osnegros escravos e quilombolas. De fato, na literatura antropológica recente nosdeparamos com os índios “negros”, evidentemente misturados de longa data, queprovavelmente detêm uma leitura mais rica e própria de seu contato com os negros. Talé o caso de muitos grupos indígenas do Nordeste que foram escravizados junto com osnegros. E na região Norte, grupos como os Tirió e os Wapishana conviveram porséculos com comunidades de quilombolas.

O momento para uma revisão dessas visões cruzadas é oportuno porque está empauta, na atual conjuntura política do país, uma excepcional demanda por cidadania epor ações afirmativas, o que pode levar a que se sentem, na mesma mesa de negociaçãocom os brancos controladores do estado brasileiro, lideranças negras e liderançasindígenas. A questão, portanto, é começar a realizar, no Brasil, mesas de diálogo entrenegros e índios na linha da mesa realizada em Arica, no Chile, em junho de 2001,convocada pela Aliança Estratégica de Afro-Latinoamericanos e Caribenhos e da qualsaiu o Acordo de Arica, no bojo da grande mobilização continental preparatória daConferência Mundial de Durban.

Para que a luta dos negros não seja assimilacionista nem conservadora, seriaimportante que incorporassem a comunidade pequena, mas estruturada, dos índios comoaliados de primeira hora. Reivindicar junto com os índios e pelos índios é delinear maisclaramente o espaço de privilégio, controle e concentração de riqueza ocupado pelosbrancos. A fala conjunta de negros e índios isola e sinaliza mais nitidamente a condiçãobranca, que até agora não tem sido pressionada para apresentar-se, enquanto condiçãoracial, no campo discursivo dos confrontos por justiça e igualdade no Brasil. Umaestratégia dos brancos bastante convincente, tem sido, inclusive, a de acusar os negrosde forçarem uma polaridade racial supostamente inexistente no país. Artigos recentes deantropólogos contrários às cotas para negros nas universidades esgrimem esse tipo deargumento que foi consolidado por Gilberto Freyre nos anos trinta.12 No momento,porém, que surgir um discurso de confronto articulado conscientemente por negros eíndios, a natureza mesma dessa polaridade se transformará e ficará mais difícil para osbrancos negar o seu lugar hegemônico e privilegiado. A universalidade da condição debranco somente se realizará com nitidez no Brasil quando as demais alteridades seapresentarem simultaneamente na arena pública tensionada pelas demandas decidadania. Por tal motivo, considero a tarefa mais importante e urgente, no momentoatual, de demanda por inclusão étnica e racial, articular uma frente comum de negros eíndios.

12Yvonne Maggie e Peter Fry, ambos professores da UFRJ, estão na linha de frente dessa reaçãoacadêmica anti-cotas e sustentam sua reação em uma defesa da tão decantada variedade de cores dapopulação brasileira, argumentando que a taxonomia de brancos e negros presente nas propostas de cotasda UERJ, da UNEB e da UnB é uma criação exclusiva dos “militantes negros e dos seus aliadossociólogos” (ver Fry & Maggie 2003).

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V. O papel da academia na cisão negro-índio e na autonomia da condição debranco

A incomunicabilidade presente entre os negros e índios no Brasil é efeitotambém do discurso das Ciências Sociais com sua considerável parcela de influência nahegemonia branca nacional. Foi a Antropologia que mais produziu, a partir dos anossessenta, um discurso científico que separou dois contingentes não-brancos, como sefossem inteiramente independentes um do outro: os índios e os negros. Roberto Cardosode Oliveira, por exemplo, formulou, nos anos sessenta, a noção de fricção interétnica,por ele concebida como equivalente á noção de luta de classes e destinada a sintetizar anatureza do conflito entre os índios e a “sociedade nacional”.13 Esse modelo analítico,ainda de grande influência na postura disciplinar da Antropologia praticada no Brasil,retirou do cenário a história dos negros em sua relação com a história dos índios.Igualmente, nas suas matrizes disciplinares dos estudos antropológicos no Brasil, não hálugar para uma história específica dos estudos afro-brasileiros, os negros aparecendosempre subsumidos nessa noção de sociedade nacional.14 Pedagogicamente, construiu-se um cenário ideológico em que a sociedade nacional, por um lado, tem um problema –o índio – para resolver, como se a sociedade nacional não tivesse estado sempretensionada de conflito racial e logo, dividida internamente, sua cisão interna motivandotambém, por caminhos extremamente complexos, a cisão com os índios. Um outroefeito negativo desse modelo interpretativo é que, ao foraclusar o negro do cenáriofundante dos dilemas do Brasil enquanto sociedade e da constituição da nossaAntropologia, retira qualquer possibilidade de agência por parte dos negros, negando àcomunidade negra a produção de uma história comum com os brancos e os índios. Emais, como se essa comunidade não tivesse uma historicidade que a conduzisse aomomento atual desses dilemas, também com a capacidade de contribuir para alterar aatual conjuntura da nação, eivada de conflitos dramáticos e violentos entre os trêscontingentes humanos.

Uma década mais tarde, essa divisão foi reforçada pelos influentes ensaios deRoberto da Matta, que também separou o universo indígena do universo negro.Implicitamente, continuou tratando a situação do negro como se fosse uma situaçãourbana\próxima e a situação dos índios como selvática\distante. Por um lado, adiscriminação sofrida pelos índios praticamente não tem lugar no seu modelo. Por outrolado, a leitura que oferece do “dilema brasileiro” no seu famoso “triângulo das trêsraças” toma em conta exclusivamente os autores brancos, silenciando inteiramente aprodução de Clóvis Moura, Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez,entre tantos outros autores negros e dos líderes indígenas que também ofereceramleituras da discriminação racial e étnica no Brasil.

No momento presente, em que a luta pelas cotas para negros e índios mobilizatoda uma revisão da ideologia de democracia racial que impediu o discurso anti-racistano Brasil, impacta a publicidade gerada em volta da reedição, em volumes cuidados eluxuosos, da trilogia reacionária de Gilberto Freyre, certamente para dar nova muniçãoao discurso contrário à explicitação do conflito racial brasileiro. É altamente

13Ver Roberto Cardoso de Oliveira (1962).

14Para uma crítica atualizada desse modelo de disciplina antropológica no Brasil, ver a tese de doutoradode Mônica Pechincha (2003).

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significativo do duplo vínculo da nossa elite branca que o sociólogo e ex-presidente daRepública Fernando Henrique Cardoso, primeiro estadista do país que admitiu aexistência do racismo no Brasil e que impulsionou a preparatória para a Conferência deDurban, se disponha a escrever uma apresentação laudatória de Casa Grande &Senzala, classificando-o ambiguamente de “um livro perene” e afirmando que o seumito da democracia racial é um “quase embuste”.15

Nessa mesma linha de argumentação, Roberto da Matta celebra a noção dehierarquia presente em Sobrados & Mucambos, a qual permite a “conciliação dosconflitos” (evidentemente sem resolvê-los), de modo que “os senhores englobavam maseram também englobados por seus escravos”.16 Afinal, de que serve essa hierarquiasenão para manter a nossa desigualdade extrema, social e racial? E a quem interessacelebrar a hierarquia senão aquele que esteve até agora ditando as regras e usufruindo dadesigualdade reinante? À elite branca, evidentemente.

Não é, portanto, por acaso que seja justamente no contexto pós-Durban, derecrudescimento da luta anti-racista, que a trilogia freyreana é reeditada. E não faltamnotáveis para reenergizar o freyreanismo e abafar o impacto do nosso racismo, nem queseja apenas para acrescentar um “quase” ao embuste monumental da democracia racialbrasileira.

O não questionamento da condição de branco no Brasil aparece nesse modeloacadêmico pela via do recalque e do universalismo colonizado: não houve lugar paraestudos euro-brasileiros explícitos (o que teria implicado na construção de uma teoriapós-colonial própria, movimento negado pela adoção integral de um modelo deAntropologia e Sociologia copiado dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra) e aespecificidade da condição branca no Brasil diluiu-se nos estudos de Antropologia eSociologia Urbana (formulada, na maioria das vezes, sem um recorte racial específico),de Antropologia e Sociologia da Sociedade Nacional, ou dessa evasiva categoria dePensamento Social Brasileiro, centrada majoritariamente no pensamento da nossa elitebranca ou branqueada.

Nos modelos oferecidos pela maioria dos nossos antropólogos, estabelece-seuma separação nítida, como se se tratasse de duas especialidades praticamenteestanques, autônomas e mutuamente excludentes: Etnologia Indígena por um lado eEstudos Afro-Brasileiros por outro. Essa separação dificultou uma visão de conjunto, aomesmo tempo que consagrou o caráter meramente “acadêmico” (quer dizer, que dizrespeito apenas à elite branca, já que 99% dos acadêmicos são brancos) dos estudossobre os negros e sobre os índios brasileiros. Além disso, duas realidades importantesforam excluídas do discurso disciplinar estabelecido: a experiência dos quilombolascomo uma dimensão singular da história dos negros no Brasil; e os índios negros,sobretudo no Nordeste, que trazem um desafio à visão essencializante do índiodifundida nos manuais introdutórios de Antropologia. Se a disciplina antropológicaseccionou os grupos marginados, negando as interseções das suas histórias, com issoajudou a reiterar a atitude política segregadora do branco. A própria história doabolicionismo deve ser criticada porque desvia a atenção para o genocídio que os índiossofriam durante o século dezenove. Seguindo uma postura exatamente inversa e paralelada de Bartolomé de las Casas, que procurou salvar os índios caribenhos da escravidãoadmitindo e recomendando a escravidão negra, os mesmos intelectuais brancos 15Ver Fernando Henrique Cardoso (2004).

16Ver Roberto da Matta (2004).

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brasileiros que vociferavam contra a escravidão negra compactuavam silenciosamentecom o massacre contra os índios, que ocorria na mesma época.

Tão alto é o grau de alienação disciplinar da Antropologia brasileira em relaçãoà história comum entre brancos, negros e índios, que a primeira reunião de mulheresindígenas do Brasil realizada com a finalidade de reividicar ações afirmativasespecíficas foi organizada por Rita Segato, antropóloga não especializada emEtnologia.17

VI. Sugestões para uma Aliança Negro-Indígena

Os concursos de dotação para ação social e política junto a comunidades negrasdevem estimular a reabilitação e a difusão das lutas do povo negro ao longo dos 500anos no Brasil, desde as primeiras rebeliões de escravos e os primeiros quilombos emmeados do século XVI. Analisar as conjunturas específicas é crucial para se pensar umleque maior de alternativas para ações no presente.A grande comunidade negrabrasileira é detentora de uma longa história de lutas que ela mesma desconhece em partee que ainda não pôde incorporar ao seu discurso presente.

O primeiro passo é difundir, socializar e refletir estrategicamente sobre todos osmovimentos de resistência, desobediência e insubordinação que foram liderados pornegros ou aos quais eles se integraram em número significativo de pessoas. Há quecomeçar inclusive por uma atualização política da resistência de Palmares. Na verdade,propor agora uma frente negro-indígena é retomar um dos ideais da república dePalmares onde, como enfatizaram Décio Freitas e Clóvis Moura, as lideranças negrasaquilombadas abriram espaço político para a convivência integrada de índios, mulatos,negros escravos, negros libertos e até brancos pobres, todos escapados do horror doregime das plantações nas Alagoas. 18 Vários movimentos de insurreição do século XIX(Balaiada, Cabanagem, Sabinada) devem ser lidos politicamente como movimentos deresistência e trazidos à consciência no momento presente, de formulação de lutas e deconstrução de hegemonia.

É preciso resgatar, por exemplo, o maior episódio de insurreição popular contrao estado no Brasil, qual seja, a Guerra de Canudos, como uma guerra da populaçãonegra, tal como foi revisto no belo e original ensaio de Maria Beatriz Nascimento.19

Após efetuar uma leitura minuciosa do censo das cidades de onde saíram grande partedos conselheiristas, Beatriz Nascimento demonstrou que o movimento foimaioritariamente de negros, conscientes de sua condição racial, parte deles escravos queseriam deslocados para a região Sudeste, mormente para as plantações do interior deSão Paulo; e parte pardos e pretos livres, que seriam praticamente re-escravizados, umavez que o regime de contratados obrigava-os a um tipo de trabalho análogo ao de umescravo.

Meditar sobre os negros de Canudos é expor a densidade praticamenteestruturante do racismo na sociedade brasileira. Canudos foi destruída também porquese constituiu como um reduto negro, em uma conjuntura racista que não admitia aigualdade racial e diabolizava a diferença negra. Nesse particular, a tensão provocada

17Ver Segato (2003).

18Ver Décio Freitas (1990) e Clóvis Moura (1959).

19Ver Beatriz Nascimento (1987).

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pelos negros conselheiristas ressoa até hoje, ainda que de um modo pouco refletido. Aatualidade de Canudos como uma revolta de negros contra os regimes de escravidão esemi-escravidão é evidenciada neste preciso momento pela horrorosa prática dotrabalho escravo nas fazendas de vários estados brasileiros, generalizada a tal ponto queas investigações sobre os proprietários dessas fazendas conduziram à incriminação dedeputados federais e senadores da República. Dada a ausência de resolução dosconflitos raciais no Brasil - e mesmo a pouca disposição explícita (e não meramenteformal ou institucional) por parte da elite branca para colocar a questão racial como umaagenda de interesse para a sociedade como um todo - qualquer reivindicação mais fortedos negros pode ser recebida pela elite branca como uma reação irracional, tresloucada,de tipo conselheirista. Afinal, não esqueçamos que Os Sertões, de Euclides da Cunha,texto abertamente racista e que diaboliza perversamente a figura integradora e libertáriade Antônio Conselheiro, é celebrado pela nossa elite como a obra mais importante danossa história. Isso significa que a poderosa retórica arianista de Euclides é difundidadiariamente nas escolas brasileiras, inoculando na juventude uma predisposiçãonegativa com relação à rebeldia das “raças inferiores”.

É muito provável que as lideranças indígenas desconheçam a dimensão das lutasnegras contra os brancos. Não seria de estranhar, inclusive, se não soubessem que índiose negros lutaram juntos na defesa de Palmares na Serra da Barriga. Uma dotaçãoespecífica poderia ser concedida para a construção de uma frente de aliança negro-indígena no Brasil. A primeira tarefa a ser desenvolvida por essa frente seria resgatar edifundir as lutas de resistência contra o poder branco em que negros e índioscooperaram sem conflito de interesses. Trata-se de promover uma recuperação damemória que seja útil ao momento presente e compensar momentos anteriores em queessa articulação não pôde ser feita. Minha leitura da história recente do Brasil indica quenos anos oitenta, por exemplo, se negros e índios tivessem se articulado, ambosmovimentos teriam ampliado significativamente o seu poder reivindicatório frente aoestado brasileiro, plasmado sobretudo pela Constituição de 1988.

Outra estratégia importante seria postergar por um tempo a idéia de umMovimento Negro totalizador e abrir várias frentes específicas e simultâneas, em umalinha similar à do Movimento Indígena, que de fato se manifesta no espaço públicoatravés de suas inúmeras associações e federações, situadas em distintas regiões do paíse de ação localizada e articulada nacionalmente. Assim, a comunidade negra, muitomais numerosa, pode começar a pressionar através de seus vários segmentos, cujaspautas de reivindicação são claramente distintas e específicas. O estado brasileiroestaria assim cobrado ao mesmo tempo pelo movimento nacional dos quilombolas;pelos coletivos de estudantes universitários negros; pelos cursinhos pré-vestibularespara negros; pelo coletivo dos pesquisadores e professores universitários negros; pelaassociação nacional dos empreendedores negros; pelo movimento dos evangélicosnegros; pela Pastoral Negra; pelo coletivo dos artistas e modelos negros, etc, etc.

Finalmente, acredito que o momento atual é de tensionar ao máximo a esferapública, denunciando a hipótese de uma acusação racista de um “terrorismo negro eíndígena” no Brasil. O foco é a cobrança por implementação integral do Plano de Açãode Durban: marchas de estudantes e ativistas; intervenções constantes na mídiaimpressa, de rádio e televisiva; processos na justiça civil; ações no Ministério Público;representações no Supremo Tribunal Federal; audiências públicas nas CâmarasLegislativas municipais, estaduais e federal; audiências diretas com Ministros e com oPresidente da República; denúncias do racismo e da discriminação étnica em todos osforos internacionais. Para intensificar tudo isso, há que articular o maior número

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possível de negros, brancos e índios dispostos a lutar pela eliminação definitiva de todasas formas de discriminação étnica e racial no Brasil.

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