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Pôr o leitor directamente cm contacto

com textos marcantes da história da filosofia

— através de traduções feitas

a partir dos respectivos originais,

por tradutores responsáveis,

acompanhadas de introduções

e notas explicativas —

foi o pontode partida

para esta colecção.

O seu âmbito estender-se-á

a todas asépocas e a todos os tipos

e estilos de filosofia,

procurando incluir os textos

mais significativos do pensamento filosóficona suamultiplicidade e riqueza.

Será assim um reflexo da vibratilidade

do espírito filosófico perante o seu tempo,

perante a ciência

e oproblema do homem

e domundo

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Textos FilosóficosDirector da Colecção:

ARTUR MORÀOLicenciado cm Filosofia;

professor da Secção de Lisboa da Faculdade de Filosofiada Universidade Católica Portuguesa

1. Crítica da Razão PráticaImmanuel Kant

2. Investigação sobre o Entendimento Humano

David Hume

3. Crepúsculo dos ídolosFriedrich Nietzsche

4. Discurso de MetafísicaGottfried Wilhelm Leibniz

5. Os Progressos da MetafísicaImmanuel Kant

6. Regras para a Direcção do EspíritoRené Descartes

7. Fundamentação da Metafísica dos Costumes

Immanuel Kant8. A Ideia de Fenomenologia

Edmund Husserl

9. Discurso do MétodoRené Descartes

10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como EscritorSõren Kierkegaard

11. A Filosofia na Idade Trágica dosGregosFriedrich Nietzsche

12. Cario sobre TolerânciaJohn Locke

13. Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura

Immanuel Kant

14. Tratado da Reforma do Entendimento

Bento de Espinosa15. Simbolismo— Seu Significado e Efeito

Alfred North Witehead

16. Ensaio sobre os Dados Imediatos da ConsciênciaHenri Bergson

17. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em EpítomeGeovg Wilhelm Friedrich Hegel

ENSAIO SOBREOSDADOSMEDIATOS

DA CONSCIÊNCIA

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AJULESLACHELIER

Membro do Instituto

Inspector-geral da Instrução Pública

Respeitosa homenagem

f í 3 .

PREFÁCIO

Exprimimo-nos necessariamente por palavras e pensa-mos quase sempre no espaço. Isto é, a linguagem exige qu eestabeleçamos entre as nossas ideias as mesmas dist inçõesnítidas e precisas, a mesma descontinuidade que entre os ob-jectos materiais. Esta assimilação é útil na vida prática e ne-cessária na maioria da s ciências. Mas poder-se-ia perguntarse as dificuldades insuperáveis qu e certos problemas filosófi-cos levantam não advêm por teimarmos em justapor no espa-ço fenómenos que não ocupam espaço, e se, abstraindo das

grosseiras imagens em torno da s quais se polemiza, nã o lhesporíamos termo. Quando um a tradução ilegítima do inexten-so em extenso, da qualidade em quantidade, instalou a con-tradição no próprio seio da questão levantada, será de espan-tar que a contradição se encontre nas soluções dadas?

De entre os problemas escolhemos aquele que é comum àmetafísica e à psicologia, o problema da liberdade. Tentamosestabelecer qu e toda a discussão entre os deterministas eseus adversários implica um a confusão prévia entre a dura-çã o e a extensão, a sucessão e a simultaneidade, a qualidadee a quantidade: dissipada esta confusão, talvez desapareces-sem as objecções levantadas contra a liberdade, as definiçõesqu e dela se dão e, em certo sentido, o próprio problema da li-berdade. Esta demonstração é o tema da terceira parte do

nosso trabalho: os dois primeiros capítulos, onde se estudamas noções de intensidade e de duração, foram escritos paraservir de introdução ao terceiro.

Fevereiro 1888.H. B.

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CAPÍTULO I

DA INTENSIDADE DO S ESTADOS PSICOLÓGICOS

Normalmente, admite—se que os estados de consciência,sensações, sentimentos, paixões, esforços, são susceptíveis decrescer e diminuir; há até os que defendem que uma sensa-ção se pode dizer duas, três, quatro vezes mais intensa queoutra da mesma natureza. Examinaremos mais adiante estaúltima tese, que é a dospsicofísicos; mas os próprios adversá-

rios da psicofísica não vêm nenhum inconvenienteem falarde uma sensação mais intensa do que outra, de um esforçomaior do que outro, e em determinar assim as diferenças dequantidade entre os estados puramente internos. O sensocomum pronuncia-se, aliás, sem a menor hesitação sobreeste ponto; diz-se que temos mais ou menos calor, que esta-mos mais ou menos tristes, e esta distinção do mais e do me-nos, mesmo quando se estende à região dos factos subjectivos ,

e das coisas inextensas, não surpreende ninguém. Contudo/há aqui um ponto muito obscuro e um problema muito maisgrave do que geralmente se imagina.

Quando se afirma que um número é maior que outro ouum corpo maior que outro, sabemos perfeitamente de que se

trata. É que nestes dois casos se trata de espaços desiguais,como o demonstraremos em pormenor um pouco mais adian-te, chamando-se maior espaço ao que contém o outro. Mascomo é que uma sensação mais intensa conterá uma sensa-ção de menor intensidade? Dir—se-á que a primeira implica asegunda, que se atinge a sensação de intensidade superior só

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na condição de se ter passado primeiro pelas intensidades in-feriores da mesma sensação, e que aqui ainda há, em certosentido, uma relação de continente a conteúdo?Esta concep-çã o da grandeza intensiva pareceser a do senso comum, masnão se pode propô-la como explicação filosófica sem cair numverdadeiro círculo vicioso. E incontestável que um númerosupera outro quando figura junto dele na série natural dosnúmeros: mas se pudemos dispor os números por ordem cres-cente é precisamente porque existem entre eles relações de

continente a conteúdo, e nos sentimos capazes de explicarco m precisão em que sentido um é maior que o outro. A ques-tão é, pois, saber como conseguimos formar uma série destegénero comintensidades, que não são coisas que possam so-brepor—se, com que sinal reconhecemos que os termos destasérie crescem, por exemplo, em vez de diminuir: o que equi-vale sempre a interrogar—nos por que é que uma intensidadeé assimilável a uma grandeza.

É fugir à dificuldade distinguir, como habitualmente sefaz, duas espécies de quantidade, a primeira extensiva emensurável, a segunda intensiva, que não comporta a medi-da, mas de que, apesar de tudo, se pode dizer que é maior oumenor que outra intensidade. Verifica-se assim que há algo

de comum nestas duas formas de grandeza, já que lhes cha-mamos grandezas tanto a uma como a outra, e declaramosserem igualmente susceptíveis de crescer e de diminuir^Quepode haver de comum, do ponto de vista da grandeza, entre oextensivo e ò intensivo, entre p extenso e"o inextenso? Se, notfnmeiro caso, chamamos maior quantidade à que contém aoutra, por que falar ainda de quantidade e de grandezaquando já não há continente nem conteúdo? Se uma quanti-dade pode crescer e diminuir, se nela deparamos, por assimdizer, com o menos dentro do mais, não será por isso mesmodivisível, .por isso mesmo extensa? E não há então contra-dição em falar de quantidade inextensiva? Contudo, o sensocomum está de acordo com os filósofos para transformar em

grandeza uma intensidade pura, tal como uma extensão. Enão empregamos apenas a mesma palavra, mas quer pense-mos numa intensidade maior, quer se trate de uma maior ex-tensão, experimentamos uma impressão análoga nos dois ca-sos; os termos «maior», «menor», evocam perfeitamente nos

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dois casos a mesma ideia. Se agora nos perguntarmos em queconsiste esta ideia, é a imagem de um continente e de umconteúdo que a consciência nos oferece ainda. Representamosuma maior intensidade de esforço, po r exemplo, como ummaior comprimento de fio enrolado,como uma mola, que aoesticar-se ocupará um espaço maior. Na ideia de intensida-de, e até na palavra que a traduz, encontraremosa imagemde uma contracção presente e, por conseguinte, uma dilata-çã o futura, a imagem de uma extensão virtual e, se assim

pudéssemos falar, de um espaço comprimido. É preciso, pois,acreditar que traduzimos o intensivo em extensivo, e que acomparação de duas intensidades se faz, ou pelo menos se ex-prime, pela intuição confusa de uma relação entre duas ex-tensões. Mas é a natureza desta operação que parece difícilde determinar.

A solução que imediatamente se apresenta ao espírito,uma vez empenhado nesta via, consistiria em definir a inten-sidade de uma sensação ou de qualquer estado do eu pelo nú-mero e pela grandeza das causas objectivas e, por consequên-cia, mensuráveis, que lhe deram origem. É incontestável queuma sensação mais intensa de luz é a obtida ou a obter me-diante o maior número de fontes luminosas, supostas à mesi-

ma distância e idênticas entre si. Mas na imensa maioria doscasos, pronunciamo—nos sobre a intensidade do efeito mesmosem conhecermos a natureza da causa, e com muita razão asua grandeza: é a própria intensidade do efeito que nos leva]muitas vezes, a aventurar uma hipótese quanto ao número éà natureza das causas, e a corrigir assim o juízo dos nossossentidos que, à primeira vista, no-las apresentavam insigni-ficantes. Em vão se alegará que comparamos então o estadoactual do eu com qualquer estado anterior, em que a causafoi integralmente percepcionadaao mesmo tempo que se ex-perimentava o efeito. Sem dúvida, é assim que procedemosem muitíssimos casos;mas então não se explicamas diferen-ças de intensidade que estabelecemos entrêTos^íactõs^psico-

lógicos profúndõsTqué provêm de nós e não de uma causaexlgrfíãT Põinjutro-latta, ntmcírnus prõhunciãnfòs comtantaousadia sobre a intensidade de um estado psíquico comoquando unicamente somos abalados pelo aspecto subjectivodo fenómeno, ou a causa exterior a que o atribuímos dificil-

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mente pode ser medida. Assim, parece-nos evidente que ex-perimentamos uma dor mais intensa quando nos arrancamum dente do que um cabelo; o artista sabe, e disto não temdúvida, que um quadro de mestre lhe proporciona um prazermuito mais intenso do que um cartaz comercial;e não é ne-cessário ter alguma vez ouvido falar das forças de coesãopara afirmar que se despende menos esforço em dobrar umalâmina de aço do que em vergar uma barra de ferro. Destemodo, a comparação de duas intensidades faz—se quase sem-

pre sem a menor avaliação do número das causas, do seu mo-do de acção e da sua extensão.

É verdade que ainda há lugar para uma hipótese da mes-ma natureza, mas mais subtil. Sabemos que as teorias mecâ-nicas, e sobretudo cinéticas, tendem a explicar as proprieda-des aparentes e sensíveis dos corpos mediante movimentosmuito definidos das suas partes elementares, e que algunsprevêem o momento em que as diferenças intensivas dasqualidades, isto é, das nossas sensações, se reduzirão às dife-renças extensivas entre as mudanças que se levem a caboatrás delas. Não se poderá sustentar que, sem conhecermosestas teorias, temos delas um vago pressentimento, que sob osom mais intenso adivinhamos uma vibração mais ampla

propagando-se no meio sacudido, e que aludimos a esta rela-ção matemática muito precisa, ainda que confusamente aper-cebida, ao afirmarmos que um som apresenta uma intensida-de superior? Sem ir tão longe, não se poderia estabelecer queem princípio todo o estado de consciência corresponde a umdeterminado abalo das moléculas e átomos da substância ce-rebral, e que a intensidade de uma sensação mede a amplitu-de, a complicação ou a extensão destes movimentos molecula-res? Esta última hipótese é pelo menos tão verosímil como aoutra, mas não resolve melhor o problema. É possível que aintensidade de uma sensação demonstre um trabalho maisou menos considerável levado a cabo no nosso organismo;mas é a sensação que nos é fornecida pela consciência, e não

este trabalho mecânico. É até à intensidade da sensação queatribuímos a maior ou menor quantidade de trabalho produ-zido: a intensidade permanece, pelo menos aparentemente,como uma propriedade da sensação. E põe-se sempre a mes-ma pergunta: por que dizemos nós de uma intensidade supe-

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rior que ela é maior? Por que pensamos numa maior quanti-dade ou num espaço maior?

Talvez a dificuldade do problema derive do facto de dar-mos o mesmo nome e representarmos da mesma maneira in-tensidades de natureza muito diferente, a intensidade de umsent imento , por exemplo, e a de uma sensação ou de um es-forço. O esforço é acompanhado de uma sensação muscular e

as próprias sensações ligam-se a certas condições físicas queveros imilmente entram para algo na apreciação da sua in-tensidade; s ão fenómenos qu e ocorrem à superfície da cons-ciência, e que se associam sempre, como veremos mais adian-te, à percepçãode um movimento ou de um objecto exterior.Mas certos estados de alma parecem-nos, com ou sem razão,bastarem-se a si próprios: como as alegrias e as tristezasprofundas , as paixões reflectidas, as emoções estéticas. A in-tensidade pura deve definir—se mais facilmente nestes casossimples, em que não parece intervir nenhum elemento exten-sivo. Efectivamente, vamos ver que ela se reduz a uma certaqualidade ou matiz de que se reveste uma quantidade maisou menos considerável de estados psíquicos ou, se preferi-

mo s , ao maior ou menor número de estados simples que pe-netram a emoção fundamental.Po r exemplo, um desejo obscuro torna— se pouco a pouco

uma paixão profunda. Vereis que a fraca intensidade destedesejo consistia, primeiro, no facto de vos parecer isolado ecomo que estranho a todo o resto da vossa vida interna. Mas,pouco a pouco, penetrou num maior número de elementospsíquicos, tingindo-os, por assim dizer, com a sua própriacor; e eis que o vosso ponto de vista sobre o conjunto das coi-sas vos parece agora ter mudado. Não é verdade que vosapercebeis de uma paixão profunda, uma vez contraída, emvirtude de os mesmos objectos já não produzirem em vós amesma impressão? Todas as vossas sensações, todas as vos-

sas ideias vos parecem renovadas; é como uma nova infância.Experimentamos algo semelhante em certos sonhos, em tjuenão imaginamos nada de extraordinário, mas através delesressoa, porém, não sei que nota original. É que, quanto maisse desce nas profundidades da consciência^ menos se tem o

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direit J tmtari)5jractQS_psicQ|ógicos como coisas_que se jus-tapõfijnTQuando se diz que um objecto ocupa um grande es -jíáçona alma, ou até que a ocupa totalmente, apenas se deveentender com isso que a sua imagem modificou o matiz de

^mil percepções ou recordações, e que neste sentido os pene-tra, apesar de não se deixar ver. Mas esta representaçãocompletamente dinâmica repugna à consciência reflexa, por-que gosta das distinções bem demarcadas, que sem dificulda-de se exprimem com palavras, e das coisas com contornos

muito definidos, como as percepcionadas no espaço. Irá su-por, portanto, que, permanecendo idêntico tudo o mais, umcerto desejo passou por grandezas sucessivas: como se pudés-semos-aindaJfalarde grandeza onde não existe nem mult ip l i -cidade nem_.e_sj>aço! E assim como a veremos concentrar-senunTclaclõ ponto do organismo, para fazer um esforço de in-tensidade crescente, as contracções musculares cada vezmais numerosas que se efectuam à superfície do corpo, assimtambém ela fará cristalizar à parte, sob a fo rma de umdesejoque se avoluma, as modificações ocorridas na massa confusados factos psíquicos coexistentes. Mas é mais uma mudançade qualidadedo que de grandeza.

Ò que faz da esperança um prazer tão intenso é que o fu-

turo, que está à nossa disposição, nos surge ao mesmo temposob uma imensidão de formas, igualmente risonhas, igual-mente possíveis. Ainda que a mais desejada se realize, é pre-ciso sacrificar as outras, e teremos perdido muito.A ideia dofuturo, prenhe de uma infinidade de possíveis, é pois mais fe-cunda do que o próprio futuro, e é por isso que há mais en-canto na esperança do que na posse, no sonho do que na rea-lidade.

Procuremos destrinçar em que consiste uma intensidadecrescente de alegria ou de tristeza, nos casos excepcionais emque não intervém nenhum sintoma físico. A alegria interiortambém não é, c omo a paixão, um facto psicológico isoladoque começaria por ocupar um canto da alma e conquistaria

terreno pouco a pouco. No seu grau mais baixo,assemelha-sebastante a uma orientação dos nossos estados de consciênciano sentido do futuro. Depois, como se esta atracção diminuís-se o seu peso, as nossas ideias e sensações sucedem—se commaior rapidez; os nossos movimentos já não nos custam tan-

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to. Por fim, na alegria extrema, as nossas percepções e recor-dações adquirem um a qualidade indefinível , comparável aum calor ou a uma luz, e tão nova que, em certos momentos,ao reflectirmos sobre nó s mesmos,exper imentamos como qu eum espanto por existirmos. Assim,há várias formas caracte-rísticas de alegria puramente interior,tantas quantas as es-tapas sucessivas qu e correspondem a modificações qualitati-vas da massa dos nossos estados psicológicos. Mas onúmerode estados que cada uma destas modificações atinge é mais

ou menos cons iderável , e embora não os contemos explicita-mente, sabemos bem se a nossa alegria penetra todas as nos-sas impressões do dia, por exemplo, ou se algumas ficam defora. Estabelecemos assim pontos de divisão no intervaloqu esepara duas formas sucessivas da alegria, e este caminhargradual de uma para outra faz que nos surjam, por sua vez,como as intensidades de um só e mesmo sentimento, que mu-dasse de grandeza. Facilmente se mostraria que os diferentesgraus da tristeza também correspondem a mudanças qualita-tivas. Começa por ser apenas uma orientação para opassado,um empobrecimento das nossas sensações e ideias, como secada uma delas se conservasse agora inteira no pouco que elaproporciona, como se o futuro nos estivesse de algum modo

vedado. E termina numa impressão de esmagamento, quenos leva a aspirar ao nada, e a que cada nova desgraça, ao fa-zer-nos compreender melhora inutilidade da luta, noscauseum prazer amargo.

Os sentimentos estéticos proporcionam-nos exemplosmais impressionantes da intervenção progressiva de elemen-tos novos, visíveis na emoção fundamental , e que parecemaumentar-lhes a grandeza embora se limitem a modificar-—lhes a natureza. Consideremoso mais simples,o sentimentoda graça. Primeiramente, é apenas a percepção de um certodesembaraço, de uma certa facilidade nos movimentos exte-riores. E como movimentos fáceis são os que se preparam unsaos outros, acabamos por encontrar um desembaraço supe-

rior nos movimentos que se faziam prever, nas atitudes pre-sentes onde estão indicadas ecomo que pré-formadas as ati-tudes futuras. Se os movimentos bruscos não têm graça, éporque cada um deles se basta a si próprio e não anuncia osque se lhes seguem. Se a graça prefere as curvas às linhas

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quebradas é porque a linha curva muda de direcção em cadamomento, estando cada nova direcção indicada na preceden-te. A percepção de uma faci lidade de movimentos vem, pois,fundir-se aqui com o prazer de travar de algum modo a mar-ch a do tempo e de segurar o futuro no presente. Um terceiroelemento intervém quando os movimentos graciosos obede-cem a um ritmo, acompanhado pela música. E que o ritmo e ocompasso, ao permitirem-nos prever ainda melhor os movi-mentos do artista, levam—nos desta vez a acreditar que so-

mos deles senhores. Porque quase adivinhamos a atitude quevai tomar, parece que nos obedece quando de facto a toma; aregularidade do ritmo estabelece entre ele e nós uma espéciede comunicação, e os retornos periódicos do compasso são ou-tros tantos fios invisíveis com que fazemos actuar este títereimaginário. Ainda que pare momentaneamente, a nossa mãoimpaciente não pode impedir de se mover como qu e para oempurrar e recolocar dentro do movimento, cujo ritmo se tor-nou todo onosso pensamento e toda a nossa vontade. No sen-timento do graciosoentrará, portanto, uma espécie de simpa-tia física, e ao analisar o encanto desta simpatia, vereis quevo s agrada pela sua afinidade com a simpatia moral, cujaideia é por ela subtilmente sugerida. Este último elemento,

em que os outros vêm fundir-se depois de o terem de algummodo anunciado, explica o irresistível atractivo da graça:nãocompreenderíamos o prazer que nos desperta, se se reduzissea uma economia de esforço, como pretende SpencerO). Mas averdade é que julgamos deslindar em tudo o que é muitergríPcioso, além da leveza que é sinal de mobilidade, a indicaçãode um movimento possível em direcção a nós, de umâfsimpa-tia virtual, ou mesmo nascente. É esta simpatia móvelTsem-pre a ponto de se dar, que é a própria essência da graça su-prema. Assim, as crescentes intensidades do sentimentoestético resolvem—se aqui em outros tantos sentimentos di-versos, cada um dos quais, anunciadojá pelo precedente, setorna visível e a seguir o eclipsa definitivamente. E este pro-gresso qualitativo que interpretamos no sentido de uma mu-dança de grandeza, porque gostamos das coisas simples, e

(') Essai sur lê pn>grès (trad. fr.), p. 283.

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porque a nossa l inguagem está mal feita para traduzir assubtilezas da análise psicológica.

Para compreender como o sentimento do belo admitegraus, seria, necessário submetê-lo a uma análise minucio-sa. Talvez a dificuldade que se experimenta em o definir de-rive principalmente do facto de se considerarem anteriores àarte as belezas da natureza: os processos da arte não são en-tã o mais do que meios pelos quais o artista expr ime o belo, ea essência do belo permanece. Mas poder-se-ia perguntar se

a natureza é bela sem ser pelo feliz encontro de certos proces-sos da nossa arte, e se, em certo sentido, a arte não precede-ria a natureza. Mesmo sem ir tão longe, parece mais confor-me às regras de um método correcto estudar primeiramenteo belo na s obras onde fo i produzidopor um esforço conscientee, seguidamente, descer por transições insensíveis da arteaté à natureza, que é artista à sua maneira. Colocando—nosneste ponto de vista, aperceber-nos-emos, pensamos nós, dequ e o objectivo da arte é adormecer as potências activas, oumelh or , resistentes, da nossa personalidade, e levar—nos as-sim a um estado de docilidade perfeita em que realizamos aideia que nos é sugerida, em que simpatizamos com o senti-men to expresso. Nos processos da arte encontraremos, sob

uma forma atenuada, purificados e de alguma maneira espi-ritualizados, os processos pelos quais normalmente se obtémo estado de hipnose. — Assim, na música, o ritmo e o com-passo suspendem a circulação normal das nossas sensações eideias fazendo oscilar a nossa atenção entre pontos fixos, eapoderam-se de nós com tal força que a imitação, ainda quei n f i n i t am en t e discreta, de uma voz que geme, bastará paranos encher de uma extrema tristeza. Se os sons musicaisagem mais poderosamente sobre nós do que os da natureza épor que a natureza se limita a exprimir sentimentos,ao passoqu e a música no—los sugere. Dondevem o encanto da poesia?O poeta é aquele para quem os sentimentos se desdobram emimagens, e as próprias imagens em palavras, dóceis ao ritmo,

para os traduzir. Vendo repassar diante dos nossos olhos es-tas imagens, experimentaremos da nossa parte o sentimentoque, por assim dizer, é o seu equivalente emocional; mas es-tas imagens não se realizariam tão fortemente para nós semos movimentos regulares do ritmo, pelo qual a nossa alma,

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embalada e adormecida, se esquece, como num sonho, para

pensar e ver com o poeta. As artes plásticas obtêm um efeitodo mesmo género pela fixidez que de súbito impõem à vida, eque um contágio físico comunica à atenção do espectador. Seas obras da estatuária antiga exprimem emoções leves, que

mal as aflorem como uma brisa, em contrapartida, a pálidaimobilidade da pedra empresta ao sentimento expresso, ao

movimento iniciad o, não sei que de definitivo e eterno, emque o nosso pensamento se absolve e a vontade se perde. Na

arquitectura, no próprio âmago desta imobilidade surpreen-dente, encontrar—se-iam alguns efeitos análogos aos do rit-mo. A simetria das formas, a repetição indefinida do mesmomotivo arquitectónico, fazem que a nossa faculdade de perce-be r oscile do mesmo ao mesmo, e se desabitue da s incessan-tes mudanças que, na vida diária, continuamente nos trans-

portam à consciência da nossa personalidade: a indicação,ainda que ligeira, de uma ideia bastará então para encherpor completo com ela a nossa alma. A arte visa assim, maisdo qu e expressar, impr imir em nós sentimentos; sugere-os,prescindindo facilmente da imitação da natureza quando de -para co m meios mais eficazes. A natureza procede po r suges-

tão como a arte, mas não dispõe do ritmo. Supre-o mediante

a longa convivência que a comunhão das influências sofridascriou entre ela e nós, e que faz que à menor indicação de um

sentimento com ela simpatizemos, como um a pessoa habitua-

da obedece ao gesto do magnetizador. E esta simpatia pro-duz-se sobretudo quando a natureza nos apresenta seres de

proporções normais e tais que a nossa atenção se divide porigual entre todas as partes da figura, sem se fixar em nenhu-ma delas: visto que a nossa faculdade de perceber se encon-tra embalada por esta espécie de harmonia, nada interrompe

o livre impulso da sensibilidade, que apenas aguarda o desa-parecimento do obstáculo para se emocionar simpaticamente.

— Conclui-se desta análise que o sentimento do belo não éum sentimento especial, mas que todo o sentimento por nós

experimentado se revestirá de um carácter estético, contantoque tenha sido sugerido, e não causado. Compreende-se en-

tão por que é que a emoção estética nos parece admitir grausde intensidade e também graus de elevação. Comefeito, ora é

o sentimento sugerido que interrompe a custo o tecido cerra-

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do dos factos psicológicos que compõem a nossa história; oradeles afasta a nossa atenção sem que, no entanto , nos leve aperdê-los de vista; ora, por fim, se substitui a eles, no s absor-ve e se apodera de toda a nossa alma. Há, portanto, fasesdistintas na progressão de um sentim ento estético, como noestado de hipnose; e estas fases correspondem men os às va-riações de grau do que às diferen ças de estado ou de nature-za . Mas o mérito de uma obra de arte não se mede tanto pelaforça com que o sentimento sugerido se apossa de nós quantopela riqueza desse mesmo sent imento: po r outras palavras,ao lado do s graus de intensidade, distinguimos instintiva-ment e graus de profu ndida de ou de elevação. Ao analisar es-te úl timo conceito, veremos que os sentimento s e os pensa-

mentos que o artista no s sugere expr imem e resumem um aparte muito menos considerável da sua história. Se a artequ e se l imi ta a dar sensações é uma arte inferior, é porque aanál ise nada mais desl inda f requentem ente num a sensaçãoalem dessa mesma sensação. Mas a maioria da s emoções sã oenr iquecidas co m milhares de sensações, sentimentos ouide ias que as atravessam: cada um a delas é, pois, um estadoúnico no seu género, indefinível, e parece que seria necessá-

rio reviver a vida de quem o experimenta para dele se apode-rar na sua complexa originalidade. Contudo, o artista visa

introduzir—nos nesta emoção tão ricja, tão pessoal, tão nova, elevar-nos a expenmentarj)jgue nãoIpõcferia fázê'rHnos com-preender. Fixará, pois, de entre as manifestãçoès~èxteTíõrèsdo se u sent imento aquelas que o nosso corpo imi tará maqui-na l men t e , ainda que super f icialmente, descobrindo—as, demodo a colocar-nos de chofre no indefinível estado psicoló-gico que as provocou. Cairá assim a barreira que o tempo e oespaço in t e rpun ham entre a sua consciência e a nossa; e serátanto mais rico de ideias, cheio de sensações e de emoções osent imento em cuja área no s in troduziu, quanto mais a bele-za expressa tiver profundidade e elevação. A i in tensidades

sucessivas do sentime nto estético correspo n dem,Jjgjg, amu'danças ocorridas em nós, e~õVgrãus de profundidade a umm a i o r ou menWnumeriTHê factos psíquicas elementares , qu edif ic i lmente distinguimos na emoção fundam ental.

V amos submeter os sent imentos morais a um estudo dom e s m o género. Consideremos, por exemplo, a piedade. Con-

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siste, antes de mais, em pôr-se pelo pensamento no lugar dosoutros, em sofrer com o seu sofrimento. Mas se nada maisfosse, como alguns pretenderam, inspirar-nos-ia a ideia defugirmos dos miseráveis em vez de os socorrermos, porque osofrimento causa-nos naturalmente horror. É possível queeste sentimento de horror esteja na origem da piedade; masnã o tarda a juntar—se-lhe um novo e lemento, um a necessida-

de de aju dar os nossos semelhantes e de lhes aliviarmos o so-frimento. Diremos, com La Rochefoucauld, qu e esta pretensasimpatia é um cálculo, «uma habilidosa prev idência para fu-turos males»? Talvez o temor entre ainda efectivamente paraalguma coisa na compaixão que os males de outren» nos ins-piram; mas são sempre formas inferiores da piedade. A ver-dadeira piedade consiste menos em recear o sofrimento doque em desejá-lo. Desejo leve, que dificilmente se desejariaver realizado, mas que se forma apesar de tudo, como se anatureza cometesse uma grande injustiça e fosse necessárioafastar toda a suspeita de cum plicidad e com ela. A essênciada piedade é, pois, uma necessidade de se humi lha r , uma as-piração a descer. Esta aspiração dolorosa tem, aliás, o seuencanto, porqu e nos engrandece aos nossos próprios olhos, efaz que nos sintamos superiores aos bens sensíveis, de que onosso pensamento momentaneamente se desprende. A inten-sidade crescente da piedade consiste, pois, numa progressãoqualitativa, n um a passagem do desgosto ao temor, do temorà simpatia, e da simpatia à humildade.

Não levaremos mais longe esta análise. Os estados psíqui-co s cuja intensidade acabamos de definir__são_"Çstadpsjprofun-dos,qúe não pã~recém solidarios^cõlrriLsua causa exterior,não parecendo envolver também a percepção de uma contrac-ção múicSiTT Mas estes estadosTsãcTraros. "Não há paixão oudesejo, alegria ou tristeza, que não seja acompanhada de sin-

tomas psíquicos; e quando estes sintomas surgem, servem-—nos provavelmente para algo na apreciação das intensida-des. Quanto às sensações propriamente ditas, estão clara-mente relacionadas com a sua causa exterior e, se bem que áintensidade da sensação não possa definir—se pela grandezada sua causa, existe sem dúvida alguma relação entre estes

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dois termos. Até em algumas das suas manifestações, a cons-ciência parece que se expande para fora, como se a intensida-de se desenvolvesse em extensão: assim é o esforço muscular .Ooloquemo-nos seguidamente perante este último fenómeno:transportar-nos-emos de um salto para o extremo oposto dasérie do s factos psicológicos.

Se há um fenómeno que parece apresentar-se imedia ta-mente à consciência sob a forma de quantid ade ou, pelo me -nos, de grandeza é, sem dúvida alguma, o esforço muscular .Parece-nos que a força psíquica, aprisionad a na alm a comoos ventos no antro de Eolo, espera aí apena s por uma oportu-n i d a d e para sair; a vontade vigiaria esta força e, de tempos atempos, abrir-lhe-ia uma saída, proporcionando uma descar-ga para o efeito desejado. Reflectindo bem, veremos até queesta concepção tão grosseira do esforço entra, em larga me di -da , na nossa crença nas grandezas intensivas. Como a forçamuscular que se desenrola no espaço e se manifes ta median -te fenómenos men surá veis nos dá a impressão de ter preexis-

t ido às suas manifestações, mas com um menor volume e, po rassim dizer, em estado comprimido, nã o hesi tamos em res-t r i n g i r cada ve z ma is este volume e, por f im, julgamos com -preender que um estado puram ente psíquico, nã p ocupa ndoe.spaço, tenha, apesar de tudo, grandeza. Aliás,_a_jnência,neste ponto, tende a fortalecer a ilusão jiojsentido comum.H a i n diz-nos, por exemplo, que a sensibilidade concomitantedo movimento muscular coincide com a corrente centrífugada força nervosa: é, pois, a própria emissão da força nervosaqu e a consciência perceberia. M u n d t fala também de umasensação de origem central, acompanhando a intervenção vo-luntár ia do s músculos , e cita o exemplo do paralítico, qu etom a sensação muito ní t ida da força que emprega para que-re r levantar a sua pern a , a inda que permaneça iner te(2). Amaioria dos autores adere a esta opinião, que faria lei naciência positiva se, alguns anos mais tarde, Wil l iam Jamesnã o t ivesse ch amad o a a tenção dos fisiologistas para certos

Psycholttfiie physiologic/ue, trad. Rouvierf 1.1, p. 423.

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fenómenos muito pouco conhecidos e, no entanto, muito dig-

no s de nota.Quando um paralítico se esforça po r levantar o membro

inerte, não executa este movimento, sem dúvida, mas, sejacomo for, executa outro. Algum movimento se efectua em al-guma parte: caso contrário, não haveria nenhuma sensaçãode esforço( 3). Já Vulpian observara que, se pedirmos a um

hemiplégico para fechar o punho paralisado, ele cumpre in-

conscientemente esta acção com o punho não afectado. Fer-rier assinalava um fenómeno ainda mais curioso(4). Estendeio braço recurvando ligeiramente o indicador, como se fôsseis

dar ao gatilho de uma pistola: podereis não mover o dedo,nem contrair músculo algum da mão, nem produzir qualquer

movimento aparente mas, apesar de tudo, sentireis que gas-tais energia. Noentanto, se prestardes maior atenção, caireis

na conta de que esta sensação de esforço coincide com a fixa-ção dos músculos do peito, que tendes a glote fechada, e que

contraís activamente os músculos respiratórios. Logo que arespiração retomar o seu curso normal, a consciência do es-

forço desaparece, a não ser que realmente não movamos odedo. Estes factos pareciam já indicar que não temos cons-ciência

de umaemissão

de força, mas domovimento

do smús-

culos, que é o seu resultado. A originalidade de William Ja-

mes esteve em verificar a hipótese com exemplos, que se afi-guraram absolutamente refractários. Assim, quando o mús-

culo direito externo do olho direito está paralisado, o doentetenta em vão voltar o olho do lado direito; contudo, os objec-tos parecem fugir—lhe do lado direito e, uma vez que o acto devontade não produziu qualquer efeito, é necessário, dizia

Helmholtzí5), que o esforço da vontade se revele à consciên-cia. — Mas não se reparou, responde James, no que se passa

no outro olho: este fica coberto durante as experiências; e, noentanto, move—se, do que não será difícil convencermo-nos.

É o movimento do olho esquerdo, percepcionado pela cons-

(3) W. James, Lê sentiment de 1 ' e f f o r t (critique philosophique,

1880, t. II).(4) Lês fonctions da cerveau, p. 358 (trad. fr.).(') Optique physiologique, trad. fr., p. 764.

ciência , que nos dá a sensação do esforço, ao mesmo tempo

enos leva a acreditar nomovimento dos objectos vistos pe-

lo o l ho direito. Estas observações, e outras análogas, levam

James a afirmar que o sentimento do esforço é centrípeto, enã o centrífugo. Não tomamos consciência de uma força qu elan çássemo s no organismo: o nosso sentimento da energiamu scu lar ostentada «é uma sensação aferente complexa,qu eve m do s m úscu los contraídos, do s ligamentos tensos, das ar-t iculações comprimidas , do peito fixo, da glote fechada, do so-brolho f ranzido , do s queixos fechados», em síntese, de todosos pontos da per i fer ia onde o esforço introduz um a modifica-ção.

N ão no s compete tomar posição no debate. Também aquestão que nos preocupanão é saber se a sensação do esfor-ço vem do centro ou da periferia, mas em que consiste exacta-

m e n t e a nossa percepção da sua intensidade. Ora, basta fa-ze r uma observação atenta sobre nós próprios para, sobre o

ú l t i mo ponto, chegarmosa uma conclusão qu e James nã o for-m ulou , mas que nos parece em total conformidade com o es-pírito da sua doutrina.Asseveramj>&.quejpluanto ma|s_um da-do esforço nos dá a imprèssãTTde'crescer, tanto mais aumen-

ta o número dos músculos que se contraem simpaticamente,

e que a consciência aparente de uma maior intérísidade deforça sobre um dado ponto do organismose reduz, realmente,a percepção de uma maior superfície do corpo interessada na

operação .Experimentai , por exemplo, fechar o punho «cada ve z

mais» . Parecer—vos—á que a sensação de esforço, completa-m e n t e local izada na vossa mão, passa sucessivamente por

(grandezas crescentes. Na realidade, a mão experimenta sem-pre a mesma coisa. Só a sensação que aí estava localizada se

estende primeiramente ao braço e sobe até ao ombro; o outrobraço estica— se, as duas pernas fazem o mesmo, a respiração

pára; é o corpo inteiro que fica invadido. Mas só caireis clara-m e n t e na conta destes movimentos concomitantes se para tal

vo s chamarem a atenção; até então, julgáveis tratar— se deum estado de consciência único, qu e mudava de grandeza.

Q u a n d o fechais cada vez mais os lábios um contra o outro,j u lga i s experimentar nesse sítio uma idêntica sensação cada

ve z mais forte: também aqui vo s apercebereis, ao reflectir

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\s nisto, que esta sensação permanece idêntica, mas que

certos músculos da cara e da cabeça, em seguida, de todo ocorpo, tomaram parte na operação. Sentistes a invasão gra-dual, o aumento de superfície que é, de facto, um a mudançade quantidade; mas como pensais sobretudo no s lábios fecha-dos, localizastes o aumento nesse sítio, e fizestes da força psí-quica que aí se despendia uma grandeza, embora não fosseextensa. Examinai cuidadosamente uma pessoa que levantapesos cada vez mais pesados: a contracção muscular apodera-

-se, pouco a pouco, por completo do seu corpo. Quanto à sen-sação mais particular que experimenta no braço que traba-lha, permanece constante durante muito tempo, e só mudade qualidade, transformando-se o peso, em determinada al -tura, em fadiga, e a fadiga em dor. Contudo, o sujeito imagi-nará ter consciência de um aumento contínuo da força psí-quica qu e aflui ao braço. Só reconhecerá o seu erro se lhechamarmos a atenção, de tal maneira é levado a medir umdeterminado estado psicológico pelos movimentos conscientesque o acompanham! Destes factos e de muitos outros do mes-mo género depreender—se-á, cremos nós, a seguinte conclu-são: a nossa consciência de um crescimento de esforço mus-cular reduz—se à dupla percepção de um maior número de

sensações periféricas e de uma mudança qualitativa ocorridaem algumas delas.

/ Eis-nos, pois, levados a definir a intensidade de um esfor-ço superficial como o de um sentimento profundo da alma.Em ambos os casos, há progresso qualitativo e complexidadecrescente, confusamente percepcionada. Mas a consciênciahabituada a pensar no espaço e a dizer a si própria o quepensa, designará o sentimento com uma única palavra e loca-lizará o esforço no ponto preciso onde proporciona um resul-tado mais útil: perceberá então um esforço, sempre seme-lhante a ele mesmo, qu e cresce no local que lhe foi assinala-do , e um sentimento que, não mudando de nome, aumentasem mudar de natureza. É natural que vamos reencontrar

esta ilusão da consciência nos estados intermédios entre osesforços superficiais e os sentimentos profundos. Muitos do sestados psicológicos são, co m efeito, acompanhados de con-tracções musculares e de sensações periféricas. Estes ele-mentos superficiais coordenam—se entre si ora por uma ideia

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puramente especulativa, ora por uma representação de or-de m prática. No primeiro caso, há um esforço intelectual ouatenção; no segundo, produzem-se emoções que se podem

chamar violentas ou agudas, a cólera, o medo e certas varie-dades da alegria, da dor, da paixão e do desejo. Mostremosrapidamente como a mesma definição de intensidade convéma estes estados intermédios.

A atenção não é um fenómeno puramentefisiológico; mas

não se pode negar que é acompanhada de movimentos. Taismovimentos não são nem a causa nem o resultado do fenóme-no ; fazem dele parte, exprimem-no em extensão, como bri-lhantemente demonstrou Ribot(6). Já Fechner reduziu o sen-timento do esforço de atenção, nu m órgão do s sentidos, aosentimento muscular «produzido ao pôr em andamento, po rum a espécie de acção reflexa, os músculos relacionados co mos diferentes órgãos sensoriais. Chamou a atenção para asensação muito distinta de tensão e de contracção da pele datesta, esta pressão de fora para dentro em todo o crânio, queexperimentamos quando fazemos um grande esforço para noslembramos de qualquer coisa. Ribot estudou mais atenta-mente os movimentos característicos da atenção voluntária.«A atenção», diz ele, «contrai o frontal: este músculo [...] puxapelo sobrolho, eleva-o e deixa traços transversais na testa[...] Em casos extremos, a boca abre-se amplamente. Nascrianças e em muitos adultos, a atenção viva produz umaprotrusão dos lábios, uma espécie de beicinho.» Entrará, semdúvida sempre na atenção voluntária um factor puramentepsíquico, quando este não for mais que a exclusão, pela von-tade, de todas as ideias estranhas àquela de que nos deseja-mo s ocupar. Mas, uma vez feita esta exclusão, julgamos ain-da ter consciência de uma tensão crescente da alma, de umesforço imaterial que aumenta. Analisai esta impressão, enada aí encontrareis senão o sentimento de uma contracçãomuscular que ganha em superfície ou muda de natureza, tor-nando-se a tensão pressão, fadiga, dor.

Ora, nã o vemos diferença essencial entre o esforço deatenção e o que se poderia chamar de tensão da alma, desejo

(6) Lê mécanisme de lattention, Alcan, 1888.

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agudo, cólera desencadeada, amor apaixonado, ódio violento.Cada um destes estados reduzir—se—ia, julgamos nós, a umsistema de contracções musculares coordenadas por umaideia: na atenção, é a ideia mais ou menos reflectida deconhecer; na emoção, a ideia irreflectida de agir. A intensida-de destas emoções violentas não deve, pois, ser outra coisasenão a tensão muscular que as acompanha. Darwin descre-veu muito bem os sintomas fisiológicos do furor. «As pulsa-ções docoração aceleram—se: a cara fica vermelha ou adquireuma palidez cadavérica; a respiração é difícil; o peito disten-de—se; as narinas frementes dilatam—se. Muitas vezes, tremeo corpo inteiro. A voz altera—se; os dentes fecham—se e batemuns nos outros, e o sistema muscular é geralmente excitadopara algum acto violento, quase frenético... Os gestos repre-sentam mais ou menos perfeitamente o acto de bater ou delutar contra um inimigo.»(7) Não iremos ao ponto de defen-der, com William James(8), que a emoçãode furor se reduz àsoma das sensações orgânicas: entrará sempre na cólera umelemento psíquico irredutível, quanto mais não seja a ideiadebater ou de lutar, de que fala Darwin, ideia que imprime a

tantos movimentos diversos uma direcção comum. Mas se es-ta ideia determina a direcção doestado emocionale a orien-tação dos movimentos concomitantes, a intensidade crescen-te do próprio estado não é outra coisa, julgamos nós, senão oabalo cada vez mais profundo do organismo, abalo que aconsciência mede sem dificuldade pelo número e extensãodas superfícies interessadas. Inútil será alegar que há furo-res contidos,e tanto mais intensos. É que, ondea emoçãonãoé contida, a consciência não se detém no pormenor dos movi-mentos concomitantes: pelo contrário, aí se detém, concentra--se neles quando os visa dissimular. Eliminai finalmentetodo o vestígio de abalo orgânico, toda a veleidade de contrac-ção muscular: da cólera restará apenas uma ideia ou, se tei-

mardes ainda em fazer dela uma emoção, não podeis atri-buir—lhe intensidade.

(7) Expression dês émotions, p. 79.(") Whatis an emotion? Mind,1884, p. 189.

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«U m terror intenso», diz Herbert Spencer(9), «exprime-sepor gritos, esforços por esconder-se ou fugir, palpitações outremuras.» Vamos mais longe e defendemos que estes movi-mentos fazem parte do próprio terror: por eles, o terror tor-na—se uma emoção susceptível de passar pordiferentesgrausde intensidade. Suprimi-os completamente, e ao terror maisou menos intenso sucederá umaideia de terror, a representa-ção totalmente intelectualde um perigo que é necessário evi-

tar. Há também uma acuidade de alegria e de dor, de desejo,de aversão e até de vergonha, cuja razão de ser se encontranos movimentos de reacção automática que o organismo ni-cia e que a consciência percepciona. «O amor», diz Darwin,«faz bater o coração, acelerar a respiração, avermelhar o ros-to.»(10) A aversão nota-se por movimentos de desgosto que serepetem, sem prestar atenção, quando se pensa no objectodetestado. Ficamos vermelhos, crispamos involuntariamenteos dedos quando sentimos vergonha, ainda que retrospectiva-mente. A acuidade destas emoções avalia—se pela quantidadee pela natureza das sensações periféricas que as acompa-nham. Poucoa pouco, e à medida em que o estado emocionalperder a sua violência para adquirir profundidade, as sensa-

ções periféricas darão lugar a elementos internos: já não se-rão os movimentos exteriores, mas as nossas ideias, recorda-ções, estados de consciência em geral que se orientarão, cadavez em menor quantidade, para uma determinada direcção.Não há, portanto, uma diferença essencial, do ponto de vistada intensidade, entre os sentimentosprofundos, de que falá-vamos no início deste estudo, e as emoções intensas ou vio-lentas que acabámos de passar em revista. Dizer que oamor,o ódio, o desejo ganham em violênciaé exprimir que se pro-jectam para fora, que surgem à superfície, que os elementosinternos são substituídos por sensações periféricas: massuperficiais ou profundos, violentos ou reflectidos, a inten-sidade destes sentimentos consiste sempre na multiplicidadedos estados simples que a consciência aí discrimina

confusa-mente.

(9) Príncipes de psychologie, t. I, p. 523.(10) E.rpression dês émotions, p. 84.

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Limitámo-nos até agora aos sentimentos e aos esforços,estados complexos , e cuja intensidade nã o depende absoluta-mente de uma causa externa. Mas as sensações aparecem-

-nos como estados simples: em que consistirá a sua gran-deza? A intensidade destas sensações varia como a causaexterna de que passam por ser o equivalente consciente:como explicar a invasão da quantidade nu m efeito inexten-

sivo, e desta vez indivisível?Para responder a esta pergunta,é preciso, primeiro, distinguir entre as sensações ditas afecti-vas e as sensações representativas. Sem dúvida, passa—segradualmente de umas a outras; certamente entra um ele-m ent o afectivo na maioria da s nossas representações sim-ples. Mas nada impede de o separar, e de investigar separa-

damente em que consiste a intensidade de uma sensaçãoafectiva, prazer ou dor.

Talvez a dificuldade deste último problema se prenda so-

bretudo co m o facto de não se querer ver no estado afectivooutra coisa senão a expressão consciente de um abalo orgâ-

nico, ou a repercussão interna de uma causa externa. Nota-— s e que a um maior abalo nervoso corresponde geralmenteuma sensação mais intensa; mas como estes abalos são in-

conscientes enquanto movimentos, já que adquirem para a

consciência o aspecto de uma sensação que não se lhes asse-melha, não se vê como transmitiriam à sensação algo da sua

própria grandeza. Pois, nada há de comum, repetimo-lo, en-tre grandezas sobreponíveis como as amplitudes de vibração,por exemplo, e as sensações que não ocupam espaço. Se asensação mais intensa nos parece conter a sensação de me-

nor intensidade, se reveste para nós, como o próprio abalo or-gânico, a forma de uma grandeza, é provavelmente porqueconserva alguma coisa do abalo físico a que ela corresponde.

E nada conservará, se não passar da tradução consciente deum movimento de moléculas; e precisamente porque este mo-vi m ent o se traduz em sensação de prazer ou de dor é que ele

permanece inconsciente enquanto movimento molecular.

M as poder-se-ia perguntar se o prazer e a dor, em vez dee x p r i m i r apenas o que acaba de ocorrer ou o que se passa noorganismo, como habitualmente se julga, nã o indicariamtambém o que a í se va i produzir , o que tende a passar-se.Com efeito, parece pouco prováve l que a natureza, tã o pro-f u n d a m e n t e utilitária, tenha aqui atribuído à consciência atarefa totalmente científica de nos informar sobre o passadoou o presente, que já não dependem de nós. Além disso, háqu e salientar que se sobe p or graus insensíveis do s movimen-to s automáticos aos movimentos livres, e que estes últimosdiferem sobretudo do s precedentes por nos apresentarem, en -tre a acção exter ior que os ocasiona e a reacção desejada quese segue, uma sensação afect iva intercalada. Poder-se-ia até

imaginar qu e todas as nossas acções fossem automáticas econhece—se aliás u m a inf ini ta variedade de seres organizadosem q ue um a excitação exterior gera u m a reacção determi-nada se m passar po r intermédio da consciência. Se o prazer ea dor se produzem entre alguns privilegiados éprovavelmen-te para autorizar, por sua vez, uma resistência à reacçãoautomática que se produziria; ou a sensação não tem razãode ser, o u é um começo de liberdade. M as como no s permiti-

ria ela resistir à reacção que se prepara, se não nos fizesseconhecer a sua natureza por algum sinal preciso? E que sinalpode ser esse senão o esboço e como qu e preformação dos mo-v i m ent o s automáticos futuros no próprio seio da sensação ex -perimentada? O estado afectivo nã o deve, pois, corresponderapenas ao s abalos, movimentos o u fenómenos físicos que jápassaram, mas a inda e sobretudo aos que se preparam, aosqu e quereriam ser.

Primeiramente, não se vê como é que esta hipótese sim-plifica o problema. É que procuramos o que pode haver dec o m u m entre um fenómeno físico e um estado de consciênciaso b o ponto de vista da grandeza, e parece que nos limitamosa retomar a dificuldade ao fazermos do estado de consciência

presente u m índice da reacção a acontecer, em vez de umatradução física da excitação ocorrida. Contudo, é considerávela diferença entre as duas hipóteses. E porque os abalos mole-culares de que acabámos de falar eram necessariamente in -conscientes, nada destes movimentos poderia subsistir na

sensação que os traduzia. Mas os ríiovimentos automáticos

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que tendem a seguir—se à excitação experimentada, e que

constituiriam o seu prolongamento natural, são provavel-mente conscientes enquanto movimentos: ou, então, a pró-

pria sensação, cujo papel é convidar-nos a uma escolha entreesta reacção automática e outros movimentos possíveis, não

teria nenhuma razão de ser. A intensidade das sensaçõesafectivas seria, pois, apenas a consciência que adquirimos

dos movimentos involuntários que começam, que de algumamaneira se esboçam nestes estados e teriam seguido o seucurso normal, se a natureza nos tivesse transformado em au-tómatos, e não em seres conscientes.

Se este raciocínio tiver fundamento, não se deverá compa-rar uma dor de intensidade crescente a uma nota da escala

que se tornaria cada vezmais sonora, mas antes a uma sinfo-nia, em que se faria ouvir um número crescente de instru-

mentos. No interior da sensação característica, que dá o tomàs restantes, a consciência discriminará uma multiplicidade

mais ou menos considerável de sensações que emanam dosdiferentes pontos da periferia, contracções musculares, movi-

mentos orgânicos de toda a espécie: o acordo destes estadospsíquicos elementares exprime as novas exigências do orga-

nismo, perante a nova situação que se lhe fez. Por outras pa-lavras, avaliamos a intensidade de uma dor pelo interesseque uma parte maior ou menor do organismo nela quis pôr.

Richet(n) observou que uma indisposição se relaciona com

um sítio tanto mais preciso quanto mais fraca for a dor: se se

torna mais intensa, refere-se o todo o membro doente. E con-

clui, afirmando que «a dor se espalha tanto mais quanto maisintensa for»(12). Julgamos que nos devemos debruçar sobre

esta proposição e definir precisamente a intensidade da dorpelo número e extensão das partes do corpo que simpatizam

co m ela e reagem, com total conhecimento da consciência.Bastará, para disso se convencer, ler a notável descrição que

o mesmo autor fez do desgosto: «Se a excitação é fraca, pode

não haver nem náusea nem vómitos... Se a excitação for maisforte, em vez de se limitar ao pneumogástrico espalha—se e

atinge quase todo o sistema da vida orgânica. O rosto torna-

-se pál ido, os músculos lisos da pele contraem-se, a pelecobre—se de um suor frio, o coração suspende as pulsações:

numa palavra, há uma perturbação orgânica geral consecuti-va à excitação da me du l a alongada, e esta perturbação é a

expressão suprema do desgostoX13) — M as nã o será apenasa sua expressão? Em que consiste, portanto, a sensação geral \e desgosto

senão a quantidade sempre crescente de sensações que vêm jjuntar—se às sensações já percepcionadas? Darwin traçou um/

quadro impressionante das reacções consecutivas a uma dorcada ve z mais intensa: «Leva o animal a executar esforçosca -da vez mais violentos e variados para escapar à causa que aproduz... No sofrimento intenso, a boca contrai-se fortemen-

te, os lábios crispam-se, os dentes apertam-se. Ora os olhosse abrem enormes, ora os sobrolhos se contraem fortemente;

o corpo fica banhado em suor; a circulaçãoe a respiração mo -dificam—se.»(14) — N ã o é precisamente po r esta contracção

dos músculos interessados que medimos a intensidade deuma dor? Analisai a ideia que fazeis de um sofrimento que

declarais extremo: não compreendeis assim que ele é insu-portável, isto é, que incita o organismo a variadíssimas ac-

ções, para lhe escapar? Pensa—se que um nervo transmiteuma dor independente de qualquer reacção automática; con-

cebe-se também que excitações mais ou menos fortes in-fluenciam diversamente este nervo. Mas as diferenças de

sensações nunca seriam interpretadas pela vossa consciênciacomo diferenças de quantidade, se com elas nã o relacionás-

seis as reacções mais ou menos extensas, mais ou menos gra-ves, que habitualmente as acompanham. Sem estas reacções

consecutivas, a intensidade da dor seria uma qualidade, enão uma grande dor.

Tamb ém não temos outro meio para comparar entre si

vários prazeres. Que é um prazer maior senão um prazerpreferido? E que pode ser a nossa preferência senão uma

(") Uhomme et fintelligence,p. 36.(*) Ibid, p. 37.

(a) Uhomme et Vintelligence, p. 43.( M ) Expression cies émotions, p. 84.

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determ inada disposiç ão dos nossos órgãos que, na presençasimultânea de dois prazeres ao nosso espírito, faz que o nossocorpo se incline para um deles? Analisai esta mesma in-clinação e aí enco ntrareis incontáveis movim entos que come-çam, se esboçam no s órgãos interessados e até no resto docorpo, como se o organismo se adiantasse ao prazer repre-sentado. Quando se define a inclinação como um movimento,não se trata de uma metáfora. Perante vários prazeres con-cebidos pela inteligência, o nosso corpo orienta-se para um

deles espontaneamente, como por uma acção reflexa. De-pende de nós suspendê-lo, mas o atractivo do prazer não é

mais do que este movim ento iniciado, e a acuidade do prazer,enquanto se desfruta, é apenas a inércia do organismo que aí

se abisma, recusando qualquer outra sensação. Sem esta for-ça de inércia, de que tomamos consciência pela resistênciaque oferecemos a quanto possa distrair-nos, o prazer seriaainda um estado, mas não uma grandeza. No mundo moral,como no mundo físico, a atracção serve mais para explicar omovimento do que para o produzir.

Estudámos à parte as sensações afectivas. Vejamos agora

como muitas sensações representativas têm um carácterafectivo e provocam assim da nossa parte uma reacção, dequ e nos damos conta na avaliação da sua intensidade. Um

aumento considerável de luz traduz—se, para nós, num a sen-sação característica, que ainda não é da dor, mas que apre-senta analogias com o deslumbramento. À medida que a am-plitude da vibração sonora aumenta, a nossa cabeça e, de-

pois, o corpo, dão-nos a impressão de vibrar ou de receberum choque. Certas sensações representativas, as do sabor,odor e temperatura, têm até constantemente um carácteragradável ou desagradável. Entre sabores mais ou menosamargos, discernireis apenas diferenças de qualidade; sãocomo matizes da mesma cor. Mas estas diferenças de quali-

dade interpretam-se de preferência como diferenças dequantidade devido ao seu carácter afectivo e aos movimentosmais ou menos pronun ciado s de reacção, prazer e desgosto,qu e nos sugerem. Além disso, ainda quando a sensação semantém puramente representativa, a sua causa exterior não

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pode ultrapassar um certo grau de força ou de fraqueza, se mprovocar em nós movimentos , que nos servem para a medir .Com efeito, ora temos de esforçar-nos po r percepcionar estasensação, como se nos escapasse; ora, pelo contrário, ela nosinvade, impõe-se-nos, e absorve-nos de tal ma neira que em-pregamos todo o nosso esforço em dela no s l ibertarmos e con-tinuarmos nó s mesmos. A sensação diz-se pouco intensa noprimeiro caso e muito in tensa no outro. Assim, para percep-cionar um som longínquo, para distinguir o que chamamosum cheiro suave e uma luz fraca, emp regamos todos os recur-sos da nossa actividade, «prestamos atenção». E é precisa-mente porque o cheiro e a luz nos forçam a vê sem dificulda-de uma consciência quase vazia de ideias e sensações Es-trangeiros, qu e conversam entre si numa língua que nãocompreendemos, dão-nos a impressão de fa lar muito alto,porque as suas palavras não evocam quaisquer ideias no nos-so espírito, soam no meio de uma espécie de silêncio intelec-tual e chamam a nossa atenção como o tiquetaque do relógiodurante a noite. No entanto, com as sensações ditas médias,

abordamos um a série de estados psíquicos cuja intensidadedeve ter um novo significado. E que, na maior parte do tem-po, o organismo nã o reage, pelo menos aparentemente , e,

contudo, transformamos ainda em grandeza um a altura desom, uma intensidade de luz, uma saturação de cor. Sem dú-vida, a observação minu ciosa do que se passa no conjunto doorganismo quando ouvimos esta ou aquela nota, qu ando per-cepcionamos esta ou aquela cor, reserva-nos uma surpresa:não demonstrou Ch. Fere que toda a sensação é acompanha-da de um aumento de força muscular, mensurável pelo dina-mómetro?( 15 ) Apesar de tudo, este aumen to não impressionaa consciência; e se reflectimos na precisão com que distingui-mos os sons e cores, por exemplo, os pesos e temperaturas,adivinhar—se-á facilmente que um novo elemento da avalia-çã o deve aqui entrar em jogo. A natureza deste elemento é,aliás, fácil de determinar.

Co m efeito, à medida que uma sensação perde o seu carác-ter afectivo para passar ao estado de representação, os movi-

( 1S ) Ch. Fere, Serusation et mouvement, Paris, 1887.

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mentos de reacção, que em nós provocava, tendem a apagar--se; mas também nos apercebemos do objecto exterior que éa sua causa ou, se não o percepcionamos,percepcionámo-lo,e pensamos nisso. Ora, esta causa é extensiva e, por conse-guinte, mensurável: uma exper iência cont ínua, que começoucom os primeiros alvores da consciência e que prossegue po rtoda a nossa existência, mostra-nos um determinado cam-biante da sensação que corresponde a um determinado valorda excitação. Associamos então a uma certa qualidade do

efeito a ideia de uma certa quantidade da causa; e f i na lmen-te, como acontece com toda a percepção adquirida, po mos aideia na sensação, a quant idade da causa na qualidade doefeito. Precisamente nesta altura, a intensidade, que era ape-nas um certo cambiante o u qualidade da sensação, transfor-ma-se numa grandeza. Facilmente se cairá na conta desteprocesso, segurando um alfinete na mão direita, por exemplo,e picando cada vez mais profundamente a m ão esquerda. Pri-meiramente, sentireis uma espécie de cócega, depois, umcontacto a que sucede uma picadela, em seguida, uma dor lo-calizada num ponto, finalmente, uma irradiação desta do rpara a zona circundante. E quanto mais reflectirdes nistome lhor vereis que se encontram aí tantas sensações qualita-tivas distintas quantas as variedades de uma mesma espécie.Contudo, a princípio, faláveis de uma única e mesma sensa-ção, cada vez mais avassaladora, de uma picadela cada ve zmais intensa. É que, sem prestar atenção, localizáveis nasensação da mão esquerda, que foi picada, o esforço progres-sivo da mão direita que a pica. Introduzíeis assim a causa noefeito, e interpretáveis inconscientemente a qualidade pelaquantidade, a intensidade pela grandeza. É fácil ver como aintensidade de toda a sensação representativa se deve esten-de r da mesma maneira.

As sensações de som apresentam—nos graus be m marca-doo vosso espírito quando transform ais a intens idade do somem grandeza. WundtO 6 ) chamou a atenção para as conexõesmuito particulares dos filamentos nervosos vocais e auditivosque se efectuam no cérebro hum ano. Não se disse que ouvir é

C 6) Psycliologie phyitiologique, trad. fr., t. II, p. 497.

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falar a si próprio? Certos neuropatas nã o podem assistir auma conversa sem m exere m os lábios; é apenas um exagerodo que se passa em cada um de nós. Compreender—se—ia opoder expressivo, ou antes, sugestivo da mús ica, se não seadmitisse que repe timos interiorm ente os sons ouvidos, demodo a colocar-nos no estado psicológico de que saíram, esta-do original, que não se pode expressar, mas que os movim en-to s adoptados pelo conjunto do nosso corpo no s sugerem?

Qua ndo falamos da in tensidade de um som de força médiacomo de uma grandeza, fazemos, pois, sobretudo alusão a ummaior ou menor esforço a fornecer para obter novamente amesm a sensação audi tiva. Mas, além da intensidade, distin-guimos outra prop r iedade característica do som, a altura. Asdiferenças de altura, como o nosso ouvido as percepciona, se-rão diferenças quantitativas? Concordamos em que umaacuidade superior do som evoca a imagem de uma situaçãomais elevada no espaço. Mas depreende—se daqui que as no-tas da escala, enquanto sensações auditivas, diferem de ou-tro modo além da qualidad e? Esquecei o que a física vos en-sinou, analisai cuidadosamente a ideia que tendes de umanota mais ou menos alta, e dizei se não pensais muito sim-plesmente no maio r ou menor esforço que o músculo tensordas vossas cordas vocais teria de fornecer para, por sua vez,dar a nota? Como é descontínuo o esforço pelo qual a vossavo z passa de uma nota à seguinte, representais as notas su-cessivas como pontos do espaço que esperaríamos, um apósoutro, po r saltos bruscos, transpondo de cada vez um interva-lo vazio que os separa: e é por isso que estabeleceis intervalosentre as notas da pauta. Resta, é claro, saber por que é que al i nha em que as escalonamos é vertical e não horizontal, epor que dizemos que o som sobe em certos casos e desce nou-tros. É incontestável que as notas agudas nos parecem pro-duzir efeitos de ressonância na cabeça, e as notas graves nacaixa torácica; esta percepção, real ou ilusória, contribui semdúvida, para nos levar a contar verticalmente os intervalos.

Mas também importa observar que, quanto mais considerá-ve l é o esforço da tensão da s cordas vocais na voz de peito,maior é a superfície do corpo que nela se interessa no cantorinexperiente; é me smo por isso que o esforço é por ele experi-mentado como mais in tenso. E como expira o ar de baixo pa-

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rã cima, atribuirá a mesma direcção ao som que a correntede ar produz; é, pois , por um m ov i m e n to de baixo para cimaque se traduzirá a simpatia de uma maior parte do corpo comos músculos da voz. Diremos então que a nota é mais alta,porque o corpo faz um esforço como se fosse atingir um objec-to mais elevado no espaço. Contraiu-se assim o hábito deapontar uma altura para cada nota da escala, e quando o fí-sico a conseguiu def ini r pelo número de vibrações a que cor-responde num determinado tempo, não hesitámos mais em

dizer que o nosso ouvido percepciona directamente as dife-renças de quantidade. Mas o som ficaria qualidade pura, sene le não introduzíssemos o esforço muscular que o produz,ou a vibração que o expl ica .

As recentes experiências de Blix, Goldscheider e Donald-son( 17 ) mostraram que não são os mesmos pontos da superfí-ci e do corpo que sentem o frio e o calor. A psicologia inclina--se, portanto, a estabelecer desde agora, entre as sensaçõesde quente e frio, uma distinção de natureza, e não de grau.Mas a observação psicológica vai mais longe, porque umac on s c i ê n c i a atenta encontraria sem di f i cu ldade diferenças es-pec íf i cas entre as diversas sensações de calor, c om o tambémentre as sensações de frio. Um calor mais intenso é realmen-

te outro calor. Dizemos mais intenso porque inúmeras vezesexperimentámos a mesma alteração quando nos aproxima-m os de uma fon te calórica, ou quando uma ampla superfíciedo corpo é por ela afectada. Além disso, as sensações de calore de fr io depressa se tornam afectivas, e provocam então emnó s reacções mais ou menos acentuadas que a sua causa ex-terior: c om o não estabeleceríamos diferenças quantitativasanálogas entre as sensações que correspondem a potênciasintermédias desta causa? Não vamos insistir mais nisto; cabea cada um interrogar-se escrupulosamente sobre este ponto,fazendo tábua rasa de tudo o que a sua experiência passadalhe ensinou sobre a causa da sua sensação, colocando—sefrontalmente a essa mesma sensação. O resultado de tal exa-

m e não nos parece duvidoso:depressa nos aperceberemos deque a grandeza da sensação representativa deriva de se tro-

(") On the temperatura sense,Mind, 1885.

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car o efeito pela causa, e a i n t e n s i d a d e d o elemento afectivodeve—se à in trodução na sensação dos m ov i m e n tos de reacçãomais o u menos i m por t a n t e s qu e cont inuam a excitação exte-rior. Solicitaremos o mesmo exame para as sensações depressão e até de peso. Qu a n d o dizeis que uma pressão exerci-da sobre a mão se torna cada vez mais forte, vede se, com is-so, não representais senão o contac to tornado pressão, depoisdor, e que esta mesma dor, após ter passado por várias fases,se espalhou po r toda a zona circundante. Vede ainda, vedesobretudo se não in troduzis o esforço antagonista cada ve zmais intenso, que opondes à pressão exterior. Quando o psi-cofísico levanta um peso mais pesado, experimenta, d iz ele,um aumento de sensação. E x a m i n a i se este aumento de sen-sação não deveria antes chamar-se uma sensação de aumen-to. Todo a questão reside aí, porque, no primeiro caso, a sen-sação seria uma quantidade, como a sua causa exterior, e, nosegundo, uma qual idade , tornada representativa da grande-za da sua causa. A dis t inção entre o pesado e o leve poderáparecer também retardada, tão natural como a do quente edo frio. Mas a própria naturalidade desta distinção faz delauma realidade psicológica. E não são apenas o pesado e o le-

ve que constituem para a nossa consciência géneros diferen-tes, mas os próprios graus de leveza e de peso são outrasduas espécies destes dois géneros. Há que acrescentar que adife rença de qua l i da de se traduz aqui espontaneamente pordiferença de quantidade,devido ao esforço mais ou menos ex -tenso que o nosso próprio corpo fornece para levantar um da-do peso. Facilmente vos convencereis se vos pedirem para le-vantar um cesto que vos disseram estar cheio de ferro velho,quando na realidade está vazio. Pensareis perder o equilíbrioao pegar-lhe, c o m o se músculos estranhos estivessem anteci-padamente interessados nessa operação e sofressem umabrusca decepção. É sobretudo pelo número e natureza destesesforços simpáticos, efectuados em diversos pontos do orga-

nismo, que medireis a sensação de peso num determinadop o n to ; e esta sensação não passaria de uma qualidade se as-sim nela não introduzísseis a ideia de uma grandeza. O que,por outro lado, corrobora a vossa ilusão sobre este ponto é ohábito adquirido de acreditar na percepção imediata de ummovimento homogéneonu m espaço homogéneo. Quando c om

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o braço levanto um peso leve, e todo o resto do meu corpo per-manece imóve l, exper im ento uma sér ie de sensações mu s-culares, tendo cada uma o seu «sinal local», o seu cambian tepróprio: é esta sér ie que a m inh a consciência interpreta nosentido de um mo v im en to co n t ínuo no espaço. Se a seguir le -vantar à m e s m a altura e com a m e s m a ve loc idade um pesomais pesado , passarei por uma nova série de sensações mus-culares, em que cada um a dife re do termo correspondente dasérie precedente: disto m e convencerei se m custo se as exa-

minar bem. Mas como também in terpreto esta nova série nosent ido de um mo vime nto cont ínuo , dado que estemo vimen-to tem a mesma di recção , a mesm a dur ação e a mesma velo-cidade que a precedente, torna-se necessário que á m i n h aconsciência localize noutro lado , e não no própr io movimento ,a di ferença entre a segunda série de sensações e a primeira.Ela materializa, então, esta di ferença na extremidade d o bra-ço que se move; persuade-se de que a sensação do movim en-to foi idêntica nos do is casos, enqu anto a sensação de peso di-feria de grandeza. Mas o mo vim ento e o peso são distinçõesda consciência reflexa: a consciência imediata tem a sensaçãode um mo vimen to d e alguma maneira pesado e esta mesmasensação reduz—se à anál ise numa sér ie de sensações mus-

culares, de que cada um a representa, pela su a gradação, o lu-ga r o nde se produz, e pelo seu color ido , a grandeza do pesoque se levanta.

Chamaremos quant idade ou trataremos como um a quali-dade a in tensidade da luz? Talvez ainda não se tenha notadoa mul t idão de elementos tão diferentes que, na vida diária,concorrem para no s i n f o r mar quan to à natureza d a fonte lu -minosa. Sabemos há muito que determinada luz está apaga-da , ou quase a apagar-se, quando temos di f iculdade em lhedistinguirmos os contornos e os pormenores dos objectos. Aexperiência ensinou-nos que era necessário atribuir a um

poder superior a causa desta sensação afectiva, prelúdio dodeslumbramento , qu e exper imentamos em certos casos. As

arestas dos corpos não se destacam da mesma maneira,comotambém não as sombras que projectam, segundo se aumentaou d i m i n u i o númer o de fontes luminosas. Mas há que darainda um lugar mais amplo , julgamos nós, às mudanças d etonalidad e verif icad as nas superfícies coloridas — mesmo as

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cores puras d o espectro — sob a inf luênc ia de uma lu z mai sfraca ou mai s b r i l han te . À m e d i d a que a fonte se apr o x ima , ovioleta adqu i r e um tom azu l ado , o verde tende para o amare-lo esbranquiçado e o vermelho para o amarelo br i lhante. In -ver samen te , quand o a luz se afasta, o azul-marinho passa avioleta, o amarelo a verde; f ina lmente , o vermelho, o verde eo vio leta aproximam-se d o amarelo esbranquiçado . Estas

m u d a n ç a s d e tonal idade haja algum tempo que foram apon-

tadas pelos físicosC8); mas o que, na nossa opinião , é t ambémd igno de nota é que a ma ior par te dos home ns não se aperce-be disto, a não ser que estejam atentos ou sejam avisados.Decididos a interpretar as m u d a n ç a s d e qual idade em mu-danças de quan t i dade , começamos po r estabelecer o princípiode que todo o objecto tem a sua cor própr ia , determinada einvar iável. E quand o a tonal idade dos objectos se aproximardo amarelo ou do azul , em vez de d i z e r qu e vemos a sua corm u d a r sob a influência de um acréscimo ou de d im inu i ção dei luminação, a f i r mar emo s que esta cor permanece a mesma,mas que a nossa sensação d e in tensidade luminosa aumentaou dim inui . Substi tuímos ainda, po is, pela im pressão qual i -tativa que a nossa c onsc iência recebe a interpretação quanti-

tativa que o nosso entendim ento lhe empresta. Helmhol tz as -sinalou um fenómeno d e in terpretação d o mesmo género ,mas ainda mais compl icado: «Se se compuser o branco co mduas cores espectrais, e se aumen ta r mo s ou diminu.irmos namesma proporção as in tensidades das duas luzes cromáticasd e tal mane i r a que as proporções da mistura permaneçam as

mesmas , a cor daí resultante será a mesma, a i nda que a rela-çã o d e in tensidade d as sensações mude consideravelmente. . .Isto deve—se a que a luz solar, qu e consideramos como sendoo branco normal , durante o d ia , exper imenta também, quan-do a intensidade lumino sa varia, modificações análogas nasua gradação.»( 19)

Apesar de tudo, se muitas vezes avaliamos as variaçõesda fo nte luminosa pelas m uda nças relativas d a cor dos objec-

tos que nos ci rcundam , i sto já não acontece no s casos sim-

(1S ) Rood, Théorie scicntifique dês couleurs, pp. 154-159.(19 ) Optique physialogique, trad. fr., p. 423.

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pies, em que um objecto único, um a superfície branca po rexemplo, passa sucessivamente por diversos graus de lumi-nosidade. Devemos nsistir muito especialmente neste último

ponto. A física fala, de facto, do s graus de intensidade lumi-nosa como de quantidades verificáveis: não é verdade que semedem com o fotómetro? O psicofísico vai ainda mais longe:pretende que a nossa própria vista avalie as intensidades da

luz. Tentaram-se experiências, em primeiro lugar por Del-

boeufX 20 ) e, depois, por Lehm ann e Neiglickí21 ), para estabele-ce r uma fórmula psicofísica sobre a medição directa das nos-sas sensações luminosas. Não contestaremos os resultados

destas experiências, nem o valor dos processos fotométricos;mas tudo dependeda interpretação que se lhes dá.

Observai co m atenção um a folha de papel iluminada po rquatro velas, por exemplo, e apagai sucessivamente uma,

duas, três delas. Dizeis que a superfície continua branca eque a sua claridade diminui. Sabeis com efeito, que se acaba

de apagar uma vela; ou, se não sabeis, reparastes muitas ve-ze s numa mudança análoga no aspecto de uma superfície

branca quando se diminui a iluminação. Mas ponde de ladoestas recordações e os vossos hábitos de linguagem: o que

realmente percepcionastes não foi uma diminuição da super-fície branca, mas um sombreado qu e passou pela superfície

quando se apagou a vela. Esta sombra é uma realidade paraa vossa consciência, como a própria luz. Se chamardes bran-

ca à superfície primitiva co m todo o seu brilho, haverá qu edar outro nome ao que vedes, porque é outra coisa: seria, se

assim se pode falar, um novo matiz do branco. Será necessá-rio dizer tudo agora? Habituámo—nos, pela nossa experiência

passada, e também em virtude das teorias físicas, a conside-rar o preto como um a ausência ou , pelo menos, como um mí-nimo de sensação luminosa, e os cambiantes sucessivos docinzento como intensidades decrescentes da luz branca. Pois

bem, o preto tem tanta realidade para a nossa consciênciacomo o branco, e as intensidades decrescentes da luz branca

í20 ) Êléments de psydwphysique, Paris, 1883.( 2 I ) Ver o resumo destas experiências na Revue philosophique,

1887,1.1, p. 72, e t. II, p. 180.

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i luminando um a determinada superfície seriam, para um aconsciência não prevenida, outros tantos matizes diferentes,bastante parecidos com as diversas cores do espectro. O quedemonstra isto bem é que a m udança não é contínua na sen-sação e na sua causa exterior, é que a luz pode crescer ou di-minui r durante um certo tempo sem que a i luminação danossa superfície no s pareça mudar: só parecerá mudar, defacto, quando o aumento ou a diminuição da luz exterior fo -re m suficientes para criar um a nova qualidade. A s variações

de brilho de uma cor determinada — abstraindo da s sen-sações afectivas, de que acima se falou — reduzir-se—iam,portanto, a mudanças qualitativas, se não tivéssemos adqui-rido o hábito de pôr a causa no efeito e de substituir a nossa

impressão natural pelo que a experiência e a ciência nosensinam. Dir—se-ia que se trata de outros tantos graus de

saturação. Com efeito, se as diversas intensidades de umacor correspondem a outros tantos matizes diferentes com-

preendidos entre esta cor e o preto, os graus de saturação sãocomo matizes intermédios entre esta mesma cor e o branco

puro. Poderíamos dizer que toda a cor se pode ver sob um du-plo aspecto, sob o ponto de vista preto e sob o do branco. O

preto seria para a intensidade o que o branco é para a satu-ração.

Compreender-se-á o sentido da s experiências fotométri-cas. Uma vela, colocada a uma certa distância de uma folhade papel, i lumina-o de uma certa maneira: duplicai a distân-cia, e verificareis que são necessárias quatro velas para des-

pertar em vós a mesma sensação. Daqui concluís que, se ti-vésseis duplicado a distância sem aumentar a intensidade da

fonte luminosa, o efeito de i luminação teria sido quatro vezesmenor . Mas é evidente qu e aqui.se trata do efeito físico e nãopsicológico. Não se pode, pois, dizer qu e comparámos duassensações entre si: utilizámos uma única sensação, para com-

parar entre si duas fontes luminosas diferentes, a segunda

quádrupla da pr imeira , m as duas vezes mais distante do queela. Numa palavra, o físico nunca fa z intervir sensações du -plas ou triplas uma das outras, mas apenas sensações idên-

ticas, destinadas a servir de intermediárias entre duas quan-tidades físicas que poderemos então igualar uma à outra. A

sensação luminosa desempenha aqui o papel da s incógnitas

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auxiliares que o matemático introduz nos seus cálculos, e que

desaparecem no resultado final.O objectivo do psicofísico é totalmente diverso: é a própria

sensação luminosa que ele estuda e pretende medir. Ora pro-cederá a uma integração de diferenças infinitamente peque-nas, segundo o método de Fechner; ora comparará directa-mente uma sensação comoutra. Este úl t imo método, da au-

toria de Plateau e Delboeuf, difere, muito menos do que sepensou até agora, do de Fechner; mas, como se relaciona

mais particularmente com as sensações luminosas, dele nosocuparemos em primeiro lugar. Delboeuf põe um observadorperante três anéis concêntricos c om i luminação variável. U mdispositivo engenhoso permite—lhe fazer passar cada um des-tes anéis por cores intermédias entre o branco e o preto. Su-ponhamos duas destas cores cinzentas simultaneamente pro-duzidas nos dois anéis e conservadas inalteráveis; chamar--Ihes-emos A e B, por exemplo. Delboeuf varia a i luminaçãoC do terceiro anel, e pede ao observador que lhe diga se, numdeterminado momento, a cor cinzenta B lhe parecia igual-mente distante das outras duas. Chega uma altura em queeste declara o contraste ABigual ao contraste BC; de tal ma-

neira que se poderia construir, segundo Delboeuf, uma escala

de intensidades lum inosa s em que se passaria de cada umadas sensações à seguinte por contrastes sensíveis iguais: asnossas sensações medir-se— iam assim umas pelas outras.

Não acompanharemos Delboeuf nas conclusões extraídasdestas brilhantes experiências: a questão essencial, a únicaquestão, para nós, é saber se um contraste AB,formado peloselementos A e B, é realmente igual a um contraste BC, com-posto de maneira diferente. No dia em que se tiver estabele-cido que duas sensações podem ser iguais sem ser idênticas,

estaria fundada a psicofísica. Mas é esta igualdade que nosparece contestável: de facto, é fácil explicar como uma sensa-

ção de intensidade luminosa se pode dizer que está a igualdistância das outras duas.

Suponhamos por um instante que, após o nosso nascimen-to , as variações de intensidade de uma fonte luminosa tives-sem sido traduzidas para a nossa consciência pela percepçãosucessiva das diversas cores do espectro. Não há dúvida que

estas cores nos apareceriam então como outras tantas notas

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da escala, como graus m ais ou menos elevados numa escala,como grandezas , numa palavra . Por outro lado, ser-nos-iafácil indicar para cada uma o seu lugar na série. Com efeito,

se a causa extensiva varia de uma maneira contínua, a sen-sação colorida muda de um modo descontínuo, passando deum matiz a outro. Po r mais numerosos qu e possam ser, pois,os matiz es interm édio s entre du as cores A e B, poderemossempre contá-las, pelo men os grosseiramente, com o pensa-mento, e verificar se este núme ro é quase igual ao dos ma-

tizes qu e separam B de outra cor C. Neste últim o caso, dir--se-á que B está a igual distância de A e C, que o contraste é

o me smo de uma e de outra parte. Mas não passaria de umainterpretação cómoda: pois, apesar de o número de matizesintermédios ser igual dos dois lados, apesar de se passar deum para outro por saltos bruscos, não sabemos se estes sal-tos são grandezas, nem grandezas iguais: sobretudo, serianecessário mostrar que os intermédios qu e serviram de medi-da se encontram de algum modo no seio do objecto medido.Caso contrário, é apenas por metáfora que uma sensação se

poderá dizer que está a igual distância das outras duas.Ora, se nos lembrarmos do que antes dissemos sobre as

intensidades luminosas, reconheceremos que as diversas to-

nalidades cinzentas apresentadas por Delboeuf à nossa ob-servação são, para a nossa consciência, completamente aná-logas às cores, e se declaramos uma tonalidade cinzentaequidistante das outras duas tonalidades cinzentas, é nomesmo sentido em que se poderia dizer que o alaranjado, porexemplo, está a igual distância do verde ou do vermelho. Sóque existe a diferença de que, em toda a nossa experiênciapassada, a sucessão das tonalidades cinzentas se produziu apropósito de um aumento ou de uma diminuição progressivade i luminação. Daí qu e façamos para as diferenças de brilhoo que não pensamos fazer para as diferenças de coloração:transformamos as mudanças de qualidade em variações degrandeza. Aliás, a medição é fácil porque os matizes sucessi-

vos do cinzento produzidos pela diminuição contínua de ilu-minação são descontínuos, visto serem qualidades, e pode-mo s contar aproximativamente os principais intermédios qu esepararam dois deles. O contraste AB declarar-se-á, pois,igual ao contraste BC quando a nossa imaginação, ajudada

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pela memór ia , in terpor de uma e de outra parte idênt icospontos de par t ida. Aliás, esta apreciação deverá ser das m ai sgrosseiras, e pode prever—se que variará consideravelmenteco m as pessoas. Sobretudo, é de esperar que as hesitações eos desvios de apreciação sejam tanto mais acentuados quantomais se aumentar a diferença de br i lho entre os ané is A e B,porque será necessário um esforço cada vez maior para ava-liar a quant idade de tonalidades intercalares. É exactamenteo que acontece, e disto no s convencerem os sem dificu ldade,ao lançarmos uma vista de olhos pelos dois quadros elabora-dos por Delbouefl 22 ). À medida que aumenta a di ferença en-tre o anel exterior e o médio, o desajuste entre as medidasem que se detém sucessivamente um observador ou observa-dores diferentes, aumenta de um a maneira quase cont ínuade 3 graus para 94, de 5 para 73, de 10 para 25, de 7 para 40.

M as deixemos de lado estes desajustes; suponhamos que osobservadores estão sempre de acordo consigo próprios, sem-pre de acordo entre eles; ter-se-ia estabelecido que os con-trastes AB e BC são iguais? Primeiramente, seria necessárioprovar qu e dois contrastes elementares sucessivos sã o quan-tidades iguais, e apenas sabemos que são sucessivos. Emseguida, haver ia que ter estabelecido que se encontramnuma dada tonal idade cinzenta as tonalidades infer iores pe -las quais a nossa imaginação passou a aval iar a in tensidadeobjectiva da fonte luminosa. Num a palavra , o psicofísico Del-boeuf supõe um postulado teórico da mais alta impor tância ,em vão dissimulado na s aparências exper imentais , qu e for-mularíamos assim: «Quando se aumenta de uma maneiracontínua a quantidade objectiva de luz, as diferenças entre

as tonalidades cinzentas sucessivamente alcançadas, diferen-ças que traduzem, cada qual, o menor acréscimo percepcio-nado da excitação física, sã o quantidades iguais entre si. Emais ainda: pode igualar-se qualquer uma das sensações ob -tidas com a soma das diferenças, que separam entre si assensações anteriores, após a sensação nula.» — Ora, é preci-samente o postulado da psicofísica de Fechner , que vamos

examinar .

Éléments de psyc/wlogie. pp. 61 e 69

Fechner par t iu de uma lei descoberta po r Weber, segundoa qual , dada uma cer ta excitação provocando de t e r m i n adasensação, a qua nt ida de de excitação que é necessário acres-centar à primeira para que a consciência se aperceba de umam udan ça estará com ela num a constante re lação. Assim, de -signando por E a excitação que corresponde à sensação S, epor E a quan t idade de excitação da mesma natureza queé necessário acrescentar à pr imeira para que uma sensação

de di ferença se produ za, teríamos — = const. Esta fórmulaE

foi p r o fun damen te alterada pelos discípulos de Fechner: nã ointervi remos no debate; cabe à experiência decidir entre a re-lação estabelecida po r Weber e as que a substituem. Aliás,nã o teremos qualquer dificuldade em admit i r a existênciaprovável de um a lei deste género. Com efeito, não se trata demedir a sensação, mas apenas de determ inar o momen toexacto em que um acréscimo de excitação a faz alterar. Ora,se uma determinada qu ant idade de excitação produz um ma-ti z determinado de sensação, é claro que a quant idade m íni-ma de excitação exigida para provoca r uma alteração destematiz é t am b ém de t e r m i n ada ;e já que não é constante, deveestar em função da excitação a que se acrescenta. — M as

como passar de uma relação entre a excitação e o seu acrésci-m o m í n i m o , para uma equação que relaciona a «quant idadeda sensação» com a excitação correspondente? Toda a psicofí-sica está nesta passagem, que impor ta estudar atentamente.

Distinguiremos vários artifícios diferentes na operaçãopela qual se passa, das experiências de Weber ou de qualqueroutra série de observações análogas, para uma lei psicofísicacomo a de Fechner. Convém, antes de mais, considerar comoum acréscimo da sensaç ão S a consciên cia que temos de umacréscimo de excitação; chamar-lhe-emos, portanto, S. Aseguir, estabelece—se como princípio qu e todas as sensaçõesS correspondentes ao menor acréscimo perceptível de uma

excitação sã o iguais entre si . Tratam-se, então , como q uan t i -

dades, e estas quant idades sendo por um lado sempre iguaisen q uan t o , p or outro , a experiência no s demons t rou ent re aexcitação E e o seu acréscimo mín imo uma certa relação

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A EE=/ (E), exp r ime— se a constante S escrevendo: S = C — v

sendo C uma quantidade constante. Finalmente, convémsubstituir as dife renças muito pequenas S e E pelas dife-renças infinitamente pequenas d S e d E, obtendo-se assim

d Fuma equação diferencial: d S = C ~ . Então, só faltará in-

tegrar estes dois memb ros para obter a relação procuradaf23 ):

S = C J .~ ~ E passar-se-á de uma lei ver if icada , em que só* af (Jti)

a aparição da sensação estava em causa, para uma lei inveri-ficável, que lhe proporciona a m e d ida .

Sem entrar numa discussão aprofundada desta engenho-

sa operação, mostremos, em poucas palavras, como Fechner

captou a verdadeira dif iculdade do problema, como tentou ul-

trapassá-la, e onde reside, na nossa op in i ã o , o vício do seuraciocínio.

Fechner compreendeu que não se poderia introduzir a me-

dida em psicologia sem pr imeiro def inir a igualdade e a adi-ção de dois estados simples, de duas sensações, por exemplo.Por outro lado, a não ser que fossem idênticas, não se vê, em

primeiro lugar, como duas sensações seriam iguais. Sem dú-

vida, no mundo f í s ico, igualdade não é s inó n im o de identida-

de. Mas nele, todo o f enómeno, todo o objecto se apresentasob um duplo aspecto, um qualitativo, e outro extensivo: na-

da impede abstrair do primeiro, e não f icam senão termos

com possibilidade de serem sobrepostos directa ou indirecta-

mente e, por consequência, de todos se identif icarem. Ora, o

elemento qualitativo, que começamos por eliminar das coisas

anteriores para tornar a sua medida possível, é precisamente

o que a psicofísica retém e pretende medir. E é em vão que

ela procuraria avaliar esta qualidade Q mediante alguma

quantidade física Q' situada abaixo dela; porque importaria

ter mostrado previamente que Q é função de Q' e isto só

poderia fazer-se se, em primeiro lugar, não se tivesse a qua-

( M ) Nos casos particulares em que se admite, sem restrição daE Vlei de Weber — = coiist., a integração dá S = C log - — , sendo QE , Q

uma constante. E a «lei logarítmica» de Fechner.

lidade Q com alguma fracção de si própr ia . Ass im, nadaimpe d i r ia m ed i r a sensação de calor com o grau de tempe-ratura; mas isto não passaria de uma convenção, e a psicofí-sica consiste precisamente em rejeitar esta convenção e emprocurar como a sensação de calor va r ia quando var ia a tem-peratura. Em síntese, parece que duas sensações diferentesnão se podem dizer igua is a não ser que algum fundo idênt icopermaneça após a el iminação da sua diferença qualitativa; e,

por outro lado, visto qu e esta diferença qual i ta t iva é tudo oqu e sentimos, não se vê o que poderia subsistir, uma vez elae l iminada .

A or ig inal idade de Fechner está em não te r jogado insup e-ráve l esta dificuldade. Aprove itando-se do facto de a sensa-çã o variar po r saltos bruscos quando a excitação cresce deum a maneira contínua , nã o hes itou em designar estas dife-renças de sensação com o me smo nome : são diferenças míni-

mas, co m efeito, porque cada um a corresponde ao me noracréscimo perceptível da excitação exterior. Po r conseguinte,pode is abstrair do matiz ou qualidade específica destas dife-renças sucessivas; um fundo comum permanecerá medianteo qual se ident if icarão de a lguma m ane ira como um todo: sãomínimas uma s e outras. Eis a definição procurada da igual-dade. A da adição seguir—se-lhe-á natura lmente . É que , setomamos como um a quant idade a dife rença percepc ionadapela con sciência entre duas sensações que se sucedem ao lon-go de um acréscimo contínuo de excitação, se c ha ma rmos àpr ime i ra S e à segunda S + S, deveremos cons iderar toda a

sensação S como um a soma, obtida po r adição da s diferençasmín ima s por que se passa antes de a atingir. Não nos restaráentão mais nada senão utilizar esta dupla definição para es-tabelecer uma relação, primeiro, entre as diferenças S e E

e, depois, por inte rmédio das diferenciais, entre as duas va-riáveis. E verdade que os matemáticos poderão aqui protes-

tar contra a passagem da diferença à dife renc ia l ;ospsicólo-gos interrogar-se—ao se a quant idade S, em vez de ser cons-tante, não variará como a própria sensação S(24): finalmente,vamos discutir sobre o verdadeiro sentido da lei psicofísica,

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(*) Nestes últimos tempos supôs-se S proporcional a S.

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uma vez estabelecida. Mas só pelo facto de considerarmos Scomo um a quantidadee S como uma soma é que se admite opostulado fundamental da operação inteira.

Ora, é este postulado que nos parece contestável, e atémuito pouco inteligível. Imagine-se qu e experimento um asensação S e que, ao fazer aumentar a excitaçãode uma ma-neira cont inua, me dou conta deste acréscimo ao fim de certotempo. Eis que me apercebi do acréscimo da causa: mas querelação estabelecer entre esta prevenção e uma diferença?

Se m dúvida, aqui a adver tência consiste n o facto de o estadopr imit ivo S ter mudado; tornou-se S'; mas, para que a passa-gem de S a S' fosse comparável a uma diferença aritmética,seria necessário que tivesse consciência, por assim dizer, deum intervalo entre S e S', e que a minha sensibilidade subis-se de S para S' com a adição de qualquer coisa. Atribuindo aesta passagem um nome, chamando-se-lhe S, fazeis dela,antes de mais, uma realidade e, depois, uma quantidade.Ora, não somente não podeis explicar em que sentido estapassagem é uma quantidade, mas aperceber—vos-eis, reflec-tindo sobre ela, que nem sequer é uma realidade; só os es-tados S e S', por que se passa, é que são reais. Decerto, se S eS' fossem números, poder ia af i rmar a realidade da diferençaS' — S, ainda quando S e S' fossem os únicos dados: é que onúmero S' — S, que é uma certa soma de unidades, represen-tará precisamente então os momentos sucessivos da adiçãopo r que se passa de S a S'. Mas se S e S' são estados simples,em que consistirá o intervalo que os separa? E que será, pois,a passagem doprimeiro estado para o segundo senão um actodo vosso pensamento, que assimila arbitrariamente, e pornecessidade da causa, uma sucessão de dois estados a umadiferenciação de duas grandezas?

Ou vos limitais ao que a vossa consciência vos proporcio-na, ou lançais mão de um modo de representação convencio-nal. No pr imeiro caso, encontrareis entre S e S' uma diferen-ça análoga à dos matizes do arco—íris, e nenhum intervalo degrandeza. No segundo, podereis introduzir o símbolo S, se

quiserdes, mas será por convenção que falareis de diferençaaritmética, por convenção também que assimilareis uma da-da sensação a uma soma. O mais arguto dos críticos de Fech-ner, Jules Tannery, elucidou plenamente este último ponto:

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«Dir-se-á, po r exemplo , que uma sensação de 50 graus é ex-pressa pelo número de sensações diferenciais que se sucede-riam após a ausência de sensação até à sensação de 50graus... Não vejo aqui outra coisa senão uma definição, tãolegítima como arbitrária.»( zr >)

Não acreditamos,p o r muito que se tenha dito, que o méto-do das graduações médias tenha feito entrar a psicofísica nu-ma nova via. A originalidadede Delboeuf esteve em escolherum caso particular em que a consciência parecia dar razão a

Fechner, e o nde o própr io senso comum fo i psicofísico. Inter-rogou-se se certas sensações não nos apareciam imediata-mente como iguais, embora diferentes, e se não se poderiaestabelecer, por seu intermédio, um quadro de sensações du -plas, triplas, quádruplas umas das outras. O erro de Fech-ner, dizíamos nós, era ter acreditado num intervalo entreduas sensações sucessivas S e S', quando de uma para outraapenas há uma passagem, e não uma diferença no sentidoaritmético da palavra. Mas se os dois termos entre os quaisse efectua a passagem pudessem ser dados simultaneamente,então haveria um contraste, além da passagem; e ainda queo contraste não seja ainda uma diferença aritmética, asseme-lha-se em determinado aspecto; os dois termos que se com-

param estão um perante o outro como numa subtracção dedois números. Suponhamos agora que estas sensações são damesma natureza e que constantemente, na nossa experiênciapassada, assistimos à sua desfilada, por assim dizer, enquan-to a excitação física crescia de uma maneira contínua: é mui-tíssimo provável que poremos a causa no efeito e que a ideiade contraste virá a fundir-se na de diferença aritmética. Poroutro lado, porque já observámos que a sensação mudavabruscamente enquanto o progresso da excitação era contínuo,avaliaremos sem dúvida a distância entre duas determina-das sensações pelo número, grosseiramente reconstituído,destes saltos bruscos, ou pelo menos das sensações intermé-dias que normalmente nos servem de escalões. Em síntese, ocontraste aparecer-nos-á como uma diferença, a excitaçãocomo um a quantidade, o salto brusco como um elemento de

(2S ) Revue scientifiijue, Í3 de Março e de 24 de Abril de 1875.

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igualdade; co m b i n an d o estes três factores, chegaremos àideia de diferenças quantitativas iguais. Ora, n u n c a estascondições estão tão bem realizadas como em superfícies dam e s m a cor, mais o u m e n o s iluminadas, que se nos apresen-tam simultaneamente. Não só a q u i há contraste entre sensa-ções análogas, mas estas sensações correspondem a uma cau-sa cuja inf luência sempre nos pareceu estreitamente ligada àdistância; e como esta distância pode variar de uma maneiracont ínua, devemos ter notado, na nossa experiência passada,

um a enorme quantidade de matizes de sensações a suce-derem—se ao longo de um acréscimo contínuo da causa. Por-tanto, poderemos dizer que o contraste d e uma primeiratonalidade cinzenta com uma segunda, por exemplo, nos pa-rece quase igual ao contraste da segunda com a terceira; e sese definissem duas sensações iguais dizendo que são sen-sações que um raciocínio, mais ou menos confuso, interpretacomo tais, obter—se—á, de facto, uma lei como a proposta po rDelboeuf. Mas não se deverá esquecer que a consciência pas-so u pelos mesmos intermediários que o psicofísico, e que asu a apreciação vale tanto aqui como a psicofísica: é uma in-terpretação simbólica da qualidade em quantidade, uma

apreciação mais o u menos grosseira do número d e sensaçõesqu e se poderiam intercalar entre duas determinadas sensa-ções. Portanto, a diferença não é assim tão considerável comose pensa eatre o método das modificações mínimas e o dasgraduações médias, entre a psicofísica de Fechner e a de Del-boeuf. A primeira desemboca numa medida convenciona l dasensação; a segunda apela para o senso comum nos casosparticulares em que se adopta uma convenção análoga. Emsíntese, toda a psicofísica está condenada pela sua própriaorigem a girar num círculo vicioso, porque o postulado teóricoem que assenta condena-a a uma verificação experimental, eel a não pode verificar—se experimentalmente a não ser quese admita previamente o seu postulado. É que não há ne-

n h um contacto entre o intenso e o extenso, entre a qualidadee a quantidade. Interpretar—se uma pela outra, transformarum a noutra equivalente; mas, mais tarde ou mais cedo, noprincípio ou no fim, há que reconhecer o carácter convencio-na l desta assimilação.

E m boa verdade, a psicofísica nada mais fez do que formu-lar com precisão e l evar até às suas últimas consequênciasuma concepção famil ia r ao sentido comum. Como fa lamosm a i s do que pensamos, visto qu e também os objectos exterio-res, que são do domínio c om u m , têm mais importância paranó s do que os estados subjectivos po r gue passamos, temostodo o interesse em oJbjectij^rJ^.^st5jfisjntrodiózindo ne -les, na maior escala possível, a representação da sua causaexter ior . E quanto mais os nossos cpnhecímentos ãúmenlam,

mais no s apercebemos d^extensiyo po r detrás^do Jjitensivo,da quantidadeporjetrás da quj] idade>jnais_tendemos tam-bé m a pôr ó pnrn]eirgjbermgjno Jugar do sggundpea lidar

" ~cujo papel é precisamente submeter ao cálculo a causa ex -terior dos nossos estados internos, preocupa-se o menospossível com estes estados: contínua e propositadamente, ,

confunde—os com a sua causa. Encora ja , pois, e até exagera,neste ponto a ilusão do senso comum. Fatalmente devia che-gar a altura em que, familiarizada com a confusão entre aqualidade e a quantidade, entre a sensação e a excitação, ac iênc ia procuraria medir um a como mede a outra: tal foi o ob-ject ivo da psicofísica. Fechner foi encorajado a esta ousada

t entat iva pelos seus próprios adversários, pelosf i lósofos quefa lam de grandezas in tens ivas , ao m e s m o tempo qu e decla-ram os estados psíquicos refractários à medida. De facto, sese admite q ue uma sensação pode se r mais forte qu e outra eque esta desigualdade reside nas próprias sensações, inde-p e n d e n t e m e n t e de toda a associaçãode ideias, de toda a con-sideração mais ou menos consciente de número e de espaço, énatural investigar como a primeira sensação ultrapassa a se-gunda, e estabelecer uma relação quantitativa entre as res-pectivas intensidades. E de nada vale responder, como fre-q u e n t e m e n t e fazem os adversários da psicofísica, qu e toda am e dida implica sobreposição, e que é despropositado pro-curar um a relação numérica entre intensidades, que não são

coisas que se possam sobrepor. É que então será necessárioe x p l i ca r por que é que uma sensação se considera mais inten-sa do que outra, e como se podem chamar maiores ou meno-re s coisas que — como acabámos de ver — não admitemq u a l q u e r relação entre cont inente e conteúdo. Quase daria-

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m ós razão a Fechner e aos psicofísicos se, para cortar pela

raiz toda a questão desta espécie, distinguíssemos duas espé-cies de quant idade, um a intensiva, susceptível apenas domais e do men o s , e outra extensiva , prestando-se à medição.Pois, desde que uma coisa é susceptível de aumentar e d im i -nuir, é natural invest igarmos quanto d iminu i , e quanto cres-ce . E porque um a medida deste género nã o parece directa-mente possível, não se segue que a ciência não possa ter êxitopor qualquer processo indirecto, quer mediante uma integra-

çã o de elementos inf in i tamente pequenos, como propõe Fech-ner, quer mediante outro processo escuso. Ou a sensação é,pois, um a qual idade pura ou, se é uma grandeza, deve pro-curar medir—se.

Para resumir o que precede, diremos que a noção de in-tensidade se apresenta sob um dup lo aspecto, conforme se es-tudam os estados de consciência representativos de uma cau-sa exterior, ou os que se bastam a si próprios. No primeirocaso, a percepção da in tensidade consiste numa certa apre-ciação da grandeza da causa por uma certa qualidade do efei-to: é, como diriam os Escoceses, um a percepção adquirida. Nosegundo, chamamos in tensidade à mul t ip l ic idade mais oumenos apreciável de factos psíquicos simples qu e adivinha-m os no interior do estado fundamental: não é uma percepçãoadquirida, m as um a percepção confusa. Aliás, estes dois sen-tidos da palavra interpenetram-se quase sempre, porque os

factos mais simples que uma emoção ou um esforço encerrasão geralmente representativos, e a maioria dos estados re-

presentativos, por serem simultaneamente afectivos, abar-cam também uma m ultiplic idade de factos psíquicos elemen-tares. A ideia de in tensidade situa-se, pois, no ponto de jun-ção de duas correntes, trazendo— nos uma a partir de fora a

ideia de grandeza extensiva e indo a outra buscar às profun-didades da consc iênc ia , para a trazer à superfície, a imagem

de uma mul t ip l ic idade interna. Fica por saber em que consis-te esta úl t ima imagem , se se confunde com a do número , ouse dela difere radicalm ente. No capítulo que se segue, consi-deraremos os estados de consciência isoladamente uns dosoutros, mas na sua mult ip l ic idade concreta , enquanto se de-

senrolam na pura duração. E assim como no s in terrogámossobre o que seria a intensidade de uma sensação representa-t iva se nela não in t roduzíssem os a ideia da sua causa , tam-bé m agora deveremos invest igar o que acontece à mult ipl i c i -dade dos nossos estados internos, que f o rm a afecta a dura-ção, quand o se abstrai do espaço em que ele se decorre. Estasegunda questão é tão imp o r t an t e como a p r ime i ra , ma s demodo diverso . E que se a confusão da qual idade c om a quan-

t idade se l imitasse a cada um dos factos de consciência toma-do s iso ladamente , cr iaria mais obscuridades,como acabámosde ver, do que problemas. M as, as inv adi r a série dos nossosestados psicológicos, ao in t roduzi r o espaço na nossa concep-ção da duração, corromp e, na próp ria fonte, as nossas repre-sentações da muda nça exterior e interior, do mo v imen t o e dal iberdade. Daí os so f i smas da escola de Eleia, daí o problemado l ivre arbí t rio . In sist i rem os de preferência no segundo pon-to ; mas , em vez de procurar reso lver a questão, demonstrare-mos a ilusão dos que a p õ em.

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DA MULTIPLICIDADEDOS ESTADOS DE CONSCIÊNCIA^):

A IDEIA DE DURAÇÃO

Define—se, geralmente, o número como uma colecção deunidades ou , para falar co m maior precisão, a síntese do unoe do múltiplo. Todo o númeroé uno, á que se representa por

C) O nosso trabalho já estava totalmente terminado quando le-

mos, na Critique philosophique (anos 1883 e 1884), uma notável re-futação, por F. Pillon, de um interessante artigo de G. Noel sobre asolidariedade das noções de número e de espaço. Contudo não vimosnecessidade de modificar algo deste livro, porque Pillon n ão distin-gue entre o tempo qualidade e otempo quantidade, entre a multipli-cidade dejustaposição e a de penetração mútua. Semesta distinçãotão importante, que constitui o assunto principal donosso segundocapítulo, poderíamos defender, com Pillon, que a relação de coexis-tência é suf iciente para a construção donúmero. Mas que se enten-de aqui por coexistência? Se os termos que coexistemse organizamconjuntamente , nunca deles derivará o número;se permanecem dis-tintos, é porque se justapõem e ainda estamos no espaço. De nadavale referir o exemplodas impressões simultâneas recebidas por vá-rios sentidos. Oumantemos nestas sensações as suas diferenças es-pecíficas, o que equivale a não contá-las; ouabstraímos delas e, en-

tão, como as distinguiríamosa não ser pela sua posiçãoou pela dosseus símbolos? Veremos que o verbo distinguir tem dois sentidos,um qualitativo, o outro quantitativo: estes dois sentidos foram con-fundidos, julgamos nós, por todos quantos trataram das relaçõescom o espaço.

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um a intuição simples do espírito e lhe atribuímos um nome;mas esta unidade é a de uma soma; abrange uma multiplici-dade de partes que se podem considerar isoladamente. Semaprofundar agora as noções de unidade e de multiplicidade,interroguemo-nos se a ideia de núm e ro não implicará a re-presentação de alguma outra coisa ainda.

Não-basta dizer que o número é uma colecção de unida-des^há que acrescentar qu e estas unidades são idênticas en-tre~si ou , pelo menos, que as supomos idênticas desde qu e as

contemos. É claro que ao contarmos as ovelhas de um reba-nh o Adiremos que tem cinquenta, embora se distingam umasda s outras e o pastor as conheça facilmente; mas é (porque seconcorda em deixar de lado as suas diferenças individuaispara só ter em consideração a sua função comum. Pelo con-trário, desde que se fixa a atenção nos traços particulares dosobjectos ou dos indivíduos, pode fazer-se a sua enumeração,mas nunca a soma. É sobestes dois pontos de vista muito im-portantes que nos colocamos quan do se contam os soldadosde um batalhão e se faz a chamada. Logo, diremos que aideia de número indica a intuição simpjejs de uma muTBplici-

~dfltdeáfi'partêsje de unuíarTes; abso1utamenCe~'^arecjBasjimascom asjputras.,

E, contudo, importa que se dis t ingam em qualquer coisa,já que, não se confundem numa ún ica . Suponhamos qu e todosos carneiros do rebanho são idênticos entre si; diferem pelomenos em -virtude do lugar que ocupam no espaço; caso con-trário, não formariam um rebanho. Mas deixemos de lado oscinquenta carneiros para deles retermos apenas a ideia. Ouos compreendemos todos sob a mesma imagem e, por conse-quência, torna—se necessário justapô-los numr espaço ideal,

l ou repetimos cinquenta vezes, de seguida, a imagem de um|deles, e então parece que a série, mais do que no espaço,seVsitua na duração. E, contudo, não é nada disto. Se represen-tar um a um, e isoladamente, cada um dos carneiros do reba-nho, lidarei sempre apenas só com um carneiro. Para que,o

número vá aumentando à medida que avanço^ é necessárioque retenha as imagens sucessivas e as justaponha.a__cadauma das novas unidades de que evoco a ideia: ora, é no espa-ço que semelhante justaposição se opera, e não na pura dura-ção. Aliás, concordar—se—á, sem custo, que toda a operação

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pela qual se contam os objectos materiais implica a represen-tação sjmultânea_desses objectos e que, por isso m esmo, osdeixamos no espaço. Mas a intuição, do espaço acomp anharátoda a ideia de número , mesmo a de um núm ero abstracto?

Para responder a esta questão, bastará que cada qual pas-se em revista as diversas formas que a ideia de número ad-quiriu para si desde a infância. Ver-se-á que começámos porimaginar uma fila de bolas, por exemplo, uma vez que elas setransformaram ehi pontos e que, po r fim, desapareceu estaimagem para só deixar atrás de si, diríamos nós, o númeroabstracto. Mas, nesse mom ento, também o núm ero deixou dese imaginar e de se pensar; dele apenas conservámos o sinal,necessário ao cálculo, pelo qual se convencionou exprimi-lo.Com efeito, pode muito bem afirmar-se que 12 é metade de24 sem pensar nem no número 12 nem no 24: mesm o até, pe-la rapidez das operações, há todo o interesse em o não fazer.Mas, desde que se deseja representar o número, e não apenasalgarismos ou palavras, forçoso é voltar a uma imagem ex-tensa. A ilusão constitui aqui o hábito adquirido de contar,parece-nos, mais no tempo do que no espaço. Para imaginaro número cinquenta, por exemplo, repetir-se-ão todos os nú-meros a partir da unidade; e qua ndo se chegar ao cinquenta,

julgaremos ter construído p erfeitamente o número ha dura-ção, e apenas na duração. E é incontestável que se terão as-sim contado os momentos da duração mais do que os pontosdo espaço; mas a questão está em saber se não foi com pontosdo espaço que se contaram os momentos da duração. Sem dú-vida, é possível perceber, no tempo, e apenas no tempo, uma\o pura eS

cessão'que viesse a dar num a soma. De facto, se uma soma seóbténTpela consideração sucessiva de diferentes termos, ain-da é necessário que cada um destes termos persista quandose passa ao seguinte e espere, por assim dizer, que lhe acres-centemos os outros: como esperaria ele, se não passasse deum instante da duração? E onde esperaria, se não o localizás-

semos no espaço? Involuntariamente, fixamos num ponto doespaço cada um dos momentos que contamos, e é apenas comesta condição que as unidades abstractas formam uma soma.Sem dúvida, é possível, como mostraremos a diante, conceberos momen tos sucessivos do tempo indep enden temente do es-

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paço; mas quando se acrescenta ao instante actual os que oprecediam, como acontece quand o se somam unidades, não écom base nos próprios instantes que se trabalha, porque de-sapareceram para sempre, mas sim no vestígio durável quenos parecem ter deixado no espaço, ao atravessá-lo. É verda-de que prescindimos, quase sempre, de recorrer a esta ima-gem, e depois de a termos usado para os dois ou três primei-ros números, basta— no s saber que servirá também para a re-presentação dos outros, se dela necessitarmos. Mas toda a

ideia clara do número implica um a visão no espaço; e o estu-do directo dasTihidades que entram na composição de umamultiplicidade distinta vai levar-nos, neste ponto, à mesmaconclusão que a análise do próprio número.

Todo o número é uma colecção de unidades. .dissemos-pás.e, por outro lado, todo õ número é também umajonidâde, en-quanto síntese das unidades que o compõem. Mas a palavraUnidaUtrloma—  se em ambos os casos com o mesmo sentido? •Quando afirmamos que o número é uno, entendemos que orepresentamos na sua totalidade por uma intuição simples eindivisível do espírito: esta unidade contém, pois, uma mul-tiplicidade, porque é a unidade de um todo. Mas quando fa-lamos das unidades que compõem o número, estas últimas

unidades já não são somas, pensamos nós, mas sim unidadespuras e simples, irredutíveis, e destinadas a dar a série dosnúmeros compondo-se indefinidamente entre si. Parece,pois, que há duas espécies de unidades, um a definitiva, qu eformará um número acrescentando— se a ela mesma, a outraprovisória, a deste núme ro que, múltiplo de si mesmo, deve asua unidade ao acto simples pelo qual a inteligência aapreende. E é incontestável que, ao representarmos as uni-dades qu e compõem o número, julgamos pensar em indivisí-veis: esta crença entra, em grande parte, na ideia de que se N

poderia conceber o número independentemente do espaço. No lentanto, prestando mais atenção, ver—  se-á que toda_a unida- /de é ade um acto simples do espírito e oue^ consistindo este /

actoenTúnjr , é necessário que alguma multiplicidade Ihe"5ir-|va33e~mãteria. Sêfn duvida, no fnonimilo fetn que penso e m ,cada uma das unidades isoladamente, considero-a como indi-\, porque se entende que não penso senão nela, Mas, lo - \ o q u e a deixo de lado par

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l po r isso mesm o faço dela uma coisa, isto é, uma multiplicida-de. Bastará, para disso nos convencermos, observar que asunidades com as quais a aritmética forma números sã o uni-dades provisórias, susceptíveis de se dividirem indefinida-mente, e que cada um a constitui um a soma de quantidadesfraccionarias, tã o pequenas e tão numerosas quanto imagi-nar se queira. Como se dividiria a unidade, caso se tratasseda unidade definitiva qu e caracteriza um acto simp les do es-

pírito? Como a fraccionaríamos, declarando-a ao mesmo tem-po una, se a não considerássemos impli citame nte como umobjecto extenso, uno na intuição, múltiplo no espaço? Nuncapodereis extrair de uma ideia por vós construída o que nelanã o pusestes, e se a unidade com que compusestes o vossonúmero é a unidade de um acto, e não de um objecto, ne -nhum esforço de análise dela extrairá algo que não seja aunidade pura e simples. S em dúvida, quando igualais o nú-mero três à soma 1 + 1+1, nada vos impede de considerarindivisíveis as unidades que o compõem: mas é porque nãoutilizais a multiplicidade de que cada uma das unidades estácheia. Aliás, é provável que o número 3 se apresente, antesde mais, sob esta forma simples ao nosso espírito, porquepensaremos mais na maneira como o obtivemos do que nouso que dele poderíamos fazer. Mas não demoraremos aaperceber—nos de que, se toda a multiplicação implica a pos-sibilidade de lidar co m qualquer número como um a unidadeprovisória que se acrescentaria a ela mesma, inversamente, epor sua vez, as unidades são verdadeiros núm eros, tão gran-des quanto se quiser, que se consideram, porém, como provi-soriamente indecomponíveis para os compor entre si. Ora,porque^ se_admite a possibilidade de dividir a unidade emtantas~partes quantas se quiser, ela considera-se confo ex-tensa. • - *"1 Com efeito, não deveríamos alimentar ilusões quanto àdescontinuidade do núm ero. Não se pode contestar que a for-mação ou construção de um nú mero implica a descontinuida-

de. Por outras palavras, como dizíamos acima, cada uma dasunidades com as quais se forma o número três parece consti-tuir um indivisível enquanto lido com ela, e passo sem tran-sição da anterior à que se segue. Se agora construo o mesmonúmero com metades, quartos, quaisquer unidades, estas

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unidades const i tui rão ainda, enqu anto servirem para f o r mareste número, elementos provisor iamente indivisíveis, e ésempre po r safanões, po r saltos bruscos, se assim no s pode-mos expr imir , qu e passaremos de uma a outra. E a razão es -tá em que, para obter um n ú m e r o , é forçoso fixar a atenção,sucéssivãmèntè^ènF"ça3ã"uma Hás unidades que o compõem. indivisibilidade do.,ac_tQLp£Jouqual se concebe qualquer um adelas tràdúz-se então na forma de um ponto matemático,qúlTunV intervalo vazio separa do ponto seguintérMas se

um a série de pontos matemát icos escalonados no espaço va -zio expr ime bastante bem o processo pelo qual formamos aideia de númer o , estes pon tos matem á t i cos tê m tendência adesenvolverem-se em l i n h a s à medida que a nossa atençãodeles se afasta, como se procurassem juntar-se uns aos ou-tros. E quando consideramos o número em estado de aca-bamento, esta j u n ç ão é um facto consum ado: os pontos tor -naram—se linhas, as divisões extinguiram-se, o conjuntoapresenta todas as características da cont inuidade. E porisso que o núme ro, Composto segundo uma determinada lei, édecomponível segundo uma lei qualquer . Numa palavra, énecessário distinguir entre a un idade em qu e se pensa e aunidade que coisificamos após nela termos pensado, assim

como entre o número em vias de formação e o número uma_ y e z formado, A unidade é irredutível enquanto nela se pensa,e o número é descont ínuo enquanto se constrói ;más, quandose considera o número em estado de acabamento, objectiva-—se: e é precisamente por isso que aparece e ntão como indefi-nidamente divisível. Notemos que chamamos subjectivo oque parece inteira e adequadamente conhecido, objectivo oque é conhecido de tal maneira que uma quant idade semprecrescente de impressões novas poderia substituir-se à ideiaqu e actualmente dele temos. Assim, um sent imento complexoconterá elevado núm ero de elementos mais simples; mas, en-quanto tais elementos não se separarem com perfeita nitidez,não se poderá dizer que estavam totalmente realizados e,

quando a consciência tiver deles a distinta percepção, o esta-do psíquico que deriva da sua síntese terá, por isso mesmo,< ^ mudado. Mas nada muda no aspecto total de um corpo, sejajO 1 qual fo r a maneira como o pensamento o decompõe, porque

estas diversas decomposiç ões, assim como outras incontáveis,

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são já visíveis na imagem, ainda que não real izadas: estaapercepção ac tua l , e não apenas v i r t ua l , de subdivisão no in-divisível é pr ec i samen te o que c h a m a m o s objectividade^ Porconseguinte, torna-se fácil elaborar a par te exacta do subjec-tivo e do objectivo na ideia de núm e ro . O que pr opr i amen tepertence ao espírito é o processo indivisível pelo qua l fixa asua atenç ão sucess ivame nte nas d iversas par tes de um de-terminado espaço; mas as partes assim isoladas conservam-

-se para se jun t a r em a outras, e uma vez adicionadas entresi prestam-se a uma decomposição qualquer: são, pois, par-tes de espaço, e o espaço é a matéria com a qual o espíritoconstrói o núm e ro , o meio em que o espírito o si tua. '

Em boa verdade, é a ar i tmét ica que nos ensina a dividirindefin idamente as u n i d a d e s de que o númer o é feito. O sen-so comum é muito propenso a c onstruir o número com indivi-síveis. E isto é perfei tamente còncebível, já que a simplicida-de provisór ia das unidades componentes é precisamente oque lhes vem do espírito, e porque este presta mais atençãoao s seus actos do que à matéria sobre que age. A ciência limi-ta—se a atrair os nossos olhos para esta matéria: se não tivés-semos já localizado o núm ero no espaço, ela nã o conseguiria,decerto, levar-nos a transpô-los para aí. Épreciso, pois, que,desde o pr incípio, no s .tenhamos representado o númer o po rum a justaposição no espaço. É a conclusão a que primeira-mente t ínhamos chegado, Jbaseahdo^nos no facto de que todaa adição implica um a mult ipl icidade de partes, simultanea-mente percepcionadas.

Ora, se se admi t e esta concepção do númer o , v e r— s e — á qu e »todas as coisas não se contam da mesma mane i r a , e que há 'duas ejprécies muitoj^ Q u an d o fa -larhosae objectos m ateriais, aIudini(^_|Lpoj§i]3!Uijdaãe.jd@j^sver e tocjir;lÒcalTzlifncHT^ no espaço. Por conseguinte, ne -nhuíinjÉSf^^ representação simbólica*nos

é"n~ècessário pãfã^oTcontar; nã o temos mais do que pensá-lossépãradàmetite primeiro, simultaneamente depois, h o ~ pró-pr io meio em que se apresentam à nossa observação. J^jiãoacpnjtefe o mésinoi e consi^arrnos_DS ..estadas purajneníeafectivos da a lma , ou até representações diversas das da vis-

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do que não podem ocupar o mesmo lugar: como se a represen-tação do número dois , a inda qu e abstracto, nã o fosse já , como

} demonstrámos, a de duas posições diferentes no espaço! Afir-mar a impenetrabil idade da matéria é, pois, simplesmentereconhecer a solidariedade das noções de número e de espa-ço t é enunciar uma propriedade do número mais do que damatéria. — Contudo, contar-se-ão sentimentos, sensações,ideias, todas as coisas que se penetram entre si e que, cadauma por seu lado, ocupam a alma inteira? — Sim, sem dú-vida, mas precisamente porque se penetram, só se contamco m a condição de as representar por unidades homogéneas,ocupando lugares distintos no espaço, unidades que, por con-seguinte, não se penetram. A impenetrabilidade aparece,portanto, ao mesmo tempo que o número ; e quando se atribuiesta qualidade à matéria para a distinguir de tudo o que não

é ela, limitamo-nos a enunciar, sob uma outra forma, a dis-tinção que acima estabelecíamos entre as coisas extensas,que não se podem traduzir imediatamente em número, e osfactos de consciência, que implicam, antes de mais, uma re-

presentação simbólica no espaço.l Convém deter^nos^neste ponto. Se, para contar os factosl de consciência, os temos, de represen tar simbolicam ente nol espaço, não é verosímil que esta representação, sím5oTjca mo -

' dificará as condições normais da percepção interna? Recorde-mos o que dizíamos um pouco mais acima da intensidade decertos estados psíquicos. Asensação representativa, conside-rada em si mesma, é qualidade pura; mas, vista através da

extensão, esta qualidade torna-se quantidade em certo senti-do;, chama—se intensidade. Assim a projecção que fazemosdos nossos estados psíquicos no espaço para comeles formar-mos uma multiplicidade distinta deve influenciar estes mes-mo s estados, .e dar—lhes na consciência reflexiva urna formanova, que a percepção imediata lhe não atribuía. Observámosque, ao falarmos do tempo, pensamos quase sempre num

meio homogéneo onde os nossos factos de consciência se ali-

1—nham, se justapõem como no espaço e conseguem formar

uma multiplicidad e distinta. Não seria o tempo assim com-preendido para a multiplicidade dos nossos estados psíquicoso que a intensidade é, para alguns deles, um sinal, um sím-bolo, absolutamente distinto da verdadeira d uração? Vamos,

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pois, pedir à consciência para se isolar do mundo exterior e,mediante um vigoroso esforço de abstracção, de novo se tor-nar ela mesma. Far—lhe-emos, então, esta pergunta: a multi-

pHcidade dos-noccoG cotados do consciência terá_a_rnftnoranalo^iacom_a mult ip l ic idade da s unidades de um número?Avèr^ãHéíra duração tem a menor relação co m o espaço?£èm duvidada iios!sa~~ãnâlise da ideia de númefo~3évenã Je-var—nos a duvidar desta analogia, para não dizer mais. Pois,se o tempo, tal como o representa a consciência reflexa, é um

meio em que os nossos e stados de consciência se sucedem dis-t intamente de modo a poder—se contar e se, por outro lado, a

nossa concepção do núm ero chega a dispersar no espaço tudoo que se conta directamente, pode presumir-se que o tempo,entendido no sentido de um meio em que se distingue e ondese conta, é apenas espaço. O que confirmaria, antes de mais,esta opinião é o facto de ao espaço se irem buscar as imagenscom que descrevemos o sentimento que a consciência reflexatem do tempo e até da sucessão: portanto, é necessário que apura duração seja outra coisa. Mas estas questões, que somoslevados a pôr pela própria análise da noção de multiplicidadedistinta, não poderemos elucidá-las a não ser por um estudodirecto das ideias de espaço e de tempo, nas relações que en-tre si

mantêm.

/ Seria errado atribuir demasiada importância à questão darealidade absoluta do espaço: equivaleria a interrogar-nos se

o espaço está ou não no espaço. Em suma, osjiossos_sentidaspprgeppinnam-a&^rLnlidad^s dos corpos, e o espaço com elas:

a grande dificuldade parece ter sido distinguir se a extensãoé um aspecto destas qualidades físicas — uma qualidade da

qualidade — ou se estas qualidades são inextensas por es-sência, vindo o espaço a acrescentar—se—lhes, mas bastando--se a si própria e subsistindo sem elas. Na primeira hipótese,o espaço reduzir—se—ia a uma abstracção ou, melhor ainda, a

um extracto; exprimiria o que certas sensações, ditas repre-sentativas, têm de comum entre si. Na segunda, sermuma

realidadfi tão sólida como estas sensações, ainda que de outraorSéjórDeve-se a Kant a fórmulajarecisa desta última con-cepção: a teoria qu e desenvolyerm^sfcVzca transcendental

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consiste em dotar o espaço de uma existêjicjajnjde^ejnjdjeiite£ jãã 3ê

de nós segara de facto, e em não ver na extensão um aNeste sentido, a concepção kan-

um

tiana do espaço difere m enos do quepuíar. Muito longe de abalar a nossa f é na realidadeçq , Kant determinou-lhe o sentido preciso e trouxe-lhe até a

justificação.

Aliás, não parece que a solução trazida por Kant tenha si-do seriamente contestada depois deste filósofo; impôs-se até— po r vezes, sem saber — à maior parte dos que novamenteabordaram o problema, nativistas ou empiristas. Os psicó-logos estão de acordo ematribuir uma origem kantiana à ex-

plicação nativista de Jean Mulle r; mas a hipótese dos sinaislocais de Lotze, a teoria de Bain, e a explicação mais com-preensiva proposta por Wundt parecerão, numa primeiraapreciação, comple tamente independentes da Estética trans-cendental. O s autores desta teoria parecem, com efeito, terdeixado de lado o problema da natureza do espaço para in-vestigar apenas por que processo as nossas sensações aí vêmencontrar-se e justapor— se, por assim dizer, umas às outras:mas, por isso mesmo, consideram as sensações como inexten-sivas e estabelecem, à m aneira de Kant, um a distinção radi-cal entre a m atéria da representação e a sua forma. O que so-bressai das ideias de Lotze, de Bain e da conciliação qu eWu ndt parece ter tentado é q ue as sensações pelas q uais che-gamos a formar a noção de espaço também sã o inextensas eapenas qualitativas: a extensão resultaria da sua síntese,como a água da combinação de dois gases. As explicações em -pirísticas ou genéticas retomaram, pois, o problema do espa-ço no ponto preciso onde Kant o t inha deix ado: Kant separouo espaçodo_^eji_cojitaiidíii_os empiristas investigam como équé~êsíê^õntêúdo, isolado do espaço pelo nosso pensamento,chegaria a ter nele luga r. É verdade que p arecem ter depoisesquecido a actividade da inteligência, inclinando-sevisivel-

mente para a elaboração da forma extensiva da nossa repre-sentação por uma espécie de aliança da s sensações entre si: oespaço, sem ser extraído das sensações, resultaria da suacoexistência. M as como explicar um a semelhante génese se mum a intervenção activa do espírito? O extensivo difere, po r

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hipótese, do inextensivo; e supondo que a extensão seja ape-nas um a relação entre term os inexistentes , ainda é necessá-rio que tal relação seja estabelecida por um espírito capaz deassociar assim vários termos. Seria inútil alegar o exemploda s combinações químicas, em que o todo parece revestir, po rsi mesmo, um a forma e qualidades que não pertenceriam an en h um dos átomos elementares. Esta forma, estas qualida-des nascem precisamente em virtude de abrangermos a mul-

tiplicidade do s átomos num a percepção única: suprimi o es-pírito que opera esta síntese e imediatamente reduzireis anada as qual idades , isto é, o aspecto sob o qual se apresentaà nossa consciência a síntese das partes elementares. Assim,sensações inextensivas permanecerão o que são, sensaçõesinextensivas, se nada lhes acrescentarmos. Para que o espaçonasça da sua coex istência, é necessário um acto do espíritoqu e as abranja a todas simultaneamente e as justaponha; es-te acto sui generis parece-se bastante ao que Kant chamavaum a forma a priori da sensibilidade.

Se agora procurássetnps caracterjzar^este acto, veríamos^ssencialrnente na intuirãou e c n s s s e n c a r n e n e na n u r o o x i n e s n concep-

çã o çle um meio vazio hojnogéneo. Pois-não íiá-joutra definição

possível do espaç0: é o que nos permite distinguir entre sivárias sensações idênBc^s~é"stmliTEarieâs; e, pwsTlam prin-cípio de diferenciação, distinto do da diferenciaçãoquaiitati-vá e, por conseguinte, uma realidade sem qualidade. Dir-— e—  á, com os adeptos da teoria dos sinais locais, qu e sensa-ções simultâneas nunca são idênticas e que, devido à diversi-dade dos elementos orgânicos que eles influenciam, não hádois pontos de uma superfície homogénea que produzam navista ou no tacto a mesma impressão? Concederemos issosem custo, porque, se esses dois pontos nos afectassem damesma maneira, não haveria nenhum motivo para colocarum deles à direita em vez de ser à esquerda. M as precisa-mente porque interpretamos a seguir esta diferença de quali-dade no sentido de uma diferença de situação, é necessárioque tenhamos a ideia clara de um meio hom ogéneo, isto é, deuma simultaneidade de termos que, idênticos em qualidade,se distinguem apesar de tudo uns dos outros. Quanto mais seinsistir "a difjerença-da&4mpre5sõej feitas na Tíogsajretinapo r dois pontos-de um a superfície homogénea, ...mais nosjlinn-

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não - .Ora, a exterioridade é a caracte-rística própj-ia^das çpisa_s_que   .Qcupãin~ èspiçõ, enquan±p_o§factos de consciência não são essencialmente extejÍQre& .uns

n o tejn-- c^imo-tinv^meie-lwmôgéneo. Po r conseguinte,

se uma das duas pretensas formas do homogén eo, tempo eespaço, deriva da outra, pode afirmar-se a priori que a ideiade espaço é o dado fun dame ntal . Mas, i ludidos pela simpl ici-dade aparente da ideia de tempo, os filósofos q u e tentaramuma redução destas duas ideias acredi taram poder construira representação do espaço com a da duração. Ao mostrarmoso erro desta teoria, faremos ve r como o tempo, Jttiicjebjílp soba forma de um meio . indefinido   e^homogfineíVJiãíLêjsenão ofantasma do espaço assediando a consciência ref lexa._„

A escola inglesa esforça— se, de facto, por reduzir as rela-ções de extensão às relações, mais ou menos complexas, desucessão na duração. Q uan do, com os olhos fechados, passa-mos a mão por uma superfície, a fricção do s nossos dedosnesta superfície e, sobretudo, o jogo variado das nossas arti-culações trazem— nos uma sér ie de sensações, que só se dis-tinguem pelas suas qual idades, e que apresentam uma certa

ordem n o tempo. P or outro lado, a exper iência adverte-nosde que esta série é reversível, que poder íamos, por um esfor-ço de natureza diferente (ou, como diremos mais tarde, emsentido oposto) facultar-nos de novo, n u m a ordem inversa,as mesmas sensações: as relações de si tuação no espaço defi-nir—  se-iam então, se assim se pode falar, como relações re-versíveis de sucessão n a duração. M as semelhante def iniçãoimplica um círculo vicioso ou, pelo menos, uma ideia muitosuperficial da duração. Com efeito, como demonstraremosmais à frente, há duasconcepções jBQSsíyeis da duração, uma.pura de toda a mistura^a^mitra jem_gue^sub^ifitervém"lTí3eíã"Hii~ispaço. A duração totaTmente^puraj^a

sucessão dos

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quire^uãnHÕ o nosso eu se deixa viver, quando   nãojestabele-ee~ulrna~sepayayao"^M^grp estado preserçfre e os anteriores.N ã o ha néce"ssTdaáè, ãra isso, de se absorver completamentena sensação ou na ideia que passa, p or que então, ao invés,deixaria de durar. Também não tem que esquecer os estadosanteriores: basta que , lembrando-se desses estados, não os

lj u s t a p o n h a ao estado actual como u m p on to , mas os organizeco m ele, como acon t ece qu and o n os l e m b r a m o s da s no tas deu ma melodia, f u nd ida s n u m todo. Não se poderia dizer que,se as notas se sucedem, apesar de tudo, as percepcionamosum as n as outras, e que o seu conjunto é compa rável a um servivo, cujas partes, se bem que distintas, se penetram exacta-mente pelo próprio efeito da sua sol idar iedade? A prova estáem que , se quebr a r mos a med ida i n s i s t i ndo mai s do que o

razoável nu ma n ota da melodia, não será o seu p r o longamen-to exagerado, enq uan to alongam ento, que nos adver t irá donosso erro, mas a mudanç a qua l i t a t i va a s s im fornecida aoconjun to da f rase mu sical . Pode, por tanto, c^njcjejbejr^se_a_su,-cessão sem a dijstin^o,, j?j^md^^gojnlarjedaa^cÍí3a um, .representativo ^o ,todo^<|ejeL

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_ M _ __._ „„fr- yvvfmIC4mlOÇZ PI-

itõiltanearaente idêntico,e,mutável, e que não conteria, n e-nhumajdeja_da, jBSpaço . Mjg^fj jTTl ianzadocom e s t a T t i m a, ^ideja^bsessionados até por ela, introduzim^-la_sem_saberna nossa representação da sucessão pura; uit^p_omos^os n os-

S Q S j°stados_de Consciência de maneira a per^epcioná-loj^si-mujtaneamente, não" Ja"TInTnÒ ÕuírõT mas urrT ao lado dcTõu-tfp; ein_xêsu,mof projectamos q tempo nojespago,jêxjgn^imosá j juração pela extensão, e aju^essão^oma para nós a formadj u m a ..linha cQntiaua^ou. e-unia.jCâágija. cujas partes sej â^m_.§ein se peaetraj:» Notemos que esta úítima~Tm~5genr"impl ica a percepção, não já sucessiva, mas simul tânea, doantes e do depois e que aqui haver ia contradição em suporuma sucessão, que fosse apenas sucessão e q u e , apesar de tu-do , se mantivesse nu m s ó e mesmo instante. Ora, quando_sefala de jnna orofó/n de   suces§ão,ixa_ durarão e da rgyêrsibilida-dej9estã ordem, a sucessão de que se trata ,§erá a   sucessãop.ura, tal como a definimos mais acima e sem mistura de ex-

tensão,_ou a sucessão de^dobrando^se Bnijeapaço, dejtal ma-neira qu^Selãnão^se consigam abranger simultaneamentevários ternips separados e justapostos? A resposta não é du-vidosa: nãose^ pode estabelecer uma^/^em entre termos sema^nJ^jjs^Tstín^jrmps, sem depois c^mj^ranrips osjugaresquejoçup.am; percepcionam-se, pois, como mú

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neos e distinjtos4-^jamajjala\Ta? justepõerrL-se e, se se estabe-lece uma ordem jiQ,su£essiyojé_p£raiie_^_sucessão se^torna si-multaneidade e se projecta n £ L espaço. Em smTèsêTquando adeslocação do meu dedo ao longo de uma superfície ou deum a linha m e provoca um a série de sensações de qualidadesdiversas, acontecerá de duas uma: ou representarei estassensações apenas na duração, mas elas suceder—  se-ão entãode tal maneira que não posso, nu m determinado momento,representar várias delas como simultâneas e, contudo, distin-

tas; — ou, então, discernirei uma ordem de sucessão, mas éporque então tenho a faculdade, não apenas de perceber umasucessão de termos, m as também de os alinhar em conjunto,após os ter distinguido; numa palavra, tenho já a ideia deespaço. A deia_dÊ_uina série reversível na duraj^ãOjjwJL-atésimplesmente de um a .certaardem de^sjacjess^fcno^tempo, im -

a representação do. espa$o^jg .não 4iojie_jitilt-zar-=se ^ara xrdefHi

A f i m de dar a esta argumentação uma forma mais rigoro-sa, imaginemos uma linha recta, indefinida, e nesta linha umponto material A que se desloca. Se este ponto adquirisseconsciência de si próprio, sentir— se — a mudar, já que se mo-ve: aperceber—  se-ia de uma sucessão; mas esta sucessão re-

vestiria para ele a forma de uma linha? Sim, claro, com acondição de que se pudesse elevar de alguma maneira acimada linha que percorre e, simultaneamente, aperceber-se devários pontos justapostos: mas, por isso mesmo, formaria aideia de espaço, e seria no espaço que veria o desenrolar dasmudanças por que passa, e não a pura duração. É este preci-samente o erro do^que consideram a pura duração_coino coi-sa análoga ao espaço, mas de natureza simpIis^jGoitãm dejustapoji os_estados psicológicos, formar comeles uma.cadeiaou uma linha,, e não imaginam .sequer fazer intervir nesteopèTaçaira ideia de espaço propriamente dita, a ideia de es-paço na sua totalidade, porque o espaço é um meio com trêsdimensões. Quem não vê que, para percepcionar uma linhasob a

formade linha, é preciso colocar—  se fora dela, cair na

conte do vazio que a rodeia e, por consequência, pensar numespaço a três dimensões? Se o nosso ponto consciente A aindanão tem a ideia de espaço — e é precisamente neste hipóteseque nos devemos colocar —   a sucessão dos .estados por que

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passa não pode revestir para ele a forma de uma l i nha - n,.\-

0 ~ v , «i/ c n n c a i tomo o razem as notas suces-sivas de uma melodia com que nos deixamos embalar. Emsíntese, a pura duração poderia até não ser mais do que uma-sucessão de mudanças qualitativas que se fundem, quje sepenetram, se m contornos precisos, sem qualquer tendênciapara se exteriorizarem re lat ivamente uas aos outros, sem

qualquer parentesco com o número : seria a pura heterogenei-dade. Mas, po r agora, nã o ins is t i remos neste ponto: bastetermos demonst rado que, desde o instante em que se atribuaa menor heterogeneidadeà duração, se introduz sub— repti-ciamente o espaço.

É^verdade qu e contamos os momentos sucessivos da dura-,çãojê que, pelas súas"r^TãçSêT^õ1iTrTl :nimé"ro, o tempo nps_

surge", èm"primêíròAlugar, como um a grandeza mensuróvgí»cojnpíetemente análogo ao espaço, Mas Im^oê^Tentão um aimportante distinção.Digo, po r exemplo, qu e acaba de trans-correr um minuto, e entendo po r isto que um pêndulo, aomarcar os segundos, executou sessenta oscilações.Se repre-sento as sessenta oscilações só de uma vez e com uma sóapercepção do espírito, excluo po r hipótese a ideia de uma su-

cessão: penso, não em sessenta toques que se sucedem, m asem sessenta pontos de uma l inha fixa, simbolizando cadaum, por assim dizer, um a oscilação do pêndulo. — Se, por ou-tro lado, quero representar as sessenta oscilações sucessi-vamente, mas sem nada alterar ao seu modo de produção noespaço, deverei pensar em cada oscilação excluindo a lem-brança da precedente, porque o espaço nã o conservou qual-quer vestígio: mas, por isso mesmo, condenar-me-ei a ficarcont inuamente no presente; renunciarei a pensar numa su -cessão ou numa duração. Finalmente, se conservar, junta-mente com a imagem da oscilação presente, a lembrança daoscilação que a precedia, acontecerá de duas uma: ou justa-porei as duas imagens, e recaímos então na primeira hipó-

tese; ou percepcioná-las-ei uma na outra, penetrando— se eorganizando— se entre si como notas de uma melodia, de ma-neira a formar o que chamaremos um a mj^jpjjcjdj^ejndife- /Alicia.da^ojjL^jualita^ya^j^ejm gualguex.sjmfilhalíçã~com o nu-/mero: obterei assim a imagem da duração pura, mas também

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duas oscilações ou os seus símbolos nu m espaço auxiliar. —Ora, entre a sucessão sem exterioridade e a exterioridadesem sucessão produz-se uma espécie de troca, bastante pare-cida com o que os físicos chamam um fenómeno de endosmo-se. Visto_jqufi_as jfas_es_sucessivas da nossajnda cojisciejite,-qu e no^ntanto se interpenetram^jcorrespondem jcajja_uma,aum a oscilaçãruJQ-pêftdulo queTn^^^irriultáneaf .como,.par~ou-tro lado, estas oscilações são ni t idamente distintas, porqueumajá não existe quando a__oji<ja--S^_crQduz, adquirimos o^Sbltpjde  esjtabelecer_a mesma distinção, entre os momentossucessjyos_da-BOsSja jvida consciente: as osciÍaçõe.s~3QTS3ân^_cim decompõem-na, po r assim dizer, em partes exteriojesúníás airõjãtras. IÍST a_ideia2srradà de uma duração interna

Kqimogénea, análoga lio espaço, cujos momentos idênticos sesegulmnTi^ejn^eJnte^ por outro lado, as

oscilações pendulares; que só se distinguem porque um adesapareceu quando a outra surge, beneficiam de algumamaneira da inf luência qu e assim exerceram na nossa vidaconsciente. Graças à lembrança que a nossa consciência orga-nizou do seu conjunto, conservam— se e, depois, alinham— se:em síntese, criamos para elas uma quarta dimensão do espa-

ço, que chamamos o tempo homogéneo, e que permite ao mo-vimento pe ndular , se bem que nele produzido, justapor-se

indefinidamente a si mesmo. — Se agora tentarmos, nesteprocesso tão complexo, considerar com exactidão o real e oimaginário, eis o que encontramos. Há um espaço real se mduração, ma s onde fenómenos aparecem e desaparecem si -multaneame nte com os nossos estados de consciência. Há

**uma duração real, cujos momentos heterogéneos se interpe-netram, podendo cada m omento aproximar-se de um estadodo mu ndo exter ior que é dele contemporâneo e separar ou -tros momentos por efeito dessa aproximação^ Da comparaçãodestas duas realidades nasce . ^

da duração, tirada do espaço. A duração toma assimji forma

ilusória imm n ^

osdoisJLejmflS^j£Spaco e duraçiLo^ .A.a simultaneidade^ que seP-Qdj£Íadefimr_£ojT>o a intersecgâojdo^empo co m o espaço.

A o submeter a idêntica análise o conceito de mov imento,símbolo vivo de uma duração aparentem ente hom ogénea, se-remos levados a operar uma dissociação do mesmo género.

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Quase sempre se diz que um movimento acontece no espaço,e quando se classifica o movimento homogéneo e divisível éno espaço percorrido que se pensa, como se se pudesse con-fundir com o própr io movimento. Ora, reflectindo melhor ,ver-se—á qu e asjjosições sucessivas do móvel ocupam pgrfei-tamente_.o_espaço, mas que a operação pela qual passa-deum^yDojicj^o^^^rã^ só -tem

realidade para um espectador consciente, escapa ao espaço.Nãojidamos aqui com uma r . c t i s a^ jmasJZQ jn jam -p£QgJ%ssQ± j )mojjmento^ enquanto pajssjujejTukLjjj^

sínteje__ni(gri£àl,--uriL.43rocessQ psíquiéo-er "Por conseguinte,..iriextenso, J o; espãçpj^só^há partes 4ojgspaçp,_.e..eja.. qualquerpon to do espa£g^rn^ue_seucõ^^

nijeníê~uma posição. S e a consciência percepciona outra coisaa/érrit "dê posições é porque se lemb ra das posições sucessivasè as sintetiza. Mas como efectua ela uma síntese deste géne-ro? Não pode ser por um novo desdobramento destas mesmasposições num meio homogéneo, porque uma nova síntese setornaria necessária para unir as posições entre si, e assim in-

I def inidamente. Não há outro remédio senão admitir que se

; dá aqui um a síntese, po r assim dizer qualitativa, urna or -í ganização gradual da s nossas sensações sucessivas umas' com as outras, uma unidade análoga à de uma frase meló-

dica. Tal é precisamente a ideia que fazemos do movimentoquando pensamos exclusivamente nele, quando de algumamaneira extraímos desse movimento a mobil idade. Para nosconvencermos, bastará pensar no que se exper imenta ao per-cepcionarmos de súbito uma estrela cadente; neste mov imen -to de extrema rapidez, a dissociação opera-se por si própria

ente o espaço percorrido, que nos surge em forma de linha defogo, e a sensação absolutamente indivisível do movimentoou da mobilidade. U m gesto rápido efectuado com os olhos fe-chados apresentar—se—á à nossa consciência sob a forma desensação p uramente qual i ta t iva, enquanto não se tiver pen-sado no espaço percorrido. Em síntese, h á que distinguir^dois,elementos, no movimento, o jespacQ pe r co±n jãQ . ^ JL^ s ^ J i êSo^ -P-JBêEÇorremos, as "posições sucessivas e a s í n t f t f i f t dfi.sf.asP°J>?£Ô£S. O primeiro^ dest^^lementoséuma guantidadjsJio-niogénea; o s j e g j a r j i d j ) s^ tej^

^ se quiser , uma qual idade mi jima^Jntensidade. Ma s

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t ambém aqui se p r o d u z um f e nóm e no de endosmose , u m amistura ent re a sensação puramente intensiva da mobilidade,e a j^epresentação extensiva do espaço percorrido. Hôt^umlado, atribuímos ao m o v i m e n t o a própria divisibilidade doespaço qu e percorre , esquecendo que se pode perfeitamentedividir uma coisa, nias não um ac j jejjoju nv itvia-mo—nos a projectar este m e sm o racto no esuaco. a_aplicá—Io aolongo da l i nha que o móvel percorre, nu ma p a lavra , a soUdifi-

cá^ojLcbmose es

ta loca l izaçãode um

progressono

espaço/não equiva lesse a a f i r m a r que , mesmo fora da consciência, opassado coexiste com o presente! — Da confusão entre o mo-vimento e o espaço perco rr ido pe lo m óvel der ivaram, na nos-sa o pinião, os sofismas da escola de Eleia; porque o intervaloqu e separa dois pontos é divi s íve l indef inidamente , e se o mo-vimento fosse composto de partes como as do próprio interva-Io , nunc a o inte rva lo poderia se r ultrapassado. M as a verda-de é que cada um dos jxissos de Aqui les é um acto simples,indivisível e, depois de um determinaclo nui^TjídesTêS^cíos,Aqui les terá ul t rapassado a tartaruga. A ilusão dos Eleãtasestá em iden tificar es^a série de actos indivisíveis e sui gene-^ris com o espaço honYpgcjnep gu e   os supõe. Como este espaçose pode dividi r e recompor segundo qua lquer lei, julgam—  se

autorizados a reconst i tui r o m ovi m e nt o total de Aquiles, nã oco m os passos de Aquiles , mas com os da tartaruga: na ver-dade, substituem Aqu iles perseguin do a tartaruga por duastartarugas reguladas uma pela outra, duas tartarugas conde-nadas a fazer o mesmo género de passos ou de actos simultâ-neos, de m odo a nunc a se a pa nha re m . Por que é que Aquilesultrapassa a tartaruga? Porque cada um dos passos de Aqui -les e cada um dos passos da tartaruga são indivisíveis en-qua n t o m ovi m e n t os , e grandezas diferentes enquanto espaço:de manei ra que a adição não demorará a dar, para o espaçopercorr ido po r Aqui les , um comp rimento superior à soma doespaço percorrido pela tartaruga e do avanço qu e sobre ele ti-nha . E isto queJZgnãQ não tem em conta quando recompõe o

movimento de Aquiles segundo a mesma lei do movimento datartaruga, esquecendo que o espaço apenas se presta a umm odo de decomposição e de recomposição arbitrária, e eon-fugdmdo ass im pgnaç" p m n v i m p n t n N ão julgamos, pois, ne -cessário admi t i r , mesmo depois da subtil e profunda anál i se

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de um pensador do nosso tempo(2) , que o encontro entre osdois móveis impl ica um desvio entre o movimento real e om ovi m e n t o imaginado , entre o espaço em si e o espaço indefi-nidamente divi s íve l , ent re o tempo concreto e o tempo abs-tracto. Por que j^ecorrer a um a hipótese metafísica, por ejige-nhosa qu e seja, sobre a natureza do espaço, do t empo e dg,míJymren to, qua ndo a intuição imedia ta no s mostra o movi-m e n t o na duração, e a duração fora do espaço? Não há neces-

sidade de supor um limite para a divisibilidade do espaçoconcreto; pode deixar-se infin itam ent e divisível, contantoque se estabeleça um a dis t inção ent re as posições simultâ-neas do s dois móveis , que de facto estão no espaço, e os seusmovimentos , que não podem ocupar espaço, sendo mais du -ração do que extensão, qua l idade e não quantidade. Medir avelocidade de um m ovi m e nt o , como vamos ver,é apenasconstatar uma s imul tane idade; int roduz i r esta velocidadeno s cálculos é usar um m e i o cómodo para prever um a simul-tane idade . Po r isso, a matemática persiste no seu papel en -quanto se ocupa em determinar as posições simultâneas deAquiles e da tartaruga nu m da do m om e nt o , ou quando admi -te a priori o encont ro do s dois móveis nu m ponto X, encontro

que é t ambém uma simultaneidade. Mas ultrapassa a suafunção ao pretender reconsti tuir o que ocorreu no intervalodas duas simultaneidades; ou, pelo menos, é fatalmente leva-da, mesmo então, a considerar ainda simultaneidades, simul-taneidades novas, cujo número indef inidamente crescente odeveria advert ir de que não se dá qualquer movimento co mimobilidades, ne m tempo co m espaço. Em_jnesuniQ^-assimcomcrna^ duração só é homogéneo o que nã o dura, ^^, ^

ojélemento homogéneo do, movimento é o.quej[nenos lh e per-,tence, o espaço percorrido, isto é, a imobilidade.

Ora, precisamente po r esta razão, a ciência só incide not empo e no movimento com a condiçãojie ejiminarj janjtesjjeniãj]CÃ53IniiH2^ — d a, tempo , a_du-raçãOjjíjiQjaaoylmentO a mobilidade. Disto no s convencería-m os fac i lmente ao e xa m i na r o papel da s considerações de

(2 ) Évelin, Jnfini et quantité, Paris, 1881.

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tempo, de mov imento e de velocidade na astronom ia e na me-

cânica.Os tratados de mecânica têm o cuidado de anunciar que

não definirão a duração, mas a igualdade de duas durações:«Dois intervalos de tempo são iguais», dizem eles, «quandodois corpos idêntico s, colocados em idêntic as circu nstânciasno começo de cada um destes intervalos, e submetidos àsmesmas acções e influências de todo o género, tiverem per-

corrido o mesmo espaço no fim destes intervalos.» Por outraspalavras, dar-nos-emos conta do preciso instante em que omovimento começa, isto é, a simultaneidade de uma m u d a n -ça exterior com um dos nossos estados psíquicos; aperceber-—nos-emos do m om e nto em que o mov imento acaba, isto é,ainda um a simultaneidade; finalmente, mediremos o espaçopercorrido, a única coisa que, de facto, é mensu rável. Portan-to, não se trata aqui de duração, mas apenas do espaço e desimultaneidades. Anunciar que um fenómeno se produzirá no"fim de um tempo t é afirmar que a consciência dar-se-ácon-ta, de aqui até lá, de um número t de s imultaneidades de de-

terminado género. E não con vém que os termos «de aqui atélá» nos criem ilusões, porque o intervalo da duração só existe

para nós , e por causa da mútua penetração dos nossos esta-dos de consciência. Fora de nós, encontrar-se—ia apenas es -paço e, por conseguinte, simultaneidades, da quais nem se-quer se pode dizer que são objectivamente sucessivas, já que

toda a sucessão se pensa pela comparação dopresente com opassado. — O que demonstra bem que o intervalo da p rópriaduração não conta nada, sob ó ponto de vista da ciência, éque, se todos os movimentos do universo se produzissemduas ou três vezes mais depressa, não haveria nada a modifi-car nem nas suas fórmulas, nem nos números nelas introdu-zidos. A consciência teria uma impressão indefinível e de al-gum modo q ualitativa da mudança, mas não apareceria foradela, porque também se produziria ainda o mesmo númerode simultaneidades no espaço. Veremos mais adiante que

quando o astrónomo prediz um eclipse, por exemplo, se en-trega precisamente a uma operação como está: reduz infini-tamente os intervalos da duração, que não contam para aciência, e percepciona assim num tempo muito curto — al-guns segundos, no máxim o — uma sucessão de simultaneida-

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dês que ocupará vários séculos para a consciência concreta,obrigada a viver os seus intervalos.

Chegar—se—á à m esma conclusão se analisarmos directa-mente a no ção de velocidade. A mecânica obtém esta noçãomediante um a série de ideias cuja filiação se encontrará semdificuldade. Primeiro, constrói a ideia de movimento unifor-me , representando, por um lado, a trajectória AB de umdeterminado móvel e, por outro, um fenómeno físico que serepete indefinidamente em idênticas condições, po r exemplo,a queda de uma pedra caindo sempre da mesma altura nomesmo sítio. Se observarmos na trajectória AB os pontos M,N, P, ..., atingidos pelo móvel em cada um dos mom ent os emque a pedra toca o solo, e que os intervalos AM, MN, NP,...,

se considerem iguais entre si, dir-se-á que o movimento éuniforme: e chamar-se-á velocidade do móvel qualquer umdestes intervalos, visto que é conveniente adoptar como uni-dade de duração o fenómeno físico que se escolhe como termode comparação. Define-se, pois, a velocidade de um movi-mento uniforme sem referir outras noções além das de espa-ço e simultaneidade. — Falta o movim ento variado, aquelecujos elementos AM, MN, NP,..., se reconheceram como desi-

guais entre si. Para definir a velocidade domóvel A nopontoM, bastará imaginar um número indefinido de móveis A,, Ag,

Ag, .„, todos eles animados com movimentos uniformes, ecujas velocidades v,, v2, v3,..., dispostas por ordem crescente,por exemplo, correspondam a todas as grandezas possíveis.Consideremos então, na trajectória do móvel A, dois pontosM' e M" situados um antes e o outro depois do ponto M, masmuito próximos dele. Ao mesmo tempo que este móvel atinge

os pontos M', M, M" , os outros móveis chegam, nas suas tra-jectórias respectivas, aos pontos M,' Mj M," M 2' M2 M2", ....etc.; e existem necessariamente dois móveis A,, e Ap tais qu etemos, por um lado, M'M = M'hM h e, por outro, MM " = M pM ".C onvirá então dizer que a velocidade do móvel A no ponto M

está compreendida entre vh e vp. Mas nada impede supor ospontos M' e M" mais próximos ainda do ponto M, e concebe--se que é necesário então substituir vh e vp por duas novasvelocidades v, e vn, um a superior á vh, a outra inferior à vp. Eà medida que se fizer decrescer os dois intervalos M'M e

MM", também diminuirá a diferença entre as duas velocida-

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toma-los um pelo outro, que temos uma incrível dificuldadeem osdistinguir ou, pelo menos, em expressar esta distinçãopela linguagem. Assim, dizíamos que vários estados de cons-ciência se organizam entre si, se penetram, se enriquecemcada vez mais, podendo deste modo dar a um ignorante doespaço o sent imento da duração pura;Jmas já, para empregar S

Fã^pãlãvrã" «vários», tínhamos isolado estes estados uns dosoutros, tínhamo-los exteriorizado uns relativamente aos ou-tros, numa palavra, tínhamo-los justaposto; e denunciáva-

mos assim, pela própria expressão a que nos obrigámos a re-correr, o hábito profundamente enraizado de desenvolver p J_tempo no espaçp.JE à imagem deste desenvolvimento, umavez efectuado, que atríblínnb^necessanãm^^^dè^Tmliaís~T~êxpressar o estado de uma alma quê ãinUa onãõ"tívesse efectuado: estes termos estão, pois, manchados

;por~úfh~ vício"original, e a representaçãode uma multíplicida-~ qu ê Aclara .

pensãmèirtÕ "quê"entrá"èTn"si"é se abstrai, não podetraduzir—se para a língua do senso comum. E,~cbn£udò, nãopodemos formar a ideia de multiplicidade distinta sem consi-derar paralelamente o que chamámos uma multiplicidadequalitativa. Quando contamos explicitamente unidades ali-nhando—as no espaço, não é verdade que ao lado de tal adi-ção, cujos termos idênticos se desenham num fundo homogé-n e o , se dá continuidade, nas pofundezas da alma, a uma or-ganização destas unidades umas com as outras, processocompletamente dinâmico, bastante análogo à representaçãopuramente qualitativa que uma bigorna sensível teria donúmero crescente das pancadas do martelo? Neste sentido,quase se podia dizer que os números diariamentfTusadosTemcada um o seu eqúlvãTèlfíEe èmõcioflsrt. Os   còméfciãhtês sà-bém-no perfeitamente, e em vez de indicar o preço de um ob-jecto por um número arredondado de escudos, porão o alga-rismo imediatamente inferior, livres para intercalar depoisum nú mero suficiente de tostões. Em síntese^p processo peloqual contamos as unidades e com elas forrnãmosjuma . mujti-

plicí3S3e distinta apresentã~u1rrrduplo aspecto:_gor.ujn lado,suQomo-tas _ idènTicasi   p ^ue não se p o ò T e conceber a não sercom a condição de cjue estas unidades se alinhem num meiohomogéneo; mas, .por outro lado, a terceira unidade, por

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exemplo, ao acrescentar-se às^tras^duas^rnodifjca a natu-reza, o aspecto, e como que o ritmo do conjunto: se m está"mú -tua penetração e este processo de certo modo qualitativo, nãohaveria adição possível. — É, pois, graças à qualidade daquanticjacle que formamos a ideia de uma quantidade semqualidade. "" " ~

-^Torna-se, portanto, evidente, que, fpra .de toda a repre-sentação simbólica, o tempo nunca adquirirá para a nossaconsciência o aspecto de um mèio~hoTnogéTfèò, onde os termos

de uma sucessão se exteriorizam relativamente uns aos ou-tros. Mas chegamos naturalmente a esta representação sim-bólica apenas pelo simples facto de, numa série de termosidênticos, cada qual adquirir, para a nossa consciência, umduplo aspecto: um sempre idêntico a si próprio, porque pen-samos na identidade do objecto exterior, o outro específico,porque a adição deste termo dá origem a uma nova organiza-ção do conjunto. Daí a possibilidade de desdobrar no espaço,sob a forma de multiplicidadelíúinèrica, o que chamámosurna multiplicidade qualitativa, e de considerar uma como oequivalente da outra. Ora, em nenhuma circunstância esteduplo processo se verifica tão facilmente como na percepçãodo fenómeno exterior, em si desconhecido, que para nós tomaa^ forma do movimento. Aqui temos perfeitamente uma sériede termos idênticos entre si, já que se trata sempre do mes-mo móvel; mas, por outro lado, a síntese efectuada pela nossaconsciência entre a posição actual e o que a nossa memóriachama as posições anteriores faz que estas imagens se pene-trem, se completem e se continuem de alguma manei r a umasàs outras. Logo, é por jntermédio_do mov imento, sobretudo,que a duração a d q U i r e a f b r m a de um meio homogéneo e o

to-da a repetição~ò!&TTHCÊnóirieno exterior bem determinado te-rá s i u d à c W s c i e n c i ã " o mesm o modo de representação.Assim, quando ouvimos uma série de pancadas de martelo,os sons formam uma melodia indivisível enqua nto sensaçõespuras, e dão ainda origem ao que chamámos um progresso

dinâmico: mas, sabendo que a mesma causa objectiva age,decompomos este progresso em fases que consideramos entãocomo idênticas; e desta multiplicidade de termos idênticos,que não se podem conceber senão pelo desdobramento no es-

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paço, chegamos ainda n ecessa riam ente à ide ia de um tempohomogéneo, imagem simbólica da duração real. N u m a pala-.vra, o nosso eu toca no mun d o exter ior superficialmente; asnossas sensações sucessivas, embora apoiando—se umas nasoutras, conservam algo da ex terioridade recíproca que carac-teriza objectivamente as suas causas; e é por isso que a nossavida psicológica superficial se desenrola num meio homogé-neo sem que este modo de representação nos custe um gran-de esforço. Mas o carácter simbólico da representação torna-

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cada vez mais impressionante à med ida que penetramosmais na s profundezas da consciência: o eu interior, o quesente e se apaixona, o que delibera e se decide, é uma forçacujos estados e modificações se penetram int imamente , e so-frem uma alteração profunda quando os separamos uns dosoutros para os desenrolar no espaço. Mas como este eu maisprofundo não faz senão um a única e mesma pessoa com o eusuperficial, parecem necessariamente durar da mesma má-,

neira. E como a representação constante de um fenómeno ob -jectivò idêntí^q^ê~se~T5pjete^wi e-a-iro"âsá"vida psíquica Su-perficial em partFexTeriores u"mã"s~ a§'õírtràs, os momentosa^ínrdjíermiratos no progresso dinâmico e indiviso dos nossos estados deconsciência mais pessoais. Assim se repercute, assim" se "pro-paga até às profundidades da consciência a exterioridade re-cíproca que a sua justaposição no espaço homogéneo assegu-

ra aos objectos materia is: pouco a pouco, as nossas sensaçõesdésprendem-se umas das outras como as causas externas

que lhes dão origem, e os sentimentos ou as i3êlãf"TOníò assensações de que eles são contemporâ neos. — O que demons-tra perfeitamente que a nossa concepção ordinária da dura-ção se deve a uma invasão gradual do espaço no do mínio daconsciência pura, é que para tirar ao eu a faculdade de per-cepcionar um tempo homogéneo, basta destacar dele a cama-da mais superficial de factos psíquicos que u tiliza como regu-ladores. O sonho coloca—nos precisamente nestas condições;porque o sono, ao afrouxar o jogo das funções orgânicas, mo -

difica sobretudo a superfície de comunicação entre o eu e ascoisas exteriores. Não medimos já, pois, a duração, mas sen-timo-la; de q ua nt ida de r e torna ao estado de qualidade; a

apreciação matemática do tempo decorrido já não se verifica;

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mas é substituída por um instinto confuso, capaz, como osinstintos, de cometer erros grosseiros e de, po r vezes, tam-bé m proceder com extrema segurança. Mesmo no estado devigília, a experiência diária deverá ensinar-nos a distinguirentre a duração-qualidade , a que a nossa consciência atingeimediatamente, a que o ani mal percepciona provavelmente, eo tempo, po r assim d izer, materializado, o tempo tornadoquantidade por um desenvolvimento no espaço. No momentoem que escrevo estas l inhas , o relógio ao lado bate as horas;

mas o meu ouvido distraído só se apercebe depois de algumasterem soado; portanto, não as contei. E, no entanto, basta-

—m e um esforço de atenção retrospectiva p ara somar as qua-tro batidas já produz ida s e acrescentá-las às que ouço. Se,

entrando em mini , me interrogo m ais cuidadosamente sobreo q.ue acaba de acontecer, caio na conta de que os quatro pri-meiros sons im pressionaram o meu ouvido e até emociona-ram a minha consciência, mas que as sensações produzidaspor cada um deles, em vez de se justaporem, se fundiramumas com as outras de maneira a dotar o conjunto de um as-

pecto próprio, de maneira a fazer dele uma espécie de frasemusical. Para avaliar retrospectivamente o número daspan-cadas emitidas, tento reconstituir esta frase pelo pensamen-to; a minha imaginação captou uma pancada, depois duas,depois três, e enquanto não chegou ao núm ero quatro exacto,a sensibilidade, consultada, respondeu que o efeito total dife-ria qualitativamente. Portanto, tinha constatado, à sua ma-neira, a sucessão das quatro pancadas, mas de uma maneiradiferente da de uma adição, e sem fazer intervir a imagem deuma justaposição de termos distintos. Em síntese, o númerodas pancadas emitidas foi percepcionado como qualidade, enã o como quantidade; a duração apresenta—se assim à cons-ciência imediata, e conserva esta forma enquanto não dá lu-gar a uma representação simbólica, extraída da extensão. —

Distingamos, pois, para concluir, duas fo rmas da multiplici-dãHe, duas apreciações muito diferentes da duração, dois as-

pectos da vida consciente. Sob a duração homogénea, símbolo

extensivo da duração verdadeira, uma psicologia atenta se-para uma duração cujos momentos heterogéneos se pene-tram; sob a multip licidade numé rica dos estados conscientes,uma multiplicidad e qualitativa; sob o eu nos estados bem de-

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sãs ideias, isto é, pela sua mútua penetração? As opiniões a

queimais no s agarramos são as que explicamos co m mais di -ficuldade, e as razões com que as justificamos raramente sã oas que nos levaram a adoptá-las. Em certo sentido, adoptá-mo-las sem razão, porq ue aos nossos olhos o seu valor resideem que o seu cambiante corresponde à coloração comu m detodas as nossas ideias, porque, logo de início, vimos nelasalgo de nós. Por isso, não tom am no nosso espírito a forma

banal que revestirão quan do dela as fizermos sair para as ex-primir por palavras; e ainda que noutros espíritos tenham omesmo nome, não são exactam ente a mesma coisa. A bem di-zer, cada uma vive como uma célula num organismo; tudo oqu e modifica o estado geral do eu modifica-a também a ela.Mas enquan to a célula ocupa um ponto determinado do orga-nismo, uma ideia verdadeiramente nossa enche o nosso eupor completo. Aliás, é necessário que todas as nossas ideiasse incorporem assim na grande massa do s nossos estados de •consciência. Muitas flutuam à superfície como folhas mortasna água de um lago. Entendem os deste mo do que o nosso es-pírito, quand o as pensa, as encontra sempre num a espécie deimobilidade, como se lhe fossem exteriores. São deste número

as ideias que recebemos já feitas e que em nós permanecemsem nun ca se assimilarem à nossa substância ou, então, as

ideias que deixámos de cuidar e que secaram no abandono.Se, à medida que nos afastamos das camadas profundas do

eu,jis nossos estados de consciência tendem cada vez mãís~ãadquirir a forma de uma multiplicidade numérica e a desdp-brar-se num espaço hom ogéneo, é precisamente porque tai§estados de consciência afectam uma natureza cada vez maisinerte, uma forma cada vez mais impessoal. Não é preciso,pois, espantar—se de se só as ideias que menos nos pertencemse podem adequadamente exprimir por palavras: só a elas,como veremos, se aplica a teoria associacionista- Exterioresumas às outras, conservam entre si relações em que a natu-

reza íntima de cada uma delas não entra para nada, relaçõesque se podem classificar: dir—se-á, pois, delas que se asso-ciam por contiguidade, ou por qualquer razão lógica. Mas se,

escavando por baixo da superfície de contacto entre o eu e ascoisas exteriores, penetramos nas profundezas da inteligên-cia organizada e viva, assistiremos à sobreposição ou, antes,

94

a fusão mtima de muitas ideias que, uma vez dissociadasparecem excluir-se sob a forma de termos logicamentecontraditonos. Os sonhos mais bizarros, em qu e duasTmafí en S"se sobrepõem e no s apresentam s imultaneamente duas personagens diferen tes, e que apesar de tudo apenas farLm"uma, darão uma fraca ideia da interpenetração dos nossTsconceitos noestado de vigília. A imaginaçãojsonhado^ £!

^Assim se verifica, assim se esclarecerá por um estudo

mais aprofu ndad o dos factos internos, o princípio que antes

enunciámos: a vida consciente apresenta—se sob um duploaspecto, consoante à percepcionemos directamente o u por re-fracçãõ através do espaço. — C onsiderados em si mesm os, osestados de consciência profundos nãcTtêm nenhuma relaçãocoima, quantidade; são qualidade pura; misturam-seJlê. talmaneira que não se pode dizer se são um ou vários, nem

sequer examiná-los sob este ponto de vista sem logo os des-naturar. A duração qu e assim criam é uma duração cujos mo-mentos não constituem uma multiplicidade numérica: carac-terizar estes momentos dizendo qu e interferem uns com osoutros seria ainda distingui-los. Se cada um de nós vivesseum a vida puramente individual, se não houvesse ne m socie-dade nem linguagem, a nossa co nsciênc ia captaria sob estaforma indistinta a série de estados internos? De modo ne-

nhum, evidentemente, porque conservaríamos a ideia de umespaço homogéneo em que os objectos nitidamen te se distin-guem uns dos outros, e porque é demasiado cómodo alinharem semelhante meio, para os resolver em termos mais sim-ples, os estados de algum modo nebulosos que, num primeiro

contacto, afectavam o olhar da consciência. Mas também,notemos bem, a intuição de um espaço homogéneo é já umapreparação para a vida social. O animal não representa pro-vavelmente como nós, além das suas sensações, um mu ndoexterior bem distin to dele, que seja propriedade comum detodos os seres conscientes. A tendência em virtude da qual

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, (

í !u

representamos ni t idamente a exterioridade das coisas e a ho-

mogeneidade do seu meio é a mesma que nos leva a vive r emcomum e a falar. Mas, à medida que se realizam mais com-pletamente as condições da vida social , à medida também,que se acentua mais a corrente que impele os nossos estados

de consciência de dentro para fora: pouco a pouco, estes esta-dos transformam—se em objectos ou em coisas; não se sepa-

ram apenas uns dos outros, mas também de nós. Então só ospercepcionamos no meio homogéneo em que condensámos a

sua imagem e através da palavra, que lhes empresta a suabana l coloração. Assim se forma um segundo eu que escondeo pr imeiro, um eu cuja existência tem momentos distintos,cujos estados se separam uns dos outros e se exprimem,"semdificuldade, po r meio de palavras. E que não nos censuremde aqui estarmos a duplicar a pessoa, de nela introduzirmosso b um a outra forma a mul t ipl icidade numérica, qu e delapr imeiramente havíamos excluído, É o mesmo eu que percep-.ciona estados distintos e que, f ixando em seguida mais a suaatenção, verá estes estados fundirem-se entre si como agu-lhas de neve em.contacto prolongado com a mão. E, a bem di-zer, devido à comodidade da l inguagem, tem todo o interesseem não restabelecer a confusão precisamente onde reina aordem, e em não perturbar o engenhoso arranjo de estados

de certo modo impessoais, em virtude do qual deixou de for--mar «um impér io nu m império». U m a vida inferior, nos mo-mentos bem distintos, nos estados nitidamente caracteriza-dos, responderá melhor às exigências da vida social.^jQSLpsicologia superficial^ poderá contentar-se com descrevê-lasenTpor isso cairjõ^erro, coma condicjgjie_jêjnpjrê^e_lmu^

tar~aÕ~ês£udq dos factÕsTumavez produzidos, e de deixar delado o seu modojde^ft^mj^ão..— Mas se, ao passar da estáti-

ca áTdinãmicaT esta psicologia pretende raciocinar sobre osfactos que se realizam tal como ela raciocinou sobre os reali-

zados, se nosjapresenta o eu concreto e vivo como um a asso-

ciação de termos quepiístiTrtoTTirrs~dt» <ratros;-se justapõem

num meio homogéneo, ela verá surgir à sua volta insupe-

ráveis dificuldades. E tais dificuldades multiplicar—se-ão àmedida qu e desenvolver esforços cada ve z maiores para asresolver, porque todos os seus esforços nã o farão mais do quedemonstrar cada vez melhor a absurdidade da hipótese fun-

dementai segundo a qua l se desdobrou o tempo no espaço ese pô s a sucessão no próprio seio da simultaneidad e — Vámós ver que as con tradiçõ es ineren tes aos problemas da causalidade, da l iberdade, num a palavra, da personal idade nãotem outra origem, e que basta, para as el iminar , substituir o

eu real, o eu concreto, à sua representação simbólica

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CAPÍTULO III

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DA ORGANIZAÇÃO DO S ESTADOS DE CONSCIÊNCIA:A LIBERDADE

Não é difícil compreender por que é que a questão da li-berdade põe em confronto dois sistemas opostos da natureza,o mecanicismo e o dinamismo. O dinamismo parte da ideiada actividade voluntária, fornecida pela consciência, e chegaà representação da inércia esvaziando pouco a pouco estaideia: concebe, pois, sem dificuldade um a força livre, por um

I lado, e, por outro, uma matéria governada por leis. Mas o

|mecanicismo segue oc am i n h o inverso. Os materiais com que

|operaasíntese, supõe-nos regidos por eis necessárias, eain-

da que chegue a combinações cada vez mais ricas, cada vezmais difíceis de prever, cada vezmais contingentes aparente-mente, não sai do círculo estreito da necessidade em que des-de o principio se encerrara. — Ao aprofundarmos estas duasconcepções da natureza, veremos que implicamduas hipóte-ses bastante difefentes sobre as relações da lei com o factoque rege. À medida que levanta o seu olhar, o dinamista crêperceber factos que se esquivam mais ao aperto das leis: ele-va, pois, o facto a realidade absoluta e a lei à expressão maisou menos simbólica desta realidade. Pelo contrário, o mecani-

cismo destrinça no seio do facto particular um determinadonúmero de leis, de que constituiria de algum modo o ponto deintersecção; é a lei que, nesta hipótese, se transformaria na

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culares, de que o sistema nervoso é teatro, compondo-se en -tre si ou com outros, terão frequentemente como resultanteum a reacção do nosso organismo ao mundo circundante: daí,os movimentos reflexos, e também as acções ditas livres evoluntárias. Po r outro lado, como o princípioda conservaçãoda energia se considerou inflexível, não há átomo algum,nem no sistema nervoso nem na imensidade do universo,cuja posição nã o seja determinada pela soma da s acções m e-

cânicas que os outros átomos exercem sobre ele. E o matemá-tico que conhecesse a posição da s moléculas ou átomos de umorganismo humano, nu m determinado momento,be m como aposição e o movimento de todos os átomos do universo ca -pazes de o influenciar, calcularia com uma precisão infalívelas acções passadas, presentes e futuras da pessoa a que per-tence este organismo, como se prediz um fenómeno astronó-micoC).

Nã o teremos dificuldade em reconhecer qu e esta concep-ção dos fenómenos fisiológicos em geral, e dos fenómenos ner-vosos em particular, decorre muito naturalmente da lei daconservação da força. Sem dúvida, a teoria atómica da maté-ria não passa ainda de uma hipótese, e as explicações pura-

mente cinéticas do s factos físicos perdem mais do que ga-nham em lhe estarem associadas. Assim, as experiênciasrecentes de Hirn sobre o movimentodos gasesí2) convidam-— nos a ver ainda outra coisa no calor que não um simplesmo-vimento molecular. As hipóteses relativamente à constituiçãodo éter luminífero, que Augusto Comte já tratava comcertodesdém(3), não parecem em nada compatíveis com a regulari-dade verificada do movimentodo s planetas( 4), ne m sobretudo

(') Ver a este propósito Longe, Hisfoire du materialisme, trad.fr., t. II, II Parte.

(2) Hirn, Recherches expérimentales et analytiques sur lês loisde 1'écoulement et du choc dês gaz, Paris, 1886. Ver sobretudo aspp. 160-171e 199-203.

(3) Cours de philosophie positive,t. II, 32.9 lição.(4) Hirn, Théorie mécanique de Ia chaleur, Paris, 1868, t. II,

p. 267.

10 2

com o fenómeno da divisão da luz(5). A questão da elasticida-de dos átomos levanta dificuldades intransponíveis, mesmodepois da s brilhantes hipóteses de William Thomson, Enfim,

nada de mais problemático que a existência do próprio áto-mo. A julgar pelas propriedades, cada ve z mais numerosas,co m que foi necessário dotá-lo, seríamos facilmente levados aver no átomo, não uma coisa real, mas o resíduo materializa-

do da s explicações mecânicas. Apesar de tudo, há que subli-nhar que a determinação necessária do s factos "fisiológicospelos seus antecedentes se impõe fora de toda aliipótese so-bre^ãliatureza dos elementos últimos da matéria, sendo sópoj isto qu e alargamos a todos os corpos vivos o teorema daconservação da energia. É que admitir a universalidade des-te teorema é supor, no fundo, que os pontos materiais, de queo universo se compõe, estão apenas submetidos a forçasatractivas e repulsivas, emanando destes mesmos pontos ecujas intensidades não dependem senão das distâncias: don-de resultaria que a posição destes pontos materiais, numdado momento — seja qual for a sua natureza —   é rigoro-samente determinado em relação ao que era no _SfiSiento

anterior. Situemo-nos, pois, por um momento, nesta últimahipótese: propomos mostrar, antesdemais, que ela não im-pl ica a d e t e n n i n a ~ ~

ciência uns~ lõTõlãtrõT^ênV^eguida, que esta mesma uni-versalidade dojprincípip da conservação da .energlãTsólpõcTeadmitir—  se graças a alguma hipótese psicológica.

Supondo, com  "efeito.,, que a posição, a direcção_e a velo-cidade dê cada átomo de matéria cerebral_fjossemJ^S§rmi-nad^rs^nTíõdos os momentos da duração, de modo algum_§eseguirlàjgajg^ajiD^sa-vidahiasicolQgica esteja submetida à mes-màTatáíidade. Primeiramente, seria necessário provar que aum determinado^éstado cerebral corresponde um estado psi-^cológico rigorosamente determinado, e esta demonstração

ainda não se fez. Não se pensa exigi-la porque, na maioria

p. '*" et la moderne, Paris, 1884,

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às leis conhecidas da associação das ideias. — Mas chegou o

momento de nos interrogarmos se a perspectiva em que o as-sociácionismo se coloca nã o impl ica um a concepção deficiente

do eu e da mult ipl ic idade dos estados de consciência.O determinismo associaçionisiarepresenta o e u jojnoum» ___ _„__—  — — —  ~~~~~ -—— ....... --'—— " """*•*

psíquicos^ em que o mais forte exerce

uma_influéj3cja._preppnderante e arrasta os outros consigo.

Esta doutrina distingue, pois, nitidamente entre si"ósTactos

psíquicos coexistentes: «Poderia ter deixado de matar», dizStuart Mill, «se a minha aversão pelo crime e os receios das

consequências tivessem sido mais fracos do que a tentação

que me levava a cometê-lo. » ( G ) E um pouco mais adiante: «Ose u desejo de fazer bem e a sua aversão pelo mal são bastan-

te fortes para vencer [...] qualquer outro desejo ou qualquer

outra aversão contrárias.»(7) Assim, o desejo, a aversão, o me-

do , a tentação apresentam— se aqui como coisas distintas, e

qu e nada impede, no presente caso, de nomear separadamen-

te. Mesmo quando relaciona estes estados com o eu que osexperimenta, o filósofo inglês procura estabelecer ainda dis-

tinções bem demarcadas: «Oconflito tem lugar [...J entre o eu

que deseja um prazer e o eu que teme os remorsos.»(8) Por

seu lado, Alexandre Bain dedica um capítulo inteiro ao«Con-

flito dos motivos»(9). Nele compara os prazeres e os sofrimen-

tos, como outros tantos termos a que se poderia atribuir, pelo

menos abstractamente, uma existência própria. Notemos que

os próprios adversários do determinismo o seguem de bastan-

te bom grado neste domínio, que também falam de associa-

ções de ideias e de conflitos de motivos, e que um dos mais

profundos entre estes filósofos, Fouillé, não hesita em fazer

da própria ideia de liberdade um motivo capaz de contraba-

lançar outras(10). — Contudo, expomo— nos aqui a uma confu-

(6) La philosophie de Hamilton, trad. Cazelles, p. 554.(7) Ibid., p. 556.

(8) Ibid., p. 555.(9) The Emotitms and the Will, cap. VI .(10) Fouillée, La liberte et lê déterminisme.

112

são grave, que se deve a que a linguagem não é feita para ex-

primir todos os cambiantes dos estados internos.

Levanto-me, por exemplo, para abrir a janela, e eis que,

uma vez levantado, me esqueço do que tinha a fazer: perma-

neço imóvel. — Nada de mais s imples , dir-se-á; associastes

duas ideias, a de um fim a atingir e a de um movimento a

executar: uma das ideias desvaneceu-se e permanece apenas

a representação do movimento. — Contudo, nã o volto a sen-

tar— me; sinto confusamente que me falta fazer alguma coisa.A minha imobilidade não é uma imobilidade qualquer; na

posição em que me encontro está como qu e preformado o acto

a cumprir; por isso, nada mais tenho a fazer do que manter

esta posição, estudá-la ou, antes, senti-la intimamente, para

nela reencontrar a ideia há momentos desaparecida. Foi,

pois, necessário que esta ideia tenha comunicado à imagem

interna o movimento esboçadoe d a posição tomada um a colo-

ração especial, e tal coloração não teria sido a mesma, sem

dúvida, se o fim a atingir tivesse sido diferente. Apesar de tu-

do, a linguagem teria ainda expresso este movimento e esta

posição da mesma maneira; e o psicólogo associacionista te-

ria distinguido os dois casos dizendoque à ideia do movimen-to estava associado, desta vez, a de um fim novo: como se a

própria novidade do fim a atingir não modificasse,com o seu

cambiante, a representação do movimento a executar, comose tal movimento fosse idêntico no espaço! — N ão seria, pois,

preciso dizer que a representação de uma certa posição se po-

de relacionar, na consciência, com a imagem de diferentes

fins a atingir, mas sim que posições geometr icamente idênti-

cas se oferecem à consciência do sujeito sob diferentes for-

mas, consoante o fim representado. O erro do associacionis-

mo foi ter eliminado, primeiramente, o elemento qualitativo

do acto a cumprir, para apenas conservar o que tem de geo-

métrico e de impessoal: à ideia deste acto, assim descolorida,

foi necessário associar então alguma diferença específica, p a-ra a distinguir de muitas outras. Mas esta associaçãoé mais

obra do filósofo associacionista, que estuda o meu espírito, doque dó meu próprio espírito.

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rçetrarem, não conseguimos traduzir complejtamente p,-que anossa alma experimenta: p pensamento permanece incojmen-surável com a linguagem.

É, pois, um a psicologia,grosseira, vítima da linguagem, aque^Tõs mostra a a l ma determinada por uma simpatia, aver-sí|o ou ódio, como outras tantas forças que pesam sobre ela.Estes sentimentos, contanto que tenham atingido uma pro-fundidade suficiente, representam cada um a alma inteira,no sentido de que todo o conteúdo da alma se reflecte em ca-

da um deles. Dizer que a alma se determina sob a inf luênciade qualquer um destes sentimentos é reconhecer que se de-termina a si mesma. O associacionista reduz o eu a um agre-gado de factos de consciência, sensações, sentimentos eideias. Mas se nestes diversos estados nada mais vir do que onome que os exprime, se retém apenas o aspecto impessoal,poderá justapô-los indef in idamente sem obter outra coisa anão ser um eu fantasma, a sombra do eu que se projecta noespaço. Se, pelo contrário, toma os estados psicológicos com acoloração particular que revestem em determinada pessoa equ e chega a cada um a partir do reflexo do s demais, então,não é necessário associar vários factos de consciência parareconstituir a pessoa: toda ela se encontra num só deles, con-tanto que se saiba escolher. E aijnanifestação exterior desteestado interno será precisamente o que se chama um acto li -vre, porque só o eu será o seu autor, uma vez que çja expri-mirá o eu total. Neste sentido, a liberdade não apresenta ocarácter absoluto que o espiritualismo lhe empresta, por ve-zes; admite graus. — Pois, é preciso que todos os estados deconsciência se misturem com os seus congéneres, como gotasde chuva à água de um lago. O eu, enquanto percepciona umespaço homogéneo, apresenta uma certa superfície, e nela po-der-se-ão formar e flutuar vegetações independentes. Assim,uma sugestão recebida no estado de hipnotismo não se incor-porará à massa dos factos de consciência; mas, dotada de

uma vitalidade própria, substituir-se-á à pessoa, quandotiver soado a sua hora. Uma cólera violenta suscitada poralguma circunstância acidental, um vício hereditário queemerge de repente das profundidades obscuras do organismo

11 6

à superfície da consciência, agirão quase como um a sugestãohipnót ica. Além destes termos independentes, depararemoscom séries mais complexas, cujos elementos se penetram unsaos outros, mas nu nca chegam a fundir—se perfeitamentenamassa compacta do eu. É este o conjuntode sentimentos e deideias que nos vêm de uma educação m al compreendida, aque se destina mais à memória do que ao juízo. Forma-seaqui, no centro do próprio eu fundamental, um eu parasitaqu e invadirá continuamenteo outro. Muitos vivem assim, e

morrem se m terem conhecido a verdadeira liberdade. Mas asugestão tornar-se-ia persuasão se o eu total a assimilasse;a paixão, mesmo repentina, nunca apresentaria o mesmocarácter fatal se nela se reflectisse, como na indignação deAlceste, toda a história da pessoa; e a educação mais auto-ritária nada suprimiria da nossa liberdade se ela nos comu-nicasse apenas ideias e sentimentos capazes de impregnar aalma inteira. Comefeito, é da alma inteira que emana-a-deci-são livre; e o acto será tanto mais livre quanto mais a sérieculíarmcá ã que se religa tender para se identificar com o eufijjidameníãl.

Assim compreendidos, os actos livres são raros, mesmopor parte dos que mais têm o costume de se observar e de ra-

ciocinar sobre o que fazem. Mostrámos que nos apercebía-mos, a maioria das vezes, por refracção através do espaço,que os nossos estados de consciência se solidificavam em pa-lavraSj e que o nosso eu concreto,o nosso eu vivo, se recobriacom uma crosta exterior de factos psicológicos nitidamentedesenhados, separados uns dos outros, por consequência fi-xos. Acrescentámos que, para a comodidade da linguagem e afacilidade das relações sociais, tínhamos todo o interesse emnão abrir esta crosta e em admitir que ela desenha exacta-mente a forma do objecto que cobre. Agora, diremos que asnossas acções diárias se inspiram muito menos nos nossospróprios sentimentos, infinitamente móveis, do que em ima-gens invariáveis a que estes sentimentos aderem. De manhã,quando soa a hora a que por hábito m e levanto, poderia rece-ber essa impressão Ç ò v &» t f j 4^75. segundo a expressão dePlatão; poderia permitir-lhe fundir—se na massa confusa das

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L. /

li.

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iel.

sentimentos contrários que o emocionam nã o se alteram,çomo-équ^r-w1 virtudedo princípio da causalidade que ade »terminismo invoca , o eu se pode decidir? A verdade é que oeu; só porque exper imentouo primeiro sentimento, já mudouaigíTquando sobrevêm o segundo: em todos os momentos dadeliberação, o eu modifica-se e modifica também, por con-sequência, os dois sent imentos que o perturbam. A§sjm_jse_forma urna_sér-ifi-dinâmiea de estados que se perpetram, se re-

forçam uns aos outros, e chegarão a um acto livre por umaevolução natural. M^_o_determirnsta, .obedecendo a uma va-ga^ necessidade de representação simbólica, designará,compalavras os sentimentos opostos que dividem o eu, assimcomo o próprio eu. Cristal izando—os na forma de palavrasbem definidas, retira antecipadamente e em primeiro lugartoda a espécie de actividade viva à pessoa e, depois, aos sen-timentos com ela se emocionou. Verá1_entãa»p,Qr um lado, umeu^sèmpre idêntic o a si mesm o e, por outro, sentimentos con-trários, não menos invariáveis, que o disputam; a vitória per-tencerá necessariamente ao mais forte, lilás este mecanismoa que antecipadamente nos condenámos não tem outro valoralém do de uma representaç ão simbólica; não pode manter-

— se contra o testemunho de uma consciência atenta, que nos/-apresenta o dinam ismo interno como um facto.

1 Em resum o, somos livres quando os nossos actos emanam\e torlã'à nossa personalidade, quando a exprimem, quando

com ela têm a indefinível semelhan ça que por vezes se_encpn-tra entre a obra e o artista. Em vão se alegará que cedemosentão à influência todo-poderosa do nosso carácter. O nossocarácter é ainda nós ; e porque se gostou de dividir a pessoaem duas partes para considerar, sucessivamente, por um es-forço de abstracção, o eu que sente ou pensa e o eu que age,haveria certa infantilidade em concluir que um dos dois euspesa sobre o outro. A mesma censura se dirigirá aos que seinterrogam se somos livres de modificar o nosso carácter. Éclaro que o nosso carácter se modifica insensivelmente todosos dias, e a nossa liberdade sofreria com isso se as novasaquisições viessem enxertar-se no nosso eu, e não fundir—secom ele. Mas, a partir do momento em que esta fusão se der,

12 0

dever-se-á dizer que a muda nça ocorrida no nosso carácter étotalmente nossa, que dela nos apropr iámos . Num a palavra,se se convenciona c h a m a r l ivre a todo o acto que emana doeu, e apenas do eu, o acto que leva a marca da nossa pessoa éverdadeiramente livre, porque só o nosso eu lhe reivindicaráa paternidade. A tese da l iberdade encontrar-se-ia assimve-rificada, se consent íssemos em só procurar a liberdade nu mcerto carácter da decisão tomada, numa palavra, no acto li-

vre. Mas o dete rmi nista , ao ver que esta posição lhe escapa,refugia-se no passado ou no futuro. Ora se transporta, pelopensamento, a um período anterior, e afirma a determinaçãonecessária, neste preciso momento, do acto futuro; ora, su-pondo antecipadamente a acção realizada, pretende que elanã o se podia ter produzido de outra maneira. Os adversáriosdo determinismo nã o hes i tam em segui-lo neste novo terrenoe em introduzir na definição do acto livre — talvez, nã o semalgum perigo — a previsão do que se poderia fazer e a lem-brança de outra escolha pela qual se poderia te r optado. Con-vém, pois, colocar-se nesta nova perspectiva e procurar,prescindindo da s influências externas e dos preconceitos dalinguagem, o que a co nsciência totalmen te pura nos ensina

sobre a acção futura oupassada. Captaremos assim, de outramaneira, e enquan to se referem explicitamente a uma certaconcepção da duração, o erro fundamental do determinismo ea ilusão dosseus adversários.

«Ter consc iência do livre arbítrio», diz Stuart Mi 11, «signi-fica ter consciência, antes de feita a escolha, de ter podido terescolhido diversamente.»(u) É precisamente assim que os de-fensores da liberdade a entendem; e afirmam que, ao efec-tuarmos uma acção livremente, alguma outra acção teriasido igualmente possível. A este respeito invocam o teste-munho da consciência, que nos leva a compreender, além dopróprio acto, o poder de optar pelo partido contrário. Inver-

(") La philosophic de Hamilton,p. 551.

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c(lccc

v

samente, o determinismo pretende que, postos determinadosantecedentes, só uma única acção resultante se torna possí- .vel: «A o supormos», c ont inua Stuart Mill, «que teríamos agi-do diversamente do que fizemos, supomos sempre uma di-ferença nos antecedentes. Fingimos ter conhecido algo quenã o conhecemos, ou não ter conhec ido a lgo qu e conhecemos,etc.»(ia) E, fiel ao seu princípio, o filósofo inglês atribui àconsciência o papel de nos informar sobre o que é, não sobre oque poderia ser. — Por agora, não insistiremos neste último

ponto; reservamos a questão de saber em que sentido o eu sepercebe como causa determinantes. Mas, ao lado desta ques-tão de ordem psicológica, existe outra, de natureza metafísi-ca, que os determinis tas e os seus adversários resolvem a

priori em sentidos opostos. A argumentação dos primeirosimplica, com efeito, que aos antecedentes dados apenas cor-responde um acto possível; os partidários do livre arbítrio su-.põem, pelo contrário, que a mesma série podia resultar emvários actos diferentes, igualmente possíveis. É sobre estaquestão de igual possibilidade de duas acções ou de duas voli-ções contrárias que, em primeiro lugar, nos deteremos: talvezobtenhamos assim alguma indicação sobre a natureza daoperação pela qual a vontade escolhe.

Hesito entre duas acções possíveis X e Y, e passo sucessi-vamente de uma a outra. Isto significa que passo por uma sé-rie de estados, e que estes estados se podem repartir em doisgrupos, segundo me incl ino mais para X ou para a decisãocontrária. Da mesma maneira, só estas inclinações opostastêm uma existência real, e X e Y são dois símbolos pelosquais represento, no s seus pontos de chegada, po r assim di -zer, as diferentes tendênc ias da minha pessoa em momentossucessivos da duração. Designem os, portanto, por X e Y estasmesmas tendênc ias : a nossa nova notação apresentará umaimagem mais fiel da realidade concreta? É necessário assina-lar, como ac ima diz íamos, que o eu cresce, enriquece—se e

muda, à medida que passa pelos dois estados contrários; se

C 2 ) La philosaplúe de Hamilton, p. 554.

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não, como é que alguma vez se decidiria? Não há, pois, preci-samente dois estados contrários, mas uma multidão de esta-dos sucessivos e diferentes no interior dos quais eu separopor um esforço de imaginação , duas direcções opostas. Po rconseguinte, aproximar-nos-emos ainda mais da realidade,ao conc ordarmos em designar, com os sinais in-variáveis X e Y, não as tendências ou os pró-prios estados, porque mudam continuamente ,mas as duas direcções diferentes que a nossa

imaginação lhes atribui para a maior comodi-dade da linguagem. Aliás, compreender-se-á,assim, melhor que são representações simbóli-cas, que na verdade não há duas tendências,nem mesmo duas direcções, mas um eu que vi-ve e se desenvolve pelo efeito das suas própriashesitações, até que a acção livre se desprendacomo um fruto demasiado maduro.

Mas esta concepção da actividade voluntá-ria não satisfaz o senso c omum , porque, essen-cialmentejmecanicísta, gosta da s distinções de-marcadas, as que sé exprimem por palavras

bem definidas ou por posições diferentes rio espaço. Portanto,representara únTeli quê, depois de ter percorrido uma sérieMO de factos de consciência, e ter chegado ao ponto O, se vêperante duas direcções OX e OY igualmente abertas. Estasdirecções tornam-se assim coisas, verdadeiros caminhos on -de desembocaria a grande estrada da consc iênc ia , e pelosquais me caberia a mim enveredar indiferentemente . Em re-sumo, à actividade contínua e viva deste eu, em que tínha-mo s discernido, apen as por abstracção, du as direcções opos-tas, substituem-se estas direcções, transformadas em coisasinertes, indiferentes, e que aguardam a nossa escolha. Masentão é necessário que se assinale actividad e do eu em algumsítio. Situá-la-emos no ponto O; dir—se-á que o eu, chegado

ao O, e perante duas decisões a tomar, hesita, delibera, eopta finalmente por uma delas. Como havia dificuldade emrepresentar a dupla direcção da ac tividade consciente em to-das as fases do seu desenvolvimento contínuo, cristalizámos •

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à parte as duas tendências , e à parte também a actividade doeu ; obtém-sc assim um eu indiferentem ente activo, que hesi-ta entre duas decisões inertes e como que solidificadas. Ora,se opta por OX, a l inha OY não deixará de subsistir; se se de-cide por OY , o caminh o OX permanecerá aberto, esperando,se for necessár io, que o eu volte atrás para dele se servir. Éneste sentido que se dirá, ao falar de um acto livre, que à ac-ção contrária era igualmente possível. E, ainda que não seconstruísse no papel um a figura geom étrica, pensa—se nela

involuntar iamente , quase inconscientemente,a partir do mo-

mento em que se distinguem no acto livre várias fases suces-sivas, representação dos motivos opostos, h esitação e escolha— dissim uland o assim o simbolismo geométrico sob uma es-pécie de cristalização verbal. Ora, é fácil ver que esta concep-ção verdadeiramente mecanicista da liberdade desemboca,por uma lógica natura l , no mais inflexível determinismo.

A actividade viva do eu, em que discernimos por abstrac-cão duas tendências opostas, acabará, de facto, por desembo-car, quer em X, quer em Y. Ora, já que se concorda em locali-zar no ponto O a dupla actividade do eu, não há razão paraseparar esta actividade do acto no qual ela virá desembocar,e que forma corpo comela. E se a experiência mostra que nos

decidimos por X, não é um a actividade indiferente qu e deve-rá situar no ponto O, mas uma actividade dirigida antecipa-damente no sentido OX, apesar das hesitações aparentes. Se,pelo contrário, a observação provar que se optou por Y, é por-que a actividade localizada por nós no ponto O afectava pre-ferentemente esta segunda direcção, apesar de algumas osci-lações no sentido da primeira. Declarar que o eu, chegado aoponto O, escolheu indiferentemente entre X e Y, é deter—se ameio caminho na via do simbolismo geométrico, é fazer cris-talizar no ponto O uma parte apenas da actividade contínuaonde discerníamos, sem dúvida, duas direcções diferentes,ma s que, além disso, desembocou em X ou em Y: por que nãoprestar atenção a este último facto como aos outros dois? Por

que não atribuir-lhe também o seu lugar, na figura simbóli-ca, que acabámos de construir? Mas se o eu, chegado ao pon-to O, está já determinado num sentido, a outra via, ainda

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que aberta, não a pode ele seguir. E o mesmo simbolismogrosseiro ern que se pre tendia fundar a contingência da acçãorealizada desembocou, por um prolongamento natural, no es-tabelecimento da sua absoluta necessidade.

Em síntese, defensores e adversários da liberdade estãode acordo em fazer preceder a acção por uma espécie de os-cilação mecânica entre dois pontos X e Y. Se opto por X, osprimeiros dir-me-ão: hesitaste, deliberaste, portanto, Y erapossível. Os outros responderão: escolheste X, logo, tiveste al-

guma razão para o fazer, e quando se declara Y igualmentepossível, esquece-se esta razão; deixa-se de lado uma dascondições do problema. — Se agora escavar por baixo dasduas soluções opostas, descobrirei um postulado comum: unse outros se colocam depois da acção X realizada, e represen-tam o processo da minha actividade voluntária por uma es-trada MO que se bifurca no ponto O, simbolizando as linhasOX e OY as duas direcções que a abstracção distingue no seioda actividade contínua, de que X é o termo. Mas enquanto osdeterministas têm em con sideração tud o o que sabem e cons-tatam que o caminho MOX foi percorrido, os seus adversáriossimulam ignorar um dos dados com que construíram a figu-ra, e depois de terem traçado as linhas OX e OY que deve-

riam representar, reunidas, o progresso da actividade do eu,fazem voltar o eu ao ponto O para aí oscilar até nova ordem.Com efeito, não se pode esquecer que esta figura, verda-

deiro desdobramento da nossa actividade psíquica no espaço,é puramente simbólica e, como tal, só poderá construir-se senos situarmos na hipótese de uma deliberação terminada ede uma resolução tomada. Podereis perfeitamente traçá-laantecipadamente; é porque vos suporeis então chegados aotermo, e assistindo com a imaginação ao acto final. Em sínte-se, esta figura não me mostra a acção a realizar-se, mas aacção realizada. Não me pergunteis, pois, se o eu, tendo per-corrido o caminho MO e tendo-se decidido por X, podia ounão optar por Y: responderia que a pergunta não tem senti-

do, porque não existe linha M Ó, nem ponto O, nem caminhoOX , nem direcção OY. Levantar semelhante questão é admi-tir a possibilidade de representar adequadamente o tempo

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pelo espaço, e uma sucessão por uma simultaneidade. É atri-

buir à figura traçada o valor de uma imagem, e não apenas

de um símbolo; é acreditar que se poderia seguir nesta figura

o processo da actividade psíquica, como a marcha de umexército nu m mapa. Assistiu-se à deliberação do eu em todas

as suas fases, e até à realização do acto. Então, recapitulandoos termos da série, apercebe-se a sucessão sob a forma de si-

multaneidade, projecta-se o tempo no espaço, e raciocina—se,consciente ou inconscientemente, sobre esta figura geométri-

ca. Mas esta figura representa uma coisa, e não umprogres-

so ; corresponde, na sua inércia, à lembrança de algum modo

congelada da deliberaçãoglobal e da deliberação final que setomou- como no s forneceria ela a menor indicação sobre omovimento concreto, sobre o progresso dinâmico, pelo qual adeliberação desembocou no acto? E, contudo, uma vez cons-truída a figura, remonta-se pela imaginação ao passado e .pretende—se que a nossa actividade psíquica tenha precisa-

mente seguido o caminho traçado pela figura. Recai—se assim

na ilusão a que antes nos referimos: explica-se mecanica-

mente um facto, depois, substitui—se esta explicação ao pró-

prio facto. É assim que, desde os primeiros passos, depara-

moscom inextricáveis

dificuldades:se as duas partes eram

possíveis, como se escolheu? Se só uma das duas era possí-

vel, por que nos julgámos livres? — E não se vê que esta du-

pla interrogação equivale sempre a esta: o tempo é espaço?

Se percorro com os olhos uma estrada traçada no mapa,

nada me impede de arrepiar caminho e de investigar se ela

se bifurca noutros locais. Mas o tempo não é uma linha naqual volte a passar. E claro que, uma vez decorrido, temos odireito de representar os seus sucessivos momentos como ex-teriores uns aos outros é de pensar assim umar^ftha que'atravessa o espaço; mas compreender-se-á que esta linha

simboliza, não o tempo que decorre, mas o tempo decorrido.,

E o que os defensores e adversários do livre arbítrio esque-

ce m igualmente — os primeiros quando afirmam e os outrosquando negam — a posssibilidade de agir diversamente de

como se agiu. Os primeiros raciocinam assim: «O caminho

ainda não está traçado, logo, ele pode tomar uma direcção

qualquer.» A que se responderá: «Esqueceis que só se poderá

falar de caminho, uma vez a acção realizada; mas, então, ele

estará já traçado.» — Os outros dizem: «O caminho foi assim

traçado; logo, a sua direcção possível não era uma direcção

qualquer, mas esta mesma direcção.» Ao que se replicará:

«Antes de o caminho te r sido traçado, nã o havia direcção pos-

sível ne m impossível , pela razão muito simples de que ainda

não se podia tratar de caminho.» Abstraí deste simbolismo

grosseiro, cuja ideia, sem saberdes, vos obsessiona; vereis

que a argumentação dos deterministas reveste esta forma in-fantil: «O acto, uma vez realizado, está realizado»; e que os

adversários respondem: «O acto, antes de estar realizado,

ainda o não estava.» Por outras palavras, a questão da liber-

dade sai intacta desta discussão; e isto compreende-se facil-

mente, porque é preciso procurar a liberdade num certo cam-

biante ou qualidadeda própria acção, e não numa relação doacto com aquilo que ele não é ou com o que poderia ter sido.

Toda a obscuridade deriva de tanto uns como outros repre-

sentarem a deliberação sob a forma de oscilação no espaço,

quando consiste num progresso dinâmico em que o eu e os

próprios motivos estão nu m constante devir, como verdadei-

ros seres vivos. O eu, infalível nas suas constatações imedia-

tas, sente—se livre e declara—o; mas quando procura explicar

a sua liberdade, só se apercebe dela por uma espécie de re-

fracção através do espaço. Daí, um simbolismo de refracção

através do espaço. Daí um simbolismo de natureza mecani-

cista, igualmente impróprio para provar a tese do livre arbí-

trio, para a fazer compreender,e para a refutar.

Mas o determinista não se dará por vencido, e coloca a

questão sob uma nova forma: «Deixemos de lado», dirá, «as

acções realizadas; consideremos apenas os actos por aconte-

cer. A questão está em saber se, conhecendo a partir de hoje

todos os antecedentes futuros, alguma inteligência superiorpoderia predizer comabsoluta certeza a decisão que daí sai-

rá.» — Não n os opomos a que se ponha nestes termos o pro-

blema: proporcionar—se—nos—á assim a ocasião de formular a

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psíquicos a ind icação da sua intensidade, porque já não ac-tuam na pessoa em que se esboçam, e porque esta já não tem .oportunidade de lhes experimentar a força, sentindo—os. M asaté esta indicação adquirirá necessariamente um carácterquantitativo: constatar-se-á, por exemplo, que determinadosentimento tem mais força do que outro, que é preciso aten-der mais a ele, que desempenhou um papel mais importante;e como se saberia, se não conhecesse anteriormente a histó-ria ulterior da pessoa de que nos ocupamos,e os actos, resul-tados desta multiplicidade de estados e de inclinações? Porconseguinte, para que Paulo represente adequadamente o es-tado de Pedro num momento qua l que r da sua história, seránecessária de duas coisas uma: ou que, à semelhança de umromancista que sabe para onde conduz as suas personagens,Paulo conheça já o acto f ina l de Pedro, e possa assim acres-centar à imagem dos estados sucessivos por que Pedro vaipassar a indicação do seu valor relativamente ao conjunto dasua história; — ou que ele próprio se resigne a passar por es-tes diversos estados, não já em ima g in a ç ã o , mas realmente.A primeira das hipóteses terá de rejeitar-se, porque se trataprecisamente de saber se, dados apenas os antecedentes,Paulo poderá prever o acto f ina l . Eis-nos, pois, obrigados a

modificar profundamente a ideia que fazíamos de Paulo: nãoé, como primeiramente tinhamos pensado, um espectadorcujo olhar mergulha no futuro, m as um actor, qu e anteci-padamente faz o papel de Pedro. E notais que não podeispoupar-lhe nenhum pormenor deste papel, porque os aconte-cimentos mais insignificantes têm a sua importância numahistória e, caso a não tivessem, não os poderíeis ter como in-significantes a não ser relativamente ao acto final, o qual,por hipótese, não está dado. Não tendes também nenhum di-reito — ainda qu e fosse por um segundo — de abreviar os di-versos estados de consciência por que Paulo vai passar antesde Pedro; pois, os efeitos do mesmo sentimento, po r exemplo,acrescentam-se e reforçam-se em todos os momentos da du-

ração, e a soma destes efeitos não se poderia experimentarim e d ia t am e n t e se não conhecêssemos a importânciado senti-mento, tomado no seu conjun to , em relação ao acto final que,

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precisamente, permanece na sombra. Mas se Pedro e Pauloexperimentaram, na mesma o rd em, os mes mo s sentimentosse as duas almas tê m a mesma história, como as distinguí-reis uma da outra? Será através do corpo em que habitam?Difeririam então continuamente por algo, já que não repre-sentariam para si o mesmo corpo em nenhum mome n to dasua história. Será pelo lugar que ocupam na duração? Nãoassistiriam também aos mesmos acontecimentos; ora, por hi-pótese, t êm o mesmo passado e o mesmo presente, tendo a

mesma experiência. — É necessário agora que tomeis a vossadecisão: Pedro e Paulo são uma só e mesma pessoa, que cha-mais Pedro quando age e Paulo quando recapitulais a suahistória.À medida que compreendeis melhor a soma dascon-dições que, uma vez conhecidas, teriam permitido predizer aacção futura de Pedro, veríeis de mais perto a existência des-ta personagem, teríeis mais facilidade em a reviver no£ seusmínimos pormenores e chegaríeis assim ao preciso momentoem que, realizando—se a acção, já não se trataria de a prever,mas simplesmente de agir. Também aqui toda a tentativa dereconstitui cão de um acto emanando da própria vontade vosleva à constatação pura e simples do facto realizado.

Eis, pois, uma questão vazia de sentido: o acto podia ou

não ser previsto, uma vez dado todo o conjunto dos seus ante-cedentes? É que há duas maneiras de assimilar estes antece-dentes: uma dinâmica, a outra estática, no primeiro caso, se-remos levados por transições insensíveis a coincidir com apessoa de que nos ocupamos, a passar pela mesma série deestados e a chegar assim ao exacto momentoem que o acto serealiza; então, já não se tratará de oprever. No segundo caso,pressupõe-se o acto final só porque se faz figurar, ao lado daindicação dos estados, a apreciação quantitativa da sua im-portância. Ainda aqui, uns são levados a constatar simples-mente que o acto ainda não se realizou no momentoe m q u ese vai realizar, os outros, que uma vez realizado, está defini-

tivamente realizado. A questão da liberdade sai intacta destadiscussão, como da precedente.

A p ro fun d a n d o melhor esta dupla argumentação, encon-traremos, na sua própria raiz, duas ilusões fun d a men t a i s da

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consciência reflexa. A p r im e i r a consiste em ver na intensida-de umSTpropr iedade matemática do s estados psicológico.?, _e

ríãõTcõinõ~3Tz7amos no início deste ensaio, a qualidade espe-ciãI7^T«imbiante próprio destes estados. A segunda consisteem substituir a realidade concreta, o progresso dinâmico quea consciência percepciona, pelo símbolo material deste pro-gresso chegado ao seu termo, isto é, do facto realizado unidoà soma dos seus antecedentes. Sem dúvida, uimfvez consu-m a do o acto final, posso atribuir a todos os antecedentes oseu próprio valor e representar, sob a forma de um conflitoou de uma composição de forças, o jogo combinado do s diver-so s elementos. Mas perguntar se, conhecidos os antecedentese também o seu valor, podíamos prever o acto final é cairnu m círculo vicioso; é esquecer que se dá, com o valor do santecedentes, a acção f ina l que importa prever; é supor er-radamente que a imagem simbólica mediante a qual repre- •sentamos a operação acabada foi delineada por esta mesmaoperação no discurso do seu progresso, como num aparelhoregistador.

Por, outro lado, ver-se—ia que estas duas ilusões impli-cam, por sua vez, uma terceira, e que a questão de saber se o

acto podia ou não ser previsto vem dar sempre no mesmo: ot e m po é espaço? Começastes por justapor, num espaço ideal,os estados de consciência que sucederam na alma de Pedro epercepcionastes a vida desta personagem sob a forma de umatrajectória MO X Y desenhada por um móvel M no espaço.

Apagai agora, com o pen-samento, a parte OXYdes-

ç a - - * ta curva, e investigai se,conhecendo MO, poderíeis

determinar antecipadamente a curva OX, que o móvel des-creve a partir do ponto O. É, no fundo, a questão que levan-tastes ao fazer intervir um filósofo Paulo, predecessor dePedro, e encarregado de representar na imaginação as con-

dições em que Pedro agirá. Materializaríeis assim estas con-dições; faríeis do tempo futuro uma estrada já traçada naplanície, e que se pode contemplar do alto da montanha sema ter percorrido, se n vn u n c a ter que a percorrer. Mas não de-

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morastes a perceber que o conhecimento da parte MO da cur-va seria insuficiente, a não ser que não vos tivessem indicadoa posição dos pontos desta linha,não só de uns relativamenteaos outros, mas ainda em relação aos pontos de toda a linhaMOXY; o que equivaleria a fornecer antecipadamente osmesmos elementos qu e importa determinar. Modificastes en -tão a vossa hipótese; compreendestesque o tempo nã o exigese r visto, m as vivido; concluístes que, se o vosso conhecimen-

to da l inha M O n ã o constituía um dado suficiente er a porqueo olháveisde fora, em vez de vos confundirdes com o ponto Mque descreve, não apenas MO, mas ainda a curva toda, e deadoptar assim o seu movimento. Levastes deste modo Pauloa coincidir com Pedro e, naturalmente, foi a linha MOXY quePaulo traçou no espaço, já que, por hipótese, Pedro descreveesta linha. Mas já não provais que Paulo tenha previsto a ac-ção de Pedro; apenas constatais que Pedro agiu como fez,porque Paulo se tornou Pedro. É verdade que, a seguir, vol-tais, sem tomar a devida atenção, à vossa primeira hipótese,po rqu e confund is continuamente a linha MOXY traçando-seco m a linha M O X Y traçada, isto é, o tempo com o espaço. De -pois de terdes identificado Paulo co m Pedro atendendo à cau-

sa, levastes Paulo a retomar o seu antigo posto de observa-ção, e ele apreende então a linha MO X Y completa,o que nãoé de espantar porque acaba de a completar.

O que torna a confusão natural, e até inevitável, é que aciência parece fornecer exemplos indiscutíveis de uma previ-são do futuro. Não se determina, comantecedência, a conjun-çã o dos astros, os eclipses do Sol e da Lua, e a maioria dos fe-n ó m e n o s atmosféricos? E a inteligência humana não abarcaagora, neste preciso momento , uma porção tão grande quantose quiser da duração ainda por vir? Reconhecemos sto facil-

mente; mas uma previsão deste género não tem a menor se-melhança com a de um acto voluntário. Além disso, como va -m os ver, as razões qu e fazem que a predição de um fenónienoastronómico seja possível são precisamente as mesinas-jqueno s impedem de determinar, com antecedência, um facto que

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Percepcionamos fenómenos físicos e estes fenómenos obe-decem a leis. Isto significa: l.8 — Que os fenómenos a, 6, c, d

anteriormente percepcionados são susceptíveis de se produ-zirem de novo sob a mesma forma; 2.9 — Que num certo fe-nómeno P, surgido na sequência das condiçõesa, 6, c, d, eapenas destas condições, não deixará de se reproduzir, se sederem as mesmas condições. Se o princípio de causalidadenada mais nos dissesse, como pretendem os empiristas, semdificuldade se concederia a estes filósofos que o seu princípio

ve m da experiência; mas nada mais provaria contra a nossaliberdade. Ter—se-ia compreendido que determinados antece-dentes dão lugar a um consequente determinado em toda a

parte onde a experiência nos leve a constatar esta regula-ridade; mas a questão está precisamente em saber se ela seencontra no domínio da consciência, e todo o problema da li-berdade aí reside. Concedemos momentaneamente que oprincípio de causalidade resume apenas as sucessões unifor-mes e incondicionais observadas no passado: com que direitoo aplicais então aos factos de consciência profundos, ondeainda não se descobriram sucessões regulares, porque não seconseguem prever? E como basear-se neste princípio para es-tabelecer o determinismo dos factos internos, quando, na vos-sa opinião, o determinismo dos factos observados é o únicofundamento do mesmo princípio? Em boa verdade, quando osempiristas fazem valer o princípio de causalidade contra a li-berdade humana, tomam a palavra causa numa nova acep-ção, que é aliás a do senso comum.

Constatar a sucessão regular de dois fenómenos é, comefeito, reconhecer que, dado o primeiro, nos apercebemos jádo outro. Mas esta ligação totalmente subjectiva de duas re-presentações não basta ao senso comum. Parece—lhe que, sea ideia do segundo fenómeno está já implicada na do primei-ro, é necessário que o segundo também exista objectivamen-te, numa ou noutra forma, no interior do primeiro fenómeno.

E o senso comum devia chegar a esta conclusão, porque a dis-tinção precisa de uma ligação objectiva entre os fenómenos ede uma associação subjectiva entre as suas ideias, supõe jáum grau bastante elevado de cultura filosófica. Passar—se-á,

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pois, insensivelmente do primeiro ao segundo, e representar--se-á a relação causal como uma espécie de preformação dofenómeno futuro nas suas presentes condições. Ora, esta pre-formação pode entender-se em dois sentidos muitos diferen-tes, e é precisamente aqui que começa o equívoco.

De facto, as matemáticas fornecem-nos a imagem de umapreformação deste género. O mesmo movimentocom que tra-çamos uma circunferência num plano gera todas as proprie-dades desta figura: neste sentido, um número indefinido de

teoremas preexiste no seio da definição, ainda que destinadosa desdobrarem-se na duração para o matemático que os de-duzirá. É verdade que estamos aqui no domino da quantida-de pura e que, podendo as propriedades geométricas pôr—se

em forma de igualdades, se concebe perfeitamente que umaprimeira equação, exprimindo a propriedade fundamental dafigura, se transforme numa quantidade indefinida de novasequações, todas virtualmente contidas naquela. Pelo contrá-rio, os fenómeno s físicos que se sucedem e são percepciona*dos pelos sentidos distinguem—se pela qualidade não menosdo que pela quantidade, de modo que tem alguma dificuldadeem declará-los, de início, equivalentes uns aos outros. Mas,precisamente porque os nossos sentidos os percepcionam,

nada impede de atribuir as suas diferenças qualitativas àimpressão que sobre nós exercem e supor, por detrás da hete-rogeneidade das nossas sensações, um universo físico homo-géneo. Em resumo, despojar-se-á a matéria das qualidadesconcretas com que os nossos sentidos a revestem, cor, calor,resistência, até o peso, e encontrar—nos—emos, por fim, pe-rante a extensão homogénea, o espaço sem corpo.Nãohaveráoutra decisão a tomar excepto separar as figuras no espaço,imprimir-lhes movimento segundo leis matematicamenteformuladas e explicar as qualidades aparentes da matériapela forma, pela posição e pelo movimentodas figuras geo-métricas. Ora, a posição é dada por um sistema de grandezas

fixas, e o movimento expressa-se por uma relação constanteentre grandezas variáveis; mas a forma é uma imagem, e pormais ténue, por mais transparente que se suponha, aindaconstitui, enquan t o a nossa imaginação dela tiver um a per-

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cepção visual, po r assim dizer, um a qualidade concreta e, porconseguinte, irredutível da matéria. Será, portanto, necessá-

-rio fazer tábua rasa desta imagem e substituí-la pela fórmu-la abstracta do movimento que gera a figura. Representai,pois, relações algébrias encavali tando—se umas nas outras,objectivando-se de vido exactamente a esta posição, e geran-

do , em virtude a penas d a sua comp lexidade , a realidade con-creta, visível e tangível — não fareis mais do que tirar as

consequências do princípio da causalidade, entendid o nosen-tido de uma preform ação actual do futuro no seio do própriopresente. Não parece que os cientistas do nosso tempo te-nham levado tão longe a abstracção, excepto talvez Sir Wil-

liam Thomson. Este habilidoso e profundo físico imagina oespaço preenchido por um fluído homogéneo e incompressí-

vel, em que turbilhões se movem, gerando assim as proprie-dades da matéria: tais turbilhões são os elementos constituti-

vos dos corpos; o átomo torna-se assim um movimento, e osfenómenos físicos reduzem-se a movimentos regulares que se

executam no seio de um fluído incompressível. Ora, se se qui-ser notar que este fluído é de uma perfeita homogeneidade,qu e não existe entre as suas partes nem um intervalo vazio

qu e os separa nem qualquer diferença que os permita distin-guir, ver-se-á que todo o movimento em realização no inte-

rior deste fluído equivale, de facto, à imobilidade absoluta, já

qu e antes, durante e após o movimento, nada muda, nada se

alterou no conjunto. O movim ento de que aqui se fala não é,pois, um movimen to que se produz, mas um movimento quese pensa: é uma relação entre relações. Admite-se, sem se

cair bem na conta, que o movimento é um facto de consciên-cia, que há apenas simultaneidades no espaço, e fornecem--nos o meio para calcular as relações de simultaneidade para

um momento qualquer da nossa duração. Em nenhum lugar

o mecanicismo foi levado tão longe como neste sistema, já

qu ea própria forma dos últimos elementos da matéria nele

se reduz a um movimento .Mas já a física cartesiana se pode-ria interpretar num sentido análogo; pois, se a matéria se re-

duz , como quer Descartes, a uma extensão homogénea, osmovimentos das partes desta extensão podem conceber-se

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pela le i abstracta qu e lhes pres ide ou por uma equação al -gébrica e ntre grande zas var iáveis , mas não pode represen-tar-se sob a forma concreta de imagens . E provar-se-ia se mdificuldade que, quan to mai s o progresso das explicações m e-cânicas permite desenvolver esta concepção da causalidade e,consequentemente, libertar o átomo do peso das suaspro-priedades sensíveis, tanto mais a existência concreta dos fe-nómenos da natureza tende a desvanecer-se assim nu m

fumo algébrico.Ass im entendida, a relação d e causal idade é uma relação

necessár ia no sent ido de que se aproxim ará indef inidam enteda relação de ident idade , como uma curva da sua assimptota.

O princípio de ide ntid ad e é a lei absoluta da nossa consciên-cia; afirma que aquilo que é pe nsad o se pensa no mome ntoem que o pensam os; e o que faz a absoluta necessidade desteprincípio é que ele não liga o futuro ao presente, m as apenas

o presente ao presente: exprime a confiança inquebrantávelqu e a consciência sente em si mesma enquanto, fiel à sua

função, se limita a constatar o estado actual aparente da al-ma. M as o princípio de causalidade, enquanto ligaria o futuroao presente, nunca tomaria a forma de um princípio necessá-rio; porque os mom entos sucessivos d o tempo real não são so-lidários uns dos outros, e nenhum esforço lógico conseguiráprovar qu e aquilo qu e foi, será ou continuará a ser, que osmesmos antecedentes exigirão sempre consequentes idênti-cos. Descartes tinha compreendido isto tão bem que atribuía

a uma graça ince ssantemente renovada da Providência a re-

gularidade do mun do físico e a continuação dos mesmos efei-tos: construiu, de alguma maneira, uma física instantânea,

aplicável a um universo cuja duração se susteria toda no mo-mento presente. E Espinosa q ueria que a série de fenómenos,que toma para nós a forma de um a sucessão n o tempo, fosseequivalente, no absoluto , à unidade d ivina: supunha tam-

bém, por um lado, que a relação de causalidade aparente en-tre os fenómenos se reduzia a uma relação de identidade noabsoluto e, por outro, que a duração indefinida das coisas sem a n t i n h a toda nu m m o m e n t o único, que é a eternidade. Emsuma, se aprofundarmos a física cartesiana, a metafísica es-

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ri que não haverá já entre a causa e o efeito um a relação dedeterminação necessária, porque o efeito já não será dado nacausa. Residirá nele apenasem estado de puro possível, comoum a representação confusa, qu e talvez nã o seja seguida daacção correspondente.Mas não nos espantaremos de que estaaproximação seja suficiente ao senso comum, se se pensar nafacilidade com que as crianças e os povos primitivos aceitama ideia de uma natureza inconstante, onde o capricho desem-penha um papel nã o menos importante que a necessidade. E

esta representação da causalidade será mais acessível à inte-ligência comum, já que não exige nenhum esforço de abstrac-ção e apenas implica uma certa analogia entre o mundo exte-rior e o interno, entre a sucessão dos fenómenos objectivosea dos factos deconsciência.

Em boaverdade, a segunda concepção da relação da causacom o efeito é mais natural do que a primeira, na medida emque responde imediatamente à necessidade de uma represen-tação. Com efeito, não dissemos que, se procuramos o fenó-meno B no interior do fenómeno A que o precede regularmen-te, é porque o hábito de associar as duas imagens acaba pornos dar a ideia do segundo fenómeno como implicada na doprimeiro? É natural que levemos esta objectivacão até ao fim

e façamos do fenómeno A um estado psíquico em que o fenó-meno B estaria contido sob a forma de representação confu-sa. Limitamo—nos assim a supor que a ligação objectiva dosdois fenómenos é semelhante à associação subjectiva, que asua ideia nos sugeriu. Asqualidades das coisas tornar-se-ãoassim verdadeiros estados, bastante parecidos com os do nos-so eu; atribuir-se-á ao universo material uma personalidadevaga, difusa, através do espaço, a qual, sem ser precisamentedotada de uma vontade consciente, passa de um estado a ou-tro devido a um impulso interno, em virtude de um esforço.Tal foi o antigo hilozoísmo, hipótese tímida e até contraditó-ria, que conservava à matéria a sua extensão, atribuindo-lheverdadeiros estados de consciência, e desdobrava as qualida-des da matéria ao longo da extensão ao mesmo tempo quetratava estas qualidades como estados internos, isto é, sim-ples. Estava reservado a Leibniz fazer cair esta contradição e

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mostrar que, se se entender a sucessão das qualidades oufenómenos externos como a sucessão das nossas própriasideias, há que fazer destas qualidades estados simples oupercepções, e da matéria que os suporta uma mónada inex-

tensa, análoga à nossa alma. A partir de então, os estadossucessivos da matéria já não poderão percepcionar-se de foracomo também o não são os nossos próprios estados psicológi-cos; será necessário introduzir a hipótese da harmonia prees-tabelecida para explicar como todos estes estados internos

são representativos uns dos outros. Assim, com a nossa se-gunda concepção da relação de causalidade, desembocamosem Leibniz, como com a primeira em Espinosa. E, num enoutro caso, não fazemos mais do que levar ao extremo ouformular com mais precisão duas ideias tímidas e confusasdo sensocomum.

Ora, é evidente que a relação de causalidade, entendidadesta segunda maneira, não implica a determinação do efeitopela causa. A própria história prova isso. Vemos que o antigohilozoísmo, primeiro desenvolvimento desta concepção dacausalidade, explicava a sucessão regular das causas e dosefeitos por um verdadeiro deus ex machina: era, ora uma ne-cessidade exterior às coisas e planando sobre elas, ora umaRazão interna, guiando—se por regras muito semelhantes àsque dirigem a nossa conduta. As percepções da mónada deLeibniz já não se necessitam umas às outras; é preciso queDeus lhe tenha antecipadamente regulado a ordem. O deter-minismo de Leibniz não deriva, co m efeito, da sua concepçãoda mónada, mas de apenas te r construído o universo co m mó -nadas. Tendo negado toda a influência mecânica das subs-tâncias umas relativamente às outras, devia no entanto ex-plicar como é que os seus estados se correspondem. Daí umdeterminismo que tem a sua origem na necessidade de admi-tir uma harmonia preestabelecida, e não na concepção di-nâmica da relação de causalidade. Mas deixemos de lado a

história. A consciência testemunha que a ideia abstracta deforça é a do esforço indeterminado,a de um esforço que aindanã o chegou ao acto e onde este acto ainda não existe a nãoser no estado de ideia. Por outras palavras, a concepção dinâ-

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mica da relação de causalidade atribui às coisas um a dura-ção completamente análoga à nossa, seja qual for a naturezaqu e esta duração possa ser: representar assim a relação decausa a efeito é supor que o futuro não é mais solidário dopresente no mundo exterior do que o é para a nossa própriaconsciência.

Depreende-se desta dupla análise que o princípio da cau-salidade encerra duas concepções contraditórias da duração,duas imagens nã o menos incompatíveis da preformação dofuturo no presente. Ora se representam todos os fenómenos,físicos ou psicológicos, como se durassem da mesma maneira,como se durassem, po r conseguinte, à nossa maneira; o futu-ro só existirá então no presente na forma de ideia, e a passa-gem do presente ao futuro adquirirá o aspecto de um esforço,que nem sempre chega à realização da ideia concebida. O u,pelo contrário, se faz da duração a forma própria do s estadosde consciência; as coisas nunca duram então como nós, e ad-mite—se para as coisas um a preexistência matemática do fu-turo no presente. Aliás, cada uma destas hipóteses, tomada àparte, salvaguarda a liberdade humana; pois, a primeira che-garia a pôr a contingênciaaté nos fenómenos da natureza; e

a segunda, ao atribuir a determinação necessária dos fenó-menos físicos ao facto de as coisas nã o durarem como nós,convida-nos precisamente a fazer do eu, que dura, uma forçalivre. É por isso que toda a concepção clara da causalidade, eonde se concilia consigo mesmo, leva à ideia da liberdade hu-mana como a uma consequência natural. Infelizmente, con-traiu-se o hábito de tomar o princípio de causalidade nosdois sentidos aos mesmo tempo, porque um adula mais a nos-sa imaginação, e o outro favorece o raciocínio matemático.Ora se pensa sobretudo na sucessão regular dos fenómenos

físicos e nesta espécie de esforço interno pelo qual um setransforma no outro; ora se fixa o espírito na regularidadeabsoluta destes fenómenos, e da ideia de regularidade passa-

—se, por degraus insensíveis, à da necessidade matemática,que exclui a duração entendida da primeira maneira. E nãose vê inconvenienteem temperar estas duas imagens umacom a outra, e em tornar predominante uma ou outra, con-

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soante no s preocupemos mais ou menoscom os interesses daciência. Mas aplicar o princípioda causalidade, sob esta for-m a equívoca, à sucessão do s factos de consciência é criarvoluntariamente, e sem razão plausível, inextricáveis dificul-dades. A ideia de força, que na realidade exclui a de determi-nação necessária, contraiu, po r assim dizer, o hábito de seamalgamar com a de necessidade, em virtude do uso que sefaz do princípio de causalidade na natureza. Por um lado,nã o conhecemos a força a não ser pelo testemunho da cons-ciência, e a consciência não afirma, não compreende sequer adeterminação absoluta do s actos futuros: eis, pois, tudo o quea experiência nos ensina, e se nos ativéssemos à experiência,diríamos que nos sentimos livres, que nos apercebemos daforça, com ou sem razão, como de uma livre espontaneidade.Mas, por outro lado, a ideia de força, transposta para a natu-reza, tendo caminhado lado a lado com a ideia de necessida-de, regressa corrompida desta viagem. Regressa impregnadada ideia de necessidade; e à luz do papel que lhe fizemosdesempenhar no mundo exterior, apercebemo-nos da forçacomo determinando, de uma maneira necessária, os efeitosque dela vão derivar. Ainda aqui, a ilusão da consciência de-

ve—se a que ela considera o eu, não directamente, mas poruma espécie de refracção através das formas que emprestouà percepção exterior, e que esta não lhe restitui sem, de algu-ma maneira, se ter nelas desbotado. Operou-se como que umcompromisso entre a ideia de força e a de determinação ne-cessária. A determinação totalmente mecânica de dois fenó-menos exteriores entre si reveste agora, aos nossos olhos, amesma forma que a relação dinâmica da nossa força com oacto que dela emana; mas, em contrapartida, esta última re-lação adquire o aspecto de uma derivação matemática, deri-vando a acção humana mecanicamente, e por conseguintene-cessariamente, da força que a produz. Sem dúvida, a fusão deduas ideias diferentes, quase opostas, apresenta vantagens

ao senso comum, já que nos permite representar da mesmamaneira e designar com uma única palavra, por um lado, arelação que existe entre estes dois momentos da nossa exis-tência e, por outro, a relação que liga entre si os momentos

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sucessivos do mundo exterior . Vimos que, embora os nossosestados de consciência mais profundos excluam a multiplici-dade numérica, os decompomos, no entanto, em partes exte-riores umas às outras; se os elementos da duração concretase penetram, a duração ao expressar-se em extensão apre-senta momentos tão distintos como os corpos disseminadosno espaço. Será de espantar que entre os momentos da nossaexistência, por assim dizer objectivada, estabeleçamos umarelação análoga à relação objectiva de causalidade e que uma

troca, comparável ainda a um fenómeno de endosmose, tenhalugar entre a ideia dinâmica do esforço livre e o conceito ma-temático de determinação necessária?

Mas a dissociação destas duas ideias é um facto consegui-do nas ciências da natureza. O físico poderá falar de forças, eaté representar o modo de acção po r analogia com um esforçointerno, mas nunca fará intervir esta hipótese numa explica-ção científica. Os que, como Faraday, substituem os átomosextensos por pontos dinâmicos, tratarão os centros de força eas linhas de força matematicamente, sem se preocupar com aprópria força, encarada como actividade ou esforço. Torna—seaqui claro que a relação de causalidade externa é puramentematemática e não tem qualquer semelhança com a relação da

força psíquica ao acto que dela emana.Chegou a altura de acrescentar: a relação de causalidade

interna é puramente dinâmica e não têm nenhuma analogiacom a relação de dois fenómenos exteriores que se condicio-nam. É que estes, sendo susceptíveis de se reproduzir noespaço homogéneo, entrarão na composição de uma lei, aopasso que os factos psíquicos profundos se apresentam àconsciência uma vez, e nunca mais voltarão. Uma análiseatenta do fenómeno psicológico levou-nos, primeiramente, aesta conclusão: o estudo das noções de causalidade e de dura-ç ã o , consideradas em si mesmas, não fez mais do que confir-má-la.

Podemos agora formular a nossa concepçãoda liberdade.Chama-se liberdade à relação~do-€u concreto com p acto

que realiza. Está relação é indefinível, precisamente porquesomos livres. Com efeito, analisa—se uma coisa, mas não um

progresso; decompõe-se a extensão,...mas_nÍQ. a duração. Quantes, caso teimemos na análise, transformamos inconscien-temente o progresso em coisa e a duração em extensão. Sópejo facto de pretendermos decompor o tempo concreto, des-dobramos os momentos no espaço homogéneo; em vez do fac-to em via de realização pomos o facto realizado e, como seCom?Çou_P°r de Algumai maneiraLçangalar^a,actividade do eu,vê-se a espontaneidade a dissolver-se em inércia e a liberda-de em necessidade. — É p or isso qu e toda a definiçãa da li-

berdade dará razão ao determinismo.Com efeito, d e f in i r— s e — á o acto livre dizendo qu e este acto,uma vez realizado, poderia não o ter sido? Mas tal asserção— como a asserção contrária — implica a ideia de uma equi-valência absoluta entre a duração concreta e o seu símboloespacial: e desde que se admita esta equivalência, desembo-ca-se, pelo própr io desenvolvimento da fórmula que acabá-mos de denunciar, no mais inflexível determinismo.

Definir-se-á o acto livre, «como aquele que não se podepreyef^nmesmó quando se conhecem antecipadamente todasas suas condições»? Mas conceber todas as condições comodadas é, ha duração concreta, colocar-se no própriomomentoem que o acto se realiza. Ou então admite—se que a matéria

da duração psíquica se pode representar de um modo simbó-lico antecipadamente, o que equivale, como dissemos, a tra-tar o tempo como um meio homogéneo e a admitir, sob umanova forma, a equivalência absoluta da duração e do seu sím-bolo. A o aprofundar-se esta segunda definição de liberdade,desembocar—se-á, pois, ainda no determinismo.

Definir—se-á, finalmente,o acto livre dizendoque não es-tá necessariamente determinado pela sua causa? Mas, ouestas palavras perdem toda a espécie de significação, ou en-tende-se por elas que as mesmas causas internas não provo-carão sempre os mesmos efeitos. Admite-se, portanto, que osantecedentes psíquicos de um acto livre são susceptíveis dese reproduzir novamente, que a liberdade se desenvolve nu-

m a duração, cujos momentos se assemelhame que o tempo éum meio homogéneo, como o espaço. Po r isso mesmo, sere-m os levados à ideia de uma equivalência entre a duração e o

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\usímbolo espacial; e levando até às últimas cons

a definição que se terá proposto da liberdade, mais uma vezdela se fará ainda brotar o determinismo.

Em síntese: toda a exigênciade esclarecimento, nojjue serefere à liberdaa^rêqiíivale, sem se dar por isso, à seguintequestão: «poderá o tempo representar-se adequadamente pe-lo espaço»? — Ao que respondemos: sim, se se trata do tempodecorrido; não, se falais do tempo que está a decorrer. Ora, oacto livre produz-se no tej^o^e_d^cjirjÊ,_jí.jião_Jiaiempo

deoprridó. Ã liberdade é, pois, um facto e, entre os factos_quevse constatam, não há outro mais claro. Todas as dificuldades \oproblema, e o próprio problema, derivam de se querer l

atribuir à duração os mesmos atributos que à extensão, de se /interpretar uma sucessão por uma simultaneidade, e de se /traduzir a ideia de liberdade para uma linguagem em cjue elzé evidentemente intraduzível.

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CONCLUSÃO

Para resumir o que precede, deixaremos de lado, antes demais, a terminologia e a própria doutrina de Kant, às quaisvoltaremos mais adiante, e colocar—nos—em os na perspectivado senso comum. Diremos que a psicologia actual j}^gjpare-ceu sobretudo^ preocupada em estabelecer que percepciona-mos__as_coisas através de certas formas, derivadas dá nossaprópria constituição. Esta^ tendência acentuou-se cada vezTtíãis depois de Kant: enquanto"o'i i lósõfo~Slèmaò"sépaTávanitidamente o tempo do espaço, o extensivo do intensivo e,

como hoje diríamos, a consciência da percepção exterior, a es-cola empirista, levando mais longe a análise, tenta reconsti-tuir o inextensivo com o intensivo, ,o espaço com a duração, ea exterioridade com os estados internos. — Por outro lado, afísica vem completar a obra da psicologia sobre este ponto:mostra que, se quisermos prever os f en óm en os , teremos defazer tábua rasa da impressão que produzem na consciência ,ITTratar as sensações com o signos da realidade, não comp_arJrojma realidade.

Pareceu— nos que houve oportunidade de pôr o problemainverso e de nos interrogarmos se os estados mais aparentesdo próprio eu, que julgamos captar directamente, não seriam,

na maioria das vezes, percepcionadosatravés de certas for-mas tiradas do m u n d o exterior, o qual nos restituiria assim oque lhe tínhamos emprestado. A priori, parece bastante pro-vável que as coisas assim se passem. Pois, ao supor que as

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tas caíram em erros, por vezes, grosseiros, ao tentarem re- de fazer durar as coisas como nó s duramos,e d e situar o tem-

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constituir um estado psíquico pela adição entre si de factos

de consciência distintos, e ao porem o símbolo do eu no lugar

do próprio eu .i, Estas considerações preliminares permitiram-nos, antes

de mais, abordar o objecto principal donosso trabalho, a aná-

lise da s ideias de duraj|ãoje^de determinação voluntária.

Que é a duração fora de nós? Uma multiplicidade qualita-

tiva, se m semelhança com o núm ero; um desenvo lvimento or-gânico que, apesar de tudo, não é uma quantidade crescente;

uma heterogeneidade pura no interior da qual não há quali-

dades distintas. Em síntese, os momentos da duração interna

nã o são exteriores uns aos outros.

Qu e existe, da duração, fora de nós? Apenas o presente

ou, se antes preferirmos, a simultaneidade. Sem dúvida, as

coisas exteriores mudam, mas os seus momentos só se suce-

de m para um a consciência que os recorda. Observamos, forade nós, num dado momento, um conjunto de posições simul-

tâneas: das simultaneidades anteriores não fica nada. Situara duração no espaço é, por uma verdadeira_çoniradiçãp, ^colo-car à sucessão n& próprio seio da simultaneidade. Não é,

pois, necessário dizer que as c^oTsas exteriores duram, mas

antes que há nelas alguma razão inexprimívelem virtude daqual não podemos considerál-as como momentos sucessivos

da nossa duração sem constatar que elas mudaram. Aliás, tal

mudança não implica sucessão, a não ser que se tome a pala-

vr a numa nova acepção; neste ponto constatámos o acordo

entre a ciência e o senso comum.

Assim, na consciência, encontramos estados que se suce-

dem sem se distinguir; e, no espaço, simultaneidades que,

sem se suceder, se distinguem, no sentido de que uma já não

existe quando a outra aparece. — Fora de nós, exterioridade

recíproca sem sucessão; dentro de nós, sucessão sem exterio-

ridade recíproca.

Também aqui intervém um compromisso. Estas simulta-

neidades que constituem o mundo exterior e que, ainda quedistintas umas das outras, se sucedem apenas para nós, esta-mo s de acordo em que se sucedem em si mesmas. Daí a ideia

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po no espaço. Mas, se a nossa consciência introduz assim asucessão nas coisas exteriores, inversamente as próprias coi-

sa s exteriorizam umas em relação às outras os momentossucessivos da nossa duração interna. As simultaneidades de

fenómenos físicos absolutamente distintos no sentido de queuma deixou de ser quando a outra se produz, dividem emparcelas, também distintas, exteriores umas às outras, uma

vida interna em que a sucessão implicaria penetração mú-tua: assim, o pêndulo do relógiodivide em fragmentos distin-

tos e desdobra, por assim dizer, em comprimento, a tensão

dinâmica e indivisa da corda. Deste modo se forma, por umverdadeiro fenómeno de endosmose, a ideia mista de um tem-

po mensurável, que é espaço enquantohomogeneidade e du -ração enquanto sucessão, isto é, no fundo, a ideia contradito-,

ria da sucessão na simultaneidade.

Estes dois elementos, extensão e duração, são dissociados

pela ciência quando esta empreende o estudo aprofundadodas coisas exteriores. Julgamos ter demosntrado que ela só

retém da duração a simultaneidade, e do movimento a posi-çã o do móvel, isto é, a imobilidade. A dissociação efectua-se

aqui nitidamente, e em proveito do espaço.

Será preciso, pois, efectuá-la, mas em proveito da dura-ção, quando se estudarem os fenómenos internos; não osfenómenos internos no estado completo, se m dúvida, ne mdepois de a inteligência discursiva, para os explicar, os ter

separado e desdobrado nu m meio homogéneo, mas os fenó-menos internos em vias de formação e enquanto constituam,

pela sua penetração mútua, o desenvolvimento contínuo de

uma pessoa livre. A duração, reduzida assim à sua pureza

original, aparecerá como uma multiplicidade totalmente qua-

litativa, uma heterogeneidade absoluta de elementos que

vê m fundir—se uns nos outros.

Ora, foi por terem descuidadoesta dissociação necessária

que uns foram levados a negar a liberdade, os outros a defini-

-la e, por isso mesmo, involuntariamente ainda a negá-la.Com efeito, pergunta— se se o acto podia ou não ser previsto,

dado o conjunto da s suas condições; e quer se af i rme , quer se

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fiança i limitada, mas inconsc iente ,nesta percepção interna,cujo alcance procurou restringir, ele acreditava inabalavel-mente na liberdade. Elevou-a, pois, à altura dos noúmenos; ecomo confundira a d ura ção com o espaço, fez deste eu real elivre, que de facto é estranhe ao espaço, um eu igualmenteexterior à duração, inacessível, por consequ ência, à nossa fa - \e de conhecer . Mas a verdade é que nos apercebemos

deste eu sempre que , por um vigoroso esforço de reflexão,

desviamos os olhos da sombra que nos segue, para entrarmosem rios mesmos. A verdade é que , se vivemos e agimos quasesempre exteriormente à nossa própria pessoa, mais no es-paço do que na duração, e se proporc ionamos ass im influên-cia à lei da causalidade qu e encadeia os mesmos efeitos comas mesmas causas, podemos contudo voltar a situar-nos napura duração, cujos m om e ntos são interiores e heterogéneosunsaos outros, e onde uma causa não pode reproduzir o seuefeito, porque nun ca se reproduzirá a si própria.

É nesta confusão da verdadeira duração com o seu símbo-lo que residem, na nossa opinião, tanto a força como a fra-queza dokantismo. Kant, por um lado, imagina coisas em si,

e por outro, um Tempo e um Espaço homogéneos através dosquais as coisas em si se refractam: assim nasceriam, por umlado, o eu fenómeno, o que a consciência percepciona, e poroutro, os objectos exteriores. O tempo e o espaço não esta-riam tanto em nós como fora de nós; mas a própria distinçãodo dentro e do fora seria obra do tempo e do espaço. Estadoutr ina tem a vantagem de fornecer ao nosso pensamentoempírico um fun dam ento sólido e de nos assegurar que os fe-nómenos, enqu anto fenóm enos, são adequadam ente cognoscí-veis. Poderíamos mesm o erigir estes fenómenos a absoluto edispensar-nos de recorrer às incompreensíveis coisas em si,se a razão prática, reveladora do dever, não interviesse à ma-neira da reminiscência platónica para nos advertir de que a

coisa em si existe, invisível e presente, O que domina toda es-ta teoria é a distinção muito nítida entre a matéria do conhe-cimento e a sua forma, entre o homogéneo e o heterogéneo, eesta distinção capital nunc a teria sido feita, sem dúvida, se o

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próprio tempo não se tivesse considerado como um meio indi-ferente àqu i lo que o enche .

Mas, se o t empo, ta l como a consciência imediata o percep-ciona, fosse como o espaço u m meio homogéneo, a ciência do -miná-lo-ia como ao espaço. Ora , tentámos demon strar que adu ra ç ão e n qua n to du ra ç ã o , o movimento e nqua n to movimen-to , escapam ao conhecimento matemático, a qual retém dotempo apenas a s imul t ane idade , e do movimento a imobilida-

de. É disto que os k an t i an o s , e até os seus adversários,, nãoparecem ter—se apercebido: no pre tenso mundo fenomenal,feito pela ciência, todas as relações que não podem traduzir--se em s imultan e idade , i s to é, em espaço, sãocientificamenteincognoscíveis.

Em segundo lugar , numa duração supostamente homogé-v nea, os mesmos es tados poder iam apresentar— se novamente ,

a causalidade imp licaria determ inaç ão necessária e toda a li-berdade se tornar ia incompreensíve l . É nesta consequênciaque desemboca a Critica da razão pura. Mas, em vez de con-cluir que a duração rea l é heterogénea — o que , ao elucidaresta segunda di f icu ldade , teria despertado a sua atenção pa-

ra a primeira — , Kant gostou mais de situar a liberdade forado tempo, e de l e va n ta r uma barreira insuperável entre om undo dos fenómenos, que deixa para o entendimento, e odas coisas em si, cujo acesso nos proibiu.

Mas talvez esta distin ção seja demasiado incisiva e estabarreira mais fácil de ^transpor do que se imagina. Se, por ca-sualidade, os m om e ntos da duração real, percepcionados poruma consciência aten ta, se pen etrassem, em vez de se justa-porem, e se os momentos formassem relativamente uns aosoutros um a hete rogen eidad e no interior da qual a ideia dedeterminação necessária perdesse toda a espécie de significa-ção, então o eu captado pela consciência seria uma causa li-vre, conhecer—nos—íamos absoluta mente a nós mesmos e, por

outro lado, precisamente porque este absoluto se misturaconstantemente com os fenómenos e impregnando-se deles,os penetra, estes fenómenos não seriam tão acessíveis, comose pretende, ao raciocínio matemático.

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Supusemos, pois, um Espaço homogéneo e, com Kant, dis- dos outros, solidificar-se-ão; entre as nossas ideias assjm

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t inguimos este espaço da matéria que o preenche. Com eleadmitimos que o espaço homogéneo é uma forma da nossasensibilidade; e por isso entendemos simplesmente que ou-tras inteligências, as dos animais por exemplo, ao percepcio-narem objectos, não os distinguem tão nitidamente, nem unsdos outros, nem deles próprios. Esta intuição de um meiohomogéneo, intuição própria do h o m e m , permite—nos exterio-rizar os nossos conceitos uns relativamente aos outros, reve-

la-nos a objectividade das coisas e, assim, pela sua duplaoperação, favorecendo por um lado a linguagem e apresen-tando-nos, po r outro, um mundo exterior muito distinto.de /nós, na percepção do qual todas as inteligências comung am,anuncia e prepara a vida social.

Perante este espaço hom ogéneo situámos o eu tal comouma consciência atenta o percepciona, um eu vivo, cujos esta-do s ao mesmo tempo distintos e instáveis não podem disso-ciar— se sem mudarem de natureza, ne m fixar-se ou expri-mir—se sem cair no domínio comum . Não devia a tentação se rgrande, para este eu que distingue tãõjnl mejite-jos-objec-tos exteriores e os representa tão facilmente por símbolos, deintroduzir no interior da sua própria existência a mesma dis-

criminação, e de substituir, à penetração ínt im a destes esta-dos psíquicos, à sua multiplicidade totalmente qualitativa,uma pluralidade numérica de termos que se distinguem, sejustapõem e se exprimem por palavras? Em vez de uma du-ração heterogénea, cujos momentos se penetram, teremos en-tão um tempo homogéneo, cujos mom entos se alinham no es-paço. Em vez de uma vida interior, cujas fases sucessivas,única caTEf^qúal no seu género, são incomensuráveis com aliriguãgèm, obteremos um eu recomponível artificialmente, eestados psíquicos simples que se agregam e desagregam^como o fazem, para formar palavras, as letras do alfabeto.. Eisto já não será apenas um modo de representação simbólica,porque a intuição imediata e o pensamento discursivo são um

só na realidade concreta, e o mesmo mecanismo através doqual antes explicávamos a nossa conduta acabará por domi-ná-la. Os nossos estados psíquicos, separando-se então uns

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cristalizadas e os nossos mo vimento s exteriores formar-se-— ãõ associações estáveis; e pouco a pouco, porque a nossaconsciência im ita o processo p elo qua l a matéria nervo sa ob-tém acções reflexas, o automatismo sobrepor—se—á à liberda-de!1). É neste preciso momento que surgem osassociacionis-tas e os deterministas por um lado, os kantianos, pelo outro.Como da nossa v ida consciente apen as consideram o seu, as-pecto mais comum, percepc ionam estados bem acentuados,

capazes de se reprodu zir no tempo à mane ira de fenómenosfísicos, e aos quais a lei da determinação causal se aplica, sequisermos, no mesmo sentido que aos fenómenos da nature-za. Como, por outroiado, o meio onde se justapõem estes es-tados psíquicos apresenta partes exteriores umas das outras,onde os mesmos factos parecem susceptíveis de se reproduzirnovamente , não hesitam em fazer do tempo um meio homo-géneo e em tratá-lo como espaço. A partir de então, toda adiferença é abolida entre a duração e a extensão, entre a su-cessão e a simultaneidade; não há outro remédio senão pros-crever a liberdade ou, se se respeita por escrúpulo moral, re-conduzi-la com muitas atenções ao domínio intemporal dascoisas em si, cujo limiar misterioso a nossa consciência não

ultrapassa. Mas, na nossa opinião, ainda se pode tomar um aterceira decisão: seria a de nos referirmos, com o pensamen-to, aos mom entos da nossa existência em que tomámo s umadecisão grave, momentos únicos no seu género, que não vol-

( ' ) Renouvier já falara dos actos voluntários comparáveis a mo-vimentos reflexos e delimitou a liberdade aos momentos de crise.Mas parece não ter observado que o processo da nossa actividadelivre prossegue, de algum modo, sem nós sabermos, em todos os mo-mentos da duração, nas obscuras profundidades da nossa consciên-cia, que o próprio sentimento da duração precede daí, e que, sem es-ta duração heterogénea e indistinta, em que o nosso eu evolui, nã ohaveria crise moral. O estudo, mesmo aprofundado, de uma acção li-

vre dada não apuraria o problema da liberdade. É a série toda dosnossos estados de consciência heterogéneos que há que ter em con-ta. Por outras palavras, é numa análise atenta da ideia de duraçãoque se deveria ter procurado a chave doproblema.

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P R E F Á C I O

C A P Í T U L O I

Da intensidade do s estados psicológicos

Vàg .

9

11

C A P Í T U L O I I

Da m ultiplicidade dos estados de consciência:

A ideia de duração 57

C A P Í T U L O I I I

Da organização dos estados de consciência:

A l iberdade ' . . - . 99

C O N C L U S Ã O 1 53

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