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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA GABRIELE CORNELLI Em busca do pitagorismo: o pitagorismo como categoria historiográfica São Paulo 2010

Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP ...Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VP = Porfírio: Vida de Pitágoras ou Jâmblico: Vida Pitagórica 14 INTRODUÇÃO Em

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Page 1: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP ...Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VP = Porfírio: Vida de Pitágoras ou Jâmblico: Vida Pitagórica 14 INTRODUÇÃO Em

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

GABRIELE CORNELLI

Em busca do pitagorismo

o pitagorismo como categoria historiograacutefica

Satildeo Paulo

2010

2

Gabriele Cornelli

Em busca do pitagorismo

o pitagorismo como categoria historiograacutefica

Texto para Defesa de Tese de Doutorado apre-sentado ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Fi-losofia do Departamento de Filosofia da Facul-dade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Linha de Pesquisa Histoacuteria da Filosofia Orientador Prof Dr Roberto Bolzani Filho

Satildeo Paulo

2010

3

Cornelli Gabriele Em busca do pitagorismo o pitagorismo como categoria historiograacutefica Gabriele Cor-

nelli orientador Roberto Bolzani Filho ndash Satildeo Paulo 2010 276 f Tese (Doutorado ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Histoacuteria da Filosofia) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

1 Histoacuteria da Filosofia Antiga 2 Preacute-socraacuteticos 3 Pitagorismo 4 Tradiccedilatildeo pitagoacuterica

5 Pitaacutegoras

4

ldquoPittagora volse che tutte fossero duna nobilitate non solamente le umane ma con le umane quelle de li animali bruti e de le piante e le forme de le minere e disse che tutta la differenza egrave de le corpora e de le formerdquo Dante Alighieri Convivio IV xxi3

5

para Monique metade

uma medida que se supera

6

AGRADECIMENTOS

Agrave generosa e delicada orientaccedilatildeo do Prof Roberto Bolzani Filho

Agrave paciecircncia e ao abraccedilo de quem todo dia divide o mamatildeo e a cama comigo

Monique e Brigitte

A Marcelo Carvalho mais que companheiro de tanta filosofia parceiro de mui-

tas vidas

Aos colegas que das mais variadas formas contribuiacuteram para o aprimoramento

desta tese De maneira especial aos amigos Gianni Casertano (spero di averti convinto)

e Andreacute Chevitarese como tambeacutem a Fernando Santoro Tom Robinson Laura Gemelli

Marciano Bruno Centrone Carl Huffman Christoph Riedweg Alberto Bernabeacute Livio

Rossetti Andreacute Laks Luc Brisson Rachel Gazolla Macris Constantin Thomas Szle-

zaacutek Franco Trabattoni Anastaacutecio Borges de Araujo Hector Benoit Pedro Paulo Funa-

ri Marcelo Perine Miriam Campolina Peixoto Fernando Rey Puente Emmanuele Vi-

mercati Edrisi Fernandes Walter Neto Joseacute Gabriel Trindade Santos Gerson Brea

Dennys Garcia Xavier que tiveram a gentileza de discutir comigo partes da pesquisa

que originou esta tese

Aos alunos do Archai que com sua dedicaccedilatildeo e entusiasmo ainda me surpreen-

dem e confirmam as razotildees de minha paixatildeo pela filosofia antiga

Ao Departamento de Filosofia da Universidade de Brasiacutelia que me concedeu o

tempo necessaacuterio para concluir este projeto e um lugar onde poder compartilhaacute-lo

Agrave CAPES e ao CNPq que me permitiram ter acesso a quase toda a bibliografia

relevante sobre o tema aleacutem de realizar alguns estaacutegios de pesquisa e participar de se-

minaacuterios e congressos

7

RESUMO

CORNELLI G Em busca do pitagorismo o pitagorismo como categoria historiograacutefi-

ca 2010 276 f Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2010

A presente tese explora como soluccedilatildeo para o controvertido quadro geral da moderna

histoacuteria da criacutetica sobre Pitaacutegoras e seu movimento a definiccedilatildeo do pitagorismo como

categoria historiograacutefica Superando tanto o dilema entre ceticismo e confianccedila nas fon-

tes como a pretensatildeo de alcanccedilar uma uacutenica chave hermenecircutica que permita resolver a

ldquoquestatildeo pitagoacutericardquo procura percorrer a histoacuteria da tradiccedilatildeo em busca de uma imagem

suficientemente plural a ponto de possibilitar a compreensatildeo do pitagorismo em sua

irredutiacutevel articulaccedilatildeo de biacuteos e theoriacutea e natildeo apesar dela A configuraccedilatildeo da comunida-

de e de seu biacuteos eacute percebida como elemento central de identificaccedilatildeo do pitagorismo A

anaacutelise das duas teorias que mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo do pita-

gorismo ao longo da histoacuteria a transmigraccedilatildeo da alma imortal e a doutrina dos nuacutemeros

procura definir as condiccedilotildees de possibilidade de atribuiacute-las ao pitagorismo mais antigo e

as formas pelas quais ambas teriam contribuiacutedo ao longo da histoacuteria para a definiccedilatildeo

do pitagorismo como categoria historiograacutefica As fontes preacute-socraacuteticas a platonizaccedilatildeo

do pitagorismo o testemunho aristoteacutelico sobre os ldquoassim chamadosrdquo pitagoacutericos a

literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica e o pitagorismo de eacutepoca imperial satildeo entendidos

como momentos de um percurso histoacuterico que resulta em uma imagem polieacutedrica de um

dos maiores fenocircmenos intelectuais da histoacuteria ocidental

Palavras-chave Histoacuteria da Filosofia Antiga Preacute-socraacuteticos Pitagorismo Tradiccedilatildeo pi-

tagoacuterica Pitaacutegoras

8

ABSTRACT

CORNELLI G In Search of Pythagoreanism Pythagoreanism as historiographical Cat-

egory 2010 276 f Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Hu-

manas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2010

This thesis explores the definition of Pythagoreanism as historiographical category seen

as solution for the controversial general framework of modern history of criticism about

Pythagoras and his movement Overcoming both the dilemma between skepticism and

faith in the sources and the claim to achieve a single hermeneutical key to solve the ldquoPy-

thagorean questionrdquo in it searches are made throughout the history of tradition looking

for an image sufficiently plural in order to understand Pythagoreanism in accordance

with its irreducible articulation of biacuteos and theoriacutea not despite it The setting of the

community and its biacuteos is understood as central element for Pythagorean identification

An analysis of the two theories that more decisively contributed to the definition of Py-

thagoreanism throughout history the transmigration of the immortal soul and the doc-

trine of numbers attempts to define the conditions of possibility to assign them to the

earlier Pythagoreanism and the ways in which these have contributed throughout history

to the definition of Pythagoreanism as historiographical category Presocratic sources

the platonization of Pythagoreanism Aristotles testimony about the so-called Pytha-

goreans the hellenistic Pseudoepigrapha and Pythagoreanism in imperial age are un-

derstood as moments of an historical route resulting in a polyhedral image of one of the

greatest intellectual phenomena in Western history

Key Words History of Ancient Philosophy Presocratics Pythagoreanism Pythagorean

Tradition Pythagoras

9

SUMAacuteRIO

Lista de Abreviaccedilotildees 12

INTRODUCcedilAtildeO 14

Em busca do pitagorismo 14

Esta tese 18

1 HISTOacuteRIA DA CRIacuteTICA DE ZELLER A KINGSLEY 21

11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos 23

12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo 28

13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo 30

14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos 32

15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo 35

16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica 40

17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica 51

18 De Burkert a kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica 58

19 Conclusatildeo 69

2 O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRAacuteFICA 72

21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica 72

22 Identidade pitagoacuterica 76

23 A koinoniacutea pitagoacuterica 83

24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos 103

25 Conclusatildeo 111

3 IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE 114

31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes) 117

32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios) 124

33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles) 128

10

34 Platatildeo e orfismo 130

341 ldquoCompreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo 132

342 Hierarquia das encarnaccedilotildees 138

343 Socircma-secircma 140

344 Mediaccedilatildeo pitagoacuterica 150

35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito 156

36 Lendas sobre a imortalidade 159

37 Demoacutecrito pitagoacuterico 163

38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos 165

39 Conclusatildeo 171

4 NUacuteMEROS 174

41 Tudo eacute nuacutemero 176

411 Trecircs versotildees da doutrina pitagoacuterica dos nuacutemeros 176

412 Duas soluccedilotildees 186

413 A ldquosoluccedilatildeordquo filolaica 190

4131 Um livro ou trecircs livros 191

4132 Autenticidade dos fragmentos de Filolau 194

4133 A tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica doacuterica 196

414 A exceccedilatildeo aristoteacutelica (Metafiacutesica A 6 987b) 200

415 O testemunho platocircnico (Filebo 16c-23c) 210

42 Os fragmentos de Filolau 216

421 Ilimitadoslimitantes 216

422 O papel dos nuacutemeros em Filolau 223

43 Conclusatildeo 231

CONCLUSAtildeO 237

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 246

11

A) Fontes Primaacuterias 246

B) Fontes Secundaacuterias 250

ANEXOS 270

12

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

Ael = Aeliano

aEC = antes da Era Comum (= aC)

Aesch = Eacutesquilo

Anon Phot = Anocircnimo de Foacutecio Thesleff

Arist = Aristoacuteteles

Crat = Platatildeo Craacutetilo

D L = Dioacutegenes Laeacutercio

De Abst= Porfiacuterio A abstinecircncia dos animais

De an = Aristoacuteteles De anima

De Comm Mathem = Jacircmblico De communi mathematica scientia

Diod Sic = Diodoro Siacuteculo

DK = Diels-Kranz

EC = Era Comum (= dC)

EN = Aristoacuteteles Eacutetica Nicomaqueia

FGrHist = Die Fragmente der Griechishen Historiker Jacoby

Herodt= Heroacutedoto

Iambl = Jacircmblico

Il = Homero Iliacuteada

In Metaph = Alexandre de Afrodiacutesia Comentaacuterios sobre a Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Leg = Platatildeo Leis

lit = literalmente

Men = Platatildeo Mecircnon

Met = Aristoacuteteles Metafiacutesica

Metam = Oviacutedio Metamorfoses

Mete = Aristoacuteteles Metereologica

n = nota

Od = Homero Odisseacuteia

Orig = No original

P Derv = Papiro Derveni

Phaed = Platatildeo Feacutedon

13

Phaedr = Platatildeo Fedro

Phlb = Platatildeo Filebo

Phot Bibl= Foacutecio Biblioteca

Phys = Aristoacuteteles Fiacutesica

PL = Patrologia Latina Migne

Porph = Porfiacuterio

Procl In Tim = Proclo Comentaacuterio ao Timeu

Prom = Eacutesquilo Prometeu

Resp = Platatildeo Repuacuteblica

Retr = Agostinho Retractationes

Schol In Phaedr = Escoacutelios sobre o Fedro Greene

Schol In Soph = Escoacutelios sobre Soacutefocles Elmsley

Soph El = Soacutefocles Electra

Speusip = Espeusipo

Stob = Estobeu Anthologium

Syrian In Met = Proclo Comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Theophr Met = Teofrasto Metafiacutesica

VH = Aeliano Varia Historia

Vitae = Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres

VP = Porfiacuterio Vida de Pitaacutegoras ou Jacircmblico Vida Pitagoacuterica

14

INTRODUCcedilAtildeO

Em busca do pitagorismo

Segundo Kahn (1974 163) natildeo satildeo necessaacuterias em nossos dias novas teses so-

bre o pitagorismo

Interpretaccedilotildees muito diacutespares acabaram de fato ao longo da histoacuteria da criacutetica

por resultar em conclusotildees diversas e incompatiacuteveis ao ponto de Kahn sugerir que no

lugar de mais uma tese sobre o pitagorismo deveria ser preferido um trabalho de avali-

accedilatildeo das tradiccedilotildees que pudesse resultar em uma boa apresentaccedilatildeo historiograacutefica1 Essa

velha tese de Kahn formulada haacute mais de trinta anos orienta a presente opccedilatildeo por uma

tese de marca fundamentalmente historiograacutefica e natildeo filoloacutegica isto eacute que natildeo se de-

dique exclusivamente agrave exegese de fontes como Filolau Arquitas ou mesmo de uma das

Vidas heleniacutesticas por exemplo ou ainda agrave abordagem teoreacutetica de uma das temaacuteticas

que receberam a especiacutefica contribuiccedilatildeo do pitagorismo como matemaacutetica cosmologia

poliacutetica teoria da alma Assim a presente tese propotildee-se a reconstituir a maneira como

a tradiccedilatildeo estabeleceu a imagem do pitagorismo

Natildeo que uma apresentaccedilatildeo historiograacutefica natildeo tenha em suas bases uma herme-

necircutica ou uma precompreensatildeo teoreacutetica da filosofia pitagoacuterica a partir de suas fontes

Todavia a opccedilatildeo pela historiografia possui ao menos duas vantagens incontestaacuteveis A

primeira delas diz respeito agrave postura necessariamente criacutetica e ateacute certo ponto relativis-

ta que o trabalho historiograacutefico pressupotildee Esta postura estaacute bem expressa por Luciano

Canfora

1 A oportunidade de voltar agrave tese de Kahn foi sugerida por Casertano que se referiu a ela em seu mais recente livro sobre os preacute-socraacuteticos (Casertano 2009 56) Cf Kahn (1974 163 n6) ldquoItrsquos hard enough to satisfy minimal standards of historical rigor in discussing the Pythagoreans without introducing arbi-trary guesswork of this sort where no two students can come to the same conclusion on the basis of the same evidence In fact the direct testimony for Pythagorean doctrines is all too abundant The task for serious scholarship is not to enrich these data by inventing new theories or unattested stages of develop-ment but to sift the evidence so as to determine which items are most worthy (or least unworthy) of be-liefrdquo O contexto proacuteprio da observaccedilatildeo de Kahn eacute aquele da criacutetica ao apriorismo na reconstruccedilatildeo do pitagorismo a partir de evidecircncias circunstanciais de autores como Guthrie conforme seraacute discutido adiante (15)

15

Trata-se de ter noccedilatildeo da constante e consubstancial relatividade do tra-balho do historiador Dependendo da distacircncia do evento tratado os his-toriadores fornecem um perfil e revelam faces cada vez diferentes todas no fundo de alguma maneira verdadeiras e muitas vezes complementa-res entre elas nenhuma exaustiva como natildeo seria exaustiva a soma mecacircnica de todas elas (Canfora 2002 8-9)2

A primeira vantagem da abordagem historiograacutefica ao pitagorismo eacute portanto

aquela da tomada de consciecircncia inicial do fato de que nenhuma das teses sobre o pita-

gorismo poderaacute ser exaustiva ndash nas palavras de Canfora ndash deixando assim de certo

modo as matildeos livres para uma articulaccedilatildeo historiograacutefica que possa apresentar o pita-

gorismo em sua complexa diversidade Talvez seja este o maior problema da monogra-

fia mais recente sobre o pitagorismo escrita por Riedweg (2002) e justamente criticada

nesse sentido por Huffman (2008a) trata-se de uma abordagem geral ao pitagorismo

que se alinha a uma ou outra interpretaccedilatildeo global do movimento Pode seguir em senti-

do mais miacutestico-religioso por exemplo Detienne (1962 1963) Burkert (1972) e Kings-

ley (1995) ou em perspectiva mais poliacutetica Von Fritz (1940) e Minar (1942) Contudo

se esquece de dar conta daquela que eacute talvez a questatildeo fundamental a presenccedila de uma

histoacuteria da interpretaccedilatildeo que jaacute na antiguidade ndash basta ver o proacutelogo da Vida Pitagoacuteri-

ca de Jacircmblico ndash quis reunir experiecircncias e doutrinas totalmente diversas (quando natildeo

mesmo contraditoacuterias) na categoria historiograacutefica do pitagorismo Dessa forma pensar

o pitagorismo como categoria historiograacutefica significa antes de tudo superar metodo-

logicamente a ilusatildeo da possibilidade de alcanccedilar a coisa em si a histoacuteria verdadeira

aceitando confrontar-se conscientemente com a necessaacuteria mediaccedilatildeo representada por

quem a escreve a cada momento

A segunda vantagem comparativa de uma abordagem historiograacutefica no lugar

do desenvolvimento de mais uma interpretaccedilatildeo dessa filosofia diz respeito a um dos

problemas centrais que caracterizam o pitagorismo quando comparado com outros mo-

vimentos filosoacuteficos do mundo antigo aquele do terreno especialmente movediccedilo da

criacutetica das fontes Eacute certamente o caso de enfrentar ao longo da tese com renovado

esforccedilo interpretativo e filoloacutegico a questatildeo central da expansatildeo da tradiccedilatildeo de zelleri-

ana memoacuteria e a deriva ceacutetica que esta impotildee normalmente aos comentadores

2 Orig ldquoSi tratta di prendere nozione della costante e consustanziale relativitagrave del mestiere dello storico A seconda della distanza dallrsquoevento trattato gli storici ne danno um profilo e ne rileveranno delle facce volta a volta differenti tutte in fondo in qualche modo vere e spesso tra loro complementari nessuna esaustiva come esaustiva non sarebbe neanche la meccanica somma di tutte queste faccerdquo

16

A vantagem de uma abordagem historiograacutefica eacute aquela portanto de tentar a-

braccedilar o pitagorismo em sua totalidade isto eacute abordando a problemaacutetica de suas fontes

para poder compreendecirc-lo por meio de e natildeo apesar de sua complexa articulaccedilatildeo ao

longo de mais de um milecircnio de histoacuteria da filosofia antiga Ainda que essa perspectiva

tenha sido de fato inaugurada por Burnet (1908) e depois reafirmada por Cornford

(1922 1923) e Guthrie (1962) eacute possiacutevel encontrar uma abordagem especialmente

compreensiva sobretudo na tradiccedilatildeo historiograacutefica italiana sobre o pitagorismo inau-

gurada por autores claacutessicos como Rostagni (1922) e Mondolfo (na ediccedilatildeo revista e co-

mentada de Zeller 1938) O problema das fontes preacute-socraacuteticas (mas natildeo somente delas

veja-se o caso da traditio dos proacuteprios textos de Platatildeo e Aristoacuteteles nesse sentido) que

se baseia em sua elaboraccedilatildeo tardia assume diante da expansatildeo da tradiccedilatildeo pitagoacuterica

conotaccedilatildeo de especial dramaticidade Se eacute verdade ndash como demonstra de forma convin-

cente Burkert (1972 15-96) ndash que a existecircncia de uma filosofia pitagoacuterica depende em

larga medida da invenccedilatildeo de uma vulgata pitagoacuterica (pesadamente transfigurada) por

parte dos acadecircmicos e ainda se eacute provaacutevel que os assim chamados pitagoacutericos de

Aristoacuteteles sejam fundamentalmente filoacutesofos como Filolau ou seja uma segunda (ou

terceira) geraccedilatildeo do movimento eacute entatildeo certamente o caso de perguntar-se o que as

fontes mais tardias teriam para nos dizer de historicamente confiaacutevel sobre o protopita-

gorismo isto eacute sobre aquele momento inaugural do desenvolvimento da tradiccedilatildeo do

pitagorismo que corresponde a Pitaacutegoras e seus primeiros disciacutepulos3 Contudo eacute ain-

da o caso de perguntar-se se seria possiacutevel falar algo deste sem as trecircs Vidas (bem pos-

teriores com quase um milecircnio de diferenccedila) de Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio e Jacircmblico

Procedem nesse sentido as duacutevidas de Zhmud

Por que as diferenccedilas doutrinaacuterias satildeo tatildeo grandes no pitagorismo Primeiramente porque ele natildeo surgiu como uma escola filosoacutefica e portanto natildeo foi jamais fundamental o seguir a totalidade de determi-nadas doutrinas (Zhmud 1989 289)4

3 Introduz-se aqui de forma ineacutedita o termo protopitagorismo por considerar necessaacuteria uma distinccedilatildeo entre esse primeiro momento fundador do pitagorismo e um segundo momento de elaboraccedilatildeo do pitago-rismo ao longo do V seacuteculo aEC ainda ldquopreacute-socraacuteticordquo que se utiliza da escrita e corresponde ao estaacutegio das fontes imediatas de Platatildeo e Aristoacuteteles Para os modos de utilizaccedilatildeo e o sentido do uso do termo anaacutelogo protofilosofia cf Boas (1948 673-684) 4 Orig ldquoWhy are the doctrinal differences so great in Pythagoreanism First of all because it had not arisen as a philosophic school and belonging to it had never been determined by following the sum of certain doctrinesrdquo

17

Como tambeacutem eacute possiacutevel concluir com Centrone (1996 91) que o pitagorismo

antigo seria uma associaccedilatildeo fundada sobre particular estilo de vida seguindo as regras

de um biacuteos especiacutefico expressas por akouacutesmata fundamentalmente escatoloacutegicos

No entanto esta koinonia de vida foi reconhecida pela filosofia jaacute antiga (veja-se

Xenoacutefanes e Heraacuteclito) como referecircncia de uma maneira de fazer filosofia e identificada

por uma complexa seacuterie (ainda que nem sempre coerente como seraacute visto) de persona-

gens e ensinamentos que passaram a ser chamados de pitagoacutericos isto eacute o termo pita-

gorismo foi associado a uma filosofia tambeacutem natildeo apenas a um estilo de vida

Eacute sobretudo esta identificaccedilatildeo da categoria pitagoacuterico que atrai a atenccedilatildeo do his-

toriador da filosofia Por esses motivos portanto uma discussatildeo historiograacutefica seraacute o

objetivo da presente tese

O esforccedilo por traccedilar um perfil inclusivo e compreensivo das condiccedilotildees e das

possibilidades de definir-se o que seja pitagorismo ou pitagoacuterico no interior de um mo-

vimento filosoacutefico de tamanha amplidatildeo histoacuterica e teoreacutetica acaba por confundir-se

com a intenccedilatildeo de contribuir metodologicamente para uma revisatildeo historiograacutefica da

filosofia antiga em geral pois compreender esse movimento eacute determinante para a com-

preensatildeo das origens da filosofia e de forma mais geral do pensamento ocidental Os

elementos sensiacuteveis da historiografia do pitagorismo tornam-no um locus privilegiado

para um exerciacutecio que almeja alcance historiograacutefico maior e que se encontra nas entre-

linhas da presente tese

Permito-me neste momento uma nota pessoal visto que toda tese ao que pare-

ce estaacute vinculada a um projeto intelectual mais geral tanto de pesquisa quanto de vida

apesar de uma formaccedilatildeo voltada tanto para a filologia (especialmente grega e hebraica)

quanto para a historiografia (da religiatildeo e da filosofia antiga) eacute para esta segunda que

dediquei mais aprofundadamente minhas reflexotildees nos uacuteltimos dez anos Uma nova

ediccedilatildeo e traduccedilatildeo da literatura pitagoacuterica estaacute ainda em minhas atribuiccedilotildees atuais E

todavia estou convencido de que uma tese sobre o pitagorismo mereccedila antes de tudo

uma ldquoarrumaccedilatildeo da casardquo historiograacutefica ou seja a definiccedilatildeo do status quaestionis e de

meu posicionamento no interior dele Nessa escolha encontro-me bem acompanhado

por autores claacutessicos sobre o pitagorismo como eacute o caso do Thesleff comentador e edi-

tor da literatura (pseudo)pitagoacuterica heleniacutestica em 1961 publicou uma Introduccedilatildeo agrave

ediccedilatildeo dos textos pseudoepigraacuteficos que sairiam publicados somente quatro anos de-

18

pois em 1965 A ediccedilatildeo dos textos ou mesmo somente sua traduccedilatildeo eacute diretamente in-

formada pela lectio hermenecircutica do autor obviamente A ordem entatildeo se natildeo da pu-

blicaccedilatildeo ao menos do trabalho eacute dificilmente intercambiaacutevel

Eacute esta mesma sequecircncia que orienta a definiccedilatildeo da presente tese primeiro o tra-

balho historiograacutefico

Esta tese

Uma boa apresentaccedilatildeo historiograacutefica trataraacute de fazer emergir dos arquivos da

histoacuteria da interpretaccedilatildeo do pitagorismo os pontos sensiacuteveis que contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo de tantas e diversas lectiones sobre o pitagorismo Eacute mister concordar com

Huffman quando afirma que ldquoo pitagorismo eacute uma aacuterea de estudo repleta de toacutepicos

controvertidosrdquo (Huffman 2008b 225)5 Ao mesmo tempo todavia natildeo eacute correto con-

jecturar que a imagem multifacetada do pitagorismo conforme se apresenta ao longo da

histoacuteria da tradiccedilatildeo possa derivar simplesmente de uma seacuterie de acidentes de percurso

que teriam transformado uma imagem pretensamente homogecircnea em suas origens em

um conjunto polieacutedrico de doutrinas e personagens

O proacuteprio Burkert afirma isso no Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde de sua obra funda-

mental sobre o pitagorismo Lore and Science in Ancient Pythagoreanism

Se Pitaacutegoras natildeo se apresenta agraves nossas mentes como uma figura bem delineada em peacute na luz brilhante da histoacuteria isto natildeo eacute simplesmente o resultado de acidentes ao longo do percurso da tradiccedilatildeo histoacuterica (Burkert 1972 Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde)6

Ao contraacuterio essa imagem eacute o resultado de escolhas historiograacuteficas bem preci-

sas e que obedecem a cada momento agrave compreensatildeo do que era a filosofia em suas

origens (em perspectiva genealoacutegica) e por consequecircncia do que eacute a filosofia desde

suas origens (em perspectiva histoacuterica) Desde o proacutelogo da Vida Pitagoacuterica de Jacircmbli-

5 Orig ldquoPythagoreanism is an area of study that is full of controversial issuesrdquo 6 Orig ldquoIf Pythagoras does not present himself to our minds as a sharply outlined figure standing in the bright light of history this is not merely the result of accidents in the course of historical transmissionrdquo

19

co (Iambl VP 1) ateacute agraves Liccedilotildees sobre histoacuteria da filosofia de Hegel e agraves recentes inter-

pretaccedilotildees de Kingsley (1995) eacute possiacutevel confrontar-se com as precompreensotildees que

levaram a privilegiar esta ou aquela imagem e a resolver de uma ou outra forma a ques-

tatildeo pitagoacuterica (Burkert 1972 I)

Esta tese pretende portanto acompanhar o percurso dessas escolhas verificando

onde for possiacutevel seus pressupostos e revelando as consequecircncias destas para a interpre-

taccedilatildeo natildeo somente de algumas temaacuteticas centrais mas especialmente da proacutepria cons-

truccedilatildeo do pitagorismo como categoria

O Capiacutetulo Primeiro seraacute portanto dedicado agrave compreensatildeo das linhas mestras

que definiram durante especialmente os uacuteltimos dois seacuteculos o quadro geral da moder-

na histoacuteria da criacutetica sobre o pitagorismo A imagem da ciecircncia que deste resultaraacute eacute a

de uma intricada sucessatildeo de controveacutersias e refutaccedilotildees na alternacircncia entre ceticismo e

confianccedila nas fontes que marca a criacutetica da tradiccedilatildeo sobre a filosofia antiga como tal A

dificuldade fundamental que emerge ao longo da histoacuteria das interpretaccedilotildees da polie-

dricidade do fenocircmeno estudado indicaraacute a necessidade de cuidados metodoloacutegicos que

conscientemente permitam descrevecirc-lo como tal em sua irreduziacutevel diversidade

O Capiacutetulo Segundo com a intenccedilatildeo de resolver as dificuldades acima indica-

das exploraraacute as modalidades da definiccedilatildeo do pitagorismo como uma categoria histori-

ograacutefica Comeccedilando pela definiccedilatildeo de duas dimensotildees uma sincrocircnica e outra diacrocirc-

nica que imbricadas entre elas permitam descrever um fenocircmeno de outra forma in-

compreensiacutevel em sua diversidade chega-se agrave discussatildeo dos criteacuterios de identificaccedilatildeo

do pitagoacuterico e da comunidade pitagoacuterica Ainda que com a consciecircncia de que o que-

bra-cabeccedila hermenecircutico das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo ficaraacute sempre inacabado

seraacute proposto um caminho por meio das duas temaacuteticas que mais decididamente contri-

buiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo me-

tempsicose e matemaacutetica A intenccedilatildeo desta anaacutelise seraacute por um lado verificar a possibi-

lidade de atribuiccedilatildeo da origem das duas temaacuteticas para o protopitagorismo e o pitago-

rismo do seacuteculo V aEC por outro a de sinalizar de que maneira essas temaacuteticas colabo-

raram para a categorizaccedilatildeo do pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo

O Capiacutetulo Terceiro portanto enfrentaraacute as tradiccedilotildees sobre a imortalidade da

alma e sua transmigraccedilatildeo A anaacutelise consideraraacute tanto testemunhos filosoacuteficos preacute-

socraacuteticos platocircnicos e aristoteacutelicos como outras tipologias de fontes antigas entre elas

Heroacutedoto a literatura oacuterfica recentes documentos arqueoloacutegicos e a tradiccedilatildeo das lendas

20

sobre as viagens ao aleacutem-tuacutemulo A tradiccedilatildeo pitagoacuterica seraacute encontrada em um lugar

intermediaacuterio entre as teorias da imortalidade oacuterficas e a reelaboraccedilatildeo que destas faz a

filosofia dos seacuteculos V e IV aEC notadamente Platatildeo Na referecircncia de Aristoacuteteles aos

mitos pitagoacutericos seraacute reconhecido o testemunho mais soacutelido da existecircncia de uma teo-

ria protopitagoacuterica da imortalidade da alma

O Capiacutetulo Quarto partindo da constataccedilatildeo de que comumente a matemaacutetica e o

interesse pelos nuacutemeros tecircm sido atribuiacutedos como caracteriacutesticas fundamentais da filo-

sofia pitagoacuterica submeteraacute tais tradiccedilotildees a uma revisatildeo historiograacutefica Como no capiacutetu-

lo terceiro a anaacutelise do testemunho de Aristoacuteteles seraacute decisiva A afirmaccedilatildeo dele pela

qual para os pitagoacutericos ldquotudo eacute nuacutemerordquo seraacute considerada como ao mesmo tempo fon-

te da matemaacutetica do pitagorismo antigo e testemunho do amplo processo de recepccedilatildeo

desta em acircmbito acadecircmico Novamente apareceraacute decisiva portanto a reelaboraccedilatildeo

acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas Todavia Aristoacuteteles demonstraraacute certa indepen-

decircncia desta uacuteltima fundamentalmente graccedilas ao fato de ele poder atingir as fontes preacute-

socraacuteticas independentes pois as nomeia enigmaticamente como os ldquoassim chamados

pitagoacutericosrdquo Seraacute demonstrado que essas fontes correspondem fundamentalmente aos

fragmentos de Filolau A ldquoquestatildeo filolaicardquo portanto seraacute enfrentada a partir da anaacuteli-

se comparativa entre uma ceacutelebre paacutegina de Metafiacutesica A algumas paacuteginas do Filebo e

o proacuteprio livro de Filolau Resultaraacute dessa uma confirmaccedilatildeo por um lado da possibili-

dade de atribuiccedilatildeo de uma teoria numeacuterica senatildeo ao protopitagorismo ao menos ao

pitagorismo do seacuteculo V aEC por outro lado mais uma vez da influecircncia determinante

da (quase) onipresente mediaccedilatildeo acadecircmica sobre a categorizaccedilatildeo da filosofia pitagoacuteri-

ca

Antes de adentrar propriamente na tese fazem-se necessaacuterias algumas observa-

ccedilotildees sobre sua apresentaccedilatildeo Optou-se por sempre transliterar no corpo do texto os

termos gregos conforme o padratildeo internacional ISO 8431997 utiliza-se o alfabeto

grego somente nas notas de rodapeacute Assim como nas mesmas notas mantecircm-se as cita-

ccedilotildees de autores modernos em liacutengua original A grafia de nomes gregos e romanos se-

gue sempre que possiacutevel o Vocabulaacuterio Onomaacutestico de Caldas Aulete (1958) Todas as

traduccedilotildees satildeo minhas salvo expliacutecitas indicaccedilotildees em contraacuterio As normas de referecircn-

cias bibliograacuteficas utilizadas satildeo as da ABNT (NBR 6023 e NBR 10520) O texto foi

revisado e estaacute em conformidade com o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa

(2009)

21

CAPIacuteTULO PRIMEIRO

HISTOacuteRIA DA CRIacuteTICA DE ZELLER A KINGSLEY

Na labiriacutentica confusatildeo da tradiccedilatildeo da sabedoria pitagoacuterica e da socie-dade pitagoacuterica que em grande parte nos foi transmitida por escrito-res e compiladores tardios e ingecircnuos como que encoberta por uma sagrada escuridatildeo os fragmentos de Filolau sempre representaram pa-ra mim como um ponto cintilante (Boeckh 1819 3)7

Assim principia Boeckh em 1819 a obra que marca a preacute-histoacuteria da criacutetica

moderna sobre o pitagorismo Um incipit altamente significativo especialmente quando

considerado em perspectiva agrave luz dos dois seacuteculos de interpretaccedilatildeo que a ele se sucede-

ram e que desenham o sinuoso percurso da histoacuteria da tradiccedilatildeo moderna sobre o pitago-

rismo Um iniacutecio que revela com precisatildeo dois dos maiores loci hermenecircuticos da criacuteti-

ca de um lado pela expressatildeo labyrintischen Gewirre a significar inconfudivelmente a

opiniatildeo comum da grande dificuldade de assimilaccedilatildeo da literatura pitagoacuterica por outro

lado pela imediata individuaccedilatildeo de um lichter Punkt um ldquoponto cintilanterdquo em alguma

parte desta (e que corresponde geralmente a um autor ou uma temaacutetica especiacutefica) que

possa iluminar a escuridatildeo do labirinto historiograacutefico um fio de Ariadne que permita

sair da ldquoconfusatildeordquo com a qual o historiador do pitagorismo eacute tradicionalmente levado a

confrontar-se

A percepccedilatildeo dessa mesma dificuldade natildeo eacute exclusiva da criacutetica moderna Jacircm-

blico tambeacutem logo no iniacutecio de sua Vida Pitagoacuterica apelava para os deuses com o

objetivo expresso de solicitar que o assistissem na difiacutecil empreitada de superar dois

obstaacuteculos para o desenvolvimento de sua biografia histoacuterica de um lado a estranheza

das doutrinas e a obscuridade dos siacutembolos do outro a quantidade de escritos espuacuterios

e mentirosos sobre a filosofia pitagoacuterica que circularam ateacute entatildeo

No comeccedilo de toda filosofia eacute costume dos saacutebios apelar para um deus isso vale ainda mais para aquela filosofia que pelo que parece

7 Orig ldquoIm dem labyrinthishen Gewirre der Uberlieferungen uumlber die Pythagorische Weisheit und Py-thagorische Gesellschaft welehe grofsentheils durch spate und urtheilslose Schriftsteller und Zusam-mentraumlger wie in heiliges Dunkel gehuumlllt zu uns heruumlbergekommen sind haben des Philolaos Bruumlchstuumlke sich mir immer als ein lichter Punkt dargestelltrdquo (Boeckh 1819 3)

22

leva justamente o nome do divino Pitaacutegoras Esta de fato foi concedi-da desde o iniacutecio pelos deuses e natildeo eacute possiacutevel compreendecirc-la se natildeo com a ajuda deles Aleacutem disso sua beleza e sua grandeza superam as capacidades humanas de maneira que eacute impossiacutevel abraccedilaacute-la imedia-tamente e com um uacutenico olhar Portanto somente se um deus benigno nos guiar seraacute possiacutevel aproximar-se lentamente dela e gradativamente apropriar-se de alguma parte Por todas estas razotildees apoacutes ter invocado os deuses como nossos guias e confiado a eles noacutes mesmos e nosso discurso vamos segui-los aonde eles nos queiram conduzir Natildeo de-vemos dar importacircncia ao fato de que esta escola de pensamento haacute algum tempo encontra-se abandonada nem da estranheza das doutri-nas e da obscuridade dos siacutembolos nos quais ela estaacute envolvida nem dos muitos escritos falsos e apoacutecrifos que lanccedilaram sombras sobre ela nem das muitas dificuldades que tornam o acesso a ela aacuterduo8

Uma sensaccedilatildeo de pacircnico labiriacutentico parece acompanhar portanto desde os albo-

res dessa histoacuteria o encontro do historiador com o pitagorismo A ela segue da mesma

forma uma imediata tentativa de sair do labirinto de achar uma ordem no caos de indi-

viduar uma constante que permita ao discurso historiograacutefico alcanccedilar certa estabilidade

hermenecircutica

Os dois seacuteculos que se seguiram agrave obra inaugural de Boeckh sobre Filolau cons-

tituem o objeto principal das paacuteginas a seguir9 A intenccedilatildeo eacute a de acompanhar o proce-

der ndash nem sempre calmo e arrazoado ndash da criacutetica sabendo de antematildeo que resultaraacute des-

te uma histoacuteria em que cada fato e cada testemunho seratildeo colocados em discussatildeo agrave

exceccedilatildeo provavelmente da proacutepria existecircncia dos assim chamados pitagoacutericos ldquona

controveacutersia acadecircmica que seguiu dificilmente um uacutenico fato permaneceu indisputado

com a exceccedilatildeo de que nos dias de Platatildeo e mais tarde no primeiro seacuteculo aEC existi-

ram Pythagoreioirdquo (Burkert 1972 2)10

8 Iambl VP 1 Orig ldquoἘπὶ πάσης microὲν φιλοσοφίας ὁρmicroῇ θεὸν δήπου παρακαλεῖν ἔθος ἅπασι τοῖς γε σώφ-ροσιν ἐπὶ δὲ τῇ τοῦ θείου Πυθαγόρου δικαίως ἐπωνύmicroῳ νοmicroιζοmicroένῃ πολὺ δήπου microᾶλλον ἁρmicroόττει τοῦτο ποιεῖνmiddot ἐκ θεῶν γὰρ αὐτῆς παραδοθείσης τὸ κατrsquo ἀρχὰς οὐκ ἔνεστιν ἄλλως ἢ διὰ τῶν θεῶν ἀντιλαmicroβάνε-σθαι πρὸς γὰρ τούτῳ καὶ τὸ κάλλος αὐτῆς καὶ τὸ microέγεθος ὑπεραίρει τὴν ἀνθρωπίνην δύναmicroιν ὥστε ἐξαί-φνης αὐτὴν κατιδεῖν ἀλλὰ microόνως ἄν τίς του τῶν θεῶν εὐmicroενοῦς ἐξηγουmicroένου κατὰ βραχὺ προσιὼν ἠρέmicroα ἂν αὐτῆς παρασπάσασθαί τι δυνηθείη διὰ πάντα δὴ οὖν ταῦτα παρακαλέσαντες τοὺς θεοὺς ἡγεmicroόνας καὶ ἐπιτρέψαντες αὐτοῖς ἑαυτοὺς καὶ τὸν λόγον ἑπώmicroεθα ᾗ ἂν ἄγωσιν οὐδὲν ὑπο ἑαυτοὺς καὶ τὸν λόγον ἑπώmicroεθα ᾗ ἂν ἄγωσιν οὐδὲν ὑπο λογιζόmicroενοι τὸ πολὺν ἤδη χρόνον ἠmicroελῆσθαι τὴν αἵρεσιν ταύτην καὶ τὸ microαθήmicroασιν ἀπεξενωmicroένοις καί τισιν ἀπορρήτοις συmicroβόλοις ἐπικεκρύφθαι ψευδέσι τε καὶ νόθοις πολλοῖς συγγράmicromicroασιν ἐπισκιάζεσθαι ἄλλαις τε πολλαῖς τοιαύταις δυσκολίαις παραποδίζεσθαιrdquo 9 Eacute preciso notar que a maioria dos comentadores (Thesleff 1961 31 De Vogel 1966 8 Burkert 1972 2 Centrone 1996 193) natildeo considera a obra de Boeckh (1819) como inaugural da histoacuteria da criacutetica do pitagorismo preferindo fazecirc-la comeccedilar mais tradicionalmente com a obra de Zeller (1855 esta obra seraacute citada daqui para frente na ediccedilatildeo italiana complementada e anotada por Mondolfo em 1938) 10 Orig ldquoIn the scholarly controversy that followed scarcely a single fact remained undisputed save that in Platorsquos day and then later in the first century BC there were Pythagoreioirdquo

23

Apesar disso seraacute possiacutevel revelar sinais de continuidade de uma lectio do pita-

gorismo que o entregaraacute agrave histoacuteria com as caracteriacutesticas de um movimento especial

complexo e de difiacutecil interpretaccedilatildeo no interior do panorama dos estudos normais (no

sentido kuhniano) da filosofia preacute-socraacutetica

Obviamente o pitagorismo compartilha o ponto de partida da moderna histoacuteria

de sua criacutetica com o restante da filosofia grega antiga Nesse caso o precursor eacute certa-

mente Zeller que em sua Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Ent-

wicklung (1855) traccedila as bases para a moderna historiografia da filosofia antiga

11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos

Significativamente a primeira paacutegina do capiacutetulo de Zeller dedicada ao pitago-

rismo potildee-se em continuidade com os textos de Jacircmblico e Boeckh anteriormente cita-

dos indicando especial dificuldade para o estudo do pitagorismo na mistura de faacutebulas

e poesias que teria encoberto a doutrina filosoacutefica

Entre todas as escolas filosoacuteficas das quais temos conhecimento natildeo haacute nenhuma cuja histoacuteria natildeo tenha sido frequentemente envolvida e quase encoberta por faacutebulas e poesias e cuja doutrina natildeo tenha sido mesclada na tradiccedilatildeo com uma quantidade enorme de elementos pos-teriores como foi aquela dos pitagoacutericos (Zeller e Mondolfo 1938 288)11

Zeller enfrenta o problema por assim dizer de peito perguntando-se imedia-

tamente sobre a proacutepria possibilidade de existecircncia de um sistema filosoacutefico pitagoacuteri-

co ldquopoderia se levantar a questatildeo se seja o caso de falar em geral do sistema pitagoacuteri-

co como de um complexo cientiacutefico e histoacutericordquo (Zeller e Mondolfo 1938 597)12

A duacutevida eacute potencialmente paralizadora pois coloca em cheque a proacutepria pos-

sibilidade de abordagem do pitagorismo no interior daquelas que se conveacutem conside-

rar Histoacuterias da Filosofia O risco a dizer do Zeller eacute que o pitagorismo a bem ver

natildeo seja outra coisa senatildeo uma selva de mitos e ritos estranhos sem alguma relevacircn-

11 Orig ldquoFra tutte le scuole filosofiche che noi conosciamo non ve nrsquoegrave alcuna la cui storia non sia stata tanto spesso avvolta e quasi coperta di favole e poesie e la cui dottrina sia stata mescolata nella tradizione con una tal massa di elementi posteriori quanto quella dei Pitagoricirdquo 12 Orig ldquoSi potrebbe sollevare la questione se sia il caso di parlare in genere del sistema pitagorico come di un complesso scientifico e storicordquo

24

cia para a filosofia Por sorte a resposta de Zeller eacute positiva ldquotudo aquilo que nos eacute

transmitido com relaccedilatildeo agrave filosofia pitagoacuterica ainda que entre todas as divergecircncias

de determinaccedilotildees subordinadas ainda coincide nos tratos fundamentaisrdquo (1938

599)13 Isto eacute haacute no pitagorismo algo de filosoacutefico que poderaacute ser salvo para futura

sistematizaccedilatildeo

Para realizar essa salvaccedilatildeo in principio do pitagorismo todavia Zeller precisa

operar historiograficamente de forma decididamente desenvolvimentista para natildeo dizer

positivista aplicando sobre esse movimento com a precisatildeo ciruacutergica do erudito alematildeo

do seacuteculo XIX um riacutegido esquema historicista Para que esse esquema possa funcionar

Zeller precisa criar diversos gaps hermenecircuticos vaacuterias fraturas controladas com preci-

satildeo e bem demarcadas De maneira especial eacute possiacutevel observar no interior da estrateacute-

gia zelleriana de salvaccedilatildeo do pitagorismo a operacionalizaccedilatildeo de trecircs fraturas realiza-

das a) entre a maioria das fontes e dos testemunhos do pitagorismo que satildeo tardios

notadamente neopitagoacutericos de um lado e as origens da filosofia pitagoacuterica do outro b)

entre a doutrina filosoacutefico-cientiacutefica e outras formas de expressatildeo miacutetico-religiosas c)

entre cultura grega e cultura oriental para que o pitagorismo possa resultar como um

movimento genuinamente grego

Dessa forma para resolver a questatildeo das fontes Zeller elabora a ceacutelebre teoria

da expansatildeo da tradiccedilatildeo a qual observa como com o passar do tempo as fontes sobre

o pitagorismo em vez de diminuir ndash como era de se esperar ndash aumentam

Dessa forma a tradiccedilatildeo relativa ao pitagorismo e ao seu fundador con-segue nos dizer tanto mais quanto mais se encontre distante no tempo dos respectivos fatos histoacutericos e ao contraacuterio ela se encontra na mesma proporccedilatildeo tanto mais silenciosa na medida em que nos apro-ximamos cronologicamente a seu mesmo objeto (Zeller e Mondolfo 1938 299)14

Zeller pode assim concluir que ldquoa pretensa doutrina pitagoacuterica que natildeo eacute recebi-

da pelos testemunhos mais antigos eacute neopitagoacutericardquo (1938 300)15 Isto eacute utilizando-se

de um argumento de certa forma circular e recusando-se a uma distinccedilatildeo mais cuida-

13 Orig ldquoTutto ciograve che ci egrave riferito della filosofia pitagorica pur fra tutte le divergenze di determinazioni subordinate coincide tuttavia nei tratti fondamentalirdquo 14 Orig ldquoCosiacute dunque la tradizione riguardante il Pitagorismo ed il suo fondatore ci sa dire tanto di piugrave quanto piugrave si trovi lontana nel tempo dai relativi fatti storici e per contro essa egrave nella stessa proporzione tanto piugrave taciturna a misura che ci avviciniamo cronologicamente al suo oggetto medesimordquo 15 Orig ldquola pretesa dottrina pitagorica che non egrave conosciuta dai testimoni piugrave antichi egrave neopitagoricardquo

25

dosa do material relevante no interior da literatura pitagoacuterica tardia pretende fundar o

que eacute pitagoacuterico exclusivamente sobre os testemunhos por ele considerados como os

mais antigos Entre eles Zeller privilegiaraacute Aristoacuteteles e os fragmentos de Filolau que

na esteira do Boeckh considera em bloco como autecircnticos16

Por consequecircncia da escolha acima o material mais relevante para a histoacuteria do

pitagorismo eacute aquele que o aproxima e o identifica com os outros sistemas preacute-

socraacuteticos e que diz respeito agrave filosofia da natureza

O objeto da ciecircncia pitagoacuterica na base de tudo o que foi dito ateacute este momento resulta aquele mesmo do qual se ocupavam todos os outros sistemas da filosofia preacute-socraacutetica isto eacute os fenocircmenos naturais e seus princiacutepios (Zeller e Mondolfo 1938 585)17

Com base nesses criteacuterios temaacuteticos portanto Zeller em argumento circular

acaba por definir quais sejam os testemunhos vaacutelidos para uma histoacuteria do pitagorismo

em suas origens Da mesma maneira excluindo por parti pris a consideraccedilatildeo das dou-

trinas miacuteticas do pitagorismo Zeller natildeo pode senatildeo declarar adesatildeo irrestrita a Aristoacute-

teles e seu juiacutezo sobre os pitagoacutericos

Natildeo podem ser aqui tomadas em consideraccedilatildeo agraves doutrinas miacuteticas da transmigraccedilatildeo das almas e da visatildeo da vida fundada sobre esta satildeo es-tes dogmas religiosos que aleacutem do mais natildeo eram exclusivos da esco-la pitagoacuterica e natildeo proposiccedilotildees cientiacuteficas Por aquilo que diz respeito agrave filosofia pitagoacuterica eu posso somente concordar com o juiacutezo de A-ristoacuteteles que ela tenha se consagrado inteiramente agrave pesquisa natural (Zeller e Mondolfo 1938 585-587)18

Mais especificamente se natildeo for possiacutevel verificar com precisatildeo quanto do pita-

gorismo do seacuteculo V (Filolau Arquitas) possa ser referido ao proacuteprio Pitaacutegoras Zeller

16 Cf a ampla discussatildeo da nota 2 da p 304 Na mesma nota todavia (p 307) Zeller afasta-se de Boeckh em relaccedilatildeo agrave autenticidade do fragmento sobre a alma-mundo (44 B21 DK) por considerar estranha a Filolau uma teoria da alma dividida em diversas partes como aquela expressa na tradiccedilatildeo platocircnico-aristoteacutelica Com ele concordaratildeo em seguida Burkert (1972 242-243) e Huffman (1993 343) Cf Cor-nelli (2002) para mais ampla discussatildeo da teoria zelleriana da expansatildeo da tradiccedilatildeo 17 Orig ldquoLrsquooggetto della scienza pitagorica in base a tutto ciograve che si egrave detto fin qui risulta quel medesimo di cui si occupavano tutti gli altri sistemi della filosofia presocratica vale a dire i fenomeni naturali e i loro principirdquo 18 Orig ldquoNon possono essere qui prese in considerazione le dottrine mitiche della transmigrazione delle anime e della visione della vita fondata sopra di essa questi sono dogmi religiosi che oltre tutto non eran limitati alla scuola pitagorica e non sono proposizioni scientifiche Per ciograve che riguarda la filosofia pitagorica io posso soltanto associarmi al giudizio di Aristotele che essa sia stata consacrata tutta quanta alla ricerca naturalerdquo

26

sugere contudo que as principais doutrinas devam derivar diretamente dele in primis a

doutrina de ldquotudo eacute nuacutemerordquo ldquoque constitui o caraacuteter diferencial mais geral da filosofia

pitagoacutericardquo e que pode se resumir na afirmaccedilatildeo pela qual ldquoo nuacutemero eacute a essecircncia de to-

das as coisas ou seja que tudo em sua essecircncia seja nuacutemerordquo (Zeller e Mondolfo

1938 435)19 Da mesma forma devem ser atribuiacutedas a Pitaacutegoras as doutrinas da harmo-

nia do fogo central e a teoria das esferas todas elas presentes nos fragmentos de Filo-

lau que ndash como vimos ndash eram considerados autecircnticos por Zeller

Na mesma linha Zeller apesar de demonstrar conhecer bem tanto os testemu-

nhos antigos quanto os estudos orientalistas alematildees a ele contemporacircneos os mesmos

que aproximam a filosofia grega em geral e o pitagorismo em especial agraves tradiccedilotildees de

pensamento egiacutepcias persas e indianas ainda assim intitula o capiacutetulo dedicado a este

tema de maneira incontrovertida Contra a Origem Oriental Zeller declara imediata-

mente a improbabilidade de uma origem oriental das doutrinas (Zeller e Mondolfo

1938 602-606) e aposta ao contraacuterio nas origens gregas do pitagorismo e na possibili-

dade de ldquocompreendecirc-lo perfeitamente com base nas caracteriacutestias proacuteprias e nas condi-

ccedilotildees de cultura do povo grego no seacuteculo VI aECrdquo (Zeller e Mondolfo 1938 607)20 O

pitagorismo seraacute portanto compreendido como parte de um movimento maior de re-

forma moral e religiosa do qual fazem parte figuras como Epimecircnides os poetas gnocirc-

micos os sete saacutebios ainda que se eleve acima destes outros pela ldquopoliedricidade e a

potecircncia com a qual ele abraccedilou dentro de si a inteira substacircncia da cultura de seu tem-

po o elemento religioso o eacutetico-poliacutetico e o cientiacuteficordquo (1938 607)21

O esforccedilo do Zeller no sentido de separar o pitagorismo de possiacuteveis relaccedilotildees pe-

rigosas com o Oriente obriga-o a fazer derivar a matemaacutetica pitagoacuterica de Anaximan-

dro ldquoaos estudos matemaacuteticos dificilmente podia ter sido introduzido naquele tempo

por alguma outra pessoardquo (1938 609)22 assim como a negar qualquer influecircncia dos

povos itaacutelicos autoacutectones anteriores agrave colonizaccedilatildeo doacuterica que sem nenhum pudor cha-

19 Orig ldquoche constituisce il carattere differenziale piugrave generale della filosofia pitagoacutericardquo e ldquoil numero sia lrsquoessenza di tutte le cose ossia che tutto di sua essenza sia numerordquo 20 Orig ldquocomprender[lo] perfettamente sulla base delle caratteristiche proprie e delle condizioni di cultura del popolo greco nel VI secolo a Crdquo 21 Orig ldquopoliedricitagrave e la potenza con cui esso ha abbracciato entro di segrave tutta quanta la sostanza della cultura del suo tempo lrsquoelemento religioso quello etico-politico e quello scientificordquo 22 Orig ldquoagli studi matematici difficilmente poteva a quel tempo essere introdotto da qualcun altrordquo

27

ma de baacuterbaros (1938 610-611)23 Insere-se neste mesmo projeto a insistecircncia na pro-

funda relaccedilatildeo da Magna Greacutecia com aquele que Zeller chama de ldquocaraacuteter proacuteprio da

estirpe doacutericardquo do qual dependeriam as instituiccedilotildees das cidades doacuterico-aqueias que fo-

ram palco da atividade de Pitaacutegoras (1938 607) Como exemplos desse caraacuteter Zeller

enumera entre outros a poliacutetica aristocraacutetica a muacutesica eacutetica a sabedoria enigmaacutetica a

participaccedilatildeo das mulheres na educaccedilatildeo e na sociedade a firme doutrina moral toda ba-

seada na medida e que natildeo conhece nada de mais alto do que a subordinaccedilatildeo dos indiviacute-

duos ao todo o respeito pelos genitores pela autoridade e pela velhice (1938 608-

609)24 Com uma impostaccedilatildeo historiograacutefica como esta marcadamente hegeliana (ve-

jam-se deste nesse sentido as Licccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia) a conclusatildeo natildeo

poderia ser outra senatildeo aquela de um argumento circular e a posteriori da supremacia

grega (e pitagoacuterica) a prova da superioridade do caraacuteter dos povos da Magna Greacutecia eacute

que ali surgiu a filosofia ldquoo terreno que a filosofia encontrou para si nas colocircnias da

Magna Greacutecia era a tal ponto favoraacutevel A flor agrave qual ela pocircde chegar eacute a prova dissordquo

(1938 611)25

Vale portanto tambeacutem para Zeller aquilo pelo que mais recentemente Centro-

ne chamava a atenccedilatildeo de Zhmud e que de certa forma eacute um leitmotiv de toda histoacuteria

da criacutetica filosoacutefica natildeo somente preacute-socraacutetica tem-se sempre a impressatildeo de que o

historiador acha no autor claacutessico estudado a figura de si mesmo ou de suas afinidades

eletivas

Tem-se a impressatildeo que por uma feliz coincidecircncia a imagem de Pi-taacutegoras reconstruiacuteda por Zhmud o mais possiacutevel depurada das com-ponentes religiosas e restituiacuteda agrave dignidade filosoacutefico-cientiacutefica seja tambeacutem aquela que ele proacuteprio prefere (Centrone 1999 426)26

23 E todavia jaacute Mondolfo em sua nota lembra-se da figura de Mamerco e de um possiacutevel centro de cul-tura matemaacutetica na Itaacutelia antes de Pitaacutegoras (Zeller e Mondolfo 1938 359) 24 Ainda que a primeira formulaccedilatildeo desta distinccedilatildeo tenha sido aquela de Boeckh que distinguia entre a Sinnlichkeit jocircnica cujo espelho seria o materialismo filosoacutefico e o Volk doacuterico que remete para a busca da ordem (1819 39-42) Natildeo deve ser esquecido aleacutem do mais que Boeckh era disciacutepulo de Schleierma-cher que por primeiro havia postulado este modelo de divisatildeo eacutetnica da filosofia em diversas tendecircncias geopoliacuteticas e com modalidades evolucionistas em suas aulas de 1812 publicadas postumamente sob o tiacutetulo de Ethik 18123 (Schleiermacher 1990) 25 Orig ldquotanto piugrave favorevole era il terreno che la filosofia trovograve per segrave nelle colonie della Magna Grecia Il fiore al quale essa vi potegrave pervenire ne egrave la provardquo 26 Orig ldquoSi ha lrsquoimpressione che per felice coincidenza lrsquoimmagine di Pitagora ricostruita da Zhmud depurata il piugrave possibile dalle componenti religiose e restituita a dignitagrave filosofico-scientifica sia anche quella che egli prediligerdquo

28

O privileacutegio concedido por Zeller agrave lectio aristoteacutelica sobre os pitagoacutericos tor-

nou-se ao longo da histoacuteria da criacutetica moderna um troacutepos historiograacutefico predominan-

te contribuindo para definir a filosofia pitagoacuterica sobretudo a partir da tese ldquotudo eacute nuacute-

merordquo27 Da mesma forma tanto a clara fratura entre o pitagorismo antigo e o neopita-

gorismo como o quase absoluto desprezo pela dimensatildeo poliacutetica da koinoniacutea pitagoacuterica

influenciaram decididamente os estudos posteriores

Exemplo da influecircncia do ceticismo zelleriano satildeo certamente as liccedilotildees sobre os

filoacutesofos preacute-platocircnicos que o amigo Nietzsche ministra em Basileia a partir do ano de

1872 Eacute signifitiva a tese que Nietzsche defende em sua aula sobre Pitaacutegoras

Aquilo que se denomina filosofia pitagoacuterica eacute algo de muito posterior que eacute possiacutevel colocar somente na segunda metade do seacuteculo V Por-tanto ele natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo com os filoacutesofos mais antigos pois natildeo foi filoacutesofo mas algo diferente A rigor se poderia excluiacute-lo de uma histoacuteria da filosofia mais antiga Todavia ele produziu um ti-po de vida filosoacutefica e isso os gregos lhe devem Esta imagem exerce uma notaacutevel influecircncia natildeo sobre a filosofia mas sobre os filoacutesofos (Parmecircnides Empeacutedocles) Somente nestes termos deve-se falar dele (Nietzsche 1994 47)

A proacutepria possibilidade de falar de Pitaacutegoras no interior da histoacuteria da filosofia eacute

colocada em seacuterias duacutevidas pois sua contribuiccedilatildeo para ela eacute minimizada nos termos de

uma influecircncia sobre um geneacuterico estilo de vida filosoacutefico privo de conteuacutedos A posi-

ccedilatildeo de Nietzsche revela um ceticismo bastante radical portanto28

12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo

Sobre a premissa aristoteacutelico-zelleriana de que o pitagoacuterico seria algueacutem que fala

dos nuacutemeros Diels organiza sua seleccedilatildeo de fragmentos e testemunhos nos Vorsokrati-

ker (Diels 1903 Diels-Kranz 1951)

27 Ao menos ateacute os estudos de Zhmud (1989 272ss 1997 261ss ) conforme seraacute visto com mais deta-lhes no capiacutetulo quarto 28 Com a pergunta lsquoPithagoras Philosophusrsquo Bechtle (2003) entitula de forma ineacutedita para um trabalho manualiacutestico seu capiacutetulo sobre Pitaacutegoras

29

Foi exatamente este o criteacuterio que H Diels usou para selecionar quem representaria a escola pitagoacuterica em sua ediccedilatildeo dos fragmentos dos preacute-socraacuteticos A fonte primaacuteria (ainda que natildeo uacutenica) foi o celebre cataacutelogo dos pitagoacutericos encontrado em Jacircmblico (VP 267) Diels a-creditava que este cataacutelogo remontasse ao peripateacutetico Aristoxeno (Zhmud 1989 273)29

A anotaccedilatildeo inicial ao capiacutetulo XIV sobre Pitaacutegoras natildeo pode ser mais esclarece-

dora da dependecircncia de Zeller

Antes da eacutepoca de Filolau natildeo existia qualquer escrito de Pitaacutegoras e havia somente uma tradiccedilatildeo oral da escola mesma por consequecircncia natildeo havia uma doxografia segura [] Cf os testemunhos de Xenoacutefa-nes Heraacuteclito Empeacutedocles Igraveon sobre Pitaacutegoras em correspondecircncia dos proacuteprios autores (Diels 1903 22)30

A influecircncia da coleccedilatildeo dielsiana para todos os estudos sobre o pitagorismo eacute in-

discutiacutevel31 De Vogel (1964 9) mostra com razatildeo que Diels recolhe da tradiccedilatildeo mais

tardia sobre Pitaacutegoras e os pitagoacutericos somente o que diz respeito diretamente a Aristoacute-

xeno e suas Pythagorikai apophaseis (D) os Acusmata e Symbola (C) os testemunhos

aristoteacutelicos e de escola peripateacutetica (B) e alguma pouca referecircncia aos pitagoristas da

Comeacutedia aacutetica de Meio (E) Com isso exclui praticamente qualquer referecircncia agrave ativi-

dade poliacutetica de Pitaacutegoras Mesmo a revisatildeo da coleccedilatildeo feita por Kranz para a sexta edi-

ccedilatildeo dessa obra (1951) manteacutem a impostaccedilatildeo inicial do Diels Kranz decide sim inserir

no capiacutetulo sobre Pitaacutegoras o testemunho (A8a) sobre os discursos poliacuteticos de Pitaacutego-

ras em Crotona de Porfiacuterio (VP 18-19) No entanto ndash anota De Vogel ndash ldquoeacute difiacutecil que o

leve a seacuteriordquo (1964 9 ldquohardly took it seriouslyrdquo) como demonstraria o fato que a res-

pectiva redaccedilatildeo dos discursos em Jacircmblico (VP 37-57) como os paralelos de Pompeu

29 Orig ldquoIt was just this criterion which H Diels used for selecting representatives of the Pythagorean school in his edition of the fragments of the presocratics The main source (but not the only one) he had relied on was the well-known catalogue of Pythagoreans found in Iamblichus (Vit Pyth 267) Diels be-lieved that this catalogue went back to the Peripatetic Aristoxenusrdquo 30 Da es keine Schriften des Pythagoras gab und uumlberhaupt vor Philolaos Zeit nur muumlndliche Tradition der eigentlichen Schule bestand so gibt es hier keine Doxographie [] Die Zeugnisse des Xenophanes [11 B7] Heraklit [12 B40129()] Empedokles [21 B129] Ion [25 B4()] uumlber P s bei diesen Na VI Ediccedilatildeo revista Kranz (1951) qualificaraacute como entscheidend wichtigen importantes e decisivos Die Zeugnisse dos outros presocraacuteticos acima citados Seraacute preciso notar tambeacutem que ndash contrariamente ao que afirma na nota introdutoacuteria acima citada ndash Diels acaba inserindo arbitrariamente no fim dois testemu-nhos doxograacuteficos (A 20 e 21) sobre a descoberta da identidade entre os astros Espero e Luciacutefero e sobre o fato de ter chamado toacute oacutelon de koacutesmos Cf para isso Burkert (1972 77 e 307) 31 Para uma resenha exaustiva do processo de elaboraccedilatildeo da coleccedilatildeo cf Calogero (1941)

30

Trogo continua natildeo encontrando lugar na coleccedilatildeo Os poucos testemunhos nesse senti-

do que Diels-Kranz coleta ndash A13 sobre matrimocircnio de Pitaacutegoras A16 sobre a crise da

comunidade pitagoacuterica (Iambl VP 248-257) ndash satildeo inseridos na seccedilatildeo Leben Por outro

lado Kranz natildeo muda nada no capiacutetulo sobre a Pythagoreische Schule (58) o material

aqui citado que diria respeito diretamente a Pitaacutegoras eacute mantido com todos os cuidados

bastante separado dele a significar uma lectio que quer afastar os conteuacutedos deste mate-

rial da autecircntica filosofia pitagoacuterica32

Eacute mister lembrar que a arbitrariedade das escolhas de Diels-Kranz seraacute objeto de

todos os estudos que revisaratildeo ao longo do seacuteculo XX pontualmente essa coleccedilatildeo33

13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo

A primeira reaccedilatildeo ao franco ceticismo de Zeller em relaccedilatildeo agraves fontes pitagoacutericas

natildeo demora a aparecer seu ponto de partida satildeo certamente os dois artigos que Rohde

publica jaacute na segunda metade do seacuteculo XIX na Rheinisches Museum sobre as fontes

da Vida Pitagoacuterica de Jacircmblico (Rohde 1871 1872) Eacute exatamente nesse campo de

trabalho da obra de Jacircmblico que surgem os primeiros questionamentos relativos agrave pre-

tensa verdade absoluta da equaccedilatildeo entre fontes tardias e sua confiabilidade Rohde mos-

tra com uma anaacutelise minuciosa as dependecircncias do texto de Jacircmblico natildeo da vida pa-

ralela de Porfiacuterio como era opiniatildeo comum ateacute entatildeo (Nauck 1884 x) e sim de fontes

neoplatocircnicas datadas dos seacuteculos I e II EC portanto anteriores agravequela notadamente

Nicocircmaco e Apolocircnio Rohde procura fundamentar essa ldquoteoria mecacircnica das duas fon-

tesrdquo (Burkert 1972 100) partindo da ideia de que tanto Porfiacuterio quanto Jacircmblico escre-

veram seus textos em exerciacutecio nem sempre bem-sucedido do ponto de vista estiliacutestico

32 Chama atenccedilatildeo todavia que em um artigo de 1890 Diels havia sugerido atribuir ao proacuteprio Pitaacutegoras alguns textos pitagoacutericos do periacuteodo heleniacutestico entre eles especialmente o Kopiacutedes um escrito retoacuterico reconstruiacutedo a partir de uma referecircncia em Heraacuteclito e o Paideutikoacuten Politikoacuten Physikoacuten na realidade escrito no seacuteculo II aEC em dialeto iocircnico para parecer mais antigo que o doacuterico Periacute Physios de Filo-lau Para os textos veja-se agora a coleccedilatildeo de Thesleff (1965) De certa forma portanto ainda que inici-almente propenso a dar algum valor histoacuterico agrave literatura pitagoacuterica mais tardia Diels parece mudar de ideia logo em seguida agrave publicaccedilatildeo da obra de Zeller em 1855 33 Philip (1966 38) eacute categoricamente fatalista em afirmar que a parte dedicada ao pitagorismo eacute certa-mente a pior da coleccedilatildeo ldquothe fragments of Pythagoras and the Pythagoreans are perhaps inevitably the least satisfactory part of the Vorsokratikerrdquo Natildeo escapa da mordacidade de Philip nem sequer a coleccedilatildeo da Timpanaro Cardini (1958-1962) ldquoMiss Cardini is as ready as Iamblichus to baptize as a Pythagorean anyone having the remotest connection with that lsquobrotherhoodrsquordquo

31

de corte e colagem A confianccedila em sua teoria estende-se ateacute o ponto de ironizar o ldquodi-

vino Jacircmblicordquo por sua ldquopobreza mental e alma malemolenterdquo (Rohde 1872 60) em

outro passo de seu segundo artigo (1872) volta a acusar Jacircmblico por

Demonstrar significativa independecircncia em niacutevel tatildeo vergonhoso ao ponto de preparar uma mistura multicolorida arrumada a partir de re-cortes de suas leituras enquanto a sequecircncia desordenada e as impro-visadas passagens conectivas seriam sua proacutepria contribuiccedilatildeo agrave obra (Rohde 1872 48)34

Apesar de natildeo resistir agraves sucessivas criacuteticas que se queixavam da impiedosa arbi-

trariedade da compreensatildeo do processo de confecccedilatildeo do trabalho de Jacircmblico de fato o

trabalho de Rohde abriu o caminho para uma longa Quellenforshung as ediccedilotildees da Vida

Pitagoacuterica de Jacircmblico de Bertermann (1913) e de Deubner (1937) dependem am-

plamente das pesquisas de Rohde assim como os estudos de Corrsen (1912) Leacutevy

(1926) e Frank (1923)35 Da mesma forma os comentadores que o acompanharam neste

caminho puderam em seguida detectar no texto referecircncias a autores do seacuteculo IV aEC

como Aristoxeno Dicearco Heraacuteclide Pocircntico e Timeu36 Entre eles certamente deve-

mos considerar in primis Delatte que em seu trabalho sobre a literatura pitagoacuterica

antes (1915) e sobre a Vida de Pitaacutegoras de Dioacutegenes Laeacutercio depois (1922b) recolhe

em amplo espectro cronoloacutegico e interdisciplinar as mais diferentes fontes desta obra

inspirado exatamente na metodologia de trabalho inaugurada por Rohde Na mesma

linha metodoloacutegica situa-se o trabalho sobre a poliacutetica pitagoacuterica de Von Fritz (1940)

que procura identificar material que possa ser referido a Aristoxeno Timeu e Dicearco

Assim ao lado de Aristoacuteteles comeccedilam a aparecer na literatura criacutetica moderna

nomes de autores quase tatildeo antigos como referenciais para os estudos do pitagorismo

34 Orig ldquoHier zeigt Jamblich eine bei einem so elenden Stoppler schon bemerkenswerthe Selbstaumlndig-keit indem er meist aus Brocken seiner Lektuumlre ein bunter Allerlei herstellt an dem wenigstens die unru-hige Unordnung der Reihenfolge und die das Einzelne nothduumlrftig verknuumlpfenden Betrachtungen sein eigenes Werk sindrdquo 35 Eacute significativo notar que somente quatro anos antes da publicaccedilatildeo do primeiro artigo de Rohde na mesma Rheinisches Museum fuumlr Philologie de 1868 Friedrich Nietzsche havia publicado um artigo (1868) dedicado ao mesmo tema das fontes das biografias tardias desta vez em Dioacutegenes Laeacutercio Ni-etzsche identifica da mesma maneira que faraacute logo mais Rohde em autores do I seacuteculo aEC (Favorino e Diacuteocles de Magneacutesia) as fontes das notiacutecias biograacuteficas esparsas na obra de Dioacutegenes O trabalho de Roh-de portanto deve ser compreendido ao lado daquele de ilustres colegas como parte de amplo esforccedilo de validaccedilatildeo das fontes tardias por meio do estudo da Tradition Geshichte de suas obras 36 Cf Burkert 1972 4 Para uma criacutetica da articulaccedilatildeo dos argumentos de Rohde nos dois artigos citados cf Norden (1913) e depois Philip (1959)

32

em seu nascer Deve-se notar nesse sentido que jaacute os Doxographi Graeci de Diels

(1879) indicam Teofrasto como a fonte uacuteltima do amplo material doxograacutefico reportado

pela tradiccedilatildeo dessa forma agravequela que Diels chama de antiga tradiccedilatildeo peripateacutetica (58

B DK) seraacute atribuiacutedo um papel central daqui para frente para a reconstruccedilatildeo do pitago-

rismo

14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos

Iniciador de uma brilhante tradiccedilatildeo de scholars anglo-saxotildees que se dedicaram

aos estudos sobre as origens da filosofia antiga Burnet em sua obra Early Greek Philo-

sophy (1908) eacute ainda devedor da lectio inaugural operada por Zeller com efeito de-

senvolve sua teoria tendo como pressuposto a clara separaccedilatildeo entre a dimensatildeo religiosa

de Pitaacutegoras e o desenvolvimento sucessivo do movimento assim como certa distacircncia

entre as preocupaccedilotildees poliacuteticas e aquelas cientiacuteficas das koinoniacuteai pitagoacutericas Sobre

esse piso comum Burnet elabora uma lectio proacutepria que natildeo desdenha as recentes posi-

ccedilotildees menos ceacuteticas como aquela de Rohde (Burnet 1908 91 n1) inaugurando uma li-

nha interpretativa baseada na ceacutelebre distinccedilatildeo no interior do movimento pitagoacuterico

entre os acusmaacuteticos e os matemaacuteticos Distinccedilatildeo esta que se tornaraacute tradicional na his-

toacuteria da criacutetica e distingue de um lado o interesse por parte de alguns nos tabus tradi-

cionais de uma religiosidade arcaica (os akouacutesmata e syacutembola) e do outro a franca de-

dicaccedilatildeo agrave pesquisa de princiacutepios cientiacuteficos notadamente matemaacuteticos Distinccedilatildeo en-

fim jaacute presente nas fontes relacionadas agrave menccedilatildeo agrave didaskaliacutea diacutetton ao duplo ensina-

mento de Pitaacutegoras em Porfiacuterio e agrave distinccedilatildeo entre os Pitagoreacuteus e os Pitagoacuteristas (estes

uacuteltimos imitadores dos primeiros e que corresponderiam aos acusmaacuteticos) em Jacircmblico

(Porph VP 37 Iambl VP 80)37 Eacute preciso notar que apesar de os usos sucessivos des-

sa distinccedilatildeo inicial tenderem a sublinhar o gap entre os dois grupos a bem ver essa

mesma distinccedilatildeo natildeo pressupotildee nas intenccedilotildees iniciais de Burnet ndash assim como nas Vi-

das anteriormente citadas ndash alguma separaccedilatildeo definitiva entre dois lados no interior do

mesmo pitagorismo das origens Ao contraacuterio o mesmo Burnet identifica em dois luga-

res pontos de contato a) na complexa figura do proacuteprio Pitaacutegoras que estaria na origem

37 Cf para uma discussatildeo sobre as fontes da distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteticos a seccedilatildeo 12 a seguir

33

de ambas as didaskaliacuteai (Burnet 1908 107) b) no conceito de kathaacutersis de purificaccedilatildeo

que conecta o aspecto religioso e aquele cientiacutefico uma vez que ciecircncia tambeacutem se tor-

na ela proacutepria um instrumento de purificaccedilatildeo

Precisamos considerar que haacute aqui um reavivamento da filosofia reli-giosa principalmente porque se sugere a ideia de que a filosofia seja acima de tudo um ldquoestilo de vidardquo Mesmo a ciecircncia era uma purifica-ccedilatildeo uma maneira de fugir da ldquorodardquo Esta eacute a visatildeo expressada tatildeo fortemente no Feacutedon de Platatildeo o qual foi escrito sob a influecircncia das doutrinas pitagoacutericas (Burnet 1908 89)38

Assim natildeo eacute possiacutevel concordar com a acusaccedilatildeo um tanto sumaacuteria de De Vogel

pela qual ldquoBurnet natildeo presta atenccedilatildeo para o caraacuteter eacutetico-religioso do biacuteos fundado por

Pitaacutegoras e para a conexatildeo essencial deste aspecto com os assim chamados princiacutepios

cientiacuteficosrdquo (1964 11)39 Ao contraacuterio eacute exatamente pelo conceito de purificaccedilatildeo que

essa conexatildeo eacute afirmada e compreendida em sua profundidade teoacuterica para aleacutem da

realidade histoacuterica concreta do movimento40

Contudo eacute certamente merecedora de criacuteticas em Burnet uma abordagem for-

malmente aprioriacutestica da questatildeo das fontes por ela tudo o que eacute arcaico seria religioso

enquanto tudo o que eacute mais recente seria cientiacutefico Assim o pitagorismo das origens

estaria ligado a modos de pensamento primitivos facilmente detectaacuteveis na tradiccedilatildeo dos

akouacutesmata e syacutembola

Seria faacutecil multiplicar as provas de uma conexatildeo proacutexima entre o pita-gorismo e os modos de pensamento primitivos mas o que foi dito eacute jaacute suficiente para nosso propoacutesito O parentesco de homens e animais a abstinecircncia da carne e a doutrina da transmigraccedilatildeo estatildeo todas juntas e formam um conjunto perfeitamente inteligiacutevel (Burnet 1908 106)41

38 Orig ldquoWe have to take account of the religious Philosophy as revival here chiefly because it sug-gested the view that a philosophy was above all a lsquoway of lifersquo Science too was a lsquopurificationrsquo a means of escape from the lsquowheelrsquo This is the view expressed so strongly in Platorsquos Phaedo which was written under the influence of Pythagorean ideasrdquo 39 Orig ldquoBurnet had no eye for the ethico-religious character of the biacuteos founded by Pythagoras and for the essencial connection of this aspect with the so-called scientific principlesrdquo 40 Burnet cita (1908 98 n3) e desenvolve aqui a intuiccedilatildeo sobre a unidade entre ciecircncia e religiatildeo pela kathaacutersis que jaacute havia sido de Doumlring (1892) 41 Orig ldquoIt would be easy to multiply proofs of the close connexion between Pythagoreanism and primi-tive modes of thought but what has been said is really sufficient for our purpose The kinship of men and beasts the abstinence from flesh and the doctrine of transmigration all hang together and form a perfect-ly intelligible wholerdquo

34

O divisor de aacuteguas da questatildeo das fontes torna-se em Burnet o matemaacutetico A-

ristoxeno que inaugura esta distinccedilatildeo entre o grupo mais iluminado da escola e a parte

supersticiosa e ndash daqui para frente ndash hereacutetica do pitagorismo Nas palavras do proacuteprio

Burnet

Agrave eacutepoca deles a parte simplesmente supersticiosa do pitagorismo foi abandonada com a exceccedilatildeo de alguns zelotas que a direccedilatildeo da Socie-dade recusava-se a reconhecer Eis porque ele apresenta o proacuteprio Pi-tagoacuteras em luz tatildeo diferente seja das tradiccedilotildees mais antigas como das mais recentes eacute porque ele nos concedeu o ponto de vista da seita mais iluminada da Ordem Aqueles que colaram fielmente agraves velhas praacuteticas eram agora considerados hereacuteticos e todo tipo de teorias era colocado na situaccedilatildeo de ter de dar razatildeo de sua existecircncia (Burnet 1908 106)42

A maior purificaccedilatildeo eacute a ciecircncia desinteressada (disinterested science) e portan-

to o ser humano que a ela se dedicar devotamente isto eacute o filoacutesofo poderaacute se livrar do

ciclo da geraccedilatildeo (1908 107) Contudo natildeo foge obviamente a Burnet que a grande

questatildeo eacute quanto dessa visatildeo poacutes-aristoxecircnica eacute atribuiacutevel ao proacuteprio Pitaacutegoras

Seria imprudente afirmar que Pitaacutegoras havia se expressado exata-mente desta maneira mas todas essas ideias satildeo genuinamente pitagoacute-ricas e eacute somente dessa forma que podemos cobrir a distacircncia que se-para Pitaacutegoras o homem da ciecircncia do Pitaacutegoras o mestre religioso (1908 107-108)43

A ponte que pretende separar os dois Pitaacutegoras o homem da ciecircncia e o mestre

religioso eacute o problema central que acompanha daqui para frente a histoacuteria da criacutetica do

espinhoso problema da complexidade multifacetada do pitagorismo

Ao mesmo tempo em que Burnet declara a necessidade de superaacute-la para encon-

trar em Pitaacutegoras a origem das duas vertentes estaacute de fato pressupondo a existecircncia

delas pois que haja uma distacircncia a ser superada entre pensamento cientiacutefico e pensa-

mento religioso tanto na antiguidade quanto hoje eacute esta mesma uma afirmaccedilatildeo a ser 42 Orig ldquoin their time the merely superstitious part of Pythagoreanism had been dropped except by some zealots whom the heads of the Society refused to acknowledge That is why he represents Pythago-ras himself in so different a light from both the older and the later traditions it is because he gives us the view of the more enlightened sect of the Order Those who clung faithfully to the old practices were now regarded as heretics and all manner of theories were set on foot to account for their existencerdquo 43 Orig ldquoIt would be rash to say that Pythagoras expressed himself exactly in this manner but all these ideas are genuinely Pythagorean and it is only in some such way that we can bridge the gulf which separates Pythagoras the man of science from Pythagoras the religious teacherrdquo

35

provada e certamente eacute um preconceito hermenecircutico tanto amplamente em uso quan-

to indemonstrado

Assim em conclusatildeo ao seu capiacutetulo dedicado ao pitagorismo Burnet reconhece

ter elaborado sua reconstruccedilatildeo da figura de Pitaacutegoras ldquosimplesmente atribuindo a ele

aquelas porccedilotildees do sistema pitagoacuterico que parecem ser as mais antigasrdquo (1908 123)44

Todavia a definiccedilatildeo do que eacute o mais antigo corresponde agrave quase totalidade do problema

a ser enfrentado e natildeo pode ser resolvida sucintamente com uma cronografia positivis-

ta como Burnet parece querer

Ainda assim eacute o caso de voltar a anotar aqui o esforccedilo de Burnet para manter

juntas as diversas tradiccedilotildees sobre Pitaacutegoras eacute fundamental para compreender as sucessi-

vas intervenccedilotildees hermenecircuticas sobre a literatura pitagoacuterica que de Cornford a Guthrie

desenham lentamente o caminho da composiccedilatildeo da diversidade de tradiccedilotildees em que

tanto a figura de Pitaacutegoras quanto o imediato desenvolvimento do movimento encon-

tram-se mergulhados

15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo

Em um artigo publicado em duas partes sucessivas na Classical Quarterly (em

1922 e 1923) intitulado significativamente Mysticism and Science in the Pythagorean

Tradition Cornford aborda a questatildeo de certa forma deixada em aberto por Burnet da

correta abordagem das relaccedilotildees entre religiosidade e interesses cientiacuteficos no pitagoris-

mo evitando reducionismos e anacronismos de matriz positivista que este uacuteltimo apa-

rentemente natildeo teria conseguido evitar Os dois artigos seguem de perto a jaacute consolida-

da perspectiva historiograacutefica do autor inglecircs em sua obra inaugural sobre as complexas

relaccedilotildees entre mito e histoacuteria em Tuciacutedides Thucydides Mythistoricus (1907) o objeti-

vo eacute o de afastar-se das tendecircncias da histoacuteria moderna que seria viacutetima da tiacutepica ldquofalaacute-

cia modernistardquo por projetar na obra do historiador ateniense noccedilotildees de cientificidade

derivadas em seus fundamentos da biologia darwiniana e da fiacutesica contemporacircnea45

44 Orig ldquosimply assigned to him those portions of the Pythagorean system which appear to be the old-estrdquo 45 Para uma anaacutelise mais ampla desta obra assim como da posiccedilatildeo historiograacutefica de Cornford cf Murari (2002)

36

Sobre esse pano de fundo teoacuterico Cornford enfrenta a vexata quaestio da pre-

senccedila nos seacuteculos VI e V aEC de dois ldquosistemas de pensamento diferentes e radical-

mente opostos elaborados no interior da escola pitagoacuterica Eles podem ser chamados

respectivamente de sistema miacutestico e sistema cientiacuteficordquo (Cornford 1922 137)46 En-

quanto todas as tentativas hermenecircuticas a ele contemporacircneas procuram articular os

dois sistemas em uma imagem coerente do movimento Cornford reconhece haver certa

confusatildeo entre os dois sistemas Essa confusatildeo eacute jaacute perceptiacutevel nas obras de Aristoacuteteles

e precisaraacute ser desvendada A soluccedilatildeo proposta por Cornford eacute a de distinguir no interi-

or do pitagorismo dois momentos histoacutericos diferentes e sucessivos cujo divisor de

aacuteguas ndash no comeccedilo do seacuteculo V aECndash seria a polecircmica eleaacutetica contra a derivaccedilatildeo da

multiplicidade da realidade de uma uacutenica archeacute Cornford resume da seguinte forma a

imagem do pitagorismo que resulta dividido por essa polecircmica

Podemos em uma palavra distinguir entre (1) o sistema original de Pitaacutegoras datado no seacuteculo VI criticado por Parmecircnides ndash o sistema miacutestico e (2) o pluralismo datado no seacuteculo V construiacutedo para con-frontar as objeccedilotildees de Parmecircnides e por sua vez criticado por Zenatildeo ndash o sistema cientiacutefico que pode ser chamado de ldquoatomismo numeacutericordquo (Cornford 1922 137)47

Essa divisatildeo entre misticismo e ciecircncia no pitagorismo encontra-se apenas apa-

rentemente em continuidade com a separaccedilatildeo entre religiatildeo e ciecircncia proposta por Bur-

net De fato imediatamente apoacutes indicar a separaccedilatildeo acima descrita Cornford anota que

haacute um terceiro momento do pitagorismo aquele de Filolau que tambeacutem pertence agrave

margem miacutestica mas que se coloca cronologicamente mais tarde

Haacute tambeacutem (3) o sistema de Filolau que pertence ao lado miacutestico da tradiccedilatildeo e procura acomodar a teoria dos elementos empedocleia Es-te para nossos atuais propoacutesitos pode ser deixado de lado (Cornford 1922 137)48

46 Orig ldquodifferent and radically opposed systems of thought elaborated within the Pythagorean school They may be called respectively the mystical system and the scientificrdquo 47 Orig ldquoWe can in a word distinguish between (1) the original sixth-century system of Pythagoras criticized by Parmenides ndash the mystical system and (2) the fifth-century pluralism constructed to meet Parmenidesrsquo objections and criticized in turn by Zeno ndash the scientific system which may be called lsquoNum-ber-atomismrsquordquo 48 Orig ldquoThere is also (3) the system of Philolaus which belongs to the mystical side of the tradition and seeks to accommodate the Empedoclean theory of elements This may for our present purpose be neglectedrdquo

37

O ponto mais significativo aqui eacute a sutil mudanccedila de perspectiva ndash no interior da

histoacuteria da criacutetica ndash que esta divisatildeo de Cornford representa colocando a ecircnfase da dis-

tinccedilatildeo entre as duas margens do pitagorismo no debate histoacuterico com o eleatismo retira-

se o apriorismo ndash acima citado ndash que postula uma anterioridade da religiosidade agrave ciecircn-

cia Com efeito ao descrever o lado miacutestico do movimento Cornford afirma britanica-

mente ndash eacute mesmo o caso de dizer ndash sua ldquonatildeo evidente inconsistecircnciardquo com a filosofia

Toda tentativa de resgatar o sistema original do fundador deveraacute eu diria necessariamente basear-se no pressuposto pelo qual sua filosofia e cosmologia natildeo estariam evidentemente inconsistentes com sua reli-giatildeo (Cornford 1922 138)49

Com um argumento francamente antievolucionista Cornford afirma portanto

que diferentemente da primeira fase jocircnica da filosofia em suas origens em que o ele-

mento religioso havia sido deixado de lado nesse segundo momento itaacutelico recupera-se

a dimensatildeo religiosa da vida filosoacutefica

Eacute oacutebvio que a tradiccedilatildeo filosoacutefica itaacutelica difere radicamente daquela jocirc-nica com respeito agrave sua relaccedilatildeo com a crenccedila religiosa Diferentemen-te dos Jocircnicos ela comeccedila natildeo pela eliminaccedilatildeo dos fatores que uma vez possuiacuteam significado religioso mas ao contraacuterio com uma recons-truccedilatildeo da vida relgiosa Para Pitaacutegoras conforme eacute admissatildeo geral o amor pela sabedoria a filosofia era um estilo de vida Pitaacutegoras foi tanto um grande reformador religioso o profeta de uma sociedade congregada pela reverecircncia agrave sua memoacuteria e pela observacircncia de uma regra monaacutestica e tambeacutem um homem de excepcionais poderes inte-lectuais em destaque entre os fundadores da ciecircncia matemaacutetica (Cornford 1922 138-139)50

Assim a figura de Pitaacutegoras poderaacute ser ao mesmo tempo compreendida como a

de um reformador religioso e de um homem de ciecircncia A distinccedilatildeo final dessas duas

margens aconteceraacute soacute em seguida em ocasiatildeo da polecircmica eleata notadamente zeno-

49 Orig ldquoAny attempt to reconstruct the original system of the founder must I would urge be based on the presupposition that his philosophy and cosmology were not openly inconsistent with his religionrdquo 50 Orig ldquoIt is obvious that the Italian tradition in philosophy differs radically from the Ionian in respect of its relation to religious belief Unlike the Ionian it begins not with the elimination of factors that had once had a religious significance but actually with a re-construction of the religious life To Pythagoras as all admit the love of wisdom philosophy was a way of life Pythagoras was both a great religious reformer the prophet of a society united by reverence for his memory and the observance of a monastic rule and also a man of commanding intellectual powers eminent among the founders of mathematical sciencerdquo

38

niana ainda que natildeo de forma tatildeo definida se for considerada a terceira margem filolai-

ca por ele proacuteprio indicada (ainda que natildeo discutida)

Raven (1948) bem compreendeu a novidade da posiccedilatildeo de Cornford ao afirmar

em seu Pythagoreans and Eleatics ldquouma das razotildees pelas quais a reconstruccedilatildeo de Corn-

ford do pitagorismo mais antiga eacute tatildeo atrativa eacute que ela imagina poder reconciliar o mo-

tivo religioso com aquele cientiacuteficordquo (Raven 1948 9)51

Seguindo de perto os argumentos de Cornford e a imagem coerente e plausiacutevel

que deles resulta Raven todavia propotildee-se agrave precisa tarefa de verificar se as conclu-

sotildees agraves quais Cornford chega sejam de fato as uacutenicas possiacuteveis Pois a questatildeo natildeo eacute

tanto ndash segundo Raven ndash aquela de ter uma visatildeo coerente do movimento e sim o

quanto esta ldquocondiz com todas as nossas evidecircncias disponiacuteveisrdquo (tallies with all our

avaliable evidence) a comeccedilar pelos testemunhos aristoteacutelicos sem os quais qualquer

tentativa de construccedilatildeo de um discurso histoacuterico sobre o pitagorismo eacute em seu dizer

ldquouma casa construiacuteda sobre areiardquo (house built upon sand ndash Raven 1948 6)52

Eacute exatamente essa a leitura que propotildee Guthrie (1962) provavelmente o uacuteltimo

grande comentador pertencente agrave tradiccedilatildeo de inteacuterpretes ingleses que tem suas origens

em Burnet Natildeo por acaso Guthrie refere-se diretamente aos estudos citados de Corn-

ford (1922 1923) e depois aos de seu disciacutepulo Raven (1948) para exemplificar aque-

le que chama de meacutetodo ldquoa priorirdquo da histoacuteria da filosofia preacute-socraacutetica O meacutetodo con-

siste fundamentalmente em deixar de lado por um instante os testemunhos diretos ou

indiretos e procurar imaginar aquilo que os referidos filoacutesofos teriam provavelmente

(likely) dito ou natildeo dadas as circunstacircncias histoacutericas em que se achavam Guthrie co-

menta assim os pressupostos teoacutericos do meacutetodo

Parte do pressuposto de que possuiacutemos certa familiaridade geral com outras escolas contemporacircneas e filoacutesofos individuais e com o ambi-ente de pensamento no qual os pitagoacutericos trabalharam Este conheci-mento geral da evoluccedilatildeo da filosofia grega daacute a algueacutem ndash eacute o que aqui se reivindica ndash o direito de fazer julgamentos pelos quais os pitagoacuteri-cos vamos dizer antes de Parmecircnides devem provavelmente ter sus-

51 Orig ldquoOne of the reasons why Cornfordrsquos reconstruction of early Pythagoreanism is so attractive is that is contrives to reconcile the religious with the scientific motiverdquo 52 Eacute certamente o caso de sublinhar que Cherniss (1977) apoiando o esforccedilo de Raven chega a dimi-nuir polemicamente o impacto da divisatildeo proposta por Cornford sobre os estudiosos ldquofora de Cam-bridgerdquo ldquoRaven was justified in feeling that the evidence does not support Cornfordrsquos interpretation which incidentally has never been so widely accepted outside of Cambridge as he appears to believerdquo (1977 376)

39

tentado a doutrina A e eacute impossiacutevel que tenham naquele estaacutegio do pensamento em que se encontravam jaacute terem desenvolvido doutrina B (Guthrie 1962 172)53

Esses pressupostos levam assim a postular a existecircncia de duas correntes da fi-

losofia em seu nascer a jocircnica e a itaacutelica54 Todos os autores de certa forma seratildeo as-

sim posicionados teoreticamente de um ou outro lado O apriorismo do meacutetodo eacute evi-

dente talvez por isso ainda que simpatizando por ele Guthrie sugere a ldquomaacutexima caute-

la possiacutevel em seu usordquo (1962 172) E com esta admoestaccedilatildeo encerra-se a preocupa-

ccedilatildeo metodoloacutegica tendente a controlar o evidente risco de circularidade das conclu-

sotildees55

Nessa linha metodoloacutegica com a intenccedilatildeo declarada de querer compreender o

pitagorismo preacute-platocircnico sob pena de caso contraacuterio natildeo entender Platatildeo Guthrie

afirma em geral a unidade do primeiro

Este pitagorismo preacute-platocircnico pode ser considerado em larga parte como uma unidade Poderemos verificar desenvolvimentos e dife-renccedilas como e quando quisermos mas seria pouco saacutebio esperar que estes diante do estado fragmentaacuterio de nosso conhecimento sejam suficientemente distinguiacuteveis ao ponto de permitir um trata-mento separado entre fases mais recentes e outras mais tardias (1962 147)56

53 Orig ldquoIt starts from the assumption that we possess a certain general familiarity with other contempo-rary schools and individual philosophers and with the climate of thought in which the Pythagoreans worked This general knowledge of the evolution of Greek philosophy gives one it is claimed the right to make judgments of the sort that the Pythagoreans let us say before the time of Parmenides are likely to have held doctrine A and that it is impossible for them at that stage of thought to have already evolved doctrine Brdquo 54 Eacute mesmo o caso de notar que essa divisatildeo remonta jaacute agrave claacutessica divisatildeo entre filosofia jocircnica e filosofia itaacutelica em Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae I 13) As δύο ἀρχαί os dois comeccedilos da filosofia satildeo identificados por Dioacutegenes Laeacutercio de um lado em Anaximandro para a vertente jocircnica da qual faratildeo parte Anaxiacuteme-nes Anaxaacutegoras Arquelau e enfim Soacutecrates do outro lado em Pitaacutegoras inventor do termo φιλοσοφία para a outra vertente aquela itaacutelica sendo este seguido pelo filho Telauge depois Xenoacutefanes Parmecircni-des Zenatildeo Leucipo Democrito ateacute Epicuro (D L Vitae I 13-14) Para uma discussatildeo historiograacutefica mais aprofundada dos modelos historiograacuteficos das origens da filosofia antiga cf Sassi (1994) e Cornelli (no prelo) 55 Para uma criacutetica veemente a este apriorismo metodoloacutegico no interior dos estudos sobre o pitagorismo cf Kahn (1974 163 n6) 56 Orig ldquoThis pre-Platonic Pythagoreanism can to a large extent be regarded as a unity We shall note developments and differences as and when we can but it would be unwise to hope that these in the fragmentary state of our knowledge are sufficiently distinguishable chronologically to allow the separate treatment of earlier and later phasesrdquo

40

Novamente como no caso de Cornford a distinccedilatildeo deveraacute ser definida no inte-

rior do pitagorismo preacute-platocircnico exclusivamente em termos cronoloacutegicos Poreacutem des-

sa forma a unidade teoacuterico-doutrinaacuteria do movimento ao menos no interior de suas

diferentes fases histoacutericas eacute garantida

Ao mesmo tempo em que provavelmente influenciados pelos esforccedilos da escrita

das grandes Histoacuterias da Filosofia do seacuteculo XX os estudiosos preocupavam-se em

compreender essa mesma unidade e portanto procurar dar conta da filosofia pitagoacuterica

como um todo comeccedilaram a surgir no panorama da criacutetica obras dedicadas ao estudo

de algumas aacutereas particulares e alguns problemas especiacuteficos da Quelleforshung do pi-

tagorismo eacute o caso certamente dos estudos sobre a poliacutetica das relaccedilotildees entre pitago-

rismo e Platatildeo e da compreensatildeo das relaccedilotildees entre o pitagorismo e o mundo religioso

em sua volta Infelizmente ndash eacute mesmo o caso de dizer ndash apoacutes a Segunda Guerra os dois

tipos de literatura dificilmente voltaratildeo a dialogar entre si os manuais de Histoacuteria da

Filosofia continuaratildeo seguindo em sua grande maioria a impostaccedilatildeo zelleriana en-

quanto os estudos monograacuteficos sobre o pitagorismo revelaratildeo complexidades ateacute hoje ndash

de maneira geral ndash desconhecidas aos primeiros

16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica

Uma especial atenccedilatildeo na histoacuteria da criacutetica foi dedicada agrave dimensatildeo poliacutetica do

pitagorismo desde que em 1830 a monografia de Krische afirmou peremptoriamente

o caraacuteter eminentemente poliacutetico da societas pitagoacuterica ldquoo escopo da Sociedade foi

meramente poliacutetico natildeo somente para restituir inicialmente o poder decaiacutedo dos aristo-

craacuteticos mas para consolidaacute-lo e amplificaacute-lordquo (Krische 1830 101)57

Estudos arqueoloacutegicos das evidecircncias numismaacuteticas jaacute revelavam no comeccedilo do

seacuteculo XX uma dominaccedilatildeo das cidades pitagoacutericas sobre todo o territoacuterio da Magna

Greacutecia o que foi comprovado pelos estudos de Kahrstedt sobre as moedas cunhadas por

Crotona e espalhadas por todo o territoacuterio especialmente apoacutes a derrota de Siacutebaris em

510 aEC (Kahrstedt 1918 186)58 A dominaccedilatildeo de Crotona sobre o restante das cidades-

57 Orig ldquoSocietatis scopus fuit mere politicus ut lapsam optimatum potestatem non modo in pristinum restitueret sed firmaret amplificaretquerdquo 58 Cf tambeacutem Seltman (1933) De Vogel (1957 323) e May (1966)

41

colocircnias doacutericas da Magna Greacutecia confirmaria as notiacutecias da influecircncia poliacutetica pitagoacute-

rica de fato grande parte dessas moedas apresenta siacutembolos pitagoacutericos59

E todavia conforme jaacute foi dito as primeiras abordagens historiograacutefico-

filosoacuteficas agrave poliacutetica pitagoacuterica dependem fortemente da influecircncia do ceticismo de Zel-

ler que por sua vez orientou a coleccedilatildeo de Diels dos Vorsokratiker ambos concorriam

para levar a maioria dos comentadores a considerar o tema da poliacutetica pitagoacuterica como

simplesmente acidental (Centrone 1996 196)

Eacute mister concordar com a opiniatildeo de que a relaccedilatildeo entre pensamento filosoacutefico e

praacutetica poliacutetica (reformista ou menos) na histoacuteria do pitagorismo desafiou a ingenuidade

dos classicistas (D S M 1943 79) ingenuidade esta que tenderia ndash se deixada agrave sua

sorte ndash a rejeitar as conexotildees poliacuteticas com base no argumento aprioriacutestico pela qual um

homem como Pitaacutegoras natildeo poderia estar envolvido nesse tipo de atividade (Minar

1942 15)

Portanto o problema do envolvimento poliacutetico dos pitagoacutericos apresenta um

quadro de questotildees multifacetado natildeo somente por causa das relaccedilotildees imbricadas entre

fontes antigas e mais recentes pela incerta cronologia da dominaccedilatildeo (e da derrota) dos

pitagoacutericos na Magna Greacutecia e pela pouco clara influecircncia de Pitaacutegoras sobre sua forma

mas tambeacutem quiccedilaacute principalmente pela dificuldade teoacuterica dos comentadores em arti-

cularem uma relaccedilatildeo entre filosofia e poliacutetica que jaacute a partir de Aristoacuteteles comeccedila a

ser vista como um tanto inapropriada

Nesse sulco hermenecircutico insere-se certamente a obra fundamental de Delatte

(1922a) Essai sur la politique pythagoricienne Este ao mesmo tempo em que realiza

um exaustivo estudo das fontes para a poliacutetica pitagoacuterica que o leva a confiar na plausi-

bilidade de efetiva accedilatildeo poliacutetica protopitagoacuterica em Crotona remete para um periacuteodo

sucessivo notadamente para o seacuteculo IV aEC seacuteculo de Arquitas e dos testemunhos de

Aristoxeno a imbricaccedilatildeo dessa atividade com as linhas fundamentais do pensamento

filosoacutefico ateacute laacute sustenta Delatte as primeiras koinoniacuteai pitagoacutericas procuravam mais

diretamente a ldquopaz interiorrdquo abstendo-se de uma accedilatildeo reformista ou mais em geral

muito envolvida nas instituiccedilotildees poliacuteticas de suas cidades ldquoa Sociedade deseja somente

59 Cf as moedas em Seltman (1933 76-80 100 118 144) e May (1966 157 167) De maneira especial a moeda n 28 (Seltman 1933 144) representando um homem barbado com a inscriccedilatildeo PUTHAGORES poderia ser um retrato do proacuteprio Pitaacutegoras e como tal jaacute foi utilizada por Guthrie para a capa do primeiro volume de sua History of Greek Philosophy (1962) Philip (1966 194) eacute todavia ceacutetico com a possibili-dade de a imagem representar o semblante real de Pitaacutegoras

42

a paz interior que lhe assegure sua proacutepria tranquilidade e mantenha as instituiccedilotildees e-

xistentes das quais ela se tornara mantenedorardquo (Delatte 1922a 21)60

Ademais se eacute verdade que a comunidade pitagoacuterica estaacute de certa forma envolvi-

da na atividade poliacutetica natildeo eacute necessariamente o caso de pensar que o proacuteprio Pitaacutegoras

estivesse envolvido diretamente com isso

Algueacutem poderia concluir que a poliacutetica de tendecircncias aristocraacuteticas que segundo Timeu marca o fim da histoacuteria da Sociedade natildeo seja um impulso de Pitaacutegoras como tambeacutem que a poliacutetica seja ao que parece estranha ao seu plano de reformas (Delatte 1922a 18)61

Por consequecircncia Delatte explica o fato central das revoltas democraacuteticas an-

tipitagoacutericas como o resultado natildeo tanto do compromisso poliacutetico da comunidade

como tal em sentido aristocraacutetico e conservador (pelo contraacuterio considerada mais

apropriadamente como uma forccedila moral) mas sim das atitudes de alguns indiviacute-

duos que se utilizavam de seu prestiacutegio e que acabaram arrastando-a para o conflito

em movimento reativo aos ataques que se seguiram e portanto na forma de autode-

fesa (1922a 19-20)

Jaeger (1928) por sua vez sustenta a tese em verdade originalmente zelleriana

de que o que diz respeito agrave poliacutetica pitagoacuterica resume-se em uma projeccedilatildeo do ideal tar-

dio da vida praacutetica por parte de autores como Aristoxeno e Dicearco o Pitaacutegoras de

Jaeger na mesma linha de Delatte seria mais um educador mestre de uma educaccedilatildeo

baseada na muacutesica e na matemaacutetica

Em seguida Von Fritz (1940) pergunta-se se de fato eacute possiacutevel afirmar que a

comunidade pitagoacuterica antiga controlasse politicamente e de forma direta o poder das

cidades da Magna Greacutecia Por meio de uma ldquoaustera investigaccedilatildeo das fontesrdquo (Tate

1942 74) identifica em Aristoxeno a testemunha mais confiaacutevel para uma reconstruccedilatildeo

da trajetoacuteria poliacutetica das comunidades pitagoacutericas e conclui ceticamente que

As tradiccedilotildees antigas natildeo fornecem a menor evidecircncia da existecircncia de algo que possa ser considerado como um poder real dos pitagoacutericos

60 Orig ldquola Socieacuteteacute deacutesire seulement la paix inteacuterieure qui lui assure sa propre tranquilliteacute et le mantien des instituitions existantes dont elle est devenue maicirctresserdquo 61 Orig ldquoOn peut done conlure que la politique agrave tendances aristocratiques qui selon Timeacutee caracteriacutese la fin de lacutehistorie de la Socieacuteteacute nacuteesta paacutes neacutee dacuteune impulsion de Pythagore et mecircme que la politique eacutetait selon toute vraisemblance eacutetrangegravere agrave son plan de reformesrdquo

43

em nenhuma cidade da Itaacutelia Meridional em qualquer eacutepoca (Von Fritz 1940 95)62

A posiccedilatildeo de Von Fritz portanto natildeo difere substancialmente em uacuteltima anaacuteli-

se daquela de seus predecessores o compromisso poliacutetico dos pitagoacutericos eacute algo que

deve ser atribuiacutedo mais diretamente a escolhas pessoais por vezes motivadas religiosa-

mente de alguns membros isolados da koinoniacutea e natildeo a uma accedilatildeo filosoacutefica do grupo

como tal

Eacute somente Minar (1942) em sua obra dedicada agrave poliacutetica pitagoacuterica originaacuteria

que primeiramente revela estar consciente de todos os perigos e as precompreensotildees

historiograacuteficas inerentes ao tratamento da questatildeo poliacutetica do pitagorismo No prefaacutecio

dessa obra declara imediatamente querer enfrentar aquele que considera o paradoxo

representado por uma escola filosoacutefica envolvida em atividades poliacuteticas

Que a sociedade pitagoacuterica tenha exercido uma influecircncia poliacutetica nas cidades do Sul da Itaacutelia nos seacuteculos sexto e quinto antes de Cristo tem sido um fato reconhecido Contudo o paradoxo de uma escola filosoacute-fica envolvida na atividade poliacutetica trouxe muita dificuldade para o ju-iacutezo histoacuterico sobre os fatos (1942 v)63

Minar natildeo esconde o fato de vaacuterios autores antigos afirmarem explicitamente

que os pitagoacutericos (e mesmo Pitaacutegoras) teriam exercitado formalmente o controle do

governo em Crotona e em outras cidades (Minar 1942 16) Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio

Jacircmblico Ciacutecero entre outros64 Desse modo opotildee-se ao argumento recorrente entre

seus predecessores de que a atividade poliacutetica era uma opccedilatildeo isolada de alguns mem-

bros por um lado o caraacuteter fortemente centralista da comunidade por outro o fato histoacute-

rico de a revolta ser dirigida contra a comunidade como um todo Ambas as tradiccedilotildees

indicariam como pouco provaacutevel que a opccedilatildeo poliacutetica se limitasse a uma atividade mar-

ginal de alguns poucos membros

62 Orig ldquoAncient tradition does not provide the slightest evidence for the existence of anything like a real rule of the Pythagoreans in any of the cities of Southern Italy at any timerdquo 63 Orig ldquoThat the Pythagorean Society exercised a political influence in the cities of southern Italy in the sixth and the fifth centuries BC has long been a recognized fact But the paradox of a philosophical school being involved in political activity has brought a certain amount of difficulty into the historical evaluation of the factsrdquo 64 D L Vitae VIII 3 Porph VP 20 21 54 Iambl VP 30 130 249 254 Cicero Tuscul 5410

44

O caraacuteter altamente centralizado da Sociedade conforme admite Von Fritz torna improvaacutevel que a atividade poliacutetica pitagoacuterica reduza-se simplesmente agravequela de membros individuais e o fato de que a revol-ta contra o governo no poder era a mesma coisa que um ataque contra a Sociedade sugere fortemente que a Sociedade pitagoacuterica era reco-nhecida como o verdadeiro governo em Crotona e na maioria das ci-dades da Magna Greacutecia (Minar 1942 18)65

O pitagorismo constituiria assim o verdadeiro poder dominante em diversas ci-

dades da Magna Greacutecia Caberaacute depois aos historiadores modernos em geral pouco

acostumados a essa estreita relaccedilatildeo entre filosofia e poliacutetica compreender a imbricaccedilatildeo

das duas dimensotildees ndash que Minar define como teoacuterica e praacutetica ndash do pitagorismo em uma

unidade dinacircmica

A parte menos convincente da leitura de Minar eacute provavelmente aquela que tenta

articular essas duas partes entre si fundamentalmente por acabar dando agrave componente

doutrinaacuteria da filosofia poliacutetica pitagoacuterica um peso muito inferior ao que se esperaria

(Minar 1942 95-132) reduzindo Pitaacutegoras e seu movimento a uma sociedade poliacutetica

marcada por certo oportunismo e pragmatismo66

Natildeo eacute obviamente por mero acaso que diversos estudiosos italianos interessa-

ram-se pelo pitagorismo e de maneira especial por sua dimensatildeo poliacutetica sem chegar

aos extremos chauvinistas de Capparelli (1941) diversos autores a comeccedilar por Ros-

tagni (1922) e pela revisatildeo da obra de Zeller feita por Mondolfo (1938) procuraram

articular as duas dimensotildees (miacutestica e cientiacutefica) em um complexo conjunto historiograacute-

fico em que a dimensatildeo poliacutetica ocupa um papel central O sentido dessa tradiccedilatildeo pode

ser compreendido com precisatildeo pela definiccedilatildeo que abre a obra claacutessica de Ferrero Sto-

ria del Pitagorismo nel mondo romano

O pitagorismo agrave prova dos fatos demonstrou-se algo maior e diferen-te de um abstrato fenocircmeno de cultura da manifestaccedilatildeo de um especi-

65 Orig ldquoThe highly centralized character of the Society which von Fritz recognizes makes it un-likely that Pythagorean political activity was merely that of individual members and the fact that a revolt against the government in power was the same thing as an attack against the Society or at least involved such an attack as an integral part strongly suggests that the Pythagorean Society was recognized as the real ruler in Croton and most of the cities of Magna Graeciardquo 66 Deve-se concordar aqui com De Vogel (1966 13) quando sugere que Minar concluiria que ldquoPythago-ras was rather a shrewd politician an aristocratic reactionary at a time of rising democracy ndash and that all this had nothing to do with philosophyrdquo Minar (1942 99) parece creditar agrave doutrina poliacutetica dos pi-tagoacutericos a simples funccedilatildeo de uma superestrutura afirmando que ldquothe relationship between practice and theory will be seen most clearly through an analysis of the doctrinal superstructure which this group built up about its political activityrdquo

45

al endereccedilo religioso-dogmaacutetico ou enfim de mera expressatildeo inte-lectualiacutestica Esse foi se natildeo estamos errados notadamente a expres-satildeo de um fato social e poliacutetico conectado a uma estrutura permanente do mundo antigo foi a expressatildeo caracteriacutestica de uma organizaccedilatildeo dos intelectuais que respondia agraves exigecircncias de um grupo dominante de uma eleita poliacutetica a qual em um primeiro momento como as teo-cracias identificou-se e foi uma soacute realidade com os mesmos intelec-tuais (Ferrero 1955 21)

A apropriaccedilatildeo italiana do pitagorismo tem suas origens jaacute em eacutepoca romana Um

breve excursus sobre essa tradiccedilatildeo pode mostrar claramente a profundidade da identifi-

caccedilatildeo eacutetnico-poliacutetica do pitagorismo com a cultura itaacutelica

Baseando-se na ambiguidade inerente ao termo ldquofilosofia itaacutelicardquo e utilizando-se

de uma variaccedilatildeo das lendas sobre Pitaacutegoras pela qual seria este filho de um tirreno isto

eacute de um etrusco Pitaacutegoras eacute considerado como um dos antepassados da cultura poliacutetica

filosoacutefica e religiosa de Roma67 O filoacutesofo sacircmio acaba assim por ser inscrito nas lis-

tas dos cidadatildeos romanos (Plinio Hist Nat XXXIV 26) e acreditado como mestre do

rei-sacerdote Numa Pompiacutelio (Plutarco Numa 8) Significativamente Cicero ao mes-

mo tempo em que quer dissipar o erro do patente anacronismo desse discipulado de

Numa acaba confirmando a tradiccedilatildeo patrioacutetica da qual este deriva

Considero que por admiraccedilatildeo aos pitagoacutericos ateacute o rei Numa foi iden-tificado pelos posteriores como pitagoacuterico Estes de fato conheciam a teoria e as regras de Pitaacutegoras e de seus antepassados haviam recebi-do a notiacutecia da equidade e sabedoria daquele rei mas ignorando a ida-de daqueles homens e as eacutepocas por causa da distacircncia temporal a-creditaram que este que se destacava por sabedoria fosse disciacutepulo de Pitaacutegoras (Cicero Tusc Disp IV 1-2)68

Em diversos passos ciceronianos os pitagoacutericos definidos como ldquoquase nossos

concidadatildeos eles que eram entatildeo chamados de filoacutesofos itaacutelicosrdquo (Cato Maior XXI

78) tornam-se um capiacutetulo central da gloriosa histoacuteria romana (Tusc Disput IV)69

Uma famosa passagem das Metamorfoses de Oviacutedio (XV 1-447) assim como outra da

67 O testemunho de Aristoxeno sobre o pai etrusco de Pitaacutegoras encontra-se entre outros em Plutarco Quaest Conv VIII 7 1 68 Orig ldquoQuin etiam arbitror propter Pythagoreorum admirationem Numam quoque regem Pytha-goreum a posterioribus existimatum Nam cum Pythagorae disciplinam et instituta cognoscerent regisque eius aequitatem et sapientiam a maioribus suis accepissent aetates autem et tempora igno-rarent propter vetustatem eum qui sapientia excelleret Pythagorae auditorem crediderunt fuisserdquo (Cicero Tusc Disp IV 1-2) 69 Orig ldquoincolae paene nostros qui essent italici philosophi quondam nominatirdquo (Cato Maior XXI 78)

46

Vida de Numa de Plutarco (I 8 e 11) reafirmam a conexatildeo entre Numa e Pitaacutegoras

consolidando dessa forma a tradiccedilatildeo anterior da romanidade e da italianidade de Pitaacute-

goras70

A proacutepria literatura filosoacutefico-teoloacutegica da Idade Meacutedia apesar de natildeo ter tido

acesso agraves Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio e Jacircmblico assim como a outras fontes

menores contudo manteve viva a tradiccedilatildeo de Pitaacutegoras Ambroacutesio lembra os ditos pi-

tagoacutericos e diversos placita Agostinho que inicialmente abundava em citaccedilotildees e refe-

recircncias a Pitaacutegoras e agrave filosofia pitagoacuterica acaba todavia voltando atraacutes e afirma ldquoeu

acreditava que natildeo houvesse erros na tal doutrina pitagoacuterica mas satildeo muitos e ateacute capi-

taisrdquo (Retr PL 32 col58-9)71 Tanto ele como tambeacutem Tertuliano e Latacircncio natildeo dei-

xam de lembrar os erros do samius sophista in primis ndash como natildeo podia ser diferente ndash

a teoria da metempsicose72

O Quattrocento italiano marca um franco revival da tradiccedilatildeo itaacutelica de Pitaacutegoras

na esteira da recuperaccedilatildeo do platonismo Nesse sentido a recuperaccedilatildeo das fontes latinas

exerce um papel fundamental Assim a partir da primeira Vida de Pitaacutegoras escrita por

Baldi em vulgar (1888 10) por meio da recuperaccedilatildeo da figura de Pitaacutegoras por Petrarca

(Triumphus fame III 7-8) haacute uma lenta apropriaccedilatildeo do pitagorismo Esta natildeo se limita

a um exerciacutecio literaacuterio mas alcanccedila tambeacutem uma dimensatildeo especulativa com Nicolau

de Cusa o erudito intelectual da Igreja Romana utiliza para sua teologia negativa a a-

ritmogeometria pitagoacuterica do Timeu e da Repuacuteblica A doutrina da trindade eacute tambeacutem

referida a Pitaacutegoras ldquoesta eacute aquela unidade trina que Pitaacutegoras primeiro entre todos os

filoacutesofos gloacuteria da Itaacutelia e da Greacutecia nos ensinou a adorarrdquo (Cusano 1972 68)73

Duas figuras intelectuais italianas de primeira ordem desse periacuteodo dedicam-se

ao pitagorismo Marciacutelio Ficino e Pico della Mirandola O primeiro procurando colocar

a Florenccedila dos Meacutedici no interior da histoacuteria intelectual ocidental como sucessora de

70 Tito Livio recorda nesse sentido um fato muito significativo foi achada em Roma em 181 EC uma caixa contendo livros que se pensavam ter sido escritos pelo proacuteprio Numa (Liv XL 29) Definidos pita-goacutericos dedicados a temaacuteticas religiosas e sapienciais foram queimados (sic) a mando das autoridades que temiam ameaccedilas agrave religiatildeo oficial 71 Orig ldquome credidisse nullos errores in Pythagorica esse doctrina cum sint plures iidemque capitalesrdquo (August Retr PL 32 col 58-9) 72 Cf para os autores citados as seguintes paacuteginas Tertuliano De Anima PL 2 col 697-701 Latacircncio Div Inst PL 6 col 405-9 e De vita beata PL 6 col 777 Agostinho Contra Acad PL 32 col 954 Ambroacutesio In salm PL 15 col 1275 73 Orig ldquoQuesta egrave quella unitagrave trina che Pitagora primo tra tutti i filosofi gloria drsquoItalia e di Grecia ci ha insegnato ad adorarerdquo

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Atenas (e Roma) e a si mesmo como continuador da Academia empreende o projeto de

traduccedilatildeo do corpus platocircnico fortemente influenciado pela exegese neopitagoacuterica Dessa

forma jaacute na sua introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Plotino Ficino resume o lugar que reserva

para Pitaacutegoras nessa histoacuteria

A sagrada filosofia nasceu sob Zoroastro entre os Persas sob Mercuacute-rio entre os Egiacutepcios tanto aqui como laacute coerente e conforme com si mesma cresceu depois entre os Traacutecios sobre Orfeu e Aglaofemo foi adolescente entre os gregos e os itaacutelicos sob Pitaacutegoras e tornou-se adulta em Atenas sob o divino Platatildeo (Ficino 1576 1537)74

Em outro passo em que reconstroacutei uma genealogia da filosofia antiga ou me-

lhor da prisca theologia que antecipa a filosofia propriamente dita e parte de Hermes

Trismegisto Pitaacutegoras aparece novamente em primeiro plano

[A Hermes] seguiu Orfeu ao qual foram atribuiacutedas as partes seguintes da teologia antiga a Aglaofemo que havia sido iniciado aos ritos sa-grados de Orfeu sucedeu depois na teologia Pitaacutegoras do qual Filolau foi disciacutepulo o mesmo que foi preceptor de Platatildeo Portanto uma uacuteni-ca seita de filosofia antiga em todo lugar coerente consigo mesma foi instituiacuteda por seis teoacutelogos em uma ordem maravilhosa que eacute inaugu-rada por Mercuacuterio e se cumpre plenamente com o divino Platatildeo (Fici-no 1576 1836)75

O lugar de Pitaacutegoras como priscus philosophus nesse panorama articulado por

sabedorias outras pressupotildee a mesma visatildeo universalista que Pico della Mirandola de-

senvolveraacute em seguida a de uma articulaccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica com a Cabala os

Oraacuteculos Caldaacuteicos e a sabedoria aacuterabe Pico mestre da concoacuterdia preparava-se para

discutir em Roma novecentas proposiccedilotildees retiradas das mais diversas tradiccedilotildees sapien-

74 Orig ldquoDivina providentia volente videlicet omnes pro singulorum ingenio ad se mirabiliter revocare factum est ut pia quaedam philosophia quodam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consonas nutriretur deinde apud Thraces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et in Italos tandem vero a Divo Platone consumaretur Athenisrdquo (Ficino 1576 1537) 75 Trata-se aqui do Argumentum Marsilij Ficini Florentini in librum Mercurij Trismegisti ad Cosmum Medicem isto eacute da carta dedicatoacuteria dirigida a Cosimo dersquoMedici em ocasiatildeo da traduccedilatildeo dos primeiros 14 opuacutesculos do Corpus Hermeticus Assim no original ldquocum secutus Orpheus secundas antiquae theo-logiae partes obtinuit Orphei sacris initiatus est Aglaophemo successit in theologia Pythagoras quem Philolaus sectatus est divi Platonis nostril praeceptor Itaque una priscae theologiae undique sibi conso-na secta ex theologis sex miro quodam ordine conflata est exordia sumens a Mercurio a divo Platone penitus absolutardquo O que Ficino aqui quer realizar foi definido de forma instigante como uma arqueologia do saber em busca dos textos e dos autores de referecircncia mais antigos para explicar a sucessiva histoacuteria do pensamento (Tambrun-Krasker 1999 20-22)

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ciais quando com a urgecircncia que todo pesquisador bem conhece pede desesperadamen-

te a Ficino que lhe empreste o coacutedigo que continha a Vida Pitagoacuterica de Jacircmblico

ldquoneste momento muito necessaacuterio aos meus estudosrdquo (hoc tempore ad mea studia plu-

rimum necessarium ndash 1572 361) exatamente por considerar o pitagorismo como a pon-

te principal para a sabedoria antiga oriental

A economia dessas paacuteginas natildeo permitiraacute seguir mais de perto este caminho itaacute-

lico da tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo76 O que interessa mais imediatamente anotar aqui eacute

que modernos historiadores italianos recuperam essa tradiccedilatildeo de estudos sobre a poliacutetica

pitagoacuterica no interior dos estudos arqueoloacutegicos e histoacutericos sobre a Magna Greacutecia co-

mo o caso de Prontera (1976 1977) Mele (1982 2000 2007) e Musti (1990) Contudo

isso vale tambeacutem para historiadores da filosofia entre eles aleacutem do jaacute citado Ferrero

(1955) destacam-se os estudos a este respeito de Casertano (1988 e 2009) e os soacutebrios

capiacutetulos dedicados ao tema por Centrone (1996) Especialmente relevante eacute o contribu-

to de Musti (1990) que evidencia nas fontes sobre as revoltas antipitagoacutericas uma carac-

teriacutestica de acronia que permitiria resolver a espinhosa questatildeo cronoloacutegica (aleacutem de

topograacutefica) das revoltas

A narraccedilatildeo dos fatos apresenta-se com uma viscosa continuidade [] Agrave anaacutelise atenta daquilo que se tem por detraacutes esta narraccedilatildeo revela uma modalidade particular (bem mais que uma simples contradiccedilatildeo) do formar-se das tradiccedilotildees pitagoacutericas e sobre o pitagorismo (Musti 1990 38)77

A soluccedilatildeo proposta por Musti eacute a de considerar que as condiccedilotildees culturais nas

quais se desenvolve a literatura pitagoacuterica natildeo criavam as condiccedilotildees para uma verifica-

ccedilatildeo criacutetica das fontes em relaccedilatildeo agraves patentes contradiccedilotildees cronoloacutegicas e topograacuteficas

notadamente Musti indica no sectarismo na diaacutespora dos pitagoacutericos e na circulaccedilatildeo

oral das memoacuterias os motivos centrais dessa acronia da tradiccedilatildeo (1990 39)

76 Eacute certamente o caso para isso de seguir o percurso bem traccedilado por Casini (1998) entre outros Para a influecircncia do pitagorismo sobre a arte e a arquitetura da Europa renascentista cf agora a ampliacutessima monografia de Joost-Gaugier (2009) que concorda com a primazia italiana no revival pitagoacuterico acima descrito ldquothe enlivening inspiration of Pythagoreanism spread primarly from Italy where interest in ancient works was at first most intense to the rest of Europerdquo (2009 240) 77 Orig ldquoIl racconto dei fatti si presenta con una vischiosa continuitagrave [] Allacuteanalise attenta di quello che c`egrave dietro questo racconto rivela un modo particolare (assai piugrave che una occasionale contraddizione) di formarsi delle tradizioni pitagoriche e sul pitagorismordquo

49

Um capiacutetulo a parte merecem as tentativas de Rostagni (1922) antes e de De

Vogel (1964) posteriormente de creditar validade historiograacutefica agrave definiccedilatildeo do papel

poliacutetico do proacuteprio Pitaacutegoras aos ceacutelebres quatro discursos poliacuteticos que teria proferido

quando de sua chegada em Crotona A histoacuteria da tradiccedilatildeo e da criacutetica moderna desses

quatro loacutegoi eacute extremamente significativa para a compreensatildeo da tentativa de negaccedilatildeo

da relevacircncia da poliacutetica pitagoacuterica da qual se falava

A redaccedilatildeo completa dos quatro discursos referida por Porfiacuterio (VP 18) citando

Dicearco eacute presente em Jacircmblico (VP 37-57) que por sua vez devia ter como fontes

Timeu provavelmente via Apolocircnio de Tiana78 Rostagni (1922) concentrado em um

escoacutelio de Antiacutestenes ao primeiro verso da Odisseacuteia a propoacutesito da polytropiacutea de Ulis-

ses no interior de uma interessantiacutessima (e ainda pouco explorada) hipoacutetese de trabalho

que conecta o pitagorismo agraves origens da retoacuterica (de maneira especial a Goacutergias) empe-

nha-se em conferir confiabilidade ao testemunho de Dicearco sobre os loacutegoi de Pitaacutego-

ras A intenccedilatildeo declarada eacute a de superar a tese claacutessica de Rohde mencionada anterior-

mente pela qual a tradiccedilatildeo teria sido inventada por Dicearco que assim teria criado a

figura de um Pitaacutegoras educador poliacutetico como modelo anacrocircnico da vida praacutetica peri-

pateacutetica Dessa criaccedilatildeo derivariam depois tanto os testemunhos de Timeu-Apolocircnio

quanto a redaccedilatildeo dos discursos em Jacircmblico (1871 561 1872 27) A essa tese Ros-

tagni (1922 151) opotildee a ldquoevidecircnciardquo de um testemunho de Antiacutestenes relativo agrave tradi-

ccedilatildeo dos discursos de Pitaacutegoras

Antiacutestenes diz que Homero nem louva nem critica Ulisses chamando-o polyacutetropos [] Por esse motivo deu a Ulisses o epiacuteteto de polyacutetropos pois sabia conversar com os homens de muitas maneiras Assim narra-se que Pitaacutegoras convidado a proferir discursos agraves cri-anccedilas compocircs para elas discursos infantis (loacutegoi paidikoiacute) e para as mulheres outros adequados agraves mulheres e para os arcontes arcoacutenticos e para os efebos efeacutebios Pois encontrar o tipo de sabedoria conveni-ente para cada um eacute proacuteprio da sapiecircncia Ao contraacuterio eacute sinal de ig-noracircncia utilizar-se de uma soacute forma de discurso (monotroacutepos toucirc loacute-gou) com aqueles que estatildeo variavelmente dispostos (Schol In Hom Odyss I 1 50-63)79

78 Bertermann (1913) Zucconi (1970) Centrone (1996) Brisson e Segonds (1996) 79 Orig ldquo οὐκ ἐπαινεῖν φησιν Ἀντισθένης Ὅmicroηρον τὸν Ὀδυσσέα microᾶλλον ἢ ψέγειν λέγοντα αὐτὸν ldquoπολύ-τροπονrdquo []διὰ τοῦτό φησι τὸν Ὀδυσσέα Ὅmicroηρος σοφὸν ὄντα πολύτροπον εἶναι ὅτι δὴ τοῖς ἀνθρώποις ἠπίστατο πολλοῖς τρόποις συνεῖναι οὕτω καὶ Πυθαγόρας λέγεται πρὸς παῖδας ἀξιωθεὶς ποιήσασθαι λόγ-ους διαθεῖναι πρὸς αὐτοὺς λόγους παιδικοὺς καὶ πρὸς γυναῖκας γυναιξὶν ἁρmicroοδίους καὶ πρὸς ἄρχοντας ἀρχοντικοὺς καὶ πρὸς ἐφήβους ἐφηβικούς τὸν γὰρ ἑκάστοις πρόσφορον τρόποντῆς σοφίας ἐξευρίσκειν

50

Sua soluccedilatildeo pressupotildee a compreensatildeo de uma genealogia do loacutegos e da retoacuterica

que remonta suas origens ao pitagorismo

Eacute muito uacutetil considerar que a tradiccedilatildeo acolhida por Aristoacuteteles e pela criacutetica alexandrina atribuia a Empeacutedocles e ateacute mesmo ao proacuteprio Pi-taacutegoras a invenccedilatildeo da arte retoacuterica Esta tradiccedilatildeo ndash que ateacute hoje eacute considerada vazia ndash possui um fundamento real na medida em que a Empeacutedocles e aos pitagoacutericos deviam remontar as experiecircncias e os preceitos relativos ao valor da psicagoacutegico da palavra os mesmos que depois formaram a base da teacutechne de Goacutergias (Rostagni 1922 149)80

Assim o escoacutelio e os loacutegoi acima citados confirmariam essa vocaccedilatildeo poliacutetico-

retoacuterica do pitagorismo em estreita conexatildeo com um modelo bastante pragmaacutetico de

relaccedilatildeo entre poliacutetica e filosofia como aquele da primeira sofiacutestica

De Vogel (1966) empenha-se em amplo estudo dos quatro loacutegoi em busca da de-

finiccedilatildeo de uma imagem preacute-zelleriana ndash a terminologia eacute de Thesleff (1968 298) ndash de

Pitaacutegoras como educador poliacutetico no interior todavia de uma visatildeo dele que seja oni-

compreensiva das diversas imagens transmitidas pela histoacuteria Diferentemente do ho-

mocircnimo e contemporacircneo trabalho de Philip (1966) que confia unicamente a Aristoacutete-

les a construccedilatildeo de uma imagem de Pitaacutegoras e do pitagorismo antigo centrada no ensi-

no moral De Vogel reforccedila os argumentos jaacute citados de Rostagni baseando-se suposta-

mente em argumentaccedilatildeo de Thesleff (1961) segundo a qual haveria uma continuidade

ininterrupta da escola pitagoacuterica no sul da Itaacutelia desde o iniacutecio ateacute o seacuteculo IV aEC81

Essa continuidade permitiria considerar como relevante parte do material das Vidas he-

leniacutesticas e ndash certamente ndash devem ser assim pensados os testemunhos da atividade poliacute-

σοφίας ἐστίνmiddot ἀmicroαθίας δὲ τὸ πρὸς τοὺς ἀνοmicroοίως ἔχοντας τῷ τοῦ λόγου χρῆσθαι microονοτρόπῳrdquo (Schol In Hom Odyss I 1 50-63 Dindorf) 80 Orig ldquoEacute assai utile considerare che la tradizione accolta da Aristotele e dalla critica alessandrina attribuiva ad Empedocle e perfino a Pitagora stesso lrsquoinvezione dellrsquoarte retorica Questa tradizione ndash che fino ad oggi si considera vacua ndash ha un reale fondamento nel senso che ad Empedocle e ai Pitagorici dovevano risalire gli esperimenti e precetti riguardanti il valore psicagogico della parola che formarono poi la base della teacutechne de Goacutergiasrdquo E ainda segundo Rostagni o surgimento da retoacuterica ldquo rappresentava unrsquoevoluzione verificatasi nel seno stesso del pitagorismo pel naturale procedere della scienza e dello spirito grecordquo (1922 169) 81 Ainda que Thesleff em sua resenha ao livro de De Vogel natildeo reconheccedila ter afirmado esta continuida-de ldquo[De Vogel] account of the argumentation in my Introduction (1961) is however somewhat mislea-ding For instance I did not argue as would appear from d V p 28 ff that the Pythagorean school continued to live on in Southern Italy from the end of the 4th century Certainly there was a break in the tradition And I did not lay stress on the evidence of the pentagramsrdquo (Thesleff 1968 300 nI)

51

tica de Pitaacutegoras fornecidos pelos loacutegoi As criacuteticas contra essa lectio de Rostagni e De

Vogel natildeo demoraram (Thesleff 1968 Kerferd 1965 e Feldman 1968) paralelos com

apoacutecrifos doacutericos e outros sinais textuais indicam imediatamente uma necessaacuteria pru-

decircncia no tratamento das conclusotildees de De Vogel O que mais importa talvez eacute aquilo

sublinhado por Centrone (1996) isto eacute a existecircncia nas fontes de sinais dessa ativida-

de poliacutetico-retoacuterica independentemente da antiguidade ou menos dos loacutegoi

Um nuacutecleo originaacuterio historicamente confiaacutevel confirmado inclusive por alguns acenos agrave histoacuteria local e agrave topografia de Crotona assim como um reflexo histoacuterico da organizaccedilatildeo societaacuteria da aristocracia arcaica tem-se na riacutegida divisatildeo de grupos sociais aos quais Pitaacutegoras manteacutem discursos separadamente (coisa que eacute atestada por todas as fontes) (Cen-trone 1996 31)82

De Vogel (nas pegadas de Rostagni) certamente contribui para recolocar no de-

vido lugar no interior da literatura histoacuterico-filosoacutefica a discussatildeo sobre a dimensatildeo

poliacutetica do pitagorismo desde suas origens Com uma vantagem comparativa inestimaacute-

vel a de obrigar daqui para frente a consideraacute-la como parte integrante de uma ima-

gem complexa articulada juntamente com as dimensotildees cientiacutefica e religiosa do pitago-

rismo

17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica

A histoacuteria da criacutetica dedicou-se desde o comeccedilo tambeacutem agrave anaacutelise da imagem

do pitagorismo antigo que resulta das fontes indiretas isto eacute tanto das pretensas polecirc-

micas antipitagoacutericas de autores contemporacircneos como das influecircncias e das referecircn-

cias de autores posteriores ao movimento (Zeller e Mondolfo 1938 313-364)

Nessa busca a obra de Tannery (1887b ) eacute certamente o primeiro passo sua tese

central eacute que a seccedilatildeo da doacutexa do Poema de Parmecircnides seria um desenvolvimento ar-

gumentativo dedicado agrave refutaccedilatildeo da cosmologia pitagoacuterica Tannery parte da observa-

82 Orig ldquoun nucleo originario storicamente attendibile confermato peraltro da alcuni accenni alla storia locale e alla topografia di Crotone cosigrave come un riflesso storico dellrsquoorganizzazione societaria dellrsquoaristocrazia arcaica si ha nella rigida divisione dei gruppi sociali ai quali Pitagora tiene discorsi separatamente (cosa che egrave attestata da tutte le fonti)rdquo

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ccedilatildeo pela qual no comeccedilo da seccedilatildeo da doacutexa no Poema Parmecircnides natildeo poderia senatildeo

referir-se aos pitagoacutericos

Jaacute disse que o proacutelogo de Parmecircnides sobre a opiniatildeo (v 113-121) nos joga em pleno pitagorismo sobretudo o uacuteltimo verso parece-me digno de atenccedilatildeo Parmecircnides quer fazer conhecer a ciecircncia tal qual eacute pro-fessada por seus contemporacircneos mas na Itaacutelia somente os pitagoacuteri-cos gozam de uma reputaccedilatildeo de ciecircncia Pelo fato de natildeo termos pro-vas decisivas de que o Eleata preocupa-se com os Jocircnicos que nos a-chamos no direito de pensar que natildeo visa a outros senatildeo os Itaacutelicos (Tannery 1887b 226)83

Da mesma forma a polecircmica de Zenatildeo (como tambeacutem a de Xenoacutefanes antes)

seria dirigida diretamente contra a teoria dos nuacutemeros pitagoacutericos pois este ldquotira conse-

quecircncias totalmente novas e notadadamente aquelas sobre a unidade a continuidade a

imobilidade do universo contradizem as doutrinas dos pitagoacutericosrdquo (Tannery

1887b250)84 O ponto central da discordacircncia estaria na definiccedilatildeo do que seria um pon-

to

Entatildeo qual foi o ponto baixo reconhecido por Zenatildeo nas doutrinas pi-tagoacutericas de seu tempo Como as apresenta como sendo uma afirma-ccedilatildeo da pluralidade das coisas A soluccedilatildeo nos eacute dada de uma famosa definiccedilatildeo do ponto matemaacutetico definiccedilatildeo ainda claacutessica na eacutepoca de Aristoacuteteles mas agrave qual os historiadores natildeo deram muita atenccedilatildeo Para os pitagoacutericos o ponto eacute a unidade que tem uma posiccedilatildeo ou dito de outra maneira a unidade considerada no espaccedilo Resulta imediata-mente desta definiccedilatildeo que o corpo geomeacutetrico eacute uma pluralidade so-ma de pontos da mesma forma como o nome eacute uma pluralidade soma de unidades No entanto essa proposta eacute absolutamente falsa [hellip] (Tannery 1887b 250 grifo do autor)85

83 Orig ldquoJrsquoai deacutejagrave dit que le deacutebut de Parmeacutenide sur lrsquoopinion (v 113-121) nous jette en plein pythagorisme Le dernier vers surtout me parait digne drsquoattention Parmeacutenide veut faire connaicirctre la science telle que la professaient ses contemporains mais en Italie seuls les pythagoriens avaient une reacuteputation de science Tant que nous nrsquoaurons pas de preuve deacutecisive que lrsquoEacuteleacuteate se preacuteoccupe des Ioni-ens nous axons droit de penser qursquoil ne vise que les Italiquesrdquo 84 Orig ldquoil tirait des conseacutequences toutes nouvelles et notamment celles sur lrsquouniteacute la continuiteacute lrsquoimmobiliteacute de lrsquounivers contre-disaient les doctrines pythagoriennesrdquo 85 Orig ldquoQuel eacutetait donc le point faible reconnu par Zenon dans les doctrines pythagoriennes de son temps de quelle faccedilon le preacutesente- t-il comme eacutetant une affirmation de la pluraliteacute des choses La clef nous est donneacutee par une ceacutelegravebre deacutefinition du point matheacutematique deacutefinition encore classique au temps dAristote mais que les historiens nrsquoont paacutes consideacutereacutee assez attentivement Pour les pythagoriens le point est lrsquouniteacute ayant une position ou autrement luniteacute consideacutereacutee dans lespace Il suit immeacutediatement de cette deacutefinition que le corps geacuteomeacutetrique est une pluraliteacute somme de points de mecircme que le nombre est une pluraliteacute somme drsquouniteacutes Or une telle proposition est absolument fausse []rdquo

53

Essa posiccedilatildeo pitagoacuterica passou a ser chamada de atomismo numeacuterico e encontra

diversas aproximaccedilotildees com o atomismo dos seacuteculos V e IV aEC86

Segundo Tannery (1887b 251) o sucesso de Zenatildeo teria sido a tal ponto avas-

salador que os pitagoacutericos nem sequer puderam esboccedilar alguma tentativa de contesta-

ccedilatildeo87

O problema dessa reconstruccedilatildeo eacute que carece em boa parte de fundamentaccedilatildeo

histoacuterica Certamente devemos concordar com Burkert quando sugere que agrave imagem

de um diaacutelogo ndash todo preacute-socraacutetico ndash entre o pitagorismo e outras escolas apesar de

muito tentador faltam bases textuais soacutelidas

Dessa forma pode ser construiacutedo um capiacutetulo tentador da histoacuteria da filosofia massas erraacuteticas e cascalho inidentificaacutevel unem-se em uma estrutura abrangente A suspeita interaccedilatildeo entre eleatas e pitagoacutericos em particular torna-se um diaacutelogo vivo Parmecircnides o pitagoacuterico a-poacutestata configura seu proacuteprio sistema em oposiccedilatildeo agravequele da escola em resposta os pitagoacutericos revisam suas teorias apenas em tempo pa-ra ser submetidas a novos ataques por parte de Zenatildeo isso os obriga a empreender uma nova revisatildeo[] (sic) Essa estrutura no entanto re-pousa sobre uma base precaacuteria (Burkert 1972 278)88

De fato ainda que seja bastante provaacutevel que outros pensadores da Magna Greacute-

cia tenham recebido forte influecircncia pitagoacuterica uma soacutelida abordagem histoacuterica natildeo

pode se basear em probabilidades e plausibilidade pois ldquounicamente um estudo meticu-

loso da evidecircncia interna e externa pode levantar esta possibilidade para um patamar de

probabilidade ndash para natildeo dizer de certezardquo (Burkert 1972 280)89

Ainda que marcado pelas imprecisotildees anteriormente indicadas esse primeiro

passo tornou possiacutevel natildeo somente trazer para a discussatildeo sobre a Quellenforshung di-

86 Para uma discussatildeo mais geral da relaccedilatildeo do pitagorismo com Demoacutecrito e o atomismo cf Zeller e Mondolfo (1938 332-335) Alfieri (1953 30-54) Gemelli (2007a 68-90) 87 Tanto Cherniss (1935 215) quanto Lee (1936 34104) seguem as linhas-mestras da interpretaccedilatildeo de Tannery da polecircmica zenoniana 88 Orig ldquoIn this way a tempting chapter of the history of philosophy may be built erratic boulders and unidentifiable gravel coalesce into a comprehensive structure The suspected interaction of the Eleatics and Pythagoreans in particular becomes a living dialogue Parmenides the apostate Pythagorean sets up his own system in opposition to that of the school in response the Pythagoreans revise their theories only to be subjected to new attacks by Zeno this forces them to undertake further revision [] (sic) This structure however rests on a shaky foundationrdquo 89 Orig ldquoonly meticulous study of the internal and external evidence can raise this possibility to a prob-ability-to say nothing of certaintyrdquo Cf Casertano (2007b 4) para um exemplo de discussatildeo da influecircncia pitagoacuterica sobre Parmecircnides

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versos textos antigos como tambeacutem comeccedilar a colocar em questatildeo a presunccedilatildeo do tes-

temunho uacutenico de Aristoacuteteles Natildeo obstante a importacircncia da tese de Tannery faz que

de Kranz (Diels-Kranz 1951) ateacute Raven (1948) a maioria dos comentadores se propo-

nha seguir um diaacutelogo entre eleatismo e pitagorismo utilizando-se das fontes mais anti-

gas para isso90

Acenou-se haacute pouco a presunccedilatildeo de validade do testemunho uacutenico de Aristoacutete-

les Um papel central nessa reavaliaccedilatildeo do testemunho aristoteacutelico sobre os preacute-

socraacuteticos (e depois sobre Platatildeo) eacute desempenhado certamente pelos trabalhos de Cher-

niss (1935 1944) por meio de um agudo trabalho sobre as fontes ainda hoje insupera-

do Cherniss chega a concluir jaacute em 1935 que

Aristoacuteteles natildeo estaacute em nenhum dos trabalhos que possuiacutemos procu-rando fornecer um relatoacuterio da filosofia mais antiga Ele estaacute usando essas teorias como interlocutoras em um debate artificial que ele pre-para para que conduza lsquoinevitavelmentersquo agraves suas proacuteprias conclusotildees (Cherniss 1935 xii)91

Cherniss dessa forma analisa os procedimentos historiograacuteficos de Aristoacuteteles

em busca de uma soluccedilatildeo ao problema central que o corpus constitui para a reconstru-

ccedilatildeo da filosofia preacute-socraacutetica apesar de pouco confiaacutevel em sua reconstruccedilatildeo das teorias

dos primeiros filoacutesofos suas constantes contradiccedilotildees omissotildees erros e desentendimen-

tos Aristoacuteteles eacute ainda a principal senatildeo a uacutenica fonte para o estudo dos preacute-socraacuteticos

(1935 347-350) Dessa forma caberaacute ter aquele que Cherniss chama de ldquoo maior cui-

dadordquo (the greatest care) na anaacutelise do material aristoteacutelico

Com esse intuito Cherniss iraacute desenvolver uma metodologia de abordagem ao

texto que lhe permitiraacute definir procedimentos para uma espeacutecie de controle de vieacutes (para

utilizar uma terminologia estatiacutestica) que busca identificar fatores de confundimento

permitindo definir um uso acertado isto eacute adequado do ponto de vista historiograacutefico

do corpus dois tipos de omissotildees sete fontes comuns de erros etc (1953 351-358) 90 Cf Diels-Kranz (1951 226) Zeller e Mondolfo (1938 326 ndash na nota sobre as fontes de Mondolfo pois Zeller assim como Gompertz (1893) natildeo concordava com isso) Burnet (1908 183) Rey (1933 183) Cornford (1939 I) Raven (1948 211) Contraacuterios a essa tese Reinhardt (1916 24 69 85) e Calogero (1932 28) consideram a seccedilatildeo da doacutexa como derivaccedilatildeo interna agrave proacutepria metafiacutesica de Parmecircnides 91 Orig ldquoAristotle is not in any of the works we have attempting to give a historical account of earlier philosophy He is using these theories as interlocutors in the artificial debates which he sets up to lead ldquoinevitablyrdquo to his own solutionsrdquo Cf tambeacutem Cherniss (1935 349-50 356-357) Jaacute Burnet (1908 56) havia comeccedilado a suspeitar das escolhas editoriais de Aristoacuteteles falando do costume deste de ldquoputting things in his own way regardless of historical considerationsrdquo

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Dois erros satildeo especialmente importantes por modelar profundamente toda a his-

toacuteria da criacutetica dos preacute-socraacuteticos O primeiro diz respeito agrave concepccedilatildeo de Aristoacuteteles de

que os preacute-socraacuteticos teriam fundamentalmente um uacutenico problema ao qual dedicaram

sua investigaccedilatildeo isto eacute o da mateacuteria que constitui todas as coisas que satildeo Ao contraacute-

rio olhando mais atentamente (o mesmo Aristoacuteteles natildeo negaria isso) eacute possiacutevel reco-

nhecer os preacute-socraacuteticos empenhados na tentativa de compreensatildeo e descriccedilatildeo de diver-

sos processos e problemas especiacuteficos O segundo erro depende do primeiro pois cons-

titui o motivo pelo qual Aristoacuteteles quis restringir a riqueza e a complexidade dos temas

tratados pelos preacute-socraacuteticos a uma uacutenica grundfrage ndash como diria Hegel (a citaccedilatildeo dele

como se veraacute natildeo eacute casual) no sistema aristoteacutelico a divisatildeo fundamental da natureza

daacute-se entre mateacuteria e forma E se Platatildeo eacute visto como um partidaacuterio exagerado da causa

formal o eacute exatamente por opor-se aos preacute-socraacuteticos dos quais constituiria a antiacutetese

Jogando assim um contra os outros Aristoacuteteles retalha para si mesmo o confortaacutevel lu-

gar de siacutentese resultado filosoacutefico do agocircn dos dois momentos anteriores a ele92

Eacute certamente o caso de anotar finalmente que a contribuiccedilatildeo de Cherniss para a

historiografia dos preacute-socraacuteticos eacute inquestionaacutevel ao ponto de ser possiacutevel considerar

que depois dele os estudos dos preacute-socraacuteticos tenham se tornado um luta incessante

com Aristoacuteteles ainda que certamente natildeo contra ele

Na esteira de Cherniss diversos comentadores poderatildeo em seguida concordar

com o fato de que ldquoAristoacuteteles eacute totalmente alheio agrave concepccedilatildeo moderna de histoacuteria da

filosofiardquo (Reale 1968 I 151) e considerar assim Aristoacuteteles como um testemunho ne-

cessaacuterio mas a ser tratado com todos os cuidados possiacuteveis93 Laks (2007 230) resume

a historiografia da filosofia preacute-socraacutetica apoacutes Cherniss como um processo de ldquodesaris-

totelizaccedilatildeo da escrita sobre as origens da filosofia gregardquo94 A economia destas paacuteginas

natildeo permite obviamente aprofundar como mereceria essa questatildeo da validaccedilatildeo do tes-

temunho aristoteacutelico como tal com suas consequecircncias para a historiografia da filosofia

em suas origens

92 Cherniss (1935 349) natildeo deixa de anotar a dependecircncia deste meacutetodo agocircnico e aporeacutetico de Aristoacutete-les de seus mestres indiretamente Soacutecrates mas sobretudo Platatildeo 93 Orig ldquoil moderno concetto di storia della filosofia egrave totalmente estraneo ad Aristotelerdquo Por outro lado Mansfeld afirma com razatildeo que os primeiros passos de uma historiografia da filosofia satildeo anteriores ao proacuteprio Aristoacuteteles podendo ser encontrados na literatura sofiacutestica ldquothe rudimentary beginnings of the historiography of Greek philosophy may be dated to the period of the Sophistsrdquo (Mansfeld 1990 27) 94 Orig ldquodeacutesaristoteacutelisation de lacuteeacutecriture des deacutebuts de la philosophie grecquesrdquo

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Cabe somente sublinhar como um novo marco para a questatildeo um recente artigo

de Collobert (2002) que pretendendo reabrir a questatildeo desafia a seu modo o consenso

estabelecido a partir Cherniss Collobert revela como Aristoacuteteles estaria seguindo ante

litteram em sua historiografia dos preacute-socraacuteticos os princiacutepios de uma lectio analiacutetica

(no sentido contemporacircneo de natildeo-continental) Por esse motivo agrave pergunta se Aristoacute-

teles deva ser considerado um historiador da filosofia ela continua respondendo ainda

que com diversos distinguos que natildeo Pois

Aristoacuteteles natildeo escreveu uma histoacuteria da filosofia em sentido moderno ou ao menos no sentido lsquocontinentalrsquo quando ele transmitiu os pen-samentos de seus predecessores Por essa razatildeo algueacutem poderia dizer com Wilamowitz que ldquonatildeo se deve culpar o historiador Aristoacuteteles pois Aristoacuteteles jamais foi ou quis ser um historiador (Collobert 2002 294-295)95

De fato Aristoacuteteles em sua Metafiacutesica no que diz respeito aos pitagoacutericos pa-

rece natildeo somente querer trataacute-los de certa forma separadamente em relaccedilatildeo aos outros

preacute-socraacuteticos (985b 23ss) mas tambeacutem em constante intenccedilatildeo polecircmica contra o pla-

tonismo compara-os o tempo todo com este uacuteltimo (Met 987a 29ss 989b 29ss 990a

27ss 996a 4s) dessa forma o pitagorismo torna-se mais uma ocasiatildeo para atacar os

argumentos platocircnicos (Met 1083b 8ss 1090a 30) do que um toacutepico de interesse per

se96

Porquanto essa aproximaccedilatildeo entre o pitagorismo e o platonismo obedeccedila em A-

ristoacuteteles a uma precisa estrateacutegia polecircmica a criacutetica ainda no interior do esforccedilo de

validaccedilatildeo das fontes indiretas sobre o pitagorismo tentou explorar as relaccedilotildees dos pita- 95 Orig ldquoAristotle did not write a history of philosophy in a modern sense or at least in a lsquocontinentalrsquo sense when he transmitted the thoughts of his predecessors For this reason one can say with U Wila-mowitz that lsquoone does not have to blame the historian Aristotle because Aristotle never was nor wanted to be an historianrsquordquo Agrave Collobert deve ser reconhecida a intenccedilatildeo de recolocar em termos mais atuais (os termos da querelle analiacutetico-continentais) a questatildeo Todavia grande parte de sua soluccedilatildeo hermenecircutica eacute ainda dependente do excelente trabalho de Cherniss (1935) como demonstra por exemplo a seguinte afirmaccedilatildeo deste em relaccedilatildeo aos testemunhos contidos no corpus aristoteacutelico ldquoone cannot safely wrench them away to use as building-blocks for a history of Presocratic philosophy There are no lsquodoxographi-calrsquo accounts in the works of Aristotle because Aristotle was not a doxographer but a philosopher seek-ing to construct a complete and final philosophyrdquo (Cherniss 1935 347) Eacute esta ainda uma boa descriccedilatildeo ante litteram do Aristoacuteteles analiacutetico da Collobert 96 Sobre a lectio aristoteacutelica do pitagorismo antigo seraacute o caso de voltar obviamente em seguida ao longo da tese a anotar seus problemas e sucessos Eacute suficiente por enquanto lembrar que tanto na Fiacutesica quanto no De Caelo Aristoacuteteles dedica alguns comentaacuterios agraves doutrinas cientiacuteficas dos pitagoacutericos assim como ndash na mesma Metafiacutesica (986a 12) ndash refere-se a uma mais exata discussatildeo sobre estes A referecircncia seria aos famosos dois livros (perdidos) que ele dedicara especificamente ao pitagorismo Para as fontes dessa tradiccedilatildeo e uma exaustiva discussatildeo historiograacutefica destas cf Burkert (1972 29)

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goacutericos com Platatildeo Para aleacutem das relaccedilotildees histoacutericas deste com o rei-filoacutesofo Arquitas

de Tarento como testemunharia entre outras fontes a proacutepria Carta VII (339d) uma jaacute

antiga tentativa de avaliaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos como fontes histoacutericas confiaacuteveis

levaria a aprofundar radicalmente a dependecircncia de Platatildeo em relaccedilatildeo aos pitagoacutericos

Tanto Burnet (1908) quanto Taylor (1911) por considerarem de fato os diaacutelogos platocirc-

nicos como testemunhos histoacutericos chegam a fazer diversos deles dependerem direta-

mente da influecircncia pitagoacuterica dessa forma o Soacutecrates do Feacutedon revela-se pitagoacuterico

defensor da metempsicose e da anamnese (Taylor 1911 129-177) enquanto o Timeu

apareceraacute como uma obra quase que completamente informada pelo pitagorismo (Bur-

net 1908 340ss)97

Obviamente os resultados dos esforccedilos sobre as fontes indiretas estatildeo bem longe

de serem consensuais De fato jaacute Frank (1923) ndash em direccedilatildeo totalmente contraacuteria ao

colocado acima e de certa forma radicalizando o ceticismo zelleriano ndash considera im-

possiacutevel qualquer tentativa de acessar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica antes de Platatildeo Sua obra

intitula-se significativamente Plato und die sogenannten Pythagoreer (ldquoPlatatildeo e os as-

sim chamados pitagoacutericosrdquo) pois apoia sua argumentaccedilatildeo de maneira muito decidida na

repetida referecircncia de Aristoacuteteles aos kalouacutemenoi pitagoacutericos segundo Frank Aristoacutete-

les estaria se referindo a pitagoacutericos do seacuteculo IV como Arquitas para aleacutem dos proacute-

prios acadecircmicos entre eles Espeusipo (Frank 1923 77) O pressuposto geral de Frank

eacute que natildeo se pode imaginar um pensamento cientiacutefico no mundo grego antes de Anaxaacute-

goras

Anaxaacutegoras foi o primeiro a formular o princiacutepio da ciecircncia moderna distinguindo em suas investigaccedilotildees oacuteticas a imagem-do-mundo sub-jetiva-psicoloacutegica pelo ponto-de-vista objetivo de um observador ab-soluto (1923 144)

Dessa forma tudo o que diz respeito aos pitagoacutericos deveraacute ser considerado in-

venccedilatildeo de Espeusipo e dos primeiros acadecircmicos98 Por consequecircncia tanto os frag-

97 Da mesma forma a tese doutoral de Cameron (1938) sugere uma base pitagoacuterica para a teoria da a-namnese 98 O debate que desde entatildeo marcou as tentativas de responder a essa postura radicalmente ceacutetica na interpretaccedilatildeo da expressatildeo οἱ καλούmicroενοι Πυθαγορείοι (Met 985b 23 989b 29) de Frank eacute muito am-plo Veja-se por exemplo a resposta de Cherniss (1959 37-38) sobre a interpretaccedilatildeo de καλούmicroενοι em Poliacutetica (1290b 40) Aristoacuteteles utiliza a mesma expressatildeo referida aos camponeses (οἱ καλούmicroενοι γεω-ργοί) por traacutes da expressatildeo natildeo eacute possiacutevel imaginar que Aristoacuteteles esteja levantando qualquer suspeita

58

mentos de Filolau como toda a teoria matemaacutetica deveratildeo ser reconduzidos para o periacute-

odo acadecircmico O hipercriticismo de filoacutelogos como Frank eacute confrontado veemente-

mente por Santillana e Pitts para eles Frank eacute o ponto de partida de uma escola de his-

toriadores que

Foram atraiacutedos para a companhia de vaacuterios filoacutelogos modernos que haviam caiacutedo na armadilha de aceitar alguns dos argumentos destruti-vos de Frank sem compreender a iacutentima dependecircncia destes de sua inaceitaacutevel alternativa (Santillana e Pitts 1951 112)99

Ao longo de todo o percurso historiograacutefico em busca das fontes indiretas sobre

o pitagorismo a lectio communis parece ter sido exatamente aquela de um ceticismo por

parti pris que revela de um lado certa postura todo-poderosa dos estudiosos de Platatildeo e

Aristoacuteteles que tendem a consideraacute-los como inventores de praticamente qualquer ideia

que tenha aparecido antes deles agrave custa de uma atenta anaacutelise das fontes preacute-socraacuteticas

por outro lado certa preguiccedila da pesquisa sobre as origens do pensamento grego que

prefere repetir os chavotildees manualiacutesticos a empenhar-se em uma atenta revisatildeo das praacuteti-

cas normais de pesquisa

18 De Burkert a Kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica

Uma verdadeira terceira-via para a criacutetica entre o ceticismo zelleriano (na ver-

satildeo extremizada por Frank) e uma excessiva confianccedila nas fontes que sempre assola os

estudiosos menos advertidos do pitagorismo eacute constituiacuteda pelo trabalho de Walter Bur-

kert dedicado ao pitagorismo Weisheit und Wissenschaft traduzido posterioremente por

sobre a existecircncia real de camponeses em geral Da mesma forma portanto as expressotildees do tipo οἱ καλ-ούmicroενοι Πυθαγορείοι deveratildeo ser entendidas como ldquodesignations in the currently designated senserdquo (38) 99 Orig ldquowere attracted by the company of various modern philologists who have been trapped into accepting some of Frankrsquos destructive arguments without noticing their intimate dependence upon his unacceptable alternativerdquo A alternativa agrave qual os autores se referem e que constitui um dos pontos fun-damentais da argumentaccedilatildeo de Frank eacute aquela entre uma origem grega e uma simples e tardia importaccedilatildeo oriental da matemaacutetica Frank optaria obviamente pela segunda Por consequecircncia ldquorelying on Frank these authors have dismissed the entire tradition about early Greek mathematics and supplanted it either with a most improbably late transference of Babylonian mathematics to Greece in the Vth centuryrdquo (San-tillana e Pitts 1951 112) Para uma resenha desta questatildeo cf Salas (1996) Thesleff (1961 45) reclama da veemecircncia de Santillana e Pitts por causa da ldquoridicularizaccedilatildeo irreverenterdquo de Frank por parte dos dois autores Estes de fato afirmaram que se quisermos ser coerentes com o hipercriticismo de Frank (1951 116) ldquowe may begin to suspect Frank himself of being an imaginary character in the lost dialogues of George Santayanardquo

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Minar (Burkert 1972) para o inglecircs e publicado em ediccedilatildeo revisada como Lore and Sci-

ence in Ancient Pythagoreanism Ponto de referecircncia obrigatoacuterio desde entatildeo para

qualquer percurso criacutetico dedicado ao estudo do pitagorismo a obra de Burkert revela

no mesmo processo de sua confecccedilatildeo o difiacutecil caminho da validaccedilatildeo das fontes a serem

utilizadas para apresentar a filosofia do pitagorismo No prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo de

Weisheit und Wissenschaft em 1962 Burkert revela fundamentalmente uma postura

ceacutetica em relaccedilatildeo agrave efetiva contribuiccedilatildeo do pitagorismo para os avanccedilos da matemaacutetica

grega antiga notadamente na questatildeo dos irracionais referindo a sabedoria dos nuacutemeros

pitagoacutericos a um ambiente intelectual preacute-cientiacutefico

Nesse periacuteodo de penuacutembra entre antigo e novo quando os gregos em um feito historicamente uacutenico estavam descobrindo a interpretaccedilatildeo racional do mundo e as ciecircncias naturais quantitativas Pitaacutegoras re-presenta natildeo a origem do novo mas a sobrevivecircncia ou o renascimen-to da sabedoria antiga preacute-cientiacutefica baseada na autoridade sobre-humana e expressa obligatio ritual A sabedoria do nuacutemero eacute muacuteltipla e mutaacutevel (Burkert 1972 Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde)100

Ao contraacuterio no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo inglesa dez anos depois Burkert eacute obrigado

a reconhecer que ndash em suas proacuteprias palavras ndash ldquoEu aprendi nestes anos [hellip] sobre a

questatildeo da descoberta do irracional e tomei uma posiccedilatildeo que eacute menos criacutetica da tradi-

ccedilatildeordquo101

Para Burkert em relaccedilatildeo agrave matemaacutetica existiria um profundo gap entre a ativi-

dade dos pitagoacutericos do seacuteculo V ndash relegada ao mundo dos acusmata e da numerologia

(ainda que se deva preferir em acircmbito acadecircmico o termo aritmologia conforme ob-

servado por Delatte 1915) ndash e aquela dos matemaacuteticos jocircnicos como Hipoacutecrates de

Quios Assim para Burkert (1972) o tipo de matemaacutetica dos primeiros pitagoacutericos in-

100 Orig ldquoIn that twilight period between old and new when Greeks in a historically unique achieve-ment were discovering the rational interpretation of the world and quantitative natural science Pytha-goras represents not the origin of the new but the survival or revival of ancient pre-scientific lore based on superhuman authority and expressed in ritual obligatio The lore of number is multifarious and chan-geablerdquo 101 Orig ldquoI have learned in these years [hellip] about the question of the lsquoDiscoveryrsquo of the irrational I have taken a stand which is less critical of the traditionrdquo Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste momento dar conta da ampla tradiccedilatildeo criacutetica sobre a contribuiccedilatildeo do pitagorismo para a matemaacutetica e sobre o desenvolvimento da teoria dos nuacutemeros no interior da filosofia pitagoacuterica Estudos claacutessicos da questatildeo satildeo os de Tannery (1887a 1887b) Becker (1957) Von Fritz (1945) e sobretudo Van der Waerden (1947-1949) Mais re-centemente podem-se conferir Huffman (1988 1993 2005) Zhmud (1989 1992 1997) Centrone (1996) Salas (1996) e Casertano (2009) Cf a seguir o capiacutetulo quarto para um desenvolvimento desta questatildeo

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cluindo aqueles do seacuteculo V (e portanto Filolau) de maneira alguma corresponderia ao

tipo de exerciacutecio dedutivo rigoroso de contemporacircneos como Hipoacutecrates de Quios e

Teodoro de Cirene aqui se trataria ao contraacuterio de um culto aos nuacutemeros no contexto

dos acusmata que a tradiccedilatildeo continuamente recorda e que poderaacute ser assim aproxima-

do mais facilmente agrave numerologia das culturas primitivas102

Burkert afirma serem as duas preocupaccedilotildees cientiacutefico-matemaacutetica e numeroloacute-

gica radicalmente distintas

Nuacutemero e ciecircncia matemaacutetica natildeo satildeo de maneira alguma equivalen-tes Nuacutemeros remetem em origem para as neacutevoas dos tempos preacute-histoacutericos mas a ciecircncia matemaacutetica propriamente natildeo surgiu mais cedo do que na Greacutecia do seacuteculo VI ou V As pessoas conheciam os nuacutemeros antes da matemaacutetica stricto sensu e foi na era preacute-cientiacutefica que surgiu o ldquomisticismo nuacutemeacuterico ou simbolismo numeacuterico ou numerologia que ainda hoje continua a exercer certa influecircncia Ningueacutem pode ignorar o fato de que esse tipo de coisa estava presente no pitagorismo Aristoacuteteles nomeia em primeiro lugar entre o omoio-mata que os pitagoacutericos acreditavam subsistir entre nuacutemeros e coisas a equaccedilatildeo de certos nuacutemeros com dikaiosucircne psychecirc kai nous e kairoacutes (Met 987b 27ff) e somente com um aleacutem disso acrescenta a teoria matemaacutetica da muacutesica (Burkert 1972 466) 103

Eacute preciso aqui notar que algo de muito significativo acontece na argumentaccedilatildeo

de Burkert O ceticismo de marca zelleriana continua inspirando o tratamento das fon-

tes uma atenta e precisa desconstruccedilatildeo da doxografia acaba por chegar ao descreacutedito de

grande parte desta como fonte direta por indicar claramente sua origem no interior da

Academia Plaacuteton pythagoriacutezei (Platatildeo pitagoriza) eacute o adaacutegio fundamental que acompa-

102 Natildeo faltaram revisotildees criacuteticas agrave postura ceacutetica de Burkert a respeito das fontes sobre a contribuiccedilatildeo dos pitagoacutericos agrave matemaacutetica Muitas delas seratildeo citadas nos capiacutetulos seguintes pois constituem um obstaacutecu-lo central para qualquer interpretaccedilatildeo do pitagorismo apoacutes 1972 Basta por ora lembrar a criacutetica sagaz que Von Fritz faz a ela em sua recensatildeo de Weisheit ldquoIt is not very good method to deny categorically the occurrence of an event the details of which are reported in a somewhat contradictory manner If this methodical principle is strictly and consistently applied it becomes possible to prove that no automobile accident ever happenedrdquo (Von Fritz 1964 461) 103 Orig ldquoNumber and mathematical science are by no means equivalent Numbers go back in origin to the mists of prehistoric times but mathematical science properly speaking did not emerge earlier than sixth- and fifth-century Greece People knew numbers before mathematics in the strict sense and it was in the pre-scientific era that the ldquonumber mysticismrdquo arose or ldquonumber symbolismrdquo or ldquonumerologyrdquo which continues even now to exert a certain influence No one could overlook the fact that this kind of thing was present in Pythagoreanism Aristotle names first of all among the omoiomata which the Py-thagoreans thought subsisted between numbers and things the equation of certain numbers with dikai-osucircne psychecirc kai nous and kairoacutes (Met 987b27ff) and only with a ldquofurthermorerdquo goes on to add the mathematical theory of musicrdquo

61

nha as suspeitas de toda a tradiccedilatildeo (desde Met 987a 29)104 Daiacute a dificuldade em admi-

tir uma contribuiccedilatildeo significativa do pitagorismo aos progressos da matemaacutetica do seacutecu-

lo V aEC A essa pars denstruens da criacutetica das fontes em Burkert segue uma herme-

necircutica que articulando admiravelmente estudos de antropologia religiosa com uma

soacutelida abordagem filoloacutegica e historiograacutefica leva ao ineacutedito resgate do Pitaacutegoras histoacute-

rico e do protopitagorismo em toda sua componente primitiva preacute-racionaliacutestica Pitaacute-

goras deveraacute ter sido entatildeo um mago e xamatilde (ainda que cientista ao menos agrave maneira

dele) baseando esta sua cientificidade em um esforccedilo para dar aquele que para Burkert

constitui ldquoum passo a maisrdquo (a step beyond) Este passo a mais que distinguiria Pitaacutego-

ras no interior do mundo maacutegico-taumatuacutergico primitivo pode ser detectado por exem-

plo pela presenccedila no interior dos testemunhos mais antigos de noccedilotildees como as de ka-

thaacutersis e de anamneacutesis (1972 211)

Na gangorra entre o ceticismo e a confianccedila nas fontes na qual todo filoacutelogo eacute

obrigado a movimentar-se (ldquoa vida real da filosofia eacute uma luta entre as tendecircncias a con-

fiar na tradiccedilatildeo e o ceticismo com respeito agrave mesmardquo ndash reconhece lucidamente Burkert

1972 9) acaba por surgir um caminho intermediaacuterio uma terceira via conforme foi

dito que ainda que radicalmente ceacutetica em relaccedilatildeo agraves fontes acadecircmicas consegue

todavia desenhar uma imagem historicamente coerente e metodologicamente eficaz das

origens do pitagorismo e de seu fundador105

Certamente a obra de Burkert com a vantagem da dupla postura acima dese-

nhada constitui uma pedra fundamental para a histoacuteria da criacutetica como bem nota Von

Fritz

O trabalho apresenta os resultados do maior esforccedilo empreendido para resolver os problemas colocados por uma antiga tradiccedilatildeo complicada e confusa para chegar a uma reconstruccedilatildeo plausiacutevel e consistente do pensamento e das doutrinas do proacuteprio Pitaacutegoras (Von Fritz 1964 459)106

104 O adaacutegio eacute trasmitido por Euseacutebio de Cesareia Πλάτων πυθαγορίζει (Euseb Prep Evang 190315 37 6) 105 Orig ldquoThe very life of philology is the struggle between the tendencies toward faith in the tradition and skepticism of itrdquo 106 Orig ldquoThe work presents the results of a most energetic effort to solve the problems posed by a com-plicated and confused ancient tradition and to arrive at a plausible and consistent reconstruction of the thought and the doctrines of Pythagoras himselfrdquo

62

Sinal inequiacutevoco do impacto central da obra de Burkert para a histoacuteria da criacutetica

satildeo certamente as diversas atenccedilotildees e respostas que mereceu desde sua publicaccedilatildeo Foi

especialmente seu ceticismo mais que a reconstruccedilatildeo de um Pitaacutegoras originalmente

xamatilde que sofreu as criacuteticas mais precisas Huffman sugere inicialmente que a atribui-

ccedilatildeo a Filolau de uma matemaacutetica exclusivamente teoloacutegico-numeroloacutegica conforme

sugerido por Burkert natildeo seria um ponto paciacutefico (Huffman 1988 3) O mesmo Huff-

man reabriraacute o caso definitivamente com sua proacutepria monografia dedicada a Filolau

(Huffman 1993) dando inversamente a ele um papel proeminente natildeo jaacute agrave matemaacutetica

e sim agrave filosofia da matemaacutetica antiga ldquoFilolau merece um lugar de destaque na histoacuteria

da filosofia grega como o primeiro pensador a empregar consciente e tematicamente

ideias matemaacuteticas para resolver problemas filosoacuteficosrdquo (Huffman 1988 2)107

Huffman ao contraacuterio de Burkert atribui a Filolau com base fundamentalmente

no fr 4 (44 B4 DK) uma postura epistemoloacutegica que se utilizaria dos nuacutemeros para

compreender a realidade (Huffman 1993 64ss) por esta uacuteltima ser cognociacutevel somente

graccedilas agraves relaccedilotildees aritmo-geomeacutetricas108

Em outra frente o proacuteprio Minar tradutor da obra para o inglecircs reclama da au-

secircncia de qualquer abordagem agrave questatildeo social e poliacutetica (Minar 1964 121) que se jaacute

antiga ndash como a discussatildeo acima desenvolvida sobre o tema parece indicar ndash deveraacute

desempenhar um papel central na reconstruccedilatildeo da filosofia dos primeiros pitagoacutericos

Em contrapartida eacute exatamente o distanciamento que Burkert consegue estabe-

lecer com certa precisatildeo entre as tradiccedilotildees do protopitagorismo e aquelas dos pitagoacuteri-

cos em contato com a Academia (especialmente Arquitas) que permite de certa forma

liberar o campo para os estudos do protopitagorismo como experiecircncia relativamente

independente das sucessivas reapropriaccedilotildees dela pela literatura

O resgate de um pitagorismo das origens como fortemente marcado pelo aspecto

miacutestico-religioso eacute certamente inaugurado por Detienne Este dedica ao pitagorismo

diversas incursotildees ao longo de sua obra definida por uma abordagem antropoloacutegica e

comparativista ao mundo antigo109 A comeccedilar por seu ensaio sobre a poesia filosoacutefica

do pitagorismo antigo (1962) que em busca de relaccedilotildees histoacutericas entre poesia e metafiacute- 107 Orig ldquoPhilolaus deserves a prominent place in the history of Greek philosophy as the first thinker self-consciously and thematically to employ mathematical ideas to solve philosophical problemsrdquo 108 Ver-se-aacute com mais detalhes esta polecircmica no capiacutetulo quarto 109 Para a siacutentese madura da abordagem antropoloacutegica e comparativista ao mundo antigo de Detienne veja-se especialmente seu mais recente Comparer lincomparable (2000)

63

sica isto eacute entre os ambientes dos poetas e dos filoacutesofos antigos ocupa-se das tradiccedilotildees

que remetem agrave invenccedilatildeo de uma leitura filosoacutefica de Homero e Hesiacuteodo em acircmbito

pitagoacuterico Essa exegese pitagoacuterica inaugura aquela que somente depois Platatildeo e Aris-

toacuteteles chamaratildeo de theologiacutea

O trabalho de construccedilatildeo que pressupotildee o diaacutelogo entre Homero He-siacuteodo e Pitaacutegoras define-se fundamentalmente como vimos no plano do pensamento religioso [] Eacute essencialmente uma teologia aquela que os poemas de Homero e Hesiacuteodo representam para os gregos e em particular para os pitagoacutericos (Detienne 1962 95)110

A tese da leitura teoloacutegica dos poetas arcaicos entre os pitagoacutericos eacute recuperada

por Detienne em relaccedilatildeo aos estudos sobre a interpretaccedilatildeo demonoloacutegica dos versos de

Os trabalhos e os dias de Hesiacuteodo sobre a noccedilatildeo de daiacutemon no pitagorismo antigo

Detienne (1963) dedica uma obra inteira que em linha com a obra imediatamente pre-

cedente considera que o pitagorismo tenha estabilizado o conceito de daiacutemon ateacute entatildeo

extremamente vago para indicar com ele a intermediaccedilatildeo entre homens e deuses Na

exegese pitagoacuterica portanto o conceito adquire uma consistecircncia teoloacutegico-filosoacutefica

que natildeo possuiacutea anteriormente111 Os sucessivos estudos de Detienne dedicados agraves

prescriccedilotildees dieteacuteticas dos pitagoacutericos (1970 1972) seguem a mesma linha teoacuterica de

consideraacute-las fundamentalmente uma expressatildeo de sua compreensatildeo da relaccedilatildeo com os

deuses em sentido teoloacutegico

O sistema de alimentaccedilatildeo determinado pelas principais praacuteticas ali-mentares dos pitagoacutericos aparece assim como uma linguagem por

110 Orig ldquoLe travail de construction que suppose le dialogue entre Homegravere Heacutesiode e Pythagore srsquoest defini de plus em plus nous lrsquoavons vu sur le plan de la penseacutee religieuse [] Crsquoest essentiellement une ldquotheacuteologierdquo que les poegravemes drsquoHomegravere et drsquoHeacutesiode repreacutesentent pour les Grecs et en particulier pour les Pythagoriciensrdquo A tese fundamental desta obra de Detienne estaacute baseada no testemunho de Neantes cf referido por Porfiacuterio (VP 1) de uma formaccedilatildeo inicial de Pitaacutegoras no acircmbito da poesia homeacuterica Pitaacutegoras teria sido disciacutepulo de Ermodamante que pertencia a uma famiacutelia tradicional de rapsodos ho-meacutericos os Creofileacuteus Isso permite a Detienne afirmar que Samos seria o lugar do primeiro encontro entre poesia e filosofia Para uma criacutetica a esse pressuposto e agrave sucessiva argumentaccedilatildeo de Detienne cf Feldman (1963 16) e Pollard (1964 188) 111 A obra foi precedida por pelo menos dois artigos em que o autor inaugurava a pesquisa e definia suas linhas fundamentais (Detienne 1959a e 1959b) Para uma criacutetica agrave leitura de Detienne cf Kerferd (1965) que observa como o conceito de daiacutemon seja com toda probabilidade uma atribuiccedilatildeo platocircnica ao pitago-rismo antigo (1965 78) natildeo permitindo dessa maneira sustentar a tese da original conceituaccedilatildeo teoloacutegi-ca em acircmbito protopitagoacuterico Uma recepccedilatildeo mais calorosa ainda que reclamando de certa audaacutecia na questatildeo das fontes lhe eacute reservada por Vidal-Naquet (1964)

64

meio da qual este grupo social traduz suas orientaccedilotildees e revela suas contradiccedilotildees (1970 162)112

Fundamentada na recusa em provocar a morte do animal para o sacrifiacutecio a ritu-

alidade da alimentaccedilatildeo pitagoacuterica procura instaurar uma comensalidade com os deuses

que dessa forma elimina a separaccedilatildeo clara dos alimentos divinos e humanos que subjaz

ao sacrifiacutecio oliacutempico tradicional operando uma inversatildeo na antropologia teoloacutegica

De um sacrifiacutecio para outro natildeo somente as oferendas mudam de na-tureza mas os modos da relaccedilatildeo com os deuses se invertem A inver-satildeo eacute marcada em especial no caso do estatuto religioso dos cereais No sacrifiacutecio oliacutempico satildeo os gratildeos de trigo e cevada (inteiros) (oulo-chutai) a serem espargidos sobre as viacutetimas animais representando a alimentaccedilatildeo especificamente humana reservada aos mortais que culti-vam a terra e comem o patildeo (1970 152)113

Longe das tentativas teologizantes das expressotildees da religiatildeo pitagoacuterica operadas

por Detienne seguem os estudos de grandes historiadores e arqueoacutelogos da religiatildeo

antiga Entre eles Cumont (1942a 1942b) e Carcopino (1927 1956) dedicam-se agrave re-

cepccedilatildeo das tradiccedilotildees pitagoacutericas no interior do simbolismo funeraacuterio romano diversos

artigos de Festugiegravere muitos deles recolhidos finalmente nos Eacutetudes de religion grec-

que e hellenistique (1972) e as duas importantes obras de Leacutevy (1926 1927) sobre a

lenda de Pitaacutegoras Todos eles reconhecem na recepccedilatildeo de motivos pitagoacutericos no inte-

rior das expressotildees da religiosidade heleniacutestica orientalizante uma continuidade entre

pitagorismo antigo e pitagorismo tardio no que diz respeito agraves questotildees religiosas tanto

de fazer pensar em uma espeacutecie de rio subterracircneo de tradiccedilotildees religiosas atribuiacutedas ao

pitagorismo que flui ao longo de mais de mil anos (Burkert 1972 6)114

112 Orig ldquoLe systeme des nourritures fernie par les principales pratiques alimentaircs des Pythagorici-ens apparait done comme un langage a travers le quel ce groupe social traduit ses orientations et revele ses contradictionsrdquo 113 Orig ldquoDrsquoun sacrifice a lrsquoautre non seulement les offrandes change de nature mais le mode de rela-tion avec les dieux srsquoinverse Le renversement se marque en particulier dans le statut religieux des ceacutereacutea-les Dans le sacrifice olympien es grains drsquoorge et de ble (entiers) (oulochutai) que les sacrifiants re-pandent sur les victimes animales represeacutentent le nourriture speacutecifiquement humaine reservee aux mor-tels qui cultivent la terre et mangent le painrdquo Da mesma forma isto eacute sublinhando o processo de racio-nalizaccedilatildeo teoloacutegica Detienne interpretaraacute as indicaccedilotildees dieteacuteticas pitagoacutericas relativas ao uso de um tipo especial de alface que eles chamavam de eunuco Esta era especialmente indicada para o periacuteodo estivo pois suas propriedades diminuiacuteam o desejo sexual considerado pernicioso agrave sauacutede na referida estaccedilatildeo por causa da debilitaccedilatildeo provocada pelo forte calor Evidencia-se aqui um uso dos mitos neste caso do grupo de mitos relativos aos jardins de Adonis para fins eacutetico-teoloacutegicos (Detienne 1972 125-130) 114 De grande interesse histoacuterico aleacutem de inequiacutevoco sinal da erudiccedilatildeo e do amplo raio de investigaccedilatildeo agrave qual Leacutevy dedicava-se eacute a coleccedilatildeo poacutestuma de suas Recherches esseacuteniennes et pythagoriciennes (1965) uma seacuterie de ensaios em que o autor dedica-se a desvendar possiacuteveis influecircncias natildeo-judias e notadamen-

65

Um capiacutetulo especial dessa relaccedilatildeo do pitagorismo com o mundo religioso eacute cer-

tamente aquele das relaccedilotildees perigosas do pitagorismo com o mundo de ritos e mitos

que se convencionou reunir debaixo da definiccedilatildeo orfismo A conexatildeo do pitagorismo

com o orfismo para aleacutem de esteacutereis petitiones principii presentistas que reclamam

uma suposta separaccedilatildeo entre filosofia e misticismo eacute ligada provavelmente a temaacuteticas

e experiecircncias especiacuteficas como aquelas relativas agrave teoria da imortalidade da alma de

maneira especial agrave metempsicose ou agrave cosmologia A segunda metade do seacuteculo XX

marca a descoberta de novos documentos oacuterficos Uma descoberta que a bem da verda-

de nunca parou desde a ediccedilatildeo moderna dos fragmentos de Kern (1922) entre eles

especialmente as lacircminas de ouro (Zuntz 1971 Pugliese Carratelli 2001) e novos papi-

ros especialmente o papiro Derveni datado do seacuteculo IV aEC que conteacutem uma exegese

alegoacuterica de um mais antigo poema cosmogocircnico115 De especial relevacircncia pela sobri-

edade e o cuidado filoloacutegico eacute o estudo dedicado agraves relaccedilotildees entre orfismo e pitagoris-

mo por Bernabeacute (2004) assim como as mais recentes observaccedilotildees sobre o tema em

Bernabeacute-Casadesuacutes (2009)

O revival de estudos que seguiu agraves descobertas relacionadas anteriormente con-

firma em geral a profunda relaccedilatildeo do orfismo com o dionisismo e o pitagorismo Pu-

gliese Carratelli (2001 18) propotildee uma soluccedilatildeo para a eterna questatildeo das modalidades

dessas interpenetraccedilotildees identificando ldquoum particular caraacuteter conferido ao genuiacuteno or-

fismo por uma iacutentima conexatildeo deste com a escola pitagoacutericardquo Substancialmente basea-

do na anaacutelise original das lacircminas de ouro oacuterficas a tese de Pugliese Carratelli eacute de que

teria havido uma mescla teoacuterica entre os dois movimentos naquela que pode ser consi-

derada uma reforma do orfismo operada pelos pitagoacutericos da primeira hora provavel-

mente jaacute nos seacuteculos VI e V aEC Surgiria assim uma nova ldquofilosofia da imortalidaderdquo

de maneira distinta de um grupo de lacircminas contendo foacutermulas para praacuteticas rituais e

invocaccedilotildees agraves divindades ctocircnicas (entre elas Perseacutefona Dioniacutesio Zagreus e Hades) ou te pitagoacutericas no movimento religioso judaico dos essecircnios depositaacuterio da ceacutelebre biblioteca de Qu-mram proacuteximo ao Mar Morto 115 Cf para a primeira ediccedilatildeo oficial do papiro Kouremenos e Paraacutessoglou e Tsantsanoglou (2006) Para um estudo mais aprofundado do papiro cf as atas de um recente coloacutequio realizado em Princeton (Laks e Most 1997) Um grupo de estudiosos liderado por Pierris e Obbink com a ajuda da moderna tecnologia de imagem multispectral a raios infravermelhos em colaboraccedilatildeo com a Bringham Young University estaacute empenhado em um paralelo estabelecimento do texto Para os impactos da descoberta para o estudo do orfismo preacute-platocircnico cf especialmente Burkert (1982 2005) Kingsley (1995) Betegh (2004) Tortorelli Ghidini (2000 2006) Bernabeacute (2002 2007a) Entre outros papiros recentemente descobertos vejam-se especialmente o Papiro de Bologna e diversos papiros maacutegicos gregos Para uma resenha das descobertas de novos fragmentos oacuterficos apoacutes a segunda guerra mundial cf Bernabeacute (2000)

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viaacuteticos para enfrentar as terriacuteveis provaccedilotildees pelas quais o iniciado deve passar (desse

grupo fazem parte lacircminas como a de Thurii Pelinna Eleutherna Pherai) Um segundo

grupo resultado dessa reforma pitagoacuterica mencionada haacute pouco enfatiza ao contraacuterio

as temaacuteticas de um empenho eacutetico e espiritual por sua vez intimamente ligado ao exer-

ciacutecio intelectual de compreender com o auxiacutelio de Mnemosyne os princiacutepios coacutesmicos

e do viver humano Uma imortalidade que passaria pelo exerciacutecio da memoacuteria e pela

sabedoria que dela deriva portanto A prova disso para aleacutem desta dimensatildeo cientiacutefica

da memoacuteria eacute que natildeo haacute duacutevidas de que a mnemecirc seja um dos elementos fundamentais

do estilo de vida pitagoacuterico a tradiccedilatildeo eacute unacircnime em recordar que o membro da koino-

niacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia (de manhatilde ou de

noite) para a anamneacutesis a recollectio de todos os eventos do dia anterior (Iambl VP

165) Uma provaacutevel consequecircncia da imbricaccedilatildeo dos dois movimentos eacute o fato de tanto

Heroacutedoto quanto Platatildeo revelarem forte tendecircncia a confundi-los sinal da dificuldade ndash

de certa maneira e sob certos pontos de vista doutrinaacuterios e sociais ndash de distingui-los116

Com essa referecircncia ao orfismo conclui-se este panorama da histoacuteria da criacutetica

que conforme anunciado no proacuteprio tiacutetulo da presente seccedilatildeo eacute ocupado pelos recentes

trabalhos de Kingsley De fato a obra de Kingsley constitui o ponto de fuga natildeo so-

mente desta linha de interpretaccedilatildeo do pitagorismo como movimento intelectual profun-

damente marcado pelas relaccedilotildees com o mundo religioso de seu tempo mas tambeacutem de

grande parte das questotildees centrais ateacute aqui levantadas em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da criacutetica do

pitagorismo Haacute nele uma perspectiva de soluccedilatildeo da maioria dessas questotildees que se

apresenta de forma bastante incomum Kingsley dedica-se a uma releitura consciente-

mente revolucionaacuteria e polecircmica dos pressupostos subjacentes agrave criacutetica das tradiccedilotildees

dos filoacutesofos da Magna Greacutecia tanto a primeira monografia dedicada ao pitagoacuterico

Empeacutedocles (1995) quanto as duas seguintes dedicadas ao tambeacutem pitagoacuterico Parmecirc-

nides (1999 2003) representam uma ldquoradical inversatildeo hermenecircuticardquo no interior do

panorama dos comentadores (Gemelli 2006 657)

Kingsley eacute devedor ao mesmo tempo de trecircs das mais significativas contribui-

ccedilotildees hermenecircuticas do seacuteculo XX isto eacute de um lado do ceticismo de Cherniss (1935)

em relaccedilatildeo ao valor a ser dado ao testemunho aristoteacutelico de outro da tradiccedilatildeo ndash de

autores como Detienne e Festugiegravere ndash da inserccedilatildeo da filosofia em seu nascer no interior

116 Cf Heroacutedoto (II 81) Para Platatildeo aleacutem do Feacutedon cf Goacutergias (492e) Craacutetilo (400c) Fedro (62b 67c-d 81e 92a) e Mecircnon (81a) A questatildeo seraacute retomada em detalhe no capiacutetulo terceiro

67

das tradiccedilotildees religiosas de seu tempo Em terceiro lugar possuem uma influecircncia deci-

siva os estudos orientalistas aplicados agraves noccedilotildees fundamentais da filosofia antiga117

A articulaccedilatildeo dessas importantes tradiccedilotildees somada a uma ampla competecircncia

tanto histoacuterico-arqueoloacutegica como de antropologia da religiatildeo por sua vez acompanha-

da por um dever de casa filoloacutegico francamente cuidadoso permite a Kingsley envere-

dar por um caminho extremamente ousado de resoluccedilatildeo do obstaacuteculo da doxografia de

matriz aristoteacutelica A novidade de sua obra (ainda que natildeo totalmente original em cada

uma de suas partes sem duacutevida original na articulaccedilatildeo consciente delas) encontra-se na

utilizaccedilatildeo de outros textos alternativos aos normais fundamentalmente advindos tanto

da tradiccedilatildeo aacuterabe da filosofia antiga quanto da literatura alquimiacutestica e hermeacutetica A

eles acrescenta-se a proposta de uma renovada confianccedila nos escritos da tradiccedilatildeo neopi-

tagoacuterica e neoplatocircnica118 A economia destas paacuteginas natildeo permite uma anaacutelise da com-

plexa estrutura de argumentos apresentados pelo autor em cada uma das obras citadas

Muitos deles apareceratildeo nas paacuteginas a seguir Eacute suficiente por ora resgatar ainda que

sumariamente suas conclusotildees pois estas pretendem mudar radicalmente o eixo da

pesquisa sobre os preacute-socraacuteticos em geral e sobre o pitagorismo de maneira especial de

duas formas

De um lado recolocando metodologicamente em questatildeo a abordagem historio-

graacutefica normal da filosofia preacute-socraacutetica oferecendo instrumentos e perspectivas ineacutedi-

tas muitas delas ainda a serem exploradas Eacute certamente o caso da afirmaccedilatildeo pela qual

naquilo que eacute considerado comumente como perversatildeo maacutegico-teuacutergica da filosofia

racional nas fontes neopitagoacutericas ao contraacuterio

117 Veja-se como exemplo dessa marca orientalista na lectio de Kingsley sua resenha extremamente criacutetica agrave monografia de Huffman (1993) sobre Filolau e sua tese sobre a perspectiva epistemoloacutegica deste (Kingsley 1994) Eacute tambeacutem significativo nesse sentido o fato de Kingsley ter sido orientado em seu doutorado em Oxford por Martin West (Stroumsa 1997 212) 118 Eacute o caso de sublinhar que a recente descoberta de diversos versos atribuiacutedos a Empeacutedocles no ceacutelebre Papiro de Strasburgo (Martin e Primavesi 1998) que teve lugar na cidade egiacutepcia de Akhmicircn parece confirmar a tese central de Kingsley pela qual haveria uma circulaccedilatildeo independente dos textos preacute-socraacuteticos em acircmbito alquimiacutestico eacute certamente o caso da tradiccedilatildeo que eacute remetida a Zosimo de Panoacutepolis (isto eacute da cidade de Akhmicircn) gnoacutestico de acircmbito alquimiacutestico e agrave importante obra alquimiacutestica Turba Philosophorum que viu sua luz na mesma cidade Ambas as tradiccedilotildees referem-se de forma independente da tradiccedilatildeo doxograacutefica normal a Empeacutedocles e agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica (Kingsley 1995 56-67) Cf tam-beacutem Nucci (1999) Para a mais recente coleccedilatildeo da obra de Zosimo cf o volume de Mertens (1995) de Les alchimistes grecs Para uma recente discussatildeo das relaccedilotildees entre alquimia e filosofia antiga cf Viano (2005)

68

Os pitagoacutericos posteriores permaneceram fieacuteis ao impulso inicial do pitagorismo [hellip] Historicamente como eacute natural a importacircncia do consenso entre o pitagorismo mais antigo e aquele mais tardio eacute subli-nhada ainda pelas evidecircncias jaacute citadas de que tradiccedilotildees pitagoacutericas e a estas relacionadas passaram diretamente do Sul da Itaacutelia e da Siciacutelia para o Egito heleniacutestico (Kingsley 1995 339)119

Isto eacute sem passar por Platatildeo e Aristoacuteteles120

De outro lado como bem viu Gemelli operando

Um questionamento natildeo somente dos criteacuterios interpretativos comun-mente utilizados para enfrentar estes textos do enorme peso atribuiacutedo agrave forccedila tranquilizadora da ldquoracionalidaderdquo da proacutepria concepccedilatildeo de fi-losofia como exerciacutecio intelectual mas tambeacutem e sobretudo do eacutethos polyacutepeiron que guia nossa vida (Gemelli 2006 670-671)121

E portanto em sintonia com uma compreensatildeo da filosofia antiga que procura-

ria fundamentalmente alcanccedilar certo tipo de biacuteos isto eacute pensada antes de tudo como

exerciacutecio a serviccedilo de uma vida melhor Kingsley recoloca natildeo somente a filosofia pita-

goacuterica mas tambeacutem a histoacuteria da criacutetica a esta nos trilhos de uma sabedoria que articu-

lando misteacuterios e magia cura e dieteacutetica contribui de fato para uma vida melhor122 Natildeo

por acaso de forma francamente pouco ritual o mesmo Kingsley apresenta assim o

objetivo de sua monografia sobre Parmecircnides e os lugares obscuros da sabedoria ldquoE o

que eacute aquilo que desejamos Eacute disso que esta histoacuteria tratardquo (1999 4)123 E logo em

seguida para introduzir de forma existencial sua releitura miacutestica dos dois caminhos de

Parmecircnides ldquose tiver sorte em algum momento de sua vida vocecirc chegaraacute a um ponto

completamente mortordquo (1999 5)124 Um estilo de escrita esta de Kingsley que corres-

119 OrigldquoThe later Pythagoreans were simply remaining true to the inicial impetus of Pythagoreanism [hellip] Historically of course the significance of the accord between early and later Pythagoreanism is further underlined by the evidence already considered of Pythagorean and related traditions passing directly from southern Italy and Sicily into Hellenistic Egyptrdquo 120 Para mais ampla resenha dessa questatildeo cf Cornelli (2002 2003a) 121 Orig ldquouna messa in discussione non solo dei criteri interpretativi comunemente adottati per affrontare questi testi dellrsquoenorme peso attribuito alla forza tranquillizzante della lsquorazionalitagraversquo della concezione stessa di filosofia come esercizio intellettuale ma anche e soprattuto dellrsquoeacutethos polyacutepeiron che guida la nostra vitardquo 122 Cf nesta mesma linha a siacutentese que faz Hadot (1999) ainda que manualiacutestica da filosofia pensada em suas origens como fundamentalmente um estilo de vida 123 A referecircncia dos lugares obscuros da sabedoria eacute ao titulo da obra de Kingsley (1999) In the dark places of wisdom Orig ldquoAnd what is it that we long for Thatacutes what this story is aboutrdquo 124 Orig ldquoIf yoursquore lucky at some point in your life yoursquoll come to a complete dead endrdquo

69

ponde a um estilo de historiografia que sai decididamente das regras taacutecitas da aceitabi-

lidade acadecircmica e coloca-se em lugar alternativo e marginal que o proacuteprio autor pare-

ce cavar para si mesmo com uma satisfaccedilatildeo que natildeo faz questatildeo de esconder125

Obviamente a proposta de Kingsley encontra diversas resistecircncias e dificulda-

des Algumas internas ao proacuteprio sistema argumentativo do autor como a de dar conta

de maneira adequada da articulaccedilatildeo de testemunhos tatildeo tardios e tatildeo diferenciados en-

tre si para elaborar uma visatildeo da filosofia preacute-socraacutetica e do pitagorismo de maneira

especial de certa forma coerente ao menos do ponto de vista historiograacutefico Eacute preciso

concordar com Morgan (1997 1130) que de vez em quando ldquoele natildeo junta as peccedilasrdquo

(he does not tie the pieces together) e natildeo fica clara qual seria com precisatildeo a configu-

raccedilatildeo histoacuterica do protopitagorismo tanto do ponto de vista social quanto doutrinaacuterio

para aleacutem de vaga referecircncia agrave magia aos misteacuterios e agrave cura Outras resistecircncias satildeo

levantadas por comentadores que natildeo compartilham da confianccedila no novo caminho me-

todoloacutegico indicado por Kingsley126 Provavelmente os proacuteximos anos iratildeo mostrar se o

caminho por ele revelado teraacute mais seguidores ou menos127

19 Conclusatildeo

Entre circularidades hermenecircuticas e pacircnicos historiograacuteficos a breve histoacuteria da

criacutetica moderna sobre o pitagorismo agora esboccedilada resultou em uma narrativa em que

cada fato e cada testemunho foram colocados em discussatildeo gerando controveacutersias e

reciacuteprocas refutaccedilotildees A duacutevida jaacute zelleriana de que no caso do pitagorismo estariacutea-

mos diante de um intrincado tecido de tradiccedilotildees escassamente relevantes para uma seacuteria

histoacuteria da filosofia acompanha sub-repticiamente grande parte das tentativas de inter-

pretaccedilatildeo do pitagorismo Desde o historicismo evolucionista de Zeller que influencia

diretamente a coleccedilatildeo de Diels passando pela abordagem aprioriacutestica de Burnet que

125 Em recente troca de correspondecircncias Kingsley anunciou estar concluindo uma monografia sobre Pitaacutegoras que ldquopresents entirely new evidence and documentation from sources which have been com-pletely neglected its implications are to say the least dramatic and revolutionaryrdquo (8 de abril de 2010 arquivo privado)rdquo 126 Para todos cf a seca resenha de OrsquoBrian (1998) 127 Tanto na mais recente monografia dedicada a Pitaacutegoras (Riedweg 2002) como no capiacutetulo sobre Pitaacute-goras na ediccedilatildeo dos Vorsokratiker pela Tusculum (Gemelli 2007b) Kinsgley comeccedila a deixar sua marca hermenecircutica Natildeo eacute certamente um caso o fato de que ambos os autores sejam disciacutepulos de Burkert

70

identifica o arcaico com o elemento religioso do pitagorismo e o mais recente com a-

quele cientiacutefico a ponte que pretende separar os dois pitagorismos tornou-se o problema

central da histoacuteria da criacutetica do espinhoso problema da complexidade multifacetada do

pitagorismo

As primeiras reaccedilotildees ao ceticismo dos comentadores natildeo demoraram a aparecer

Estudos de Rohde e Delatte levantaram os primeiros questionamentos relativos agrave pre-

tensa verdade absoluta da equaccedilatildeo entre fontes tardias e sua confiabilidade As sucessi-

vas intervenccedilotildees hermenecircuticas a partir de Cornford e Guthrie desenharam o caminho

da composiccedilatildeo da diversidade das tradiccedilotildees referidas ao pitagorimo Criticando a falaacutecia

modernista Cornford inverte a loacutegica presentista indicando no lado miacutestico do pitago-

rismo sua heranccedila mais importante sendo este em natildeo aberta inconsistecircncia com a filo-

sofia Guthrie de sua parte propondo um meacutetodo aprioriacutestico afirma a coerecircncia inter-

na do pitagorismo preacute-platocircnico A influecircncia da escrita das grandes Histoacuterias da Filoso-

fia do seacuteculo XX contribuiu certamente para estabelecer essa busca unitarista Ao mes-

mo tempo todavia surgiam obras dedicadas ao estudo de algumas aacutereas particulares e

alguns problemas especiacuteficos da questatildeo das fontes In primis a questatildeo do envolvimen-

to poliacutetico das comunidades pitagoacutericas Uma questatildeo agrave qual diversos comentadores

dedicaram-se de maneira especial na tradiccedilatildeo italiana destes estudos desde a eacutepoca

romana por meio do Quattrocento renascentista ateacute a um renovado interesse pela ques-

tatildeo em historiadores contemporacircneos

Em contrapartida uma seacuterie de comentadores dedica-se ao estudo das fontes in-

diretas tanto preacute-socraacuteticas quanto platocircnicas do pitagorismo antigo Ainda que a ima-

gem de um diaacutelogo preacute-socraacutetico entre o pitagorismo e outras escolas apesar de tenta-

dora parece carecer de bases textuais soacutelidas a importacircncia da tese de Tannery sobre as

relaccedilotildees teoreacuteticas entre eleatismo e pitagorismo inaugura uma aacuterea de pesquisa que

comeccedila a colocar em questatildeo a presunccedilatildeo do testemunho uacutenico de Aristoacuteteles trazendo

para a criacutetica outras fontes O valor a ser dado tanto aos testemunhos de Platatildeo quanto

aos de Aristoacuteteles estaacute longe de ser um consenso Posiccedilotildees mais ingecircnuas do ponto de

vista historiograacutefico como as de Burnet e Tayor alternaram-se a posiccedilotildees ceacuteticas como

as de Cherniss e Frank Enquanto o trabalho de Burkert pareceu significar uma verda-

deira terceira-via da criacutetica entre o ceticismo zelleriano e uma excessiva confianccedila nas

fontes a gangorra hermenecircutica em que se encontra parece pender mais para uma com-

preensatildeo do pitagorismo originaacuterio como um movimento religioso

71

Os estudos desse lado religioso do pitagorismo a partir de Detienne e Cumont

marcam fortemente a histoacuteria da criacutetica Um locus privilegiado para esses eacute certamente

aquele das relaccedilotildees com o orfismo um revival de estudos sobre o tema seguiu-se agrave am-

pliaccedilatildeo de seu corpo documental graccedilas agraves recentes descobertas arqueoloacutegicas

Enfim a radical inversatildeo hermenecircutica representada pela obra de Kingsley en-

cerrou o panorama da histoacuteria da criacutetica moderna demostrando ser o ponto de fuga de

trecircs das mais significativas contribuiccedilotildees hermenecircuticas do seacuteculo XX isto eacute do ceti-

cismo em relaccedilatildeo ao valor a ser dado ao testemunho aristoteacutelico da inserccedilatildeo da filosofia

em seu nascer no interior das tradiccedilotildees religiosas de seu tempo e da influecircncia dos es-

tudos orientalistas sobre a histoacuteria da filosofia antiga Kingsley oferece soluccedilotildees relati-

vamente originais e ousadas agraves questotildees sensiacuteveis de criacutetica das fontes Destaca-se espe-

cialmente a recolocaccedilatildeo no centro do interesse da questatildeo do biacuteos e nesse sentido a

proposta de uma continuidade maior que aquela geralmente admitida entre protopitago-

rismo e neopitagorismo e portanto na proacutepria histoacuteria da tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuteri-

ca

O breve panorama aqui resumido por meio de seus motivos e autores principais

resulta em uma imagem polieacutedrica e bastante contraditoacuteria do pitagorismo Emerge

assim a questatildeo central para a compreensatildeo do pitagorismo aquela de consideraacute-lo

como categoria historiograacutefica superando metodologicamente a pretensatildeo de alcanccedilar

uma uacutenica compreensatildeo No lugar disso conscientemente seraacute preciso percorrer os

caminhos das diversas interpretaccedilotildees e dos diversos estratos da tradiccedilatildeo em busca de

uma imagem suficientemente plural ao ponto de permitir compreender o pitagorismo na

diversidade em que ainda se apresenta agrave interpretaccedilatildeo atual

Eacute o que se ensaiaraacute nos capiacutetulos a seguir

72

CAPIacuteTULO SEGUNDO

O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRAacuteFICA

21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica

No iniacutecio do percurso da histoacuteria da criacutetica sobre o pitagorismo desenhado no

capiacutetulo anterior destacou-se que Zeller jaacute enfrentava o problema da categorizaccedilatildeo his-

toriograacutefica do pitagorismo ndash por assim dizer ndash de peito ao se perguntar se no emara-

nhado de fontes e tradiccedilotildees haveria algo no pitagorismo que pudesse ser considerado

como um sistema propriamente filosoacutefico e cientiacutefico (Zeller e Mondolfo 1938 597)

A suspeita zelleriana compartilhada conforme visto por muitos comentadores

que a ele se seguiram introduz bem aquela que foi prenunciada na Introduccedilatildeo como a

problemaacutetica central desta tese isto eacute de como deveraacute ser tratada a diversidade de dou-

trinas e experiecircncias que a tradiccedilatildeo reuniu debaixo do guarda-chuva histoacuterico-teoreacutetico

do pitagorismo Em termos mais precisos isso significa perguntar-se a que correspon-

deria exatamente essa categoria historiograacutefica que a tradiccedilatildeo convencionou chamar de

pitagorismo

A descoberta do alcance histoacuterico e teoreacutetico dessa categoria passa por duas di-

mensotildees-chave do problema uma dimensatildeo que se chamaraacute diacrocircnica outra que seraacute

identificada como sincrocircnica Ainda que complementares as duas dimensotildees desenham

cada uma um campo de investigaccedilatildeo distinto

Descrever a categoria historiograacutefica pitagorismo em sua dimensatildeo diacrocircnica

implica seguir seu processo de construccedilatildeo atraveacutes da histoacuteria da tradiccedilatildeo desde Platatildeo e

Aristoacuteteles ateacute a literatura neoplatocircnica em busca de formas e conteuacutedos que possam

indicar continuidade e ateacute mesmo possiacutevel homogeneidade

Seu pressuposto eacute que obviamente natildeo eacute possiacutevel alcanccedilar em uacuteltima anaacutelise um Pitaacute-

goras histoacuterico ou um pitagorismo das origens pois essa tradiccedilatildeo eacute virtualmente ine-

xistente Tratar-se-aacute portanto nas palavras de Burkert de interpretar interpretaccedilotildees

A primeira coisa a ser feita uma vez que o fenocircmeno original natildeo po-de ser alcanccedilado diretamente eacute interpretar interpretaccedilotildees identificar e

73

destacar as diferentes camadas da tradiccedilatildeo e procurar as causas que causaram uma transformaccedilatildeo na imagem de Pitaacutegoras (Burkert 1972 11)128

O esforccedilo da categorizaccedilatildeo diacrocircnica do pitagorismo seraacute aquele de destrinchar

os diferentes estratos da tradiccedilatildeo Tarefa esta a bem da verdade hoje francamente mais

faacutecil do que era no tempo de Zeller especialmente graccedilas aos avanccedilos dos estudos sobre

a tradiccedilatildeo acadecircmica e peripateacutetica129

Natildeo seraacute objetivo deste esforccedilo de categorizaccedilatildeo do pitagorismo tentar reduzir

sua caracteriacutestica baacutesica de um movimento filosoacutefico extremamente controvertido

(Huffman 2008a 225) Ao contraacuterio a proposta eacute mais propriamente aquela de compre-

ender como na imbricaccedilatildeo das dimensotildees diacrocircnicas e sincrocircnicas a categoria pitago-

rismo tem sobrevivido agrave previsiacutevel diluiccedilatildeo de um movimento natildeo somente radicalmen-

te multifacetado e extensivamente diverso em seus autores e temaacuteticas mas que aleacutem

disso atravessa diacronicamente mais de mil anos de histoacuteria do pensamento ocidental

Assim o desafio da pesquisa e sua originalidade no interior das normais problemaacuteticas

da histoacuteria da filosofia preacute-socraacutetica residem no fato de o pitagorismo natildeo ter propria-

mente nunca morrido o que torna ainda mais complicado o trabalho de articulaccedilatildeo das

notiacutecias advindas da tradiccedilatildeo Para o arqueoacutelogo do pensamento filosoacutefico antigo como

uma cidade que ficou continuamente habitada o pitagorismo apresenta

De maneira muito mais complicada do que um lugar destruiacutedo por uma uacutenica cataacutestrofe e em seguida abandonado a dificuldade especi-al no estudo do pitagorismo vem do fato de que ele nunca morreu co-mo por exemplo o sistema de Anaxaacutegoras ou ateacute mesmo aquele de Parmecircnides (Burkert 1972 10)130

128 Orig ldquoThe first task must be since the original phenomenon cannot be grasped directly to interpret interpretations to single out and identify the different strata of the tradition and to look for the causes that brought transformation to the picture of Pythagorasrdquo 129 A partir das demonstraccedilotildees de Jaeger (1948) da existecircncia de projeccedilotildees sobre o pitagorismo tanto acadecircmicas como peripateacuteticas de seus proacuteprios ideais assim como dos estudos de Wehrli (1944-1960) sobre Dicearco (1944) Aristoxeno (1945) Clearco (1948) Heraacuteclides (1953) e Eudemo (1955) Natildeo devem ser tambeacutem esquecidas as fundamentais contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre plato-nismo e pitagorismo que advecircm dos trabalhos da assim chamada escola de Tuumlbingen-Milatildeo sobre a dou-trina dos princiacutepios em Platatildeo e na Academia Antiga cf para isso Kraumlmer (1959) Gaiser (1963) Szle-zaacutek (1985) Reale (1991) 130 Orig ldquofar more complicated problems than a site destroyed by a single catastrophe and then aban-doned the special difficulty in the study of Pythagoreanism comes from the fact that it was never so dead as for example the system of Anaxagoras or even that of Parmenidesrdquo

74

Para que o caminho atraveacutes das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo seja de fato per-

corriacutevel apresenta-se a necessidade de desenhar um percurso metodoloacutegico original ndash

uma reacutegua de Lesbos de aristoteacutelica memoacuteria ndash que se adeacuteque agrave natureza do objeto a

ser pesquisado

O que a natureza da situaccedilatildeo requer eacute um tratamento do problema tan-to multifacetado quanto for possiacutevel Pois muitas das conclusotildees con-traditoacuterias resultaram da investigaccedilatildeo e do rastreamento do curso de caminhos uacutenicos de desenvolvimento sem alguma ideia da forma em que estes mesmos pudessem convergir com outras linhas igualmente importantes (Burkert 1972 12)131

O comentador encontra-se na frente de uma bifurcaccedilatildeo que o obriga a uma op-

ccedilatildeo metodoloacutegica isto eacute ou o pitagorismo seraacute compreendido como uma multifacetada

e complexa categoria historiograacutefica a ser desenhada acompanhando tanto o longo

percurso da histoacuteria da tradiccedilatildeo como a relaccedilatildeo desta com o mundo intelectual da filoso-

fia que nasce entre os seacuteculos VI e V aEC ou natildeo seraacute compreendido tout court

Uma consequecircncia disso eacute que a abordagem deveraacute ser necessariamente inter-

disciplinar a normal (ainda que discutiacutevel) divisatildeo do trabalho nos estudos claacutessicos

entre histoacutericos arqueoacutelogos filoacutelogos e filoacutesofos natildeo parece funcionar muito bem no

caso do pitagorismo

Pode acontecer que o historiador da ciecircncia tenha feito sua recons-truccedilatildeo sobre fundamentos filologicamente inadequados que o filoacute-logo assuma o resultado aparentemente exato do historiador da ciecircn-cia que o filoacutesofo partindo deste criteacuterio rejeite evidecircncias contra-ditoacuterias ndash e assim por diante (Burkert 1972 12)132

Ver-se-aacute em muitos casos a seguir a importacircncia de uma articulaccedilatildeo das in-

formaccedilotildees arqueoloacutegicas e da abordagem antropoloacutegica de um lado com a anaacutelise filo-

loacutegica do outro seraacute este certamente o caso do problema das relaccedilotildees entre orfismo e

pitagorismo na Magna Greacutecia dos seacuteculos VI e V aEC ou da necessaacuteria articulaccedilatildeo da

131 Orig ldquoWhat the nature of the situation demands is a many-sided treatment of the problem as is possi-ble For many of the contradictory conclusions have come from investigating and tracing the course of single paths of development with no thought of the way in which these may converge with other equally important linesrdquo 132 Orig ldquoIt can happen that the historian of science builds his reconstruction on a philologically inadequate foundation the philologist takes over the seemingly exact result of the historian of science the philosopher on the basis of this criterion rejects contradictory evidence-and so onrdquo

75

histoacuteria da filosofia com a histoacuteria da ciecircncia antiga que eacute especialmente importante

para a resoluccedilatildeo da pretensa crise dos loacutegoi incomensuraacuteveis ou irracionais

Uma polymathiacutea metodoloacutegica (pace Heraacuteclito) seraacute portanto o caminho ade-

quado para que a categoria historiograacutefica do pitagorismo possa emergir das neacutevoas

tanto de uma complexa histoacuteria da tradiccedilatildeo como da identificaccedilatildeo do que seria filosofia

em suas origens133

Esta uacuteltima identificaccedilatildeo introduz a segunda dimensatildeo do pitagorismo a dimen-

satildeo sincrocircnica Compreender sincronicamente o pitagorismo significaraacute fazecirc-lo caber

no interior das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga e a

filosofia preacute-socraacutetica de maneira especial Categorias como preacute-socraacutetico escola ciecircn-

cia religiatildeo poliacutetica ou ateacute mesmo filosofia (quando distinta de outras atividades inte-

lectuais e literaacuterias) satildeo comumente utilizadas para compreender o lugar do pitagorismo

em suas origens Nenhuma dessas categorias normais seraacute obviamente aplicaacutevel tout

court ao pitagorismo Ao contraacuterio ainda que nos limites do objeto aqui desenvolvido a

presente investigaccedilatildeo pretende apontar para a necessidade de ajustes na mesma aborda-

gem metodoloacutegica agrave filosofia preacute-socraacutetica normalmente em uso com consequecircncias

facilmente aplicaacuteveis portanto para aleacutem do estreito acircmbito dos estudos sobre o pitago-

rismo antigo Na linha do que se propotildee por exemplo Gemelli que na introduccedilatildeo agrave

nova ediccedilatildeo dos Vorsokratiker (2007b) afirma

A partir do momento em que se colocam os problemas fora do riacutegido esquema historicista do necessaacuterio progresso do pensamento filosoacutefico e se observam os textos na perspectiva de sua proacutepria tipologia e do contexto pragmaacutetico em que foram concebidos estes adquirem valo-res e significados bem mais complexos do que aqueles da simples ldquofi-losofia naturalrdquo (Gemelli 2007b 440)134

No caso do pitagorismo seraacute necessaacuterio superar as riacutegidas dicotomias de uma

historiografia demasiadamente acostumada a distinguir por exemplo entre ciecircncia e

magia escrita e oralidade jocircnicos e itaacutelicos Pois nenhuma destas sozinha pareceraacute dar

133 Heraacuteclito parece criticar a πολυmicroαθίη de Pitaacutegoras em seus fragmentos 40 e 129 (22 B 40 129 DK) 134 Orig ldquoSobald man die Probleme also ausserhalb des starren historistishen Entwurfs Von der unab-dingbaren Entwicklung des philosophischen Denkens angeht um die Text unter dem Blickwinkel ihrer Typologie sowie des pragmatischen Kontextes in dem sie abgefasst worden sind betrachtet gewinnen sie Bedeutungen und Sinngehalte die weit komplexer sind als die einfache ldquoNaturphilolophierdquo

76

conta da complexidade com que se apresentam as linhas fundamentais da organizaccedilatildeo

social e da doutrina pitagoacutericas

Ambas as dimensotildees tanto a sincrocircnica como a diacrocircnica apareceratildeo forte-

mente imbricadas ao longo da tese operacionalizando a definiccedilatildeo de uma categoria his-

toriograacutefica aquela do pitagorismo que compreenda a amplidatildeo e a pluralidade da tra-

diccedilatildeo em uma imagem que resulte quanto mais possiacutevel coerente

Antes mesmo de adentrar no capiacutetulo terceiro e no quarto nas duas questotildees

fundamentais que contribuiacuteram mais decididamente para a definiccedilatildeo da categoria histo-

riograacutefica do pitagorismo seraacute importante verificarmos aquele que pode ser considerado

o ponto de partida a questatildeo vestibular para a historiografia do pitagorismo a pergunta

sobre quem poderia chamar a si mesmo de pitagoacuterico

22 Identidade pitagoacuterica

A definiccedilatildeo da categoria pitagorismo natildeo pode senatildeo comeccedilar de uma pergunta

que somente na primeira impressatildeo pode parecer simples mas que em verdade se de-

monstraraacute de difiacutecil soluccedilatildeo quem pode ser definido como pitagoacuterico no mundo antigo

Muitos autores a partir de Aristoacuteteles tentaram responder a essa pergunta pro-

curando um criteacuterio temaacutetico que permitisse identificar certa unidade doutrinaacuteria Eacute cer-

tamente este o caso haacute pouco citado do privileacutegio concedido por Zeller exatamente agrave

lectio aristoteacutelica sobre os pitagoacutericos privileacutegio este que se tornou ao longo da histoacuteria

da criacutetica moderna um consenso quase indiscutiacutevel pitagoacuterico eacute algueacutem que fala de

nuacutemeros

Este criteacuterio identitaacuterio resistiu majoritariamente ateacute o divisor de aacuteguas represen-

tado pelo artigo de Zhmud (1989) que revela quanto de circular haacute na utilizaccedilatildeo do cri-

teacuterio dos nuacutemeros para identificar um pitagoacuterico

Na grande maioria dos trabalhos sobre o pitagorismo este problema natildeo eacute sequer abertamente considerado e um criteacuterio doutrinaacuterio eacute im-plicitamente usado como o principal meacutetodo de trabalho Um pitagoacuteri-co eacute algueacutem que fala sobre o nuacutemero Estamos aqui na frente de uma

77

oacutebvia petitio principii pois aquilo que necessita ele proacuteprio de uma prova eacute tomado como uma premissa inicial (Zhmud 1989 272)135

Zhmud volta com ainda mais forccedila nessa recusa de um criteacuterio doutrinaacuterio em

sua monografia de 1997 ao ponto de Centrone (1999) observar que a tese deste autor

coloca um ponto final na questatildeo natildeo sendo mais possiacutevel identificar um pitagoacuterico

pela adesatildeo a uma doutrina

Uma das teses centrais desta monografia (Zhmud 1997) isto eacute a ideia pela qual o criteacuterio de identificaccedilatildeo de um pitagoacuterico natildeo seria a pro-fissatildeo de uma doutrina filosoacutefica encontra aqui uma base soacutelida e bem argumentada e natildeo penso possa ser colocada novamente em discussatildeo (Centrone 1999 424)136

Por outro lado a histoacuteria da filosofia acostumou-se a utilizar um criteacuterio geograacute-

fico ao menos desde Dioacutegenes Laeacutercio (D L Vitae I 13-15) para identificar entre ou-

tras escolas filosoacuteficas aquela itaacutelica ou pitagoacuterica Depois do fundador o restante dos

pitagoacutericos eacute elencado natildeo tanto seguindo um estrito criteacuterio doutrinaacuterio (como eacute o caso

de Empeacutedocles ou Eudoxo ou mesmo de Demoacutecrito cf D L Vitae IX) mas por uma

relaccedilatildeo pedagoacutegica direta algum tipo de dependecircncia intelectual de Pitaacutegoras ou outro

celebre pitagoacuterico No caso especiacutefico e uacutenico do pitagorismo pela primeira vez um

grupo de filoacutesofos eacute identificado natildeo a partir de sua coerecircncia doutrinaacuteria (physikoiacute) ou

proximidade geograacutefica (eleatas) mas sim a partir do nome de seu fundador pythago-

reiacuteoi137

Se o que faz algueacutem pitagoacuterico natildeo eacute a adesatildeo a uma doutrina secirc-lo-aacute entatildeo a

adesatildeo a outra grande dimensatildeo que a tradiccedilatildeo aponta como essencial para a identifica-

135 Orig ldquoin the overwhelming majority of works on Pythagoreanism this problem is not raised openly and a doctrinal criterion is implicitly used as the main working method A Pythagorean is one who speaks about Number Here we are faced with an obvious petitio principii that which itself is in need of being proved is taken as a starting premiserdquo 136 Orig ldquoUna delle tesi centrali di questa monografia (Zhmud 1997) e cioegrave lidea che il criterio di individuazione di un pitagorico non consista nella professione di una dottrina filosofica trova qui un fondamento solido e ben argomentato e non penso possa piugrave essere rimessa in discussionerdquo Cf tambeacutem Centrone (2000 145) Nesse ensaio Centrone retoma os mesmos argumentos para tratar do que significa ser pitagoacuterico em eacutepoca imperial 137 Ainda que em Platatildeo apareccedilam tanto os Ἀναξαγόρειοι (Craacutetilo 409b) como os Ἡρακλειτείoi (Teeteto 179e) essas designaccedilotildees natildeo tiveram evidentemente o mesmo sucesso histoacuterico daquela dos pitagoacutericos Para uma ampla resenha do uso do termo nas fontes antigas cf Minar (1942 21-22)

78

ccedilatildeo de um pitagoacuterico isto eacute a do biacuteos de determinado estilo de vida expresso por ako-

uacutesmata e syacutembola isto eacute preceitos ouvidos e sinais de reconhecimento

Parece ser este o caso do longo cataacutelogo de pitagoacutericos que Jacircmblico insere no

final de sua Vida (Iambl VP 267) e que com toda probabilidade eacute de origem aristoxecirc-

nica138 Trata-se de uma longa sequecircncia de 218 nomes ordenados por um criteacuterio geo-

graacutefico Destes a maioria 34 satildeo tarentinos como o proacuteprio Aristoxeno

Entre todos os pitagoacutericos muitos ficaram anocircnimos e desconhecidos de outros ao contraacuterio conhecemos os nomes De Crotona Ipostratos Dimantes Eacutegon Eacutemon Cleoacutestenes Aacutegela Episilo Ficiada Eacutecfanto Timeu Butatildeo Eacuterato Itaneu Rodipo Briantes Evandro Milias An-timedontes Agea Leofrontes Aacutegilo Onata Ipoacutestenes Cleofontes Alcmeon Daacutemocles Milon Mecircnon De Metaponto Brontino Parmisco [] De Eleia Parmecircnides De Ta-rento Filolau Eurito Arquitas Teodoro [] As mulheres pitagoacutericas mais conhecidas satildeo Tiacutemica mulher de Milias Filtides filha de Teo-frio de Crotona e irmatilde de Bindaco Ocelo e Ecelo irmatildeos de Ocelo e Ocilio de Lucacircnia Quiloacutenides filha de Quilon de Esparta Cratesicleia de Lacocircnia esposa de Cleaacutenoros de Esparta Teano [] (Iambl VP 267)139

Eacute significativo notar que em seu formato de classificaccedilatildeo com base geograacutefica

o cataacutelogo pode ser aproximado ao modelo da tradiccedilatildeo epigraacutefica antiga grega ao con-

traacuterio o estilo de classificaccedilatildeo mais em uso na literatura eacute construiacutedo com base nas rela-

ccedilotildees familiares ou de discipulado resultando na imagem de uma aacutervore genealoacutegica

Um exemplo disso eacute Dioacutegenes Laeacutercio e mesmo no capiacutetulo imediatamente anterior da

138 Com essa identificaccedilatildeo concorda a maioria dos comentadores a partir de Rohde (1872) Como ele tambeacutem Delatte (1922 182) Zhmud (1988 273) Centrone (1996 11) Giangiulio (Pitagora 2000 II 545) e Brisson e Segonds (1996) Burkert (1972105 n40) afirma ldquothe only possible candidate for authorship seems to be Aristoxenus himself working in the documentary method of the earliest Peripatosrdquo Jaacute Huff-man (2008 c) levantou recentemente algumas duacutevidas em relaccedilatildeo a esta atribuiccedilatildeo que o levam a uma conclusatildeo cautelosa ldquois does seem most plausible to assume that Aristoxenus is responsible for the core odf catalogue but it is important to recognize both that the arguments for Aristoxenusacutes authorship are not ironclad and that even if the core is assigned to Aristoxenus this does not mean that the catalogue has not undergone modificationsrdquo (Huffman 2008c 297) 139 Orig ldquo ῶν δὲ συmicroπάντων Πυθαγορείων τοὺς microὲν ἀγνῶτάς τε καὶ ἀνωνύmicroους τινὰς πολλοὺς εἰκὸς γεγ-ονέναι τῶν δὲ γνωριζοmicroένων ἐστὶ τάδε τὰ ὀνόmicroαταmiddot Κρ ο τ ω ν ι ᾶ τ α ι Ἱππόστρατος ∆ύmicroας Αἴγων Αἵmicroων Σύλλος Κλεοσθένης Ἀγέλας Ἐπίσυλος Φυκιάδας Ἔκφαντος Τίmicroαιος Βοῦθος Ἔρατος Ἰταν-αῖος Ῥόδιππος Βρύας Εὔανδρος Μυλλίας Ἀντιmicroέδων Ἀγέας ΛεόφρωνἈγύλος Ὀνάτας Ἱπποσθένης Κλεόφρων Ἀλκmicroαίων ∆αmicroοκλῆς Μίλων Μένων Με τ α π ο ν τ ῖ ν ο ι Βροντῖνος Παρmicroίσκος [] Ἐλ -ε ά τ η ς Παρmicroενίδης Τ α ρ α ν τ ῖ ν ο ι Φιλόλαος Εὔρυτος Ἀρχύτας Θεόδωρος[hellip] Πυθαγορίδες δ-ὲ γ υ ν α ῖ κ ε ς αἱ ἐπιφανέσταταιmiddot Τιmicroύχαγυνὴ [ἡ] Μυλλία τοῦ Κροτωνιάτου Φιλτὺς θυγάτηρ Θεόφριος τοῦ Κροτωνιάτου Βυνδάκου ἀδελφή Ὀκκελὼ καὶ Ἐκκελὼ ltἀδελφαὶ Ὀκκέλω καὶ Ὀκκίλωgt τῶν Λευκα-νῶνΧειλωνὶς θυγάτηρ Χείλωνος τοῦ Λακεδαιmicroονίου Κρατησίκλεια Λάκαινα γυνὴ Κλεάνορος τοῦ Λακ-εδαιmicroονίου Θεανὼ []rdquo (Iambl VP 267)

79

proacutepria Vida de Jacircmblico (Iambl VP 266) Essa particularidade com a inclusatildeo de 17

mulheres e o desconhecimento de qualquer nome sucessivo ao seacuteculo IV aEC e de

grande parte dos apoacutecrifos da literatura pseudopitagoacuterica heleniacutestica (Thesleff 1965)

tornam o cataacutelogo um achado com toda probabilidade muito antigo e extremamente

valioso para o objetivo aqui declarado de procurar os criteacuterios de identificaccedilatildeo dos pita-

goacutericos De fato natildeo haacute aparentemente qualquer aproximaccedilatildeo possiacutevel entre pitagoacutericos

como Filolau de um lado e Apolocircnio do outro tanto do ponto de vista teoreacutetico-

doutrinaacuterio como das relaccedilotildees histoacutericas entre eles ou de cada um com Pitaacutegoras O

uacutenico criteacuterio plausiacutevel de sua identificaccedilatildeo como pitagoacutericos torna-se o de uma adesatildeo

de cada um antes que a alguma doutrina especiacutefica a um estilo de vida a um biacuteos que

ambos reconhecem como pitagoacuterico Se eacute possiacutevel concordar com Huffman (1993 11)

quando fala de um estilo de vida que todavia ldquoindubitavelmente devia incluir alguns

princiacutepios morais como a exortaccedilatildeo a viver uma vida simples e a praticar a temperacircn-

ciardquo esses princiacutepios morais satildeo tatildeo geneacutericos ao ponto de novamente natildeo poderem

constituir propriamente um sinal de distinccedilatildeo do pitagoacuterico com relaccedilatildeo ao sophoacutes anti-

go em geral O proacuteprio Hesiacuteodo poderia com toda probabilidade compartilhaacute-los140

Eacute significativo o insucesso da recente tentativa de formulaccedilatildeo por parte de

Huffman de criteacuterios que permitiriam identificar no cataacutelogo de Jacircmblico ndash assim co-

mo para aleacutem dele ndash determinado filoacutesofo como pitagoacuterico Huffman (2008b 299) pos-

tula trecircs destes a) a existecircncia de um testemunho indiscutiacutevel e antigo isto eacute anterior ao

seacuteculo IV aEC de que tal filoacutesofo foi considerado pitagoacuterico b) evidecircncia indiscutiacutevel

de que tal filoacutesofo tenha adotado o esquema metafiacutesico baacutesico dos pitagoacutericos que

Huffman faz coincidir com aquele descrito por Aristoacuteteles e encontrado nos fragmentos

de Filolau e que a seu ver corresponderia fundamentalmente com a doutrina ldquotudo po-

de ser conhecido atraveacutes do nuacutemerordquo141 c) evidecircncia de que a personagem estaacute incorpo-

rada na tradiccedilatildeo biograacutefica pitagoacuterica tendo sido disciacutepulo ou interlocutor de algum

pitagoacuterico

Ainda que o esforccedilo de Huffman seja de fato original e louvaacutevel seu resultado

natildeo permite chegar agravequela ldquovigorosardquo (vigorous) tradiccedilatildeo pitagoacuterica (2008c 301) que o

140 Orig ldquoindoubtely also included certain moral principles such as the exortation to live a simple life and to practice temperancerdquo 141 A mesma ideia estava jaacute em Huffman (1993 74) A questatildeo receberaacute a atenccedilatildeo que certamente merece no capiacutetulo quarto

80

autor pretendia Pois a resposta aos trecircs criteacuterios dependeraacute ainda e fortemente de uma

preacute-compreensatildeo ndash esta sim discutiacutevel ndash do que seja um testemunho indiscutivelmente

antigo (a) ou de qual seja o pretenso esquema metafiacutesico pitagoacuterico (b) O proacuteprio

Huffman ainda que natildeo pelos mesmos motivos agora sugeridos acaba reconhecendo

que uma longa lista de pitagoacutericos ainda resultaa da aplicaccedilatildeo destes criteacuterios ldquorigoro-

sosrdquo Contudo essa natildeo passaria de um

reflexo do fato que Pitaacutegoras era famoso por ter deixado atraacutes dele um estilo de vida de forma que junto com pitagoacutericos de tendecircncia cos-moloacutegica e metafiacutesica como eacute o caso de Filolau e Arquitas existiu grande nuacutemero de outras figuras que podem ser chamadas de pitagoacuteri-cos simplesmente com base na maneira com que eles viviam suas vi-das (Huffman 2008c 301)142

Assim novamente o criteacuterio mais confiaacutevel aquele do biacuteos conforme transmiti-

do pela tradiccedilatildeo exclui qualquer possibilidade de distinccedilatildeo com base nas doutrinas Eacute

portanto o caso de concordar com Centrone quando conclui que

O pitagorismo natildeo surgiu como uma escola filosoacutefica e natildeo pode ser uma doutrina filosoacutefica o que permite identificar um pitagoacuterico Um criteacuterio mais confiaacutevel consistiria em considerar pitagoacutericos aqueles que a tradiccedilatildeo antiga qualifica como disciacutepulos ou sucessores de Pitaacute-goras [] isso exclui a delimitaccedilatildeo do fenocircmeno pitagoacuterico a um acircm-bito especiacutefico bem preciso ou a uma filosofia monotemaacutetica (Centro-ne 1999 441)143

Dessa forma autores com interesses que vatildeo da fisiologia agrave botacircnica como eacute o

caso de Alcmeon ou Menestor podem ser considerados pitagoacutericos a todos os efeitos

Poreacutem a adesatildeo a um particular estilo de vida pressupotildee ao menos em seu mo-

mento inaugural preacute-socraacutetico a existecircncia real de uma comunidade que se estrutura a

partir do mesmo estilo de vida Mesmo depois em idade heleniacutestica quando a definiccedilatildeo

do biacuteos poderaacute ser uma escolha individual a comunidade dos iniacutecios teraacute o sentido de

142 Orig ldquoreflexion of the fact that Pythagoras was famous for leaving behind him a way of life so that in addition to Pythagoreans of a cosmological and metaphysical bent such as Philolaus and Archytas there were a number of other figures who can be called Pythagoreans merely on the basis of the way they lived their livesrdquo 143 Cf tambeacutem Zeller e Mondolfo (1938 434) Orig ldquoIl pitagorismo non egrave sorto come una scuola filosofica e non puograve essere una dottrina filosofica ciograve che permette di identificare un pitagorico Un criterio piugrave affidabile consiste nel considerare pitagorici coloro che la tradizione antica qualifica come discepoli o successori di Pitagora e aderenti allassociazione [hellip] ciograve esclude la delimitazione del fenomeno pitagorico a un ambito scientifico ben preciso o a una filosofia monotematicardquo

81

um modelo distante no tempo a ser seguido144 Contudo que tipo de comunidade seria

aquela da koinoniacutea pitagoacuterica

Platatildeo em Repuacuteblica cita duas vezes nominalmente os pitagoacutericos na primeira

referecircncia daacute a entender que a comunidade compartilhava de um saber privado (idiacuteon)

Mas entatildeo senatildeo na vida puacuteblica ao menos naquela privada se diz que Homero enquanto era vivo tenha seguido pessoalmente a educa-ccedilatildeo dos disciacutepulos que amavam sua frequentaccedilatildeo e que tenha transmi-tido agraves futuras geraccedilotildees certo caminho de vida homeacuterico da mesma maneira que Pitaacutegoras que por esse motivo foi sobremaneira amado e seus disciacutepulos ateacute hoje chamam pitagoacuterico este estilo de vida e por este parecem distinguir-se dos outros (Resp X 600b)145

O objeto desta paideacuteia pitagoacuterica natildeo seria tanto uma doutrina filosoacutefica ou cien-

tiacutefica e sim um troacutepos toucirc biacuteos um estilo de vida Em sentido contraacuterio todavia na

segunda referecircncia ao tema Platatildeo parece querer identificar o pitagorismo com uma

escola filosoacutefica e de pesquisa

Eacute provaacutevel que como os olhos satildeo conformados pela astronomia as-sim os ouvidos o sejam para o movimento harmocircnico e que estas duas ciecircncias sejam de alguma forma irmatildes como afirmam os pitagoacutericos e tambeacutem noacutes (Resp VII 530d)146

A mesma ideia parece estar expressa na paacutegina seguinte de Repuacuteblica quando

satildeo opostos de um lado aqueles que torturam as cordas e antepotildeem os ouvidos ao pen-

samento fazendo pesquisas musicoloacutegicas empiacutericas e do outro a pesquisa metoacutedica

dos pitagoacutericos (Resp VII 531a-d)147

144 Para ampla discussatildeo desta mudanccedila da concepccedilatildeo do biacuteos em eacutepoca heleniacutesitica cf Vegetti (1989 271-300) 145 Orig ldquo Ἀλλὰ δὴ εἰ microὴ δηmicroοσίᾳ ἰδίᾳ τισὶν ἡγεmicroὼν παιδείας αὐτὸς ζῶν λέγεται Ὅmicroηρος γενέσθαι οἳ ἐκεῖνον ἠγάπων ἐπὶ (b) συνουσίᾳ καὶ τοῖς ὑστέροις ὁδόν τινα παρέδοσαν βίου Ὁmicroηρικήν ὥσπερ Πυθαγ-όρας αὐτός τε διαφερόντως ἐπὶ τούτῳ ἠγαπήθη καὶ οἱ ὕστεροι ἔτι καὶ νῦν Πυθαγόρειον τρόπον ἐπονοmicroά-ζοντες τοῦ βίου διαφανεῖς πῃ δοκοῦσιν εἶναι ἐν τοῖς ἄλλοιςrdquo (Plato Resp X 600a-b) 146 Orig ldquo Κινδυνεύει ἔφην ὡς πρὸς ἀστρονοmicroίαν ὄmicromicroατα πέπηγεν ὣς πρὸς ἐναρmicroόνιον φορὰν ὦτα παγῆναι καὶ αὗται ἀλλήλων ἀδελφαί τινες αἱ ἐπιστῆmicroαι εἶναι ὡς οἵ τε Πυθαγόρειοί φασι καὶ ἡmicroεῖςrdquo (Plato Resp VII 530d) 147 Cf para a mesma aproximaccedilatildeo entre muacutesica e astronomia tambeacutem Craacutetilo (405d) Para uma resenha da recusa do empirismo e a irmandade das duas ciecircncias cf Vegetti (1999 86-88) e Meriani (2003)

82

Um fragmento de Arquitas cuja autenticidade foi defendida recentemente por

Huffman (1985 2005 112-114) apresenta a mesma ideia da irmandade entre astronomia

e muacutesica

Parece que os que se dedicaram agraves ciecircncias matemaacuteticas alcanccedilaram bons resultados e natildeo eacute estranho que eles raciocinassem apropriada-mente sobre cada coisa pois conhecendo bem a natureza do todo de-viam ver bem mesmo nas coisas particulares como estas eram Assim nos forneceram claras noccedilotildees a respeito da velocidade dos astros o amanhecer e o pocircr do sol como tambeacutem sobre a geometria a aritmeacuteti-ca e natildeo menos sobre a muacutesica Essas ciecircncias parecem de fato serem irmatildes (47 B1 DK)148

A aproximaccedilatildeo desse fragmento de Arquitas ao segundo testemunho de Platatildeo

acima sugere um caminho de soluccedilatildeo para a aparente contraditoriedade da tradiccedilatildeo pla-

tocircnica enquanto na primeira passagem Platatildeo entenderia referir-se ao protopitagoris-

mo a segunda diria respeito ao pitagorismo a ele contemporacircneo notadamente agrave figura

de Arquitas Pois natildeo somente as comunidades pitagoacutericas jaacute teriam desaparecido apoacutes

as revoltas antipitagoacutericas de meados do V seacuteculo aEC mas o proacuteprio Arquitas aparece

sempre na tradiccedilatildeo como um pensador e cientista independente e portanto natildeo utilizaacute-

vel para falar da comunidade pitagoacuterica e seu biacuteos149 O que se vecirc em accedilatildeo aqui eacute a di-

mensatildeo diacrocircnica em busca de um caminho pelos diferentes estratos das tradiccedilotildees que

contribuem para a definiccedilatildeo da categoria historiograacutefica do pitagorismo150

Em relaccedilatildeo ao testemunho aristoteacutelico para aleacutem da discutida expressatildeo oi kalo-

uacutemenoi pythagoreiacuteoi mencionada anteriormente as referecircncias aos contributos pitagoacute-

ricos agrave matemaacutetica e agrave fiacutesica (cf Met 985b23) fariam pensar em uma identificaccedilatildeo prio-

ritaacuteria do pitagorismo com uma comunidade cientiacutefica e filosoacutefica E todavia os frag-

mentos que restam das obras do corpus aristoteacutelico expressamente dedicadas ao estudo

dos pitagoacutericos (fr 191-205 Rose) parecem ao contraacuterio revelar outras abordagens

148 Orig ldquo Kαλῶς microοι δοκοῦντι τοὶ περὶ τὰ microαθήmicroατα διαγνώmicroεναι καὶ οὐθὲν ἄτοπον ὀρθῶς αὐτούς οἷά ἐντι περὶ ἑκάστων φρονέεινmiddot περὶ γὰρ τᾶς τῶν ὅλων φύσιος καλῶς διαγνόντες ἔmicroελλον καὶ περὶ τῶν κατὰ microέρος οἷά ἐντι καλῶς ὀψεῖσθαι περί τε δὴ τᾶς τῶν ἄστρων ταχυτᾶτος καὶ ἐπιτολᾶν καὶ δυσίων παρέδω-καν ἁmicroῖν σαφῆ διάγνωσιν καὶ περὶ γαmicroετρίας καὶ ἀριθmicroῶν καὶ σφαιρικᾶς καὶοὐχ ἥκιστα περὶ microωσικᾶς ταῦτα ὰρ τὰ microαθήmicroατα δοκοῦντι ἦmicroεν ἀδελφεάrdquo (47 B1 DK) 149 Aristoacuteteles de fato trata de Arquitas natildeo no interior dos assim chamados pitagoacutericos mas dedica ao filosofo-rei de Tarento uma consideraccedilatildeo a parte Cf tambeacutem abaixo (412) 150 Sobre a autenticidade do fr 1 de Arquitas levantaram duacutevidas Burkert (1972 379) e Centrone (1996 70n 21) Para a ideia da inatualidade de Arquitas para uma discussatildeo sobre a comunidade protopitagoacuterica cf Centrone (1996 70)

83

Aristoacuteteles se ocupa aqui da vida de Pitaacutegoras e dos akouacutesmata e syacutembola que orientam

a vida comunitaacuteria pitagoacuterica Ceacutelebre eacute o testemunho do fr 192 Rose

Aristoacuteteles em sua obra Sobre a filosofia pitagoacuterica daacute notiacutecia do fato de que seus seguidores custodiam entre os segredos mais riacutegidos esta distinccedilatildeo dos seres viventes dotados de razatildeo um eacute o deus o outro eacute o homem o terceiro possui a natureza de Pitaacutegoras (14 A7 DK = Iam-bl VP 31)151

Portanto mesmo o testemunho de Aristoacuteteles como eacute o caso de Platatildeo natildeo eacute

decisivo para compreender qual seria a caracteriacutestica principal da comunidade se a da

investigaccedilatildeo cientiacutefica ou aquela da vida em comum orientada por akouacutesmata e

syacutembola

Eacute provaacutevel que a pergunta feita idealmente a Platatildeo e Aristoacuteteles sobre qual se-

ria a caracteriacutestica saliente da koinoniacutea pitagoacuterica seja de fato mal colocada A aporiacutea

sugere que seja preciso portanto por um lado rever metodologicamente a proacutepria ten-

tativa de separaccedilatildeo entre as duas alternativas por outro retomar a busca pelas modali-

dades dessa comunidade de um ponto de vista textual alternativo

23 A koinoniacutea pitagoacuterica

Os modelos histoacutericos gregos de associaccedilotildees satildeo fundamentalmente de dois ti-

pos o thiacuteasos e a hetairiacutea Enquanto o primeiro estaacute mais diretamente ligado agrave praacutetica

comum de cultos agrave partilha de ritos e saberes misteacutericos a hetairiacutea estaacute mais ligada agrave

ideia de uma associaccedilatildeo de philoiacute no sentido poliacutetico de aliados e confrades que se en-

contram em um clube privado A comunidade pitagoacuterica eacute quase que unanimemente

considerada pela tradiccedilatildeo uma hetairiacutea ainda que bastante sui generis de fato procu-

rando justificar a violenta revolta contra os pitagoacutericos Jacircmblico revela o sentimento de

estranhamento da populaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave comunidade

Tomaram a frente da revolta exatamente aqueles que estavam em rela-ccedilotildees de parentesco mais proacuteximas com os pitagoacutericos E a razatildeo era

151 Orig ldquo διακηρύττει ἱστορεῖ δὲ καὶ Ἀριστοτέλης ἐν τοῖς περὶ τῆς Πυθαγορικῆς φιλοσοφίας διαίρεσίν τινα τοιάνδε ὑπὸ τῶν ἀνδρῶν ἐν τοῖς πάνυ ἀπορρήτοις διαφυλάττεσθαιmiddot τοῦ λογικοῦ ζῴου τὸ microέν ἐστι θεός τὸ δὲ ἄνθρωπος τὸ δὲ οἷον Πυθαγόραςrdquo (14 A7 DK = Iambl VP 31)

84

que estes ndash exatamente como a populaccedilatildeo em geral ndash ficavam irritados com a conduta dos pitagoacutericos em praticamente qualquer aspecto dela na medida em que esta era diferente daquela dos outros (Iambl VP 255)152

Essa diferenccedila da comunidade ligada a algumas praacuteticas estranhas agrave cultura e

economia do tempo como aquela da partilha dos bens era com toda probabilidade

parte essencial do motivo da inimizade ndash acenada no testemunho acima ndash por parte das

proacuteprias famiacutelias dos membros da comunidade Sublinha-se acima no interior do pano-

rama da criacutetica a questatildeo da presenccedila poliacutetica da comunidade pitagoacuterica essa presenccedila

sugeriria que a melhor identificaccedilatildeo seria mesmo com o modelo da hetairiacutea E todavia

as fontes satildeo bastante insistentes em nos apresentarem uma comunidade francamente

dedicada ao culto e a uma vida comunitaacuteria baseada em akouacutesmata e syacutembola isto eacute em

palavras secretas e sinais de identificaccedilatildeo Com isso ganharia forccedila a hipoacutetese contraacuteria

isto eacute de a comunidade pitagoacuterica encontrar seu lugar tipoloacutegico mais proacuteprio no acircmbi-

to do thiacuteasos153

Baseando-se na inegaacutevel caracteriacutestica da diferenccedila da comunidade Burkert

(1982 2-3 19) seguido por Riedweg (2002 166-171) considera que a melhor defini-

ccedilatildeo para a comunidade pitagoacuterica seja o termo seita154 Consciente do uso comum de-

preciativo do termo que leva diversos autores incluindo o presente a preferir uma de-

signaccedilatildeo mais neutra como aquela ateacute aqui usada de comunidade a traduzir o grego

koinoniacutea Burkert reclama para o termo seita a vantagem de um uso mais teacutecnico socio-

loacutegico na esteira dos trabalhos de Bryan Wilson e Arnaldo Momigliano (Burkert 1982

3)

Dessa forma poder-se-atildeo identificar no pitagorismo as caracteriacutesticas miacutenimas

que definem uma seita do ponto de vista da sociologia dos grupos religiosos Essas ca-

152 Orig ldquo ἡγεmicroόνες δὲ ἐγένοντο τῆς διαφορᾶς οἱ ταῖς συγγενείαις ltκαὶgt ταῖς οἰκειότησιν ἐγγύτατα καθε-στηκότες τῶν Πυθαγορείων αἴτιον δ ἦν ltὅτιgt τὰ microὲν πολλὰ αὐτοὺς ἐλύπει τῶν πραττοmicroένων ὥσπερ καὶ τοὺς τυχόντας ἐφ ὅσον ἰδιασmicroὸν εἶχε παρὰ τοὺς ἄλλουςrdquo (Iambl VP 255) 153 Para ampla resenha da terminologia utilizada pelas fontes antigas para designar a comunidade pitagoacute-rica cf Minar (1942 15-35) Tanto Philip (1966 144) quanto Zhmud (1992 241-1) consideram impro-vaacutevel a associaccedilatildeo dos pitagoacutericos com o modelo do thiacuteasos por causa da evidente atuaccedilatildeo poliacutetica da comunidade Centrone (1996 67-68) adota uma posiccedilatildeo menos ceacutetica reconhecendo que ainda que al-guns traccedilos esoteacutericos da comunidade fossem de fato sublinhados pela tradiccedilatildeo tardia esse fato natildeo auto-riza a negar tout court qualquer valor histoacuterico a eles 154 O primeiro a usar o termo sekte eacute Rohde (1898 103ss) O uso de uma terminologia advinda da socio-logia da religiatildeo natildeo eacute incomum Toynbee (1939 84) e Jaeger (1947 61) chegam a utilizar o termo chur-ch para referir-se agrave comunidade pitagoacuterica

85

racteriacutesticas contribuem para a descriccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica como de um grupo

de proporccedilotildees numeacutericas bastante reduzidas de caraacuteter elitaacuterio modos alternativos e

algum niacutevel de sigilo encontros regulares ou vida em comum certa partilha econocircmica

e espiritual submissatildeo agrave autoridade de um guia carismaacutetico e forte sentimento identitaacute-

rio que leva agrave separaccedilatildeo das pessoas entre noacutes e eles Accedilotildees de vinganccedila contra os apoacutes-

tatas prescriccedilotildees reprodutivas que garantam a sobrevivecircncia diacrocircnica da comunidade

e intensa mobilidade geograacutefica concluem um retrato no qual como se veraacute podem ser

reconhecidas as caracteriacutesticas salientes do estilo de vida pitagoacuterico

Na peneira da tradiccedilatildeo de fato a classificaccedilatildeo proposta por Burkert revela-se

em geral bastante apropriada Seratildeo visitadas algumas das tradiccedilotildees mais salientes que

dizem respeito a essa possiacutevel identificaccedilatildeo do pitagorismo com uma seita As duas Vi-

das de Porfiacuterio e Jacircmblico (de maneira especial esta uacuteltima) satildeo ricas fontes de infor-

maccedilatildeo sobre a comunidade e as regras de seu biacuteos Ainda que marcadas por interpola-

ccedilotildees tardias eacute certamente possiacutevel identificar estratos mais antigos da tradiccedilatildeo em mui-

tos dos testemunhos que iratildeo receber nossa atenccedilatildeo a seguir155

Nuacutemero limitado Os pitagoacutericos ainda que influentes nas cidades por eles ad-

ministradas na Magna Greacutecia constituiacuteram sempre uma comunidade minoritaacuteria tanto

no interior dos grupos aristocraacuteticos das mesmas cidades como no acircmbito maior da cul-

tura intelectual de seu tempo Apesar de os quatro discursos poliacuteticos de Pitaacutegoras na

ocasiatildeo da chegada em Crotona terem conquistado ndash segundo Porfiacuterio (VP 20) e Jacircm-

blico (VP 30) ndash um auditoacuterio de duas mil pessoas somente seiscentas delas se tornaram

mesmo disciacutepulos ldquonatildeo somente conduzidos por ele agrave filosofia mas tambeacutem prontos a

lsquoviver em comumrsquo como se dizia conforme seus preceitosrdquo (Iambl VP 29)156 A tradi-

ccedilatildeo parece sugerir jaacute uma seleccedilatildeo inicial portanto O mesmo cataacutelogo de Jacircmblico aci-

ma citado em sua intenccedilatildeo de contar os pitagoacutericos pressupotildee certamente um nuacutemero

limitado deles

155 Para uma avaliaccedilatildeo da influecircncia da tradiccedilatildeo pitagoacuterica sobre a evoluccedilatildeo do gecircnero literaacuterio das Vidas de filoacutesofos no mundo antigo cf Goulet (2001 23-61 espec 32-34 com uma anaacutelise de Porph VP e Iambl VP) 156 Orig ldquoκαὶ ἐν πρώτῃ Κρότωνι ἐπισηmicroοτάτῃ πόλει προτρεψάmicroενος πολλοὺς ἔσχε ζηλωτάς ὥστ-ε [ἱστορεῖταιἑξακοσίους αὐτὸν ἀνθρώπους ἐσχηκέναι οὐ microόνον ὑπrsquo αὐτοῦ κεκινηmicroένους εἰς τὴν φιλοσ-οφίαν ἧς microετεδίδου ἀλλὰ καὶ τὸ λεγόmicroενον κοινοβίους καθὼς προσέταξε γενοmicroένουςrdquo (Iambl VP 29) Com o nuacutemero de 600 concorda Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 15) Jaacute para Apolocircnio de Tiana o nuacutemero era ainda mais restrito limitando-se a 300 (FGrHist 1064 F 254)

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Caraacuteter elitaacuterio A tradiccedilatildeo anteriormente referida dos discursos puacuteblicos de Pi-

taacutegoras por ocasiatildeo de sua chegada em Crotona (Porph VP 20 Iambl VP 30) e que

resulta na adesatildeo dos seiscentos poderia sugerir que fazer parte da comunidade e ter

acesso aos seus ensinamentos fosse algo faacutecil Uma tradiccedilatildeo de Antifonte citada por

Porfiacuterio (VP 9) recorda que ainda em Samos Pitaacutegoras teria fundado um didaskaleiacute-

on uma escola chamada de hemiciclo de Pitaacutegoras que reunia os que discutiam sobre

negoacutecios puacuteblicos Ele proacuteprio todavia refugiava-se em um aacutentros uma gruta onde

poderia consagrar-se exclusivamente agrave filosofia a sugerir que este caraacuteter elitaacuterio e ex-

clusivo da comunidade pitagoacuterica estaria presente jaacute mesmo nos anos iniciais da forma-

ccedilatildeo de Pitaacutegoras

O mesmo caraacuteter exclusivista pode ser observado no riacutegido criteacuterio de admissatildeo

agrave proacutepria comunidade marcado por um periacuteodo probatoacuterio de dokimasiacutea

Quando alguns jovens chegavam com o desejo de conviver com ele natildeo os admitia imediatamente esperando que fossem examinados e julgados Primeiramente inteirava-se das relaccedilotildees que eles mantive-ram com seus genitores e os outros parentes antes de se aproximarem a ele depois verificava quem entre eles ria de maneira desconvenien-te calava ou falava de modo despropositado e ainda quais eram suas paixotildees quem eram seus parentes que relaccedilotildees mantinham com estes a que atividades dedicavam a maior parte do dia e qual era o motivo de sua alegria e dor [] Aqueles que superavam este exame eram desprezados por trecircs anos com a intenccedilatildeo de colocar agrave prova sua fir-meza e real amor pelo conhecimento [] Apoacutes esse periacuteodo impunha aos aspirantes um silecircncio de cinco anos para testar sua continecircncia Pois de todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute cer-tamente a mais dura como bem demonstram os fundadores dos ritos misteacutericos (Iambl VP 71-72)157

A fonte da qual bebem tanto Porfiacuterio como Jacircmblico para estas referecircncias ao

biacuteos pitagoacuterico eacute Nicocircmaco A suspeita de que essa extrema rigidez da organizaccedilatildeo do

acesso agrave comunidade pitagoacuterica (trecircs anos de descaso aos quais eram seguidos mais

157 Orig ldquo προσιόντων τῶν νεωτέρων καὶ βουλοmicroένων συνδιατρίβειν οὐκ εὐθὺς συνεχώρει microέχρις ἂν αὐτῶν τὴν δοκιmicroασίαν καὶ τὴν κρίσιν ποιήσηται πρῶτον microὲν πυνθανόmicroενος πῶς τοῖς γονεῦσι καὶ τοῖς οἰκείοις τοῖς λοιποῖςπάρεισιν ὡmicroιληκότες ἔπειτα θεωρῶν αὐτῶν τούς τε γέλωτας τοὺς ἀκαίρους καὶ τὴν σιωπὴν καὶ τὴν λαλιὰν παρὰ τὸ δέον ἔτι δὲ τὰς ἐπιθυmicroίας τίνες εἰσὶ καὶ τοὺς γνωρίmicroους οἷς ἐχρῶντο καὶ τὴν πρὸς τούτους ὁmicroιλίαν καὶ πρὸς τίνι microάλιστα τὴν ἡmicroέραν σχολάζουσι καὶ τὴν χαρὰν καὶτὴν λύπην ἐπὶ τίσι τυγχάνουσι ποιούmicroενοι []ἠθῶν ἐν τῇ ψυχῇ καὶ ὅντινα δοκιmicroάσειεν οὕτως ἐφίειτριῶν ἐτῶν ὑπερο-ρᾶσθαι δοκιmicroάζων πῶς ἔχει βεβαιότητος καὶ ἀληθινῆς φιλοmicroαθείας [] microετὰ δὲ τοῦτο τοῖς προσιοῦσι προσέταττε σιωπὴν πενταετῆ ἀποπειρώmicroενος πῶς ἐγκρατείας ἔχουσιν ὡς χαλεπώτερον τῶν ἄλλων ἐγκ-ρατευmicroάτων τοῦτο τὸ γλώσσης κρατεῖν καθὰ καὶ ὑπὸ τῶν τὰ microυστήρια νοmicroοθετησάντων ἐmicroφαίνεται ἡmicroῖνrdquo (Iambl VP 71-72)

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cinco de silecircncio) seja na realidade uma retroprojeccedilatildeo dele eacute levantada tanto por Von

Fritz (1940 220) como por Philip (1966 140) E todavia haacute paralelo testemunho em

Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) cuja fonte seria desta vez Timeu que confirmaria uma pro-

vaacutevel antiguidade do testemunho

[Seus disciacutepulos] permaneciam em silecircncio por cinco anos limitando-se a escutar seus discursos sem nunca ver Pitaacutegoras ateacute que natildeo supe-rassem a prova a partir desse momento tornavam-se parte de sua casa e eram admitidos agrave sua presenccedila (D L Vitae VIII 10)158

Vida em comum (cenoacutebio) e comunhatildeo dos bens O testemunho acima citado eacute

rico de outros sinais sectaacuterios como o do sigilo e de maneira especial da comunhatildeo

dos bens A mesma passagem de Jacircmblico acima citada referida agrave dokimasiacutea dos jovens

aspirantes detalha as modalidades dessa partilha

Nesse periacuteodo os bens de cada um isto eacute suas propriedades eram co-locadas em comum e confiadas aos membros notaacuteveis da comunidade encarregados disso chamados poliacuteticos alguns deles eram adminis-tradores outros legisladores (Iambl VP 72)159

O testemunho mais antigo da comunhatildeo dos bens parece ser novamente o de

Timeu um escoacutelio ao Fedro (Schol In Phaedr 279c) corresponde literalmente a uma

passagem do livro IX de Timeu

Ora quando os jovens vinham ateacute ele e queriam viver com ele natildeo lhes permitia fazecirc-lo mas respondia que era necessaacuterio que colocas-sem em comum seus bens (Schol In Phaedr 279c = FGrHist 566 F 13)160

158 Orig ldquo πενταετίαν θrsquo ἡσύχαζον microόνον τῶν λόγων κατακούοντες καὶ οὐδέπω Πυθαγόραν ὁρῶντες εἰς ὃ δοκιmicroασθεῖενmiddot τοὐντεῦθεν δrsquo ἐγίνοντο τῆς οἰκίας αὐτοῦ καὶ τῆς ὄψεως microετεῖχονrdquo (D L Vitae VIII 10) Cf para esta referecircncia Centrone (1996 74) 159 Orig ldquo ἐν δὴ τῷ χρόνῳ τούτῳ τὰ microὲν ἑκάστου ὑπάρχοντα τουτέστιν αἱ οὐσίαι ἐκοινοῦντο διδόmicroενα τοῖς ἀποδεδειγmicroένοις εἰς τοῦτο γνωρίmicroοις οἵπερ ἐκαλοῦντο πολιτικοί καὶ οἰκονοmicroικοί τινες καὶ νοmicroοθετ-ικοὶ ὄντεςrdquo (Iambl VP 72) 160 Orig ldquoπροσιόντων δrsquo οὖν αὐτῷ τῶν νεωτέρων καὶ βουλοmicroένων συνδιατρίβειν οὐκ εὐθὺς συνεχώρησ-εν ἀλλrsquo ἔφη δεῖν καὶ τὰς οὐσίας κοινὰς εἶναι τῶν ἐντυγχανόντωνrdquo (Schol In Phaedr 279c = FGrHist 566 F 13)

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Trata-se aqui do ceacutelebre dito koinagrave tagrave phiacutelocircn (ou koinagrave tagrave tocircn phiacutelocircn) que apare-

ce referido aos pitagoacutericos por Platatildeo161 Natildeo procede a observaccedilatildeo de Philip (1966

142) pela qual em Aristoacuteteles ao contraacuterio ldquoseu significado eacute bastante natildeo pitagoacutericordquo

(its meaning is quite un-Pythagoreanrdquo) o trecho da Eacutetica Nicomaqueia por ele citado

(EN 1159b 25-32) ao contraacuterio ainda que sem uma referecircncia direta agrave origem pitagoacuteri-

ca do dito insere o koinagrave tagrave phiacutelocircn no interior de uma discussatildeo de marco notadamente

pitagoacuterico sobre a comunidade de amigos como promotora de justiccedila e por consequecircn-

cia em evidente sentido econocircmico

Parece portanto conforme dissemos no iniacutecio que amizade e justiccedila digam respeito agraves mesmas coisas e se deem entre as mesmas pessoas De fato em cada comunidade parece haver algo de justo e amizade Assim chamam-se amigos os companheiros de navegaccedilatildeo e de armas e da mesma maneira aqueles que fazem parte de outras comunidades Conforme participam da comunidade haacute amizade e tambeacutem justiccedila E diz bem o proveacuterbio ldquoas coisas dos amigos satildeo comunsrdquo pois a ami-zade estaacute na comunidade (EN 1159b 25-32)162

Natildeo por acaso diversos autores utilizaram a expressatildeo comunismo ainda que

muitas vezes entre aspas considerando o evidente anacronismo do termo ndash para indicar

essa praacutetica do mote koinagrave tagrave phiacutelocircn entre os pitagoacutericos163 Essa mesma relaccedilatildeo entre

phiacuteloi e diacutekaion eacute encontrada em Platatildeo que por outro lado natildeo tem duacutevidas em referir

o dito diretamente aos pitagoacutericos Natildeo casualmente essa ligaccedilatildeo entre pitagorismo e a

philiacutea aparece em um passo central de Repuacuteblica No comeccedilo do livro V (449c) Adi-

manto a convite de Polemarco repreende Soacutecrates por ter deixado de lado em sua ar-

gumentaccedilatildeo sobre a cidade justa e perfeita o problema levantado pelo dito koinaacute tagrave phiacute-

locircn aplicado a mulheres e filhos fazendo assim surgir a suspeita de querer fugir da

questatildeo

161 Cf as referecircncias aos passos platocircnicos nos paraacutegrafos imediatamente a seguir 162 Orig ldquoἜοικε δέ καθάπερ ἐν ἀρχῇ εἴρηται περὶ ταὐτὰ καὶ ἐν τοῖς αὐτοῖς εἶναι ἥ τε φιλία καὶ τὸ δίκα-ιον ἐν ἁπάσῃ γὰρ κοινωνίᾳ δοκεῖ τι δίκαιον εἶναι καὶ φιλία δέmiddot προσαγορεύουσι γοῦν ὡς φίλους τοὺς σύmicroπλους καὶ τοὺς συστρατιώτας ὁmicroοίως δὲ καὶ τοὺς ἐνταῖς ἄλλαις κοινωνίαις καθrsquoὅσον δὲ κοινωνοῦσ-ιν ἐπὶ τοσοῦτόν ἐστι φιλίαmiddot καὶ γὰρ τὸ δίκαιον καὶ ἡ παροιmicroία ldquoκοινὰ τὰ φίλωνrdquo ὀρθῶςmiddot ἐν κοινωνίᾳ γὰρ ἡ φιλίαrdquo (Arist EN 1159b 25-32) 163 Entre eles Minar (1942 29 32 35) Conybeare em sua traduccedilatildeo da Vida de Apolocircnio de Tiana de Filostrato (1948-50) e Burkert (1982 15)

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Parece-nos que vocecirc esteja querendo se safar rapidamente roubando uma parte inteira do discurso (e natildeo certamente a menor) para natildeo ter que discuti-lo que tenha pensado em fugir deixando cair de leve a-quele dito pelo qual com relaccedilatildeo agraves mulheres e agraves crianccedilas para todos deveria ser evidente que tudo deve ser em comum entre os amigos (Resp V 449c)164

O dito introduzido phaulocircs de leve no livro IV (424a) requer ao contraacuterio ndash ao

dizer de Adimanto ndash uma explicaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao troacutepos tecircs koinoniacuteas (V 449d) ao

tipo aos modos dessa comunhatildeo Dessa forma Soacutecrates passaraacute a representar em deta-

lhes o gynaikeiacuteon draacutema da cidade O leacutexico dessa paacutegina eacute impregnado de pitagorismo

tanto a comunhatildeo dos bens (e de mulheres e filhos) como a importacircncia da escuta co-

mo caracteriacutestica do biacuteos e da cidade justa remetem imediatamente para as caracteriacutesti-

cas da vida pitagoacuterica apontadas pela tradiccedilatildeo165

As modalidades da comunhatildeo dos bens deviam alcanccedilar articulaccedilatildeo maior do

que a da simples organizaccedilatildeo da partilha dos bens em comunidades de vida cenobiacutetica

Eacute certamente o que sugere o caso de Cliacutenias de Tarento e Proros de Cirene

Narra-se que Cliacutenias de Tarento quando soube que Proros de Cirene um seguidor da doutrina pitagoacuterica estava correndo o risco de perder seu patrimocircnio recolheu uma soma de dinheiro e embarcou em dire-ccedilatildeo a Cirene colocando em ordem os negoacutecios de Proros sem impor-tar-se natildeo somente com suas perdas financeiras como tambeacutem com os perigos da navegaccedilatildeo (Iambl VP 239)166

A anedota revelaria mais uma vez a radicalidade desta comunhatildeo

Como tambeacutem a histoacuteria edificante de um pitagoacuterico que havia ficado gravemen-

te doente durante longa viagem Ao dono da pensatildeo que o hospedava em seus uacuteltimos

dias de vida e que cuidava dele com grande generosidade o pitagoacuterico apoacutes ter gravado

um siacutembolo sobre uma tabuinha

Pediu que o pendurasse fora da porta da pensatildeo e que ficasse atento 164 Orig ldquo πορρᾳθυmicroεῖν ἡmicroῖν δοκεῖς ἔφη καὶ εἶδος ὅλον οὐ τὸ ἐλάχιστον ἐκκλέπτειν τοῦ λόγου ἵνα microὴ διέλθῃς καὶ λήσειν οἰηθῆναι εἰπὼν αὐτὸ φαύλως ὡς ἄρα περὶ γυναικῶν τε καὶ παίδων παντὶ δῆλον ὅτι κοινὰ τὰ φίλων ἔσταιrdquo (Resp V 449c) 165 Platatildeo refere o dito aos pitagoacutericos tambeacutem em Lisis 207c e Leis 739c 166 Orig ldquo Κλεινίαν γε microὴν τὸν Ταραντῖνόν φασι πυθόmicroενον ὡς Πρῶρος ὁ Κυρηναῖος τῶν Πυθαγόρου λόγων ζηλωτὴς ὤν κινδυνεύοι περὶ πάσης τῆς οὐσίας συλλεξάmicroενον χρήmicroατα πλεῦσαι ἐπὶ Κυρήνης καὶ ἐπανορθώσασθαι τὰ Πρώρου πράγmicroατα microὴ microόνον τοῦ microειῶσαι τὴν ἑαυτοῦ οὐσίαν ὀλιγωρήσαντα ἀλλὰ microηδὲ τὸν διὰ τοῦ πλοῦ κίνδυνον περιστάνταrdquo (Iambl VP 239)

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caso algum transeunte reconhecesse o sinal pois nesse caso esta pes-soa reembolsaria a ele todas as despesas e o agradeceria por sua conta Quando o hoacutespede morreu o dono da pensatildeo o sepultou e cuidou com toda cura do caixatildeo ndash sem preocupar-se com as despesas ou em rece-ber algum reconhecimento de quem eventualmente fosse identificar a tabuinha E todavia por curiosidade com relaccedilatildeo agrave ordem recebida quis colocaacute-la agrave prova expondo a tabuinha para que pudesse ficar sempre visiacutevel Muito tempo depois um pitagoacuterico que passava por laacute reconheceu o siacutembolo Perguntou entatildeo o que havia acontecido e deu para o dono da pensatildeo uma quantia muito maior daquela que foi de-sembolsada (Iambl VP 238)167

A histoacuteria natildeo diz de que siacutembolo se trata Todavia com base em uma paacutegina de

Luciano (Jacobiz I 330) apreendemos que o sinal de reconhecimento dos pitagoacutericos

era o pentagrama sendo utilizado ateacute mesmo como assinatura em suas cartas168 Essas

histoacuterias satildeo facilmente dataacuteveis em eacutepoca tardia Ainda assim referem-se a uma tradi-

ccedilatildeo jaacute antiga e que devia ser muito forte resistindo como memoacuteria da centralidade da

comunhatildeo de bens entre os pitagoacutericos

A amizade pitagoacuterica O tema da philiacutea eacute presente desde aqueles que satildeo consi-

derados os primeiros discursos puacuteblicos de Pitaacutegoras os ceacutelebres quatro loacutegoi proferi-

dos quando de sua chegada em Crotona Entre outros no Primeiro Discurso dirigido

aos jovens Pitaacutegoras os exorta a cuidar bem dos amigos

Afirmava que teriam sucesso se mesmo nas relaccedilotildees entre eles se comportassem deixando claro que natildeo seriam nunca hostis aos proacute-prios amigos ao contraacuterio estariam prontos a qualquer momento a se tornarem quanto antes amigos de seus proacuteprios inimigos (Iambl VP 40)169

167 Orig ldquo ἐπειδὴ δὲ κρείττων ἦν ἡ νόσος τὸν microὲν ἀποθνῄσκειν ἑλόmicroενον γράψαι τι σύmicroβολον ἐν πίνακι καὶ ἐπιστεῖλαι ὅπως ἄν τι πάθοι κριmicroνὰς τὴν δέλτον παρὰ τὴν ὁδὸν ἐπισκοπῇ εἴ τις τῶν παριόντων ἀναγνωριεῖ τὸ σύmicroβολονmiddot τοῦτον γὰρ ἔφη αὐτῷ ἀποδώσειν τὰ ἀναλώmicroατα ἅπερ εἰς αὐτὸν ἐποιήσατο καὶ χάριν ἐκτίσειν ὑπὲρ ἑαυτοῦ τὸν δὲ πανδοχέα microετὰ τὴν τελευτὴν θάψαι τε καὶ ἐπιmicroεληθῆναι τοῦ σώmicroατος αὐτοῦ microὴ microέντοι γε ἐλπίδας ἔχειν τοῦ κοmicroίσασθαι τὰ δαπανήmicroατα microή τί γε καὶ πρὸς εὖ παθεῖν πρός τινος τῶν ἀναγνωριούντων τὴν δέλτον ὅmicroως microέντοι διαπειρᾶσθαι ἐκπεπληγmicroένον τὰς ἐντολὰς ἐκτιθέναι τε ἑκάστοτε εἰς τὸ microέσον τὸν πίνακα χρόνῳ δὲ πολλῷ ὕστερον τῶν Πυθαγορικῶν τινὰ παριόντα ἐπιστῆναί τε καὶ microαθεῖν τὸν θέντα τὸ σύmicroβολον ἐξετάσαι τε τὸ συmicroβὰν καὶ τῷ πανδοχεῖ πολλῷ πλέον ἀργύριον ἐκτῖσαι τῶν δεδαπανηmicroένωνrdquo (Iambl VP 238) 168 Cf para esta tradiccedilatildeo tambeacutem Jacircmblico (Iambl VP 88) em relaccedilatildeo ao fato que teria sido exatamente a revelaccedilatildeo do segredo do pentagrama a fazer Hipaso merecer a expulsatildeo da comunidade 169 Orig ldquo ἀπεφαίνετο δὲ καὶ ταῖς πρὸς ἀλλήλους ὁmicroιλίαις οὕτως ἂν χρωmicroένους ἐπιτυγχάνειν ὡς microέλλου-σι τοῖς microὲν φίλοις microηδέποτε ἐχθροὶ καταστῆναι τοῖς δὲ ἐχθροῖς ὡς τάχιστα φίλοι γίνεσθαιrdquo (Iambl VP 40) Cf o que foi dito acima em relaccedilatildeo ao valor dos discursos como testemunhos da fundaccedilatildeo da comu-nidade pitagoacuterica especialmente em relaccedilatildeo aos estudos neste sentido de Rostagni (1922) e De Vogel (1966) No entanto com a necessaacuteria prudecircncia acima indicada

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A discussatildeo pitagoacuterica sobre a philiacutea extrapola o acircmbito da gestatildeo da vida co-

munitaacuteria para alcanccedilar o patamar de um conceito-chave para a compreensatildeo de toda a

realidade Um exemplo disso eacute o testemunho de Jacircmblico (Iambl VP 229-230 VP 69-

70) que enumera os seis aspectos da philiacutea ensinada por Pitaacutegoras dos deuses para com

os homens das doutrinas entre elas da alma com o corpo dos homens entre eles e com

os animais e do corpo mortal em si mesmo170

Por ser tatildeo proverbial esta philiacutea entre os pitagoacutericos mereceu diversas histoacuterias

que beiram o lendaacuterio mas que ainda assim satildeo significativas para compreender a eacutetica

da philiacutea que regia as comunidades pitagoacutericas uma das mais significativas eacute certamen-

te aquela lembrada por Aristoacutexeno da prova radical da amizade entre dois pitagoacutericos

Fintias e Damon planejada pelo tirano de Siracusa Dioniso Aristoxeno afirma tecirc-la

ouvido da boca do proacuteprio tirano que ndash caiacutedo em desgraccedila ndash foi ser professor em Corin-

to

Um dia Dioniso quis colocaacute-los agrave prova pois alguns asseguravam que se os tivesse preso e aterrorizado natildeo teriam permanecido fieacuteis uns aos outros Ele entatildeo agiu da seguinte forma Fintias foi preso e con-duzido na frente do tirano que o acusou de conspiraccedilatildeo contra ele a-crescentando que o fato jaacute havia sido comprovado e que portanto o condenaria agrave pena capital Fintias respondeu ldquose assim decidiste me

170 Iambl (VP 229-230) ldquoPitaacutegoras ensinou com muita clareza a φιλία de todos para com todos a come-ccedilar pela φιλία 1) dos deuses para com os homens por meio da piedade e de um culto baseado no conhe-cimento 2) das doutrinas entre elas 3) em geral da alma com o corpo e da parte racional da alma com a parte irracional graccedilas agrave filosofia e agrave contemplaccedilatildeo que lhe eacute proacutepria 4) dos homens entre eles dos cida-datildeos pela estrita observacircncia da lei entre seres humanos de diversas etnias por meio do correto conheci-mento da natureza [humana] do homem para com a mulher ou filhos ou irmatildeos ou parentes por meio de uma comunhatildeo indestrutiacutevel em resumo φιλία de todos para com todos e ateacute 5) de alguns animais irra-cionais por causa de um sentimento de justiccedila e de uma natural proximidade e solidariedade 6) enfim do corpo mortal com si mesmo pacificaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo das forccedilas contraacuterias que nele se escondem por meio da sauacutede e do regime [de vida] que a essa tende e temperacircncia por meio da imitaccedilatildeo da condiccedilatildeo de bem-estar que caracteriacuteza os elementos celestiais O fato de uma uacutenica e soacute ser a palavra que tudo isso compreende isto eacute φιλία eacute opiniatildeo corrente que foi Pitaacutegoras a descobri-lo e tornaacute-lo lei este ensinava a seus disciacutepulos uma φιλία tatildeo maravilhosa que ateacute hoje muitos dizem a respeito daqueles que satildeo ligados entre si por uma reciacuteproca benevolecircncia tratar-se de pitagoacutericosrdquo Orig ldquo Φιλίαν δὲ διαφανέστατα πάντ-ων πρὸς ἅπαντας Πυθαγόρας παρέδωκε θεῶν microὲν πρὸςἀνθρώπους διrsquo εὐσεβείας καὶ ἐπιστηmicroονικῆς θερ-απείας δογmicroάτων δὲ πρὸς ἄλληλα καὶ καθόλου ψυχῆς πρὸς σῶmicroα λογιστικοῦ τε πρὸς τὰ τοῦ ἀλόγου εἴδη διὰ φιλοσοφίας καὶ τῆς κατrsquo αὐτὴν θεωρίας ἀνθρώπων δὲ πρὸς ἀλλήλους πολιτῶν microὲν διὰ νοmicroιmicroότητος ὑγιοῦς ἑτεροφύλων δὲ διὰ φυσιολογίας ὀρθῆς ἀνδρὸς δὲ πρὸς γυναῖκα ἢ τέκνα ἢ ἀδελφοὺς καὶ οἰκείους διὰ κοινωνίας ἀδιαστρόφου συλλήβδην δὲ πάντων πρὸς ἅπαντας καὶ προσέτι τῶν ἀλόγων ζῴων τινὰ διὰ δικαιοσύνης καὶ φυσικῆς ἐπιπλοκῆς καὶ κοινότητος σώmicroατος δὲ καθrsquoἑαυτὸ θνητοῦ τῶν ἐγκεκρυmicromicroένων αὐτῷ ἐναντίων δυνάmicroεων εἰρήνευσίν τε καὶ συmicroβιβασmicroὸν διrsquo ὑγείας καὶ τῆς εἰς ταύτην διαίτης καὶ σωφρ-οσύνης κατὰ microίmicroησιν τῆς ἐν (230) τοῖς κοσmicroικοῖς στοιχείοις εὐετηρίας ἐν πᾶσι δὴ τούτοις ἑνὸς καὶ τοῦ αὐτοῦ κατὰ σύλληψιν τοῦ τῆς φιλίας ὀνόmicroατος ὄντος εὑρετὴς καὶ νοmicroοθέτης ὁmicroολογουmicroένως Πυθαγόρας ἐγένετο καὶ οὕτω θαυmicroαστὴν φιλίαν παρέδωκε τοῖς χρωmicroένοις ὥστε ἔτι καὶ νῦν τοὺς πολλοὺς λέγειν ἐπὶ τῶν σφοδρότερον εὐνοούντων ἑαυτοῖς ὅτι τῶν Πυθαγορείων εἰσίrdquo (Iambl VP 229-230)

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seja ao menos concedido o restante deste dia para acertar meus negoacute-cios e aquele de Damon (era de fato companheiro e soacutecio dele e como mais idoso havia tomado conta de seus negoacutecios) Fintias portanto pedia para ser deixado ir e oferecia Damon como fiador [para ficar no lugar dele] Dioniso concordou e foi chamado Damon que ao saber o que havia ocorrido aceitou imediatamente ser fiador de Fintias e ficou esperando este voltar (61) Dioniso de sua parte havia ficado impres-sionado com o ocorrido enquanto aqueles que haviam inicialmente proposto a prova zombavam de Damon dizendo que seria ali abando-nado Mas ao pocircr do sol Fintias chegou pronto para morrer E todos ficaram maravilhados Dioniso de sua parte abraccedilou afetuosamente os dois e pediu para ser acolhido como terceiro na philiacutea deles (Porph VP 60-61)171

Portanto a insistecircncia da tradiccedilatildeo eacute para com a proverbial fidelidade da philiacutea

pitagoacuterica Outra narrativa que representa bem esta fidelidade ao amigo mas que Rohde

(1872 50) define simplesmente boba (eine alberne Geschichte) eacute a da philiacutea entre Liacutesis

e Euriacutefamo

Quanto aos pactos estabelecidos Pitaacutegoras preparou com tamanha efi-caacutecia seus disciacutepulos para respeitaacute-los sinceramente que se narra que uma vez Liacutesis saindo do tempo de Hera apoacutes ter feito suas oraccedilotildees encontrou Euriacutefamo de Siracusa seu companheiro que por sua vez es-tava entrando no templo Por ter este uacuteltimo solicitado a ele que o a-guardasse enquanto realizava suas oraccedilotildees Liacutesis sentou-se em um banco de pedra proacuteximo agrave saiacuteda do templo Apoacutes as oraccedilotildees Euriacutefa-mo imerso em seus pensamentos e tomado como estava por uma pro-funda reflexatildeo saiu do templo por outra porta Liacutesis de sua parte permaneceu imoacutevel esperando durante o dia todo e a noite inteira e boa parte do dia seguinte E provavelmente teria ficado muito mais se no dia seguinte Euriacutefamo que se havia dirigido ao auditoacuterio natildeo se tivesse recordado do fato apoacutes ouvir que Liacutesias estava cercado de companheiros da comunidade Somente entatildeo foi encontraacute-lo este conforme o pacto estava esperando por ele Levou-o embora expli-cando assim o motivo de seu esquecimento ldquofoi um deus a causar em

171 Orig ldquo βουλόmicroενος οὖν ποτε ∆ιονύσιος πεῖραν αὐτῶν λltαβεῖνgt διαβε βαιουmicroένων τινῶν ὡς συλληφ-θέντες καὶ φοβηθέντες οὐκ ἐmicromicroενοῦσι τῇ πρὸς ἀλλήλους πίστει τάδrsquo ἐποίησεν συνελήφθη microὲν Φιντίας καὶ ἀνήχθη πρὸς τὸν τύραννον κατηγορεῖν δrsquo αὐτοῦ ∆ιονύσιον ὡς ἐπιβουλεύοντος αὐτῷmiddot καὶ δὴ τοῦτο ἐξεληλέγχθαι κεκρίσθαι τrsquo ἀποθνῄσκειν αὐτόν τὸν δέ ἐπεὶ οὕτως αὐτῷ δέδοκται εἰπεῖν δοθῆναί γε τὸ λοιπὸν τῆς ἡmicroέρας ὅπως οἰκονοmicroήσηται τά τε καθrsquo ἑαυτὸν καὶ τὰ κατὰ ∆άmicroωναmiddot εἶναι γὰρ αὐτῷ ἑταῖρον καὶ κοινωνόνmiddot πρεσβύτερον δrsquoαὐτὸνgt ὄντα πολλὰ τῶν περὶ τὴν οἰκονοmicroίαν εἰς αὑτὸν ἀνειληφέναι ἠξίου δrsquo ἀφεθῆναι ἐγγυητὴν παρασχὼν τὸν ∆άmicroωνα συγχωρήσαντος δὲ τοῦ ∆ιονυσίου microεταπεmicroφθεὶς ὁ ∆άmicroων καὶ τὰ συmicroβάντα αὑτὸν ἀνειληφέναι ἠξίου δrsquo ἀφεθῆναι ἐγγυητὴν παρασχὼν τὸν ∆άmicroωνα συγχωρήσαντ-ος δὲ τοῦ ∆ιονυσίου microεταπεmicroφθεὶς ὁ ∆άmicroων καὶ τὰ συmicroβάντα ἀκούσας ἐνεγγυήσατο καὶ ἔmicroεινεν ἕως ἂν ἐπανέλθῃ (61) ὁ Φιντίας ὁ microὲν οὖν ∆ιονύσιος ἐξεπλήττετο ἐπὶ τοῖς γιγνοmicroένοις ἐκείνους δὲ τοὺς ἐξ ἀρχ-ῆς εἰσαγαγόντας τὴν διάπειραν τὸν ∆άmicroωνα χλευάζειν ὡς ἐγκαταλειφθησόmicroενον ὄντος δὲ τοῦ ἡλίου περὶ δυσmicroὰς ἥκειν τὸν Φιντίαν ἀποθανούmicroενον ἐφrsquo ᾧ πάντας ἐκπλαγῆναι ∆ιονύσιον δὲ περιβαλόντα καὶ φιλήσαντα τοὺς ἄνδρας ἀξιῶσαι τρίτον αὑτὸν εἰς τὴν φιλίαν παραδέξασθαι τοὺς δὲ microηδενὶ τρόπῳ καίτοι πολλὰ λιπαροῦντος αὐτοῦ συγκαταθεῖναι εἰς τοιοῦτοrdquo (Porph VP 60-61)

93

mim este esquecimento para que pudesse colocar agrave prova tua firmeza em observar os pactosrdquo (Iambl VP 185)172

Por traacutes da anedota esconde-se certamente a memoacuteria da dimensatildeo incondicio-

nal da fidelidade na philiacutea pitagoacuterica que instaura uma identidade de grupo tatildeo forte a

ponto de configurar as relaccedilotildees a partir da alternativa noacutes e eles e tornar-se proverbial

no mundo antigo

Vinganccedila contra os apoacutestatas Eacute com toda probabilidade novamente Timeu a

descrever no trecho imediatamente sucessivo agravequele acima citado em relaccedilatildeo ao criteacuterio

de admissatildeo e agraves formas da dokimasiacutea os procedimentos de expulsatildeo dos apoacutestatas isto

eacute dos que por algum motivo traindo as regras do biacuteos eram excluiacutedos da koinoniacutea

No caso em que fossem recusados recuperavam em dobro seus per-tences enquanto ldquoaqueles que ouviam juntosrdquo (homakooiacute) como eram chamados todos os seguidores de Pitaacutegoras levantavam para eles uma laacutepide fuacutenebre como se fossem mortos [] Se em outra ocasiatildeo acon-tecia de encontrar quem havia sido recusado o consideravam como um estranho qualquer e natildeo como um companheiro pois havia morri-do para eles (Iambl VP 73-4)173

Tratava-se de uma exclusatildeo definitiva portanto que natildeo previa evidentemente

alguma possibilidade de volta como eacute indicado inconstestavelmente pela comparaccedilatildeo

com a proacutepria morte

Modos alternativos A vida cotidiana na comunidade pitagoacuterica previa uma or-

ganizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo pouco comuns para os padrotildees da eacutepoca A descriccedilatildeo

mais coerente desta pode ser encontrada em Jacircmblico

172 Orig ldquo πρός γε microὴν συνταγὰς καὶ τὸ ἀψευδεῖν ἐν αὐταῖς οὕτως εὖ παρεσκεύαζε τοὺς ὁmicroιλητὰς Πυθαγ-όρας ὥστε φασί ποτε Λῦσιν προσκυνήσαντα ἐν Ἥρας ἱερῷ καὶ ἐξιόντα συντυχεῖν Εὐρυφάmicroῳ Συρακουσ-ίῳ τῶν ἑταίρων τινὶ περὶ τὰ προπύλαια τῆς θεοῦ εἰσιόντι προστάξαντος δὲ τοῦ Εὐρυφάmicroου προσmicroεῖναι αὐτόν microέχρις ἂν καὶ αὐτὸς προσκυνήσας ἐξέλθῃ ἑδρασθῆναι ἐπί τινι λιθίνῳ θώκῳ ἱδρυmicroένῳ αὐτόθι ὡς δὲ προσκυνήσας ὁ Εὐρύφαmicroος καὶ ἔν τινι διανοήmicroατι καὶ βαθυτέρᾳ καθrsquo ἑαυτὸν ἐννοίᾳ γενόmicroενος διrsquo ἑτέρου πυλῶνος ἐκλαθόmicroενος ἀπηλλάγη τό τε τῆς ἡmicroέρας λοιπὸν καὶ τὴν ἐπιοῦσαν νύκτα καὶ τὸ πλέον microέρος ἔτι τῆς ἄλλης ἡmicroέρας ὡς εἶχεν ἀτρέmicroας προσέmicroενεν ὁ Λῦσις καὶ τάχα ἂν ἐπὶ πλείονα χρόνον αὐτοῦ ἦν εἰ microή περ ἐν τῷ ὁmicroακοείῳ τῆς ἑξῆς ἡmicroέρας γενόmicroενος ὁ Εὐρύφαmicroος καὶ ἀκούσας ἐπιζητουmicroένου πρὸς τῶν ἑταίρων τοῦ Λύσιδος ἀνεmicroνήσθη καὶ ἐλθὼν αὐτὸν ἔτι προσmicroένοντα κατὰ τὴν συνθήκην ἀπήγαγε τὴν αἰτίαν εἰπὼν τῆς λήθης καὶ προσεπιθεὶς ὅτι ταύτην δέ microοι θεῶν τις ἐνῆκε δοκίmicroιον ἐσοmicroένην τῆς σῆς περὶ συνθήκας εὐσταθείαςrdquo (Iambl VP 185) 173 Orig ldquo εἰ δrsquo ἀποδοκιmicroασθείησαν τὴν microὲν οὐσίαν ἐλάmicroβανον διπλῆν microνῆmicroα δὲ αὐτοῖς ὡς νεκροῖς ἐχώννυτο ὑπὸ τῶν ὁmicroακόων οὕτω γὰρ ἐκαλοῦντο πάντες οἱ περὶ τὸν ἄνδρα []καὶ εἴ ποτε συντύχοιεν ἄλλως αὐτῷ πάντα ὁντινοῦν microᾶλλον ἢ ἐκεῖνον ἡγοῦντο εἶναι τὸν κατrsquo αὐτοὺς τεθνηκόταrdquo (Iambl VP 73-4)

94

Na parte da manhatilde realizavam passeios solitaacuterios em lugares onde houvesse quietude e tranquilidade como templos e bosques e algo que alegrasse o espiacuterito Estavam de fato convencidos de que natildeo se devia encontrar ningueacutem antes de ter arrumado a alma e ordenado o pensamento [] Depois do passeio matutino reuniam-se entre eles normalmente em santuaacuterios ou em lugares de natureza semelhante Dedicavam estas ocasiotildees ao ensino e agrave aprendizagem e agrave correccedilatildeo do caraacuteter Em seguida dedicavam-se agrave cura de seus proacuteprios corpos [] No almoccedilo comiam patildeo mel mel misturado com cera e natildeo toma-vam vinho ao longo do dia Dedicavam as horas da tarde aos negoacutecios poliacuteticos tanto os internos quanto os externos [] Ao aproximar-se do entardecer voltavam a fazer os passeios todavia natildeo sozinhos como de manhatilde e sim em grupos de dois ou trecircs relembrando as coi-sas aprendidas e exercitando-se com belas ocupaccedilotildees Depois do pas-seio tomavam banho e se dirigiam ao banquete comum [] Apoacutes o banquete ofereciam libaccedilotildees e acontecia a leitura [] Uma vez pro-nunciadas estas palavras cada um voltava para a sua proacutepria casa Vestiam vestes brancas e puras e usavam lenccediloacuteis tambeacutem brancos e puros de linho pois natildeo usavam peles (Iambl VP 96-100)174

A imagem cenobiacutetica tipicamente monaacutestica da vida pitagoacuterica pertence cer-

tamente a uma tradiccedilatildeo tardia provavelmente mediada pela tradiccedilatildeo estoica mediopla-

tocircnica obedecendo mais diretamente ao ideal de vida calma e transcorrida em lugares

bucoacutelicos do ideal da vida filosoacutefica heleniacutestica e depois imperial Chama especialmente

atenccedilatildeo a indicaccedilatildeo da leitura em comum mais bem especificada por Jacircmblico logo em

seguida (VP 104) com relaccedilatildeo ao que eacute chamado de didaskaliacutea diaacute tocircn syacutembolocircn isto eacute

da explicaccedilatildeo dos sinais uma forma de exegese que incluiria ao lado da praacutetica oral a

utilizaccedilatildeo de uma seacuterie de diferentes tipos de escritos desde anotaccedilotildees ateacute publicaccedilotildees

ecdoacuteticas Eacute obviamente impensaacutevel uma complexidade literaacuteria como esta para os seacute-

174 Passagem paralela em Porfiacuterio (VP 32) O testemunho eacute com toda probabilidade aristoxecircnico de maneira especial em sua parte final (Burkert 1982 16) Sobre a recepccedilatildeo de Aristoxeno da eacutetica pitagoacuteri-ca no quarto seacuteculo aEC e em acircmbito peripateacutetico cf os recentes estudos de Huffman (2006 2008) Orig ldquo τοὺς microὲν ἑωθινοὺς περιπάτους ἐποιοῦντο οἱ ἄνδρες οὗτοι κατὰ microόνας τε καὶ εἰς τοιούτους τόπους ἐν οἷς συνέβαινεν ἠρεmicroίαν τε καὶ ἡσυχίαν εἶναι σύmicromicroετρον ὅπου τε ἱερὰ καὶ ἄλση καὶ ἄλλη τις θυmicroηδία ᾤοντο γὰρ δεῖν microὴ πρότερόν τινι συντυγχάνειν πρὶν ἢ τὴν ἰδίαν ψυχὴν καταστήσουσι καὶ συναρmicroόσονται τὴν διάνοιαν [] microετὰ δὲ τὸν ἑωθινὸν περίπατον τότε πρὸς ἀλλήλους ἐνετύγχανον microάλιστα microὲν ἐν ἱεροῖς εἰ δὲ microή γε ἐν ὁmicroοίοις τόποις ἐχρῶντο δὲ τῷ καιρῷ τούτῳ πρός τε διδασκαλίας καὶ microαθήσεις καὶ πρὸς (97) τὴν τῶν ἠθῶν ἐπανόρθωσιν microετὰ δὲ τὴν τοιαύτην διατριβὴν ἐπὶ τὴν τῶν σωmicroάτων ἐτρέποντο θεραπ-είαν []ἀρίστῳ δὲ ἐχρῶντο ἄρτῳ καὶ microέλιτι ἢ κηρίῳ οἴνου δὲ microεθrsquo ἡmicroέραν οὐ microετεῖχον τὸν δὲ microετὰ τὸ ἄριστον χρόνον περὶ τὰς πολιτικὰς οἰκονοmicroίας κατεγίνοντο περί τε τὰς ἐξωτικὰς καὶ τὰς ξενικάς [] δείλης δὲ γινοmicroένης εἰς τοὺς περιπάτους πάλιν ὁρmicroᾶν οὐχ ὁmicroοίως κατrsquo ἰδίαν ὥσπερ ἐν τῷ ἑωθινῷ περιπάτῳ ἀλλὰ σύνδυο καὶ σύντρεις ποιεῖσθαι τὸν περίπατον ἀναmicroιmicroνησκοmicroένους τὰ microαθήmicroατα (98) καὶ ἐγγυmicroναζοmicroένους τοῖς καλοῖς ἐπιτηδεύmicroασι microετὰ δὲ τὸν περίπατον λουτρῷ χρῆσθαι λουσαmicroένους τε ἐπὶ τὰ συσσίτια ἀπαντᾶνmiddot [] (99) οὐ χρήσιmicroα πρὸς τὸ χρῆσθαι microετὰ δὲ τόδε τὸ δεῖπνον ἐγίνοντο σπονδαί ἔπειτα ἀνάγνωσις ἐγίνετο [] τούτων δὲ ῥηθέντων ἀπιέναι ἕκαστον εἰς οἶκον ἐσθῆτι δὲ χρῆσθαι λευκῇ καὶ καθαρᾷ ὡσαύτως δὲ καὶ στρώmicroασι λευκοῖς τε καὶ καθαροῖς εἶναι δὲ τὰ στρώmicroατα ἱmicroάτια λινᾶmiddot κῳδί-οις γὰρ οὐ χρῆσθαιrdquo (Iambl VP 96-100 passim)

95

culos VI e V aEC A imagem deveraacute portanto corresponder mais provavelmente agrave des-

criccedilatildeo de uma mesa de estudo da Biblioteca de Alexandria em eacutepoca heleniacutestica175

O vegetarianismo eacute certamente outro sinal de um estilo de vida culturalmente al-

ternativo dos pitagoacutericos Como vimos acima nos estudos de Detienne a dieta vegetari-

ana implica a recusa radical de uma praacutetica religiosa e social aquela do sacrifiacutecio ani-

mal que constitui um dos pilares da cultura grega antiga O vegetarianismo estaacute direta-

mente ligado agrave crenccedila na metempsicose e no parentesco universal entre todos os seres

viventes conforme mencionado no resumo inicial das doutrinas de Pitaacutegoras por Porfiacute-

rio (VP 19)

Algumas de suas [de Pitaacutegoras] afirmaccedilotildees ganharam notoriedade pra-ticamente geral 1) afirma que a alma eacute imortal 2) que transmigra em outras espeacutecies de seres vivos 3) que periodicamente o que jaacute acon-teceu uma vez volta a acontecer e nada eacute absolutamente novo e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gecircnero Ao que parece foi mesmo Pitaacutegoras a introduzir pela primeira vez estas crenccedilas na Greacutecia (Porph VP 19)176

A menccedilatildeo agrave introduccedilatildeo desta crenccedila na Greacutecia pressupotildee mais uma vez estra-

nheza geral a ela configurando-se com isso a imagem de uma seita marcada por uma

subcultura alternativa177

Consequecircncia do vegetarianismo eacute o outro sinal da postura alternativa dos pita-

goacutericos a famosa tradiccedilatildeo de recusar-se a realizar sacrifiacutecios de animais Todavia por

ser ponto central do sistema de crenccedilas tradicionais e elemento fundamental das festas

religiosas poliacuteades a praacutetica devia entrar em conflito de forma tatildeo radical com o siste-

ma religioso tradicional ao ponto de merecer uma flexibilizaccedilatildeo quase imediata Eacute o que

175 Jacircmblico fala mais especificamente de diaacutelogos (διαλέξεις) instruccedilotildees reciacuteprocas (ὁmicroιλίαι) anotaccedilotildees (ὑποmicroνηmicroατισmicroοί) notas (ὑποσηmicroειώσεις) tratados (συγγράmicromicroατα) e publicaccedilotildees (ἐκδόσεις) (Iambl VP 104) O exerciacutecio da comparaccedilatildeo desta descriccedilatildeo pode ser estendido ainda mais englobando a semelhan-ccedila dela com a descriccedilatildeo dos essecircnios em Flaacutevio Josefo (A Guerra Judaacuteica II 128-33) e dos terapeutas judeus do lago de Mareoacutetida descritos por Fiacutelon (De vita contemplativa II) apesar das reservas expressas por Centrone (2000 161 n47) em relaccedilatildeo a esta uacuteltima 176 Orig ldquo microάλιστα microέντοι γνώριmicroα παρὰ πᾶσιν ἐγένετο πρῶτον microὲν ὡς ἀθάνατον εἶναι φησὶ τὴν ψυχήν εἶτα microεταβάλλουσαν εἰς ἄλλα γένη ζῴων πρὸς δὲ τούτοις ὅτι κατὰ περιόδους τινὰς τὰ γενόmicroενά ποτε πάλιν γίνεται νέον δrsquoοὐδὲν ἁπλῶς ἔστι καὶ ὅτι πάντα τὰ γινόmicroενα ἔmicroψυχα ὁmicroογενῆ δεῖ νοmicroίζειν φέρεται γὰρ εἰς τὴν Ἑλλάδαrdquo (Porph VP 19) 177 Agrave confirmaccedilatildeo disso Burkert define a metempsicose como ldquoum corpo estranho no interior da religiatildeo gregardquo (1977 430)

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revelaria certa racionalizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de animais conforme aparece em Jacircmblico

(VP 85) e sobretudo em uma paacutegina do De Abstinecircncia de Porfiacuterio

Por esse motivo os pitagoacutericos acolhendo essa tradiccedilatildeo abstinham-se ao longo de toda a vida de comer animais e quando ofereciacuteam aos deuses algum animal no lugar de si mesmos depois de tecirc-lo somente degustado viviam na realidade intocados pelos outros animais (Porph De Abst 228 2)178

Ainda que desarmada a tradiccedilatildeo de uma praacutetica contracultural como esta toda-

via permanence ao longo dos seacuteculos apontando mais uma vez para uma postura alter-

nativa e sectaacuteria da comunidade179

Silecircncio e segredo Diversas citaccedilotildees acima recordam a obrigaccedilatildeo do silecircncio e

do segredo com relaccedilatildeo agraves doutrinas Eacute esta uma das caracteriacutesticas mais lembradas pela

tradiccedilatildeo O testemunho mais antigo eacute certamente aquele do orador Isoacutecrates contempo-

racircneo de Platatildeo ldquoainda hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacutepu-

los [de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessima fama atraveacutes da

palavrardquo (Isoacutecrates Busiris 29 = 14 A4 DK)180 Mesmo alguns fragmentos da comeacutedia

de meio (DK 58 E) recordam essa obrigaccedilatildeo do silecircncio ldquoera necessaacuterio suportar a es-

cassez de comida a sujeira o frio o silecircncio a severidade e a falta de higienerdquo (Alexis

A Pitagorizante fr 201 Kassel-Austin = 58 E1 DK)181

Um ceacutelebre caso melodramaacutetico de quebra desta obrigaccedilatildeo do segredo eacute o da

revelaccedilatildeo por parte de Hipaso da doutrina da incomensurabilidade ou em outra ver-

satildeo da inscriccedilatildeo do dodecaedro em uma esfera182 A tradiccedilatildeo matemaacutetica do pitagoris-

mo atribui a Hipaso aleacutem disso o roubo da originalidade da descoberta que foi certa-

178 Orig ldquo διόπερ οἱ Πυθαγόρειοι τοῦτο παραδεξάmicroενοι κατὰ microὲν τὸν πάντα βίον ἀπείχοντο τῆς ζῳοφαγί-ας ὅτε δὲ εἰς ἀπαρχήν τι τῶν ζῴων ἀνθ ἑαυτῶν microερίσειαν τοῖς θεοῖς τούτου γευσάmicroενοι microόνον πρὸς ἀλήθειαν ἄθικτοι τῶν λοιπῶν ὄντες ἔζωνrdquo (Porph De Abst 2282) 179 Burkert (1972 182) assim comenta a acomodaccedilatildeo agrave cultura majoritaacuteria da praacutetica da renuacutencia ao sacri-fiacutecio de animais ldquoIt would have meant a complete overturn of traditional ways As far as we canjudge the Pythagoreans sought compromise the matter an acusma asks ldquoWhat is most justrdquo and answers ldquoTo sacrificerdquo An accommodation of the doctrine of metempsychosis and the traditional way was found because it had to be foundrdquo 180 Orig ldquo ἔτι γὰρ καὶ νῦν τοὺς προσποιουmicroένους ἐκείνου microαθητὰς εἶναι microᾶλλον σιγῶντας θαυmicroάζουσιν ἢ τοὺς ἐπὶ τῷ λέγειν microεγίστην δόξαν ἔχονταςrdquo (Isoacutecrates Busiris 29) 181 Para uma visatildeo geral sobre o pitagorismo na comeacutedia de meio cf Bellido (1972) e Chevitarese (2004) 182 Eacute Burkert (1972 455) quem fala de um ldquoveritable melodrama in intellectual historyrdquo em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo dos incomensuraacuteveis Refere-se provavelmente a Hipaso o capiacutetulo de Jacircmblico (VP 74) que menciona a possibilidade de algueacutem instruiacutedo nas ciecircncias ser expulso da comunidade ainda que natildeo o cite nominalmente Para a referecircncia expliacutecita a Hipaso cf Iambl VP (88 247)

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mente Dele (toucirc androacutes Iambl VP 88) isto eacute do tambeacutem inominaacutevel Pitaacutegoras Nessa

atribuiccedilatildeo revela-se um dos motivos comuns da insistecircncia no segredo das doutrinas

diante da resistecircncia dos acusmaacuteticos em considerarem como parte fundamental da tra-

diccedilatildeo pitagoacuterica questotildees matemaacuteticas desse gecircnero o lado dos matemaacuteticos utiliza a

escamoteaccedilatildeo tiacutepica do argumento de autoridade atribuindo-as diretamente a Ele De

fato da mesma maneira quando ndash em eacutepoca heleniacutestica ndash se inicia vasta produccedilatildeo de

apoacutecrifos o argumento da consignaccedilatildeo do segredo sobre as doutrinas entre os primeiros

pitagoacutericos serviraacute ao propoacutesito de justificar o aparecimento somente tardio de cartas

atribuiacutedas falsamente a Pitaacutegoras ou aos primeiros familiares ou disciacutepulos183 Com ra-

zatildeo anota Huffman (2008a) uma testemunha importante como Aristoacuteteles natildeo revela

em seus escritos alguma dificuldade em ter acesso aos textos pitagoacutericos (ao contraacuterio

escreve trecircs livros sobre Arquitas) Disso deriva que ou grande parte das doutrinas pi-

tagoacutericas natildeo eram de fato sigilosas ou o segredo foi ldquomuito mal guardadordquo (Huffman

2008a 218)

A controveacutersia jaacute antiga sobre a existecircncia de escritos autecircnticos de Pitaacutegoras

deve ser tambeacutem compreendida no interior dessa tradiccedilatildeo184

E todavia a presenccedila da obrigaccedilatildeo do segredo eacute tatildeo significativa especialmente

com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees dos akouacutesmata e syacutembola ao ponto de natildeo poder ser reduzida

simplesmente a uma falsificaccedilatildeo heleniacutestica esta configura exatamente um dos criteacuterios

centrais para a constituiccedilatildeo de uma seita isto eacute aquele de uma linguagem esoteacuterica que

precise de senhas especiacuteficas para ser compreendida

Boa soluccedilatildeo da questatildeo do segredo na comunidade e literatura pitagoacuterica eacute aque-

la proposta por Gemelli (2007b) No interior de atenta anaacutelise da linguagem esoteacuterica

utilizada pelos preacute-socraacuteticos Gemelli anota que

Eacute caracteriacutestica do texto esoteacuterico uma estreita ligaccedilatildeo entre lingua-gem e experiecircncia que nada diz a quem natildeo tiver a capacidade de ldquotornar concretardquo a palavra O silecircncio pretendido pelos pitagoacutericos

183 Cf para a coleccedilatildeo destes apoacutecrifos Thesleff (1965) aleacutem da Introduccedilatildeo a esta literatura (Thesleff 1961) Cf tambeacutem Szlezaacutek (1972) para ediccedilatildeo e comentaacuterio do celebre tratato Sobre as dez categorias de Pseudo-Arquitas e Centrone (1990) para uma ediccedilatildeo e comentaacuterio de alguns tratados morais pseudopita-goacutericos Ateacute mesmo de Filolau se recorda uma quebra do sigilo em ocasiatildeo da divulgaccedilatildeo dos ceacutelebres trecircs livros comprados por Platatildeo (D L Vitae VIII 85) E mesmo essa notiacutecia eacute utilizada para legitimar um falso pitagoacuterico de idade heleniacutestica (jaacute mencionado em D L Vitae VIII 6) Cf para isso Burkert (1972 223-227) Huffman (1993 12-14) e o que se diraacute a seguir (4131) 184 Cf Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 6-8) Para um comentaacuterio a esta controveacutersia cf Centrone (1992)

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natildeo eacute um silecircncio sobre as palavras e sim sobre as experiecircncias Pois umas sem as outras permanecem um cofre trancafiado (Gemelli 2007b 438)185

O segredo portanto seria uma estrateacutegia da comunidade para manter as experi-

ecircncias que se desenvolvem em seu interior como prerrogativa exclusiva dos iniciados a

tese de Gemelli eacute muito convincente e impregnada de consequecircncias para a compreen-

satildeo da dinacircmica esoteacuterica do protopitagorismo

Guia carismaacutetico A presenccedila carismaacutetica do fundador Pitaacutegoras paira sobre as

diversas caracteriacutesticas ateacute aqui detectadas na seita pitagoacuterica Tanto a referecircncia acima

de Aristoacuteteles de sua natureza intermediaacuteria entre deuses e homens (Iambl VP 31)

como a expressatildeo toucirc androacutes (Iambl VP 88) para referir-se a Pitaacutegoras sem nomeaacute-lo

sugerem de fato a presenccedila de mais esse criteacuterio de identificaccedilatildeo do pitagorismo como

de uma seita Para aleacutem disso eacute recorrente a tradiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo da autoridade de

praticamente qualquer doutrina ao mestre Pitaacutegoras lembrada pela expressatildeo Autoacutes

eacutepha ipse dixit (Iambl VP 46) A figura de Pitaacutegoras insere-se claramente no padratildeo

do theioacutes aneacuter do homem divino da tradiccedilatildeo grega antiga cujas caracteriacutesticas foram

habilmente resumidas por Achtemeier

As caracteriacutesticas do theiacuteos aneacuter podem ser brevemente resumidas um nascimento maravilhoso uma carreira marcada pelo dom de uma linguagem persuasiva e dominadora a capacidade de fazer milagres incluindo curas e adivinhaccedilotildees e uma morte de alguma maneira ex-traordinaacuteria (Achtemeier 1972 209)186

Os diversos testemunhos sobre os poderes sobrenaturais de Pitaacutegoras e de ma-

neira especial de seus milagres inserem-se no interior da construccedilatildeo desta figura extra-

ordinaacuteria

Macris (2003 265-270) ainda que reconheccedila que o termo theacuteios aneacuter seja o

mais aderente agraves fontes prefere ndash na esteira de Riedweg utilizar o mais geneacuterico ldquoca-

rismaacuteticordquo justificando a escolha da seguinte maneira

185 Orig ldquoist ein Charakteristikum esoterischer Texte die eben fuumlr denjenigen nichtssagend sind dem die Faumlhigkeit fehlt dem Wort lsquoeinen konkreten Sinn zu verleihenrsquo Das Scheweigen das die Pythagereer verlangten bezog sich nicht auf das Gesagte sondern auf das Erlebte Denn das eine blieb ohne das andere ein versiegelter Schreinrdquo 186 Orig ldquoThe characteristics of the theiacuteos aneacuter can be summarized briefly a wondrous birth a career by the gift of overpowering persuasive speech the ability to perform miracles including healings and foreseeing the future and a death marked in some way extraordinaryrdquo

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Se preferimos o qualificativo lsquocarismaacuteticorsquo eacute porque em sua acepccedilatildeo socioloacutegica propriamente weberiana evoca inevitavelmente para a-leacutem dos dons exepcionais de Pitaacutegoras a relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo que estaacute estabelecida entre o mestre e os membros da comunidade que se formou em torno dele (Macris 2003 270)187

O carisma de Pitaacutegoras portanto deveraacute ser pensado como mais um elemento de

coesatildeo da koinoniacutea

Prescriccedilotildees reprodutivas Entre as doutrinas que constituem a comunidade pita-

goacuterica como alternativa aos haacutebitos comuns da sociedade grega haacute certamente aquela

da ascensatildeo das mulheres ao mesmo status social dos homens Natildeo acaso a pitagoacuterica

acima citada como protagonista da comeacutedia de Aleacutexis eacute uma personagem bastante re-

corrente na comeacutedia de meio Desde a notiacutecia do sucesso de seus discursos inaugurais

em Crotona a tradiccedilatildeo lembra que a comunidade pitagoacuterica que surge em consequecircncia

do sucesso deles eacute composta tambeacutem por mulheres (Porph VP 19-20 Iambl VP 30)

O primeiro nome lembrado eacute aquele de Teano as fontes oscilam entre consideraacute-la filha

ou esposa do fundador188 Para aleacutem das anedotas elaboradas para mostrar a forccedila e fi-

delidade agrave comunidade das mulheres ndash eacute este o caso da graacutevida Tiacutemica que resiste agrave

tortura de Dioniso II (Iambl VP 194) ndash destaca-se uma seacuterie de testemunhos relativos

agrave regulaccedilatildeo da reproduccedilatildeo e dos rituais a ela conexos que revelam diferente relaccedilatildeo de

gecircnero entre os pitagoacutericos

Dizem que quando Teano foi interrogada sobre quantos dias depois de um intercurso sexual com um homem uma mulher recupera a pure-za teria respondido ldquoda relaccedilatildeo com o proacuteprio esposo de imediato daquela com um estranho nuncardquo Exortava a [esposa] que ia ter com seu proacuteprio marido a abandonar junto com os vestidos o pudor e uma vez levantada a recuperaacute-lo junto com estes E quando lhe foi perguntado ldquoQuaisrdquo ela respondeu ldquoaqueles pelos quais me cha-mam de mulherrdquo (D L Vitae VIII 43)189

187 Cf Riedweg (2002 119ss) para uma descriccedilatildeo aprofundada do modelo socioloacutegico carismaacutetico que haveria por traacutes da figura de Pitaacutegoras Orig ldquoSe nous lui avons preacutefeacutereacute le qualificatif lsquocharismatiquersquo cacuteest parce que dans son acception sociologique proprement weacutebeacuterienne il evoque ineacutevitablement au-delagrave decircs dons exceptionnels de Pythagore la relation de domination qui sacuteest egravetablie entre le maicirctre et lecircs membres de la communauteacute qui sacuteest formeacutee autour de luirdquo (Macris 2003 270) 188 Cf para uma sinopse das fontes sobre Teano Delatte (1922 246-248) 189 Orig ldquo ἀλλὰ καί φασιν αὐτὴν ἐρωτηθεῖσαν ποσταία γυνὴ ἀπrsquo ἀνδρὸς καθαρεύει φάναι ldquoἀπὸ microὲν τοῦ ἰδίου παραχρῆmicroα ἀπὸ δὲ τοῦ ἀλλοτρίου οὐδέποτεrdquo τῇ δὲ πρὸς τὸν ἴδιον ἄνδρα microελλούσῃ πορεύεσθαι παρῄνει ἅmicroα τοῖς ἐνδύmicroασι καὶ τὴν αἰσχύνην ἀποτίθεσθαι ἀνισταmicroένην τε πάλιν ἅmicrorsquo αὐτοῖσιν ἀναλαmicroβά-νειν ἐρωτηθεῖσα ldquoποῖαrdquo ἔφη lsquoταῦτα διrsquo ἃ γυνὴ κέκληmicroαιrdquo (D L Vitae VIII 43)

100

Veja-se tambeacutem na mesma linha uma das memoacuterias da kataacutebasis de Pitaacutegoras

ao Hades entre outros castigados ele teria visto os homens que natildeo quiseram ter inter-

cursos sexuais com suas esposas (D L Vitae VIII 21) Jacircmblico (VP 132 e 195) lem-

bra de Pitaacutegoras convencendo os crotonenses a abandonar as concubinas Aqui natildeo esta-

ria tanto em questatildeo ao que parece a isonomia de obrigaccedilotildees morais conjugais entre

homens e mulheres e sim uma atitude tiacutepica de pequenas comunidades sectaacuterias que

por meio do controle da reproduccedilatildeo no interior do proacuteprio grupo tende a garantir sua

sobrevivecircncia Os vaacuterios ditos dedicados agrave necessidade de procriar para honrar os deu-

ses em si aparentemente geneacutericos assumem na relativamente pequena comunidade

pitagoacuterica tons de autecircntica dramaticidade190

Intensa mobilidade geograacutefica Enfim uma intensa mobilidade geograacutefica eacute

impliacutecita agrave narrativa da anedota acima citada de Tiacutemica que ndash quando graacutevida ndash antes

de cair na emboscada de Dioniso II ser presa e em seguida torturada viajava junto

com outros nove companheiros de Tarento para Metaponto (Iambl VP 189-194) A

tradiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Neantes e foi certamente elaborada conforme o modelo das anedo-

tas biograacuteficas heleniacutesticas Ainda assim observa justamente Burkert (1982 17) revela

uma uacuteltima caracteriacutestica tiacutepica de uma seita aquela da mobilidade de seus membros

pois ldquoeles seguiam a mudanccedila das estaccedilotildees e escolhiam lugares adequados para suas

reuniotildeesrdquo (Iambl VP 189)191 A mobilidade da comunidade significa recusa agrave pertenccedila

a uma cidade especiacutefica e a subtituiccedilatildeo da relaccedilatildeo poliacuteade pela relaccedilatildeo sectaacuteria

Nesse mesmo sentido aos criteacuterios acima desenhados para identificar a separa-

ccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica em sentido identitaacuterio eacute o caso certamente de acrescentar

ndash agrave moda de conclusatildeo ndash o esquema narrativo da fundaccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica

tanto em Porfiacuterio como em Jacircmblico nos trechos que se seguem imediatamente aos

quatro discursos quando da chegada de Pitaacutegoras a Crotona Ambas as tradiccedilotildees remon-

tam a Nicocircmaco e seguem esquema muito semelhante

Com uma uacutenica liccedilatildeo puacuteblica conforme afirma Nicocircmaco ministrada na ocasiatildeo de seu desembarque na Itaacutelia conquistou mais de dois mil ouvintes tanto que estes natildeo voltaram mais para casa e jamais o aban-

190 Cf Iambl VP 84 191 Orig ldquo ἡρmicroόζοντο γὰρ πρὸς τὰς τῶν ὡρῶν microεταβολὰς καὶ τόπους εἰς τὰ τοιάδε ἐπελέγοντο ἐπιτηδείο-υςrdquo (Iambl VP 189)

101

donaram ao contraacuterio constituiacuteram junto com mulheres e filhos uma imensa ldquocasa dos ouvintesrdquo e fundaram aquela que todos chamaram Magna Greacutecia drsquoItaacutelia Tomaram dele [Pitaacutegoras] leis e prescriccedilotildees [] e puseram em comum seus bens (Porph VP 20)192 Em uma uacutenica liccedilatildeo a primeira por ele ministrada publicamente apoacutes ter chegado soacute agrave Itaacutelia soube conquistar com suas palavras mais de duas mil pessoas Estas foram tomadas a tal ponto que natildeo voltaram mais para suas casas e ao contraacuterio constituiacuteram junto com mulheres e filhos uma imensa ldquocasa dos ouvintesrdquo e fundaram aquela que foi chamada por todos de Magna Greacutecia Tomaram de Pitaacutegoras leis e prescriccedilotildees [] e puseram em comum seus bens (Iambl VP 30)193

O esquema narrativo segue de perto o modelo da fundaccedilatildeo de uma cidade-

colocircnia natildeo voltar mais para as proacuteprias casas (oukeacuteti oikaacutede apeacutestesan) novo centro

comum (omakoeicircon) enfim nova cidade da qual fazem parte mulheres e filhos fundada

na comunhatildeo dos bens194

A referecircncia agrave Magna Greacutecia remete para algo ineacutedito o termo Megale Hellas

natildeo eacute um polinocircnimo e sim um corocircnimo isto eacute natildeo se refere a uma cidade especiacutefica

mas sim a um inteiro territoacuterio (o sul da Itaacutelia) Por consequecircncia o pitagorismo aqui

pretenderia mais do que simplesmente fundar uma cidade em lugar disso daria aos

territoacuterios da Magna Greacutecia uma unidade poliacutetica (polizein eacute o verbo utilizado em am-

bas as tradiccedilotildees) anteriormente inexistente (Mele 2000 329)

Visto ldquode forardquo o sistema koinonia-poacutelis-khoacutera pitagoacuterico natildeo podia senatildeo pare-

cer como ameaccedilador para o restante dos poderes constituiacutedos As notiacutecias das revoltas e

das sucessivas crises da presenccedila pitagoacuterica na Magna Greacutecia revelam um claro incocirc-

modo com relaccedilatildeo agrave escola Entre todas eacute significativa a tradiccedilatildeo da recusa por parte

dos habitantes de Locris de acolher Pitaacutegoras fugitivo

192 Orig ldquo microιᾷ microόνον ἀκροάσει ὡς φησὶ Νικόmicroαχος ἣν ἐπιβὰς τῆς Ἰταλίας πεποίηται πλέον ἢ δισχιλίους ἑλεῖν τοῖς λόγοις ὡς microηκέτι οἴκαδrsquo ἀποστῆναι ἀλλrsquo ὁmicroοῦ σὺν παισὶ καὶ γυναιξὶν ὁmicroακοεῖόν τι παmicromicroέγεθ-ες ἱδρυσαmicroένους πολίσαι τὴν πρὸς πάντων ἐπικληθεῖσαν microεγάλην Ἑλλάδα ἐν Ἰταλίᾳ νόmicroους τε παρrsquo αὐτοῦ δεξαmicroένους []οὗτοι δὲ καὶ τὰς οὐσίας κοινὰς ἔθεντοrdquo (Porph VP 20) 193 Orig ldquo ἐν microιᾷ microόνον ἀκροάσει ὥς φασιν ἣν πρωτίστην καὶ πάνδηmicroον microόνος ἐπιβὰς τῆς Ἰταλίας ὁ ἄνθρωπος ἐποιήσατο πλέονες ἢ δισχίλιοι τοῖς λόγοις ἐνεσχέθησαν αἱρεθέντες αὐτοὶ κατὰ κράτος οὕτως ὥστε οὐκέτι οἴκαδε ἀπέστησαν ἀλλὰ ὁmicroοῦ παισὶ καὶ γυναιξὶν ὁmicroακοεῖόν τι παmicromicroέγεθες ἱδρυσάmicroενοι καὶ πολίσαντες αὐτοὶ τὴν πρὸς πάντων ἐπικληθεῖσαν Μεγάλην Ἑλλάδα νόmicroους τε παρrsquo αὐτοῦ δεξάmicroενοι καὶ προστάγmicroατα ὡσανεὶ θείας ὑποθήκας [] τάς τε οὐσίας κοινὰς ἔθεντο ὡς προελέχθηrdquo (Iambl VP 30) 194 Os termos utilizados para indicar essa colonizaccedilatildeo poliacutetica satildeo significativamente πολίσαι em Porfiacuterio (VP 20) e πολίσαντες em Jacircmblico (VP 30)

102

Ouvimos dizer Pitaacutegoras que tu eacutes saacutebio e excepcionalmente talento-so mas no que diz respeito a nossas leis natildeo temos nenhum motivo de pocirc-las em discussatildeo e portanto iremos tentar nos ater a elas Tu de tua parte dirija-te para outro lugar mas toma o necessaacuterio do qual precisas (Porph VP 56)195

Em que sentido esse projeto poliacutetico-diplomaacutetico de refundar a Magna Greacutecia

correspondia de fato a uma intenccedilatildeo das primeiras comunidades pitagoacutericas natildeo estaacute

claro Seguramente todavia Pitaacutegoras e os seus eram percebidos como uma ameaccedila agraves

leis e aos costumes autoacutectones pois carregavam consigo uma fama de reformismo eacutetico

poliacutetico e juriacutedico muito grande a comunidade pitagoacuterica eacute percebida como uma metroacute-

polis que permeia toda a Magna Greacutecia pronta a refundar colonizar o territoacuterio inteiro

A mobilidade das lideranccedilas pitagoacutericas (assim como do mesmo Pitaacutegoras) e a arqueo-

logia especialmente das moedas da eacutepoca parecem apontar para o fato de que ndash ateacute as

crises do fim do VI e meados do seacuteculo V ndash esse projeto teve bastante sucesso196 Do

ponto de vista da literatura pitagoacuterica ao contraacuterio a koinoniacutea aparece como projeto

necessaacuterio em consequecircncia da fuga de um regime poliacutetico tiracircnico que como tal im-

pede a realizaccedilatildeo de um biacuteos filosoacutefico197

Em ambos os casos contudo a koinoniacutea eacute assim alternativa poliacutetica agrave metroacutepo-

lis real e agrave sua loacutegica Um projeto fundado sobre duas soacutelidas instituiccedilotildees o omakoeicircon

a ldquocasa dos ouvintesrdquo e a partilha dos bens A comunidade pitagoacuterica eacute enfim uma

cidade que escuta e partilha cujo projeto estaacute baseado de um lado sobre o silecircncio e a

195 Orig ldquo ἡmicroεῖς ὦ Πυθαγόρα σοφὸν microὲν ἄνδρα σε καὶ δεινὸν ἀκούοmicroενmiddot ἀλλrsquo ἐπεὶ τοῖς ἰδίοις νόmicroοις οὐθὲν ἔχοmicroεν ἐγκαλεῖν αὐτοὶ microὲν ἐπὶ τῶν ὑπαρχόντων πειρασόmicroεθα microένεινmiddot σὺ δrsquo ἑτέρωθί που βάδιζε λαβὼν παρrsquo ἡmicroῶν εἴ του κεχρηmicroένος [τῶν ἀναγκαίων] τυγχάνειςrdquo (Porph VP 56) 196 Eacute hoje opiniatildeo comum que as revoltas antipitagoacutericas tenham sido duas e natildeo somente uma ἐπιβουλή como sugere Jacircmblico (VP 248) a primeira coincidiria com a morte de Pitaacutegoras a segunda aconteceria em meados do seacuteculo V Para uma resenha atualizada das posiccedilotildees dos comentadores sobre a crise das comunidades pitagoacutericas cf Musti (1990 62) 197 Trata-se da tradiccedilatildeo que vecirc Pitaacutegoras exilado por causa do desentendimento com o tirano de Samos Poliacutecrates (Porph VP 16) Este herdeiro de um ceacutelebre pirata graccedilas a um exeacutercito mercenaacuterio havia tomado Samos em 538 aEC Com um governo usurpador havia provocado a emigraccedilatildeo forccedilada de uma parte dos sacircmios A primeira diaacutespora da qual temos conhecimento eacute aquela em direccedilatildeo de Diceraquia na atual regiatildeo de Naacutepoles em 524 aEC (Accame 1980) Apesar de alguma tradiccedilatildeo recordar ndash eacute o caso de Antiacutestenes (Porph VP 7 D L Vitae VIII 3) ndash uma inicial colaboraccedilatildeo entre Pitaacutegoras e Poliacutecrates (o primeiro havia solicitado que o rei do Egito Amasi acolhesse o segundo para que pudesse partilhar com ele a formaccedilatildeo dos sacerdotes egiacutepcios) a referecircncia a uma tradicional oposiccedilatildeo de Pitaacutegoras agrave tirania provavelmente jaacute aristoxeacutenica e portanto do IV seacuteculo aEC serve como tal para representar a figura de um Pitaacutegoras como ldquoemigrante em busca da liberdaderdquo (Burkert 1972 119) Pois essa mesma liberdade seraacute o tecido ideoloacutegico da refundaccedilatildeo das cidades pitagoacutericas na Magna Greacutecia

103

filosofia a ser escutada do outro sobre um regime econocircmico comunista como condi-

ccedilotildees sine quibus non para a realizaccedilatildeo de um biacuteos filosoacutefico

Com isso resolve-se tambeacutem aquela que poderia parecer como aparente contra-

diccedilatildeo entre as notiacutecias do envolvimento poliacutetico dos pitagoacutericos e a caracteriacutestica sectaacute-

ria da comunidade Eacute de fato o caso de concordar com a afirmaccedilatildeo de Burkert pela

qual natildeo haveria lugar na Greacutecia antiga para esse tipo de contradiccedilatildeo

Natildeo haacute inconsistecircncia entre este lado [poliacutetico] e o lado religioso e ri-tual do pitagorismo De fato sociedades de culto e clubes poliacuteticos satildeo em origem virtualmente idecircnticos Todo grupo organizado expressa-se em termos de uma devoccedilatildeo comum e toda sociedade de culto eacute ativa politicamente como uma hetairiacutea (Burkert 1972 119)198

Por consequecircncia eacute procedente uma imagem da comunidade pitagoacuterica como ao

mesmo tempo poliacutetica e sectaacuteria esta de fato propotildee-se em uacuteltima anaacutelise como al-

ternativa radical agrave cidade como uma cidade dentro da cidade

24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos

No interior da proacutepria comunidade pitagoacuterica a tradiccedilatildeo demonstra conhecer

aqueles que agrave primeira vista pareceriam diversos graus de pertenccedila agrave koinoniacutea Jacircmblico

recorda a pretensa divisatildeo entre Pitagoreus disciacutepulos integrados totalmente agrave comuni-

dade de vida de um lado e Pitagoristas do outro estes uacuteltimos ecircmulos dos primeiros

seguiam os estudos e as doutrinas mas natildeo obedeciam agraves prescriccedilotildees do biacuteos em sua

radicalidade (Iambl VP 80) O Anocircnimo de Foacutecio (Thesleff 1965 237 paraacutegrafos 7-

12) conhece um nuacutemero ainda maior de graus de separaccedilatildeo e progressiva pertenccedila agrave

comunidade veneraacuteveis dedicados aos estudos teoreacuteticos poliacuteticos que se ocupavam

da gestatildeo da vida humana matemaacuteticos estudiosos da geometria e astronomia pitagoacute-

198 Orig ldquoThere is no inconsistency between this [political] and the religious and ritual side of Pythago-reanism In fact cult society and political club are in origin virtually identical Every organized group expresses itself in terms of a common worship and every cult society is active politically as a hetairiacuteardquo Mas vejam-se tambeacutem os argumentos de Zhmud (1992 247 n5) que discorda dessa interpretaccedilatildeo negan-do importacircncia agrave componente religiosa da comunidade pitagoacuterica Da mesma forma Philip (1966 138)

104

ricos disciacutepulos diretos de Pitaacutegoras pitagoreus por sua vez disciacutepulos destes uacuteltimos

e pitagoristas simpatizantes natildeo membros da comunidade199

Contudo a distinccedilatildeo mais comum na literatura pitagoacuterica constantemente reto-

mada pela criacutetica contemporacircnea sobre o pitagorismo eacute aquela entre acusmaacuteticos e ma-

temaacuteticos Em geral a distinccedilatildeo entre os dois grupos corresponde ao esquema da sepa-

raccedilatildeo entre de um lado o homem de ciecircncia como seria o caso do mathematikoacutes que

se dedica aos estudos e agrave pesquisa geomeacutetrica astronocircmica musical e do outro o ho-

mem de feacute no caso do akousmatikoacutes que se limitaria a seguir os akouacutesmata e syacutembola

que regulamentam a vida pitagoacuterica200

Todavia todas as distinccedilotildees de graus de pertenccedila no interior da comunidade pi-

tagoacuterica incluindo esta uacuteltima encontram-se somente em fontes tardias De fato a pri-

meira referecircncia agrave distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteticos aparece somente no seacutecu-

lo II EC em Clemente Alexandrino (Stromata 559) e depois em Porfiacuterio (VP 37) e em

Jacircmblico (VP 81 87-88 De Comm Mathem76 16s)

Aleacutem disso a tradiccedilatildeo dessa distinccedilatildeo carrega diversos problemas historiograacutefi-

cos Primeiramente o termo akouacutesma natildeo eacute encontrado no sentido de preceito a ser

seguido antes de Jacircmblico Ateacute Porfiacuterio os preceitos da vida pitagoacuterica satildeo chamados

de syacutembola201 Por consequecircncia o uso do termo acusmaacuteticos deveraacute ser atribuiacutedo ao

proacuteprio Jacircmblico e natildeo poderaacute ser considerado como uma vaacutelida designaccedilatildeo de um gru-

po real historicamente presente agrave eacutepoca dos primeiros pitagoacutericos A mesma impossibi-

lidade eacute sugerida pela proacutepria erraacutetica complexidade das prescriccedilotildees agraves quais um pitagoacute-

rico deveria prestar atenccedilatildeo caso quisesse seguir o conjunto dos akouacutesmata Segundo

um testemunho de Jacircmblico (VP 82) haveria akouacutesmata de trecircs tipos cada um respon-

dendo a uma pergunta tiacute eacutesti o que eacute tiacute maacutelista o que eacute maior e tiacute praacutekteon o que se

deve fazer

199 Orig ldquo τῶν Πυθαγορείων οἱ microὲν ἦσαν περὶ θεωρίαν καταγινόmicroενοι οἵπερ ἐκαλοῦντο σεβαστικοί οἱ δὲ περὶ τὰ ἀνθρώπινα οἵπερ ἐκαλοῦντο πολιτικοί οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα γεωmicroετρικὰ καὶ ἀστρονοmicroικά οἵπερ ἐκαλοῦντο microαθηmicroατικοί καὶ οἱ microὲν αὐτῷ τῷ Πυθαγόρᾳ συγγενόmicroενοι ἐκαλοῦντο Πυθαγορικοί οἱ δὲ τούτων microαθηταὶ Πυθαγόρειοι οἱ δὲ ἄλλως ἔξωθεν ζηλωταὶ Πυθαγορισταίrdquo (Anon Phot In Thesleff 1965 237 paraacutegrafos 7-12) 200 A referida interpretaccedilatildeo da distinccedilatildeo dos dois como entre o homem de ciecircncia e o homem de feacute eacute de Centrone (1996 81) 201 O proacuteprio Jacircmblico utiliza syacutembola ateacute o Protreptico Cf Zhmud (1992 248 n15) para as referecircncias das passagens de Aristoacuteteles a Porfiacuterio

105

Todos os assim chamados akouacutesmata dividem-se em trecircs grupos os do primeiro indicam o que eacute algo aqueles do segundo o que eacute maior aqueles do terceiro o que se deve e natildeo se deve fazer Aqueles que de-finem o que eacute determinada coisa satildeo deste tipo ldquoO que satildeo as ilhas dos bem-aventurados Satildeo o Sol e a Lua O que eacute o oraacuteculo de Delfi A teacutetrada isto eacute a harmonia na qual estatildeo as sereiasrdquo Ao grupo que indica o que eacute maior pertencem os seguintes exemplos ldquoO que eacute a coisa mais justa Sacrificar Qual a mais saacutebia O nuacutemero mas imedi-atamente depois vem o que deu o nome agraves coisas Qual a mais bela A harmonia E a mais forte O raciociacutenio E a melhor A felicidade E o que eacute a coisa mais verdadeira de se dizer Que os homens satildeo malva-dosrdquo (Iambl VP 82)202

O resultado eacute uma seacuterie de prescriccedilotildees que Zhmud (1992 241) define como de

costume sem meios termos ldquoum tremendo conjunto de coisas absurdasrdquo (a tremendous

amount of absurdities) Entre elas eacute preciso calccedilar antes o par direito do sapato natildeo se

devem frequentar as ruas principais falar sem luz carregar a imagem de um deus no anel

sacrificar o galo branco203 Eacute realmente difiacutecil imaginar que na praacutetica algueacutem pudesse

seguir esta complexa rede de acusmata

Em segundo lugar a principal fonte da separaccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteti-

cos isto eacute Jacircmblico revela uma extraordinaacuteria contradiccedilatildeo nas duas vezes em que co-

pia da mesma fonte (Iambl VP 81 e 87) acaba por se contradizer204 Enquanto em VP

81 afirma

Sua filosofia assumia duas formas pois os que a praticam encontram-se distintos em dois gecircneros os acusmaacuteticos e os matemaacuteticos Entre eles os matemaacuteticos eram reconhecidos pelos outros como pitagoreus mas de sua parte natildeo consideravam os acusmaacuteticos como tais natildeo a-

202 Orig ldquo άντα δὲ τὰ οὕτως ltκαλούmicroεναgt ἀκούσmicroατα διῄρηται εἰς τρία εἴδηmiddot τὰ microὲν γὰρ αὐτῶν τί ἐστι σηmicroαίνει τὰ δὲ τί microάλιστα τὰ δὲ τί δεῖ πράττειν ἢ microὴ πράττειν τὰ microὲν οὖν τί ἐστι τοιαῦτα οἷον τί ἐστιν αἱ microακάρων νῆσοι ἥλιος καὶ σελήνη τί ἐστι τὸ ἐν ∆ελφοῖς microαντεῖον τετρακτύςmiddot ὅπερ ἐστὶν ἡ ἁρmicroονία ἐν ᾗ αἱ Σειρῆνες τὰ δὲ τί microάλιστα οἷον τί τὸ δικαιότατον θύειν τί τὸ σοφώτατον ἀριθmicroόςmiddot δεύτερον δὲ τὸ τοῖς πράγmicroασι τὰ ὀνόmicroατα τιθέmicroενον Τί οφώτατον τῶν παρrsquo ἡmicroῖν ἰατρική τί κάλλιστον ἁρmicroονίατί κρά-τιστον γνώmicroη τί ἄριστον εὐδαιmicroονία τί δὲ ἀληθέστατον λέγεται ὅτι πονηροὶ οἱ ἄνθρωποιrdquo (Iambl VP 82) 203 Zhmud chega a sugerir que seja impossiacutevel aceitar seriamente estes tabus (1992 244) Todavia para ampla discussatildeo tendente a compreender o sentido dos akouacutesmata como partes da cultura dos rituais misteacutericos no mundo antigo cf Burkert (1992 166-192) 204 Ineacutedita eacute a contradiccedilatildeo que apresentam as duas versotildees natildeo certamente o jaacute citado (13) procedimento de corte e colagem que ao contraacuterio distingue os procedimentos redacionais de Jacircmblico em relaccedilatildeo a suas fontes Cf para isso em geral Rohde (1872 60) e para a passagem especiacutefica Burkert (1992 193)

106

tribuindo a doutrina por eles professada a Pitaacutegoras mas a Hipaso (I-ambl VP 81)205

Logo em seguida no capiacutetulo 87 Jacircmblico afirma exatamente o oposto

Aqueles pitagoacutericos que se ocupam das matemaacuteticas reconhecem [os acusmaacuteticos] como Pitagoacutericos Estes afirmam secirc-lo em maior medida e estar professando a verdade (Iambl VP 87)206

Paralelo a este uacuteltimo eacute outro testemunho de Jacircmblico presente no De communi

mathematica scientiae (25 7616-788)

Entre eles os matemaacuteticos reconheciam como pitagoacutericos os acusmaacute-ticos enquanto estes natildeo reconheciam como pitagoacutericos os matemaacuteti-cos nem que sua doutrina fosse aquela de Pitaacutegoras e sim de Hipaso Alguns afirmam que Hipaso teria nascido em Crotona outros em Me-taponto Os pitagoacutericos que se ocupam das matemaacuteticas reconhecem que estes [os acusmaacuteticos] satildeo pitagoacutericos mas afirmam secirc-lo em maior medida e estar professando a verdade (Iambl De Comm Ma-them 25 7616-788)207

A contradiccedilatildeo eacute evidente enquanto na primeira versatildeo os matemaacuteticos seriam os

verdadeiros pitagoacutericos e por esse motivo negariam a homologiacutea pitagoacuterica aos acus-

maacuteticos na segunda versatildeo (tanto na Vida de Pitaacutegoras como na passagem paralela do

De communi mathematica scientia) Jacircmblico estaria afirmando o oposto seriam os

acusmaacuteticos a negarem que os matemaacuteticos professam a verdadeira doutrina pitagoacuterica

Com um detalhe especialmente interessante Hipaso acaba sendo identificado como

acusmaacutetico na primeira e matemaacutetico na segunda versatildeo

205 Orig ldquo τουτωνὶ δὲ οἱ microὲν microαθηmicroατικοὶ ὡmicroολογοῦντο Πυθαγόρειοι εἶναι ὑπὸ τῶν ἑτέρων τοὺς δὲ ἀκουσ-microατικοὺςοὗτοι οὐχ ὡmicroολόγουν οὔτε τὴν πραγmicroατείαν αὐτῶν εἶναι Πυθαγόρου ἀλλrsquo Ἱππάσουmiddot τὸν δὲ Ἵππ-ασον οἳ microὲν Κροτωνιάτην φασίν οἳ δὲ Μεταποντῖνονrdquo (Iambl VP 81) Hipaso parece ter sido o primeiro pitagoacuterico a se ocupar claramente de pesquisas cientiacuteficas a ele eacute atribuiacuteda a experiecircncia dos discos de bron-ze de igual diacircmetro e diversa espessura atraveacutes dos quais teria compreendido as relaccedilotildees numeacutericas que presidem as harmonias musicais (Cf Aristoxeno Fr 90 Wehrli) Centrone (1996) sugere que a autoria da acusaccedilatildeo a Hipaso da divulgaccedilatildeo do segredo poderia ser de acircmbito matemaacutetico como tentativa de legitima-ccedilatildeo das pesquisas matemaacuteticas fazendo-as remontar ao proacuteprio Pitaacutegoras (1996 85-86) 206 Orig ldquo οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα τῶν Πυθαγορείων τούτους τε ὁmicroολογοῦσιν εἶναι Πυθαγορείους καὶ αὐτοί φασιν ἔτι microᾶλλον καὶ ἃ λέγουσιν αὐτοί ἀληθῆ εἶναιrdquo (Iambl VP 87) 207 Orig ldquo τούτων δὲ οἱ microὲν ἀκουσmicroατικοὶ ὡmicroολογοῦντο Πυθαγόρειοι εἶναι ὑπὸ τῶν ἑτέρων τοὺς δὲ microαθηmicroατικοὺς οὗτοι οὐχ ὡmicroολόγουν οὔτε τὴν πραγmicroατείαν αὐτῶν εἶναι Πυθαγόρου ἀλλὰ Ἱππάσου τὸν δrsquoἽππασον οἱ microὲν Κροτωνιάτην φασίν οἱ δὲ Μεταποντῖνον οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα τῶν Πυθαγορείων τούτους τε ὁmicroολογοῦσιν εἶναι Πυθαγορείους καὶ αὐτοί φασιν ἔτι microᾶλλον καὶ ἃ λέγουσιν αὐτοὶ ἀληθῆ εἶναιrdquo (Iambl De Comm Mathem 25 7616-788)

107

Essa contradiccedilatildeo obriga a um trabalho de reconstruccedilatildeo de uma possiacutevel versatildeo

original do testemunho Deubner (1937) e em seguida Burkert (1992 193-208) de-

monstraram incontestavelmente que seria a segunda isto eacute seriam os acusmaacuteticos a

questionar a congruecircncia dos matemaacuteticos agrave verdadeira pragmateacuteia de Pitaacutegoras Natildeo eacute

de fato possiacutevel imaginar simplesmente uma escorregada de Jacircmblico em VP 81 algo

nesta contradiccedilatildeo deveraacute revelar seus motivos Eles devem ser procurados para aleacutem do

procedimento desajeitado de corte e colagem de Jacircmblico que se revela na improvaacutevel

transformaccedilatildeo de Hipaso de matemaacutetico a acusmaacutetico208 O motivo do erro eacute que prova-

velmente Jacircmblico natildeo consegue acreditar naquilo que recebe de suas fontes isto eacute que

o pitagorismo originaacuterio seja aquele professado pelos acusmaacuteticos pois o que ele co-

nhece do pitagorismo mediado pela tradiccedilatildeo acadecircmica e peripateacutetica eacute exatamente a

preocupaccedilatildeo central com os matheacutemata conforme se veraacute em detalhes no capiacutetulo quar-

to Burkert imagina o procedimento psicoloacutegico-redacional de Jacircmblico da seguinte

forma

Parecia-lhe impensaacutevel que algueacutem pudesse contestar isso para natildeo mencionar o fato de esses descrentes serem reconhecidos por seus ad-versaacuterios como verdadeiros pitagoacutericos Jacircmblico conhece a tradiccedilatildeo pela qual os acusmaacuteticos eram uma classe inferior os lsquoespuacuteriosrsquo os lsquomuitosrsquo que natildeo satildeo os verdadeiros filoacutesofos Aqui ele soacute pode acre-ditar que seus olhos o estatildeo enganando e rapidamente troca os dois nomes Temos aqui entatildeo uma alteraccedilatildeo arbitraacuteria cujo motivo eacute cla-ro mas natildeo eacute mantido consistentemente e o resultado disso eacute a confu-satildeo (Burkert 1972 194-5)209

A reconstruccedilatildeo da confusatildeo de Jacircmblico e sua troca de nomes leva finalmente

agravequela que pode ser considerada a hipoacutetese central destas uacuteltimas paacuteginas acusmaacuteticos

e matemaacuteticos natildeo seriam ao contraacuterio da vulgata dos estudos pitagoacutericos dois graus

distintos de filiaccedilatildeo agrave koinoniacutea e sim duas correntes dois grupos no interior do mesmo

movimento pitagoacuterico Os matemaacuteticos representariam o segundo momento de desen-

volvimento com relaccedilatildeo a um pitagorismo originaacuterio que ao contraacuterio seria marcada-

208 Para uma anaacutelise das passagens em que Jacircmblico demonstra anaacuteloga superficialidade na leitura das fontes cf Von Fritz (1940 105-107) 209 Orig ldquoIt seemed to him unthinkable that anyone could contest this to say nothing of these doubters being acknowledged by their opponents as genuine Pythagoreans Iamblichus knows the tradition that made the acusmatici the lower class the ldquospuriousrdquo the ldquomanyrdquo who are not true philosophers Here he can only believe that his eyes have deceived him and quickly switch the two nouns We have here then an arbitrary alteration whose motive is transparent but it is not maintained consistently and the result is confusionrdquo

108

mente acusmaacutetico Por esse motivo estariam empenhados em uma luta pela legitimida-

de diante da recusa por parte dos primeiros de reconhececirc-los como portadores da

mesma verdade210

Como consequecircncia dessa hipoacutetese surge obviamente um problema adicional a

ser enfrentado e que diz respeito ao momento exato em que teria havido essa divisatildeo

esse cisma Trata-se com toda probabilidade de uma divisatildeo que corresponde a um

momento sucessivo do desenvolvimento do pitagorismo ainda que seja difiacutecil estabele-

cer quatildeo sucessivo As tentativas de conectar esse cisma interno com a crise gerada pe-

las revoltas antipitagoacutericas de meados do seacuteculo V natildeo deram nenhum resultado concre-

to ainda que Riedweg (2002 176) sugira que seja possiacutevel pensar em uma maior sepa-

raccedilatildeo entre os dois grupos apoacutes a diaacutespora que se seguiu agraves revoltas e o contemporacircneo

avanccedilo da filosofia natural no fim do seacuteculo V e iniacutecio do seacuteculo IV aEC211

Apesar da procedecircncia histoacuterica desse cisma ser colocada em seacuterias duacutevidas por

Zhmud (1992) os argumentos de Delatte (1915 273ss ) e de maneira especial de Bur-

kert (1972 196ss) com relaccedilatildeo agrave existecircncia da possiacutevel autoridade de Aristoacuteteles por

traacutes do testemunho (original) de Jacircmblico sobre a distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacute-

ticos permitiriam confirmar a tradiccedilatildeo da divisatildeo entre os dois grupos212 Um argumen-

to em favor da antiguidade do cisma eacute que se fosse muito tardio jaacute natildeo faria sentido a

reivindicaccedilatildeo de legimitidade dos matemaacuteticos em uma conjuntura do pitagorismo que

jaacute nos tempos de Timeu eacute quase que exclusivamente matemaacutetico213 Um segundo ar-

gumento mais diretamente ligado agrave hipoacutetese da fonte aristoteacutelica que estaria por traacutes

210 Por esse motivo outra eacute obviamente a genealogia do cisma na versatildeo matemaacutetica dele Pitaacutegoras por receber diversas lideranccedilas poliacuteticas das cidades teria precisado simplificar sua doutrina isto eacute eliminar de seus ensinamentos puacuteblicos as demonstraccedilotildees cientiacuteficas que ao contraacuterio reservaria para os mais jovens desejosos de apreender os matemaacuteticos derivariam destes uacuteltimos (Cf Iambl VP 87-89) 211 Com ele parece concordar Huffman (2008 220) Tannery (1887 85ss) e Von Friz (1940 59 92) em sentido contraacuterio agrave reconstruccedilatildeo do testemunho de Jacircmblico chegam a sugerir que possa haver alguma relaccedilatildeo entre o cisma da comunidade e as revoltas antipitagoacutericas de meados do seacutec V aEC baseando-se em Jacircmblico (VP 257ss) imaginam que a divisatildeo interna da escola cujo responsaacutevel foi Hipaso teria levado em seguida a um a guerra civil e agrave crise final Depois da diaacutespora que a ela se seguiu os pitagoacuteri-cos se teriam retirado agrave vida religiosa privada Contra essa hipoacutetese todavia estaacute o fato de que os mate-maacuteticos continuam ativos depois da crise como demonstram entre outros Filolau e Arquitas 212 Veja-se nesse sentido tambeacutem o que foi dito acima (14) em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo inaugural de Burnet (1908 94) a esse respeito Concordam com Burnet Delatte e Burkert Rohde (1871) Minar (1942 43ss) Frank (1943 69ss) Huffman (1993 11) e Guthrie (1962 192ss) esp ldquothe thesis that there were two kinds of Pythagoreans the one chiefly interested in the pursuit of mathematical philosophy and the other in preserving the religious foundations of the school is both inherently probable and supported by a certain amount of positive evidencerdquo (1962 193) 213 Satildeo dessa opiniatildeo entre outros tanto Burkert (1972 196) como Centrone (1996 83)

109

dele eacute que Jacircmblico usaria diversas periacutefrases muito proacuteximas a Aristoacuteteles uma delas

eacute certamente a frase que introduz o testemunho do De communi mathematica scientia

ldquoduas satildeo as formas da filosofia itaacutelica que eacute chamada pitagoacutericardquo (Iambl De Comm

Mathem 25 7616) que encontra paralelos com semelhantes expressotildees aristoteacutelicas

em Metereologica (342b 30) e De Caelo (293a 20)214

A tradiccedilatildeo parece enfim confirmar o que se dizia anteriormente isto eacute que a

definiccedilatildeo de pitagoacuterico estaria inicialmente mais diretamente ligada agrave pertenccedila a uma

comunidade e agrave partilha de um biacuteos constituiacutedo principalmente por acusmata e

syacutembola do que propriamente agrave consonacircncia doutrinaacuteria sobre determinadas teorias

filosoacutefico-cientiacuteficas pois essas mesmas resultariam dos esforccedilos em boa parte isolados

entre eles de sucessivas geraccedilotildees de pitagoacutericos215

Ateacute por esse motivo natildeo eacute o caso de enfatizar demasiadamente na praacutetica para

compreendermos a formaccedilatildeo da categoria historiograacutefica do pitagoacuterico o pretenso cis-

ma histoacuterico que oporia de um lado o homem de feacute do outro o homem de ciecircncia con-

forme os modelos acima citados pois mesmo pitagoacutericos de eacutepoca jaacute claramente mate-

maacutetica como seria o caso de Filolau e Arquitas se perguntados sobre o troacutepos de seu

biacuteos responderiam provavelmente ser este propriamente o mesmo ouvido de Pitaacutegoras

Isso significa que ateacute para os pitagoacutericos das sucessivas geraccedilotildees envolvidos mais dire-

tamente na pesquisa cientiacutefica eacute ainda a vida o elemento definidor de sua identidade

pitagoacuterica Todavia se novamente perguntados sobre quais seriam as caracteriacutesticas

fundamentais desse modo de vida os pitagoacutericos dariam provavelmente respostas bas-

tantes vagas (vegetarianismo simplicidade pureza em diversos niacuteveis dedicaccedilatildeo aos

estudos pietas) e relativamente incongruentes De fato considerando a extensatildeo tempo-

ral e permeabilidade cultural da filosofia pitagoacuterica no mundo antigo eacute possiacutevel con-

cordar com a brilhante comparaccedilatildeo de Huffman (1993) que aproxima o pitagoacuterico anti-

go ao catoacutelico atual

214 Orig ldquo ∆ύο δrsquo ἐστὶ τῆς Ἰταλικῆς φιλοσοφίας εἴδη καλουmicroένης δὲ Πυθαγορικῆς δύο γὰρ ἦν γένη καὶ τῶν microεταχειριζοmicroένων αὐτήν οἱ microὲν ἀκουσmicroατικοίrdquo (Iambl De Comm Mathem 25 7616) Jaacute em Aris-toacuteteles encontram-se as seguintes expressotildees ldquo τῶν δrsquoἸταλικῶν τινες καλουmicroένων Πυθαγορείωνrdquo (Mete 342b30) e ldquo οἱ περὶ τὴν Ἰταλίαν καλούmicroενοι δὲ Πυθαγόρειοιrdquo (De Caelo 293a 20) 215 Em relaccedilatildeo ao fato de a corrente matemaacutetica dos pitagoacutericos natildeo se constituir em escola homogecircnea de pensamento e ao contraacuterio perseguir diferentes doutrinas fiacutesicas cosmoloacutegicas e matemaacuteticas cf a seguir o que se diraacute no capiacutetulo quarto

110

No mundo moderno podemos dizer que algueacutem eacute um catoacutelico sem por isso estar completamente claro o que ele pensa sobre uma vasta gama de questotildees filosoacuteficas Ser um pitagoacuterico no mundo antigo po-de implicar mais em termos de crenccedilas filosoacuteficas do que ser um catoacute-lico no mundo moderno mas devemos ser cuidadosos em assumir que esteja de fato implicado demais (Huffman 1993 11)216

Como no caso do catoacutelico portanto o pitagoacuterico definir-se-ia menos por uma

teologiafilosofia e mais por um sentimento de pertenccedila cultural por um estilo de vida

Dessa forma a razatildeo pela qual a tradiccedilatildeo consideraria Filolau como pitagoacuterico enquan-

to Alcmeon natildeo repousaria natildeo tanto sobre a diferenccedila doutrinaacuteria mas sim sobre o

fato de que enquanto o primeiro teria vivido uma vida pitagoacuterica o outro natildeo217

Eacute o caso de notar tambeacutem que a contraposiccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteti-

cos acaba-se tornando o leitmotiv da histoacuteria da criacutetica retornando continuamente qua-

se como um toacutepos literaacuterio nas hermenecircuticas contrapostas de um Pitaacutegoras (e um pita-

gorismo) cientiacutefico versus maacutegico-religioso por exemplo ou miacutestico versus poliacutetico

conforme vimos na primeira parte deste capiacutetulo As modernas discussotildees parecem as-

sim continuar nos trilhos de um debate jaacute antigo

Ao contraacuterio a proposta de interpretaccedilatildeo que subjaz agrave presente tese ndash em sua

dimensatildeo sincocircnica ndash eacute aquela de superar esses esquemas intepretativos dicotocircmicos

considerando o pitagorismo como uma categoria historiograacutefica de amplo alcance e

pluralidade de atribuiccedilotildees irredutiacutevel aos esquemas troppo estanques da histoacuteria da fi-

losofia

Em contrapartida ndash em sua dimensatildeo diacrocircnica de categorizaccedilatildeo do pitagorismo

ndash a presente tese jaacute reconheceu com Burkert que natildeo eacute possiacutevel alcanccedilar nem o Pitaacutego-

ras histoacuterico nem o pitagorismo das origens

De certa forma o quebra-cabeccedilas ficaraacute sempre inacabado equiacutevoco portanto

irreduziacutevel agrave univocidade de uma uacutenica soluccedilatildeo hermenecircutica das tradiccedilotildees histoacutericas

216 Orig ldquoIn the modern world we may say that someone is a Catholic without therefore being at all clear what he believes on a whole range of philosophical issues Being a Pythagorean in the ancient world may entail more in terms of philosophical beliefs than being a Catholic does in the modern world but we should be wary of assuming that too much is entailedrdquo 217 A questatildeo da relaccedilatildeo de Alcmeon com o pitagorismo eacute espinhosa e continua merecendo certo debate Em Metafisica A (986) Aristoacuteteles separa Alcmeon dos pitagoacutericos mesmo anotando proximidades teoacute-ricas entre os dois Jacircmblico (VP 104) diz que Alcmeon teria sido discipulo e ouvinte do proacuteprio Pitaacutego-ras O mesmo diz Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 83) Para os comentadores modernos da questatildeo cf Timpanaro Cardini (1958 119) e Centrone (1989 116) Cf tambeacutem Cornelli (2009a)

111

25 Conclusatildeo

Pode ser uacutetil antes de passar ao proacuteximo capiacutetulo refazer o percurso tecido nes-

te segundo capiacutetulo recuperando as sugestotildees metodoloacutegicas e propostas hermenecircuticas

aqui desenvolvidas pois seratildeo colocadas em jogo na anaacutelise das duas tradiccedilotildees que

mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria pitagorismo cada uma

delas com suas problemaacuteticas especiacuteficas

O ponto de partida foi a pergunta de Zeller se seria possiacutevel uma descriccedilatildeo coe-

rente do complexo fenocircmeno do pitagorismo O caminho seguido foi sair em busca da

categoria pitagorismo em suas duas dimensotildees diacrocircnica e sincrocircnica O objetivo de-

clarado da busca natildeo foi reduzir a complexidade de significados e experiecircncias que a

categoria reuacutene em si Ao contraacuterio o objetivo foi verificar como esta teria resistido agrave

previsiacutevel diluiccedilatildeo de um movimento que em sua diversidade estende-se ao longo de

mais de mil anos A especificidade do objeto sugeriu ndash sob pena de natildeo compreensatildeo do

fenocircmeno ndash tratamento especial do ponto de vista metodoloacutegico que assuma conscien-

temente as caracteriacutesticas de um caminho interdisciplinar e multifacetado Por outro

lado apontou-se que a compreensatildeo sincrocircnica do pitagorismo implica compreendecirc-lo agrave

luz das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga para isso

declarou-se a necessidade de superar as dicotomias entre ciecircncia e magia escrita e ora-

lidade jocircnicos e itaacutelicos agraves quais a historiografia usualmente nos acostumou pois ne-

nhuma delas sozinha parecer dar conta da complexidade da categoria do pitagorismo

A primeira pergunta que surgiu quase uma porta de entrada para a definiccedilatildeo da

categoria do pitagorismo eacute certamente aquela sobre a identidade do pitagoacuterico isto eacute

sobre quem poderia dizer-se pitagoacuterico no mundo antigo Os criteacuterios comumente utili-

zados para definir a questatildeo natildeo pareceram resistir ao crivo metodoloacutegico acima anun-

ciado pois natildeo eacute possiacutevel pensar na escola pitagoacuterica como em algo homogecircneo do

ponto de vista doutrinaacuterio nem sequer utilizar o criteacuterio geograacutefico ou do discipulado

direto geralmente utilizado pela doxografia Restou assim reconhecer que o que define

o pitagoacuterico eacute sua adesatildeo a um particular estilo de vida

Esta conclusatildeo abre imediatamente o problema das modalidades histoacutericas da

comunidade pitagoacuterica primitiva protopitagoacuterica como detentora ao menos etioloacutegica

e genealogicamente das prescriccedilotildees que regulamentam esse estilo de vida Platatildeo e A-

112

ristoacuteteles natildeo satildeo de grande ajuda para compreender qual eacute a caracteriacutestica saliente des-

sa comunidade por revelarem em seus testemunhos uma ambiguidade insuperaacutevel entre

a imagem de uma escola de pensamento e aquela de uma comunidade de vida marcada

pela ritualidade e o culto

Ateacute mesmo a comparaccedilatildeo sincrocircnica com os modelos correntes do thiacuteasos e da

hetairiacutea natildeo surtiu grande avanccedilo hermenecircutico de certa forma a comunidade pitagoacuteri-

ca eacute ao mesmo tempo as duas coisas e nenhuma delas A aporiacutea da tradiccedilatildeo obrigou a

uma mudanccedila de rumo recolocando a questatildeo em outro piso tanto metodoloacutegico como

textual

Por esse motivo seguindo a sugestatildeo de Burkert procurou-se verificar a ade-

quaccedilatildeo das tradiccedilotildees sobre a comunidade pitagoacuterica com o modelo socioloacutegico da seita

Ainda que se prefira a designaccedilatildeo mais neutra de comunidade o exerciacutecio de compara-

ccedilatildeo da koinoniacutea pitagoacuterica com a tipologia socioloacutegica que identifica uma seita permitiu

articular de forma bastante coerente grande diversidade de caracteriacutesticas expressas pela

literatura que juntas compotildeem um quadro coerente para a categoria pitagorismo Estas

contribuem para a descriccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica como um grupo numericamente

reduzido com caracteriacutesticas elitaacuterias alternativo aos moldes de sua cultura e mantendo

parte das informaccedilotildees sobre sua ideologia sob sigilo vida em comum comunhatildeo dos

bens submissatildeo agrave autoridade de um guia carismaacutetico levam a forte sentimento identitaacute-

rio a philiacutea entre os pitagoacutericos torna-se proverbial no mundo antigo Expulsatildeo dos

apoacutestatas prescriccedilotildees reprodutivas e intensa mobilidade geograacutefica garantem a sobrevi-

vecircncia diacrocircnica da comunidade

A anaacutelise do esquema narrativo da fundaccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica tanto em

Porfiacuterio como em Jacircmblico confirmou os sinais de uma comunidade que se define

mesmo do ponto de vista poliacutetico como alternativa agrave cidade Enfim os diversos graus

de pertenccedila agrave comunidade aos quais a tradiccedilatildeo parece referir-se especialmente a sepa-

raccedilatildeo entre matemaacuteticos e acusmaacuteticos foram revelados ao contraacuterio como duas cor-

rentes dois grupos no interior do pitagorismo A anaacutelise das tradiccedilotildees permitiu detectar

que os matemaacuteticos representariam um segundo momento de desenvolvimento com

relaccedilatildeo a um pitagorismo originaacuterio marcadamente acusmaacutetico O cisma teria aconteci-

do jaacute em eacutepoca bastante antiga o que confirmaria mais uma vez a hipoacutetese inicial pela

qual eacute ainda o biacuteos antes que uma unidade doutrinaacuteria a definir a identidade pitagoacuterica

113

Duas temaacuteticas mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria

pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo metempsicose e matemaacutetica As mesmas

seratildeo objeto do capiacutetulo terceiro e do quarto a seguir A anaacutelise procuraraacute de um lado

verificar a originalidade das duas temaacuteticas para o protopitagorismo e o pitagorismo do

seacuteculo V aEC por outro lado sinalizar de que maneira essas temaacuteticas contribuiacuteram

para a categorizaccedilatildeo do pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo

114

CAPIacuteTULO TERCEIRO IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE

Porfiacuterio em uma passagem jaacute citada no capiacutetulo anterior (21) no contexto da

discussatildeo sobre os modelos possiacuteveis de comunidade pitagoacuterica resume aquelas que a

tradiccedilatildeo passaraacute a considerar como as doutrinas centrais do Pitaacutegoras histoacuterico notada-

mente da imortalidade da alma (e de sua transmigraccedilatildeo) do eterno retorno e do paren-

tesco universal Eacute o caso de voltar mais uma vez para ela

Algumas de suas afirmaccedilotildees ganharam notoriedade praticamente ge-ral 1) afirma que a alma eacute imortal 2) que transmigra em outras espeacute-cies de seres vivos 3) que periodicamente o que jaacute aconteceu uma vez volta a acontecer e nada eacute absolutamente novo e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gecircnero Ao que parece foi mesmo Pitaacutegoras a introduzir pela primeira vez estas crenccedilas na Greacutecia (Porph VP 19)218

Esse resumo porfiriano das doutrinas mais ceacutelebres de Pitaacutegoras remete imedia-

tamente para o coraccedilatildeo da problemaacutetica da categorizaccedilatildeo histoacuterica do pitagorismo Natildeo

se pode fugir do fato de que no bojo dessas doutrinas apontadas como originaacuterias natildeo

apareccedila nenhuma referecircncia agrave matemaacutetica ou agrave teoria astronocircmica por exemplo ou

mesmo agrave cosmologia e agrave poliacutetica que tecircm ao contraacuterio papel fundamental para a defi-

niccedilatildeo do pitagorismo em outros estratos da tradiccedilatildeo entre eles certamente o estrato

que corresponde aos textos aristoteacutelicos

A referecircncia a pretensas doutrinas originaacuterias do pitagorismo portanto coloca

em pauta desde o iniacutecio a questatildeo da categorizaccedilatildeo historiograacutefica do movimento que

estas paacuteginas estatildeo perseguindo isto eacute da grande diversidade de doutrinas e das difi-

culdades de articulaacute-las no interior de um sistema filosoacutefico-cientiacutefico coerente Eacute ainda

a duacutevida de Zeller sobre a possibilidade de uma descriccedilatildeo coerente da filosofia pitagoacuteri-

ca (Zeller e Mondolfo 1938 597) a desafiar percurso por meio das fontes pitagoacutericas em

busca das temaacuteticas que ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo contribuiacute-

ram mais diretamente agrave definiccedilatildeo da categoria pitagorismo 218 Orig ldquo microάλιστα microέντοι γνώριmicroα παρὰ πᾶσιν ἐγένετο πρῶτον microὲν ὡς ἀθάνατον εἶναι φησὶ τὴν ψυχήν εἶτα microεταβάλλουσαν εἰς ἄλλα γένη ζῴων πρὸς δὲ τούτοις ὅτι κατὰ περιόδους τινὰς τὰ γενόmicroενά ποτε πάλιν γίνεται νέον δrsquoοὐδὲν ἁπλῶς ἔστι καὶ ὅτι πάντα τὰ γινόmicroενα ἔmicroψυχα ὁmicroογενῆ δεῖ νοmicroίζειν φέρεται γὰρ εἰς τὴν Ἑλλάδαrdquo (Porph VP 19)

115

Duas temaacuteticas destacam-se como centrais nesse sentido a teoria da alma pres-

suposta direta ou indiretamente nas quatro afirmaccedilotildees acima citadas e a matemaacutetica ao

contraacuterio grande ausente na passagem acima Em ambas a compreensatildeo do valor her-

menecircutico das questotildees envolvidas passaraacute por articulaccedilatildeo das duas dimensotildees historio-

graacuteficas acenadas no capiacutetulo anterior isto eacute da dimensatildeo diacrocircnica e da sincrocircnica

Ainda que resumo de eacutepoca tardia portanto a passagem de Porfiacuterio eacute certamente

excelente porta de entrada para a discussatildeo das tradiccedilotildees que o terceiro e o quarto capiacute-

tulo que aqui iniciam e a que se propotildeem Se natildeo por outros motivos ao menos porque

a tradiccedilatildeo remonta provavelmente jaacute ao pupilo de Aristoacuteteles Dicearco219 Natildeo eacute o caso

de fato que diversos comentadores jaacute claacutessicos se deram conta da importacircncia dessa

passagem para reposicionar teoreticamente as origens da filosofia pitagoacuterica em estreita

conexatildeo com as temaacuteticas eacutetico-religiosas220 As sugestotildees de Porfiacuterio nortearatildeo portan-

to a busca da compreensatildeo de um nuacutecleo teoacuterico que corresponde ao Pitaacutegoras histoacuterico

e ao protopitagorismo ainda que cientes de que esta mesma tradiccedilatildeo porfiriana estaacute lon-

ge de representar a soluccedilatildeo de um problema historiograacutefico Ao contraacuterio eacute provavel-

mente o comeccedilo dele E como tal seraacute enfrentado nas paacuteginas a seguir

A primeira doutrina citada por Porfiacuterio (VP 19) aquela da transmigraccedilatildeo da al-

ma eacute ligada a uma tradiccedilatildeo amplamente documentada sobre a competecircncia de Pitaacutegoras

para assuntos ligados ao aleacutem-tuacutemulo trata-se de tradiccedilotildees que estatildeo inseridas no mo-

delo de sabedoria arcaico que Betegh (2006) definiu acertadamente como journey model

(modelo de viagem) O sapiente filoacutesofo adquire conhecimento por meio de itineraacuterio

que o leva a percorrer tempos e espaccedilos distantes ou impraticaacuteveis ao restante dos mor-

tais incluindo nestes tambeacutem ndash ou melhor especialmente ndash o mundo do aleacutem-

tuacutemulo221

219 Burkert (1972 122-123) apesar da resistecircncia por parte tanto de Rathmann (1933 3ss) como de We-hrli que natildeo acolhe o capiacutetulo 19 de Porfiacuterio em seu volume dedicado a Dicearco (Wehrli 1944) segue a tradiccedilatildeo desta atribuiccedilatildeo que conta com a anuecircncia de Rohde (1871 566) Burnet (1908 92) Leacutevy (1926 50) Zeller e Mondolfo (1938 314) E acrescenta argumentos francamente convincentes fundamentados no tom ceacutetico que a passagem deixa transparecer e que natildeo pode certamente ser atribuiacutedo ao crente Porfiacute-rio deveraacute sem mais plausivelmente criaccedilatildeo de Dicearco ceacutetico pupilo de Aristoacuteteles que em outros fragmentos revela o mesmo ceticismo e ironia este afirma por exemplo que alma seria uma simples palavra (fr 7 Wehrli) e que Pitaacutegoras teria sido no passado uma bela cortesatilde (fr 36 Wehrli) 220 Cf para isso De Vogel (1964 16) e Guthrie (1962 186) e mais em geral o que foi dito acima (15) 221 A economia destas paacuteginas natildeo permite aprofundar esta temaacutetica da viagem para a construccedilatildeo da sabe-doria arcaica Eacute certamente o caso de remeter para a discussatildeo de Betegh (2006) para a formulaccedilatildeo do modelo assim como a dois estudos recentes que desenvolvem uma particularidade deste modelo aquele da κατάβασις isto eacute da viagem para o Hades (Cornelli 2007a Ustinova 2009) Memoacuterias de κατάβασις estatildeo amplamente atestadas no interior da literatura sobre o pitagorismo Entre elas certamente a histoacuteria

116

Essa transmigraccedilatildeo da alma foi chamada no mundo grego de metempsicose O

termo metempsychoacutesis natildeo revela especiais problemas de traduccedilatildeo desde a Iacutendia ateacute a

Greacutecia remete ao mover-se (accedilatildeo indicada comumente pelo termo transmigraccedilatildeo) de

uma alma de um corpo para outro O mover-se desenha idealmente um kiacuteklos um ciclo

ou ciacuterculo de nascimento-morte-nascimento222

Eacute certamente o caso de notar que todavia natildeo existe ao menos ateacute o final da

eacutepoca claacutessica precisatildeo terminoloacutegica na indicaccedilatildeo desse ciclo da imortalidade da alma

Conforme veremos diversas expressotildees e imagens satildeo utilizadas para indicar esta

transmigraccedilatildeo desde vestir cobrir (Empeacutedocles) penetrar de uma alma no corpo (He-

roacutedoto) ateacute o nascer de novo expresso pelo termo palingecircnese (paacutelin giacutegnesthai) de

Platatildeo223

Ainda que o termo metempsychoacutesis apareccedila pela primeira vez somente no pri-

meiro seacuteculo EC com Diodoro Siacuteculo (X 6 1) e desde logo referido a Pitaacutegoras a

proacutepria etimologia do termo aponta para origem bem mais antiga do termo de fato ndash

diferentemente do que se pensou tanto na antiguidade como entre muitos dos comenta-

dores contemporacircneos ndash a etimologia da palavra natildeo indica a ldquoentradardquo de algo na alma

nem sequer deriva diretamente do termo psycheacute Ao contraacuterio conforme anota com ra-

zatildeo Casadio

Formou-se a partir do verbo empsychoo ldquoanimarrdquo (que por sua vez estaacute conectado atraveacutes de empsychos e psyche ao verbo psycho ldquoso-prarrdquo) ao qual foi acrescentado o preveacuterbio meta (lat trans) que deno-ta natildeo somente a mudanccedila mas tambeacutem a sucessatildeo ou repeticcedilatildeo e o sufixo sis denotando a accedilatildeo abstrata (1991 122-123)224

do traacutecio Zalmoxis narrada por Heroacutedoto (IV 94-95) que teria sido disciacutepulo de Pitaacutegoras como se veraacute a seguir 222 A menccedilatildeo ao κύkλος da alma estaacute presente de maneira muito significativa em um texto da literatura oacuterfica antiga A terceira lacircmina de ouro oacuterfica de Thurii (fr 32c Kern 4 A 65 Colli II B1 Pugliese Carra-telli) assim reza ldquovoei longe do ciacuterculo doloroso que provoca grave inquietaccedilatildeordquo Agora tambeacutem em Tortorelli Ghidini (2006 74-75) 223 Cf abaixo para as referecircncias 224 Orig ldquosi egrave formato a partire dalo verbo empsychoo lsquoanimarersquo (che a sua volta egrave collegato attraverso empsychos e psyche al verbo psycho lsquosoffiarersquo) cui egrave stato aggiunto il preverbio meta (lat trans) denotante non solo il cambiamento ma anche la successione o ripetizione e il suffissale -sis denotante lacuteazione astrattardquo Cf para os antigos especialmente Olimpiodoro (in Phaed 135 Westerink) Para os contemporacircneos Kereacutenyi (1950 24) e Von Fritz (1957 89 n1)

117

O campo semacircntico da metempsicose portanto em suas origens e mesmo em

seu uso sucessivo denota a ideia de um soprar novamente a alma para dentro de um

corpo O ciclo eacute assim concebido como uma seacuterie de novas inalaccedilotildees da alma-vida i-

magem esta que remete agravequela do pneucircma no interior de um corpo e eacute claramente de-

pendente portanto da concepccedilatildeo fiacutesica jocircnica de era Como revela o fr 2 de Anaxiacuteme-

nes que articula os trecircs termos psycheacute pneucircma e aer na mesma frase ldquocomo ndash dizem ndash

nossa alma que eacute ar nos manteacutem juntos assim o ar e o sopro mantecircm junto o inteiro

cosmordquo (13 B2 DK)225 Sinal forte este da continuidade ao menos em relaccedilatildeo agrave semacircn-

tica da metempsicose com as concepccedilotildees mais antigas da alma-sopro-vida226

O que mais importa todavia agrave economia destas paacuteginas eacute que a tradiccedilatildeo desde

muito cedo aproxima a teoria da transmigraccedilatildeo agrave figura de Pitaacutegoras como veremos a

seguir Sobre isso ateacute os dias atuais conforme ficaraacute claro a seguir ldquoferve sempre viva

a discussatildeordquo (Zeller e Mondolfo 1938 560) jaacute nas palavras de Modolfo

31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes)

A crenccedila de Pitaacutegoras neste movimento da alma eacute testemunhada no ceacutelebre

fragmento praticamente contemporacircneo a Pitaacutegoras de Xenoacutefanes

E conta-se que passava [Pitaacutegoras] ao ser castigado um cachorrinho sentiu piedade e pronunciou as seguintes palavras ldquoPara de bater Pois eacute a alma de um amigo meu que reconheci ao ouvir os seus gemidosrdquo (21 B7 DK = D L Vitae VIII 36)227

O fragmento eacute provavelmente a tradiccedilatildeo mais antiga que possuiacutemos sobre Pitaacute-

goras Apesar de algumas poucas tentativas tendentes a negar a identificaccedilatildeo de Pitaacutego-

ras como autor do dito citado no fragmento no contexto de um posicionamento ceacutetico

generalizado em relaccedilatildeo ao fato de a metempsicose poder ser considerada como doutri-

na pitagoacuterica originaacuteria (Kern 1888 499 Rathmann 1933 37-38 Maddalena 1954

225 Orig ldquo οἶον ἡ ψυχή φησίν ἡ ἡmicroετέρα ἀὴρ οὖσα συγκρατεῖ ἡmicroᾶς καὶ ὅλον τὸν κόσmicroον πνεῦmicroα καὶ ἀὴρ περιέχειrsquo rdquo (13 B2 DK) 226 Cf para esta continuidade as observaccedilotildees de Casadio (1991 142) e Bernabeacute (2004 76-78) 227 Orig ldquo καί ποτέ microιν στυφελιζοmicroένου σκύλακος παριόντα φασὶν ἐποικτῖραι καὶ τόδε φάσθαι ἔπο-ς ldquoπαῦσαι microηδὲ ῥάπιζ ἐπεὶ ἦ φίλου ἀνέρος ἐστὶ ψυχή τὴν ἔγνων φθεγξαmicroένης ἀΐωνrdquo (D L Vitae VIII 36)

118

335 Casertano 1987 19ss) haacute hoje amplo consenso sobre a referecircncia da personagem

citada por Xenoacutefanes como Pitaacutegoras a comeccedilar por Zeller (1938 314) Burnet (1908

120ss) Rostagni (1982 55) Long (1948 17) Dodds (1951 143 n55) Timpanaro Car-

dini (1958-62) ateacute os trabalhos mais recentes de Burkert (1972 120s) Huffman (1993

331) Centrone (1996 54) Kahn (2011 11) e Riedweg (2007 104)228

Os argumentos de Maddalena contra a atribuiccedilatildeo da doutrina a Pitaacutegoras reve-

lam quase que pelo avesso os motivos de sua quase certa atribuiccedilatildeo Ao afirmar que ldquoo

fato que a citaccedilatildeo da passagem de Xenoacutefanes dependa provavelmente de uma fonte an-

tipitagoacuterica torna ainda mais inadequada a presunccedilatildeo da segura atribuiccedilatildeordquo (Maddalena

1954 336)229 Maddalena revela de certa maneira natildeo ter compreendido o jogo irocircnico

da memoacuteria Ao contraacuterio de Burnet (1908) quando afirma ldquotorna-se praticamente cer-

to que se trata de Pitaacutegoras quando encontramos Xenoacutefanes negando issordquo (1908

120)230 Pois eacute exatamente a zombaria que revela uma intenccedilatildeo antipitagoacuterica na fonte

de Xenoacutefanes a confirmar a importacircncia dada agrave teoria da metempsicose como elemento

identificador do Pitaacutegoras histoacuterico Como no caso paralelo dos fragmentos polecircmicos

de Heraacuteclito conforme se veraacute em seguida o fato de o testemunho ser originaacuterio de

ambientes contraacuterios e natildeo pitagoacutericos soacute faz aumentar seu valor como testemunho

confiaacutevel Pois natildeo seria compreensiacutevel o porquecirc de a tradiccedilatildeo da literatura pitagoacuterica

manter esta memoacuteria natildeo certamente simpaacutetica ao movimento se esta natildeo constituiacutesse

minimamente uma referecircncia antiga a um dos pilares de sua doutrina isto eacute a imortali-

dade da alma (Cornelli 2003a 203)231

Ao olhar o testemunho xenofacircnico em seu contexto de uma traditio no interior

das Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio eacute possiacutevel notar como a passagem aparece bem no meio

228 Cf Casadio (1991 119-123) para a argumentaccedilatildeo sobre a oportunidade de usar o termo metempsicose no lugar de metemsomatose para indicar a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma Em resumo o termo seria atestado mais precisamente somente a partir do seacuteculo II EC com Celso e Clemente Alexandrino e tra-duziria a ideia da reincorporaccedilatildeo do que aquela da reencanaccedilatildeo o uso desse termo preferido pelo plato-nismo tardio (eacute certamente o caso da escola de Plotino) trai uma preocupaccedilatildeo e uma tendecircncia antissomaacute-tica 229 Orig ldquoil fatto che la citazione del passo di Senofane egrave molto probabilmente dovuta a uno scrittore antipitagorico rende ancor piugrave inadeguata la presunzione della certa attribuizionerdquo 230 Orig ldquobecomes practically certain that it was that of Pythagoras when we find that Xenophanes denied itrdquo 231 Eacute significativo que em uma passagem das obras perdidas de Aristoacuteteles ndash com toda probabilidade de seu Sobre os pitagoacutericos ndash seja preservada uma anedota paralela pela qual Pitaacutegoras teria reconhecido no cadaacutever de Milias de Crotona a alma receacutem-reencarnada do rei Midas (fr 1 Ross = Iambl VP 140-143) Nese caso todavia em um contexto distante de qualquer intenccedilatildeo polecircmica ou irocircnica

119

de uma seacuterie de escaacuternios a Pitaacutegoras e suas doutrinas A citaccedilatildeo do fragmento de Xenoacute-

fanes eacute de fato precedida por um testemunho atribuiacutedo a Timatildeo de Fliunte que nas

proacuteprias palavras de Dioacutegenes Laeacutercio move criacuteticas literalmente mordazes (o verbo

utilizado eacute mesmo daacutekno morder) a Pitaacutegoras ldquoPitaacutegoras que tende a usar encantamen-

tos para caccedilar homens cheio de palavras majestosasrdquo (D L Vitae VIII 36)232 Agrave passa-

gem xenofaneia segue-se imediatamente depois uma criacutetica do comedioacutegrafo Cratino

que dedica aos pitagoacutericos nos Tarentinos alguns versos cujo interesse historiograacutefico

apesar de grande supera o acircmbito proacuteprio desta anaacutelise O comedioacutegrafo ateniense os

apresenta de fato como haacutebeis sofistas

Eles tecircm o costume se alguma vez encontram algueacutem inexperiente de fazer-lhe um exame completo da forccedila de seus raciociacutenios confundin-do-o e arrasando-o com argumentos definiccedilotildees antiacuteteses equaccedilotildees e grandezas com grande exibiccedilatildeo de inteligecircncia (D L Vitae VIII 37)233

O mesmo Dioacutegenes Laeacutercio atesta em outra passagem as intenccedilotildees polecircmicas

de Xenoacutefanes contra Pitaacutegoras234 A confirmaccedilatildeo de que se trata mesmo de Pitaacutegoras a

expressatildeo kai poacutete (ldquoe outra vezrdquo) no iniacutecio dela sugere que outros testemunhos sobre

Pitaacutegoras teriam sido relatados anteriormente por Xenoacutefanes ainda que Dioacutegenes Laeacuter-

cio natildeo os tenha relacionado

No entanto um detalhe torna o fragmento ainda mais interessante pela economia

desta tese Apesar de representar provavelmente a mais antiga referecircncia agrave teoria da

metempsicose de Pitaacutegoras o texto revela tambeacutem de imediato grave dificuldade histo-

riograacutefica que sugere cautela em atribuir indiscutivelmente ao Pitaacutegoras histoacuterico e ao

232Orig ldquo Τὴν δὲ σεmicroνοπρέπειαν τοῦ Πυθαγόρου καὶ Τίmicroων ἐν τοῖς Σίλλοις δάκνων αὐτὸν ὅmicroως οὐ παρέ-λιπεν εἰπὼν οὕτωςrdquo (D L Vitae VIII 36) 233Orig ldquo ἔθος ἐστὶν αὐτοῖς ἄν τιν ἰδιώτην ποθὲν λάβωσιν εἰσελθόντα διαπειρώmicroενον τῆς τῶν λόγων ῥώmicroης ταράττειν καὶ κυκᾶν τοῖς ἀντιθέτοις τοῖς πέρασι τοῖς παρισώmicroασιν τοῖς ἀποπλάνοις τοῖς microεγέθε-σιν νουβυστικῶςrdquo (D L Vitae VIII 37) O interesse historiograacutefico da passagem de Cratino deve ser reconduzido agrave questatildeo apenas esboccedilada no capiacutetulo primeiro (16) da ligaccedilatildeo entre pitagorismo e primei-ra sofistica a partir das sugestotildees de Rostagni (1922 149) Eacute este certamente um toacutepico que mereceria urgente revisatildeo histoacuterica 234 DL Vitae IX 18 que lembra na mesma passagem de sua criacutetica tambeacutem a Tales de Mileto Xenocircfa-nes teria demonstrado ceticismo em relaccedilatildeo agrave ceacutelebre memoacuteria da previsatildeo do eclipse por Tales (21 B19 DK) criticando a filosofia da natureza de Anaximandro (21 B 27-29 33 DK 21 A 47 DK) e significati-vamente desconfiado de Epimecircnides (21 B19 DK) e da macircntica em geral (21 A52 DK) Portanto para aleacutem da celebre criacutetica agrave teologia de Homero e Hesiacuteodo (21 A1 DK) Xenocircfanes parece ocupar-se tambeacutem de expressotildees religiosas natildeo tradicionais como eacute o caso de Epimecircnides e Pitaacutegoras De fato como anota corretamente Riedweg (2002 105) para algueacutem como Xenoacutefanes Pitaacutegoras e os pitagoacutericos com suas pretensotildees eacutetico-religiosas deviam resultar particularmente irritantes

120

protopitagorismo esta mesma doutrina Notadamente pelo uso do termo central desta

discussatildeo isto eacute o termo psycheacute no caso atribuiacutedo ao cachorrinho Tanto Burkert

(1972 134 n77) como Huffman (1988 1993 331) anotam com razatildeo que o testemunho

de Xenoacutefanes natildeo atribui propriamente uma alma ao cachorrinho e sim afirmaria que o

cachorrinho ldquoseriardquo (estiacute) a alma de um amigo Este detalhe aparentemente miacutenimo eacute

em verdade o sintoma de um problema mais profundo certamente natildeo simples de ser

resolvido qual teria sido a real concepccedilatildeo protopitagoacuterica da imortalidade da alma isto

eacute professada por Pitaacutegoras e seus primeiros disciacutepulos

O caminho de resoluccedilatildeo da questatildeo passa certamente por uma anaacutelise do proacuteprio

termo psycheacute conforme aparece no testemunho de Xenoacutefanes Ainda que o fragmento

possa provar a relaccedilatildeo de Pitaacutegoras com as teorias da metempsicose natildeo eacute certamente

razoaacutevel pensar que o termo em si possa constituir achado arqueoloacutegico dos pretensos

ipsissima verba de Pitaacutegoras235 Isto eacute nada indica que a expressatildeo estiacute psycheacute (ldquoseria a

almardquo) possa ser considerada como um fragmento de Pitaacutegoras Agrave prova disso o mesmo

Empeacutedocles ele proacuteprio pensador da imortalidade da alma e tambeacutem de acircmbito pitagoacute-

rico236 ainda natildeo utiliza o termo psycheacute em suas teorias da imortalidade e sim o termo

daiacutemones (31 B115 DK)237

A primeira fonte pitagoacuterica escrita a utilizar o termo psycheacute eacute Filolau em seu fr

13

E quatro satildeo os princiacutepios do animal racional como tambeacutem Filolau diz em Sobre a natureza ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e genitaacutelias A ca-beccedila da mente o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o umbigo do enrai-zamento e crescimento primitivo as genitaacutelias da jogada da semente e da geraccedilatildeo E o ceacuterebro eacute o princiacutepio do ser humano o coraccedilatildeo do a-nimal o umbigo da planta e as genitaacutelias de todas as coisas juntas pois da semente brotam e crescem (44 B13 DK)238

235 Cf Huffman (1993 331) ldquoit seems perverse to seize upon the second-hand satirical remarks of Xeno-phanes and use it as the basis on which to reconstruct the Pythagorean doctrine of psycherdquo 236 Como afirma Kingsley (1995) mas jaacute antes o mesmo Burkert (1972 57 n26) 237 Cf para isso Dodds (1951 174s) Guthrie (1962 319) Philip (1966 157-158) Para uma resenha do uso preacute-socraacutetico do termo cf Balaudeacute (2002) 238 Orig ldquo καὶ τέσσαρες ἀρχαὶ τοῦ ζώιου τοῦ λογικοῦ ὥσπερ καὶ Φ ltἐν τῶι Περὶ φύσεωςgt λέγει ἐγκέφ-αλος καρδία ὀmicroφαλός αἰδοῖον ltlsquoκεφαλὰ microὲν νόου καρδία δὲ ψυχᾶς καὶ αἰσθήσιος ὀmicroφαλὸς δὲ ῥιζώσ-ιος καὶ ἀναφύσιος τοῦ πρώτου αἰδοῖον δὲ σπέρmicroατος [καὶ] καταβολᾶς τε καὶ γεννήσιος ἐγκέφαλος δὲ ltσαmicroαίνειgt τὰν ἀνθρώπω ἀρχάν καρδία δὲ τὰν ζώου ὀmicroφαλὸς δὲ τὰν φυτοῦ αἰδοῖον δὲ τὰν ξυναπάντω-ν πάντα γὰρ ἀπὸ σπέρmicroατος καὶ θάλλοντι καὶ βλαστάνοντιrdquo (44 B13 DK) Em favor da autenticidade do fragmento amplamente discutida cf a argumentaccedilatildeo mais recente de Huffman (1993 307)

121

O coraccedilatildeo eacute aqui dito archeacute da psycheacute e dos sentidos portanto No entanto o

fragmento de Filolau no lugar de resolver a questatildeo parece complicaacute-la ainda mais

Pois aqui alma eacute indiscutivelmente uma realidade que diz respeito aos fenocircmenos da

vida animal e natildeo algo que possa ser pensado como imortal Por esse motivo Burkert

(1972 270) seguido por Huffman (1993 312) propotildee que a traduccedilatildeo mais correta deva

ser simplesmente vida por tratar-se neste caso de um uso preacute-platocircnico do termo psy-

cheacute que natildeo quer indicar o complexo de faculdades psiacutequicas da forma que iraacute signifi-

car mais tarde

Esta mesma acepccedilatildeo do termo eacute confirmada por um testemunho aristoteacutelico que

significativamente aproxima a teoria da alma pitagoacuterica com aquela de Demoacutecrito

O que dizem os pitagoacutericos parece seguir o mesmo raciociacutenio [dos a-tomistas] pois alguns deles declaram que a alma satildeo as poeiras no ar outros por sua vez que ela eacute o que faz com que se movam (De an 404a16)239

Jaacute foi anotado anteriormente que eacute bastante plausiacutevel que quando Aristoacuteteles fa-

la indistintamente de pitagoacutericos esteja de fato pensando no pitagorismo do seacuteculo V e

mais propriamente em Filolau (cf 11) O acircmbito semacircntico da psycheacute pitagoacuterica seria

portanto aquele do movimento dos seres animados e com uma conotaccedilatildeo marcadamen-

te materialista a alma seria um amontoado de elementos minuacutesculos (xuacutesmata poeiras)

sempre em movimento localizados no coraccedilatildeo A teoria da harmoniacutea que eacute pressuposta

a todo elemento material pensada por Filolau como acordo de limitantes e ilimitados

(44 B1 DK) revela as formas desse movimento que seguiratildeo portanto como todas as

realidades padrotildees rigorosamente harmocircnicos240

239 Orig ldquo ἔοικε δὲ καὶ τὸ παρὰ τῶν Πυθαγορείων λεγόmicroενον τὴν αὐτὴν ἔχειν διάνοιαν ἔφασαν γάρ τινες αὐτῶν ψυχὴν εἶναι τὰ ἐν τῷ ἀέρι ξύσmicroατα οἱ δὲ τὸ ταῦτα κινοῦν περὶ δὲ τούτων εἴρηται ὅτι συνεχῶς φαίνεται κινούmicroενα κἂν ᾖ νηνεmicroία παντελήςrdquo (De an 404a16) A traduccedilatildeo eacute de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (Aristoacuteteles 2006) Deve-se notar que a comparaccedilatildeo entre os dois movimentos (pitagorismo e atomismo) eacute sublinhada pelo texto tradito de Ross com a inserccedilatildeo da qualificaccedilatildeo esfeacutericos (τὰ σφαιροει-δῆ) atribuiacuteda aos aacutetomospoeira na linha 2 a 4 de 404a Diels propotildee emenda desta por consideraacute-la uma glosa daquilo que eacute depois dito dos pitagoacutericos na linha 16 e seguintes na passagem (67 A28 DK) aqui em pauta 240 Natildeo eacute o caso de subestimar um significativo ponto de conexatildeo entre a concepccedilatildeo pitagoacuterica e atomista de ψυχή ambas estatildeo profundamente ligadas ao ambiente da medicina antiga Burkert e Huffman falam respectivamente de medical mileu (Burkert 1972 272) e medical background (Huffman 1993 329) como estando por traacutes de ambos Gemelli chega a postular natildeo haver distinccedilotildees entre filosofia e medicina ateacute a terceira parte do seacuteculo V aEC keine Grenzen (Gemelli 2007) Certamente haacute profunda influecircncia sobre a concepccedilatildeo da ψυχή de ambas as ldquoescolasrdquo por parte das teorias da sauacutede como equiliacutebrio (microέτρον) ou

122

No entanto essa teoria da psycheacute como harmonia e composiccedilatildeo de elementos

materiais eacute evidentemente contraditoacuteria com aquela de sua imortalidade241 Como conci-

liaacute-la portanto com a memoacuteria acima de Porfiacuterio (VP 19) pela qual a doutrina da me-

tempsicose seria uma das doutrinas mais ceacutelebres de Pitaacutegoras e com o fragmento de

Xenoacutefanes pelo qual o proacuteprio Pitaacutegoras teria demonstrado pensar na imortalidade da

alma e em suas transmigraccedilotildees

Imaginar que Filolau natildeo devia acreditar na imortalidade da alma como sugere

Wilamowitz (1920 II 90) eacute soacute aparentemente lectio facilior242 Pelos criteacuterios desen-

volvidos ao longo do capiacutetulo segundo sobre a questatildeo da identidade do pitagoacuterico que

se dizia entatildeo estar ligada mais a um estilo de vida do que a uma coerecircncia doutrinaacuteria

seria realmente muito difiacutecil imaginar que Filolau natildeo acreditasse na metempsicose

Pois essa mesma teoria eacute pressuposto de muita parte da ritualidade e da mitologia (e

filosofia) pitagoacutericas e Filolau teria tido muita dificuldade para ser identificado como

pitagoacuterico sem que professasse de alguma maneira essa teoria Ao contraacuterio seria mais

faacutecil imaginar que Filolau pensasse sim na imortalidade da alma mas como eacute o caso

de Empeacutedocles acima utilizasse outra terminologia que natildeo psycheacute para indicar essa

parcela imortal do indiviacuteduo

Tratar-se-ia portanto no caso do pitagorismo preacute-platocircnico da coexistecircncia de

duas noccedilotildees diferentes de alma no resumo que Guthrie faz da questatildeo (1964)

Duas diferentes noccedilotildees de alma portanto existiam na crenccedila daquele tempo a psycheacute que lsquoesvaecia como fumaccedilarsquo ao morrer e que os es-critores de medicina (incluindo sem duacutevida alguns ceacuteticos e pitagoacuteri-cos hereges) racionalizaram na harmonia dos opostos fiacutesicos que datildeo origem ao corpo e o mais misterioso daiacutemon no homem imortal e que sofre transmigraccedilatildeo atraveacutes de vaacuterios corpos mas que em sua es-secircncia mais pura eacute divino Isto tambeacutem pode ser chamado psycheacute e o

ἰσονοmicroία Cf o uso destes termos por Alcmeon (24 B4 DK) como tambeacutem Peixoto (2009) e Cornelli (2009a) 241 A ideia de Drosdek (2007 66) pela qual o estaacutegio final das reencarnaccedilotildees seria a harmonia natildeo passa de uma conjectura como o proacuteprio autor admite (ldquoWe can only guess na answer And the answer is har-monyrdquo) sem bases filoloacutegicas para sua sustentaccedilatildeo 242 Esta mesma doutrina eacute defendida por Platatildeo no Feacutedon (85) por intermeacutedio de Siacutemias Jaacute Zeller e Mon-dolfo (1938 563) e Cornford (1922) perceberam que na verdade esta mesma contradiccedilatildeo natildeo deveria ter sido percebida como tal pelos pitagoacutericos do V seacuteculo Seja porque a harmonia se referiria somente agraves partes da alma e natildeo aos seus elementos corpoacutereos (Rohde 1920) ou exclusivamente agrave parte da alma destinada agrave morte junto como o corpo (Rostagni 1982) A ampla discussatildeo da questatildeo por Guthrie (1964 308-319) conecta a questatildeo agrave harmonia coacutesmica enquanto Philip (1966 163ss) sugere que a concepccedilatildeo da alma como ἁρmicroονία natildeo seria filolaica e sim uma retroprojeccedilatildeo platocircnica

123

eacute em Platatildeo Ambas sobrevivem lado a lado no pensamento religioso geral corrente e ambas sobrevivem na curiosa combinaccedilatildeo de filoso-fia matemaacutetica e misticismo religioso do qual eacute feito o pitagorismo (1964 119)243

Eacute certamente o caso portanto a partir desta introduccedilatildeo agraves questotildees historiograacutefi-

cas ligadas agrave teoria da alma pitagoacuterica de recolher provisoriamente duas sugestotildees her-

menecircuticas a serem desenvolvidas ao longo das proacuteximas paacuteginas

Em primeiro lugar Pitaacutegoras e seu movimento elaboraram com toda probabili-

dade uma teoria da imortalidade da alma que tem em sua metempsicose um dos elemen-

tos-chave Essa elaboraccedilatildeo parece ser reconhecida pelas fontes antigas como seraacute visto

com mais detalhes a seguir como um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento

sobre a alma na antiguidade O reconhecimento dessa atribuiccedilatildeo natildeo implica todavia a

afirmaccedilatildeo pela qual a teoria pitagoacuterica da alma constitua um sistema articulado e dog-

maacutetico de crenccedilas uma doutrina coerente Eacute possiacutevel concordar nesse sentido com as

observaccedilotildees de cunho antropoloacutegico de Burkert quando afirma que

Concepccedilotildees do aleacutem-tuacutemulo satildeo e sempre foram sincreacuteticas Eacute somen-te a teologia que daacute as caras mais tarde na tradiccedilatildeo a interessar-se por nivelar as diferenccedilas [] Somente um dogma sem vida eacute preservado sem mudanccedilas ao contraacuterio uma doutrina levada a seacuterio eacute continua-mente revisada ao longo de um processo contiacutenuo de reinterpretaccedilatildeo (Burkert 1972 135)244

Dessa forma toda coerecircncia da qual o objeto precisa seraacute aquela do estilo de vi-

da que dessa crenccedila eacutetico-religiosa deriva isto eacute do lado acusmaacutetico do biacuteos nos mol-

des daquilo que se acenava acima em relaccedilatildeo a Filolau e sua concepccedilatildeo da alma

243 Orig ldquoTwo different notions of soul then existed in contemporary belief the psycheacute which lsquovanished like smokersquo at death and which medical writers (including no doubt some sceptical and therefore hereti-cal Pythagoreans) rationalized into a harmonia of the physical opposites that made up the body and the more mysterious daiacutemon in man immortal suffering transmigration through many bodies but in its pure essence divine This too could be called psycheacute as it was by Plato Both survived side by side in the gen-eral current of religious thought and both also survived in the curious combination of mathematical philosophy and religious mysticism which made up Pythagoreanismrdquo Da mesma forma parece compreender metodologicamente a questatildeo da coexistecircncia de diversas teorias da alma ao longo do desenvolvimento do pitagorismo Zeller e Mondolfo (1938 563) ldquo[nel pitagorismo] le concezioni vecchie paion continuare a sussistere accanto alle nuove non che ad altri svolgimenti collaterali pur derivati dallacuteunione di elementi preesistentirdquo 244 Orig ldquoConceptions of the afterlife are and have always been syncretistic It is only theology corning along rather late in the tradition that is interested in smoothing out the differences [hellip] Only dead dog-ma is preserved without change doctrine taken seriously is always being revised in the continuous process of reinterpretationrdquo

124

Em segundo lugar o testemunho de Xenoacutefanes com seu uso extemporacircneo do

termo psycheacute aponta para a necessidade de verificar em que medida a histoacuteria da tradi-

ccedilatildeo apropria-se das teorias pitagoacutericas da imortalidade da alma com seu leacutexico proacuteprio

e suas imagens miacuteticas associadas para construir uma categoria historiograacutefica que dia-

logue em cada um dos momentos histoacutericos dessa transmissatildeo

As paacuteginas a seguir seratildeo tecidas a partir dessas duas sugestotildees acima De um

lado por meio da busca por um conjunto doutrinaacuterio que corresponda a uma teoria da

alma protopitagoacuterica por outro lado acompanhando a construccedilatildeo da categoria do pita-

gorismo a partir de sua teoria da imortalidade da alma

32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios)

A comeccedilar por outro fragmento atribuiacutedo a Iacuteon de Quios que em versos elegiacutea-

cos dedicados a Fereacutecides nomeia da seguinte maneira Pitaacutegoras

Assim ele [Fereacutecides] insigne pela alma viril e pela dignidade mesmo falecido goza com a alma de uma vida bem-aventurada se realmente Pitaacutegoras o saacutebio mais do que todos havia compreendido as disposiccedilotildees mentais dos homens (36 B4 DK)245

Certa dificuldade de compreender a relaccedilatildeo aqui estabelecida entre Pitaacutegoras e

Fereacutecides depende provavelmente do fato de que o contexto integral da citaccedilatildeo foi per-

dido Eacute possiacutevel todavia conjecturar como fazem Kranz (1934 104) e Riedweg (2007

110) que a conexatildeo entre Fereacutecides e Pitaacutegoras no contexto de uma vida bem-

aventurada aleacutem-tuacutemulo esteja ligada de um lado agrave avaliaccedilatildeo geral pela qual Fereacutecides

teria levado uma vida altamente moral que consequentemente mereceu uma retribuiccedilatildeo

bem-aventurada do outro lado agrave renomada sabedoria de Pitaacutegoras sobre assuntos como

esses isto eacute agraves suas ceacutelebres teorias da imortalidade da alma

Um argumento parece corroborar esta leitura o mesmo Iacuteon refere-se em outro

fragmento a Pitaacutegoras como o autor de alguns dos poemas oacuterficos ldquoIacuteon de Quios nos 245 Orig ldquo ὣς ὁ microὲν ἠνορέηι τε κεκασmicroένος ἠδὲ καὶ αἰδοῖ καὶ φθίmicroενος ψυχῆι τερπνὸν ἔχει βίοτον εἴπερ Πυθαγόρης ἐτύmicroως ὁ σοφὸς περὶ πάντων ἀνθρώπων γνώmicroας εἶδε καὶ ἐξέmicroαθενrdquo (36 B4 DK) Acolhe-se aqui para o v3 a emenda de Sandbach (195859) que introduz uma ideia importante na citaccedilatildeo como aquela do conhecimento que Pitaacutegoras possui conforme veremos da histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo

125

Triagmas diz que Pitaacutegoras atribuiu a Orfeu alguns poemas por ele escritosrdquo (36 B2

DK)246 Eacute este certamente o testemunho mais antigo da relaccedilatildeo de Pitaacutegoras com o or-

fismo Ver-se-atildeo em seguida mais aprofundadamente as consequecircncias dessa relaccedilatildeo

para a compreensatildeo da teoria da imortalidade da alma no pitagorismo Haacute de fato ime-

diatamente outro detalhe no fr 4 de Iacuteon que natildeo pode passar despercebido a expressatildeo

sophoacutes periacute paacutenton anthroacutepon ldquosaacutebio mais do que todos os homensrdquo ecoa imediata-

mente o ceacutelebre fragmento 129 de Heraacuteclito247 A referecircncia teria tom polecircmico como a

querer corrigir o tiro de Heraacuteclito que nos dois fragmentos que avaliaremos logo mais

refere-se a Pitaacutegoras sempre de maneira sarcaacutestica

Heraacuteclito eacute sem duacutevida outra fonte essencial para a compreensatildeo do lugar inte-

lectual de Pitaacutegoras em seu tempo O diaacutelogo de Iacuteon com o testemunho heracliacutetico pode

de fato jogar uma luz toda especial sobre o sentido de sua criacutetica dirigida contra Pitaacutego-

ras

Heraacuteclito no contexto de uma criacutetica ampla e irrestrita dirigida agraves autoridades

intelectuais de seu tempo notadamente Homero e Hesiacuteodo lanccedila suas proverbiais fle-

chas contra o proacuteprio Pitaacutegoras identificado jaacute como um dos mais importantes intelec-

tuais de seu tempo

Pitaacutegoras filho de Mnesarco praticou a pesquisa mais de qualquer um e tendo feito uma escolha desses textos com isso conseguiu sua proacute-pria sabedoria que eacute vaacuteria erudiccedilatildeo charlatanaria (22 B 129 DK)248

A historiacutee eacute a pesquisa cientiacutefica da escola iocircnica que Heraacuteclito bem conhece

Pitaacutegoras eacute aqui compreendido como excelente nessa pesquisa No entanto essa mesma

pesquisa na qual Pitaacutegoras se sobressaiu em relaccedilatildeo a todos os outros e que parece va-

ler-lhe um ineacutedito elogio do proacuteprio Heraacuteclito (ldquopraticou mais de qualquer umrdquo) eacute ao

contraacuterio compreendida por Heraacuteclito como ldquomulticiecircnciardquo (polymathiacutea) e como ldquochar-

lataneriardquo (kakotecniacutea) com uma referecircncia ambiacutegua a certos ldquoescritosrdquo aos quais teria

246 Orig ldquo Ἴων δὲ ὁ Χῖος ἐν τοῖς Τριαγmicroοῖς καὶ Πυθαγόραν εἰς Ὀρφέα ἀνενεγκεῖν τινα ἱστορεῖrdquo (36 B2 DK) 247 Cf 22 B129 DK Natildeo passou de fato despercebido Cf Kranz (1934 227) pelo qual esta referecircncia a Heraacuteclito seria prova da autenticidade desse fragmento de Iacuteon mas tambeacutem Zeller e Mondolfo (1938 317s) Timpanaro Cardini (1958-62 I 20) Burkert (1972 123 n13) Riedweg (2002 110-111) entre outros 248 Orig ldquo Πυθαγόρης Μνησάρχου ἱστορίην ἤσκησεν ἀνθρώπων microάλιστα πάντων καὶ ἐκλεξάmicroενος ταύτ-ας τὰς συγγραφὰς ἐποιήσατο ἑαυτοῦ σοφίην πολυmicroαθίην κακοτεχνίηνrdquo (22 B 129 DK)

126

feito referecircncia anteriormente conforme sugeriria o termo tauacutetas Enquanto a histoacuteria

da criacutetica tentou adivinhar quais teriam sido esses escritos o contexto imediato deles

pode ser sugerido por outro fragmento criacutetico em relaccedilatildeo a Pitaacutegoras

Muita erudiccedilatildeo natildeo ensina a compreensatildeo De outra maneira a teria ensinado tanto a Hesiacuteodo como a Pitaacutegoras e tambeacutem a Xenoacutefanes e Hecateu (22 B 40 DK)249

A proximidade de Hesiacuteodo e Pitaacutegoras no fragmento acima parece indicar que os

escritos deste uacuteltimo estariam ligados agrave literatura que tem como seus primeiros expoen-

tes tanto Hesiacuteodo como Homero Literatura esta que Heraacuteclito todavia desdenha250

Com essas referecircncias natildeo surpreende que a sabedoria de Pitaacutegoras tenha tido um resul-

tado tatildeo inaceitaacutevel251 Outras sugestotildees levantadas eacute que seriam no interior das teorias

de uma derivaccedilatildeo oriental da doutrina pitagoacuterica escritos de matemaacutetica babilocircnios por

exemplo ou quiccedilaacute egiacutepcios252

O fragmento de Iacuteon considerado logo acima conforme se anunciava pode cor-

roborar uma terceira hipoacutetese de atribuiccedilatildeo destas syacutengraphai de Pitaacutegoras pela qual

seriam textos de matriz oacuterfica Ao que parece com precisas referecircncias textuais quase

citaccedilotildees invertidas Iacuteon estaria querendo defender Pitaacutegoras agora jaacute em acircmbito ateni-

ense dos ataques que Heraacuteclito havia lanccedilado contra ele E faria isso de um lado iden-

tificando esses escritos conforme se viu no fr 2 como textos oacuterficos pseudoepigraacutefi-

cos por outro lado identificando a historiacutee com a praacutetica do conhecimento da palingecirc-

nese das vidas pregressas isto eacute da histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo como a mencio-

nada emenda de Sandbach (195859) ao fr 4 ndash acima citada ndash parece sugerir ldquohavia

compreendido as disposiccedilotildees mentais dos homensrdquo (36 B4 DK) A criacutetica de Heraacuteclito

249 Orig ldquo πολυmicroαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάν-εά τε καὶ Ἑκαταῖονrdquo (22 B 40 DK) 250 Cf 22 B57 e 106 DK para Hesiacuteodo 22 A22 DK para Homero Para uma discussatildeo mais aprofundada da relaccedilatildeo entre πολυmicroαθίη e κακοτεχνίη cf Gemelli (2007a 13ss) 251 Recentemente Burkert (1998 306) sugeriu a possibilidade de esses escritos serem do tipo dos escritos de Fereacutecides ou ateacute mesmo poemas oacuterficos Kahn (2001 17 n32) imaginaacute-los-ia mais provavelmente como algo intermediaacuterio entre os escritos de Anaximandro e de Filolau 252 A ligaccedilatildeo do pitagorismo com o Egito eacute testemunhada senatildeo jaacute pelos mesmos estudos matemaacuteticos pela presenccedila de um templo a Hera com formas arquitetocircnicas egiacutepcias em Samos no VI aEC (Kingsley 1999 16) assim como por algumas referecircncias a isso do mesmo Heroacutedoto que em suas consideraccedilotildees sobre os usos sepulcrais dos egiacutepcios (que sepultavam os mortos em vestes de linho e natildeo de latilde como na Greacutecia) afirma ldquoTal [costume] corresponde aos chamados Orfikaacute e Bacchikaacute que na verdade satildeo egiacutep-cios e pitagoacutericosrdquo (Herodt II 81)

127

assim como a defesa de Iacuteon seriam todas voltadas agrave forte presenccedila na sophiacutea de Pitaacutego-

ras de teorias da imortalidade da alma de matriz oacuterfica Ambas constituem dessa for-

ma testemunhos preciosos da antiguidade da atribuiccedilatildeo dessas doutrinas ao protopita-

gorismo senatildeo ao mesmo Pitaacutegoras 253

A literatura pitagoacuterica posterior iraacute identificar essa psicologia genealoacutegica da

alma operada por Pitaacutegoras como fundamento de sua estrateacutegia cliacutenica ldquoPitaacutegoras co-

nhecia suas existecircncias preacutevias e iniciava a cura dos homens evocando a memoacuteria de

suas vidas anterioresrdquo (Iambl VP 63)254 A epimeacuteleia pitagoacuterica portanto da qual eacute

repleta a tradiccedilatildeo sobre Pitaacutegoras depende em uacuteltima anaacutelise de suas capacidades de

historiador da alma

Diversos testemunhos apontam para a fama de suas capacidades de cura dizia-se

entre as cidades que frequentava que ele ldquonatildeo viria para ensinar e sim para curarrdquo255 A

tradiccedilatildeo da cura remonta provavelmente a uma expectativa neste sentido reservada

para as figuras centrais da filosofia itaacutelica256 Veja-se de fato na mesma linha o que diz

Empeacutedocles no proacutelogo de seu poema das Purificaccedilotildees ldquomilhares me seguem [] uns

com necessidade de oraacuteculos outros haacute longo tempo tomados por fortes dores desejam

ouvir palavras inspiradas que curem doenccedilas de todos os tiposrdquo (31 B112 DK)257

Aqui tambeacutem a cura estaacute ligada a uma especial capacidade oracular que pode

ser aproximada ainda que natildeo perfeitamente com a psicologia genealoacutegica da alma de

Pitaacutegoras

253 Cf Burkert (1972 130-131) Eacute interessante notar que jaacute Kranz (1934 227ss) defendia que Heraacuteclito devia conhecer esses escritos pitagoacutericos sendo nisso seguido por Zeller e Mondolfo (1938) ainda que Mondolfo considere esta hipoacutetese ldquoalquanto arditardquo (1938 318) 254 Orig ldquo αὐτός τε ἐγίγνωσκε τοὺς προτέρους ἑαυτοῦ βίους καὶ τῆς τῶν ἄλλων ἐπιmicroελείας ἐντεῦθεν ἤρχετο ὑποmicroιmicroνήσκων αὐτοὺς ἧς εἶχον πρότερον ζωῆςrdquo (Iambl VP 63) 255 Orig ldquo ἀφίκετο οὐ διδάξων ἀλλ ἰατρεύσωνrdquo (Ael VH 4 17) 256 Cf tambeacutem Nucci (1999) e Macris (2003 257) 257 Orig ldquo οἱ δ ἅmicro ἕπονται microυρίοι ἐξερέοντες [] οἱ microὲν microαντοσυνέων κεχρηmicroένοι οἱ δ ἐπὶ νούσων παντοίων ἐπύθοντο κλυεῖν εὐηκέα βάξιν δηρὸν δὴ χαλεπῆισι πεπαρmicroένοι ltἀmicroφ ὀδύνηισινgtrdquo (31 B112 DK)

128

33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles)

Como pertencentes a esse mesmo acircmbito intelectual e cultural devem ser consi-

derados os testemunhos de Empeacutedocles Desde a antiguidade o protagonista de suas

Purificaccedilotildees foi identificado com Pitaacutegoras258 e as influecircncias oacuterficas sobre Empeacutedo-

cles satildeo atualmente consideradas como altamente provaacuteveis259 Eacute inegaacutevel que as duas

figuras de Pitaacutegoras e de Empeacutedocles tecircm muito em comum de maneira especial a-

proxima-os seu papel dual ndash nas palavras de Kahn ndash enquanto ao mesmo tempo filoacuteso-

fos matemaacuteticos e profetas religiosos (Kahn 2001 16) Ambos satildeo percebidos pelos

contemporacircneos (e pela literatura sucessiva) como theacuteioi aacutendres homens divinos de-

tentores de poderes e capacidade especiais Eacute certamente o caso de lembrar nesse senti-

do o fr 112 de Empeacutedocles ldquoEu entre vocecircs ando como um deus imortal natildeo mais

mortal por todos honradordquo (31 B112 DK)260 e os diversos testemunhos sobre a divinda-

de de Pitaacutegoras entre eles o ceacutelebre acusma que responde agrave pergunta ldquoQuem eacute Pitaacutego-

rasrdquo com ldquoApolo Hiperboreurdquo (Iambl VP 140)261

A proximidade de Empeacutedocles com o pitagorismo eacute comprovada tambeacutem nos

fragmentos por grande quantidade de coincidecircncias doutrinaacuterias Por esse motivo de

Zeller a Kingsley chegou-se a imaginar um discipulado direto de Empeacutedocles em rela-

ccedilatildeo ao protopitagorismo As duplas enantioloacutegicas dos fragmentos 122 e 123 lembram

de perto a lista de contraacuterios que Aristoacuteteles atribui aos pitagoacutericos na ceacutelebre passagem

do primeiro livro de Metafiacutesica A (986a)262 Como tambeacutem a concepccedilatildeo cosmoloacutegica e

258 Cf D L (Vitae VIII 54- 56) e os testemunhos de Alcidamantes Neantes e Timeu neste sentido Para a criacutetica moderna ldquoWho could this be but Pythagorasrdquo se pergunta Treacutepanier (2004 105) Cf tambeacutem Doods (1951 182) Zuntz (1971 183) Burkert (1972 109 n65) Mais ceacuteticos Zeller e Mondolfo (1958 329) e como sempre Rathmann (1933 94-131) 259 Cf West (1983 26) Riedweg (1995) Scarpi (2007 150) Apesar das duacutevidas de Treacutepanier (2004 106) 260 Orig ldquo ἐγὼ δrsquo ὑmicroῖν θεὸς ἄmicroβροτος οὐκέτι θνητός πωλεῦmicroαι microετὰ πᾶσι τετιmicroένοςrdquo (31 B112 DK) 261 Orig ldquo καὶ ἓν τοῦτο τῶν ἀκουσmicroάτων ἐστί lsquoτίς εἶ Πυθαγόραrsquo φασὶ γὰρ εἶναι Ἀπόλλωνα Ὑπερβόρε-ονrdquo (Iambl VP 140) 262 ldquoLaacute estavam a ctocircnia e a solar de ampla mirada o oacutedio sangrento e a harmonia de olhar severo e a bela e a feia a aacutegil e a lerda a verdadeira amaacutevel e a obscura de cabelos pretosrdquo orig ldquo ἔνθ ἦσαν Χθονίη τε καὶ Ἡλιόπη ταναῶπις ∆ῆρίς θ αἱmicroατόεσσα καὶ Ἁρmicroονίη θεmicroερῶπις Καλλιστώ τ Αἰσχρή τε Θόωσά τε ∆ηναίη τε Νηmicroερτής τ ἐρόεσσα microελάγκουρός τ Ἀσάφειαrdquo (31 B122 DK) ldquoO nascimento e a dissoluccedilatildeo o sono e a vigiacutelia o moacutevel e o imoacutevel a grandeza rodeada de muitas coroas e miseacuteria o silente e o vocife-ranterdquo orig ldquo Φυσώ τε Φθιmicroένη τε καὶ Εὐναίη καὶ Ἔγερσις Κινώ τ Ἀστεmicroφής τε πολυστέφανός τε Μεγιστώ καὶ Φορύη Σωπή τε καὶ Ὀmicroφαίηrdquo (31 B123 DK) Cf para estes fragmentos o elegante comen-taacuterio de Casertano (20071)

129

antropoloacutegica ambas baseadas no conceito de harmoniacutea que encontra paralelos nos

fragmentos de Filolau e Arquitas263 ou na epistemologia de Empeacutedocles que por sua

vez ndash conforme o testemunho de Aristoacuteteles no De Anima (404b8 = 31 B109a DK) ndash

estaria fundada no princiacutepio do semelhante que conhece o semelhante264 Segundo o

testemunho de Sexto Empiacuterico o princiacutepio seria certamente jaacute filolaico (44 A29 DK)265

No entanto o fragmento de Empeacutedocles mais imediatamente relevante para essa

discussatildeo sobre os testemunhos mais antigos da teoria da imortalidade da alma pitagoacuteri-

ca eacute o fr 129 Natildeo seraacute preciso acatar a sugestatildeo de Pascal (1904 141ss) de que os

versos do fr 129 constituam uma introduccedilatildeo a um discurso do proacuteprio Pitaacutegoras con-

forme satildeo citados em Oviacutedio (Metam XV 60) pois todas as coincidecircncias doutrinaacuterias

acima desenhadas vecircm reforccedilar a compreensatildeo majoritaacuteria de que seja mesmo Pitaacutegoras

o protagonista do fr 129266

Havia entre eles um homem de extraordinaacuteria visatildeo que adquiriu uma imensa riqueza de inteligecircncia e era excelente em uma grande quantidade de saacutebias atividades Quando de fato ele tencionava todas as forccedilas de sua mente Enxergava facilmente todas as coisas que satildeo em dez ou vinte geraccedilotildees humanas (31 B129 DK)267

Novamente os termos da citaccedilatildeo como no caso de Iacuteon acima citado parecem

ecoar as bem conhecidas criacuteticas de Heraacuteclito a Pitaacutegoras acima citadas Expressotildees

como extraordinaacuteria visatildeo imensa riqueza de inteligecircncia grande quantidade de ativi- 263 Essas referecircncias agrave harmonia em Empeacutedocles fazem suspeitar que a proposiccedilatildeo do conceito de harmo-niacutea no interior da histoacuteria do pitagorismo antecede sua formulaccedilatildeo canocircnica elaborada por Filolau so-mente no seacuteculo V aEC Cf Zeller e Mondolfo (1938 331) 264 ldquoCom a terra vemos a terra com a aacutegua a aacutegua com o eacuteter o eacuteter divino com o fogo o fogo arrasa-dor com o amor o amor e a luta com luta funestardquo (31 B109 DK) Orig ldquo γαίηι microὲν γὰρ γαῖαν ὀπώπαmicro-εν ὕδατι δ ὕδωρ αἰθέρι δ αἰθέρα δῖον ἀτὰρ πυρὶ πῦρ ἀίδηλον στοργὴν δὲ στοργῆι νεῖκος δέ τε νείκεϊ λυγρῶιrdquo 265 O mesmo criteacuterio de conhecimento eacute lembrado no Timeu de Platatildeo (45c) em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do ser humano e in primis da visatildeo Um aceso debate tendente nos uacuteltimos anos a verificar as apropriaccedilotildees dessas teorias do conhecimento no interior daquela que foi em seguida definida como oacutetica revela um diaacutelogo in fieri sobre este tema entre Platatildeo e Aquitas Cf para isso Burnyeat (2005) e Huffman (2005 551-569) 266 Enquanto Rostagni (1982 232) segue a sugestatildeo de Pascal para exaustiva relaccedilatildeo da histoacuteria da criacutetica desta atribuiccedilatildeo cf Zeller e Mondolfo (1938 329) e Timpanaro Cardini (1958-62 I 18) Comentadores mais recentes entre eles Riedweg (2002) Treacutepanier (2004) e Gemelli (2007) seguem a tradiccedilatildeo concor-dando com a mesma atribuiccedilatildeo 267 Orig ldquo ὃς δὴ microήκιστον πραπίδων ἐκτήσατο πλοῦτον παντοίων τε microάλιστα σοφῶν ltτgt ἐπιήρανος ἔργων ὁππότε γὰρ πάσηισιν ὀρέξαιτο πραπίδεσσιν ῥεῖ ὅ γε τῶν ὄντων πάντων λεύσσεσκεν ἕκαστον καί τε δέκ ἀνθρώπων καί τ εἴκοσιν αἰώνεσσινrdquo (31 B129 DK)

130

dades de sabedoria natildeo satildeo certamente casuais Haacute aqui de fato uma afirmaccedilatildeo da

polymathiacutea de Pitaacutegoras Essa afirmaccedilatildeo diferentemente daquela de Heraacuteclito natildeo eacute

marcada pelo sarcasmo Ao contraacuterio Essa sabedoria especial eacute qualificada na segunda

parte da citaccedilatildeo de forma muito precisa toda a visatildeo de Pitaacutegoras eacute direcionada agrave pa-

lingecircnese isto eacute ao perscrutar a histoacuteria da alma em seus movimentos de metempsico-

se Tanto a proacutepria como aquela dos outros Ainda que a referecircncia seja mais generica-

mente agrave capacidade de enxergar ldquotodas as coisas que satildeordquo incluindo nelas por exemplo

a capacidade de ouvir a harmonia do universo no sentido de perceber o som das esferas

(Porph VP 30) eacute evidente que o contexto da citaccedilatildeo implica mais especificamente a

ceacutelebre capacidade especial de Pitaacutegoras

O fr 129 portanto no contexto tanto das Purificaccedilotildees como da tradiccedilatildeo sobre a

figura de Empeacutedocles como homem divino constitui testemunho da atribuiccedilatildeo ao pro-

topitagorismo de uma teoria da alma que pressupotildee tanto uma concepccedilatildeo de sua trans-

migraccedilatildeo como uma capacidade especial de Pitaacutegoras de percorrer essa histoacuteria da al-

ma268

34 Platatildeo e orfismo

O lugar mais generoso de referecircncias e ao mesmo tempo mais sensiacutevel para a

discussatildeo da atribuiccedilatildeo das teorias da imortalidade da alma e sua metempsicose ao pita-

gorismo eacute certamente a obra de Platatildeo Todavia mesmo o testemunho platocircnico natildeo

estaacute isento de problemas e incertezas A falta de citaccedilotildees diretas do pitagorismo nos

textos platocircnicos dedicados a essas teorias por exemplo consolidou desde cedo uma

hipoacutetese pela qual elas se refeririam mais propriamente ao orfismo em vez do pitago-

rismo269 Eacute obviamente impossiacutevel na economia destas paacuteginas esgotar exaustivamente

as muacuteltiplas facetas da relaccedilatildeo entre Platatildeo e o orfismo que vai bem aleacutem da problemaacute-

268 A esses argumentos Philip (1966 156) acrescenta mais um os vetos alimentares que aproximam Empeacutedocles ao pitagorismo dependem diretamente a seu ver da crenccedila na transmigraccedilatildeo que ambos partilhariam 269 Defendem a atribuiccedilatildeo das doutrinas ao orfismo Bluck (1964 274-276) Boyanceacute (1972 85 n4) e mais recentemente Casadio (1991 130-131) Centrone (1996 61)

131

tica da imortalidade da alma270 Seraacute o caso de limitar-se aqui a discutir as relaccedilotildees entre

pitagorismo e orfismo no interior da problemaacutetica da metempsicose deixando de lado

outras possibilidades de abordagem dessa complexa questatildeo como aquela cosmoloacutegica

ou poliacutetica Contudo mesmo para as finalidades mais internas agrave nossa discussatildeo seraacute

preciso fazer continuamente referecircncia agrave problemaacutetica mais geral271

A dificuldade de tecer as relaccedilotildees entre Platatildeo pitagorismo e orfismo antes

mesmo do que nas sempre lembradas caracteriacutesticas dialoacutegicas da obra platocircnica ou nas

questotildees apontadas no capiacutetulo anterior a respeito da tradiccedilatildeo e sua categorizaccedilatildeo do

pitagorismo reside mais imediatamente na incerta determinaccedilatildeo do que possa ser consi-

derado orfismo Em relaccedilatildeo por exemplo agraves fontes literaacuterias para esse assunto eacute o proacute-

prio Platatildeo a revelar a confusatildeo representada pela existecircncia de grande pletora de livros

que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp II 364e)272 A dificuldade represen-

tada pela pseudoepigrafia comum a toda a literatura antiga torna-se ainda mais dramaacute-

tica no caso de Orfeu273 Por outro lado jaacute Wilamowitz perguntava se o fato de existi-

rem obras atribuiacutedas a Orfeu implicava necessariamente tambeacutem a existecircncia histoacuterica

de oacuterficos (1932 192-199) Sua resposta foi negativa e desde entatildeo a criacutetica acostu-

mou-se prudentemente a considerar a presenccedila do orfismo no interior da obra platocircnica

como algo indissociavelmente ligado agrave releitura que Platatildeo teve desse movimento com

isso poreacutem acabou por ser negada em princiacutepio qualquer possibilidade de Platatildeo ser

considerado como fonte confiaacutevel para o orfismo preacute-platocircnico274 Todavia recentes

descobertas arqueoloacutegicas de maneira especial aquela que trouxe agrave luz o papiro Derve-

ni contribuiacuteram para confundir as aacuteguas paradas da tradiccedilatildeo interpretativa apontando

270 Eacute certamente o caso de remeter para isso a Bernabeacute (1998 2002 e no prelo) Cf tambeacutem Masaracchia (1993) Brisson (2000b) e Pugliese Carratelli (2001) 271 Cf acima para uma discussatildeo historiograacutefica da questatildeo do orfismo e do pitagorismo (18) 272 A expressatildeo usada por Platatildeo eacute βίβλων ὅmicroαδον com o termo ὅmicroαδον a indicar mais propriamente tumulto como aquele dos combatentes em batalha (Cf Il IX 573) Outra memoacuteria da grande e confusa literatura atribuiacuteda a Orfeu haacute tambeacutem no Hipoacutelito de Euriacutepides (ldquoa fumaccedila dos muitos escritosrdquo v 954) 273 Eacute certamente o caso de recordar a introduccedilatildeo agrave monografia Orphica de Hermann (1805) um dos pri-meiros estudiosos modernos do orfismo que assim comeccedila ldquosi mea sponte eligendus mihi fuisset scrip-tor in quo edendo operam meam collocarem in quemcumque alium facilius quam in Orpheum incidis-semrdquo (1805 v) A ele ecoa West (1983 17) quando afirma que aquele de Orfeu foi o nome favorito pelos poemas pseudoepigraacuteficos de natureza religiosa metafiacutesica ou esoteacuterica 274 A posiccedilatildeo ceacutetica de Brisson eacute neste sentido paradigmaacutetica (2000a 253) Uma saiacuteda metodoloacutegica para o problema eacute certamente aquela proposta por Bernabeacute (2002 239) ldquochaque foi que lacuteon parle dacuteinfluence orphique chez um auteur on doit citer des textes soumis agrave une critique profonde et agrave une hermeacuteneutique minutieuse pour eacuteviter les lieux communs et les affirmations vides Le travail reste em grande partie agrave faire et il est urgent de lacuteentreprendrerdquo Mostrar os textos portanto eis o imperativo

132

para clara anterioridade a Platatildeo de temas e referecircncias oacuterficas cuja existecircncia preacute-

platocircnica era normalmente colocada em duacutevida275

341 ldquoCompreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo

Para aleacutem das preacute-compreensotildees da criacutetica e da mais recente documentaccedilatildeo ar-

queoloacutegica todavia eacute em verdade ainda o proacuteprio testemunho de Platatildeo a desencorajar

um ceticismo exasperado em relaccedilatildeo agrave existecircncia de oacuterficos e de um movimento a estes

conexo276 No Craacutetilo (400c) Platatildeo refere-se aos oi amphiacute Orpheacutea indicando com a

expressatildeo os autores das doutrinas oacuterficas em Repuacuteblica descreve-os como agyrtaacutei e

manteacuteis sacerdotes itinerantes e adivinhos (Resp II 364b-c) com uma conotaccedilatildeo bas-

tante negativa que os autores aproximam facilmente aos orpheotelestai os iniciados ao

orfismo que aparecem como impostores em autores como Teofrasto Filodemo e Plu-

tarco277 Um biacuteos orphikoacutes eacute lembrando nas Leis (VI 782c) no contexto da discussatildeo

sobre o vegetarianismo Frequentemente no interior da obra platocircnica eacute recordada a

antiguidade (e portanto anterioridade ao proacuteprio Platatildeo) de suas doutrinas278 assim

como satildeo citados ou parafraseados textos oacuterficos279 Eacute impossiacutevel negar portanto que

oacuterficos e orfismo possuam lugar relevante e bastante significativo no interior do corpus

platocircnico

No entanto a presenccedila do orfismo na obra platocircnica eacute especialmente visiacutevel

quando nela se faz referecircncia a teorias sobre a alma Os diaacutelogos satildeo de fato repletos de

mitos reflexotildees morais imagens literaacuterias que pressupotildeem ou enfrentam diretamente as

temaacuteticas relativas agrave imortalidade e agrave metempsicose da alma

Eacute esse certamente o caso de uma celebre paacutegina do Mecircnon na qual Platatildeo atribui

a autoria da teoria metempsicose a ldquograndes sacerdotes e sacerdotisas que se preocu-

pam em compreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo (Men 81a) O conteuacutedo desse logos eacute

275 Sobre o papiro Derveni cf o que foi dito acima 18 276 Ainda que o termo Ὀρφικοί natildeo seja registrado como tal no interior do corpus platocircnico ele jaacute aparece em Heroacutedoto (II 81 vide infra) 277 Cf para as citaccedilotildees Vegetti (1998 229) e Burkert (1972 125 n30 e 1982 4 n13) 278 Cf Phlb 66c Leg 715e 279 Cf Phaed 69c-d Crat 402b-c Cf para isso tambeacutem Kingsley (1995118) e Ghidini (2000 12)

133

explicitamente afirmado em seguida ldquoora a alma chega a um seu fim ndash este que eacute cha-

mado morrer ndash ora ela renasce mas jamais eacute destruiacuteda por completordquo (81b) Seraacute o caso

de examinar mais de perto a passagem em seu contexto O tema do diaacutelogo entre Soacutecra-

tes e Mecircnon verte sobre a virtude em chave mais propriamente de teoria do conheci-

mento O problema em pauta eacute aquele de como reconhecer a verdade quando jaacute natildeo a se

conheccedila antes trata-se da questatildeo central para a filosofia platocircnica da anamnese Nes-

se contexto Soacutecrates dialoga com Mecircnon nos seguintes termos

SOCR Pois ouvi dizer de homens e mulheres saacutebios das coisas divi-nas MEN O que eles diziam SOCR Coisas verdadeiras ndash parece-me ndash bonitas MEN Quais E quem satildeo estes que as falaram SOCR Sa-cerdotes e sacerdotisas que se preocupavam em explicar o loacutegos do proacuteprio ministeacuterio E estas mesmas coisas [b] diz Piacutendaro e muitos ou-tros poetas os poetas divinos Eacute isso que ele dizem mas veja se te pa-rece que eles dizem a verdade dizem portanto que a alma humana eacute imortal e que ora ela tem seu fim que se diz morrer ora renasce e que jamais eacute destruiacuteda eis porque ndash dizem ndash precisa viver a vida o mais santamente possiacutevel Pois as almas daqueles de quem aceita expiaccedilatildeo por uma antiga falta Perseacutefone devolve no nono ano ao sol laacute de cima Delas brotam reis ilustres e homens poderosos e excelentes na sabedoria E pelo resto de seus dias como heroacuteis imaculados satildeo invocados pelos homens A alma portanto por ser imortal e diversas vezes renascida tendo vis-to o mundo deste e do outro lado em uma palavra todas as coisas natildeo deixou de aprender nada Natildeo deve maravilhar que portanto pode chamar agrave mente novamente o que antes conhecia da virtude e do resto todo Pois de fato a natureza eacute congecircnere (Men 81a-c)280

280 Orig ldquo ΣΩ Ἔγωγε ἀκήκοα γὰρ ἀνδρῶν τε καὶ γυναικῶν σοφῶν περὶ τὰ θεῖα πράγmicroατα

ΜΕΝ Τίνα λόγον λεγόντων

ΣΩ Ἀληθῆ ἔmicroοιγε δοκεῖν καὶ καλόν

ΜΕΝ Τίνα τοῦτον καὶ τίνες οἱ λέγοντες

ΣΩ Οἱ microὲν λέγοντές εἰσι τῶν ἱερέων τε καὶ τῶν ἱερειῶν ὅσοις microεmicroέληκε περὶ ὧν microεταχειρίζονται λόγ-ον οἵοις τ εἶναι διδόναι λέγει δὲ καὶ Πίνδαρος καὶ ἄλλοι πολλοὶ τῶν ποιητῶν ὅσοι θεῖοί εἰσιν ἃ δὲ λέγο-υσιν ταυτί ἐστιν ἀλλὰ σκόπει εἴ σοι δοκοῦσιν ἀληθῆ λέγειν φασὶ γὰρ τὴν ψυχὴν τοῦ ἀνθρώπου εἶναι ἀθάνατον καὶ τοτὲ microὲν τελευτᾶν ndash ὃ δὴ ἀποθνῄσκειν καλοῦσι ndash τοτὲ δὲ πάλιν γίγνεσθαι ἀπόλλυσθαι δ οὐδέποτε δεῖν δὴ διὰ ταῦτα ὡς ὁσιώτατα διαβιῶναι τὸν βίον ltοἷσινgt γὰρ ἂν ndash

Φερσεφόνα ποινὰν παλαιοῦ πένθεος

δέξεται εἰς τὸν ὕπερθεν ἅλιον κείνων ἐνάτῳ ἔτεϊ

ἀνδιδοῖ ψυχὰς πάλιν

ἐκ τᾶν βασιλῆες ἀγαυοὶ

καὶ σθένει κραιπνοὶ σοφίᾳ τε microέγιστοι

ἄνδρες αὔξοντ ἐς δὲ τὸν λοιπὸν χρόνον ἥρωες ἁγνοὶ

πρὸς ἀνθρώπων καλεῦνται

134

Soacutecrates portanto na passagem acima do Mecircnon elabora uma espeacutecie de suacutemu-

la histoacuterico-teoreacutetica das teorias da alma articulando sua imortalidade com a ideia da

metempsicose (ldquoora renasce e jamais eacute destruiacutedardquo) Atribui a autoria desta indiferente-

mente a dois sujeitos antes a ldquosacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compre-

ender o loacutegos do proacuteprio ministeacuteriordquo e depois aos poetas divinos entre eles Piacutendaro do

qual satildeo tambeacutem citados alguns versos Natildeo eacute difiacutecil imaginar que em relaccedilatildeo aos refe-

ridos poetas Soacutecrates devesse pensar tambeacutem em Empeacutedocles281 A funccedilatildeo dialeacutetica da

citaccedilatildeo de Piacutendaro eacute fundamentalmente aquela de corroborar a ideia expressa imedia-

tamente antes por Soacutecrates da palingecircnese (paacutelin giacutegnesthai) da alma isto eacute de seu

nascer novamente (paacutelin giacutegnesthai)

Deve-se notar que Platatildeo ndash no lugar de citar algum poema oacuterfico que como vi-

mos certamente deveria conhecer ndash recorre a versos de Piacutendaro Eacute este o primeiro sinal

de algo que eacute conforme se veraacute a seguir uma marca da apropriaccedilatildeo da teoria da imorta-

lidade da alma pela obra platocircnica isto eacute de uma provaacutevel intenccedilatildeo de Platatildeo de diluir a

referecircncia agraves origens oacuterficas da teoria Essa escolha platocircnica eacute ainda mais significativa

se comparada com sua indicaccedilatildeo da primeira referecircncia agrave autoria da teoria que eacute aos

sacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compreender o loacutegos do proacuteprio minis-

teacuterio Wilamowitz (1920 II 249) e Burkert (1972 126) concordam que o objeto desta

explicaccedilatildeo do loacutegos (loacutegon didoacutenai) de suas praacuteticas rituais deva ser a mythologiacutea dos

rituais ligados agrave metempsicose tratar-se-ia portanto da exegese dos mitos que acom-

panham os rituais de iniciaccedilatildeo da alma A praacutetica eacute aqui geralmente referida a perso-

nagens de acircmbito pitagoacuterico contribuindo para recolocarmos Platatildeo como fonte confiaacute-

vel da atribuiccedilatildeo de teorias como a da imortalidade e da metempsicose aos pitagoacutericos

antigos

Prova disso seria a referecircncia a sacerdotisas em acordo com os diversos teste-

munhos que apontam para uma presenccedila significativa e relativamente paritaacuteria das mu- Ἅτε οὖν ἡ ψυχὴ ἀθάνατός τε οὖσα καὶ πολλάκις γεγονυῖα καὶ ἑωρακυῖα καὶ τὰ ἐνθάδε καὶ τὰ ἐν Ἅιδου καὶ πάντα χρήmicroατα οὐκ ἔστιν ὅτι οὐ microεmicroάθηκεν ὥστε οὐδὲν θαυmicroαστὸν καὶ περὶ ἀρετῆς καὶ περὶ ἄλλων οἷόν τ εἶναι αὐτὴν ἀναmicroνησθῆναι ἅ γε καὶ πρότερον ἠπίστατο ἅτε γὰρ τῆς φύσεως ἁπάσης συγγενοῦς οὔσηςrdquo (Men 81a-c) 281 O fr 146 de Empeacutedocles de maneira especial revela paralelismo muito significativo com os versos acima citados de Piacutendaro ldquoE no fim tornam-se adivinhos e poetas meacutedicos e liacutederes para os homens que habitam a terra e deles brotam deuses excelentes pela honras que recebemrdquo (Orig ldquo εἰς δὲ τέλος microάντεις τε καὶ ὑmicroνοπόλοι καὶ ἰητροί καὶ πρόmicroοι ἀνθρώποισιν ἐπιχθονίοισι πέλονται ἔνθεν ἀναβλαστοῦσι θεοὶ τιmicroῆισι φέριστοιrdquo )Vejam-se tanto as imagens bioloacutegicas para indicar a reencarnaccedilatildeo (rebrotam em Piacuten-daro brotam em Empeacutedocles) como as referecircncias agrave excelecircncia dos nobres reis de Piacutendaro agrave qual pode ser comparada a excelecircncia dos πρόmicroοι de Empeacutedocles (Cf Bluck 1964 284)

135

lheres no interior da koinoniacutea pitagoacuterica282 de fato Kingsley (1995 161-162) anota

com razatildeo que natildeo haacute nenhuma tradiccedilatildeo que permita considerar os rituais ou a mitologia

oacuterfica como inclusivos das mulheres seria esta portanto uma indicaccedilatildeo exclusiva do

pitagorismo283 Por outro lado a ideia da explicaccedilatildeo mito-loacutegica aponta provavelmente

para aquela apropriaccedilatildeo do orfismo que Pugliese Carratelli (2001 18) baseando-se na

anaacutelise das receacutem-descobertas lacircminas oacuterficas identificava acima como pitagoacuterica284

Como no caso da citaccedilatildeo de Piacutendaro portanto Platatildeo parece aqui querer referir-se mais

diretamente agravequela parte do complexo universo oacuterfico mais proacutexima agrave sua sensibilidade

filosoacutefica e religiosa E em relaccedilatildeo ao que interessa mais diretamente estas paacuteginas isto

eacute agraves teorias da imortalidade da alma e da metempsicose

O testemunho mais contundente da historicidade dessa imagem de sacerdotes

que para aleacutem de cumprirem os ritos demonstram interesse na sua explicaccedilatildeo mitoloacutegi-

ca eacute representado pelo proacuteprio papiro Derveni O papiro que se apresenta como uma

exegese alegoacuterica de um antigo poema cosmogocircnico em busca de uma explicaccedilatildeo ale-

goacuterica dos misteacuterios na coluna XX empreende uma criacutetica sarcaacutestica dirigida contra

aqueles que natildeo sabem fazer aquilo em que os sacerdotes e sacerdotisas acima citados

no Mecircnon satildeo ditos especialistas Pois as personagens que satildeo alvos da reprovaccedilatildeo do

autor do papiro se exibiriam em praccedila puacuteblica com rituais sagrados mas natildeo saberiam

explicar os ritos que performam

Em relaccedilatildeo a estes quantos dos humanos que nas cidades realizaram ritos e viram as coisas sagradas menos me espanto com eles natildeo sabe-rem (pois natildeo eacute possiacutevel escutar e aprender as coisas ditas ao mesmo tempo) Mas quantos (se iniciam) junto a quem faz das coisas sagradas um artifiacutecio estes (satildeo) dignos de espanto e pena Por um lado espan-to porque achando antes de realizarem o rito que saberatildeo partem tendo realizado os ritos antes de saberem nada perguntando como se soubessem algo do que viram escutaram e aprenderam Por outro la-do pena porque natildeo basta eles gastarem o dinheiro de antematildeo mas tambeacutem partem destituiacutedos de razatildeo Antes de realizar os ritos das coi-

282 Cf o que foi dito acima a este respeito (esp 23) assim como De Vogel (1966 238 n2) Dodds (1951 175 n59) Burkert (1982 17-18) Kingsley (1995 162 n51) 283 Concorda com ele tambeacutem Long (1948 68-69) Casadio (1991 130) poreacutem protesta que se as mu-lheres eram admitidas na comunidade pitagoacutericas deviam secirc-lo como filoacutesofas e natildeo sacerdotisas E Bernabeacute e Jimeacutenez (2008 59) apontam para o fato de diversas das mais recentes descobertas de lacircminas oacuterficas serem originaacuterias de tumbas de mulheres O consenso entre os comentadores eacute mais uma vez dis-tante 284 Cf acima (18)

136

sas sagradas esperam saber mas tendo-os realizado partem destituiacute-dos tambeacutem de esperanccedila (P Derv XX)285

Da mesma forma como Platatildeo portanto o autor do papiro Derveni ainda que no

papel de exegeta oacuterfico parece tecer criacuteticas a uma parte do mesmo universo oacuterfico que

recrimina por natildeo saber explicar os ritos A esta acusaccedilatildeo de incompetecircncia somam-se

outras entre as quais a de promover tanto certa mercantilizaccedilatildeo do sagrado consideran-

do a menccedilatildeo a dinheiro cobrado aos fieacuteis como a consequente descrenccedila entre os fieacuteis

Natildeo surpreenderaacute assim que Platatildeo use esta mesma imagem em uma ceacutelebre

paacutegina de Repuacuteblica (364b-c) no contexto da dura criacutetica a Museu e seu filho Eumol-

po epocircnimo dos ierofantes de Eleusis Platatildeo natildeo esconde criacuteticas aos problemas que a

difusatildeo dos misteacuterios eleusinos estava criando para a cidade (Resp II 378a) chega ateacute a

fazer uma paroacutedia destes para a iniciaccedilatildeo do ldquohomem democraacuteticordquo (560d-e)286

[Eles] guiam os iniciados para o Hades com seu discurso preparando para eles um simpoacutesio de piedosos no qual deitam-se com guirlandas e daiacute adiante os fazem passar o tempo todo bebendo pois acreditam que a melhor recompensa pela virtude seja uma eterna embriaguez (Resp II 363c-d)287

Todavia a passagem que nos interessa mais diretamente eacute aquela da paacutegina se-

guinte na qual Platatildeo descreve com tintas fortes um fenocircmeno social que devia ser bas-

tante difundido naqueles anos o de sacerdotes e adivinhos andarilhos

Mas de todos esses discursos os mais surpreendentes satildeo aqueles que fazem sobre os deuses e sobre a virtude afirmando que os mesmos deuses destinaram para muitos homens bons infelicidade e uma vida ruim e para quem eacute a eles contraacuterio uma contraacuteria sorte Sacerdotes mendigos e adivinhos batendo agraves portas dos ricos convencem-nos haver neles um poder que proveacutem dos deuses graccedilas a sacrifiacutecios e encantamentos para emendar qualquer injusticcedila cometida pelo indiviacute-duo ou por seus antepassados por meio de prazeres e festas Se al-gueacutem quer prejudicar um inimigo a troco de uma moacutedica quantia o convencem que poderaacute arruinar indiferentemente tanto o justo como o

285 A traduccedilatildeo eacute de Gazinelli (2007) a partir da proposta de organizaccedilatildeo do texto e da traduccedilatildeo de Laks e Most (1997) Cf original no Anexo 1 286 Cf West (1983 34ss) e Vegetti (1998 227 n5) 287 Orig ldquo εἰς Ἅιδου γὰρ ἀγαγόντες τῷ λόγῳ καὶ κατακλίναντες καὶ συmicroπόσιον τῶν ὁσίων κατασκευάσα-ντες ἐστεφανωmicroένους ποιοῦσιν τὸν ἅπαντα χρόνον ἤδη διάγειν microεθύοντας ἡγησάmicroενοι κάλλιστον ἀρετῆς microισθὸν microέθην αἰώνιονrdquo (Resp II 363c-d)

137

injusto e com encantamentos e simpatias persuadir os deuses a se co-locarem a seu serviccedilo (Resp II 364b-c)288

A paacutegina platocircnica revela significativamente quadro bastante parecido com a-

quele desenhado pela coluna XX do papiro Derveni os andarilhos retiram da mesma

forma a esperanccedila dos fieacuteis aleacutem de mercantilizarem seus serviccedilos Pelo fato de esses

mesmos sacerdotes e adivinhos imediatamente depois exibirem aquela grande pletora

de livros que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp II 364e) eacute lectio facilior

identificaacute-los ao menos parcialmente com o orfismo A criacutetica de Platatildeo natildeo deveraacute ser

considerada contudo como uma criacutetica irrestrita ao orfismo e sim ndash como no caso do

papiro Derveni ndash como um posicionamento quase que uma criacutetica interna que implica

a escolha de uma parte dele certamente aquela mais afim agrave sua sensibilidade que devia

aproximaacute-lo como jaacute se acenou acima mais imediatamente agraves teorias oacuterfico-

pitagoacutericas no sentido dado ao termo pela lectio de Pugliese Carratelli (2001)

Por outro lado a cobranccedila platocircnica natildeo eacute algo inusual Ao contraacuterio insere-se

naquela que foi definida como uma ldquopermeabilidade conscienterdquo entre teacutechnai e Natur-

philosophie (Gemelli 2007b) e que eacute testemunhada pela polivalecircncia ndash nesse sentido

acima descrito ndash de personagens traacutegicas como o Prometeu da homocircnima obra pseudo-

esquileia (430 aEC) que eacute ao mesmo tempo um adivinho e um proacutetos euretecircs em

disciplinas como a astronomia a medicina e a matemaacutetica Ou mesmo Melanipe na

homocircnima trageacutedia de Euriacutepides (A saacutebia Melanipe) que proclama uma cosmogonia

preacute-socraacutetica afirmando tecirc-la apreendido de sua matildee uma ninfa adivinha (fr 495

Nauck)

As relaccedilotildees entre orfismo pitagorismo e Platatildeo portanto comeccedilam a se delinear

de maneira mais clara no sentido de uma apropriaccedilatildeo do primeiro por este uacuteltimo de

certa forma mediada pelo segundo

Nesse sentido eacute certamente o caso de voltar para a paacutegina do Mecircnon (81a-c)

com a qual se iniciou esta anaacutelise do testemunho de Platatildeo sobre as teorias da alma pi-

tagoacutericas para anotar dois outros detalhes realmente significativos para a economia da

288 Orig ldquo τούτων δὲ πάντων οἱ περὶ θεῶν τε λόγοι καὶ ἀρετῆς θαυmicroασιώτατοι λέγονται ὡς ἄρα καὶ θεοὶ πολλοῖς microὲν ἀγαθοῖς δυστυχίας τε καὶ βίον κακὸν ἔνειmicroαν τοῖς δἐναντίοις ἐναντίαν microοῖραν ἀγύρται δὲ καὶ microάντεις ἐπὶ πλουσίων θύρας ἰόντες πείθουσιν ὡς ἔστι παρὰ σφίσι δύναmicroις ἐκ θεῶν ποριζοmicroένη θυσίαις τε καὶ ἐπῳδαῖς εἴτε τι ἀδίκηmicroά του γέγονεν αὐτοῦ ἢ προγόνων ἀκεῖσθαι microεθ ἡδονῶν τε καὶ ἑορτῶν ἐάν τέ τινα ἐχθρὸν πηmicroῆναι ἐθέλῃ microετὰ σmicroικρῶν δαπανῶν ὁmicroοίως δίκαιον ἀδίκῳ βλάψει ἐπαγωγαῖς τισιν καὶ καταδέσmicroοις τοὺς θεούς ὥς φασιν πείθοντές σφισιν ὑπηρετεῖνrdquo (Resp II 364b-c)

138

interpretaccedilatildeo aqui proposta Primeiramente a referecircncia no final dela agrave syngeacuteneia da

natureza que remete imediatamente para a ideia do parentesco universal do texto de

Porfiacuterio (VP 19) com o qual comeccedilou este capiacutetulo Esta referecircncia eacute mais um sinal de

que Platatildeo estaacute entendendo remeter as teorias dos sacerdotes e poetas agrave vertente pitagoacute-

rica do orfismo natildeo haacute de fato nenhuma referecircncia na literatura ou nas lacircminas oacuterficas agrave

ideia de parentesco universal Em segundo lugar eacute surpreendente a referecircncia ao fato de

que esses mesmos sacerdotes e poetas teriam pregado a necessidade de ldquoviver a vida o

mais santamente possiacutevelrdquo A admoestaccedilatildeo natildeo eacute de fato necessaacuteria agrave economia da pas-

sagem pois a prova da tese epistemoloacutegica da anamnese que como vimos representa o

objeto central da passagem eacute suficientemente demonstrada jaacute pela preacute-existecircncia da

alma ao longo de diversas encarnaccedilotildees E todavia Platatildeo parece querer precisar que o

movimento da metempsicose deve ser compreendido em sentido fundamentalmente

moral O fato de mais uma vez natildeo termos alguma referecircncia clara a isso nas fontes oacuter-

ficas faz pensar que se trate neste caso mais uma vez de uma variaccedilatildeo pitagoacuterica cer-

tamente ao gosto platocircnico da teoria da alma imortal

342 Hierarquia das encarnaccedilotildees

A apropriaccedilatildeo em sentido moral da metempsicose eacute tambeacutem atestada em outra

tradiccedilatildeo sobre a imortalidade da alma amplamente presente no corpus platocircnico aquela

da hierarquia das encarnaccedilotildees Trata-se da ceacutelebre lei de Adrasteia longamente discuti-

da por Platatildeo no Fedro exatamente no contexto da demonstraccedilatildeo da imortalidade da

alma

Eis agora a lei imposta por Adrasteia cada alma que havendo-se co-locado ao seacutequito de um deus contemple alguma das verdades eter-nas estaraacute livre de padecimentos ateacute o proacuteximo periacuteodo e no caso de sempre conseguir esta meta seraacute livre para sempre Quanto ao contraacute-rio incapaz de segui-lo natildeo alcanccedila a contemplaccedilatildeo e por alguma desgraccedila fica sobrecarregada por causa do esquecimento e da malda-de que a invadem enquanto pesada como estaacute perde as asas e cai no chatildeo entatildeo a lei diz que esta alma natildeo seja plantada em nenhuma na-tureza animal em sua primeira geraccedilatildeo Ao contraacuterio aquela que al-canccedilou uma mais ampla contemplaccedilatildeo plantar-se-aacute na semente de um homem que seraacute amante da sabedoria ou amante do belo ou das Mu-sas ou do amor Em segundo lugar na semente de um rei legiacutetimo ou um guerreiro ou um liacuteder corajoso Em terceiro na de um poliacutetico de

139

um administrador ou de homem de negoacutecios em quarto na semente de um atleta algueacutem que se dedica ao esforccedilo ou de algueacutem que se dedica agrave cura dos corpos em quinto a uma vida de adivinho ou de al-gueacutem que sabe iniciar-se aos misteacuterios ao sexto lugar seraacute convenien-te a vida de um poeta ou de outro homem apto agrave imitaccedilatildeo na seacutetima (Phaedr 248c-e)289

A imageacutetica da plantaccedilatildeo da alma em diversas sementes retoma diretamente os

textos acima citados de Piacutendaro e Empeacutedocles assim como a ideia da hierarquia das

reencarnaccedilotildees jaacute presente dos textos de ambos Ainda que Platatildeo coloque ndash como eacute de

se esperar ndash no topo da hierarquia exatamente os filoacutesofos as posiccedilotildees imediatamente

sucessivas lembram de perto aquelas dos dois antecedentes reis atletas e poetas em

Piacutendaro enquanto Empeacutedocles prefere a eles adivinhos poetas e meacutedicos aleacutem obvia-

mente dos proacuteprios reis Platatildeo polemicamente empurra para baixo no ranking das

reencarnaccedilotildees os poliacuteticos os meacutedicos e os atletas

O fato todavia de natildeo haver alguma fonte oacuterfica direta que apresente esta hie-

rarquia faz pensar na sua invenccedilatildeo em acircmbito aristocraacutetico e da Magna Greacutecia imedia-

tamente recebida por Platatildeo novamente no interior de seu projeto moralizador da me-

tempsicose acima citado290 Isso explicaria tambeacutem o porquecirc na citaccedilatildeo acima do Mecirc-

non (81a-c) de Platatildeo preferir citar Piacutendaro no lugar dos oacuterficos a intenccedilatildeo agrave qual se

acenava acima de diluir a referecircncia agraves origens oacuterficas da teoria pode responder direta-

mente a este projeto de moralizaccedilatildeo da metempsicose para o qual a tradiccedilatildeo da hierar-

quia das reencarnaccedilotildees devia servir muito bem O acircmbito aponta novamente para as

tradiccedilotildees pitagoacutericas itaacutelicas

A economia destas paacuteginas sugere evitar entrar diretamente em duas questotildees

centrais da passagem acima citada do Fedro isto eacute no problema da duraccedilatildeo do ciclo

das sucessivas reencarnaccedilotildees e naquele da referecircncia a Adrasteia como autora da lei

Baste aqui anotar que por um lado natildeo haacute coerecircncia doutrinaacuteria em relaccedilatildeo ao nuacutemero

289 Orig ldquo θεσmicroός τε Ἀδραστείας ὅδε ἥτις ἂν ψυχὴ θεῷ συνοπαδὸς γενοmicroένη κατίδῃ τι τῶν ἀληθῶν microέχρι τε τῆς ἑτέρας περιόδου εἶναι ἀπήmicroονα κἂν ἀεὶ τοῦτο δύνηται ποιεῖν ἀεὶ ἀβλαβῆ εἶναι ὅταν δὲ ἀδυνατήσασα ἐπισπέσθαι microὴ ἴδῃ καί τινι συντυχίᾳ χρησαmicroένη λήθης τε καὶ κακίας πλησθεῖσα βαρυνθῇ βαρυνθεῖσα δὲ πτερορρυήσῃ τε καὶ ἐπὶ τὴν ῆν πέσῃ τότε νόmicroος ταύτην microὴ φυτεῦσαι εἰς microηδεmicroίαν θήρει-ον φύσιν ἐν τῇ πρώτῃ γενέσει ἀλλὰ τὴν microὲν πλεῖστα ἰδοῦσαν εἰς γονὴν ἀνδρὸς ενησοmicroένου φιλοσόφου ἢ φιλοκάλου ἢ microουσικοῦ τινος καὶ ἐρωτικοῦ τὴν δὲ δευτέραν εἰς βασιλέως ἐννόmicroου ἢ πολεmicroικοῦ καὶ ἀρχι-κοῦ τρίτην εἰς πολιτικοῦ ἤ τινος οἰκονοmicroικοῦ ἢ χρηmicroατιστικοῦ τετάρτην εἰς φιλοπόνου ltἢgt γυmicroναστικ-οῦ ἢ περὶ σώmicroατος ἴασίν τινος ἐσοmicroένου έmicroπτην microαντικὸν βίον ἤ τινα τελεστικὸν ἕξουσαν ἕκτῃ ποιητικ-ὸς ἢ τῶν περὶ microίmicroησίν τις ἄλλος ἁρmicroόσει ἑβδόmicroῃrdquo (Phaedr 248c-e) 290 Cf para esta hipoacutetese Bernabeacute (no prelo cap 6)

140

de anos que corresponderia ao completamento do ciclo291 Por outro lado Adrasteia

(etim ldquoaquela da qual natildeo se pode fugirrdquo) antes de se tornar a temida vingadora de toda

tentativa humana de desafiar o divino (Aesch Prom 936 Resp V 451a) aparece nas

cosmologias oacuterficas como companheira de Dike (fr 23 Kern) associada a Necircmesis e ela

mesma entidade cosmogocircnica (fr 54 Kern)292 Corresponde fundamentalmente agrave mesma

personificaccedilatildeo da Anaacutenke que rege o mundo no livro X de Repuacuteblica e cujo decreto eacute

dito em Empeacutedocles regular o ciclo da metempsicose (115 B1 DK) Em ambos os ca-

sos de toda forma Platatildeo parece mais uma vez reelaborar criativamente os dados da

tradiccedilatildeo oacuterfica para que esta venha obedecer a seus proacuteprios interesses teoacuterico-

redacionais

343 Socircma-secircma

A mesma transposiccedilatildeo Platatildeo realiza em relaccedilatildeo a outro grande motivo das teo-

rias da imortalidade da alma aquele que corresponde ao ceacutelebre mote socircma-secircma293

Novamente a anaacutelise desta questatildeo buscaraacute de um lado perceber a maneira tipicamen-

te platocircnica de apropriar-se de uma teoria oacuterfica no interior de sua proacutepria concepccedilatildeo da

imortalidade da alma por outro lado apreender no reveacutes do tecido da fonte platocircnica

sinais das dependecircncias entre orfismo e pitagorismo em relaccedilatildeo a suas respectivas teori-

as da imortalidade da alma

Em uma paacutegina do Goacutergias Soacutecrates em resposta agrave proposiccedilatildeo de Caacutelicles so-

bre a necessidade de uma liberaccedilatildeo total das paixotildees em busca do prazer introduz com

o verso de Euriacutepides ndash ldquoQuem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivordquo ndash uma dis-

cussatildeo sobre o corpo (socircma) como tumba (secircma) da alma cuja autoria Soacutecrates refere a

ldquoum homem de refinada inteligecircncia siciliano ou itaacutelicordquo Vamos acompanhar o texto

Mas mesmo a vida da qual vocecirc estaacute falando eacute terriacutevel e nem ficaria maravilhado que Euriacutepedes dissesse a verdade quando se pergunta Quem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivo E de verdade po-de ser que noacutes na realidade estejamos mortos Conforme ouvi dizer

291 Cf para isso Bernabeacute (no prelo cap 6) 292 Cf para as citaccedilotildees Casadio (1991 132) 293 Utiliza-se aqui o termo transposiccedilatildeo no sentido cunhado a partir de Diegraves (1927 432ss)

141

ateacute dos saacutebios que atualmente somos mortos e que nossa tumba eacute o corpo e aquela parte da alma na qual tem sua sede as paixotildees por sua natureza se deixa arrastar e para cima e para baixo se deixa empurrar Isso disse sob a forma de mito um homem de refinada inteligecircncia talvez siciliano ou itaacutelico com um jogo de palavras chamou vaso a-quela parte da alma que tatildeo faacutecil de ser persuadida e natildeo iniciados chamou os homens sem-cabeccedila Nestes a parte da alma em que resi-dem as paixotildees sua devassidatildeo e permeabilidade desenhou como um vaso furado querendo dessa forma significar sua insaciabilidade No sentido contraacuterio inveacutes agravequele que vocecirc defende Caacutelicles ele mostra que entre todos os que estatildeo no Hades ndash e com Hades entende o invi-siacutevel ndash exatamente estes satildeo os mais felizes enquanto os natildeo iniciados satildeo condenados a entornar a aacutegua em um vaso furado com uma con-cha tambeacutem furada A concha ndash dizia quem me relatou esta histoacuteria ndash significava a alma dos sem-cabeccedila pois furada e incapaz de conter em si mesma qualquer coisa por sua incredulidade e esquecimento (Gorg 492e-493c)294

Eacute o caso de notar inicialmente que Platatildeo como era de se esperar pelo padratildeo

de suas estrateacutegias de transposiccedilatildeo ateacute aqui notado utiliza o motivo socircma-secircma em um

contexto dialoacutegico marcadamente eacutetico-apocaliacuteptico295 Ao mesmo tempo refere a ori-

gem deste ldquosob a forma de mito a um homem de refinada inteligecircncia talvez siciliano

ou itaacutelicordquo A referecircncia de Platatildeo faz pensar em uma origem oacuterfica eou pitagoacuterica do

motivo De fato o koacutempsos aneacuter ao qual Soacutecrates se refere eacute comumente identificado

com algum pitagoacuterico Haacute quem quis identificaacute-lo com o proacuteprio Filolau por causa da

referecircncia ao mesmo tema que aparece no fragmento 14 deste uacuteltimo

Atestam os antigos conhecedores das coisas divinas e os adivinhos que por causa de certas puniccedilotildees a alma encontra-se conjunta ao cuacutemulo

294 Orig ldquo ΣΩ Ἀλλὰ microὲν δὴ καὶ ὥς γε σὺ λέγεις δεινὸς ὁ βίος οὐ γάρ τοι θαυmicroάζοιmicro ἂν εἰ Εὐριπίδης ἀληθῆ ἐν τοῖσδε λέγει λέγων τίς δ οἶδεν εἰ τὸ ζῆν microέν ἐστι κατθανεῖν τὸ κατθανεῖν δὲ ζῆν καὶ ἡmicroεῖς τῷ ὄντι ἴσως τέθναmicroεν ἤδη γάρ του ἔγωγε καὶ ἤκουσα τῶν σοφῶν ὡς νῦν ἡmicroεῖς τέθναmicroεν καὶ τὸ microὲν σῶmicroά ἐστιν ἡmicroῖν σῆmicroα τῆς δὲ ψυχῆς τοῦτο ἐν ᾧ ἐπιθυmicroίαι εἰσὶ τυγχάνει ὂν οἷον ἀναπείθεσθαι καὶ microεταπίπτειν ἄνω κάτω καὶ τοῦτο ἄρα τις microυθολογῶν κοmicroψὸς ἀνήρ ἴσως Σικελός τις ἢ Ἰταλικός παράγων τῷ ὀνόmicroατι διὰ τὸ πιθανόν τε καὶ πειστικὸν ὠνόmicroασε πίθον τοὺς δὲ ἀνοήτους ἀmicroυήτους τῶν δ ἀνοήτων τοῦτο τῆς ψυχῆς οὗ αἱ ἐπιθυmicroίαι εἰσί τὸ ἀκόλαστον αὐτοῦ καὶ οὐ στεγανόν ὡς τετρηmicroένος εἴη πίθος διὰ τὴν ἀπλη-στίαν ἀπεικάσας τοὐναντίον δὴ οὗτος σοί ὦ Καλλίκλεις ἐνδείκνυται ὡς τῶν ἐν Ἅιδου ndash τὸ ἀιδὲς δὴ λέγων ndash οὗτοι ἀθλιώτατοι ἂν εἶεν οἱ ἀmicroύητοι καὶ φοροῖεν εἰς τὸν τετρηmicroένον πίθον ὕδωρ ἑτέρῳ τοιούτῳ τετρηmicroένῳ κοσκίνῳ τὸ δὲ κόσκινον ἄρα λέγει ὡς ἔφη ὁ πρὸς ἐmicroὲ λέγων τὴν ψυχὴν εἶναι τὴν δὲ ψυχὴν κοσκίνῳ ἀπῄκασεν τὴν τῶν ἀνοήτων ὡς ετρηmicroένην ἅτε οὐ δυναmicroένην στέγειν δι ἀπιστίαν τε καὶ λήθηνrdquo (Gorg 492e-493c) 295 A referecircncia do diaacutelogo a doutrinas pitagoacutericas natildeo se resume a este contexto Veja-se por exemplo a seguir (Gorg 503e-504a) a contraposiccedilatildeo entre a ἰσότητες a proporccedilatildeo dos elementos da vida eacutetica e a πλεονεζία de Caacutelicles que ecoa diretamente a mesma discussatildeo presente no fragmento 3 de Arquitas Para um comentaacuterio a esta correspondecircncia cf Meattini (1983)

142

das carnes do corpo e estaacute como sepultada neste tuacutemulo (44 B 14 D-K)296

Filolau de sua parte parece referir a doutrina do socircma-secircma de maneira muito

precisa agraves tradiccedilotildees maacutegico-religiosas arcaicas theologoiacute e mantiacutees297

O problema eacute que desde Wilamowitz (1920 II 90) e Frank (1923 301) ateacute

Burkert (1972 248 n47) Casadio (1991 124 n9) e mesmo Huffman (1993 404-406)

muitos comentadores duvidam seriamente da originalidade deste fragmento e por con-

sequecircncia da possibilidade de considerar a ideia do socircma-secircma como originalmente

filolaica298 Os argumentos satildeo basicamente os seguintes a) haacute evidecircncias de contami-

naccedilatildeo do texto com as doutrinas de Platatildeo (Craacutetilo 400c) e Aristoacuteteles (fr 6 Rose) b)

reminiscecircncias linguiacutesticas aproximariam seu vocabulaacuterio agravequele posterior marcada-

mente de eacutepoca platocircnica c) seria estranho que um pitagoacuterico como Filolau atribuiacutesse a

teoria do socircma-secircma considerada comumente pitagoacuterica a antigos theologoiacute e adivi-

nhos d) o termo usado por Filolau psycheacute assume neste fragmento conotaccedilatildeo muito

proacutexima agravequela posteriormente definida como complexo das faculdades psicoloacutegicas

isso seria em contradiccedilatildeo tanto com a concepccedilatildeo de alma como vida acima analisada

em relaccedilatildeo a seu fr 13 (no interior do comentaacuterio ao fr 7 de Xenoacutefanes) como agravequela

expressa pelo fr 22 pelo qual ldquoa alma ama o corpordquo299 Enquanto os primeiros trecircs ar-

gumentos em favor da consideraccedilatildeo do fragmento como espuacuterio podem ser facilmente

refutados o quarto mereceraacute reflexatildeo mais cuidadosa

Em relaccedilatildeo aos primeiros dois argumentos (contaminaccedilatildeo doutrinaacuteria e reminis-

cecircncia linguiacutestica) eacute faacutecil argumentar ao contraacuterio que a) as doutrinas expressas por

Filolau natildeo parecem de nenhuma forma anacrocircnicas e o fato de serem citadas por Pla-

tatildeo e Aristoacuteteles pode sugerir que os trecircs simplesmente a retiraram de uma fonte co-

mum provavelmente de tradiccedilatildeo oacuterfica bastante difundida nos seacuteculos V e IV b) ainda

que o termo theologiacutea apareccedila pela primeira vez somente em Platatildeo (Resp II 379a)

segundo Vlastos (1952 12 n22) o termo eacute de uso geral Significativamente eacute Adimanto

quem o traz agrave tona no diaacutelogo e natildeo Soacutecrates indicando com isso tratar-se mais prova-

296 Orig ldquo microαρτυρέονται δὲ καὶ οἱ παλαιοὶ θεολόγοι τε καὶ microάντιες ὡς διά τινας τιmicroωρίας ἁ ψυχὰ τῷ σώmicroατι συνέζευκται καὶ καθάπερ ἐν σήmicroατι τούτῳ τέθαπταιrdquo (44 B 14 DK) 297 Cf Casadio 1987 230 298 Sobre as questotildees historiograacuteficas mais gerais relativas agrave originalidade dos fragmentos de Filolau cf acima (17) Cf tambeacutem Guthrie (1962 329s) 299 Cf para a resenha destes argumentos tanto Burkert (1991 404-406) como Bernabeacute (no prelo cap7)

143

velmente de um termo jaacute em uso do que de uma criaccedilatildeo platocircnica300 Por outro lado os

argumentos de Wilamowitz e Frank sobre o vocabulaacuterio satildeo subjetivos e dificilmente

compartilhaacuteveis o estilo do texto somente pareceria um falso doacuterico enquanto escon-

deria de fato por traacutes dele inconfundiacutevel clareza aacutetica Trata-se de uma afirmaccedilatildeo que

natildeo permite verificaccedilatildeo Em relaccedilatildeo ao terceiro argumento o da incongruecircncia de um

pitagoacuterico relacionar uma teoria tambeacutem pitagoacuterica como a do socircma-secircma a antigos

teoacutelogos e adivinhos podem-se apresentar ao menos dois contra-argumentos primeira-

mente natildeo estaacute demonstrada a origem pitagoacuterica da doutrina que ao contraacuterio poderia

ser originariamente mais facilmente uma tradiccedilatildeo oacuterfica em segundo lugar ainda que

se admita a possibilidade de ser pitagoacuterica as modalidades da pertenccedila do pitagoacuterico

Filolau ao movimento pitagoacuterico isto eacute a imagem que este homem do seacuteculo V aEC

devia fazer da tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica em suas origens natildeo estaacute de forma algu-

ma esclarecida Nada de fato impede de pensar ndash fora o costumeiro preconceito presen-

tista ndash que Filolau considerasse as origens do movimento intelectual ao qual pertencia

muito bem representadas por theologoiacute e mantiacutees da sophiacutea dos quais se considerava

devedor

Por outro lado o quarto argumento merece uma consideraccedilatildeo mais atenta como

se dizia fundamentalmente por trazer agrave tona aquela que possui aparentemente todas as

condiccedilotildees de ser considerada como uma contradiccedilatildeo no pensamento de Filolau em re-

laccedilatildeo agrave sua concepccedilatildeo da alma Os fr 13 e 22 apresentam nesse sentido dois problemas

distintos e complementares para a ideia de psycheacute que subjaz ao fr 14 e fazem um aten-

to leitor de Filolau como Huffman pender para considerar este uacuteltimo como duvidoso

(1993 405-406)

No caso do fr 13 acima analisado concluiacutemos que o termo psycheacute que laacute apa-

rece com o sentido de harmonia e composiccedilatildeo de elementos materiais eacute evidentemente

contraditoacuterio com aquele de sua imortalidade e que portanto Filolau ndash que como pita-

goacuterico deveria possuir alguma teoria ou crenccedila na imortalidade da alma ndash deveria utili-

zar outro termo que natildeo psycheacute para referir-se agrave parte do indiviacuteduo que alcanccedila a imor-

talidade No caso do fr 22 a expressatildeo ldquoa alma ama o corpordquo (diligitur corpus ab ani-

300 A prova disso Burkert (1993 405) anota com razatildeo que a frase ἀmicroφὶ θεῶν λόγος aparece por exem-plo jaacute no fr 131 de Empeacutedocles (31 B131 DK)

144

ma) que aparece no fragmento citado por Claudiano Mamerto (44 B22 DK) sugere

novamente evidente contradiccedilatildeo com a ideia do corpo como tumba301

E todavia a querer procurar uma soluccedilatildeo para os dois impasses poder-se-ia em

relaccedilatildeo ao primeiro conjecturar que se de fato a presenccedila do termo psycheacute obrigaria a

considerar o fragmento quanto menos duvidoso o restante do fragmento natildeo cria mais

duacutevidas sobre sua autenticidade Este fato permitiria imaginar que o termo psycheacute e

somente ele seja fruto de uma correccedilatildeo de Clemente ao termo original filolaico (que

podia ser daiacutemon por exemplo) ao qual substituiria o novo termo mais congruente

com seu vocabulaacuterio e tradicionalmente (mas somente mais tarde) deputado para indi-

car a parte imortal do indiviacuteduo

Em relaccedilatildeo agrave contradiccedilatildeo entre a ideia de um corpo-tumba e o amor da alma por

ele do fr 22 uma soluccedilatildeo muito elegante e eficaz foi proposta jaacute por Timpanaro Cardi-

ni

Deve-se considerar que na misteriologia oacuterfico-pitagoacuterica o corpo eacute lu-gar e meio de expiaccedilatildeo para alcanccedilar a libertaccedilatildeo da alma daiacute uma cer-ta ligaccedilatildeo afetiva da alma em relaccedilatildeo agrave sua proacutepria custoacutedia (1962 II 246)302

Assim o amor da alma pelo corpo eacute coerentemente o amor pela possibilidade

de expiaccedilatildeo das culpas das vidas anteriores Expiaccedilatildeo esta que soacute era possiacutevel atraveacutes

do corpo portanto a soluccedilatildeo tem o meacuterito de aproximar o fragmento do acircmbito concei-

tual das teorias da metempsicose Nesse mesmo sentido na frase imediatamente seguin-

te o fr 22 acrescenta ldquopois sem este natildeo pode utilizar os sentidosrdquo (quia sine eo non

potest uti sensibus) O sujeito da frase eacute ainda a alma que sem o corpo natildeo pode utilizar

os sentidos receber e emitir sinais Trata-se do mesmo campo semacircntico da teoria do

socircma-secircma como interpretada como ver-se-aacute logo a seguir por Platatildeo no Craacutetilo

(400c) isto eacute do corpo como sinal O corpo apresenta-se assim no fr 22 de Filolau

como uma custoacutedia relativamente aberta que permite a interaccedilatildeo com o mundo isto eacute

alguma forma de conhecimento e expressatildeo Ver-se-aacute em breve esta mesma ideia ex-

pressa na paacutegina platocircnica agora citada

301 Incisivo nesse sentido Casadio (1991 124 n9) ldquoper quanto ci si arrampichi sugli specchi non si riusciragrave mai a far dire a Filolao che egrave un sepolcro lacuteinvolucro corporeo di cui lacuteanima si compiacerdquo 302 Orig ldquobisogna considerare che nella misteriologia orfico-pitagorica il corpo egrave luogo e mezzo di espiazione per giungere alla liberazione dellacuteanima dacuteonde un certo legame affettivo dellacuteanima verso la propria custodiardquo

145

Em resumo Filolau parece remeter em seu fr 14 agrave teoria da imortalidade da

alma para uma origem certamente anterior a ele mesmo com certa probabilidade de ser

ndash ateacute mesmo ndash externa ao proacuteprio pitagorismo ou pelo menos certamente anterior ao

pitagorismo do seacuteculo V aEC do qual Filolau eacute o maior representante E neste ponto

concordar com a paacutegina do Goacutergias de Platatildeo acima citada isto eacute da origem em acircmbito

religioso e antigo dessas mesmas teorias Ainda que natildeo seja ele mesmo o koacutempsos aneacuter

citado por Platatildeo portanto Filolau constitui um testemunho central ao mesmo tempo

da antiguidade das doutrinas e de sua acolhida muito cedo no interior da literatura pita-

goacuterica

Achados recentes (datados em 1951) parecem confirmar a existecircncia em acircmbito

oacuterfico da teoria do socircma-secircma trata-se mais especificamente das trecircs placas de osso

descobertas em Oacutelbia303 Na primeira (94a Dubois) e na terceira (94c Dubois) leem-se

algumas sequecircncias de nomes que se iniciam ou terminam com o teocircnimo DION uma

abreviaccedilatildeo de Dioniso

Vida Morte Vida Verdade

Dion(iso) Oacuterficos304

Dion(iso) [Mentira] Verdade

Corpo Alma305

Na primeira placa a sequecircncia vida-morte-vida eacute dita verdade e referida exata-

mente aos oacuterficos A placa conteacutem pela primeira vez o nome Orphikoiacute Antes da desco-

berta o primeiro aparecimento do termo era atestado somente em Heroacutedoto (II 81) em

uma paacutegina que seraacute analisada a seguir306 Haacute nesta uma inversatildeo apocaliacuteptica tipica-

mente oacuterfica da valoraccedilatildeo da morte como verdadeira vida (da alma obviamente) Im-

possiacutevel natildeo pensar nesse mesmo sentido a citaccedilatildeo platocircnica acima dos versos de Eu-

riacutepides ldquoQuem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivordquo (Gorg 492e) assim como

303 Se ocuparam das placas de osso de Olbia especialmente West (1982) Zhmud (1992) Dubois (1996) Tortorelli-Ghidini (2006) 304 Orig cf para o texto original e a imagem da placa o Anexo 2 305 Orig cf para o texto original e a imagem da placa o Anexo 3 306 Cf para mais ampla discussatildeo da grafia exata e do sentido do termo Graf (2000) O sufixo ndashικο indi-caria um grupo marcado pela diferenciaccedilatildeo uma seita dionisiacuteaca ldquoheregerdquo (Burkert 1982 12)

146

a toda a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates na paacutegina do diaacutelogo307 O fato eacute que a expressatildeo

socircma-secircma acaba por tornar-se como um mote ou melhor ndash utilizando um termo pita-

goacuterico ndash um syacutembolon da teoria oacuterfica da imortalidade da alma

Aceitando-se a reconstruccedilatildeo da terceira placa por Vinogradov (1991 77-86) ha-

veria nela na terceira linha exatamente a antoniacutemia socircma-psycheacute que encontramos no

texto platocircnico e em Filolau Lidas em conjunto as duas placas revelam indiscutivel-

mente ndash e em acircmbito declaradamente oacuterfico ndash crenccedila na imortalidade da alma enquanto

algo que sobrevive ao corpo mortal308

Na paacutegina do Goacutergias (492e-493c) com a qual comeccedilamos esta seccedilatildeo a grande

inteligecircncia do ldquohomem siciliano ou itaacutelicordquo eacute de certa forma exemplificada por uma

seacuterie de jogos etimoloacutegicos que marcam significativamente a segunda parte da citaccedilatildeo

Com um jogo de palavras (lit uma mudanccedila de termos paraacutegon tocirc onoacutemati) o saacutebio

chamou piacutethos (vaso) aquela parte da alma que eacute piacutethanos (facilmente persuadiacutevel) e

amueacutetoi (natildeo iniciados) os homens anoeacutetoi (que natildeo tecircm cabeccedila) O jogo estende-se ateacute

o ponto de abranger a proacutepria etimologia do Aacutedes (Hades) o reino do aleacutem-tuacutemulo que

eacute entendido como aacuteides (invisiacutevel)

Natildeo maravilha portanto que o mesmo motivo socircma-secircma mereccedila um jogo eti-

moloacutegico refinadiacutessimo em ceacutelebre paacutegina do Craacutetilo (400c) jaacute amplamente estudada

pela criacutetica309 Ao que parece a proacutepria ideia do mote socircma-secircma evoca esta tipologia

antiga de reflexatildeo sobre nomes e realidade Ao mesmo tempo o kompsoacutes aneacuter do Goacuter-

gias e os antigos teoacutelogos e adivinhos de Filolau encontram nesta paacutegina do Craacutetilo

pela primeira vez uma atribuiccedilatildeo mais precisa trata-se aqui de ldquodisciacutepulos de Orfeurdquo

De fato alguns dizem que [o corpo] seja tumba da alma como sepultada nisso na vida presente e pelo fato da alma por sua vez significar por causa disso chama-se corretamente sinal Todavia parecem-me que fo-ram em primeiro lugar os disciacutepulos de Orfeu aqueles que deram este nome como se a alma enquanto estaacute pagando a pena por aquilo pelo qual estaacute pagando possui para que se salve este revestimento feito agrave imagem de uma prisatildeo da alma este eacute assim denominado salvaccedilatildeo ateacute

307 Cf para uma anaacutelise exaustiva desta ideia na literatura oacuterfica Bernabeacute (2007b) 308 Cf para isso tambeacutem West (1982 18-19) e Casadio (1991 125) De ideia contraacuteria Burkert (1980 37 e 1972 133) 309 Cf Rohde (1898 130 n2) Tannery (1901 314s) Wilamowitz (1932 I 199) Rathmann (1933 65 e 82) Nilsson (1935 205s) Dodds (1951 148s) Guthrie (1952 156s) Timpanaro Cardini (1962 II 228s) Burkert (1972 126 n33 e 248 n47) Alderink (1981 62) De Vogel (1981 79s) Bestor (1980 306s) Ferwerda (1985) Casadio (1987 389s e 1991 123s) Riedweg (1995 46) Zhmud (1997 123) Maravi-lha-se ao contraacuterio Bernabeacute (no prelo cap 7)

147

que natildeo pague suas diacutevidas e natildeo eacute preciso mudar uma soacute letra (Crat 400c)310

Eacute preciso obviamente desvendar o articuladiacutessimo jogo de palavras que constroacutei

o texto e que envolve natildeo somente dois diferentes sentidos para o termo secircma (tumba e

sinal) mas tambeacutem a reinvenccedilatildeo ndash toda platocircnica ndash de um novo sentido para o termo

socircma que de corpo acaba por significar salvaccedilatildeo

Soacutecrates revela aqui portanto conhecer dois sentidos diversos do termo secircma

de um lado tumba do outro sinal A assonacircncia tem evidentemente papel central na

compreensatildeo da paacutegina Soacutecrates devia conhecer bem o mote oacuterfico socircma-secircma no

sentido de corpo-tumba mas conhece tambeacutem uma exegese diferente do mote que ndash de

certa forma ndash diminui o impacto cruento e arcaico da imagem provavelmente ligado

originalmente aos ritos das telestai como as placas de Oacutelbia acima citadas parecem in-

dicar refinando-a para inseri-la em um acircmbito semacircntico mais intelectualista O jogo eacute

possiacutevel provavelmente graccedilas ao sentido arcaico do termo secircma jaacute homeacuterico que

significaria natildeo tanto a sepultura e sim mais precisamente a laacutepide funeraacuteria que eacute

erigida para indicar sinalizar o lugar da sepultura e por consequecircncia para lembrar da

pessoa ali sepultada311 Por outro lado a exploraccedilatildeo dessa translaccedilatildeo semacircntica corres-

ponde provavelmente ao mesmo acircmbito exegeacutetico ao qual se refere o papiro Derveni

isto eacute aquele de um trabalho de exegese alegoacuterica dos mitos oacuterficos antigos (cf acima

18)

Diversos autores desde Wilamowitz (1932 II 199) sugerem tratar-se aqui de

uma exegese pitagoacuterica do mote oacuterfico312 Todavia esta atribuiccedilatildeo natildeo eacute consensual De

fato ainda que Burkert afirme inicialmente ldquopodemos supor que se natildeo for oacuterfico seja

possivelmente pitagoacutericordquo por outro lado acaba por concluir ceticamente que ldquonatildeo

sabemos nem sequer se existiu historicamente algo deste tipordquo (1972 248 n47)313 Eacute

310 Orig ldquo καὶ γὰρ ltσῆmicroάgt τινές φασιν αὐτὸ εἶναι τῆς ψυχῆς ὡς τεθαmicromicroένης ἐν τῷ νῦν παρόντι καὶ διότι αὖ τούτῳ ltσηmicroαίνειgt ἃ ἂν σηmicroαίνῃ ἡ ψυχή καὶ ταύτῃ ldquoσῆmicroαrdquo ὀρθῶς καλεῖσθαι δοκοῦσι microέντοι microοι microάλιστα θέσθαι οἱ ἀmicroφὶ Ὀρφέα τοῦτο τὸ ὄνοmicroα ὡς δίκην διδούσης τῆς ψυχῆς ὧν δὴ ἕνεκα δίδωσιν τοῦ-τον δὲ περίβολον ἔχειν ἵνα ltσῴζηταιgt δεσmicroωτηρίου εἰκόνα εἶναι οὖν τῆς ψυχῆς τοῦτο ὥσπερ αὐτὸ ὀνοmicroάζεται ἕως ἂν ἐκτείσῃ τὰ ὀφειλόmicroενα [τὸ] ldquoσῶmicroαrdquo καὶ οὐδὲν δεῖν παράγειν οὐδ ἓν γράmicromicroαrdquo (Crat 400c) 311 Para as citaccedilotildees de Homero cf Il II 814 e VII 319 Od II 222 e XII 175 Para o sentido de σῆmicroα cf Liddell-Scott (1996) Para a discussatildeo do termo cf Prier (1978 91-101) 312 Cf entre eles Thomas (1938 51-52) e Dodds (1951 171 n95) 313 Orig ldquowe may suppose that if it is not Orphic it is likely to be Pythagoreanrdquo e ldquowe do not know whether this was a historical characterrdquo

148

certo que se o fragmento de Filolau acima citado (44B14 DK) natildeo autoriza atribuir a

interpretaccedilatildeo de secircma como sinal e sim mais precisamente como tumba por outro

lado a hipoacutetese levantada por Pugliese Carratelli (2001) de um trabalho mito-loacutegico do

pitagorismo sobre as tradiccedilotildees oacuterficas poderia sugerir com certa probabilidade que esta

etimologia fosse proacutexima aos ambientes pitagoacutericos senatildeo mesmo de autoria destes

uacuteltimos314 Um argumento indireto que autorizaria a atribuiccedilatildeo ao pitagorismo da ideia

do corpo como sinal eacute o fato da praacutetica didaacutetica simboacutelica que conforme vimos acima

(22) deveria marcar o estilo de vida pitagoacuterica syacutembola e acusmata indicando que uma

coisa significa o tempo todo outra315 Consequecircncia esta do ponto de vista teoacuterico da

continuidade da realidade de sua syngeacuteneia na qual tudo remete para tudo316

No entanto o que mais surpreende pela fineza do trabalho de textura etimoloacutegica

eacute a terceira passagem do texto O sucesso do jogo etimoloacutegico eacute sublinhado pelo mesmo

Soacutecrates que ao final do argumento declara orgulhosamente ldquoe natildeo eacute preciso mudar

uma soacute letrardquo Trata-se aqui da aproximaccedilatildeo de socircma com o verbo soiacutezo que acaba por

deslizar semanticamente o termo socircma para o acircmbito da salvaccedilatildeo Linguisticamente o

jogo eacute claro Soacutecrates considera so-ma como um nome composto por so- (de soiacutezo sal-

var) e -ma sufixo que indica accedilatildeo Socirc-ma torna-se assim um nome de accedilatildeo uma haacutebil

construccedilatildeo morfoloacutegica de Soacutecrates-Platatildeo que quer significar que o corpo eacute salvaccedilatildeo da

alma Por esse motivo Soacutecrates pode afirmar natildeo ser preciso mudar uma soacute letra como

ao contraacuterio eacute pressuposto no caso do jogo socircma-secircma no qual haacute uma troca entre ocircmi-

314 Esta eacute certamente boa maneira de resolver na paacutegina platocircnica a oposiccedilatildeo entre aqueles τινές que dizem a teoria e οἱ ἀmicroφὶ Ὀρφέα que foram os primeiros a dizecirc-la nos primeiros (τινές) caberiam os se-gundos os oacuterficos mas o alcance desta identificaccedilatildeo natildeo se esgota com eles nos τινές poderiam caber portanto os pitagoacutericos ainda que natildeo em posiccedilatildeo de ldquoprimeirosrdquo a sustentar esta teoria 315 Significativa nesse sentido a paacutegina de Estobeu (Stob Flor 31199) ldquode fato natildeo haacute nada de tatildeo proacuteprio da filosofia pitagoacuterica como o simboacutelico como uma forma de ensino na qual palavra e silencio se misturam como para natildeo dizerrdquo (Orig ldquo Καὶ microὴν οὐδέν ἐστιν οὕτω τῆς Πυθαγορικῆς φιλοσοφίας ἴδιον ὡς τὸ συmicroβολικόν οἷον ἐν τελετῇ microεmicroιγmicroένον φωνῇ καὶ σιωπῇ διδασκαλίας γένος ὥστε microὴ λέγειν ἀείσω ξυνετοῖσιrdquo ) Por outro lado a ideia da sinalizaccedilatildeo simboacutelica natildeo seria algo restrito agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica mas eacute amplamente presente no restante da literatura preacute-socraacutetica Veja-se como exemplo o fr 93 de Heraacuteclito ldquoo senhor de que eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo fala nem esconde sinalizardquo Orig ldquo ὁ ἄναξ οὗ τὸ microαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν ∆ελφοῖς οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σηmicroαίνειrdquo (22 B 93 DK) 316 Ao contraacuterio natildeo procede a argumentaccedilatildeo de Ferwerda (1985 270-272) que tende a mostrar que ndash ao contraacuterio ndash o primeiro sentido etimoloacutegico do corpo como tumba da alma natildeo pode ser pitagoacuterico O autor argumenta que por um lado uma ideia tatildeo pessimista natildeo combinaria com a visatildeo do mundo mais positi-va dos pitagoacutericos (notamente em relaccedilatildeo agrave ideia da συνγένεια) por outro lado argumenta que natildeo faria sentido imaginar que um pitagoacuterico pensasse na morte da alma durante a vida terrena no corpo O equiacutevo-co do autor reside em considerar nos dois casos a morte da alma no corpo como algo definitivo em vez de pensaacute-la como continuamente renascida pensando assim na morte com ao comeccedilo de uma nova vida no percurso da metempsicose

149

cron e eta Dessa forma e somente em consequecircncia dessa nova etimologia soterioloacutegi-

ca faraacute sentido para Soacutecrates a imagem do corpo como periacutebolos revestimento da alma

feito agrave imagem de um desmoteacuterion de uma prisatildeo Entre os poucos comentadores desta

passagem De Vogel (1981) e Ferwerda (1985) concordam que com essa proposta eti-

moloacutegica Platatildeo estaria de fato recusando a visatildeo totalmente pessimista do corpo como

tumba em favor de uma imagem menos definitiva como aquela do periacutebolos ou mesmo

do caacutercere317 Aqui estaacute o ponto teoreacutetico central dizer que o corpo eacute revestimento e

prisatildeo da alma eacute algo bem mais leve do que dizer que eacute sua tumba318 Como bem obser-

vou Timpanaro Cardini (1962) a etimologia ldquodenota tendecircncias culturais mais proacuteximas

agrave idade de Soacutecratesrdquo e deveraacute corresponder portanto agrave sua proacutepria lectio da tradiccedilatildeo do

motivo socircma-secircma como sugere a proacutepria expressatildeo dokoucircsi moi319

Corresponderaacute mais precisamente agrave transposiccedilatildeo platocircnica da tradiccedilatildeo socircma-

secircma no interior de seu proacuteprio universo conceitual bem exemplificada por uma paacutegina

do Feacutedon em que o tema do caacutercere da alma assume fortes conotaccedilotildees eacuteticas

Aqueles que amam o conhecimento bem sabem que a filosofia toma sua alma que eacute realmente acorrentada em uma palavra colada ao corpo condenada a perscrutar as coisas que satildeo como atraveacutes de uma prisatildeo e jamais por si mesma e estaacute envolvida em total ignoracircncia E ainda que intua que este caacutercere eacute terriacutevel por causa da paixatildeo en-

317 Eacute significativa aqui a posiccedilatildeo expressa por De Vogel ldquoall this I think brings out fairly clearly that those modern authors who write and speak as if the σῶmicroα-σῆmicroα formula were the most adequate expres-sion if Platos view of man and human life can do so only by a certain mis-interpretation of the function of that formula in Platos thought For in fact Plato took human life much more as a challenge than as some kind of penancerdquo (1981 98) Por outro lado natildeo parece fazer muito sentido demonstrar ndash como quer fazer Ferwerda (1985 274) ndash que o termo περίβολος natildeo significaria em Platatildeo necessariamente ldquojaulardquo e sim um recinto de proteccedilatildeo Ainda que a resenha proposta do termo ao longo do restante da obra platocircnica seja convincente natildeo retira deste especiacutefico περίβολος o fato de ter sido indicado como δεσmicroωτηρίου εἰκόνα devendo ser de ldquojaulardquo no contexto da passagem seu significado mais preciso 318 Ainda que Casadio as considere ldquometafore che esprimono con gradazione diversa lo stesso concettordquo (1991 124) todavia eacute possiacutevel pensar em mudanccedila de rumo mais precisa na passagem platocircnica como veremos a seguir Concorda com ele Guthrie (1952 311) 319 Timpanaro Cardini 1962 II 229 Orig ldquorisente di tendenze culturali piugrave vicine allacuteetagrave di Soacutecraterdquo Cf tambeacutem Nilsson It may however seem doubtful whether the etymologies (σῆmicroα-σηmicroαίνειν σῶmicroα-σώιζειν) are quoted from the Orphics or are Platos own speculations It may be doubted if such etymo-logical speculations are appropriate for the Orphics and it seems not unlikely that Plato added them as explanatory comments intended to illuminate the saying (1935 205) E Casadio ldquociograve che Platone attribuisce agli Orfici egrave lidea dellespiazione delle colpe non necessariamente il legame etimologico tra sogravema e sogravezordquo (1987 390) Apesar disso eacute certamente o caso de notar com Bernabeacute (no prelo cap 7) que nas duas lacircminas oacuterficas de Pelinna datadas do seacuteculo IV aEC incontramos a mesma ideia de libertaccedilatildeo da alma do corpo ldquoacaba de morrer acaba de nascer ou trecircs vezes bem-aventurado neste dias Diga a Perseacutefona que o proacuteprio Baco te libertourdquo (Cf Tortorelli Ghidini 2006 84-85) Para argumentos a favor de uma atribuiccedilatildeo jaacute oacuterfica da ideia do corpo como salvaccedilatildeo cf Ferwerda (1985 267)

150

quanto quem se encontra nele acorrentado acaba por ser ele proacuteprio o artiacutefice de seu acorrentamento (Phaed 82e)320

A prisatildeo da alma no corpo portanto eacute constituiacuteda de ignoracircncia e paixatildeo No

entanto ainda eacute passiacutevel da intervenccedilatildeo pedagoacutegica da filosofia que tenta ldquodescolarrdquo a

alma do corpo ampliando sua visatildeo O que importa sublinhar aqui em perspectiva pla-

tocircnica eacute que a imagem corpo-prisatildeo permite esta intervenccedilatildeo da filosofia enquanto a

simples equaccedilatildeo corpo-tumba natildeo E com isso a moralizaccedilatildeo platocircnica das teorias da

imortalidade da alma atinge seu ponto mais alto e ao mesmo tempo provavelmente

mais distante de sua origem oacuterfica

Sinal inequiacutevoco da nova siacutentese platocircnica das diversas etimologias eacute uma paacutegi-

na do Fedro (250c) em que aparecem novamente articuladas ndash e sem o miacutenimo sinal de

tensatildeo entre elas ndash as duas imagens do corpo como prisatildeo e como tumba as almas en-

contram-se no niacutevel mais alto de sua iniciaccedilatildeo junto a Zeus e satildeo descritas como ldquoes-

tando puras e sem marcas deste que agora carregamos conosco e chamamos corpo ao

qual estamos presas agrave maneira das ostrasrdquo (Phaedr 250c)321 A remissatildeo ao jogo etimo-

loacutegico do Craacutetilo acima citado eacute evidente no uso do termo aseacutematos que traduzimos

ldquosem marcasrdquo mas que enquanto composto de alfa+sema pode carregar e certamente

carrega o sentido de ldquonatildeo sepultadordquo Assim a paacutegina poderaacute ser lida como ldquoestando

puras e natildeo sepultadas deste que agora carregamos conosco ao qual estamos presas agrave

maneira das ostrasrdquo Novamente o tema socircma-secircma portanto a jogar entre os sentidos

de tumba e sinal322

320 Orig ldquo οἱ φιλοmicroαθεῖς ὅτι παραλαβοῦσα αὐτῶν τὴν ψυχὴν ἡ φιλοσοφία ἀτεχνῶς διαδεδεmicroένην ἐν τῷ σώmicroατι καὶ προσκεκολληmicroένην ἀναγκαζοmicroένην δὲ ὥσπερ διὰ εἱργmicroοῦ διὰ τούτου σκοπεῖσθαι τὰ ὄντα ἀλλὰ microὴ αὐτὴν δι αὑτῆς καὶ ἐν πάσῃ ἀmicroαθίᾳ κυλιν δουmicroένην καὶ τοῦ εἱργmicroοῦ τὴν δεινότητα κατιδοῦσα ὅτι δι ἐπιθυmicroίας ἐστίν ὡς ἂν microάλιστα αὐτὸς ὁ δεδεmicroένος συλλήπτωρ εἴη τοῦ δεδέσθαιrdquo (Phaed 82e) 321 Orig ldquo καθαροὶ ὄντες καὶ ἀσήmicroαντοι τούτου ὃ νῦν δὴ σῶmicroα περιφέροντες ὀνοmicroάζοmicroεν ὀστρέου τρό-πον δεδεσmicroευmicroένοιrdquo (Phaedr 250c) 322 Cf para isso Ferwerda (1985 269) Casadio (1987 389 n1) e Bernabeacute (no prelo cap7) que apresenta interessante quadro sinoacuteptico desta passagem com a paralela do Craacutetilo (400c) no sentido de mostrar a derivaccedilatildeo da primeira da segunda

151

344 Mediaccedilatildeo pitagoacuterica

O caminho aqui traccedilado balizado pelos textos-chave da obra platocircnica permite

alcanccedilar algumas conclusotildees ainda que provisoacuterias sobre qual seja o sentido da presen-

ccedila das teorias da metempsicose oacuterficas e pitagoacutericas no interior do corpus

Primeiramente eacute possiacutevel afirmar que haacute na obra platocircnica remissatildeo bastante

clara a uma origem ao mesmo tempo antiga religiosa e itaacutelica de teorias da imortali-

dade da alma que encontramos paralelamente na literatura oacuterfica e na primeira literatura

pitagoacuterica notadamente em Filolau Foi certamente esse o caso do mote socircma-secircma haacute

pouco analisado

Em segundo lugar a apropriaccedilatildeo platocircnica de teorias da imortalidade oacuterficas su-

postamente originaacuterias eacute claramente marcada por uma intenccedilatildeo moralizante como bem

demonstraram a insistecircncia na hierarquia das reencarnaccedilotildees e mesmo a original etimo-

logia soterioloacutegica platocircnica para o motivo do socircma-secircma Natildeo eacute impossiacutevel por outro

lado concluir que provavelmente essa transposiccedilatildeo tenha sido mediada por um movi-

mento como aquele pitagoacuterico que ainda que provavelmente proacuteximo tanto geografi-

camente como socialmente agrave mitologia e agrave ritualidade das telestai oacuterficas de certa for-

ma contribui para ldquoapolinizar o orfismordquo ndash na ceacutelebre expressatildeo de Ciaceri (1931-32

209) ou seja ndash conforme a lectio em seguida partilhada tambeacutem por Burkert (1972

132-133) e Pugliese Carratelli (2001 17-29) ndash a intelectualizar e aristocraticizar as tra-

diccedilotildees oacuterficas Estas originalmente desenvolvidas por indiviacuteduos andarilhos e agrave mar-

gem da cultura e religiatildeo poliacuteade foram aos poucos (e sempre parcialmente) incorpora-

das no novo contexto sociocultural das colocircnias doacutericas da Magna Greacutecia do seacuteculo IV

e depois V aEC323

Natildeo eacute possiacutevel avanccedilar mais neste sentido da definiccedilatildeo de uma precisa distinccedilatildeo

em relaccedilatildeo agraves teorias da alma entre a tradiccedilatildeo oacuterfica e aquela pitagoacuterica Alguns autores

sugerem que o ponto de distinccedilatildeo possa ser aquele da culpa originaacuteria Inicialmente a

metempsicose natildeo deveria ter sido considerada entre os pitagoacutericos como um castigo e

sim como consequecircncia loacutegica da imortalidade da alma Em um segundo momento a

influecircncia representada pelo mito antropogocircnico dos Titatildes e de Dioniso com a conse-

quente antropologia da dupla natureza do homem e da necessaacuteria expiaccedilatildeo do crime

323 OrigldquoSomething related to the Orphism ndash afirma Burkert (1972 132) ndash had emerged from the ano-nymity of back-alley ritual to become respectablerdquo

152

originaacuterio levaria o pitagorismo a adotar a mesma concepccedilatildeo oacuterfica por esta servir

muito bem a suas intenccedilotildees moralizantes324 No entanto natildeo haacute bases textuais soacutelidas

para essas afirmaccedilotildees o que sugere que seja mesmo o caso de parar por aqui

O texto platocircnico frequenta portanto em diversos e muitos lugares as teorias da

imortalidade da alma e da metempsicose contribuindo ndash de certa forma ndash para acostu-

mar nossos ouvidos a esse imaginaacuterio oacuterfico-pitagoacuterico da metempsicose Isso todavia

pode levar agrave impressatildeo enganosa de que essa ideia deveria ser comum na cultura grega

em que Platatildeo se encontra Ao contraacuterio Platatildeo assume aqui uma ideia bastante estra-

nha e exoacutetica recebida do orfismo provavelmente pelo pitagorismo Os proacuteprios textos

platocircnicos em seu tecido dialoacutegico deixam transparecer a estraneidade das teorias da

imortalidade da alma para a cultura de seu tempo Eacute este o caso da resistecircncia de Cebes

no Feacutedon (69e-70a) a aceitar que a alma tenha longe do corpo existecircncia proacutepria como

tambeacutem de Glaucon em Repuacuteblica (X 608d) que declara jamais ter ouvido falar da

imortalidade da alma

A estraneidade das praacuteticas e das doutrinas pitagoacutericas da imortalidade da alma

coincide e articula-se com outra estraneidade jaacute detectada anteriormente (cf 16) nas

fontes sobre o pitagorismo aquela poliacutetica isto eacute de uma koinoniacutea que se apresenta

como uma cidade dentro da cidade alternativa aos modos de vida poliacuteades A experiecircn-

cia poliacutetica religiosa e filosoacutefica que uma concepccedilatildeo da alma como esta pressupotildee vai

em direccedilatildeo a uma quebra da ordem agrave definiccedilatildeo de uma alternativa decididamente con-

tracultural De fato a descriccedilatildeo do indiviacuteduo pela histoacuteria pregressa de sua alma imortal

contrasta diretamente os criteacuterios bioloacutegicos e sociais que normalmente o definem no

interior da poacutelis Natildeo mais a descendecircncia sociobioloacutegica e sim a histoacuteria das vidas

anteriores determina seu lugar na sociedade E essa histoacuteria depende exclusivamente de

sua responsabilidade eacutetica325 A consequecircncia disso eacute o surgimento de comunidades e

formas de vida relativamente autocircnomas e claramente sectaacuterias no interior da estrutura

social tradicional Natildeo acaso as mulheres encontravam nesses movimentos natildeo somente 324 Cf Casadesuacutes apud Bernabeacute (no prelo cap 8) 325 Ainda paradigmaacuteticas neste sentido as palavras de Cornford (1922 141) ldquowhat is new in transmigra-tion is the moral view that reincarnation expiates some original sin and that the individual soul persists bearing its load of inalienable responsibility through a round of lives till purified by suffering it es-capes for ever [hellip] The individual becomes a unit an isolated atom with a personal sense of sin and a need of personal salvation compensated however by a new consciousness of the souls dignity and val-ue expressed in the doctrine that by origin and nature it is divine [hellip] But only on condition of becoming purerdquo Menos convincentes por outro lado (pace Casadio 1991 142-143) as ilaccedilotildees de Cornford sobre pretenso monismo e dualismo filosoacutefico embutidos nestas mesmas teorias da metempsicose

153

uma franca acolhida como em certos casos ateacute mesmo lugar de destaque Assim por

um lado a saiacuteda radical proposta para o ser humano preso ao tempo e ao corpo ldquocida-

datildeosrdquo eacute a de uma eternidade sem corpo resultando na definiccedilatildeo escatoloacutegica de uma

vida eterna e bem-aventurada da alma Por outro lado a saiacuteda poliacutetica eacute a mudanccedila de

estilo de vida na qual o corpo esteja inserido profundamente em outra cidade a koino-

niacutea dos ldquoouvintesrdquo com suas prescriccedilotildees morais proacuteprias e em muitos casos bastante

distintas daquelas poliacuteades326

Assim a apropriaccedilatildeo moralizante das teorias da imortalidade da alma platocircnica

parece apontar diretamente para a sua derivaccedilatildeo do ambiente pitagoacuterico aristocraacutetico e

intelectualista da Magna Greacutecia a ele anterior eou contemporacircneo tornando dessa

forma Platatildeo uma das fontes de difusatildeo dessas mesmas teorias Ao mesmo tempo a

metempsicose constitui um dos eixos centrais de sua eacutetica e de seu projeto poliacutetico de

converter as almas para construir uma outra cidade

Natildeo deve fugir da atenccedilatildeo o fato de que jaacute no texto do Mecircnon (81a-c) acima ci-

tado a metempsicose possui lugar central tambeacutem para sua teoria do conhecimento de

maneira especial por causa da anamnese Ainda que de forma menos contundente

mesmo esta segunda apropriaccedilatildeo das teorias da imortalidade oacuterficas revelaraacute a marca de

forte mediaccedilatildeo pitagoacuterica

O exerciacutecio da memoacuteria eacute de fato central para a definiccedilatildeo do lugar proacuteprio do pi-

tagorismo no interior das tradiccedilotildees oacuterficas A reforma do orfismo em sentido pitagoacuterico

agrave qual se fazia referecircncia no capiacutetulo primeiro ndash tese proposta por Pugliese Carratelli

(2001 17-29) e aqui jaacute diversas vezes lembrada ndash estaria exatamente fundamentada no

exerciacutecio da memoacuteria no sentido de lembrar da origem divina e imortal da alma e a

partir disso compreender os princiacutepios coacutesmicos e eacuteticos do viver Conforme vimos

acima no testemunho de Empeacutedocles (31 B129 DK) a memoacuteria das vidas anteriores eacute

uma das caracteriacutesticas centrais do saacutebio pitagoacuterico O proacuteprio Pitaacutegoras teria construiacutedo

sobre esta especial capacidade de recordar a historiacutea de suas metempsicoses grande par-

te de sua fama Anota com razatildeo neste sentido Sassi que

Pitaacutegoras desenha sua imagem de sapiente exatamente se apresentan-do como aquele que graccedilas agrave experiecircncia de muitas vidas acumulou

326 Cf para essa discussatildeo Detienne (1963) Vegetti (1989) Federico (2000) Especialmente interessantes as observaccedilotildees de cunho histoacuterico-antropoloacutegico sobre as ldquopoliacuteticas da imortalidaderdquo pitagoacutericas em Red-field (1991) Jaacute dediquei a esta questatildeo algumas paacuteginas recentemente (Cornelli 2009a)

154

conhecimentos extraordinaacuterios Esta imagem torna-se natildeo somente fa-tor de forte agregaccedilatildeo da comunidade em torno de seu liacuteder [] mas tambeacutem uma garantia da validade de novo saber focado na descoberta fundamental realizada pelo proacuteprio Pitaacutegoras da harmonia de propor-ccedilotildees numeacutericas que rege o cosmo (Sassi 2009 180)327

De fato a essa dimensatildeo sapiencial da memoacuteria deveria corresponder um uso ndash

por assim dizer ndash cotidiano dela no interior das comunidades protopitagoacutericas o mem-

bro da koinoniacutea ndash segundo lembra Jacircmblico ndash dedicava o primeiro tempo do dia para o

exerciacutecio da anamnese

O pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado nova-mente agrave memoacuteria o que havia acontecido no dia anterior E procedia desta forma agrave anamnese tentava chamar agrave mente a primeira coisa que havia dito escutado ou ordenado aos domeacutesticos no dia anterior logo apoacutes ter acordado e a seguir a segunda e a terceira e procedia da mesma forma para as sucessivas (Iambl VP 165)328

Como tambeacutem devia marcar as comunidades pitagoacutericas um especial culto agrave

deusa Mnemosyne bem representado por um grupo de lacircminas oacuterficas que Pugliese

Carratelli (2001 27) chama exatamente de mnemosyacuteniae Nessas lacircminas eacute normal-

mente a deusa Mnemosyne rainha das musas agrave qual eacute dedicado o lago do aleacutem-tuacutemulo

a ditar as senhas as instruccedilotildees que abrem ao iniciado as portas do aleacutem-tuacutemulo A senha

eacute normalmente constituiacuteda por uma foacutermula de apresentaccedilatildeo um syacutembolon ldquosou filho

da terra e do ceacuteu estreladordquo conforme a ceacutelebre lacircmina de Hipponion

Este eacute consagrado a Mnemosyacutene Quando iraacutes para as bem construiacutedas moradias do Hades [] encontraraacutes a aacutegua fresca que corre do lago a Memoacuteria Na frente desta estaratildeo os guardas que te perguntaratildeo por-que estaacutes percorrendo as trevas obscuras do Hades Diz ldquosou filho da terra e do ceacuteu estrelado de sede estou ardendo e desfaleccedilo deem-me logo para beber a aacutegua fresca que vem do lago da Memoacuteriardquo329

327 Orig ldquoPitagora disegna la propria immagine di sapiente proprio presentandosi come colui che grazie allacuteesperienza di molte vite haacute accumulato conoscenze straordinarie Questa immagine diventa non solo un fattore forte di aggregazione della comunitagrave intorno al suo lider [] ma uma garanzia di validitagrave di um sapere nuovo centrato sulla scoperta fondamentale da parte dello stesso Pitagora dellacutearmonia di proporzioni numeriche che regge il cosmordquo 328 Orig ldquo Πυθαγόρειος ἀνὴρ οὐ πρότερον ἐκ τῆς κοίτης ἀνίστατο ἢ τὰ χθὲς γενόmicroενα πρότερον ἀναmicroνη-σθείη ἐποιεῖτο δὲ τὴν ἀνάmicroνησιν τόνδε τὸν τρόπον ἐπειρᾶτο ἀναλαmicroβάνειν τῇ διανοίᾳ τί πρῶτον εἶπεν ἢ ἤκουσεν ἢ προςέταξε τοῖς ἔνδον ἀναστὰς καὶ τί δεύτερον καὶ τί τρίτον καὶ περὶ τῶν ἐσοmicroένων ὁ αὐτὸς λόγος καὶ πάλιν αὖ ἐξιὼν τίνι πρώτῳ ἐνέτυχε καὶ τίνι δευτέρῳ καὶ λόγοι τίνες ἐλέχθησαν πρῶτοι καὶ δεύτεροι καὶ τρίτοι καὶ περὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁ αὐτὸς λόγοςrdquo (Iambl VP 165) 329 Cf original no Anexo 4 A lacircmina constitui o mais antigo testemunho de uma foacutermula bastante comum entre as lacircminas da Magna Greacutecia e Creta O mesmo texto eacute de fato presente tambeacutem nas lacircminas de

155

Prova dessa ligaccedilatildeo do pitagorismo natildeo somente com a praacutetica da memoacuteria mas

com a mesma deusa Mnemosyne eacute o testemunho dos Theologumena Arithmeticae tex-

to proveniente da primeira Academia e que se refere provavelmente a tradiccedilotildees de Es-

peusipo atestando que os pitagoacutericos chamavam Mnemosyacutene a mocircnada e Mnecircme ou

Piacutestis a decirccada (44 A 13 DK)330

A insistecircncia sobre a memoacuteria e a necessidade da anamnese parece definir por-

tanto para as tradiccedilotildees pitagoacutericas lugar distinto e especial no interior da religiatildeo oacuterfica

antiga O destaque para a necessidade de natildeo esquecer de recordar estaacute intimamente

ligado de um lado a uma praacutetica cientiacutefica que encontra na memoacuteria sua teacutecnica seu

ritual especiacutefico de erudiccedilatildeo por outro lado a uma verdadeira tensatildeo espiritual (repre-

sentada nos fragmentos oacuterficos como uma estrada que se divide em duas e que conduz a

dois lagos diferentes o da Memoacuteria e o do Esquecimento) que deseja levar o iniciado a

sair do contiacutenuo transmigrar de existecircncias em existecircncias diferentes por meio da me-

moacuteria de sua verdadeira origem331

Em conclusatildeo Platatildeo mesmo no uso da metempsicose para fundamentar sua te-

oria do conhecimento anamneacutetica revela suas diacutevidas para com o orfismo e de maneira

especial para aquele blending filosoacutefico que o pitagorismo deve ter desenvolvido a par-

tir do primeiro332

Peteacutelia Entella e Pharsalos e Eleutherna Cf Pugliese Carratelli (2001 39ss) e Tortorelli-Ghidini (2006 62ss) 330 Cf Burkert (1993 359ss) para um comentaacuterio ao testemunho de Filolau 331 A imagem dos dois caminhos natildeo pode natildeo lembrar o Proacutelogo do Poema de Parmecircnides neste sentido A deusa que encontra o filoacutesofo foi identificada por diversos comentadores como a proacutepria Mnemosyacutene Jaacute discuti anteriormente esta atribuiccedilatildeo e as consequecircncias dela para a interpretaccedilatildeo do Poema cf Cor-nelli (2007b) 332 Surpreendentemente Burkert (1972 214) considera um equiacutevoco a relaccedilatildeo entre Platatildeo e os pitagoacuteri-cos no que diz respeito agrave anamnese ldquoA closer look reveals that the connection of Pythagoras with Plato in relation to anamnesis is scarcely more than an equivocationrdquo Os motivos deste ceticismo estatildeo liga-dos ao fato de natildeo considerar que a metempsicose tenha de fato alguma relaccedilatildeo com as provas matemaacuteti-cas que a paacutegina do Mecircnon (80d) em questatildeo salienta Ainda que isso seja procedente a praacutetica da anam-nese como exerciacutecio da memoacuteria das vidas anteriores em Platatildeo eacute ainda assim dificilmente separaacutevel das praacuteticas e teorias da imortalidade de matriz oacuterfico-pitagoacuterica

156

35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito

As referecircncias de Heroacutedoto agrave metempsicose pitagoacuterica representam tambeacutem tes-

temunhos preciosos por serem originaacuterias de outro acircmbito intelectual diferente daquele

da filosofia antiga e seus debates A comeccedilar pelo ceacutelebre passo das Histoacuterias em que se

faz referecircncia agraves crenccedilas egiacutepcias sobre a imortalidade

Nisto tambeacutem os egiacutepcios foram os primeiros isto eacute no afirmar que a alma do homem eacute imortal e que entra quando o corpo morre no corpo de outro animal que nasce e que depois de ter transmigrado assim por todos os animais da terra do mar e do ar entra no corpo de um ho-mem que nasce a volta completa ndash dizem ndash (a alma) cumpre no espa-ccedilo de trecircs mil anos Esta foi a doutrina acolhida por alguns gregos uns mais cedo outros mais tarde e que a consideravam como sua Eu mesmo conheccedilo seus nomes mas natildeo vou escrevecirc-los (Herodt Hist II 123)333

Vaacuterias hipoacuteteses foram levantadas para explicar a reticecircncia de Heroacutedoto A

mais comum eacute a de referir o silecircncio de Heroacutedoto ao medo dos ciacuterculos oacuterficos da Mag-

na Greacutecia se voltarem contra ele por estar fazendo derivar do Egito uma doutrina como

esta que os proacuteprios oacuterficos ndash cf Heroacutedoto ndash ldquoconsideravam como suardquo (Timpanaro

Cardini 1962 III 21-22)

Todavia a hipoacutetese natildeo eacute muito convincente ao menos por trecircs motivos Primei-

ramente Heroacutedoto cita explicitamente oacuterficos e pitagoacutericos em outra passagem estrita-

mente relacionada a esta na qual tece algumas consideraccedilotildees sobre os usos sepulcrais

dos egiacutepcios (que sepultavam os mortos em vestes de linho e natildeo de latilde como na Greacute-

cia) Ele afirma que ldquotal [costume] corresponde aos chamados orfikaacute e bacchikaacute que na

verdade satildeo egiacutepcios e pitagoacutericosrdquo (Herodt Hist II 81)334 Aqui ao contraacuterio a ante-

rioridade de uma praacutetica egiacutepcia ligada agrave imortalidade eacute afirmada sem reticecircncias335

333 Orig ldquo Πρῶτοι δὲ καὶ τόνδε τὸν λόγον Αἰγύπτιοί εἰσι οἱ εἰπόντες ὡς ἀνθρώπου ψυχὴ ἀθάνατός ἐστι τοῦ σώmicroατος δὲ καταφθίνοντος ἐς ἄλλο ζῷον αἰεὶ γινόmicroενον ἐσδύεται ἐπεὰν δὲ πάντα περιέλθῃ τὰ χερσ-αῖα καὶ τὰ θαλάσσια καὶ τὰ πετεινά αὖτις ἐς ἀνθρώπου σῶmicroα γινόmicroενον ἐσδύνειν τὴν περιήλυσιν δὲ αὐτῇ γίνεσθαι ἐν τρισχιλίοισι ἔτεσι Τούτῳ τῷ λόγῳ εἰσὶ οἳ Ἑλλήνων ἐχρήσαντο οἱ microὲν πρότερον οἱ δὲ ὕστερον ὡς ἰδίῳ ἑωυτῶν ἐόντι τῶν ἐγὼ εἰδὼς τὰ οὐνόmicroατα οὐ γράφωrdquo (Herodt Hist II 123) 334Orig ldquoὉmicroολογέουσι δὲ ταῦτα τοῖσι Ὀρφικοῖσι καλεοmicroένοισι καὶ Βακχικοῖσι ἐοῦσι δὲ αἰγυπτίοισι καὶ ltτοῖσιgt Πυθαγορείοισιrdquo (Herodt Hist II 81) 335A passagem natildeo merece ulteriores consideraccedilotildees pois a discrepacircncia entre duas famiacutelias de manuscri-tos a romana (AB) e a florentina (RVS) fez praticamente todos os comentadores suspeitarem que a in-formaccedilatildeo pela qual os usos sepulcrais ἐοῦσι δὲ αἰγυπτίοισι καὶ ltτοῖσιgt Πυθαγορείοισι constitua emenda tardia Cf Rohde (1898 439s) Wilamowitz-Moellendorf (1932 189) Rathmann (1933 52ss) Timpana-

157

Em segundo lugar conhecendo a ironia de Heroacutedoto e seu gosto pelo ldquojogordquo

natildeo eacute difiacutecil pensar que natildeo escrever os nomes dos autores nesse caso em que deveria

ser evidente a todos a quem ele se estava referindo pode ser uma remissatildeo jocosa ao

silecircncio iniciaacutetico em relaccedilatildeo agraves doutrinas e praacuteticas oacuterfico-pitagoacutericas e de maneira

especial agrave ordem de natildeo escrevecirc-las336 Heroacutedoto natildeo faz questatildeo de esconder essa

mesma ironia em outro trecho das Histoacuterias (IV 95) em que se refere a essas teorias

oacuterfico-pitagoacutericas da imortalidade e no qual narra muito divertidamente as faccedilanhas de

Zalmoxis que foi servo de Pitaacutegoras Analisaremos essa uacuteltima passagem nas paacuteginas a

seguir em relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees sobre as lendas que se referem agrave metempsicose

Em terceiro lugar se eacute verdade que Heroacutedoto junto com seus concidadatildeos ha-

via colonizado em meados do seacuteculo V aEC a cidade de Turii (jaacute Sibari) na Itaacutelia me-

ridional reduto de longa tradiccedilatildeo pitagoacuterica essa mesma colonizaccedilatildeo natildeo deve ser

compreendida como movimento filo-pitagoacuterico Ao contraacuterio a intervenccedilatildeo de Atenas

veio resolver as sucessivas staacuteseis que a dominaccedilatildeo pitagoacuterica sobre a cidade havia cri-

ado tornando Sibari autocircnoma politicamente desta dominaccedilatildeo e de certa maneira da-

qui para frente antipitagoacuterica337 Natildeo seria portanto razoaacutevel imaginar que Heroacutedoto

devesse temer criar inimizades para si por demonstrar postura antipitagoacuterica como a

proacutepria ironia com que trata o movimento em seus testemunhos parece indicar

Uma seacuterie de hipoacutetese de interpretaccedilatildeo de quem seriam esses ldquoalguns gregosrdquo

de maneira especial ldquoaqueles que mais cedo aderiram agrave teoriardquo eacute levantada ao longo da

histoacuteria da criacutetica Podem ser resumidas fundamentalmente trecircs tipos de soluccedilotildees a)

Pitaacutegoras e Empeacutedocles b) oacuterficos e Pitaacutegoras c) oacuterficos e Empeacutedocles338 Contudo o

fato certamente mais significativo eacute que os egiacutepcios natildeo conheciam nenhuma teoria da

ro Cardini (1958-62 22) Burkert (1972 127ss) argumenta ndash sem convencer totalmente ndash a favor da versatildeo florentina e conclui com razatildeo que esta uacuteltima apontaria para uma conexatildeo ritual entre pitagorismo e orfismo Ainda que relevante portanto para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre orfismo e pitagorismo o valor de testemunho de Heroacutedoto da passagem eacute esvaziado pela possiacutevel emenda da referecircncia exatamente ao pitagorismo 336 Cf para esta discussatildeo tambeacutem Cornelli (2006) 337 Para ampla discussatildeo sobre a histoacuteria de Sibari ao longo da dominiccedilatildeo pitagoacuterica sobre as cidades da Itaacutelia meridional cf Mele (2007 240-247) 338 Cf para as referecircncias bibliograacuteficas completas Burkert (1972 126 n38) Em resumo a) Long (1948 22) Kirk-Raven-Schofield (1983 210ss) b) Morrison (1956 137) Casadio (1991 128s) Zhmud (1997 118ss) c) Rathmann (1933 48ss)

158

imortalidade da alma339 Esta informaccedilatildeo errada causa estranhamento pois Heroacutedoto

demonstra ao contraacuterio conhecer bem as praacuteticas egiacutepcias da imortalidade e faz Bur-

kert imaginar tratar-se aqui de uma projeccedilatildeo de ideias gregas sobre os egiacutepcios340

Todavia a ligaccedilatildeo do pitagorismo com o Egito eacute afirmada em um fragmento do

orador Isoacutecrates jaacute citado no cap 1 no contexto da definiccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica

pelo silecircncio ldquoainda hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacutepulos

[de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessima fama por meio da pa-

lavrardquo (Isoacutecrates Busiris 29 = 14 A4 DK) A passagem completa eacute de fato introduzida

pela referecircncia agraves viagens de estudo que Pitaacutegoras teria conduzido ao Egito

Pitaacutegoras de Samos depois de chegar ao Egito e laacute se tornar disciacutepulo daqueles foi o primeiro a apresentar outra filosofia aos gregos e dis-tinguiu-se de maneira especial no que se refere aos sacrifiacutecios e rituais nos santuaacuterios considerando que se com isso natildeo ganharia mais van-tagens por parte dos deuses ao menos por meio disso obteria uma grande reputaccedilatildeo entre os homens Como de fato aconteceu Sua fama foi assim tatildeo superior agrave dos outros que todos os jovens desejavam ser seus disciacutepulos e o anciotildees preferiam ver seus filhos com ele do que cuidando dos negoacutecios familiares Eacute preciso acreditar nessas histoacuterias pois ateacute hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacute-pulos [de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessi-ma fama por meio da palavra (Isoacutecrates Busiris 28-29)341

Dessa viagem ao Egito portanto Pitaacutegoras teria trazido outra filosofia para os

gregos A terminologia e o contexto irocircnico ecoam tanto o sarcasmo de Heraacuteclito como

a ironia de Heroacutedoto Kahn anota justamente que um professor de eloquecircncia como Isoacute-

crates natildeo consegue ldquoabster-se de dar uma cutucadardquo (refrain from a dig) ao silecircncio 339 Cf para isso jaacute Zeller e Mondolfo (1938 133) Kees (1956 6) Burkert (1972 126 n36) e agora Cen-trone (1996 55) 340 Burkert ainda que com algum exagero em sua anaacutelise paleo-psicoloacutegica chega a sugerir que o contex-to imediato da passagem de Histoacuterias II 12 acima citada poderia ter levado Heroacutedoto a uma espeacutecie de reminiscecircncia das teorias da metempsicose originaacuterias do Sul da Itaacutelia A passagem em questatildeo eacute de fato precedida pela informaccedilatildeo pela qual Demetra e Dioniso eram chamados pelos egiacutepcios de donos do aleacutem-tuacutemulo Ambos por sua vez seriam cultuados no Sul da Itaacutelia (1972 126 n37) 341 Orig ldquo Πυθαγόρας ὁ Σάmicroιός ἐστιν ὃς ἀφικόmicroενος εἰς Αἴγυπτον καὶ microαθητὴς ἐκείνων γενόmicroενος τήν τ ἄλλην φιλοσοφίαν πρῶτος εἰς τοὺς Ἕλληνας ἐκόmicroισεν καὶ τὰ περὶ τὰς θυσίας καὶ τὰς ἁγιστείας τὰς ἐν τοῖς ἱεροῖς ἐπιφανέστερον τῶν ἄλλων ἐσπούδασεν ἡγούmicroενος εἰ καὶ microηδὲν αὐτῷ διὰ ταῦτα πλέον γίγνοι-το παρὰ τῶν θεῶν ἀλλ οὖν παρά γε τοῖς ἀνθρώποις ἐκ τούτων microάλιστ εὐδοκιmicroήσειν Ὅπερ αὐτῷ καὶ συνέβη τοσοῦτον γὰρ εὐδοξίᾳ τοὺς ἄλλους ὑπερέβαλεν ὥστε καὶ τοὺς νεωτέρους ἅπαντας ἐπιθυmicroεῖν αὐτοῦ microαθητὰς εἶναι καὶ τοὺς πρεσβυτέρους ἥδιον ὁρᾶν τοὺς παῖδας τοὺς αὑτῶν ἐκείνῳ συγγιγνοmicroένους ἢ τῶν οἰκείων ἐπιmicroελουmicroένους Καὶ τούτοις οὐχ οἷόν τἀπιστεῖν ἔτι γὰρ καὶ νῦν τοὺς προσποιουmicroένους ἐκείνου microαθητὰς εἶναι microᾶλλον σιγῶντας θαυmicroάζουσιν ἢ τοὺς ἐπὶ τῷ λέγειν microεγίστην δόξαν ἔχονταςrdquo (Isocr Busiris 28-29) Natildeo eacute possiacutevel imaginar o que teria levado Kahn a traduzir aqui ἄλλην φιλοσοφίαν com ldquohigh culturerdquo (2001 12)

159

pitagoacuterico (Kahn 2001 12) Da mesma forma a expressatildeo ldquoeacute preciso acreditar nessas

histoacuteriasrdquo indicaria a postura geral de desconfianccedila em relaccedilatildeo a essas tradiccedilotildees342

36 Lendas sobre a imortalidade

A mesma ironia eacute evidente na histoacuteria de Zalmoxis lembrada por Heroacutedoto (Hist

IV 94-96) trata-se aqui da saga do deus traacutecio Zalmoxis para o qual os Getas (que satildeo

definidos pelo historiador athanatiacutezontas ldquoconvencidos de serem imortaisrdquo) acreditam

irem os que estariam a ponto de morrer Para este deus realizam rituais de sacrifiacutecios

humanos com a esperanccedila de que o sacrificado entre em contato com o deus obvia-

mente apoacutes a morte O contexto deste culto eacute evidentemente aquele das tradiccedilotildees da

imortalidade da alma e do journey model acima citado isto eacute das viagens para o aleacutem-

tuacutemulo Por esse motivo provavelmente Heroacutedoto apoacutes a descriccedilatildeo dos rituais sacrifi-

cais recorda uma lenda pela qual Zalmoxis teria sido em verdade servo de Pitaacutegoras

Liberto ganhou grandes riquezas e entatildeo voltou para sua paacutetria mas como os traacutecios conheciam uma vida pobre e simples o tal Zalmoxis que havia conhecido o teor de vida dos jocircnicos e haacutebitos mais refina-dos daqueles dos traacutecios pois havia frequentado os gregos e entre e-les natildeo o mais insignificante isto eacute o saacutebio Pitaacutegoras filho de Mne-sarco mandou construir uma sala e nela recebendo os dignataacuterios a banquete ensinava que nem ele mesmo nem seus comensais nem se-quer os seus descendentes todos iriam morrer mas que iriam para um lugar onde sobreviveriam e teriam todo tipo de benesses Enquanto di-zia e fazia isso que narrei mandou construir uma casa subterracircnea quando ela foi completada desapareceu da vista dos traacutecios que se lamentavam e o choravam como se tivesse morrido Mas apoacutes quatro anos Zalmoxis reapareceu na frente deles confirmando dessa maneira o que ele havia afirmado (Herodt Hist IV 95)343

342 O valor do testemunho de Isoacutecrates eacute contudo colocado em duacutevida por Ries (1961) que detecta forte influecircncia acadecircmica sobre a tradiccedilatildeo 343 Orig ldquo τὸν Σάλmicroοξιν τοῦτον ἐόντα ἄνθρωπον δουλεῦσαι ἐν Σάmicroῳ δουλεῦσαι δὲ Πυθαγόρῃ τῷ Μνη-σάρχου ἐνθεῦτεν δὲ αὐτὸν γενόmicroενον ἐλεύθερον χρήmicroατα κτήσασθαι συχνά κτησάmicroενον δὲ ἀπελθεῖν ἐς τὴν ἑωυτοῦ Ἅτε δὲ κακοβίων τε ἐόντων τῶν Θρηίκων καὶ ὑπαφρονεστέρων τὸν Σάλmicroοξιν τοῦτον ἐπιστ-άmicroενον δίαιτάν τε Ἰάδα καὶ ἤθεα βαθύτερα ἢ κατὰ Θρήικας οἷα Ἕλλησί τε ὁmicroιλήσαντα καὶ Ἑλλήνων οὐ τῷ ἀσθενεστάτῳ σοφιστῇ Πυθαγόρῃ κατασκευάσασθαι ἀνδρεῶνα ἐς τὸν πανδοκεύοντα τῶν ἀστῶν τοὺς ρώτους καὶ εὐωχέοντα ἀναδιδάσκειν ὡς οὔτε αὐτὸς οὔτε οἱ συmicroπόται αὐτοῦ οὔτε οἱ ἐκ τούτων αἰεὶ γινόmicro-ενοι ἀποθανέονται ἀλλ ἥξουσι ἐς χῶρον τοῦτον ἵνα αἰεὶ περιεόντες ἕξουσι τὰ πάντα ἀγαθά Ἐν ᾧ δὲ ἐποίεε τὰ καταλεχθέντα καὶ ἔλεγε ταῦτα ἐν τούτῳ κατάγαιον οἴκηmicroα ἐποιέετο Ὡς δέ οἱ παντελέω εἶχε τὸ οἴκηmicroα ἐκ microὲν τῶν Θρηίκων ἠφανίσθη καταβὰς δὲ κάτω ἐς τὸ κατάγαιον οἴκηmicroα διαιτᾶτο ἐπ ἔτεα τρία Οἱ δέ microιν ἐπόθεόν τε καὶ ἐπένθεον ὡς τεθνεῶτα Τετάρτῳ δὲ ἔτεϊ ἐφάνη τοῖσι Θρήιξι καὶ οὕτω πιθανά σφι γένετο τὰ ἔλεγε ὁ Σάλmicroοξιςrdquo (Herodt Hist IV 95)

160

Para aleacutem do motivo etnocecircntrico que tende a diminuir a divindade dos Getas

com a sugestatildeo de que Zalmoxis na Greacutecia havia sido natildeo somente um homem mas

ateacute um escravo a passagem de Heroacutedoto revela-se com todo o sarcasmo do qual o his-

toriador eacute capaz uma saacutetira das tradiccedilotildees ligadas agrave kataacutebasis A morte aparente de Za-

moxis de fato natildeo passa de um truque na tentativa de convercer seus concidadatildeos de

sua imortalidade A remissatildeo indireta aqui agrave figura de Pitaacutegoras eacute certamente significa-

tiva como a dizer que ao falar de imortalidade da alma ele eacute a referecircncia imediata

De fato a temaacutetica da imortalidade e a figura carismaacutetica de Pitaacutegoras de certa

forma favorecem o surgimento de amplo leque de histoacuterias legendaacuterias a este respei-

to344 Como eacute de se esperar essas lendas natildeo recolheram muito entusiasmo no interior

da criacutetica atual ainda que ndash eacute certamente o caso de concordar com Burkert (1972 137)

ndash correspondam de fato ao estrato mais antigo da tradiccedilatildeo sobre Pitaacutegoras sendo anteri-

ores a qualquer outra informaccedilatildeo sobre a vida dele que encontramos em Aristoxeno ou

Dicearco por sua vez fontes das Vidas pitagoacutericas de eacutepoca imperial Essa tradiccedilatildeo len-

daacuteria concentra-se especialmente em um toacutepico que devia chamar bastante a atenccedilatildeo

que eacute aquele das efetivas metempsicoses de Pitaacutegoras Esse interesse pela histoacuteria da

alma de Pitaacutegoras foi compreendido jaacute desde a antiguidade (Porph VP 26 e Diod Sic

X 61) como uma exemplificaccedilatildeo na pele do fundador da proacutepria doutrina da transmi-

graccedilatildeo da alma Nesse sentido parte da criacutetica moderna comeccedilou a considerar essa lite-

ratura como um testemunho da sua originalidade345

A fonte mais significativa destas lendas eacute Heraacuteclides Pocircntico um peripateacutetico

que recorda a histoacuteria da palingecircnse de Pitaacutegoras assim

Heraacuteclides Pocircntico refere que Pitaacutegoras costumava dizer de si mesmo o seguinte que uma vez havia sido Etaacutelides e que havia sido conside-rado filho de Hermes O proacuteprio Hermes teria lhe dito para pedir o que quisesse fora a imortalidade Ele entatildeo pediu para manter tanto em vida como na morte memoacuteria dos acontecimentos Assim quando vi-vo lembrava de tudo e depois de morto conservava as mesmas lem-branccedilas Algum tempo depois foi para [o corpo de] Euforbo e foi fe-

344 Cf para um estudo sobre as fontes das lendas de Pitaacutegoras Leacutevy (1926) Uma discussatildeo filosoficamen-te brilhante e filologicamente cuidadosa dessa literatura eacute tambeacutem contida na excelente monografia de Biondi (2009) dedicada a Pitaacutegoras-Euforbo 345 Cf Riedweg 2006 115 Eacute tambeacutem o caso de Timpanaro Cardini (1958-62 I 5) ldquoPitagora crede nella metempsicose perchegrave crede nella sua metempsicoserdquo e de Burkert (1972 147) De ideia contraacuteria Rohde (1898 422) que considera a memoacuteria toda fabuliacutestica

161

rido por Menelau Euforbo de sua parte costumava dizer que uma vez havia sido Etaacutelides e tinha obtido este dom de Hermes e narrava as peregrinaccedilotildees de sua alma como transmigrou e em quantas plantas e animais foi residir e quantos sofrimentos a alma havia padecido no Hades Morto Euforbo sua alma transmigrou para Ermotimo que de-sejando dar uma prova disso dirigiu-se para os Bracircnquides e entran-do no templo de Apolo soube indicar o escudo que Menelau havia pendurado como oferenda votiva (DL VIII 4-5 Heraclid fr 89 Wehrli)346

A escassa probabilidade de Dioacutegenes Laacuteercio expungir a lenda diretamente de

um diaacutelogo de Heraacuteclides Pocircntico (pois natildeo cita algum texto especiacutefico para isso) faz

pensar em uma leitura doxograacutefica isto eacute de segunda matildeo desta tradiccedilatildeo Por outro

lado diversas variantes da mesma genealogia da alma de Pitaacutegoras satildeo registradas na

literatura antiga em todas elas o elemento comum eacute a reencarnaccedilatildeo em Euforbo347 Jaacute

Corssen (1912 22) considerava esta presenccedila de Euforbo incompreensiacutevel Por qual

motivo Pitaacutegoras teria escolhido como etapa central da transmigraccedilatildeo uma personagem

tatildeo secundaacuteria da histoacuteria da guerra de Troia A resposta tradicionalmente dada na es-

teira de Kereacutenyi (1950) eacute que a figura de Euforbo estaria diretamente relacionada a

Apolo aliaacutes seria uma espeacutecie de encarnaccedilatildeo dele (Burkert 1972 141) De fato Ried-

weg (2002 51) e Biondi (2009 67) concordam que Euforbo desempenha papel dramaacute-

tico decisivo no interior da trama da Iliacuteada contribui para a morte de Paacutetroclo que tem

como consequecircncia o retorno de Aquiles para a luta Euforbo ajudado e precedido por

Apolo que cansa e desarticula os membros de Paacutetroclo desfere o primeiro golpe no

guerreiro aqueu (Il 16 805-815) Seria por consequecircncia esta estreita relaccedilatildeo com

346 Orig ldquo Τοῦτόν φησιν Ἡρακλείδης ὁ Ποντικὸς περὶ αὑτοῦ τάδε λέγειν ὡς εἴη ποτὲ γεγονὼς Αἰθαλίδης καὶ Ἑρmicroοῦ υἱὸς νοmicroισθείη τὸν δὲ Ἑρmicroῆν εἰπεῖν αὐτῷ ἑλέσθαι ὅ τι ἂν βούληται πλὴν ἀθανασίας αἰτήσα-σθαι οὖν ζῶντα καὶ τελευτῶντα microνήmicroην ἔχειν τῶν συmicroβαινόντων ἐν microὲν οὖν τῇ ζωῇ πάντων διαmicroνηmicroονε-ῦσαι ἐπεὶ δὲ ἀποθάνοι τηρῆσαι τὴν αὐτὴν microνήmicroην χρόνῳ δ ὕστερον εἰς Εὔφορβον ἐλθεῖν καὶ ὑπὸ Μενέ-λεω τρωθῆναι ὁ δ Εὔφορβος ἔλεγεν ὡς Αἰθαλίδης ποτὲ γεγόνοι καὶ ὅτι παρ Ἑρmicroοῦ τὸ δῶρον λάβοι καὶ τὴν τῆς ψυχῆς περιπόλησιν ὡς περιεπολήθη καὶ εἰς ὅσα φυτὰ καὶ ζῷα παρεγένετο καὶ ὅσα ἡ ψυχὴ ἐν τῷ Ἅιδῃ ἔπαθε καὶ αἱ λοιπαὶ τίνα ὑποmicroένουσιν ἐπειδὴ δὲ Εὔφορβος ἀποθάνοι microεταβῆναι τὴν ψυχὴν αὐτοῦ εἰς Ἑρmicroότιmicroον ὃς καὶ αὐτὸς πίστιν θέλων δοῦναι ἐπανῆλθεν εἰς Βραγχίδας καὶ εἰσελθὼν εἰς τὸ τοῦ Ἀπό-λλωνος ἱερὸν ἐπέδειξεν ἣν Μενέλαος ἀνέθηκεν ἀσπίδαrdquo (D L VIII 4-5 Heraclid fr 89 Wehrli) 347 Cf para as citaccedilotildees Delatte (1922 154-159) Burkert (1972 138-141) Federico (2000 372 n15) e Biondi (2009 8-12)

162

Apolo a fazer pender a escolha para Euforbo348 A prova disso eacute que o escudo de Mene-

lau encontra-se na tradiccedilatildeo acima de Heraacuteclides no templo mais uma vez de Apolo349

A escassa atenccedilatildeo agraves lendas sobre Pitaacutegoras como diziacuteamos natildeo deve fazer es-

quecer que em relaccedilatildeo a elas nossa fonte mais importante eacute do seacuteculo IV aEC o proacute-

prio Aristoacuteteles e seu livro sobre o pitagorismo (fr 191 Rose) Nesse material aparecem

diversas lendas sobre milagres e prodiacutegios operados por Pitaacutegoras as mirabilia incluiacuteam

experiecircncias de ubiquidade diaacutelogos com um rio adivinhaccedilatildeo e a significativa referecircn-

cia a Pitaacutegoras como ao proacuteprio Apolo A economia destas paacuteginas natildeo permite uma

anaacutelise exaustiva destas passagens aristoteacutelicas obviamente Eacute o caso de concordar

mais uma vez com a cuidadosa anaacutelise de Burkert (1972 145) a esse respeito pela qual

essas lendas devem ser consideradas congruentes com o clima do seacuteculo IV aEC e que

somente nos seacuteculos sucessivos seriam usadas como motivo de chacota e criacutetica ao pita-

gorismo O valor dessas tradiccedilotildees eacute ainda mais importante quando se considera a inten-

ccedilatildeo geralmente demonstrada por Aristoacuteteles de separar o protopitagorismo da sua plato-

nizaccedilatildeo operada pela Academia que ndash entre outras coisas ndash teria reduzido Pitaacutegoras a

um alterego do proacuteprio Platatildeo350 O registro aristoteacutelico das lendas teria autoridade mo-

tivos e antiguidade suficientes para ser levado a seacuterio Em uacuteltima anaacutelise portanto Pitaacute-

goras e sua lenda natildeo podem ser separados351

Entre todas as referecircncias aos mirabilia eacute ainda a temaacutetica da morte aparente a

parecer estar bastante presente na literatura do periacuteodo se eacute verdade que a ela se faz

referecircncia na Electra de Soacutefocles ldquoPois haacute muito tempo eu vi homens saacutebios que dizi-

am falsamente terem morrido E em seguida uma vez voltados para casa eram recebi-

348 Centrone (1996 64) anota com razatildeo que o culto a Apolo era muito difundido nas cidades pitagoacutericas de Crotona e Metaponto Cf tambeacutem Iambl VP 52 349 Instigante ainda que troppo alegoacuterica eacute tambeacutem a leitura que Biondi (2009 77) propotildee da passagem da Iliacuteada acima citada ldquoegrave lacuteintervento di Euforbo che svela lacuteidentitagrave autentica di colui che sembrava Achille se lacutearmatura simboleggia il corpo allora lacuteindifesa nuditagrave rappresenta lacuteanima dunque lacuteazione di Euforbo potrebbe effettivamente significare al di lagrave della lettera del testo omerico lo svelamento dellacuteanima e la punizione della sua tracotanzardquo 350 Cf Burkert (1972 146) aleacutem do que foi dito acima (17) para o uso do pitagorismo no interior da polecircmica antiacadecircmica de Aristoacuteteles 351 Cf Burkert (1972 120) para uma discussatildeo metodoloacutegica da dificuldade que resulta desta afirmaccedilatildeo De ideia contraacuteria Casertano (2009 59) mas por considerar como lendas somente aquelas do segredo sobre as doutrinas e da estrutura da comunidade

163

dos com grandes honrasrdquo (Soph El 62-64)352 O escoliasta anotava significativamente

uma referecircncia a Pitaacutegoras ao lado desta passagem (Schol In Soph 62)

37 Demoacutecrito pitagoacuterico

Ainda mais significativo eacute o testemunho de Demoacutecrito nesse sentido Descrito

pelo contemporacircneo Glauco de Regio como ldquodisciacutepulo de um pitagoacutericordquo (68 A1 38

DK) o cataacutelogo tetraloacutegico de suas obras elaborado por Traacutesilo na seccedilatildeo eacutetica eacute inau-

gurado pelas trecircs obras seguintes Pitaacutegoras Sobre a disposiccedilatildeo do saacutebio e Sobre o

Hades (68 B0a-c DK) Proclo ainda conhece o conteuacutedo desta uacuteltima obra na qual apa-

rece novamente a temaacutetica da morte aparente

Como eacute o caso de muitos outros filoacutesofos antigos entre eles Demoacutecri-to o fiacutesico nos escritos Sobre o Hades narraram-se histoacuterias sobre pessoas que pareciam mortas mas que ao contraacuterio voltavam agrave vida (68 B1 DK)353

A proacutepria sequecircncia das trecircs primeiras obras citadas aponta para alguma forma

de dependecircncia democritiana da eacutetica pitagoacuterica Eacute o que sugere jaacute Frank (1923 67) que

ndash comentando a dedicaccedilatildeo a Pitaacutegoras de sua obra eacutetica mais importante (natildeo acaso ci-

tada por primeira) ndash acredita que isso se deva ao fato de Demoacutecrito ter enxergado em

Pitaacutegoras fundamentalmente o fundador de uma seita eacutetico-religiosa354 Sem sermos

obrigados a concordar tout court com Frank eacute inegaacutevel a grande quantidade de aproxi-

maccedilotildees possiacuteveis entre a eacutetica pitagoacuterica e aquela democritiana Os fragmentos demo-

critianos (68 B84 244 e 264 DK) sobre a necessidade ldquode sentir vergonha de si mesmordquo

pelas accedilotildees maacutes remetem diretamente para a praacutetica da anamnese do exame de consci-

352 Orig ldquo ἤδη γὰρ εἶδον πολλάκις καὶ τοὺς σοφοὺς λόγῳ microάτην θνῄσκοντας εἶθ ὅταν δόmicroους ἔλθωσ-ιν αὖθις ἐκτετίmicroηνται πλέονrdquo (Soph El 62-64) 353 Orig ldquo τὴν microὲν περὶ τῶν ἀποθανεῖν δοξάντων ἔπειτα ἀναβιούντων ἱστορίαν ἄλλοι τε πολλοὶ τῶν παλ-αιῶν ἤθροισαν καὶ ∆ ὁ φυσικὸς ltἐν τοῖς Περὶ τοῦ Ἅιδου γράmicromicroασινgtrdquo (68 B1 DK) 354 A economia destas paacuteginas natildeo permite avaliarmos detalhadamente as questotildees historiograacuteficas impliacute-citas nesta aproximaccedilatildeo entre pitagorismo a atomismo A questatildeo seraacute parcialmente enfrentada mais para frente no acircmbito da discussatildeo sobre o atomismo numeacuterico (41) Para uma criacutetica da posiccedilatildeo de Frank cf Zeller e Mondolfo (1938 332-333) Uma abordagem claacutessica agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e atomistas eacute a de Alfieri (1953 30-54) para uma discussatildeo mais recente sobre a leitura acadecircmica pitago-rizante de Demoacutecrito cf Gemelli (2007b 42-58)

164

ecircncia de tradiccedilatildeo pitagoacuterica (Zeller e Mondolfo 1938 335) Mais relevantes ainda seri-

am as aproximaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave questatildeo da medida como base para o raciociacutenio eacutetico

(Riedweg 2002 116) Todavia os paralelos podem natildeo ser decisivos se eacute verdade ndash

como vimos acima ndash que esses mesmos conceitos de phroacutenesis isonomiacutea meacutetron a-

companham o desenvolvimento da eacutetica antiga e da tradiccedilatildeo meacutedica de maneira mais

geral e difusa natildeo podendo portanto serem considerados ndash a bem ver ndash como marcos

definitoacuterios dos dois movimentos em questatildeo

No entanto a aproximaccedilatildeo entre atomistas e pitagoacutericos mais significativa para a

economia dessa discussatildeo sobre a imortalidade da alma pitagoacuterica seria ainda aquela

indicada por Aristoacuteteles na passagem do De Anima jaacute citada (De an 404a16) em rela-

ccedilatildeo a uma concepccedilatildeo material da alma pitagoacuterica Aqui eacute atribuiacuteda aos pitagoacutericos uma

concepccedilatildeo corpuscular da alma (ldquoas poeiras no arrdquo) quase a querer prefigurar a psicolo-

gia de Demoacutecrito Todavia os problemas textuais acima apontados desencorajam a atri-

buiccedilatildeo de grande importacircncia a essa passagem Aleacutem disso na mesma paacutegina do De

Anima Aristoacuteteles associa o movimento contiacutenuo da poeira com a definiccedilatildeo de alma

como aquilo que move a si mesmo

Agrave mesma afirmaccedilatildeo satildeo levados tambeacutem todos os que dizem que a alma eacute aquilo que move a si mesmo pois todos eles parecem partir do pressuposto de que o movimento eacute algo muitiacutessimo peculiar agrave alma (De an 404a 21-25)355

Com a alma como aquilo que move a si mesmo entra-se jaacute em solo platocircnico e

mais precisamente xenocratiano Natildeo acaso algumas paacuteginas depois quando a discus-

satildeo das teorias sobre a alma dos predecessores alcanccedila plenamente o acircmbito acadecircmico

afirma-se que ldquoalguns sustentam que a alma eacute um nuacutemero que move a si mesmordquo (De

an 404b 29-30)356 Trata-se aqui sem duacutevida da interpretaccedilatildeo que Xenoacutecrates (fr 165

Isnardi-Parente) elabora em chave matemaacutetica e pitagorizante da doutrina da alma de

Platatildeo como semovente (Phaedr 245c-246a Leg X 895)357

355 Orig ldquo ἐοίκασι γὰρ οὗτοι πάντες ὑπειληφέναι τὴν κίνησιν οἰκειότατον εἶναι τῇ ψυχῇ καὶ τὰ microὲν ἄλλα πάντα κινεῖσθαι διὰ τὴν ψυχήν ταύτην δ ὑφ ἑαυτῆς διὰ τὸ microηθὲν ὁρᾶν κινοῦν ὃ microὴ καὶ αὐτὸ κινεῖταιrdquo (De an 404a 21-25) 356 Orig ldquo ἀποφηνάmicroενοι τὴν ψυχὴν ἀριθmicroὸν κινοῦνθrsquo ἑαυτόνrdquo (De an 404b 29-30) 357 Cf especialmente Isnardi Parente (1971 166s) com a qual concorda Gemelli (2007 57)

165

A maioria dos comentadores considera portanto a aproximaccedilatildeo de De an

404a16 um mal-entendido de Aristoacuteteles pois a imagem da alma como poeira em mo-

vimento estaria mais ligada a tradiccedilotildees miacutesticas arcaicas do que a um diaacutelogo que o pi-

tagorismo estaria travando com o atomismo no seacuteculo V aEC Para Cherniss a teoria da

alma como poeira nada teria a ver com aquela do movimento

Nesse caso cada gratildeo de poeira devia provavelmente ser considerado uma alma de tal maneira que a psycheacuten (sic) de Aristoacuteteles implicaria complicaccedilotildees que natildeo existem [] Uma teoria como esta por natildeo ter fundamentalmente nada a ver com os movimentos deve corresponder a uma acomodaccedilatildeo de uma supersticcedilatildeo mais antiga com uma mais alta teoria fiacutesica desenvolvida em tempos mais recentes (Cherniss 1935 291 n6)358

Philip (1966 151) baseando-se na distinccedilatildeo que Aristoacuteteles estaria fazendo en-

tre ldquoalguns pitagoacutericosrdquo (tiacutenes) que pensam a alma como poeira e outros (acadecircmicos

pitagorizantes) diversamente destes que sustentam que seria a alma ldquoo que faz com

que as poeiras se movamrdquo imagina ser possiacutevel que Aristoacuteteles estivesse aqui pensan-

do no caso dos primeiros aos pitagoacutericos do seacuteculo V que teriam acomodado sua teoria

da alma ao atomismo contemporacircneo A hipoacutetese eacute todavia incompleta pois restaria

explicar para que ela fosse plausiacutevel por quais motivos esses pitagoacutericos sentiriam a

necessidade de fazer essa acomodaccedilatildeo

38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos

A aproximaccedilatildeo exposta acima da concepccedilatildeo pitagoacuterica da alma com o atomismo

constitui ndash na melhor das hipoacuteteses ndash uma referecircncia ao pitagorismo do V seacuteculo na

pior delas apenas um mal-entendido Por esse motivo ela natildeo pode constituir testemu-

nho aristoteacutelico da teoria da alma protopitagoacuterica

358 Orig ldquoIn this case each speck of dust was probably considered to be a soul so that Aristotle psycheacuten (sic) implies complications which did not exist (hellip) Such a theory since fundamentally it has nothing to do with the motes must have been an accommodation of the earlier superstition to the more hightly de-veloped psychical theories of later timesrdquo Ainda que sem o ranccedilo positivista de Cherniss (evidente em expressotildees como earlier superstition) concordam com ele Rathmann (1933 18-19) Zeller e Mondolfo (1938 554) Burkert (1972 120) Guthrie (1962 306) Alesse (2000 397) Casertano (2009 70) conside-ra a concepccedilatildeo naturalista da alma como ldquoincontestabilmente pitagoricardquo

166

Ainda assim eacute do mesmo Aristoacuteteles o testemunho filosoacutefico provavelmente

mais expliacutecito da existecircncia de uma doutrina da metempsicose pitagoacuterica Trata-se de

uma passagem que pertence a algumas paacuteginas seguintes do mesmo De Anima A pas-

sagem revela a dificuldade de atribuir uma teoria da metempsicose coerente aos primei-

ros pitagoacutericos Eacute inicialmente dessa dificuldade que Aristoacuteteles parece queixar-se359

Estes [filoacutesofos] se esforccedilam somente para indicar qual seja a natureza da alma nada acrescentando sobre o corpo que deve recebecirc-la como se fosse possiacutevel segundo os mitos pitagoacutericos que qualquer alma en-tre em qualquer corpo (De an 407b 20-23)360

De fato ao longo do exame das doutrinas sobre a natureza e as propriedades da

alma iniciado no capiacutetulo II do livro II do De Anima Aristoacuteteles acusa a impropriedade

de todas as teorias de seus predecessores seja em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo de quais sejam

as propriedades especiacuteficas da alma como ndash de maneira especial ndash por estes natildeo terem

prestado atenccedilatildeo agrave questatildeo central isto eacute agrave relaccedilatildeo entre alma e corpo De fato ldquoos filoacute-

sofosrdquo isto eacute seus predecessores ldquoconjugamrdquo (synaacuteptousin) ou ldquojustapotildeemrdquo (titheacuteasin)

a alma ao corpo sem explicarem a causa e os modos dessa conjunccedilatildeo ou justaposiccedilatildeo

(De an 407b 13-17)

Portanto os mitos pitagoacutericos mencionados na passagem constituiriam um dos

exemplos mais significativos desse erro O absurdo (aacutetopon v 13) da explicaccedilatildeo avan-

ccedilada que eacute explicitamente referida tanto ao Timeu de Platatildeo como tambeacutem a todas as

teorias da alma anteriores (v 13-14) eacute exemplificado plasticamente na imagem dese-

nhada na passagem seguinte pela qual

[Estes] se expressam como quem dissesse que a arte do carpinteiro en-trasse nas flautas Ao contraacuterio a teacutecnica deve se servir dos [seus] ins-trumentos assim como a alma do corpo (De an 407b 24-26)361

359 Centrone (1996 105) sugere que esta queixa de Aristoacuteteles deveria depender mais de omissotildees (ou de falta de coerecircncia) no interior dos escritos que ele estava consultando do que propriamente de uma falta de informaccedilotildees sobre a questatildeo que contrariaria os testemunhos de que estaria de posse de diversos escri-tos pitagoacutericos (23) 360 Orig ldquo οἱ δὲ microόνον ἐπιχειροῦσι λέγειν ποῖόν τι ἡ ψυχή περὶ δὲ τοῦ δεξοmicroένου σώmicroατος οὐθὲν ἔτι προσδιορίζουσιν ὥσπερ ἐνδεχόmicroενον κατὰ τοὺς Πυθαγορικοὺς microύθους τὴν τυχοῦσαν ψυχὴν εἰς τὸ τυχὸν ἐνδύεσθαι σῶmicroαrdquo (De Anima 407b 20-23) 361 Orig ldquo παραπλήσιον δὲ λέγουσιν ὥσπερ εἴ τις φαίη τὴν τεκτονικὴν εἰς αὐλοὺς ἐνδύεσθαι δεῖ γὰρ τὴν microὲν τέχνην χρῆσθαι τοῖς ὀργάνοις τὴν δὲ ψυχὴν τῷ σώmicroατιrdquo (De Anima 407b 24-26)

167

A alma na elegante imagem de Aristoacuteteles seria portanto uma arte Como tal

necessita de seu instrumento proacuteprio isto eacute de um corpo Ao contraacuterio portanto do que

os mitos pitagoacutericos sustentam isto eacute de que qualquer alma pode entrar em qualquer

corpo

Imediatamente vem de pensar agrave metempsicose362 O proacuteprio movimento indicado

pelo verbo endyacuteesthai ldquoentrarrdquo da alma no corpo evoca a imagem da transmigraccedilatildeo363

Diversos comentadores todavia quiseram levantar algumas dificuldades em relaccedilatildeo agrave

intenccedilatildeo de Aristoacuteteles de referir-se agrave metempsicose nesta passagem do De Anima 407b

20-23 A comeccedilar por Zeller que percebe uma contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela que devia

ser a teoria da metempsicose pitagoacuterica

A teoria da alma que entra no receacutem-nascido da atmosfera circunstan-te com sua primeira respiraccedilatildeo casualmente e como for (kataacute toucircs Pythagorikoucircs myacutethous diz Aristoacuteteles na passagem acima citada) contribui provavelmente para demonstrar seu defeito na conexatildeo com a doutrina da transmigraccedilatildeo onde a reencarnaccedilatildeo deve de alguma forma representar (como eacute dito no mito de Er) uma consequecircncia da vida anterior exigindo assim uma correspondecircncia entre o tempera-mento (kracircsis) da alma e aquele do corpo no qual entra (Zeller e Mon-dolfo 1938 562)364

De fato a teoria da metempsicose implica responsabilidade moral em vida se-

guida de um julgamento post mortem que contradiria a ideia de aleatoriedade represen-

tada pela repeticcedilatildeo do adjetivo tychoacuten (ldquoqualquer alma em qualquer corpordquo)365 A maio-

362 Esta teoria eacute chamada microῦθος tambeacutem em Platatildeo (cf acima Gorg 492e) 363 Cf para isso jaacute Kranz (Diels-Kranz 1951 I 504 7-9) 364 Orig ldquoLa teoria dellacuteanima che entra nel neonato dallacuteatmosfera circostante con il primo respiro a caso e come cagravepiti (kataacute toucircs Pythagorikoucircs myacutethous dice Aristotele nel luogo sopra citato) viene probabilmente a mostrare in pieno il suo difetto nella sua connessione con la dottrina della trasmigrazione dove la reincarnazione deve pur rappresentare (comacuteegrave detto nel mito di Er) una conseguenza della vita anteriore ed esige quindi una corrispondenza fra il temperamento (kracircsis) dellacuteanima e quello del corpo in cui entrardquo A referecircncia agrave forma de entrada da alma no corpo inaugura uma tendecircncia a compreender esta passagem agrave luz daquela anterior de 404a 16ss em que a alma-poeira teria caracteriacutesticas corpusculares conforme se discutiu acima Cf Timpanaro Cardini (1958-62 III 213) Maddalena (1964 340-41) Guthrie (1962 129 e 260) 365 Concordam com Zeller tanto Rathmann (1933 17s) como Maddalena (1954 340) e Casertano (1987 19s) Timpanaro Cardini tambeacutem demonstra seu ceticismo em relaccedilatildeo ao fato de a passagem referir-se agrave metempsicose avanccedilando todavia mais uma vez uma explicaccedilatildeo original para isso Segundo ela o e-xemplo do marceneiro e das flautas indicaria inegavelmente que a passagem natildeo poderia referir-se agrave me-tempsicose e sim simplesmente a como deva ser compreendida a associaccedilatildeo entre corpo e alma O moti-vo eacute que natildeo faria sentido que a arte do luthier fosse considerada por Aristoacuteteles como separada da flauta pois para melhorar sua capacidade isto eacute sua arte o luthier precisa da flauta assim como a alma do cor-po (Timpanaro Cardini 1958-62 III 214) Todavia Alesse (2000 403 n23) anota com razatildeo que a leitura

168

ria dos comentadores todavia a comeccedilar por Burkert (1972 121 n3) parece considerar

que Aristoacuteteles esteja se referindo no caso especiacutefico natildeo a uma alma e um corpo indi-

viduais e sim ao caraacuteter geral da relaccedilatildeo entre almas e corpos

Algumas paacuteginas depois no mesmo De Anima Aristoacuteteles parece confirmar a

criacutetica aos mitos pitagoacutericos de 407b quando parece refinar a proacutepria criacutetica indicando

que o problema estaria mais especificamente no fato de as almas poderem entrar em

corpos diferentes

Natildeo eacute o corpo a realizaccedilatildeo da alma mas esta aquela de determinado corpo Por esse motivo eacute correta a opiniatildeo daqueles que consideram que a alma natildeo exista sem o corpo e tampouco que a alma seja um de-terminado corpo Na realidade natildeo se identifica com o corpo mas eacute algo de um corpo e se encontra em um corpo de determinada nature-za natildeo como acreditavam nossos predecessores que a adaptavam a um corpo sem indicar nem o que este seja nem suas qualidades mes-mo sendo evidente que jamais uma coisa qualquer recebe outra coisa qualquer (De an 414a 18-25)366

A criacutetica de Aristoacuteteles deve ser obviamente compreendida no interior de sua te-

oria da alma como desenvolvida no De Anima isto eacute fundamentalmente da teoria da

alma como enteleacutecheia do corpo pela qual esta realiza as funccedilotildees que potencialmente jaacute

estatildeo na mateacuteria que constitui o corpo Eacute consequentemente impensaacutevel que ldquouma coisa

qualquer receba outra coisa qualquerrdquo ecoando a mesma ideia expressa em 407b pela

qual ldquoqualquer alma entre em qualquer corpordquo (v 23)

Eacute mesmo o caso de pensar que a criacutetica de Aristoacuteteles nas duas passagens seja

dirigida agrave metempsicose pitagoacuterica pois o que Aristoacuteteles devia considerar como pro-

da Timpanaro Cardini depende de um equiacutevoco na traduccedilatildeo de τεκτονικὴ Timpanaro Cardini considera ser esta a arte do luthier enquanto eacute mais plausiacutevel que Aristoacuteteles se refira neste caso agrave arte do tocador de flauta isto eacute a flauta soacute pode ser utilizada por aquele que possui a arte de fazer funcionar agrave perfeiccedilatildeo aquele instrumento estaria dizendo aqui Aristoacuteteles seria este o flautista portanto natildeo o luthier Os termos da similitude satildeo contudo bastante claros de um lado a arte e a alma do outro a flauta e o cor-po como o corpo em relaccedilatildeo agrave alma a flauta eacute a mateacuteria que estaacute predisposta a acolher a forma da arte (do flautista) e somente deste natildeo aquela do carpinteiro-luthier Cherniss (1935 325 n130) suspeita que a passagem possa referir-se mais precisamente agrave teoria platocircnica do Timeu da escolha do corpo apoacutes a primeira vida representando consequentemente mais uma polecircmica antiplatocircnica do que uma posiccedilatildeo antipitagoacuterica De toda forma permanece na passagem a referecircncia agrave metempsicose que eacute o que mais diretamente interessa agrave economia destas paacuteginas 366 Orig ldquo οὐ τὸ σῶmicroά ἐστιν ἐντελέχεια ψυχῆς ἀλλ αὕτη σώmicroατός τινος καὶ διὰ τοῦτο καλῶς ὑπολαmicroβά-νουσιν οἷς δοκεῖ microήτ ἄνευ σώmicroατος εἶναι microήτε σῶmicroά τι ἡ ψυχή σῶmicroα microὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώmicroατος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώmicroατι ὑπάρχει καὶ ἐν σώmicroατι τοιούτῳ καὶ οὐχ ὥσπερ οἱ πρότερον εἰς σῶmicroα ἐνήρmicroοζον αὐτήν οὐθὲν ροσδιορίζοντες ἐν τίνι καὶ ποίῳ καίπερ οὐδὲ φαινοmicroένου τοῦ τυχόντος δέχεσθαι τὸ τυχόνrdquo (De Anima 414a 18-25)

169

blemaacutetico eacute a admissatildeo da possibilidade de uma alma entrar em um corpo do qual natildeo

seja enteleacutecheia como seria o caso da transmigraccedilatildeo de um corpo humano para um cor-

po animal inferior ao primeiro367 O ataque aristoteacutelico eacute aqui dirigido natildeo somente agrave

teoria da metempsicose e sim tambeacutem a uma teoria que a citaccedilatildeo de Porfiacuterio (VP 19)

que abriu este capiacutetulo considerava notoriamente pitagoacuterica a do parentesco universal

logicamente interdependente da primeira

De toda forma para a economia destas paacuteginas pode-se concluir que a paacutegina

414a do De anima natildeo somente remete especificamente agrave metempsicose mas que eacute uma

continuaccedilatildeo da passagem 407b imediatamente anterior Os mitos pitagoacutericos desta natildeo

poderatildeo que ser compreendidos portanto como as teorias da metempsicose da alma

Mais difiacutecil ndash ainda que central para nossa discussatildeo ndash eacute determinar se essas pas-

sagens de Aristoacuteteles referem-se ao protopitagorismo ou ao contraacuterio ao pitagorismo a

ele contemporacircneo de Filolau e Arquitas por exemplo

O termo myacutethoi utilizado para indicar essas doutrinas eacute um sintoma de que A-

ristoacuteteles as considerava antigas mas natildeo necessariamente destituiacutedas de toda verdade

Prova decisiva disso eacute o fato de ele se dar ao trabalho de refutaacute-las O acircmbito semacircntico

dos termos myacutethos ou mythologeicircn eacute frequentemente conectado no interior da obra de

Aristoacuteteles com aquele dos theoloacutegoi e do palaiacuteoi a indicar natildeo tanto uma diminuiccedilatildeo

do valor teoreacutetico das doutrinas e sim mais precisamente sua invenciacutevel arcaicidade A

consequecircncia disso eacute uma elaboraccedilatildeo insuficiente dos argumentos loacutegicos e uma roupa-

gem inadequada agrave maneira lsquocontemporacircnearsquo de fazer ciecircncia368 Como eacute o caso da paacutegi-

na de Metafiacutesica dedicada agrave ideia do divino que circunda a natureza

Uma tradiccedilatildeo em forma de mito foi transmitida aos poacutesteros a partir dos antigos e antiquiacutessimos segundo a qual essas realidades satildeo deu-ses e o divino envolve toda a natureza As outras coisas foram poste-riormente acrescentadas para persuadir o povo e para fazecirc-lo subme-ter-se agraves leis e ao bem comum De fato dizem que os deuses tecircm a

367 Aleacutem da teoria da ἐντελέχεια estaacute em jogo nesta criacutetica de Aristoacuteteles tambeacutem um princiacutepio de sub-sunccedilatildeo pelo qual uma forma superior conteacutem em si mesma a forma inferior ldquocomo um quadrilaacutetero con-teacutem o triacircngulordquo (De an 414b 31) O mesmo vale para as formas viventes pois ldquoo caso das figuras eacute semelhante agravequele da almardquo (De an 414b 29) No entanto o contraacuterio natildeo eacute verdadeiro aliaacutes eacute absurdo (De an 407b 13) 368 Cf Met 1074b1 1091b9 Pol 1269b28 1341b3 De caelo 284a23 Aristoacuteteles considera θεολόγοι e παλαίοι Homero Hesiacuteodo e os oacuterficos mas tambeacutem alguns fisioacutelogos eacute novamente o caso dos pitagoacuteri-cos em Met 1091a34-b12 que satildeo chamados aqui de θεολόγοι no contexto de discussatildeo sobre o um e a diacuteade que retoma a discussatildeo do livro A sobre a questatildeo em que os pitagoacutericos satildeo claramente citados em oposiccedilatildeo a Platatildeo (Met 987b14-988a8)

170

forma humana e que satildeo semelhantes a certos animais e acrescentam a essas outras coisas da mesma natureza ou anaacutelogas Se de todas elas prescindindo do resto assumimos soacute o ponto fundamental isto eacute a a-firmaccedilatildeo de que as substacircncias primeiras satildeo deuses eacute preciso reco-nhecer que ela foi feita por divina inspiraccedilatildeo (Met 1074b1-10)369

Portanto o nuacutecleo teoreacutetico da teoria segundo Aristoacuteteles deve ser considerado

como ainda vaacutelido Como devia ser o caso dos mitos pitagoacutericos que ainda que antigos

mereceram todavia suas consideraccedilotildees criacuteticas nas passagens acima analisadas

Eacute bastante provaacutevel portanto que com a expressatildeo mitos pitagoacutericos Aristoacuteteles

entenda referir-se a doutrinas dos primeiros pitagoacutericos370 Uma ulterior prova disso eacute

que a expressatildeo natildeo eacute jamais utilizada para a discussatildeo que Aristoacuteteles faz da matemaacuteti-

ca pitagoacuterica que como ver-se-aacute no proacuteximo capiacutetulo atinge a fontes do seacuteculo V co-

mo Filolau e que Aristoacuteteles identifica em Metafiacutesica A como os ldquoassim chamados

pitagoacutericosrdquo371

Outro marco lexical dessa antiguidade eacute o verbo utilizado por Aristoacuteteles na pas-

sagem do De anima 407b 20-23 para indicar a metempsicose endyacuteomai ldquoentrarrdquo (da

alma no corpo) O mesmo verbo eacute utilizado por Heroacutedoto para descrever a transmigra-

ccedilatildeo da alma na passagem acima citada em que a origem da teoria da metempsicose eacute

indicada como sendo egiacutepcia (Herodt II 123) Em Platatildeo o verbo eacute usado em duas

passagens para indicar a metempsicose de uma alma que estava em um homem e entra

em um animal ldquoum burro ou alguma besta deste tipordquo (Phaed 82a) ou ldquoem um maca-

cordquo no caso da alma do ridiacuteculo Tersites no interior do mito de Er (Resp X 620c) As

duas passagens platocircnicas ilustram precisamente aquilo que Aristoacuteteles devia temer co-

369 A menos que natildeo se indique diferentemente a traduccedilatildeo das passagens citadas da Metafiacutesica de Aristoacute-teles seraacute a de G RealeM Perine (Aristoacuteteles 2002) com algumas modificaccedilotildees Orig ldquo παραδέδοται δὲ παρὰ τῶν ἀρχαίων καὶ παmicroπαλαίων ἐν microύθου σχήmicroατι καταλελειmicromicroένα τοῖς ὕστερον ὅτι θεοί τέ εἰσιν οὗτοι καὶ περιέχει τὸ θεῖον τὴν ὅλην φύσιν τὰ δὲ λοιπὰ microυθικῶς ἤδη προσῆκται πρὸς τὴν πειθὼ τῶν πολλῶν καὶ πρὸς τὴν εἰς τοὺς νόmicroους καὶ τὸ συmicroφέρον χρῆσιν ἀνθρωποειδεῖς τε γὰρ τούτους καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ὁmicroοίους τισὶ λέγουσι καὶ τούτοις ἕτερα ἀκόλουθα καὶ παραπλήσια τοῖς εἰρηmicroένοις ὧν εἴ τις χωρίσας αὐτὸ λάβοι microόνον τὸ πρῶτον ὅτι θεοὺς ᾤοντο τὰς πρώτας οὐσίας εἶναι θείως ἂν εἰρῆσθαι νοmicroί-σειενrdquo (Met 1074b1-10) 370 Cf neste sentido Alesse (2000 408) 371 Para esta identificaccedilatildeo das doutrinas pitagoacutericas de Metafiacutesica A com o pitagorismo de Filolau cf Burkert (1972 236-238) Centrone (1996 105) Huffman (1993) Veja-se tambeacutem a resenha historiograacute-fica do valor do testemunho de Aristoacuteteles sobre Filolau acima esboccedilada ao longo do capiacutetulo primeiro

171

mo absurda consequecircncia da teoria de metempsicose a possibilidade da entrada de uma

alma humana no corpo de um animal inferior372

O leacutexico aristoteacutelico da passagem sugere portanto que ela possa remeter a tra-

diccedilotildees antigas da teoria da metempsicose que Aristoacuteteles chama de mitos pitagoacutericos

provavelmente reconhecendo no protopitagorismo a fonte dessas doutrinas sobre a i-

mortalidade da alma e sua transmigraccedilatildeo Aristoacuteteles torna-se com isso uma das fontes

mais confiaacuteveis para a atribuiccedilatildeo da teoria da metempsicose aos pitagoacutericos mais anti-

gos

39 Conclusatildeo

Partindo de um testemunho de Porfiacuterio sobre as doutrinas centrais de Pitaacutegoras

analisou-se aqui a tradiccedilatildeo da teoria da imortalidade da alma e sua metempsicose com a

intenccedilatildeo de por um lado verificar se ela poderia ser reconduzida agrave praacutetica e agrave doutrina

do protopitagorismo por outro lado compreender em que medida contribuiu para a

definiccedilatildeo da categoria pitagorismo ao longo da histoacuteria Os testemunhos mais antigos a

atribuiacuterem esta doutrina a Pitaacutegoras sugeriram dois diversos percursos hermenecircuticos

Primeiramente ainda que antiga a teoria da imortalidade da alma por sua proacutepria natu-

reza apocaliacuteptica natildeo implica a existecircncia de um sistema dogmaacutetico de crenccedilas O que

equivale a dizer que ao longo dos diversos estratos da tradiccedilatildeo pitagoacuterica as concep-

ccedilotildees dessa imortalidade deviam diferenciar-se ateacute significativamente Em segundo lu-

gar por consequecircncia do primeiro percurso identificou-se ser preciso verificar de que

maneira a recepccedilatildeo da teoria por parte das suas fontes mais tardias contribuiu para a

construccedilatildeo por meio dela da categoria pitagorismo Os testemunhos de Xenoacutefanes

Heraacuteclito Iacuteon e Empeacutedocles revelam ainda que com tonalidades diferentes uma carac-

teriacutestica incomum da figura histoacuterica de Pitaacutegoras ligada fundamentalmente agrave sua capa-

cidade de reconstruir a histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo isto eacute de definir os movimen-

tos da metempsicose da alma em sua palingecircnese Esses testemunhos sugerem que a

372 Alesse (2000 409-411) sugere que se ampliarmos o sentido do verbo ἐνδύοmicroαι para o acircmbito semacircn-tico do vestir que tambeacutem lhe pertence o verbo apontaria imediatamente para uma ampla seacuterie de ima-gens do corpo como veste da alma presente tanto nos escritos platocircnicos (Phaed 86e-88b) como no fr 126 de Empeacutedocles Veste que acaba por ter o sentido tambeacutem de tumba no interior da tradiccedilatildeo do corpo como tumba da alma proacuteximo agrave sensibilidade oacuterfica

172

metempsicose deveria ser uma teoria jaacute bastante antiga correspondente ao estrato pro-

topitagoacuterico

Platatildeo e sua obra foram identificados como lugares decisivos para o exerciacutecio

dos dois percursos hermenecircuticos acima apontados De maneira especial por trazer agrave

tona a vexata quaestio das relaccedilotildees entre pitagorismo e orfismo O estudo das referecircn-

cias a este segundo movimento na obra platocircnica de maneira especial nas paacuteginas que

dizem respeito agraves teorias da imortalidade da alma delineou um esquema historiograacutefico

preciso pelo qual Platatildeo estaria atingindo a teorias oacuterficas sim mas mediadas pelo pi-

tagorismo Pressuposto desta tese eacute que o pitagorismo seja considerado agrave maneira de um

movimento reformador em sentido intelectualista e aristocraacutetico do orfismo como tal

Sinal inequiacutevoco desta mediaccedilatildeo pitagoacuterica eacute a moralizaccedilatildeo da metempsicose Tanto a

proposta platocircnica de uma hierarquia das encarnaccedilotildees como tambeacutem sua etimologia

antes semacircntica e depois soterioloacutegica do mote oacuterfico socircma-secircma apontam para uma

dependecircncia em sua obra da transposiccedilatildeo das teorias da imortalidade da tradiccedilatildeo pita-

goacuterica Dessa forma tambeacutem Platatildeo torna-se fonte confiaacutevel da existecircncia de uma teoria

protopitagoacuterica da alma e de uma relaccedilatildeo estreita entre esta mesma teoria e seu caldo de

origem oacuterfico Relaccedilatildeo esta que foi descrita como de exegese mito-loacutegica que o pitago-

rismo operaria sobre as tradiccedilotildees oacuterficas agrave maneira do papiro Derveni Ainda que cen-

tral para a proacutepria concepccedilatildeo eacutetica de Platatildeo natildeo deve ser diminuiacuteda a importacircncia da

imortalidade da alma e de sua metempsicose mesmo para sua teoria do conhecimento a

anamnese ligada fundamentalmente ao exerciacutecio da memoacuteria remete diretamente para

as praacuteticas da historiacutea da alma e do conhecimento de sua palingecircnese que como se

dizia acima satildeo atribuiacutedas a Pitaacutegoras jaacute por testemunhos a ele contemporacircneos Em

suma Platatildeo revelando suas diacutevidas para com o orfismo acaba por apontar diretamente

para aquele blending filosoacutefico que o pitagorismo deve ter desenvolvido a partir do pri-

meiro

Enquanto os testemunhos de Heroacutedoto Isoacutecrates Demoacutecrito e as lendas sobre a

imortalidade e as mortes aparentes natildeo permitem soacutelidas conclusotildees do ponto de vista

filoloacutegico e historiograacutefico encontra-se em Aristoacuteteles o testemunho mais expliacutecito da

existecircncia de uma teoria protopitagoacuterica da metempsicose Em siacutentese o uso do termo

myacutethoi para referir-se a estas doutrinas pitagoacutericas da alma sugere que Aristoacuteteles as

considerasse suficientemente antigas e portanto com toda probabilidade protopitagoacuteri-

cas O leacutexico aristoteacutelico acaba por apontar no protopitagorismo a fonte das doutrinas

173

sobre a imortalidade da alma e sua transmigraccedilatildeo de fato em relaccedilatildeo agraves doutrinas ma-

temaacuteticas que dizem respeito a outro momento do pitagorismo aquele normalmente

identificado por Filolau e Arquitas no V seacuteculo aEC Aristoacuteteles natildeo se refere jamais a

mitos

Eacute a essas doutrinas matemaacuteticas ilustres ausentes no resumo das doutrinas mais

ceacutelebres de Porfiacuterio com o qual comeccedilamos este capiacutetulo que dedicaremos nossa aten-

ccedilatildeo no quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Antes disso eacute certamente o caso de anotar aqui que atribuir uma teoria da me-

tempsicose ao protopitagorismo significa do ponto de vista filosoacutefico muito mais do

que simplesmente reconhecer um diaacutelogo deste uacuteltimo com a cultura oacuterfica de seu tem-

po

Pois em si mesma a teoria da transmigraccedilatildeo da alma imortal pressupotildee o outro

argumento citado pelo resumo inicial de Porfiacuterio isto eacute a teoria do parentesco univer-

sal373 Essa teoria jaacute estaacute implicada tambeacutem no fragmento de Empeacutedocles acima citado

(31 B129 DK) e constitui natildeo somente consequecircncia loacutegica da proacutepria teoria da me-

tempsicose mas representa uma lei geral do funcionamento do cosmo que abraccedila o

passado e o futuro seres humanos e outros seres viventes em uma explicaccedilatildeo que quer

ser uacutenica e coerente do funcionamento da vida no universo Essa doutrina por ter os

atributos de uma explicaccedilatildeo totalizante e estar baseada em uma concepccedilatildeo do cosmo e

da vida como eternos pode certamente ser considerada como uma genuiacutena expressatildeo

daquele periacuteodo da histoacuteria da filosofia que se convencionou chamar de preacute-socraacutetico

373 Cf Delatte (1992 175) para as citaccedilotildees desta doutrina no interior da literatura antiga

174

CAPIacuteTULO QUARTO

NUacuteMEROS

A passagem de Porfiacuterio citada anteriormente com a qual comeccedilou o terceiro ca-

piacutetulo resumindo aquelas que a tradiccedilatildeo passaraacute a considerar como doutrinas centrais

do protopitagorismo concentra-se quase que exclusivamente nas teorias da imortalida-

de Natildeo se faz nenhuma referecircncia ao outro grande acircmbito doutrinaacuterio cuja origem a

tradiccedilatildeo atribui ao pitagorismo isto eacute aquele da matemaacutetica

A ausecircncia dessa referecircncia eacute significativa para a compreensatildeo dos caminhos de

definiccedilatildeo de uma categoria historiograacutefica como aquela do pitagorismo que ao contraacute-

rio depende amplamente dessa ligaccedilatildeo com os nuacutemeros Ela sugere a necessidade de

uma consideraccedilatildeo mais atenta da histoacuteria da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de uma

teoria matemaacutetica ou de alguma relaccedilatildeo com o estudo dos nuacutemeros

Como no caso do capiacutetulo terceiro dedicado agraves teorias da imortalidade as paacutegi-

nas a seguir seratildeo tecidas a partir de um lado da busca por um complexo doutrinaacuterio

que corresponda a uma teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica por outro lado acompanhando a

construccedilatildeo da categoria do pitagorismo a partir da tradiccedilatildeo de seu interesse pela mate-

maacutetica em geral

Natildeo por acaso conforme se anotava anteriormente no interior da discussatildeo so-

bre o testemunho uacutenico de Aristoacuteteles (17) a tradiccedilatildeo interpretativa certamente enca-

beccedilada em tempos mais recentes por Frank (1923) acostumou-se a considerar toda a

matemaacutetica pitagoacuterica como uma invenccedilatildeo acadecircmica posterior portanto aos mesmos

fragmentos de Filolau que devem eles mesmos ser considerados espuacuterios Como seraacute

visto ao longo destas paacuteginas a soluccedilatildeo para a questatildeo central aqui proposta dependeraacute

exatamente de uma reavaliaccedilatildeo dos fragmentos de Filolau tanto do ponto de vista histo-

riograacutefico isto eacute do lugar que o testemunho destes representa para a definiccedilatildeo da cate-

goria pitagorismo como tambeacutem do ponto de vista teoreacutetico isto eacute de qual seja a ma-

temaacutetica neles contida

Longe da confianccedila que Zeller depositava na possibilidade de resumir as doutri-

nas do pitagorismo na teoria pela qual o nuacutemero seria a essecircncia de todas as coisas (jun-

to com as doutrinas da harmonia do fogo central e das esferas) todas elas significati-

175

vamente presentes nos fragmentos de Filolau a criacutetica contemporacircnea submeteu a uma

profunda revisatildeo o pretenso dogma aristoteacutelico pelo qual no pitagorismo ldquotudo eacute nuacute-

merordquo374 A influecircncia do ceticismo de Frank eacute tamanha ao ponto de algueacutem como

Cherniss (1935) que ndash conforme se verificou anteriormente ndash diverge dele na concep-

ccedilatildeo fundamental do valor a ser atribuiacutedo ao testemunho de Aristoacuteteles concordar ao

inveacutes neste ponto com o primeiro O consenso dos comentadores eacute especialmente im-

pressionante quando diz respeito agravequele que consideramos como um dos loci fundamen-

tais desse debate isto eacute o valor a ser conferido aos fragmentos de Filolau

Os fragmentos atribuiacutedos a Filolau satildeo certamente espuacuterios por eles conterem elementos que natildeo podem ser mais antigos que Platatildeo Erich Frank reuniu as evidecircncias contra os fragmentos e apesar de sua proacute-pria teoria sobre suas origens e a conclusatildeo de argumentos certamente muito fracos [] sua anaacutelise torna supeacuterfluo ter de recomeccedilar o de-vastante caso contra eles (Cherniss 1935 386)375

Mais recentemente a posiccedilatildeo de Frank e da grande maioria dos comentadores

recebeu profunda revisatildeo criacutetica por parte de autores como Burkert (1972 238-277) e

Kirk Raven e Schofield (1983 324) Especialmente significativos nesse sentido satildeo os

esforccedilos de Huffman tanto em seu artigo de 1988 quanto especialmente em sua mo-

nografia inteiramente dedicada a Filolau e aos problemas da autenticidade de seus frag-

mentos (1993) a primeira inteiramente dedicada ao filoacutesofo de Crotona depois da mo-

nografia de Boeckh de 1819376 Essa revisatildeo abre novas perspectivas hermenecircuticas e

junto com os recentes estudos de Zhmud (1989 1997) representa uma pedra angular

para a definiccedilatildeo do lugar da matemaacutetica na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo pitagoacuterica377

374 Cf para isso 11 375 Orig ldquoThe fragments attributed to Philolaus are surely spurious since they contain elements that cannot be older than Plato Erich Frank has gathered the evidence against the fragments and apart from his own theory as to their origin and his conclusion of certain very weak arguments [hellip] his analysis makes it superfluous to restate the overwhelming case against themrdquo 376 Para uma geral concordacircncia dos comentadores com o ceticismo de Frank cf entre outros Burnet (1908 279-284) e Leacutevy (1926 70ss) Natildeo eacute certamente o caso de concordar portanto com Spinelli (2003 145 n345) quando ldquodespachardquo a questatildeo da autenticidade dos fragmentos desta forma ldquoapesar do muito que jaacute se escreveu a favor e contra eles toda a argumentaccedilatildeo se encontra exposta de um modo adequado somente nos trabalhos de trecircs tratadistasrdquo Bywater Frank e Mondolfo 377 A bem da verdade eacute o caso de ressaltar que o proacuteprio Frank teria em seguida amenizado em seus escritos sucessivos uma posiccedilatildeo que por seu ceticismo extremo e de certa forma paralisador natildeo resis-tiu agraves criacuteticas dos outros comentadores De fato em 1955 deveraacute admitir que ldquoit can hardly be doubted that Pythagoras was the originator of this entire scientific development he was a rational thinker rather than an inspired mysticrdquo (1955 82) Natildeo obstante em sua resenha do livro de Von Fritz sobre a poliacutetica pitagoacuterica sua verve ceacutetica ainda aparece fortemente presente (Frank 1943)

176

41 Tudo eacute nuacutemero

411 Trecircs versotildees da doutrina pitagoacuterica dos nuacutemeros

A pergunta ldquoTudo eacute nuacutemerordquo que intitula significativamente o ceacutelebre artigo

de Zhmud na revista Phronesis de 1989 (ldquoAll is numberrdquo) inaugura uma contestaccedilatildeo

do testemunho aristoteacutelico central para a historiografia do pitagorismo segundo a qual

ldquotudo eacute nuacutemerordquo seria a definiccedilatildeo fundamental da filosofia pitagoacuterica378 Tarefa esta natildeo

certamente faacutecil especialmente quando se considera que tanto a histoacuteria da filosofia

antiga quanto aquela da matemaacutetica antiga natildeo pareceram ter muitas duacutevidas ateacute entatildeo

em relaccedilatildeo a essa mesma atribuiccedilatildeo379

E os motivos para tal confianccedila aparentemente natildeo faltam Com efeito em Aris-

toacuteteles a atribuiccedilatildeo da doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo aos pitagoacutericos recorre diversas

vezes e acaba por resumir aquela que eacute a interpretaccedilatildeo aristoteacutelica do pitagorismo

Aristoacuteteles afirma repetidamente que

1) ldquoPensavam serem os elementos dos nuacutemeros os elementos de todas as coisas

2) e que a totalidade do ceacuteu eacute harmonia e nuacutemerordquo (Met 986a3)380

3) ldquoOs nuacutemeros conforme dissemos correspondem agrave totalidade do ceacuteurdquo (Met

986a21)381

4) ldquoEles dizem que os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisasrdquo (Met 987b28)382

5) ldquoAqueles [filoacutesofos] dizem que as coisas satildeo nuacutemerordquo (Met 1083b17)383

6) ldquoFizeram os nuacutemeros serem as coisas que satildeordquo (Met 1090b23)384

378 Ainda que algumas sugestotildees nesse sentido jaacute haviam sido formuladas por Huffman (1988) em seu artigo sobre o papel do nuacutemero na filosofia de Filolau as observaccedilotildees natildeo foram declaradamente recebi-das no artigo de Zhmud (1989 292 n62) pois este foi desenvolvido paralelamente ao artigo do primeiro 379 Cf para as citaccedilotildees Heath (1921 67) Guthrie (1962 229ss) Huffman (1988 5 e 1993 57) 380 Orig ldquo τὰ τῶν ἀριθmicroῶν στοιχεῖα τῶν ὄντων στοιχεῖα πάντων ὑπέλαβον εἶναι καὶ τὸν ὅλον οὐρανὸν ἁρmicroονίαν εἶναι καὶ ἀριθmicroόνrdquo (Met 986a3) 381 Orig ldquo ἀριθmicroοὺς δέ καθάπερ εἴρηται τὸν ὅλον οὐρανόνrdquo (Met 986a21) 382 Orig ldquo οἱ δ ἀριθmicroοὺς εἶναί φασιν αὐτὰ τὰ πράγmicroαταrdquo (Met 987b28) 383 Orig ldquo ἐκεῖνοι δὲ τὸν ἀριθmicroὸν τὰ ὄντα λέγουσινrdquo (Met 1083b17) 384 Orig ldquo εἶναι microὲν ἀριθmicroοὺς ἐποίησαν τὰ ὄνταrdquo (Met 1090b23)

177

Aristoacuteteles assim por seis vezes faz os pitagoacutericos afirmarem que a realidade

como um todo (taacute oacutenta toacuten oacutelon oucircranon taacute praacutegmata) ldquoeacute nuacutemerordquo

Em contrapartida por outras sete vezes Aristoacuteteles parece sugerir que os pitagoacute-

ricos digam algo levemente distinto

1) ldquoNatildeo haacute outro nuacutemero aleacutem do nuacutemero pelo qual estaacute constituiacutedo o mundordquo

(Met 990a21)385

2) ldquoTambeacutem para os pitagoacutericos soacute existe o nuacutemero matemaacutetico mas eles afir-

mam que este natildeo eacute separado e que antes eacute dele que se sustentam as coisas

sensiacuteveis

3) pois eles constroem o ceacuteu inteiro com nuacutemerosrdquo (Met 1080b16-19)386

4) ldquoEacute impossiacutevel afirmar que [] os corpos satildeo feitos de nuacutemerosrdquo (Met

1083b11)387

5) ldquoFizeram os nuacutemeros serem as coisas que satildeo mas natildeo de maneira separada

e sim de nuacutemeros satildeo constituiacutedas as coisas que satildeordquo (Met 1090a23-24)388

6) ldquoFazem derivar os corpos fiacutesicos dos nuacutemerosrdquo (Met 1090a32)389

7) ldquoChegam ao mesmo resultado tambeacutem aqueles que consideram que o ceacuteu eacute

feito de nuacutemerosrdquo (De caelo 300a16)390

Nas citaccedilotildees acima o que Aristoacuteteles faz os pitagoacutericos afirmarem mais preci-

samente eacute que a constituiccedilatildeo do mundo se daria ex arithmocircn isto eacute com os nuacutemeros

como sua mateacuteria constitutiva (e portanto imanente)

Essa variabilidade da lectio aristoteacutelica marca toda sua abordagem ao pitagoris-

mo (Burkert 1972 45) A dificuldade que Aristoacuteteles demonstra em sua tentativa de

385 Orig ldquo ἀριθmicroὸν δ ἄλλον microηθένα εἶναι παρὰ τὸν ἀριθmicroὸν τοῦτον ἐξ οὗ συνέστηκεν ὁ κόσmicroοςrdquo (Met 990b21) 386 Orig ldquo καὶ οἱ Πυθαγόρειοι δ ἕνα τὸν microαθηmicroατικόν πλὴν οὐ κεχωρισmicroένον ἀλλ ἐκ τούτου τὰς αἰσθη-τὰς οὐσίας συνεστάναι φασίν τὸν γὰρ ὅλον οὐρανὸν κατασκευάζουσιν ἐξ ἀριθmicroῶνrdquo (Met 1080b16-19) 387 Orig ldquo ὸ δὲ τὰ σώmicroατα ἐξ ἀριθmicroῶν εἶναι συγκείmicroενα [] ἀδύνατόν ἐστινrdquo (Met 1083b11) 388 Orig ldquo εἶναι microὲν ἀριθmicroοὺς ἐποίησαν τὰ ὄντα οὐ χωριστοὺς δέ ἀλλ ἐξ ἀριθmicroῶν τὰ ὄνταrdquo (Met 1090a23-24) 389 Orig ldquo ποιεῖν ἐξ ἀριθmicroῶν τὰ φυσικὰ σώmicroαταrdquo (Met 1090a32) 390 Orig ldquo Τὸ δ αὐτὸ συmicroβαίνει καὶ τοῖς ἐξ ἀριθmicroῶν συντιθεῖσι τὸν οὐρανόνrdquo (De caelo 300a16) Obser-va com razatildeo Huffman (1988 5 n15 1993 57 n2) que Aristoacuteteles inclui nestes tambeacutem os atomistas

178

expressar nos termos de sua filosofia as doutrinas pitagoacutericas jaacute foi notada anterior-

mente em relaccedilatildeo agrave questatildeo da alma (38) Natildeo diferentemente aqui a apresentaccedilatildeo da

doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo por Aristoacuteteles eacute no limite contraditoacuteria e apresenta basi-

camente trecircs diferentes significados391 Para aleacutem da primeira versatildeo que se refere agrave

identificaccedilatildeo fundamental dos nuacutemeros com os objetos sensiacuteveis duas outras versotildees

satildeo fornecidas por Aristoacuteteles

A segunda delas eacute a da identificaccedilatildeo dos princiacutepios dos nuacutemeros com os princiacute-

pios das coisas que satildeo

Os assim chamados pitagoacutericos satildeo contemporacircneos e ateacute mesmo an-teriores a estes filoacutesofos [Leucipo e Demoacutecrito] Eles por primeiros aplicaram-se agraves matemaacuteticas fazendo-as progredir e nutridos por e-las acreditaram que os princiacutepios delas eram os princiacutepios de todos os seres (Met 985b23-26)392

Essa versatildeo pode ser aproximada daquela de Met 986a3 citada anteriormente

que no lugar de archaiacute refere-se a stoicheacuteia

A terceira eacute a da imitaccedilatildeo dos nuacutemeros pelos objetos reais na ceacutelebre passagem

em que eacute desenhado um paralelismo com a concepccedilatildeo platocircnica da participaccedilatildeo

Os pitagoacutericos dizem que os seres subsistem por imitaccedilatildeo dos nuacuteme-ros Platatildeo ao contraacuterio diz por participaccedilatildeo mudando apenas o no-me De todo modo tanto uns como o outro descuidaram igualmente de indicar o que significa participaccedilatildeo e imitaccedilatildeo das ideias (Met 987b11-14) 393

A primeira versatildeo pela qual ldquoos nuacutemeros satildeo as coisasrdquo eacute evidentemente con-

traditoacuteria com as outras duas Cherniss (1935 387) anota com razatildeo que Aristoacuteteles

procura conciliar esta primeira versatildeo com a segunda aqui citada pela qual os nuacutemeros

seriam princiacutepios de todas das coisas O sucesso de sua tentativa depende de ele forccedilar

uma teoria da derivaccedilatildeo da realidade do nuacutemero um que todavia aleacutem de natildeo existir

391 Reproduzem essa mesma triparticcedilatildeo Cherniss (1935 386) Zhmud (1989 284-286) e Huffman (1993 60) 392 Orig ldquoἘν δὲ τούτοις καὶ πρὸ τούτων οἱ καλούmicroενοι Πυθαγόρειοι τῶν microαθηmicroάτων ἁψάmicroενοι πρῶτοι ταῦτά τε προήγαγον καὶ ἐντραφέντες ἐν αὐτοῖς τὰς τούτων ἀρχὰς τῶν ὄντων ἀρχὰς ᾠήθησαν εἶναι πάντ-ωνrdquo (Met 985b 23-26) 393 Orig ldquo οἱ microὲν γὰρ Πυθαγόρειοι microιmicroήσει τὰ ὄντα φασὶν εἶναι τῶν ἀριθmicroῶν Πλάτων δὲ microεθέξει τοὔνο-microα microεταβαλών τὴν microέντοι γε microέθεξιν ἢ τὴν microίmicroησιν ἥτις ἂν εἴη τῶν εἰδῶν ἀφεῖσαν ἐν κοινῷ ζητεῖνrdquo (Met 987b11-14)

179

como tal nas fontes aparentemente confunde a cosmologia pitagoacuterica com a teoria dos

nuacutemeros (Cherniss 1935 39) Tentativa esta que o proacuteprio Aristoacuteteles parece reconhe-

cer como falimentar quando afirma

Esses filoacutesofos tambeacutem natildeo explicam de que modo os nuacutemeros satildeo causas das substacircncias e do ser Satildeo causas enquanto limites das gran-dezas e do mesmo modo como Eurito estabelecia o nuacutemero de cada coisa (Por exemplo determinado nuacutemero para o homem outro para o cavalo reproduzindo com pedrinhas a forma dos viventes de modo semelhante aos que remetem os nuacutemeros agraves figuras do triacircngulo e do quadrado [] (Met 1092b8-13)394

Com a referecircncia a Eurito Aristoacuteteles introduz uma teoria que foi chamada de

ldquoatomismo numeacutericordquo pela qual os nuacutemeros seriam as coisas porque os nuacutemeros (pen-

sados como pseacutephoi pedrinhas) constituem a mateacuteria pela qual as coisas satildeo feitas

Com razatildeo de fato anota Cherniss (1951 336) que dessa forma os nuacutemeros poderatildeo

identificar qualquer tipo de objeto fenomecircnico

Pensaram os nuacutemeros como grupos de unidades sendo as unidades pontos materiais entre aquilo que eacute ldquosoprordquo ou um ldquovaziordquo material e identificaram literalmente todos os objetos fenomecircnicos por meio de uma tal agregaccedilatildeo de pontos fossem eles divisiacuteveis ou menos Esta era mais uma materializaccedilatildeo do nuacutemero do que uma materializaccedilatildeo da natureza mas esta parecia indubitalvelmente aos pitagoacutericos a uacutenica maneira de explicar o mundo fiacutesico nos termos daquelas proposiccedilotildees genuinamente matemaacuteticas que eles haviam provado serem indepen-demente vaacutelidas (Cherniss 1951 336)395

Tannery (1887b 258ss) Cornford (1923 7 ss) e o proacuteprio Cherniss (1935

387) fascinados pela primitividade do meacutetodo atomiacutestico-numeacuterico de Eurito conside-

raram-no efetivamente antigo396 Todos seguem basicamente Frank (1923 50) e sua

394 Orig ldquo οὐθὲν δὲ διώρισται οὐδὲ ὁποτέρως οἱ ἀριθmicroοὶ αἴτιοι τῶν οὐσιῶν καὶ τοῦ εἶναι πότερον ὡς ὅροι (οἷον αἱ στιγmicroαὶ τῶν microεγεθῶν καὶ ὡς Εὔρυτος ἔταττε τίς ἀριθmicroὸς τίνος οἷον ὁδὶ microὲν ἀνθρώπου ὁδὶ δὲ ἵππου ὥσπερ οἱ τοὺς ἀριθmicroοὺς ἄγοντες εἰς τὰ σχήmicroατα τρίγωνον καὶ τετράγωνον []rdquo (Met 1092b8-13) 395 Orig ldquoNumbers they held to be groups of units the units being material points between which there is lsquobreathrsquo or a material lsquovoidrsquo and they quite literally identified all phenomenal objects with such ag-gregations of points without of course considering whether these material points were themselves di-visible or not This was rather a materialization of number than a mathematization of nature but it undoubtedly seemed to the Pythagoreans to be the only way of explaining the physical world in terms of those genuinely mathematical propositions which they had proved to be independently validrdquo 396 Cf o que foi dito acima em relaccedilatildeo ao atomismo numeacuterico como modelo fundamental do sistema cientiacutefico pitagoacuterico para Cornford (15)

180

hipoacutetese pela qual a teoria teria sido emprestada por Arquitas do mesmo Demoacutecrito

Natildeo por acaso a referecircncia da citaccedilatildeo de Met 985b23-26 eacute a Leucipo e Demoacutecrito isto

eacute agrave tradiccedilatildeo atomista agrave qual a teoria pitagoacuterica eacute aproximada Aleacutem disso foi vislum-

brada na polecircmica zenoniana contra a pluralidade exatamente uma referecircncia ao ato-

mismo numeacuterico dos pitagoacutericos397 Todavia Burkert (1972 285-288) e Kirk Raven e

Schofield (1983 277-278) colocaram em seacuterias duacutevidas essa atribuiccedilatildeo Os argumentos

para isso natildeo faltam398

Entretanto natildeo eacute difiacutecil imaginar que a materialidade dos nuacutemeros pitagoacutericos

possua um sentido mais arcaico sem a necessidade de postular necessariamente um

atomismo numeacuterico Sentido este bem resumido pela jaacute claacutessica definiccedilatildeo de Nuss-

baum

A noccedilatildeo de arithmos eacute sempre conectada de forma muito proacutexima com a operaccedilatildeo do contar Para que algo seja um arithmos deve ser de tal forma que possa ser contado ndash o que em geral significa que ou pos-sui partes distintas e ordenadas ou que seja uma parte distinta de um interior maior Fornecer o arithmos de algo que haacute no mundo corres-ponde a responder agrave pergunta ldquoquantosrdquo deste E quando o grego res-ponde ldquodoisrdquo ou ldquotrecircsrdquo ele natildeo considera que esteja introduzindo uma nova entidade e sim que esteja separando ou medindo as entidades que jaacute estatildeo em questatildeo (Nussbaum 1979 90)399

O nuacutemero seria portanto ldquoele proacuteprio uma coisardquo (Burkert 1972 265)400

Assim a segunda concepccedilatildeo acima citada pela qual os princiacutepios dos nuacutemeros

seriam os princiacutepios de todas as coisas corresponderaacute mais facilmente agravequela que Cher-

niss (1935 390) define como uma ldquoconstruccedilatildeo aristoteacutelica da tese pitagoacutericardquo Aristoacutete-

les teria sido levado a esta siacutentese de um lado pela dificuldade de aceitar a noccedilatildeo pita-

397 Cf tambeacutem o que foi dito sobre esse ponto em 15 398 Ainda que natildeo seja o caso de referir aqui todos eles Para os argumentos contraacuterios agrave tese de Frank cf Cherniss (1935 388-389) Para os argumentos contraacuterios agrave tese da polecircmica zenoniana cf Burkert (1972 285-289) 399 Orig ldquothe notion of arithmos is always very closely connected with the operation of counting To be an arithmos something must be such as to be counted - which usually means that it must either have discrete and ordered parts or be a discrete part of a larger whole To give the arithmos of something in the world is to answer the question lsquohow manyrsquoabout it And when the Greek answers lsquotworsquo or lsquothreersquo he does not think of himself as introducing an extra entity but as dividing or measuring the entities already in questionrdquo 400 Orig ldquoIs itself a thingrdquo (Burkert 1972 265) No mesmo contexto Burkert anota com razatildeo que natildeo deve ser esquecido que o ἀριθmicroὸς possui certo ldquosom aristocraacuteticordquo que remete para aquilo que ldquocontardquo no sentido de ser importante de ldquovaler a penardquo ser contado O termo pode ser assim aproximado ao ἀρχὴ preacute-socraacutetico

181

goacuterica material de nuacutemero (aquela das pedrinhas de Eurito que devia considerar dema-

siadamente simploacuteria) por outro lado por considerar mais procedente compreender a

existecircncia dos nuacutemeros pitagoacutericos da mesma maneira como os platocircnicos tratavam

dela isto eacute considerando os aacuterithmoi como archaiacute Poreacutem com isso Aristoacuteteles faz

deslizar toda a problemaacutetica da teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica para o acircmbito acadecircmico

Com efeito Frank (1923 255) sugere que a fonte dessa ldquoincompreensatildeordquo de Aristoacuteteles

seja Espeusipo e portanto aquela parte da Academia profundamente ligada agraves tradiccedilotildees

pitagoacutericas Espeusipo seria de fato citado diretamente por Aristoacuteteles em Metafiacutesica

(1085a33) quando menciona aqueles ldquopelos quais o ponto natildeo eacute um mas semelhante ao

umrdquo isto eacute oicircon to eacuten O ponto de fato joga um papel central no trabalho de Espeusi-

po que aleacutem de estudioso de Filolau declarava abertamente ter baseado neste uacuteltimo

seus escritos Essa afirmaccedilatildeo encontra-se no fr 4 (Lang) de Espeusipo preservado por

Nicomaco como parte do livro do primeiro Sobre os nuacutemeros pitagoacutericos O mesmo

fragmento constitui a prova direta da derivaccedilatildeo acadecircmica da teoria dos princiacutepios dos

nuacutemeros Assim de fato afirmaria Espeusipo ldquoquando se considera a geraccedilatildeo o primei-

ro princiacutepio do qual se gera a grandeza eacute o um o segundo a linha o terceiro a superfiacute-

cie o quarto o soacutelidordquo (44 A13 DK Fr 4 Lang)401

Comeccedila a delinear-se tambeacutem nesse acircmbito da teoria dos nuacutemeros a onipresen-

te mediaccedilatildeo acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas que tanta parte teve na discussatildeo so-

bre a teoria pitagoacuterica da imortalidade da alma no capiacutetulo terceiro A mesma mediaccedilatildeo

seraacute reconhecida em diferentes modalidades nas paacuteginas a seguir como uma das teses

centrais para a explicaccedilatildeo da formaccedilatildeo da categoria pitagorismo tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

matemaacutetica

Eacute tambeacutem contraditoacuteria com a primeira tese a terceira isto eacute a ideia da miacutemesis

dos nuacutemeros pelos objetos reais A bem ver essa tese eacute referida por Aristoacuteteles com

precisatildeo somente uma vez (Met 987b11) no interior da passagem em que a concepccedilatildeo

pitagoacuterica eacute identificada com aquela platocircnica da participaccedilatildeo Isso faz Cherniss (1935

392) e Zhmud (1989 186) considerarem bastante provaacutevel que Aristoacuteteles esteja ten-

tando diminuir de alguma forma a originalidade da ideia de meacutethexis platocircnica apon-

401 Orig ldquo ἐν τῆι γενέσει πρώτη microὲν γὰρ ἀρχὴ εἰς microέγεθος στιγmicroή δευτέρα γραmicromicroή Τρίτη ἐπιφάνεια τέταρτον στερεόνrdquo (44 A13 DK) Cherniss (1935 391) considera a probabilidade de Aristoacuteteles ter deri-vado tambeacutem integralmente de Espeusipo a lista dos contraacuterios de Met 986a22 ainda que simplesmente como a mais bem acabada lista que estava agrave sua disposiccedilatildeo Sem negar portanto a possibilidade de exis-tirem outras listas que podiam ser originalmente pitagoacutericas

182

tando ao mesmo tempo para Aristoxeno cujo antagonismo com Platatildeo eacute bastante ates-

tado De fato um testemunho deste uacuteltimo reproduz a mesma ideia da imitaccedilatildeo Pitaacutego-

ras ldquoassemelha todas as coisas aos nuacutemerosrdquo (fr 23 4 Werli)402

Em verdade o proacuteprio Aristoacuteteles refere-se novamente a algo bastante parecido

ao conceito de miacutemesis em outras passagens em que se refere aos nuacutemeros pitagoacutericos e

utiliza termos ligados ao campo semacircntico da semelhanccedila

Dado que justamente nos nuacutemeros mais que no fogo na terra e na aacute-gua eles achavam que viam muitas semelhanccedilas com as coisas que satildeo e que se geram por exemplo consideravam que determinada pro-priedade dos nuacutemeros era a justiccedila outra a alma e o intelecto outra ainda o momento e tempo oportuno e em poucas palavras de modo semelhante para todas as outras coisas (Met 985b27-32)403

Eacute portanto nesse sentido das homoioacutemata que deve ser compreendida a referecircn-

cia agrave miacutemesis404

Tambeacutem a citaccedilatildeo acima das pedrinhas de Eurito em outra paacutegina de Metafiacutesica

(Met 1092b8-13) pode ser remetida para o interior desse mesmo campo semacircntico da

semelhanccedila e da imitaccedilatildeo Alexandre de Afrodiacutesia por sua vez em seu comentaacuterio agrave

Metafiacutesica de Aristoacuteteles explicita o raciociacutenio que teria levado agrave definiccedilatildeo da seme-

lhanccedila da justiccedila com o nuacutemero quatro

Partindo do pressuposto de que o caraacuteter especiacutefico da justiccedila seja a proporcionalidade e a igualdade e percebendo que esta propriedade estaacute presente nos nuacutemeros por este motivo os pitagoacutericos diziam que a justiccedila eacute o primeiro nuacutemero quadrado [] Este nuacutemero alguns dizi-am que fosse o quatro pois eacute o primeiro quadrado e tambeacutem porque eacute dividido em partes iguais e eacute igual ao produto destas (de fato eacute duas vezes dois) (In Metaph 38 10 Hayduck) 405

402 Orig ldquo πάντα τὰ πράγmicroατα ἀπεικάζων τοῖς ἀριθmicroοῖςrdquo (Aristox fr 234 Werli) 403 Orig ldquo ἐν δὲ τούτοις ἐδόκουν θεωρεῖν ὁmicroοιώmicroατα πολλὰ τοῖς οὖσι καὶ γιγνοmicroένοις microᾶλλον ἢ ἐν πυρὶ καὶ γῇ καὶ ὕδατι ὅτι τὸ microὲν τοιονδὶ τῶν ἀριθmicroῶν πάθος δικαιοσύνη τὸ δὲ τοιονδὶ ψυχή τε καὶ νοῦς ἕτερον δὲ καιρὸς καὶ τῶν ἄλλων ὡς εἰπεῖν ἕκαστον ὁmicroοίωςrdquo (Met 985b27-32) 404 Cf para esta aproximaccedilatildeo Centrone (1996 107-108) 405 Orig ldquo τῆς microὲν γὰρ δικαιοσύνης ἴδιον ὑπολαmicroβάνοντες εἶναι τὸ ἀντιπεπονθός τε καὶ ἴσον ἐν τοῖς ἀριθmicroοῖς τοῦτο εὑρίσκοντες ὄν διὰ τοῦτο καὶ τὸν ἰσάκις ἴσον ἀριθmicroὸν πρῶτον ἔλεγον εἶναι δικαιοσύνην (hellip) τοῦτον δὲ οἱ microὲν τὸν τέσσαρα ἔλεγον ἐπεὶ πρῶτος ὢν τετράγωνος εἰς ἴσα διαιρεῖται καὶ ἔστιν ἴσος (δὶς γὰρ δύο)rdquo (In Metaph 38 10 Hayduck)

183

Burkert (1972 44-45) anota que esse conceito de miacutemesis deve corresponder

senatildeo na terminologia utilizada por Aristoacuteteles ao menos em seu sentido a uma teoria

preacute-socraacutetica e natildeo jaacute platocircnica A ideia fundamental da magia ou da medicina hipocraacute-

tica eacute aquela de uma correspondecircncia ldquode matildeo duplardquo entre duas entidades (o corpo e o

cosmo a arte e a natureza) No caso especiacutefico simplesmente reafirmaria uma corres-

pondecircncia uma imitaccedilatildeo do cosmo com o nuacutemero e vice-versa O mesmo Cornford

(1922) considerava essa ideia da imitaccedilatildeo muito antiga por causa exatamente de sua

caracteriacutestica miacutestica que o comentador aproxima diretamente por meio da etimologia

(miacutemos = ator) aos cultos dionisiacuteacos e ao fato de os protagonistas dos cultos desempe-

nharem o papel do proacuteprio deus

A esta altura ldquosemelhanccedila com deusrdquo equivale a uma identificaccedilatildeo temporaacuteria Induzida pelos sentidos orgiaacutesticos pelo ecircxtase baacutequico ou pelas festas sacramentais oacuterficas eacute o aperitivo da reuniatildeo final No pitagorismo a concepccedilatildeo eacute mitigada Apolinizada O sentido natildeo eacute mais ecircxtase ou sacramento mas teoria contemplaccedilatildeo intelectual da ordem universal (Cornford 1922 143)406

Contra essas hipoacuteteses todavia joga o fato de Aristoacuteteles a bem ver natildeo indicar

a imitaccedilatildeo de praacutegmata e sim realidades abstratas como a justiccedila o tempo etc407 De

toda forma ainda que se possa conceder que Aristoacuteteles esteja se referindo aqui a uma

doutrina do protopitagorismo de estilo acusmaacutetico eacute certamente o caso de anotar que

na paacutegina sucessiva (Met 987b29) exclui veementemente que os pitagoacutericos concor-

dem com Platatildeo com o papel de meacutethexis atribuiacutedo aos nuacutemeros por este uacuteltimo A

ldquoprecisaccedilatildeordquo de Aristoacuteteles sugeriria neste caso que uma intenccedilatildeo polecircmica antiaca-

decircmica devesse ser talvez a mais apropriada para explicar este apax da referecircncia agrave miacute-

mesis408

406 Orig ldquoAt that stage likeness to God amounts to temporary identification Induced by orgiastic means by Bacchic ecstasy or Orphic sacramental feast it is a foretaste of the final reunion In Pythagoreanism the conception is toned down Apollinized The means is no longer ecstasy or sacra-ment but theoria intellectual contemplation of the universal orderrdquo Concorda com a possibilidade desta origem ldquomiacutestica dos nuacutemerosrdquo tambeacutem Casertano (2009 67) 407 Burnet (1908 119) por outro lado alerta que natildeo se devem levar a seacuterio essas passagens ldquoThey are mere sports of the analogical fancyrdquo 408 Este eacute tambeacutem um dos motivos que obriga a descartar a hipoacutetese de Burnet (1908 355) e Taylor (1911178s) retomada tambeacutem por Delatte (1922a 108ss) pela qual o pitagorismo seria o inventor da teoria das formas platocircnicas Assim Burnet ldquothe doctrine of lsquoformsrsquo (eiacutede ideiacuteai) originally took shape in Pythagorean circles perhaps under Sokratic influencerdquo (1908 355)

184

Eacute possiacutevel concluir que as trecircs versotildees da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo (aquela da

identificaccedilatildeo dos nuacutemeros como princiacutepios e esta uacuteltima da imitaccedilatildeo) aparecem articu-

ladas de maneira imperfeita e no limite contraditoacuterias em sua tradiccedilatildeo no interior da

obra aristoteacutelica

Todavia eacute bastante significativo que Aristoacuteteles natildeo mencione em algum mo-

mento que as trecircs diferentes lectiones do ldquotudo eacute nuacutemerordquo devam pertencer a diferentes

grupos ou momentos no interior do pitagorismo De certa forma parece ainda conside-

raacute-las senatildeo coerentes entre si ao menos conciliaacuteveis e as refere todas indistintamente

aos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo409

O reconhecimento disso levou diversos autores a adotarem soluccedilotildees conciliatoacute-

rias para o problema In primis o proacuteprio Zeller Ainda que considerasse que o testemu-

nho de Aristoacuteteles devesse ser tomado com todos os cuidados do caso sua proximidade

histoacuterica com as doutrinas pitagoacutericas deveria garantir de certa forma a procedecircncia da

especial articulaccedilatildeo destas neste contidas Assim para Zeller

Natildeo haacute duacutevida de que na exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles devemos procurar antes de tudo e somente sua proacutepria maneira de ver e natildeo um imedia-to testemunho da realidade de fato todavia mesmo neste caso [da teo-ria numeacuterica] tudo fala a favor de um reconhecimento do fato de que esta sua maneira de ver estivesse fundamentada sobre um direto co-nhecimento da efetiva conexatildeo das ideias proacuteprias do pitagorismo (Zeller e Mondolfo 1932 486)410

Frank (1923 77 n196) e Rey (1933 116) exatamente para exorcizar a possibili-

dade de incompatibilidade delas imagina a possibilidade de Aristoacuteteles ter compreendi-

do as trecircs versotildees como derivadas logicamente uma da outra De maneira especial Rey

elabora uma proposta conciliatoacuteria entre a versatildeo dos nuacutemeros serem as coisas e aquela

dos nuacutemeros imitarem as coisas os nuacutemeros seriam as coisas quando se considera sua

natureza e imitariam as coisas quando se considerassem suas propriedades (1933

409 Por esses motivos eacute improcedente do ponto de vista metodoloacutegico utilizar exclusivamente Aristoacutete-les para afirmar qualquer coisa sobre uma pretensa concepccedilatildeo matemaacutetica no protopitagorismo 410 Orig ldquonon vacutehaacute dubbio che nella esposizione di Aristotele noi dobbiam cercare anzi tutto e soltanto il suo proprio modo di vedere e non unacuteimmediata testimonianza sulla realtagrave di fatto Tuttavia anche in questo caso tutto parla in favore di un riconoscimento del fatto che questo suo modo di vedere si fondasse su una diretta conoscenza della effettiva connessione dacuteidee propria del pitagorismordquo

185

356ss)411 Mais elaborada eacute a argumentaccedilatildeo conciliatoacuteria de Raven (1948 43-65) pela

qual

Supor como muitos comentadores parecem supor que Aristoacuteteles fi-cou totalmente confuso sobre isso natildeo somente levaria para a porta de-le um grande peso mas tambeacutem demoliria com isso a base central sobre a qual qualquer reconstruccedilatildeo confiaacutevel do pitagorismo deve ser erigida (Raven 1948 63)412

Em aberta polecircmica com Cornford (1923 10) e sua ideia de que Aristoacuteteles esta-

ria aqui apresentando sem distingui-los dois momentos do pitagorismo (um primeiro

ligado agrave ideia de uma materialidade dos nuacutemeros um segundo em que os pitagoacutericos

estariam mais preocupados com a composiccedilatildeo numeacuterica da realidade) Raven propotildee

ao contraacuterio uma radical indissociabilidade do uso dual dos nuacutemeros no interior do pi-

tagorismo antigo413 Aristoacuteteles estaria assim simplesmente recebendo deste uacuteltimo uma

concepccedilatildeo da natureza como igual aos nuacutemeros no sentido de constituir uma agregaccedilatildeo

de unidades espaciais (1948 62) Contudo os nuacutemeros natildeo constituiriam somente a

mateacuteria da realidade e sim estariam tambeacutem agrave origem das diferenccedilas qualitativas que

distinguem uns objetos materiais dos outros Somente assim seria possiacutevel pensar tanto

a versatildeo da imitaccedilatildeo como aquela dos nuacutemeros dos princiacutepios como articulada com a

primeira versatildeo414

Eacute certamente possiacutevel ao menos afirmar que a ideia de miacutemesis atribuiacuteda aos pi-

tagoacutericos por Aristoacuteteles natildeo tem muito a compartilhar com a paralela concepccedilatildeo platocirc-

nica de miacutemesis pela qual as realidades fenomecircnicas imitam no sentido de serem feitas

ldquoagrave semelhanccedila derdquo outras realidades suprasensiacuteveis de niacutevel ontoloacutegico superior isto eacute

as formas E se essa observaccedilatildeo eacute correta o que Aristoacuteteles deve atribuir aos pitagoacuteri-

cos quando fala da miacutemesis natildeo pode ser outra coisa senatildeo uma geneacuterica correspon-

decircncia entre as coisas e as relaccedilotildees numeacutericas que as explicam que as tornam inteligiacute-

veis Resume bem a questatildeo Casertano 411 Para criacuteticas agrave proposta de Frank e Rey cf tanto Cherniss (1935 386) como Burkert (1972 44 n86) 412 Orig ldquoTo suppose as so many scholars appear to suppose that Aristotle was hopelessly confused about it is not only to lay a very serious charge at his door but also incidentally to demolish the main basis upon which any reliable reconstruction of Pythagoreanism must be erectedrdquo 413 Cornford afirma de fato que ldquoAristotle himself draws attention to the two diverse ways of mak-ing numbers the causes of substances and being which in my view are characteristic of the two different schools of Pythagoreansrdquo(Cornford 1923 10) 414 Sobre a mesma ideia cf tambeacutem Guthrie (1962 230s)

186

Inteligibilidade imanente portanto e natildeo trascendente agraves coisas mes-mas Eacute por este motivo que as foacutermulas pitagoacutericas ldquoas coisas satildeo nuacute-merosrdquo e ldquoas coisas assemelham-se aos nuacutemerosrdquo natildeo estatildeo em con-traste ao contraacuterio satildeo expressotildees de uma mesma intuiccedilatildeo fundamen-tal que eacute aquela da homogeneidade entre realidade e pensamento en-tre as leis da realidade e as leis do pensamento compreender as coisas eacute essencialmente espelhaacute-las reproduzir em niacutevel mental aquela estru-tura plenamente inteligiacutevel que eacute proacutepria da realidade material (Ca-sertano 2009 65)415

Apesar de estar clara portanto aquela que podia ter sido a intuiccedilatildeo fundamental

dos pitagoacutericos isto eacute a possibilidade de compreender a natureza pelos nuacutemeros o fato

eacute que a tentativa de conciliaccedilatildeo aristoteacutelica entre as diferentes versotildees da teoria natildeo pa-

receu de toda forma bem-sucedida

Se aleacutem do mais considera-se que a versatildeo principal da doutrina pitagoacuterica a-

quela da identidade do nuacutemero com as realidades obedece diretamente agrave intenccedilatildeo po-

lecircmica de Aristoacuteteles com o platonismo levando-o a considerar o aacuterithmos pitagoacuterico

como causa material em oposiccedilatildeo agrave militacircncia platocircnica em favor da causa formal

(Cherniss 1935 360) torna-se difiacutecil definir indiscutivelmente qual seria o valor histo-

riograacutefico da doutrina pitagoacuterica do ldquotudo eacute nuacutemerordquo416

412 Duas soluccedilotildees

A esta questatildeo do valor da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica ldquotudo eacute nuacutemerordquo como descri-

ccedilatildeo vaacutelida da filosofia pitagoacuterica foram propostas duas soluccedilotildees

A primeira parte da contestaccedilatildeo radical da validade do testemunho aristoteacutelico

chegando a simplesmente negar que ao protopitagorismo corresponda uma doutrina do

nuacutemero tout court Os motivos para essa contestaccedilatildeo natildeo faltam e podem ser resumidos

fundamentalmente no paradoxo de uma doutrina que ainda que amplamente atestada

415 Orig ldquoIntelligibilitagrave immanente appunto e non trascendente le cose stesse Ecco perchegrave le formule pitagoriche lsquole cose sono numerirsquo e lsquole cose somigliano ai numerirsquo non sono in contrasto ma sono espressioni di una medesima intuizione fondamentale che egrave quella dellacuteomogeneitagrave tra realtagrave e pensiero tra leggi della realtagrave e leggi del pensiero capire le cose egrave essenzialmente rispecchiarle riprodurre a livello mentale quella struttura pienamente intelligibile che egrave propria della realtagrave materialerdquo 416 Centrone (1996 105) anota neste sentido que ldquolacuteinteresse [di Aristotele] per il pitagorismo i cui pregi in definitiva consistono solo nellacuteassenza dei difetti propri della filosofia dei platonici non egrave soverchiante ed egrave anzi determinado proprio dalle affinititagrave con le dottrine platonicherdquo

187

na principal fonte para o pitagorismo antigo isto eacute Aristoacuteteles todavia natildeo parece en-

contrar confirmaccedilatildeo nos testemunhos mais antigos Eacute desse paradoxo que Zhmud

(1989) no artigo citado anteriormente comeccedila sua argumentaccedilatildeo Eacute certamente o caso

de segui-la passo a passo

O horizonte em que se insere a reflexatildeo de Zhmud eacute aquele de uma histoacuteria da

tradiccedilatildeo que define a categoria pitagorismo a partir de uma identificaccedilatildeo doutrinaacuteria

Nesse sentido a preocupaccedilatildeo fundamental do autor eacute aquela de contrastar a impressatildeo

que o texto aristoteacutelico parece deixar de que a definiccedilatildeo de ldquoalgueacutem que fala de nuacuteme-

rosrdquo seria a melhor definiccedilatildeo de um pitagoacuterico Conforme jaacute foi observado acima (22)

o criteacuterio identitaacuterio revelaria quanto de circular quanto de petitio principii haveria

nessa utilizaccedilatildeo do criteacuterio dos nuacutemeros para identificar um pitagoacuterico (Zhmud 1989

272) De fato apesar de diversas tentativas a esse respeito nenhum historiador ndash afirma

Zhmud ndash teve sucesso na busca de qualquer doutrina sobre os nuacutemeros nas fontes preacute-

aristoteacutelicas sobre o pitagorismo (Zhmud 1989 272) Por outro lado eacute o caso de reme-

ter novamente ao que se dizia acima (22) em relaccedilatildeo ao cataacutelogo de Jacircmblico que en-

cerra a Vida Pitagoacuterica (267) Em nenhum momento o cataacutelogo revela algum criteacuterio

doutrinaacuterio para a inclusatildeo dos 218 nomes de pitagoacutericos nele contidos grande parte

deles eacute laacute inserida com base em uma imprecisa aderecircncia ao biacuteos pitagoacuterico De fato em

relaccedilatildeo mais diretamente agrave questatildeo (aristoteacutelica) dos nuacutemeros como archaiacute entatildeo es-

tranharia a presenccedila de um pitagoacuterico como Hipaso que conforme os fragmentos que

dele nos resultaram possuiacutea uma concepccedilatildeo material da archeacute (como fogo cf 18 B7

DK) bem distante portanto da doxografia aristoteacutelica de Meacutetafiacutesica

A partir desses argumentos Zhmud admite somente duas possibilidades de solu-

ccedilatildeo da questatildeo ou a expressatildeo ldquotudo eacute nuacutemerordquo pertenceria a um antigo e secreto ensi-

namento do ldquodivinordquo Pitaacutegoras do qual todavia natildeo se teria alguma referecircncia nas fon-

tes mais antigas (e que portanto deveria ter sido revelado diretamente a Aristoacuteteles) ou

esta expressatildeo assim como a doutrina a ela colegada natildeo seria de fato de alguma ma-

neira uma doutrina pitagoacuterica417 Esta segunda possibilidade corresponde a uma jaacute claacutes-

sica posiccedilatildeo de Burnet pela qual ldquoo proacuteprio Pitaacutegoras natildeo teria deixado nenhuma dou-

417 Assim comenta Zhmud ldquoIf we do not wish to think that the central dogma of Pythagorean philosophy was secret then it would be quite reasonable to suppose either this dogma was not central or it was not a dogma at all Only very few of those who write about Pythagorean philosophy arrive at such a para-doxical conclusionrdquo (Zhmud 1989 275) Sobre a praacutetica do segredo na comunidade pitagoacuterica mais anti-ga cf acima (23)

188

trina desenvolvida sobre o tema enquanto os pitagoacutericos do quinto seacuteculo natildeo se inte-

ressaram em acrescentar nada deste tipo agrave tradiccedilatildeo da escolardquo (1908 119)418

Ainda que natildeo deva maravilhar depois dos estudos acima mencionados de

Cherniss (17) que o meacutetodo ldquohistoriograacuteficordquo aristoteacutelico tenha a liberdade de operar

reformulaccedilotildees e traduccedilotildees em seus mesmos termos das doutrinas de seus predecessores

eacute todavia o caso de perguntar-se o que levaria Aristoacuteteles a postular exatamente essa

doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo que na forma atual natildeo devia ser pitagoacuterica

O que foi dito ateacute aqui pode jaacute sugerir um primeiro esboccedilo de resposta a essa

pergunta de certa forma Aristoacuteteles eacute confrontado com grande diversidade de fontes

pitagoacutericas tanto antigas (Hipaso) quanto a ele mais proacuteximas (Ecfanto Filolau Arqui-

tas) Contudo para as finalidades internas agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles conforme se viu

acima essa pletora de pitagoacutericos precisava ser reconduzida a um denominador comum

a uma escola que de certa forma coubesse no percurso histoacuterico-teoreacutetico que Aristoacutete-

les pretendia desenhar em sua doxografia

Sem essa reduccedilatildeo aos miacutenimos termos teoacutericos de fato seria impossiacutevel inserir

os pitagoacutericos no interior do modelo agocircnico pelo qual Aristoacuteteles descreve a histoacuteria

dos predecessores (Cherniss 1935 349)419 Somente dessa forma por exemplo o archeacute

pitagoacuterico encontra seu lugar de antagonista da causa material jocircnica Ao mesmo tempo

todavia exatamente certa imprecisatildeo terminoloacutegica das fontes pitagoacutericas (da qual co-

mo vimos Aristoacuteteles parece reclamar em Met 1092b1-13) permite a inserccedilatildeo do nuacute-

mero pitagoacuterico como ao mesmo tempo precursor da causa formal platocircnica Vale pen-

sar se a reclamaccedilatildeo de Aristoacuteteles natildeo seja um blefe pois se o nuacutemero jaacute natildeo tivesse

esta dupla valecircncia bem Aristoacuteteles a teria provavelmente inventado pois ela calccedila agrave

perfeiccedilatildeo no interior de seu modelo doxograacutefico

Assim a postulaccedilatildeo de ldquotudo eacute nuacutemerordquo teria sido a soluccedilatildeo de um problema de

Aristoacuteteles e de certa forma o iniacutecio de uma longa tradiccedilatildeo que a partir de Zeller (Zel-

ler e Mondolfo 1938 435) reduziu a categoria pitagorismo aos estreitos limites dessa

doutrina metafiacutesica

418 Orig ldquoPythagoras himself left no developed doctrine on the subject while the Pythagreans of the fifth century did not care to add anything of the sort to the school traditionrdquo Da mesma ideia tambeacutem Gigon (1945 142) 419 Sobre o modelo historiograacutefico agocircnico de Aristoacuteteles cf o que foi dito acima (17)

189

Eacute a partir desse impasse hermenecircutico deixado pela soluccedilatildeo acima isto eacute da in-

venccedilatildeo aristoteacutelica de uma categoria historiograacutefica (ldquoos assim chamados pitagoacutericosrdquo)

e de um denominador comum doutrinaacuterio para esta (ldquotudo eacute nuacutemerordquo) que toma corpo

uma segunda soluccedilatildeo ao problema Essa segunda soluccedilatildeo empreende especificamente

uma reavaliccedilatildeo das fontes pitagoacutericas do seacuteculo V aEC em busca de possiacuteveis referenci-

ais histoacutericos da expressatildeo ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo de Aristoacuteteles

A comeccedilar de uma observaccedilatildeo importante a grande quantidade de referecircncias ao

pitagorismo e agrave teoria dos nuacutemeros em Aristoacuteteles revela um fato inquestionaacutevel Aris-

toacuteteles devia mesmo possuir diversos textos pitagoacutericos por assim dizer na mesa de-

le420 Algumas passagens de Aristoacuteteles sugerem que a certeza com a qual considera

inquestionaacuteveis certas afirmaccedilotildees sobre os pitagoacutericos dependa exatamente do fato de

ele ter acesso a uma suficientemente ampla literatura de autoria deles Eacute o caso da dis-

cussatildeo sobre se os pitagoacutericos considerassem o mundo gerado ou natildeo Aristoacuteteles afir-

ma ser impossiacutevel duvidar disso ldquoSe os pitagoacutericos admitem ou natildeo um processo de

geraccedilatildeo dos entes eternos eacute questatildeo sobre a qual natildeo resta duacutevidardquo (Met 1091a13)421

Da mesma forma demonstra ter absoluta certeza de que os pitagoacutericos natildeo haviam tra-

tado dos corpos sensiacuteveis ldquoNatildeo disseram absolutamente nada sobre o fogo nem sobre a

terra nem sobre os outros corposrdquo (Met 990a16-17)422

Aleacutem disso a tradiccedilatildeo informa-nos que Aristoacuteteles dedicou ao menos dois livros

aos pitagoacutericos como tais sem contar as obras dedicadas especificamente a Pitaacutegoras ou

a um o outro pitagoacuterico especiacutefico como teria sido o caso de Arquitas423 A resposta agrave

pergunta sobre quais seriam esses ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo aos quais Aristoacuteteles

quer atribuir a doutrina dos nuacutemeros depende assim em boa parte da possibilidade de

identificaccedilatildeo desses livros Contudo os uacutenicos livros dos quais temos notiacutecia pela tra-

diccedilatildeo satildeo aqueles de Filolau e Arquitas Como Aristoacuteteles parece tratar deste uacuteltimo agrave

parte e natildeo debaixo do guarda-chuva dos assim chamados o mais provaacutevel eacute que sejam

420 Concordam com isso Burkert (1972 236) Zhmud (1989 281) Huffman (199357) e Centrone (1996105) 421 Orig ldquoοἱ microὲν οὖν Πυθαγόρειοι πότερον οὐ ποιοῦσιν ἢ ποιοῦσι γένεσιν οὐδὲν δεῖ διστάζεινrdquo (Met 1091a13) 422 Orig ldquoδιὸ περὶ πυρὸς ἢ γῆς ἢ τῶν ἄλλων τῶν τοιούτων σωmicroάτων οὐδ ὁτιοῦν εἰρήκασινrdquo (Met 990a16-17) 423 Para ampla discussatildeo dessas obras e todas as referecircncias ao caso cf Burkert (1972 29 n5)

190

exatamente os livros de Filolau os textos pitagoacutericos que estavam na mesa de Aristoacutete-

les

Este segundo caminho de soluccedilatildeo seria representado portanto por Filolau

Eacute o caso de anotar ainda antes de mergulhar naquela que foi tradicionalmente

definida exatamente como ldquoa questatildeo filolaicardquo que natildeo deve maravilhar que natildeo se

chegou antes a essa mesma conclusatildeo metodoloacutegica pela qual a soluccedilatildeo do problema da

atribuiccedilatildeo da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo fosse o estudo dos fragmentos de Filolau Gran-

de parte da tradiccedilatildeo a comeccedilar pelo proacuteprio Cherniss (1935 386) conforme se acenou

acima natildeo pocircde seguir nesse sentido pois na esteira de Frank (1923) considerava os

textos de Filolau espuacuterios Somente a partir da ldquoredescobertardquo do valor de parte essenci-

al dos fragmentos de Filolau jaacute com Burkert (1972 218ss) e depois com Huffman

(1988 1993) eacute que foi possiacutevel trilhar esse caminho

A recente reavaliaccedilatildeo do valor histoacuterico dos fragmentos de Filolau permite por-

tanto novos passos hermenecircuticos anteriormente impossiacuteveis Contudo responder agrave

pergunta sobre quem seriam os pitagoacutericos na obra de Aristoacuteteles com Filolau e portan-

to com o pitagorismo do V seacuteculo aEC continua carregando seacuterias dificuldades para a

identificaccedilatildeo aristoteacutelica dos pitagoacutericos como aqueles pelos quais ldquotudo eacute nuacutemerordquo por

um simples motivo mesmo em Filolau natildeo haacute referecircncia expliacutecita a essa doutrina do

ldquotudo eacute nuacutemerordquo Chegou o momento de entrar finalmente no labirinto da questatildeo filo-

laica (pace Boeckh 1819 3) para avaliar em que medida uma soluccedilatildeo dessa questatildeo

possa se apresentar tambeacutem como soluccedilatildeo para a atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de

alguma teoria numeacuterica

413 A ldquosoluccedilatildeordquo filolaica

A questatildeo da autenticidade dos fragmentos de Filolau questatildeo-chave para a de-

finiccedilatildeo da categoria pitagorismo em geral e da questatildeo da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo de

uma teoria dos nuacutemeros de maneira especial apresenta as mesmas feituras da outra mais

ceacutelebre questatildeo aquela socraacutetica A chamada ldquoquestatildeo filolaicardquo que surge jaacute com Bo-

eckh (1819) compartilha com a mais ceacutelebre ldquoquestatildeo socraacuteticardquo a dificuldade em dis-

tinguir o que seria originalmente preacute-platocircnico (no caso especiacutefico pitagoacuterico) e o que

191

seria ao contraacuterio uma reelaboraccedilatildeo platocircnica ou acadecircmica de doutrinas anteriores424

A soluccedilatildeo da questatildeo filolaica se daraacute como se veraacute na gangorra hermenecircutica entre a

tradiccedilatildeo acadecircmica de um lado e a lectio aristoteacutelica distintas entre si por intenccedilatildeo e

meacutetodos

4131 Um livro ou trecircs livros

O primeiro problema que o comentador encontra para verificar a autentidade dos

fragmentos de Filolau eacute aquele da inconsistecircncia da tradiccedilatildeo sobre a produccedilatildeo literaacuteria

deste uacuteltimo Apesar de certa concordacircncia de que Filolau teria sido o primeiro a publi-

car por escrito as doutrinas pitagoacutericas conforme o testemunho de Demeacutetrio de Magneacute-

sia (D L VIII 84) a tradiccedilatildeo apresenta-nos ao contraacuterio duas diversas possibilidades

aquela da existecircncia de trecircs livros (o celebre tripartium) e a outra que se refere agrave exis-

tecircncia de somente um livro de Filolau

No primeiro caso o testemunho natildeo passa de uma confusatildeo tiacutepica da literatura

pseudoepigraacutefica e de maneira especial pitagoacuterica que remonta a Saacutetiro um peripateacute-

tico do seacuteculo III aEC Filolau eacute citado no interior de uma referecircncia a uma carta de Pla-

tatildeo ldquoPlatatildeo escreveu para Dion para que este comprasse dele [Filolau] os livros pitagoacute-

ricosrdquo (D L VIII 84)425 A referecircncia aqui eacute portanto agraves taacute biacuteblia pythagorikaacute que a

tradiccedilatildeo bem conhece ldquoPitaacutegoras escreveu trecircs obras Sobre a educaccedilatildeo Sobre a poliacuteti-

ca e Sobre a naturezardquo (D L VIII 6) 426

A informaccedilatildeo de que se trata de trecircs livros aparece algumas paacuteginas depois no-

vamente associada agrave figura de Filolau Este eacute considerado ndash de certa forma ndash como o

ldquoeditorrdquo do tripartitum

424 Cf para essa discussatildeo Burkert (1972 92) que afirma que ldquothe true problem of the Pythagorean tra-dition lies in Platonism for Platonizing interpretation took place of the historical realityrdquo da mesma forma Huffman (1993 23) considera que ldquowhat we have is another version of Socratic question but this time in regard to the Pythagoreansrdquo Mais uma vez a escolha platocircnica de natildeo falar em primeira pessoa escondendo-se por traacutes de suas personagens assim como o uso de citar com extrema parcimocircnia seus predecessores joga um papel decisivo para o sugir de uma questatildeo como essa 425 Orig ldquo παρὰ τούτου Πλάτων ὠνήσασθαι τὰ βιβλία τὰ Πυθαγορικὰ ∆ίωνι γράφειrdquo (D L VIII 84) 426 Orig ldquo γέγραπται δὲ τῷ Πυθαγόρᾳ συγγράmicromicroατα τρία ΠαιδευτικόνΠολιτικόν Φυσικόνrdquo (D L VIII 6) Para os testemunhos pseudoepigraacutefico sobre o tripartitum de Pitaacutegoras cf Thesleff (1965 170-172)

192

Ateacute o tempo de Filolau natildeo foi possiacutevel conhecer nenhuma doutrina pitagoacuterica este somente publicou aqueles famosos trecircs livros que Pla-tatildeo por carta mandou dizer que fossem adquiridos pelo preccedilo de cem minas (D L VIII 15)427

A referecircncia agrave carta remete ainda mais fortemente agrave pseudoepigrafia da tradiccedilatildeo

em questatildeo era bastante comum na antiguidade que um texto pseudoepigraacutefico fosse

acompanhado pela correspondecircncia de uma personagem estimada e acima literalmente

de qualquer suspeita que atestasse sua originalidade (Burkert 1972 224)

A tradiccedilatildeo dos trecircs livros de Filolau portanto deve ter derivado erroneamente

dessa memoacuteria paralela que atribuiacutea ao proacuteprio Pitaacutegoras a autoria de trecircs livros E os

motivos para isso natildeo faltavam primeiro entre todos o fato de a tradiccedilatildeo maior ter

sempre identificado contrariamente a D L (VIII 6) que Filolau teria sido o primeiro

escritor do pitagorismo

A partir de Wiersma (1942) portanto surge um novo consenso entre os histori-

adores de que devia tratar-se de um uacutenico livro428 De fato nas paacuteginas imediatamente

sucessivas o proacuteprio Dioacutegenes Laeacutercio usa significativamente a expressatildeo geacutegraphe

bibliacuteon eacuten

Escreveu um soacute livro que ndash conforme atesta Hermipo por sua vez ci-tando outro autor ndash o filoacutesofo Platatildeo tendo chegado na Siciacutelia junto a Dioniso teria comprado dos parentes de Filolau por quarenta minas alexandrinas de prata e que teria copiado no Timeu (D L VIII 85)429

A tradiccedilatildeo de Hermipo parece para todos os efeitos mais antiga Dois detalhes

confirmariam isso primeiramente o fato de natildeo precisar da atestaccedilatildeo de uma carta de

Platatildeo em segundo lugar porque a intenccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo eacute alheia agrave proacutepria questatildeo da

autenticidade dos textos Hermipo estava de fato mais interessado em atingir Platatildeo com

a acusaccedilatildeo de plaacutegio de Filolau em seu Timeu do que em vender como originalmente

pitagoacuterico o livro de Filolau Aleacutem disso a tradiccedilatildeo desse mesmo plaacutegio eacute bastante ates-

427 Orig ldquoΜέχρι δὲ Φιλολάου οὐκ ἦν τι γνῶναι Πυθαγόρειον δόγmicroα οὗτος δὲ microόνος ἐξήνεγκε τὰ διαβό-ητα τρία βιβλία ἃ Πλάτων ἐπέστειλεν ἑκατὸν microνῶν ὠνηθῆναιrdquo (D L VIII 15) Cf tambeacutem a passagem paralela de Jacircmblico (VP 199) 428 Sendo neste seguido entre outros por Maddalena (1954 169) Philip (1966 41) Burkert (1972 225) Huffman (1993 26) Centrone (1996 119) 429 Orig ldquo Γέγραφε δὲ βιβλίον ἕν ὅ φησιν Ἕρmicroιππος λέγειν τινὰ τῶν συγγραφέων Πλάτωνα τὸν φιλόσο-φον παραγενόmicroενον εἰς Σικελίαν πρὸς ∆ιονύσιον ὠνήσασθαι παρὰ τῶν συγγενῶν τοῦ Φιλολάου ἀργυρίου Ἀλεξανδρινῶν microνῶν τετταράκοντα καὶ ἐντεῦθεν microεταγεγραφέναι τὸν Τίmicroαιονrdquo (D L VIII 85)

193

tada nas fontes antigas430 Um verso satiacuterico do amargurado (amarulentus) Tiacutemon con-

firma a existecircncia da tradiccedilatildeo sobre o plaacutegio

Tu tambeacutem Platatildeo foste tomado pelo prurido do saber E deste muito dinheito em troca de um pequeno livreto E escolhendo a parte melhor aprendeste a escrever o Timeu (44 A8 DK Gell III 17 6)431

A acusaccedilatildeo contra Platatildeo de toda forma e com testemunhos externos como a-

quele de Timon agora citado pressupotildee a existecircncia senatildeo do plaacutegio ao menos do livro

de Filolau E ainda que natildeo tenha sido comprado pelo proacuteprio Platatildeo este livro devia

estar de alguma forma em Atenas agrave disposiccedilatildeo tanto de Platatildeo quanto de Aristoacuteteles432

Haacute ateacute uma confirmaccedilatildeo documental disso que vem da descoberta em 1893 do

papiro catalogado como Anocircnimo Londinense (44 A27-28 DK) O texto eacute atribuiacutedo ao

disciacutepulo de Aristoacuteteles Mecircnon e apresenta extratos de doutrinas meacutedicas atribuiacutedas a

Filolau

Filolau de Crotona afirma que nosso corpo eacute constituiacutedo de calor Que este natildeo participe do frio induz-se de certos fatos como os seguintes o esperma que possui a propriedade de produzir o ser vivente eacute quente [] O desejo do ar externo nasce exatamente dessa necessidade que o nosso corpo sendo demasiadamente quente inspirando-o se esfrie ao contato com este [] As doenccedilas satildeo geradas ou pela biacutelis ou pelo sangue ou pelo catarro estas satildeo as causas do surgimento das doenccedilas (44 A27 DK)433

430 Pela verdade a tradiccedilatildeo dos plaacutegios de Platatildeo eacute realmente bastante extensa Cf para isso a longa seccedilatildeo dedicada agraves acusaccedilotildees de plaacutegios em D L III 9-18 Para recente discussatildeo da questatildeo cf Brisson (2000b 35-45) 431 Orig ldquo καὶ σὺ Πλάτων καὶ γάρ σε microαθητείης πόθος ἔσχεν πολλῶν δ ἀργυρίων ὀλίγην ἠλλάξαο βίβλον ἔνθεν ἀπαρχόmicroενος τιmicroαιογραφεῖν ἐδιδάχθηςrdquo (44 A8 DK) A mesma tradiccedilatildeo eacute lembrada por Jacircmblico em sua Introduccedilatildeo agrave aritmeacutetica de Nicocircmaco (105) que menciona o livro como sendo de auto-ria de Timeu de Loacutecres Para recente ediccedilatildeo criacutetica do livro cf Marg (1972) 432 Huffman (1993 30) sugere para defender a autenticidade do livreto das possiacuteveis suspeitas de ele proacuteprio ser um falso acadecircmico que a referecircncia de Timon agrave pequenez do livro de Filolau indicaria com maior razatildeo uma origem preacute-socraacutetica deste pois os livros dos preacute-socraacuteticos seriam todos de fato de reduzidas dimensotildees A sugestatildeo natildeo convence totalmente pois natildeo eacute evidente o que deva ser compreen-dido como um livro de pequenas dimensotildees no IV seacuteculo aEC 433 Orig ldquo Φ δὲ Κροτωνιάτης συνεστάναι φησὶν τὰ ἡmicroέτερα σώmicroατα ἐκ θερmicroοῦ ἀmicroέτοχα γὰρ αὐτὰ εἶναι ψυχροῦ ὑποmicroιmicroνήσκων ἀπό τινων τοιούτων τὸ σπέρmicroα εἶναι θερmicroόν κατασκευαστικὸν δὲ τοῦτο τοῦ ζώιου [] διὰ τοῦτο δὴ καὶ ὄρεξις τοῦ ἐκτὸς πνεύmicroατος ἵνα τῆι ἐπεισάκτωι τοῦ πνεύmicroατος ὁλκῆι θερmicroό-τερα ὑπάρχοντα τὰ ἡmicroέτερα σώmicroατα πρὸς αὐτοῦ καταψύχηται[] λέγει δὲ γίνεσθαι τὰς νόσους διά τε χολὴν καὶ αἷmicroα καὶ φλέγmicroα ἀρχὴν δὲ γίνεσθαι τῶν νόσων ταῦταrdquo (44 A27 DK)

194

A descriccedilatildeo detalhada do pensamento meacutedico de Filolau que as passagens do

papiro aqui citadas reproduzem pressupotildee evidentemente uma fonte escrita por traacutes

deste434 E certamente eacute o caso de notar que a terminologia meacutedica natildeo estaacute ausente do

Timeu de Platatildeo (Burkert 1972 227) Dessa forma a prova material que o papiro repre-

senta pode ainda ser aproximada agrave tradiccedilatildeo da acusaccedilatildeo do plaacutegio platocircnico tornando-a

com isso ainda mais confiaacutevel

4132 Autenticidade dos fragmentos de Filolau

Ainda que esteja razoavalmente comprovada a probabilidade da existecircncia de

um soacute livro de Filolau contudo a questatildeo filolaica estaacute longe de ser resolvida Esta sofre

dos mesmos problemas historiograacuteficos que acompanham a questatildeo das fontes de toda a

literatura pitagoacuterica antiga Acontece algo contraacuterio ao que ocorre normalmente na criacuteti-

ca da tradiccedilatildeo parte-se em geral do pressuposto de que tudo esteja falso e o ocircnus da

prova fica por conta de quem deseja defender a autenticidade de um ou outro texto435

De fato diversos comentadores anotam ceticamente (e com uma ponta de cinis-

mo metodoloacutegico) que a existecircncia de um uacutenico livro seria mais um motivo para consi-

derar todos os fragmentos de Filolau como espuacuterios A argumentaccedilatildeo chega a ser sim-

ploacuteria se somente um livro de Filolau existiu por consequecircncia todos os fragmentos a

ele atribuiacutedos deveratildeo pertencer a esse mesmo livro O pressuposto metodoloacutegico dessa

argumentaccedilatildeo encontra refuacutegio na observaccedilatildeo inaugural de Boeckh (1819 38) pela qual

ldquonatildeo resta outra soluccedilatildeo senatildeo aquela de reconhecer que tudo o que temos [de Filolau] eacute

genuiacuteno ou de rejeitar tudo como espuacuteriordquo436 Ainda que Boeckh seja aqui utilizado para

rejeitar tudo como espuacuterio ao contraacuterio da soluccedilatildeo proposta por ele mesmo

A consequecircncia deste aut-aut eacute desastrosa uma seacuterie de comentadores saiu em

busca de trecircs ou quatro passagens evidentemente espuacuterias no interior das cerca de 15

paacuteginas da coleccedilatildeo dielsiana dos fragmentos filolaicos para ndash como se diria em bom

portuguecircs ndash jogar fora a crianccedila com a aacutegua suja Eacute certamente o caso de Bywater 434 Satildeo desta ideia diversos comentadores desde Wilamowitz (1920 II 88) ateacute Huffman (1993 30) e Centrone (1996 120) 435 Cf Burkert (1972 218) e Huffman (1993 18) 436 Orig ldquoSo bleibt nichts uumlbrig als alles Vorhandene zusammen als aumlcht anzuerkennen oder als unaumlcht zu verwerfenrdquo

195

(1868 52) e de Burnet (1908 283) que ao tratarem da impossibilidade do fr 12 ser

autecircntico tentam mostrar sua continuidade linguiacutestica e temaacutetica com os outros frag-

mentos com a intenccedilatildeo de demonstrar a contaminaccedilatildeo de todos O fragmento em ques-

tatildeo (44 B12 DK) refere-se de fato aos ldquocinco soacutelidos regularesrdquo que teriam sido poreacutem

uma ldquodescobertardquo somente acadecircmica (cf Resp VII 528b) E todavia esta uacutenica ob-

servaccedilatildeo natildeo autoriza Burnet a concluir que seja ldquojustificaccedilatildeo suficiente para tratarmos

os lsquofragmentos de Filolaursquo como algo bastante suspeitordquo (1908 329)437

A argumentaccedilatildeo desses comentadores natildeo procede fundamentalmente porque

parece esquecer estrateacutegicamente que depois do livro de Filolau haacute um enorme esforccedilo

de falsificaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo pitagoacuterica que corresponde ao periacuteodo pseudoepigraacutefi-

co a coleccedilatildeo de Thesleff (1965) conta com cerca de duzentas paacuteginas desses textos

Diante portanto dessa luxuriosa tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica ndash o termo eacute de Huffman

(1993 27) ndash seria estranho que Filolau tivesse ficado imune a ela438

Haacute portanto seacuterios motivos para enfrentar atentamente a questatildeo da produccedilatildeo

literaacuteria pseudoepigraacutefica que marca sensivelmente as fontes pitagoacutericas mais antigas

Ainda que Burkert natildeo esteja totalmente desprovido de razatildeo quando afirma que no

caso de Filolau o trabalho pseudoepigraacutefico natildeo fazia muito sentido pois se tratava de

uma personagem muito pouco conhecida de fato natildeo seria lectio facilior imaginar que a

platonizaccedilatildeo acadecircmica da literatura pitagoacuterica antiga que marca a pseudoepigrafia de

eacutepoca heleniacutestica tenha poupado somente Filolau Eacute certamente o caso de concordar

com Burkert (1972 228-229) que as informaccedilotildees que possuiacutemos sobre Filolau natildeo es-

tatildeo associadas normalmente a um corpo de lendas ou anedotas (como eacute o caso do proacute-

prio Pitaacutegoras e de outros pitagoacutericos) e sim a uma doxografia mais comum entre os

preacute-socraacuteticos que eacute aquela do modelo mestre-disciacutepulo o nome dele estaacute frequente-

mente associado agravequele de Eurito e Arquitas sendo os trecircs disciacutepulos imediatos de Pitaacute-

goras como eacute o caso do jaacute citado cataacutelogo de Jacircmblico (Iambl VP 267) Filolau eacute dito

437 Orig ldquoThis sufficiently justifies us in regarding the lsquofragments of Philolaosrsquo with something more than suspicionrdquo

438 Huffman (1993 27) anota significativamente que o caso de Arquitas eacute paradigmaacutetico neste sentido ldquothere are forty-six pages of spourius fragments of Arquitas in Thesleffacutes collection (1965 2-48) in com-parision with eight short pages of fragments likely to be authentic in DKrdquo O nuacutemero de textos pseudoe-pigraacuteficos referidos aos pitagoacutericos eacute imensamente superior agravequele do conjunto de textos pseudoepigraacutefi-cos atribuiacutedos a outros preacute-socraacuteticos Eacute este mais um sinal da expansatildeo da tradiccedilatildeo de zelleriana memoacute-ria acima mencionada

196

tambeacutem ter sido mestre de Demoacutecrito (D L Vitae IX 38) As formas dessa tradiccedilatildeo

portanto permitem ao menos concluir que uma apropriaccedilatildeo pseudoepigraacutefica tardia do

livro de Filolau como um todo natildeo seria a lectio mais provaacutevel Ainda que natildeo se exclua

a eventualidade de achar seus sinais

Consequecircncia das observaccedilotildees acima eacute portanto que a uacutenica possiacutevel soluccedilatildeo

da questatildeo filolaica eacute aquela que obriga a um cuidadoso trabalho de peneira de cada um

dos fragmentos em busca de comprovar caso a caso sua autenticidade ou menos

Contudo antes de empreender essa avaliaccedilatildeo mais fina eacute certamente o caso de

perguntar-se sobre os motivos e as modalidades das falsificaccedilotildees pseudoepigraacuteficas he-

leniacutesticas pois estas jogaratildeo um papel essencial no processo de avaliaccedilatildeo dos fragmen-

tos de Filolau que se seguiraacute imediatamente a esta discussatildeo

4133 A tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica doacuterica

Graccedilas ao enorme trabalho de coleccedilatildeo dessas tradiccedilotildees por obra de Thesleff

(1965) eacute hoje possiacutevel ter uma ideia mais precisa dos processos de formaccedilatildeo desse va-

riado corpus de obras atribuiacutedas falsamente a Pitaacutegoras e a outros pitagoacutericos A eco-

nomia destas paacuteginas natildeo permite obviamente adentrar em uma questatildeo tatildeo complexa

como aquela da formaccedilatildeo da tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica pitagoacuterica como um todo Eacute o

caso de remeter para isso de um lado aos estudos ainda insuperados do jaacute citado Thes-

leff (1961 1965) do outro ao percurso historiograacutefico desses estudos que chega ateacute o

neoplatonismo magistralmente descrito por OrsquoMeara (1989)

Contudo eacute necessaacuterio ao menos anotar duas caracteriacutesticas dessas ldquofalsifica-

ccedilotildeesrdquo ambas centrais para a avaliccedilatildeo dos fragmentos de Filolau

A primeira eacute aquela do uso do dialeto doacuterico que acomuna praticamente toda a

coleccedilatildeo Thesleff cunha para isso a expressatildeo ldquodoacuterico pitagoacutericordquo pois o uso desse

dialeto arcaico ldquoreflete uma especiacutefica maneira de escrever prosa que eacute realmente tenta-

dor fazer derivar em uacuteltima anaacutelise de Arquitasrdquo (Thesleff 1961 92)439 Se o uso artifi-

cial do doacuterico como arcaiacutesmo linguiacutestico desempenha papel fundamental na estrateacutegia

de falsificaccedilatildeo as tentativas criacuteticas de desvendaacute-la se utilizaratildeo da mesma estrateacutegia

439 Orig ldquoIt reflects a specific manner of writing prose which it is very tempting indeed to derive ulti-mately from Arquitasrdquo

197

portanto ainda que em sentido contraacuterio Uma questatildeo sensiacutevel para a argumentaccedilatildeo

destas paacuteginas eacute que tambeacutem os fragmentos de Filolau foram escritos em doacuterico Toda-

via esse natildeo pode ser motivo para consideraacute-los per se pseudoepigraacuteficos pois ateacute o

fim do V seacuteculo aEC o doacuterico eacute um dialeto ainda amplamente utilizado Prova disso eacute

que o utilizam tanto Arquitas quanto o meacutedico Acron de Acragas assim como os orado-

res Tiacutesias e Corax440

A segunda caracteriacutestica desse corpus talvez a mais importante eacute a presenccedila

nos textos pseudoepigraacuteficos de conceitos que dependem diretamente das filosofias de

Platatildeo e Aristoacuteteles De fato as fontes acadecircmicas desde o comeccedilo revelam clara ten-

decircncia em identificar grande parte das doutrinas platocircnicas como originaacuterias de Pitaacutego-

ras (Burkert 1972 92-93) Heidel (1940 7) em sua histoacuteria da matemaacutetica grega revela

ser quase imposssiacutevel verificar o que seja pitagoacuterico e o que seja platocircnico nas fontes

antigas sobre a matemaacutetica441 Tambeacutem Aristoacuteteles afirma que a filosofia de Platatildeo se-

gue em muitos pontos aquela dos pitagoacutericos e apresenta-se basicamente como uma

siacutentese entre Soacutecrates e Pitaacutegoras (Met 987a29)442

Natildeo por acaso a Vida de Pitaacutegoras que Foacutecio reproduz em sua Biblioteca reve-

lando uma intenccedilatildeo genealoacutegica tambeacutem tiacutepica do tardo platonismo coloca Platatildeo como

nono sucessor de Pitaacutegoras e Aristoacuteteles como deacutecimo ldquoPlatatildeo tornou-se conforme

dizem o nono diaacutedoco de Pitaacutegoras ele que havia sido disciacutepulo do mais velho Arqui-

tas e Aristoacuteteles foi o deacutecimordquo (Phot Bibl 249438b16-17)443

Todavia com a guinada ceacutetica da Academia de meio encabeccedilada por Arcesilau

a tradiccedilatildeo platocircnica acaba por identificar-se mais com o lado socraacutetico e Pitaacutegoras tor-

440 Cf para as referecircncias Burkert (1972 222) Burnet (1908 327) por sua vez considerava impossiacutevel que Filolau tivesse escrito em doacuterico ldquoIs it likely that Philolaos should have written in Doric Ionic was the dialect of all science and philosophy till the time of the Peloponnesian War and there is no reason to suppose that the early Pythagoreans used any otherrdquo apesar de demonstrar conhecer a opiniatildeo de Diels pela qual Filolau e Arquitas teriam sido os primeiros a escrever no dialeto das colocircnias da Magna Greacutecia que os acolheram Huffman (1993 27 n13) reproduzindo os argumentos de Burkert considera de fato o argumento de Burnet insuficiente 441 Cf Heidel (1940 7) ldquoit is difficult if not impossible for the most part to distinguish what is platonic and what is Pythagoreanrdquo 442 Ainda que Aristoacuteteles distancie-se do processo de identificaccedilatildeo absoluta entre pitagorismo e platonis-mo no caso em que por exemplo faz derivar a teoria das formas de Craacutetilo e Soacutecrates De fato como se veraacute a platonizaccedilatildeo do pitagorismo desenvolve-se em sentido contraacuterio a esta lectio aristoteacutelica que estaacute mais interessada em distinguir do que em aproximar 443 Orig ldquoὍτι ἔνατος ἀπὸ Πυθαγόρου διάδοχος γέγονε φησι Πλάτων Ἀρχύτου τοῦ πρεσβυτέρου microαθη-τὴς γενόmicroενος δέκατος δὲ Ἀριστοτέληςrdquo (Phot Bibl 249438b16-17) Burkert (1972 53) anota que a autoria da obra pode ser do proacuteprio Eudoro

198

na-se ao mesmo tempo um problema e a soluccedilatildeo de outro444 De fato ao mesmo tempo

em que a influecircncia de Pitaacutegoras eacute negada para definir uma tradiccedilatildeo menos dogmaacutetica

do platonismo o proacuteprio Pitaacutegoras eacute utilizado para que seja atribuiacuteda a ele aquela parte

da doutrina platocircnica que por ser demasiadamente metafiacutesica e matemaacutetica natildeo era

mais o caso de atribuir ao proacuteprio Platatildeo

Em contrapartida a reaccedilatildeo ao ceticismo que comeccedila a ser esboccedilada com a che-

gada do dogmaacutetico Antiacuteoco de Aacutescalon que inaugura uma nova mudanccedila de rumo na

Academia inspirou certamente as acusaccedilotildees de plaacutegio contra Platatildeo entre elas certa-

mente a que se viu anteriormente em relaccedilatildeo ao livro de Filolau Em sentido contraacuterio

portanto e quiccedilaacute mais proacuteximo da visatildeo da primeira Academia de Espeusipo e Xenoacutecra-

tes os acadecircmicos partidaacuterios da influecircncia pitagoacuterica sobre Platatildeo acabam por atribuir

a todos os representantes da filosofia platocircnica incluindo neles obviamente tambeacutem

Soacutecrates e Aristoacuteteles uma apropriaccedilatildeo fraudulenta da doutrina de Pitaacutegoras445

Eacute esta a polecircmica que envolve ainda o neoplatonismo de Numecircnio de Apameacuteia

e depois de Porfiacuterio e Jacircmblico Os trecircs ainda que com intensidades diferentes decla-

ram querer reestabelecer o verdadeiro Platatildeo purificando-o de todas as sobreposiccedilotildees

doutrinaacuterias de Aristoacuteteles e dos estoicos446 O tiacutetulo da obra de histoacuteria da filosofia pla-

tocircnica escrita por Numecircnio eacute significativo do clima polecircmico da questatildeo Sobre a dis-

cordacircncia entre os acadecircmicos e Platatildeo Sua conclusatildeo eacute simplesmente que o verdadei-

ro platonismo eacute pitagorismo (fr 24 73-79) contra o que os ldquoacadecircmicosrdquo por ele iden-

tificados simplesmente com os ceacuteticos andavam afirmando447 Ecos dessa polecircmica

aparecem tambeacutem em Porfiacuterio que afunda a faca contra a tradiccedilatildeo platocircnica acusando-

a de plaacutegio e de maacute-feacute por ter estabelecido uma histoacuteria do pitagorismo diretamente

intencionada a ridicularizaacute-lo

Os escritos satildeo em doacuterico e esse dialeto possui algo de pouco claro exatamente por esse motivo tambeacutem as doutrinas que este investigava foram suspeitas de serem apoacutecrifas e fruto de desentendimentos pois

444 Cf para isso Dillon (1977) Leszl (1981) e Isnardi-Parente (1989) Para recente discussatildeo desta guina-da ceacutetica da Academia de meio veja-se o Epiacutelogo do excelente estudo sobre a heranccedila platocircnica de Dillon (2003 234ss) 445 Cf tambeacutem os argumentos nesse sentido de Centrone (2000 155) 446 Burkert pode assim concluir que ldquoone might therefore define later Pythagoreanism as Platonism with the Socratic and dialectic element amputatedrdquo (Burkert 1972 96) 447 Cf para isso OacuteMeara (1989 10-14)

199

natildeo teriam sido pitagoacutericos ortodoxos os que as divulgavam Aleacutem disso Platatildeo Aristoacuteteles Espeusipo Aristoxeno e Xenoacutecrates pelo que diziam os pitagoacutericos apropriaram-se com pequenas modifica-ccedilotildees das doutrinas frutiacuteferas enquanto teriam recolhido e compilado como doutrinas especiacuteficas da filosofia pitagoacuterica tudo quanto havia de ridiacuteculo e supeacuterfluo e tudo aquilo que posteriormente os caluniado-res haviam apresentado para refutar e denegrir a escola (Porph VP 53)448

A passagem reivindica assim uma identidade doutrinaacuteria pitagoacuterica em aberta

polecircmica com a tradiccedilatildeo tanto acadecircmica quanto peripateacutetica Os pitagoacutericos aqui refe-

ridos foram identificados com a vertente neopitagoacuterica representada mais especifica-

mente por Moderato de Gades449 A literatura pitagoacuterica pseudoepigraacutefica heleniacutestica

portanto deveraacute ser compreendida no interior dessa polecircmica intra-acadecircmica que se

estende ateacute agrave eacutepoca imperial450 A presenccedila de diversos conceitos e temaacuteticas que pres-

supotildeem portanto natildeo somente Platatildeo mas mesmo Espeusipo ou Teofrasto natildeo devem

maravilhar451

Nessa reconstruccedilatildeo platocircnico-pitagorizante da filosofia dos ldquoantigosrdquo a descri-

ccedilatildeo que Aristoacuteteles no seacuteculo IV aEC faz do pitagorismo natildeo encontra eco algum Ao

contraacuterio a tradiccedilatildeo neoplatocircnica conta diversas acusaccedilotildees contra a lectio de Aristoacutete-

les Siriano e Proclo acusam abertamente Aristoacuteteles de distorccedilatildeo do pensamento dos

pitagoacutericos (Syrian In Met 80 22 Procl In Tim 1 16 29) Especialmente significativo

eacute um texto pseudoepigraacutefico atribuiacutedo a Teano esposa e disciacutepula de Pitaacutegoras

Soube que muitos dos gregos supuseram que Pitaacutegoras teria dito que tudo vem do nuacutemero Essa afirmaccedilatildeo contudo revela uma aporia como de fato algo que nem sequer existe eacute concebido como genitor

448 Orig ldquo τὰ γεγραmicromicroένα δωριστὶ γεγράφθαι ἐχούσης τι καὶ ἀσαφὲς τῆς διαλέκτου καὶ microηδὲν διὰ τοῦτο ὑπονοεῖσθαι καὶ τὰ ὑπαὐτῆς ἀνιστορούmicroενα δόγmicroατα ὡς νόθα καὶ παρηκουσmicroένα τῷ microὴ ἄντικρυς Πυθα-γορικοὺς εἶναι τοὺς ἐκφέροντας ταῦτα πρὸς δὲ τούτοις τὸν Πλάτωνα καὶ Ἀριστοτέλη Σπεύσιππόν τε καὶ Ἀριστόξενον καὶ Ξενοκράτη ὡς φασὶν οἱ Πυθαγόρειοι τὰ microὲν κάρπιmicroα σφετερίσασθαι διὰ βραχείας ἐπισκευῆς τὰ δ ἐπιπόλαια καὶ ἐλαφρὰ καὶ ὅσα πρὸς διασκευὴν καὶ χλευασmicroὸν τοῦ διδασκαλείου ὑπὸ τῶν βασκάνως ὕστερον συκοφαντούντων προβάλλεται συναγαγεῖν καὶ ὡς ἴδια τῆς αἱρέσεως καταχωρίσαιrdquo (Porph VP 53) 449 Concordam com esta atribuiccedilatildeo Dillon (1977 346) e Isnardi-Parente (Speusippo 1980 237-238) Contraacuterios Burkert (1972 95) e OacuteMeara (1989 11 n8) 450 Cf Centrone (2000) para ampla resenha da recepccedilatildeo do pitagorismo no platonismo de eacutepoca imperial 451 Para mais precisa avaliaccedilatildeo da influecircncia das tradiccedilotildees acadecircmica e peripateacutetica mais antigas sobre a literatura pseudoepigraacutefica pitagoacuterica ndash com relativas fontes ndash cf Thesleff (1965) mas tambeacutem Burkert (1972 83-96) Huffman (1993 21) anota com razatildeo que ldquoeven if the forgeries do not arise among the Neoplatonists the Neoplatonic attitude towards Pythagoras and hence the motive for forgeries could go back much earlierrdquo

200

Mas ele natildeo disse que todas as coisas vecircm dos nuacutemeros e sim con-forme os nuacutemeros Pois no nuacutemero daacute-se a primeira ordenaccedilatildeo de fato graccedilas a sua presenccedila na comunhatildeo das coisas que podem ser conta-das algo toma seu lugar como primeiro outra coisa como segundo e em seguida todos os outros (Thesleff 1965 Stob I 10 13)452

Teano nega assim a doutrina dos nuacutemeros como princiacutepios atribuindo-a a ldquomui-

tos dos gregosrdquo ainda que isso signifique fundamentalmente Aristoacuteteles453 A estrateacutegia

de colocar essa negaccedilatildeo na boca da proacutepria esposa de Pitaacutegoras obedece a uma bem

precisa estrateacutegia parecida com aquela da falsificaccedilatildeo da carta de Platatildeo acima citada

de fornecer autenticidade para aquilo que natildeo a tem

A tematizaccedilatildeo da diferenccedila da lectio aristoteacutelica em relaccedilatildeo ao onipresente ldquosis-

tema de derivaccedilatildeordquo da tradiccedilatildeo platocircnica permite voltar novamente agrave questatildeo filolai-

ca454 Eacute exatamente essa diferenccedila a tornar-se uma alavanca hermenecircutica para a ques-

tatildeo pois se esta eacute verdadeira como se demonstraraacute a proximidade dos fragmentos atri-

buiacutedos a Filolau com a lectio aristoteacutelica dos assim chamados pitagoacutericos se tornaraacute um

sinal inequiacutevoco de sua autenticidade

Eacute agrave modalidade dessa distinccedilatildeo que Aristoacuteteles opera entre pitagorismo antigo e

recepccedilatildeo platocircnica e acadecircmica deste que se deveraacute entatildeo prestar toda a atenccedilatildeo

414 A exceccedilatildeo aristoteacutelica (Met A 6 987b)

Aristoacuteteles de fato se por um lado aproxima pitagorismo e platonismo em rela-

ccedilatildeo agrave teoria das formas por outro lado distingue sem alguma possibilidade de duacutevida o

pitagorismo do platonismo em ao menos duas questotildees centrais natildeo somente para a

histoacuteria do platonismo mas tambeacutem para a discussatildeo que estas paacuteginas empreendem

considerando a concepccedilatildeo pitagoacuterica dos nuacutemeros As duas questotildees estatildeo articuladas

em ceacutelebre paacutegina da Metafiacutesica de Aristoacuteteles que por esse motivo seraacute preciso anali-

452 Orig ldquo Καὶ συχνοὺς microὲν Ἑλλήνων πέπυσmicroαι νοmicroίσαι φάναι Πυθαγόραν ἐξ ἀριθmicroοῦ πάντα φύεσθαι Οὗτος δὲ ὁ λόγος ἀπορησίας ἔχεται πῶς ἃ microηδὲ ἔστιν ἐπινοεῖται καὶ γεννᾶν ὃ δὲ οὐκ ἐξ ἀριθmicroοῦ ltκατὰgt δὲ ἀριθmicroὸν ἔλεγε πάντα γίγνεσθαι ὅτι ἐν ἀριθmicroῷ τάξις πρώτη ἧς microετουσίᾳ κἀν τοῖς ἀριθmicroητοῖς πρῶτόν τι καὶ δεύτερον καὶ τἄλλα ἑποmicroένως τέτακταιrdquo (Thesleff 1965 Stob I 10 13) 453 O termo γεννᾶν poderia ser uma referecircncia direta agrave paacutegina de Aristoacuteteles que fala da γένεσιν ποιεῖν ἀϊδίων ὄντων dos pitagoacutericos em Met 1091a12 Cf Burkert (1972 61) 454 A expressatildeo eacute de Gompertz (apud Burkert 1972 17)

201

sar antes de dedicar-se finalmente aos fragmentos de Filolau Trata-se mais precisamen-

te da paacutegina 987b

O argumento inicia-se com a jaacute amplamente citada questatildeo da discordacircncia dos

pitagoacutericos com Platatildeo a respeito do papel dos nuacutemeros na existecircncia das coisas sensiacute-

veis Aristoacuteteles exclui veementemente que os pitagoacutericos concordem com o papel de

meacutethexis atribuiacutedo aos nuacutemeros por este uacuteltimo A precisaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o

conceito de miacutemesis seria o mais adequado para representar a doutrina pitagoacuterica intro-

duz uma mais precisa articulaccedilatildeo das diferenccedilas entre pitagoacutericos e Platatildeo que leva agraves

duas questotildees centrais a primeira delas diz respeito ao lugar ontoloacutegico dos nuacutemeros a

segunda agrave concepccedilatildeo do um

Assim inicia a paacutegina em questatildeo

Depois das filosofias mencionadas surgiu a doutrina de Platatildeo que em muitos pontos segue a dos pitagoacutericos mas apresenta tambeacutem ca-racteriacutesticas proacuteprias estranhas agrave filosofia dos itaacutelicos (Met 987a29-31)455

Aristoacuteteles inicia reconhecendo mais uma vez a analogia entre o procedimento

platocircnico da reduccedilatildeo aos princiacutepios e o procedimento pitagoacuterico da reduccedilatildeo da realidade

aos nuacutemeros Ainda que como visto anteriormente mudem os termos para a descriccedilatildeo

dessa relaccedilatildeo entre as formasnuacutemeros e os entes sensiacuteveis ndash miacutemesis para os pitagoacuteri-

cos metheacutexis para Platatildeo (Met 987b11-12) ndash a analogia continua procedente no interi-

or da doxografia aristoteacutelica De fato se os pitagoacutericos satildeo ditos ldquoacreditarem que os

princiacutepios [das matemaacuteticas] sejam os princiacutepios de todos os seresrdquo (Met 985b25)456

analogamente a Platatildeo eacute atribuiacutedo um processo de reduccedilatildeo das formas que satildeo causas

da realidade material a ulteriores princiacutepios Aristoacuteteles chama estes de elementos de

stoicheiacutea Os elementos seriam assim na linguagem aristoteacutelica causas daquilo que

existe

455 Orig ldquoΜετὰ δὲ τὰς εἰρηmicroένας φιλοσοφίας ἡ Πλάτωνος ἐπεγένετο πραγmicroατεία τὰ microὲν πολλὰ τούτοις ἀκολουθοῦσα τὰ δὲ καὶ ἴδια παρὰ τὴν τῶν Ἰταλικῶν ἔχουσα φιλοσοφίανrdquo (Met 987a29-31) Para dife-rente interpretaccedilatildeo da passagem que tende a diminuir a lectio aristoteacutelica da influecircncia dos pitagoacutericos sobre Platatildeo cf Huffman (2008 223) O argumento do autor estaacute fundamentado na ideia de que o τούτο-ις da passagem acima natildeo se refira aos pitagoacutericos ndash conforme a lectio maior ndash e sim a todos os outros predecessores (τῶν πρότερον) mencionados nas linhas imediatamente anteriores (Met 987a28) 456 Orig ldquo ἐντραφέντες ἐν αὐτοῖς τὰς τούτων ἀρχὰς τῶν ὄντων ἀρχὰς ᾠήθησαν εἶναι πάντωνrdquo (Met 985b 25)

202

De fato posto que as formas satildeo causas de outras coisas Platatildeo consi-derou os elementos constitutivos das formas como os elementos de to-dos os seres Como elemento material das formas ele punha o grande e o pequeno e como causa formal o Um de fato considerava que as formas e os nuacutemeros derivassem por participaccedilatildeo do grande e do pe-queno no Um (Met 987b18-22)457

A paacutegina em questatildeo gerou muita polecircmica entre os comentadores A doutrina

dos princiacutepios aqui atribuiacuteda a Platatildeo natildeo parece encontrar eco imediato nas paacuteginas

escritas de seus diaacutelogos Isso levou uma jaacute consolidada tradiccedilatildeo hermenecircutica a consi-

derar a possibilidade da existecircncia de agrapha dogmata de ensinamentos orais esoteacuteri-

cos de Platatildeo dos quais essa paacutegina aristoteacutelica seria certamente um dos testemunhos

mais relevantes458

O que interessa aqui todavia eacute mais simplesmente anotar que Aristoacuteteles nos

termos de sua proacutepria filosofia (aitiacuteai stoicheiacutea) estaacute comparando pitagoacutericos e Platatildeo

e achando profundas analogias em seus sistemas ontoloacutegicos Nas linhas imediatamente

sucessivas a analogia eacute assim resumida

Quanto agrave afirmaccedilatildeo de que o Um eacute substacircncia e natildeo algo diferente da-quilo a que se predica Platatildeo aproxima-se muito dos pitagoacutericos e como os pitagoacutericos considera os nuacutemeros como causa da substacircncia das outras coisas (Met 987b22-25)459

Agrave afirmaccedilatildeo dessa analogia todavia conforme foi acenado acima segue no tex-

to aristoteacutelico a observaccedilatildeo de uma profunda diferenccedila entre as duas doutrinas

Entretanto eacute peculiar a Platatildeo o fato de ter posto no lugar do ilimitado entendido como Um uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como derivado do grande e do pequeno Platatildeo aleacutem disso situa os nuacutemeros fora dos sensiacuteveis enquanto os pitagoacutericos sustentam que os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas e natildeo afirmam os entes matemaacuteticos

457 Orig ldquo ἐπεὶ δ αἴτια τὰ εἴδη τοῖς ἄλλοις τἀκείνων στοιχεῖα πάντων ᾠήθη τῶν ὄντων εἶναι στοιχεῖα ὡς microὲν οὖν ὕλην τὸ microέγα καὶ τὸ microικρὸν εἶναι ἀρχάς ὡς δ οὐσίαν τὸ ἕν ἐξ ἐκείνων γὰρ κατὰ microέθεξιν τοῦ ἑνὸς [τὰ εἴδη] εἶναι τοὺς ἀριθmicroούςrdquo (Met 987b18-22) 458 Natildeo eacute certamente possiacutevel e oportuno adentrar aqui nesta vexata quaestio que tanta polecircmica suscitou nos uacuteltimos anos A posiccedilatildeo esoteacuterica eacute defendida pela assim chamada Escola de Tuumlbingen-Milatildeo Cf para isso Kraumlmer (1959) Gaiser (1963) Szlezaacutek (1985) Reale (1991) Do outro lado com posiccedilotildees ceacuteticas em graus diferentes Cherniss (1945) Vlastos (1963) e Isnardi-Parente (1977) Para resenha mais recente desta questatildeo cf Trabattoni (1999 e 2005) 459 Orig ldquo τὸ microέντοι γε ἓν οὐσίαν εἶναι καὶ microὴ ἕτερόν γέ τι ὂν λέγεσθαι ἕν παραπλησίως τοῖς Πυθαγορε-ίοις ἔλεγε καὶ τὸ τοὺς ἀριθmicroοὺς αἰτίους εἶναι τοῖς ἄλλοις τῆς οὐσίας ὡσαύτως ἐκείνοιςrdquo (Met 987b22-25)

203

como intermediaacuterios entre aqueles e estas O fato de ter posto o Um e os nuacutemeros fora das coisas agrave diferenccedila dos pitagoacutericos e tambeacutem o ter introduzido as formas foram as consequecircncias da investigaccedilatildeo fun-dada nas puras noccedilotildees que eacute proacutepria de Platatildeo pois os predecessores natildeo conheciam a dialeacutetica (Met 987b25-33)460

A visatildeo platocircnica da teoria dos princiacutepios afasta-se da tradiccedilatildeo pitagoacuterica por-

tanto em primeiro lugar pelo ldquofato de ter posto no lugar do ilimitado entendido como

unidade uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como derivado do grande e do

pequenordquo em segundo lugar pelo fato de Platatildeo ldquosituar os nuacutemeros (arithmoiacute) fora dos

sensiacuteveis (paraacute taacute aisthetaacute) enquanto aqueles [os pitagoacutericos] sustentam que os nuacuteme-

ros satildeo autaacute taacute praacutegmata e natildeo afirmam que os matematikaacute satildeo intermediaacuterios (metaxuacute)

entre estes e aquelesrdquo Esta uacuteltima diferenccedila estaacute baseada fundamentalmente naquele

que Aristoacuteteles considera um erro tipicamente platocircnico (Kahn 2001 63) Trata-se da

doutrina do chorismoacutes isto eacute da separaccedilatildeo das formasnuacutemeros do mundo sensiacutevel que

Aristoacuteteles considera ter surgido jaacute com a dialeacutetica socraacutetica estando assim ausente da

filosofia dos pitagoacutericos

Natildeo eacute o caso de aprofundar ainda mais esta diferenccedila Seraacute suficiente lembrar

mais uma vez que essa reconstruccedilatildeo doxograacutefica da ideia da identidade do nuacutemero com

a realidade conforme foi visto acima (411) obedece claramente agrave intenccedilatildeo polecircmica

de Aristoacuteteles com o platonismo Esta se encontra expressa de forma tatildeo definitiva nas

categorias de sua proacutepria filosofia ao ponto de tornar impossiacutevel em uacuteltima anaacutelise

resgatar um eventual sentido originaacuterio da doutrina pitagoacuterica do ldquotudo eacute nuacutemerordquo To-

davia natildeo se trataria aqui de deformaccedilatildeo das doutrinas pitagoacutericas originaacuterias e sim

mais propriamente de uma traduccedilatildeo destas em outros termos Prova disso seria a proacute-

pria intenccedilatildeo de Aristoacuteteles de desenhar a diferenccedila entre pitagorismo e Platatildeo que

portanto lhe impediria de incluir apropriaccedilotildees totalmente arbitraacuterias ou ateacute mesmo for-

jadas das doutrinas dos dois lados sob pena de perder desta forma seu argumento (Cen-

trone 1996 109)461 Por outro lado as duras criacuteticas a essa lectio aristoteacutelica de autores

460 Orig ldquo τὸ δὲ ἀντὶ τοῦ ἀπείρου ὡς ἑνὸς δυάδα ποιῆσαι τὸ δ ἄπειρον ἐκ microεγάλου καὶ microικροῦ τοῦτἴδιο-ν καὶ ἔτι ὁ microὲν τοὺς ἀριθmicroοὺς παρὰ τὰ αἰσθητά οἱ δἀριθmicroοὺς εἶναί φασιν αὐτὰ τὰ πράγmicroατα καὶ τὰ microαθηmicroατικὰ microεταξὺ τούτων οὐ τιθέασιν τὸ microὲν οὖν τὸ ἓν καὶ τοὺς ἀριθmicroοὺς παρὰ τὰ πράγmicroατα ποιῆσαι καὶ microὴ ὥσπερ οἱ Πυθαγόρειοι καὶ ἡ τῶν εἰδῶν εἰσαγωγὴ διὰ τὴν ἐν τοῖς λόγοις ἐγένετο σκέψιν (οἱ γὰρ πρότεροι διαλεκτικῆς οὐ microετεῖχον)rdquo (Met 987b25-33) 461 Da mesma ideia Isnardi-Parente (1977 1034) que afirma ldquonaturalmente il giudizio aristotelico come di consueto implica una sovrapposizione delle proprie categorie interpretative a quelle del pensatore della critica ma contiene anche un nucleo di attendibilitagrave da non trascurarsirdquo

204

acadecircmicos como Siriano e Proclo e da tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica platonizante que estaacute

por traacutes do texto de Teano confirmariam tratar-se aqui de uma tradiccedilatildeo externa agrave tradi-

ccedilatildeo platocircnica Todos esses argumentos permitem imaginar tratar-se no caso da identifi-

caccedilatildeo dos nuacutemeros com a realidade ainda que nos termos da traduccedilatildeo aristoteacutelica de

um achado da visatildeo preacute-socraacutetica dos nuacutemeros pitagoacutericos462

Uma segunda diferenccedila entre Platatildeo e pitagoacutericos estaacute na maneira como eacute con-

cebido o um ou mais precisamente no ldquofato de [Platatildeo] ter posto no lugar do ilimitado

entendido como unidade uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como deriva-

do do grande e do pequenordquo A criacutetica de Aristoacuteteles natildeo pode ser menos contundente

Contudo o ter posto uma diacuteade como natureza oposta ao Um tinha em vista derivar facilmente dela como de uma matriz todos os nuacutemeros exceto os primeiros Entretanto ocorreu exatamente o contraacuterio pois esta doutrina natildeo eacute razoaacutevel (Met 987b33-988a2)463

O fato de colocar uma diacuteade no lugar do eacuten aacutepeiron do um ilimitado pitagoacuterico

(com a intenccedilatildeo de derivar dela mais facilmente todos os outros nuacutemeros) acaba resul-

tando em uma doutrina ldquoou euloacutegosrdquo isto eacute em uma teoria que natildeo procede do ponto de

vista argumentativo

Aristoacuteteles mais uma vez estaacute sozinho na definiccedilatildeo dessa diferenccedila A tradiccedilatildeo

doxograacutefica toda sublinha ao contraacuterio que tambeacutem os pitagoacutericos postulavam o um e

diacuteade indefinida como princiacutepios da realidade Eacute certamente o caso de um ceacutelebre frag-

mento de Espeusipo citado por Gulherme de Moerbeke em sua traduccedilatildeo latina do co-

mentaacuterio de Proclo ao Parmecircnides de Platatildeo Proclo refere-se agrave opiniatildeo dos antigos

(tamquam placentia antiquis) pela qual

Eles considerando que o um eacute superior ao ser e de tal forma que deste deriva o ser tornaram-no livre da condiccedilatildeo de princiacutepio Por outro la-do considerando que com o um concebido em si mesmo enquanto separado e sozinho sem as outras coisas sem algum outro elemento

462 Comenta entusiasticamente Burkert (1972 32) ldquois treasure-trove for the historian herewe have a piece of Pythagorean doctrine that was not subsumed into Platonismrdquo 463 Orig ldquo τὸ δὲ δυάδα ποιῆσαι τὴν ἑτέραν φύσιν διὰ τὸ τοὺς ἀριθmicroοὺς ἔξω τῶν πρώτων εὐφυῶς ἐξ αὐτῆς γεννᾶσθαι ὥςπερ ἔκ τινος ἐκmicroαγείου καίτοι συmicroβαίνει γ ἐναντίως οὐ γὰρ εὔλογον οὕτωςrdquo (Met 987b33-988a2)

205

adicional nada mais viria a existir por isso introduziram a dualidade infinita como princiacutepio dos seres (Speusip fr 48 Taran)464

A referecircncia aos antiqui natildeo poderaacute ser compreendida certamente como uma

remissatildeo a Platatildeo que eacute praticamente coetacircneo Por exclusatildeo os antigos seratildeo entatildeo os

pitagoacutericos Estes satildeo chamados de palaioiacute por Platatildeo em uma passagem do Filebo que

seraacute analisada em breve (Phlb 16c)465

Prova da forccedila dessa tradiccedilatildeo acadecircmica eacute que ateacute Teofrasto disciacutepulo imediato

de Aristoacuteteles eacute influenciado por ela a tal ponto de consideraacute-la tambeacutem verdadeira e

portanto afastar-se da lectio que havia recebido de seu mestre

Platatildeo e os pitagoacutericos tornam grande a distacircncia [entre o real e as coi-sas da natureza] mas consideram que todas aquelas coisas desejam imitar o real E a partir do momento em que definem uma espeacutecie de oposiccedilatildeo entre o um e a diacuteade indefinida da qual em uacuteltima anaacutelise depende o que eacute ilimitado e desordenado e para assim dizer toda a desformidade eacute absolutamente inconcebiacutevel que para eles a natureza do todo existisse sem esta [diacuteade indefinida] (Theophr Met 11a27-11b6)466

Natildeo somente Platatildeo e os pitagoacutericos satildeo aproximados por separarem o real (on-

toloacutegico) das coisas da natureza mas tambeacutem por compreenderem que sem a aoristoacutes

dyacuteas o mundo natildeo poderia ser gerado Nessa perspectiva ao lado do um a postulaccedilatildeo

da diacuteade indefinida como um dos princiacutepios eacute absolutamente necessaacuteria Estamos jaacute em

pleno solo acadecircmico portanto

Contudo a citada passagem da outra Metafiacutesica aquela de Aristoacuteteles natildeo deixa

duacutevidas que essa diferenccedila devia mesmo existir Ateacute porque natildeo se trata de um apax

legomena e sim ndash conforme se verificou acima (411) ndash de uma peccedila de um quebra-

cabeccedila maior que contribuiu para a definiccedilatildeo de uma concepccedilatildeo pitagoacuterica dos princiacute- 464 Orig ldquole unum enim melius ente putantes et a quo le ens et ab ea quae secundum principium habitu-dine ipsum liberaverunt exstimantes autem quod si quis le unum ipsum seorsum et solum meditatum sine aliis seCtmdum se ipsum ponat nullurn alterum elementum ipsi apponens nihil utique flet aliorum in-terminabilem dualitatem entium principium induxeruntrdquo (Speusip fr 48 Taran) 465 Concordam com esta atribuiccedilatildeo Burkert (1972 63) Huffman (1993 23) Centrone (1996 110) e Kahn (2001 64) Contraacuterio a esta atribuiccedilatildeo o proacuteprio Taran (Speusippus 1981 350s) que atribui a referecircncia aos antigos a Proclo e natildeo a sua fonte Espeusipo dessa forma invertendo a atribuiccedilatildeo da passagem para os acadecircmicos 466 Orig ldquo Πλάτων δὲ καὶ οἱ Πυθαγόρειοι microακρὰν τὴν ἀπόστασιν ἐπιmicroιmicroεῖσθαι δ ἐθέλειν ἅπαντα καίτοι καθά περ ἀντίθεσίν τινα ποιοῦσιν τῆς ἀορίστου δυάδος καὶ τοῦ ἑνός ἐν ᾗ καὶ τὸ ἄπειρον καὶ τὸ ἄτακτον καὶ πᾶσα ὡς εἰπεῖν ἀmicroορφία καθ αὑτήν ὅλως οὐχ οἷόν τε ἄνευ ταύτης τὴν τοῦ ὅλου φύσινrdquo (Theophr Met 11a27-11b6)

206

pios que Aristoacuteteles considerava a tal ponto coerente de natildeo tentar atribuiacute-la a momen-

tos ou protagonistas diferentes da histoacuteria do pitagorismo Pouco antes de fato Aristoacute-

teles atribui aos pitagoacutericos ndash em continuidade com outros itaacutelicos (Empeacutedocles e Par-

mecircnides) e Anaxaacutegoras ndash uma teoria dos dois princiacutepios

Os pitagoacutericos afirmaram do mesmo modo dois princiacutepios mas acres-centaram as seguintes peculiaridades consideraram que o limitado o ilimitado e o um natildeo eram atributos de outras realidades (por exemplo fogo ou terra ou alguma outra coisa) mas que o proacuteprio ilimitado e o um eram substacircncia das coisas das quais se predicam e que por isso o nuacutemero era a substacircncia de todas as coisas (Met 987a13-19)467

Aqui os dois princiacutepios pitagoacutericos satildeo ditos peperasmeacutenon e apeiacuteron isto eacute

limitado e ilimitado Todavia Aristoacuteteles com a expressatildeo kai toacute eacuten acrescenta um ter-

ceiro princiacutepio o um Como compreender que Aristoacuteteles anuncia aqui dois princiacutepios

e acaba depois identificando trecircs ldquolimitado ilimitado e umrdquo O reconhecimento dessa

contradiccedilatildeo no testemunho de Aristoacuteteles faz alguns autores excluirem a expressatildeo kai

toacute eacuten da passagem468 Com essa exclusatildeo o um acabaria assim por ser identificado com

o limitado De fato na segunda menccedilatildeo que a passagem faz aos dois princiacutepios a refe-

recircncia ao limitado natildeo eacute repetida e os dois princiacutepios satildeo identificados como ilimitado e

um com este uacuteltimo tomando o lugar ndash por assim dizer ndash do limitado

Exatamente pelo fato de que para um platocircnico essa equaccedilatildeo eacuten-peacuteras devia ser

algo absolutamente normal Huffman (1993 207) sugere que Aristoacuteteles esteja aqui

cometendo um deslize (slides) de maneira especial se esta passagem for comparada

com a passagem de Met 987b25-33 Aristoacuteteles procurava ali mostrar a analogia dos

dois princiacutepios platocircnicos (um e diacuteade indefinida) como os princiacutepios pitagoacutericos do

limitado e ilimitado Poreacutem apesar de reconhecer que haacute uma diferenccedila entre as duas

filosofias pois Platatildeo considera o ilimitado como uma dualidade (grande-pequeno) e os

pitagoacutericos natildeo Aristoacuteteles natildeo tematiza claramente alguma diferenccedila entre os outros

467 Orig ldquo οἱ δὲ Πυθαγόρειοι δύο microὲν τὰς ἀρχὰς κατὰ τὸν αὐτὸν εἰρήκασι τρόπον τοσοῦτον δὲ προσεπέ-θεσαν ὃ καὶ ἴδιόν ἐστιν αὐτῶν ὅτι τὸ πεπερασmicroένον καὶ τὸ ἄπειρον [καὶ τὸ ἓν] οὐχ ἑτέρας τινὰς ᾠήθησαν εἶναι φύσεις οἷον πῦρ ἢ γῆν ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον ἀλλ αὐτὸ τὸ ἄπειρον καὶ αὐτὸ τὸ ἓν οὐσίαν εἶναι τού-των ὧν κατηγοροῦνται διὸ καὶ ἀριθmicroὸν εἶναι τὴν οὐσίαν πάντωνrdquo (Met 987a13-19) 468 Entre os manuscritos mais importantes somente Ab manteacutem καὶ τὸ ἓν enquanto MS e E excluem (e com eles Ross cf acima) Burkert (1972 36 n38) lembra que Alexandre de Afrodiacutesia em seu comentaacuterio (In Met 4711) lecirc a expressatildeo kai toacute eacuten coisa natildeo oacutebvia por se tratar de um autor platocircnico e portanto argumento em favor da autenticidade de καὶ τὸ ἓν Cf para isso Burkert (1972 35-37) Centrone (1996 111) e Huffman (1993 206)

207

dos princiacutepios comparados isto eacute o um platocircnico e o peperasmeacutenon pitagoacuterico Essa

falta de tematizaccedilatildeo explicaria a dupla versatildeo que aparece na passagem relativa aos dois

princiacutepios que estamos examinando na segunda parte dela (v18) Aristoacuteteles estaria

consciente ou inconscientemente caindo na falaacutecia da interpretaccedilatildeo platonizante que

identifica o um com o limitado enquanto na primeira parte dela (v16) Aristoacuteteles a-

crescentaria o um como algo distinto dos dois princiacutepios limitado e ilimitado469

Apesar do possiacutevel deslize platonizante portanto que mostra a forccedila do ldquosistema

de derivaccedilatildeordquo platocircnico acima citado eacute ainda a primeira afirmaccedilatildeo a estar em acordo

com toda a lectio aristoteacutelica dos nuacutemeros enquanto eles proacuteprios criados a partir dos

princiacutepios Conforme se veraacute na comparaccedilatildeo com Filolau essa interpretaccedilatildeo deveraacute

corresponder mais precisamente ao pensamento dos pitagoacutericos

A confirmaccedilatildeo disso a ideia pela qual o nuacutemero seja composto por ambos os

princiacutepios limitado e ilimitado aparece claramente em uma passagem imediatamente

anterior pela qual os pitagoacutericos

Afirmam como elementos constitutivos do nuacutemero o par e o iacutempar dos quais o primeiro eacute ilimitado e o segundo limitado O Um deriva de ambos os elementos porque eacute par e iacutempar ao mesmo tempo Do Um procede depois o nuacutemero e os nuacutemeros como dissemos constituiriam a totalidade do universo (Met 986a 17-21)470

Essa derivaccedilatildeo faz sim que o um seja ao mesmo tempo par e iacutempar e como tal

princiacutepio dos nuacutemeros Aqui os dois princiacutepios satildeo o par e o iacutempar enquanto limitado e

ilimitado parecem ser somente atributos destes Aristoacuteteles explica essa correspondecircncia

entre par e limitado de um lado e iacutempar e ilimitado do outro em uma difiacutecil passagem

da Fiacutesica (203a) A mesma ideia reaparece tambeacutem em seu fr 199 (Rose) provavel-

mente extrato de um de seus livros sobre os pitagoacutericos e encontra um eco significativo

na ideia do artiopeacuteritton o ldquopariacutemparrdquo do fr 5 de Filolau Seraacute o caso de voltar em

breve para ela portanto

469 A possibilidade de um deslize inconsciente de Aristoacuteteles eacute um argumento que a bem ver requereria metodologicamente verificaccedilotildees de fato impossiacuteveis E todavia eacute sugerida tanto por Burkert (1972 36) quanto por Huffman (1993 206) 470 Orig ldquo τοῦ δὲ ἀριθmicroοῦ στοιχεῖα τό τε ἄρτιον καὶ τὸ περιττόν τούτων δὲ τὸ microὲν πεπερασmicroένον τὸ δὲ ἄπειρον τὸ δ ἓν ἐξ ἀmicroφοτέρων εἶναι τούτων (καὶ γὰρ ἄρτιον εἶναι καὶ περιττόν) τὸν δ ἀριθmicroὸν ἐκ τοῦ ἑνός ἀριθmicroοὺς δέ καθάπερ εἴρηται τὸν ὅλον οὐρανόνrdquo (Met 986a 17-21)

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A diferenccedila mais significativa que Aristoacuteteles consegue perceber entre os pitagoacute-

ricos e Platatildeo estaacute todavia ainda conectada agrave ideia do chorismoacutes conforme aparece na

passagem central de Met 987b25-33 e que o faz concluir que para os pitagoacutericos os

nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas Essa afirmaccedilatildeo possui imediatamente uma valecircncia

cosmoloacutegica obviamente De fato em relaccedilatildeo agraves duas questotildees que estamos analisando

isto eacute tanto aquela da identidade entre os nuacutemeros e a realidade como a da geraccedilatildeo dos

nuacutemeros a partir dos princiacutepios limitado e ilimitado Aristoacuteteles empreende uma descri-

ccedilatildeo em termos cosmoloacutegicos (Burkert 1972 31ss) Isso aparece de forma mais evidente

na passagem da Fiacutesica em que se trata do vazio

Tambeacutem os pitagoacutericos afirmaram a existecircncia do vazio e que entra no ceacuteu pelo sopro ilimitado como se o ceacuteu respirasse e que o vazio delimita a natureza das coisas como se o vazio fosse alguma coisa de separado e delimitasse as coisas consecutivas E isso acontece primei-ramente nos nuacutemeros pois o vazio delimita sua natureza (Phys 313b23-27)471

Aqui o ilimitado natildeo eacute somente um princiacutepio ontoloacutegico separado da realidade

como o seria a diacuteade infinita platocircnica e sim algo que eacute ldquoinspirado pelo ceacuteurdquo para dar

origem agrave multiplicidade dos seres Uma paacutegina de Metafiacutesica espelha a mesma visatildeo

ontoloacutegica

De fato eles afirmam claramente que uma vez constituiacutedo o Um ndash se-ja com planos com cores com sementes com elementos dificilmente definiacuteveis ndash imediatamente a parte do ilimitado que lhe era mais proacute-xima comeccedilou a ser atraiacuteda e delimitada pelo limite (Met 1091a15-18)472

Timpanaro Cardini (1958-62 III 154) anota que pode tratar-se aqui de um a-

chado aristoteacutelico de diversas doutrinas que eram desenvolvidas pelo pitagorismo anti-

go para explicar como era formado o um O plano corresponderia a uma primeira hipoacute-

tese geomeacutetrica a chroiaacute a cor corresponderia agrave superfiacutecie do corpo isto eacute a seu peacute-

471 Orig ldquo εἶναι δ ἔφασαν καὶ οἱ Πυθαγόρειοι κενόν καὶ ἐπεισιέναι αὐτὸ τῷ οὐρανῷ ἐκ τοῦ ἀπείρου πνεύmicroατος ὡς ἀναπνέοντι καὶ τὸ κενόν ὃ διορίζει τὰς φύσεις ὡς ὄντος τοῦ κενοῦ χωρισmicroοῦ τινὸς τῶν ἐφεξῆς καὶ [τῆς] διορίσεως καὶ τοῦτ εἶναι πρῶτον ἐν τοῖς ἀριθmicroοῖς τὸ γὰρ κενὸν διορίζειν τὴν φύσιν αὐτῶνrdquo (Phys 313b23-27) 472 Orig ldquo φανερῶς γὰρ λέγουσιν ὡς τοῦ ἑνὸς συσταθέντος εἴτ ἐξ ἐπιπέδων εἴτ ἐκ χροιᾶς εἴτ ἐκ σπέρmicro-ατος εἴτ ἐξ ὧν ἀποροῦσιν εἰπεῖν εὐθὺς τὸ ἔγγιστα τοῦ ἀπείρου ὅτι εἵλκετο καὶ ἐπεραίνετο ὑπὸ τοῦ πέρα-τοςrdquo (Met 1091a15-18)

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ras ainda que natildeo identificaacutevel com corpo mesmo473 Uma terceira hipoacutetese que postu-

lava o speacuterma eacute de fato facilmente reconduziacutevel ao jaacute citado fr 13 de Filolau (44 B13

DK) e agrave afirmaccedilatildeo pela qual ldquotodas as coisas brotam e crescem por causa da semen-

terdquo474

A geraccedilatildeo do cosmo eacute assim descrita como o nascimento de um organismo vi-

vente isto eacute utilizando um leacutexico embrioloacutegico que apresenta analogias com aquele

das antigas teorias embrioloacutegicas a geraccedilatildeo do embriatildeo de fato se daria nelas por meio

da respiraccedilatildeo475 O leacutexico embrioloacutegico e o pressuposto da correspondecircncia macrocos-

mondashmicrocosmo remetem para uma origem mais antiga com toda probabilidade preacute-

socraacutetica dessa doutrina476

E todavia dessa indiferenciaccedilatildeo entre o plano numeacuterico e aquele cosmoloacutegico

na doutrina dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo Aristoacuteteles reclama com se viu afir-

mando que a postulaccedilatildeo desses princiacutepios natildeo explica nem o movimento nem o peso

dos corpos (Met 990a7-13) O motivo dessas aporias eacute um soacute ldquoos princiacutepios que [os

pitagoacutericos] postulam e fazem valer referem-se tanto aos corpos matemaacuteticos quanto

aos corpos sensiacuteveisrdquo (Met 990a14-16)477 Identificando os princiacutepios com o mundo

sensiacutevel de fato os pitagoacutericos perderiam o sentido heuriacutestico desses princiacutepios Per-

gunta-se de fato Aristoacuteteles

Como se deve entender que as propriedades do nuacutemero e o nuacutemero satildeo causas das coisas existentes no universo e das coisas que nele se

473 Cf para isso o proacuteprio Aristoacuteteles (De sensu 439a30) 474 Orig ldquo πάντα γὰρ ἀπὸ σπέρmicroατος καὶ θάλλοντι καὶ βλαστάνοντιrdquo (44 B13 DK) 475 Cf para as citaccedilotildees Burkert (1972 37) Huffman (1993 289-306) e Centrone (1996 115) 476 Burkert (1972 39) vai aleacutem e em consonacircncia com sua apresentaccedilatildeo do pitagorismo entre lore e sci-ence atribui esta mistura de teoria numeacuterica e cosmogonia a uma direta influecircncia oacuterfica ldquoOrphism and Pythagoreanism were almost inextricably intertwined in the fifth century so that it is understandable that within the pre-Socratic domain Pythagorean doctrine developed as a transposed version of Orphic cosmogonyrdquo Natildeo eacute o caso de duvidar que esta transposiccedilatildeo tenha de fato desempenhado algum papel na definiccedilatildeo desta teoria cosmoloacutegico-numeacuterica Natildeo eacute difiacutecil imaginar como faz Burkert que esta doutrina pitagoacuterica possa ser pensada como uma exegese de mitos cosmogocircnicos oacuterficos Ainda mais apoacutes a re-cepccedilatildeo no interior da criacutetica que se ocupa dos preacute-socraacuteticos da anaacuteloga exegese representada pelo papiro Derveni Esta hipoacutetese traria fecundas conclusotildees se compreendida por exemplo agrave luz daquilo que se disse acima no capiacutetulo terceiro com respeito agraves relaccedilotildees entre pitagorismo e orfismo sobre teoria da alma Por outro lado anota com razatildeo Kahn (1974 172) que uma veste cosmogocircnica para a filosofia eacute tiacutepica de muitos preacute-socraacuteticos Finalmente a hipoacutetese de Burkert que natildeo foi recolhida por nenhum outro comentador eacute de difiacutecil comprovaccedilatildeo e precisaria de outra monografia exclusivamente dedicada a ela 477 Orig ldquo ἐξ ὧν γὰρ ὑποτίθενται καὶ λέγουσιν οὐθὲν microᾶλλον περὶ τῶν microαθηmicroατικῶν λέγουσι σωmicroάτων ἢ τῶν αἰσθητῶνrdquo (Met 990a14-16)

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produzem desde a origem ateacute agora e de outro lado como entender que natildeo existe outro nuacutemero aleacutem do nuacutemero do qual eacute constituiacutedo o mundo (Met 990a18-22)478

Obviamente natildeo haacute possibilidade de resposta para essas perguntas Pois a indi-

ferenciaccedilatildeo entre o plano numeacuterico e aquele cosmoloacutegico impede que o problema possa

ser solucionado nos termos da filosofia pitagoacuterica479

415 O testemunho platocircnico (Filebo 16c-23c)

Que Aristoacuteteles tivesse razatildeo em revelar a influecircncia sobre Platatildeo das teorias pi-

tagoacutericas pode ficar claro pela anaacutelise de um trecho central da obra deste uacuteltimo contido

nas paacuteginas do Filebo A passagem mostraraacute em que medida Platatildeo considerava o seu

esforccedilo para chegar a uma compreensatildeo dos primeiros princiacutepios como uma continua-

ccedilatildeo do pitagorismo dando assim razatildeo a Aristoacuteteles quando a indica na paacutegina de Met

987b Ao mesmo tempo revelaraacute que a tradiccedilatildeo pitagoacuterica que Platatildeo no Filebo mos-

traraacute preservar com certa fidelidade torna-se tambeacutem um ponto de partida para ele

mesmo perseguir seus proacuteprios projetos teoreacuteticos de maneira especial em busca de

uma soluccedilatildeo para o problema da unidade e multiplicidade dos existentes Seraacute assim

possiacutevel concluir que a platonizaccedilatildeo do pitagorismo natildeo eacute simplemente uma tendecircncia

acadecircmica mas pode remontar ao mesmo Platatildeo

Eacute pois Burkert (1972 85) que sugere que um lugar entre os mais importantes

para compreender a relaccedilatildeo entre pitagorismo e platonismo eacute exatamente a paacutegina 16c

do Filebo a passagem introduz o tema da dialeacutetica do limitadoilimitado Aqui a procu-

ra pela questatildeo maior do prazer eacute desenvolvida no tema da unidademultiplicidade do

um e dos muitos que marca dramaticamente muitas das preocupaccedilotildees filosoacuteficas preacute-

socraacuteticas A dramaticidade do tema eacute sublinhada pelo proacutelogo agrave discussatildeo de Soacutecrates

ldquoNatildeo poderia haver um caminho mais belo do que este do qual eu sou amante desde

478 Orig ldquo ἔτι δὲ πῶς δεῖ λαβεῖν αἴτια microὲν εἶναι τὰ τοῦ ἀριθmicroοῦ πάθη καὶ τὸν ἀριθmicroὸν τῶν κατὰ τὸν οὐρα-νὸν ὄντων καὶ γιγνοmicroένων καὶ ἐξ ἀρχῆς καὶ νῦν ἀριθmicroὸν δ ἄλλον microηθένα εἶναι παρὰ τὸν ἀριθmicroὸν τοῦτον ἐξ οὗ συνέστηκεν ὁ κόσmicroοςrdquo (Met 990a18-22) 479 Aristoacuteteles resolveraacute esta questatildeo da indistinccedilatildeo entre nuacutemeros e coisas no interior de seu proacuteprio sistema filosoacutefico No contexto da discussatildeo do sentido do tempo para resistir ao idealismo platocircnico que postula a existecircncia dos nuacutemeros separadamente das coisas introduziraacute a distinccedilatildeo entre nuacutemero numera-do e nuacutemero numerante (Phys 219b 6-7) Cf para isso tambeacutem Rey Puente (2001 49)

211

sempre mas que muitas vezes me fugiu e me deixou sozinho e sem saiacutedardquo (Phlb

16b)480 A soluccedilatildeo para a questatildeo vem de longe tanto em sentido fiacutesico quanto em sen-

tido temporal eacute apresentada como uma revelaccedilatildeo como um dom dos deuses (doacutesis the-

ocircn) em 16c e como descoberta dos antigos (oi proacutesthen) em 17d Trata-se exatamente da

conaturalidade agraves coisas que satildeo do limitanteilimitado e da harmoniacutea entre os dois

como princiacutepio de ldquofuncionamentordquo metafiacutesico da realidade

Um dom dos deuses para os homens assim me parece de um lugar do ceacuteu divino um dia foi jogado sobre a terra por meio de um Prome-teu junto com um fogo de claridade ofuscante e os antigos (que eram mais valentes do que noacutes e viviam mais proacuteximos dos deuses) trans-mitiram para noacutes esta revelaccedilatildeo isto eacute que resultando da unidade e multiplicidade das coisas que satildeo as coisas que sempre satildeo foram di-tas e seratildeo ditas ldquocoisas que satildeordquo elas carregam em si por natureza limite e ilimitado (Phlb 16c-d)481

Trata-se aparentemente de um dom de signo epistemoloacutegico pois eacute dito imedia-

tamente depois consistir ldquona maneira como os deuses indicam-nos que se deve aprender

e ensinar uns aos outrosrdquo (Phlb 16e)482 O alcance dessa observaccedilatildeo seraacute revelado no

comentaacuterio que se faraacute logo mais aos fragmentos de Filolau

A funccedilatildeo da introduccedilatildeo no interior da dupla um-muitos da dupla limitante-

ilimitado afirma com razatildeo Migliori (1993 98) eacute claramente aquela de fazer funcionar

esta uacuteltima como uma justificativa ontoloacutegica da primeira no sentido que eacute a accedilatildeo do

limitante e ilimitado que permite que a realidade seja uma e multiacuteplice Uma afirmaccedilatildeo

forte sobre a realidade das coisas que satildeo portanto483

A afirmaccedilatildeo desse meacutetodo (cf a imagem do odoacutes em 16b) dos dois princiacutepios

visa dialeacuteticamente enfrentar o fato de que ao contraacuterio certos ldquohomens saacutebios de

480 Orig ldquo οὐ microὴν ἔστι καλλίων ὁδὸς οὐδ ἂν γένοιτο ἧς ἐγὼ ἐραστὴς microέν εἰmicroι ἀεί πολλάκις δέ microε ἤδη διαφυγοῦσα ἔρηmicroον καὶ ἄπορον κατέστησενrdquo (Phlb 16b) 481 Orig ldquo Θεῶν microὲν εἰς ἀνθρώπους δόσις ὥς γε καταφαίνεται ἐmicroοί ποθὲν ἐκ θεῶν ἐρρίφη διά τινος Προmicroηθέως ἅmicroα φανοτάτῳ τινὶ πυρί καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπει-ρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντωνrdquo (Phlb 16c-d) 482 Orig ldquo οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλ-ήλουςrdquo (Phlb 16e) 483 Natildeo parece ser o caso de duvidar disso nem sequer querendo ser demasiado conservadores em relaccedilatildeo agrave expressatildeo ldquoas coisas que sempre dizemos ser coisas que satildeordquo como querem ser entre outros Mazzarelli (Platone 1991) e Striker (1970) no contexto da estabilidade da predicaccedilatildeo natildeo parece ser este o eixo da questatildeo e sim ao contraacuterio a correspondecircncia dessa estabilidade do ser com as coisas que satildeo Cf Mi-gliori (1993 n96)

212

agorardquo (oi de nucircn tocircn antropocircn sophoiacute a construccedilatildeo sintaacutetica da expressatildeo natildeo deixa

duacutevidas em relaccedilatildeo agrave ironia desta) ldquopotildeem o um ao acaso passando logo para o infinitordquo

fugindo contemporaneamente das realidades intermediaacuterias (17a)484 Nesse proceder

sem considerar as realidades intermediaacuterias parece estar toda a diferenccedila entre o meacutetodo

dialeacutetico e aquele ao contraacuterio euriacutestico E como seraacute possiacutevel acompanhar na conti-

nuaccedilatildeo do diaacutelogo residiraacute a mesma soluccedilatildeo do problema da vida boa entre prazer e

conhecimento

Protarco que parece mesmo natildeo conseguir acompanhar a improvisada guinada

metafiacutesica da argumentaccedilatildeo pede aacutegua (17a) Soacutecrates responde assim com dois e-

xemplos O som emitido pela nossa boca quando pronunciamos as letras do alfabeto eacute

escolhido por Soacutecrates como um exemplo certamente o mais irritantemente didaacutetico

possiacutevel485 Este som eacute ao mesmo tempo um (miacutea) e infinita possibilidade (aacutepeiron au

plecircthei) para quem o pronuncia (18b) Mas aquilo que nos torna realmente conhecedo-

res da gramaacutetica natildeo eacute o conhecer aquela dupla natureza da infinidade e unidade e sim

ao contraacuterio conhecer as quantidades e as qualidades (poacutesa kaiacute opoicirca)486

O segundo exemplo escolhido por Soacutecrates estaacute significativamente ligado ao

mundo da muacutesica O argumento eacute que conhecer dois tons um grave e outro agudo e

como terceiro o intermediaacuterio natildeo nos tornaria ainda experts de muacutesica

Poreacutem meu amigo quando vocecirc teraacute conhecido o nuacutemero dos interva-los que existe seja no tom agudo como no grave e quais satildeo os limites destes intervalos e quantos sistemas resultam de sua conjunccedilatildeo (os predecessores descobriram estes sistemas e os transmitiram para noacutes que os seguimos com o nome de harmonias e viram que mesmo nos movimentos do corpo verificam-se outras afecccedilotildees semelhantes e que sendo mensuradas pelos nuacutemeros afirmaram que deveriam ser cha-madas de ritmos e medidas e ao mesmo tempo que eacute desta forma que devem ser analisadas as coisas em todos os casos de unidade e multiplicidade) assim quando vocecirc teraacute compreendido tambeacutem isso e entatildeo teraacute se tornado conhecedor de muacutesica e quando teraacute consegui-do e compreendido analisando-a qualquer uma das unidades entatildeo teraacute se tornado profundo e inteligente conhecedor do objeto de sua a-naacutelise Mas a infinidade das coisas a infinita multiplicidade que estaacute em cada uma delas todo caso lhe faz incapaz de pensar agudamente e impede que vocecirc seja um homem ilustre e de valor reconhecido caso

484 Orig ldquo οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττονrdquo (Phlb 17a) 485 Veja-se de fato a consequente irritaccedilatildeo de Protarco com os κύκλοι por meio dos quais Soacutecrates pare-ce querer enredar ndash sofisticamente ndash seus interlocutores (Phlb 19a) 486 A ideia eacute por enquanto somente acenada no interior do desenvolvimento do argumento da paacutegina do Filebo seraacute retomada e desenvolvida mais amplamente em seguida ao longo do mesmo diaacutelogo

213

vocecirc natildeo tenha nunca conseguido reconhecer em nenhuma coisa ne-nhum nuacutemero (Phlb 17c-e)487

A anaacutelise da muacutesica requer portanto uma atenta articulaccedilatildeo do conhecimento

dos limites dos intervalos e das correlaccedilotildees entre diferentes sons isto eacute em uma pala-

vra dos nuacutemeros que as constituem

Os dois exemplos desenham assim uma trama de relaccedilotildees que constitui a ldquoinfi-

nidade das coisas e a infinita multiplicidade que estaacute em cada uma delasrdquo propotildeem um

sistema estruturado que permita uma adequada explicaccedilatildeo dessa realidade (Migliori

1993 108) A descoberta dessa explicaccedilatildeo sistemaacutetica eacute atribuiacuteda aos predecessores (oi

proacutesthen)488 Eacute significativo aqui o uso do termo syacutestemata para indicar os sistemas de

conjunccedilatildeo dos intervalos que satildeo chamados de harmonia em Aristoxeno o termo iraacute

significar escala musical (236)489

Enquanto na economia proacutepria do texto platocircnico a proposta de uma vida mista

seraacute enfim o correspondente eacutetico do funcionamento ontoloacutegico da realidade pois esta

mesma eacute de certa forma mista sob a accedilatildeo do peacuteras e do apeiacuteron o que mais importa

aqui eacute anotar que no resumo final da argumentaccedilatildeo (23c-d) Soacutecrates faz novamente re-

ferecircncia a uma revelaccedilatildeo divina do limitado e do ilimitado dos entes

SOCR Retomemos entatildeo o que jaacute dissemos hoje PROT O quecirc SOCR Natildeo afirmamos por acaso que de alguma maneira o deus tem revelado a presenccedila do ilimitado e do limite nas coisas que satildeo PROT Claro SOCR Colocamos portanto estes como dois gecircneros e como terceiro uma certa mistura que resulta dos dois primeiros (P-hlb 23c-d)490

487 Orig ΣΩ Ἀλλ ὦ φίλε ἐπειδὰν λάβῃς τὰ διαστήmicroατα ὁπόσα ἐστὶ τὸν ἀριθmicroὸν τῆς φωνῆς ὀξύτητ-ός τε πέρι καὶ βαρύτητος καὶ ὁποῖα καὶ τοὺς ὅρους τῶν διαστηmicroάτων καὶ τὰ ἐκ τούτων ὅσα συστήmicroατα γέγονεν ndash ἃ κατιδόντες οἱ πρόσθεν παρέδοσαν ἡmicroῖν τοῖς ἑποmicroένοις ἐκείνοις καλεῖν αὐτὰ ἁρmicroονίας ἔν τε ταῖς κινήσεσιν αὖ τοῦ σώmicroατος ἕτερα τοιαῦτα ἐνόντα πάθη γιγνόmicroενα ἃ δὴ δι ἀριθmicroῶν microετρηθέντα δεῖν αὖ φασι ῥυθmicroοὺς καὶ microέτρα ἐπονοmicroάζειν καὶ ἅmicroα ἐννοεῖν ὡς οὕτω δεῖ περὶ παντὸς ἑνὸς καὶ πολλῶν σκο-πεῖν ndash ὅταν γὰρ αὐτά τε λάβῃς οὕτω τότε ἐγένου σοφός ὅταν τε ἄλλο τῶν ἓν ὁτιοῦν ταύτῃ σκοπούmicroενος ἕλῃς οὕτως ἔmicroφρων περὶ τοῦτο γέγονας τὸ δ ἄπειρόν σε ἑκάστων καὶ ἐν ἑκάστοις πλῆθος ἄπειρον ἑκάσ-τοτε ποιεῖ τοῦ φρονεῖν καὶ οὐκ ἐλλόγιmicroον οὐδ ἐνάριθmicroον ἅτ οὐκ εἰς ἀριθmicroὸν οὐδένα ἐν οὐδενὶ πώποτε ἀπιδόνταrdquo (Phlb 17c-e) 488 Pace Gaiser (1988 84) tanto a dialeacutetica quanto a teoria dos princiacutepios satildeo indicadas pelas declaraccedilotildees socraacuteticas no Filebo como tendo sua origem entre os antigos e natildeo como criaccedilotildees platocircnicas 489 Cf para esta citaccedilatildeo Huffman (1993 162) 490 Orig ldquo ΣΩ Λάβωmicroεν ἄττα τῶν νυνδὴ λόγων ΠΡΩ Ποῖα ΣΩ Τὸν θεὸν ἐλέγοmicroέν που τὸ microὲν ἄπειρον δεῖξαι τῶν ὄντων τὸ δὲ πέρας ΠΡΩ Πάνυ microὲν οὖν ΣΩ Τούτω δὴ τῶν εἰδῶν τὰ δύο τιθώmicro-εθα τὸ δὲ τρίτον ἐξ ἀmicroφοῖν τούτοιν ἕν τι συmicromicroισγόmicroενονrdquo (Phlb 23c-d)

214

Deixando por um momento de lado a introduccedilatildeo aqui do gecircnero misto o que

chama atenccedilatildeo no resumo eacute a afirmaccedilatildeo da revelaccedilatildeo divina Essa referecircncia insistente a

uma origem divina pode sublinhar o valor que Platatildeo daacute agrave teoria do limitante e ilimita-

do Soacutecrates havia declarado diversas vezes seu temor para com os deuses nas primeiras

paacuteginas do diaacutelogo (12c) Ao mesmo tempo a revelaccedilatildeo natildeo deve ser pensada como

algo completo definitivo ndash como poderia sugerir certa influecircncia sobre a leitura dos

antigos da concepccedilatildeo dogmaacutetica da matriz judaico-cristatilde-islacircmica isto eacute das assim

chamadas ldquoreligiotildees do Livrordquo A revelaccedilatildeo ao contraacuterio pode ser pensada como algo

de origem nobre e que pede para ser continuado como um compromisso a ser tomado

no futuro natildeo como algo estaacutetico dogmaacutetico491

Contudo a origem divina parece confirmar uma referecircncia direta ao pitagorismo

e de maneira especial ao seu fundador Pitaacutegoras ldquoem ar de divindaderdquo em muitos tes-

temunhos antigos Entre eles o jaacute citado (21) testimonium aristoteacutelico que refere o se-

gredo dos pitagoacutericos ldquodos seres viventes dotados de razatildeo um eacute o deus o outro eacute o

homem o terceiro possui a natureza de Pitaacutegorasrdquo (Iambl VP 31 = Arist Fr 192 Rose

= 14 A7 DK) Como tambeacutem o testemunho de Aristoxeno quando ldquoafirma que Pitaacutego-

ras derivou a maior parte de suas doutrinas eacuteticas (eacutethica doacutegmata) da sacerdotisa Te-

mistocleia de Delfosrdquo (fr 15 Wehrli = 14 A3 DK)492 Com a consequecircncia de que Pro-

meteu representaria assim Pitaacutegoras e sua tradiccedilatildeo493

Que a fonte platocircnica para essas passagens do Filebo seja pitagoacuterica recebe tam-

beacutem outra confirmaccedilatildeo na seguinte observaccedilatildeo na passagem acima citada de 17c-d

aliada agrave referecircncia mais geneacuterica aos antigos haacute de fato clara tomada de posiccedilatildeo musi-

coloacutegica em favor da teoria musical pitagoacuterica ritmos (ryacutethmoi) e medidas (meacutetra) ndash

segundo esses mesmos antigos ndash ou seja os intervalos musicais satildeo medidos pelos nuacute-

meros (arithmocircn metrecircthenta) Eacute interessante notar que a mesma referecircncia eacute utilizada

por Platatildeo em Resp VII 530d os pitagoacutericos satildeo arrolados para afirmar a irmandade da

491 Concorda com isso Burkert (1972 90) ldquoFor Platos affirmation of the divine origin of the doctrine of Limit and Unlimited is more than a glittering sequin on the fabric of the exposition It signifies that its truth is beyond doubt and Plato feels that this imposes on him the obligation to grasp the truth of this idea and its all-encompassing significance Such a divine revelation is not something finished and com-plete but a task to fulfillrdquo 492 Orig ldquo φησὶ δὲ καὶ Ἀριστόξενος τὰ πλεῖστα τῶν ἠθικῶν δογmicroάτων λαβεῖν τὸν Πυθαγόραν παρὰ Θεmicro-ιστοκλείας τῆς ἐν ∆ελφοῖςrdquo (fr 15 Wehrli = 14 A3 DK) 493 Quanto ao reconhecimento de Pitaacutegoras em Prometeu concordam Hackforth (Philebus 1945 21) Philip (1966 38) Taylor (1968 639) Burkert (1972 85) Waterfield (Plato 1982 60) Casertano (1989 92) e Gosling (1999 55)

215

astronomia com a muacutesica em contraste com uma maneira imperfeita e literalmente ldquode

ouvidordquo com a qual certas pessoas (os muacutesicos) ldquocolocam os ouvidos antes da menterdquo

para compreender a harmonia musical os pitagoacutericos ldquoagem exatamente como os astrocirc-

nomosrdquo estudam os nuacutemeros que resultam dos acordes mesmo natildeo chegando aos nuacute-

meros em si para definir quais seriam consoantes e quais natildeo494

Essas passagens do Filebo centrais para a definiccedilatildeo da dialeacutetica do limita-

doilimitado revelam as raiacutezes pitagoacutericas da teoria dos princiacutepios platocircnica e ndash como

tais ndash constituem um achado preacute-aristoteacutelico de filosofia pitagoacuterica Raiacutezes afirmadas e

reconhecidas pelo proacuteprio texto platocircnico nas maneiras acima descritas e que ndash como

fontes para a elaboraccedilatildeo filosoacutefica platocircnica ndash satildeo reinterpretadas pela Academia que se

percebe nesse sentido como continuadora e mediadora do esforccedilo dialeacutetico-metafiacutesico

pitagoacuterico

Todavia para aleacutem do reconhecimento das fontes pitagoacutericas para a construccedilatildeo

do argumento dialeacutetico-ontoloacutegico a construccedilatildeo da dialeacutetica no Filebo eacute fruto da con-

cepccedilatildeo filosoacutefica platocircnica Como demonstra o fato de no resumo conclusivo de toda a

argumentaccedilatildeo (cf acima 23c) Platatildeo introduzir um terceiro elemento ao lado da oposi-

ccedilatildeo limitadoilimitado trata-se de ldquoum algo misturado mistordquo (en ti summisgoacutemenon)

originado de ambos E ainda um quarto elemento a causa (aitiacutea) dessa mesma mistura

A argumentaccedilatildeo desenvolve-se aqui em pleno acircmbito teoreacutetico platocircnico Ape-

sar de reconhecer as raiacutezes pitagoacutericas (mais precisamente filolaicas se poderia agora

afirmar) da teoria do limitadoilimitado Platatildeo coloca-se em uma perspectiva bem dife-

rente do ponto de vista teoacuterico Um desenvolvimento que mesmo que possiacutevel e de al-

guma forma normal no panorama da histoacuteria da filosofia natildeo obteria por assim dizer a

autorizaccedilatildeo do proacuteprio Filolau

A construccedilatildeo desse acircmbito teoreacutetico platocircnico corresponde aos primeiros movi-

mentos daquela que se chamou ao longo das paacuteginas anteriores de mediaccedilatildeo platocircnica

do pitagorismo No caso especiacutefico da teoria dos princiacutepios conforme aparece na paacutegina

estudada do Filebo Platatildeo opera uma transiccedilatildeo conceitual transformando o ilimitado

em sua raiz pitagoacuterica pensado como pluralidade espacial e numeacuterica em indefinido

494 Eacute curioso notar que a resposta de Glaucon remete novamente ao mundo do divino ∆αιmicroόνιον πρᾶγmicroα ndash afirma Glaucon ndash seria tal caminho ateacute os nuacutemeros enquanto tais (Resp VII 531c) Burnet (1908 228) e Burkert (1972 87) concordam em reconhecer nos οἱ πρόσθεν os pitagoacutericos mencionados em Repuacutebli-ca Mais ceacuteticos satildeo Barbera (1981 395-410) e Centrone (1993 112) No entanto ateacute Frank (1923 155) dessa vez concorda com Burkert

216

abre a porta para a teoria das formas chegando na escala dialeacutetica ateacute a diacuteade indefini-

da

A essa mesma doutrina do limitadoilimitado refere-se o proacutelogo daquele que

deve ter sido o livro de Filolau (44 B1 DK)

42 Os fragmentos de Filolau

421 Ilimitadoslimitantes

A proximidade do fr 1 de Filolau com a paacutegina do Filebo anteriormente citada

foi obviamente notada jaacute na antiguidade Damascio de Damasco uacuteltimo diaacutedoco da

Escola de Atenas afirmava que ldquoo que eacute deriva do limitado e do ilimitado como diz

Platatildeo no Filebo e Filolau nos livros sobre a Naturezardquo (De principiis I 101 3)495

Diversas aproximaccedilotildees tambeacutem entre a lectio de Aristoacuteteles e os testemunhos de

Filolau foram indicadas nas paacuteginas anteriores Essas aproximaccedilotildees somadas ao caraacuteter

de exceccedilatildeo dos testemunhos aristoteacutelicos perante a categorizaccedilatildeo majoritaacuteria platonizan-

te do pitagorismo antigo tornaratildeo a anaacutelise dos fragmentos de Filolau a pedra angular

do presente capiacutetulo De um lado por permitirem comprovar textualmente o processo de

formaccedilatildeo da recepccedilatildeo acadecircmica da matemaacutetica pitagoacuterica por outro lado por constitu-

irem sinais inequiacutevocos de uma teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica datada ainda no seacuteculo V

aEC Teoria esta que Aristoacuteteles demonstra conhecer

Eacute o caso de iniciar a anaacutelise voltando brevemente agrave questatildeo da autenticidade do

livro de Filolau Para aleacutem do jaacute citado (4132) ceticismo de Bywater (1868 21-53)

Burnet (1908 279-284) Frank (1923 263-335) e Leacutevy (1926 70ss) a proximidade

com o testemunho aristoteacutelico faz tambeacutem autores mais recentes como eacute o caso de Ra-

ven (1966 98) Kahn (1974) e Barnes (1982) levantarem a hipoacutetese de que os fragmen-

tos de Filolau seriam uma falsificaccedilatildeo com base no testemunho aristoteacutelico Ainda que

seja tecnicalmente possiacutevel imaginar que algueacutem tenha falsificado o livro de Filolau

495 Orig ldquo ἐπειδή ἐστι τὸ ὂν ἐκ ltπέρατοςgt καὶ ltἀπείρουgt ὡς ἔν τε ltΦιλήβῳgt λέγει ὁ ltΠλάτωνgt καὶ ltΦιλόλαοςgt ἐν τοῖς ltπερὶ φύσεωςrdquo

217

apoacutes o testemunho aristoteacutelico e baseando-se neste o procedimento seria ineacutedito no

interior da pseudoepigrafia do pitagorismo normalmente tendente ao contraacuterio a pla-

tonizar os conceitos pitagoacutericos De fato Burkert (1972 238ss) Huffman (1993 23) e

mais recentemente tambeacutem Kahn (2001 23) concordam em considerar autecircnticos ao

menos os primeiros sete fragmentos da coleccedilatildeo do Diels-Kranz (44 B1-7 DK) Nova-

mente a exceccedilatildeo que a lectio de Aristoacuteteles representa sugere que a falsificaccedilatildeo dos

fragmentos seria lectio difficilior Disso deriva por consequecircncia que eacute mais faacutecil que

seja verdadeiro o contraacuterio isto eacute que esses fragmentos de Filolau sejam autecircnticos e

como tais fontes de Aristoacuteteles

Desses sete exatamente os fragmentos 1 2 3 e 6 dizem diretamente respeito ao

tema do limitadoilimitado que se examinou haacute pouco no Filebo

Assim inicia-se o livro de Filolau portanto

A obra Sobre a Natureza iniciava com a seguinte afirmaccedilatildeo a nature-za no ordenamento do mundo resultou do acordo de coisas ilimitadas e limitantes e assim o inteiro cosmos e todas as coisas que estatildeo nele (44 B1 DK)496

Diversos sinais textuais parecem confirmar tratar-se aqui de um fragmento ori-

ginal a partir do tiacutetulo da obra Periacute Physeos ateacute a presenccedila da partiacutecula deacute497

Para aleacutem do tiacutetulo da obra que poderia ser simplesmente convencional a recor-

recircncia de termos como phyacutesis e koacutesmos situam o fragmento no interior da jaacute secular

tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica operando quase uma siacutentese (toda preacute-socraacutetica) entre a

cosmologia milesiana do ilimitado e a concepccedilatildeo da perfeiccedilatildeo do ser no limite de matriz

eleata fundamentalmente como resposta ou diaacutelogo in progress com filosofias como as

de Anaxaacutegoras e Parmecircnides

Contudo eacute especialmente a introduccedilatildeo aqui dos conceitos de aacutepeira e peiraacutenon-

ta a chamar a atenccedilatildeo Na busca da definiccedilatildeo de uma phyacutesis en tocirc kosmocirc de uma

496 Orig ldquo ltΠερὶ φύσεωςgt ὧν ἀρχὴ ἥδε ltlsquoἁ φύσις δ ἐν τῶι κόσmicroωι ἁρmicroόχθη ἐξ ἀπείρων τε καὶ περαινό-ντων καὶ ὅλος ltὁgt κόσmicroος καὶ τὰ ἐν αὐτῶι πάνταrsquo rdquo (44 B1 DK) 497 Boeckh (1819 45) havia sugerido que natildeo podia se tratar aqui do iniacutecio do livro de Filolau exatamente pela presenccedila do δέ no iniacutecio da sentenccedila O δέ sugeriria haver algo que foi dito antes disso e por este motivo natildeo poderia estar no proacutelogo do livro Todavia Burkert (1972 252) seguido por Huffman (1993 95) argumenta que a presenccedila do δέ no iniacutecio de uma obra era praacutetica comum entre os autores do seacuteculo V aEC (cf Heraacuteclito fr 1 e Iacuteon fr 1) e que devia se referir ao tiacutetulo desta Contrariamente agrave tese de Boeckh portanto sua presenccedila seria um bom motivo para considerar esse fragmento como autenticamen-te preacute-socraacutetico

218

racionalidade interna agrave natureza que poderiacuteamos tomar como sinocircnimo do proacuteprio ar-

cheacute preacute-socraacutetico Filolau natildeo afirma ndash como se poderia imaginar a partir de testemu-

nho aristoteacutelico ndash que ldquotudo eacute nuacutemerordquo e sim que haacute um ldquoacordo de coisas ilimitadas e

limitantesrdquo

Haacute um detalhe terminoloacutegico que merece ser destacado498 Filolau natildeo utiliza

propriamente os termos limitadoilimitado e sim sempre somente o plural aacutepeira e

peiraacutenonta isto eacute em uma traduccedilatildeo filologicamente mais fiel e filosoficamente mais

fecunda ldquocoisas ilimitadas e limitantesrdquo por se tratar este uacuteltimo de um particiacutepio pre-

sente do verbo peraiacutenocirc Ao contraacuterio tanto no Filebo de Platatildeo quanto na Metafiacutesica de

Aristoacuteteles os termos satildeo pensados e utilizados no singular o nome peacuteras para ldquolimiterdquo

ou o particiacutepio passivo do verbo peraiacutenocirc peperasmeacutenon para ldquolimitadordquo e o adjetivo

neutro singular aacutepeiron precedido de artigo (toacute aacutepeiron) o ldquoilimitadordquo todos eles no

singular A insistecircncia no fato de que esses ldquoprinciacutepiosrdquo sejam plurais indica diretamen-

te o fato de eles natildeo serem compreendidos por Filolau como princiacutepios metafiacutesicos agrave

maneira que seratildeo compreendidos em seguida por Platatildeo e Aristoacuteteles que por exata-

mente esse motivo preferem utilizar o singular499

Eacute o que aparece no fr 2 que utilizando a mesma terminologia do ldquoacordordquo de

ldquoilimitadoslimitantesrdquo do fr 1 explicita mais claramente qual devia ser o alcance dessa

teoria

De Filolau sobre o ordenamento do mundo necessariamente as coisas que satildeo devem ser todas ou ilimitadas ou limitantes ou ilimitadas ou limitantes ao mesmo tempo limitantes somente poreacutem ou somente i-limitadas natildeo poderiam ser considerando que mostram evidentemente serem as coisas nem todas limitantes nem todas ilimitadas eacute claro portanto que do acordo de limitantes e ilimitados tanto o ordena-mento do mundo quanto as coisas nele resultaram Eacute demonstrado pe-los fatos que as coisas que derivam dos limitantes limitam e que as que derivam dos limitantes e ilimitados limitam ou natildeo limitam e que aquelas que derivam dos ilimitados parecem ilimitadas (44 B2 DK)500

498 Cf para essas observaccedilotildees Burkert (1972 253ss) e Huffman (1993 39) 499 Cf mais em geral para essa recepccedilatildeo de Aristoacuteteles dos ldquoprinciacutepiosrdquo dos preacute-socraacuteticos especialmente Cherniss (1935 374ss) que considera os testemunhos deste uacuteltimo ldquoerrors of interpretation which influ-enced Aristotleacutes general attitude toward the Presocratics and which continue to have an effect on mo-dern historiansrdquo 500 Orig ldquoἘκ τοῦ Φιλολάου περὶ κόσmicroου ltἀνάγκα τὰ ἐόντα εἶmicroεν πάντα ἢ περαίνοντα ἢ ἄπειρα ἢ περα-ίνοντά τε καὶ ἄπειρα ἄπειρα δὲ microόνον ltἢ περαίνοντα microόνονgt οὔ κα εἴη ἐπεὶ τοίνυν φαίνεται οὔτ ἐκ περαινόντων πάντων ἐόντα οὔτ ἐξ ἀπείρων πάντων δῆλον τἆρα ὅτι ἐκ περαινόντων τε καὶ ἀπείρων ὅ τε κόσmicroος καὶ τὰ ἐν αὐτῶι συναρmicroόχθη δηλοῖ δὲ καὶ τὰ ἐν τοῖς ἔργοις τὰ microὲν γὰρ αὐτῶν ἐκ περαινόντων

219

A argumentaccedilatildeo deste fr 2 natildeo deixa duacutevidas sobre o fato de que limitantes e i-

limitados natildeo devem ser pensados ndash em Filolau ndash como princiacutepios abstratos e separados

do mundo mas como atributos da proacutepria realidade Uma confirmaccedilatildeo disso eacute a insis-

tecircncia no interior do fragmento de como limitantesilimitados satildeo evidentes como satildeo

de alguma forma manifestos no mundo Por quatro vezes Filolau insiste nisso utilizan-

do termos ligados ao campo semacircntico do aparecer manifesto a) phaiacutenetai eoacutenta

ldquomostram evidentemente serem as coisas que satildeordquo b) decirclon ldquoeacute claro que do acordordquo

c) decircloi em tois eacutergois ldquoeacute demonstrado pelos fatosrdquo d) phaneacuteontai ldquoparecem

ilimitadasrdquo Bem longe portanto de uma falsificaccedilatildeo platonizante

Haacute algo de significativo tambeacutem no ritmo do fr 2 A ladainha dos limitantes

ilimitados lembra de perto um estilo encantatoacuterio Mais um sinal certamente do

profundo enraizamento do texto filolaico no contexto da produccedilatildeo filosoacutefica preacute-

socraacutetica501 A expressatildeo das ideias eacute aqui performaacutetica eacute como se a repeticcedilatildeo da

harmonia entre limitantes e ilimitados quisesse fazer ecoar nas palavras o som dessa

mesma harmonia tornando-a assim presente pela forccedila das palavras O fragmento de

certa forma pede para ser ouvido em seu ritmos e sonoridade proacuteprios Esse estilo

oracular insere o texto filolaico tambeacutem na tradiccedilatildeo esoteacuterica pitagoacuterica (e natildeo somente

pitagoacuterica) bem descrita por Gemelli Marciano

Nos textos esoteacutericos de Heraacuteclito Parmecircnides Empeacutedocles a recep-ccedilatildeo dos myacutethoi e dos loacutegoi eacute expressa unicamente pelo verbo akoucircein ouvir Que natildeo seja simplesmente a reproduccedilatildeo artificial de uma situ-accedilatildeo de transmissatildeo oral mas de uma situaccedilatildeo efetiva resulta especi-almente evidente no momento em que a palavra eacute expressamente defi-nida como uma entidade fiacutesica que penetra no corpo provocando mu-taccedilotildees O poder de accedilatildeo e de transformaccedilatildeo exercido pela palavra em sua fisicidade eacute por outro lado o elemento fundamental dos encanta-mentos e das foacutermulas maacutegicas como Goacutergias testemunha explicita-mente em seu Elogio de Helena (Gemelli Marciano 2007 449-450)502

περαίνοντι τὰ δ ἐκ περαινόντων τε καὶ ἀπείρων περαίνοντί τε καὶ οὐ περαίνοντι τὰ δ ἐξ ἀπείρων ἄπειρα φανέονταιgtrdquo (44 B2 DK) 501 Burkert (1972 252 n67) cita os fragmentos 6 de Anaxaacutegoras e 8 de Parmecircnides como exemplos desse mesmo estilo 502 Orig ldquoIn den esoterischen Texten Von Heraklit Parmenides und Empedokles wird die Rezeption der Myacutethoi und Loacutegoi ausscheliesslich mit dem Verb akouacuteein houmlren ausgedruumlckt Dass es sich dabei nicht einfach nur um die gekuumlnstelte Nachahmung einer oralen Vermittlungssituation sondern um ein reales Geschehen handelt wrid vor allem an dem Stellen deutilich an denen das Wort explizit als physische Entitaumlt aufgefasst wird dir in den Koumlrper endringt und dort Aumlnderungen hervorruft Die maumlchtige Wir-

220

A pluralidade e a naturalidade (no sentido de serem atributos da phyacutesis entendida

como natureza real) dos ilimitadoslimitantes satildeo confirmadas tambeacutem pelo fato de

Filolau recusar-se a definir ou enumerar exatamente o que entende ou quais realidades

considera como limitantes e ilimitadas isto eacute a dar uma lista de princiacutepios limitantes e

outra de princiacutepios ilimitados como poderiam ser a aacutegua o fogo etc

De fato na primeira parte do fr 6 assim expressa-se

Sobre a natureza e a harmonia as coisas estatildeo assim o ser das coisas que eacute eterno e a proacutepria natureza requerem um conhecimento divino e natildeo humano Aleacutem disso seria impossiacutevel que alguma das coisas que satildeo fosse por noacutes conhecida se natildeo tivesse como fundamento o ser das realidades que formam o mundo ordenado isto eacute as limitantes e as ilimitadas (44 B6 1-8 DK)503

Longe de tratar-se simploriamente de um exemplo da ldquomodeacutestia caracteriacutestica do

pensamento arcaicordquo (Kahn 1974 173) 504 aqui a referecircncia ao divino ndash analogamente

presente nas paacuteginas acima citadas do Filebo ndash apresenta-se mais como uma afirmaccedilatildeo

em polecircmica antijocircnica No sentido de que a definiccedilatildeo da realidade uacuteltima encontra-se

tatildeo ldquoaleacutem das capacidades de conhecimento humanordquo seria mais adequado contentar-se

em definir que todas as realidades devem ter surgido de alguma forma de limitantes e

ilimitados no lugar de imaginar desajeitadamente archaiacute como a aacutegua o ar etc Se al-

guma coisa seraacute entatildeo cognociacutevel esta seraacute a realidade das coisas visiacuteveis o mundo

fiacutesico portanto505 Provavelmente por esse motivo Aristoacuteteles (Met 989b) como se

viu afirmava que a filosofia pitagoacuterica explicava melhor os entes fiacutesicos ainda que os

princiacutepios por eles desenvolvidos se prestassem mais para o niacutevel suprassensiacutevel

Eacute possiacutevel ouvir aqui no fr 6 ecos da mesma preocupaccedilatildeo que Platatildeo parece

colocar na boca de Soacutecrates quando polemiza com ldquoos saacutebios de agorardquo (Filebo 17a)

kung und Veraumlnderun die das Wort qua seiner Koumlrperlichkeit ausuumlbt ist im uumlbrigen das grundlegende Element aller magischen Formeln und Zauber wie Gorgias im Helena-Enkomion ausdruumlcklich erklaumlrtrdquo 503 Orig ldquo περὶ δὲ φύσιος καὶ ἁρmicroονίας ὧδε ἔχει ἁ microὲν ἐστὼ τῶν πραγmicroάτων ἀίδιος ἔσσα καὶ αὐτὰ microὲν ἁ φύσις θείαν γα καὶ οὐκ ἀνθρωπίνην ἐνδέχεται γνῶσιν πλέον γα ἢ ὅτι οὐχ οἷόν τ ἦν οὐθὲν τῶν ἐόντων καὶ γιγνωσκόmicroενον ὑφ ἁmicroῶν γα γενέσθαι microὴ ὑπαρχούσας τᾶς ἐστοῦς τῶν πραγmicroάτων ἐξ ὧν συνέστα ὁ κόσ-microος καὶ τῶν περαινόντων καὶ τῶν ἀπείρωνrdquo (44 B6 1-8 DK) 504 Orig ldquoepistemic modesty that is custumary in archaic thoughtrdquo (Kahn 1974 173) 505 Cf Bolzani Filho (2006) para a relaccedilatildeo entre o elemento divino e a explicaccedilatildeo fiacutesica dos fenocircmenos em Tales de Mileto ldquoo divino permanece desempenhando papel decisivo nessa nova forma de ver o mundo porque eacute a ele que ainda se recorre para veicular o que ultrapassa o humanordquo (2006 106)

221

pelo fato de estes passarem de maneira demasiadamente apressada do um para o infini-

to sem considerar as realidades intermediaacuterias isto eacute em pretensa continuidade com a

tradiccedilatildeo pitagoacuterica sem considerar a determinaccedilatildeo numeacuterica Pois eacute exatamente aquilo

que estaacute no meio que se apresenta para Platatildeo como decisivo para a compreensatildeo do

mundo Ainda que Filolau ldquoinocente das distinccedilotildees posterioresrdquo (Huffman 1993 52)

esteja aqui revelando mais simplesmente uma polecircmica com Anaximandro por exem-

plo mas tambeacutem com Anaxaacutegoras e seus archaiacute indeterminados

A polecircmica antipluralista coloca Filolau de acordo com Parmecircnides Semelhante

preocupaccedilatildeo epistecircmica eacute confirmada tambeacutem pelo fr 3 ldquoDe maneira alguma seria pos-

siacutevel conhecer algo se todas as coisas fossem ilimitadasrdquo (44 B3 DK)506 A aproxima-

ccedilatildeo com a filosofia eleaacutetica eacute evidente tambeacutem no uso do termo estocirc no fr 6 que foi

traduzido por ldquoserrdquo o ser das coisas (estocirc tocircn pragmaacuteton) e que eacute definido aidiacuteos eter-

no Como no Poema de Parmecircnides tambeacutem em Filolau o ser eacute como tal incognociacutevel

a menos que natildeo intervenha uma revelaccedilatildeo divina Eacute certamente preciso ndash mais uma vez

ndash resistir agrave tentaccedilatildeo de compreender estocirc a partir das categorias aristoteacutelicas natildeo se trata

aqui da mateacuteria indiferenciada ou a causa material agrave qual o limite-harmonia ou causa

formal daraacute forma Ao contraacuterio estocirc eacute constituiacutedo por ambas as realidades as ilimita-

das e as limitantes e a polecircmica de Filolau como se viu eacute interna agrave dialeacutetica preacute-

socraacutetica Eacute este certamente mais um sinal da antiguidade da doutrina507

O caminho de Filolau eacute certamente original mesmo no interior da filosofia preacute-

socraacutetica pois por um lado natildeo expressa uma posiccedilatildeo monista uma vez que o ser resul-

ta da pluralidade de ilimitadoslimitantes por outro lado o ceticismo epistemoloacutegico do

fr 6 eacute moderado pela possibilidade de conhecer ao menos duas coisas isto eacute esta mes-

ma pluralidade e a harmoniacutea que a manteacutem unida acordada

Eacute exatamente a harmoniacutea o acordo (harmoacutechthe) entre os limitantesilimitados

em uacuteltima anaacutelise que permite explicar o surgimento da realidade como testemunham

tanto o fr 1 quanto o fr 6 A introduccedilatildeo desse terceiro elemento conectivo

harmonizador dos limitantesilimitados faz Filolau comeccedilar a procurar exemplos de

506 Orig ldquo ltἀρχὰνgt γὰρ ltοὐδὲ τὸ γνωσούmicroενον ἐσσεῖται πάντων ἀπείρων ἐόντωνgt κατὰ τὸν Φιλόλαονrdquo (44 B3 DK) 507 Concordam com esta interpretaccedilatildeo Burkert (1972 256) e Kahn (1974 173) Huffman (1993 130ss) e Centrone (1996 125) lembram o fato de essa homologaccedilatildeo do ἐστὼ com a causa material aristoteacutelica ser uma das caracteriacutesticas da literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica

222

como as coisas satildeo ldquoacordadasrdquo508 Primeiro entre todos o fogo parece um bom

exemplo no fr 7 ldquoo primeiro acordado o um no meio da esfera eacute chamado fogordquo (44

B7 DK)509 O fogo parece prestar-se bem agraves intenccedilotildees explicativas de Filolau ao

mesmo tempo siacutembolo do ilimitaacutevel seu estar cosmologicamente no centro da esfera o

delimita claramente510 Eacute possiacutevel que exatamente essa referecircncia filolaica ao fogo

como um no centro da esfera possa explicar a citaccedilatildeo prometeacutetica relativa agraves origens

pitagoacutericas da teoria do limitanteilimitado no Filebo Ainda que seja possiacutevel trata-se

aqui de simples assonacircncias conceituais511

Contudo o acircmbito exemplificativo que mais interessa em relaccedilatildeo tanto ao

testemunho aristoteacutelico quanto agrave recepccedilatildeo platocircnica do Filebo eacute o da escala musical Na

segunda parte do fr 6 eacute definida uma grandeza do acordo (harmoniacutea meacutegethos) no

interior da descriccedilatildeo da escala diatocircnica pitagoacuterica (a mesma que eacute pressuposta no

Timeu 35b)

A grandeza do acordo eacute formada pelos intervalos da quarta e de quin-ta A quinta eacute maior do que a quarta por um tom De fato da cordatom mais alta agrave corda do meio eacute uma quarta da do meio agrave ultima eacute uma quinta Da uacuteltima agrave terccedila eacute uma quarta e da terceira agrave mais alta uma quinta O intervalo entre a do meio e a terceira eacute um tom (98) a quar-ta eacute expressa pela relaccedilatildeo epiacutetrita (43) e a quinta pelo emioacutelio (32) e a oitava pelo duplo (21) Assim o acordo (escala harmocircnica) com-preende cinco tons e dois semitons menores a quinta trecircs tons e um semitom menor a quarta dois tons e um semitom menor (44 B6 16-24 DK)512

508 Frank (1923 304ss) observa que exatamente esta necessidade de fornecer provas de seus argumentos seria um sinal inequiacutevoco de que se trata no caso dos fragmentos de Filolau de uma falsificaccedilatildeo heleniacutes-tica Todavia o que se diraacute em seguida sobre os meacutetodos das archaiacute que Filolau compartilha com autores do seacuteculo V aEC como Hipoacutecrates de Quios e Heroacutedoto deveraacute sugerir exatamente o contraacuterio 509 Orig ldquo ltτὸ πρᾶτον ἁρmicroοσθέν τὸ ἕν ἐν τῶι microέσωι τᾶς σφαίρας ἑστία καλεῖταιgtrdquo (44 B7 DK) 510 Cf outros testemunhos doxograacuteficos paralelos em A16 e A17 511 Outros exemplos surgem do acircmbito meacutedico-antropoloacutegico como eacute o caso de um paralelismo significa-tivo entre o fogo e o calor da vida (Huffman 1993 45) A economia destas paacuteginas torna impossiacutevel uma anaacutelise detalhada dessas referecircncias 512 Orig ldquo ἁρmicroονίας δὲ microέγεθός ἐστι συλλαβὰ καὶ δι ὀξειᾶν τὸ δὲ δι ὀξειᾶν microεῖζον τᾶς συλλαβᾶς ἐπογδ-όωι ἔστι γὰρ ἀπὸ ὑπάτας ἐπὶ microέσσαν συλλαβά ἀπὸ δὲ microέσσας ἐπὶ νεάταν δι ὀξειᾶν ἀπὸ δὲ νεάτας ἐς τρίταν συλλαβά ἀπὸ δὲ τρίτας ἐς ὑπάταν δι ὀξειᾶν τὸ δ ἐν microέσωι microέσσας καὶ τρίτας ἐπόγδοον ἁ δὲ συλλαβὰ ἐπίτριτον τὸ δὲ δι ὀξειᾶν ἡmicroιόλιον τὸ διὰ πασᾶν δὲ διπλόον οὕτως ἁρmicroονία πέντε ἐπόγδοα καὶ δύο διέσιες δι ὀξειᾶν δὲ τρία ἐπόγδοα καὶ δίεσις συλλαβὰ δὲ δύ ἐπόγδοα καὶ δίεσιςrdquo (44 B6 16-24 DK)

223

Aqui a imagem de limitantes e ilimitados ndash como na teoria musical e no exem-

plo que Platatildeo utiliza no Filebo ndash eacute aquela de uma corda musical um contiacutenuo ilimita-

do na qual satildeo definidos limitados intervalos especiacuteficos513 Mais uma vez a harmoni-

a o acordo natildeo devem ser nunca confundidos com o limitante o acordo funciona pelo

nuacutemero mas o nuacutemero e o acordo natildeo se substituem aos limitantes

A passagem no interior do mesmo fr 6 de uma primeira parte cosmoloacutegica para

uma segunda parte musical natildeo surpreende especialmente agrave luz do testemunho aristoteacute-

lico jaacute citado que conecta exatamente essas duas dimensotildees no resumo da teoria numeacute-

rica pitagoacuterica ldquoPensavam serem os elementos dos nuacutemeros os elementos de todas as

coisas e que a totalidade do ceacuteu eacute harmonia e nuacutemerordquo (Met 986a3)

A possibilidade indicada pelo fragmento de Filolau de numerar os intervalos

consoantes remete novamente para o tema central deste capiacutetulo isto eacute aquele do nuacute-

mero pitagoacuterico Eacute significativo que ateacute este momento no interior dos fragmentos de

Filolau o nuacutemero como tal natildeo apareccedila E todavia como o fr 6 acima testemunha a

tematizaccedilatildeo do nuacutemero natildeo eacute totalmente ausente no interior dos fragmentos

Resta perguntar-se portanto qual seria a funccedilatildeo dos nuacutemeros no interior do sis-

tema filolaico e qual a relaccedilatildeo destes com a dupla limitantesilimitados

422 O papel dos nuacutemeros em Filolau

Eacute o fr 4 de Filolau a indicar mais precisamente qual devia ser o papel dos nuacuteme-

ros em sua filosofia

E de verdade todas as coisas que satildeo conhecidas tecircm nuacutemero Pois desta forma natildeo eacute possiacutevel que alguma coisa seja compreendida ou conhecida sem este (44 B4 DK)514

A expressatildeo arithmoacuten eacutechonti ldquotecircm nuacutemerordquo deve ser compreendida no rastro

da compreensatildeo grega dos arithmoiacute como pluralidade ordenada no sentido de que a

realidade eacute constituiacuteda por uma pluralidade ordenada ldquoTodas as coisas tecircm nuacutemerordquo

513 Para um estudo aprofundado da relaccedilatildeo entre a teoria musical grega e os instrumentos de cordas veja-se Rocconi (2003) aleacutem do recentiacutessimo estudo sobre o monocoacuterdio de Creese (2010) 514 Orig ldquo ltκαὶ πάνταgt γα ltmicroὰν τὰ γιγνωσκόmicroενα ἀριθmicroὸν ἔχοντι οὐ γὰρ οἷόν τε οὐδὲν οὔτε νοηθῆmicroεν οὔτε γνωσθῆmicroεν ἄνευ τούτουgtrdquo (44 B4 DK)

224

significa na praacutetica ldquotodas as coisas satildeo basicamente nuacutemerordquo (Burkert 1972

266s)515 Todavia a segunda parte do fragmento natildeo deixa duacutevidas em relaccedilatildeo a qual

deveria ser o papel dos nuacutemeros em Filolau A funccedilatildeo destes eacute precisamente epistemo-

loacutegica graccedilas ao fato de a realidade ldquoter nuacutemerordquo eacute que ela pode ser conhecida enquan-

to eacute passiacutevel de uma descriccedilatildeo numeacuterica

O argumento epistemoloacutegico do fr 4 foi obviamente considerado desde Bywa-

ter (1868 35) uma prova da inautenticidade dos fragmentos filolaicos Todavia diver-

sos comentadores chamaram atenccedilatildeo mais recentemente para o paralelo interesse fun-

damentalmente epistemoloacutegico em filoacutesofos preacute-socraacuteticos anteriores ao Filolau como

seria o caso da proacutepria filosofia de Parmecircnides516 Huffman (1993 67) anota com razatildeo

que os nuacutemeros respondem diretamente agraves exigecircncias epistemoloacutegicas parmenideias as

mesmas que no Poema satildeo postas como ldquosinaisrdquo no caminho do ser (28 B8 DK) para

que possa haver conhecimento o objeto deveraacute ser ingecircnito eterno etc Em suma algo

limitado Todavia como se viu acima Filolau deseja fugir da imobilidade do ser eleaacuteti-

co Exatamente a introduccedilatildeo dos nuacutemeros parece a melhor soluccedilatildeo para manter de um

lado a pluralidade do outro a determinaccedilatildeo do ser As relaccedilotildees matemaacuteticas expressas

pela escala musical do fr 6 de fato satildeo perfeitamente determinadas e podem ser encon-

tradas na realidade Ainda que a realidade revele-se primariamente como harmonia de

limitantesilimitados portanto e natildeo como nuacutemero este uacuteltimo pode ser considerado

como sinal (agrave maneira de Parmecircnides) do ser das coisas que satildeo

Eacute o que sugere o fr 5 que utiliza exatamente o verbo semaiacuteno para descrever

como a realidade expressa os nuacutemeros

O nuacutemero possui duas espeacutecies que lhe satildeo proacuteprias o iacutempar e o par a terceira resultante da mistura de ambos eacute o pariacutempar De cada uma das duas espeacutecies existem muitas formas das quais cada coisa en-quanto tal daacute sinais (44 B5 DK)517

515 Novamente dessa forma se poderia confirmar a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que para os pitagoacutericos os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas (autaacute taacute praacutegmata) e natildeo intermediaacuterios (metaxuacute) conforme Platatildeo 516 Cf especialmente Mourelatos (1970) e Kahn (1968-69) e mais recentemente Curd (1998) e Robbiano (2006) 517 Orig ldquo ltὅ γα microὰν ἀριθmicroὸς ἔχει δύο microὲν ἴδια εἴδη περισσὸν καὶ ἄρτιον τρίτον δὲ ἀπ ἀmicroφοτέρων microειχ-θέντων ἀρτιοπέριττον ἑκατέρω δὲ τῶ εἴδεος πολλαὶ microορφαί ἃς ἕκαστον αὐταυτὸ σηmicroαίνειgtrdquo (44 B5 DK)

225

As trecircs espeacutecies dos nuacutemeros propriamente natildeo correspondem agrave realidade e

sim a sinais emitidos pela realidade para que esta possa ser conhecida A bem ver por-

tanto Filolau natildeo diz que a realidade como tal eacute nuacutemero (como diraacute Aristoacuteteles) e sim

que eacute cognociacutevel pelo nuacutemero desde que se captem os sinais que ela emite A realidade

mesma eacute de fato constituiacuteda por coisas limitantes e coisas ilimitadas das quais os nuacuteme-

ros podem ser considerados sinais Aqui reside talvez a maior originalidade do pensa-

mento de Filolau a introduccedilatildeo da dupla de princiacutepios limitantesilimitados como princiacute-

pios explicativos da realidade e natildeo como jaacute de alguma forma algo real Uma perspec-

tiva mais epistemoloacutegica do que ontoloacutegica portanto Bem longe de tratar-se simples-

mente de ldquouma mistura de mito e fisiologiardquo (Burkert 1972 350)518

E todavia o fr 5 sugere poder haver em uacuteltima anaacutelise uma correspondecircncia

entre estes dois niacuteveis o ontoloacutegico (limitantesilimitados) e epistemoloacutegico (par-

iacutempar) A introduccedilatildeo de uma terceira espeacutecie de fato o artiopeacuteritton o ldquopariacutemparrdquo

pode corresponder na ordem argumentativa agrave introduccedilatildeo da harmoniacutea para a dupla limi-

tantesilimitados Eacute o que sugere o proacuteprio Aristoacuteteles conforme foi antecipado acima

quando propotildee uma direta correspondecircncia entre as duas duplas ldquoafirmam como ele-

mentos constitutivos do nuacutemero o par e o iacutempar dos quais o primeiro eacute ilimitado e o

segundo limitado O um deriva de ambos os elementos porque eacute par e iacutempar ao mesmo

tempordquo (Met 986a 17-19)519 Aristoacuteteles explicita mais precisamente o sentido dessa

correspondecircncia entre par e limitado e iacutempar e ilimitado em Fiacutesica (203a)

Para eles [os pitagoacutericos] o ilimitado eacute o nuacutemero par Este de fato quando interceptado e limitado pelo iacutempar torna presente a indeter-minaccedilatildeo aos entes Sinal disso eacute o que acontece com os nuacutemeros de fato conforme sejam colocados ou menos os gnomotildees em torno ao um a espeacutecie (do nuacutemero) permanece uma soacute ou ao contraacuterio torna-se sempre diferente (Phys 203a = 58 B28 DK)520

518 Orig ldquo melaacutenge of myth and physiologiacuteardquo 519 Orig ldquo τοῦ δὲ ἀριθmicroοῦ στοιχεῖα τό τε ἄρτιον καὶ τὸ περιττόν τούτων δὲ τὸ microὲν πεπερασmicroένον τὸ δὲ ἄπειρον τὸ δ ἓν ἐξ ἀmicroφοτέρων εἶναι τούτων (καὶ γὰρ ἄρτιον εἶναι καὶ περιττόν)rdquo (Met 986a 17-19) 520 Orig ldquo καὶ οἱ microὲν τὸ ἄπειρον εἶναι τὸ ἄρτιον (τοῦτο γὰρ ἐναπολαmicroβανόmicroενον καὶ ὑπὸ τοῦ περιττοῦ περαινόmicroενον παρέχειν τοῖς οὖσι τὴν ἀπειρίαν σηmicroεῖον δ εἶναι τούτου τὸ συmicroβαῖνον ἐπὶ τῶν ἀριθmicroῶν περιτιθεmicroένων γὰρ τῶν γνωmicroόνων περὶ τὸ ἓν καὶ χωρὶς ὁτὲ microὲν ἄλλο ἀεὶ γίγνεσθαι τὸ εἶδος ὁτὲ δὲ ἕν)rdquo (Phys 203a = 58 B28DK)

226

A explicaccedilatildeo aristoteacutelica pode ser facilmente visualizada a partir do momento

em que se utilize a aritmeacutetica dos pseacutephoi de Eurito acima citada521 Colocando de fato

um gnoacutemon um esquadro para desenhar acircngulos retos em volta do um ou do dois res-

pectivamente resultam duas seacuteries diferentes de nuacutemeros os pares e os iacutempares O es-

quadro que circunscreve o um iraacute sempre interceptar nuacutemeros iacutempares resultando sem-

pre em figuras quadradas O esquadro que circunscreve os nuacutemeros pares ao contraacuterio

iraacute sempre desenhar retacircngulos isto eacute figuras geomeacutetricas de lados sempre diferentes

conforme a figura abaixo

Para aleacutem da indistinccedilatildeo entre plano numeacuterico e plano cosmoloacutegico da qual A-

ristoacuteteles queixava-se (cf acima Met 990a18-22) o testemunho de Fiacutesica 203a acaba

confirmando a autenticidade de certa correspondecircncia em Filolau entre os princiacutepios

ilimitadoslimitados e os nuacutemeros Eacute significativo tambeacutem que agrave harmoniacutea citada por

Filolau na segunda parte de seu fr 6 sobre as proporccedilotildees numeacutericas das escalas musi-

cais eacute atribuiacuteda uma grandeza (meacutegethos) De certa forma eacute possiacutevel imaginar que Fi-

lolau estivesse pensando a harmonia entre limitantes e limitados como algo que pudesse

ser ele mesmo expresso numericamente

Contudo eacute ainda o fr 5 de Filolau a natildeo autorizar a levar essa correspondecircncia

muito longe pois a realidade semaiacutenei ldquodaacute sinaisrdquo dos nuacutemeros pelos quais ela pode ser

contada (ldquotecircm nuacutemerosrdquo diz no fr 4) isto eacute explicada Poreacutem os nuacutemeros natildeo satildeo a

realidade e menos ainda coincidem com os princiacutepios ilimitadoslimitantes

Eacute verdade que o uso da aritmogeometria por Filolau eacute inegaacutevel como a explica-

ccedilatildeo de Aristoacuteteles (Phys 203a) sugeriu O proacuteprio testemunho A7a declara a proemi-

necircncia atribuiacuteda por ele agrave geometria sobre todas as outras ciecircncias ldquoa geometria eacute prin-

521 Eurito eacute considerado pela doxografia disciacutepulo de Filolau (D L Vitae III 6 VII 46)

227

ciacutepio e paacutetria-matildee das outras ciecircnciasrdquo (44 A7a DK)522 Aqui a geometria eacute dita ser

archeacute das ciecircncias da mesma forma como a cidade-matildee eacute archeacute de suas colocircnias isto eacute

como causa e princiacutepio explicativo de sua existecircncia

Todavia o interesse de Filolau pelos nuacutemeros eacute fundamentalmente por estes

como princiacutepios explicativos da realidade no interior daquela nova forma de investiga-

ccedilatildeo que foi chamada de meacutetodo das archaiacute uma metodologia de pesquisa que busca os

princiacutepios suficientes para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos que ocupa tanto historiadores

quanto filoacutesofos geocircmetras e meacutedicos ao longo do seacuteculo V aEC523

Prova disso eacute a jaacute citada passagem do Anocircnimo Londinense (44 A27 DK) Nela

Filolau afirma primeiramente que o corpo ldquoeacute constituiacutedo de calorrdquo em interessante pa-

ralelo com o fragmento sobre o fogo no centro da esfera (44 B7 DK) que indicaria uma

correspondecircncia entre cosmologia e medicina que remete para o pensamento macro-

microcoacutesmico arcaico conforme foi considerado acima em relaccedilatildeo agrave embriologia Po-

reacutem em um segundo momento chama archaiacute do ldquosurgimento das doenccedilasrdquo respecti-

vamente ldquobiacutelis sangue e catarrordquo Huffman (1993 289) afirma que a argumentaccedilatildeo aqui

atribuiacuteda a Filolau incorre em uma contradiccedilatildeo como indicar trecircs diversas archaiacute para

as doenccedilas sendo que no iniacutecio do mesmo testemunho Filolau afirmaria serem nossos

corpos constituiacutedos pelo uacutenico princiacutepio o calor Natildeo seria mais coerente atribuir ao

mesmo princiacutepio (o calor) a origem das doenccedilas

Contudo o procedimento argumentativo de Filolau eacute anaacutelogo agravequele que este

desempenha em relaccedilatildeo aos nuacutemeros enquanto o calor eacute princiacutepio suficiente para expli-

car embriologicamente o surgimento do ser vivente para compreender a origem das

doenccedilas satildeo necessaacuterios ao contraacuterio trecircs diferentes princiacutepios Da mesma forma ndash esta

eacute a tese que se quer defender ndash o fato de a realidade ser constituiacuteda por ilimitados e limi-

tantes natildeo significa que estes possam explicar todas as coisas pois a realidade tem tam-

beacutem nuacutemeros e com suas seacuteries e relaccedilotildees os nuacutemeros satildeo suficientes para explicar di-

versos fenocircmenos entre eles as escalas musicais do fr 6

522 Orig ldquo γεωmicroετρία κατὰ τὸν Φιλόλαον ἀρχὴ καὶ microητρόπολις τῶν ἄλλων (microαθηmicroάτων)rdquo (44 A7a DK) 523 Eacute o caso de remeter a um meu estudo anterior para o detalhamento desse meacutetodo das archaiacute e suas referecircncias Cf Cornelli (2003c) Cf para esta referecircncia tambeacutem Burkert (1972 420 ldquoFrom about the middle of the fifth century it is clear that mathematics is a center of intellectual interest Almost all the important thinkers are concerned with mathematical questionsrdquo) e Huffman (1993 78-92)

228

O uso dos nuacutemeros como princiacutepios explicativos em sentido mais epistemoloacutegi-

co que ontoloacutegico eacute o argumento mais forte de Huffman contra a lectio de Burkert da

teoria dos nuacutemeros de Filolau que evidencia suas caracteriacutesticas fundamentais de misti-

cismo dos nuacutemeros524 A base da discoacuterdia estaacute na existecircncia de testemunhos de Filolau

que indicariam essa abordagem numeroloacutegica Eacute certamente o caso de A14 que atribui

figuras geomeacutetricas a determinadas divindades e que desde Tannery (1899) eacute associado

ao primeiro aparecimento da astrologia na Greacutecia Resquiacutecio dessa mesma numerologia

poderia estar no proacuteprio testemunho de Aristoacuteteles da associaccedilatildeo de determinados nuacute-

meros a propriedades e entidades como a justiccedila a alma ou o intelecto (Met 985b27-32

cf acima) Na mesma linha Filolau refere-se no fr 20 ao nuacutemero sete como nuacutemero

ldquovirgemrdquo e ldquosem-matildeerdquo (44 B20 DK)525

Essas observaccedilotildees somando-se ao fato de os fragmentos de Filolau natildeo revela-

rem grandes descobertas ou avanccedilos em relaccedilatildeo a teorias matemaacuteticas de seus contem-

poracircneos sugerem que seria outro o uso que ele faria dos nuacutemeros

Em contrapartida a tese de Huffman incorre tambeacutem em dificuldades quando

aplicada ao acircmbito agora tratado da embriologia e medicina do Anocircnimo Londinense

pelo fato de Filolau natildeo se referir em algum momento aos nuacutemeros para explicar ambos

os campos Isto eacute ainda mais significativo quando se olha para o fato de que o uso da

matemaacutetica no proacuteprio corpus hipocraacutetico eacute bastante atestado notadamente em relaccedilatildeo

aos ciclos da gravidez e agraves diversas fases das doenccedilas526 De alguma forma parece que

o ldquoprograma de Filolaurdquo (Huffman 1993 74) de busca da estrutura numeacuterica da realida-

524 Cf para isso o que foi dito acima (18) em relaccedilatildeo ao uso do termo aritmologia para indicar mais pre-cisamente a tradiccedilatildeo numeroloacutegica pitagoacuterica Para amplo estudo sobre a histoacuteria da tradiccedilatildeo da aritmolo-gia cf Robbins (1921) Para recente avaliaccedilatildeo criacutetica da relaccedilatildeo entre a aritmologia pitagoacuterica e o desen-volvimento da matemaacutetica grega antiga cf Cambiano (1992) 525 Ainda que francamente destemperada a resenha criacutetica de Kingsley (1994) ao livro de Huffman sobre Filolau dedica-se exatamente a questionar o excessivamente raacutepido descarte (dismiss) de A14 e da refe-recircncia astroloacutegica nele contida como uma falsificaccedilatildeo poacutes-platocircnica Huffman argumenta que esta refe-recircncia seria uma elaboraccedilatildeo a partir do Timeu de Platatildeo Kingsley responde que a influecircncia da astrologia babilocircnica sobre a Greacutecia do seacuteculo V aEC foi amplamente provada e que portanto seria esta a origem da temaacutetica em Filolau (e depois em Platatildeo) O destempero da criacutetica de Kingsley eacute bem resumido na frase final da resenha ldquoHuffman presents a picture of him [Philolaus] ultimately as false as any Philolaic forgery in antiquityrdquo (1994 296) 526 Lloyd (1989 257) confirma ldquoGreat importance is attached by many Hippocratic authors to the study of numerical relationships in connection with the determination of periodicities notably in two types of context (1) pregnancy and childbirth and (2) the phases of diseases especially their crises the points at which exacerbations or remissions are to be expectedrdquo Burkert (1972 264) imagina todavia ao contraacuterio uma influecircncia de Filolau ndash e mais em geral dos conceitos pitagoacutericos de harmonia e nuacutemero sobre o corpus hipocraacutetico ldquowe perceive in the Hippocratic corpus reflections of Pythagorean doctrines which were probably in written form and the most likely source is the book of Philolausrdquo

229

de natildeo tenha sido levado de fato a cabo ateacute o fim se eacute verdade que no toacutepico da embrio-

logia e da medicina natildeo haacute alguma referecircncia a esta pesquisa527

Eacute o caso de concluir que no limite a duacutevida sobre qual seria mais especifica-

mente o papel dos nuacutemeros na obra de Filolau natildeo poderaacute ser esclarecida definitivamen-

te em razatildeo de seu caraacuteter fragmentaacuterio E por esse motivo tanto a tese epistemoloacutegica

quanto aquela numeroloacutegica devem ser consideradas ambas vaacutelidas Contudo natildeo eacute

certamente o caso de concordar com a avaliccedilatildeo displicente de Philip (1966 32) pela

qual mesmo que os fragmentos de Filolau fossem autecircnticos ldquonatildeo seriam capazes de

resolver nossos problemas Pois estes revelam um pensador de natildeo grande estatura cu-

jos interesses foram perifeacutericosrdquo528

Merece ainda ao menos uma breve menccedilatildeo pelo interesse historiograacutefico em re-

laccedilatildeo agravequela que deve ter sido a filosofia dos nuacutemeros de Filolau a referecircncia tradicio-

nal que se faz agrave crise dos incomensuraacuteveis ou irracionais529 Knorr (1975 45) sugere

que Filolau tenha mudado a teoria ldquotudo eacute nuacutemerordquo para a teoria dos limitan-

tesilimitados para responder exatamente agrave descoberta dos irracionais na geometria que

se daria imediatamente antes dele530

A descoberta teria gerado um verdadeiro ldquomelodrama na histoacuteria intelectual gre-

gardquo (Burkert 1972 455) pois na concepccedilatildeo pitagoacuterica dos nuacutemeros agrave maneira das pe-

drinhas de Eurito o fato de certas grandezas geomeacutetricas como a da diagonal do qua-

drado natildeo poderem ser expressas por unidades numeacutericas era algo simplesmente escan-

daloso Haacute todavia contra os argumentos de Knorr uma seacuteria dificuldade cronoloacutegica

no Feacutedon Simias e Cebes afirmam ter ouvido Filolau em Tebas alguns anos antes Por

consequecircncia Filolau devia estar em plena maturidade intelectual no fim do seacuteculo V

aEC o que permite datar seu nascimento por volta de 460-70 e possivelmente devia

estar ainda vivo em Tarento no iniacutecio do seacuteculo IV Estas precisaccedilotildees cronoloacutegicas satildeo

527 Os argumentos de Huffman (1993 75) pelo qual Filolau como faria um cientista moderno esperaria por uma confirmaccedilatildeo da teoria que deveraacute vir de futuras comprovaccedilotildees como tambeacutem de que sua busca natildeo o obrigaria a indicar uma estrutura numeacuterica ldquoa qualquer custordquo enfraquecem de fato a tese de Huff-man e por consequecircncia a ideia de que possa haver um programa de Filolau Cf neste sentido Huffman (1993 77) ldquohis project was nonetheless to find the numbers in things where he could and not to put them there at all costsrdquo 528 Orig ldquothey would not enable us to solve our problems For they reveal a thinker of no great stature whose interests are periphericalrdquo 529 Dediquei um recente artigo a esta questatildeo (Cornelli e Coelho 2007a) para o qual remeto para maiores esclarecimentos em relaccedilatildeo aos motivos e agraves consequencias da referida crise 530 Cf tambeacutem na mesma linha teoacuterica o acima citado Tannery (1887 b) em 17

230

fundamentais para determinar a relaccedilatildeo entre Filolau e Hipoacutecrates de Quiacuteos Filolau natildeo

poderia ter escrito seu livro em reaccedilatildeo ao problema da incomensurabilidade pois os

irracionais seriam descobertos por este uacuteltimo somente em torno do ano de 430 quando

Filolau ndash contemporacircneo de Soacutecrates e Hipoacutecrates ndash e natildeo mais novo do que estes ndash

havia alcanccedilado jaacute sua terceira idade

Contudo o argumento que mais interessa agrave economia desta tese conforme apa-

rece na anaacutelise dos fragmentos acima eacute que o problema da incomensurabilidade no

caso em que tivesse de alguma forma encontrado o pensamento de Filolau natildeo devia de

forma alguma colocar em cheque o sistema de pensamento filolaico notadamente pelo

fato de este natildeo possuir propriamente uma teoria dos nuacutemeros como princiacutepios da reali-

dade ndash da forma que Aristoacuteteles havia lhe atribuiacutedo Ao contraacuterio conforme sugere

Huffman (1988 16) caso Filolau tivesse tido conhecimento da questatildeo dos irracionais

poderia facilmente tornaacute-lo mais um exemplo de sua tese de que todas as coisas satildeo

compostas por limitantes e ilimitados Pois para aleacutem da histoacuteria do melodrama acima

citado as descobertas da incomensurabilidade da hipotenusa do triacircngulo retacircngulo ou a

irracionalidade da diagonal do quadrado devem ter aguccedilado o interesse natildeo exclusivo

dos especialistas por um fenocircmeno que combinava perfeitamente na mesma figura

uma medida ilimitada a da hipotenusa com duas medidas perfeitamente limitadas a

dos catetos531

Enfim natildeo deve importar se Filolau foi ao menos um matemaacutetico de destaque

no interior do progresso que a disciplina obteve ao longo do seacuteculo V aEC Com razatildeo

Burkert (1972 413) anota que ldquoo problema natildeo eacute quem inventou a matemaacutetica mas

quem conectou matemaacutetica e filosofiardquo por primeiro532 Esse foi sem duacutevida Filolau

(Huffman 993 55) E nessa filosofia pitagoacuterica do V seacuteculo aEC que Aristoacuteteles estaacute

quase que exclusivamente interessado

531 Cf Huffman (1988 16) ldquoViewed in this way the case of the diagonal of the square (ie the isosceles right triangle) becomes an excellent illustration of Philolaus central thesis about the cosmos That thesis said that all things are com- posed of two unlike elements limiters and unlimiteds and that since these elements are unlike each other they must be held together by a harmonia which supervenes on them In the case of the isosceles right triangle what must initially have caused wonderment was not only that the hypotenuse cannot be measured by any measure no matter how small but that such a magnitude without measure (an unlimited) is combined in the same figure with magnitudes that do have a measure the sides (limiters)rdquo 532 Orig ldquothe question is not who invented mathematics but who connected mathematics with philoso-phyrdquo

231

O que eacute certo eacute que a relaccedilatildeo entre Filolau e os nuacutemeros eacute a tal ponto significati-

va de merecer o resumo que Aristoacuteteles teria dedicado aos assim chamados pitagoacutericos

e que agrave luz do percurso aqui desenvolvido pode-se certamente considerar como uma

citaccedilatildeo do proacuteprio Filolau

Exatamente porque ldquoinocente das distinccedilotildees posteriores entre sensiacutevel e inteligiacute-

vel e que se tornam importantes mais tarderdquo (Huffman 1993 52-53)533 isto eacute como

exceccedilatildeo ao sistema platonizante (Burkert 1972 230) a doutrina dos nuacutemeros de Filo-

lau concide em diversos lugares com o testemunho aristoteacutelico Por consequecircncia pode

ser considerada de fato a soluccedilatildeo da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de uma doutrina

do ldquotudo eacute nuacutemerordquo conforme os sentidos epistemoloacutegico ontoloacutegico e numeroloacutegico ndash

acima detalhados ndash que estas paacuteginas estavam procurando

O resto e natildeo eacute pouco deve-se fundamentalmente agrave recepccedilatildeo platocircnica dessas

teorias

43 Conclusatildeo

Partindo da constataccedilatildeo de que a matemaacutetica eacute certamente um dos elementos

mais recorrentes na tradiccedilatildeo para a identificaccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica analisaram-se

neste capiacutetulo as tendecircncias majoritaacuterias da criacutetica contemporacircnea que submeteram a

uma profunda revisatildeo o testemunho aristoteacutelico decisivo para esta categorizaccedilatildeo do pi-

tagorismo sua afirmaccedilatildeo pela qual para os pitagoacutericos ldquotudo eacute nuacutemerordquo A conclusatildeo agrave

qual chega essa postura hermenecircutica ceacutetica de autores claacutessicos como Frank e Cherniss

eacute a de que toda a matemaacutetica pitagoacuterica seria na realidade resultado de uma transposiccedilatildeo

acadecircmica

Todavia uma mais recente revisatildeo dessas tendecircncias da criacutetica centrada na rea-

valiaccedilatildeo da autenticidade dos fragmentos de Filolau sugeriu um novo caminho herme-

necircutico que aponte para a recuperaccedilatildeo de uma efetiva teoria pitagoacuterica dos nuacutemeros

que estaria presente nas fontes preacute-socraacuteticas

A anaacutelise das diversas citaccedilotildees aristoteacutelicas da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo e de

sua repetida atribuiccedilatildeo aos pitagoacutericos revelou para aleacutem de uma evidente variabilidade

533 Orig ldquoinnocent of distinctions such as that between the intelligible and the sensible which become important laterrdquo

232

semacircntica da teoria algumas contradiccedilotildees teoreacuteticas que o proacuteprio Aristoacuteteles parece

natildeo conseguir resolver a partir daquelas que deviam ser suas fontes escritas Trecircs dife-

rentes versotildees da doutrina estatildeo de fato presentes na doxografia aristoteacutelica a) uma

identificaccedilatildeo dos nuacutemeros com os objetos sensiacuteveis b) uma identificaccedilatildeo dos princiacutepios

dos nuacutemeros com os princiacutepios das coisas que satildeo c) uma imitaccedilatildeo dos nuacutemeros pelos

objetos reais Enquanto as versotildees a) e c) revelaram clara intenccedilatildeo polecircmica de Aristoacutete-

les contra a militacircncia platocircnica pela causa formal a versatildeo b) dos nuacutemeros como cau-

sas formais da realidade demonstra ser uma reconstruccedilatildeo aristoteacutelica da tese pitagoacuterica

A esta reconstruccedilatildeo Aristoacuteteles teria sido levado de um lado pela dificuldade de aceitar

a noccedilatildeo pitagoacuterica material de nuacutemero por outro lado por consideraacute-la mais proacutexima agrave

sua sensibilidade fortemente marcada pela recepccedilatildeo dessa mesma teoria em acircmbito

acadecircmico De fato a tradiccedilatildeo platonizante que faz aqui sua primeira apariccedilatildeo no capiacute-

tulo trata os nuacutemeros como princiacutepios ontoloacutegicos Depois de ter desempenhado um

papel central na definiccedilatildeo das teorias da imortalidade (344) a recepccedilatildeo acadecircmica das

doutrinas pitagoacutericas aparece aqui novamente tambeacutem no acircmbito da teoria dos nuacutemeros

O resumo aristoteacutelico da teoria dos nuacutemeros revela-se ao mesmo tempo estar em de-

pendecircncia e em polecircmica com o platonismo Apesar de estar clara aquela que Aristoacutete-

les devia considerar a intuiccedilatildeo fundamental dos pitagoacutericos isto eacute a possibilidade de

compreender a natureza pelos nuacutemeros o fato eacute que a tentativa de conciliaccedilatildeo que Aris-

toacuteteles estaria operando a partir das fontes preacute-socraacuteticas de um lado e da mediaccedilatildeo

platocircnica do outro natildeo pareceu bem-sucedida

Diante dessas dificuldades duas soluccedilotildees foram apresentadas mais recentemente

para verificar o sentido e a validade da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo De um lado Zhmud

aprofundando uma jaacute claacutessica posiccedilatildeo de Burnet contesta radicalmente a validade do

testemunho aristoteacutelico chegando a negar que ao protopitagorismo corresponda uma

doutrina do nuacutemero como tal perante o insucesso na busca de alguma referecircncia a ela

nas fontes preacute-socraacuteticas A conclusatildeo dessa tese negacionista eacute simplesmente que Aris-

toacuteteles teria criado para as finalidades internas agrave sua histoacuteria doxograacutefica dos predeces-

sores um denominador comum doutrinaacuterio (ldquotudo eacute nuacutemerordquo) para uma escola filosoacutefi-

ca que se lhe apresentava como pouco coesa do ponto de vista doutrinaacuterio e que acaba

por identificar com a categoria historiograacutefica dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo Em

reaccedilatildeo a essa soluccedilatildeo Huffman retomando por sua vez uma intuiccedilatildeo de Burkert em-

preendeu um atento trabalho de reavaliaccedilatildeo das fontes preacute-socraacuteticas do pitagorismo

233

que deviam estar ldquona mesardquo de Aristoacuteteles em busca de possiacuteveis referenciais histoacutericos

para a reconstruccedilatildeo aristoteacutelica O fato de Aristoacuteteles demonstrar atingir uma literatura

pitagoacuterica escrita assim como os modos de utilizaccedilatildeo desta em sua proacutepria produccedilatildeo

literaacuteria sobre os pitagoacutericos que foi certamente significativa parece identificar como

fonte primaacuteria de Aristoacuteteles exatamente o livro de Filolau e com este o pitagorismo

do V seacuteculo aEC Contudo mesmo essa soluccedilatildeo filolaica apresenta uma dificuldade

natildeo haacute em Filolau alguma referecircncia expliacutecita a essa doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo

Mais que soluccedilatildeo portanto a ldquoquestatildeo filolaicardquo apresenta-se ao contraacuterio co-

mo uma gangorra hermenecircutica entre a platonizaccedilatildeo acadecircmica de um lado e a recons-

truccedilatildeo aristoteacutelica do outro Tanto a inconsistecircncia da tradiccedilatildeo sobre a produccedilatildeo literaacuteria

de Filolau como a existecircncia de ampla literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica sugerem a

necessidade de um atento trabalho de peneira dos fragmentos de Filolau em busca dos

motivos mais autecircnticos de sua filosofia Em uacuteltima anaacutelise as duas questotildees dependem

de uma caracteriacutestica fundamental da literatura pitagoacuterica pseudoepigraacutefica heleniacutestica

que eacute aquela de derivar sua compreensatildeo da relaccedilatildeo entre pitagorismo e platonismo de

maneira cada vez diferente nos diversos momentos da histoacuteria da polecircmica intra-

acadecircmica entre dogmaacuteticos e ceacuteticos Por outro lado no interior da reconstruccedilatildeo platocirc-

nico-pitagorizante da filosofia dos ldquoantigosrdquo a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles no seacuteculo IV

aEC faz do pitagorismo natildeo encontra eco algum Ao contraacuterio o valor de seu testemu-

nho eacute amplamente criticado em seguida pela tradiccedilatildeo platocircnica Poreacutem eacute exatamente

esta distinccedilatildeo da lectio aristoteacutelica em relaccedilatildeo ao onipresente ldquosistema de derivaccedilatildeordquo da

tradiccedilatildeo platocircnica que constitui verdadeira alavanca hermenecircutica para a questatildeo filo-

laica pois a proximidade dos fragmentos atribuiacutedos a Filolau com a lectio aristoteacutelica

dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo pode tornar-se sinal de sua autenticidade

Aristoacuteteles de fato distingue pitagorismo e platonismo em duas questotildees cen-

trais ambas articuladas em uma ceacutelebre paacutegina de Metaacutefisica (987b) A primeira dife-

renccedila estaacute no lugar ontoloacutegico atribuiacutedo aos nuacutemeros fora dos sensiacuteveis para Platatildeo

enquanto os pitagoacutericos sustentam que os nuacutemeros sejam ldquoas proacuteprias coisasrdquo Trata-se

da doutrina do chorismoacutes isto eacute da separaccedilatildeo que Aristoacuteteles considera um erro tipi-

camente platocircnico a intenccedilatildeo polecircmica de Aristoacuteteles com o platonismo natildeo poderia ser

mais clara A diferenccedila indicada pelo testemunho aristoteacutelico em relaccedilatildeo agrave mediaccedilatildeo

acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas sugere que a primeira possa ser considerada um

achado da visatildeo preacute-socraacutetica dos nuacutemeros Uma segunda diferenccedila entre Platatildeo e pita-

234

goacutericos estaacute na maneira como eacute concebido o um o fato de Platatildeo ter posto no lugar do

um ilimitado pitagoacuterico uma diacuteade como tambeacutem de ter concebido o ilimitado como

derivado do grande e do pequeno resulta em uma doutrina ldquomal argumentadardquo Mesmo

neste caso Aristoacuteteles estaacute sozinho a definir essa diferenccedila pois a tradiccedilatildeo doxograacutefica

toda sublinha ao contraacuterio que tambeacutem os pitagoacutericos postulavam o um e diacuteade indefi-

nida como princiacutepios da realidade em clara dependecircncia da derivaccedilatildeo platonizante

A anaacutelise de uma passagem do Filebo confirmou a credibilidade do testemunho

de Aristoacuteteles a platonizaccedilatildeo do pitagorismo natildeo devia corresponder somente a uma

tendecircncia acadecircmica mas jaacute o proacuteprio Platatildeo devia considerar sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo

como uma continuaccedilatildeo do pitagorismo Contudo se a paacutegina do Filebo revelou-se um

testemunho preacute-aristoteacutelico da filosofia pitagoacuterica ela constitui ao mesmo tempo um

ponto de partida para que Platatildeo persiga seus proacuteprios projetos teoreacuteticos de maneira

especial em busca de uma soluccedilatildeo para o problema da unidade e multiplicidade dos e-

xistentes

O mesmo tema da relaccedilatildeo ilimitadolimitado que orienta o argumento do Filebo

aparece de fato naquele que devia ser o proacutelogo do livro de Filolau O caraacuteter de exce-

ccedilatildeo dos testemunhos aristoteacutelicos diante da categorizaccedilatildeo majoritaacuteria platonizante do

pitagorismo antigo tornou central a anaacutelise dos fragmentos de Filolau De um lado por

permitirem comprovar textualmente o processo de formaccedilatildeo da recepccedilatildeo acadecircmica da

matemaacutetica pitagoacuterica por outro lado por serem sinais inequiacutevocos de uma teoria pita-

goacuterica dos nuacutemeros datada ainda no seacuteculo V aEC que Aristoacuteteles demonstra conhecer

Os fragmentos de Filolau revelam-se originalmente posicionados em relaccedilatildeo agrave entatildeo

secular tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica operando quase uma siacutentese entre a cosmologia milesiana

do ilimitado e a concepccedilatildeo da perfeiccedilatildeo do ser no limite da matriz eleaacutetica534 A autenti-

cidade do fr 2 eacute argumentada a partir do fato de natildeo demonstrar alguma apropriaccedilatildeo

platonizante limitantes e ilimitados satildeo ainda pensados natildeo como princiacutepios abstratos e

separados do mundo mas como atributos da proacutepria realidade Filolau empreendendo

uma tentativa de exemplificaccedilatildeo da harmoniacutea entre limitantes e ilimitados utiliza signi-

ficativamente a escala musical diatocircnica pitagoacuterica Poreacutem a possibilidade revelada

pelo fr 6 de Filolau de numerar os intervalos consoantes conduz novamente ao tema

central deste capiacutetulo isto eacute aquele do nuacutemero pitagoacuterico

534 Cf neste sentido a posiccedilatildeo anteriormente citada de Tannery (1887b) em 17

235

Ainda que natildeo predominante como princiacutepio ontoloacutegico ndash como queriam Platatildeo

e Aristoacuteteles ndash o nuacutemero desempenha certamente uma funccedilatildeo no interior do sistema

filolaico A anaacutelise dos fr 4 e 5 parece indicar o fato de os nuacutemeros atuarem epistemo-

logicamente pois eacute exatamente pelo fato de prestar-se a uma descriccedilatildeo em termos nu-

meacutericos que a realidade pode ser conhecida Os nuacutemeros satildeo assim sinais emitidos

pela realidade e como tais permitem que esta possa ser conhecida (fr 5) Todavia o

mesmo fragmento sugere poder haver em uacuteltima anaacutelise uma correspondecircncia entre

esses dois niacuteveis o ontoloacutegico (limitantesilimitados) e o epistemoloacutegico (par-iacutempar)

Pois a introduccedilatildeo de uma terceira espeacutecie de nuacutemero o ldquopariacutemparrdquo parece correspon-

der na ordem argumentativa agrave introduccedilatildeo da harmoniacutea para a dupla limitan-

tesilimitados Huffman resiste todavia em considerar que os nuacutemeros no programa filo-

soacutefico de Filolau possam desempenhar outro papel a natildeo ser aquele de princiacutepios expli-

cativos da realidade de maneira especial em polecircmica com o evidente misticismo nu-

meacuterico que todavia eacute tambeacutem expresso nos fragmentos Qualquer que seja este papel

contudo a relaccedilatildeo entre Filolau e os nuacutemeros mereceu o resumo que Aristoacuteteles teria

dedicado agrave categorizaccedilatildeo dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo e que coincide em diversos

lugares com o livro de Filolau Em suma Filolau pocircde ser considerado a soluccedilatildeo da

atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo mais precisamente do seacuteculo V aEC de uma doutrina

do ldquotudo eacute nuacutemerordquo que estas paacuteginas estavam procurando

Como no caso acima das teorias da imortalidade portanto eacute novamente Aristoacute-

teles a fornecer o testemunho mais confiaacutevel da existecircncia de uma teoria numeacuterica no

pitagorismo antigo Esse mesmo testemunho quando espelhado em sua provaacutevel fonte

filolaica permite detectar o longo processo de apropriaccedilatildeo platocircnica e acadecircmica da

matemaacutetica pitagoacuterica

A anaacutelise da tradiccedilatildeo sobre a teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica portanto articulando

os diversos niacuteveis de uso dos nuacutemeros no pitagorismo antigo do miacutestico ao epistemoloacute-

gico ao longo dos diferentes estratos da tradiccedilatildeo revelou mais uma vez o processo de

formaccedilatildeo da categoria pitagorismo em suas dimensotildees sincrocircnica e diacrocircnica Proces-

so este que acaba revelando ao mesmo tempo significativas descontinuidades ao longo

da tradiccedilatildeo abordagens inicialmente vaacutelidas como aquelas de um provaacutevel misticismo

numeacuterico protopitagoacuterico satildeo em seguida abandonadas provavelmente por natildeo dialo-

garem mais diretamente com o contexto mais geral da filosofia daquele segundo mo-

mento Poreacutem satildeo enfim retomadas com renovado entusiasmo em eacutepocas posteriores

236

notadamente no periacuteodo neoplatocircnico Dessa forma eacute possiacutevel que a matemaacutetica de

Jacircmblico pudesse ser mais proacutexima agrave miacutestica dos nuacutemeros protopitagoacuterica do que o e-

ram os nuacutemeros de Filolau

Contudo a suposiccedilatildeo de que possa haver clara divisatildeo entre miacutestica dos nuacutemeros

e epistemologia em todas as fases do pitagorismo ateacute mesmo na fase filolaica ndash como

visto anteriormente ndash eacute esta mesma resultado de preconceitos historiograacuteficos Depen-

de em uacuteltima anaacutelise de uma visatildeo positivista da histoacuteria do pensamento desde suas

origens como um progresso contiacutenuo em direccedilatildeo a uma natildeo bem identificada ideia de

racionalidade moderna magistralmente representada por Galileu e Descartes natildeo acaso

identificada com o raciociacutenio matemaacutetico A descriccedilatildeo do pitagorismo antigo a partir

destas precompreensotildees historiograacuteficas portanto revela-se equivocada do ponto de

vista de seu valor histoacuterico E acaba tambeacutem perdendo aquela que eacute provavelmente a

caracteriacutestica mais extraordinaacuteria dele a de um movimento de vida e pensamento que

percorre seacuteculos a fio da antiguidade conseguindo ser identificado como tal apesar ndash ou

melhor ndash por meio da polifonia de suas diferenccedilas e contradiccedilotildees

237

CONCLUSAtildeO

Nada melhor para concluir uma tese historiograacutefica sobre o pitagorismo que um

detalhe editorial aparentemente inoacutecuo mas que se revela significativo para a histoacuteria

da criacutetica do pitagorismo no seacuteculo XX Giangiulio (Pitagora 2000 XVI) introduz sua

ediccedilatildeo da literatura pitagoacuterica pela editora Mondadori reproduzindo uma seccedilatildeo inteira

da obra imprescindiacutevel de Burkert sobre o pitagorismo Lore and Science in Ancient

Pythagoreanism (1972 208-217) Omite todavia significativamente uma citaccedilatildeo de

Rohde que aparece em Burkert (1972 217)535 A citaccedilatildeo eacute a seguinte

Cada idade tem seu proacuteprio ideal de sabedoria e houve um tempo quando o ideal do homem saacutebio que por seus proacuteprios poderes inatos conseguiu uma posiccedilatildeo espiritual de destaque e discernimento tornou-se presente nas pessoas de certos grandes homens que pareciam pre-encher as mais altas condiccedilotildees de sabedoria e poder que foram atribu-iacutedas ao vidente extaacutetico e ao sacerdote da purificaccedilatildeo [] noacutes natildeo po-demos chamaacute-los filoacutesofos nem sequer precursores da filosofia grega Mais frequentemente seu ponto de vista foi aquele que o real impulso filosoacutefico em direccedilatildeo agrave autodeterminaccedilatildeo e agrave liberdade da alma havia consciente e decisivamente rejeitado e continuou a rejeitar embora pela verdade natildeo sem flutuaccedilotildees ocasionais e retrocessos Assim es-creveu Erwin Rohde (Psyche II 90) em referecircncia a figuras como E-pimecircnides e Abaris sem incluir Pitaacutegoras Contudo a mais antiga e-videcircncia indica que eacute precisamente nesta perspectiva que temos de ver Pitaacutegoras536

A omissatildeo natildeo eacute obviamente casual e obedece a uma disseminada dificuldade da

criacutetica contemporacircnea para lidar com a perspectiva acima delineada por Rohde na qual

Burkert sugere que deva ser vista a figura de Pitaacutegoras isto eacute aquela de uma histoacuteria da

535 Cf Giangiulio (Pitagora 2000 XVI) A omissatildeo natildeo eacute injustificada do ponto de vista formal o autor avisa (Pitagora 2000 V) sobre a ocorrecircncia de ldquopoche omissionirdquo na traduccedilatildeo da referida seccedilatildeo de Bur-kert 536 Orig ldquolsquoEvery age has its own ideal of Wisdom and there came a time when the ideal of the Wise Man who by his own innate powers has achieved a commanding spiritual position and insight became embodied in the persons of certain great men who seemed to fulfill the highest conceptions of wisdom and power that were attributed to the ecstatic seer and priest of purification () We cannot call them philoso-phers-not even the forerunners of Greek philosophy More often their point of view was one which the real philosophic impulse toward self-determination and the freedom of the soul consciously and decisive-ly rejected and continued to reject though not indeed without occasional wavering and backslidingrsquo So wrote Erwin Rohde (Psyche II 90) in reference to figures like Epimenides and Abaris without including Pythagoras But the most ancient evidence indicates that it is precisely in this perspective that we must see Pythagorasrdquo As reticecircncias no interior da citaccedilatildeo satildeo do proacuteprio autor

238

filosofia que natildeo se limite a repetir o script das diadochaiacute de personagens e de conceitos

formatados pela doxografia aristoteacutelica mas busque compreender a emergecircncia do fe-

nocircmeno no interior do contexto pragmaacutetico da sabedoria arcaica e de suas tipologias

A ilusatildeo criada pela coleccedilatildeo dielsiana dos textos sobre a filosofia preacute-socraacutetica

sugeriu que a sucessatildeo dos sistemas filosoacuteficos ao longo da histoacuteria pudesse significar ndash

hegelianamente ndash algum tipo de progresso do pensamento Todavia o desvelamento

dessa ilusatildeo retrospectiva em relaccedilatildeo agrave existecircncia de uma escola filosoacutefica pitagoacuterica ao

lado e em diaacutelogo com outras natildeo levou ainda grande parte da criacutetica a rever esta pers-

pectiva historiograacutefica e a compreender a filosofia preacute-socraacutetica em geral e o pitagoris-

mo de maneira especial por meio das caracteriacutesticas proacuteprias dos primeiros passos

permeaacuteveis e fluidos da filosofia em formaccedilatildeo A proposta de Laks (2007 233-235) de

certa maneira conciliadora eacute de compreender a heterogeneidade com a qual a filosofia

preacute-socraacutetica apresenta-se como ldquouma diversidade natildeo selvagem e sim reflexivardquo no

sentido de obedecer weberianamente a dois tipos de ldquoconsistecircnciasrdquo uma loacutegica pela

qual uma nova tese implica a resposta ou a explicitaccedilatildeo de uma teoria anterior e uma

praacutetica que mobiliza mais diretamente a questatildeo do sujeito no caso especiacutefico do autor

de determinada filosofia As paacuteginas da presente tese revelaram franca inserccedilatildeo das i-

deias e dos protagonistas do protopitagorismo e do pitagorismo do seacuteculo V no contexto

da disciplina filosoacutefica em formaccedilatildeo Contudo a percepccedilatildeo de que haveria uma segunda

consistecircncia que ao lado da imagem anacrocircnica dos preacute-socraacuteticos como scholars e

colleges em debate entre eles como a consistecircncia loacutegica parece sugerir eacute certamente o

avanccedilo hermenecircutico mais relevante537

Na verdade haacute algo de heterogecircneo no pitagorismo que eacute no limite irredutiacutevel a

esta loacutegica disciplinar Ainda que com razatildeo Laks (2007 230) afirme que ldquoeacute um lugar

hoje bastante comum afirmar que a filosofia como disciplina natildeo existe antes de Pla-

tatildeordquo natildeo eacute possiacutevel simplesmente esquecer que a tradiccedilatildeo considera Pitaacutegoras como o

inventor dos termos filosofia e filoacutesofo (D L Vitae I 12 = Heraclid fr 87 Wehrli)538

No entanto a filosofia conforme o vieacutes da tradiccedilatildeo pitagoacuterica parece definir-se bem

537 Apesar de enunciaacute-la todavia Laks natildeo desenvolve ndash como faz com a consistecircncia loacutegica ndash esta se-gunda A omissatildeo eacute ainda um sintoma da dificuldade da historiografia da filosofia antiga em enfrentar seu objeto fora dos esquemas ldquopresentistasrdquo da tradiccedilatildeo (cf Laks 2007 233) 538 Burkert (1960) criticou por primeiro a confiabilidade do testemunho que remonta a Heraclides Pocircnti-co Tambeacutem ceacutetico eacute Huffman (2008 205-206) Mais confiante na tradiccedilatildeo estaacute Riedweg (2002 156-164) Centrone (1996 93-98) apesar de ceacutetico considera que mesmo assim possa-se qualificar Pitaacutegoras como filoacutesofo

239

como disciplina tambeacutem pela segunda consistecircncia aquela praacutetica isto eacute de estilos de

vida doutrinas reveladas e ouvidas ritualidades eacuteticas e sapienciais

O ldquoburaco sem fundordquo (the bottomless pit) da pesquisa sobre os pitagoacutericos ndash na

ceacutelebre expressatildeo de Guthrie (1962 146 n1) ndash revelou-se um locus privilegiado para a

revisatildeo das praacuteticas historiograacuteficas comumente utilizadas Dessa forma a dificuldade

de fazer caber a filosofia pitagoacuterica trait-drsquounion entre as primeiras duas fases da filo-

sofia antiga isto eacute a jocircnica e a itaacutelica nos estreitos limites da historiografia normal

ficou patente e obrigou a presente tese a rediscutir os procedimentos metodoloacutegicos de

aproximaccedilatildeo ao seu objeto Na melhor tradiccedilatildeo cientiacutefica moderna foi obrigada a re-

construiacute-lo de certa maneira para poder examinaacute-lo

Em suma a histoacuteria da tradiccedilatildeo do pitagorismo eacute uma histoacuteria de omissotildees

A omissatildeo editorial de Giangiulio eacute o exemplo mais recente de um processo se-

cular de recepccedilatildeo pelo qual como em um palimpsesto formas e conteuacutedos desta filoso-

fia foram apagados e reescritos a partir de sempre novos interesses redacionais O resul-

tado disso do ponto de vista da teoria das fontes assustou com razatildeo muitos comenta-

dores desde a antiguidade uma multiplicidade polieacutedrica de imagens do pitagorismo

que o representam ora como seita religiosa ora como escola filosoacutefica ora ainda como

partido poliacutetico ou como comunidade cientiacutefica E natildeo eacute certamente suficiente como

boa praacutetica cientiacutefica uma geneacuterica ldquoconfianccedila fundamentada nos testemunhosrdquo con-

forme o desejo sinceramente expresso por Boyanceacute em seu discurso in memoriam de

Ferrero (1966 31) De fato muitos estudiosos no meio do mato sem cachorro da Quel-

lenforshung do pitagorismo como que em desespero acabaram por ldquoentregar-se a um

meacutetodo intuitivo e a formular hipoacuteteses baseadas na simples verossimilhanccedilardquo (Centro-

ne 1996 23)539 aumentando assim a confusatildeo agrave qual jaacute se referia Boeckh (1819) no

lugar de diminuiacute-la

A proposta dessas paacuteginas ao contraacuterio foi aquela de procurar definir um per-

curso metodoloacutegico consciente que em vez de tentar resolver a complexidade do fe-

nocircmeno optando por uma ou outra imagem propocircs-se a compreender o pitagorismo

como categoria historiograacutefica Seguindo a metaacutefora anteriormente desenhada do pa-

limpsesto a tese destas paacuteginas eacute que a soluccedilatildeo natildeo deve ser procurada principalmente

em um pretenso pergaminho original e sim mais apropriadamente no proacuteprio processo

539 Orig ldquoad affidarsi a un metodo intuitivo e a formulare ipotesi basate sulla semplice verosimiglianzardquo

240

de contiacutenua sobrescrita deste Agrave procura de compreender a loacutegica de suas omissotildees

traduccedilotildees reapropriaccedilotildees ao longo da histoacuteria Interpretando interpretaccedilotildees

Longe de considerar portanto a imagem multifacetada do pitagorismo como

simplesmente resultado de uma seacuterie de acidentes procurou-se acompanhar o percurso

das escolhas que constituiacuteram a tradiccedilatildeo verificando quando possiacutevel seus pressupos-

tos e indicando as consequecircncias destas para a interpretaccedilatildeo Receberam este tratamen-

to natildeo somente algumas temaacuteticas centrais como a metempsicose e a teoria dos nuacuteme-

ros mas tambeacutem o proacuteprio percurso de definiccedilatildeo do pitagorismo como categoria

Natildeo se tratou contudo de escolher entre um pitagorismo acusmaacutetico de um la-

do e outro matemaacutetico do outro ndash como parte da histoacuteria da criacutetica moderna quis fazer

conforme foi visto no capiacutetulo primeiro Ainda que os iniacutecios da koinoniacutea pitagoacuterica

devessem de fato ser acusmaacuteticos o fato natildeo explica sozinho o amplo leque das tradi-

ccedilotildees sobre o pitagorismo mesmo em eacutepoca preacute-socraacutetica Em uma primeira impressatildeo

a abordagem em capiacutetulos separados das duas temaacuteticas que mais fortemente estatildeo pre-

sentes na tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica a metempsicose (capiacutetulo terceiro) e a teoria

dos nuacutemeros (capiacutetulo quarto) pocircde parecer reproduzir hermeneuticamente a distinccedilatildeo

claacutessica entre biacuteos e theoriacutea O primeiro diria respeito a mitos e ritos da imortalidade da

alma a segunda referir-se-ia agrave ciecircncia dos nuacutemeros Todavia natildeo eacute certamente este o

caso Ao contraacuterio a anaacutelise acima desenvolvida demonstrou que em ambas as temaacuteti-

cas tatildeo caras agrave tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo aparecem lectiones tanto miacutesticas como

cientiacuteficas pois por um lado a teoria da metempsicose natildeo responde somente a uma

miacutestica soterioloacutegica mas se torna tambeacutem elemento explicativo da realidade em sua

conaturalidade aleacutem de motivo epistemoloacutegico na praacutetica da anamnese Por outro lado

a teoria dos nuacutemeros natildeo corresponde somente a uma reflexatildeo aritmogeomeacutetrica onto-

loacutegica e cosmoloacutegica mas tambeacutem serve a uma miacutestica numeroloacutegica amplamente ates-

tada pela tradiccedilatildeo

Isso posto se Filolau possui uma teoria da alma como harmonia de elementos

materiais ao lado de uma teoria da imortalidade da alma e da mesma forma utiliza os

nuacutemeros natildeo somente como princiacutepios epistemoloacutegicos de seu sistema ontoloacutegico mas

tambeacutem revela seu sentido numeroloacutegico eacute certamente o caso de se perguntar se a dis-

tinccedilatildeo entre miacutestica e ciecircncia aqui mostrada faz algum sentido para descrever o pitago-

rismo antigo e a filosofia em suas origens como tal Os capiacutetulos terceiro e quarto arti-

culando as duas dimensotildees da categorizaccedilatildeo do pitagorismo desenhadas pela presente

241

tese diacrocircnica e sincrocircnica permitiram confirmar a suspeita citada Em sua dimensatildeo

sincrocircnica a categorizaccedilatildeo do pitagorismo demonstrou obedecer agrave intenccedilatildeo de separar

dicotomicamente miacutestica e ciecircncia enquanto em sua dimensatildeo diacrocircnica os processos

de omissatildeo e reduccedilatildeo da multiplicidade em que se apresentam as doutrinas pitagoacutericas

revelaram-se operantes na recepccedilatildeo acadecircmica peripateacutetica neoplatocircnica etc

No entanto em sua dimensatildeo diacrocircnica a categoria historiograacutefica do pitago-

rismo resistiu a diferentes tentativas de reduzi-la a um lado ou a outro da dicotomia biacute-

os-theoriacutea Essas tentativas natildeo operam exclusivamente no que se refere agrave distinccedilatildeo

acusmaacuteticos vs matemaacuteticos no protopitagorismo mas continuam presentes na histoacuteria

do movimento mesmo apoacutes a mediaccedilatildeo da tradiccedilatildeo acadecircmica e sua vulgata pitagoacuterica

Em eacutepoca imperial haacute de fato um abismo entre o ldquomatemaacuteticordquo Moderato di Gades e o

ldquoacusmaacuteticordquo Apolocircnio de Tiana Todavia ambos satildeo igualmente identificados como

pitagoacutericos E natildeo eacute o caso de explicar esta homologiacutea por uma simples referecircncia a um

ideal de vida pitagoacuterico pois esse ideal deveria necessariamente incluir um conjunto de

doutrinas que o identificava ainda que este conjunto natildeo chegue jamais a constituir um

cacircnon e permaneccedila convenientemente a referecircncia ao segredo e agrave oralidade como estra-

teacutegia de garantia das diferentes leituras540

A essa problemaacutetica pertence a polecircmica sobre o fim do pitagorismo em eacutepoca

heleniacutestica A questatildeo mereceria sozinha uma nova tese Eacute aqui lembrada simplesmente

como ilustraccedilatildeo das tentativas de inserir uma loacutegica evolutiva na histoacuteria do pitagoris-

mo agrave qual todavia a tradiccedilatildeo parcialmente resiste Eacute comum entre os comentadores

atuais na esteira de Burkert (1961 232) postular um reflorecer do pitagorismo nos uacutel-

timos anos do primeiro seacuteculo aEC depois de sua extinccedilatildeo que teria ocorrido em 360

aEC ano em que Aristoxeno declara ter conhecido o uacuteltimo pitagoacuterico (fr 14 Wehrli)

O renascimento do pitagorismo eacute testemunhado por Ciacutecero em sua introduccedilatildeo agrave tradu-

ccedilatildeo do Timeu seu amigo Nigiacutedio Fiacutegulo teria feito reviver (renovaret) o pitagorismo

(Cicero Timaeus 11) As duas fases do pitagorismo natildeo estariam somente separadadas

no tempo pois segundo o proacuteprio Burkert (1982) os dois movimentos seriam bastante

heterogecircneos541

540 Trata-se mais provavelmente das doutrinas simboacutelicas (τὸν τῆς διδασκαλίας τρόπον συmicroβολικὸν) ndash na terminologia usada por Jacircmblico (VP 20) ndash representadas pela memoacuteria dos acusmata

541 Cf Contraacuterios agrave ruptura defendida por Burkert tanto Doumlrrie (1963 269) quanto Kingsley (1995 320ss)

242

Entretanto o postulado da ruptura entre o pitagorismo antigo e o neopitagorismo

incorre em algumas dificuldades Primeiramente para se sustentar precisa esquecer a

continuidade ao menos literaacuteria e cultural representada pela literatura pseudoepigraacutefica

heleniacutestica que preenche o pretenso gap de trecircs seacuteculos que a ruptura criara Aleacutem de

natildeo estar claro qual seja o valor histoacuterico a ser concedido aos testemunhos acima de

Aristoxeno e Ciacutecero542

Por outro lado as vantagens dessa separaccedilatildeo para certa historiografia do pitago-

rismo satildeo incomparaacuteveis Notadamente por permitirem empurrar para uma eacutepoca tardia

aquelas caracteriacutesticas acusmaacuteticas da filosofia pitagoacuterica que deviam parecer destoan-

tes com a imagem canonizada do iluminismo jocircnico e da filosofia itaacutelica antigos Eacute cer-

tamente o caso de Dodds quando afirma que

Muitos estudiosos do tema viram no seacuteculo I aEC o periacuteodo decisivo de Weltwende periacuteodo no qual a mareacute do racionalismo que nos cem anos anteriores se havia desenvolvido como nunca finalmente havia esgotado seu impulso e comeccedilado a recuar Natildeo resta duacutevida de que todas as escolas filosoacuteficas exceto a epicurista tomaram neste mo-mento um novo caminho [] Da mesma forma eacute significativo o re-nascimento do pitagorismo apoacutes dois seacuteculos de aparente esqueci-mento natildeo como escola doutrinaacuteria formal mas como culto e como estilo de vida Confiava abertamente na autoridade natildeo na loacutegica Pi-taacutegoras era apresentado como um saacutebio inspirado (Dodds 1951 247)

Contudo essas mesmas caracteriacutesticas que Dodds atribui ao neopitagorismo a

de constituir-se como biacuteos em oposiccedilatildeo agrave doutrina de uma escola de cultivar o princiacutepio

da autoridade e mesmo de apresentar Pitaacutegoras como um homem divino todas poderi-

am valer jaacute para o protopitagorismo

O preconceito historiograacutefico que desenha o caminho desta hermenecircutica da se-

paraccedilatildeo eacute aquele do esgotamento em eacutepoca tardia do impulso racional da filosofia

claacutessica Eacute possiacutevel encontraacute-lo mesmo em um autor como Festugiegravere frequentador

assiacuteduo da literatura miacutestica antiga Seu juiacutezo sobre o neopitagorismo que natildeo esconde

um sentimento de escacircndalo e o repuacutedio pessoal do comentador eacute aquele de uma per-

versatildeo ou uma degradaccedilatildeo da pura ciecircncia teoreacutetica claacutessica em consequecircncia do rela-

xamento das morais contemporacircneas (Festugiegravere 1932 74-77)

Contra a ideia dessa ruptura portanto para aleacutem dos argumentos que tendem a

consideraacute-la bastante duvidosa do ponto de vista histoacuterico pesa tambeacutem a observaccedilatildeo 542 Cf para isso os argumentos de Kingsley (1955 323-324)

243

da origem protopitagoacuterica de praacuteticas e doutrinas que a criacutetica quis empurrar para o pi-

tagorismo tardio por representarem um incocircmodo hermenecircutico na busca da pura filoso-

fia em suas origens A continuidade portanto eacute maior do que se quis geralmente admi-

tir Desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo pitagoacuterica biacuteos e theoriacutea continuam fundamentalmente

inseparaacuteveis

A imagem que resulta da anaacutelise da categoria do pitagorismo eacute a de uma grande

tradiccedilatildeo filosoacutefica homogecircnea que pretende compreender o ser humano o ceacuteu a histoacute-

ria a poliacutetica mediante conceitos como harmonia nuacutemero justiccedila etc E todavia por-

quanto esta imagem do pitagorismo possa parecer fascinante e tenha conquistado adep-

tos ao longo de toda histoacuteria do Ocidente eacute ela mesma resultado de uma categorizaccedilatildeo

que por sua vez obedece aos interesses de quem conta a histoacuteria desta forma A vulgata

platocircnica agrave qual teriam sido reconduzidas as diversas tradiccedilotildees pitagoacutericas anteriores

constitui o eixo historiograacutefico fundamental dessa reconstruccedilatildeo como os exemplos das

teorias da imortalidade da alma e da doutrina dos nuacutemeros bem demonstraram A recep-

ccedilatildeo neoplatocircnica de maneira especial recobre um papel central nesse sentido graccedilas agrave

sistematizaccedilatildeo do pitagorismo em suas Vidas

Mesmo que tenha se demonstrado aacuterduo quanto do pitagorismo antigo haveria

sobrado de fato nessa recepccedilatildeo acadecircmica natildeo eacute possiacutevel negar que a vulgata platocircnica

tenha contribuiacutedo positivamente para imortalizar o pitagorismo como ldquoa filosofiardquo por

antonomaacutesia permitindo que o conjunto de estilos e doutrinas ldquoassim chamadas pitagoacute-

ricasrdquo conquistasse a simpatia quando natildeo mesmo uma adesatildeo incondicional de tantas

e diversas personagens ao longo da histoacuteria desde os renascentistas Marsilio Ficino e

Pico della Mirandola ateacute os precursores da ciecircncia moderna Copernico Kepler e Gali-

leu543

Frequentemente o sucesso histoacuterico do pitagorismo eacute utilizado para justificar re-

troativamente o valor de uma tradiccedilatildeo que em si mesma encontra-se irremediavelmente

contaminada por elementos suspeitos e inaceitaacuteveis ao olhar do cientista moderno Com

543 Copernico reconhece explicitamente a influecircncia pitagoacuterica sobre a tese da mobilidade da terra no Prefaacutecio de seu De revolutionibus Pythagoreorum amp quorundam aliorum sequi exemplum Nesta tese refere-se ao Edito da Sagrada Congregaccedilatildeo do Iacutendice (datado 5 de marccedilo de 1616) citado por Galileu no iniacutecio de seu Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico e copernicano ldquoSi promulgograve a gli anni passati in Roma un salutifero editto che per ovviare a pericolosi scandoli delletagrave presente imponeva opportuno silenzio allopinione Pittagorica della mobilitagrave della Terrardquo De sua parte Kepler eacute chamado de ldquoPitaacutegoras redivivusrdquo por Riedweg (2002 206) por procurar demonstrar a fundamental har-monia do mundo em perspectiva cristatildeo-pitagoacuterica e por se considerar intelectualmente a proacutepria reen-carnaccedilatildeo de Pitaacutegoras

244

um aliacutevio mal escondido parte da criacutetica contemporacircnea reconhece que apesar de tudo

sua influecircncia na ciecircncia moderna fornece agrave conturbada histoacuteria do pitagorismo um ldquofi-

nal felizrdquo (happy ending ndash Kahn 2001 X)544

Entretanto natildeo eacute algo dado que a histoacuteria do pitagorismo precise desse final fe-

liz cientiacutefico Ao contraacuterio as paacuteginas da presente tese pretenderam mostrar que esta

metodologia de coleta seletiva no interior das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo eacute histori-

camente incorreta e filosoficamente vatilde Burkert por sua vez indicava para isso em rela-

ccedilatildeo agrave compreensatildeo da proacutepria figura de Pitaacutegoras cujos problemas de equivocidade

espelham-se ao longo de toda a categoria historiograacutefica do pitagorismo

Pareceu muitas vezes suficiente um ldquonatildeo somente-mas tambeacutemrdquo ele natildeo era somente um curandeiro mas tambeacutem um pensador Contudo natildeo seraacute talvez que ateacute um xamatilde possa realizar conquistas intelectuais sem necessariamente revesti-las em uma forma estritamente racional ou conceitual (Burkert 1972 209)545

Mais uma vez portanto eacute a consciecircncia da equivocidade de categorias como fi-

losofia religiatildeo e ciecircncia ndash frequentemente usadas em sua acepccedilatildeo mais positivista na

descriccedilatildeo do que seria filosofia em suas origens ndash que permitiu mostrar a necessidade

metodoloacutegica de superar uma visatildeo excessivamente presentista da filosofia antiga que

procura reduzir o passado a uma prova geral do presente

Ainda que desse percurso historiograacutefico resulte uma imagem um tanto difusa do

pitagorismo ela deve ser preferida agraves vaacuterias tentativas demasiadamente claras e distintas

de fechar sua multifacetada complexidade nos moldes estreitos de uma categorizaccedilatildeo

irremediavelmente insuficiente Ecoam aqui as palavras de Wittgenstein relacionadas

por ele ao conceito de jogo de linguagem

Poderia-se dizer que o conceito de ldquojogordquo eacute um conceito de contornos nebulosos lsquoMas um conceito nebuloso eacute de fato um conceitorsquo ndash Uma foto pouco niacutetida eacute ainda um retrato de algueacutem Seraacute que eacute sempre

544 Assim Kahn (2001 X) ldquo[Pythagorean] tradition includes so many elements of wild almos supersti-tious speculation for example in numerology that it is sometimes difficult to remember that there is also a solid basis for numerical harmonics So Copernicus and Kepler with their fundamental contributions to modern science and to the modern world view may be regarded as providing the Pythagorean story with a happy endingrdquo 545 Orig ldquoOften a simple lsquonot only-but alsorsquo has seemed enough he was not only a lsquomedicine manrsquo but also a thinker But may not even a lsquoshamanrsquo perhaps accomplish intellectual feats without necessarily clothing them in strictly rational or conceptual formrdquo

245

vantajoso trocar um retrato pouco claro por outro niacutetido Natildeo eacute exa-tamente daquele pouco niacutetido que muitas vezes precisamos (Witt-genstein 1958 71) 546

A presente tese eacute assim o resultado de uma escolha consciente anunciada na

Introduccedilatildeo de evitar propor simplesmente mais uma interpretaccedilatildeo do pitagorismo es-

sas paacuteginas ao contraacuterio procuraram enfrentar a proacutepria questatildeo historiograacutefica que

subjaz agraves diversas opccedilotildees hermenecircuticas de soluccedilatildeo da ldquoquestatildeo pitagoacutericardquo e que de

certa forma reinventam-na continuamente

Um estudo sobre o pitagorismo ldquoarrisca ser ou inuacutetil ou insuficiente tamanha eacute a

quantidade de literatura tatildeo complexo eacute o problemardquo jaacute anotava lucidamente Maria

Timpanaro Cardini (1958 I 3)547 Se tambeacutem esta tese fosse obrigada a escolher entre

esses dois destinos preferiria certamente crer ter escapado do primeiro ainda que cain-

do inevitavelmente no segundo

546 Orig ldquoOne might say that the concept ldquogamerdquo is a concept with blurred edges lsquoBut is a blurred concept a concept at allrsquo ndash Is an indistinct photograph a picture of a person at all Is it even always an advantage to replace an indistinct picture by a sharp one Isnrsquot the indistinct one often exactly what we needrdquo 547 Orig ldquorischia di essere o inutile o insufficiente tanta egrave la mole della letteratura tanto complesso egrave il problemardquo

246

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270

ANEXOS

271

Anexo 1

Papiro Derveni Col XX

272

Anexo 2

Placa de Oacutelbia 1 (= 94a Dubois)

273

274

Anexo 3

Placa de Oacutelbia 3 (= 94c Dubois)

275

276

Anexo 4

Lacircmina de Hipponion

  • Em busca do pitagorismoo pitagorismo como categoria historiograacutefica
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
  • INTRODUCcedilAtildeO
  • CAPIacuteTULO PRIMEIRO
    • 11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos
    • 12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo
    • 13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo
    • 14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos
    • 15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo
    • 16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica
    • 17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica
    • 18 De Burkert a Kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica
    • 19 Conclusatildeo
      • CAPIacuteTULO SEGUNDO
        • 21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica
        • 22 Identidade pitagoacuterica
        • 23 A koinoniacutea pitagoacuterica
        • 24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos
        • 25 Conclusatildeo
          • CAPIacuteTULO TERCEIRO
            • 31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes)
            • 32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios)
            • 33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles)
            • 34 Platatildeo e orfismo
            • 35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito
            • 36 Lendas sobre a imortalidade
            • 37 Demoacutecrito pitagoacuterico
            • 38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos
            • 39 Conclusatildeo
              • CAPIacuteTULO QUARTO
                • 41 Tudo eacute nuacutemero
                • 42 Os fragmentos de Filolau
                • 43 Conclusatildeo
                  • CONCLUSAtildeO
                  • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Page 2: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP ...Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VP = Porfírio: Vida de Pitágoras ou Jâmblico: Vida Pitagórica 14 INTRODUÇÃO Em

2

Gabriele Cornelli

Em busca do pitagorismo

o pitagorismo como categoria historiograacutefica

Texto para Defesa de Tese de Doutorado apre-sentado ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Fi-losofia do Departamento de Filosofia da Facul-dade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia Linha de Pesquisa Histoacuteria da Filosofia Orientador Prof Dr Roberto Bolzani Filho

Satildeo Paulo

2010

3

Cornelli Gabriele Em busca do pitagorismo o pitagorismo como categoria historiograacutefica Gabriele Cor-

nelli orientador Roberto Bolzani Filho ndash Satildeo Paulo 2010 276 f Tese (Doutorado ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Histoacuteria da Filosofia) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

1 Histoacuteria da Filosofia Antiga 2 Preacute-socraacuteticos 3 Pitagorismo 4 Tradiccedilatildeo pitagoacuterica

5 Pitaacutegoras

4

ldquoPittagora volse che tutte fossero duna nobilitate non solamente le umane ma con le umane quelle de li animali bruti e de le piante e le forme de le minere e disse che tutta la differenza egrave de le corpora e de le formerdquo Dante Alighieri Convivio IV xxi3

5

para Monique metade

uma medida que se supera

6

AGRADECIMENTOS

Agrave generosa e delicada orientaccedilatildeo do Prof Roberto Bolzani Filho

Agrave paciecircncia e ao abraccedilo de quem todo dia divide o mamatildeo e a cama comigo

Monique e Brigitte

A Marcelo Carvalho mais que companheiro de tanta filosofia parceiro de mui-

tas vidas

Aos colegas que das mais variadas formas contribuiacuteram para o aprimoramento

desta tese De maneira especial aos amigos Gianni Casertano (spero di averti convinto)

e Andreacute Chevitarese como tambeacutem a Fernando Santoro Tom Robinson Laura Gemelli

Marciano Bruno Centrone Carl Huffman Christoph Riedweg Alberto Bernabeacute Livio

Rossetti Andreacute Laks Luc Brisson Rachel Gazolla Macris Constantin Thomas Szle-

zaacutek Franco Trabattoni Anastaacutecio Borges de Araujo Hector Benoit Pedro Paulo Funa-

ri Marcelo Perine Miriam Campolina Peixoto Fernando Rey Puente Emmanuele Vi-

mercati Edrisi Fernandes Walter Neto Joseacute Gabriel Trindade Santos Gerson Brea

Dennys Garcia Xavier que tiveram a gentileza de discutir comigo partes da pesquisa

que originou esta tese

Aos alunos do Archai que com sua dedicaccedilatildeo e entusiasmo ainda me surpreen-

dem e confirmam as razotildees de minha paixatildeo pela filosofia antiga

Ao Departamento de Filosofia da Universidade de Brasiacutelia que me concedeu o

tempo necessaacuterio para concluir este projeto e um lugar onde poder compartilhaacute-lo

Agrave CAPES e ao CNPq que me permitiram ter acesso a quase toda a bibliografia

relevante sobre o tema aleacutem de realizar alguns estaacutegios de pesquisa e participar de se-

minaacuterios e congressos

7

RESUMO

CORNELLI G Em busca do pitagorismo o pitagorismo como categoria historiograacutefi-

ca 2010 276 f Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2010

A presente tese explora como soluccedilatildeo para o controvertido quadro geral da moderna

histoacuteria da criacutetica sobre Pitaacutegoras e seu movimento a definiccedilatildeo do pitagorismo como

categoria historiograacutefica Superando tanto o dilema entre ceticismo e confianccedila nas fon-

tes como a pretensatildeo de alcanccedilar uma uacutenica chave hermenecircutica que permita resolver a

ldquoquestatildeo pitagoacutericardquo procura percorrer a histoacuteria da tradiccedilatildeo em busca de uma imagem

suficientemente plural a ponto de possibilitar a compreensatildeo do pitagorismo em sua

irredutiacutevel articulaccedilatildeo de biacuteos e theoriacutea e natildeo apesar dela A configuraccedilatildeo da comunida-

de e de seu biacuteos eacute percebida como elemento central de identificaccedilatildeo do pitagorismo A

anaacutelise das duas teorias que mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo do pita-

gorismo ao longo da histoacuteria a transmigraccedilatildeo da alma imortal e a doutrina dos nuacutemeros

procura definir as condiccedilotildees de possibilidade de atribuiacute-las ao pitagorismo mais antigo e

as formas pelas quais ambas teriam contribuiacutedo ao longo da histoacuteria para a definiccedilatildeo

do pitagorismo como categoria historiograacutefica As fontes preacute-socraacuteticas a platonizaccedilatildeo

do pitagorismo o testemunho aristoteacutelico sobre os ldquoassim chamadosrdquo pitagoacutericos a

literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica e o pitagorismo de eacutepoca imperial satildeo entendidos

como momentos de um percurso histoacuterico que resulta em uma imagem polieacutedrica de um

dos maiores fenocircmenos intelectuais da histoacuteria ocidental

Palavras-chave Histoacuteria da Filosofia Antiga Preacute-socraacuteticos Pitagorismo Tradiccedilatildeo pi-

tagoacuterica Pitaacutegoras

8

ABSTRACT

CORNELLI G In Search of Pythagoreanism Pythagoreanism as historiographical Cat-

egory 2010 276 f Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Hu-

manas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2010

This thesis explores the definition of Pythagoreanism as historiographical category seen

as solution for the controversial general framework of modern history of criticism about

Pythagoras and his movement Overcoming both the dilemma between skepticism and

faith in the sources and the claim to achieve a single hermeneutical key to solve the ldquoPy-

thagorean questionrdquo in it searches are made throughout the history of tradition looking

for an image sufficiently plural in order to understand Pythagoreanism in accordance

with its irreducible articulation of biacuteos and theoriacutea not despite it The setting of the

community and its biacuteos is understood as central element for Pythagorean identification

An analysis of the two theories that more decisively contributed to the definition of Py-

thagoreanism throughout history the transmigration of the immortal soul and the doc-

trine of numbers attempts to define the conditions of possibility to assign them to the

earlier Pythagoreanism and the ways in which these have contributed throughout history

to the definition of Pythagoreanism as historiographical category Presocratic sources

the platonization of Pythagoreanism Aristotles testimony about the so-called Pytha-

goreans the hellenistic Pseudoepigrapha and Pythagoreanism in imperial age are un-

derstood as moments of an historical route resulting in a polyhedral image of one of the

greatest intellectual phenomena in Western history

Key Words History of Ancient Philosophy Presocratics Pythagoreanism Pythagorean

Tradition Pythagoras

9

SUMAacuteRIO

Lista de Abreviaccedilotildees 12

INTRODUCcedilAtildeO 14

Em busca do pitagorismo 14

Esta tese 18

1 HISTOacuteRIA DA CRIacuteTICA DE ZELLER A KINGSLEY 21

11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos 23

12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo 28

13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo 30

14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos 32

15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo 35

16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica 40

17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica 51

18 De Burkert a kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica 58

19 Conclusatildeo 69

2 O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRAacuteFICA 72

21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica 72

22 Identidade pitagoacuterica 76

23 A koinoniacutea pitagoacuterica 83

24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos 103

25 Conclusatildeo 111

3 IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE 114

31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes) 117

32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios) 124

33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles) 128

10

34 Platatildeo e orfismo 130

341 ldquoCompreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo 132

342 Hierarquia das encarnaccedilotildees 138

343 Socircma-secircma 140

344 Mediaccedilatildeo pitagoacuterica 150

35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito 156

36 Lendas sobre a imortalidade 159

37 Demoacutecrito pitagoacuterico 163

38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos 165

39 Conclusatildeo 171

4 NUacuteMEROS 174

41 Tudo eacute nuacutemero 176

411 Trecircs versotildees da doutrina pitagoacuterica dos nuacutemeros 176

412 Duas soluccedilotildees 186

413 A ldquosoluccedilatildeordquo filolaica 190

4131 Um livro ou trecircs livros 191

4132 Autenticidade dos fragmentos de Filolau 194

4133 A tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica doacuterica 196

414 A exceccedilatildeo aristoteacutelica (Metafiacutesica A 6 987b) 200

415 O testemunho platocircnico (Filebo 16c-23c) 210

42 Os fragmentos de Filolau 216

421 Ilimitadoslimitantes 216

422 O papel dos nuacutemeros em Filolau 223

43 Conclusatildeo 231

CONCLUSAtildeO 237

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 246

11

A) Fontes Primaacuterias 246

B) Fontes Secundaacuterias 250

ANEXOS 270

12

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

Ael = Aeliano

aEC = antes da Era Comum (= aC)

Aesch = Eacutesquilo

Anon Phot = Anocircnimo de Foacutecio Thesleff

Arist = Aristoacuteteles

Crat = Platatildeo Craacutetilo

D L = Dioacutegenes Laeacutercio

De Abst= Porfiacuterio A abstinecircncia dos animais

De an = Aristoacuteteles De anima

De Comm Mathem = Jacircmblico De communi mathematica scientia

Diod Sic = Diodoro Siacuteculo

DK = Diels-Kranz

EC = Era Comum (= dC)

EN = Aristoacuteteles Eacutetica Nicomaqueia

FGrHist = Die Fragmente der Griechishen Historiker Jacoby

Herodt= Heroacutedoto

Iambl = Jacircmblico

Il = Homero Iliacuteada

In Metaph = Alexandre de Afrodiacutesia Comentaacuterios sobre a Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Leg = Platatildeo Leis

lit = literalmente

Men = Platatildeo Mecircnon

Met = Aristoacuteteles Metafiacutesica

Metam = Oviacutedio Metamorfoses

Mete = Aristoacuteteles Metereologica

n = nota

Od = Homero Odisseacuteia

Orig = No original

P Derv = Papiro Derveni

Phaed = Platatildeo Feacutedon

13

Phaedr = Platatildeo Fedro

Phlb = Platatildeo Filebo

Phot Bibl= Foacutecio Biblioteca

Phys = Aristoacuteteles Fiacutesica

PL = Patrologia Latina Migne

Porph = Porfiacuterio

Procl In Tim = Proclo Comentaacuterio ao Timeu

Prom = Eacutesquilo Prometeu

Resp = Platatildeo Repuacuteblica

Retr = Agostinho Retractationes

Schol In Phaedr = Escoacutelios sobre o Fedro Greene

Schol In Soph = Escoacutelios sobre Soacutefocles Elmsley

Soph El = Soacutefocles Electra

Speusip = Espeusipo

Stob = Estobeu Anthologium

Syrian In Met = Proclo Comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Theophr Met = Teofrasto Metafiacutesica

VH = Aeliano Varia Historia

Vitae = Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres

VP = Porfiacuterio Vida de Pitaacutegoras ou Jacircmblico Vida Pitagoacuterica

14

INTRODUCcedilAtildeO

Em busca do pitagorismo

Segundo Kahn (1974 163) natildeo satildeo necessaacuterias em nossos dias novas teses so-

bre o pitagorismo

Interpretaccedilotildees muito diacutespares acabaram de fato ao longo da histoacuteria da criacutetica

por resultar em conclusotildees diversas e incompatiacuteveis ao ponto de Kahn sugerir que no

lugar de mais uma tese sobre o pitagorismo deveria ser preferido um trabalho de avali-

accedilatildeo das tradiccedilotildees que pudesse resultar em uma boa apresentaccedilatildeo historiograacutefica1 Essa

velha tese de Kahn formulada haacute mais de trinta anos orienta a presente opccedilatildeo por uma

tese de marca fundamentalmente historiograacutefica e natildeo filoloacutegica isto eacute que natildeo se de-

dique exclusivamente agrave exegese de fontes como Filolau Arquitas ou mesmo de uma das

Vidas heleniacutesticas por exemplo ou ainda agrave abordagem teoreacutetica de uma das temaacuteticas

que receberam a especiacutefica contribuiccedilatildeo do pitagorismo como matemaacutetica cosmologia

poliacutetica teoria da alma Assim a presente tese propotildee-se a reconstituir a maneira como

a tradiccedilatildeo estabeleceu a imagem do pitagorismo

Natildeo que uma apresentaccedilatildeo historiograacutefica natildeo tenha em suas bases uma herme-

necircutica ou uma precompreensatildeo teoreacutetica da filosofia pitagoacuterica a partir de suas fontes

Todavia a opccedilatildeo pela historiografia possui ao menos duas vantagens incontestaacuteveis A

primeira delas diz respeito agrave postura necessariamente criacutetica e ateacute certo ponto relativis-

ta que o trabalho historiograacutefico pressupotildee Esta postura estaacute bem expressa por Luciano

Canfora

1 A oportunidade de voltar agrave tese de Kahn foi sugerida por Casertano que se referiu a ela em seu mais recente livro sobre os preacute-socraacuteticos (Casertano 2009 56) Cf Kahn (1974 163 n6) ldquoItrsquos hard enough to satisfy minimal standards of historical rigor in discussing the Pythagoreans without introducing arbi-trary guesswork of this sort where no two students can come to the same conclusion on the basis of the same evidence In fact the direct testimony for Pythagorean doctrines is all too abundant The task for serious scholarship is not to enrich these data by inventing new theories or unattested stages of develop-ment but to sift the evidence so as to determine which items are most worthy (or least unworthy) of be-liefrdquo O contexto proacuteprio da observaccedilatildeo de Kahn eacute aquele da criacutetica ao apriorismo na reconstruccedilatildeo do pitagorismo a partir de evidecircncias circunstanciais de autores como Guthrie conforme seraacute discutido adiante (15)

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Trata-se de ter noccedilatildeo da constante e consubstancial relatividade do tra-balho do historiador Dependendo da distacircncia do evento tratado os his-toriadores fornecem um perfil e revelam faces cada vez diferentes todas no fundo de alguma maneira verdadeiras e muitas vezes complementa-res entre elas nenhuma exaustiva como natildeo seria exaustiva a soma mecacircnica de todas elas (Canfora 2002 8-9)2

A primeira vantagem da abordagem historiograacutefica ao pitagorismo eacute portanto

aquela da tomada de consciecircncia inicial do fato de que nenhuma das teses sobre o pita-

gorismo poderaacute ser exaustiva ndash nas palavras de Canfora ndash deixando assim de certo

modo as matildeos livres para uma articulaccedilatildeo historiograacutefica que possa apresentar o pita-

gorismo em sua complexa diversidade Talvez seja este o maior problema da monogra-

fia mais recente sobre o pitagorismo escrita por Riedweg (2002) e justamente criticada

nesse sentido por Huffman (2008a) trata-se de uma abordagem geral ao pitagorismo

que se alinha a uma ou outra interpretaccedilatildeo global do movimento Pode seguir em senti-

do mais miacutestico-religioso por exemplo Detienne (1962 1963) Burkert (1972) e Kings-

ley (1995) ou em perspectiva mais poliacutetica Von Fritz (1940) e Minar (1942) Contudo

se esquece de dar conta daquela que eacute talvez a questatildeo fundamental a presenccedila de uma

histoacuteria da interpretaccedilatildeo que jaacute na antiguidade ndash basta ver o proacutelogo da Vida Pitagoacuteri-

ca de Jacircmblico ndash quis reunir experiecircncias e doutrinas totalmente diversas (quando natildeo

mesmo contraditoacuterias) na categoria historiograacutefica do pitagorismo Dessa forma pensar

o pitagorismo como categoria historiograacutefica significa antes de tudo superar metodo-

logicamente a ilusatildeo da possibilidade de alcanccedilar a coisa em si a histoacuteria verdadeira

aceitando confrontar-se conscientemente com a necessaacuteria mediaccedilatildeo representada por

quem a escreve a cada momento

A segunda vantagem comparativa de uma abordagem historiograacutefica no lugar

do desenvolvimento de mais uma interpretaccedilatildeo dessa filosofia diz respeito a um dos

problemas centrais que caracterizam o pitagorismo quando comparado com outros mo-

vimentos filosoacuteficos do mundo antigo aquele do terreno especialmente movediccedilo da

criacutetica das fontes Eacute certamente o caso de enfrentar ao longo da tese com renovado

esforccedilo interpretativo e filoloacutegico a questatildeo central da expansatildeo da tradiccedilatildeo de zelleri-

ana memoacuteria e a deriva ceacutetica que esta impotildee normalmente aos comentadores

2 Orig ldquoSi tratta di prendere nozione della costante e consustanziale relativitagrave del mestiere dello storico A seconda della distanza dallrsquoevento trattato gli storici ne danno um profilo e ne rileveranno delle facce volta a volta differenti tutte in fondo in qualche modo vere e spesso tra loro complementari nessuna esaustiva come esaustiva non sarebbe neanche la meccanica somma di tutte queste faccerdquo

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A vantagem de uma abordagem historiograacutefica eacute aquela portanto de tentar a-

braccedilar o pitagorismo em sua totalidade isto eacute abordando a problemaacutetica de suas fontes

para poder compreendecirc-lo por meio de e natildeo apesar de sua complexa articulaccedilatildeo ao

longo de mais de um milecircnio de histoacuteria da filosofia antiga Ainda que essa perspectiva

tenha sido de fato inaugurada por Burnet (1908) e depois reafirmada por Cornford

(1922 1923) e Guthrie (1962) eacute possiacutevel encontrar uma abordagem especialmente

compreensiva sobretudo na tradiccedilatildeo historiograacutefica italiana sobre o pitagorismo inau-

gurada por autores claacutessicos como Rostagni (1922) e Mondolfo (na ediccedilatildeo revista e co-

mentada de Zeller 1938) O problema das fontes preacute-socraacuteticas (mas natildeo somente delas

veja-se o caso da traditio dos proacuteprios textos de Platatildeo e Aristoacuteteles nesse sentido) que

se baseia em sua elaboraccedilatildeo tardia assume diante da expansatildeo da tradiccedilatildeo pitagoacuterica

conotaccedilatildeo de especial dramaticidade Se eacute verdade ndash como demonstra de forma convin-

cente Burkert (1972 15-96) ndash que a existecircncia de uma filosofia pitagoacuterica depende em

larga medida da invenccedilatildeo de uma vulgata pitagoacuterica (pesadamente transfigurada) por

parte dos acadecircmicos e ainda se eacute provaacutevel que os assim chamados pitagoacutericos de

Aristoacuteteles sejam fundamentalmente filoacutesofos como Filolau ou seja uma segunda (ou

terceira) geraccedilatildeo do movimento eacute entatildeo certamente o caso de perguntar-se o que as

fontes mais tardias teriam para nos dizer de historicamente confiaacutevel sobre o protopita-

gorismo isto eacute sobre aquele momento inaugural do desenvolvimento da tradiccedilatildeo do

pitagorismo que corresponde a Pitaacutegoras e seus primeiros disciacutepulos3 Contudo eacute ain-

da o caso de perguntar-se se seria possiacutevel falar algo deste sem as trecircs Vidas (bem pos-

teriores com quase um milecircnio de diferenccedila) de Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio e Jacircmblico

Procedem nesse sentido as duacutevidas de Zhmud

Por que as diferenccedilas doutrinaacuterias satildeo tatildeo grandes no pitagorismo Primeiramente porque ele natildeo surgiu como uma escola filosoacutefica e portanto natildeo foi jamais fundamental o seguir a totalidade de determi-nadas doutrinas (Zhmud 1989 289)4

3 Introduz-se aqui de forma ineacutedita o termo protopitagorismo por considerar necessaacuteria uma distinccedilatildeo entre esse primeiro momento fundador do pitagorismo e um segundo momento de elaboraccedilatildeo do pitago-rismo ao longo do V seacuteculo aEC ainda ldquopreacute-socraacuteticordquo que se utiliza da escrita e corresponde ao estaacutegio das fontes imediatas de Platatildeo e Aristoacuteteles Para os modos de utilizaccedilatildeo e o sentido do uso do termo anaacutelogo protofilosofia cf Boas (1948 673-684) 4 Orig ldquoWhy are the doctrinal differences so great in Pythagoreanism First of all because it had not arisen as a philosophic school and belonging to it had never been determined by following the sum of certain doctrinesrdquo

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Como tambeacutem eacute possiacutevel concluir com Centrone (1996 91) que o pitagorismo

antigo seria uma associaccedilatildeo fundada sobre particular estilo de vida seguindo as regras

de um biacuteos especiacutefico expressas por akouacutesmata fundamentalmente escatoloacutegicos

No entanto esta koinonia de vida foi reconhecida pela filosofia jaacute antiga (veja-se

Xenoacutefanes e Heraacuteclito) como referecircncia de uma maneira de fazer filosofia e identificada

por uma complexa seacuterie (ainda que nem sempre coerente como seraacute visto) de persona-

gens e ensinamentos que passaram a ser chamados de pitagoacutericos isto eacute o termo pita-

gorismo foi associado a uma filosofia tambeacutem natildeo apenas a um estilo de vida

Eacute sobretudo esta identificaccedilatildeo da categoria pitagoacuterico que atrai a atenccedilatildeo do his-

toriador da filosofia Por esses motivos portanto uma discussatildeo historiograacutefica seraacute o

objetivo da presente tese

O esforccedilo por traccedilar um perfil inclusivo e compreensivo das condiccedilotildees e das

possibilidades de definir-se o que seja pitagorismo ou pitagoacuterico no interior de um mo-

vimento filosoacutefico de tamanha amplidatildeo histoacuterica e teoreacutetica acaba por confundir-se

com a intenccedilatildeo de contribuir metodologicamente para uma revisatildeo historiograacutefica da

filosofia antiga em geral pois compreender esse movimento eacute determinante para a com-

preensatildeo das origens da filosofia e de forma mais geral do pensamento ocidental Os

elementos sensiacuteveis da historiografia do pitagorismo tornam-no um locus privilegiado

para um exerciacutecio que almeja alcance historiograacutefico maior e que se encontra nas entre-

linhas da presente tese

Permito-me neste momento uma nota pessoal visto que toda tese ao que pare-

ce estaacute vinculada a um projeto intelectual mais geral tanto de pesquisa quanto de vida

apesar de uma formaccedilatildeo voltada tanto para a filologia (especialmente grega e hebraica)

quanto para a historiografia (da religiatildeo e da filosofia antiga) eacute para esta segunda que

dediquei mais aprofundadamente minhas reflexotildees nos uacuteltimos dez anos Uma nova

ediccedilatildeo e traduccedilatildeo da literatura pitagoacuterica estaacute ainda em minhas atribuiccedilotildees atuais E

todavia estou convencido de que uma tese sobre o pitagorismo mereccedila antes de tudo

uma ldquoarrumaccedilatildeo da casardquo historiograacutefica ou seja a definiccedilatildeo do status quaestionis e de

meu posicionamento no interior dele Nessa escolha encontro-me bem acompanhado

por autores claacutessicos sobre o pitagorismo como eacute o caso do Thesleff comentador e edi-

tor da literatura (pseudo)pitagoacuterica heleniacutestica em 1961 publicou uma Introduccedilatildeo agrave

ediccedilatildeo dos textos pseudoepigraacuteficos que sairiam publicados somente quatro anos de-

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pois em 1965 A ediccedilatildeo dos textos ou mesmo somente sua traduccedilatildeo eacute diretamente in-

formada pela lectio hermenecircutica do autor obviamente A ordem entatildeo se natildeo da pu-

blicaccedilatildeo ao menos do trabalho eacute dificilmente intercambiaacutevel

Eacute esta mesma sequecircncia que orienta a definiccedilatildeo da presente tese primeiro o tra-

balho historiograacutefico

Esta tese

Uma boa apresentaccedilatildeo historiograacutefica trataraacute de fazer emergir dos arquivos da

histoacuteria da interpretaccedilatildeo do pitagorismo os pontos sensiacuteveis que contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo de tantas e diversas lectiones sobre o pitagorismo Eacute mister concordar com

Huffman quando afirma que ldquoo pitagorismo eacute uma aacuterea de estudo repleta de toacutepicos

controvertidosrdquo (Huffman 2008b 225)5 Ao mesmo tempo todavia natildeo eacute correto con-

jecturar que a imagem multifacetada do pitagorismo conforme se apresenta ao longo da

histoacuteria da tradiccedilatildeo possa derivar simplesmente de uma seacuterie de acidentes de percurso

que teriam transformado uma imagem pretensamente homogecircnea em suas origens em

um conjunto polieacutedrico de doutrinas e personagens

O proacuteprio Burkert afirma isso no Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde de sua obra funda-

mental sobre o pitagorismo Lore and Science in Ancient Pythagoreanism

Se Pitaacutegoras natildeo se apresenta agraves nossas mentes como uma figura bem delineada em peacute na luz brilhante da histoacuteria isto natildeo eacute simplesmente o resultado de acidentes ao longo do percurso da tradiccedilatildeo histoacuterica (Burkert 1972 Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde)6

Ao contraacuterio essa imagem eacute o resultado de escolhas historiograacuteficas bem preci-

sas e que obedecem a cada momento agrave compreensatildeo do que era a filosofia em suas

origens (em perspectiva genealoacutegica) e por consequecircncia do que eacute a filosofia desde

suas origens (em perspectiva histoacuterica) Desde o proacutelogo da Vida Pitagoacuterica de Jacircmbli-

5 Orig ldquoPythagoreanism is an area of study that is full of controversial issuesrdquo 6 Orig ldquoIf Pythagoras does not present himself to our minds as a sharply outlined figure standing in the bright light of history this is not merely the result of accidents in the course of historical transmissionrdquo

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co (Iambl VP 1) ateacute agraves Liccedilotildees sobre histoacuteria da filosofia de Hegel e agraves recentes inter-

pretaccedilotildees de Kingsley (1995) eacute possiacutevel confrontar-se com as precompreensotildees que

levaram a privilegiar esta ou aquela imagem e a resolver de uma ou outra forma a ques-

tatildeo pitagoacuterica (Burkert 1972 I)

Esta tese pretende portanto acompanhar o percurso dessas escolhas verificando

onde for possiacutevel seus pressupostos e revelando as consequecircncias destas para a interpre-

taccedilatildeo natildeo somente de algumas temaacuteticas centrais mas especialmente da proacutepria cons-

truccedilatildeo do pitagorismo como categoria

O Capiacutetulo Primeiro seraacute portanto dedicado agrave compreensatildeo das linhas mestras

que definiram durante especialmente os uacuteltimos dois seacuteculos o quadro geral da moder-

na histoacuteria da criacutetica sobre o pitagorismo A imagem da ciecircncia que deste resultaraacute eacute a

de uma intricada sucessatildeo de controveacutersias e refutaccedilotildees na alternacircncia entre ceticismo e

confianccedila nas fontes que marca a criacutetica da tradiccedilatildeo sobre a filosofia antiga como tal A

dificuldade fundamental que emerge ao longo da histoacuteria das interpretaccedilotildees da polie-

dricidade do fenocircmeno estudado indicaraacute a necessidade de cuidados metodoloacutegicos que

conscientemente permitam descrevecirc-lo como tal em sua irreduziacutevel diversidade

O Capiacutetulo Segundo com a intenccedilatildeo de resolver as dificuldades acima indica-

das exploraraacute as modalidades da definiccedilatildeo do pitagorismo como uma categoria histori-

ograacutefica Comeccedilando pela definiccedilatildeo de duas dimensotildees uma sincrocircnica e outra diacrocirc-

nica que imbricadas entre elas permitam descrever um fenocircmeno de outra forma in-

compreensiacutevel em sua diversidade chega-se agrave discussatildeo dos criteacuterios de identificaccedilatildeo

do pitagoacuterico e da comunidade pitagoacuterica Ainda que com a consciecircncia de que o que-

bra-cabeccedila hermenecircutico das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo ficaraacute sempre inacabado

seraacute proposto um caminho por meio das duas temaacuteticas que mais decididamente contri-

buiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo me-

tempsicose e matemaacutetica A intenccedilatildeo desta anaacutelise seraacute por um lado verificar a possibi-

lidade de atribuiccedilatildeo da origem das duas temaacuteticas para o protopitagorismo e o pitago-

rismo do seacuteculo V aEC por outro a de sinalizar de que maneira essas temaacuteticas colabo-

raram para a categorizaccedilatildeo do pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo

O Capiacutetulo Terceiro portanto enfrentaraacute as tradiccedilotildees sobre a imortalidade da

alma e sua transmigraccedilatildeo A anaacutelise consideraraacute tanto testemunhos filosoacuteficos preacute-

socraacuteticos platocircnicos e aristoteacutelicos como outras tipologias de fontes antigas entre elas

Heroacutedoto a literatura oacuterfica recentes documentos arqueoloacutegicos e a tradiccedilatildeo das lendas

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sobre as viagens ao aleacutem-tuacutemulo A tradiccedilatildeo pitagoacuterica seraacute encontrada em um lugar

intermediaacuterio entre as teorias da imortalidade oacuterficas e a reelaboraccedilatildeo que destas faz a

filosofia dos seacuteculos V e IV aEC notadamente Platatildeo Na referecircncia de Aristoacuteteles aos

mitos pitagoacutericos seraacute reconhecido o testemunho mais soacutelido da existecircncia de uma teo-

ria protopitagoacuterica da imortalidade da alma

O Capiacutetulo Quarto partindo da constataccedilatildeo de que comumente a matemaacutetica e o

interesse pelos nuacutemeros tecircm sido atribuiacutedos como caracteriacutesticas fundamentais da filo-

sofia pitagoacuterica submeteraacute tais tradiccedilotildees a uma revisatildeo historiograacutefica Como no capiacutetu-

lo terceiro a anaacutelise do testemunho de Aristoacuteteles seraacute decisiva A afirmaccedilatildeo dele pela

qual para os pitagoacutericos ldquotudo eacute nuacutemerordquo seraacute considerada como ao mesmo tempo fon-

te da matemaacutetica do pitagorismo antigo e testemunho do amplo processo de recepccedilatildeo

desta em acircmbito acadecircmico Novamente apareceraacute decisiva portanto a reelaboraccedilatildeo

acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas Todavia Aristoacuteteles demonstraraacute certa indepen-

decircncia desta uacuteltima fundamentalmente graccedilas ao fato de ele poder atingir as fontes preacute-

socraacuteticas independentes pois as nomeia enigmaticamente como os ldquoassim chamados

pitagoacutericosrdquo Seraacute demonstrado que essas fontes correspondem fundamentalmente aos

fragmentos de Filolau A ldquoquestatildeo filolaicardquo portanto seraacute enfrentada a partir da anaacuteli-

se comparativa entre uma ceacutelebre paacutegina de Metafiacutesica A algumas paacuteginas do Filebo e

o proacuteprio livro de Filolau Resultaraacute dessa uma confirmaccedilatildeo por um lado da possibili-

dade de atribuiccedilatildeo de uma teoria numeacuterica senatildeo ao protopitagorismo ao menos ao

pitagorismo do seacuteculo V aEC por outro lado mais uma vez da influecircncia determinante

da (quase) onipresente mediaccedilatildeo acadecircmica sobre a categorizaccedilatildeo da filosofia pitagoacuteri-

ca

Antes de adentrar propriamente na tese fazem-se necessaacuterias algumas observa-

ccedilotildees sobre sua apresentaccedilatildeo Optou-se por sempre transliterar no corpo do texto os

termos gregos conforme o padratildeo internacional ISO 8431997 utiliza-se o alfabeto

grego somente nas notas de rodapeacute Assim como nas mesmas notas mantecircm-se as cita-

ccedilotildees de autores modernos em liacutengua original A grafia de nomes gregos e romanos se-

gue sempre que possiacutevel o Vocabulaacuterio Onomaacutestico de Caldas Aulete (1958) Todas as

traduccedilotildees satildeo minhas salvo expliacutecitas indicaccedilotildees em contraacuterio As normas de referecircn-

cias bibliograacuteficas utilizadas satildeo as da ABNT (NBR 6023 e NBR 10520) O texto foi

revisado e estaacute em conformidade com o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa

(2009)

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CAPIacuteTULO PRIMEIRO

HISTOacuteRIA DA CRIacuteTICA DE ZELLER A KINGSLEY

Na labiriacutentica confusatildeo da tradiccedilatildeo da sabedoria pitagoacuterica e da socie-dade pitagoacuterica que em grande parte nos foi transmitida por escrito-res e compiladores tardios e ingecircnuos como que encoberta por uma sagrada escuridatildeo os fragmentos de Filolau sempre representaram pa-ra mim como um ponto cintilante (Boeckh 1819 3)7

Assim principia Boeckh em 1819 a obra que marca a preacute-histoacuteria da criacutetica

moderna sobre o pitagorismo Um incipit altamente significativo especialmente quando

considerado em perspectiva agrave luz dos dois seacuteculos de interpretaccedilatildeo que a ele se sucede-

ram e que desenham o sinuoso percurso da histoacuteria da tradiccedilatildeo moderna sobre o pitago-

rismo Um iniacutecio que revela com precisatildeo dois dos maiores loci hermenecircuticos da criacuteti-

ca de um lado pela expressatildeo labyrintischen Gewirre a significar inconfudivelmente a

opiniatildeo comum da grande dificuldade de assimilaccedilatildeo da literatura pitagoacuterica por outro

lado pela imediata individuaccedilatildeo de um lichter Punkt um ldquoponto cintilanterdquo em alguma

parte desta (e que corresponde geralmente a um autor ou uma temaacutetica especiacutefica) que

possa iluminar a escuridatildeo do labirinto historiograacutefico um fio de Ariadne que permita

sair da ldquoconfusatildeordquo com a qual o historiador do pitagorismo eacute tradicionalmente levado a

confrontar-se

A percepccedilatildeo dessa mesma dificuldade natildeo eacute exclusiva da criacutetica moderna Jacircm-

blico tambeacutem logo no iniacutecio de sua Vida Pitagoacuterica apelava para os deuses com o

objetivo expresso de solicitar que o assistissem na difiacutecil empreitada de superar dois

obstaacuteculos para o desenvolvimento de sua biografia histoacuterica de um lado a estranheza

das doutrinas e a obscuridade dos siacutembolos do outro a quantidade de escritos espuacuterios

e mentirosos sobre a filosofia pitagoacuterica que circularam ateacute entatildeo

No comeccedilo de toda filosofia eacute costume dos saacutebios apelar para um deus isso vale ainda mais para aquela filosofia que pelo que parece

7 Orig ldquoIm dem labyrinthishen Gewirre der Uberlieferungen uumlber die Pythagorische Weisheit und Py-thagorische Gesellschaft welehe grofsentheils durch spate und urtheilslose Schriftsteller und Zusam-mentraumlger wie in heiliges Dunkel gehuumlllt zu uns heruumlbergekommen sind haben des Philolaos Bruumlchstuumlke sich mir immer als ein lichter Punkt dargestelltrdquo (Boeckh 1819 3)

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leva justamente o nome do divino Pitaacutegoras Esta de fato foi concedi-da desde o iniacutecio pelos deuses e natildeo eacute possiacutevel compreendecirc-la se natildeo com a ajuda deles Aleacutem disso sua beleza e sua grandeza superam as capacidades humanas de maneira que eacute impossiacutevel abraccedilaacute-la imedia-tamente e com um uacutenico olhar Portanto somente se um deus benigno nos guiar seraacute possiacutevel aproximar-se lentamente dela e gradativamente apropriar-se de alguma parte Por todas estas razotildees apoacutes ter invocado os deuses como nossos guias e confiado a eles noacutes mesmos e nosso discurso vamos segui-los aonde eles nos queiram conduzir Natildeo de-vemos dar importacircncia ao fato de que esta escola de pensamento haacute algum tempo encontra-se abandonada nem da estranheza das doutri-nas e da obscuridade dos siacutembolos nos quais ela estaacute envolvida nem dos muitos escritos falsos e apoacutecrifos que lanccedilaram sombras sobre ela nem das muitas dificuldades que tornam o acesso a ela aacuterduo8

Uma sensaccedilatildeo de pacircnico labiriacutentico parece acompanhar portanto desde os albo-

res dessa histoacuteria o encontro do historiador com o pitagorismo A ela segue da mesma

forma uma imediata tentativa de sair do labirinto de achar uma ordem no caos de indi-

viduar uma constante que permita ao discurso historiograacutefico alcanccedilar certa estabilidade

hermenecircutica

Os dois seacuteculos que se seguiram agrave obra inaugural de Boeckh sobre Filolau cons-

tituem o objeto principal das paacuteginas a seguir9 A intenccedilatildeo eacute a de acompanhar o proce-

der ndash nem sempre calmo e arrazoado ndash da criacutetica sabendo de antematildeo que resultaraacute des-

te uma histoacuteria em que cada fato e cada testemunho seratildeo colocados em discussatildeo agrave

exceccedilatildeo provavelmente da proacutepria existecircncia dos assim chamados pitagoacutericos ldquona

controveacutersia acadecircmica que seguiu dificilmente um uacutenico fato permaneceu indisputado

com a exceccedilatildeo de que nos dias de Platatildeo e mais tarde no primeiro seacuteculo aEC existi-

ram Pythagoreioirdquo (Burkert 1972 2)10

8 Iambl VP 1 Orig ldquoἘπὶ πάσης microὲν φιλοσοφίας ὁρmicroῇ θεὸν δήπου παρακαλεῖν ἔθος ἅπασι τοῖς γε σώφ-ροσιν ἐπὶ δὲ τῇ τοῦ θείου Πυθαγόρου δικαίως ἐπωνύmicroῳ νοmicroιζοmicroένῃ πολὺ δήπου microᾶλλον ἁρmicroόττει τοῦτο ποιεῖνmiddot ἐκ θεῶν γὰρ αὐτῆς παραδοθείσης τὸ κατrsquo ἀρχὰς οὐκ ἔνεστιν ἄλλως ἢ διὰ τῶν θεῶν ἀντιλαmicroβάνε-σθαι πρὸς γὰρ τούτῳ καὶ τὸ κάλλος αὐτῆς καὶ τὸ microέγεθος ὑπεραίρει τὴν ἀνθρωπίνην δύναmicroιν ὥστε ἐξαί-φνης αὐτὴν κατιδεῖν ἀλλὰ microόνως ἄν τίς του τῶν θεῶν εὐmicroενοῦς ἐξηγουmicroένου κατὰ βραχὺ προσιὼν ἠρέmicroα ἂν αὐτῆς παρασπάσασθαί τι δυνηθείη διὰ πάντα δὴ οὖν ταῦτα παρακαλέσαντες τοὺς θεοὺς ἡγεmicroόνας καὶ ἐπιτρέψαντες αὐτοῖς ἑαυτοὺς καὶ τὸν λόγον ἑπώmicroεθα ᾗ ἂν ἄγωσιν οὐδὲν ὑπο ἑαυτοὺς καὶ τὸν λόγον ἑπώmicroεθα ᾗ ἂν ἄγωσιν οὐδὲν ὑπο λογιζόmicroενοι τὸ πολὺν ἤδη χρόνον ἠmicroελῆσθαι τὴν αἵρεσιν ταύτην καὶ τὸ microαθήmicroασιν ἀπεξενωmicroένοις καί τισιν ἀπορρήτοις συmicroβόλοις ἐπικεκρύφθαι ψευδέσι τε καὶ νόθοις πολλοῖς συγγράmicromicroασιν ἐπισκιάζεσθαι ἄλλαις τε πολλαῖς τοιαύταις δυσκολίαις παραποδίζεσθαιrdquo 9 Eacute preciso notar que a maioria dos comentadores (Thesleff 1961 31 De Vogel 1966 8 Burkert 1972 2 Centrone 1996 193) natildeo considera a obra de Boeckh (1819) como inaugural da histoacuteria da criacutetica do pitagorismo preferindo fazecirc-la comeccedilar mais tradicionalmente com a obra de Zeller (1855 esta obra seraacute citada daqui para frente na ediccedilatildeo italiana complementada e anotada por Mondolfo em 1938) 10 Orig ldquoIn the scholarly controversy that followed scarcely a single fact remained undisputed save that in Platorsquos day and then later in the first century BC there were Pythagoreioirdquo

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Apesar disso seraacute possiacutevel revelar sinais de continuidade de uma lectio do pita-

gorismo que o entregaraacute agrave histoacuteria com as caracteriacutesticas de um movimento especial

complexo e de difiacutecil interpretaccedilatildeo no interior do panorama dos estudos normais (no

sentido kuhniano) da filosofia preacute-socraacutetica

Obviamente o pitagorismo compartilha o ponto de partida da moderna histoacuteria

de sua criacutetica com o restante da filosofia grega antiga Nesse caso o precursor eacute certa-

mente Zeller que em sua Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Ent-

wicklung (1855) traccedila as bases para a moderna historiografia da filosofia antiga

11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos

Significativamente a primeira paacutegina do capiacutetulo de Zeller dedicada ao pitago-

rismo potildee-se em continuidade com os textos de Jacircmblico e Boeckh anteriormente cita-

dos indicando especial dificuldade para o estudo do pitagorismo na mistura de faacutebulas

e poesias que teria encoberto a doutrina filosoacutefica

Entre todas as escolas filosoacuteficas das quais temos conhecimento natildeo haacute nenhuma cuja histoacuteria natildeo tenha sido frequentemente envolvida e quase encoberta por faacutebulas e poesias e cuja doutrina natildeo tenha sido mesclada na tradiccedilatildeo com uma quantidade enorme de elementos pos-teriores como foi aquela dos pitagoacutericos (Zeller e Mondolfo 1938 288)11

Zeller enfrenta o problema por assim dizer de peito perguntando-se imedia-

tamente sobre a proacutepria possibilidade de existecircncia de um sistema filosoacutefico pitagoacuteri-

co ldquopoderia se levantar a questatildeo se seja o caso de falar em geral do sistema pitagoacuteri-

co como de um complexo cientiacutefico e histoacutericordquo (Zeller e Mondolfo 1938 597)12

A duacutevida eacute potencialmente paralizadora pois coloca em cheque a proacutepria pos-

sibilidade de abordagem do pitagorismo no interior daquelas que se conveacutem conside-

rar Histoacuterias da Filosofia O risco a dizer do Zeller eacute que o pitagorismo a bem ver

natildeo seja outra coisa senatildeo uma selva de mitos e ritos estranhos sem alguma relevacircn-

11 Orig ldquoFra tutte le scuole filosofiche che noi conosciamo non ve nrsquoegrave alcuna la cui storia non sia stata tanto spesso avvolta e quasi coperta di favole e poesie e la cui dottrina sia stata mescolata nella tradizione con una tal massa di elementi posteriori quanto quella dei Pitagoricirdquo 12 Orig ldquoSi potrebbe sollevare la questione se sia il caso di parlare in genere del sistema pitagorico come di un complesso scientifico e storicordquo

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cia para a filosofia Por sorte a resposta de Zeller eacute positiva ldquotudo aquilo que nos eacute

transmitido com relaccedilatildeo agrave filosofia pitagoacuterica ainda que entre todas as divergecircncias

de determinaccedilotildees subordinadas ainda coincide nos tratos fundamentaisrdquo (1938

599)13 Isto eacute haacute no pitagorismo algo de filosoacutefico que poderaacute ser salvo para futura

sistematizaccedilatildeo

Para realizar essa salvaccedilatildeo in principio do pitagorismo todavia Zeller precisa

operar historiograficamente de forma decididamente desenvolvimentista para natildeo dizer

positivista aplicando sobre esse movimento com a precisatildeo ciruacutergica do erudito alematildeo

do seacuteculo XIX um riacutegido esquema historicista Para que esse esquema possa funcionar

Zeller precisa criar diversos gaps hermenecircuticos vaacuterias fraturas controladas com preci-

satildeo e bem demarcadas De maneira especial eacute possiacutevel observar no interior da estrateacute-

gia zelleriana de salvaccedilatildeo do pitagorismo a operacionalizaccedilatildeo de trecircs fraturas realiza-

das a) entre a maioria das fontes e dos testemunhos do pitagorismo que satildeo tardios

notadamente neopitagoacutericos de um lado e as origens da filosofia pitagoacuterica do outro b)

entre a doutrina filosoacutefico-cientiacutefica e outras formas de expressatildeo miacutetico-religiosas c)

entre cultura grega e cultura oriental para que o pitagorismo possa resultar como um

movimento genuinamente grego

Dessa forma para resolver a questatildeo das fontes Zeller elabora a ceacutelebre teoria

da expansatildeo da tradiccedilatildeo a qual observa como com o passar do tempo as fontes sobre

o pitagorismo em vez de diminuir ndash como era de se esperar ndash aumentam

Dessa forma a tradiccedilatildeo relativa ao pitagorismo e ao seu fundador con-segue nos dizer tanto mais quanto mais se encontre distante no tempo dos respectivos fatos histoacutericos e ao contraacuterio ela se encontra na mesma proporccedilatildeo tanto mais silenciosa na medida em que nos apro-ximamos cronologicamente a seu mesmo objeto (Zeller e Mondolfo 1938 299)14

Zeller pode assim concluir que ldquoa pretensa doutrina pitagoacuterica que natildeo eacute recebi-

da pelos testemunhos mais antigos eacute neopitagoacutericardquo (1938 300)15 Isto eacute utilizando-se

de um argumento de certa forma circular e recusando-se a uma distinccedilatildeo mais cuida-

13 Orig ldquoTutto ciograve che ci egrave riferito della filosofia pitagorica pur fra tutte le divergenze di determinazioni subordinate coincide tuttavia nei tratti fondamentalirdquo 14 Orig ldquoCosiacute dunque la tradizione riguardante il Pitagorismo ed il suo fondatore ci sa dire tanto di piugrave quanto piugrave si trovi lontana nel tempo dai relativi fatti storici e per contro essa egrave nella stessa proporzione tanto piugrave taciturna a misura che ci avviciniamo cronologicamente al suo oggetto medesimordquo 15 Orig ldquola pretesa dottrina pitagorica che non egrave conosciuta dai testimoni piugrave antichi egrave neopitagoricardquo

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dosa do material relevante no interior da literatura pitagoacuterica tardia pretende fundar o

que eacute pitagoacuterico exclusivamente sobre os testemunhos por ele considerados como os

mais antigos Entre eles Zeller privilegiaraacute Aristoacuteteles e os fragmentos de Filolau que

na esteira do Boeckh considera em bloco como autecircnticos16

Por consequecircncia da escolha acima o material mais relevante para a histoacuteria do

pitagorismo eacute aquele que o aproxima e o identifica com os outros sistemas preacute-

socraacuteticos e que diz respeito agrave filosofia da natureza

O objeto da ciecircncia pitagoacuterica na base de tudo o que foi dito ateacute este momento resulta aquele mesmo do qual se ocupavam todos os outros sistemas da filosofia preacute-socraacutetica isto eacute os fenocircmenos naturais e seus princiacutepios (Zeller e Mondolfo 1938 585)17

Com base nesses criteacuterios temaacuteticos portanto Zeller em argumento circular

acaba por definir quais sejam os testemunhos vaacutelidos para uma histoacuteria do pitagorismo

em suas origens Da mesma maneira excluindo por parti pris a consideraccedilatildeo das dou-

trinas miacuteticas do pitagorismo Zeller natildeo pode senatildeo declarar adesatildeo irrestrita a Aristoacute-

teles e seu juiacutezo sobre os pitagoacutericos

Natildeo podem ser aqui tomadas em consideraccedilatildeo agraves doutrinas miacuteticas da transmigraccedilatildeo das almas e da visatildeo da vida fundada sobre esta satildeo es-tes dogmas religiosos que aleacutem do mais natildeo eram exclusivos da esco-la pitagoacuterica e natildeo proposiccedilotildees cientiacuteficas Por aquilo que diz respeito agrave filosofia pitagoacuterica eu posso somente concordar com o juiacutezo de A-ristoacuteteles que ela tenha se consagrado inteiramente agrave pesquisa natural (Zeller e Mondolfo 1938 585-587)18

Mais especificamente se natildeo for possiacutevel verificar com precisatildeo quanto do pita-

gorismo do seacuteculo V (Filolau Arquitas) possa ser referido ao proacuteprio Pitaacutegoras Zeller

16 Cf a ampla discussatildeo da nota 2 da p 304 Na mesma nota todavia (p 307) Zeller afasta-se de Boeckh em relaccedilatildeo agrave autenticidade do fragmento sobre a alma-mundo (44 B21 DK) por considerar estranha a Filolau uma teoria da alma dividida em diversas partes como aquela expressa na tradiccedilatildeo platocircnico-aristoteacutelica Com ele concordaratildeo em seguida Burkert (1972 242-243) e Huffman (1993 343) Cf Cor-nelli (2002) para mais ampla discussatildeo da teoria zelleriana da expansatildeo da tradiccedilatildeo 17 Orig ldquoLrsquooggetto della scienza pitagorica in base a tutto ciograve che si egrave detto fin qui risulta quel medesimo di cui si occupavano tutti gli altri sistemi della filosofia presocratica vale a dire i fenomeni naturali e i loro principirdquo 18 Orig ldquoNon possono essere qui prese in considerazione le dottrine mitiche della transmigrazione delle anime e della visione della vita fondata sopra di essa questi sono dogmi religiosi che oltre tutto non eran limitati alla scuola pitagorica e non sono proposizioni scientifiche Per ciograve che riguarda la filosofia pitagorica io posso soltanto associarmi al giudizio di Aristotele che essa sia stata consacrata tutta quanta alla ricerca naturalerdquo

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sugere contudo que as principais doutrinas devam derivar diretamente dele in primis a

doutrina de ldquotudo eacute nuacutemerordquo ldquoque constitui o caraacuteter diferencial mais geral da filosofia

pitagoacutericardquo e que pode se resumir na afirmaccedilatildeo pela qual ldquoo nuacutemero eacute a essecircncia de to-

das as coisas ou seja que tudo em sua essecircncia seja nuacutemerordquo (Zeller e Mondolfo

1938 435)19 Da mesma forma devem ser atribuiacutedas a Pitaacutegoras as doutrinas da harmo-

nia do fogo central e a teoria das esferas todas elas presentes nos fragmentos de Filo-

lau que ndash como vimos ndash eram considerados autecircnticos por Zeller

Na mesma linha Zeller apesar de demonstrar conhecer bem tanto os testemu-

nhos antigos quanto os estudos orientalistas alematildees a ele contemporacircneos os mesmos

que aproximam a filosofia grega em geral e o pitagorismo em especial agraves tradiccedilotildees de

pensamento egiacutepcias persas e indianas ainda assim intitula o capiacutetulo dedicado a este

tema de maneira incontrovertida Contra a Origem Oriental Zeller declara imediata-

mente a improbabilidade de uma origem oriental das doutrinas (Zeller e Mondolfo

1938 602-606) e aposta ao contraacuterio nas origens gregas do pitagorismo e na possibili-

dade de ldquocompreendecirc-lo perfeitamente com base nas caracteriacutestias proacuteprias e nas condi-

ccedilotildees de cultura do povo grego no seacuteculo VI aECrdquo (Zeller e Mondolfo 1938 607)20 O

pitagorismo seraacute portanto compreendido como parte de um movimento maior de re-

forma moral e religiosa do qual fazem parte figuras como Epimecircnides os poetas gnocirc-

micos os sete saacutebios ainda que se eleve acima destes outros pela ldquopoliedricidade e a

potecircncia com a qual ele abraccedilou dentro de si a inteira substacircncia da cultura de seu tem-

po o elemento religioso o eacutetico-poliacutetico e o cientiacuteficordquo (1938 607)21

O esforccedilo do Zeller no sentido de separar o pitagorismo de possiacuteveis relaccedilotildees pe-

rigosas com o Oriente obriga-o a fazer derivar a matemaacutetica pitagoacuterica de Anaximan-

dro ldquoaos estudos matemaacuteticos dificilmente podia ter sido introduzido naquele tempo

por alguma outra pessoardquo (1938 609)22 assim como a negar qualquer influecircncia dos

povos itaacutelicos autoacutectones anteriores agrave colonizaccedilatildeo doacuterica que sem nenhum pudor cha-

19 Orig ldquoche constituisce il carattere differenziale piugrave generale della filosofia pitagoacutericardquo e ldquoil numero sia lrsquoessenza di tutte le cose ossia che tutto di sua essenza sia numerordquo 20 Orig ldquocomprender[lo] perfettamente sulla base delle caratteristiche proprie e delle condizioni di cultura del popolo greco nel VI secolo a Crdquo 21 Orig ldquopoliedricitagrave e la potenza con cui esso ha abbracciato entro di segrave tutta quanta la sostanza della cultura del suo tempo lrsquoelemento religioso quello etico-politico e quello scientificordquo 22 Orig ldquoagli studi matematici difficilmente poteva a quel tempo essere introdotto da qualcun altrordquo

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ma de baacuterbaros (1938 610-611)23 Insere-se neste mesmo projeto a insistecircncia na pro-

funda relaccedilatildeo da Magna Greacutecia com aquele que Zeller chama de ldquocaraacuteter proacuteprio da

estirpe doacutericardquo do qual dependeriam as instituiccedilotildees das cidades doacuterico-aqueias que fo-

ram palco da atividade de Pitaacutegoras (1938 607) Como exemplos desse caraacuteter Zeller

enumera entre outros a poliacutetica aristocraacutetica a muacutesica eacutetica a sabedoria enigmaacutetica a

participaccedilatildeo das mulheres na educaccedilatildeo e na sociedade a firme doutrina moral toda ba-

seada na medida e que natildeo conhece nada de mais alto do que a subordinaccedilatildeo dos indiviacute-

duos ao todo o respeito pelos genitores pela autoridade e pela velhice (1938 608-

609)24 Com uma impostaccedilatildeo historiograacutefica como esta marcadamente hegeliana (ve-

jam-se deste nesse sentido as Licccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia) a conclusatildeo natildeo

poderia ser outra senatildeo aquela de um argumento circular e a posteriori da supremacia

grega (e pitagoacuterica) a prova da superioridade do caraacuteter dos povos da Magna Greacutecia eacute

que ali surgiu a filosofia ldquoo terreno que a filosofia encontrou para si nas colocircnias da

Magna Greacutecia era a tal ponto favoraacutevel A flor agrave qual ela pocircde chegar eacute a prova dissordquo

(1938 611)25

Vale portanto tambeacutem para Zeller aquilo pelo que mais recentemente Centro-

ne chamava a atenccedilatildeo de Zhmud e que de certa forma eacute um leitmotiv de toda histoacuteria

da criacutetica filosoacutefica natildeo somente preacute-socraacutetica tem-se sempre a impressatildeo de que o

historiador acha no autor claacutessico estudado a figura de si mesmo ou de suas afinidades

eletivas

Tem-se a impressatildeo que por uma feliz coincidecircncia a imagem de Pi-taacutegoras reconstruiacuteda por Zhmud o mais possiacutevel depurada das com-ponentes religiosas e restituiacuteda agrave dignidade filosoacutefico-cientiacutefica seja tambeacutem aquela que ele proacuteprio prefere (Centrone 1999 426)26

23 E todavia jaacute Mondolfo em sua nota lembra-se da figura de Mamerco e de um possiacutevel centro de cul-tura matemaacutetica na Itaacutelia antes de Pitaacutegoras (Zeller e Mondolfo 1938 359) 24 Ainda que a primeira formulaccedilatildeo desta distinccedilatildeo tenha sido aquela de Boeckh que distinguia entre a Sinnlichkeit jocircnica cujo espelho seria o materialismo filosoacutefico e o Volk doacuterico que remete para a busca da ordem (1819 39-42) Natildeo deve ser esquecido aleacutem do mais que Boeckh era disciacutepulo de Schleierma-cher que por primeiro havia postulado este modelo de divisatildeo eacutetnica da filosofia em diversas tendecircncias geopoliacuteticas e com modalidades evolucionistas em suas aulas de 1812 publicadas postumamente sob o tiacutetulo de Ethik 18123 (Schleiermacher 1990) 25 Orig ldquotanto piugrave favorevole era il terreno che la filosofia trovograve per segrave nelle colonie della Magna Grecia Il fiore al quale essa vi potegrave pervenire ne egrave la provardquo 26 Orig ldquoSi ha lrsquoimpressione che per felice coincidenza lrsquoimmagine di Pitagora ricostruita da Zhmud depurata il piugrave possibile dalle componenti religiose e restituita a dignitagrave filosofico-scientifica sia anche quella che egli prediligerdquo

28

O privileacutegio concedido por Zeller agrave lectio aristoteacutelica sobre os pitagoacutericos tor-

nou-se ao longo da histoacuteria da criacutetica moderna um troacutepos historiograacutefico predominan-

te contribuindo para definir a filosofia pitagoacuterica sobretudo a partir da tese ldquotudo eacute nuacute-

merordquo27 Da mesma forma tanto a clara fratura entre o pitagorismo antigo e o neopita-

gorismo como o quase absoluto desprezo pela dimensatildeo poliacutetica da koinoniacutea pitagoacuterica

influenciaram decididamente os estudos posteriores

Exemplo da influecircncia do ceticismo zelleriano satildeo certamente as liccedilotildees sobre os

filoacutesofos preacute-platocircnicos que o amigo Nietzsche ministra em Basileia a partir do ano de

1872 Eacute signifitiva a tese que Nietzsche defende em sua aula sobre Pitaacutegoras

Aquilo que se denomina filosofia pitagoacuterica eacute algo de muito posterior que eacute possiacutevel colocar somente na segunda metade do seacuteculo V Por-tanto ele natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo com os filoacutesofos mais antigos pois natildeo foi filoacutesofo mas algo diferente A rigor se poderia excluiacute-lo de uma histoacuteria da filosofia mais antiga Todavia ele produziu um ti-po de vida filosoacutefica e isso os gregos lhe devem Esta imagem exerce uma notaacutevel influecircncia natildeo sobre a filosofia mas sobre os filoacutesofos (Parmecircnides Empeacutedocles) Somente nestes termos deve-se falar dele (Nietzsche 1994 47)

A proacutepria possibilidade de falar de Pitaacutegoras no interior da histoacuteria da filosofia eacute

colocada em seacuterias duacutevidas pois sua contribuiccedilatildeo para ela eacute minimizada nos termos de

uma influecircncia sobre um geneacuterico estilo de vida filosoacutefico privo de conteuacutedos A posi-

ccedilatildeo de Nietzsche revela um ceticismo bastante radical portanto28

12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo

Sobre a premissa aristoteacutelico-zelleriana de que o pitagoacuterico seria algueacutem que fala

dos nuacutemeros Diels organiza sua seleccedilatildeo de fragmentos e testemunhos nos Vorsokrati-

ker (Diels 1903 Diels-Kranz 1951)

27 Ao menos ateacute os estudos de Zhmud (1989 272ss 1997 261ss ) conforme seraacute visto com mais deta-lhes no capiacutetulo quarto 28 Com a pergunta lsquoPithagoras Philosophusrsquo Bechtle (2003) entitula de forma ineacutedita para um trabalho manualiacutestico seu capiacutetulo sobre Pitaacutegoras

29

Foi exatamente este o criteacuterio que H Diels usou para selecionar quem representaria a escola pitagoacuterica em sua ediccedilatildeo dos fragmentos dos preacute-socraacuteticos A fonte primaacuteria (ainda que natildeo uacutenica) foi o celebre cataacutelogo dos pitagoacutericos encontrado em Jacircmblico (VP 267) Diels a-creditava que este cataacutelogo remontasse ao peripateacutetico Aristoxeno (Zhmud 1989 273)29

A anotaccedilatildeo inicial ao capiacutetulo XIV sobre Pitaacutegoras natildeo pode ser mais esclarece-

dora da dependecircncia de Zeller

Antes da eacutepoca de Filolau natildeo existia qualquer escrito de Pitaacutegoras e havia somente uma tradiccedilatildeo oral da escola mesma por consequecircncia natildeo havia uma doxografia segura [] Cf os testemunhos de Xenoacutefa-nes Heraacuteclito Empeacutedocles Igraveon sobre Pitaacutegoras em correspondecircncia dos proacuteprios autores (Diels 1903 22)30

A influecircncia da coleccedilatildeo dielsiana para todos os estudos sobre o pitagorismo eacute in-

discutiacutevel31 De Vogel (1964 9) mostra com razatildeo que Diels recolhe da tradiccedilatildeo mais

tardia sobre Pitaacutegoras e os pitagoacutericos somente o que diz respeito diretamente a Aristoacute-

xeno e suas Pythagorikai apophaseis (D) os Acusmata e Symbola (C) os testemunhos

aristoteacutelicos e de escola peripateacutetica (B) e alguma pouca referecircncia aos pitagoristas da

Comeacutedia aacutetica de Meio (E) Com isso exclui praticamente qualquer referecircncia agrave ativi-

dade poliacutetica de Pitaacutegoras Mesmo a revisatildeo da coleccedilatildeo feita por Kranz para a sexta edi-

ccedilatildeo dessa obra (1951) manteacutem a impostaccedilatildeo inicial do Diels Kranz decide sim inserir

no capiacutetulo sobre Pitaacutegoras o testemunho (A8a) sobre os discursos poliacuteticos de Pitaacutego-

ras em Crotona de Porfiacuterio (VP 18-19) No entanto ndash anota De Vogel ndash ldquoeacute difiacutecil que o

leve a seacuteriordquo (1964 9 ldquohardly took it seriouslyrdquo) como demonstraria o fato que a res-

pectiva redaccedilatildeo dos discursos em Jacircmblico (VP 37-57) como os paralelos de Pompeu

29 Orig ldquoIt was just this criterion which H Diels used for selecting representatives of the Pythagorean school in his edition of the fragments of the presocratics The main source (but not the only one) he had relied on was the well-known catalogue of Pythagoreans found in Iamblichus (Vit Pyth 267) Diels be-lieved that this catalogue went back to the Peripatetic Aristoxenusrdquo 30 Da es keine Schriften des Pythagoras gab und uumlberhaupt vor Philolaos Zeit nur muumlndliche Tradition der eigentlichen Schule bestand so gibt es hier keine Doxographie [] Die Zeugnisse des Xenophanes [11 B7] Heraklit [12 B40129()] Empedokles [21 B129] Ion [25 B4()] uumlber P s bei diesen Na VI Ediccedilatildeo revista Kranz (1951) qualificaraacute como entscheidend wichtigen importantes e decisivos Die Zeugnisse dos outros presocraacuteticos acima citados Seraacute preciso notar tambeacutem que ndash contrariamente ao que afirma na nota introdutoacuteria acima citada ndash Diels acaba inserindo arbitrariamente no fim dois testemu-nhos doxograacuteficos (A 20 e 21) sobre a descoberta da identidade entre os astros Espero e Luciacutefero e sobre o fato de ter chamado toacute oacutelon de koacutesmos Cf para isso Burkert (1972 77 e 307) 31 Para uma resenha exaustiva do processo de elaboraccedilatildeo da coleccedilatildeo cf Calogero (1941)

30

Trogo continua natildeo encontrando lugar na coleccedilatildeo Os poucos testemunhos nesse senti-

do que Diels-Kranz coleta ndash A13 sobre matrimocircnio de Pitaacutegoras A16 sobre a crise da

comunidade pitagoacuterica (Iambl VP 248-257) ndash satildeo inseridos na seccedilatildeo Leben Por outro

lado Kranz natildeo muda nada no capiacutetulo sobre a Pythagoreische Schule (58) o material

aqui citado que diria respeito diretamente a Pitaacutegoras eacute mantido com todos os cuidados

bastante separado dele a significar uma lectio que quer afastar os conteuacutedos deste mate-

rial da autecircntica filosofia pitagoacuterica32

Eacute mister lembrar que a arbitrariedade das escolhas de Diels-Kranz seraacute objeto de

todos os estudos que revisaratildeo ao longo do seacuteculo XX pontualmente essa coleccedilatildeo33

13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo

A primeira reaccedilatildeo ao franco ceticismo de Zeller em relaccedilatildeo agraves fontes pitagoacutericas

natildeo demora a aparecer seu ponto de partida satildeo certamente os dois artigos que Rohde

publica jaacute na segunda metade do seacuteculo XIX na Rheinisches Museum sobre as fontes

da Vida Pitagoacuterica de Jacircmblico (Rohde 1871 1872) Eacute exatamente nesse campo de

trabalho da obra de Jacircmblico que surgem os primeiros questionamentos relativos agrave pre-

tensa verdade absoluta da equaccedilatildeo entre fontes tardias e sua confiabilidade Rohde mos-

tra com uma anaacutelise minuciosa as dependecircncias do texto de Jacircmblico natildeo da vida pa-

ralela de Porfiacuterio como era opiniatildeo comum ateacute entatildeo (Nauck 1884 x) e sim de fontes

neoplatocircnicas datadas dos seacuteculos I e II EC portanto anteriores agravequela notadamente

Nicocircmaco e Apolocircnio Rohde procura fundamentar essa ldquoteoria mecacircnica das duas fon-

tesrdquo (Burkert 1972 100) partindo da ideia de que tanto Porfiacuterio quanto Jacircmblico escre-

veram seus textos em exerciacutecio nem sempre bem-sucedido do ponto de vista estiliacutestico

32 Chama atenccedilatildeo todavia que em um artigo de 1890 Diels havia sugerido atribuir ao proacuteprio Pitaacutegoras alguns textos pitagoacutericos do periacuteodo heleniacutestico entre eles especialmente o Kopiacutedes um escrito retoacuterico reconstruiacutedo a partir de uma referecircncia em Heraacuteclito e o Paideutikoacuten Politikoacuten Physikoacuten na realidade escrito no seacuteculo II aEC em dialeto iocircnico para parecer mais antigo que o doacuterico Periacute Physios de Filo-lau Para os textos veja-se agora a coleccedilatildeo de Thesleff (1965) De certa forma portanto ainda que inici-almente propenso a dar algum valor histoacuterico agrave literatura pitagoacuterica mais tardia Diels parece mudar de ideia logo em seguida agrave publicaccedilatildeo da obra de Zeller em 1855 33 Philip (1966 38) eacute categoricamente fatalista em afirmar que a parte dedicada ao pitagorismo eacute certa-mente a pior da coleccedilatildeo ldquothe fragments of Pythagoras and the Pythagoreans are perhaps inevitably the least satisfactory part of the Vorsokratikerrdquo Natildeo escapa da mordacidade de Philip nem sequer a coleccedilatildeo da Timpanaro Cardini (1958-1962) ldquoMiss Cardini is as ready as Iamblichus to baptize as a Pythagorean anyone having the remotest connection with that lsquobrotherhoodrsquordquo

31

de corte e colagem A confianccedila em sua teoria estende-se ateacute o ponto de ironizar o ldquodi-

vino Jacircmblicordquo por sua ldquopobreza mental e alma malemolenterdquo (Rohde 1872 60) em

outro passo de seu segundo artigo (1872) volta a acusar Jacircmblico por

Demonstrar significativa independecircncia em niacutevel tatildeo vergonhoso ao ponto de preparar uma mistura multicolorida arrumada a partir de re-cortes de suas leituras enquanto a sequecircncia desordenada e as impro-visadas passagens conectivas seriam sua proacutepria contribuiccedilatildeo agrave obra (Rohde 1872 48)34

Apesar de natildeo resistir agraves sucessivas criacuteticas que se queixavam da impiedosa arbi-

trariedade da compreensatildeo do processo de confecccedilatildeo do trabalho de Jacircmblico de fato o

trabalho de Rohde abriu o caminho para uma longa Quellenforshung as ediccedilotildees da Vida

Pitagoacuterica de Jacircmblico de Bertermann (1913) e de Deubner (1937) dependem am-

plamente das pesquisas de Rohde assim como os estudos de Corrsen (1912) Leacutevy

(1926) e Frank (1923)35 Da mesma forma os comentadores que o acompanharam neste

caminho puderam em seguida detectar no texto referecircncias a autores do seacuteculo IV aEC

como Aristoxeno Dicearco Heraacuteclide Pocircntico e Timeu36 Entre eles certamente deve-

mos considerar in primis Delatte que em seu trabalho sobre a literatura pitagoacuterica

antes (1915) e sobre a Vida de Pitaacutegoras de Dioacutegenes Laeacutercio depois (1922b) recolhe

em amplo espectro cronoloacutegico e interdisciplinar as mais diferentes fontes desta obra

inspirado exatamente na metodologia de trabalho inaugurada por Rohde Na mesma

linha metodoloacutegica situa-se o trabalho sobre a poliacutetica pitagoacuterica de Von Fritz (1940)

que procura identificar material que possa ser referido a Aristoxeno Timeu e Dicearco

Assim ao lado de Aristoacuteteles comeccedilam a aparecer na literatura criacutetica moderna

nomes de autores quase tatildeo antigos como referenciais para os estudos do pitagorismo

34 Orig ldquoHier zeigt Jamblich eine bei einem so elenden Stoppler schon bemerkenswerthe Selbstaumlndig-keit indem er meist aus Brocken seiner Lektuumlre ein bunter Allerlei herstellt an dem wenigstens die unru-hige Unordnung der Reihenfolge und die das Einzelne nothduumlrftig verknuumlpfenden Betrachtungen sein eigenes Werk sindrdquo 35 Eacute significativo notar que somente quatro anos antes da publicaccedilatildeo do primeiro artigo de Rohde na mesma Rheinisches Museum fuumlr Philologie de 1868 Friedrich Nietzsche havia publicado um artigo (1868) dedicado ao mesmo tema das fontes das biografias tardias desta vez em Dioacutegenes Laeacutercio Ni-etzsche identifica da mesma maneira que faraacute logo mais Rohde em autores do I seacuteculo aEC (Favorino e Diacuteocles de Magneacutesia) as fontes das notiacutecias biograacuteficas esparsas na obra de Dioacutegenes O trabalho de Roh-de portanto deve ser compreendido ao lado daquele de ilustres colegas como parte de amplo esforccedilo de validaccedilatildeo das fontes tardias por meio do estudo da Tradition Geshichte de suas obras 36 Cf Burkert 1972 4 Para uma criacutetica da articulaccedilatildeo dos argumentos de Rohde nos dois artigos citados cf Norden (1913) e depois Philip (1959)

32

em seu nascer Deve-se notar nesse sentido que jaacute os Doxographi Graeci de Diels

(1879) indicam Teofrasto como a fonte uacuteltima do amplo material doxograacutefico reportado

pela tradiccedilatildeo dessa forma agravequela que Diels chama de antiga tradiccedilatildeo peripateacutetica (58

B DK) seraacute atribuiacutedo um papel central daqui para frente para a reconstruccedilatildeo do pitago-

rismo

14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos

Iniciador de uma brilhante tradiccedilatildeo de scholars anglo-saxotildees que se dedicaram

aos estudos sobre as origens da filosofia antiga Burnet em sua obra Early Greek Philo-

sophy (1908) eacute ainda devedor da lectio inaugural operada por Zeller com efeito de-

senvolve sua teoria tendo como pressuposto a clara separaccedilatildeo entre a dimensatildeo religiosa

de Pitaacutegoras e o desenvolvimento sucessivo do movimento assim como certa distacircncia

entre as preocupaccedilotildees poliacuteticas e aquelas cientiacuteficas das koinoniacuteai pitagoacutericas Sobre

esse piso comum Burnet elabora uma lectio proacutepria que natildeo desdenha as recentes posi-

ccedilotildees menos ceacuteticas como aquela de Rohde (Burnet 1908 91 n1) inaugurando uma li-

nha interpretativa baseada na ceacutelebre distinccedilatildeo no interior do movimento pitagoacuterico

entre os acusmaacuteticos e os matemaacuteticos Distinccedilatildeo esta que se tornaraacute tradicional na his-

toacuteria da criacutetica e distingue de um lado o interesse por parte de alguns nos tabus tradi-

cionais de uma religiosidade arcaica (os akouacutesmata e syacutembola) e do outro a franca de-

dicaccedilatildeo agrave pesquisa de princiacutepios cientiacuteficos notadamente matemaacuteticos Distinccedilatildeo en-

fim jaacute presente nas fontes relacionadas agrave menccedilatildeo agrave didaskaliacutea diacutetton ao duplo ensina-

mento de Pitaacutegoras em Porfiacuterio e agrave distinccedilatildeo entre os Pitagoreacuteus e os Pitagoacuteristas (estes

uacuteltimos imitadores dos primeiros e que corresponderiam aos acusmaacuteticos) em Jacircmblico

(Porph VP 37 Iambl VP 80)37 Eacute preciso notar que apesar de os usos sucessivos des-

sa distinccedilatildeo inicial tenderem a sublinhar o gap entre os dois grupos a bem ver essa

mesma distinccedilatildeo natildeo pressupotildee nas intenccedilotildees iniciais de Burnet ndash assim como nas Vi-

das anteriormente citadas ndash alguma separaccedilatildeo definitiva entre dois lados no interior do

mesmo pitagorismo das origens Ao contraacuterio o mesmo Burnet identifica em dois luga-

res pontos de contato a) na complexa figura do proacuteprio Pitaacutegoras que estaria na origem

37 Cf para uma discussatildeo sobre as fontes da distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteticos a seccedilatildeo 12 a seguir

33

de ambas as didaskaliacuteai (Burnet 1908 107) b) no conceito de kathaacutersis de purificaccedilatildeo

que conecta o aspecto religioso e aquele cientiacutefico uma vez que ciecircncia tambeacutem se tor-

na ela proacutepria um instrumento de purificaccedilatildeo

Precisamos considerar que haacute aqui um reavivamento da filosofia reli-giosa principalmente porque se sugere a ideia de que a filosofia seja acima de tudo um ldquoestilo de vidardquo Mesmo a ciecircncia era uma purifica-ccedilatildeo uma maneira de fugir da ldquorodardquo Esta eacute a visatildeo expressada tatildeo fortemente no Feacutedon de Platatildeo o qual foi escrito sob a influecircncia das doutrinas pitagoacutericas (Burnet 1908 89)38

Assim natildeo eacute possiacutevel concordar com a acusaccedilatildeo um tanto sumaacuteria de De Vogel

pela qual ldquoBurnet natildeo presta atenccedilatildeo para o caraacuteter eacutetico-religioso do biacuteos fundado por

Pitaacutegoras e para a conexatildeo essencial deste aspecto com os assim chamados princiacutepios

cientiacuteficosrdquo (1964 11)39 Ao contraacuterio eacute exatamente pelo conceito de purificaccedilatildeo que

essa conexatildeo eacute afirmada e compreendida em sua profundidade teoacuterica para aleacutem da

realidade histoacuterica concreta do movimento40

Contudo eacute certamente merecedora de criacuteticas em Burnet uma abordagem for-

malmente aprioriacutestica da questatildeo das fontes por ela tudo o que eacute arcaico seria religioso

enquanto tudo o que eacute mais recente seria cientiacutefico Assim o pitagorismo das origens

estaria ligado a modos de pensamento primitivos facilmente detectaacuteveis na tradiccedilatildeo dos

akouacutesmata e syacutembola

Seria faacutecil multiplicar as provas de uma conexatildeo proacutexima entre o pita-gorismo e os modos de pensamento primitivos mas o que foi dito eacute jaacute suficiente para nosso propoacutesito O parentesco de homens e animais a abstinecircncia da carne e a doutrina da transmigraccedilatildeo estatildeo todas juntas e formam um conjunto perfeitamente inteligiacutevel (Burnet 1908 106)41

38 Orig ldquoWe have to take account of the religious Philosophy as revival here chiefly because it sug-gested the view that a philosophy was above all a lsquoway of lifersquo Science too was a lsquopurificationrsquo a means of escape from the lsquowheelrsquo This is the view expressed so strongly in Platorsquos Phaedo which was written under the influence of Pythagorean ideasrdquo 39 Orig ldquoBurnet had no eye for the ethico-religious character of the biacuteos founded by Pythagoras and for the essencial connection of this aspect with the so-called scientific principlesrdquo 40 Burnet cita (1908 98 n3) e desenvolve aqui a intuiccedilatildeo sobre a unidade entre ciecircncia e religiatildeo pela kathaacutersis que jaacute havia sido de Doumlring (1892) 41 Orig ldquoIt would be easy to multiply proofs of the close connexion between Pythagoreanism and primi-tive modes of thought but what has been said is really sufficient for our purpose The kinship of men and beasts the abstinence from flesh and the doctrine of transmigration all hang together and form a perfect-ly intelligible wholerdquo

34

O divisor de aacuteguas da questatildeo das fontes torna-se em Burnet o matemaacutetico A-

ristoxeno que inaugura esta distinccedilatildeo entre o grupo mais iluminado da escola e a parte

supersticiosa e ndash daqui para frente ndash hereacutetica do pitagorismo Nas palavras do proacuteprio

Burnet

Agrave eacutepoca deles a parte simplesmente supersticiosa do pitagorismo foi abandonada com a exceccedilatildeo de alguns zelotas que a direccedilatildeo da Socie-dade recusava-se a reconhecer Eis porque ele apresenta o proacuteprio Pi-tagoacuteras em luz tatildeo diferente seja das tradiccedilotildees mais antigas como das mais recentes eacute porque ele nos concedeu o ponto de vista da seita mais iluminada da Ordem Aqueles que colaram fielmente agraves velhas praacuteticas eram agora considerados hereacuteticos e todo tipo de teorias era colocado na situaccedilatildeo de ter de dar razatildeo de sua existecircncia (Burnet 1908 106)42

A maior purificaccedilatildeo eacute a ciecircncia desinteressada (disinterested science) e portan-

to o ser humano que a ela se dedicar devotamente isto eacute o filoacutesofo poderaacute se livrar do

ciclo da geraccedilatildeo (1908 107) Contudo natildeo foge obviamente a Burnet que a grande

questatildeo eacute quanto dessa visatildeo poacutes-aristoxecircnica eacute atribuiacutevel ao proacuteprio Pitaacutegoras

Seria imprudente afirmar que Pitaacutegoras havia se expressado exata-mente desta maneira mas todas essas ideias satildeo genuinamente pitagoacute-ricas e eacute somente dessa forma que podemos cobrir a distacircncia que se-para Pitaacutegoras o homem da ciecircncia do Pitaacutegoras o mestre religioso (1908 107-108)43

A ponte que pretende separar os dois Pitaacutegoras o homem da ciecircncia e o mestre

religioso eacute o problema central que acompanha daqui para frente a histoacuteria da criacutetica do

espinhoso problema da complexidade multifacetada do pitagorismo

Ao mesmo tempo em que Burnet declara a necessidade de superaacute-la para encon-

trar em Pitaacutegoras a origem das duas vertentes estaacute de fato pressupondo a existecircncia

delas pois que haja uma distacircncia a ser superada entre pensamento cientiacutefico e pensa-

mento religioso tanto na antiguidade quanto hoje eacute esta mesma uma afirmaccedilatildeo a ser 42 Orig ldquoin their time the merely superstitious part of Pythagoreanism had been dropped except by some zealots whom the heads of the Society refused to acknowledge That is why he represents Pythago-ras himself in so different a light from both the older and the later traditions it is because he gives us the view of the more enlightened sect of the Order Those who clung faithfully to the old practices were now regarded as heretics and all manner of theories were set on foot to account for their existencerdquo 43 Orig ldquoIt would be rash to say that Pythagoras expressed himself exactly in this manner but all these ideas are genuinely Pythagorean and it is only in some such way that we can bridge the gulf which separates Pythagoras the man of science from Pythagoras the religious teacherrdquo

35

provada e certamente eacute um preconceito hermenecircutico tanto amplamente em uso quan-

to indemonstrado

Assim em conclusatildeo ao seu capiacutetulo dedicado ao pitagorismo Burnet reconhece

ter elaborado sua reconstruccedilatildeo da figura de Pitaacutegoras ldquosimplesmente atribuindo a ele

aquelas porccedilotildees do sistema pitagoacuterico que parecem ser as mais antigasrdquo (1908 123)44

Todavia a definiccedilatildeo do que eacute o mais antigo corresponde agrave quase totalidade do problema

a ser enfrentado e natildeo pode ser resolvida sucintamente com uma cronografia positivis-

ta como Burnet parece querer

Ainda assim eacute o caso de voltar a anotar aqui o esforccedilo de Burnet para manter

juntas as diversas tradiccedilotildees sobre Pitaacutegoras eacute fundamental para compreender as sucessi-

vas intervenccedilotildees hermenecircuticas sobre a literatura pitagoacuterica que de Cornford a Guthrie

desenham lentamente o caminho da composiccedilatildeo da diversidade de tradiccedilotildees em que

tanto a figura de Pitaacutegoras quanto o imediato desenvolvimento do movimento encon-

tram-se mergulhados

15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo

Em um artigo publicado em duas partes sucessivas na Classical Quarterly (em

1922 e 1923) intitulado significativamente Mysticism and Science in the Pythagorean

Tradition Cornford aborda a questatildeo de certa forma deixada em aberto por Burnet da

correta abordagem das relaccedilotildees entre religiosidade e interesses cientiacuteficos no pitagoris-

mo evitando reducionismos e anacronismos de matriz positivista que este uacuteltimo apa-

rentemente natildeo teria conseguido evitar Os dois artigos seguem de perto a jaacute consolida-

da perspectiva historiograacutefica do autor inglecircs em sua obra inaugural sobre as complexas

relaccedilotildees entre mito e histoacuteria em Tuciacutedides Thucydides Mythistoricus (1907) o objeti-

vo eacute o de afastar-se das tendecircncias da histoacuteria moderna que seria viacutetima da tiacutepica ldquofalaacute-

cia modernistardquo por projetar na obra do historiador ateniense noccedilotildees de cientificidade

derivadas em seus fundamentos da biologia darwiniana e da fiacutesica contemporacircnea45

44 Orig ldquosimply assigned to him those portions of the Pythagorean system which appear to be the old-estrdquo 45 Para uma anaacutelise mais ampla desta obra assim como da posiccedilatildeo historiograacutefica de Cornford cf Murari (2002)

36

Sobre esse pano de fundo teoacuterico Cornford enfrenta a vexata quaestio da pre-

senccedila nos seacuteculos VI e V aEC de dois ldquosistemas de pensamento diferentes e radical-

mente opostos elaborados no interior da escola pitagoacuterica Eles podem ser chamados

respectivamente de sistema miacutestico e sistema cientiacuteficordquo (Cornford 1922 137)46 En-

quanto todas as tentativas hermenecircuticas a ele contemporacircneas procuram articular os

dois sistemas em uma imagem coerente do movimento Cornford reconhece haver certa

confusatildeo entre os dois sistemas Essa confusatildeo eacute jaacute perceptiacutevel nas obras de Aristoacuteteles

e precisaraacute ser desvendada A soluccedilatildeo proposta por Cornford eacute a de distinguir no interi-

or do pitagorismo dois momentos histoacutericos diferentes e sucessivos cujo divisor de

aacuteguas ndash no comeccedilo do seacuteculo V aECndash seria a polecircmica eleaacutetica contra a derivaccedilatildeo da

multiplicidade da realidade de uma uacutenica archeacute Cornford resume da seguinte forma a

imagem do pitagorismo que resulta dividido por essa polecircmica

Podemos em uma palavra distinguir entre (1) o sistema original de Pitaacutegoras datado no seacuteculo VI criticado por Parmecircnides ndash o sistema miacutestico e (2) o pluralismo datado no seacuteculo V construiacutedo para con-frontar as objeccedilotildees de Parmecircnides e por sua vez criticado por Zenatildeo ndash o sistema cientiacutefico que pode ser chamado de ldquoatomismo numeacutericordquo (Cornford 1922 137)47

Essa divisatildeo entre misticismo e ciecircncia no pitagorismo encontra-se apenas apa-

rentemente em continuidade com a separaccedilatildeo entre religiatildeo e ciecircncia proposta por Bur-

net De fato imediatamente apoacutes indicar a separaccedilatildeo acima descrita Cornford anota que

haacute um terceiro momento do pitagorismo aquele de Filolau que tambeacutem pertence agrave

margem miacutestica mas que se coloca cronologicamente mais tarde

Haacute tambeacutem (3) o sistema de Filolau que pertence ao lado miacutestico da tradiccedilatildeo e procura acomodar a teoria dos elementos empedocleia Es-te para nossos atuais propoacutesitos pode ser deixado de lado (Cornford 1922 137)48

46 Orig ldquodifferent and radically opposed systems of thought elaborated within the Pythagorean school They may be called respectively the mystical system and the scientificrdquo 47 Orig ldquoWe can in a word distinguish between (1) the original sixth-century system of Pythagoras criticized by Parmenides ndash the mystical system and (2) the fifth-century pluralism constructed to meet Parmenidesrsquo objections and criticized in turn by Zeno ndash the scientific system which may be called lsquoNum-ber-atomismrsquordquo 48 Orig ldquoThere is also (3) the system of Philolaus which belongs to the mystical side of the tradition and seeks to accommodate the Empedoclean theory of elements This may for our present purpose be neglectedrdquo

37

O ponto mais significativo aqui eacute a sutil mudanccedila de perspectiva ndash no interior da

histoacuteria da criacutetica ndash que esta divisatildeo de Cornford representa colocando a ecircnfase da dis-

tinccedilatildeo entre as duas margens do pitagorismo no debate histoacuterico com o eleatismo retira-

se o apriorismo ndash acima citado ndash que postula uma anterioridade da religiosidade agrave ciecircn-

cia Com efeito ao descrever o lado miacutestico do movimento Cornford afirma britanica-

mente ndash eacute mesmo o caso de dizer ndash sua ldquonatildeo evidente inconsistecircnciardquo com a filosofia

Toda tentativa de resgatar o sistema original do fundador deveraacute eu diria necessariamente basear-se no pressuposto pelo qual sua filosofia e cosmologia natildeo estariam evidentemente inconsistentes com sua reli-giatildeo (Cornford 1922 138)49

Com um argumento francamente antievolucionista Cornford afirma portanto

que diferentemente da primeira fase jocircnica da filosofia em suas origens em que o ele-

mento religioso havia sido deixado de lado nesse segundo momento itaacutelico recupera-se

a dimensatildeo religiosa da vida filosoacutefica

Eacute oacutebvio que a tradiccedilatildeo filosoacutefica itaacutelica difere radicamente daquela jocirc-nica com respeito agrave sua relaccedilatildeo com a crenccedila religiosa Diferentemen-te dos Jocircnicos ela comeccedila natildeo pela eliminaccedilatildeo dos fatores que uma vez possuiacuteam significado religioso mas ao contraacuterio com uma recons-truccedilatildeo da vida relgiosa Para Pitaacutegoras conforme eacute admissatildeo geral o amor pela sabedoria a filosofia era um estilo de vida Pitaacutegoras foi tanto um grande reformador religioso o profeta de uma sociedade congregada pela reverecircncia agrave sua memoacuteria e pela observacircncia de uma regra monaacutestica e tambeacutem um homem de excepcionais poderes inte-lectuais em destaque entre os fundadores da ciecircncia matemaacutetica (Cornford 1922 138-139)50

Assim a figura de Pitaacutegoras poderaacute ser ao mesmo tempo compreendida como a

de um reformador religioso e de um homem de ciecircncia A distinccedilatildeo final dessas duas

margens aconteceraacute soacute em seguida em ocasiatildeo da polecircmica eleata notadamente zeno-

49 Orig ldquoAny attempt to reconstruct the original system of the founder must I would urge be based on the presupposition that his philosophy and cosmology were not openly inconsistent with his religionrdquo 50 Orig ldquoIt is obvious that the Italian tradition in philosophy differs radically from the Ionian in respect of its relation to religious belief Unlike the Ionian it begins not with the elimination of factors that had once had a religious significance but actually with a re-construction of the religious life To Pythagoras as all admit the love of wisdom philosophy was a way of life Pythagoras was both a great religious reformer the prophet of a society united by reverence for his memory and the observance of a monastic rule and also a man of commanding intellectual powers eminent among the founders of mathematical sciencerdquo

38

niana ainda que natildeo de forma tatildeo definida se for considerada a terceira margem filolai-

ca por ele proacuteprio indicada (ainda que natildeo discutida)

Raven (1948) bem compreendeu a novidade da posiccedilatildeo de Cornford ao afirmar

em seu Pythagoreans and Eleatics ldquouma das razotildees pelas quais a reconstruccedilatildeo de Corn-

ford do pitagorismo mais antiga eacute tatildeo atrativa eacute que ela imagina poder reconciliar o mo-

tivo religioso com aquele cientiacuteficordquo (Raven 1948 9)51

Seguindo de perto os argumentos de Cornford e a imagem coerente e plausiacutevel

que deles resulta Raven todavia propotildee-se agrave precisa tarefa de verificar se as conclu-

sotildees agraves quais Cornford chega sejam de fato as uacutenicas possiacuteveis Pois a questatildeo natildeo eacute

tanto ndash segundo Raven ndash aquela de ter uma visatildeo coerente do movimento e sim o

quanto esta ldquocondiz com todas as nossas evidecircncias disponiacuteveisrdquo (tallies with all our

avaliable evidence) a comeccedilar pelos testemunhos aristoteacutelicos sem os quais qualquer

tentativa de construccedilatildeo de um discurso histoacuterico sobre o pitagorismo eacute em seu dizer

ldquouma casa construiacuteda sobre areiardquo (house built upon sand ndash Raven 1948 6)52

Eacute exatamente essa a leitura que propotildee Guthrie (1962) provavelmente o uacuteltimo

grande comentador pertencente agrave tradiccedilatildeo de inteacuterpretes ingleses que tem suas origens

em Burnet Natildeo por acaso Guthrie refere-se diretamente aos estudos citados de Corn-

ford (1922 1923) e depois aos de seu disciacutepulo Raven (1948) para exemplificar aque-

le que chama de meacutetodo ldquoa priorirdquo da histoacuteria da filosofia preacute-socraacutetica O meacutetodo con-

siste fundamentalmente em deixar de lado por um instante os testemunhos diretos ou

indiretos e procurar imaginar aquilo que os referidos filoacutesofos teriam provavelmente

(likely) dito ou natildeo dadas as circunstacircncias histoacutericas em que se achavam Guthrie co-

menta assim os pressupostos teoacutericos do meacutetodo

Parte do pressuposto de que possuiacutemos certa familiaridade geral com outras escolas contemporacircneas e filoacutesofos individuais e com o ambi-ente de pensamento no qual os pitagoacutericos trabalharam Este conheci-mento geral da evoluccedilatildeo da filosofia grega daacute a algueacutem ndash eacute o que aqui se reivindica ndash o direito de fazer julgamentos pelos quais os pitagoacuteri-cos vamos dizer antes de Parmecircnides devem provavelmente ter sus-

51 Orig ldquoOne of the reasons why Cornfordrsquos reconstruction of early Pythagoreanism is so attractive is that is contrives to reconcile the religious with the scientific motiverdquo 52 Eacute certamente o caso de sublinhar que Cherniss (1977) apoiando o esforccedilo de Raven chega a dimi-nuir polemicamente o impacto da divisatildeo proposta por Cornford sobre os estudiosos ldquofora de Cam-bridgerdquo ldquoRaven was justified in feeling that the evidence does not support Cornfordrsquos interpretation which incidentally has never been so widely accepted outside of Cambridge as he appears to believerdquo (1977 376)

39

tentado a doutrina A e eacute impossiacutevel que tenham naquele estaacutegio do pensamento em que se encontravam jaacute terem desenvolvido doutrina B (Guthrie 1962 172)53

Esses pressupostos levam assim a postular a existecircncia de duas correntes da fi-

losofia em seu nascer a jocircnica e a itaacutelica54 Todos os autores de certa forma seratildeo as-

sim posicionados teoreticamente de um ou outro lado O apriorismo do meacutetodo eacute evi-

dente talvez por isso ainda que simpatizando por ele Guthrie sugere a ldquomaacutexima caute-

la possiacutevel em seu usordquo (1962 172) E com esta admoestaccedilatildeo encerra-se a preocupa-

ccedilatildeo metodoloacutegica tendente a controlar o evidente risco de circularidade das conclu-

sotildees55

Nessa linha metodoloacutegica com a intenccedilatildeo declarada de querer compreender o

pitagorismo preacute-platocircnico sob pena de caso contraacuterio natildeo entender Platatildeo Guthrie

afirma em geral a unidade do primeiro

Este pitagorismo preacute-platocircnico pode ser considerado em larga parte como uma unidade Poderemos verificar desenvolvimentos e dife-renccedilas como e quando quisermos mas seria pouco saacutebio esperar que estes diante do estado fragmentaacuterio de nosso conhecimento sejam suficientemente distinguiacuteveis ao ponto de permitir um trata-mento separado entre fases mais recentes e outras mais tardias (1962 147)56

53 Orig ldquoIt starts from the assumption that we possess a certain general familiarity with other contempo-rary schools and individual philosophers and with the climate of thought in which the Pythagoreans worked This general knowledge of the evolution of Greek philosophy gives one it is claimed the right to make judgments of the sort that the Pythagoreans let us say before the time of Parmenides are likely to have held doctrine A and that it is impossible for them at that stage of thought to have already evolved doctrine Brdquo 54 Eacute mesmo o caso de notar que essa divisatildeo remonta jaacute agrave claacutessica divisatildeo entre filosofia jocircnica e filosofia itaacutelica em Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae I 13) As δύο ἀρχαί os dois comeccedilos da filosofia satildeo identificados por Dioacutegenes Laeacutercio de um lado em Anaximandro para a vertente jocircnica da qual faratildeo parte Anaxiacuteme-nes Anaxaacutegoras Arquelau e enfim Soacutecrates do outro lado em Pitaacutegoras inventor do termo φιλοσοφία para a outra vertente aquela itaacutelica sendo este seguido pelo filho Telauge depois Xenoacutefanes Parmecircni-des Zenatildeo Leucipo Democrito ateacute Epicuro (D L Vitae I 13-14) Para uma discussatildeo historiograacutefica mais aprofundada dos modelos historiograacuteficos das origens da filosofia antiga cf Sassi (1994) e Cornelli (no prelo) 55 Para uma criacutetica veemente a este apriorismo metodoloacutegico no interior dos estudos sobre o pitagorismo cf Kahn (1974 163 n6) 56 Orig ldquoThis pre-Platonic Pythagoreanism can to a large extent be regarded as a unity We shall note developments and differences as and when we can but it would be unwise to hope that these in the fragmentary state of our knowledge are sufficiently distinguishable chronologically to allow the separate treatment of earlier and later phasesrdquo

40

Novamente como no caso de Cornford a distinccedilatildeo deveraacute ser definida no inte-

rior do pitagorismo preacute-platocircnico exclusivamente em termos cronoloacutegicos Poreacutem des-

sa forma a unidade teoacuterico-doutrinaacuteria do movimento ao menos no interior de suas

diferentes fases histoacutericas eacute garantida

Ao mesmo tempo em que provavelmente influenciados pelos esforccedilos da escrita

das grandes Histoacuterias da Filosofia do seacuteculo XX os estudiosos preocupavam-se em

compreender essa mesma unidade e portanto procurar dar conta da filosofia pitagoacuterica

como um todo comeccedilaram a surgir no panorama da criacutetica obras dedicadas ao estudo

de algumas aacutereas particulares e alguns problemas especiacuteficos da Quelleforshung do pi-

tagorismo eacute o caso certamente dos estudos sobre a poliacutetica das relaccedilotildees entre pitago-

rismo e Platatildeo e da compreensatildeo das relaccedilotildees entre o pitagorismo e o mundo religioso

em sua volta Infelizmente ndash eacute mesmo o caso de dizer ndash apoacutes a Segunda Guerra os dois

tipos de literatura dificilmente voltaratildeo a dialogar entre si os manuais de Histoacuteria da

Filosofia continuaratildeo seguindo em sua grande maioria a impostaccedilatildeo zelleriana en-

quanto os estudos monograacuteficos sobre o pitagorismo revelaratildeo complexidades ateacute hoje ndash

de maneira geral ndash desconhecidas aos primeiros

16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica

Uma especial atenccedilatildeo na histoacuteria da criacutetica foi dedicada agrave dimensatildeo poliacutetica do

pitagorismo desde que em 1830 a monografia de Krische afirmou peremptoriamente

o caraacuteter eminentemente poliacutetico da societas pitagoacuterica ldquoo escopo da Sociedade foi

meramente poliacutetico natildeo somente para restituir inicialmente o poder decaiacutedo dos aristo-

craacuteticos mas para consolidaacute-lo e amplificaacute-lordquo (Krische 1830 101)57

Estudos arqueoloacutegicos das evidecircncias numismaacuteticas jaacute revelavam no comeccedilo do

seacuteculo XX uma dominaccedilatildeo das cidades pitagoacutericas sobre todo o territoacuterio da Magna

Greacutecia o que foi comprovado pelos estudos de Kahrstedt sobre as moedas cunhadas por

Crotona e espalhadas por todo o territoacuterio especialmente apoacutes a derrota de Siacutebaris em

510 aEC (Kahrstedt 1918 186)58 A dominaccedilatildeo de Crotona sobre o restante das cidades-

57 Orig ldquoSocietatis scopus fuit mere politicus ut lapsam optimatum potestatem non modo in pristinum restitueret sed firmaret amplificaretquerdquo 58 Cf tambeacutem Seltman (1933) De Vogel (1957 323) e May (1966)

41

colocircnias doacutericas da Magna Greacutecia confirmaria as notiacutecias da influecircncia poliacutetica pitagoacute-

rica de fato grande parte dessas moedas apresenta siacutembolos pitagoacutericos59

E todavia conforme jaacute foi dito as primeiras abordagens historiograacutefico-

filosoacuteficas agrave poliacutetica pitagoacuterica dependem fortemente da influecircncia do ceticismo de Zel-

ler que por sua vez orientou a coleccedilatildeo de Diels dos Vorsokratiker ambos concorriam

para levar a maioria dos comentadores a considerar o tema da poliacutetica pitagoacuterica como

simplesmente acidental (Centrone 1996 196)

Eacute mister concordar com a opiniatildeo de que a relaccedilatildeo entre pensamento filosoacutefico e

praacutetica poliacutetica (reformista ou menos) na histoacuteria do pitagorismo desafiou a ingenuidade

dos classicistas (D S M 1943 79) ingenuidade esta que tenderia ndash se deixada agrave sua

sorte ndash a rejeitar as conexotildees poliacuteticas com base no argumento aprioriacutestico pela qual um

homem como Pitaacutegoras natildeo poderia estar envolvido nesse tipo de atividade (Minar

1942 15)

Portanto o problema do envolvimento poliacutetico dos pitagoacutericos apresenta um

quadro de questotildees multifacetado natildeo somente por causa das relaccedilotildees imbricadas entre

fontes antigas e mais recentes pela incerta cronologia da dominaccedilatildeo (e da derrota) dos

pitagoacutericos na Magna Greacutecia e pela pouco clara influecircncia de Pitaacutegoras sobre sua forma

mas tambeacutem quiccedilaacute principalmente pela dificuldade teoacuterica dos comentadores em arti-

cularem uma relaccedilatildeo entre filosofia e poliacutetica que jaacute a partir de Aristoacuteteles comeccedila a

ser vista como um tanto inapropriada

Nesse sulco hermenecircutico insere-se certamente a obra fundamental de Delatte

(1922a) Essai sur la politique pythagoricienne Este ao mesmo tempo em que realiza

um exaustivo estudo das fontes para a poliacutetica pitagoacuterica que o leva a confiar na plausi-

bilidade de efetiva accedilatildeo poliacutetica protopitagoacuterica em Crotona remete para um periacuteodo

sucessivo notadamente para o seacuteculo IV aEC seacuteculo de Arquitas e dos testemunhos de

Aristoxeno a imbricaccedilatildeo dessa atividade com as linhas fundamentais do pensamento

filosoacutefico ateacute laacute sustenta Delatte as primeiras koinoniacuteai pitagoacutericas procuravam mais

diretamente a ldquopaz interiorrdquo abstendo-se de uma accedilatildeo reformista ou mais em geral

muito envolvida nas instituiccedilotildees poliacuteticas de suas cidades ldquoa Sociedade deseja somente

59 Cf as moedas em Seltman (1933 76-80 100 118 144) e May (1966 157 167) De maneira especial a moeda n 28 (Seltman 1933 144) representando um homem barbado com a inscriccedilatildeo PUTHAGORES poderia ser um retrato do proacuteprio Pitaacutegoras e como tal jaacute foi utilizada por Guthrie para a capa do primeiro volume de sua History of Greek Philosophy (1962) Philip (1966 194) eacute todavia ceacutetico com a possibili-dade de a imagem representar o semblante real de Pitaacutegoras

42

a paz interior que lhe assegure sua proacutepria tranquilidade e mantenha as instituiccedilotildees e-

xistentes das quais ela se tornara mantenedorardquo (Delatte 1922a 21)60

Ademais se eacute verdade que a comunidade pitagoacuterica estaacute de certa forma envolvi-

da na atividade poliacutetica natildeo eacute necessariamente o caso de pensar que o proacuteprio Pitaacutegoras

estivesse envolvido diretamente com isso

Algueacutem poderia concluir que a poliacutetica de tendecircncias aristocraacuteticas que segundo Timeu marca o fim da histoacuteria da Sociedade natildeo seja um impulso de Pitaacutegoras como tambeacutem que a poliacutetica seja ao que parece estranha ao seu plano de reformas (Delatte 1922a 18)61

Por consequecircncia Delatte explica o fato central das revoltas democraacuteticas an-

tipitagoacutericas como o resultado natildeo tanto do compromisso poliacutetico da comunidade

como tal em sentido aristocraacutetico e conservador (pelo contraacuterio considerada mais

apropriadamente como uma forccedila moral) mas sim das atitudes de alguns indiviacute-

duos que se utilizavam de seu prestiacutegio e que acabaram arrastando-a para o conflito

em movimento reativo aos ataques que se seguiram e portanto na forma de autode-

fesa (1922a 19-20)

Jaeger (1928) por sua vez sustenta a tese em verdade originalmente zelleriana

de que o que diz respeito agrave poliacutetica pitagoacuterica resume-se em uma projeccedilatildeo do ideal tar-

dio da vida praacutetica por parte de autores como Aristoxeno e Dicearco o Pitaacutegoras de

Jaeger na mesma linha de Delatte seria mais um educador mestre de uma educaccedilatildeo

baseada na muacutesica e na matemaacutetica

Em seguida Von Fritz (1940) pergunta-se se de fato eacute possiacutevel afirmar que a

comunidade pitagoacuterica antiga controlasse politicamente e de forma direta o poder das

cidades da Magna Greacutecia Por meio de uma ldquoaustera investigaccedilatildeo das fontesrdquo (Tate

1942 74) identifica em Aristoxeno a testemunha mais confiaacutevel para uma reconstruccedilatildeo

da trajetoacuteria poliacutetica das comunidades pitagoacutericas e conclui ceticamente que

As tradiccedilotildees antigas natildeo fornecem a menor evidecircncia da existecircncia de algo que possa ser considerado como um poder real dos pitagoacutericos

60 Orig ldquola Socieacuteteacute deacutesire seulement la paix inteacuterieure qui lui assure sa propre tranquilliteacute et le mantien des instituitions existantes dont elle est devenue maicirctresserdquo 61 Orig ldquoOn peut done conlure que la politique agrave tendances aristocratiques qui selon Timeacutee caracteriacutese la fin de lacutehistorie de la Socieacuteteacute nacuteesta paacutes neacutee dacuteune impulsion de Pythagore et mecircme que la politique eacutetait selon toute vraisemblance eacutetrangegravere agrave son plan de reformesrdquo

43

em nenhuma cidade da Itaacutelia Meridional em qualquer eacutepoca (Von Fritz 1940 95)62

A posiccedilatildeo de Von Fritz portanto natildeo difere substancialmente em uacuteltima anaacuteli-

se daquela de seus predecessores o compromisso poliacutetico dos pitagoacutericos eacute algo que

deve ser atribuiacutedo mais diretamente a escolhas pessoais por vezes motivadas religiosa-

mente de alguns membros isolados da koinoniacutea e natildeo a uma accedilatildeo filosoacutefica do grupo

como tal

Eacute somente Minar (1942) em sua obra dedicada agrave poliacutetica pitagoacuterica originaacuteria

que primeiramente revela estar consciente de todos os perigos e as precompreensotildees

historiograacuteficas inerentes ao tratamento da questatildeo poliacutetica do pitagorismo No prefaacutecio

dessa obra declara imediatamente querer enfrentar aquele que considera o paradoxo

representado por uma escola filosoacutefica envolvida em atividades poliacuteticas

Que a sociedade pitagoacuterica tenha exercido uma influecircncia poliacutetica nas cidades do Sul da Itaacutelia nos seacuteculos sexto e quinto antes de Cristo tem sido um fato reconhecido Contudo o paradoxo de uma escola filosoacute-fica envolvida na atividade poliacutetica trouxe muita dificuldade para o ju-iacutezo histoacuterico sobre os fatos (1942 v)63

Minar natildeo esconde o fato de vaacuterios autores antigos afirmarem explicitamente

que os pitagoacutericos (e mesmo Pitaacutegoras) teriam exercitado formalmente o controle do

governo em Crotona e em outras cidades (Minar 1942 16) Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio

Jacircmblico Ciacutecero entre outros64 Desse modo opotildee-se ao argumento recorrente entre

seus predecessores de que a atividade poliacutetica era uma opccedilatildeo isolada de alguns mem-

bros por um lado o caraacuteter fortemente centralista da comunidade por outro o fato histoacute-

rico de a revolta ser dirigida contra a comunidade como um todo Ambas as tradiccedilotildees

indicariam como pouco provaacutevel que a opccedilatildeo poliacutetica se limitasse a uma atividade mar-

ginal de alguns poucos membros

62 Orig ldquoAncient tradition does not provide the slightest evidence for the existence of anything like a real rule of the Pythagoreans in any of the cities of Southern Italy at any timerdquo 63 Orig ldquoThat the Pythagorean Society exercised a political influence in the cities of southern Italy in the sixth and the fifth centuries BC has long been a recognized fact But the paradox of a philosophical school being involved in political activity has brought a certain amount of difficulty into the historical evaluation of the factsrdquo 64 D L Vitae VIII 3 Porph VP 20 21 54 Iambl VP 30 130 249 254 Cicero Tuscul 5410

44

O caraacuteter altamente centralizado da Sociedade conforme admite Von Fritz torna improvaacutevel que a atividade poliacutetica pitagoacuterica reduza-se simplesmente agravequela de membros individuais e o fato de que a revol-ta contra o governo no poder era a mesma coisa que um ataque contra a Sociedade sugere fortemente que a Sociedade pitagoacuterica era reco-nhecida como o verdadeiro governo em Crotona e na maioria das ci-dades da Magna Greacutecia (Minar 1942 18)65

O pitagorismo constituiria assim o verdadeiro poder dominante em diversas ci-

dades da Magna Greacutecia Caberaacute depois aos historiadores modernos em geral pouco

acostumados a essa estreita relaccedilatildeo entre filosofia e poliacutetica compreender a imbricaccedilatildeo

das duas dimensotildees ndash que Minar define como teoacuterica e praacutetica ndash do pitagorismo em uma

unidade dinacircmica

A parte menos convincente da leitura de Minar eacute provavelmente aquela que tenta

articular essas duas partes entre si fundamentalmente por acabar dando agrave componente

doutrinaacuteria da filosofia poliacutetica pitagoacuterica um peso muito inferior ao que se esperaria

(Minar 1942 95-132) reduzindo Pitaacutegoras e seu movimento a uma sociedade poliacutetica

marcada por certo oportunismo e pragmatismo66

Natildeo eacute obviamente por mero acaso que diversos estudiosos italianos interessa-

ram-se pelo pitagorismo e de maneira especial por sua dimensatildeo poliacutetica sem chegar

aos extremos chauvinistas de Capparelli (1941) diversos autores a comeccedilar por Ros-

tagni (1922) e pela revisatildeo da obra de Zeller feita por Mondolfo (1938) procuraram

articular as duas dimensotildees (miacutestica e cientiacutefica) em um complexo conjunto historiograacute-

fico em que a dimensatildeo poliacutetica ocupa um papel central O sentido dessa tradiccedilatildeo pode

ser compreendido com precisatildeo pela definiccedilatildeo que abre a obra claacutessica de Ferrero Sto-

ria del Pitagorismo nel mondo romano

O pitagorismo agrave prova dos fatos demonstrou-se algo maior e diferen-te de um abstrato fenocircmeno de cultura da manifestaccedilatildeo de um especi-

65 Orig ldquoThe highly centralized character of the Society which von Fritz recognizes makes it un-likely that Pythagorean political activity was merely that of individual members and the fact that a revolt against the government in power was the same thing as an attack against the Society or at least involved such an attack as an integral part strongly suggests that the Pythagorean Society was recognized as the real ruler in Croton and most of the cities of Magna Graeciardquo 66 Deve-se concordar aqui com De Vogel (1966 13) quando sugere que Minar concluiria que ldquoPythago-ras was rather a shrewd politician an aristocratic reactionary at a time of rising democracy ndash and that all this had nothing to do with philosophyrdquo Minar (1942 99) parece creditar agrave doutrina poliacutetica dos pi-tagoacutericos a simples funccedilatildeo de uma superestrutura afirmando que ldquothe relationship between practice and theory will be seen most clearly through an analysis of the doctrinal superstructure which this group built up about its political activityrdquo

45

al endereccedilo religioso-dogmaacutetico ou enfim de mera expressatildeo inte-lectualiacutestica Esse foi se natildeo estamos errados notadamente a expres-satildeo de um fato social e poliacutetico conectado a uma estrutura permanente do mundo antigo foi a expressatildeo caracteriacutestica de uma organizaccedilatildeo dos intelectuais que respondia agraves exigecircncias de um grupo dominante de uma eleita poliacutetica a qual em um primeiro momento como as teo-cracias identificou-se e foi uma soacute realidade com os mesmos intelec-tuais (Ferrero 1955 21)

A apropriaccedilatildeo italiana do pitagorismo tem suas origens jaacute em eacutepoca romana Um

breve excursus sobre essa tradiccedilatildeo pode mostrar claramente a profundidade da identifi-

caccedilatildeo eacutetnico-poliacutetica do pitagorismo com a cultura itaacutelica

Baseando-se na ambiguidade inerente ao termo ldquofilosofia itaacutelicardquo e utilizando-se

de uma variaccedilatildeo das lendas sobre Pitaacutegoras pela qual seria este filho de um tirreno isto

eacute de um etrusco Pitaacutegoras eacute considerado como um dos antepassados da cultura poliacutetica

filosoacutefica e religiosa de Roma67 O filoacutesofo sacircmio acaba assim por ser inscrito nas lis-

tas dos cidadatildeos romanos (Plinio Hist Nat XXXIV 26) e acreditado como mestre do

rei-sacerdote Numa Pompiacutelio (Plutarco Numa 8) Significativamente Cicero ao mes-

mo tempo em que quer dissipar o erro do patente anacronismo desse discipulado de

Numa acaba confirmando a tradiccedilatildeo patrioacutetica da qual este deriva

Considero que por admiraccedilatildeo aos pitagoacutericos ateacute o rei Numa foi iden-tificado pelos posteriores como pitagoacuterico Estes de fato conheciam a teoria e as regras de Pitaacutegoras e de seus antepassados haviam recebi-do a notiacutecia da equidade e sabedoria daquele rei mas ignorando a ida-de daqueles homens e as eacutepocas por causa da distacircncia temporal a-creditaram que este que se destacava por sabedoria fosse disciacutepulo de Pitaacutegoras (Cicero Tusc Disp IV 1-2)68

Em diversos passos ciceronianos os pitagoacutericos definidos como ldquoquase nossos

concidadatildeos eles que eram entatildeo chamados de filoacutesofos itaacutelicosrdquo (Cato Maior XXI

78) tornam-se um capiacutetulo central da gloriosa histoacuteria romana (Tusc Disput IV)69

Uma famosa passagem das Metamorfoses de Oviacutedio (XV 1-447) assim como outra da

67 O testemunho de Aristoxeno sobre o pai etrusco de Pitaacutegoras encontra-se entre outros em Plutarco Quaest Conv VIII 7 1 68 Orig ldquoQuin etiam arbitror propter Pythagoreorum admirationem Numam quoque regem Pytha-goreum a posterioribus existimatum Nam cum Pythagorae disciplinam et instituta cognoscerent regisque eius aequitatem et sapientiam a maioribus suis accepissent aetates autem et tempora igno-rarent propter vetustatem eum qui sapientia excelleret Pythagorae auditorem crediderunt fuisserdquo (Cicero Tusc Disp IV 1-2) 69 Orig ldquoincolae paene nostros qui essent italici philosophi quondam nominatirdquo (Cato Maior XXI 78)

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Vida de Numa de Plutarco (I 8 e 11) reafirmam a conexatildeo entre Numa e Pitaacutegoras

consolidando dessa forma a tradiccedilatildeo anterior da romanidade e da italianidade de Pitaacute-

goras70

A proacutepria literatura filosoacutefico-teoloacutegica da Idade Meacutedia apesar de natildeo ter tido

acesso agraves Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio e Jacircmblico assim como a outras fontes

menores contudo manteve viva a tradiccedilatildeo de Pitaacutegoras Ambroacutesio lembra os ditos pi-

tagoacutericos e diversos placita Agostinho que inicialmente abundava em citaccedilotildees e refe-

recircncias a Pitaacutegoras e agrave filosofia pitagoacuterica acaba todavia voltando atraacutes e afirma ldquoeu

acreditava que natildeo houvesse erros na tal doutrina pitagoacuterica mas satildeo muitos e ateacute capi-

taisrdquo (Retr PL 32 col58-9)71 Tanto ele como tambeacutem Tertuliano e Latacircncio natildeo dei-

xam de lembrar os erros do samius sophista in primis ndash como natildeo podia ser diferente ndash

a teoria da metempsicose72

O Quattrocento italiano marca um franco revival da tradiccedilatildeo itaacutelica de Pitaacutegoras

na esteira da recuperaccedilatildeo do platonismo Nesse sentido a recuperaccedilatildeo das fontes latinas

exerce um papel fundamental Assim a partir da primeira Vida de Pitaacutegoras escrita por

Baldi em vulgar (1888 10) por meio da recuperaccedilatildeo da figura de Pitaacutegoras por Petrarca

(Triumphus fame III 7-8) haacute uma lenta apropriaccedilatildeo do pitagorismo Esta natildeo se limita

a um exerciacutecio literaacuterio mas alcanccedila tambeacutem uma dimensatildeo especulativa com Nicolau

de Cusa o erudito intelectual da Igreja Romana utiliza para sua teologia negativa a a-

ritmogeometria pitagoacuterica do Timeu e da Repuacuteblica A doutrina da trindade eacute tambeacutem

referida a Pitaacutegoras ldquoesta eacute aquela unidade trina que Pitaacutegoras primeiro entre todos os

filoacutesofos gloacuteria da Itaacutelia e da Greacutecia nos ensinou a adorarrdquo (Cusano 1972 68)73

Duas figuras intelectuais italianas de primeira ordem desse periacuteodo dedicam-se

ao pitagorismo Marciacutelio Ficino e Pico della Mirandola O primeiro procurando colocar

a Florenccedila dos Meacutedici no interior da histoacuteria intelectual ocidental como sucessora de

70 Tito Livio recorda nesse sentido um fato muito significativo foi achada em Roma em 181 EC uma caixa contendo livros que se pensavam ter sido escritos pelo proacuteprio Numa (Liv XL 29) Definidos pita-goacutericos dedicados a temaacuteticas religiosas e sapienciais foram queimados (sic) a mando das autoridades que temiam ameaccedilas agrave religiatildeo oficial 71 Orig ldquome credidisse nullos errores in Pythagorica esse doctrina cum sint plures iidemque capitalesrdquo (August Retr PL 32 col 58-9) 72 Cf para os autores citados as seguintes paacuteginas Tertuliano De Anima PL 2 col 697-701 Latacircncio Div Inst PL 6 col 405-9 e De vita beata PL 6 col 777 Agostinho Contra Acad PL 32 col 954 Ambroacutesio In salm PL 15 col 1275 73 Orig ldquoQuesta egrave quella unitagrave trina che Pitagora primo tra tutti i filosofi gloria drsquoItalia e di Grecia ci ha insegnato ad adorarerdquo

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Atenas (e Roma) e a si mesmo como continuador da Academia empreende o projeto de

traduccedilatildeo do corpus platocircnico fortemente influenciado pela exegese neopitagoacuterica Dessa

forma jaacute na sua introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Plotino Ficino resume o lugar que reserva

para Pitaacutegoras nessa histoacuteria

A sagrada filosofia nasceu sob Zoroastro entre os Persas sob Mercuacute-rio entre os Egiacutepcios tanto aqui como laacute coerente e conforme com si mesma cresceu depois entre os Traacutecios sobre Orfeu e Aglaofemo foi adolescente entre os gregos e os itaacutelicos sob Pitaacutegoras e tornou-se adulta em Atenas sob o divino Platatildeo (Ficino 1576 1537)74

Em outro passo em que reconstroacutei uma genealogia da filosofia antiga ou me-

lhor da prisca theologia que antecipa a filosofia propriamente dita e parte de Hermes

Trismegisto Pitaacutegoras aparece novamente em primeiro plano

[A Hermes] seguiu Orfeu ao qual foram atribuiacutedas as partes seguintes da teologia antiga a Aglaofemo que havia sido iniciado aos ritos sa-grados de Orfeu sucedeu depois na teologia Pitaacutegoras do qual Filolau foi disciacutepulo o mesmo que foi preceptor de Platatildeo Portanto uma uacuteni-ca seita de filosofia antiga em todo lugar coerente consigo mesma foi instituiacuteda por seis teoacutelogos em uma ordem maravilhosa que eacute inaugu-rada por Mercuacuterio e se cumpre plenamente com o divino Platatildeo (Fici-no 1576 1836)75

O lugar de Pitaacutegoras como priscus philosophus nesse panorama articulado por

sabedorias outras pressupotildee a mesma visatildeo universalista que Pico della Mirandola de-

senvolveraacute em seguida a de uma articulaccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica com a Cabala os

Oraacuteculos Caldaacuteicos e a sabedoria aacuterabe Pico mestre da concoacuterdia preparava-se para

discutir em Roma novecentas proposiccedilotildees retiradas das mais diversas tradiccedilotildees sapien-

74 Orig ldquoDivina providentia volente videlicet omnes pro singulorum ingenio ad se mirabiliter revocare factum est ut pia quaedam philosophia quodam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consonas nutriretur deinde apud Thraces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et in Italos tandem vero a Divo Platone consumaretur Athenisrdquo (Ficino 1576 1537) 75 Trata-se aqui do Argumentum Marsilij Ficini Florentini in librum Mercurij Trismegisti ad Cosmum Medicem isto eacute da carta dedicatoacuteria dirigida a Cosimo dersquoMedici em ocasiatildeo da traduccedilatildeo dos primeiros 14 opuacutesculos do Corpus Hermeticus Assim no original ldquocum secutus Orpheus secundas antiquae theo-logiae partes obtinuit Orphei sacris initiatus est Aglaophemo successit in theologia Pythagoras quem Philolaus sectatus est divi Platonis nostril praeceptor Itaque una priscae theologiae undique sibi conso-na secta ex theologis sex miro quodam ordine conflata est exordia sumens a Mercurio a divo Platone penitus absolutardquo O que Ficino aqui quer realizar foi definido de forma instigante como uma arqueologia do saber em busca dos textos e dos autores de referecircncia mais antigos para explicar a sucessiva histoacuteria do pensamento (Tambrun-Krasker 1999 20-22)

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ciais quando com a urgecircncia que todo pesquisador bem conhece pede desesperadamen-

te a Ficino que lhe empreste o coacutedigo que continha a Vida Pitagoacuterica de Jacircmblico

ldquoneste momento muito necessaacuterio aos meus estudosrdquo (hoc tempore ad mea studia plu-

rimum necessarium ndash 1572 361) exatamente por considerar o pitagorismo como a pon-

te principal para a sabedoria antiga oriental

A economia dessas paacuteginas natildeo permitiraacute seguir mais de perto este caminho itaacute-

lico da tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo76 O que interessa mais imediatamente anotar aqui eacute

que modernos historiadores italianos recuperam essa tradiccedilatildeo de estudos sobre a poliacutetica

pitagoacuterica no interior dos estudos arqueoloacutegicos e histoacutericos sobre a Magna Greacutecia co-

mo o caso de Prontera (1976 1977) Mele (1982 2000 2007) e Musti (1990) Contudo

isso vale tambeacutem para historiadores da filosofia entre eles aleacutem do jaacute citado Ferrero

(1955) destacam-se os estudos a este respeito de Casertano (1988 e 2009) e os soacutebrios

capiacutetulos dedicados ao tema por Centrone (1996) Especialmente relevante eacute o contribu-

to de Musti (1990) que evidencia nas fontes sobre as revoltas antipitagoacutericas uma carac-

teriacutestica de acronia que permitiria resolver a espinhosa questatildeo cronoloacutegica (aleacutem de

topograacutefica) das revoltas

A narraccedilatildeo dos fatos apresenta-se com uma viscosa continuidade [] Agrave anaacutelise atenta daquilo que se tem por detraacutes esta narraccedilatildeo revela uma modalidade particular (bem mais que uma simples contradiccedilatildeo) do formar-se das tradiccedilotildees pitagoacutericas e sobre o pitagorismo (Musti 1990 38)77

A soluccedilatildeo proposta por Musti eacute a de considerar que as condiccedilotildees culturais nas

quais se desenvolve a literatura pitagoacuterica natildeo criavam as condiccedilotildees para uma verifica-

ccedilatildeo criacutetica das fontes em relaccedilatildeo agraves patentes contradiccedilotildees cronoloacutegicas e topograacuteficas

notadamente Musti indica no sectarismo na diaacutespora dos pitagoacutericos e na circulaccedilatildeo

oral das memoacuterias os motivos centrais dessa acronia da tradiccedilatildeo (1990 39)

76 Eacute certamente o caso para isso de seguir o percurso bem traccedilado por Casini (1998) entre outros Para a influecircncia do pitagorismo sobre a arte e a arquitetura da Europa renascentista cf agora a ampliacutessima monografia de Joost-Gaugier (2009) que concorda com a primazia italiana no revival pitagoacuterico acima descrito ldquothe enlivening inspiration of Pythagoreanism spread primarly from Italy where interest in ancient works was at first most intense to the rest of Europerdquo (2009 240) 77 Orig ldquoIl racconto dei fatti si presenta con una vischiosa continuitagrave [] Allacuteanalise attenta di quello che c`egrave dietro questo racconto rivela un modo particolare (assai piugrave che una occasionale contraddizione) di formarsi delle tradizioni pitagoriche e sul pitagorismordquo

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Um capiacutetulo a parte merecem as tentativas de Rostagni (1922) antes e de De

Vogel (1964) posteriormente de creditar validade historiograacutefica agrave definiccedilatildeo do papel

poliacutetico do proacuteprio Pitaacutegoras aos ceacutelebres quatro discursos poliacuteticos que teria proferido

quando de sua chegada em Crotona A histoacuteria da tradiccedilatildeo e da criacutetica moderna desses

quatro loacutegoi eacute extremamente significativa para a compreensatildeo da tentativa de negaccedilatildeo

da relevacircncia da poliacutetica pitagoacuterica da qual se falava

A redaccedilatildeo completa dos quatro discursos referida por Porfiacuterio (VP 18) citando

Dicearco eacute presente em Jacircmblico (VP 37-57) que por sua vez devia ter como fontes

Timeu provavelmente via Apolocircnio de Tiana78 Rostagni (1922) concentrado em um

escoacutelio de Antiacutestenes ao primeiro verso da Odisseacuteia a propoacutesito da polytropiacutea de Ulis-

ses no interior de uma interessantiacutessima (e ainda pouco explorada) hipoacutetese de trabalho

que conecta o pitagorismo agraves origens da retoacuterica (de maneira especial a Goacutergias) empe-

nha-se em conferir confiabilidade ao testemunho de Dicearco sobre os loacutegoi de Pitaacutego-

ras A intenccedilatildeo declarada eacute a de superar a tese claacutessica de Rohde mencionada anterior-

mente pela qual a tradiccedilatildeo teria sido inventada por Dicearco que assim teria criado a

figura de um Pitaacutegoras educador poliacutetico como modelo anacrocircnico da vida praacutetica peri-

pateacutetica Dessa criaccedilatildeo derivariam depois tanto os testemunhos de Timeu-Apolocircnio

quanto a redaccedilatildeo dos discursos em Jacircmblico (1871 561 1872 27) A essa tese Ros-

tagni (1922 151) opotildee a ldquoevidecircnciardquo de um testemunho de Antiacutestenes relativo agrave tradi-

ccedilatildeo dos discursos de Pitaacutegoras

Antiacutestenes diz que Homero nem louva nem critica Ulisses chamando-o polyacutetropos [] Por esse motivo deu a Ulisses o epiacuteteto de polyacutetropos pois sabia conversar com os homens de muitas maneiras Assim narra-se que Pitaacutegoras convidado a proferir discursos agraves cri-anccedilas compocircs para elas discursos infantis (loacutegoi paidikoiacute) e para as mulheres outros adequados agraves mulheres e para os arcontes arcoacutenticos e para os efebos efeacutebios Pois encontrar o tipo de sabedoria conveni-ente para cada um eacute proacuteprio da sapiecircncia Ao contraacuterio eacute sinal de ig-noracircncia utilizar-se de uma soacute forma de discurso (monotroacutepos toucirc loacute-gou) com aqueles que estatildeo variavelmente dispostos (Schol In Hom Odyss I 1 50-63)79

78 Bertermann (1913) Zucconi (1970) Centrone (1996) Brisson e Segonds (1996) 79 Orig ldquo οὐκ ἐπαινεῖν φησιν Ἀντισθένης Ὅmicroηρον τὸν Ὀδυσσέα microᾶλλον ἢ ψέγειν λέγοντα αὐτὸν ldquoπολύ-τροπονrdquo []διὰ τοῦτό φησι τὸν Ὀδυσσέα Ὅmicroηρος σοφὸν ὄντα πολύτροπον εἶναι ὅτι δὴ τοῖς ἀνθρώποις ἠπίστατο πολλοῖς τρόποις συνεῖναι οὕτω καὶ Πυθαγόρας λέγεται πρὸς παῖδας ἀξιωθεὶς ποιήσασθαι λόγ-ους διαθεῖναι πρὸς αὐτοὺς λόγους παιδικοὺς καὶ πρὸς γυναῖκας γυναιξὶν ἁρmicroοδίους καὶ πρὸς ἄρχοντας ἀρχοντικοὺς καὶ πρὸς ἐφήβους ἐφηβικούς τὸν γὰρ ἑκάστοις πρόσφορον τρόποντῆς σοφίας ἐξευρίσκειν

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Sua soluccedilatildeo pressupotildee a compreensatildeo de uma genealogia do loacutegos e da retoacuterica

que remonta suas origens ao pitagorismo

Eacute muito uacutetil considerar que a tradiccedilatildeo acolhida por Aristoacuteteles e pela criacutetica alexandrina atribuia a Empeacutedocles e ateacute mesmo ao proacuteprio Pi-taacutegoras a invenccedilatildeo da arte retoacuterica Esta tradiccedilatildeo ndash que ateacute hoje eacute considerada vazia ndash possui um fundamento real na medida em que a Empeacutedocles e aos pitagoacutericos deviam remontar as experiecircncias e os preceitos relativos ao valor da psicagoacutegico da palavra os mesmos que depois formaram a base da teacutechne de Goacutergias (Rostagni 1922 149)80

Assim o escoacutelio e os loacutegoi acima citados confirmariam essa vocaccedilatildeo poliacutetico-

retoacuterica do pitagorismo em estreita conexatildeo com um modelo bastante pragmaacutetico de

relaccedilatildeo entre poliacutetica e filosofia como aquele da primeira sofiacutestica

De Vogel (1966) empenha-se em amplo estudo dos quatro loacutegoi em busca da de-

finiccedilatildeo de uma imagem preacute-zelleriana ndash a terminologia eacute de Thesleff (1968 298) ndash de

Pitaacutegoras como educador poliacutetico no interior todavia de uma visatildeo dele que seja oni-

compreensiva das diversas imagens transmitidas pela histoacuteria Diferentemente do ho-

mocircnimo e contemporacircneo trabalho de Philip (1966) que confia unicamente a Aristoacutete-

les a construccedilatildeo de uma imagem de Pitaacutegoras e do pitagorismo antigo centrada no ensi-

no moral De Vogel reforccedila os argumentos jaacute citados de Rostagni baseando-se suposta-

mente em argumentaccedilatildeo de Thesleff (1961) segundo a qual haveria uma continuidade

ininterrupta da escola pitagoacuterica no sul da Itaacutelia desde o iniacutecio ateacute o seacuteculo IV aEC81

Essa continuidade permitiria considerar como relevante parte do material das Vidas he-

leniacutesticas e ndash certamente ndash devem ser assim pensados os testemunhos da atividade poliacute-

σοφίας ἐστίνmiddot ἀmicroαθίας δὲ τὸ πρὸς τοὺς ἀνοmicroοίως ἔχοντας τῷ τοῦ λόγου χρῆσθαι microονοτρόπῳrdquo (Schol In Hom Odyss I 1 50-63 Dindorf) 80 Orig ldquoEacute assai utile considerare che la tradizione accolta da Aristotele e dalla critica alessandrina attribuiva ad Empedocle e perfino a Pitagora stesso lrsquoinvezione dellrsquoarte retorica Questa tradizione ndash che fino ad oggi si considera vacua ndash ha un reale fondamento nel senso che ad Empedocle e ai Pitagorici dovevano risalire gli esperimenti e precetti riguardanti il valore psicagogico della parola che formarono poi la base della teacutechne de Goacutergiasrdquo E ainda segundo Rostagni o surgimento da retoacuterica ldquo rappresentava unrsquoevoluzione verificatasi nel seno stesso del pitagorismo pel naturale procedere della scienza e dello spirito grecordquo (1922 169) 81 Ainda que Thesleff em sua resenha ao livro de De Vogel natildeo reconheccedila ter afirmado esta continuida-de ldquo[De Vogel] account of the argumentation in my Introduction (1961) is however somewhat mislea-ding For instance I did not argue as would appear from d V p 28 ff that the Pythagorean school continued to live on in Southern Italy from the end of the 4th century Certainly there was a break in the tradition And I did not lay stress on the evidence of the pentagramsrdquo (Thesleff 1968 300 nI)

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tica de Pitaacutegoras fornecidos pelos loacutegoi As criacuteticas contra essa lectio de Rostagni e De

Vogel natildeo demoraram (Thesleff 1968 Kerferd 1965 e Feldman 1968) paralelos com

apoacutecrifos doacutericos e outros sinais textuais indicam imediatamente uma necessaacuteria pru-

decircncia no tratamento das conclusotildees de De Vogel O que mais importa talvez eacute aquilo

sublinhado por Centrone (1996) isto eacute a existecircncia nas fontes de sinais dessa ativida-

de poliacutetico-retoacuterica independentemente da antiguidade ou menos dos loacutegoi

Um nuacutecleo originaacuterio historicamente confiaacutevel confirmado inclusive por alguns acenos agrave histoacuteria local e agrave topografia de Crotona assim como um reflexo histoacuterico da organizaccedilatildeo societaacuteria da aristocracia arcaica tem-se na riacutegida divisatildeo de grupos sociais aos quais Pitaacutegoras manteacutem discursos separadamente (coisa que eacute atestada por todas as fontes) (Cen-trone 1996 31)82

De Vogel (nas pegadas de Rostagni) certamente contribui para recolocar no de-

vido lugar no interior da literatura histoacuterico-filosoacutefica a discussatildeo sobre a dimensatildeo

poliacutetica do pitagorismo desde suas origens Com uma vantagem comparativa inestimaacute-

vel a de obrigar daqui para frente a consideraacute-la como parte integrante de uma ima-

gem complexa articulada juntamente com as dimensotildees cientiacutefica e religiosa do pitago-

rismo

17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica

A histoacuteria da criacutetica dedicou-se desde o comeccedilo tambeacutem agrave anaacutelise da imagem

do pitagorismo antigo que resulta das fontes indiretas isto eacute tanto das pretensas polecirc-

micas antipitagoacutericas de autores contemporacircneos como das influecircncias e das referecircn-

cias de autores posteriores ao movimento (Zeller e Mondolfo 1938 313-364)

Nessa busca a obra de Tannery (1887b ) eacute certamente o primeiro passo sua tese

central eacute que a seccedilatildeo da doacutexa do Poema de Parmecircnides seria um desenvolvimento ar-

gumentativo dedicado agrave refutaccedilatildeo da cosmologia pitagoacuterica Tannery parte da observa-

82 Orig ldquoun nucleo originario storicamente attendibile confermato peraltro da alcuni accenni alla storia locale e alla topografia di Crotone cosigrave come un riflesso storico dellrsquoorganizzazione societaria dellrsquoaristocrazia arcaica si ha nella rigida divisione dei gruppi sociali ai quali Pitagora tiene discorsi separatamente (cosa che egrave attestata da tutte le fonti)rdquo

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ccedilatildeo pela qual no comeccedilo da seccedilatildeo da doacutexa no Poema Parmecircnides natildeo poderia senatildeo

referir-se aos pitagoacutericos

Jaacute disse que o proacutelogo de Parmecircnides sobre a opiniatildeo (v 113-121) nos joga em pleno pitagorismo sobretudo o uacuteltimo verso parece-me digno de atenccedilatildeo Parmecircnides quer fazer conhecer a ciecircncia tal qual eacute pro-fessada por seus contemporacircneos mas na Itaacutelia somente os pitagoacuteri-cos gozam de uma reputaccedilatildeo de ciecircncia Pelo fato de natildeo termos pro-vas decisivas de que o Eleata preocupa-se com os Jocircnicos que nos a-chamos no direito de pensar que natildeo visa a outros senatildeo os Itaacutelicos (Tannery 1887b 226)83

Da mesma forma a polecircmica de Zenatildeo (como tambeacutem a de Xenoacutefanes antes)

seria dirigida diretamente contra a teoria dos nuacutemeros pitagoacutericos pois este ldquotira conse-

quecircncias totalmente novas e notadadamente aquelas sobre a unidade a continuidade a

imobilidade do universo contradizem as doutrinas dos pitagoacutericosrdquo (Tannery

1887b250)84 O ponto central da discordacircncia estaria na definiccedilatildeo do que seria um pon-

to

Entatildeo qual foi o ponto baixo reconhecido por Zenatildeo nas doutrinas pi-tagoacutericas de seu tempo Como as apresenta como sendo uma afirma-ccedilatildeo da pluralidade das coisas A soluccedilatildeo nos eacute dada de uma famosa definiccedilatildeo do ponto matemaacutetico definiccedilatildeo ainda claacutessica na eacutepoca de Aristoacuteteles mas agrave qual os historiadores natildeo deram muita atenccedilatildeo Para os pitagoacutericos o ponto eacute a unidade que tem uma posiccedilatildeo ou dito de outra maneira a unidade considerada no espaccedilo Resulta imediata-mente desta definiccedilatildeo que o corpo geomeacutetrico eacute uma pluralidade so-ma de pontos da mesma forma como o nome eacute uma pluralidade soma de unidades No entanto essa proposta eacute absolutamente falsa [hellip] (Tannery 1887b 250 grifo do autor)85

83 Orig ldquoJrsquoai deacutejagrave dit que le deacutebut de Parmeacutenide sur lrsquoopinion (v 113-121) nous jette en plein pythagorisme Le dernier vers surtout me parait digne drsquoattention Parmeacutenide veut faire connaicirctre la science telle que la professaient ses contemporains mais en Italie seuls les pythagoriens avaient une reacuteputation de science Tant que nous nrsquoaurons pas de preuve deacutecisive que lrsquoEacuteleacuteate se preacuteoccupe des Ioni-ens nous axons droit de penser qursquoil ne vise que les Italiquesrdquo 84 Orig ldquoil tirait des conseacutequences toutes nouvelles et notamment celles sur lrsquouniteacute la continuiteacute lrsquoimmobiliteacute de lrsquounivers contre-disaient les doctrines pythagoriennesrdquo 85 Orig ldquoQuel eacutetait donc le point faible reconnu par Zenon dans les doctrines pythagoriennes de son temps de quelle faccedilon le preacutesente- t-il comme eacutetant une affirmation de la pluraliteacute des choses La clef nous est donneacutee par une ceacutelegravebre deacutefinition du point matheacutematique deacutefinition encore classique au temps dAristote mais que les historiens nrsquoont paacutes consideacutereacutee assez attentivement Pour les pythagoriens le point est lrsquouniteacute ayant une position ou autrement luniteacute consideacutereacutee dans lespace Il suit immeacutediatement de cette deacutefinition que le corps geacuteomeacutetrique est une pluraliteacute somme de points de mecircme que le nombre est une pluraliteacute somme drsquouniteacutes Or une telle proposition est absolument fausse []rdquo

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Essa posiccedilatildeo pitagoacuterica passou a ser chamada de atomismo numeacuterico e encontra

diversas aproximaccedilotildees com o atomismo dos seacuteculos V e IV aEC86

Segundo Tannery (1887b 251) o sucesso de Zenatildeo teria sido a tal ponto avas-

salador que os pitagoacutericos nem sequer puderam esboccedilar alguma tentativa de contesta-

ccedilatildeo87

O problema dessa reconstruccedilatildeo eacute que carece em boa parte de fundamentaccedilatildeo

histoacuterica Certamente devemos concordar com Burkert quando sugere que agrave imagem

de um diaacutelogo ndash todo preacute-socraacutetico ndash entre o pitagorismo e outras escolas apesar de

muito tentador faltam bases textuais soacutelidas

Dessa forma pode ser construiacutedo um capiacutetulo tentador da histoacuteria da filosofia massas erraacuteticas e cascalho inidentificaacutevel unem-se em uma estrutura abrangente A suspeita interaccedilatildeo entre eleatas e pitagoacutericos em particular torna-se um diaacutelogo vivo Parmecircnides o pitagoacuterico a-poacutestata configura seu proacuteprio sistema em oposiccedilatildeo agravequele da escola em resposta os pitagoacutericos revisam suas teorias apenas em tempo pa-ra ser submetidas a novos ataques por parte de Zenatildeo isso os obriga a empreender uma nova revisatildeo[] (sic) Essa estrutura no entanto re-pousa sobre uma base precaacuteria (Burkert 1972 278)88

De fato ainda que seja bastante provaacutevel que outros pensadores da Magna Greacute-

cia tenham recebido forte influecircncia pitagoacuterica uma soacutelida abordagem histoacuterica natildeo

pode se basear em probabilidades e plausibilidade pois ldquounicamente um estudo meticu-

loso da evidecircncia interna e externa pode levantar esta possibilidade para um patamar de

probabilidade ndash para natildeo dizer de certezardquo (Burkert 1972 280)89

Ainda que marcado pelas imprecisotildees anteriormente indicadas esse primeiro

passo tornou possiacutevel natildeo somente trazer para a discussatildeo sobre a Quellenforshung di-

86 Para uma discussatildeo mais geral da relaccedilatildeo do pitagorismo com Demoacutecrito e o atomismo cf Zeller e Mondolfo (1938 332-335) Alfieri (1953 30-54) Gemelli (2007a 68-90) 87 Tanto Cherniss (1935 215) quanto Lee (1936 34104) seguem as linhas-mestras da interpretaccedilatildeo de Tannery da polecircmica zenoniana 88 Orig ldquoIn this way a tempting chapter of the history of philosophy may be built erratic boulders and unidentifiable gravel coalesce into a comprehensive structure The suspected interaction of the Eleatics and Pythagoreans in particular becomes a living dialogue Parmenides the apostate Pythagorean sets up his own system in opposition to that of the school in response the Pythagoreans revise their theories only to be subjected to new attacks by Zeno this forces them to undertake further revision [] (sic) This structure however rests on a shaky foundationrdquo 89 Orig ldquoonly meticulous study of the internal and external evidence can raise this possibility to a prob-ability-to say nothing of certaintyrdquo Cf Casertano (2007b 4) para um exemplo de discussatildeo da influecircncia pitagoacuterica sobre Parmecircnides

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versos textos antigos como tambeacutem comeccedilar a colocar em questatildeo a presunccedilatildeo do tes-

temunho uacutenico de Aristoacuteteles Natildeo obstante a importacircncia da tese de Tannery faz que

de Kranz (Diels-Kranz 1951) ateacute Raven (1948) a maioria dos comentadores se propo-

nha seguir um diaacutelogo entre eleatismo e pitagorismo utilizando-se das fontes mais anti-

gas para isso90

Acenou-se haacute pouco a presunccedilatildeo de validade do testemunho uacutenico de Aristoacutete-

les Um papel central nessa reavaliaccedilatildeo do testemunho aristoteacutelico sobre os preacute-

socraacuteticos (e depois sobre Platatildeo) eacute desempenhado certamente pelos trabalhos de Cher-

niss (1935 1944) por meio de um agudo trabalho sobre as fontes ainda hoje insupera-

do Cherniss chega a concluir jaacute em 1935 que

Aristoacuteteles natildeo estaacute em nenhum dos trabalhos que possuiacutemos procu-rando fornecer um relatoacuterio da filosofia mais antiga Ele estaacute usando essas teorias como interlocutoras em um debate artificial que ele pre-para para que conduza lsquoinevitavelmentersquo agraves suas proacuteprias conclusotildees (Cherniss 1935 xii)91

Cherniss dessa forma analisa os procedimentos historiograacuteficos de Aristoacuteteles

em busca de uma soluccedilatildeo ao problema central que o corpus constitui para a reconstru-

ccedilatildeo da filosofia preacute-socraacutetica apesar de pouco confiaacutevel em sua reconstruccedilatildeo das teorias

dos primeiros filoacutesofos suas constantes contradiccedilotildees omissotildees erros e desentendimen-

tos Aristoacuteteles eacute ainda a principal senatildeo a uacutenica fonte para o estudo dos preacute-socraacuteticos

(1935 347-350) Dessa forma caberaacute ter aquele que Cherniss chama de ldquoo maior cui-

dadordquo (the greatest care) na anaacutelise do material aristoteacutelico

Com esse intuito Cherniss iraacute desenvolver uma metodologia de abordagem ao

texto que lhe permitiraacute definir procedimentos para uma espeacutecie de controle de vieacutes (para

utilizar uma terminologia estatiacutestica) que busca identificar fatores de confundimento

permitindo definir um uso acertado isto eacute adequado do ponto de vista historiograacutefico

do corpus dois tipos de omissotildees sete fontes comuns de erros etc (1953 351-358) 90 Cf Diels-Kranz (1951 226) Zeller e Mondolfo (1938 326 ndash na nota sobre as fontes de Mondolfo pois Zeller assim como Gompertz (1893) natildeo concordava com isso) Burnet (1908 183) Rey (1933 183) Cornford (1939 I) Raven (1948 211) Contraacuterios a essa tese Reinhardt (1916 24 69 85) e Calogero (1932 28) consideram a seccedilatildeo da doacutexa como derivaccedilatildeo interna agrave proacutepria metafiacutesica de Parmecircnides 91 Orig ldquoAristotle is not in any of the works we have attempting to give a historical account of earlier philosophy He is using these theories as interlocutors in the artificial debates which he sets up to lead ldquoinevitablyrdquo to his own solutionsrdquo Cf tambeacutem Cherniss (1935 349-50 356-357) Jaacute Burnet (1908 56) havia comeccedilado a suspeitar das escolhas editoriais de Aristoacuteteles falando do costume deste de ldquoputting things in his own way regardless of historical considerationsrdquo

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Dois erros satildeo especialmente importantes por modelar profundamente toda a his-

toacuteria da criacutetica dos preacute-socraacuteticos O primeiro diz respeito agrave concepccedilatildeo de Aristoacuteteles de

que os preacute-socraacuteticos teriam fundamentalmente um uacutenico problema ao qual dedicaram

sua investigaccedilatildeo isto eacute o da mateacuteria que constitui todas as coisas que satildeo Ao contraacute-

rio olhando mais atentamente (o mesmo Aristoacuteteles natildeo negaria isso) eacute possiacutevel reco-

nhecer os preacute-socraacuteticos empenhados na tentativa de compreensatildeo e descriccedilatildeo de diver-

sos processos e problemas especiacuteficos O segundo erro depende do primeiro pois cons-

titui o motivo pelo qual Aristoacuteteles quis restringir a riqueza e a complexidade dos temas

tratados pelos preacute-socraacuteticos a uma uacutenica grundfrage ndash como diria Hegel (a citaccedilatildeo dele

como se veraacute natildeo eacute casual) no sistema aristoteacutelico a divisatildeo fundamental da natureza

daacute-se entre mateacuteria e forma E se Platatildeo eacute visto como um partidaacuterio exagerado da causa

formal o eacute exatamente por opor-se aos preacute-socraacuteticos dos quais constituiria a antiacutetese

Jogando assim um contra os outros Aristoacuteteles retalha para si mesmo o confortaacutevel lu-

gar de siacutentese resultado filosoacutefico do agocircn dos dois momentos anteriores a ele92

Eacute certamente o caso de anotar finalmente que a contribuiccedilatildeo de Cherniss para a

historiografia dos preacute-socraacuteticos eacute inquestionaacutevel ao ponto de ser possiacutevel considerar

que depois dele os estudos dos preacute-socraacuteticos tenham se tornado um luta incessante

com Aristoacuteteles ainda que certamente natildeo contra ele

Na esteira de Cherniss diversos comentadores poderatildeo em seguida concordar

com o fato de que ldquoAristoacuteteles eacute totalmente alheio agrave concepccedilatildeo moderna de histoacuteria da

filosofiardquo (Reale 1968 I 151) e considerar assim Aristoacuteteles como um testemunho ne-

cessaacuterio mas a ser tratado com todos os cuidados possiacuteveis93 Laks (2007 230) resume

a historiografia da filosofia preacute-socraacutetica apoacutes Cherniss como um processo de ldquodesaris-

totelizaccedilatildeo da escrita sobre as origens da filosofia gregardquo94 A economia destas paacuteginas

natildeo permite obviamente aprofundar como mereceria essa questatildeo da validaccedilatildeo do tes-

temunho aristoteacutelico como tal com suas consequecircncias para a historiografia da filosofia

em suas origens

92 Cherniss (1935 349) natildeo deixa de anotar a dependecircncia deste meacutetodo agocircnico e aporeacutetico de Aristoacutete-les de seus mestres indiretamente Soacutecrates mas sobretudo Platatildeo 93 Orig ldquoil moderno concetto di storia della filosofia egrave totalmente estraneo ad Aristotelerdquo Por outro lado Mansfeld afirma com razatildeo que os primeiros passos de uma historiografia da filosofia satildeo anteriores ao proacuteprio Aristoacuteteles podendo ser encontrados na literatura sofiacutestica ldquothe rudimentary beginnings of the historiography of Greek philosophy may be dated to the period of the Sophistsrdquo (Mansfeld 1990 27) 94 Orig ldquodeacutesaristoteacutelisation de lacuteeacutecriture des deacutebuts de la philosophie grecquesrdquo

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Cabe somente sublinhar como um novo marco para a questatildeo um recente artigo

de Collobert (2002) que pretendendo reabrir a questatildeo desafia a seu modo o consenso

estabelecido a partir Cherniss Collobert revela como Aristoacuteteles estaria seguindo ante

litteram em sua historiografia dos preacute-socraacuteticos os princiacutepios de uma lectio analiacutetica

(no sentido contemporacircneo de natildeo-continental) Por esse motivo agrave pergunta se Aristoacute-

teles deva ser considerado um historiador da filosofia ela continua respondendo ainda

que com diversos distinguos que natildeo Pois

Aristoacuteteles natildeo escreveu uma histoacuteria da filosofia em sentido moderno ou ao menos no sentido lsquocontinentalrsquo quando ele transmitiu os pen-samentos de seus predecessores Por essa razatildeo algueacutem poderia dizer com Wilamowitz que ldquonatildeo se deve culpar o historiador Aristoacuteteles pois Aristoacuteteles jamais foi ou quis ser um historiador (Collobert 2002 294-295)95

De fato Aristoacuteteles em sua Metafiacutesica no que diz respeito aos pitagoacutericos pa-

rece natildeo somente querer trataacute-los de certa forma separadamente em relaccedilatildeo aos outros

preacute-socraacuteticos (985b 23ss) mas tambeacutem em constante intenccedilatildeo polecircmica contra o pla-

tonismo compara-os o tempo todo com este uacuteltimo (Met 987a 29ss 989b 29ss 990a

27ss 996a 4s) dessa forma o pitagorismo torna-se mais uma ocasiatildeo para atacar os

argumentos platocircnicos (Met 1083b 8ss 1090a 30) do que um toacutepico de interesse per

se96

Porquanto essa aproximaccedilatildeo entre o pitagorismo e o platonismo obedeccedila em A-

ristoacuteteles a uma precisa estrateacutegia polecircmica a criacutetica ainda no interior do esforccedilo de

validaccedilatildeo das fontes indiretas sobre o pitagorismo tentou explorar as relaccedilotildees dos pita- 95 Orig ldquoAristotle did not write a history of philosophy in a modern sense or at least in a lsquocontinentalrsquo sense when he transmitted the thoughts of his predecessors For this reason one can say with U Wila-mowitz that lsquoone does not have to blame the historian Aristotle because Aristotle never was nor wanted to be an historianrsquordquo Agrave Collobert deve ser reconhecida a intenccedilatildeo de recolocar em termos mais atuais (os termos da querelle analiacutetico-continentais) a questatildeo Todavia grande parte de sua soluccedilatildeo hermenecircutica eacute ainda dependente do excelente trabalho de Cherniss (1935) como demonstra por exemplo a seguinte afirmaccedilatildeo deste em relaccedilatildeo aos testemunhos contidos no corpus aristoteacutelico ldquoone cannot safely wrench them away to use as building-blocks for a history of Presocratic philosophy There are no lsquodoxographi-calrsquo accounts in the works of Aristotle because Aristotle was not a doxographer but a philosopher seek-ing to construct a complete and final philosophyrdquo (Cherniss 1935 347) Eacute esta ainda uma boa descriccedilatildeo ante litteram do Aristoacuteteles analiacutetico da Collobert 96 Sobre a lectio aristoteacutelica do pitagorismo antigo seraacute o caso de voltar obviamente em seguida ao longo da tese a anotar seus problemas e sucessos Eacute suficiente por enquanto lembrar que tanto na Fiacutesica quanto no De Caelo Aristoacuteteles dedica alguns comentaacuterios agraves doutrinas cientiacuteficas dos pitagoacutericos assim como ndash na mesma Metafiacutesica (986a 12) ndash refere-se a uma mais exata discussatildeo sobre estes A referecircncia seria aos famosos dois livros (perdidos) que ele dedicara especificamente ao pitagorismo Para as fontes dessa tradiccedilatildeo e uma exaustiva discussatildeo historiograacutefica destas cf Burkert (1972 29)

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goacutericos com Platatildeo Para aleacutem das relaccedilotildees histoacutericas deste com o rei-filoacutesofo Arquitas

de Tarento como testemunharia entre outras fontes a proacutepria Carta VII (339d) uma jaacute

antiga tentativa de avaliaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos como fontes histoacutericas confiaacuteveis

levaria a aprofundar radicalmente a dependecircncia de Platatildeo em relaccedilatildeo aos pitagoacutericos

Tanto Burnet (1908) quanto Taylor (1911) por considerarem de fato os diaacutelogos platocirc-

nicos como testemunhos histoacutericos chegam a fazer diversos deles dependerem direta-

mente da influecircncia pitagoacuterica dessa forma o Soacutecrates do Feacutedon revela-se pitagoacuterico

defensor da metempsicose e da anamnese (Taylor 1911 129-177) enquanto o Timeu

apareceraacute como uma obra quase que completamente informada pelo pitagorismo (Bur-

net 1908 340ss)97

Obviamente os resultados dos esforccedilos sobre as fontes indiretas estatildeo bem longe

de serem consensuais De fato jaacute Frank (1923) ndash em direccedilatildeo totalmente contraacuteria ao

colocado acima e de certa forma radicalizando o ceticismo zelleriano ndash considera im-

possiacutevel qualquer tentativa de acessar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica antes de Platatildeo Sua obra

intitula-se significativamente Plato und die sogenannten Pythagoreer (ldquoPlatatildeo e os as-

sim chamados pitagoacutericosrdquo) pois apoia sua argumentaccedilatildeo de maneira muito decidida na

repetida referecircncia de Aristoacuteteles aos kalouacutemenoi pitagoacutericos segundo Frank Aristoacutete-

les estaria se referindo a pitagoacutericos do seacuteculo IV como Arquitas para aleacutem dos proacute-

prios acadecircmicos entre eles Espeusipo (Frank 1923 77) O pressuposto geral de Frank

eacute que natildeo se pode imaginar um pensamento cientiacutefico no mundo grego antes de Anaxaacute-

goras

Anaxaacutegoras foi o primeiro a formular o princiacutepio da ciecircncia moderna distinguindo em suas investigaccedilotildees oacuteticas a imagem-do-mundo sub-jetiva-psicoloacutegica pelo ponto-de-vista objetivo de um observador ab-soluto (1923 144)

Dessa forma tudo o que diz respeito aos pitagoacutericos deveraacute ser considerado in-

venccedilatildeo de Espeusipo e dos primeiros acadecircmicos98 Por consequecircncia tanto os frag-

97 Da mesma forma a tese doutoral de Cameron (1938) sugere uma base pitagoacuterica para a teoria da a-namnese 98 O debate que desde entatildeo marcou as tentativas de responder a essa postura radicalmente ceacutetica na interpretaccedilatildeo da expressatildeo οἱ καλούmicroενοι Πυθαγορείοι (Met 985b 23 989b 29) de Frank eacute muito am-plo Veja-se por exemplo a resposta de Cherniss (1959 37-38) sobre a interpretaccedilatildeo de καλούmicroενοι em Poliacutetica (1290b 40) Aristoacuteteles utiliza a mesma expressatildeo referida aos camponeses (οἱ καλούmicroενοι γεω-ργοί) por traacutes da expressatildeo natildeo eacute possiacutevel imaginar que Aristoacuteteles esteja levantando qualquer suspeita

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mentos de Filolau como toda a teoria matemaacutetica deveratildeo ser reconduzidos para o periacute-

odo acadecircmico O hipercriticismo de filoacutelogos como Frank eacute confrontado veemente-

mente por Santillana e Pitts para eles Frank eacute o ponto de partida de uma escola de his-

toriadores que

Foram atraiacutedos para a companhia de vaacuterios filoacutelogos modernos que haviam caiacutedo na armadilha de aceitar alguns dos argumentos destruti-vos de Frank sem compreender a iacutentima dependecircncia destes de sua inaceitaacutevel alternativa (Santillana e Pitts 1951 112)99

Ao longo de todo o percurso historiograacutefico em busca das fontes indiretas sobre

o pitagorismo a lectio communis parece ter sido exatamente aquela de um ceticismo por

parti pris que revela de um lado certa postura todo-poderosa dos estudiosos de Platatildeo e

Aristoacuteteles que tendem a consideraacute-los como inventores de praticamente qualquer ideia

que tenha aparecido antes deles agrave custa de uma atenta anaacutelise das fontes preacute-socraacuteticas

por outro lado certa preguiccedila da pesquisa sobre as origens do pensamento grego que

prefere repetir os chavotildees manualiacutesticos a empenhar-se em uma atenta revisatildeo das praacuteti-

cas normais de pesquisa

18 De Burkert a Kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica

Uma verdadeira terceira-via para a criacutetica entre o ceticismo zelleriano (na ver-

satildeo extremizada por Frank) e uma excessiva confianccedila nas fontes que sempre assola os

estudiosos menos advertidos do pitagorismo eacute constituiacuteda pelo trabalho de Walter Bur-

kert dedicado ao pitagorismo Weisheit und Wissenschaft traduzido posterioremente por

sobre a existecircncia real de camponeses em geral Da mesma forma portanto as expressotildees do tipo οἱ καλ-ούmicroενοι Πυθαγορείοι deveratildeo ser entendidas como ldquodesignations in the currently designated senserdquo (38) 99 Orig ldquowere attracted by the company of various modern philologists who have been trapped into accepting some of Frankrsquos destructive arguments without noticing their intimate dependence upon his unacceptable alternativerdquo A alternativa agrave qual os autores se referem e que constitui um dos pontos fun-damentais da argumentaccedilatildeo de Frank eacute aquela entre uma origem grega e uma simples e tardia importaccedilatildeo oriental da matemaacutetica Frank optaria obviamente pela segunda Por consequecircncia ldquorelying on Frank these authors have dismissed the entire tradition about early Greek mathematics and supplanted it either with a most improbably late transference of Babylonian mathematics to Greece in the Vth centuryrdquo (San-tillana e Pitts 1951 112) Para uma resenha desta questatildeo cf Salas (1996) Thesleff (1961 45) reclama da veemecircncia de Santillana e Pitts por causa da ldquoridicularizaccedilatildeo irreverenterdquo de Frank por parte dos dois autores Estes de fato afirmaram que se quisermos ser coerentes com o hipercriticismo de Frank (1951 116) ldquowe may begin to suspect Frank himself of being an imaginary character in the lost dialogues of George Santayanardquo

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Minar (Burkert 1972) para o inglecircs e publicado em ediccedilatildeo revisada como Lore and Sci-

ence in Ancient Pythagoreanism Ponto de referecircncia obrigatoacuterio desde entatildeo para

qualquer percurso criacutetico dedicado ao estudo do pitagorismo a obra de Burkert revela

no mesmo processo de sua confecccedilatildeo o difiacutecil caminho da validaccedilatildeo das fontes a serem

utilizadas para apresentar a filosofia do pitagorismo No prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo de

Weisheit und Wissenschaft em 1962 Burkert revela fundamentalmente uma postura

ceacutetica em relaccedilatildeo agrave efetiva contribuiccedilatildeo do pitagorismo para os avanccedilos da matemaacutetica

grega antiga notadamente na questatildeo dos irracionais referindo a sabedoria dos nuacutemeros

pitagoacutericos a um ambiente intelectual preacute-cientiacutefico

Nesse periacuteodo de penuacutembra entre antigo e novo quando os gregos em um feito historicamente uacutenico estavam descobrindo a interpretaccedilatildeo racional do mundo e as ciecircncias naturais quantitativas Pitaacutegoras re-presenta natildeo a origem do novo mas a sobrevivecircncia ou o renascimen-to da sabedoria antiga preacute-cientiacutefica baseada na autoridade sobre-humana e expressa obligatio ritual A sabedoria do nuacutemero eacute muacuteltipla e mutaacutevel (Burkert 1972 Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde)100

Ao contraacuterio no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo inglesa dez anos depois Burkert eacute obrigado

a reconhecer que ndash em suas proacuteprias palavras ndash ldquoEu aprendi nestes anos [hellip] sobre a

questatildeo da descoberta do irracional e tomei uma posiccedilatildeo que eacute menos criacutetica da tradi-

ccedilatildeordquo101

Para Burkert em relaccedilatildeo agrave matemaacutetica existiria um profundo gap entre a ativi-

dade dos pitagoacutericos do seacuteculo V ndash relegada ao mundo dos acusmata e da numerologia

(ainda que se deva preferir em acircmbito acadecircmico o termo aritmologia conforme ob-

servado por Delatte 1915) ndash e aquela dos matemaacuteticos jocircnicos como Hipoacutecrates de

Quios Assim para Burkert (1972) o tipo de matemaacutetica dos primeiros pitagoacutericos in-

100 Orig ldquoIn that twilight period between old and new when Greeks in a historically unique achieve-ment were discovering the rational interpretation of the world and quantitative natural science Pytha-goras represents not the origin of the new but the survival or revival of ancient pre-scientific lore based on superhuman authority and expressed in ritual obligatio The lore of number is multifarious and chan-geablerdquo 101 Orig ldquoI have learned in these years [hellip] about the question of the lsquoDiscoveryrsquo of the irrational I have taken a stand which is less critical of the traditionrdquo Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste momento dar conta da ampla tradiccedilatildeo criacutetica sobre a contribuiccedilatildeo do pitagorismo para a matemaacutetica e sobre o desenvolvimento da teoria dos nuacutemeros no interior da filosofia pitagoacuterica Estudos claacutessicos da questatildeo satildeo os de Tannery (1887a 1887b) Becker (1957) Von Fritz (1945) e sobretudo Van der Waerden (1947-1949) Mais re-centemente podem-se conferir Huffman (1988 1993 2005) Zhmud (1989 1992 1997) Centrone (1996) Salas (1996) e Casertano (2009) Cf a seguir o capiacutetulo quarto para um desenvolvimento desta questatildeo

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cluindo aqueles do seacuteculo V (e portanto Filolau) de maneira alguma corresponderia ao

tipo de exerciacutecio dedutivo rigoroso de contemporacircneos como Hipoacutecrates de Quios e

Teodoro de Cirene aqui se trataria ao contraacuterio de um culto aos nuacutemeros no contexto

dos acusmata que a tradiccedilatildeo continuamente recorda e que poderaacute ser assim aproxima-

do mais facilmente agrave numerologia das culturas primitivas102

Burkert afirma serem as duas preocupaccedilotildees cientiacutefico-matemaacutetica e numeroloacute-

gica radicalmente distintas

Nuacutemero e ciecircncia matemaacutetica natildeo satildeo de maneira alguma equivalen-tes Nuacutemeros remetem em origem para as neacutevoas dos tempos preacute-histoacutericos mas a ciecircncia matemaacutetica propriamente natildeo surgiu mais cedo do que na Greacutecia do seacuteculo VI ou V As pessoas conheciam os nuacutemeros antes da matemaacutetica stricto sensu e foi na era preacute-cientiacutefica que surgiu o ldquomisticismo nuacutemeacuterico ou simbolismo numeacuterico ou numerologia que ainda hoje continua a exercer certa influecircncia Ningueacutem pode ignorar o fato de que esse tipo de coisa estava presente no pitagorismo Aristoacuteteles nomeia em primeiro lugar entre o omoio-mata que os pitagoacutericos acreditavam subsistir entre nuacutemeros e coisas a equaccedilatildeo de certos nuacutemeros com dikaiosucircne psychecirc kai nous e kairoacutes (Met 987b 27ff) e somente com um aleacutem disso acrescenta a teoria matemaacutetica da muacutesica (Burkert 1972 466) 103

Eacute preciso aqui notar que algo de muito significativo acontece na argumentaccedilatildeo

de Burkert O ceticismo de marca zelleriana continua inspirando o tratamento das fon-

tes uma atenta e precisa desconstruccedilatildeo da doxografia acaba por chegar ao descreacutedito de

grande parte desta como fonte direta por indicar claramente sua origem no interior da

Academia Plaacuteton pythagoriacutezei (Platatildeo pitagoriza) eacute o adaacutegio fundamental que acompa-

102 Natildeo faltaram revisotildees criacuteticas agrave postura ceacutetica de Burkert a respeito das fontes sobre a contribuiccedilatildeo dos pitagoacutericos agrave matemaacutetica Muitas delas seratildeo citadas nos capiacutetulos seguintes pois constituem um obstaacutecu-lo central para qualquer interpretaccedilatildeo do pitagorismo apoacutes 1972 Basta por ora lembrar a criacutetica sagaz que Von Fritz faz a ela em sua recensatildeo de Weisheit ldquoIt is not very good method to deny categorically the occurrence of an event the details of which are reported in a somewhat contradictory manner If this methodical principle is strictly and consistently applied it becomes possible to prove that no automobile accident ever happenedrdquo (Von Fritz 1964 461) 103 Orig ldquoNumber and mathematical science are by no means equivalent Numbers go back in origin to the mists of prehistoric times but mathematical science properly speaking did not emerge earlier than sixth- and fifth-century Greece People knew numbers before mathematics in the strict sense and it was in the pre-scientific era that the ldquonumber mysticismrdquo arose or ldquonumber symbolismrdquo or ldquonumerologyrdquo which continues even now to exert a certain influence No one could overlook the fact that this kind of thing was present in Pythagoreanism Aristotle names first of all among the omoiomata which the Py-thagoreans thought subsisted between numbers and things the equation of certain numbers with dikai-osucircne psychecirc kai nous and kairoacutes (Met 987b27ff) and only with a ldquofurthermorerdquo goes on to add the mathematical theory of musicrdquo

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nha as suspeitas de toda a tradiccedilatildeo (desde Met 987a 29)104 Daiacute a dificuldade em admi-

tir uma contribuiccedilatildeo significativa do pitagorismo aos progressos da matemaacutetica do seacutecu-

lo V aEC A essa pars denstruens da criacutetica das fontes em Burkert segue uma herme-

necircutica que articulando admiravelmente estudos de antropologia religiosa com uma

soacutelida abordagem filoloacutegica e historiograacutefica leva ao ineacutedito resgate do Pitaacutegoras histoacute-

rico e do protopitagorismo em toda sua componente primitiva preacute-racionaliacutestica Pitaacute-

goras deveraacute ter sido entatildeo um mago e xamatilde (ainda que cientista ao menos agrave maneira

dele) baseando esta sua cientificidade em um esforccedilo para dar aquele que para Burkert

constitui ldquoum passo a maisrdquo (a step beyond) Este passo a mais que distinguiria Pitaacutego-

ras no interior do mundo maacutegico-taumatuacutergico primitivo pode ser detectado por exem-

plo pela presenccedila no interior dos testemunhos mais antigos de noccedilotildees como as de ka-

thaacutersis e de anamneacutesis (1972 211)

Na gangorra entre o ceticismo e a confianccedila nas fontes na qual todo filoacutelogo eacute

obrigado a movimentar-se (ldquoa vida real da filosofia eacute uma luta entre as tendecircncias a con-

fiar na tradiccedilatildeo e o ceticismo com respeito agrave mesmardquo ndash reconhece lucidamente Burkert

1972 9) acaba por surgir um caminho intermediaacuterio uma terceira via conforme foi

dito que ainda que radicalmente ceacutetica em relaccedilatildeo agraves fontes acadecircmicas consegue

todavia desenhar uma imagem historicamente coerente e metodologicamente eficaz das

origens do pitagorismo e de seu fundador105

Certamente a obra de Burkert com a vantagem da dupla postura acima dese-

nhada constitui uma pedra fundamental para a histoacuteria da criacutetica como bem nota Von

Fritz

O trabalho apresenta os resultados do maior esforccedilo empreendido para resolver os problemas colocados por uma antiga tradiccedilatildeo complicada e confusa para chegar a uma reconstruccedilatildeo plausiacutevel e consistente do pensamento e das doutrinas do proacuteprio Pitaacutegoras (Von Fritz 1964 459)106

104 O adaacutegio eacute trasmitido por Euseacutebio de Cesareia Πλάτων πυθαγορίζει (Euseb Prep Evang 190315 37 6) 105 Orig ldquoThe very life of philology is the struggle between the tendencies toward faith in the tradition and skepticism of itrdquo 106 Orig ldquoThe work presents the results of a most energetic effort to solve the problems posed by a com-plicated and confused ancient tradition and to arrive at a plausible and consistent reconstruction of the thought and the doctrines of Pythagoras himselfrdquo

62

Sinal inequiacutevoco do impacto central da obra de Burkert para a histoacuteria da criacutetica

satildeo certamente as diversas atenccedilotildees e respostas que mereceu desde sua publicaccedilatildeo Foi

especialmente seu ceticismo mais que a reconstruccedilatildeo de um Pitaacutegoras originalmente

xamatilde que sofreu as criacuteticas mais precisas Huffman sugere inicialmente que a atribui-

ccedilatildeo a Filolau de uma matemaacutetica exclusivamente teoloacutegico-numeroloacutegica conforme

sugerido por Burkert natildeo seria um ponto paciacutefico (Huffman 1988 3) O mesmo Huff-

man reabriraacute o caso definitivamente com sua proacutepria monografia dedicada a Filolau

(Huffman 1993) dando inversamente a ele um papel proeminente natildeo jaacute agrave matemaacutetica

e sim agrave filosofia da matemaacutetica antiga ldquoFilolau merece um lugar de destaque na histoacuteria

da filosofia grega como o primeiro pensador a empregar consciente e tematicamente

ideias matemaacuteticas para resolver problemas filosoacuteficosrdquo (Huffman 1988 2)107

Huffman ao contraacuterio de Burkert atribui a Filolau com base fundamentalmente

no fr 4 (44 B4 DK) uma postura epistemoloacutegica que se utilizaria dos nuacutemeros para

compreender a realidade (Huffman 1993 64ss) por esta uacuteltima ser cognociacutevel somente

graccedilas agraves relaccedilotildees aritmo-geomeacutetricas108

Em outra frente o proacuteprio Minar tradutor da obra para o inglecircs reclama da au-

secircncia de qualquer abordagem agrave questatildeo social e poliacutetica (Minar 1964 121) que se jaacute

antiga ndash como a discussatildeo acima desenvolvida sobre o tema parece indicar ndash deveraacute

desempenhar um papel central na reconstruccedilatildeo da filosofia dos primeiros pitagoacutericos

Em contrapartida eacute exatamente o distanciamento que Burkert consegue estabe-

lecer com certa precisatildeo entre as tradiccedilotildees do protopitagorismo e aquelas dos pitagoacuteri-

cos em contato com a Academia (especialmente Arquitas) que permite de certa forma

liberar o campo para os estudos do protopitagorismo como experiecircncia relativamente

independente das sucessivas reapropriaccedilotildees dela pela literatura

O resgate de um pitagorismo das origens como fortemente marcado pelo aspecto

miacutestico-religioso eacute certamente inaugurado por Detienne Este dedica ao pitagorismo

diversas incursotildees ao longo de sua obra definida por uma abordagem antropoloacutegica e

comparativista ao mundo antigo109 A comeccedilar por seu ensaio sobre a poesia filosoacutefica

do pitagorismo antigo (1962) que em busca de relaccedilotildees histoacutericas entre poesia e metafiacute- 107 Orig ldquoPhilolaus deserves a prominent place in the history of Greek philosophy as the first thinker self-consciously and thematically to employ mathematical ideas to solve philosophical problemsrdquo 108 Ver-se-aacute com mais detalhes esta polecircmica no capiacutetulo quarto 109 Para a siacutentese madura da abordagem antropoloacutegica e comparativista ao mundo antigo de Detienne veja-se especialmente seu mais recente Comparer lincomparable (2000)

63

sica isto eacute entre os ambientes dos poetas e dos filoacutesofos antigos ocupa-se das tradiccedilotildees

que remetem agrave invenccedilatildeo de uma leitura filosoacutefica de Homero e Hesiacuteodo em acircmbito

pitagoacuterico Essa exegese pitagoacuterica inaugura aquela que somente depois Platatildeo e Aris-

toacuteteles chamaratildeo de theologiacutea

O trabalho de construccedilatildeo que pressupotildee o diaacutelogo entre Homero He-siacuteodo e Pitaacutegoras define-se fundamentalmente como vimos no plano do pensamento religioso [] Eacute essencialmente uma teologia aquela que os poemas de Homero e Hesiacuteodo representam para os gregos e em particular para os pitagoacutericos (Detienne 1962 95)110

A tese da leitura teoloacutegica dos poetas arcaicos entre os pitagoacutericos eacute recuperada

por Detienne em relaccedilatildeo aos estudos sobre a interpretaccedilatildeo demonoloacutegica dos versos de

Os trabalhos e os dias de Hesiacuteodo sobre a noccedilatildeo de daiacutemon no pitagorismo antigo

Detienne (1963) dedica uma obra inteira que em linha com a obra imediatamente pre-

cedente considera que o pitagorismo tenha estabilizado o conceito de daiacutemon ateacute entatildeo

extremamente vago para indicar com ele a intermediaccedilatildeo entre homens e deuses Na

exegese pitagoacuterica portanto o conceito adquire uma consistecircncia teoloacutegico-filosoacutefica

que natildeo possuiacutea anteriormente111 Os sucessivos estudos de Detienne dedicados agraves

prescriccedilotildees dieteacuteticas dos pitagoacutericos (1970 1972) seguem a mesma linha teoacuterica de

consideraacute-las fundamentalmente uma expressatildeo de sua compreensatildeo da relaccedilatildeo com os

deuses em sentido teoloacutegico

O sistema de alimentaccedilatildeo determinado pelas principais praacuteticas ali-mentares dos pitagoacutericos aparece assim como uma linguagem por

110 Orig ldquoLe travail de construction que suppose le dialogue entre Homegravere Heacutesiode e Pythagore srsquoest defini de plus em plus nous lrsquoavons vu sur le plan de la penseacutee religieuse [] Crsquoest essentiellement une ldquotheacuteologierdquo que les poegravemes drsquoHomegravere et drsquoHeacutesiode repreacutesentent pour les Grecs et en particulier pour les Pythagoriciensrdquo A tese fundamental desta obra de Detienne estaacute baseada no testemunho de Neantes cf referido por Porfiacuterio (VP 1) de uma formaccedilatildeo inicial de Pitaacutegoras no acircmbito da poesia homeacuterica Pitaacutegoras teria sido disciacutepulo de Ermodamante que pertencia a uma famiacutelia tradicional de rapsodos ho-meacutericos os Creofileacuteus Isso permite a Detienne afirmar que Samos seria o lugar do primeiro encontro entre poesia e filosofia Para uma criacutetica a esse pressuposto e agrave sucessiva argumentaccedilatildeo de Detienne cf Feldman (1963 16) e Pollard (1964 188) 111 A obra foi precedida por pelo menos dois artigos em que o autor inaugurava a pesquisa e definia suas linhas fundamentais (Detienne 1959a e 1959b) Para uma criacutetica agrave leitura de Detienne cf Kerferd (1965) que observa como o conceito de daiacutemon seja com toda probabilidade uma atribuiccedilatildeo platocircnica ao pitago-rismo antigo (1965 78) natildeo permitindo dessa maneira sustentar a tese da original conceituaccedilatildeo teoloacutegi-ca em acircmbito protopitagoacuterico Uma recepccedilatildeo mais calorosa ainda que reclamando de certa audaacutecia na questatildeo das fontes lhe eacute reservada por Vidal-Naquet (1964)

64

meio da qual este grupo social traduz suas orientaccedilotildees e revela suas contradiccedilotildees (1970 162)112

Fundamentada na recusa em provocar a morte do animal para o sacrifiacutecio a ritu-

alidade da alimentaccedilatildeo pitagoacuterica procura instaurar uma comensalidade com os deuses

que dessa forma elimina a separaccedilatildeo clara dos alimentos divinos e humanos que subjaz

ao sacrifiacutecio oliacutempico tradicional operando uma inversatildeo na antropologia teoloacutegica

De um sacrifiacutecio para outro natildeo somente as oferendas mudam de na-tureza mas os modos da relaccedilatildeo com os deuses se invertem A inver-satildeo eacute marcada em especial no caso do estatuto religioso dos cereais No sacrifiacutecio oliacutempico satildeo os gratildeos de trigo e cevada (inteiros) (oulo-chutai) a serem espargidos sobre as viacutetimas animais representando a alimentaccedilatildeo especificamente humana reservada aos mortais que culti-vam a terra e comem o patildeo (1970 152)113

Longe das tentativas teologizantes das expressotildees da religiatildeo pitagoacuterica operadas

por Detienne seguem os estudos de grandes historiadores e arqueoacutelogos da religiatildeo

antiga Entre eles Cumont (1942a 1942b) e Carcopino (1927 1956) dedicam-se agrave re-

cepccedilatildeo das tradiccedilotildees pitagoacutericas no interior do simbolismo funeraacuterio romano diversos

artigos de Festugiegravere muitos deles recolhidos finalmente nos Eacutetudes de religion grec-

que e hellenistique (1972) e as duas importantes obras de Leacutevy (1926 1927) sobre a

lenda de Pitaacutegoras Todos eles reconhecem na recepccedilatildeo de motivos pitagoacutericos no inte-

rior das expressotildees da religiosidade heleniacutestica orientalizante uma continuidade entre

pitagorismo antigo e pitagorismo tardio no que diz respeito agraves questotildees religiosas tanto

de fazer pensar em uma espeacutecie de rio subterracircneo de tradiccedilotildees religiosas atribuiacutedas ao

pitagorismo que flui ao longo de mais de mil anos (Burkert 1972 6)114

112 Orig ldquoLe systeme des nourritures fernie par les principales pratiques alimentaircs des Pythagorici-ens apparait done comme un langage a travers le quel ce groupe social traduit ses orientations et revele ses contradictionsrdquo 113 Orig ldquoDrsquoun sacrifice a lrsquoautre non seulement les offrandes change de nature mais le mode de rela-tion avec les dieux srsquoinverse Le renversement se marque en particulier dans le statut religieux des ceacutereacutea-les Dans le sacrifice olympien es grains drsquoorge et de ble (entiers) (oulochutai) que les sacrifiants re-pandent sur les victimes animales represeacutentent le nourriture speacutecifiquement humaine reservee aux mor-tels qui cultivent la terre et mangent le painrdquo Da mesma forma isto eacute sublinhando o processo de racio-nalizaccedilatildeo teoloacutegica Detienne interpretaraacute as indicaccedilotildees dieteacuteticas pitagoacutericas relativas ao uso de um tipo especial de alface que eles chamavam de eunuco Esta era especialmente indicada para o periacuteodo estivo pois suas propriedades diminuiacuteam o desejo sexual considerado pernicioso agrave sauacutede na referida estaccedilatildeo por causa da debilitaccedilatildeo provocada pelo forte calor Evidencia-se aqui um uso dos mitos neste caso do grupo de mitos relativos aos jardins de Adonis para fins eacutetico-teoloacutegicos (Detienne 1972 125-130) 114 De grande interesse histoacuterico aleacutem de inequiacutevoco sinal da erudiccedilatildeo e do amplo raio de investigaccedilatildeo agrave qual Leacutevy dedicava-se eacute a coleccedilatildeo poacutestuma de suas Recherches esseacuteniennes et pythagoriciennes (1965) uma seacuterie de ensaios em que o autor dedica-se a desvendar possiacuteveis influecircncias natildeo-judias e notadamen-

65

Um capiacutetulo especial dessa relaccedilatildeo do pitagorismo com o mundo religioso eacute cer-

tamente aquele das relaccedilotildees perigosas do pitagorismo com o mundo de ritos e mitos

que se convencionou reunir debaixo da definiccedilatildeo orfismo A conexatildeo do pitagorismo

com o orfismo para aleacutem de esteacutereis petitiones principii presentistas que reclamam

uma suposta separaccedilatildeo entre filosofia e misticismo eacute ligada provavelmente a temaacuteticas

e experiecircncias especiacuteficas como aquelas relativas agrave teoria da imortalidade da alma de

maneira especial agrave metempsicose ou agrave cosmologia A segunda metade do seacuteculo XX

marca a descoberta de novos documentos oacuterficos Uma descoberta que a bem da verda-

de nunca parou desde a ediccedilatildeo moderna dos fragmentos de Kern (1922) entre eles

especialmente as lacircminas de ouro (Zuntz 1971 Pugliese Carratelli 2001) e novos papi-

ros especialmente o papiro Derveni datado do seacuteculo IV aEC que conteacutem uma exegese

alegoacuterica de um mais antigo poema cosmogocircnico115 De especial relevacircncia pela sobri-

edade e o cuidado filoloacutegico eacute o estudo dedicado agraves relaccedilotildees entre orfismo e pitagoris-

mo por Bernabeacute (2004) assim como as mais recentes observaccedilotildees sobre o tema em

Bernabeacute-Casadesuacutes (2009)

O revival de estudos que seguiu agraves descobertas relacionadas anteriormente con-

firma em geral a profunda relaccedilatildeo do orfismo com o dionisismo e o pitagorismo Pu-

gliese Carratelli (2001 18) propotildee uma soluccedilatildeo para a eterna questatildeo das modalidades

dessas interpenetraccedilotildees identificando ldquoum particular caraacuteter conferido ao genuiacuteno or-

fismo por uma iacutentima conexatildeo deste com a escola pitagoacutericardquo Substancialmente basea-

do na anaacutelise original das lacircminas de ouro oacuterficas a tese de Pugliese Carratelli eacute de que

teria havido uma mescla teoacuterica entre os dois movimentos naquela que pode ser consi-

derada uma reforma do orfismo operada pelos pitagoacutericos da primeira hora provavel-

mente jaacute nos seacuteculos VI e V aEC Surgiria assim uma nova ldquofilosofia da imortalidaderdquo

de maneira distinta de um grupo de lacircminas contendo foacutermulas para praacuteticas rituais e

invocaccedilotildees agraves divindades ctocircnicas (entre elas Perseacutefona Dioniacutesio Zagreus e Hades) ou te pitagoacutericas no movimento religioso judaico dos essecircnios depositaacuterio da ceacutelebre biblioteca de Qu-mram proacuteximo ao Mar Morto 115 Cf para a primeira ediccedilatildeo oficial do papiro Kouremenos e Paraacutessoglou e Tsantsanoglou (2006) Para um estudo mais aprofundado do papiro cf as atas de um recente coloacutequio realizado em Princeton (Laks e Most 1997) Um grupo de estudiosos liderado por Pierris e Obbink com a ajuda da moderna tecnologia de imagem multispectral a raios infravermelhos em colaboraccedilatildeo com a Bringham Young University estaacute empenhado em um paralelo estabelecimento do texto Para os impactos da descoberta para o estudo do orfismo preacute-platocircnico cf especialmente Burkert (1982 2005) Kingsley (1995) Betegh (2004) Tortorelli Ghidini (2000 2006) Bernabeacute (2002 2007a) Entre outros papiros recentemente descobertos vejam-se especialmente o Papiro de Bologna e diversos papiros maacutegicos gregos Para uma resenha das descobertas de novos fragmentos oacuterficos apoacutes a segunda guerra mundial cf Bernabeacute (2000)

66

viaacuteticos para enfrentar as terriacuteveis provaccedilotildees pelas quais o iniciado deve passar (desse

grupo fazem parte lacircminas como a de Thurii Pelinna Eleutherna Pherai) Um segundo

grupo resultado dessa reforma pitagoacuterica mencionada haacute pouco enfatiza ao contraacuterio

as temaacuteticas de um empenho eacutetico e espiritual por sua vez intimamente ligado ao exer-

ciacutecio intelectual de compreender com o auxiacutelio de Mnemosyne os princiacutepios coacutesmicos

e do viver humano Uma imortalidade que passaria pelo exerciacutecio da memoacuteria e pela

sabedoria que dela deriva portanto A prova disso para aleacutem desta dimensatildeo cientiacutefica

da memoacuteria eacute que natildeo haacute duacutevidas de que a mnemecirc seja um dos elementos fundamentais

do estilo de vida pitagoacuterico a tradiccedilatildeo eacute unacircnime em recordar que o membro da koino-

niacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia (de manhatilde ou de

noite) para a anamneacutesis a recollectio de todos os eventos do dia anterior (Iambl VP

165) Uma provaacutevel consequecircncia da imbricaccedilatildeo dos dois movimentos eacute o fato de tanto

Heroacutedoto quanto Platatildeo revelarem forte tendecircncia a confundi-los sinal da dificuldade ndash

de certa maneira e sob certos pontos de vista doutrinaacuterios e sociais ndash de distingui-los116

Com essa referecircncia ao orfismo conclui-se este panorama da histoacuteria da criacutetica

que conforme anunciado no proacuteprio tiacutetulo da presente seccedilatildeo eacute ocupado pelos recentes

trabalhos de Kingsley De fato a obra de Kingsley constitui o ponto de fuga natildeo so-

mente desta linha de interpretaccedilatildeo do pitagorismo como movimento intelectual profun-

damente marcado pelas relaccedilotildees com o mundo religioso de seu tempo mas tambeacutem de

grande parte das questotildees centrais ateacute aqui levantadas em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da criacutetica do

pitagorismo Haacute nele uma perspectiva de soluccedilatildeo da maioria dessas questotildees que se

apresenta de forma bastante incomum Kingsley dedica-se a uma releitura consciente-

mente revolucionaacuteria e polecircmica dos pressupostos subjacentes agrave criacutetica das tradiccedilotildees

dos filoacutesofos da Magna Greacutecia tanto a primeira monografia dedicada ao pitagoacuterico

Empeacutedocles (1995) quanto as duas seguintes dedicadas ao tambeacutem pitagoacuterico Parmecirc-

nides (1999 2003) representam uma ldquoradical inversatildeo hermenecircuticardquo no interior do

panorama dos comentadores (Gemelli 2006 657)

Kingsley eacute devedor ao mesmo tempo de trecircs das mais significativas contribui-

ccedilotildees hermenecircuticas do seacuteculo XX isto eacute de um lado do ceticismo de Cherniss (1935)

em relaccedilatildeo ao valor a ser dado ao testemunho aristoteacutelico de outro da tradiccedilatildeo ndash de

autores como Detienne e Festugiegravere ndash da inserccedilatildeo da filosofia em seu nascer no interior

116 Cf Heroacutedoto (II 81) Para Platatildeo aleacutem do Feacutedon cf Goacutergias (492e) Craacutetilo (400c) Fedro (62b 67c-d 81e 92a) e Mecircnon (81a) A questatildeo seraacute retomada em detalhe no capiacutetulo terceiro

67

das tradiccedilotildees religiosas de seu tempo Em terceiro lugar possuem uma influecircncia deci-

siva os estudos orientalistas aplicados agraves noccedilotildees fundamentais da filosofia antiga117

A articulaccedilatildeo dessas importantes tradiccedilotildees somada a uma ampla competecircncia

tanto histoacuterico-arqueoloacutegica como de antropologia da religiatildeo por sua vez acompanha-

da por um dever de casa filoloacutegico francamente cuidadoso permite a Kingsley envere-

dar por um caminho extremamente ousado de resoluccedilatildeo do obstaacuteculo da doxografia de

matriz aristoteacutelica A novidade de sua obra (ainda que natildeo totalmente original em cada

uma de suas partes sem duacutevida original na articulaccedilatildeo consciente delas) encontra-se na

utilizaccedilatildeo de outros textos alternativos aos normais fundamentalmente advindos tanto

da tradiccedilatildeo aacuterabe da filosofia antiga quanto da literatura alquimiacutestica e hermeacutetica A

eles acrescenta-se a proposta de uma renovada confianccedila nos escritos da tradiccedilatildeo neopi-

tagoacuterica e neoplatocircnica118 A economia destas paacuteginas natildeo permite uma anaacutelise da com-

plexa estrutura de argumentos apresentados pelo autor em cada uma das obras citadas

Muitos deles apareceratildeo nas paacuteginas a seguir Eacute suficiente por ora resgatar ainda que

sumariamente suas conclusotildees pois estas pretendem mudar radicalmente o eixo da

pesquisa sobre os preacute-socraacuteticos em geral e sobre o pitagorismo de maneira especial de

duas formas

De um lado recolocando metodologicamente em questatildeo a abordagem historio-

graacutefica normal da filosofia preacute-socraacutetica oferecendo instrumentos e perspectivas ineacutedi-

tas muitas delas ainda a serem exploradas Eacute certamente o caso da afirmaccedilatildeo pela qual

naquilo que eacute considerado comumente como perversatildeo maacutegico-teuacutergica da filosofia

racional nas fontes neopitagoacutericas ao contraacuterio

117 Veja-se como exemplo dessa marca orientalista na lectio de Kingsley sua resenha extremamente criacutetica agrave monografia de Huffman (1993) sobre Filolau e sua tese sobre a perspectiva epistemoloacutegica deste (Kingsley 1994) Eacute tambeacutem significativo nesse sentido o fato de Kingsley ter sido orientado em seu doutorado em Oxford por Martin West (Stroumsa 1997 212) 118 Eacute o caso de sublinhar que a recente descoberta de diversos versos atribuiacutedos a Empeacutedocles no ceacutelebre Papiro de Strasburgo (Martin e Primavesi 1998) que teve lugar na cidade egiacutepcia de Akhmicircn parece confirmar a tese central de Kingsley pela qual haveria uma circulaccedilatildeo independente dos textos preacute-socraacuteticos em acircmbito alquimiacutestico eacute certamente o caso da tradiccedilatildeo que eacute remetida a Zosimo de Panoacutepolis (isto eacute da cidade de Akhmicircn) gnoacutestico de acircmbito alquimiacutestico e agrave importante obra alquimiacutestica Turba Philosophorum que viu sua luz na mesma cidade Ambas as tradiccedilotildees referem-se de forma independente da tradiccedilatildeo doxograacutefica normal a Empeacutedocles e agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica (Kingsley 1995 56-67) Cf tam-beacutem Nucci (1999) Para a mais recente coleccedilatildeo da obra de Zosimo cf o volume de Mertens (1995) de Les alchimistes grecs Para uma recente discussatildeo das relaccedilotildees entre alquimia e filosofia antiga cf Viano (2005)

68

Os pitagoacutericos posteriores permaneceram fieacuteis ao impulso inicial do pitagorismo [hellip] Historicamente como eacute natural a importacircncia do consenso entre o pitagorismo mais antigo e aquele mais tardio eacute subli-nhada ainda pelas evidecircncias jaacute citadas de que tradiccedilotildees pitagoacutericas e a estas relacionadas passaram diretamente do Sul da Itaacutelia e da Siciacutelia para o Egito heleniacutestico (Kingsley 1995 339)119

Isto eacute sem passar por Platatildeo e Aristoacuteteles120

De outro lado como bem viu Gemelli operando

Um questionamento natildeo somente dos criteacuterios interpretativos comun-mente utilizados para enfrentar estes textos do enorme peso atribuiacutedo agrave forccedila tranquilizadora da ldquoracionalidaderdquo da proacutepria concepccedilatildeo de fi-losofia como exerciacutecio intelectual mas tambeacutem e sobretudo do eacutethos polyacutepeiron que guia nossa vida (Gemelli 2006 670-671)121

E portanto em sintonia com uma compreensatildeo da filosofia antiga que procura-

ria fundamentalmente alcanccedilar certo tipo de biacuteos isto eacute pensada antes de tudo como

exerciacutecio a serviccedilo de uma vida melhor Kingsley recoloca natildeo somente a filosofia pita-

goacuterica mas tambeacutem a histoacuteria da criacutetica a esta nos trilhos de uma sabedoria que articu-

lando misteacuterios e magia cura e dieteacutetica contribui de fato para uma vida melhor122 Natildeo

por acaso de forma francamente pouco ritual o mesmo Kingsley apresenta assim o

objetivo de sua monografia sobre Parmecircnides e os lugares obscuros da sabedoria ldquoE o

que eacute aquilo que desejamos Eacute disso que esta histoacuteria tratardquo (1999 4)123 E logo em

seguida para introduzir de forma existencial sua releitura miacutestica dos dois caminhos de

Parmecircnides ldquose tiver sorte em algum momento de sua vida vocecirc chegaraacute a um ponto

completamente mortordquo (1999 5)124 Um estilo de escrita esta de Kingsley que corres-

119 OrigldquoThe later Pythagoreans were simply remaining true to the inicial impetus of Pythagoreanism [hellip] Historically of course the significance of the accord between early and later Pythagoreanism is further underlined by the evidence already considered of Pythagorean and related traditions passing directly from southern Italy and Sicily into Hellenistic Egyptrdquo 120 Para mais ampla resenha dessa questatildeo cf Cornelli (2002 2003a) 121 Orig ldquouna messa in discussione non solo dei criteri interpretativi comunemente adottati per affrontare questi testi dellrsquoenorme peso attribuito alla forza tranquillizzante della lsquorazionalitagraversquo della concezione stessa di filosofia come esercizio intellettuale ma anche e soprattuto dellrsquoeacutethos polyacutepeiron che guida la nostra vitardquo 122 Cf nesta mesma linha a siacutentese que faz Hadot (1999) ainda que manualiacutestica da filosofia pensada em suas origens como fundamentalmente um estilo de vida 123 A referecircncia dos lugares obscuros da sabedoria eacute ao titulo da obra de Kingsley (1999) In the dark places of wisdom Orig ldquoAnd what is it that we long for Thatacutes what this story is aboutrdquo 124 Orig ldquoIf yoursquore lucky at some point in your life yoursquoll come to a complete dead endrdquo

69

ponde a um estilo de historiografia que sai decididamente das regras taacutecitas da aceitabi-

lidade acadecircmica e coloca-se em lugar alternativo e marginal que o proacuteprio autor pare-

ce cavar para si mesmo com uma satisfaccedilatildeo que natildeo faz questatildeo de esconder125

Obviamente a proposta de Kingsley encontra diversas resistecircncias e dificulda-

des Algumas internas ao proacuteprio sistema argumentativo do autor como a de dar conta

de maneira adequada da articulaccedilatildeo de testemunhos tatildeo tardios e tatildeo diferenciados en-

tre si para elaborar uma visatildeo da filosofia preacute-socraacutetica e do pitagorismo de maneira

especial de certa forma coerente ao menos do ponto de vista historiograacutefico Eacute preciso

concordar com Morgan (1997 1130) que de vez em quando ldquoele natildeo junta as peccedilasrdquo

(he does not tie the pieces together) e natildeo fica clara qual seria com precisatildeo a configu-

raccedilatildeo histoacuterica do protopitagorismo tanto do ponto de vista social quanto doutrinaacuterio

para aleacutem de vaga referecircncia agrave magia aos misteacuterios e agrave cura Outras resistecircncias satildeo

levantadas por comentadores que natildeo compartilham da confianccedila no novo caminho me-

todoloacutegico indicado por Kingsley126 Provavelmente os proacuteximos anos iratildeo mostrar se o

caminho por ele revelado teraacute mais seguidores ou menos127

19 Conclusatildeo

Entre circularidades hermenecircuticas e pacircnicos historiograacuteficos a breve histoacuteria da

criacutetica moderna sobre o pitagorismo agora esboccedilada resultou em uma narrativa em que

cada fato e cada testemunho foram colocados em discussatildeo gerando controveacutersias e

reciacuteprocas refutaccedilotildees A duacutevida jaacute zelleriana de que no caso do pitagorismo estariacutea-

mos diante de um intrincado tecido de tradiccedilotildees escassamente relevantes para uma seacuteria

histoacuteria da filosofia acompanha sub-repticiamente grande parte das tentativas de inter-

pretaccedilatildeo do pitagorismo Desde o historicismo evolucionista de Zeller que influencia

diretamente a coleccedilatildeo de Diels passando pela abordagem aprioriacutestica de Burnet que

125 Em recente troca de correspondecircncias Kingsley anunciou estar concluindo uma monografia sobre Pitaacutegoras que ldquopresents entirely new evidence and documentation from sources which have been com-pletely neglected its implications are to say the least dramatic and revolutionaryrdquo (8 de abril de 2010 arquivo privado)rdquo 126 Para todos cf a seca resenha de OrsquoBrian (1998) 127 Tanto na mais recente monografia dedicada a Pitaacutegoras (Riedweg 2002) como no capiacutetulo sobre Pitaacute-goras na ediccedilatildeo dos Vorsokratiker pela Tusculum (Gemelli 2007b) Kinsgley comeccedila a deixar sua marca hermenecircutica Natildeo eacute certamente um caso o fato de que ambos os autores sejam disciacutepulos de Burkert

70

identifica o arcaico com o elemento religioso do pitagorismo e o mais recente com a-

quele cientiacutefico a ponte que pretende separar os dois pitagorismos tornou-se o problema

central da histoacuteria da criacutetica do espinhoso problema da complexidade multifacetada do

pitagorismo

As primeiras reaccedilotildees ao ceticismo dos comentadores natildeo demoraram a aparecer

Estudos de Rohde e Delatte levantaram os primeiros questionamentos relativos agrave pre-

tensa verdade absoluta da equaccedilatildeo entre fontes tardias e sua confiabilidade As sucessi-

vas intervenccedilotildees hermenecircuticas a partir de Cornford e Guthrie desenharam o caminho

da composiccedilatildeo da diversidade das tradiccedilotildees referidas ao pitagorimo Criticando a falaacutecia

modernista Cornford inverte a loacutegica presentista indicando no lado miacutestico do pitago-

rismo sua heranccedila mais importante sendo este em natildeo aberta inconsistecircncia com a filo-

sofia Guthrie de sua parte propondo um meacutetodo aprioriacutestico afirma a coerecircncia inter-

na do pitagorismo preacute-platocircnico A influecircncia da escrita das grandes Histoacuterias da Filoso-

fia do seacuteculo XX contribuiu certamente para estabelecer essa busca unitarista Ao mes-

mo tempo todavia surgiam obras dedicadas ao estudo de algumas aacutereas particulares e

alguns problemas especiacuteficos da questatildeo das fontes In primis a questatildeo do envolvimen-

to poliacutetico das comunidades pitagoacutericas Uma questatildeo agrave qual diversos comentadores

dedicaram-se de maneira especial na tradiccedilatildeo italiana destes estudos desde a eacutepoca

romana por meio do Quattrocento renascentista ateacute a um renovado interesse pela ques-

tatildeo em historiadores contemporacircneos

Em contrapartida uma seacuterie de comentadores dedica-se ao estudo das fontes in-

diretas tanto preacute-socraacuteticas quanto platocircnicas do pitagorismo antigo Ainda que a ima-

gem de um diaacutelogo preacute-socraacutetico entre o pitagorismo e outras escolas apesar de tenta-

dora parece carecer de bases textuais soacutelidas a importacircncia da tese de Tannery sobre as

relaccedilotildees teoreacuteticas entre eleatismo e pitagorismo inaugura uma aacuterea de pesquisa que

comeccedila a colocar em questatildeo a presunccedilatildeo do testemunho uacutenico de Aristoacuteteles trazendo

para a criacutetica outras fontes O valor a ser dado tanto aos testemunhos de Platatildeo quanto

aos de Aristoacuteteles estaacute longe de ser um consenso Posiccedilotildees mais ingecircnuas do ponto de

vista historiograacutefico como as de Burnet e Tayor alternaram-se a posiccedilotildees ceacuteticas como

as de Cherniss e Frank Enquanto o trabalho de Burkert pareceu significar uma verda-

deira terceira-via da criacutetica entre o ceticismo zelleriano e uma excessiva confianccedila nas

fontes a gangorra hermenecircutica em que se encontra parece pender mais para uma com-

preensatildeo do pitagorismo originaacuterio como um movimento religioso

71

Os estudos desse lado religioso do pitagorismo a partir de Detienne e Cumont

marcam fortemente a histoacuteria da criacutetica Um locus privilegiado para esses eacute certamente

aquele das relaccedilotildees com o orfismo um revival de estudos sobre o tema seguiu-se agrave am-

pliaccedilatildeo de seu corpo documental graccedilas agraves recentes descobertas arqueoloacutegicas

Enfim a radical inversatildeo hermenecircutica representada pela obra de Kingsley en-

cerrou o panorama da histoacuteria da criacutetica moderna demostrando ser o ponto de fuga de

trecircs das mais significativas contribuiccedilotildees hermenecircuticas do seacuteculo XX isto eacute do ceti-

cismo em relaccedilatildeo ao valor a ser dado ao testemunho aristoteacutelico da inserccedilatildeo da filosofia

em seu nascer no interior das tradiccedilotildees religiosas de seu tempo e da influecircncia dos es-

tudos orientalistas sobre a histoacuteria da filosofia antiga Kingsley oferece soluccedilotildees relati-

vamente originais e ousadas agraves questotildees sensiacuteveis de criacutetica das fontes Destaca-se espe-

cialmente a recolocaccedilatildeo no centro do interesse da questatildeo do biacuteos e nesse sentido a

proposta de uma continuidade maior que aquela geralmente admitida entre protopitago-

rismo e neopitagorismo e portanto na proacutepria histoacuteria da tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuteri-

ca

O breve panorama aqui resumido por meio de seus motivos e autores principais

resulta em uma imagem polieacutedrica e bastante contraditoacuteria do pitagorismo Emerge

assim a questatildeo central para a compreensatildeo do pitagorismo aquela de consideraacute-lo

como categoria historiograacutefica superando metodologicamente a pretensatildeo de alcanccedilar

uma uacutenica compreensatildeo No lugar disso conscientemente seraacute preciso percorrer os

caminhos das diversas interpretaccedilotildees e dos diversos estratos da tradiccedilatildeo em busca de

uma imagem suficientemente plural ao ponto de permitir compreender o pitagorismo na

diversidade em que ainda se apresenta agrave interpretaccedilatildeo atual

Eacute o que se ensaiaraacute nos capiacutetulos a seguir

72

CAPIacuteTULO SEGUNDO

O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRAacuteFICA

21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica

No iniacutecio do percurso da histoacuteria da criacutetica sobre o pitagorismo desenhado no

capiacutetulo anterior destacou-se que Zeller jaacute enfrentava o problema da categorizaccedilatildeo his-

toriograacutefica do pitagorismo ndash por assim dizer ndash de peito ao se perguntar se no emara-

nhado de fontes e tradiccedilotildees haveria algo no pitagorismo que pudesse ser considerado

como um sistema propriamente filosoacutefico e cientiacutefico (Zeller e Mondolfo 1938 597)

A suspeita zelleriana compartilhada conforme visto por muitos comentadores

que a ele se seguiram introduz bem aquela que foi prenunciada na Introduccedilatildeo como a

problemaacutetica central desta tese isto eacute de como deveraacute ser tratada a diversidade de dou-

trinas e experiecircncias que a tradiccedilatildeo reuniu debaixo do guarda-chuva histoacuterico-teoreacutetico

do pitagorismo Em termos mais precisos isso significa perguntar-se a que correspon-

deria exatamente essa categoria historiograacutefica que a tradiccedilatildeo convencionou chamar de

pitagorismo

A descoberta do alcance histoacuterico e teoreacutetico dessa categoria passa por duas di-

mensotildees-chave do problema uma dimensatildeo que se chamaraacute diacrocircnica outra que seraacute

identificada como sincrocircnica Ainda que complementares as duas dimensotildees desenham

cada uma um campo de investigaccedilatildeo distinto

Descrever a categoria historiograacutefica pitagorismo em sua dimensatildeo diacrocircnica

implica seguir seu processo de construccedilatildeo atraveacutes da histoacuteria da tradiccedilatildeo desde Platatildeo e

Aristoacuteteles ateacute a literatura neoplatocircnica em busca de formas e conteuacutedos que possam

indicar continuidade e ateacute mesmo possiacutevel homogeneidade

Seu pressuposto eacute que obviamente natildeo eacute possiacutevel alcanccedilar em uacuteltima anaacutelise um Pitaacute-

goras histoacuterico ou um pitagorismo das origens pois essa tradiccedilatildeo eacute virtualmente ine-

xistente Tratar-se-aacute portanto nas palavras de Burkert de interpretar interpretaccedilotildees

A primeira coisa a ser feita uma vez que o fenocircmeno original natildeo po-de ser alcanccedilado diretamente eacute interpretar interpretaccedilotildees identificar e

73

destacar as diferentes camadas da tradiccedilatildeo e procurar as causas que causaram uma transformaccedilatildeo na imagem de Pitaacutegoras (Burkert 1972 11)128

O esforccedilo da categorizaccedilatildeo diacrocircnica do pitagorismo seraacute aquele de destrinchar

os diferentes estratos da tradiccedilatildeo Tarefa esta a bem da verdade hoje francamente mais

faacutecil do que era no tempo de Zeller especialmente graccedilas aos avanccedilos dos estudos sobre

a tradiccedilatildeo acadecircmica e peripateacutetica129

Natildeo seraacute objetivo deste esforccedilo de categorizaccedilatildeo do pitagorismo tentar reduzir

sua caracteriacutestica baacutesica de um movimento filosoacutefico extremamente controvertido

(Huffman 2008a 225) Ao contraacuterio a proposta eacute mais propriamente aquela de compre-

ender como na imbricaccedilatildeo das dimensotildees diacrocircnicas e sincrocircnicas a categoria pitago-

rismo tem sobrevivido agrave previsiacutevel diluiccedilatildeo de um movimento natildeo somente radicalmen-

te multifacetado e extensivamente diverso em seus autores e temaacuteticas mas que aleacutem

disso atravessa diacronicamente mais de mil anos de histoacuteria do pensamento ocidental

Assim o desafio da pesquisa e sua originalidade no interior das normais problemaacuteticas

da histoacuteria da filosofia preacute-socraacutetica residem no fato de o pitagorismo natildeo ter propria-

mente nunca morrido o que torna ainda mais complicado o trabalho de articulaccedilatildeo das

notiacutecias advindas da tradiccedilatildeo Para o arqueoacutelogo do pensamento filosoacutefico antigo como

uma cidade que ficou continuamente habitada o pitagorismo apresenta

De maneira muito mais complicada do que um lugar destruiacutedo por uma uacutenica cataacutestrofe e em seguida abandonado a dificuldade especi-al no estudo do pitagorismo vem do fato de que ele nunca morreu co-mo por exemplo o sistema de Anaxaacutegoras ou ateacute mesmo aquele de Parmecircnides (Burkert 1972 10)130

128 Orig ldquoThe first task must be since the original phenomenon cannot be grasped directly to interpret interpretations to single out and identify the different strata of the tradition and to look for the causes that brought transformation to the picture of Pythagorasrdquo 129 A partir das demonstraccedilotildees de Jaeger (1948) da existecircncia de projeccedilotildees sobre o pitagorismo tanto acadecircmicas como peripateacuteticas de seus proacuteprios ideais assim como dos estudos de Wehrli (1944-1960) sobre Dicearco (1944) Aristoxeno (1945) Clearco (1948) Heraacuteclides (1953) e Eudemo (1955) Natildeo devem ser tambeacutem esquecidas as fundamentais contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre plato-nismo e pitagorismo que advecircm dos trabalhos da assim chamada escola de Tuumlbingen-Milatildeo sobre a dou-trina dos princiacutepios em Platatildeo e na Academia Antiga cf para isso Kraumlmer (1959) Gaiser (1963) Szle-zaacutek (1985) Reale (1991) 130 Orig ldquofar more complicated problems than a site destroyed by a single catastrophe and then aban-doned the special difficulty in the study of Pythagoreanism comes from the fact that it was never so dead as for example the system of Anaxagoras or even that of Parmenidesrdquo

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Para que o caminho atraveacutes das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo seja de fato per-

corriacutevel apresenta-se a necessidade de desenhar um percurso metodoloacutegico original ndash

uma reacutegua de Lesbos de aristoteacutelica memoacuteria ndash que se adeacuteque agrave natureza do objeto a

ser pesquisado

O que a natureza da situaccedilatildeo requer eacute um tratamento do problema tan-to multifacetado quanto for possiacutevel Pois muitas das conclusotildees con-traditoacuterias resultaram da investigaccedilatildeo e do rastreamento do curso de caminhos uacutenicos de desenvolvimento sem alguma ideia da forma em que estes mesmos pudessem convergir com outras linhas igualmente importantes (Burkert 1972 12)131

O comentador encontra-se na frente de uma bifurcaccedilatildeo que o obriga a uma op-

ccedilatildeo metodoloacutegica isto eacute ou o pitagorismo seraacute compreendido como uma multifacetada

e complexa categoria historiograacutefica a ser desenhada acompanhando tanto o longo

percurso da histoacuteria da tradiccedilatildeo como a relaccedilatildeo desta com o mundo intelectual da filoso-

fia que nasce entre os seacuteculos VI e V aEC ou natildeo seraacute compreendido tout court

Uma consequecircncia disso eacute que a abordagem deveraacute ser necessariamente inter-

disciplinar a normal (ainda que discutiacutevel) divisatildeo do trabalho nos estudos claacutessicos

entre histoacutericos arqueoacutelogos filoacutelogos e filoacutesofos natildeo parece funcionar muito bem no

caso do pitagorismo

Pode acontecer que o historiador da ciecircncia tenha feito sua recons-truccedilatildeo sobre fundamentos filologicamente inadequados que o filoacute-logo assuma o resultado aparentemente exato do historiador da ciecircn-cia que o filoacutesofo partindo deste criteacuterio rejeite evidecircncias contra-ditoacuterias ndash e assim por diante (Burkert 1972 12)132

Ver-se-aacute em muitos casos a seguir a importacircncia de uma articulaccedilatildeo das in-

formaccedilotildees arqueoloacutegicas e da abordagem antropoloacutegica de um lado com a anaacutelise filo-

loacutegica do outro seraacute este certamente o caso do problema das relaccedilotildees entre orfismo e

pitagorismo na Magna Greacutecia dos seacuteculos VI e V aEC ou da necessaacuteria articulaccedilatildeo da

131 Orig ldquoWhat the nature of the situation demands is a many-sided treatment of the problem as is possi-ble For many of the contradictory conclusions have come from investigating and tracing the course of single paths of development with no thought of the way in which these may converge with other equally important linesrdquo 132 Orig ldquoIt can happen that the historian of science builds his reconstruction on a philologically inadequate foundation the philologist takes over the seemingly exact result of the historian of science the philosopher on the basis of this criterion rejects contradictory evidence-and so onrdquo

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histoacuteria da filosofia com a histoacuteria da ciecircncia antiga que eacute especialmente importante

para a resoluccedilatildeo da pretensa crise dos loacutegoi incomensuraacuteveis ou irracionais

Uma polymathiacutea metodoloacutegica (pace Heraacuteclito) seraacute portanto o caminho ade-

quado para que a categoria historiograacutefica do pitagorismo possa emergir das neacutevoas

tanto de uma complexa histoacuteria da tradiccedilatildeo como da identificaccedilatildeo do que seria filosofia

em suas origens133

Esta uacuteltima identificaccedilatildeo introduz a segunda dimensatildeo do pitagorismo a dimen-

satildeo sincrocircnica Compreender sincronicamente o pitagorismo significaraacute fazecirc-lo caber

no interior das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga e a

filosofia preacute-socraacutetica de maneira especial Categorias como preacute-socraacutetico escola ciecircn-

cia religiatildeo poliacutetica ou ateacute mesmo filosofia (quando distinta de outras atividades inte-

lectuais e literaacuterias) satildeo comumente utilizadas para compreender o lugar do pitagorismo

em suas origens Nenhuma dessas categorias normais seraacute obviamente aplicaacutevel tout

court ao pitagorismo Ao contraacuterio ainda que nos limites do objeto aqui desenvolvido a

presente investigaccedilatildeo pretende apontar para a necessidade de ajustes na mesma aborda-

gem metodoloacutegica agrave filosofia preacute-socraacutetica normalmente em uso com consequecircncias

facilmente aplicaacuteveis portanto para aleacutem do estreito acircmbito dos estudos sobre o pitago-

rismo antigo Na linha do que se propotildee por exemplo Gemelli que na introduccedilatildeo agrave

nova ediccedilatildeo dos Vorsokratiker (2007b) afirma

A partir do momento em que se colocam os problemas fora do riacutegido esquema historicista do necessaacuterio progresso do pensamento filosoacutefico e se observam os textos na perspectiva de sua proacutepria tipologia e do contexto pragmaacutetico em que foram concebidos estes adquirem valo-res e significados bem mais complexos do que aqueles da simples ldquofi-losofia naturalrdquo (Gemelli 2007b 440)134

No caso do pitagorismo seraacute necessaacuterio superar as riacutegidas dicotomias de uma

historiografia demasiadamente acostumada a distinguir por exemplo entre ciecircncia e

magia escrita e oralidade jocircnicos e itaacutelicos Pois nenhuma destas sozinha pareceraacute dar

133 Heraacuteclito parece criticar a πολυmicroαθίη de Pitaacutegoras em seus fragmentos 40 e 129 (22 B 40 129 DK) 134 Orig ldquoSobald man die Probleme also ausserhalb des starren historistishen Entwurfs Von der unab-dingbaren Entwicklung des philosophischen Denkens angeht um die Text unter dem Blickwinkel ihrer Typologie sowie des pragmatischen Kontextes in dem sie abgefasst worden sind betrachtet gewinnen sie Bedeutungen und Sinngehalte die weit komplexer sind als die einfache ldquoNaturphilolophierdquo

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conta da complexidade com que se apresentam as linhas fundamentais da organizaccedilatildeo

social e da doutrina pitagoacutericas

Ambas as dimensotildees tanto a sincrocircnica como a diacrocircnica apareceratildeo forte-

mente imbricadas ao longo da tese operacionalizando a definiccedilatildeo de uma categoria his-

toriograacutefica aquela do pitagorismo que compreenda a amplidatildeo e a pluralidade da tra-

diccedilatildeo em uma imagem que resulte quanto mais possiacutevel coerente

Antes mesmo de adentrar no capiacutetulo terceiro e no quarto nas duas questotildees

fundamentais que contribuiacuteram mais decididamente para a definiccedilatildeo da categoria histo-

riograacutefica do pitagorismo seraacute importante verificarmos aquele que pode ser considerado

o ponto de partida a questatildeo vestibular para a historiografia do pitagorismo a pergunta

sobre quem poderia chamar a si mesmo de pitagoacuterico

22 Identidade pitagoacuterica

A definiccedilatildeo da categoria pitagorismo natildeo pode senatildeo comeccedilar de uma pergunta

que somente na primeira impressatildeo pode parecer simples mas que em verdade se de-

monstraraacute de difiacutecil soluccedilatildeo quem pode ser definido como pitagoacuterico no mundo antigo

Muitos autores a partir de Aristoacuteteles tentaram responder a essa pergunta pro-

curando um criteacuterio temaacutetico que permitisse identificar certa unidade doutrinaacuteria Eacute cer-

tamente este o caso haacute pouco citado do privileacutegio concedido por Zeller exatamente agrave

lectio aristoteacutelica sobre os pitagoacutericos privileacutegio este que se tornou ao longo da histoacuteria

da criacutetica moderna um consenso quase indiscutiacutevel pitagoacuterico eacute algueacutem que fala de

nuacutemeros

Este criteacuterio identitaacuterio resistiu majoritariamente ateacute o divisor de aacuteguas represen-

tado pelo artigo de Zhmud (1989) que revela quanto de circular haacute na utilizaccedilatildeo do cri-

teacuterio dos nuacutemeros para identificar um pitagoacuterico

Na grande maioria dos trabalhos sobre o pitagorismo este problema natildeo eacute sequer abertamente considerado e um criteacuterio doutrinaacuterio eacute im-plicitamente usado como o principal meacutetodo de trabalho Um pitagoacuteri-co eacute algueacutem que fala sobre o nuacutemero Estamos aqui na frente de uma

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oacutebvia petitio principii pois aquilo que necessita ele proacuteprio de uma prova eacute tomado como uma premissa inicial (Zhmud 1989 272)135

Zhmud volta com ainda mais forccedila nessa recusa de um criteacuterio doutrinaacuterio em

sua monografia de 1997 ao ponto de Centrone (1999) observar que a tese deste autor

coloca um ponto final na questatildeo natildeo sendo mais possiacutevel identificar um pitagoacuterico

pela adesatildeo a uma doutrina

Uma das teses centrais desta monografia (Zhmud 1997) isto eacute a ideia pela qual o criteacuterio de identificaccedilatildeo de um pitagoacuterico natildeo seria a pro-fissatildeo de uma doutrina filosoacutefica encontra aqui uma base soacutelida e bem argumentada e natildeo penso possa ser colocada novamente em discussatildeo (Centrone 1999 424)136

Por outro lado a histoacuteria da filosofia acostumou-se a utilizar um criteacuterio geograacute-

fico ao menos desde Dioacutegenes Laeacutercio (D L Vitae I 13-15) para identificar entre ou-

tras escolas filosoacuteficas aquela itaacutelica ou pitagoacuterica Depois do fundador o restante dos

pitagoacutericos eacute elencado natildeo tanto seguindo um estrito criteacuterio doutrinaacuterio (como eacute o caso

de Empeacutedocles ou Eudoxo ou mesmo de Demoacutecrito cf D L Vitae IX) mas por uma

relaccedilatildeo pedagoacutegica direta algum tipo de dependecircncia intelectual de Pitaacutegoras ou outro

celebre pitagoacuterico No caso especiacutefico e uacutenico do pitagorismo pela primeira vez um

grupo de filoacutesofos eacute identificado natildeo a partir de sua coerecircncia doutrinaacuteria (physikoiacute) ou

proximidade geograacutefica (eleatas) mas sim a partir do nome de seu fundador pythago-

reiacuteoi137

Se o que faz algueacutem pitagoacuterico natildeo eacute a adesatildeo a uma doutrina secirc-lo-aacute entatildeo a

adesatildeo a outra grande dimensatildeo que a tradiccedilatildeo aponta como essencial para a identifica-

135 Orig ldquoin the overwhelming majority of works on Pythagoreanism this problem is not raised openly and a doctrinal criterion is implicitly used as the main working method A Pythagorean is one who speaks about Number Here we are faced with an obvious petitio principii that which itself is in need of being proved is taken as a starting premiserdquo 136 Orig ldquoUna delle tesi centrali di questa monografia (Zhmud 1997) e cioegrave lidea che il criterio di individuazione di un pitagorico non consista nella professione di una dottrina filosofica trova qui un fondamento solido e ben argomentato e non penso possa piugrave essere rimessa in discussionerdquo Cf tambeacutem Centrone (2000 145) Nesse ensaio Centrone retoma os mesmos argumentos para tratar do que significa ser pitagoacuterico em eacutepoca imperial 137 Ainda que em Platatildeo apareccedilam tanto os Ἀναξαγόρειοι (Craacutetilo 409b) como os Ἡρακλειτείoi (Teeteto 179e) essas designaccedilotildees natildeo tiveram evidentemente o mesmo sucesso histoacuterico daquela dos pitagoacutericos Para uma ampla resenha do uso do termo nas fontes antigas cf Minar (1942 21-22)

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ccedilatildeo de um pitagoacuterico isto eacute a do biacuteos de determinado estilo de vida expresso por ako-

uacutesmata e syacutembola isto eacute preceitos ouvidos e sinais de reconhecimento

Parece ser este o caso do longo cataacutelogo de pitagoacutericos que Jacircmblico insere no

final de sua Vida (Iambl VP 267) e que com toda probabilidade eacute de origem aristoxecirc-

nica138 Trata-se de uma longa sequecircncia de 218 nomes ordenados por um criteacuterio geo-

graacutefico Destes a maioria 34 satildeo tarentinos como o proacuteprio Aristoxeno

Entre todos os pitagoacutericos muitos ficaram anocircnimos e desconhecidos de outros ao contraacuterio conhecemos os nomes De Crotona Ipostratos Dimantes Eacutegon Eacutemon Cleoacutestenes Aacutegela Episilo Ficiada Eacutecfanto Timeu Butatildeo Eacuterato Itaneu Rodipo Briantes Evandro Milias An-timedontes Agea Leofrontes Aacutegilo Onata Ipoacutestenes Cleofontes Alcmeon Daacutemocles Milon Mecircnon De Metaponto Brontino Parmisco [] De Eleia Parmecircnides De Ta-rento Filolau Eurito Arquitas Teodoro [] As mulheres pitagoacutericas mais conhecidas satildeo Tiacutemica mulher de Milias Filtides filha de Teo-frio de Crotona e irmatilde de Bindaco Ocelo e Ecelo irmatildeos de Ocelo e Ocilio de Lucacircnia Quiloacutenides filha de Quilon de Esparta Cratesicleia de Lacocircnia esposa de Cleaacutenoros de Esparta Teano [] (Iambl VP 267)139

Eacute significativo notar que em seu formato de classificaccedilatildeo com base geograacutefica

o cataacutelogo pode ser aproximado ao modelo da tradiccedilatildeo epigraacutefica antiga grega ao con-

traacuterio o estilo de classificaccedilatildeo mais em uso na literatura eacute construiacutedo com base nas rela-

ccedilotildees familiares ou de discipulado resultando na imagem de uma aacutervore genealoacutegica

Um exemplo disso eacute Dioacutegenes Laeacutercio e mesmo no capiacutetulo imediatamente anterior da

138 Com essa identificaccedilatildeo concorda a maioria dos comentadores a partir de Rohde (1872) Como ele tambeacutem Delatte (1922 182) Zhmud (1988 273) Centrone (1996 11) Giangiulio (Pitagora 2000 II 545) e Brisson e Segonds (1996) Burkert (1972105 n40) afirma ldquothe only possible candidate for authorship seems to be Aristoxenus himself working in the documentary method of the earliest Peripatosrdquo Jaacute Huff-man (2008 c) levantou recentemente algumas duacutevidas em relaccedilatildeo a esta atribuiccedilatildeo que o levam a uma conclusatildeo cautelosa ldquois does seem most plausible to assume that Aristoxenus is responsible for the core odf catalogue but it is important to recognize both that the arguments for Aristoxenusacutes authorship are not ironclad and that even if the core is assigned to Aristoxenus this does not mean that the catalogue has not undergone modificationsrdquo (Huffman 2008c 297) 139 Orig ldquo ῶν δὲ συmicroπάντων Πυθαγορείων τοὺς microὲν ἀγνῶτάς τε καὶ ἀνωνύmicroους τινὰς πολλοὺς εἰκὸς γεγ-ονέναι τῶν δὲ γνωριζοmicroένων ἐστὶ τάδε τὰ ὀνόmicroαταmiddot Κρ ο τ ω ν ι ᾶ τ α ι Ἱππόστρατος ∆ύmicroας Αἴγων Αἵmicroων Σύλλος Κλεοσθένης Ἀγέλας Ἐπίσυλος Φυκιάδας Ἔκφαντος Τίmicroαιος Βοῦθος Ἔρατος Ἰταν-αῖος Ῥόδιππος Βρύας Εὔανδρος Μυλλίας Ἀντιmicroέδων Ἀγέας ΛεόφρωνἈγύλος Ὀνάτας Ἱπποσθένης Κλεόφρων Ἀλκmicroαίων ∆αmicroοκλῆς Μίλων Μένων Με τ α π ο ν τ ῖ ν ο ι Βροντῖνος Παρmicroίσκος [] Ἐλ -ε ά τ η ς Παρmicroενίδης Τ α ρ α ν τ ῖ ν ο ι Φιλόλαος Εὔρυτος Ἀρχύτας Θεόδωρος[hellip] Πυθαγορίδες δ-ὲ γ υ ν α ῖ κ ε ς αἱ ἐπιφανέσταταιmiddot Τιmicroύχαγυνὴ [ἡ] Μυλλία τοῦ Κροτωνιάτου Φιλτὺς θυγάτηρ Θεόφριος τοῦ Κροτωνιάτου Βυνδάκου ἀδελφή Ὀκκελὼ καὶ Ἐκκελὼ ltἀδελφαὶ Ὀκκέλω καὶ Ὀκκίλωgt τῶν Λευκα-νῶνΧειλωνὶς θυγάτηρ Χείλωνος τοῦ Λακεδαιmicroονίου Κρατησίκλεια Λάκαινα γυνὴ Κλεάνορος τοῦ Λακ-εδαιmicroονίου Θεανὼ []rdquo (Iambl VP 267)

79

proacutepria Vida de Jacircmblico (Iambl VP 266) Essa particularidade com a inclusatildeo de 17

mulheres e o desconhecimento de qualquer nome sucessivo ao seacuteculo IV aEC e de

grande parte dos apoacutecrifos da literatura pseudopitagoacuterica heleniacutestica (Thesleff 1965)

tornam o cataacutelogo um achado com toda probabilidade muito antigo e extremamente

valioso para o objetivo aqui declarado de procurar os criteacuterios de identificaccedilatildeo dos pita-

goacutericos De fato natildeo haacute aparentemente qualquer aproximaccedilatildeo possiacutevel entre pitagoacutericos

como Filolau de um lado e Apolocircnio do outro tanto do ponto de vista teoreacutetico-

doutrinaacuterio como das relaccedilotildees histoacutericas entre eles ou de cada um com Pitaacutegoras O

uacutenico criteacuterio plausiacutevel de sua identificaccedilatildeo como pitagoacutericos torna-se o de uma adesatildeo

de cada um antes que a alguma doutrina especiacutefica a um estilo de vida a um biacuteos que

ambos reconhecem como pitagoacuterico Se eacute possiacutevel concordar com Huffman (1993 11)

quando fala de um estilo de vida que todavia ldquoindubitavelmente devia incluir alguns

princiacutepios morais como a exortaccedilatildeo a viver uma vida simples e a praticar a temperacircn-

ciardquo esses princiacutepios morais satildeo tatildeo geneacutericos ao ponto de novamente natildeo poderem

constituir propriamente um sinal de distinccedilatildeo do pitagoacuterico com relaccedilatildeo ao sophoacutes anti-

go em geral O proacuteprio Hesiacuteodo poderia com toda probabilidade compartilhaacute-los140

Eacute significativo o insucesso da recente tentativa de formulaccedilatildeo por parte de

Huffman de criteacuterios que permitiriam identificar no cataacutelogo de Jacircmblico ndash assim co-

mo para aleacutem dele ndash determinado filoacutesofo como pitagoacuterico Huffman (2008b 299) pos-

tula trecircs destes a) a existecircncia de um testemunho indiscutiacutevel e antigo isto eacute anterior ao

seacuteculo IV aEC de que tal filoacutesofo foi considerado pitagoacuterico b) evidecircncia indiscutiacutevel

de que tal filoacutesofo tenha adotado o esquema metafiacutesico baacutesico dos pitagoacutericos que

Huffman faz coincidir com aquele descrito por Aristoacuteteles e encontrado nos fragmentos

de Filolau e que a seu ver corresponderia fundamentalmente com a doutrina ldquotudo po-

de ser conhecido atraveacutes do nuacutemerordquo141 c) evidecircncia de que a personagem estaacute incorpo-

rada na tradiccedilatildeo biograacutefica pitagoacuterica tendo sido disciacutepulo ou interlocutor de algum

pitagoacuterico

Ainda que o esforccedilo de Huffman seja de fato original e louvaacutevel seu resultado

natildeo permite chegar agravequela ldquovigorosardquo (vigorous) tradiccedilatildeo pitagoacuterica (2008c 301) que o

140 Orig ldquoindoubtely also included certain moral principles such as the exortation to live a simple life and to practice temperancerdquo 141 A mesma ideia estava jaacute em Huffman (1993 74) A questatildeo receberaacute a atenccedilatildeo que certamente merece no capiacutetulo quarto

80

autor pretendia Pois a resposta aos trecircs criteacuterios dependeraacute ainda e fortemente de uma

preacute-compreensatildeo ndash esta sim discutiacutevel ndash do que seja um testemunho indiscutivelmente

antigo (a) ou de qual seja o pretenso esquema metafiacutesico pitagoacuterico (b) O proacuteprio

Huffman ainda que natildeo pelos mesmos motivos agora sugeridos acaba reconhecendo

que uma longa lista de pitagoacutericos ainda resultaa da aplicaccedilatildeo destes criteacuterios ldquorigoro-

sosrdquo Contudo essa natildeo passaria de um

reflexo do fato que Pitaacutegoras era famoso por ter deixado atraacutes dele um estilo de vida de forma que junto com pitagoacutericos de tendecircncia cos-moloacutegica e metafiacutesica como eacute o caso de Filolau e Arquitas existiu grande nuacutemero de outras figuras que podem ser chamadas de pitagoacuteri-cos simplesmente com base na maneira com que eles viviam suas vi-das (Huffman 2008c 301)142

Assim novamente o criteacuterio mais confiaacutevel aquele do biacuteos conforme transmiti-

do pela tradiccedilatildeo exclui qualquer possibilidade de distinccedilatildeo com base nas doutrinas Eacute

portanto o caso de concordar com Centrone quando conclui que

O pitagorismo natildeo surgiu como uma escola filosoacutefica e natildeo pode ser uma doutrina filosoacutefica o que permite identificar um pitagoacuterico Um criteacuterio mais confiaacutevel consistiria em considerar pitagoacutericos aqueles que a tradiccedilatildeo antiga qualifica como disciacutepulos ou sucessores de Pitaacute-goras [] isso exclui a delimitaccedilatildeo do fenocircmeno pitagoacuterico a um acircm-bito especiacutefico bem preciso ou a uma filosofia monotemaacutetica (Centro-ne 1999 441)143

Dessa forma autores com interesses que vatildeo da fisiologia agrave botacircnica como eacute o

caso de Alcmeon ou Menestor podem ser considerados pitagoacutericos a todos os efeitos

Poreacutem a adesatildeo a um particular estilo de vida pressupotildee ao menos em seu mo-

mento inaugural preacute-socraacutetico a existecircncia real de uma comunidade que se estrutura a

partir do mesmo estilo de vida Mesmo depois em idade heleniacutestica quando a definiccedilatildeo

do biacuteos poderaacute ser uma escolha individual a comunidade dos iniacutecios teraacute o sentido de

142 Orig ldquoreflexion of the fact that Pythagoras was famous for leaving behind him a way of life so that in addition to Pythagoreans of a cosmological and metaphysical bent such as Philolaus and Archytas there were a number of other figures who can be called Pythagoreans merely on the basis of the way they lived their livesrdquo 143 Cf tambeacutem Zeller e Mondolfo (1938 434) Orig ldquoIl pitagorismo non egrave sorto come una scuola filosofica e non puograve essere una dottrina filosofica ciograve che permette di identificare un pitagorico Un criterio piugrave affidabile consiste nel considerare pitagorici coloro che la tradizione antica qualifica come discepoli o successori di Pitagora e aderenti allassociazione [hellip] ciograve esclude la delimitazione del fenomeno pitagorico a un ambito scientifico ben preciso o a una filosofia monotematicardquo

81

um modelo distante no tempo a ser seguido144 Contudo que tipo de comunidade seria

aquela da koinoniacutea pitagoacuterica

Platatildeo em Repuacuteblica cita duas vezes nominalmente os pitagoacutericos na primeira

referecircncia daacute a entender que a comunidade compartilhava de um saber privado (idiacuteon)

Mas entatildeo senatildeo na vida puacuteblica ao menos naquela privada se diz que Homero enquanto era vivo tenha seguido pessoalmente a educa-ccedilatildeo dos disciacutepulos que amavam sua frequentaccedilatildeo e que tenha transmi-tido agraves futuras geraccedilotildees certo caminho de vida homeacuterico da mesma maneira que Pitaacutegoras que por esse motivo foi sobremaneira amado e seus disciacutepulos ateacute hoje chamam pitagoacuterico este estilo de vida e por este parecem distinguir-se dos outros (Resp X 600b)145

O objeto desta paideacuteia pitagoacuterica natildeo seria tanto uma doutrina filosoacutefica ou cien-

tiacutefica e sim um troacutepos toucirc biacuteos um estilo de vida Em sentido contraacuterio todavia na

segunda referecircncia ao tema Platatildeo parece querer identificar o pitagorismo com uma

escola filosoacutefica e de pesquisa

Eacute provaacutevel que como os olhos satildeo conformados pela astronomia as-sim os ouvidos o sejam para o movimento harmocircnico e que estas duas ciecircncias sejam de alguma forma irmatildes como afirmam os pitagoacutericos e tambeacutem noacutes (Resp VII 530d)146

A mesma ideia parece estar expressa na paacutegina seguinte de Repuacuteblica quando

satildeo opostos de um lado aqueles que torturam as cordas e antepotildeem os ouvidos ao pen-

samento fazendo pesquisas musicoloacutegicas empiacutericas e do outro a pesquisa metoacutedica

dos pitagoacutericos (Resp VII 531a-d)147

144 Para ampla discussatildeo desta mudanccedila da concepccedilatildeo do biacuteos em eacutepoca heleniacutesitica cf Vegetti (1989 271-300) 145 Orig ldquo Ἀλλὰ δὴ εἰ microὴ δηmicroοσίᾳ ἰδίᾳ τισὶν ἡγεmicroὼν παιδείας αὐτὸς ζῶν λέγεται Ὅmicroηρος γενέσθαι οἳ ἐκεῖνον ἠγάπων ἐπὶ (b) συνουσίᾳ καὶ τοῖς ὑστέροις ὁδόν τινα παρέδοσαν βίου Ὁmicroηρικήν ὥσπερ Πυθαγ-όρας αὐτός τε διαφερόντως ἐπὶ τούτῳ ἠγαπήθη καὶ οἱ ὕστεροι ἔτι καὶ νῦν Πυθαγόρειον τρόπον ἐπονοmicroά-ζοντες τοῦ βίου διαφανεῖς πῃ δοκοῦσιν εἶναι ἐν τοῖς ἄλλοιςrdquo (Plato Resp X 600a-b) 146 Orig ldquo Κινδυνεύει ἔφην ὡς πρὸς ἀστρονοmicroίαν ὄmicromicroατα πέπηγεν ὣς πρὸς ἐναρmicroόνιον φορὰν ὦτα παγῆναι καὶ αὗται ἀλλήλων ἀδελφαί τινες αἱ ἐπιστῆmicroαι εἶναι ὡς οἵ τε Πυθαγόρειοί φασι καὶ ἡmicroεῖςrdquo (Plato Resp VII 530d) 147 Cf para a mesma aproximaccedilatildeo entre muacutesica e astronomia tambeacutem Craacutetilo (405d) Para uma resenha da recusa do empirismo e a irmandade das duas ciecircncias cf Vegetti (1999 86-88) e Meriani (2003)

82

Um fragmento de Arquitas cuja autenticidade foi defendida recentemente por

Huffman (1985 2005 112-114) apresenta a mesma ideia da irmandade entre astronomia

e muacutesica

Parece que os que se dedicaram agraves ciecircncias matemaacuteticas alcanccedilaram bons resultados e natildeo eacute estranho que eles raciocinassem apropriada-mente sobre cada coisa pois conhecendo bem a natureza do todo de-viam ver bem mesmo nas coisas particulares como estas eram Assim nos forneceram claras noccedilotildees a respeito da velocidade dos astros o amanhecer e o pocircr do sol como tambeacutem sobre a geometria a aritmeacuteti-ca e natildeo menos sobre a muacutesica Essas ciecircncias parecem de fato serem irmatildes (47 B1 DK)148

A aproximaccedilatildeo desse fragmento de Arquitas ao segundo testemunho de Platatildeo

acima sugere um caminho de soluccedilatildeo para a aparente contraditoriedade da tradiccedilatildeo pla-

tocircnica enquanto na primeira passagem Platatildeo entenderia referir-se ao protopitagoris-

mo a segunda diria respeito ao pitagorismo a ele contemporacircneo notadamente agrave figura

de Arquitas Pois natildeo somente as comunidades pitagoacutericas jaacute teriam desaparecido apoacutes

as revoltas antipitagoacutericas de meados do V seacuteculo aEC mas o proacuteprio Arquitas aparece

sempre na tradiccedilatildeo como um pensador e cientista independente e portanto natildeo utilizaacute-

vel para falar da comunidade pitagoacuterica e seu biacuteos149 O que se vecirc em accedilatildeo aqui eacute a di-

mensatildeo diacrocircnica em busca de um caminho pelos diferentes estratos das tradiccedilotildees que

contribuem para a definiccedilatildeo da categoria historiograacutefica do pitagorismo150

Em relaccedilatildeo ao testemunho aristoteacutelico para aleacutem da discutida expressatildeo oi kalo-

uacutemenoi pythagoreiacuteoi mencionada anteriormente as referecircncias aos contributos pitagoacute-

ricos agrave matemaacutetica e agrave fiacutesica (cf Met 985b23) fariam pensar em uma identificaccedilatildeo prio-

ritaacuteria do pitagorismo com uma comunidade cientiacutefica e filosoacutefica E todavia os frag-

mentos que restam das obras do corpus aristoteacutelico expressamente dedicadas ao estudo

dos pitagoacutericos (fr 191-205 Rose) parecem ao contraacuterio revelar outras abordagens

148 Orig ldquo Kαλῶς microοι δοκοῦντι τοὶ περὶ τὰ microαθήmicroατα διαγνώmicroεναι καὶ οὐθὲν ἄτοπον ὀρθῶς αὐτούς οἷά ἐντι περὶ ἑκάστων φρονέεινmiddot περὶ γὰρ τᾶς τῶν ὅλων φύσιος καλῶς διαγνόντες ἔmicroελλον καὶ περὶ τῶν κατὰ microέρος οἷά ἐντι καλῶς ὀψεῖσθαι περί τε δὴ τᾶς τῶν ἄστρων ταχυτᾶτος καὶ ἐπιτολᾶν καὶ δυσίων παρέδω-καν ἁmicroῖν σαφῆ διάγνωσιν καὶ περὶ γαmicroετρίας καὶ ἀριθmicroῶν καὶ σφαιρικᾶς καὶοὐχ ἥκιστα περὶ microωσικᾶς ταῦτα ὰρ τὰ microαθήmicroατα δοκοῦντι ἦmicroεν ἀδελφεάrdquo (47 B1 DK) 149 Aristoacuteteles de fato trata de Arquitas natildeo no interior dos assim chamados pitagoacutericos mas dedica ao filosofo-rei de Tarento uma consideraccedilatildeo a parte Cf tambeacutem abaixo (412) 150 Sobre a autenticidade do fr 1 de Arquitas levantaram duacutevidas Burkert (1972 379) e Centrone (1996 70n 21) Para a ideia da inatualidade de Arquitas para uma discussatildeo sobre a comunidade protopitagoacuterica cf Centrone (1996 70)

83

Aristoacuteteles se ocupa aqui da vida de Pitaacutegoras e dos akouacutesmata e syacutembola que orientam

a vida comunitaacuteria pitagoacuterica Ceacutelebre eacute o testemunho do fr 192 Rose

Aristoacuteteles em sua obra Sobre a filosofia pitagoacuterica daacute notiacutecia do fato de que seus seguidores custodiam entre os segredos mais riacutegidos esta distinccedilatildeo dos seres viventes dotados de razatildeo um eacute o deus o outro eacute o homem o terceiro possui a natureza de Pitaacutegoras (14 A7 DK = Iam-bl VP 31)151

Portanto mesmo o testemunho de Aristoacuteteles como eacute o caso de Platatildeo natildeo eacute

decisivo para compreender qual seria a caracteriacutestica principal da comunidade se a da

investigaccedilatildeo cientiacutefica ou aquela da vida em comum orientada por akouacutesmata e

syacutembola

Eacute provaacutevel que a pergunta feita idealmente a Platatildeo e Aristoacuteteles sobre qual se-

ria a caracteriacutestica saliente da koinoniacutea pitagoacuterica seja de fato mal colocada A aporiacutea

sugere que seja preciso portanto por um lado rever metodologicamente a proacutepria ten-

tativa de separaccedilatildeo entre as duas alternativas por outro retomar a busca pelas modali-

dades dessa comunidade de um ponto de vista textual alternativo

23 A koinoniacutea pitagoacuterica

Os modelos histoacutericos gregos de associaccedilotildees satildeo fundamentalmente de dois ti-

pos o thiacuteasos e a hetairiacutea Enquanto o primeiro estaacute mais diretamente ligado agrave praacutetica

comum de cultos agrave partilha de ritos e saberes misteacutericos a hetairiacutea estaacute mais ligada agrave

ideia de uma associaccedilatildeo de philoiacute no sentido poliacutetico de aliados e confrades que se en-

contram em um clube privado A comunidade pitagoacuterica eacute quase que unanimemente

considerada pela tradiccedilatildeo uma hetairiacutea ainda que bastante sui generis de fato procu-

rando justificar a violenta revolta contra os pitagoacutericos Jacircmblico revela o sentimento de

estranhamento da populaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave comunidade

Tomaram a frente da revolta exatamente aqueles que estavam em rela-ccedilotildees de parentesco mais proacuteximas com os pitagoacutericos E a razatildeo era

151 Orig ldquo διακηρύττει ἱστορεῖ δὲ καὶ Ἀριστοτέλης ἐν τοῖς περὶ τῆς Πυθαγορικῆς φιλοσοφίας διαίρεσίν τινα τοιάνδε ὑπὸ τῶν ἀνδρῶν ἐν τοῖς πάνυ ἀπορρήτοις διαφυλάττεσθαιmiddot τοῦ λογικοῦ ζῴου τὸ microέν ἐστι θεός τὸ δὲ ἄνθρωπος τὸ δὲ οἷον Πυθαγόραςrdquo (14 A7 DK = Iambl VP 31)

84

que estes ndash exatamente como a populaccedilatildeo em geral ndash ficavam irritados com a conduta dos pitagoacutericos em praticamente qualquer aspecto dela na medida em que esta era diferente daquela dos outros (Iambl VP 255)152

Essa diferenccedila da comunidade ligada a algumas praacuteticas estranhas agrave cultura e

economia do tempo como aquela da partilha dos bens era com toda probabilidade

parte essencial do motivo da inimizade ndash acenada no testemunho acima ndash por parte das

proacuteprias famiacutelias dos membros da comunidade Sublinha-se acima no interior do pano-

rama da criacutetica a questatildeo da presenccedila poliacutetica da comunidade pitagoacuterica essa presenccedila

sugeriria que a melhor identificaccedilatildeo seria mesmo com o modelo da hetairiacutea E todavia

as fontes satildeo bastante insistentes em nos apresentarem uma comunidade francamente

dedicada ao culto e a uma vida comunitaacuteria baseada em akouacutesmata e syacutembola isto eacute em

palavras secretas e sinais de identificaccedilatildeo Com isso ganharia forccedila a hipoacutetese contraacuteria

isto eacute de a comunidade pitagoacuterica encontrar seu lugar tipoloacutegico mais proacuteprio no acircmbi-

to do thiacuteasos153

Baseando-se na inegaacutevel caracteriacutestica da diferenccedila da comunidade Burkert

(1982 2-3 19) seguido por Riedweg (2002 166-171) considera que a melhor defini-

ccedilatildeo para a comunidade pitagoacuterica seja o termo seita154 Consciente do uso comum de-

preciativo do termo que leva diversos autores incluindo o presente a preferir uma de-

signaccedilatildeo mais neutra como aquela ateacute aqui usada de comunidade a traduzir o grego

koinoniacutea Burkert reclama para o termo seita a vantagem de um uso mais teacutecnico socio-

loacutegico na esteira dos trabalhos de Bryan Wilson e Arnaldo Momigliano (Burkert 1982

3)

Dessa forma poder-se-atildeo identificar no pitagorismo as caracteriacutesticas miacutenimas

que definem uma seita do ponto de vista da sociologia dos grupos religiosos Essas ca-

152 Orig ldquo ἡγεmicroόνες δὲ ἐγένοντο τῆς διαφορᾶς οἱ ταῖς συγγενείαις ltκαὶgt ταῖς οἰκειότησιν ἐγγύτατα καθε-στηκότες τῶν Πυθαγορείων αἴτιον δ ἦν ltὅτιgt τὰ microὲν πολλὰ αὐτοὺς ἐλύπει τῶν πραττοmicroένων ὥσπερ καὶ τοὺς τυχόντας ἐφ ὅσον ἰδιασmicroὸν εἶχε παρὰ τοὺς ἄλλουςrdquo (Iambl VP 255) 153 Para ampla resenha da terminologia utilizada pelas fontes antigas para designar a comunidade pitagoacute-rica cf Minar (1942 15-35) Tanto Philip (1966 144) quanto Zhmud (1992 241-1) consideram impro-vaacutevel a associaccedilatildeo dos pitagoacutericos com o modelo do thiacuteasos por causa da evidente atuaccedilatildeo poliacutetica da comunidade Centrone (1996 67-68) adota uma posiccedilatildeo menos ceacutetica reconhecendo que ainda que al-guns traccedilos esoteacutericos da comunidade fossem de fato sublinhados pela tradiccedilatildeo tardia esse fato natildeo auto-riza a negar tout court qualquer valor histoacuterico a eles 154 O primeiro a usar o termo sekte eacute Rohde (1898 103ss) O uso de uma terminologia advinda da socio-logia da religiatildeo natildeo eacute incomum Toynbee (1939 84) e Jaeger (1947 61) chegam a utilizar o termo chur-ch para referir-se agrave comunidade pitagoacuterica

85

racteriacutesticas contribuem para a descriccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica como de um grupo

de proporccedilotildees numeacutericas bastante reduzidas de caraacuteter elitaacuterio modos alternativos e

algum niacutevel de sigilo encontros regulares ou vida em comum certa partilha econocircmica

e espiritual submissatildeo agrave autoridade de um guia carismaacutetico e forte sentimento identitaacute-

rio que leva agrave separaccedilatildeo das pessoas entre noacutes e eles Accedilotildees de vinganccedila contra os apoacutes-

tatas prescriccedilotildees reprodutivas que garantam a sobrevivecircncia diacrocircnica da comunidade

e intensa mobilidade geograacutefica concluem um retrato no qual como se veraacute podem ser

reconhecidas as caracteriacutesticas salientes do estilo de vida pitagoacuterico

Na peneira da tradiccedilatildeo de fato a classificaccedilatildeo proposta por Burkert revela-se

em geral bastante apropriada Seratildeo visitadas algumas das tradiccedilotildees mais salientes que

dizem respeito a essa possiacutevel identificaccedilatildeo do pitagorismo com uma seita As duas Vi-

das de Porfiacuterio e Jacircmblico (de maneira especial esta uacuteltima) satildeo ricas fontes de infor-

maccedilatildeo sobre a comunidade e as regras de seu biacuteos Ainda que marcadas por interpola-

ccedilotildees tardias eacute certamente possiacutevel identificar estratos mais antigos da tradiccedilatildeo em mui-

tos dos testemunhos que iratildeo receber nossa atenccedilatildeo a seguir155

Nuacutemero limitado Os pitagoacutericos ainda que influentes nas cidades por eles ad-

ministradas na Magna Greacutecia constituiacuteram sempre uma comunidade minoritaacuteria tanto

no interior dos grupos aristocraacuteticos das mesmas cidades como no acircmbito maior da cul-

tura intelectual de seu tempo Apesar de os quatro discursos poliacuteticos de Pitaacutegoras na

ocasiatildeo da chegada em Crotona terem conquistado ndash segundo Porfiacuterio (VP 20) e Jacircm-

blico (VP 30) ndash um auditoacuterio de duas mil pessoas somente seiscentas delas se tornaram

mesmo disciacutepulos ldquonatildeo somente conduzidos por ele agrave filosofia mas tambeacutem prontos a

lsquoviver em comumrsquo como se dizia conforme seus preceitosrdquo (Iambl VP 29)156 A tradi-

ccedilatildeo parece sugerir jaacute uma seleccedilatildeo inicial portanto O mesmo cataacutelogo de Jacircmblico aci-

ma citado em sua intenccedilatildeo de contar os pitagoacutericos pressupotildee certamente um nuacutemero

limitado deles

155 Para uma avaliaccedilatildeo da influecircncia da tradiccedilatildeo pitagoacuterica sobre a evoluccedilatildeo do gecircnero literaacuterio das Vidas de filoacutesofos no mundo antigo cf Goulet (2001 23-61 espec 32-34 com uma anaacutelise de Porph VP e Iambl VP) 156 Orig ldquoκαὶ ἐν πρώτῃ Κρότωνι ἐπισηmicroοτάτῃ πόλει προτρεψάmicroενος πολλοὺς ἔσχε ζηλωτάς ὥστ-ε [ἱστορεῖταιἑξακοσίους αὐτὸν ἀνθρώπους ἐσχηκέναι οὐ microόνον ὑπrsquo αὐτοῦ κεκινηmicroένους εἰς τὴν φιλοσ-οφίαν ἧς microετεδίδου ἀλλὰ καὶ τὸ λεγόmicroενον κοινοβίους καθὼς προσέταξε γενοmicroένουςrdquo (Iambl VP 29) Com o nuacutemero de 600 concorda Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 15) Jaacute para Apolocircnio de Tiana o nuacutemero era ainda mais restrito limitando-se a 300 (FGrHist 1064 F 254)

86

Caraacuteter elitaacuterio A tradiccedilatildeo anteriormente referida dos discursos puacuteblicos de Pi-

taacutegoras por ocasiatildeo de sua chegada em Crotona (Porph VP 20 Iambl VP 30) e que

resulta na adesatildeo dos seiscentos poderia sugerir que fazer parte da comunidade e ter

acesso aos seus ensinamentos fosse algo faacutecil Uma tradiccedilatildeo de Antifonte citada por

Porfiacuterio (VP 9) recorda que ainda em Samos Pitaacutegoras teria fundado um didaskaleiacute-

on uma escola chamada de hemiciclo de Pitaacutegoras que reunia os que discutiam sobre

negoacutecios puacuteblicos Ele proacuteprio todavia refugiava-se em um aacutentros uma gruta onde

poderia consagrar-se exclusivamente agrave filosofia a sugerir que este caraacuteter elitaacuterio e ex-

clusivo da comunidade pitagoacuterica estaria presente jaacute mesmo nos anos iniciais da forma-

ccedilatildeo de Pitaacutegoras

O mesmo caraacuteter exclusivista pode ser observado no riacutegido criteacuterio de admissatildeo

agrave proacutepria comunidade marcado por um periacuteodo probatoacuterio de dokimasiacutea

Quando alguns jovens chegavam com o desejo de conviver com ele natildeo os admitia imediatamente esperando que fossem examinados e julgados Primeiramente inteirava-se das relaccedilotildees que eles mantive-ram com seus genitores e os outros parentes antes de se aproximarem a ele depois verificava quem entre eles ria de maneira desconvenien-te calava ou falava de modo despropositado e ainda quais eram suas paixotildees quem eram seus parentes que relaccedilotildees mantinham com estes a que atividades dedicavam a maior parte do dia e qual era o motivo de sua alegria e dor [] Aqueles que superavam este exame eram desprezados por trecircs anos com a intenccedilatildeo de colocar agrave prova sua fir-meza e real amor pelo conhecimento [] Apoacutes esse periacuteodo impunha aos aspirantes um silecircncio de cinco anos para testar sua continecircncia Pois de todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute cer-tamente a mais dura como bem demonstram os fundadores dos ritos misteacutericos (Iambl VP 71-72)157

A fonte da qual bebem tanto Porfiacuterio como Jacircmblico para estas referecircncias ao

biacuteos pitagoacuterico eacute Nicocircmaco A suspeita de que essa extrema rigidez da organizaccedilatildeo do

acesso agrave comunidade pitagoacuterica (trecircs anos de descaso aos quais eram seguidos mais

157 Orig ldquo προσιόντων τῶν νεωτέρων καὶ βουλοmicroένων συνδιατρίβειν οὐκ εὐθὺς συνεχώρει microέχρις ἂν αὐτῶν τὴν δοκιmicroασίαν καὶ τὴν κρίσιν ποιήσηται πρῶτον microὲν πυνθανόmicroενος πῶς τοῖς γονεῦσι καὶ τοῖς οἰκείοις τοῖς λοιποῖςπάρεισιν ὡmicroιληκότες ἔπειτα θεωρῶν αὐτῶν τούς τε γέλωτας τοὺς ἀκαίρους καὶ τὴν σιωπὴν καὶ τὴν λαλιὰν παρὰ τὸ δέον ἔτι δὲ τὰς ἐπιθυmicroίας τίνες εἰσὶ καὶ τοὺς γνωρίmicroους οἷς ἐχρῶντο καὶ τὴν πρὸς τούτους ὁmicroιλίαν καὶ πρὸς τίνι microάλιστα τὴν ἡmicroέραν σχολάζουσι καὶ τὴν χαρὰν καὶτὴν λύπην ἐπὶ τίσι τυγχάνουσι ποιούmicroενοι []ἠθῶν ἐν τῇ ψυχῇ καὶ ὅντινα δοκιmicroάσειεν οὕτως ἐφίειτριῶν ἐτῶν ὑπερο-ρᾶσθαι δοκιmicroάζων πῶς ἔχει βεβαιότητος καὶ ἀληθινῆς φιλοmicroαθείας [] microετὰ δὲ τοῦτο τοῖς προσιοῦσι προσέταττε σιωπὴν πενταετῆ ἀποπειρώmicroενος πῶς ἐγκρατείας ἔχουσιν ὡς χαλεπώτερον τῶν ἄλλων ἐγκ-ρατευmicroάτων τοῦτο τὸ γλώσσης κρατεῖν καθὰ καὶ ὑπὸ τῶν τὰ microυστήρια νοmicroοθετησάντων ἐmicroφαίνεται ἡmicroῖνrdquo (Iambl VP 71-72)

87

cinco de silecircncio) seja na realidade uma retroprojeccedilatildeo dele eacute levantada tanto por Von

Fritz (1940 220) como por Philip (1966 140) E todavia haacute paralelo testemunho em

Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) cuja fonte seria desta vez Timeu que confirmaria uma pro-

vaacutevel antiguidade do testemunho

[Seus disciacutepulos] permaneciam em silecircncio por cinco anos limitando-se a escutar seus discursos sem nunca ver Pitaacutegoras ateacute que natildeo supe-rassem a prova a partir desse momento tornavam-se parte de sua casa e eram admitidos agrave sua presenccedila (D L Vitae VIII 10)158

Vida em comum (cenoacutebio) e comunhatildeo dos bens O testemunho acima citado eacute

rico de outros sinais sectaacuterios como o do sigilo e de maneira especial da comunhatildeo

dos bens A mesma passagem de Jacircmblico acima citada referida agrave dokimasiacutea dos jovens

aspirantes detalha as modalidades dessa partilha

Nesse periacuteodo os bens de cada um isto eacute suas propriedades eram co-locadas em comum e confiadas aos membros notaacuteveis da comunidade encarregados disso chamados poliacuteticos alguns deles eram adminis-tradores outros legisladores (Iambl VP 72)159

O testemunho mais antigo da comunhatildeo dos bens parece ser novamente o de

Timeu um escoacutelio ao Fedro (Schol In Phaedr 279c) corresponde literalmente a uma

passagem do livro IX de Timeu

Ora quando os jovens vinham ateacute ele e queriam viver com ele natildeo lhes permitia fazecirc-lo mas respondia que era necessaacuterio que colocas-sem em comum seus bens (Schol In Phaedr 279c = FGrHist 566 F 13)160

158 Orig ldquo πενταετίαν θrsquo ἡσύχαζον microόνον τῶν λόγων κατακούοντες καὶ οὐδέπω Πυθαγόραν ὁρῶντες εἰς ὃ δοκιmicroασθεῖενmiddot τοὐντεῦθεν δrsquo ἐγίνοντο τῆς οἰκίας αὐτοῦ καὶ τῆς ὄψεως microετεῖχονrdquo (D L Vitae VIII 10) Cf para esta referecircncia Centrone (1996 74) 159 Orig ldquo ἐν δὴ τῷ χρόνῳ τούτῳ τὰ microὲν ἑκάστου ὑπάρχοντα τουτέστιν αἱ οὐσίαι ἐκοινοῦντο διδόmicroενα τοῖς ἀποδεδειγmicroένοις εἰς τοῦτο γνωρίmicroοις οἵπερ ἐκαλοῦντο πολιτικοί καὶ οἰκονοmicroικοί τινες καὶ νοmicroοθετ-ικοὶ ὄντεςrdquo (Iambl VP 72) 160 Orig ldquoπροσιόντων δrsquo οὖν αὐτῷ τῶν νεωτέρων καὶ βουλοmicroένων συνδιατρίβειν οὐκ εὐθὺς συνεχώρησ-εν ἀλλrsquo ἔφη δεῖν καὶ τὰς οὐσίας κοινὰς εἶναι τῶν ἐντυγχανόντωνrdquo (Schol In Phaedr 279c = FGrHist 566 F 13)

88

Trata-se aqui do ceacutelebre dito koinagrave tagrave phiacutelocircn (ou koinagrave tagrave tocircn phiacutelocircn) que apare-

ce referido aos pitagoacutericos por Platatildeo161 Natildeo procede a observaccedilatildeo de Philip (1966

142) pela qual em Aristoacuteteles ao contraacuterio ldquoseu significado eacute bastante natildeo pitagoacutericordquo

(its meaning is quite un-Pythagoreanrdquo) o trecho da Eacutetica Nicomaqueia por ele citado

(EN 1159b 25-32) ao contraacuterio ainda que sem uma referecircncia direta agrave origem pitagoacuteri-

ca do dito insere o koinagrave tagrave phiacutelocircn no interior de uma discussatildeo de marco notadamente

pitagoacuterico sobre a comunidade de amigos como promotora de justiccedila e por consequecircn-

cia em evidente sentido econocircmico

Parece portanto conforme dissemos no iniacutecio que amizade e justiccedila digam respeito agraves mesmas coisas e se deem entre as mesmas pessoas De fato em cada comunidade parece haver algo de justo e amizade Assim chamam-se amigos os companheiros de navegaccedilatildeo e de armas e da mesma maneira aqueles que fazem parte de outras comunidades Conforme participam da comunidade haacute amizade e tambeacutem justiccedila E diz bem o proveacuterbio ldquoas coisas dos amigos satildeo comunsrdquo pois a ami-zade estaacute na comunidade (EN 1159b 25-32)162

Natildeo por acaso diversos autores utilizaram a expressatildeo comunismo ainda que

muitas vezes entre aspas considerando o evidente anacronismo do termo ndash para indicar

essa praacutetica do mote koinagrave tagrave phiacutelocircn entre os pitagoacutericos163 Essa mesma relaccedilatildeo entre

phiacuteloi e diacutekaion eacute encontrada em Platatildeo que por outro lado natildeo tem duacutevidas em referir

o dito diretamente aos pitagoacutericos Natildeo casualmente essa ligaccedilatildeo entre pitagorismo e a

philiacutea aparece em um passo central de Repuacuteblica No comeccedilo do livro V (449c) Adi-

manto a convite de Polemarco repreende Soacutecrates por ter deixado de lado em sua ar-

gumentaccedilatildeo sobre a cidade justa e perfeita o problema levantado pelo dito koinaacute tagrave phiacute-

locircn aplicado a mulheres e filhos fazendo assim surgir a suspeita de querer fugir da

questatildeo

161 Cf as referecircncias aos passos platocircnicos nos paraacutegrafos imediatamente a seguir 162 Orig ldquoἜοικε δέ καθάπερ ἐν ἀρχῇ εἴρηται περὶ ταὐτὰ καὶ ἐν τοῖς αὐτοῖς εἶναι ἥ τε φιλία καὶ τὸ δίκα-ιον ἐν ἁπάσῃ γὰρ κοινωνίᾳ δοκεῖ τι δίκαιον εἶναι καὶ φιλία δέmiddot προσαγορεύουσι γοῦν ὡς φίλους τοὺς σύmicroπλους καὶ τοὺς συστρατιώτας ὁmicroοίως δὲ καὶ τοὺς ἐνταῖς ἄλλαις κοινωνίαις καθrsquoὅσον δὲ κοινωνοῦσ-ιν ἐπὶ τοσοῦτόν ἐστι φιλίαmiddot καὶ γὰρ τὸ δίκαιον καὶ ἡ παροιmicroία ldquoκοινὰ τὰ φίλωνrdquo ὀρθῶςmiddot ἐν κοινωνίᾳ γὰρ ἡ φιλίαrdquo (Arist EN 1159b 25-32) 163 Entre eles Minar (1942 29 32 35) Conybeare em sua traduccedilatildeo da Vida de Apolocircnio de Tiana de Filostrato (1948-50) e Burkert (1982 15)

89

Parece-nos que vocecirc esteja querendo se safar rapidamente roubando uma parte inteira do discurso (e natildeo certamente a menor) para natildeo ter que discuti-lo que tenha pensado em fugir deixando cair de leve a-quele dito pelo qual com relaccedilatildeo agraves mulheres e agraves crianccedilas para todos deveria ser evidente que tudo deve ser em comum entre os amigos (Resp V 449c)164

O dito introduzido phaulocircs de leve no livro IV (424a) requer ao contraacuterio ndash ao

dizer de Adimanto ndash uma explicaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao troacutepos tecircs koinoniacuteas (V 449d) ao

tipo aos modos dessa comunhatildeo Dessa forma Soacutecrates passaraacute a representar em deta-

lhes o gynaikeiacuteon draacutema da cidade O leacutexico dessa paacutegina eacute impregnado de pitagorismo

tanto a comunhatildeo dos bens (e de mulheres e filhos) como a importacircncia da escuta co-

mo caracteriacutestica do biacuteos e da cidade justa remetem imediatamente para as caracteriacutesti-

cas da vida pitagoacuterica apontadas pela tradiccedilatildeo165

As modalidades da comunhatildeo dos bens deviam alcanccedilar articulaccedilatildeo maior do

que a da simples organizaccedilatildeo da partilha dos bens em comunidades de vida cenobiacutetica

Eacute certamente o que sugere o caso de Cliacutenias de Tarento e Proros de Cirene

Narra-se que Cliacutenias de Tarento quando soube que Proros de Cirene um seguidor da doutrina pitagoacuterica estava correndo o risco de perder seu patrimocircnio recolheu uma soma de dinheiro e embarcou em dire-ccedilatildeo a Cirene colocando em ordem os negoacutecios de Proros sem impor-tar-se natildeo somente com suas perdas financeiras como tambeacutem com os perigos da navegaccedilatildeo (Iambl VP 239)166

A anedota revelaria mais uma vez a radicalidade desta comunhatildeo

Como tambeacutem a histoacuteria edificante de um pitagoacuterico que havia ficado gravemen-

te doente durante longa viagem Ao dono da pensatildeo que o hospedava em seus uacuteltimos

dias de vida e que cuidava dele com grande generosidade o pitagoacuterico apoacutes ter gravado

um siacutembolo sobre uma tabuinha

Pediu que o pendurasse fora da porta da pensatildeo e que ficasse atento 164 Orig ldquo πορρᾳθυmicroεῖν ἡmicroῖν δοκεῖς ἔφη καὶ εἶδος ὅλον οὐ τὸ ἐλάχιστον ἐκκλέπτειν τοῦ λόγου ἵνα microὴ διέλθῃς καὶ λήσειν οἰηθῆναι εἰπὼν αὐτὸ φαύλως ὡς ἄρα περὶ γυναικῶν τε καὶ παίδων παντὶ δῆλον ὅτι κοινὰ τὰ φίλων ἔσταιrdquo (Resp V 449c) 165 Platatildeo refere o dito aos pitagoacutericos tambeacutem em Lisis 207c e Leis 739c 166 Orig ldquo Κλεινίαν γε microὴν τὸν Ταραντῖνόν φασι πυθόmicroενον ὡς Πρῶρος ὁ Κυρηναῖος τῶν Πυθαγόρου λόγων ζηλωτὴς ὤν κινδυνεύοι περὶ πάσης τῆς οὐσίας συλλεξάmicroενον χρήmicroατα πλεῦσαι ἐπὶ Κυρήνης καὶ ἐπανορθώσασθαι τὰ Πρώρου πράγmicroατα microὴ microόνον τοῦ microειῶσαι τὴν ἑαυτοῦ οὐσίαν ὀλιγωρήσαντα ἀλλὰ microηδὲ τὸν διὰ τοῦ πλοῦ κίνδυνον περιστάνταrdquo (Iambl VP 239)

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caso algum transeunte reconhecesse o sinal pois nesse caso esta pes-soa reembolsaria a ele todas as despesas e o agradeceria por sua conta Quando o hoacutespede morreu o dono da pensatildeo o sepultou e cuidou com toda cura do caixatildeo ndash sem preocupar-se com as despesas ou em rece-ber algum reconhecimento de quem eventualmente fosse identificar a tabuinha E todavia por curiosidade com relaccedilatildeo agrave ordem recebida quis colocaacute-la agrave prova expondo a tabuinha para que pudesse ficar sempre visiacutevel Muito tempo depois um pitagoacuterico que passava por laacute reconheceu o siacutembolo Perguntou entatildeo o que havia acontecido e deu para o dono da pensatildeo uma quantia muito maior daquela que foi de-sembolsada (Iambl VP 238)167

A histoacuteria natildeo diz de que siacutembolo se trata Todavia com base em uma paacutegina de

Luciano (Jacobiz I 330) apreendemos que o sinal de reconhecimento dos pitagoacutericos

era o pentagrama sendo utilizado ateacute mesmo como assinatura em suas cartas168 Essas

histoacuterias satildeo facilmente dataacuteveis em eacutepoca tardia Ainda assim referem-se a uma tradi-

ccedilatildeo jaacute antiga e que devia ser muito forte resistindo como memoacuteria da centralidade da

comunhatildeo de bens entre os pitagoacutericos

A amizade pitagoacuterica O tema da philiacutea eacute presente desde aqueles que satildeo consi-

derados os primeiros discursos puacuteblicos de Pitaacutegoras os ceacutelebres quatro loacutegoi proferi-

dos quando de sua chegada em Crotona Entre outros no Primeiro Discurso dirigido

aos jovens Pitaacutegoras os exorta a cuidar bem dos amigos

Afirmava que teriam sucesso se mesmo nas relaccedilotildees entre eles se comportassem deixando claro que natildeo seriam nunca hostis aos proacute-prios amigos ao contraacuterio estariam prontos a qualquer momento a se tornarem quanto antes amigos de seus proacuteprios inimigos (Iambl VP 40)169

167 Orig ldquo ἐπειδὴ δὲ κρείττων ἦν ἡ νόσος τὸν microὲν ἀποθνῄσκειν ἑλόmicroενον γράψαι τι σύmicroβολον ἐν πίνακι καὶ ἐπιστεῖλαι ὅπως ἄν τι πάθοι κριmicroνὰς τὴν δέλτον παρὰ τὴν ὁδὸν ἐπισκοπῇ εἴ τις τῶν παριόντων ἀναγνωριεῖ τὸ σύmicroβολονmiddot τοῦτον γὰρ ἔφη αὐτῷ ἀποδώσειν τὰ ἀναλώmicroατα ἅπερ εἰς αὐτὸν ἐποιήσατο καὶ χάριν ἐκτίσειν ὑπὲρ ἑαυτοῦ τὸν δὲ πανδοχέα microετὰ τὴν τελευτὴν θάψαι τε καὶ ἐπιmicroεληθῆναι τοῦ σώmicroατος αὐτοῦ microὴ microέντοι γε ἐλπίδας ἔχειν τοῦ κοmicroίσασθαι τὰ δαπανήmicroατα microή τί γε καὶ πρὸς εὖ παθεῖν πρός τινος τῶν ἀναγνωριούντων τὴν δέλτον ὅmicroως microέντοι διαπειρᾶσθαι ἐκπεπληγmicroένον τὰς ἐντολὰς ἐκτιθέναι τε ἑκάστοτε εἰς τὸ microέσον τὸν πίνακα χρόνῳ δὲ πολλῷ ὕστερον τῶν Πυθαγορικῶν τινὰ παριόντα ἐπιστῆναί τε καὶ microαθεῖν τὸν θέντα τὸ σύmicroβολον ἐξετάσαι τε τὸ συmicroβὰν καὶ τῷ πανδοχεῖ πολλῷ πλέον ἀργύριον ἐκτῖσαι τῶν δεδαπανηmicroένωνrdquo (Iambl VP 238) 168 Cf para esta tradiccedilatildeo tambeacutem Jacircmblico (Iambl VP 88) em relaccedilatildeo ao fato que teria sido exatamente a revelaccedilatildeo do segredo do pentagrama a fazer Hipaso merecer a expulsatildeo da comunidade 169 Orig ldquo ἀπεφαίνετο δὲ καὶ ταῖς πρὸς ἀλλήλους ὁmicroιλίαις οὕτως ἂν χρωmicroένους ἐπιτυγχάνειν ὡς microέλλου-σι τοῖς microὲν φίλοις microηδέποτε ἐχθροὶ καταστῆναι τοῖς δὲ ἐχθροῖς ὡς τάχιστα φίλοι γίνεσθαιrdquo (Iambl VP 40) Cf o que foi dito acima em relaccedilatildeo ao valor dos discursos como testemunhos da fundaccedilatildeo da comu-nidade pitagoacuterica especialmente em relaccedilatildeo aos estudos neste sentido de Rostagni (1922) e De Vogel (1966) No entanto com a necessaacuteria prudecircncia acima indicada

91

A discussatildeo pitagoacuterica sobre a philiacutea extrapola o acircmbito da gestatildeo da vida co-

munitaacuteria para alcanccedilar o patamar de um conceito-chave para a compreensatildeo de toda a

realidade Um exemplo disso eacute o testemunho de Jacircmblico (Iambl VP 229-230 VP 69-

70) que enumera os seis aspectos da philiacutea ensinada por Pitaacutegoras dos deuses para com

os homens das doutrinas entre elas da alma com o corpo dos homens entre eles e com

os animais e do corpo mortal em si mesmo170

Por ser tatildeo proverbial esta philiacutea entre os pitagoacutericos mereceu diversas histoacuterias

que beiram o lendaacuterio mas que ainda assim satildeo significativas para compreender a eacutetica

da philiacutea que regia as comunidades pitagoacutericas uma das mais significativas eacute certamen-

te aquela lembrada por Aristoacutexeno da prova radical da amizade entre dois pitagoacutericos

Fintias e Damon planejada pelo tirano de Siracusa Dioniso Aristoxeno afirma tecirc-la

ouvido da boca do proacuteprio tirano que ndash caiacutedo em desgraccedila ndash foi ser professor em Corin-

to

Um dia Dioniso quis colocaacute-los agrave prova pois alguns asseguravam que se os tivesse preso e aterrorizado natildeo teriam permanecido fieacuteis uns aos outros Ele entatildeo agiu da seguinte forma Fintias foi preso e con-duzido na frente do tirano que o acusou de conspiraccedilatildeo contra ele a-crescentando que o fato jaacute havia sido comprovado e que portanto o condenaria agrave pena capital Fintias respondeu ldquose assim decidiste me

170 Iambl (VP 229-230) ldquoPitaacutegoras ensinou com muita clareza a φιλία de todos para com todos a come-ccedilar pela φιλία 1) dos deuses para com os homens por meio da piedade e de um culto baseado no conhe-cimento 2) das doutrinas entre elas 3) em geral da alma com o corpo e da parte racional da alma com a parte irracional graccedilas agrave filosofia e agrave contemplaccedilatildeo que lhe eacute proacutepria 4) dos homens entre eles dos cida-datildeos pela estrita observacircncia da lei entre seres humanos de diversas etnias por meio do correto conheci-mento da natureza [humana] do homem para com a mulher ou filhos ou irmatildeos ou parentes por meio de uma comunhatildeo indestrutiacutevel em resumo φιλία de todos para com todos e ateacute 5) de alguns animais irra-cionais por causa de um sentimento de justiccedila e de uma natural proximidade e solidariedade 6) enfim do corpo mortal com si mesmo pacificaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo das forccedilas contraacuterias que nele se escondem por meio da sauacutede e do regime [de vida] que a essa tende e temperacircncia por meio da imitaccedilatildeo da condiccedilatildeo de bem-estar que caracteriacuteza os elementos celestiais O fato de uma uacutenica e soacute ser a palavra que tudo isso compreende isto eacute φιλία eacute opiniatildeo corrente que foi Pitaacutegoras a descobri-lo e tornaacute-lo lei este ensinava a seus disciacutepulos uma φιλία tatildeo maravilhosa que ateacute hoje muitos dizem a respeito daqueles que satildeo ligados entre si por uma reciacuteproca benevolecircncia tratar-se de pitagoacutericosrdquo Orig ldquo Φιλίαν δὲ διαφανέστατα πάντ-ων πρὸς ἅπαντας Πυθαγόρας παρέδωκε θεῶν microὲν πρὸςἀνθρώπους διrsquo εὐσεβείας καὶ ἐπιστηmicroονικῆς θερ-απείας δογmicroάτων δὲ πρὸς ἄλληλα καὶ καθόλου ψυχῆς πρὸς σῶmicroα λογιστικοῦ τε πρὸς τὰ τοῦ ἀλόγου εἴδη διὰ φιλοσοφίας καὶ τῆς κατrsquo αὐτὴν θεωρίας ἀνθρώπων δὲ πρὸς ἀλλήλους πολιτῶν microὲν διὰ νοmicroιmicroότητος ὑγιοῦς ἑτεροφύλων δὲ διὰ φυσιολογίας ὀρθῆς ἀνδρὸς δὲ πρὸς γυναῖκα ἢ τέκνα ἢ ἀδελφοὺς καὶ οἰκείους διὰ κοινωνίας ἀδιαστρόφου συλλήβδην δὲ πάντων πρὸς ἅπαντας καὶ προσέτι τῶν ἀλόγων ζῴων τινὰ διὰ δικαιοσύνης καὶ φυσικῆς ἐπιπλοκῆς καὶ κοινότητος σώmicroατος δὲ καθrsquoἑαυτὸ θνητοῦ τῶν ἐγκεκρυmicromicroένων αὐτῷ ἐναντίων δυνάmicroεων εἰρήνευσίν τε καὶ συmicroβιβασmicroὸν διrsquo ὑγείας καὶ τῆς εἰς ταύτην διαίτης καὶ σωφρ-οσύνης κατὰ microίmicroησιν τῆς ἐν (230) τοῖς κοσmicroικοῖς στοιχείοις εὐετηρίας ἐν πᾶσι δὴ τούτοις ἑνὸς καὶ τοῦ αὐτοῦ κατὰ σύλληψιν τοῦ τῆς φιλίας ὀνόmicroατος ὄντος εὑρετὴς καὶ νοmicroοθέτης ὁmicroολογουmicroένως Πυθαγόρας ἐγένετο καὶ οὕτω θαυmicroαστὴν φιλίαν παρέδωκε τοῖς χρωmicroένοις ὥστε ἔτι καὶ νῦν τοὺς πολλοὺς λέγειν ἐπὶ τῶν σφοδρότερον εὐνοούντων ἑαυτοῖς ὅτι τῶν Πυθαγορείων εἰσίrdquo (Iambl VP 229-230)

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seja ao menos concedido o restante deste dia para acertar meus negoacute-cios e aquele de Damon (era de fato companheiro e soacutecio dele e como mais idoso havia tomado conta de seus negoacutecios) Fintias portanto pedia para ser deixado ir e oferecia Damon como fiador [para ficar no lugar dele] Dioniso concordou e foi chamado Damon que ao saber o que havia ocorrido aceitou imediatamente ser fiador de Fintias e ficou esperando este voltar (61) Dioniso de sua parte havia ficado impres-sionado com o ocorrido enquanto aqueles que haviam inicialmente proposto a prova zombavam de Damon dizendo que seria ali abando-nado Mas ao pocircr do sol Fintias chegou pronto para morrer E todos ficaram maravilhados Dioniso de sua parte abraccedilou afetuosamente os dois e pediu para ser acolhido como terceiro na philiacutea deles (Porph VP 60-61)171

Portanto a insistecircncia da tradiccedilatildeo eacute para com a proverbial fidelidade da philiacutea

pitagoacuterica Outra narrativa que representa bem esta fidelidade ao amigo mas que Rohde

(1872 50) define simplesmente boba (eine alberne Geschichte) eacute a da philiacutea entre Liacutesis

e Euriacutefamo

Quanto aos pactos estabelecidos Pitaacutegoras preparou com tamanha efi-caacutecia seus disciacutepulos para respeitaacute-los sinceramente que se narra que uma vez Liacutesis saindo do tempo de Hera apoacutes ter feito suas oraccedilotildees encontrou Euriacutefamo de Siracusa seu companheiro que por sua vez es-tava entrando no templo Por ter este uacuteltimo solicitado a ele que o a-guardasse enquanto realizava suas oraccedilotildees Liacutesis sentou-se em um banco de pedra proacuteximo agrave saiacuteda do templo Apoacutes as oraccedilotildees Euriacutefa-mo imerso em seus pensamentos e tomado como estava por uma pro-funda reflexatildeo saiu do templo por outra porta Liacutesis de sua parte permaneceu imoacutevel esperando durante o dia todo e a noite inteira e boa parte do dia seguinte E provavelmente teria ficado muito mais se no dia seguinte Euriacutefamo que se havia dirigido ao auditoacuterio natildeo se tivesse recordado do fato apoacutes ouvir que Liacutesias estava cercado de companheiros da comunidade Somente entatildeo foi encontraacute-lo este conforme o pacto estava esperando por ele Levou-o embora expli-cando assim o motivo de seu esquecimento ldquofoi um deus a causar em

171 Orig ldquo βουλόmicroενος οὖν ποτε ∆ιονύσιος πεῖραν αὐτῶν λltαβεῖνgt διαβε βαιουmicroένων τινῶν ὡς συλληφ-θέντες καὶ φοβηθέντες οὐκ ἐmicromicroενοῦσι τῇ πρὸς ἀλλήλους πίστει τάδrsquo ἐποίησεν συνελήφθη microὲν Φιντίας καὶ ἀνήχθη πρὸς τὸν τύραννον κατηγορεῖν δrsquo αὐτοῦ ∆ιονύσιον ὡς ἐπιβουλεύοντος αὐτῷmiddot καὶ δὴ τοῦτο ἐξεληλέγχθαι κεκρίσθαι τrsquo ἀποθνῄσκειν αὐτόν τὸν δέ ἐπεὶ οὕτως αὐτῷ δέδοκται εἰπεῖν δοθῆναί γε τὸ λοιπὸν τῆς ἡmicroέρας ὅπως οἰκονοmicroήσηται τά τε καθrsquo ἑαυτὸν καὶ τὰ κατὰ ∆άmicroωναmiddot εἶναι γὰρ αὐτῷ ἑταῖρον καὶ κοινωνόνmiddot πρεσβύτερον δrsquoαὐτὸνgt ὄντα πολλὰ τῶν περὶ τὴν οἰκονοmicroίαν εἰς αὑτὸν ἀνειληφέναι ἠξίου δrsquo ἀφεθῆναι ἐγγυητὴν παρασχὼν τὸν ∆άmicroωνα συγχωρήσαντος δὲ τοῦ ∆ιονυσίου microεταπεmicroφθεὶς ὁ ∆άmicroων καὶ τὰ συmicroβάντα αὑτὸν ἀνειληφέναι ἠξίου δrsquo ἀφεθῆναι ἐγγυητὴν παρασχὼν τὸν ∆άmicroωνα συγχωρήσαντ-ος δὲ τοῦ ∆ιονυσίου microεταπεmicroφθεὶς ὁ ∆άmicroων καὶ τὰ συmicroβάντα ἀκούσας ἐνεγγυήσατο καὶ ἔmicroεινεν ἕως ἂν ἐπανέλθῃ (61) ὁ Φιντίας ὁ microὲν οὖν ∆ιονύσιος ἐξεπλήττετο ἐπὶ τοῖς γιγνοmicroένοις ἐκείνους δὲ τοὺς ἐξ ἀρχ-ῆς εἰσαγαγόντας τὴν διάπειραν τὸν ∆άmicroωνα χλευάζειν ὡς ἐγκαταλειφθησόmicroενον ὄντος δὲ τοῦ ἡλίου περὶ δυσmicroὰς ἥκειν τὸν Φιντίαν ἀποθανούmicroενον ἐφrsquo ᾧ πάντας ἐκπλαγῆναι ∆ιονύσιον δὲ περιβαλόντα καὶ φιλήσαντα τοὺς ἄνδρας ἀξιῶσαι τρίτον αὑτὸν εἰς τὴν φιλίαν παραδέξασθαι τοὺς δὲ microηδενὶ τρόπῳ καίτοι πολλὰ λιπαροῦντος αὐτοῦ συγκαταθεῖναι εἰς τοιοῦτοrdquo (Porph VP 60-61)

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mim este esquecimento para que pudesse colocar agrave prova tua firmeza em observar os pactosrdquo (Iambl VP 185)172

Por traacutes da anedota esconde-se certamente a memoacuteria da dimensatildeo incondicio-

nal da fidelidade na philiacutea pitagoacuterica que instaura uma identidade de grupo tatildeo forte a

ponto de configurar as relaccedilotildees a partir da alternativa noacutes e eles e tornar-se proverbial

no mundo antigo

Vinganccedila contra os apoacutestatas Eacute com toda probabilidade novamente Timeu a

descrever no trecho imediatamente sucessivo agravequele acima citado em relaccedilatildeo ao criteacuterio

de admissatildeo e agraves formas da dokimasiacutea os procedimentos de expulsatildeo dos apoacutestatas isto

eacute dos que por algum motivo traindo as regras do biacuteos eram excluiacutedos da koinoniacutea

No caso em que fossem recusados recuperavam em dobro seus per-tences enquanto ldquoaqueles que ouviam juntosrdquo (homakooiacute) como eram chamados todos os seguidores de Pitaacutegoras levantavam para eles uma laacutepide fuacutenebre como se fossem mortos [] Se em outra ocasiatildeo acon-tecia de encontrar quem havia sido recusado o consideravam como um estranho qualquer e natildeo como um companheiro pois havia morri-do para eles (Iambl VP 73-4)173

Tratava-se de uma exclusatildeo definitiva portanto que natildeo previa evidentemente

alguma possibilidade de volta como eacute indicado inconstestavelmente pela comparaccedilatildeo

com a proacutepria morte

Modos alternativos A vida cotidiana na comunidade pitagoacuterica previa uma or-

ganizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo pouco comuns para os padrotildees da eacutepoca A descriccedilatildeo

mais coerente desta pode ser encontrada em Jacircmblico

172 Orig ldquo πρός γε microὴν συνταγὰς καὶ τὸ ἀψευδεῖν ἐν αὐταῖς οὕτως εὖ παρεσκεύαζε τοὺς ὁmicroιλητὰς Πυθαγ-όρας ὥστε φασί ποτε Λῦσιν προσκυνήσαντα ἐν Ἥρας ἱερῷ καὶ ἐξιόντα συντυχεῖν Εὐρυφάmicroῳ Συρακουσ-ίῳ τῶν ἑταίρων τινὶ περὶ τὰ προπύλαια τῆς θεοῦ εἰσιόντι προστάξαντος δὲ τοῦ Εὐρυφάmicroου προσmicroεῖναι αὐτόν microέχρις ἂν καὶ αὐτὸς προσκυνήσας ἐξέλθῃ ἑδρασθῆναι ἐπί τινι λιθίνῳ θώκῳ ἱδρυmicroένῳ αὐτόθι ὡς δὲ προσκυνήσας ὁ Εὐρύφαmicroος καὶ ἔν τινι διανοήmicroατι καὶ βαθυτέρᾳ καθrsquo ἑαυτὸν ἐννοίᾳ γενόmicroενος διrsquo ἑτέρου πυλῶνος ἐκλαθόmicroενος ἀπηλλάγη τό τε τῆς ἡmicroέρας λοιπὸν καὶ τὴν ἐπιοῦσαν νύκτα καὶ τὸ πλέον microέρος ἔτι τῆς ἄλλης ἡmicroέρας ὡς εἶχεν ἀτρέmicroας προσέmicroενεν ὁ Λῦσις καὶ τάχα ἂν ἐπὶ πλείονα χρόνον αὐτοῦ ἦν εἰ microή περ ἐν τῷ ὁmicroακοείῳ τῆς ἑξῆς ἡmicroέρας γενόmicroενος ὁ Εὐρύφαmicroος καὶ ἀκούσας ἐπιζητουmicroένου πρὸς τῶν ἑταίρων τοῦ Λύσιδος ἀνεmicroνήσθη καὶ ἐλθὼν αὐτὸν ἔτι προσmicroένοντα κατὰ τὴν συνθήκην ἀπήγαγε τὴν αἰτίαν εἰπὼν τῆς λήθης καὶ προσεπιθεὶς ὅτι ταύτην δέ microοι θεῶν τις ἐνῆκε δοκίmicroιον ἐσοmicroένην τῆς σῆς περὶ συνθήκας εὐσταθείαςrdquo (Iambl VP 185) 173 Orig ldquo εἰ δrsquo ἀποδοκιmicroασθείησαν τὴν microὲν οὐσίαν ἐλάmicroβανον διπλῆν microνῆmicroα δὲ αὐτοῖς ὡς νεκροῖς ἐχώννυτο ὑπὸ τῶν ὁmicroακόων οὕτω γὰρ ἐκαλοῦντο πάντες οἱ περὶ τὸν ἄνδρα []καὶ εἴ ποτε συντύχοιεν ἄλλως αὐτῷ πάντα ὁντινοῦν microᾶλλον ἢ ἐκεῖνον ἡγοῦντο εἶναι τὸν κατrsquo αὐτοὺς τεθνηκόταrdquo (Iambl VP 73-4)

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Na parte da manhatilde realizavam passeios solitaacuterios em lugares onde houvesse quietude e tranquilidade como templos e bosques e algo que alegrasse o espiacuterito Estavam de fato convencidos de que natildeo se devia encontrar ningueacutem antes de ter arrumado a alma e ordenado o pensamento [] Depois do passeio matutino reuniam-se entre eles normalmente em santuaacuterios ou em lugares de natureza semelhante Dedicavam estas ocasiotildees ao ensino e agrave aprendizagem e agrave correccedilatildeo do caraacuteter Em seguida dedicavam-se agrave cura de seus proacuteprios corpos [] No almoccedilo comiam patildeo mel mel misturado com cera e natildeo toma-vam vinho ao longo do dia Dedicavam as horas da tarde aos negoacutecios poliacuteticos tanto os internos quanto os externos [] Ao aproximar-se do entardecer voltavam a fazer os passeios todavia natildeo sozinhos como de manhatilde e sim em grupos de dois ou trecircs relembrando as coi-sas aprendidas e exercitando-se com belas ocupaccedilotildees Depois do pas-seio tomavam banho e se dirigiam ao banquete comum [] Apoacutes o banquete ofereciam libaccedilotildees e acontecia a leitura [] Uma vez pro-nunciadas estas palavras cada um voltava para a sua proacutepria casa Vestiam vestes brancas e puras e usavam lenccediloacuteis tambeacutem brancos e puros de linho pois natildeo usavam peles (Iambl VP 96-100)174

A imagem cenobiacutetica tipicamente monaacutestica da vida pitagoacuterica pertence cer-

tamente a uma tradiccedilatildeo tardia provavelmente mediada pela tradiccedilatildeo estoica mediopla-

tocircnica obedecendo mais diretamente ao ideal de vida calma e transcorrida em lugares

bucoacutelicos do ideal da vida filosoacutefica heleniacutestica e depois imperial Chama especialmente

atenccedilatildeo a indicaccedilatildeo da leitura em comum mais bem especificada por Jacircmblico logo em

seguida (VP 104) com relaccedilatildeo ao que eacute chamado de didaskaliacutea diaacute tocircn syacutembolocircn isto eacute

da explicaccedilatildeo dos sinais uma forma de exegese que incluiria ao lado da praacutetica oral a

utilizaccedilatildeo de uma seacuterie de diferentes tipos de escritos desde anotaccedilotildees ateacute publicaccedilotildees

ecdoacuteticas Eacute obviamente impensaacutevel uma complexidade literaacuteria como esta para os seacute-

174 Passagem paralela em Porfiacuterio (VP 32) O testemunho eacute com toda probabilidade aristoxecircnico de maneira especial em sua parte final (Burkert 1982 16) Sobre a recepccedilatildeo de Aristoxeno da eacutetica pitagoacuteri-ca no quarto seacuteculo aEC e em acircmbito peripateacutetico cf os recentes estudos de Huffman (2006 2008) Orig ldquo τοὺς microὲν ἑωθινοὺς περιπάτους ἐποιοῦντο οἱ ἄνδρες οὗτοι κατὰ microόνας τε καὶ εἰς τοιούτους τόπους ἐν οἷς συνέβαινεν ἠρεmicroίαν τε καὶ ἡσυχίαν εἶναι σύmicromicroετρον ὅπου τε ἱερὰ καὶ ἄλση καὶ ἄλλη τις θυmicroηδία ᾤοντο γὰρ δεῖν microὴ πρότερόν τινι συντυγχάνειν πρὶν ἢ τὴν ἰδίαν ψυχὴν καταστήσουσι καὶ συναρmicroόσονται τὴν διάνοιαν [] microετὰ δὲ τὸν ἑωθινὸν περίπατον τότε πρὸς ἀλλήλους ἐνετύγχανον microάλιστα microὲν ἐν ἱεροῖς εἰ δὲ microή γε ἐν ὁmicroοίοις τόποις ἐχρῶντο δὲ τῷ καιρῷ τούτῳ πρός τε διδασκαλίας καὶ microαθήσεις καὶ πρὸς (97) τὴν τῶν ἠθῶν ἐπανόρθωσιν microετὰ δὲ τὴν τοιαύτην διατριβὴν ἐπὶ τὴν τῶν σωmicroάτων ἐτρέποντο θεραπ-είαν []ἀρίστῳ δὲ ἐχρῶντο ἄρτῳ καὶ microέλιτι ἢ κηρίῳ οἴνου δὲ microεθrsquo ἡmicroέραν οὐ microετεῖχον τὸν δὲ microετὰ τὸ ἄριστον χρόνον περὶ τὰς πολιτικὰς οἰκονοmicroίας κατεγίνοντο περί τε τὰς ἐξωτικὰς καὶ τὰς ξενικάς [] δείλης δὲ γινοmicroένης εἰς τοὺς περιπάτους πάλιν ὁρmicroᾶν οὐχ ὁmicroοίως κατrsquo ἰδίαν ὥσπερ ἐν τῷ ἑωθινῷ περιπάτῳ ἀλλὰ σύνδυο καὶ σύντρεις ποιεῖσθαι τὸν περίπατον ἀναmicroιmicroνησκοmicroένους τὰ microαθήmicroατα (98) καὶ ἐγγυmicroναζοmicroένους τοῖς καλοῖς ἐπιτηδεύmicroασι microετὰ δὲ τὸν περίπατον λουτρῷ χρῆσθαι λουσαmicroένους τε ἐπὶ τὰ συσσίτια ἀπαντᾶνmiddot [] (99) οὐ χρήσιmicroα πρὸς τὸ χρῆσθαι microετὰ δὲ τόδε τὸ δεῖπνον ἐγίνοντο σπονδαί ἔπειτα ἀνάγνωσις ἐγίνετο [] τούτων δὲ ῥηθέντων ἀπιέναι ἕκαστον εἰς οἶκον ἐσθῆτι δὲ χρῆσθαι λευκῇ καὶ καθαρᾷ ὡσαύτως δὲ καὶ στρώmicroασι λευκοῖς τε καὶ καθαροῖς εἶναι δὲ τὰ στρώmicroατα ἱmicroάτια λινᾶmiddot κῳδί-οις γὰρ οὐ χρῆσθαιrdquo (Iambl VP 96-100 passim)

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culos VI e V aEC A imagem deveraacute portanto corresponder mais provavelmente agrave des-

criccedilatildeo de uma mesa de estudo da Biblioteca de Alexandria em eacutepoca heleniacutestica175

O vegetarianismo eacute certamente outro sinal de um estilo de vida culturalmente al-

ternativo dos pitagoacutericos Como vimos acima nos estudos de Detienne a dieta vegetari-

ana implica a recusa radical de uma praacutetica religiosa e social aquela do sacrifiacutecio ani-

mal que constitui um dos pilares da cultura grega antiga O vegetarianismo estaacute direta-

mente ligado agrave crenccedila na metempsicose e no parentesco universal entre todos os seres

viventes conforme mencionado no resumo inicial das doutrinas de Pitaacutegoras por Porfiacute-

rio (VP 19)

Algumas de suas [de Pitaacutegoras] afirmaccedilotildees ganharam notoriedade pra-ticamente geral 1) afirma que a alma eacute imortal 2) que transmigra em outras espeacutecies de seres vivos 3) que periodicamente o que jaacute acon-teceu uma vez volta a acontecer e nada eacute absolutamente novo e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gecircnero Ao que parece foi mesmo Pitaacutegoras a introduzir pela primeira vez estas crenccedilas na Greacutecia (Porph VP 19)176

A menccedilatildeo agrave introduccedilatildeo desta crenccedila na Greacutecia pressupotildee mais uma vez estra-

nheza geral a ela configurando-se com isso a imagem de uma seita marcada por uma

subcultura alternativa177

Consequecircncia do vegetarianismo eacute o outro sinal da postura alternativa dos pita-

goacutericos a famosa tradiccedilatildeo de recusar-se a realizar sacrifiacutecios de animais Todavia por

ser ponto central do sistema de crenccedilas tradicionais e elemento fundamental das festas

religiosas poliacuteades a praacutetica devia entrar em conflito de forma tatildeo radical com o siste-

ma religioso tradicional ao ponto de merecer uma flexibilizaccedilatildeo quase imediata Eacute o que

175 Jacircmblico fala mais especificamente de diaacutelogos (διαλέξεις) instruccedilotildees reciacuteprocas (ὁmicroιλίαι) anotaccedilotildees (ὑποmicroνηmicroατισmicroοί) notas (ὑποσηmicroειώσεις) tratados (συγγράmicromicroατα) e publicaccedilotildees (ἐκδόσεις) (Iambl VP 104) O exerciacutecio da comparaccedilatildeo desta descriccedilatildeo pode ser estendido ainda mais englobando a semelhan-ccedila dela com a descriccedilatildeo dos essecircnios em Flaacutevio Josefo (A Guerra Judaacuteica II 128-33) e dos terapeutas judeus do lago de Mareoacutetida descritos por Fiacutelon (De vita contemplativa II) apesar das reservas expressas por Centrone (2000 161 n47) em relaccedilatildeo a esta uacuteltima 176 Orig ldquo microάλιστα microέντοι γνώριmicroα παρὰ πᾶσιν ἐγένετο πρῶτον microὲν ὡς ἀθάνατον εἶναι φησὶ τὴν ψυχήν εἶτα microεταβάλλουσαν εἰς ἄλλα γένη ζῴων πρὸς δὲ τούτοις ὅτι κατὰ περιόδους τινὰς τὰ γενόmicroενά ποτε πάλιν γίνεται νέον δrsquoοὐδὲν ἁπλῶς ἔστι καὶ ὅτι πάντα τὰ γινόmicroενα ἔmicroψυχα ὁmicroογενῆ δεῖ νοmicroίζειν φέρεται γὰρ εἰς τὴν Ἑλλάδαrdquo (Porph VP 19) 177 Agrave confirmaccedilatildeo disso Burkert define a metempsicose como ldquoum corpo estranho no interior da religiatildeo gregardquo (1977 430)

96

revelaria certa racionalizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de animais conforme aparece em Jacircmblico

(VP 85) e sobretudo em uma paacutegina do De Abstinecircncia de Porfiacuterio

Por esse motivo os pitagoacutericos acolhendo essa tradiccedilatildeo abstinham-se ao longo de toda a vida de comer animais e quando ofereciacuteam aos deuses algum animal no lugar de si mesmos depois de tecirc-lo somente degustado viviam na realidade intocados pelos outros animais (Porph De Abst 228 2)178

Ainda que desarmada a tradiccedilatildeo de uma praacutetica contracultural como esta toda-

via permanence ao longo dos seacuteculos apontando mais uma vez para uma postura alter-

nativa e sectaacuteria da comunidade179

Silecircncio e segredo Diversas citaccedilotildees acima recordam a obrigaccedilatildeo do silecircncio e

do segredo com relaccedilatildeo agraves doutrinas Eacute esta uma das caracteriacutesticas mais lembradas pela

tradiccedilatildeo O testemunho mais antigo eacute certamente aquele do orador Isoacutecrates contempo-

racircneo de Platatildeo ldquoainda hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacutepu-

los [de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessima fama atraveacutes da

palavrardquo (Isoacutecrates Busiris 29 = 14 A4 DK)180 Mesmo alguns fragmentos da comeacutedia

de meio (DK 58 E) recordam essa obrigaccedilatildeo do silecircncio ldquoera necessaacuterio suportar a es-

cassez de comida a sujeira o frio o silecircncio a severidade e a falta de higienerdquo (Alexis

A Pitagorizante fr 201 Kassel-Austin = 58 E1 DK)181

Um ceacutelebre caso melodramaacutetico de quebra desta obrigaccedilatildeo do segredo eacute o da

revelaccedilatildeo por parte de Hipaso da doutrina da incomensurabilidade ou em outra ver-

satildeo da inscriccedilatildeo do dodecaedro em uma esfera182 A tradiccedilatildeo matemaacutetica do pitagoris-

mo atribui a Hipaso aleacutem disso o roubo da originalidade da descoberta que foi certa-

178 Orig ldquo διόπερ οἱ Πυθαγόρειοι τοῦτο παραδεξάmicroενοι κατὰ microὲν τὸν πάντα βίον ἀπείχοντο τῆς ζῳοφαγί-ας ὅτε δὲ εἰς ἀπαρχήν τι τῶν ζῴων ἀνθ ἑαυτῶν microερίσειαν τοῖς θεοῖς τούτου γευσάmicroενοι microόνον πρὸς ἀλήθειαν ἄθικτοι τῶν λοιπῶν ὄντες ἔζωνrdquo (Porph De Abst 2282) 179 Burkert (1972 182) assim comenta a acomodaccedilatildeo agrave cultura majoritaacuteria da praacutetica da renuacutencia ao sacri-fiacutecio de animais ldquoIt would have meant a complete overturn of traditional ways As far as we canjudge the Pythagoreans sought compromise the matter an acusma asks ldquoWhat is most justrdquo and answers ldquoTo sacrificerdquo An accommodation of the doctrine of metempsychosis and the traditional way was found because it had to be foundrdquo 180 Orig ldquo ἔτι γὰρ καὶ νῦν τοὺς προσποιουmicroένους ἐκείνου microαθητὰς εἶναι microᾶλλον σιγῶντας θαυmicroάζουσιν ἢ τοὺς ἐπὶ τῷ λέγειν microεγίστην δόξαν ἔχονταςrdquo (Isoacutecrates Busiris 29) 181 Para uma visatildeo geral sobre o pitagorismo na comeacutedia de meio cf Bellido (1972) e Chevitarese (2004) 182 Eacute Burkert (1972 455) quem fala de um ldquoveritable melodrama in intellectual historyrdquo em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo dos incomensuraacuteveis Refere-se provavelmente a Hipaso o capiacutetulo de Jacircmblico (VP 74) que menciona a possibilidade de algueacutem instruiacutedo nas ciecircncias ser expulso da comunidade ainda que natildeo o cite nominalmente Para a referecircncia expliacutecita a Hipaso cf Iambl VP (88 247)

97

mente Dele (toucirc androacutes Iambl VP 88) isto eacute do tambeacutem inominaacutevel Pitaacutegoras Nessa

atribuiccedilatildeo revela-se um dos motivos comuns da insistecircncia no segredo das doutrinas

diante da resistecircncia dos acusmaacuteticos em considerarem como parte fundamental da tra-

diccedilatildeo pitagoacuterica questotildees matemaacuteticas desse gecircnero o lado dos matemaacuteticos utiliza a

escamoteaccedilatildeo tiacutepica do argumento de autoridade atribuindo-as diretamente a Ele De

fato da mesma maneira quando ndash em eacutepoca heleniacutestica ndash se inicia vasta produccedilatildeo de

apoacutecrifos o argumento da consignaccedilatildeo do segredo sobre as doutrinas entre os primeiros

pitagoacutericos serviraacute ao propoacutesito de justificar o aparecimento somente tardio de cartas

atribuiacutedas falsamente a Pitaacutegoras ou aos primeiros familiares ou disciacutepulos183 Com ra-

zatildeo anota Huffman (2008a) uma testemunha importante como Aristoacuteteles natildeo revela

em seus escritos alguma dificuldade em ter acesso aos textos pitagoacutericos (ao contraacuterio

escreve trecircs livros sobre Arquitas) Disso deriva que ou grande parte das doutrinas pi-

tagoacutericas natildeo eram de fato sigilosas ou o segredo foi ldquomuito mal guardadordquo (Huffman

2008a 218)

A controveacutersia jaacute antiga sobre a existecircncia de escritos autecircnticos de Pitaacutegoras

deve ser tambeacutem compreendida no interior dessa tradiccedilatildeo184

E todavia a presenccedila da obrigaccedilatildeo do segredo eacute tatildeo significativa especialmente

com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees dos akouacutesmata e syacutembola ao ponto de natildeo poder ser reduzida

simplesmente a uma falsificaccedilatildeo heleniacutestica esta configura exatamente um dos criteacuterios

centrais para a constituiccedilatildeo de uma seita isto eacute aquele de uma linguagem esoteacuterica que

precise de senhas especiacuteficas para ser compreendida

Boa soluccedilatildeo da questatildeo do segredo na comunidade e literatura pitagoacuterica eacute aque-

la proposta por Gemelli (2007b) No interior de atenta anaacutelise da linguagem esoteacuterica

utilizada pelos preacute-socraacuteticos Gemelli anota que

Eacute caracteriacutestica do texto esoteacuterico uma estreita ligaccedilatildeo entre lingua-gem e experiecircncia que nada diz a quem natildeo tiver a capacidade de ldquotornar concretardquo a palavra O silecircncio pretendido pelos pitagoacutericos

183 Cf para a coleccedilatildeo destes apoacutecrifos Thesleff (1965) aleacutem da Introduccedilatildeo a esta literatura (Thesleff 1961) Cf tambeacutem Szlezaacutek (1972) para ediccedilatildeo e comentaacuterio do celebre tratato Sobre as dez categorias de Pseudo-Arquitas e Centrone (1990) para uma ediccedilatildeo e comentaacuterio de alguns tratados morais pseudopita-goacutericos Ateacute mesmo de Filolau se recorda uma quebra do sigilo em ocasiatildeo da divulgaccedilatildeo dos ceacutelebres trecircs livros comprados por Platatildeo (D L Vitae VIII 85) E mesmo essa notiacutecia eacute utilizada para legitimar um falso pitagoacuterico de idade heleniacutestica (jaacute mencionado em D L Vitae VIII 6) Cf para isso Burkert (1972 223-227) Huffman (1993 12-14) e o que se diraacute a seguir (4131) 184 Cf Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 6-8) Para um comentaacuterio a esta controveacutersia cf Centrone (1992)

98

natildeo eacute um silecircncio sobre as palavras e sim sobre as experiecircncias Pois umas sem as outras permanecem um cofre trancafiado (Gemelli 2007b 438)185

O segredo portanto seria uma estrateacutegia da comunidade para manter as experi-

ecircncias que se desenvolvem em seu interior como prerrogativa exclusiva dos iniciados a

tese de Gemelli eacute muito convincente e impregnada de consequecircncias para a compreen-

satildeo da dinacircmica esoteacuterica do protopitagorismo

Guia carismaacutetico A presenccedila carismaacutetica do fundador Pitaacutegoras paira sobre as

diversas caracteriacutesticas ateacute aqui detectadas na seita pitagoacuterica Tanto a referecircncia acima

de Aristoacuteteles de sua natureza intermediaacuteria entre deuses e homens (Iambl VP 31)

como a expressatildeo toucirc androacutes (Iambl VP 88) para referir-se a Pitaacutegoras sem nomeaacute-lo

sugerem de fato a presenccedila de mais esse criteacuterio de identificaccedilatildeo do pitagorismo como

de uma seita Para aleacutem disso eacute recorrente a tradiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo da autoridade de

praticamente qualquer doutrina ao mestre Pitaacutegoras lembrada pela expressatildeo Autoacutes

eacutepha ipse dixit (Iambl VP 46) A figura de Pitaacutegoras insere-se claramente no padratildeo

do theioacutes aneacuter do homem divino da tradiccedilatildeo grega antiga cujas caracteriacutesticas foram

habilmente resumidas por Achtemeier

As caracteriacutesticas do theiacuteos aneacuter podem ser brevemente resumidas um nascimento maravilhoso uma carreira marcada pelo dom de uma linguagem persuasiva e dominadora a capacidade de fazer milagres incluindo curas e adivinhaccedilotildees e uma morte de alguma maneira ex-traordinaacuteria (Achtemeier 1972 209)186

Os diversos testemunhos sobre os poderes sobrenaturais de Pitaacutegoras e de ma-

neira especial de seus milagres inserem-se no interior da construccedilatildeo desta figura extra-

ordinaacuteria

Macris (2003 265-270) ainda que reconheccedila que o termo theacuteios aneacuter seja o

mais aderente agraves fontes prefere ndash na esteira de Riedweg utilizar o mais geneacuterico ldquoca-

rismaacuteticordquo justificando a escolha da seguinte maneira

185 Orig ldquoist ein Charakteristikum esoterischer Texte die eben fuumlr denjenigen nichtssagend sind dem die Faumlhigkeit fehlt dem Wort lsquoeinen konkreten Sinn zu verleihenrsquo Das Scheweigen das die Pythagereer verlangten bezog sich nicht auf das Gesagte sondern auf das Erlebte Denn das eine blieb ohne das andere ein versiegelter Schreinrdquo 186 Orig ldquoThe characteristics of the theiacuteos aneacuter can be summarized briefly a wondrous birth a career by the gift of overpowering persuasive speech the ability to perform miracles including healings and foreseeing the future and a death marked in some way extraordinaryrdquo

99

Se preferimos o qualificativo lsquocarismaacuteticorsquo eacute porque em sua acepccedilatildeo socioloacutegica propriamente weberiana evoca inevitavelmente para a-leacutem dos dons exepcionais de Pitaacutegoras a relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo que estaacute estabelecida entre o mestre e os membros da comunidade que se formou em torno dele (Macris 2003 270)187

O carisma de Pitaacutegoras portanto deveraacute ser pensado como mais um elemento de

coesatildeo da koinoniacutea

Prescriccedilotildees reprodutivas Entre as doutrinas que constituem a comunidade pita-

goacuterica como alternativa aos haacutebitos comuns da sociedade grega haacute certamente aquela

da ascensatildeo das mulheres ao mesmo status social dos homens Natildeo acaso a pitagoacuterica

acima citada como protagonista da comeacutedia de Aleacutexis eacute uma personagem bastante re-

corrente na comeacutedia de meio Desde a notiacutecia do sucesso de seus discursos inaugurais

em Crotona a tradiccedilatildeo lembra que a comunidade pitagoacuterica que surge em consequecircncia

do sucesso deles eacute composta tambeacutem por mulheres (Porph VP 19-20 Iambl VP 30)

O primeiro nome lembrado eacute aquele de Teano as fontes oscilam entre consideraacute-la filha

ou esposa do fundador188 Para aleacutem das anedotas elaboradas para mostrar a forccedila e fi-

delidade agrave comunidade das mulheres ndash eacute este o caso da graacutevida Tiacutemica que resiste agrave

tortura de Dioniso II (Iambl VP 194) ndash destaca-se uma seacuterie de testemunhos relativos

agrave regulaccedilatildeo da reproduccedilatildeo e dos rituais a ela conexos que revelam diferente relaccedilatildeo de

gecircnero entre os pitagoacutericos

Dizem que quando Teano foi interrogada sobre quantos dias depois de um intercurso sexual com um homem uma mulher recupera a pure-za teria respondido ldquoda relaccedilatildeo com o proacuteprio esposo de imediato daquela com um estranho nuncardquo Exortava a [esposa] que ia ter com seu proacuteprio marido a abandonar junto com os vestidos o pudor e uma vez levantada a recuperaacute-lo junto com estes E quando lhe foi perguntado ldquoQuaisrdquo ela respondeu ldquoaqueles pelos quais me cha-mam de mulherrdquo (D L Vitae VIII 43)189

187 Cf Riedweg (2002 119ss) para uma descriccedilatildeo aprofundada do modelo socioloacutegico carismaacutetico que haveria por traacutes da figura de Pitaacutegoras Orig ldquoSe nous lui avons preacutefeacutereacute le qualificatif lsquocharismatiquersquo cacuteest parce que dans son acception sociologique proprement weacutebeacuterienne il evoque ineacutevitablement au-delagrave decircs dons exceptionnels de Pythagore la relation de domination qui sacuteest egravetablie entre le maicirctre et lecircs membres de la communauteacute qui sacuteest formeacutee autour de luirdquo (Macris 2003 270) 188 Cf para uma sinopse das fontes sobre Teano Delatte (1922 246-248) 189 Orig ldquo ἀλλὰ καί φασιν αὐτὴν ἐρωτηθεῖσαν ποσταία γυνὴ ἀπrsquo ἀνδρὸς καθαρεύει φάναι ldquoἀπὸ microὲν τοῦ ἰδίου παραχρῆmicroα ἀπὸ δὲ τοῦ ἀλλοτρίου οὐδέποτεrdquo τῇ δὲ πρὸς τὸν ἴδιον ἄνδρα microελλούσῃ πορεύεσθαι παρῄνει ἅmicroα τοῖς ἐνδύmicroασι καὶ τὴν αἰσχύνην ἀποτίθεσθαι ἀνισταmicroένην τε πάλιν ἅmicrorsquo αὐτοῖσιν ἀναλαmicroβά-νειν ἐρωτηθεῖσα ldquoποῖαrdquo ἔφη lsquoταῦτα διrsquo ἃ γυνὴ κέκληmicroαιrdquo (D L Vitae VIII 43)

100

Veja-se tambeacutem na mesma linha uma das memoacuterias da kataacutebasis de Pitaacutegoras

ao Hades entre outros castigados ele teria visto os homens que natildeo quiseram ter inter-

cursos sexuais com suas esposas (D L Vitae VIII 21) Jacircmblico (VP 132 e 195) lem-

bra de Pitaacutegoras convencendo os crotonenses a abandonar as concubinas Aqui natildeo esta-

ria tanto em questatildeo ao que parece a isonomia de obrigaccedilotildees morais conjugais entre

homens e mulheres e sim uma atitude tiacutepica de pequenas comunidades sectaacuterias que

por meio do controle da reproduccedilatildeo no interior do proacuteprio grupo tende a garantir sua

sobrevivecircncia Os vaacuterios ditos dedicados agrave necessidade de procriar para honrar os deu-

ses em si aparentemente geneacutericos assumem na relativamente pequena comunidade

pitagoacuterica tons de autecircntica dramaticidade190

Intensa mobilidade geograacutefica Enfim uma intensa mobilidade geograacutefica eacute

impliacutecita agrave narrativa da anedota acima citada de Tiacutemica que ndash quando graacutevida ndash antes

de cair na emboscada de Dioniso II ser presa e em seguida torturada viajava junto

com outros nove companheiros de Tarento para Metaponto (Iambl VP 189-194) A

tradiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Neantes e foi certamente elaborada conforme o modelo das anedo-

tas biograacuteficas heleniacutesticas Ainda assim observa justamente Burkert (1982 17) revela

uma uacuteltima caracteriacutestica tiacutepica de uma seita aquela da mobilidade de seus membros

pois ldquoeles seguiam a mudanccedila das estaccedilotildees e escolhiam lugares adequados para suas

reuniotildeesrdquo (Iambl VP 189)191 A mobilidade da comunidade significa recusa agrave pertenccedila

a uma cidade especiacutefica e a subtituiccedilatildeo da relaccedilatildeo poliacuteade pela relaccedilatildeo sectaacuteria

Nesse mesmo sentido aos criteacuterios acima desenhados para identificar a separa-

ccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica em sentido identitaacuterio eacute o caso certamente de acrescentar

ndash agrave moda de conclusatildeo ndash o esquema narrativo da fundaccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica

tanto em Porfiacuterio como em Jacircmblico nos trechos que se seguem imediatamente aos

quatro discursos quando da chegada de Pitaacutegoras a Crotona Ambas as tradiccedilotildees remon-

tam a Nicocircmaco e seguem esquema muito semelhante

Com uma uacutenica liccedilatildeo puacuteblica conforme afirma Nicocircmaco ministrada na ocasiatildeo de seu desembarque na Itaacutelia conquistou mais de dois mil ouvintes tanto que estes natildeo voltaram mais para casa e jamais o aban-

190 Cf Iambl VP 84 191 Orig ldquo ἡρmicroόζοντο γὰρ πρὸς τὰς τῶν ὡρῶν microεταβολὰς καὶ τόπους εἰς τὰ τοιάδε ἐπελέγοντο ἐπιτηδείο-υςrdquo (Iambl VP 189)

101

donaram ao contraacuterio constituiacuteram junto com mulheres e filhos uma imensa ldquocasa dos ouvintesrdquo e fundaram aquela que todos chamaram Magna Greacutecia drsquoItaacutelia Tomaram dele [Pitaacutegoras] leis e prescriccedilotildees [] e puseram em comum seus bens (Porph VP 20)192 Em uma uacutenica liccedilatildeo a primeira por ele ministrada publicamente apoacutes ter chegado soacute agrave Itaacutelia soube conquistar com suas palavras mais de duas mil pessoas Estas foram tomadas a tal ponto que natildeo voltaram mais para suas casas e ao contraacuterio constituiacuteram junto com mulheres e filhos uma imensa ldquocasa dos ouvintesrdquo e fundaram aquela que foi chamada por todos de Magna Greacutecia Tomaram de Pitaacutegoras leis e prescriccedilotildees [] e puseram em comum seus bens (Iambl VP 30)193

O esquema narrativo segue de perto o modelo da fundaccedilatildeo de uma cidade-

colocircnia natildeo voltar mais para as proacuteprias casas (oukeacuteti oikaacutede apeacutestesan) novo centro

comum (omakoeicircon) enfim nova cidade da qual fazem parte mulheres e filhos fundada

na comunhatildeo dos bens194

A referecircncia agrave Magna Greacutecia remete para algo ineacutedito o termo Megale Hellas

natildeo eacute um polinocircnimo e sim um corocircnimo isto eacute natildeo se refere a uma cidade especiacutefica

mas sim a um inteiro territoacuterio (o sul da Itaacutelia) Por consequecircncia o pitagorismo aqui

pretenderia mais do que simplesmente fundar uma cidade em lugar disso daria aos

territoacuterios da Magna Greacutecia uma unidade poliacutetica (polizein eacute o verbo utilizado em am-

bas as tradiccedilotildees) anteriormente inexistente (Mele 2000 329)

Visto ldquode forardquo o sistema koinonia-poacutelis-khoacutera pitagoacuterico natildeo podia senatildeo pare-

cer como ameaccedilador para o restante dos poderes constituiacutedos As notiacutecias das revoltas e

das sucessivas crises da presenccedila pitagoacuterica na Magna Greacutecia revelam um claro incocirc-

modo com relaccedilatildeo agrave escola Entre todas eacute significativa a tradiccedilatildeo da recusa por parte

dos habitantes de Locris de acolher Pitaacutegoras fugitivo

192 Orig ldquo microιᾷ microόνον ἀκροάσει ὡς φησὶ Νικόmicroαχος ἣν ἐπιβὰς τῆς Ἰταλίας πεποίηται πλέον ἢ δισχιλίους ἑλεῖν τοῖς λόγοις ὡς microηκέτι οἴκαδrsquo ἀποστῆναι ἀλλrsquo ὁmicroοῦ σὺν παισὶ καὶ γυναιξὶν ὁmicroακοεῖόν τι παmicromicroέγεθ-ες ἱδρυσαmicroένους πολίσαι τὴν πρὸς πάντων ἐπικληθεῖσαν microεγάλην Ἑλλάδα ἐν Ἰταλίᾳ νόmicroους τε παρrsquo αὐτοῦ δεξαmicroένους []οὗτοι δὲ καὶ τὰς οὐσίας κοινὰς ἔθεντοrdquo (Porph VP 20) 193 Orig ldquo ἐν microιᾷ microόνον ἀκροάσει ὥς φασιν ἣν πρωτίστην καὶ πάνδηmicroον microόνος ἐπιβὰς τῆς Ἰταλίας ὁ ἄνθρωπος ἐποιήσατο πλέονες ἢ δισχίλιοι τοῖς λόγοις ἐνεσχέθησαν αἱρεθέντες αὐτοὶ κατὰ κράτος οὕτως ὥστε οὐκέτι οἴκαδε ἀπέστησαν ἀλλὰ ὁmicroοῦ παισὶ καὶ γυναιξὶν ὁmicroακοεῖόν τι παmicromicroέγεθες ἱδρυσάmicroενοι καὶ πολίσαντες αὐτοὶ τὴν πρὸς πάντων ἐπικληθεῖσαν Μεγάλην Ἑλλάδα νόmicroους τε παρrsquo αὐτοῦ δεξάmicroενοι καὶ προστάγmicroατα ὡσανεὶ θείας ὑποθήκας [] τάς τε οὐσίας κοινὰς ἔθεντο ὡς προελέχθηrdquo (Iambl VP 30) 194 Os termos utilizados para indicar essa colonizaccedilatildeo poliacutetica satildeo significativamente πολίσαι em Porfiacuterio (VP 20) e πολίσαντες em Jacircmblico (VP 30)

102

Ouvimos dizer Pitaacutegoras que tu eacutes saacutebio e excepcionalmente talento-so mas no que diz respeito a nossas leis natildeo temos nenhum motivo de pocirc-las em discussatildeo e portanto iremos tentar nos ater a elas Tu de tua parte dirija-te para outro lugar mas toma o necessaacuterio do qual precisas (Porph VP 56)195

Em que sentido esse projeto poliacutetico-diplomaacutetico de refundar a Magna Greacutecia

correspondia de fato a uma intenccedilatildeo das primeiras comunidades pitagoacutericas natildeo estaacute

claro Seguramente todavia Pitaacutegoras e os seus eram percebidos como uma ameaccedila agraves

leis e aos costumes autoacutectones pois carregavam consigo uma fama de reformismo eacutetico

poliacutetico e juriacutedico muito grande a comunidade pitagoacuterica eacute percebida como uma metroacute-

polis que permeia toda a Magna Greacutecia pronta a refundar colonizar o territoacuterio inteiro

A mobilidade das lideranccedilas pitagoacutericas (assim como do mesmo Pitaacutegoras) e a arqueo-

logia especialmente das moedas da eacutepoca parecem apontar para o fato de que ndash ateacute as

crises do fim do VI e meados do seacuteculo V ndash esse projeto teve bastante sucesso196 Do

ponto de vista da literatura pitagoacuterica ao contraacuterio a koinoniacutea aparece como projeto

necessaacuterio em consequecircncia da fuga de um regime poliacutetico tiracircnico que como tal im-

pede a realizaccedilatildeo de um biacuteos filosoacutefico197

Em ambos os casos contudo a koinoniacutea eacute assim alternativa poliacutetica agrave metroacutepo-

lis real e agrave sua loacutegica Um projeto fundado sobre duas soacutelidas instituiccedilotildees o omakoeicircon

a ldquocasa dos ouvintesrdquo e a partilha dos bens A comunidade pitagoacuterica eacute enfim uma

cidade que escuta e partilha cujo projeto estaacute baseado de um lado sobre o silecircncio e a

195 Orig ldquo ἡmicroεῖς ὦ Πυθαγόρα σοφὸν microὲν ἄνδρα σε καὶ δεινὸν ἀκούοmicroενmiddot ἀλλrsquo ἐπεὶ τοῖς ἰδίοις νόmicroοις οὐθὲν ἔχοmicroεν ἐγκαλεῖν αὐτοὶ microὲν ἐπὶ τῶν ὑπαρχόντων πειρασόmicroεθα microένεινmiddot σὺ δrsquo ἑτέρωθί που βάδιζε λαβὼν παρrsquo ἡmicroῶν εἴ του κεχρηmicroένος [τῶν ἀναγκαίων] τυγχάνειςrdquo (Porph VP 56) 196 Eacute hoje opiniatildeo comum que as revoltas antipitagoacutericas tenham sido duas e natildeo somente uma ἐπιβουλή como sugere Jacircmblico (VP 248) a primeira coincidiria com a morte de Pitaacutegoras a segunda aconteceria em meados do seacuteculo V Para uma resenha atualizada das posiccedilotildees dos comentadores sobre a crise das comunidades pitagoacutericas cf Musti (1990 62) 197 Trata-se da tradiccedilatildeo que vecirc Pitaacutegoras exilado por causa do desentendimento com o tirano de Samos Poliacutecrates (Porph VP 16) Este herdeiro de um ceacutelebre pirata graccedilas a um exeacutercito mercenaacuterio havia tomado Samos em 538 aEC Com um governo usurpador havia provocado a emigraccedilatildeo forccedilada de uma parte dos sacircmios A primeira diaacutespora da qual temos conhecimento eacute aquela em direccedilatildeo de Diceraquia na atual regiatildeo de Naacutepoles em 524 aEC (Accame 1980) Apesar de alguma tradiccedilatildeo recordar ndash eacute o caso de Antiacutestenes (Porph VP 7 D L Vitae VIII 3) ndash uma inicial colaboraccedilatildeo entre Pitaacutegoras e Poliacutecrates (o primeiro havia solicitado que o rei do Egito Amasi acolhesse o segundo para que pudesse partilhar com ele a formaccedilatildeo dos sacerdotes egiacutepcios) a referecircncia a uma tradicional oposiccedilatildeo de Pitaacutegoras agrave tirania provavelmente jaacute aristoxeacutenica e portanto do IV seacuteculo aEC serve como tal para representar a figura de um Pitaacutegoras como ldquoemigrante em busca da liberdaderdquo (Burkert 1972 119) Pois essa mesma liberdade seraacute o tecido ideoloacutegico da refundaccedilatildeo das cidades pitagoacutericas na Magna Greacutecia

103

filosofia a ser escutada do outro sobre um regime econocircmico comunista como condi-

ccedilotildees sine quibus non para a realizaccedilatildeo de um biacuteos filosoacutefico

Com isso resolve-se tambeacutem aquela que poderia parecer como aparente contra-

diccedilatildeo entre as notiacutecias do envolvimento poliacutetico dos pitagoacutericos e a caracteriacutestica sectaacute-

ria da comunidade Eacute de fato o caso de concordar com a afirmaccedilatildeo de Burkert pela

qual natildeo haveria lugar na Greacutecia antiga para esse tipo de contradiccedilatildeo

Natildeo haacute inconsistecircncia entre este lado [poliacutetico] e o lado religioso e ri-tual do pitagorismo De fato sociedades de culto e clubes poliacuteticos satildeo em origem virtualmente idecircnticos Todo grupo organizado expressa-se em termos de uma devoccedilatildeo comum e toda sociedade de culto eacute ativa politicamente como uma hetairiacutea (Burkert 1972 119)198

Por consequecircncia eacute procedente uma imagem da comunidade pitagoacuterica como ao

mesmo tempo poliacutetica e sectaacuteria esta de fato propotildee-se em uacuteltima anaacutelise como al-

ternativa radical agrave cidade como uma cidade dentro da cidade

24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos

No interior da proacutepria comunidade pitagoacuterica a tradiccedilatildeo demonstra conhecer

aqueles que agrave primeira vista pareceriam diversos graus de pertenccedila agrave koinoniacutea Jacircmblico

recorda a pretensa divisatildeo entre Pitagoreus disciacutepulos integrados totalmente agrave comuni-

dade de vida de um lado e Pitagoristas do outro estes uacuteltimos ecircmulos dos primeiros

seguiam os estudos e as doutrinas mas natildeo obedeciam agraves prescriccedilotildees do biacuteos em sua

radicalidade (Iambl VP 80) O Anocircnimo de Foacutecio (Thesleff 1965 237 paraacutegrafos 7-

12) conhece um nuacutemero ainda maior de graus de separaccedilatildeo e progressiva pertenccedila agrave

comunidade veneraacuteveis dedicados aos estudos teoreacuteticos poliacuteticos que se ocupavam

da gestatildeo da vida humana matemaacuteticos estudiosos da geometria e astronomia pitagoacute-

198 Orig ldquoThere is no inconsistency between this [political] and the religious and ritual side of Pythago-reanism In fact cult society and political club are in origin virtually identical Every organized group expresses itself in terms of a common worship and every cult society is active politically as a hetairiacuteardquo Mas vejam-se tambeacutem os argumentos de Zhmud (1992 247 n5) que discorda dessa interpretaccedilatildeo negan-do importacircncia agrave componente religiosa da comunidade pitagoacuterica Da mesma forma Philip (1966 138)

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ricos disciacutepulos diretos de Pitaacutegoras pitagoreus por sua vez disciacutepulos destes uacuteltimos

e pitagoristas simpatizantes natildeo membros da comunidade199

Contudo a distinccedilatildeo mais comum na literatura pitagoacuterica constantemente reto-

mada pela criacutetica contemporacircnea sobre o pitagorismo eacute aquela entre acusmaacuteticos e ma-

temaacuteticos Em geral a distinccedilatildeo entre os dois grupos corresponde ao esquema da sepa-

raccedilatildeo entre de um lado o homem de ciecircncia como seria o caso do mathematikoacutes que

se dedica aos estudos e agrave pesquisa geomeacutetrica astronocircmica musical e do outro o ho-

mem de feacute no caso do akousmatikoacutes que se limitaria a seguir os akouacutesmata e syacutembola

que regulamentam a vida pitagoacuterica200

Todavia todas as distinccedilotildees de graus de pertenccedila no interior da comunidade pi-

tagoacuterica incluindo esta uacuteltima encontram-se somente em fontes tardias De fato a pri-

meira referecircncia agrave distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteticos aparece somente no seacutecu-

lo II EC em Clemente Alexandrino (Stromata 559) e depois em Porfiacuterio (VP 37) e em

Jacircmblico (VP 81 87-88 De Comm Mathem76 16s)

Aleacutem disso a tradiccedilatildeo dessa distinccedilatildeo carrega diversos problemas historiograacutefi-

cos Primeiramente o termo akouacutesma natildeo eacute encontrado no sentido de preceito a ser

seguido antes de Jacircmblico Ateacute Porfiacuterio os preceitos da vida pitagoacuterica satildeo chamados

de syacutembola201 Por consequecircncia o uso do termo acusmaacuteticos deveraacute ser atribuiacutedo ao

proacuteprio Jacircmblico e natildeo poderaacute ser considerado como uma vaacutelida designaccedilatildeo de um gru-

po real historicamente presente agrave eacutepoca dos primeiros pitagoacutericos A mesma impossibi-

lidade eacute sugerida pela proacutepria erraacutetica complexidade das prescriccedilotildees agraves quais um pitagoacute-

rico deveria prestar atenccedilatildeo caso quisesse seguir o conjunto dos akouacutesmata Segundo

um testemunho de Jacircmblico (VP 82) haveria akouacutesmata de trecircs tipos cada um respon-

dendo a uma pergunta tiacute eacutesti o que eacute tiacute maacutelista o que eacute maior e tiacute praacutekteon o que se

deve fazer

199 Orig ldquo τῶν Πυθαγορείων οἱ microὲν ἦσαν περὶ θεωρίαν καταγινόmicroενοι οἵπερ ἐκαλοῦντο σεβαστικοί οἱ δὲ περὶ τὰ ἀνθρώπινα οἵπερ ἐκαλοῦντο πολιτικοί οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα γεωmicroετρικὰ καὶ ἀστρονοmicroικά οἵπερ ἐκαλοῦντο microαθηmicroατικοί καὶ οἱ microὲν αὐτῷ τῷ Πυθαγόρᾳ συγγενόmicroενοι ἐκαλοῦντο Πυθαγορικοί οἱ δὲ τούτων microαθηταὶ Πυθαγόρειοι οἱ δὲ ἄλλως ἔξωθεν ζηλωταὶ Πυθαγορισταίrdquo (Anon Phot In Thesleff 1965 237 paraacutegrafos 7-12) 200 A referida interpretaccedilatildeo da distinccedilatildeo dos dois como entre o homem de ciecircncia e o homem de feacute eacute de Centrone (1996 81) 201 O proacuteprio Jacircmblico utiliza syacutembola ateacute o Protreptico Cf Zhmud (1992 248 n15) para as referecircncias das passagens de Aristoacuteteles a Porfiacuterio

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Todos os assim chamados akouacutesmata dividem-se em trecircs grupos os do primeiro indicam o que eacute algo aqueles do segundo o que eacute maior aqueles do terceiro o que se deve e natildeo se deve fazer Aqueles que de-finem o que eacute determinada coisa satildeo deste tipo ldquoO que satildeo as ilhas dos bem-aventurados Satildeo o Sol e a Lua O que eacute o oraacuteculo de Delfi A teacutetrada isto eacute a harmonia na qual estatildeo as sereiasrdquo Ao grupo que indica o que eacute maior pertencem os seguintes exemplos ldquoO que eacute a coisa mais justa Sacrificar Qual a mais saacutebia O nuacutemero mas imedi-atamente depois vem o que deu o nome agraves coisas Qual a mais bela A harmonia E a mais forte O raciociacutenio E a melhor A felicidade E o que eacute a coisa mais verdadeira de se dizer Que os homens satildeo malva-dosrdquo (Iambl VP 82)202

O resultado eacute uma seacuterie de prescriccedilotildees que Zhmud (1992 241) define como de

costume sem meios termos ldquoum tremendo conjunto de coisas absurdasrdquo (a tremendous

amount of absurdities) Entre elas eacute preciso calccedilar antes o par direito do sapato natildeo se

devem frequentar as ruas principais falar sem luz carregar a imagem de um deus no anel

sacrificar o galo branco203 Eacute realmente difiacutecil imaginar que na praacutetica algueacutem pudesse

seguir esta complexa rede de acusmata

Em segundo lugar a principal fonte da separaccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteti-

cos isto eacute Jacircmblico revela uma extraordinaacuteria contradiccedilatildeo nas duas vezes em que co-

pia da mesma fonte (Iambl VP 81 e 87) acaba por se contradizer204 Enquanto em VP

81 afirma

Sua filosofia assumia duas formas pois os que a praticam encontram-se distintos em dois gecircneros os acusmaacuteticos e os matemaacuteticos Entre eles os matemaacuteticos eram reconhecidos pelos outros como pitagoreus mas de sua parte natildeo consideravam os acusmaacuteticos como tais natildeo a-

202 Orig ldquo άντα δὲ τὰ οὕτως ltκαλούmicroεναgt ἀκούσmicroατα διῄρηται εἰς τρία εἴδηmiddot τὰ microὲν γὰρ αὐτῶν τί ἐστι σηmicroαίνει τὰ δὲ τί microάλιστα τὰ δὲ τί δεῖ πράττειν ἢ microὴ πράττειν τὰ microὲν οὖν τί ἐστι τοιαῦτα οἷον τί ἐστιν αἱ microακάρων νῆσοι ἥλιος καὶ σελήνη τί ἐστι τὸ ἐν ∆ελφοῖς microαντεῖον τετρακτύςmiddot ὅπερ ἐστὶν ἡ ἁρmicroονία ἐν ᾗ αἱ Σειρῆνες τὰ δὲ τί microάλιστα οἷον τί τὸ δικαιότατον θύειν τί τὸ σοφώτατον ἀριθmicroόςmiddot δεύτερον δὲ τὸ τοῖς πράγmicroασι τὰ ὀνόmicroατα τιθέmicroενον Τί οφώτατον τῶν παρrsquo ἡmicroῖν ἰατρική τί κάλλιστον ἁρmicroονίατί κρά-τιστον γνώmicroη τί ἄριστον εὐδαιmicroονία τί δὲ ἀληθέστατον λέγεται ὅτι πονηροὶ οἱ ἄνθρωποιrdquo (Iambl VP 82) 203 Zhmud chega a sugerir que seja impossiacutevel aceitar seriamente estes tabus (1992 244) Todavia para ampla discussatildeo tendente a compreender o sentido dos akouacutesmata como partes da cultura dos rituais misteacutericos no mundo antigo cf Burkert (1992 166-192) 204 Ineacutedita eacute a contradiccedilatildeo que apresentam as duas versotildees natildeo certamente o jaacute citado (13) procedimento de corte e colagem que ao contraacuterio distingue os procedimentos redacionais de Jacircmblico em relaccedilatildeo a suas fontes Cf para isso em geral Rohde (1872 60) e para a passagem especiacutefica Burkert (1992 193)

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tribuindo a doutrina por eles professada a Pitaacutegoras mas a Hipaso (I-ambl VP 81)205

Logo em seguida no capiacutetulo 87 Jacircmblico afirma exatamente o oposto

Aqueles pitagoacutericos que se ocupam das matemaacuteticas reconhecem [os acusmaacuteticos] como Pitagoacutericos Estes afirmam secirc-lo em maior medida e estar professando a verdade (Iambl VP 87)206

Paralelo a este uacuteltimo eacute outro testemunho de Jacircmblico presente no De communi

mathematica scientiae (25 7616-788)

Entre eles os matemaacuteticos reconheciam como pitagoacutericos os acusmaacute-ticos enquanto estes natildeo reconheciam como pitagoacutericos os matemaacuteti-cos nem que sua doutrina fosse aquela de Pitaacutegoras e sim de Hipaso Alguns afirmam que Hipaso teria nascido em Crotona outros em Me-taponto Os pitagoacutericos que se ocupam das matemaacuteticas reconhecem que estes [os acusmaacuteticos] satildeo pitagoacutericos mas afirmam secirc-lo em maior medida e estar professando a verdade (Iambl De Comm Ma-them 25 7616-788)207

A contradiccedilatildeo eacute evidente enquanto na primeira versatildeo os matemaacuteticos seriam os

verdadeiros pitagoacutericos e por esse motivo negariam a homologiacutea pitagoacuterica aos acus-

maacuteticos na segunda versatildeo (tanto na Vida de Pitaacutegoras como na passagem paralela do

De communi mathematica scientia) Jacircmblico estaria afirmando o oposto seriam os

acusmaacuteticos a negarem que os matemaacuteticos professam a verdadeira doutrina pitagoacuterica

Com um detalhe especialmente interessante Hipaso acaba sendo identificado como

acusmaacutetico na primeira e matemaacutetico na segunda versatildeo

205 Orig ldquo τουτωνὶ δὲ οἱ microὲν microαθηmicroατικοὶ ὡmicroολογοῦντο Πυθαγόρειοι εἶναι ὑπὸ τῶν ἑτέρων τοὺς δὲ ἀκουσ-microατικοὺςοὗτοι οὐχ ὡmicroολόγουν οὔτε τὴν πραγmicroατείαν αὐτῶν εἶναι Πυθαγόρου ἀλλrsquo Ἱππάσουmiddot τὸν δὲ Ἵππ-ασον οἳ microὲν Κροτωνιάτην φασίν οἳ δὲ Μεταποντῖνονrdquo (Iambl VP 81) Hipaso parece ter sido o primeiro pitagoacuterico a se ocupar claramente de pesquisas cientiacuteficas a ele eacute atribuiacuteda a experiecircncia dos discos de bron-ze de igual diacircmetro e diversa espessura atraveacutes dos quais teria compreendido as relaccedilotildees numeacutericas que presidem as harmonias musicais (Cf Aristoxeno Fr 90 Wehrli) Centrone (1996) sugere que a autoria da acusaccedilatildeo a Hipaso da divulgaccedilatildeo do segredo poderia ser de acircmbito matemaacutetico como tentativa de legitima-ccedilatildeo das pesquisas matemaacuteticas fazendo-as remontar ao proacuteprio Pitaacutegoras (1996 85-86) 206 Orig ldquo οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα τῶν Πυθαγορείων τούτους τε ὁmicroολογοῦσιν εἶναι Πυθαγορείους καὶ αὐτοί φασιν ἔτι microᾶλλον καὶ ἃ λέγουσιν αὐτοί ἀληθῆ εἶναιrdquo (Iambl VP 87) 207 Orig ldquo τούτων δὲ οἱ microὲν ἀκουσmicroατικοὶ ὡmicroολογοῦντο Πυθαγόρειοι εἶναι ὑπὸ τῶν ἑτέρων τοὺς δὲ microαθηmicroατικοὺς οὗτοι οὐχ ὡmicroολόγουν οὔτε τὴν πραγmicroατείαν αὐτῶν εἶναι Πυθαγόρου ἀλλὰ Ἱππάσου τὸν δrsquoἽππασον οἱ microὲν Κροτωνιάτην φασίν οἱ δὲ Μεταποντῖνον οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα τῶν Πυθαγορείων τούτους τε ὁmicroολογοῦσιν εἶναι Πυθαγορείους καὶ αὐτοί φασιν ἔτι microᾶλλον καὶ ἃ λέγουσιν αὐτοὶ ἀληθῆ εἶναιrdquo (Iambl De Comm Mathem 25 7616-788)

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Essa contradiccedilatildeo obriga a um trabalho de reconstruccedilatildeo de uma possiacutevel versatildeo

original do testemunho Deubner (1937) e em seguida Burkert (1992 193-208) de-

monstraram incontestavelmente que seria a segunda isto eacute seriam os acusmaacuteticos a

questionar a congruecircncia dos matemaacuteticos agrave verdadeira pragmateacuteia de Pitaacutegoras Natildeo eacute

de fato possiacutevel imaginar simplesmente uma escorregada de Jacircmblico em VP 81 algo

nesta contradiccedilatildeo deveraacute revelar seus motivos Eles devem ser procurados para aleacutem do

procedimento desajeitado de corte e colagem de Jacircmblico que se revela na improvaacutevel

transformaccedilatildeo de Hipaso de matemaacutetico a acusmaacutetico208 O motivo do erro eacute que prova-

velmente Jacircmblico natildeo consegue acreditar naquilo que recebe de suas fontes isto eacute que

o pitagorismo originaacuterio seja aquele professado pelos acusmaacuteticos pois o que ele co-

nhece do pitagorismo mediado pela tradiccedilatildeo acadecircmica e peripateacutetica eacute exatamente a

preocupaccedilatildeo central com os matheacutemata conforme se veraacute em detalhes no capiacutetulo quar-

to Burkert imagina o procedimento psicoloacutegico-redacional de Jacircmblico da seguinte

forma

Parecia-lhe impensaacutevel que algueacutem pudesse contestar isso para natildeo mencionar o fato de esses descrentes serem reconhecidos por seus ad-versaacuterios como verdadeiros pitagoacutericos Jacircmblico conhece a tradiccedilatildeo pela qual os acusmaacuteticos eram uma classe inferior os lsquoespuacuteriosrsquo os lsquomuitosrsquo que natildeo satildeo os verdadeiros filoacutesofos Aqui ele soacute pode acre-ditar que seus olhos o estatildeo enganando e rapidamente troca os dois nomes Temos aqui entatildeo uma alteraccedilatildeo arbitraacuteria cujo motivo eacute cla-ro mas natildeo eacute mantido consistentemente e o resultado disso eacute a confu-satildeo (Burkert 1972 194-5)209

A reconstruccedilatildeo da confusatildeo de Jacircmblico e sua troca de nomes leva finalmente

agravequela que pode ser considerada a hipoacutetese central destas uacuteltimas paacuteginas acusmaacuteticos

e matemaacuteticos natildeo seriam ao contraacuterio da vulgata dos estudos pitagoacutericos dois graus

distintos de filiaccedilatildeo agrave koinoniacutea e sim duas correntes dois grupos no interior do mesmo

movimento pitagoacuterico Os matemaacuteticos representariam o segundo momento de desen-

volvimento com relaccedilatildeo a um pitagorismo originaacuterio que ao contraacuterio seria marcada-

208 Para uma anaacutelise das passagens em que Jacircmblico demonstra anaacuteloga superficialidade na leitura das fontes cf Von Fritz (1940 105-107) 209 Orig ldquoIt seemed to him unthinkable that anyone could contest this to say nothing of these doubters being acknowledged by their opponents as genuine Pythagoreans Iamblichus knows the tradition that made the acusmatici the lower class the ldquospuriousrdquo the ldquomanyrdquo who are not true philosophers Here he can only believe that his eyes have deceived him and quickly switch the two nouns We have here then an arbitrary alteration whose motive is transparent but it is not maintained consistently and the result is confusionrdquo

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mente acusmaacutetico Por esse motivo estariam empenhados em uma luta pela legitimida-

de diante da recusa por parte dos primeiros de reconhececirc-los como portadores da

mesma verdade210

Como consequecircncia dessa hipoacutetese surge obviamente um problema adicional a

ser enfrentado e que diz respeito ao momento exato em que teria havido essa divisatildeo

esse cisma Trata-se com toda probabilidade de uma divisatildeo que corresponde a um

momento sucessivo do desenvolvimento do pitagorismo ainda que seja difiacutecil estabele-

cer quatildeo sucessivo As tentativas de conectar esse cisma interno com a crise gerada pe-

las revoltas antipitagoacutericas de meados do seacuteculo V natildeo deram nenhum resultado concre-

to ainda que Riedweg (2002 176) sugira que seja possiacutevel pensar em uma maior sepa-

raccedilatildeo entre os dois grupos apoacutes a diaacutespora que se seguiu agraves revoltas e o contemporacircneo

avanccedilo da filosofia natural no fim do seacuteculo V e iniacutecio do seacuteculo IV aEC211

Apesar da procedecircncia histoacuterica desse cisma ser colocada em seacuterias duacutevidas por

Zhmud (1992) os argumentos de Delatte (1915 273ss ) e de maneira especial de Bur-

kert (1972 196ss) com relaccedilatildeo agrave existecircncia da possiacutevel autoridade de Aristoacuteteles por

traacutes do testemunho (original) de Jacircmblico sobre a distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacute-

ticos permitiriam confirmar a tradiccedilatildeo da divisatildeo entre os dois grupos212 Um argumen-

to em favor da antiguidade do cisma eacute que se fosse muito tardio jaacute natildeo faria sentido a

reivindicaccedilatildeo de legimitidade dos matemaacuteticos em uma conjuntura do pitagorismo que

jaacute nos tempos de Timeu eacute quase que exclusivamente matemaacutetico213 Um segundo ar-

gumento mais diretamente ligado agrave hipoacutetese da fonte aristoteacutelica que estaria por traacutes

210 Por esse motivo outra eacute obviamente a genealogia do cisma na versatildeo matemaacutetica dele Pitaacutegoras por receber diversas lideranccedilas poliacuteticas das cidades teria precisado simplificar sua doutrina isto eacute eliminar de seus ensinamentos puacuteblicos as demonstraccedilotildees cientiacuteficas que ao contraacuterio reservaria para os mais jovens desejosos de apreender os matemaacuteticos derivariam destes uacuteltimos (Cf Iambl VP 87-89) 211 Com ele parece concordar Huffman (2008 220) Tannery (1887 85ss) e Von Friz (1940 59 92) em sentido contraacuterio agrave reconstruccedilatildeo do testemunho de Jacircmblico chegam a sugerir que possa haver alguma relaccedilatildeo entre o cisma da comunidade e as revoltas antipitagoacutericas de meados do seacutec V aEC baseando-se em Jacircmblico (VP 257ss) imaginam que a divisatildeo interna da escola cujo responsaacutevel foi Hipaso teria levado em seguida a um a guerra civil e agrave crise final Depois da diaacutespora que a ela se seguiu os pitagoacuteri-cos se teriam retirado agrave vida religiosa privada Contra essa hipoacutetese todavia estaacute o fato de que os mate-maacuteticos continuam ativos depois da crise como demonstram entre outros Filolau e Arquitas 212 Veja-se nesse sentido tambeacutem o que foi dito acima (14) em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo inaugural de Burnet (1908 94) a esse respeito Concordam com Burnet Delatte e Burkert Rohde (1871) Minar (1942 43ss) Frank (1943 69ss) Huffman (1993 11) e Guthrie (1962 192ss) esp ldquothe thesis that there were two kinds of Pythagoreans the one chiefly interested in the pursuit of mathematical philosophy and the other in preserving the religious foundations of the school is both inherently probable and supported by a certain amount of positive evidencerdquo (1962 193) 213 Satildeo dessa opiniatildeo entre outros tanto Burkert (1972 196) como Centrone (1996 83)

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dele eacute que Jacircmblico usaria diversas periacutefrases muito proacuteximas a Aristoacuteteles uma delas

eacute certamente a frase que introduz o testemunho do De communi mathematica scientia

ldquoduas satildeo as formas da filosofia itaacutelica que eacute chamada pitagoacutericardquo (Iambl De Comm

Mathem 25 7616) que encontra paralelos com semelhantes expressotildees aristoteacutelicas

em Metereologica (342b 30) e De Caelo (293a 20)214

A tradiccedilatildeo parece enfim confirmar o que se dizia anteriormente isto eacute que a

definiccedilatildeo de pitagoacuterico estaria inicialmente mais diretamente ligada agrave pertenccedila a uma

comunidade e agrave partilha de um biacuteos constituiacutedo principalmente por acusmata e

syacutembola do que propriamente agrave consonacircncia doutrinaacuteria sobre determinadas teorias

filosoacutefico-cientiacuteficas pois essas mesmas resultariam dos esforccedilos em boa parte isolados

entre eles de sucessivas geraccedilotildees de pitagoacutericos215

Ateacute por esse motivo natildeo eacute o caso de enfatizar demasiadamente na praacutetica para

compreendermos a formaccedilatildeo da categoria historiograacutefica do pitagoacuterico o pretenso cis-

ma histoacuterico que oporia de um lado o homem de feacute do outro o homem de ciecircncia con-

forme os modelos acima citados pois mesmo pitagoacutericos de eacutepoca jaacute claramente mate-

maacutetica como seria o caso de Filolau e Arquitas se perguntados sobre o troacutepos de seu

biacuteos responderiam provavelmente ser este propriamente o mesmo ouvido de Pitaacutegoras

Isso significa que ateacute para os pitagoacutericos das sucessivas geraccedilotildees envolvidos mais dire-

tamente na pesquisa cientiacutefica eacute ainda a vida o elemento definidor de sua identidade

pitagoacuterica Todavia se novamente perguntados sobre quais seriam as caracteriacutesticas

fundamentais desse modo de vida os pitagoacutericos dariam provavelmente respostas bas-

tantes vagas (vegetarianismo simplicidade pureza em diversos niacuteveis dedicaccedilatildeo aos

estudos pietas) e relativamente incongruentes De fato considerando a extensatildeo tempo-

ral e permeabilidade cultural da filosofia pitagoacuterica no mundo antigo eacute possiacutevel con-

cordar com a brilhante comparaccedilatildeo de Huffman (1993) que aproxima o pitagoacuterico anti-

go ao catoacutelico atual

214 Orig ldquo ∆ύο δrsquo ἐστὶ τῆς Ἰταλικῆς φιλοσοφίας εἴδη καλουmicroένης δὲ Πυθαγορικῆς δύο γὰρ ἦν γένη καὶ τῶν microεταχειριζοmicroένων αὐτήν οἱ microὲν ἀκουσmicroατικοίrdquo (Iambl De Comm Mathem 25 7616) Jaacute em Aris-toacuteteles encontram-se as seguintes expressotildees ldquo τῶν δrsquoἸταλικῶν τινες καλουmicroένων Πυθαγορείωνrdquo (Mete 342b30) e ldquo οἱ περὶ τὴν Ἰταλίαν καλούmicroενοι δὲ Πυθαγόρειοιrdquo (De Caelo 293a 20) 215 Em relaccedilatildeo ao fato de a corrente matemaacutetica dos pitagoacutericos natildeo se constituir em escola homogecircnea de pensamento e ao contraacuterio perseguir diferentes doutrinas fiacutesicas cosmoloacutegicas e matemaacuteticas cf a seguir o que se diraacute no capiacutetulo quarto

110

No mundo moderno podemos dizer que algueacutem eacute um catoacutelico sem por isso estar completamente claro o que ele pensa sobre uma vasta gama de questotildees filosoacuteficas Ser um pitagoacuterico no mundo antigo po-de implicar mais em termos de crenccedilas filosoacuteficas do que ser um catoacute-lico no mundo moderno mas devemos ser cuidadosos em assumir que esteja de fato implicado demais (Huffman 1993 11)216

Como no caso do catoacutelico portanto o pitagoacuterico definir-se-ia menos por uma

teologiafilosofia e mais por um sentimento de pertenccedila cultural por um estilo de vida

Dessa forma a razatildeo pela qual a tradiccedilatildeo consideraria Filolau como pitagoacuterico enquan-

to Alcmeon natildeo repousaria natildeo tanto sobre a diferenccedila doutrinaacuteria mas sim sobre o

fato de que enquanto o primeiro teria vivido uma vida pitagoacuterica o outro natildeo217

Eacute o caso de notar tambeacutem que a contraposiccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteti-

cos acaba-se tornando o leitmotiv da histoacuteria da criacutetica retornando continuamente qua-

se como um toacutepos literaacuterio nas hermenecircuticas contrapostas de um Pitaacutegoras (e um pita-

gorismo) cientiacutefico versus maacutegico-religioso por exemplo ou miacutestico versus poliacutetico

conforme vimos na primeira parte deste capiacutetulo As modernas discussotildees parecem as-

sim continuar nos trilhos de um debate jaacute antigo

Ao contraacuterio a proposta de interpretaccedilatildeo que subjaz agrave presente tese ndash em sua

dimensatildeo sincocircnica ndash eacute aquela de superar esses esquemas intepretativos dicotocircmicos

considerando o pitagorismo como uma categoria historiograacutefica de amplo alcance e

pluralidade de atribuiccedilotildees irredutiacutevel aos esquemas troppo estanques da histoacuteria da fi-

losofia

Em contrapartida ndash em sua dimensatildeo diacrocircnica de categorizaccedilatildeo do pitagorismo

ndash a presente tese jaacute reconheceu com Burkert que natildeo eacute possiacutevel alcanccedilar nem o Pitaacutego-

ras histoacuterico nem o pitagorismo das origens

De certa forma o quebra-cabeccedilas ficaraacute sempre inacabado equiacutevoco portanto

irreduziacutevel agrave univocidade de uma uacutenica soluccedilatildeo hermenecircutica das tradiccedilotildees histoacutericas

216 Orig ldquoIn the modern world we may say that someone is a Catholic without therefore being at all clear what he believes on a whole range of philosophical issues Being a Pythagorean in the ancient world may entail more in terms of philosophical beliefs than being a Catholic does in the modern world but we should be wary of assuming that too much is entailedrdquo 217 A questatildeo da relaccedilatildeo de Alcmeon com o pitagorismo eacute espinhosa e continua merecendo certo debate Em Metafisica A (986) Aristoacuteteles separa Alcmeon dos pitagoacutericos mesmo anotando proximidades teoacute-ricas entre os dois Jacircmblico (VP 104) diz que Alcmeon teria sido discipulo e ouvinte do proacuteprio Pitaacutego-ras O mesmo diz Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 83) Para os comentadores modernos da questatildeo cf Timpanaro Cardini (1958 119) e Centrone (1989 116) Cf tambeacutem Cornelli (2009a)

111

25 Conclusatildeo

Pode ser uacutetil antes de passar ao proacuteximo capiacutetulo refazer o percurso tecido nes-

te segundo capiacutetulo recuperando as sugestotildees metodoloacutegicas e propostas hermenecircuticas

aqui desenvolvidas pois seratildeo colocadas em jogo na anaacutelise das duas tradiccedilotildees que

mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria pitagorismo cada uma

delas com suas problemaacuteticas especiacuteficas

O ponto de partida foi a pergunta de Zeller se seria possiacutevel uma descriccedilatildeo coe-

rente do complexo fenocircmeno do pitagorismo O caminho seguido foi sair em busca da

categoria pitagorismo em suas duas dimensotildees diacrocircnica e sincrocircnica O objetivo de-

clarado da busca natildeo foi reduzir a complexidade de significados e experiecircncias que a

categoria reuacutene em si Ao contraacuterio o objetivo foi verificar como esta teria resistido agrave

previsiacutevel diluiccedilatildeo de um movimento que em sua diversidade estende-se ao longo de

mais de mil anos A especificidade do objeto sugeriu ndash sob pena de natildeo compreensatildeo do

fenocircmeno ndash tratamento especial do ponto de vista metodoloacutegico que assuma conscien-

temente as caracteriacutesticas de um caminho interdisciplinar e multifacetado Por outro

lado apontou-se que a compreensatildeo sincrocircnica do pitagorismo implica compreendecirc-lo agrave

luz das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga para isso

declarou-se a necessidade de superar as dicotomias entre ciecircncia e magia escrita e ora-

lidade jocircnicos e itaacutelicos agraves quais a historiografia usualmente nos acostumou pois ne-

nhuma delas sozinha parecer dar conta da complexidade da categoria do pitagorismo

A primeira pergunta que surgiu quase uma porta de entrada para a definiccedilatildeo da

categoria do pitagorismo eacute certamente aquela sobre a identidade do pitagoacuterico isto eacute

sobre quem poderia dizer-se pitagoacuterico no mundo antigo Os criteacuterios comumente utili-

zados para definir a questatildeo natildeo pareceram resistir ao crivo metodoloacutegico acima anun-

ciado pois natildeo eacute possiacutevel pensar na escola pitagoacuterica como em algo homogecircneo do

ponto de vista doutrinaacuterio nem sequer utilizar o criteacuterio geograacutefico ou do discipulado

direto geralmente utilizado pela doxografia Restou assim reconhecer que o que define

o pitagoacuterico eacute sua adesatildeo a um particular estilo de vida

Esta conclusatildeo abre imediatamente o problema das modalidades histoacutericas da

comunidade pitagoacuterica primitiva protopitagoacuterica como detentora ao menos etioloacutegica

e genealogicamente das prescriccedilotildees que regulamentam esse estilo de vida Platatildeo e A-

112

ristoacuteteles natildeo satildeo de grande ajuda para compreender qual eacute a caracteriacutestica saliente des-

sa comunidade por revelarem em seus testemunhos uma ambiguidade insuperaacutevel entre

a imagem de uma escola de pensamento e aquela de uma comunidade de vida marcada

pela ritualidade e o culto

Ateacute mesmo a comparaccedilatildeo sincrocircnica com os modelos correntes do thiacuteasos e da

hetairiacutea natildeo surtiu grande avanccedilo hermenecircutico de certa forma a comunidade pitagoacuteri-

ca eacute ao mesmo tempo as duas coisas e nenhuma delas A aporiacutea da tradiccedilatildeo obrigou a

uma mudanccedila de rumo recolocando a questatildeo em outro piso tanto metodoloacutegico como

textual

Por esse motivo seguindo a sugestatildeo de Burkert procurou-se verificar a ade-

quaccedilatildeo das tradiccedilotildees sobre a comunidade pitagoacuterica com o modelo socioloacutegico da seita

Ainda que se prefira a designaccedilatildeo mais neutra de comunidade o exerciacutecio de compara-

ccedilatildeo da koinoniacutea pitagoacuterica com a tipologia socioloacutegica que identifica uma seita permitiu

articular de forma bastante coerente grande diversidade de caracteriacutesticas expressas pela

literatura que juntas compotildeem um quadro coerente para a categoria pitagorismo Estas

contribuem para a descriccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica como um grupo numericamente

reduzido com caracteriacutesticas elitaacuterias alternativo aos moldes de sua cultura e mantendo

parte das informaccedilotildees sobre sua ideologia sob sigilo vida em comum comunhatildeo dos

bens submissatildeo agrave autoridade de um guia carismaacutetico levam a forte sentimento identitaacute-

rio a philiacutea entre os pitagoacutericos torna-se proverbial no mundo antigo Expulsatildeo dos

apoacutestatas prescriccedilotildees reprodutivas e intensa mobilidade geograacutefica garantem a sobrevi-

vecircncia diacrocircnica da comunidade

A anaacutelise do esquema narrativo da fundaccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica tanto em

Porfiacuterio como em Jacircmblico confirmou os sinais de uma comunidade que se define

mesmo do ponto de vista poliacutetico como alternativa agrave cidade Enfim os diversos graus

de pertenccedila agrave comunidade aos quais a tradiccedilatildeo parece referir-se especialmente a sepa-

raccedilatildeo entre matemaacuteticos e acusmaacuteticos foram revelados ao contraacuterio como duas cor-

rentes dois grupos no interior do pitagorismo A anaacutelise das tradiccedilotildees permitiu detectar

que os matemaacuteticos representariam um segundo momento de desenvolvimento com

relaccedilatildeo a um pitagorismo originaacuterio marcadamente acusmaacutetico O cisma teria aconteci-

do jaacute em eacutepoca bastante antiga o que confirmaria mais uma vez a hipoacutetese inicial pela

qual eacute ainda o biacuteos antes que uma unidade doutrinaacuteria a definir a identidade pitagoacuterica

113

Duas temaacuteticas mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria

pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo metempsicose e matemaacutetica As mesmas

seratildeo objeto do capiacutetulo terceiro e do quarto a seguir A anaacutelise procuraraacute de um lado

verificar a originalidade das duas temaacuteticas para o protopitagorismo e o pitagorismo do

seacuteculo V aEC por outro lado sinalizar de que maneira essas temaacuteticas contribuiacuteram

para a categorizaccedilatildeo do pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo

114

CAPIacuteTULO TERCEIRO IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE

Porfiacuterio em uma passagem jaacute citada no capiacutetulo anterior (21) no contexto da

discussatildeo sobre os modelos possiacuteveis de comunidade pitagoacuterica resume aquelas que a

tradiccedilatildeo passaraacute a considerar como as doutrinas centrais do Pitaacutegoras histoacuterico notada-

mente da imortalidade da alma (e de sua transmigraccedilatildeo) do eterno retorno e do paren-

tesco universal Eacute o caso de voltar mais uma vez para ela

Algumas de suas afirmaccedilotildees ganharam notoriedade praticamente ge-ral 1) afirma que a alma eacute imortal 2) que transmigra em outras espeacute-cies de seres vivos 3) que periodicamente o que jaacute aconteceu uma vez volta a acontecer e nada eacute absolutamente novo e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gecircnero Ao que parece foi mesmo Pitaacutegoras a introduzir pela primeira vez estas crenccedilas na Greacutecia (Porph VP 19)218

Esse resumo porfiriano das doutrinas mais ceacutelebres de Pitaacutegoras remete imedia-

tamente para o coraccedilatildeo da problemaacutetica da categorizaccedilatildeo histoacuterica do pitagorismo Natildeo

se pode fugir do fato de que no bojo dessas doutrinas apontadas como originaacuterias natildeo

apareccedila nenhuma referecircncia agrave matemaacutetica ou agrave teoria astronocircmica por exemplo ou

mesmo agrave cosmologia e agrave poliacutetica que tecircm ao contraacuterio papel fundamental para a defi-

niccedilatildeo do pitagorismo em outros estratos da tradiccedilatildeo entre eles certamente o estrato

que corresponde aos textos aristoteacutelicos

A referecircncia a pretensas doutrinas originaacuterias do pitagorismo portanto coloca

em pauta desde o iniacutecio a questatildeo da categorizaccedilatildeo historiograacutefica do movimento que

estas paacuteginas estatildeo perseguindo isto eacute da grande diversidade de doutrinas e das difi-

culdades de articulaacute-las no interior de um sistema filosoacutefico-cientiacutefico coerente Eacute ainda

a duacutevida de Zeller sobre a possibilidade de uma descriccedilatildeo coerente da filosofia pitagoacuteri-

ca (Zeller e Mondolfo 1938 597) a desafiar percurso por meio das fontes pitagoacutericas em

busca das temaacuteticas que ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo contribuiacute-

ram mais diretamente agrave definiccedilatildeo da categoria pitagorismo 218 Orig ldquo microάλιστα microέντοι γνώριmicroα παρὰ πᾶσιν ἐγένετο πρῶτον microὲν ὡς ἀθάνατον εἶναι φησὶ τὴν ψυχήν εἶτα microεταβάλλουσαν εἰς ἄλλα γένη ζῴων πρὸς δὲ τούτοις ὅτι κατὰ περιόδους τινὰς τὰ γενόmicroενά ποτε πάλιν γίνεται νέον δrsquoοὐδὲν ἁπλῶς ἔστι καὶ ὅτι πάντα τὰ γινόmicroενα ἔmicroψυχα ὁmicroογενῆ δεῖ νοmicroίζειν φέρεται γὰρ εἰς τὴν Ἑλλάδαrdquo (Porph VP 19)

115

Duas temaacuteticas destacam-se como centrais nesse sentido a teoria da alma pres-

suposta direta ou indiretamente nas quatro afirmaccedilotildees acima citadas e a matemaacutetica ao

contraacuterio grande ausente na passagem acima Em ambas a compreensatildeo do valor her-

menecircutico das questotildees envolvidas passaraacute por articulaccedilatildeo das duas dimensotildees historio-

graacuteficas acenadas no capiacutetulo anterior isto eacute da dimensatildeo diacrocircnica e da sincrocircnica

Ainda que resumo de eacutepoca tardia portanto a passagem de Porfiacuterio eacute certamente

excelente porta de entrada para a discussatildeo das tradiccedilotildees que o terceiro e o quarto capiacute-

tulo que aqui iniciam e a que se propotildeem Se natildeo por outros motivos ao menos porque

a tradiccedilatildeo remonta provavelmente jaacute ao pupilo de Aristoacuteteles Dicearco219 Natildeo eacute o caso

de fato que diversos comentadores jaacute claacutessicos se deram conta da importacircncia dessa

passagem para reposicionar teoreticamente as origens da filosofia pitagoacuterica em estreita

conexatildeo com as temaacuteticas eacutetico-religiosas220 As sugestotildees de Porfiacuterio nortearatildeo portan-

to a busca da compreensatildeo de um nuacutecleo teoacuterico que corresponde ao Pitaacutegoras histoacuterico

e ao protopitagorismo ainda que cientes de que esta mesma tradiccedilatildeo porfiriana estaacute lon-

ge de representar a soluccedilatildeo de um problema historiograacutefico Ao contraacuterio eacute provavel-

mente o comeccedilo dele E como tal seraacute enfrentado nas paacuteginas a seguir

A primeira doutrina citada por Porfiacuterio (VP 19) aquela da transmigraccedilatildeo da al-

ma eacute ligada a uma tradiccedilatildeo amplamente documentada sobre a competecircncia de Pitaacutegoras

para assuntos ligados ao aleacutem-tuacutemulo trata-se de tradiccedilotildees que estatildeo inseridas no mo-

delo de sabedoria arcaico que Betegh (2006) definiu acertadamente como journey model

(modelo de viagem) O sapiente filoacutesofo adquire conhecimento por meio de itineraacuterio

que o leva a percorrer tempos e espaccedilos distantes ou impraticaacuteveis ao restante dos mor-

tais incluindo nestes tambeacutem ndash ou melhor especialmente ndash o mundo do aleacutem-

tuacutemulo221

219 Burkert (1972 122-123) apesar da resistecircncia por parte tanto de Rathmann (1933 3ss) como de We-hrli que natildeo acolhe o capiacutetulo 19 de Porfiacuterio em seu volume dedicado a Dicearco (Wehrli 1944) segue a tradiccedilatildeo desta atribuiccedilatildeo que conta com a anuecircncia de Rohde (1871 566) Burnet (1908 92) Leacutevy (1926 50) Zeller e Mondolfo (1938 314) E acrescenta argumentos francamente convincentes fundamentados no tom ceacutetico que a passagem deixa transparecer e que natildeo pode certamente ser atribuiacutedo ao crente Porfiacute-rio deveraacute sem mais plausivelmente criaccedilatildeo de Dicearco ceacutetico pupilo de Aristoacuteteles que em outros fragmentos revela o mesmo ceticismo e ironia este afirma por exemplo que alma seria uma simples palavra (fr 7 Wehrli) e que Pitaacutegoras teria sido no passado uma bela cortesatilde (fr 36 Wehrli) 220 Cf para isso De Vogel (1964 16) e Guthrie (1962 186) e mais em geral o que foi dito acima (15) 221 A economia destas paacuteginas natildeo permite aprofundar esta temaacutetica da viagem para a construccedilatildeo da sabe-doria arcaica Eacute certamente o caso de remeter para a discussatildeo de Betegh (2006) para a formulaccedilatildeo do modelo assim como a dois estudos recentes que desenvolvem uma particularidade deste modelo aquele da κατάβασις isto eacute da viagem para o Hades (Cornelli 2007a Ustinova 2009) Memoacuterias de κατάβασις estatildeo amplamente atestadas no interior da literatura sobre o pitagorismo Entre elas certamente a histoacuteria

116

Essa transmigraccedilatildeo da alma foi chamada no mundo grego de metempsicose O

termo metempsychoacutesis natildeo revela especiais problemas de traduccedilatildeo desde a Iacutendia ateacute a

Greacutecia remete ao mover-se (accedilatildeo indicada comumente pelo termo transmigraccedilatildeo) de

uma alma de um corpo para outro O mover-se desenha idealmente um kiacuteklos um ciclo

ou ciacuterculo de nascimento-morte-nascimento222

Eacute certamente o caso de notar que todavia natildeo existe ao menos ateacute o final da

eacutepoca claacutessica precisatildeo terminoloacutegica na indicaccedilatildeo desse ciclo da imortalidade da alma

Conforme veremos diversas expressotildees e imagens satildeo utilizadas para indicar esta

transmigraccedilatildeo desde vestir cobrir (Empeacutedocles) penetrar de uma alma no corpo (He-

roacutedoto) ateacute o nascer de novo expresso pelo termo palingecircnese (paacutelin giacutegnesthai) de

Platatildeo223

Ainda que o termo metempsychoacutesis apareccedila pela primeira vez somente no pri-

meiro seacuteculo EC com Diodoro Siacuteculo (X 6 1) e desde logo referido a Pitaacutegoras a

proacutepria etimologia do termo aponta para origem bem mais antiga do termo de fato ndash

diferentemente do que se pensou tanto na antiguidade como entre muitos dos comenta-

dores contemporacircneos ndash a etimologia da palavra natildeo indica a ldquoentradardquo de algo na alma

nem sequer deriva diretamente do termo psycheacute Ao contraacuterio conforme anota com ra-

zatildeo Casadio

Formou-se a partir do verbo empsychoo ldquoanimarrdquo (que por sua vez estaacute conectado atraveacutes de empsychos e psyche ao verbo psycho ldquoso-prarrdquo) ao qual foi acrescentado o preveacuterbio meta (lat trans) que deno-ta natildeo somente a mudanccedila mas tambeacutem a sucessatildeo ou repeticcedilatildeo e o sufixo sis denotando a accedilatildeo abstrata (1991 122-123)224

do traacutecio Zalmoxis narrada por Heroacutedoto (IV 94-95) que teria sido disciacutepulo de Pitaacutegoras como se veraacute a seguir 222 A menccedilatildeo ao κύkλος da alma estaacute presente de maneira muito significativa em um texto da literatura oacuterfica antiga A terceira lacircmina de ouro oacuterfica de Thurii (fr 32c Kern 4 A 65 Colli II B1 Pugliese Carra-telli) assim reza ldquovoei longe do ciacuterculo doloroso que provoca grave inquietaccedilatildeordquo Agora tambeacutem em Tortorelli Ghidini (2006 74-75) 223 Cf abaixo para as referecircncias 224 Orig ldquosi egrave formato a partire dalo verbo empsychoo lsquoanimarersquo (che a sua volta egrave collegato attraverso empsychos e psyche al verbo psycho lsquosoffiarersquo) cui egrave stato aggiunto il preverbio meta (lat trans) denotante non solo il cambiamento ma anche la successione o ripetizione e il suffissale -sis denotante lacuteazione astrattardquo Cf para os antigos especialmente Olimpiodoro (in Phaed 135 Westerink) Para os contemporacircneos Kereacutenyi (1950 24) e Von Fritz (1957 89 n1)

117

O campo semacircntico da metempsicose portanto em suas origens e mesmo em

seu uso sucessivo denota a ideia de um soprar novamente a alma para dentro de um

corpo O ciclo eacute assim concebido como uma seacuterie de novas inalaccedilotildees da alma-vida i-

magem esta que remete agravequela do pneucircma no interior de um corpo e eacute claramente de-

pendente portanto da concepccedilatildeo fiacutesica jocircnica de era Como revela o fr 2 de Anaxiacuteme-

nes que articula os trecircs termos psycheacute pneucircma e aer na mesma frase ldquocomo ndash dizem ndash

nossa alma que eacute ar nos manteacutem juntos assim o ar e o sopro mantecircm junto o inteiro

cosmordquo (13 B2 DK)225 Sinal forte este da continuidade ao menos em relaccedilatildeo agrave semacircn-

tica da metempsicose com as concepccedilotildees mais antigas da alma-sopro-vida226

O que mais importa todavia agrave economia destas paacuteginas eacute que a tradiccedilatildeo desde

muito cedo aproxima a teoria da transmigraccedilatildeo agrave figura de Pitaacutegoras como veremos a

seguir Sobre isso ateacute os dias atuais conforme ficaraacute claro a seguir ldquoferve sempre viva

a discussatildeordquo (Zeller e Mondolfo 1938 560) jaacute nas palavras de Modolfo

31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes)

A crenccedila de Pitaacutegoras neste movimento da alma eacute testemunhada no ceacutelebre

fragmento praticamente contemporacircneo a Pitaacutegoras de Xenoacutefanes

E conta-se que passava [Pitaacutegoras] ao ser castigado um cachorrinho sentiu piedade e pronunciou as seguintes palavras ldquoPara de bater Pois eacute a alma de um amigo meu que reconheci ao ouvir os seus gemidosrdquo (21 B7 DK = D L Vitae VIII 36)227

O fragmento eacute provavelmente a tradiccedilatildeo mais antiga que possuiacutemos sobre Pitaacute-

goras Apesar de algumas poucas tentativas tendentes a negar a identificaccedilatildeo de Pitaacutego-

ras como autor do dito citado no fragmento no contexto de um posicionamento ceacutetico

generalizado em relaccedilatildeo ao fato de a metempsicose poder ser considerada como doutri-

na pitagoacuterica originaacuteria (Kern 1888 499 Rathmann 1933 37-38 Maddalena 1954

225 Orig ldquo οἶον ἡ ψυχή φησίν ἡ ἡmicroετέρα ἀὴρ οὖσα συγκρατεῖ ἡmicroᾶς καὶ ὅλον τὸν κόσmicroον πνεῦmicroα καὶ ἀὴρ περιέχειrsquo rdquo (13 B2 DK) 226 Cf para esta continuidade as observaccedilotildees de Casadio (1991 142) e Bernabeacute (2004 76-78) 227 Orig ldquo καί ποτέ microιν στυφελιζοmicroένου σκύλακος παριόντα φασὶν ἐποικτῖραι καὶ τόδε φάσθαι ἔπο-ς ldquoπαῦσαι microηδὲ ῥάπιζ ἐπεὶ ἦ φίλου ἀνέρος ἐστὶ ψυχή τὴν ἔγνων φθεγξαmicroένης ἀΐωνrdquo (D L Vitae VIII 36)

118

335 Casertano 1987 19ss) haacute hoje amplo consenso sobre a referecircncia da personagem

citada por Xenoacutefanes como Pitaacutegoras a comeccedilar por Zeller (1938 314) Burnet (1908

120ss) Rostagni (1982 55) Long (1948 17) Dodds (1951 143 n55) Timpanaro Car-

dini (1958-62) ateacute os trabalhos mais recentes de Burkert (1972 120s) Huffman (1993

331) Centrone (1996 54) Kahn (2011 11) e Riedweg (2007 104)228

Os argumentos de Maddalena contra a atribuiccedilatildeo da doutrina a Pitaacutegoras reve-

lam quase que pelo avesso os motivos de sua quase certa atribuiccedilatildeo Ao afirmar que ldquoo

fato que a citaccedilatildeo da passagem de Xenoacutefanes dependa provavelmente de uma fonte an-

tipitagoacuterica torna ainda mais inadequada a presunccedilatildeo da segura atribuiccedilatildeordquo (Maddalena

1954 336)229 Maddalena revela de certa maneira natildeo ter compreendido o jogo irocircnico

da memoacuteria Ao contraacuterio de Burnet (1908) quando afirma ldquotorna-se praticamente cer-

to que se trata de Pitaacutegoras quando encontramos Xenoacutefanes negando issordquo (1908

120)230 Pois eacute exatamente a zombaria que revela uma intenccedilatildeo antipitagoacuterica na fonte

de Xenoacutefanes a confirmar a importacircncia dada agrave teoria da metempsicose como elemento

identificador do Pitaacutegoras histoacuterico Como no caso paralelo dos fragmentos polecircmicos

de Heraacuteclito conforme se veraacute em seguida o fato de o testemunho ser originaacuterio de

ambientes contraacuterios e natildeo pitagoacutericos soacute faz aumentar seu valor como testemunho

confiaacutevel Pois natildeo seria compreensiacutevel o porquecirc de a tradiccedilatildeo da literatura pitagoacuterica

manter esta memoacuteria natildeo certamente simpaacutetica ao movimento se esta natildeo constituiacutesse

minimamente uma referecircncia antiga a um dos pilares de sua doutrina isto eacute a imortali-

dade da alma (Cornelli 2003a 203)231

Ao olhar o testemunho xenofacircnico em seu contexto de uma traditio no interior

das Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio eacute possiacutevel notar como a passagem aparece bem no meio

228 Cf Casadio (1991 119-123) para a argumentaccedilatildeo sobre a oportunidade de usar o termo metempsicose no lugar de metemsomatose para indicar a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma Em resumo o termo seria atestado mais precisamente somente a partir do seacuteculo II EC com Celso e Clemente Alexandrino e tra-duziria a ideia da reincorporaccedilatildeo do que aquela da reencanaccedilatildeo o uso desse termo preferido pelo plato-nismo tardio (eacute certamente o caso da escola de Plotino) trai uma preocupaccedilatildeo e uma tendecircncia antissomaacute-tica 229 Orig ldquoil fatto che la citazione del passo di Senofane egrave molto probabilmente dovuta a uno scrittore antipitagorico rende ancor piugrave inadeguata la presunzione della certa attribuizionerdquo 230 Orig ldquobecomes practically certain that it was that of Pythagoras when we find that Xenophanes denied itrdquo 231 Eacute significativo que em uma passagem das obras perdidas de Aristoacuteteles ndash com toda probabilidade de seu Sobre os pitagoacutericos ndash seja preservada uma anedota paralela pela qual Pitaacutegoras teria reconhecido no cadaacutever de Milias de Crotona a alma receacutem-reencarnada do rei Midas (fr 1 Ross = Iambl VP 140-143) Nese caso todavia em um contexto distante de qualquer intenccedilatildeo polecircmica ou irocircnica

119

de uma seacuterie de escaacuternios a Pitaacutegoras e suas doutrinas A citaccedilatildeo do fragmento de Xenoacute-

fanes eacute de fato precedida por um testemunho atribuiacutedo a Timatildeo de Fliunte que nas

proacuteprias palavras de Dioacutegenes Laeacutercio move criacuteticas literalmente mordazes (o verbo

utilizado eacute mesmo daacutekno morder) a Pitaacutegoras ldquoPitaacutegoras que tende a usar encantamen-

tos para caccedilar homens cheio de palavras majestosasrdquo (D L Vitae VIII 36)232 Agrave passa-

gem xenofaneia segue-se imediatamente depois uma criacutetica do comedioacutegrafo Cratino

que dedica aos pitagoacutericos nos Tarentinos alguns versos cujo interesse historiograacutefico

apesar de grande supera o acircmbito proacuteprio desta anaacutelise O comedioacutegrafo ateniense os

apresenta de fato como haacutebeis sofistas

Eles tecircm o costume se alguma vez encontram algueacutem inexperiente de fazer-lhe um exame completo da forccedila de seus raciociacutenios confundin-do-o e arrasando-o com argumentos definiccedilotildees antiacuteteses equaccedilotildees e grandezas com grande exibiccedilatildeo de inteligecircncia (D L Vitae VIII 37)233

O mesmo Dioacutegenes Laeacutercio atesta em outra passagem as intenccedilotildees polecircmicas

de Xenoacutefanes contra Pitaacutegoras234 A confirmaccedilatildeo de que se trata mesmo de Pitaacutegoras a

expressatildeo kai poacutete (ldquoe outra vezrdquo) no iniacutecio dela sugere que outros testemunhos sobre

Pitaacutegoras teriam sido relatados anteriormente por Xenoacutefanes ainda que Dioacutegenes Laeacuter-

cio natildeo os tenha relacionado

No entanto um detalhe torna o fragmento ainda mais interessante pela economia

desta tese Apesar de representar provavelmente a mais antiga referecircncia agrave teoria da

metempsicose de Pitaacutegoras o texto revela tambeacutem de imediato grave dificuldade histo-

riograacutefica que sugere cautela em atribuir indiscutivelmente ao Pitaacutegoras histoacuterico e ao

232Orig ldquo Τὴν δὲ σεmicroνοπρέπειαν τοῦ Πυθαγόρου καὶ Τίmicroων ἐν τοῖς Σίλλοις δάκνων αὐτὸν ὅmicroως οὐ παρέ-λιπεν εἰπὼν οὕτωςrdquo (D L Vitae VIII 36) 233Orig ldquo ἔθος ἐστὶν αὐτοῖς ἄν τιν ἰδιώτην ποθὲν λάβωσιν εἰσελθόντα διαπειρώmicroενον τῆς τῶν λόγων ῥώmicroης ταράττειν καὶ κυκᾶν τοῖς ἀντιθέτοις τοῖς πέρασι τοῖς παρισώmicroασιν τοῖς ἀποπλάνοις τοῖς microεγέθε-σιν νουβυστικῶςrdquo (D L Vitae VIII 37) O interesse historiograacutefico da passagem de Cratino deve ser reconduzido agrave questatildeo apenas esboccedilada no capiacutetulo primeiro (16) da ligaccedilatildeo entre pitagorismo e primei-ra sofistica a partir das sugestotildees de Rostagni (1922 149) Eacute este certamente um toacutepico que mereceria urgente revisatildeo histoacuterica 234 DL Vitae IX 18 que lembra na mesma passagem de sua criacutetica tambeacutem a Tales de Mileto Xenocircfa-nes teria demonstrado ceticismo em relaccedilatildeo agrave ceacutelebre memoacuteria da previsatildeo do eclipse por Tales (21 B19 DK) criticando a filosofia da natureza de Anaximandro (21 B 27-29 33 DK 21 A 47 DK) e significati-vamente desconfiado de Epimecircnides (21 B19 DK) e da macircntica em geral (21 A52 DK) Portanto para aleacutem da celebre criacutetica agrave teologia de Homero e Hesiacuteodo (21 A1 DK) Xenocircfanes parece ocupar-se tambeacutem de expressotildees religiosas natildeo tradicionais como eacute o caso de Epimecircnides e Pitaacutegoras De fato como anota corretamente Riedweg (2002 105) para algueacutem como Xenoacutefanes Pitaacutegoras e os pitagoacutericos com suas pretensotildees eacutetico-religiosas deviam resultar particularmente irritantes

120

protopitagorismo esta mesma doutrina Notadamente pelo uso do termo central desta

discussatildeo isto eacute o termo psycheacute no caso atribuiacutedo ao cachorrinho Tanto Burkert

(1972 134 n77) como Huffman (1988 1993 331) anotam com razatildeo que o testemunho

de Xenoacutefanes natildeo atribui propriamente uma alma ao cachorrinho e sim afirmaria que o

cachorrinho ldquoseriardquo (estiacute) a alma de um amigo Este detalhe aparentemente miacutenimo eacute

em verdade o sintoma de um problema mais profundo certamente natildeo simples de ser

resolvido qual teria sido a real concepccedilatildeo protopitagoacuterica da imortalidade da alma isto

eacute professada por Pitaacutegoras e seus primeiros disciacutepulos

O caminho de resoluccedilatildeo da questatildeo passa certamente por uma anaacutelise do proacuteprio

termo psycheacute conforme aparece no testemunho de Xenoacutefanes Ainda que o fragmento

possa provar a relaccedilatildeo de Pitaacutegoras com as teorias da metempsicose natildeo eacute certamente

razoaacutevel pensar que o termo em si possa constituir achado arqueoloacutegico dos pretensos

ipsissima verba de Pitaacutegoras235 Isto eacute nada indica que a expressatildeo estiacute psycheacute (ldquoseria a

almardquo) possa ser considerada como um fragmento de Pitaacutegoras Agrave prova disso o mesmo

Empeacutedocles ele proacuteprio pensador da imortalidade da alma e tambeacutem de acircmbito pitagoacute-

rico236 ainda natildeo utiliza o termo psycheacute em suas teorias da imortalidade e sim o termo

daiacutemones (31 B115 DK)237

A primeira fonte pitagoacuterica escrita a utilizar o termo psycheacute eacute Filolau em seu fr

13

E quatro satildeo os princiacutepios do animal racional como tambeacutem Filolau diz em Sobre a natureza ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e genitaacutelias A ca-beccedila da mente o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o umbigo do enrai-zamento e crescimento primitivo as genitaacutelias da jogada da semente e da geraccedilatildeo E o ceacuterebro eacute o princiacutepio do ser humano o coraccedilatildeo do a-nimal o umbigo da planta e as genitaacutelias de todas as coisas juntas pois da semente brotam e crescem (44 B13 DK)238

235 Cf Huffman (1993 331) ldquoit seems perverse to seize upon the second-hand satirical remarks of Xeno-phanes and use it as the basis on which to reconstruct the Pythagorean doctrine of psycherdquo 236 Como afirma Kingsley (1995) mas jaacute antes o mesmo Burkert (1972 57 n26) 237 Cf para isso Dodds (1951 174s) Guthrie (1962 319) Philip (1966 157-158) Para uma resenha do uso preacute-socraacutetico do termo cf Balaudeacute (2002) 238 Orig ldquo καὶ τέσσαρες ἀρχαὶ τοῦ ζώιου τοῦ λογικοῦ ὥσπερ καὶ Φ ltἐν τῶι Περὶ φύσεωςgt λέγει ἐγκέφ-αλος καρδία ὀmicroφαλός αἰδοῖον ltlsquoκεφαλὰ microὲν νόου καρδία δὲ ψυχᾶς καὶ αἰσθήσιος ὀmicroφαλὸς δὲ ῥιζώσ-ιος καὶ ἀναφύσιος τοῦ πρώτου αἰδοῖον δὲ σπέρmicroατος [καὶ] καταβολᾶς τε καὶ γεννήσιος ἐγκέφαλος δὲ ltσαmicroαίνειgt τὰν ἀνθρώπω ἀρχάν καρδία δὲ τὰν ζώου ὀmicroφαλὸς δὲ τὰν φυτοῦ αἰδοῖον δὲ τὰν ξυναπάντω-ν πάντα γὰρ ἀπὸ σπέρmicroατος καὶ θάλλοντι καὶ βλαστάνοντιrdquo (44 B13 DK) Em favor da autenticidade do fragmento amplamente discutida cf a argumentaccedilatildeo mais recente de Huffman (1993 307)

121

O coraccedilatildeo eacute aqui dito archeacute da psycheacute e dos sentidos portanto No entanto o

fragmento de Filolau no lugar de resolver a questatildeo parece complicaacute-la ainda mais

Pois aqui alma eacute indiscutivelmente uma realidade que diz respeito aos fenocircmenos da

vida animal e natildeo algo que possa ser pensado como imortal Por esse motivo Burkert

(1972 270) seguido por Huffman (1993 312) propotildee que a traduccedilatildeo mais correta deva

ser simplesmente vida por tratar-se neste caso de um uso preacute-platocircnico do termo psy-

cheacute que natildeo quer indicar o complexo de faculdades psiacutequicas da forma que iraacute signifi-

car mais tarde

Esta mesma acepccedilatildeo do termo eacute confirmada por um testemunho aristoteacutelico que

significativamente aproxima a teoria da alma pitagoacuterica com aquela de Demoacutecrito

O que dizem os pitagoacutericos parece seguir o mesmo raciociacutenio [dos a-tomistas] pois alguns deles declaram que a alma satildeo as poeiras no ar outros por sua vez que ela eacute o que faz com que se movam (De an 404a16)239

Jaacute foi anotado anteriormente que eacute bastante plausiacutevel que quando Aristoacuteteles fa-

la indistintamente de pitagoacutericos esteja de fato pensando no pitagorismo do seacuteculo V e

mais propriamente em Filolau (cf 11) O acircmbito semacircntico da psycheacute pitagoacuterica seria

portanto aquele do movimento dos seres animados e com uma conotaccedilatildeo marcadamen-

te materialista a alma seria um amontoado de elementos minuacutesculos (xuacutesmata poeiras)

sempre em movimento localizados no coraccedilatildeo A teoria da harmoniacutea que eacute pressuposta

a todo elemento material pensada por Filolau como acordo de limitantes e ilimitados

(44 B1 DK) revela as formas desse movimento que seguiratildeo portanto como todas as

realidades padrotildees rigorosamente harmocircnicos240

239 Orig ldquo ἔοικε δὲ καὶ τὸ παρὰ τῶν Πυθαγορείων λεγόmicroενον τὴν αὐτὴν ἔχειν διάνοιαν ἔφασαν γάρ τινες αὐτῶν ψυχὴν εἶναι τὰ ἐν τῷ ἀέρι ξύσmicroατα οἱ δὲ τὸ ταῦτα κινοῦν περὶ δὲ τούτων εἴρηται ὅτι συνεχῶς φαίνεται κινούmicroενα κἂν ᾖ νηνεmicroία παντελήςrdquo (De an 404a16) A traduccedilatildeo eacute de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (Aristoacuteteles 2006) Deve-se notar que a comparaccedilatildeo entre os dois movimentos (pitagorismo e atomismo) eacute sublinhada pelo texto tradito de Ross com a inserccedilatildeo da qualificaccedilatildeo esfeacutericos (τὰ σφαιροει-δῆ) atribuiacuteda aos aacutetomospoeira na linha 2 a 4 de 404a Diels propotildee emenda desta por consideraacute-la uma glosa daquilo que eacute depois dito dos pitagoacutericos na linha 16 e seguintes na passagem (67 A28 DK) aqui em pauta 240 Natildeo eacute o caso de subestimar um significativo ponto de conexatildeo entre a concepccedilatildeo pitagoacuterica e atomista de ψυχή ambas estatildeo profundamente ligadas ao ambiente da medicina antiga Burkert e Huffman falam respectivamente de medical mileu (Burkert 1972 272) e medical background (Huffman 1993 329) como estando por traacutes de ambos Gemelli chega a postular natildeo haver distinccedilotildees entre filosofia e medicina ateacute a terceira parte do seacuteculo V aEC keine Grenzen (Gemelli 2007) Certamente haacute profunda influecircncia sobre a concepccedilatildeo da ψυχή de ambas as ldquoescolasrdquo por parte das teorias da sauacutede como equiliacutebrio (microέτρον) ou

122

No entanto essa teoria da psycheacute como harmonia e composiccedilatildeo de elementos

materiais eacute evidentemente contraditoacuteria com aquela de sua imortalidade241 Como conci-

liaacute-la portanto com a memoacuteria acima de Porfiacuterio (VP 19) pela qual a doutrina da me-

tempsicose seria uma das doutrinas mais ceacutelebres de Pitaacutegoras e com o fragmento de

Xenoacutefanes pelo qual o proacuteprio Pitaacutegoras teria demonstrado pensar na imortalidade da

alma e em suas transmigraccedilotildees

Imaginar que Filolau natildeo devia acreditar na imortalidade da alma como sugere

Wilamowitz (1920 II 90) eacute soacute aparentemente lectio facilior242 Pelos criteacuterios desen-

volvidos ao longo do capiacutetulo segundo sobre a questatildeo da identidade do pitagoacuterico que

se dizia entatildeo estar ligada mais a um estilo de vida do que a uma coerecircncia doutrinaacuteria

seria realmente muito difiacutecil imaginar que Filolau natildeo acreditasse na metempsicose

Pois essa mesma teoria eacute pressuposto de muita parte da ritualidade e da mitologia (e

filosofia) pitagoacutericas e Filolau teria tido muita dificuldade para ser identificado como

pitagoacuterico sem que professasse de alguma maneira essa teoria Ao contraacuterio seria mais

faacutecil imaginar que Filolau pensasse sim na imortalidade da alma mas como eacute o caso

de Empeacutedocles acima utilizasse outra terminologia que natildeo psycheacute para indicar essa

parcela imortal do indiviacuteduo

Tratar-se-ia portanto no caso do pitagorismo preacute-platocircnico da coexistecircncia de

duas noccedilotildees diferentes de alma no resumo que Guthrie faz da questatildeo (1964)

Duas diferentes noccedilotildees de alma portanto existiam na crenccedila daquele tempo a psycheacute que lsquoesvaecia como fumaccedilarsquo ao morrer e que os es-critores de medicina (incluindo sem duacutevida alguns ceacuteticos e pitagoacuteri-cos hereges) racionalizaram na harmonia dos opostos fiacutesicos que datildeo origem ao corpo e o mais misterioso daiacutemon no homem imortal e que sofre transmigraccedilatildeo atraveacutes de vaacuterios corpos mas que em sua es-secircncia mais pura eacute divino Isto tambeacutem pode ser chamado psycheacute e o

ἰσονοmicroία Cf o uso destes termos por Alcmeon (24 B4 DK) como tambeacutem Peixoto (2009) e Cornelli (2009a) 241 A ideia de Drosdek (2007 66) pela qual o estaacutegio final das reencarnaccedilotildees seria a harmonia natildeo passa de uma conjectura como o proacuteprio autor admite (ldquoWe can only guess na answer And the answer is har-monyrdquo) sem bases filoloacutegicas para sua sustentaccedilatildeo 242 Esta mesma doutrina eacute defendida por Platatildeo no Feacutedon (85) por intermeacutedio de Siacutemias Jaacute Zeller e Mon-dolfo (1938 563) e Cornford (1922) perceberam que na verdade esta mesma contradiccedilatildeo natildeo deveria ter sido percebida como tal pelos pitagoacutericos do V seacuteculo Seja porque a harmonia se referiria somente agraves partes da alma e natildeo aos seus elementos corpoacutereos (Rohde 1920) ou exclusivamente agrave parte da alma destinada agrave morte junto como o corpo (Rostagni 1982) A ampla discussatildeo da questatildeo por Guthrie (1964 308-319) conecta a questatildeo agrave harmonia coacutesmica enquanto Philip (1966 163ss) sugere que a concepccedilatildeo da alma como ἁρmicroονία natildeo seria filolaica e sim uma retroprojeccedilatildeo platocircnica

123

eacute em Platatildeo Ambas sobrevivem lado a lado no pensamento religioso geral corrente e ambas sobrevivem na curiosa combinaccedilatildeo de filoso-fia matemaacutetica e misticismo religioso do qual eacute feito o pitagorismo (1964 119)243

Eacute certamente o caso portanto a partir desta introduccedilatildeo agraves questotildees historiograacutefi-

cas ligadas agrave teoria da alma pitagoacuterica de recolher provisoriamente duas sugestotildees her-

menecircuticas a serem desenvolvidas ao longo das proacuteximas paacuteginas

Em primeiro lugar Pitaacutegoras e seu movimento elaboraram com toda probabili-

dade uma teoria da imortalidade da alma que tem em sua metempsicose um dos elemen-

tos-chave Essa elaboraccedilatildeo parece ser reconhecida pelas fontes antigas como seraacute visto

com mais detalhes a seguir como um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento

sobre a alma na antiguidade O reconhecimento dessa atribuiccedilatildeo natildeo implica todavia a

afirmaccedilatildeo pela qual a teoria pitagoacuterica da alma constitua um sistema articulado e dog-

maacutetico de crenccedilas uma doutrina coerente Eacute possiacutevel concordar nesse sentido com as

observaccedilotildees de cunho antropoloacutegico de Burkert quando afirma que

Concepccedilotildees do aleacutem-tuacutemulo satildeo e sempre foram sincreacuteticas Eacute somen-te a teologia que daacute as caras mais tarde na tradiccedilatildeo a interessar-se por nivelar as diferenccedilas [] Somente um dogma sem vida eacute preservado sem mudanccedilas ao contraacuterio uma doutrina levada a seacuterio eacute continua-mente revisada ao longo de um processo contiacutenuo de reinterpretaccedilatildeo (Burkert 1972 135)244

Dessa forma toda coerecircncia da qual o objeto precisa seraacute aquela do estilo de vi-

da que dessa crenccedila eacutetico-religiosa deriva isto eacute do lado acusmaacutetico do biacuteos nos mol-

des daquilo que se acenava acima em relaccedilatildeo a Filolau e sua concepccedilatildeo da alma

243 Orig ldquoTwo different notions of soul then existed in contemporary belief the psycheacute which lsquovanished like smokersquo at death and which medical writers (including no doubt some sceptical and therefore hereti-cal Pythagoreans) rationalized into a harmonia of the physical opposites that made up the body and the more mysterious daiacutemon in man immortal suffering transmigration through many bodies but in its pure essence divine This too could be called psycheacute as it was by Plato Both survived side by side in the gen-eral current of religious thought and both also survived in the curious combination of mathematical philosophy and religious mysticism which made up Pythagoreanismrdquo Da mesma forma parece compreender metodologicamente a questatildeo da coexistecircncia de diversas teorias da alma ao longo do desenvolvimento do pitagorismo Zeller e Mondolfo (1938 563) ldquo[nel pitagorismo] le concezioni vecchie paion continuare a sussistere accanto alle nuove non che ad altri svolgimenti collaterali pur derivati dallacuteunione di elementi preesistentirdquo 244 Orig ldquoConceptions of the afterlife are and have always been syncretistic It is only theology corning along rather late in the tradition that is interested in smoothing out the differences [hellip] Only dead dog-ma is preserved without change doctrine taken seriously is always being revised in the continuous process of reinterpretationrdquo

124

Em segundo lugar o testemunho de Xenoacutefanes com seu uso extemporacircneo do

termo psycheacute aponta para a necessidade de verificar em que medida a histoacuteria da tradi-

ccedilatildeo apropria-se das teorias pitagoacutericas da imortalidade da alma com seu leacutexico proacuteprio

e suas imagens miacuteticas associadas para construir uma categoria historiograacutefica que dia-

logue em cada um dos momentos histoacutericos dessa transmissatildeo

As paacuteginas a seguir seratildeo tecidas a partir dessas duas sugestotildees acima De um

lado por meio da busca por um conjunto doutrinaacuterio que corresponda a uma teoria da

alma protopitagoacuterica por outro lado acompanhando a construccedilatildeo da categoria do pita-

gorismo a partir de sua teoria da imortalidade da alma

32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios)

A comeccedilar por outro fragmento atribuiacutedo a Iacuteon de Quios que em versos elegiacutea-

cos dedicados a Fereacutecides nomeia da seguinte maneira Pitaacutegoras

Assim ele [Fereacutecides] insigne pela alma viril e pela dignidade mesmo falecido goza com a alma de uma vida bem-aventurada se realmente Pitaacutegoras o saacutebio mais do que todos havia compreendido as disposiccedilotildees mentais dos homens (36 B4 DK)245

Certa dificuldade de compreender a relaccedilatildeo aqui estabelecida entre Pitaacutegoras e

Fereacutecides depende provavelmente do fato de que o contexto integral da citaccedilatildeo foi per-

dido Eacute possiacutevel todavia conjecturar como fazem Kranz (1934 104) e Riedweg (2007

110) que a conexatildeo entre Fereacutecides e Pitaacutegoras no contexto de uma vida bem-

aventurada aleacutem-tuacutemulo esteja ligada de um lado agrave avaliaccedilatildeo geral pela qual Fereacutecides

teria levado uma vida altamente moral que consequentemente mereceu uma retribuiccedilatildeo

bem-aventurada do outro lado agrave renomada sabedoria de Pitaacutegoras sobre assuntos como

esses isto eacute agraves suas ceacutelebres teorias da imortalidade da alma

Um argumento parece corroborar esta leitura o mesmo Iacuteon refere-se em outro

fragmento a Pitaacutegoras como o autor de alguns dos poemas oacuterficos ldquoIacuteon de Quios nos 245 Orig ldquo ὣς ὁ microὲν ἠνορέηι τε κεκασmicroένος ἠδὲ καὶ αἰδοῖ καὶ φθίmicroενος ψυχῆι τερπνὸν ἔχει βίοτον εἴπερ Πυθαγόρης ἐτύmicroως ὁ σοφὸς περὶ πάντων ἀνθρώπων γνώmicroας εἶδε καὶ ἐξέmicroαθενrdquo (36 B4 DK) Acolhe-se aqui para o v3 a emenda de Sandbach (195859) que introduz uma ideia importante na citaccedilatildeo como aquela do conhecimento que Pitaacutegoras possui conforme veremos da histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo

125

Triagmas diz que Pitaacutegoras atribuiu a Orfeu alguns poemas por ele escritosrdquo (36 B2

DK)246 Eacute este certamente o testemunho mais antigo da relaccedilatildeo de Pitaacutegoras com o or-

fismo Ver-se-atildeo em seguida mais aprofundadamente as consequecircncias dessa relaccedilatildeo

para a compreensatildeo da teoria da imortalidade da alma no pitagorismo Haacute de fato ime-

diatamente outro detalhe no fr 4 de Iacuteon que natildeo pode passar despercebido a expressatildeo

sophoacutes periacute paacutenton anthroacutepon ldquosaacutebio mais do que todos os homensrdquo ecoa imediata-

mente o ceacutelebre fragmento 129 de Heraacuteclito247 A referecircncia teria tom polecircmico como a

querer corrigir o tiro de Heraacuteclito que nos dois fragmentos que avaliaremos logo mais

refere-se a Pitaacutegoras sempre de maneira sarcaacutestica

Heraacuteclito eacute sem duacutevida outra fonte essencial para a compreensatildeo do lugar inte-

lectual de Pitaacutegoras em seu tempo O diaacutelogo de Iacuteon com o testemunho heracliacutetico pode

de fato jogar uma luz toda especial sobre o sentido de sua criacutetica dirigida contra Pitaacutego-

ras

Heraacuteclito no contexto de uma criacutetica ampla e irrestrita dirigida agraves autoridades

intelectuais de seu tempo notadamente Homero e Hesiacuteodo lanccedila suas proverbiais fle-

chas contra o proacuteprio Pitaacutegoras identificado jaacute como um dos mais importantes intelec-

tuais de seu tempo

Pitaacutegoras filho de Mnesarco praticou a pesquisa mais de qualquer um e tendo feito uma escolha desses textos com isso conseguiu sua proacute-pria sabedoria que eacute vaacuteria erudiccedilatildeo charlatanaria (22 B 129 DK)248

A historiacutee eacute a pesquisa cientiacutefica da escola iocircnica que Heraacuteclito bem conhece

Pitaacutegoras eacute aqui compreendido como excelente nessa pesquisa No entanto essa mesma

pesquisa na qual Pitaacutegoras se sobressaiu em relaccedilatildeo a todos os outros e que parece va-

ler-lhe um ineacutedito elogio do proacuteprio Heraacuteclito (ldquopraticou mais de qualquer umrdquo) eacute ao

contraacuterio compreendida por Heraacuteclito como ldquomulticiecircnciardquo (polymathiacutea) e como ldquochar-

lataneriardquo (kakotecniacutea) com uma referecircncia ambiacutegua a certos ldquoescritosrdquo aos quais teria

246 Orig ldquo Ἴων δὲ ὁ Χῖος ἐν τοῖς Τριαγmicroοῖς καὶ Πυθαγόραν εἰς Ὀρφέα ἀνενεγκεῖν τινα ἱστορεῖrdquo (36 B2 DK) 247 Cf 22 B129 DK Natildeo passou de fato despercebido Cf Kranz (1934 227) pelo qual esta referecircncia a Heraacuteclito seria prova da autenticidade desse fragmento de Iacuteon mas tambeacutem Zeller e Mondolfo (1938 317s) Timpanaro Cardini (1958-62 I 20) Burkert (1972 123 n13) Riedweg (2002 110-111) entre outros 248 Orig ldquo Πυθαγόρης Μνησάρχου ἱστορίην ἤσκησεν ἀνθρώπων microάλιστα πάντων καὶ ἐκλεξάmicroενος ταύτ-ας τὰς συγγραφὰς ἐποιήσατο ἑαυτοῦ σοφίην πολυmicroαθίην κακοτεχνίηνrdquo (22 B 129 DK)

126

feito referecircncia anteriormente conforme sugeriria o termo tauacutetas Enquanto a histoacuteria

da criacutetica tentou adivinhar quais teriam sido esses escritos o contexto imediato deles

pode ser sugerido por outro fragmento criacutetico em relaccedilatildeo a Pitaacutegoras

Muita erudiccedilatildeo natildeo ensina a compreensatildeo De outra maneira a teria ensinado tanto a Hesiacuteodo como a Pitaacutegoras e tambeacutem a Xenoacutefanes e Hecateu (22 B 40 DK)249

A proximidade de Hesiacuteodo e Pitaacutegoras no fragmento acima parece indicar que os

escritos deste uacuteltimo estariam ligados agrave literatura que tem como seus primeiros expoen-

tes tanto Hesiacuteodo como Homero Literatura esta que Heraacuteclito todavia desdenha250

Com essas referecircncias natildeo surpreende que a sabedoria de Pitaacutegoras tenha tido um resul-

tado tatildeo inaceitaacutevel251 Outras sugestotildees levantadas eacute que seriam no interior das teorias

de uma derivaccedilatildeo oriental da doutrina pitagoacuterica escritos de matemaacutetica babilocircnios por

exemplo ou quiccedilaacute egiacutepcios252

O fragmento de Iacuteon considerado logo acima conforme se anunciava pode cor-

roborar uma terceira hipoacutetese de atribuiccedilatildeo destas syacutengraphai de Pitaacutegoras pela qual

seriam textos de matriz oacuterfica Ao que parece com precisas referecircncias textuais quase

citaccedilotildees invertidas Iacuteon estaria querendo defender Pitaacutegoras agora jaacute em acircmbito ateni-

ense dos ataques que Heraacuteclito havia lanccedilado contra ele E faria isso de um lado iden-

tificando esses escritos conforme se viu no fr 2 como textos oacuterficos pseudoepigraacutefi-

cos por outro lado identificando a historiacutee com a praacutetica do conhecimento da palingecirc-

nese das vidas pregressas isto eacute da histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo como a mencio-

nada emenda de Sandbach (195859) ao fr 4 ndash acima citada ndash parece sugerir ldquohavia

compreendido as disposiccedilotildees mentais dos homensrdquo (36 B4 DK) A criacutetica de Heraacuteclito

249 Orig ldquo πολυmicroαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάν-εά τε καὶ Ἑκαταῖονrdquo (22 B 40 DK) 250 Cf 22 B57 e 106 DK para Hesiacuteodo 22 A22 DK para Homero Para uma discussatildeo mais aprofundada da relaccedilatildeo entre πολυmicroαθίη e κακοτεχνίη cf Gemelli (2007a 13ss) 251 Recentemente Burkert (1998 306) sugeriu a possibilidade de esses escritos serem do tipo dos escritos de Fereacutecides ou ateacute mesmo poemas oacuterficos Kahn (2001 17 n32) imaginaacute-los-ia mais provavelmente como algo intermediaacuterio entre os escritos de Anaximandro e de Filolau 252 A ligaccedilatildeo do pitagorismo com o Egito eacute testemunhada senatildeo jaacute pelos mesmos estudos matemaacuteticos pela presenccedila de um templo a Hera com formas arquitetocircnicas egiacutepcias em Samos no VI aEC (Kingsley 1999 16) assim como por algumas referecircncias a isso do mesmo Heroacutedoto que em suas consideraccedilotildees sobre os usos sepulcrais dos egiacutepcios (que sepultavam os mortos em vestes de linho e natildeo de latilde como na Greacutecia) afirma ldquoTal [costume] corresponde aos chamados Orfikaacute e Bacchikaacute que na verdade satildeo egiacutep-cios e pitagoacutericosrdquo (Herodt II 81)

127

assim como a defesa de Iacuteon seriam todas voltadas agrave forte presenccedila na sophiacutea de Pitaacutego-

ras de teorias da imortalidade da alma de matriz oacuterfica Ambas constituem dessa for-

ma testemunhos preciosos da antiguidade da atribuiccedilatildeo dessas doutrinas ao protopita-

gorismo senatildeo ao mesmo Pitaacutegoras 253

A literatura pitagoacuterica posterior iraacute identificar essa psicologia genealoacutegica da

alma operada por Pitaacutegoras como fundamento de sua estrateacutegia cliacutenica ldquoPitaacutegoras co-

nhecia suas existecircncias preacutevias e iniciava a cura dos homens evocando a memoacuteria de

suas vidas anterioresrdquo (Iambl VP 63)254 A epimeacuteleia pitagoacuterica portanto da qual eacute

repleta a tradiccedilatildeo sobre Pitaacutegoras depende em uacuteltima anaacutelise de suas capacidades de

historiador da alma

Diversos testemunhos apontam para a fama de suas capacidades de cura dizia-se

entre as cidades que frequentava que ele ldquonatildeo viria para ensinar e sim para curarrdquo255 A

tradiccedilatildeo da cura remonta provavelmente a uma expectativa neste sentido reservada

para as figuras centrais da filosofia itaacutelica256 Veja-se de fato na mesma linha o que diz

Empeacutedocles no proacutelogo de seu poema das Purificaccedilotildees ldquomilhares me seguem [] uns

com necessidade de oraacuteculos outros haacute longo tempo tomados por fortes dores desejam

ouvir palavras inspiradas que curem doenccedilas de todos os tiposrdquo (31 B112 DK)257

Aqui tambeacutem a cura estaacute ligada a uma especial capacidade oracular que pode

ser aproximada ainda que natildeo perfeitamente com a psicologia genealoacutegica da alma de

Pitaacutegoras

253 Cf Burkert (1972 130-131) Eacute interessante notar que jaacute Kranz (1934 227ss) defendia que Heraacuteclito devia conhecer esses escritos pitagoacutericos sendo nisso seguido por Zeller e Mondolfo (1938) ainda que Mondolfo considere esta hipoacutetese ldquoalquanto arditardquo (1938 318) 254 Orig ldquo αὐτός τε ἐγίγνωσκε τοὺς προτέρους ἑαυτοῦ βίους καὶ τῆς τῶν ἄλλων ἐπιmicroελείας ἐντεῦθεν ἤρχετο ὑποmicroιmicroνήσκων αὐτοὺς ἧς εἶχον πρότερον ζωῆςrdquo (Iambl VP 63) 255 Orig ldquo ἀφίκετο οὐ διδάξων ἀλλ ἰατρεύσωνrdquo (Ael VH 4 17) 256 Cf tambeacutem Nucci (1999) e Macris (2003 257) 257 Orig ldquo οἱ δ ἅmicro ἕπονται microυρίοι ἐξερέοντες [] οἱ microὲν microαντοσυνέων κεχρηmicroένοι οἱ δ ἐπὶ νούσων παντοίων ἐπύθοντο κλυεῖν εὐηκέα βάξιν δηρὸν δὴ χαλεπῆισι πεπαρmicroένοι ltἀmicroφ ὀδύνηισινgtrdquo (31 B112 DK)

128

33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles)

Como pertencentes a esse mesmo acircmbito intelectual e cultural devem ser consi-

derados os testemunhos de Empeacutedocles Desde a antiguidade o protagonista de suas

Purificaccedilotildees foi identificado com Pitaacutegoras258 e as influecircncias oacuterficas sobre Empeacutedo-

cles satildeo atualmente consideradas como altamente provaacuteveis259 Eacute inegaacutevel que as duas

figuras de Pitaacutegoras e de Empeacutedocles tecircm muito em comum de maneira especial a-

proxima-os seu papel dual ndash nas palavras de Kahn ndash enquanto ao mesmo tempo filoacuteso-

fos matemaacuteticos e profetas religiosos (Kahn 2001 16) Ambos satildeo percebidos pelos

contemporacircneos (e pela literatura sucessiva) como theacuteioi aacutendres homens divinos de-

tentores de poderes e capacidade especiais Eacute certamente o caso de lembrar nesse senti-

do o fr 112 de Empeacutedocles ldquoEu entre vocecircs ando como um deus imortal natildeo mais

mortal por todos honradordquo (31 B112 DK)260 e os diversos testemunhos sobre a divinda-

de de Pitaacutegoras entre eles o ceacutelebre acusma que responde agrave pergunta ldquoQuem eacute Pitaacutego-

rasrdquo com ldquoApolo Hiperboreurdquo (Iambl VP 140)261

A proximidade de Empeacutedocles com o pitagorismo eacute comprovada tambeacutem nos

fragmentos por grande quantidade de coincidecircncias doutrinaacuterias Por esse motivo de

Zeller a Kingsley chegou-se a imaginar um discipulado direto de Empeacutedocles em rela-

ccedilatildeo ao protopitagorismo As duplas enantioloacutegicas dos fragmentos 122 e 123 lembram

de perto a lista de contraacuterios que Aristoacuteteles atribui aos pitagoacutericos na ceacutelebre passagem

do primeiro livro de Metafiacutesica A (986a)262 Como tambeacutem a concepccedilatildeo cosmoloacutegica e

258 Cf D L (Vitae VIII 54- 56) e os testemunhos de Alcidamantes Neantes e Timeu neste sentido Para a criacutetica moderna ldquoWho could this be but Pythagorasrdquo se pergunta Treacutepanier (2004 105) Cf tambeacutem Doods (1951 182) Zuntz (1971 183) Burkert (1972 109 n65) Mais ceacuteticos Zeller e Mondolfo (1958 329) e como sempre Rathmann (1933 94-131) 259 Cf West (1983 26) Riedweg (1995) Scarpi (2007 150) Apesar das duacutevidas de Treacutepanier (2004 106) 260 Orig ldquo ἐγὼ δrsquo ὑmicroῖν θεὸς ἄmicroβροτος οὐκέτι θνητός πωλεῦmicroαι microετὰ πᾶσι τετιmicroένοςrdquo (31 B112 DK) 261 Orig ldquo καὶ ἓν τοῦτο τῶν ἀκουσmicroάτων ἐστί lsquoτίς εἶ Πυθαγόραrsquo φασὶ γὰρ εἶναι Ἀπόλλωνα Ὑπερβόρε-ονrdquo (Iambl VP 140) 262 ldquoLaacute estavam a ctocircnia e a solar de ampla mirada o oacutedio sangrento e a harmonia de olhar severo e a bela e a feia a aacutegil e a lerda a verdadeira amaacutevel e a obscura de cabelos pretosrdquo orig ldquo ἔνθ ἦσαν Χθονίη τε καὶ Ἡλιόπη ταναῶπις ∆ῆρίς θ αἱmicroατόεσσα καὶ Ἁρmicroονίη θεmicroερῶπις Καλλιστώ τ Αἰσχρή τε Θόωσά τε ∆ηναίη τε Νηmicroερτής τ ἐρόεσσα microελάγκουρός τ Ἀσάφειαrdquo (31 B122 DK) ldquoO nascimento e a dissoluccedilatildeo o sono e a vigiacutelia o moacutevel e o imoacutevel a grandeza rodeada de muitas coroas e miseacuteria o silente e o vocife-ranterdquo orig ldquo Φυσώ τε Φθιmicroένη τε καὶ Εὐναίη καὶ Ἔγερσις Κινώ τ Ἀστεmicroφής τε πολυστέφανός τε Μεγιστώ καὶ Φορύη Σωπή τε καὶ Ὀmicroφαίηrdquo (31 B123 DK) Cf para estes fragmentos o elegante comen-taacuterio de Casertano (20071)

129

antropoloacutegica ambas baseadas no conceito de harmoniacutea que encontra paralelos nos

fragmentos de Filolau e Arquitas263 ou na epistemologia de Empeacutedocles que por sua

vez ndash conforme o testemunho de Aristoacuteteles no De Anima (404b8 = 31 B109a DK) ndash

estaria fundada no princiacutepio do semelhante que conhece o semelhante264 Segundo o

testemunho de Sexto Empiacuterico o princiacutepio seria certamente jaacute filolaico (44 A29 DK)265

No entanto o fragmento de Empeacutedocles mais imediatamente relevante para essa

discussatildeo sobre os testemunhos mais antigos da teoria da imortalidade da alma pitagoacuteri-

ca eacute o fr 129 Natildeo seraacute preciso acatar a sugestatildeo de Pascal (1904 141ss) de que os

versos do fr 129 constituam uma introduccedilatildeo a um discurso do proacuteprio Pitaacutegoras con-

forme satildeo citados em Oviacutedio (Metam XV 60) pois todas as coincidecircncias doutrinaacuterias

acima desenhadas vecircm reforccedilar a compreensatildeo majoritaacuteria de que seja mesmo Pitaacutegoras

o protagonista do fr 129266

Havia entre eles um homem de extraordinaacuteria visatildeo que adquiriu uma imensa riqueza de inteligecircncia e era excelente em uma grande quantidade de saacutebias atividades Quando de fato ele tencionava todas as forccedilas de sua mente Enxergava facilmente todas as coisas que satildeo em dez ou vinte geraccedilotildees humanas (31 B129 DK)267

Novamente os termos da citaccedilatildeo como no caso de Iacuteon acima citado parecem

ecoar as bem conhecidas criacuteticas de Heraacuteclito a Pitaacutegoras acima citadas Expressotildees

como extraordinaacuteria visatildeo imensa riqueza de inteligecircncia grande quantidade de ativi- 263 Essas referecircncias agrave harmonia em Empeacutedocles fazem suspeitar que a proposiccedilatildeo do conceito de harmo-niacutea no interior da histoacuteria do pitagorismo antecede sua formulaccedilatildeo canocircnica elaborada por Filolau so-mente no seacuteculo V aEC Cf Zeller e Mondolfo (1938 331) 264 ldquoCom a terra vemos a terra com a aacutegua a aacutegua com o eacuteter o eacuteter divino com o fogo o fogo arrasa-dor com o amor o amor e a luta com luta funestardquo (31 B109 DK) Orig ldquo γαίηι microὲν γὰρ γαῖαν ὀπώπαmicro-εν ὕδατι δ ὕδωρ αἰθέρι δ αἰθέρα δῖον ἀτὰρ πυρὶ πῦρ ἀίδηλον στοργὴν δὲ στοργῆι νεῖκος δέ τε νείκεϊ λυγρῶιrdquo 265 O mesmo criteacuterio de conhecimento eacute lembrado no Timeu de Platatildeo (45c) em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do ser humano e in primis da visatildeo Um aceso debate tendente nos uacuteltimos anos a verificar as apropriaccedilotildees dessas teorias do conhecimento no interior daquela que foi em seguida definida como oacutetica revela um diaacutelogo in fieri sobre este tema entre Platatildeo e Aquitas Cf para isso Burnyeat (2005) e Huffman (2005 551-569) 266 Enquanto Rostagni (1982 232) segue a sugestatildeo de Pascal para exaustiva relaccedilatildeo da histoacuteria da criacutetica desta atribuiccedilatildeo cf Zeller e Mondolfo (1938 329) e Timpanaro Cardini (1958-62 I 18) Comentadores mais recentes entre eles Riedweg (2002) Treacutepanier (2004) e Gemelli (2007) seguem a tradiccedilatildeo concor-dando com a mesma atribuiccedilatildeo 267 Orig ldquo ὃς δὴ microήκιστον πραπίδων ἐκτήσατο πλοῦτον παντοίων τε microάλιστα σοφῶν ltτgt ἐπιήρανος ἔργων ὁππότε γὰρ πάσηισιν ὀρέξαιτο πραπίδεσσιν ῥεῖ ὅ γε τῶν ὄντων πάντων λεύσσεσκεν ἕκαστον καί τε δέκ ἀνθρώπων καί τ εἴκοσιν αἰώνεσσινrdquo (31 B129 DK)

130

dades de sabedoria natildeo satildeo certamente casuais Haacute aqui de fato uma afirmaccedilatildeo da

polymathiacutea de Pitaacutegoras Essa afirmaccedilatildeo diferentemente daquela de Heraacuteclito natildeo eacute

marcada pelo sarcasmo Ao contraacuterio Essa sabedoria especial eacute qualificada na segunda

parte da citaccedilatildeo de forma muito precisa toda a visatildeo de Pitaacutegoras eacute direcionada agrave pa-

lingecircnese isto eacute ao perscrutar a histoacuteria da alma em seus movimentos de metempsico-

se Tanto a proacutepria como aquela dos outros Ainda que a referecircncia seja mais generica-

mente agrave capacidade de enxergar ldquotodas as coisas que satildeordquo incluindo nelas por exemplo

a capacidade de ouvir a harmonia do universo no sentido de perceber o som das esferas

(Porph VP 30) eacute evidente que o contexto da citaccedilatildeo implica mais especificamente a

ceacutelebre capacidade especial de Pitaacutegoras

O fr 129 portanto no contexto tanto das Purificaccedilotildees como da tradiccedilatildeo sobre a

figura de Empeacutedocles como homem divino constitui testemunho da atribuiccedilatildeo ao pro-

topitagorismo de uma teoria da alma que pressupotildee tanto uma concepccedilatildeo de sua trans-

migraccedilatildeo como uma capacidade especial de Pitaacutegoras de percorrer essa histoacuteria da al-

ma268

34 Platatildeo e orfismo

O lugar mais generoso de referecircncias e ao mesmo tempo mais sensiacutevel para a

discussatildeo da atribuiccedilatildeo das teorias da imortalidade da alma e sua metempsicose ao pita-

gorismo eacute certamente a obra de Platatildeo Todavia mesmo o testemunho platocircnico natildeo

estaacute isento de problemas e incertezas A falta de citaccedilotildees diretas do pitagorismo nos

textos platocircnicos dedicados a essas teorias por exemplo consolidou desde cedo uma

hipoacutetese pela qual elas se refeririam mais propriamente ao orfismo em vez do pitago-

rismo269 Eacute obviamente impossiacutevel na economia destas paacuteginas esgotar exaustivamente

as muacuteltiplas facetas da relaccedilatildeo entre Platatildeo e o orfismo que vai bem aleacutem da problemaacute-

268 A esses argumentos Philip (1966 156) acrescenta mais um os vetos alimentares que aproximam Empeacutedocles ao pitagorismo dependem diretamente a seu ver da crenccedila na transmigraccedilatildeo que ambos partilhariam 269 Defendem a atribuiccedilatildeo das doutrinas ao orfismo Bluck (1964 274-276) Boyanceacute (1972 85 n4) e mais recentemente Casadio (1991 130-131) Centrone (1996 61)

131

tica da imortalidade da alma270 Seraacute o caso de limitar-se aqui a discutir as relaccedilotildees entre

pitagorismo e orfismo no interior da problemaacutetica da metempsicose deixando de lado

outras possibilidades de abordagem dessa complexa questatildeo como aquela cosmoloacutegica

ou poliacutetica Contudo mesmo para as finalidades mais internas agrave nossa discussatildeo seraacute

preciso fazer continuamente referecircncia agrave problemaacutetica mais geral271

A dificuldade de tecer as relaccedilotildees entre Platatildeo pitagorismo e orfismo antes

mesmo do que nas sempre lembradas caracteriacutesticas dialoacutegicas da obra platocircnica ou nas

questotildees apontadas no capiacutetulo anterior a respeito da tradiccedilatildeo e sua categorizaccedilatildeo do

pitagorismo reside mais imediatamente na incerta determinaccedilatildeo do que possa ser consi-

derado orfismo Em relaccedilatildeo por exemplo agraves fontes literaacuterias para esse assunto eacute o proacute-

prio Platatildeo a revelar a confusatildeo representada pela existecircncia de grande pletora de livros

que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp II 364e)272 A dificuldade represen-

tada pela pseudoepigrafia comum a toda a literatura antiga torna-se ainda mais dramaacute-

tica no caso de Orfeu273 Por outro lado jaacute Wilamowitz perguntava se o fato de existi-

rem obras atribuiacutedas a Orfeu implicava necessariamente tambeacutem a existecircncia histoacuterica

de oacuterficos (1932 192-199) Sua resposta foi negativa e desde entatildeo a criacutetica acostu-

mou-se prudentemente a considerar a presenccedila do orfismo no interior da obra platocircnica

como algo indissociavelmente ligado agrave releitura que Platatildeo teve desse movimento com

isso poreacutem acabou por ser negada em princiacutepio qualquer possibilidade de Platatildeo ser

considerado como fonte confiaacutevel para o orfismo preacute-platocircnico274 Todavia recentes

descobertas arqueoloacutegicas de maneira especial aquela que trouxe agrave luz o papiro Derve-

ni contribuiacuteram para confundir as aacuteguas paradas da tradiccedilatildeo interpretativa apontando

270 Eacute certamente o caso de remeter para isso a Bernabeacute (1998 2002 e no prelo) Cf tambeacutem Masaracchia (1993) Brisson (2000b) e Pugliese Carratelli (2001) 271 Cf acima para uma discussatildeo historiograacutefica da questatildeo do orfismo e do pitagorismo (18) 272 A expressatildeo usada por Platatildeo eacute βίβλων ὅmicroαδον com o termo ὅmicroαδον a indicar mais propriamente tumulto como aquele dos combatentes em batalha (Cf Il IX 573) Outra memoacuteria da grande e confusa literatura atribuiacuteda a Orfeu haacute tambeacutem no Hipoacutelito de Euriacutepides (ldquoa fumaccedila dos muitos escritosrdquo v 954) 273 Eacute certamente o caso de recordar a introduccedilatildeo agrave monografia Orphica de Hermann (1805) um dos pri-meiros estudiosos modernos do orfismo que assim comeccedila ldquosi mea sponte eligendus mihi fuisset scrip-tor in quo edendo operam meam collocarem in quemcumque alium facilius quam in Orpheum incidis-semrdquo (1805 v) A ele ecoa West (1983 17) quando afirma que aquele de Orfeu foi o nome favorito pelos poemas pseudoepigraacuteficos de natureza religiosa metafiacutesica ou esoteacuterica 274 A posiccedilatildeo ceacutetica de Brisson eacute neste sentido paradigmaacutetica (2000a 253) Uma saiacuteda metodoloacutegica para o problema eacute certamente aquela proposta por Bernabeacute (2002 239) ldquochaque foi que lacuteon parle dacuteinfluence orphique chez um auteur on doit citer des textes soumis agrave une critique profonde et agrave une hermeacuteneutique minutieuse pour eacuteviter les lieux communs et les affirmations vides Le travail reste em grande partie agrave faire et il est urgent de lacuteentreprendrerdquo Mostrar os textos portanto eis o imperativo

132

para clara anterioridade a Platatildeo de temas e referecircncias oacuterficas cuja existecircncia preacute-

platocircnica era normalmente colocada em duacutevida275

341 ldquoCompreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo

Para aleacutem das preacute-compreensotildees da criacutetica e da mais recente documentaccedilatildeo ar-

queoloacutegica todavia eacute em verdade ainda o proacuteprio testemunho de Platatildeo a desencorajar

um ceticismo exasperado em relaccedilatildeo agrave existecircncia de oacuterficos e de um movimento a estes

conexo276 No Craacutetilo (400c) Platatildeo refere-se aos oi amphiacute Orpheacutea indicando com a

expressatildeo os autores das doutrinas oacuterficas em Repuacuteblica descreve-os como agyrtaacutei e

manteacuteis sacerdotes itinerantes e adivinhos (Resp II 364b-c) com uma conotaccedilatildeo bas-

tante negativa que os autores aproximam facilmente aos orpheotelestai os iniciados ao

orfismo que aparecem como impostores em autores como Teofrasto Filodemo e Plu-

tarco277 Um biacuteos orphikoacutes eacute lembrando nas Leis (VI 782c) no contexto da discussatildeo

sobre o vegetarianismo Frequentemente no interior da obra platocircnica eacute recordada a

antiguidade (e portanto anterioridade ao proacuteprio Platatildeo) de suas doutrinas278 assim

como satildeo citados ou parafraseados textos oacuterficos279 Eacute impossiacutevel negar portanto que

oacuterficos e orfismo possuam lugar relevante e bastante significativo no interior do corpus

platocircnico

No entanto a presenccedila do orfismo na obra platocircnica eacute especialmente visiacutevel

quando nela se faz referecircncia a teorias sobre a alma Os diaacutelogos satildeo de fato repletos de

mitos reflexotildees morais imagens literaacuterias que pressupotildeem ou enfrentam diretamente as

temaacuteticas relativas agrave imortalidade e agrave metempsicose da alma

Eacute esse certamente o caso de uma celebre paacutegina do Mecircnon na qual Platatildeo atribui

a autoria da teoria metempsicose a ldquograndes sacerdotes e sacerdotisas que se preocu-

pam em compreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo (Men 81a) O conteuacutedo desse logos eacute

275 Sobre o papiro Derveni cf o que foi dito acima 18 276 Ainda que o termo Ὀρφικοί natildeo seja registrado como tal no interior do corpus platocircnico ele jaacute aparece em Heroacutedoto (II 81 vide infra) 277 Cf para as citaccedilotildees Vegetti (1998 229) e Burkert (1972 125 n30 e 1982 4 n13) 278 Cf Phlb 66c Leg 715e 279 Cf Phaed 69c-d Crat 402b-c Cf para isso tambeacutem Kingsley (1995118) e Ghidini (2000 12)

133

explicitamente afirmado em seguida ldquoora a alma chega a um seu fim ndash este que eacute cha-

mado morrer ndash ora ela renasce mas jamais eacute destruiacuteda por completordquo (81b) Seraacute o caso

de examinar mais de perto a passagem em seu contexto O tema do diaacutelogo entre Soacutecra-

tes e Mecircnon verte sobre a virtude em chave mais propriamente de teoria do conheci-

mento O problema em pauta eacute aquele de como reconhecer a verdade quando jaacute natildeo a se

conheccedila antes trata-se da questatildeo central para a filosofia platocircnica da anamnese Nes-

se contexto Soacutecrates dialoga com Mecircnon nos seguintes termos

SOCR Pois ouvi dizer de homens e mulheres saacutebios das coisas divi-nas MEN O que eles diziam SOCR Coisas verdadeiras ndash parece-me ndash bonitas MEN Quais E quem satildeo estes que as falaram SOCR Sa-cerdotes e sacerdotisas que se preocupavam em explicar o loacutegos do proacuteprio ministeacuterio E estas mesmas coisas [b] diz Piacutendaro e muitos ou-tros poetas os poetas divinos Eacute isso que ele dizem mas veja se te pa-rece que eles dizem a verdade dizem portanto que a alma humana eacute imortal e que ora ela tem seu fim que se diz morrer ora renasce e que jamais eacute destruiacuteda eis porque ndash dizem ndash precisa viver a vida o mais santamente possiacutevel Pois as almas daqueles de quem aceita expiaccedilatildeo por uma antiga falta Perseacutefone devolve no nono ano ao sol laacute de cima Delas brotam reis ilustres e homens poderosos e excelentes na sabedoria E pelo resto de seus dias como heroacuteis imaculados satildeo invocados pelos homens A alma portanto por ser imortal e diversas vezes renascida tendo vis-to o mundo deste e do outro lado em uma palavra todas as coisas natildeo deixou de aprender nada Natildeo deve maravilhar que portanto pode chamar agrave mente novamente o que antes conhecia da virtude e do resto todo Pois de fato a natureza eacute congecircnere (Men 81a-c)280

280 Orig ldquo ΣΩ Ἔγωγε ἀκήκοα γὰρ ἀνδρῶν τε καὶ γυναικῶν σοφῶν περὶ τὰ θεῖα πράγmicroατα

ΜΕΝ Τίνα λόγον λεγόντων

ΣΩ Ἀληθῆ ἔmicroοιγε δοκεῖν καὶ καλόν

ΜΕΝ Τίνα τοῦτον καὶ τίνες οἱ λέγοντες

ΣΩ Οἱ microὲν λέγοντές εἰσι τῶν ἱερέων τε καὶ τῶν ἱερειῶν ὅσοις microεmicroέληκε περὶ ὧν microεταχειρίζονται λόγ-ον οἵοις τ εἶναι διδόναι λέγει δὲ καὶ Πίνδαρος καὶ ἄλλοι πολλοὶ τῶν ποιητῶν ὅσοι θεῖοί εἰσιν ἃ δὲ λέγο-υσιν ταυτί ἐστιν ἀλλὰ σκόπει εἴ σοι δοκοῦσιν ἀληθῆ λέγειν φασὶ γὰρ τὴν ψυχὴν τοῦ ἀνθρώπου εἶναι ἀθάνατον καὶ τοτὲ microὲν τελευτᾶν ndash ὃ δὴ ἀποθνῄσκειν καλοῦσι ndash τοτὲ δὲ πάλιν γίγνεσθαι ἀπόλλυσθαι δ οὐδέποτε δεῖν δὴ διὰ ταῦτα ὡς ὁσιώτατα διαβιῶναι τὸν βίον ltοἷσινgt γὰρ ἂν ndash

Φερσεφόνα ποινὰν παλαιοῦ πένθεος

δέξεται εἰς τὸν ὕπερθεν ἅλιον κείνων ἐνάτῳ ἔτεϊ

ἀνδιδοῖ ψυχὰς πάλιν

ἐκ τᾶν βασιλῆες ἀγαυοὶ

καὶ σθένει κραιπνοὶ σοφίᾳ τε microέγιστοι

ἄνδρες αὔξοντ ἐς δὲ τὸν λοιπὸν χρόνον ἥρωες ἁγνοὶ

πρὸς ἀνθρώπων καλεῦνται

134

Soacutecrates portanto na passagem acima do Mecircnon elabora uma espeacutecie de suacutemu-

la histoacuterico-teoreacutetica das teorias da alma articulando sua imortalidade com a ideia da

metempsicose (ldquoora renasce e jamais eacute destruiacutedardquo) Atribui a autoria desta indiferente-

mente a dois sujeitos antes a ldquosacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compre-

ender o loacutegos do proacuteprio ministeacuteriordquo e depois aos poetas divinos entre eles Piacutendaro do

qual satildeo tambeacutem citados alguns versos Natildeo eacute difiacutecil imaginar que em relaccedilatildeo aos refe-

ridos poetas Soacutecrates devesse pensar tambeacutem em Empeacutedocles281 A funccedilatildeo dialeacutetica da

citaccedilatildeo de Piacutendaro eacute fundamentalmente aquela de corroborar a ideia expressa imedia-

tamente antes por Soacutecrates da palingecircnese (paacutelin giacutegnesthai) da alma isto eacute de seu

nascer novamente (paacutelin giacutegnesthai)

Deve-se notar que Platatildeo ndash no lugar de citar algum poema oacuterfico que como vi-

mos certamente deveria conhecer ndash recorre a versos de Piacutendaro Eacute este o primeiro sinal

de algo que eacute conforme se veraacute a seguir uma marca da apropriaccedilatildeo da teoria da imorta-

lidade da alma pela obra platocircnica isto eacute de uma provaacutevel intenccedilatildeo de Platatildeo de diluir a

referecircncia agraves origens oacuterficas da teoria Essa escolha platocircnica eacute ainda mais significativa

se comparada com sua indicaccedilatildeo da primeira referecircncia agrave autoria da teoria que eacute aos

sacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compreender o loacutegos do proacuteprio minis-

teacuterio Wilamowitz (1920 II 249) e Burkert (1972 126) concordam que o objeto desta

explicaccedilatildeo do loacutegos (loacutegon didoacutenai) de suas praacuteticas rituais deva ser a mythologiacutea dos

rituais ligados agrave metempsicose tratar-se-ia portanto da exegese dos mitos que acom-

panham os rituais de iniciaccedilatildeo da alma A praacutetica eacute aqui geralmente referida a perso-

nagens de acircmbito pitagoacuterico contribuindo para recolocarmos Platatildeo como fonte confiaacute-

vel da atribuiccedilatildeo de teorias como a da imortalidade e da metempsicose aos pitagoacutericos

antigos

Prova disso seria a referecircncia a sacerdotisas em acordo com os diversos teste-

munhos que apontam para uma presenccedila significativa e relativamente paritaacuteria das mu- Ἅτε οὖν ἡ ψυχὴ ἀθάνατός τε οὖσα καὶ πολλάκις γεγονυῖα καὶ ἑωρακυῖα καὶ τὰ ἐνθάδε καὶ τὰ ἐν Ἅιδου καὶ πάντα χρήmicroατα οὐκ ἔστιν ὅτι οὐ microεmicroάθηκεν ὥστε οὐδὲν θαυmicroαστὸν καὶ περὶ ἀρετῆς καὶ περὶ ἄλλων οἷόν τ εἶναι αὐτὴν ἀναmicroνησθῆναι ἅ γε καὶ πρότερον ἠπίστατο ἅτε γὰρ τῆς φύσεως ἁπάσης συγγενοῦς οὔσηςrdquo (Men 81a-c) 281 O fr 146 de Empeacutedocles de maneira especial revela paralelismo muito significativo com os versos acima citados de Piacutendaro ldquoE no fim tornam-se adivinhos e poetas meacutedicos e liacutederes para os homens que habitam a terra e deles brotam deuses excelentes pela honras que recebemrdquo (Orig ldquo εἰς δὲ τέλος microάντεις τε καὶ ὑmicroνοπόλοι καὶ ἰητροί καὶ πρόmicroοι ἀνθρώποισιν ἐπιχθονίοισι πέλονται ἔνθεν ἀναβλαστοῦσι θεοὶ τιmicroῆισι φέριστοιrdquo )Vejam-se tanto as imagens bioloacutegicas para indicar a reencarnaccedilatildeo (rebrotam em Piacuten-daro brotam em Empeacutedocles) como as referecircncias agrave excelecircncia dos nobres reis de Piacutendaro agrave qual pode ser comparada a excelecircncia dos πρόmicroοι de Empeacutedocles (Cf Bluck 1964 284)

135

lheres no interior da koinoniacutea pitagoacuterica282 de fato Kingsley (1995 161-162) anota

com razatildeo que natildeo haacute nenhuma tradiccedilatildeo que permita considerar os rituais ou a mitologia

oacuterfica como inclusivos das mulheres seria esta portanto uma indicaccedilatildeo exclusiva do

pitagorismo283 Por outro lado a ideia da explicaccedilatildeo mito-loacutegica aponta provavelmente

para aquela apropriaccedilatildeo do orfismo que Pugliese Carratelli (2001 18) baseando-se na

anaacutelise das receacutem-descobertas lacircminas oacuterficas identificava acima como pitagoacuterica284

Como no caso da citaccedilatildeo de Piacutendaro portanto Platatildeo parece aqui querer referir-se mais

diretamente agravequela parte do complexo universo oacuterfico mais proacutexima agrave sua sensibilidade

filosoacutefica e religiosa E em relaccedilatildeo ao que interessa mais diretamente estas paacuteginas isto

eacute agraves teorias da imortalidade da alma e da metempsicose

O testemunho mais contundente da historicidade dessa imagem de sacerdotes

que para aleacutem de cumprirem os ritos demonstram interesse na sua explicaccedilatildeo mitoloacutegi-

ca eacute representado pelo proacuteprio papiro Derveni O papiro que se apresenta como uma

exegese alegoacuterica de um antigo poema cosmogocircnico em busca de uma explicaccedilatildeo ale-

goacuterica dos misteacuterios na coluna XX empreende uma criacutetica sarcaacutestica dirigida contra

aqueles que natildeo sabem fazer aquilo em que os sacerdotes e sacerdotisas acima citados

no Mecircnon satildeo ditos especialistas Pois as personagens que satildeo alvos da reprovaccedilatildeo do

autor do papiro se exibiriam em praccedila puacuteblica com rituais sagrados mas natildeo saberiam

explicar os ritos que performam

Em relaccedilatildeo a estes quantos dos humanos que nas cidades realizaram ritos e viram as coisas sagradas menos me espanto com eles natildeo sabe-rem (pois natildeo eacute possiacutevel escutar e aprender as coisas ditas ao mesmo tempo) Mas quantos (se iniciam) junto a quem faz das coisas sagradas um artifiacutecio estes (satildeo) dignos de espanto e pena Por um lado espan-to porque achando antes de realizarem o rito que saberatildeo partem tendo realizado os ritos antes de saberem nada perguntando como se soubessem algo do que viram escutaram e aprenderam Por outro la-do pena porque natildeo basta eles gastarem o dinheiro de antematildeo mas tambeacutem partem destituiacutedos de razatildeo Antes de realizar os ritos das coi-

282 Cf o que foi dito acima a este respeito (esp 23) assim como De Vogel (1966 238 n2) Dodds (1951 175 n59) Burkert (1982 17-18) Kingsley (1995 162 n51) 283 Concorda com ele tambeacutem Long (1948 68-69) Casadio (1991 130) poreacutem protesta que se as mu-lheres eram admitidas na comunidade pitagoacutericas deviam secirc-lo como filoacutesofas e natildeo sacerdotisas E Bernabeacute e Jimeacutenez (2008 59) apontam para o fato de diversas das mais recentes descobertas de lacircminas oacuterficas serem originaacuterias de tumbas de mulheres O consenso entre os comentadores eacute mais uma vez dis-tante 284 Cf acima (18)

136

sas sagradas esperam saber mas tendo-os realizado partem destituiacute-dos tambeacutem de esperanccedila (P Derv XX)285

Da mesma forma como Platatildeo portanto o autor do papiro Derveni ainda que no

papel de exegeta oacuterfico parece tecer criacuteticas a uma parte do mesmo universo oacuterfico que

recrimina por natildeo saber explicar os ritos A esta acusaccedilatildeo de incompetecircncia somam-se

outras entre as quais a de promover tanto certa mercantilizaccedilatildeo do sagrado consideran-

do a menccedilatildeo a dinheiro cobrado aos fieacuteis como a consequente descrenccedila entre os fieacuteis

Natildeo surpreenderaacute assim que Platatildeo use esta mesma imagem em uma ceacutelebre

paacutegina de Repuacuteblica (364b-c) no contexto da dura criacutetica a Museu e seu filho Eumol-

po epocircnimo dos ierofantes de Eleusis Platatildeo natildeo esconde criacuteticas aos problemas que a

difusatildeo dos misteacuterios eleusinos estava criando para a cidade (Resp II 378a) chega ateacute a

fazer uma paroacutedia destes para a iniciaccedilatildeo do ldquohomem democraacuteticordquo (560d-e)286

[Eles] guiam os iniciados para o Hades com seu discurso preparando para eles um simpoacutesio de piedosos no qual deitam-se com guirlandas e daiacute adiante os fazem passar o tempo todo bebendo pois acreditam que a melhor recompensa pela virtude seja uma eterna embriaguez (Resp II 363c-d)287

Todavia a passagem que nos interessa mais diretamente eacute aquela da paacutegina se-

guinte na qual Platatildeo descreve com tintas fortes um fenocircmeno social que devia ser bas-

tante difundido naqueles anos o de sacerdotes e adivinhos andarilhos

Mas de todos esses discursos os mais surpreendentes satildeo aqueles que fazem sobre os deuses e sobre a virtude afirmando que os mesmos deuses destinaram para muitos homens bons infelicidade e uma vida ruim e para quem eacute a eles contraacuterio uma contraacuteria sorte Sacerdotes mendigos e adivinhos batendo agraves portas dos ricos convencem-nos haver neles um poder que proveacutem dos deuses graccedilas a sacrifiacutecios e encantamentos para emendar qualquer injusticcedila cometida pelo indiviacute-duo ou por seus antepassados por meio de prazeres e festas Se al-gueacutem quer prejudicar um inimigo a troco de uma moacutedica quantia o convencem que poderaacute arruinar indiferentemente tanto o justo como o

285 A traduccedilatildeo eacute de Gazinelli (2007) a partir da proposta de organizaccedilatildeo do texto e da traduccedilatildeo de Laks e Most (1997) Cf original no Anexo 1 286 Cf West (1983 34ss) e Vegetti (1998 227 n5) 287 Orig ldquo εἰς Ἅιδου γὰρ ἀγαγόντες τῷ λόγῳ καὶ κατακλίναντες καὶ συmicroπόσιον τῶν ὁσίων κατασκευάσα-ντες ἐστεφανωmicroένους ποιοῦσιν τὸν ἅπαντα χρόνον ἤδη διάγειν microεθύοντας ἡγησάmicroενοι κάλλιστον ἀρετῆς microισθὸν microέθην αἰώνιονrdquo (Resp II 363c-d)

137

injusto e com encantamentos e simpatias persuadir os deuses a se co-locarem a seu serviccedilo (Resp II 364b-c)288

A paacutegina platocircnica revela significativamente quadro bastante parecido com a-

quele desenhado pela coluna XX do papiro Derveni os andarilhos retiram da mesma

forma a esperanccedila dos fieacuteis aleacutem de mercantilizarem seus serviccedilos Pelo fato de esses

mesmos sacerdotes e adivinhos imediatamente depois exibirem aquela grande pletora

de livros que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp II 364e) eacute lectio facilior

identificaacute-los ao menos parcialmente com o orfismo A criacutetica de Platatildeo natildeo deveraacute ser

considerada contudo como uma criacutetica irrestrita ao orfismo e sim ndash como no caso do

papiro Derveni ndash como um posicionamento quase que uma criacutetica interna que implica

a escolha de uma parte dele certamente aquela mais afim agrave sua sensibilidade que devia

aproximaacute-lo como jaacute se acenou acima mais imediatamente agraves teorias oacuterfico-

pitagoacutericas no sentido dado ao termo pela lectio de Pugliese Carratelli (2001)

Por outro lado a cobranccedila platocircnica natildeo eacute algo inusual Ao contraacuterio insere-se

naquela que foi definida como uma ldquopermeabilidade conscienterdquo entre teacutechnai e Natur-

philosophie (Gemelli 2007b) e que eacute testemunhada pela polivalecircncia ndash nesse sentido

acima descrito ndash de personagens traacutegicas como o Prometeu da homocircnima obra pseudo-

esquileia (430 aEC) que eacute ao mesmo tempo um adivinho e um proacutetos euretecircs em

disciplinas como a astronomia a medicina e a matemaacutetica Ou mesmo Melanipe na

homocircnima trageacutedia de Euriacutepides (A saacutebia Melanipe) que proclama uma cosmogonia

preacute-socraacutetica afirmando tecirc-la apreendido de sua matildee uma ninfa adivinha (fr 495

Nauck)

As relaccedilotildees entre orfismo pitagorismo e Platatildeo portanto comeccedilam a se delinear

de maneira mais clara no sentido de uma apropriaccedilatildeo do primeiro por este uacuteltimo de

certa forma mediada pelo segundo

Nesse sentido eacute certamente o caso de voltar para a paacutegina do Mecircnon (81a-c)

com a qual se iniciou esta anaacutelise do testemunho de Platatildeo sobre as teorias da alma pi-

tagoacutericas para anotar dois outros detalhes realmente significativos para a economia da

288 Orig ldquo τούτων δὲ πάντων οἱ περὶ θεῶν τε λόγοι καὶ ἀρετῆς θαυmicroασιώτατοι λέγονται ὡς ἄρα καὶ θεοὶ πολλοῖς microὲν ἀγαθοῖς δυστυχίας τε καὶ βίον κακὸν ἔνειmicroαν τοῖς δἐναντίοις ἐναντίαν microοῖραν ἀγύρται δὲ καὶ microάντεις ἐπὶ πλουσίων θύρας ἰόντες πείθουσιν ὡς ἔστι παρὰ σφίσι δύναmicroις ἐκ θεῶν ποριζοmicroένη θυσίαις τε καὶ ἐπῳδαῖς εἴτε τι ἀδίκηmicroά του γέγονεν αὐτοῦ ἢ προγόνων ἀκεῖσθαι microεθ ἡδονῶν τε καὶ ἑορτῶν ἐάν τέ τινα ἐχθρὸν πηmicroῆναι ἐθέλῃ microετὰ σmicroικρῶν δαπανῶν ὁmicroοίως δίκαιον ἀδίκῳ βλάψει ἐπαγωγαῖς τισιν καὶ καταδέσmicroοις τοὺς θεούς ὥς φασιν πείθοντές σφισιν ὑπηρετεῖνrdquo (Resp II 364b-c)

138

interpretaccedilatildeo aqui proposta Primeiramente a referecircncia no final dela agrave syngeacuteneia da

natureza que remete imediatamente para a ideia do parentesco universal do texto de

Porfiacuterio (VP 19) com o qual comeccedilou este capiacutetulo Esta referecircncia eacute mais um sinal de

que Platatildeo estaacute entendendo remeter as teorias dos sacerdotes e poetas agrave vertente pitagoacute-

rica do orfismo natildeo haacute de fato nenhuma referecircncia na literatura ou nas lacircminas oacuterficas agrave

ideia de parentesco universal Em segundo lugar eacute surpreendente a referecircncia ao fato de

que esses mesmos sacerdotes e poetas teriam pregado a necessidade de ldquoviver a vida o

mais santamente possiacutevelrdquo A admoestaccedilatildeo natildeo eacute de fato necessaacuteria agrave economia da pas-

sagem pois a prova da tese epistemoloacutegica da anamnese que como vimos representa o

objeto central da passagem eacute suficientemente demonstrada jaacute pela preacute-existecircncia da

alma ao longo de diversas encarnaccedilotildees E todavia Platatildeo parece querer precisar que o

movimento da metempsicose deve ser compreendido em sentido fundamentalmente

moral O fato de mais uma vez natildeo termos alguma referecircncia clara a isso nas fontes oacuter-

ficas faz pensar que se trate neste caso mais uma vez de uma variaccedilatildeo pitagoacuterica cer-

tamente ao gosto platocircnico da teoria da alma imortal

342 Hierarquia das encarnaccedilotildees

A apropriaccedilatildeo em sentido moral da metempsicose eacute tambeacutem atestada em outra

tradiccedilatildeo sobre a imortalidade da alma amplamente presente no corpus platocircnico aquela

da hierarquia das encarnaccedilotildees Trata-se da ceacutelebre lei de Adrasteia longamente discuti-

da por Platatildeo no Fedro exatamente no contexto da demonstraccedilatildeo da imortalidade da

alma

Eis agora a lei imposta por Adrasteia cada alma que havendo-se co-locado ao seacutequito de um deus contemple alguma das verdades eter-nas estaraacute livre de padecimentos ateacute o proacuteximo periacuteodo e no caso de sempre conseguir esta meta seraacute livre para sempre Quanto ao contraacute-rio incapaz de segui-lo natildeo alcanccedila a contemplaccedilatildeo e por alguma desgraccedila fica sobrecarregada por causa do esquecimento e da malda-de que a invadem enquanto pesada como estaacute perde as asas e cai no chatildeo entatildeo a lei diz que esta alma natildeo seja plantada em nenhuma na-tureza animal em sua primeira geraccedilatildeo Ao contraacuterio aquela que al-canccedilou uma mais ampla contemplaccedilatildeo plantar-se-aacute na semente de um homem que seraacute amante da sabedoria ou amante do belo ou das Mu-sas ou do amor Em segundo lugar na semente de um rei legiacutetimo ou um guerreiro ou um liacuteder corajoso Em terceiro na de um poliacutetico de

139

um administrador ou de homem de negoacutecios em quarto na semente de um atleta algueacutem que se dedica ao esforccedilo ou de algueacutem que se dedica agrave cura dos corpos em quinto a uma vida de adivinho ou de al-gueacutem que sabe iniciar-se aos misteacuterios ao sexto lugar seraacute convenien-te a vida de um poeta ou de outro homem apto agrave imitaccedilatildeo na seacutetima (Phaedr 248c-e)289

A imageacutetica da plantaccedilatildeo da alma em diversas sementes retoma diretamente os

textos acima citados de Piacutendaro e Empeacutedocles assim como a ideia da hierarquia das

reencarnaccedilotildees jaacute presente dos textos de ambos Ainda que Platatildeo coloque ndash como eacute de

se esperar ndash no topo da hierarquia exatamente os filoacutesofos as posiccedilotildees imediatamente

sucessivas lembram de perto aquelas dos dois antecedentes reis atletas e poetas em

Piacutendaro enquanto Empeacutedocles prefere a eles adivinhos poetas e meacutedicos aleacutem obvia-

mente dos proacuteprios reis Platatildeo polemicamente empurra para baixo no ranking das

reencarnaccedilotildees os poliacuteticos os meacutedicos e os atletas

O fato todavia de natildeo haver alguma fonte oacuterfica direta que apresente esta hie-

rarquia faz pensar na sua invenccedilatildeo em acircmbito aristocraacutetico e da Magna Greacutecia imedia-

tamente recebida por Platatildeo novamente no interior de seu projeto moralizador da me-

tempsicose acima citado290 Isso explicaria tambeacutem o porquecirc na citaccedilatildeo acima do Mecirc-

non (81a-c) de Platatildeo preferir citar Piacutendaro no lugar dos oacuterficos a intenccedilatildeo agrave qual se

acenava acima de diluir a referecircncia agraves origens oacuterficas da teoria pode responder direta-

mente a este projeto de moralizaccedilatildeo da metempsicose para o qual a tradiccedilatildeo da hierar-

quia das reencarnaccedilotildees devia servir muito bem O acircmbito aponta novamente para as

tradiccedilotildees pitagoacutericas itaacutelicas

A economia destas paacuteginas sugere evitar entrar diretamente em duas questotildees

centrais da passagem acima citada do Fedro isto eacute no problema da duraccedilatildeo do ciclo

das sucessivas reencarnaccedilotildees e naquele da referecircncia a Adrasteia como autora da lei

Baste aqui anotar que por um lado natildeo haacute coerecircncia doutrinaacuteria em relaccedilatildeo ao nuacutemero

289 Orig ldquo θεσmicroός τε Ἀδραστείας ὅδε ἥτις ἂν ψυχὴ θεῷ συνοπαδὸς γενοmicroένη κατίδῃ τι τῶν ἀληθῶν microέχρι τε τῆς ἑτέρας περιόδου εἶναι ἀπήmicroονα κἂν ἀεὶ τοῦτο δύνηται ποιεῖν ἀεὶ ἀβλαβῆ εἶναι ὅταν δὲ ἀδυνατήσασα ἐπισπέσθαι microὴ ἴδῃ καί τινι συντυχίᾳ χρησαmicroένη λήθης τε καὶ κακίας πλησθεῖσα βαρυνθῇ βαρυνθεῖσα δὲ πτερορρυήσῃ τε καὶ ἐπὶ τὴν ῆν πέσῃ τότε νόmicroος ταύτην microὴ φυτεῦσαι εἰς microηδεmicroίαν θήρει-ον φύσιν ἐν τῇ πρώτῃ γενέσει ἀλλὰ τὴν microὲν πλεῖστα ἰδοῦσαν εἰς γονὴν ἀνδρὸς ενησοmicroένου φιλοσόφου ἢ φιλοκάλου ἢ microουσικοῦ τινος καὶ ἐρωτικοῦ τὴν δὲ δευτέραν εἰς βασιλέως ἐννόmicroου ἢ πολεmicroικοῦ καὶ ἀρχι-κοῦ τρίτην εἰς πολιτικοῦ ἤ τινος οἰκονοmicroικοῦ ἢ χρηmicroατιστικοῦ τετάρτην εἰς φιλοπόνου ltἢgt γυmicroναστικ-οῦ ἢ περὶ σώmicroατος ἴασίν τινος ἐσοmicroένου έmicroπτην microαντικὸν βίον ἤ τινα τελεστικὸν ἕξουσαν ἕκτῃ ποιητικ-ὸς ἢ τῶν περὶ microίmicroησίν τις ἄλλος ἁρmicroόσει ἑβδόmicroῃrdquo (Phaedr 248c-e) 290 Cf para esta hipoacutetese Bernabeacute (no prelo cap 6)

140

de anos que corresponderia ao completamento do ciclo291 Por outro lado Adrasteia

(etim ldquoaquela da qual natildeo se pode fugirrdquo) antes de se tornar a temida vingadora de toda

tentativa humana de desafiar o divino (Aesch Prom 936 Resp V 451a) aparece nas

cosmologias oacuterficas como companheira de Dike (fr 23 Kern) associada a Necircmesis e ela

mesma entidade cosmogocircnica (fr 54 Kern)292 Corresponde fundamentalmente agrave mesma

personificaccedilatildeo da Anaacutenke que rege o mundo no livro X de Repuacuteblica e cujo decreto eacute

dito em Empeacutedocles regular o ciclo da metempsicose (115 B1 DK) Em ambos os ca-

sos de toda forma Platatildeo parece mais uma vez reelaborar criativamente os dados da

tradiccedilatildeo oacuterfica para que esta venha obedecer a seus proacuteprios interesses teoacuterico-

redacionais

343 Socircma-secircma

A mesma transposiccedilatildeo Platatildeo realiza em relaccedilatildeo a outro grande motivo das teo-

rias da imortalidade da alma aquele que corresponde ao ceacutelebre mote socircma-secircma293

Novamente a anaacutelise desta questatildeo buscaraacute de um lado perceber a maneira tipicamen-

te platocircnica de apropriar-se de uma teoria oacuterfica no interior de sua proacutepria concepccedilatildeo da

imortalidade da alma por outro lado apreender no reveacutes do tecido da fonte platocircnica

sinais das dependecircncias entre orfismo e pitagorismo em relaccedilatildeo a suas respectivas teori-

as da imortalidade da alma

Em uma paacutegina do Goacutergias Soacutecrates em resposta agrave proposiccedilatildeo de Caacutelicles so-

bre a necessidade de uma liberaccedilatildeo total das paixotildees em busca do prazer introduz com

o verso de Euriacutepides ndash ldquoQuem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivordquo ndash uma dis-

cussatildeo sobre o corpo (socircma) como tumba (secircma) da alma cuja autoria Soacutecrates refere a

ldquoum homem de refinada inteligecircncia siciliano ou itaacutelicordquo Vamos acompanhar o texto

Mas mesmo a vida da qual vocecirc estaacute falando eacute terriacutevel e nem ficaria maravilhado que Euriacutepedes dissesse a verdade quando se pergunta Quem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivo E de verdade po-de ser que noacutes na realidade estejamos mortos Conforme ouvi dizer

291 Cf para isso Bernabeacute (no prelo cap 6) 292 Cf para as citaccedilotildees Casadio (1991 132) 293 Utiliza-se aqui o termo transposiccedilatildeo no sentido cunhado a partir de Diegraves (1927 432ss)

141

ateacute dos saacutebios que atualmente somos mortos e que nossa tumba eacute o corpo e aquela parte da alma na qual tem sua sede as paixotildees por sua natureza se deixa arrastar e para cima e para baixo se deixa empurrar Isso disse sob a forma de mito um homem de refinada inteligecircncia talvez siciliano ou itaacutelico com um jogo de palavras chamou vaso a-quela parte da alma que tatildeo faacutecil de ser persuadida e natildeo iniciados chamou os homens sem-cabeccedila Nestes a parte da alma em que resi-dem as paixotildees sua devassidatildeo e permeabilidade desenhou como um vaso furado querendo dessa forma significar sua insaciabilidade No sentido contraacuterio inveacutes agravequele que vocecirc defende Caacutelicles ele mostra que entre todos os que estatildeo no Hades ndash e com Hades entende o invi-siacutevel ndash exatamente estes satildeo os mais felizes enquanto os natildeo iniciados satildeo condenados a entornar a aacutegua em um vaso furado com uma con-cha tambeacutem furada A concha ndash dizia quem me relatou esta histoacuteria ndash significava a alma dos sem-cabeccedila pois furada e incapaz de conter em si mesma qualquer coisa por sua incredulidade e esquecimento (Gorg 492e-493c)294

Eacute o caso de notar inicialmente que Platatildeo como era de se esperar pelo padratildeo

de suas estrateacutegias de transposiccedilatildeo ateacute aqui notado utiliza o motivo socircma-secircma em um

contexto dialoacutegico marcadamente eacutetico-apocaliacuteptico295 Ao mesmo tempo refere a ori-

gem deste ldquosob a forma de mito a um homem de refinada inteligecircncia talvez siciliano

ou itaacutelicordquo A referecircncia de Platatildeo faz pensar em uma origem oacuterfica eou pitagoacuterica do

motivo De fato o koacutempsos aneacuter ao qual Soacutecrates se refere eacute comumente identificado

com algum pitagoacuterico Haacute quem quis identificaacute-lo com o proacuteprio Filolau por causa da

referecircncia ao mesmo tema que aparece no fragmento 14 deste uacuteltimo

Atestam os antigos conhecedores das coisas divinas e os adivinhos que por causa de certas puniccedilotildees a alma encontra-se conjunta ao cuacutemulo

294 Orig ldquo ΣΩ Ἀλλὰ microὲν δὴ καὶ ὥς γε σὺ λέγεις δεινὸς ὁ βίος οὐ γάρ τοι θαυmicroάζοιmicro ἂν εἰ Εὐριπίδης ἀληθῆ ἐν τοῖσδε λέγει λέγων τίς δ οἶδεν εἰ τὸ ζῆν microέν ἐστι κατθανεῖν τὸ κατθανεῖν δὲ ζῆν καὶ ἡmicroεῖς τῷ ὄντι ἴσως τέθναmicroεν ἤδη γάρ του ἔγωγε καὶ ἤκουσα τῶν σοφῶν ὡς νῦν ἡmicroεῖς τέθναmicroεν καὶ τὸ microὲν σῶmicroά ἐστιν ἡmicroῖν σῆmicroα τῆς δὲ ψυχῆς τοῦτο ἐν ᾧ ἐπιθυmicroίαι εἰσὶ τυγχάνει ὂν οἷον ἀναπείθεσθαι καὶ microεταπίπτειν ἄνω κάτω καὶ τοῦτο ἄρα τις microυθολογῶν κοmicroψὸς ἀνήρ ἴσως Σικελός τις ἢ Ἰταλικός παράγων τῷ ὀνόmicroατι διὰ τὸ πιθανόν τε καὶ πειστικὸν ὠνόmicroασε πίθον τοὺς δὲ ἀνοήτους ἀmicroυήτους τῶν δ ἀνοήτων τοῦτο τῆς ψυχῆς οὗ αἱ ἐπιθυmicroίαι εἰσί τὸ ἀκόλαστον αὐτοῦ καὶ οὐ στεγανόν ὡς τετρηmicroένος εἴη πίθος διὰ τὴν ἀπλη-στίαν ἀπεικάσας τοὐναντίον δὴ οὗτος σοί ὦ Καλλίκλεις ἐνδείκνυται ὡς τῶν ἐν Ἅιδου ndash τὸ ἀιδὲς δὴ λέγων ndash οὗτοι ἀθλιώτατοι ἂν εἶεν οἱ ἀmicroύητοι καὶ φοροῖεν εἰς τὸν τετρηmicroένον πίθον ὕδωρ ἑτέρῳ τοιούτῳ τετρηmicroένῳ κοσκίνῳ τὸ δὲ κόσκινον ἄρα λέγει ὡς ἔφη ὁ πρὸς ἐmicroὲ λέγων τὴν ψυχὴν εἶναι τὴν δὲ ψυχὴν κοσκίνῳ ἀπῄκασεν τὴν τῶν ἀνοήτων ὡς ετρηmicroένην ἅτε οὐ δυναmicroένην στέγειν δι ἀπιστίαν τε καὶ λήθηνrdquo (Gorg 492e-493c) 295 A referecircncia do diaacutelogo a doutrinas pitagoacutericas natildeo se resume a este contexto Veja-se por exemplo a seguir (Gorg 503e-504a) a contraposiccedilatildeo entre a ἰσότητες a proporccedilatildeo dos elementos da vida eacutetica e a πλεονεζία de Caacutelicles que ecoa diretamente a mesma discussatildeo presente no fragmento 3 de Arquitas Para um comentaacuterio a esta correspondecircncia cf Meattini (1983)

142

das carnes do corpo e estaacute como sepultada neste tuacutemulo (44 B 14 D-K)296

Filolau de sua parte parece referir a doutrina do socircma-secircma de maneira muito

precisa agraves tradiccedilotildees maacutegico-religiosas arcaicas theologoiacute e mantiacutees297

O problema eacute que desde Wilamowitz (1920 II 90) e Frank (1923 301) ateacute

Burkert (1972 248 n47) Casadio (1991 124 n9) e mesmo Huffman (1993 404-406)

muitos comentadores duvidam seriamente da originalidade deste fragmento e por con-

sequecircncia da possibilidade de considerar a ideia do socircma-secircma como originalmente

filolaica298 Os argumentos satildeo basicamente os seguintes a) haacute evidecircncias de contami-

naccedilatildeo do texto com as doutrinas de Platatildeo (Craacutetilo 400c) e Aristoacuteteles (fr 6 Rose) b)

reminiscecircncias linguiacutesticas aproximariam seu vocabulaacuterio agravequele posterior marcada-

mente de eacutepoca platocircnica c) seria estranho que um pitagoacuterico como Filolau atribuiacutesse a

teoria do socircma-secircma considerada comumente pitagoacuterica a antigos theologoiacute e adivi-

nhos d) o termo usado por Filolau psycheacute assume neste fragmento conotaccedilatildeo muito

proacutexima agravequela posteriormente definida como complexo das faculdades psicoloacutegicas

isso seria em contradiccedilatildeo tanto com a concepccedilatildeo de alma como vida acima analisada

em relaccedilatildeo a seu fr 13 (no interior do comentaacuterio ao fr 7 de Xenoacutefanes) como agravequela

expressa pelo fr 22 pelo qual ldquoa alma ama o corpordquo299 Enquanto os primeiros trecircs ar-

gumentos em favor da consideraccedilatildeo do fragmento como espuacuterio podem ser facilmente

refutados o quarto mereceraacute reflexatildeo mais cuidadosa

Em relaccedilatildeo aos primeiros dois argumentos (contaminaccedilatildeo doutrinaacuteria e reminis-

cecircncia linguiacutestica) eacute faacutecil argumentar ao contraacuterio que a) as doutrinas expressas por

Filolau natildeo parecem de nenhuma forma anacrocircnicas e o fato de serem citadas por Pla-

tatildeo e Aristoacuteteles pode sugerir que os trecircs simplesmente a retiraram de uma fonte co-

mum provavelmente de tradiccedilatildeo oacuterfica bastante difundida nos seacuteculos V e IV b) ainda

que o termo theologiacutea apareccedila pela primeira vez somente em Platatildeo (Resp II 379a)

segundo Vlastos (1952 12 n22) o termo eacute de uso geral Significativamente eacute Adimanto

quem o traz agrave tona no diaacutelogo e natildeo Soacutecrates indicando com isso tratar-se mais prova-

296 Orig ldquo microαρτυρέονται δὲ καὶ οἱ παλαιοὶ θεολόγοι τε καὶ microάντιες ὡς διά τινας τιmicroωρίας ἁ ψυχὰ τῷ σώmicroατι συνέζευκται καὶ καθάπερ ἐν σήmicroατι τούτῳ τέθαπταιrdquo (44 B 14 DK) 297 Cf Casadio 1987 230 298 Sobre as questotildees historiograacuteficas mais gerais relativas agrave originalidade dos fragmentos de Filolau cf acima (17) Cf tambeacutem Guthrie (1962 329s) 299 Cf para a resenha destes argumentos tanto Burkert (1991 404-406) como Bernabeacute (no prelo cap7)

143

velmente de um termo jaacute em uso do que de uma criaccedilatildeo platocircnica300 Por outro lado os

argumentos de Wilamowitz e Frank sobre o vocabulaacuterio satildeo subjetivos e dificilmente

compartilhaacuteveis o estilo do texto somente pareceria um falso doacuterico enquanto escon-

deria de fato por traacutes dele inconfundiacutevel clareza aacutetica Trata-se de uma afirmaccedilatildeo que

natildeo permite verificaccedilatildeo Em relaccedilatildeo ao terceiro argumento o da incongruecircncia de um

pitagoacuterico relacionar uma teoria tambeacutem pitagoacuterica como a do socircma-secircma a antigos

teoacutelogos e adivinhos podem-se apresentar ao menos dois contra-argumentos primeira-

mente natildeo estaacute demonstrada a origem pitagoacuterica da doutrina que ao contraacuterio poderia

ser originariamente mais facilmente uma tradiccedilatildeo oacuterfica em segundo lugar ainda que

se admita a possibilidade de ser pitagoacuterica as modalidades da pertenccedila do pitagoacuterico

Filolau ao movimento pitagoacuterico isto eacute a imagem que este homem do seacuteculo V aEC

devia fazer da tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica em suas origens natildeo estaacute de forma algu-

ma esclarecida Nada de fato impede de pensar ndash fora o costumeiro preconceito presen-

tista ndash que Filolau considerasse as origens do movimento intelectual ao qual pertencia

muito bem representadas por theologoiacute e mantiacutees da sophiacutea dos quais se considerava

devedor

Por outro lado o quarto argumento merece uma consideraccedilatildeo mais atenta como

se dizia fundamentalmente por trazer agrave tona aquela que possui aparentemente todas as

condiccedilotildees de ser considerada como uma contradiccedilatildeo no pensamento de Filolau em re-

laccedilatildeo agrave sua concepccedilatildeo da alma Os fr 13 e 22 apresentam nesse sentido dois problemas

distintos e complementares para a ideia de psycheacute que subjaz ao fr 14 e fazem um aten-

to leitor de Filolau como Huffman pender para considerar este uacuteltimo como duvidoso

(1993 405-406)

No caso do fr 13 acima analisado concluiacutemos que o termo psycheacute que laacute apa-

rece com o sentido de harmonia e composiccedilatildeo de elementos materiais eacute evidentemente

contraditoacuterio com aquele de sua imortalidade e que portanto Filolau ndash que como pita-

goacuterico deveria possuir alguma teoria ou crenccedila na imortalidade da alma ndash deveria utili-

zar outro termo que natildeo psycheacute para referir-se agrave parte do indiviacuteduo que alcanccedila a imor-

talidade No caso do fr 22 a expressatildeo ldquoa alma ama o corpordquo (diligitur corpus ab ani-

300 A prova disso Burkert (1993 405) anota com razatildeo que a frase ἀmicroφὶ θεῶν λόγος aparece por exem-plo jaacute no fr 131 de Empeacutedocles (31 B131 DK)

144

ma) que aparece no fragmento citado por Claudiano Mamerto (44 B22 DK) sugere

novamente evidente contradiccedilatildeo com a ideia do corpo como tumba301

E todavia a querer procurar uma soluccedilatildeo para os dois impasses poder-se-ia em

relaccedilatildeo ao primeiro conjecturar que se de fato a presenccedila do termo psycheacute obrigaria a

considerar o fragmento quanto menos duvidoso o restante do fragmento natildeo cria mais

duacutevidas sobre sua autenticidade Este fato permitiria imaginar que o termo psycheacute e

somente ele seja fruto de uma correccedilatildeo de Clemente ao termo original filolaico (que

podia ser daiacutemon por exemplo) ao qual substituiria o novo termo mais congruente

com seu vocabulaacuterio e tradicionalmente (mas somente mais tarde) deputado para indi-

car a parte imortal do indiviacuteduo

Em relaccedilatildeo agrave contradiccedilatildeo entre a ideia de um corpo-tumba e o amor da alma por

ele do fr 22 uma soluccedilatildeo muito elegante e eficaz foi proposta jaacute por Timpanaro Cardi-

ni

Deve-se considerar que na misteriologia oacuterfico-pitagoacuterica o corpo eacute lu-gar e meio de expiaccedilatildeo para alcanccedilar a libertaccedilatildeo da alma daiacute uma cer-ta ligaccedilatildeo afetiva da alma em relaccedilatildeo agrave sua proacutepria custoacutedia (1962 II 246)302

Assim o amor da alma pelo corpo eacute coerentemente o amor pela possibilidade

de expiaccedilatildeo das culpas das vidas anteriores Expiaccedilatildeo esta que soacute era possiacutevel atraveacutes

do corpo portanto a soluccedilatildeo tem o meacuterito de aproximar o fragmento do acircmbito concei-

tual das teorias da metempsicose Nesse mesmo sentido na frase imediatamente seguin-

te o fr 22 acrescenta ldquopois sem este natildeo pode utilizar os sentidosrdquo (quia sine eo non

potest uti sensibus) O sujeito da frase eacute ainda a alma que sem o corpo natildeo pode utilizar

os sentidos receber e emitir sinais Trata-se do mesmo campo semacircntico da teoria do

socircma-secircma como interpretada como ver-se-aacute logo a seguir por Platatildeo no Craacutetilo

(400c) isto eacute do corpo como sinal O corpo apresenta-se assim no fr 22 de Filolau

como uma custoacutedia relativamente aberta que permite a interaccedilatildeo com o mundo isto eacute

alguma forma de conhecimento e expressatildeo Ver-se-aacute em breve esta mesma ideia ex-

pressa na paacutegina platocircnica agora citada

301 Incisivo nesse sentido Casadio (1991 124 n9) ldquoper quanto ci si arrampichi sugli specchi non si riusciragrave mai a far dire a Filolao che egrave un sepolcro lacuteinvolucro corporeo di cui lacuteanima si compiacerdquo 302 Orig ldquobisogna considerare che nella misteriologia orfico-pitagorica il corpo egrave luogo e mezzo di espiazione per giungere alla liberazione dellacuteanima dacuteonde un certo legame affettivo dellacuteanima verso la propria custodiardquo

145

Em resumo Filolau parece remeter em seu fr 14 agrave teoria da imortalidade da

alma para uma origem certamente anterior a ele mesmo com certa probabilidade de ser

ndash ateacute mesmo ndash externa ao proacuteprio pitagorismo ou pelo menos certamente anterior ao

pitagorismo do seacuteculo V aEC do qual Filolau eacute o maior representante E neste ponto

concordar com a paacutegina do Goacutergias de Platatildeo acima citada isto eacute da origem em acircmbito

religioso e antigo dessas mesmas teorias Ainda que natildeo seja ele mesmo o koacutempsos aneacuter

citado por Platatildeo portanto Filolau constitui um testemunho central ao mesmo tempo

da antiguidade das doutrinas e de sua acolhida muito cedo no interior da literatura pita-

goacuterica

Achados recentes (datados em 1951) parecem confirmar a existecircncia em acircmbito

oacuterfico da teoria do socircma-secircma trata-se mais especificamente das trecircs placas de osso

descobertas em Oacutelbia303 Na primeira (94a Dubois) e na terceira (94c Dubois) leem-se

algumas sequecircncias de nomes que se iniciam ou terminam com o teocircnimo DION uma

abreviaccedilatildeo de Dioniso

Vida Morte Vida Verdade

Dion(iso) Oacuterficos304

Dion(iso) [Mentira] Verdade

Corpo Alma305

Na primeira placa a sequecircncia vida-morte-vida eacute dita verdade e referida exata-

mente aos oacuterficos A placa conteacutem pela primeira vez o nome Orphikoiacute Antes da desco-

berta o primeiro aparecimento do termo era atestado somente em Heroacutedoto (II 81) em

uma paacutegina que seraacute analisada a seguir306 Haacute nesta uma inversatildeo apocaliacuteptica tipica-

mente oacuterfica da valoraccedilatildeo da morte como verdadeira vida (da alma obviamente) Im-

possiacutevel natildeo pensar nesse mesmo sentido a citaccedilatildeo platocircnica acima dos versos de Eu-

riacutepides ldquoQuem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivordquo (Gorg 492e) assim como

303 Se ocuparam das placas de osso de Olbia especialmente West (1982) Zhmud (1992) Dubois (1996) Tortorelli-Ghidini (2006) 304 Orig cf para o texto original e a imagem da placa o Anexo 2 305 Orig cf para o texto original e a imagem da placa o Anexo 3 306 Cf para mais ampla discussatildeo da grafia exata e do sentido do termo Graf (2000) O sufixo ndashικο indi-caria um grupo marcado pela diferenciaccedilatildeo uma seita dionisiacuteaca ldquoheregerdquo (Burkert 1982 12)

146

a toda a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates na paacutegina do diaacutelogo307 O fato eacute que a expressatildeo

socircma-secircma acaba por tornar-se como um mote ou melhor ndash utilizando um termo pita-

goacuterico ndash um syacutembolon da teoria oacuterfica da imortalidade da alma

Aceitando-se a reconstruccedilatildeo da terceira placa por Vinogradov (1991 77-86) ha-

veria nela na terceira linha exatamente a antoniacutemia socircma-psycheacute que encontramos no

texto platocircnico e em Filolau Lidas em conjunto as duas placas revelam indiscutivel-

mente ndash e em acircmbito declaradamente oacuterfico ndash crenccedila na imortalidade da alma enquanto

algo que sobrevive ao corpo mortal308

Na paacutegina do Goacutergias (492e-493c) com a qual comeccedilamos esta seccedilatildeo a grande

inteligecircncia do ldquohomem siciliano ou itaacutelicordquo eacute de certa forma exemplificada por uma

seacuterie de jogos etimoloacutegicos que marcam significativamente a segunda parte da citaccedilatildeo

Com um jogo de palavras (lit uma mudanccedila de termos paraacutegon tocirc onoacutemati) o saacutebio

chamou piacutethos (vaso) aquela parte da alma que eacute piacutethanos (facilmente persuadiacutevel) e

amueacutetoi (natildeo iniciados) os homens anoeacutetoi (que natildeo tecircm cabeccedila) O jogo estende-se ateacute

o ponto de abranger a proacutepria etimologia do Aacutedes (Hades) o reino do aleacutem-tuacutemulo que

eacute entendido como aacuteides (invisiacutevel)

Natildeo maravilha portanto que o mesmo motivo socircma-secircma mereccedila um jogo eti-

moloacutegico refinadiacutessimo em ceacutelebre paacutegina do Craacutetilo (400c) jaacute amplamente estudada

pela criacutetica309 Ao que parece a proacutepria ideia do mote socircma-secircma evoca esta tipologia

antiga de reflexatildeo sobre nomes e realidade Ao mesmo tempo o kompsoacutes aneacuter do Goacuter-

gias e os antigos teoacutelogos e adivinhos de Filolau encontram nesta paacutegina do Craacutetilo

pela primeira vez uma atribuiccedilatildeo mais precisa trata-se aqui de ldquodisciacutepulos de Orfeurdquo

De fato alguns dizem que [o corpo] seja tumba da alma como sepultada nisso na vida presente e pelo fato da alma por sua vez significar por causa disso chama-se corretamente sinal Todavia parecem-me que fo-ram em primeiro lugar os disciacutepulos de Orfeu aqueles que deram este nome como se a alma enquanto estaacute pagando a pena por aquilo pelo qual estaacute pagando possui para que se salve este revestimento feito agrave imagem de uma prisatildeo da alma este eacute assim denominado salvaccedilatildeo ateacute

307 Cf para uma anaacutelise exaustiva desta ideia na literatura oacuterfica Bernabeacute (2007b) 308 Cf para isso tambeacutem West (1982 18-19) e Casadio (1991 125) De ideia contraacuteria Burkert (1980 37 e 1972 133) 309 Cf Rohde (1898 130 n2) Tannery (1901 314s) Wilamowitz (1932 I 199) Rathmann (1933 65 e 82) Nilsson (1935 205s) Dodds (1951 148s) Guthrie (1952 156s) Timpanaro Cardini (1962 II 228s) Burkert (1972 126 n33 e 248 n47) Alderink (1981 62) De Vogel (1981 79s) Bestor (1980 306s) Ferwerda (1985) Casadio (1987 389s e 1991 123s) Riedweg (1995 46) Zhmud (1997 123) Maravi-lha-se ao contraacuterio Bernabeacute (no prelo cap 7)

147

que natildeo pague suas diacutevidas e natildeo eacute preciso mudar uma soacute letra (Crat 400c)310

Eacute preciso obviamente desvendar o articuladiacutessimo jogo de palavras que constroacutei

o texto e que envolve natildeo somente dois diferentes sentidos para o termo secircma (tumba e

sinal) mas tambeacutem a reinvenccedilatildeo ndash toda platocircnica ndash de um novo sentido para o termo

socircma que de corpo acaba por significar salvaccedilatildeo

Soacutecrates revela aqui portanto conhecer dois sentidos diversos do termo secircma

de um lado tumba do outro sinal A assonacircncia tem evidentemente papel central na

compreensatildeo da paacutegina Soacutecrates devia conhecer bem o mote oacuterfico socircma-secircma no

sentido de corpo-tumba mas conhece tambeacutem uma exegese diferente do mote que ndash de

certa forma ndash diminui o impacto cruento e arcaico da imagem provavelmente ligado

originalmente aos ritos das telestai como as placas de Oacutelbia acima citadas parecem in-

dicar refinando-a para inseri-la em um acircmbito semacircntico mais intelectualista O jogo eacute

possiacutevel provavelmente graccedilas ao sentido arcaico do termo secircma jaacute homeacuterico que

significaria natildeo tanto a sepultura e sim mais precisamente a laacutepide funeraacuteria que eacute

erigida para indicar sinalizar o lugar da sepultura e por consequecircncia para lembrar da

pessoa ali sepultada311 Por outro lado a exploraccedilatildeo dessa translaccedilatildeo semacircntica corres-

ponde provavelmente ao mesmo acircmbito exegeacutetico ao qual se refere o papiro Derveni

isto eacute aquele de um trabalho de exegese alegoacuterica dos mitos oacuterficos antigos (cf acima

18)

Diversos autores desde Wilamowitz (1932 II 199) sugerem tratar-se aqui de

uma exegese pitagoacuterica do mote oacuterfico312 Todavia esta atribuiccedilatildeo natildeo eacute consensual De

fato ainda que Burkert afirme inicialmente ldquopodemos supor que se natildeo for oacuterfico seja

possivelmente pitagoacutericordquo por outro lado acaba por concluir ceticamente que ldquonatildeo

sabemos nem sequer se existiu historicamente algo deste tipordquo (1972 248 n47)313 Eacute

310 Orig ldquo καὶ γὰρ ltσῆmicroάgt τινές φασιν αὐτὸ εἶναι τῆς ψυχῆς ὡς τεθαmicromicroένης ἐν τῷ νῦν παρόντι καὶ διότι αὖ τούτῳ ltσηmicroαίνειgt ἃ ἂν σηmicroαίνῃ ἡ ψυχή καὶ ταύτῃ ldquoσῆmicroαrdquo ὀρθῶς καλεῖσθαι δοκοῦσι microέντοι microοι microάλιστα θέσθαι οἱ ἀmicroφὶ Ὀρφέα τοῦτο τὸ ὄνοmicroα ὡς δίκην διδούσης τῆς ψυχῆς ὧν δὴ ἕνεκα δίδωσιν τοῦ-τον δὲ περίβολον ἔχειν ἵνα ltσῴζηταιgt δεσmicroωτηρίου εἰκόνα εἶναι οὖν τῆς ψυχῆς τοῦτο ὥσπερ αὐτὸ ὀνοmicroάζεται ἕως ἂν ἐκτείσῃ τὰ ὀφειλόmicroενα [τὸ] ldquoσῶmicroαrdquo καὶ οὐδὲν δεῖν παράγειν οὐδ ἓν γράmicromicroαrdquo (Crat 400c) 311 Para as citaccedilotildees de Homero cf Il II 814 e VII 319 Od II 222 e XII 175 Para o sentido de σῆmicroα cf Liddell-Scott (1996) Para a discussatildeo do termo cf Prier (1978 91-101) 312 Cf entre eles Thomas (1938 51-52) e Dodds (1951 171 n95) 313 Orig ldquowe may suppose that if it is not Orphic it is likely to be Pythagoreanrdquo e ldquowe do not know whether this was a historical characterrdquo

148

certo que se o fragmento de Filolau acima citado (44B14 DK) natildeo autoriza atribuir a

interpretaccedilatildeo de secircma como sinal e sim mais precisamente como tumba por outro

lado a hipoacutetese levantada por Pugliese Carratelli (2001) de um trabalho mito-loacutegico do

pitagorismo sobre as tradiccedilotildees oacuterficas poderia sugerir com certa probabilidade que esta

etimologia fosse proacutexima aos ambientes pitagoacutericos senatildeo mesmo de autoria destes

uacuteltimos314 Um argumento indireto que autorizaria a atribuiccedilatildeo ao pitagorismo da ideia

do corpo como sinal eacute o fato da praacutetica didaacutetica simboacutelica que conforme vimos acima

(22) deveria marcar o estilo de vida pitagoacuterica syacutembola e acusmata indicando que uma

coisa significa o tempo todo outra315 Consequecircncia esta do ponto de vista teoacuterico da

continuidade da realidade de sua syngeacuteneia na qual tudo remete para tudo316

No entanto o que mais surpreende pela fineza do trabalho de textura etimoloacutegica

eacute a terceira passagem do texto O sucesso do jogo etimoloacutegico eacute sublinhado pelo mesmo

Soacutecrates que ao final do argumento declara orgulhosamente ldquoe natildeo eacute preciso mudar

uma soacute letrardquo Trata-se aqui da aproximaccedilatildeo de socircma com o verbo soiacutezo que acaba por

deslizar semanticamente o termo socircma para o acircmbito da salvaccedilatildeo Linguisticamente o

jogo eacute claro Soacutecrates considera so-ma como um nome composto por so- (de soiacutezo sal-

var) e -ma sufixo que indica accedilatildeo Socirc-ma torna-se assim um nome de accedilatildeo uma haacutebil

construccedilatildeo morfoloacutegica de Soacutecrates-Platatildeo que quer significar que o corpo eacute salvaccedilatildeo da

alma Por esse motivo Soacutecrates pode afirmar natildeo ser preciso mudar uma soacute letra como

ao contraacuterio eacute pressuposto no caso do jogo socircma-secircma no qual haacute uma troca entre ocircmi-

314 Esta eacute certamente boa maneira de resolver na paacutegina platocircnica a oposiccedilatildeo entre aqueles τινές que dizem a teoria e οἱ ἀmicroφὶ Ὀρφέα que foram os primeiros a dizecirc-la nos primeiros (τινές) caberiam os se-gundos os oacuterficos mas o alcance desta identificaccedilatildeo natildeo se esgota com eles nos τινές poderiam caber portanto os pitagoacutericos ainda que natildeo em posiccedilatildeo de ldquoprimeirosrdquo a sustentar esta teoria 315 Significativa nesse sentido a paacutegina de Estobeu (Stob Flor 31199) ldquode fato natildeo haacute nada de tatildeo proacuteprio da filosofia pitagoacuterica como o simboacutelico como uma forma de ensino na qual palavra e silencio se misturam como para natildeo dizerrdquo (Orig ldquo Καὶ microὴν οὐδέν ἐστιν οὕτω τῆς Πυθαγορικῆς φιλοσοφίας ἴδιον ὡς τὸ συmicroβολικόν οἷον ἐν τελετῇ microεmicroιγmicroένον φωνῇ καὶ σιωπῇ διδασκαλίας γένος ὥστε microὴ λέγειν ἀείσω ξυνετοῖσιrdquo ) Por outro lado a ideia da sinalizaccedilatildeo simboacutelica natildeo seria algo restrito agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica mas eacute amplamente presente no restante da literatura preacute-socraacutetica Veja-se como exemplo o fr 93 de Heraacuteclito ldquoo senhor de que eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo fala nem esconde sinalizardquo Orig ldquo ὁ ἄναξ οὗ τὸ microαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν ∆ελφοῖς οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σηmicroαίνειrdquo (22 B 93 DK) 316 Ao contraacuterio natildeo procede a argumentaccedilatildeo de Ferwerda (1985 270-272) que tende a mostrar que ndash ao contraacuterio ndash o primeiro sentido etimoloacutegico do corpo como tumba da alma natildeo pode ser pitagoacuterico O autor argumenta que por um lado uma ideia tatildeo pessimista natildeo combinaria com a visatildeo do mundo mais positi-va dos pitagoacutericos (notamente em relaccedilatildeo agrave ideia da συνγένεια) por outro lado argumenta que natildeo faria sentido imaginar que um pitagoacuterico pensasse na morte da alma durante a vida terrena no corpo O equiacutevo-co do autor reside em considerar nos dois casos a morte da alma no corpo como algo definitivo em vez de pensaacute-la como continuamente renascida pensando assim na morte com ao comeccedilo de uma nova vida no percurso da metempsicose

149

cron e eta Dessa forma e somente em consequecircncia dessa nova etimologia soterioloacutegi-

ca faraacute sentido para Soacutecrates a imagem do corpo como periacutebolos revestimento da alma

feito agrave imagem de um desmoteacuterion de uma prisatildeo Entre os poucos comentadores desta

passagem De Vogel (1981) e Ferwerda (1985) concordam que com essa proposta eti-

moloacutegica Platatildeo estaria de fato recusando a visatildeo totalmente pessimista do corpo como

tumba em favor de uma imagem menos definitiva como aquela do periacutebolos ou mesmo

do caacutercere317 Aqui estaacute o ponto teoreacutetico central dizer que o corpo eacute revestimento e

prisatildeo da alma eacute algo bem mais leve do que dizer que eacute sua tumba318 Como bem obser-

vou Timpanaro Cardini (1962) a etimologia ldquodenota tendecircncias culturais mais proacuteximas

agrave idade de Soacutecratesrdquo e deveraacute corresponder portanto agrave sua proacutepria lectio da tradiccedilatildeo do

motivo socircma-secircma como sugere a proacutepria expressatildeo dokoucircsi moi319

Corresponderaacute mais precisamente agrave transposiccedilatildeo platocircnica da tradiccedilatildeo socircma-

secircma no interior de seu proacuteprio universo conceitual bem exemplificada por uma paacutegina

do Feacutedon em que o tema do caacutercere da alma assume fortes conotaccedilotildees eacuteticas

Aqueles que amam o conhecimento bem sabem que a filosofia toma sua alma que eacute realmente acorrentada em uma palavra colada ao corpo condenada a perscrutar as coisas que satildeo como atraveacutes de uma prisatildeo e jamais por si mesma e estaacute envolvida em total ignoracircncia E ainda que intua que este caacutercere eacute terriacutevel por causa da paixatildeo en-

317 Eacute significativa aqui a posiccedilatildeo expressa por De Vogel ldquoall this I think brings out fairly clearly that those modern authors who write and speak as if the σῶmicroα-σῆmicroα formula were the most adequate expres-sion if Platos view of man and human life can do so only by a certain mis-interpretation of the function of that formula in Platos thought For in fact Plato took human life much more as a challenge than as some kind of penancerdquo (1981 98) Por outro lado natildeo parece fazer muito sentido demonstrar ndash como quer fazer Ferwerda (1985 274) ndash que o termo περίβολος natildeo significaria em Platatildeo necessariamente ldquojaulardquo e sim um recinto de proteccedilatildeo Ainda que a resenha proposta do termo ao longo do restante da obra platocircnica seja convincente natildeo retira deste especiacutefico περίβολος o fato de ter sido indicado como δεσmicroωτηρίου εἰκόνα devendo ser de ldquojaulardquo no contexto da passagem seu significado mais preciso 318 Ainda que Casadio as considere ldquometafore che esprimono con gradazione diversa lo stesso concettordquo (1991 124) todavia eacute possiacutevel pensar em mudanccedila de rumo mais precisa na passagem platocircnica como veremos a seguir Concorda com ele Guthrie (1952 311) 319 Timpanaro Cardini 1962 II 229 Orig ldquorisente di tendenze culturali piugrave vicine allacuteetagrave di Soacutecraterdquo Cf tambeacutem Nilsson It may however seem doubtful whether the etymologies (σῆmicroα-σηmicroαίνειν σῶmicroα-σώιζειν) are quoted from the Orphics or are Platos own speculations It may be doubted if such etymo-logical speculations are appropriate for the Orphics and it seems not unlikely that Plato added them as explanatory comments intended to illuminate the saying (1935 205) E Casadio ldquociograve che Platone attribuisce agli Orfici egrave lidea dellespiazione delle colpe non necessariamente il legame etimologico tra sogravema e sogravezordquo (1987 390) Apesar disso eacute certamente o caso de notar com Bernabeacute (no prelo cap 7) que nas duas lacircminas oacuterficas de Pelinna datadas do seacuteculo IV aEC incontramos a mesma ideia de libertaccedilatildeo da alma do corpo ldquoacaba de morrer acaba de nascer ou trecircs vezes bem-aventurado neste dias Diga a Perseacutefona que o proacuteprio Baco te libertourdquo (Cf Tortorelli Ghidini 2006 84-85) Para argumentos a favor de uma atribuiccedilatildeo jaacute oacuterfica da ideia do corpo como salvaccedilatildeo cf Ferwerda (1985 267)

150

quanto quem se encontra nele acorrentado acaba por ser ele proacuteprio o artiacutefice de seu acorrentamento (Phaed 82e)320

A prisatildeo da alma no corpo portanto eacute constituiacuteda de ignoracircncia e paixatildeo No

entanto ainda eacute passiacutevel da intervenccedilatildeo pedagoacutegica da filosofia que tenta ldquodescolarrdquo a

alma do corpo ampliando sua visatildeo O que importa sublinhar aqui em perspectiva pla-

tocircnica eacute que a imagem corpo-prisatildeo permite esta intervenccedilatildeo da filosofia enquanto a

simples equaccedilatildeo corpo-tumba natildeo E com isso a moralizaccedilatildeo platocircnica das teorias da

imortalidade da alma atinge seu ponto mais alto e ao mesmo tempo provavelmente

mais distante de sua origem oacuterfica

Sinal inequiacutevoco da nova siacutentese platocircnica das diversas etimologias eacute uma paacutegi-

na do Fedro (250c) em que aparecem novamente articuladas ndash e sem o miacutenimo sinal de

tensatildeo entre elas ndash as duas imagens do corpo como prisatildeo e como tumba as almas en-

contram-se no niacutevel mais alto de sua iniciaccedilatildeo junto a Zeus e satildeo descritas como ldquoes-

tando puras e sem marcas deste que agora carregamos conosco e chamamos corpo ao

qual estamos presas agrave maneira das ostrasrdquo (Phaedr 250c)321 A remissatildeo ao jogo etimo-

loacutegico do Craacutetilo acima citado eacute evidente no uso do termo aseacutematos que traduzimos

ldquosem marcasrdquo mas que enquanto composto de alfa+sema pode carregar e certamente

carrega o sentido de ldquonatildeo sepultadordquo Assim a paacutegina poderaacute ser lida como ldquoestando

puras e natildeo sepultadas deste que agora carregamos conosco ao qual estamos presas agrave

maneira das ostrasrdquo Novamente o tema socircma-secircma portanto a jogar entre os sentidos

de tumba e sinal322

320 Orig ldquo οἱ φιλοmicroαθεῖς ὅτι παραλαβοῦσα αὐτῶν τὴν ψυχὴν ἡ φιλοσοφία ἀτεχνῶς διαδεδεmicroένην ἐν τῷ σώmicroατι καὶ προσκεκολληmicroένην ἀναγκαζοmicroένην δὲ ὥσπερ διὰ εἱργmicroοῦ διὰ τούτου σκοπεῖσθαι τὰ ὄντα ἀλλὰ microὴ αὐτὴν δι αὑτῆς καὶ ἐν πάσῃ ἀmicroαθίᾳ κυλιν δουmicroένην καὶ τοῦ εἱργmicroοῦ τὴν δεινότητα κατιδοῦσα ὅτι δι ἐπιθυmicroίας ἐστίν ὡς ἂν microάλιστα αὐτὸς ὁ δεδεmicroένος συλλήπτωρ εἴη τοῦ δεδέσθαιrdquo (Phaed 82e) 321 Orig ldquo καθαροὶ ὄντες καὶ ἀσήmicroαντοι τούτου ὃ νῦν δὴ σῶmicroα περιφέροντες ὀνοmicroάζοmicroεν ὀστρέου τρό-πον δεδεσmicroευmicroένοιrdquo (Phaedr 250c) 322 Cf para isso Ferwerda (1985 269) Casadio (1987 389 n1) e Bernabeacute (no prelo cap7) que apresenta interessante quadro sinoacuteptico desta passagem com a paralela do Craacutetilo (400c) no sentido de mostrar a derivaccedilatildeo da primeira da segunda

151

344 Mediaccedilatildeo pitagoacuterica

O caminho aqui traccedilado balizado pelos textos-chave da obra platocircnica permite

alcanccedilar algumas conclusotildees ainda que provisoacuterias sobre qual seja o sentido da presen-

ccedila das teorias da metempsicose oacuterficas e pitagoacutericas no interior do corpus

Primeiramente eacute possiacutevel afirmar que haacute na obra platocircnica remissatildeo bastante

clara a uma origem ao mesmo tempo antiga religiosa e itaacutelica de teorias da imortali-

dade da alma que encontramos paralelamente na literatura oacuterfica e na primeira literatura

pitagoacuterica notadamente em Filolau Foi certamente esse o caso do mote socircma-secircma haacute

pouco analisado

Em segundo lugar a apropriaccedilatildeo platocircnica de teorias da imortalidade oacuterficas su-

postamente originaacuterias eacute claramente marcada por uma intenccedilatildeo moralizante como bem

demonstraram a insistecircncia na hierarquia das reencarnaccedilotildees e mesmo a original etimo-

logia soterioloacutegica platocircnica para o motivo do socircma-secircma Natildeo eacute impossiacutevel por outro

lado concluir que provavelmente essa transposiccedilatildeo tenha sido mediada por um movi-

mento como aquele pitagoacuterico que ainda que provavelmente proacuteximo tanto geografi-

camente como socialmente agrave mitologia e agrave ritualidade das telestai oacuterficas de certa for-

ma contribui para ldquoapolinizar o orfismordquo ndash na ceacutelebre expressatildeo de Ciaceri (1931-32

209) ou seja ndash conforme a lectio em seguida partilhada tambeacutem por Burkert (1972

132-133) e Pugliese Carratelli (2001 17-29) ndash a intelectualizar e aristocraticizar as tra-

diccedilotildees oacuterficas Estas originalmente desenvolvidas por indiviacuteduos andarilhos e agrave mar-

gem da cultura e religiatildeo poliacuteade foram aos poucos (e sempre parcialmente) incorpora-

das no novo contexto sociocultural das colocircnias doacutericas da Magna Greacutecia do seacuteculo IV

e depois V aEC323

Natildeo eacute possiacutevel avanccedilar mais neste sentido da definiccedilatildeo de uma precisa distinccedilatildeo

em relaccedilatildeo agraves teorias da alma entre a tradiccedilatildeo oacuterfica e aquela pitagoacuterica Alguns autores

sugerem que o ponto de distinccedilatildeo possa ser aquele da culpa originaacuteria Inicialmente a

metempsicose natildeo deveria ter sido considerada entre os pitagoacutericos como um castigo e

sim como consequecircncia loacutegica da imortalidade da alma Em um segundo momento a

influecircncia representada pelo mito antropogocircnico dos Titatildes e de Dioniso com a conse-

quente antropologia da dupla natureza do homem e da necessaacuteria expiaccedilatildeo do crime

323 OrigldquoSomething related to the Orphism ndash afirma Burkert (1972 132) ndash had emerged from the ano-nymity of back-alley ritual to become respectablerdquo

152

originaacuterio levaria o pitagorismo a adotar a mesma concepccedilatildeo oacuterfica por esta servir

muito bem a suas intenccedilotildees moralizantes324 No entanto natildeo haacute bases textuais soacutelidas

para essas afirmaccedilotildees o que sugere que seja mesmo o caso de parar por aqui

O texto platocircnico frequenta portanto em diversos e muitos lugares as teorias da

imortalidade da alma e da metempsicose contribuindo ndash de certa forma ndash para acostu-

mar nossos ouvidos a esse imaginaacuterio oacuterfico-pitagoacuterico da metempsicose Isso todavia

pode levar agrave impressatildeo enganosa de que essa ideia deveria ser comum na cultura grega

em que Platatildeo se encontra Ao contraacuterio Platatildeo assume aqui uma ideia bastante estra-

nha e exoacutetica recebida do orfismo provavelmente pelo pitagorismo Os proacuteprios textos

platocircnicos em seu tecido dialoacutegico deixam transparecer a estraneidade das teorias da

imortalidade da alma para a cultura de seu tempo Eacute este o caso da resistecircncia de Cebes

no Feacutedon (69e-70a) a aceitar que a alma tenha longe do corpo existecircncia proacutepria como

tambeacutem de Glaucon em Repuacuteblica (X 608d) que declara jamais ter ouvido falar da

imortalidade da alma

A estraneidade das praacuteticas e das doutrinas pitagoacutericas da imortalidade da alma

coincide e articula-se com outra estraneidade jaacute detectada anteriormente (cf 16) nas

fontes sobre o pitagorismo aquela poliacutetica isto eacute de uma koinoniacutea que se apresenta

como uma cidade dentro da cidade alternativa aos modos de vida poliacuteades A experiecircn-

cia poliacutetica religiosa e filosoacutefica que uma concepccedilatildeo da alma como esta pressupotildee vai

em direccedilatildeo a uma quebra da ordem agrave definiccedilatildeo de uma alternativa decididamente con-

tracultural De fato a descriccedilatildeo do indiviacuteduo pela histoacuteria pregressa de sua alma imortal

contrasta diretamente os criteacuterios bioloacutegicos e sociais que normalmente o definem no

interior da poacutelis Natildeo mais a descendecircncia sociobioloacutegica e sim a histoacuteria das vidas

anteriores determina seu lugar na sociedade E essa histoacuteria depende exclusivamente de

sua responsabilidade eacutetica325 A consequecircncia disso eacute o surgimento de comunidades e

formas de vida relativamente autocircnomas e claramente sectaacuterias no interior da estrutura

social tradicional Natildeo acaso as mulheres encontravam nesses movimentos natildeo somente 324 Cf Casadesuacutes apud Bernabeacute (no prelo cap 8) 325 Ainda paradigmaacuteticas neste sentido as palavras de Cornford (1922 141) ldquowhat is new in transmigra-tion is the moral view that reincarnation expiates some original sin and that the individual soul persists bearing its load of inalienable responsibility through a round of lives till purified by suffering it es-capes for ever [hellip] The individual becomes a unit an isolated atom with a personal sense of sin and a need of personal salvation compensated however by a new consciousness of the souls dignity and val-ue expressed in the doctrine that by origin and nature it is divine [hellip] But only on condition of becoming purerdquo Menos convincentes por outro lado (pace Casadio 1991 142-143) as ilaccedilotildees de Cornford sobre pretenso monismo e dualismo filosoacutefico embutidos nestas mesmas teorias da metempsicose

153

uma franca acolhida como em certos casos ateacute mesmo lugar de destaque Assim por

um lado a saiacuteda radical proposta para o ser humano preso ao tempo e ao corpo ldquocida-

datildeosrdquo eacute a de uma eternidade sem corpo resultando na definiccedilatildeo escatoloacutegica de uma

vida eterna e bem-aventurada da alma Por outro lado a saiacuteda poliacutetica eacute a mudanccedila de

estilo de vida na qual o corpo esteja inserido profundamente em outra cidade a koino-

niacutea dos ldquoouvintesrdquo com suas prescriccedilotildees morais proacuteprias e em muitos casos bastante

distintas daquelas poliacuteades326

Assim a apropriaccedilatildeo moralizante das teorias da imortalidade da alma platocircnica

parece apontar diretamente para a sua derivaccedilatildeo do ambiente pitagoacuterico aristocraacutetico e

intelectualista da Magna Greacutecia a ele anterior eou contemporacircneo tornando dessa

forma Platatildeo uma das fontes de difusatildeo dessas mesmas teorias Ao mesmo tempo a

metempsicose constitui um dos eixos centrais de sua eacutetica e de seu projeto poliacutetico de

converter as almas para construir uma outra cidade

Natildeo deve fugir da atenccedilatildeo o fato de que jaacute no texto do Mecircnon (81a-c) acima ci-

tado a metempsicose possui lugar central tambeacutem para sua teoria do conhecimento de

maneira especial por causa da anamnese Ainda que de forma menos contundente

mesmo esta segunda apropriaccedilatildeo das teorias da imortalidade oacuterficas revelaraacute a marca de

forte mediaccedilatildeo pitagoacuterica

O exerciacutecio da memoacuteria eacute de fato central para a definiccedilatildeo do lugar proacuteprio do pi-

tagorismo no interior das tradiccedilotildees oacuterficas A reforma do orfismo em sentido pitagoacuterico

agrave qual se fazia referecircncia no capiacutetulo primeiro ndash tese proposta por Pugliese Carratelli

(2001 17-29) e aqui jaacute diversas vezes lembrada ndash estaria exatamente fundamentada no

exerciacutecio da memoacuteria no sentido de lembrar da origem divina e imortal da alma e a

partir disso compreender os princiacutepios coacutesmicos e eacuteticos do viver Conforme vimos

acima no testemunho de Empeacutedocles (31 B129 DK) a memoacuteria das vidas anteriores eacute

uma das caracteriacutesticas centrais do saacutebio pitagoacuterico O proacuteprio Pitaacutegoras teria construiacutedo

sobre esta especial capacidade de recordar a historiacutea de suas metempsicoses grande par-

te de sua fama Anota com razatildeo neste sentido Sassi que

Pitaacutegoras desenha sua imagem de sapiente exatamente se apresentan-do como aquele que graccedilas agrave experiecircncia de muitas vidas acumulou

326 Cf para essa discussatildeo Detienne (1963) Vegetti (1989) Federico (2000) Especialmente interessantes as observaccedilotildees de cunho histoacuterico-antropoloacutegico sobre as ldquopoliacuteticas da imortalidaderdquo pitagoacutericas em Red-field (1991) Jaacute dediquei a esta questatildeo algumas paacuteginas recentemente (Cornelli 2009a)

154

conhecimentos extraordinaacuterios Esta imagem torna-se natildeo somente fa-tor de forte agregaccedilatildeo da comunidade em torno de seu liacuteder [] mas tambeacutem uma garantia da validade de novo saber focado na descoberta fundamental realizada pelo proacuteprio Pitaacutegoras da harmonia de propor-ccedilotildees numeacutericas que rege o cosmo (Sassi 2009 180)327

De fato a essa dimensatildeo sapiencial da memoacuteria deveria corresponder um uso ndash

por assim dizer ndash cotidiano dela no interior das comunidades protopitagoacutericas o mem-

bro da koinoniacutea ndash segundo lembra Jacircmblico ndash dedicava o primeiro tempo do dia para o

exerciacutecio da anamnese

O pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado nova-mente agrave memoacuteria o que havia acontecido no dia anterior E procedia desta forma agrave anamnese tentava chamar agrave mente a primeira coisa que havia dito escutado ou ordenado aos domeacutesticos no dia anterior logo apoacutes ter acordado e a seguir a segunda e a terceira e procedia da mesma forma para as sucessivas (Iambl VP 165)328

Como tambeacutem devia marcar as comunidades pitagoacutericas um especial culto agrave

deusa Mnemosyne bem representado por um grupo de lacircminas oacuterficas que Pugliese

Carratelli (2001 27) chama exatamente de mnemosyacuteniae Nessas lacircminas eacute normal-

mente a deusa Mnemosyne rainha das musas agrave qual eacute dedicado o lago do aleacutem-tuacutemulo

a ditar as senhas as instruccedilotildees que abrem ao iniciado as portas do aleacutem-tuacutemulo A senha

eacute normalmente constituiacuteda por uma foacutermula de apresentaccedilatildeo um syacutembolon ldquosou filho

da terra e do ceacuteu estreladordquo conforme a ceacutelebre lacircmina de Hipponion

Este eacute consagrado a Mnemosyacutene Quando iraacutes para as bem construiacutedas moradias do Hades [] encontraraacutes a aacutegua fresca que corre do lago a Memoacuteria Na frente desta estaratildeo os guardas que te perguntaratildeo por-que estaacutes percorrendo as trevas obscuras do Hades Diz ldquosou filho da terra e do ceacuteu estrelado de sede estou ardendo e desfaleccedilo deem-me logo para beber a aacutegua fresca que vem do lago da Memoacuteriardquo329

327 Orig ldquoPitagora disegna la propria immagine di sapiente proprio presentandosi come colui che grazie allacuteesperienza di molte vite haacute accumulato conoscenze straordinarie Questa immagine diventa non solo un fattore forte di aggregazione della comunitagrave intorno al suo lider [] ma uma garanzia di validitagrave di um sapere nuovo centrato sulla scoperta fondamentale da parte dello stesso Pitagora dellacutearmonia di proporzioni numeriche che regge il cosmordquo 328 Orig ldquo Πυθαγόρειος ἀνὴρ οὐ πρότερον ἐκ τῆς κοίτης ἀνίστατο ἢ τὰ χθὲς γενόmicroενα πρότερον ἀναmicroνη-σθείη ἐποιεῖτο δὲ τὴν ἀνάmicroνησιν τόνδε τὸν τρόπον ἐπειρᾶτο ἀναλαmicroβάνειν τῇ διανοίᾳ τί πρῶτον εἶπεν ἢ ἤκουσεν ἢ προςέταξε τοῖς ἔνδον ἀναστὰς καὶ τί δεύτερον καὶ τί τρίτον καὶ περὶ τῶν ἐσοmicroένων ὁ αὐτὸς λόγος καὶ πάλιν αὖ ἐξιὼν τίνι πρώτῳ ἐνέτυχε καὶ τίνι δευτέρῳ καὶ λόγοι τίνες ἐλέχθησαν πρῶτοι καὶ δεύτεροι καὶ τρίτοι καὶ περὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁ αὐτὸς λόγοςrdquo (Iambl VP 165) 329 Cf original no Anexo 4 A lacircmina constitui o mais antigo testemunho de uma foacutermula bastante comum entre as lacircminas da Magna Greacutecia e Creta O mesmo texto eacute de fato presente tambeacutem nas lacircminas de

155

Prova dessa ligaccedilatildeo do pitagorismo natildeo somente com a praacutetica da memoacuteria mas

com a mesma deusa Mnemosyne eacute o testemunho dos Theologumena Arithmeticae tex-

to proveniente da primeira Academia e que se refere provavelmente a tradiccedilotildees de Es-

peusipo atestando que os pitagoacutericos chamavam Mnemosyacutene a mocircnada e Mnecircme ou

Piacutestis a decirccada (44 A 13 DK)330

A insistecircncia sobre a memoacuteria e a necessidade da anamnese parece definir por-

tanto para as tradiccedilotildees pitagoacutericas lugar distinto e especial no interior da religiatildeo oacuterfica

antiga O destaque para a necessidade de natildeo esquecer de recordar estaacute intimamente

ligado de um lado a uma praacutetica cientiacutefica que encontra na memoacuteria sua teacutecnica seu

ritual especiacutefico de erudiccedilatildeo por outro lado a uma verdadeira tensatildeo espiritual (repre-

sentada nos fragmentos oacuterficos como uma estrada que se divide em duas e que conduz a

dois lagos diferentes o da Memoacuteria e o do Esquecimento) que deseja levar o iniciado a

sair do contiacutenuo transmigrar de existecircncias em existecircncias diferentes por meio da me-

moacuteria de sua verdadeira origem331

Em conclusatildeo Platatildeo mesmo no uso da metempsicose para fundamentar sua te-

oria do conhecimento anamneacutetica revela suas diacutevidas para com o orfismo e de maneira

especial para aquele blending filosoacutefico que o pitagorismo deve ter desenvolvido a par-

tir do primeiro332

Peteacutelia Entella e Pharsalos e Eleutherna Cf Pugliese Carratelli (2001 39ss) e Tortorelli-Ghidini (2006 62ss) 330 Cf Burkert (1993 359ss) para um comentaacuterio ao testemunho de Filolau 331 A imagem dos dois caminhos natildeo pode natildeo lembrar o Proacutelogo do Poema de Parmecircnides neste sentido A deusa que encontra o filoacutesofo foi identificada por diversos comentadores como a proacutepria Mnemosyacutene Jaacute discuti anteriormente esta atribuiccedilatildeo e as consequecircncias dela para a interpretaccedilatildeo do Poema cf Cor-nelli (2007b) 332 Surpreendentemente Burkert (1972 214) considera um equiacutevoco a relaccedilatildeo entre Platatildeo e os pitagoacuteri-cos no que diz respeito agrave anamnese ldquoA closer look reveals that the connection of Pythagoras with Plato in relation to anamnesis is scarcely more than an equivocationrdquo Os motivos deste ceticismo estatildeo liga-dos ao fato de natildeo considerar que a metempsicose tenha de fato alguma relaccedilatildeo com as provas matemaacuteti-cas que a paacutegina do Mecircnon (80d) em questatildeo salienta Ainda que isso seja procedente a praacutetica da anam-nese como exerciacutecio da memoacuteria das vidas anteriores em Platatildeo eacute ainda assim dificilmente separaacutevel das praacuteticas e teorias da imortalidade de matriz oacuterfico-pitagoacuterica

156

35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito

As referecircncias de Heroacutedoto agrave metempsicose pitagoacuterica representam tambeacutem tes-

temunhos preciosos por serem originaacuterias de outro acircmbito intelectual diferente daquele

da filosofia antiga e seus debates A comeccedilar pelo ceacutelebre passo das Histoacuterias em que se

faz referecircncia agraves crenccedilas egiacutepcias sobre a imortalidade

Nisto tambeacutem os egiacutepcios foram os primeiros isto eacute no afirmar que a alma do homem eacute imortal e que entra quando o corpo morre no corpo de outro animal que nasce e que depois de ter transmigrado assim por todos os animais da terra do mar e do ar entra no corpo de um ho-mem que nasce a volta completa ndash dizem ndash (a alma) cumpre no espa-ccedilo de trecircs mil anos Esta foi a doutrina acolhida por alguns gregos uns mais cedo outros mais tarde e que a consideravam como sua Eu mesmo conheccedilo seus nomes mas natildeo vou escrevecirc-los (Herodt Hist II 123)333

Vaacuterias hipoacuteteses foram levantadas para explicar a reticecircncia de Heroacutedoto A

mais comum eacute a de referir o silecircncio de Heroacutedoto ao medo dos ciacuterculos oacuterficos da Mag-

na Greacutecia se voltarem contra ele por estar fazendo derivar do Egito uma doutrina como

esta que os proacuteprios oacuterficos ndash cf Heroacutedoto ndash ldquoconsideravam como suardquo (Timpanaro

Cardini 1962 III 21-22)

Todavia a hipoacutetese natildeo eacute muito convincente ao menos por trecircs motivos Primei-

ramente Heroacutedoto cita explicitamente oacuterficos e pitagoacutericos em outra passagem estrita-

mente relacionada a esta na qual tece algumas consideraccedilotildees sobre os usos sepulcrais

dos egiacutepcios (que sepultavam os mortos em vestes de linho e natildeo de latilde como na Greacute-

cia) Ele afirma que ldquotal [costume] corresponde aos chamados orfikaacute e bacchikaacute que na

verdade satildeo egiacutepcios e pitagoacutericosrdquo (Herodt Hist II 81)334 Aqui ao contraacuterio a ante-

rioridade de uma praacutetica egiacutepcia ligada agrave imortalidade eacute afirmada sem reticecircncias335

333 Orig ldquo Πρῶτοι δὲ καὶ τόνδε τὸν λόγον Αἰγύπτιοί εἰσι οἱ εἰπόντες ὡς ἀνθρώπου ψυχὴ ἀθάνατός ἐστι τοῦ σώmicroατος δὲ καταφθίνοντος ἐς ἄλλο ζῷον αἰεὶ γινόmicroενον ἐσδύεται ἐπεὰν δὲ πάντα περιέλθῃ τὰ χερσ-αῖα καὶ τὰ θαλάσσια καὶ τὰ πετεινά αὖτις ἐς ἀνθρώπου σῶmicroα γινόmicroενον ἐσδύνειν τὴν περιήλυσιν δὲ αὐτῇ γίνεσθαι ἐν τρισχιλίοισι ἔτεσι Τούτῳ τῷ λόγῳ εἰσὶ οἳ Ἑλλήνων ἐχρήσαντο οἱ microὲν πρότερον οἱ δὲ ὕστερον ὡς ἰδίῳ ἑωυτῶν ἐόντι τῶν ἐγὼ εἰδὼς τὰ οὐνόmicroατα οὐ γράφωrdquo (Herodt Hist II 123) 334Orig ldquoὉmicroολογέουσι δὲ ταῦτα τοῖσι Ὀρφικοῖσι καλεοmicroένοισι καὶ Βακχικοῖσι ἐοῦσι δὲ αἰγυπτίοισι καὶ ltτοῖσιgt Πυθαγορείοισιrdquo (Herodt Hist II 81) 335A passagem natildeo merece ulteriores consideraccedilotildees pois a discrepacircncia entre duas famiacutelias de manuscri-tos a romana (AB) e a florentina (RVS) fez praticamente todos os comentadores suspeitarem que a in-formaccedilatildeo pela qual os usos sepulcrais ἐοῦσι δὲ αἰγυπτίοισι καὶ ltτοῖσιgt Πυθαγορείοισι constitua emenda tardia Cf Rohde (1898 439s) Wilamowitz-Moellendorf (1932 189) Rathmann (1933 52ss) Timpana-

157

Em segundo lugar conhecendo a ironia de Heroacutedoto e seu gosto pelo ldquojogordquo

natildeo eacute difiacutecil pensar que natildeo escrever os nomes dos autores nesse caso em que deveria

ser evidente a todos a quem ele se estava referindo pode ser uma remissatildeo jocosa ao

silecircncio iniciaacutetico em relaccedilatildeo agraves doutrinas e praacuteticas oacuterfico-pitagoacutericas e de maneira

especial agrave ordem de natildeo escrevecirc-las336 Heroacutedoto natildeo faz questatildeo de esconder essa

mesma ironia em outro trecho das Histoacuterias (IV 95) em que se refere a essas teorias

oacuterfico-pitagoacutericas da imortalidade e no qual narra muito divertidamente as faccedilanhas de

Zalmoxis que foi servo de Pitaacutegoras Analisaremos essa uacuteltima passagem nas paacuteginas a

seguir em relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees sobre as lendas que se referem agrave metempsicose

Em terceiro lugar se eacute verdade que Heroacutedoto junto com seus concidadatildeos ha-

via colonizado em meados do seacuteculo V aEC a cidade de Turii (jaacute Sibari) na Itaacutelia me-

ridional reduto de longa tradiccedilatildeo pitagoacuterica essa mesma colonizaccedilatildeo natildeo deve ser

compreendida como movimento filo-pitagoacuterico Ao contraacuterio a intervenccedilatildeo de Atenas

veio resolver as sucessivas staacuteseis que a dominaccedilatildeo pitagoacuterica sobre a cidade havia cri-

ado tornando Sibari autocircnoma politicamente desta dominaccedilatildeo e de certa maneira da-

qui para frente antipitagoacuterica337 Natildeo seria portanto razoaacutevel imaginar que Heroacutedoto

devesse temer criar inimizades para si por demonstrar postura antipitagoacuterica como a

proacutepria ironia com que trata o movimento em seus testemunhos parece indicar

Uma seacuterie de hipoacutetese de interpretaccedilatildeo de quem seriam esses ldquoalguns gregosrdquo

de maneira especial ldquoaqueles que mais cedo aderiram agrave teoriardquo eacute levantada ao longo da

histoacuteria da criacutetica Podem ser resumidas fundamentalmente trecircs tipos de soluccedilotildees a)

Pitaacutegoras e Empeacutedocles b) oacuterficos e Pitaacutegoras c) oacuterficos e Empeacutedocles338 Contudo o

fato certamente mais significativo eacute que os egiacutepcios natildeo conheciam nenhuma teoria da

ro Cardini (1958-62 22) Burkert (1972 127ss) argumenta ndash sem convencer totalmente ndash a favor da versatildeo florentina e conclui com razatildeo que esta uacuteltima apontaria para uma conexatildeo ritual entre pitagorismo e orfismo Ainda que relevante portanto para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre orfismo e pitagorismo o valor de testemunho de Heroacutedoto da passagem eacute esvaziado pela possiacutevel emenda da referecircncia exatamente ao pitagorismo 336 Cf para esta discussatildeo tambeacutem Cornelli (2006) 337 Para ampla discussatildeo sobre a histoacuteria de Sibari ao longo da dominiccedilatildeo pitagoacuterica sobre as cidades da Itaacutelia meridional cf Mele (2007 240-247) 338 Cf para as referecircncias bibliograacuteficas completas Burkert (1972 126 n38) Em resumo a) Long (1948 22) Kirk-Raven-Schofield (1983 210ss) b) Morrison (1956 137) Casadio (1991 128s) Zhmud (1997 118ss) c) Rathmann (1933 48ss)

158

imortalidade da alma339 Esta informaccedilatildeo errada causa estranhamento pois Heroacutedoto

demonstra ao contraacuterio conhecer bem as praacuteticas egiacutepcias da imortalidade e faz Bur-

kert imaginar tratar-se aqui de uma projeccedilatildeo de ideias gregas sobre os egiacutepcios340

Todavia a ligaccedilatildeo do pitagorismo com o Egito eacute afirmada em um fragmento do

orador Isoacutecrates jaacute citado no cap 1 no contexto da definiccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica

pelo silecircncio ldquoainda hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacutepulos

[de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessima fama por meio da pa-

lavrardquo (Isoacutecrates Busiris 29 = 14 A4 DK) A passagem completa eacute de fato introduzida

pela referecircncia agraves viagens de estudo que Pitaacutegoras teria conduzido ao Egito

Pitaacutegoras de Samos depois de chegar ao Egito e laacute se tornar disciacutepulo daqueles foi o primeiro a apresentar outra filosofia aos gregos e dis-tinguiu-se de maneira especial no que se refere aos sacrifiacutecios e rituais nos santuaacuterios considerando que se com isso natildeo ganharia mais van-tagens por parte dos deuses ao menos por meio disso obteria uma grande reputaccedilatildeo entre os homens Como de fato aconteceu Sua fama foi assim tatildeo superior agrave dos outros que todos os jovens desejavam ser seus disciacutepulos e o anciotildees preferiam ver seus filhos com ele do que cuidando dos negoacutecios familiares Eacute preciso acreditar nessas histoacuterias pois ateacute hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacute-pulos [de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessi-ma fama por meio da palavra (Isoacutecrates Busiris 28-29)341

Dessa viagem ao Egito portanto Pitaacutegoras teria trazido outra filosofia para os

gregos A terminologia e o contexto irocircnico ecoam tanto o sarcasmo de Heraacuteclito como

a ironia de Heroacutedoto Kahn anota justamente que um professor de eloquecircncia como Isoacute-

crates natildeo consegue ldquoabster-se de dar uma cutucadardquo (refrain from a dig) ao silecircncio 339 Cf para isso jaacute Zeller e Mondolfo (1938 133) Kees (1956 6) Burkert (1972 126 n36) e agora Cen-trone (1996 55) 340 Burkert ainda que com algum exagero em sua anaacutelise paleo-psicoloacutegica chega a sugerir que o contex-to imediato da passagem de Histoacuterias II 12 acima citada poderia ter levado Heroacutedoto a uma espeacutecie de reminiscecircncia das teorias da metempsicose originaacuterias do Sul da Itaacutelia A passagem em questatildeo eacute de fato precedida pela informaccedilatildeo pela qual Demetra e Dioniso eram chamados pelos egiacutepcios de donos do aleacutem-tuacutemulo Ambos por sua vez seriam cultuados no Sul da Itaacutelia (1972 126 n37) 341 Orig ldquo Πυθαγόρας ὁ Σάmicroιός ἐστιν ὃς ἀφικόmicroενος εἰς Αἴγυπτον καὶ microαθητὴς ἐκείνων γενόmicroενος τήν τ ἄλλην φιλοσοφίαν πρῶτος εἰς τοὺς Ἕλληνας ἐκόmicroισεν καὶ τὰ περὶ τὰς θυσίας καὶ τὰς ἁγιστείας τὰς ἐν τοῖς ἱεροῖς ἐπιφανέστερον τῶν ἄλλων ἐσπούδασεν ἡγούmicroενος εἰ καὶ microηδὲν αὐτῷ διὰ ταῦτα πλέον γίγνοι-το παρὰ τῶν θεῶν ἀλλ οὖν παρά γε τοῖς ἀνθρώποις ἐκ τούτων microάλιστ εὐδοκιmicroήσειν Ὅπερ αὐτῷ καὶ συνέβη τοσοῦτον γὰρ εὐδοξίᾳ τοὺς ἄλλους ὑπερέβαλεν ὥστε καὶ τοὺς νεωτέρους ἅπαντας ἐπιθυmicroεῖν αὐτοῦ microαθητὰς εἶναι καὶ τοὺς πρεσβυτέρους ἥδιον ὁρᾶν τοὺς παῖδας τοὺς αὑτῶν ἐκείνῳ συγγιγνοmicroένους ἢ τῶν οἰκείων ἐπιmicroελουmicroένους Καὶ τούτοις οὐχ οἷόν τἀπιστεῖν ἔτι γὰρ καὶ νῦν τοὺς προσποιουmicroένους ἐκείνου microαθητὰς εἶναι microᾶλλον σιγῶντας θαυmicroάζουσιν ἢ τοὺς ἐπὶ τῷ λέγειν microεγίστην δόξαν ἔχονταςrdquo (Isocr Busiris 28-29) Natildeo eacute possiacutevel imaginar o que teria levado Kahn a traduzir aqui ἄλλην φιλοσοφίαν com ldquohigh culturerdquo (2001 12)

159

pitagoacuterico (Kahn 2001 12) Da mesma forma a expressatildeo ldquoeacute preciso acreditar nessas

histoacuteriasrdquo indicaria a postura geral de desconfianccedila em relaccedilatildeo a essas tradiccedilotildees342

36 Lendas sobre a imortalidade

A mesma ironia eacute evidente na histoacuteria de Zalmoxis lembrada por Heroacutedoto (Hist

IV 94-96) trata-se aqui da saga do deus traacutecio Zalmoxis para o qual os Getas (que satildeo

definidos pelo historiador athanatiacutezontas ldquoconvencidos de serem imortaisrdquo) acreditam

irem os que estariam a ponto de morrer Para este deus realizam rituais de sacrifiacutecios

humanos com a esperanccedila de que o sacrificado entre em contato com o deus obvia-

mente apoacutes a morte O contexto deste culto eacute evidentemente aquele das tradiccedilotildees da

imortalidade da alma e do journey model acima citado isto eacute das viagens para o aleacutem-

tuacutemulo Por esse motivo provavelmente Heroacutedoto apoacutes a descriccedilatildeo dos rituais sacrifi-

cais recorda uma lenda pela qual Zalmoxis teria sido em verdade servo de Pitaacutegoras

Liberto ganhou grandes riquezas e entatildeo voltou para sua paacutetria mas como os traacutecios conheciam uma vida pobre e simples o tal Zalmoxis que havia conhecido o teor de vida dos jocircnicos e haacutebitos mais refina-dos daqueles dos traacutecios pois havia frequentado os gregos e entre e-les natildeo o mais insignificante isto eacute o saacutebio Pitaacutegoras filho de Mne-sarco mandou construir uma sala e nela recebendo os dignataacuterios a banquete ensinava que nem ele mesmo nem seus comensais nem se-quer os seus descendentes todos iriam morrer mas que iriam para um lugar onde sobreviveriam e teriam todo tipo de benesses Enquanto di-zia e fazia isso que narrei mandou construir uma casa subterracircnea quando ela foi completada desapareceu da vista dos traacutecios que se lamentavam e o choravam como se tivesse morrido Mas apoacutes quatro anos Zalmoxis reapareceu na frente deles confirmando dessa maneira o que ele havia afirmado (Herodt Hist IV 95)343

342 O valor do testemunho de Isoacutecrates eacute contudo colocado em duacutevida por Ries (1961) que detecta forte influecircncia acadecircmica sobre a tradiccedilatildeo 343 Orig ldquo τὸν Σάλmicroοξιν τοῦτον ἐόντα ἄνθρωπον δουλεῦσαι ἐν Σάmicroῳ δουλεῦσαι δὲ Πυθαγόρῃ τῷ Μνη-σάρχου ἐνθεῦτεν δὲ αὐτὸν γενόmicroενον ἐλεύθερον χρήmicroατα κτήσασθαι συχνά κτησάmicroενον δὲ ἀπελθεῖν ἐς τὴν ἑωυτοῦ Ἅτε δὲ κακοβίων τε ἐόντων τῶν Θρηίκων καὶ ὑπαφρονεστέρων τὸν Σάλmicroοξιν τοῦτον ἐπιστ-άmicroενον δίαιτάν τε Ἰάδα καὶ ἤθεα βαθύτερα ἢ κατὰ Θρήικας οἷα Ἕλλησί τε ὁmicroιλήσαντα καὶ Ἑλλήνων οὐ τῷ ἀσθενεστάτῳ σοφιστῇ Πυθαγόρῃ κατασκευάσασθαι ἀνδρεῶνα ἐς τὸν πανδοκεύοντα τῶν ἀστῶν τοὺς ρώτους καὶ εὐωχέοντα ἀναδιδάσκειν ὡς οὔτε αὐτὸς οὔτε οἱ συmicroπόται αὐτοῦ οὔτε οἱ ἐκ τούτων αἰεὶ γινόmicro-ενοι ἀποθανέονται ἀλλ ἥξουσι ἐς χῶρον τοῦτον ἵνα αἰεὶ περιεόντες ἕξουσι τὰ πάντα ἀγαθά Ἐν ᾧ δὲ ἐποίεε τὰ καταλεχθέντα καὶ ἔλεγε ταῦτα ἐν τούτῳ κατάγαιον οἴκηmicroα ἐποιέετο Ὡς δέ οἱ παντελέω εἶχε τὸ οἴκηmicroα ἐκ microὲν τῶν Θρηίκων ἠφανίσθη καταβὰς δὲ κάτω ἐς τὸ κατάγαιον οἴκηmicroα διαιτᾶτο ἐπ ἔτεα τρία Οἱ δέ microιν ἐπόθεόν τε καὶ ἐπένθεον ὡς τεθνεῶτα Τετάρτῳ δὲ ἔτεϊ ἐφάνη τοῖσι Θρήιξι καὶ οὕτω πιθανά σφι γένετο τὰ ἔλεγε ὁ Σάλmicroοξιςrdquo (Herodt Hist IV 95)

160

Para aleacutem do motivo etnocecircntrico que tende a diminuir a divindade dos Getas

com a sugestatildeo de que Zalmoxis na Greacutecia havia sido natildeo somente um homem mas

ateacute um escravo a passagem de Heroacutedoto revela-se com todo o sarcasmo do qual o his-

toriador eacute capaz uma saacutetira das tradiccedilotildees ligadas agrave kataacutebasis A morte aparente de Za-

moxis de fato natildeo passa de um truque na tentativa de convercer seus concidadatildeos de

sua imortalidade A remissatildeo indireta aqui agrave figura de Pitaacutegoras eacute certamente significa-

tiva como a dizer que ao falar de imortalidade da alma ele eacute a referecircncia imediata

De fato a temaacutetica da imortalidade e a figura carismaacutetica de Pitaacutegoras de certa

forma favorecem o surgimento de amplo leque de histoacuterias legendaacuterias a este respei-

to344 Como eacute de se esperar essas lendas natildeo recolheram muito entusiasmo no interior

da criacutetica atual ainda que ndash eacute certamente o caso de concordar com Burkert (1972 137)

ndash correspondam de fato ao estrato mais antigo da tradiccedilatildeo sobre Pitaacutegoras sendo anteri-

ores a qualquer outra informaccedilatildeo sobre a vida dele que encontramos em Aristoxeno ou

Dicearco por sua vez fontes das Vidas pitagoacutericas de eacutepoca imperial Essa tradiccedilatildeo len-

daacuteria concentra-se especialmente em um toacutepico que devia chamar bastante a atenccedilatildeo

que eacute aquele das efetivas metempsicoses de Pitaacutegoras Esse interesse pela histoacuteria da

alma de Pitaacutegoras foi compreendido jaacute desde a antiguidade (Porph VP 26 e Diod Sic

X 61) como uma exemplificaccedilatildeo na pele do fundador da proacutepria doutrina da transmi-

graccedilatildeo da alma Nesse sentido parte da criacutetica moderna comeccedilou a considerar essa lite-

ratura como um testemunho da sua originalidade345

A fonte mais significativa destas lendas eacute Heraacuteclides Pocircntico um peripateacutetico

que recorda a histoacuteria da palingecircnse de Pitaacutegoras assim

Heraacuteclides Pocircntico refere que Pitaacutegoras costumava dizer de si mesmo o seguinte que uma vez havia sido Etaacutelides e que havia sido conside-rado filho de Hermes O proacuteprio Hermes teria lhe dito para pedir o que quisesse fora a imortalidade Ele entatildeo pediu para manter tanto em vida como na morte memoacuteria dos acontecimentos Assim quando vi-vo lembrava de tudo e depois de morto conservava as mesmas lem-branccedilas Algum tempo depois foi para [o corpo de] Euforbo e foi fe-

344 Cf para um estudo sobre as fontes das lendas de Pitaacutegoras Leacutevy (1926) Uma discussatildeo filosoficamen-te brilhante e filologicamente cuidadosa dessa literatura eacute tambeacutem contida na excelente monografia de Biondi (2009) dedicada a Pitaacutegoras-Euforbo 345 Cf Riedweg 2006 115 Eacute tambeacutem o caso de Timpanaro Cardini (1958-62 I 5) ldquoPitagora crede nella metempsicose perchegrave crede nella sua metempsicoserdquo e de Burkert (1972 147) De ideia contraacuteria Rohde (1898 422) que considera a memoacuteria toda fabuliacutestica

161

rido por Menelau Euforbo de sua parte costumava dizer que uma vez havia sido Etaacutelides e tinha obtido este dom de Hermes e narrava as peregrinaccedilotildees de sua alma como transmigrou e em quantas plantas e animais foi residir e quantos sofrimentos a alma havia padecido no Hades Morto Euforbo sua alma transmigrou para Ermotimo que de-sejando dar uma prova disso dirigiu-se para os Bracircnquides e entran-do no templo de Apolo soube indicar o escudo que Menelau havia pendurado como oferenda votiva (DL VIII 4-5 Heraclid fr 89 Wehrli)346

A escassa probabilidade de Dioacutegenes Laacuteercio expungir a lenda diretamente de

um diaacutelogo de Heraacuteclides Pocircntico (pois natildeo cita algum texto especiacutefico para isso) faz

pensar em uma leitura doxograacutefica isto eacute de segunda matildeo desta tradiccedilatildeo Por outro

lado diversas variantes da mesma genealogia da alma de Pitaacutegoras satildeo registradas na

literatura antiga em todas elas o elemento comum eacute a reencarnaccedilatildeo em Euforbo347 Jaacute

Corssen (1912 22) considerava esta presenccedila de Euforbo incompreensiacutevel Por qual

motivo Pitaacutegoras teria escolhido como etapa central da transmigraccedilatildeo uma personagem

tatildeo secundaacuteria da histoacuteria da guerra de Troia A resposta tradicionalmente dada na es-

teira de Kereacutenyi (1950) eacute que a figura de Euforbo estaria diretamente relacionada a

Apolo aliaacutes seria uma espeacutecie de encarnaccedilatildeo dele (Burkert 1972 141) De fato Ried-

weg (2002 51) e Biondi (2009 67) concordam que Euforbo desempenha papel dramaacute-

tico decisivo no interior da trama da Iliacuteada contribui para a morte de Paacutetroclo que tem

como consequecircncia o retorno de Aquiles para a luta Euforbo ajudado e precedido por

Apolo que cansa e desarticula os membros de Paacutetroclo desfere o primeiro golpe no

guerreiro aqueu (Il 16 805-815) Seria por consequecircncia esta estreita relaccedilatildeo com

346 Orig ldquo Τοῦτόν φησιν Ἡρακλείδης ὁ Ποντικὸς περὶ αὑτοῦ τάδε λέγειν ὡς εἴη ποτὲ γεγονὼς Αἰθαλίδης καὶ Ἑρmicroοῦ υἱὸς νοmicroισθείη τὸν δὲ Ἑρmicroῆν εἰπεῖν αὐτῷ ἑλέσθαι ὅ τι ἂν βούληται πλὴν ἀθανασίας αἰτήσα-σθαι οὖν ζῶντα καὶ τελευτῶντα microνήmicroην ἔχειν τῶν συmicroβαινόντων ἐν microὲν οὖν τῇ ζωῇ πάντων διαmicroνηmicroονε-ῦσαι ἐπεὶ δὲ ἀποθάνοι τηρῆσαι τὴν αὐτὴν microνήmicroην χρόνῳ δ ὕστερον εἰς Εὔφορβον ἐλθεῖν καὶ ὑπὸ Μενέ-λεω τρωθῆναι ὁ δ Εὔφορβος ἔλεγεν ὡς Αἰθαλίδης ποτὲ γεγόνοι καὶ ὅτι παρ Ἑρmicroοῦ τὸ δῶρον λάβοι καὶ τὴν τῆς ψυχῆς περιπόλησιν ὡς περιεπολήθη καὶ εἰς ὅσα φυτὰ καὶ ζῷα παρεγένετο καὶ ὅσα ἡ ψυχὴ ἐν τῷ Ἅιδῃ ἔπαθε καὶ αἱ λοιπαὶ τίνα ὑποmicroένουσιν ἐπειδὴ δὲ Εὔφορβος ἀποθάνοι microεταβῆναι τὴν ψυχὴν αὐτοῦ εἰς Ἑρmicroότιmicroον ὃς καὶ αὐτὸς πίστιν θέλων δοῦναι ἐπανῆλθεν εἰς Βραγχίδας καὶ εἰσελθὼν εἰς τὸ τοῦ Ἀπό-λλωνος ἱερὸν ἐπέδειξεν ἣν Μενέλαος ἀνέθηκεν ἀσπίδαrdquo (D L VIII 4-5 Heraclid fr 89 Wehrli) 347 Cf para as citaccedilotildees Delatte (1922 154-159) Burkert (1972 138-141) Federico (2000 372 n15) e Biondi (2009 8-12)

162

Apolo a fazer pender a escolha para Euforbo348 A prova disso eacute que o escudo de Mene-

lau encontra-se na tradiccedilatildeo acima de Heraacuteclides no templo mais uma vez de Apolo349

A escassa atenccedilatildeo agraves lendas sobre Pitaacutegoras como diziacuteamos natildeo deve fazer es-

quecer que em relaccedilatildeo a elas nossa fonte mais importante eacute do seacuteculo IV aEC o proacute-

prio Aristoacuteteles e seu livro sobre o pitagorismo (fr 191 Rose) Nesse material aparecem

diversas lendas sobre milagres e prodiacutegios operados por Pitaacutegoras as mirabilia incluiacuteam

experiecircncias de ubiquidade diaacutelogos com um rio adivinhaccedilatildeo e a significativa referecircn-

cia a Pitaacutegoras como ao proacuteprio Apolo A economia destas paacuteginas natildeo permite uma

anaacutelise exaustiva destas passagens aristoteacutelicas obviamente Eacute o caso de concordar

mais uma vez com a cuidadosa anaacutelise de Burkert (1972 145) a esse respeito pela qual

essas lendas devem ser consideradas congruentes com o clima do seacuteculo IV aEC e que

somente nos seacuteculos sucessivos seriam usadas como motivo de chacota e criacutetica ao pita-

gorismo O valor dessas tradiccedilotildees eacute ainda mais importante quando se considera a inten-

ccedilatildeo geralmente demonstrada por Aristoacuteteles de separar o protopitagorismo da sua plato-

nizaccedilatildeo operada pela Academia que ndash entre outras coisas ndash teria reduzido Pitaacutegoras a

um alterego do proacuteprio Platatildeo350 O registro aristoteacutelico das lendas teria autoridade mo-

tivos e antiguidade suficientes para ser levado a seacuterio Em uacuteltima anaacutelise portanto Pitaacute-

goras e sua lenda natildeo podem ser separados351

Entre todas as referecircncias aos mirabilia eacute ainda a temaacutetica da morte aparente a

parecer estar bastante presente na literatura do periacuteodo se eacute verdade que a ela se faz

referecircncia na Electra de Soacutefocles ldquoPois haacute muito tempo eu vi homens saacutebios que dizi-

am falsamente terem morrido E em seguida uma vez voltados para casa eram recebi-

348 Centrone (1996 64) anota com razatildeo que o culto a Apolo era muito difundido nas cidades pitagoacutericas de Crotona e Metaponto Cf tambeacutem Iambl VP 52 349 Instigante ainda que troppo alegoacuterica eacute tambeacutem a leitura que Biondi (2009 77) propotildee da passagem da Iliacuteada acima citada ldquoegrave lacuteintervento di Euforbo che svela lacuteidentitagrave autentica di colui che sembrava Achille se lacutearmatura simboleggia il corpo allora lacuteindifesa nuditagrave rappresenta lacuteanima dunque lacuteazione di Euforbo potrebbe effettivamente significare al di lagrave della lettera del testo omerico lo svelamento dellacuteanima e la punizione della sua tracotanzardquo 350 Cf Burkert (1972 146) aleacutem do que foi dito acima (17) para o uso do pitagorismo no interior da polecircmica antiacadecircmica de Aristoacuteteles 351 Cf Burkert (1972 120) para uma discussatildeo metodoloacutegica da dificuldade que resulta desta afirmaccedilatildeo De ideia contraacuteria Casertano (2009 59) mas por considerar como lendas somente aquelas do segredo sobre as doutrinas e da estrutura da comunidade

163

dos com grandes honrasrdquo (Soph El 62-64)352 O escoliasta anotava significativamente

uma referecircncia a Pitaacutegoras ao lado desta passagem (Schol In Soph 62)

37 Demoacutecrito pitagoacuterico

Ainda mais significativo eacute o testemunho de Demoacutecrito nesse sentido Descrito

pelo contemporacircneo Glauco de Regio como ldquodisciacutepulo de um pitagoacutericordquo (68 A1 38

DK) o cataacutelogo tetraloacutegico de suas obras elaborado por Traacutesilo na seccedilatildeo eacutetica eacute inau-

gurado pelas trecircs obras seguintes Pitaacutegoras Sobre a disposiccedilatildeo do saacutebio e Sobre o

Hades (68 B0a-c DK) Proclo ainda conhece o conteuacutedo desta uacuteltima obra na qual apa-

rece novamente a temaacutetica da morte aparente

Como eacute o caso de muitos outros filoacutesofos antigos entre eles Demoacutecri-to o fiacutesico nos escritos Sobre o Hades narraram-se histoacuterias sobre pessoas que pareciam mortas mas que ao contraacuterio voltavam agrave vida (68 B1 DK)353

A proacutepria sequecircncia das trecircs primeiras obras citadas aponta para alguma forma

de dependecircncia democritiana da eacutetica pitagoacuterica Eacute o que sugere jaacute Frank (1923 67) que

ndash comentando a dedicaccedilatildeo a Pitaacutegoras de sua obra eacutetica mais importante (natildeo acaso ci-

tada por primeira) ndash acredita que isso se deva ao fato de Demoacutecrito ter enxergado em

Pitaacutegoras fundamentalmente o fundador de uma seita eacutetico-religiosa354 Sem sermos

obrigados a concordar tout court com Frank eacute inegaacutevel a grande quantidade de aproxi-

maccedilotildees possiacuteveis entre a eacutetica pitagoacuterica e aquela democritiana Os fragmentos demo-

critianos (68 B84 244 e 264 DK) sobre a necessidade ldquode sentir vergonha de si mesmordquo

pelas accedilotildees maacutes remetem diretamente para a praacutetica da anamnese do exame de consci-

352 Orig ldquo ἤδη γὰρ εἶδον πολλάκις καὶ τοὺς σοφοὺς λόγῳ microάτην θνῄσκοντας εἶθ ὅταν δόmicroους ἔλθωσ-ιν αὖθις ἐκτετίmicroηνται πλέονrdquo (Soph El 62-64) 353 Orig ldquo τὴν microὲν περὶ τῶν ἀποθανεῖν δοξάντων ἔπειτα ἀναβιούντων ἱστορίαν ἄλλοι τε πολλοὶ τῶν παλ-αιῶν ἤθροισαν καὶ ∆ ὁ φυσικὸς ltἐν τοῖς Περὶ τοῦ Ἅιδου γράmicromicroασινgtrdquo (68 B1 DK) 354 A economia destas paacuteginas natildeo permite avaliarmos detalhadamente as questotildees historiograacuteficas impliacute-citas nesta aproximaccedilatildeo entre pitagorismo a atomismo A questatildeo seraacute parcialmente enfrentada mais para frente no acircmbito da discussatildeo sobre o atomismo numeacuterico (41) Para uma criacutetica da posiccedilatildeo de Frank cf Zeller e Mondolfo (1938 332-333) Uma abordagem claacutessica agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e atomistas eacute a de Alfieri (1953 30-54) para uma discussatildeo mais recente sobre a leitura acadecircmica pitago-rizante de Demoacutecrito cf Gemelli (2007b 42-58)

164

ecircncia de tradiccedilatildeo pitagoacuterica (Zeller e Mondolfo 1938 335) Mais relevantes ainda seri-

am as aproximaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave questatildeo da medida como base para o raciociacutenio eacutetico

(Riedweg 2002 116) Todavia os paralelos podem natildeo ser decisivos se eacute verdade ndash

como vimos acima ndash que esses mesmos conceitos de phroacutenesis isonomiacutea meacutetron a-

companham o desenvolvimento da eacutetica antiga e da tradiccedilatildeo meacutedica de maneira mais

geral e difusa natildeo podendo portanto serem considerados ndash a bem ver ndash como marcos

definitoacuterios dos dois movimentos em questatildeo

No entanto a aproximaccedilatildeo entre atomistas e pitagoacutericos mais significativa para a

economia dessa discussatildeo sobre a imortalidade da alma pitagoacuterica seria ainda aquela

indicada por Aristoacuteteles na passagem do De Anima jaacute citada (De an 404a16) em rela-

ccedilatildeo a uma concepccedilatildeo material da alma pitagoacuterica Aqui eacute atribuiacuteda aos pitagoacutericos uma

concepccedilatildeo corpuscular da alma (ldquoas poeiras no arrdquo) quase a querer prefigurar a psicolo-

gia de Demoacutecrito Todavia os problemas textuais acima apontados desencorajam a atri-

buiccedilatildeo de grande importacircncia a essa passagem Aleacutem disso na mesma paacutegina do De

Anima Aristoacuteteles associa o movimento contiacutenuo da poeira com a definiccedilatildeo de alma

como aquilo que move a si mesmo

Agrave mesma afirmaccedilatildeo satildeo levados tambeacutem todos os que dizem que a alma eacute aquilo que move a si mesmo pois todos eles parecem partir do pressuposto de que o movimento eacute algo muitiacutessimo peculiar agrave alma (De an 404a 21-25)355

Com a alma como aquilo que move a si mesmo entra-se jaacute em solo platocircnico e

mais precisamente xenocratiano Natildeo acaso algumas paacuteginas depois quando a discus-

satildeo das teorias sobre a alma dos predecessores alcanccedila plenamente o acircmbito acadecircmico

afirma-se que ldquoalguns sustentam que a alma eacute um nuacutemero que move a si mesmordquo (De

an 404b 29-30)356 Trata-se aqui sem duacutevida da interpretaccedilatildeo que Xenoacutecrates (fr 165

Isnardi-Parente) elabora em chave matemaacutetica e pitagorizante da doutrina da alma de

Platatildeo como semovente (Phaedr 245c-246a Leg X 895)357

355 Orig ldquo ἐοίκασι γὰρ οὗτοι πάντες ὑπειληφέναι τὴν κίνησιν οἰκειότατον εἶναι τῇ ψυχῇ καὶ τὰ microὲν ἄλλα πάντα κινεῖσθαι διὰ τὴν ψυχήν ταύτην δ ὑφ ἑαυτῆς διὰ τὸ microηθὲν ὁρᾶν κινοῦν ὃ microὴ καὶ αὐτὸ κινεῖταιrdquo (De an 404a 21-25) 356 Orig ldquo ἀποφηνάmicroενοι τὴν ψυχὴν ἀριθmicroὸν κινοῦνθrsquo ἑαυτόνrdquo (De an 404b 29-30) 357 Cf especialmente Isnardi Parente (1971 166s) com a qual concorda Gemelli (2007 57)

165

A maioria dos comentadores considera portanto a aproximaccedilatildeo de De an

404a16 um mal-entendido de Aristoacuteteles pois a imagem da alma como poeira em mo-

vimento estaria mais ligada a tradiccedilotildees miacutesticas arcaicas do que a um diaacutelogo que o pi-

tagorismo estaria travando com o atomismo no seacuteculo V aEC Para Cherniss a teoria da

alma como poeira nada teria a ver com aquela do movimento

Nesse caso cada gratildeo de poeira devia provavelmente ser considerado uma alma de tal maneira que a psycheacuten (sic) de Aristoacuteteles implicaria complicaccedilotildees que natildeo existem [] Uma teoria como esta por natildeo ter fundamentalmente nada a ver com os movimentos deve corresponder a uma acomodaccedilatildeo de uma supersticcedilatildeo mais antiga com uma mais alta teoria fiacutesica desenvolvida em tempos mais recentes (Cherniss 1935 291 n6)358

Philip (1966 151) baseando-se na distinccedilatildeo que Aristoacuteteles estaria fazendo en-

tre ldquoalguns pitagoacutericosrdquo (tiacutenes) que pensam a alma como poeira e outros (acadecircmicos

pitagorizantes) diversamente destes que sustentam que seria a alma ldquoo que faz com

que as poeiras se movamrdquo imagina ser possiacutevel que Aristoacuteteles estivesse aqui pensan-

do no caso dos primeiros aos pitagoacutericos do seacuteculo V que teriam acomodado sua teoria

da alma ao atomismo contemporacircneo A hipoacutetese eacute todavia incompleta pois restaria

explicar para que ela fosse plausiacutevel por quais motivos esses pitagoacutericos sentiriam a

necessidade de fazer essa acomodaccedilatildeo

38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos

A aproximaccedilatildeo exposta acima da concepccedilatildeo pitagoacuterica da alma com o atomismo

constitui ndash na melhor das hipoacuteteses ndash uma referecircncia ao pitagorismo do V seacuteculo na

pior delas apenas um mal-entendido Por esse motivo ela natildeo pode constituir testemu-

nho aristoteacutelico da teoria da alma protopitagoacuterica

358 Orig ldquoIn this case each speck of dust was probably considered to be a soul so that Aristotle psycheacuten (sic) implies complications which did not exist (hellip) Such a theory since fundamentally it has nothing to do with the motes must have been an accommodation of the earlier superstition to the more hightly de-veloped psychical theories of later timesrdquo Ainda que sem o ranccedilo positivista de Cherniss (evidente em expressotildees como earlier superstition) concordam com ele Rathmann (1933 18-19) Zeller e Mondolfo (1938 554) Burkert (1972 120) Guthrie (1962 306) Alesse (2000 397) Casertano (2009 70) conside-ra a concepccedilatildeo naturalista da alma como ldquoincontestabilmente pitagoricardquo

166

Ainda assim eacute do mesmo Aristoacuteteles o testemunho filosoacutefico provavelmente

mais expliacutecito da existecircncia de uma doutrina da metempsicose pitagoacuterica Trata-se de

uma passagem que pertence a algumas paacuteginas seguintes do mesmo De Anima A pas-

sagem revela a dificuldade de atribuir uma teoria da metempsicose coerente aos primei-

ros pitagoacutericos Eacute inicialmente dessa dificuldade que Aristoacuteteles parece queixar-se359

Estes [filoacutesofos] se esforccedilam somente para indicar qual seja a natureza da alma nada acrescentando sobre o corpo que deve recebecirc-la como se fosse possiacutevel segundo os mitos pitagoacutericos que qualquer alma en-tre em qualquer corpo (De an 407b 20-23)360

De fato ao longo do exame das doutrinas sobre a natureza e as propriedades da

alma iniciado no capiacutetulo II do livro II do De Anima Aristoacuteteles acusa a impropriedade

de todas as teorias de seus predecessores seja em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo de quais sejam

as propriedades especiacuteficas da alma como ndash de maneira especial ndash por estes natildeo terem

prestado atenccedilatildeo agrave questatildeo central isto eacute agrave relaccedilatildeo entre alma e corpo De fato ldquoos filoacute-

sofosrdquo isto eacute seus predecessores ldquoconjugamrdquo (synaacuteptousin) ou ldquojustapotildeemrdquo (titheacuteasin)

a alma ao corpo sem explicarem a causa e os modos dessa conjunccedilatildeo ou justaposiccedilatildeo

(De an 407b 13-17)

Portanto os mitos pitagoacutericos mencionados na passagem constituiriam um dos

exemplos mais significativos desse erro O absurdo (aacutetopon v 13) da explicaccedilatildeo avan-

ccedilada que eacute explicitamente referida tanto ao Timeu de Platatildeo como tambeacutem a todas as

teorias da alma anteriores (v 13-14) eacute exemplificado plasticamente na imagem dese-

nhada na passagem seguinte pela qual

[Estes] se expressam como quem dissesse que a arte do carpinteiro en-trasse nas flautas Ao contraacuterio a teacutecnica deve se servir dos [seus] ins-trumentos assim como a alma do corpo (De an 407b 24-26)361

359 Centrone (1996 105) sugere que esta queixa de Aristoacuteteles deveria depender mais de omissotildees (ou de falta de coerecircncia) no interior dos escritos que ele estava consultando do que propriamente de uma falta de informaccedilotildees sobre a questatildeo que contrariaria os testemunhos de que estaria de posse de diversos escri-tos pitagoacutericos (23) 360 Orig ldquo οἱ δὲ microόνον ἐπιχειροῦσι λέγειν ποῖόν τι ἡ ψυχή περὶ δὲ τοῦ δεξοmicroένου σώmicroατος οὐθὲν ἔτι προσδιορίζουσιν ὥσπερ ἐνδεχόmicroενον κατὰ τοὺς Πυθαγορικοὺς microύθους τὴν τυχοῦσαν ψυχὴν εἰς τὸ τυχὸν ἐνδύεσθαι σῶmicroαrdquo (De Anima 407b 20-23) 361 Orig ldquo παραπλήσιον δὲ λέγουσιν ὥσπερ εἴ τις φαίη τὴν τεκτονικὴν εἰς αὐλοὺς ἐνδύεσθαι δεῖ γὰρ τὴν microὲν τέχνην χρῆσθαι τοῖς ὀργάνοις τὴν δὲ ψυχὴν τῷ σώmicroατιrdquo (De Anima 407b 24-26)

167

A alma na elegante imagem de Aristoacuteteles seria portanto uma arte Como tal

necessita de seu instrumento proacuteprio isto eacute de um corpo Ao contraacuterio portanto do que

os mitos pitagoacutericos sustentam isto eacute de que qualquer alma pode entrar em qualquer

corpo

Imediatamente vem de pensar agrave metempsicose362 O proacuteprio movimento indicado

pelo verbo endyacuteesthai ldquoentrarrdquo da alma no corpo evoca a imagem da transmigraccedilatildeo363

Diversos comentadores todavia quiseram levantar algumas dificuldades em relaccedilatildeo agrave

intenccedilatildeo de Aristoacuteteles de referir-se agrave metempsicose nesta passagem do De Anima 407b

20-23 A comeccedilar por Zeller que percebe uma contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela que devia

ser a teoria da metempsicose pitagoacuterica

A teoria da alma que entra no receacutem-nascido da atmosfera circunstan-te com sua primeira respiraccedilatildeo casualmente e como for (kataacute toucircs Pythagorikoucircs myacutethous diz Aristoacuteteles na passagem acima citada) contribui provavelmente para demonstrar seu defeito na conexatildeo com a doutrina da transmigraccedilatildeo onde a reencarnaccedilatildeo deve de alguma forma representar (como eacute dito no mito de Er) uma consequecircncia da vida anterior exigindo assim uma correspondecircncia entre o tempera-mento (kracircsis) da alma e aquele do corpo no qual entra (Zeller e Mon-dolfo 1938 562)364

De fato a teoria da metempsicose implica responsabilidade moral em vida se-

guida de um julgamento post mortem que contradiria a ideia de aleatoriedade represen-

tada pela repeticcedilatildeo do adjetivo tychoacuten (ldquoqualquer alma em qualquer corpordquo)365 A maio-

362 Esta teoria eacute chamada microῦθος tambeacutem em Platatildeo (cf acima Gorg 492e) 363 Cf para isso jaacute Kranz (Diels-Kranz 1951 I 504 7-9) 364 Orig ldquoLa teoria dellacuteanima che entra nel neonato dallacuteatmosfera circostante con il primo respiro a caso e come cagravepiti (kataacute toucircs Pythagorikoucircs myacutethous dice Aristotele nel luogo sopra citato) viene probabilmente a mostrare in pieno il suo difetto nella sua connessione con la dottrina della trasmigrazione dove la reincarnazione deve pur rappresentare (comacuteegrave detto nel mito di Er) una conseguenza della vita anteriore ed esige quindi una corrispondenza fra il temperamento (kracircsis) dellacuteanima e quello del corpo in cui entrardquo A referecircncia agrave forma de entrada da alma no corpo inaugura uma tendecircncia a compreender esta passagem agrave luz daquela anterior de 404a 16ss em que a alma-poeira teria caracteriacutesticas corpusculares conforme se discutiu acima Cf Timpanaro Cardini (1958-62 III 213) Maddalena (1964 340-41) Guthrie (1962 129 e 260) 365 Concordam com Zeller tanto Rathmann (1933 17s) como Maddalena (1954 340) e Casertano (1987 19s) Timpanaro Cardini tambeacutem demonstra seu ceticismo em relaccedilatildeo ao fato de a passagem referir-se agrave metempsicose avanccedilando todavia mais uma vez uma explicaccedilatildeo original para isso Segundo ela o e-xemplo do marceneiro e das flautas indicaria inegavelmente que a passagem natildeo poderia referir-se agrave me-tempsicose e sim simplesmente a como deva ser compreendida a associaccedilatildeo entre corpo e alma O moti-vo eacute que natildeo faria sentido que a arte do luthier fosse considerada por Aristoacuteteles como separada da flauta pois para melhorar sua capacidade isto eacute sua arte o luthier precisa da flauta assim como a alma do cor-po (Timpanaro Cardini 1958-62 III 214) Todavia Alesse (2000 403 n23) anota com razatildeo que a leitura

168

ria dos comentadores todavia a comeccedilar por Burkert (1972 121 n3) parece considerar

que Aristoacuteteles esteja se referindo no caso especiacutefico natildeo a uma alma e um corpo indi-

viduais e sim ao caraacuteter geral da relaccedilatildeo entre almas e corpos

Algumas paacuteginas depois no mesmo De Anima Aristoacuteteles parece confirmar a

criacutetica aos mitos pitagoacutericos de 407b quando parece refinar a proacutepria criacutetica indicando

que o problema estaria mais especificamente no fato de as almas poderem entrar em

corpos diferentes

Natildeo eacute o corpo a realizaccedilatildeo da alma mas esta aquela de determinado corpo Por esse motivo eacute correta a opiniatildeo daqueles que consideram que a alma natildeo exista sem o corpo e tampouco que a alma seja um de-terminado corpo Na realidade natildeo se identifica com o corpo mas eacute algo de um corpo e se encontra em um corpo de determinada nature-za natildeo como acreditavam nossos predecessores que a adaptavam a um corpo sem indicar nem o que este seja nem suas qualidades mes-mo sendo evidente que jamais uma coisa qualquer recebe outra coisa qualquer (De an 414a 18-25)366

A criacutetica de Aristoacuteteles deve ser obviamente compreendida no interior de sua te-

oria da alma como desenvolvida no De Anima isto eacute fundamentalmente da teoria da

alma como enteleacutecheia do corpo pela qual esta realiza as funccedilotildees que potencialmente jaacute

estatildeo na mateacuteria que constitui o corpo Eacute consequentemente impensaacutevel que ldquouma coisa

qualquer receba outra coisa qualquerrdquo ecoando a mesma ideia expressa em 407b pela

qual ldquoqualquer alma entre em qualquer corpordquo (v 23)

Eacute mesmo o caso de pensar que a criacutetica de Aristoacuteteles nas duas passagens seja

dirigida agrave metempsicose pitagoacuterica pois o que Aristoacuteteles devia considerar como pro-

da Timpanaro Cardini depende de um equiacutevoco na traduccedilatildeo de τεκτονικὴ Timpanaro Cardini considera ser esta a arte do luthier enquanto eacute mais plausiacutevel que Aristoacuteteles se refira neste caso agrave arte do tocador de flauta isto eacute a flauta soacute pode ser utilizada por aquele que possui a arte de fazer funcionar agrave perfeiccedilatildeo aquele instrumento estaria dizendo aqui Aristoacuteteles seria este o flautista portanto natildeo o luthier Os termos da similitude satildeo contudo bastante claros de um lado a arte e a alma do outro a flauta e o cor-po como o corpo em relaccedilatildeo agrave alma a flauta eacute a mateacuteria que estaacute predisposta a acolher a forma da arte (do flautista) e somente deste natildeo aquela do carpinteiro-luthier Cherniss (1935 325 n130) suspeita que a passagem possa referir-se mais precisamente agrave teoria platocircnica do Timeu da escolha do corpo apoacutes a primeira vida representando consequentemente mais uma polecircmica antiplatocircnica do que uma posiccedilatildeo antipitagoacuterica De toda forma permanece na passagem a referecircncia agrave metempsicose que eacute o que mais diretamente interessa agrave economia destas paacuteginas 366 Orig ldquo οὐ τὸ σῶmicroά ἐστιν ἐντελέχεια ψυχῆς ἀλλ αὕτη σώmicroατός τινος καὶ διὰ τοῦτο καλῶς ὑπολαmicroβά-νουσιν οἷς δοκεῖ microήτ ἄνευ σώmicroατος εἶναι microήτε σῶmicroά τι ἡ ψυχή σῶmicroα microὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώmicroατος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώmicroατι ὑπάρχει καὶ ἐν σώmicroατι τοιούτῳ καὶ οὐχ ὥσπερ οἱ πρότερον εἰς σῶmicroα ἐνήρmicroοζον αὐτήν οὐθὲν ροσδιορίζοντες ἐν τίνι καὶ ποίῳ καίπερ οὐδὲ φαινοmicroένου τοῦ τυχόντος δέχεσθαι τὸ τυχόνrdquo (De Anima 414a 18-25)

169

blemaacutetico eacute a admissatildeo da possibilidade de uma alma entrar em um corpo do qual natildeo

seja enteleacutecheia como seria o caso da transmigraccedilatildeo de um corpo humano para um cor-

po animal inferior ao primeiro367 O ataque aristoteacutelico eacute aqui dirigido natildeo somente agrave

teoria da metempsicose e sim tambeacutem a uma teoria que a citaccedilatildeo de Porfiacuterio (VP 19)

que abriu este capiacutetulo considerava notoriamente pitagoacuterica a do parentesco universal

logicamente interdependente da primeira

De toda forma para a economia destas paacuteginas pode-se concluir que a paacutegina

414a do De anima natildeo somente remete especificamente agrave metempsicose mas que eacute uma

continuaccedilatildeo da passagem 407b imediatamente anterior Os mitos pitagoacutericos desta natildeo

poderatildeo que ser compreendidos portanto como as teorias da metempsicose da alma

Mais difiacutecil ndash ainda que central para nossa discussatildeo ndash eacute determinar se essas pas-

sagens de Aristoacuteteles referem-se ao protopitagorismo ou ao contraacuterio ao pitagorismo a

ele contemporacircneo de Filolau e Arquitas por exemplo

O termo myacutethoi utilizado para indicar essas doutrinas eacute um sintoma de que A-

ristoacuteteles as considerava antigas mas natildeo necessariamente destituiacutedas de toda verdade

Prova decisiva disso eacute o fato de ele se dar ao trabalho de refutaacute-las O acircmbito semacircntico

dos termos myacutethos ou mythologeicircn eacute frequentemente conectado no interior da obra de

Aristoacuteteles com aquele dos theoloacutegoi e do palaiacuteoi a indicar natildeo tanto uma diminuiccedilatildeo

do valor teoreacutetico das doutrinas e sim mais precisamente sua invenciacutevel arcaicidade A

consequecircncia disso eacute uma elaboraccedilatildeo insuficiente dos argumentos loacutegicos e uma roupa-

gem inadequada agrave maneira lsquocontemporacircnearsquo de fazer ciecircncia368 Como eacute o caso da paacutegi-

na de Metafiacutesica dedicada agrave ideia do divino que circunda a natureza

Uma tradiccedilatildeo em forma de mito foi transmitida aos poacutesteros a partir dos antigos e antiquiacutessimos segundo a qual essas realidades satildeo deu-ses e o divino envolve toda a natureza As outras coisas foram poste-riormente acrescentadas para persuadir o povo e para fazecirc-lo subme-ter-se agraves leis e ao bem comum De fato dizem que os deuses tecircm a

367 Aleacutem da teoria da ἐντελέχεια estaacute em jogo nesta criacutetica de Aristoacuteteles tambeacutem um princiacutepio de sub-sunccedilatildeo pelo qual uma forma superior conteacutem em si mesma a forma inferior ldquocomo um quadrilaacutetero con-teacutem o triacircngulordquo (De an 414b 31) O mesmo vale para as formas viventes pois ldquoo caso das figuras eacute semelhante agravequele da almardquo (De an 414b 29) No entanto o contraacuterio natildeo eacute verdadeiro aliaacutes eacute absurdo (De an 407b 13) 368 Cf Met 1074b1 1091b9 Pol 1269b28 1341b3 De caelo 284a23 Aristoacuteteles considera θεολόγοι e παλαίοι Homero Hesiacuteodo e os oacuterficos mas tambeacutem alguns fisioacutelogos eacute novamente o caso dos pitagoacuteri-cos em Met 1091a34-b12 que satildeo chamados aqui de θεολόγοι no contexto de discussatildeo sobre o um e a diacuteade que retoma a discussatildeo do livro A sobre a questatildeo em que os pitagoacutericos satildeo claramente citados em oposiccedilatildeo a Platatildeo (Met 987b14-988a8)

170

forma humana e que satildeo semelhantes a certos animais e acrescentam a essas outras coisas da mesma natureza ou anaacutelogas Se de todas elas prescindindo do resto assumimos soacute o ponto fundamental isto eacute a a-firmaccedilatildeo de que as substacircncias primeiras satildeo deuses eacute preciso reco-nhecer que ela foi feita por divina inspiraccedilatildeo (Met 1074b1-10)369

Portanto o nuacutecleo teoreacutetico da teoria segundo Aristoacuteteles deve ser considerado

como ainda vaacutelido Como devia ser o caso dos mitos pitagoacutericos que ainda que antigos

mereceram todavia suas consideraccedilotildees criacuteticas nas passagens acima analisadas

Eacute bastante provaacutevel portanto que com a expressatildeo mitos pitagoacutericos Aristoacuteteles

entenda referir-se a doutrinas dos primeiros pitagoacutericos370 Uma ulterior prova disso eacute

que a expressatildeo natildeo eacute jamais utilizada para a discussatildeo que Aristoacuteteles faz da matemaacuteti-

ca pitagoacuterica que como ver-se-aacute no proacuteximo capiacutetulo atinge a fontes do seacuteculo V co-

mo Filolau e que Aristoacuteteles identifica em Metafiacutesica A como os ldquoassim chamados

pitagoacutericosrdquo371

Outro marco lexical dessa antiguidade eacute o verbo utilizado por Aristoacuteteles na pas-

sagem do De anima 407b 20-23 para indicar a metempsicose endyacuteomai ldquoentrarrdquo (da

alma no corpo) O mesmo verbo eacute utilizado por Heroacutedoto para descrever a transmigra-

ccedilatildeo da alma na passagem acima citada em que a origem da teoria da metempsicose eacute

indicada como sendo egiacutepcia (Herodt II 123) Em Platatildeo o verbo eacute usado em duas

passagens para indicar a metempsicose de uma alma que estava em um homem e entra

em um animal ldquoum burro ou alguma besta deste tipordquo (Phaed 82a) ou ldquoem um maca-

cordquo no caso da alma do ridiacuteculo Tersites no interior do mito de Er (Resp X 620c) As

duas passagens platocircnicas ilustram precisamente aquilo que Aristoacuteteles devia temer co-

369 A menos que natildeo se indique diferentemente a traduccedilatildeo das passagens citadas da Metafiacutesica de Aristoacute-teles seraacute a de G RealeM Perine (Aristoacuteteles 2002) com algumas modificaccedilotildees Orig ldquo παραδέδοται δὲ παρὰ τῶν ἀρχαίων καὶ παmicroπαλαίων ἐν microύθου σχήmicroατι καταλελειmicromicroένα τοῖς ὕστερον ὅτι θεοί τέ εἰσιν οὗτοι καὶ περιέχει τὸ θεῖον τὴν ὅλην φύσιν τὰ δὲ λοιπὰ microυθικῶς ἤδη προσῆκται πρὸς τὴν πειθὼ τῶν πολλῶν καὶ πρὸς τὴν εἰς τοὺς νόmicroους καὶ τὸ συmicroφέρον χρῆσιν ἀνθρωποειδεῖς τε γὰρ τούτους καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ὁmicroοίους τισὶ λέγουσι καὶ τούτοις ἕτερα ἀκόλουθα καὶ παραπλήσια τοῖς εἰρηmicroένοις ὧν εἴ τις χωρίσας αὐτὸ λάβοι microόνον τὸ πρῶτον ὅτι θεοὺς ᾤοντο τὰς πρώτας οὐσίας εἶναι θείως ἂν εἰρῆσθαι νοmicroί-σειενrdquo (Met 1074b1-10) 370 Cf neste sentido Alesse (2000 408) 371 Para esta identificaccedilatildeo das doutrinas pitagoacutericas de Metafiacutesica A com o pitagorismo de Filolau cf Burkert (1972 236-238) Centrone (1996 105) Huffman (1993) Veja-se tambeacutem a resenha historiograacute-fica do valor do testemunho de Aristoacuteteles sobre Filolau acima esboccedilada ao longo do capiacutetulo primeiro

171

mo absurda consequecircncia da teoria de metempsicose a possibilidade da entrada de uma

alma humana no corpo de um animal inferior372

O leacutexico aristoteacutelico da passagem sugere portanto que ela possa remeter a tra-

diccedilotildees antigas da teoria da metempsicose que Aristoacuteteles chama de mitos pitagoacutericos

provavelmente reconhecendo no protopitagorismo a fonte dessas doutrinas sobre a i-

mortalidade da alma e sua transmigraccedilatildeo Aristoacuteteles torna-se com isso uma das fontes

mais confiaacuteveis para a atribuiccedilatildeo da teoria da metempsicose aos pitagoacutericos mais anti-

gos

39 Conclusatildeo

Partindo de um testemunho de Porfiacuterio sobre as doutrinas centrais de Pitaacutegoras

analisou-se aqui a tradiccedilatildeo da teoria da imortalidade da alma e sua metempsicose com a

intenccedilatildeo de por um lado verificar se ela poderia ser reconduzida agrave praacutetica e agrave doutrina

do protopitagorismo por outro lado compreender em que medida contribuiu para a

definiccedilatildeo da categoria pitagorismo ao longo da histoacuteria Os testemunhos mais antigos a

atribuiacuterem esta doutrina a Pitaacutegoras sugeriram dois diversos percursos hermenecircuticos

Primeiramente ainda que antiga a teoria da imortalidade da alma por sua proacutepria natu-

reza apocaliacuteptica natildeo implica a existecircncia de um sistema dogmaacutetico de crenccedilas O que

equivale a dizer que ao longo dos diversos estratos da tradiccedilatildeo pitagoacuterica as concep-

ccedilotildees dessa imortalidade deviam diferenciar-se ateacute significativamente Em segundo lu-

gar por consequecircncia do primeiro percurso identificou-se ser preciso verificar de que

maneira a recepccedilatildeo da teoria por parte das suas fontes mais tardias contribuiu para a

construccedilatildeo por meio dela da categoria pitagorismo Os testemunhos de Xenoacutefanes

Heraacuteclito Iacuteon e Empeacutedocles revelam ainda que com tonalidades diferentes uma carac-

teriacutestica incomum da figura histoacuterica de Pitaacutegoras ligada fundamentalmente agrave sua capa-

cidade de reconstruir a histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo isto eacute de definir os movimen-

tos da metempsicose da alma em sua palingecircnese Esses testemunhos sugerem que a

372 Alesse (2000 409-411) sugere que se ampliarmos o sentido do verbo ἐνδύοmicroαι para o acircmbito semacircn-tico do vestir que tambeacutem lhe pertence o verbo apontaria imediatamente para uma ampla seacuterie de ima-gens do corpo como veste da alma presente tanto nos escritos platocircnicos (Phaed 86e-88b) como no fr 126 de Empeacutedocles Veste que acaba por ter o sentido tambeacutem de tumba no interior da tradiccedilatildeo do corpo como tumba da alma proacuteximo agrave sensibilidade oacuterfica

172

metempsicose deveria ser uma teoria jaacute bastante antiga correspondente ao estrato pro-

topitagoacuterico

Platatildeo e sua obra foram identificados como lugares decisivos para o exerciacutecio

dos dois percursos hermenecircuticos acima apontados De maneira especial por trazer agrave

tona a vexata quaestio das relaccedilotildees entre pitagorismo e orfismo O estudo das referecircn-

cias a este segundo movimento na obra platocircnica de maneira especial nas paacuteginas que

dizem respeito agraves teorias da imortalidade da alma delineou um esquema historiograacutefico

preciso pelo qual Platatildeo estaria atingindo a teorias oacuterficas sim mas mediadas pelo pi-

tagorismo Pressuposto desta tese eacute que o pitagorismo seja considerado agrave maneira de um

movimento reformador em sentido intelectualista e aristocraacutetico do orfismo como tal

Sinal inequiacutevoco desta mediaccedilatildeo pitagoacuterica eacute a moralizaccedilatildeo da metempsicose Tanto a

proposta platocircnica de uma hierarquia das encarnaccedilotildees como tambeacutem sua etimologia

antes semacircntica e depois soterioloacutegica do mote oacuterfico socircma-secircma apontam para uma

dependecircncia em sua obra da transposiccedilatildeo das teorias da imortalidade da tradiccedilatildeo pita-

goacuterica Dessa forma tambeacutem Platatildeo torna-se fonte confiaacutevel da existecircncia de uma teoria

protopitagoacuterica da alma e de uma relaccedilatildeo estreita entre esta mesma teoria e seu caldo de

origem oacuterfico Relaccedilatildeo esta que foi descrita como de exegese mito-loacutegica que o pitago-

rismo operaria sobre as tradiccedilotildees oacuterficas agrave maneira do papiro Derveni Ainda que cen-

tral para a proacutepria concepccedilatildeo eacutetica de Platatildeo natildeo deve ser diminuiacuteda a importacircncia da

imortalidade da alma e de sua metempsicose mesmo para sua teoria do conhecimento a

anamnese ligada fundamentalmente ao exerciacutecio da memoacuteria remete diretamente para

as praacuteticas da historiacutea da alma e do conhecimento de sua palingecircnese que como se

dizia acima satildeo atribuiacutedas a Pitaacutegoras jaacute por testemunhos a ele contemporacircneos Em

suma Platatildeo revelando suas diacutevidas para com o orfismo acaba por apontar diretamente

para aquele blending filosoacutefico que o pitagorismo deve ter desenvolvido a partir do pri-

meiro

Enquanto os testemunhos de Heroacutedoto Isoacutecrates Demoacutecrito e as lendas sobre a

imortalidade e as mortes aparentes natildeo permitem soacutelidas conclusotildees do ponto de vista

filoloacutegico e historiograacutefico encontra-se em Aristoacuteteles o testemunho mais expliacutecito da

existecircncia de uma teoria protopitagoacuterica da metempsicose Em siacutentese o uso do termo

myacutethoi para referir-se a estas doutrinas pitagoacutericas da alma sugere que Aristoacuteteles as

considerasse suficientemente antigas e portanto com toda probabilidade protopitagoacuteri-

cas O leacutexico aristoteacutelico acaba por apontar no protopitagorismo a fonte das doutrinas

173

sobre a imortalidade da alma e sua transmigraccedilatildeo de fato em relaccedilatildeo agraves doutrinas ma-

temaacuteticas que dizem respeito a outro momento do pitagorismo aquele normalmente

identificado por Filolau e Arquitas no V seacuteculo aEC Aristoacuteteles natildeo se refere jamais a

mitos

Eacute a essas doutrinas matemaacuteticas ilustres ausentes no resumo das doutrinas mais

ceacutelebres de Porfiacuterio com o qual comeccedilamos este capiacutetulo que dedicaremos nossa aten-

ccedilatildeo no quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Antes disso eacute certamente o caso de anotar aqui que atribuir uma teoria da me-

tempsicose ao protopitagorismo significa do ponto de vista filosoacutefico muito mais do

que simplesmente reconhecer um diaacutelogo deste uacuteltimo com a cultura oacuterfica de seu tem-

po

Pois em si mesma a teoria da transmigraccedilatildeo da alma imortal pressupotildee o outro

argumento citado pelo resumo inicial de Porfiacuterio isto eacute a teoria do parentesco univer-

sal373 Essa teoria jaacute estaacute implicada tambeacutem no fragmento de Empeacutedocles acima citado

(31 B129 DK) e constitui natildeo somente consequecircncia loacutegica da proacutepria teoria da me-

tempsicose mas representa uma lei geral do funcionamento do cosmo que abraccedila o

passado e o futuro seres humanos e outros seres viventes em uma explicaccedilatildeo que quer

ser uacutenica e coerente do funcionamento da vida no universo Essa doutrina por ter os

atributos de uma explicaccedilatildeo totalizante e estar baseada em uma concepccedilatildeo do cosmo e

da vida como eternos pode certamente ser considerada como uma genuiacutena expressatildeo

daquele periacuteodo da histoacuteria da filosofia que se convencionou chamar de preacute-socraacutetico

373 Cf Delatte (1992 175) para as citaccedilotildees desta doutrina no interior da literatura antiga

174

CAPIacuteTULO QUARTO

NUacuteMEROS

A passagem de Porfiacuterio citada anteriormente com a qual comeccedilou o terceiro ca-

piacutetulo resumindo aquelas que a tradiccedilatildeo passaraacute a considerar como doutrinas centrais

do protopitagorismo concentra-se quase que exclusivamente nas teorias da imortalida-

de Natildeo se faz nenhuma referecircncia ao outro grande acircmbito doutrinaacuterio cuja origem a

tradiccedilatildeo atribui ao pitagorismo isto eacute aquele da matemaacutetica

A ausecircncia dessa referecircncia eacute significativa para a compreensatildeo dos caminhos de

definiccedilatildeo de uma categoria historiograacutefica como aquela do pitagorismo que ao contraacute-

rio depende amplamente dessa ligaccedilatildeo com os nuacutemeros Ela sugere a necessidade de

uma consideraccedilatildeo mais atenta da histoacuteria da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de uma

teoria matemaacutetica ou de alguma relaccedilatildeo com o estudo dos nuacutemeros

Como no caso do capiacutetulo terceiro dedicado agraves teorias da imortalidade as paacutegi-

nas a seguir seratildeo tecidas a partir de um lado da busca por um complexo doutrinaacuterio

que corresponda a uma teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica por outro lado acompanhando a

construccedilatildeo da categoria do pitagorismo a partir da tradiccedilatildeo de seu interesse pela mate-

maacutetica em geral

Natildeo por acaso conforme se anotava anteriormente no interior da discussatildeo so-

bre o testemunho uacutenico de Aristoacuteteles (17) a tradiccedilatildeo interpretativa certamente enca-

beccedilada em tempos mais recentes por Frank (1923) acostumou-se a considerar toda a

matemaacutetica pitagoacuterica como uma invenccedilatildeo acadecircmica posterior portanto aos mesmos

fragmentos de Filolau que devem eles mesmos ser considerados espuacuterios Como seraacute

visto ao longo destas paacuteginas a soluccedilatildeo para a questatildeo central aqui proposta dependeraacute

exatamente de uma reavaliaccedilatildeo dos fragmentos de Filolau tanto do ponto de vista histo-

riograacutefico isto eacute do lugar que o testemunho destes representa para a definiccedilatildeo da cate-

goria pitagorismo como tambeacutem do ponto de vista teoreacutetico isto eacute de qual seja a ma-

temaacutetica neles contida

Longe da confianccedila que Zeller depositava na possibilidade de resumir as doutri-

nas do pitagorismo na teoria pela qual o nuacutemero seria a essecircncia de todas as coisas (jun-

to com as doutrinas da harmonia do fogo central e das esferas) todas elas significati-

175

vamente presentes nos fragmentos de Filolau a criacutetica contemporacircnea submeteu a uma

profunda revisatildeo o pretenso dogma aristoteacutelico pelo qual no pitagorismo ldquotudo eacute nuacute-

merordquo374 A influecircncia do ceticismo de Frank eacute tamanha ao ponto de algueacutem como

Cherniss (1935) que ndash conforme se verificou anteriormente ndash diverge dele na concep-

ccedilatildeo fundamental do valor a ser atribuiacutedo ao testemunho de Aristoacuteteles concordar ao

inveacutes neste ponto com o primeiro O consenso dos comentadores eacute especialmente im-

pressionante quando diz respeito agravequele que consideramos como um dos loci fundamen-

tais desse debate isto eacute o valor a ser conferido aos fragmentos de Filolau

Os fragmentos atribuiacutedos a Filolau satildeo certamente espuacuterios por eles conterem elementos que natildeo podem ser mais antigos que Platatildeo Erich Frank reuniu as evidecircncias contra os fragmentos e apesar de sua proacute-pria teoria sobre suas origens e a conclusatildeo de argumentos certamente muito fracos [] sua anaacutelise torna supeacuterfluo ter de recomeccedilar o de-vastante caso contra eles (Cherniss 1935 386)375

Mais recentemente a posiccedilatildeo de Frank e da grande maioria dos comentadores

recebeu profunda revisatildeo criacutetica por parte de autores como Burkert (1972 238-277) e

Kirk Raven e Schofield (1983 324) Especialmente significativos nesse sentido satildeo os

esforccedilos de Huffman tanto em seu artigo de 1988 quanto especialmente em sua mo-

nografia inteiramente dedicada a Filolau e aos problemas da autenticidade de seus frag-

mentos (1993) a primeira inteiramente dedicada ao filoacutesofo de Crotona depois da mo-

nografia de Boeckh de 1819376 Essa revisatildeo abre novas perspectivas hermenecircuticas e

junto com os recentes estudos de Zhmud (1989 1997) representa uma pedra angular

para a definiccedilatildeo do lugar da matemaacutetica na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo pitagoacuterica377

374 Cf para isso 11 375 Orig ldquoThe fragments attributed to Philolaus are surely spurious since they contain elements that cannot be older than Plato Erich Frank has gathered the evidence against the fragments and apart from his own theory as to their origin and his conclusion of certain very weak arguments [hellip] his analysis makes it superfluous to restate the overwhelming case against themrdquo 376 Para uma geral concordacircncia dos comentadores com o ceticismo de Frank cf entre outros Burnet (1908 279-284) e Leacutevy (1926 70ss) Natildeo eacute certamente o caso de concordar portanto com Spinelli (2003 145 n345) quando ldquodespachardquo a questatildeo da autenticidade dos fragmentos desta forma ldquoapesar do muito que jaacute se escreveu a favor e contra eles toda a argumentaccedilatildeo se encontra exposta de um modo adequado somente nos trabalhos de trecircs tratadistasrdquo Bywater Frank e Mondolfo 377 A bem da verdade eacute o caso de ressaltar que o proacuteprio Frank teria em seguida amenizado em seus escritos sucessivos uma posiccedilatildeo que por seu ceticismo extremo e de certa forma paralisador natildeo resis-tiu agraves criacuteticas dos outros comentadores De fato em 1955 deveraacute admitir que ldquoit can hardly be doubted that Pythagoras was the originator of this entire scientific development he was a rational thinker rather than an inspired mysticrdquo (1955 82) Natildeo obstante em sua resenha do livro de Von Fritz sobre a poliacutetica pitagoacuterica sua verve ceacutetica ainda aparece fortemente presente (Frank 1943)

176

41 Tudo eacute nuacutemero

411 Trecircs versotildees da doutrina pitagoacuterica dos nuacutemeros

A pergunta ldquoTudo eacute nuacutemerordquo que intitula significativamente o ceacutelebre artigo

de Zhmud na revista Phronesis de 1989 (ldquoAll is numberrdquo) inaugura uma contestaccedilatildeo

do testemunho aristoteacutelico central para a historiografia do pitagorismo segundo a qual

ldquotudo eacute nuacutemerordquo seria a definiccedilatildeo fundamental da filosofia pitagoacuterica378 Tarefa esta natildeo

certamente faacutecil especialmente quando se considera que tanto a histoacuteria da filosofia

antiga quanto aquela da matemaacutetica antiga natildeo pareceram ter muitas duacutevidas ateacute entatildeo

em relaccedilatildeo a essa mesma atribuiccedilatildeo379

E os motivos para tal confianccedila aparentemente natildeo faltam Com efeito em Aris-

toacuteteles a atribuiccedilatildeo da doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo aos pitagoacutericos recorre diversas

vezes e acaba por resumir aquela que eacute a interpretaccedilatildeo aristoteacutelica do pitagorismo

Aristoacuteteles afirma repetidamente que

1) ldquoPensavam serem os elementos dos nuacutemeros os elementos de todas as coisas

2) e que a totalidade do ceacuteu eacute harmonia e nuacutemerordquo (Met 986a3)380

3) ldquoOs nuacutemeros conforme dissemos correspondem agrave totalidade do ceacuteurdquo (Met

986a21)381

4) ldquoEles dizem que os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisasrdquo (Met 987b28)382

5) ldquoAqueles [filoacutesofos] dizem que as coisas satildeo nuacutemerordquo (Met 1083b17)383

6) ldquoFizeram os nuacutemeros serem as coisas que satildeordquo (Met 1090b23)384

378 Ainda que algumas sugestotildees nesse sentido jaacute haviam sido formuladas por Huffman (1988) em seu artigo sobre o papel do nuacutemero na filosofia de Filolau as observaccedilotildees natildeo foram declaradamente recebi-das no artigo de Zhmud (1989 292 n62) pois este foi desenvolvido paralelamente ao artigo do primeiro 379 Cf para as citaccedilotildees Heath (1921 67) Guthrie (1962 229ss) Huffman (1988 5 e 1993 57) 380 Orig ldquo τὰ τῶν ἀριθmicroῶν στοιχεῖα τῶν ὄντων στοιχεῖα πάντων ὑπέλαβον εἶναι καὶ τὸν ὅλον οὐρανὸν ἁρmicroονίαν εἶναι καὶ ἀριθmicroόνrdquo (Met 986a3) 381 Orig ldquo ἀριθmicroοὺς δέ καθάπερ εἴρηται τὸν ὅλον οὐρανόνrdquo (Met 986a21) 382 Orig ldquo οἱ δ ἀριθmicroοὺς εἶναί φασιν αὐτὰ τὰ πράγmicroαταrdquo (Met 987b28) 383 Orig ldquo ἐκεῖνοι δὲ τὸν ἀριθmicroὸν τὰ ὄντα λέγουσινrdquo (Met 1083b17) 384 Orig ldquo εἶναι microὲν ἀριθmicroοὺς ἐποίησαν τὰ ὄνταrdquo (Met 1090b23)

177

Aristoacuteteles assim por seis vezes faz os pitagoacutericos afirmarem que a realidade

como um todo (taacute oacutenta toacuten oacutelon oucircranon taacute praacutegmata) ldquoeacute nuacutemerordquo

Em contrapartida por outras sete vezes Aristoacuteteles parece sugerir que os pitagoacute-

ricos digam algo levemente distinto

1) ldquoNatildeo haacute outro nuacutemero aleacutem do nuacutemero pelo qual estaacute constituiacutedo o mundordquo

(Met 990a21)385

2) ldquoTambeacutem para os pitagoacutericos soacute existe o nuacutemero matemaacutetico mas eles afir-

mam que este natildeo eacute separado e que antes eacute dele que se sustentam as coisas

sensiacuteveis

3) pois eles constroem o ceacuteu inteiro com nuacutemerosrdquo (Met 1080b16-19)386

4) ldquoEacute impossiacutevel afirmar que [] os corpos satildeo feitos de nuacutemerosrdquo (Met

1083b11)387

5) ldquoFizeram os nuacutemeros serem as coisas que satildeo mas natildeo de maneira separada

e sim de nuacutemeros satildeo constituiacutedas as coisas que satildeordquo (Met 1090a23-24)388

6) ldquoFazem derivar os corpos fiacutesicos dos nuacutemerosrdquo (Met 1090a32)389

7) ldquoChegam ao mesmo resultado tambeacutem aqueles que consideram que o ceacuteu eacute

feito de nuacutemerosrdquo (De caelo 300a16)390

Nas citaccedilotildees acima o que Aristoacuteteles faz os pitagoacutericos afirmarem mais preci-

samente eacute que a constituiccedilatildeo do mundo se daria ex arithmocircn isto eacute com os nuacutemeros

como sua mateacuteria constitutiva (e portanto imanente)

Essa variabilidade da lectio aristoteacutelica marca toda sua abordagem ao pitagoris-

mo (Burkert 1972 45) A dificuldade que Aristoacuteteles demonstra em sua tentativa de

385 Orig ldquo ἀριθmicroὸν δ ἄλλον microηθένα εἶναι παρὰ τὸν ἀριθmicroὸν τοῦτον ἐξ οὗ συνέστηκεν ὁ κόσmicroοςrdquo (Met 990b21) 386 Orig ldquo καὶ οἱ Πυθαγόρειοι δ ἕνα τὸν microαθηmicroατικόν πλὴν οὐ κεχωρισmicroένον ἀλλ ἐκ τούτου τὰς αἰσθη-τὰς οὐσίας συνεστάναι φασίν τὸν γὰρ ὅλον οὐρανὸν κατασκευάζουσιν ἐξ ἀριθmicroῶνrdquo (Met 1080b16-19) 387 Orig ldquo ὸ δὲ τὰ σώmicroατα ἐξ ἀριθmicroῶν εἶναι συγκείmicroενα [] ἀδύνατόν ἐστινrdquo (Met 1083b11) 388 Orig ldquo εἶναι microὲν ἀριθmicroοὺς ἐποίησαν τὰ ὄντα οὐ χωριστοὺς δέ ἀλλ ἐξ ἀριθmicroῶν τὰ ὄνταrdquo (Met 1090a23-24) 389 Orig ldquo ποιεῖν ἐξ ἀριθmicroῶν τὰ φυσικὰ σώmicroαταrdquo (Met 1090a32) 390 Orig ldquo Τὸ δ αὐτὸ συmicroβαίνει καὶ τοῖς ἐξ ἀριθmicroῶν συντιθεῖσι τὸν οὐρανόνrdquo (De caelo 300a16) Obser-va com razatildeo Huffman (1988 5 n15 1993 57 n2) que Aristoacuteteles inclui nestes tambeacutem os atomistas

178

expressar nos termos de sua filosofia as doutrinas pitagoacutericas jaacute foi notada anterior-

mente em relaccedilatildeo agrave questatildeo da alma (38) Natildeo diferentemente aqui a apresentaccedilatildeo da

doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo por Aristoacuteteles eacute no limite contraditoacuteria e apresenta basi-

camente trecircs diferentes significados391 Para aleacutem da primeira versatildeo que se refere agrave

identificaccedilatildeo fundamental dos nuacutemeros com os objetos sensiacuteveis duas outras versotildees

satildeo fornecidas por Aristoacuteteles

A segunda delas eacute a da identificaccedilatildeo dos princiacutepios dos nuacutemeros com os princiacute-

pios das coisas que satildeo

Os assim chamados pitagoacutericos satildeo contemporacircneos e ateacute mesmo an-teriores a estes filoacutesofos [Leucipo e Demoacutecrito] Eles por primeiros aplicaram-se agraves matemaacuteticas fazendo-as progredir e nutridos por e-las acreditaram que os princiacutepios delas eram os princiacutepios de todos os seres (Met 985b23-26)392

Essa versatildeo pode ser aproximada daquela de Met 986a3 citada anteriormente

que no lugar de archaiacute refere-se a stoicheacuteia

A terceira eacute a da imitaccedilatildeo dos nuacutemeros pelos objetos reais na ceacutelebre passagem

em que eacute desenhado um paralelismo com a concepccedilatildeo platocircnica da participaccedilatildeo

Os pitagoacutericos dizem que os seres subsistem por imitaccedilatildeo dos nuacuteme-ros Platatildeo ao contraacuterio diz por participaccedilatildeo mudando apenas o no-me De todo modo tanto uns como o outro descuidaram igualmente de indicar o que significa participaccedilatildeo e imitaccedilatildeo das ideias (Met 987b11-14) 393

A primeira versatildeo pela qual ldquoos nuacutemeros satildeo as coisasrdquo eacute evidentemente con-

traditoacuteria com as outras duas Cherniss (1935 387) anota com razatildeo que Aristoacuteteles

procura conciliar esta primeira versatildeo com a segunda aqui citada pela qual os nuacutemeros

seriam princiacutepios de todas das coisas O sucesso de sua tentativa depende de ele forccedilar

uma teoria da derivaccedilatildeo da realidade do nuacutemero um que todavia aleacutem de natildeo existir

391 Reproduzem essa mesma triparticcedilatildeo Cherniss (1935 386) Zhmud (1989 284-286) e Huffman (1993 60) 392 Orig ldquoἘν δὲ τούτοις καὶ πρὸ τούτων οἱ καλούmicroενοι Πυθαγόρειοι τῶν microαθηmicroάτων ἁψάmicroενοι πρῶτοι ταῦτά τε προήγαγον καὶ ἐντραφέντες ἐν αὐτοῖς τὰς τούτων ἀρχὰς τῶν ὄντων ἀρχὰς ᾠήθησαν εἶναι πάντ-ωνrdquo (Met 985b 23-26) 393 Orig ldquo οἱ microὲν γὰρ Πυθαγόρειοι microιmicroήσει τὰ ὄντα φασὶν εἶναι τῶν ἀριθmicroῶν Πλάτων δὲ microεθέξει τοὔνο-microα microεταβαλών τὴν microέντοι γε microέθεξιν ἢ τὴν microίmicroησιν ἥτις ἂν εἴη τῶν εἰδῶν ἀφεῖσαν ἐν κοινῷ ζητεῖνrdquo (Met 987b11-14)

179

como tal nas fontes aparentemente confunde a cosmologia pitagoacuterica com a teoria dos

nuacutemeros (Cherniss 1935 39) Tentativa esta que o proacuteprio Aristoacuteteles parece reconhe-

cer como falimentar quando afirma

Esses filoacutesofos tambeacutem natildeo explicam de que modo os nuacutemeros satildeo causas das substacircncias e do ser Satildeo causas enquanto limites das gran-dezas e do mesmo modo como Eurito estabelecia o nuacutemero de cada coisa (Por exemplo determinado nuacutemero para o homem outro para o cavalo reproduzindo com pedrinhas a forma dos viventes de modo semelhante aos que remetem os nuacutemeros agraves figuras do triacircngulo e do quadrado [] (Met 1092b8-13)394

Com a referecircncia a Eurito Aristoacuteteles introduz uma teoria que foi chamada de

ldquoatomismo numeacutericordquo pela qual os nuacutemeros seriam as coisas porque os nuacutemeros (pen-

sados como pseacutephoi pedrinhas) constituem a mateacuteria pela qual as coisas satildeo feitas

Com razatildeo de fato anota Cherniss (1951 336) que dessa forma os nuacutemeros poderatildeo

identificar qualquer tipo de objeto fenomecircnico

Pensaram os nuacutemeros como grupos de unidades sendo as unidades pontos materiais entre aquilo que eacute ldquosoprordquo ou um ldquovaziordquo material e identificaram literalmente todos os objetos fenomecircnicos por meio de uma tal agregaccedilatildeo de pontos fossem eles divisiacuteveis ou menos Esta era mais uma materializaccedilatildeo do nuacutemero do que uma materializaccedilatildeo da natureza mas esta parecia indubitalvelmente aos pitagoacutericos a uacutenica maneira de explicar o mundo fiacutesico nos termos daquelas proposiccedilotildees genuinamente matemaacuteticas que eles haviam provado serem indepen-demente vaacutelidas (Cherniss 1951 336)395

Tannery (1887b 258ss) Cornford (1923 7 ss) e o proacuteprio Cherniss (1935

387) fascinados pela primitividade do meacutetodo atomiacutestico-numeacuterico de Eurito conside-

raram-no efetivamente antigo396 Todos seguem basicamente Frank (1923 50) e sua

394 Orig ldquo οὐθὲν δὲ διώρισται οὐδὲ ὁποτέρως οἱ ἀριθmicroοὶ αἴτιοι τῶν οὐσιῶν καὶ τοῦ εἶναι πότερον ὡς ὅροι (οἷον αἱ στιγmicroαὶ τῶν microεγεθῶν καὶ ὡς Εὔρυτος ἔταττε τίς ἀριθmicroὸς τίνος οἷον ὁδὶ microὲν ἀνθρώπου ὁδὶ δὲ ἵππου ὥσπερ οἱ τοὺς ἀριθmicroοὺς ἄγοντες εἰς τὰ σχήmicroατα τρίγωνον καὶ τετράγωνον []rdquo (Met 1092b8-13) 395 Orig ldquoNumbers they held to be groups of units the units being material points between which there is lsquobreathrsquo or a material lsquovoidrsquo and they quite literally identified all phenomenal objects with such ag-gregations of points without of course considering whether these material points were themselves di-visible or not This was rather a materialization of number than a mathematization of nature but it undoubtedly seemed to the Pythagoreans to be the only way of explaining the physical world in terms of those genuinely mathematical propositions which they had proved to be independently validrdquo 396 Cf o que foi dito acima em relaccedilatildeo ao atomismo numeacuterico como modelo fundamental do sistema cientiacutefico pitagoacuterico para Cornford (15)

180

hipoacutetese pela qual a teoria teria sido emprestada por Arquitas do mesmo Demoacutecrito

Natildeo por acaso a referecircncia da citaccedilatildeo de Met 985b23-26 eacute a Leucipo e Demoacutecrito isto

eacute agrave tradiccedilatildeo atomista agrave qual a teoria pitagoacuterica eacute aproximada Aleacutem disso foi vislum-

brada na polecircmica zenoniana contra a pluralidade exatamente uma referecircncia ao ato-

mismo numeacuterico dos pitagoacutericos397 Todavia Burkert (1972 285-288) e Kirk Raven e

Schofield (1983 277-278) colocaram em seacuterias duacutevidas essa atribuiccedilatildeo Os argumentos

para isso natildeo faltam398

Entretanto natildeo eacute difiacutecil imaginar que a materialidade dos nuacutemeros pitagoacutericos

possua um sentido mais arcaico sem a necessidade de postular necessariamente um

atomismo numeacuterico Sentido este bem resumido pela jaacute claacutessica definiccedilatildeo de Nuss-

baum

A noccedilatildeo de arithmos eacute sempre conectada de forma muito proacutexima com a operaccedilatildeo do contar Para que algo seja um arithmos deve ser de tal forma que possa ser contado ndash o que em geral significa que ou pos-sui partes distintas e ordenadas ou que seja uma parte distinta de um interior maior Fornecer o arithmos de algo que haacute no mundo corres-ponde a responder agrave pergunta ldquoquantosrdquo deste E quando o grego res-ponde ldquodoisrdquo ou ldquotrecircsrdquo ele natildeo considera que esteja introduzindo uma nova entidade e sim que esteja separando ou medindo as entidades que jaacute estatildeo em questatildeo (Nussbaum 1979 90)399

O nuacutemero seria portanto ldquoele proacuteprio uma coisardquo (Burkert 1972 265)400

Assim a segunda concepccedilatildeo acima citada pela qual os princiacutepios dos nuacutemeros

seriam os princiacutepios de todas as coisas corresponderaacute mais facilmente agravequela que Cher-

niss (1935 390) define como uma ldquoconstruccedilatildeo aristoteacutelica da tese pitagoacutericardquo Aristoacutete-

les teria sido levado a esta siacutentese de um lado pela dificuldade de aceitar a noccedilatildeo pita-

397 Cf tambeacutem o que foi dito sobre esse ponto em 15 398 Ainda que natildeo seja o caso de referir aqui todos eles Para os argumentos contraacuterios agrave tese de Frank cf Cherniss (1935 388-389) Para os argumentos contraacuterios agrave tese da polecircmica zenoniana cf Burkert (1972 285-289) 399 Orig ldquothe notion of arithmos is always very closely connected with the operation of counting To be an arithmos something must be such as to be counted - which usually means that it must either have discrete and ordered parts or be a discrete part of a larger whole To give the arithmos of something in the world is to answer the question lsquohow manyrsquoabout it And when the Greek answers lsquotworsquo or lsquothreersquo he does not think of himself as introducing an extra entity but as dividing or measuring the entities already in questionrdquo 400 Orig ldquoIs itself a thingrdquo (Burkert 1972 265) No mesmo contexto Burkert anota com razatildeo que natildeo deve ser esquecido que o ἀριθmicroὸς possui certo ldquosom aristocraacuteticordquo que remete para aquilo que ldquocontardquo no sentido de ser importante de ldquovaler a penardquo ser contado O termo pode ser assim aproximado ao ἀρχὴ preacute-socraacutetico

181

goacuterica material de nuacutemero (aquela das pedrinhas de Eurito que devia considerar dema-

siadamente simploacuteria) por outro lado por considerar mais procedente compreender a

existecircncia dos nuacutemeros pitagoacutericos da mesma maneira como os platocircnicos tratavam

dela isto eacute considerando os aacuterithmoi como archaiacute Poreacutem com isso Aristoacuteteles faz

deslizar toda a problemaacutetica da teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica para o acircmbito acadecircmico

Com efeito Frank (1923 255) sugere que a fonte dessa ldquoincompreensatildeordquo de Aristoacuteteles

seja Espeusipo e portanto aquela parte da Academia profundamente ligada agraves tradiccedilotildees

pitagoacutericas Espeusipo seria de fato citado diretamente por Aristoacuteteles em Metafiacutesica

(1085a33) quando menciona aqueles ldquopelos quais o ponto natildeo eacute um mas semelhante ao

umrdquo isto eacute oicircon to eacuten O ponto de fato joga um papel central no trabalho de Espeusi-

po que aleacutem de estudioso de Filolau declarava abertamente ter baseado neste uacuteltimo

seus escritos Essa afirmaccedilatildeo encontra-se no fr 4 (Lang) de Espeusipo preservado por

Nicomaco como parte do livro do primeiro Sobre os nuacutemeros pitagoacutericos O mesmo

fragmento constitui a prova direta da derivaccedilatildeo acadecircmica da teoria dos princiacutepios dos

nuacutemeros Assim de fato afirmaria Espeusipo ldquoquando se considera a geraccedilatildeo o primei-

ro princiacutepio do qual se gera a grandeza eacute o um o segundo a linha o terceiro a superfiacute-

cie o quarto o soacutelidordquo (44 A13 DK Fr 4 Lang)401

Comeccedila a delinear-se tambeacutem nesse acircmbito da teoria dos nuacutemeros a onipresen-

te mediaccedilatildeo acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas que tanta parte teve na discussatildeo so-

bre a teoria pitagoacuterica da imortalidade da alma no capiacutetulo terceiro A mesma mediaccedilatildeo

seraacute reconhecida em diferentes modalidades nas paacuteginas a seguir como uma das teses

centrais para a explicaccedilatildeo da formaccedilatildeo da categoria pitagorismo tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

matemaacutetica

Eacute tambeacutem contraditoacuteria com a primeira tese a terceira isto eacute a ideia da miacutemesis

dos nuacutemeros pelos objetos reais A bem ver essa tese eacute referida por Aristoacuteteles com

precisatildeo somente uma vez (Met 987b11) no interior da passagem em que a concepccedilatildeo

pitagoacuterica eacute identificada com aquela platocircnica da participaccedilatildeo Isso faz Cherniss (1935

392) e Zhmud (1989 186) considerarem bastante provaacutevel que Aristoacuteteles esteja ten-

tando diminuir de alguma forma a originalidade da ideia de meacutethexis platocircnica apon-

401 Orig ldquo ἐν τῆι γενέσει πρώτη microὲν γὰρ ἀρχὴ εἰς microέγεθος στιγmicroή δευτέρα γραmicromicroή Τρίτη ἐπιφάνεια τέταρτον στερεόνrdquo (44 A13 DK) Cherniss (1935 391) considera a probabilidade de Aristoacuteteles ter deri-vado tambeacutem integralmente de Espeusipo a lista dos contraacuterios de Met 986a22 ainda que simplesmente como a mais bem acabada lista que estava agrave sua disposiccedilatildeo Sem negar portanto a possibilidade de exis-tirem outras listas que podiam ser originalmente pitagoacutericas

182

tando ao mesmo tempo para Aristoxeno cujo antagonismo com Platatildeo eacute bastante ates-

tado De fato um testemunho deste uacuteltimo reproduz a mesma ideia da imitaccedilatildeo Pitaacutego-

ras ldquoassemelha todas as coisas aos nuacutemerosrdquo (fr 23 4 Werli)402

Em verdade o proacuteprio Aristoacuteteles refere-se novamente a algo bastante parecido

ao conceito de miacutemesis em outras passagens em que se refere aos nuacutemeros pitagoacutericos e

utiliza termos ligados ao campo semacircntico da semelhanccedila

Dado que justamente nos nuacutemeros mais que no fogo na terra e na aacute-gua eles achavam que viam muitas semelhanccedilas com as coisas que satildeo e que se geram por exemplo consideravam que determinada pro-priedade dos nuacutemeros era a justiccedila outra a alma e o intelecto outra ainda o momento e tempo oportuno e em poucas palavras de modo semelhante para todas as outras coisas (Met 985b27-32)403

Eacute portanto nesse sentido das homoioacutemata que deve ser compreendida a referecircn-

cia agrave miacutemesis404

Tambeacutem a citaccedilatildeo acima das pedrinhas de Eurito em outra paacutegina de Metafiacutesica

(Met 1092b8-13) pode ser remetida para o interior desse mesmo campo semacircntico da

semelhanccedila e da imitaccedilatildeo Alexandre de Afrodiacutesia por sua vez em seu comentaacuterio agrave

Metafiacutesica de Aristoacuteteles explicita o raciociacutenio que teria levado agrave definiccedilatildeo da seme-

lhanccedila da justiccedila com o nuacutemero quatro

Partindo do pressuposto de que o caraacuteter especiacutefico da justiccedila seja a proporcionalidade e a igualdade e percebendo que esta propriedade estaacute presente nos nuacutemeros por este motivo os pitagoacutericos diziam que a justiccedila eacute o primeiro nuacutemero quadrado [] Este nuacutemero alguns dizi-am que fosse o quatro pois eacute o primeiro quadrado e tambeacutem porque eacute dividido em partes iguais e eacute igual ao produto destas (de fato eacute duas vezes dois) (In Metaph 38 10 Hayduck) 405

402 Orig ldquo πάντα τὰ πράγmicroατα ἀπεικάζων τοῖς ἀριθmicroοῖςrdquo (Aristox fr 234 Werli) 403 Orig ldquo ἐν δὲ τούτοις ἐδόκουν θεωρεῖν ὁmicroοιώmicroατα πολλὰ τοῖς οὖσι καὶ γιγνοmicroένοις microᾶλλον ἢ ἐν πυρὶ καὶ γῇ καὶ ὕδατι ὅτι τὸ microὲν τοιονδὶ τῶν ἀριθmicroῶν πάθος δικαιοσύνη τὸ δὲ τοιονδὶ ψυχή τε καὶ νοῦς ἕτερον δὲ καιρὸς καὶ τῶν ἄλλων ὡς εἰπεῖν ἕκαστον ὁmicroοίωςrdquo (Met 985b27-32) 404 Cf para esta aproximaccedilatildeo Centrone (1996 107-108) 405 Orig ldquo τῆς microὲν γὰρ δικαιοσύνης ἴδιον ὑπολαmicroβάνοντες εἶναι τὸ ἀντιπεπονθός τε καὶ ἴσον ἐν τοῖς ἀριθmicroοῖς τοῦτο εὑρίσκοντες ὄν διὰ τοῦτο καὶ τὸν ἰσάκις ἴσον ἀριθmicroὸν πρῶτον ἔλεγον εἶναι δικαιοσύνην (hellip) τοῦτον δὲ οἱ microὲν τὸν τέσσαρα ἔλεγον ἐπεὶ πρῶτος ὢν τετράγωνος εἰς ἴσα διαιρεῖται καὶ ἔστιν ἴσος (δὶς γὰρ δύο)rdquo (In Metaph 38 10 Hayduck)

183

Burkert (1972 44-45) anota que esse conceito de miacutemesis deve corresponder

senatildeo na terminologia utilizada por Aristoacuteteles ao menos em seu sentido a uma teoria

preacute-socraacutetica e natildeo jaacute platocircnica A ideia fundamental da magia ou da medicina hipocraacute-

tica eacute aquela de uma correspondecircncia ldquode matildeo duplardquo entre duas entidades (o corpo e o

cosmo a arte e a natureza) No caso especiacutefico simplesmente reafirmaria uma corres-

pondecircncia uma imitaccedilatildeo do cosmo com o nuacutemero e vice-versa O mesmo Cornford

(1922) considerava essa ideia da imitaccedilatildeo muito antiga por causa exatamente de sua

caracteriacutestica miacutestica que o comentador aproxima diretamente por meio da etimologia

(miacutemos = ator) aos cultos dionisiacuteacos e ao fato de os protagonistas dos cultos desempe-

nharem o papel do proacuteprio deus

A esta altura ldquosemelhanccedila com deusrdquo equivale a uma identificaccedilatildeo temporaacuteria Induzida pelos sentidos orgiaacutesticos pelo ecircxtase baacutequico ou pelas festas sacramentais oacuterficas eacute o aperitivo da reuniatildeo final No pitagorismo a concepccedilatildeo eacute mitigada Apolinizada O sentido natildeo eacute mais ecircxtase ou sacramento mas teoria contemplaccedilatildeo intelectual da ordem universal (Cornford 1922 143)406

Contra essas hipoacuteteses todavia joga o fato de Aristoacuteteles a bem ver natildeo indicar

a imitaccedilatildeo de praacutegmata e sim realidades abstratas como a justiccedila o tempo etc407 De

toda forma ainda que se possa conceder que Aristoacuteteles esteja se referindo aqui a uma

doutrina do protopitagorismo de estilo acusmaacutetico eacute certamente o caso de anotar que

na paacutegina sucessiva (Met 987b29) exclui veementemente que os pitagoacutericos concor-

dem com Platatildeo com o papel de meacutethexis atribuiacutedo aos nuacutemeros por este uacuteltimo A

ldquoprecisaccedilatildeordquo de Aristoacuteteles sugeriria neste caso que uma intenccedilatildeo polecircmica antiaca-

decircmica devesse ser talvez a mais apropriada para explicar este apax da referecircncia agrave miacute-

mesis408

406 Orig ldquoAt that stage likeness to God amounts to temporary identification Induced by orgiastic means by Bacchic ecstasy or Orphic sacramental feast it is a foretaste of the final reunion In Pythagoreanism the conception is toned down Apollinized The means is no longer ecstasy or sacra-ment but theoria intellectual contemplation of the universal orderrdquo Concorda com a possibilidade desta origem ldquomiacutestica dos nuacutemerosrdquo tambeacutem Casertano (2009 67) 407 Burnet (1908 119) por outro lado alerta que natildeo se devem levar a seacuterio essas passagens ldquoThey are mere sports of the analogical fancyrdquo 408 Este eacute tambeacutem um dos motivos que obriga a descartar a hipoacutetese de Burnet (1908 355) e Taylor (1911178s) retomada tambeacutem por Delatte (1922a 108ss) pela qual o pitagorismo seria o inventor da teoria das formas platocircnicas Assim Burnet ldquothe doctrine of lsquoformsrsquo (eiacutede ideiacuteai) originally took shape in Pythagorean circles perhaps under Sokratic influencerdquo (1908 355)

184

Eacute possiacutevel concluir que as trecircs versotildees da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo (aquela da

identificaccedilatildeo dos nuacutemeros como princiacutepios e esta uacuteltima da imitaccedilatildeo) aparecem articu-

ladas de maneira imperfeita e no limite contraditoacuterias em sua tradiccedilatildeo no interior da

obra aristoteacutelica

Todavia eacute bastante significativo que Aristoacuteteles natildeo mencione em algum mo-

mento que as trecircs diferentes lectiones do ldquotudo eacute nuacutemerordquo devam pertencer a diferentes

grupos ou momentos no interior do pitagorismo De certa forma parece ainda conside-

raacute-las senatildeo coerentes entre si ao menos conciliaacuteveis e as refere todas indistintamente

aos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo409

O reconhecimento disso levou diversos autores a adotarem soluccedilotildees conciliatoacute-

rias para o problema In primis o proacuteprio Zeller Ainda que considerasse que o testemu-

nho de Aristoacuteteles devesse ser tomado com todos os cuidados do caso sua proximidade

histoacuterica com as doutrinas pitagoacutericas deveria garantir de certa forma a procedecircncia da

especial articulaccedilatildeo destas neste contidas Assim para Zeller

Natildeo haacute duacutevida de que na exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles devemos procurar antes de tudo e somente sua proacutepria maneira de ver e natildeo um imedia-to testemunho da realidade de fato todavia mesmo neste caso [da teo-ria numeacuterica] tudo fala a favor de um reconhecimento do fato de que esta sua maneira de ver estivesse fundamentada sobre um direto co-nhecimento da efetiva conexatildeo das ideias proacuteprias do pitagorismo (Zeller e Mondolfo 1932 486)410

Frank (1923 77 n196) e Rey (1933 116) exatamente para exorcizar a possibili-

dade de incompatibilidade delas imagina a possibilidade de Aristoacuteteles ter compreendi-

do as trecircs versotildees como derivadas logicamente uma da outra De maneira especial Rey

elabora uma proposta conciliatoacuteria entre a versatildeo dos nuacutemeros serem as coisas e aquela

dos nuacutemeros imitarem as coisas os nuacutemeros seriam as coisas quando se considera sua

natureza e imitariam as coisas quando se considerassem suas propriedades (1933

409 Por esses motivos eacute improcedente do ponto de vista metodoloacutegico utilizar exclusivamente Aristoacutete-les para afirmar qualquer coisa sobre uma pretensa concepccedilatildeo matemaacutetica no protopitagorismo 410 Orig ldquonon vacutehaacute dubbio che nella esposizione di Aristotele noi dobbiam cercare anzi tutto e soltanto il suo proprio modo di vedere e non unacuteimmediata testimonianza sulla realtagrave di fatto Tuttavia anche in questo caso tutto parla in favore di un riconoscimento del fatto che questo suo modo di vedere si fondasse su una diretta conoscenza della effettiva connessione dacuteidee propria del pitagorismordquo

185

356ss)411 Mais elaborada eacute a argumentaccedilatildeo conciliatoacuteria de Raven (1948 43-65) pela

qual

Supor como muitos comentadores parecem supor que Aristoacuteteles fi-cou totalmente confuso sobre isso natildeo somente levaria para a porta de-le um grande peso mas tambeacutem demoliria com isso a base central sobre a qual qualquer reconstruccedilatildeo confiaacutevel do pitagorismo deve ser erigida (Raven 1948 63)412

Em aberta polecircmica com Cornford (1923 10) e sua ideia de que Aristoacuteteles esta-

ria aqui apresentando sem distingui-los dois momentos do pitagorismo (um primeiro

ligado agrave ideia de uma materialidade dos nuacutemeros um segundo em que os pitagoacutericos

estariam mais preocupados com a composiccedilatildeo numeacuterica da realidade) Raven propotildee

ao contraacuterio uma radical indissociabilidade do uso dual dos nuacutemeros no interior do pi-

tagorismo antigo413 Aristoacuteteles estaria assim simplesmente recebendo deste uacuteltimo uma

concepccedilatildeo da natureza como igual aos nuacutemeros no sentido de constituir uma agregaccedilatildeo

de unidades espaciais (1948 62) Contudo os nuacutemeros natildeo constituiriam somente a

mateacuteria da realidade e sim estariam tambeacutem agrave origem das diferenccedilas qualitativas que

distinguem uns objetos materiais dos outros Somente assim seria possiacutevel pensar tanto

a versatildeo da imitaccedilatildeo como aquela dos nuacutemeros dos princiacutepios como articulada com a

primeira versatildeo414

Eacute certamente possiacutevel ao menos afirmar que a ideia de miacutemesis atribuiacuteda aos pi-

tagoacutericos por Aristoacuteteles natildeo tem muito a compartilhar com a paralela concepccedilatildeo platocirc-

nica de miacutemesis pela qual as realidades fenomecircnicas imitam no sentido de serem feitas

ldquoagrave semelhanccedila derdquo outras realidades suprasensiacuteveis de niacutevel ontoloacutegico superior isto eacute

as formas E se essa observaccedilatildeo eacute correta o que Aristoacuteteles deve atribuir aos pitagoacuteri-

cos quando fala da miacutemesis natildeo pode ser outra coisa senatildeo uma geneacuterica correspon-

decircncia entre as coisas e as relaccedilotildees numeacutericas que as explicam que as tornam inteligiacute-

veis Resume bem a questatildeo Casertano 411 Para criacuteticas agrave proposta de Frank e Rey cf tanto Cherniss (1935 386) como Burkert (1972 44 n86) 412 Orig ldquoTo suppose as so many scholars appear to suppose that Aristotle was hopelessly confused about it is not only to lay a very serious charge at his door but also incidentally to demolish the main basis upon which any reliable reconstruction of Pythagoreanism must be erectedrdquo 413 Cornford afirma de fato que ldquoAristotle himself draws attention to the two diverse ways of mak-ing numbers the causes of substances and being which in my view are characteristic of the two different schools of Pythagoreansrdquo(Cornford 1923 10) 414 Sobre a mesma ideia cf tambeacutem Guthrie (1962 230s)

186

Inteligibilidade imanente portanto e natildeo trascendente agraves coisas mes-mas Eacute por este motivo que as foacutermulas pitagoacutericas ldquoas coisas satildeo nuacute-merosrdquo e ldquoas coisas assemelham-se aos nuacutemerosrdquo natildeo estatildeo em con-traste ao contraacuterio satildeo expressotildees de uma mesma intuiccedilatildeo fundamen-tal que eacute aquela da homogeneidade entre realidade e pensamento en-tre as leis da realidade e as leis do pensamento compreender as coisas eacute essencialmente espelhaacute-las reproduzir em niacutevel mental aquela estru-tura plenamente inteligiacutevel que eacute proacutepria da realidade material (Ca-sertano 2009 65)415

Apesar de estar clara portanto aquela que podia ter sido a intuiccedilatildeo fundamental

dos pitagoacutericos isto eacute a possibilidade de compreender a natureza pelos nuacutemeros o fato

eacute que a tentativa de conciliaccedilatildeo aristoteacutelica entre as diferentes versotildees da teoria natildeo pa-

receu de toda forma bem-sucedida

Se aleacutem do mais considera-se que a versatildeo principal da doutrina pitagoacuterica a-

quela da identidade do nuacutemero com as realidades obedece diretamente agrave intenccedilatildeo po-

lecircmica de Aristoacuteteles com o platonismo levando-o a considerar o aacuterithmos pitagoacuterico

como causa material em oposiccedilatildeo agrave militacircncia platocircnica em favor da causa formal

(Cherniss 1935 360) torna-se difiacutecil definir indiscutivelmente qual seria o valor histo-

riograacutefico da doutrina pitagoacuterica do ldquotudo eacute nuacutemerordquo416

412 Duas soluccedilotildees

A esta questatildeo do valor da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica ldquotudo eacute nuacutemerordquo como descri-

ccedilatildeo vaacutelida da filosofia pitagoacuterica foram propostas duas soluccedilotildees

A primeira parte da contestaccedilatildeo radical da validade do testemunho aristoteacutelico

chegando a simplesmente negar que ao protopitagorismo corresponda uma doutrina do

nuacutemero tout court Os motivos para essa contestaccedilatildeo natildeo faltam e podem ser resumidos

fundamentalmente no paradoxo de uma doutrina que ainda que amplamente atestada

415 Orig ldquoIntelligibilitagrave immanente appunto e non trascendente le cose stesse Ecco perchegrave le formule pitagoriche lsquole cose sono numerirsquo e lsquole cose somigliano ai numerirsquo non sono in contrasto ma sono espressioni di una medesima intuizione fondamentale che egrave quella dellacuteomogeneitagrave tra realtagrave e pensiero tra leggi della realtagrave e leggi del pensiero capire le cose egrave essenzialmente rispecchiarle riprodurre a livello mentale quella struttura pienamente intelligibile che egrave propria della realtagrave materialerdquo 416 Centrone (1996 105) anota neste sentido que ldquolacuteinteresse [di Aristotele] per il pitagorismo i cui pregi in definitiva consistono solo nellacuteassenza dei difetti propri della filosofia dei platonici non egrave soverchiante ed egrave anzi determinado proprio dalle affinititagrave con le dottrine platonicherdquo

187

na principal fonte para o pitagorismo antigo isto eacute Aristoacuteteles todavia natildeo parece en-

contrar confirmaccedilatildeo nos testemunhos mais antigos Eacute desse paradoxo que Zhmud

(1989) no artigo citado anteriormente comeccedila sua argumentaccedilatildeo Eacute certamente o caso

de segui-la passo a passo

O horizonte em que se insere a reflexatildeo de Zhmud eacute aquele de uma histoacuteria da

tradiccedilatildeo que define a categoria pitagorismo a partir de uma identificaccedilatildeo doutrinaacuteria

Nesse sentido a preocupaccedilatildeo fundamental do autor eacute aquela de contrastar a impressatildeo

que o texto aristoteacutelico parece deixar de que a definiccedilatildeo de ldquoalgueacutem que fala de nuacuteme-

rosrdquo seria a melhor definiccedilatildeo de um pitagoacuterico Conforme jaacute foi observado acima (22)

o criteacuterio identitaacuterio revelaria quanto de circular quanto de petitio principii haveria

nessa utilizaccedilatildeo do criteacuterio dos nuacutemeros para identificar um pitagoacuterico (Zhmud 1989

272) De fato apesar de diversas tentativas a esse respeito nenhum historiador ndash afirma

Zhmud ndash teve sucesso na busca de qualquer doutrina sobre os nuacutemeros nas fontes preacute-

aristoteacutelicas sobre o pitagorismo (Zhmud 1989 272) Por outro lado eacute o caso de reme-

ter novamente ao que se dizia acima (22) em relaccedilatildeo ao cataacutelogo de Jacircmblico que en-

cerra a Vida Pitagoacuterica (267) Em nenhum momento o cataacutelogo revela algum criteacuterio

doutrinaacuterio para a inclusatildeo dos 218 nomes de pitagoacutericos nele contidos grande parte

deles eacute laacute inserida com base em uma imprecisa aderecircncia ao biacuteos pitagoacuterico De fato em

relaccedilatildeo mais diretamente agrave questatildeo (aristoteacutelica) dos nuacutemeros como archaiacute entatildeo es-

tranharia a presenccedila de um pitagoacuterico como Hipaso que conforme os fragmentos que

dele nos resultaram possuiacutea uma concepccedilatildeo material da archeacute (como fogo cf 18 B7

DK) bem distante portanto da doxografia aristoteacutelica de Meacutetafiacutesica

A partir desses argumentos Zhmud admite somente duas possibilidades de solu-

ccedilatildeo da questatildeo ou a expressatildeo ldquotudo eacute nuacutemerordquo pertenceria a um antigo e secreto ensi-

namento do ldquodivinordquo Pitaacutegoras do qual todavia natildeo se teria alguma referecircncia nas fon-

tes mais antigas (e que portanto deveria ter sido revelado diretamente a Aristoacuteteles) ou

esta expressatildeo assim como a doutrina a ela colegada natildeo seria de fato de alguma ma-

neira uma doutrina pitagoacuterica417 Esta segunda possibilidade corresponde a uma jaacute claacutes-

sica posiccedilatildeo de Burnet pela qual ldquoo proacuteprio Pitaacutegoras natildeo teria deixado nenhuma dou-

417 Assim comenta Zhmud ldquoIf we do not wish to think that the central dogma of Pythagorean philosophy was secret then it would be quite reasonable to suppose either this dogma was not central or it was not a dogma at all Only very few of those who write about Pythagorean philosophy arrive at such a para-doxical conclusionrdquo (Zhmud 1989 275) Sobre a praacutetica do segredo na comunidade pitagoacuterica mais anti-ga cf acima (23)

188

trina desenvolvida sobre o tema enquanto os pitagoacutericos do quinto seacuteculo natildeo se inte-

ressaram em acrescentar nada deste tipo agrave tradiccedilatildeo da escolardquo (1908 119)418

Ainda que natildeo deva maravilhar depois dos estudos acima mencionados de

Cherniss (17) que o meacutetodo ldquohistoriograacuteficordquo aristoteacutelico tenha a liberdade de operar

reformulaccedilotildees e traduccedilotildees em seus mesmos termos das doutrinas de seus predecessores

eacute todavia o caso de perguntar-se o que levaria Aristoacuteteles a postular exatamente essa

doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo que na forma atual natildeo devia ser pitagoacuterica

O que foi dito ateacute aqui pode jaacute sugerir um primeiro esboccedilo de resposta a essa

pergunta de certa forma Aristoacuteteles eacute confrontado com grande diversidade de fontes

pitagoacutericas tanto antigas (Hipaso) quanto a ele mais proacuteximas (Ecfanto Filolau Arqui-

tas) Contudo para as finalidades internas agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles conforme se viu

acima essa pletora de pitagoacutericos precisava ser reconduzida a um denominador comum

a uma escola que de certa forma coubesse no percurso histoacuterico-teoreacutetico que Aristoacutete-

les pretendia desenhar em sua doxografia

Sem essa reduccedilatildeo aos miacutenimos termos teoacutericos de fato seria impossiacutevel inserir

os pitagoacutericos no interior do modelo agocircnico pelo qual Aristoacuteteles descreve a histoacuteria

dos predecessores (Cherniss 1935 349)419 Somente dessa forma por exemplo o archeacute

pitagoacuterico encontra seu lugar de antagonista da causa material jocircnica Ao mesmo tempo

todavia exatamente certa imprecisatildeo terminoloacutegica das fontes pitagoacutericas (da qual co-

mo vimos Aristoacuteteles parece reclamar em Met 1092b1-13) permite a inserccedilatildeo do nuacute-

mero pitagoacuterico como ao mesmo tempo precursor da causa formal platocircnica Vale pen-

sar se a reclamaccedilatildeo de Aristoacuteteles natildeo seja um blefe pois se o nuacutemero jaacute natildeo tivesse

esta dupla valecircncia bem Aristoacuteteles a teria provavelmente inventado pois ela calccedila agrave

perfeiccedilatildeo no interior de seu modelo doxograacutefico

Assim a postulaccedilatildeo de ldquotudo eacute nuacutemerordquo teria sido a soluccedilatildeo de um problema de

Aristoacuteteles e de certa forma o iniacutecio de uma longa tradiccedilatildeo que a partir de Zeller (Zel-

ler e Mondolfo 1938 435) reduziu a categoria pitagorismo aos estreitos limites dessa

doutrina metafiacutesica

418 Orig ldquoPythagoras himself left no developed doctrine on the subject while the Pythagreans of the fifth century did not care to add anything of the sort to the school traditionrdquo Da mesma ideia tambeacutem Gigon (1945 142) 419 Sobre o modelo historiograacutefico agocircnico de Aristoacuteteles cf o que foi dito acima (17)

189

Eacute a partir desse impasse hermenecircutico deixado pela soluccedilatildeo acima isto eacute da in-

venccedilatildeo aristoteacutelica de uma categoria historiograacutefica (ldquoos assim chamados pitagoacutericosrdquo)

e de um denominador comum doutrinaacuterio para esta (ldquotudo eacute nuacutemerordquo) que toma corpo

uma segunda soluccedilatildeo ao problema Essa segunda soluccedilatildeo empreende especificamente

uma reavaliccedilatildeo das fontes pitagoacutericas do seacuteculo V aEC em busca de possiacuteveis referenci-

ais histoacutericos da expressatildeo ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo de Aristoacuteteles

A comeccedilar de uma observaccedilatildeo importante a grande quantidade de referecircncias ao

pitagorismo e agrave teoria dos nuacutemeros em Aristoacuteteles revela um fato inquestionaacutevel Aris-

toacuteteles devia mesmo possuir diversos textos pitagoacutericos por assim dizer na mesa de-

le420 Algumas passagens de Aristoacuteteles sugerem que a certeza com a qual considera

inquestionaacuteveis certas afirmaccedilotildees sobre os pitagoacutericos dependa exatamente do fato de

ele ter acesso a uma suficientemente ampla literatura de autoria deles Eacute o caso da dis-

cussatildeo sobre se os pitagoacutericos considerassem o mundo gerado ou natildeo Aristoacuteteles afir-

ma ser impossiacutevel duvidar disso ldquoSe os pitagoacutericos admitem ou natildeo um processo de

geraccedilatildeo dos entes eternos eacute questatildeo sobre a qual natildeo resta duacutevidardquo (Met 1091a13)421

Da mesma forma demonstra ter absoluta certeza de que os pitagoacutericos natildeo haviam tra-

tado dos corpos sensiacuteveis ldquoNatildeo disseram absolutamente nada sobre o fogo nem sobre a

terra nem sobre os outros corposrdquo (Met 990a16-17)422

Aleacutem disso a tradiccedilatildeo informa-nos que Aristoacuteteles dedicou ao menos dois livros

aos pitagoacutericos como tais sem contar as obras dedicadas especificamente a Pitaacutegoras ou

a um o outro pitagoacuterico especiacutefico como teria sido o caso de Arquitas423 A resposta agrave

pergunta sobre quais seriam esses ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo aos quais Aristoacuteteles

quer atribuir a doutrina dos nuacutemeros depende assim em boa parte da possibilidade de

identificaccedilatildeo desses livros Contudo os uacutenicos livros dos quais temos notiacutecia pela tra-

diccedilatildeo satildeo aqueles de Filolau e Arquitas Como Aristoacuteteles parece tratar deste uacuteltimo agrave

parte e natildeo debaixo do guarda-chuva dos assim chamados o mais provaacutevel eacute que sejam

420 Concordam com isso Burkert (1972 236) Zhmud (1989 281) Huffman (199357) e Centrone (1996105) 421 Orig ldquoοἱ microὲν οὖν Πυθαγόρειοι πότερον οὐ ποιοῦσιν ἢ ποιοῦσι γένεσιν οὐδὲν δεῖ διστάζεινrdquo (Met 1091a13) 422 Orig ldquoδιὸ περὶ πυρὸς ἢ γῆς ἢ τῶν ἄλλων τῶν τοιούτων σωmicroάτων οὐδ ὁτιοῦν εἰρήκασινrdquo (Met 990a16-17) 423 Para ampla discussatildeo dessas obras e todas as referecircncias ao caso cf Burkert (1972 29 n5)

190

exatamente os livros de Filolau os textos pitagoacutericos que estavam na mesa de Aristoacutete-

les

Este segundo caminho de soluccedilatildeo seria representado portanto por Filolau

Eacute o caso de anotar ainda antes de mergulhar naquela que foi tradicionalmente

definida exatamente como ldquoa questatildeo filolaicardquo que natildeo deve maravilhar que natildeo se

chegou antes a essa mesma conclusatildeo metodoloacutegica pela qual a soluccedilatildeo do problema da

atribuiccedilatildeo da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo fosse o estudo dos fragmentos de Filolau Gran-

de parte da tradiccedilatildeo a comeccedilar pelo proacuteprio Cherniss (1935 386) conforme se acenou

acima natildeo pocircde seguir nesse sentido pois na esteira de Frank (1923) considerava os

textos de Filolau espuacuterios Somente a partir da ldquoredescobertardquo do valor de parte essenci-

al dos fragmentos de Filolau jaacute com Burkert (1972 218ss) e depois com Huffman

(1988 1993) eacute que foi possiacutevel trilhar esse caminho

A recente reavaliaccedilatildeo do valor histoacuterico dos fragmentos de Filolau permite por-

tanto novos passos hermenecircuticos anteriormente impossiacuteveis Contudo responder agrave

pergunta sobre quem seriam os pitagoacutericos na obra de Aristoacuteteles com Filolau e portan-

to com o pitagorismo do V seacuteculo aEC continua carregando seacuterias dificuldades para a

identificaccedilatildeo aristoteacutelica dos pitagoacutericos como aqueles pelos quais ldquotudo eacute nuacutemerordquo por

um simples motivo mesmo em Filolau natildeo haacute referecircncia expliacutecita a essa doutrina do

ldquotudo eacute nuacutemerordquo Chegou o momento de entrar finalmente no labirinto da questatildeo filo-

laica (pace Boeckh 1819 3) para avaliar em que medida uma soluccedilatildeo dessa questatildeo

possa se apresentar tambeacutem como soluccedilatildeo para a atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de

alguma teoria numeacuterica

413 A ldquosoluccedilatildeordquo filolaica

A questatildeo da autenticidade dos fragmentos de Filolau questatildeo-chave para a de-

finiccedilatildeo da categoria pitagorismo em geral e da questatildeo da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo de

uma teoria dos nuacutemeros de maneira especial apresenta as mesmas feituras da outra mais

ceacutelebre questatildeo aquela socraacutetica A chamada ldquoquestatildeo filolaicardquo que surge jaacute com Bo-

eckh (1819) compartilha com a mais ceacutelebre ldquoquestatildeo socraacuteticardquo a dificuldade em dis-

tinguir o que seria originalmente preacute-platocircnico (no caso especiacutefico pitagoacuterico) e o que

191

seria ao contraacuterio uma reelaboraccedilatildeo platocircnica ou acadecircmica de doutrinas anteriores424

A soluccedilatildeo da questatildeo filolaica se daraacute como se veraacute na gangorra hermenecircutica entre a

tradiccedilatildeo acadecircmica de um lado e a lectio aristoteacutelica distintas entre si por intenccedilatildeo e

meacutetodos

4131 Um livro ou trecircs livros

O primeiro problema que o comentador encontra para verificar a autentidade dos

fragmentos de Filolau eacute aquele da inconsistecircncia da tradiccedilatildeo sobre a produccedilatildeo literaacuteria

deste uacuteltimo Apesar de certa concordacircncia de que Filolau teria sido o primeiro a publi-

car por escrito as doutrinas pitagoacutericas conforme o testemunho de Demeacutetrio de Magneacute-

sia (D L VIII 84) a tradiccedilatildeo apresenta-nos ao contraacuterio duas diversas possibilidades

aquela da existecircncia de trecircs livros (o celebre tripartium) e a outra que se refere agrave exis-

tecircncia de somente um livro de Filolau

No primeiro caso o testemunho natildeo passa de uma confusatildeo tiacutepica da literatura

pseudoepigraacutefica e de maneira especial pitagoacuterica que remonta a Saacutetiro um peripateacute-

tico do seacuteculo III aEC Filolau eacute citado no interior de uma referecircncia a uma carta de Pla-

tatildeo ldquoPlatatildeo escreveu para Dion para que este comprasse dele [Filolau] os livros pitagoacute-

ricosrdquo (D L VIII 84)425 A referecircncia aqui eacute portanto agraves taacute biacuteblia pythagorikaacute que a

tradiccedilatildeo bem conhece ldquoPitaacutegoras escreveu trecircs obras Sobre a educaccedilatildeo Sobre a poliacuteti-

ca e Sobre a naturezardquo (D L VIII 6) 426

A informaccedilatildeo de que se trata de trecircs livros aparece algumas paacuteginas depois no-

vamente associada agrave figura de Filolau Este eacute considerado ndash de certa forma ndash como o

ldquoeditorrdquo do tripartitum

424 Cf para essa discussatildeo Burkert (1972 92) que afirma que ldquothe true problem of the Pythagorean tra-dition lies in Platonism for Platonizing interpretation took place of the historical realityrdquo da mesma forma Huffman (1993 23) considera que ldquowhat we have is another version of Socratic question but this time in regard to the Pythagoreansrdquo Mais uma vez a escolha platocircnica de natildeo falar em primeira pessoa escondendo-se por traacutes de suas personagens assim como o uso de citar com extrema parcimocircnia seus predecessores joga um papel decisivo para o sugir de uma questatildeo como essa 425 Orig ldquo παρὰ τούτου Πλάτων ὠνήσασθαι τὰ βιβλία τὰ Πυθαγορικὰ ∆ίωνι γράφειrdquo (D L VIII 84) 426 Orig ldquo γέγραπται δὲ τῷ Πυθαγόρᾳ συγγράmicromicroατα τρία ΠαιδευτικόνΠολιτικόν Φυσικόνrdquo (D L VIII 6) Para os testemunhos pseudoepigraacutefico sobre o tripartitum de Pitaacutegoras cf Thesleff (1965 170-172)

192

Ateacute o tempo de Filolau natildeo foi possiacutevel conhecer nenhuma doutrina pitagoacuterica este somente publicou aqueles famosos trecircs livros que Pla-tatildeo por carta mandou dizer que fossem adquiridos pelo preccedilo de cem minas (D L VIII 15)427

A referecircncia agrave carta remete ainda mais fortemente agrave pseudoepigrafia da tradiccedilatildeo

em questatildeo era bastante comum na antiguidade que um texto pseudoepigraacutefico fosse

acompanhado pela correspondecircncia de uma personagem estimada e acima literalmente

de qualquer suspeita que atestasse sua originalidade (Burkert 1972 224)

A tradiccedilatildeo dos trecircs livros de Filolau portanto deve ter derivado erroneamente

dessa memoacuteria paralela que atribuiacutea ao proacuteprio Pitaacutegoras a autoria de trecircs livros E os

motivos para isso natildeo faltavam primeiro entre todos o fato de a tradiccedilatildeo maior ter

sempre identificado contrariamente a D L (VIII 6) que Filolau teria sido o primeiro

escritor do pitagorismo

A partir de Wiersma (1942) portanto surge um novo consenso entre os histori-

adores de que devia tratar-se de um uacutenico livro428 De fato nas paacuteginas imediatamente

sucessivas o proacuteprio Dioacutegenes Laeacutercio usa significativamente a expressatildeo geacutegraphe

bibliacuteon eacuten

Escreveu um soacute livro que ndash conforme atesta Hermipo por sua vez ci-tando outro autor ndash o filoacutesofo Platatildeo tendo chegado na Siciacutelia junto a Dioniso teria comprado dos parentes de Filolau por quarenta minas alexandrinas de prata e que teria copiado no Timeu (D L VIII 85)429

A tradiccedilatildeo de Hermipo parece para todos os efeitos mais antiga Dois detalhes

confirmariam isso primeiramente o fato de natildeo precisar da atestaccedilatildeo de uma carta de

Platatildeo em segundo lugar porque a intenccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo eacute alheia agrave proacutepria questatildeo da

autenticidade dos textos Hermipo estava de fato mais interessado em atingir Platatildeo com

a acusaccedilatildeo de plaacutegio de Filolau em seu Timeu do que em vender como originalmente

pitagoacuterico o livro de Filolau Aleacutem disso a tradiccedilatildeo desse mesmo plaacutegio eacute bastante ates-

427 Orig ldquoΜέχρι δὲ Φιλολάου οὐκ ἦν τι γνῶναι Πυθαγόρειον δόγmicroα οὗτος δὲ microόνος ἐξήνεγκε τὰ διαβό-ητα τρία βιβλία ἃ Πλάτων ἐπέστειλεν ἑκατὸν microνῶν ὠνηθῆναιrdquo (D L VIII 15) Cf tambeacutem a passagem paralela de Jacircmblico (VP 199) 428 Sendo neste seguido entre outros por Maddalena (1954 169) Philip (1966 41) Burkert (1972 225) Huffman (1993 26) Centrone (1996 119) 429 Orig ldquo Γέγραφε δὲ βιβλίον ἕν ὅ φησιν Ἕρmicroιππος λέγειν τινὰ τῶν συγγραφέων Πλάτωνα τὸν φιλόσο-φον παραγενόmicroενον εἰς Σικελίαν πρὸς ∆ιονύσιον ὠνήσασθαι παρὰ τῶν συγγενῶν τοῦ Φιλολάου ἀργυρίου Ἀλεξανδρινῶν microνῶν τετταράκοντα καὶ ἐντεῦθεν microεταγεγραφέναι τὸν Τίmicroαιονrdquo (D L VIII 85)

193

tada nas fontes antigas430 Um verso satiacuterico do amargurado (amarulentus) Tiacutemon con-

firma a existecircncia da tradiccedilatildeo sobre o plaacutegio

Tu tambeacutem Platatildeo foste tomado pelo prurido do saber E deste muito dinheito em troca de um pequeno livreto E escolhendo a parte melhor aprendeste a escrever o Timeu (44 A8 DK Gell III 17 6)431

A acusaccedilatildeo contra Platatildeo de toda forma e com testemunhos externos como a-

quele de Timon agora citado pressupotildee a existecircncia senatildeo do plaacutegio ao menos do livro

de Filolau E ainda que natildeo tenha sido comprado pelo proacuteprio Platatildeo este livro devia

estar de alguma forma em Atenas agrave disposiccedilatildeo tanto de Platatildeo quanto de Aristoacuteteles432

Haacute ateacute uma confirmaccedilatildeo documental disso que vem da descoberta em 1893 do

papiro catalogado como Anocircnimo Londinense (44 A27-28 DK) O texto eacute atribuiacutedo ao

disciacutepulo de Aristoacuteteles Mecircnon e apresenta extratos de doutrinas meacutedicas atribuiacutedas a

Filolau

Filolau de Crotona afirma que nosso corpo eacute constituiacutedo de calor Que este natildeo participe do frio induz-se de certos fatos como os seguintes o esperma que possui a propriedade de produzir o ser vivente eacute quente [] O desejo do ar externo nasce exatamente dessa necessidade que o nosso corpo sendo demasiadamente quente inspirando-o se esfrie ao contato com este [] As doenccedilas satildeo geradas ou pela biacutelis ou pelo sangue ou pelo catarro estas satildeo as causas do surgimento das doenccedilas (44 A27 DK)433

430 Pela verdade a tradiccedilatildeo dos plaacutegios de Platatildeo eacute realmente bastante extensa Cf para isso a longa seccedilatildeo dedicada agraves acusaccedilotildees de plaacutegios em D L III 9-18 Para recente discussatildeo da questatildeo cf Brisson (2000b 35-45) 431 Orig ldquo καὶ σὺ Πλάτων καὶ γάρ σε microαθητείης πόθος ἔσχεν πολλῶν δ ἀργυρίων ὀλίγην ἠλλάξαο βίβλον ἔνθεν ἀπαρχόmicroενος τιmicroαιογραφεῖν ἐδιδάχθηςrdquo (44 A8 DK) A mesma tradiccedilatildeo eacute lembrada por Jacircmblico em sua Introduccedilatildeo agrave aritmeacutetica de Nicocircmaco (105) que menciona o livro como sendo de auto-ria de Timeu de Loacutecres Para recente ediccedilatildeo criacutetica do livro cf Marg (1972) 432 Huffman (1993 30) sugere para defender a autenticidade do livreto das possiacuteveis suspeitas de ele proacuteprio ser um falso acadecircmico que a referecircncia de Timon agrave pequenez do livro de Filolau indicaria com maior razatildeo uma origem preacute-socraacutetica deste pois os livros dos preacute-socraacuteticos seriam todos de fato de reduzidas dimensotildees A sugestatildeo natildeo convence totalmente pois natildeo eacute evidente o que deva ser compreen-dido como um livro de pequenas dimensotildees no IV seacuteculo aEC 433 Orig ldquo Φ δὲ Κροτωνιάτης συνεστάναι φησὶν τὰ ἡmicroέτερα σώmicroατα ἐκ θερmicroοῦ ἀmicroέτοχα γὰρ αὐτὰ εἶναι ψυχροῦ ὑποmicroιmicroνήσκων ἀπό τινων τοιούτων τὸ σπέρmicroα εἶναι θερmicroόν κατασκευαστικὸν δὲ τοῦτο τοῦ ζώιου [] διὰ τοῦτο δὴ καὶ ὄρεξις τοῦ ἐκτὸς πνεύmicroατος ἵνα τῆι ἐπεισάκτωι τοῦ πνεύmicroατος ὁλκῆι θερmicroό-τερα ὑπάρχοντα τὰ ἡmicroέτερα σώmicroατα πρὸς αὐτοῦ καταψύχηται[] λέγει δὲ γίνεσθαι τὰς νόσους διά τε χολὴν καὶ αἷmicroα καὶ φλέγmicroα ἀρχὴν δὲ γίνεσθαι τῶν νόσων ταῦταrdquo (44 A27 DK)

194

A descriccedilatildeo detalhada do pensamento meacutedico de Filolau que as passagens do

papiro aqui citadas reproduzem pressupotildee evidentemente uma fonte escrita por traacutes

deste434 E certamente eacute o caso de notar que a terminologia meacutedica natildeo estaacute ausente do

Timeu de Platatildeo (Burkert 1972 227) Dessa forma a prova material que o papiro repre-

senta pode ainda ser aproximada agrave tradiccedilatildeo da acusaccedilatildeo do plaacutegio platocircnico tornando-a

com isso ainda mais confiaacutevel

4132 Autenticidade dos fragmentos de Filolau

Ainda que esteja razoavalmente comprovada a probabilidade da existecircncia de

um soacute livro de Filolau contudo a questatildeo filolaica estaacute longe de ser resolvida Esta sofre

dos mesmos problemas historiograacuteficos que acompanham a questatildeo das fontes de toda a

literatura pitagoacuterica antiga Acontece algo contraacuterio ao que ocorre normalmente na criacuteti-

ca da tradiccedilatildeo parte-se em geral do pressuposto de que tudo esteja falso e o ocircnus da

prova fica por conta de quem deseja defender a autenticidade de um ou outro texto435

De fato diversos comentadores anotam ceticamente (e com uma ponta de cinis-

mo metodoloacutegico) que a existecircncia de um uacutenico livro seria mais um motivo para consi-

derar todos os fragmentos de Filolau como espuacuterios A argumentaccedilatildeo chega a ser sim-

ploacuteria se somente um livro de Filolau existiu por consequecircncia todos os fragmentos a

ele atribuiacutedos deveratildeo pertencer a esse mesmo livro O pressuposto metodoloacutegico dessa

argumentaccedilatildeo encontra refuacutegio na observaccedilatildeo inaugural de Boeckh (1819 38) pela qual

ldquonatildeo resta outra soluccedilatildeo senatildeo aquela de reconhecer que tudo o que temos [de Filolau] eacute

genuiacuteno ou de rejeitar tudo como espuacuteriordquo436 Ainda que Boeckh seja aqui utilizado para

rejeitar tudo como espuacuterio ao contraacuterio da soluccedilatildeo proposta por ele mesmo

A consequecircncia deste aut-aut eacute desastrosa uma seacuterie de comentadores saiu em

busca de trecircs ou quatro passagens evidentemente espuacuterias no interior das cerca de 15

paacuteginas da coleccedilatildeo dielsiana dos fragmentos filolaicos para ndash como se diria em bom

portuguecircs ndash jogar fora a crianccedila com a aacutegua suja Eacute certamente o caso de Bywater 434 Satildeo desta ideia diversos comentadores desde Wilamowitz (1920 II 88) ateacute Huffman (1993 30) e Centrone (1996 120) 435 Cf Burkert (1972 218) e Huffman (1993 18) 436 Orig ldquoSo bleibt nichts uumlbrig als alles Vorhandene zusammen als aumlcht anzuerkennen oder als unaumlcht zu verwerfenrdquo

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(1868 52) e de Burnet (1908 283) que ao tratarem da impossibilidade do fr 12 ser

autecircntico tentam mostrar sua continuidade linguiacutestica e temaacutetica com os outros frag-

mentos com a intenccedilatildeo de demonstrar a contaminaccedilatildeo de todos O fragmento em ques-

tatildeo (44 B12 DK) refere-se de fato aos ldquocinco soacutelidos regularesrdquo que teriam sido poreacutem

uma ldquodescobertardquo somente acadecircmica (cf Resp VII 528b) E todavia esta uacutenica ob-

servaccedilatildeo natildeo autoriza Burnet a concluir que seja ldquojustificaccedilatildeo suficiente para tratarmos

os lsquofragmentos de Filolaursquo como algo bastante suspeitordquo (1908 329)437

A argumentaccedilatildeo desses comentadores natildeo procede fundamentalmente porque

parece esquecer estrateacutegicamente que depois do livro de Filolau haacute um enorme esforccedilo

de falsificaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo pitagoacuterica que corresponde ao periacuteodo pseudoepigraacutefi-

co a coleccedilatildeo de Thesleff (1965) conta com cerca de duzentas paacuteginas desses textos

Diante portanto dessa luxuriosa tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica ndash o termo eacute de Huffman

(1993 27) ndash seria estranho que Filolau tivesse ficado imune a ela438

Haacute portanto seacuterios motivos para enfrentar atentamente a questatildeo da produccedilatildeo

literaacuteria pseudoepigraacutefica que marca sensivelmente as fontes pitagoacutericas mais antigas

Ainda que Burkert natildeo esteja totalmente desprovido de razatildeo quando afirma que no

caso de Filolau o trabalho pseudoepigraacutefico natildeo fazia muito sentido pois se tratava de

uma personagem muito pouco conhecida de fato natildeo seria lectio facilior imaginar que a

platonizaccedilatildeo acadecircmica da literatura pitagoacuterica antiga que marca a pseudoepigrafia de

eacutepoca heleniacutestica tenha poupado somente Filolau Eacute certamente o caso de concordar

com Burkert (1972 228-229) que as informaccedilotildees que possuiacutemos sobre Filolau natildeo es-

tatildeo associadas normalmente a um corpo de lendas ou anedotas (como eacute o caso do proacute-

prio Pitaacutegoras e de outros pitagoacutericos) e sim a uma doxografia mais comum entre os

preacute-socraacuteticos que eacute aquela do modelo mestre-disciacutepulo o nome dele estaacute frequente-

mente associado agravequele de Eurito e Arquitas sendo os trecircs disciacutepulos imediatos de Pitaacute-

goras como eacute o caso do jaacute citado cataacutelogo de Jacircmblico (Iambl VP 267) Filolau eacute dito

437 Orig ldquoThis sufficiently justifies us in regarding the lsquofragments of Philolaosrsquo with something more than suspicionrdquo

438 Huffman (1993 27) anota significativamente que o caso de Arquitas eacute paradigmaacutetico neste sentido ldquothere are forty-six pages of spourius fragments of Arquitas in Thesleffacutes collection (1965 2-48) in com-parision with eight short pages of fragments likely to be authentic in DKrdquo O nuacutemero de textos pseudoe-pigraacuteficos referidos aos pitagoacutericos eacute imensamente superior agravequele do conjunto de textos pseudoepigraacutefi-cos atribuiacutedos a outros preacute-socraacuteticos Eacute este mais um sinal da expansatildeo da tradiccedilatildeo de zelleriana memoacute-ria acima mencionada

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tambeacutem ter sido mestre de Demoacutecrito (D L Vitae IX 38) As formas dessa tradiccedilatildeo

portanto permitem ao menos concluir que uma apropriaccedilatildeo pseudoepigraacutefica tardia do

livro de Filolau como um todo natildeo seria a lectio mais provaacutevel Ainda que natildeo se exclua

a eventualidade de achar seus sinais

Consequecircncia das observaccedilotildees acima eacute portanto que a uacutenica possiacutevel soluccedilatildeo

da questatildeo filolaica eacute aquela que obriga a um cuidadoso trabalho de peneira de cada um

dos fragmentos em busca de comprovar caso a caso sua autenticidade ou menos

Contudo antes de empreender essa avaliaccedilatildeo mais fina eacute certamente o caso de

perguntar-se sobre os motivos e as modalidades das falsificaccedilotildees pseudoepigraacuteficas he-

leniacutesticas pois estas jogaratildeo um papel essencial no processo de avaliaccedilatildeo dos fragmen-

tos de Filolau que se seguiraacute imediatamente a esta discussatildeo

4133 A tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica doacuterica

Graccedilas ao enorme trabalho de coleccedilatildeo dessas tradiccedilotildees por obra de Thesleff

(1965) eacute hoje possiacutevel ter uma ideia mais precisa dos processos de formaccedilatildeo desse va-

riado corpus de obras atribuiacutedas falsamente a Pitaacutegoras e a outros pitagoacutericos A eco-

nomia destas paacuteginas natildeo permite obviamente adentrar em uma questatildeo tatildeo complexa

como aquela da formaccedilatildeo da tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica pitagoacuterica como um todo Eacute o

caso de remeter para isso de um lado aos estudos ainda insuperados do jaacute citado Thes-

leff (1961 1965) do outro ao percurso historiograacutefico desses estudos que chega ateacute o

neoplatonismo magistralmente descrito por OrsquoMeara (1989)

Contudo eacute necessaacuterio ao menos anotar duas caracteriacutesticas dessas ldquofalsifica-

ccedilotildeesrdquo ambas centrais para a avaliccedilatildeo dos fragmentos de Filolau

A primeira eacute aquela do uso do dialeto doacuterico que acomuna praticamente toda a

coleccedilatildeo Thesleff cunha para isso a expressatildeo ldquodoacuterico pitagoacutericordquo pois o uso desse

dialeto arcaico ldquoreflete uma especiacutefica maneira de escrever prosa que eacute realmente tenta-

dor fazer derivar em uacuteltima anaacutelise de Arquitasrdquo (Thesleff 1961 92)439 Se o uso artifi-

cial do doacuterico como arcaiacutesmo linguiacutestico desempenha papel fundamental na estrateacutegia

de falsificaccedilatildeo as tentativas criacuteticas de desvendaacute-la se utilizaratildeo da mesma estrateacutegia

439 Orig ldquoIt reflects a specific manner of writing prose which it is very tempting indeed to derive ulti-mately from Arquitasrdquo

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portanto ainda que em sentido contraacuterio Uma questatildeo sensiacutevel para a argumentaccedilatildeo

destas paacuteginas eacute que tambeacutem os fragmentos de Filolau foram escritos em doacuterico Toda-

via esse natildeo pode ser motivo para consideraacute-los per se pseudoepigraacuteficos pois ateacute o

fim do V seacuteculo aEC o doacuterico eacute um dialeto ainda amplamente utilizado Prova disso eacute

que o utilizam tanto Arquitas quanto o meacutedico Acron de Acragas assim como os orado-

res Tiacutesias e Corax440

A segunda caracteriacutestica desse corpus talvez a mais importante eacute a presenccedila

nos textos pseudoepigraacuteficos de conceitos que dependem diretamente das filosofias de

Platatildeo e Aristoacuteteles De fato as fontes acadecircmicas desde o comeccedilo revelam clara ten-

decircncia em identificar grande parte das doutrinas platocircnicas como originaacuterias de Pitaacutego-

ras (Burkert 1972 92-93) Heidel (1940 7) em sua histoacuteria da matemaacutetica grega revela

ser quase imposssiacutevel verificar o que seja pitagoacuterico e o que seja platocircnico nas fontes

antigas sobre a matemaacutetica441 Tambeacutem Aristoacuteteles afirma que a filosofia de Platatildeo se-

gue em muitos pontos aquela dos pitagoacutericos e apresenta-se basicamente como uma

siacutentese entre Soacutecrates e Pitaacutegoras (Met 987a29)442

Natildeo por acaso a Vida de Pitaacutegoras que Foacutecio reproduz em sua Biblioteca reve-

lando uma intenccedilatildeo genealoacutegica tambeacutem tiacutepica do tardo platonismo coloca Platatildeo como

nono sucessor de Pitaacutegoras e Aristoacuteteles como deacutecimo ldquoPlatatildeo tornou-se conforme

dizem o nono diaacutedoco de Pitaacutegoras ele que havia sido disciacutepulo do mais velho Arqui-

tas e Aristoacuteteles foi o deacutecimordquo (Phot Bibl 249438b16-17)443

Todavia com a guinada ceacutetica da Academia de meio encabeccedilada por Arcesilau

a tradiccedilatildeo platocircnica acaba por identificar-se mais com o lado socraacutetico e Pitaacutegoras tor-

440 Cf para as referecircncias Burkert (1972 222) Burnet (1908 327) por sua vez considerava impossiacutevel que Filolau tivesse escrito em doacuterico ldquoIs it likely that Philolaos should have written in Doric Ionic was the dialect of all science and philosophy till the time of the Peloponnesian War and there is no reason to suppose that the early Pythagoreans used any otherrdquo apesar de demonstrar conhecer a opiniatildeo de Diels pela qual Filolau e Arquitas teriam sido os primeiros a escrever no dialeto das colocircnias da Magna Greacutecia que os acolheram Huffman (1993 27 n13) reproduzindo os argumentos de Burkert considera de fato o argumento de Burnet insuficiente 441 Cf Heidel (1940 7) ldquoit is difficult if not impossible for the most part to distinguish what is platonic and what is Pythagoreanrdquo 442 Ainda que Aristoacuteteles distancie-se do processo de identificaccedilatildeo absoluta entre pitagorismo e platonis-mo no caso em que por exemplo faz derivar a teoria das formas de Craacutetilo e Soacutecrates De fato como se veraacute a platonizaccedilatildeo do pitagorismo desenvolve-se em sentido contraacuterio a esta lectio aristoteacutelica que estaacute mais interessada em distinguir do que em aproximar 443 Orig ldquoὍτι ἔνατος ἀπὸ Πυθαγόρου διάδοχος γέγονε φησι Πλάτων Ἀρχύτου τοῦ πρεσβυτέρου microαθη-τὴς γενόmicroενος δέκατος δὲ Ἀριστοτέληςrdquo (Phot Bibl 249438b16-17) Burkert (1972 53) anota que a autoria da obra pode ser do proacuteprio Eudoro

198

na-se ao mesmo tempo um problema e a soluccedilatildeo de outro444 De fato ao mesmo tempo

em que a influecircncia de Pitaacutegoras eacute negada para definir uma tradiccedilatildeo menos dogmaacutetica

do platonismo o proacuteprio Pitaacutegoras eacute utilizado para que seja atribuiacuteda a ele aquela parte

da doutrina platocircnica que por ser demasiadamente metafiacutesica e matemaacutetica natildeo era

mais o caso de atribuir ao proacuteprio Platatildeo

Em contrapartida a reaccedilatildeo ao ceticismo que comeccedila a ser esboccedilada com a che-

gada do dogmaacutetico Antiacuteoco de Aacutescalon que inaugura uma nova mudanccedila de rumo na

Academia inspirou certamente as acusaccedilotildees de plaacutegio contra Platatildeo entre elas certa-

mente a que se viu anteriormente em relaccedilatildeo ao livro de Filolau Em sentido contraacuterio

portanto e quiccedilaacute mais proacuteximo da visatildeo da primeira Academia de Espeusipo e Xenoacutecra-

tes os acadecircmicos partidaacuterios da influecircncia pitagoacuterica sobre Platatildeo acabam por atribuir

a todos os representantes da filosofia platocircnica incluindo neles obviamente tambeacutem

Soacutecrates e Aristoacuteteles uma apropriaccedilatildeo fraudulenta da doutrina de Pitaacutegoras445

Eacute esta a polecircmica que envolve ainda o neoplatonismo de Numecircnio de Apameacuteia

e depois de Porfiacuterio e Jacircmblico Os trecircs ainda que com intensidades diferentes decla-

ram querer reestabelecer o verdadeiro Platatildeo purificando-o de todas as sobreposiccedilotildees

doutrinaacuterias de Aristoacuteteles e dos estoicos446 O tiacutetulo da obra de histoacuteria da filosofia pla-

tocircnica escrita por Numecircnio eacute significativo do clima polecircmico da questatildeo Sobre a dis-

cordacircncia entre os acadecircmicos e Platatildeo Sua conclusatildeo eacute simplesmente que o verdadei-

ro platonismo eacute pitagorismo (fr 24 73-79) contra o que os ldquoacadecircmicosrdquo por ele iden-

tificados simplesmente com os ceacuteticos andavam afirmando447 Ecos dessa polecircmica

aparecem tambeacutem em Porfiacuterio que afunda a faca contra a tradiccedilatildeo platocircnica acusando-

a de plaacutegio e de maacute-feacute por ter estabelecido uma histoacuteria do pitagorismo diretamente

intencionada a ridicularizaacute-lo

Os escritos satildeo em doacuterico e esse dialeto possui algo de pouco claro exatamente por esse motivo tambeacutem as doutrinas que este investigava foram suspeitas de serem apoacutecrifas e fruto de desentendimentos pois

444 Cf para isso Dillon (1977) Leszl (1981) e Isnardi-Parente (1989) Para recente discussatildeo desta guina-da ceacutetica da Academia de meio veja-se o Epiacutelogo do excelente estudo sobre a heranccedila platocircnica de Dillon (2003 234ss) 445 Cf tambeacutem os argumentos nesse sentido de Centrone (2000 155) 446 Burkert pode assim concluir que ldquoone might therefore define later Pythagoreanism as Platonism with the Socratic and dialectic element amputatedrdquo (Burkert 1972 96) 447 Cf para isso OacuteMeara (1989 10-14)

199

natildeo teriam sido pitagoacutericos ortodoxos os que as divulgavam Aleacutem disso Platatildeo Aristoacuteteles Espeusipo Aristoxeno e Xenoacutecrates pelo que diziam os pitagoacutericos apropriaram-se com pequenas modifica-ccedilotildees das doutrinas frutiacuteferas enquanto teriam recolhido e compilado como doutrinas especiacuteficas da filosofia pitagoacuterica tudo quanto havia de ridiacuteculo e supeacuterfluo e tudo aquilo que posteriormente os caluniado-res haviam apresentado para refutar e denegrir a escola (Porph VP 53)448

A passagem reivindica assim uma identidade doutrinaacuteria pitagoacuterica em aberta

polecircmica com a tradiccedilatildeo tanto acadecircmica quanto peripateacutetica Os pitagoacutericos aqui refe-

ridos foram identificados com a vertente neopitagoacuterica representada mais especifica-

mente por Moderato de Gades449 A literatura pitagoacuterica pseudoepigraacutefica heleniacutestica

portanto deveraacute ser compreendida no interior dessa polecircmica intra-acadecircmica que se

estende ateacute agrave eacutepoca imperial450 A presenccedila de diversos conceitos e temaacuteticas que pres-

supotildeem portanto natildeo somente Platatildeo mas mesmo Espeusipo ou Teofrasto natildeo devem

maravilhar451

Nessa reconstruccedilatildeo platocircnico-pitagorizante da filosofia dos ldquoantigosrdquo a descri-

ccedilatildeo que Aristoacuteteles no seacuteculo IV aEC faz do pitagorismo natildeo encontra eco algum Ao

contraacuterio a tradiccedilatildeo neoplatocircnica conta diversas acusaccedilotildees contra a lectio de Aristoacutete-

les Siriano e Proclo acusam abertamente Aristoacuteteles de distorccedilatildeo do pensamento dos

pitagoacutericos (Syrian In Met 80 22 Procl In Tim 1 16 29) Especialmente significativo

eacute um texto pseudoepigraacutefico atribuiacutedo a Teano esposa e disciacutepula de Pitaacutegoras

Soube que muitos dos gregos supuseram que Pitaacutegoras teria dito que tudo vem do nuacutemero Essa afirmaccedilatildeo contudo revela uma aporia como de fato algo que nem sequer existe eacute concebido como genitor

448 Orig ldquo τὰ γεγραmicromicroένα δωριστὶ γεγράφθαι ἐχούσης τι καὶ ἀσαφὲς τῆς διαλέκτου καὶ microηδὲν διὰ τοῦτο ὑπονοεῖσθαι καὶ τὰ ὑπαὐτῆς ἀνιστορούmicroενα δόγmicroατα ὡς νόθα καὶ παρηκουσmicroένα τῷ microὴ ἄντικρυς Πυθα-γορικοὺς εἶναι τοὺς ἐκφέροντας ταῦτα πρὸς δὲ τούτοις τὸν Πλάτωνα καὶ Ἀριστοτέλη Σπεύσιππόν τε καὶ Ἀριστόξενον καὶ Ξενοκράτη ὡς φασὶν οἱ Πυθαγόρειοι τὰ microὲν κάρπιmicroα σφετερίσασθαι διὰ βραχείας ἐπισκευῆς τὰ δ ἐπιπόλαια καὶ ἐλαφρὰ καὶ ὅσα πρὸς διασκευὴν καὶ χλευασmicroὸν τοῦ διδασκαλείου ὑπὸ τῶν βασκάνως ὕστερον συκοφαντούντων προβάλλεται συναγαγεῖν καὶ ὡς ἴδια τῆς αἱρέσεως καταχωρίσαιrdquo (Porph VP 53) 449 Concordam com esta atribuiccedilatildeo Dillon (1977 346) e Isnardi-Parente (Speusippo 1980 237-238) Contraacuterios Burkert (1972 95) e OacuteMeara (1989 11 n8) 450 Cf Centrone (2000) para ampla resenha da recepccedilatildeo do pitagorismo no platonismo de eacutepoca imperial 451 Para mais precisa avaliaccedilatildeo da influecircncia das tradiccedilotildees acadecircmica e peripateacutetica mais antigas sobre a literatura pseudoepigraacutefica pitagoacuterica ndash com relativas fontes ndash cf Thesleff (1965) mas tambeacutem Burkert (1972 83-96) Huffman (1993 21) anota com razatildeo que ldquoeven if the forgeries do not arise among the Neoplatonists the Neoplatonic attitude towards Pythagoras and hence the motive for forgeries could go back much earlierrdquo

200

Mas ele natildeo disse que todas as coisas vecircm dos nuacutemeros e sim con-forme os nuacutemeros Pois no nuacutemero daacute-se a primeira ordenaccedilatildeo de fato graccedilas a sua presenccedila na comunhatildeo das coisas que podem ser conta-das algo toma seu lugar como primeiro outra coisa como segundo e em seguida todos os outros (Thesleff 1965 Stob I 10 13)452

Teano nega assim a doutrina dos nuacutemeros como princiacutepios atribuindo-a a ldquomui-

tos dos gregosrdquo ainda que isso signifique fundamentalmente Aristoacuteteles453 A estrateacutegia

de colocar essa negaccedilatildeo na boca da proacutepria esposa de Pitaacutegoras obedece a uma bem

precisa estrateacutegia parecida com aquela da falsificaccedilatildeo da carta de Platatildeo acima citada

de fornecer autenticidade para aquilo que natildeo a tem

A tematizaccedilatildeo da diferenccedila da lectio aristoteacutelica em relaccedilatildeo ao onipresente ldquosis-

tema de derivaccedilatildeordquo da tradiccedilatildeo platocircnica permite voltar novamente agrave questatildeo filolai-

ca454 Eacute exatamente essa diferenccedila a tornar-se uma alavanca hermenecircutica para a ques-

tatildeo pois se esta eacute verdadeira como se demonstraraacute a proximidade dos fragmentos atri-

buiacutedos a Filolau com a lectio aristoteacutelica dos assim chamados pitagoacutericos se tornaraacute um

sinal inequiacutevoco de sua autenticidade

Eacute agrave modalidade dessa distinccedilatildeo que Aristoacuteteles opera entre pitagorismo antigo e

recepccedilatildeo platocircnica e acadecircmica deste que se deveraacute entatildeo prestar toda a atenccedilatildeo

414 A exceccedilatildeo aristoteacutelica (Met A 6 987b)

Aristoacuteteles de fato se por um lado aproxima pitagorismo e platonismo em rela-

ccedilatildeo agrave teoria das formas por outro lado distingue sem alguma possibilidade de duacutevida o

pitagorismo do platonismo em ao menos duas questotildees centrais natildeo somente para a

histoacuteria do platonismo mas tambeacutem para a discussatildeo que estas paacuteginas empreendem

considerando a concepccedilatildeo pitagoacuterica dos nuacutemeros As duas questotildees estatildeo articuladas

em ceacutelebre paacutegina da Metafiacutesica de Aristoacuteteles que por esse motivo seraacute preciso anali-

452 Orig ldquo Καὶ συχνοὺς microὲν Ἑλλήνων πέπυσmicroαι νοmicroίσαι φάναι Πυθαγόραν ἐξ ἀριθmicroοῦ πάντα φύεσθαι Οὗτος δὲ ὁ λόγος ἀπορησίας ἔχεται πῶς ἃ microηδὲ ἔστιν ἐπινοεῖται καὶ γεννᾶν ὃ δὲ οὐκ ἐξ ἀριθmicroοῦ ltκατὰgt δὲ ἀριθmicroὸν ἔλεγε πάντα γίγνεσθαι ὅτι ἐν ἀριθmicroῷ τάξις πρώτη ἧς microετουσίᾳ κἀν τοῖς ἀριθmicroητοῖς πρῶτόν τι καὶ δεύτερον καὶ τἄλλα ἑποmicroένως τέτακταιrdquo (Thesleff 1965 Stob I 10 13) 453 O termo γεννᾶν poderia ser uma referecircncia direta agrave paacutegina de Aristoacuteteles que fala da γένεσιν ποιεῖν ἀϊδίων ὄντων dos pitagoacutericos em Met 1091a12 Cf Burkert (1972 61) 454 A expressatildeo eacute de Gompertz (apud Burkert 1972 17)

201

sar antes de dedicar-se finalmente aos fragmentos de Filolau Trata-se mais precisamen-

te da paacutegina 987b

O argumento inicia-se com a jaacute amplamente citada questatildeo da discordacircncia dos

pitagoacutericos com Platatildeo a respeito do papel dos nuacutemeros na existecircncia das coisas sensiacute-

veis Aristoacuteteles exclui veementemente que os pitagoacutericos concordem com o papel de

meacutethexis atribuiacutedo aos nuacutemeros por este uacuteltimo A precisaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o

conceito de miacutemesis seria o mais adequado para representar a doutrina pitagoacuterica intro-

duz uma mais precisa articulaccedilatildeo das diferenccedilas entre pitagoacutericos e Platatildeo que leva agraves

duas questotildees centrais a primeira delas diz respeito ao lugar ontoloacutegico dos nuacutemeros a

segunda agrave concepccedilatildeo do um

Assim inicia a paacutegina em questatildeo

Depois das filosofias mencionadas surgiu a doutrina de Platatildeo que em muitos pontos segue a dos pitagoacutericos mas apresenta tambeacutem ca-racteriacutesticas proacuteprias estranhas agrave filosofia dos itaacutelicos (Met 987a29-31)455

Aristoacuteteles inicia reconhecendo mais uma vez a analogia entre o procedimento

platocircnico da reduccedilatildeo aos princiacutepios e o procedimento pitagoacuterico da reduccedilatildeo da realidade

aos nuacutemeros Ainda que como visto anteriormente mudem os termos para a descriccedilatildeo

dessa relaccedilatildeo entre as formasnuacutemeros e os entes sensiacuteveis ndash miacutemesis para os pitagoacuteri-

cos metheacutexis para Platatildeo (Met 987b11-12) ndash a analogia continua procedente no interi-

or da doxografia aristoteacutelica De fato se os pitagoacutericos satildeo ditos ldquoacreditarem que os

princiacutepios [das matemaacuteticas] sejam os princiacutepios de todos os seresrdquo (Met 985b25)456

analogamente a Platatildeo eacute atribuiacutedo um processo de reduccedilatildeo das formas que satildeo causas

da realidade material a ulteriores princiacutepios Aristoacuteteles chama estes de elementos de

stoicheiacutea Os elementos seriam assim na linguagem aristoteacutelica causas daquilo que

existe

455 Orig ldquoΜετὰ δὲ τὰς εἰρηmicroένας φιλοσοφίας ἡ Πλάτωνος ἐπεγένετο πραγmicroατεία τὰ microὲν πολλὰ τούτοις ἀκολουθοῦσα τὰ δὲ καὶ ἴδια παρὰ τὴν τῶν Ἰταλικῶν ἔχουσα φιλοσοφίανrdquo (Met 987a29-31) Para dife-rente interpretaccedilatildeo da passagem que tende a diminuir a lectio aristoteacutelica da influecircncia dos pitagoacutericos sobre Platatildeo cf Huffman (2008 223) O argumento do autor estaacute fundamentado na ideia de que o τούτο-ις da passagem acima natildeo se refira aos pitagoacutericos ndash conforme a lectio maior ndash e sim a todos os outros predecessores (τῶν πρότερον) mencionados nas linhas imediatamente anteriores (Met 987a28) 456 Orig ldquo ἐντραφέντες ἐν αὐτοῖς τὰς τούτων ἀρχὰς τῶν ὄντων ἀρχὰς ᾠήθησαν εἶναι πάντωνrdquo (Met 985b 25)

202

De fato posto que as formas satildeo causas de outras coisas Platatildeo consi-derou os elementos constitutivos das formas como os elementos de to-dos os seres Como elemento material das formas ele punha o grande e o pequeno e como causa formal o Um de fato considerava que as formas e os nuacutemeros derivassem por participaccedilatildeo do grande e do pe-queno no Um (Met 987b18-22)457

A paacutegina em questatildeo gerou muita polecircmica entre os comentadores A doutrina

dos princiacutepios aqui atribuiacuteda a Platatildeo natildeo parece encontrar eco imediato nas paacuteginas

escritas de seus diaacutelogos Isso levou uma jaacute consolidada tradiccedilatildeo hermenecircutica a consi-

derar a possibilidade da existecircncia de agrapha dogmata de ensinamentos orais esoteacuteri-

cos de Platatildeo dos quais essa paacutegina aristoteacutelica seria certamente um dos testemunhos

mais relevantes458

O que interessa aqui todavia eacute mais simplesmente anotar que Aristoacuteteles nos

termos de sua proacutepria filosofia (aitiacuteai stoicheiacutea) estaacute comparando pitagoacutericos e Platatildeo

e achando profundas analogias em seus sistemas ontoloacutegicos Nas linhas imediatamente

sucessivas a analogia eacute assim resumida

Quanto agrave afirmaccedilatildeo de que o Um eacute substacircncia e natildeo algo diferente da-quilo a que se predica Platatildeo aproxima-se muito dos pitagoacutericos e como os pitagoacutericos considera os nuacutemeros como causa da substacircncia das outras coisas (Met 987b22-25)459

Agrave afirmaccedilatildeo dessa analogia todavia conforme foi acenado acima segue no tex-

to aristoteacutelico a observaccedilatildeo de uma profunda diferenccedila entre as duas doutrinas

Entretanto eacute peculiar a Platatildeo o fato de ter posto no lugar do ilimitado entendido como Um uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como derivado do grande e do pequeno Platatildeo aleacutem disso situa os nuacutemeros fora dos sensiacuteveis enquanto os pitagoacutericos sustentam que os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas e natildeo afirmam os entes matemaacuteticos

457 Orig ldquo ἐπεὶ δ αἴτια τὰ εἴδη τοῖς ἄλλοις τἀκείνων στοιχεῖα πάντων ᾠήθη τῶν ὄντων εἶναι στοιχεῖα ὡς microὲν οὖν ὕλην τὸ microέγα καὶ τὸ microικρὸν εἶναι ἀρχάς ὡς δ οὐσίαν τὸ ἕν ἐξ ἐκείνων γὰρ κατὰ microέθεξιν τοῦ ἑνὸς [τὰ εἴδη] εἶναι τοὺς ἀριθmicroούςrdquo (Met 987b18-22) 458 Natildeo eacute certamente possiacutevel e oportuno adentrar aqui nesta vexata quaestio que tanta polecircmica suscitou nos uacuteltimos anos A posiccedilatildeo esoteacuterica eacute defendida pela assim chamada Escola de Tuumlbingen-Milatildeo Cf para isso Kraumlmer (1959) Gaiser (1963) Szlezaacutek (1985) Reale (1991) Do outro lado com posiccedilotildees ceacuteticas em graus diferentes Cherniss (1945) Vlastos (1963) e Isnardi-Parente (1977) Para resenha mais recente desta questatildeo cf Trabattoni (1999 e 2005) 459 Orig ldquo τὸ microέντοι γε ἓν οὐσίαν εἶναι καὶ microὴ ἕτερόν γέ τι ὂν λέγεσθαι ἕν παραπλησίως τοῖς Πυθαγορε-ίοις ἔλεγε καὶ τὸ τοὺς ἀριθmicroοὺς αἰτίους εἶναι τοῖς ἄλλοις τῆς οὐσίας ὡσαύτως ἐκείνοιςrdquo (Met 987b22-25)

203

como intermediaacuterios entre aqueles e estas O fato de ter posto o Um e os nuacutemeros fora das coisas agrave diferenccedila dos pitagoacutericos e tambeacutem o ter introduzido as formas foram as consequecircncias da investigaccedilatildeo fun-dada nas puras noccedilotildees que eacute proacutepria de Platatildeo pois os predecessores natildeo conheciam a dialeacutetica (Met 987b25-33)460

A visatildeo platocircnica da teoria dos princiacutepios afasta-se da tradiccedilatildeo pitagoacuterica por-

tanto em primeiro lugar pelo ldquofato de ter posto no lugar do ilimitado entendido como

unidade uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como derivado do grande e do

pequenordquo em segundo lugar pelo fato de Platatildeo ldquosituar os nuacutemeros (arithmoiacute) fora dos

sensiacuteveis (paraacute taacute aisthetaacute) enquanto aqueles [os pitagoacutericos] sustentam que os nuacuteme-

ros satildeo autaacute taacute praacutegmata e natildeo afirmam que os matematikaacute satildeo intermediaacuterios (metaxuacute)

entre estes e aquelesrdquo Esta uacuteltima diferenccedila estaacute baseada fundamentalmente naquele

que Aristoacuteteles considera um erro tipicamente platocircnico (Kahn 2001 63) Trata-se da

doutrina do chorismoacutes isto eacute da separaccedilatildeo das formasnuacutemeros do mundo sensiacutevel que

Aristoacuteteles considera ter surgido jaacute com a dialeacutetica socraacutetica estando assim ausente da

filosofia dos pitagoacutericos

Natildeo eacute o caso de aprofundar ainda mais esta diferenccedila Seraacute suficiente lembrar

mais uma vez que essa reconstruccedilatildeo doxograacutefica da ideia da identidade do nuacutemero com

a realidade conforme foi visto acima (411) obedece claramente agrave intenccedilatildeo polecircmica

de Aristoacuteteles com o platonismo Esta se encontra expressa de forma tatildeo definitiva nas

categorias de sua proacutepria filosofia ao ponto de tornar impossiacutevel em uacuteltima anaacutelise

resgatar um eventual sentido originaacuterio da doutrina pitagoacuterica do ldquotudo eacute nuacutemerordquo To-

davia natildeo se trataria aqui de deformaccedilatildeo das doutrinas pitagoacutericas originaacuterias e sim

mais propriamente de uma traduccedilatildeo destas em outros termos Prova disso seria a proacute-

pria intenccedilatildeo de Aristoacuteteles de desenhar a diferenccedila entre pitagorismo e Platatildeo que

portanto lhe impediria de incluir apropriaccedilotildees totalmente arbitraacuterias ou ateacute mesmo for-

jadas das doutrinas dos dois lados sob pena de perder desta forma seu argumento (Cen-

trone 1996 109)461 Por outro lado as duras criacuteticas a essa lectio aristoteacutelica de autores

460 Orig ldquo τὸ δὲ ἀντὶ τοῦ ἀπείρου ὡς ἑνὸς δυάδα ποιῆσαι τὸ δ ἄπειρον ἐκ microεγάλου καὶ microικροῦ τοῦτἴδιο-ν καὶ ἔτι ὁ microὲν τοὺς ἀριθmicroοὺς παρὰ τὰ αἰσθητά οἱ δἀριθmicroοὺς εἶναί φασιν αὐτὰ τὰ πράγmicroατα καὶ τὰ microαθηmicroατικὰ microεταξὺ τούτων οὐ τιθέασιν τὸ microὲν οὖν τὸ ἓν καὶ τοὺς ἀριθmicroοὺς παρὰ τὰ πράγmicroατα ποιῆσαι καὶ microὴ ὥσπερ οἱ Πυθαγόρειοι καὶ ἡ τῶν εἰδῶν εἰσαγωγὴ διὰ τὴν ἐν τοῖς λόγοις ἐγένετο σκέψιν (οἱ γὰρ πρότεροι διαλεκτικῆς οὐ microετεῖχον)rdquo (Met 987b25-33) 461 Da mesma ideia Isnardi-Parente (1977 1034) que afirma ldquonaturalmente il giudizio aristotelico come di consueto implica una sovrapposizione delle proprie categorie interpretative a quelle del pensatore della critica ma contiene anche un nucleo di attendibilitagrave da non trascurarsirdquo

204

acadecircmicos como Siriano e Proclo e da tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica platonizante que estaacute

por traacutes do texto de Teano confirmariam tratar-se aqui de uma tradiccedilatildeo externa agrave tradi-

ccedilatildeo platocircnica Todos esses argumentos permitem imaginar tratar-se no caso da identifi-

caccedilatildeo dos nuacutemeros com a realidade ainda que nos termos da traduccedilatildeo aristoteacutelica de

um achado da visatildeo preacute-socraacutetica dos nuacutemeros pitagoacutericos462

Uma segunda diferenccedila entre Platatildeo e pitagoacutericos estaacute na maneira como eacute con-

cebido o um ou mais precisamente no ldquofato de [Platatildeo] ter posto no lugar do ilimitado

entendido como unidade uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como deriva-

do do grande e do pequenordquo A criacutetica de Aristoacuteteles natildeo pode ser menos contundente

Contudo o ter posto uma diacuteade como natureza oposta ao Um tinha em vista derivar facilmente dela como de uma matriz todos os nuacutemeros exceto os primeiros Entretanto ocorreu exatamente o contraacuterio pois esta doutrina natildeo eacute razoaacutevel (Met 987b33-988a2)463

O fato de colocar uma diacuteade no lugar do eacuten aacutepeiron do um ilimitado pitagoacuterico

(com a intenccedilatildeo de derivar dela mais facilmente todos os outros nuacutemeros) acaba resul-

tando em uma doutrina ldquoou euloacutegosrdquo isto eacute em uma teoria que natildeo procede do ponto de

vista argumentativo

Aristoacuteteles mais uma vez estaacute sozinho na definiccedilatildeo dessa diferenccedila A tradiccedilatildeo

doxograacutefica toda sublinha ao contraacuterio que tambeacutem os pitagoacutericos postulavam o um e

diacuteade indefinida como princiacutepios da realidade Eacute certamente o caso de um ceacutelebre frag-

mento de Espeusipo citado por Gulherme de Moerbeke em sua traduccedilatildeo latina do co-

mentaacuterio de Proclo ao Parmecircnides de Platatildeo Proclo refere-se agrave opiniatildeo dos antigos

(tamquam placentia antiquis) pela qual

Eles considerando que o um eacute superior ao ser e de tal forma que deste deriva o ser tornaram-no livre da condiccedilatildeo de princiacutepio Por outro la-do considerando que com o um concebido em si mesmo enquanto separado e sozinho sem as outras coisas sem algum outro elemento

462 Comenta entusiasticamente Burkert (1972 32) ldquois treasure-trove for the historian herewe have a piece of Pythagorean doctrine that was not subsumed into Platonismrdquo 463 Orig ldquo τὸ δὲ δυάδα ποιῆσαι τὴν ἑτέραν φύσιν διὰ τὸ τοὺς ἀριθmicroοὺς ἔξω τῶν πρώτων εὐφυῶς ἐξ αὐτῆς γεννᾶσθαι ὥςπερ ἔκ τινος ἐκmicroαγείου καίτοι συmicroβαίνει γ ἐναντίως οὐ γὰρ εὔλογον οὕτωςrdquo (Met 987b33-988a2)

205

adicional nada mais viria a existir por isso introduziram a dualidade infinita como princiacutepio dos seres (Speusip fr 48 Taran)464

A referecircncia aos antiqui natildeo poderaacute ser compreendida certamente como uma

remissatildeo a Platatildeo que eacute praticamente coetacircneo Por exclusatildeo os antigos seratildeo entatildeo os

pitagoacutericos Estes satildeo chamados de palaioiacute por Platatildeo em uma passagem do Filebo que

seraacute analisada em breve (Phlb 16c)465

Prova da forccedila dessa tradiccedilatildeo acadecircmica eacute que ateacute Teofrasto disciacutepulo imediato

de Aristoacuteteles eacute influenciado por ela a tal ponto de consideraacute-la tambeacutem verdadeira e

portanto afastar-se da lectio que havia recebido de seu mestre

Platatildeo e os pitagoacutericos tornam grande a distacircncia [entre o real e as coi-sas da natureza] mas consideram que todas aquelas coisas desejam imitar o real E a partir do momento em que definem uma espeacutecie de oposiccedilatildeo entre o um e a diacuteade indefinida da qual em uacuteltima anaacutelise depende o que eacute ilimitado e desordenado e para assim dizer toda a desformidade eacute absolutamente inconcebiacutevel que para eles a natureza do todo existisse sem esta [diacuteade indefinida] (Theophr Met 11a27-11b6)466

Natildeo somente Platatildeo e os pitagoacutericos satildeo aproximados por separarem o real (on-

toloacutegico) das coisas da natureza mas tambeacutem por compreenderem que sem a aoristoacutes

dyacuteas o mundo natildeo poderia ser gerado Nessa perspectiva ao lado do um a postulaccedilatildeo

da diacuteade indefinida como um dos princiacutepios eacute absolutamente necessaacuteria Estamos jaacute em

pleno solo acadecircmico portanto

Contudo a citada passagem da outra Metafiacutesica aquela de Aristoacuteteles natildeo deixa

duacutevidas que essa diferenccedila devia mesmo existir Ateacute porque natildeo se trata de um apax

legomena e sim ndash conforme se verificou acima (411) ndash de uma peccedila de um quebra-

cabeccedila maior que contribuiu para a definiccedilatildeo de uma concepccedilatildeo pitagoacuterica dos princiacute- 464 Orig ldquole unum enim melius ente putantes et a quo le ens et ab ea quae secundum principium habitu-dine ipsum liberaverunt exstimantes autem quod si quis le unum ipsum seorsum et solum meditatum sine aliis seCtmdum se ipsum ponat nullurn alterum elementum ipsi apponens nihil utique flet aliorum in-terminabilem dualitatem entium principium induxeruntrdquo (Speusip fr 48 Taran) 465 Concordam com esta atribuiccedilatildeo Burkert (1972 63) Huffman (1993 23) Centrone (1996 110) e Kahn (2001 64) Contraacuterio a esta atribuiccedilatildeo o proacuteprio Taran (Speusippus 1981 350s) que atribui a referecircncia aos antigos a Proclo e natildeo a sua fonte Espeusipo dessa forma invertendo a atribuiccedilatildeo da passagem para os acadecircmicos 466 Orig ldquo Πλάτων δὲ καὶ οἱ Πυθαγόρειοι microακρὰν τὴν ἀπόστασιν ἐπιmicroιmicroεῖσθαι δ ἐθέλειν ἅπαντα καίτοι καθά περ ἀντίθεσίν τινα ποιοῦσιν τῆς ἀορίστου δυάδος καὶ τοῦ ἑνός ἐν ᾗ καὶ τὸ ἄπειρον καὶ τὸ ἄτακτον καὶ πᾶσα ὡς εἰπεῖν ἀmicroορφία καθ αὑτήν ὅλως οὐχ οἷόν τε ἄνευ ταύτης τὴν τοῦ ὅλου φύσινrdquo (Theophr Met 11a27-11b6)

206

pios que Aristoacuteteles considerava a tal ponto coerente de natildeo tentar atribuiacute-la a momen-

tos ou protagonistas diferentes da histoacuteria do pitagorismo Pouco antes de fato Aristoacute-

teles atribui aos pitagoacutericos ndash em continuidade com outros itaacutelicos (Empeacutedocles e Par-

mecircnides) e Anaxaacutegoras ndash uma teoria dos dois princiacutepios

Os pitagoacutericos afirmaram do mesmo modo dois princiacutepios mas acres-centaram as seguintes peculiaridades consideraram que o limitado o ilimitado e o um natildeo eram atributos de outras realidades (por exemplo fogo ou terra ou alguma outra coisa) mas que o proacuteprio ilimitado e o um eram substacircncia das coisas das quais se predicam e que por isso o nuacutemero era a substacircncia de todas as coisas (Met 987a13-19)467

Aqui os dois princiacutepios pitagoacutericos satildeo ditos peperasmeacutenon e apeiacuteron isto eacute

limitado e ilimitado Todavia Aristoacuteteles com a expressatildeo kai toacute eacuten acrescenta um ter-

ceiro princiacutepio o um Como compreender que Aristoacuteteles anuncia aqui dois princiacutepios

e acaba depois identificando trecircs ldquolimitado ilimitado e umrdquo O reconhecimento dessa

contradiccedilatildeo no testemunho de Aristoacuteteles faz alguns autores excluirem a expressatildeo kai

toacute eacuten da passagem468 Com essa exclusatildeo o um acabaria assim por ser identificado com

o limitado De fato na segunda menccedilatildeo que a passagem faz aos dois princiacutepios a refe-

recircncia ao limitado natildeo eacute repetida e os dois princiacutepios satildeo identificados como ilimitado e

um com este uacuteltimo tomando o lugar ndash por assim dizer ndash do limitado

Exatamente pelo fato de que para um platocircnico essa equaccedilatildeo eacuten-peacuteras devia ser

algo absolutamente normal Huffman (1993 207) sugere que Aristoacuteteles esteja aqui

cometendo um deslize (slides) de maneira especial se esta passagem for comparada

com a passagem de Met 987b25-33 Aristoacuteteles procurava ali mostrar a analogia dos

dois princiacutepios platocircnicos (um e diacuteade indefinida) como os princiacutepios pitagoacutericos do

limitado e ilimitado Poreacutem apesar de reconhecer que haacute uma diferenccedila entre as duas

filosofias pois Platatildeo considera o ilimitado como uma dualidade (grande-pequeno) e os

pitagoacutericos natildeo Aristoacuteteles natildeo tematiza claramente alguma diferenccedila entre os outros

467 Orig ldquo οἱ δὲ Πυθαγόρειοι δύο microὲν τὰς ἀρχὰς κατὰ τὸν αὐτὸν εἰρήκασι τρόπον τοσοῦτον δὲ προσεπέ-θεσαν ὃ καὶ ἴδιόν ἐστιν αὐτῶν ὅτι τὸ πεπερασmicroένον καὶ τὸ ἄπειρον [καὶ τὸ ἓν] οὐχ ἑτέρας τινὰς ᾠήθησαν εἶναι φύσεις οἷον πῦρ ἢ γῆν ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον ἀλλ αὐτὸ τὸ ἄπειρον καὶ αὐτὸ τὸ ἓν οὐσίαν εἶναι τού-των ὧν κατηγοροῦνται διὸ καὶ ἀριθmicroὸν εἶναι τὴν οὐσίαν πάντωνrdquo (Met 987a13-19) 468 Entre os manuscritos mais importantes somente Ab manteacutem καὶ τὸ ἓν enquanto MS e E excluem (e com eles Ross cf acima) Burkert (1972 36 n38) lembra que Alexandre de Afrodiacutesia em seu comentaacuterio (In Met 4711) lecirc a expressatildeo kai toacute eacuten coisa natildeo oacutebvia por se tratar de um autor platocircnico e portanto argumento em favor da autenticidade de καὶ τὸ ἓν Cf para isso Burkert (1972 35-37) Centrone (1996 111) e Huffman (1993 206)

207

dos princiacutepios comparados isto eacute o um platocircnico e o peperasmeacutenon pitagoacuterico Essa

falta de tematizaccedilatildeo explicaria a dupla versatildeo que aparece na passagem relativa aos dois

princiacutepios que estamos examinando na segunda parte dela (v18) Aristoacuteteles estaria

consciente ou inconscientemente caindo na falaacutecia da interpretaccedilatildeo platonizante que

identifica o um com o limitado enquanto na primeira parte dela (v16) Aristoacuteteles a-

crescentaria o um como algo distinto dos dois princiacutepios limitado e ilimitado469

Apesar do possiacutevel deslize platonizante portanto que mostra a forccedila do ldquosistema

de derivaccedilatildeordquo platocircnico acima citado eacute ainda a primeira afirmaccedilatildeo a estar em acordo

com toda a lectio aristoteacutelica dos nuacutemeros enquanto eles proacuteprios criados a partir dos

princiacutepios Conforme se veraacute na comparaccedilatildeo com Filolau essa interpretaccedilatildeo deveraacute

corresponder mais precisamente ao pensamento dos pitagoacutericos

A confirmaccedilatildeo disso a ideia pela qual o nuacutemero seja composto por ambos os

princiacutepios limitado e ilimitado aparece claramente em uma passagem imediatamente

anterior pela qual os pitagoacutericos

Afirmam como elementos constitutivos do nuacutemero o par e o iacutempar dos quais o primeiro eacute ilimitado e o segundo limitado O Um deriva de ambos os elementos porque eacute par e iacutempar ao mesmo tempo Do Um procede depois o nuacutemero e os nuacutemeros como dissemos constituiriam a totalidade do universo (Met 986a 17-21)470

Essa derivaccedilatildeo faz sim que o um seja ao mesmo tempo par e iacutempar e como tal

princiacutepio dos nuacutemeros Aqui os dois princiacutepios satildeo o par e o iacutempar enquanto limitado e

ilimitado parecem ser somente atributos destes Aristoacuteteles explica essa correspondecircncia

entre par e limitado de um lado e iacutempar e ilimitado do outro em uma difiacutecil passagem

da Fiacutesica (203a) A mesma ideia reaparece tambeacutem em seu fr 199 (Rose) provavel-

mente extrato de um de seus livros sobre os pitagoacutericos e encontra um eco significativo

na ideia do artiopeacuteritton o ldquopariacutemparrdquo do fr 5 de Filolau Seraacute o caso de voltar em

breve para ela portanto

469 A possibilidade de um deslize inconsciente de Aristoacuteteles eacute um argumento que a bem ver requereria metodologicamente verificaccedilotildees de fato impossiacuteveis E todavia eacute sugerida tanto por Burkert (1972 36) quanto por Huffman (1993 206) 470 Orig ldquo τοῦ δὲ ἀριθmicroοῦ στοιχεῖα τό τε ἄρτιον καὶ τὸ περιττόν τούτων δὲ τὸ microὲν πεπερασmicroένον τὸ δὲ ἄπειρον τὸ δ ἓν ἐξ ἀmicroφοτέρων εἶναι τούτων (καὶ γὰρ ἄρτιον εἶναι καὶ περιττόν) τὸν δ ἀριθmicroὸν ἐκ τοῦ ἑνός ἀριθmicroοὺς δέ καθάπερ εἴρηται τὸν ὅλον οὐρανόνrdquo (Met 986a 17-21)

208

A diferenccedila mais significativa que Aristoacuteteles consegue perceber entre os pitagoacute-

ricos e Platatildeo estaacute todavia ainda conectada agrave ideia do chorismoacutes conforme aparece na

passagem central de Met 987b25-33 e que o faz concluir que para os pitagoacutericos os

nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas Essa afirmaccedilatildeo possui imediatamente uma valecircncia

cosmoloacutegica obviamente De fato em relaccedilatildeo agraves duas questotildees que estamos analisando

isto eacute tanto aquela da identidade entre os nuacutemeros e a realidade como a da geraccedilatildeo dos

nuacutemeros a partir dos princiacutepios limitado e ilimitado Aristoacuteteles empreende uma descri-

ccedilatildeo em termos cosmoloacutegicos (Burkert 1972 31ss) Isso aparece de forma mais evidente

na passagem da Fiacutesica em que se trata do vazio

Tambeacutem os pitagoacutericos afirmaram a existecircncia do vazio e que entra no ceacuteu pelo sopro ilimitado como se o ceacuteu respirasse e que o vazio delimita a natureza das coisas como se o vazio fosse alguma coisa de separado e delimitasse as coisas consecutivas E isso acontece primei-ramente nos nuacutemeros pois o vazio delimita sua natureza (Phys 313b23-27)471

Aqui o ilimitado natildeo eacute somente um princiacutepio ontoloacutegico separado da realidade

como o seria a diacuteade infinita platocircnica e sim algo que eacute ldquoinspirado pelo ceacuteurdquo para dar

origem agrave multiplicidade dos seres Uma paacutegina de Metafiacutesica espelha a mesma visatildeo

ontoloacutegica

De fato eles afirmam claramente que uma vez constituiacutedo o Um ndash se-ja com planos com cores com sementes com elementos dificilmente definiacuteveis ndash imediatamente a parte do ilimitado que lhe era mais proacute-xima comeccedilou a ser atraiacuteda e delimitada pelo limite (Met 1091a15-18)472

Timpanaro Cardini (1958-62 III 154) anota que pode tratar-se aqui de um a-

chado aristoteacutelico de diversas doutrinas que eram desenvolvidas pelo pitagorismo anti-

go para explicar como era formado o um O plano corresponderia a uma primeira hipoacute-

tese geomeacutetrica a chroiaacute a cor corresponderia agrave superfiacutecie do corpo isto eacute a seu peacute-

471 Orig ldquo εἶναι δ ἔφασαν καὶ οἱ Πυθαγόρειοι κενόν καὶ ἐπεισιέναι αὐτὸ τῷ οὐρανῷ ἐκ τοῦ ἀπείρου πνεύmicroατος ὡς ἀναπνέοντι καὶ τὸ κενόν ὃ διορίζει τὰς φύσεις ὡς ὄντος τοῦ κενοῦ χωρισmicroοῦ τινὸς τῶν ἐφεξῆς καὶ [τῆς] διορίσεως καὶ τοῦτ εἶναι πρῶτον ἐν τοῖς ἀριθmicroοῖς τὸ γὰρ κενὸν διορίζειν τὴν φύσιν αὐτῶνrdquo (Phys 313b23-27) 472 Orig ldquo φανερῶς γὰρ λέγουσιν ὡς τοῦ ἑνὸς συσταθέντος εἴτ ἐξ ἐπιπέδων εἴτ ἐκ χροιᾶς εἴτ ἐκ σπέρmicro-ατος εἴτ ἐξ ὧν ἀποροῦσιν εἰπεῖν εὐθὺς τὸ ἔγγιστα τοῦ ἀπείρου ὅτι εἵλκετο καὶ ἐπεραίνετο ὑπὸ τοῦ πέρα-τοςrdquo (Met 1091a15-18)

209

ras ainda que natildeo identificaacutevel com corpo mesmo473 Uma terceira hipoacutetese que postu-

lava o speacuterma eacute de fato facilmente reconduziacutevel ao jaacute citado fr 13 de Filolau (44 B13

DK) e agrave afirmaccedilatildeo pela qual ldquotodas as coisas brotam e crescem por causa da semen-

terdquo474

A geraccedilatildeo do cosmo eacute assim descrita como o nascimento de um organismo vi-

vente isto eacute utilizando um leacutexico embrioloacutegico que apresenta analogias com aquele

das antigas teorias embrioloacutegicas a geraccedilatildeo do embriatildeo de fato se daria nelas por meio

da respiraccedilatildeo475 O leacutexico embrioloacutegico e o pressuposto da correspondecircncia macrocos-

mondashmicrocosmo remetem para uma origem mais antiga com toda probabilidade preacute-

socraacutetica dessa doutrina476

E todavia dessa indiferenciaccedilatildeo entre o plano numeacuterico e aquele cosmoloacutegico

na doutrina dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo Aristoacuteteles reclama com se viu afir-

mando que a postulaccedilatildeo desses princiacutepios natildeo explica nem o movimento nem o peso

dos corpos (Met 990a7-13) O motivo dessas aporias eacute um soacute ldquoos princiacutepios que [os

pitagoacutericos] postulam e fazem valer referem-se tanto aos corpos matemaacuteticos quanto

aos corpos sensiacuteveisrdquo (Met 990a14-16)477 Identificando os princiacutepios com o mundo

sensiacutevel de fato os pitagoacutericos perderiam o sentido heuriacutestico desses princiacutepios Per-

gunta-se de fato Aristoacuteteles

Como se deve entender que as propriedades do nuacutemero e o nuacutemero satildeo causas das coisas existentes no universo e das coisas que nele se

473 Cf para isso o proacuteprio Aristoacuteteles (De sensu 439a30) 474 Orig ldquo πάντα γὰρ ἀπὸ σπέρmicroατος καὶ θάλλοντι καὶ βλαστάνοντιrdquo (44 B13 DK) 475 Cf para as citaccedilotildees Burkert (1972 37) Huffman (1993 289-306) e Centrone (1996 115) 476 Burkert (1972 39) vai aleacutem e em consonacircncia com sua apresentaccedilatildeo do pitagorismo entre lore e sci-ence atribui esta mistura de teoria numeacuterica e cosmogonia a uma direta influecircncia oacuterfica ldquoOrphism and Pythagoreanism were almost inextricably intertwined in the fifth century so that it is understandable that within the pre-Socratic domain Pythagorean doctrine developed as a transposed version of Orphic cosmogonyrdquo Natildeo eacute o caso de duvidar que esta transposiccedilatildeo tenha de fato desempenhado algum papel na definiccedilatildeo desta teoria cosmoloacutegico-numeacuterica Natildeo eacute difiacutecil imaginar como faz Burkert que esta doutrina pitagoacuterica possa ser pensada como uma exegese de mitos cosmogocircnicos oacuterficos Ainda mais apoacutes a re-cepccedilatildeo no interior da criacutetica que se ocupa dos preacute-socraacuteticos da anaacuteloga exegese representada pelo papiro Derveni Esta hipoacutetese traria fecundas conclusotildees se compreendida por exemplo agrave luz daquilo que se disse acima no capiacutetulo terceiro com respeito agraves relaccedilotildees entre pitagorismo e orfismo sobre teoria da alma Por outro lado anota com razatildeo Kahn (1974 172) que uma veste cosmogocircnica para a filosofia eacute tiacutepica de muitos preacute-socraacuteticos Finalmente a hipoacutetese de Burkert que natildeo foi recolhida por nenhum outro comentador eacute de difiacutecil comprovaccedilatildeo e precisaria de outra monografia exclusivamente dedicada a ela 477 Orig ldquo ἐξ ὧν γὰρ ὑποτίθενται καὶ λέγουσιν οὐθὲν microᾶλλον περὶ τῶν microαθηmicroατικῶν λέγουσι σωmicroάτων ἢ τῶν αἰσθητῶνrdquo (Met 990a14-16)

210

produzem desde a origem ateacute agora e de outro lado como entender que natildeo existe outro nuacutemero aleacutem do nuacutemero do qual eacute constituiacutedo o mundo (Met 990a18-22)478

Obviamente natildeo haacute possibilidade de resposta para essas perguntas Pois a indi-

ferenciaccedilatildeo entre o plano numeacuterico e aquele cosmoloacutegico impede que o problema possa

ser solucionado nos termos da filosofia pitagoacuterica479

415 O testemunho platocircnico (Filebo 16c-23c)

Que Aristoacuteteles tivesse razatildeo em revelar a influecircncia sobre Platatildeo das teorias pi-

tagoacutericas pode ficar claro pela anaacutelise de um trecho central da obra deste uacuteltimo contido

nas paacuteginas do Filebo A passagem mostraraacute em que medida Platatildeo considerava o seu

esforccedilo para chegar a uma compreensatildeo dos primeiros princiacutepios como uma continua-

ccedilatildeo do pitagorismo dando assim razatildeo a Aristoacuteteles quando a indica na paacutegina de Met

987b Ao mesmo tempo revelaraacute que a tradiccedilatildeo pitagoacuterica que Platatildeo no Filebo mos-

traraacute preservar com certa fidelidade torna-se tambeacutem um ponto de partida para ele

mesmo perseguir seus proacuteprios projetos teoreacuteticos de maneira especial em busca de

uma soluccedilatildeo para o problema da unidade e multiplicidade dos existentes Seraacute assim

possiacutevel concluir que a platonizaccedilatildeo do pitagorismo natildeo eacute simplemente uma tendecircncia

acadecircmica mas pode remontar ao mesmo Platatildeo

Eacute pois Burkert (1972 85) que sugere que um lugar entre os mais importantes

para compreender a relaccedilatildeo entre pitagorismo e platonismo eacute exatamente a paacutegina 16c

do Filebo a passagem introduz o tema da dialeacutetica do limitadoilimitado Aqui a procu-

ra pela questatildeo maior do prazer eacute desenvolvida no tema da unidademultiplicidade do

um e dos muitos que marca dramaticamente muitas das preocupaccedilotildees filosoacuteficas preacute-

socraacuteticas A dramaticidade do tema eacute sublinhada pelo proacutelogo agrave discussatildeo de Soacutecrates

ldquoNatildeo poderia haver um caminho mais belo do que este do qual eu sou amante desde

478 Orig ldquo ἔτι δὲ πῶς δεῖ λαβεῖν αἴτια microὲν εἶναι τὰ τοῦ ἀριθmicroοῦ πάθη καὶ τὸν ἀριθmicroὸν τῶν κατὰ τὸν οὐρα-νὸν ὄντων καὶ γιγνοmicroένων καὶ ἐξ ἀρχῆς καὶ νῦν ἀριθmicroὸν δ ἄλλον microηθένα εἶναι παρὰ τὸν ἀριθmicroὸν τοῦτον ἐξ οὗ συνέστηκεν ὁ κόσmicroοςrdquo (Met 990a18-22) 479 Aristoacuteteles resolveraacute esta questatildeo da indistinccedilatildeo entre nuacutemeros e coisas no interior de seu proacuteprio sistema filosoacutefico No contexto da discussatildeo do sentido do tempo para resistir ao idealismo platocircnico que postula a existecircncia dos nuacutemeros separadamente das coisas introduziraacute a distinccedilatildeo entre nuacutemero numera-do e nuacutemero numerante (Phys 219b 6-7) Cf para isso tambeacutem Rey Puente (2001 49)

211

sempre mas que muitas vezes me fugiu e me deixou sozinho e sem saiacutedardquo (Phlb

16b)480 A soluccedilatildeo para a questatildeo vem de longe tanto em sentido fiacutesico quanto em sen-

tido temporal eacute apresentada como uma revelaccedilatildeo como um dom dos deuses (doacutesis the-

ocircn) em 16c e como descoberta dos antigos (oi proacutesthen) em 17d Trata-se exatamente da

conaturalidade agraves coisas que satildeo do limitanteilimitado e da harmoniacutea entre os dois

como princiacutepio de ldquofuncionamentordquo metafiacutesico da realidade

Um dom dos deuses para os homens assim me parece de um lugar do ceacuteu divino um dia foi jogado sobre a terra por meio de um Prome-teu junto com um fogo de claridade ofuscante e os antigos (que eram mais valentes do que noacutes e viviam mais proacuteximos dos deuses) trans-mitiram para noacutes esta revelaccedilatildeo isto eacute que resultando da unidade e multiplicidade das coisas que satildeo as coisas que sempre satildeo foram di-tas e seratildeo ditas ldquocoisas que satildeordquo elas carregam em si por natureza limite e ilimitado (Phlb 16c-d)481

Trata-se aparentemente de um dom de signo epistemoloacutegico pois eacute dito imedia-

tamente depois consistir ldquona maneira como os deuses indicam-nos que se deve aprender

e ensinar uns aos outrosrdquo (Phlb 16e)482 O alcance dessa observaccedilatildeo seraacute revelado no

comentaacuterio que se faraacute logo mais aos fragmentos de Filolau

A funccedilatildeo da introduccedilatildeo no interior da dupla um-muitos da dupla limitante-

ilimitado afirma com razatildeo Migliori (1993 98) eacute claramente aquela de fazer funcionar

esta uacuteltima como uma justificativa ontoloacutegica da primeira no sentido que eacute a accedilatildeo do

limitante e ilimitado que permite que a realidade seja uma e multiacuteplice Uma afirmaccedilatildeo

forte sobre a realidade das coisas que satildeo portanto483

A afirmaccedilatildeo desse meacutetodo (cf a imagem do odoacutes em 16b) dos dois princiacutepios

visa dialeacuteticamente enfrentar o fato de que ao contraacuterio certos ldquohomens saacutebios de

480 Orig ldquo οὐ microὴν ἔστι καλλίων ὁδὸς οὐδ ἂν γένοιτο ἧς ἐγὼ ἐραστὴς microέν εἰmicroι ἀεί πολλάκις δέ microε ἤδη διαφυγοῦσα ἔρηmicroον καὶ ἄπορον κατέστησενrdquo (Phlb 16b) 481 Orig ldquo Θεῶν microὲν εἰς ἀνθρώπους δόσις ὥς γε καταφαίνεται ἐmicroοί ποθὲν ἐκ θεῶν ἐρρίφη διά τινος Προmicroηθέως ἅmicroα φανοτάτῳ τινὶ πυρί καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπει-ρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντωνrdquo (Phlb 16c-d) 482 Orig ldquo οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλ-ήλουςrdquo (Phlb 16e) 483 Natildeo parece ser o caso de duvidar disso nem sequer querendo ser demasiado conservadores em relaccedilatildeo agrave expressatildeo ldquoas coisas que sempre dizemos ser coisas que satildeordquo como querem ser entre outros Mazzarelli (Platone 1991) e Striker (1970) no contexto da estabilidade da predicaccedilatildeo natildeo parece ser este o eixo da questatildeo e sim ao contraacuterio a correspondecircncia dessa estabilidade do ser com as coisas que satildeo Cf Mi-gliori (1993 n96)

212

agorardquo (oi de nucircn tocircn antropocircn sophoiacute a construccedilatildeo sintaacutetica da expressatildeo natildeo deixa

duacutevidas em relaccedilatildeo agrave ironia desta) ldquopotildeem o um ao acaso passando logo para o infinitordquo

fugindo contemporaneamente das realidades intermediaacuterias (17a)484 Nesse proceder

sem considerar as realidades intermediaacuterias parece estar toda a diferenccedila entre o meacutetodo

dialeacutetico e aquele ao contraacuterio euriacutestico E como seraacute possiacutevel acompanhar na conti-

nuaccedilatildeo do diaacutelogo residiraacute a mesma soluccedilatildeo do problema da vida boa entre prazer e

conhecimento

Protarco que parece mesmo natildeo conseguir acompanhar a improvisada guinada

metafiacutesica da argumentaccedilatildeo pede aacutegua (17a) Soacutecrates responde assim com dois e-

xemplos O som emitido pela nossa boca quando pronunciamos as letras do alfabeto eacute

escolhido por Soacutecrates como um exemplo certamente o mais irritantemente didaacutetico

possiacutevel485 Este som eacute ao mesmo tempo um (miacutea) e infinita possibilidade (aacutepeiron au

plecircthei) para quem o pronuncia (18b) Mas aquilo que nos torna realmente conhecedo-

res da gramaacutetica natildeo eacute o conhecer aquela dupla natureza da infinidade e unidade e sim

ao contraacuterio conhecer as quantidades e as qualidades (poacutesa kaiacute opoicirca)486

O segundo exemplo escolhido por Soacutecrates estaacute significativamente ligado ao

mundo da muacutesica O argumento eacute que conhecer dois tons um grave e outro agudo e

como terceiro o intermediaacuterio natildeo nos tornaria ainda experts de muacutesica

Poreacutem meu amigo quando vocecirc teraacute conhecido o nuacutemero dos interva-los que existe seja no tom agudo como no grave e quais satildeo os limites destes intervalos e quantos sistemas resultam de sua conjunccedilatildeo (os predecessores descobriram estes sistemas e os transmitiram para noacutes que os seguimos com o nome de harmonias e viram que mesmo nos movimentos do corpo verificam-se outras afecccedilotildees semelhantes e que sendo mensuradas pelos nuacutemeros afirmaram que deveriam ser cha-madas de ritmos e medidas e ao mesmo tempo que eacute desta forma que devem ser analisadas as coisas em todos os casos de unidade e multiplicidade) assim quando vocecirc teraacute compreendido tambeacutem isso e entatildeo teraacute se tornado conhecedor de muacutesica e quando teraacute consegui-do e compreendido analisando-a qualquer uma das unidades entatildeo teraacute se tornado profundo e inteligente conhecedor do objeto de sua a-naacutelise Mas a infinidade das coisas a infinita multiplicidade que estaacute em cada uma delas todo caso lhe faz incapaz de pensar agudamente e impede que vocecirc seja um homem ilustre e de valor reconhecido caso

484 Orig ldquo οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττονrdquo (Phlb 17a) 485 Veja-se de fato a consequente irritaccedilatildeo de Protarco com os κύκλοι por meio dos quais Soacutecrates pare-ce querer enredar ndash sofisticamente ndash seus interlocutores (Phlb 19a) 486 A ideia eacute por enquanto somente acenada no interior do desenvolvimento do argumento da paacutegina do Filebo seraacute retomada e desenvolvida mais amplamente em seguida ao longo do mesmo diaacutelogo

213

vocecirc natildeo tenha nunca conseguido reconhecer em nenhuma coisa ne-nhum nuacutemero (Phlb 17c-e)487

A anaacutelise da muacutesica requer portanto uma atenta articulaccedilatildeo do conhecimento

dos limites dos intervalos e das correlaccedilotildees entre diferentes sons isto eacute em uma pala-

vra dos nuacutemeros que as constituem

Os dois exemplos desenham assim uma trama de relaccedilotildees que constitui a ldquoinfi-

nidade das coisas e a infinita multiplicidade que estaacute em cada uma delasrdquo propotildeem um

sistema estruturado que permita uma adequada explicaccedilatildeo dessa realidade (Migliori

1993 108) A descoberta dessa explicaccedilatildeo sistemaacutetica eacute atribuiacuteda aos predecessores (oi

proacutesthen)488 Eacute significativo aqui o uso do termo syacutestemata para indicar os sistemas de

conjunccedilatildeo dos intervalos que satildeo chamados de harmonia em Aristoxeno o termo iraacute

significar escala musical (236)489

Enquanto na economia proacutepria do texto platocircnico a proposta de uma vida mista

seraacute enfim o correspondente eacutetico do funcionamento ontoloacutegico da realidade pois esta

mesma eacute de certa forma mista sob a accedilatildeo do peacuteras e do apeiacuteron o que mais importa

aqui eacute anotar que no resumo final da argumentaccedilatildeo (23c-d) Soacutecrates faz novamente re-

ferecircncia a uma revelaccedilatildeo divina do limitado e do ilimitado dos entes

SOCR Retomemos entatildeo o que jaacute dissemos hoje PROT O quecirc SOCR Natildeo afirmamos por acaso que de alguma maneira o deus tem revelado a presenccedila do ilimitado e do limite nas coisas que satildeo PROT Claro SOCR Colocamos portanto estes como dois gecircneros e como terceiro uma certa mistura que resulta dos dois primeiros (P-hlb 23c-d)490

487 Orig ΣΩ Ἀλλ ὦ φίλε ἐπειδὰν λάβῃς τὰ διαστήmicroατα ὁπόσα ἐστὶ τὸν ἀριθmicroὸν τῆς φωνῆς ὀξύτητ-ός τε πέρι καὶ βαρύτητος καὶ ὁποῖα καὶ τοὺς ὅρους τῶν διαστηmicroάτων καὶ τὰ ἐκ τούτων ὅσα συστήmicroατα γέγονεν ndash ἃ κατιδόντες οἱ πρόσθεν παρέδοσαν ἡmicroῖν τοῖς ἑποmicroένοις ἐκείνοις καλεῖν αὐτὰ ἁρmicroονίας ἔν τε ταῖς κινήσεσιν αὖ τοῦ σώmicroατος ἕτερα τοιαῦτα ἐνόντα πάθη γιγνόmicroενα ἃ δὴ δι ἀριθmicroῶν microετρηθέντα δεῖν αὖ φασι ῥυθmicroοὺς καὶ microέτρα ἐπονοmicroάζειν καὶ ἅmicroα ἐννοεῖν ὡς οὕτω δεῖ περὶ παντὸς ἑνὸς καὶ πολλῶν σκο-πεῖν ndash ὅταν γὰρ αὐτά τε λάβῃς οὕτω τότε ἐγένου σοφός ὅταν τε ἄλλο τῶν ἓν ὁτιοῦν ταύτῃ σκοπούmicroενος ἕλῃς οὕτως ἔmicroφρων περὶ τοῦτο γέγονας τὸ δ ἄπειρόν σε ἑκάστων καὶ ἐν ἑκάστοις πλῆθος ἄπειρον ἑκάσ-τοτε ποιεῖ τοῦ φρονεῖν καὶ οὐκ ἐλλόγιmicroον οὐδ ἐνάριθmicroον ἅτ οὐκ εἰς ἀριθmicroὸν οὐδένα ἐν οὐδενὶ πώποτε ἀπιδόνταrdquo (Phlb 17c-e) 488 Pace Gaiser (1988 84) tanto a dialeacutetica quanto a teoria dos princiacutepios satildeo indicadas pelas declaraccedilotildees socraacuteticas no Filebo como tendo sua origem entre os antigos e natildeo como criaccedilotildees platocircnicas 489 Cf para esta citaccedilatildeo Huffman (1993 162) 490 Orig ldquo ΣΩ Λάβωmicroεν ἄττα τῶν νυνδὴ λόγων ΠΡΩ Ποῖα ΣΩ Τὸν θεὸν ἐλέγοmicroέν που τὸ microὲν ἄπειρον δεῖξαι τῶν ὄντων τὸ δὲ πέρας ΠΡΩ Πάνυ microὲν οὖν ΣΩ Τούτω δὴ τῶν εἰδῶν τὰ δύο τιθώmicro-εθα τὸ δὲ τρίτον ἐξ ἀmicroφοῖν τούτοιν ἕν τι συmicromicroισγόmicroενονrdquo (Phlb 23c-d)

214

Deixando por um momento de lado a introduccedilatildeo aqui do gecircnero misto o que

chama atenccedilatildeo no resumo eacute a afirmaccedilatildeo da revelaccedilatildeo divina Essa referecircncia insistente a

uma origem divina pode sublinhar o valor que Platatildeo daacute agrave teoria do limitante e ilimita-

do Soacutecrates havia declarado diversas vezes seu temor para com os deuses nas primeiras

paacuteginas do diaacutelogo (12c) Ao mesmo tempo a revelaccedilatildeo natildeo deve ser pensada como

algo completo definitivo ndash como poderia sugerir certa influecircncia sobre a leitura dos

antigos da concepccedilatildeo dogmaacutetica da matriz judaico-cristatilde-islacircmica isto eacute das assim

chamadas ldquoreligiotildees do Livrordquo A revelaccedilatildeo ao contraacuterio pode ser pensada como algo

de origem nobre e que pede para ser continuado como um compromisso a ser tomado

no futuro natildeo como algo estaacutetico dogmaacutetico491

Contudo a origem divina parece confirmar uma referecircncia direta ao pitagorismo

e de maneira especial ao seu fundador Pitaacutegoras ldquoem ar de divindaderdquo em muitos tes-

temunhos antigos Entre eles o jaacute citado (21) testimonium aristoteacutelico que refere o se-

gredo dos pitagoacutericos ldquodos seres viventes dotados de razatildeo um eacute o deus o outro eacute o

homem o terceiro possui a natureza de Pitaacutegorasrdquo (Iambl VP 31 = Arist Fr 192 Rose

= 14 A7 DK) Como tambeacutem o testemunho de Aristoxeno quando ldquoafirma que Pitaacutego-

ras derivou a maior parte de suas doutrinas eacuteticas (eacutethica doacutegmata) da sacerdotisa Te-

mistocleia de Delfosrdquo (fr 15 Wehrli = 14 A3 DK)492 Com a consequecircncia de que Pro-

meteu representaria assim Pitaacutegoras e sua tradiccedilatildeo493

Que a fonte platocircnica para essas passagens do Filebo seja pitagoacuterica recebe tam-

beacutem outra confirmaccedilatildeo na seguinte observaccedilatildeo na passagem acima citada de 17c-d

aliada agrave referecircncia mais geneacuterica aos antigos haacute de fato clara tomada de posiccedilatildeo musi-

coloacutegica em favor da teoria musical pitagoacuterica ritmos (ryacutethmoi) e medidas (meacutetra) ndash

segundo esses mesmos antigos ndash ou seja os intervalos musicais satildeo medidos pelos nuacute-

meros (arithmocircn metrecircthenta) Eacute interessante notar que a mesma referecircncia eacute utilizada

por Platatildeo em Resp VII 530d os pitagoacutericos satildeo arrolados para afirmar a irmandade da

491 Concorda com isso Burkert (1972 90) ldquoFor Platos affirmation of the divine origin of the doctrine of Limit and Unlimited is more than a glittering sequin on the fabric of the exposition It signifies that its truth is beyond doubt and Plato feels that this imposes on him the obligation to grasp the truth of this idea and its all-encompassing significance Such a divine revelation is not something finished and com-plete but a task to fulfillrdquo 492 Orig ldquo φησὶ δὲ καὶ Ἀριστόξενος τὰ πλεῖστα τῶν ἠθικῶν δογmicroάτων λαβεῖν τὸν Πυθαγόραν παρὰ Θεmicro-ιστοκλείας τῆς ἐν ∆ελφοῖςrdquo (fr 15 Wehrli = 14 A3 DK) 493 Quanto ao reconhecimento de Pitaacutegoras em Prometeu concordam Hackforth (Philebus 1945 21) Philip (1966 38) Taylor (1968 639) Burkert (1972 85) Waterfield (Plato 1982 60) Casertano (1989 92) e Gosling (1999 55)

215

astronomia com a muacutesica em contraste com uma maneira imperfeita e literalmente ldquode

ouvidordquo com a qual certas pessoas (os muacutesicos) ldquocolocam os ouvidos antes da menterdquo

para compreender a harmonia musical os pitagoacutericos ldquoagem exatamente como os astrocirc-

nomosrdquo estudam os nuacutemeros que resultam dos acordes mesmo natildeo chegando aos nuacute-

meros em si para definir quais seriam consoantes e quais natildeo494

Essas passagens do Filebo centrais para a definiccedilatildeo da dialeacutetica do limita-

doilimitado revelam as raiacutezes pitagoacutericas da teoria dos princiacutepios platocircnica e ndash como

tais ndash constituem um achado preacute-aristoteacutelico de filosofia pitagoacuterica Raiacutezes afirmadas e

reconhecidas pelo proacuteprio texto platocircnico nas maneiras acima descritas e que ndash como

fontes para a elaboraccedilatildeo filosoacutefica platocircnica ndash satildeo reinterpretadas pela Academia que se

percebe nesse sentido como continuadora e mediadora do esforccedilo dialeacutetico-metafiacutesico

pitagoacuterico

Todavia para aleacutem do reconhecimento das fontes pitagoacutericas para a construccedilatildeo

do argumento dialeacutetico-ontoloacutegico a construccedilatildeo da dialeacutetica no Filebo eacute fruto da con-

cepccedilatildeo filosoacutefica platocircnica Como demonstra o fato de no resumo conclusivo de toda a

argumentaccedilatildeo (cf acima 23c) Platatildeo introduzir um terceiro elemento ao lado da oposi-

ccedilatildeo limitadoilimitado trata-se de ldquoum algo misturado mistordquo (en ti summisgoacutemenon)

originado de ambos E ainda um quarto elemento a causa (aitiacutea) dessa mesma mistura

A argumentaccedilatildeo desenvolve-se aqui em pleno acircmbito teoreacutetico platocircnico Ape-

sar de reconhecer as raiacutezes pitagoacutericas (mais precisamente filolaicas se poderia agora

afirmar) da teoria do limitadoilimitado Platatildeo coloca-se em uma perspectiva bem dife-

rente do ponto de vista teoacuterico Um desenvolvimento que mesmo que possiacutevel e de al-

guma forma normal no panorama da histoacuteria da filosofia natildeo obteria por assim dizer a

autorizaccedilatildeo do proacuteprio Filolau

A construccedilatildeo desse acircmbito teoreacutetico platocircnico corresponde aos primeiros movi-

mentos daquela que se chamou ao longo das paacuteginas anteriores de mediaccedilatildeo platocircnica

do pitagorismo No caso especiacutefico da teoria dos princiacutepios conforme aparece na paacutegina

estudada do Filebo Platatildeo opera uma transiccedilatildeo conceitual transformando o ilimitado

em sua raiz pitagoacuterica pensado como pluralidade espacial e numeacuterica em indefinido

494 Eacute curioso notar que a resposta de Glaucon remete novamente ao mundo do divino ∆αιmicroόνιον πρᾶγmicroα ndash afirma Glaucon ndash seria tal caminho ateacute os nuacutemeros enquanto tais (Resp VII 531c) Burnet (1908 228) e Burkert (1972 87) concordam em reconhecer nos οἱ πρόσθεν os pitagoacutericos mencionados em Repuacutebli-ca Mais ceacuteticos satildeo Barbera (1981 395-410) e Centrone (1993 112) No entanto ateacute Frank (1923 155) dessa vez concorda com Burkert

216

abre a porta para a teoria das formas chegando na escala dialeacutetica ateacute a diacuteade indefini-

da

A essa mesma doutrina do limitadoilimitado refere-se o proacutelogo daquele que

deve ter sido o livro de Filolau (44 B1 DK)

42 Os fragmentos de Filolau

421 Ilimitadoslimitantes

A proximidade do fr 1 de Filolau com a paacutegina do Filebo anteriormente citada

foi obviamente notada jaacute na antiguidade Damascio de Damasco uacuteltimo diaacutedoco da

Escola de Atenas afirmava que ldquoo que eacute deriva do limitado e do ilimitado como diz

Platatildeo no Filebo e Filolau nos livros sobre a Naturezardquo (De principiis I 101 3)495

Diversas aproximaccedilotildees tambeacutem entre a lectio de Aristoacuteteles e os testemunhos de

Filolau foram indicadas nas paacuteginas anteriores Essas aproximaccedilotildees somadas ao caraacuteter

de exceccedilatildeo dos testemunhos aristoteacutelicos perante a categorizaccedilatildeo majoritaacuteria platonizan-

te do pitagorismo antigo tornaratildeo a anaacutelise dos fragmentos de Filolau a pedra angular

do presente capiacutetulo De um lado por permitirem comprovar textualmente o processo de

formaccedilatildeo da recepccedilatildeo acadecircmica da matemaacutetica pitagoacuterica por outro lado por constitu-

irem sinais inequiacutevocos de uma teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica datada ainda no seacuteculo V

aEC Teoria esta que Aristoacuteteles demonstra conhecer

Eacute o caso de iniciar a anaacutelise voltando brevemente agrave questatildeo da autenticidade do

livro de Filolau Para aleacutem do jaacute citado (4132) ceticismo de Bywater (1868 21-53)

Burnet (1908 279-284) Frank (1923 263-335) e Leacutevy (1926 70ss) a proximidade

com o testemunho aristoteacutelico faz tambeacutem autores mais recentes como eacute o caso de Ra-

ven (1966 98) Kahn (1974) e Barnes (1982) levantarem a hipoacutetese de que os fragmen-

tos de Filolau seriam uma falsificaccedilatildeo com base no testemunho aristoteacutelico Ainda que

seja tecnicalmente possiacutevel imaginar que algueacutem tenha falsificado o livro de Filolau

495 Orig ldquo ἐπειδή ἐστι τὸ ὂν ἐκ ltπέρατοςgt καὶ ltἀπείρουgt ὡς ἔν τε ltΦιλήβῳgt λέγει ὁ ltΠλάτωνgt καὶ ltΦιλόλαοςgt ἐν τοῖς ltπερὶ φύσεωςrdquo

217

apoacutes o testemunho aristoteacutelico e baseando-se neste o procedimento seria ineacutedito no

interior da pseudoepigrafia do pitagorismo normalmente tendente ao contraacuterio a pla-

tonizar os conceitos pitagoacutericos De fato Burkert (1972 238ss) Huffman (1993 23) e

mais recentemente tambeacutem Kahn (2001 23) concordam em considerar autecircnticos ao

menos os primeiros sete fragmentos da coleccedilatildeo do Diels-Kranz (44 B1-7 DK) Nova-

mente a exceccedilatildeo que a lectio de Aristoacuteteles representa sugere que a falsificaccedilatildeo dos

fragmentos seria lectio difficilior Disso deriva por consequecircncia que eacute mais faacutecil que

seja verdadeiro o contraacuterio isto eacute que esses fragmentos de Filolau sejam autecircnticos e

como tais fontes de Aristoacuteteles

Desses sete exatamente os fragmentos 1 2 3 e 6 dizem diretamente respeito ao

tema do limitadoilimitado que se examinou haacute pouco no Filebo

Assim inicia-se o livro de Filolau portanto

A obra Sobre a Natureza iniciava com a seguinte afirmaccedilatildeo a nature-za no ordenamento do mundo resultou do acordo de coisas ilimitadas e limitantes e assim o inteiro cosmos e todas as coisas que estatildeo nele (44 B1 DK)496

Diversos sinais textuais parecem confirmar tratar-se aqui de um fragmento ori-

ginal a partir do tiacutetulo da obra Periacute Physeos ateacute a presenccedila da partiacutecula deacute497

Para aleacutem do tiacutetulo da obra que poderia ser simplesmente convencional a recor-

recircncia de termos como phyacutesis e koacutesmos situam o fragmento no interior da jaacute secular

tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica operando quase uma siacutentese (toda preacute-socraacutetica) entre a

cosmologia milesiana do ilimitado e a concepccedilatildeo da perfeiccedilatildeo do ser no limite de matriz

eleata fundamentalmente como resposta ou diaacutelogo in progress com filosofias como as

de Anaxaacutegoras e Parmecircnides

Contudo eacute especialmente a introduccedilatildeo aqui dos conceitos de aacutepeira e peiraacutenon-

ta a chamar a atenccedilatildeo Na busca da definiccedilatildeo de uma phyacutesis en tocirc kosmocirc de uma

496 Orig ldquo ltΠερὶ φύσεωςgt ὧν ἀρχὴ ἥδε ltlsquoἁ φύσις δ ἐν τῶι κόσmicroωι ἁρmicroόχθη ἐξ ἀπείρων τε καὶ περαινό-ντων καὶ ὅλος ltὁgt κόσmicroος καὶ τὰ ἐν αὐτῶι πάνταrsquo rdquo (44 B1 DK) 497 Boeckh (1819 45) havia sugerido que natildeo podia se tratar aqui do iniacutecio do livro de Filolau exatamente pela presenccedila do δέ no iniacutecio da sentenccedila O δέ sugeriria haver algo que foi dito antes disso e por este motivo natildeo poderia estar no proacutelogo do livro Todavia Burkert (1972 252) seguido por Huffman (1993 95) argumenta que a presenccedila do δέ no iniacutecio de uma obra era praacutetica comum entre os autores do seacuteculo V aEC (cf Heraacuteclito fr 1 e Iacuteon fr 1) e que devia se referir ao tiacutetulo desta Contrariamente agrave tese de Boeckh portanto sua presenccedila seria um bom motivo para considerar esse fragmento como autenticamen-te preacute-socraacutetico

218

racionalidade interna agrave natureza que poderiacuteamos tomar como sinocircnimo do proacuteprio ar-

cheacute preacute-socraacutetico Filolau natildeo afirma ndash como se poderia imaginar a partir de testemu-

nho aristoteacutelico ndash que ldquotudo eacute nuacutemerordquo e sim que haacute um ldquoacordo de coisas ilimitadas e

limitantesrdquo

Haacute um detalhe terminoloacutegico que merece ser destacado498 Filolau natildeo utiliza

propriamente os termos limitadoilimitado e sim sempre somente o plural aacutepeira e

peiraacutenonta isto eacute em uma traduccedilatildeo filologicamente mais fiel e filosoficamente mais

fecunda ldquocoisas ilimitadas e limitantesrdquo por se tratar este uacuteltimo de um particiacutepio pre-

sente do verbo peraiacutenocirc Ao contraacuterio tanto no Filebo de Platatildeo quanto na Metafiacutesica de

Aristoacuteteles os termos satildeo pensados e utilizados no singular o nome peacuteras para ldquolimiterdquo

ou o particiacutepio passivo do verbo peraiacutenocirc peperasmeacutenon para ldquolimitadordquo e o adjetivo

neutro singular aacutepeiron precedido de artigo (toacute aacutepeiron) o ldquoilimitadordquo todos eles no

singular A insistecircncia no fato de que esses ldquoprinciacutepiosrdquo sejam plurais indica diretamen-

te o fato de eles natildeo serem compreendidos por Filolau como princiacutepios metafiacutesicos agrave

maneira que seratildeo compreendidos em seguida por Platatildeo e Aristoacuteteles que por exata-

mente esse motivo preferem utilizar o singular499

Eacute o que aparece no fr 2 que utilizando a mesma terminologia do ldquoacordordquo de

ldquoilimitadoslimitantesrdquo do fr 1 explicita mais claramente qual devia ser o alcance dessa

teoria

De Filolau sobre o ordenamento do mundo necessariamente as coisas que satildeo devem ser todas ou ilimitadas ou limitantes ou ilimitadas ou limitantes ao mesmo tempo limitantes somente poreacutem ou somente i-limitadas natildeo poderiam ser considerando que mostram evidentemente serem as coisas nem todas limitantes nem todas ilimitadas eacute claro portanto que do acordo de limitantes e ilimitados tanto o ordena-mento do mundo quanto as coisas nele resultaram Eacute demonstrado pe-los fatos que as coisas que derivam dos limitantes limitam e que as que derivam dos limitantes e ilimitados limitam ou natildeo limitam e que aquelas que derivam dos ilimitados parecem ilimitadas (44 B2 DK)500

498 Cf para essas observaccedilotildees Burkert (1972 253ss) e Huffman (1993 39) 499 Cf mais em geral para essa recepccedilatildeo de Aristoacuteteles dos ldquoprinciacutepiosrdquo dos preacute-socraacuteticos especialmente Cherniss (1935 374ss) que considera os testemunhos deste uacuteltimo ldquoerrors of interpretation which influ-enced Aristotleacutes general attitude toward the Presocratics and which continue to have an effect on mo-dern historiansrdquo 500 Orig ldquoἘκ τοῦ Φιλολάου περὶ κόσmicroου ltἀνάγκα τὰ ἐόντα εἶmicroεν πάντα ἢ περαίνοντα ἢ ἄπειρα ἢ περα-ίνοντά τε καὶ ἄπειρα ἄπειρα δὲ microόνον ltἢ περαίνοντα microόνονgt οὔ κα εἴη ἐπεὶ τοίνυν φαίνεται οὔτ ἐκ περαινόντων πάντων ἐόντα οὔτ ἐξ ἀπείρων πάντων δῆλον τἆρα ὅτι ἐκ περαινόντων τε καὶ ἀπείρων ὅ τε κόσmicroος καὶ τὰ ἐν αὐτῶι συναρmicroόχθη δηλοῖ δὲ καὶ τὰ ἐν τοῖς ἔργοις τὰ microὲν γὰρ αὐτῶν ἐκ περαινόντων

219

A argumentaccedilatildeo deste fr 2 natildeo deixa duacutevidas sobre o fato de que limitantes e i-

limitados natildeo devem ser pensados ndash em Filolau ndash como princiacutepios abstratos e separados

do mundo mas como atributos da proacutepria realidade Uma confirmaccedilatildeo disso eacute a insis-

tecircncia no interior do fragmento de como limitantesilimitados satildeo evidentes como satildeo

de alguma forma manifestos no mundo Por quatro vezes Filolau insiste nisso utilizan-

do termos ligados ao campo semacircntico do aparecer manifesto a) phaiacutenetai eoacutenta

ldquomostram evidentemente serem as coisas que satildeordquo b) decirclon ldquoeacute claro que do acordordquo

c) decircloi em tois eacutergois ldquoeacute demonstrado pelos fatosrdquo d) phaneacuteontai ldquoparecem

ilimitadasrdquo Bem longe portanto de uma falsificaccedilatildeo platonizante

Haacute algo de significativo tambeacutem no ritmo do fr 2 A ladainha dos limitantes

ilimitados lembra de perto um estilo encantatoacuterio Mais um sinal certamente do

profundo enraizamento do texto filolaico no contexto da produccedilatildeo filosoacutefica preacute-

socraacutetica501 A expressatildeo das ideias eacute aqui performaacutetica eacute como se a repeticcedilatildeo da

harmonia entre limitantes e ilimitados quisesse fazer ecoar nas palavras o som dessa

mesma harmonia tornando-a assim presente pela forccedila das palavras O fragmento de

certa forma pede para ser ouvido em seu ritmos e sonoridade proacuteprios Esse estilo

oracular insere o texto filolaico tambeacutem na tradiccedilatildeo esoteacuterica pitagoacuterica (e natildeo somente

pitagoacuterica) bem descrita por Gemelli Marciano

Nos textos esoteacutericos de Heraacuteclito Parmecircnides Empeacutedocles a recep-ccedilatildeo dos myacutethoi e dos loacutegoi eacute expressa unicamente pelo verbo akoucircein ouvir Que natildeo seja simplesmente a reproduccedilatildeo artificial de uma situ-accedilatildeo de transmissatildeo oral mas de uma situaccedilatildeo efetiva resulta especi-almente evidente no momento em que a palavra eacute expressamente defi-nida como uma entidade fiacutesica que penetra no corpo provocando mu-taccedilotildees O poder de accedilatildeo e de transformaccedilatildeo exercido pela palavra em sua fisicidade eacute por outro lado o elemento fundamental dos encanta-mentos e das foacutermulas maacutegicas como Goacutergias testemunha explicita-mente em seu Elogio de Helena (Gemelli Marciano 2007 449-450)502

περαίνοντι τὰ δ ἐκ περαινόντων τε καὶ ἀπείρων περαίνοντί τε καὶ οὐ περαίνοντι τὰ δ ἐξ ἀπείρων ἄπειρα φανέονταιgtrdquo (44 B2 DK) 501 Burkert (1972 252 n67) cita os fragmentos 6 de Anaxaacutegoras e 8 de Parmecircnides como exemplos desse mesmo estilo 502 Orig ldquoIn den esoterischen Texten Von Heraklit Parmenides und Empedokles wird die Rezeption der Myacutethoi und Loacutegoi ausscheliesslich mit dem Verb akouacuteein houmlren ausgedruumlckt Dass es sich dabei nicht einfach nur um die gekuumlnstelte Nachahmung einer oralen Vermittlungssituation sondern um ein reales Geschehen handelt wrid vor allem an dem Stellen deutilich an denen das Wort explizit als physische Entitaumlt aufgefasst wird dir in den Koumlrper endringt und dort Aumlnderungen hervorruft Die maumlchtige Wir-

220

A pluralidade e a naturalidade (no sentido de serem atributos da phyacutesis entendida

como natureza real) dos ilimitadoslimitantes satildeo confirmadas tambeacutem pelo fato de

Filolau recusar-se a definir ou enumerar exatamente o que entende ou quais realidades

considera como limitantes e ilimitadas isto eacute a dar uma lista de princiacutepios limitantes e

outra de princiacutepios ilimitados como poderiam ser a aacutegua o fogo etc

De fato na primeira parte do fr 6 assim expressa-se

Sobre a natureza e a harmonia as coisas estatildeo assim o ser das coisas que eacute eterno e a proacutepria natureza requerem um conhecimento divino e natildeo humano Aleacutem disso seria impossiacutevel que alguma das coisas que satildeo fosse por noacutes conhecida se natildeo tivesse como fundamento o ser das realidades que formam o mundo ordenado isto eacute as limitantes e as ilimitadas (44 B6 1-8 DK)503

Longe de tratar-se simploriamente de um exemplo da ldquomodeacutestia caracteriacutestica do

pensamento arcaicordquo (Kahn 1974 173) 504 aqui a referecircncia ao divino ndash analogamente

presente nas paacuteginas acima citadas do Filebo ndash apresenta-se mais como uma afirmaccedilatildeo

em polecircmica antijocircnica No sentido de que a definiccedilatildeo da realidade uacuteltima encontra-se

tatildeo ldquoaleacutem das capacidades de conhecimento humanordquo seria mais adequado contentar-se

em definir que todas as realidades devem ter surgido de alguma forma de limitantes e

ilimitados no lugar de imaginar desajeitadamente archaiacute como a aacutegua o ar etc Se al-

guma coisa seraacute entatildeo cognociacutevel esta seraacute a realidade das coisas visiacuteveis o mundo

fiacutesico portanto505 Provavelmente por esse motivo Aristoacuteteles (Met 989b) como se

viu afirmava que a filosofia pitagoacuterica explicava melhor os entes fiacutesicos ainda que os

princiacutepios por eles desenvolvidos se prestassem mais para o niacutevel suprassensiacutevel

Eacute possiacutevel ouvir aqui no fr 6 ecos da mesma preocupaccedilatildeo que Platatildeo parece

colocar na boca de Soacutecrates quando polemiza com ldquoos saacutebios de agorardquo (Filebo 17a)

kung und Veraumlnderun die das Wort qua seiner Koumlrperlichkeit ausuumlbt ist im uumlbrigen das grundlegende Element aller magischen Formeln und Zauber wie Gorgias im Helena-Enkomion ausdruumlcklich erklaumlrtrdquo 503 Orig ldquo περὶ δὲ φύσιος καὶ ἁρmicroονίας ὧδε ἔχει ἁ microὲν ἐστὼ τῶν πραγmicroάτων ἀίδιος ἔσσα καὶ αὐτὰ microὲν ἁ φύσις θείαν γα καὶ οὐκ ἀνθρωπίνην ἐνδέχεται γνῶσιν πλέον γα ἢ ὅτι οὐχ οἷόν τ ἦν οὐθὲν τῶν ἐόντων καὶ γιγνωσκόmicroενον ὑφ ἁmicroῶν γα γενέσθαι microὴ ὑπαρχούσας τᾶς ἐστοῦς τῶν πραγmicroάτων ἐξ ὧν συνέστα ὁ κόσ-microος καὶ τῶν περαινόντων καὶ τῶν ἀπείρωνrdquo (44 B6 1-8 DK) 504 Orig ldquoepistemic modesty that is custumary in archaic thoughtrdquo (Kahn 1974 173) 505 Cf Bolzani Filho (2006) para a relaccedilatildeo entre o elemento divino e a explicaccedilatildeo fiacutesica dos fenocircmenos em Tales de Mileto ldquoo divino permanece desempenhando papel decisivo nessa nova forma de ver o mundo porque eacute a ele que ainda se recorre para veicular o que ultrapassa o humanordquo (2006 106)

221

pelo fato de estes passarem de maneira demasiadamente apressada do um para o infini-

to sem considerar as realidades intermediaacuterias isto eacute em pretensa continuidade com a

tradiccedilatildeo pitagoacuterica sem considerar a determinaccedilatildeo numeacuterica Pois eacute exatamente aquilo

que estaacute no meio que se apresenta para Platatildeo como decisivo para a compreensatildeo do

mundo Ainda que Filolau ldquoinocente das distinccedilotildees posterioresrdquo (Huffman 1993 52)

esteja aqui revelando mais simplesmente uma polecircmica com Anaximandro por exem-

plo mas tambeacutem com Anaxaacutegoras e seus archaiacute indeterminados

A polecircmica antipluralista coloca Filolau de acordo com Parmecircnides Semelhante

preocupaccedilatildeo epistecircmica eacute confirmada tambeacutem pelo fr 3 ldquoDe maneira alguma seria pos-

siacutevel conhecer algo se todas as coisas fossem ilimitadasrdquo (44 B3 DK)506 A aproxima-

ccedilatildeo com a filosofia eleaacutetica eacute evidente tambeacutem no uso do termo estocirc no fr 6 que foi

traduzido por ldquoserrdquo o ser das coisas (estocirc tocircn pragmaacuteton) e que eacute definido aidiacuteos eter-

no Como no Poema de Parmecircnides tambeacutem em Filolau o ser eacute como tal incognociacutevel

a menos que natildeo intervenha uma revelaccedilatildeo divina Eacute certamente preciso ndash mais uma vez

ndash resistir agrave tentaccedilatildeo de compreender estocirc a partir das categorias aristoteacutelicas natildeo se trata

aqui da mateacuteria indiferenciada ou a causa material agrave qual o limite-harmonia ou causa

formal daraacute forma Ao contraacuterio estocirc eacute constituiacutedo por ambas as realidades as ilimita-

das e as limitantes e a polecircmica de Filolau como se viu eacute interna agrave dialeacutetica preacute-

socraacutetica Eacute este certamente mais um sinal da antiguidade da doutrina507

O caminho de Filolau eacute certamente original mesmo no interior da filosofia preacute-

socraacutetica pois por um lado natildeo expressa uma posiccedilatildeo monista uma vez que o ser resul-

ta da pluralidade de ilimitadoslimitantes por outro lado o ceticismo epistemoloacutegico do

fr 6 eacute moderado pela possibilidade de conhecer ao menos duas coisas isto eacute esta mes-

ma pluralidade e a harmoniacutea que a manteacutem unida acordada

Eacute exatamente a harmoniacutea o acordo (harmoacutechthe) entre os limitantesilimitados

em uacuteltima anaacutelise que permite explicar o surgimento da realidade como testemunham

tanto o fr 1 quanto o fr 6 A introduccedilatildeo desse terceiro elemento conectivo

harmonizador dos limitantesilimitados faz Filolau comeccedilar a procurar exemplos de

506 Orig ldquo ltἀρχὰνgt γὰρ ltοὐδὲ τὸ γνωσούmicroενον ἐσσεῖται πάντων ἀπείρων ἐόντωνgt κατὰ τὸν Φιλόλαονrdquo (44 B3 DK) 507 Concordam com esta interpretaccedilatildeo Burkert (1972 256) e Kahn (1974 173) Huffman (1993 130ss) e Centrone (1996 125) lembram o fato de essa homologaccedilatildeo do ἐστὼ com a causa material aristoteacutelica ser uma das caracteriacutesticas da literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica

222

como as coisas satildeo ldquoacordadasrdquo508 Primeiro entre todos o fogo parece um bom

exemplo no fr 7 ldquoo primeiro acordado o um no meio da esfera eacute chamado fogordquo (44

B7 DK)509 O fogo parece prestar-se bem agraves intenccedilotildees explicativas de Filolau ao

mesmo tempo siacutembolo do ilimitaacutevel seu estar cosmologicamente no centro da esfera o

delimita claramente510 Eacute possiacutevel que exatamente essa referecircncia filolaica ao fogo

como um no centro da esfera possa explicar a citaccedilatildeo prometeacutetica relativa agraves origens

pitagoacutericas da teoria do limitanteilimitado no Filebo Ainda que seja possiacutevel trata-se

aqui de simples assonacircncias conceituais511

Contudo o acircmbito exemplificativo que mais interessa em relaccedilatildeo tanto ao

testemunho aristoteacutelico quanto agrave recepccedilatildeo platocircnica do Filebo eacute o da escala musical Na

segunda parte do fr 6 eacute definida uma grandeza do acordo (harmoniacutea meacutegethos) no

interior da descriccedilatildeo da escala diatocircnica pitagoacuterica (a mesma que eacute pressuposta no

Timeu 35b)

A grandeza do acordo eacute formada pelos intervalos da quarta e de quin-ta A quinta eacute maior do que a quarta por um tom De fato da cordatom mais alta agrave corda do meio eacute uma quarta da do meio agrave ultima eacute uma quinta Da uacuteltima agrave terccedila eacute uma quarta e da terceira agrave mais alta uma quinta O intervalo entre a do meio e a terceira eacute um tom (98) a quar-ta eacute expressa pela relaccedilatildeo epiacutetrita (43) e a quinta pelo emioacutelio (32) e a oitava pelo duplo (21) Assim o acordo (escala harmocircnica) com-preende cinco tons e dois semitons menores a quinta trecircs tons e um semitom menor a quarta dois tons e um semitom menor (44 B6 16-24 DK)512

508 Frank (1923 304ss) observa que exatamente esta necessidade de fornecer provas de seus argumentos seria um sinal inequiacutevoco de que se trata no caso dos fragmentos de Filolau de uma falsificaccedilatildeo heleniacutes-tica Todavia o que se diraacute em seguida sobre os meacutetodos das archaiacute que Filolau compartilha com autores do seacuteculo V aEC como Hipoacutecrates de Quios e Heroacutedoto deveraacute sugerir exatamente o contraacuterio 509 Orig ldquo ltτὸ πρᾶτον ἁρmicroοσθέν τὸ ἕν ἐν τῶι microέσωι τᾶς σφαίρας ἑστία καλεῖταιgtrdquo (44 B7 DK) 510 Cf outros testemunhos doxograacuteficos paralelos em A16 e A17 511 Outros exemplos surgem do acircmbito meacutedico-antropoloacutegico como eacute o caso de um paralelismo significa-tivo entre o fogo e o calor da vida (Huffman 1993 45) A economia destas paacuteginas torna impossiacutevel uma anaacutelise detalhada dessas referecircncias 512 Orig ldquo ἁρmicroονίας δὲ microέγεθός ἐστι συλλαβὰ καὶ δι ὀξειᾶν τὸ δὲ δι ὀξειᾶν microεῖζον τᾶς συλλαβᾶς ἐπογδ-όωι ἔστι γὰρ ἀπὸ ὑπάτας ἐπὶ microέσσαν συλλαβά ἀπὸ δὲ microέσσας ἐπὶ νεάταν δι ὀξειᾶν ἀπὸ δὲ νεάτας ἐς τρίταν συλλαβά ἀπὸ δὲ τρίτας ἐς ὑπάταν δι ὀξειᾶν τὸ δ ἐν microέσωι microέσσας καὶ τρίτας ἐπόγδοον ἁ δὲ συλλαβὰ ἐπίτριτον τὸ δὲ δι ὀξειᾶν ἡmicroιόλιον τὸ διὰ πασᾶν δὲ διπλόον οὕτως ἁρmicroονία πέντε ἐπόγδοα καὶ δύο διέσιες δι ὀξειᾶν δὲ τρία ἐπόγδοα καὶ δίεσις συλλαβὰ δὲ δύ ἐπόγδοα καὶ δίεσιςrdquo (44 B6 16-24 DK)

223

Aqui a imagem de limitantes e ilimitados ndash como na teoria musical e no exem-

plo que Platatildeo utiliza no Filebo ndash eacute aquela de uma corda musical um contiacutenuo ilimita-

do na qual satildeo definidos limitados intervalos especiacuteficos513 Mais uma vez a harmoni-

a o acordo natildeo devem ser nunca confundidos com o limitante o acordo funciona pelo

nuacutemero mas o nuacutemero e o acordo natildeo se substituem aos limitantes

A passagem no interior do mesmo fr 6 de uma primeira parte cosmoloacutegica para

uma segunda parte musical natildeo surpreende especialmente agrave luz do testemunho aristoteacute-

lico jaacute citado que conecta exatamente essas duas dimensotildees no resumo da teoria numeacute-

rica pitagoacuterica ldquoPensavam serem os elementos dos nuacutemeros os elementos de todas as

coisas e que a totalidade do ceacuteu eacute harmonia e nuacutemerordquo (Met 986a3)

A possibilidade indicada pelo fragmento de Filolau de numerar os intervalos

consoantes remete novamente para o tema central deste capiacutetulo isto eacute aquele do nuacute-

mero pitagoacuterico Eacute significativo que ateacute este momento no interior dos fragmentos de

Filolau o nuacutemero como tal natildeo apareccedila E todavia como o fr 6 acima testemunha a

tematizaccedilatildeo do nuacutemero natildeo eacute totalmente ausente no interior dos fragmentos

Resta perguntar-se portanto qual seria a funccedilatildeo dos nuacutemeros no interior do sis-

tema filolaico e qual a relaccedilatildeo destes com a dupla limitantesilimitados

422 O papel dos nuacutemeros em Filolau

Eacute o fr 4 de Filolau a indicar mais precisamente qual devia ser o papel dos nuacuteme-

ros em sua filosofia

E de verdade todas as coisas que satildeo conhecidas tecircm nuacutemero Pois desta forma natildeo eacute possiacutevel que alguma coisa seja compreendida ou conhecida sem este (44 B4 DK)514

A expressatildeo arithmoacuten eacutechonti ldquotecircm nuacutemerordquo deve ser compreendida no rastro

da compreensatildeo grega dos arithmoiacute como pluralidade ordenada no sentido de que a

realidade eacute constituiacuteda por uma pluralidade ordenada ldquoTodas as coisas tecircm nuacutemerordquo

513 Para um estudo aprofundado da relaccedilatildeo entre a teoria musical grega e os instrumentos de cordas veja-se Rocconi (2003) aleacutem do recentiacutessimo estudo sobre o monocoacuterdio de Creese (2010) 514 Orig ldquo ltκαὶ πάνταgt γα ltmicroὰν τὰ γιγνωσκόmicroενα ἀριθmicroὸν ἔχοντι οὐ γὰρ οἷόν τε οὐδὲν οὔτε νοηθῆmicroεν οὔτε γνωσθῆmicroεν ἄνευ τούτουgtrdquo (44 B4 DK)

224

significa na praacutetica ldquotodas as coisas satildeo basicamente nuacutemerordquo (Burkert 1972

266s)515 Todavia a segunda parte do fragmento natildeo deixa duacutevidas em relaccedilatildeo a qual

deveria ser o papel dos nuacutemeros em Filolau A funccedilatildeo destes eacute precisamente epistemo-

loacutegica graccedilas ao fato de a realidade ldquoter nuacutemerordquo eacute que ela pode ser conhecida enquan-

to eacute passiacutevel de uma descriccedilatildeo numeacuterica

O argumento epistemoloacutegico do fr 4 foi obviamente considerado desde Bywa-

ter (1868 35) uma prova da inautenticidade dos fragmentos filolaicos Todavia diver-

sos comentadores chamaram atenccedilatildeo mais recentemente para o paralelo interesse fun-

damentalmente epistemoloacutegico em filoacutesofos preacute-socraacuteticos anteriores ao Filolau como

seria o caso da proacutepria filosofia de Parmecircnides516 Huffman (1993 67) anota com razatildeo

que os nuacutemeros respondem diretamente agraves exigecircncias epistemoloacutegicas parmenideias as

mesmas que no Poema satildeo postas como ldquosinaisrdquo no caminho do ser (28 B8 DK) para

que possa haver conhecimento o objeto deveraacute ser ingecircnito eterno etc Em suma algo

limitado Todavia como se viu acima Filolau deseja fugir da imobilidade do ser eleaacuteti-

co Exatamente a introduccedilatildeo dos nuacutemeros parece a melhor soluccedilatildeo para manter de um

lado a pluralidade do outro a determinaccedilatildeo do ser As relaccedilotildees matemaacuteticas expressas

pela escala musical do fr 6 de fato satildeo perfeitamente determinadas e podem ser encon-

tradas na realidade Ainda que a realidade revele-se primariamente como harmonia de

limitantesilimitados portanto e natildeo como nuacutemero este uacuteltimo pode ser considerado

como sinal (agrave maneira de Parmecircnides) do ser das coisas que satildeo

Eacute o que sugere o fr 5 que utiliza exatamente o verbo semaiacuteno para descrever

como a realidade expressa os nuacutemeros

O nuacutemero possui duas espeacutecies que lhe satildeo proacuteprias o iacutempar e o par a terceira resultante da mistura de ambos eacute o pariacutempar De cada uma das duas espeacutecies existem muitas formas das quais cada coisa en-quanto tal daacute sinais (44 B5 DK)517

515 Novamente dessa forma se poderia confirmar a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que para os pitagoacutericos os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas (autaacute taacute praacutegmata) e natildeo intermediaacuterios (metaxuacute) conforme Platatildeo 516 Cf especialmente Mourelatos (1970) e Kahn (1968-69) e mais recentemente Curd (1998) e Robbiano (2006) 517 Orig ldquo ltὅ γα microὰν ἀριθmicroὸς ἔχει δύο microὲν ἴδια εἴδη περισσὸν καὶ ἄρτιον τρίτον δὲ ἀπ ἀmicroφοτέρων microειχ-θέντων ἀρτιοπέριττον ἑκατέρω δὲ τῶ εἴδεος πολλαὶ microορφαί ἃς ἕκαστον αὐταυτὸ σηmicroαίνειgtrdquo (44 B5 DK)

225

As trecircs espeacutecies dos nuacutemeros propriamente natildeo correspondem agrave realidade e

sim a sinais emitidos pela realidade para que esta possa ser conhecida A bem ver por-

tanto Filolau natildeo diz que a realidade como tal eacute nuacutemero (como diraacute Aristoacuteteles) e sim

que eacute cognociacutevel pelo nuacutemero desde que se captem os sinais que ela emite A realidade

mesma eacute de fato constituiacuteda por coisas limitantes e coisas ilimitadas das quais os nuacuteme-

ros podem ser considerados sinais Aqui reside talvez a maior originalidade do pensa-

mento de Filolau a introduccedilatildeo da dupla de princiacutepios limitantesilimitados como princiacute-

pios explicativos da realidade e natildeo como jaacute de alguma forma algo real Uma perspec-

tiva mais epistemoloacutegica do que ontoloacutegica portanto Bem longe de tratar-se simples-

mente de ldquouma mistura de mito e fisiologiardquo (Burkert 1972 350)518

E todavia o fr 5 sugere poder haver em uacuteltima anaacutelise uma correspondecircncia

entre estes dois niacuteveis o ontoloacutegico (limitantesilimitados) e epistemoloacutegico (par-

iacutempar) A introduccedilatildeo de uma terceira espeacutecie de fato o artiopeacuteritton o ldquopariacutemparrdquo

pode corresponder na ordem argumentativa agrave introduccedilatildeo da harmoniacutea para a dupla limi-

tantesilimitados Eacute o que sugere o proacuteprio Aristoacuteteles conforme foi antecipado acima

quando propotildee uma direta correspondecircncia entre as duas duplas ldquoafirmam como ele-

mentos constitutivos do nuacutemero o par e o iacutempar dos quais o primeiro eacute ilimitado e o

segundo limitado O um deriva de ambos os elementos porque eacute par e iacutempar ao mesmo

tempordquo (Met 986a 17-19)519 Aristoacuteteles explicita mais precisamente o sentido dessa

correspondecircncia entre par e limitado e iacutempar e ilimitado em Fiacutesica (203a)

Para eles [os pitagoacutericos] o ilimitado eacute o nuacutemero par Este de fato quando interceptado e limitado pelo iacutempar torna presente a indeter-minaccedilatildeo aos entes Sinal disso eacute o que acontece com os nuacutemeros de fato conforme sejam colocados ou menos os gnomotildees em torno ao um a espeacutecie (do nuacutemero) permanece uma soacute ou ao contraacuterio torna-se sempre diferente (Phys 203a = 58 B28 DK)520

518 Orig ldquo melaacutenge of myth and physiologiacuteardquo 519 Orig ldquo τοῦ δὲ ἀριθmicroοῦ στοιχεῖα τό τε ἄρτιον καὶ τὸ περιττόν τούτων δὲ τὸ microὲν πεπερασmicroένον τὸ δὲ ἄπειρον τὸ δ ἓν ἐξ ἀmicroφοτέρων εἶναι τούτων (καὶ γὰρ ἄρτιον εἶναι καὶ περιττόν)rdquo (Met 986a 17-19) 520 Orig ldquo καὶ οἱ microὲν τὸ ἄπειρον εἶναι τὸ ἄρτιον (τοῦτο γὰρ ἐναπολαmicroβανόmicroενον καὶ ὑπὸ τοῦ περιττοῦ περαινόmicroενον παρέχειν τοῖς οὖσι τὴν ἀπειρίαν σηmicroεῖον δ εἶναι τούτου τὸ συmicroβαῖνον ἐπὶ τῶν ἀριθmicroῶν περιτιθεmicroένων γὰρ τῶν γνωmicroόνων περὶ τὸ ἓν καὶ χωρὶς ὁτὲ microὲν ἄλλο ἀεὶ γίγνεσθαι τὸ εἶδος ὁτὲ δὲ ἕν)rdquo (Phys 203a = 58 B28DK)

226

A explicaccedilatildeo aristoteacutelica pode ser facilmente visualizada a partir do momento

em que se utilize a aritmeacutetica dos pseacutephoi de Eurito acima citada521 Colocando de fato

um gnoacutemon um esquadro para desenhar acircngulos retos em volta do um ou do dois res-

pectivamente resultam duas seacuteries diferentes de nuacutemeros os pares e os iacutempares O es-

quadro que circunscreve o um iraacute sempre interceptar nuacutemeros iacutempares resultando sem-

pre em figuras quadradas O esquadro que circunscreve os nuacutemeros pares ao contraacuterio

iraacute sempre desenhar retacircngulos isto eacute figuras geomeacutetricas de lados sempre diferentes

conforme a figura abaixo

Para aleacutem da indistinccedilatildeo entre plano numeacuterico e plano cosmoloacutegico da qual A-

ristoacuteteles queixava-se (cf acima Met 990a18-22) o testemunho de Fiacutesica 203a acaba

confirmando a autenticidade de certa correspondecircncia em Filolau entre os princiacutepios

ilimitadoslimitados e os nuacutemeros Eacute significativo tambeacutem que agrave harmoniacutea citada por

Filolau na segunda parte de seu fr 6 sobre as proporccedilotildees numeacutericas das escalas musi-

cais eacute atribuiacuteda uma grandeza (meacutegethos) De certa forma eacute possiacutevel imaginar que Fi-

lolau estivesse pensando a harmonia entre limitantes e limitados como algo que pudesse

ser ele mesmo expresso numericamente

Contudo eacute ainda o fr 5 de Filolau a natildeo autorizar a levar essa correspondecircncia

muito longe pois a realidade semaiacutenei ldquodaacute sinaisrdquo dos nuacutemeros pelos quais ela pode ser

contada (ldquotecircm nuacutemerosrdquo diz no fr 4) isto eacute explicada Poreacutem os nuacutemeros natildeo satildeo a

realidade e menos ainda coincidem com os princiacutepios ilimitadoslimitantes

Eacute verdade que o uso da aritmogeometria por Filolau eacute inegaacutevel como a explica-

ccedilatildeo de Aristoacuteteles (Phys 203a) sugeriu O proacuteprio testemunho A7a declara a proemi-

necircncia atribuiacuteda por ele agrave geometria sobre todas as outras ciecircncias ldquoa geometria eacute prin-

521 Eurito eacute considerado pela doxografia disciacutepulo de Filolau (D L Vitae III 6 VII 46)

227

ciacutepio e paacutetria-matildee das outras ciecircnciasrdquo (44 A7a DK)522 Aqui a geometria eacute dita ser

archeacute das ciecircncias da mesma forma como a cidade-matildee eacute archeacute de suas colocircnias isto eacute

como causa e princiacutepio explicativo de sua existecircncia

Todavia o interesse de Filolau pelos nuacutemeros eacute fundamentalmente por estes

como princiacutepios explicativos da realidade no interior daquela nova forma de investiga-

ccedilatildeo que foi chamada de meacutetodo das archaiacute uma metodologia de pesquisa que busca os

princiacutepios suficientes para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos que ocupa tanto historiadores

quanto filoacutesofos geocircmetras e meacutedicos ao longo do seacuteculo V aEC523

Prova disso eacute a jaacute citada passagem do Anocircnimo Londinense (44 A27 DK) Nela

Filolau afirma primeiramente que o corpo ldquoeacute constituiacutedo de calorrdquo em interessante pa-

ralelo com o fragmento sobre o fogo no centro da esfera (44 B7 DK) que indicaria uma

correspondecircncia entre cosmologia e medicina que remete para o pensamento macro-

microcoacutesmico arcaico conforme foi considerado acima em relaccedilatildeo agrave embriologia Po-

reacutem em um segundo momento chama archaiacute do ldquosurgimento das doenccedilasrdquo respecti-

vamente ldquobiacutelis sangue e catarrordquo Huffman (1993 289) afirma que a argumentaccedilatildeo aqui

atribuiacuteda a Filolau incorre em uma contradiccedilatildeo como indicar trecircs diversas archaiacute para

as doenccedilas sendo que no iniacutecio do mesmo testemunho Filolau afirmaria serem nossos

corpos constituiacutedos pelo uacutenico princiacutepio o calor Natildeo seria mais coerente atribuir ao

mesmo princiacutepio (o calor) a origem das doenccedilas

Contudo o procedimento argumentativo de Filolau eacute anaacutelogo agravequele que este

desempenha em relaccedilatildeo aos nuacutemeros enquanto o calor eacute princiacutepio suficiente para expli-

car embriologicamente o surgimento do ser vivente para compreender a origem das

doenccedilas satildeo necessaacuterios ao contraacuterio trecircs diferentes princiacutepios Da mesma forma ndash esta

eacute a tese que se quer defender ndash o fato de a realidade ser constituiacuteda por ilimitados e limi-

tantes natildeo significa que estes possam explicar todas as coisas pois a realidade tem tam-

beacutem nuacutemeros e com suas seacuteries e relaccedilotildees os nuacutemeros satildeo suficientes para explicar di-

versos fenocircmenos entre eles as escalas musicais do fr 6

522 Orig ldquo γεωmicroετρία κατὰ τὸν Φιλόλαον ἀρχὴ καὶ microητρόπολις τῶν ἄλλων (microαθηmicroάτων)rdquo (44 A7a DK) 523 Eacute o caso de remeter a um meu estudo anterior para o detalhamento desse meacutetodo das archaiacute e suas referecircncias Cf Cornelli (2003c) Cf para esta referecircncia tambeacutem Burkert (1972 420 ldquoFrom about the middle of the fifth century it is clear that mathematics is a center of intellectual interest Almost all the important thinkers are concerned with mathematical questionsrdquo) e Huffman (1993 78-92)

228

O uso dos nuacutemeros como princiacutepios explicativos em sentido mais epistemoloacutegi-

co que ontoloacutegico eacute o argumento mais forte de Huffman contra a lectio de Burkert da

teoria dos nuacutemeros de Filolau que evidencia suas caracteriacutesticas fundamentais de misti-

cismo dos nuacutemeros524 A base da discoacuterdia estaacute na existecircncia de testemunhos de Filolau

que indicariam essa abordagem numeroloacutegica Eacute certamente o caso de A14 que atribui

figuras geomeacutetricas a determinadas divindades e que desde Tannery (1899) eacute associado

ao primeiro aparecimento da astrologia na Greacutecia Resquiacutecio dessa mesma numerologia

poderia estar no proacuteprio testemunho de Aristoacuteteles da associaccedilatildeo de determinados nuacute-

meros a propriedades e entidades como a justiccedila a alma ou o intelecto (Met 985b27-32

cf acima) Na mesma linha Filolau refere-se no fr 20 ao nuacutemero sete como nuacutemero

ldquovirgemrdquo e ldquosem-matildeerdquo (44 B20 DK)525

Essas observaccedilotildees somando-se ao fato de os fragmentos de Filolau natildeo revela-

rem grandes descobertas ou avanccedilos em relaccedilatildeo a teorias matemaacuteticas de seus contem-

poracircneos sugerem que seria outro o uso que ele faria dos nuacutemeros

Em contrapartida a tese de Huffman incorre tambeacutem em dificuldades quando

aplicada ao acircmbito agora tratado da embriologia e medicina do Anocircnimo Londinense

pelo fato de Filolau natildeo se referir em algum momento aos nuacutemeros para explicar ambos

os campos Isto eacute ainda mais significativo quando se olha para o fato de que o uso da

matemaacutetica no proacuteprio corpus hipocraacutetico eacute bastante atestado notadamente em relaccedilatildeo

aos ciclos da gravidez e agraves diversas fases das doenccedilas526 De alguma forma parece que

o ldquoprograma de Filolaurdquo (Huffman 1993 74) de busca da estrutura numeacuterica da realida-

524 Cf para isso o que foi dito acima (18) em relaccedilatildeo ao uso do termo aritmologia para indicar mais pre-cisamente a tradiccedilatildeo numeroloacutegica pitagoacuterica Para amplo estudo sobre a histoacuteria da tradiccedilatildeo da aritmolo-gia cf Robbins (1921) Para recente avaliaccedilatildeo criacutetica da relaccedilatildeo entre a aritmologia pitagoacuterica e o desen-volvimento da matemaacutetica grega antiga cf Cambiano (1992) 525 Ainda que francamente destemperada a resenha criacutetica de Kingsley (1994) ao livro de Huffman sobre Filolau dedica-se exatamente a questionar o excessivamente raacutepido descarte (dismiss) de A14 e da refe-recircncia astroloacutegica nele contida como uma falsificaccedilatildeo poacutes-platocircnica Huffman argumenta que esta refe-recircncia seria uma elaboraccedilatildeo a partir do Timeu de Platatildeo Kingsley responde que a influecircncia da astrologia babilocircnica sobre a Greacutecia do seacuteculo V aEC foi amplamente provada e que portanto seria esta a origem da temaacutetica em Filolau (e depois em Platatildeo) O destempero da criacutetica de Kingsley eacute bem resumido na frase final da resenha ldquoHuffman presents a picture of him [Philolaus] ultimately as false as any Philolaic forgery in antiquityrdquo (1994 296) 526 Lloyd (1989 257) confirma ldquoGreat importance is attached by many Hippocratic authors to the study of numerical relationships in connection with the determination of periodicities notably in two types of context (1) pregnancy and childbirth and (2) the phases of diseases especially their crises the points at which exacerbations or remissions are to be expectedrdquo Burkert (1972 264) imagina todavia ao contraacuterio uma influecircncia de Filolau ndash e mais em geral dos conceitos pitagoacutericos de harmonia e nuacutemero sobre o corpus hipocraacutetico ldquowe perceive in the Hippocratic corpus reflections of Pythagorean doctrines which were probably in written form and the most likely source is the book of Philolausrdquo

229

de natildeo tenha sido levado de fato a cabo ateacute o fim se eacute verdade que no toacutepico da embrio-

logia e da medicina natildeo haacute alguma referecircncia a esta pesquisa527

Eacute o caso de concluir que no limite a duacutevida sobre qual seria mais especifica-

mente o papel dos nuacutemeros na obra de Filolau natildeo poderaacute ser esclarecida definitivamen-

te em razatildeo de seu caraacuteter fragmentaacuterio E por esse motivo tanto a tese epistemoloacutegica

quanto aquela numeroloacutegica devem ser consideradas ambas vaacutelidas Contudo natildeo eacute

certamente o caso de concordar com a avaliccedilatildeo displicente de Philip (1966 32) pela

qual mesmo que os fragmentos de Filolau fossem autecircnticos ldquonatildeo seriam capazes de

resolver nossos problemas Pois estes revelam um pensador de natildeo grande estatura cu-

jos interesses foram perifeacutericosrdquo528

Merece ainda ao menos uma breve menccedilatildeo pelo interesse historiograacutefico em re-

laccedilatildeo agravequela que deve ter sido a filosofia dos nuacutemeros de Filolau a referecircncia tradicio-

nal que se faz agrave crise dos incomensuraacuteveis ou irracionais529 Knorr (1975 45) sugere

que Filolau tenha mudado a teoria ldquotudo eacute nuacutemerordquo para a teoria dos limitan-

tesilimitados para responder exatamente agrave descoberta dos irracionais na geometria que

se daria imediatamente antes dele530

A descoberta teria gerado um verdadeiro ldquomelodrama na histoacuteria intelectual gre-

gardquo (Burkert 1972 455) pois na concepccedilatildeo pitagoacuterica dos nuacutemeros agrave maneira das pe-

drinhas de Eurito o fato de certas grandezas geomeacutetricas como a da diagonal do qua-

drado natildeo poderem ser expressas por unidades numeacutericas era algo simplesmente escan-

daloso Haacute todavia contra os argumentos de Knorr uma seacuteria dificuldade cronoloacutegica

no Feacutedon Simias e Cebes afirmam ter ouvido Filolau em Tebas alguns anos antes Por

consequecircncia Filolau devia estar em plena maturidade intelectual no fim do seacuteculo V

aEC o que permite datar seu nascimento por volta de 460-70 e possivelmente devia

estar ainda vivo em Tarento no iniacutecio do seacuteculo IV Estas precisaccedilotildees cronoloacutegicas satildeo

527 Os argumentos de Huffman (1993 75) pelo qual Filolau como faria um cientista moderno esperaria por uma confirmaccedilatildeo da teoria que deveraacute vir de futuras comprovaccedilotildees como tambeacutem de que sua busca natildeo o obrigaria a indicar uma estrutura numeacuterica ldquoa qualquer custordquo enfraquecem de fato a tese de Huff-man e por consequecircncia a ideia de que possa haver um programa de Filolau Cf neste sentido Huffman (1993 77) ldquohis project was nonetheless to find the numbers in things where he could and not to put them there at all costsrdquo 528 Orig ldquothey would not enable us to solve our problems For they reveal a thinker of no great stature whose interests are periphericalrdquo 529 Dediquei um recente artigo a esta questatildeo (Cornelli e Coelho 2007a) para o qual remeto para maiores esclarecimentos em relaccedilatildeo aos motivos e agraves consequencias da referida crise 530 Cf tambeacutem na mesma linha teoacuterica o acima citado Tannery (1887 b) em 17

230

fundamentais para determinar a relaccedilatildeo entre Filolau e Hipoacutecrates de Quiacuteos Filolau natildeo

poderia ter escrito seu livro em reaccedilatildeo ao problema da incomensurabilidade pois os

irracionais seriam descobertos por este uacuteltimo somente em torno do ano de 430 quando

Filolau ndash contemporacircneo de Soacutecrates e Hipoacutecrates ndash e natildeo mais novo do que estes ndash

havia alcanccedilado jaacute sua terceira idade

Contudo o argumento que mais interessa agrave economia desta tese conforme apa-

rece na anaacutelise dos fragmentos acima eacute que o problema da incomensurabilidade no

caso em que tivesse de alguma forma encontrado o pensamento de Filolau natildeo devia de

forma alguma colocar em cheque o sistema de pensamento filolaico notadamente pelo

fato de este natildeo possuir propriamente uma teoria dos nuacutemeros como princiacutepios da reali-

dade ndash da forma que Aristoacuteteles havia lhe atribuiacutedo Ao contraacuterio conforme sugere

Huffman (1988 16) caso Filolau tivesse tido conhecimento da questatildeo dos irracionais

poderia facilmente tornaacute-lo mais um exemplo de sua tese de que todas as coisas satildeo

compostas por limitantes e ilimitados Pois para aleacutem da histoacuteria do melodrama acima

citado as descobertas da incomensurabilidade da hipotenusa do triacircngulo retacircngulo ou a

irracionalidade da diagonal do quadrado devem ter aguccedilado o interesse natildeo exclusivo

dos especialistas por um fenocircmeno que combinava perfeitamente na mesma figura

uma medida ilimitada a da hipotenusa com duas medidas perfeitamente limitadas a

dos catetos531

Enfim natildeo deve importar se Filolau foi ao menos um matemaacutetico de destaque

no interior do progresso que a disciplina obteve ao longo do seacuteculo V aEC Com razatildeo

Burkert (1972 413) anota que ldquoo problema natildeo eacute quem inventou a matemaacutetica mas

quem conectou matemaacutetica e filosofiardquo por primeiro532 Esse foi sem duacutevida Filolau

(Huffman 993 55) E nessa filosofia pitagoacuterica do V seacuteculo aEC que Aristoacuteteles estaacute

quase que exclusivamente interessado

531 Cf Huffman (1988 16) ldquoViewed in this way the case of the diagonal of the square (ie the isosceles right triangle) becomes an excellent illustration of Philolaus central thesis about the cosmos That thesis said that all things are com- posed of two unlike elements limiters and unlimiteds and that since these elements are unlike each other they must be held together by a harmonia which supervenes on them In the case of the isosceles right triangle what must initially have caused wonderment was not only that the hypotenuse cannot be measured by any measure no matter how small but that such a magnitude without measure (an unlimited) is combined in the same figure with magnitudes that do have a measure the sides (limiters)rdquo 532 Orig ldquothe question is not who invented mathematics but who connected mathematics with philoso-phyrdquo

231

O que eacute certo eacute que a relaccedilatildeo entre Filolau e os nuacutemeros eacute a tal ponto significati-

va de merecer o resumo que Aristoacuteteles teria dedicado aos assim chamados pitagoacutericos

e que agrave luz do percurso aqui desenvolvido pode-se certamente considerar como uma

citaccedilatildeo do proacuteprio Filolau

Exatamente porque ldquoinocente das distinccedilotildees posteriores entre sensiacutevel e inteligiacute-

vel e que se tornam importantes mais tarderdquo (Huffman 1993 52-53)533 isto eacute como

exceccedilatildeo ao sistema platonizante (Burkert 1972 230) a doutrina dos nuacutemeros de Filo-

lau concide em diversos lugares com o testemunho aristoteacutelico Por consequecircncia pode

ser considerada de fato a soluccedilatildeo da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de uma doutrina

do ldquotudo eacute nuacutemerordquo conforme os sentidos epistemoloacutegico ontoloacutegico e numeroloacutegico ndash

acima detalhados ndash que estas paacuteginas estavam procurando

O resto e natildeo eacute pouco deve-se fundamentalmente agrave recepccedilatildeo platocircnica dessas

teorias

43 Conclusatildeo

Partindo da constataccedilatildeo de que a matemaacutetica eacute certamente um dos elementos

mais recorrentes na tradiccedilatildeo para a identificaccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica analisaram-se

neste capiacutetulo as tendecircncias majoritaacuterias da criacutetica contemporacircnea que submeteram a

uma profunda revisatildeo o testemunho aristoteacutelico decisivo para esta categorizaccedilatildeo do pi-

tagorismo sua afirmaccedilatildeo pela qual para os pitagoacutericos ldquotudo eacute nuacutemerordquo A conclusatildeo agrave

qual chega essa postura hermenecircutica ceacutetica de autores claacutessicos como Frank e Cherniss

eacute a de que toda a matemaacutetica pitagoacuterica seria na realidade resultado de uma transposiccedilatildeo

acadecircmica

Todavia uma mais recente revisatildeo dessas tendecircncias da criacutetica centrada na rea-

valiaccedilatildeo da autenticidade dos fragmentos de Filolau sugeriu um novo caminho herme-

necircutico que aponte para a recuperaccedilatildeo de uma efetiva teoria pitagoacuterica dos nuacutemeros

que estaria presente nas fontes preacute-socraacuteticas

A anaacutelise das diversas citaccedilotildees aristoteacutelicas da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo e de

sua repetida atribuiccedilatildeo aos pitagoacutericos revelou para aleacutem de uma evidente variabilidade

533 Orig ldquoinnocent of distinctions such as that between the intelligible and the sensible which become important laterrdquo

232

semacircntica da teoria algumas contradiccedilotildees teoreacuteticas que o proacuteprio Aristoacuteteles parece

natildeo conseguir resolver a partir daquelas que deviam ser suas fontes escritas Trecircs dife-

rentes versotildees da doutrina estatildeo de fato presentes na doxografia aristoteacutelica a) uma

identificaccedilatildeo dos nuacutemeros com os objetos sensiacuteveis b) uma identificaccedilatildeo dos princiacutepios

dos nuacutemeros com os princiacutepios das coisas que satildeo c) uma imitaccedilatildeo dos nuacutemeros pelos

objetos reais Enquanto as versotildees a) e c) revelaram clara intenccedilatildeo polecircmica de Aristoacutete-

les contra a militacircncia platocircnica pela causa formal a versatildeo b) dos nuacutemeros como cau-

sas formais da realidade demonstra ser uma reconstruccedilatildeo aristoteacutelica da tese pitagoacuterica

A esta reconstruccedilatildeo Aristoacuteteles teria sido levado de um lado pela dificuldade de aceitar

a noccedilatildeo pitagoacuterica material de nuacutemero por outro lado por consideraacute-la mais proacutexima agrave

sua sensibilidade fortemente marcada pela recepccedilatildeo dessa mesma teoria em acircmbito

acadecircmico De fato a tradiccedilatildeo platonizante que faz aqui sua primeira apariccedilatildeo no capiacute-

tulo trata os nuacutemeros como princiacutepios ontoloacutegicos Depois de ter desempenhado um

papel central na definiccedilatildeo das teorias da imortalidade (344) a recepccedilatildeo acadecircmica das

doutrinas pitagoacutericas aparece aqui novamente tambeacutem no acircmbito da teoria dos nuacutemeros

O resumo aristoteacutelico da teoria dos nuacutemeros revela-se ao mesmo tempo estar em de-

pendecircncia e em polecircmica com o platonismo Apesar de estar clara aquela que Aristoacutete-

les devia considerar a intuiccedilatildeo fundamental dos pitagoacutericos isto eacute a possibilidade de

compreender a natureza pelos nuacutemeros o fato eacute que a tentativa de conciliaccedilatildeo que Aris-

toacuteteles estaria operando a partir das fontes preacute-socraacuteticas de um lado e da mediaccedilatildeo

platocircnica do outro natildeo pareceu bem-sucedida

Diante dessas dificuldades duas soluccedilotildees foram apresentadas mais recentemente

para verificar o sentido e a validade da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo De um lado Zhmud

aprofundando uma jaacute claacutessica posiccedilatildeo de Burnet contesta radicalmente a validade do

testemunho aristoteacutelico chegando a negar que ao protopitagorismo corresponda uma

doutrina do nuacutemero como tal perante o insucesso na busca de alguma referecircncia a ela

nas fontes preacute-socraacuteticas A conclusatildeo dessa tese negacionista eacute simplesmente que Aris-

toacuteteles teria criado para as finalidades internas agrave sua histoacuteria doxograacutefica dos predeces-

sores um denominador comum doutrinaacuterio (ldquotudo eacute nuacutemerordquo) para uma escola filosoacutefi-

ca que se lhe apresentava como pouco coesa do ponto de vista doutrinaacuterio e que acaba

por identificar com a categoria historiograacutefica dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo Em

reaccedilatildeo a essa soluccedilatildeo Huffman retomando por sua vez uma intuiccedilatildeo de Burkert em-

preendeu um atento trabalho de reavaliaccedilatildeo das fontes preacute-socraacuteticas do pitagorismo

233

que deviam estar ldquona mesardquo de Aristoacuteteles em busca de possiacuteveis referenciais histoacutericos

para a reconstruccedilatildeo aristoteacutelica O fato de Aristoacuteteles demonstrar atingir uma literatura

pitagoacuterica escrita assim como os modos de utilizaccedilatildeo desta em sua proacutepria produccedilatildeo

literaacuteria sobre os pitagoacutericos que foi certamente significativa parece identificar como

fonte primaacuteria de Aristoacuteteles exatamente o livro de Filolau e com este o pitagorismo

do V seacuteculo aEC Contudo mesmo essa soluccedilatildeo filolaica apresenta uma dificuldade

natildeo haacute em Filolau alguma referecircncia expliacutecita a essa doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo

Mais que soluccedilatildeo portanto a ldquoquestatildeo filolaicardquo apresenta-se ao contraacuterio co-

mo uma gangorra hermenecircutica entre a platonizaccedilatildeo acadecircmica de um lado e a recons-

truccedilatildeo aristoteacutelica do outro Tanto a inconsistecircncia da tradiccedilatildeo sobre a produccedilatildeo literaacuteria

de Filolau como a existecircncia de ampla literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica sugerem a

necessidade de um atento trabalho de peneira dos fragmentos de Filolau em busca dos

motivos mais autecircnticos de sua filosofia Em uacuteltima anaacutelise as duas questotildees dependem

de uma caracteriacutestica fundamental da literatura pitagoacuterica pseudoepigraacutefica heleniacutestica

que eacute aquela de derivar sua compreensatildeo da relaccedilatildeo entre pitagorismo e platonismo de

maneira cada vez diferente nos diversos momentos da histoacuteria da polecircmica intra-

acadecircmica entre dogmaacuteticos e ceacuteticos Por outro lado no interior da reconstruccedilatildeo platocirc-

nico-pitagorizante da filosofia dos ldquoantigosrdquo a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles no seacuteculo IV

aEC faz do pitagorismo natildeo encontra eco algum Ao contraacuterio o valor de seu testemu-

nho eacute amplamente criticado em seguida pela tradiccedilatildeo platocircnica Poreacutem eacute exatamente

esta distinccedilatildeo da lectio aristoteacutelica em relaccedilatildeo ao onipresente ldquosistema de derivaccedilatildeordquo da

tradiccedilatildeo platocircnica que constitui verdadeira alavanca hermenecircutica para a questatildeo filo-

laica pois a proximidade dos fragmentos atribuiacutedos a Filolau com a lectio aristoteacutelica

dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo pode tornar-se sinal de sua autenticidade

Aristoacuteteles de fato distingue pitagorismo e platonismo em duas questotildees cen-

trais ambas articuladas em uma ceacutelebre paacutegina de Metaacutefisica (987b) A primeira dife-

renccedila estaacute no lugar ontoloacutegico atribuiacutedo aos nuacutemeros fora dos sensiacuteveis para Platatildeo

enquanto os pitagoacutericos sustentam que os nuacutemeros sejam ldquoas proacuteprias coisasrdquo Trata-se

da doutrina do chorismoacutes isto eacute da separaccedilatildeo que Aristoacuteteles considera um erro tipi-

camente platocircnico a intenccedilatildeo polecircmica de Aristoacuteteles com o platonismo natildeo poderia ser

mais clara A diferenccedila indicada pelo testemunho aristoteacutelico em relaccedilatildeo agrave mediaccedilatildeo

acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas sugere que a primeira possa ser considerada um

achado da visatildeo preacute-socraacutetica dos nuacutemeros Uma segunda diferenccedila entre Platatildeo e pita-

234

goacutericos estaacute na maneira como eacute concebido o um o fato de Platatildeo ter posto no lugar do

um ilimitado pitagoacuterico uma diacuteade como tambeacutem de ter concebido o ilimitado como

derivado do grande e do pequeno resulta em uma doutrina ldquomal argumentadardquo Mesmo

neste caso Aristoacuteteles estaacute sozinho a definir essa diferenccedila pois a tradiccedilatildeo doxograacutefica

toda sublinha ao contraacuterio que tambeacutem os pitagoacutericos postulavam o um e diacuteade indefi-

nida como princiacutepios da realidade em clara dependecircncia da derivaccedilatildeo platonizante

A anaacutelise de uma passagem do Filebo confirmou a credibilidade do testemunho

de Aristoacuteteles a platonizaccedilatildeo do pitagorismo natildeo devia corresponder somente a uma

tendecircncia acadecircmica mas jaacute o proacuteprio Platatildeo devia considerar sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo

como uma continuaccedilatildeo do pitagorismo Contudo se a paacutegina do Filebo revelou-se um

testemunho preacute-aristoteacutelico da filosofia pitagoacuterica ela constitui ao mesmo tempo um

ponto de partida para que Platatildeo persiga seus proacuteprios projetos teoreacuteticos de maneira

especial em busca de uma soluccedilatildeo para o problema da unidade e multiplicidade dos e-

xistentes

O mesmo tema da relaccedilatildeo ilimitadolimitado que orienta o argumento do Filebo

aparece de fato naquele que devia ser o proacutelogo do livro de Filolau O caraacuteter de exce-

ccedilatildeo dos testemunhos aristoteacutelicos diante da categorizaccedilatildeo majoritaacuteria platonizante do

pitagorismo antigo tornou central a anaacutelise dos fragmentos de Filolau De um lado por

permitirem comprovar textualmente o processo de formaccedilatildeo da recepccedilatildeo acadecircmica da

matemaacutetica pitagoacuterica por outro lado por serem sinais inequiacutevocos de uma teoria pita-

goacuterica dos nuacutemeros datada ainda no seacuteculo V aEC que Aristoacuteteles demonstra conhecer

Os fragmentos de Filolau revelam-se originalmente posicionados em relaccedilatildeo agrave entatildeo

secular tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica operando quase uma siacutentese entre a cosmologia milesiana

do ilimitado e a concepccedilatildeo da perfeiccedilatildeo do ser no limite da matriz eleaacutetica534 A autenti-

cidade do fr 2 eacute argumentada a partir do fato de natildeo demonstrar alguma apropriaccedilatildeo

platonizante limitantes e ilimitados satildeo ainda pensados natildeo como princiacutepios abstratos e

separados do mundo mas como atributos da proacutepria realidade Filolau empreendendo

uma tentativa de exemplificaccedilatildeo da harmoniacutea entre limitantes e ilimitados utiliza signi-

ficativamente a escala musical diatocircnica pitagoacuterica Poreacutem a possibilidade revelada

pelo fr 6 de Filolau de numerar os intervalos consoantes conduz novamente ao tema

central deste capiacutetulo isto eacute aquele do nuacutemero pitagoacuterico

534 Cf neste sentido a posiccedilatildeo anteriormente citada de Tannery (1887b) em 17

235

Ainda que natildeo predominante como princiacutepio ontoloacutegico ndash como queriam Platatildeo

e Aristoacuteteles ndash o nuacutemero desempenha certamente uma funccedilatildeo no interior do sistema

filolaico A anaacutelise dos fr 4 e 5 parece indicar o fato de os nuacutemeros atuarem epistemo-

logicamente pois eacute exatamente pelo fato de prestar-se a uma descriccedilatildeo em termos nu-

meacutericos que a realidade pode ser conhecida Os nuacutemeros satildeo assim sinais emitidos

pela realidade e como tais permitem que esta possa ser conhecida (fr 5) Todavia o

mesmo fragmento sugere poder haver em uacuteltima anaacutelise uma correspondecircncia entre

esses dois niacuteveis o ontoloacutegico (limitantesilimitados) e o epistemoloacutegico (par-iacutempar)

Pois a introduccedilatildeo de uma terceira espeacutecie de nuacutemero o ldquopariacutemparrdquo parece correspon-

der na ordem argumentativa agrave introduccedilatildeo da harmoniacutea para a dupla limitan-

tesilimitados Huffman resiste todavia em considerar que os nuacutemeros no programa filo-

soacutefico de Filolau possam desempenhar outro papel a natildeo ser aquele de princiacutepios expli-

cativos da realidade de maneira especial em polecircmica com o evidente misticismo nu-

meacuterico que todavia eacute tambeacutem expresso nos fragmentos Qualquer que seja este papel

contudo a relaccedilatildeo entre Filolau e os nuacutemeros mereceu o resumo que Aristoacuteteles teria

dedicado agrave categorizaccedilatildeo dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo e que coincide em diversos

lugares com o livro de Filolau Em suma Filolau pocircde ser considerado a soluccedilatildeo da

atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo mais precisamente do seacuteculo V aEC de uma doutrina

do ldquotudo eacute nuacutemerordquo que estas paacuteginas estavam procurando

Como no caso acima das teorias da imortalidade portanto eacute novamente Aristoacute-

teles a fornecer o testemunho mais confiaacutevel da existecircncia de uma teoria numeacuterica no

pitagorismo antigo Esse mesmo testemunho quando espelhado em sua provaacutevel fonte

filolaica permite detectar o longo processo de apropriaccedilatildeo platocircnica e acadecircmica da

matemaacutetica pitagoacuterica

A anaacutelise da tradiccedilatildeo sobre a teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica portanto articulando

os diversos niacuteveis de uso dos nuacutemeros no pitagorismo antigo do miacutestico ao epistemoloacute-

gico ao longo dos diferentes estratos da tradiccedilatildeo revelou mais uma vez o processo de

formaccedilatildeo da categoria pitagorismo em suas dimensotildees sincrocircnica e diacrocircnica Proces-

so este que acaba revelando ao mesmo tempo significativas descontinuidades ao longo

da tradiccedilatildeo abordagens inicialmente vaacutelidas como aquelas de um provaacutevel misticismo

numeacuterico protopitagoacuterico satildeo em seguida abandonadas provavelmente por natildeo dialo-

garem mais diretamente com o contexto mais geral da filosofia daquele segundo mo-

mento Poreacutem satildeo enfim retomadas com renovado entusiasmo em eacutepocas posteriores

236

notadamente no periacuteodo neoplatocircnico Dessa forma eacute possiacutevel que a matemaacutetica de

Jacircmblico pudesse ser mais proacutexima agrave miacutestica dos nuacutemeros protopitagoacuterica do que o e-

ram os nuacutemeros de Filolau

Contudo a suposiccedilatildeo de que possa haver clara divisatildeo entre miacutestica dos nuacutemeros

e epistemologia em todas as fases do pitagorismo ateacute mesmo na fase filolaica ndash como

visto anteriormente ndash eacute esta mesma resultado de preconceitos historiograacuteficos Depen-

de em uacuteltima anaacutelise de uma visatildeo positivista da histoacuteria do pensamento desde suas

origens como um progresso contiacutenuo em direccedilatildeo a uma natildeo bem identificada ideia de

racionalidade moderna magistralmente representada por Galileu e Descartes natildeo acaso

identificada com o raciociacutenio matemaacutetico A descriccedilatildeo do pitagorismo antigo a partir

destas precompreensotildees historiograacuteficas portanto revela-se equivocada do ponto de

vista de seu valor histoacuterico E acaba tambeacutem perdendo aquela que eacute provavelmente a

caracteriacutestica mais extraordinaacuteria dele a de um movimento de vida e pensamento que

percorre seacuteculos a fio da antiguidade conseguindo ser identificado como tal apesar ndash ou

melhor ndash por meio da polifonia de suas diferenccedilas e contradiccedilotildees

237

CONCLUSAtildeO

Nada melhor para concluir uma tese historiograacutefica sobre o pitagorismo que um

detalhe editorial aparentemente inoacutecuo mas que se revela significativo para a histoacuteria

da criacutetica do pitagorismo no seacuteculo XX Giangiulio (Pitagora 2000 XVI) introduz sua

ediccedilatildeo da literatura pitagoacuterica pela editora Mondadori reproduzindo uma seccedilatildeo inteira

da obra imprescindiacutevel de Burkert sobre o pitagorismo Lore and Science in Ancient

Pythagoreanism (1972 208-217) Omite todavia significativamente uma citaccedilatildeo de

Rohde que aparece em Burkert (1972 217)535 A citaccedilatildeo eacute a seguinte

Cada idade tem seu proacuteprio ideal de sabedoria e houve um tempo quando o ideal do homem saacutebio que por seus proacuteprios poderes inatos conseguiu uma posiccedilatildeo espiritual de destaque e discernimento tornou-se presente nas pessoas de certos grandes homens que pareciam pre-encher as mais altas condiccedilotildees de sabedoria e poder que foram atribu-iacutedas ao vidente extaacutetico e ao sacerdote da purificaccedilatildeo [] noacutes natildeo po-demos chamaacute-los filoacutesofos nem sequer precursores da filosofia grega Mais frequentemente seu ponto de vista foi aquele que o real impulso filosoacutefico em direccedilatildeo agrave autodeterminaccedilatildeo e agrave liberdade da alma havia consciente e decisivamente rejeitado e continuou a rejeitar embora pela verdade natildeo sem flutuaccedilotildees ocasionais e retrocessos Assim es-creveu Erwin Rohde (Psyche II 90) em referecircncia a figuras como E-pimecircnides e Abaris sem incluir Pitaacutegoras Contudo a mais antiga e-videcircncia indica que eacute precisamente nesta perspectiva que temos de ver Pitaacutegoras536

A omissatildeo natildeo eacute obviamente casual e obedece a uma disseminada dificuldade da

criacutetica contemporacircnea para lidar com a perspectiva acima delineada por Rohde na qual

Burkert sugere que deva ser vista a figura de Pitaacutegoras isto eacute aquela de uma histoacuteria da

535 Cf Giangiulio (Pitagora 2000 XVI) A omissatildeo natildeo eacute injustificada do ponto de vista formal o autor avisa (Pitagora 2000 V) sobre a ocorrecircncia de ldquopoche omissionirdquo na traduccedilatildeo da referida seccedilatildeo de Bur-kert 536 Orig ldquolsquoEvery age has its own ideal of Wisdom and there came a time when the ideal of the Wise Man who by his own innate powers has achieved a commanding spiritual position and insight became embodied in the persons of certain great men who seemed to fulfill the highest conceptions of wisdom and power that were attributed to the ecstatic seer and priest of purification () We cannot call them philoso-phers-not even the forerunners of Greek philosophy More often their point of view was one which the real philosophic impulse toward self-determination and the freedom of the soul consciously and decisive-ly rejected and continued to reject though not indeed without occasional wavering and backslidingrsquo So wrote Erwin Rohde (Psyche II 90) in reference to figures like Epimenides and Abaris without including Pythagoras But the most ancient evidence indicates that it is precisely in this perspective that we must see Pythagorasrdquo As reticecircncias no interior da citaccedilatildeo satildeo do proacuteprio autor

238

filosofia que natildeo se limite a repetir o script das diadochaiacute de personagens e de conceitos

formatados pela doxografia aristoteacutelica mas busque compreender a emergecircncia do fe-

nocircmeno no interior do contexto pragmaacutetico da sabedoria arcaica e de suas tipologias

A ilusatildeo criada pela coleccedilatildeo dielsiana dos textos sobre a filosofia preacute-socraacutetica

sugeriu que a sucessatildeo dos sistemas filosoacuteficos ao longo da histoacuteria pudesse significar ndash

hegelianamente ndash algum tipo de progresso do pensamento Todavia o desvelamento

dessa ilusatildeo retrospectiva em relaccedilatildeo agrave existecircncia de uma escola filosoacutefica pitagoacuterica ao

lado e em diaacutelogo com outras natildeo levou ainda grande parte da criacutetica a rever esta pers-

pectiva historiograacutefica e a compreender a filosofia preacute-socraacutetica em geral e o pitagoris-

mo de maneira especial por meio das caracteriacutesticas proacuteprias dos primeiros passos

permeaacuteveis e fluidos da filosofia em formaccedilatildeo A proposta de Laks (2007 233-235) de

certa maneira conciliadora eacute de compreender a heterogeneidade com a qual a filosofia

preacute-socraacutetica apresenta-se como ldquouma diversidade natildeo selvagem e sim reflexivardquo no

sentido de obedecer weberianamente a dois tipos de ldquoconsistecircnciasrdquo uma loacutegica pela

qual uma nova tese implica a resposta ou a explicitaccedilatildeo de uma teoria anterior e uma

praacutetica que mobiliza mais diretamente a questatildeo do sujeito no caso especiacutefico do autor

de determinada filosofia As paacuteginas da presente tese revelaram franca inserccedilatildeo das i-

deias e dos protagonistas do protopitagorismo e do pitagorismo do seacuteculo V no contexto

da disciplina filosoacutefica em formaccedilatildeo Contudo a percepccedilatildeo de que haveria uma segunda

consistecircncia que ao lado da imagem anacrocircnica dos preacute-socraacuteticos como scholars e

colleges em debate entre eles como a consistecircncia loacutegica parece sugerir eacute certamente o

avanccedilo hermenecircutico mais relevante537

Na verdade haacute algo de heterogecircneo no pitagorismo que eacute no limite irredutiacutevel a

esta loacutegica disciplinar Ainda que com razatildeo Laks (2007 230) afirme que ldquoeacute um lugar

hoje bastante comum afirmar que a filosofia como disciplina natildeo existe antes de Pla-

tatildeordquo natildeo eacute possiacutevel simplesmente esquecer que a tradiccedilatildeo considera Pitaacutegoras como o

inventor dos termos filosofia e filoacutesofo (D L Vitae I 12 = Heraclid fr 87 Wehrli)538

No entanto a filosofia conforme o vieacutes da tradiccedilatildeo pitagoacuterica parece definir-se bem

537 Apesar de enunciaacute-la todavia Laks natildeo desenvolve ndash como faz com a consistecircncia loacutegica ndash esta se-gunda A omissatildeo eacute ainda um sintoma da dificuldade da historiografia da filosofia antiga em enfrentar seu objeto fora dos esquemas ldquopresentistasrdquo da tradiccedilatildeo (cf Laks 2007 233) 538 Burkert (1960) criticou por primeiro a confiabilidade do testemunho que remonta a Heraclides Pocircnti-co Tambeacutem ceacutetico eacute Huffman (2008 205-206) Mais confiante na tradiccedilatildeo estaacute Riedweg (2002 156-164) Centrone (1996 93-98) apesar de ceacutetico considera que mesmo assim possa-se qualificar Pitaacutegoras como filoacutesofo

239

como disciplina tambeacutem pela segunda consistecircncia aquela praacutetica isto eacute de estilos de

vida doutrinas reveladas e ouvidas ritualidades eacuteticas e sapienciais

O ldquoburaco sem fundordquo (the bottomless pit) da pesquisa sobre os pitagoacutericos ndash na

ceacutelebre expressatildeo de Guthrie (1962 146 n1) ndash revelou-se um locus privilegiado para a

revisatildeo das praacuteticas historiograacuteficas comumente utilizadas Dessa forma a dificuldade

de fazer caber a filosofia pitagoacuterica trait-drsquounion entre as primeiras duas fases da filo-

sofia antiga isto eacute a jocircnica e a itaacutelica nos estreitos limites da historiografia normal

ficou patente e obrigou a presente tese a rediscutir os procedimentos metodoloacutegicos de

aproximaccedilatildeo ao seu objeto Na melhor tradiccedilatildeo cientiacutefica moderna foi obrigada a re-

construiacute-lo de certa maneira para poder examinaacute-lo

Em suma a histoacuteria da tradiccedilatildeo do pitagorismo eacute uma histoacuteria de omissotildees

A omissatildeo editorial de Giangiulio eacute o exemplo mais recente de um processo se-

cular de recepccedilatildeo pelo qual como em um palimpsesto formas e conteuacutedos desta filoso-

fia foram apagados e reescritos a partir de sempre novos interesses redacionais O resul-

tado disso do ponto de vista da teoria das fontes assustou com razatildeo muitos comenta-

dores desde a antiguidade uma multiplicidade polieacutedrica de imagens do pitagorismo

que o representam ora como seita religiosa ora como escola filosoacutefica ora ainda como

partido poliacutetico ou como comunidade cientiacutefica E natildeo eacute certamente suficiente como

boa praacutetica cientiacutefica uma geneacuterica ldquoconfianccedila fundamentada nos testemunhosrdquo con-

forme o desejo sinceramente expresso por Boyanceacute em seu discurso in memoriam de

Ferrero (1966 31) De fato muitos estudiosos no meio do mato sem cachorro da Quel-

lenforshung do pitagorismo como que em desespero acabaram por ldquoentregar-se a um

meacutetodo intuitivo e a formular hipoacuteteses baseadas na simples verossimilhanccedilardquo (Centro-

ne 1996 23)539 aumentando assim a confusatildeo agrave qual jaacute se referia Boeckh (1819) no

lugar de diminuiacute-la

A proposta dessas paacuteginas ao contraacuterio foi aquela de procurar definir um per-

curso metodoloacutegico consciente que em vez de tentar resolver a complexidade do fe-

nocircmeno optando por uma ou outra imagem propocircs-se a compreender o pitagorismo

como categoria historiograacutefica Seguindo a metaacutefora anteriormente desenhada do pa-

limpsesto a tese destas paacuteginas eacute que a soluccedilatildeo natildeo deve ser procurada principalmente

em um pretenso pergaminho original e sim mais apropriadamente no proacuteprio processo

539 Orig ldquoad affidarsi a un metodo intuitivo e a formulare ipotesi basate sulla semplice verosimiglianzardquo

240

de contiacutenua sobrescrita deste Agrave procura de compreender a loacutegica de suas omissotildees

traduccedilotildees reapropriaccedilotildees ao longo da histoacuteria Interpretando interpretaccedilotildees

Longe de considerar portanto a imagem multifacetada do pitagorismo como

simplesmente resultado de uma seacuterie de acidentes procurou-se acompanhar o percurso

das escolhas que constituiacuteram a tradiccedilatildeo verificando quando possiacutevel seus pressupos-

tos e indicando as consequecircncias destas para a interpretaccedilatildeo Receberam este tratamen-

to natildeo somente algumas temaacuteticas centrais como a metempsicose e a teoria dos nuacuteme-

ros mas tambeacutem o proacuteprio percurso de definiccedilatildeo do pitagorismo como categoria

Natildeo se tratou contudo de escolher entre um pitagorismo acusmaacutetico de um la-

do e outro matemaacutetico do outro ndash como parte da histoacuteria da criacutetica moderna quis fazer

conforme foi visto no capiacutetulo primeiro Ainda que os iniacutecios da koinoniacutea pitagoacuterica

devessem de fato ser acusmaacuteticos o fato natildeo explica sozinho o amplo leque das tradi-

ccedilotildees sobre o pitagorismo mesmo em eacutepoca preacute-socraacutetica Em uma primeira impressatildeo

a abordagem em capiacutetulos separados das duas temaacuteticas que mais fortemente estatildeo pre-

sentes na tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica a metempsicose (capiacutetulo terceiro) e a teoria

dos nuacutemeros (capiacutetulo quarto) pocircde parecer reproduzir hermeneuticamente a distinccedilatildeo

claacutessica entre biacuteos e theoriacutea O primeiro diria respeito a mitos e ritos da imortalidade da

alma a segunda referir-se-ia agrave ciecircncia dos nuacutemeros Todavia natildeo eacute certamente este o

caso Ao contraacuterio a anaacutelise acima desenvolvida demonstrou que em ambas as temaacuteti-

cas tatildeo caras agrave tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo aparecem lectiones tanto miacutesticas como

cientiacuteficas pois por um lado a teoria da metempsicose natildeo responde somente a uma

miacutestica soterioloacutegica mas se torna tambeacutem elemento explicativo da realidade em sua

conaturalidade aleacutem de motivo epistemoloacutegico na praacutetica da anamnese Por outro lado

a teoria dos nuacutemeros natildeo corresponde somente a uma reflexatildeo aritmogeomeacutetrica onto-

loacutegica e cosmoloacutegica mas tambeacutem serve a uma miacutestica numeroloacutegica amplamente ates-

tada pela tradiccedilatildeo

Isso posto se Filolau possui uma teoria da alma como harmonia de elementos

materiais ao lado de uma teoria da imortalidade da alma e da mesma forma utiliza os

nuacutemeros natildeo somente como princiacutepios epistemoloacutegicos de seu sistema ontoloacutegico mas

tambeacutem revela seu sentido numeroloacutegico eacute certamente o caso de se perguntar se a dis-

tinccedilatildeo entre miacutestica e ciecircncia aqui mostrada faz algum sentido para descrever o pitago-

rismo antigo e a filosofia em suas origens como tal Os capiacutetulos terceiro e quarto arti-

culando as duas dimensotildees da categorizaccedilatildeo do pitagorismo desenhadas pela presente

241

tese diacrocircnica e sincrocircnica permitiram confirmar a suspeita citada Em sua dimensatildeo

sincrocircnica a categorizaccedilatildeo do pitagorismo demonstrou obedecer agrave intenccedilatildeo de separar

dicotomicamente miacutestica e ciecircncia enquanto em sua dimensatildeo diacrocircnica os processos

de omissatildeo e reduccedilatildeo da multiplicidade em que se apresentam as doutrinas pitagoacutericas

revelaram-se operantes na recepccedilatildeo acadecircmica peripateacutetica neoplatocircnica etc

No entanto em sua dimensatildeo diacrocircnica a categoria historiograacutefica do pitago-

rismo resistiu a diferentes tentativas de reduzi-la a um lado ou a outro da dicotomia biacute-

os-theoriacutea Essas tentativas natildeo operam exclusivamente no que se refere agrave distinccedilatildeo

acusmaacuteticos vs matemaacuteticos no protopitagorismo mas continuam presentes na histoacuteria

do movimento mesmo apoacutes a mediaccedilatildeo da tradiccedilatildeo acadecircmica e sua vulgata pitagoacuterica

Em eacutepoca imperial haacute de fato um abismo entre o ldquomatemaacuteticordquo Moderato di Gades e o

ldquoacusmaacuteticordquo Apolocircnio de Tiana Todavia ambos satildeo igualmente identificados como

pitagoacutericos E natildeo eacute o caso de explicar esta homologiacutea por uma simples referecircncia a um

ideal de vida pitagoacuterico pois esse ideal deveria necessariamente incluir um conjunto de

doutrinas que o identificava ainda que este conjunto natildeo chegue jamais a constituir um

cacircnon e permaneccedila convenientemente a referecircncia ao segredo e agrave oralidade como estra-

teacutegia de garantia das diferentes leituras540

A essa problemaacutetica pertence a polecircmica sobre o fim do pitagorismo em eacutepoca

heleniacutestica A questatildeo mereceria sozinha uma nova tese Eacute aqui lembrada simplesmente

como ilustraccedilatildeo das tentativas de inserir uma loacutegica evolutiva na histoacuteria do pitagoris-

mo agrave qual todavia a tradiccedilatildeo parcialmente resiste Eacute comum entre os comentadores

atuais na esteira de Burkert (1961 232) postular um reflorecer do pitagorismo nos uacutel-

timos anos do primeiro seacuteculo aEC depois de sua extinccedilatildeo que teria ocorrido em 360

aEC ano em que Aristoxeno declara ter conhecido o uacuteltimo pitagoacuterico (fr 14 Wehrli)

O renascimento do pitagorismo eacute testemunhado por Ciacutecero em sua introduccedilatildeo agrave tradu-

ccedilatildeo do Timeu seu amigo Nigiacutedio Fiacutegulo teria feito reviver (renovaret) o pitagorismo

(Cicero Timaeus 11) As duas fases do pitagorismo natildeo estariam somente separadadas

no tempo pois segundo o proacuteprio Burkert (1982) os dois movimentos seriam bastante

heterogecircneos541

540 Trata-se mais provavelmente das doutrinas simboacutelicas (τὸν τῆς διδασκαλίας τρόπον συmicroβολικὸν) ndash na terminologia usada por Jacircmblico (VP 20) ndash representadas pela memoacuteria dos acusmata

541 Cf Contraacuterios agrave ruptura defendida por Burkert tanto Doumlrrie (1963 269) quanto Kingsley (1995 320ss)

242

Entretanto o postulado da ruptura entre o pitagorismo antigo e o neopitagorismo

incorre em algumas dificuldades Primeiramente para se sustentar precisa esquecer a

continuidade ao menos literaacuteria e cultural representada pela literatura pseudoepigraacutefica

heleniacutestica que preenche o pretenso gap de trecircs seacuteculos que a ruptura criara Aleacutem de

natildeo estar claro qual seja o valor histoacuterico a ser concedido aos testemunhos acima de

Aristoxeno e Ciacutecero542

Por outro lado as vantagens dessa separaccedilatildeo para certa historiografia do pitago-

rismo satildeo incomparaacuteveis Notadamente por permitirem empurrar para uma eacutepoca tardia

aquelas caracteriacutesticas acusmaacuteticas da filosofia pitagoacuterica que deviam parecer destoan-

tes com a imagem canonizada do iluminismo jocircnico e da filosofia itaacutelica antigos Eacute cer-

tamente o caso de Dodds quando afirma que

Muitos estudiosos do tema viram no seacuteculo I aEC o periacuteodo decisivo de Weltwende periacuteodo no qual a mareacute do racionalismo que nos cem anos anteriores se havia desenvolvido como nunca finalmente havia esgotado seu impulso e comeccedilado a recuar Natildeo resta duacutevida de que todas as escolas filosoacuteficas exceto a epicurista tomaram neste mo-mento um novo caminho [] Da mesma forma eacute significativo o re-nascimento do pitagorismo apoacutes dois seacuteculos de aparente esqueci-mento natildeo como escola doutrinaacuteria formal mas como culto e como estilo de vida Confiava abertamente na autoridade natildeo na loacutegica Pi-taacutegoras era apresentado como um saacutebio inspirado (Dodds 1951 247)

Contudo essas mesmas caracteriacutesticas que Dodds atribui ao neopitagorismo a

de constituir-se como biacuteos em oposiccedilatildeo agrave doutrina de uma escola de cultivar o princiacutepio

da autoridade e mesmo de apresentar Pitaacutegoras como um homem divino todas poderi-

am valer jaacute para o protopitagorismo

O preconceito historiograacutefico que desenha o caminho desta hermenecircutica da se-

paraccedilatildeo eacute aquele do esgotamento em eacutepoca tardia do impulso racional da filosofia

claacutessica Eacute possiacutevel encontraacute-lo mesmo em um autor como Festugiegravere frequentador

assiacuteduo da literatura miacutestica antiga Seu juiacutezo sobre o neopitagorismo que natildeo esconde

um sentimento de escacircndalo e o repuacutedio pessoal do comentador eacute aquele de uma per-

versatildeo ou uma degradaccedilatildeo da pura ciecircncia teoreacutetica claacutessica em consequecircncia do rela-

xamento das morais contemporacircneas (Festugiegravere 1932 74-77)

Contra a ideia dessa ruptura portanto para aleacutem dos argumentos que tendem a

consideraacute-la bastante duvidosa do ponto de vista histoacuterico pesa tambeacutem a observaccedilatildeo 542 Cf para isso os argumentos de Kingsley (1955 323-324)

243

da origem protopitagoacuterica de praacuteticas e doutrinas que a criacutetica quis empurrar para o pi-

tagorismo tardio por representarem um incocircmodo hermenecircutico na busca da pura filoso-

fia em suas origens A continuidade portanto eacute maior do que se quis geralmente admi-

tir Desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo pitagoacuterica biacuteos e theoriacutea continuam fundamentalmente

inseparaacuteveis

A imagem que resulta da anaacutelise da categoria do pitagorismo eacute a de uma grande

tradiccedilatildeo filosoacutefica homogecircnea que pretende compreender o ser humano o ceacuteu a histoacute-

ria a poliacutetica mediante conceitos como harmonia nuacutemero justiccedila etc E todavia por-

quanto esta imagem do pitagorismo possa parecer fascinante e tenha conquistado adep-

tos ao longo de toda histoacuteria do Ocidente eacute ela mesma resultado de uma categorizaccedilatildeo

que por sua vez obedece aos interesses de quem conta a histoacuteria desta forma A vulgata

platocircnica agrave qual teriam sido reconduzidas as diversas tradiccedilotildees pitagoacutericas anteriores

constitui o eixo historiograacutefico fundamental dessa reconstruccedilatildeo como os exemplos das

teorias da imortalidade da alma e da doutrina dos nuacutemeros bem demonstraram A recep-

ccedilatildeo neoplatocircnica de maneira especial recobre um papel central nesse sentido graccedilas agrave

sistematizaccedilatildeo do pitagorismo em suas Vidas

Mesmo que tenha se demonstrado aacuterduo quanto do pitagorismo antigo haveria

sobrado de fato nessa recepccedilatildeo acadecircmica natildeo eacute possiacutevel negar que a vulgata platocircnica

tenha contribuiacutedo positivamente para imortalizar o pitagorismo como ldquoa filosofiardquo por

antonomaacutesia permitindo que o conjunto de estilos e doutrinas ldquoassim chamadas pitagoacute-

ricasrdquo conquistasse a simpatia quando natildeo mesmo uma adesatildeo incondicional de tantas

e diversas personagens ao longo da histoacuteria desde os renascentistas Marsilio Ficino e

Pico della Mirandola ateacute os precursores da ciecircncia moderna Copernico Kepler e Gali-

leu543

Frequentemente o sucesso histoacuterico do pitagorismo eacute utilizado para justificar re-

troativamente o valor de uma tradiccedilatildeo que em si mesma encontra-se irremediavelmente

contaminada por elementos suspeitos e inaceitaacuteveis ao olhar do cientista moderno Com

543 Copernico reconhece explicitamente a influecircncia pitagoacuterica sobre a tese da mobilidade da terra no Prefaacutecio de seu De revolutionibus Pythagoreorum amp quorundam aliorum sequi exemplum Nesta tese refere-se ao Edito da Sagrada Congregaccedilatildeo do Iacutendice (datado 5 de marccedilo de 1616) citado por Galileu no iniacutecio de seu Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico e copernicano ldquoSi promulgograve a gli anni passati in Roma un salutifero editto che per ovviare a pericolosi scandoli delletagrave presente imponeva opportuno silenzio allopinione Pittagorica della mobilitagrave della Terrardquo De sua parte Kepler eacute chamado de ldquoPitaacutegoras redivivusrdquo por Riedweg (2002 206) por procurar demonstrar a fundamental har-monia do mundo em perspectiva cristatildeo-pitagoacuterica e por se considerar intelectualmente a proacutepria reen-carnaccedilatildeo de Pitaacutegoras

244

um aliacutevio mal escondido parte da criacutetica contemporacircnea reconhece que apesar de tudo

sua influecircncia na ciecircncia moderna fornece agrave conturbada histoacuteria do pitagorismo um ldquofi-

nal felizrdquo (happy ending ndash Kahn 2001 X)544

Entretanto natildeo eacute algo dado que a histoacuteria do pitagorismo precise desse final fe-

liz cientiacutefico Ao contraacuterio as paacuteginas da presente tese pretenderam mostrar que esta

metodologia de coleta seletiva no interior das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo eacute histori-

camente incorreta e filosoficamente vatilde Burkert por sua vez indicava para isso em rela-

ccedilatildeo agrave compreensatildeo da proacutepria figura de Pitaacutegoras cujos problemas de equivocidade

espelham-se ao longo de toda a categoria historiograacutefica do pitagorismo

Pareceu muitas vezes suficiente um ldquonatildeo somente-mas tambeacutemrdquo ele natildeo era somente um curandeiro mas tambeacutem um pensador Contudo natildeo seraacute talvez que ateacute um xamatilde possa realizar conquistas intelectuais sem necessariamente revesti-las em uma forma estritamente racional ou conceitual (Burkert 1972 209)545

Mais uma vez portanto eacute a consciecircncia da equivocidade de categorias como fi-

losofia religiatildeo e ciecircncia ndash frequentemente usadas em sua acepccedilatildeo mais positivista na

descriccedilatildeo do que seria filosofia em suas origens ndash que permitiu mostrar a necessidade

metodoloacutegica de superar uma visatildeo excessivamente presentista da filosofia antiga que

procura reduzir o passado a uma prova geral do presente

Ainda que desse percurso historiograacutefico resulte uma imagem um tanto difusa do

pitagorismo ela deve ser preferida agraves vaacuterias tentativas demasiadamente claras e distintas

de fechar sua multifacetada complexidade nos moldes estreitos de uma categorizaccedilatildeo

irremediavelmente insuficiente Ecoam aqui as palavras de Wittgenstein relacionadas

por ele ao conceito de jogo de linguagem

Poderia-se dizer que o conceito de ldquojogordquo eacute um conceito de contornos nebulosos lsquoMas um conceito nebuloso eacute de fato um conceitorsquo ndash Uma foto pouco niacutetida eacute ainda um retrato de algueacutem Seraacute que eacute sempre

544 Assim Kahn (2001 X) ldquo[Pythagorean] tradition includes so many elements of wild almos supersti-tious speculation for example in numerology that it is sometimes difficult to remember that there is also a solid basis for numerical harmonics So Copernicus and Kepler with their fundamental contributions to modern science and to the modern world view may be regarded as providing the Pythagorean story with a happy endingrdquo 545 Orig ldquoOften a simple lsquonot only-but alsorsquo has seemed enough he was not only a lsquomedicine manrsquo but also a thinker But may not even a lsquoshamanrsquo perhaps accomplish intellectual feats without necessarily clothing them in strictly rational or conceptual formrdquo

245

vantajoso trocar um retrato pouco claro por outro niacutetido Natildeo eacute exa-tamente daquele pouco niacutetido que muitas vezes precisamos (Witt-genstein 1958 71) 546

A presente tese eacute assim o resultado de uma escolha consciente anunciada na

Introduccedilatildeo de evitar propor simplesmente mais uma interpretaccedilatildeo do pitagorismo es-

sas paacuteginas ao contraacuterio procuraram enfrentar a proacutepria questatildeo historiograacutefica que

subjaz agraves diversas opccedilotildees hermenecircuticas de soluccedilatildeo da ldquoquestatildeo pitagoacutericardquo e que de

certa forma reinventam-na continuamente

Um estudo sobre o pitagorismo ldquoarrisca ser ou inuacutetil ou insuficiente tamanha eacute a

quantidade de literatura tatildeo complexo eacute o problemardquo jaacute anotava lucidamente Maria

Timpanaro Cardini (1958 I 3)547 Se tambeacutem esta tese fosse obrigada a escolher entre

esses dois destinos preferiria certamente crer ter escapado do primeiro ainda que cain-

do inevitavelmente no segundo

546 Orig ldquoOne might say that the concept ldquogamerdquo is a concept with blurred edges lsquoBut is a blurred concept a concept at allrsquo ndash Is an indistinct photograph a picture of a person at all Is it even always an advantage to replace an indistinct picture by a sharp one Isnrsquot the indistinct one often exactly what we needrdquo 547 Orig ldquorischia di essere o inutile o insufficiente tanta egrave la mole della letteratura tanto complesso egrave il problemardquo

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ANEXOS

271

Anexo 1

Papiro Derveni Col XX

272

Anexo 2

Placa de Oacutelbia 1 (= 94a Dubois)

273

274

Anexo 3

Placa de Oacutelbia 3 (= 94c Dubois)

275

276

Anexo 4

Lacircmina de Hipponion

  • Em busca do pitagorismoo pitagorismo como categoria historiograacutefica
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
  • INTRODUCcedilAtildeO
  • CAPIacuteTULO PRIMEIRO
    • 11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos
    • 12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo
    • 13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo
    • 14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos
    • 15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo
    • 16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica
    • 17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica
    • 18 De Burkert a Kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica
    • 19 Conclusatildeo
      • CAPIacuteTULO SEGUNDO
        • 21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica
        • 22 Identidade pitagoacuterica
        • 23 A koinoniacutea pitagoacuterica
        • 24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos
        • 25 Conclusatildeo
          • CAPIacuteTULO TERCEIRO
            • 31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes)
            • 32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios)
            • 33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles)
            • 34 Platatildeo e orfismo
            • 35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito
            • 36 Lendas sobre a imortalidade
            • 37 Demoacutecrito pitagoacuterico
            • 38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos
            • 39 Conclusatildeo
              • CAPIacuteTULO QUARTO
                • 41 Tudo eacute nuacutemero
                • 42 Os fragmentos de Filolau
                • 43 Conclusatildeo
                  • CONCLUSAtildeO
                  • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Page 3: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP ...Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VP = Porfírio: Vida de Pitágoras ou Jâmblico: Vida Pitagórica 14 INTRODUÇÃO Em

3

Cornelli Gabriele Em busca do pitagorismo o pitagorismo como categoria historiograacutefica Gabriele Cor-

nelli orientador Roberto Bolzani Filho ndash Satildeo Paulo 2010 276 f Tese (Doutorado ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Aacuterea de Concentraccedilatildeo

Histoacuteria da Filosofia) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

1 Histoacuteria da Filosofia Antiga 2 Preacute-socraacuteticos 3 Pitagorismo 4 Tradiccedilatildeo pitagoacuterica

5 Pitaacutegoras

4

ldquoPittagora volse che tutte fossero duna nobilitate non solamente le umane ma con le umane quelle de li animali bruti e de le piante e le forme de le minere e disse che tutta la differenza egrave de le corpora e de le formerdquo Dante Alighieri Convivio IV xxi3

5

para Monique metade

uma medida que se supera

6

AGRADECIMENTOS

Agrave generosa e delicada orientaccedilatildeo do Prof Roberto Bolzani Filho

Agrave paciecircncia e ao abraccedilo de quem todo dia divide o mamatildeo e a cama comigo

Monique e Brigitte

A Marcelo Carvalho mais que companheiro de tanta filosofia parceiro de mui-

tas vidas

Aos colegas que das mais variadas formas contribuiacuteram para o aprimoramento

desta tese De maneira especial aos amigos Gianni Casertano (spero di averti convinto)

e Andreacute Chevitarese como tambeacutem a Fernando Santoro Tom Robinson Laura Gemelli

Marciano Bruno Centrone Carl Huffman Christoph Riedweg Alberto Bernabeacute Livio

Rossetti Andreacute Laks Luc Brisson Rachel Gazolla Macris Constantin Thomas Szle-

zaacutek Franco Trabattoni Anastaacutecio Borges de Araujo Hector Benoit Pedro Paulo Funa-

ri Marcelo Perine Miriam Campolina Peixoto Fernando Rey Puente Emmanuele Vi-

mercati Edrisi Fernandes Walter Neto Joseacute Gabriel Trindade Santos Gerson Brea

Dennys Garcia Xavier que tiveram a gentileza de discutir comigo partes da pesquisa

que originou esta tese

Aos alunos do Archai que com sua dedicaccedilatildeo e entusiasmo ainda me surpreen-

dem e confirmam as razotildees de minha paixatildeo pela filosofia antiga

Ao Departamento de Filosofia da Universidade de Brasiacutelia que me concedeu o

tempo necessaacuterio para concluir este projeto e um lugar onde poder compartilhaacute-lo

Agrave CAPES e ao CNPq que me permitiram ter acesso a quase toda a bibliografia

relevante sobre o tema aleacutem de realizar alguns estaacutegios de pesquisa e participar de se-

minaacuterios e congressos

7

RESUMO

CORNELLI G Em busca do pitagorismo o pitagorismo como categoria historiograacutefi-

ca 2010 276 f Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas

Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2010

A presente tese explora como soluccedilatildeo para o controvertido quadro geral da moderna

histoacuteria da criacutetica sobre Pitaacutegoras e seu movimento a definiccedilatildeo do pitagorismo como

categoria historiograacutefica Superando tanto o dilema entre ceticismo e confianccedila nas fon-

tes como a pretensatildeo de alcanccedilar uma uacutenica chave hermenecircutica que permita resolver a

ldquoquestatildeo pitagoacutericardquo procura percorrer a histoacuteria da tradiccedilatildeo em busca de uma imagem

suficientemente plural a ponto de possibilitar a compreensatildeo do pitagorismo em sua

irredutiacutevel articulaccedilatildeo de biacuteos e theoriacutea e natildeo apesar dela A configuraccedilatildeo da comunida-

de e de seu biacuteos eacute percebida como elemento central de identificaccedilatildeo do pitagorismo A

anaacutelise das duas teorias que mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo do pita-

gorismo ao longo da histoacuteria a transmigraccedilatildeo da alma imortal e a doutrina dos nuacutemeros

procura definir as condiccedilotildees de possibilidade de atribuiacute-las ao pitagorismo mais antigo e

as formas pelas quais ambas teriam contribuiacutedo ao longo da histoacuteria para a definiccedilatildeo

do pitagorismo como categoria historiograacutefica As fontes preacute-socraacuteticas a platonizaccedilatildeo

do pitagorismo o testemunho aristoteacutelico sobre os ldquoassim chamadosrdquo pitagoacutericos a

literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica e o pitagorismo de eacutepoca imperial satildeo entendidos

como momentos de um percurso histoacuterico que resulta em uma imagem polieacutedrica de um

dos maiores fenocircmenos intelectuais da histoacuteria ocidental

Palavras-chave Histoacuteria da Filosofia Antiga Preacute-socraacuteticos Pitagorismo Tradiccedilatildeo pi-

tagoacuterica Pitaacutegoras

8

ABSTRACT

CORNELLI G In Search of Pythagoreanism Pythagoreanism as historiographical Cat-

egory 2010 276 f Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Hu-

manas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2010

This thesis explores the definition of Pythagoreanism as historiographical category seen

as solution for the controversial general framework of modern history of criticism about

Pythagoras and his movement Overcoming both the dilemma between skepticism and

faith in the sources and the claim to achieve a single hermeneutical key to solve the ldquoPy-

thagorean questionrdquo in it searches are made throughout the history of tradition looking

for an image sufficiently plural in order to understand Pythagoreanism in accordance

with its irreducible articulation of biacuteos and theoriacutea not despite it The setting of the

community and its biacuteos is understood as central element for Pythagorean identification

An analysis of the two theories that more decisively contributed to the definition of Py-

thagoreanism throughout history the transmigration of the immortal soul and the doc-

trine of numbers attempts to define the conditions of possibility to assign them to the

earlier Pythagoreanism and the ways in which these have contributed throughout history

to the definition of Pythagoreanism as historiographical category Presocratic sources

the platonization of Pythagoreanism Aristotles testimony about the so-called Pytha-

goreans the hellenistic Pseudoepigrapha and Pythagoreanism in imperial age are un-

derstood as moments of an historical route resulting in a polyhedral image of one of the

greatest intellectual phenomena in Western history

Key Words History of Ancient Philosophy Presocratics Pythagoreanism Pythagorean

Tradition Pythagoras

9

SUMAacuteRIO

Lista de Abreviaccedilotildees 12

INTRODUCcedilAtildeO 14

Em busca do pitagorismo 14

Esta tese 18

1 HISTOacuteRIA DA CRIacuteTICA DE ZELLER A KINGSLEY 21

11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos 23

12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo 28

13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo 30

14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos 32

15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo 35

16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica 40

17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica 51

18 De Burkert a kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica 58

19 Conclusatildeo 69

2 O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRAacuteFICA 72

21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica 72

22 Identidade pitagoacuterica 76

23 A koinoniacutea pitagoacuterica 83

24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos 103

25 Conclusatildeo 111

3 IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE 114

31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes) 117

32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios) 124

33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles) 128

10

34 Platatildeo e orfismo 130

341 ldquoCompreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo 132

342 Hierarquia das encarnaccedilotildees 138

343 Socircma-secircma 140

344 Mediaccedilatildeo pitagoacuterica 150

35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito 156

36 Lendas sobre a imortalidade 159

37 Demoacutecrito pitagoacuterico 163

38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos 165

39 Conclusatildeo 171

4 NUacuteMEROS 174

41 Tudo eacute nuacutemero 176

411 Trecircs versotildees da doutrina pitagoacuterica dos nuacutemeros 176

412 Duas soluccedilotildees 186

413 A ldquosoluccedilatildeordquo filolaica 190

4131 Um livro ou trecircs livros 191

4132 Autenticidade dos fragmentos de Filolau 194

4133 A tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica doacuterica 196

414 A exceccedilatildeo aristoteacutelica (Metafiacutesica A 6 987b) 200

415 O testemunho platocircnico (Filebo 16c-23c) 210

42 Os fragmentos de Filolau 216

421 Ilimitadoslimitantes 216

422 O papel dos nuacutemeros em Filolau 223

43 Conclusatildeo 231

CONCLUSAtildeO 237

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 246

11

A) Fontes Primaacuterias 246

B) Fontes Secundaacuterias 250

ANEXOS 270

12

LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES

Ael = Aeliano

aEC = antes da Era Comum (= aC)

Aesch = Eacutesquilo

Anon Phot = Anocircnimo de Foacutecio Thesleff

Arist = Aristoacuteteles

Crat = Platatildeo Craacutetilo

D L = Dioacutegenes Laeacutercio

De Abst= Porfiacuterio A abstinecircncia dos animais

De an = Aristoacuteteles De anima

De Comm Mathem = Jacircmblico De communi mathematica scientia

Diod Sic = Diodoro Siacuteculo

DK = Diels-Kranz

EC = Era Comum (= dC)

EN = Aristoacuteteles Eacutetica Nicomaqueia

FGrHist = Die Fragmente der Griechishen Historiker Jacoby

Herodt= Heroacutedoto

Iambl = Jacircmblico

Il = Homero Iliacuteada

In Metaph = Alexandre de Afrodiacutesia Comentaacuterios sobre a Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Leg = Platatildeo Leis

lit = literalmente

Men = Platatildeo Mecircnon

Met = Aristoacuteteles Metafiacutesica

Metam = Oviacutedio Metamorfoses

Mete = Aristoacuteteles Metereologica

n = nota

Od = Homero Odisseacuteia

Orig = No original

P Derv = Papiro Derveni

Phaed = Platatildeo Feacutedon

13

Phaedr = Platatildeo Fedro

Phlb = Platatildeo Filebo

Phot Bibl= Foacutecio Biblioteca

Phys = Aristoacuteteles Fiacutesica

PL = Patrologia Latina Migne

Porph = Porfiacuterio

Procl In Tim = Proclo Comentaacuterio ao Timeu

Prom = Eacutesquilo Prometeu

Resp = Platatildeo Repuacuteblica

Retr = Agostinho Retractationes

Schol In Phaedr = Escoacutelios sobre o Fedro Greene

Schol In Soph = Escoacutelios sobre Soacutefocles Elmsley

Soph El = Soacutefocles Electra

Speusip = Espeusipo

Stob = Estobeu Anthologium

Syrian In Met = Proclo Comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles

Theophr Met = Teofrasto Metafiacutesica

VH = Aeliano Varia Historia

Vitae = Dioacutegenes Laeacutercio Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres

VP = Porfiacuterio Vida de Pitaacutegoras ou Jacircmblico Vida Pitagoacuterica

14

INTRODUCcedilAtildeO

Em busca do pitagorismo

Segundo Kahn (1974 163) natildeo satildeo necessaacuterias em nossos dias novas teses so-

bre o pitagorismo

Interpretaccedilotildees muito diacutespares acabaram de fato ao longo da histoacuteria da criacutetica

por resultar em conclusotildees diversas e incompatiacuteveis ao ponto de Kahn sugerir que no

lugar de mais uma tese sobre o pitagorismo deveria ser preferido um trabalho de avali-

accedilatildeo das tradiccedilotildees que pudesse resultar em uma boa apresentaccedilatildeo historiograacutefica1 Essa

velha tese de Kahn formulada haacute mais de trinta anos orienta a presente opccedilatildeo por uma

tese de marca fundamentalmente historiograacutefica e natildeo filoloacutegica isto eacute que natildeo se de-

dique exclusivamente agrave exegese de fontes como Filolau Arquitas ou mesmo de uma das

Vidas heleniacutesticas por exemplo ou ainda agrave abordagem teoreacutetica de uma das temaacuteticas

que receberam a especiacutefica contribuiccedilatildeo do pitagorismo como matemaacutetica cosmologia

poliacutetica teoria da alma Assim a presente tese propotildee-se a reconstituir a maneira como

a tradiccedilatildeo estabeleceu a imagem do pitagorismo

Natildeo que uma apresentaccedilatildeo historiograacutefica natildeo tenha em suas bases uma herme-

necircutica ou uma precompreensatildeo teoreacutetica da filosofia pitagoacuterica a partir de suas fontes

Todavia a opccedilatildeo pela historiografia possui ao menos duas vantagens incontestaacuteveis A

primeira delas diz respeito agrave postura necessariamente criacutetica e ateacute certo ponto relativis-

ta que o trabalho historiograacutefico pressupotildee Esta postura estaacute bem expressa por Luciano

Canfora

1 A oportunidade de voltar agrave tese de Kahn foi sugerida por Casertano que se referiu a ela em seu mais recente livro sobre os preacute-socraacuteticos (Casertano 2009 56) Cf Kahn (1974 163 n6) ldquoItrsquos hard enough to satisfy minimal standards of historical rigor in discussing the Pythagoreans without introducing arbi-trary guesswork of this sort where no two students can come to the same conclusion on the basis of the same evidence In fact the direct testimony for Pythagorean doctrines is all too abundant The task for serious scholarship is not to enrich these data by inventing new theories or unattested stages of develop-ment but to sift the evidence so as to determine which items are most worthy (or least unworthy) of be-liefrdquo O contexto proacuteprio da observaccedilatildeo de Kahn eacute aquele da criacutetica ao apriorismo na reconstruccedilatildeo do pitagorismo a partir de evidecircncias circunstanciais de autores como Guthrie conforme seraacute discutido adiante (15)

15

Trata-se de ter noccedilatildeo da constante e consubstancial relatividade do tra-balho do historiador Dependendo da distacircncia do evento tratado os his-toriadores fornecem um perfil e revelam faces cada vez diferentes todas no fundo de alguma maneira verdadeiras e muitas vezes complementa-res entre elas nenhuma exaustiva como natildeo seria exaustiva a soma mecacircnica de todas elas (Canfora 2002 8-9)2

A primeira vantagem da abordagem historiograacutefica ao pitagorismo eacute portanto

aquela da tomada de consciecircncia inicial do fato de que nenhuma das teses sobre o pita-

gorismo poderaacute ser exaustiva ndash nas palavras de Canfora ndash deixando assim de certo

modo as matildeos livres para uma articulaccedilatildeo historiograacutefica que possa apresentar o pita-

gorismo em sua complexa diversidade Talvez seja este o maior problema da monogra-

fia mais recente sobre o pitagorismo escrita por Riedweg (2002) e justamente criticada

nesse sentido por Huffman (2008a) trata-se de uma abordagem geral ao pitagorismo

que se alinha a uma ou outra interpretaccedilatildeo global do movimento Pode seguir em senti-

do mais miacutestico-religioso por exemplo Detienne (1962 1963) Burkert (1972) e Kings-

ley (1995) ou em perspectiva mais poliacutetica Von Fritz (1940) e Minar (1942) Contudo

se esquece de dar conta daquela que eacute talvez a questatildeo fundamental a presenccedila de uma

histoacuteria da interpretaccedilatildeo que jaacute na antiguidade ndash basta ver o proacutelogo da Vida Pitagoacuteri-

ca de Jacircmblico ndash quis reunir experiecircncias e doutrinas totalmente diversas (quando natildeo

mesmo contraditoacuterias) na categoria historiograacutefica do pitagorismo Dessa forma pensar

o pitagorismo como categoria historiograacutefica significa antes de tudo superar metodo-

logicamente a ilusatildeo da possibilidade de alcanccedilar a coisa em si a histoacuteria verdadeira

aceitando confrontar-se conscientemente com a necessaacuteria mediaccedilatildeo representada por

quem a escreve a cada momento

A segunda vantagem comparativa de uma abordagem historiograacutefica no lugar

do desenvolvimento de mais uma interpretaccedilatildeo dessa filosofia diz respeito a um dos

problemas centrais que caracterizam o pitagorismo quando comparado com outros mo-

vimentos filosoacuteficos do mundo antigo aquele do terreno especialmente movediccedilo da

criacutetica das fontes Eacute certamente o caso de enfrentar ao longo da tese com renovado

esforccedilo interpretativo e filoloacutegico a questatildeo central da expansatildeo da tradiccedilatildeo de zelleri-

ana memoacuteria e a deriva ceacutetica que esta impotildee normalmente aos comentadores

2 Orig ldquoSi tratta di prendere nozione della costante e consustanziale relativitagrave del mestiere dello storico A seconda della distanza dallrsquoevento trattato gli storici ne danno um profilo e ne rileveranno delle facce volta a volta differenti tutte in fondo in qualche modo vere e spesso tra loro complementari nessuna esaustiva come esaustiva non sarebbe neanche la meccanica somma di tutte queste faccerdquo

16

A vantagem de uma abordagem historiograacutefica eacute aquela portanto de tentar a-

braccedilar o pitagorismo em sua totalidade isto eacute abordando a problemaacutetica de suas fontes

para poder compreendecirc-lo por meio de e natildeo apesar de sua complexa articulaccedilatildeo ao

longo de mais de um milecircnio de histoacuteria da filosofia antiga Ainda que essa perspectiva

tenha sido de fato inaugurada por Burnet (1908) e depois reafirmada por Cornford

(1922 1923) e Guthrie (1962) eacute possiacutevel encontrar uma abordagem especialmente

compreensiva sobretudo na tradiccedilatildeo historiograacutefica italiana sobre o pitagorismo inau-

gurada por autores claacutessicos como Rostagni (1922) e Mondolfo (na ediccedilatildeo revista e co-

mentada de Zeller 1938) O problema das fontes preacute-socraacuteticas (mas natildeo somente delas

veja-se o caso da traditio dos proacuteprios textos de Platatildeo e Aristoacuteteles nesse sentido) que

se baseia em sua elaboraccedilatildeo tardia assume diante da expansatildeo da tradiccedilatildeo pitagoacuterica

conotaccedilatildeo de especial dramaticidade Se eacute verdade ndash como demonstra de forma convin-

cente Burkert (1972 15-96) ndash que a existecircncia de uma filosofia pitagoacuterica depende em

larga medida da invenccedilatildeo de uma vulgata pitagoacuterica (pesadamente transfigurada) por

parte dos acadecircmicos e ainda se eacute provaacutevel que os assim chamados pitagoacutericos de

Aristoacuteteles sejam fundamentalmente filoacutesofos como Filolau ou seja uma segunda (ou

terceira) geraccedilatildeo do movimento eacute entatildeo certamente o caso de perguntar-se o que as

fontes mais tardias teriam para nos dizer de historicamente confiaacutevel sobre o protopita-

gorismo isto eacute sobre aquele momento inaugural do desenvolvimento da tradiccedilatildeo do

pitagorismo que corresponde a Pitaacutegoras e seus primeiros disciacutepulos3 Contudo eacute ain-

da o caso de perguntar-se se seria possiacutevel falar algo deste sem as trecircs Vidas (bem pos-

teriores com quase um milecircnio de diferenccedila) de Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio e Jacircmblico

Procedem nesse sentido as duacutevidas de Zhmud

Por que as diferenccedilas doutrinaacuterias satildeo tatildeo grandes no pitagorismo Primeiramente porque ele natildeo surgiu como uma escola filosoacutefica e portanto natildeo foi jamais fundamental o seguir a totalidade de determi-nadas doutrinas (Zhmud 1989 289)4

3 Introduz-se aqui de forma ineacutedita o termo protopitagorismo por considerar necessaacuteria uma distinccedilatildeo entre esse primeiro momento fundador do pitagorismo e um segundo momento de elaboraccedilatildeo do pitago-rismo ao longo do V seacuteculo aEC ainda ldquopreacute-socraacuteticordquo que se utiliza da escrita e corresponde ao estaacutegio das fontes imediatas de Platatildeo e Aristoacuteteles Para os modos de utilizaccedilatildeo e o sentido do uso do termo anaacutelogo protofilosofia cf Boas (1948 673-684) 4 Orig ldquoWhy are the doctrinal differences so great in Pythagoreanism First of all because it had not arisen as a philosophic school and belonging to it had never been determined by following the sum of certain doctrinesrdquo

17

Como tambeacutem eacute possiacutevel concluir com Centrone (1996 91) que o pitagorismo

antigo seria uma associaccedilatildeo fundada sobre particular estilo de vida seguindo as regras

de um biacuteos especiacutefico expressas por akouacutesmata fundamentalmente escatoloacutegicos

No entanto esta koinonia de vida foi reconhecida pela filosofia jaacute antiga (veja-se

Xenoacutefanes e Heraacuteclito) como referecircncia de uma maneira de fazer filosofia e identificada

por uma complexa seacuterie (ainda que nem sempre coerente como seraacute visto) de persona-

gens e ensinamentos que passaram a ser chamados de pitagoacutericos isto eacute o termo pita-

gorismo foi associado a uma filosofia tambeacutem natildeo apenas a um estilo de vida

Eacute sobretudo esta identificaccedilatildeo da categoria pitagoacuterico que atrai a atenccedilatildeo do his-

toriador da filosofia Por esses motivos portanto uma discussatildeo historiograacutefica seraacute o

objetivo da presente tese

O esforccedilo por traccedilar um perfil inclusivo e compreensivo das condiccedilotildees e das

possibilidades de definir-se o que seja pitagorismo ou pitagoacuterico no interior de um mo-

vimento filosoacutefico de tamanha amplidatildeo histoacuterica e teoreacutetica acaba por confundir-se

com a intenccedilatildeo de contribuir metodologicamente para uma revisatildeo historiograacutefica da

filosofia antiga em geral pois compreender esse movimento eacute determinante para a com-

preensatildeo das origens da filosofia e de forma mais geral do pensamento ocidental Os

elementos sensiacuteveis da historiografia do pitagorismo tornam-no um locus privilegiado

para um exerciacutecio que almeja alcance historiograacutefico maior e que se encontra nas entre-

linhas da presente tese

Permito-me neste momento uma nota pessoal visto que toda tese ao que pare-

ce estaacute vinculada a um projeto intelectual mais geral tanto de pesquisa quanto de vida

apesar de uma formaccedilatildeo voltada tanto para a filologia (especialmente grega e hebraica)

quanto para a historiografia (da religiatildeo e da filosofia antiga) eacute para esta segunda que

dediquei mais aprofundadamente minhas reflexotildees nos uacuteltimos dez anos Uma nova

ediccedilatildeo e traduccedilatildeo da literatura pitagoacuterica estaacute ainda em minhas atribuiccedilotildees atuais E

todavia estou convencido de que uma tese sobre o pitagorismo mereccedila antes de tudo

uma ldquoarrumaccedilatildeo da casardquo historiograacutefica ou seja a definiccedilatildeo do status quaestionis e de

meu posicionamento no interior dele Nessa escolha encontro-me bem acompanhado

por autores claacutessicos sobre o pitagorismo como eacute o caso do Thesleff comentador e edi-

tor da literatura (pseudo)pitagoacuterica heleniacutestica em 1961 publicou uma Introduccedilatildeo agrave

ediccedilatildeo dos textos pseudoepigraacuteficos que sairiam publicados somente quatro anos de-

18

pois em 1965 A ediccedilatildeo dos textos ou mesmo somente sua traduccedilatildeo eacute diretamente in-

formada pela lectio hermenecircutica do autor obviamente A ordem entatildeo se natildeo da pu-

blicaccedilatildeo ao menos do trabalho eacute dificilmente intercambiaacutevel

Eacute esta mesma sequecircncia que orienta a definiccedilatildeo da presente tese primeiro o tra-

balho historiograacutefico

Esta tese

Uma boa apresentaccedilatildeo historiograacutefica trataraacute de fazer emergir dos arquivos da

histoacuteria da interpretaccedilatildeo do pitagorismo os pontos sensiacuteveis que contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo de tantas e diversas lectiones sobre o pitagorismo Eacute mister concordar com

Huffman quando afirma que ldquoo pitagorismo eacute uma aacuterea de estudo repleta de toacutepicos

controvertidosrdquo (Huffman 2008b 225)5 Ao mesmo tempo todavia natildeo eacute correto con-

jecturar que a imagem multifacetada do pitagorismo conforme se apresenta ao longo da

histoacuteria da tradiccedilatildeo possa derivar simplesmente de uma seacuterie de acidentes de percurso

que teriam transformado uma imagem pretensamente homogecircnea em suas origens em

um conjunto polieacutedrico de doutrinas e personagens

O proacuteprio Burkert afirma isso no Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde de sua obra funda-

mental sobre o pitagorismo Lore and Science in Ancient Pythagoreanism

Se Pitaacutegoras natildeo se apresenta agraves nossas mentes como uma figura bem delineada em peacute na luz brilhante da histoacuteria isto natildeo eacute simplesmente o resultado de acidentes ao longo do percurso da tradiccedilatildeo histoacuterica (Burkert 1972 Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde)6

Ao contraacuterio essa imagem eacute o resultado de escolhas historiograacuteficas bem preci-

sas e que obedecem a cada momento agrave compreensatildeo do que era a filosofia em suas

origens (em perspectiva genealoacutegica) e por consequecircncia do que eacute a filosofia desde

suas origens (em perspectiva histoacuterica) Desde o proacutelogo da Vida Pitagoacuterica de Jacircmbli-

5 Orig ldquoPythagoreanism is an area of study that is full of controversial issuesrdquo 6 Orig ldquoIf Pythagoras does not present himself to our minds as a sharply outlined figure standing in the bright light of history this is not merely the result of accidents in the course of historical transmissionrdquo

19

co (Iambl VP 1) ateacute agraves Liccedilotildees sobre histoacuteria da filosofia de Hegel e agraves recentes inter-

pretaccedilotildees de Kingsley (1995) eacute possiacutevel confrontar-se com as precompreensotildees que

levaram a privilegiar esta ou aquela imagem e a resolver de uma ou outra forma a ques-

tatildeo pitagoacuterica (Burkert 1972 I)

Esta tese pretende portanto acompanhar o percurso dessas escolhas verificando

onde for possiacutevel seus pressupostos e revelando as consequecircncias destas para a interpre-

taccedilatildeo natildeo somente de algumas temaacuteticas centrais mas especialmente da proacutepria cons-

truccedilatildeo do pitagorismo como categoria

O Capiacutetulo Primeiro seraacute portanto dedicado agrave compreensatildeo das linhas mestras

que definiram durante especialmente os uacuteltimos dois seacuteculos o quadro geral da moder-

na histoacuteria da criacutetica sobre o pitagorismo A imagem da ciecircncia que deste resultaraacute eacute a

de uma intricada sucessatildeo de controveacutersias e refutaccedilotildees na alternacircncia entre ceticismo e

confianccedila nas fontes que marca a criacutetica da tradiccedilatildeo sobre a filosofia antiga como tal A

dificuldade fundamental que emerge ao longo da histoacuteria das interpretaccedilotildees da polie-

dricidade do fenocircmeno estudado indicaraacute a necessidade de cuidados metodoloacutegicos que

conscientemente permitam descrevecirc-lo como tal em sua irreduziacutevel diversidade

O Capiacutetulo Segundo com a intenccedilatildeo de resolver as dificuldades acima indica-

das exploraraacute as modalidades da definiccedilatildeo do pitagorismo como uma categoria histori-

ograacutefica Comeccedilando pela definiccedilatildeo de duas dimensotildees uma sincrocircnica e outra diacrocirc-

nica que imbricadas entre elas permitam descrever um fenocircmeno de outra forma in-

compreensiacutevel em sua diversidade chega-se agrave discussatildeo dos criteacuterios de identificaccedilatildeo

do pitagoacuterico e da comunidade pitagoacuterica Ainda que com a consciecircncia de que o que-

bra-cabeccedila hermenecircutico das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo ficaraacute sempre inacabado

seraacute proposto um caminho por meio das duas temaacuteticas que mais decididamente contri-

buiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo me-

tempsicose e matemaacutetica A intenccedilatildeo desta anaacutelise seraacute por um lado verificar a possibi-

lidade de atribuiccedilatildeo da origem das duas temaacuteticas para o protopitagorismo e o pitago-

rismo do seacuteculo V aEC por outro a de sinalizar de que maneira essas temaacuteticas colabo-

raram para a categorizaccedilatildeo do pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo

O Capiacutetulo Terceiro portanto enfrentaraacute as tradiccedilotildees sobre a imortalidade da

alma e sua transmigraccedilatildeo A anaacutelise consideraraacute tanto testemunhos filosoacuteficos preacute-

socraacuteticos platocircnicos e aristoteacutelicos como outras tipologias de fontes antigas entre elas

Heroacutedoto a literatura oacuterfica recentes documentos arqueoloacutegicos e a tradiccedilatildeo das lendas

20

sobre as viagens ao aleacutem-tuacutemulo A tradiccedilatildeo pitagoacuterica seraacute encontrada em um lugar

intermediaacuterio entre as teorias da imortalidade oacuterficas e a reelaboraccedilatildeo que destas faz a

filosofia dos seacuteculos V e IV aEC notadamente Platatildeo Na referecircncia de Aristoacuteteles aos

mitos pitagoacutericos seraacute reconhecido o testemunho mais soacutelido da existecircncia de uma teo-

ria protopitagoacuterica da imortalidade da alma

O Capiacutetulo Quarto partindo da constataccedilatildeo de que comumente a matemaacutetica e o

interesse pelos nuacutemeros tecircm sido atribuiacutedos como caracteriacutesticas fundamentais da filo-

sofia pitagoacuterica submeteraacute tais tradiccedilotildees a uma revisatildeo historiograacutefica Como no capiacutetu-

lo terceiro a anaacutelise do testemunho de Aristoacuteteles seraacute decisiva A afirmaccedilatildeo dele pela

qual para os pitagoacutericos ldquotudo eacute nuacutemerordquo seraacute considerada como ao mesmo tempo fon-

te da matemaacutetica do pitagorismo antigo e testemunho do amplo processo de recepccedilatildeo

desta em acircmbito acadecircmico Novamente apareceraacute decisiva portanto a reelaboraccedilatildeo

acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas Todavia Aristoacuteteles demonstraraacute certa indepen-

decircncia desta uacuteltima fundamentalmente graccedilas ao fato de ele poder atingir as fontes preacute-

socraacuteticas independentes pois as nomeia enigmaticamente como os ldquoassim chamados

pitagoacutericosrdquo Seraacute demonstrado que essas fontes correspondem fundamentalmente aos

fragmentos de Filolau A ldquoquestatildeo filolaicardquo portanto seraacute enfrentada a partir da anaacuteli-

se comparativa entre uma ceacutelebre paacutegina de Metafiacutesica A algumas paacuteginas do Filebo e

o proacuteprio livro de Filolau Resultaraacute dessa uma confirmaccedilatildeo por um lado da possibili-

dade de atribuiccedilatildeo de uma teoria numeacuterica senatildeo ao protopitagorismo ao menos ao

pitagorismo do seacuteculo V aEC por outro lado mais uma vez da influecircncia determinante

da (quase) onipresente mediaccedilatildeo acadecircmica sobre a categorizaccedilatildeo da filosofia pitagoacuteri-

ca

Antes de adentrar propriamente na tese fazem-se necessaacuterias algumas observa-

ccedilotildees sobre sua apresentaccedilatildeo Optou-se por sempre transliterar no corpo do texto os

termos gregos conforme o padratildeo internacional ISO 8431997 utiliza-se o alfabeto

grego somente nas notas de rodapeacute Assim como nas mesmas notas mantecircm-se as cita-

ccedilotildees de autores modernos em liacutengua original A grafia de nomes gregos e romanos se-

gue sempre que possiacutevel o Vocabulaacuterio Onomaacutestico de Caldas Aulete (1958) Todas as

traduccedilotildees satildeo minhas salvo expliacutecitas indicaccedilotildees em contraacuterio As normas de referecircn-

cias bibliograacuteficas utilizadas satildeo as da ABNT (NBR 6023 e NBR 10520) O texto foi

revisado e estaacute em conformidade com o Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa

(2009)

21

CAPIacuteTULO PRIMEIRO

HISTOacuteRIA DA CRIacuteTICA DE ZELLER A KINGSLEY

Na labiriacutentica confusatildeo da tradiccedilatildeo da sabedoria pitagoacuterica e da socie-dade pitagoacuterica que em grande parte nos foi transmitida por escrito-res e compiladores tardios e ingecircnuos como que encoberta por uma sagrada escuridatildeo os fragmentos de Filolau sempre representaram pa-ra mim como um ponto cintilante (Boeckh 1819 3)7

Assim principia Boeckh em 1819 a obra que marca a preacute-histoacuteria da criacutetica

moderna sobre o pitagorismo Um incipit altamente significativo especialmente quando

considerado em perspectiva agrave luz dos dois seacuteculos de interpretaccedilatildeo que a ele se sucede-

ram e que desenham o sinuoso percurso da histoacuteria da tradiccedilatildeo moderna sobre o pitago-

rismo Um iniacutecio que revela com precisatildeo dois dos maiores loci hermenecircuticos da criacuteti-

ca de um lado pela expressatildeo labyrintischen Gewirre a significar inconfudivelmente a

opiniatildeo comum da grande dificuldade de assimilaccedilatildeo da literatura pitagoacuterica por outro

lado pela imediata individuaccedilatildeo de um lichter Punkt um ldquoponto cintilanterdquo em alguma

parte desta (e que corresponde geralmente a um autor ou uma temaacutetica especiacutefica) que

possa iluminar a escuridatildeo do labirinto historiograacutefico um fio de Ariadne que permita

sair da ldquoconfusatildeordquo com a qual o historiador do pitagorismo eacute tradicionalmente levado a

confrontar-se

A percepccedilatildeo dessa mesma dificuldade natildeo eacute exclusiva da criacutetica moderna Jacircm-

blico tambeacutem logo no iniacutecio de sua Vida Pitagoacuterica apelava para os deuses com o

objetivo expresso de solicitar que o assistissem na difiacutecil empreitada de superar dois

obstaacuteculos para o desenvolvimento de sua biografia histoacuterica de um lado a estranheza

das doutrinas e a obscuridade dos siacutembolos do outro a quantidade de escritos espuacuterios

e mentirosos sobre a filosofia pitagoacuterica que circularam ateacute entatildeo

No comeccedilo de toda filosofia eacute costume dos saacutebios apelar para um deus isso vale ainda mais para aquela filosofia que pelo que parece

7 Orig ldquoIm dem labyrinthishen Gewirre der Uberlieferungen uumlber die Pythagorische Weisheit und Py-thagorische Gesellschaft welehe grofsentheils durch spate und urtheilslose Schriftsteller und Zusam-mentraumlger wie in heiliges Dunkel gehuumlllt zu uns heruumlbergekommen sind haben des Philolaos Bruumlchstuumlke sich mir immer als ein lichter Punkt dargestelltrdquo (Boeckh 1819 3)

22

leva justamente o nome do divino Pitaacutegoras Esta de fato foi concedi-da desde o iniacutecio pelos deuses e natildeo eacute possiacutevel compreendecirc-la se natildeo com a ajuda deles Aleacutem disso sua beleza e sua grandeza superam as capacidades humanas de maneira que eacute impossiacutevel abraccedilaacute-la imedia-tamente e com um uacutenico olhar Portanto somente se um deus benigno nos guiar seraacute possiacutevel aproximar-se lentamente dela e gradativamente apropriar-se de alguma parte Por todas estas razotildees apoacutes ter invocado os deuses como nossos guias e confiado a eles noacutes mesmos e nosso discurso vamos segui-los aonde eles nos queiram conduzir Natildeo de-vemos dar importacircncia ao fato de que esta escola de pensamento haacute algum tempo encontra-se abandonada nem da estranheza das doutri-nas e da obscuridade dos siacutembolos nos quais ela estaacute envolvida nem dos muitos escritos falsos e apoacutecrifos que lanccedilaram sombras sobre ela nem das muitas dificuldades que tornam o acesso a ela aacuterduo8

Uma sensaccedilatildeo de pacircnico labiriacutentico parece acompanhar portanto desde os albo-

res dessa histoacuteria o encontro do historiador com o pitagorismo A ela segue da mesma

forma uma imediata tentativa de sair do labirinto de achar uma ordem no caos de indi-

viduar uma constante que permita ao discurso historiograacutefico alcanccedilar certa estabilidade

hermenecircutica

Os dois seacuteculos que se seguiram agrave obra inaugural de Boeckh sobre Filolau cons-

tituem o objeto principal das paacuteginas a seguir9 A intenccedilatildeo eacute a de acompanhar o proce-

der ndash nem sempre calmo e arrazoado ndash da criacutetica sabendo de antematildeo que resultaraacute des-

te uma histoacuteria em que cada fato e cada testemunho seratildeo colocados em discussatildeo agrave

exceccedilatildeo provavelmente da proacutepria existecircncia dos assim chamados pitagoacutericos ldquona

controveacutersia acadecircmica que seguiu dificilmente um uacutenico fato permaneceu indisputado

com a exceccedilatildeo de que nos dias de Platatildeo e mais tarde no primeiro seacuteculo aEC existi-

ram Pythagoreioirdquo (Burkert 1972 2)10

8 Iambl VP 1 Orig ldquoἘπὶ πάσης microὲν φιλοσοφίας ὁρmicroῇ θεὸν δήπου παρακαλεῖν ἔθος ἅπασι τοῖς γε σώφ-ροσιν ἐπὶ δὲ τῇ τοῦ θείου Πυθαγόρου δικαίως ἐπωνύmicroῳ νοmicroιζοmicroένῃ πολὺ δήπου microᾶλλον ἁρmicroόττει τοῦτο ποιεῖνmiddot ἐκ θεῶν γὰρ αὐτῆς παραδοθείσης τὸ κατrsquo ἀρχὰς οὐκ ἔνεστιν ἄλλως ἢ διὰ τῶν θεῶν ἀντιλαmicroβάνε-σθαι πρὸς γὰρ τούτῳ καὶ τὸ κάλλος αὐτῆς καὶ τὸ microέγεθος ὑπεραίρει τὴν ἀνθρωπίνην δύναmicroιν ὥστε ἐξαί-φνης αὐτὴν κατιδεῖν ἀλλὰ microόνως ἄν τίς του τῶν θεῶν εὐmicroενοῦς ἐξηγουmicroένου κατὰ βραχὺ προσιὼν ἠρέmicroα ἂν αὐτῆς παρασπάσασθαί τι δυνηθείη διὰ πάντα δὴ οὖν ταῦτα παρακαλέσαντες τοὺς θεοὺς ἡγεmicroόνας καὶ ἐπιτρέψαντες αὐτοῖς ἑαυτοὺς καὶ τὸν λόγον ἑπώmicroεθα ᾗ ἂν ἄγωσιν οὐδὲν ὑπο ἑαυτοὺς καὶ τὸν λόγον ἑπώmicroεθα ᾗ ἂν ἄγωσιν οὐδὲν ὑπο λογιζόmicroενοι τὸ πολὺν ἤδη χρόνον ἠmicroελῆσθαι τὴν αἵρεσιν ταύτην καὶ τὸ microαθήmicroασιν ἀπεξενωmicroένοις καί τισιν ἀπορρήτοις συmicroβόλοις ἐπικεκρύφθαι ψευδέσι τε καὶ νόθοις πολλοῖς συγγράmicromicroασιν ἐπισκιάζεσθαι ἄλλαις τε πολλαῖς τοιαύταις δυσκολίαις παραποδίζεσθαιrdquo 9 Eacute preciso notar que a maioria dos comentadores (Thesleff 1961 31 De Vogel 1966 8 Burkert 1972 2 Centrone 1996 193) natildeo considera a obra de Boeckh (1819) como inaugural da histoacuteria da criacutetica do pitagorismo preferindo fazecirc-la comeccedilar mais tradicionalmente com a obra de Zeller (1855 esta obra seraacute citada daqui para frente na ediccedilatildeo italiana complementada e anotada por Mondolfo em 1938) 10 Orig ldquoIn the scholarly controversy that followed scarcely a single fact remained undisputed save that in Platorsquos day and then later in the first century BC there were Pythagoreioirdquo

23

Apesar disso seraacute possiacutevel revelar sinais de continuidade de uma lectio do pita-

gorismo que o entregaraacute agrave histoacuteria com as caracteriacutesticas de um movimento especial

complexo e de difiacutecil interpretaccedilatildeo no interior do panorama dos estudos normais (no

sentido kuhniano) da filosofia preacute-socraacutetica

Obviamente o pitagorismo compartilha o ponto de partida da moderna histoacuteria

de sua criacutetica com o restante da filosofia grega antiga Nesse caso o precursor eacute certa-

mente Zeller que em sua Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Ent-

wicklung (1855) traccedila as bases para a moderna historiografia da filosofia antiga

11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos

Significativamente a primeira paacutegina do capiacutetulo de Zeller dedicada ao pitago-

rismo potildee-se em continuidade com os textos de Jacircmblico e Boeckh anteriormente cita-

dos indicando especial dificuldade para o estudo do pitagorismo na mistura de faacutebulas

e poesias que teria encoberto a doutrina filosoacutefica

Entre todas as escolas filosoacuteficas das quais temos conhecimento natildeo haacute nenhuma cuja histoacuteria natildeo tenha sido frequentemente envolvida e quase encoberta por faacutebulas e poesias e cuja doutrina natildeo tenha sido mesclada na tradiccedilatildeo com uma quantidade enorme de elementos pos-teriores como foi aquela dos pitagoacutericos (Zeller e Mondolfo 1938 288)11

Zeller enfrenta o problema por assim dizer de peito perguntando-se imedia-

tamente sobre a proacutepria possibilidade de existecircncia de um sistema filosoacutefico pitagoacuteri-

co ldquopoderia se levantar a questatildeo se seja o caso de falar em geral do sistema pitagoacuteri-

co como de um complexo cientiacutefico e histoacutericordquo (Zeller e Mondolfo 1938 597)12

A duacutevida eacute potencialmente paralizadora pois coloca em cheque a proacutepria pos-

sibilidade de abordagem do pitagorismo no interior daquelas que se conveacutem conside-

rar Histoacuterias da Filosofia O risco a dizer do Zeller eacute que o pitagorismo a bem ver

natildeo seja outra coisa senatildeo uma selva de mitos e ritos estranhos sem alguma relevacircn-

11 Orig ldquoFra tutte le scuole filosofiche che noi conosciamo non ve nrsquoegrave alcuna la cui storia non sia stata tanto spesso avvolta e quasi coperta di favole e poesie e la cui dottrina sia stata mescolata nella tradizione con una tal massa di elementi posteriori quanto quella dei Pitagoricirdquo 12 Orig ldquoSi potrebbe sollevare la questione se sia il caso di parlare in genere del sistema pitagorico come di un complesso scientifico e storicordquo

24

cia para a filosofia Por sorte a resposta de Zeller eacute positiva ldquotudo aquilo que nos eacute

transmitido com relaccedilatildeo agrave filosofia pitagoacuterica ainda que entre todas as divergecircncias

de determinaccedilotildees subordinadas ainda coincide nos tratos fundamentaisrdquo (1938

599)13 Isto eacute haacute no pitagorismo algo de filosoacutefico que poderaacute ser salvo para futura

sistematizaccedilatildeo

Para realizar essa salvaccedilatildeo in principio do pitagorismo todavia Zeller precisa

operar historiograficamente de forma decididamente desenvolvimentista para natildeo dizer

positivista aplicando sobre esse movimento com a precisatildeo ciruacutergica do erudito alematildeo

do seacuteculo XIX um riacutegido esquema historicista Para que esse esquema possa funcionar

Zeller precisa criar diversos gaps hermenecircuticos vaacuterias fraturas controladas com preci-

satildeo e bem demarcadas De maneira especial eacute possiacutevel observar no interior da estrateacute-

gia zelleriana de salvaccedilatildeo do pitagorismo a operacionalizaccedilatildeo de trecircs fraturas realiza-

das a) entre a maioria das fontes e dos testemunhos do pitagorismo que satildeo tardios

notadamente neopitagoacutericos de um lado e as origens da filosofia pitagoacuterica do outro b)

entre a doutrina filosoacutefico-cientiacutefica e outras formas de expressatildeo miacutetico-religiosas c)

entre cultura grega e cultura oriental para que o pitagorismo possa resultar como um

movimento genuinamente grego

Dessa forma para resolver a questatildeo das fontes Zeller elabora a ceacutelebre teoria

da expansatildeo da tradiccedilatildeo a qual observa como com o passar do tempo as fontes sobre

o pitagorismo em vez de diminuir ndash como era de se esperar ndash aumentam

Dessa forma a tradiccedilatildeo relativa ao pitagorismo e ao seu fundador con-segue nos dizer tanto mais quanto mais se encontre distante no tempo dos respectivos fatos histoacutericos e ao contraacuterio ela se encontra na mesma proporccedilatildeo tanto mais silenciosa na medida em que nos apro-ximamos cronologicamente a seu mesmo objeto (Zeller e Mondolfo 1938 299)14

Zeller pode assim concluir que ldquoa pretensa doutrina pitagoacuterica que natildeo eacute recebi-

da pelos testemunhos mais antigos eacute neopitagoacutericardquo (1938 300)15 Isto eacute utilizando-se

de um argumento de certa forma circular e recusando-se a uma distinccedilatildeo mais cuida-

13 Orig ldquoTutto ciograve che ci egrave riferito della filosofia pitagorica pur fra tutte le divergenze di determinazioni subordinate coincide tuttavia nei tratti fondamentalirdquo 14 Orig ldquoCosiacute dunque la tradizione riguardante il Pitagorismo ed il suo fondatore ci sa dire tanto di piugrave quanto piugrave si trovi lontana nel tempo dai relativi fatti storici e per contro essa egrave nella stessa proporzione tanto piugrave taciturna a misura che ci avviciniamo cronologicamente al suo oggetto medesimordquo 15 Orig ldquola pretesa dottrina pitagorica che non egrave conosciuta dai testimoni piugrave antichi egrave neopitagoricardquo

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dosa do material relevante no interior da literatura pitagoacuterica tardia pretende fundar o

que eacute pitagoacuterico exclusivamente sobre os testemunhos por ele considerados como os

mais antigos Entre eles Zeller privilegiaraacute Aristoacuteteles e os fragmentos de Filolau que

na esteira do Boeckh considera em bloco como autecircnticos16

Por consequecircncia da escolha acima o material mais relevante para a histoacuteria do

pitagorismo eacute aquele que o aproxima e o identifica com os outros sistemas preacute-

socraacuteticos e que diz respeito agrave filosofia da natureza

O objeto da ciecircncia pitagoacuterica na base de tudo o que foi dito ateacute este momento resulta aquele mesmo do qual se ocupavam todos os outros sistemas da filosofia preacute-socraacutetica isto eacute os fenocircmenos naturais e seus princiacutepios (Zeller e Mondolfo 1938 585)17

Com base nesses criteacuterios temaacuteticos portanto Zeller em argumento circular

acaba por definir quais sejam os testemunhos vaacutelidos para uma histoacuteria do pitagorismo

em suas origens Da mesma maneira excluindo por parti pris a consideraccedilatildeo das dou-

trinas miacuteticas do pitagorismo Zeller natildeo pode senatildeo declarar adesatildeo irrestrita a Aristoacute-

teles e seu juiacutezo sobre os pitagoacutericos

Natildeo podem ser aqui tomadas em consideraccedilatildeo agraves doutrinas miacuteticas da transmigraccedilatildeo das almas e da visatildeo da vida fundada sobre esta satildeo es-tes dogmas religiosos que aleacutem do mais natildeo eram exclusivos da esco-la pitagoacuterica e natildeo proposiccedilotildees cientiacuteficas Por aquilo que diz respeito agrave filosofia pitagoacuterica eu posso somente concordar com o juiacutezo de A-ristoacuteteles que ela tenha se consagrado inteiramente agrave pesquisa natural (Zeller e Mondolfo 1938 585-587)18

Mais especificamente se natildeo for possiacutevel verificar com precisatildeo quanto do pita-

gorismo do seacuteculo V (Filolau Arquitas) possa ser referido ao proacuteprio Pitaacutegoras Zeller

16 Cf a ampla discussatildeo da nota 2 da p 304 Na mesma nota todavia (p 307) Zeller afasta-se de Boeckh em relaccedilatildeo agrave autenticidade do fragmento sobre a alma-mundo (44 B21 DK) por considerar estranha a Filolau uma teoria da alma dividida em diversas partes como aquela expressa na tradiccedilatildeo platocircnico-aristoteacutelica Com ele concordaratildeo em seguida Burkert (1972 242-243) e Huffman (1993 343) Cf Cor-nelli (2002) para mais ampla discussatildeo da teoria zelleriana da expansatildeo da tradiccedilatildeo 17 Orig ldquoLrsquooggetto della scienza pitagorica in base a tutto ciograve che si egrave detto fin qui risulta quel medesimo di cui si occupavano tutti gli altri sistemi della filosofia presocratica vale a dire i fenomeni naturali e i loro principirdquo 18 Orig ldquoNon possono essere qui prese in considerazione le dottrine mitiche della transmigrazione delle anime e della visione della vita fondata sopra di essa questi sono dogmi religiosi che oltre tutto non eran limitati alla scuola pitagorica e non sono proposizioni scientifiche Per ciograve che riguarda la filosofia pitagorica io posso soltanto associarmi al giudizio di Aristotele che essa sia stata consacrata tutta quanta alla ricerca naturalerdquo

26

sugere contudo que as principais doutrinas devam derivar diretamente dele in primis a

doutrina de ldquotudo eacute nuacutemerordquo ldquoque constitui o caraacuteter diferencial mais geral da filosofia

pitagoacutericardquo e que pode se resumir na afirmaccedilatildeo pela qual ldquoo nuacutemero eacute a essecircncia de to-

das as coisas ou seja que tudo em sua essecircncia seja nuacutemerordquo (Zeller e Mondolfo

1938 435)19 Da mesma forma devem ser atribuiacutedas a Pitaacutegoras as doutrinas da harmo-

nia do fogo central e a teoria das esferas todas elas presentes nos fragmentos de Filo-

lau que ndash como vimos ndash eram considerados autecircnticos por Zeller

Na mesma linha Zeller apesar de demonstrar conhecer bem tanto os testemu-

nhos antigos quanto os estudos orientalistas alematildees a ele contemporacircneos os mesmos

que aproximam a filosofia grega em geral e o pitagorismo em especial agraves tradiccedilotildees de

pensamento egiacutepcias persas e indianas ainda assim intitula o capiacutetulo dedicado a este

tema de maneira incontrovertida Contra a Origem Oriental Zeller declara imediata-

mente a improbabilidade de uma origem oriental das doutrinas (Zeller e Mondolfo

1938 602-606) e aposta ao contraacuterio nas origens gregas do pitagorismo e na possibili-

dade de ldquocompreendecirc-lo perfeitamente com base nas caracteriacutestias proacuteprias e nas condi-

ccedilotildees de cultura do povo grego no seacuteculo VI aECrdquo (Zeller e Mondolfo 1938 607)20 O

pitagorismo seraacute portanto compreendido como parte de um movimento maior de re-

forma moral e religiosa do qual fazem parte figuras como Epimecircnides os poetas gnocirc-

micos os sete saacutebios ainda que se eleve acima destes outros pela ldquopoliedricidade e a

potecircncia com a qual ele abraccedilou dentro de si a inteira substacircncia da cultura de seu tem-

po o elemento religioso o eacutetico-poliacutetico e o cientiacuteficordquo (1938 607)21

O esforccedilo do Zeller no sentido de separar o pitagorismo de possiacuteveis relaccedilotildees pe-

rigosas com o Oriente obriga-o a fazer derivar a matemaacutetica pitagoacuterica de Anaximan-

dro ldquoaos estudos matemaacuteticos dificilmente podia ter sido introduzido naquele tempo

por alguma outra pessoardquo (1938 609)22 assim como a negar qualquer influecircncia dos

povos itaacutelicos autoacutectones anteriores agrave colonizaccedilatildeo doacuterica que sem nenhum pudor cha-

19 Orig ldquoche constituisce il carattere differenziale piugrave generale della filosofia pitagoacutericardquo e ldquoil numero sia lrsquoessenza di tutte le cose ossia che tutto di sua essenza sia numerordquo 20 Orig ldquocomprender[lo] perfettamente sulla base delle caratteristiche proprie e delle condizioni di cultura del popolo greco nel VI secolo a Crdquo 21 Orig ldquopoliedricitagrave e la potenza con cui esso ha abbracciato entro di segrave tutta quanta la sostanza della cultura del suo tempo lrsquoelemento religioso quello etico-politico e quello scientificordquo 22 Orig ldquoagli studi matematici difficilmente poteva a quel tempo essere introdotto da qualcun altrordquo

27

ma de baacuterbaros (1938 610-611)23 Insere-se neste mesmo projeto a insistecircncia na pro-

funda relaccedilatildeo da Magna Greacutecia com aquele que Zeller chama de ldquocaraacuteter proacuteprio da

estirpe doacutericardquo do qual dependeriam as instituiccedilotildees das cidades doacuterico-aqueias que fo-

ram palco da atividade de Pitaacutegoras (1938 607) Como exemplos desse caraacuteter Zeller

enumera entre outros a poliacutetica aristocraacutetica a muacutesica eacutetica a sabedoria enigmaacutetica a

participaccedilatildeo das mulheres na educaccedilatildeo e na sociedade a firme doutrina moral toda ba-

seada na medida e que natildeo conhece nada de mais alto do que a subordinaccedilatildeo dos indiviacute-

duos ao todo o respeito pelos genitores pela autoridade e pela velhice (1938 608-

609)24 Com uma impostaccedilatildeo historiograacutefica como esta marcadamente hegeliana (ve-

jam-se deste nesse sentido as Licccedilotildees sobre a Histoacuteria da Filosofia) a conclusatildeo natildeo

poderia ser outra senatildeo aquela de um argumento circular e a posteriori da supremacia

grega (e pitagoacuterica) a prova da superioridade do caraacuteter dos povos da Magna Greacutecia eacute

que ali surgiu a filosofia ldquoo terreno que a filosofia encontrou para si nas colocircnias da

Magna Greacutecia era a tal ponto favoraacutevel A flor agrave qual ela pocircde chegar eacute a prova dissordquo

(1938 611)25

Vale portanto tambeacutem para Zeller aquilo pelo que mais recentemente Centro-

ne chamava a atenccedilatildeo de Zhmud e que de certa forma eacute um leitmotiv de toda histoacuteria

da criacutetica filosoacutefica natildeo somente preacute-socraacutetica tem-se sempre a impressatildeo de que o

historiador acha no autor claacutessico estudado a figura de si mesmo ou de suas afinidades

eletivas

Tem-se a impressatildeo que por uma feliz coincidecircncia a imagem de Pi-taacutegoras reconstruiacuteda por Zhmud o mais possiacutevel depurada das com-ponentes religiosas e restituiacuteda agrave dignidade filosoacutefico-cientiacutefica seja tambeacutem aquela que ele proacuteprio prefere (Centrone 1999 426)26

23 E todavia jaacute Mondolfo em sua nota lembra-se da figura de Mamerco e de um possiacutevel centro de cul-tura matemaacutetica na Itaacutelia antes de Pitaacutegoras (Zeller e Mondolfo 1938 359) 24 Ainda que a primeira formulaccedilatildeo desta distinccedilatildeo tenha sido aquela de Boeckh que distinguia entre a Sinnlichkeit jocircnica cujo espelho seria o materialismo filosoacutefico e o Volk doacuterico que remete para a busca da ordem (1819 39-42) Natildeo deve ser esquecido aleacutem do mais que Boeckh era disciacutepulo de Schleierma-cher que por primeiro havia postulado este modelo de divisatildeo eacutetnica da filosofia em diversas tendecircncias geopoliacuteticas e com modalidades evolucionistas em suas aulas de 1812 publicadas postumamente sob o tiacutetulo de Ethik 18123 (Schleiermacher 1990) 25 Orig ldquotanto piugrave favorevole era il terreno che la filosofia trovograve per segrave nelle colonie della Magna Grecia Il fiore al quale essa vi potegrave pervenire ne egrave la provardquo 26 Orig ldquoSi ha lrsquoimpressione che per felice coincidenza lrsquoimmagine di Pitagora ricostruita da Zhmud depurata il piugrave possibile dalle componenti religiose e restituita a dignitagrave filosofico-scientifica sia anche quella che egli prediligerdquo

28

O privileacutegio concedido por Zeller agrave lectio aristoteacutelica sobre os pitagoacutericos tor-

nou-se ao longo da histoacuteria da criacutetica moderna um troacutepos historiograacutefico predominan-

te contribuindo para definir a filosofia pitagoacuterica sobretudo a partir da tese ldquotudo eacute nuacute-

merordquo27 Da mesma forma tanto a clara fratura entre o pitagorismo antigo e o neopita-

gorismo como o quase absoluto desprezo pela dimensatildeo poliacutetica da koinoniacutea pitagoacuterica

influenciaram decididamente os estudos posteriores

Exemplo da influecircncia do ceticismo zelleriano satildeo certamente as liccedilotildees sobre os

filoacutesofos preacute-platocircnicos que o amigo Nietzsche ministra em Basileia a partir do ano de

1872 Eacute signifitiva a tese que Nietzsche defende em sua aula sobre Pitaacutegoras

Aquilo que se denomina filosofia pitagoacuterica eacute algo de muito posterior que eacute possiacutevel colocar somente na segunda metade do seacuteculo V Por-tanto ele natildeo tem nenhuma relaccedilatildeo com os filoacutesofos mais antigos pois natildeo foi filoacutesofo mas algo diferente A rigor se poderia excluiacute-lo de uma histoacuteria da filosofia mais antiga Todavia ele produziu um ti-po de vida filosoacutefica e isso os gregos lhe devem Esta imagem exerce uma notaacutevel influecircncia natildeo sobre a filosofia mas sobre os filoacutesofos (Parmecircnides Empeacutedocles) Somente nestes termos deve-se falar dele (Nietzsche 1994 47)

A proacutepria possibilidade de falar de Pitaacutegoras no interior da histoacuteria da filosofia eacute

colocada em seacuterias duacutevidas pois sua contribuiccedilatildeo para ela eacute minimizada nos termos de

uma influecircncia sobre um geneacuterico estilo de vida filosoacutefico privo de conteuacutedos A posi-

ccedilatildeo de Nietzsche revela um ceticismo bastante radical portanto28

12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo

Sobre a premissa aristoteacutelico-zelleriana de que o pitagoacuterico seria algueacutem que fala

dos nuacutemeros Diels organiza sua seleccedilatildeo de fragmentos e testemunhos nos Vorsokrati-

ker (Diels 1903 Diels-Kranz 1951)

27 Ao menos ateacute os estudos de Zhmud (1989 272ss 1997 261ss ) conforme seraacute visto com mais deta-lhes no capiacutetulo quarto 28 Com a pergunta lsquoPithagoras Philosophusrsquo Bechtle (2003) entitula de forma ineacutedita para um trabalho manualiacutestico seu capiacutetulo sobre Pitaacutegoras

29

Foi exatamente este o criteacuterio que H Diels usou para selecionar quem representaria a escola pitagoacuterica em sua ediccedilatildeo dos fragmentos dos preacute-socraacuteticos A fonte primaacuteria (ainda que natildeo uacutenica) foi o celebre cataacutelogo dos pitagoacutericos encontrado em Jacircmblico (VP 267) Diels a-creditava que este cataacutelogo remontasse ao peripateacutetico Aristoxeno (Zhmud 1989 273)29

A anotaccedilatildeo inicial ao capiacutetulo XIV sobre Pitaacutegoras natildeo pode ser mais esclarece-

dora da dependecircncia de Zeller

Antes da eacutepoca de Filolau natildeo existia qualquer escrito de Pitaacutegoras e havia somente uma tradiccedilatildeo oral da escola mesma por consequecircncia natildeo havia uma doxografia segura [] Cf os testemunhos de Xenoacutefa-nes Heraacuteclito Empeacutedocles Igraveon sobre Pitaacutegoras em correspondecircncia dos proacuteprios autores (Diels 1903 22)30

A influecircncia da coleccedilatildeo dielsiana para todos os estudos sobre o pitagorismo eacute in-

discutiacutevel31 De Vogel (1964 9) mostra com razatildeo que Diels recolhe da tradiccedilatildeo mais

tardia sobre Pitaacutegoras e os pitagoacutericos somente o que diz respeito diretamente a Aristoacute-

xeno e suas Pythagorikai apophaseis (D) os Acusmata e Symbola (C) os testemunhos

aristoteacutelicos e de escola peripateacutetica (B) e alguma pouca referecircncia aos pitagoristas da

Comeacutedia aacutetica de Meio (E) Com isso exclui praticamente qualquer referecircncia agrave ativi-

dade poliacutetica de Pitaacutegoras Mesmo a revisatildeo da coleccedilatildeo feita por Kranz para a sexta edi-

ccedilatildeo dessa obra (1951) manteacutem a impostaccedilatildeo inicial do Diels Kranz decide sim inserir

no capiacutetulo sobre Pitaacutegoras o testemunho (A8a) sobre os discursos poliacuteticos de Pitaacutego-

ras em Crotona de Porfiacuterio (VP 18-19) No entanto ndash anota De Vogel ndash ldquoeacute difiacutecil que o

leve a seacuteriordquo (1964 9 ldquohardly took it seriouslyrdquo) como demonstraria o fato que a res-

pectiva redaccedilatildeo dos discursos em Jacircmblico (VP 37-57) como os paralelos de Pompeu

29 Orig ldquoIt was just this criterion which H Diels used for selecting representatives of the Pythagorean school in his edition of the fragments of the presocratics The main source (but not the only one) he had relied on was the well-known catalogue of Pythagoreans found in Iamblichus (Vit Pyth 267) Diels be-lieved that this catalogue went back to the Peripatetic Aristoxenusrdquo 30 Da es keine Schriften des Pythagoras gab und uumlberhaupt vor Philolaos Zeit nur muumlndliche Tradition der eigentlichen Schule bestand so gibt es hier keine Doxographie [] Die Zeugnisse des Xenophanes [11 B7] Heraklit [12 B40129()] Empedokles [21 B129] Ion [25 B4()] uumlber P s bei diesen Na VI Ediccedilatildeo revista Kranz (1951) qualificaraacute como entscheidend wichtigen importantes e decisivos Die Zeugnisse dos outros presocraacuteticos acima citados Seraacute preciso notar tambeacutem que ndash contrariamente ao que afirma na nota introdutoacuteria acima citada ndash Diels acaba inserindo arbitrariamente no fim dois testemu-nhos doxograacuteficos (A 20 e 21) sobre a descoberta da identidade entre os astros Espero e Luciacutefero e sobre o fato de ter chamado toacute oacutelon de koacutesmos Cf para isso Burkert (1972 77 e 307) 31 Para uma resenha exaustiva do processo de elaboraccedilatildeo da coleccedilatildeo cf Calogero (1941)

30

Trogo continua natildeo encontrando lugar na coleccedilatildeo Os poucos testemunhos nesse senti-

do que Diels-Kranz coleta ndash A13 sobre matrimocircnio de Pitaacutegoras A16 sobre a crise da

comunidade pitagoacuterica (Iambl VP 248-257) ndash satildeo inseridos na seccedilatildeo Leben Por outro

lado Kranz natildeo muda nada no capiacutetulo sobre a Pythagoreische Schule (58) o material

aqui citado que diria respeito diretamente a Pitaacutegoras eacute mantido com todos os cuidados

bastante separado dele a significar uma lectio que quer afastar os conteuacutedos deste mate-

rial da autecircntica filosofia pitagoacuterica32

Eacute mister lembrar que a arbitrariedade das escolhas de Diels-Kranz seraacute objeto de

todos os estudos que revisaratildeo ao longo do seacuteculo XX pontualmente essa coleccedilatildeo33

13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo

A primeira reaccedilatildeo ao franco ceticismo de Zeller em relaccedilatildeo agraves fontes pitagoacutericas

natildeo demora a aparecer seu ponto de partida satildeo certamente os dois artigos que Rohde

publica jaacute na segunda metade do seacuteculo XIX na Rheinisches Museum sobre as fontes

da Vida Pitagoacuterica de Jacircmblico (Rohde 1871 1872) Eacute exatamente nesse campo de

trabalho da obra de Jacircmblico que surgem os primeiros questionamentos relativos agrave pre-

tensa verdade absoluta da equaccedilatildeo entre fontes tardias e sua confiabilidade Rohde mos-

tra com uma anaacutelise minuciosa as dependecircncias do texto de Jacircmblico natildeo da vida pa-

ralela de Porfiacuterio como era opiniatildeo comum ateacute entatildeo (Nauck 1884 x) e sim de fontes

neoplatocircnicas datadas dos seacuteculos I e II EC portanto anteriores agravequela notadamente

Nicocircmaco e Apolocircnio Rohde procura fundamentar essa ldquoteoria mecacircnica das duas fon-

tesrdquo (Burkert 1972 100) partindo da ideia de que tanto Porfiacuterio quanto Jacircmblico escre-

veram seus textos em exerciacutecio nem sempre bem-sucedido do ponto de vista estiliacutestico

32 Chama atenccedilatildeo todavia que em um artigo de 1890 Diels havia sugerido atribuir ao proacuteprio Pitaacutegoras alguns textos pitagoacutericos do periacuteodo heleniacutestico entre eles especialmente o Kopiacutedes um escrito retoacuterico reconstruiacutedo a partir de uma referecircncia em Heraacuteclito e o Paideutikoacuten Politikoacuten Physikoacuten na realidade escrito no seacuteculo II aEC em dialeto iocircnico para parecer mais antigo que o doacuterico Periacute Physios de Filo-lau Para os textos veja-se agora a coleccedilatildeo de Thesleff (1965) De certa forma portanto ainda que inici-almente propenso a dar algum valor histoacuterico agrave literatura pitagoacuterica mais tardia Diels parece mudar de ideia logo em seguida agrave publicaccedilatildeo da obra de Zeller em 1855 33 Philip (1966 38) eacute categoricamente fatalista em afirmar que a parte dedicada ao pitagorismo eacute certa-mente a pior da coleccedilatildeo ldquothe fragments of Pythagoras and the Pythagoreans are perhaps inevitably the least satisfactory part of the Vorsokratikerrdquo Natildeo escapa da mordacidade de Philip nem sequer a coleccedilatildeo da Timpanaro Cardini (1958-1962) ldquoMiss Cardini is as ready as Iamblichus to baptize as a Pythagorean anyone having the remotest connection with that lsquobrotherhoodrsquordquo

31

de corte e colagem A confianccedila em sua teoria estende-se ateacute o ponto de ironizar o ldquodi-

vino Jacircmblicordquo por sua ldquopobreza mental e alma malemolenterdquo (Rohde 1872 60) em

outro passo de seu segundo artigo (1872) volta a acusar Jacircmblico por

Demonstrar significativa independecircncia em niacutevel tatildeo vergonhoso ao ponto de preparar uma mistura multicolorida arrumada a partir de re-cortes de suas leituras enquanto a sequecircncia desordenada e as impro-visadas passagens conectivas seriam sua proacutepria contribuiccedilatildeo agrave obra (Rohde 1872 48)34

Apesar de natildeo resistir agraves sucessivas criacuteticas que se queixavam da impiedosa arbi-

trariedade da compreensatildeo do processo de confecccedilatildeo do trabalho de Jacircmblico de fato o

trabalho de Rohde abriu o caminho para uma longa Quellenforshung as ediccedilotildees da Vida

Pitagoacuterica de Jacircmblico de Bertermann (1913) e de Deubner (1937) dependem am-

plamente das pesquisas de Rohde assim como os estudos de Corrsen (1912) Leacutevy

(1926) e Frank (1923)35 Da mesma forma os comentadores que o acompanharam neste

caminho puderam em seguida detectar no texto referecircncias a autores do seacuteculo IV aEC

como Aristoxeno Dicearco Heraacuteclide Pocircntico e Timeu36 Entre eles certamente deve-

mos considerar in primis Delatte que em seu trabalho sobre a literatura pitagoacuterica

antes (1915) e sobre a Vida de Pitaacutegoras de Dioacutegenes Laeacutercio depois (1922b) recolhe

em amplo espectro cronoloacutegico e interdisciplinar as mais diferentes fontes desta obra

inspirado exatamente na metodologia de trabalho inaugurada por Rohde Na mesma

linha metodoloacutegica situa-se o trabalho sobre a poliacutetica pitagoacuterica de Von Fritz (1940)

que procura identificar material que possa ser referido a Aristoxeno Timeu e Dicearco

Assim ao lado de Aristoacuteteles comeccedilam a aparecer na literatura criacutetica moderna

nomes de autores quase tatildeo antigos como referenciais para os estudos do pitagorismo

34 Orig ldquoHier zeigt Jamblich eine bei einem so elenden Stoppler schon bemerkenswerthe Selbstaumlndig-keit indem er meist aus Brocken seiner Lektuumlre ein bunter Allerlei herstellt an dem wenigstens die unru-hige Unordnung der Reihenfolge und die das Einzelne nothduumlrftig verknuumlpfenden Betrachtungen sein eigenes Werk sindrdquo 35 Eacute significativo notar que somente quatro anos antes da publicaccedilatildeo do primeiro artigo de Rohde na mesma Rheinisches Museum fuumlr Philologie de 1868 Friedrich Nietzsche havia publicado um artigo (1868) dedicado ao mesmo tema das fontes das biografias tardias desta vez em Dioacutegenes Laeacutercio Ni-etzsche identifica da mesma maneira que faraacute logo mais Rohde em autores do I seacuteculo aEC (Favorino e Diacuteocles de Magneacutesia) as fontes das notiacutecias biograacuteficas esparsas na obra de Dioacutegenes O trabalho de Roh-de portanto deve ser compreendido ao lado daquele de ilustres colegas como parte de amplo esforccedilo de validaccedilatildeo das fontes tardias por meio do estudo da Tradition Geshichte de suas obras 36 Cf Burkert 1972 4 Para uma criacutetica da articulaccedilatildeo dos argumentos de Rohde nos dois artigos citados cf Norden (1913) e depois Philip (1959)

32

em seu nascer Deve-se notar nesse sentido que jaacute os Doxographi Graeci de Diels

(1879) indicam Teofrasto como a fonte uacuteltima do amplo material doxograacutefico reportado

pela tradiccedilatildeo dessa forma agravequela que Diels chama de antiga tradiccedilatildeo peripateacutetica (58

B DK) seraacute atribuiacutedo um papel central daqui para frente para a reconstruccedilatildeo do pitago-

rismo

14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos

Iniciador de uma brilhante tradiccedilatildeo de scholars anglo-saxotildees que se dedicaram

aos estudos sobre as origens da filosofia antiga Burnet em sua obra Early Greek Philo-

sophy (1908) eacute ainda devedor da lectio inaugural operada por Zeller com efeito de-

senvolve sua teoria tendo como pressuposto a clara separaccedilatildeo entre a dimensatildeo religiosa

de Pitaacutegoras e o desenvolvimento sucessivo do movimento assim como certa distacircncia

entre as preocupaccedilotildees poliacuteticas e aquelas cientiacuteficas das koinoniacuteai pitagoacutericas Sobre

esse piso comum Burnet elabora uma lectio proacutepria que natildeo desdenha as recentes posi-

ccedilotildees menos ceacuteticas como aquela de Rohde (Burnet 1908 91 n1) inaugurando uma li-

nha interpretativa baseada na ceacutelebre distinccedilatildeo no interior do movimento pitagoacuterico

entre os acusmaacuteticos e os matemaacuteticos Distinccedilatildeo esta que se tornaraacute tradicional na his-

toacuteria da criacutetica e distingue de um lado o interesse por parte de alguns nos tabus tradi-

cionais de uma religiosidade arcaica (os akouacutesmata e syacutembola) e do outro a franca de-

dicaccedilatildeo agrave pesquisa de princiacutepios cientiacuteficos notadamente matemaacuteticos Distinccedilatildeo en-

fim jaacute presente nas fontes relacionadas agrave menccedilatildeo agrave didaskaliacutea diacutetton ao duplo ensina-

mento de Pitaacutegoras em Porfiacuterio e agrave distinccedilatildeo entre os Pitagoreacuteus e os Pitagoacuteristas (estes

uacuteltimos imitadores dos primeiros e que corresponderiam aos acusmaacuteticos) em Jacircmblico

(Porph VP 37 Iambl VP 80)37 Eacute preciso notar que apesar de os usos sucessivos des-

sa distinccedilatildeo inicial tenderem a sublinhar o gap entre os dois grupos a bem ver essa

mesma distinccedilatildeo natildeo pressupotildee nas intenccedilotildees iniciais de Burnet ndash assim como nas Vi-

das anteriormente citadas ndash alguma separaccedilatildeo definitiva entre dois lados no interior do

mesmo pitagorismo das origens Ao contraacuterio o mesmo Burnet identifica em dois luga-

res pontos de contato a) na complexa figura do proacuteprio Pitaacutegoras que estaria na origem

37 Cf para uma discussatildeo sobre as fontes da distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteticos a seccedilatildeo 12 a seguir

33

de ambas as didaskaliacuteai (Burnet 1908 107) b) no conceito de kathaacutersis de purificaccedilatildeo

que conecta o aspecto religioso e aquele cientiacutefico uma vez que ciecircncia tambeacutem se tor-

na ela proacutepria um instrumento de purificaccedilatildeo

Precisamos considerar que haacute aqui um reavivamento da filosofia reli-giosa principalmente porque se sugere a ideia de que a filosofia seja acima de tudo um ldquoestilo de vidardquo Mesmo a ciecircncia era uma purifica-ccedilatildeo uma maneira de fugir da ldquorodardquo Esta eacute a visatildeo expressada tatildeo fortemente no Feacutedon de Platatildeo o qual foi escrito sob a influecircncia das doutrinas pitagoacutericas (Burnet 1908 89)38

Assim natildeo eacute possiacutevel concordar com a acusaccedilatildeo um tanto sumaacuteria de De Vogel

pela qual ldquoBurnet natildeo presta atenccedilatildeo para o caraacuteter eacutetico-religioso do biacuteos fundado por

Pitaacutegoras e para a conexatildeo essencial deste aspecto com os assim chamados princiacutepios

cientiacuteficosrdquo (1964 11)39 Ao contraacuterio eacute exatamente pelo conceito de purificaccedilatildeo que

essa conexatildeo eacute afirmada e compreendida em sua profundidade teoacuterica para aleacutem da

realidade histoacuterica concreta do movimento40

Contudo eacute certamente merecedora de criacuteticas em Burnet uma abordagem for-

malmente aprioriacutestica da questatildeo das fontes por ela tudo o que eacute arcaico seria religioso

enquanto tudo o que eacute mais recente seria cientiacutefico Assim o pitagorismo das origens

estaria ligado a modos de pensamento primitivos facilmente detectaacuteveis na tradiccedilatildeo dos

akouacutesmata e syacutembola

Seria faacutecil multiplicar as provas de uma conexatildeo proacutexima entre o pita-gorismo e os modos de pensamento primitivos mas o que foi dito eacute jaacute suficiente para nosso propoacutesito O parentesco de homens e animais a abstinecircncia da carne e a doutrina da transmigraccedilatildeo estatildeo todas juntas e formam um conjunto perfeitamente inteligiacutevel (Burnet 1908 106)41

38 Orig ldquoWe have to take account of the religious Philosophy as revival here chiefly because it sug-gested the view that a philosophy was above all a lsquoway of lifersquo Science too was a lsquopurificationrsquo a means of escape from the lsquowheelrsquo This is the view expressed so strongly in Platorsquos Phaedo which was written under the influence of Pythagorean ideasrdquo 39 Orig ldquoBurnet had no eye for the ethico-religious character of the biacuteos founded by Pythagoras and for the essencial connection of this aspect with the so-called scientific principlesrdquo 40 Burnet cita (1908 98 n3) e desenvolve aqui a intuiccedilatildeo sobre a unidade entre ciecircncia e religiatildeo pela kathaacutersis que jaacute havia sido de Doumlring (1892) 41 Orig ldquoIt would be easy to multiply proofs of the close connexion between Pythagoreanism and primi-tive modes of thought but what has been said is really sufficient for our purpose The kinship of men and beasts the abstinence from flesh and the doctrine of transmigration all hang together and form a perfect-ly intelligible wholerdquo

34

O divisor de aacuteguas da questatildeo das fontes torna-se em Burnet o matemaacutetico A-

ristoxeno que inaugura esta distinccedilatildeo entre o grupo mais iluminado da escola e a parte

supersticiosa e ndash daqui para frente ndash hereacutetica do pitagorismo Nas palavras do proacuteprio

Burnet

Agrave eacutepoca deles a parte simplesmente supersticiosa do pitagorismo foi abandonada com a exceccedilatildeo de alguns zelotas que a direccedilatildeo da Socie-dade recusava-se a reconhecer Eis porque ele apresenta o proacuteprio Pi-tagoacuteras em luz tatildeo diferente seja das tradiccedilotildees mais antigas como das mais recentes eacute porque ele nos concedeu o ponto de vista da seita mais iluminada da Ordem Aqueles que colaram fielmente agraves velhas praacuteticas eram agora considerados hereacuteticos e todo tipo de teorias era colocado na situaccedilatildeo de ter de dar razatildeo de sua existecircncia (Burnet 1908 106)42

A maior purificaccedilatildeo eacute a ciecircncia desinteressada (disinterested science) e portan-

to o ser humano que a ela se dedicar devotamente isto eacute o filoacutesofo poderaacute se livrar do

ciclo da geraccedilatildeo (1908 107) Contudo natildeo foge obviamente a Burnet que a grande

questatildeo eacute quanto dessa visatildeo poacutes-aristoxecircnica eacute atribuiacutevel ao proacuteprio Pitaacutegoras

Seria imprudente afirmar que Pitaacutegoras havia se expressado exata-mente desta maneira mas todas essas ideias satildeo genuinamente pitagoacute-ricas e eacute somente dessa forma que podemos cobrir a distacircncia que se-para Pitaacutegoras o homem da ciecircncia do Pitaacutegoras o mestre religioso (1908 107-108)43

A ponte que pretende separar os dois Pitaacutegoras o homem da ciecircncia e o mestre

religioso eacute o problema central que acompanha daqui para frente a histoacuteria da criacutetica do

espinhoso problema da complexidade multifacetada do pitagorismo

Ao mesmo tempo em que Burnet declara a necessidade de superaacute-la para encon-

trar em Pitaacutegoras a origem das duas vertentes estaacute de fato pressupondo a existecircncia

delas pois que haja uma distacircncia a ser superada entre pensamento cientiacutefico e pensa-

mento religioso tanto na antiguidade quanto hoje eacute esta mesma uma afirmaccedilatildeo a ser 42 Orig ldquoin their time the merely superstitious part of Pythagoreanism had been dropped except by some zealots whom the heads of the Society refused to acknowledge That is why he represents Pythago-ras himself in so different a light from both the older and the later traditions it is because he gives us the view of the more enlightened sect of the Order Those who clung faithfully to the old practices were now regarded as heretics and all manner of theories were set on foot to account for their existencerdquo 43 Orig ldquoIt would be rash to say that Pythagoras expressed himself exactly in this manner but all these ideas are genuinely Pythagorean and it is only in some such way that we can bridge the gulf which separates Pythagoras the man of science from Pythagoras the religious teacherrdquo

35

provada e certamente eacute um preconceito hermenecircutico tanto amplamente em uso quan-

to indemonstrado

Assim em conclusatildeo ao seu capiacutetulo dedicado ao pitagorismo Burnet reconhece

ter elaborado sua reconstruccedilatildeo da figura de Pitaacutegoras ldquosimplesmente atribuindo a ele

aquelas porccedilotildees do sistema pitagoacuterico que parecem ser as mais antigasrdquo (1908 123)44

Todavia a definiccedilatildeo do que eacute o mais antigo corresponde agrave quase totalidade do problema

a ser enfrentado e natildeo pode ser resolvida sucintamente com uma cronografia positivis-

ta como Burnet parece querer

Ainda assim eacute o caso de voltar a anotar aqui o esforccedilo de Burnet para manter

juntas as diversas tradiccedilotildees sobre Pitaacutegoras eacute fundamental para compreender as sucessi-

vas intervenccedilotildees hermenecircuticas sobre a literatura pitagoacuterica que de Cornford a Guthrie

desenham lentamente o caminho da composiccedilatildeo da diversidade de tradiccedilotildees em que

tanto a figura de Pitaacutegoras quanto o imediato desenvolvimento do movimento encon-

tram-se mergulhados

15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo

Em um artigo publicado em duas partes sucessivas na Classical Quarterly (em

1922 e 1923) intitulado significativamente Mysticism and Science in the Pythagorean

Tradition Cornford aborda a questatildeo de certa forma deixada em aberto por Burnet da

correta abordagem das relaccedilotildees entre religiosidade e interesses cientiacuteficos no pitagoris-

mo evitando reducionismos e anacronismos de matriz positivista que este uacuteltimo apa-

rentemente natildeo teria conseguido evitar Os dois artigos seguem de perto a jaacute consolida-

da perspectiva historiograacutefica do autor inglecircs em sua obra inaugural sobre as complexas

relaccedilotildees entre mito e histoacuteria em Tuciacutedides Thucydides Mythistoricus (1907) o objeti-

vo eacute o de afastar-se das tendecircncias da histoacuteria moderna que seria viacutetima da tiacutepica ldquofalaacute-

cia modernistardquo por projetar na obra do historiador ateniense noccedilotildees de cientificidade

derivadas em seus fundamentos da biologia darwiniana e da fiacutesica contemporacircnea45

44 Orig ldquosimply assigned to him those portions of the Pythagorean system which appear to be the old-estrdquo 45 Para uma anaacutelise mais ampla desta obra assim como da posiccedilatildeo historiograacutefica de Cornford cf Murari (2002)

36

Sobre esse pano de fundo teoacuterico Cornford enfrenta a vexata quaestio da pre-

senccedila nos seacuteculos VI e V aEC de dois ldquosistemas de pensamento diferentes e radical-

mente opostos elaborados no interior da escola pitagoacuterica Eles podem ser chamados

respectivamente de sistema miacutestico e sistema cientiacuteficordquo (Cornford 1922 137)46 En-

quanto todas as tentativas hermenecircuticas a ele contemporacircneas procuram articular os

dois sistemas em uma imagem coerente do movimento Cornford reconhece haver certa

confusatildeo entre os dois sistemas Essa confusatildeo eacute jaacute perceptiacutevel nas obras de Aristoacuteteles

e precisaraacute ser desvendada A soluccedilatildeo proposta por Cornford eacute a de distinguir no interi-

or do pitagorismo dois momentos histoacutericos diferentes e sucessivos cujo divisor de

aacuteguas ndash no comeccedilo do seacuteculo V aECndash seria a polecircmica eleaacutetica contra a derivaccedilatildeo da

multiplicidade da realidade de uma uacutenica archeacute Cornford resume da seguinte forma a

imagem do pitagorismo que resulta dividido por essa polecircmica

Podemos em uma palavra distinguir entre (1) o sistema original de Pitaacutegoras datado no seacuteculo VI criticado por Parmecircnides ndash o sistema miacutestico e (2) o pluralismo datado no seacuteculo V construiacutedo para con-frontar as objeccedilotildees de Parmecircnides e por sua vez criticado por Zenatildeo ndash o sistema cientiacutefico que pode ser chamado de ldquoatomismo numeacutericordquo (Cornford 1922 137)47

Essa divisatildeo entre misticismo e ciecircncia no pitagorismo encontra-se apenas apa-

rentemente em continuidade com a separaccedilatildeo entre religiatildeo e ciecircncia proposta por Bur-

net De fato imediatamente apoacutes indicar a separaccedilatildeo acima descrita Cornford anota que

haacute um terceiro momento do pitagorismo aquele de Filolau que tambeacutem pertence agrave

margem miacutestica mas que se coloca cronologicamente mais tarde

Haacute tambeacutem (3) o sistema de Filolau que pertence ao lado miacutestico da tradiccedilatildeo e procura acomodar a teoria dos elementos empedocleia Es-te para nossos atuais propoacutesitos pode ser deixado de lado (Cornford 1922 137)48

46 Orig ldquodifferent and radically opposed systems of thought elaborated within the Pythagorean school They may be called respectively the mystical system and the scientificrdquo 47 Orig ldquoWe can in a word distinguish between (1) the original sixth-century system of Pythagoras criticized by Parmenides ndash the mystical system and (2) the fifth-century pluralism constructed to meet Parmenidesrsquo objections and criticized in turn by Zeno ndash the scientific system which may be called lsquoNum-ber-atomismrsquordquo 48 Orig ldquoThere is also (3) the system of Philolaus which belongs to the mystical side of the tradition and seeks to accommodate the Empedoclean theory of elements This may for our present purpose be neglectedrdquo

37

O ponto mais significativo aqui eacute a sutil mudanccedila de perspectiva ndash no interior da

histoacuteria da criacutetica ndash que esta divisatildeo de Cornford representa colocando a ecircnfase da dis-

tinccedilatildeo entre as duas margens do pitagorismo no debate histoacuterico com o eleatismo retira-

se o apriorismo ndash acima citado ndash que postula uma anterioridade da religiosidade agrave ciecircn-

cia Com efeito ao descrever o lado miacutestico do movimento Cornford afirma britanica-

mente ndash eacute mesmo o caso de dizer ndash sua ldquonatildeo evidente inconsistecircnciardquo com a filosofia

Toda tentativa de resgatar o sistema original do fundador deveraacute eu diria necessariamente basear-se no pressuposto pelo qual sua filosofia e cosmologia natildeo estariam evidentemente inconsistentes com sua reli-giatildeo (Cornford 1922 138)49

Com um argumento francamente antievolucionista Cornford afirma portanto

que diferentemente da primeira fase jocircnica da filosofia em suas origens em que o ele-

mento religioso havia sido deixado de lado nesse segundo momento itaacutelico recupera-se

a dimensatildeo religiosa da vida filosoacutefica

Eacute oacutebvio que a tradiccedilatildeo filosoacutefica itaacutelica difere radicamente daquela jocirc-nica com respeito agrave sua relaccedilatildeo com a crenccedila religiosa Diferentemen-te dos Jocircnicos ela comeccedila natildeo pela eliminaccedilatildeo dos fatores que uma vez possuiacuteam significado religioso mas ao contraacuterio com uma recons-truccedilatildeo da vida relgiosa Para Pitaacutegoras conforme eacute admissatildeo geral o amor pela sabedoria a filosofia era um estilo de vida Pitaacutegoras foi tanto um grande reformador religioso o profeta de uma sociedade congregada pela reverecircncia agrave sua memoacuteria e pela observacircncia de uma regra monaacutestica e tambeacutem um homem de excepcionais poderes inte-lectuais em destaque entre os fundadores da ciecircncia matemaacutetica (Cornford 1922 138-139)50

Assim a figura de Pitaacutegoras poderaacute ser ao mesmo tempo compreendida como a

de um reformador religioso e de um homem de ciecircncia A distinccedilatildeo final dessas duas

margens aconteceraacute soacute em seguida em ocasiatildeo da polecircmica eleata notadamente zeno-

49 Orig ldquoAny attempt to reconstruct the original system of the founder must I would urge be based on the presupposition that his philosophy and cosmology were not openly inconsistent with his religionrdquo 50 Orig ldquoIt is obvious that the Italian tradition in philosophy differs radically from the Ionian in respect of its relation to religious belief Unlike the Ionian it begins not with the elimination of factors that had once had a religious significance but actually with a re-construction of the religious life To Pythagoras as all admit the love of wisdom philosophy was a way of life Pythagoras was both a great religious reformer the prophet of a society united by reverence for his memory and the observance of a monastic rule and also a man of commanding intellectual powers eminent among the founders of mathematical sciencerdquo

38

niana ainda que natildeo de forma tatildeo definida se for considerada a terceira margem filolai-

ca por ele proacuteprio indicada (ainda que natildeo discutida)

Raven (1948) bem compreendeu a novidade da posiccedilatildeo de Cornford ao afirmar

em seu Pythagoreans and Eleatics ldquouma das razotildees pelas quais a reconstruccedilatildeo de Corn-

ford do pitagorismo mais antiga eacute tatildeo atrativa eacute que ela imagina poder reconciliar o mo-

tivo religioso com aquele cientiacuteficordquo (Raven 1948 9)51

Seguindo de perto os argumentos de Cornford e a imagem coerente e plausiacutevel

que deles resulta Raven todavia propotildee-se agrave precisa tarefa de verificar se as conclu-

sotildees agraves quais Cornford chega sejam de fato as uacutenicas possiacuteveis Pois a questatildeo natildeo eacute

tanto ndash segundo Raven ndash aquela de ter uma visatildeo coerente do movimento e sim o

quanto esta ldquocondiz com todas as nossas evidecircncias disponiacuteveisrdquo (tallies with all our

avaliable evidence) a comeccedilar pelos testemunhos aristoteacutelicos sem os quais qualquer

tentativa de construccedilatildeo de um discurso histoacuterico sobre o pitagorismo eacute em seu dizer

ldquouma casa construiacuteda sobre areiardquo (house built upon sand ndash Raven 1948 6)52

Eacute exatamente essa a leitura que propotildee Guthrie (1962) provavelmente o uacuteltimo

grande comentador pertencente agrave tradiccedilatildeo de inteacuterpretes ingleses que tem suas origens

em Burnet Natildeo por acaso Guthrie refere-se diretamente aos estudos citados de Corn-

ford (1922 1923) e depois aos de seu disciacutepulo Raven (1948) para exemplificar aque-

le que chama de meacutetodo ldquoa priorirdquo da histoacuteria da filosofia preacute-socraacutetica O meacutetodo con-

siste fundamentalmente em deixar de lado por um instante os testemunhos diretos ou

indiretos e procurar imaginar aquilo que os referidos filoacutesofos teriam provavelmente

(likely) dito ou natildeo dadas as circunstacircncias histoacutericas em que se achavam Guthrie co-

menta assim os pressupostos teoacutericos do meacutetodo

Parte do pressuposto de que possuiacutemos certa familiaridade geral com outras escolas contemporacircneas e filoacutesofos individuais e com o ambi-ente de pensamento no qual os pitagoacutericos trabalharam Este conheci-mento geral da evoluccedilatildeo da filosofia grega daacute a algueacutem ndash eacute o que aqui se reivindica ndash o direito de fazer julgamentos pelos quais os pitagoacuteri-cos vamos dizer antes de Parmecircnides devem provavelmente ter sus-

51 Orig ldquoOne of the reasons why Cornfordrsquos reconstruction of early Pythagoreanism is so attractive is that is contrives to reconcile the religious with the scientific motiverdquo 52 Eacute certamente o caso de sublinhar que Cherniss (1977) apoiando o esforccedilo de Raven chega a dimi-nuir polemicamente o impacto da divisatildeo proposta por Cornford sobre os estudiosos ldquofora de Cam-bridgerdquo ldquoRaven was justified in feeling that the evidence does not support Cornfordrsquos interpretation which incidentally has never been so widely accepted outside of Cambridge as he appears to believerdquo (1977 376)

39

tentado a doutrina A e eacute impossiacutevel que tenham naquele estaacutegio do pensamento em que se encontravam jaacute terem desenvolvido doutrina B (Guthrie 1962 172)53

Esses pressupostos levam assim a postular a existecircncia de duas correntes da fi-

losofia em seu nascer a jocircnica e a itaacutelica54 Todos os autores de certa forma seratildeo as-

sim posicionados teoreticamente de um ou outro lado O apriorismo do meacutetodo eacute evi-

dente talvez por isso ainda que simpatizando por ele Guthrie sugere a ldquomaacutexima caute-

la possiacutevel em seu usordquo (1962 172) E com esta admoestaccedilatildeo encerra-se a preocupa-

ccedilatildeo metodoloacutegica tendente a controlar o evidente risco de circularidade das conclu-

sotildees55

Nessa linha metodoloacutegica com a intenccedilatildeo declarada de querer compreender o

pitagorismo preacute-platocircnico sob pena de caso contraacuterio natildeo entender Platatildeo Guthrie

afirma em geral a unidade do primeiro

Este pitagorismo preacute-platocircnico pode ser considerado em larga parte como uma unidade Poderemos verificar desenvolvimentos e dife-renccedilas como e quando quisermos mas seria pouco saacutebio esperar que estes diante do estado fragmentaacuterio de nosso conhecimento sejam suficientemente distinguiacuteveis ao ponto de permitir um trata-mento separado entre fases mais recentes e outras mais tardias (1962 147)56

53 Orig ldquoIt starts from the assumption that we possess a certain general familiarity with other contempo-rary schools and individual philosophers and with the climate of thought in which the Pythagoreans worked This general knowledge of the evolution of Greek philosophy gives one it is claimed the right to make judgments of the sort that the Pythagoreans let us say before the time of Parmenides are likely to have held doctrine A and that it is impossible for them at that stage of thought to have already evolved doctrine Brdquo 54 Eacute mesmo o caso de notar que essa divisatildeo remonta jaacute agrave claacutessica divisatildeo entre filosofia jocircnica e filosofia itaacutelica em Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae I 13) As δύο ἀρχαί os dois comeccedilos da filosofia satildeo identificados por Dioacutegenes Laeacutercio de um lado em Anaximandro para a vertente jocircnica da qual faratildeo parte Anaxiacuteme-nes Anaxaacutegoras Arquelau e enfim Soacutecrates do outro lado em Pitaacutegoras inventor do termo φιλοσοφία para a outra vertente aquela itaacutelica sendo este seguido pelo filho Telauge depois Xenoacutefanes Parmecircni-des Zenatildeo Leucipo Democrito ateacute Epicuro (D L Vitae I 13-14) Para uma discussatildeo historiograacutefica mais aprofundada dos modelos historiograacuteficos das origens da filosofia antiga cf Sassi (1994) e Cornelli (no prelo) 55 Para uma criacutetica veemente a este apriorismo metodoloacutegico no interior dos estudos sobre o pitagorismo cf Kahn (1974 163 n6) 56 Orig ldquoThis pre-Platonic Pythagoreanism can to a large extent be regarded as a unity We shall note developments and differences as and when we can but it would be unwise to hope that these in the fragmentary state of our knowledge are sufficiently distinguishable chronologically to allow the separate treatment of earlier and later phasesrdquo

40

Novamente como no caso de Cornford a distinccedilatildeo deveraacute ser definida no inte-

rior do pitagorismo preacute-platocircnico exclusivamente em termos cronoloacutegicos Poreacutem des-

sa forma a unidade teoacuterico-doutrinaacuteria do movimento ao menos no interior de suas

diferentes fases histoacutericas eacute garantida

Ao mesmo tempo em que provavelmente influenciados pelos esforccedilos da escrita

das grandes Histoacuterias da Filosofia do seacuteculo XX os estudiosos preocupavam-se em

compreender essa mesma unidade e portanto procurar dar conta da filosofia pitagoacuterica

como um todo comeccedilaram a surgir no panorama da criacutetica obras dedicadas ao estudo

de algumas aacutereas particulares e alguns problemas especiacuteficos da Quelleforshung do pi-

tagorismo eacute o caso certamente dos estudos sobre a poliacutetica das relaccedilotildees entre pitago-

rismo e Platatildeo e da compreensatildeo das relaccedilotildees entre o pitagorismo e o mundo religioso

em sua volta Infelizmente ndash eacute mesmo o caso de dizer ndash apoacutes a Segunda Guerra os dois

tipos de literatura dificilmente voltaratildeo a dialogar entre si os manuais de Histoacuteria da

Filosofia continuaratildeo seguindo em sua grande maioria a impostaccedilatildeo zelleriana en-

quanto os estudos monograacuteficos sobre o pitagorismo revelaratildeo complexidades ateacute hoje ndash

de maneira geral ndash desconhecidas aos primeiros

16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica

Uma especial atenccedilatildeo na histoacuteria da criacutetica foi dedicada agrave dimensatildeo poliacutetica do

pitagorismo desde que em 1830 a monografia de Krische afirmou peremptoriamente

o caraacuteter eminentemente poliacutetico da societas pitagoacuterica ldquoo escopo da Sociedade foi

meramente poliacutetico natildeo somente para restituir inicialmente o poder decaiacutedo dos aristo-

craacuteticos mas para consolidaacute-lo e amplificaacute-lordquo (Krische 1830 101)57

Estudos arqueoloacutegicos das evidecircncias numismaacuteticas jaacute revelavam no comeccedilo do

seacuteculo XX uma dominaccedilatildeo das cidades pitagoacutericas sobre todo o territoacuterio da Magna

Greacutecia o que foi comprovado pelos estudos de Kahrstedt sobre as moedas cunhadas por

Crotona e espalhadas por todo o territoacuterio especialmente apoacutes a derrota de Siacutebaris em

510 aEC (Kahrstedt 1918 186)58 A dominaccedilatildeo de Crotona sobre o restante das cidades-

57 Orig ldquoSocietatis scopus fuit mere politicus ut lapsam optimatum potestatem non modo in pristinum restitueret sed firmaret amplificaretquerdquo 58 Cf tambeacutem Seltman (1933) De Vogel (1957 323) e May (1966)

41

colocircnias doacutericas da Magna Greacutecia confirmaria as notiacutecias da influecircncia poliacutetica pitagoacute-

rica de fato grande parte dessas moedas apresenta siacutembolos pitagoacutericos59

E todavia conforme jaacute foi dito as primeiras abordagens historiograacutefico-

filosoacuteficas agrave poliacutetica pitagoacuterica dependem fortemente da influecircncia do ceticismo de Zel-

ler que por sua vez orientou a coleccedilatildeo de Diels dos Vorsokratiker ambos concorriam

para levar a maioria dos comentadores a considerar o tema da poliacutetica pitagoacuterica como

simplesmente acidental (Centrone 1996 196)

Eacute mister concordar com a opiniatildeo de que a relaccedilatildeo entre pensamento filosoacutefico e

praacutetica poliacutetica (reformista ou menos) na histoacuteria do pitagorismo desafiou a ingenuidade

dos classicistas (D S M 1943 79) ingenuidade esta que tenderia ndash se deixada agrave sua

sorte ndash a rejeitar as conexotildees poliacuteticas com base no argumento aprioriacutestico pela qual um

homem como Pitaacutegoras natildeo poderia estar envolvido nesse tipo de atividade (Minar

1942 15)

Portanto o problema do envolvimento poliacutetico dos pitagoacutericos apresenta um

quadro de questotildees multifacetado natildeo somente por causa das relaccedilotildees imbricadas entre

fontes antigas e mais recentes pela incerta cronologia da dominaccedilatildeo (e da derrota) dos

pitagoacutericos na Magna Greacutecia e pela pouco clara influecircncia de Pitaacutegoras sobre sua forma

mas tambeacutem quiccedilaacute principalmente pela dificuldade teoacuterica dos comentadores em arti-

cularem uma relaccedilatildeo entre filosofia e poliacutetica que jaacute a partir de Aristoacuteteles comeccedila a

ser vista como um tanto inapropriada

Nesse sulco hermenecircutico insere-se certamente a obra fundamental de Delatte

(1922a) Essai sur la politique pythagoricienne Este ao mesmo tempo em que realiza

um exaustivo estudo das fontes para a poliacutetica pitagoacuterica que o leva a confiar na plausi-

bilidade de efetiva accedilatildeo poliacutetica protopitagoacuterica em Crotona remete para um periacuteodo

sucessivo notadamente para o seacuteculo IV aEC seacuteculo de Arquitas e dos testemunhos de

Aristoxeno a imbricaccedilatildeo dessa atividade com as linhas fundamentais do pensamento

filosoacutefico ateacute laacute sustenta Delatte as primeiras koinoniacuteai pitagoacutericas procuravam mais

diretamente a ldquopaz interiorrdquo abstendo-se de uma accedilatildeo reformista ou mais em geral

muito envolvida nas instituiccedilotildees poliacuteticas de suas cidades ldquoa Sociedade deseja somente

59 Cf as moedas em Seltman (1933 76-80 100 118 144) e May (1966 157 167) De maneira especial a moeda n 28 (Seltman 1933 144) representando um homem barbado com a inscriccedilatildeo PUTHAGORES poderia ser um retrato do proacuteprio Pitaacutegoras e como tal jaacute foi utilizada por Guthrie para a capa do primeiro volume de sua History of Greek Philosophy (1962) Philip (1966 194) eacute todavia ceacutetico com a possibili-dade de a imagem representar o semblante real de Pitaacutegoras

42

a paz interior que lhe assegure sua proacutepria tranquilidade e mantenha as instituiccedilotildees e-

xistentes das quais ela se tornara mantenedorardquo (Delatte 1922a 21)60

Ademais se eacute verdade que a comunidade pitagoacuterica estaacute de certa forma envolvi-

da na atividade poliacutetica natildeo eacute necessariamente o caso de pensar que o proacuteprio Pitaacutegoras

estivesse envolvido diretamente com isso

Algueacutem poderia concluir que a poliacutetica de tendecircncias aristocraacuteticas que segundo Timeu marca o fim da histoacuteria da Sociedade natildeo seja um impulso de Pitaacutegoras como tambeacutem que a poliacutetica seja ao que parece estranha ao seu plano de reformas (Delatte 1922a 18)61

Por consequecircncia Delatte explica o fato central das revoltas democraacuteticas an-

tipitagoacutericas como o resultado natildeo tanto do compromisso poliacutetico da comunidade

como tal em sentido aristocraacutetico e conservador (pelo contraacuterio considerada mais

apropriadamente como uma forccedila moral) mas sim das atitudes de alguns indiviacute-

duos que se utilizavam de seu prestiacutegio e que acabaram arrastando-a para o conflito

em movimento reativo aos ataques que se seguiram e portanto na forma de autode-

fesa (1922a 19-20)

Jaeger (1928) por sua vez sustenta a tese em verdade originalmente zelleriana

de que o que diz respeito agrave poliacutetica pitagoacuterica resume-se em uma projeccedilatildeo do ideal tar-

dio da vida praacutetica por parte de autores como Aristoxeno e Dicearco o Pitaacutegoras de

Jaeger na mesma linha de Delatte seria mais um educador mestre de uma educaccedilatildeo

baseada na muacutesica e na matemaacutetica

Em seguida Von Fritz (1940) pergunta-se se de fato eacute possiacutevel afirmar que a

comunidade pitagoacuterica antiga controlasse politicamente e de forma direta o poder das

cidades da Magna Greacutecia Por meio de uma ldquoaustera investigaccedilatildeo das fontesrdquo (Tate

1942 74) identifica em Aristoxeno a testemunha mais confiaacutevel para uma reconstruccedilatildeo

da trajetoacuteria poliacutetica das comunidades pitagoacutericas e conclui ceticamente que

As tradiccedilotildees antigas natildeo fornecem a menor evidecircncia da existecircncia de algo que possa ser considerado como um poder real dos pitagoacutericos

60 Orig ldquola Socieacuteteacute deacutesire seulement la paix inteacuterieure qui lui assure sa propre tranquilliteacute et le mantien des instituitions existantes dont elle est devenue maicirctresserdquo 61 Orig ldquoOn peut done conlure que la politique agrave tendances aristocratiques qui selon Timeacutee caracteriacutese la fin de lacutehistorie de la Socieacuteteacute nacuteesta paacutes neacutee dacuteune impulsion de Pythagore et mecircme que la politique eacutetait selon toute vraisemblance eacutetrangegravere agrave son plan de reformesrdquo

43

em nenhuma cidade da Itaacutelia Meridional em qualquer eacutepoca (Von Fritz 1940 95)62

A posiccedilatildeo de Von Fritz portanto natildeo difere substancialmente em uacuteltima anaacuteli-

se daquela de seus predecessores o compromisso poliacutetico dos pitagoacutericos eacute algo que

deve ser atribuiacutedo mais diretamente a escolhas pessoais por vezes motivadas religiosa-

mente de alguns membros isolados da koinoniacutea e natildeo a uma accedilatildeo filosoacutefica do grupo

como tal

Eacute somente Minar (1942) em sua obra dedicada agrave poliacutetica pitagoacuterica originaacuteria

que primeiramente revela estar consciente de todos os perigos e as precompreensotildees

historiograacuteficas inerentes ao tratamento da questatildeo poliacutetica do pitagorismo No prefaacutecio

dessa obra declara imediatamente querer enfrentar aquele que considera o paradoxo

representado por uma escola filosoacutefica envolvida em atividades poliacuteticas

Que a sociedade pitagoacuterica tenha exercido uma influecircncia poliacutetica nas cidades do Sul da Itaacutelia nos seacuteculos sexto e quinto antes de Cristo tem sido um fato reconhecido Contudo o paradoxo de uma escola filosoacute-fica envolvida na atividade poliacutetica trouxe muita dificuldade para o ju-iacutezo histoacuterico sobre os fatos (1942 v)63

Minar natildeo esconde o fato de vaacuterios autores antigos afirmarem explicitamente

que os pitagoacutericos (e mesmo Pitaacutegoras) teriam exercitado formalmente o controle do

governo em Crotona e em outras cidades (Minar 1942 16) Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio

Jacircmblico Ciacutecero entre outros64 Desse modo opotildee-se ao argumento recorrente entre

seus predecessores de que a atividade poliacutetica era uma opccedilatildeo isolada de alguns mem-

bros por um lado o caraacuteter fortemente centralista da comunidade por outro o fato histoacute-

rico de a revolta ser dirigida contra a comunidade como um todo Ambas as tradiccedilotildees

indicariam como pouco provaacutevel que a opccedilatildeo poliacutetica se limitasse a uma atividade mar-

ginal de alguns poucos membros

62 Orig ldquoAncient tradition does not provide the slightest evidence for the existence of anything like a real rule of the Pythagoreans in any of the cities of Southern Italy at any timerdquo 63 Orig ldquoThat the Pythagorean Society exercised a political influence in the cities of southern Italy in the sixth and the fifth centuries BC has long been a recognized fact But the paradox of a philosophical school being involved in political activity has brought a certain amount of difficulty into the historical evaluation of the factsrdquo 64 D L Vitae VIII 3 Porph VP 20 21 54 Iambl VP 30 130 249 254 Cicero Tuscul 5410

44

O caraacuteter altamente centralizado da Sociedade conforme admite Von Fritz torna improvaacutevel que a atividade poliacutetica pitagoacuterica reduza-se simplesmente agravequela de membros individuais e o fato de que a revol-ta contra o governo no poder era a mesma coisa que um ataque contra a Sociedade sugere fortemente que a Sociedade pitagoacuterica era reco-nhecida como o verdadeiro governo em Crotona e na maioria das ci-dades da Magna Greacutecia (Minar 1942 18)65

O pitagorismo constituiria assim o verdadeiro poder dominante em diversas ci-

dades da Magna Greacutecia Caberaacute depois aos historiadores modernos em geral pouco

acostumados a essa estreita relaccedilatildeo entre filosofia e poliacutetica compreender a imbricaccedilatildeo

das duas dimensotildees ndash que Minar define como teoacuterica e praacutetica ndash do pitagorismo em uma

unidade dinacircmica

A parte menos convincente da leitura de Minar eacute provavelmente aquela que tenta

articular essas duas partes entre si fundamentalmente por acabar dando agrave componente

doutrinaacuteria da filosofia poliacutetica pitagoacuterica um peso muito inferior ao que se esperaria

(Minar 1942 95-132) reduzindo Pitaacutegoras e seu movimento a uma sociedade poliacutetica

marcada por certo oportunismo e pragmatismo66

Natildeo eacute obviamente por mero acaso que diversos estudiosos italianos interessa-

ram-se pelo pitagorismo e de maneira especial por sua dimensatildeo poliacutetica sem chegar

aos extremos chauvinistas de Capparelli (1941) diversos autores a comeccedilar por Ros-

tagni (1922) e pela revisatildeo da obra de Zeller feita por Mondolfo (1938) procuraram

articular as duas dimensotildees (miacutestica e cientiacutefica) em um complexo conjunto historiograacute-

fico em que a dimensatildeo poliacutetica ocupa um papel central O sentido dessa tradiccedilatildeo pode

ser compreendido com precisatildeo pela definiccedilatildeo que abre a obra claacutessica de Ferrero Sto-

ria del Pitagorismo nel mondo romano

O pitagorismo agrave prova dos fatos demonstrou-se algo maior e diferen-te de um abstrato fenocircmeno de cultura da manifestaccedilatildeo de um especi-

65 Orig ldquoThe highly centralized character of the Society which von Fritz recognizes makes it un-likely that Pythagorean political activity was merely that of individual members and the fact that a revolt against the government in power was the same thing as an attack against the Society or at least involved such an attack as an integral part strongly suggests that the Pythagorean Society was recognized as the real ruler in Croton and most of the cities of Magna Graeciardquo 66 Deve-se concordar aqui com De Vogel (1966 13) quando sugere que Minar concluiria que ldquoPythago-ras was rather a shrewd politician an aristocratic reactionary at a time of rising democracy ndash and that all this had nothing to do with philosophyrdquo Minar (1942 99) parece creditar agrave doutrina poliacutetica dos pi-tagoacutericos a simples funccedilatildeo de uma superestrutura afirmando que ldquothe relationship between practice and theory will be seen most clearly through an analysis of the doctrinal superstructure which this group built up about its political activityrdquo

45

al endereccedilo religioso-dogmaacutetico ou enfim de mera expressatildeo inte-lectualiacutestica Esse foi se natildeo estamos errados notadamente a expres-satildeo de um fato social e poliacutetico conectado a uma estrutura permanente do mundo antigo foi a expressatildeo caracteriacutestica de uma organizaccedilatildeo dos intelectuais que respondia agraves exigecircncias de um grupo dominante de uma eleita poliacutetica a qual em um primeiro momento como as teo-cracias identificou-se e foi uma soacute realidade com os mesmos intelec-tuais (Ferrero 1955 21)

A apropriaccedilatildeo italiana do pitagorismo tem suas origens jaacute em eacutepoca romana Um

breve excursus sobre essa tradiccedilatildeo pode mostrar claramente a profundidade da identifi-

caccedilatildeo eacutetnico-poliacutetica do pitagorismo com a cultura itaacutelica

Baseando-se na ambiguidade inerente ao termo ldquofilosofia itaacutelicardquo e utilizando-se

de uma variaccedilatildeo das lendas sobre Pitaacutegoras pela qual seria este filho de um tirreno isto

eacute de um etrusco Pitaacutegoras eacute considerado como um dos antepassados da cultura poliacutetica

filosoacutefica e religiosa de Roma67 O filoacutesofo sacircmio acaba assim por ser inscrito nas lis-

tas dos cidadatildeos romanos (Plinio Hist Nat XXXIV 26) e acreditado como mestre do

rei-sacerdote Numa Pompiacutelio (Plutarco Numa 8) Significativamente Cicero ao mes-

mo tempo em que quer dissipar o erro do patente anacronismo desse discipulado de

Numa acaba confirmando a tradiccedilatildeo patrioacutetica da qual este deriva

Considero que por admiraccedilatildeo aos pitagoacutericos ateacute o rei Numa foi iden-tificado pelos posteriores como pitagoacuterico Estes de fato conheciam a teoria e as regras de Pitaacutegoras e de seus antepassados haviam recebi-do a notiacutecia da equidade e sabedoria daquele rei mas ignorando a ida-de daqueles homens e as eacutepocas por causa da distacircncia temporal a-creditaram que este que se destacava por sabedoria fosse disciacutepulo de Pitaacutegoras (Cicero Tusc Disp IV 1-2)68

Em diversos passos ciceronianos os pitagoacutericos definidos como ldquoquase nossos

concidadatildeos eles que eram entatildeo chamados de filoacutesofos itaacutelicosrdquo (Cato Maior XXI

78) tornam-se um capiacutetulo central da gloriosa histoacuteria romana (Tusc Disput IV)69

Uma famosa passagem das Metamorfoses de Oviacutedio (XV 1-447) assim como outra da

67 O testemunho de Aristoxeno sobre o pai etrusco de Pitaacutegoras encontra-se entre outros em Plutarco Quaest Conv VIII 7 1 68 Orig ldquoQuin etiam arbitror propter Pythagoreorum admirationem Numam quoque regem Pytha-goreum a posterioribus existimatum Nam cum Pythagorae disciplinam et instituta cognoscerent regisque eius aequitatem et sapientiam a maioribus suis accepissent aetates autem et tempora igno-rarent propter vetustatem eum qui sapientia excelleret Pythagorae auditorem crediderunt fuisserdquo (Cicero Tusc Disp IV 1-2) 69 Orig ldquoincolae paene nostros qui essent italici philosophi quondam nominatirdquo (Cato Maior XXI 78)

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Vida de Numa de Plutarco (I 8 e 11) reafirmam a conexatildeo entre Numa e Pitaacutegoras

consolidando dessa forma a tradiccedilatildeo anterior da romanidade e da italianidade de Pitaacute-

goras70

A proacutepria literatura filosoacutefico-teoloacutegica da Idade Meacutedia apesar de natildeo ter tido

acesso agraves Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio Porfiacuterio e Jacircmblico assim como a outras fontes

menores contudo manteve viva a tradiccedilatildeo de Pitaacutegoras Ambroacutesio lembra os ditos pi-

tagoacutericos e diversos placita Agostinho que inicialmente abundava em citaccedilotildees e refe-

recircncias a Pitaacutegoras e agrave filosofia pitagoacuterica acaba todavia voltando atraacutes e afirma ldquoeu

acreditava que natildeo houvesse erros na tal doutrina pitagoacuterica mas satildeo muitos e ateacute capi-

taisrdquo (Retr PL 32 col58-9)71 Tanto ele como tambeacutem Tertuliano e Latacircncio natildeo dei-

xam de lembrar os erros do samius sophista in primis ndash como natildeo podia ser diferente ndash

a teoria da metempsicose72

O Quattrocento italiano marca um franco revival da tradiccedilatildeo itaacutelica de Pitaacutegoras

na esteira da recuperaccedilatildeo do platonismo Nesse sentido a recuperaccedilatildeo das fontes latinas

exerce um papel fundamental Assim a partir da primeira Vida de Pitaacutegoras escrita por

Baldi em vulgar (1888 10) por meio da recuperaccedilatildeo da figura de Pitaacutegoras por Petrarca

(Triumphus fame III 7-8) haacute uma lenta apropriaccedilatildeo do pitagorismo Esta natildeo se limita

a um exerciacutecio literaacuterio mas alcanccedila tambeacutem uma dimensatildeo especulativa com Nicolau

de Cusa o erudito intelectual da Igreja Romana utiliza para sua teologia negativa a a-

ritmogeometria pitagoacuterica do Timeu e da Repuacuteblica A doutrina da trindade eacute tambeacutem

referida a Pitaacutegoras ldquoesta eacute aquela unidade trina que Pitaacutegoras primeiro entre todos os

filoacutesofos gloacuteria da Itaacutelia e da Greacutecia nos ensinou a adorarrdquo (Cusano 1972 68)73

Duas figuras intelectuais italianas de primeira ordem desse periacuteodo dedicam-se

ao pitagorismo Marciacutelio Ficino e Pico della Mirandola O primeiro procurando colocar

a Florenccedila dos Meacutedici no interior da histoacuteria intelectual ocidental como sucessora de

70 Tito Livio recorda nesse sentido um fato muito significativo foi achada em Roma em 181 EC uma caixa contendo livros que se pensavam ter sido escritos pelo proacuteprio Numa (Liv XL 29) Definidos pita-goacutericos dedicados a temaacuteticas religiosas e sapienciais foram queimados (sic) a mando das autoridades que temiam ameaccedilas agrave religiatildeo oficial 71 Orig ldquome credidisse nullos errores in Pythagorica esse doctrina cum sint plures iidemque capitalesrdquo (August Retr PL 32 col 58-9) 72 Cf para os autores citados as seguintes paacuteginas Tertuliano De Anima PL 2 col 697-701 Latacircncio Div Inst PL 6 col 405-9 e De vita beata PL 6 col 777 Agostinho Contra Acad PL 32 col 954 Ambroacutesio In salm PL 15 col 1275 73 Orig ldquoQuesta egrave quella unitagrave trina che Pitagora primo tra tutti i filosofi gloria drsquoItalia e di Grecia ci ha insegnato ad adorarerdquo

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Atenas (e Roma) e a si mesmo como continuador da Academia empreende o projeto de

traduccedilatildeo do corpus platocircnico fortemente influenciado pela exegese neopitagoacuterica Dessa

forma jaacute na sua introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo de Plotino Ficino resume o lugar que reserva

para Pitaacutegoras nessa histoacuteria

A sagrada filosofia nasceu sob Zoroastro entre os Persas sob Mercuacute-rio entre os Egiacutepcios tanto aqui como laacute coerente e conforme com si mesma cresceu depois entre os Traacutecios sobre Orfeu e Aglaofemo foi adolescente entre os gregos e os itaacutelicos sob Pitaacutegoras e tornou-se adulta em Atenas sob o divino Platatildeo (Ficino 1576 1537)74

Em outro passo em que reconstroacutei uma genealogia da filosofia antiga ou me-

lhor da prisca theologia que antecipa a filosofia propriamente dita e parte de Hermes

Trismegisto Pitaacutegoras aparece novamente em primeiro plano

[A Hermes] seguiu Orfeu ao qual foram atribuiacutedas as partes seguintes da teologia antiga a Aglaofemo que havia sido iniciado aos ritos sa-grados de Orfeu sucedeu depois na teologia Pitaacutegoras do qual Filolau foi disciacutepulo o mesmo que foi preceptor de Platatildeo Portanto uma uacuteni-ca seita de filosofia antiga em todo lugar coerente consigo mesma foi instituiacuteda por seis teoacutelogos em uma ordem maravilhosa que eacute inaugu-rada por Mercuacuterio e se cumpre plenamente com o divino Platatildeo (Fici-no 1576 1836)75

O lugar de Pitaacutegoras como priscus philosophus nesse panorama articulado por

sabedorias outras pressupotildee a mesma visatildeo universalista que Pico della Mirandola de-

senvolveraacute em seguida a de uma articulaccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica com a Cabala os

Oraacuteculos Caldaacuteicos e a sabedoria aacuterabe Pico mestre da concoacuterdia preparava-se para

discutir em Roma novecentas proposiccedilotildees retiradas das mais diversas tradiccedilotildees sapien-

74 Orig ldquoDivina providentia volente videlicet omnes pro singulorum ingenio ad se mirabiliter revocare factum est ut pia quaedam philosophia quodam et apud Persas sub Zoroastre et apud Aegyptios sub Mercurio nasceretur utrobique sibimet consonas nutriretur deinde apud Thraces sub Orpheo atque Aglaophemo adolesceret quoque mox sub Pythagora apud Graecos et in Italos tandem vero a Divo Platone consumaretur Athenisrdquo (Ficino 1576 1537) 75 Trata-se aqui do Argumentum Marsilij Ficini Florentini in librum Mercurij Trismegisti ad Cosmum Medicem isto eacute da carta dedicatoacuteria dirigida a Cosimo dersquoMedici em ocasiatildeo da traduccedilatildeo dos primeiros 14 opuacutesculos do Corpus Hermeticus Assim no original ldquocum secutus Orpheus secundas antiquae theo-logiae partes obtinuit Orphei sacris initiatus est Aglaophemo successit in theologia Pythagoras quem Philolaus sectatus est divi Platonis nostril praeceptor Itaque una priscae theologiae undique sibi conso-na secta ex theologis sex miro quodam ordine conflata est exordia sumens a Mercurio a divo Platone penitus absolutardquo O que Ficino aqui quer realizar foi definido de forma instigante como uma arqueologia do saber em busca dos textos e dos autores de referecircncia mais antigos para explicar a sucessiva histoacuteria do pensamento (Tambrun-Krasker 1999 20-22)

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ciais quando com a urgecircncia que todo pesquisador bem conhece pede desesperadamen-

te a Ficino que lhe empreste o coacutedigo que continha a Vida Pitagoacuterica de Jacircmblico

ldquoneste momento muito necessaacuterio aos meus estudosrdquo (hoc tempore ad mea studia plu-

rimum necessarium ndash 1572 361) exatamente por considerar o pitagorismo como a pon-

te principal para a sabedoria antiga oriental

A economia dessas paacuteginas natildeo permitiraacute seguir mais de perto este caminho itaacute-

lico da tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo76 O que interessa mais imediatamente anotar aqui eacute

que modernos historiadores italianos recuperam essa tradiccedilatildeo de estudos sobre a poliacutetica

pitagoacuterica no interior dos estudos arqueoloacutegicos e histoacutericos sobre a Magna Greacutecia co-

mo o caso de Prontera (1976 1977) Mele (1982 2000 2007) e Musti (1990) Contudo

isso vale tambeacutem para historiadores da filosofia entre eles aleacutem do jaacute citado Ferrero

(1955) destacam-se os estudos a este respeito de Casertano (1988 e 2009) e os soacutebrios

capiacutetulos dedicados ao tema por Centrone (1996) Especialmente relevante eacute o contribu-

to de Musti (1990) que evidencia nas fontes sobre as revoltas antipitagoacutericas uma carac-

teriacutestica de acronia que permitiria resolver a espinhosa questatildeo cronoloacutegica (aleacutem de

topograacutefica) das revoltas

A narraccedilatildeo dos fatos apresenta-se com uma viscosa continuidade [] Agrave anaacutelise atenta daquilo que se tem por detraacutes esta narraccedilatildeo revela uma modalidade particular (bem mais que uma simples contradiccedilatildeo) do formar-se das tradiccedilotildees pitagoacutericas e sobre o pitagorismo (Musti 1990 38)77

A soluccedilatildeo proposta por Musti eacute a de considerar que as condiccedilotildees culturais nas

quais se desenvolve a literatura pitagoacuterica natildeo criavam as condiccedilotildees para uma verifica-

ccedilatildeo criacutetica das fontes em relaccedilatildeo agraves patentes contradiccedilotildees cronoloacutegicas e topograacuteficas

notadamente Musti indica no sectarismo na diaacutespora dos pitagoacutericos e na circulaccedilatildeo

oral das memoacuterias os motivos centrais dessa acronia da tradiccedilatildeo (1990 39)

76 Eacute certamente o caso para isso de seguir o percurso bem traccedilado por Casini (1998) entre outros Para a influecircncia do pitagorismo sobre a arte e a arquitetura da Europa renascentista cf agora a ampliacutessima monografia de Joost-Gaugier (2009) que concorda com a primazia italiana no revival pitagoacuterico acima descrito ldquothe enlivening inspiration of Pythagoreanism spread primarly from Italy where interest in ancient works was at first most intense to the rest of Europerdquo (2009 240) 77 Orig ldquoIl racconto dei fatti si presenta con una vischiosa continuitagrave [] Allacuteanalise attenta di quello che c`egrave dietro questo racconto rivela un modo particolare (assai piugrave che una occasionale contraddizione) di formarsi delle tradizioni pitagoriche e sul pitagorismordquo

49

Um capiacutetulo a parte merecem as tentativas de Rostagni (1922) antes e de De

Vogel (1964) posteriormente de creditar validade historiograacutefica agrave definiccedilatildeo do papel

poliacutetico do proacuteprio Pitaacutegoras aos ceacutelebres quatro discursos poliacuteticos que teria proferido

quando de sua chegada em Crotona A histoacuteria da tradiccedilatildeo e da criacutetica moderna desses

quatro loacutegoi eacute extremamente significativa para a compreensatildeo da tentativa de negaccedilatildeo

da relevacircncia da poliacutetica pitagoacuterica da qual se falava

A redaccedilatildeo completa dos quatro discursos referida por Porfiacuterio (VP 18) citando

Dicearco eacute presente em Jacircmblico (VP 37-57) que por sua vez devia ter como fontes

Timeu provavelmente via Apolocircnio de Tiana78 Rostagni (1922) concentrado em um

escoacutelio de Antiacutestenes ao primeiro verso da Odisseacuteia a propoacutesito da polytropiacutea de Ulis-

ses no interior de uma interessantiacutessima (e ainda pouco explorada) hipoacutetese de trabalho

que conecta o pitagorismo agraves origens da retoacuterica (de maneira especial a Goacutergias) empe-

nha-se em conferir confiabilidade ao testemunho de Dicearco sobre os loacutegoi de Pitaacutego-

ras A intenccedilatildeo declarada eacute a de superar a tese claacutessica de Rohde mencionada anterior-

mente pela qual a tradiccedilatildeo teria sido inventada por Dicearco que assim teria criado a

figura de um Pitaacutegoras educador poliacutetico como modelo anacrocircnico da vida praacutetica peri-

pateacutetica Dessa criaccedilatildeo derivariam depois tanto os testemunhos de Timeu-Apolocircnio

quanto a redaccedilatildeo dos discursos em Jacircmblico (1871 561 1872 27) A essa tese Ros-

tagni (1922 151) opotildee a ldquoevidecircnciardquo de um testemunho de Antiacutestenes relativo agrave tradi-

ccedilatildeo dos discursos de Pitaacutegoras

Antiacutestenes diz que Homero nem louva nem critica Ulisses chamando-o polyacutetropos [] Por esse motivo deu a Ulisses o epiacuteteto de polyacutetropos pois sabia conversar com os homens de muitas maneiras Assim narra-se que Pitaacutegoras convidado a proferir discursos agraves cri-anccedilas compocircs para elas discursos infantis (loacutegoi paidikoiacute) e para as mulheres outros adequados agraves mulheres e para os arcontes arcoacutenticos e para os efebos efeacutebios Pois encontrar o tipo de sabedoria conveni-ente para cada um eacute proacuteprio da sapiecircncia Ao contraacuterio eacute sinal de ig-noracircncia utilizar-se de uma soacute forma de discurso (monotroacutepos toucirc loacute-gou) com aqueles que estatildeo variavelmente dispostos (Schol In Hom Odyss I 1 50-63)79

78 Bertermann (1913) Zucconi (1970) Centrone (1996) Brisson e Segonds (1996) 79 Orig ldquo οὐκ ἐπαινεῖν φησιν Ἀντισθένης Ὅmicroηρον τὸν Ὀδυσσέα microᾶλλον ἢ ψέγειν λέγοντα αὐτὸν ldquoπολύ-τροπονrdquo []διὰ τοῦτό φησι τὸν Ὀδυσσέα Ὅmicroηρος σοφὸν ὄντα πολύτροπον εἶναι ὅτι δὴ τοῖς ἀνθρώποις ἠπίστατο πολλοῖς τρόποις συνεῖναι οὕτω καὶ Πυθαγόρας λέγεται πρὸς παῖδας ἀξιωθεὶς ποιήσασθαι λόγ-ους διαθεῖναι πρὸς αὐτοὺς λόγους παιδικοὺς καὶ πρὸς γυναῖκας γυναιξὶν ἁρmicroοδίους καὶ πρὸς ἄρχοντας ἀρχοντικοὺς καὶ πρὸς ἐφήβους ἐφηβικούς τὸν γὰρ ἑκάστοις πρόσφορον τρόποντῆς σοφίας ἐξευρίσκειν

50

Sua soluccedilatildeo pressupotildee a compreensatildeo de uma genealogia do loacutegos e da retoacuterica

que remonta suas origens ao pitagorismo

Eacute muito uacutetil considerar que a tradiccedilatildeo acolhida por Aristoacuteteles e pela criacutetica alexandrina atribuia a Empeacutedocles e ateacute mesmo ao proacuteprio Pi-taacutegoras a invenccedilatildeo da arte retoacuterica Esta tradiccedilatildeo ndash que ateacute hoje eacute considerada vazia ndash possui um fundamento real na medida em que a Empeacutedocles e aos pitagoacutericos deviam remontar as experiecircncias e os preceitos relativos ao valor da psicagoacutegico da palavra os mesmos que depois formaram a base da teacutechne de Goacutergias (Rostagni 1922 149)80

Assim o escoacutelio e os loacutegoi acima citados confirmariam essa vocaccedilatildeo poliacutetico-

retoacuterica do pitagorismo em estreita conexatildeo com um modelo bastante pragmaacutetico de

relaccedilatildeo entre poliacutetica e filosofia como aquele da primeira sofiacutestica

De Vogel (1966) empenha-se em amplo estudo dos quatro loacutegoi em busca da de-

finiccedilatildeo de uma imagem preacute-zelleriana ndash a terminologia eacute de Thesleff (1968 298) ndash de

Pitaacutegoras como educador poliacutetico no interior todavia de uma visatildeo dele que seja oni-

compreensiva das diversas imagens transmitidas pela histoacuteria Diferentemente do ho-

mocircnimo e contemporacircneo trabalho de Philip (1966) que confia unicamente a Aristoacutete-

les a construccedilatildeo de uma imagem de Pitaacutegoras e do pitagorismo antigo centrada no ensi-

no moral De Vogel reforccedila os argumentos jaacute citados de Rostagni baseando-se suposta-

mente em argumentaccedilatildeo de Thesleff (1961) segundo a qual haveria uma continuidade

ininterrupta da escola pitagoacuterica no sul da Itaacutelia desde o iniacutecio ateacute o seacuteculo IV aEC81

Essa continuidade permitiria considerar como relevante parte do material das Vidas he-

leniacutesticas e ndash certamente ndash devem ser assim pensados os testemunhos da atividade poliacute-

σοφίας ἐστίνmiddot ἀmicroαθίας δὲ τὸ πρὸς τοὺς ἀνοmicroοίως ἔχοντας τῷ τοῦ λόγου χρῆσθαι microονοτρόπῳrdquo (Schol In Hom Odyss I 1 50-63 Dindorf) 80 Orig ldquoEacute assai utile considerare che la tradizione accolta da Aristotele e dalla critica alessandrina attribuiva ad Empedocle e perfino a Pitagora stesso lrsquoinvezione dellrsquoarte retorica Questa tradizione ndash che fino ad oggi si considera vacua ndash ha un reale fondamento nel senso che ad Empedocle e ai Pitagorici dovevano risalire gli esperimenti e precetti riguardanti il valore psicagogico della parola che formarono poi la base della teacutechne de Goacutergiasrdquo E ainda segundo Rostagni o surgimento da retoacuterica ldquo rappresentava unrsquoevoluzione verificatasi nel seno stesso del pitagorismo pel naturale procedere della scienza e dello spirito grecordquo (1922 169) 81 Ainda que Thesleff em sua resenha ao livro de De Vogel natildeo reconheccedila ter afirmado esta continuida-de ldquo[De Vogel] account of the argumentation in my Introduction (1961) is however somewhat mislea-ding For instance I did not argue as would appear from d V p 28 ff that the Pythagorean school continued to live on in Southern Italy from the end of the 4th century Certainly there was a break in the tradition And I did not lay stress on the evidence of the pentagramsrdquo (Thesleff 1968 300 nI)

51

tica de Pitaacutegoras fornecidos pelos loacutegoi As criacuteticas contra essa lectio de Rostagni e De

Vogel natildeo demoraram (Thesleff 1968 Kerferd 1965 e Feldman 1968) paralelos com

apoacutecrifos doacutericos e outros sinais textuais indicam imediatamente uma necessaacuteria pru-

decircncia no tratamento das conclusotildees de De Vogel O que mais importa talvez eacute aquilo

sublinhado por Centrone (1996) isto eacute a existecircncia nas fontes de sinais dessa ativida-

de poliacutetico-retoacuterica independentemente da antiguidade ou menos dos loacutegoi

Um nuacutecleo originaacuterio historicamente confiaacutevel confirmado inclusive por alguns acenos agrave histoacuteria local e agrave topografia de Crotona assim como um reflexo histoacuterico da organizaccedilatildeo societaacuteria da aristocracia arcaica tem-se na riacutegida divisatildeo de grupos sociais aos quais Pitaacutegoras manteacutem discursos separadamente (coisa que eacute atestada por todas as fontes) (Cen-trone 1996 31)82

De Vogel (nas pegadas de Rostagni) certamente contribui para recolocar no de-

vido lugar no interior da literatura histoacuterico-filosoacutefica a discussatildeo sobre a dimensatildeo

poliacutetica do pitagorismo desde suas origens Com uma vantagem comparativa inestimaacute-

vel a de obrigar daqui para frente a consideraacute-la como parte integrante de uma ima-

gem complexa articulada juntamente com as dimensotildees cientiacutefica e religiosa do pitago-

rismo

17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica

A histoacuteria da criacutetica dedicou-se desde o comeccedilo tambeacutem agrave anaacutelise da imagem

do pitagorismo antigo que resulta das fontes indiretas isto eacute tanto das pretensas polecirc-

micas antipitagoacutericas de autores contemporacircneos como das influecircncias e das referecircn-

cias de autores posteriores ao movimento (Zeller e Mondolfo 1938 313-364)

Nessa busca a obra de Tannery (1887b ) eacute certamente o primeiro passo sua tese

central eacute que a seccedilatildeo da doacutexa do Poema de Parmecircnides seria um desenvolvimento ar-

gumentativo dedicado agrave refutaccedilatildeo da cosmologia pitagoacuterica Tannery parte da observa-

82 Orig ldquoun nucleo originario storicamente attendibile confermato peraltro da alcuni accenni alla storia locale e alla topografia di Crotone cosigrave come un riflesso storico dellrsquoorganizzazione societaria dellrsquoaristocrazia arcaica si ha nella rigida divisione dei gruppi sociali ai quali Pitagora tiene discorsi separatamente (cosa che egrave attestata da tutte le fonti)rdquo

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ccedilatildeo pela qual no comeccedilo da seccedilatildeo da doacutexa no Poema Parmecircnides natildeo poderia senatildeo

referir-se aos pitagoacutericos

Jaacute disse que o proacutelogo de Parmecircnides sobre a opiniatildeo (v 113-121) nos joga em pleno pitagorismo sobretudo o uacuteltimo verso parece-me digno de atenccedilatildeo Parmecircnides quer fazer conhecer a ciecircncia tal qual eacute pro-fessada por seus contemporacircneos mas na Itaacutelia somente os pitagoacuteri-cos gozam de uma reputaccedilatildeo de ciecircncia Pelo fato de natildeo termos pro-vas decisivas de que o Eleata preocupa-se com os Jocircnicos que nos a-chamos no direito de pensar que natildeo visa a outros senatildeo os Itaacutelicos (Tannery 1887b 226)83

Da mesma forma a polecircmica de Zenatildeo (como tambeacutem a de Xenoacutefanes antes)

seria dirigida diretamente contra a teoria dos nuacutemeros pitagoacutericos pois este ldquotira conse-

quecircncias totalmente novas e notadadamente aquelas sobre a unidade a continuidade a

imobilidade do universo contradizem as doutrinas dos pitagoacutericosrdquo (Tannery

1887b250)84 O ponto central da discordacircncia estaria na definiccedilatildeo do que seria um pon-

to

Entatildeo qual foi o ponto baixo reconhecido por Zenatildeo nas doutrinas pi-tagoacutericas de seu tempo Como as apresenta como sendo uma afirma-ccedilatildeo da pluralidade das coisas A soluccedilatildeo nos eacute dada de uma famosa definiccedilatildeo do ponto matemaacutetico definiccedilatildeo ainda claacutessica na eacutepoca de Aristoacuteteles mas agrave qual os historiadores natildeo deram muita atenccedilatildeo Para os pitagoacutericos o ponto eacute a unidade que tem uma posiccedilatildeo ou dito de outra maneira a unidade considerada no espaccedilo Resulta imediata-mente desta definiccedilatildeo que o corpo geomeacutetrico eacute uma pluralidade so-ma de pontos da mesma forma como o nome eacute uma pluralidade soma de unidades No entanto essa proposta eacute absolutamente falsa [hellip] (Tannery 1887b 250 grifo do autor)85

83 Orig ldquoJrsquoai deacutejagrave dit que le deacutebut de Parmeacutenide sur lrsquoopinion (v 113-121) nous jette en plein pythagorisme Le dernier vers surtout me parait digne drsquoattention Parmeacutenide veut faire connaicirctre la science telle que la professaient ses contemporains mais en Italie seuls les pythagoriens avaient une reacuteputation de science Tant que nous nrsquoaurons pas de preuve deacutecisive que lrsquoEacuteleacuteate se preacuteoccupe des Ioni-ens nous axons droit de penser qursquoil ne vise que les Italiquesrdquo 84 Orig ldquoil tirait des conseacutequences toutes nouvelles et notamment celles sur lrsquouniteacute la continuiteacute lrsquoimmobiliteacute de lrsquounivers contre-disaient les doctrines pythagoriennesrdquo 85 Orig ldquoQuel eacutetait donc le point faible reconnu par Zenon dans les doctrines pythagoriennes de son temps de quelle faccedilon le preacutesente- t-il comme eacutetant une affirmation de la pluraliteacute des choses La clef nous est donneacutee par une ceacutelegravebre deacutefinition du point matheacutematique deacutefinition encore classique au temps dAristote mais que les historiens nrsquoont paacutes consideacutereacutee assez attentivement Pour les pythagoriens le point est lrsquouniteacute ayant une position ou autrement luniteacute consideacutereacutee dans lespace Il suit immeacutediatement de cette deacutefinition que le corps geacuteomeacutetrique est une pluraliteacute somme de points de mecircme que le nombre est une pluraliteacute somme drsquouniteacutes Or une telle proposition est absolument fausse []rdquo

53

Essa posiccedilatildeo pitagoacuterica passou a ser chamada de atomismo numeacuterico e encontra

diversas aproximaccedilotildees com o atomismo dos seacuteculos V e IV aEC86

Segundo Tannery (1887b 251) o sucesso de Zenatildeo teria sido a tal ponto avas-

salador que os pitagoacutericos nem sequer puderam esboccedilar alguma tentativa de contesta-

ccedilatildeo87

O problema dessa reconstruccedilatildeo eacute que carece em boa parte de fundamentaccedilatildeo

histoacuterica Certamente devemos concordar com Burkert quando sugere que agrave imagem

de um diaacutelogo ndash todo preacute-socraacutetico ndash entre o pitagorismo e outras escolas apesar de

muito tentador faltam bases textuais soacutelidas

Dessa forma pode ser construiacutedo um capiacutetulo tentador da histoacuteria da filosofia massas erraacuteticas e cascalho inidentificaacutevel unem-se em uma estrutura abrangente A suspeita interaccedilatildeo entre eleatas e pitagoacutericos em particular torna-se um diaacutelogo vivo Parmecircnides o pitagoacuterico a-poacutestata configura seu proacuteprio sistema em oposiccedilatildeo agravequele da escola em resposta os pitagoacutericos revisam suas teorias apenas em tempo pa-ra ser submetidas a novos ataques por parte de Zenatildeo isso os obriga a empreender uma nova revisatildeo[] (sic) Essa estrutura no entanto re-pousa sobre uma base precaacuteria (Burkert 1972 278)88

De fato ainda que seja bastante provaacutevel que outros pensadores da Magna Greacute-

cia tenham recebido forte influecircncia pitagoacuterica uma soacutelida abordagem histoacuterica natildeo

pode se basear em probabilidades e plausibilidade pois ldquounicamente um estudo meticu-

loso da evidecircncia interna e externa pode levantar esta possibilidade para um patamar de

probabilidade ndash para natildeo dizer de certezardquo (Burkert 1972 280)89

Ainda que marcado pelas imprecisotildees anteriormente indicadas esse primeiro

passo tornou possiacutevel natildeo somente trazer para a discussatildeo sobre a Quellenforshung di-

86 Para uma discussatildeo mais geral da relaccedilatildeo do pitagorismo com Demoacutecrito e o atomismo cf Zeller e Mondolfo (1938 332-335) Alfieri (1953 30-54) Gemelli (2007a 68-90) 87 Tanto Cherniss (1935 215) quanto Lee (1936 34104) seguem as linhas-mestras da interpretaccedilatildeo de Tannery da polecircmica zenoniana 88 Orig ldquoIn this way a tempting chapter of the history of philosophy may be built erratic boulders and unidentifiable gravel coalesce into a comprehensive structure The suspected interaction of the Eleatics and Pythagoreans in particular becomes a living dialogue Parmenides the apostate Pythagorean sets up his own system in opposition to that of the school in response the Pythagoreans revise their theories only to be subjected to new attacks by Zeno this forces them to undertake further revision [] (sic) This structure however rests on a shaky foundationrdquo 89 Orig ldquoonly meticulous study of the internal and external evidence can raise this possibility to a prob-ability-to say nothing of certaintyrdquo Cf Casertano (2007b 4) para um exemplo de discussatildeo da influecircncia pitagoacuterica sobre Parmecircnides

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versos textos antigos como tambeacutem comeccedilar a colocar em questatildeo a presunccedilatildeo do tes-

temunho uacutenico de Aristoacuteteles Natildeo obstante a importacircncia da tese de Tannery faz que

de Kranz (Diels-Kranz 1951) ateacute Raven (1948) a maioria dos comentadores se propo-

nha seguir um diaacutelogo entre eleatismo e pitagorismo utilizando-se das fontes mais anti-

gas para isso90

Acenou-se haacute pouco a presunccedilatildeo de validade do testemunho uacutenico de Aristoacutete-

les Um papel central nessa reavaliaccedilatildeo do testemunho aristoteacutelico sobre os preacute-

socraacuteticos (e depois sobre Platatildeo) eacute desempenhado certamente pelos trabalhos de Cher-

niss (1935 1944) por meio de um agudo trabalho sobre as fontes ainda hoje insupera-

do Cherniss chega a concluir jaacute em 1935 que

Aristoacuteteles natildeo estaacute em nenhum dos trabalhos que possuiacutemos procu-rando fornecer um relatoacuterio da filosofia mais antiga Ele estaacute usando essas teorias como interlocutoras em um debate artificial que ele pre-para para que conduza lsquoinevitavelmentersquo agraves suas proacuteprias conclusotildees (Cherniss 1935 xii)91

Cherniss dessa forma analisa os procedimentos historiograacuteficos de Aristoacuteteles

em busca de uma soluccedilatildeo ao problema central que o corpus constitui para a reconstru-

ccedilatildeo da filosofia preacute-socraacutetica apesar de pouco confiaacutevel em sua reconstruccedilatildeo das teorias

dos primeiros filoacutesofos suas constantes contradiccedilotildees omissotildees erros e desentendimen-

tos Aristoacuteteles eacute ainda a principal senatildeo a uacutenica fonte para o estudo dos preacute-socraacuteticos

(1935 347-350) Dessa forma caberaacute ter aquele que Cherniss chama de ldquoo maior cui-

dadordquo (the greatest care) na anaacutelise do material aristoteacutelico

Com esse intuito Cherniss iraacute desenvolver uma metodologia de abordagem ao

texto que lhe permitiraacute definir procedimentos para uma espeacutecie de controle de vieacutes (para

utilizar uma terminologia estatiacutestica) que busca identificar fatores de confundimento

permitindo definir um uso acertado isto eacute adequado do ponto de vista historiograacutefico

do corpus dois tipos de omissotildees sete fontes comuns de erros etc (1953 351-358) 90 Cf Diels-Kranz (1951 226) Zeller e Mondolfo (1938 326 ndash na nota sobre as fontes de Mondolfo pois Zeller assim como Gompertz (1893) natildeo concordava com isso) Burnet (1908 183) Rey (1933 183) Cornford (1939 I) Raven (1948 211) Contraacuterios a essa tese Reinhardt (1916 24 69 85) e Calogero (1932 28) consideram a seccedilatildeo da doacutexa como derivaccedilatildeo interna agrave proacutepria metafiacutesica de Parmecircnides 91 Orig ldquoAristotle is not in any of the works we have attempting to give a historical account of earlier philosophy He is using these theories as interlocutors in the artificial debates which he sets up to lead ldquoinevitablyrdquo to his own solutionsrdquo Cf tambeacutem Cherniss (1935 349-50 356-357) Jaacute Burnet (1908 56) havia comeccedilado a suspeitar das escolhas editoriais de Aristoacuteteles falando do costume deste de ldquoputting things in his own way regardless of historical considerationsrdquo

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Dois erros satildeo especialmente importantes por modelar profundamente toda a his-

toacuteria da criacutetica dos preacute-socraacuteticos O primeiro diz respeito agrave concepccedilatildeo de Aristoacuteteles de

que os preacute-socraacuteticos teriam fundamentalmente um uacutenico problema ao qual dedicaram

sua investigaccedilatildeo isto eacute o da mateacuteria que constitui todas as coisas que satildeo Ao contraacute-

rio olhando mais atentamente (o mesmo Aristoacuteteles natildeo negaria isso) eacute possiacutevel reco-

nhecer os preacute-socraacuteticos empenhados na tentativa de compreensatildeo e descriccedilatildeo de diver-

sos processos e problemas especiacuteficos O segundo erro depende do primeiro pois cons-

titui o motivo pelo qual Aristoacuteteles quis restringir a riqueza e a complexidade dos temas

tratados pelos preacute-socraacuteticos a uma uacutenica grundfrage ndash como diria Hegel (a citaccedilatildeo dele

como se veraacute natildeo eacute casual) no sistema aristoteacutelico a divisatildeo fundamental da natureza

daacute-se entre mateacuteria e forma E se Platatildeo eacute visto como um partidaacuterio exagerado da causa

formal o eacute exatamente por opor-se aos preacute-socraacuteticos dos quais constituiria a antiacutetese

Jogando assim um contra os outros Aristoacuteteles retalha para si mesmo o confortaacutevel lu-

gar de siacutentese resultado filosoacutefico do agocircn dos dois momentos anteriores a ele92

Eacute certamente o caso de anotar finalmente que a contribuiccedilatildeo de Cherniss para a

historiografia dos preacute-socraacuteticos eacute inquestionaacutevel ao ponto de ser possiacutevel considerar

que depois dele os estudos dos preacute-socraacuteticos tenham se tornado um luta incessante

com Aristoacuteteles ainda que certamente natildeo contra ele

Na esteira de Cherniss diversos comentadores poderatildeo em seguida concordar

com o fato de que ldquoAristoacuteteles eacute totalmente alheio agrave concepccedilatildeo moderna de histoacuteria da

filosofiardquo (Reale 1968 I 151) e considerar assim Aristoacuteteles como um testemunho ne-

cessaacuterio mas a ser tratado com todos os cuidados possiacuteveis93 Laks (2007 230) resume

a historiografia da filosofia preacute-socraacutetica apoacutes Cherniss como um processo de ldquodesaris-

totelizaccedilatildeo da escrita sobre as origens da filosofia gregardquo94 A economia destas paacuteginas

natildeo permite obviamente aprofundar como mereceria essa questatildeo da validaccedilatildeo do tes-

temunho aristoteacutelico como tal com suas consequecircncias para a historiografia da filosofia

em suas origens

92 Cherniss (1935 349) natildeo deixa de anotar a dependecircncia deste meacutetodo agocircnico e aporeacutetico de Aristoacutete-les de seus mestres indiretamente Soacutecrates mas sobretudo Platatildeo 93 Orig ldquoil moderno concetto di storia della filosofia egrave totalmente estraneo ad Aristotelerdquo Por outro lado Mansfeld afirma com razatildeo que os primeiros passos de uma historiografia da filosofia satildeo anteriores ao proacuteprio Aristoacuteteles podendo ser encontrados na literatura sofiacutestica ldquothe rudimentary beginnings of the historiography of Greek philosophy may be dated to the period of the Sophistsrdquo (Mansfeld 1990 27) 94 Orig ldquodeacutesaristoteacutelisation de lacuteeacutecriture des deacutebuts de la philosophie grecquesrdquo

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Cabe somente sublinhar como um novo marco para a questatildeo um recente artigo

de Collobert (2002) que pretendendo reabrir a questatildeo desafia a seu modo o consenso

estabelecido a partir Cherniss Collobert revela como Aristoacuteteles estaria seguindo ante

litteram em sua historiografia dos preacute-socraacuteticos os princiacutepios de uma lectio analiacutetica

(no sentido contemporacircneo de natildeo-continental) Por esse motivo agrave pergunta se Aristoacute-

teles deva ser considerado um historiador da filosofia ela continua respondendo ainda

que com diversos distinguos que natildeo Pois

Aristoacuteteles natildeo escreveu uma histoacuteria da filosofia em sentido moderno ou ao menos no sentido lsquocontinentalrsquo quando ele transmitiu os pen-samentos de seus predecessores Por essa razatildeo algueacutem poderia dizer com Wilamowitz que ldquonatildeo se deve culpar o historiador Aristoacuteteles pois Aristoacuteteles jamais foi ou quis ser um historiador (Collobert 2002 294-295)95

De fato Aristoacuteteles em sua Metafiacutesica no que diz respeito aos pitagoacutericos pa-

rece natildeo somente querer trataacute-los de certa forma separadamente em relaccedilatildeo aos outros

preacute-socraacuteticos (985b 23ss) mas tambeacutem em constante intenccedilatildeo polecircmica contra o pla-

tonismo compara-os o tempo todo com este uacuteltimo (Met 987a 29ss 989b 29ss 990a

27ss 996a 4s) dessa forma o pitagorismo torna-se mais uma ocasiatildeo para atacar os

argumentos platocircnicos (Met 1083b 8ss 1090a 30) do que um toacutepico de interesse per

se96

Porquanto essa aproximaccedilatildeo entre o pitagorismo e o platonismo obedeccedila em A-

ristoacuteteles a uma precisa estrateacutegia polecircmica a criacutetica ainda no interior do esforccedilo de

validaccedilatildeo das fontes indiretas sobre o pitagorismo tentou explorar as relaccedilotildees dos pita- 95 Orig ldquoAristotle did not write a history of philosophy in a modern sense or at least in a lsquocontinentalrsquo sense when he transmitted the thoughts of his predecessors For this reason one can say with U Wila-mowitz that lsquoone does not have to blame the historian Aristotle because Aristotle never was nor wanted to be an historianrsquordquo Agrave Collobert deve ser reconhecida a intenccedilatildeo de recolocar em termos mais atuais (os termos da querelle analiacutetico-continentais) a questatildeo Todavia grande parte de sua soluccedilatildeo hermenecircutica eacute ainda dependente do excelente trabalho de Cherniss (1935) como demonstra por exemplo a seguinte afirmaccedilatildeo deste em relaccedilatildeo aos testemunhos contidos no corpus aristoteacutelico ldquoone cannot safely wrench them away to use as building-blocks for a history of Presocratic philosophy There are no lsquodoxographi-calrsquo accounts in the works of Aristotle because Aristotle was not a doxographer but a philosopher seek-ing to construct a complete and final philosophyrdquo (Cherniss 1935 347) Eacute esta ainda uma boa descriccedilatildeo ante litteram do Aristoacuteteles analiacutetico da Collobert 96 Sobre a lectio aristoteacutelica do pitagorismo antigo seraacute o caso de voltar obviamente em seguida ao longo da tese a anotar seus problemas e sucessos Eacute suficiente por enquanto lembrar que tanto na Fiacutesica quanto no De Caelo Aristoacuteteles dedica alguns comentaacuterios agraves doutrinas cientiacuteficas dos pitagoacutericos assim como ndash na mesma Metafiacutesica (986a 12) ndash refere-se a uma mais exata discussatildeo sobre estes A referecircncia seria aos famosos dois livros (perdidos) que ele dedicara especificamente ao pitagorismo Para as fontes dessa tradiccedilatildeo e uma exaustiva discussatildeo historiograacutefica destas cf Burkert (1972 29)

57

goacutericos com Platatildeo Para aleacutem das relaccedilotildees histoacutericas deste com o rei-filoacutesofo Arquitas

de Tarento como testemunharia entre outras fontes a proacutepria Carta VII (339d) uma jaacute

antiga tentativa de avaliaccedilatildeo dos diaacutelogos platocircnicos como fontes histoacutericas confiaacuteveis

levaria a aprofundar radicalmente a dependecircncia de Platatildeo em relaccedilatildeo aos pitagoacutericos

Tanto Burnet (1908) quanto Taylor (1911) por considerarem de fato os diaacutelogos platocirc-

nicos como testemunhos histoacutericos chegam a fazer diversos deles dependerem direta-

mente da influecircncia pitagoacuterica dessa forma o Soacutecrates do Feacutedon revela-se pitagoacuterico

defensor da metempsicose e da anamnese (Taylor 1911 129-177) enquanto o Timeu

apareceraacute como uma obra quase que completamente informada pelo pitagorismo (Bur-

net 1908 340ss)97

Obviamente os resultados dos esforccedilos sobre as fontes indiretas estatildeo bem longe

de serem consensuais De fato jaacute Frank (1923) ndash em direccedilatildeo totalmente contraacuteria ao

colocado acima e de certa forma radicalizando o ceticismo zelleriano ndash considera im-

possiacutevel qualquer tentativa de acessar a tradiccedilatildeo pitagoacuterica antes de Platatildeo Sua obra

intitula-se significativamente Plato und die sogenannten Pythagoreer (ldquoPlatatildeo e os as-

sim chamados pitagoacutericosrdquo) pois apoia sua argumentaccedilatildeo de maneira muito decidida na

repetida referecircncia de Aristoacuteteles aos kalouacutemenoi pitagoacutericos segundo Frank Aristoacutete-

les estaria se referindo a pitagoacutericos do seacuteculo IV como Arquitas para aleacutem dos proacute-

prios acadecircmicos entre eles Espeusipo (Frank 1923 77) O pressuposto geral de Frank

eacute que natildeo se pode imaginar um pensamento cientiacutefico no mundo grego antes de Anaxaacute-

goras

Anaxaacutegoras foi o primeiro a formular o princiacutepio da ciecircncia moderna distinguindo em suas investigaccedilotildees oacuteticas a imagem-do-mundo sub-jetiva-psicoloacutegica pelo ponto-de-vista objetivo de um observador ab-soluto (1923 144)

Dessa forma tudo o que diz respeito aos pitagoacutericos deveraacute ser considerado in-

venccedilatildeo de Espeusipo e dos primeiros acadecircmicos98 Por consequecircncia tanto os frag-

97 Da mesma forma a tese doutoral de Cameron (1938) sugere uma base pitagoacuterica para a teoria da a-namnese 98 O debate que desde entatildeo marcou as tentativas de responder a essa postura radicalmente ceacutetica na interpretaccedilatildeo da expressatildeo οἱ καλούmicroενοι Πυθαγορείοι (Met 985b 23 989b 29) de Frank eacute muito am-plo Veja-se por exemplo a resposta de Cherniss (1959 37-38) sobre a interpretaccedilatildeo de καλούmicroενοι em Poliacutetica (1290b 40) Aristoacuteteles utiliza a mesma expressatildeo referida aos camponeses (οἱ καλούmicroενοι γεω-ργοί) por traacutes da expressatildeo natildeo eacute possiacutevel imaginar que Aristoacuteteles esteja levantando qualquer suspeita

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mentos de Filolau como toda a teoria matemaacutetica deveratildeo ser reconduzidos para o periacute-

odo acadecircmico O hipercriticismo de filoacutelogos como Frank eacute confrontado veemente-

mente por Santillana e Pitts para eles Frank eacute o ponto de partida de uma escola de his-

toriadores que

Foram atraiacutedos para a companhia de vaacuterios filoacutelogos modernos que haviam caiacutedo na armadilha de aceitar alguns dos argumentos destruti-vos de Frank sem compreender a iacutentima dependecircncia destes de sua inaceitaacutevel alternativa (Santillana e Pitts 1951 112)99

Ao longo de todo o percurso historiograacutefico em busca das fontes indiretas sobre

o pitagorismo a lectio communis parece ter sido exatamente aquela de um ceticismo por

parti pris que revela de um lado certa postura todo-poderosa dos estudiosos de Platatildeo e

Aristoacuteteles que tendem a consideraacute-los como inventores de praticamente qualquer ideia

que tenha aparecido antes deles agrave custa de uma atenta anaacutelise das fontes preacute-socraacuteticas

por outro lado certa preguiccedila da pesquisa sobre as origens do pensamento grego que

prefere repetir os chavotildees manualiacutesticos a empenhar-se em uma atenta revisatildeo das praacuteti-

cas normais de pesquisa

18 De Burkert a Kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica

Uma verdadeira terceira-via para a criacutetica entre o ceticismo zelleriano (na ver-

satildeo extremizada por Frank) e uma excessiva confianccedila nas fontes que sempre assola os

estudiosos menos advertidos do pitagorismo eacute constituiacuteda pelo trabalho de Walter Bur-

kert dedicado ao pitagorismo Weisheit und Wissenschaft traduzido posterioremente por

sobre a existecircncia real de camponeses em geral Da mesma forma portanto as expressotildees do tipo οἱ καλ-ούmicroενοι Πυθαγορείοι deveratildeo ser entendidas como ldquodesignations in the currently designated senserdquo (38) 99 Orig ldquowere attracted by the company of various modern philologists who have been trapped into accepting some of Frankrsquos destructive arguments without noticing their intimate dependence upon his unacceptable alternativerdquo A alternativa agrave qual os autores se referem e que constitui um dos pontos fun-damentais da argumentaccedilatildeo de Frank eacute aquela entre uma origem grega e uma simples e tardia importaccedilatildeo oriental da matemaacutetica Frank optaria obviamente pela segunda Por consequecircncia ldquorelying on Frank these authors have dismissed the entire tradition about early Greek mathematics and supplanted it either with a most improbably late transference of Babylonian mathematics to Greece in the Vth centuryrdquo (San-tillana e Pitts 1951 112) Para uma resenha desta questatildeo cf Salas (1996) Thesleff (1961 45) reclama da veemecircncia de Santillana e Pitts por causa da ldquoridicularizaccedilatildeo irreverenterdquo de Frank por parte dos dois autores Estes de fato afirmaram que se quisermos ser coerentes com o hipercriticismo de Frank (1951 116) ldquowe may begin to suspect Frank himself of being an imaginary character in the lost dialogues of George Santayanardquo

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Minar (Burkert 1972) para o inglecircs e publicado em ediccedilatildeo revisada como Lore and Sci-

ence in Ancient Pythagoreanism Ponto de referecircncia obrigatoacuterio desde entatildeo para

qualquer percurso criacutetico dedicado ao estudo do pitagorismo a obra de Burkert revela

no mesmo processo de sua confecccedilatildeo o difiacutecil caminho da validaccedilatildeo das fontes a serem

utilizadas para apresentar a filosofia do pitagorismo No prefaacutecio agrave primeira ediccedilatildeo de

Weisheit und Wissenschaft em 1962 Burkert revela fundamentalmente uma postura

ceacutetica em relaccedilatildeo agrave efetiva contribuiccedilatildeo do pitagorismo para os avanccedilos da matemaacutetica

grega antiga notadamente na questatildeo dos irracionais referindo a sabedoria dos nuacutemeros

pitagoacutericos a um ambiente intelectual preacute-cientiacutefico

Nesse periacuteodo de penuacutembra entre antigo e novo quando os gregos em um feito historicamente uacutenico estavam descobrindo a interpretaccedilatildeo racional do mundo e as ciecircncias naturais quantitativas Pitaacutegoras re-presenta natildeo a origem do novo mas a sobrevivecircncia ou o renascimen-to da sabedoria antiga preacute-cientiacutefica baseada na autoridade sobre-humana e expressa obligatio ritual A sabedoria do nuacutemero eacute muacuteltipla e mutaacutevel (Burkert 1972 Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo alematilde)100

Ao contraacuterio no prefaacutecio agrave ediccedilatildeo inglesa dez anos depois Burkert eacute obrigado

a reconhecer que ndash em suas proacuteprias palavras ndash ldquoEu aprendi nestes anos [hellip] sobre a

questatildeo da descoberta do irracional e tomei uma posiccedilatildeo que eacute menos criacutetica da tradi-

ccedilatildeordquo101

Para Burkert em relaccedilatildeo agrave matemaacutetica existiria um profundo gap entre a ativi-

dade dos pitagoacutericos do seacuteculo V ndash relegada ao mundo dos acusmata e da numerologia

(ainda que se deva preferir em acircmbito acadecircmico o termo aritmologia conforme ob-

servado por Delatte 1915) ndash e aquela dos matemaacuteticos jocircnicos como Hipoacutecrates de

Quios Assim para Burkert (1972) o tipo de matemaacutetica dos primeiros pitagoacutericos in-

100 Orig ldquoIn that twilight period between old and new when Greeks in a historically unique achieve-ment were discovering the rational interpretation of the world and quantitative natural science Pytha-goras represents not the origin of the new but the survival or revival of ancient pre-scientific lore based on superhuman authority and expressed in ritual obligatio The lore of number is multifarious and chan-geablerdquo 101 Orig ldquoI have learned in these years [hellip] about the question of the lsquoDiscoveryrsquo of the irrational I have taken a stand which is less critical of the traditionrdquo Natildeo eacute a intenccedilatildeo neste momento dar conta da ampla tradiccedilatildeo criacutetica sobre a contribuiccedilatildeo do pitagorismo para a matemaacutetica e sobre o desenvolvimento da teoria dos nuacutemeros no interior da filosofia pitagoacuterica Estudos claacutessicos da questatildeo satildeo os de Tannery (1887a 1887b) Becker (1957) Von Fritz (1945) e sobretudo Van der Waerden (1947-1949) Mais re-centemente podem-se conferir Huffman (1988 1993 2005) Zhmud (1989 1992 1997) Centrone (1996) Salas (1996) e Casertano (2009) Cf a seguir o capiacutetulo quarto para um desenvolvimento desta questatildeo

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cluindo aqueles do seacuteculo V (e portanto Filolau) de maneira alguma corresponderia ao

tipo de exerciacutecio dedutivo rigoroso de contemporacircneos como Hipoacutecrates de Quios e

Teodoro de Cirene aqui se trataria ao contraacuterio de um culto aos nuacutemeros no contexto

dos acusmata que a tradiccedilatildeo continuamente recorda e que poderaacute ser assim aproxima-

do mais facilmente agrave numerologia das culturas primitivas102

Burkert afirma serem as duas preocupaccedilotildees cientiacutefico-matemaacutetica e numeroloacute-

gica radicalmente distintas

Nuacutemero e ciecircncia matemaacutetica natildeo satildeo de maneira alguma equivalen-tes Nuacutemeros remetem em origem para as neacutevoas dos tempos preacute-histoacutericos mas a ciecircncia matemaacutetica propriamente natildeo surgiu mais cedo do que na Greacutecia do seacuteculo VI ou V As pessoas conheciam os nuacutemeros antes da matemaacutetica stricto sensu e foi na era preacute-cientiacutefica que surgiu o ldquomisticismo nuacutemeacuterico ou simbolismo numeacuterico ou numerologia que ainda hoje continua a exercer certa influecircncia Ningueacutem pode ignorar o fato de que esse tipo de coisa estava presente no pitagorismo Aristoacuteteles nomeia em primeiro lugar entre o omoio-mata que os pitagoacutericos acreditavam subsistir entre nuacutemeros e coisas a equaccedilatildeo de certos nuacutemeros com dikaiosucircne psychecirc kai nous e kairoacutes (Met 987b 27ff) e somente com um aleacutem disso acrescenta a teoria matemaacutetica da muacutesica (Burkert 1972 466) 103

Eacute preciso aqui notar que algo de muito significativo acontece na argumentaccedilatildeo

de Burkert O ceticismo de marca zelleriana continua inspirando o tratamento das fon-

tes uma atenta e precisa desconstruccedilatildeo da doxografia acaba por chegar ao descreacutedito de

grande parte desta como fonte direta por indicar claramente sua origem no interior da

Academia Plaacuteton pythagoriacutezei (Platatildeo pitagoriza) eacute o adaacutegio fundamental que acompa-

102 Natildeo faltaram revisotildees criacuteticas agrave postura ceacutetica de Burkert a respeito das fontes sobre a contribuiccedilatildeo dos pitagoacutericos agrave matemaacutetica Muitas delas seratildeo citadas nos capiacutetulos seguintes pois constituem um obstaacutecu-lo central para qualquer interpretaccedilatildeo do pitagorismo apoacutes 1972 Basta por ora lembrar a criacutetica sagaz que Von Fritz faz a ela em sua recensatildeo de Weisheit ldquoIt is not very good method to deny categorically the occurrence of an event the details of which are reported in a somewhat contradictory manner If this methodical principle is strictly and consistently applied it becomes possible to prove that no automobile accident ever happenedrdquo (Von Fritz 1964 461) 103 Orig ldquoNumber and mathematical science are by no means equivalent Numbers go back in origin to the mists of prehistoric times but mathematical science properly speaking did not emerge earlier than sixth- and fifth-century Greece People knew numbers before mathematics in the strict sense and it was in the pre-scientific era that the ldquonumber mysticismrdquo arose or ldquonumber symbolismrdquo or ldquonumerologyrdquo which continues even now to exert a certain influence No one could overlook the fact that this kind of thing was present in Pythagoreanism Aristotle names first of all among the omoiomata which the Py-thagoreans thought subsisted between numbers and things the equation of certain numbers with dikai-osucircne psychecirc kai nous and kairoacutes (Met 987b27ff) and only with a ldquofurthermorerdquo goes on to add the mathematical theory of musicrdquo

61

nha as suspeitas de toda a tradiccedilatildeo (desde Met 987a 29)104 Daiacute a dificuldade em admi-

tir uma contribuiccedilatildeo significativa do pitagorismo aos progressos da matemaacutetica do seacutecu-

lo V aEC A essa pars denstruens da criacutetica das fontes em Burkert segue uma herme-

necircutica que articulando admiravelmente estudos de antropologia religiosa com uma

soacutelida abordagem filoloacutegica e historiograacutefica leva ao ineacutedito resgate do Pitaacutegoras histoacute-

rico e do protopitagorismo em toda sua componente primitiva preacute-racionaliacutestica Pitaacute-

goras deveraacute ter sido entatildeo um mago e xamatilde (ainda que cientista ao menos agrave maneira

dele) baseando esta sua cientificidade em um esforccedilo para dar aquele que para Burkert

constitui ldquoum passo a maisrdquo (a step beyond) Este passo a mais que distinguiria Pitaacutego-

ras no interior do mundo maacutegico-taumatuacutergico primitivo pode ser detectado por exem-

plo pela presenccedila no interior dos testemunhos mais antigos de noccedilotildees como as de ka-

thaacutersis e de anamneacutesis (1972 211)

Na gangorra entre o ceticismo e a confianccedila nas fontes na qual todo filoacutelogo eacute

obrigado a movimentar-se (ldquoa vida real da filosofia eacute uma luta entre as tendecircncias a con-

fiar na tradiccedilatildeo e o ceticismo com respeito agrave mesmardquo ndash reconhece lucidamente Burkert

1972 9) acaba por surgir um caminho intermediaacuterio uma terceira via conforme foi

dito que ainda que radicalmente ceacutetica em relaccedilatildeo agraves fontes acadecircmicas consegue

todavia desenhar uma imagem historicamente coerente e metodologicamente eficaz das

origens do pitagorismo e de seu fundador105

Certamente a obra de Burkert com a vantagem da dupla postura acima dese-

nhada constitui uma pedra fundamental para a histoacuteria da criacutetica como bem nota Von

Fritz

O trabalho apresenta os resultados do maior esforccedilo empreendido para resolver os problemas colocados por uma antiga tradiccedilatildeo complicada e confusa para chegar a uma reconstruccedilatildeo plausiacutevel e consistente do pensamento e das doutrinas do proacuteprio Pitaacutegoras (Von Fritz 1964 459)106

104 O adaacutegio eacute trasmitido por Euseacutebio de Cesareia Πλάτων πυθαγορίζει (Euseb Prep Evang 190315 37 6) 105 Orig ldquoThe very life of philology is the struggle between the tendencies toward faith in the tradition and skepticism of itrdquo 106 Orig ldquoThe work presents the results of a most energetic effort to solve the problems posed by a com-plicated and confused ancient tradition and to arrive at a plausible and consistent reconstruction of the thought and the doctrines of Pythagoras himselfrdquo

62

Sinal inequiacutevoco do impacto central da obra de Burkert para a histoacuteria da criacutetica

satildeo certamente as diversas atenccedilotildees e respostas que mereceu desde sua publicaccedilatildeo Foi

especialmente seu ceticismo mais que a reconstruccedilatildeo de um Pitaacutegoras originalmente

xamatilde que sofreu as criacuteticas mais precisas Huffman sugere inicialmente que a atribui-

ccedilatildeo a Filolau de uma matemaacutetica exclusivamente teoloacutegico-numeroloacutegica conforme

sugerido por Burkert natildeo seria um ponto paciacutefico (Huffman 1988 3) O mesmo Huff-

man reabriraacute o caso definitivamente com sua proacutepria monografia dedicada a Filolau

(Huffman 1993) dando inversamente a ele um papel proeminente natildeo jaacute agrave matemaacutetica

e sim agrave filosofia da matemaacutetica antiga ldquoFilolau merece um lugar de destaque na histoacuteria

da filosofia grega como o primeiro pensador a empregar consciente e tematicamente

ideias matemaacuteticas para resolver problemas filosoacuteficosrdquo (Huffman 1988 2)107

Huffman ao contraacuterio de Burkert atribui a Filolau com base fundamentalmente

no fr 4 (44 B4 DK) uma postura epistemoloacutegica que se utilizaria dos nuacutemeros para

compreender a realidade (Huffman 1993 64ss) por esta uacuteltima ser cognociacutevel somente

graccedilas agraves relaccedilotildees aritmo-geomeacutetricas108

Em outra frente o proacuteprio Minar tradutor da obra para o inglecircs reclama da au-

secircncia de qualquer abordagem agrave questatildeo social e poliacutetica (Minar 1964 121) que se jaacute

antiga ndash como a discussatildeo acima desenvolvida sobre o tema parece indicar ndash deveraacute

desempenhar um papel central na reconstruccedilatildeo da filosofia dos primeiros pitagoacutericos

Em contrapartida eacute exatamente o distanciamento que Burkert consegue estabe-

lecer com certa precisatildeo entre as tradiccedilotildees do protopitagorismo e aquelas dos pitagoacuteri-

cos em contato com a Academia (especialmente Arquitas) que permite de certa forma

liberar o campo para os estudos do protopitagorismo como experiecircncia relativamente

independente das sucessivas reapropriaccedilotildees dela pela literatura

O resgate de um pitagorismo das origens como fortemente marcado pelo aspecto

miacutestico-religioso eacute certamente inaugurado por Detienne Este dedica ao pitagorismo

diversas incursotildees ao longo de sua obra definida por uma abordagem antropoloacutegica e

comparativista ao mundo antigo109 A comeccedilar por seu ensaio sobre a poesia filosoacutefica

do pitagorismo antigo (1962) que em busca de relaccedilotildees histoacutericas entre poesia e metafiacute- 107 Orig ldquoPhilolaus deserves a prominent place in the history of Greek philosophy as the first thinker self-consciously and thematically to employ mathematical ideas to solve philosophical problemsrdquo 108 Ver-se-aacute com mais detalhes esta polecircmica no capiacutetulo quarto 109 Para a siacutentese madura da abordagem antropoloacutegica e comparativista ao mundo antigo de Detienne veja-se especialmente seu mais recente Comparer lincomparable (2000)

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sica isto eacute entre os ambientes dos poetas e dos filoacutesofos antigos ocupa-se das tradiccedilotildees

que remetem agrave invenccedilatildeo de uma leitura filosoacutefica de Homero e Hesiacuteodo em acircmbito

pitagoacuterico Essa exegese pitagoacuterica inaugura aquela que somente depois Platatildeo e Aris-

toacuteteles chamaratildeo de theologiacutea

O trabalho de construccedilatildeo que pressupotildee o diaacutelogo entre Homero He-siacuteodo e Pitaacutegoras define-se fundamentalmente como vimos no plano do pensamento religioso [] Eacute essencialmente uma teologia aquela que os poemas de Homero e Hesiacuteodo representam para os gregos e em particular para os pitagoacutericos (Detienne 1962 95)110

A tese da leitura teoloacutegica dos poetas arcaicos entre os pitagoacutericos eacute recuperada

por Detienne em relaccedilatildeo aos estudos sobre a interpretaccedilatildeo demonoloacutegica dos versos de

Os trabalhos e os dias de Hesiacuteodo sobre a noccedilatildeo de daiacutemon no pitagorismo antigo

Detienne (1963) dedica uma obra inteira que em linha com a obra imediatamente pre-

cedente considera que o pitagorismo tenha estabilizado o conceito de daiacutemon ateacute entatildeo

extremamente vago para indicar com ele a intermediaccedilatildeo entre homens e deuses Na

exegese pitagoacuterica portanto o conceito adquire uma consistecircncia teoloacutegico-filosoacutefica

que natildeo possuiacutea anteriormente111 Os sucessivos estudos de Detienne dedicados agraves

prescriccedilotildees dieteacuteticas dos pitagoacutericos (1970 1972) seguem a mesma linha teoacuterica de

consideraacute-las fundamentalmente uma expressatildeo de sua compreensatildeo da relaccedilatildeo com os

deuses em sentido teoloacutegico

O sistema de alimentaccedilatildeo determinado pelas principais praacuteticas ali-mentares dos pitagoacutericos aparece assim como uma linguagem por

110 Orig ldquoLe travail de construction que suppose le dialogue entre Homegravere Heacutesiode e Pythagore srsquoest defini de plus em plus nous lrsquoavons vu sur le plan de la penseacutee religieuse [] Crsquoest essentiellement une ldquotheacuteologierdquo que les poegravemes drsquoHomegravere et drsquoHeacutesiode repreacutesentent pour les Grecs et en particulier pour les Pythagoriciensrdquo A tese fundamental desta obra de Detienne estaacute baseada no testemunho de Neantes cf referido por Porfiacuterio (VP 1) de uma formaccedilatildeo inicial de Pitaacutegoras no acircmbito da poesia homeacuterica Pitaacutegoras teria sido disciacutepulo de Ermodamante que pertencia a uma famiacutelia tradicional de rapsodos ho-meacutericos os Creofileacuteus Isso permite a Detienne afirmar que Samos seria o lugar do primeiro encontro entre poesia e filosofia Para uma criacutetica a esse pressuposto e agrave sucessiva argumentaccedilatildeo de Detienne cf Feldman (1963 16) e Pollard (1964 188) 111 A obra foi precedida por pelo menos dois artigos em que o autor inaugurava a pesquisa e definia suas linhas fundamentais (Detienne 1959a e 1959b) Para uma criacutetica agrave leitura de Detienne cf Kerferd (1965) que observa como o conceito de daiacutemon seja com toda probabilidade uma atribuiccedilatildeo platocircnica ao pitago-rismo antigo (1965 78) natildeo permitindo dessa maneira sustentar a tese da original conceituaccedilatildeo teoloacutegi-ca em acircmbito protopitagoacuterico Uma recepccedilatildeo mais calorosa ainda que reclamando de certa audaacutecia na questatildeo das fontes lhe eacute reservada por Vidal-Naquet (1964)

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meio da qual este grupo social traduz suas orientaccedilotildees e revela suas contradiccedilotildees (1970 162)112

Fundamentada na recusa em provocar a morte do animal para o sacrifiacutecio a ritu-

alidade da alimentaccedilatildeo pitagoacuterica procura instaurar uma comensalidade com os deuses

que dessa forma elimina a separaccedilatildeo clara dos alimentos divinos e humanos que subjaz

ao sacrifiacutecio oliacutempico tradicional operando uma inversatildeo na antropologia teoloacutegica

De um sacrifiacutecio para outro natildeo somente as oferendas mudam de na-tureza mas os modos da relaccedilatildeo com os deuses se invertem A inver-satildeo eacute marcada em especial no caso do estatuto religioso dos cereais No sacrifiacutecio oliacutempico satildeo os gratildeos de trigo e cevada (inteiros) (oulo-chutai) a serem espargidos sobre as viacutetimas animais representando a alimentaccedilatildeo especificamente humana reservada aos mortais que culti-vam a terra e comem o patildeo (1970 152)113

Longe das tentativas teologizantes das expressotildees da religiatildeo pitagoacuterica operadas

por Detienne seguem os estudos de grandes historiadores e arqueoacutelogos da religiatildeo

antiga Entre eles Cumont (1942a 1942b) e Carcopino (1927 1956) dedicam-se agrave re-

cepccedilatildeo das tradiccedilotildees pitagoacutericas no interior do simbolismo funeraacuterio romano diversos

artigos de Festugiegravere muitos deles recolhidos finalmente nos Eacutetudes de religion grec-

que e hellenistique (1972) e as duas importantes obras de Leacutevy (1926 1927) sobre a

lenda de Pitaacutegoras Todos eles reconhecem na recepccedilatildeo de motivos pitagoacutericos no inte-

rior das expressotildees da religiosidade heleniacutestica orientalizante uma continuidade entre

pitagorismo antigo e pitagorismo tardio no que diz respeito agraves questotildees religiosas tanto

de fazer pensar em uma espeacutecie de rio subterracircneo de tradiccedilotildees religiosas atribuiacutedas ao

pitagorismo que flui ao longo de mais de mil anos (Burkert 1972 6)114

112 Orig ldquoLe systeme des nourritures fernie par les principales pratiques alimentaircs des Pythagorici-ens apparait done comme un langage a travers le quel ce groupe social traduit ses orientations et revele ses contradictionsrdquo 113 Orig ldquoDrsquoun sacrifice a lrsquoautre non seulement les offrandes change de nature mais le mode de rela-tion avec les dieux srsquoinverse Le renversement se marque en particulier dans le statut religieux des ceacutereacutea-les Dans le sacrifice olympien es grains drsquoorge et de ble (entiers) (oulochutai) que les sacrifiants re-pandent sur les victimes animales represeacutentent le nourriture speacutecifiquement humaine reservee aux mor-tels qui cultivent la terre et mangent le painrdquo Da mesma forma isto eacute sublinhando o processo de racio-nalizaccedilatildeo teoloacutegica Detienne interpretaraacute as indicaccedilotildees dieteacuteticas pitagoacutericas relativas ao uso de um tipo especial de alface que eles chamavam de eunuco Esta era especialmente indicada para o periacuteodo estivo pois suas propriedades diminuiacuteam o desejo sexual considerado pernicioso agrave sauacutede na referida estaccedilatildeo por causa da debilitaccedilatildeo provocada pelo forte calor Evidencia-se aqui um uso dos mitos neste caso do grupo de mitos relativos aos jardins de Adonis para fins eacutetico-teoloacutegicos (Detienne 1972 125-130) 114 De grande interesse histoacuterico aleacutem de inequiacutevoco sinal da erudiccedilatildeo e do amplo raio de investigaccedilatildeo agrave qual Leacutevy dedicava-se eacute a coleccedilatildeo poacutestuma de suas Recherches esseacuteniennes et pythagoriciennes (1965) uma seacuterie de ensaios em que o autor dedica-se a desvendar possiacuteveis influecircncias natildeo-judias e notadamen-

65

Um capiacutetulo especial dessa relaccedilatildeo do pitagorismo com o mundo religioso eacute cer-

tamente aquele das relaccedilotildees perigosas do pitagorismo com o mundo de ritos e mitos

que se convencionou reunir debaixo da definiccedilatildeo orfismo A conexatildeo do pitagorismo

com o orfismo para aleacutem de esteacutereis petitiones principii presentistas que reclamam

uma suposta separaccedilatildeo entre filosofia e misticismo eacute ligada provavelmente a temaacuteticas

e experiecircncias especiacuteficas como aquelas relativas agrave teoria da imortalidade da alma de

maneira especial agrave metempsicose ou agrave cosmologia A segunda metade do seacuteculo XX

marca a descoberta de novos documentos oacuterficos Uma descoberta que a bem da verda-

de nunca parou desde a ediccedilatildeo moderna dos fragmentos de Kern (1922) entre eles

especialmente as lacircminas de ouro (Zuntz 1971 Pugliese Carratelli 2001) e novos papi-

ros especialmente o papiro Derveni datado do seacuteculo IV aEC que conteacutem uma exegese

alegoacuterica de um mais antigo poema cosmogocircnico115 De especial relevacircncia pela sobri-

edade e o cuidado filoloacutegico eacute o estudo dedicado agraves relaccedilotildees entre orfismo e pitagoris-

mo por Bernabeacute (2004) assim como as mais recentes observaccedilotildees sobre o tema em

Bernabeacute-Casadesuacutes (2009)

O revival de estudos que seguiu agraves descobertas relacionadas anteriormente con-

firma em geral a profunda relaccedilatildeo do orfismo com o dionisismo e o pitagorismo Pu-

gliese Carratelli (2001 18) propotildee uma soluccedilatildeo para a eterna questatildeo das modalidades

dessas interpenetraccedilotildees identificando ldquoum particular caraacuteter conferido ao genuiacuteno or-

fismo por uma iacutentima conexatildeo deste com a escola pitagoacutericardquo Substancialmente basea-

do na anaacutelise original das lacircminas de ouro oacuterficas a tese de Pugliese Carratelli eacute de que

teria havido uma mescla teoacuterica entre os dois movimentos naquela que pode ser consi-

derada uma reforma do orfismo operada pelos pitagoacutericos da primeira hora provavel-

mente jaacute nos seacuteculos VI e V aEC Surgiria assim uma nova ldquofilosofia da imortalidaderdquo

de maneira distinta de um grupo de lacircminas contendo foacutermulas para praacuteticas rituais e

invocaccedilotildees agraves divindades ctocircnicas (entre elas Perseacutefona Dioniacutesio Zagreus e Hades) ou te pitagoacutericas no movimento religioso judaico dos essecircnios depositaacuterio da ceacutelebre biblioteca de Qu-mram proacuteximo ao Mar Morto 115 Cf para a primeira ediccedilatildeo oficial do papiro Kouremenos e Paraacutessoglou e Tsantsanoglou (2006) Para um estudo mais aprofundado do papiro cf as atas de um recente coloacutequio realizado em Princeton (Laks e Most 1997) Um grupo de estudiosos liderado por Pierris e Obbink com a ajuda da moderna tecnologia de imagem multispectral a raios infravermelhos em colaboraccedilatildeo com a Bringham Young University estaacute empenhado em um paralelo estabelecimento do texto Para os impactos da descoberta para o estudo do orfismo preacute-platocircnico cf especialmente Burkert (1982 2005) Kingsley (1995) Betegh (2004) Tortorelli Ghidini (2000 2006) Bernabeacute (2002 2007a) Entre outros papiros recentemente descobertos vejam-se especialmente o Papiro de Bologna e diversos papiros maacutegicos gregos Para uma resenha das descobertas de novos fragmentos oacuterficos apoacutes a segunda guerra mundial cf Bernabeacute (2000)

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viaacuteticos para enfrentar as terriacuteveis provaccedilotildees pelas quais o iniciado deve passar (desse

grupo fazem parte lacircminas como a de Thurii Pelinna Eleutherna Pherai) Um segundo

grupo resultado dessa reforma pitagoacuterica mencionada haacute pouco enfatiza ao contraacuterio

as temaacuteticas de um empenho eacutetico e espiritual por sua vez intimamente ligado ao exer-

ciacutecio intelectual de compreender com o auxiacutelio de Mnemosyne os princiacutepios coacutesmicos

e do viver humano Uma imortalidade que passaria pelo exerciacutecio da memoacuteria e pela

sabedoria que dela deriva portanto A prova disso para aleacutem desta dimensatildeo cientiacutefica

da memoacuteria eacute que natildeo haacute duacutevidas de que a mnemecirc seja um dos elementos fundamentais

do estilo de vida pitagoacuterico a tradiccedilatildeo eacute unacircnime em recordar que o membro da koino-

niacutea pitagoacuterica era instruiacutedo a dedicar um periacuteodo especiacutefico do dia (de manhatilde ou de

noite) para a anamneacutesis a recollectio de todos os eventos do dia anterior (Iambl VP

165) Uma provaacutevel consequecircncia da imbricaccedilatildeo dos dois movimentos eacute o fato de tanto

Heroacutedoto quanto Platatildeo revelarem forte tendecircncia a confundi-los sinal da dificuldade ndash

de certa maneira e sob certos pontos de vista doutrinaacuterios e sociais ndash de distingui-los116

Com essa referecircncia ao orfismo conclui-se este panorama da histoacuteria da criacutetica

que conforme anunciado no proacuteprio tiacutetulo da presente seccedilatildeo eacute ocupado pelos recentes

trabalhos de Kingsley De fato a obra de Kingsley constitui o ponto de fuga natildeo so-

mente desta linha de interpretaccedilatildeo do pitagorismo como movimento intelectual profun-

damente marcado pelas relaccedilotildees com o mundo religioso de seu tempo mas tambeacutem de

grande parte das questotildees centrais ateacute aqui levantadas em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da criacutetica do

pitagorismo Haacute nele uma perspectiva de soluccedilatildeo da maioria dessas questotildees que se

apresenta de forma bastante incomum Kingsley dedica-se a uma releitura consciente-

mente revolucionaacuteria e polecircmica dos pressupostos subjacentes agrave criacutetica das tradiccedilotildees

dos filoacutesofos da Magna Greacutecia tanto a primeira monografia dedicada ao pitagoacuterico

Empeacutedocles (1995) quanto as duas seguintes dedicadas ao tambeacutem pitagoacuterico Parmecirc-

nides (1999 2003) representam uma ldquoradical inversatildeo hermenecircuticardquo no interior do

panorama dos comentadores (Gemelli 2006 657)

Kingsley eacute devedor ao mesmo tempo de trecircs das mais significativas contribui-

ccedilotildees hermenecircuticas do seacuteculo XX isto eacute de um lado do ceticismo de Cherniss (1935)

em relaccedilatildeo ao valor a ser dado ao testemunho aristoteacutelico de outro da tradiccedilatildeo ndash de

autores como Detienne e Festugiegravere ndash da inserccedilatildeo da filosofia em seu nascer no interior

116 Cf Heroacutedoto (II 81) Para Platatildeo aleacutem do Feacutedon cf Goacutergias (492e) Craacutetilo (400c) Fedro (62b 67c-d 81e 92a) e Mecircnon (81a) A questatildeo seraacute retomada em detalhe no capiacutetulo terceiro

67

das tradiccedilotildees religiosas de seu tempo Em terceiro lugar possuem uma influecircncia deci-

siva os estudos orientalistas aplicados agraves noccedilotildees fundamentais da filosofia antiga117

A articulaccedilatildeo dessas importantes tradiccedilotildees somada a uma ampla competecircncia

tanto histoacuterico-arqueoloacutegica como de antropologia da religiatildeo por sua vez acompanha-

da por um dever de casa filoloacutegico francamente cuidadoso permite a Kingsley envere-

dar por um caminho extremamente ousado de resoluccedilatildeo do obstaacuteculo da doxografia de

matriz aristoteacutelica A novidade de sua obra (ainda que natildeo totalmente original em cada

uma de suas partes sem duacutevida original na articulaccedilatildeo consciente delas) encontra-se na

utilizaccedilatildeo de outros textos alternativos aos normais fundamentalmente advindos tanto

da tradiccedilatildeo aacuterabe da filosofia antiga quanto da literatura alquimiacutestica e hermeacutetica A

eles acrescenta-se a proposta de uma renovada confianccedila nos escritos da tradiccedilatildeo neopi-

tagoacuterica e neoplatocircnica118 A economia destas paacuteginas natildeo permite uma anaacutelise da com-

plexa estrutura de argumentos apresentados pelo autor em cada uma das obras citadas

Muitos deles apareceratildeo nas paacuteginas a seguir Eacute suficiente por ora resgatar ainda que

sumariamente suas conclusotildees pois estas pretendem mudar radicalmente o eixo da

pesquisa sobre os preacute-socraacuteticos em geral e sobre o pitagorismo de maneira especial de

duas formas

De um lado recolocando metodologicamente em questatildeo a abordagem historio-

graacutefica normal da filosofia preacute-socraacutetica oferecendo instrumentos e perspectivas ineacutedi-

tas muitas delas ainda a serem exploradas Eacute certamente o caso da afirmaccedilatildeo pela qual

naquilo que eacute considerado comumente como perversatildeo maacutegico-teuacutergica da filosofia

racional nas fontes neopitagoacutericas ao contraacuterio

117 Veja-se como exemplo dessa marca orientalista na lectio de Kingsley sua resenha extremamente criacutetica agrave monografia de Huffman (1993) sobre Filolau e sua tese sobre a perspectiva epistemoloacutegica deste (Kingsley 1994) Eacute tambeacutem significativo nesse sentido o fato de Kingsley ter sido orientado em seu doutorado em Oxford por Martin West (Stroumsa 1997 212) 118 Eacute o caso de sublinhar que a recente descoberta de diversos versos atribuiacutedos a Empeacutedocles no ceacutelebre Papiro de Strasburgo (Martin e Primavesi 1998) que teve lugar na cidade egiacutepcia de Akhmicircn parece confirmar a tese central de Kingsley pela qual haveria uma circulaccedilatildeo independente dos textos preacute-socraacuteticos em acircmbito alquimiacutestico eacute certamente o caso da tradiccedilatildeo que eacute remetida a Zosimo de Panoacutepolis (isto eacute da cidade de Akhmicircn) gnoacutestico de acircmbito alquimiacutestico e agrave importante obra alquimiacutestica Turba Philosophorum que viu sua luz na mesma cidade Ambas as tradiccedilotildees referem-se de forma independente da tradiccedilatildeo doxograacutefica normal a Empeacutedocles e agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica (Kingsley 1995 56-67) Cf tam-beacutem Nucci (1999) Para a mais recente coleccedilatildeo da obra de Zosimo cf o volume de Mertens (1995) de Les alchimistes grecs Para uma recente discussatildeo das relaccedilotildees entre alquimia e filosofia antiga cf Viano (2005)

68

Os pitagoacutericos posteriores permaneceram fieacuteis ao impulso inicial do pitagorismo [hellip] Historicamente como eacute natural a importacircncia do consenso entre o pitagorismo mais antigo e aquele mais tardio eacute subli-nhada ainda pelas evidecircncias jaacute citadas de que tradiccedilotildees pitagoacutericas e a estas relacionadas passaram diretamente do Sul da Itaacutelia e da Siciacutelia para o Egito heleniacutestico (Kingsley 1995 339)119

Isto eacute sem passar por Platatildeo e Aristoacuteteles120

De outro lado como bem viu Gemelli operando

Um questionamento natildeo somente dos criteacuterios interpretativos comun-mente utilizados para enfrentar estes textos do enorme peso atribuiacutedo agrave forccedila tranquilizadora da ldquoracionalidaderdquo da proacutepria concepccedilatildeo de fi-losofia como exerciacutecio intelectual mas tambeacutem e sobretudo do eacutethos polyacutepeiron que guia nossa vida (Gemelli 2006 670-671)121

E portanto em sintonia com uma compreensatildeo da filosofia antiga que procura-

ria fundamentalmente alcanccedilar certo tipo de biacuteos isto eacute pensada antes de tudo como

exerciacutecio a serviccedilo de uma vida melhor Kingsley recoloca natildeo somente a filosofia pita-

goacuterica mas tambeacutem a histoacuteria da criacutetica a esta nos trilhos de uma sabedoria que articu-

lando misteacuterios e magia cura e dieteacutetica contribui de fato para uma vida melhor122 Natildeo

por acaso de forma francamente pouco ritual o mesmo Kingsley apresenta assim o

objetivo de sua monografia sobre Parmecircnides e os lugares obscuros da sabedoria ldquoE o

que eacute aquilo que desejamos Eacute disso que esta histoacuteria tratardquo (1999 4)123 E logo em

seguida para introduzir de forma existencial sua releitura miacutestica dos dois caminhos de

Parmecircnides ldquose tiver sorte em algum momento de sua vida vocecirc chegaraacute a um ponto

completamente mortordquo (1999 5)124 Um estilo de escrita esta de Kingsley que corres-

119 OrigldquoThe later Pythagoreans were simply remaining true to the inicial impetus of Pythagoreanism [hellip] Historically of course the significance of the accord between early and later Pythagoreanism is further underlined by the evidence already considered of Pythagorean and related traditions passing directly from southern Italy and Sicily into Hellenistic Egyptrdquo 120 Para mais ampla resenha dessa questatildeo cf Cornelli (2002 2003a) 121 Orig ldquouna messa in discussione non solo dei criteri interpretativi comunemente adottati per affrontare questi testi dellrsquoenorme peso attribuito alla forza tranquillizzante della lsquorazionalitagraversquo della concezione stessa di filosofia come esercizio intellettuale ma anche e soprattuto dellrsquoeacutethos polyacutepeiron che guida la nostra vitardquo 122 Cf nesta mesma linha a siacutentese que faz Hadot (1999) ainda que manualiacutestica da filosofia pensada em suas origens como fundamentalmente um estilo de vida 123 A referecircncia dos lugares obscuros da sabedoria eacute ao titulo da obra de Kingsley (1999) In the dark places of wisdom Orig ldquoAnd what is it that we long for Thatacutes what this story is aboutrdquo 124 Orig ldquoIf yoursquore lucky at some point in your life yoursquoll come to a complete dead endrdquo

69

ponde a um estilo de historiografia que sai decididamente das regras taacutecitas da aceitabi-

lidade acadecircmica e coloca-se em lugar alternativo e marginal que o proacuteprio autor pare-

ce cavar para si mesmo com uma satisfaccedilatildeo que natildeo faz questatildeo de esconder125

Obviamente a proposta de Kingsley encontra diversas resistecircncias e dificulda-

des Algumas internas ao proacuteprio sistema argumentativo do autor como a de dar conta

de maneira adequada da articulaccedilatildeo de testemunhos tatildeo tardios e tatildeo diferenciados en-

tre si para elaborar uma visatildeo da filosofia preacute-socraacutetica e do pitagorismo de maneira

especial de certa forma coerente ao menos do ponto de vista historiograacutefico Eacute preciso

concordar com Morgan (1997 1130) que de vez em quando ldquoele natildeo junta as peccedilasrdquo

(he does not tie the pieces together) e natildeo fica clara qual seria com precisatildeo a configu-

raccedilatildeo histoacuterica do protopitagorismo tanto do ponto de vista social quanto doutrinaacuterio

para aleacutem de vaga referecircncia agrave magia aos misteacuterios e agrave cura Outras resistecircncias satildeo

levantadas por comentadores que natildeo compartilham da confianccedila no novo caminho me-

todoloacutegico indicado por Kingsley126 Provavelmente os proacuteximos anos iratildeo mostrar se o

caminho por ele revelado teraacute mais seguidores ou menos127

19 Conclusatildeo

Entre circularidades hermenecircuticas e pacircnicos historiograacuteficos a breve histoacuteria da

criacutetica moderna sobre o pitagorismo agora esboccedilada resultou em uma narrativa em que

cada fato e cada testemunho foram colocados em discussatildeo gerando controveacutersias e

reciacuteprocas refutaccedilotildees A duacutevida jaacute zelleriana de que no caso do pitagorismo estariacutea-

mos diante de um intrincado tecido de tradiccedilotildees escassamente relevantes para uma seacuteria

histoacuteria da filosofia acompanha sub-repticiamente grande parte das tentativas de inter-

pretaccedilatildeo do pitagorismo Desde o historicismo evolucionista de Zeller que influencia

diretamente a coleccedilatildeo de Diels passando pela abordagem aprioriacutestica de Burnet que

125 Em recente troca de correspondecircncias Kingsley anunciou estar concluindo uma monografia sobre Pitaacutegoras que ldquopresents entirely new evidence and documentation from sources which have been com-pletely neglected its implications are to say the least dramatic and revolutionaryrdquo (8 de abril de 2010 arquivo privado)rdquo 126 Para todos cf a seca resenha de OrsquoBrian (1998) 127 Tanto na mais recente monografia dedicada a Pitaacutegoras (Riedweg 2002) como no capiacutetulo sobre Pitaacute-goras na ediccedilatildeo dos Vorsokratiker pela Tusculum (Gemelli 2007b) Kinsgley comeccedila a deixar sua marca hermenecircutica Natildeo eacute certamente um caso o fato de que ambos os autores sejam disciacutepulos de Burkert

70

identifica o arcaico com o elemento religioso do pitagorismo e o mais recente com a-

quele cientiacutefico a ponte que pretende separar os dois pitagorismos tornou-se o problema

central da histoacuteria da criacutetica do espinhoso problema da complexidade multifacetada do

pitagorismo

As primeiras reaccedilotildees ao ceticismo dos comentadores natildeo demoraram a aparecer

Estudos de Rohde e Delatte levantaram os primeiros questionamentos relativos agrave pre-

tensa verdade absoluta da equaccedilatildeo entre fontes tardias e sua confiabilidade As sucessi-

vas intervenccedilotildees hermenecircuticas a partir de Cornford e Guthrie desenharam o caminho

da composiccedilatildeo da diversidade das tradiccedilotildees referidas ao pitagorimo Criticando a falaacutecia

modernista Cornford inverte a loacutegica presentista indicando no lado miacutestico do pitago-

rismo sua heranccedila mais importante sendo este em natildeo aberta inconsistecircncia com a filo-

sofia Guthrie de sua parte propondo um meacutetodo aprioriacutestico afirma a coerecircncia inter-

na do pitagorismo preacute-platocircnico A influecircncia da escrita das grandes Histoacuterias da Filoso-

fia do seacuteculo XX contribuiu certamente para estabelecer essa busca unitarista Ao mes-

mo tempo todavia surgiam obras dedicadas ao estudo de algumas aacutereas particulares e

alguns problemas especiacuteficos da questatildeo das fontes In primis a questatildeo do envolvimen-

to poliacutetico das comunidades pitagoacutericas Uma questatildeo agrave qual diversos comentadores

dedicaram-se de maneira especial na tradiccedilatildeo italiana destes estudos desde a eacutepoca

romana por meio do Quattrocento renascentista ateacute a um renovado interesse pela ques-

tatildeo em historiadores contemporacircneos

Em contrapartida uma seacuterie de comentadores dedica-se ao estudo das fontes in-

diretas tanto preacute-socraacuteticas quanto platocircnicas do pitagorismo antigo Ainda que a ima-

gem de um diaacutelogo preacute-socraacutetico entre o pitagorismo e outras escolas apesar de tenta-

dora parece carecer de bases textuais soacutelidas a importacircncia da tese de Tannery sobre as

relaccedilotildees teoreacuteticas entre eleatismo e pitagorismo inaugura uma aacuterea de pesquisa que

comeccedila a colocar em questatildeo a presunccedilatildeo do testemunho uacutenico de Aristoacuteteles trazendo

para a criacutetica outras fontes O valor a ser dado tanto aos testemunhos de Platatildeo quanto

aos de Aristoacuteteles estaacute longe de ser um consenso Posiccedilotildees mais ingecircnuas do ponto de

vista historiograacutefico como as de Burnet e Tayor alternaram-se a posiccedilotildees ceacuteticas como

as de Cherniss e Frank Enquanto o trabalho de Burkert pareceu significar uma verda-

deira terceira-via da criacutetica entre o ceticismo zelleriano e uma excessiva confianccedila nas

fontes a gangorra hermenecircutica em que se encontra parece pender mais para uma com-

preensatildeo do pitagorismo originaacuterio como um movimento religioso

71

Os estudos desse lado religioso do pitagorismo a partir de Detienne e Cumont

marcam fortemente a histoacuteria da criacutetica Um locus privilegiado para esses eacute certamente

aquele das relaccedilotildees com o orfismo um revival de estudos sobre o tema seguiu-se agrave am-

pliaccedilatildeo de seu corpo documental graccedilas agraves recentes descobertas arqueoloacutegicas

Enfim a radical inversatildeo hermenecircutica representada pela obra de Kingsley en-

cerrou o panorama da histoacuteria da criacutetica moderna demostrando ser o ponto de fuga de

trecircs das mais significativas contribuiccedilotildees hermenecircuticas do seacuteculo XX isto eacute do ceti-

cismo em relaccedilatildeo ao valor a ser dado ao testemunho aristoteacutelico da inserccedilatildeo da filosofia

em seu nascer no interior das tradiccedilotildees religiosas de seu tempo e da influecircncia dos es-

tudos orientalistas sobre a histoacuteria da filosofia antiga Kingsley oferece soluccedilotildees relati-

vamente originais e ousadas agraves questotildees sensiacuteveis de criacutetica das fontes Destaca-se espe-

cialmente a recolocaccedilatildeo no centro do interesse da questatildeo do biacuteos e nesse sentido a

proposta de uma continuidade maior que aquela geralmente admitida entre protopitago-

rismo e neopitagorismo e portanto na proacutepria histoacuteria da tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuteri-

ca

O breve panorama aqui resumido por meio de seus motivos e autores principais

resulta em uma imagem polieacutedrica e bastante contraditoacuteria do pitagorismo Emerge

assim a questatildeo central para a compreensatildeo do pitagorismo aquela de consideraacute-lo

como categoria historiograacutefica superando metodologicamente a pretensatildeo de alcanccedilar

uma uacutenica compreensatildeo No lugar disso conscientemente seraacute preciso percorrer os

caminhos das diversas interpretaccedilotildees e dos diversos estratos da tradiccedilatildeo em busca de

uma imagem suficientemente plural ao ponto de permitir compreender o pitagorismo na

diversidade em que ainda se apresenta agrave interpretaccedilatildeo atual

Eacute o que se ensaiaraacute nos capiacutetulos a seguir

72

CAPIacuteTULO SEGUNDO

O PITAGORISMO COMO CATEGORIA HISTORIOGRAacuteFICA

21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica

No iniacutecio do percurso da histoacuteria da criacutetica sobre o pitagorismo desenhado no

capiacutetulo anterior destacou-se que Zeller jaacute enfrentava o problema da categorizaccedilatildeo his-

toriograacutefica do pitagorismo ndash por assim dizer ndash de peito ao se perguntar se no emara-

nhado de fontes e tradiccedilotildees haveria algo no pitagorismo que pudesse ser considerado

como um sistema propriamente filosoacutefico e cientiacutefico (Zeller e Mondolfo 1938 597)

A suspeita zelleriana compartilhada conforme visto por muitos comentadores

que a ele se seguiram introduz bem aquela que foi prenunciada na Introduccedilatildeo como a

problemaacutetica central desta tese isto eacute de como deveraacute ser tratada a diversidade de dou-

trinas e experiecircncias que a tradiccedilatildeo reuniu debaixo do guarda-chuva histoacuterico-teoreacutetico

do pitagorismo Em termos mais precisos isso significa perguntar-se a que correspon-

deria exatamente essa categoria historiograacutefica que a tradiccedilatildeo convencionou chamar de

pitagorismo

A descoberta do alcance histoacuterico e teoreacutetico dessa categoria passa por duas di-

mensotildees-chave do problema uma dimensatildeo que se chamaraacute diacrocircnica outra que seraacute

identificada como sincrocircnica Ainda que complementares as duas dimensotildees desenham

cada uma um campo de investigaccedilatildeo distinto

Descrever a categoria historiograacutefica pitagorismo em sua dimensatildeo diacrocircnica

implica seguir seu processo de construccedilatildeo atraveacutes da histoacuteria da tradiccedilatildeo desde Platatildeo e

Aristoacuteteles ateacute a literatura neoplatocircnica em busca de formas e conteuacutedos que possam

indicar continuidade e ateacute mesmo possiacutevel homogeneidade

Seu pressuposto eacute que obviamente natildeo eacute possiacutevel alcanccedilar em uacuteltima anaacutelise um Pitaacute-

goras histoacuterico ou um pitagorismo das origens pois essa tradiccedilatildeo eacute virtualmente ine-

xistente Tratar-se-aacute portanto nas palavras de Burkert de interpretar interpretaccedilotildees

A primeira coisa a ser feita uma vez que o fenocircmeno original natildeo po-de ser alcanccedilado diretamente eacute interpretar interpretaccedilotildees identificar e

73

destacar as diferentes camadas da tradiccedilatildeo e procurar as causas que causaram uma transformaccedilatildeo na imagem de Pitaacutegoras (Burkert 1972 11)128

O esforccedilo da categorizaccedilatildeo diacrocircnica do pitagorismo seraacute aquele de destrinchar

os diferentes estratos da tradiccedilatildeo Tarefa esta a bem da verdade hoje francamente mais

faacutecil do que era no tempo de Zeller especialmente graccedilas aos avanccedilos dos estudos sobre

a tradiccedilatildeo acadecircmica e peripateacutetica129

Natildeo seraacute objetivo deste esforccedilo de categorizaccedilatildeo do pitagorismo tentar reduzir

sua caracteriacutestica baacutesica de um movimento filosoacutefico extremamente controvertido

(Huffman 2008a 225) Ao contraacuterio a proposta eacute mais propriamente aquela de compre-

ender como na imbricaccedilatildeo das dimensotildees diacrocircnicas e sincrocircnicas a categoria pitago-

rismo tem sobrevivido agrave previsiacutevel diluiccedilatildeo de um movimento natildeo somente radicalmen-

te multifacetado e extensivamente diverso em seus autores e temaacuteticas mas que aleacutem

disso atravessa diacronicamente mais de mil anos de histoacuteria do pensamento ocidental

Assim o desafio da pesquisa e sua originalidade no interior das normais problemaacuteticas

da histoacuteria da filosofia preacute-socraacutetica residem no fato de o pitagorismo natildeo ter propria-

mente nunca morrido o que torna ainda mais complicado o trabalho de articulaccedilatildeo das

notiacutecias advindas da tradiccedilatildeo Para o arqueoacutelogo do pensamento filosoacutefico antigo como

uma cidade que ficou continuamente habitada o pitagorismo apresenta

De maneira muito mais complicada do que um lugar destruiacutedo por uma uacutenica cataacutestrofe e em seguida abandonado a dificuldade especi-al no estudo do pitagorismo vem do fato de que ele nunca morreu co-mo por exemplo o sistema de Anaxaacutegoras ou ateacute mesmo aquele de Parmecircnides (Burkert 1972 10)130

128 Orig ldquoThe first task must be since the original phenomenon cannot be grasped directly to interpret interpretations to single out and identify the different strata of the tradition and to look for the causes that brought transformation to the picture of Pythagorasrdquo 129 A partir das demonstraccedilotildees de Jaeger (1948) da existecircncia de projeccedilotildees sobre o pitagorismo tanto acadecircmicas como peripateacuteticas de seus proacuteprios ideais assim como dos estudos de Wehrli (1944-1960) sobre Dicearco (1944) Aristoxeno (1945) Clearco (1948) Heraacuteclides (1953) e Eudemo (1955) Natildeo devem ser tambeacutem esquecidas as fundamentais contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre plato-nismo e pitagorismo que advecircm dos trabalhos da assim chamada escola de Tuumlbingen-Milatildeo sobre a dou-trina dos princiacutepios em Platatildeo e na Academia Antiga cf para isso Kraumlmer (1959) Gaiser (1963) Szle-zaacutek (1985) Reale (1991) 130 Orig ldquofar more complicated problems than a site destroyed by a single catastrophe and then aban-doned the special difficulty in the study of Pythagoreanism comes from the fact that it was never so dead as for example the system of Anaxagoras or even that of Parmenidesrdquo

74

Para que o caminho atraveacutes das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo seja de fato per-

corriacutevel apresenta-se a necessidade de desenhar um percurso metodoloacutegico original ndash

uma reacutegua de Lesbos de aristoteacutelica memoacuteria ndash que se adeacuteque agrave natureza do objeto a

ser pesquisado

O que a natureza da situaccedilatildeo requer eacute um tratamento do problema tan-to multifacetado quanto for possiacutevel Pois muitas das conclusotildees con-traditoacuterias resultaram da investigaccedilatildeo e do rastreamento do curso de caminhos uacutenicos de desenvolvimento sem alguma ideia da forma em que estes mesmos pudessem convergir com outras linhas igualmente importantes (Burkert 1972 12)131

O comentador encontra-se na frente de uma bifurcaccedilatildeo que o obriga a uma op-

ccedilatildeo metodoloacutegica isto eacute ou o pitagorismo seraacute compreendido como uma multifacetada

e complexa categoria historiograacutefica a ser desenhada acompanhando tanto o longo

percurso da histoacuteria da tradiccedilatildeo como a relaccedilatildeo desta com o mundo intelectual da filoso-

fia que nasce entre os seacuteculos VI e V aEC ou natildeo seraacute compreendido tout court

Uma consequecircncia disso eacute que a abordagem deveraacute ser necessariamente inter-

disciplinar a normal (ainda que discutiacutevel) divisatildeo do trabalho nos estudos claacutessicos

entre histoacutericos arqueoacutelogos filoacutelogos e filoacutesofos natildeo parece funcionar muito bem no

caso do pitagorismo

Pode acontecer que o historiador da ciecircncia tenha feito sua recons-truccedilatildeo sobre fundamentos filologicamente inadequados que o filoacute-logo assuma o resultado aparentemente exato do historiador da ciecircn-cia que o filoacutesofo partindo deste criteacuterio rejeite evidecircncias contra-ditoacuterias ndash e assim por diante (Burkert 1972 12)132

Ver-se-aacute em muitos casos a seguir a importacircncia de uma articulaccedilatildeo das in-

formaccedilotildees arqueoloacutegicas e da abordagem antropoloacutegica de um lado com a anaacutelise filo-

loacutegica do outro seraacute este certamente o caso do problema das relaccedilotildees entre orfismo e

pitagorismo na Magna Greacutecia dos seacuteculos VI e V aEC ou da necessaacuteria articulaccedilatildeo da

131 Orig ldquoWhat the nature of the situation demands is a many-sided treatment of the problem as is possi-ble For many of the contradictory conclusions have come from investigating and tracing the course of single paths of development with no thought of the way in which these may converge with other equally important linesrdquo 132 Orig ldquoIt can happen that the historian of science builds his reconstruction on a philologically inadequate foundation the philologist takes over the seemingly exact result of the historian of science the philosopher on the basis of this criterion rejects contradictory evidence-and so onrdquo

75

histoacuteria da filosofia com a histoacuteria da ciecircncia antiga que eacute especialmente importante

para a resoluccedilatildeo da pretensa crise dos loacutegoi incomensuraacuteveis ou irracionais

Uma polymathiacutea metodoloacutegica (pace Heraacuteclito) seraacute portanto o caminho ade-

quado para que a categoria historiograacutefica do pitagorismo possa emergir das neacutevoas

tanto de uma complexa histoacuteria da tradiccedilatildeo como da identificaccedilatildeo do que seria filosofia

em suas origens133

Esta uacuteltima identificaccedilatildeo introduz a segunda dimensatildeo do pitagorismo a dimen-

satildeo sincrocircnica Compreender sincronicamente o pitagorismo significaraacute fazecirc-lo caber

no interior das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga e a

filosofia preacute-socraacutetica de maneira especial Categorias como preacute-socraacutetico escola ciecircn-

cia religiatildeo poliacutetica ou ateacute mesmo filosofia (quando distinta de outras atividades inte-

lectuais e literaacuterias) satildeo comumente utilizadas para compreender o lugar do pitagorismo

em suas origens Nenhuma dessas categorias normais seraacute obviamente aplicaacutevel tout

court ao pitagorismo Ao contraacuterio ainda que nos limites do objeto aqui desenvolvido a

presente investigaccedilatildeo pretende apontar para a necessidade de ajustes na mesma aborda-

gem metodoloacutegica agrave filosofia preacute-socraacutetica normalmente em uso com consequecircncias

facilmente aplicaacuteveis portanto para aleacutem do estreito acircmbito dos estudos sobre o pitago-

rismo antigo Na linha do que se propotildee por exemplo Gemelli que na introduccedilatildeo agrave

nova ediccedilatildeo dos Vorsokratiker (2007b) afirma

A partir do momento em que se colocam os problemas fora do riacutegido esquema historicista do necessaacuterio progresso do pensamento filosoacutefico e se observam os textos na perspectiva de sua proacutepria tipologia e do contexto pragmaacutetico em que foram concebidos estes adquirem valo-res e significados bem mais complexos do que aqueles da simples ldquofi-losofia naturalrdquo (Gemelli 2007b 440)134

No caso do pitagorismo seraacute necessaacuterio superar as riacutegidas dicotomias de uma

historiografia demasiadamente acostumada a distinguir por exemplo entre ciecircncia e

magia escrita e oralidade jocircnicos e itaacutelicos Pois nenhuma destas sozinha pareceraacute dar

133 Heraacuteclito parece criticar a πολυmicroαθίη de Pitaacutegoras em seus fragmentos 40 e 129 (22 B 40 129 DK) 134 Orig ldquoSobald man die Probleme also ausserhalb des starren historistishen Entwurfs Von der unab-dingbaren Entwicklung des philosophischen Denkens angeht um die Text unter dem Blickwinkel ihrer Typologie sowie des pragmatischen Kontextes in dem sie abgefasst worden sind betrachtet gewinnen sie Bedeutungen und Sinngehalte die weit komplexer sind als die einfache ldquoNaturphilolophierdquo

76

conta da complexidade com que se apresentam as linhas fundamentais da organizaccedilatildeo

social e da doutrina pitagoacutericas

Ambas as dimensotildees tanto a sincrocircnica como a diacrocircnica apareceratildeo forte-

mente imbricadas ao longo da tese operacionalizando a definiccedilatildeo de uma categoria his-

toriograacutefica aquela do pitagorismo que compreenda a amplidatildeo e a pluralidade da tra-

diccedilatildeo em uma imagem que resulte quanto mais possiacutevel coerente

Antes mesmo de adentrar no capiacutetulo terceiro e no quarto nas duas questotildees

fundamentais que contribuiacuteram mais decididamente para a definiccedilatildeo da categoria histo-

riograacutefica do pitagorismo seraacute importante verificarmos aquele que pode ser considerado

o ponto de partida a questatildeo vestibular para a historiografia do pitagorismo a pergunta

sobre quem poderia chamar a si mesmo de pitagoacuterico

22 Identidade pitagoacuterica

A definiccedilatildeo da categoria pitagorismo natildeo pode senatildeo comeccedilar de uma pergunta

que somente na primeira impressatildeo pode parecer simples mas que em verdade se de-

monstraraacute de difiacutecil soluccedilatildeo quem pode ser definido como pitagoacuterico no mundo antigo

Muitos autores a partir de Aristoacuteteles tentaram responder a essa pergunta pro-

curando um criteacuterio temaacutetico que permitisse identificar certa unidade doutrinaacuteria Eacute cer-

tamente este o caso haacute pouco citado do privileacutegio concedido por Zeller exatamente agrave

lectio aristoteacutelica sobre os pitagoacutericos privileacutegio este que se tornou ao longo da histoacuteria

da criacutetica moderna um consenso quase indiscutiacutevel pitagoacuterico eacute algueacutem que fala de

nuacutemeros

Este criteacuterio identitaacuterio resistiu majoritariamente ateacute o divisor de aacuteguas represen-

tado pelo artigo de Zhmud (1989) que revela quanto de circular haacute na utilizaccedilatildeo do cri-

teacuterio dos nuacutemeros para identificar um pitagoacuterico

Na grande maioria dos trabalhos sobre o pitagorismo este problema natildeo eacute sequer abertamente considerado e um criteacuterio doutrinaacuterio eacute im-plicitamente usado como o principal meacutetodo de trabalho Um pitagoacuteri-co eacute algueacutem que fala sobre o nuacutemero Estamos aqui na frente de uma

77

oacutebvia petitio principii pois aquilo que necessita ele proacuteprio de uma prova eacute tomado como uma premissa inicial (Zhmud 1989 272)135

Zhmud volta com ainda mais forccedila nessa recusa de um criteacuterio doutrinaacuterio em

sua monografia de 1997 ao ponto de Centrone (1999) observar que a tese deste autor

coloca um ponto final na questatildeo natildeo sendo mais possiacutevel identificar um pitagoacuterico

pela adesatildeo a uma doutrina

Uma das teses centrais desta monografia (Zhmud 1997) isto eacute a ideia pela qual o criteacuterio de identificaccedilatildeo de um pitagoacuterico natildeo seria a pro-fissatildeo de uma doutrina filosoacutefica encontra aqui uma base soacutelida e bem argumentada e natildeo penso possa ser colocada novamente em discussatildeo (Centrone 1999 424)136

Por outro lado a histoacuteria da filosofia acostumou-se a utilizar um criteacuterio geograacute-

fico ao menos desde Dioacutegenes Laeacutercio (D L Vitae I 13-15) para identificar entre ou-

tras escolas filosoacuteficas aquela itaacutelica ou pitagoacuterica Depois do fundador o restante dos

pitagoacutericos eacute elencado natildeo tanto seguindo um estrito criteacuterio doutrinaacuterio (como eacute o caso

de Empeacutedocles ou Eudoxo ou mesmo de Demoacutecrito cf D L Vitae IX) mas por uma

relaccedilatildeo pedagoacutegica direta algum tipo de dependecircncia intelectual de Pitaacutegoras ou outro

celebre pitagoacuterico No caso especiacutefico e uacutenico do pitagorismo pela primeira vez um

grupo de filoacutesofos eacute identificado natildeo a partir de sua coerecircncia doutrinaacuteria (physikoiacute) ou

proximidade geograacutefica (eleatas) mas sim a partir do nome de seu fundador pythago-

reiacuteoi137

Se o que faz algueacutem pitagoacuterico natildeo eacute a adesatildeo a uma doutrina secirc-lo-aacute entatildeo a

adesatildeo a outra grande dimensatildeo que a tradiccedilatildeo aponta como essencial para a identifica-

135 Orig ldquoin the overwhelming majority of works on Pythagoreanism this problem is not raised openly and a doctrinal criterion is implicitly used as the main working method A Pythagorean is one who speaks about Number Here we are faced with an obvious petitio principii that which itself is in need of being proved is taken as a starting premiserdquo 136 Orig ldquoUna delle tesi centrali di questa monografia (Zhmud 1997) e cioegrave lidea che il criterio di individuazione di un pitagorico non consista nella professione di una dottrina filosofica trova qui un fondamento solido e ben argomentato e non penso possa piugrave essere rimessa in discussionerdquo Cf tambeacutem Centrone (2000 145) Nesse ensaio Centrone retoma os mesmos argumentos para tratar do que significa ser pitagoacuterico em eacutepoca imperial 137 Ainda que em Platatildeo apareccedilam tanto os Ἀναξαγόρειοι (Craacutetilo 409b) como os Ἡρακλειτείoi (Teeteto 179e) essas designaccedilotildees natildeo tiveram evidentemente o mesmo sucesso histoacuterico daquela dos pitagoacutericos Para uma ampla resenha do uso do termo nas fontes antigas cf Minar (1942 21-22)

78

ccedilatildeo de um pitagoacuterico isto eacute a do biacuteos de determinado estilo de vida expresso por ako-

uacutesmata e syacutembola isto eacute preceitos ouvidos e sinais de reconhecimento

Parece ser este o caso do longo cataacutelogo de pitagoacutericos que Jacircmblico insere no

final de sua Vida (Iambl VP 267) e que com toda probabilidade eacute de origem aristoxecirc-

nica138 Trata-se de uma longa sequecircncia de 218 nomes ordenados por um criteacuterio geo-

graacutefico Destes a maioria 34 satildeo tarentinos como o proacuteprio Aristoxeno

Entre todos os pitagoacutericos muitos ficaram anocircnimos e desconhecidos de outros ao contraacuterio conhecemos os nomes De Crotona Ipostratos Dimantes Eacutegon Eacutemon Cleoacutestenes Aacutegela Episilo Ficiada Eacutecfanto Timeu Butatildeo Eacuterato Itaneu Rodipo Briantes Evandro Milias An-timedontes Agea Leofrontes Aacutegilo Onata Ipoacutestenes Cleofontes Alcmeon Daacutemocles Milon Mecircnon De Metaponto Brontino Parmisco [] De Eleia Parmecircnides De Ta-rento Filolau Eurito Arquitas Teodoro [] As mulheres pitagoacutericas mais conhecidas satildeo Tiacutemica mulher de Milias Filtides filha de Teo-frio de Crotona e irmatilde de Bindaco Ocelo e Ecelo irmatildeos de Ocelo e Ocilio de Lucacircnia Quiloacutenides filha de Quilon de Esparta Cratesicleia de Lacocircnia esposa de Cleaacutenoros de Esparta Teano [] (Iambl VP 267)139

Eacute significativo notar que em seu formato de classificaccedilatildeo com base geograacutefica

o cataacutelogo pode ser aproximado ao modelo da tradiccedilatildeo epigraacutefica antiga grega ao con-

traacuterio o estilo de classificaccedilatildeo mais em uso na literatura eacute construiacutedo com base nas rela-

ccedilotildees familiares ou de discipulado resultando na imagem de uma aacutervore genealoacutegica

Um exemplo disso eacute Dioacutegenes Laeacutercio e mesmo no capiacutetulo imediatamente anterior da

138 Com essa identificaccedilatildeo concorda a maioria dos comentadores a partir de Rohde (1872) Como ele tambeacutem Delatte (1922 182) Zhmud (1988 273) Centrone (1996 11) Giangiulio (Pitagora 2000 II 545) e Brisson e Segonds (1996) Burkert (1972105 n40) afirma ldquothe only possible candidate for authorship seems to be Aristoxenus himself working in the documentary method of the earliest Peripatosrdquo Jaacute Huff-man (2008 c) levantou recentemente algumas duacutevidas em relaccedilatildeo a esta atribuiccedilatildeo que o levam a uma conclusatildeo cautelosa ldquois does seem most plausible to assume that Aristoxenus is responsible for the core odf catalogue but it is important to recognize both that the arguments for Aristoxenusacutes authorship are not ironclad and that even if the core is assigned to Aristoxenus this does not mean that the catalogue has not undergone modificationsrdquo (Huffman 2008c 297) 139 Orig ldquo ῶν δὲ συmicroπάντων Πυθαγορείων τοὺς microὲν ἀγνῶτάς τε καὶ ἀνωνύmicroους τινὰς πολλοὺς εἰκὸς γεγ-ονέναι τῶν δὲ γνωριζοmicroένων ἐστὶ τάδε τὰ ὀνόmicroαταmiddot Κρ ο τ ω ν ι ᾶ τ α ι Ἱππόστρατος ∆ύmicroας Αἴγων Αἵmicroων Σύλλος Κλεοσθένης Ἀγέλας Ἐπίσυλος Φυκιάδας Ἔκφαντος Τίmicroαιος Βοῦθος Ἔρατος Ἰταν-αῖος Ῥόδιππος Βρύας Εὔανδρος Μυλλίας Ἀντιmicroέδων Ἀγέας ΛεόφρωνἈγύλος Ὀνάτας Ἱπποσθένης Κλεόφρων Ἀλκmicroαίων ∆αmicroοκλῆς Μίλων Μένων Με τ α π ο ν τ ῖ ν ο ι Βροντῖνος Παρmicroίσκος [] Ἐλ -ε ά τ η ς Παρmicroενίδης Τ α ρ α ν τ ῖ ν ο ι Φιλόλαος Εὔρυτος Ἀρχύτας Θεόδωρος[hellip] Πυθαγορίδες δ-ὲ γ υ ν α ῖ κ ε ς αἱ ἐπιφανέσταταιmiddot Τιmicroύχαγυνὴ [ἡ] Μυλλία τοῦ Κροτωνιάτου Φιλτὺς θυγάτηρ Θεόφριος τοῦ Κροτωνιάτου Βυνδάκου ἀδελφή Ὀκκελὼ καὶ Ἐκκελὼ ltἀδελφαὶ Ὀκκέλω καὶ Ὀκκίλωgt τῶν Λευκα-νῶνΧειλωνὶς θυγάτηρ Χείλωνος τοῦ Λακεδαιmicroονίου Κρατησίκλεια Λάκαινα γυνὴ Κλεάνορος τοῦ Λακ-εδαιmicroονίου Θεανὼ []rdquo (Iambl VP 267)

79

proacutepria Vida de Jacircmblico (Iambl VP 266) Essa particularidade com a inclusatildeo de 17

mulheres e o desconhecimento de qualquer nome sucessivo ao seacuteculo IV aEC e de

grande parte dos apoacutecrifos da literatura pseudopitagoacuterica heleniacutestica (Thesleff 1965)

tornam o cataacutelogo um achado com toda probabilidade muito antigo e extremamente

valioso para o objetivo aqui declarado de procurar os criteacuterios de identificaccedilatildeo dos pita-

goacutericos De fato natildeo haacute aparentemente qualquer aproximaccedilatildeo possiacutevel entre pitagoacutericos

como Filolau de um lado e Apolocircnio do outro tanto do ponto de vista teoreacutetico-

doutrinaacuterio como das relaccedilotildees histoacutericas entre eles ou de cada um com Pitaacutegoras O

uacutenico criteacuterio plausiacutevel de sua identificaccedilatildeo como pitagoacutericos torna-se o de uma adesatildeo

de cada um antes que a alguma doutrina especiacutefica a um estilo de vida a um biacuteos que

ambos reconhecem como pitagoacuterico Se eacute possiacutevel concordar com Huffman (1993 11)

quando fala de um estilo de vida que todavia ldquoindubitavelmente devia incluir alguns

princiacutepios morais como a exortaccedilatildeo a viver uma vida simples e a praticar a temperacircn-

ciardquo esses princiacutepios morais satildeo tatildeo geneacutericos ao ponto de novamente natildeo poderem

constituir propriamente um sinal de distinccedilatildeo do pitagoacuterico com relaccedilatildeo ao sophoacutes anti-

go em geral O proacuteprio Hesiacuteodo poderia com toda probabilidade compartilhaacute-los140

Eacute significativo o insucesso da recente tentativa de formulaccedilatildeo por parte de

Huffman de criteacuterios que permitiriam identificar no cataacutelogo de Jacircmblico ndash assim co-

mo para aleacutem dele ndash determinado filoacutesofo como pitagoacuterico Huffman (2008b 299) pos-

tula trecircs destes a) a existecircncia de um testemunho indiscutiacutevel e antigo isto eacute anterior ao

seacuteculo IV aEC de que tal filoacutesofo foi considerado pitagoacuterico b) evidecircncia indiscutiacutevel

de que tal filoacutesofo tenha adotado o esquema metafiacutesico baacutesico dos pitagoacutericos que

Huffman faz coincidir com aquele descrito por Aristoacuteteles e encontrado nos fragmentos

de Filolau e que a seu ver corresponderia fundamentalmente com a doutrina ldquotudo po-

de ser conhecido atraveacutes do nuacutemerordquo141 c) evidecircncia de que a personagem estaacute incorpo-

rada na tradiccedilatildeo biograacutefica pitagoacuterica tendo sido disciacutepulo ou interlocutor de algum

pitagoacuterico

Ainda que o esforccedilo de Huffman seja de fato original e louvaacutevel seu resultado

natildeo permite chegar agravequela ldquovigorosardquo (vigorous) tradiccedilatildeo pitagoacuterica (2008c 301) que o

140 Orig ldquoindoubtely also included certain moral principles such as the exortation to live a simple life and to practice temperancerdquo 141 A mesma ideia estava jaacute em Huffman (1993 74) A questatildeo receberaacute a atenccedilatildeo que certamente merece no capiacutetulo quarto

80

autor pretendia Pois a resposta aos trecircs criteacuterios dependeraacute ainda e fortemente de uma

preacute-compreensatildeo ndash esta sim discutiacutevel ndash do que seja um testemunho indiscutivelmente

antigo (a) ou de qual seja o pretenso esquema metafiacutesico pitagoacuterico (b) O proacuteprio

Huffman ainda que natildeo pelos mesmos motivos agora sugeridos acaba reconhecendo

que uma longa lista de pitagoacutericos ainda resultaa da aplicaccedilatildeo destes criteacuterios ldquorigoro-

sosrdquo Contudo essa natildeo passaria de um

reflexo do fato que Pitaacutegoras era famoso por ter deixado atraacutes dele um estilo de vida de forma que junto com pitagoacutericos de tendecircncia cos-moloacutegica e metafiacutesica como eacute o caso de Filolau e Arquitas existiu grande nuacutemero de outras figuras que podem ser chamadas de pitagoacuteri-cos simplesmente com base na maneira com que eles viviam suas vi-das (Huffman 2008c 301)142

Assim novamente o criteacuterio mais confiaacutevel aquele do biacuteos conforme transmiti-

do pela tradiccedilatildeo exclui qualquer possibilidade de distinccedilatildeo com base nas doutrinas Eacute

portanto o caso de concordar com Centrone quando conclui que

O pitagorismo natildeo surgiu como uma escola filosoacutefica e natildeo pode ser uma doutrina filosoacutefica o que permite identificar um pitagoacuterico Um criteacuterio mais confiaacutevel consistiria em considerar pitagoacutericos aqueles que a tradiccedilatildeo antiga qualifica como disciacutepulos ou sucessores de Pitaacute-goras [] isso exclui a delimitaccedilatildeo do fenocircmeno pitagoacuterico a um acircm-bito especiacutefico bem preciso ou a uma filosofia monotemaacutetica (Centro-ne 1999 441)143

Dessa forma autores com interesses que vatildeo da fisiologia agrave botacircnica como eacute o

caso de Alcmeon ou Menestor podem ser considerados pitagoacutericos a todos os efeitos

Poreacutem a adesatildeo a um particular estilo de vida pressupotildee ao menos em seu mo-

mento inaugural preacute-socraacutetico a existecircncia real de uma comunidade que se estrutura a

partir do mesmo estilo de vida Mesmo depois em idade heleniacutestica quando a definiccedilatildeo

do biacuteos poderaacute ser uma escolha individual a comunidade dos iniacutecios teraacute o sentido de

142 Orig ldquoreflexion of the fact that Pythagoras was famous for leaving behind him a way of life so that in addition to Pythagoreans of a cosmological and metaphysical bent such as Philolaus and Archytas there were a number of other figures who can be called Pythagoreans merely on the basis of the way they lived their livesrdquo 143 Cf tambeacutem Zeller e Mondolfo (1938 434) Orig ldquoIl pitagorismo non egrave sorto come una scuola filosofica e non puograve essere una dottrina filosofica ciograve che permette di identificare un pitagorico Un criterio piugrave affidabile consiste nel considerare pitagorici coloro che la tradizione antica qualifica come discepoli o successori di Pitagora e aderenti allassociazione [hellip] ciograve esclude la delimitazione del fenomeno pitagorico a un ambito scientifico ben preciso o a una filosofia monotematicardquo

81

um modelo distante no tempo a ser seguido144 Contudo que tipo de comunidade seria

aquela da koinoniacutea pitagoacuterica

Platatildeo em Repuacuteblica cita duas vezes nominalmente os pitagoacutericos na primeira

referecircncia daacute a entender que a comunidade compartilhava de um saber privado (idiacuteon)

Mas entatildeo senatildeo na vida puacuteblica ao menos naquela privada se diz que Homero enquanto era vivo tenha seguido pessoalmente a educa-ccedilatildeo dos disciacutepulos que amavam sua frequentaccedilatildeo e que tenha transmi-tido agraves futuras geraccedilotildees certo caminho de vida homeacuterico da mesma maneira que Pitaacutegoras que por esse motivo foi sobremaneira amado e seus disciacutepulos ateacute hoje chamam pitagoacuterico este estilo de vida e por este parecem distinguir-se dos outros (Resp X 600b)145

O objeto desta paideacuteia pitagoacuterica natildeo seria tanto uma doutrina filosoacutefica ou cien-

tiacutefica e sim um troacutepos toucirc biacuteos um estilo de vida Em sentido contraacuterio todavia na

segunda referecircncia ao tema Platatildeo parece querer identificar o pitagorismo com uma

escola filosoacutefica e de pesquisa

Eacute provaacutevel que como os olhos satildeo conformados pela astronomia as-sim os ouvidos o sejam para o movimento harmocircnico e que estas duas ciecircncias sejam de alguma forma irmatildes como afirmam os pitagoacutericos e tambeacutem noacutes (Resp VII 530d)146

A mesma ideia parece estar expressa na paacutegina seguinte de Repuacuteblica quando

satildeo opostos de um lado aqueles que torturam as cordas e antepotildeem os ouvidos ao pen-

samento fazendo pesquisas musicoloacutegicas empiacutericas e do outro a pesquisa metoacutedica

dos pitagoacutericos (Resp VII 531a-d)147

144 Para ampla discussatildeo desta mudanccedila da concepccedilatildeo do biacuteos em eacutepoca heleniacutesitica cf Vegetti (1989 271-300) 145 Orig ldquo Ἀλλὰ δὴ εἰ microὴ δηmicroοσίᾳ ἰδίᾳ τισὶν ἡγεmicroὼν παιδείας αὐτὸς ζῶν λέγεται Ὅmicroηρος γενέσθαι οἳ ἐκεῖνον ἠγάπων ἐπὶ (b) συνουσίᾳ καὶ τοῖς ὑστέροις ὁδόν τινα παρέδοσαν βίου Ὁmicroηρικήν ὥσπερ Πυθαγ-όρας αὐτός τε διαφερόντως ἐπὶ τούτῳ ἠγαπήθη καὶ οἱ ὕστεροι ἔτι καὶ νῦν Πυθαγόρειον τρόπον ἐπονοmicroά-ζοντες τοῦ βίου διαφανεῖς πῃ δοκοῦσιν εἶναι ἐν τοῖς ἄλλοιςrdquo (Plato Resp X 600a-b) 146 Orig ldquo Κινδυνεύει ἔφην ὡς πρὸς ἀστρονοmicroίαν ὄmicromicroατα πέπηγεν ὣς πρὸς ἐναρmicroόνιον φορὰν ὦτα παγῆναι καὶ αὗται ἀλλήλων ἀδελφαί τινες αἱ ἐπιστῆmicroαι εἶναι ὡς οἵ τε Πυθαγόρειοί φασι καὶ ἡmicroεῖςrdquo (Plato Resp VII 530d) 147 Cf para a mesma aproximaccedilatildeo entre muacutesica e astronomia tambeacutem Craacutetilo (405d) Para uma resenha da recusa do empirismo e a irmandade das duas ciecircncias cf Vegetti (1999 86-88) e Meriani (2003)

82

Um fragmento de Arquitas cuja autenticidade foi defendida recentemente por

Huffman (1985 2005 112-114) apresenta a mesma ideia da irmandade entre astronomia

e muacutesica

Parece que os que se dedicaram agraves ciecircncias matemaacuteticas alcanccedilaram bons resultados e natildeo eacute estranho que eles raciocinassem apropriada-mente sobre cada coisa pois conhecendo bem a natureza do todo de-viam ver bem mesmo nas coisas particulares como estas eram Assim nos forneceram claras noccedilotildees a respeito da velocidade dos astros o amanhecer e o pocircr do sol como tambeacutem sobre a geometria a aritmeacuteti-ca e natildeo menos sobre a muacutesica Essas ciecircncias parecem de fato serem irmatildes (47 B1 DK)148

A aproximaccedilatildeo desse fragmento de Arquitas ao segundo testemunho de Platatildeo

acima sugere um caminho de soluccedilatildeo para a aparente contraditoriedade da tradiccedilatildeo pla-

tocircnica enquanto na primeira passagem Platatildeo entenderia referir-se ao protopitagoris-

mo a segunda diria respeito ao pitagorismo a ele contemporacircneo notadamente agrave figura

de Arquitas Pois natildeo somente as comunidades pitagoacutericas jaacute teriam desaparecido apoacutes

as revoltas antipitagoacutericas de meados do V seacuteculo aEC mas o proacuteprio Arquitas aparece

sempre na tradiccedilatildeo como um pensador e cientista independente e portanto natildeo utilizaacute-

vel para falar da comunidade pitagoacuterica e seu biacuteos149 O que se vecirc em accedilatildeo aqui eacute a di-

mensatildeo diacrocircnica em busca de um caminho pelos diferentes estratos das tradiccedilotildees que

contribuem para a definiccedilatildeo da categoria historiograacutefica do pitagorismo150

Em relaccedilatildeo ao testemunho aristoteacutelico para aleacutem da discutida expressatildeo oi kalo-

uacutemenoi pythagoreiacuteoi mencionada anteriormente as referecircncias aos contributos pitagoacute-

ricos agrave matemaacutetica e agrave fiacutesica (cf Met 985b23) fariam pensar em uma identificaccedilatildeo prio-

ritaacuteria do pitagorismo com uma comunidade cientiacutefica e filosoacutefica E todavia os frag-

mentos que restam das obras do corpus aristoteacutelico expressamente dedicadas ao estudo

dos pitagoacutericos (fr 191-205 Rose) parecem ao contraacuterio revelar outras abordagens

148 Orig ldquo Kαλῶς microοι δοκοῦντι τοὶ περὶ τὰ microαθήmicroατα διαγνώmicroεναι καὶ οὐθὲν ἄτοπον ὀρθῶς αὐτούς οἷά ἐντι περὶ ἑκάστων φρονέεινmiddot περὶ γὰρ τᾶς τῶν ὅλων φύσιος καλῶς διαγνόντες ἔmicroελλον καὶ περὶ τῶν κατὰ microέρος οἷά ἐντι καλῶς ὀψεῖσθαι περί τε δὴ τᾶς τῶν ἄστρων ταχυτᾶτος καὶ ἐπιτολᾶν καὶ δυσίων παρέδω-καν ἁmicroῖν σαφῆ διάγνωσιν καὶ περὶ γαmicroετρίας καὶ ἀριθmicroῶν καὶ σφαιρικᾶς καὶοὐχ ἥκιστα περὶ microωσικᾶς ταῦτα ὰρ τὰ microαθήmicroατα δοκοῦντι ἦmicroεν ἀδελφεάrdquo (47 B1 DK) 149 Aristoacuteteles de fato trata de Arquitas natildeo no interior dos assim chamados pitagoacutericos mas dedica ao filosofo-rei de Tarento uma consideraccedilatildeo a parte Cf tambeacutem abaixo (412) 150 Sobre a autenticidade do fr 1 de Arquitas levantaram duacutevidas Burkert (1972 379) e Centrone (1996 70n 21) Para a ideia da inatualidade de Arquitas para uma discussatildeo sobre a comunidade protopitagoacuterica cf Centrone (1996 70)

83

Aristoacuteteles se ocupa aqui da vida de Pitaacutegoras e dos akouacutesmata e syacutembola que orientam

a vida comunitaacuteria pitagoacuterica Ceacutelebre eacute o testemunho do fr 192 Rose

Aristoacuteteles em sua obra Sobre a filosofia pitagoacuterica daacute notiacutecia do fato de que seus seguidores custodiam entre os segredos mais riacutegidos esta distinccedilatildeo dos seres viventes dotados de razatildeo um eacute o deus o outro eacute o homem o terceiro possui a natureza de Pitaacutegoras (14 A7 DK = Iam-bl VP 31)151

Portanto mesmo o testemunho de Aristoacuteteles como eacute o caso de Platatildeo natildeo eacute

decisivo para compreender qual seria a caracteriacutestica principal da comunidade se a da

investigaccedilatildeo cientiacutefica ou aquela da vida em comum orientada por akouacutesmata e

syacutembola

Eacute provaacutevel que a pergunta feita idealmente a Platatildeo e Aristoacuteteles sobre qual se-

ria a caracteriacutestica saliente da koinoniacutea pitagoacuterica seja de fato mal colocada A aporiacutea

sugere que seja preciso portanto por um lado rever metodologicamente a proacutepria ten-

tativa de separaccedilatildeo entre as duas alternativas por outro retomar a busca pelas modali-

dades dessa comunidade de um ponto de vista textual alternativo

23 A koinoniacutea pitagoacuterica

Os modelos histoacutericos gregos de associaccedilotildees satildeo fundamentalmente de dois ti-

pos o thiacuteasos e a hetairiacutea Enquanto o primeiro estaacute mais diretamente ligado agrave praacutetica

comum de cultos agrave partilha de ritos e saberes misteacutericos a hetairiacutea estaacute mais ligada agrave

ideia de uma associaccedilatildeo de philoiacute no sentido poliacutetico de aliados e confrades que se en-

contram em um clube privado A comunidade pitagoacuterica eacute quase que unanimemente

considerada pela tradiccedilatildeo uma hetairiacutea ainda que bastante sui generis de fato procu-

rando justificar a violenta revolta contra os pitagoacutericos Jacircmblico revela o sentimento de

estranhamento da populaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave comunidade

Tomaram a frente da revolta exatamente aqueles que estavam em rela-ccedilotildees de parentesco mais proacuteximas com os pitagoacutericos E a razatildeo era

151 Orig ldquo διακηρύττει ἱστορεῖ δὲ καὶ Ἀριστοτέλης ἐν τοῖς περὶ τῆς Πυθαγορικῆς φιλοσοφίας διαίρεσίν τινα τοιάνδε ὑπὸ τῶν ἀνδρῶν ἐν τοῖς πάνυ ἀπορρήτοις διαφυλάττεσθαιmiddot τοῦ λογικοῦ ζῴου τὸ microέν ἐστι θεός τὸ δὲ ἄνθρωπος τὸ δὲ οἷον Πυθαγόραςrdquo (14 A7 DK = Iambl VP 31)

84

que estes ndash exatamente como a populaccedilatildeo em geral ndash ficavam irritados com a conduta dos pitagoacutericos em praticamente qualquer aspecto dela na medida em que esta era diferente daquela dos outros (Iambl VP 255)152

Essa diferenccedila da comunidade ligada a algumas praacuteticas estranhas agrave cultura e

economia do tempo como aquela da partilha dos bens era com toda probabilidade

parte essencial do motivo da inimizade ndash acenada no testemunho acima ndash por parte das

proacuteprias famiacutelias dos membros da comunidade Sublinha-se acima no interior do pano-

rama da criacutetica a questatildeo da presenccedila poliacutetica da comunidade pitagoacuterica essa presenccedila

sugeriria que a melhor identificaccedilatildeo seria mesmo com o modelo da hetairiacutea E todavia

as fontes satildeo bastante insistentes em nos apresentarem uma comunidade francamente

dedicada ao culto e a uma vida comunitaacuteria baseada em akouacutesmata e syacutembola isto eacute em

palavras secretas e sinais de identificaccedilatildeo Com isso ganharia forccedila a hipoacutetese contraacuteria

isto eacute de a comunidade pitagoacuterica encontrar seu lugar tipoloacutegico mais proacuteprio no acircmbi-

to do thiacuteasos153

Baseando-se na inegaacutevel caracteriacutestica da diferenccedila da comunidade Burkert

(1982 2-3 19) seguido por Riedweg (2002 166-171) considera que a melhor defini-

ccedilatildeo para a comunidade pitagoacuterica seja o termo seita154 Consciente do uso comum de-

preciativo do termo que leva diversos autores incluindo o presente a preferir uma de-

signaccedilatildeo mais neutra como aquela ateacute aqui usada de comunidade a traduzir o grego

koinoniacutea Burkert reclama para o termo seita a vantagem de um uso mais teacutecnico socio-

loacutegico na esteira dos trabalhos de Bryan Wilson e Arnaldo Momigliano (Burkert 1982

3)

Dessa forma poder-se-atildeo identificar no pitagorismo as caracteriacutesticas miacutenimas

que definem uma seita do ponto de vista da sociologia dos grupos religiosos Essas ca-

152 Orig ldquo ἡγεmicroόνες δὲ ἐγένοντο τῆς διαφορᾶς οἱ ταῖς συγγενείαις ltκαὶgt ταῖς οἰκειότησιν ἐγγύτατα καθε-στηκότες τῶν Πυθαγορείων αἴτιον δ ἦν ltὅτιgt τὰ microὲν πολλὰ αὐτοὺς ἐλύπει τῶν πραττοmicroένων ὥσπερ καὶ τοὺς τυχόντας ἐφ ὅσον ἰδιασmicroὸν εἶχε παρὰ τοὺς ἄλλουςrdquo (Iambl VP 255) 153 Para ampla resenha da terminologia utilizada pelas fontes antigas para designar a comunidade pitagoacute-rica cf Minar (1942 15-35) Tanto Philip (1966 144) quanto Zhmud (1992 241-1) consideram impro-vaacutevel a associaccedilatildeo dos pitagoacutericos com o modelo do thiacuteasos por causa da evidente atuaccedilatildeo poliacutetica da comunidade Centrone (1996 67-68) adota uma posiccedilatildeo menos ceacutetica reconhecendo que ainda que al-guns traccedilos esoteacutericos da comunidade fossem de fato sublinhados pela tradiccedilatildeo tardia esse fato natildeo auto-riza a negar tout court qualquer valor histoacuterico a eles 154 O primeiro a usar o termo sekte eacute Rohde (1898 103ss) O uso de uma terminologia advinda da socio-logia da religiatildeo natildeo eacute incomum Toynbee (1939 84) e Jaeger (1947 61) chegam a utilizar o termo chur-ch para referir-se agrave comunidade pitagoacuterica

85

racteriacutesticas contribuem para a descriccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica como de um grupo

de proporccedilotildees numeacutericas bastante reduzidas de caraacuteter elitaacuterio modos alternativos e

algum niacutevel de sigilo encontros regulares ou vida em comum certa partilha econocircmica

e espiritual submissatildeo agrave autoridade de um guia carismaacutetico e forte sentimento identitaacute-

rio que leva agrave separaccedilatildeo das pessoas entre noacutes e eles Accedilotildees de vinganccedila contra os apoacutes-

tatas prescriccedilotildees reprodutivas que garantam a sobrevivecircncia diacrocircnica da comunidade

e intensa mobilidade geograacutefica concluem um retrato no qual como se veraacute podem ser

reconhecidas as caracteriacutesticas salientes do estilo de vida pitagoacuterico

Na peneira da tradiccedilatildeo de fato a classificaccedilatildeo proposta por Burkert revela-se

em geral bastante apropriada Seratildeo visitadas algumas das tradiccedilotildees mais salientes que

dizem respeito a essa possiacutevel identificaccedilatildeo do pitagorismo com uma seita As duas Vi-

das de Porfiacuterio e Jacircmblico (de maneira especial esta uacuteltima) satildeo ricas fontes de infor-

maccedilatildeo sobre a comunidade e as regras de seu biacuteos Ainda que marcadas por interpola-

ccedilotildees tardias eacute certamente possiacutevel identificar estratos mais antigos da tradiccedilatildeo em mui-

tos dos testemunhos que iratildeo receber nossa atenccedilatildeo a seguir155

Nuacutemero limitado Os pitagoacutericos ainda que influentes nas cidades por eles ad-

ministradas na Magna Greacutecia constituiacuteram sempre uma comunidade minoritaacuteria tanto

no interior dos grupos aristocraacuteticos das mesmas cidades como no acircmbito maior da cul-

tura intelectual de seu tempo Apesar de os quatro discursos poliacuteticos de Pitaacutegoras na

ocasiatildeo da chegada em Crotona terem conquistado ndash segundo Porfiacuterio (VP 20) e Jacircm-

blico (VP 30) ndash um auditoacuterio de duas mil pessoas somente seiscentas delas se tornaram

mesmo disciacutepulos ldquonatildeo somente conduzidos por ele agrave filosofia mas tambeacutem prontos a

lsquoviver em comumrsquo como se dizia conforme seus preceitosrdquo (Iambl VP 29)156 A tradi-

ccedilatildeo parece sugerir jaacute uma seleccedilatildeo inicial portanto O mesmo cataacutelogo de Jacircmblico aci-

ma citado em sua intenccedilatildeo de contar os pitagoacutericos pressupotildee certamente um nuacutemero

limitado deles

155 Para uma avaliaccedilatildeo da influecircncia da tradiccedilatildeo pitagoacuterica sobre a evoluccedilatildeo do gecircnero literaacuterio das Vidas de filoacutesofos no mundo antigo cf Goulet (2001 23-61 espec 32-34 com uma anaacutelise de Porph VP e Iambl VP) 156 Orig ldquoκαὶ ἐν πρώτῃ Κρότωνι ἐπισηmicroοτάτῃ πόλει προτρεψάmicroενος πολλοὺς ἔσχε ζηλωτάς ὥστ-ε [ἱστορεῖταιἑξακοσίους αὐτὸν ἀνθρώπους ἐσχηκέναι οὐ microόνον ὑπrsquo αὐτοῦ κεκινηmicroένους εἰς τὴν φιλοσ-οφίαν ἧς microετεδίδου ἀλλὰ καὶ τὸ λεγόmicroενον κοινοβίους καθὼς προσέταξε γενοmicroένουςrdquo (Iambl VP 29) Com o nuacutemero de 600 concorda Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 15) Jaacute para Apolocircnio de Tiana o nuacutemero era ainda mais restrito limitando-se a 300 (FGrHist 1064 F 254)

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Caraacuteter elitaacuterio A tradiccedilatildeo anteriormente referida dos discursos puacuteblicos de Pi-

taacutegoras por ocasiatildeo de sua chegada em Crotona (Porph VP 20 Iambl VP 30) e que

resulta na adesatildeo dos seiscentos poderia sugerir que fazer parte da comunidade e ter

acesso aos seus ensinamentos fosse algo faacutecil Uma tradiccedilatildeo de Antifonte citada por

Porfiacuterio (VP 9) recorda que ainda em Samos Pitaacutegoras teria fundado um didaskaleiacute-

on uma escola chamada de hemiciclo de Pitaacutegoras que reunia os que discutiam sobre

negoacutecios puacuteblicos Ele proacuteprio todavia refugiava-se em um aacutentros uma gruta onde

poderia consagrar-se exclusivamente agrave filosofia a sugerir que este caraacuteter elitaacuterio e ex-

clusivo da comunidade pitagoacuterica estaria presente jaacute mesmo nos anos iniciais da forma-

ccedilatildeo de Pitaacutegoras

O mesmo caraacuteter exclusivista pode ser observado no riacutegido criteacuterio de admissatildeo

agrave proacutepria comunidade marcado por um periacuteodo probatoacuterio de dokimasiacutea

Quando alguns jovens chegavam com o desejo de conviver com ele natildeo os admitia imediatamente esperando que fossem examinados e julgados Primeiramente inteirava-se das relaccedilotildees que eles mantive-ram com seus genitores e os outros parentes antes de se aproximarem a ele depois verificava quem entre eles ria de maneira desconvenien-te calava ou falava de modo despropositado e ainda quais eram suas paixotildees quem eram seus parentes que relaccedilotildees mantinham com estes a que atividades dedicavam a maior parte do dia e qual era o motivo de sua alegria e dor [] Aqueles que superavam este exame eram desprezados por trecircs anos com a intenccedilatildeo de colocar agrave prova sua fir-meza e real amor pelo conhecimento [] Apoacutes esse periacuteodo impunha aos aspirantes um silecircncio de cinco anos para testar sua continecircncia Pois de todas as provas de autocontrole aquela de frear a liacutengua eacute cer-tamente a mais dura como bem demonstram os fundadores dos ritos misteacutericos (Iambl VP 71-72)157

A fonte da qual bebem tanto Porfiacuterio como Jacircmblico para estas referecircncias ao

biacuteos pitagoacuterico eacute Nicocircmaco A suspeita de que essa extrema rigidez da organizaccedilatildeo do

acesso agrave comunidade pitagoacuterica (trecircs anos de descaso aos quais eram seguidos mais

157 Orig ldquo προσιόντων τῶν νεωτέρων καὶ βουλοmicroένων συνδιατρίβειν οὐκ εὐθὺς συνεχώρει microέχρις ἂν αὐτῶν τὴν δοκιmicroασίαν καὶ τὴν κρίσιν ποιήσηται πρῶτον microὲν πυνθανόmicroενος πῶς τοῖς γονεῦσι καὶ τοῖς οἰκείοις τοῖς λοιποῖςπάρεισιν ὡmicroιληκότες ἔπειτα θεωρῶν αὐτῶν τούς τε γέλωτας τοὺς ἀκαίρους καὶ τὴν σιωπὴν καὶ τὴν λαλιὰν παρὰ τὸ δέον ἔτι δὲ τὰς ἐπιθυmicroίας τίνες εἰσὶ καὶ τοὺς γνωρίmicroους οἷς ἐχρῶντο καὶ τὴν πρὸς τούτους ὁmicroιλίαν καὶ πρὸς τίνι microάλιστα τὴν ἡmicroέραν σχολάζουσι καὶ τὴν χαρὰν καὶτὴν λύπην ἐπὶ τίσι τυγχάνουσι ποιούmicroενοι []ἠθῶν ἐν τῇ ψυχῇ καὶ ὅντινα δοκιmicroάσειεν οὕτως ἐφίειτριῶν ἐτῶν ὑπερο-ρᾶσθαι δοκιmicroάζων πῶς ἔχει βεβαιότητος καὶ ἀληθινῆς φιλοmicroαθείας [] microετὰ δὲ τοῦτο τοῖς προσιοῦσι προσέταττε σιωπὴν πενταετῆ ἀποπειρώmicroενος πῶς ἐγκρατείας ἔχουσιν ὡς χαλεπώτερον τῶν ἄλλων ἐγκ-ρατευmicroάτων τοῦτο τὸ γλώσσης κρατεῖν καθὰ καὶ ὑπὸ τῶν τὰ microυστήρια νοmicroοθετησάντων ἐmicroφαίνεται ἡmicroῖνrdquo (Iambl VP 71-72)

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cinco de silecircncio) seja na realidade uma retroprojeccedilatildeo dele eacute levantada tanto por Von

Fritz (1940 220) como por Philip (1966 140) E todavia haacute paralelo testemunho em

Dioacutegenes Laeacutercio (VIII 10) cuja fonte seria desta vez Timeu que confirmaria uma pro-

vaacutevel antiguidade do testemunho

[Seus disciacutepulos] permaneciam em silecircncio por cinco anos limitando-se a escutar seus discursos sem nunca ver Pitaacutegoras ateacute que natildeo supe-rassem a prova a partir desse momento tornavam-se parte de sua casa e eram admitidos agrave sua presenccedila (D L Vitae VIII 10)158

Vida em comum (cenoacutebio) e comunhatildeo dos bens O testemunho acima citado eacute

rico de outros sinais sectaacuterios como o do sigilo e de maneira especial da comunhatildeo

dos bens A mesma passagem de Jacircmblico acima citada referida agrave dokimasiacutea dos jovens

aspirantes detalha as modalidades dessa partilha

Nesse periacuteodo os bens de cada um isto eacute suas propriedades eram co-locadas em comum e confiadas aos membros notaacuteveis da comunidade encarregados disso chamados poliacuteticos alguns deles eram adminis-tradores outros legisladores (Iambl VP 72)159

O testemunho mais antigo da comunhatildeo dos bens parece ser novamente o de

Timeu um escoacutelio ao Fedro (Schol In Phaedr 279c) corresponde literalmente a uma

passagem do livro IX de Timeu

Ora quando os jovens vinham ateacute ele e queriam viver com ele natildeo lhes permitia fazecirc-lo mas respondia que era necessaacuterio que colocas-sem em comum seus bens (Schol In Phaedr 279c = FGrHist 566 F 13)160

158 Orig ldquo πενταετίαν θrsquo ἡσύχαζον microόνον τῶν λόγων κατακούοντες καὶ οὐδέπω Πυθαγόραν ὁρῶντες εἰς ὃ δοκιmicroασθεῖενmiddot τοὐντεῦθεν δrsquo ἐγίνοντο τῆς οἰκίας αὐτοῦ καὶ τῆς ὄψεως microετεῖχονrdquo (D L Vitae VIII 10) Cf para esta referecircncia Centrone (1996 74) 159 Orig ldquo ἐν δὴ τῷ χρόνῳ τούτῳ τὰ microὲν ἑκάστου ὑπάρχοντα τουτέστιν αἱ οὐσίαι ἐκοινοῦντο διδόmicroενα τοῖς ἀποδεδειγmicroένοις εἰς τοῦτο γνωρίmicroοις οἵπερ ἐκαλοῦντο πολιτικοί καὶ οἰκονοmicroικοί τινες καὶ νοmicroοθετ-ικοὶ ὄντεςrdquo (Iambl VP 72) 160 Orig ldquoπροσιόντων δrsquo οὖν αὐτῷ τῶν νεωτέρων καὶ βουλοmicroένων συνδιατρίβειν οὐκ εὐθὺς συνεχώρησ-εν ἀλλrsquo ἔφη δεῖν καὶ τὰς οὐσίας κοινὰς εἶναι τῶν ἐντυγχανόντωνrdquo (Schol In Phaedr 279c = FGrHist 566 F 13)

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Trata-se aqui do ceacutelebre dito koinagrave tagrave phiacutelocircn (ou koinagrave tagrave tocircn phiacutelocircn) que apare-

ce referido aos pitagoacutericos por Platatildeo161 Natildeo procede a observaccedilatildeo de Philip (1966

142) pela qual em Aristoacuteteles ao contraacuterio ldquoseu significado eacute bastante natildeo pitagoacutericordquo

(its meaning is quite un-Pythagoreanrdquo) o trecho da Eacutetica Nicomaqueia por ele citado

(EN 1159b 25-32) ao contraacuterio ainda que sem uma referecircncia direta agrave origem pitagoacuteri-

ca do dito insere o koinagrave tagrave phiacutelocircn no interior de uma discussatildeo de marco notadamente

pitagoacuterico sobre a comunidade de amigos como promotora de justiccedila e por consequecircn-

cia em evidente sentido econocircmico

Parece portanto conforme dissemos no iniacutecio que amizade e justiccedila digam respeito agraves mesmas coisas e se deem entre as mesmas pessoas De fato em cada comunidade parece haver algo de justo e amizade Assim chamam-se amigos os companheiros de navegaccedilatildeo e de armas e da mesma maneira aqueles que fazem parte de outras comunidades Conforme participam da comunidade haacute amizade e tambeacutem justiccedila E diz bem o proveacuterbio ldquoas coisas dos amigos satildeo comunsrdquo pois a ami-zade estaacute na comunidade (EN 1159b 25-32)162

Natildeo por acaso diversos autores utilizaram a expressatildeo comunismo ainda que

muitas vezes entre aspas considerando o evidente anacronismo do termo ndash para indicar

essa praacutetica do mote koinagrave tagrave phiacutelocircn entre os pitagoacutericos163 Essa mesma relaccedilatildeo entre

phiacuteloi e diacutekaion eacute encontrada em Platatildeo que por outro lado natildeo tem duacutevidas em referir

o dito diretamente aos pitagoacutericos Natildeo casualmente essa ligaccedilatildeo entre pitagorismo e a

philiacutea aparece em um passo central de Repuacuteblica No comeccedilo do livro V (449c) Adi-

manto a convite de Polemarco repreende Soacutecrates por ter deixado de lado em sua ar-

gumentaccedilatildeo sobre a cidade justa e perfeita o problema levantado pelo dito koinaacute tagrave phiacute-

locircn aplicado a mulheres e filhos fazendo assim surgir a suspeita de querer fugir da

questatildeo

161 Cf as referecircncias aos passos platocircnicos nos paraacutegrafos imediatamente a seguir 162 Orig ldquoἜοικε δέ καθάπερ ἐν ἀρχῇ εἴρηται περὶ ταὐτὰ καὶ ἐν τοῖς αὐτοῖς εἶναι ἥ τε φιλία καὶ τὸ δίκα-ιον ἐν ἁπάσῃ γὰρ κοινωνίᾳ δοκεῖ τι δίκαιον εἶναι καὶ φιλία δέmiddot προσαγορεύουσι γοῦν ὡς φίλους τοὺς σύmicroπλους καὶ τοὺς συστρατιώτας ὁmicroοίως δὲ καὶ τοὺς ἐνταῖς ἄλλαις κοινωνίαις καθrsquoὅσον δὲ κοινωνοῦσ-ιν ἐπὶ τοσοῦτόν ἐστι φιλίαmiddot καὶ γὰρ τὸ δίκαιον καὶ ἡ παροιmicroία ldquoκοινὰ τὰ φίλωνrdquo ὀρθῶςmiddot ἐν κοινωνίᾳ γὰρ ἡ φιλίαrdquo (Arist EN 1159b 25-32) 163 Entre eles Minar (1942 29 32 35) Conybeare em sua traduccedilatildeo da Vida de Apolocircnio de Tiana de Filostrato (1948-50) e Burkert (1982 15)

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Parece-nos que vocecirc esteja querendo se safar rapidamente roubando uma parte inteira do discurso (e natildeo certamente a menor) para natildeo ter que discuti-lo que tenha pensado em fugir deixando cair de leve a-quele dito pelo qual com relaccedilatildeo agraves mulheres e agraves crianccedilas para todos deveria ser evidente que tudo deve ser em comum entre os amigos (Resp V 449c)164

O dito introduzido phaulocircs de leve no livro IV (424a) requer ao contraacuterio ndash ao

dizer de Adimanto ndash uma explicaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao troacutepos tecircs koinoniacuteas (V 449d) ao

tipo aos modos dessa comunhatildeo Dessa forma Soacutecrates passaraacute a representar em deta-

lhes o gynaikeiacuteon draacutema da cidade O leacutexico dessa paacutegina eacute impregnado de pitagorismo

tanto a comunhatildeo dos bens (e de mulheres e filhos) como a importacircncia da escuta co-

mo caracteriacutestica do biacuteos e da cidade justa remetem imediatamente para as caracteriacutesti-

cas da vida pitagoacuterica apontadas pela tradiccedilatildeo165

As modalidades da comunhatildeo dos bens deviam alcanccedilar articulaccedilatildeo maior do

que a da simples organizaccedilatildeo da partilha dos bens em comunidades de vida cenobiacutetica

Eacute certamente o que sugere o caso de Cliacutenias de Tarento e Proros de Cirene

Narra-se que Cliacutenias de Tarento quando soube que Proros de Cirene um seguidor da doutrina pitagoacuterica estava correndo o risco de perder seu patrimocircnio recolheu uma soma de dinheiro e embarcou em dire-ccedilatildeo a Cirene colocando em ordem os negoacutecios de Proros sem impor-tar-se natildeo somente com suas perdas financeiras como tambeacutem com os perigos da navegaccedilatildeo (Iambl VP 239)166

A anedota revelaria mais uma vez a radicalidade desta comunhatildeo

Como tambeacutem a histoacuteria edificante de um pitagoacuterico que havia ficado gravemen-

te doente durante longa viagem Ao dono da pensatildeo que o hospedava em seus uacuteltimos

dias de vida e que cuidava dele com grande generosidade o pitagoacuterico apoacutes ter gravado

um siacutembolo sobre uma tabuinha

Pediu que o pendurasse fora da porta da pensatildeo e que ficasse atento 164 Orig ldquo πορρᾳθυmicroεῖν ἡmicroῖν δοκεῖς ἔφη καὶ εἶδος ὅλον οὐ τὸ ἐλάχιστον ἐκκλέπτειν τοῦ λόγου ἵνα microὴ διέλθῃς καὶ λήσειν οἰηθῆναι εἰπὼν αὐτὸ φαύλως ὡς ἄρα περὶ γυναικῶν τε καὶ παίδων παντὶ δῆλον ὅτι κοινὰ τὰ φίλων ἔσταιrdquo (Resp V 449c) 165 Platatildeo refere o dito aos pitagoacutericos tambeacutem em Lisis 207c e Leis 739c 166 Orig ldquo Κλεινίαν γε microὴν τὸν Ταραντῖνόν φασι πυθόmicroενον ὡς Πρῶρος ὁ Κυρηναῖος τῶν Πυθαγόρου λόγων ζηλωτὴς ὤν κινδυνεύοι περὶ πάσης τῆς οὐσίας συλλεξάmicroενον χρήmicroατα πλεῦσαι ἐπὶ Κυρήνης καὶ ἐπανορθώσασθαι τὰ Πρώρου πράγmicroατα microὴ microόνον τοῦ microειῶσαι τὴν ἑαυτοῦ οὐσίαν ὀλιγωρήσαντα ἀλλὰ microηδὲ τὸν διὰ τοῦ πλοῦ κίνδυνον περιστάνταrdquo (Iambl VP 239)

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caso algum transeunte reconhecesse o sinal pois nesse caso esta pes-soa reembolsaria a ele todas as despesas e o agradeceria por sua conta Quando o hoacutespede morreu o dono da pensatildeo o sepultou e cuidou com toda cura do caixatildeo ndash sem preocupar-se com as despesas ou em rece-ber algum reconhecimento de quem eventualmente fosse identificar a tabuinha E todavia por curiosidade com relaccedilatildeo agrave ordem recebida quis colocaacute-la agrave prova expondo a tabuinha para que pudesse ficar sempre visiacutevel Muito tempo depois um pitagoacuterico que passava por laacute reconheceu o siacutembolo Perguntou entatildeo o que havia acontecido e deu para o dono da pensatildeo uma quantia muito maior daquela que foi de-sembolsada (Iambl VP 238)167

A histoacuteria natildeo diz de que siacutembolo se trata Todavia com base em uma paacutegina de

Luciano (Jacobiz I 330) apreendemos que o sinal de reconhecimento dos pitagoacutericos

era o pentagrama sendo utilizado ateacute mesmo como assinatura em suas cartas168 Essas

histoacuterias satildeo facilmente dataacuteveis em eacutepoca tardia Ainda assim referem-se a uma tradi-

ccedilatildeo jaacute antiga e que devia ser muito forte resistindo como memoacuteria da centralidade da

comunhatildeo de bens entre os pitagoacutericos

A amizade pitagoacuterica O tema da philiacutea eacute presente desde aqueles que satildeo consi-

derados os primeiros discursos puacuteblicos de Pitaacutegoras os ceacutelebres quatro loacutegoi proferi-

dos quando de sua chegada em Crotona Entre outros no Primeiro Discurso dirigido

aos jovens Pitaacutegoras os exorta a cuidar bem dos amigos

Afirmava que teriam sucesso se mesmo nas relaccedilotildees entre eles se comportassem deixando claro que natildeo seriam nunca hostis aos proacute-prios amigos ao contraacuterio estariam prontos a qualquer momento a se tornarem quanto antes amigos de seus proacuteprios inimigos (Iambl VP 40)169

167 Orig ldquo ἐπειδὴ δὲ κρείττων ἦν ἡ νόσος τὸν microὲν ἀποθνῄσκειν ἑλόmicroενον γράψαι τι σύmicroβολον ἐν πίνακι καὶ ἐπιστεῖλαι ὅπως ἄν τι πάθοι κριmicroνὰς τὴν δέλτον παρὰ τὴν ὁδὸν ἐπισκοπῇ εἴ τις τῶν παριόντων ἀναγνωριεῖ τὸ σύmicroβολονmiddot τοῦτον γὰρ ἔφη αὐτῷ ἀποδώσειν τὰ ἀναλώmicroατα ἅπερ εἰς αὐτὸν ἐποιήσατο καὶ χάριν ἐκτίσειν ὑπὲρ ἑαυτοῦ τὸν δὲ πανδοχέα microετὰ τὴν τελευτὴν θάψαι τε καὶ ἐπιmicroεληθῆναι τοῦ σώmicroατος αὐτοῦ microὴ microέντοι γε ἐλπίδας ἔχειν τοῦ κοmicroίσασθαι τὰ δαπανήmicroατα microή τί γε καὶ πρὸς εὖ παθεῖν πρός τινος τῶν ἀναγνωριούντων τὴν δέλτον ὅmicroως microέντοι διαπειρᾶσθαι ἐκπεπληγmicroένον τὰς ἐντολὰς ἐκτιθέναι τε ἑκάστοτε εἰς τὸ microέσον τὸν πίνακα χρόνῳ δὲ πολλῷ ὕστερον τῶν Πυθαγορικῶν τινὰ παριόντα ἐπιστῆναί τε καὶ microαθεῖν τὸν θέντα τὸ σύmicroβολον ἐξετάσαι τε τὸ συmicroβὰν καὶ τῷ πανδοχεῖ πολλῷ πλέον ἀργύριον ἐκτῖσαι τῶν δεδαπανηmicroένωνrdquo (Iambl VP 238) 168 Cf para esta tradiccedilatildeo tambeacutem Jacircmblico (Iambl VP 88) em relaccedilatildeo ao fato que teria sido exatamente a revelaccedilatildeo do segredo do pentagrama a fazer Hipaso merecer a expulsatildeo da comunidade 169 Orig ldquo ἀπεφαίνετο δὲ καὶ ταῖς πρὸς ἀλλήλους ὁmicroιλίαις οὕτως ἂν χρωmicroένους ἐπιτυγχάνειν ὡς microέλλου-σι τοῖς microὲν φίλοις microηδέποτε ἐχθροὶ καταστῆναι τοῖς δὲ ἐχθροῖς ὡς τάχιστα φίλοι γίνεσθαιrdquo (Iambl VP 40) Cf o que foi dito acima em relaccedilatildeo ao valor dos discursos como testemunhos da fundaccedilatildeo da comu-nidade pitagoacuterica especialmente em relaccedilatildeo aos estudos neste sentido de Rostagni (1922) e De Vogel (1966) No entanto com a necessaacuteria prudecircncia acima indicada

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A discussatildeo pitagoacuterica sobre a philiacutea extrapola o acircmbito da gestatildeo da vida co-

munitaacuteria para alcanccedilar o patamar de um conceito-chave para a compreensatildeo de toda a

realidade Um exemplo disso eacute o testemunho de Jacircmblico (Iambl VP 229-230 VP 69-

70) que enumera os seis aspectos da philiacutea ensinada por Pitaacutegoras dos deuses para com

os homens das doutrinas entre elas da alma com o corpo dos homens entre eles e com

os animais e do corpo mortal em si mesmo170

Por ser tatildeo proverbial esta philiacutea entre os pitagoacutericos mereceu diversas histoacuterias

que beiram o lendaacuterio mas que ainda assim satildeo significativas para compreender a eacutetica

da philiacutea que regia as comunidades pitagoacutericas uma das mais significativas eacute certamen-

te aquela lembrada por Aristoacutexeno da prova radical da amizade entre dois pitagoacutericos

Fintias e Damon planejada pelo tirano de Siracusa Dioniso Aristoxeno afirma tecirc-la

ouvido da boca do proacuteprio tirano que ndash caiacutedo em desgraccedila ndash foi ser professor em Corin-

to

Um dia Dioniso quis colocaacute-los agrave prova pois alguns asseguravam que se os tivesse preso e aterrorizado natildeo teriam permanecido fieacuteis uns aos outros Ele entatildeo agiu da seguinte forma Fintias foi preso e con-duzido na frente do tirano que o acusou de conspiraccedilatildeo contra ele a-crescentando que o fato jaacute havia sido comprovado e que portanto o condenaria agrave pena capital Fintias respondeu ldquose assim decidiste me

170 Iambl (VP 229-230) ldquoPitaacutegoras ensinou com muita clareza a φιλία de todos para com todos a come-ccedilar pela φιλία 1) dos deuses para com os homens por meio da piedade e de um culto baseado no conhe-cimento 2) das doutrinas entre elas 3) em geral da alma com o corpo e da parte racional da alma com a parte irracional graccedilas agrave filosofia e agrave contemplaccedilatildeo que lhe eacute proacutepria 4) dos homens entre eles dos cida-datildeos pela estrita observacircncia da lei entre seres humanos de diversas etnias por meio do correto conheci-mento da natureza [humana] do homem para com a mulher ou filhos ou irmatildeos ou parentes por meio de uma comunhatildeo indestrutiacutevel em resumo φιλία de todos para com todos e ateacute 5) de alguns animais irra-cionais por causa de um sentimento de justiccedila e de uma natural proximidade e solidariedade 6) enfim do corpo mortal com si mesmo pacificaccedilatildeo e conciliaccedilatildeo das forccedilas contraacuterias que nele se escondem por meio da sauacutede e do regime [de vida] que a essa tende e temperacircncia por meio da imitaccedilatildeo da condiccedilatildeo de bem-estar que caracteriacuteza os elementos celestiais O fato de uma uacutenica e soacute ser a palavra que tudo isso compreende isto eacute φιλία eacute opiniatildeo corrente que foi Pitaacutegoras a descobri-lo e tornaacute-lo lei este ensinava a seus disciacutepulos uma φιλία tatildeo maravilhosa que ateacute hoje muitos dizem a respeito daqueles que satildeo ligados entre si por uma reciacuteproca benevolecircncia tratar-se de pitagoacutericosrdquo Orig ldquo Φιλίαν δὲ διαφανέστατα πάντ-ων πρὸς ἅπαντας Πυθαγόρας παρέδωκε θεῶν microὲν πρὸςἀνθρώπους διrsquo εὐσεβείας καὶ ἐπιστηmicroονικῆς θερ-απείας δογmicroάτων δὲ πρὸς ἄλληλα καὶ καθόλου ψυχῆς πρὸς σῶmicroα λογιστικοῦ τε πρὸς τὰ τοῦ ἀλόγου εἴδη διὰ φιλοσοφίας καὶ τῆς κατrsquo αὐτὴν θεωρίας ἀνθρώπων δὲ πρὸς ἀλλήλους πολιτῶν microὲν διὰ νοmicroιmicroότητος ὑγιοῦς ἑτεροφύλων δὲ διὰ φυσιολογίας ὀρθῆς ἀνδρὸς δὲ πρὸς γυναῖκα ἢ τέκνα ἢ ἀδελφοὺς καὶ οἰκείους διὰ κοινωνίας ἀδιαστρόφου συλλήβδην δὲ πάντων πρὸς ἅπαντας καὶ προσέτι τῶν ἀλόγων ζῴων τινὰ διὰ δικαιοσύνης καὶ φυσικῆς ἐπιπλοκῆς καὶ κοινότητος σώmicroατος δὲ καθrsquoἑαυτὸ θνητοῦ τῶν ἐγκεκρυmicromicroένων αὐτῷ ἐναντίων δυνάmicroεων εἰρήνευσίν τε καὶ συmicroβιβασmicroὸν διrsquo ὑγείας καὶ τῆς εἰς ταύτην διαίτης καὶ σωφρ-οσύνης κατὰ microίmicroησιν τῆς ἐν (230) τοῖς κοσmicroικοῖς στοιχείοις εὐετηρίας ἐν πᾶσι δὴ τούτοις ἑνὸς καὶ τοῦ αὐτοῦ κατὰ σύλληψιν τοῦ τῆς φιλίας ὀνόmicroατος ὄντος εὑρετὴς καὶ νοmicroοθέτης ὁmicroολογουmicroένως Πυθαγόρας ἐγένετο καὶ οὕτω θαυmicroαστὴν φιλίαν παρέδωκε τοῖς χρωmicroένοις ὥστε ἔτι καὶ νῦν τοὺς πολλοὺς λέγειν ἐπὶ τῶν σφοδρότερον εὐνοούντων ἑαυτοῖς ὅτι τῶν Πυθαγορείων εἰσίrdquo (Iambl VP 229-230)

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seja ao menos concedido o restante deste dia para acertar meus negoacute-cios e aquele de Damon (era de fato companheiro e soacutecio dele e como mais idoso havia tomado conta de seus negoacutecios) Fintias portanto pedia para ser deixado ir e oferecia Damon como fiador [para ficar no lugar dele] Dioniso concordou e foi chamado Damon que ao saber o que havia ocorrido aceitou imediatamente ser fiador de Fintias e ficou esperando este voltar (61) Dioniso de sua parte havia ficado impres-sionado com o ocorrido enquanto aqueles que haviam inicialmente proposto a prova zombavam de Damon dizendo que seria ali abando-nado Mas ao pocircr do sol Fintias chegou pronto para morrer E todos ficaram maravilhados Dioniso de sua parte abraccedilou afetuosamente os dois e pediu para ser acolhido como terceiro na philiacutea deles (Porph VP 60-61)171

Portanto a insistecircncia da tradiccedilatildeo eacute para com a proverbial fidelidade da philiacutea

pitagoacuterica Outra narrativa que representa bem esta fidelidade ao amigo mas que Rohde

(1872 50) define simplesmente boba (eine alberne Geschichte) eacute a da philiacutea entre Liacutesis

e Euriacutefamo

Quanto aos pactos estabelecidos Pitaacutegoras preparou com tamanha efi-caacutecia seus disciacutepulos para respeitaacute-los sinceramente que se narra que uma vez Liacutesis saindo do tempo de Hera apoacutes ter feito suas oraccedilotildees encontrou Euriacutefamo de Siracusa seu companheiro que por sua vez es-tava entrando no templo Por ter este uacuteltimo solicitado a ele que o a-guardasse enquanto realizava suas oraccedilotildees Liacutesis sentou-se em um banco de pedra proacuteximo agrave saiacuteda do templo Apoacutes as oraccedilotildees Euriacutefa-mo imerso em seus pensamentos e tomado como estava por uma pro-funda reflexatildeo saiu do templo por outra porta Liacutesis de sua parte permaneceu imoacutevel esperando durante o dia todo e a noite inteira e boa parte do dia seguinte E provavelmente teria ficado muito mais se no dia seguinte Euriacutefamo que se havia dirigido ao auditoacuterio natildeo se tivesse recordado do fato apoacutes ouvir que Liacutesias estava cercado de companheiros da comunidade Somente entatildeo foi encontraacute-lo este conforme o pacto estava esperando por ele Levou-o embora expli-cando assim o motivo de seu esquecimento ldquofoi um deus a causar em

171 Orig ldquo βουλόmicroενος οὖν ποτε ∆ιονύσιος πεῖραν αὐτῶν λltαβεῖνgt διαβε βαιουmicroένων τινῶν ὡς συλληφ-θέντες καὶ φοβηθέντες οὐκ ἐmicromicroενοῦσι τῇ πρὸς ἀλλήλους πίστει τάδrsquo ἐποίησεν συνελήφθη microὲν Φιντίας καὶ ἀνήχθη πρὸς τὸν τύραννον κατηγορεῖν δrsquo αὐτοῦ ∆ιονύσιον ὡς ἐπιβουλεύοντος αὐτῷmiddot καὶ δὴ τοῦτο ἐξεληλέγχθαι κεκρίσθαι τrsquo ἀποθνῄσκειν αὐτόν τὸν δέ ἐπεὶ οὕτως αὐτῷ δέδοκται εἰπεῖν δοθῆναί γε τὸ λοιπὸν τῆς ἡmicroέρας ὅπως οἰκονοmicroήσηται τά τε καθrsquo ἑαυτὸν καὶ τὰ κατὰ ∆άmicroωναmiddot εἶναι γὰρ αὐτῷ ἑταῖρον καὶ κοινωνόνmiddot πρεσβύτερον δrsquoαὐτὸνgt ὄντα πολλὰ τῶν περὶ τὴν οἰκονοmicroίαν εἰς αὑτὸν ἀνειληφέναι ἠξίου δrsquo ἀφεθῆναι ἐγγυητὴν παρασχὼν τὸν ∆άmicroωνα συγχωρήσαντος δὲ τοῦ ∆ιονυσίου microεταπεmicroφθεὶς ὁ ∆άmicroων καὶ τὰ συmicroβάντα αὑτὸν ἀνειληφέναι ἠξίου δrsquo ἀφεθῆναι ἐγγυητὴν παρασχὼν τὸν ∆άmicroωνα συγχωρήσαντ-ος δὲ τοῦ ∆ιονυσίου microεταπεmicroφθεὶς ὁ ∆άmicroων καὶ τὰ συmicroβάντα ἀκούσας ἐνεγγυήσατο καὶ ἔmicroεινεν ἕως ἂν ἐπανέλθῃ (61) ὁ Φιντίας ὁ microὲν οὖν ∆ιονύσιος ἐξεπλήττετο ἐπὶ τοῖς γιγνοmicroένοις ἐκείνους δὲ τοὺς ἐξ ἀρχ-ῆς εἰσαγαγόντας τὴν διάπειραν τὸν ∆άmicroωνα χλευάζειν ὡς ἐγκαταλειφθησόmicroενον ὄντος δὲ τοῦ ἡλίου περὶ δυσmicroὰς ἥκειν τὸν Φιντίαν ἀποθανούmicroενον ἐφrsquo ᾧ πάντας ἐκπλαγῆναι ∆ιονύσιον δὲ περιβαλόντα καὶ φιλήσαντα τοὺς ἄνδρας ἀξιῶσαι τρίτον αὑτὸν εἰς τὴν φιλίαν παραδέξασθαι τοὺς δὲ microηδενὶ τρόπῳ καίτοι πολλὰ λιπαροῦντος αὐτοῦ συγκαταθεῖναι εἰς τοιοῦτοrdquo (Porph VP 60-61)

93

mim este esquecimento para que pudesse colocar agrave prova tua firmeza em observar os pactosrdquo (Iambl VP 185)172

Por traacutes da anedota esconde-se certamente a memoacuteria da dimensatildeo incondicio-

nal da fidelidade na philiacutea pitagoacuterica que instaura uma identidade de grupo tatildeo forte a

ponto de configurar as relaccedilotildees a partir da alternativa noacutes e eles e tornar-se proverbial

no mundo antigo

Vinganccedila contra os apoacutestatas Eacute com toda probabilidade novamente Timeu a

descrever no trecho imediatamente sucessivo agravequele acima citado em relaccedilatildeo ao criteacuterio

de admissatildeo e agraves formas da dokimasiacutea os procedimentos de expulsatildeo dos apoacutestatas isto

eacute dos que por algum motivo traindo as regras do biacuteos eram excluiacutedos da koinoniacutea

No caso em que fossem recusados recuperavam em dobro seus per-tences enquanto ldquoaqueles que ouviam juntosrdquo (homakooiacute) como eram chamados todos os seguidores de Pitaacutegoras levantavam para eles uma laacutepide fuacutenebre como se fossem mortos [] Se em outra ocasiatildeo acon-tecia de encontrar quem havia sido recusado o consideravam como um estranho qualquer e natildeo como um companheiro pois havia morri-do para eles (Iambl VP 73-4)173

Tratava-se de uma exclusatildeo definitiva portanto que natildeo previa evidentemente

alguma possibilidade de volta como eacute indicado inconstestavelmente pela comparaccedilatildeo

com a proacutepria morte

Modos alternativos A vida cotidiana na comunidade pitagoacuterica previa uma or-

ganizaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo pouco comuns para os padrotildees da eacutepoca A descriccedilatildeo

mais coerente desta pode ser encontrada em Jacircmblico

172 Orig ldquo πρός γε microὴν συνταγὰς καὶ τὸ ἀψευδεῖν ἐν αὐταῖς οὕτως εὖ παρεσκεύαζε τοὺς ὁmicroιλητὰς Πυθαγ-όρας ὥστε φασί ποτε Λῦσιν προσκυνήσαντα ἐν Ἥρας ἱερῷ καὶ ἐξιόντα συντυχεῖν Εὐρυφάmicroῳ Συρακουσ-ίῳ τῶν ἑταίρων τινὶ περὶ τὰ προπύλαια τῆς θεοῦ εἰσιόντι προστάξαντος δὲ τοῦ Εὐρυφάmicroου προσmicroεῖναι αὐτόν microέχρις ἂν καὶ αὐτὸς προσκυνήσας ἐξέλθῃ ἑδρασθῆναι ἐπί τινι λιθίνῳ θώκῳ ἱδρυmicroένῳ αὐτόθι ὡς δὲ προσκυνήσας ὁ Εὐρύφαmicroος καὶ ἔν τινι διανοήmicroατι καὶ βαθυτέρᾳ καθrsquo ἑαυτὸν ἐννοίᾳ γενόmicroενος διrsquo ἑτέρου πυλῶνος ἐκλαθόmicroενος ἀπηλλάγη τό τε τῆς ἡmicroέρας λοιπὸν καὶ τὴν ἐπιοῦσαν νύκτα καὶ τὸ πλέον microέρος ἔτι τῆς ἄλλης ἡmicroέρας ὡς εἶχεν ἀτρέmicroας προσέmicroενεν ὁ Λῦσις καὶ τάχα ἂν ἐπὶ πλείονα χρόνον αὐτοῦ ἦν εἰ microή περ ἐν τῷ ὁmicroακοείῳ τῆς ἑξῆς ἡmicroέρας γενόmicroενος ὁ Εὐρύφαmicroος καὶ ἀκούσας ἐπιζητουmicroένου πρὸς τῶν ἑταίρων τοῦ Λύσιδος ἀνεmicroνήσθη καὶ ἐλθὼν αὐτὸν ἔτι προσmicroένοντα κατὰ τὴν συνθήκην ἀπήγαγε τὴν αἰτίαν εἰπὼν τῆς λήθης καὶ προσεπιθεὶς ὅτι ταύτην δέ microοι θεῶν τις ἐνῆκε δοκίmicroιον ἐσοmicroένην τῆς σῆς περὶ συνθήκας εὐσταθείαςrdquo (Iambl VP 185) 173 Orig ldquo εἰ δrsquo ἀποδοκιmicroασθείησαν τὴν microὲν οὐσίαν ἐλάmicroβανον διπλῆν microνῆmicroα δὲ αὐτοῖς ὡς νεκροῖς ἐχώννυτο ὑπὸ τῶν ὁmicroακόων οὕτω γὰρ ἐκαλοῦντο πάντες οἱ περὶ τὸν ἄνδρα []καὶ εἴ ποτε συντύχοιεν ἄλλως αὐτῷ πάντα ὁντινοῦν microᾶλλον ἢ ἐκεῖνον ἡγοῦντο εἶναι τὸν κατrsquo αὐτοὺς τεθνηκόταrdquo (Iambl VP 73-4)

94

Na parte da manhatilde realizavam passeios solitaacuterios em lugares onde houvesse quietude e tranquilidade como templos e bosques e algo que alegrasse o espiacuterito Estavam de fato convencidos de que natildeo se devia encontrar ningueacutem antes de ter arrumado a alma e ordenado o pensamento [] Depois do passeio matutino reuniam-se entre eles normalmente em santuaacuterios ou em lugares de natureza semelhante Dedicavam estas ocasiotildees ao ensino e agrave aprendizagem e agrave correccedilatildeo do caraacuteter Em seguida dedicavam-se agrave cura de seus proacuteprios corpos [] No almoccedilo comiam patildeo mel mel misturado com cera e natildeo toma-vam vinho ao longo do dia Dedicavam as horas da tarde aos negoacutecios poliacuteticos tanto os internos quanto os externos [] Ao aproximar-se do entardecer voltavam a fazer os passeios todavia natildeo sozinhos como de manhatilde e sim em grupos de dois ou trecircs relembrando as coi-sas aprendidas e exercitando-se com belas ocupaccedilotildees Depois do pas-seio tomavam banho e se dirigiam ao banquete comum [] Apoacutes o banquete ofereciam libaccedilotildees e acontecia a leitura [] Uma vez pro-nunciadas estas palavras cada um voltava para a sua proacutepria casa Vestiam vestes brancas e puras e usavam lenccediloacuteis tambeacutem brancos e puros de linho pois natildeo usavam peles (Iambl VP 96-100)174

A imagem cenobiacutetica tipicamente monaacutestica da vida pitagoacuterica pertence cer-

tamente a uma tradiccedilatildeo tardia provavelmente mediada pela tradiccedilatildeo estoica mediopla-

tocircnica obedecendo mais diretamente ao ideal de vida calma e transcorrida em lugares

bucoacutelicos do ideal da vida filosoacutefica heleniacutestica e depois imperial Chama especialmente

atenccedilatildeo a indicaccedilatildeo da leitura em comum mais bem especificada por Jacircmblico logo em

seguida (VP 104) com relaccedilatildeo ao que eacute chamado de didaskaliacutea diaacute tocircn syacutembolocircn isto eacute

da explicaccedilatildeo dos sinais uma forma de exegese que incluiria ao lado da praacutetica oral a

utilizaccedilatildeo de uma seacuterie de diferentes tipos de escritos desde anotaccedilotildees ateacute publicaccedilotildees

ecdoacuteticas Eacute obviamente impensaacutevel uma complexidade literaacuteria como esta para os seacute-

174 Passagem paralela em Porfiacuterio (VP 32) O testemunho eacute com toda probabilidade aristoxecircnico de maneira especial em sua parte final (Burkert 1982 16) Sobre a recepccedilatildeo de Aristoxeno da eacutetica pitagoacuteri-ca no quarto seacuteculo aEC e em acircmbito peripateacutetico cf os recentes estudos de Huffman (2006 2008) Orig ldquo τοὺς microὲν ἑωθινοὺς περιπάτους ἐποιοῦντο οἱ ἄνδρες οὗτοι κατὰ microόνας τε καὶ εἰς τοιούτους τόπους ἐν οἷς συνέβαινεν ἠρεmicroίαν τε καὶ ἡσυχίαν εἶναι σύmicromicroετρον ὅπου τε ἱερὰ καὶ ἄλση καὶ ἄλλη τις θυmicroηδία ᾤοντο γὰρ δεῖν microὴ πρότερόν τινι συντυγχάνειν πρὶν ἢ τὴν ἰδίαν ψυχὴν καταστήσουσι καὶ συναρmicroόσονται τὴν διάνοιαν [] microετὰ δὲ τὸν ἑωθινὸν περίπατον τότε πρὸς ἀλλήλους ἐνετύγχανον microάλιστα microὲν ἐν ἱεροῖς εἰ δὲ microή γε ἐν ὁmicroοίοις τόποις ἐχρῶντο δὲ τῷ καιρῷ τούτῳ πρός τε διδασκαλίας καὶ microαθήσεις καὶ πρὸς (97) τὴν τῶν ἠθῶν ἐπανόρθωσιν microετὰ δὲ τὴν τοιαύτην διατριβὴν ἐπὶ τὴν τῶν σωmicroάτων ἐτρέποντο θεραπ-είαν []ἀρίστῳ δὲ ἐχρῶντο ἄρτῳ καὶ microέλιτι ἢ κηρίῳ οἴνου δὲ microεθrsquo ἡmicroέραν οὐ microετεῖχον τὸν δὲ microετὰ τὸ ἄριστον χρόνον περὶ τὰς πολιτικὰς οἰκονοmicroίας κατεγίνοντο περί τε τὰς ἐξωτικὰς καὶ τὰς ξενικάς [] δείλης δὲ γινοmicroένης εἰς τοὺς περιπάτους πάλιν ὁρmicroᾶν οὐχ ὁmicroοίως κατrsquo ἰδίαν ὥσπερ ἐν τῷ ἑωθινῷ περιπάτῳ ἀλλὰ σύνδυο καὶ σύντρεις ποιεῖσθαι τὸν περίπατον ἀναmicroιmicroνησκοmicroένους τὰ microαθήmicroατα (98) καὶ ἐγγυmicroναζοmicroένους τοῖς καλοῖς ἐπιτηδεύmicroασι microετὰ δὲ τὸν περίπατον λουτρῷ χρῆσθαι λουσαmicroένους τε ἐπὶ τὰ συσσίτια ἀπαντᾶνmiddot [] (99) οὐ χρήσιmicroα πρὸς τὸ χρῆσθαι microετὰ δὲ τόδε τὸ δεῖπνον ἐγίνοντο σπονδαί ἔπειτα ἀνάγνωσις ἐγίνετο [] τούτων δὲ ῥηθέντων ἀπιέναι ἕκαστον εἰς οἶκον ἐσθῆτι δὲ χρῆσθαι λευκῇ καὶ καθαρᾷ ὡσαύτως δὲ καὶ στρώmicroασι λευκοῖς τε καὶ καθαροῖς εἶναι δὲ τὰ στρώmicroατα ἱmicroάτια λινᾶmiddot κῳδί-οις γὰρ οὐ χρῆσθαιrdquo (Iambl VP 96-100 passim)

95

culos VI e V aEC A imagem deveraacute portanto corresponder mais provavelmente agrave des-

criccedilatildeo de uma mesa de estudo da Biblioteca de Alexandria em eacutepoca heleniacutestica175

O vegetarianismo eacute certamente outro sinal de um estilo de vida culturalmente al-

ternativo dos pitagoacutericos Como vimos acima nos estudos de Detienne a dieta vegetari-

ana implica a recusa radical de uma praacutetica religiosa e social aquela do sacrifiacutecio ani-

mal que constitui um dos pilares da cultura grega antiga O vegetarianismo estaacute direta-

mente ligado agrave crenccedila na metempsicose e no parentesco universal entre todos os seres

viventes conforme mencionado no resumo inicial das doutrinas de Pitaacutegoras por Porfiacute-

rio (VP 19)

Algumas de suas [de Pitaacutegoras] afirmaccedilotildees ganharam notoriedade pra-ticamente geral 1) afirma que a alma eacute imortal 2) que transmigra em outras espeacutecies de seres vivos 3) que periodicamente o que jaacute acon-teceu uma vez volta a acontecer e nada eacute absolutamente novo e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gecircnero Ao que parece foi mesmo Pitaacutegoras a introduzir pela primeira vez estas crenccedilas na Greacutecia (Porph VP 19)176

A menccedilatildeo agrave introduccedilatildeo desta crenccedila na Greacutecia pressupotildee mais uma vez estra-

nheza geral a ela configurando-se com isso a imagem de uma seita marcada por uma

subcultura alternativa177

Consequecircncia do vegetarianismo eacute o outro sinal da postura alternativa dos pita-

goacutericos a famosa tradiccedilatildeo de recusar-se a realizar sacrifiacutecios de animais Todavia por

ser ponto central do sistema de crenccedilas tradicionais e elemento fundamental das festas

religiosas poliacuteades a praacutetica devia entrar em conflito de forma tatildeo radical com o siste-

ma religioso tradicional ao ponto de merecer uma flexibilizaccedilatildeo quase imediata Eacute o que

175 Jacircmblico fala mais especificamente de diaacutelogos (διαλέξεις) instruccedilotildees reciacuteprocas (ὁmicroιλίαι) anotaccedilotildees (ὑποmicroνηmicroατισmicroοί) notas (ὑποσηmicroειώσεις) tratados (συγγράmicromicroατα) e publicaccedilotildees (ἐκδόσεις) (Iambl VP 104) O exerciacutecio da comparaccedilatildeo desta descriccedilatildeo pode ser estendido ainda mais englobando a semelhan-ccedila dela com a descriccedilatildeo dos essecircnios em Flaacutevio Josefo (A Guerra Judaacuteica II 128-33) e dos terapeutas judeus do lago de Mareoacutetida descritos por Fiacutelon (De vita contemplativa II) apesar das reservas expressas por Centrone (2000 161 n47) em relaccedilatildeo a esta uacuteltima 176 Orig ldquo microάλιστα microέντοι γνώριmicroα παρὰ πᾶσιν ἐγένετο πρῶτον microὲν ὡς ἀθάνατον εἶναι φησὶ τὴν ψυχήν εἶτα microεταβάλλουσαν εἰς ἄλλα γένη ζῴων πρὸς δὲ τούτοις ὅτι κατὰ περιόδους τινὰς τὰ γενόmicroενά ποτε πάλιν γίνεται νέον δrsquoοὐδὲν ἁπλῶς ἔστι καὶ ὅτι πάντα τὰ γινόmicroενα ἔmicroψυχα ὁmicroογενῆ δεῖ νοmicroίζειν φέρεται γὰρ εἰς τὴν Ἑλλάδαrdquo (Porph VP 19) 177 Agrave confirmaccedilatildeo disso Burkert define a metempsicose como ldquoum corpo estranho no interior da religiatildeo gregardquo (1977 430)

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revelaria certa racionalizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de animais conforme aparece em Jacircmblico

(VP 85) e sobretudo em uma paacutegina do De Abstinecircncia de Porfiacuterio

Por esse motivo os pitagoacutericos acolhendo essa tradiccedilatildeo abstinham-se ao longo de toda a vida de comer animais e quando ofereciacuteam aos deuses algum animal no lugar de si mesmos depois de tecirc-lo somente degustado viviam na realidade intocados pelos outros animais (Porph De Abst 228 2)178

Ainda que desarmada a tradiccedilatildeo de uma praacutetica contracultural como esta toda-

via permanence ao longo dos seacuteculos apontando mais uma vez para uma postura alter-

nativa e sectaacuteria da comunidade179

Silecircncio e segredo Diversas citaccedilotildees acima recordam a obrigaccedilatildeo do silecircncio e

do segredo com relaccedilatildeo agraves doutrinas Eacute esta uma das caracteriacutesticas mais lembradas pela

tradiccedilatildeo O testemunho mais antigo eacute certamente aquele do orador Isoacutecrates contempo-

racircneo de Platatildeo ldquoainda hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacutepu-

los [de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessima fama atraveacutes da

palavrardquo (Isoacutecrates Busiris 29 = 14 A4 DK)180 Mesmo alguns fragmentos da comeacutedia

de meio (DK 58 E) recordam essa obrigaccedilatildeo do silecircncio ldquoera necessaacuterio suportar a es-

cassez de comida a sujeira o frio o silecircncio a severidade e a falta de higienerdquo (Alexis

A Pitagorizante fr 201 Kassel-Austin = 58 E1 DK)181

Um ceacutelebre caso melodramaacutetico de quebra desta obrigaccedilatildeo do segredo eacute o da

revelaccedilatildeo por parte de Hipaso da doutrina da incomensurabilidade ou em outra ver-

satildeo da inscriccedilatildeo do dodecaedro em uma esfera182 A tradiccedilatildeo matemaacutetica do pitagoris-

mo atribui a Hipaso aleacutem disso o roubo da originalidade da descoberta que foi certa-

178 Orig ldquo διόπερ οἱ Πυθαγόρειοι τοῦτο παραδεξάmicroενοι κατὰ microὲν τὸν πάντα βίον ἀπείχοντο τῆς ζῳοφαγί-ας ὅτε δὲ εἰς ἀπαρχήν τι τῶν ζῴων ἀνθ ἑαυτῶν microερίσειαν τοῖς θεοῖς τούτου γευσάmicroενοι microόνον πρὸς ἀλήθειαν ἄθικτοι τῶν λοιπῶν ὄντες ἔζωνrdquo (Porph De Abst 2282) 179 Burkert (1972 182) assim comenta a acomodaccedilatildeo agrave cultura majoritaacuteria da praacutetica da renuacutencia ao sacri-fiacutecio de animais ldquoIt would have meant a complete overturn of traditional ways As far as we canjudge the Pythagoreans sought compromise the matter an acusma asks ldquoWhat is most justrdquo and answers ldquoTo sacrificerdquo An accommodation of the doctrine of metempsychosis and the traditional way was found because it had to be foundrdquo 180 Orig ldquo ἔτι γὰρ καὶ νῦν τοὺς προσποιουmicroένους ἐκείνου microαθητὰς εἶναι microᾶλλον σιγῶντας θαυmicroάζουσιν ἢ τοὺς ἐπὶ τῷ λέγειν microεγίστην δόξαν ἔχονταςrdquo (Isoacutecrates Busiris 29) 181 Para uma visatildeo geral sobre o pitagorismo na comeacutedia de meio cf Bellido (1972) e Chevitarese (2004) 182 Eacute Burkert (1972 455) quem fala de um ldquoveritable melodrama in intellectual historyrdquo em relaccedilatildeo a essa tradiccedilatildeo dos incomensuraacuteveis Refere-se provavelmente a Hipaso o capiacutetulo de Jacircmblico (VP 74) que menciona a possibilidade de algueacutem instruiacutedo nas ciecircncias ser expulso da comunidade ainda que natildeo o cite nominalmente Para a referecircncia expliacutecita a Hipaso cf Iambl VP (88 247)

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mente Dele (toucirc androacutes Iambl VP 88) isto eacute do tambeacutem inominaacutevel Pitaacutegoras Nessa

atribuiccedilatildeo revela-se um dos motivos comuns da insistecircncia no segredo das doutrinas

diante da resistecircncia dos acusmaacuteticos em considerarem como parte fundamental da tra-

diccedilatildeo pitagoacuterica questotildees matemaacuteticas desse gecircnero o lado dos matemaacuteticos utiliza a

escamoteaccedilatildeo tiacutepica do argumento de autoridade atribuindo-as diretamente a Ele De

fato da mesma maneira quando ndash em eacutepoca heleniacutestica ndash se inicia vasta produccedilatildeo de

apoacutecrifos o argumento da consignaccedilatildeo do segredo sobre as doutrinas entre os primeiros

pitagoacutericos serviraacute ao propoacutesito de justificar o aparecimento somente tardio de cartas

atribuiacutedas falsamente a Pitaacutegoras ou aos primeiros familiares ou disciacutepulos183 Com ra-

zatildeo anota Huffman (2008a) uma testemunha importante como Aristoacuteteles natildeo revela

em seus escritos alguma dificuldade em ter acesso aos textos pitagoacutericos (ao contraacuterio

escreve trecircs livros sobre Arquitas) Disso deriva que ou grande parte das doutrinas pi-

tagoacutericas natildeo eram de fato sigilosas ou o segredo foi ldquomuito mal guardadordquo (Huffman

2008a 218)

A controveacutersia jaacute antiga sobre a existecircncia de escritos autecircnticos de Pitaacutegoras

deve ser tambeacutem compreendida no interior dessa tradiccedilatildeo184

E todavia a presenccedila da obrigaccedilatildeo do segredo eacute tatildeo significativa especialmente

com relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees dos akouacutesmata e syacutembola ao ponto de natildeo poder ser reduzida

simplesmente a uma falsificaccedilatildeo heleniacutestica esta configura exatamente um dos criteacuterios

centrais para a constituiccedilatildeo de uma seita isto eacute aquele de uma linguagem esoteacuterica que

precise de senhas especiacuteficas para ser compreendida

Boa soluccedilatildeo da questatildeo do segredo na comunidade e literatura pitagoacuterica eacute aque-

la proposta por Gemelli (2007b) No interior de atenta anaacutelise da linguagem esoteacuterica

utilizada pelos preacute-socraacuteticos Gemelli anota que

Eacute caracteriacutestica do texto esoteacuterico uma estreita ligaccedilatildeo entre lingua-gem e experiecircncia que nada diz a quem natildeo tiver a capacidade de ldquotornar concretardquo a palavra O silecircncio pretendido pelos pitagoacutericos

183 Cf para a coleccedilatildeo destes apoacutecrifos Thesleff (1965) aleacutem da Introduccedilatildeo a esta literatura (Thesleff 1961) Cf tambeacutem Szlezaacutek (1972) para ediccedilatildeo e comentaacuterio do celebre tratato Sobre as dez categorias de Pseudo-Arquitas e Centrone (1990) para uma ediccedilatildeo e comentaacuterio de alguns tratados morais pseudopita-goacutericos Ateacute mesmo de Filolau se recorda uma quebra do sigilo em ocasiatildeo da divulgaccedilatildeo dos ceacutelebres trecircs livros comprados por Platatildeo (D L Vitae VIII 85) E mesmo essa notiacutecia eacute utilizada para legitimar um falso pitagoacuterico de idade heleniacutestica (jaacute mencionado em D L Vitae VIII 6) Cf para isso Burkert (1972 223-227) Huffman (1993 12-14) e o que se diraacute a seguir (4131) 184 Cf Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 6-8) Para um comentaacuterio a esta controveacutersia cf Centrone (1992)

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natildeo eacute um silecircncio sobre as palavras e sim sobre as experiecircncias Pois umas sem as outras permanecem um cofre trancafiado (Gemelli 2007b 438)185

O segredo portanto seria uma estrateacutegia da comunidade para manter as experi-

ecircncias que se desenvolvem em seu interior como prerrogativa exclusiva dos iniciados a

tese de Gemelli eacute muito convincente e impregnada de consequecircncias para a compreen-

satildeo da dinacircmica esoteacuterica do protopitagorismo

Guia carismaacutetico A presenccedila carismaacutetica do fundador Pitaacutegoras paira sobre as

diversas caracteriacutesticas ateacute aqui detectadas na seita pitagoacuterica Tanto a referecircncia acima

de Aristoacuteteles de sua natureza intermediaacuteria entre deuses e homens (Iambl VP 31)

como a expressatildeo toucirc androacutes (Iambl VP 88) para referir-se a Pitaacutegoras sem nomeaacute-lo

sugerem de fato a presenccedila de mais esse criteacuterio de identificaccedilatildeo do pitagorismo como

de uma seita Para aleacutem disso eacute recorrente a tradiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo da autoridade de

praticamente qualquer doutrina ao mestre Pitaacutegoras lembrada pela expressatildeo Autoacutes

eacutepha ipse dixit (Iambl VP 46) A figura de Pitaacutegoras insere-se claramente no padratildeo

do theioacutes aneacuter do homem divino da tradiccedilatildeo grega antiga cujas caracteriacutesticas foram

habilmente resumidas por Achtemeier

As caracteriacutesticas do theiacuteos aneacuter podem ser brevemente resumidas um nascimento maravilhoso uma carreira marcada pelo dom de uma linguagem persuasiva e dominadora a capacidade de fazer milagres incluindo curas e adivinhaccedilotildees e uma morte de alguma maneira ex-traordinaacuteria (Achtemeier 1972 209)186

Os diversos testemunhos sobre os poderes sobrenaturais de Pitaacutegoras e de ma-

neira especial de seus milagres inserem-se no interior da construccedilatildeo desta figura extra-

ordinaacuteria

Macris (2003 265-270) ainda que reconheccedila que o termo theacuteios aneacuter seja o

mais aderente agraves fontes prefere ndash na esteira de Riedweg utilizar o mais geneacuterico ldquoca-

rismaacuteticordquo justificando a escolha da seguinte maneira

185 Orig ldquoist ein Charakteristikum esoterischer Texte die eben fuumlr denjenigen nichtssagend sind dem die Faumlhigkeit fehlt dem Wort lsquoeinen konkreten Sinn zu verleihenrsquo Das Scheweigen das die Pythagereer verlangten bezog sich nicht auf das Gesagte sondern auf das Erlebte Denn das eine blieb ohne das andere ein versiegelter Schreinrdquo 186 Orig ldquoThe characteristics of the theiacuteos aneacuter can be summarized briefly a wondrous birth a career by the gift of overpowering persuasive speech the ability to perform miracles including healings and foreseeing the future and a death marked in some way extraordinaryrdquo

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Se preferimos o qualificativo lsquocarismaacuteticorsquo eacute porque em sua acepccedilatildeo socioloacutegica propriamente weberiana evoca inevitavelmente para a-leacutem dos dons exepcionais de Pitaacutegoras a relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo que estaacute estabelecida entre o mestre e os membros da comunidade que se formou em torno dele (Macris 2003 270)187

O carisma de Pitaacutegoras portanto deveraacute ser pensado como mais um elemento de

coesatildeo da koinoniacutea

Prescriccedilotildees reprodutivas Entre as doutrinas que constituem a comunidade pita-

goacuterica como alternativa aos haacutebitos comuns da sociedade grega haacute certamente aquela

da ascensatildeo das mulheres ao mesmo status social dos homens Natildeo acaso a pitagoacuterica

acima citada como protagonista da comeacutedia de Aleacutexis eacute uma personagem bastante re-

corrente na comeacutedia de meio Desde a notiacutecia do sucesso de seus discursos inaugurais

em Crotona a tradiccedilatildeo lembra que a comunidade pitagoacuterica que surge em consequecircncia

do sucesso deles eacute composta tambeacutem por mulheres (Porph VP 19-20 Iambl VP 30)

O primeiro nome lembrado eacute aquele de Teano as fontes oscilam entre consideraacute-la filha

ou esposa do fundador188 Para aleacutem das anedotas elaboradas para mostrar a forccedila e fi-

delidade agrave comunidade das mulheres ndash eacute este o caso da graacutevida Tiacutemica que resiste agrave

tortura de Dioniso II (Iambl VP 194) ndash destaca-se uma seacuterie de testemunhos relativos

agrave regulaccedilatildeo da reproduccedilatildeo e dos rituais a ela conexos que revelam diferente relaccedilatildeo de

gecircnero entre os pitagoacutericos

Dizem que quando Teano foi interrogada sobre quantos dias depois de um intercurso sexual com um homem uma mulher recupera a pure-za teria respondido ldquoda relaccedilatildeo com o proacuteprio esposo de imediato daquela com um estranho nuncardquo Exortava a [esposa] que ia ter com seu proacuteprio marido a abandonar junto com os vestidos o pudor e uma vez levantada a recuperaacute-lo junto com estes E quando lhe foi perguntado ldquoQuaisrdquo ela respondeu ldquoaqueles pelos quais me cha-mam de mulherrdquo (D L Vitae VIII 43)189

187 Cf Riedweg (2002 119ss) para uma descriccedilatildeo aprofundada do modelo socioloacutegico carismaacutetico que haveria por traacutes da figura de Pitaacutegoras Orig ldquoSe nous lui avons preacutefeacutereacute le qualificatif lsquocharismatiquersquo cacuteest parce que dans son acception sociologique proprement weacutebeacuterienne il evoque ineacutevitablement au-delagrave decircs dons exceptionnels de Pythagore la relation de domination qui sacuteest egravetablie entre le maicirctre et lecircs membres de la communauteacute qui sacuteest formeacutee autour de luirdquo (Macris 2003 270) 188 Cf para uma sinopse das fontes sobre Teano Delatte (1922 246-248) 189 Orig ldquo ἀλλὰ καί φασιν αὐτὴν ἐρωτηθεῖσαν ποσταία γυνὴ ἀπrsquo ἀνδρὸς καθαρεύει φάναι ldquoἀπὸ microὲν τοῦ ἰδίου παραχρῆmicroα ἀπὸ δὲ τοῦ ἀλλοτρίου οὐδέποτεrdquo τῇ δὲ πρὸς τὸν ἴδιον ἄνδρα microελλούσῃ πορεύεσθαι παρῄνει ἅmicroα τοῖς ἐνδύmicroασι καὶ τὴν αἰσχύνην ἀποτίθεσθαι ἀνισταmicroένην τε πάλιν ἅmicrorsquo αὐτοῖσιν ἀναλαmicroβά-νειν ἐρωτηθεῖσα ldquoποῖαrdquo ἔφη lsquoταῦτα διrsquo ἃ γυνὴ κέκληmicroαιrdquo (D L Vitae VIII 43)

100

Veja-se tambeacutem na mesma linha uma das memoacuterias da kataacutebasis de Pitaacutegoras

ao Hades entre outros castigados ele teria visto os homens que natildeo quiseram ter inter-

cursos sexuais com suas esposas (D L Vitae VIII 21) Jacircmblico (VP 132 e 195) lem-

bra de Pitaacutegoras convencendo os crotonenses a abandonar as concubinas Aqui natildeo esta-

ria tanto em questatildeo ao que parece a isonomia de obrigaccedilotildees morais conjugais entre

homens e mulheres e sim uma atitude tiacutepica de pequenas comunidades sectaacuterias que

por meio do controle da reproduccedilatildeo no interior do proacuteprio grupo tende a garantir sua

sobrevivecircncia Os vaacuterios ditos dedicados agrave necessidade de procriar para honrar os deu-

ses em si aparentemente geneacutericos assumem na relativamente pequena comunidade

pitagoacuterica tons de autecircntica dramaticidade190

Intensa mobilidade geograacutefica Enfim uma intensa mobilidade geograacutefica eacute

impliacutecita agrave narrativa da anedota acima citada de Tiacutemica que ndash quando graacutevida ndash antes

de cair na emboscada de Dioniso II ser presa e em seguida torturada viajava junto

com outros nove companheiros de Tarento para Metaponto (Iambl VP 189-194) A

tradiccedilatildeo eacute atribuiacuteda a Neantes e foi certamente elaborada conforme o modelo das anedo-

tas biograacuteficas heleniacutesticas Ainda assim observa justamente Burkert (1982 17) revela

uma uacuteltima caracteriacutestica tiacutepica de uma seita aquela da mobilidade de seus membros

pois ldquoeles seguiam a mudanccedila das estaccedilotildees e escolhiam lugares adequados para suas

reuniotildeesrdquo (Iambl VP 189)191 A mobilidade da comunidade significa recusa agrave pertenccedila

a uma cidade especiacutefica e a subtituiccedilatildeo da relaccedilatildeo poliacuteade pela relaccedilatildeo sectaacuteria

Nesse mesmo sentido aos criteacuterios acima desenhados para identificar a separa-

ccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica em sentido identitaacuterio eacute o caso certamente de acrescentar

ndash agrave moda de conclusatildeo ndash o esquema narrativo da fundaccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica

tanto em Porfiacuterio como em Jacircmblico nos trechos que se seguem imediatamente aos

quatro discursos quando da chegada de Pitaacutegoras a Crotona Ambas as tradiccedilotildees remon-

tam a Nicocircmaco e seguem esquema muito semelhante

Com uma uacutenica liccedilatildeo puacuteblica conforme afirma Nicocircmaco ministrada na ocasiatildeo de seu desembarque na Itaacutelia conquistou mais de dois mil ouvintes tanto que estes natildeo voltaram mais para casa e jamais o aban-

190 Cf Iambl VP 84 191 Orig ldquo ἡρmicroόζοντο γὰρ πρὸς τὰς τῶν ὡρῶν microεταβολὰς καὶ τόπους εἰς τὰ τοιάδε ἐπελέγοντο ἐπιτηδείο-υςrdquo (Iambl VP 189)

101

donaram ao contraacuterio constituiacuteram junto com mulheres e filhos uma imensa ldquocasa dos ouvintesrdquo e fundaram aquela que todos chamaram Magna Greacutecia drsquoItaacutelia Tomaram dele [Pitaacutegoras] leis e prescriccedilotildees [] e puseram em comum seus bens (Porph VP 20)192 Em uma uacutenica liccedilatildeo a primeira por ele ministrada publicamente apoacutes ter chegado soacute agrave Itaacutelia soube conquistar com suas palavras mais de duas mil pessoas Estas foram tomadas a tal ponto que natildeo voltaram mais para suas casas e ao contraacuterio constituiacuteram junto com mulheres e filhos uma imensa ldquocasa dos ouvintesrdquo e fundaram aquela que foi chamada por todos de Magna Greacutecia Tomaram de Pitaacutegoras leis e prescriccedilotildees [] e puseram em comum seus bens (Iambl VP 30)193

O esquema narrativo segue de perto o modelo da fundaccedilatildeo de uma cidade-

colocircnia natildeo voltar mais para as proacuteprias casas (oukeacuteti oikaacutede apeacutestesan) novo centro

comum (omakoeicircon) enfim nova cidade da qual fazem parte mulheres e filhos fundada

na comunhatildeo dos bens194

A referecircncia agrave Magna Greacutecia remete para algo ineacutedito o termo Megale Hellas

natildeo eacute um polinocircnimo e sim um corocircnimo isto eacute natildeo se refere a uma cidade especiacutefica

mas sim a um inteiro territoacuterio (o sul da Itaacutelia) Por consequecircncia o pitagorismo aqui

pretenderia mais do que simplesmente fundar uma cidade em lugar disso daria aos

territoacuterios da Magna Greacutecia uma unidade poliacutetica (polizein eacute o verbo utilizado em am-

bas as tradiccedilotildees) anteriormente inexistente (Mele 2000 329)

Visto ldquode forardquo o sistema koinonia-poacutelis-khoacutera pitagoacuterico natildeo podia senatildeo pare-

cer como ameaccedilador para o restante dos poderes constituiacutedos As notiacutecias das revoltas e

das sucessivas crises da presenccedila pitagoacuterica na Magna Greacutecia revelam um claro incocirc-

modo com relaccedilatildeo agrave escola Entre todas eacute significativa a tradiccedilatildeo da recusa por parte

dos habitantes de Locris de acolher Pitaacutegoras fugitivo

192 Orig ldquo microιᾷ microόνον ἀκροάσει ὡς φησὶ Νικόmicroαχος ἣν ἐπιβὰς τῆς Ἰταλίας πεποίηται πλέον ἢ δισχιλίους ἑλεῖν τοῖς λόγοις ὡς microηκέτι οἴκαδrsquo ἀποστῆναι ἀλλrsquo ὁmicroοῦ σὺν παισὶ καὶ γυναιξὶν ὁmicroακοεῖόν τι παmicromicroέγεθ-ες ἱδρυσαmicroένους πολίσαι τὴν πρὸς πάντων ἐπικληθεῖσαν microεγάλην Ἑλλάδα ἐν Ἰταλίᾳ νόmicroους τε παρrsquo αὐτοῦ δεξαmicroένους []οὗτοι δὲ καὶ τὰς οὐσίας κοινὰς ἔθεντοrdquo (Porph VP 20) 193 Orig ldquo ἐν microιᾷ microόνον ἀκροάσει ὥς φασιν ἣν πρωτίστην καὶ πάνδηmicroον microόνος ἐπιβὰς τῆς Ἰταλίας ὁ ἄνθρωπος ἐποιήσατο πλέονες ἢ δισχίλιοι τοῖς λόγοις ἐνεσχέθησαν αἱρεθέντες αὐτοὶ κατὰ κράτος οὕτως ὥστε οὐκέτι οἴκαδε ἀπέστησαν ἀλλὰ ὁmicroοῦ παισὶ καὶ γυναιξὶν ὁmicroακοεῖόν τι παmicromicroέγεθες ἱδρυσάmicroενοι καὶ πολίσαντες αὐτοὶ τὴν πρὸς πάντων ἐπικληθεῖσαν Μεγάλην Ἑλλάδα νόmicroους τε παρrsquo αὐτοῦ δεξάmicroενοι καὶ προστάγmicroατα ὡσανεὶ θείας ὑποθήκας [] τάς τε οὐσίας κοινὰς ἔθεντο ὡς προελέχθηrdquo (Iambl VP 30) 194 Os termos utilizados para indicar essa colonizaccedilatildeo poliacutetica satildeo significativamente πολίσαι em Porfiacuterio (VP 20) e πολίσαντες em Jacircmblico (VP 30)

102

Ouvimos dizer Pitaacutegoras que tu eacutes saacutebio e excepcionalmente talento-so mas no que diz respeito a nossas leis natildeo temos nenhum motivo de pocirc-las em discussatildeo e portanto iremos tentar nos ater a elas Tu de tua parte dirija-te para outro lugar mas toma o necessaacuterio do qual precisas (Porph VP 56)195

Em que sentido esse projeto poliacutetico-diplomaacutetico de refundar a Magna Greacutecia

correspondia de fato a uma intenccedilatildeo das primeiras comunidades pitagoacutericas natildeo estaacute

claro Seguramente todavia Pitaacutegoras e os seus eram percebidos como uma ameaccedila agraves

leis e aos costumes autoacutectones pois carregavam consigo uma fama de reformismo eacutetico

poliacutetico e juriacutedico muito grande a comunidade pitagoacuterica eacute percebida como uma metroacute-

polis que permeia toda a Magna Greacutecia pronta a refundar colonizar o territoacuterio inteiro

A mobilidade das lideranccedilas pitagoacutericas (assim como do mesmo Pitaacutegoras) e a arqueo-

logia especialmente das moedas da eacutepoca parecem apontar para o fato de que ndash ateacute as

crises do fim do VI e meados do seacuteculo V ndash esse projeto teve bastante sucesso196 Do

ponto de vista da literatura pitagoacuterica ao contraacuterio a koinoniacutea aparece como projeto

necessaacuterio em consequecircncia da fuga de um regime poliacutetico tiracircnico que como tal im-

pede a realizaccedilatildeo de um biacuteos filosoacutefico197

Em ambos os casos contudo a koinoniacutea eacute assim alternativa poliacutetica agrave metroacutepo-

lis real e agrave sua loacutegica Um projeto fundado sobre duas soacutelidas instituiccedilotildees o omakoeicircon

a ldquocasa dos ouvintesrdquo e a partilha dos bens A comunidade pitagoacuterica eacute enfim uma

cidade que escuta e partilha cujo projeto estaacute baseado de um lado sobre o silecircncio e a

195 Orig ldquo ἡmicroεῖς ὦ Πυθαγόρα σοφὸν microὲν ἄνδρα σε καὶ δεινὸν ἀκούοmicroενmiddot ἀλλrsquo ἐπεὶ τοῖς ἰδίοις νόmicroοις οὐθὲν ἔχοmicroεν ἐγκαλεῖν αὐτοὶ microὲν ἐπὶ τῶν ὑπαρχόντων πειρασόmicroεθα microένεινmiddot σὺ δrsquo ἑτέρωθί που βάδιζε λαβὼν παρrsquo ἡmicroῶν εἴ του κεχρηmicroένος [τῶν ἀναγκαίων] τυγχάνειςrdquo (Porph VP 56) 196 Eacute hoje opiniatildeo comum que as revoltas antipitagoacutericas tenham sido duas e natildeo somente uma ἐπιβουλή como sugere Jacircmblico (VP 248) a primeira coincidiria com a morte de Pitaacutegoras a segunda aconteceria em meados do seacuteculo V Para uma resenha atualizada das posiccedilotildees dos comentadores sobre a crise das comunidades pitagoacutericas cf Musti (1990 62) 197 Trata-se da tradiccedilatildeo que vecirc Pitaacutegoras exilado por causa do desentendimento com o tirano de Samos Poliacutecrates (Porph VP 16) Este herdeiro de um ceacutelebre pirata graccedilas a um exeacutercito mercenaacuterio havia tomado Samos em 538 aEC Com um governo usurpador havia provocado a emigraccedilatildeo forccedilada de uma parte dos sacircmios A primeira diaacutespora da qual temos conhecimento eacute aquela em direccedilatildeo de Diceraquia na atual regiatildeo de Naacutepoles em 524 aEC (Accame 1980) Apesar de alguma tradiccedilatildeo recordar ndash eacute o caso de Antiacutestenes (Porph VP 7 D L Vitae VIII 3) ndash uma inicial colaboraccedilatildeo entre Pitaacutegoras e Poliacutecrates (o primeiro havia solicitado que o rei do Egito Amasi acolhesse o segundo para que pudesse partilhar com ele a formaccedilatildeo dos sacerdotes egiacutepcios) a referecircncia a uma tradicional oposiccedilatildeo de Pitaacutegoras agrave tirania provavelmente jaacute aristoxeacutenica e portanto do IV seacuteculo aEC serve como tal para representar a figura de um Pitaacutegoras como ldquoemigrante em busca da liberdaderdquo (Burkert 1972 119) Pois essa mesma liberdade seraacute o tecido ideoloacutegico da refundaccedilatildeo das cidades pitagoacutericas na Magna Greacutecia

103

filosofia a ser escutada do outro sobre um regime econocircmico comunista como condi-

ccedilotildees sine quibus non para a realizaccedilatildeo de um biacuteos filosoacutefico

Com isso resolve-se tambeacutem aquela que poderia parecer como aparente contra-

diccedilatildeo entre as notiacutecias do envolvimento poliacutetico dos pitagoacutericos e a caracteriacutestica sectaacute-

ria da comunidade Eacute de fato o caso de concordar com a afirmaccedilatildeo de Burkert pela

qual natildeo haveria lugar na Greacutecia antiga para esse tipo de contradiccedilatildeo

Natildeo haacute inconsistecircncia entre este lado [poliacutetico] e o lado religioso e ri-tual do pitagorismo De fato sociedades de culto e clubes poliacuteticos satildeo em origem virtualmente idecircnticos Todo grupo organizado expressa-se em termos de uma devoccedilatildeo comum e toda sociedade de culto eacute ativa politicamente como uma hetairiacutea (Burkert 1972 119)198

Por consequecircncia eacute procedente uma imagem da comunidade pitagoacuterica como ao

mesmo tempo poliacutetica e sectaacuteria esta de fato propotildee-se em uacuteltima anaacutelise como al-

ternativa radical agrave cidade como uma cidade dentro da cidade

24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos

No interior da proacutepria comunidade pitagoacuterica a tradiccedilatildeo demonstra conhecer

aqueles que agrave primeira vista pareceriam diversos graus de pertenccedila agrave koinoniacutea Jacircmblico

recorda a pretensa divisatildeo entre Pitagoreus disciacutepulos integrados totalmente agrave comuni-

dade de vida de um lado e Pitagoristas do outro estes uacuteltimos ecircmulos dos primeiros

seguiam os estudos e as doutrinas mas natildeo obedeciam agraves prescriccedilotildees do biacuteos em sua

radicalidade (Iambl VP 80) O Anocircnimo de Foacutecio (Thesleff 1965 237 paraacutegrafos 7-

12) conhece um nuacutemero ainda maior de graus de separaccedilatildeo e progressiva pertenccedila agrave

comunidade veneraacuteveis dedicados aos estudos teoreacuteticos poliacuteticos que se ocupavam

da gestatildeo da vida humana matemaacuteticos estudiosos da geometria e astronomia pitagoacute-

198 Orig ldquoThere is no inconsistency between this [political] and the religious and ritual side of Pythago-reanism In fact cult society and political club are in origin virtually identical Every organized group expresses itself in terms of a common worship and every cult society is active politically as a hetairiacuteardquo Mas vejam-se tambeacutem os argumentos de Zhmud (1992 247 n5) que discorda dessa interpretaccedilatildeo negan-do importacircncia agrave componente religiosa da comunidade pitagoacuterica Da mesma forma Philip (1966 138)

104

ricos disciacutepulos diretos de Pitaacutegoras pitagoreus por sua vez disciacutepulos destes uacuteltimos

e pitagoristas simpatizantes natildeo membros da comunidade199

Contudo a distinccedilatildeo mais comum na literatura pitagoacuterica constantemente reto-

mada pela criacutetica contemporacircnea sobre o pitagorismo eacute aquela entre acusmaacuteticos e ma-

temaacuteticos Em geral a distinccedilatildeo entre os dois grupos corresponde ao esquema da sepa-

raccedilatildeo entre de um lado o homem de ciecircncia como seria o caso do mathematikoacutes que

se dedica aos estudos e agrave pesquisa geomeacutetrica astronocircmica musical e do outro o ho-

mem de feacute no caso do akousmatikoacutes que se limitaria a seguir os akouacutesmata e syacutembola

que regulamentam a vida pitagoacuterica200

Todavia todas as distinccedilotildees de graus de pertenccedila no interior da comunidade pi-

tagoacuterica incluindo esta uacuteltima encontram-se somente em fontes tardias De fato a pri-

meira referecircncia agrave distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteticos aparece somente no seacutecu-

lo II EC em Clemente Alexandrino (Stromata 559) e depois em Porfiacuterio (VP 37) e em

Jacircmblico (VP 81 87-88 De Comm Mathem76 16s)

Aleacutem disso a tradiccedilatildeo dessa distinccedilatildeo carrega diversos problemas historiograacutefi-

cos Primeiramente o termo akouacutesma natildeo eacute encontrado no sentido de preceito a ser

seguido antes de Jacircmblico Ateacute Porfiacuterio os preceitos da vida pitagoacuterica satildeo chamados

de syacutembola201 Por consequecircncia o uso do termo acusmaacuteticos deveraacute ser atribuiacutedo ao

proacuteprio Jacircmblico e natildeo poderaacute ser considerado como uma vaacutelida designaccedilatildeo de um gru-

po real historicamente presente agrave eacutepoca dos primeiros pitagoacutericos A mesma impossibi-

lidade eacute sugerida pela proacutepria erraacutetica complexidade das prescriccedilotildees agraves quais um pitagoacute-

rico deveria prestar atenccedilatildeo caso quisesse seguir o conjunto dos akouacutesmata Segundo

um testemunho de Jacircmblico (VP 82) haveria akouacutesmata de trecircs tipos cada um respon-

dendo a uma pergunta tiacute eacutesti o que eacute tiacute maacutelista o que eacute maior e tiacute praacutekteon o que se

deve fazer

199 Orig ldquo τῶν Πυθαγορείων οἱ microὲν ἦσαν περὶ θεωρίαν καταγινόmicroενοι οἵπερ ἐκαλοῦντο σεβαστικοί οἱ δὲ περὶ τὰ ἀνθρώπινα οἵπερ ἐκαλοῦντο πολιτικοί οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα γεωmicroετρικὰ καὶ ἀστρονοmicroικά οἵπερ ἐκαλοῦντο microαθηmicroατικοί καὶ οἱ microὲν αὐτῷ τῷ Πυθαγόρᾳ συγγενόmicroενοι ἐκαλοῦντο Πυθαγορικοί οἱ δὲ τούτων microαθηταὶ Πυθαγόρειοι οἱ δὲ ἄλλως ἔξωθεν ζηλωταὶ Πυθαγορισταίrdquo (Anon Phot In Thesleff 1965 237 paraacutegrafos 7-12) 200 A referida interpretaccedilatildeo da distinccedilatildeo dos dois como entre o homem de ciecircncia e o homem de feacute eacute de Centrone (1996 81) 201 O proacuteprio Jacircmblico utiliza syacutembola ateacute o Protreptico Cf Zhmud (1992 248 n15) para as referecircncias das passagens de Aristoacuteteles a Porfiacuterio

105

Todos os assim chamados akouacutesmata dividem-se em trecircs grupos os do primeiro indicam o que eacute algo aqueles do segundo o que eacute maior aqueles do terceiro o que se deve e natildeo se deve fazer Aqueles que de-finem o que eacute determinada coisa satildeo deste tipo ldquoO que satildeo as ilhas dos bem-aventurados Satildeo o Sol e a Lua O que eacute o oraacuteculo de Delfi A teacutetrada isto eacute a harmonia na qual estatildeo as sereiasrdquo Ao grupo que indica o que eacute maior pertencem os seguintes exemplos ldquoO que eacute a coisa mais justa Sacrificar Qual a mais saacutebia O nuacutemero mas imedi-atamente depois vem o que deu o nome agraves coisas Qual a mais bela A harmonia E a mais forte O raciociacutenio E a melhor A felicidade E o que eacute a coisa mais verdadeira de se dizer Que os homens satildeo malva-dosrdquo (Iambl VP 82)202

O resultado eacute uma seacuterie de prescriccedilotildees que Zhmud (1992 241) define como de

costume sem meios termos ldquoum tremendo conjunto de coisas absurdasrdquo (a tremendous

amount of absurdities) Entre elas eacute preciso calccedilar antes o par direito do sapato natildeo se

devem frequentar as ruas principais falar sem luz carregar a imagem de um deus no anel

sacrificar o galo branco203 Eacute realmente difiacutecil imaginar que na praacutetica algueacutem pudesse

seguir esta complexa rede de acusmata

Em segundo lugar a principal fonte da separaccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteti-

cos isto eacute Jacircmblico revela uma extraordinaacuteria contradiccedilatildeo nas duas vezes em que co-

pia da mesma fonte (Iambl VP 81 e 87) acaba por se contradizer204 Enquanto em VP

81 afirma

Sua filosofia assumia duas formas pois os que a praticam encontram-se distintos em dois gecircneros os acusmaacuteticos e os matemaacuteticos Entre eles os matemaacuteticos eram reconhecidos pelos outros como pitagoreus mas de sua parte natildeo consideravam os acusmaacuteticos como tais natildeo a-

202 Orig ldquo άντα δὲ τὰ οὕτως ltκαλούmicroεναgt ἀκούσmicroατα διῄρηται εἰς τρία εἴδηmiddot τὰ microὲν γὰρ αὐτῶν τί ἐστι σηmicroαίνει τὰ δὲ τί microάλιστα τὰ δὲ τί δεῖ πράττειν ἢ microὴ πράττειν τὰ microὲν οὖν τί ἐστι τοιαῦτα οἷον τί ἐστιν αἱ microακάρων νῆσοι ἥλιος καὶ σελήνη τί ἐστι τὸ ἐν ∆ελφοῖς microαντεῖον τετρακτύςmiddot ὅπερ ἐστὶν ἡ ἁρmicroονία ἐν ᾗ αἱ Σειρῆνες τὰ δὲ τί microάλιστα οἷον τί τὸ δικαιότατον θύειν τί τὸ σοφώτατον ἀριθmicroόςmiddot δεύτερον δὲ τὸ τοῖς πράγmicroασι τὰ ὀνόmicroατα τιθέmicroενον Τί οφώτατον τῶν παρrsquo ἡmicroῖν ἰατρική τί κάλλιστον ἁρmicroονίατί κρά-τιστον γνώmicroη τί ἄριστον εὐδαιmicroονία τί δὲ ἀληθέστατον λέγεται ὅτι πονηροὶ οἱ ἄνθρωποιrdquo (Iambl VP 82) 203 Zhmud chega a sugerir que seja impossiacutevel aceitar seriamente estes tabus (1992 244) Todavia para ampla discussatildeo tendente a compreender o sentido dos akouacutesmata como partes da cultura dos rituais misteacutericos no mundo antigo cf Burkert (1992 166-192) 204 Ineacutedita eacute a contradiccedilatildeo que apresentam as duas versotildees natildeo certamente o jaacute citado (13) procedimento de corte e colagem que ao contraacuterio distingue os procedimentos redacionais de Jacircmblico em relaccedilatildeo a suas fontes Cf para isso em geral Rohde (1872 60) e para a passagem especiacutefica Burkert (1992 193)

106

tribuindo a doutrina por eles professada a Pitaacutegoras mas a Hipaso (I-ambl VP 81)205

Logo em seguida no capiacutetulo 87 Jacircmblico afirma exatamente o oposto

Aqueles pitagoacutericos que se ocupam das matemaacuteticas reconhecem [os acusmaacuteticos] como Pitagoacutericos Estes afirmam secirc-lo em maior medida e estar professando a verdade (Iambl VP 87)206

Paralelo a este uacuteltimo eacute outro testemunho de Jacircmblico presente no De communi

mathematica scientiae (25 7616-788)

Entre eles os matemaacuteticos reconheciam como pitagoacutericos os acusmaacute-ticos enquanto estes natildeo reconheciam como pitagoacutericos os matemaacuteti-cos nem que sua doutrina fosse aquela de Pitaacutegoras e sim de Hipaso Alguns afirmam que Hipaso teria nascido em Crotona outros em Me-taponto Os pitagoacutericos que se ocupam das matemaacuteticas reconhecem que estes [os acusmaacuteticos] satildeo pitagoacutericos mas afirmam secirc-lo em maior medida e estar professando a verdade (Iambl De Comm Ma-them 25 7616-788)207

A contradiccedilatildeo eacute evidente enquanto na primeira versatildeo os matemaacuteticos seriam os

verdadeiros pitagoacutericos e por esse motivo negariam a homologiacutea pitagoacuterica aos acus-

maacuteticos na segunda versatildeo (tanto na Vida de Pitaacutegoras como na passagem paralela do

De communi mathematica scientia) Jacircmblico estaria afirmando o oposto seriam os

acusmaacuteticos a negarem que os matemaacuteticos professam a verdadeira doutrina pitagoacuterica

Com um detalhe especialmente interessante Hipaso acaba sendo identificado como

acusmaacutetico na primeira e matemaacutetico na segunda versatildeo

205 Orig ldquo τουτωνὶ δὲ οἱ microὲν microαθηmicroατικοὶ ὡmicroολογοῦντο Πυθαγόρειοι εἶναι ὑπὸ τῶν ἑτέρων τοὺς δὲ ἀκουσ-microατικοὺςοὗτοι οὐχ ὡmicroολόγουν οὔτε τὴν πραγmicroατείαν αὐτῶν εἶναι Πυθαγόρου ἀλλrsquo Ἱππάσουmiddot τὸν δὲ Ἵππ-ασον οἳ microὲν Κροτωνιάτην φασίν οἳ δὲ Μεταποντῖνονrdquo (Iambl VP 81) Hipaso parece ter sido o primeiro pitagoacuterico a se ocupar claramente de pesquisas cientiacuteficas a ele eacute atribuiacuteda a experiecircncia dos discos de bron-ze de igual diacircmetro e diversa espessura atraveacutes dos quais teria compreendido as relaccedilotildees numeacutericas que presidem as harmonias musicais (Cf Aristoxeno Fr 90 Wehrli) Centrone (1996) sugere que a autoria da acusaccedilatildeo a Hipaso da divulgaccedilatildeo do segredo poderia ser de acircmbito matemaacutetico como tentativa de legitima-ccedilatildeo das pesquisas matemaacuteticas fazendo-as remontar ao proacuteprio Pitaacutegoras (1996 85-86) 206 Orig ldquo οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα τῶν Πυθαγορείων τούτους τε ὁmicroολογοῦσιν εἶναι Πυθαγορείους καὶ αὐτοί φασιν ἔτι microᾶλλον καὶ ἃ λέγουσιν αὐτοί ἀληθῆ εἶναιrdquo (Iambl VP 87) 207 Orig ldquo τούτων δὲ οἱ microὲν ἀκουσmicroατικοὶ ὡmicroολογοῦντο Πυθαγόρειοι εἶναι ὑπὸ τῶν ἑτέρων τοὺς δὲ microαθηmicroατικοὺς οὗτοι οὐχ ὡmicroολόγουν οὔτε τὴν πραγmicroατείαν αὐτῶν εἶναι Πυθαγόρου ἀλλὰ Ἱππάσου τὸν δrsquoἽππασον οἱ microὲν Κροτωνιάτην φασίν οἱ δὲ Μεταποντῖνον οἱ δὲ περὶ τὰ microαθήmicroατα τῶν Πυθαγορείων τούτους τε ὁmicroολογοῦσιν εἶναι Πυθαγορείους καὶ αὐτοί φασιν ἔτι microᾶλλον καὶ ἃ λέγουσιν αὐτοὶ ἀληθῆ εἶναιrdquo (Iambl De Comm Mathem 25 7616-788)

107

Essa contradiccedilatildeo obriga a um trabalho de reconstruccedilatildeo de uma possiacutevel versatildeo

original do testemunho Deubner (1937) e em seguida Burkert (1992 193-208) de-

monstraram incontestavelmente que seria a segunda isto eacute seriam os acusmaacuteticos a

questionar a congruecircncia dos matemaacuteticos agrave verdadeira pragmateacuteia de Pitaacutegoras Natildeo eacute

de fato possiacutevel imaginar simplesmente uma escorregada de Jacircmblico em VP 81 algo

nesta contradiccedilatildeo deveraacute revelar seus motivos Eles devem ser procurados para aleacutem do

procedimento desajeitado de corte e colagem de Jacircmblico que se revela na improvaacutevel

transformaccedilatildeo de Hipaso de matemaacutetico a acusmaacutetico208 O motivo do erro eacute que prova-

velmente Jacircmblico natildeo consegue acreditar naquilo que recebe de suas fontes isto eacute que

o pitagorismo originaacuterio seja aquele professado pelos acusmaacuteticos pois o que ele co-

nhece do pitagorismo mediado pela tradiccedilatildeo acadecircmica e peripateacutetica eacute exatamente a

preocupaccedilatildeo central com os matheacutemata conforme se veraacute em detalhes no capiacutetulo quar-

to Burkert imagina o procedimento psicoloacutegico-redacional de Jacircmblico da seguinte

forma

Parecia-lhe impensaacutevel que algueacutem pudesse contestar isso para natildeo mencionar o fato de esses descrentes serem reconhecidos por seus ad-versaacuterios como verdadeiros pitagoacutericos Jacircmblico conhece a tradiccedilatildeo pela qual os acusmaacuteticos eram uma classe inferior os lsquoespuacuteriosrsquo os lsquomuitosrsquo que natildeo satildeo os verdadeiros filoacutesofos Aqui ele soacute pode acre-ditar que seus olhos o estatildeo enganando e rapidamente troca os dois nomes Temos aqui entatildeo uma alteraccedilatildeo arbitraacuteria cujo motivo eacute cla-ro mas natildeo eacute mantido consistentemente e o resultado disso eacute a confu-satildeo (Burkert 1972 194-5)209

A reconstruccedilatildeo da confusatildeo de Jacircmblico e sua troca de nomes leva finalmente

agravequela que pode ser considerada a hipoacutetese central destas uacuteltimas paacuteginas acusmaacuteticos

e matemaacuteticos natildeo seriam ao contraacuterio da vulgata dos estudos pitagoacutericos dois graus

distintos de filiaccedilatildeo agrave koinoniacutea e sim duas correntes dois grupos no interior do mesmo

movimento pitagoacuterico Os matemaacuteticos representariam o segundo momento de desen-

volvimento com relaccedilatildeo a um pitagorismo originaacuterio que ao contraacuterio seria marcada-

208 Para uma anaacutelise das passagens em que Jacircmblico demonstra anaacuteloga superficialidade na leitura das fontes cf Von Fritz (1940 105-107) 209 Orig ldquoIt seemed to him unthinkable that anyone could contest this to say nothing of these doubters being acknowledged by their opponents as genuine Pythagoreans Iamblichus knows the tradition that made the acusmatici the lower class the ldquospuriousrdquo the ldquomanyrdquo who are not true philosophers Here he can only believe that his eyes have deceived him and quickly switch the two nouns We have here then an arbitrary alteration whose motive is transparent but it is not maintained consistently and the result is confusionrdquo

108

mente acusmaacutetico Por esse motivo estariam empenhados em uma luta pela legitimida-

de diante da recusa por parte dos primeiros de reconhececirc-los como portadores da

mesma verdade210

Como consequecircncia dessa hipoacutetese surge obviamente um problema adicional a

ser enfrentado e que diz respeito ao momento exato em que teria havido essa divisatildeo

esse cisma Trata-se com toda probabilidade de uma divisatildeo que corresponde a um

momento sucessivo do desenvolvimento do pitagorismo ainda que seja difiacutecil estabele-

cer quatildeo sucessivo As tentativas de conectar esse cisma interno com a crise gerada pe-

las revoltas antipitagoacutericas de meados do seacuteculo V natildeo deram nenhum resultado concre-

to ainda que Riedweg (2002 176) sugira que seja possiacutevel pensar em uma maior sepa-

raccedilatildeo entre os dois grupos apoacutes a diaacutespora que se seguiu agraves revoltas e o contemporacircneo

avanccedilo da filosofia natural no fim do seacuteculo V e iniacutecio do seacuteculo IV aEC211

Apesar da procedecircncia histoacuterica desse cisma ser colocada em seacuterias duacutevidas por

Zhmud (1992) os argumentos de Delatte (1915 273ss ) e de maneira especial de Bur-

kert (1972 196ss) com relaccedilatildeo agrave existecircncia da possiacutevel autoridade de Aristoacuteteles por

traacutes do testemunho (original) de Jacircmblico sobre a distinccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacute-

ticos permitiriam confirmar a tradiccedilatildeo da divisatildeo entre os dois grupos212 Um argumen-

to em favor da antiguidade do cisma eacute que se fosse muito tardio jaacute natildeo faria sentido a

reivindicaccedilatildeo de legimitidade dos matemaacuteticos em uma conjuntura do pitagorismo que

jaacute nos tempos de Timeu eacute quase que exclusivamente matemaacutetico213 Um segundo ar-

gumento mais diretamente ligado agrave hipoacutetese da fonte aristoteacutelica que estaria por traacutes

210 Por esse motivo outra eacute obviamente a genealogia do cisma na versatildeo matemaacutetica dele Pitaacutegoras por receber diversas lideranccedilas poliacuteticas das cidades teria precisado simplificar sua doutrina isto eacute eliminar de seus ensinamentos puacuteblicos as demonstraccedilotildees cientiacuteficas que ao contraacuterio reservaria para os mais jovens desejosos de apreender os matemaacuteticos derivariam destes uacuteltimos (Cf Iambl VP 87-89) 211 Com ele parece concordar Huffman (2008 220) Tannery (1887 85ss) e Von Friz (1940 59 92) em sentido contraacuterio agrave reconstruccedilatildeo do testemunho de Jacircmblico chegam a sugerir que possa haver alguma relaccedilatildeo entre o cisma da comunidade e as revoltas antipitagoacutericas de meados do seacutec V aEC baseando-se em Jacircmblico (VP 257ss) imaginam que a divisatildeo interna da escola cujo responsaacutevel foi Hipaso teria levado em seguida a um a guerra civil e agrave crise final Depois da diaacutespora que a ela se seguiu os pitagoacuteri-cos se teriam retirado agrave vida religiosa privada Contra essa hipoacutetese todavia estaacute o fato de que os mate-maacuteticos continuam ativos depois da crise como demonstram entre outros Filolau e Arquitas 212 Veja-se nesse sentido tambeacutem o que foi dito acima (14) em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo inaugural de Burnet (1908 94) a esse respeito Concordam com Burnet Delatte e Burkert Rohde (1871) Minar (1942 43ss) Frank (1943 69ss) Huffman (1993 11) e Guthrie (1962 192ss) esp ldquothe thesis that there were two kinds of Pythagoreans the one chiefly interested in the pursuit of mathematical philosophy and the other in preserving the religious foundations of the school is both inherently probable and supported by a certain amount of positive evidencerdquo (1962 193) 213 Satildeo dessa opiniatildeo entre outros tanto Burkert (1972 196) como Centrone (1996 83)

109

dele eacute que Jacircmblico usaria diversas periacutefrases muito proacuteximas a Aristoacuteteles uma delas

eacute certamente a frase que introduz o testemunho do De communi mathematica scientia

ldquoduas satildeo as formas da filosofia itaacutelica que eacute chamada pitagoacutericardquo (Iambl De Comm

Mathem 25 7616) que encontra paralelos com semelhantes expressotildees aristoteacutelicas

em Metereologica (342b 30) e De Caelo (293a 20)214

A tradiccedilatildeo parece enfim confirmar o que se dizia anteriormente isto eacute que a

definiccedilatildeo de pitagoacuterico estaria inicialmente mais diretamente ligada agrave pertenccedila a uma

comunidade e agrave partilha de um biacuteos constituiacutedo principalmente por acusmata e

syacutembola do que propriamente agrave consonacircncia doutrinaacuteria sobre determinadas teorias

filosoacutefico-cientiacuteficas pois essas mesmas resultariam dos esforccedilos em boa parte isolados

entre eles de sucessivas geraccedilotildees de pitagoacutericos215

Ateacute por esse motivo natildeo eacute o caso de enfatizar demasiadamente na praacutetica para

compreendermos a formaccedilatildeo da categoria historiograacutefica do pitagoacuterico o pretenso cis-

ma histoacuterico que oporia de um lado o homem de feacute do outro o homem de ciecircncia con-

forme os modelos acima citados pois mesmo pitagoacutericos de eacutepoca jaacute claramente mate-

maacutetica como seria o caso de Filolau e Arquitas se perguntados sobre o troacutepos de seu

biacuteos responderiam provavelmente ser este propriamente o mesmo ouvido de Pitaacutegoras

Isso significa que ateacute para os pitagoacutericos das sucessivas geraccedilotildees envolvidos mais dire-

tamente na pesquisa cientiacutefica eacute ainda a vida o elemento definidor de sua identidade

pitagoacuterica Todavia se novamente perguntados sobre quais seriam as caracteriacutesticas

fundamentais desse modo de vida os pitagoacutericos dariam provavelmente respostas bas-

tantes vagas (vegetarianismo simplicidade pureza em diversos niacuteveis dedicaccedilatildeo aos

estudos pietas) e relativamente incongruentes De fato considerando a extensatildeo tempo-

ral e permeabilidade cultural da filosofia pitagoacuterica no mundo antigo eacute possiacutevel con-

cordar com a brilhante comparaccedilatildeo de Huffman (1993) que aproxima o pitagoacuterico anti-

go ao catoacutelico atual

214 Orig ldquo ∆ύο δrsquo ἐστὶ τῆς Ἰταλικῆς φιλοσοφίας εἴδη καλουmicroένης δὲ Πυθαγορικῆς δύο γὰρ ἦν γένη καὶ τῶν microεταχειριζοmicroένων αὐτήν οἱ microὲν ἀκουσmicroατικοίrdquo (Iambl De Comm Mathem 25 7616) Jaacute em Aris-toacuteteles encontram-se as seguintes expressotildees ldquo τῶν δrsquoἸταλικῶν τινες καλουmicroένων Πυθαγορείωνrdquo (Mete 342b30) e ldquo οἱ περὶ τὴν Ἰταλίαν καλούmicroενοι δὲ Πυθαγόρειοιrdquo (De Caelo 293a 20) 215 Em relaccedilatildeo ao fato de a corrente matemaacutetica dos pitagoacutericos natildeo se constituir em escola homogecircnea de pensamento e ao contraacuterio perseguir diferentes doutrinas fiacutesicas cosmoloacutegicas e matemaacuteticas cf a seguir o que se diraacute no capiacutetulo quarto

110

No mundo moderno podemos dizer que algueacutem eacute um catoacutelico sem por isso estar completamente claro o que ele pensa sobre uma vasta gama de questotildees filosoacuteficas Ser um pitagoacuterico no mundo antigo po-de implicar mais em termos de crenccedilas filosoacuteficas do que ser um catoacute-lico no mundo moderno mas devemos ser cuidadosos em assumir que esteja de fato implicado demais (Huffman 1993 11)216

Como no caso do catoacutelico portanto o pitagoacuterico definir-se-ia menos por uma

teologiafilosofia e mais por um sentimento de pertenccedila cultural por um estilo de vida

Dessa forma a razatildeo pela qual a tradiccedilatildeo consideraria Filolau como pitagoacuterico enquan-

to Alcmeon natildeo repousaria natildeo tanto sobre a diferenccedila doutrinaacuteria mas sim sobre o

fato de que enquanto o primeiro teria vivido uma vida pitagoacuterica o outro natildeo217

Eacute o caso de notar tambeacutem que a contraposiccedilatildeo entre acusmaacuteticos e matemaacuteti-

cos acaba-se tornando o leitmotiv da histoacuteria da criacutetica retornando continuamente qua-

se como um toacutepos literaacuterio nas hermenecircuticas contrapostas de um Pitaacutegoras (e um pita-

gorismo) cientiacutefico versus maacutegico-religioso por exemplo ou miacutestico versus poliacutetico

conforme vimos na primeira parte deste capiacutetulo As modernas discussotildees parecem as-

sim continuar nos trilhos de um debate jaacute antigo

Ao contraacuterio a proposta de interpretaccedilatildeo que subjaz agrave presente tese ndash em sua

dimensatildeo sincocircnica ndash eacute aquela de superar esses esquemas intepretativos dicotocircmicos

considerando o pitagorismo como uma categoria historiograacutefica de amplo alcance e

pluralidade de atribuiccedilotildees irredutiacutevel aos esquemas troppo estanques da histoacuteria da fi-

losofia

Em contrapartida ndash em sua dimensatildeo diacrocircnica de categorizaccedilatildeo do pitagorismo

ndash a presente tese jaacute reconheceu com Burkert que natildeo eacute possiacutevel alcanccedilar nem o Pitaacutego-

ras histoacuterico nem o pitagorismo das origens

De certa forma o quebra-cabeccedilas ficaraacute sempre inacabado equiacutevoco portanto

irreduziacutevel agrave univocidade de uma uacutenica soluccedilatildeo hermenecircutica das tradiccedilotildees histoacutericas

216 Orig ldquoIn the modern world we may say that someone is a Catholic without therefore being at all clear what he believes on a whole range of philosophical issues Being a Pythagorean in the ancient world may entail more in terms of philosophical beliefs than being a Catholic does in the modern world but we should be wary of assuming that too much is entailedrdquo 217 A questatildeo da relaccedilatildeo de Alcmeon com o pitagorismo eacute espinhosa e continua merecendo certo debate Em Metafisica A (986) Aristoacuteteles separa Alcmeon dos pitagoacutericos mesmo anotando proximidades teoacute-ricas entre os dois Jacircmblico (VP 104) diz que Alcmeon teria sido discipulo e ouvinte do proacuteprio Pitaacutego-ras O mesmo diz Dioacutegenes Laeacutercio (Vitae VIII 83) Para os comentadores modernos da questatildeo cf Timpanaro Cardini (1958 119) e Centrone (1989 116) Cf tambeacutem Cornelli (2009a)

111

25 Conclusatildeo

Pode ser uacutetil antes de passar ao proacuteximo capiacutetulo refazer o percurso tecido nes-

te segundo capiacutetulo recuperando as sugestotildees metodoloacutegicas e propostas hermenecircuticas

aqui desenvolvidas pois seratildeo colocadas em jogo na anaacutelise das duas tradiccedilotildees que

mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria pitagorismo cada uma

delas com suas problemaacuteticas especiacuteficas

O ponto de partida foi a pergunta de Zeller se seria possiacutevel uma descriccedilatildeo coe-

rente do complexo fenocircmeno do pitagorismo O caminho seguido foi sair em busca da

categoria pitagorismo em suas duas dimensotildees diacrocircnica e sincrocircnica O objetivo de-

clarado da busca natildeo foi reduzir a complexidade de significados e experiecircncias que a

categoria reuacutene em si Ao contraacuterio o objetivo foi verificar como esta teria resistido agrave

previsiacutevel diluiccedilatildeo de um movimento que em sua diversidade estende-se ao longo de

mais de mil anos A especificidade do objeto sugeriu ndash sob pena de natildeo compreensatildeo do

fenocircmeno ndash tratamento especial do ponto de vista metodoloacutegico que assuma conscien-

temente as caracteriacutesticas de um caminho interdisciplinar e multifacetado Por outro

lado apontou-se que a compreensatildeo sincrocircnica do pitagorismo implica compreendecirc-lo agrave

luz das categorias pelas quais normalmente descrevemos a filosofia antiga para isso

declarou-se a necessidade de superar as dicotomias entre ciecircncia e magia escrita e ora-

lidade jocircnicos e itaacutelicos agraves quais a historiografia usualmente nos acostumou pois ne-

nhuma delas sozinha parecer dar conta da complexidade da categoria do pitagorismo

A primeira pergunta que surgiu quase uma porta de entrada para a definiccedilatildeo da

categoria do pitagorismo eacute certamente aquela sobre a identidade do pitagoacuterico isto eacute

sobre quem poderia dizer-se pitagoacuterico no mundo antigo Os criteacuterios comumente utili-

zados para definir a questatildeo natildeo pareceram resistir ao crivo metodoloacutegico acima anun-

ciado pois natildeo eacute possiacutevel pensar na escola pitagoacuterica como em algo homogecircneo do

ponto de vista doutrinaacuterio nem sequer utilizar o criteacuterio geograacutefico ou do discipulado

direto geralmente utilizado pela doxografia Restou assim reconhecer que o que define

o pitagoacuterico eacute sua adesatildeo a um particular estilo de vida

Esta conclusatildeo abre imediatamente o problema das modalidades histoacutericas da

comunidade pitagoacuterica primitiva protopitagoacuterica como detentora ao menos etioloacutegica

e genealogicamente das prescriccedilotildees que regulamentam esse estilo de vida Platatildeo e A-

112

ristoacuteteles natildeo satildeo de grande ajuda para compreender qual eacute a caracteriacutestica saliente des-

sa comunidade por revelarem em seus testemunhos uma ambiguidade insuperaacutevel entre

a imagem de uma escola de pensamento e aquela de uma comunidade de vida marcada

pela ritualidade e o culto

Ateacute mesmo a comparaccedilatildeo sincrocircnica com os modelos correntes do thiacuteasos e da

hetairiacutea natildeo surtiu grande avanccedilo hermenecircutico de certa forma a comunidade pitagoacuteri-

ca eacute ao mesmo tempo as duas coisas e nenhuma delas A aporiacutea da tradiccedilatildeo obrigou a

uma mudanccedila de rumo recolocando a questatildeo em outro piso tanto metodoloacutegico como

textual

Por esse motivo seguindo a sugestatildeo de Burkert procurou-se verificar a ade-

quaccedilatildeo das tradiccedilotildees sobre a comunidade pitagoacuterica com o modelo socioloacutegico da seita

Ainda que se prefira a designaccedilatildeo mais neutra de comunidade o exerciacutecio de compara-

ccedilatildeo da koinoniacutea pitagoacuterica com a tipologia socioloacutegica que identifica uma seita permitiu

articular de forma bastante coerente grande diversidade de caracteriacutesticas expressas pela

literatura que juntas compotildeem um quadro coerente para a categoria pitagorismo Estas

contribuem para a descriccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica como um grupo numericamente

reduzido com caracteriacutesticas elitaacuterias alternativo aos moldes de sua cultura e mantendo

parte das informaccedilotildees sobre sua ideologia sob sigilo vida em comum comunhatildeo dos

bens submissatildeo agrave autoridade de um guia carismaacutetico levam a forte sentimento identitaacute-

rio a philiacutea entre os pitagoacutericos torna-se proverbial no mundo antigo Expulsatildeo dos

apoacutestatas prescriccedilotildees reprodutivas e intensa mobilidade geograacutefica garantem a sobrevi-

vecircncia diacrocircnica da comunidade

A anaacutelise do esquema narrativo da fundaccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica tanto em

Porfiacuterio como em Jacircmblico confirmou os sinais de uma comunidade que se define

mesmo do ponto de vista poliacutetico como alternativa agrave cidade Enfim os diversos graus

de pertenccedila agrave comunidade aos quais a tradiccedilatildeo parece referir-se especialmente a sepa-

raccedilatildeo entre matemaacuteticos e acusmaacuteticos foram revelados ao contraacuterio como duas cor-

rentes dois grupos no interior do pitagorismo A anaacutelise das tradiccedilotildees permitiu detectar

que os matemaacuteticos representariam um segundo momento de desenvolvimento com

relaccedilatildeo a um pitagorismo originaacuterio marcadamente acusmaacutetico O cisma teria aconteci-

do jaacute em eacutepoca bastante antiga o que confirmaria mais uma vez a hipoacutetese inicial pela

qual eacute ainda o biacuteos antes que uma unidade doutrinaacuteria a definir a identidade pitagoacuterica

113

Duas temaacuteticas mais decididamente contribuiacuteram para a definiccedilatildeo da categoria

pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo metempsicose e matemaacutetica As mesmas

seratildeo objeto do capiacutetulo terceiro e do quarto a seguir A anaacutelise procuraraacute de um lado

verificar a originalidade das duas temaacuteticas para o protopitagorismo e o pitagorismo do

seacuteculo V aEC por outro lado sinalizar de que maneira essas temaacuteticas contribuiacuteram

para a categorizaccedilatildeo do pitagorismo ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo

114

CAPIacuteTULO TERCEIRO IMORTALIDADE DA ALMA E METEMPSICOSE

Porfiacuterio em uma passagem jaacute citada no capiacutetulo anterior (21) no contexto da

discussatildeo sobre os modelos possiacuteveis de comunidade pitagoacuterica resume aquelas que a

tradiccedilatildeo passaraacute a considerar como as doutrinas centrais do Pitaacutegoras histoacuterico notada-

mente da imortalidade da alma (e de sua transmigraccedilatildeo) do eterno retorno e do paren-

tesco universal Eacute o caso de voltar mais uma vez para ela

Algumas de suas afirmaccedilotildees ganharam notoriedade praticamente ge-ral 1) afirma que a alma eacute imortal 2) que transmigra em outras espeacute-cies de seres vivos 3) que periodicamente o que jaacute aconteceu uma vez volta a acontecer e nada eacute absolutamente novo e 4) que todos os seres animados devem ser considerados como do mesmo gecircnero Ao que parece foi mesmo Pitaacutegoras a introduzir pela primeira vez estas crenccedilas na Greacutecia (Porph VP 19)218

Esse resumo porfiriano das doutrinas mais ceacutelebres de Pitaacutegoras remete imedia-

tamente para o coraccedilatildeo da problemaacutetica da categorizaccedilatildeo histoacuterica do pitagorismo Natildeo

se pode fugir do fato de que no bojo dessas doutrinas apontadas como originaacuterias natildeo

apareccedila nenhuma referecircncia agrave matemaacutetica ou agrave teoria astronocircmica por exemplo ou

mesmo agrave cosmologia e agrave poliacutetica que tecircm ao contraacuterio papel fundamental para a defi-

niccedilatildeo do pitagorismo em outros estratos da tradiccedilatildeo entre eles certamente o estrato

que corresponde aos textos aristoteacutelicos

A referecircncia a pretensas doutrinas originaacuterias do pitagorismo portanto coloca

em pauta desde o iniacutecio a questatildeo da categorizaccedilatildeo historiograacutefica do movimento que

estas paacuteginas estatildeo perseguindo isto eacute da grande diversidade de doutrinas e das difi-

culdades de articulaacute-las no interior de um sistema filosoacutefico-cientiacutefico coerente Eacute ainda

a duacutevida de Zeller sobre a possibilidade de uma descriccedilatildeo coerente da filosofia pitagoacuteri-

ca (Zeller e Mondolfo 1938 597) a desafiar percurso por meio das fontes pitagoacutericas em

busca das temaacuteticas que ao longo da histoacuteria da tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo contribuiacute-

ram mais diretamente agrave definiccedilatildeo da categoria pitagorismo 218 Orig ldquo microάλιστα microέντοι γνώριmicroα παρὰ πᾶσιν ἐγένετο πρῶτον microὲν ὡς ἀθάνατον εἶναι φησὶ τὴν ψυχήν εἶτα microεταβάλλουσαν εἰς ἄλλα γένη ζῴων πρὸς δὲ τούτοις ὅτι κατὰ περιόδους τινὰς τὰ γενόmicroενά ποτε πάλιν γίνεται νέον δrsquoοὐδὲν ἁπλῶς ἔστι καὶ ὅτι πάντα τὰ γινόmicroενα ἔmicroψυχα ὁmicroογενῆ δεῖ νοmicroίζειν φέρεται γὰρ εἰς τὴν Ἑλλάδαrdquo (Porph VP 19)

115

Duas temaacuteticas destacam-se como centrais nesse sentido a teoria da alma pres-

suposta direta ou indiretamente nas quatro afirmaccedilotildees acima citadas e a matemaacutetica ao

contraacuterio grande ausente na passagem acima Em ambas a compreensatildeo do valor her-

menecircutico das questotildees envolvidas passaraacute por articulaccedilatildeo das duas dimensotildees historio-

graacuteficas acenadas no capiacutetulo anterior isto eacute da dimensatildeo diacrocircnica e da sincrocircnica

Ainda que resumo de eacutepoca tardia portanto a passagem de Porfiacuterio eacute certamente

excelente porta de entrada para a discussatildeo das tradiccedilotildees que o terceiro e o quarto capiacute-

tulo que aqui iniciam e a que se propotildeem Se natildeo por outros motivos ao menos porque

a tradiccedilatildeo remonta provavelmente jaacute ao pupilo de Aristoacuteteles Dicearco219 Natildeo eacute o caso

de fato que diversos comentadores jaacute claacutessicos se deram conta da importacircncia dessa

passagem para reposicionar teoreticamente as origens da filosofia pitagoacuterica em estreita

conexatildeo com as temaacuteticas eacutetico-religiosas220 As sugestotildees de Porfiacuterio nortearatildeo portan-

to a busca da compreensatildeo de um nuacutecleo teoacuterico que corresponde ao Pitaacutegoras histoacuterico

e ao protopitagorismo ainda que cientes de que esta mesma tradiccedilatildeo porfiriana estaacute lon-

ge de representar a soluccedilatildeo de um problema historiograacutefico Ao contraacuterio eacute provavel-

mente o comeccedilo dele E como tal seraacute enfrentado nas paacuteginas a seguir

A primeira doutrina citada por Porfiacuterio (VP 19) aquela da transmigraccedilatildeo da al-

ma eacute ligada a uma tradiccedilatildeo amplamente documentada sobre a competecircncia de Pitaacutegoras

para assuntos ligados ao aleacutem-tuacutemulo trata-se de tradiccedilotildees que estatildeo inseridas no mo-

delo de sabedoria arcaico que Betegh (2006) definiu acertadamente como journey model

(modelo de viagem) O sapiente filoacutesofo adquire conhecimento por meio de itineraacuterio

que o leva a percorrer tempos e espaccedilos distantes ou impraticaacuteveis ao restante dos mor-

tais incluindo nestes tambeacutem ndash ou melhor especialmente ndash o mundo do aleacutem-

tuacutemulo221

219 Burkert (1972 122-123) apesar da resistecircncia por parte tanto de Rathmann (1933 3ss) como de We-hrli que natildeo acolhe o capiacutetulo 19 de Porfiacuterio em seu volume dedicado a Dicearco (Wehrli 1944) segue a tradiccedilatildeo desta atribuiccedilatildeo que conta com a anuecircncia de Rohde (1871 566) Burnet (1908 92) Leacutevy (1926 50) Zeller e Mondolfo (1938 314) E acrescenta argumentos francamente convincentes fundamentados no tom ceacutetico que a passagem deixa transparecer e que natildeo pode certamente ser atribuiacutedo ao crente Porfiacute-rio deveraacute sem mais plausivelmente criaccedilatildeo de Dicearco ceacutetico pupilo de Aristoacuteteles que em outros fragmentos revela o mesmo ceticismo e ironia este afirma por exemplo que alma seria uma simples palavra (fr 7 Wehrli) e que Pitaacutegoras teria sido no passado uma bela cortesatilde (fr 36 Wehrli) 220 Cf para isso De Vogel (1964 16) e Guthrie (1962 186) e mais em geral o que foi dito acima (15) 221 A economia destas paacuteginas natildeo permite aprofundar esta temaacutetica da viagem para a construccedilatildeo da sabe-doria arcaica Eacute certamente o caso de remeter para a discussatildeo de Betegh (2006) para a formulaccedilatildeo do modelo assim como a dois estudos recentes que desenvolvem uma particularidade deste modelo aquele da κατάβασις isto eacute da viagem para o Hades (Cornelli 2007a Ustinova 2009) Memoacuterias de κατάβασις estatildeo amplamente atestadas no interior da literatura sobre o pitagorismo Entre elas certamente a histoacuteria

116

Essa transmigraccedilatildeo da alma foi chamada no mundo grego de metempsicose O

termo metempsychoacutesis natildeo revela especiais problemas de traduccedilatildeo desde a Iacutendia ateacute a

Greacutecia remete ao mover-se (accedilatildeo indicada comumente pelo termo transmigraccedilatildeo) de

uma alma de um corpo para outro O mover-se desenha idealmente um kiacuteklos um ciclo

ou ciacuterculo de nascimento-morte-nascimento222

Eacute certamente o caso de notar que todavia natildeo existe ao menos ateacute o final da

eacutepoca claacutessica precisatildeo terminoloacutegica na indicaccedilatildeo desse ciclo da imortalidade da alma

Conforme veremos diversas expressotildees e imagens satildeo utilizadas para indicar esta

transmigraccedilatildeo desde vestir cobrir (Empeacutedocles) penetrar de uma alma no corpo (He-

roacutedoto) ateacute o nascer de novo expresso pelo termo palingecircnese (paacutelin giacutegnesthai) de

Platatildeo223

Ainda que o termo metempsychoacutesis apareccedila pela primeira vez somente no pri-

meiro seacuteculo EC com Diodoro Siacuteculo (X 6 1) e desde logo referido a Pitaacutegoras a

proacutepria etimologia do termo aponta para origem bem mais antiga do termo de fato ndash

diferentemente do que se pensou tanto na antiguidade como entre muitos dos comenta-

dores contemporacircneos ndash a etimologia da palavra natildeo indica a ldquoentradardquo de algo na alma

nem sequer deriva diretamente do termo psycheacute Ao contraacuterio conforme anota com ra-

zatildeo Casadio

Formou-se a partir do verbo empsychoo ldquoanimarrdquo (que por sua vez estaacute conectado atraveacutes de empsychos e psyche ao verbo psycho ldquoso-prarrdquo) ao qual foi acrescentado o preveacuterbio meta (lat trans) que deno-ta natildeo somente a mudanccedila mas tambeacutem a sucessatildeo ou repeticcedilatildeo e o sufixo sis denotando a accedilatildeo abstrata (1991 122-123)224

do traacutecio Zalmoxis narrada por Heroacutedoto (IV 94-95) que teria sido disciacutepulo de Pitaacutegoras como se veraacute a seguir 222 A menccedilatildeo ao κύkλος da alma estaacute presente de maneira muito significativa em um texto da literatura oacuterfica antiga A terceira lacircmina de ouro oacuterfica de Thurii (fr 32c Kern 4 A 65 Colli II B1 Pugliese Carra-telli) assim reza ldquovoei longe do ciacuterculo doloroso que provoca grave inquietaccedilatildeordquo Agora tambeacutem em Tortorelli Ghidini (2006 74-75) 223 Cf abaixo para as referecircncias 224 Orig ldquosi egrave formato a partire dalo verbo empsychoo lsquoanimarersquo (che a sua volta egrave collegato attraverso empsychos e psyche al verbo psycho lsquosoffiarersquo) cui egrave stato aggiunto il preverbio meta (lat trans) denotante non solo il cambiamento ma anche la successione o ripetizione e il suffissale -sis denotante lacuteazione astrattardquo Cf para os antigos especialmente Olimpiodoro (in Phaed 135 Westerink) Para os contemporacircneos Kereacutenyi (1950 24) e Von Fritz (1957 89 n1)

117

O campo semacircntico da metempsicose portanto em suas origens e mesmo em

seu uso sucessivo denota a ideia de um soprar novamente a alma para dentro de um

corpo O ciclo eacute assim concebido como uma seacuterie de novas inalaccedilotildees da alma-vida i-

magem esta que remete agravequela do pneucircma no interior de um corpo e eacute claramente de-

pendente portanto da concepccedilatildeo fiacutesica jocircnica de era Como revela o fr 2 de Anaxiacuteme-

nes que articula os trecircs termos psycheacute pneucircma e aer na mesma frase ldquocomo ndash dizem ndash

nossa alma que eacute ar nos manteacutem juntos assim o ar e o sopro mantecircm junto o inteiro

cosmordquo (13 B2 DK)225 Sinal forte este da continuidade ao menos em relaccedilatildeo agrave semacircn-

tica da metempsicose com as concepccedilotildees mais antigas da alma-sopro-vida226

O que mais importa todavia agrave economia destas paacuteginas eacute que a tradiccedilatildeo desde

muito cedo aproxima a teoria da transmigraccedilatildeo agrave figura de Pitaacutegoras como veremos a

seguir Sobre isso ateacute os dias atuais conforme ficaraacute claro a seguir ldquoferve sempre viva

a discussatildeordquo (Zeller e Mondolfo 1938 560) jaacute nas palavras de Modolfo

31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes)

A crenccedila de Pitaacutegoras neste movimento da alma eacute testemunhada no ceacutelebre

fragmento praticamente contemporacircneo a Pitaacutegoras de Xenoacutefanes

E conta-se que passava [Pitaacutegoras] ao ser castigado um cachorrinho sentiu piedade e pronunciou as seguintes palavras ldquoPara de bater Pois eacute a alma de um amigo meu que reconheci ao ouvir os seus gemidosrdquo (21 B7 DK = D L Vitae VIII 36)227

O fragmento eacute provavelmente a tradiccedilatildeo mais antiga que possuiacutemos sobre Pitaacute-

goras Apesar de algumas poucas tentativas tendentes a negar a identificaccedilatildeo de Pitaacutego-

ras como autor do dito citado no fragmento no contexto de um posicionamento ceacutetico

generalizado em relaccedilatildeo ao fato de a metempsicose poder ser considerada como doutri-

na pitagoacuterica originaacuteria (Kern 1888 499 Rathmann 1933 37-38 Maddalena 1954

225 Orig ldquo οἶον ἡ ψυχή φησίν ἡ ἡmicroετέρα ἀὴρ οὖσα συγκρατεῖ ἡmicroᾶς καὶ ὅλον τὸν κόσmicroον πνεῦmicroα καὶ ἀὴρ περιέχειrsquo rdquo (13 B2 DK) 226 Cf para esta continuidade as observaccedilotildees de Casadio (1991 142) e Bernabeacute (2004 76-78) 227 Orig ldquo καί ποτέ microιν στυφελιζοmicroένου σκύλακος παριόντα φασὶν ἐποικτῖραι καὶ τόδε φάσθαι ἔπο-ς ldquoπαῦσαι microηδὲ ῥάπιζ ἐπεὶ ἦ φίλου ἀνέρος ἐστὶ ψυχή τὴν ἔγνων φθεγξαmicroένης ἀΐωνrdquo (D L Vitae VIII 36)

118

335 Casertano 1987 19ss) haacute hoje amplo consenso sobre a referecircncia da personagem

citada por Xenoacutefanes como Pitaacutegoras a comeccedilar por Zeller (1938 314) Burnet (1908

120ss) Rostagni (1982 55) Long (1948 17) Dodds (1951 143 n55) Timpanaro Car-

dini (1958-62) ateacute os trabalhos mais recentes de Burkert (1972 120s) Huffman (1993

331) Centrone (1996 54) Kahn (2011 11) e Riedweg (2007 104)228

Os argumentos de Maddalena contra a atribuiccedilatildeo da doutrina a Pitaacutegoras reve-

lam quase que pelo avesso os motivos de sua quase certa atribuiccedilatildeo Ao afirmar que ldquoo

fato que a citaccedilatildeo da passagem de Xenoacutefanes dependa provavelmente de uma fonte an-

tipitagoacuterica torna ainda mais inadequada a presunccedilatildeo da segura atribuiccedilatildeordquo (Maddalena

1954 336)229 Maddalena revela de certa maneira natildeo ter compreendido o jogo irocircnico

da memoacuteria Ao contraacuterio de Burnet (1908) quando afirma ldquotorna-se praticamente cer-

to que se trata de Pitaacutegoras quando encontramos Xenoacutefanes negando issordquo (1908

120)230 Pois eacute exatamente a zombaria que revela uma intenccedilatildeo antipitagoacuterica na fonte

de Xenoacutefanes a confirmar a importacircncia dada agrave teoria da metempsicose como elemento

identificador do Pitaacutegoras histoacuterico Como no caso paralelo dos fragmentos polecircmicos

de Heraacuteclito conforme se veraacute em seguida o fato de o testemunho ser originaacuterio de

ambientes contraacuterios e natildeo pitagoacutericos soacute faz aumentar seu valor como testemunho

confiaacutevel Pois natildeo seria compreensiacutevel o porquecirc de a tradiccedilatildeo da literatura pitagoacuterica

manter esta memoacuteria natildeo certamente simpaacutetica ao movimento se esta natildeo constituiacutesse

minimamente uma referecircncia antiga a um dos pilares de sua doutrina isto eacute a imortali-

dade da alma (Cornelli 2003a 203)231

Ao olhar o testemunho xenofacircnico em seu contexto de uma traditio no interior

das Vidas de Dioacutegenes Laeacutercio eacute possiacutevel notar como a passagem aparece bem no meio

228 Cf Casadio (1991 119-123) para a argumentaccedilatildeo sobre a oportunidade de usar o termo metempsicose no lugar de metemsomatose para indicar a doutrina da transmigraccedilatildeo da alma Em resumo o termo seria atestado mais precisamente somente a partir do seacuteculo II EC com Celso e Clemente Alexandrino e tra-duziria a ideia da reincorporaccedilatildeo do que aquela da reencanaccedilatildeo o uso desse termo preferido pelo plato-nismo tardio (eacute certamente o caso da escola de Plotino) trai uma preocupaccedilatildeo e uma tendecircncia antissomaacute-tica 229 Orig ldquoil fatto che la citazione del passo di Senofane egrave molto probabilmente dovuta a uno scrittore antipitagorico rende ancor piugrave inadeguata la presunzione della certa attribuizionerdquo 230 Orig ldquobecomes practically certain that it was that of Pythagoras when we find that Xenophanes denied itrdquo 231 Eacute significativo que em uma passagem das obras perdidas de Aristoacuteteles ndash com toda probabilidade de seu Sobre os pitagoacutericos ndash seja preservada uma anedota paralela pela qual Pitaacutegoras teria reconhecido no cadaacutever de Milias de Crotona a alma receacutem-reencarnada do rei Midas (fr 1 Ross = Iambl VP 140-143) Nese caso todavia em um contexto distante de qualquer intenccedilatildeo polecircmica ou irocircnica

119

de uma seacuterie de escaacuternios a Pitaacutegoras e suas doutrinas A citaccedilatildeo do fragmento de Xenoacute-

fanes eacute de fato precedida por um testemunho atribuiacutedo a Timatildeo de Fliunte que nas

proacuteprias palavras de Dioacutegenes Laeacutercio move criacuteticas literalmente mordazes (o verbo

utilizado eacute mesmo daacutekno morder) a Pitaacutegoras ldquoPitaacutegoras que tende a usar encantamen-

tos para caccedilar homens cheio de palavras majestosasrdquo (D L Vitae VIII 36)232 Agrave passa-

gem xenofaneia segue-se imediatamente depois uma criacutetica do comedioacutegrafo Cratino

que dedica aos pitagoacutericos nos Tarentinos alguns versos cujo interesse historiograacutefico

apesar de grande supera o acircmbito proacuteprio desta anaacutelise O comedioacutegrafo ateniense os

apresenta de fato como haacutebeis sofistas

Eles tecircm o costume se alguma vez encontram algueacutem inexperiente de fazer-lhe um exame completo da forccedila de seus raciociacutenios confundin-do-o e arrasando-o com argumentos definiccedilotildees antiacuteteses equaccedilotildees e grandezas com grande exibiccedilatildeo de inteligecircncia (D L Vitae VIII 37)233

O mesmo Dioacutegenes Laeacutercio atesta em outra passagem as intenccedilotildees polecircmicas

de Xenoacutefanes contra Pitaacutegoras234 A confirmaccedilatildeo de que se trata mesmo de Pitaacutegoras a

expressatildeo kai poacutete (ldquoe outra vezrdquo) no iniacutecio dela sugere que outros testemunhos sobre

Pitaacutegoras teriam sido relatados anteriormente por Xenoacutefanes ainda que Dioacutegenes Laeacuter-

cio natildeo os tenha relacionado

No entanto um detalhe torna o fragmento ainda mais interessante pela economia

desta tese Apesar de representar provavelmente a mais antiga referecircncia agrave teoria da

metempsicose de Pitaacutegoras o texto revela tambeacutem de imediato grave dificuldade histo-

riograacutefica que sugere cautela em atribuir indiscutivelmente ao Pitaacutegoras histoacuterico e ao

232Orig ldquo Τὴν δὲ σεmicroνοπρέπειαν τοῦ Πυθαγόρου καὶ Τίmicroων ἐν τοῖς Σίλλοις δάκνων αὐτὸν ὅmicroως οὐ παρέ-λιπεν εἰπὼν οὕτωςrdquo (D L Vitae VIII 36) 233Orig ldquo ἔθος ἐστὶν αὐτοῖς ἄν τιν ἰδιώτην ποθὲν λάβωσιν εἰσελθόντα διαπειρώmicroενον τῆς τῶν λόγων ῥώmicroης ταράττειν καὶ κυκᾶν τοῖς ἀντιθέτοις τοῖς πέρασι τοῖς παρισώmicroασιν τοῖς ἀποπλάνοις τοῖς microεγέθε-σιν νουβυστικῶςrdquo (D L Vitae VIII 37) O interesse historiograacutefico da passagem de Cratino deve ser reconduzido agrave questatildeo apenas esboccedilada no capiacutetulo primeiro (16) da ligaccedilatildeo entre pitagorismo e primei-ra sofistica a partir das sugestotildees de Rostagni (1922 149) Eacute este certamente um toacutepico que mereceria urgente revisatildeo histoacuterica 234 DL Vitae IX 18 que lembra na mesma passagem de sua criacutetica tambeacutem a Tales de Mileto Xenocircfa-nes teria demonstrado ceticismo em relaccedilatildeo agrave ceacutelebre memoacuteria da previsatildeo do eclipse por Tales (21 B19 DK) criticando a filosofia da natureza de Anaximandro (21 B 27-29 33 DK 21 A 47 DK) e significati-vamente desconfiado de Epimecircnides (21 B19 DK) e da macircntica em geral (21 A52 DK) Portanto para aleacutem da celebre criacutetica agrave teologia de Homero e Hesiacuteodo (21 A1 DK) Xenocircfanes parece ocupar-se tambeacutem de expressotildees religiosas natildeo tradicionais como eacute o caso de Epimecircnides e Pitaacutegoras De fato como anota corretamente Riedweg (2002 105) para algueacutem como Xenoacutefanes Pitaacutegoras e os pitagoacutericos com suas pretensotildees eacutetico-religiosas deviam resultar particularmente irritantes

120

protopitagorismo esta mesma doutrina Notadamente pelo uso do termo central desta

discussatildeo isto eacute o termo psycheacute no caso atribuiacutedo ao cachorrinho Tanto Burkert

(1972 134 n77) como Huffman (1988 1993 331) anotam com razatildeo que o testemunho

de Xenoacutefanes natildeo atribui propriamente uma alma ao cachorrinho e sim afirmaria que o

cachorrinho ldquoseriardquo (estiacute) a alma de um amigo Este detalhe aparentemente miacutenimo eacute

em verdade o sintoma de um problema mais profundo certamente natildeo simples de ser

resolvido qual teria sido a real concepccedilatildeo protopitagoacuterica da imortalidade da alma isto

eacute professada por Pitaacutegoras e seus primeiros disciacutepulos

O caminho de resoluccedilatildeo da questatildeo passa certamente por uma anaacutelise do proacuteprio

termo psycheacute conforme aparece no testemunho de Xenoacutefanes Ainda que o fragmento

possa provar a relaccedilatildeo de Pitaacutegoras com as teorias da metempsicose natildeo eacute certamente

razoaacutevel pensar que o termo em si possa constituir achado arqueoloacutegico dos pretensos

ipsissima verba de Pitaacutegoras235 Isto eacute nada indica que a expressatildeo estiacute psycheacute (ldquoseria a

almardquo) possa ser considerada como um fragmento de Pitaacutegoras Agrave prova disso o mesmo

Empeacutedocles ele proacuteprio pensador da imortalidade da alma e tambeacutem de acircmbito pitagoacute-

rico236 ainda natildeo utiliza o termo psycheacute em suas teorias da imortalidade e sim o termo

daiacutemones (31 B115 DK)237

A primeira fonte pitagoacuterica escrita a utilizar o termo psycheacute eacute Filolau em seu fr

13

E quatro satildeo os princiacutepios do animal racional como tambeacutem Filolau diz em Sobre a natureza ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e genitaacutelias A ca-beccedila da mente o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o umbigo do enrai-zamento e crescimento primitivo as genitaacutelias da jogada da semente e da geraccedilatildeo E o ceacuterebro eacute o princiacutepio do ser humano o coraccedilatildeo do a-nimal o umbigo da planta e as genitaacutelias de todas as coisas juntas pois da semente brotam e crescem (44 B13 DK)238

235 Cf Huffman (1993 331) ldquoit seems perverse to seize upon the second-hand satirical remarks of Xeno-phanes and use it as the basis on which to reconstruct the Pythagorean doctrine of psycherdquo 236 Como afirma Kingsley (1995) mas jaacute antes o mesmo Burkert (1972 57 n26) 237 Cf para isso Dodds (1951 174s) Guthrie (1962 319) Philip (1966 157-158) Para uma resenha do uso preacute-socraacutetico do termo cf Balaudeacute (2002) 238 Orig ldquo καὶ τέσσαρες ἀρχαὶ τοῦ ζώιου τοῦ λογικοῦ ὥσπερ καὶ Φ ltἐν τῶι Περὶ φύσεωςgt λέγει ἐγκέφ-αλος καρδία ὀmicroφαλός αἰδοῖον ltlsquoκεφαλὰ microὲν νόου καρδία δὲ ψυχᾶς καὶ αἰσθήσιος ὀmicroφαλὸς δὲ ῥιζώσ-ιος καὶ ἀναφύσιος τοῦ πρώτου αἰδοῖον δὲ σπέρmicroατος [καὶ] καταβολᾶς τε καὶ γεννήσιος ἐγκέφαλος δὲ ltσαmicroαίνειgt τὰν ἀνθρώπω ἀρχάν καρδία δὲ τὰν ζώου ὀmicroφαλὸς δὲ τὰν φυτοῦ αἰδοῖον δὲ τὰν ξυναπάντω-ν πάντα γὰρ ἀπὸ σπέρmicroατος καὶ θάλλοντι καὶ βλαστάνοντιrdquo (44 B13 DK) Em favor da autenticidade do fragmento amplamente discutida cf a argumentaccedilatildeo mais recente de Huffman (1993 307)

121

O coraccedilatildeo eacute aqui dito archeacute da psycheacute e dos sentidos portanto No entanto o

fragmento de Filolau no lugar de resolver a questatildeo parece complicaacute-la ainda mais

Pois aqui alma eacute indiscutivelmente uma realidade que diz respeito aos fenocircmenos da

vida animal e natildeo algo que possa ser pensado como imortal Por esse motivo Burkert

(1972 270) seguido por Huffman (1993 312) propotildee que a traduccedilatildeo mais correta deva

ser simplesmente vida por tratar-se neste caso de um uso preacute-platocircnico do termo psy-

cheacute que natildeo quer indicar o complexo de faculdades psiacutequicas da forma que iraacute signifi-

car mais tarde

Esta mesma acepccedilatildeo do termo eacute confirmada por um testemunho aristoteacutelico que

significativamente aproxima a teoria da alma pitagoacuterica com aquela de Demoacutecrito

O que dizem os pitagoacutericos parece seguir o mesmo raciociacutenio [dos a-tomistas] pois alguns deles declaram que a alma satildeo as poeiras no ar outros por sua vez que ela eacute o que faz com que se movam (De an 404a16)239

Jaacute foi anotado anteriormente que eacute bastante plausiacutevel que quando Aristoacuteteles fa-

la indistintamente de pitagoacutericos esteja de fato pensando no pitagorismo do seacuteculo V e

mais propriamente em Filolau (cf 11) O acircmbito semacircntico da psycheacute pitagoacuterica seria

portanto aquele do movimento dos seres animados e com uma conotaccedilatildeo marcadamen-

te materialista a alma seria um amontoado de elementos minuacutesculos (xuacutesmata poeiras)

sempre em movimento localizados no coraccedilatildeo A teoria da harmoniacutea que eacute pressuposta

a todo elemento material pensada por Filolau como acordo de limitantes e ilimitados

(44 B1 DK) revela as formas desse movimento que seguiratildeo portanto como todas as

realidades padrotildees rigorosamente harmocircnicos240

239 Orig ldquo ἔοικε δὲ καὶ τὸ παρὰ τῶν Πυθαγορείων λεγόmicroενον τὴν αὐτὴν ἔχειν διάνοιαν ἔφασαν γάρ τινες αὐτῶν ψυχὴν εἶναι τὰ ἐν τῷ ἀέρι ξύσmicroατα οἱ δὲ τὸ ταῦτα κινοῦν περὶ δὲ τούτων εἴρηται ὅτι συνεχῶς φαίνεται κινούmicroενα κἂν ᾖ νηνεmicroία παντελήςrdquo (De an 404a16) A traduccedilatildeo eacute de Maria Ceciacutelia Gomes dos Reis (Aristoacuteteles 2006) Deve-se notar que a comparaccedilatildeo entre os dois movimentos (pitagorismo e atomismo) eacute sublinhada pelo texto tradito de Ross com a inserccedilatildeo da qualificaccedilatildeo esfeacutericos (τὰ σφαιροει-δῆ) atribuiacuteda aos aacutetomospoeira na linha 2 a 4 de 404a Diels propotildee emenda desta por consideraacute-la uma glosa daquilo que eacute depois dito dos pitagoacutericos na linha 16 e seguintes na passagem (67 A28 DK) aqui em pauta 240 Natildeo eacute o caso de subestimar um significativo ponto de conexatildeo entre a concepccedilatildeo pitagoacuterica e atomista de ψυχή ambas estatildeo profundamente ligadas ao ambiente da medicina antiga Burkert e Huffman falam respectivamente de medical mileu (Burkert 1972 272) e medical background (Huffman 1993 329) como estando por traacutes de ambos Gemelli chega a postular natildeo haver distinccedilotildees entre filosofia e medicina ateacute a terceira parte do seacuteculo V aEC keine Grenzen (Gemelli 2007) Certamente haacute profunda influecircncia sobre a concepccedilatildeo da ψυχή de ambas as ldquoescolasrdquo por parte das teorias da sauacutede como equiliacutebrio (microέτρον) ou

122

No entanto essa teoria da psycheacute como harmonia e composiccedilatildeo de elementos

materiais eacute evidentemente contraditoacuteria com aquela de sua imortalidade241 Como conci-

liaacute-la portanto com a memoacuteria acima de Porfiacuterio (VP 19) pela qual a doutrina da me-

tempsicose seria uma das doutrinas mais ceacutelebres de Pitaacutegoras e com o fragmento de

Xenoacutefanes pelo qual o proacuteprio Pitaacutegoras teria demonstrado pensar na imortalidade da

alma e em suas transmigraccedilotildees

Imaginar que Filolau natildeo devia acreditar na imortalidade da alma como sugere

Wilamowitz (1920 II 90) eacute soacute aparentemente lectio facilior242 Pelos criteacuterios desen-

volvidos ao longo do capiacutetulo segundo sobre a questatildeo da identidade do pitagoacuterico que

se dizia entatildeo estar ligada mais a um estilo de vida do que a uma coerecircncia doutrinaacuteria

seria realmente muito difiacutecil imaginar que Filolau natildeo acreditasse na metempsicose

Pois essa mesma teoria eacute pressuposto de muita parte da ritualidade e da mitologia (e

filosofia) pitagoacutericas e Filolau teria tido muita dificuldade para ser identificado como

pitagoacuterico sem que professasse de alguma maneira essa teoria Ao contraacuterio seria mais

faacutecil imaginar que Filolau pensasse sim na imortalidade da alma mas como eacute o caso

de Empeacutedocles acima utilizasse outra terminologia que natildeo psycheacute para indicar essa

parcela imortal do indiviacuteduo

Tratar-se-ia portanto no caso do pitagorismo preacute-platocircnico da coexistecircncia de

duas noccedilotildees diferentes de alma no resumo que Guthrie faz da questatildeo (1964)

Duas diferentes noccedilotildees de alma portanto existiam na crenccedila daquele tempo a psycheacute que lsquoesvaecia como fumaccedilarsquo ao morrer e que os es-critores de medicina (incluindo sem duacutevida alguns ceacuteticos e pitagoacuteri-cos hereges) racionalizaram na harmonia dos opostos fiacutesicos que datildeo origem ao corpo e o mais misterioso daiacutemon no homem imortal e que sofre transmigraccedilatildeo atraveacutes de vaacuterios corpos mas que em sua es-secircncia mais pura eacute divino Isto tambeacutem pode ser chamado psycheacute e o

ἰσονοmicroία Cf o uso destes termos por Alcmeon (24 B4 DK) como tambeacutem Peixoto (2009) e Cornelli (2009a) 241 A ideia de Drosdek (2007 66) pela qual o estaacutegio final das reencarnaccedilotildees seria a harmonia natildeo passa de uma conjectura como o proacuteprio autor admite (ldquoWe can only guess na answer And the answer is har-monyrdquo) sem bases filoloacutegicas para sua sustentaccedilatildeo 242 Esta mesma doutrina eacute defendida por Platatildeo no Feacutedon (85) por intermeacutedio de Siacutemias Jaacute Zeller e Mon-dolfo (1938 563) e Cornford (1922) perceberam que na verdade esta mesma contradiccedilatildeo natildeo deveria ter sido percebida como tal pelos pitagoacutericos do V seacuteculo Seja porque a harmonia se referiria somente agraves partes da alma e natildeo aos seus elementos corpoacutereos (Rohde 1920) ou exclusivamente agrave parte da alma destinada agrave morte junto como o corpo (Rostagni 1982) A ampla discussatildeo da questatildeo por Guthrie (1964 308-319) conecta a questatildeo agrave harmonia coacutesmica enquanto Philip (1966 163ss) sugere que a concepccedilatildeo da alma como ἁρmicroονία natildeo seria filolaica e sim uma retroprojeccedilatildeo platocircnica

123

eacute em Platatildeo Ambas sobrevivem lado a lado no pensamento religioso geral corrente e ambas sobrevivem na curiosa combinaccedilatildeo de filoso-fia matemaacutetica e misticismo religioso do qual eacute feito o pitagorismo (1964 119)243

Eacute certamente o caso portanto a partir desta introduccedilatildeo agraves questotildees historiograacutefi-

cas ligadas agrave teoria da alma pitagoacuterica de recolher provisoriamente duas sugestotildees her-

menecircuticas a serem desenvolvidas ao longo das proacuteximas paacuteginas

Em primeiro lugar Pitaacutegoras e seu movimento elaboraram com toda probabili-

dade uma teoria da imortalidade da alma que tem em sua metempsicose um dos elemen-

tos-chave Essa elaboraccedilatildeo parece ser reconhecida pelas fontes antigas como seraacute visto

com mais detalhes a seguir como um dos traccedilos mais caracteriacutesticos do pensamento

sobre a alma na antiguidade O reconhecimento dessa atribuiccedilatildeo natildeo implica todavia a

afirmaccedilatildeo pela qual a teoria pitagoacuterica da alma constitua um sistema articulado e dog-

maacutetico de crenccedilas uma doutrina coerente Eacute possiacutevel concordar nesse sentido com as

observaccedilotildees de cunho antropoloacutegico de Burkert quando afirma que

Concepccedilotildees do aleacutem-tuacutemulo satildeo e sempre foram sincreacuteticas Eacute somen-te a teologia que daacute as caras mais tarde na tradiccedilatildeo a interessar-se por nivelar as diferenccedilas [] Somente um dogma sem vida eacute preservado sem mudanccedilas ao contraacuterio uma doutrina levada a seacuterio eacute continua-mente revisada ao longo de um processo contiacutenuo de reinterpretaccedilatildeo (Burkert 1972 135)244

Dessa forma toda coerecircncia da qual o objeto precisa seraacute aquela do estilo de vi-

da que dessa crenccedila eacutetico-religiosa deriva isto eacute do lado acusmaacutetico do biacuteos nos mol-

des daquilo que se acenava acima em relaccedilatildeo a Filolau e sua concepccedilatildeo da alma

243 Orig ldquoTwo different notions of soul then existed in contemporary belief the psycheacute which lsquovanished like smokersquo at death and which medical writers (including no doubt some sceptical and therefore hereti-cal Pythagoreans) rationalized into a harmonia of the physical opposites that made up the body and the more mysterious daiacutemon in man immortal suffering transmigration through many bodies but in its pure essence divine This too could be called psycheacute as it was by Plato Both survived side by side in the gen-eral current of religious thought and both also survived in the curious combination of mathematical philosophy and religious mysticism which made up Pythagoreanismrdquo Da mesma forma parece compreender metodologicamente a questatildeo da coexistecircncia de diversas teorias da alma ao longo do desenvolvimento do pitagorismo Zeller e Mondolfo (1938 563) ldquo[nel pitagorismo] le concezioni vecchie paion continuare a sussistere accanto alle nuove non che ad altri svolgimenti collaterali pur derivati dallacuteunione di elementi preesistentirdquo 244 Orig ldquoConceptions of the afterlife are and have always been syncretistic It is only theology corning along rather late in the tradition that is interested in smoothing out the differences [hellip] Only dead dog-ma is preserved without change doctrine taken seriously is always being revised in the continuous process of reinterpretationrdquo

124

Em segundo lugar o testemunho de Xenoacutefanes com seu uso extemporacircneo do

termo psycheacute aponta para a necessidade de verificar em que medida a histoacuteria da tradi-

ccedilatildeo apropria-se das teorias pitagoacutericas da imortalidade da alma com seu leacutexico proacuteprio

e suas imagens miacuteticas associadas para construir uma categoria historiograacutefica que dia-

logue em cada um dos momentos histoacutericos dessa transmissatildeo

As paacuteginas a seguir seratildeo tecidas a partir dessas duas sugestotildees acima De um

lado por meio da busca por um conjunto doutrinaacuterio que corresponda a uma teoria da

alma protopitagoacuterica por outro lado acompanhando a construccedilatildeo da categoria do pita-

gorismo a partir de sua teoria da imortalidade da alma

32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios)

A comeccedilar por outro fragmento atribuiacutedo a Iacuteon de Quios que em versos elegiacutea-

cos dedicados a Fereacutecides nomeia da seguinte maneira Pitaacutegoras

Assim ele [Fereacutecides] insigne pela alma viril e pela dignidade mesmo falecido goza com a alma de uma vida bem-aventurada se realmente Pitaacutegoras o saacutebio mais do que todos havia compreendido as disposiccedilotildees mentais dos homens (36 B4 DK)245

Certa dificuldade de compreender a relaccedilatildeo aqui estabelecida entre Pitaacutegoras e

Fereacutecides depende provavelmente do fato de que o contexto integral da citaccedilatildeo foi per-

dido Eacute possiacutevel todavia conjecturar como fazem Kranz (1934 104) e Riedweg (2007

110) que a conexatildeo entre Fereacutecides e Pitaacutegoras no contexto de uma vida bem-

aventurada aleacutem-tuacutemulo esteja ligada de um lado agrave avaliaccedilatildeo geral pela qual Fereacutecides

teria levado uma vida altamente moral que consequentemente mereceu uma retribuiccedilatildeo

bem-aventurada do outro lado agrave renomada sabedoria de Pitaacutegoras sobre assuntos como

esses isto eacute agraves suas ceacutelebres teorias da imortalidade da alma

Um argumento parece corroborar esta leitura o mesmo Iacuteon refere-se em outro

fragmento a Pitaacutegoras como o autor de alguns dos poemas oacuterficos ldquoIacuteon de Quios nos 245 Orig ldquo ὣς ὁ microὲν ἠνορέηι τε κεκασmicroένος ἠδὲ καὶ αἰδοῖ καὶ φθίmicroενος ψυχῆι τερπνὸν ἔχει βίοτον εἴπερ Πυθαγόρης ἐτύmicroως ὁ σοφὸς περὶ πάντων ἀνθρώπων γνώmicroας εἶδε καὶ ἐξέmicroαθενrdquo (36 B4 DK) Acolhe-se aqui para o v3 a emenda de Sandbach (195859) que introduz uma ideia importante na citaccedilatildeo como aquela do conhecimento que Pitaacutegoras possui conforme veremos da histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo

125

Triagmas diz que Pitaacutegoras atribuiu a Orfeu alguns poemas por ele escritosrdquo (36 B2

DK)246 Eacute este certamente o testemunho mais antigo da relaccedilatildeo de Pitaacutegoras com o or-

fismo Ver-se-atildeo em seguida mais aprofundadamente as consequecircncias dessa relaccedilatildeo

para a compreensatildeo da teoria da imortalidade da alma no pitagorismo Haacute de fato ime-

diatamente outro detalhe no fr 4 de Iacuteon que natildeo pode passar despercebido a expressatildeo

sophoacutes periacute paacutenton anthroacutepon ldquosaacutebio mais do que todos os homensrdquo ecoa imediata-

mente o ceacutelebre fragmento 129 de Heraacuteclito247 A referecircncia teria tom polecircmico como a

querer corrigir o tiro de Heraacuteclito que nos dois fragmentos que avaliaremos logo mais

refere-se a Pitaacutegoras sempre de maneira sarcaacutestica

Heraacuteclito eacute sem duacutevida outra fonte essencial para a compreensatildeo do lugar inte-

lectual de Pitaacutegoras em seu tempo O diaacutelogo de Iacuteon com o testemunho heracliacutetico pode

de fato jogar uma luz toda especial sobre o sentido de sua criacutetica dirigida contra Pitaacutego-

ras

Heraacuteclito no contexto de uma criacutetica ampla e irrestrita dirigida agraves autoridades

intelectuais de seu tempo notadamente Homero e Hesiacuteodo lanccedila suas proverbiais fle-

chas contra o proacuteprio Pitaacutegoras identificado jaacute como um dos mais importantes intelec-

tuais de seu tempo

Pitaacutegoras filho de Mnesarco praticou a pesquisa mais de qualquer um e tendo feito uma escolha desses textos com isso conseguiu sua proacute-pria sabedoria que eacute vaacuteria erudiccedilatildeo charlatanaria (22 B 129 DK)248

A historiacutee eacute a pesquisa cientiacutefica da escola iocircnica que Heraacuteclito bem conhece

Pitaacutegoras eacute aqui compreendido como excelente nessa pesquisa No entanto essa mesma

pesquisa na qual Pitaacutegoras se sobressaiu em relaccedilatildeo a todos os outros e que parece va-

ler-lhe um ineacutedito elogio do proacuteprio Heraacuteclito (ldquopraticou mais de qualquer umrdquo) eacute ao

contraacuterio compreendida por Heraacuteclito como ldquomulticiecircnciardquo (polymathiacutea) e como ldquochar-

lataneriardquo (kakotecniacutea) com uma referecircncia ambiacutegua a certos ldquoescritosrdquo aos quais teria

246 Orig ldquo Ἴων δὲ ὁ Χῖος ἐν τοῖς Τριαγmicroοῖς καὶ Πυθαγόραν εἰς Ὀρφέα ἀνενεγκεῖν τινα ἱστορεῖrdquo (36 B2 DK) 247 Cf 22 B129 DK Natildeo passou de fato despercebido Cf Kranz (1934 227) pelo qual esta referecircncia a Heraacuteclito seria prova da autenticidade desse fragmento de Iacuteon mas tambeacutem Zeller e Mondolfo (1938 317s) Timpanaro Cardini (1958-62 I 20) Burkert (1972 123 n13) Riedweg (2002 110-111) entre outros 248 Orig ldquo Πυθαγόρης Μνησάρχου ἱστορίην ἤσκησεν ἀνθρώπων microάλιστα πάντων καὶ ἐκλεξάmicroενος ταύτ-ας τὰς συγγραφὰς ἐποιήσατο ἑαυτοῦ σοφίην πολυmicroαθίην κακοτεχνίηνrdquo (22 B 129 DK)

126

feito referecircncia anteriormente conforme sugeriria o termo tauacutetas Enquanto a histoacuteria

da criacutetica tentou adivinhar quais teriam sido esses escritos o contexto imediato deles

pode ser sugerido por outro fragmento criacutetico em relaccedilatildeo a Pitaacutegoras

Muita erudiccedilatildeo natildeo ensina a compreensatildeo De outra maneira a teria ensinado tanto a Hesiacuteodo como a Pitaacutegoras e tambeacutem a Xenoacutefanes e Hecateu (22 B 40 DK)249

A proximidade de Hesiacuteodo e Pitaacutegoras no fragmento acima parece indicar que os

escritos deste uacuteltimo estariam ligados agrave literatura que tem como seus primeiros expoen-

tes tanto Hesiacuteodo como Homero Literatura esta que Heraacuteclito todavia desdenha250

Com essas referecircncias natildeo surpreende que a sabedoria de Pitaacutegoras tenha tido um resul-

tado tatildeo inaceitaacutevel251 Outras sugestotildees levantadas eacute que seriam no interior das teorias

de uma derivaccedilatildeo oriental da doutrina pitagoacuterica escritos de matemaacutetica babilocircnios por

exemplo ou quiccedilaacute egiacutepcios252

O fragmento de Iacuteon considerado logo acima conforme se anunciava pode cor-

roborar uma terceira hipoacutetese de atribuiccedilatildeo destas syacutengraphai de Pitaacutegoras pela qual

seriam textos de matriz oacuterfica Ao que parece com precisas referecircncias textuais quase

citaccedilotildees invertidas Iacuteon estaria querendo defender Pitaacutegoras agora jaacute em acircmbito ateni-

ense dos ataques que Heraacuteclito havia lanccedilado contra ele E faria isso de um lado iden-

tificando esses escritos conforme se viu no fr 2 como textos oacuterficos pseudoepigraacutefi-

cos por outro lado identificando a historiacutee com a praacutetica do conhecimento da palingecirc-

nese das vidas pregressas isto eacute da histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo como a mencio-

nada emenda de Sandbach (195859) ao fr 4 ndash acima citada ndash parece sugerir ldquohavia

compreendido as disposiccedilotildees mentais dos homensrdquo (36 B4 DK) A criacutetica de Heraacuteclito

249 Orig ldquo πολυmicroαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάν-εά τε καὶ Ἑκαταῖονrdquo (22 B 40 DK) 250 Cf 22 B57 e 106 DK para Hesiacuteodo 22 A22 DK para Homero Para uma discussatildeo mais aprofundada da relaccedilatildeo entre πολυmicroαθίη e κακοτεχνίη cf Gemelli (2007a 13ss) 251 Recentemente Burkert (1998 306) sugeriu a possibilidade de esses escritos serem do tipo dos escritos de Fereacutecides ou ateacute mesmo poemas oacuterficos Kahn (2001 17 n32) imaginaacute-los-ia mais provavelmente como algo intermediaacuterio entre os escritos de Anaximandro e de Filolau 252 A ligaccedilatildeo do pitagorismo com o Egito eacute testemunhada senatildeo jaacute pelos mesmos estudos matemaacuteticos pela presenccedila de um templo a Hera com formas arquitetocircnicas egiacutepcias em Samos no VI aEC (Kingsley 1999 16) assim como por algumas referecircncias a isso do mesmo Heroacutedoto que em suas consideraccedilotildees sobre os usos sepulcrais dos egiacutepcios (que sepultavam os mortos em vestes de linho e natildeo de latilde como na Greacutecia) afirma ldquoTal [costume] corresponde aos chamados Orfikaacute e Bacchikaacute que na verdade satildeo egiacutep-cios e pitagoacutericosrdquo (Herodt II 81)

127

assim como a defesa de Iacuteon seriam todas voltadas agrave forte presenccedila na sophiacutea de Pitaacutego-

ras de teorias da imortalidade da alma de matriz oacuterfica Ambas constituem dessa for-

ma testemunhos preciosos da antiguidade da atribuiccedilatildeo dessas doutrinas ao protopita-

gorismo senatildeo ao mesmo Pitaacutegoras 253

A literatura pitagoacuterica posterior iraacute identificar essa psicologia genealoacutegica da

alma operada por Pitaacutegoras como fundamento de sua estrateacutegia cliacutenica ldquoPitaacutegoras co-

nhecia suas existecircncias preacutevias e iniciava a cura dos homens evocando a memoacuteria de

suas vidas anterioresrdquo (Iambl VP 63)254 A epimeacuteleia pitagoacuterica portanto da qual eacute

repleta a tradiccedilatildeo sobre Pitaacutegoras depende em uacuteltima anaacutelise de suas capacidades de

historiador da alma

Diversos testemunhos apontam para a fama de suas capacidades de cura dizia-se

entre as cidades que frequentava que ele ldquonatildeo viria para ensinar e sim para curarrdquo255 A

tradiccedilatildeo da cura remonta provavelmente a uma expectativa neste sentido reservada

para as figuras centrais da filosofia itaacutelica256 Veja-se de fato na mesma linha o que diz

Empeacutedocles no proacutelogo de seu poema das Purificaccedilotildees ldquomilhares me seguem [] uns

com necessidade de oraacuteculos outros haacute longo tempo tomados por fortes dores desejam

ouvir palavras inspiradas que curem doenccedilas de todos os tiposrdquo (31 B112 DK)257

Aqui tambeacutem a cura estaacute ligada a uma especial capacidade oracular que pode

ser aproximada ainda que natildeo perfeitamente com a psicologia genealoacutegica da alma de

Pitaacutegoras

253 Cf Burkert (1972 130-131) Eacute interessante notar que jaacute Kranz (1934 227ss) defendia que Heraacuteclito devia conhecer esses escritos pitagoacutericos sendo nisso seguido por Zeller e Mondolfo (1938) ainda que Mondolfo considere esta hipoacutetese ldquoalquanto arditardquo (1938 318) 254 Orig ldquo αὐτός τε ἐγίγνωσκε τοὺς προτέρους ἑαυτοῦ βίους καὶ τῆς τῶν ἄλλων ἐπιmicroελείας ἐντεῦθεν ἤρχετο ὑποmicroιmicroνήσκων αὐτοὺς ἧς εἶχον πρότερον ζωῆςrdquo (Iambl VP 63) 255 Orig ldquo ἀφίκετο οὐ διδάξων ἀλλ ἰατρεύσωνrdquo (Ael VH 4 17) 256 Cf tambeacutem Nucci (1999) e Macris (2003 257) 257 Orig ldquo οἱ δ ἅmicro ἕπονται microυρίοι ἐξερέοντες [] οἱ microὲν microαντοσυνέων κεχρηmicroένοι οἱ δ ἐπὶ νούσων παντοίων ἐπύθοντο κλυεῖν εὐηκέα βάξιν δηρὸν δὴ χαλεπῆισι πεπαρmicroένοι ltἀmicroφ ὀδύνηισινgtrdquo (31 B112 DK)

128

33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles)

Como pertencentes a esse mesmo acircmbito intelectual e cultural devem ser consi-

derados os testemunhos de Empeacutedocles Desde a antiguidade o protagonista de suas

Purificaccedilotildees foi identificado com Pitaacutegoras258 e as influecircncias oacuterficas sobre Empeacutedo-

cles satildeo atualmente consideradas como altamente provaacuteveis259 Eacute inegaacutevel que as duas

figuras de Pitaacutegoras e de Empeacutedocles tecircm muito em comum de maneira especial a-

proxima-os seu papel dual ndash nas palavras de Kahn ndash enquanto ao mesmo tempo filoacuteso-

fos matemaacuteticos e profetas religiosos (Kahn 2001 16) Ambos satildeo percebidos pelos

contemporacircneos (e pela literatura sucessiva) como theacuteioi aacutendres homens divinos de-

tentores de poderes e capacidade especiais Eacute certamente o caso de lembrar nesse senti-

do o fr 112 de Empeacutedocles ldquoEu entre vocecircs ando como um deus imortal natildeo mais

mortal por todos honradordquo (31 B112 DK)260 e os diversos testemunhos sobre a divinda-

de de Pitaacutegoras entre eles o ceacutelebre acusma que responde agrave pergunta ldquoQuem eacute Pitaacutego-

rasrdquo com ldquoApolo Hiperboreurdquo (Iambl VP 140)261

A proximidade de Empeacutedocles com o pitagorismo eacute comprovada tambeacutem nos

fragmentos por grande quantidade de coincidecircncias doutrinaacuterias Por esse motivo de

Zeller a Kingsley chegou-se a imaginar um discipulado direto de Empeacutedocles em rela-

ccedilatildeo ao protopitagorismo As duplas enantioloacutegicas dos fragmentos 122 e 123 lembram

de perto a lista de contraacuterios que Aristoacuteteles atribui aos pitagoacutericos na ceacutelebre passagem

do primeiro livro de Metafiacutesica A (986a)262 Como tambeacutem a concepccedilatildeo cosmoloacutegica e

258 Cf D L (Vitae VIII 54- 56) e os testemunhos de Alcidamantes Neantes e Timeu neste sentido Para a criacutetica moderna ldquoWho could this be but Pythagorasrdquo se pergunta Treacutepanier (2004 105) Cf tambeacutem Doods (1951 182) Zuntz (1971 183) Burkert (1972 109 n65) Mais ceacuteticos Zeller e Mondolfo (1958 329) e como sempre Rathmann (1933 94-131) 259 Cf West (1983 26) Riedweg (1995) Scarpi (2007 150) Apesar das duacutevidas de Treacutepanier (2004 106) 260 Orig ldquo ἐγὼ δrsquo ὑmicroῖν θεὸς ἄmicroβροτος οὐκέτι θνητός πωλεῦmicroαι microετὰ πᾶσι τετιmicroένοςrdquo (31 B112 DK) 261 Orig ldquo καὶ ἓν τοῦτο τῶν ἀκουσmicroάτων ἐστί lsquoτίς εἶ Πυθαγόραrsquo φασὶ γὰρ εἶναι Ἀπόλλωνα Ὑπερβόρε-ονrdquo (Iambl VP 140) 262 ldquoLaacute estavam a ctocircnia e a solar de ampla mirada o oacutedio sangrento e a harmonia de olhar severo e a bela e a feia a aacutegil e a lerda a verdadeira amaacutevel e a obscura de cabelos pretosrdquo orig ldquo ἔνθ ἦσαν Χθονίη τε καὶ Ἡλιόπη ταναῶπις ∆ῆρίς θ αἱmicroατόεσσα καὶ Ἁρmicroονίη θεmicroερῶπις Καλλιστώ τ Αἰσχρή τε Θόωσά τε ∆ηναίη τε Νηmicroερτής τ ἐρόεσσα microελάγκουρός τ Ἀσάφειαrdquo (31 B122 DK) ldquoO nascimento e a dissoluccedilatildeo o sono e a vigiacutelia o moacutevel e o imoacutevel a grandeza rodeada de muitas coroas e miseacuteria o silente e o vocife-ranterdquo orig ldquo Φυσώ τε Φθιmicroένη τε καὶ Εὐναίη καὶ Ἔγερσις Κινώ τ Ἀστεmicroφής τε πολυστέφανός τε Μεγιστώ καὶ Φορύη Σωπή τε καὶ Ὀmicroφαίηrdquo (31 B123 DK) Cf para estes fragmentos o elegante comen-taacuterio de Casertano (20071)

129

antropoloacutegica ambas baseadas no conceito de harmoniacutea que encontra paralelos nos

fragmentos de Filolau e Arquitas263 ou na epistemologia de Empeacutedocles que por sua

vez ndash conforme o testemunho de Aristoacuteteles no De Anima (404b8 = 31 B109a DK) ndash

estaria fundada no princiacutepio do semelhante que conhece o semelhante264 Segundo o

testemunho de Sexto Empiacuterico o princiacutepio seria certamente jaacute filolaico (44 A29 DK)265

No entanto o fragmento de Empeacutedocles mais imediatamente relevante para essa

discussatildeo sobre os testemunhos mais antigos da teoria da imortalidade da alma pitagoacuteri-

ca eacute o fr 129 Natildeo seraacute preciso acatar a sugestatildeo de Pascal (1904 141ss) de que os

versos do fr 129 constituam uma introduccedilatildeo a um discurso do proacuteprio Pitaacutegoras con-

forme satildeo citados em Oviacutedio (Metam XV 60) pois todas as coincidecircncias doutrinaacuterias

acima desenhadas vecircm reforccedilar a compreensatildeo majoritaacuteria de que seja mesmo Pitaacutegoras

o protagonista do fr 129266

Havia entre eles um homem de extraordinaacuteria visatildeo que adquiriu uma imensa riqueza de inteligecircncia e era excelente em uma grande quantidade de saacutebias atividades Quando de fato ele tencionava todas as forccedilas de sua mente Enxergava facilmente todas as coisas que satildeo em dez ou vinte geraccedilotildees humanas (31 B129 DK)267

Novamente os termos da citaccedilatildeo como no caso de Iacuteon acima citado parecem

ecoar as bem conhecidas criacuteticas de Heraacuteclito a Pitaacutegoras acima citadas Expressotildees

como extraordinaacuteria visatildeo imensa riqueza de inteligecircncia grande quantidade de ativi- 263 Essas referecircncias agrave harmonia em Empeacutedocles fazem suspeitar que a proposiccedilatildeo do conceito de harmo-niacutea no interior da histoacuteria do pitagorismo antecede sua formulaccedilatildeo canocircnica elaborada por Filolau so-mente no seacuteculo V aEC Cf Zeller e Mondolfo (1938 331) 264 ldquoCom a terra vemos a terra com a aacutegua a aacutegua com o eacuteter o eacuteter divino com o fogo o fogo arrasa-dor com o amor o amor e a luta com luta funestardquo (31 B109 DK) Orig ldquo γαίηι microὲν γὰρ γαῖαν ὀπώπαmicro-εν ὕδατι δ ὕδωρ αἰθέρι δ αἰθέρα δῖον ἀτὰρ πυρὶ πῦρ ἀίδηλον στοργὴν δὲ στοργῆι νεῖκος δέ τε νείκεϊ λυγρῶιrdquo 265 O mesmo criteacuterio de conhecimento eacute lembrado no Timeu de Platatildeo (45c) em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do ser humano e in primis da visatildeo Um aceso debate tendente nos uacuteltimos anos a verificar as apropriaccedilotildees dessas teorias do conhecimento no interior daquela que foi em seguida definida como oacutetica revela um diaacutelogo in fieri sobre este tema entre Platatildeo e Aquitas Cf para isso Burnyeat (2005) e Huffman (2005 551-569) 266 Enquanto Rostagni (1982 232) segue a sugestatildeo de Pascal para exaustiva relaccedilatildeo da histoacuteria da criacutetica desta atribuiccedilatildeo cf Zeller e Mondolfo (1938 329) e Timpanaro Cardini (1958-62 I 18) Comentadores mais recentes entre eles Riedweg (2002) Treacutepanier (2004) e Gemelli (2007) seguem a tradiccedilatildeo concor-dando com a mesma atribuiccedilatildeo 267 Orig ldquo ὃς δὴ microήκιστον πραπίδων ἐκτήσατο πλοῦτον παντοίων τε microάλιστα σοφῶν ltτgt ἐπιήρανος ἔργων ὁππότε γὰρ πάσηισιν ὀρέξαιτο πραπίδεσσιν ῥεῖ ὅ γε τῶν ὄντων πάντων λεύσσεσκεν ἕκαστον καί τε δέκ ἀνθρώπων καί τ εἴκοσιν αἰώνεσσινrdquo (31 B129 DK)

130

dades de sabedoria natildeo satildeo certamente casuais Haacute aqui de fato uma afirmaccedilatildeo da

polymathiacutea de Pitaacutegoras Essa afirmaccedilatildeo diferentemente daquela de Heraacuteclito natildeo eacute

marcada pelo sarcasmo Ao contraacuterio Essa sabedoria especial eacute qualificada na segunda

parte da citaccedilatildeo de forma muito precisa toda a visatildeo de Pitaacutegoras eacute direcionada agrave pa-

lingecircnese isto eacute ao perscrutar a histoacuteria da alma em seus movimentos de metempsico-

se Tanto a proacutepria como aquela dos outros Ainda que a referecircncia seja mais generica-

mente agrave capacidade de enxergar ldquotodas as coisas que satildeordquo incluindo nelas por exemplo

a capacidade de ouvir a harmonia do universo no sentido de perceber o som das esferas

(Porph VP 30) eacute evidente que o contexto da citaccedilatildeo implica mais especificamente a

ceacutelebre capacidade especial de Pitaacutegoras

O fr 129 portanto no contexto tanto das Purificaccedilotildees como da tradiccedilatildeo sobre a

figura de Empeacutedocles como homem divino constitui testemunho da atribuiccedilatildeo ao pro-

topitagorismo de uma teoria da alma que pressupotildee tanto uma concepccedilatildeo de sua trans-

migraccedilatildeo como uma capacidade especial de Pitaacutegoras de percorrer essa histoacuteria da al-

ma268

34 Platatildeo e orfismo

O lugar mais generoso de referecircncias e ao mesmo tempo mais sensiacutevel para a

discussatildeo da atribuiccedilatildeo das teorias da imortalidade da alma e sua metempsicose ao pita-

gorismo eacute certamente a obra de Platatildeo Todavia mesmo o testemunho platocircnico natildeo

estaacute isento de problemas e incertezas A falta de citaccedilotildees diretas do pitagorismo nos

textos platocircnicos dedicados a essas teorias por exemplo consolidou desde cedo uma

hipoacutetese pela qual elas se refeririam mais propriamente ao orfismo em vez do pitago-

rismo269 Eacute obviamente impossiacutevel na economia destas paacuteginas esgotar exaustivamente

as muacuteltiplas facetas da relaccedilatildeo entre Platatildeo e o orfismo que vai bem aleacutem da problemaacute-

268 A esses argumentos Philip (1966 156) acrescenta mais um os vetos alimentares que aproximam Empeacutedocles ao pitagorismo dependem diretamente a seu ver da crenccedila na transmigraccedilatildeo que ambos partilhariam 269 Defendem a atribuiccedilatildeo das doutrinas ao orfismo Bluck (1964 274-276) Boyanceacute (1972 85 n4) e mais recentemente Casadio (1991 130-131) Centrone (1996 61)

131

tica da imortalidade da alma270 Seraacute o caso de limitar-se aqui a discutir as relaccedilotildees entre

pitagorismo e orfismo no interior da problemaacutetica da metempsicose deixando de lado

outras possibilidades de abordagem dessa complexa questatildeo como aquela cosmoloacutegica

ou poliacutetica Contudo mesmo para as finalidades mais internas agrave nossa discussatildeo seraacute

preciso fazer continuamente referecircncia agrave problemaacutetica mais geral271

A dificuldade de tecer as relaccedilotildees entre Platatildeo pitagorismo e orfismo antes

mesmo do que nas sempre lembradas caracteriacutesticas dialoacutegicas da obra platocircnica ou nas

questotildees apontadas no capiacutetulo anterior a respeito da tradiccedilatildeo e sua categorizaccedilatildeo do

pitagorismo reside mais imediatamente na incerta determinaccedilatildeo do que possa ser consi-

derado orfismo Em relaccedilatildeo por exemplo agraves fontes literaacuterias para esse assunto eacute o proacute-

prio Platatildeo a revelar a confusatildeo representada pela existecircncia de grande pletora de livros

que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp II 364e)272 A dificuldade represen-

tada pela pseudoepigrafia comum a toda a literatura antiga torna-se ainda mais dramaacute-

tica no caso de Orfeu273 Por outro lado jaacute Wilamowitz perguntava se o fato de existi-

rem obras atribuiacutedas a Orfeu implicava necessariamente tambeacutem a existecircncia histoacuterica

de oacuterficos (1932 192-199) Sua resposta foi negativa e desde entatildeo a criacutetica acostu-

mou-se prudentemente a considerar a presenccedila do orfismo no interior da obra platocircnica

como algo indissociavelmente ligado agrave releitura que Platatildeo teve desse movimento com

isso poreacutem acabou por ser negada em princiacutepio qualquer possibilidade de Platatildeo ser

considerado como fonte confiaacutevel para o orfismo preacute-platocircnico274 Todavia recentes

descobertas arqueoloacutegicas de maneira especial aquela que trouxe agrave luz o papiro Derve-

ni contribuiacuteram para confundir as aacuteguas paradas da tradiccedilatildeo interpretativa apontando

270 Eacute certamente o caso de remeter para isso a Bernabeacute (1998 2002 e no prelo) Cf tambeacutem Masaracchia (1993) Brisson (2000b) e Pugliese Carratelli (2001) 271 Cf acima para uma discussatildeo historiograacutefica da questatildeo do orfismo e do pitagorismo (18) 272 A expressatildeo usada por Platatildeo eacute βίβλων ὅmicroαδον com o termo ὅmicroαδον a indicar mais propriamente tumulto como aquele dos combatentes em batalha (Cf Il IX 573) Outra memoacuteria da grande e confusa literatura atribuiacuteda a Orfeu haacute tambeacutem no Hipoacutelito de Euriacutepides (ldquoa fumaccedila dos muitos escritosrdquo v 954) 273 Eacute certamente o caso de recordar a introduccedilatildeo agrave monografia Orphica de Hermann (1805) um dos pri-meiros estudiosos modernos do orfismo que assim comeccedila ldquosi mea sponte eligendus mihi fuisset scrip-tor in quo edendo operam meam collocarem in quemcumque alium facilius quam in Orpheum incidis-semrdquo (1805 v) A ele ecoa West (1983 17) quando afirma que aquele de Orfeu foi o nome favorito pelos poemas pseudoepigraacuteficos de natureza religiosa metafiacutesica ou esoteacuterica 274 A posiccedilatildeo ceacutetica de Brisson eacute neste sentido paradigmaacutetica (2000a 253) Uma saiacuteda metodoloacutegica para o problema eacute certamente aquela proposta por Bernabeacute (2002 239) ldquochaque foi que lacuteon parle dacuteinfluence orphique chez um auteur on doit citer des textes soumis agrave une critique profonde et agrave une hermeacuteneutique minutieuse pour eacuteviter les lieux communs et les affirmations vides Le travail reste em grande partie agrave faire et il est urgent de lacuteentreprendrerdquo Mostrar os textos portanto eis o imperativo

132

para clara anterioridade a Platatildeo de temas e referecircncias oacuterficas cuja existecircncia preacute-

platocircnica era normalmente colocada em duacutevida275

341 ldquoCompreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo

Para aleacutem das preacute-compreensotildees da criacutetica e da mais recente documentaccedilatildeo ar-

queoloacutegica todavia eacute em verdade ainda o proacuteprio testemunho de Platatildeo a desencorajar

um ceticismo exasperado em relaccedilatildeo agrave existecircncia de oacuterficos e de um movimento a estes

conexo276 No Craacutetilo (400c) Platatildeo refere-se aos oi amphiacute Orpheacutea indicando com a

expressatildeo os autores das doutrinas oacuterficas em Repuacuteblica descreve-os como agyrtaacutei e

manteacuteis sacerdotes itinerantes e adivinhos (Resp II 364b-c) com uma conotaccedilatildeo bas-

tante negativa que os autores aproximam facilmente aos orpheotelestai os iniciados ao

orfismo que aparecem como impostores em autores como Teofrasto Filodemo e Plu-

tarco277 Um biacuteos orphikoacutes eacute lembrando nas Leis (VI 782c) no contexto da discussatildeo

sobre o vegetarianismo Frequentemente no interior da obra platocircnica eacute recordada a

antiguidade (e portanto anterioridade ao proacuteprio Platatildeo) de suas doutrinas278 assim

como satildeo citados ou parafraseados textos oacuterficos279 Eacute impossiacutevel negar portanto que

oacuterficos e orfismo possuam lugar relevante e bastante significativo no interior do corpus

platocircnico

No entanto a presenccedila do orfismo na obra platocircnica eacute especialmente visiacutevel

quando nela se faz referecircncia a teorias sobre a alma Os diaacutelogos satildeo de fato repletos de

mitos reflexotildees morais imagens literaacuterias que pressupotildeem ou enfrentam diretamente as

temaacuteticas relativas agrave imortalidade e agrave metempsicose da alma

Eacute esse certamente o caso de uma celebre paacutegina do Mecircnon na qual Platatildeo atribui

a autoria da teoria metempsicose a ldquograndes sacerdotes e sacerdotisas que se preocu-

pam em compreender o loacutegos de seu ministeacuteriordquo (Men 81a) O conteuacutedo desse logos eacute

275 Sobre o papiro Derveni cf o que foi dito acima 18 276 Ainda que o termo Ὀρφικοί natildeo seja registrado como tal no interior do corpus platocircnico ele jaacute aparece em Heroacutedoto (II 81 vide infra) 277 Cf para as citaccedilotildees Vegetti (1998 229) e Burkert (1972 125 n30 e 1982 4 n13) 278 Cf Phlb 66c Leg 715e 279 Cf Phaed 69c-d Crat 402b-c Cf para isso tambeacutem Kingsley (1995118) e Ghidini (2000 12)

133

explicitamente afirmado em seguida ldquoora a alma chega a um seu fim ndash este que eacute cha-

mado morrer ndash ora ela renasce mas jamais eacute destruiacuteda por completordquo (81b) Seraacute o caso

de examinar mais de perto a passagem em seu contexto O tema do diaacutelogo entre Soacutecra-

tes e Mecircnon verte sobre a virtude em chave mais propriamente de teoria do conheci-

mento O problema em pauta eacute aquele de como reconhecer a verdade quando jaacute natildeo a se

conheccedila antes trata-se da questatildeo central para a filosofia platocircnica da anamnese Nes-

se contexto Soacutecrates dialoga com Mecircnon nos seguintes termos

SOCR Pois ouvi dizer de homens e mulheres saacutebios das coisas divi-nas MEN O que eles diziam SOCR Coisas verdadeiras ndash parece-me ndash bonitas MEN Quais E quem satildeo estes que as falaram SOCR Sa-cerdotes e sacerdotisas que se preocupavam em explicar o loacutegos do proacuteprio ministeacuterio E estas mesmas coisas [b] diz Piacutendaro e muitos ou-tros poetas os poetas divinos Eacute isso que ele dizem mas veja se te pa-rece que eles dizem a verdade dizem portanto que a alma humana eacute imortal e que ora ela tem seu fim que se diz morrer ora renasce e que jamais eacute destruiacuteda eis porque ndash dizem ndash precisa viver a vida o mais santamente possiacutevel Pois as almas daqueles de quem aceita expiaccedilatildeo por uma antiga falta Perseacutefone devolve no nono ano ao sol laacute de cima Delas brotam reis ilustres e homens poderosos e excelentes na sabedoria E pelo resto de seus dias como heroacuteis imaculados satildeo invocados pelos homens A alma portanto por ser imortal e diversas vezes renascida tendo vis-to o mundo deste e do outro lado em uma palavra todas as coisas natildeo deixou de aprender nada Natildeo deve maravilhar que portanto pode chamar agrave mente novamente o que antes conhecia da virtude e do resto todo Pois de fato a natureza eacute congecircnere (Men 81a-c)280

280 Orig ldquo ΣΩ Ἔγωγε ἀκήκοα γὰρ ἀνδρῶν τε καὶ γυναικῶν σοφῶν περὶ τὰ θεῖα πράγmicroατα

ΜΕΝ Τίνα λόγον λεγόντων

ΣΩ Ἀληθῆ ἔmicroοιγε δοκεῖν καὶ καλόν

ΜΕΝ Τίνα τοῦτον καὶ τίνες οἱ λέγοντες

ΣΩ Οἱ microὲν λέγοντές εἰσι τῶν ἱερέων τε καὶ τῶν ἱερειῶν ὅσοις microεmicroέληκε περὶ ὧν microεταχειρίζονται λόγ-ον οἵοις τ εἶναι διδόναι λέγει δὲ καὶ Πίνδαρος καὶ ἄλλοι πολλοὶ τῶν ποιητῶν ὅσοι θεῖοί εἰσιν ἃ δὲ λέγο-υσιν ταυτί ἐστιν ἀλλὰ σκόπει εἴ σοι δοκοῦσιν ἀληθῆ λέγειν φασὶ γὰρ τὴν ψυχὴν τοῦ ἀνθρώπου εἶναι ἀθάνατον καὶ τοτὲ microὲν τελευτᾶν ndash ὃ δὴ ἀποθνῄσκειν καλοῦσι ndash τοτὲ δὲ πάλιν γίγνεσθαι ἀπόλλυσθαι δ οὐδέποτε δεῖν δὴ διὰ ταῦτα ὡς ὁσιώτατα διαβιῶναι τὸν βίον ltοἷσινgt γὰρ ἂν ndash

Φερσεφόνα ποινὰν παλαιοῦ πένθεος

δέξεται εἰς τὸν ὕπερθεν ἅλιον κείνων ἐνάτῳ ἔτεϊ

ἀνδιδοῖ ψυχὰς πάλιν

ἐκ τᾶν βασιλῆες ἀγαυοὶ

καὶ σθένει κραιπνοὶ σοφίᾳ τε microέγιστοι

ἄνδρες αὔξοντ ἐς δὲ τὸν λοιπὸν χρόνον ἥρωες ἁγνοὶ

πρὸς ἀνθρώπων καλεῦνται

134

Soacutecrates portanto na passagem acima do Mecircnon elabora uma espeacutecie de suacutemu-

la histoacuterico-teoreacutetica das teorias da alma articulando sua imortalidade com a ideia da

metempsicose (ldquoora renasce e jamais eacute destruiacutedardquo) Atribui a autoria desta indiferente-

mente a dois sujeitos antes a ldquosacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compre-

ender o loacutegos do proacuteprio ministeacuteriordquo e depois aos poetas divinos entre eles Piacutendaro do

qual satildeo tambeacutem citados alguns versos Natildeo eacute difiacutecil imaginar que em relaccedilatildeo aos refe-

ridos poetas Soacutecrates devesse pensar tambeacutem em Empeacutedocles281 A funccedilatildeo dialeacutetica da

citaccedilatildeo de Piacutendaro eacute fundamentalmente aquela de corroborar a ideia expressa imedia-

tamente antes por Soacutecrates da palingecircnese (paacutelin giacutegnesthai) da alma isto eacute de seu

nascer novamente (paacutelin giacutegnesthai)

Deve-se notar que Platatildeo ndash no lugar de citar algum poema oacuterfico que como vi-

mos certamente deveria conhecer ndash recorre a versos de Piacutendaro Eacute este o primeiro sinal

de algo que eacute conforme se veraacute a seguir uma marca da apropriaccedilatildeo da teoria da imorta-

lidade da alma pela obra platocircnica isto eacute de uma provaacutevel intenccedilatildeo de Platatildeo de diluir a

referecircncia agraves origens oacuterficas da teoria Essa escolha platocircnica eacute ainda mais significativa

se comparada com sua indicaccedilatildeo da primeira referecircncia agrave autoria da teoria que eacute aos

sacerdotes e sacerdotisas que se preocupam em compreender o loacutegos do proacuteprio minis-

teacuterio Wilamowitz (1920 II 249) e Burkert (1972 126) concordam que o objeto desta

explicaccedilatildeo do loacutegos (loacutegon didoacutenai) de suas praacuteticas rituais deva ser a mythologiacutea dos

rituais ligados agrave metempsicose tratar-se-ia portanto da exegese dos mitos que acom-

panham os rituais de iniciaccedilatildeo da alma A praacutetica eacute aqui geralmente referida a perso-

nagens de acircmbito pitagoacuterico contribuindo para recolocarmos Platatildeo como fonte confiaacute-

vel da atribuiccedilatildeo de teorias como a da imortalidade e da metempsicose aos pitagoacutericos

antigos

Prova disso seria a referecircncia a sacerdotisas em acordo com os diversos teste-

munhos que apontam para uma presenccedila significativa e relativamente paritaacuteria das mu- Ἅτε οὖν ἡ ψυχὴ ἀθάνατός τε οὖσα καὶ πολλάκις γεγονυῖα καὶ ἑωρακυῖα καὶ τὰ ἐνθάδε καὶ τὰ ἐν Ἅιδου καὶ πάντα χρήmicroατα οὐκ ἔστιν ὅτι οὐ microεmicroάθηκεν ὥστε οὐδὲν θαυmicroαστὸν καὶ περὶ ἀρετῆς καὶ περὶ ἄλλων οἷόν τ εἶναι αὐτὴν ἀναmicroνησθῆναι ἅ γε καὶ πρότερον ἠπίστατο ἅτε γὰρ τῆς φύσεως ἁπάσης συγγενοῦς οὔσηςrdquo (Men 81a-c) 281 O fr 146 de Empeacutedocles de maneira especial revela paralelismo muito significativo com os versos acima citados de Piacutendaro ldquoE no fim tornam-se adivinhos e poetas meacutedicos e liacutederes para os homens que habitam a terra e deles brotam deuses excelentes pela honras que recebemrdquo (Orig ldquo εἰς δὲ τέλος microάντεις τε καὶ ὑmicroνοπόλοι καὶ ἰητροί καὶ πρόmicroοι ἀνθρώποισιν ἐπιχθονίοισι πέλονται ἔνθεν ἀναβλαστοῦσι θεοὶ τιmicroῆισι φέριστοιrdquo )Vejam-se tanto as imagens bioloacutegicas para indicar a reencarnaccedilatildeo (rebrotam em Piacuten-daro brotam em Empeacutedocles) como as referecircncias agrave excelecircncia dos nobres reis de Piacutendaro agrave qual pode ser comparada a excelecircncia dos πρόmicroοι de Empeacutedocles (Cf Bluck 1964 284)

135

lheres no interior da koinoniacutea pitagoacuterica282 de fato Kingsley (1995 161-162) anota

com razatildeo que natildeo haacute nenhuma tradiccedilatildeo que permita considerar os rituais ou a mitologia

oacuterfica como inclusivos das mulheres seria esta portanto uma indicaccedilatildeo exclusiva do

pitagorismo283 Por outro lado a ideia da explicaccedilatildeo mito-loacutegica aponta provavelmente

para aquela apropriaccedilatildeo do orfismo que Pugliese Carratelli (2001 18) baseando-se na

anaacutelise das receacutem-descobertas lacircminas oacuterficas identificava acima como pitagoacuterica284

Como no caso da citaccedilatildeo de Piacutendaro portanto Platatildeo parece aqui querer referir-se mais

diretamente agravequela parte do complexo universo oacuterfico mais proacutexima agrave sua sensibilidade

filosoacutefica e religiosa E em relaccedilatildeo ao que interessa mais diretamente estas paacuteginas isto

eacute agraves teorias da imortalidade da alma e da metempsicose

O testemunho mais contundente da historicidade dessa imagem de sacerdotes

que para aleacutem de cumprirem os ritos demonstram interesse na sua explicaccedilatildeo mitoloacutegi-

ca eacute representado pelo proacuteprio papiro Derveni O papiro que se apresenta como uma

exegese alegoacuterica de um antigo poema cosmogocircnico em busca de uma explicaccedilatildeo ale-

goacuterica dos misteacuterios na coluna XX empreende uma criacutetica sarcaacutestica dirigida contra

aqueles que natildeo sabem fazer aquilo em que os sacerdotes e sacerdotisas acima citados

no Mecircnon satildeo ditos especialistas Pois as personagens que satildeo alvos da reprovaccedilatildeo do

autor do papiro se exibiriam em praccedila puacuteblica com rituais sagrados mas natildeo saberiam

explicar os ritos que performam

Em relaccedilatildeo a estes quantos dos humanos que nas cidades realizaram ritos e viram as coisas sagradas menos me espanto com eles natildeo sabe-rem (pois natildeo eacute possiacutevel escutar e aprender as coisas ditas ao mesmo tempo) Mas quantos (se iniciam) junto a quem faz das coisas sagradas um artifiacutecio estes (satildeo) dignos de espanto e pena Por um lado espan-to porque achando antes de realizarem o rito que saberatildeo partem tendo realizado os ritos antes de saberem nada perguntando como se soubessem algo do que viram escutaram e aprenderam Por outro la-do pena porque natildeo basta eles gastarem o dinheiro de antematildeo mas tambeacutem partem destituiacutedos de razatildeo Antes de realizar os ritos das coi-

282 Cf o que foi dito acima a este respeito (esp 23) assim como De Vogel (1966 238 n2) Dodds (1951 175 n59) Burkert (1982 17-18) Kingsley (1995 162 n51) 283 Concorda com ele tambeacutem Long (1948 68-69) Casadio (1991 130) poreacutem protesta que se as mu-lheres eram admitidas na comunidade pitagoacutericas deviam secirc-lo como filoacutesofas e natildeo sacerdotisas E Bernabeacute e Jimeacutenez (2008 59) apontam para o fato de diversas das mais recentes descobertas de lacircminas oacuterficas serem originaacuterias de tumbas de mulheres O consenso entre os comentadores eacute mais uma vez dis-tante 284 Cf acima (18)

136

sas sagradas esperam saber mas tendo-os realizado partem destituiacute-dos tambeacutem de esperanccedila (P Derv XX)285

Da mesma forma como Platatildeo portanto o autor do papiro Derveni ainda que no

papel de exegeta oacuterfico parece tecer criacuteticas a uma parte do mesmo universo oacuterfico que

recrimina por natildeo saber explicar os ritos A esta acusaccedilatildeo de incompetecircncia somam-se

outras entre as quais a de promover tanto certa mercantilizaccedilatildeo do sagrado consideran-

do a menccedilatildeo a dinheiro cobrado aos fieacuteis como a consequente descrenccedila entre os fieacuteis

Natildeo surpreenderaacute assim que Platatildeo use esta mesma imagem em uma ceacutelebre

paacutegina de Repuacuteblica (364b-c) no contexto da dura criacutetica a Museu e seu filho Eumol-

po epocircnimo dos ierofantes de Eleusis Platatildeo natildeo esconde criacuteticas aos problemas que a

difusatildeo dos misteacuterios eleusinos estava criando para a cidade (Resp II 378a) chega ateacute a

fazer uma paroacutedia destes para a iniciaccedilatildeo do ldquohomem democraacuteticordquo (560d-e)286

[Eles] guiam os iniciados para o Hades com seu discurso preparando para eles um simpoacutesio de piedosos no qual deitam-se com guirlandas e daiacute adiante os fazem passar o tempo todo bebendo pois acreditam que a melhor recompensa pela virtude seja uma eterna embriaguez (Resp II 363c-d)287

Todavia a passagem que nos interessa mais diretamente eacute aquela da paacutegina se-

guinte na qual Platatildeo descreve com tintas fortes um fenocircmeno social que devia ser bas-

tante difundido naqueles anos o de sacerdotes e adivinhos andarilhos

Mas de todos esses discursos os mais surpreendentes satildeo aqueles que fazem sobre os deuses e sobre a virtude afirmando que os mesmos deuses destinaram para muitos homens bons infelicidade e uma vida ruim e para quem eacute a eles contraacuterio uma contraacuteria sorte Sacerdotes mendigos e adivinhos batendo agraves portas dos ricos convencem-nos haver neles um poder que proveacutem dos deuses graccedilas a sacrifiacutecios e encantamentos para emendar qualquer injusticcedila cometida pelo indiviacute-duo ou por seus antepassados por meio de prazeres e festas Se al-gueacutem quer prejudicar um inimigo a troco de uma moacutedica quantia o convencem que poderaacute arruinar indiferentemente tanto o justo como o

285 A traduccedilatildeo eacute de Gazinelli (2007) a partir da proposta de organizaccedilatildeo do texto e da traduccedilatildeo de Laks e Most (1997) Cf original no Anexo 1 286 Cf West (1983 34ss) e Vegetti (1998 227 n5) 287 Orig ldquo εἰς Ἅιδου γὰρ ἀγαγόντες τῷ λόγῳ καὶ κατακλίναντες καὶ συmicroπόσιον τῶν ὁσίων κατασκευάσα-ντες ἐστεφανωmicroένους ποιοῦσιν τὸν ἅπαντα χρόνον ἤδη διάγειν microεθύοντας ἡγησάmicroενοι κάλλιστον ἀρετῆς microισθὸν microέθην αἰώνιονrdquo (Resp II 363c-d)

137

injusto e com encantamentos e simpatias persuadir os deuses a se co-locarem a seu serviccedilo (Resp II 364b-c)288

A paacutegina platocircnica revela significativamente quadro bastante parecido com a-

quele desenhado pela coluna XX do papiro Derveni os andarilhos retiram da mesma

forma a esperanccedila dos fieacuteis aleacutem de mercantilizarem seus serviccedilos Pelo fato de esses

mesmos sacerdotes e adivinhos imediatamente depois exibirem aquela grande pletora

de livros que passavam como obras de Orfeu e Museu (Resp II 364e) eacute lectio facilior

identificaacute-los ao menos parcialmente com o orfismo A criacutetica de Platatildeo natildeo deveraacute ser

considerada contudo como uma criacutetica irrestrita ao orfismo e sim ndash como no caso do

papiro Derveni ndash como um posicionamento quase que uma criacutetica interna que implica

a escolha de uma parte dele certamente aquela mais afim agrave sua sensibilidade que devia

aproximaacute-lo como jaacute se acenou acima mais imediatamente agraves teorias oacuterfico-

pitagoacutericas no sentido dado ao termo pela lectio de Pugliese Carratelli (2001)

Por outro lado a cobranccedila platocircnica natildeo eacute algo inusual Ao contraacuterio insere-se

naquela que foi definida como uma ldquopermeabilidade conscienterdquo entre teacutechnai e Natur-

philosophie (Gemelli 2007b) e que eacute testemunhada pela polivalecircncia ndash nesse sentido

acima descrito ndash de personagens traacutegicas como o Prometeu da homocircnima obra pseudo-

esquileia (430 aEC) que eacute ao mesmo tempo um adivinho e um proacutetos euretecircs em

disciplinas como a astronomia a medicina e a matemaacutetica Ou mesmo Melanipe na

homocircnima trageacutedia de Euriacutepides (A saacutebia Melanipe) que proclama uma cosmogonia

preacute-socraacutetica afirmando tecirc-la apreendido de sua matildee uma ninfa adivinha (fr 495

Nauck)

As relaccedilotildees entre orfismo pitagorismo e Platatildeo portanto comeccedilam a se delinear

de maneira mais clara no sentido de uma apropriaccedilatildeo do primeiro por este uacuteltimo de

certa forma mediada pelo segundo

Nesse sentido eacute certamente o caso de voltar para a paacutegina do Mecircnon (81a-c)

com a qual se iniciou esta anaacutelise do testemunho de Platatildeo sobre as teorias da alma pi-

tagoacutericas para anotar dois outros detalhes realmente significativos para a economia da

288 Orig ldquo τούτων δὲ πάντων οἱ περὶ θεῶν τε λόγοι καὶ ἀρετῆς θαυmicroασιώτατοι λέγονται ὡς ἄρα καὶ θεοὶ πολλοῖς microὲν ἀγαθοῖς δυστυχίας τε καὶ βίον κακὸν ἔνειmicroαν τοῖς δἐναντίοις ἐναντίαν microοῖραν ἀγύρται δὲ καὶ microάντεις ἐπὶ πλουσίων θύρας ἰόντες πείθουσιν ὡς ἔστι παρὰ σφίσι δύναmicroις ἐκ θεῶν ποριζοmicroένη θυσίαις τε καὶ ἐπῳδαῖς εἴτε τι ἀδίκηmicroά του γέγονεν αὐτοῦ ἢ προγόνων ἀκεῖσθαι microεθ ἡδονῶν τε καὶ ἑορτῶν ἐάν τέ τινα ἐχθρὸν πηmicroῆναι ἐθέλῃ microετὰ σmicroικρῶν δαπανῶν ὁmicroοίως δίκαιον ἀδίκῳ βλάψει ἐπαγωγαῖς τισιν καὶ καταδέσmicroοις τοὺς θεούς ὥς φασιν πείθοντές σφισιν ὑπηρετεῖνrdquo (Resp II 364b-c)

138

interpretaccedilatildeo aqui proposta Primeiramente a referecircncia no final dela agrave syngeacuteneia da

natureza que remete imediatamente para a ideia do parentesco universal do texto de

Porfiacuterio (VP 19) com o qual comeccedilou este capiacutetulo Esta referecircncia eacute mais um sinal de

que Platatildeo estaacute entendendo remeter as teorias dos sacerdotes e poetas agrave vertente pitagoacute-

rica do orfismo natildeo haacute de fato nenhuma referecircncia na literatura ou nas lacircminas oacuterficas agrave

ideia de parentesco universal Em segundo lugar eacute surpreendente a referecircncia ao fato de

que esses mesmos sacerdotes e poetas teriam pregado a necessidade de ldquoviver a vida o

mais santamente possiacutevelrdquo A admoestaccedilatildeo natildeo eacute de fato necessaacuteria agrave economia da pas-

sagem pois a prova da tese epistemoloacutegica da anamnese que como vimos representa o

objeto central da passagem eacute suficientemente demonstrada jaacute pela preacute-existecircncia da

alma ao longo de diversas encarnaccedilotildees E todavia Platatildeo parece querer precisar que o

movimento da metempsicose deve ser compreendido em sentido fundamentalmente

moral O fato de mais uma vez natildeo termos alguma referecircncia clara a isso nas fontes oacuter-

ficas faz pensar que se trate neste caso mais uma vez de uma variaccedilatildeo pitagoacuterica cer-

tamente ao gosto platocircnico da teoria da alma imortal

342 Hierarquia das encarnaccedilotildees

A apropriaccedilatildeo em sentido moral da metempsicose eacute tambeacutem atestada em outra

tradiccedilatildeo sobre a imortalidade da alma amplamente presente no corpus platocircnico aquela

da hierarquia das encarnaccedilotildees Trata-se da ceacutelebre lei de Adrasteia longamente discuti-

da por Platatildeo no Fedro exatamente no contexto da demonstraccedilatildeo da imortalidade da

alma

Eis agora a lei imposta por Adrasteia cada alma que havendo-se co-locado ao seacutequito de um deus contemple alguma das verdades eter-nas estaraacute livre de padecimentos ateacute o proacuteximo periacuteodo e no caso de sempre conseguir esta meta seraacute livre para sempre Quanto ao contraacute-rio incapaz de segui-lo natildeo alcanccedila a contemplaccedilatildeo e por alguma desgraccedila fica sobrecarregada por causa do esquecimento e da malda-de que a invadem enquanto pesada como estaacute perde as asas e cai no chatildeo entatildeo a lei diz que esta alma natildeo seja plantada em nenhuma na-tureza animal em sua primeira geraccedilatildeo Ao contraacuterio aquela que al-canccedilou uma mais ampla contemplaccedilatildeo plantar-se-aacute na semente de um homem que seraacute amante da sabedoria ou amante do belo ou das Mu-sas ou do amor Em segundo lugar na semente de um rei legiacutetimo ou um guerreiro ou um liacuteder corajoso Em terceiro na de um poliacutetico de

139

um administrador ou de homem de negoacutecios em quarto na semente de um atleta algueacutem que se dedica ao esforccedilo ou de algueacutem que se dedica agrave cura dos corpos em quinto a uma vida de adivinho ou de al-gueacutem que sabe iniciar-se aos misteacuterios ao sexto lugar seraacute convenien-te a vida de um poeta ou de outro homem apto agrave imitaccedilatildeo na seacutetima (Phaedr 248c-e)289

A imageacutetica da plantaccedilatildeo da alma em diversas sementes retoma diretamente os

textos acima citados de Piacutendaro e Empeacutedocles assim como a ideia da hierarquia das

reencarnaccedilotildees jaacute presente dos textos de ambos Ainda que Platatildeo coloque ndash como eacute de

se esperar ndash no topo da hierarquia exatamente os filoacutesofos as posiccedilotildees imediatamente

sucessivas lembram de perto aquelas dos dois antecedentes reis atletas e poetas em

Piacutendaro enquanto Empeacutedocles prefere a eles adivinhos poetas e meacutedicos aleacutem obvia-

mente dos proacuteprios reis Platatildeo polemicamente empurra para baixo no ranking das

reencarnaccedilotildees os poliacuteticos os meacutedicos e os atletas

O fato todavia de natildeo haver alguma fonte oacuterfica direta que apresente esta hie-

rarquia faz pensar na sua invenccedilatildeo em acircmbito aristocraacutetico e da Magna Greacutecia imedia-

tamente recebida por Platatildeo novamente no interior de seu projeto moralizador da me-

tempsicose acima citado290 Isso explicaria tambeacutem o porquecirc na citaccedilatildeo acima do Mecirc-

non (81a-c) de Platatildeo preferir citar Piacutendaro no lugar dos oacuterficos a intenccedilatildeo agrave qual se

acenava acima de diluir a referecircncia agraves origens oacuterficas da teoria pode responder direta-

mente a este projeto de moralizaccedilatildeo da metempsicose para o qual a tradiccedilatildeo da hierar-

quia das reencarnaccedilotildees devia servir muito bem O acircmbito aponta novamente para as

tradiccedilotildees pitagoacutericas itaacutelicas

A economia destas paacuteginas sugere evitar entrar diretamente em duas questotildees

centrais da passagem acima citada do Fedro isto eacute no problema da duraccedilatildeo do ciclo

das sucessivas reencarnaccedilotildees e naquele da referecircncia a Adrasteia como autora da lei

Baste aqui anotar que por um lado natildeo haacute coerecircncia doutrinaacuteria em relaccedilatildeo ao nuacutemero

289 Orig ldquo θεσmicroός τε Ἀδραστείας ὅδε ἥτις ἂν ψυχὴ θεῷ συνοπαδὸς γενοmicroένη κατίδῃ τι τῶν ἀληθῶν microέχρι τε τῆς ἑτέρας περιόδου εἶναι ἀπήmicroονα κἂν ἀεὶ τοῦτο δύνηται ποιεῖν ἀεὶ ἀβλαβῆ εἶναι ὅταν δὲ ἀδυνατήσασα ἐπισπέσθαι microὴ ἴδῃ καί τινι συντυχίᾳ χρησαmicroένη λήθης τε καὶ κακίας πλησθεῖσα βαρυνθῇ βαρυνθεῖσα δὲ πτερορρυήσῃ τε καὶ ἐπὶ τὴν ῆν πέσῃ τότε νόmicroος ταύτην microὴ φυτεῦσαι εἰς microηδεmicroίαν θήρει-ον φύσιν ἐν τῇ πρώτῃ γενέσει ἀλλὰ τὴν microὲν πλεῖστα ἰδοῦσαν εἰς γονὴν ἀνδρὸς ενησοmicroένου φιλοσόφου ἢ φιλοκάλου ἢ microουσικοῦ τινος καὶ ἐρωτικοῦ τὴν δὲ δευτέραν εἰς βασιλέως ἐννόmicroου ἢ πολεmicroικοῦ καὶ ἀρχι-κοῦ τρίτην εἰς πολιτικοῦ ἤ τινος οἰκονοmicroικοῦ ἢ χρηmicroατιστικοῦ τετάρτην εἰς φιλοπόνου ltἢgt γυmicroναστικ-οῦ ἢ περὶ σώmicroατος ἴασίν τινος ἐσοmicroένου έmicroπτην microαντικὸν βίον ἤ τινα τελεστικὸν ἕξουσαν ἕκτῃ ποιητικ-ὸς ἢ τῶν περὶ microίmicroησίν τις ἄλλος ἁρmicroόσει ἑβδόmicroῃrdquo (Phaedr 248c-e) 290 Cf para esta hipoacutetese Bernabeacute (no prelo cap 6)

140

de anos que corresponderia ao completamento do ciclo291 Por outro lado Adrasteia

(etim ldquoaquela da qual natildeo se pode fugirrdquo) antes de se tornar a temida vingadora de toda

tentativa humana de desafiar o divino (Aesch Prom 936 Resp V 451a) aparece nas

cosmologias oacuterficas como companheira de Dike (fr 23 Kern) associada a Necircmesis e ela

mesma entidade cosmogocircnica (fr 54 Kern)292 Corresponde fundamentalmente agrave mesma

personificaccedilatildeo da Anaacutenke que rege o mundo no livro X de Repuacuteblica e cujo decreto eacute

dito em Empeacutedocles regular o ciclo da metempsicose (115 B1 DK) Em ambos os ca-

sos de toda forma Platatildeo parece mais uma vez reelaborar criativamente os dados da

tradiccedilatildeo oacuterfica para que esta venha obedecer a seus proacuteprios interesses teoacuterico-

redacionais

343 Socircma-secircma

A mesma transposiccedilatildeo Platatildeo realiza em relaccedilatildeo a outro grande motivo das teo-

rias da imortalidade da alma aquele que corresponde ao ceacutelebre mote socircma-secircma293

Novamente a anaacutelise desta questatildeo buscaraacute de um lado perceber a maneira tipicamen-

te platocircnica de apropriar-se de uma teoria oacuterfica no interior de sua proacutepria concepccedilatildeo da

imortalidade da alma por outro lado apreender no reveacutes do tecido da fonte platocircnica

sinais das dependecircncias entre orfismo e pitagorismo em relaccedilatildeo a suas respectivas teori-

as da imortalidade da alma

Em uma paacutegina do Goacutergias Soacutecrates em resposta agrave proposiccedilatildeo de Caacutelicles so-

bre a necessidade de uma liberaccedilatildeo total das paixotildees em busca do prazer introduz com

o verso de Euriacutepides ndash ldquoQuem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivordquo ndash uma dis-

cussatildeo sobre o corpo (socircma) como tumba (secircma) da alma cuja autoria Soacutecrates refere a

ldquoum homem de refinada inteligecircncia siciliano ou itaacutelicordquo Vamos acompanhar o texto

Mas mesmo a vida da qual vocecirc estaacute falando eacute terriacutevel e nem ficaria maravilhado que Euriacutepedes dissesse a verdade quando se pergunta Quem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivo E de verdade po-de ser que noacutes na realidade estejamos mortos Conforme ouvi dizer

291 Cf para isso Bernabeacute (no prelo cap 6) 292 Cf para as citaccedilotildees Casadio (1991 132) 293 Utiliza-se aqui o termo transposiccedilatildeo no sentido cunhado a partir de Diegraves (1927 432ss)

141

ateacute dos saacutebios que atualmente somos mortos e que nossa tumba eacute o corpo e aquela parte da alma na qual tem sua sede as paixotildees por sua natureza se deixa arrastar e para cima e para baixo se deixa empurrar Isso disse sob a forma de mito um homem de refinada inteligecircncia talvez siciliano ou itaacutelico com um jogo de palavras chamou vaso a-quela parte da alma que tatildeo faacutecil de ser persuadida e natildeo iniciados chamou os homens sem-cabeccedila Nestes a parte da alma em que resi-dem as paixotildees sua devassidatildeo e permeabilidade desenhou como um vaso furado querendo dessa forma significar sua insaciabilidade No sentido contraacuterio inveacutes agravequele que vocecirc defende Caacutelicles ele mostra que entre todos os que estatildeo no Hades ndash e com Hades entende o invi-siacutevel ndash exatamente estes satildeo os mais felizes enquanto os natildeo iniciados satildeo condenados a entornar a aacutegua em um vaso furado com uma con-cha tambeacutem furada A concha ndash dizia quem me relatou esta histoacuteria ndash significava a alma dos sem-cabeccedila pois furada e incapaz de conter em si mesma qualquer coisa por sua incredulidade e esquecimento (Gorg 492e-493c)294

Eacute o caso de notar inicialmente que Platatildeo como era de se esperar pelo padratildeo

de suas estrateacutegias de transposiccedilatildeo ateacute aqui notado utiliza o motivo socircma-secircma em um

contexto dialoacutegico marcadamente eacutetico-apocaliacuteptico295 Ao mesmo tempo refere a ori-

gem deste ldquosob a forma de mito a um homem de refinada inteligecircncia talvez siciliano

ou itaacutelicordquo A referecircncia de Platatildeo faz pensar em uma origem oacuterfica eou pitagoacuterica do

motivo De fato o koacutempsos aneacuter ao qual Soacutecrates se refere eacute comumente identificado

com algum pitagoacuterico Haacute quem quis identificaacute-lo com o proacuteprio Filolau por causa da

referecircncia ao mesmo tema que aparece no fragmento 14 deste uacuteltimo

Atestam os antigos conhecedores das coisas divinas e os adivinhos que por causa de certas puniccedilotildees a alma encontra-se conjunta ao cuacutemulo

294 Orig ldquo ΣΩ Ἀλλὰ microὲν δὴ καὶ ὥς γε σὺ λέγεις δεινὸς ὁ βίος οὐ γάρ τοι θαυmicroάζοιmicro ἂν εἰ Εὐριπίδης ἀληθῆ ἐν τοῖσδε λέγει λέγων τίς δ οἶδεν εἰ τὸ ζῆν microέν ἐστι κατθανεῖν τὸ κατθανεῖν δὲ ζῆν καὶ ἡmicroεῖς τῷ ὄντι ἴσως τέθναmicroεν ἤδη γάρ του ἔγωγε καὶ ἤκουσα τῶν σοφῶν ὡς νῦν ἡmicroεῖς τέθναmicroεν καὶ τὸ microὲν σῶmicroά ἐστιν ἡmicroῖν σῆmicroα τῆς δὲ ψυχῆς τοῦτο ἐν ᾧ ἐπιθυmicroίαι εἰσὶ τυγχάνει ὂν οἷον ἀναπείθεσθαι καὶ microεταπίπτειν ἄνω κάτω καὶ τοῦτο ἄρα τις microυθολογῶν κοmicroψὸς ἀνήρ ἴσως Σικελός τις ἢ Ἰταλικός παράγων τῷ ὀνόmicroατι διὰ τὸ πιθανόν τε καὶ πειστικὸν ὠνόmicroασε πίθον τοὺς δὲ ἀνοήτους ἀmicroυήτους τῶν δ ἀνοήτων τοῦτο τῆς ψυχῆς οὗ αἱ ἐπιθυmicroίαι εἰσί τὸ ἀκόλαστον αὐτοῦ καὶ οὐ στεγανόν ὡς τετρηmicroένος εἴη πίθος διὰ τὴν ἀπλη-στίαν ἀπεικάσας τοὐναντίον δὴ οὗτος σοί ὦ Καλλίκλεις ἐνδείκνυται ὡς τῶν ἐν Ἅιδου ndash τὸ ἀιδὲς δὴ λέγων ndash οὗτοι ἀθλιώτατοι ἂν εἶεν οἱ ἀmicroύητοι καὶ φοροῖεν εἰς τὸν τετρηmicroένον πίθον ὕδωρ ἑτέρῳ τοιούτῳ τετρηmicroένῳ κοσκίνῳ τὸ δὲ κόσκινον ἄρα λέγει ὡς ἔφη ὁ πρὸς ἐmicroὲ λέγων τὴν ψυχὴν εἶναι τὴν δὲ ψυχὴν κοσκίνῳ ἀπῄκασεν τὴν τῶν ἀνοήτων ὡς ετρηmicroένην ἅτε οὐ δυναmicroένην στέγειν δι ἀπιστίαν τε καὶ λήθηνrdquo (Gorg 492e-493c) 295 A referecircncia do diaacutelogo a doutrinas pitagoacutericas natildeo se resume a este contexto Veja-se por exemplo a seguir (Gorg 503e-504a) a contraposiccedilatildeo entre a ἰσότητες a proporccedilatildeo dos elementos da vida eacutetica e a πλεονεζία de Caacutelicles que ecoa diretamente a mesma discussatildeo presente no fragmento 3 de Arquitas Para um comentaacuterio a esta correspondecircncia cf Meattini (1983)

142

das carnes do corpo e estaacute como sepultada neste tuacutemulo (44 B 14 D-K)296

Filolau de sua parte parece referir a doutrina do socircma-secircma de maneira muito

precisa agraves tradiccedilotildees maacutegico-religiosas arcaicas theologoiacute e mantiacutees297

O problema eacute que desde Wilamowitz (1920 II 90) e Frank (1923 301) ateacute

Burkert (1972 248 n47) Casadio (1991 124 n9) e mesmo Huffman (1993 404-406)

muitos comentadores duvidam seriamente da originalidade deste fragmento e por con-

sequecircncia da possibilidade de considerar a ideia do socircma-secircma como originalmente

filolaica298 Os argumentos satildeo basicamente os seguintes a) haacute evidecircncias de contami-

naccedilatildeo do texto com as doutrinas de Platatildeo (Craacutetilo 400c) e Aristoacuteteles (fr 6 Rose) b)

reminiscecircncias linguiacutesticas aproximariam seu vocabulaacuterio agravequele posterior marcada-

mente de eacutepoca platocircnica c) seria estranho que um pitagoacuterico como Filolau atribuiacutesse a

teoria do socircma-secircma considerada comumente pitagoacuterica a antigos theologoiacute e adivi-

nhos d) o termo usado por Filolau psycheacute assume neste fragmento conotaccedilatildeo muito

proacutexima agravequela posteriormente definida como complexo das faculdades psicoloacutegicas

isso seria em contradiccedilatildeo tanto com a concepccedilatildeo de alma como vida acima analisada

em relaccedilatildeo a seu fr 13 (no interior do comentaacuterio ao fr 7 de Xenoacutefanes) como agravequela

expressa pelo fr 22 pelo qual ldquoa alma ama o corpordquo299 Enquanto os primeiros trecircs ar-

gumentos em favor da consideraccedilatildeo do fragmento como espuacuterio podem ser facilmente

refutados o quarto mereceraacute reflexatildeo mais cuidadosa

Em relaccedilatildeo aos primeiros dois argumentos (contaminaccedilatildeo doutrinaacuteria e reminis-

cecircncia linguiacutestica) eacute faacutecil argumentar ao contraacuterio que a) as doutrinas expressas por

Filolau natildeo parecem de nenhuma forma anacrocircnicas e o fato de serem citadas por Pla-

tatildeo e Aristoacuteteles pode sugerir que os trecircs simplesmente a retiraram de uma fonte co-

mum provavelmente de tradiccedilatildeo oacuterfica bastante difundida nos seacuteculos V e IV b) ainda

que o termo theologiacutea apareccedila pela primeira vez somente em Platatildeo (Resp II 379a)

segundo Vlastos (1952 12 n22) o termo eacute de uso geral Significativamente eacute Adimanto

quem o traz agrave tona no diaacutelogo e natildeo Soacutecrates indicando com isso tratar-se mais prova-

296 Orig ldquo microαρτυρέονται δὲ καὶ οἱ παλαιοὶ θεολόγοι τε καὶ microάντιες ὡς διά τινας τιmicroωρίας ἁ ψυχὰ τῷ σώmicroατι συνέζευκται καὶ καθάπερ ἐν σήmicroατι τούτῳ τέθαπταιrdquo (44 B 14 DK) 297 Cf Casadio 1987 230 298 Sobre as questotildees historiograacuteficas mais gerais relativas agrave originalidade dos fragmentos de Filolau cf acima (17) Cf tambeacutem Guthrie (1962 329s) 299 Cf para a resenha destes argumentos tanto Burkert (1991 404-406) como Bernabeacute (no prelo cap7)

143

velmente de um termo jaacute em uso do que de uma criaccedilatildeo platocircnica300 Por outro lado os

argumentos de Wilamowitz e Frank sobre o vocabulaacuterio satildeo subjetivos e dificilmente

compartilhaacuteveis o estilo do texto somente pareceria um falso doacuterico enquanto escon-

deria de fato por traacutes dele inconfundiacutevel clareza aacutetica Trata-se de uma afirmaccedilatildeo que

natildeo permite verificaccedilatildeo Em relaccedilatildeo ao terceiro argumento o da incongruecircncia de um

pitagoacuterico relacionar uma teoria tambeacutem pitagoacuterica como a do socircma-secircma a antigos

teoacutelogos e adivinhos podem-se apresentar ao menos dois contra-argumentos primeira-

mente natildeo estaacute demonstrada a origem pitagoacuterica da doutrina que ao contraacuterio poderia

ser originariamente mais facilmente uma tradiccedilatildeo oacuterfica em segundo lugar ainda que

se admita a possibilidade de ser pitagoacuterica as modalidades da pertenccedila do pitagoacuterico

Filolau ao movimento pitagoacuterico isto eacute a imagem que este homem do seacuteculo V aEC

devia fazer da tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica em suas origens natildeo estaacute de forma algu-

ma esclarecida Nada de fato impede de pensar ndash fora o costumeiro preconceito presen-

tista ndash que Filolau considerasse as origens do movimento intelectual ao qual pertencia

muito bem representadas por theologoiacute e mantiacutees da sophiacutea dos quais se considerava

devedor

Por outro lado o quarto argumento merece uma consideraccedilatildeo mais atenta como

se dizia fundamentalmente por trazer agrave tona aquela que possui aparentemente todas as

condiccedilotildees de ser considerada como uma contradiccedilatildeo no pensamento de Filolau em re-

laccedilatildeo agrave sua concepccedilatildeo da alma Os fr 13 e 22 apresentam nesse sentido dois problemas

distintos e complementares para a ideia de psycheacute que subjaz ao fr 14 e fazem um aten-

to leitor de Filolau como Huffman pender para considerar este uacuteltimo como duvidoso

(1993 405-406)

No caso do fr 13 acima analisado concluiacutemos que o termo psycheacute que laacute apa-

rece com o sentido de harmonia e composiccedilatildeo de elementos materiais eacute evidentemente

contraditoacuterio com aquele de sua imortalidade e que portanto Filolau ndash que como pita-

goacuterico deveria possuir alguma teoria ou crenccedila na imortalidade da alma ndash deveria utili-

zar outro termo que natildeo psycheacute para referir-se agrave parte do indiviacuteduo que alcanccedila a imor-

talidade No caso do fr 22 a expressatildeo ldquoa alma ama o corpordquo (diligitur corpus ab ani-

300 A prova disso Burkert (1993 405) anota com razatildeo que a frase ἀmicroφὶ θεῶν λόγος aparece por exem-plo jaacute no fr 131 de Empeacutedocles (31 B131 DK)

144

ma) que aparece no fragmento citado por Claudiano Mamerto (44 B22 DK) sugere

novamente evidente contradiccedilatildeo com a ideia do corpo como tumba301

E todavia a querer procurar uma soluccedilatildeo para os dois impasses poder-se-ia em

relaccedilatildeo ao primeiro conjecturar que se de fato a presenccedila do termo psycheacute obrigaria a

considerar o fragmento quanto menos duvidoso o restante do fragmento natildeo cria mais

duacutevidas sobre sua autenticidade Este fato permitiria imaginar que o termo psycheacute e

somente ele seja fruto de uma correccedilatildeo de Clemente ao termo original filolaico (que

podia ser daiacutemon por exemplo) ao qual substituiria o novo termo mais congruente

com seu vocabulaacuterio e tradicionalmente (mas somente mais tarde) deputado para indi-

car a parte imortal do indiviacuteduo

Em relaccedilatildeo agrave contradiccedilatildeo entre a ideia de um corpo-tumba e o amor da alma por

ele do fr 22 uma soluccedilatildeo muito elegante e eficaz foi proposta jaacute por Timpanaro Cardi-

ni

Deve-se considerar que na misteriologia oacuterfico-pitagoacuterica o corpo eacute lu-gar e meio de expiaccedilatildeo para alcanccedilar a libertaccedilatildeo da alma daiacute uma cer-ta ligaccedilatildeo afetiva da alma em relaccedilatildeo agrave sua proacutepria custoacutedia (1962 II 246)302

Assim o amor da alma pelo corpo eacute coerentemente o amor pela possibilidade

de expiaccedilatildeo das culpas das vidas anteriores Expiaccedilatildeo esta que soacute era possiacutevel atraveacutes

do corpo portanto a soluccedilatildeo tem o meacuterito de aproximar o fragmento do acircmbito concei-

tual das teorias da metempsicose Nesse mesmo sentido na frase imediatamente seguin-

te o fr 22 acrescenta ldquopois sem este natildeo pode utilizar os sentidosrdquo (quia sine eo non

potest uti sensibus) O sujeito da frase eacute ainda a alma que sem o corpo natildeo pode utilizar

os sentidos receber e emitir sinais Trata-se do mesmo campo semacircntico da teoria do

socircma-secircma como interpretada como ver-se-aacute logo a seguir por Platatildeo no Craacutetilo

(400c) isto eacute do corpo como sinal O corpo apresenta-se assim no fr 22 de Filolau

como uma custoacutedia relativamente aberta que permite a interaccedilatildeo com o mundo isto eacute

alguma forma de conhecimento e expressatildeo Ver-se-aacute em breve esta mesma ideia ex-

pressa na paacutegina platocircnica agora citada

301 Incisivo nesse sentido Casadio (1991 124 n9) ldquoper quanto ci si arrampichi sugli specchi non si riusciragrave mai a far dire a Filolao che egrave un sepolcro lacuteinvolucro corporeo di cui lacuteanima si compiacerdquo 302 Orig ldquobisogna considerare che nella misteriologia orfico-pitagorica il corpo egrave luogo e mezzo di espiazione per giungere alla liberazione dellacuteanima dacuteonde un certo legame affettivo dellacuteanima verso la propria custodiardquo

145

Em resumo Filolau parece remeter em seu fr 14 agrave teoria da imortalidade da

alma para uma origem certamente anterior a ele mesmo com certa probabilidade de ser

ndash ateacute mesmo ndash externa ao proacuteprio pitagorismo ou pelo menos certamente anterior ao

pitagorismo do seacuteculo V aEC do qual Filolau eacute o maior representante E neste ponto

concordar com a paacutegina do Goacutergias de Platatildeo acima citada isto eacute da origem em acircmbito

religioso e antigo dessas mesmas teorias Ainda que natildeo seja ele mesmo o koacutempsos aneacuter

citado por Platatildeo portanto Filolau constitui um testemunho central ao mesmo tempo

da antiguidade das doutrinas e de sua acolhida muito cedo no interior da literatura pita-

goacuterica

Achados recentes (datados em 1951) parecem confirmar a existecircncia em acircmbito

oacuterfico da teoria do socircma-secircma trata-se mais especificamente das trecircs placas de osso

descobertas em Oacutelbia303 Na primeira (94a Dubois) e na terceira (94c Dubois) leem-se

algumas sequecircncias de nomes que se iniciam ou terminam com o teocircnimo DION uma

abreviaccedilatildeo de Dioniso

Vida Morte Vida Verdade

Dion(iso) Oacuterficos304

Dion(iso) [Mentira] Verdade

Corpo Alma305

Na primeira placa a sequecircncia vida-morte-vida eacute dita verdade e referida exata-

mente aos oacuterficos A placa conteacutem pela primeira vez o nome Orphikoiacute Antes da desco-

berta o primeiro aparecimento do termo era atestado somente em Heroacutedoto (II 81) em

uma paacutegina que seraacute analisada a seguir306 Haacute nesta uma inversatildeo apocaliacuteptica tipica-

mente oacuterfica da valoraccedilatildeo da morte como verdadeira vida (da alma obviamente) Im-

possiacutevel natildeo pensar nesse mesmo sentido a citaccedilatildeo platocircnica acima dos versos de Eu-

riacutepides ldquoQuem sabe se viver eacute morrer e morrer eacute estar vivordquo (Gorg 492e) assim como

303 Se ocuparam das placas de osso de Olbia especialmente West (1982) Zhmud (1992) Dubois (1996) Tortorelli-Ghidini (2006) 304 Orig cf para o texto original e a imagem da placa o Anexo 2 305 Orig cf para o texto original e a imagem da placa o Anexo 3 306 Cf para mais ampla discussatildeo da grafia exata e do sentido do termo Graf (2000) O sufixo ndashικο indi-caria um grupo marcado pela diferenciaccedilatildeo uma seita dionisiacuteaca ldquoheregerdquo (Burkert 1982 12)

146

a toda a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates na paacutegina do diaacutelogo307 O fato eacute que a expressatildeo

socircma-secircma acaba por tornar-se como um mote ou melhor ndash utilizando um termo pita-

goacuterico ndash um syacutembolon da teoria oacuterfica da imortalidade da alma

Aceitando-se a reconstruccedilatildeo da terceira placa por Vinogradov (1991 77-86) ha-

veria nela na terceira linha exatamente a antoniacutemia socircma-psycheacute que encontramos no

texto platocircnico e em Filolau Lidas em conjunto as duas placas revelam indiscutivel-

mente ndash e em acircmbito declaradamente oacuterfico ndash crenccedila na imortalidade da alma enquanto

algo que sobrevive ao corpo mortal308

Na paacutegina do Goacutergias (492e-493c) com a qual comeccedilamos esta seccedilatildeo a grande

inteligecircncia do ldquohomem siciliano ou itaacutelicordquo eacute de certa forma exemplificada por uma

seacuterie de jogos etimoloacutegicos que marcam significativamente a segunda parte da citaccedilatildeo

Com um jogo de palavras (lit uma mudanccedila de termos paraacutegon tocirc onoacutemati) o saacutebio

chamou piacutethos (vaso) aquela parte da alma que eacute piacutethanos (facilmente persuadiacutevel) e

amueacutetoi (natildeo iniciados) os homens anoeacutetoi (que natildeo tecircm cabeccedila) O jogo estende-se ateacute

o ponto de abranger a proacutepria etimologia do Aacutedes (Hades) o reino do aleacutem-tuacutemulo que

eacute entendido como aacuteides (invisiacutevel)

Natildeo maravilha portanto que o mesmo motivo socircma-secircma mereccedila um jogo eti-

moloacutegico refinadiacutessimo em ceacutelebre paacutegina do Craacutetilo (400c) jaacute amplamente estudada

pela criacutetica309 Ao que parece a proacutepria ideia do mote socircma-secircma evoca esta tipologia

antiga de reflexatildeo sobre nomes e realidade Ao mesmo tempo o kompsoacutes aneacuter do Goacuter-

gias e os antigos teoacutelogos e adivinhos de Filolau encontram nesta paacutegina do Craacutetilo

pela primeira vez uma atribuiccedilatildeo mais precisa trata-se aqui de ldquodisciacutepulos de Orfeurdquo

De fato alguns dizem que [o corpo] seja tumba da alma como sepultada nisso na vida presente e pelo fato da alma por sua vez significar por causa disso chama-se corretamente sinal Todavia parecem-me que fo-ram em primeiro lugar os disciacutepulos de Orfeu aqueles que deram este nome como se a alma enquanto estaacute pagando a pena por aquilo pelo qual estaacute pagando possui para que se salve este revestimento feito agrave imagem de uma prisatildeo da alma este eacute assim denominado salvaccedilatildeo ateacute

307 Cf para uma anaacutelise exaustiva desta ideia na literatura oacuterfica Bernabeacute (2007b) 308 Cf para isso tambeacutem West (1982 18-19) e Casadio (1991 125) De ideia contraacuteria Burkert (1980 37 e 1972 133) 309 Cf Rohde (1898 130 n2) Tannery (1901 314s) Wilamowitz (1932 I 199) Rathmann (1933 65 e 82) Nilsson (1935 205s) Dodds (1951 148s) Guthrie (1952 156s) Timpanaro Cardini (1962 II 228s) Burkert (1972 126 n33 e 248 n47) Alderink (1981 62) De Vogel (1981 79s) Bestor (1980 306s) Ferwerda (1985) Casadio (1987 389s e 1991 123s) Riedweg (1995 46) Zhmud (1997 123) Maravi-lha-se ao contraacuterio Bernabeacute (no prelo cap 7)

147

que natildeo pague suas diacutevidas e natildeo eacute preciso mudar uma soacute letra (Crat 400c)310

Eacute preciso obviamente desvendar o articuladiacutessimo jogo de palavras que constroacutei

o texto e que envolve natildeo somente dois diferentes sentidos para o termo secircma (tumba e

sinal) mas tambeacutem a reinvenccedilatildeo ndash toda platocircnica ndash de um novo sentido para o termo

socircma que de corpo acaba por significar salvaccedilatildeo

Soacutecrates revela aqui portanto conhecer dois sentidos diversos do termo secircma

de um lado tumba do outro sinal A assonacircncia tem evidentemente papel central na

compreensatildeo da paacutegina Soacutecrates devia conhecer bem o mote oacuterfico socircma-secircma no

sentido de corpo-tumba mas conhece tambeacutem uma exegese diferente do mote que ndash de

certa forma ndash diminui o impacto cruento e arcaico da imagem provavelmente ligado

originalmente aos ritos das telestai como as placas de Oacutelbia acima citadas parecem in-

dicar refinando-a para inseri-la em um acircmbito semacircntico mais intelectualista O jogo eacute

possiacutevel provavelmente graccedilas ao sentido arcaico do termo secircma jaacute homeacuterico que

significaria natildeo tanto a sepultura e sim mais precisamente a laacutepide funeraacuteria que eacute

erigida para indicar sinalizar o lugar da sepultura e por consequecircncia para lembrar da

pessoa ali sepultada311 Por outro lado a exploraccedilatildeo dessa translaccedilatildeo semacircntica corres-

ponde provavelmente ao mesmo acircmbito exegeacutetico ao qual se refere o papiro Derveni

isto eacute aquele de um trabalho de exegese alegoacuterica dos mitos oacuterficos antigos (cf acima

18)

Diversos autores desde Wilamowitz (1932 II 199) sugerem tratar-se aqui de

uma exegese pitagoacuterica do mote oacuterfico312 Todavia esta atribuiccedilatildeo natildeo eacute consensual De

fato ainda que Burkert afirme inicialmente ldquopodemos supor que se natildeo for oacuterfico seja

possivelmente pitagoacutericordquo por outro lado acaba por concluir ceticamente que ldquonatildeo

sabemos nem sequer se existiu historicamente algo deste tipordquo (1972 248 n47)313 Eacute

310 Orig ldquo καὶ γὰρ ltσῆmicroάgt τινές φασιν αὐτὸ εἶναι τῆς ψυχῆς ὡς τεθαmicromicroένης ἐν τῷ νῦν παρόντι καὶ διότι αὖ τούτῳ ltσηmicroαίνειgt ἃ ἂν σηmicroαίνῃ ἡ ψυχή καὶ ταύτῃ ldquoσῆmicroαrdquo ὀρθῶς καλεῖσθαι δοκοῦσι microέντοι microοι microάλιστα θέσθαι οἱ ἀmicroφὶ Ὀρφέα τοῦτο τὸ ὄνοmicroα ὡς δίκην διδούσης τῆς ψυχῆς ὧν δὴ ἕνεκα δίδωσιν τοῦ-τον δὲ περίβολον ἔχειν ἵνα ltσῴζηταιgt δεσmicroωτηρίου εἰκόνα εἶναι οὖν τῆς ψυχῆς τοῦτο ὥσπερ αὐτὸ ὀνοmicroάζεται ἕως ἂν ἐκτείσῃ τὰ ὀφειλόmicroενα [τὸ] ldquoσῶmicroαrdquo καὶ οὐδὲν δεῖν παράγειν οὐδ ἓν γράmicromicroαrdquo (Crat 400c) 311 Para as citaccedilotildees de Homero cf Il II 814 e VII 319 Od II 222 e XII 175 Para o sentido de σῆmicroα cf Liddell-Scott (1996) Para a discussatildeo do termo cf Prier (1978 91-101) 312 Cf entre eles Thomas (1938 51-52) e Dodds (1951 171 n95) 313 Orig ldquowe may suppose that if it is not Orphic it is likely to be Pythagoreanrdquo e ldquowe do not know whether this was a historical characterrdquo

148

certo que se o fragmento de Filolau acima citado (44B14 DK) natildeo autoriza atribuir a

interpretaccedilatildeo de secircma como sinal e sim mais precisamente como tumba por outro

lado a hipoacutetese levantada por Pugliese Carratelli (2001) de um trabalho mito-loacutegico do

pitagorismo sobre as tradiccedilotildees oacuterficas poderia sugerir com certa probabilidade que esta

etimologia fosse proacutexima aos ambientes pitagoacutericos senatildeo mesmo de autoria destes

uacuteltimos314 Um argumento indireto que autorizaria a atribuiccedilatildeo ao pitagorismo da ideia

do corpo como sinal eacute o fato da praacutetica didaacutetica simboacutelica que conforme vimos acima

(22) deveria marcar o estilo de vida pitagoacuterica syacutembola e acusmata indicando que uma

coisa significa o tempo todo outra315 Consequecircncia esta do ponto de vista teoacuterico da

continuidade da realidade de sua syngeacuteneia na qual tudo remete para tudo316

No entanto o que mais surpreende pela fineza do trabalho de textura etimoloacutegica

eacute a terceira passagem do texto O sucesso do jogo etimoloacutegico eacute sublinhado pelo mesmo

Soacutecrates que ao final do argumento declara orgulhosamente ldquoe natildeo eacute preciso mudar

uma soacute letrardquo Trata-se aqui da aproximaccedilatildeo de socircma com o verbo soiacutezo que acaba por

deslizar semanticamente o termo socircma para o acircmbito da salvaccedilatildeo Linguisticamente o

jogo eacute claro Soacutecrates considera so-ma como um nome composto por so- (de soiacutezo sal-

var) e -ma sufixo que indica accedilatildeo Socirc-ma torna-se assim um nome de accedilatildeo uma haacutebil

construccedilatildeo morfoloacutegica de Soacutecrates-Platatildeo que quer significar que o corpo eacute salvaccedilatildeo da

alma Por esse motivo Soacutecrates pode afirmar natildeo ser preciso mudar uma soacute letra como

ao contraacuterio eacute pressuposto no caso do jogo socircma-secircma no qual haacute uma troca entre ocircmi-

314 Esta eacute certamente boa maneira de resolver na paacutegina platocircnica a oposiccedilatildeo entre aqueles τινές que dizem a teoria e οἱ ἀmicroφὶ Ὀρφέα que foram os primeiros a dizecirc-la nos primeiros (τινές) caberiam os se-gundos os oacuterficos mas o alcance desta identificaccedilatildeo natildeo se esgota com eles nos τινές poderiam caber portanto os pitagoacutericos ainda que natildeo em posiccedilatildeo de ldquoprimeirosrdquo a sustentar esta teoria 315 Significativa nesse sentido a paacutegina de Estobeu (Stob Flor 31199) ldquode fato natildeo haacute nada de tatildeo proacuteprio da filosofia pitagoacuterica como o simboacutelico como uma forma de ensino na qual palavra e silencio se misturam como para natildeo dizerrdquo (Orig ldquo Καὶ microὴν οὐδέν ἐστιν οὕτω τῆς Πυθαγορικῆς φιλοσοφίας ἴδιον ὡς τὸ συmicroβολικόν οἷον ἐν τελετῇ microεmicroιγmicroένον φωνῇ καὶ σιωπῇ διδασκαλίας γένος ὥστε microὴ λέγειν ἀείσω ξυνετοῖσιrdquo ) Por outro lado a ideia da sinalizaccedilatildeo simboacutelica natildeo seria algo restrito agrave tradiccedilatildeo pitagoacuterica mas eacute amplamente presente no restante da literatura preacute-socraacutetica Veja-se como exemplo o fr 93 de Heraacuteclito ldquoo senhor de que eacute o oraacuteculo de Delfos natildeo fala nem esconde sinalizardquo Orig ldquo ὁ ἄναξ οὗ τὸ microαντεῖόν ἐστι τὸ ἐν ∆ελφοῖς οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σηmicroαίνειrdquo (22 B 93 DK) 316 Ao contraacuterio natildeo procede a argumentaccedilatildeo de Ferwerda (1985 270-272) que tende a mostrar que ndash ao contraacuterio ndash o primeiro sentido etimoloacutegico do corpo como tumba da alma natildeo pode ser pitagoacuterico O autor argumenta que por um lado uma ideia tatildeo pessimista natildeo combinaria com a visatildeo do mundo mais positi-va dos pitagoacutericos (notamente em relaccedilatildeo agrave ideia da συνγένεια) por outro lado argumenta que natildeo faria sentido imaginar que um pitagoacuterico pensasse na morte da alma durante a vida terrena no corpo O equiacutevo-co do autor reside em considerar nos dois casos a morte da alma no corpo como algo definitivo em vez de pensaacute-la como continuamente renascida pensando assim na morte com ao comeccedilo de uma nova vida no percurso da metempsicose

149

cron e eta Dessa forma e somente em consequecircncia dessa nova etimologia soterioloacutegi-

ca faraacute sentido para Soacutecrates a imagem do corpo como periacutebolos revestimento da alma

feito agrave imagem de um desmoteacuterion de uma prisatildeo Entre os poucos comentadores desta

passagem De Vogel (1981) e Ferwerda (1985) concordam que com essa proposta eti-

moloacutegica Platatildeo estaria de fato recusando a visatildeo totalmente pessimista do corpo como

tumba em favor de uma imagem menos definitiva como aquela do periacutebolos ou mesmo

do caacutercere317 Aqui estaacute o ponto teoreacutetico central dizer que o corpo eacute revestimento e

prisatildeo da alma eacute algo bem mais leve do que dizer que eacute sua tumba318 Como bem obser-

vou Timpanaro Cardini (1962) a etimologia ldquodenota tendecircncias culturais mais proacuteximas

agrave idade de Soacutecratesrdquo e deveraacute corresponder portanto agrave sua proacutepria lectio da tradiccedilatildeo do

motivo socircma-secircma como sugere a proacutepria expressatildeo dokoucircsi moi319

Corresponderaacute mais precisamente agrave transposiccedilatildeo platocircnica da tradiccedilatildeo socircma-

secircma no interior de seu proacuteprio universo conceitual bem exemplificada por uma paacutegina

do Feacutedon em que o tema do caacutercere da alma assume fortes conotaccedilotildees eacuteticas

Aqueles que amam o conhecimento bem sabem que a filosofia toma sua alma que eacute realmente acorrentada em uma palavra colada ao corpo condenada a perscrutar as coisas que satildeo como atraveacutes de uma prisatildeo e jamais por si mesma e estaacute envolvida em total ignoracircncia E ainda que intua que este caacutercere eacute terriacutevel por causa da paixatildeo en-

317 Eacute significativa aqui a posiccedilatildeo expressa por De Vogel ldquoall this I think brings out fairly clearly that those modern authors who write and speak as if the σῶmicroα-σῆmicroα formula were the most adequate expres-sion if Platos view of man and human life can do so only by a certain mis-interpretation of the function of that formula in Platos thought For in fact Plato took human life much more as a challenge than as some kind of penancerdquo (1981 98) Por outro lado natildeo parece fazer muito sentido demonstrar ndash como quer fazer Ferwerda (1985 274) ndash que o termo περίβολος natildeo significaria em Platatildeo necessariamente ldquojaulardquo e sim um recinto de proteccedilatildeo Ainda que a resenha proposta do termo ao longo do restante da obra platocircnica seja convincente natildeo retira deste especiacutefico περίβολος o fato de ter sido indicado como δεσmicroωτηρίου εἰκόνα devendo ser de ldquojaulardquo no contexto da passagem seu significado mais preciso 318 Ainda que Casadio as considere ldquometafore che esprimono con gradazione diversa lo stesso concettordquo (1991 124) todavia eacute possiacutevel pensar em mudanccedila de rumo mais precisa na passagem platocircnica como veremos a seguir Concorda com ele Guthrie (1952 311) 319 Timpanaro Cardini 1962 II 229 Orig ldquorisente di tendenze culturali piugrave vicine allacuteetagrave di Soacutecraterdquo Cf tambeacutem Nilsson It may however seem doubtful whether the etymologies (σῆmicroα-σηmicroαίνειν σῶmicroα-σώιζειν) are quoted from the Orphics or are Platos own speculations It may be doubted if such etymo-logical speculations are appropriate for the Orphics and it seems not unlikely that Plato added them as explanatory comments intended to illuminate the saying (1935 205) E Casadio ldquociograve che Platone attribuisce agli Orfici egrave lidea dellespiazione delle colpe non necessariamente il legame etimologico tra sogravema e sogravezordquo (1987 390) Apesar disso eacute certamente o caso de notar com Bernabeacute (no prelo cap 7) que nas duas lacircminas oacuterficas de Pelinna datadas do seacuteculo IV aEC incontramos a mesma ideia de libertaccedilatildeo da alma do corpo ldquoacaba de morrer acaba de nascer ou trecircs vezes bem-aventurado neste dias Diga a Perseacutefona que o proacuteprio Baco te libertourdquo (Cf Tortorelli Ghidini 2006 84-85) Para argumentos a favor de uma atribuiccedilatildeo jaacute oacuterfica da ideia do corpo como salvaccedilatildeo cf Ferwerda (1985 267)

150

quanto quem se encontra nele acorrentado acaba por ser ele proacuteprio o artiacutefice de seu acorrentamento (Phaed 82e)320

A prisatildeo da alma no corpo portanto eacute constituiacuteda de ignoracircncia e paixatildeo No

entanto ainda eacute passiacutevel da intervenccedilatildeo pedagoacutegica da filosofia que tenta ldquodescolarrdquo a

alma do corpo ampliando sua visatildeo O que importa sublinhar aqui em perspectiva pla-

tocircnica eacute que a imagem corpo-prisatildeo permite esta intervenccedilatildeo da filosofia enquanto a

simples equaccedilatildeo corpo-tumba natildeo E com isso a moralizaccedilatildeo platocircnica das teorias da

imortalidade da alma atinge seu ponto mais alto e ao mesmo tempo provavelmente

mais distante de sua origem oacuterfica

Sinal inequiacutevoco da nova siacutentese platocircnica das diversas etimologias eacute uma paacutegi-

na do Fedro (250c) em que aparecem novamente articuladas ndash e sem o miacutenimo sinal de

tensatildeo entre elas ndash as duas imagens do corpo como prisatildeo e como tumba as almas en-

contram-se no niacutevel mais alto de sua iniciaccedilatildeo junto a Zeus e satildeo descritas como ldquoes-

tando puras e sem marcas deste que agora carregamos conosco e chamamos corpo ao

qual estamos presas agrave maneira das ostrasrdquo (Phaedr 250c)321 A remissatildeo ao jogo etimo-

loacutegico do Craacutetilo acima citado eacute evidente no uso do termo aseacutematos que traduzimos

ldquosem marcasrdquo mas que enquanto composto de alfa+sema pode carregar e certamente

carrega o sentido de ldquonatildeo sepultadordquo Assim a paacutegina poderaacute ser lida como ldquoestando

puras e natildeo sepultadas deste que agora carregamos conosco ao qual estamos presas agrave

maneira das ostrasrdquo Novamente o tema socircma-secircma portanto a jogar entre os sentidos

de tumba e sinal322

320 Orig ldquo οἱ φιλοmicroαθεῖς ὅτι παραλαβοῦσα αὐτῶν τὴν ψυχὴν ἡ φιλοσοφία ἀτεχνῶς διαδεδεmicroένην ἐν τῷ σώmicroατι καὶ προσκεκολληmicroένην ἀναγκαζοmicroένην δὲ ὥσπερ διὰ εἱργmicroοῦ διὰ τούτου σκοπεῖσθαι τὰ ὄντα ἀλλὰ microὴ αὐτὴν δι αὑτῆς καὶ ἐν πάσῃ ἀmicroαθίᾳ κυλιν δουmicroένην καὶ τοῦ εἱργmicroοῦ τὴν δεινότητα κατιδοῦσα ὅτι δι ἐπιθυmicroίας ἐστίν ὡς ἂν microάλιστα αὐτὸς ὁ δεδεmicroένος συλλήπτωρ εἴη τοῦ δεδέσθαιrdquo (Phaed 82e) 321 Orig ldquo καθαροὶ ὄντες καὶ ἀσήmicroαντοι τούτου ὃ νῦν δὴ σῶmicroα περιφέροντες ὀνοmicroάζοmicroεν ὀστρέου τρό-πον δεδεσmicroευmicroένοιrdquo (Phaedr 250c) 322 Cf para isso Ferwerda (1985 269) Casadio (1987 389 n1) e Bernabeacute (no prelo cap7) que apresenta interessante quadro sinoacuteptico desta passagem com a paralela do Craacutetilo (400c) no sentido de mostrar a derivaccedilatildeo da primeira da segunda

151

344 Mediaccedilatildeo pitagoacuterica

O caminho aqui traccedilado balizado pelos textos-chave da obra platocircnica permite

alcanccedilar algumas conclusotildees ainda que provisoacuterias sobre qual seja o sentido da presen-

ccedila das teorias da metempsicose oacuterficas e pitagoacutericas no interior do corpus

Primeiramente eacute possiacutevel afirmar que haacute na obra platocircnica remissatildeo bastante

clara a uma origem ao mesmo tempo antiga religiosa e itaacutelica de teorias da imortali-

dade da alma que encontramos paralelamente na literatura oacuterfica e na primeira literatura

pitagoacuterica notadamente em Filolau Foi certamente esse o caso do mote socircma-secircma haacute

pouco analisado

Em segundo lugar a apropriaccedilatildeo platocircnica de teorias da imortalidade oacuterficas su-

postamente originaacuterias eacute claramente marcada por uma intenccedilatildeo moralizante como bem

demonstraram a insistecircncia na hierarquia das reencarnaccedilotildees e mesmo a original etimo-

logia soterioloacutegica platocircnica para o motivo do socircma-secircma Natildeo eacute impossiacutevel por outro

lado concluir que provavelmente essa transposiccedilatildeo tenha sido mediada por um movi-

mento como aquele pitagoacuterico que ainda que provavelmente proacuteximo tanto geografi-

camente como socialmente agrave mitologia e agrave ritualidade das telestai oacuterficas de certa for-

ma contribui para ldquoapolinizar o orfismordquo ndash na ceacutelebre expressatildeo de Ciaceri (1931-32

209) ou seja ndash conforme a lectio em seguida partilhada tambeacutem por Burkert (1972

132-133) e Pugliese Carratelli (2001 17-29) ndash a intelectualizar e aristocraticizar as tra-

diccedilotildees oacuterficas Estas originalmente desenvolvidas por indiviacuteduos andarilhos e agrave mar-

gem da cultura e religiatildeo poliacuteade foram aos poucos (e sempre parcialmente) incorpora-

das no novo contexto sociocultural das colocircnias doacutericas da Magna Greacutecia do seacuteculo IV

e depois V aEC323

Natildeo eacute possiacutevel avanccedilar mais neste sentido da definiccedilatildeo de uma precisa distinccedilatildeo

em relaccedilatildeo agraves teorias da alma entre a tradiccedilatildeo oacuterfica e aquela pitagoacuterica Alguns autores

sugerem que o ponto de distinccedilatildeo possa ser aquele da culpa originaacuteria Inicialmente a

metempsicose natildeo deveria ter sido considerada entre os pitagoacutericos como um castigo e

sim como consequecircncia loacutegica da imortalidade da alma Em um segundo momento a

influecircncia representada pelo mito antropogocircnico dos Titatildes e de Dioniso com a conse-

quente antropologia da dupla natureza do homem e da necessaacuteria expiaccedilatildeo do crime

323 OrigldquoSomething related to the Orphism ndash afirma Burkert (1972 132) ndash had emerged from the ano-nymity of back-alley ritual to become respectablerdquo

152

originaacuterio levaria o pitagorismo a adotar a mesma concepccedilatildeo oacuterfica por esta servir

muito bem a suas intenccedilotildees moralizantes324 No entanto natildeo haacute bases textuais soacutelidas

para essas afirmaccedilotildees o que sugere que seja mesmo o caso de parar por aqui

O texto platocircnico frequenta portanto em diversos e muitos lugares as teorias da

imortalidade da alma e da metempsicose contribuindo ndash de certa forma ndash para acostu-

mar nossos ouvidos a esse imaginaacuterio oacuterfico-pitagoacuterico da metempsicose Isso todavia

pode levar agrave impressatildeo enganosa de que essa ideia deveria ser comum na cultura grega

em que Platatildeo se encontra Ao contraacuterio Platatildeo assume aqui uma ideia bastante estra-

nha e exoacutetica recebida do orfismo provavelmente pelo pitagorismo Os proacuteprios textos

platocircnicos em seu tecido dialoacutegico deixam transparecer a estraneidade das teorias da

imortalidade da alma para a cultura de seu tempo Eacute este o caso da resistecircncia de Cebes

no Feacutedon (69e-70a) a aceitar que a alma tenha longe do corpo existecircncia proacutepria como

tambeacutem de Glaucon em Repuacuteblica (X 608d) que declara jamais ter ouvido falar da

imortalidade da alma

A estraneidade das praacuteticas e das doutrinas pitagoacutericas da imortalidade da alma

coincide e articula-se com outra estraneidade jaacute detectada anteriormente (cf 16) nas

fontes sobre o pitagorismo aquela poliacutetica isto eacute de uma koinoniacutea que se apresenta

como uma cidade dentro da cidade alternativa aos modos de vida poliacuteades A experiecircn-

cia poliacutetica religiosa e filosoacutefica que uma concepccedilatildeo da alma como esta pressupotildee vai

em direccedilatildeo a uma quebra da ordem agrave definiccedilatildeo de uma alternativa decididamente con-

tracultural De fato a descriccedilatildeo do indiviacuteduo pela histoacuteria pregressa de sua alma imortal

contrasta diretamente os criteacuterios bioloacutegicos e sociais que normalmente o definem no

interior da poacutelis Natildeo mais a descendecircncia sociobioloacutegica e sim a histoacuteria das vidas

anteriores determina seu lugar na sociedade E essa histoacuteria depende exclusivamente de

sua responsabilidade eacutetica325 A consequecircncia disso eacute o surgimento de comunidades e

formas de vida relativamente autocircnomas e claramente sectaacuterias no interior da estrutura

social tradicional Natildeo acaso as mulheres encontravam nesses movimentos natildeo somente 324 Cf Casadesuacutes apud Bernabeacute (no prelo cap 8) 325 Ainda paradigmaacuteticas neste sentido as palavras de Cornford (1922 141) ldquowhat is new in transmigra-tion is the moral view that reincarnation expiates some original sin and that the individual soul persists bearing its load of inalienable responsibility through a round of lives till purified by suffering it es-capes for ever [hellip] The individual becomes a unit an isolated atom with a personal sense of sin and a need of personal salvation compensated however by a new consciousness of the souls dignity and val-ue expressed in the doctrine that by origin and nature it is divine [hellip] But only on condition of becoming purerdquo Menos convincentes por outro lado (pace Casadio 1991 142-143) as ilaccedilotildees de Cornford sobre pretenso monismo e dualismo filosoacutefico embutidos nestas mesmas teorias da metempsicose

153

uma franca acolhida como em certos casos ateacute mesmo lugar de destaque Assim por

um lado a saiacuteda radical proposta para o ser humano preso ao tempo e ao corpo ldquocida-

datildeosrdquo eacute a de uma eternidade sem corpo resultando na definiccedilatildeo escatoloacutegica de uma

vida eterna e bem-aventurada da alma Por outro lado a saiacuteda poliacutetica eacute a mudanccedila de

estilo de vida na qual o corpo esteja inserido profundamente em outra cidade a koino-

niacutea dos ldquoouvintesrdquo com suas prescriccedilotildees morais proacuteprias e em muitos casos bastante

distintas daquelas poliacuteades326

Assim a apropriaccedilatildeo moralizante das teorias da imortalidade da alma platocircnica

parece apontar diretamente para a sua derivaccedilatildeo do ambiente pitagoacuterico aristocraacutetico e

intelectualista da Magna Greacutecia a ele anterior eou contemporacircneo tornando dessa

forma Platatildeo uma das fontes de difusatildeo dessas mesmas teorias Ao mesmo tempo a

metempsicose constitui um dos eixos centrais de sua eacutetica e de seu projeto poliacutetico de

converter as almas para construir uma outra cidade

Natildeo deve fugir da atenccedilatildeo o fato de que jaacute no texto do Mecircnon (81a-c) acima ci-

tado a metempsicose possui lugar central tambeacutem para sua teoria do conhecimento de

maneira especial por causa da anamnese Ainda que de forma menos contundente

mesmo esta segunda apropriaccedilatildeo das teorias da imortalidade oacuterficas revelaraacute a marca de

forte mediaccedilatildeo pitagoacuterica

O exerciacutecio da memoacuteria eacute de fato central para a definiccedilatildeo do lugar proacuteprio do pi-

tagorismo no interior das tradiccedilotildees oacuterficas A reforma do orfismo em sentido pitagoacuterico

agrave qual se fazia referecircncia no capiacutetulo primeiro ndash tese proposta por Pugliese Carratelli

(2001 17-29) e aqui jaacute diversas vezes lembrada ndash estaria exatamente fundamentada no

exerciacutecio da memoacuteria no sentido de lembrar da origem divina e imortal da alma e a

partir disso compreender os princiacutepios coacutesmicos e eacuteticos do viver Conforme vimos

acima no testemunho de Empeacutedocles (31 B129 DK) a memoacuteria das vidas anteriores eacute

uma das caracteriacutesticas centrais do saacutebio pitagoacuterico O proacuteprio Pitaacutegoras teria construiacutedo

sobre esta especial capacidade de recordar a historiacutea de suas metempsicoses grande par-

te de sua fama Anota com razatildeo neste sentido Sassi que

Pitaacutegoras desenha sua imagem de sapiente exatamente se apresentan-do como aquele que graccedilas agrave experiecircncia de muitas vidas acumulou

326 Cf para essa discussatildeo Detienne (1963) Vegetti (1989) Federico (2000) Especialmente interessantes as observaccedilotildees de cunho histoacuterico-antropoloacutegico sobre as ldquopoliacuteticas da imortalidaderdquo pitagoacutericas em Red-field (1991) Jaacute dediquei a esta questatildeo algumas paacuteginas recentemente (Cornelli 2009a)

154

conhecimentos extraordinaacuterios Esta imagem torna-se natildeo somente fa-tor de forte agregaccedilatildeo da comunidade em torno de seu liacuteder [] mas tambeacutem uma garantia da validade de novo saber focado na descoberta fundamental realizada pelo proacuteprio Pitaacutegoras da harmonia de propor-ccedilotildees numeacutericas que rege o cosmo (Sassi 2009 180)327

De fato a essa dimensatildeo sapiencial da memoacuteria deveria corresponder um uso ndash

por assim dizer ndash cotidiano dela no interior das comunidades protopitagoacutericas o mem-

bro da koinoniacutea ndash segundo lembra Jacircmblico ndash dedicava o primeiro tempo do dia para o

exerciacutecio da anamnese

O pitagoacuterico natildeo se levantava da cama antes de ter chamado nova-mente agrave memoacuteria o que havia acontecido no dia anterior E procedia desta forma agrave anamnese tentava chamar agrave mente a primeira coisa que havia dito escutado ou ordenado aos domeacutesticos no dia anterior logo apoacutes ter acordado e a seguir a segunda e a terceira e procedia da mesma forma para as sucessivas (Iambl VP 165)328

Como tambeacutem devia marcar as comunidades pitagoacutericas um especial culto agrave

deusa Mnemosyne bem representado por um grupo de lacircminas oacuterficas que Pugliese

Carratelli (2001 27) chama exatamente de mnemosyacuteniae Nessas lacircminas eacute normal-

mente a deusa Mnemosyne rainha das musas agrave qual eacute dedicado o lago do aleacutem-tuacutemulo

a ditar as senhas as instruccedilotildees que abrem ao iniciado as portas do aleacutem-tuacutemulo A senha

eacute normalmente constituiacuteda por uma foacutermula de apresentaccedilatildeo um syacutembolon ldquosou filho

da terra e do ceacuteu estreladordquo conforme a ceacutelebre lacircmina de Hipponion

Este eacute consagrado a Mnemosyacutene Quando iraacutes para as bem construiacutedas moradias do Hades [] encontraraacutes a aacutegua fresca que corre do lago a Memoacuteria Na frente desta estaratildeo os guardas que te perguntaratildeo por-que estaacutes percorrendo as trevas obscuras do Hades Diz ldquosou filho da terra e do ceacuteu estrelado de sede estou ardendo e desfaleccedilo deem-me logo para beber a aacutegua fresca que vem do lago da Memoacuteriardquo329

327 Orig ldquoPitagora disegna la propria immagine di sapiente proprio presentandosi come colui che grazie allacuteesperienza di molte vite haacute accumulato conoscenze straordinarie Questa immagine diventa non solo un fattore forte di aggregazione della comunitagrave intorno al suo lider [] ma uma garanzia di validitagrave di um sapere nuovo centrato sulla scoperta fondamentale da parte dello stesso Pitagora dellacutearmonia di proporzioni numeriche che regge il cosmordquo 328 Orig ldquo Πυθαγόρειος ἀνὴρ οὐ πρότερον ἐκ τῆς κοίτης ἀνίστατο ἢ τὰ χθὲς γενόmicroενα πρότερον ἀναmicroνη-σθείη ἐποιεῖτο δὲ τὴν ἀνάmicroνησιν τόνδε τὸν τρόπον ἐπειρᾶτο ἀναλαmicroβάνειν τῇ διανοίᾳ τί πρῶτον εἶπεν ἢ ἤκουσεν ἢ προςέταξε τοῖς ἔνδον ἀναστὰς καὶ τί δεύτερον καὶ τί τρίτον καὶ περὶ τῶν ἐσοmicroένων ὁ αὐτὸς λόγος καὶ πάλιν αὖ ἐξιὼν τίνι πρώτῳ ἐνέτυχε καὶ τίνι δευτέρῳ καὶ λόγοι τίνες ἐλέχθησαν πρῶτοι καὶ δεύτεροι καὶ τρίτοι καὶ περὶ τῶν ἄλλων δὲ ὁ αὐτὸς λόγοςrdquo (Iambl VP 165) 329 Cf original no Anexo 4 A lacircmina constitui o mais antigo testemunho de uma foacutermula bastante comum entre as lacircminas da Magna Greacutecia e Creta O mesmo texto eacute de fato presente tambeacutem nas lacircminas de

155

Prova dessa ligaccedilatildeo do pitagorismo natildeo somente com a praacutetica da memoacuteria mas

com a mesma deusa Mnemosyne eacute o testemunho dos Theologumena Arithmeticae tex-

to proveniente da primeira Academia e que se refere provavelmente a tradiccedilotildees de Es-

peusipo atestando que os pitagoacutericos chamavam Mnemosyacutene a mocircnada e Mnecircme ou

Piacutestis a decirccada (44 A 13 DK)330

A insistecircncia sobre a memoacuteria e a necessidade da anamnese parece definir por-

tanto para as tradiccedilotildees pitagoacutericas lugar distinto e especial no interior da religiatildeo oacuterfica

antiga O destaque para a necessidade de natildeo esquecer de recordar estaacute intimamente

ligado de um lado a uma praacutetica cientiacutefica que encontra na memoacuteria sua teacutecnica seu

ritual especiacutefico de erudiccedilatildeo por outro lado a uma verdadeira tensatildeo espiritual (repre-

sentada nos fragmentos oacuterficos como uma estrada que se divide em duas e que conduz a

dois lagos diferentes o da Memoacuteria e o do Esquecimento) que deseja levar o iniciado a

sair do contiacutenuo transmigrar de existecircncias em existecircncias diferentes por meio da me-

moacuteria de sua verdadeira origem331

Em conclusatildeo Platatildeo mesmo no uso da metempsicose para fundamentar sua te-

oria do conhecimento anamneacutetica revela suas diacutevidas para com o orfismo e de maneira

especial para aquele blending filosoacutefico que o pitagorismo deve ter desenvolvido a par-

tir do primeiro332

Peteacutelia Entella e Pharsalos e Eleutherna Cf Pugliese Carratelli (2001 39ss) e Tortorelli-Ghidini (2006 62ss) 330 Cf Burkert (1993 359ss) para um comentaacuterio ao testemunho de Filolau 331 A imagem dos dois caminhos natildeo pode natildeo lembrar o Proacutelogo do Poema de Parmecircnides neste sentido A deusa que encontra o filoacutesofo foi identificada por diversos comentadores como a proacutepria Mnemosyacutene Jaacute discuti anteriormente esta atribuiccedilatildeo e as consequecircncias dela para a interpretaccedilatildeo do Poema cf Cor-nelli (2007b) 332 Surpreendentemente Burkert (1972 214) considera um equiacutevoco a relaccedilatildeo entre Platatildeo e os pitagoacuteri-cos no que diz respeito agrave anamnese ldquoA closer look reveals that the connection of Pythagoras with Plato in relation to anamnesis is scarcely more than an equivocationrdquo Os motivos deste ceticismo estatildeo liga-dos ao fato de natildeo considerar que a metempsicose tenha de fato alguma relaccedilatildeo com as provas matemaacuteti-cas que a paacutegina do Mecircnon (80d) em questatildeo salienta Ainda que isso seja procedente a praacutetica da anam-nese como exerciacutecio da memoacuteria das vidas anteriores em Platatildeo eacute ainda assim dificilmente separaacutevel das praacuteticas e teorias da imortalidade de matriz oacuterfico-pitagoacuterica

156

35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito

As referecircncias de Heroacutedoto agrave metempsicose pitagoacuterica representam tambeacutem tes-

temunhos preciosos por serem originaacuterias de outro acircmbito intelectual diferente daquele

da filosofia antiga e seus debates A comeccedilar pelo ceacutelebre passo das Histoacuterias em que se

faz referecircncia agraves crenccedilas egiacutepcias sobre a imortalidade

Nisto tambeacutem os egiacutepcios foram os primeiros isto eacute no afirmar que a alma do homem eacute imortal e que entra quando o corpo morre no corpo de outro animal que nasce e que depois de ter transmigrado assim por todos os animais da terra do mar e do ar entra no corpo de um ho-mem que nasce a volta completa ndash dizem ndash (a alma) cumpre no espa-ccedilo de trecircs mil anos Esta foi a doutrina acolhida por alguns gregos uns mais cedo outros mais tarde e que a consideravam como sua Eu mesmo conheccedilo seus nomes mas natildeo vou escrevecirc-los (Herodt Hist II 123)333

Vaacuterias hipoacuteteses foram levantadas para explicar a reticecircncia de Heroacutedoto A

mais comum eacute a de referir o silecircncio de Heroacutedoto ao medo dos ciacuterculos oacuterficos da Mag-

na Greacutecia se voltarem contra ele por estar fazendo derivar do Egito uma doutrina como

esta que os proacuteprios oacuterficos ndash cf Heroacutedoto ndash ldquoconsideravam como suardquo (Timpanaro

Cardini 1962 III 21-22)

Todavia a hipoacutetese natildeo eacute muito convincente ao menos por trecircs motivos Primei-

ramente Heroacutedoto cita explicitamente oacuterficos e pitagoacutericos em outra passagem estrita-

mente relacionada a esta na qual tece algumas consideraccedilotildees sobre os usos sepulcrais

dos egiacutepcios (que sepultavam os mortos em vestes de linho e natildeo de latilde como na Greacute-

cia) Ele afirma que ldquotal [costume] corresponde aos chamados orfikaacute e bacchikaacute que na

verdade satildeo egiacutepcios e pitagoacutericosrdquo (Herodt Hist II 81)334 Aqui ao contraacuterio a ante-

rioridade de uma praacutetica egiacutepcia ligada agrave imortalidade eacute afirmada sem reticecircncias335

333 Orig ldquo Πρῶτοι δὲ καὶ τόνδε τὸν λόγον Αἰγύπτιοί εἰσι οἱ εἰπόντες ὡς ἀνθρώπου ψυχὴ ἀθάνατός ἐστι τοῦ σώmicroατος δὲ καταφθίνοντος ἐς ἄλλο ζῷον αἰεὶ γινόmicroενον ἐσδύεται ἐπεὰν δὲ πάντα περιέλθῃ τὰ χερσ-αῖα καὶ τὰ θαλάσσια καὶ τὰ πετεινά αὖτις ἐς ἀνθρώπου σῶmicroα γινόmicroενον ἐσδύνειν τὴν περιήλυσιν δὲ αὐτῇ γίνεσθαι ἐν τρισχιλίοισι ἔτεσι Τούτῳ τῷ λόγῳ εἰσὶ οἳ Ἑλλήνων ἐχρήσαντο οἱ microὲν πρότερον οἱ δὲ ὕστερον ὡς ἰδίῳ ἑωυτῶν ἐόντι τῶν ἐγὼ εἰδὼς τὰ οὐνόmicroατα οὐ γράφωrdquo (Herodt Hist II 123) 334Orig ldquoὉmicroολογέουσι δὲ ταῦτα τοῖσι Ὀρφικοῖσι καλεοmicroένοισι καὶ Βακχικοῖσι ἐοῦσι δὲ αἰγυπτίοισι καὶ ltτοῖσιgt Πυθαγορείοισιrdquo (Herodt Hist II 81) 335A passagem natildeo merece ulteriores consideraccedilotildees pois a discrepacircncia entre duas famiacutelias de manuscri-tos a romana (AB) e a florentina (RVS) fez praticamente todos os comentadores suspeitarem que a in-formaccedilatildeo pela qual os usos sepulcrais ἐοῦσι δὲ αἰγυπτίοισι καὶ ltτοῖσιgt Πυθαγορείοισι constitua emenda tardia Cf Rohde (1898 439s) Wilamowitz-Moellendorf (1932 189) Rathmann (1933 52ss) Timpana-

157

Em segundo lugar conhecendo a ironia de Heroacutedoto e seu gosto pelo ldquojogordquo

natildeo eacute difiacutecil pensar que natildeo escrever os nomes dos autores nesse caso em que deveria

ser evidente a todos a quem ele se estava referindo pode ser uma remissatildeo jocosa ao

silecircncio iniciaacutetico em relaccedilatildeo agraves doutrinas e praacuteticas oacuterfico-pitagoacutericas e de maneira

especial agrave ordem de natildeo escrevecirc-las336 Heroacutedoto natildeo faz questatildeo de esconder essa

mesma ironia em outro trecho das Histoacuterias (IV 95) em que se refere a essas teorias

oacuterfico-pitagoacutericas da imortalidade e no qual narra muito divertidamente as faccedilanhas de

Zalmoxis que foi servo de Pitaacutegoras Analisaremos essa uacuteltima passagem nas paacuteginas a

seguir em relaccedilatildeo agraves tradiccedilotildees sobre as lendas que se referem agrave metempsicose

Em terceiro lugar se eacute verdade que Heroacutedoto junto com seus concidadatildeos ha-

via colonizado em meados do seacuteculo V aEC a cidade de Turii (jaacute Sibari) na Itaacutelia me-

ridional reduto de longa tradiccedilatildeo pitagoacuterica essa mesma colonizaccedilatildeo natildeo deve ser

compreendida como movimento filo-pitagoacuterico Ao contraacuterio a intervenccedilatildeo de Atenas

veio resolver as sucessivas staacuteseis que a dominaccedilatildeo pitagoacuterica sobre a cidade havia cri-

ado tornando Sibari autocircnoma politicamente desta dominaccedilatildeo e de certa maneira da-

qui para frente antipitagoacuterica337 Natildeo seria portanto razoaacutevel imaginar que Heroacutedoto

devesse temer criar inimizades para si por demonstrar postura antipitagoacuterica como a

proacutepria ironia com que trata o movimento em seus testemunhos parece indicar

Uma seacuterie de hipoacutetese de interpretaccedilatildeo de quem seriam esses ldquoalguns gregosrdquo

de maneira especial ldquoaqueles que mais cedo aderiram agrave teoriardquo eacute levantada ao longo da

histoacuteria da criacutetica Podem ser resumidas fundamentalmente trecircs tipos de soluccedilotildees a)

Pitaacutegoras e Empeacutedocles b) oacuterficos e Pitaacutegoras c) oacuterficos e Empeacutedocles338 Contudo o

fato certamente mais significativo eacute que os egiacutepcios natildeo conheciam nenhuma teoria da

ro Cardini (1958-62 22) Burkert (1972 127ss) argumenta ndash sem convencer totalmente ndash a favor da versatildeo florentina e conclui com razatildeo que esta uacuteltima apontaria para uma conexatildeo ritual entre pitagorismo e orfismo Ainda que relevante portanto para a discussatildeo da relaccedilatildeo entre orfismo e pitagorismo o valor de testemunho de Heroacutedoto da passagem eacute esvaziado pela possiacutevel emenda da referecircncia exatamente ao pitagorismo 336 Cf para esta discussatildeo tambeacutem Cornelli (2006) 337 Para ampla discussatildeo sobre a histoacuteria de Sibari ao longo da dominiccedilatildeo pitagoacuterica sobre as cidades da Itaacutelia meridional cf Mele (2007 240-247) 338 Cf para as referecircncias bibliograacuteficas completas Burkert (1972 126 n38) Em resumo a) Long (1948 22) Kirk-Raven-Schofield (1983 210ss) b) Morrison (1956 137) Casadio (1991 128s) Zhmud (1997 118ss) c) Rathmann (1933 48ss)

158

imortalidade da alma339 Esta informaccedilatildeo errada causa estranhamento pois Heroacutedoto

demonstra ao contraacuterio conhecer bem as praacuteticas egiacutepcias da imortalidade e faz Bur-

kert imaginar tratar-se aqui de uma projeccedilatildeo de ideias gregas sobre os egiacutepcios340

Todavia a ligaccedilatildeo do pitagorismo com o Egito eacute afirmada em um fragmento do

orador Isoacutecrates jaacute citado no cap 1 no contexto da definiccedilatildeo da comunidade pitagoacuterica

pelo silecircncio ldquoainda hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacutepulos

[de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessima fama por meio da pa-

lavrardquo (Isoacutecrates Busiris 29 = 14 A4 DK) A passagem completa eacute de fato introduzida

pela referecircncia agraves viagens de estudo que Pitaacutegoras teria conduzido ao Egito

Pitaacutegoras de Samos depois de chegar ao Egito e laacute se tornar disciacutepulo daqueles foi o primeiro a apresentar outra filosofia aos gregos e dis-tinguiu-se de maneira especial no que se refere aos sacrifiacutecios e rituais nos santuaacuterios considerando que se com isso natildeo ganharia mais van-tagens por parte dos deuses ao menos por meio disso obteria uma grande reputaccedilatildeo entre os homens Como de fato aconteceu Sua fama foi assim tatildeo superior agrave dos outros que todos os jovens desejavam ser seus disciacutepulos e o anciotildees preferiam ver seus filhos com ele do que cuidando dos negoacutecios familiares Eacute preciso acreditar nessas histoacuterias pois ateacute hoje mais satildeo admirados aqueles que se professam seus disciacute-pulos [de Pitaacutegoras] e se calam do que aqueles que obtecircm grandiacutessi-ma fama por meio da palavra (Isoacutecrates Busiris 28-29)341

Dessa viagem ao Egito portanto Pitaacutegoras teria trazido outra filosofia para os

gregos A terminologia e o contexto irocircnico ecoam tanto o sarcasmo de Heraacuteclito como

a ironia de Heroacutedoto Kahn anota justamente que um professor de eloquecircncia como Isoacute-

crates natildeo consegue ldquoabster-se de dar uma cutucadardquo (refrain from a dig) ao silecircncio 339 Cf para isso jaacute Zeller e Mondolfo (1938 133) Kees (1956 6) Burkert (1972 126 n36) e agora Cen-trone (1996 55) 340 Burkert ainda que com algum exagero em sua anaacutelise paleo-psicoloacutegica chega a sugerir que o contex-to imediato da passagem de Histoacuterias II 12 acima citada poderia ter levado Heroacutedoto a uma espeacutecie de reminiscecircncia das teorias da metempsicose originaacuterias do Sul da Itaacutelia A passagem em questatildeo eacute de fato precedida pela informaccedilatildeo pela qual Demetra e Dioniso eram chamados pelos egiacutepcios de donos do aleacutem-tuacutemulo Ambos por sua vez seriam cultuados no Sul da Itaacutelia (1972 126 n37) 341 Orig ldquo Πυθαγόρας ὁ Σάmicroιός ἐστιν ὃς ἀφικόmicroενος εἰς Αἴγυπτον καὶ microαθητὴς ἐκείνων γενόmicroενος τήν τ ἄλλην φιλοσοφίαν πρῶτος εἰς τοὺς Ἕλληνας ἐκόmicroισεν καὶ τὰ περὶ τὰς θυσίας καὶ τὰς ἁγιστείας τὰς ἐν τοῖς ἱεροῖς ἐπιφανέστερον τῶν ἄλλων ἐσπούδασεν ἡγούmicroενος εἰ καὶ microηδὲν αὐτῷ διὰ ταῦτα πλέον γίγνοι-το παρὰ τῶν θεῶν ἀλλ οὖν παρά γε τοῖς ἀνθρώποις ἐκ τούτων microάλιστ εὐδοκιmicroήσειν Ὅπερ αὐτῷ καὶ συνέβη τοσοῦτον γὰρ εὐδοξίᾳ τοὺς ἄλλους ὑπερέβαλεν ὥστε καὶ τοὺς νεωτέρους ἅπαντας ἐπιθυmicroεῖν αὐτοῦ microαθητὰς εἶναι καὶ τοὺς πρεσβυτέρους ἥδιον ὁρᾶν τοὺς παῖδας τοὺς αὑτῶν ἐκείνῳ συγγιγνοmicroένους ἢ τῶν οἰκείων ἐπιmicroελουmicroένους Καὶ τούτοις οὐχ οἷόν τἀπιστεῖν ἔτι γὰρ καὶ νῦν τοὺς προσποιουmicroένους ἐκείνου microαθητὰς εἶναι microᾶλλον σιγῶντας θαυmicroάζουσιν ἢ τοὺς ἐπὶ τῷ λέγειν microεγίστην δόξαν ἔχονταςrdquo (Isocr Busiris 28-29) Natildeo eacute possiacutevel imaginar o que teria levado Kahn a traduzir aqui ἄλλην φιλοσοφίαν com ldquohigh culturerdquo (2001 12)

159

pitagoacuterico (Kahn 2001 12) Da mesma forma a expressatildeo ldquoeacute preciso acreditar nessas

histoacuteriasrdquo indicaria a postura geral de desconfianccedila em relaccedilatildeo a essas tradiccedilotildees342

36 Lendas sobre a imortalidade

A mesma ironia eacute evidente na histoacuteria de Zalmoxis lembrada por Heroacutedoto (Hist

IV 94-96) trata-se aqui da saga do deus traacutecio Zalmoxis para o qual os Getas (que satildeo

definidos pelo historiador athanatiacutezontas ldquoconvencidos de serem imortaisrdquo) acreditam

irem os que estariam a ponto de morrer Para este deus realizam rituais de sacrifiacutecios

humanos com a esperanccedila de que o sacrificado entre em contato com o deus obvia-

mente apoacutes a morte O contexto deste culto eacute evidentemente aquele das tradiccedilotildees da

imortalidade da alma e do journey model acima citado isto eacute das viagens para o aleacutem-

tuacutemulo Por esse motivo provavelmente Heroacutedoto apoacutes a descriccedilatildeo dos rituais sacrifi-

cais recorda uma lenda pela qual Zalmoxis teria sido em verdade servo de Pitaacutegoras

Liberto ganhou grandes riquezas e entatildeo voltou para sua paacutetria mas como os traacutecios conheciam uma vida pobre e simples o tal Zalmoxis que havia conhecido o teor de vida dos jocircnicos e haacutebitos mais refina-dos daqueles dos traacutecios pois havia frequentado os gregos e entre e-les natildeo o mais insignificante isto eacute o saacutebio Pitaacutegoras filho de Mne-sarco mandou construir uma sala e nela recebendo os dignataacuterios a banquete ensinava que nem ele mesmo nem seus comensais nem se-quer os seus descendentes todos iriam morrer mas que iriam para um lugar onde sobreviveriam e teriam todo tipo de benesses Enquanto di-zia e fazia isso que narrei mandou construir uma casa subterracircnea quando ela foi completada desapareceu da vista dos traacutecios que se lamentavam e o choravam como se tivesse morrido Mas apoacutes quatro anos Zalmoxis reapareceu na frente deles confirmando dessa maneira o que ele havia afirmado (Herodt Hist IV 95)343

342 O valor do testemunho de Isoacutecrates eacute contudo colocado em duacutevida por Ries (1961) que detecta forte influecircncia acadecircmica sobre a tradiccedilatildeo 343 Orig ldquo τὸν Σάλmicroοξιν τοῦτον ἐόντα ἄνθρωπον δουλεῦσαι ἐν Σάmicroῳ δουλεῦσαι δὲ Πυθαγόρῃ τῷ Μνη-σάρχου ἐνθεῦτεν δὲ αὐτὸν γενόmicroενον ἐλεύθερον χρήmicroατα κτήσασθαι συχνά κτησάmicroενον δὲ ἀπελθεῖν ἐς τὴν ἑωυτοῦ Ἅτε δὲ κακοβίων τε ἐόντων τῶν Θρηίκων καὶ ὑπαφρονεστέρων τὸν Σάλmicroοξιν τοῦτον ἐπιστ-άmicroενον δίαιτάν τε Ἰάδα καὶ ἤθεα βαθύτερα ἢ κατὰ Θρήικας οἷα Ἕλλησί τε ὁmicroιλήσαντα καὶ Ἑλλήνων οὐ τῷ ἀσθενεστάτῳ σοφιστῇ Πυθαγόρῃ κατασκευάσασθαι ἀνδρεῶνα ἐς τὸν πανδοκεύοντα τῶν ἀστῶν τοὺς ρώτους καὶ εὐωχέοντα ἀναδιδάσκειν ὡς οὔτε αὐτὸς οὔτε οἱ συmicroπόται αὐτοῦ οὔτε οἱ ἐκ τούτων αἰεὶ γινόmicro-ενοι ἀποθανέονται ἀλλ ἥξουσι ἐς χῶρον τοῦτον ἵνα αἰεὶ περιεόντες ἕξουσι τὰ πάντα ἀγαθά Ἐν ᾧ δὲ ἐποίεε τὰ καταλεχθέντα καὶ ἔλεγε ταῦτα ἐν τούτῳ κατάγαιον οἴκηmicroα ἐποιέετο Ὡς δέ οἱ παντελέω εἶχε τὸ οἴκηmicroα ἐκ microὲν τῶν Θρηίκων ἠφανίσθη καταβὰς δὲ κάτω ἐς τὸ κατάγαιον οἴκηmicroα διαιτᾶτο ἐπ ἔτεα τρία Οἱ δέ microιν ἐπόθεόν τε καὶ ἐπένθεον ὡς τεθνεῶτα Τετάρτῳ δὲ ἔτεϊ ἐφάνη τοῖσι Θρήιξι καὶ οὕτω πιθανά σφι γένετο τὰ ἔλεγε ὁ Σάλmicroοξιςrdquo (Herodt Hist IV 95)

160

Para aleacutem do motivo etnocecircntrico que tende a diminuir a divindade dos Getas

com a sugestatildeo de que Zalmoxis na Greacutecia havia sido natildeo somente um homem mas

ateacute um escravo a passagem de Heroacutedoto revela-se com todo o sarcasmo do qual o his-

toriador eacute capaz uma saacutetira das tradiccedilotildees ligadas agrave kataacutebasis A morte aparente de Za-

moxis de fato natildeo passa de um truque na tentativa de convercer seus concidadatildeos de

sua imortalidade A remissatildeo indireta aqui agrave figura de Pitaacutegoras eacute certamente significa-

tiva como a dizer que ao falar de imortalidade da alma ele eacute a referecircncia imediata

De fato a temaacutetica da imortalidade e a figura carismaacutetica de Pitaacutegoras de certa

forma favorecem o surgimento de amplo leque de histoacuterias legendaacuterias a este respei-

to344 Como eacute de se esperar essas lendas natildeo recolheram muito entusiasmo no interior

da criacutetica atual ainda que ndash eacute certamente o caso de concordar com Burkert (1972 137)

ndash correspondam de fato ao estrato mais antigo da tradiccedilatildeo sobre Pitaacutegoras sendo anteri-

ores a qualquer outra informaccedilatildeo sobre a vida dele que encontramos em Aristoxeno ou

Dicearco por sua vez fontes das Vidas pitagoacutericas de eacutepoca imperial Essa tradiccedilatildeo len-

daacuteria concentra-se especialmente em um toacutepico que devia chamar bastante a atenccedilatildeo

que eacute aquele das efetivas metempsicoses de Pitaacutegoras Esse interesse pela histoacuteria da

alma de Pitaacutegoras foi compreendido jaacute desde a antiguidade (Porph VP 26 e Diod Sic

X 61) como uma exemplificaccedilatildeo na pele do fundador da proacutepria doutrina da transmi-

graccedilatildeo da alma Nesse sentido parte da criacutetica moderna comeccedilou a considerar essa lite-

ratura como um testemunho da sua originalidade345

A fonte mais significativa destas lendas eacute Heraacuteclides Pocircntico um peripateacutetico

que recorda a histoacuteria da palingecircnse de Pitaacutegoras assim

Heraacuteclides Pocircntico refere que Pitaacutegoras costumava dizer de si mesmo o seguinte que uma vez havia sido Etaacutelides e que havia sido conside-rado filho de Hermes O proacuteprio Hermes teria lhe dito para pedir o que quisesse fora a imortalidade Ele entatildeo pediu para manter tanto em vida como na morte memoacuteria dos acontecimentos Assim quando vi-vo lembrava de tudo e depois de morto conservava as mesmas lem-branccedilas Algum tempo depois foi para [o corpo de] Euforbo e foi fe-

344 Cf para um estudo sobre as fontes das lendas de Pitaacutegoras Leacutevy (1926) Uma discussatildeo filosoficamen-te brilhante e filologicamente cuidadosa dessa literatura eacute tambeacutem contida na excelente monografia de Biondi (2009) dedicada a Pitaacutegoras-Euforbo 345 Cf Riedweg 2006 115 Eacute tambeacutem o caso de Timpanaro Cardini (1958-62 I 5) ldquoPitagora crede nella metempsicose perchegrave crede nella sua metempsicoserdquo e de Burkert (1972 147) De ideia contraacuteria Rohde (1898 422) que considera a memoacuteria toda fabuliacutestica

161

rido por Menelau Euforbo de sua parte costumava dizer que uma vez havia sido Etaacutelides e tinha obtido este dom de Hermes e narrava as peregrinaccedilotildees de sua alma como transmigrou e em quantas plantas e animais foi residir e quantos sofrimentos a alma havia padecido no Hades Morto Euforbo sua alma transmigrou para Ermotimo que de-sejando dar uma prova disso dirigiu-se para os Bracircnquides e entran-do no templo de Apolo soube indicar o escudo que Menelau havia pendurado como oferenda votiva (DL VIII 4-5 Heraclid fr 89 Wehrli)346

A escassa probabilidade de Dioacutegenes Laacuteercio expungir a lenda diretamente de

um diaacutelogo de Heraacuteclides Pocircntico (pois natildeo cita algum texto especiacutefico para isso) faz

pensar em uma leitura doxograacutefica isto eacute de segunda matildeo desta tradiccedilatildeo Por outro

lado diversas variantes da mesma genealogia da alma de Pitaacutegoras satildeo registradas na

literatura antiga em todas elas o elemento comum eacute a reencarnaccedilatildeo em Euforbo347 Jaacute

Corssen (1912 22) considerava esta presenccedila de Euforbo incompreensiacutevel Por qual

motivo Pitaacutegoras teria escolhido como etapa central da transmigraccedilatildeo uma personagem

tatildeo secundaacuteria da histoacuteria da guerra de Troia A resposta tradicionalmente dada na es-

teira de Kereacutenyi (1950) eacute que a figura de Euforbo estaria diretamente relacionada a

Apolo aliaacutes seria uma espeacutecie de encarnaccedilatildeo dele (Burkert 1972 141) De fato Ried-

weg (2002 51) e Biondi (2009 67) concordam que Euforbo desempenha papel dramaacute-

tico decisivo no interior da trama da Iliacuteada contribui para a morte de Paacutetroclo que tem

como consequecircncia o retorno de Aquiles para a luta Euforbo ajudado e precedido por

Apolo que cansa e desarticula os membros de Paacutetroclo desfere o primeiro golpe no

guerreiro aqueu (Il 16 805-815) Seria por consequecircncia esta estreita relaccedilatildeo com

346 Orig ldquo Τοῦτόν φησιν Ἡρακλείδης ὁ Ποντικὸς περὶ αὑτοῦ τάδε λέγειν ὡς εἴη ποτὲ γεγονὼς Αἰθαλίδης καὶ Ἑρmicroοῦ υἱὸς νοmicroισθείη τὸν δὲ Ἑρmicroῆν εἰπεῖν αὐτῷ ἑλέσθαι ὅ τι ἂν βούληται πλὴν ἀθανασίας αἰτήσα-σθαι οὖν ζῶντα καὶ τελευτῶντα microνήmicroην ἔχειν τῶν συmicroβαινόντων ἐν microὲν οὖν τῇ ζωῇ πάντων διαmicroνηmicroονε-ῦσαι ἐπεὶ δὲ ἀποθάνοι τηρῆσαι τὴν αὐτὴν microνήmicroην χρόνῳ δ ὕστερον εἰς Εὔφορβον ἐλθεῖν καὶ ὑπὸ Μενέ-λεω τρωθῆναι ὁ δ Εὔφορβος ἔλεγεν ὡς Αἰθαλίδης ποτὲ γεγόνοι καὶ ὅτι παρ Ἑρmicroοῦ τὸ δῶρον λάβοι καὶ τὴν τῆς ψυχῆς περιπόλησιν ὡς περιεπολήθη καὶ εἰς ὅσα φυτὰ καὶ ζῷα παρεγένετο καὶ ὅσα ἡ ψυχὴ ἐν τῷ Ἅιδῃ ἔπαθε καὶ αἱ λοιπαὶ τίνα ὑποmicroένουσιν ἐπειδὴ δὲ Εὔφορβος ἀποθάνοι microεταβῆναι τὴν ψυχὴν αὐτοῦ εἰς Ἑρmicroότιmicroον ὃς καὶ αὐτὸς πίστιν θέλων δοῦναι ἐπανῆλθεν εἰς Βραγχίδας καὶ εἰσελθὼν εἰς τὸ τοῦ Ἀπό-λλωνος ἱερὸν ἐπέδειξεν ἣν Μενέλαος ἀνέθηκεν ἀσπίδαrdquo (D L VIII 4-5 Heraclid fr 89 Wehrli) 347 Cf para as citaccedilotildees Delatte (1922 154-159) Burkert (1972 138-141) Federico (2000 372 n15) e Biondi (2009 8-12)

162

Apolo a fazer pender a escolha para Euforbo348 A prova disso eacute que o escudo de Mene-

lau encontra-se na tradiccedilatildeo acima de Heraacuteclides no templo mais uma vez de Apolo349

A escassa atenccedilatildeo agraves lendas sobre Pitaacutegoras como diziacuteamos natildeo deve fazer es-

quecer que em relaccedilatildeo a elas nossa fonte mais importante eacute do seacuteculo IV aEC o proacute-

prio Aristoacuteteles e seu livro sobre o pitagorismo (fr 191 Rose) Nesse material aparecem

diversas lendas sobre milagres e prodiacutegios operados por Pitaacutegoras as mirabilia incluiacuteam

experiecircncias de ubiquidade diaacutelogos com um rio adivinhaccedilatildeo e a significativa referecircn-

cia a Pitaacutegoras como ao proacuteprio Apolo A economia destas paacuteginas natildeo permite uma

anaacutelise exaustiva destas passagens aristoteacutelicas obviamente Eacute o caso de concordar

mais uma vez com a cuidadosa anaacutelise de Burkert (1972 145) a esse respeito pela qual

essas lendas devem ser consideradas congruentes com o clima do seacuteculo IV aEC e que

somente nos seacuteculos sucessivos seriam usadas como motivo de chacota e criacutetica ao pita-

gorismo O valor dessas tradiccedilotildees eacute ainda mais importante quando se considera a inten-

ccedilatildeo geralmente demonstrada por Aristoacuteteles de separar o protopitagorismo da sua plato-

nizaccedilatildeo operada pela Academia que ndash entre outras coisas ndash teria reduzido Pitaacutegoras a

um alterego do proacuteprio Platatildeo350 O registro aristoteacutelico das lendas teria autoridade mo-

tivos e antiguidade suficientes para ser levado a seacuterio Em uacuteltima anaacutelise portanto Pitaacute-

goras e sua lenda natildeo podem ser separados351

Entre todas as referecircncias aos mirabilia eacute ainda a temaacutetica da morte aparente a

parecer estar bastante presente na literatura do periacuteodo se eacute verdade que a ela se faz

referecircncia na Electra de Soacutefocles ldquoPois haacute muito tempo eu vi homens saacutebios que dizi-

am falsamente terem morrido E em seguida uma vez voltados para casa eram recebi-

348 Centrone (1996 64) anota com razatildeo que o culto a Apolo era muito difundido nas cidades pitagoacutericas de Crotona e Metaponto Cf tambeacutem Iambl VP 52 349 Instigante ainda que troppo alegoacuterica eacute tambeacutem a leitura que Biondi (2009 77) propotildee da passagem da Iliacuteada acima citada ldquoegrave lacuteintervento di Euforbo che svela lacuteidentitagrave autentica di colui che sembrava Achille se lacutearmatura simboleggia il corpo allora lacuteindifesa nuditagrave rappresenta lacuteanima dunque lacuteazione di Euforbo potrebbe effettivamente significare al di lagrave della lettera del testo omerico lo svelamento dellacuteanima e la punizione della sua tracotanzardquo 350 Cf Burkert (1972 146) aleacutem do que foi dito acima (17) para o uso do pitagorismo no interior da polecircmica antiacadecircmica de Aristoacuteteles 351 Cf Burkert (1972 120) para uma discussatildeo metodoloacutegica da dificuldade que resulta desta afirmaccedilatildeo De ideia contraacuteria Casertano (2009 59) mas por considerar como lendas somente aquelas do segredo sobre as doutrinas e da estrutura da comunidade

163

dos com grandes honrasrdquo (Soph El 62-64)352 O escoliasta anotava significativamente

uma referecircncia a Pitaacutegoras ao lado desta passagem (Schol In Soph 62)

37 Demoacutecrito pitagoacuterico

Ainda mais significativo eacute o testemunho de Demoacutecrito nesse sentido Descrito

pelo contemporacircneo Glauco de Regio como ldquodisciacutepulo de um pitagoacutericordquo (68 A1 38

DK) o cataacutelogo tetraloacutegico de suas obras elaborado por Traacutesilo na seccedilatildeo eacutetica eacute inau-

gurado pelas trecircs obras seguintes Pitaacutegoras Sobre a disposiccedilatildeo do saacutebio e Sobre o

Hades (68 B0a-c DK) Proclo ainda conhece o conteuacutedo desta uacuteltima obra na qual apa-

rece novamente a temaacutetica da morte aparente

Como eacute o caso de muitos outros filoacutesofos antigos entre eles Demoacutecri-to o fiacutesico nos escritos Sobre o Hades narraram-se histoacuterias sobre pessoas que pareciam mortas mas que ao contraacuterio voltavam agrave vida (68 B1 DK)353

A proacutepria sequecircncia das trecircs primeiras obras citadas aponta para alguma forma

de dependecircncia democritiana da eacutetica pitagoacuterica Eacute o que sugere jaacute Frank (1923 67) que

ndash comentando a dedicaccedilatildeo a Pitaacutegoras de sua obra eacutetica mais importante (natildeo acaso ci-

tada por primeira) ndash acredita que isso se deva ao fato de Demoacutecrito ter enxergado em

Pitaacutegoras fundamentalmente o fundador de uma seita eacutetico-religiosa354 Sem sermos

obrigados a concordar tout court com Frank eacute inegaacutevel a grande quantidade de aproxi-

maccedilotildees possiacuteveis entre a eacutetica pitagoacuterica e aquela democritiana Os fragmentos demo-

critianos (68 B84 244 e 264 DK) sobre a necessidade ldquode sentir vergonha de si mesmordquo

pelas accedilotildees maacutes remetem diretamente para a praacutetica da anamnese do exame de consci-

352 Orig ldquo ἤδη γὰρ εἶδον πολλάκις καὶ τοὺς σοφοὺς λόγῳ microάτην θνῄσκοντας εἶθ ὅταν δόmicroους ἔλθωσ-ιν αὖθις ἐκτετίmicroηνται πλέονrdquo (Soph El 62-64) 353 Orig ldquo τὴν microὲν περὶ τῶν ἀποθανεῖν δοξάντων ἔπειτα ἀναβιούντων ἱστορίαν ἄλλοι τε πολλοὶ τῶν παλ-αιῶν ἤθροισαν καὶ ∆ ὁ φυσικὸς ltἐν τοῖς Περὶ τοῦ Ἅιδου γράmicromicroασινgtrdquo (68 B1 DK) 354 A economia destas paacuteginas natildeo permite avaliarmos detalhadamente as questotildees historiograacuteficas impliacute-citas nesta aproximaccedilatildeo entre pitagorismo a atomismo A questatildeo seraacute parcialmente enfrentada mais para frente no acircmbito da discussatildeo sobre o atomismo numeacuterico (41) Para uma criacutetica da posiccedilatildeo de Frank cf Zeller e Mondolfo (1938 332-333) Uma abordagem claacutessica agrave questatildeo da relaccedilatildeo entre pitagoacutericos e atomistas eacute a de Alfieri (1953 30-54) para uma discussatildeo mais recente sobre a leitura acadecircmica pitago-rizante de Demoacutecrito cf Gemelli (2007b 42-58)

164

ecircncia de tradiccedilatildeo pitagoacuterica (Zeller e Mondolfo 1938 335) Mais relevantes ainda seri-

am as aproximaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave questatildeo da medida como base para o raciociacutenio eacutetico

(Riedweg 2002 116) Todavia os paralelos podem natildeo ser decisivos se eacute verdade ndash

como vimos acima ndash que esses mesmos conceitos de phroacutenesis isonomiacutea meacutetron a-

companham o desenvolvimento da eacutetica antiga e da tradiccedilatildeo meacutedica de maneira mais

geral e difusa natildeo podendo portanto serem considerados ndash a bem ver ndash como marcos

definitoacuterios dos dois movimentos em questatildeo

No entanto a aproximaccedilatildeo entre atomistas e pitagoacutericos mais significativa para a

economia dessa discussatildeo sobre a imortalidade da alma pitagoacuterica seria ainda aquela

indicada por Aristoacuteteles na passagem do De Anima jaacute citada (De an 404a16) em rela-

ccedilatildeo a uma concepccedilatildeo material da alma pitagoacuterica Aqui eacute atribuiacuteda aos pitagoacutericos uma

concepccedilatildeo corpuscular da alma (ldquoas poeiras no arrdquo) quase a querer prefigurar a psicolo-

gia de Demoacutecrito Todavia os problemas textuais acima apontados desencorajam a atri-

buiccedilatildeo de grande importacircncia a essa passagem Aleacutem disso na mesma paacutegina do De

Anima Aristoacuteteles associa o movimento contiacutenuo da poeira com a definiccedilatildeo de alma

como aquilo que move a si mesmo

Agrave mesma afirmaccedilatildeo satildeo levados tambeacutem todos os que dizem que a alma eacute aquilo que move a si mesmo pois todos eles parecem partir do pressuposto de que o movimento eacute algo muitiacutessimo peculiar agrave alma (De an 404a 21-25)355

Com a alma como aquilo que move a si mesmo entra-se jaacute em solo platocircnico e

mais precisamente xenocratiano Natildeo acaso algumas paacuteginas depois quando a discus-

satildeo das teorias sobre a alma dos predecessores alcanccedila plenamente o acircmbito acadecircmico

afirma-se que ldquoalguns sustentam que a alma eacute um nuacutemero que move a si mesmordquo (De

an 404b 29-30)356 Trata-se aqui sem duacutevida da interpretaccedilatildeo que Xenoacutecrates (fr 165

Isnardi-Parente) elabora em chave matemaacutetica e pitagorizante da doutrina da alma de

Platatildeo como semovente (Phaedr 245c-246a Leg X 895)357

355 Orig ldquo ἐοίκασι γὰρ οὗτοι πάντες ὑπειληφέναι τὴν κίνησιν οἰκειότατον εἶναι τῇ ψυχῇ καὶ τὰ microὲν ἄλλα πάντα κινεῖσθαι διὰ τὴν ψυχήν ταύτην δ ὑφ ἑαυτῆς διὰ τὸ microηθὲν ὁρᾶν κινοῦν ὃ microὴ καὶ αὐτὸ κινεῖταιrdquo (De an 404a 21-25) 356 Orig ldquo ἀποφηνάmicroενοι τὴν ψυχὴν ἀριθmicroὸν κινοῦνθrsquo ἑαυτόνrdquo (De an 404b 29-30) 357 Cf especialmente Isnardi Parente (1971 166s) com a qual concorda Gemelli (2007 57)

165

A maioria dos comentadores considera portanto a aproximaccedilatildeo de De an

404a16 um mal-entendido de Aristoacuteteles pois a imagem da alma como poeira em mo-

vimento estaria mais ligada a tradiccedilotildees miacutesticas arcaicas do que a um diaacutelogo que o pi-

tagorismo estaria travando com o atomismo no seacuteculo V aEC Para Cherniss a teoria da

alma como poeira nada teria a ver com aquela do movimento

Nesse caso cada gratildeo de poeira devia provavelmente ser considerado uma alma de tal maneira que a psycheacuten (sic) de Aristoacuteteles implicaria complicaccedilotildees que natildeo existem [] Uma teoria como esta por natildeo ter fundamentalmente nada a ver com os movimentos deve corresponder a uma acomodaccedilatildeo de uma supersticcedilatildeo mais antiga com uma mais alta teoria fiacutesica desenvolvida em tempos mais recentes (Cherniss 1935 291 n6)358

Philip (1966 151) baseando-se na distinccedilatildeo que Aristoacuteteles estaria fazendo en-

tre ldquoalguns pitagoacutericosrdquo (tiacutenes) que pensam a alma como poeira e outros (acadecircmicos

pitagorizantes) diversamente destes que sustentam que seria a alma ldquoo que faz com

que as poeiras se movamrdquo imagina ser possiacutevel que Aristoacuteteles estivesse aqui pensan-

do no caso dos primeiros aos pitagoacutericos do seacuteculo V que teriam acomodado sua teoria

da alma ao atomismo contemporacircneo A hipoacutetese eacute todavia incompleta pois restaria

explicar para que ela fosse plausiacutevel por quais motivos esses pitagoacutericos sentiriam a

necessidade de fazer essa acomodaccedilatildeo

38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos

A aproximaccedilatildeo exposta acima da concepccedilatildeo pitagoacuterica da alma com o atomismo

constitui ndash na melhor das hipoacuteteses ndash uma referecircncia ao pitagorismo do V seacuteculo na

pior delas apenas um mal-entendido Por esse motivo ela natildeo pode constituir testemu-

nho aristoteacutelico da teoria da alma protopitagoacuterica

358 Orig ldquoIn this case each speck of dust was probably considered to be a soul so that Aristotle psycheacuten (sic) implies complications which did not exist (hellip) Such a theory since fundamentally it has nothing to do with the motes must have been an accommodation of the earlier superstition to the more hightly de-veloped psychical theories of later timesrdquo Ainda que sem o ranccedilo positivista de Cherniss (evidente em expressotildees como earlier superstition) concordam com ele Rathmann (1933 18-19) Zeller e Mondolfo (1938 554) Burkert (1972 120) Guthrie (1962 306) Alesse (2000 397) Casertano (2009 70) conside-ra a concepccedilatildeo naturalista da alma como ldquoincontestabilmente pitagoricardquo

166

Ainda assim eacute do mesmo Aristoacuteteles o testemunho filosoacutefico provavelmente

mais expliacutecito da existecircncia de uma doutrina da metempsicose pitagoacuterica Trata-se de

uma passagem que pertence a algumas paacuteginas seguintes do mesmo De Anima A pas-

sagem revela a dificuldade de atribuir uma teoria da metempsicose coerente aos primei-

ros pitagoacutericos Eacute inicialmente dessa dificuldade que Aristoacuteteles parece queixar-se359

Estes [filoacutesofos] se esforccedilam somente para indicar qual seja a natureza da alma nada acrescentando sobre o corpo que deve recebecirc-la como se fosse possiacutevel segundo os mitos pitagoacutericos que qualquer alma en-tre em qualquer corpo (De an 407b 20-23)360

De fato ao longo do exame das doutrinas sobre a natureza e as propriedades da

alma iniciado no capiacutetulo II do livro II do De Anima Aristoacuteteles acusa a impropriedade

de todas as teorias de seus predecessores seja em relaccedilatildeo agrave compreensatildeo de quais sejam

as propriedades especiacuteficas da alma como ndash de maneira especial ndash por estes natildeo terem

prestado atenccedilatildeo agrave questatildeo central isto eacute agrave relaccedilatildeo entre alma e corpo De fato ldquoos filoacute-

sofosrdquo isto eacute seus predecessores ldquoconjugamrdquo (synaacuteptousin) ou ldquojustapotildeemrdquo (titheacuteasin)

a alma ao corpo sem explicarem a causa e os modos dessa conjunccedilatildeo ou justaposiccedilatildeo

(De an 407b 13-17)

Portanto os mitos pitagoacutericos mencionados na passagem constituiriam um dos

exemplos mais significativos desse erro O absurdo (aacutetopon v 13) da explicaccedilatildeo avan-

ccedilada que eacute explicitamente referida tanto ao Timeu de Platatildeo como tambeacutem a todas as

teorias da alma anteriores (v 13-14) eacute exemplificado plasticamente na imagem dese-

nhada na passagem seguinte pela qual

[Estes] se expressam como quem dissesse que a arte do carpinteiro en-trasse nas flautas Ao contraacuterio a teacutecnica deve se servir dos [seus] ins-trumentos assim como a alma do corpo (De an 407b 24-26)361

359 Centrone (1996 105) sugere que esta queixa de Aristoacuteteles deveria depender mais de omissotildees (ou de falta de coerecircncia) no interior dos escritos que ele estava consultando do que propriamente de uma falta de informaccedilotildees sobre a questatildeo que contrariaria os testemunhos de que estaria de posse de diversos escri-tos pitagoacutericos (23) 360 Orig ldquo οἱ δὲ microόνον ἐπιχειροῦσι λέγειν ποῖόν τι ἡ ψυχή περὶ δὲ τοῦ δεξοmicroένου σώmicroατος οὐθὲν ἔτι προσδιορίζουσιν ὥσπερ ἐνδεχόmicroενον κατὰ τοὺς Πυθαγορικοὺς microύθους τὴν τυχοῦσαν ψυχὴν εἰς τὸ τυχὸν ἐνδύεσθαι σῶmicroαrdquo (De Anima 407b 20-23) 361 Orig ldquo παραπλήσιον δὲ λέγουσιν ὥσπερ εἴ τις φαίη τὴν τεκτονικὴν εἰς αὐλοὺς ἐνδύεσθαι δεῖ γὰρ τὴν microὲν τέχνην χρῆσθαι τοῖς ὀργάνοις τὴν δὲ ψυχὴν τῷ σώmicroατιrdquo (De Anima 407b 24-26)

167

A alma na elegante imagem de Aristoacuteteles seria portanto uma arte Como tal

necessita de seu instrumento proacuteprio isto eacute de um corpo Ao contraacuterio portanto do que

os mitos pitagoacutericos sustentam isto eacute de que qualquer alma pode entrar em qualquer

corpo

Imediatamente vem de pensar agrave metempsicose362 O proacuteprio movimento indicado

pelo verbo endyacuteesthai ldquoentrarrdquo da alma no corpo evoca a imagem da transmigraccedilatildeo363

Diversos comentadores todavia quiseram levantar algumas dificuldades em relaccedilatildeo agrave

intenccedilatildeo de Aristoacuteteles de referir-se agrave metempsicose nesta passagem do De Anima 407b

20-23 A comeccedilar por Zeller que percebe uma contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela que devia

ser a teoria da metempsicose pitagoacuterica

A teoria da alma que entra no receacutem-nascido da atmosfera circunstan-te com sua primeira respiraccedilatildeo casualmente e como for (kataacute toucircs Pythagorikoucircs myacutethous diz Aristoacuteteles na passagem acima citada) contribui provavelmente para demonstrar seu defeito na conexatildeo com a doutrina da transmigraccedilatildeo onde a reencarnaccedilatildeo deve de alguma forma representar (como eacute dito no mito de Er) uma consequecircncia da vida anterior exigindo assim uma correspondecircncia entre o tempera-mento (kracircsis) da alma e aquele do corpo no qual entra (Zeller e Mon-dolfo 1938 562)364

De fato a teoria da metempsicose implica responsabilidade moral em vida se-

guida de um julgamento post mortem que contradiria a ideia de aleatoriedade represen-

tada pela repeticcedilatildeo do adjetivo tychoacuten (ldquoqualquer alma em qualquer corpordquo)365 A maio-

362 Esta teoria eacute chamada microῦθος tambeacutem em Platatildeo (cf acima Gorg 492e) 363 Cf para isso jaacute Kranz (Diels-Kranz 1951 I 504 7-9) 364 Orig ldquoLa teoria dellacuteanima che entra nel neonato dallacuteatmosfera circostante con il primo respiro a caso e come cagravepiti (kataacute toucircs Pythagorikoucircs myacutethous dice Aristotele nel luogo sopra citato) viene probabilmente a mostrare in pieno il suo difetto nella sua connessione con la dottrina della trasmigrazione dove la reincarnazione deve pur rappresentare (comacuteegrave detto nel mito di Er) una conseguenza della vita anteriore ed esige quindi una corrispondenza fra il temperamento (kracircsis) dellacuteanima e quello del corpo in cui entrardquo A referecircncia agrave forma de entrada da alma no corpo inaugura uma tendecircncia a compreender esta passagem agrave luz daquela anterior de 404a 16ss em que a alma-poeira teria caracteriacutesticas corpusculares conforme se discutiu acima Cf Timpanaro Cardini (1958-62 III 213) Maddalena (1964 340-41) Guthrie (1962 129 e 260) 365 Concordam com Zeller tanto Rathmann (1933 17s) como Maddalena (1954 340) e Casertano (1987 19s) Timpanaro Cardini tambeacutem demonstra seu ceticismo em relaccedilatildeo ao fato de a passagem referir-se agrave metempsicose avanccedilando todavia mais uma vez uma explicaccedilatildeo original para isso Segundo ela o e-xemplo do marceneiro e das flautas indicaria inegavelmente que a passagem natildeo poderia referir-se agrave me-tempsicose e sim simplesmente a como deva ser compreendida a associaccedilatildeo entre corpo e alma O moti-vo eacute que natildeo faria sentido que a arte do luthier fosse considerada por Aristoacuteteles como separada da flauta pois para melhorar sua capacidade isto eacute sua arte o luthier precisa da flauta assim como a alma do cor-po (Timpanaro Cardini 1958-62 III 214) Todavia Alesse (2000 403 n23) anota com razatildeo que a leitura

168

ria dos comentadores todavia a comeccedilar por Burkert (1972 121 n3) parece considerar

que Aristoacuteteles esteja se referindo no caso especiacutefico natildeo a uma alma e um corpo indi-

viduais e sim ao caraacuteter geral da relaccedilatildeo entre almas e corpos

Algumas paacuteginas depois no mesmo De Anima Aristoacuteteles parece confirmar a

criacutetica aos mitos pitagoacutericos de 407b quando parece refinar a proacutepria criacutetica indicando

que o problema estaria mais especificamente no fato de as almas poderem entrar em

corpos diferentes

Natildeo eacute o corpo a realizaccedilatildeo da alma mas esta aquela de determinado corpo Por esse motivo eacute correta a opiniatildeo daqueles que consideram que a alma natildeo exista sem o corpo e tampouco que a alma seja um de-terminado corpo Na realidade natildeo se identifica com o corpo mas eacute algo de um corpo e se encontra em um corpo de determinada nature-za natildeo como acreditavam nossos predecessores que a adaptavam a um corpo sem indicar nem o que este seja nem suas qualidades mes-mo sendo evidente que jamais uma coisa qualquer recebe outra coisa qualquer (De an 414a 18-25)366

A criacutetica de Aristoacuteteles deve ser obviamente compreendida no interior de sua te-

oria da alma como desenvolvida no De Anima isto eacute fundamentalmente da teoria da

alma como enteleacutecheia do corpo pela qual esta realiza as funccedilotildees que potencialmente jaacute

estatildeo na mateacuteria que constitui o corpo Eacute consequentemente impensaacutevel que ldquouma coisa

qualquer receba outra coisa qualquerrdquo ecoando a mesma ideia expressa em 407b pela

qual ldquoqualquer alma entre em qualquer corpordquo (v 23)

Eacute mesmo o caso de pensar que a criacutetica de Aristoacuteteles nas duas passagens seja

dirigida agrave metempsicose pitagoacuterica pois o que Aristoacuteteles devia considerar como pro-

da Timpanaro Cardini depende de um equiacutevoco na traduccedilatildeo de τεκτονικὴ Timpanaro Cardini considera ser esta a arte do luthier enquanto eacute mais plausiacutevel que Aristoacuteteles se refira neste caso agrave arte do tocador de flauta isto eacute a flauta soacute pode ser utilizada por aquele que possui a arte de fazer funcionar agrave perfeiccedilatildeo aquele instrumento estaria dizendo aqui Aristoacuteteles seria este o flautista portanto natildeo o luthier Os termos da similitude satildeo contudo bastante claros de um lado a arte e a alma do outro a flauta e o cor-po como o corpo em relaccedilatildeo agrave alma a flauta eacute a mateacuteria que estaacute predisposta a acolher a forma da arte (do flautista) e somente deste natildeo aquela do carpinteiro-luthier Cherniss (1935 325 n130) suspeita que a passagem possa referir-se mais precisamente agrave teoria platocircnica do Timeu da escolha do corpo apoacutes a primeira vida representando consequentemente mais uma polecircmica antiplatocircnica do que uma posiccedilatildeo antipitagoacuterica De toda forma permanece na passagem a referecircncia agrave metempsicose que eacute o que mais diretamente interessa agrave economia destas paacuteginas 366 Orig ldquo οὐ τὸ σῶmicroά ἐστιν ἐντελέχεια ψυχῆς ἀλλ αὕτη σώmicroατός τινος καὶ διὰ τοῦτο καλῶς ὑπολαmicroβά-νουσιν οἷς δοκεῖ microήτ ἄνευ σώmicroατος εἶναι microήτε σῶmicroά τι ἡ ψυχή σῶmicroα microὲν γὰρ οὐκ ἔστι σώmicroατος δέ τι καὶ διὰ τοῦτο ἐν σώmicroατι ὑπάρχει καὶ ἐν σώmicroατι τοιούτῳ καὶ οὐχ ὥσπερ οἱ πρότερον εἰς σῶmicroα ἐνήρmicroοζον αὐτήν οὐθὲν ροσδιορίζοντες ἐν τίνι καὶ ποίῳ καίπερ οὐδὲ φαινοmicroένου τοῦ τυχόντος δέχεσθαι τὸ τυχόνrdquo (De Anima 414a 18-25)

169

blemaacutetico eacute a admissatildeo da possibilidade de uma alma entrar em um corpo do qual natildeo

seja enteleacutecheia como seria o caso da transmigraccedilatildeo de um corpo humano para um cor-

po animal inferior ao primeiro367 O ataque aristoteacutelico eacute aqui dirigido natildeo somente agrave

teoria da metempsicose e sim tambeacutem a uma teoria que a citaccedilatildeo de Porfiacuterio (VP 19)

que abriu este capiacutetulo considerava notoriamente pitagoacuterica a do parentesco universal

logicamente interdependente da primeira

De toda forma para a economia destas paacuteginas pode-se concluir que a paacutegina

414a do De anima natildeo somente remete especificamente agrave metempsicose mas que eacute uma

continuaccedilatildeo da passagem 407b imediatamente anterior Os mitos pitagoacutericos desta natildeo

poderatildeo que ser compreendidos portanto como as teorias da metempsicose da alma

Mais difiacutecil ndash ainda que central para nossa discussatildeo ndash eacute determinar se essas pas-

sagens de Aristoacuteteles referem-se ao protopitagorismo ou ao contraacuterio ao pitagorismo a

ele contemporacircneo de Filolau e Arquitas por exemplo

O termo myacutethoi utilizado para indicar essas doutrinas eacute um sintoma de que A-

ristoacuteteles as considerava antigas mas natildeo necessariamente destituiacutedas de toda verdade

Prova decisiva disso eacute o fato de ele se dar ao trabalho de refutaacute-las O acircmbito semacircntico

dos termos myacutethos ou mythologeicircn eacute frequentemente conectado no interior da obra de

Aristoacuteteles com aquele dos theoloacutegoi e do palaiacuteoi a indicar natildeo tanto uma diminuiccedilatildeo

do valor teoreacutetico das doutrinas e sim mais precisamente sua invenciacutevel arcaicidade A

consequecircncia disso eacute uma elaboraccedilatildeo insuficiente dos argumentos loacutegicos e uma roupa-

gem inadequada agrave maneira lsquocontemporacircnearsquo de fazer ciecircncia368 Como eacute o caso da paacutegi-

na de Metafiacutesica dedicada agrave ideia do divino que circunda a natureza

Uma tradiccedilatildeo em forma de mito foi transmitida aos poacutesteros a partir dos antigos e antiquiacutessimos segundo a qual essas realidades satildeo deu-ses e o divino envolve toda a natureza As outras coisas foram poste-riormente acrescentadas para persuadir o povo e para fazecirc-lo subme-ter-se agraves leis e ao bem comum De fato dizem que os deuses tecircm a

367 Aleacutem da teoria da ἐντελέχεια estaacute em jogo nesta criacutetica de Aristoacuteteles tambeacutem um princiacutepio de sub-sunccedilatildeo pelo qual uma forma superior conteacutem em si mesma a forma inferior ldquocomo um quadrilaacutetero con-teacutem o triacircngulordquo (De an 414b 31) O mesmo vale para as formas viventes pois ldquoo caso das figuras eacute semelhante agravequele da almardquo (De an 414b 29) No entanto o contraacuterio natildeo eacute verdadeiro aliaacutes eacute absurdo (De an 407b 13) 368 Cf Met 1074b1 1091b9 Pol 1269b28 1341b3 De caelo 284a23 Aristoacuteteles considera θεολόγοι e παλαίοι Homero Hesiacuteodo e os oacuterficos mas tambeacutem alguns fisioacutelogos eacute novamente o caso dos pitagoacuteri-cos em Met 1091a34-b12 que satildeo chamados aqui de θεολόγοι no contexto de discussatildeo sobre o um e a diacuteade que retoma a discussatildeo do livro A sobre a questatildeo em que os pitagoacutericos satildeo claramente citados em oposiccedilatildeo a Platatildeo (Met 987b14-988a8)

170

forma humana e que satildeo semelhantes a certos animais e acrescentam a essas outras coisas da mesma natureza ou anaacutelogas Se de todas elas prescindindo do resto assumimos soacute o ponto fundamental isto eacute a a-firmaccedilatildeo de que as substacircncias primeiras satildeo deuses eacute preciso reco-nhecer que ela foi feita por divina inspiraccedilatildeo (Met 1074b1-10)369

Portanto o nuacutecleo teoreacutetico da teoria segundo Aristoacuteteles deve ser considerado

como ainda vaacutelido Como devia ser o caso dos mitos pitagoacutericos que ainda que antigos

mereceram todavia suas consideraccedilotildees criacuteticas nas passagens acima analisadas

Eacute bastante provaacutevel portanto que com a expressatildeo mitos pitagoacutericos Aristoacuteteles

entenda referir-se a doutrinas dos primeiros pitagoacutericos370 Uma ulterior prova disso eacute

que a expressatildeo natildeo eacute jamais utilizada para a discussatildeo que Aristoacuteteles faz da matemaacuteti-

ca pitagoacuterica que como ver-se-aacute no proacuteximo capiacutetulo atinge a fontes do seacuteculo V co-

mo Filolau e que Aristoacuteteles identifica em Metafiacutesica A como os ldquoassim chamados

pitagoacutericosrdquo371

Outro marco lexical dessa antiguidade eacute o verbo utilizado por Aristoacuteteles na pas-

sagem do De anima 407b 20-23 para indicar a metempsicose endyacuteomai ldquoentrarrdquo (da

alma no corpo) O mesmo verbo eacute utilizado por Heroacutedoto para descrever a transmigra-

ccedilatildeo da alma na passagem acima citada em que a origem da teoria da metempsicose eacute

indicada como sendo egiacutepcia (Herodt II 123) Em Platatildeo o verbo eacute usado em duas

passagens para indicar a metempsicose de uma alma que estava em um homem e entra

em um animal ldquoum burro ou alguma besta deste tipordquo (Phaed 82a) ou ldquoem um maca-

cordquo no caso da alma do ridiacuteculo Tersites no interior do mito de Er (Resp X 620c) As

duas passagens platocircnicas ilustram precisamente aquilo que Aristoacuteteles devia temer co-

369 A menos que natildeo se indique diferentemente a traduccedilatildeo das passagens citadas da Metafiacutesica de Aristoacute-teles seraacute a de G RealeM Perine (Aristoacuteteles 2002) com algumas modificaccedilotildees Orig ldquo παραδέδοται δὲ παρὰ τῶν ἀρχαίων καὶ παmicroπαλαίων ἐν microύθου σχήmicroατι καταλελειmicromicroένα τοῖς ὕστερον ὅτι θεοί τέ εἰσιν οὗτοι καὶ περιέχει τὸ θεῖον τὴν ὅλην φύσιν τὰ δὲ λοιπὰ microυθικῶς ἤδη προσῆκται πρὸς τὴν πειθὼ τῶν πολλῶν καὶ πρὸς τὴν εἰς τοὺς νόmicroους καὶ τὸ συmicroφέρον χρῆσιν ἀνθρωποειδεῖς τε γὰρ τούτους καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ὁmicroοίους τισὶ λέγουσι καὶ τούτοις ἕτερα ἀκόλουθα καὶ παραπλήσια τοῖς εἰρηmicroένοις ὧν εἴ τις χωρίσας αὐτὸ λάβοι microόνον τὸ πρῶτον ὅτι θεοὺς ᾤοντο τὰς πρώτας οὐσίας εἶναι θείως ἂν εἰρῆσθαι νοmicroί-σειενrdquo (Met 1074b1-10) 370 Cf neste sentido Alesse (2000 408) 371 Para esta identificaccedilatildeo das doutrinas pitagoacutericas de Metafiacutesica A com o pitagorismo de Filolau cf Burkert (1972 236-238) Centrone (1996 105) Huffman (1993) Veja-se tambeacutem a resenha historiograacute-fica do valor do testemunho de Aristoacuteteles sobre Filolau acima esboccedilada ao longo do capiacutetulo primeiro

171

mo absurda consequecircncia da teoria de metempsicose a possibilidade da entrada de uma

alma humana no corpo de um animal inferior372

O leacutexico aristoteacutelico da passagem sugere portanto que ela possa remeter a tra-

diccedilotildees antigas da teoria da metempsicose que Aristoacuteteles chama de mitos pitagoacutericos

provavelmente reconhecendo no protopitagorismo a fonte dessas doutrinas sobre a i-

mortalidade da alma e sua transmigraccedilatildeo Aristoacuteteles torna-se com isso uma das fontes

mais confiaacuteveis para a atribuiccedilatildeo da teoria da metempsicose aos pitagoacutericos mais anti-

gos

39 Conclusatildeo

Partindo de um testemunho de Porfiacuterio sobre as doutrinas centrais de Pitaacutegoras

analisou-se aqui a tradiccedilatildeo da teoria da imortalidade da alma e sua metempsicose com a

intenccedilatildeo de por um lado verificar se ela poderia ser reconduzida agrave praacutetica e agrave doutrina

do protopitagorismo por outro lado compreender em que medida contribuiu para a

definiccedilatildeo da categoria pitagorismo ao longo da histoacuteria Os testemunhos mais antigos a

atribuiacuterem esta doutrina a Pitaacutegoras sugeriram dois diversos percursos hermenecircuticos

Primeiramente ainda que antiga a teoria da imortalidade da alma por sua proacutepria natu-

reza apocaliacuteptica natildeo implica a existecircncia de um sistema dogmaacutetico de crenccedilas O que

equivale a dizer que ao longo dos diversos estratos da tradiccedilatildeo pitagoacuterica as concep-

ccedilotildees dessa imortalidade deviam diferenciar-se ateacute significativamente Em segundo lu-

gar por consequecircncia do primeiro percurso identificou-se ser preciso verificar de que

maneira a recepccedilatildeo da teoria por parte das suas fontes mais tardias contribuiu para a

construccedilatildeo por meio dela da categoria pitagorismo Os testemunhos de Xenoacutefanes

Heraacuteclito Iacuteon e Empeacutedocles revelam ainda que com tonalidades diferentes uma carac-

teriacutestica incomum da figura histoacuterica de Pitaacutegoras ligada fundamentalmente agrave sua capa-

cidade de reconstruir a histoacuteria psicoloacutegica do indiviacuteduo isto eacute de definir os movimen-

tos da metempsicose da alma em sua palingecircnese Esses testemunhos sugerem que a

372 Alesse (2000 409-411) sugere que se ampliarmos o sentido do verbo ἐνδύοmicroαι para o acircmbito semacircn-tico do vestir que tambeacutem lhe pertence o verbo apontaria imediatamente para uma ampla seacuterie de ima-gens do corpo como veste da alma presente tanto nos escritos platocircnicos (Phaed 86e-88b) como no fr 126 de Empeacutedocles Veste que acaba por ter o sentido tambeacutem de tumba no interior da tradiccedilatildeo do corpo como tumba da alma proacuteximo agrave sensibilidade oacuterfica

172

metempsicose deveria ser uma teoria jaacute bastante antiga correspondente ao estrato pro-

topitagoacuterico

Platatildeo e sua obra foram identificados como lugares decisivos para o exerciacutecio

dos dois percursos hermenecircuticos acima apontados De maneira especial por trazer agrave

tona a vexata quaestio das relaccedilotildees entre pitagorismo e orfismo O estudo das referecircn-

cias a este segundo movimento na obra platocircnica de maneira especial nas paacuteginas que

dizem respeito agraves teorias da imortalidade da alma delineou um esquema historiograacutefico

preciso pelo qual Platatildeo estaria atingindo a teorias oacuterficas sim mas mediadas pelo pi-

tagorismo Pressuposto desta tese eacute que o pitagorismo seja considerado agrave maneira de um

movimento reformador em sentido intelectualista e aristocraacutetico do orfismo como tal

Sinal inequiacutevoco desta mediaccedilatildeo pitagoacuterica eacute a moralizaccedilatildeo da metempsicose Tanto a

proposta platocircnica de uma hierarquia das encarnaccedilotildees como tambeacutem sua etimologia

antes semacircntica e depois soterioloacutegica do mote oacuterfico socircma-secircma apontam para uma

dependecircncia em sua obra da transposiccedilatildeo das teorias da imortalidade da tradiccedilatildeo pita-

goacuterica Dessa forma tambeacutem Platatildeo torna-se fonte confiaacutevel da existecircncia de uma teoria

protopitagoacuterica da alma e de uma relaccedilatildeo estreita entre esta mesma teoria e seu caldo de

origem oacuterfico Relaccedilatildeo esta que foi descrita como de exegese mito-loacutegica que o pitago-

rismo operaria sobre as tradiccedilotildees oacuterficas agrave maneira do papiro Derveni Ainda que cen-

tral para a proacutepria concepccedilatildeo eacutetica de Platatildeo natildeo deve ser diminuiacuteda a importacircncia da

imortalidade da alma e de sua metempsicose mesmo para sua teoria do conhecimento a

anamnese ligada fundamentalmente ao exerciacutecio da memoacuteria remete diretamente para

as praacuteticas da historiacutea da alma e do conhecimento de sua palingecircnese que como se

dizia acima satildeo atribuiacutedas a Pitaacutegoras jaacute por testemunhos a ele contemporacircneos Em

suma Platatildeo revelando suas diacutevidas para com o orfismo acaba por apontar diretamente

para aquele blending filosoacutefico que o pitagorismo deve ter desenvolvido a partir do pri-

meiro

Enquanto os testemunhos de Heroacutedoto Isoacutecrates Demoacutecrito e as lendas sobre a

imortalidade e as mortes aparentes natildeo permitem soacutelidas conclusotildees do ponto de vista

filoloacutegico e historiograacutefico encontra-se em Aristoacuteteles o testemunho mais expliacutecito da

existecircncia de uma teoria protopitagoacuterica da metempsicose Em siacutentese o uso do termo

myacutethoi para referir-se a estas doutrinas pitagoacutericas da alma sugere que Aristoacuteteles as

considerasse suficientemente antigas e portanto com toda probabilidade protopitagoacuteri-

cas O leacutexico aristoteacutelico acaba por apontar no protopitagorismo a fonte das doutrinas

173

sobre a imortalidade da alma e sua transmigraccedilatildeo de fato em relaccedilatildeo agraves doutrinas ma-

temaacuteticas que dizem respeito a outro momento do pitagorismo aquele normalmente

identificado por Filolau e Arquitas no V seacuteculo aEC Aristoacuteteles natildeo se refere jamais a

mitos

Eacute a essas doutrinas matemaacuteticas ilustres ausentes no resumo das doutrinas mais

ceacutelebres de Porfiacuterio com o qual comeccedilamos este capiacutetulo que dedicaremos nossa aten-

ccedilatildeo no quarto e uacuteltimo capiacutetulo

Antes disso eacute certamente o caso de anotar aqui que atribuir uma teoria da me-

tempsicose ao protopitagorismo significa do ponto de vista filosoacutefico muito mais do

que simplesmente reconhecer um diaacutelogo deste uacuteltimo com a cultura oacuterfica de seu tem-

po

Pois em si mesma a teoria da transmigraccedilatildeo da alma imortal pressupotildee o outro

argumento citado pelo resumo inicial de Porfiacuterio isto eacute a teoria do parentesco univer-

sal373 Essa teoria jaacute estaacute implicada tambeacutem no fragmento de Empeacutedocles acima citado

(31 B129 DK) e constitui natildeo somente consequecircncia loacutegica da proacutepria teoria da me-

tempsicose mas representa uma lei geral do funcionamento do cosmo que abraccedila o

passado e o futuro seres humanos e outros seres viventes em uma explicaccedilatildeo que quer

ser uacutenica e coerente do funcionamento da vida no universo Essa doutrina por ter os

atributos de uma explicaccedilatildeo totalizante e estar baseada em uma concepccedilatildeo do cosmo e

da vida como eternos pode certamente ser considerada como uma genuiacutena expressatildeo

daquele periacuteodo da histoacuteria da filosofia que se convencionou chamar de preacute-socraacutetico

373 Cf Delatte (1992 175) para as citaccedilotildees desta doutrina no interior da literatura antiga

174

CAPIacuteTULO QUARTO

NUacuteMEROS

A passagem de Porfiacuterio citada anteriormente com a qual comeccedilou o terceiro ca-

piacutetulo resumindo aquelas que a tradiccedilatildeo passaraacute a considerar como doutrinas centrais

do protopitagorismo concentra-se quase que exclusivamente nas teorias da imortalida-

de Natildeo se faz nenhuma referecircncia ao outro grande acircmbito doutrinaacuterio cuja origem a

tradiccedilatildeo atribui ao pitagorismo isto eacute aquele da matemaacutetica

A ausecircncia dessa referecircncia eacute significativa para a compreensatildeo dos caminhos de

definiccedilatildeo de uma categoria historiograacutefica como aquela do pitagorismo que ao contraacute-

rio depende amplamente dessa ligaccedilatildeo com os nuacutemeros Ela sugere a necessidade de

uma consideraccedilatildeo mais atenta da histoacuteria da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de uma

teoria matemaacutetica ou de alguma relaccedilatildeo com o estudo dos nuacutemeros

Como no caso do capiacutetulo terceiro dedicado agraves teorias da imortalidade as paacutegi-

nas a seguir seratildeo tecidas a partir de um lado da busca por um complexo doutrinaacuterio

que corresponda a uma teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica por outro lado acompanhando a

construccedilatildeo da categoria do pitagorismo a partir da tradiccedilatildeo de seu interesse pela mate-

maacutetica em geral

Natildeo por acaso conforme se anotava anteriormente no interior da discussatildeo so-

bre o testemunho uacutenico de Aristoacuteteles (17) a tradiccedilatildeo interpretativa certamente enca-

beccedilada em tempos mais recentes por Frank (1923) acostumou-se a considerar toda a

matemaacutetica pitagoacuterica como uma invenccedilatildeo acadecircmica posterior portanto aos mesmos

fragmentos de Filolau que devem eles mesmos ser considerados espuacuterios Como seraacute

visto ao longo destas paacuteginas a soluccedilatildeo para a questatildeo central aqui proposta dependeraacute

exatamente de uma reavaliaccedilatildeo dos fragmentos de Filolau tanto do ponto de vista histo-

riograacutefico isto eacute do lugar que o testemunho destes representa para a definiccedilatildeo da cate-

goria pitagorismo como tambeacutem do ponto de vista teoreacutetico isto eacute de qual seja a ma-

temaacutetica neles contida

Longe da confianccedila que Zeller depositava na possibilidade de resumir as doutri-

nas do pitagorismo na teoria pela qual o nuacutemero seria a essecircncia de todas as coisas (jun-

to com as doutrinas da harmonia do fogo central e das esferas) todas elas significati-

175

vamente presentes nos fragmentos de Filolau a criacutetica contemporacircnea submeteu a uma

profunda revisatildeo o pretenso dogma aristoteacutelico pelo qual no pitagorismo ldquotudo eacute nuacute-

merordquo374 A influecircncia do ceticismo de Frank eacute tamanha ao ponto de algueacutem como

Cherniss (1935) que ndash conforme se verificou anteriormente ndash diverge dele na concep-

ccedilatildeo fundamental do valor a ser atribuiacutedo ao testemunho de Aristoacuteteles concordar ao

inveacutes neste ponto com o primeiro O consenso dos comentadores eacute especialmente im-

pressionante quando diz respeito agravequele que consideramos como um dos loci fundamen-

tais desse debate isto eacute o valor a ser conferido aos fragmentos de Filolau

Os fragmentos atribuiacutedos a Filolau satildeo certamente espuacuterios por eles conterem elementos que natildeo podem ser mais antigos que Platatildeo Erich Frank reuniu as evidecircncias contra os fragmentos e apesar de sua proacute-pria teoria sobre suas origens e a conclusatildeo de argumentos certamente muito fracos [] sua anaacutelise torna supeacuterfluo ter de recomeccedilar o de-vastante caso contra eles (Cherniss 1935 386)375

Mais recentemente a posiccedilatildeo de Frank e da grande maioria dos comentadores

recebeu profunda revisatildeo criacutetica por parte de autores como Burkert (1972 238-277) e

Kirk Raven e Schofield (1983 324) Especialmente significativos nesse sentido satildeo os

esforccedilos de Huffman tanto em seu artigo de 1988 quanto especialmente em sua mo-

nografia inteiramente dedicada a Filolau e aos problemas da autenticidade de seus frag-

mentos (1993) a primeira inteiramente dedicada ao filoacutesofo de Crotona depois da mo-

nografia de Boeckh de 1819376 Essa revisatildeo abre novas perspectivas hermenecircuticas e

junto com os recentes estudos de Zhmud (1989 1997) representa uma pedra angular

para a definiccedilatildeo do lugar da matemaacutetica na construccedilatildeo da tradiccedilatildeo pitagoacuterica377

374 Cf para isso 11 375 Orig ldquoThe fragments attributed to Philolaus are surely spurious since they contain elements that cannot be older than Plato Erich Frank has gathered the evidence against the fragments and apart from his own theory as to their origin and his conclusion of certain very weak arguments [hellip] his analysis makes it superfluous to restate the overwhelming case against themrdquo 376 Para uma geral concordacircncia dos comentadores com o ceticismo de Frank cf entre outros Burnet (1908 279-284) e Leacutevy (1926 70ss) Natildeo eacute certamente o caso de concordar portanto com Spinelli (2003 145 n345) quando ldquodespachardquo a questatildeo da autenticidade dos fragmentos desta forma ldquoapesar do muito que jaacute se escreveu a favor e contra eles toda a argumentaccedilatildeo se encontra exposta de um modo adequado somente nos trabalhos de trecircs tratadistasrdquo Bywater Frank e Mondolfo 377 A bem da verdade eacute o caso de ressaltar que o proacuteprio Frank teria em seguida amenizado em seus escritos sucessivos uma posiccedilatildeo que por seu ceticismo extremo e de certa forma paralisador natildeo resis-tiu agraves criacuteticas dos outros comentadores De fato em 1955 deveraacute admitir que ldquoit can hardly be doubted that Pythagoras was the originator of this entire scientific development he was a rational thinker rather than an inspired mysticrdquo (1955 82) Natildeo obstante em sua resenha do livro de Von Fritz sobre a poliacutetica pitagoacuterica sua verve ceacutetica ainda aparece fortemente presente (Frank 1943)

176

41 Tudo eacute nuacutemero

411 Trecircs versotildees da doutrina pitagoacuterica dos nuacutemeros

A pergunta ldquoTudo eacute nuacutemerordquo que intitula significativamente o ceacutelebre artigo

de Zhmud na revista Phronesis de 1989 (ldquoAll is numberrdquo) inaugura uma contestaccedilatildeo

do testemunho aristoteacutelico central para a historiografia do pitagorismo segundo a qual

ldquotudo eacute nuacutemerordquo seria a definiccedilatildeo fundamental da filosofia pitagoacuterica378 Tarefa esta natildeo

certamente faacutecil especialmente quando se considera que tanto a histoacuteria da filosofia

antiga quanto aquela da matemaacutetica antiga natildeo pareceram ter muitas duacutevidas ateacute entatildeo

em relaccedilatildeo a essa mesma atribuiccedilatildeo379

E os motivos para tal confianccedila aparentemente natildeo faltam Com efeito em Aris-

toacuteteles a atribuiccedilatildeo da doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo aos pitagoacutericos recorre diversas

vezes e acaba por resumir aquela que eacute a interpretaccedilatildeo aristoteacutelica do pitagorismo

Aristoacuteteles afirma repetidamente que

1) ldquoPensavam serem os elementos dos nuacutemeros os elementos de todas as coisas

2) e que a totalidade do ceacuteu eacute harmonia e nuacutemerordquo (Met 986a3)380

3) ldquoOs nuacutemeros conforme dissemos correspondem agrave totalidade do ceacuteurdquo (Met

986a21)381

4) ldquoEles dizem que os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisasrdquo (Met 987b28)382

5) ldquoAqueles [filoacutesofos] dizem que as coisas satildeo nuacutemerordquo (Met 1083b17)383

6) ldquoFizeram os nuacutemeros serem as coisas que satildeordquo (Met 1090b23)384

378 Ainda que algumas sugestotildees nesse sentido jaacute haviam sido formuladas por Huffman (1988) em seu artigo sobre o papel do nuacutemero na filosofia de Filolau as observaccedilotildees natildeo foram declaradamente recebi-das no artigo de Zhmud (1989 292 n62) pois este foi desenvolvido paralelamente ao artigo do primeiro 379 Cf para as citaccedilotildees Heath (1921 67) Guthrie (1962 229ss) Huffman (1988 5 e 1993 57) 380 Orig ldquo τὰ τῶν ἀριθmicroῶν στοιχεῖα τῶν ὄντων στοιχεῖα πάντων ὑπέλαβον εἶναι καὶ τὸν ὅλον οὐρανὸν ἁρmicroονίαν εἶναι καὶ ἀριθmicroόνrdquo (Met 986a3) 381 Orig ldquo ἀριθmicroοὺς δέ καθάπερ εἴρηται τὸν ὅλον οὐρανόνrdquo (Met 986a21) 382 Orig ldquo οἱ δ ἀριθmicroοὺς εἶναί φασιν αὐτὰ τὰ πράγmicroαταrdquo (Met 987b28) 383 Orig ldquo ἐκεῖνοι δὲ τὸν ἀριθmicroὸν τὰ ὄντα λέγουσινrdquo (Met 1083b17) 384 Orig ldquo εἶναι microὲν ἀριθmicroοὺς ἐποίησαν τὰ ὄνταrdquo (Met 1090b23)

177

Aristoacuteteles assim por seis vezes faz os pitagoacutericos afirmarem que a realidade

como um todo (taacute oacutenta toacuten oacutelon oucircranon taacute praacutegmata) ldquoeacute nuacutemerordquo

Em contrapartida por outras sete vezes Aristoacuteteles parece sugerir que os pitagoacute-

ricos digam algo levemente distinto

1) ldquoNatildeo haacute outro nuacutemero aleacutem do nuacutemero pelo qual estaacute constituiacutedo o mundordquo

(Met 990a21)385

2) ldquoTambeacutem para os pitagoacutericos soacute existe o nuacutemero matemaacutetico mas eles afir-

mam que este natildeo eacute separado e que antes eacute dele que se sustentam as coisas

sensiacuteveis

3) pois eles constroem o ceacuteu inteiro com nuacutemerosrdquo (Met 1080b16-19)386

4) ldquoEacute impossiacutevel afirmar que [] os corpos satildeo feitos de nuacutemerosrdquo (Met

1083b11)387

5) ldquoFizeram os nuacutemeros serem as coisas que satildeo mas natildeo de maneira separada

e sim de nuacutemeros satildeo constituiacutedas as coisas que satildeordquo (Met 1090a23-24)388

6) ldquoFazem derivar os corpos fiacutesicos dos nuacutemerosrdquo (Met 1090a32)389

7) ldquoChegam ao mesmo resultado tambeacutem aqueles que consideram que o ceacuteu eacute

feito de nuacutemerosrdquo (De caelo 300a16)390

Nas citaccedilotildees acima o que Aristoacuteteles faz os pitagoacutericos afirmarem mais preci-

samente eacute que a constituiccedilatildeo do mundo se daria ex arithmocircn isto eacute com os nuacutemeros

como sua mateacuteria constitutiva (e portanto imanente)

Essa variabilidade da lectio aristoteacutelica marca toda sua abordagem ao pitagoris-

mo (Burkert 1972 45) A dificuldade que Aristoacuteteles demonstra em sua tentativa de

385 Orig ldquo ἀριθmicroὸν δ ἄλλον microηθένα εἶναι παρὰ τὸν ἀριθmicroὸν τοῦτον ἐξ οὗ συνέστηκεν ὁ κόσmicroοςrdquo (Met 990b21) 386 Orig ldquo καὶ οἱ Πυθαγόρειοι δ ἕνα τὸν microαθηmicroατικόν πλὴν οὐ κεχωρισmicroένον ἀλλ ἐκ τούτου τὰς αἰσθη-τὰς οὐσίας συνεστάναι φασίν τὸν γὰρ ὅλον οὐρανὸν κατασκευάζουσιν ἐξ ἀριθmicroῶνrdquo (Met 1080b16-19) 387 Orig ldquo ὸ δὲ τὰ σώmicroατα ἐξ ἀριθmicroῶν εἶναι συγκείmicroενα [] ἀδύνατόν ἐστινrdquo (Met 1083b11) 388 Orig ldquo εἶναι microὲν ἀριθmicroοὺς ἐποίησαν τὰ ὄντα οὐ χωριστοὺς δέ ἀλλ ἐξ ἀριθmicroῶν τὰ ὄνταrdquo (Met 1090a23-24) 389 Orig ldquo ποιεῖν ἐξ ἀριθmicroῶν τὰ φυσικὰ σώmicroαταrdquo (Met 1090a32) 390 Orig ldquo Τὸ δ αὐτὸ συmicroβαίνει καὶ τοῖς ἐξ ἀριθmicroῶν συντιθεῖσι τὸν οὐρανόνrdquo (De caelo 300a16) Obser-va com razatildeo Huffman (1988 5 n15 1993 57 n2) que Aristoacuteteles inclui nestes tambeacutem os atomistas

178

expressar nos termos de sua filosofia as doutrinas pitagoacutericas jaacute foi notada anterior-

mente em relaccedilatildeo agrave questatildeo da alma (38) Natildeo diferentemente aqui a apresentaccedilatildeo da

doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo por Aristoacuteteles eacute no limite contraditoacuteria e apresenta basi-

camente trecircs diferentes significados391 Para aleacutem da primeira versatildeo que se refere agrave

identificaccedilatildeo fundamental dos nuacutemeros com os objetos sensiacuteveis duas outras versotildees

satildeo fornecidas por Aristoacuteteles

A segunda delas eacute a da identificaccedilatildeo dos princiacutepios dos nuacutemeros com os princiacute-

pios das coisas que satildeo

Os assim chamados pitagoacutericos satildeo contemporacircneos e ateacute mesmo an-teriores a estes filoacutesofos [Leucipo e Demoacutecrito] Eles por primeiros aplicaram-se agraves matemaacuteticas fazendo-as progredir e nutridos por e-las acreditaram que os princiacutepios delas eram os princiacutepios de todos os seres (Met 985b23-26)392

Essa versatildeo pode ser aproximada daquela de Met 986a3 citada anteriormente

que no lugar de archaiacute refere-se a stoicheacuteia

A terceira eacute a da imitaccedilatildeo dos nuacutemeros pelos objetos reais na ceacutelebre passagem

em que eacute desenhado um paralelismo com a concepccedilatildeo platocircnica da participaccedilatildeo

Os pitagoacutericos dizem que os seres subsistem por imitaccedilatildeo dos nuacuteme-ros Platatildeo ao contraacuterio diz por participaccedilatildeo mudando apenas o no-me De todo modo tanto uns como o outro descuidaram igualmente de indicar o que significa participaccedilatildeo e imitaccedilatildeo das ideias (Met 987b11-14) 393

A primeira versatildeo pela qual ldquoos nuacutemeros satildeo as coisasrdquo eacute evidentemente con-

traditoacuteria com as outras duas Cherniss (1935 387) anota com razatildeo que Aristoacuteteles

procura conciliar esta primeira versatildeo com a segunda aqui citada pela qual os nuacutemeros

seriam princiacutepios de todas das coisas O sucesso de sua tentativa depende de ele forccedilar

uma teoria da derivaccedilatildeo da realidade do nuacutemero um que todavia aleacutem de natildeo existir

391 Reproduzem essa mesma triparticcedilatildeo Cherniss (1935 386) Zhmud (1989 284-286) e Huffman (1993 60) 392 Orig ldquoἘν δὲ τούτοις καὶ πρὸ τούτων οἱ καλούmicroενοι Πυθαγόρειοι τῶν microαθηmicroάτων ἁψάmicroενοι πρῶτοι ταῦτά τε προήγαγον καὶ ἐντραφέντες ἐν αὐτοῖς τὰς τούτων ἀρχὰς τῶν ὄντων ἀρχὰς ᾠήθησαν εἶναι πάντ-ωνrdquo (Met 985b 23-26) 393 Orig ldquo οἱ microὲν γὰρ Πυθαγόρειοι microιmicroήσει τὰ ὄντα φασὶν εἶναι τῶν ἀριθmicroῶν Πλάτων δὲ microεθέξει τοὔνο-microα microεταβαλών τὴν microέντοι γε microέθεξιν ἢ τὴν microίmicroησιν ἥτις ἂν εἴη τῶν εἰδῶν ἀφεῖσαν ἐν κοινῷ ζητεῖνrdquo (Met 987b11-14)

179

como tal nas fontes aparentemente confunde a cosmologia pitagoacuterica com a teoria dos

nuacutemeros (Cherniss 1935 39) Tentativa esta que o proacuteprio Aristoacuteteles parece reconhe-

cer como falimentar quando afirma

Esses filoacutesofos tambeacutem natildeo explicam de que modo os nuacutemeros satildeo causas das substacircncias e do ser Satildeo causas enquanto limites das gran-dezas e do mesmo modo como Eurito estabelecia o nuacutemero de cada coisa (Por exemplo determinado nuacutemero para o homem outro para o cavalo reproduzindo com pedrinhas a forma dos viventes de modo semelhante aos que remetem os nuacutemeros agraves figuras do triacircngulo e do quadrado [] (Met 1092b8-13)394

Com a referecircncia a Eurito Aristoacuteteles introduz uma teoria que foi chamada de

ldquoatomismo numeacutericordquo pela qual os nuacutemeros seriam as coisas porque os nuacutemeros (pen-

sados como pseacutephoi pedrinhas) constituem a mateacuteria pela qual as coisas satildeo feitas

Com razatildeo de fato anota Cherniss (1951 336) que dessa forma os nuacutemeros poderatildeo

identificar qualquer tipo de objeto fenomecircnico

Pensaram os nuacutemeros como grupos de unidades sendo as unidades pontos materiais entre aquilo que eacute ldquosoprordquo ou um ldquovaziordquo material e identificaram literalmente todos os objetos fenomecircnicos por meio de uma tal agregaccedilatildeo de pontos fossem eles divisiacuteveis ou menos Esta era mais uma materializaccedilatildeo do nuacutemero do que uma materializaccedilatildeo da natureza mas esta parecia indubitalvelmente aos pitagoacutericos a uacutenica maneira de explicar o mundo fiacutesico nos termos daquelas proposiccedilotildees genuinamente matemaacuteticas que eles haviam provado serem indepen-demente vaacutelidas (Cherniss 1951 336)395

Tannery (1887b 258ss) Cornford (1923 7 ss) e o proacuteprio Cherniss (1935

387) fascinados pela primitividade do meacutetodo atomiacutestico-numeacuterico de Eurito conside-

raram-no efetivamente antigo396 Todos seguem basicamente Frank (1923 50) e sua

394 Orig ldquo οὐθὲν δὲ διώρισται οὐδὲ ὁποτέρως οἱ ἀριθmicroοὶ αἴτιοι τῶν οὐσιῶν καὶ τοῦ εἶναι πότερον ὡς ὅροι (οἷον αἱ στιγmicroαὶ τῶν microεγεθῶν καὶ ὡς Εὔρυτος ἔταττε τίς ἀριθmicroὸς τίνος οἷον ὁδὶ microὲν ἀνθρώπου ὁδὶ δὲ ἵππου ὥσπερ οἱ τοὺς ἀριθmicroοὺς ἄγοντες εἰς τὰ σχήmicroατα τρίγωνον καὶ τετράγωνον []rdquo (Met 1092b8-13) 395 Orig ldquoNumbers they held to be groups of units the units being material points between which there is lsquobreathrsquo or a material lsquovoidrsquo and they quite literally identified all phenomenal objects with such ag-gregations of points without of course considering whether these material points were themselves di-visible or not This was rather a materialization of number than a mathematization of nature but it undoubtedly seemed to the Pythagoreans to be the only way of explaining the physical world in terms of those genuinely mathematical propositions which they had proved to be independently validrdquo 396 Cf o que foi dito acima em relaccedilatildeo ao atomismo numeacuterico como modelo fundamental do sistema cientiacutefico pitagoacuterico para Cornford (15)

180

hipoacutetese pela qual a teoria teria sido emprestada por Arquitas do mesmo Demoacutecrito

Natildeo por acaso a referecircncia da citaccedilatildeo de Met 985b23-26 eacute a Leucipo e Demoacutecrito isto

eacute agrave tradiccedilatildeo atomista agrave qual a teoria pitagoacuterica eacute aproximada Aleacutem disso foi vislum-

brada na polecircmica zenoniana contra a pluralidade exatamente uma referecircncia ao ato-

mismo numeacuterico dos pitagoacutericos397 Todavia Burkert (1972 285-288) e Kirk Raven e

Schofield (1983 277-278) colocaram em seacuterias duacutevidas essa atribuiccedilatildeo Os argumentos

para isso natildeo faltam398

Entretanto natildeo eacute difiacutecil imaginar que a materialidade dos nuacutemeros pitagoacutericos

possua um sentido mais arcaico sem a necessidade de postular necessariamente um

atomismo numeacuterico Sentido este bem resumido pela jaacute claacutessica definiccedilatildeo de Nuss-

baum

A noccedilatildeo de arithmos eacute sempre conectada de forma muito proacutexima com a operaccedilatildeo do contar Para que algo seja um arithmos deve ser de tal forma que possa ser contado ndash o que em geral significa que ou pos-sui partes distintas e ordenadas ou que seja uma parte distinta de um interior maior Fornecer o arithmos de algo que haacute no mundo corres-ponde a responder agrave pergunta ldquoquantosrdquo deste E quando o grego res-ponde ldquodoisrdquo ou ldquotrecircsrdquo ele natildeo considera que esteja introduzindo uma nova entidade e sim que esteja separando ou medindo as entidades que jaacute estatildeo em questatildeo (Nussbaum 1979 90)399

O nuacutemero seria portanto ldquoele proacuteprio uma coisardquo (Burkert 1972 265)400

Assim a segunda concepccedilatildeo acima citada pela qual os princiacutepios dos nuacutemeros

seriam os princiacutepios de todas as coisas corresponderaacute mais facilmente agravequela que Cher-

niss (1935 390) define como uma ldquoconstruccedilatildeo aristoteacutelica da tese pitagoacutericardquo Aristoacutete-

les teria sido levado a esta siacutentese de um lado pela dificuldade de aceitar a noccedilatildeo pita-

397 Cf tambeacutem o que foi dito sobre esse ponto em 15 398 Ainda que natildeo seja o caso de referir aqui todos eles Para os argumentos contraacuterios agrave tese de Frank cf Cherniss (1935 388-389) Para os argumentos contraacuterios agrave tese da polecircmica zenoniana cf Burkert (1972 285-289) 399 Orig ldquothe notion of arithmos is always very closely connected with the operation of counting To be an arithmos something must be such as to be counted - which usually means that it must either have discrete and ordered parts or be a discrete part of a larger whole To give the arithmos of something in the world is to answer the question lsquohow manyrsquoabout it And when the Greek answers lsquotworsquo or lsquothreersquo he does not think of himself as introducing an extra entity but as dividing or measuring the entities already in questionrdquo 400 Orig ldquoIs itself a thingrdquo (Burkert 1972 265) No mesmo contexto Burkert anota com razatildeo que natildeo deve ser esquecido que o ἀριθmicroὸς possui certo ldquosom aristocraacuteticordquo que remete para aquilo que ldquocontardquo no sentido de ser importante de ldquovaler a penardquo ser contado O termo pode ser assim aproximado ao ἀρχὴ preacute-socraacutetico

181

goacuterica material de nuacutemero (aquela das pedrinhas de Eurito que devia considerar dema-

siadamente simploacuteria) por outro lado por considerar mais procedente compreender a

existecircncia dos nuacutemeros pitagoacutericos da mesma maneira como os platocircnicos tratavam

dela isto eacute considerando os aacuterithmoi como archaiacute Poreacutem com isso Aristoacuteteles faz

deslizar toda a problemaacutetica da teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica para o acircmbito acadecircmico

Com efeito Frank (1923 255) sugere que a fonte dessa ldquoincompreensatildeordquo de Aristoacuteteles

seja Espeusipo e portanto aquela parte da Academia profundamente ligada agraves tradiccedilotildees

pitagoacutericas Espeusipo seria de fato citado diretamente por Aristoacuteteles em Metafiacutesica

(1085a33) quando menciona aqueles ldquopelos quais o ponto natildeo eacute um mas semelhante ao

umrdquo isto eacute oicircon to eacuten O ponto de fato joga um papel central no trabalho de Espeusi-

po que aleacutem de estudioso de Filolau declarava abertamente ter baseado neste uacuteltimo

seus escritos Essa afirmaccedilatildeo encontra-se no fr 4 (Lang) de Espeusipo preservado por

Nicomaco como parte do livro do primeiro Sobre os nuacutemeros pitagoacutericos O mesmo

fragmento constitui a prova direta da derivaccedilatildeo acadecircmica da teoria dos princiacutepios dos

nuacutemeros Assim de fato afirmaria Espeusipo ldquoquando se considera a geraccedilatildeo o primei-

ro princiacutepio do qual se gera a grandeza eacute o um o segundo a linha o terceiro a superfiacute-

cie o quarto o soacutelidordquo (44 A13 DK Fr 4 Lang)401

Comeccedila a delinear-se tambeacutem nesse acircmbito da teoria dos nuacutemeros a onipresen-

te mediaccedilatildeo acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas que tanta parte teve na discussatildeo so-

bre a teoria pitagoacuterica da imortalidade da alma no capiacutetulo terceiro A mesma mediaccedilatildeo

seraacute reconhecida em diferentes modalidades nas paacuteginas a seguir como uma das teses

centrais para a explicaccedilatildeo da formaccedilatildeo da categoria pitagorismo tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

matemaacutetica

Eacute tambeacutem contraditoacuteria com a primeira tese a terceira isto eacute a ideia da miacutemesis

dos nuacutemeros pelos objetos reais A bem ver essa tese eacute referida por Aristoacuteteles com

precisatildeo somente uma vez (Met 987b11) no interior da passagem em que a concepccedilatildeo

pitagoacuterica eacute identificada com aquela platocircnica da participaccedilatildeo Isso faz Cherniss (1935

392) e Zhmud (1989 186) considerarem bastante provaacutevel que Aristoacuteteles esteja ten-

tando diminuir de alguma forma a originalidade da ideia de meacutethexis platocircnica apon-

401 Orig ldquo ἐν τῆι γενέσει πρώτη microὲν γὰρ ἀρχὴ εἰς microέγεθος στιγmicroή δευτέρα γραmicromicroή Τρίτη ἐπιφάνεια τέταρτον στερεόνrdquo (44 A13 DK) Cherniss (1935 391) considera a probabilidade de Aristoacuteteles ter deri-vado tambeacutem integralmente de Espeusipo a lista dos contraacuterios de Met 986a22 ainda que simplesmente como a mais bem acabada lista que estava agrave sua disposiccedilatildeo Sem negar portanto a possibilidade de exis-tirem outras listas que podiam ser originalmente pitagoacutericas

182

tando ao mesmo tempo para Aristoxeno cujo antagonismo com Platatildeo eacute bastante ates-

tado De fato um testemunho deste uacuteltimo reproduz a mesma ideia da imitaccedilatildeo Pitaacutego-

ras ldquoassemelha todas as coisas aos nuacutemerosrdquo (fr 23 4 Werli)402

Em verdade o proacuteprio Aristoacuteteles refere-se novamente a algo bastante parecido

ao conceito de miacutemesis em outras passagens em que se refere aos nuacutemeros pitagoacutericos e

utiliza termos ligados ao campo semacircntico da semelhanccedila

Dado que justamente nos nuacutemeros mais que no fogo na terra e na aacute-gua eles achavam que viam muitas semelhanccedilas com as coisas que satildeo e que se geram por exemplo consideravam que determinada pro-priedade dos nuacutemeros era a justiccedila outra a alma e o intelecto outra ainda o momento e tempo oportuno e em poucas palavras de modo semelhante para todas as outras coisas (Met 985b27-32)403

Eacute portanto nesse sentido das homoioacutemata que deve ser compreendida a referecircn-

cia agrave miacutemesis404

Tambeacutem a citaccedilatildeo acima das pedrinhas de Eurito em outra paacutegina de Metafiacutesica

(Met 1092b8-13) pode ser remetida para o interior desse mesmo campo semacircntico da

semelhanccedila e da imitaccedilatildeo Alexandre de Afrodiacutesia por sua vez em seu comentaacuterio agrave

Metafiacutesica de Aristoacuteteles explicita o raciociacutenio que teria levado agrave definiccedilatildeo da seme-

lhanccedila da justiccedila com o nuacutemero quatro

Partindo do pressuposto de que o caraacuteter especiacutefico da justiccedila seja a proporcionalidade e a igualdade e percebendo que esta propriedade estaacute presente nos nuacutemeros por este motivo os pitagoacutericos diziam que a justiccedila eacute o primeiro nuacutemero quadrado [] Este nuacutemero alguns dizi-am que fosse o quatro pois eacute o primeiro quadrado e tambeacutem porque eacute dividido em partes iguais e eacute igual ao produto destas (de fato eacute duas vezes dois) (In Metaph 38 10 Hayduck) 405

402 Orig ldquo πάντα τὰ πράγmicroατα ἀπεικάζων τοῖς ἀριθmicroοῖςrdquo (Aristox fr 234 Werli) 403 Orig ldquo ἐν δὲ τούτοις ἐδόκουν θεωρεῖν ὁmicroοιώmicroατα πολλὰ τοῖς οὖσι καὶ γιγνοmicroένοις microᾶλλον ἢ ἐν πυρὶ καὶ γῇ καὶ ὕδατι ὅτι τὸ microὲν τοιονδὶ τῶν ἀριθmicroῶν πάθος δικαιοσύνη τὸ δὲ τοιονδὶ ψυχή τε καὶ νοῦς ἕτερον δὲ καιρὸς καὶ τῶν ἄλλων ὡς εἰπεῖν ἕκαστον ὁmicroοίωςrdquo (Met 985b27-32) 404 Cf para esta aproximaccedilatildeo Centrone (1996 107-108) 405 Orig ldquo τῆς microὲν γὰρ δικαιοσύνης ἴδιον ὑπολαmicroβάνοντες εἶναι τὸ ἀντιπεπονθός τε καὶ ἴσον ἐν τοῖς ἀριθmicroοῖς τοῦτο εὑρίσκοντες ὄν διὰ τοῦτο καὶ τὸν ἰσάκις ἴσον ἀριθmicroὸν πρῶτον ἔλεγον εἶναι δικαιοσύνην (hellip) τοῦτον δὲ οἱ microὲν τὸν τέσσαρα ἔλεγον ἐπεὶ πρῶτος ὢν τετράγωνος εἰς ἴσα διαιρεῖται καὶ ἔστιν ἴσος (δὶς γὰρ δύο)rdquo (In Metaph 38 10 Hayduck)

183

Burkert (1972 44-45) anota que esse conceito de miacutemesis deve corresponder

senatildeo na terminologia utilizada por Aristoacuteteles ao menos em seu sentido a uma teoria

preacute-socraacutetica e natildeo jaacute platocircnica A ideia fundamental da magia ou da medicina hipocraacute-

tica eacute aquela de uma correspondecircncia ldquode matildeo duplardquo entre duas entidades (o corpo e o

cosmo a arte e a natureza) No caso especiacutefico simplesmente reafirmaria uma corres-

pondecircncia uma imitaccedilatildeo do cosmo com o nuacutemero e vice-versa O mesmo Cornford

(1922) considerava essa ideia da imitaccedilatildeo muito antiga por causa exatamente de sua

caracteriacutestica miacutestica que o comentador aproxima diretamente por meio da etimologia

(miacutemos = ator) aos cultos dionisiacuteacos e ao fato de os protagonistas dos cultos desempe-

nharem o papel do proacuteprio deus

A esta altura ldquosemelhanccedila com deusrdquo equivale a uma identificaccedilatildeo temporaacuteria Induzida pelos sentidos orgiaacutesticos pelo ecircxtase baacutequico ou pelas festas sacramentais oacuterficas eacute o aperitivo da reuniatildeo final No pitagorismo a concepccedilatildeo eacute mitigada Apolinizada O sentido natildeo eacute mais ecircxtase ou sacramento mas teoria contemplaccedilatildeo intelectual da ordem universal (Cornford 1922 143)406

Contra essas hipoacuteteses todavia joga o fato de Aristoacuteteles a bem ver natildeo indicar

a imitaccedilatildeo de praacutegmata e sim realidades abstratas como a justiccedila o tempo etc407 De

toda forma ainda que se possa conceder que Aristoacuteteles esteja se referindo aqui a uma

doutrina do protopitagorismo de estilo acusmaacutetico eacute certamente o caso de anotar que

na paacutegina sucessiva (Met 987b29) exclui veementemente que os pitagoacutericos concor-

dem com Platatildeo com o papel de meacutethexis atribuiacutedo aos nuacutemeros por este uacuteltimo A

ldquoprecisaccedilatildeordquo de Aristoacuteteles sugeriria neste caso que uma intenccedilatildeo polecircmica antiaca-

decircmica devesse ser talvez a mais apropriada para explicar este apax da referecircncia agrave miacute-

mesis408

406 Orig ldquoAt that stage likeness to God amounts to temporary identification Induced by orgiastic means by Bacchic ecstasy or Orphic sacramental feast it is a foretaste of the final reunion In Pythagoreanism the conception is toned down Apollinized The means is no longer ecstasy or sacra-ment but theoria intellectual contemplation of the universal orderrdquo Concorda com a possibilidade desta origem ldquomiacutestica dos nuacutemerosrdquo tambeacutem Casertano (2009 67) 407 Burnet (1908 119) por outro lado alerta que natildeo se devem levar a seacuterio essas passagens ldquoThey are mere sports of the analogical fancyrdquo 408 Este eacute tambeacutem um dos motivos que obriga a descartar a hipoacutetese de Burnet (1908 355) e Taylor (1911178s) retomada tambeacutem por Delatte (1922a 108ss) pela qual o pitagorismo seria o inventor da teoria das formas platocircnicas Assim Burnet ldquothe doctrine of lsquoformsrsquo (eiacutede ideiacuteai) originally took shape in Pythagorean circles perhaps under Sokratic influencerdquo (1908 355)

184

Eacute possiacutevel concluir que as trecircs versotildees da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo (aquela da

identificaccedilatildeo dos nuacutemeros como princiacutepios e esta uacuteltima da imitaccedilatildeo) aparecem articu-

ladas de maneira imperfeita e no limite contraditoacuterias em sua tradiccedilatildeo no interior da

obra aristoteacutelica

Todavia eacute bastante significativo que Aristoacuteteles natildeo mencione em algum mo-

mento que as trecircs diferentes lectiones do ldquotudo eacute nuacutemerordquo devam pertencer a diferentes

grupos ou momentos no interior do pitagorismo De certa forma parece ainda conside-

raacute-las senatildeo coerentes entre si ao menos conciliaacuteveis e as refere todas indistintamente

aos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo409

O reconhecimento disso levou diversos autores a adotarem soluccedilotildees conciliatoacute-

rias para o problema In primis o proacuteprio Zeller Ainda que considerasse que o testemu-

nho de Aristoacuteteles devesse ser tomado com todos os cuidados do caso sua proximidade

histoacuterica com as doutrinas pitagoacutericas deveria garantir de certa forma a procedecircncia da

especial articulaccedilatildeo destas neste contidas Assim para Zeller

Natildeo haacute duacutevida de que na exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles devemos procurar antes de tudo e somente sua proacutepria maneira de ver e natildeo um imedia-to testemunho da realidade de fato todavia mesmo neste caso [da teo-ria numeacuterica] tudo fala a favor de um reconhecimento do fato de que esta sua maneira de ver estivesse fundamentada sobre um direto co-nhecimento da efetiva conexatildeo das ideias proacuteprias do pitagorismo (Zeller e Mondolfo 1932 486)410

Frank (1923 77 n196) e Rey (1933 116) exatamente para exorcizar a possibili-

dade de incompatibilidade delas imagina a possibilidade de Aristoacuteteles ter compreendi-

do as trecircs versotildees como derivadas logicamente uma da outra De maneira especial Rey

elabora uma proposta conciliatoacuteria entre a versatildeo dos nuacutemeros serem as coisas e aquela

dos nuacutemeros imitarem as coisas os nuacutemeros seriam as coisas quando se considera sua

natureza e imitariam as coisas quando se considerassem suas propriedades (1933

409 Por esses motivos eacute improcedente do ponto de vista metodoloacutegico utilizar exclusivamente Aristoacutete-les para afirmar qualquer coisa sobre uma pretensa concepccedilatildeo matemaacutetica no protopitagorismo 410 Orig ldquonon vacutehaacute dubbio che nella esposizione di Aristotele noi dobbiam cercare anzi tutto e soltanto il suo proprio modo di vedere e non unacuteimmediata testimonianza sulla realtagrave di fatto Tuttavia anche in questo caso tutto parla in favore di un riconoscimento del fatto che questo suo modo di vedere si fondasse su una diretta conoscenza della effettiva connessione dacuteidee propria del pitagorismordquo

185

356ss)411 Mais elaborada eacute a argumentaccedilatildeo conciliatoacuteria de Raven (1948 43-65) pela

qual

Supor como muitos comentadores parecem supor que Aristoacuteteles fi-cou totalmente confuso sobre isso natildeo somente levaria para a porta de-le um grande peso mas tambeacutem demoliria com isso a base central sobre a qual qualquer reconstruccedilatildeo confiaacutevel do pitagorismo deve ser erigida (Raven 1948 63)412

Em aberta polecircmica com Cornford (1923 10) e sua ideia de que Aristoacuteteles esta-

ria aqui apresentando sem distingui-los dois momentos do pitagorismo (um primeiro

ligado agrave ideia de uma materialidade dos nuacutemeros um segundo em que os pitagoacutericos

estariam mais preocupados com a composiccedilatildeo numeacuterica da realidade) Raven propotildee

ao contraacuterio uma radical indissociabilidade do uso dual dos nuacutemeros no interior do pi-

tagorismo antigo413 Aristoacuteteles estaria assim simplesmente recebendo deste uacuteltimo uma

concepccedilatildeo da natureza como igual aos nuacutemeros no sentido de constituir uma agregaccedilatildeo

de unidades espaciais (1948 62) Contudo os nuacutemeros natildeo constituiriam somente a

mateacuteria da realidade e sim estariam tambeacutem agrave origem das diferenccedilas qualitativas que

distinguem uns objetos materiais dos outros Somente assim seria possiacutevel pensar tanto

a versatildeo da imitaccedilatildeo como aquela dos nuacutemeros dos princiacutepios como articulada com a

primeira versatildeo414

Eacute certamente possiacutevel ao menos afirmar que a ideia de miacutemesis atribuiacuteda aos pi-

tagoacutericos por Aristoacuteteles natildeo tem muito a compartilhar com a paralela concepccedilatildeo platocirc-

nica de miacutemesis pela qual as realidades fenomecircnicas imitam no sentido de serem feitas

ldquoagrave semelhanccedila derdquo outras realidades suprasensiacuteveis de niacutevel ontoloacutegico superior isto eacute

as formas E se essa observaccedilatildeo eacute correta o que Aristoacuteteles deve atribuir aos pitagoacuteri-

cos quando fala da miacutemesis natildeo pode ser outra coisa senatildeo uma geneacuterica correspon-

decircncia entre as coisas e as relaccedilotildees numeacutericas que as explicam que as tornam inteligiacute-

veis Resume bem a questatildeo Casertano 411 Para criacuteticas agrave proposta de Frank e Rey cf tanto Cherniss (1935 386) como Burkert (1972 44 n86) 412 Orig ldquoTo suppose as so many scholars appear to suppose that Aristotle was hopelessly confused about it is not only to lay a very serious charge at his door but also incidentally to demolish the main basis upon which any reliable reconstruction of Pythagoreanism must be erectedrdquo 413 Cornford afirma de fato que ldquoAristotle himself draws attention to the two diverse ways of mak-ing numbers the causes of substances and being which in my view are characteristic of the two different schools of Pythagoreansrdquo(Cornford 1923 10) 414 Sobre a mesma ideia cf tambeacutem Guthrie (1962 230s)

186

Inteligibilidade imanente portanto e natildeo trascendente agraves coisas mes-mas Eacute por este motivo que as foacutermulas pitagoacutericas ldquoas coisas satildeo nuacute-merosrdquo e ldquoas coisas assemelham-se aos nuacutemerosrdquo natildeo estatildeo em con-traste ao contraacuterio satildeo expressotildees de uma mesma intuiccedilatildeo fundamen-tal que eacute aquela da homogeneidade entre realidade e pensamento en-tre as leis da realidade e as leis do pensamento compreender as coisas eacute essencialmente espelhaacute-las reproduzir em niacutevel mental aquela estru-tura plenamente inteligiacutevel que eacute proacutepria da realidade material (Ca-sertano 2009 65)415

Apesar de estar clara portanto aquela que podia ter sido a intuiccedilatildeo fundamental

dos pitagoacutericos isto eacute a possibilidade de compreender a natureza pelos nuacutemeros o fato

eacute que a tentativa de conciliaccedilatildeo aristoteacutelica entre as diferentes versotildees da teoria natildeo pa-

receu de toda forma bem-sucedida

Se aleacutem do mais considera-se que a versatildeo principal da doutrina pitagoacuterica a-

quela da identidade do nuacutemero com as realidades obedece diretamente agrave intenccedilatildeo po-

lecircmica de Aristoacuteteles com o platonismo levando-o a considerar o aacuterithmos pitagoacuterico

como causa material em oposiccedilatildeo agrave militacircncia platocircnica em favor da causa formal

(Cherniss 1935 360) torna-se difiacutecil definir indiscutivelmente qual seria o valor histo-

riograacutefico da doutrina pitagoacuterica do ldquotudo eacute nuacutemerordquo416

412 Duas soluccedilotildees

A esta questatildeo do valor da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica ldquotudo eacute nuacutemerordquo como descri-

ccedilatildeo vaacutelida da filosofia pitagoacuterica foram propostas duas soluccedilotildees

A primeira parte da contestaccedilatildeo radical da validade do testemunho aristoteacutelico

chegando a simplesmente negar que ao protopitagorismo corresponda uma doutrina do

nuacutemero tout court Os motivos para essa contestaccedilatildeo natildeo faltam e podem ser resumidos

fundamentalmente no paradoxo de uma doutrina que ainda que amplamente atestada

415 Orig ldquoIntelligibilitagrave immanente appunto e non trascendente le cose stesse Ecco perchegrave le formule pitagoriche lsquole cose sono numerirsquo e lsquole cose somigliano ai numerirsquo non sono in contrasto ma sono espressioni di una medesima intuizione fondamentale che egrave quella dellacuteomogeneitagrave tra realtagrave e pensiero tra leggi della realtagrave e leggi del pensiero capire le cose egrave essenzialmente rispecchiarle riprodurre a livello mentale quella struttura pienamente intelligibile che egrave propria della realtagrave materialerdquo 416 Centrone (1996 105) anota neste sentido que ldquolacuteinteresse [di Aristotele] per il pitagorismo i cui pregi in definitiva consistono solo nellacuteassenza dei difetti propri della filosofia dei platonici non egrave soverchiante ed egrave anzi determinado proprio dalle affinititagrave con le dottrine platonicherdquo

187

na principal fonte para o pitagorismo antigo isto eacute Aristoacuteteles todavia natildeo parece en-

contrar confirmaccedilatildeo nos testemunhos mais antigos Eacute desse paradoxo que Zhmud

(1989) no artigo citado anteriormente comeccedila sua argumentaccedilatildeo Eacute certamente o caso

de segui-la passo a passo

O horizonte em que se insere a reflexatildeo de Zhmud eacute aquele de uma histoacuteria da

tradiccedilatildeo que define a categoria pitagorismo a partir de uma identificaccedilatildeo doutrinaacuteria

Nesse sentido a preocupaccedilatildeo fundamental do autor eacute aquela de contrastar a impressatildeo

que o texto aristoteacutelico parece deixar de que a definiccedilatildeo de ldquoalgueacutem que fala de nuacuteme-

rosrdquo seria a melhor definiccedilatildeo de um pitagoacuterico Conforme jaacute foi observado acima (22)

o criteacuterio identitaacuterio revelaria quanto de circular quanto de petitio principii haveria

nessa utilizaccedilatildeo do criteacuterio dos nuacutemeros para identificar um pitagoacuterico (Zhmud 1989

272) De fato apesar de diversas tentativas a esse respeito nenhum historiador ndash afirma

Zhmud ndash teve sucesso na busca de qualquer doutrina sobre os nuacutemeros nas fontes preacute-

aristoteacutelicas sobre o pitagorismo (Zhmud 1989 272) Por outro lado eacute o caso de reme-

ter novamente ao que se dizia acima (22) em relaccedilatildeo ao cataacutelogo de Jacircmblico que en-

cerra a Vida Pitagoacuterica (267) Em nenhum momento o cataacutelogo revela algum criteacuterio

doutrinaacuterio para a inclusatildeo dos 218 nomes de pitagoacutericos nele contidos grande parte

deles eacute laacute inserida com base em uma imprecisa aderecircncia ao biacuteos pitagoacuterico De fato em

relaccedilatildeo mais diretamente agrave questatildeo (aristoteacutelica) dos nuacutemeros como archaiacute entatildeo es-

tranharia a presenccedila de um pitagoacuterico como Hipaso que conforme os fragmentos que

dele nos resultaram possuiacutea uma concepccedilatildeo material da archeacute (como fogo cf 18 B7

DK) bem distante portanto da doxografia aristoteacutelica de Meacutetafiacutesica

A partir desses argumentos Zhmud admite somente duas possibilidades de solu-

ccedilatildeo da questatildeo ou a expressatildeo ldquotudo eacute nuacutemerordquo pertenceria a um antigo e secreto ensi-

namento do ldquodivinordquo Pitaacutegoras do qual todavia natildeo se teria alguma referecircncia nas fon-

tes mais antigas (e que portanto deveria ter sido revelado diretamente a Aristoacuteteles) ou

esta expressatildeo assim como a doutrina a ela colegada natildeo seria de fato de alguma ma-

neira uma doutrina pitagoacuterica417 Esta segunda possibilidade corresponde a uma jaacute claacutes-

sica posiccedilatildeo de Burnet pela qual ldquoo proacuteprio Pitaacutegoras natildeo teria deixado nenhuma dou-

417 Assim comenta Zhmud ldquoIf we do not wish to think that the central dogma of Pythagorean philosophy was secret then it would be quite reasonable to suppose either this dogma was not central or it was not a dogma at all Only very few of those who write about Pythagorean philosophy arrive at such a para-doxical conclusionrdquo (Zhmud 1989 275) Sobre a praacutetica do segredo na comunidade pitagoacuterica mais anti-ga cf acima (23)

188

trina desenvolvida sobre o tema enquanto os pitagoacutericos do quinto seacuteculo natildeo se inte-

ressaram em acrescentar nada deste tipo agrave tradiccedilatildeo da escolardquo (1908 119)418

Ainda que natildeo deva maravilhar depois dos estudos acima mencionados de

Cherniss (17) que o meacutetodo ldquohistoriograacuteficordquo aristoteacutelico tenha a liberdade de operar

reformulaccedilotildees e traduccedilotildees em seus mesmos termos das doutrinas de seus predecessores

eacute todavia o caso de perguntar-se o que levaria Aristoacuteteles a postular exatamente essa

doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo que na forma atual natildeo devia ser pitagoacuterica

O que foi dito ateacute aqui pode jaacute sugerir um primeiro esboccedilo de resposta a essa

pergunta de certa forma Aristoacuteteles eacute confrontado com grande diversidade de fontes

pitagoacutericas tanto antigas (Hipaso) quanto a ele mais proacuteximas (Ecfanto Filolau Arqui-

tas) Contudo para as finalidades internas agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles conforme se viu

acima essa pletora de pitagoacutericos precisava ser reconduzida a um denominador comum

a uma escola que de certa forma coubesse no percurso histoacuterico-teoreacutetico que Aristoacutete-

les pretendia desenhar em sua doxografia

Sem essa reduccedilatildeo aos miacutenimos termos teoacutericos de fato seria impossiacutevel inserir

os pitagoacutericos no interior do modelo agocircnico pelo qual Aristoacuteteles descreve a histoacuteria

dos predecessores (Cherniss 1935 349)419 Somente dessa forma por exemplo o archeacute

pitagoacuterico encontra seu lugar de antagonista da causa material jocircnica Ao mesmo tempo

todavia exatamente certa imprecisatildeo terminoloacutegica das fontes pitagoacutericas (da qual co-

mo vimos Aristoacuteteles parece reclamar em Met 1092b1-13) permite a inserccedilatildeo do nuacute-

mero pitagoacuterico como ao mesmo tempo precursor da causa formal platocircnica Vale pen-

sar se a reclamaccedilatildeo de Aristoacuteteles natildeo seja um blefe pois se o nuacutemero jaacute natildeo tivesse

esta dupla valecircncia bem Aristoacuteteles a teria provavelmente inventado pois ela calccedila agrave

perfeiccedilatildeo no interior de seu modelo doxograacutefico

Assim a postulaccedilatildeo de ldquotudo eacute nuacutemerordquo teria sido a soluccedilatildeo de um problema de

Aristoacuteteles e de certa forma o iniacutecio de uma longa tradiccedilatildeo que a partir de Zeller (Zel-

ler e Mondolfo 1938 435) reduziu a categoria pitagorismo aos estreitos limites dessa

doutrina metafiacutesica

418 Orig ldquoPythagoras himself left no developed doctrine on the subject while the Pythagreans of the fifth century did not care to add anything of the sort to the school traditionrdquo Da mesma ideia tambeacutem Gigon (1945 142) 419 Sobre o modelo historiograacutefico agocircnico de Aristoacuteteles cf o que foi dito acima (17)

189

Eacute a partir desse impasse hermenecircutico deixado pela soluccedilatildeo acima isto eacute da in-

venccedilatildeo aristoteacutelica de uma categoria historiograacutefica (ldquoos assim chamados pitagoacutericosrdquo)

e de um denominador comum doutrinaacuterio para esta (ldquotudo eacute nuacutemerordquo) que toma corpo

uma segunda soluccedilatildeo ao problema Essa segunda soluccedilatildeo empreende especificamente

uma reavaliccedilatildeo das fontes pitagoacutericas do seacuteculo V aEC em busca de possiacuteveis referenci-

ais histoacutericos da expressatildeo ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo de Aristoacuteteles

A comeccedilar de uma observaccedilatildeo importante a grande quantidade de referecircncias ao

pitagorismo e agrave teoria dos nuacutemeros em Aristoacuteteles revela um fato inquestionaacutevel Aris-

toacuteteles devia mesmo possuir diversos textos pitagoacutericos por assim dizer na mesa de-

le420 Algumas passagens de Aristoacuteteles sugerem que a certeza com a qual considera

inquestionaacuteveis certas afirmaccedilotildees sobre os pitagoacutericos dependa exatamente do fato de

ele ter acesso a uma suficientemente ampla literatura de autoria deles Eacute o caso da dis-

cussatildeo sobre se os pitagoacutericos considerassem o mundo gerado ou natildeo Aristoacuteteles afir-

ma ser impossiacutevel duvidar disso ldquoSe os pitagoacutericos admitem ou natildeo um processo de

geraccedilatildeo dos entes eternos eacute questatildeo sobre a qual natildeo resta duacutevidardquo (Met 1091a13)421

Da mesma forma demonstra ter absoluta certeza de que os pitagoacutericos natildeo haviam tra-

tado dos corpos sensiacuteveis ldquoNatildeo disseram absolutamente nada sobre o fogo nem sobre a

terra nem sobre os outros corposrdquo (Met 990a16-17)422

Aleacutem disso a tradiccedilatildeo informa-nos que Aristoacuteteles dedicou ao menos dois livros

aos pitagoacutericos como tais sem contar as obras dedicadas especificamente a Pitaacutegoras ou

a um o outro pitagoacuterico especiacutefico como teria sido o caso de Arquitas423 A resposta agrave

pergunta sobre quais seriam esses ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo aos quais Aristoacuteteles

quer atribuir a doutrina dos nuacutemeros depende assim em boa parte da possibilidade de

identificaccedilatildeo desses livros Contudo os uacutenicos livros dos quais temos notiacutecia pela tra-

diccedilatildeo satildeo aqueles de Filolau e Arquitas Como Aristoacuteteles parece tratar deste uacuteltimo agrave

parte e natildeo debaixo do guarda-chuva dos assim chamados o mais provaacutevel eacute que sejam

420 Concordam com isso Burkert (1972 236) Zhmud (1989 281) Huffman (199357) e Centrone (1996105) 421 Orig ldquoοἱ microὲν οὖν Πυθαγόρειοι πότερον οὐ ποιοῦσιν ἢ ποιοῦσι γένεσιν οὐδὲν δεῖ διστάζεινrdquo (Met 1091a13) 422 Orig ldquoδιὸ περὶ πυρὸς ἢ γῆς ἢ τῶν ἄλλων τῶν τοιούτων σωmicroάτων οὐδ ὁτιοῦν εἰρήκασινrdquo (Met 990a16-17) 423 Para ampla discussatildeo dessas obras e todas as referecircncias ao caso cf Burkert (1972 29 n5)

190

exatamente os livros de Filolau os textos pitagoacutericos que estavam na mesa de Aristoacutete-

les

Este segundo caminho de soluccedilatildeo seria representado portanto por Filolau

Eacute o caso de anotar ainda antes de mergulhar naquela que foi tradicionalmente

definida exatamente como ldquoa questatildeo filolaicardquo que natildeo deve maravilhar que natildeo se

chegou antes a essa mesma conclusatildeo metodoloacutegica pela qual a soluccedilatildeo do problema da

atribuiccedilatildeo da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo fosse o estudo dos fragmentos de Filolau Gran-

de parte da tradiccedilatildeo a comeccedilar pelo proacuteprio Cherniss (1935 386) conforme se acenou

acima natildeo pocircde seguir nesse sentido pois na esteira de Frank (1923) considerava os

textos de Filolau espuacuterios Somente a partir da ldquoredescobertardquo do valor de parte essenci-

al dos fragmentos de Filolau jaacute com Burkert (1972 218ss) e depois com Huffman

(1988 1993) eacute que foi possiacutevel trilhar esse caminho

A recente reavaliaccedilatildeo do valor histoacuterico dos fragmentos de Filolau permite por-

tanto novos passos hermenecircuticos anteriormente impossiacuteveis Contudo responder agrave

pergunta sobre quem seriam os pitagoacutericos na obra de Aristoacuteteles com Filolau e portan-

to com o pitagorismo do V seacuteculo aEC continua carregando seacuterias dificuldades para a

identificaccedilatildeo aristoteacutelica dos pitagoacutericos como aqueles pelos quais ldquotudo eacute nuacutemerordquo por

um simples motivo mesmo em Filolau natildeo haacute referecircncia expliacutecita a essa doutrina do

ldquotudo eacute nuacutemerordquo Chegou o momento de entrar finalmente no labirinto da questatildeo filo-

laica (pace Boeckh 1819 3) para avaliar em que medida uma soluccedilatildeo dessa questatildeo

possa se apresentar tambeacutem como soluccedilatildeo para a atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de

alguma teoria numeacuterica

413 A ldquosoluccedilatildeordquo filolaica

A questatildeo da autenticidade dos fragmentos de Filolau questatildeo-chave para a de-

finiccedilatildeo da categoria pitagorismo em geral e da questatildeo da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo de

uma teoria dos nuacutemeros de maneira especial apresenta as mesmas feituras da outra mais

ceacutelebre questatildeo aquela socraacutetica A chamada ldquoquestatildeo filolaicardquo que surge jaacute com Bo-

eckh (1819) compartilha com a mais ceacutelebre ldquoquestatildeo socraacuteticardquo a dificuldade em dis-

tinguir o que seria originalmente preacute-platocircnico (no caso especiacutefico pitagoacuterico) e o que

191

seria ao contraacuterio uma reelaboraccedilatildeo platocircnica ou acadecircmica de doutrinas anteriores424

A soluccedilatildeo da questatildeo filolaica se daraacute como se veraacute na gangorra hermenecircutica entre a

tradiccedilatildeo acadecircmica de um lado e a lectio aristoteacutelica distintas entre si por intenccedilatildeo e

meacutetodos

4131 Um livro ou trecircs livros

O primeiro problema que o comentador encontra para verificar a autentidade dos

fragmentos de Filolau eacute aquele da inconsistecircncia da tradiccedilatildeo sobre a produccedilatildeo literaacuteria

deste uacuteltimo Apesar de certa concordacircncia de que Filolau teria sido o primeiro a publi-

car por escrito as doutrinas pitagoacutericas conforme o testemunho de Demeacutetrio de Magneacute-

sia (D L VIII 84) a tradiccedilatildeo apresenta-nos ao contraacuterio duas diversas possibilidades

aquela da existecircncia de trecircs livros (o celebre tripartium) e a outra que se refere agrave exis-

tecircncia de somente um livro de Filolau

No primeiro caso o testemunho natildeo passa de uma confusatildeo tiacutepica da literatura

pseudoepigraacutefica e de maneira especial pitagoacuterica que remonta a Saacutetiro um peripateacute-

tico do seacuteculo III aEC Filolau eacute citado no interior de uma referecircncia a uma carta de Pla-

tatildeo ldquoPlatatildeo escreveu para Dion para que este comprasse dele [Filolau] os livros pitagoacute-

ricosrdquo (D L VIII 84)425 A referecircncia aqui eacute portanto agraves taacute biacuteblia pythagorikaacute que a

tradiccedilatildeo bem conhece ldquoPitaacutegoras escreveu trecircs obras Sobre a educaccedilatildeo Sobre a poliacuteti-

ca e Sobre a naturezardquo (D L VIII 6) 426

A informaccedilatildeo de que se trata de trecircs livros aparece algumas paacuteginas depois no-

vamente associada agrave figura de Filolau Este eacute considerado ndash de certa forma ndash como o

ldquoeditorrdquo do tripartitum

424 Cf para essa discussatildeo Burkert (1972 92) que afirma que ldquothe true problem of the Pythagorean tra-dition lies in Platonism for Platonizing interpretation took place of the historical realityrdquo da mesma forma Huffman (1993 23) considera que ldquowhat we have is another version of Socratic question but this time in regard to the Pythagoreansrdquo Mais uma vez a escolha platocircnica de natildeo falar em primeira pessoa escondendo-se por traacutes de suas personagens assim como o uso de citar com extrema parcimocircnia seus predecessores joga um papel decisivo para o sugir de uma questatildeo como essa 425 Orig ldquo παρὰ τούτου Πλάτων ὠνήσασθαι τὰ βιβλία τὰ Πυθαγορικὰ ∆ίωνι γράφειrdquo (D L VIII 84) 426 Orig ldquo γέγραπται δὲ τῷ Πυθαγόρᾳ συγγράmicromicroατα τρία ΠαιδευτικόνΠολιτικόν Φυσικόνrdquo (D L VIII 6) Para os testemunhos pseudoepigraacutefico sobre o tripartitum de Pitaacutegoras cf Thesleff (1965 170-172)

192

Ateacute o tempo de Filolau natildeo foi possiacutevel conhecer nenhuma doutrina pitagoacuterica este somente publicou aqueles famosos trecircs livros que Pla-tatildeo por carta mandou dizer que fossem adquiridos pelo preccedilo de cem minas (D L VIII 15)427

A referecircncia agrave carta remete ainda mais fortemente agrave pseudoepigrafia da tradiccedilatildeo

em questatildeo era bastante comum na antiguidade que um texto pseudoepigraacutefico fosse

acompanhado pela correspondecircncia de uma personagem estimada e acima literalmente

de qualquer suspeita que atestasse sua originalidade (Burkert 1972 224)

A tradiccedilatildeo dos trecircs livros de Filolau portanto deve ter derivado erroneamente

dessa memoacuteria paralela que atribuiacutea ao proacuteprio Pitaacutegoras a autoria de trecircs livros E os

motivos para isso natildeo faltavam primeiro entre todos o fato de a tradiccedilatildeo maior ter

sempre identificado contrariamente a D L (VIII 6) que Filolau teria sido o primeiro

escritor do pitagorismo

A partir de Wiersma (1942) portanto surge um novo consenso entre os histori-

adores de que devia tratar-se de um uacutenico livro428 De fato nas paacuteginas imediatamente

sucessivas o proacuteprio Dioacutegenes Laeacutercio usa significativamente a expressatildeo geacutegraphe

bibliacuteon eacuten

Escreveu um soacute livro que ndash conforme atesta Hermipo por sua vez ci-tando outro autor ndash o filoacutesofo Platatildeo tendo chegado na Siciacutelia junto a Dioniso teria comprado dos parentes de Filolau por quarenta minas alexandrinas de prata e que teria copiado no Timeu (D L VIII 85)429

A tradiccedilatildeo de Hermipo parece para todos os efeitos mais antiga Dois detalhes

confirmariam isso primeiramente o fato de natildeo precisar da atestaccedilatildeo de uma carta de

Platatildeo em segundo lugar porque a intenccedilatildeo dessa tradiccedilatildeo eacute alheia agrave proacutepria questatildeo da

autenticidade dos textos Hermipo estava de fato mais interessado em atingir Platatildeo com

a acusaccedilatildeo de plaacutegio de Filolau em seu Timeu do que em vender como originalmente

pitagoacuterico o livro de Filolau Aleacutem disso a tradiccedilatildeo desse mesmo plaacutegio eacute bastante ates-

427 Orig ldquoΜέχρι δὲ Φιλολάου οὐκ ἦν τι γνῶναι Πυθαγόρειον δόγmicroα οὗτος δὲ microόνος ἐξήνεγκε τὰ διαβό-ητα τρία βιβλία ἃ Πλάτων ἐπέστειλεν ἑκατὸν microνῶν ὠνηθῆναιrdquo (D L VIII 15) Cf tambeacutem a passagem paralela de Jacircmblico (VP 199) 428 Sendo neste seguido entre outros por Maddalena (1954 169) Philip (1966 41) Burkert (1972 225) Huffman (1993 26) Centrone (1996 119) 429 Orig ldquo Γέγραφε δὲ βιβλίον ἕν ὅ φησιν Ἕρmicroιππος λέγειν τινὰ τῶν συγγραφέων Πλάτωνα τὸν φιλόσο-φον παραγενόmicroενον εἰς Σικελίαν πρὸς ∆ιονύσιον ὠνήσασθαι παρὰ τῶν συγγενῶν τοῦ Φιλολάου ἀργυρίου Ἀλεξανδρινῶν microνῶν τετταράκοντα καὶ ἐντεῦθεν microεταγεγραφέναι τὸν Τίmicroαιονrdquo (D L VIII 85)

193

tada nas fontes antigas430 Um verso satiacuterico do amargurado (amarulentus) Tiacutemon con-

firma a existecircncia da tradiccedilatildeo sobre o plaacutegio

Tu tambeacutem Platatildeo foste tomado pelo prurido do saber E deste muito dinheito em troca de um pequeno livreto E escolhendo a parte melhor aprendeste a escrever o Timeu (44 A8 DK Gell III 17 6)431

A acusaccedilatildeo contra Platatildeo de toda forma e com testemunhos externos como a-

quele de Timon agora citado pressupotildee a existecircncia senatildeo do plaacutegio ao menos do livro

de Filolau E ainda que natildeo tenha sido comprado pelo proacuteprio Platatildeo este livro devia

estar de alguma forma em Atenas agrave disposiccedilatildeo tanto de Platatildeo quanto de Aristoacuteteles432

Haacute ateacute uma confirmaccedilatildeo documental disso que vem da descoberta em 1893 do

papiro catalogado como Anocircnimo Londinense (44 A27-28 DK) O texto eacute atribuiacutedo ao

disciacutepulo de Aristoacuteteles Mecircnon e apresenta extratos de doutrinas meacutedicas atribuiacutedas a

Filolau

Filolau de Crotona afirma que nosso corpo eacute constituiacutedo de calor Que este natildeo participe do frio induz-se de certos fatos como os seguintes o esperma que possui a propriedade de produzir o ser vivente eacute quente [] O desejo do ar externo nasce exatamente dessa necessidade que o nosso corpo sendo demasiadamente quente inspirando-o se esfrie ao contato com este [] As doenccedilas satildeo geradas ou pela biacutelis ou pelo sangue ou pelo catarro estas satildeo as causas do surgimento das doenccedilas (44 A27 DK)433

430 Pela verdade a tradiccedilatildeo dos plaacutegios de Platatildeo eacute realmente bastante extensa Cf para isso a longa seccedilatildeo dedicada agraves acusaccedilotildees de plaacutegios em D L III 9-18 Para recente discussatildeo da questatildeo cf Brisson (2000b 35-45) 431 Orig ldquo καὶ σὺ Πλάτων καὶ γάρ σε microαθητείης πόθος ἔσχεν πολλῶν δ ἀργυρίων ὀλίγην ἠλλάξαο βίβλον ἔνθεν ἀπαρχόmicroενος τιmicroαιογραφεῖν ἐδιδάχθηςrdquo (44 A8 DK) A mesma tradiccedilatildeo eacute lembrada por Jacircmblico em sua Introduccedilatildeo agrave aritmeacutetica de Nicocircmaco (105) que menciona o livro como sendo de auto-ria de Timeu de Loacutecres Para recente ediccedilatildeo criacutetica do livro cf Marg (1972) 432 Huffman (1993 30) sugere para defender a autenticidade do livreto das possiacuteveis suspeitas de ele proacuteprio ser um falso acadecircmico que a referecircncia de Timon agrave pequenez do livro de Filolau indicaria com maior razatildeo uma origem preacute-socraacutetica deste pois os livros dos preacute-socraacuteticos seriam todos de fato de reduzidas dimensotildees A sugestatildeo natildeo convence totalmente pois natildeo eacute evidente o que deva ser compreen-dido como um livro de pequenas dimensotildees no IV seacuteculo aEC 433 Orig ldquo Φ δὲ Κροτωνιάτης συνεστάναι φησὶν τὰ ἡmicroέτερα σώmicroατα ἐκ θερmicroοῦ ἀmicroέτοχα γὰρ αὐτὰ εἶναι ψυχροῦ ὑποmicroιmicroνήσκων ἀπό τινων τοιούτων τὸ σπέρmicroα εἶναι θερmicroόν κατασκευαστικὸν δὲ τοῦτο τοῦ ζώιου [] διὰ τοῦτο δὴ καὶ ὄρεξις τοῦ ἐκτὸς πνεύmicroατος ἵνα τῆι ἐπεισάκτωι τοῦ πνεύmicroατος ὁλκῆι θερmicroό-τερα ὑπάρχοντα τὰ ἡmicroέτερα σώmicroατα πρὸς αὐτοῦ καταψύχηται[] λέγει δὲ γίνεσθαι τὰς νόσους διά τε χολὴν καὶ αἷmicroα καὶ φλέγmicroα ἀρχὴν δὲ γίνεσθαι τῶν νόσων ταῦταrdquo (44 A27 DK)

194

A descriccedilatildeo detalhada do pensamento meacutedico de Filolau que as passagens do

papiro aqui citadas reproduzem pressupotildee evidentemente uma fonte escrita por traacutes

deste434 E certamente eacute o caso de notar que a terminologia meacutedica natildeo estaacute ausente do

Timeu de Platatildeo (Burkert 1972 227) Dessa forma a prova material que o papiro repre-

senta pode ainda ser aproximada agrave tradiccedilatildeo da acusaccedilatildeo do plaacutegio platocircnico tornando-a

com isso ainda mais confiaacutevel

4132 Autenticidade dos fragmentos de Filolau

Ainda que esteja razoavalmente comprovada a probabilidade da existecircncia de

um soacute livro de Filolau contudo a questatildeo filolaica estaacute longe de ser resolvida Esta sofre

dos mesmos problemas historiograacuteficos que acompanham a questatildeo das fontes de toda a

literatura pitagoacuterica antiga Acontece algo contraacuterio ao que ocorre normalmente na criacuteti-

ca da tradiccedilatildeo parte-se em geral do pressuposto de que tudo esteja falso e o ocircnus da

prova fica por conta de quem deseja defender a autenticidade de um ou outro texto435

De fato diversos comentadores anotam ceticamente (e com uma ponta de cinis-

mo metodoloacutegico) que a existecircncia de um uacutenico livro seria mais um motivo para consi-

derar todos os fragmentos de Filolau como espuacuterios A argumentaccedilatildeo chega a ser sim-

ploacuteria se somente um livro de Filolau existiu por consequecircncia todos os fragmentos a

ele atribuiacutedos deveratildeo pertencer a esse mesmo livro O pressuposto metodoloacutegico dessa

argumentaccedilatildeo encontra refuacutegio na observaccedilatildeo inaugural de Boeckh (1819 38) pela qual

ldquonatildeo resta outra soluccedilatildeo senatildeo aquela de reconhecer que tudo o que temos [de Filolau] eacute

genuiacuteno ou de rejeitar tudo como espuacuteriordquo436 Ainda que Boeckh seja aqui utilizado para

rejeitar tudo como espuacuterio ao contraacuterio da soluccedilatildeo proposta por ele mesmo

A consequecircncia deste aut-aut eacute desastrosa uma seacuterie de comentadores saiu em

busca de trecircs ou quatro passagens evidentemente espuacuterias no interior das cerca de 15

paacuteginas da coleccedilatildeo dielsiana dos fragmentos filolaicos para ndash como se diria em bom

portuguecircs ndash jogar fora a crianccedila com a aacutegua suja Eacute certamente o caso de Bywater 434 Satildeo desta ideia diversos comentadores desde Wilamowitz (1920 II 88) ateacute Huffman (1993 30) e Centrone (1996 120) 435 Cf Burkert (1972 218) e Huffman (1993 18) 436 Orig ldquoSo bleibt nichts uumlbrig als alles Vorhandene zusammen als aumlcht anzuerkennen oder als unaumlcht zu verwerfenrdquo

195

(1868 52) e de Burnet (1908 283) que ao tratarem da impossibilidade do fr 12 ser

autecircntico tentam mostrar sua continuidade linguiacutestica e temaacutetica com os outros frag-

mentos com a intenccedilatildeo de demonstrar a contaminaccedilatildeo de todos O fragmento em ques-

tatildeo (44 B12 DK) refere-se de fato aos ldquocinco soacutelidos regularesrdquo que teriam sido poreacutem

uma ldquodescobertardquo somente acadecircmica (cf Resp VII 528b) E todavia esta uacutenica ob-

servaccedilatildeo natildeo autoriza Burnet a concluir que seja ldquojustificaccedilatildeo suficiente para tratarmos

os lsquofragmentos de Filolaursquo como algo bastante suspeitordquo (1908 329)437

A argumentaccedilatildeo desses comentadores natildeo procede fundamentalmente porque

parece esquecer estrateacutegicamente que depois do livro de Filolau haacute um enorme esforccedilo

de falsificaccedilatildeo de toda a tradiccedilatildeo pitagoacuterica que corresponde ao periacuteodo pseudoepigraacutefi-

co a coleccedilatildeo de Thesleff (1965) conta com cerca de duzentas paacuteginas desses textos

Diante portanto dessa luxuriosa tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica ndash o termo eacute de Huffman

(1993 27) ndash seria estranho que Filolau tivesse ficado imune a ela438

Haacute portanto seacuterios motivos para enfrentar atentamente a questatildeo da produccedilatildeo

literaacuteria pseudoepigraacutefica que marca sensivelmente as fontes pitagoacutericas mais antigas

Ainda que Burkert natildeo esteja totalmente desprovido de razatildeo quando afirma que no

caso de Filolau o trabalho pseudoepigraacutefico natildeo fazia muito sentido pois se tratava de

uma personagem muito pouco conhecida de fato natildeo seria lectio facilior imaginar que a

platonizaccedilatildeo acadecircmica da literatura pitagoacuterica antiga que marca a pseudoepigrafia de

eacutepoca heleniacutestica tenha poupado somente Filolau Eacute certamente o caso de concordar

com Burkert (1972 228-229) que as informaccedilotildees que possuiacutemos sobre Filolau natildeo es-

tatildeo associadas normalmente a um corpo de lendas ou anedotas (como eacute o caso do proacute-

prio Pitaacutegoras e de outros pitagoacutericos) e sim a uma doxografia mais comum entre os

preacute-socraacuteticos que eacute aquela do modelo mestre-disciacutepulo o nome dele estaacute frequente-

mente associado agravequele de Eurito e Arquitas sendo os trecircs disciacutepulos imediatos de Pitaacute-

goras como eacute o caso do jaacute citado cataacutelogo de Jacircmblico (Iambl VP 267) Filolau eacute dito

437 Orig ldquoThis sufficiently justifies us in regarding the lsquofragments of Philolaosrsquo with something more than suspicionrdquo

438 Huffman (1993 27) anota significativamente que o caso de Arquitas eacute paradigmaacutetico neste sentido ldquothere are forty-six pages of spourius fragments of Arquitas in Thesleffacutes collection (1965 2-48) in com-parision with eight short pages of fragments likely to be authentic in DKrdquo O nuacutemero de textos pseudoe-pigraacuteficos referidos aos pitagoacutericos eacute imensamente superior agravequele do conjunto de textos pseudoepigraacutefi-cos atribuiacutedos a outros preacute-socraacuteticos Eacute este mais um sinal da expansatildeo da tradiccedilatildeo de zelleriana memoacute-ria acima mencionada

196

tambeacutem ter sido mestre de Demoacutecrito (D L Vitae IX 38) As formas dessa tradiccedilatildeo

portanto permitem ao menos concluir que uma apropriaccedilatildeo pseudoepigraacutefica tardia do

livro de Filolau como um todo natildeo seria a lectio mais provaacutevel Ainda que natildeo se exclua

a eventualidade de achar seus sinais

Consequecircncia das observaccedilotildees acima eacute portanto que a uacutenica possiacutevel soluccedilatildeo

da questatildeo filolaica eacute aquela que obriga a um cuidadoso trabalho de peneira de cada um

dos fragmentos em busca de comprovar caso a caso sua autenticidade ou menos

Contudo antes de empreender essa avaliaccedilatildeo mais fina eacute certamente o caso de

perguntar-se sobre os motivos e as modalidades das falsificaccedilotildees pseudoepigraacuteficas he-

leniacutesticas pois estas jogaratildeo um papel essencial no processo de avaliaccedilatildeo dos fragmen-

tos de Filolau que se seguiraacute imediatamente a esta discussatildeo

4133 A tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica doacuterica

Graccedilas ao enorme trabalho de coleccedilatildeo dessas tradiccedilotildees por obra de Thesleff

(1965) eacute hoje possiacutevel ter uma ideia mais precisa dos processos de formaccedilatildeo desse va-

riado corpus de obras atribuiacutedas falsamente a Pitaacutegoras e a outros pitagoacutericos A eco-

nomia destas paacuteginas natildeo permite obviamente adentrar em uma questatildeo tatildeo complexa

como aquela da formaccedilatildeo da tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica pitagoacuterica como um todo Eacute o

caso de remeter para isso de um lado aos estudos ainda insuperados do jaacute citado Thes-

leff (1961 1965) do outro ao percurso historiograacutefico desses estudos que chega ateacute o

neoplatonismo magistralmente descrito por OrsquoMeara (1989)

Contudo eacute necessaacuterio ao menos anotar duas caracteriacutesticas dessas ldquofalsifica-

ccedilotildeesrdquo ambas centrais para a avaliccedilatildeo dos fragmentos de Filolau

A primeira eacute aquela do uso do dialeto doacuterico que acomuna praticamente toda a

coleccedilatildeo Thesleff cunha para isso a expressatildeo ldquodoacuterico pitagoacutericordquo pois o uso desse

dialeto arcaico ldquoreflete uma especiacutefica maneira de escrever prosa que eacute realmente tenta-

dor fazer derivar em uacuteltima anaacutelise de Arquitasrdquo (Thesleff 1961 92)439 Se o uso artifi-

cial do doacuterico como arcaiacutesmo linguiacutestico desempenha papel fundamental na estrateacutegia

de falsificaccedilatildeo as tentativas criacuteticas de desvendaacute-la se utilizaratildeo da mesma estrateacutegia

439 Orig ldquoIt reflects a specific manner of writing prose which it is very tempting indeed to derive ulti-mately from Arquitasrdquo

197

portanto ainda que em sentido contraacuterio Uma questatildeo sensiacutevel para a argumentaccedilatildeo

destas paacuteginas eacute que tambeacutem os fragmentos de Filolau foram escritos em doacuterico Toda-

via esse natildeo pode ser motivo para consideraacute-los per se pseudoepigraacuteficos pois ateacute o

fim do V seacuteculo aEC o doacuterico eacute um dialeto ainda amplamente utilizado Prova disso eacute

que o utilizam tanto Arquitas quanto o meacutedico Acron de Acragas assim como os orado-

res Tiacutesias e Corax440

A segunda caracteriacutestica desse corpus talvez a mais importante eacute a presenccedila

nos textos pseudoepigraacuteficos de conceitos que dependem diretamente das filosofias de

Platatildeo e Aristoacuteteles De fato as fontes acadecircmicas desde o comeccedilo revelam clara ten-

decircncia em identificar grande parte das doutrinas platocircnicas como originaacuterias de Pitaacutego-

ras (Burkert 1972 92-93) Heidel (1940 7) em sua histoacuteria da matemaacutetica grega revela

ser quase imposssiacutevel verificar o que seja pitagoacuterico e o que seja platocircnico nas fontes

antigas sobre a matemaacutetica441 Tambeacutem Aristoacuteteles afirma que a filosofia de Platatildeo se-

gue em muitos pontos aquela dos pitagoacutericos e apresenta-se basicamente como uma

siacutentese entre Soacutecrates e Pitaacutegoras (Met 987a29)442

Natildeo por acaso a Vida de Pitaacutegoras que Foacutecio reproduz em sua Biblioteca reve-

lando uma intenccedilatildeo genealoacutegica tambeacutem tiacutepica do tardo platonismo coloca Platatildeo como

nono sucessor de Pitaacutegoras e Aristoacuteteles como deacutecimo ldquoPlatatildeo tornou-se conforme

dizem o nono diaacutedoco de Pitaacutegoras ele que havia sido disciacutepulo do mais velho Arqui-

tas e Aristoacuteteles foi o deacutecimordquo (Phot Bibl 249438b16-17)443

Todavia com a guinada ceacutetica da Academia de meio encabeccedilada por Arcesilau

a tradiccedilatildeo platocircnica acaba por identificar-se mais com o lado socraacutetico e Pitaacutegoras tor-

440 Cf para as referecircncias Burkert (1972 222) Burnet (1908 327) por sua vez considerava impossiacutevel que Filolau tivesse escrito em doacuterico ldquoIs it likely that Philolaos should have written in Doric Ionic was the dialect of all science and philosophy till the time of the Peloponnesian War and there is no reason to suppose that the early Pythagoreans used any otherrdquo apesar de demonstrar conhecer a opiniatildeo de Diels pela qual Filolau e Arquitas teriam sido os primeiros a escrever no dialeto das colocircnias da Magna Greacutecia que os acolheram Huffman (1993 27 n13) reproduzindo os argumentos de Burkert considera de fato o argumento de Burnet insuficiente 441 Cf Heidel (1940 7) ldquoit is difficult if not impossible for the most part to distinguish what is platonic and what is Pythagoreanrdquo 442 Ainda que Aristoacuteteles distancie-se do processo de identificaccedilatildeo absoluta entre pitagorismo e platonis-mo no caso em que por exemplo faz derivar a teoria das formas de Craacutetilo e Soacutecrates De fato como se veraacute a platonizaccedilatildeo do pitagorismo desenvolve-se em sentido contraacuterio a esta lectio aristoteacutelica que estaacute mais interessada em distinguir do que em aproximar 443 Orig ldquoὍτι ἔνατος ἀπὸ Πυθαγόρου διάδοχος γέγονε φησι Πλάτων Ἀρχύτου τοῦ πρεσβυτέρου microαθη-τὴς γενόmicroενος δέκατος δὲ Ἀριστοτέληςrdquo (Phot Bibl 249438b16-17) Burkert (1972 53) anota que a autoria da obra pode ser do proacuteprio Eudoro

198

na-se ao mesmo tempo um problema e a soluccedilatildeo de outro444 De fato ao mesmo tempo

em que a influecircncia de Pitaacutegoras eacute negada para definir uma tradiccedilatildeo menos dogmaacutetica

do platonismo o proacuteprio Pitaacutegoras eacute utilizado para que seja atribuiacuteda a ele aquela parte

da doutrina platocircnica que por ser demasiadamente metafiacutesica e matemaacutetica natildeo era

mais o caso de atribuir ao proacuteprio Platatildeo

Em contrapartida a reaccedilatildeo ao ceticismo que comeccedila a ser esboccedilada com a che-

gada do dogmaacutetico Antiacuteoco de Aacutescalon que inaugura uma nova mudanccedila de rumo na

Academia inspirou certamente as acusaccedilotildees de plaacutegio contra Platatildeo entre elas certa-

mente a que se viu anteriormente em relaccedilatildeo ao livro de Filolau Em sentido contraacuterio

portanto e quiccedilaacute mais proacuteximo da visatildeo da primeira Academia de Espeusipo e Xenoacutecra-

tes os acadecircmicos partidaacuterios da influecircncia pitagoacuterica sobre Platatildeo acabam por atribuir

a todos os representantes da filosofia platocircnica incluindo neles obviamente tambeacutem

Soacutecrates e Aristoacuteteles uma apropriaccedilatildeo fraudulenta da doutrina de Pitaacutegoras445

Eacute esta a polecircmica que envolve ainda o neoplatonismo de Numecircnio de Apameacuteia

e depois de Porfiacuterio e Jacircmblico Os trecircs ainda que com intensidades diferentes decla-

ram querer reestabelecer o verdadeiro Platatildeo purificando-o de todas as sobreposiccedilotildees

doutrinaacuterias de Aristoacuteteles e dos estoicos446 O tiacutetulo da obra de histoacuteria da filosofia pla-

tocircnica escrita por Numecircnio eacute significativo do clima polecircmico da questatildeo Sobre a dis-

cordacircncia entre os acadecircmicos e Platatildeo Sua conclusatildeo eacute simplesmente que o verdadei-

ro platonismo eacute pitagorismo (fr 24 73-79) contra o que os ldquoacadecircmicosrdquo por ele iden-

tificados simplesmente com os ceacuteticos andavam afirmando447 Ecos dessa polecircmica

aparecem tambeacutem em Porfiacuterio que afunda a faca contra a tradiccedilatildeo platocircnica acusando-

a de plaacutegio e de maacute-feacute por ter estabelecido uma histoacuteria do pitagorismo diretamente

intencionada a ridicularizaacute-lo

Os escritos satildeo em doacuterico e esse dialeto possui algo de pouco claro exatamente por esse motivo tambeacutem as doutrinas que este investigava foram suspeitas de serem apoacutecrifas e fruto de desentendimentos pois

444 Cf para isso Dillon (1977) Leszl (1981) e Isnardi-Parente (1989) Para recente discussatildeo desta guina-da ceacutetica da Academia de meio veja-se o Epiacutelogo do excelente estudo sobre a heranccedila platocircnica de Dillon (2003 234ss) 445 Cf tambeacutem os argumentos nesse sentido de Centrone (2000 155) 446 Burkert pode assim concluir que ldquoone might therefore define later Pythagoreanism as Platonism with the Socratic and dialectic element amputatedrdquo (Burkert 1972 96) 447 Cf para isso OacuteMeara (1989 10-14)

199

natildeo teriam sido pitagoacutericos ortodoxos os que as divulgavam Aleacutem disso Platatildeo Aristoacuteteles Espeusipo Aristoxeno e Xenoacutecrates pelo que diziam os pitagoacutericos apropriaram-se com pequenas modifica-ccedilotildees das doutrinas frutiacuteferas enquanto teriam recolhido e compilado como doutrinas especiacuteficas da filosofia pitagoacuterica tudo quanto havia de ridiacuteculo e supeacuterfluo e tudo aquilo que posteriormente os caluniado-res haviam apresentado para refutar e denegrir a escola (Porph VP 53)448

A passagem reivindica assim uma identidade doutrinaacuteria pitagoacuterica em aberta

polecircmica com a tradiccedilatildeo tanto acadecircmica quanto peripateacutetica Os pitagoacutericos aqui refe-

ridos foram identificados com a vertente neopitagoacuterica representada mais especifica-

mente por Moderato de Gades449 A literatura pitagoacuterica pseudoepigraacutefica heleniacutestica

portanto deveraacute ser compreendida no interior dessa polecircmica intra-acadecircmica que se

estende ateacute agrave eacutepoca imperial450 A presenccedila de diversos conceitos e temaacuteticas que pres-

supotildeem portanto natildeo somente Platatildeo mas mesmo Espeusipo ou Teofrasto natildeo devem

maravilhar451

Nessa reconstruccedilatildeo platocircnico-pitagorizante da filosofia dos ldquoantigosrdquo a descri-

ccedilatildeo que Aristoacuteteles no seacuteculo IV aEC faz do pitagorismo natildeo encontra eco algum Ao

contraacuterio a tradiccedilatildeo neoplatocircnica conta diversas acusaccedilotildees contra a lectio de Aristoacutete-

les Siriano e Proclo acusam abertamente Aristoacuteteles de distorccedilatildeo do pensamento dos

pitagoacutericos (Syrian In Met 80 22 Procl In Tim 1 16 29) Especialmente significativo

eacute um texto pseudoepigraacutefico atribuiacutedo a Teano esposa e disciacutepula de Pitaacutegoras

Soube que muitos dos gregos supuseram que Pitaacutegoras teria dito que tudo vem do nuacutemero Essa afirmaccedilatildeo contudo revela uma aporia como de fato algo que nem sequer existe eacute concebido como genitor

448 Orig ldquo τὰ γεγραmicromicroένα δωριστὶ γεγράφθαι ἐχούσης τι καὶ ἀσαφὲς τῆς διαλέκτου καὶ microηδὲν διὰ τοῦτο ὑπονοεῖσθαι καὶ τὰ ὑπαὐτῆς ἀνιστορούmicroενα δόγmicroατα ὡς νόθα καὶ παρηκουσmicroένα τῷ microὴ ἄντικρυς Πυθα-γορικοὺς εἶναι τοὺς ἐκφέροντας ταῦτα πρὸς δὲ τούτοις τὸν Πλάτωνα καὶ Ἀριστοτέλη Σπεύσιππόν τε καὶ Ἀριστόξενον καὶ Ξενοκράτη ὡς φασὶν οἱ Πυθαγόρειοι τὰ microὲν κάρπιmicroα σφετερίσασθαι διὰ βραχείας ἐπισκευῆς τὰ δ ἐπιπόλαια καὶ ἐλαφρὰ καὶ ὅσα πρὸς διασκευὴν καὶ χλευασmicroὸν τοῦ διδασκαλείου ὑπὸ τῶν βασκάνως ὕστερον συκοφαντούντων προβάλλεται συναγαγεῖν καὶ ὡς ἴδια τῆς αἱρέσεως καταχωρίσαιrdquo (Porph VP 53) 449 Concordam com esta atribuiccedilatildeo Dillon (1977 346) e Isnardi-Parente (Speusippo 1980 237-238) Contraacuterios Burkert (1972 95) e OacuteMeara (1989 11 n8) 450 Cf Centrone (2000) para ampla resenha da recepccedilatildeo do pitagorismo no platonismo de eacutepoca imperial 451 Para mais precisa avaliaccedilatildeo da influecircncia das tradiccedilotildees acadecircmica e peripateacutetica mais antigas sobre a literatura pseudoepigraacutefica pitagoacuterica ndash com relativas fontes ndash cf Thesleff (1965) mas tambeacutem Burkert (1972 83-96) Huffman (1993 21) anota com razatildeo que ldquoeven if the forgeries do not arise among the Neoplatonists the Neoplatonic attitude towards Pythagoras and hence the motive for forgeries could go back much earlierrdquo

200

Mas ele natildeo disse que todas as coisas vecircm dos nuacutemeros e sim con-forme os nuacutemeros Pois no nuacutemero daacute-se a primeira ordenaccedilatildeo de fato graccedilas a sua presenccedila na comunhatildeo das coisas que podem ser conta-das algo toma seu lugar como primeiro outra coisa como segundo e em seguida todos os outros (Thesleff 1965 Stob I 10 13)452

Teano nega assim a doutrina dos nuacutemeros como princiacutepios atribuindo-a a ldquomui-

tos dos gregosrdquo ainda que isso signifique fundamentalmente Aristoacuteteles453 A estrateacutegia

de colocar essa negaccedilatildeo na boca da proacutepria esposa de Pitaacutegoras obedece a uma bem

precisa estrateacutegia parecida com aquela da falsificaccedilatildeo da carta de Platatildeo acima citada

de fornecer autenticidade para aquilo que natildeo a tem

A tematizaccedilatildeo da diferenccedila da lectio aristoteacutelica em relaccedilatildeo ao onipresente ldquosis-

tema de derivaccedilatildeordquo da tradiccedilatildeo platocircnica permite voltar novamente agrave questatildeo filolai-

ca454 Eacute exatamente essa diferenccedila a tornar-se uma alavanca hermenecircutica para a ques-

tatildeo pois se esta eacute verdadeira como se demonstraraacute a proximidade dos fragmentos atri-

buiacutedos a Filolau com a lectio aristoteacutelica dos assim chamados pitagoacutericos se tornaraacute um

sinal inequiacutevoco de sua autenticidade

Eacute agrave modalidade dessa distinccedilatildeo que Aristoacuteteles opera entre pitagorismo antigo e

recepccedilatildeo platocircnica e acadecircmica deste que se deveraacute entatildeo prestar toda a atenccedilatildeo

414 A exceccedilatildeo aristoteacutelica (Met A 6 987b)

Aristoacuteteles de fato se por um lado aproxima pitagorismo e platonismo em rela-

ccedilatildeo agrave teoria das formas por outro lado distingue sem alguma possibilidade de duacutevida o

pitagorismo do platonismo em ao menos duas questotildees centrais natildeo somente para a

histoacuteria do platonismo mas tambeacutem para a discussatildeo que estas paacuteginas empreendem

considerando a concepccedilatildeo pitagoacuterica dos nuacutemeros As duas questotildees estatildeo articuladas

em ceacutelebre paacutegina da Metafiacutesica de Aristoacuteteles que por esse motivo seraacute preciso anali-

452 Orig ldquo Καὶ συχνοὺς microὲν Ἑλλήνων πέπυσmicroαι νοmicroίσαι φάναι Πυθαγόραν ἐξ ἀριθmicroοῦ πάντα φύεσθαι Οὗτος δὲ ὁ λόγος ἀπορησίας ἔχεται πῶς ἃ microηδὲ ἔστιν ἐπινοεῖται καὶ γεννᾶν ὃ δὲ οὐκ ἐξ ἀριθmicroοῦ ltκατὰgt δὲ ἀριθmicroὸν ἔλεγε πάντα γίγνεσθαι ὅτι ἐν ἀριθmicroῷ τάξις πρώτη ἧς microετουσίᾳ κἀν τοῖς ἀριθmicroητοῖς πρῶτόν τι καὶ δεύτερον καὶ τἄλλα ἑποmicroένως τέτακταιrdquo (Thesleff 1965 Stob I 10 13) 453 O termo γεννᾶν poderia ser uma referecircncia direta agrave paacutegina de Aristoacuteteles que fala da γένεσιν ποιεῖν ἀϊδίων ὄντων dos pitagoacutericos em Met 1091a12 Cf Burkert (1972 61) 454 A expressatildeo eacute de Gompertz (apud Burkert 1972 17)

201

sar antes de dedicar-se finalmente aos fragmentos de Filolau Trata-se mais precisamen-

te da paacutegina 987b

O argumento inicia-se com a jaacute amplamente citada questatildeo da discordacircncia dos

pitagoacutericos com Platatildeo a respeito do papel dos nuacutemeros na existecircncia das coisas sensiacute-

veis Aristoacuteteles exclui veementemente que os pitagoacutericos concordem com o papel de

meacutethexis atribuiacutedo aos nuacutemeros por este uacuteltimo A precisaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que o

conceito de miacutemesis seria o mais adequado para representar a doutrina pitagoacuterica intro-

duz uma mais precisa articulaccedilatildeo das diferenccedilas entre pitagoacutericos e Platatildeo que leva agraves

duas questotildees centrais a primeira delas diz respeito ao lugar ontoloacutegico dos nuacutemeros a

segunda agrave concepccedilatildeo do um

Assim inicia a paacutegina em questatildeo

Depois das filosofias mencionadas surgiu a doutrina de Platatildeo que em muitos pontos segue a dos pitagoacutericos mas apresenta tambeacutem ca-racteriacutesticas proacuteprias estranhas agrave filosofia dos itaacutelicos (Met 987a29-31)455

Aristoacuteteles inicia reconhecendo mais uma vez a analogia entre o procedimento

platocircnico da reduccedilatildeo aos princiacutepios e o procedimento pitagoacuterico da reduccedilatildeo da realidade

aos nuacutemeros Ainda que como visto anteriormente mudem os termos para a descriccedilatildeo

dessa relaccedilatildeo entre as formasnuacutemeros e os entes sensiacuteveis ndash miacutemesis para os pitagoacuteri-

cos metheacutexis para Platatildeo (Met 987b11-12) ndash a analogia continua procedente no interi-

or da doxografia aristoteacutelica De fato se os pitagoacutericos satildeo ditos ldquoacreditarem que os

princiacutepios [das matemaacuteticas] sejam os princiacutepios de todos os seresrdquo (Met 985b25)456

analogamente a Platatildeo eacute atribuiacutedo um processo de reduccedilatildeo das formas que satildeo causas

da realidade material a ulteriores princiacutepios Aristoacuteteles chama estes de elementos de

stoicheiacutea Os elementos seriam assim na linguagem aristoteacutelica causas daquilo que

existe

455 Orig ldquoΜετὰ δὲ τὰς εἰρηmicroένας φιλοσοφίας ἡ Πλάτωνος ἐπεγένετο πραγmicroατεία τὰ microὲν πολλὰ τούτοις ἀκολουθοῦσα τὰ δὲ καὶ ἴδια παρὰ τὴν τῶν Ἰταλικῶν ἔχουσα φιλοσοφίανrdquo (Met 987a29-31) Para dife-rente interpretaccedilatildeo da passagem que tende a diminuir a lectio aristoteacutelica da influecircncia dos pitagoacutericos sobre Platatildeo cf Huffman (2008 223) O argumento do autor estaacute fundamentado na ideia de que o τούτο-ις da passagem acima natildeo se refira aos pitagoacutericos ndash conforme a lectio maior ndash e sim a todos os outros predecessores (τῶν πρότερον) mencionados nas linhas imediatamente anteriores (Met 987a28) 456 Orig ldquo ἐντραφέντες ἐν αὐτοῖς τὰς τούτων ἀρχὰς τῶν ὄντων ἀρχὰς ᾠήθησαν εἶναι πάντωνrdquo (Met 985b 25)

202

De fato posto que as formas satildeo causas de outras coisas Platatildeo consi-derou os elementos constitutivos das formas como os elementos de to-dos os seres Como elemento material das formas ele punha o grande e o pequeno e como causa formal o Um de fato considerava que as formas e os nuacutemeros derivassem por participaccedilatildeo do grande e do pe-queno no Um (Met 987b18-22)457

A paacutegina em questatildeo gerou muita polecircmica entre os comentadores A doutrina

dos princiacutepios aqui atribuiacuteda a Platatildeo natildeo parece encontrar eco imediato nas paacuteginas

escritas de seus diaacutelogos Isso levou uma jaacute consolidada tradiccedilatildeo hermenecircutica a consi-

derar a possibilidade da existecircncia de agrapha dogmata de ensinamentos orais esoteacuteri-

cos de Platatildeo dos quais essa paacutegina aristoteacutelica seria certamente um dos testemunhos

mais relevantes458

O que interessa aqui todavia eacute mais simplesmente anotar que Aristoacuteteles nos

termos de sua proacutepria filosofia (aitiacuteai stoicheiacutea) estaacute comparando pitagoacutericos e Platatildeo

e achando profundas analogias em seus sistemas ontoloacutegicos Nas linhas imediatamente

sucessivas a analogia eacute assim resumida

Quanto agrave afirmaccedilatildeo de que o Um eacute substacircncia e natildeo algo diferente da-quilo a que se predica Platatildeo aproxima-se muito dos pitagoacutericos e como os pitagoacutericos considera os nuacutemeros como causa da substacircncia das outras coisas (Met 987b22-25)459

Agrave afirmaccedilatildeo dessa analogia todavia conforme foi acenado acima segue no tex-

to aristoteacutelico a observaccedilatildeo de uma profunda diferenccedila entre as duas doutrinas

Entretanto eacute peculiar a Platatildeo o fato de ter posto no lugar do ilimitado entendido como Um uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como derivado do grande e do pequeno Platatildeo aleacutem disso situa os nuacutemeros fora dos sensiacuteveis enquanto os pitagoacutericos sustentam que os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas e natildeo afirmam os entes matemaacuteticos

457 Orig ldquo ἐπεὶ δ αἴτια τὰ εἴδη τοῖς ἄλλοις τἀκείνων στοιχεῖα πάντων ᾠήθη τῶν ὄντων εἶναι στοιχεῖα ὡς microὲν οὖν ὕλην τὸ microέγα καὶ τὸ microικρὸν εἶναι ἀρχάς ὡς δ οὐσίαν τὸ ἕν ἐξ ἐκείνων γὰρ κατὰ microέθεξιν τοῦ ἑνὸς [τὰ εἴδη] εἶναι τοὺς ἀριθmicroούςrdquo (Met 987b18-22) 458 Natildeo eacute certamente possiacutevel e oportuno adentrar aqui nesta vexata quaestio que tanta polecircmica suscitou nos uacuteltimos anos A posiccedilatildeo esoteacuterica eacute defendida pela assim chamada Escola de Tuumlbingen-Milatildeo Cf para isso Kraumlmer (1959) Gaiser (1963) Szlezaacutek (1985) Reale (1991) Do outro lado com posiccedilotildees ceacuteticas em graus diferentes Cherniss (1945) Vlastos (1963) e Isnardi-Parente (1977) Para resenha mais recente desta questatildeo cf Trabattoni (1999 e 2005) 459 Orig ldquo τὸ microέντοι γε ἓν οὐσίαν εἶναι καὶ microὴ ἕτερόν γέ τι ὂν λέγεσθαι ἕν παραπλησίως τοῖς Πυθαγορε-ίοις ἔλεγε καὶ τὸ τοὺς ἀριθmicroοὺς αἰτίους εἶναι τοῖς ἄλλοις τῆς οὐσίας ὡσαύτως ἐκείνοιςrdquo (Met 987b22-25)

203

como intermediaacuterios entre aqueles e estas O fato de ter posto o Um e os nuacutemeros fora das coisas agrave diferenccedila dos pitagoacutericos e tambeacutem o ter introduzido as formas foram as consequecircncias da investigaccedilatildeo fun-dada nas puras noccedilotildees que eacute proacutepria de Platatildeo pois os predecessores natildeo conheciam a dialeacutetica (Met 987b25-33)460

A visatildeo platocircnica da teoria dos princiacutepios afasta-se da tradiccedilatildeo pitagoacuterica por-

tanto em primeiro lugar pelo ldquofato de ter posto no lugar do ilimitado entendido como

unidade uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como derivado do grande e do

pequenordquo em segundo lugar pelo fato de Platatildeo ldquosituar os nuacutemeros (arithmoiacute) fora dos

sensiacuteveis (paraacute taacute aisthetaacute) enquanto aqueles [os pitagoacutericos] sustentam que os nuacuteme-

ros satildeo autaacute taacute praacutegmata e natildeo afirmam que os matematikaacute satildeo intermediaacuterios (metaxuacute)

entre estes e aquelesrdquo Esta uacuteltima diferenccedila estaacute baseada fundamentalmente naquele

que Aristoacuteteles considera um erro tipicamente platocircnico (Kahn 2001 63) Trata-se da

doutrina do chorismoacutes isto eacute da separaccedilatildeo das formasnuacutemeros do mundo sensiacutevel que

Aristoacuteteles considera ter surgido jaacute com a dialeacutetica socraacutetica estando assim ausente da

filosofia dos pitagoacutericos

Natildeo eacute o caso de aprofundar ainda mais esta diferenccedila Seraacute suficiente lembrar

mais uma vez que essa reconstruccedilatildeo doxograacutefica da ideia da identidade do nuacutemero com

a realidade conforme foi visto acima (411) obedece claramente agrave intenccedilatildeo polecircmica

de Aristoacuteteles com o platonismo Esta se encontra expressa de forma tatildeo definitiva nas

categorias de sua proacutepria filosofia ao ponto de tornar impossiacutevel em uacuteltima anaacutelise

resgatar um eventual sentido originaacuterio da doutrina pitagoacuterica do ldquotudo eacute nuacutemerordquo To-

davia natildeo se trataria aqui de deformaccedilatildeo das doutrinas pitagoacutericas originaacuterias e sim

mais propriamente de uma traduccedilatildeo destas em outros termos Prova disso seria a proacute-

pria intenccedilatildeo de Aristoacuteteles de desenhar a diferenccedila entre pitagorismo e Platatildeo que

portanto lhe impediria de incluir apropriaccedilotildees totalmente arbitraacuterias ou ateacute mesmo for-

jadas das doutrinas dos dois lados sob pena de perder desta forma seu argumento (Cen-

trone 1996 109)461 Por outro lado as duras criacuteticas a essa lectio aristoteacutelica de autores

460 Orig ldquo τὸ δὲ ἀντὶ τοῦ ἀπείρου ὡς ἑνὸς δυάδα ποιῆσαι τὸ δ ἄπειρον ἐκ microεγάλου καὶ microικροῦ τοῦτἴδιο-ν καὶ ἔτι ὁ microὲν τοὺς ἀριθmicroοὺς παρὰ τὰ αἰσθητά οἱ δἀριθmicroοὺς εἶναί φασιν αὐτὰ τὰ πράγmicroατα καὶ τὰ microαθηmicroατικὰ microεταξὺ τούτων οὐ τιθέασιν τὸ microὲν οὖν τὸ ἓν καὶ τοὺς ἀριθmicroοὺς παρὰ τὰ πράγmicroατα ποιῆσαι καὶ microὴ ὥσπερ οἱ Πυθαγόρειοι καὶ ἡ τῶν εἰδῶν εἰσαγωγὴ διὰ τὴν ἐν τοῖς λόγοις ἐγένετο σκέψιν (οἱ γὰρ πρότεροι διαλεκτικῆς οὐ microετεῖχον)rdquo (Met 987b25-33) 461 Da mesma ideia Isnardi-Parente (1977 1034) que afirma ldquonaturalmente il giudizio aristotelico come di consueto implica una sovrapposizione delle proprie categorie interpretative a quelle del pensatore della critica ma contiene anche un nucleo di attendibilitagrave da non trascurarsirdquo

204

acadecircmicos como Siriano e Proclo e da tradiccedilatildeo pseudoepigraacutefica platonizante que estaacute

por traacutes do texto de Teano confirmariam tratar-se aqui de uma tradiccedilatildeo externa agrave tradi-

ccedilatildeo platocircnica Todos esses argumentos permitem imaginar tratar-se no caso da identifi-

caccedilatildeo dos nuacutemeros com a realidade ainda que nos termos da traduccedilatildeo aristoteacutelica de

um achado da visatildeo preacute-socraacutetica dos nuacutemeros pitagoacutericos462

Uma segunda diferenccedila entre Platatildeo e pitagoacutericos estaacute na maneira como eacute con-

cebido o um ou mais precisamente no ldquofato de [Platatildeo] ter posto no lugar do ilimitado

entendido como unidade uma diacuteade e o fato de ter concebido o ilimitado como deriva-

do do grande e do pequenordquo A criacutetica de Aristoacuteteles natildeo pode ser menos contundente

Contudo o ter posto uma diacuteade como natureza oposta ao Um tinha em vista derivar facilmente dela como de uma matriz todos os nuacutemeros exceto os primeiros Entretanto ocorreu exatamente o contraacuterio pois esta doutrina natildeo eacute razoaacutevel (Met 987b33-988a2)463

O fato de colocar uma diacuteade no lugar do eacuten aacutepeiron do um ilimitado pitagoacuterico

(com a intenccedilatildeo de derivar dela mais facilmente todos os outros nuacutemeros) acaba resul-

tando em uma doutrina ldquoou euloacutegosrdquo isto eacute em uma teoria que natildeo procede do ponto de

vista argumentativo

Aristoacuteteles mais uma vez estaacute sozinho na definiccedilatildeo dessa diferenccedila A tradiccedilatildeo

doxograacutefica toda sublinha ao contraacuterio que tambeacutem os pitagoacutericos postulavam o um e

diacuteade indefinida como princiacutepios da realidade Eacute certamente o caso de um ceacutelebre frag-

mento de Espeusipo citado por Gulherme de Moerbeke em sua traduccedilatildeo latina do co-

mentaacuterio de Proclo ao Parmecircnides de Platatildeo Proclo refere-se agrave opiniatildeo dos antigos

(tamquam placentia antiquis) pela qual

Eles considerando que o um eacute superior ao ser e de tal forma que deste deriva o ser tornaram-no livre da condiccedilatildeo de princiacutepio Por outro la-do considerando que com o um concebido em si mesmo enquanto separado e sozinho sem as outras coisas sem algum outro elemento

462 Comenta entusiasticamente Burkert (1972 32) ldquois treasure-trove for the historian herewe have a piece of Pythagorean doctrine that was not subsumed into Platonismrdquo 463 Orig ldquo τὸ δὲ δυάδα ποιῆσαι τὴν ἑτέραν φύσιν διὰ τὸ τοὺς ἀριθmicroοὺς ἔξω τῶν πρώτων εὐφυῶς ἐξ αὐτῆς γεννᾶσθαι ὥςπερ ἔκ τινος ἐκmicroαγείου καίτοι συmicroβαίνει γ ἐναντίως οὐ γὰρ εὔλογον οὕτωςrdquo (Met 987b33-988a2)

205

adicional nada mais viria a existir por isso introduziram a dualidade infinita como princiacutepio dos seres (Speusip fr 48 Taran)464

A referecircncia aos antiqui natildeo poderaacute ser compreendida certamente como uma

remissatildeo a Platatildeo que eacute praticamente coetacircneo Por exclusatildeo os antigos seratildeo entatildeo os

pitagoacutericos Estes satildeo chamados de palaioiacute por Platatildeo em uma passagem do Filebo que

seraacute analisada em breve (Phlb 16c)465

Prova da forccedila dessa tradiccedilatildeo acadecircmica eacute que ateacute Teofrasto disciacutepulo imediato

de Aristoacuteteles eacute influenciado por ela a tal ponto de consideraacute-la tambeacutem verdadeira e

portanto afastar-se da lectio que havia recebido de seu mestre

Platatildeo e os pitagoacutericos tornam grande a distacircncia [entre o real e as coi-sas da natureza] mas consideram que todas aquelas coisas desejam imitar o real E a partir do momento em que definem uma espeacutecie de oposiccedilatildeo entre o um e a diacuteade indefinida da qual em uacuteltima anaacutelise depende o que eacute ilimitado e desordenado e para assim dizer toda a desformidade eacute absolutamente inconcebiacutevel que para eles a natureza do todo existisse sem esta [diacuteade indefinida] (Theophr Met 11a27-11b6)466

Natildeo somente Platatildeo e os pitagoacutericos satildeo aproximados por separarem o real (on-

toloacutegico) das coisas da natureza mas tambeacutem por compreenderem que sem a aoristoacutes

dyacuteas o mundo natildeo poderia ser gerado Nessa perspectiva ao lado do um a postulaccedilatildeo

da diacuteade indefinida como um dos princiacutepios eacute absolutamente necessaacuteria Estamos jaacute em

pleno solo acadecircmico portanto

Contudo a citada passagem da outra Metafiacutesica aquela de Aristoacuteteles natildeo deixa

duacutevidas que essa diferenccedila devia mesmo existir Ateacute porque natildeo se trata de um apax

legomena e sim ndash conforme se verificou acima (411) ndash de uma peccedila de um quebra-

cabeccedila maior que contribuiu para a definiccedilatildeo de uma concepccedilatildeo pitagoacuterica dos princiacute- 464 Orig ldquole unum enim melius ente putantes et a quo le ens et ab ea quae secundum principium habitu-dine ipsum liberaverunt exstimantes autem quod si quis le unum ipsum seorsum et solum meditatum sine aliis seCtmdum se ipsum ponat nullurn alterum elementum ipsi apponens nihil utique flet aliorum in-terminabilem dualitatem entium principium induxeruntrdquo (Speusip fr 48 Taran) 465 Concordam com esta atribuiccedilatildeo Burkert (1972 63) Huffman (1993 23) Centrone (1996 110) e Kahn (2001 64) Contraacuterio a esta atribuiccedilatildeo o proacuteprio Taran (Speusippus 1981 350s) que atribui a referecircncia aos antigos a Proclo e natildeo a sua fonte Espeusipo dessa forma invertendo a atribuiccedilatildeo da passagem para os acadecircmicos 466 Orig ldquo Πλάτων δὲ καὶ οἱ Πυθαγόρειοι microακρὰν τὴν ἀπόστασιν ἐπιmicroιmicroεῖσθαι δ ἐθέλειν ἅπαντα καίτοι καθά περ ἀντίθεσίν τινα ποιοῦσιν τῆς ἀορίστου δυάδος καὶ τοῦ ἑνός ἐν ᾗ καὶ τὸ ἄπειρον καὶ τὸ ἄτακτον καὶ πᾶσα ὡς εἰπεῖν ἀmicroορφία καθ αὑτήν ὅλως οὐχ οἷόν τε ἄνευ ταύτης τὴν τοῦ ὅλου φύσινrdquo (Theophr Met 11a27-11b6)

206

pios que Aristoacuteteles considerava a tal ponto coerente de natildeo tentar atribuiacute-la a momen-

tos ou protagonistas diferentes da histoacuteria do pitagorismo Pouco antes de fato Aristoacute-

teles atribui aos pitagoacutericos ndash em continuidade com outros itaacutelicos (Empeacutedocles e Par-

mecircnides) e Anaxaacutegoras ndash uma teoria dos dois princiacutepios

Os pitagoacutericos afirmaram do mesmo modo dois princiacutepios mas acres-centaram as seguintes peculiaridades consideraram que o limitado o ilimitado e o um natildeo eram atributos de outras realidades (por exemplo fogo ou terra ou alguma outra coisa) mas que o proacuteprio ilimitado e o um eram substacircncia das coisas das quais se predicam e que por isso o nuacutemero era a substacircncia de todas as coisas (Met 987a13-19)467

Aqui os dois princiacutepios pitagoacutericos satildeo ditos peperasmeacutenon e apeiacuteron isto eacute

limitado e ilimitado Todavia Aristoacuteteles com a expressatildeo kai toacute eacuten acrescenta um ter-

ceiro princiacutepio o um Como compreender que Aristoacuteteles anuncia aqui dois princiacutepios

e acaba depois identificando trecircs ldquolimitado ilimitado e umrdquo O reconhecimento dessa

contradiccedilatildeo no testemunho de Aristoacuteteles faz alguns autores excluirem a expressatildeo kai

toacute eacuten da passagem468 Com essa exclusatildeo o um acabaria assim por ser identificado com

o limitado De fato na segunda menccedilatildeo que a passagem faz aos dois princiacutepios a refe-

recircncia ao limitado natildeo eacute repetida e os dois princiacutepios satildeo identificados como ilimitado e

um com este uacuteltimo tomando o lugar ndash por assim dizer ndash do limitado

Exatamente pelo fato de que para um platocircnico essa equaccedilatildeo eacuten-peacuteras devia ser

algo absolutamente normal Huffman (1993 207) sugere que Aristoacuteteles esteja aqui

cometendo um deslize (slides) de maneira especial se esta passagem for comparada

com a passagem de Met 987b25-33 Aristoacuteteles procurava ali mostrar a analogia dos

dois princiacutepios platocircnicos (um e diacuteade indefinida) como os princiacutepios pitagoacutericos do

limitado e ilimitado Poreacutem apesar de reconhecer que haacute uma diferenccedila entre as duas

filosofias pois Platatildeo considera o ilimitado como uma dualidade (grande-pequeno) e os

pitagoacutericos natildeo Aristoacuteteles natildeo tematiza claramente alguma diferenccedila entre os outros

467 Orig ldquo οἱ δὲ Πυθαγόρειοι δύο microὲν τὰς ἀρχὰς κατὰ τὸν αὐτὸν εἰρήκασι τρόπον τοσοῦτον δὲ προσεπέ-θεσαν ὃ καὶ ἴδιόν ἐστιν αὐτῶν ὅτι τὸ πεπερασmicroένον καὶ τὸ ἄπειρον [καὶ τὸ ἓν] οὐχ ἑτέρας τινὰς ᾠήθησαν εἶναι φύσεις οἷον πῦρ ἢ γῆν ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον ἀλλ αὐτὸ τὸ ἄπειρον καὶ αὐτὸ τὸ ἓν οὐσίαν εἶναι τού-των ὧν κατηγοροῦνται διὸ καὶ ἀριθmicroὸν εἶναι τὴν οὐσίαν πάντωνrdquo (Met 987a13-19) 468 Entre os manuscritos mais importantes somente Ab manteacutem καὶ τὸ ἓν enquanto MS e E excluem (e com eles Ross cf acima) Burkert (1972 36 n38) lembra que Alexandre de Afrodiacutesia em seu comentaacuterio (In Met 4711) lecirc a expressatildeo kai toacute eacuten coisa natildeo oacutebvia por se tratar de um autor platocircnico e portanto argumento em favor da autenticidade de καὶ τὸ ἓν Cf para isso Burkert (1972 35-37) Centrone (1996 111) e Huffman (1993 206)

207

dos princiacutepios comparados isto eacute o um platocircnico e o peperasmeacutenon pitagoacuterico Essa

falta de tematizaccedilatildeo explicaria a dupla versatildeo que aparece na passagem relativa aos dois

princiacutepios que estamos examinando na segunda parte dela (v18) Aristoacuteteles estaria

consciente ou inconscientemente caindo na falaacutecia da interpretaccedilatildeo platonizante que

identifica o um com o limitado enquanto na primeira parte dela (v16) Aristoacuteteles a-

crescentaria o um como algo distinto dos dois princiacutepios limitado e ilimitado469

Apesar do possiacutevel deslize platonizante portanto que mostra a forccedila do ldquosistema

de derivaccedilatildeordquo platocircnico acima citado eacute ainda a primeira afirmaccedilatildeo a estar em acordo

com toda a lectio aristoteacutelica dos nuacutemeros enquanto eles proacuteprios criados a partir dos

princiacutepios Conforme se veraacute na comparaccedilatildeo com Filolau essa interpretaccedilatildeo deveraacute

corresponder mais precisamente ao pensamento dos pitagoacutericos

A confirmaccedilatildeo disso a ideia pela qual o nuacutemero seja composto por ambos os

princiacutepios limitado e ilimitado aparece claramente em uma passagem imediatamente

anterior pela qual os pitagoacutericos

Afirmam como elementos constitutivos do nuacutemero o par e o iacutempar dos quais o primeiro eacute ilimitado e o segundo limitado O Um deriva de ambos os elementos porque eacute par e iacutempar ao mesmo tempo Do Um procede depois o nuacutemero e os nuacutemeros como dissemos constituiriam a totalidade do universo (Met 986a 17-21)470

Essa derivaccedilatildeo faz sim que o um seja ao mesmo tempo par e iacutempar e como tal

princiacutepio dos nuacutemeros Aqui os dois princiacutepios satildeo o par e o iacutempar enquanto limitado e

ilimitado parecem ser somente atributos destes Aristoacuteteles explica essa correspondecircncia

entre par e limitado de um lado e iacutempar e ilimitado do outro em uma difiacutecil passagem

da Fiacutesica (203a) A mesma ideia reaparece tambeacutem em seu fr 199 (Rose) provavel-

mente extrato de um de seus livros sobre os pitagoacutericos e encontra um eco significativo

na ideia do artiopeacuteritton o ldquopariacutemparrdquo do fr 5 de Filolau Seraacute o caso de voltar em

breve para ela portanto

469 A possibilidade de um deslize inconsciente de Aristoacuteteles eacute um argumento que a bem ver requereria metodologicamente verificaccedilotildees de fato impossiacuteveis E todavia eacute sugerida tanto por Burkert (1972 36) quanto por Huffman (1993 206) 470 Orig ldquo τοῦ δὲ ἀριθmicroοῦ στοιχεῖα τό τε ἄρτιον καὶ τὸ περιττόν τούτων δὲ τὸ microὲν πεπερασmicroένον τὸ δὲ ἄπειρον τὸ δ ἓν ἐξ ἀmicroφοτέρων εἶναι τούτων (καὶ γὰρ ἄρτιον εἶναι καὶ περιττόν) τὸν δ ἀριθmicroὸν ἐκ τοῦ ἑνός ἀριθmicroοὺς δέ καθάπερ εἴρηται τὸν ὅλον οὐρανόνrdquo (Met 986a 17-21)

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A diferenccedila mais significativa que Aristoacuteteles consegue perceber entre os pitagoacute-

ricos e Platatildeo estaacute todavia ainda conectada agrave ideia do chorismoacutes conforme aparece na

passagem central de Met 987b25-33 e que o faz concluir que para os pitagoacutericos os

nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas Essa afirmaccedilatildeo possui imediatamente uma valecircncia

cosmoloacutegica obviamente De fato em relaccedilatildeo agraves duas questotildees que estamos analisando

isto eacute tanto aquela da identidade entre os nuacutemeros e a realidade como a da geraccedilatildeo dos

nuacutemeros a partir dos princiacutepios limitado e ilimitado Aristoacuteteles empreende uma descri-

ccedilatildeo em termos cosmoloacutegicos (Burkert 1972 31ss) Isso aparece de forma mais evidente

na passagem da Fiacutesica em que se trata do vazio

Tambeacutem os pitagoacutericos afirmaram a existecircncia do vazio e que entra no ceacuteu pelo sopro ilimitado como se o ceacuteu respirasse e que o vazio delimita a natureza das coisas como se o vazio fosse alguma coisa de separado e delimitasse as coisas consecutivas E isso acontece primei-ramente nos nuacutemeros pois o vazio delimita sua natureza (Phys 313b23-27)471

Aqui o ilimitado natildeo eacute somente um princiacutepio ontoloacutegico separado da realidade

como o seria a diacuteade infinita platocircnica e sim algo que eacute ldquoinspirado pelo ceacuteurdquo para dar

origem agrave multiplicidade dos seres Uma paacutegina de Metafiacutesica espelha a mesma visatildeo

ontoloacutegica

De fato eles afirmam claramente que uma vez constituiacutedo o Um ndash se-ja com planos com cores com sementes com elementos dificilmente definiacuteveis ndash imediatamente a parte do ilimitado que lhe era mais proacute-xima comeccedilou a ser atraiacuteda e delimitada pelo limite (Met 1091a15-18)472

Timpanaro Cardini (1958-62 III 154) anota que pode tratar-se aqui de um a-

chado aristoteacutelico de diversas doutrinas que eram desenvolvidas pelo pitagorismo anti-

go para explicar como era formado o um O plano corresponderia a uma primeira hipoacute-

tese geomeacutetrica a chroiaacute a cor corresponderia agrave superfiacutecie do corpo isto eacute a seu peacute-

471 Orig ldquo εἶναι δ ἔφασαν καὶ οἱ Πυθαγόρειοι κενόν καὶ ἐπεισιέναι αὐτὸ τῷ οὐρανῷ ἐκ τοῦ ἀπείρου πνεύmicroατος ὡς ἀναπνέοντι καὶ τὸ κενόν ὃ διορίζει τὰς φύσεις ὡς ὄντος τοῦ κενοῦ χωρισmicroοῦ τινὸς τῶν ἐφεξῆς καὶ [τῆς] διορίσεως καὶ τοῦτ εἶναι πρῶτον ἐν τοῖς ἀριθmicroοῖς τὸ γὰρ κενὸν διορίζειν τὴν φύσιν αὐτῶνrdquo (Phys 313b23-27) 472 Orig ldquo φανερῶς γὰρ λέγουσιν ὡς τοῦ ἑνὸς συσταθέντος εἴτ ἐξ ἐπιπέδων εἴτ ἐκ χροιᾶς εἴτ ἐκ σπέρmicro-ατος εἴτ ἐξ ὧν ἀποροῦσιν εἰπεῖν εὐθὺς τὸ ἔγγιστα τοῦ ἀπείρου ὅτι εἵλκετο καὶ ἐπεραίνετο ὑπὸ τοῦ πέρα-τοςrdquo (Met 1091a15-18)

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ras ainda que natildeo identificaacutevel com corpo mesmo473 Uma terceira hipoacutetese que postu-

lava o speacuterma eacute de fato facilmente reconduziacutevel ao jaacute citado fr 13 de Filolau (44 B13

DK) e agrave afirmaccedilatildeo pela qual ldquotodas as coisas brotam e crescem por causa da semen-

terdquo474

A geraccedilatildeo do cosmo eacute assim descrita como o nascimento de um organismo vi-

vente isto eacute utilizando um leacutexico embrioloacutegico que apresenta analogias com aquele

das antigas teorias embrioloacutegicas a geraccedilatildeo do embriatildeo de fato se daria nelas por meio

da respiraccedilatildeo475 O leacutexico embrioloacutegico e o pressuposto da correspondecircncia macrocos-

mondashmicrocosmo remetem para uma origem mais antiga com toda probabilidade preacute-

socraacutetica dessa doutrina476

E todavia dessa indiferenciaccedilatildeo entre o plano numeacuterico e aquele cosmoloacutegico

na doutrina dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo Aristoacuteteles reclama com se viu afir-

mando que a postulaccedilatildeo desses princiacutepios natildeo explica nem o movimento nem o peso

dos corpos (Met 990a7-13) O motivo dessas aporias eacute um soacute ldquoos princiacutepios que [os

pitagoacutericos] postulam e fazem valer referem-se tanto aos corpos matemaacuteticos quanto

aos corpos sensiacuteveisrdquo (Met 990a14-16)477 Identificando os princiacutepios com o mundo

sensiacutevel de fato os pitagoacutericos perderiam o sentido heuriacutestico desses princiacutepios Per-

gunta-se de fato Aristoacuteteles

Como se deve entender que as propriedades do nuacutemero e o nuacutemero satildeo causas das coisas existentes no universo e das coisas que nele se

473 Cf para isso o proacuteprio Aristoacuteteles (De sensu 439a30) 474 Orig ldquo πάντα γὰρ ἀπὸ σπέρmicroατος καὶ θάλλοντι καὶ βλαστάνοντιrdquo (44 B13 DK) 475 Cf para as citaccedilotildees Burkert (1972 37) Huffman (1993 289-306) e Centrone (1996 115) 476 Burkert (1972 39) vai aleacutem e em consonacircncia com sua apresentaccedilatildeo do pitagorismo entre lore e sci-ence atribui esta mistura de teoria numeacuterica e cosmogonia a uma direta influecircncia oacuterfica ldquoOrphism and Pythagoreanism were almost inextricably intertwined in the fifth century so that it is understandable that within the pre-Socratic domain Pythagorean doctrine developed as a transposed version of Orphic cosmogonyrdquo Natildeo eacute o caso de duvidar que esta transposiccedilatildeo tenha de fato desempenhado algum papel na definiccedilatildeo desta teoria cosmoloacutegico-numeacuterica Natildeo eacute difiacutecil imaginar como faz Burkert que esta doutrina pitagoacuterica possa ser pensada como uma exegese de mitos cosmogocircnicos oacuterficos Ainda mais apoacutes a re-cepccedilatildeo no interior da criacutetica que se ocupa dos preacute-socraacuteticos da anaacuteloga exegese representada pelo papiro Derveni Esta hipoacutetese traria fecundas conclusotildees se compreendida por exemplo agrave luz daquilo que se disse acima no capiacutetulo terceiro com respeito agraves relaccedilotildees entre pitagorismo e orfismo sobre teoria da alma Por outro lado anota com razatildeo Kahn (1974 172) que uma veste cosmogocircnica para a filosofia eacute tiacutepica de muitos preacute-socraacuteticos Finalmente a hipoacutetese de Burkert que natildeo foi recolhida por nenhum outro comentador eacute de difiacutecil comprovaccedilatildeo e precisaria de outra monografia exclusivamente dedicada a ela 477 Orig ldquo ἐξ ὧν γὰρ ὑποτίθενται καὶ λέγουσιν οὐθὲν microᾶλλον περὶ τῶν microαθηmicroατικῶν λέγουσι σωmicroάτων ἢ τῶν αἰσθητῶνrdquo (Met 990a14-16)

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produzem desde a origem ateacute agora e de outro lado como entender que natildeo existe outro nuacutemero aleacutem do nuacutemero do qual eacute constituiacutedo o mundo (Met 990a18-22)478

Obviamente natildeo haacute possibilidade de resposta para essas perguntas Pois a indi-

ferenciaccedilatildeo entre o plano numeacuterico e aquele cosmoloacutegico impede que o problema possa

ser solucionado nos termos da filosofia pitagoacuterica479

415 O testemunho platocircnico (Filebo 16c-23c)

Que Aristoacuteteles tivesse razatildeo em revelar a influecircncia sobre Platatildeo das teorias pi-

tagoacutericas pode ficar claro pela anaacutelise de um trecho central da obra deste uacuteltimo contido

nas paacuteginas do Filebo A passagem mostraraacute em que medida Platatildeo considerava o seu

esforccedilo para chegar a uma compreensatildeo dos primeiros princiacutepios como uma continua-

ccedilatildeo do pitagorismo dando assim razatildeo a Aristoacuteteles quando a indica na paacutegina de Met

987b Ao mesmo tempo revelaraacute que a tradiccedilatildeo pitagoacuterica que Platatildeo no Filebo mos-

traraacute preservar com certa fidelidade torna-se tambeacutem um ponto de partida para ele

mesmo perseguir seus proacuteprios projetos teoreacuteticos de maneira especial em busca de

uma soluccedilatildeo para o problema da unidade e multiplicidade dos existentes Seraacute assim

possiacutevel concluir que a platonizaccedilatildeo do pitagorismo natildeo eacute simplemente uma tendecircncia

acadecircmica mas pode remontar ao mesmo Platatildeo

Eacute pois Burkert (1972 85) que sugere que um lugar entre os mais importantes

para compreender a relaccedilatildeo entre pitagorismo e platonismo eacute exatamente a paacutegina 16c

do Filebo a passagem introduz o tema da dialeacutetica do limitadoilimitado Aqui a procu-

ra pela questatildeo maior do prazer eacute desenvolvida no tema da unidademultiplicidade do

um e dos muitos que marca dramaticamente muitas das preocupaccedilotildees filosoacuteficas preacute-

socraacuteticas A dramaticidade do tema eacute sublinhada pelo proacutelogo agrave discussatildeo de Soacutecrates

ldquoNatildeo poderia haver um caminho mais belo do que este do qual eu sou amante desde

478 Orig ldquo ἔτι δὲ πῶς δεῖ λαβεῖν αἴτια microὲν εἶναι τὰ τοῦ ἀριθmicroοῦ πάθη καὶ τὸν ἀριθmicroὸν τῶν κατὰ τὸν οὐρα-νὸν ὄντων καὶ γιγνοmicroένων καὶ ἐξ ἀρχῆς καὶ νῦν ἀριθmicroὸν δ ἄλλον microηθένα εἶναι παρὰ τὸν ἀριθmicroὸν τοῦτον ἐξ οὗ συνέστηκεν ὁ κόσmicroοςrdquo (Met 990a18-22) 479 Aristoacuteteles resolveraacute esta questatildeo da indistinccedilatildeo entre nuacutemeros e coisas no interior de seu proacuteprio sistema filosoacutefico No contexto da discussatildeo do sentido do tempo para resistir ao idealismo platocircnico que postula a existecircncia dos nuacutemeros separadamente das coisas introduziraacute a distinccedilatildeo entre nuacutemero numera-do e nuacutemero numerante (Phys 219b 6-7) Cf para isso tambeacutem Rey Puente (2001 49)

211

sempre mas que muitas vezes me fugiu e me deixou sozinho e sem saiacutedardquo (Phlb

16b)480 A soluccedilatildeo para a questatildeo vem de longe tanto em sentido fiacutesico quanto em sen-

tido temporal eacute apresentada como uma revelaccedilatildeo como um dom dos deuses (doacutesis the-

ocircn) em 16c e como descoberta dos antigos (oi proacutesthen) em 17d Trata-se exatamente da

conaturalidade agraves coisas que satildeo do limitanteilimitado e da harmoniacutea entre os dois

como princiacutepio de ldquofuncionamentordquo metafiacutesico da realidade

Um dom dos deuses para os homens assim me parece de um lugar do ceacuteu divino um dia foi jogado sobre a terra por meio de um Prome-teu junto com um fogo de claridade ofuscante e os antigos (que eram mais valentes do que noacutes e viviam mais proacuteximos dos deuses) trans-mitiram para noacutes esta revelaccedilatildeo isto eacute que resultando da unidade e multiplicidade das coisas que satildeo as coisas que sempre satildeo foram di-tas e seratildeo ditas ldquocoisas que satildeordquo elas carregam em si por natureza limite e ilimitado (Phlb 16c-d)481

Trata-se aparentemente de um dom de signo epistemoloacutegico pois eacute dito imedia-

tamente depois consistir ldquona maneira como os deuses indicam-nos que se deve aprender

e ensinar uns aos outrosrdquo (Phlb 16e)482 O alcance dessa observaccedilatildeo seraacute revelado no

comentaacuterio que se faraacute logo mais aos fragmentos de Filolau

A funccedilatildeo da introduccedilatildeo no interior da dupla um-muitos da dupla limitante-

ilimitado afirma com razatildeo Migliori (1993 98) eacute claramente aquela de fazer funcionar

esta uacuteltima como uma justificativa ontoloacutegica da primeira no sentido que eacute a accedilatildeo do

limitante e ilimitado que permite que a realidade seja uma e multiacuteplice Uma afirmaccedilatildeo

forte sobre a realidade das coisas que satildeo portanto483

A afirmaccedilatildeo desse meacutetodo (cf a imagem do odoacutes em 16b) dos dois princiacutepios

visa dialeacuteticamente enfrentar o fato de que ao contraacuterio certos ldquohomens saacutebios de

480 Orig ldquo οὐ microὴν ἔστι καλλίων ὁδὸς οὐδ ἂν γένοιτο ἧς ἐγὼ ἐραστὴς microέν εἰmicroι ἀεί πολλάκις δέ microε ἤδη διαφυγοῦσα ἔρηmicroον καὶ ἄπορον κατέστησενrdquo (Phlb 16b) 481 Orig ldquo Θεῶν microὲν εἰς ἀνθρώπους δόσις ὥς γε καταφαίνεται ἐmicroοί ποθὲν ἐκ θεῶν ἐρρίφη διά τινος Προmicroηθέως ἅmicroα φανοτάτῳ τινὶ πυρί καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπει-ρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντωνrdquo (Phlb 16c-d) 482 Orig ldquo οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλ-ήλουςrdquo (Phlb 16e) 483 Natildeo parece ser o caso de duvidar disso nem sequer querendo ser demasiado conservadores em relaccedilatildeo agrave expressatildeo ldquoas coisas que sempre dizemos ser coisas que satildeordquo como querem ser entre outros Mazzarelli (Platone 1991) e Striker (1970) no contexto da estabilidade da predicaccedilatildeo natildeo parece ser este o eixo da questatildeo e sim ao contraacuterio a correspondecircncia dessa estabilidade do ser com as coisas que satildeo Cf Mi-gliori (1993 n96)

212

agorardquo (oi de nucircn tocircn antropocircn sophoiacute a construccedilatildeo sintaacutetica da expressatildeo natildeo deixa

duacutevidas em relaccedilatildeo agrave ironia desta) ldquopotildeem o um ao acaso passando logo para o infinitordquo

fugindo contemporaneamente das realidades intermediaacuterias (17a)484 Nesse proceder

sem considerar as realidades intermediaacuterias parece estar toda a diferenccedila entre o meacutetodo

dialeacutetico e aquele ao contraacuterio euriacutestico E como seraacute possiacutevel acompanhar na conti-

nuaccedilatildeo do diaacutelogo residiraacute a mesma soluccedilatildeo do problema da vida boa entre prazer e

conhecimento

Protarco que parece mesmo natildeo conseguir acompanhar a improvisada guinada

metafiacutesica da argumentaccedilatildeo pede aacutegua (17a) Soacutecrates responde assim com dois e-

xemplos O som emitido pela nossa boca quando pronunciamos as letras do alfabeto eacute

escolhido por Soacutecrates como um exemplo certamente o mais irritantemente didaacutetico

possiacutevel485 Este som eacute ao mesmo tempo um (miacutea) e infinita possibilidade (aacutepeiron au

plecircthei) para quem o pronuncia (18b) Mas aquilo que nos torna realmente conhecedo-

res da gramaacutetica natildeo eacute o conhecer aquela dupla natureza da infinidade e unidade e sim

ao contraacuterio conhecer as quantidades e as qualidades (poacutesa kaiacute opoicirca)486

O segundo exemplo escolhido por Soacutecrates estaacute significativamente ligado ao

mundo da muacutesica O argumento eacute que conhecer dois tons um grave e outro agudo e

como terceiro o intermediaacuterio natildeo nos tornaria ainda experts de muacutesica

Poreacutem meu amigo quando vocecirc teraacute conhecido o nuacutemero dos interva-los que existe seja no tom agudo como no grave e quais satildeo os limites destes intervalos e quantos sistemas resultam de sua conjunccedilatildeo (os predecessores descobriram estes sistemas e os transmitiram para noacutes que os seguimos com o nome de harmonias e viram que mesmo nos movimentos do corpo verificam-se outras afecccedilotildees semelhantes e que sendo mensuradas pelos nuacutemeros afirmaram que deveriam ser cha-madas de ritmos e medidas e ao mesmo tempo que eacute desta forma que devem ser analisadas as coisas em todos os casos de unidade e multiplicidade) assim quando vocecirc teraacute compreendido tambeacutem isso e entatildeo teraacute se tornado conhecedor de muacutesica e quando teraacute consegui-do e compreendido analisando-a qualquer uma das unidades entatildeo teraacute se tornado profundo e inteligente conhecedor do objeto de sua a-naacutelise Mas a infinidade das coisas a infinita multiplicidade que estaacute em cada uma delas todo caso lhe faz incapaz de pensar agudamente e impede que vocecirc seja um homem ilustre e de valor reconhecido caso

484 Orig ldquo οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττονrdquo (Phlb 17a) 485 Veja-se de fato a consequente irritaccedilatildeo de Protarco com os κύκλοι por meio dos quais Soacutecrates pare-ce querer enredar ndash sofisticamente ndash seus interlocutores (Phlb 19a) 486 A ideia eacute por enquanto somente acenada no interior do desenvolvimento do argumento da paacutegina do Filebo seraacute retomada e desenvolvida mais amplamente em seguida ao longo do mesmo diaacutelogo

213

vocecirc natildeo tenha nunca conseguido reconhecer em nenhuma coisa ne-nhum nuacutemero (Phlb 17c-e)487

A anaacutelise da muacutesica requer portanto uma atenta articulaccedilatildeo do conhecimento

dos limites dos intervalos e das correlaccedilotildees entre diferentes sons isto eacute em uma pala-

vra dos nuacutemeros que as constituem

Os dois exemplos desenham assim uma trama de relaccedilotildees que constitui a ldquoinfi-

nidade das coisas e a infinita multiplicidade que estaacute em cada uma delasrdquo propotildeem um

sistema estruturado que permita uma adequada explicaccedilatildeo dessa realidade (Migliori

1993 108) A descoberta dessa explicaccedilatildeo sistemaacutetica eacute atribuiacuteda aos predecessores (oi

proacutesthen)488 Eacute significativo aqui o uso do termo syacutestemata para indicar os sistemas de

conjunccedilatildeo dos intervalos que satildeo chamados de harmonia em Aristoxeno o termo iraacute

significar escala musical (236)489

Enquanto na economia proacutepria do texto platocircnico a proposta de uma vida mista

seraacute enfim o correspondente eacutetico do funcionamento ontoloacutegico da realidade pois esta

mesma eacute de certa forma mista sob a accedilatildeo do peacuteras e do apeiacuteron o que mais importa

aqui eacute anotar que no resumo final da argumentaccedilatildeo (23c-d) Soacutecrates faz novamente re-

ferecircncia a uma revelaccedilatildeo divina do limitado e do ilimitado dos entes

SOCR Retomemos entatildeo o que jaacute dissemos hoje PROT O quecirc SOCR Natildeo afirmamos por acaso que de alguma maneira o deus tem revelado a presenccedila do ilimitado e do limite nas coisas que satildeo PROT Claro SOCR Colocamos portanto estes como dois gecircneros e como terceiro uma certa mistura que resulta dos dois primeiros (P-hlb 23c-d)490

487 Orig ΣΩ Ἀλλ ὦ φίλε ἐπειδὰν λάβῃς τὰ διαστήmicroατα ὁπόσα ἐστὶ τὸν ἀριθmicroὸν τῆς φωνῆς ὀξύτητ-ός τε πέρι καὶ βαρύτητος καὶ ὁποῖα καὶ τοὺς ὅρους τῶν διαστηmicroάτων καὶ τὰ ἐκ τούτων ὅσα συστήmicroατα γέγονεν ndash ἃ κατιδόντες οἱ πρόσθεν παρέδοσαν ἡmicroῖν τοῖς ἑποmicroένοις ἐκείνοις καλεῖν αὐτὰ ἁρmicroονίας ἔν τε ταῖς κινήσεσιν αὖ τοῦ σώmicroατος ἕτερα τοιαῦτα ἐνόντα πάθη γιγνόmicroενα ἃ δὴ δι ἀριθmicroῶν microετρηθέντα δεῖν αὖ φασι ῥυθmicroοὺς καὶ microέτρα ἐπονοmicroάζειν καὶ ἅmicroα ἐννοεῖν ὡς οὕτω δεῖ περὶ παντὸς ἑνὸς καὶ πολλῶν σκο-πεῖν ndash ὅταν γὰρ αὐτά τε λάβῃς οὕτω τότε ἐγένου σοφός ὅταν τε ἄλλο τῶν ἓν ὁτιοῦν ταύτῃ σκοπούmicroενος ἕλῃς οὕτως ἔmicroφρων περὶ τοῦτο γέγονας τὸ δ ἄπειρόν σε ἑκάστων καὶ ἐν ἑκάστοις πλῆθος ἄπειρον ἑκάσ-τοτε ποιεῖ τοῦ φρονεῖν καὶ οὐκ ἐλλόγιmicroον οὐδ ἐνάριθmicroον ἅτ οὐκ εἰς ἀριθmicroὸν οὐδένα ἐν οὐδενὶ πώποτε ἀπιδόνταrdquo (Phlb 17c-e) 488 Pace Gaiser (1988 84) tanto a dialeacutetica quanto a teoria dos princiacutepios satildeo indicadas pelas declaraccedilotildees socraacuteticas no Filebo como tendo sua origem entre os antigos e natildeo como criaccedilotildees platocircnicas 489 Cf para esta citaccedilatildeo Huffman (1993 162) 490 Orig ldquo ΣΩ Λάβωmicroεν ἄττα τῶν νυνδὴ λόγων ΠΡΩ Ποῖα ΣΩ Τὸν θεὸν ἐλέγοmicroέν που τὸ microὲν ἄπειρον δεῖξαι τῶν ὄντων τὸ δὲ πέρας ΠΡΩ Πάνυ microὲν οὖν ΣΩ Τούτω δὴ τῶν εἰδῶν τὰ δύο τιθώmicro-εθα τὸ δὲ τρίτον ἐξ ἀmicroφοῖν τούτοιν ἕν τι συmicromicroισγόmicroενονrdquo (Phlb 23c-d)

214

Deixando por um momento de lado a introduccedilatildeo aqui do gecircnero misto o que

chama atenccedilatildeo no resumo eacute a afirmaccedilatildeo da revelaccedilatildeo divina Essa referecircncia insistente a

uma origem divina pode sublinhar o valor que Platatildeo daacute agrave teoria do limitante e ilimita-

do Soacutecrates havia declarado diversas vezes seu temor para com os deuses nas primeiras

paacuteginas do diaacutelogo (12c) Ao mesmo tempo a revelaccedilatildeo natildeo deve ser pensada como

algo completo definitivo ndash como poderia sugerir certa influecircncia sobre a leitura dos

antigos da concepccedilatildeo dogmaacutetica da matriz judaico-cristatilde-islacircmica isto eacute das assim

chamadas ldquoreligiotildees do Livrordquo A revelaccedilatildeo ao contraacuterio pode ser pensada como algo

de origem nobre e que pede para ser continuado como um compromisso a ser tomado

no futuro natildeo como algo estaacutetico dogmaacutetico491

Contudo a origem divina parece confirmar uma referecircncia direta ao pitagorismo

e de maneira especial ao seu fundador Pitaacutegoras ldquoem ar de divindaderdquo em muitos tes-

temunhos antigos Entre eles o jaacute citado (21) testimonium aristoteacutelico que refere o se-

gredo dos pitagoacutericos ldquodos seres viventes dotados de razatildeo um eacute o deus o outro eacute o

homem o terceiro possui a natureza de Pitaacutegorasrdquo (Iambl VP 31 = Arist Fr 192 Rose

= 14 A7 DK) Como tambeacutem o testemunho de Aristoxeno quando ldquoafirma que Pitaacutego-

ras derivou a maior parte de suas doutrinas eacuteticas (eacutethica doacutegmata) da sacerdotisa Te-

mistocleia de Delfosrdquo (fr 15 Wehrli = 14 A3 DK)492 Com a consequecircncia de que Pro-

meteu representaria assim Pitaacutegoras e sua tradiccedilatildeo493

Que a fonte platocircnica para essas passagens do Filebo seja pitagoacuterica recebe tam-

beacutem outra confirmaccedilatildeo na seguinte observaccedilatildeo na passagem acima citada de 17c-d

aliada agrave referecircncia mais geneacuterica aos antigos haacute de fato clara tomada de posiccedilatildeo musi-

coloacutegica em favor da teoria musical pitagoacuterica ritmos (ryacutethmoi) e medidas (meacutetra) ndash

segundo esses mesmos antigos ndash ou seja os intervalos musicais satildeo medidos pelos nuacute-

meros (arithmocircn metrecircthenta) Eacute interessante notar que a mesma referecircncia eacute utilizada

por Platatildeo em Resp VII 530d os pitagoacutericos satildeo arrolados para afirmar a irmandade da

491 Concorda com isso Burkert (1972 90) ldquoFor Platos affirmation of the divine origin of the doctrine of Limit and Unlimited is more than a glittering sequin on the fabric of the exposition It signifies that its truth is beyond doubt and Plato feels that this imposes on him the obligation to grasp the truth of this idea and its all-encompassing significance Such a divine revelation is not something finished and com-plete but a task to fulfillrdquo 492 Orig ldquo φησὶ δὲ καὶ Ἀριστόξενος τὰ πλεῖστα τῶν ἠθικῶν δογmicroάτων λαβεῖν τὸν Πυθαγόραν παρὰ Θεmicro-ιστοκλείας τῆς ἐν ∆ελφοῖςrdquo (fr 15 Wehrli = 14 A3 DK) 493 Quanto ao reconhecimento de Pitaacutegoras em Prometeu concordam Hackforth (Philebus 1945 21) Philip (1966 38) Taylor (1968 639) Burkert (1972 85) Waterfield (Plato 1982 60) Casertano (1989 92) e Gosling (1999 55)

215

astronomia com a muacutesica em contraste com uma maneira imperfeita e literalmente ldquode

ouvidordquo com a qual certas pessoas (os muacutesicos) ldquocolocam os ouvidos antes da menterdquo

para compreender a harmonia musical os pitagoacutericos ldquoagem exatamente como os astrocirc-

nomosrdquo estudam os nuacutemeros que resultam dos acordes mesmo natildeo chegando aos nuacute-

meros em si para definir quais seriam consoantes e quais natildeo494

Essas passagens do Filebo centrais para a definiccedilatildeo da dialeacutetica do limita-

doilimitado revelam as raiacutezes pitagoacutericas da teoria dos princiacutepios platocircnica e ndash como

tais ndash constituem um achado preacute-aristoteacutelico de filosofia pitagoacuterica Raiacutezes afirmadas e

reconhecidas pelo proacuteprio texto platocircnico nas maneiras acima descritas e que ndash como

fontes para a elaboraccedilatildeo filosoacutefica platocircnica ndash satildeo reinterpretadas pela Academia que se

percebe nesse sentido como continuadora e mediadora do esforccedilo dialeacutetico-metafiacutesico

pitagoacuterico

Todavia para aleacutem do reconhecimento das fontes pitagoacutericas para a construccedilatildeo

do argumento dialeacutetico-ontoloacutegico a construccedilatildeo da dialeacutetica no Filebo eacute fruto da con-

cepccedilatildeo filosoacutefica platocircnica Como demonstra o fato de no resumo conclusivo de toda a

argumentaccedilatildeo (cf acima 23c) Platatildeo introduzir um terceiro elemento ao lado da oposi-

ccedilatildeo limitadoilimitado trata-se de ldquoum algo misturado mistordquo (en ti summisgoacutemenon)

originado de ambos E ainda um quarto elemento a causa (aitiacutea) dessa mesma mistura

A argumentaccedilatildeo desenvolve-se aqui em pleno acircmbito teoreacutetico platocircnico Ape-

sar de reconhecer as raiacutezes pitagoacutericas (mais precisamente filolaicas se poderia agora

afirmar) da teoria do limitadoilimitado Platatildeo coloca-se em uma perspectiva bem dife-

rente do ponto de vista teoacuterico Um desenvolvimento que mesmo que possiacutevel e de al-

guma forma normal no panorama da histoacuteria da filosofia natildeo obteria por assim dizer a

autorizaccedilatildeo do proacuteprio Filolau

A construccedilatildeo desse acircmbito teoreacutetico platocircnico corresponde aos primeiros movi-

mentos daquela que se chamou ao longo das paacuteginas anteriores de mediaccedilatildeo platocircnica

do pitagorismo No caso especiacutefico da teoria dos princiacutepios conforme aparece na paacutegina

estudada do Filebo Platatildeo opera uma transiccedilatildeo conceitual transformando o ilimitado

em sua raiz pitagoacuterica pensado como pluralidade espacial e numeacuterica em indefinido

494 Eacute curioso notar que a resposta de Glaucon remete novamente ao mundo do divino ∆αιmicroόνιον πρᾶγmicroα ndash afirma Glaucon ndash seria tal caminho ateacute os nuacutemeros enquanto tais (Resp VII 531c) Burnet (1908 228) e Burkert (1972 87) concordam em reconhecer nos οἱ πρόσθεν os pitagoacutericos mencionados em Repuacutebli-ca Mais ceacuteticos satildeo Barbera (1981 395-410) e Centrone (1993 112) No entanto ateacute Frank (1923 155) dessa vez concorda com Burkert

216

abre a porta para a teoria das formas chegando na escala dialeacutetica ateacute a diacuteade indefini-

da

A essa mesma doutrina do limitadoilimitado refere-se o proacutelogo daquele que

deve ter sido o livro de Filolau (44 B1 DK)

42 Os fragmentos de Filolau

421 Ilimitadoslimitantes

A proximidade do fr 1 de Filolau com a paacutegina do Filebo anteriormente citada

foi obviamente notada jaacute na antiguidade Damascio de Damasco uacuteltimo diaacutedoco da

Escola de Atenas afirmava que ldquoo que eacute deriva do limitado e do ilimitado como diz

Platatildeo no Filebo e Filolau nos livros sobre a Naturezardquo (De principiis I 101 3)495

Diversas aproximaccedilotildees tambeacutem entre a lectio de Aristoacuteteles e os testemunhos de

Filolau foram indicadas nas paacuteginas anteriores Essas aproximaccedilotildees somadas ao caraacuteter

de exceccedilatildeo dos testemunhos aristoteacutelicos perante a categorizaccedilatildeo majoritaacuteria platonizan-

te do pitagorismo antigo tornaratildeo a anaacutelise dos fragmentos de Filolau a pedra angular

do presente capiacutetulo De um lado por permitirem comprovar textualmente o processo de

formaccedilatildeo da recepccedilatildeo acadecircmica da matemaacutetica pitagoacuterica por outro lado por constitu-

irem sinais inequiacutevocos de uma teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica datada ainda no seacuteculo V

aEC Teoria esta que Aristoacuteteles demonstra conhecer

Eacute o caso de iniciar a anaacutelise voltando brevemente agrave questatildeo da autenticidade do

livro de Filolau Para aleacutem do jaacute citado (4132) ceticismo de Bywater (1868 21-53)

Burnet (1908 279-284) Frank (1923 263-335) e Leacutevy (1926 70ss) a proximidade

com o testemunho aristoteacutelico faz tambeacutem autores mais recentes como eacute o caso de Ra-

ven (1966 98) Kahn (1974) e Barnes (1982) levantarem a hipoacutetese de que os fragmen-

tos de Filolau seriam uma falsificaccedilatildeo com base no testemunho aristoteacutelico Ainda que

seja tecnicalmente possiacutevel imaginar que algueacutem tenha falsificado o livro de Filolau

495 Orig ldquo ἐπειδή ἐστι τὸ ὂν ἐκ ltπέρατοςgt καὶ ltἀπείρουgt ὡς ἔν τε ltΦιλήβῳgt λέγει ὁ ltΠλάτωνgt καὶ ltΦιλόλαοςgt ἐν τοῖς ltπερὶ φύσεωςrdquo

217

apoacutes o testemunho aristoteacutelico e baseando-se neste o procedimento seria ineacutedito no

interior da pseudoepigrafia do pitagorismo normalmente tendente ao contraacuterio a pla-

tonizar os conceitos pitagoacutericos De fato Burkert (1972 238ss) Huffman (1993 23) e

mais recentemente tambeacutem Kahn (2001 23) concordam em considerar autecircnticos ao

menos os primeiros sete fragmentos da coleccedilatildeo do Diels-Kranz (44 B1-7 DK) Nova-

mente a exceccedilatildeo que a lectio de Aristoacuteteles representa sugere que a falsificaccedilatildeo dos

fragmentos seria lectio difficilior Disso deriva por consequecircncia que eacute mais faacutecil que

seja verdadeiro o contraacuterio isto eacute que esses fragmentos de Filolau sejam autecircnticos e

como tais fontes de Aristoacuteteles

Desses sete exatamente os fragmentos 1 2 3 e 6 dizem diretamente respeito ao

tema do limitadoilimitado que se examinou haacute pouco no Filebo

Assim inicia-se o livro de Filolau portanto

A obra Sobre a Natureza iniciava com a seguinte afirmaccedilatildeo a nature-za no ordenamento do mundo resultou do acordo de coisas ilimitadas e limitantes e assim o inteiro cosmos e todas as coisas que estatildeo nele (44 B1 DK)496

Diversos sinais textuais parecem confirmar tratar-se aqui de um fragmento ori-

ginal a partir do tiacutetulo da obra Periacute Physeos ateacute a presenccedila da partiacutecula deacute497

Para aleacutem do tiacutetulo da obra que poderia ser simplesmente convencional a recor-

recircncia de termos como phyacutesis e koacutesmos situam o fragmento no interior da jaacute secular

tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica operando quase uma siacutentese (toda preacute-socraacutetica) entre a

cosmologia milesiana do ilimitado e a concepccedilatildeo da perfeiccedilatildeo do ser no limite de matriz

eleata fundamentalmente como resposta ou diaacutelogo in progress com filosofias como as

de Anaxaacutegoras e Parmecircnides

Contudo eacute especialmente a introduccedilatildeo aqui dos conceitos de aacutepeira e peiraacutenon-

ta a chamar a atenccedilatildeo Na busca da definiccedilatildeo de uma phyacutesis en tocirc kosmocirc de uma

496 Orig ldquo ltΠερὶ φύσεωςgt ὧν ἀρχὴ ἥδε ltlsquoἁ φύσις δ ἐν τῶι κόσmicroωι ἁρmicroόχθη ἐξ ἀπείρων τε καὶ περαινό-ντων καὶ ὅλος ltὁgt κόσmicroος καὶ τὰ ἐν αὐτῶι πάνταrsquo rdquo (44 B1 DK) 497 Boeckh (1819 45) havia sugerido que natildeo podia se tratar aqui do iniacutecio do livro de Filolau exatamente pela presenccedila do δέ no iniacutecio da sentenccedila O δέ sugeriria haver algo que foi dito antes disso e por este motivo natildeo poderia estar no proacutelogo do livro Todavia Burkert (1972 252) seguido por Huffman (1993 95) argumenta que a presenccedila do δέ no iniacutecio de uma obra era praacutetica comum entre os autores do seacuteculo V aEC (cf Heraacuteclito fr 1 e Iacuteon fr 1) e que devia se referir ao tiacutetulo desta Contrariamente agrave tese de Boeckh portanto sua presenccedila seria um bom motivo para considerar esse fragmento como autenticamen-te preacute-socraacutetico

218

racionalidade interna agrave natureza que poderiacuteamos tomar como sinocircnimo do proacuteprio ar-

cheacute preacute-socraacutetico Filolau natildeo afirma ndash como se poderia imaginar a partir de testemu-

nho aristoteacutelico ndash que ldquotudo eacute nuacutemerordquo e sim que haacute um ldquoacordo de coisas ilimitadas e

limitantesrdquo

Haacute um detalhe terminoloacutegico que merece ser destacado498 Filolau natildeo utiliza

propriamente os termos limitadoilimitado e sim sempre somente o plural aacutepeira e

peiraacutenonta isto eacute em uma traduccedilatildeo filologicamente mais fiel e filosoficamente mais

fecunda ldquocoisas ilimitadas e limitantesrdquo por se tratar este uacuteltimo de um particiacutepio pre-

sente do verbo peraiacutenocirc Ao contraacuterio tanto no Filebo de Platatildeo quanto na Metafiacutesica de

Aristoacuteteles os termos satildeo pensados e utilizados no singular o nome peacuteras para ldquolimiterdquo

ou o particiacutepio passivo do verbo peraiacutenocirc peperasmeacutenon para ldquolimitadordquo e o adjetivo

neutro singular aacutepeiron precedido de artigo (toacute aacutepeiron) o ldquoilimitadordquo todos eles no

singular A insistecircncia no fato de que esses ldquoprinciacutepiosrdquo sejam plurais indica diretamen-

te o fato de eles natildeo serem compreendidos por Filolau como princiacutepios metafiacutesicos agrave

maneira que seratildeo compreendidos em seguida por Platatildeo e Aristoacuteteles que por exata-

mente esse motivo preferem utilizar o singular499

Eacute o que aparece no fr 2 que utilizando a mesma terminologia do ldquoacordordquo de

ldquoilimitadoslimitantesrdquo do fr 1 explicita mais claramente qual devia ser o alcance dessa

teoria

De Filolau sobre o ordenamento do mundo necessariamente as coisas que satildeo devem ser todas ou ilimitadas ou limitantes ou ilimitadas ou limitantes ao mesmo tempo limitantes somente poreacutem ou somente i-limitadas natildeo poderiam ser considerando que mostram evidentemente serem as coisas nem todas limitantes nem todas ilimitadas eacute claro portanto que do acordo de limitantes e ilimitados tanto o ordena-mento do mundo quanto as coisas nele resultaram Eacute demonstrado pe-los fatos que as coisas que derivam dos limitantes limitam e que as que derivam dos limitantes e ilimitados limitam ou natildeo limitam e que aquelas que derivam dos ilimitados parecem ilimitadas (44 B2 DK)500

498 Cf para essas observaccedilotildees Burkert (1972 253ss) e Huffman (1993 39) 499 Cf mais em geral para essa recepccedilatildeo de Aristoacuteteles dos ldquoprinciacutepiosrdquo dos preacute-socraacuteticos especialmente Cherniss (1935 374ss) que considera os testemunhos deste uacuteltimo ldquoerrors of interpretation which influ-enced Aristotleacutes general attitude toward the Presocratics and which continue to have an effect on mo-dern historiansrdquo 500 Orig ldquoἘκ τοῦ Φιλολάου περὶ κόσmicroου ltἀνάγκα τὰ ἐόντα εἶmicroεν πάντα ἢ περαίνοντα ἢ ἄπειρα ἢ περα-ίνοντά τε καὶ ἄπειρα ἄπειρα δὲ microόνον ltἢ περαίνοντα microόνονgt οὔ κα εἴη ἐπεὶ τοίνυν φαίνεται οὔτ ἐκ περαινόντων πάντων ἐόντα οὔτ ἐξ ἀπείρων πάντων δῆλον τἆρα ὅτι ἐκ περαινόντων τε καὶ ἀπείρων ὅ τε κόσmicroος καὶ τὰ ἐν αὐτῶι συναρmicroόχθη δηλοῖ δὲ καὶ τὰ ἐν τοῖς ἔργοις τὰ microὲν γὰρ αὐτῶν ἐκ περαινόντων

219

A argumentaccedilatildeo deste fr 2 natildeo deixa duacutevidas sobre o fato de que limitantes e i-

limitados natildeo devem ser pensados ndash em Filolau ndash como princiacutepios abstratos e separados

do mundo mas como atributos da proacutepria realidade Uma confirmaccedilatildeo disso eacute a insis-

tecircncia no interior do fragmento de como limitantesilimitados satildeo evidentes como satildeo

de alguma forma manifestos no mundo Por quatro vezes Filolau insiste nisso utilizan-

do termos ligados ao campo semacircntico do aparecer manifesto a) phaiacutenetai eoacutenta

ldquomostram evidentemente serem as coisas que satildeordquo b) decirclon ldquoeacute claro que do acordordquo

c) decircloi em tois eacutergois ldquoeacute demonstrado pelos fatosrdquo d) phaneacuteontai ldquoparecem

ilimitadasrdquo Bem longe portanto de uma falsificaccedilatildeo platonizante

Haacute algo de significativo tambeacutem no ritmo do fr 2 A ladainha dos limitantes

ilimitados lembra de perto um estilo encantatoacuterio Mais um sinal certamente do

profundo enraizamento do texto filolaico no contexto da produccedilatildeo filosoacutefica preacute-

socraacutetica501 A expressatildeo das ideias eacute aqui performaacutetica eacute como se a repeticcedilatildeo da

harmonia entre limitantes e ilimitados quisesse fazer ecoar nas palavras o som dessa

mesma harmonia tornando-a assim presente pela forccedila das palavras O fragmento de

certa forma pede para ser ouvido em seu ritmos e sonoridade proacuteprios Esse estilo

oracular insere o texto filolaico tambeacutem na tradiccedilatildeo esoteacuterica pitagoacuterica (e natildeo somente

pitagoacuterica) bem descrita por Gemelli Marciano

Nos textos esoteacutericos de Heraacuteclito Parmecircnides Empeacutedocles a recep-ccedilatildeo dos myacutethoi e dos loacutegoi eacute expressa unicamente pelo verbo akoucircein ouvir Que natildeo seja simplesmente a reproduccedilatildeo artificial de uma situ-accedilatildeo de transmissatildeo oral mas de uma situaccedilatildeo efetiva resulta especi-almente evidente no momento em que a palavra eacute expressamente defi-nida como uma entidade fiacutesica que penetra no corpo provocando mu-taccedilotildees O poder de accedilatildeo e de transformaccedilatildeo exercido pela palavra em sua fisicidade eacute por outro lado o elemento fundamental dos encanta-mentos e das foacutermulas maacutegicas como Goacutergias testemunha explicita-mente em seu Elogio de Helena (Gemelli Marciano 2007 449-450)502

περαίνοντι τὰ δ ἐκ περαινόντων τε καὶ ἀπείρων περαίνοντί τε καὶ οὐ περαίνοντι τὰ δ ἐξ ἀπείρων ἄπειρα φανέονταιgtrdquo (44 B2 DK) 501 Burkert (1972 252 n67) cita os fragmentos 6 de Anaxaacutegoras e 8 de Parmecircnides como exemplos desse mesmo estilo 502 Orig ldquoIn den esoterischen Texten Von Heraklit Parmenides und Empedokles wird die Rezeption der Myacutethoi und Loacutegoi ausscheliesslich mit dem Verb akouacuteein houmlren ausgedruumlckt Dass es sich dabei nicht einfach nur um die gekuumlnstelte Nachahmung einer oralen Vermittlungssituation sondern um ein reales Geschehen handelt wrid vor allem an dem Stellen deutilich an denen das Wort explizit als physische Entitaumlt aufgefasst wird dir in den Koumlrper endringt und dort Aumlnderungen hervorruft Die maumlchtige Wir-

220

A pluralidade e a naturalidade (no sentido de serem atributos da phyacutesis entendida

como natureza real) dos ilimitadoslimitantes satildeo confirmadas tambeacutem pelo fato de

Filolau recusar-se a definir ou enumerar exatamente o que entende ou quais realidades

considera como limitantes e ilimitadas isto eacute a dar uma lista de princiacutepios limitantes e

outra de princiacutepios ilimitados como poderiam ser a aacutegua o fogo etc

De fato na primeira parte do fr 6 assim expressa-se

Sobre a natureza e a harmonia as coisas estatildeo assim o ser das coisas que eacute eterno e a proacutepria natureza requerem um conhecimento divino e natildeo humano Aleacutem disso seria impossiacutevel que alguma das coisas que satildeo fosse por noacutes conhecida se natildeo tivesse como fundamento o ser das realidades que formam o mundo ordenado isto eacute as limitantes e as ilimitadas (44 B6 1-8 DK)503

Longe de tratar-se simploriamente de um exemplo da ldquomodeacutestia caracteriacutestica do

pensamento arcaicordquo (Kahn 1974 173) 504 aqui a referecircncia ao divino ndash analogamente

presente nas paacuteginas acima citadas do Filebo ndash apresenta-se mais como uma afirmaccedilatildeo

em polecircmica antijocircnica No sentido de que a definiccedilatildeo da realidade uacuteltima encontra-se

tatildeo ldquoaleacutem das capacidades de conhecimento humanordquo seria mais adequado contentar-se

em definir que todas as realidades devem ter surgido de alguma forma de limitantes e

ilimitados no lugar de imaginar desajeitadamente archaiacute como a aacutegua o ar etc Se al-

guma coisa seraacute entatildeo cognociacutevel esta seraacute a realidade das coisas visiacuteveis o mundo

fiacutesico portanto505 Provavelmente por esse motivo Aristoacuteteles (Met 989b) como se

viu afirmava que a filosofia pitagoacuterica explicava melhor os entes fiacutesicos ainda que os

princiacutepios por eles desenvolvidos se prestassem mais para o niacutevel suprassensiacutevel

Eacute possiacutevel ouvir aqui no fr 6 ecos da mesma preocupaccedilatildeo que Platatildeo parece

colocar na boca de Soacutecrates quando polemiza com ldquoos saacutebios de agorardquo (Filebo 17a)

kung und Veraumlnderun die das Wort qua seiner Koumlrperlichkeit ausuumlbt ist im uumlbrigen das grundlegende Element aller magischen Formeln und Zauber wie Gorgias im Helena-Enkomion ausdruumlcklich erklaumlrtrdquo 503 Orig ldquo περὶ δὲ φύσιος καὶ ἁρmicroονίας ὧδε ἔχει ἁ microὲν ἐστὼ τῶν πραγmicroάτων ἀίδιος ἔσσα καὶ αὐτὰ microὲν ἁ φύσις θείαν γα καὶ οὐκ ἀνθρωπίνην ἐνδέχεται γνῶσιν πλέον γα ἢ ὅτι οὐχ οἷόν τ ἦν οὐθὲν τῶν ἐόντων καὶ γιγνωσκόmicroενον ὑφ ἁmicroῶν γα γενέσθαι microὴ ὑπαρχούσας τᾶς ἐστοῦς τῶν πραγmicroάτων ἐξ ὧν συνέστα ὁ κόσ-microος καὶ τῶν περαινόντων καὶ τῶν ἀπείρωνrdquo (44 B6 1-8 DK) 504 Orig ldquoepistemic modesty that is custumary in archaic thoughtrdquo (Kahn 1974 173) 505 Cf Bolzani Filho (2006) para a relaccedilatildeo entre o elemento divino e a explicaccedilatildeo fiacutesica dos fenocircmenos em Tales de Mileto ldquoo divino permanece desempenhando papel decisivo nessa nova forma de ver o mundo porque eacute a ele que ainda se recorre para veicular o que ultrapassa o humanordquo (2006 106)

221

pelo fato de estes passarem de maneira demasiadamente apressada do um para o infini-

to sem considerar as realidades intermediaacuterias isto eacute em pretensa continuidade com a

tradiccedilatildeo pitagoacuterica sem considerar a determinaccedilatildeo numeacuterica Pois eacute exatamente aquilo

que estaacute no meio que se apresenta para Platatildeo como decisivo para a compreensatildeo do

mundo Ainda que Filolau ldquoinocente das distinccedilotildees posterioresrdquo (Huffman 1993 52)

esteja aqui revelando mais simplesmente uma polecircmica com Anaximandro por exem-

plo mas tambeacutem com Anaxaacutegoras e seus archaiacute indeterminados

A polecircmica antipluralista coloca Filolau de acordo com Parmecircnides Semelhante

preocupaccedilatildeo epistecircmica eacute confirmada tambeacutem pelo fr 3 ldquoDe maneira alguma seria pos-

siacutevel conhecer algo se todas as coisas fossem ilimitadasrdquo (44 B3 DK)506 A aproxima-

ccedilatildeo com a filosofia eleaacutetica eacute evidente tambeacutem no uso do termo estocirc no fr 6 que foi

traduzido por ldquoserrdquo o ser das coisas (estocirc tocircn pragmaacuteton) e que eacute definido aidiacuteos eter-

no Como no Poema de Parmecircnides tambeacutem em Filolau o ser eacute como tal incognociacutevel

a menos que natildeo intervenha uma revelaccedilatildeo divina Eacute certamente preciso ndash mais uma vez

ndash resistir agrave tentaccedilatildeo de compreender estocirc a partir das categorias aristoteacutelicas natildeo se trata

aqui da mateacuteria indiferenciada ou a causa material agrave qual o limite-harmonia ou causa

formal daraacute forma Ao contraacuterio estocirc eacute constituiacutedo por ambas as realidades as ilimita-

das e as limitantes e a polecircmica de Filolau como se viu eacute interna agrave dialeacutetica preacute-

socraacutetica Eacute este certamente mais um sinal da antiguidade da doutrina507

O caminho de Filolau eacute certamente original mesmo no interior da filosofia preacute-

socraacutetica pois por um lado natildeo expressa uma posiccedilatildeo monista uma vez que o ser resul-

ta da pluralidade de ilimitadoslimitantes por outro lado o ceticismo epistemoloacutegico do

fr 6 eacute moderado pela possibilidade de conhecer ao menos duas coisas isto eacute esta mes-

ma pluralidade e a harmoniacutea que a manteacutem unida acordada

Eacute exatamente a harmoniacutea o acordo (harmoacutechthe) entre os limitantesilimitados

em uacuteltima anaacutelise que permite explicar o surgimento da realidade como testemunham

tanto o fr 1 quanto o fr 6 A introduccedilatildeo desse terceiro elemento conectivo

harmonizador dos limitantesilimitados faz Filolau comeccedilar a procurar exemplos de

506 Orig ldquo ltἀρχὰνgt γὰρ ltοὐδὲ τὸ γνωσούmicroενον ἐσσεῖται πάντων ἀπείρων ἐόντωνgt κατὰ τὸν Φιλόλαονrdquo (44 B3 DK) 507 Concordam com esta interpretaccedilatildeo Burkert (1972 256) e Kahn (1974 173) Huffman (1993 130ss) e Centrone (1996 125) lembram o fato de essa homologaccedilatildeo do ἐστὼ com a causa material aristoteacutelica ser uma das caracteriacutesticas da literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica

222

como as coisas satildeo ldquoacordadasrdquo508 Primeiro entre todos o fogo parece um bom

exemplo no fr 7 ldquoo primeiro acordado o um no meio da esfera eacute chamado fogordquo (44

B7 DK)509 O fogo parece prestar-se bem agraves intenccedilotildees explicativas de Filolau ao

mesmo tempo siacutembolo do ilimitaacutevel seu estar cosmologicamente no centro da esfera o

delimita claramente510 Eacute possiacutevel que exatamente essa referecircncia filolaica ao fogo

como um no centro da esfera possa explicar a citaccedilatildeo prometeacutetica relativa agraves origens

pitagoacutericas da teoria do limitanteilimitado no Filebo Ainda que seja possiacutevel trata-se

aqui de simples assonacircncias conceituais511

Contudo o acircmbito exemplificativo que mais interessa em relaccedilatildeo tanto ao

testemunho aristoteacutelico quanto agrave recepccedilatildeo platocircnica do Filebo eacute o da escala musical Na

segunda parte do fr 6 eacute definida uma grandeza do acordo (harmoniacutea meacutegethos) no

interior da descriccedilatildeo da escala diatocircnica pitagoacuterica (a mesma que eacute pressuposta no

Timeu 35b)

A grandeza do acordo eacute formada pelos intervalos da quarta e de quin-ta A quinta eacute maior do que a quarta por um tom De fato da cordatom mais alta agrave corda do meio eacute uma quarta da do meio agrave ultima eacute uma quinta Da uacuteltima agrave terccedila eacute uma quarta e da terceira agrave mais alta uma quinta O intervalo entre a do meio e a terceira eacute um tom (98) a quar-ta eacute expressa pela relaccedilatildeo epiacutetrita (43) e a quinta pelo emioacutelio (32) e a oitava pelo duplo (21) Assim o acordo (escala harmocircnica) com-preende cinco tons e dois semitons menores a quinta trecircs tons e um semitom menor a quarta dois tons e um semitom menor (44 B6 16-24 DK)512

508 Frank (1923 304ss) observa que exatamente esta necessidade de fornecer provas de seus argumentos seria um sinal inequiacutevoco de que se trata no caso dos fragmentos de Filolau de uma falsificaccedilatildeo heleniacutes-tica Todavia o que se diraacute em seguida sobre os meacutetodos das archaiacute que Filolau compartilha com autores do seacuteculo V aEC como Hipoacutecrates de Quios e Heroacutedoto deveraacute sugerir exatamente o contraacuterio 509 Orig ldquo ltτὸ πρᾶτον ἁρmicroοσθέν τὸ ἕν ἐν τῶι microέσωι τᾶς σφαίρας ἑστία καλεῖταιgtrdquo (44 B7 DK) 510 Cf outros testemunhos doxograacuteficos paralelos em A16 e A17 511 Outros exemplos surgem do acircmbito meacutedico-antropoloacutegico como eacute o caso de um paralelismo significa-tivo entre o fogo e o calor da vida (Huffman 1993 45) A economia destas paacuteginas torna impossiacutevel uma anaacutelise detalhada dessas referecircncias 512 Orig ldquo ἁρmicroονίας δὲ microέγεθός ἐστι συλλαβὰ καὶ δι ὀξειᾶν τὸ δὲ δι ὀξειᾶν microεῖζον τᾶς συλλαβᾶς ἐπογδ-όωι ἔστι γὰρ ἀπὸ ὑπάτας ἐπὶ microέσσαν συλλαβά ἀπὸ δὲ microέσσας ἐπὶ νεάταν δι ὀξειᾶν ἀπὸ δὲ νεάτας ἐς τρίταν συλλαβά ἀπὸ δὲ τρίτας ἐς ὑπάταν δι ὀξειᾶν τὸ δ ἐν microέσωι microέσσας καὶ τρίτας ἐπόγδοον ἁ δὲ συλλαβὰ ἐπίτριτον τὸ δὲ δι ὀξειᾶν ἡmicroιόλιον τὸ διὰ πασᾶν δὲ διπλόον οὕτως ἁρmicroονία πέντε ἐπόγδοα καὶ δύο διέσιες δι ὀξειᾶν δὲ τρία ἐπόγδοα καὶ δίεσις συλλαβὰ δὲ δύ ἐπόγδοα καὶ δίεσιςrdquo (44 B6 16-24 DK)

223

Aqui a imagem de limitantes e ilimitados ndash como na teoria musical e no exem-

plo que Platatildeo utiliza no Filebo ndash eacute aquela de uma corda musical um contiacutenuo ilimita-

do na qual satildeo definidos limitados intervalos especiacuteficos513 Mais uma vez a harmoni-

a o acordo natildeo devem ser nunca confundidos com o limitante o acordo funciona pelo

nuacutemero mas o nuacutemero e o acordo natildeo se substituem aos limitantes

A passagem no interior do mesmo fr 6 de uma primeira parte cosmoloacutegica para

uma segunda parte musical natildeo surpreende especialmente agrave luz do testemunho aristoteacute-

lico jaacute citado que conecta exatamente essas duas dimensotildees no resumo da teoria numeacute-

rica pitagoacuterica ldquoPensavam serem os elementos dos nuacutemeros os elementos de todas as

coisas e que a totalidade do ceacuteu eacute harmonia e nuacutemerordquo (Met 986a3)

A possibilidade indicada pelo fragmento de Filolau de numerar os intervalos

consoantes remete novamente para o tema central deste capiacutetulo isto eacute aquele do nuacute-

mero pitagoacuterico Eacute significativo que ateacute este momento no interior dos fragmentos de

Filolau o nuacutemero como tal natildeo apareccedila E todavia como o fr 6 acima testemunha a

tematizaccedilatildeo do nuacutemero natildeo eacute totalmente ausente no interior dos fragmentos

Resta perguntar-se portanto qual seria a funccedilatildeo dos nuacutemeros no interior do sis-

tema filolaico e qual a relaccedilatildeo destes com a dupla limitantesilimitados

422 O papel dos nuacutemeros em Filolau

Eacute o fr 4 de Filolau a indicar mais precisamente qual devia ser o papel dos nuacuteme-

ros em sua filosofia

E de verdade todas as coisas que satildeo conhecidas tecircm nuacutemero Pois desta forma natildeo eacute possiacutevel que alguma coisa seja compreendida ou conhecida sem este (44 B4 DK)514

A expressatildeo arithmoacuten eacutechonti ldquotecircm nuacutemerordquo deve ser compreendida no rastro

da compreensatildeo grega dos arithmoiacute como pluralidade ordenada no sentido de que a

realidade eacute constituiacuteda por uma pluralidade ordenada ldquoTodas as coisas tecircm nuacutemerordquo

513 Para um estudo aprofundado da relaccedilatildeo entre a teoria musical grega e os instrumentos de cordas veja-se Rocconi (2003) aleacutem do recentiacutessimo estudo sobre o monocoacuterdio de Creese (2010) 514 Orig ldquo ltκαὶ πάνταgt γα ltmicroὰν τὰ γιγνωσκόmicroενα ἀριθmicroὸν ἔχοντι οὐ γὰρ οἷόν τε οὐδὲν οὔτε νοηθῆmicroεν οὔτε γνωσθῆmicroεν ἄνευ τούτουgtrdquo (44 B4 DK)

224

significa na praacutetica ldquotodas as coisas satildeo basicamente nuacutemerordquo (Burkert 1972

266s)515 Todavia a segunda parte do fragmento natildeo deixa duacutevidas em relaccedilatildeo a qual

deveria ser o papel dos nuacutemeros em Filolau A funccedilatildeo destes eacute precisamente epistemo-

loacutegica graccedilas ao fato de a realidade ldquoter nuacutemerordquo eacute que ela pode ser conhecida enquan-

to eacute passiacutevel de uma descriccedilatildeo numeacuterica

O argumento epistemoloacutegico do fr 4 foi obviamente considerado desde Bywa-

ter (1868 35) uma prova da inautenticidade dos fragmentos filolaicos Todavia diver-

sos comentadores chamaram atenccedilatildeo mais recentemente para o paralelo interesse fun-

damentalmente epistemoloacutegico em filoacutesofos preacute-socraacuteticos anteriores ao Filolau como

seria o caso da proacutepria filosofia de Parmecircnides516 Huffman (1993 67) anota com razatildeo

que os nuacutemeros respondem diretamente agraves exigecircncias epistemoloacutegicas parmenideias as

mesmas que no Poema satildeo postas como ldquosinaisrdquo no caminho do ser (28 B8 DK) para

que possa haver conhecimento o objeto deveraacute ser ingecircnito eterno etc Em suma algo

limitado Todavia como se viu acima Filolau deseja fugir da imobilidade do ser eleaacuteti-

co Exatamente a introduccedilatildeo dos nuacutemeros parece a melhor soluccedilatildeo para manter de um

lado a pluralidade do outro a determinaccedilatildeo do ser As relaccedilotildees matemaacuteticas expressas

pela escala musical do fr 6 de fato satildeo perfeitamente determinadas e podem ser encon-

tradas na realidade Ainda que a realidade revele-se primariamente como harmonia de

limitantesilimitados portanto e natildeo como nuacutemero este uacuteltimo pode ser considerado

como sinal (agrave maneira de Parmecircnides) do ser das coisas que satildeo

Eacute o que sugere o fr 5 que utiliza exatamente o verbo semaiacuteno para descrever

como a realidade expressa os nuacutemeros

O nuacutemero possui duas espeacutecies que lhe satildeo proacuteprias o iacutempar e o par a terceira resultante da mistura de ambos eacute o pariacutempar De cada uma das duas espeacutecies existem muitas formas das quais cada coisa en-quanto tal daacute sinais (44 B5 DK)517

515 Novamente dessa forma se poderia confirmar a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles de que para os pitagoacutericos os nuacutemeros satildeo as proacuteprias coisas (autaacute taacute praacutegmata) e natildeo intermediaacuterios (metaxuacute) conforme Platatildeo 516 Cf especialmente Mourelatos (1970) e Kahn (1968-69) e mais recentemente Curd (1998) e Robbiano (2006) 517 Orig ldquo ltὅ γα microὰν ἀριθmicroὸς ἔχει δύο microὲν ἴδια εἴδη περισσὸν καὶ ἄρτιον τρίτον δὲ ἀπ ἀmicroφοτέρων microειχ-θέντων ἀρτιοπέριττον ἑκατέρω δὲ τῶ εἴδεος πολλαὶ microορφαί ἃς ἕκαστον αὐταυτὸ σηmicroαίνειgtrdquo (44 B5 DK)

225

As trecircs espeacutecies dos nuacutemeros propriamente natildeo correspondem agrave realidade e

sim a sinais emitidos pela realidade para que esta possa ser conhecida A bem ver por-

tanto Filolau natildeo diz que a realidade como tal eacute nuacutemero (como diraacute Aristoacuteteles) e sim

que eacute cognociacutevel pelo nuacutemero desde que se captem os sinais que ela emite A realidade

mesma eacute de fato constituiacuteda por coisas limitantes e coisas ilimitadas das quais os nuacuteme-

ros podem ser considerados sinais Aqui reside talvez a maior originalidade do pensa-

mento de Filolau a introduccedilatildeo da dupla de princiacutepios limitantesilimitados como princiacute-

pios explicativos da realidade e natildeo como jaacute de alguma forma algo real Uma perspec-

tiva mais epistemoloacutegica do que ontoloacutegica portanto Bem longe de tratar-se simples-

mente de ldquouma mistura de mito e fisiologiardquo (Burkert 1972 350)518

E todavia o fr 5 sugere poder haver em uacuteltima anaacutelise uma correspondecircncia

entre estes dois niacuteveis o ontoloacutegico (limitantesilimitados) e epistemoloacutegico (par-

iacutempar) A introduccedilatildeo de uma terceira espeacutecie de fato o artiopeacuteritton o ldquopariacutemparrdquo

pode corresponder na ordem argumentativa agrave introduccedilatildeo da harmoniacutea para a dupla limi-

tantesilimitados Eacute o que sugere o proacuteprio Aristoacuteteles conforme foi antecipado acima

quando propotildee uma direta correspondecircncia entre as duas duplas ldquoafirmam como ele-

mentos constitutivos do nuacutemero o par e o iacutempar dos quais o primeiro eacute ilimitado e o

segundo limitado O um deriva de ambos os elementos porque eacute par e iacutempar ao mesmo

tempordquo (Met 986a 17-19)519 Aristoacuteteles explicita mais precisamente o sentido dessa

correspondecircncia entre par e limitado e iacutempar e ilimitado em Fiacutesica (203a)

Para eles [os pitagoacutericos] o ilimitado eacute o nuacutemero par Este de fato quando interceptado e limitado pelo iacutempar torna presente a indeter-minaccedilatildeo aos entes Sinal disso eacute o que acontece com os nuacutemeros de fato conforme sejam colocados ou menos os gnomotildees em torno ao um a espeacutecie (do nuacutemero) permanece uma soacute ou ao contraacuterio torna-se sempre diferente (Phys 203a = 58 B28 DK)520

518 Orig ldquo melaacutenge of myth and physiologiacuteardquo 519 Orig ldquo τοῦ δὲ ἀριθmicroοῦ στοιχεῖα τό τε ἄρτιον καὶ τὸ περιττόν τούτων δὲ τὸ microὲν πεπερασmicroένον τὸ δὲ ἄπειρον τὸ δ ἓν ἐξ ἀmicroφοτέρων εἶναι τούτων (καὶ γὰρ ἄρτιον εἶναι καὶ περιττόν)rdquo (Met 986a 17-19) 520 Orig ldquo καὶ οἱ microὲν τὸ ἄπειρον εἶναι τὸ ἄρτιον (τοῦτο γὰρ ἐναπολαmicroβανόmicroενον καὶ ὑπὸ τοῦ περιττοῦ περαινόmicroενον παρέχειν τοῖς οὖσι τὴν ἀπειρίαν σηmicroεῖον δ εἶναι τούτου τὸ συmicroβαῖνον ἐπὶ τῶν ἀριθmicroῶν περιτιθεmicroένων γὰρ τῶν γνωmicroόνων περὶ τὸ ἓν καὶ χωρὶς ὁτὲ microὲν ἄλλο ἀεὶ γίγνεσθαι τὸ εἶδος ὁτὲ δὲ ἕν)rdquo (Phys 203a = 58 B28DK)

226

A explicaccedilatildeo aristoteacutelica pode ser facilmente visualizada a partir do momento

em que se utilize a aritmeacutetica dos pseacutephoi de Eurito acima citada521 Colocando de fato

um gnoacutemon um esquadro para desenhar acircngulos retos em volta do um ou do dois res-

pectivamente resultam duas seacuteries diferentes de nuacutemeros os pares e os iacutempares O es-

quadro que circunscreve o um iraacute sempre interceptar nuacutemeros iacutempares resultando sem-

pre em figuras quadradas O esquadro que circunscreve os nuacutemeros pares ao contraacuterio

iraacute sempre desenhar retacircngulos isto eacute figuras geomeacutetricas de lados sempre diferentes

conforme a figura abaixo

Para aleacutem da indistinccedilatildeo entre plano numeacuterico e plano cosmoloacutegico da qual A-

ristoacuteteles queixava-se (cf acima Met 990a18-22) o testemunho de Fiacutesica 203a acaba

confirmando a autenticidade de certa correspondecircncia em Filolau entre os princiacutepios

ilimitadoslimitados e os nuacutemeros Eacute significativo tambeacutem que agrave harmoniacutea citada por

Filolau na segunda parte de seu fr 6 sobre as proporccedilotildees numeacutericas das escalas musi-

cais eacute atribuiacuteda uma grandeza (meacutegethos) De certa forma eacute possiacutevel imaginar que Fi-

lolau estivesse pensando a harmonia entre limitantes e limitados como algo que pudesse

ser ele mesmo expresso numericamente

Contudo eacute ainda o fr 5 de Filolau a natildeo autorizar a levar essa correspondecircncia

muito longe pois a realidade semaiacutenei ldquodaacute sinaisrdquo dos nuacutemeros pelos quais ela pode ser

contada (ldquotecircm nuacutemerosrdquo diz no fr 4) isto eacute explicada Poreacutem os nuacutemeros natildeo satildeo a

realidade e menos ainda coincidem com os princiacutepios ilimitadoslimitantes

Eacute verdade que o uso da aritmogeometria por Filolau eacute inegaacutevel como a explica-

ccedilatildeo de Aristoacuteteles (Phys 203a) sugeriu O proacuteprio testemunho A7a declara a proemi-

necircncia atribuiacuteda por ele agrave geometria sobre todas as outras ciecircncias ldquoa geometria eacute prin-

521 Eurito eacute considerado pela doxografia disciacutepulo de Filolau (D L Vitae III 6 VII 46)

227

ciacutepio e paacutetria-matildee das outras ciecircnciasrdquo (44 A7a DK)522 Aqui a geometria eacute dita ser

archeacute das ciecircncias da mesma forma como a cidade-matildee eacute archeacute de suas colocircnias isto eacute

como causa e princiacutepio explicativo de sua existecircncia

Todavia o interesse de Filolau pelos nuacutemeros eacute fundamentalmente por estes

como princiacutepios explicativos da realidade no interior daquela nova forma de investiga-

ccedilatildeo que foi chamada de meacutetodo das archaiacute uma metodologia de pesquisa que busca os

princiacutepios suficientes para a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos que ocupa tanto historiadores

quanto filoacutesofos geocircmetras e meacutedicos ao longo do seacuteculo V aEC523

Prova disso eacute a jaacute citada passagem do Anocircnimo Londinense (44 A27 DK) Nela

Filolau afirma primeiramente que o corpo ldquoeacute constituiacutedo de calorrdquo em interessante pa-

ralelo com o fragmento sobre o fogo no centro da esfera (44 B7 DK) que indicaria uma

correspondecircncia entre cosmologia e medicina que remete para o pensamento macro-

microcoacutesmico arcaico conforme foi considerado acima em relaccedilatildeo agrave embriologia Po-

reacutem em um segundo momento chama archaiacute do ldquosurgimento das doenccedilasrdquo respecti-

vamente ldquobiacutelis sangue e catarrordquo Huffman (1993 289) afirma que a argumentaccedilatildeo aqui

atribuiacuteda a Filolau incorre em uma contradiccedilatildeo como indicar trecircs diversas archaiacute para

as doenccedilas sendo que no iniacutecio do mesmo testemunho Filolau afirmaria serem nossos

corpos constituiacutedos pelo uacutenico princiacutepio o calor Natildeo seria mais coerente atribuir ao

mesmo princiacutepio (o calor) a origem das doenccedilas

Contudo o procedimento argumentativo de Filolau eacute anaacutelogo agravequele que este

desempenha em relaccedilatildeo aos nuacutemeros enquanto o calor eacute princiacutepio suficiente para expli-

car embriologicamente o surgimento do ser vivente para compreender a origem das

doenccedilas satildeo necessaacuterios ao contraacuterio trecircs diferentes princiacutepios Da mesma forma ndash esta

eacute a tese que se quer defender ndash o fato de a realidade ser constituiacuteda por ilimitados e limi-

tantes natildeo significa que estes possam explicar todas as coisas pois a realidade tem tam-

beacutem nuacutemeros e com suas seacuteries e relaccedilotildees os nuacutemeros satildeo suficientes para explicar di-

versos fenocircmenos entre eles as escalas musicais do fr 6

522 Orig ldquo γεωmicroετρία κατὰ τὸν Φιλόλαον ἀρχὴ καὶ microητρόπολις τῶν ἄλλων (microαθηmicroάτων)rdquo (44 A7a DK) 523 Eacute o caso de remeter a um meu estudo anterior para o detalhamento desse meacutetodo das archaiacute e suas referecircncias Cf Cornelli (2003c) Cf para esta referecircncia tambeacutem Burkert (1972 420 ldquoFrom about the middle of the fifth century it is clear that mathematics is a center of intellectual interest Almost all the important thinkers are concerned with mathematical questionsrdquo) e Huffman (1993 78-92)

228

O uso dos nuacutemeros como princiacutepios explicativos em sentido mais epistemoloacutegi-

co que ontoloacutegico eacute o argumento mais forte de Huffman contra a lectio de Burkert da

teoria dos nuacutemeros de Filolau que evidencia suas caracteriacutesticas fundamentais de misti-

cismo dos nuacutemeros524 A base da discoacuterdia estaacute na existecircncia de testemunhos de Filolau

que indicariam essa abordagem numeroloacutegica Eacute certamente o caso de A14 que atribui

figuras geomeacutetricas a determinadas divindades e que desde Tannery (1899) eacute associado

ao primeiro aparecimento da astrologia na Greacutecia Resquiacutecio dessa mesma numerologia

poderia estar no proacuteprio testemunho de Aristoacuteteles da associaccedilatildeo de determinados nuacute-

meros a propriedades e entidades como a justiccedila a alma ou o intelecto (Met 985b27-32

cf acima) Na mesma linha Filolau refere-se no fr 20 ao nuacutemero sete como nuacutemero

ldquovirgemrdquo e ldquosem-matildeerdquo (44 B20 DK)525

Essas observaccedilotildees somando-se ao fato de os fragmentos de Filolau natildeo revela-

rem grandes descobertas ou avanccedilos em relaccedilatildeo a teorias matemaacuteticas de seus contem-

poracircneos sugerem que seria outro o uso que ele faria dos nuacutemeros

Em contrapartida a tese de Huffman incorre tambeacutem em dificuldades quando

aplicada ao acircmbito agora tratado da embriologia e medicina do Anocircnimo Londinense

pelo fato de Filolau natildeo se referir em algum momento aos nuacutemeros para explicar ambos

os campos Isto eacute ainda mais significativo quando se olha para o fato de que o uso da

matemaacutetica no proacuteprio corpus hipocraacutetico eacute bastante atestado notadamente em relaccedilatildeo

aos ciclos da gravidez e agraves diversas fases das doenccedilas526 De alguma forma parece que

o ldquoprograma de Filolaurdquo (Huffman 1993 74) de busca da estrutura numeacuterica da realida-

524 Cf para isso o que foi dito acima (18) em relaccedilatildeo ao uso do termo aritmologia para indicar mais pre-cisamente a tradiccedilatildeo numeroloacutegica pitagoacuterica Para amplo estudo sobre a histoacuteria da tradiccedilatildeo da aritmolo-gia cf Robbins (1921) Para recente avaliaccedilatildeo criacutetica da relaccedilatildeo entre a aritmologia pitagoacuterica e o desen-volvimento da matemaacutetica grega antiga cf Cambiano (1992) 525 Ainda que francamente destemperada a resenha criacutetica de Kingsley (1994) ao livro de Huffman sobre Filolau dedica-se exatamente a questionar o excessivamente raacutepido descarte (dismiss) de A14 e da refe-recircncia astroloacutegica nele contida como uma falsificaccedilatildeo poacutes-platocircnica Huffman argumenta que esta refe-recircncia seria uma elaboraccedilatildeo a partir do Timeu de Platatildeo Kingsley responde que a influecircncia da astrologia babilocircnica sobre a Greacutecia do seacuteculo V aEC foi amplamente provada e que portanto seria esta a origem da temaacutetica em Filolau (e depois em Platatildeo) O destempero da criacutetica de Kingsley eacute bem resumido na frase final da resenha ldquoHuffman presents a picture of him [Philolaus] ultimately as false as any Philolaic forgery in antiquityrdquo (1994 296) 526 Lloyd (1989 257) confirma ldquoGreat importance is attached by many Hippocratic authors to the study of numerical relationships in connection with the determination of periodicities notably in two types of context (1) pregnancy and childbirth and (2) the phases of diseases especially their crises the points at which exacerbations or remissions are to be expectedrdquo Burkert (1972 264) imagina todavia ao contraacuterio uma influecircncia de Filolau ndash e mais em geral dos conceitos pitagoacutericos de harmonia e nuacutemero sobre o corpus hipocraacutetico ldquowe perceive in the Hippocratic corpus reflections of Pythagorean doctrines which were probably in written form and the most likely source is the book of Philolausrdquo

229

de natildeo tenha sido levado de fato a cabo ateacute o fim se eacute verdade que no toacutepico da embrio-

logia e da medicina natildeo haacute alguma referecircncia a esta pesquisa527

Eacute o caso de concluir que no limite a duacutevida sobre qual seria mais especifica-

mente o papel dos nuacutemeros na obra de Filolau natildeo poderaacute ser esclarecida definitivamen-

te em razatildeo de seu caraacuteter fragmentaacuterio E por esse motivo tanto a tese epistemoloacutegica

quanto aquela numeroloacutegica devem ser consideradas ambas vaacutelidas Contudo natildeo eacute

certamente o caso de concordar com a avaliccedilatildeo displicente de Philip (1966 32) pela

qual mesmo que os fragmentos de Filolau fossem autecircnticos ldquonatildeo seriam capazes de

resolver nossos problemas Pois estes revelam um pensador de natildeo grande estatura cu-

jos interesses foram perifeacutericosrdquo528

Merece ainda ao menos uma breve menccedilatildeo pelo interesse historiograacutefico em re-

laccedilatildeo agravequela que deve ter sido a filosofia dos nuacutemeros de Filolau a referecircncia tradicio-

nal que se faz agrave crise dos incomensuraacuteveis ou irracionais529 Knorr (1975 45) sugere

que Filolau tenha mudado a teoria ldquotudo eacute nuacutemerordquo para a teoria dos limitan-

tesilimitados para responder exatamente agrave descoberta dos irracionais na geometria que

se daria imediatamente antes dele530

A descoberta teria gerado um verdadeiro ldquomelodrama na histoacuteria intelectual gre-

gardquo (Burkert 1972 455) pois na concepccedilatildeo pitagoacuterica dos nuacutemeros agrave maneira das pe-

drinhas de Eurito o fato de certas grandezas geomeacutetricas como a da diagonal do qua-

drado natildeo poderem ser expressas por unidades numeacutericas era algo simplesmente escan-

daloso Haacute todavia contra os argumentos de Knorr uma seacuteria dificuldade cronoloacutegica

no Feacutedon Simias e Cebes afirmam ter ouvido Filolau em Tebas alguns anos antes Por

consequecircncia Filolau devia estar em plena maturidade intelectual no fim do seacuteculo V

aEC o que permite datar seu nascimento por volta de 460-70 e possivelmente devia

estar ainda vivo em Tarento no iniacutecio do seacuteculo IV Estas precisaccedilotildees cronoloacutegicas satildeo

527 Os argumentos de Huffman (1993 75) pelo qual Filolau como faria um cientista moderno esperaria por uma confirmaccedilatildeo da teoria que deveraacute vir de futuras comprovaccedilotildees como tambeacutem de que sua busca natildeo o obrigaria a indicar uma estrutura numeacuterica ldquoa qualquer custordquo enfraquecem de fato a tese de Huff-man e por consequecircncia a ideia de que possa haver um programa de Filolau Cf neste sentido Huffman (1993 77) ldquohis project was nonetheless to find the numbers in things where he could and not to put them there at all costsrdquo 528 Orig ldquothey would not enable us to solve our problems For they reveal a thinker of no great stature whose interests are periphericalrdquo 529 Dediquei um recente artigo a esta questatildeo (Cornelli e Coelho 2007a) para o qual remeto para maiores esclarecimentos em relaccedilatildeo aos motivos e agraves consequencias da referida crise 530 Cf tambeacutem na mesma linha teoacuterica o acima citado Tannery (1887 b) em 17

230

fundamentais para determinar a relaccedilatildeo entre Filolau e Hipoacutecrates de Quiacuteos Filolau natildeo

poderia ter escrito seu livro em reaccedilatildeo ao problema da incomensurabilidade pois os

irracionais seriam descobertos por este uacuteltimo somente em torno do ano de 430 quando

Filolau ndash contemporacircneo de Soacutecrates e Hipoacutecrates ndash e natildeo mais novo do que estes ndash

havia alcanccedilado jaacute sua terceira idade

Contudo o argumento que mais interessa agrave economia desta tese conforme apa-

rece na anaacutelise dos fragmentos acima eacute que o problema da incomensurabilidade no

caso em que tivesse de alguma forma encontrado o pensamento de Filolau natildeo devia de

forma alguma colocar em cheque o sistema de pensamento filolaico notadamente pelo

fato de este natildeo possuir propriamente uma teoria dos nuacutemeros como princiacutepios da reali-

dade ndash da forma que Aristoacuteteles havia lhe atribuiacutedo Ao contraacuterio conforme sugere

Huffman (1988 16) caso Filolau tivesse tido conhecimento da questatildeo dos irracionais

poderia facilmente tornaacute-lo mais um exemplo de sua tese de que todas as coisas satildeo

compostas por limitantes e ilimitados Pois para aleacutem da histoacuteria do melodrama acima

citado as descobertas da incomensurabilidade da hipotenusa do triacircngulo retacircngulo ou a

irracionalidade da diagonal do quadrado devem ter aguccedilado o interesse natildeo exclusivo

dos especialistas por um fenocircmeno que combinava perfeitamente na mesma figura

uma medida ilimitada a da hipotenusa com duas medidas perfeitamente limitadas a

dos catetos531

Enfim natildeo deve importar se Filolau foi ao menos um matemaacutetico de destaque

no interior do progresso que a disciplina obteve ao longo do seacuteculo V aEC Com razatildeo

Burkert (1972 413) anota que ldquoo problema natildeo eacute quem inventou a matemaacutetica mas

quem conectou matemaacutetica e filosofiardquo por primeiro532 Esse foi sem duacutevida Filolau

(Huffman 993 55) E nessa filosofia pitagoacuterica do V seacuteculo aEC que Aristoacuteteles estaacute

quase que exclusivamente interessado

531 Cf Huffman (1988 16) ldquoViewed in this way the case of the diagonal of the square (ie the isosceles right triangle) becomes an excellent illustration of Philolaus central thesis about the cosmos That thesis said that all things are com- posed of two unlike elements limiters and unlimiteds and that since these elements are unlike each other they must be held together by a harmonia which supervenes on them In the case of the isosceles right triangle what must initially have caused wonderment was not only that the hypotenuse cannot be measured by any measure no matter how small but that such a magnitude without measure (an unlimited) is combined in the same figure with magnitudes that do have a measure the sides (limiters)rdquo 532 Orig ldquothe question is not who invented mathematics but who connected mathematics with philoso-phyrdquo

231

O que eacute certo eacute que a relaccedilatildeo entre Filolau e os nuacutemeros eacute a tal ponto significati-

va de merecer o resumo que Aristoacuteteles teria dedicado aos assim chamados pitagoacutericos

e que agrave luz do percurso aqui desenvolvido pode-se certamente considerar como uma

citaccedilatildeo do proacuteprio Filolau

Exatamente porque ldquoinocente das distinccedilotildees posteriores entre sensiacutevel e inteligiacute-

vel e que se tornam importantes mais tarderdquo (Huffman 1993 52-53)533 isto eacute como

exceccedilatildeo ao sistema platonizante (Burkert 1972 230) a doutrina dos nuacutemeros de Filo-

lau concide em diversos lugares com o testemunho aristoteacutelico Por consequecircncia pode

ser considerada de fato a soluccedilatildeo da atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo de uma doutrina

do ldquotudo eacute nuacutemerordquo conforme os sentidos epistemoloacutegico ontoloacutegico e numeroloacutegico ndash

acima detalhados ndash que estas paacuteginas estavam procurando

O resto e natildeo eacute pouco deve-se fundamentalmente agrave recepccedilatildeo platocircnica dessas

teorias

43 Conclusatildeo

Partindo da constataccedilatildeo de que a matemaacutetica eacute certamente um dos elementos

mais recorrentes na tradiccedilatildeo para a identificaccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica analisaram-se

neste capiacutetulo as tendecircncias majoritaacuterias da criacutetica contemporacircnea que submeteram a

uma profunda revisatildeo o testemunho aristoteacutelico decisivo para esta categorizaccedilatildeo do pi-

tagorismo sua afirmaccedilatildeo pela qual para os pitagoacutericos ldquotudo eacute nuacutemerordquo A conclusatildeo agrave

qual chega essa postura hermenecircutica ceacutetica de autores claacutessicos como Frank e Cherniss

eacute a de que toda a matemaacutetica pitagoacuterica seria na realidade resultado de uma transposiccedilatildeo

acadecircmica

Todavia uma mais recente revisatildeo dessas tendecircncias da criacutetica centrada na rea-

valiaccedilatildeo da autenticidade dos fragmentos de Filolau sugeriu um novo caminho herme-

necircutico que aponte para a recuperaccedilatildeo de uma efetiva teoria pitagoacuterica dos nuacutemeros

que estaria presente nas fontes preacute-socraacuteticas

A anaacutelise das diversas citaccedilotildees aristoteacutelicas da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo e de

sua repetida atribuiccedilatildeo aos pitagoacutericos revelou para aleacutem de uma evidente variabilidade

533 Orig ldquoinnocent of distinctions such as that between the intelligible and the sensible which become important laterrdquo

232

semacircntica da teoria algumas contradiccedilotildees teoreacuteticas que o proacuteprio Aristoacuteteles parece

natildeo conseguir resolver a partir daquelas que deviam ser suas fontes escritas Trecircs dife-

rentes versotildees da doutrina estatildeo de fato presentes na doxografia aristoteacutelica a) uma

identificaccedilatildeo dos nuacutemeros com os objetos sensiacuteveis b) uma identificaccedilatildeo dos princiacutepios

dos nuacutemeros com os princiacutepios das coisas que satildeo c) uma imitaccedilatildeo dos nuacutemeros pelos

objetos reais Enquanto as versotildees a) e c) revelaram clara intenccedilatildeo polecircmica de Aristoacutete-

les contra a militacircncia platocircnica pela causa formal a versatildeo b) dos nuacutemeros como cau-

sas formais da realidade demonstra ser uma reconstruccedilatildeo aristoteacutelica da tese pitagoacuterica

A esta reconstruccedilatildeo Aristoacuteteles teria sido levado de um lado pela dificuldade de aceitar

a noccedilatildeo pitagoacuterica material de nuacutemero por outro lado por consideraacute-la mais proacutexima agrave

sua sensibilidade fortemente marcada pela recepccedilatildeo dessa mesma teoria em acircmbito

acadecircmico De fato a tradiccedilatildeo platonizante que faz aqui sua primeira apariccedilatildeo no capiacute-

tulo trata os nuacutemeros como princiacutepios ontoloacutegicos Depois de ter desempenhado um

papel central na definiccedilatildeo das teorias da imortalidade (344) a recepccedilatildeo acadecircmica das

doutrinas pitagoacutericas aparece aqui novamente tambeacutem no acircmbito da teoria dos nuacutemeros

O resumo aristoteacutelico da teoria dos nuacutemeros revela-se ao mesmo tempo estar em de-

pendecircncia e em polecircmica com o platonismo Apesar de estar clara aquela que Aristoacutete-

les devia considerar a intuiccedilatildeo fundamental dos pitagoacutericos isto eacute a possibilidade de

compreender a natureza pelos nuacutemeros o fato eacute que a tentativa de conciliaccedilatildeo que Aris-

toacuteteles estaria operando a partir das fontes preacute-socraacuteticas de um lado e da mediaccedilatildeo

platocircnica do outro natildeo pareceu bem-sucedida

Diante dessas dificuldades duas soluccedilotildees foram apresentadas mais recentemente

para verificar o sentido e a validade da doutrina ldquotudo eacute nuacutemerordquo De um lado Zhmud

aprofundando uma jaacute claacutessica posiccedilatildeo de Burnet contesta radicalmente a validade do

testemunho aristoteacutelico chegando a negar que ao protopitagorismo corresponda uma

doutrina do nuacutemero como tal perante o insucesso na busca de alguma referecircncia a ela

nas fontes preacute-socraacuteticas A conclusatildeo dessa tese negacionista eacute simplesmente que Aris-

toacuteteles teria criado para as finalidades internas agrave sua histoacuteria doxograacutefica dos predeces-

sores um denominador comum doutrinaacuterio (ldquotudo eacute nuacutemerordquo) para uma escola filosoacutefi-

ca que se lhe apresentava como pouco coesa do ponto de vista doutrinaacuterio e que acaba

por identificar com a categoria historiograacutefica dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo Em

reaccedilatildeo a essa soluccedilatildeo Huffman retomando por sua vez uma intuiccedilatildeo de Burkert em-

preendeu um atento trabalho de reavaliaccedilatildeo das fontes preacute-socraacuteticas do pitagorismo

233

que deviam estar ldquona mesardquo de Aristoacuteteles em busca de possiacuteveis referenciais histoacutericos

para a reconstruccedilatildeo aristoteacutelica O fato de Aristoacuteteles demonstrar atingir uma literatura

pitagoacuterica escrita assim como os modos de utilizaccedilatildeo desta em sua proacutepria produccedilatildeo

literaacuteria sobre os pitagoacutericos que foi certamente significativa parece identificar como

fonte primaacuteria de Aristoacuteteles exatamente o livro de Filolau e com este o pitagorismo

do V seacuteculo aEC Contudo mesmo essa soluccedilatildeo filolaica apresenta uma dificuldade

natildeo haacute em Filolau alguma referecircncia expliacutecita a essa doutrina do ldquotudo eacute nuacutemerordquo

Mais que soluccedilatildeo portanto a ldquoquestatildeo filolaicardquo apresenta-se ao contraacuterio co-

mo uma gangorra hermenecircutica entre a platonizaccedilatildeo acadecircmica de um lado e a recons-

truccedilatildeo aristoteacutelica do outro Tanto a inconsistecircncia da tradiccedilatildeo sobre a produccedilatildeo literaacuteria

de Filolau como a existecircncia de ampla literatura pseudoepigraacutefica heleniacutestica sugerem a

necessidade de um atento trabalho de peneira dos fragmentos de Filolau em busca dos

motivos mais autecircnticos de sua filosofia Em uacuteltima anaacutelise as duas questotildees dependem

de uma caracteriacutestica fundamental da literatura pitagoacuterica pseudoepigraacutefica heleniacutestica

que eacute aquela de derivar sua compreensatildeo da relaccedilatildeo entre pitagorismo e platonismo de

maneira cada vez diferente nos diversos momentos da histoacuteria da polecircmica intra-

acadecircmica entre dogmaacuteticos e ceacuteticos Por outro lado no interior da reconstruccedilatildeo platocirc-

nico-pitagorizante da filosofia dos ldquoantigosrdquo a descriccedilatildeo que Aristoacuteteles no seacuteculo IV

aEC faz do pitagorismo natildeo encontra eco algum Ao contraacuterio o valor de seu testemu-

nho eacute amplamente criticado em seguida pela tradiccedilatildeo platocircnica Poreacutem eacute exatamente

esta distinccedilatildeo da lectio aristoteacutelica em relaccedilatildeo ao onipresente ldquosistema de derivaccedilatildeordquo da

tradiccedilatildeo platocircnica que constitui verdadeira alavanca hermenecircutica para a questatildeo filo-

laica pois a proximidade dos fragmentos atribuiacutedos a Filolau com a lectio aristoteacutelica

dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo pode tornar-se sinal de sua autenticidade

Aristoacuteteles de fato distingue pitagorismo e platonismo em duas questotildees cen-

trais ambas articuladas em uma ceacutelebre paacutegina de Metaacutefisica (987b) A primeira dife-

renccedila estaacute no lugar ontoloacutegico atribuiacutedo aos nuacutemeros fora dos sensiacuteveis para Platatildeo

enquanto os pitagoacutericos sustentam que os nuacutemeros sejam ldquoas proacuteprias coisasrdquo Trata-se

da doutrina do chorismoacutes isto eacute da separaccedilatildeo que Aristoacuteteles considera um erro tipi-

camente platocircnico a intenccedilatildeo polecircmica de Aristoacuteteles com o platonismo natildeo poderia ser

mais clara A diferenccedila indicada pelo testemunho aristoteacutelico em relaccedilatildeo agrave mediaccedilatildeo

acadecircmica das doutrinas pitagoacutericas sugere que a primeira possa ser considerada um

achado da visatildeo preacute-socraacutetica dos nuacutemeros Uma segunda diferenccedila entre Platatildeo e pita-

234

goacutericos estaacute na maneira como eacute concebido o um o fato de Platatildeo ter posto no lugar do

um ilimitado pitagoacuterico uma diacuteade como tambeacutem de ter concebido o ilimitado como

derivado do grande e do pequeno resulta em uma doutrina ldquomal argumentadardquo Mesmo

neste caso Aristoacuteteles estaacute sozinho a definir essa diferenccedila pois a tradiccedilatildeo doxograacutefica

toda sublinha ao contraacuterio que tambeacutem os pitagoacutericos postulavam o um e diacuteade indefi-

nida como princiacutepios da realidade em clara dependecircncia da derivaccedilatildeo platonizante

A anaacutelise de uma passagem do Filebo confirmou a credibilidade do testemunho

de Aristoacuteteles a platonizaccedilatildeo do pitagorismo natildeo devia corresponder somente a uma

tendecircncia acadecircmica mas jaacute o proacuteprio Platatildeo devia considerar sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo

como uma continuaccedilatildeo do pitagorismo Contudo se a paacutegina do Filebo revelou-se um

testemunho preacute-aristoteacutelico da filosofia pitagoacuterica ela constitui ao mesmo tempo um

ponto de partida para que Platatildeo persiga seus proacuteprios projetos teoreacuteticos de maneira

especial em busca de uma soluccedilatildeo para o problema da unidade e multiplicidade dos e-

xistentes

O mesmo tema da relaccedilatildeo ilimitadolimitado que orienta o argumento do Filebo

aparece de fato naquele que devia ser o proacutelogo do livro de Filolau O caraacuteter de exce-

ccedilatildeo dos testemunhos aristoteacutelicos diante da categorizaccedilatildeo majoritaacuteria platonizante do

pitagorismo antigo tornou central a anaacutelise dos fragmentos de Filolau De um lado por

permitirem comprovar textualmente o processo de formaccedilatildeo da recepccedilatildeo acadecircmica da

matemaacutetica pitagoacuterica por outro lado por serem sinais inequiacutevocos de uma teoria pita-

goacuterica dos nuacutemeros datada ainda no seacuteculo V aEC que Aristoacuteteles demonstra conhecer

Os fragmentos de Filolau revelam-se originalmente posicionados em relaccedilatildeo agrave entatildeo

secular tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica operando quase uma siacutentese entre a cosmologia milesiana

do ilimitado e a concepccedilatildeo da perfeiccedilatildeo do ser no limite da matriz eleaacutetica534 A autenti-

cidade do fr 2 eacute argumentada a partir do fato de natildeo demonstrar alguma apropriaccedilatildeo

platonizante limitantes e ilimitados satildeo ainda pensados natildeo como princiacutepios abstratos e

separados do mundo mas como atributos da proacutepria realidade Filolau empreendendo

uma tentativa de exemplificaccedilatildeo da harmoniacutea entre limitantes e ilimitados utiliza signi-

ficativamente a escala musical diatocircnica pitagoacuterica Poreacutem a possibilidade revelada

pelo fr 6 de Filolau de numerar os intervalos consoantes conduz novamente ao tema

central deste capiacutetulo isto eacute aquele do nuacutemero pitagoacuterico

534 Cf neste sentido a posiccedilatildeo anteriormente citada de Tannery (1887b) em 17

235

Ainda que natildeo predominante como princiacutepio ontoloacutegico ndash como queriam Platatildeo

e Aristoacuteteles ndash o nuacutemero desempenha certamente uma funccedilatildeo no interior do sistema

filolaico A anaacutelise dos fr 4 e 5 parece indicar o fato de os nuacutemeros atuarem epistemo-

logicamente pois eacute exatamente pelo fato de prestar-se a uma descriccedilatildeo em termos nu-

meacutericos que a realidade pode ser conhecida Os nuacutemeros satildeo assim sinais emitidos

pela realidade e como tais permitem que esta possa ser conhecida (fr 5) Todavia o

mesmo fragmento sugere poder haver em uacuteltima anaacutelise uma correspondecircncia entre

esses dois niacuteveis o ontoloacutegico (limitantesilimitados) e o epistemoloacutegico (par-iacutempar)

Pois a introduccedilatildeo de uma terceira espeacutecie de nuacutemero o ldquopariacutemparrdquo parece correspon-

der na ordem argumentativa agrave introduccedilatildeo da harmoniacutea para a dupla limitan-

tesilimitados Huffman resiste todavia em considerar que os nuacutemeros no programa filo-

soacutefico de Filolau possam desempenhar outro papel a natildeo ser aquele de princiacutepios expli-

cativos da realidade de maneira especial em polecircmica com o evidente misticismo nu-

meacuterico que todavia eacute tambeacutem expresso nos fragmentos Qualquer que seja este papel

contudo a relaccedilatildeo entre Filolau e os nuacutemeros mereceu o resumo que Aristoacuteteles teria

dedicado agrave categorizaccedilatildeo dos ldquoassim chamados pitagoacutericosrdquo e que coincide em diversos

lugares com o livro de Filolau Em suma Filolau pocircde ser considerado a soluccedilatildeo da

atribuiccedilatildeo ao pitagorismo antigo mais precisamente do seacuteculo V aEC de uma doutrina

do ldquotudo eacute nuacutemerordquo que estas paacuteginas estavam procurando

Como no caso acima das teorias da imortalidade portanto eacute novamente Aristoacute-

teles a fornecer o testemunho mais confiaacutevel da existecircncia de uma teoria numeacuterica no

pitagorismo antigo Esse mesmo testemunho quando espelhado em sua provaacutevel fonte

filolaica permite detectar o longo processo de apropriaccedilatildeo platocircnica e acadecircmica da

matemaacutetica pitagoacuterica

A anaacutelise da tradiccedilatildeo sobre a teoria dos nuacutemeros pitagoacuterica portanto articulando

os diversos niacuteveis de uso dos nuacutemeros no pitagorismo antigo do miacutestico ao epistemoloacute-

gico ao longo dos diferentes estratos da tradiccedilatildeo revelou mais uma vez o processo de

formaccedilatildeo da categoria pitagorismo em suas dimensotildees sincrocircnica e diacrocircnica Proces-

so este que acaba revelando ao mesmo tempo significativas descontinuidades ao longo

da tradiccedilatildeo abordagens inicialmente vaacutelidas como aquelas de um provaacutevel misticismo

numeacuterico protopitagoacuterico satildeo em seguida abandonadas provavelmente por natildeo dialo-

garem mais diretamente com o contexto mais geral da filosofia daquele segundo mo-

mento Poreacutem satildeo enfim retomadas com renovado entusiasmo em eacutepocas posteriores

236

notadamente no periacuteodo neoplatocircnico Dessa forma eacute possiacutevel que a matemaacutetica de

Jacircmblico pudesse ser mais proacutexima agrave miacutestica dos nuacutemeros protopitagoacuterica do que o e-

ram os nuacutemeros de Filolau

Contudo a suposiccedilatildeo de que possa haver clara divisatildeo entre miacutestica dos nuacutemeros

e epistemologia em todas as fases do pitagorismo ateacute mesmo na fase filolaica ndash como

visto anteriormente ndash eacute esta mesma resultado de preconceitos historiograacuteficos Depen-

de em uacuteltima anaacutelise de uma visatildeo positivista da histoacuteria do pensamento desde suas

origens como um progresso contiacutenuo em direccedilatildeo a uma natildeo bem identificada ideia de

racionalidade moderna magistralmente representada por Galileu e Descartes natildeo acaso

identificada com o raciociacutenio matemaacutetico A descriccedilatildeo do pitagorismo antigo a partir

destas precompreensotildees historiograacuteficas portanto revela-se equivocada do ponto de

vista de seu valor histoacuterico E acaba tambeacutem perdendo aquela que eacute provavelmente a

caracteriacutestica mais extraordinaacuteria dele a de um movimento de vida e pensamento que

percorre seacuteculos a fio da antiguidade conseguindo ser identificado como tal apesar ndash ou

melhor ndash por meio da polifonia de suas diferenccedilas e contradiccedilotildees

237

CONCLUSAtildeO

Nada melhor para concluir uma tese historiograacutefica sobre o pitagorismo que um

detalhe editorial aparentemente inoacutecuo mas que se revela significativo para a histoacuteria

da criacutetica do pitagorismo no seacuteculo XX Giangiulio (Pitagora 2000 XVI) introduz sua

ediccedilatildeo da literatura pitagoacuterica pela editora Mondadori reproduzindo uma seccedilatildeo inteira

da obra imprescindiacutevel de Burkert sobre o pitagorismo Lore and Science in Ancient

Pythagoreanism (1972 208-217) Omite todavia significativamente uma citaccedilatildeo de

Rohde que aparece em Burkert (1972 217)535 A citaccedilatildeo eacute a seguinte

Cada idade tem seu proacuteprio ideal de sabedoria e houve um tempo quando o ideal do homem saacutebio que por seus proacuteprios poderes inatos conseguiu uma posiccedilatildeo espiritual de destaque e discernimento tornou-se presente nas pessoas de certos grandes homens que pareciam pre-encher as mais altas condiccedilotildees de sabedoria e poder que foram atribu-iacutedas ao vidente extaacutetico e ao sacerdote da purificaccedilatildeo [] noacutes natildeo po-demos chamaacute-los filoacutesofos nem sequer precursores da filosofia grega Mais frequentemente seu ponto de vista foi aquele que o real impulso filosoacutefico em direccedilatildeo agrave autodeterminaccedilatildeo e agrave liberdade da alma havia consciente e decisivamente rejeitado e continuou a rejeitar embora pela verdade natildeo sem flutuaccedilotildees ocasionais e retrocessos Assim es-creveu Erwin Rohde (Psyche II 90) em referecircncia a figuras como E-pimecircnides e Abaris sem incluir Pitaacutegoras Contudo a mais antiga e-videcircncia indica que eacute precisamente nesta perspectiva que temos de ver Pitaacutegoras536

A omissatildeo natildeo eacute obviamente casual e obedece a uma disseminada dificuldade da

criacutetica contemporacircnea para lidar com a perspectiva acima delineada por Rohde na qual

Burkert sugere que deva ser vista a figura de Pitaacutegoras isto eacute aquela de uma histoacuteria da

535 Cf Giangiulio (Pitagora 2000 XVI) A omissatildeo natildeo eacute injustificada do ponto de vista formal o autor avisa (Pitagora 2000 V) sobre a ocorrecircncia de ldquopoche omissionirdquo na traduccedilatildeo da referida seccedilatildeo de Bur-kert 536 Orig ldquolsquoEvery age has its own ideal of Wisdom and there came a time when the ideal of the Wise Man who by his own innate powers has achieved a commanding spiritual position and insight became embodied in the persons of certain great men who seemed to fulfill the highest conceptions of wisdom and power that were attributed to the ecstatic seer and priest of purification () We cannot call them philoso-phers-not even the forerunners of Greek philosophy More often their point of view was one which the real philosophic impulse toward self-determination and the freedom of the soul consciously and decisive-ly rejected and continued to reject though not indeed without occasional wavering and backslidingrsquo So wrote Erwin Rohde (Psyche II 90) in reference to figures like Epimenides and Abaris without including Pythagoras But the most ancient evidence indicates that it is precisely in this perspective that we must see Pythagorasrdquo As reticecircncias no interior da citaccedilatildeo satildeo do proacuteprio autor

238

filosofia que natildeo se limite a repetir o script das diadochaiacute de personagens e de conceitos

formatados pela doxografia aristoteacutelica mas busque compreender a emergecircncia do fe-

nocircmeno no interior do contexto pragmaacutetico da sabedoria arcaica e de suas tipologias

A ilusatildeo criada pela coleccedilatildeo dielsiana dos textos sobre a filosofia preacute-socraacutetica

sugeriu que a sucessatildeo dos sistemas filosoacuteficos ao longo da histoacuteria pudesse significar ndash

hegelianamente ndash algum tipo de progresso do pensamento Todavia o desvelamento

dessa ilusatildeo retrospectiva em relaccedilatildeo agrave existecircncia de uma escola filosoacutefica pitagoacuterica ao

lado e em diaacutelogo com outras natildeo levou ainda grande parte da criacutetica a rever esta pers-

pectiva historiograacutefica e a compreender a filosofia preacute-socraacutetica em geral e o pitagoris-

mo de maneira especial por meio das caracteriacutesticas proacuteprias dos primeiros passos

permeaacuteveis e fluidos da filosofia em formaccedilatildeo A proposta de Laks (2007 233-235) de

certa maneira conciliadora eacute de compreender a heterogeneidade com a qual a filosofia

preacute-socraacutetica apresenta-se como ldquouma diversidade natildeo selvagem e sim reflexivardquo no

sentido de obedecer weberianamente a dois tipos de ldquoconsistecircnciasrdquo uma loacutegica pela

qual uma nova tese implica a resposta ou a explicitaccedilatildeo de uma teoria anterior e uma

praacutetica que mobiliza mais diretamente a questatildeo do sujeito no caso especiacutefico do autor

de determinada filosofia As paacuteginas da presente tese revelaram franca inserccedilatildeo das i-

deias e dos protagonistas do protopitagorismo e do pitagorismo do seacuteculo V no contexto

da disciplina filosoacutefica em formaccedilatildeo Contudo a percepccedilatildeo de que haveria uma segunda

consistecircncia que ao lado da imagem anacrocircnica dos preacute-socraacuteticos como scholars e

colleges em debate entre eles como a consistecircncia loacutegica parece sugerir eacute certamente o

avanccedilo hermenecircutico mais relevante537

Na verdade haacute algo de heterogecircneo no pitagorismo que eacute no limite irredutiacutevel a

esta loacutegica disciplinar Ainda que com razatildeo Laks (2007 230) afirme que ldquoeacute um lugar

hoje bastante comum afirmar que a filosofia como disciplina natildeo existe antes de Pla-

tatildeordquo natildeo eacute possiacutevel simplesmente esquecer que a tradiccedilatildeo considera Pitaacutegoras como o

inventor dos termos filosofia e filoacutesofo (D L Vitae I 12 = Heraclid fr 87 Wehrli)538

No entanto a filosofia conforme o vieacutes da tradiccedilatildeo pitagoacuterica parece definir-se bem

537 Apesar de enunciaacute-la todavia Laks natildeo desenvolve ndash como faz com a consistecircncia loacutegica ndash esta se-gunda A omissatildeo eacute ainda um sintoma da dificuldade da historiografia da filosofia antiga em enfrentar seu objeto fora dos esquemas ldquopresentistasrdquo da tradiccedilatildeo (cf Laks 2007 233) 538 Burkert (1960) criticou por primeiro a confiabilidade do testemunho que remonta a Heraclides Pocircnti-co Tambeacutem ceacutetico eacute Huffman (2008 205-206) Mais confiante na tradiccedilatildeo estaacute Riedweg (2002 156-164) Centrone (1996 93-98) apesar de ceacutetico considera que mesmo assim possa-se qualificar Pitaacutegoras como filoacutesofo

239

como disciplina tambeacutem pela segunda consistecircncia aquela praacutetica isto eacute de estilos de

vida doutrinas reveladas e ouvidas ritualidades eacuteticas e sapienciais

O ldquoburaco sem fundordquo (the bottomless pit) da pesquisa sobre os pitagoacutericos ndash na

ceacutelebre expressatildeo de Guthrie (1962 146 n1) ndash revelou-se um locus privilegiado para a

revisatildeo das praacuteticas historiograacuteficas comumente utilizadas Dessa forma a dificuldade

de fazer caber a filosofia pitagoacuterica trait-drsquounion entre as primeiras duas fases da filo-

sofia antiga isto eacute a jocircnica e a itaacutelica nos estreitos limites da historiografia normal

ficou patente e obrigou a presente tese a rediscutir os procedimentos metodoloacutegicos de

aproximaccedilatildeo ao seu objeto Na melhor tradiccedilatildeo cientiacutefica moderna foi obrigada a re-

construiacute-lo de certa maneira para poder examinaacute-lo

Em suma a histoacuteria da tradiccedilatildeo do pitagorismo eacute uma histoacuteria de omissotildees

A omissatildeo editorial de Giangiulio eacute o exemplo mais recente de um processo se-

cular de recepccedilatildeo pelo qual como em um palimpsesto formas e conteuacutedos desta filoso-

fia foram apagados e reescritos a partir de sempre novos interesses redacionais O resul-

tado disso do ponto de vista da teoria das fontes assustou com razatildeo muitos comenta-

dores desde a antiguidade uma multiplicidade polieacutedrica de imagens do pitagorismo

que o representam ora como seita religiosa ora como escola filosoacutefica ora ainda como

partido poliacutetico ou como comunidade cientiacutefica E natildeo eacute certamente suficiente como

boa praacutetica cientiacutefica uma geneacuterica ldquoconfianccedila fundamentada nos testemunhosrdquo con-

forme o desejo sinceramente expresso por Boyanceacute em seu discurso in memoriam de

Ferrero (1966 31) De fato muitos estudiosos no meio do mato sem cachorro da Quel-

lenforshung do pitagorismo como que em desespero acabaram por ldquoentregar-se a um

meacutetodo intuitivo e a formular hipoacuteteses baseadas na simples verossimilhanccedilardquo (Centro-

ne 1996 23)539 aumentando assim a confusatildeo agrave qual jaacute se referia Boeckh (1819) no

lugar de diminuiacute-la

A proposta dessas paacuteginas ao contraacuterio foi aquela de procurar definir um per-

curso metodoloacutegico consciente que em vez de tentar resolver a complexidade do fe-

nocircmeno optando por uma ou outra imagem propocircs-se a compreender o pitagorismo

como categoria historiograacutefica Seguindo a metaacutefora anteriormente desenhada do pa-

limpsesto a tese destas paacuteginas eacute que a soluccedilatildeo natildeo deve ser procurada principalmente

em um pretenso pergaminho original e sim mais apropriadamente no proacuteprio processo

539 Orig ldquoad affidarsi a un metodo intuitivo e a formulare ipotesi basate sulla semplice verosimiglianzardquo

240

de contiacutenua sobrescrita deste Agrave procura de compreender a loacutegica de suas omissotildees

traduccedilotildees reapropriaccedilotildees ao longo da histoacuteria Interpretando interpretaccedilotildees

Longe de considerar portanto a imagem multifacetada do pitagorismo como

simplesmente resultado de uma seacuterie de acidentes procurou-se acompanhar o percurso

das escolhas que constituiacuteram a tradiccedilatildeo verificando quando possiacutevel seus pressupos-

tos e indicando as consequecircncias destas para a interpretaccedilatildeo Receberam este tratamen-

to natildeo somente algumas temaacuteticas centrais como a metempsicose e a teoria dos nuacuteme-

ros mas tambeacutem o proacuteprio percurso de definiccedilatildeo do pitagorismo como categoria

Natildeo se tratou contudo de escolher entre um pitagorismo acusmaacutetico de um la-

do e outro matemaacutetico do outro ndash como parte da histoacuteria da criacutetica moderna quis fazer

conforme foi visto no capiacutetulo primeiro Ainda que os iniacutecios da koinoniacutea pitagoacuterica

devessem de fato ser acusmaacuteticos o fato natildeo explica sozinho o amplo leque das tradi-

ccedilotildees sobre o pitagorismo mesmo em eacutepoca preacute-socraacutetica Em uma primeira impressatildeo

a abordagem em capiacutetulos separados das duas temaacuteticas que mais fortemente estatildeo pre-

sentes na tradiccedilatildeo da filosofia pitagoacuterica a metempsicose (capiacutetulo terceiro) e a teoria

dos nuacutemeros (capiacutetulo quarto) pocircde parecer reproduzir hermeneuticamente a distinccedilatildeo

claacutessica entre biacuteos e theoriacutea O primeiro diria respeito a mitos e ritos da imortalidade da

alma a segunda referir-se-ia agrave ciecircncia dos nuacutemeros Todavia natildeo eacute certamente este o

caso Ao contraacuterio a anaacutelise acima desenvolvida demonstrou que em ambas as temaacuteti-

cas tatildeo caras agrave tradiccedilatildeo sobre o pitagorismo aparecem lectiones tanto miacutesticas como

cientiacuteficas pois por um lado a teoria da metempsicose natildeo responde somente a uma

miacutestica soterioloacutegica mas se torna tambeacutem elemento explicativo da realidade em sua

conaturalidade aleacutem de motivo epistemoloacutegico na praacutetica da anamnese Por outro lado

a teoria dos nuacutemeros natildeo corresponde somente a uma reflexatildeo aritmogeomeacutetrica onto-

loacutegica e cosmoloacutegica mas tambeacutem serve a uma miacutestica numeroloacutegica amplamente ates-

tada pela tradiccedilatildeo

Isso posto se Filolau possui uma teoria da alma como harmonia de elementos

materiais ao lado de uma teoria da imortalidade da alma e da mesma forma utiliza os

nuacutemeros natildeo somente como princiacutepios epistemoloacutegicos de seu sistema ontoloacutegico mas

tambeacutem revela seu sentido numeroloacutegico eacute certamente o caso de se perguntar se a dis-

tinccedilatildeo entre miacutestica e ciecircncia aqui mostrada faz algum sentido para descrever o pitago-

rismo antigo e a filosofia em suas origens como tal Os capiacutetulos terceiro e quarto arti-

culando as duas dimensotildees da categorizaccedilatildeo do pitagorismo desenhadas pela presente

241

tese diacrocircnica e sincrocircnica permitiram confirmar a suspeita citada Em sua dimensatildeo

sincrocircnica a categorizaccedilatildeo do pitagorismo demonstrou obedecer agrave intenccedilatildeo de separar

dicotomicamente miacutestica e ciecircncia enquanto em sua dimensatildeo diacrocircnica os processos

de omissatildeo e reduccedilatildeo da multiplicidade em que se apresentam as doutrinas pitagoacutericas

revelaram-se operantes na recepccedilatildeo acadecircmica peripateacutetica neoplatocircnica etc

No entanto em sua dimensatildeo diacrocircnica a categoria historiograacutefica do pitago-

rismo resistiu a diferentes tentativas de reduzi-la a um lado ou a outro da dicotomia biacute-

os-theoriacutea Essas tentativas natildeo operam exclusivamente no que se refere agrave distinccedilatildeo

acusmaacuteticos vs matemaacuteticos no protopitagorismo mas continuam presentes na histoacuteria

do movimento mesmo apoacutes a mediaccedilatildeo da tradiccedilatildeo acadecircmica e sua vulgata pitagoacuterica

Em eacutepoca imperial haacute de fato um abismo entre o ldquomatemaacuteticordquo Moderato di Gades e o

ldquoacusmaacuteticordquo Apolocircnio de Tiana Todavia ambos satildeo igualmente identificados como

pitagoacutericos E natildeo eacute o caso de explicar esta homologiacutea por uma simples referecircncia a um

ideal de vida pitagoacuterico pois esse ideal deveria necessariamente incluir um conjunto de

doutrinas que o identificava ainda que este conjunto natildeo chegue jamais a constituir um

cacircnon e permaneccedila convenientemente a referecircncia ao segredo e agrave oralidade como estra-

teacutegia de garantia das diferentes leituras540

A essa problemaacutetica pertence a polecircmica sobre o fim do pitagorismo em eacutepoca

heleniacutestica A questatildeo mereceria sozinha uma nova tese Eacute aqui lembrada simplesmente

como ilustraccedilatildeo das tentativas de inserir uma loacutegica evolutiva na histoacuteria do pitagoris-

mo agrave qual todavia a tradiccedilatildeo parcialmente resiste Eacute comum entre os comentadores

atuais na esteira de Burkert (1961 232) postular um reflorecer do pitagorismo nos uacutel-

timos anos do primeiro seacuteculo aEC depois de sua extinccedilatildeo que teria ocorrido em 360

aEC ano em que Aristoxeno declara ter conhecido o uacuteltimo pitagoacuterico (fr 14 Wehrli)

O renascimento do pitagorismo eacute testemunhado por Ciacutecero em sua introduccedilatildeo agrave tradu-

ccedilatildeo do Timeu seu amigo Nigiacutedio Fiacutegulo teria feito reviver (renovaret) o pitagorismo

(Cicero Timaeus 11) As duas fases do pitagorismo natildeo estariam somente separadadas

no tempo pois segundo o proacuteprio Burkert (1982) os dois movimentos seriam bastante

heterogecircneos541

540 Trata-se mais provavelmente das doutrinas simboacutelicas (τὸν τῆς διδασκαλίας τρόπον συmicroβολικὸν) ndash na terminologia usada por Jacircmblico (VP 20) ndash representadas pela memoacuteria dos acusmata

541 Cf Contraacuterios agrave ruptura defendida por Burkert tanto Doumlrrie (1963 269) quanto Kingsley (1995 320ss)

242

Entretanto o postulado da ruptura entre o pitagorismo antigo e o neopitagorismo

incorre em algumas dificuldades Primeiramente para se sustentar precisa esquecer a

continuidade ao menos literaacuteria e cultural representada pela literatura pseudoepigraacutefica

heleniacutestica que preenche o pretenso gap de trecircs seacuteculos que a ruptura criara Aleacutem de

natildeo estar claro qual seja o valor histoacuterico a ser concedido aos testemunhos acima de

Aristoxeno e Ciacutecero542

Por outro lado as vantagens dessa separaccedilatildeo para certa historiografia do pitago-

rismo satildeo incomparaacuteveis Notadamente por permitirem empurrar para uma eacutepoca tardia

aquelas caracteriacutesticas acusmaacuteticas da filosofia pitagoacuterica que deviam parecer destoan-

tes com a imagem canonizada do iluminismo jocircnico e da filosofia itaacutelica antigos Eacute cer-

tamente o caso de Dodds quando afirma que

Muitos estudiosos do tema viram no seacuteculo I aEC o periacuteodo decisivo de Weltwende periacuteodo no qual a mareacute do racionalismo que nos cem anos anteriores se havia desenvolvido como nunca finalmente havia esgotado seu impulso e comeccedilado a recuar Natildeo resta duacutevida de que todas as escolas filosoacuteficas exceto a epicurista tomaram neste mo-mento um novo caminho [] Da mesma forma eacute significativo o re-nascimento do pitagorismo apoacutes dois seacuteculos de aparente esqueci-mento natildeo como escola doutrinaacuteria formal mas como culto e como estilo de vida Confiava abertamente na autoridade natildeo na loacutegica Pi-taacutegoras era apresentado como um saacutebio inspirado (Dodds 1951 247)

Contudo essas mesmas caracteriacutesticas que Dodds atribui ao neopitagorismo a

de constituir-se como biacuteos em oposiccedilatildeo agrave doutrina de uma escola de cultivar o princiacutepio

da autoridade e mesmo de apresentar Pitaacutegoras como um homem divino todas poderi-

am valer jaacute para o protopitagorismo

O preconceito historiograacutefico que desenha o caminho desta hermenecircutica da se-

paraccedilatildeo eacute aquele do esgotamento em eacutepoca tardia do impulso racional da filosofia

claacutessica Eacute possiacutevel encontraacute-lo mesmo em um autor como Festugiegravere frequentador

assiacuteduo da literatura miacutestica antiga Seu juiacutezo sobre o neopitagorismo que natildeo esconde

um sentimento de escacircndalo e o repuacutedio pessoal do comentador eacute aquele de uma per-

versatildeo ou uma degradaccedilatildeo da pura ciecircncia teoreacutetica claacutessica em consequecircncia do rela-

xamento das morais contemporacircneas (Festugiegravere 1932 74-77)

Contra a ideia dessa ruptura portanto para aleacutem dos argumentos que tendem a

consideraacute-la bastante duvidosa do ponto de vista histoacuterico pesa tambeacutem a observaccedilatildeo 542 Cf para isso os argumentos de Kingsley (1955 323-324)

243

da origem protopitagoacuterica de praacuteticas e doutrinas que a criacutetica quis empurrar para o pi-

tagorismo tardio por representarem um incocircmodo hermenecircutico na busca da pura filoso-

fia em suas origens A continuidade portanto eacute maior do que se quis geralmente admi-

tir Desde o iniacutecio da tradiccedilatildeo pitagoacuterica biacuteos e theoriacutea continuam fundamentalmente

inseparaacuteveis

A imagem que resulta da anaacutelise da categoria do pitagorismo eacute a de uma grande

tradiccedilatildeo filosoacutefica homogecircnea que pretende compreender o ser humano o ceacuteu a histoacute-

ria a poliacutetica mediante conceitos como harmonia nuacutemero justiccedila etc E todavia por-

quanto esta imagem do pitagorismo possa parecer fascinante e tenha conquistado adep-

tos ao longo de toda histoacuteria do Ocidente eacute ela mesma resultado de uma categorizaccedilatildeo

que por sua vez obedece aos interesses de quem conta a histoacuteria desta forma A vulgata

platocircnica agrave qual teriam sido reconduzidas as diversas tradiccedilotildees pitagoacutericas anteriores

constitui o eixo historiograacutefico fundamental dessa reconstruccedilatildeo como os exemplos das

teorias da imortalidade da alma e da doutrina dos nuacutemeros bem demonstraram A recep-

ccedilatildeo neoplatocircnica de maneira especial recobre um papel central nesse sentido graccedilas agrave

sistematizaccedilatildeo do pitagorismo em suas Vidas

Mesmo que tenha se demonstrado aacuterduo quanto do pitagorismo antigo haveria

sobrado de fato nessa recepccedilatildeo acadecircmica natildeo eacute possiacutevel negar que a vulgata platocircnica

tenha contribuiacutedo positivamente para imortalizar o pitagorismo como ldquoa filosofiardquo por

antonomaacutesia permitindo que o conjunto de estilos e doutrinas ldquoassim chamadas pitagoacute-

ricasrdquo conquistasse a simpatia quando natildeo mesmo uma adesatildeo incondicional de tantas

e diversas personagens ao longo da histoacuteria desde os renascentistas Marsilio Ficino e

Pico della Mirandola ateacute os precursores da ciecircncia moderna Copernico Kepler e Gali-

leu543

Frequentemente o sucesso histoacuterico do pitagorismo eacute utilizado para justificar re-

troativamente o valor de uma tradiccedilatildeo que em si mesma encontra-se irremediavelmente

contaminada por elementos suspeitos e inaceitaacuteveis ao olhar do cientista moderno Com

543 Copernico reconhece explicitamente a influecircncia pitagoacuterica sobre a tese da mobilidade da terra no Prefaacutecio de seu De revolutionibus Pythagoreorum amp quorundam aliorum sequi exemplum Nesta tese refere-se ao Edito da Sagrada Congregaccedilatildeo do Iacutendice (datado 5 de marccedilo de 1616) citado por Galileu no iniacutecio de seu Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico e copernicano ldquoSi promulgograve a gli anni passati in Roma un salutifero editto che per ovviare a pericolosi scandoli delletagrave presente imponeva opportuno silenzio allopinione Pittagorica della mobilitagrave della Terrardquo De sua parte Kepler eacute chamado de ldquoPitaacutegoras redivivusrdquo por Riedweg (2002 206) por procurar demonstrar a fundamental har-monia do mundo em perspectiva cristatildeo-pitagoacuterica e por se considerar intelectualmente a proacutepria reen-carnaccedilatildeo de Pitaacutegoras

244

um aliacutevio mal escondido parte da criacutetica contemporacircnea reconhece que apesar de tudo

sua influecircncia na ciecircncia moderna fornece agrave conturbada histoacuteria do pitagorismo um ldquofi-

nal felizrdquo (happy ending ndash Kahn 2001 X)544

Entretanto natildeo eacute algo dado que a histoacuteria do pitagorismo precise desse final fe-

liz cientiacutefico Ao contraacuterio as paacuteginas da presente tese pretenderam mostrar que esta

metodologia de coleta seletiva no interior das tradiccedilotildees sobre o pitagorismo eacute histori-

camente incorreta e filosoficamente vatilde Burkert por sua vez indicava para isso em rela-

ccedilatildeo agrave compreensatildeo da proacutepria figura de Pitaacutegoras cujos problemas de equivocidade

espelham-se ao longo de toda a categoria historiograacutefica do pitagorismo

Pareceu muitas vezes suficiente um ldquonatildeo somente-mas tambeacutemrdquo ele natildeo era somente um curandeiro mas tambeacutem um pensador Contudo natildeo seraacute talvez que ateacute um xamatilde possa realizar conquistas intelectuais sem necessariamente revesti-las em uma forma estritamente racional ou conceitual (Burkert 1972 209)545

Mais uma vez portanto eacute a consciecircncia da equivocidade de categorias como fi-

losofia religiatildeo e ciecircncia ndash frequentemente usadas em sua acepccedilatildeo mais positivista na

descriccedilatildeo do que seria filosofia em suas origens ndash que permitiu mostrar a necessidade

metodoloacutegica de superar uma visatildeo excessivamente presentista da filosofia antiga que

procura reduzir o passado a uma prova geral do presente

Ainda que desse percurso historiograacutefico resulte uma imagem um tanto difusa do

pitagorismo ela deve ser preferida agraves vaacuterias tentativas demasiadamente claras e distintas

de fechar sua multifacetada complexidade nos moldes estreitos de uma categorizaccedilatildeo

irremediavelmente insuficiente Ecoam aqui as palavras de Wittgenstein relacionadas

por ele ao conceito de jogo de linguagem

Poderia-se dizer que o conceito de ldquojogordquo eacute um conceito de contornos nebulosos lsquoMas um conceito nebuloso eacute de fato um conceitorsquo ndash Uma foto pouco niacutetida eacute ainda um retrato de algueacutem Seraacute que eacute sempre

544 Assim Kahn (2001 X) ldquo[Pythagorean] tradition includes so many elements of wild almos supersti-tious speculation for example in numerology that it is sometimes difficult to remember that there is also a solid basis for numerical harmonics So Copernicus and Kepler with their fundamental contributions to modern science and to the modern world view may be regarded as providing the Pythagorean story with a happy endingrdquo 545 Orig ldquoOften a simple lsquonot only-but alsorsquo has seemed enough he was not only a lsquomedicine manrsquo but also a thinker But may not even a lsquoshamanrsquo perhaps accomplish intellectual feats without necessarily clothing them in strictly rational or conceptual formrdquo

245

vantajoso trocar um retrato pouco claro por outro niacutetido Natildeo eacute exa-tamente daquele pouco niacutetido que muitas vezes precisamos (Witt-genstein 1958 71) 546

A presente tese eacute assim o resultado de uma escolha consciente anunciada na

Introduccedilatildeo de evitar propor simplesmente mais uma interpretaccedilatildeo do pitagorismo es-

sas paacuteginas ao contraacuterio procuraram enfrentar a proacutepria questatildeo historiograacutefica que

subjaz agraves diversas opccedilotildees hermenecircuticas de soluccedilatildeo da ldquoquestatildeo pitagoacutericardquo e que de

certa forma reinventam-na continuamente

Um estudo sobre o pitagorismo ldquoarrisca ser ou inuacutetil ou insuficiente tamanha eacute a

quantidade de literatura tatildeo complexo eacute o problemardquo jaacute anotava lucidamente Maria

Timpanaro Cardini (1958 I 3)547 Se tambeacutem esta tese fosse obrigada a escolher entre

esses dois destinos preferiria certamente crer ter escapado do primeiro ainda que cain-

do inevitavelmente no segundo

546 Orig ldquoOne might say that the concept ldquogamerdquo is a concept with blurred edges lsquoBut is a blurred concept a concept at allrsquo ndash Is an indistinct photograph a picture of a person at all Is it even always an advantage to replace an indistinct picture by a sharp one Isnrsquot the indistinct one often exactly what we needrdquo 547 Orig ldquorischia di essere o inutile o insufficiente tanta egrave la mole della letteratura tanto complesso egrave il problemardquo

246

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270

ANEXOS

271

Anexo 1

Papiro Derveni Col XX

272

Anexo 2

Placa de Oacutelbia 1 (= 94a Dubois)

273

274

Anexo 3

Placa de Oacutelbia 3 (= 94c Dubois)

275

276

Anexo 4

Lacircmina de Hipponion

  • Em busca do pitagorismoo pitagorismo como categoria historiograacutefica
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • SUMAacuteRIO
  • LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
  • INTRODUCcedilAtildeO
  • CAPIacuteTULO PRIMEIRO
    • 11 Zeller o ceticismo dos comeccedilos
    • 12 Diels uma coleccedilatildeo ldquozellerianardquo
    • 13 Rohde a reaccedilatildeo ao ceticismo
    • 14 Burnet o duplo ensinamento dos acusmaacuteticos e matemaacuteticos
    • 15 Cornford e Guthrie em busca da unidade entre ciecircncia e religiatildeo
    • 16 De Delatte a De Vogel pitagorismo e poliacutetica
    • 17 O testemunho uacutenico de Aristoacuteteles e a incerta tradiccedilatildeo acadecircmica
    • 18 De Burkert a Kingsley terceira-via e misticismo na tradiccedilatildeo pitagoacuterica
    • 19 Conclusatildeo
      • CAPIacuteTULO SEGUNDO
        • 21 Interpretar interpretaccedilotildees dimensatildeo diacrocircnica e sincrocircnica
        • 22 Identidade pitagoacuterica
        • 23 A koinoniacutea pitagoacuterica
        • 24 Acusmaacuteticos e matemaacuteticos
        • 25 Conclusatildeo
          • CAPIacuteTULO TERCEIRO
            • 31 ldquoEacute a almardquo (Xenoacutefanes)
            • 32 ldquoSaacutebio mais do que todosrdquo (Heraacuteclito e Iacuteon de Quios)
            • 33 ldquoDez ou vinte geraccedilotildees humanasrdquo (Empeacutedocles)
            • 34 Platatildeo e orfismo
            • 35 Heroacutedoto Isoacutecrates e o Egito
            • 36 Lendas sobre a imortalidade
            • 37 Demoacutecrito pitagoacuterico
            • 38 Aristoacuteteles e os mitos pitagoacutericos
            • 39 Conclusatildeo
              • CAPIacuteTULO QUARTO
                • 41 Tudo eacute nuacutemero
                • 42 Os fragmentos de Filolau
                • 43 Conclusatildeo
                  • CONCLUSAtildeO
                  • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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