Brasil ao Quadrado

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    XIII Frum NacionalRio de Janeiro, 14 a 17 de maio de 2001

    Painel V, Como Vai a Democracia Brasileira?

    BRASIL AO QUADRADO?Democracia, subverso e reforma

    Fbio Wanderley Reis

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    As indagaes propostas por Joo Paulo dos Reis Velloso para nossadiscusso remetem a alguns aspectos principais do problema da democracia noBrasil, ou maneiras de visualiz-lo, que no deixam de articular-se: o

    problema do risco de sublevao ou de subverso mais radical da ordemdemocrtica (qual o perigo real representado pelo Movimento dos Sem Terra,

    por exemplo), o do aperfeioamento institucional da democracia (reformaspolticas) e o do alcance e significado do aparente descrdito das instituiesdemocrticas e da poltica como tal no Pas.

    Essas indagaes podem ser ligadas, de maneira talvez fecunda, com otema da governabilidade que tem constitudo um ponto de refernciadestacado do debate poltico brasileiro aps o fim do regime autoritrio de1964. Deixando de lado o abuso semntico, que se tornou corriqueiro, em que

    a expresso governabilidade passa a referir-se aparelhagem estatal e tomada como sinnimo de capacidade de governar (esquecendo-se que oatributo de ser mais ou menos governvel um atributo daquilo que governado, ou seja, da sociedade), pode-se falar com propriedade de trs tiposde crise de ingovernabilidade, com respeito s quais a ateno se dirige scondies que se do no plano da sociedade. Proponho cham-las a

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    ingovernabilidade de sobrecarga, a pretoriana e a hobbesiana. Aprimeira corresponde s circunstncias que deflagraram a crise dassocialdemocracias h aproximadamente um quarto de sculo; a segunda, condio de precariedade institucional e instabilidade poltica prpria de

    muitos pases da periferia do capitalismo mundial no sculo XX; a terceira, sconsequncias polticas que se esboam com os desdobramentos sociais daglobalizao e da reafirmao do mercado, acopladas penetrao donarcotrfico (violncia urbana, criminalidade intensificada, insegurana).

    Para comear pela ingovernabilidade pretoriana, essa categoriacertamente se aplica s condies que prevaleceram no Brasil durante a maior

    parte do sculo recm-encerrado. O problema da sublevao, que surge como

    uma das dimenses implcitas nas indagaes de Velloso, assumia ento lugarcentral, sob a forma da ameaa da revoluo socialista. parte os erros ouacertos, direita ou esquerda, na avaliao do que o vocabulrio marxistachama as condies objetivas da revoluo, o fato que, em articulaocom os enfrentamentos ideolgicos no plano internacional e com a dinmicada Guerra Fria, a percepo da possibilidade de subverso da ordem capitalistacondicionou de maneira crucial as oscilaes do processo poltico brasileiro,culminando no duradouro experimento autoritrio do regime militarimplantado em 1964. O uso da designao de pretorianismo (tomada deSamuel Huntington1) para a instabilidade bsica que a se dava remete

    justamente ao inevitvel protagonismo dos militares, como controladores dosinstrumentos de coero fsica, numa situao caracterizada pela precriasoluo ou acomodao institucional do problema constitucional posto pelotenso convvio de diferentes classes ou categorias sociais, que o processo dedesenvolvimento capitalista do Pas criava ou mobilizava.

    O colapso mundial do socialismo, com seu comprometimento at como

    idia orientadora nas novas condies do processo de globalizao, alteradecisivamente o quadro descrito ao dissipar a ameaa propriamenterevolucionria. Mas seria problemtico supor que, com isso, a governabilidadeesteja agora assegurada. Em primeiro lugar, subsiste a questo de saber se

    1 Samuel P. Huntington,Political Order in Changing Societies, New Haven, Yale University Press,1968.

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    globalizao e ps-socialismo justificariam presumir que se tenhaautomaticamente superado e tornado irrelevante a idia do desafioconstitucional de acomodar tenses sociais por meio de mecanismos poltico-institucionais, presuno esta claramente contida em certo carter apoltico, ou

    mesmo antipoltico, do ethos que passou recentemente a predominar em planomundial. Em segundo lugar, cabe indagar se formas de ingovernabilidade em

    princpio distintas do pretorianismo, mas capazes de seguir manifestando-seno contexto ps-socialista, no viro eventualmente a desdobrar-se no nvelconstitucional das formas de organizao poltica e a produzir respostas detipo pretoriano, eventualmente com o velho protagonismo de foras militares.

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    O primeiro desses dois aspectos permite tomar de imediato a idia daingovernabilidade de sobrecarga. Essa idia (com a qual, alis, o tema geralda governabilidade se introduziu nas discusses polticas em meados dadcada de 70, outra vez com participao importante de Samuel Huntington2)envolve o diagnstico de um destempero das democracias dos pasescapitalistas mais avanados, as quais, sendo social-democracias em algumamedida, se tinham mostrado singularmente estveis e governveis no perodoanterior, combinando, nos casos mais clssicos, polticas keynesianas, owelfare state e estruturas neocorporativas de articulao dos diferentesinteresses ocupacionais. O destempero se daria com o crescente volume dedemandas dirigidas ao Estado: o amadurecimento do sistema de welfareredunda em demandas excessivas e em sobrecarga, produzindo a crise fiscaldo Estado. Do ponto de vista das disposies ou atitudes gerais das pessoas(de interesse em conexo com a questo do descrdito das instituies e docinismo poltico que Velloso levanta), as anlises de outros autores tendem aapontar uma espcie de corroso da postura cvica e generosa, que

    supostamente deveria caracterizar o cidado como tal, substituda pela posturaantes fisiolgica do cliente, sempre atento aos direitos e interesses

    2 Samuel P. Huntington, The Democratic Distemper, em Nathan Glazer e Irving Kristol (eds.),The American Commonwealth, Nova York, Basic Books, 1976, verso abreviada do captulo deHuntington sobre os Estados Unidos no relatrio para a Comisso Trilateral preparado por ele emcolaborao com Michel Crozier e Joji Watanuki sob o ttulo The Governability of Democracies.

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    pessoais a reclamar do Estado.3 Huntington e seus companheiros ou co-autoresretiravam do diagnstico projees sombrias com respeito aos rumos dademocracia.

    Dadas as indagaes que aqui nos interessam, a avaliao dodiagnstico e das projees pode desdobrar-se em duas direes luz doseventos e dados posteriores, includos os relativos ao Brasil.

    a) Um primeiro aspecto o de que a crise da ingovernabilidade desobrecarga ocorre num contexto em que temos como trao saliente um Estadosensvel e aberto aos interesses e demandas diversas, justamente comoconsequncia da resposta bem sucedida ao problema constitucional. Trata-se

    de uma situao em que, no quadro europeu, a ameaa revolucionria anterior contida por meio de um compromisso democrtico, como o chamaramalguns,4 que envolve a eleitoralizao e a assimilao de partidos socialistasinicialmente insurrecionais e a integrao de organizaes de natureza sindicalde trabalhadores e patres aos arranjos neocorporativos da social-democracia.Dimenso saliente disso a redefinio da prpria idia de cidadania: noobstante as deficincias que se pode pretender apontar como resultado daidealizao de um cidado cvico, maneira de Habermas, o fato que o

    processo que produz a social-democracia envolve a institucionalizao de umaidia enriquecida de cidadania que, como salientou T. H. Marshall em textoclssico, passa a incluir a idia de direitossociais ao lado dos direitos civis e

    polticos.5

    Ora, os processos ligados intensificao recente da globalizao, queremetem os direitos sociais de volta s asperezas e incertezas do jogo do

    3 Vejam-se George Armstrong Kelly, Who Needs a Theory of Citizenship?,Daedalus,

    outono de 1979, pp. 37-54 (vol. 108, no. 4, dosProceedings of the American Academy ofArts and Sciences); e Jrgen Habermas,Between Facts and Norms: Contributions to aDiscourse Theory of Law and Democracy, Cambridge, Mass., The MIT Press, 1996 (p. 78,por exemplo).

    4 Por exemplo, Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, Nova York, CambridgeUniversity Press, 1985, e J.-A. Bergougnoux e B. Manin,La Social-Dmocracie ou le Compromis,Paris, PUF, 1979.5 T. H. Marshall, Citizenship and Social Class, em T. H. Marshall, Class, Citizenship, and SocialDevelopment, Nova York, Doubleday, 1965.

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    escala transnacional em que o mercado opera cada vez mais, tende tambm aproduzir, no prprio plano econmico, crises sistmicas em que a consistnciadas tendncias objetivas se v posta em xeque e os problemas sociais seagravam.

    No caso do Brasil, o exame apropriado das perspectivas de estabilidadepoltico-institucional deve certamente levar em conta o estreitamento deopes que o novo quadro mundial e seus reflexos ideolgicos representam. A

    percepo da ameaa revolucionria que at recentemente acompanhou opretorianismo brasileiro engendrou, no establishmentsocioeconmico do Pas,o que se poderia descrever como um complexo de sublevao. O colapsomundial do socialismo aparentemente atenuou seus efeitos: enquanto, por

    exemplo, a vitria de Lula em 1989 era vista por Mrio Amato como razopara que 800 mil empresrios deixassem o Pas, Marta Suplicy pde ter o seuapoio nas eleies de 2000 (embora agora se tratasse do mbito municipal)...Ponhamos provisoriamente de lado o fator de instabilidade representado peloque o processo eleitoral brasileiro tem de favorvel propriamente ao

    populismo, que ainda h pouco permitiu a um Collor empolgar o poder comalguns truques de marketing. De qualquer forma, as caractersticas doeleitorado popular ensejam no momento a penetrao de um partido, o PT,que, afirmando-se eleitoralmente e tendo boas chances de chegar Presidnciada Repblica, ainda se encontra s voltas com a tenso entre o projetorevolucionrio de suas origens recentes e o eventual compromisso real com os

    princpios liberal-democrticos, alm das imposies pragmticas tanto doxito eleitoral no jogo democrtico quanto de um mundo globalizado e ps-socialista.7 A conduta do partido ao lidar com essa tenso ainda agora permitedenncias de ambies totalitrias.8 Se essas denncias se mostram

    7 importante ter presente que, como os dados das pesquisas mostram h tempos, as caractersticasdo eleitorado majoritrio que favorecem o PT tm pouco a ver com as razes mais sofisticadamente

    ideolgicas dos lderes partidrios, envolvendo deficincias em que o partido se beneficia damesma percepo singela de um partido popular que anteriormente beneficiou o PTB e, em certomomento do regime autoritrio, o MDB. nesse sentido que o pragmatismo eleitoral se relacionade maneira tensa com um discurso radical ou insurrecional. A apresentao sinttica do que revelamos dados pertinentes pode ser encontrada em Fbio W. Reis, Institucionalizao Poltica(Comentrio Crtico), em Sergio Miceli (org.), O Que Ler na Cincia Social Brasileira (1970-1995), Editora Sumar/Anpocs, 1999.8 Jos Antnio Giusti Tavares (org.), Totalitarismo Tardio: O Caso do PT, Porto Alegre, MercadoAberto, 2000.

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    desfrutveis pelo grau de parania que evidenciam, parece certo, no estreitoespao ideolgico prevalecente, que as disposies da elite brasileira arespeito justificam dvidas quanto s possveis consequncias poltico-institucionais do eventual acesso efetivo do partido ao controle do poder

    executivo federal. E cabe lembrar que, ainda na ltima eleio presidencial(portanto, j no ps-socialismo), a possibilidade da vitria do candidato petistafoi de novo denunciada por figuras destacadas como correspondendo implantao do caos, com implicaes ou sugestes negativas do ponto devista da estabilidade institucional do processo poltico.

    Assim, o problema dos riscos talvez existentes de subverso da ordemdemocrtica provavelmente tem foco distinto do representado pelo MST, que

    objeto das indagaes de Velloso. Com o inequvoco anacronismo de suaretrica abertamente revolucionria e sem bases sociais ou estruturais maisefetivas de poder numa sociedade que no mais rural, a eventual eficcia daatuao do MST depende de que possa produzir agitao capaz de lhe angariara simpatia da opinio pblica. Nessa agitao, ele com certeza favorecido

    por algo que pode ser visto como outra face de seu anacronismo: tendoobjetivos que supostamente se referem sobretudo ao campo, a sociedadecomplexa e urbana que lhe fornece o substrato permite que se valha de ricosrecursos de comunicao e do apoio at de entidades internacionais. Mas,

    precisamente pela deficincia de sua insero estrutural, na qual no detm ocontrole de instrumentos de importncia para a dinmica econmica, aagitao em que pode envolver-se beira a simples delinquncia, e tende aesgotar rapidamente as disposies favorveis que eventualmente suscite naopinio pblica. Por mais ou menos incmodo que possa ser, o MST semdvida no tomar de assalto o poder do Estado. Na arena eleitoral, contudo,as incertezas existentes so potencialmente importantes, e creio haver boasrazes para reservas quanto s perspectivas de que um Lula ou assemelhado

    assuma o poder presidencial e o exera sem mais at o momento de transferi-lo ao sucessor: falta a nossa democracia ps-socialista passar por esse teste.

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    b) A segunda direo em que pode desdobrar-se a avaliao das apostassombrias formuladas pela concepo da crise das democracias na dcada de70 tem a ver com as disposies ou atitudes manifestadas pelos cidados ecom os dados efetivamente existentes a respeito.

    No plano internacional, e especialmente com referncia aos pases de

    maior tradio democrtica, alguns estudos recentes se opem frontalmente tese de que, pela expanso do welfare state (com a postura clientelistasupostamente acarretada) e sua crise posterior, se daria a deteriorao dasatitudes dos cidados.9 Mas a idia de disposies cvicas que se tornamescassas e ameaam resultar em crise da democracia reafirmada com vigorem outros trabalhos, salientando-se importante volume de Robert Putnam

    referido aos Estados Unidos.10

    Retomando, em forma extensa e recheada dedados abundantes, um artigo de grande repercusso publicado em 1995, ovolume aponta, nos Estados Unidos dos dias que correm, o colapso da culturacvica e da vida comunitria e a corroso do capital social, que semanifestariam em fatos que vo da intensificao das disputas banais notrnsito queda da participao em associaes de todo tipo e da dedicao aotrabalho voluntrio inspirado por motivos religiosos e solidrios. Mas aavaliao provavelmente mais correta do quadro geral se tem com estudos,igualmente recentes e mais abrangentes e completos (envolvendo mesmo oreexame do prprio material emprico utilizado nos estudos de conclusesotimistas), em que surgem matizes mais complexos.11

    Assim, os dados neles examinados evidenciam, por um lado, a

    intensificao, em diferentes pases, de certa postura negativa e crtica. Com9 Vejam-se, por exemplo, as concluses de Dieter Fuchs e Hans-Dieter Klingemann em Citizensand the State: A Relationship Transformed: As hipteses que testamos se baseiam na premissa deque uma mudana fundamental teria ocorrido na relao entre os cidados e o Estado, colocando emxeque a democracia representativa... a mudana fundamental postulada na relao dos cidados com

    o Estado, em ampla medida, no ocorreu (em Klingemann e Fuchs [eds.], Citizens and the State,Oxford, Oxford University Press, 1995, p. 429; citado conforme Russell J. Dalton, PoliticalSupport in Advanced Industrial Democracies, em Pippa Norris [ed.], Critical Citizens: GlobalSupport to Democratic Governance, Oxford, Oxford University Press, 1999, p. 74).10 Robert D. Putnam,Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community, Nova York,Simon & Schuster, 2000.11 Vejam-se os trabalhos includos em Norris (ed.), Critical Citizens, com destaque para Dalton,Political Support in Advanced Industrial Democracies, e para Hans-Dieter Klingemann,Mapping Political Support in the 1990s: A Global Analysis.

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    nuances nos diversos pases, esse nimo crtico se manifesta na tendncia aavaliar negativamente e a denunciar com fora o comportamento dos atores

    polticos, das autoridades e dos partidos e, em geral, o desempenho dasinstituies da democracia representativa. Os dados mostram tambm,

    contudo, a tendncia extensa adeso democracia como ideal e reafirmao dos princpios democrticos. Da que se possa pretender ler demaneiras diferentes a multiplicao de tais cidados crticos. Por um lado, aconjugao do idealismo democrtico com a avaliao negativa dodesempenho institucional das democracias tal como existem pode ser vistacomo algo propcio busca de reformas em que o ideal da democracia venha arealizar-se melhor: a difuso da disposio crtica equivaleria multiplicaode democratas insatisfeitos (Klingemann), os quais seguiriam, porm, sendo

    democratas. Por outro lado, cabe indagar sobre a consistncia real da adesoabstrata democracia, que pode talvez revestir-se de carter ritualista emostrar-se propensa a ser carcomida na tenso com as percepes negativasno plano do desempenho institucional. Mas note-se que, em qualquer caso (noda disposio crtica que busca a reforma bem como no do mero apegoritualista e destitudo de significado real democracia), teremos, mesmo secom alcances distintos, a ocorrncia, em algum grau, da deslegitimao de queacima se falou, e certamente plausvel associ-la, em muitos pases, com acorroso do compromisso social-democrtico produzida pelos mecanismos emoperao no mundo globalizado.

    Se nos voltamos para o Brasil, os dados disponveis indicam que temosaqui, em boa medida, a reproduo do padro que se acaba de descrever comrespeito adeso aos princpios democrticos e avaliao negativa dodesempenho da democracia. Assim, dados dos prprios estudos internacionaismencionados mostram, por exemplo, que, enquanto as respostas positivassobre a desejabilidade da democracia como forma de governo se aproximam,

    no Brasil, dos 80 por cento, as respostas positivas quanto ao desempenhoefetivo das instituies da democracia no vo alm dos 30 por cento.12 Isso secorrobora claramente com materiais de estudos brasileiros, que tambm

    12 Dados do projeto World Values Surveys, coordenado por Ronald Inglehart, correspondentes aoperodo 1994-1997 e relatados em Klingemann, Mapping Political Support in the 1990s: A GlobalAnalysis (veja-se especialmente Fig. 2.2, p. 56).

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    apontam a tendncia extensa adeso democracia em termos abstratosconvivendo, por exemplo, com o nimo suspicaz e negativo relativamente alideranas polticas e empresariais.13 Mas h aspectos adicionais egrandemente reveladores nos dados brasileiros, nos quais ganha mais fora,

    em nosso caso, o questionamento da consistncia e do significado real daadeso democracia.

    Assim, algo que os dados revelam com nitidez o substratosociopsicolgico com que aparentemente continua a contar o populismo emnosso pas, solapando a idia de uma democracia capaz de operarinstitucionalmente de forma estvel. Em questionrio aplicado em 1991-1992,

    pedia-se a concordncia ou discordncia das pessoas entrevistadas com a

    afirmao de que, em vez de partidos polticos, o que a gente necessita umgrande movimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto edecidido. No obstante o claro nimo antiinstitucional do enunciado, bemcomo seu componente autoritrio e mesmo fascistizante, ele conta com

    propores altssimas de concordncia nas amostras estudadas, que variam,por exemplo, entre 79 e 86 por cento nos nveis de escolaridade iguais ouinferiores ao antigo ginasial, alcanam 65 por cento entre as pessoas de nvelcolegial e correspondem ainda a 36 por cento mesmo entre as de nveluniversitrio a nica categoria em que no se tem a concordncia de umaampla maioria.14

    13 Dados coletados em 1991/1992 no projeto Pacto Social e Democracia no Brasil, executado sob acoordenao do autor junto a amostra geral do eleitorado de Belo Horizonte e a amostras especiaisde trabalhadores de Minas Gerais e de So Paulo. O projeto relatado em Fbio W. Reis e MnicaM. M. de Castro, Democracia, Civismo e Cinismo: Um Estudo Emprico sobre Normas eRacionalidade,Revista Brasileira de Cincias Sociais, nmero correspondente a fevereiro de 2001,no prelo, onde se discutem vrios aspectos dos dados que se mostram relevantes para as questesaqui tratadas.14 Projeto Pacto Social e Democracia no Brasil. Em Reis e Castro, Democracia, Civismo eCinismo, pode-se encontrar a tabulao das respostas a esse item do questionrio de acordo com os

    nveis alcanados pelos entrevistados num ndice complexo de sofisticao poltica: tomando-secinco categorias de sofisticao, somente na categoria mais alta a proporo de discordncia com oenunciado (49,2 por cento) se encontra em maioria perante a de concordncia (42,6 por cento), comas propores de concordncia variando, nas quatro categorias restantes, entre 69,0 e 89,4 por cento medida que decresce a sofisticao. Vale a pena notar que o item discutido foi introduzido emnosso questionrio, ao lado de outros, com a inteno de se obter um teste preliminar de certassugestes de Guillermo ODonnell sobre a idia de democracia delegativa (parte do projetomineiro contou com a colaborao de ODonnell e sua equipe de ento no Centro Brasileiro deAnlise e Planejamento). Apesar de que os dados relativos a outros indicadores no sustentem a

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    Isso complementado por observaes relativas ao que poderia talvezser concebido como correspondendo a dimenses diferentes da idia geral dedemocracia. Assim, os mesmos dados de 1991-1992 mostram, por um lado, a

    adeso democracia quando posta abstratamente em contraste com a ditaduraou definida em termos poltico-eleitorais (perguntas de questionrioformuladas, por exemplo, em termos do confronto da preferncia pelademocracia com a preferncia por ditadura ou regime autoritrio, ou que sereferem s eleies como a melhor maneira de se escolher o governo, ou necessidade de partidos polticos ou de um rgo como a Cmara dosDeputados). Quando se observa, porm, a disposio dos entrevistadosrelativamente garantia dos direitos civis, expressa em termos da opinio a

    respeito de temas dramticos como a ao dos esquadres da morte, dolinchamento de bandidos pela populao e do recurso tortura pela polcia,v-se que h forte queda no nvel geral de apoio s posies ou opinies quese presumiriam democrticas. A categoria dos altamente favorveis defesados direitos civis das pessoas no vai alm do nvel dos 18 por cento (contranveis como 31 e 42 por cento em categorias anlogas no caso do apoioabstrato democracia poltico-eleitoral); e vamos encontrar, por exemplo, nosnveis inferiores de escolaridade (at ginasial), propores que variam de 59 a51 por cento concordando, de maneira mais ou menos qualificada, com a aodos esquadres da morte e com o linchamento de bandidos, concordncia estaque, de novo, alcana ainda os 30 por cento mesmo no nvel universitrio.15

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    idia da suposta propenso delegativa por parte do eleitorado brasileiro (como os que indicam ainexistncia de uma preferncia majoritria no sentido de que o presidente da Repblica seja

    deixado em paz pelos demais poderes para governar como quiser), isso no impede o apoiodifundido idia de uma liderana pessoal forte e capaz de afirmar-se fora da rbita partidria einstitucional, o qual aparentemente suscitado pela simples aluso a certos traos ou ocorrnciasque tendem a ser percebidos de maneira positiva (honestidade, deciso, unio nacional).15 Projeto Pacto Social e Democracia no Brasil. Quando se toma o ndice mencionado desofisticao poltica (Reis e Castro, Democracia, Civismo e Cinismo), v-se, por exemplo, que,mesmo entre os de maior sofisticao, a proporo correspondente ao apoio mais forte aos direitoscivis no ultrapassa os 38,8 por cento, enquanto as propores de mais forte apoio democraciapoltico-eleitoral alcanam a os 64,2 e 70,1 por cento em diferentes indicadores.

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    A primeira reflexo sugerida por esse desencontro entre a disposioquanto aos direitos civis e o apoio poltico-eleitoral democracia a de queaspectos que surgem convencionalmente nas anlises como dimenses daidia geral de democracia na verdade podem no estar correlacionados na

    conscincia popular. Alm disso, porm, o desapego aos direitos civis podetambm ser ligado, muito claramente, idia de uma forma hobbesiana deingovernabilidade: o aumento da violncia urbana e da inseguranaintensificaria, na conscincia popular, a intolerncia e a propenso a percebera defesa dos direitos civis como equivalendo a proteger bandidos.

    A afirmao vigorosa dos mecanismos de mercado e o descrdito dasocial-democracia, conjugando-se com o colapso do socialismo como

    realidade e como idia orientadora, tendem a comprometer as formassolidrias e orgnicas de atuao poltica, ou mesmo, como se disse, afavorecer um ethos diretamente antipoltico. A idia de ingovernabilidadehobbesiana se liga com isso e com a importante face social dos processosem curso no plano mundial: a intensificao da competio e a inseroeconmica precria de muitos tendem a resultar em deteriorao social. Oaumento da criminalidade e da violncia que da resulta exacerbado, emmuitos casos, pelo fato de que os mecanismos associados globalizao serevelam instrumentais para a penetrao da economia da droga.

    Os problemas ligados a esse quadro geral surgem de maneira maisdramtica em nosso pas. Se se pode falar dos riscos de reabertura do

    problema constitucional, com a ruptura do compromisso social-democrtico,no caso dos pases de capitalismo avanado, cabe lembrar que tais riscosocorrem em correspondncia com o que alguns tm rotulado como abrasilizao desses pases, aludindo ao crescimento da desigualdade e aoeventual estabelecimento de estruturas duais. Ora, se os pases de capitalismo

    avanado se brasilizam, ns, naturalmente, comeamossendo o Brasil. Osfatores novos e transnacionais de desigualdade e deteriorao social vmcumular, aqui, a operao de fatores tradicionais e autctones que empurramna mesma direo, potencializando-se e ameaando produzir uma espcie deBrasil ao quadrado de caractersticas sombrias. E se a idia daingovernabilidade pretoriana que vimos experimentando, com a ameaa

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    revolucionria que lhe seria subjacente, remete a uma concepo marxistado problema constitucional e sua eventual soluo em termos da acomodao

    poltico-institucional do convvio das classes sociais, a ingovernabilidadehobbesiana faz surgir o problema constitucional em sentido mais bsico e

    comezinho transformando-o no problema, de que se ocupou Hobbes, daconstituio ou preservao da autoridade capaz de garantir o anseiofundamental por segurana e ordem.

    fcil imaginar, diante da deteriorao social e do aumento da

    criminalidade, a capacidade de afirmao da autoridade estataldestemperando-se antes na direo do autoritarismo policialesco. Sem falar dodesapreo pelos direitos civis que os dados brasileiros indicam e de sua

    provvel conexo com o desregramento e a violncia do prprio brao policial(ou armado, em geral) do Estado, aquele destempero se evidencia mesmo numpas de melhores credenciais democrticas, como os Estados Unidos, onde amaior competio econmica e as taxas mais favorveis de desemprego se

    projetam e contrabalanam na exploso da populao carcerria, na hiper-criminalizao, nas chances desproporcionais de que os jovenssocioeconomicamente marginais que sobrevivam ao aborto venham a acabar

    presos ou s voltas com a lei.16 No caso brasileiro, contudo, a novidade est,ao revs, no surgimento e na expanso de espaos onde a autoridade estatal

    16 Veja-se Jonathan Simon, Governing through Crime, manuscrito, janeiro de 1997, pp. 9-10(remetendo a Marc Mauer,American Behind Bars: The International Use of Incarceration, 1992-3,Washington, D.C., The Sentencing Project, 1994): Quando todas as formas de custdia correcionalpara adultos so consideradas, mais de 30 por cento de todos os jovens afro-americanos do sexomasculino se achavam sob custdia no comeo da dcada de 90, embora as implicaeschocantes do aspecto racial no devam cegar-nos para o alcance total da custdia correcional:aproximadamente 2 por cento de toda a populao adulta dos Estados Unidos estavam em algumaforma de custdia correcional em 1994. A aluso feita no texto aos que sobrevivem ao abortotem a ver com as constataes de John J. Donohue III e Steven D. Levitt em The Impact ofLegalized Abortion on Crime (National Bureau of Economic Research, NBER Working Paper No.8004, novembro de 2000), onde se mostra de maneira inequvoca que a queda da criminalidade

    ocorrida aproximadamente a partir de 1990 naquele pas se deve em boa medida ao fato de que oscriminosos potenciais foram abortados: h clara correlao (que subsiste mesmo quando secontrolam diversas variveis supostamente relevantes) entre essa queda e a legalizao do aborto nocomeo dos anos 70, especialmente a deciso da Suprema Corte em 1973 que o tornou legal emplano nacional. Entre as razes, destaca-se que as mulheres que recorrem ao aborto so aquelasque maior risco correm de dar luz crianas propensas a se envolver em atividade criminosa.Adolescentes e mulheres solteiras e economicamente desfavorecidas tm probabilidadessubstancialmente maiores de recorrer ao aborto, enquanto estudos recentes verificaram quecrianas nascidas dessas mes defrontam riscos maiores de cometer crimes na adolescncia (p. 3).

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    no tem condies de se fazer valer de modo efetivo e, assim, nocomprometimento da capacidade de ao do Estado no plano da prpriamanuteno da ordem pblica e da segurana coletiva.

    Na revista Veja, cerca de um ano atrs, Srgio Abranches festejava aafirmao do presidente Fernando Henrique Cardoso de que o Brasil,socialmente falando, vai de mal a menos mal.17 O Pas, proclamaAbranches, no est beira do colapso social. A proclamao,acompanhada de dados sobre coisas como certa diminuio da pobreza e doanalfabetismo em anos recentes, surge a propsito da probabilidade deocorrerem eventos espetaculares tais como um golpe de Estado ou umainsurreio popular, para seu espanto discutida a srio em algum seminrio de

    acadmicos na televiso. Cabe, sem dvida, reconhecer os xitos relativos decertas polticas de alcance social. Alm disso, a proclamao quanto ausncia de risco de colapso provavelmente correta se os acontecimentosespetaculares mencionados so tomados para a prpria definio de colapsosocial apesar de que, em previses desse tipo, prudncia nunca demais.

    Se prescindimos, porm, da idia da exploso ou de desdobramentossbitos e estrepitosos, inequvoca a corroso do tecido social que o Pasexperimenta. A violncia crescente, a insegurana difusa, os sequestros, osvidros dos automveis fechados contra a ameaa dos pivetes, os carros

    blindados, as chacinas corriqueiras na periferia das grandes cidades, as guerrasde traficantes nas favelas, o linchamento (com transmisso ao vivo pelateleviso...) de crianas tomadas pelo Estado sob sua tutela, as banaisrebelies nos presdios, agora coordenadas por comandos articulados este

    por certo no o pas em que vivamos h uma gerao, embora, em vez degolpe, tenhamos tido a restaurao da democracia. Mas h algo especialmentedesalentador: nas condies de desigualdade que marcam a sociedade

    brasileira, no parece razovel apostar sequer em que a eventual retomada dodinamismo econmico ou mesmo alguma melhoria dos indicadores sociaisvenha a produzir, de imediato, maior paz social.18 Pois a melhoria social pode17 Srgio Abranches, De Mal a Menos Mal, Veja, ano 33, no. 22, 31 de maio de 2000, p. 131.18 Alis, os dados do IBGE sobre a dcada de 90 recentemente divulgados pela imprensa, emboracorroborando a melhora de certos indicadores sociais (mas no da distribuio de renda), mostramtambm o incremento da violncia. A apresentao compacta de alguns dados reveladores sobre o

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    no representar de pronto, para muitos, especialmente nas condies decompetio intensificada que passam a prevalecer, seno a possibilidade detomar conscincia das carncias e da desigualdade, com a frustraocorrespondente e o objeto dessa frustrao, capaz de incitar ao crime, no

    necessariamente o carro de luxo, mas pode ser um reles tnis. Como dizia,ameaador, o traficante preso no documentrio de Joo Moreira Sales(Notcias de uma Guerra Particular) que se tornou clebre h algum tempo:tambm quero o meu Mizuno!19

    Nessa ptica, substituir a idia do colapso espetacular pela de umresvalar gradual em plano inclinado, ao menos em termos do potencial deinsegurana e violncia, no necessariamente tranquilizador. E talvez a

    indagao principal a emergir quanto avaliao dos nossos prospectosdemocrticos, em geral, seja a das relaes a se estabelecerem entre asdiferentes formas de ingovernabilidade. Assim, mesmo com a precariedade dowelfare state brasileiro, provavelmente adequado falar de um problema desobrecarga diante da enorme demanda social desatendida, sobretudo emcircunstncias de crise fiscal. Mas o ponto crucial poderia consistir nasrelaes entre hobbesianismo e pretorianismo: como a deterioraohobbesiana poder vir a afetar o novo esforo, no Brasil de ps-1985, deemergir da instabilidade pretoriana? parte o golpe militar clssico, cujas

    carter extremamente violento do Brasil atual (em comparao no s com os Estados Unidos, porexemplo, mas tambm com vizinhos nossos como Argentina e Chile) podem ser encontrados emSteven Levitt e Rodrigo Reis Soares, O Preo da Violncia,Exame, 21 de maro de 2001, pp. 90-94.19 A literatura sociolgica fala h dcadas do sentimento de privao relativa (baseado nascomparaes odiosas e suscetvel de intensificar-se quando as condies objetivas melhoram, eportanto quando diminui a privao absoluta) como fator de frustrao e de formas correspondentesde comportamento. E note-se a observao de Donohue e Levitt (The Impact of LegalizedAbortion on Crime) a respeito das pesquisas recentes sobre o vnculo entre criminalidade edinamismo econmico: ...pesquisas anteriores estabeleceram apenas uma tnue ligao entredesempenho econmico e crime violento, sugerindo mesmo, em um caso, que os ndices de

    assassinatos podem variar de maneira pr-cclica (as referncias pertinentes remetem a RichardFreeman, The Labor Market, em James Q. Wilson e Joan Petersilia [eds.], Crime, So Francisco,ICS Press, 1995, e a Christopher Ruhm, Are Recessions Good for your Health?, QuarterlyJournal of Economics, CXV [2], 2000). Levitt e Soares (O Preo da Violncia, p. 91) sugeremainda uma interpretao econmica que liga a criminalidade diretamente com a desigualdade nadistribuio de renda: para a populao mais pobre, aquela com maior probabilidade de se engajarem atividades ilegais, maior desigualdade de renda significa maior retorno financeiro e menor custode oportunidade para o envolvimento em aes criminosas. O problema com essa interpretaoestaria em por que, num pas que sempre foi desigual, a criminalidade aumenta agora.

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    chances Srgio Abranches parece ter razo em desqualificar,20 ficam asreservas quanto a possveis formas mais tortuosas e inditas de se dar aarticulao entre os dois fenmenos. A experincia da Venezuela de HugoChvez, em que uma histria pessoal de golpismo militarista acaba se

    transformando em recurso valioso na obteno de macio apoio popular eviabilizando a experincia cesarista de bvios riscos que l presenciamos, talvez singular em muitos de seus traos e, tal como ocorre, provavelmente de

    pouco interesse para ns. Mas o que esperar do caldo de cultura representadopela combinao da intensa difuso da violncia e insegurana com a memriarecente de nosso pretorianismo (que, afinal, em sua ltima manifestaoabertamente militarista pde controlar sem mais o poder por longos 21 anos) ecom aquilo que os dados acima examinados revelam quanto ao desapreo

    popular pelos direitos civis e o anseio cesarista pelo homem capaz de unirautoritariamente o Pas? Se o complexo de sublevao remanescente trazpreocupaes na hiptese da vitria petista, esse anseio cesarista,provavelmente um componente do recente fenmeno Collor, leva, porexemplo, a indagaes sobre o que poderia suceder na hiptese da eleio deum Ciro Gomes, com a retrica explcita da mobilizao popular contra oencastelamento institucional das oligarquias, ou de um Itamar Franco,

    pessoalmente inconsistente e imprevisvel, com seu discurso nacionalistapotencialmente efetivo e seus acenos ocasionais s Foras Armadas.

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    No parece haver razes para otimismos relaxados. Contudo, pode-sepretender trazer uma qualificao potencialmente importante com respeito aum dos aspectos do quadro geral assim esboado, o aspecto das disposies eopinies do eleitorado popular. Ligando-se com a questo da consistncia real

    dessas disposies, a indagao seria aqui a de at que ponto (ou talvez de que

    20 Embora com certeza no se justifique presumir sem mais que o complexo de sublevao tenhadesaparecido nas Foras Armadas e que as disposies a existentes sejam serenamentedemocrticas. Cabe talvez lembrar a manifestao, em 1994, do almirante Mrio Csar Flores,ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratgicos do governo Itamar Franco, aqui mesmo noFrum Nacional: segundo ele, o regime civil brasileiro atual no deve ser visto como a rendioincondicional das Foras Armadas, mas apenas como um armistcio.

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    maneira, em que setores) elas sero efetivamente relevantes para asperspectivas de estabilidade democrtica, especialmente tendo-se em contaque o civismo e as disposies democrticas se encontram fortementecorrelacionadas com a posio socioeconmica e que as camadas populares da

    populao e do eleitorado, onde se encontram as opinies menos cvicas emais negativas, so tambm as politicamente menos atentas e participantes.

    No se trata de mitificar o civismo das elites socioeconmicas, ou desugerir que se adote, para o caso de nosso pas, a expresso elite no sentidoem que ela se torna sinnimo de os melhores. Na verdade, os dados do

    projeto brasileiro antes mencionado revelam que, no obstante as disposiescvicas e democrticas aumentarem inequivocamente, em condies

    normais, entre os de maior escolaridade e sofisticao, so justamente osmais educados e sofisticados os que se mostram mais prontos a substituir ocivismo pela defesa desembaraada ou cnica do interesse prprio sempre queas circunstncias indiquem que, pelas dificuldades quanto coordenao dasaes de todos, o civismo pode se tornar menos eficaz, ou que agir de maneiracvica pode surgir como equivalendo a bancar o otrio.21

    Contudo, essa constatao mesma nos envolve em paradoxos. Se a

    maior sofisticao que caracteriza a elite torna o civismo mais apto adegenerar em cinismo em condies adversas que podem surgir comfrequncia, ento o anseio por uma cultura cvica, com as consequncias

    benficas que lhe costumam ser atribudas para a democracia, no deveria sermuito exigente quanto sofisticao e ao envolvimento dos cidados, masteria antes um correlato necessrio na relativa apatia, desinformao eindiferena por parte deles. Estaramos expostos, assim, aos paradoxos de umaespcie de gullibility theory of democracy, ou de uma concepo na qual adifuso de certo grau de retraimento e passividade, e quem sabe at de

    ingenuidade, surge como propcia estabilidade democrtica, em contrastecom o ideal republicano do cidado alerta e participante. Pesquisas empricastambm recentes executadas num pas de tradio democrtica, o Canad,corroboram essa perspectiva, com concluses em que o problema daestabilidade democrtica aparece como dizendo respeito quilo que se passa

    21 Veja-se Reis e Castro, Democracia, Civismo e Cinismo.

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    junto a minorias cognitivamente competentes e sensveis s questespolticas, e no ao fato de que haja apoio mais ou menos difundido ao regimedemocrtico na populao em geral.22 Tais concluses corroboram arelevncia da distino feita h tempos por Milton Campos, e que Carlos

    Castello Branco costumava evocar em sua coluna doJornal do Brasil, entre oeleitorado, de um lado, e, de outro, a opinio pblica, que corresponderiaapenas pequena parte mobilizada e atenta do primeiro: a sorte da democraciadependeria antes da opinio pblica do que do eleitorado como tal.

    As implicaes disso do ponto de vista das perspectivas de estabilidadedemocrtica de um caso como o brasileiro so equvocas, mas envolvem, dequalquer modo, responsabilidade crucial das elites. Por um lado, abre-se

    espao para o esforo de construo institucional que no dependa doenvolvimento poltico intenso e cvico e do conhecimento e informaosobre poltica por parte do eleitorado em geral. Assim como os mentoresfederalistas da constituio dos Estados Unidos trataram de economizarvirtude e construir a estrutura dos freios e contrapesos que, em vez decivismo, contava com o egosmo e o facciosismo dos interesses parciais dediversos tipos, assim tambm caberia tratar de economizar conhecimento(ou envolvimento com a poltica) e contar com que a operao democrticacontinuada viesse ela prpria a permitir que, ainda que sobre um substratointelectual de menor sofisticao, se produzissem simpatias e identificaes

    populares mais profundas com os mecanismos institucionais da democracia,em particular com partidos que se tornariam assim mais autnticos eajudariam a proteger, no momento subsequente, a vida poltica do Pas contraaventuras personalistas e populistas dirigidas a um eleitorado amorfo e semamarras. Por outro lado, mesmo na hiptese de que se pudesse vir a ter xito

    por esse caminho em prazo mais ou menos longo, ele envolve um lapso emque um eleitorado no s politicamente desatento, mas de disposies

    equvocas quanto aos valores democrticos, poderia vir a servir de ponto deapoio para aes ou movimentos em que se comprometeria o desenrolardemocrtico do processo geral includos aqueles movimentos aos olhos de22 Veja-se David C. Laitin, The Civic Culture at 30,American Political Science Review, vol. 89,no. 1, maro de 1995, onde so resumidas as principais contribuies encontradas em David J.Elkins,Manipulation and Consent: How Voters and Leaders Manage Complexity, Vancouver,University of British Columbia Press, 1993.

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    cujos mentores as identificaes institucionais e partidrias que tendessem asurgir da operao da democracia se revelassem elas mesmas distorcidas ouantidemocrticas, de maneira congruente com o complexo de sublevaoque se apontou antes como estando aparentemente em recuo.

    De toda forma, h um sentido bem claro em que da decorre que o fatordecisivo da estabilidade ou instabilidade democrtica no residiria nascaractersticas ou disposies do prprio eleitorado, mas antes na manipulaodessas caractersticas e disposies levada a cabo no confronto poltico cujos

    protagonistas reais so as elites (includa a caixa de ressonncia constitudapela opinio pblica). Essa manipulao se ilustra, por exemplo, com asnumerosas manobras do perodo recente, tanto no autoritarismo quanto na

    democracia restaurada, em que regras eleitorais se modificam a cada eleio,sistemas partidrios se vem profundamente alterados por artifcios legais etc.O que nos permite fechar estas notas com breve exame do tema das reformas

    polticas.

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    Um primeiro aspecto que cabe mencionar a tendncia de alguns adestacar, quanto s reformas, o tema da reforma do Estado como mquinaadministrativa, posta de lado a questo da democracia. frequente, comefeito, a ocorrncia, sobretudo em meios governistas, de certogovernabilismo (em correspondncia com o sentido imprprio degovernabilidade destacado no incio), no qual se supe que o problema dademocracia como tal se acha resolvido e que o problema que subsiste o daeficincia administrativa.

    Isso se corrobora com algumas anlises recentes do ex-ministro BresserPereira. Assim, diversificando apropriadamente o vocabulrio, Bresserdeclarava de maneira explcita, em simpsio realizado em Braslia e

    patrocinado pelo Ministrio da Reforma do Estado em agosto de 1997, que oproblema da governabilidade (entendido como o problema institucional doexerccio legtimo do poder e envolvendo com destaque, portanto, a questo

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    da democracia) est resolvido no Pas: o que agora defrontamos seria meracrise de governana. Alm disso, apesar de procurar pensar a reforma doEstado por referncia idia de cidadania e de salientar os direitos pblicosou republicanos como nova categoria de direitos a serem afirmados,

    Bresser, num jacobinismo que acarreta problemtica presuno em favor doExecutivo e que mesmo claramente contraditrio com a idia de criar novosdireitos e garanti-los institucionalmente, tem um de seus principais viles noJudicirio brasileiro, acusado de, com seu vis liberal antiestatal e suasaes injustas e infundadas contra o Estado, embaraar a ao gil deste23

    presumivelmente a ao gerencial que o ex-ministro procurou consagrar emseus esforos de reforma do Estado, por contraste com um modeloburocrtico transformado em algo inequivocamente negativo. Ora, de sua

    parte, naturalmente, o Judicirio, por sua natureza mesma e em nome dosvalores pelos quais deve zelar na estrutura de um Estado democrtico, nopode ser seno a rea por excelncia das meticulosidades processuais emorosidades burocrticas. Mesmo se cabe apontar distores e anecessidade de reformas no sistema judicirio brasileiro tal como existe efunciona no momento, isso de forma alguma autoriza a viso negativa, semmais, que Bresser transmite de um poder judicirio que, atento legislao emvigor, com frequncia sustenta os direitos de pessoas fsicas ou jurdicas

    privadas contra os interesses e desgnios do prprio Estado.24

    Mas com Hlio Jaguaribe, especialmente em Sistema Poltico e

    Governabilidade Democrtica, que o governabilismo governista assume23 Veja-se Luiz Carlos Bresser Pereira, Cidadania eRes Publica: A Emergncia dos DireitosRepublicanos,Filosofia Poltica, Nova Srie, vol. 1, 1997.24 A discusso mais extensa do texto de Bresser se encontra em Fbio W. Reis, O Republicano e oLiberal: Comentrios ao Artigo de L. C. Bresser Pereira,Filosofia Poltica, Nova Srie, vol. 1,1997, pp. 159-165. Tanto mais preocupante o fato de que a perspectiva de Bresser encontra ecojunto ao prprio Ministrio Pblico no Pas, como demonstram manifestaes de algum tempo atrsdo procurador-geral Lucas Rocha Furtado, em declaraes ao jornalFolha de S.Paulo (2 de junho

    de 1999) a propsito de relatrio relativo a acusaes de abuso de poder e improbidadeadministrativa dirigidas a pessoas envolvidas no episdio das fitas do BNDES. Recorrendoexplicitamente distino entre administrao gerencial e burocrtica, os argumentos doprocurador-geral do nfase, na avaliao da atuao do Estado nos dias de hoje, aos aspectos deeficincia, produtividade e obteno de resultados, vistos como devendo contrabalanar atradicional nfase nos critrios de legalidade, moralidade e impessoalidade. Seria patente adistoro de um Ministrio Pblico em que a preocupao com moralidade e legalidade cedesseespao obteno de resultados, por apropriada que seja, naturalmente, a nfase em critrios deeficincia em setores diversos do aparelho do Estado.

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    forma exemplar.25 Assim, alm de exibir em grau exacerbado a confusosemntica antes indicada,26 a confuso se associa de maneira singularmententida, no caso de Jaguaribe, com o contedo substantivo das propostas: trata-se, com a busca de governabilidade, inequivocamente de fortalecer o poder

    do governo mais especificamente do Executivo, e do Executivo federal oucentral para fazer valer seus desgnios e realizar os objetivos queeventualmente persiga. E todo um conjunto de controles e mecanismosdescentralizadores que nos acostumamos a associar com a expressoinstitucional de certo pluralismo democrtico assume a aparncia de merasdistores que no fazem seno comprometer a eficincia do poder central:um Congresso irresponsvel, onde cumpre tratar de assegurar maioriasestveis, consistncia e disciplina; um Judicirio corrupto em sua

    administrao e tambm irresponsvel em suas sentenas, propiciando aescandalosa indstria de liminares; um federalismo cripto-confederativo,quando, na verdade, os Estados so apenas formas administrativas de levarem conta diferenas regionais; um Ministrio Pblico excessivamenteautnomo; um regime eleitoral e partidrio demasiado apegado a um idealrepresentativo, quando o desejvel o bipartidismo; etc.

    A posio de Jaguaribe pode traduzir-se em termos da busca deautonomia governamental sob uma nica reserva, a da origem eleitoral dogoverno e a chancela democrtica que da adviria. Mas so muitas asdificuldades da idia de autonomia do Estado, e no cabe presumir que adesejemos sem mais. Se supomos o povo homogneo do velho ideal desoberania popular, certo que o Estado que queremos, em vez de serautnomo, estar antes submetido a ele. Que dizer, porm, quando se trata desociedades estratificadas e desiguais, de que a nossa representa exemploextremado? Cabe, ento, ansiar pelo Estado autnomo at para assegurar queele no venha a estar submetido aos interesses poderosos e a agir, no limite,

    como seu comit executivo (sem falar do Estado apropriado por celerados,25 Veja-se Hlio Jaguaribe, Sistema Poltico e Governabilidade Democrtica, confernciapronunciada na Escola Superior de Guerra em 5 de maio de 1999 e publicada no mesmo ano nasrie Idias & Debate do Instituto Teotnio Vilela, Braslia, no. 30.26 Sem qualquer vestgio de sensibilidade para o governvel como atributo da sociedade, isto , daentidade que governada, o texto de Jaguaribe se carrega de barbarismos como a governabilidadeque se exerce pelo governo ou pelas elites, as elites que perdem capacidade de governabilidade,o presidente que perde governabilidade...

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    como em nosso recorrente problema de corrupo). Mas no h razo parasupor, neste caso, que a operao continuada do processo eleitoral ser, por sis, a garantia da autonomia na forma desejada. O Brasil da Belndia dual deEdmar Bacha certamente boa ilustrao disso, com governos que, sensveis

    no dia-a-dia sobretudo aos interesses da reduzida Blgica economicamenterelevante, tendem a mostrar-se autnomos justamente perante a vasta Indiaeleitoral. Seria indispensvel, assim, o esforo de construo institucionalcomplexa, em que se preserve o pluralismo e se garanta a democracia.

    Nessa ptica, as caractersticas do eleitorado popular brasileiro,

    propenso ao alheiamento poltico e a atitudes ou opinies que beiram odisfranchisementou a renncia ao sufrgio, se por um lado abrem espao de

    manobra s elites, por outro so claramente um fator restritivo quanto eventual soluo do problema de conciliar o grau adequado de autonomiagovernamental e eficincia administrativa com a meta de uma sociedadedemocrtica. O desafio seria o da concepo e eventual implantao de um

    projeto poltico-institucional (ou constitucional, no sentido sociologicamentedenso em que a expresso se usou acima), no qual a aparelhagemorganizacional do Estado se articulasse com a coletividade e lhe desseexpresso apropriada tanto em sua dimenso social, onde se relacionamcamadas ou setores sociais diversos, quanto em sua dimenso territorial, ondeocorrem as vrias precariedades do nosso federalismo. Quem ser, porm, omentor abalizado e legtimo desse projeto?

    Isso nos leva ao segundo aspecto que desejo destacar quanto sreformas polticas. Se temos o governabilismo em que o problema dasreformas tende a resumir-se eficincia administrativa, os debates havidossobre as reformas propriamente poltico-institucionais, sem escapar tensoentre eficincia e governabilidade democrtica, apresentam suas prprias

    limitaes, em que as dificuldades da idia de um eventual projeto poltico-institucional e seu mentor se tornam talvez especialmente claras.

    O aspecto provavelmente mais desalentador e sugestivo a respeito o

    de que, mesmo se nos atemos ao debate entre os cientistas sociais brasileiros,que se tm envolvido de maneira intensa nas discusses sobre as reformas, o

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    nimo predominante por certo negativo. Trata-se de temas cujacomplexidade desafia os conhecimentos disponveis e os recursos analticos, eno de admirar que, no que se refere, por exemplo, ao tema central dasformas majoritrias e proporcionais de representao, as experincias recentes,

    em diferentes pases, se tenham orientado tanto numa direo (domajoritarismo ao proporcionalismo) quanto na oposta (do proporcionalismo aomajoritarismo), justificando a advertncia, formulada por destacadaespecialista, de que o processo de reforma permanece cercado de incertezas ecom frequncia produz mltiplas consequncias no-intencionais.27 Mas issono impede que, entre ns, o debate se tenha transformado numa espcie deFla-Flu, em que a defesa mais ou menos beligerante de posies ope

    presidencialistas e parlamentaristas, majoritaristas e proporcionalistas, para

    no falar de adeptos da engenharia poltica, confiantes nas possibilidadestransformadoras da ao legal, e burkeanos, contrrios ao artificialismodos meios legais.

    As disputas, na maior parte dos itens especficos em que se desdobram,giram em torno do problema difcil (que o governabilismo acimamencionado d por resolvido) das relaes entre dois valores que cumprereconhecer como tal, impondo-se a busca de equilbrio entre eles: o valor darepresentatividade democrtica e o da eficincia ou capacidade governativa,empenhada na produo de maiorias slidas e mquinas decisrias coesas ehbeis. A tenso entre esses valores emerge em planos variados: o de um oudois turnos nas eleies, por exemplo, em que a diversidade supostamentemais espontnea das opes do primeiro turno artificialmente transformada,no segundo, em maiorias legitimadoras e capacitadoras; ou o de

    presidencialismo ou parlamentarismo, em que o governo dividido dopresidencialismo, que pode ser visto de maneira positiva luz do princpiopluralista dos checks and balances da tradio norte-americana, se confronta

    27 Pippa Norris, The Twilight of Westminster? Electoral Reform and its Consequences, trabalhoapresentado reunio anual da American Political Science Association, Washington DC, 31 deagosto a 2 de setembro de 2000, p. 4. Veja-se tambm, da mesma autora, Choosing ElectoralSystems: Proportional, Majoritarian and Mixed Systems,International Political Science Review,vol. 18(3), julho de 1997, nmero especial sobre o tema Contrasting Political Institutions, editadopor Jean Laponce e Bernard Saint-Jacques (www.pippanorris.com).

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    com o governo forte do Executivo organicamente articulado com oparlamento.

    Tomemos o problema da opo entre sistemas de representao

    majoritria e proporcional. Ele gira, sem dvida, em torno da mesmacontraposio bsica. O sistema proporcional se empenha em representar asforas partidrias no parlamento ou congresso de modo proporcional sua

    presena na sociedade, expressa no total dos votos dados pelos eleitores a cadaum dos diferentes partidos. J o sistema majoritrio se caracteriza por premiaros candidatos majoritrios em cada distrito; ao preo de produzir distores do

    ponto de vista da distribuio das preferncias totais entre os partidos, elefavorece maiorias parlamentares slidas e a simplificao do sistema de

    partidos, supostamente dando consistncia e disciplina representaopartidria.

    A questo decisiva para a tomada de posio sobre o problema dizrespeito a algo que, sendo destacado de maneira pouco consequente pelos

    proporcionalistas, no deixa de ser crucial tambm para os majoritaristas: aquesto da identidade daquilo que se representa, ou da autenticidade darepresentao.

    curioso que os proporcionalistas, paladinos da representatividadedemocrtica e da representao dos diferentes focos de interesses e identidade,costumem esquecer o velho problema da autenticidade ou inautenticidade dos

    partidos como tal: at que ponto se justificar o empenho deproporcionalidade quanto votao dada aos partidos se estes forem elesmesmos inautnticos e sem consistncia real (se forem, por exemplo, nolimite, meras legendas de aluguel)?

    Tais indagaes podem ser estendidas prpria concepo dos partidos

    polticos. A literatura de cincia poltica costuma distinguir duas funes queos partidos cumpririam, transpondo para o plano da vida partidria a mesmatenso entre os dois valores bsicos assinalados. Uma delas envolve avocalizao dos interesses supostamente j existentes como tal e suaapresentao na arena poltica; a outra corresponde necessidade de agregarinteresses inicialmente fragmentrios e dar-lhes, assim, viabilidade no

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    processo eleitoral e condies de se fazerem sentir efetivamente nas decisesgovernamentais. A primeira funo significa, portanto, a afirmao, cara aos

    proporcionalistas, da identidade dos partidos por referncia a suas basessociais, enquanto a segunda, que os proporcionalistas esquecem, redunda

    justamente em diluir essa identidade, em alguma medida, em proveito deimperativos eleitorais e de eventual eficincia governamental. E bem claro osentido em que a busca intransigente de identidade e autenticidade levaria a

    pulverizar os mecanismos de representao de maneira que acabaria porchocar-se com a prpria idia de representao: por que no representar astendncias dentro de cada pequeno partido ou, no limite, por que norepresentar cada indivduo como tal?

    Mas os que defendem o sistema majoritrio esto longe de se achar asalvo de dificuldades anlogas. Alm das conhecidas distores produzidas narepresentao dos partidos, mesmo supostamente autnticos, obviamente

    possvel questionar a consistncia e realidade, em termos sociopolticos, dosprprios distritos nos quais se obtm as supostas maiorias. A experincia maisnegativa a ser lembrada aqui a das prticas que se tornaram conhecidas, nosEstados Unidos, sob o nome degerrymandering, em que o territrio eleitoral dividido de forma arbitrria e caprichosa para atender a um ou outro partidoou foco de interesses (problema que emergiu de novo como tema salienteainda h pouco, a propsito do peso da populao negra em certos distritoseleitorais). O que no significa, naturalmente, que no se possa ter em distritosterritoriais de porte municipal ou anlogo entidades socioeconomicamentehomogneas e politicamente relevantes capazes, talvez, de se articularem margem dos espaos representados pelos Estados, com conseqncias

    potencialmente importantes se se trata de ter representao autntica.

    Assim, os matizes e sinuosidades dos problemas parecem recomendar

    uma postura intelectualmente aberta e inclinada experimentao. Se difcilencontr-la, porm, at entre os especialistas na reflexo sobre os problemas,com certeza no caberia esperar tal postura reflexiva e constitucional por

    parte dos atores mais diretamente envolvidos no processo poltico elegislativo. O que redunda em reconhecer que, na verdade, o prprio problema

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    constitucional se resolve (quando se resolve...) no jogo cotidiano e mais oumenos mope dos interesses.

    Nessa perspectiva, a indagao sobre como vai a democracia brasileira,

    se lida com os olhos postos no futuro, no parece comportar respostascategricas. Quanto ao presente, o caldo de cultura antes mencionado podetalvez traduzir-se em termos das trs indagaes de Joo Paulo Vellosodestacadas no incio: ele torna aparentemente precrias as chances de que osembates relacionados s reformas polticas e ao aperfeioamento institucionalda democracia redundem em ao adequada diante do desafio situado no

    plano constitucional, no qual brotam as ameaas de que ela venha a sersubvertida de uma forma ou de outra; e as disposies e atitudes do eleitorado

    em geral no parecem seno reforar as razes para uma avaliao reservada.