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, <"'~ ~.~' \<'f'~'~ ~ ~'e • .,._.~~ . ~;~t artigo ", . ~~ BREVE HISTÓRICO DA FORMAÇÃO/QUALIFICAÇÃO DO TRABALHADOR NO BRASIL Cláudio Pinto Nunes' INTRODUÇÃO Legislação e formação do trabalhador no Brasil A relação entre educação e trabalho tem sido tema de discussões desde o século XIX no campo da economia política. Mas é na segunda metade do século XX que essas discussões ganham força a partir de intelectuais da classe trabalhadora, tendo em vista maior participação política e econômica e a construção de um novo projeto. Nesse sentido, educadores brasileiros passaram a se envolver mais detidamente com a elaboração de uma proposta de democratização da educação, porquanto percebiam o momento fértil para tal projeção. Desse modo, desenvolveram vários estudos, pesquisas, debates acerca de questões relativas à relação entre educação e trabalho. Uma das questões que têm permeado tais discussões tem abordado o processo de concretização de uma proposta que privilegie o trab- alho como principio educativo. Outra, não menos importante, busca entender como ocorre a educação para o trabalho. Questões como estas precisam ser abraças e esclarecidas com urgência, posto que as propostas articuladas entre educação e trabalho no Brasil têm oscilado dicotomicamente, segundo Kuenzer (1992), en- tre o "academicismo superficial e a profissionalização estreita". Para Kuenzer: A falta de compreensão teórica da relação entre educação e trabalho, bem como a dificuldade de apreender como ela tem histórica e cotidianamente ocorrido no interior das formas concretas que a contradição entre capital e trabalho vai assumindo, tem concorrido para a formação de políticas educa- cionais e propostas pedagógicas discutíveis (KUENZER. 1992, p. 12). Assim, analisando especificamente como tem se dado a relação entre educação e trabalho no Brasil, vai se perceber que tal relação tem sido rasteiramente compreendida a partir da ótica da divisão social e técnica do trabalho, que gera a constituição de sistemas de educação marcados pela dualidade estrutural: a educação articulada ao trabalho se estrutura como um sistema diferenciado e paralelo do sistema de ensino regular. Aqui, faz-se necessário fazer um balanço histórico para melhor entender o processo educacional brasileiro no tocante a suas duas ver- tentes, muito evidentes e bem definidas ao longo dos anos: o academi- cismo, proposta para aqueles que têm as condições históricas de in- gresso no ensino superior; e a profissionalizante, voltada para aqueles por quem o mercado de trabalho aguarda. Em 1909 são criados pelo governo federal os primeiros cursos I Cláudio Pinto Nunes é professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, é mestre em Educação, pela Université Du Québec À Chicoutimi, e doutorando em Edu- cação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. RESUMO Este artigo, inicialmente, apresenta uma discussão sobre a relação entre educa- ção e trabalho enquanto campo de pesquisa no Brasil ao longo do século XX e início do século XXI. Em seguida, este texto focali- za a legislação que vigorou e vigora sobre a formação e qualificação do trabalhador, descrevendo e discutindo como se deu essa formação/qualificação com a vigência de leis federais, passando pela Lei Orgânica do Ensino Fundamental11942, a Lei de Di- retrizes e Bases da Educação n°4.024/1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n° 5.692/1971 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9394/1996. Palavras-chave: legislação, qualificação, trabalhador. 2007 . revista comciência 11

BREVE HISTÓRICO DA FORMAÇÃO/QUALIFICAÇÃO DO …revistacomciencia.com/artigos_2008/Artigo_1.pdf · Afalta de compreensão teórica da relação entre educação e trabalho, bem

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BREVE HISTÓRICO DAFORMAÇÃO/QUALIFICAÇÃO DOTRABALHADOR NO BRASIL

Cláudio Pinto Nunes'

INTRODUÇÃO

Legislação e formação do trabalhador no Brasil

A relação entre educação e trabalho tem sido tema de discussõesdesde o século XIX no campo da economia política. Mas é na segundametade do século XX que essas discussões ganham força a partir deintelectuais da classe trabalhadora, tendo em vista maior participaçãopolítica e econômica e a construção de um novo projeto.

Nesse sentido, educadores brasileiros passaram a se envolver maisdetidamente com a elaboração de uma proposta de democratização daeducação, porquanto percebiam o momento fértil para tal projeção.Desse modo, desenvolveram vários estudos, pesquisas, debates acercade questões relativas à relação entre educação e trabalho.

Uma das questões que têm permeado tais discussões tem abordadoo processo de concretização de uma proposta que privilegie o trab-alho como principio educativo. Outra, não menos importante, buscaentender como ocorre a educação para o trabalho.

Questões como estas precisam ser abraças e esclarecidas comurgência, posto que as propostas articuladas entre educação e trabalhono Brasil têm oscilado dicotomicamente, segundo Kuenzer (1992), en-tre o "academicismo superficial e a profissionalização estreita". ParaKuenzer:

A falta de compreensão teórica da relação entre educação e trabalho, bemcomo a dificuldade de apreender como ela tem histórica e cotidianamenteocorrido no interior das formas concretas que a contradição entre capital etrabalho vai assumindo, tem concorrido para a formação de políticas educa-cionais e propostas pedagógicas discutíveis (KUENZER. 1992, p. 12).

Assim, analisando especificamente como tem se dado a relaçãoentre educação e trabalho no Brasil, vai se perceber que tal relação temsido rasteiramente compreendida a partir da ótica da divisão social etécnica do trabalho, que gera a constituição de sistemas de educaçãomarcados pela dualidade estrutural: a educação articulada ao trabalhose estrutura como um sistema diferenciado e paralelo do sistema deensino regular.

Aqui, faz-se necessário fazer um balanço histórico para melhorentender o processo educacional brasileiro no tocante a suas duas ver-tentes, muito evidentes e bem definidas ao longo dos anos: o academi-cismo, proposta para aqueles que têm as condições históricas de in-gresso no ensino superior; e a profissionalizante, voltada para aquelespor quem o mercado de trabalho aguarda.

Em 1909 são criados pelo governo federal os primeiros cursos

I Cláudio Pinto Nunes é professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, émestre em Educação, pela Université Du Québec À Chicoutimi, e doutorando em Edu-cação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

RESUMO

Este artigo, inicialmente, apresentauma discussão sobre a relação entre educa-ção e trabalho enquanto campo de pesquisano Brasil ao longo do século XX e início doséculo XXI. Em seguida, este texto focali-za a legislação que vigorou e vigora sobrea formação e qualificação do trabalhador,descrevendo e discutindo como se deu essaformação/qualificação com a vigência deleis federais, passando pela Lei Orgânicado Ensino Fundamental11942, a Lei de Di-retrizes e Bases da Educação n°4.024/1961,a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n°5.692/1971 e a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional n° 9394/1996.

Palavras-chave: legislação, qualificação,trabalhador.

2007 . revista comciência 11

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profissionais, com 19 escolas de apren-dizes artífices, ligadas ao Ministérioda Agricultura, Indústria e Comércio,que prestavam mais à qualificação deartesãos do que para a qualificação deprofissionais para a indústria. Sua in-tenção era a inserção no mercado detrabalho dos jovens das regiões maispobres, como o nordeste do país, em-bora não existissem indústrias para ab-sorver todo o contingente de jovens queestudavam.

A LEI 4.073/1942E A FORMAÇÃODO TRABALHADOR

Somente a partir dos anos 1940,entra em vigência a Lei Orgânica doEnsino Industrial (1942) que cria as ba-ses para a organização de um sistemade ensino profissional para a indústria.Criam-se o SENAI - Serviço Nacionalde Aprendizagem Industrial (1942), e oSENAC - Serviço Nacional de Apren-dizagem Comercial (J 946). Tanto umquanto o outro tem uma proposta cur-ricular caracterizada pelo alto teor deaulas práticas, deixando para segundoplano a formação teórica, que, quasesempre não chegava a existir.

A partir de então, todas as escolaspassam a ser legislada pela LOEI e,por isso, como mostra Kuenzer (1992:p. 13), passam a oferecer cursos téc-nicos. A Lei Orgânica do Ensino Indus-trial estabelece, ainda, pelo menos noplano documental, a equivalência par-cial entre os cursos técnicos e o ensinoregular; de modo que o estudante queconcluísse um curso técnico poderiaingressar em cursos superiores, respeit-ados os processos de seleção para in-gresso nesse grau de ensino (vestibula-res). A parcialidade está no fato de queestes só poderiam ingressar nos cursossuperiores que fossem relacionadospelo serviço público. A esse respeito,especificamente, Kuenzer comenta:

Até essa época, portanto, verifica-seque a educação para o trabalho é atri-buição especifica de um sistemafederalde ensino técnico, complementado porum sistema privado de formação pro-fissional para a indústria e para o co-mércio, através do SENAl e do SENAC.Ambos se desenvolvem paralelamenteao sistema regular de ensino, articulan-

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do-se a este através de um mecanismorelativo e de execução duvidosa. repre-sentado pela 'continuidade em cursosrelacionados ..só tardiamente definidos(/953) (KUENZER. 1992. p. 14).

A Lei Orgânica do Ensino Indus-trial permanece em vigência até o anode 1961, quando nova lei é publicada,a Lei 4.024/6l.

A LEI 4.024/1961 E A FORMAÇÃODO TRABALHADOR

A Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional n° 4.024 (1961) ar-ticula os dois sistemas, com dois ramosde ensino médio diferenciados, masequivalentes: um propedêutico (cientí-fico) e outro profissionalizante (normal,industrial, comercial e agrícola). Essaarticulação proposta pela lei não chegaperto de resolver a diferenciação que éfeita entre as camadas sociais no que serefere ao acesso a essas modalidades deensino, pois o que ocorre é a manuten-ção da separação entre educação e for-mação profissional, o que caracteriza adivisão entre trabalho intelectual e tra-balho manual. Ocorreu, portanto, o quepareceu ser uma tentativa de democra-tização do acesso ao ensino superior,uma vez que o estudante que termi-nasse o ensino técnico poderia pleitearuma vaga nas universidades. Perman-eceu uma inexistente articulação entreo mundo da educação e o mundo dotrabalho.

Mas, ao se analisar o referencialteórico que este aluno, oriundo de umaformação média profissionalizante, tempara concorrer nos vestibulares a umavaga no ensino superior, percebe-se adiferença gritante entre o preparo cientí-fico e o preparo profissional; tendo sidoesta última toda voltada para o trabalhomanual e a primeira para o intelectual.Além disso, a própria concepção de es-colarização por parte das pessoas ori-undas das camadas populares é de quea elas está reservada a possibilidade deuma vaga profissional nos trabalhosque demandam maior força fisica, ai-nda que nem sempre consiga chagar aesta vaga. Aqui é pertinente evidenciara distribuição dos alunos pelos dife-rentes ramos de formação se dava por

Nunes. CIf.udio Pinto

sua origem de classe: educação para aburguesia e formação profissional parao povo.

Com o Golpe Militar de 1964,ocorreram importantes transformaçõesna estrutura do sistema de ensino deformação profissional, posto que a in-tenção do novo governo militar se cen-tra na racionalização de todos os setoresda vida social, política e econômica dopaís. É exatamente por isso que a Lei4.024/61 passa por um processo de re-formulação que vai dar origem à Lei5.692/71.

A LEI 5.692/1971 E A FORMAÇÃODO TRABALHADOR

Fazia-se necessária uma reestru-turação que substituísse o caráteracadêmico pela formação profissionaljá no então chamado 2° grau. Surge,dessa forma, a Lei de Diretrizes e Bas-es do Ensino de 1° e 2° Graus n° 5.692(1971), que propõe romper com a du-alidade, substituindo os antigos ramospropedêutico e profissionalizante porum sistema único.

Nesse contexto, vai se dar umanova forma de relação entre educaçãoe trabalho em que a escola passa a re-sponder pela formação profissional detodos os alunos do 2° grau, seja qualfor a sua classe social. Ocorreu, toda-via, que na prática pouca coisa - ounada - mudou. A homogeneidade nãoocorreu devido às condições desiguaisde acesso à escola, a falta de vontadepolítica, a falta de professores qualifi-cados, as dificuldades metodológicasde articulação entre teoria e prática, odesinteresse do capital em ampliar eregulamentar as carreiras de nível téc-nico. Continuaram a existir vários ti-pos de escola de 2° grau, com distintosníveis de qualidade.

Assim, as escolas da burguesia usa-vam artificios para esconder seu caráterpropedêutico, sob uma falsa propostaprofissionalizante. As escolas públi-cas, que antes tinham o caráter profis-sionalizante explícito, passaram a nãoconseguir desenvolver nem o ensinopropedêutico nem o profissionalizante,perdendo, portanto, a qualidade que

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tinham e não atendo nem a demandasocial nem a demanda legal, definidapela Lei 5.692/71.

Para Kuenzer (1992: p. 17),

Se esta situação não chegou a ser al-terada pela Lei 5,692/71, embora fos-se seu objetivo, foi fundamentalmentepela contradição entre a proposta le-gal e as condições concretas do desen-volvimento do capitalismo na Brasil.Foi esse mesmo desenvolvimento quefez cair por terra uma das mais carasjustificativas dos defensores da gene-ralização da formação profissional na2" grau: as necessidades do mercadode trabalho relativas a técnicos de ní-vel médio (/992. p. 17/

Como o mercado de trabalho nãotinha condições tampouco necessidadede tanta mão-de-obra de nível médio,muitos dos técnicos formados passarama formar os bolsões da pobreza nas per-iferias dos grandes centros urbanos,prova de que havia, de fato, há uma in-compatibilidade entre a capacidade deabsorção da mão-de-obra pelo mercadode trabalho e a proposta de educaçãopropedêutico-profissionalizante apre-sentada pela Lei 5.692/7l.

Com isso, vai ocorrer especifica-mente que: a) o setor primário se mod-erniza e absorve pouca mão-de-obra; b)o setor secundário desenvolve a indús-tria de ponta, simplifica os processosde trabalho, exigindo cada vez menosmão-de-obra; e c) o setor terciário nãoconsegue incorporar a oferta excedentede mão-de-obra.

Acerca dessa incompatibilidade,Kuenzer é categórica ao afirmar que

As características do desenvolvimentodo processo produtivo, acrescidas dasprecárias condições de funcionamen-to da escola de 2° grau, acabam porinviabilizar completamente a propostade articulação entre educação e traba-lho nos moldes da Teoria da CapitalHumano (KUENZER, 1992, p. /8).

o MEC percebe e admiti a limita-ção concreta não prevista pela legisla-ção, ao propor a generalidade da habili-tação profissional a nível médio técnico,através do 2°grau e, tentando amenizaro impasse, decreta o Parecer 76/75 doConselho Federal de Educação. Tal Pa-recer visava à recolocação teórica dosentido da escolarização em nível de

2°grau, deslocando-o do dualismo entreeducação geral e formação especial ereafirmando o seu caráter complemen-tar, posto que esta não se dá sem aquela,reafirmando também a importância daformação tecnológica. Mas o que vaiocorrer, de fato, é que o parecer vai ger-ar um processo de descompromisso daescola com uma formação profissionalde caráter mais geral, que perpassassepela educação geral e pela formaçãoespecial e tecnológica, uma vez quepropõe "a educação profissionalizante"como objetivo do 2° grau, em substitu-ição à habilitação profissional. Isso fezcom que o 2° grau passasse a compro-meter-se com o "preparo básico" paraa iniciação em uma área de atividadeque iria complementar-se só após o in-gresso no mercado de trabalho.

Entraram então em vigência, por-tanto, dois tipos de habilitação: as bási-cas, de caráter mais geral, já propostapelo Parecer 76/75, e as habilitaçõesplenas e parciais, conforme o Parecer45/72, que se destinavam à formaçãode técnico e auxiliares, consoante regiaa Lei n° 5.692/71.

Com isso, vai notar-se que aquiloque tinha representado avanço em 1971,quando foi proposta uma escola única,cai por terra com o ressurgimento dadualidade estrutural. Voltaram as esco-las a atender à demanda de sua classesocial, respectivamente. De um lado,as escolas que atendiam à classe médiae à burguesia, apresentando um ensinopropedêutico, como fora no passado; deoutro, as escolas que se voltavam paraas camadas mais populares, geralmenteescolas estatais públicas com as piorescondições para oferecer habilitaçãoprofissional, ofereciam um ensino quenão chegava a ser, de fato, um ensinode profíssionalização que atendesseà demanda do mercado de trabalho, eque, na verdade, não representava umareal formação geral tampouco uma for-mação profissional.

Assim, tem-se um ensino de 2°grau que não define qual é sua funçãodentro da sociedade de então no quese refere à questão da formação profis-sional. Esta indefinição adquire legit-imidade com a Lei 7.044 (1982), que

formaliza a extinção da escola únicade profissionalização, escola, aliás, quenunca chegou a existir concretamente,e propõe uma genérica preparação parao trabalho, A Lei 7.044/82, na verdade,apenas retoma a concepção de forma-ção profissional vigente antes de 1971 eainda evidencia o já flagrante descorn-promisso da escola com as classes ori-undas das camadas mais populares, aquem esta reservada a obrigatoriedadeinevitável de exercer as funções soci-ais que demandavam trabalho manual.A Lei 7.044/82, na verdade não mudaquase nada, pois a Lei 5.692/71 e seuspareceres complementares não foramrevogados, de modo que tudo continu-ou como antes.

Analisando essa dualidade estru-tural não resolvida, mas legitimada nointerior do sistema de ensino, Kuenzer(Id, p. 20) denuncia que

ofato da dualidade estrutural não tersido resolvida no interior do sistemade ensino, apesar da tentativa feitapela Lei n" 5,692/71, não causa espan-to, na medida que ela expressa a divi-são que está posta na sociedade brasi-leira, enquanto separa trabalhadoresintelectuais e trabalhadores manuais eexige que se Ihes dê distintas formas equantidades de educação. Ao mesmotempo, essa impossibilidade revela,mais lima vez, a ingenuidade das pro-postas que pretendem resolver, atravésda escola, problemas que são estrutu-rais nas sociedades capitalistas, Nessesentido, a escola brasileira, antes deresolver a dicotomia educação/traba-lho no seu interior; referenda, atravésdo seu caráter seletivo e excludente,esta separação, que é uma das condi-ções de sobrevivência das sociedadescapitalistas, uma vez que determinadapela contradição fundamental entrecapital e trabalho (KUENZER. 1992,p,20/

Dois grupos se constituem a par-tir da escola: aqueles que conseguempermanecer nela e aqueles que sãoevadidos dela, porquanto não conseg-uem condições de continuar seus estu-dos. Esses dois grupos se distinguem,sobretudo, pelo grau de formação queadquirem na escola com o tempo eas condições de estudo, igualmentediferenciados pela concepção de edu-cação e de formação para o trabalhoque orientava o ideário pedagógico de

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BRf\ E JHSI ORllO D \ FOR~1.\(:\(\')1 \llIJ(',\~'AO DO TR.\II.\I H.\DURNO BR.\SIL Nune- Claudio Pinto

então, fortemente marcado por pol íti-cas descomprometidas com as pessoasoriundas das camadas populares da so-ciedade,

Estes dois grupos apropriam-sediferentemente do saber sobre o trab-alho, Os profissionais que conseguemconcluir o curso têm uma formação apartir da teoria sem prática, posto que aconcepção de formação para o trabalhoera que o aspecto prático da formaçãose daria após o seu ingresso no mercadode trabalho, consolidando, aquilo quemais tarde se chamada de pedagogia dafábrica (KU ENZER, J 992).

Ocorre, todavia, que essa não éuma limitação para o capital; o capitalresolve seu problema de formação inde-pendentemente da escola, que promovetreinamentos determinados para cor-rigir problemas específicos e pontuaisem cada processo produtivo. De fato,muito do saber de ponta e tecnológicoé produzido nas relações de produçãoe não na escola. Mesmo assim, o tra-balhador que acabava de terminar suaformação escolarizada para o trabalhoencontrava dificuldades na concorrên-cia desigual, com os já experientes, poruma vaga no mercado de trabalho.

Essa e muitas outras questõesacabaram por levar a Lei 5.692/71 apassar por um novo processo de refor-mulação, dando origem à Lei 9.394/96.

A LEI 9394/1996 E A FORMAÇÃODO TRABALHADOR

O processo de universalização doensino médio começa, no que se refere àlegislação, com a Constituição de 1988,que estabelece como preceito, no incisoIldo Art. 208, "a progressiva extensãoda obrigatoriedade" a esse nível de en-sino. Oito anos depois, a Emenda Con-stitucional n" 14/96 retoma a discussão,transferindo o mandato de obrigatorie-dade em "progressiva universalizaçãodo ensino médio gratuito". Assim, aoferta de ensino médio passou a ser umdireito constitucional de todo cidadãoque concluísse o ensino fundamental.Embora não representasse obrigatorie-dade cursar o ensino médio, tornou-seobrigatório para o Estado a oferta desse

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nível de ensino.Acerca dessa discussão, Brasi I

(apud Berguer Filho, 2001: p. 193) as-sim declara:

A Constituição. portanto. confere aesse nível de ensino, o estatuto dedireito de todo cidadão. O ensinomédio passa, pois. a integrar a etapado processo educacional que a naçãoconsidera básica para o exercício dacidadania. base para o acesso às ati-vidades produtivas. inclusive para oprosseguimento nos níveis mais elevo-dos e complexos de educação. e parao desenvolvimento pessoal (BRASIL,apud BERGUER FILHO, 2001. p.193).

Com a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional, n" 9.394 (1996),o ensino médio, que até então era de-nominado de ensino de 2° grau, passaa compor, juntamente com o ensinofundamental e com a educação infantil,um bloco de escolarização denominadoeducação básica. Com isso, o ensinomédio perde o estatuto de grau e passaa ser um segmento da educação básica.

No que se refere ao preparo parao exercício de uma profissão, a Lei9.394/96 muda significativamente de-liberações da lei anterior (Lei 5.692/71),que concebia o então ensino de 2 ° graucom dupla função: preparar para oprosseguimento dos estudos e habili-tar para o exercício de uma profissãotécnica. A Lei 9.394/96 estabelece, noseu Art. 35, que o ensino médio tempor finalidade a formação geral, comocontinuidade da formação oferecidapelo ensino fundamental; o preparo ea orientação básica para a integraçãodo educando ao mercado de trabalho;a instrumentalização básica para que oeducando continue aprendendo; e o seuaprimoramento como pessoa humana.

Dessa forma, fica evidente que oensino médio, enquanto segmento daeducação básica, caracteriza-se por umaformação geral. Aqui cabe a dúvida: sea proposição do ensino médio reunindoa formação humana, a continuidade daformação iniciada no ensino funda-mental, e a preparação para o trabalho,deu-se porque o MEC entendeu estaformação melhor para os brasileirosou se tal fato se deu porque o mercado

de trabalho já não necessitava mais deprofissionais com formação de nívelmédio para atuarem nos seus postos detrabalho.

Os Art. 39 a 42 da Lei 9.394/96,que tratam da educação profissional,mantêm uma relação de complemen-taridade da preparação básica para otrabalho proposta pelo Inciso II do Art.35. Dessa relação, depreende-se que aopropor a preparação básica para o tra-balho no ensino médio, a Lei 9.394/96já previa a impossibilidade de umacompleta formação profissional nessenível de ensino, diferentemente do quedeterminava a Lei 5.692/71.

A educação profissional, definidapela Lei 9.394/96, propõe-se a ca-pacitar, através das escolas técnicase profissionais, jovens e adultos comformação que se dá "integrada às dife-rentes formas de educação profissional,ao trabalho, à ciência e à tecnologia",tendo em vista "o permanente desen-volvimento de aptidões para a vida pro-fissional" (Art. 39).

Ao desobrigar o ensino médio dooferecimento de uma formação profis-sional stricto senso, a lei atribui à edu-cação profissional essa incumbência,no sentido de articular e monitorar astendências econômicas e tecnológicaspara determinar a oferta de cursos edefinir seus currículos. Essa educaçãoprofissional, de que trata a lei, segundoBerguer Filho (2001: p. 194),

Não se baseia no mesmo principio deequidade que deve permear as polí-ticas e as concepções de educaçãogeral; seu princípio orientador deveser a empregabilidade. Para tanto,é necessária uma articulação com osetor produtivo que norteie a ofertaquantitativa e qualitativa. Estudos emonitoramento das tendências econô-micas e lecnológicas devem estar pre-sentes nas decisões de oferta de cursose na formulação das currículos dessescursos; o acompanhamento de egres-sosfaz a sintoniafina com o mundo daprodução (BERGUER FILHO, 2001,p. 194).

Há, aqui, uma ruptura com a di-mensão humana do educando, postoque ele, enquanto sujeito em formação,não tem o direito de conduzir sua for-mação profissional de acordo com seus

NlIIlCS, Claudio Pinto

desejos e aspirações pessoais e sim deacordo com os ditames do mercadoprodutivo. Ele não define a profissãoque quer exercer. Esta escolha fica acargo do setor produtivo.

Apoiando-se, novamente, em Bergu-er Filho (id, p.194), vai-se concluir que:

As considerações gerais sobre legisla-ção indicam a necessidade de construirnovas alternativas de organização doscurrículos comprometidas, de um lado,com o novo significado do trabalho e,do outro. com o sujeito ativo, a pessoahumana que se apropriará desses co-nhecimentos para aprimorar-se, comotal, no mundo do trabalho, em estudosposteriores e na prática (BERGUERFILHO, 2001, p. 194).

Desse modo, apresenta, enquantotarefa urgente para aqueles que se preo-cupam com a formação humana do tra-balhador, a necessidade de se repensarcom vista para um redimensionamentodos currículos escolares, especialmente

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no que se refere às possibilidades deformação de profissionais qualificadospara não só para agir nos setores produ-tivos da sociedade, mas também parapensar sobre suas ações nesses mesmossetores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É claro, entretanto, que o capitalhumano e a capacidade de empregode cada indivíduo dentro de urna so-ciedade não se define apenas por suaescolarização, posto não ser a escola oúnico espaço de formação, mas a escolase constitui num meio privilegiado deformação e, enquanto tal, está propensaa contribuir mais significativamentecom a constituição de urna capital hu-mano, dada a sua intencional idade deensino e capacidade de sistematizaçãoacadêmica do conteúdo da aprendiza-gem. Assim, ocorre que a formação (es-

colar e/ou não escolar) gera um maiorcapital humano, que, por sua vez, setraduz em maior empregabilidade, istoé, quanto maior a formação ou capitalhumano de um indivíduo, maior a suacapacidade de conseguir um empregocada vez melhor com remuneração cadavez mais alta. Além disso, o capital hu-mano também está relacionado a outrosfatores de qualidade de vida, como ascondições de saúde, alimentação, habi-tação, saneamento, dentre outros.

A educação é, como já se sinal-izou acima, o principal capital humano,posto que é concebida como produtorade capacidade de trabalho, além de sersistematizadora e potencializadora dofator trabalho. Nesse sentido, talvezfosse correto afirmar que a educação éum investimento como também são asaúde, o saneamento básico, a alimen-tação e outros.

REFERÊNCIAS

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Brasil, Lei Orgânica do Ensino In-dustrial, n" 4.073/1942

Brasil, Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional, n° 4.024/61

Brasil, Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional, n05.692171

Brasil, Conselho Federal de Educa-ção. Parecer 45, ] 972.

Brasil, Conselho Federal de Educa-ção. Parecer 76,1975.

Brasil, Lei 7.044, 1982.

Brasil, Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional, n? 9.394/1996.

KUENZER, A. Z. O ensino de 2°grau: o trabalho corno princípioeducativo. 2'. Ed. São Paulo: Cor-tez, ]992.

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