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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 68, maio 1999 1 · cia, tem se gerado não como evento de uma cerimônia ou de um ins-tante, mas como expressão de um processo, e merece toda a nossa

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EDITORIAL

Tal o singular estilo de passe que, no andar mesmo de nossa experiên-cia, tem se gerado não como evento de uma cerimônia ou de um ins-tante, mas como expressão de um processo, e merece toda a nossaatenção e um cuidadoso debate.

Esses três pontos são os que têm garantido nossa formação depsicanalistas e, ao mesmo tempo, que a transferência entre nós sejafundamentalmente de trabalho.

Na última semana de maio, teremos a oportunidade de dar umanova torção às voltas de nosso trabalho: no já tradicional evento “Re-lendo Freud e conversando sobre a APPOA”, estaremos debatendo otexto de S. Freud “Análise terminável e interminável” e abrindo o lequedas questões que nos preocupam enquanto ao andamento de nossaprodução. A esse respeito tem surgido a questão dos Departamentosou Seções (estão em curso de organização o de Psicoses e o de Crian-ças). É claro que o que justifica uma especificidade da psicanálise é adiferença da relação do sujeito com o significante. No caso da criança(a particular torção temporal, a dilatação do registro imaginário, e oexcesso de real) e no caso das psicoses (a precipitação do significanteno real, o retorno alucinatório do suporte imaginário do significante, e ofuncionamento da linguagem como uma língua estrangeira) tudo seinclina a provocar uma prática diferenciada, que propicia a reunião da-queles que encontram seu desejo de analistas situado nessas particu-lares posições do fantasma.

MESA DIRETIVA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 1999/2000

Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2a. Vice-Presidência - Maria Ângela Brasil

Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa, Ana Marta Goelzer Meira,Carlos Henrique Kessler, Cristian Giles, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Jaime Alberto Betts,

Ligia Gomes Víctora, Liz Nunes Ramos, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,Mario Fleig, Marta Pedó, Robson de Freitas Pereira,Simone Moschen Rickes e Valéria Machado Rilho.

EDITORIAL

AAPPOA foi fundada em 17 de dezembro de 1989. Começamos, hoje, a transitar pelo seu décimo ano. Beira de uma datadeci-mal, que reatualiza a imaginária equação do fim de qual-

quer coisa e a esperança de algo novo. Torna-se então propício lembrarmo-nos do que inspirou sua fundação e algumas de suas conseqüências.

Pelo menos três pontos cabe destacar nessa origem: o primeiroé o da renúncia à complacência egóica. Com efeito, a APPOA se formaà partir da dissolução de transferências particulares, canalizadas emdireção à pessoa de seus primeiros organizadores e fundadores. Sen-do que esse gesto acabou por transformar-se em princípio, a tal pontoque aqueles que não se mantiveram nessa posição acabaram por ficarfora de seu processo criativo. No cerne dessa renúncia se articulou acondição para a quebra incessante de qualquer tentativa de mestriapermanente – mestria, então, somente como lugar de passagem obri-gatório do discurso. Ou seja, a ruptura constante do par amo-escravo.

O segundo ponto orientou, e orienta, nosso trabalho de um mododecisivo: a demonstração de que não há solução de continuidade entreintenção e extensão. Acabamos, por isso, dando vida às teses que, naleitura exegética de Freud, Jacques Lacan formalizou sobre a articula-ção – não somente possível, mas necessária – entre a clínica individu-al e a social. Nesse item, temos que destacar as precisas contribuiçõesde Contardo Calligaris, quem, com toda a generosidade, colocou nasnossas mãos algumas ferramentas metodológicas que se mostraramde grande valor para assegurar a presença da psicanálise na pólis.

No terceiro ponto, situamos nossa invenção de conjunto: essedelicado mecanismo de relojoaria, que temos montado cuidadosamen-te durante todos esses anos, que hoje conceitualizamos sob o título de“os destinos da transferência”. Eis que a APPOA aposta numa contri-buição possível para a instituição psicanalítica: colocar o acento naprodução de cortes significantes, que não confiam a nenhum dispositi-vo em particular – e admitem, por isso, uma grande diversidade deles– a imprescindível redistribuição incessante das transferências em jogo.

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das para a reunião a renovação da Mesa Diretiva para a gestão 1999/2000 e a apresentação do relatório moral e do relatório financeiro refe-rentes à gestão que se encerrou. Lembramos que, de acordo com nos-sa ata de fundação, a mesa diretiva da APPOA é renovada por umterço a cada dois anos. Este acontecimento diz respeito a todos aque-les que nos sentimos engajados na proposta institucional da APPOA,convocando à participação efetiva nos rumos da instituição.

No primeiro momento da reunião, a presidente da gestão anteri-or, Ana Maria Medeiros da Costa, leu o relatório moral referente aosdois últimos anos. Este relatório tem como função prestar contas aosmembros e fazer uma análise da gestão que se encerra, destacandoquestões que possam ser levadas em conta no futuro. Foram aponta-das uma série de atividades e acontecimentos ligados ao cotidiano denosso funcionamento neste último período. Após a leitura do relatório,foi feita a discussão do mesmo, que foi aprovado pela assembléia. Aseguir, as tesoureiras Carmen Backes e Roséli Cabistani fizeram a lei-tura do relatório financeiro, apresentando o movimento das finançasnos anos de 1997 e 1998 a todos os presentes.

No decorrer da reunião, procedemos à renovação de um terçoda mesa diretiva. Foram eleitos seis membros, cujos nomes foram in-dicados pela mesa e foram aprovados pela assembléia através de vo-tação. É importante salientar que qualquer membro pode se candidatare ser eleito aos cargos diretivos da associação durante a assembléia.Após a eleição, foi feita a indicação da nova presidência, e, então, opresidente da nova gestão, Alfredo Jerusalinsky, falou a todos.

Neste ano a APPOA completa dez anos de existência, sendoesta a quinta gestão da mesa diretiva que se inicia. É com a implicaçãoefetiva de seus membros nestes momentos de mudança e reflexãosobre a vida institucional, que a APPOA vem trabalhando no sentidode preservar o que há de fundamental na experiência psicanalítica.

Gerson Smiech Pinho

NOTÍCIASNOTÍCIAS

MESA DIRETIVAInformamos a composição da Mesa Diretiva da Associação Psi-

canalítica de Porto Alegre, para o biênio 1999/2000, aprovada na As-sembléia Geral no dia 26 de março de 1999.

Presidência – Alfredo Néstor JerusalinskyVice-presidência – Lucia Serrano PereiraVice-presidência – Maria Ângela Cardaci Brasil

Mesa DiretivaAna Maria Gageiro

Ana Maria Medeiros da CostaAna Marta Goelzer MeiraCarlos Henrique Kessler

Cristian GilesEdson Luiz André de Sousa

Gladys Wechsler CarnosIeda Prates da SilvaJaime Alberto BettsLigia Gomes Víctora

Liz Nunes RamosMaria Auxiliadora Pastor Sudbrack

Mario FleigMarta Pedó

Robson de Freitas PereiraSimone Moschen RickesValéria Machado Rilho

ASSEMBLÉIA GERAL DA APPOANo dia 26 de março, na sede da APPOA, tivemos a oportunida-

de de vivenciar um momento fundamental de nossa vida institucional.Nesta data, foi realizada a Assembléia Geral da APPOA, para a qualforam convocados todos os membros da associação. Estavam pauta-

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aponta que “transferência” nos remete a alguma coisa que faz ligação,um laço social; enquanto o termo metáfora, no grego, significa, literal-mente, “transporte”. Segundo ele, para trabalhar a questão da metáfo-ra Lacan utiliza-se de um verso de Victor Hugo, do poema chamado“Booz adormecido”, onde aproxima a metáfora da função paterna, per-mitindo situá-la como aquilo que diz respeito à constituição do sujeito.Para Mario Fleig, o ponto específico em que se situa a contribuição deLacan a respeito da metáfora e do que a ela se segue - nome-do-pai,etc.- é o que estará em jogo em uma análise, ou seja, o que poderáentrar em operação é a metáfora, pois é esta que permite a criação dealgo.

Ana Maria da Costa sugere-nos pensar em um determinado trân-sito do sujeito que se poderia enunciar como a seguinte passagem:nomeação à significação à criação.

Um dos pontos interessantes de sua palestra é quando nos apontaque o “reconhecimento fálico”, reconhecimento social, não é suficientepara que a legitimidade de nossos atos se institua. Pensar na criaçãocomo produção de um ato - no sentido mais amplo e cotidiano possí-vel, e não no sentido em que a criação nos parece como um ato subli-me de um artista, que nem todos nós temos- poderia ser suficientecomo amparo do lugar do sujeito. Entretanto, é necessário um passo amais que não se prende ao reconhecimento, e a isso chamamos delegitimação. Para Ana Maria da Costa, o que faz os analistas acolhe-rem as demandas de análise e os discursos que lhes são endereçadosé acreditar que seja necessário uma presença do analista, que de algu-ma maneira permita fazer um trânsito do que seria essa condição doreconhecimento social, reconhecimento fálico a uma legitimação.

Alfredo Jerusalinsky lembra-nos os três destinos da pulsão assi-nalados por Freud: angústia, representação de objeto e sublimação.Angústia, quando a pulsão não encontra a representação de objeto;sob a forma Vorstellungsrepräsentanz (representante significante do

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JORNADA DE ABERTURA DE 1999OS DESTINOS DA TRANSFERÊNCIA

Lucia Pereira inicia os trabalhos da jornada lembrando-nos umapassagem de Freud, na qual este aponta que nada poderia ser atingido“in absentia, in effigie”, e que para poder interpretar é preciso esperar oefeito de transferência, ou seja, o amor como efeito de transferência esua face de resistência; ao mesmo tempo que deveríamos considerarque este fecha o sujeito ao efeito da interpretação. A referência vai nadireção de podermos nos interrogar sobre os destinos das transferênci-as, na prática clínica e também no meio lacaniano, quanto à interlocuçãoentre analistas. Ou melhor, questiona-se se nestes lugares não atuaum resto de transferência (amor) na sua face de resistência, por exem-plo, quando se fala o dito lacanês, ou mesmo quando uma iniciativa detrabalho entre diversas instituições esbarra em um tempo de burocra-cia, não raramente, em nome do que seria o mais “bem dito” por Lacan.Lucia Pereira acredita que esta questão não seja central nas relações,pois percebe que, mesmo que isso aconteça, ainda conseguimos pro-duzir de forma extremamente interessante nas relações entre analis-tas. Entretanto, destaca os obstáculos e as dificuldades que se apre-sentam em laços nos quais estamos incluídos, sendo portanto de nos-sa responsabilidade considerar. Trata-se de apontar o trabalho de se-paração necessário frente ao fascínio que pode nos ligar amorosamen-te a uma “pessoa” ou a uma obra.

Mario Fleig, em sua apresentação, faz um caminho da “Transfe-rência” que passa pela “Metáfora”, encontrando um elo específico naestrutura do sonho. Lembra-nos que o substantivo Übertragung, queFreud usa, quer dizer “transferência”. Entretanto, como o termo ale-mão possui algumas conotações específicas, questiona-se porque Freudnão usou uma outra palavra para o termo Übertragung, como transpor-te, por exemplo. Para um melhor entendimento sobre isso, sugiro o“Dicionário comentado do alemão de Freud” de Luiz Hanns. Mario Fleig

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A DIMENSÃO TRÁGICA DA PSICANÁLISEInformamos que no dia 05 de maio, às 20h30min, terá início o

Seminário “A dimensão trágica da psicanálise”, coordenado por EnéasCosta de Souza.

PSICANÁLISE E CULTURACarlos Henrique Kessler informa que o grupo temático “Psicaná-

lise e cultura” terá início no dia 13 de maio, tendo seguimento semprenas quintas-feiras, das segundas e quartas semanas do mês, às 21horas. Maiores informações na Secretaria.

PSICANÁLISE COM CRIANÇASO cartel Psicanálise com crianças informa que suas reuniões

serão semanais, nas quartas-feiras, às 20h30min, na sede da APPOA,sendo os integrantes: Fernanda Breda Leyen, Marcelo Del Grande daSilva, Marjorie Loh e Roselene Kasprzak.

como sujeito suposto saber, ou sujeito suposto ao saber. Surge essemal entendido sobre o qual repousa o saber, que permitirá ao sujeitorecuperar, desta divisão de saber, o caminho que o arranque da incli-nação ao sintoma e lhe permita uma nova simbolização. O analistatem que garantir como saber fazer isso. Eis a questão.

A mestria em que o saber do psicanalista consiste, precisamen-te, é não se deixar enganar pela transferência amorosa, não cair naarmadilha que o significante pode propor como puro gozo de dizer.

Luzimar Stricher

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objeto) podem acontecer ainda duas coisas - ou a pulsão se liga a umarepresentação substitutiva de objeto, que permita a repetição da or-dem da satisfação, ou pode ser que a pulsão se ligue a uma forma desubstituição fracassada, quer dizer, que não seja hábil para a produçãoda repetição da experiência de satisfação, o que produz sintoma; e asublimação.

Na verdade, complementa Jerusalinsky, os destinos da pulsãosão quatro: angústia, representação substitutiva, sintoma e sublima-ção. Lembra-nos que Lacan , no “seminário do sintoma”, aponta que osaber que se constrói para lidar com o fantasma pode se dividir. De umlado, pode aparecer a ligação ao sintoma, ou seja, uma forma fracas-sada de substituição; do outro, pode aparecer a simbolização ou a su-blimação, que é uma forma de sucesso na substituição. Nossopalestrante mostra-nos que, para Lacan, isto não é a questão essencialna transferência, pois o que ficou pendente na história da transferênciaé o seguinte: a primeira concepção da transferência, que Freud nospropõe, é o trauma vivido pelo paciente, em que os analistas oferecemà reminiscência a chance de reviver a cena traumática e estabelecernisso as correções de percurso necessárias- se trata de uma correçãode sentido. A segunda transferência, de que Freud nos fala, é da trans-ferência amorosa. E a terceira é a transferência de significação, naqual a ordem da palavra encontra um viés significante, que rompe comseu enlace puramente amoroso, permitindo ao analista não se ver coma missão de corrigir o trauma, mas deixar por conta do reordenamentoinconsciente- significante do paciente. O problema é que, quando seproduz esse retorno - desses três tipos de transferência - a significaçãoque está em jogo aparece como sintoma. É a isso que Freud chamavade “neurose de transferência”. Esta não é nada mais que o retorno, soba forma de sintoma, deste enodamento significante do trauma do amore do significante. Portanto, no sintoma, temos o enodamento que retornasob a forma de uma demanda de saber e nele surge a transferência

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Análise finita e infinita e suas articulações com a clínica e ainstituição, é o tema que convidamos todos a trabalhar este ano. Apósum congresso sobre o trabalho, é tempo de falar a respeito de nossotrabalho.

PROGRAMA

Sexta-feira – 28 de maio18h e 30min* Abertura - Alfredo Néstor Jerusalinsky* A tradução e suas conseqüências psíquicas - Mario Fleig* Análise finita e infinita - Cartel Preparatório da JornadaCoordenação: Valéria Rilho20h e 30min* Jantar

Sábado – 29 de maio9h e 30min* Demanda, transferência e fim de análise com crianças - Ana MartaGoelzer Meira e Eda TavaresCoordenação: Valéria Rilho* A clínica das psicoses em instituição - Maria Auxiliadora Sudbrack,Nílson Sibemberg e Rosane RamalhoCoordenação: Ana Marta Goelzer Meira20h e 30min*Coquetel

Domingo – 30 de maio9h e 30min* A questão transferencial das Comissões na instituição psicanalíticaComissão de Eventos

RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOAANÁLISE FINITA E INFINITA

Trabalhando em cartel o texto freudiano “Análise finita e infinita”ao longo de sua tradução, realizada com empenho e rigor pelo colegaMario Fleig, refletimos sobre o momento histórico em que Freud escre-veu este texto e as questões por ele colocadas em relação à clínicapsicanalítica. Questões referentes ao lugar do analista na direção dotratamento, à transferência, à resistência, ao tempo de duração de umaanálise, que, como Freud evidencia, eram objeto de interrogações,vacilações e, por vezes, de passagens ao ato. Criticando a posição dosanalistas americanos, que em nome do “American way of life” transfor-mavam o trabalho analítico em um ofício determinado pela urgênciado tempo, com o estabelecimento de terapias curtas, Freud apresentaum texto eminentemente clínico e ao mesmo tempo pleno de questõesacerca do lugar do analista. Referindo-se ao Homem dos Lobos e aosdestinos da transferência que se desdobraram em sua análise – finitaou infinita? –, Freud se pergunta acerca deste momento crucial da aná-lise e dos eixos que a determinam.

Trabalhando este texto, organizamos o programa da JornadaRelendo Freud e Conversando sobre a APPOA. Como desdobramentodeste, elaboramos a programação que segue, na qual a reflexão sobreo trabalho do analista e sua inserção na clínica e na instituição é umdos eixos de referência.

Pensar sobre a clínica psicanalítica e seus avatares, assim comoacerca da instituição enquanto lugar marcado pela formação analítica,nos remete a temas como a supervisão. Em relação a estes aspectos,pensamos na importância de trabalhar o texto de Freud articulando-oao trabalho institucional. E, nesta via, reler a clínica e suas vicissitu-des, tomando como ponto de partida os eixos da transferência e fim deanálise na clínica psicanalítica com crianças e com as psicoses.

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A CLÍNICA INSTITUCIONAL EM DEBATEA TRANSFERÊNCIA

Podemos falar de especificidades da transferência em atendi-mentos clínicos que acontecem num âmbito institucional?

Por transferência entendemos o laço que deve advir entre ana-lista e paciente para que haja um tratamento analítico. Tal laço consis-te na relação do sujeito ao Outro através da presença do analista, oque confere uma dimensão de alteridade na relação analista-analisante.

Se, então, a transferência que sustenta um tratamento analíticoé relativa às formações do inconsciente, o que implica umendereçamento singular ao lugar do Outro, como podemos pensar atransferência com a instituição?

Que problematização da transferência nos coloca um pedido detratamento que não se endereça a um analista, mas a uma associaçãode analistas? Quais os efeitos da burocratização institucional na trans-ferência?

Eis aí algumas questões que estaremos debatendo com a Clíni-ca Psicanalítica do NESF (Núcleo de Estudos Sigmund Freud).

Os nosso convidados são os associados e alunos da APPOA,NESF e demais interessados pelo tema.Data: 13/05/99Horário: 21 horasLocal: Sede da APPOA (Rua Olavo Bilac, 786)Inscrições: Não tem

Serviço de Atendimento Clínico da APPOA (FÓRUM)

CARTEL DO INTERIORA Reunião do Cartel do Interior será em Canela, durante o even-

to “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”.

* Proposição de 17 de dezembro de 1989 - Alfredo Jerusalinsky, LuciaPereira e Maria Ângela BrasilCoordenação: Maria Auxiliadora Sudbrack12h e 30mim* Encerramento - Alfredo Jerusalinsky

Local: Hotel Laje de Pedra - Canela - Tel.: (054) 282 4300

Lembramos que a Comissão de Eventos bloqueou 30 aparta-mentos no Hotel Laje de Pedra, mas as reservas devem ser feitas, comantecedência, pelos participantes interessados.

Sugestões de Pousadas:Pousada Blumenberg - Tel.: (054) 282 2939Pousada da Àguias - Tel.: (054) 282 4477

CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES

O ADOLESCENTE E A MODERNIDADE

Nos dias 18, 19, 20 e 21 de agosto próximo, estará ocorrendo noHotel Glória, Rio de Janeiro, o Congresso Internacional de Psicanálisee suas Conexões - O adolescente e a modernidade, organizado pelaEscola Lacaniana de Psicanálise.

Encontram-se, na Secretaria da APPOA, valores de pacotes queincluem passagens aéreas, diárias de hotéis e translados hotel - aero-porto - hotel, oferecidos pela Casa de Turismo, para grupo de no míni-mo 20 pessoas.

NOTÍCIAS NOTÍCIAS

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SEÇÃO TEMÁTICA

INTRODUÇÃO

ANÁLISE FINITA E INFINITA

Freud está com 80 anos em 1937. O que acontece no movimentopsicanalítico e no mundo, quando seu texto “Análise finita e infi-nita” é publicado? A quem se endereça esse trabalho?O ano não começa bem. Lou Andreas-Salomé, amiga de Freud

e da família, colaboradora das mais próximas, com quem mantevelonga correspondência, falece em fevereiro. Sua morte parece irreal aFreud. De outra parte, Minna Bernays, cunhada e também amiga dasmais queridas, está gravemente enferma. Ainda no âmbito familiar, osfilhos de Freud, atingidos pela onda de perseguições nazistas, estãoem busca de subsistência. Apenas Anna tem uma posição sólida, juntoà psicanálise.

A ameaça nazista não o atinge apenas na vida pessoal. Suaconfiança de que a Áustria possa manter a independência frente aosavanços alemães começa a tornar-se injustificada, o que representaum decréscimo nas perspectivas para a própria psicanálise. Em marçode 1936, Martin Freud comunica por telefone a Ernest Jones que aGestapo se apoderara de todos os haveres da Verlag e, desde meadosdesse ano, o desânimo de Freud começa a se manifestar na corres-pondência, agravando-se a ponto de, em março de 1937, ele só vis-lumbrar catástrofes pela frente. Viena está em pânico. Freud não temvontade de escapar. Pensa que sua fuga viria constituir um sinal para adissolução completa do movimento psicanalítico. Suas piores previ-sões, quanto ao avanço nazista, virão se concretizar rapidamente. Em11 de março de 1938, a Áustria, já anexada ao Terceiro Reich, e opacífico povo austríaco revelam uma brutalidade imprevista para comos judeus.

Na América, inicia-se o segundo mandato de F. D. Roosevelt e

NOVAS AQUISIÇÕES BIBILIOTECA - MARÇO/1999Livros* Pequena coleção das obras de Freud - Além do princípio do prazer -Livro 13; Conferências introdutórias sobre psicanálise dos sonhos - Li-vro 21; Um estudo autobiográfico e outros trabalhos - Livro 25; “Gradiva”de Jensen e escritores criativos e devaneio - Livro 30 (Doação de EdaTavares)* Reformulando o território psicanalítico - Judith M. Hughes - Trad. deMarcelo Del Grande da Silva (Doação de Marcelo Del Grande da Silva)Outros* Coletânea CCHA: cultura e saber - UCS - v.2, n.2 (1998).* Pulsional - Revista da Psicanálise nº 118 - Fev./99.* Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre -Volume V, n. 3 (Dezembro/98).* Bulletin de l’Association freudienne internationale - n. 18, Jan/99.

NOTÍCIAS

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Olavo Bilac, 786 CEP 90040-310 Porto Alegre - RSTel: (051) 333 2140 Fax: (051) 333 7922 e-mail: [email protected]

Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.

Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Jaime Alberto Betts, Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam,Liz Nunes Ramos, Luzimar Stricher, Maria Aparecida Loss,

Maria Lúcia Puperi Müller e Marta Pedó

MUDANÇA DE TELEFONELiz Nunes Ramos informa seu telefone do consultório: (051) 286 7731

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SEÇÃO TEMÁTICA

da concepção clássica do complexo de édipo, como núcleo das neuro-ses, privilegiando investigações quanto à relação precoce da criançacom a mãe e à sexualidade feminina. Tendo publicado “O trauma donascimento” (1924), trouxe a público a tese de que o trauma do nasci-mento constituiria o protótipo de todo traumatismo psíquico, que o su-jeito procuraria superar, aspirando inconscientemente voltar ao úteromaterno. Situava a angústia como derivada da separação biológica damãe. Com isso se afastava das teses freudianas, que tomavam comoeixo o pai e a primazia do falo. Em 1926, a distância aumenta emfunção das propostas de Rank quanto à duração e forma do tratamen-to. Propõe a chamada terapia ativa, visando tratamentos curtos ecentrados na realidade presente, solicitando o esforço consciente dopaciente. Afastava-se das propostas psicanalíticas de trabalho em tor-no do recalcado e do inconsciente. Freud se opõe a tais abordagens, játendo endereçado resposta a Rank em “Inibição, sintoma e angústia”(1925) e retorna ao tema nesse texto e em “Novas conferênciasintrodutórias”. O doloroso, mas inevitável rompimento, se dá em 1926,não sem que Freud reconheça a importância da relação precoce dacriança com a mãe.

Em parte de suas teses, Rank obtivera o apoio de SandorFerenczi, considerado por Freud como um dos discípulos maistalentosos. Sua interlocução com Freud fazia surgir novas problemáti-cas que alimentavam a teoria. Por exemplo, em 1908, Ferenczi publi-ca um texto sobre contratransferência, que será retomado e trabalhadopor Freud. Com Rank, empenhou-se na reforma da técnica, propondoa terapia ativa e um retorno à teoria do trauma e da sedução. Supõemno neurótico a mesma nostalgia do seio materno, uma aspiração àregressão ao estado fetal, que reproduziria a vida de organismos primi-tivos, nas profundezas marinhas. Ferenczi foi um grande crítico dodogmatismo, produziu debates em torno da telepatia e apreciava ino-vações técnicas, que testou, sem sucesso, até o fim da vida em 1933.

nesse ano de 1937 ocorre outra recessão, provocada por erro adminis-trativo em considerar que a inflação estaria se tornando perigosa. Apa-recem então os limites das conquistas do New Deal que se constituíranuma verdadeira epopéia. Roosevelt vence todos os monstros com oslogan “Um novo contrato para o povo americano”. A isso Freud fazreferências, sugerindo a passada prosperidade americana. Mas o NewDeal consegue vitórias através de medidas econômicas e financeiras,vencendo também o nazismo. Adquire uma profunda importância sub-jetiva, ligada à prosperidade na vida e na política. Mas, no campo dadiplomacia, a América do Norte fracassa e esse desastre contribui parao início da Segunda Guerra Mundial. Por ironia, esse erro põe fim àDepressão e consolida, através da solução keynesiana de grandes des-pesas públicas para as dificuldades econômicas, o American way oflife.

Portanto, todo o ano de 1937 transcorre sob as dúvidas quantoao destino da psicanálise e da própria família Freud, até então poupa-da do terror, mas não por muito tempo. Será preciso deixar a Áustria, oque ocorrerá em 4 de junho de 1938. Os horrores perpetrados nesseperíodo crucial levaram ao exílio muitos dos psicanalistas colaborado-res de Freud, o que marcou os destinos da psicanálise. Essa parte dahistória poderemos retomar em outro momento. Sigamos indagandoquanto ao movimento psicanalítico, em que situação se encontrava?

Muitas outras perdas importantes já se haviam concretizado.Jung, Abraham, Adler, Rank e Ferenczi. O texto “Análise finita e infini-ta” se reporta a questões relativas às últimas dissensões, com longasindagações a respeito da duração do tratamento. Freud não tem con-vicção de que seja possível, nem sequer proveitoso, reduzir o tempode análise. Mas essa não era a posição de Otto Rank, o discípulo aquem Freud tomara como filho adotivo e por quem era venerado comoum pai. Rank vinha formulando, desde 1924, teorias que se afastavam

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Nota prévia: Apresentamos ao leitor os dois primeiros capítulosdo texto de Freud, Análise finita e infinita (1937c), numa tradu-ção feita a partir do texto alemão. Pode-se notar, comparando

com as traduções que até então tínhamos em português, especialmen-te a da Imago, uma visível diferença. Freud constrói suas frases comum estilo muito preciso, não desperdiçando as palavras e, ao mesmotempo, deixando toda a clareza possível no que quer dizer. A traduçãomais utilizada em nosso meio, da Imago, em geral traduz Freud, intro-duzindo explicações e repetições que não se encontram no texto deorigem. As soluções que aqui são propostas passaram e continuampassando pela discussão no Cartel Relendo Freud e nesse estamosabertos a novas sugestões e discussões.

Apenas dois exemplos: para Heilung e seus derivados, que ge-ralmente é traduzido por cura, sugerimos restabelecimento; e paraErledigung, optamos por liquidação. Acerca do título do texto, optamospor uma solução mais literal, que preserva a noção de infinito, conside-rando sua importância a partir de Leibniz e do cálculo infinitesimal,operação de inscrição do não passível de inscrição. Com isso não seelimina essa temática do infinito no tratamento. Mesmo sabendo que atradução enquanto tal é um impossível, fazê-la não deixa de ter conse-qüências, e dessas, as que mais nos importam, são as conseqüênciaspsíquicas.

Mario Fleig

Analisou-se com Freud, a quem acusa, próximo à morte, de ter fracas-sado em seu tratamento, tendo-o normatizado, mediante formulaçõesde interditos como lei, quanto aos desejos incestuosos e deixado res-tos de transferência negativa não analisados, enfim, uma análise nãofinalizada. Tal como no caso anterior, Freud lamenta a morte de Ferenczi,acentua a grande perda para o movimento psicanalítico, não sem le-vantar ressalvas quanto à sua mais marcante e prejudicial característi-ca clínica, o furor sanandi. O texto de 1937 debate algumas questõesque constituem restos dessa relação.

O congresso de Marienbad, em agosto de 1936, é marcado porconflitos entre os vienenses partidários de Anna Freud e os membrosda BPS, que apoiam Melanie Klein. Mas, nesse congresso, JacquesLacan também tem sua contribuição para o conflito. Começa uma ex-posição sobre o estádio do espelho, a qual é interrompida após dezminutos por Ernest Jones. Lacan abandona o congresso, indo para asOlimpíadas de Munique. Outro capítulo começa a se delinear na histó-ria da psicanálise.

No ocaso da vida, em meio ao conflito internacional, persegui-ção anti-semita e o estado de guerra dentro do movimento psicanalíti-co, Freud ainda encontra fôlego para nos legar um trabalho que tantonos possibilita discutir o cotidiano da clínica, quanto à vida institucionale à formação do analista.

Nessa seção temática, encontra-se a tradução revisada dos doisprimeiros capítulos de “Análise finita e infinita”, o trabalho de RolandChemama, escrito especialmente para esse número, e textos produzi-dos por componentes do cartel preparatório para o Relendo Freud econversando sobre a APPOA. Esses textos servem para instigar a dis-cussão e dão testemunho do que vem sendo desenvolvido no cartelpreparatório que se reúne quinzenalmente, às quintas-feiras, na APPOA.

Conceição Beltrão e Liz Nunes Ramos

SEÇÃO TEMÁTICA SEÇÃO TEMÁTICA

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emborcado, se contentassem em retirar o candeeiro do quarto em queo fogo começara. Sem dúvida, uma considerável diminuição da ativi-dade de extinção seria conseguida por esse meio. Teoria e prática datentativa rankiana pertencem hoje ao passado — não menos do que aprópria ‘prosperity’ americana.

2. Eu mesmo tomei, ainda antes da guerra, um outro caminhopara acelerar o curso de um tratamento analítico. Nessa época, assumio tratamento de um jovem russo que, estragado pela opulência, chega-ra a Viena em completo desamparo, acompanhado por médico particu-lar e enfermeiro. No curso de poucos anos, foi possível devolver-lhegrande parte de sua independência, despertar seu interesse pela vidae ajustar suas relações com as pessoas que lhe eram mais importan-tes. Mas aí o progresso se interrompeu. O esclarecimento da neurosede infância, em que se baseava a doença posterior, não foi adiante, eera óbvio reconhecer que o paciente achava sua situação atual bastan-te confortável e não queria dar qualquer passo que o trouxesse paramais perto do fim do tratamento. Era um caso de auto-inibição do tra-tamento; corria perigo de fracassar justamente em seu - parcial - su-cesso. Nessa situação, recorri à medida heróica da fixação de um pra-zo. Ao início de uma temporada de trabalho, informei o paciente que oano vindouro deveria ser o último do tratamento, não importando o queele conseguisse no tempo que ainda lhe restava. De início, não acredi-tou em mim, mas, assim que se convenceu da seriedade inalterável demeu propósito, a mudança desejada se realizou nele. Suas resistênci-as definharam e, nesses últimos meses, pôde reproduzir todas as lem-branças e encontrar todas as conexões que pareciam necessárias paraa compreensão de sua neurose infantil e dominar a presente. Quandome deixou, em meados do verão de 1914, sem suspeitar, como todosnós, dos acontecimentos iminentes tão próximos, tomei-o por restabe-lecido de forma radical e permanente.

FREUD, S. Análise finita e infinita (1937C).SEÇÃO TEMÁTICA

ANÁLISE FINITA E INFINITA (1937C)

Sigmund Freud

1. A experiência nos ensinou que a terapia psicanalítica, a liber-tação de um ser humano de seus sintomas neuróticos, inibições e anor-malidades de caráter, é um trabalho moroso. Daí, desde o começo,tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das análises. Taisesforços não exigiam nenhuma justificativa, podiam alegar os maissensatos e os mais convenientes motivos. Mas, provavelmente, tam-bém operava neles um resíduo daquele desprezo impaciente com queum período anterior da medicina considerava as neuroses como con-seqüências supérfluas de danos invisíveis. Se temos que nos ocuparagora com elas, pelo menos quereríamos o quanto antes acabar comelas. Uma tentativa particularmente enérgica nessa direção foi feitapor Otto Rank, em continuidade a seu livro O trauma do nascimento(1924). Ele supunha que a verdadeira fonte da neurose era o ato donascimento, uma vez que esse implicava a possibilidade de que a‘arquifixação’ à mãe não fosse superada e que persistisse como‘arquirrecalque’. Através da liquidação analítica no ‘só-depois’ dessearquitrauma, Rank esperava eliminar toda neurose, de modo que estepequeno fragmento de análise pouparia todo trabalho analítico restan-te. Alguns poucos meses deveriam bastar para este resultado. Não sepode discutir que o raciocínio rankiano era audaz e engenhoso, masnão suportou o exame crítico. Ademais, a tentativa de Rank nasceu deseu tempo, concebida sob a impressão do contraste entre a misériaeuropéia do pós-guerra e a ‘prosperity’ americana, e destinado a ajus-tar o andamento da terapia analítica à pressa da vida americana. Nãoouvimos muito sobre o que a realização do plano de Rank fez peloscasos patológicos. Provavelmente, não mais do que fariam os bombei-ros se, no caso de incêndio de uma casa por um candeeiro a óleo

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da tarefa. Pelo contrário, pode-se estar seguro que, enquanto uma par-te do material se torna acessível sob a pressão da ameaça, uma outraparte será retida e, assim, ficará sepultada, por assim dizer, e os esfor-ços terapêuticos perdidos. Uma vez que o prazo tenha sido fixado, nãose deve ampliá-lo; de outro modo, para a continuação ulterior ele per-deria toda a fé. A continuação do tratamento com outro analista seria asaída mais imediata, embora saibamos que tal mudança significarianova perda de tempo e renúncia dos frutos do trabalho dispendido.Também não se pode indicar de modo universalmente válido quando échegado o tempo certo para o emprego desse meio técnico compulsó-rio. Isso fica ao critério do tato. Com um manejo equivocado não hámais nada a fazer. O ditado, que o leão somente salta uma vez, deveacabar por ter razão.

II5. As discussões sobre o problema técnico de como se pode

acelerar o lento curso de uma análise nos conduz a outra questão, deinteresse mais profundo: se existe um fim natural de uma análise, se épossível levar uma análise a um tal fim? A fala corrente entre analistasparece ser favorável a tal pressuposição, já que freqüentemente ouve-se dizer, deplorando ou desculpando, sobre as imperfeições reconhe-cidas de algum ser humano: ‘Sua análise não ficou pronta’ ou ‘ele nãose analisou até o fim.’

6. Temos, primeiro, que nos entender sobre o que quer dizer aexpressão polissêmica ‘fim de uma análise’. Praticamente isso é fácilde responder. A análise está finalizada quando analista e paciente nãose encontram mais para a hora de trabalho analítico. Eles procederãoassim, quando duas condições forem aproximadamente preenchidas:a primeira, que o paciente não mais esteja sofrendo de seus sintomase tenha superado suas angústias e inibições; a segunda, que o analista

FREUD, S. Análise finita e infinita (1937C).SEÇÃO TEMÁTICA

3. Numa nota de rodapé à história clínica (1923), já comunicaraque isso não era verdade. Quando, por volta do fim da guerra, eleretornou a Viena como refugiado sem recursos, tive de ajudá-lo a do-minar uma parte da transferência não resolvida. Isso foi realizado emalguns meses, e pude encerrar a nota de rodapé com a declaração deque, ‘desde então, o paciente tem-se sentido normal e se comportadode modo irrepreensível, apesar de a guerra ter lhe roubado o lar, asposses e todas as relações familiares’. Nesses quinze anos esse pare-cer não foi refutado, mas nisso certas restrições tornaram-se necessá-rias. O paciente permaneceu em Viena e manteve-se numa posiçãosocial, ainda que modesta. Diversas vezes, porém, durante esse perí-odo, seu bem-estar foi interrompido por episódios de doença que sópodiam ser interpretados como ramificações da neurose da sua vida. Ahabilidade de uma de minhas alunas, Dra. Ruth Mack Brunswick, pôsfim a essas condições nessa vez através de um breve tratamento. Es-pero que, em breve, ela mesma comunique estas experiências. Emalguns desses acessos tratava-se sempre ainda de resíduos da trans-ferência; eles então mostravam, apesar de sua fugacidade, um caráterclaramente paranóico. Mas, em outros, o material patogênico consistiaem fragmentos da história da infância do paciente, que não tinhamaparecido na análise comigo e que agora se desprendiam no “só-de-pois” - não se pode evitar a comparação - como suturas após umaoperação ou pequenos fragmentos de osso necrosado. Achei a históriado restabelecimento desse paciente não muito menos interessante doque a de sua doença.

4. Mais tarde, empreguei a fixação de um prazo também emoutros casos e ainda tomei conhecimento das experiências de outrosanalistas. O parecer sobre o valor dessa medida coerciva não pode serduvidoso. É eficaz, pressuposto que se acerte o tempo correto paraela. Mas ela não pode dar nenhuma garantia da liquidação completa

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volvimento; quanto mais forte for o trauma, mais seguramente seu pre-juízo se tornará manifesto, mesmo sob situação pulsional normal. Nãohá dúvida que a etiologia do tipo traumático oferece, de longe, a oca-sião mais favorável para a análise. Somente num caso predominante-mente traumático a análise realizará aquilo que ela magistralmentepode, substituir a decisão insuficiente oriunda da infância, graças aofortalecimento do eu, por uma liquidação correta. Somente em taiscasos pode-se falar de uma análise definitivamente finalizada. Aqui aanálise fez sua obrigação e não precisa ser continuada. Se o pacienteassim restabelecido nunca mais produzir um distúrbio que o faça ca-rente de análise, sem dúvida não sabemos o quanto dessa imunidadeé devida à bondade do destino que lhe quis poupar provações demasi-adamente severas.

9. A força constitucional da pulsão e a alteração desfavorável doeu, adquirida em sua luta defensiva, no sentido de uma desarticulaçãoe restrição, são os fatores desfavoráveis à ação da análise e podemprolongar sua duração de modo interminável. Fica-se tentado a tornaro primeiro fator, a força da pulsão, responsável também pela formaçãodo segundo, a alteração do eu, mas parece que também esse tem suaprópria etiologia, e, na verdade, é preciso admitir que essas relaçõesnão são, ainda, suficientemente conhecidas. Só agora elas estão setornando objeto de estudo analítico. Nesse campo, parece-me que ointeresse dos analistas não está completamente bem orientado. Emvez de indagar como o restabelecimento advém pela análise, o quetomo por suficientemente esclarecido, a questão a colocar deveria ser:quais obstáculos se colocam no caminho do restabelecimento analítico.

10. Gostaria aqui, a seguir, de tratar dois problemas que resul-tam diretamente da práxis analítica, como os seguintes exemplos de-vem mostrar. Um homem, que exercera ele próprio a análise comgrande sucesso, julga que sua relação com homem como com mulher

FREUD, S. Análise finita e infinita (1937C).SEÇÃO TEMÁTICA

julgue que no doente foi tornado consciente tanto material recalcado,que foi esclarecida tanta coisa incompreensível, que foram vencidastantas resistências internas, que não se precisa temer a repetição dosprocessos patológicos em questão. Se, por dificuldades externas, for-mos impedidos de alcançar esse objetivo, é melhor falarmos de análi-se incompleta do que de análise não finalizada.

7. O outro significado do ‘fim’ de uma análise é muito mais am-bicioso. Nesse sentido, é questionado se foi exercida uma influênciade tão grande alcance sobre o paciente, que uma continuação da aná-lise não pode prometer nenhuma mudança ulterior. Portanto, é comose pudéssemos, por meio da análise, alcançar um nível de normalida-de psíquica absoluta - ao qual também devêssemos confiar a capaci-dade de permanecer estável, tal como se fôssemos bem sucedidos emsolucionar todos os recalcamentos ocorridos e em preencher todas aslacunas da recordação. Podemos, primeiro, interrogar a experiência,se algo semelhante acontece; e, depois, a teoria, se isso como tal épossível.

8. Todo analista já terá tratado de alguns casos que apresenta-ram este gratificante desfecho. Ele teve êxito em eliminar o distúrbioneurótico existente, que não retornou e nem foi substituído por algumoutro. Tampouco nos achamos sem introvisão dos determinantes des-ses sucessos. O eu do paciente não foi visivelmente alterado e aetiologia do distúrbio foi essencialmente traumática. A etiologia de to-dos os distúrbios neuróticos é, afinal de contas, uma etiologia mista.Trata-se de pulsões excessivamente fortes, portanto recalcitrantes àdomesticação pelo eu; ou do efeito de traumas infantis, isto é, prema-turos, do qual um eu imaturo não pode se tornar senhor. Via de regra,trata-se da cooperação de ambos os fatores, o constitucional e o aci-dental. Quanto mais forte for o primeiro, mais depressa um traumaconduzirá a uma fixação, deixando atrás de si um distúrbio de desen-

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e de valor, seus direitos de tomar parte na vida. Os anos após orestabelecimento não trazem nada de bom: catástrofes na família, per-das de bens, com a idade, diminuição de toda perspectiva de felicida-de no amor e de casamento. Mas a ex-doente resiste a tudo isso valen-temente e nos tempos difíceis constituiu um apoio para os seus. Nãosei mais se foi doze ou catorze anos após a finalização da cura quehemorragias profusas tornaram necessário um exame ginecológico.Encontrou-se um mioma, que autorizou a histerectomia completa. Apartir dessa operação, a moça mais uma vez caiu doente. Enamorou-se de seu cirurgião, regala-se com fantasias masoquistas sobre as al-terações terríveis dentro de si, com as quais encobria seu romance deamor, mostrou-se inacessível a uma nova tentativa analítica e tambémnão ficou mais normal até o fim de sua vida. O tratamento bem-sucedi-do realizou-se há tanto tempo, que não se pode exigir muito dele; elese situa nos primeiros anos de meu trabalho analítico. Ainda assim, épossível que o segundo adoecimento provenha da mesma raiz que oprimeiro, que fora felizmente superado, e que era uma expressão mo-dificada das mesmas moções recalcadas, que encontraram na análisesomente uma liquidação incompleta. Mas estou inclinado a acreditarque, sem o novo trauma, não teria havido nova irrupção da neurose.

12. Esses dois casos, intencionalmente escolhidos dentre umgrande número de casos semelhantes, bastarão para atiçar a discus-são sobre nosso tema. Céticos, otimistas, ambiciosos os avaliarão demodos inteiramente diferentes. Os primeiros dirão que está provadoagora que mesmo um tratamento analítico bem-sucedido não protegeo antigo curado de adoecer mais tarde de uma outra neurose, e mesmode uma neurose a partir da mesma raiz pulsional, portanto, propria-mente de um retorno do antigo sofrimento. Os outros considerarão quea prova não foi apresentada. Objetarão que ambas experiências pro-vém dos primeiros tempos da análise, há vinte e há trinta anos. Desdeentão, nossa introvisão se aprofundou e se ampliou, nossa técnica se

FREUD, S. Análise finita e infinita (1937C).SEÇÃO TEMÁTICA

- com os homens, que são seus concorrentes, e com a mulher, queama - não está, apesar de tudo, livre de entraves neuróticos, e, porisso, se constitui o objeto analítico de um outro a quem considera comosuperior a si. Essa radioscopia crítica da própria pessoa traz-lhe umresultado pleno. Casa-se com a mulher amada e transforma-se emamigo e mestre de seus supostos rivais. Muitos anos se passam dessamaneira, durante os quais também suas relações com o antigo analistapermanecem desanuviadas. Mas, então, sem motivo externo de-monstrável, começa um distúrbio. O analisado entra em oposição como analista, censura-o por ter falhado em lhe proporcionar uma análisecompleta. Ele sabia muito bem e deveria levar em consideração queuma relação de transferência nunca pode ser apenas positiva; deveriater cuidado com a possibilidade de uma transferência negativa. O ana-lista se justifica dizendo que, à época da análise, não havia sinal deuma transferência negativa. Mas, mesmo admitindo que não tivessereparado nem nos mais leves sinais dela, o que não estava excluído,considerando a estreiteza do horizonte naqueles primórdios da análise,ainda era duvidoso se ele teria tido o poder de ativar, por uma simplesindicação de sua parte, um tema, ou, como se diz, um ‘complexo’,enquanto esse não fosse atual no próprio paciente. Para isso, certa-mente seria preciso, em sentido efetivo, um ato inamistoso contra opaciente. E, além do mais, nem toda boa relação entre analista e ana-lisado, durante e após a análise, deveria ser encarada como transfe-rência. Há também relações amistosas que são baseadas na realidadee se mostram viáveis.

11. Acrescento em seguida o segundo exemplo, de onde emer-ge o mesmo problema. Uma moça de uma certa idade, desde a puber-dade, fora cerceada da vida por uma incapacidade de caminhar, devi-do a severas dores nas pernas, o estado é claramente de naturezahistérica e desafiara muitos tratamentos. Uma cura analítica de trêsquartos de ano eliminou o problema e devolveu a essa pessoa, capaz

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O ROCHEDO DA CASTRAÇÃOE A QUESTÃO DA CLIVAGEM

Roland ChemamaTradução de Conceição Beltrão

Este texto, escrito para contribuir no trabalho desenvolvido naAPPOA a respeito da “Análise finita e infinita”, apresenta aomesmo tempo algumas questões iniciais a respeito da clivagem,

questões que eu pretendo retomar em agosto de 1999 na Unisinos.A leitura do artigo “Análise finita e infinita”1 de Freud constitui um

trabalho fundamental para um psicanalista hoje em dia. Ela não temsomente um valor histórico. Não se trata de falar desse texto como sepoderia descrever, numa ordem sucessiva, as diferentes descobertasde um sábio, descobertas que teriam sido ultrapassadas pelos desen-volvimentos ulteriores da ciência e as quais se iria investigar por curio-sidade. Na realidade, esse texto coloca questões que não cessaramjamais de parecer decisivas e fica sempre, desde sua redação, no co-ração de nossa interrogação.

Freud veio, com efeito, em seu artigo, ressaltar “dois temas quese distinguem particularmente e causam singularmente problema aoanalista”. Esses dois temas concernem à castração, ou mais precisa-mente “o desejo de pênis, na mulher, e a rebelião contra a posiçãopassiva, no homem”. São esses que comprometeriam a possibilidadede levar a análise a seu termo. Uma mulher não poderia se resignar arenunciar ao pênis: é por isso que ela pode vir a considerar que a aná-lise não lhe serve para nada. O homem, por sua parte, “não quer sesubmeter a um substituto paterno, não quer ser obrigado a ser lhe gra-to, não quer além disso aceitar do médico o restabelecimento.”

1 Freud, S. Análise terminável e análise interminável (1937c). In: Obras completas. Rio deJaneiro, Imago, 1969.

modificou em adaptação às novas aquisições. Hoje se poderia exigir eesperar que um restabelecimento analítico dê resultado duradouro, ou,pelo menos, que um novo adoecimento não se mostre como umarevivificação, sob novas formas, do distúrbio pulsional anterior. A ex-periência não nos obrigaria a restringir de modo tão sensível as exigên-cias a respeito de nossa terapia.

13. Eu naturalmente escolhi essas duas observações porqueelas remontam a tanto tempo. Quanto mais recente é o sucesso dotratamento, tanto mais ele será, de modo compreensível, inutilizávelpara nossas considerações, visto que não temos nenhum meio de pre-ver o destino ulterior de um restabelecimento. As expectativas dos oti-mistas pressupõem claramente várias coisas, que não são precisamenteevidentes, em primeiro, que é em suma possível liquidar um conflitopulsional (para dizer melhor: um conflito do eu com uma pulsão) defini-tivamente e para todo o sempre; em segundo, que podemos conseguirvacinar, por assim dizer, um homem enquanto o estamos tratando paraum conflito pulsional dado, contra todas as outras possibilidades deconflito desse tipo; e, em terceiro, que temos o poder, para fins detratamento preventivo, de despertar um tal conflito patogênico que nãose trai atualmente por nenhum índice, e que é sábio agir assim. Levan-to essas questões sem querer respondê-las agora. Talvez uma respos-ta certa de nenhum modo nos é possível atualmente.

14. Reflexões teóricas nos permitem provavelmente contribuirum pouco para sua apreciação. Mas alguma outra coisa agora já setornou claro para nós: o caminho para o cumprimento de exigênciascrescentes do tratamento analítico não nos conduz a um abreviamentode sua duração, nem passa por ele.

SEÇÃO TEMÁTICA CHEMAMA, R. O rochedo da castração e a questão...

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SEÇÃO TEMÁTICA

O primeiro desses textos (o segundo cronologicamente) retoma,de forma bastante sistemática, a questão da clivagem em sua ligaçãocom a recusa, e notoriamente com a recusa da castração (reconheci-mento e recusa da castração podem coexistir num mesmo sujeito).Parece certo que é necessário, para melhor situar a questão do roche-do da castração tal como ela se coloca para Freud naqueles anos,retomá-la na relação com o processo psíquico, que sem dúvida temum valor mais geral que aquele que se poderia pensar. Não esqueça-mos, por outro lado, que o caso do “Homem dos Lobos” - no qual coe-xistia, diz Freud, diferentes correntes psíquicas em relação à castração- constitui um traço de união suplementar entre os dois textos. Freud serefere a isso explicitamente em “Análise finita e infinita” e, por outrolado, o fetichista que está em questão no artigo sobre a clivagem nãoé outro senão o próprio homem dos lobos.

Enfim, todas essas questões também têm, sem dúvida, conse-qüências não negligenciáveis na prática. No artigo sobre as “Constru-ções em análise”, Freud quer estabelecer a necessidade de um tipo deintervenções específicas do analista, as “construções”, que distinguecom cuidado das interpretações. Ressalta-se ainda que ele parte deum problema relativo ao “não” do paciente. É possível pensar que asquestões que ele coloca nesse momento sobre a prática vão no senti-do de uma interrogação renovada sobre a posição do sujeito na rela-ção com a castração: posição de recusa muito mais que de denegação.

Pode-se dizer, certamente, que essas poucas observações nãoconstituem senão um dos pontos tratados num artigo, onde Freud colo-ca as questões mais diversas. Ernest Jones, por exemplo, no seu gran-de livro sobre “A vida e obra de Freud”, não lhe dá um valor particular.Lacan, ao contrário, devia reconhecer toda a sua importância e aí retornanuma elaboração assaz complexa. Um seminário como “A angústia” énesse caso decisivo. Pode a questão do fim de análise ser colocada damesma maneira a partir do momento em que se escreveu a, “inventa-do”, esse tipo muito particular de objeto? Lacan re-orienta a questão dofim de análise. Ela não deveria consistir em bater contra esse “rochedoda castração”, mas descobrir o objeto causa do desejo de seu analisantee lho “oferecer”.2

Contudo, a partir disso ficam diversas dificuldades. Eu não asenumerarei. Salientemos ainda que, nesse mesmo seminário sobre “Aangústia”, Lacan sublinha que se a ligação do homem ao objeto devepassar pela negativização do falo, não é o mesmo para a mulher, quese encontra confrontada mais diretamente com o desejo do Outro.3 Eele acrescenta, um pouco mais adiante, que é o homem, e somente ohomem, que pode dar a chave da relação com os diversos a, na suarelação com a castração.4 Em suma, mesmo se todas essas questõesforam numerosas vezes evocadas, dificuldades, ou mesmo novas ques-tões, não cessam de ressurgir.

O que me parece, então, é que se ganharia muito, para tratardessas questões, ao articular a leitura de “Análise finita e infinita” a doisoutros textos que lhe são imediatamente contemporâneos, “A clivagemdo eu no processo de defesa”5 e “Construções em análise.”6

2 Lacan, J. La troisième. Paris, Association Freudienne Internationale.3 Lacan, J. A angústia. Paris, Association Freudienne Internationale, 1996, p. 238.4 Lacan, J. op. cit., p. 258.5 Freud, S. A clivagem do eu no processo de defesa (1940c [1938]). In: Obras completas.Rio de Janeiro, Imago, 1969.6 Freud, S. Construções em análise (1937d). In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago,1969.

CHEMAMA, R. O rochedo da castração e a questão...

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quelas anotações que fazemos à margem, enquanto estamos lendo.Entretanto, quando nos deparamos com o texto, são tantas as obser-vações e associações que sentimos a necessidade de tomar apenasalguns tópicos e considerá-los como elementos para um trabalho emandamento. Sempre articulado na discussão com os outros.

Sobre o futuro imprevisívelO livro é dividido em oito capítulos. Logo nos primeiros parágra-

fos, pouco antes de comentar o procedimento com o “Homem dos lo-bos”, Freud faz duas afirmações a respeito das razões subjacentes àstentativas de encurtar a duração de uma análise. A primeira delas refe-re-se a “um resíduo daquele desprezo impaciente com que um períodoanterior da medicina considerava as neuroses. Se temos que nos ocu-par agora com elas, pelo menos quereríamos o quanto antes acabarcom elas”.

Ora, o que a experiência atual nos demonstra é que a impaciên-cia e o desprezo não foram superados. Ao contrário, a exigência derapidez e voracidade na eficácia levou a medicina, e, principalmente,aquela parte que se ocupa das chamadas “doenças mentais”, a apostarfortemente na farmacologia como solução científica para os “danosinvisíveis”.

A segunda observação, feita em decorrência da primeira, temcomo alvo a tentativa, “audaz e engenhosa” de Otto Rank, de reduzirdrasticamente um tratamento através da resolução do trauma do nas-cimento. Escreve Freud: “a tentativa de Rank nasceu de seu tempo,concebida sob a impressão do contraste entre a miséria européia dopós-guerra e a prosperity americana e destinado a ajustar o andamen-to da terapia analítica à pressa da vida americana... Teoria e prática datentativa rankiana pertencem hoje ao passado – não menos que a pró-pria prosperity americana. ”

Lêdo engano. Se os argumentos de Rank não suportaram umexame mais crítico - pois eles tentavam reafirmar o retorno do univer-

PEREIRA, R. de F. “Análise finita e infinita” - comentários...SEÇÃO TEMÁTICA

“ANÁLISE FINITA E INFINITA”COMENTÁRIOS DE UMA LEITURA

Robson de Freitas Pereira

Em 30 de abril de 1937, Freud anotou em seu diário que o texto“Die endliche und die unendliche Analyse” estava terminado. Apartir daí, delineou-se para os psicanalistas uma discussão in-

terminável: pode-se abreviar o tempo de uma análise? Quais seriamas condições para que pudéssemos afirmar que uma análise chegou aseu término, a seu fim, e com que finalidade? Passados pouco mais de60 anos da frase lapidar: “uma análise termina quando analista e paci-ente não se encontram mais para a hora de trabalho analítico”, as in-terrogações, assertivas e finas ironias freudianas continuam a nos ocu-par.

Um físico anglo-americano, Freeman Dyson (os nomes própriosdeterminam os destinos) escreveu que “quando não há revolução ci-entífica em andamento a ciência continua a progredir em velhas dire-ções”. Além disto, ele acrescenta que, apesar de as previsões de futu-ro serem sempre falhas, cem anos é um período de tempo suficientepara que uma ciência sofra uma reviravolta. Ele está fazendo referên-cia às ciências tradicionais – física, astronomia, biologia, - e seus deri-vados. Entretanto, acreditamos que a idéia também pode servir à psi-canálise, com uma particularidade: Lacan antecipou, em pelo menosquarenta anos, a revolução/subversão da invenção freudiana. Talvezpor uma coerência com estes tempos modernos, no qual as mudançasacontecem numa velocidade jamais vista em séculos passados. Estaé uma das razões que impulsionam à releitura do texto freudiano:dadas as modificações escutadas na prática clínica, qual a atualidadedas questões legadas por Freud e Lacan.

Pretendíamos que estas notas fossem um desdobramento da-

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denominou a prática de uma ética. Dito desta forma pode parecer enig-mático, porém o próprio Freud aponta nesta direção. Não só quandoresolve a questão de abreviar o tratamento, mas também ao apontarpara a responsabilidade do analista em decidir estas questões. E adecisão não é uma escolha entre boa ou má consciência. Implica um ato.

“Não se pode dar nenhuma garantia (...) Também não se podedar uma regra geral. Isto fica ao critério do tato (do analista)”, escreveuFreud. E advertia: “com um manejo equivocado não há mais nada afazer. O ditado, que o leão só salta uma vez, deve acabar tendo razão”.Com as restrições que possamos fazer ao valor mítico do adágio – poisna caça o felino pode tentar o salto diversas vezes –, ficam explícitastanto a colocação em causa do analista, quanto o valor do ato analíti-co. Ato de palavra que não tem retorno, ou melhor, só consegue serapagado se mostrarmos a “borracha“ com a qual trabalhamos.

A ética traz, em seu bojo, um desdobramento a respeito da faltae do desejo do psicanalista. Este texto faz incursões em algumas con-dições necessárias para que possamos dizer que uma análise termi-nou, ou, mesmo, quando é que ela começou.

Transferência e resistência do analistaO artigo preocupa-se com as condições para o término de uma

análise, partindo da etiologia das neuroses e tentando conceitualizar, apartir da experiência clínica, quais os fatores que poderiam prejudicaro andamento de uma cura, quais as resistências que se interporiam aotratamento. Em seu estilo, Freud aponta as pretensões dos psicanalis-tas para, em seguida, questionar suas ambições. Ou seja, mostra asidealizações para poder criticá-las.

Muito resumidamente: que após uma análise o paciente não es-teja mais sofrendo de seus sintomas e tenha superado suas angústiase inibições. Além disto, o trabalho teria que ser tão eficaz – tanto mate-rial reprimido tornado consciente, que não haveria repetição do pro-cesso patológico que teria levado à busca de um tratamento. Esta se-

PEREIRA, R. de F. “Análise finita e infinita” - comentários...SEÇÃO TEMÁTICA

sal, da causa única para a etiologia das neuroses -, o vaticínio sobre adecadência norte-americana não teve a mesma felicidade. Em 1937,os EUA estavam saindo da Grande Depressão e dois anos depois en-trariam na Segunda Guerra Mundial reafirmando sua potência frente àEuropa.

O que estamos ressaltando nestes detalhes é a tensão constan-te entre a tradição de uma cultura e o rompimento com ela. Freud tevecoragem e genialidade de romper com a ciência de seu tempo – leia-semedicina e suas formas tradicionais de pesquisa. Inventa a psicanáliseao dar lugar discursivo aos significantes com os quais havia “tropeça-do”. Simultaneamente, ao escrever um de seus últimos trabalhos, ondefaz questionamentos importantes sobre sua prática, deixa escapar umaprevisão, que, hoje podemos constatar, não se realizou. Um espírito deseu tempo, europeu, vienense, não poderia imaginar que um lugar degente rica, mas sem tradição, pudesse fabricar vacinas, pílulas e pro-cedimentos contra a “peste”.

Técnica e fundamentos éticosAparentemente, as interrogações lançadas por Freud referem-

se à técnica. Parece-nos muito mais que elas são apenas a isca, aponta do iceberg. A pergunta inicial, ou mesmo a forma como utilizou o“recurso heróico” de determinar um tempo para o término da análise dealguns pacientes, do qual o “Homem dos lobos” é o exemplo principal,é respondida rapidamente.

Desde o início, já estava afirmado que o trabalho analítico eraárduo e moroso. Assim, seguindo esta concepção, ele declara ao finaldo segundo capítulo, que: “se quisermos atender às exigências maisrigorosas feitas a terapia analítica, nossa estrada não nos conduzirá aum abreviamento de sua duração, nem passará por ele”. O textofreudiano apontava para outras questões de maior interesse.

Uma delas: o quanto as assim chamadas “questões técnicas”,pela transmissão de Lacan, podem ser discutidas a partir do que ele

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analítica – através das interrogações e da interrogação dos própriosanalistas. Mesmo que isto, em determinados momentos, possa pare-cer um esforço inútil contra o cinismo ou imperativos grosseiros datécnica, tipo: “deveríamos mesmo é saber como interpretar ou qual overdadeiro diagnóstico”. Questões importantes, mas que fora de con-texto, servem apenas como constrangimento superegóico.

“(...) a situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego dapessoa em tratamento, a fim de submeter partes de seu id que nãoestão controladas, o que equivale a dizer, incluí-las na síntese de seuego.” Reproduzimos a tradução da editora Imago, deixando de lado asdiscussões sobre a imprecisão dos termos. O que nos interessa é se-guir o que enunciamos acima por este outro viés. Lacan passou todoum seminário tratando da questão do Eu em Freud para, logo em se-guida, fazer um seminário sobre as Psicoses. Fica a tarefa de comoatualizar esta afirmação. Mas, pouco depois, o próprio Freud faz umaobservação muito interessante: ele afirma que uma cooperação, con-forme a enunciada anteriormente, fracassa habitualmente no caso dospsicóticos, pois o ego deve ser normal. E acrescenta: “ um ego normalé, como a normalidade em geral, uma ficção ideal”. Isto não respondeao problema da ênfase nas resistências, nos mecanismos de defesa ede um certo direcionamento intelectual das análise ao tratar das infor-mações aos pacientes a respeito de suas resistências. Ou mesmo, quan-do Freud afirma que, em estados de crise aguda, a análise é, paratodos os fins e intuitos, inutilizável. Isto nos parece ir de encontro aopróprio início da psicanálise, onde os primeiros pacientes de Freudtinham sintomas e crises bem evidentes e agudas. Além do mais, afunção transferencial, suportada pela suposição de saber, implica queuma análise possa se iniciar pela escuta de um estado de crise, muitasvezes delirante.

Apesar de, em vários momentos, o texto nos dar a impressão deque uma análise é uma “Guerra pelo amansamento das pulsões” - o

PEREIRA, R. de F. “Análise finita e infinita” - comentários...

gunda condição mostra o projeto ambicioso: “chegar a um nível denormalidade psíquica absoluta”. O próprio autor se encarrega de acres-centar: “Podemos primeiro consultar nossa experiência para indagarse tais coisas de fato acontecem, depois nos voltarmos para nossateoria, a fim de descobrir se há qualquer possibilidade delas acontece-rem.” Esta passagem e interrogação da teoria pela experiência e vice-versa é uma das constantes do texto.

Freud reafirma que a etiologia das neuroses é de caráter misto:constitucional e acidental. O primeiro referindo-se à força das pulsõese o segundo ao valor dos traumas. Ele utiliza-se destes fatores - forçaconstitucional das pulsões, influência dos traumas e alteração desfavo-rável do ego - para considerá-los como prejudiciais à eficácia do trata-mento analítico e tornar interminável sua duração. Não vamos entrarnos detalhes a respeito desta etiologia, o que nos interessa é que Freudacentua o fato de que os analistas deveriam se interrogar muito maissobre quais os obstáculos que se colocam no caminho de uma cura.Entre estes, encontramos aqueles relativos aos desdobramentos datransferência e das resistências que o próprio analista pode opor.

Nesta direção, podemos acompanhar as discussões quanto àsdiferenças entre uma pessoa analisada e as outras, e, mais uma vez,seu alerta de que não deveríamos nos surpreender tanto se, ao final, adiferença não for assim tão radical com esperávamos. Questões relati-vas à correção dos efeitos do recalque e aumento da resistência dasinibições ficam lançadas e, ainda, não têm resposta conclusiva. Damesma maneira, a entrada em cena da pulsão de morte e da repetição,para explicar a incompletude de um processo de transformação, contri-buem para esta posição ética, segundo a qual: “não devemos tomar aclareza de nossa própria compreensão interna como medida da con-vicção que produzimos no paciente”. Aqui, estamos em cheio no traba-lho de um problema – os limites estabelecidos à eficácia da terapia

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análise não cessem quando esta termina”, assim Freud complementasuas observações sobre a função da análise, para advertir uma outracoisa. Apesar de que isto de fato aconteça – que o sujeito possa contarcom os benefícios de sua própria análise –, ocorrem outras coisas tam-bém que justificam a citação: “quando se dota um homem de poder, édifícil para ele não utilizá-lo mal”. A receita para enfrentar os perigosdesta ordem é só uma: “todo analista deveria periodicamente – comintervalos de aproximadamente cinco anos – submeter-se mais umavez à análise, sem sentir-se envergonhado por tomar esta medida (...)Isto significaria que sua própria análise se transformaria de tarefaterminável em interminável”.

O inventor da psicanálise afirma que, com isto, não quer dizerque toda análise é assunto infinito; pois, para ele, o término de umaanálise é uma questão muito prática e todo analista experimentadodeve estar lembrado de uma série de casos em que o adeus foi defini-tivo. Sua preocupação expressa-se por colocar limites à idealização dotratamento e simultaneamente investigar seus impasses. A respeito decomo um analista tenta garantir os benefícios de sua análise, uma dis-cussão interessante seria a de nos perguntarmos a respeito do intermi-nável de sua formação e qual a função da instituição psicanalítica.Uma vez que o analista autoriza-se de si mesmo, com outros, suaresponsabilidade para com a psicanálise não pode ser quixotesca; poisisto evidenciaria uma confusão entre a solidão da escuta e o individu-alismo, entre a singularidade e o esforço de ser único no amor do Ou-tro.

Freud termina o artigo referindo-se às dificuldades, ou aosimpasses decorrentes do complexo de castração: a inveja do pênis,nas mulheres, e a luta contra a passividade, nos homens. NovamenteSandor Ferenczi é citado, uma vez que ele preconizava que, numaanálise bem sucedida, estes dois complexos deveriam ter sido domi-nados. Freud acha que ele pedia muito. E explica seu pouco otimismo

PEREIRA, R. de F. “Análise finita e infinita” - comentários...SEÇÃO TEMÁTICA

que nos faz associar com as teorias modernas sobre o mercado e asdiferentes formas de dominá-lo -, Freud reafirma que “não se trata deuma antítese entre uma teoria pessimista da vida e outra otimista. So-mente pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, das duas pulsõesprimevas – Eros e Pulsão de morte –, e nunca por uma ou outra sozi-nha, podemos explicar a rica multiplicidade dos fenômenos da vida.”Os problemas a serem resolvidos por esta conceitualização freudianasão inúmeros.

O autor apresenta um exemplo a respeito da bissexualidade edo decorrente conflito entre hetero e homossexualidade, fazendo a se-guinte afirmação: “não existe maior perigo para a função heterossexu-al de um homem que o de ser perturbada por sua homossexualidadelatente”. Freud atribui este conflito a uma expressão da pulsão agressi-va ou destrutiva operando no sujeito. Teríamos que discutir se as con-cepções de Lacan a respeito da relação especular na formação do EUnão seriam mais pertinentes, para tentar responder a alguns dos pro-blemas levantados.

Nos dois últimos capítulos, Freud retoma a questão da resistên-cia do analista. Aproveita um artigo de Ferenczi (personagem que, semter seu nome citado, já havia sido utilizado como exemplo clínico detransferência não resolvida), no qual o psicanalista húngaro alertavasobre a necessidade de um trabalho sobre os “pontos fracos da perso-nalidade do analista”. Com isto, Freud insiste nas resistências não sódo Eu do paciente, “mas também da individualidade do analista”. Estesimpasses teriam lugar apropriado para serem falados na análise dopsicanalista. Daí sua importância capital. Esta análise didática breve eincompleta teria como finalidade: “fornecer àquele que aprende umaconvicção firme da existência do inconsciente...quando o material re-primido surge, a perceber em si mesmo coisas que de outra maneiraseriam inacreditáveis para ele”.

“Contamos com que os estímulos que recebeu em sua própria

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A FISIONOMIA DA ESPECULAÇÃO METAPSICOLÓGICANA PESQUISA PSICANALÍTICA

DE FREUD E DE LACAN

José Luiz Caon

AClínica Psicanalítica e Metapsicologia Crítica são os dois dor-mentes da estrada de ferro da pesquisa psicanalítica. Entretan-to, às vezes, a Clínica Psicanalítica põe problemas de tão ele-

vada envergadura à Metapsicologia Crítica que o pesquisador psicana-lítico cai impotente sob a ação de sobressaltos medonhos. Pesquisarpsicanaliticamente é correr, sofrer e superar riscos. Recordemos doisdesses momentos, vividos por Freud, na sua produção de conheci-mento novo.

Primeiro, vejamos Freud, 1920g, Jenseits des Lustprinzips (Paraalém do princípio do prazer), Secção IV. Freud tem aproximadamentevinte e cinco anos de clínica psicanalítica que o forçam a pensar numoutro princípio situado para além dos dois princípios determinantes daatividade anímica. É verdade que a observação empírico-clínica e aobservação cotidiana oferecem-lhe fatos e explicações. Mas, não lhebastam. Assim, lança mão também da especulação metapsicológicapara explicá-los. Para tanto, submete-se rigorosa e impiedosamente àcrítica metapsicológica. Nesse então, Freud escreve:

“Aquilo que vem agora é especulação, comumente especulaçãode vôo de longo alcance que cada um valorizará ou abandonará se-gundo sua posição pessoal. Outrossim, é uma tentativa de explorarconseqüentemente uma idéia, por pura curiosidade, a fim de ver paraonde ela se dirige.

A especulação psicanalítica origina-se da impressão causada pelainvestigação dos processos inconscientes, indicando que a consciên-cia não é capaz de ser o caráter mais geral dos processos anímicos,

CAON, J. L. A fisionomia da especulação metapsicológica...SEÇÃO TEMÁTICA

dizendo que lhe parece que estas duas posições demarcariam o fimdas atividades psicanalíticas. Talvez pelo fato de que o desejo de umpênis e o protesto masculino tenham penetrado em todos os estratospsicológicos e chegado ao fundo encontrando sua base biológica. “Orepúdio da feminilidade pode ser nada mais que um fato biológico,uma parte do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quandoconseguimos dominar este fator num tratamento analítico. Só pode-mos consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa analisadatodo incentivo possível para reexaminar e alterar sua atitude para comele”. Aqui, teríamos que discutir o alcance das contribuições lacanianasa respeito do gozo e fim de análise. O desejo de uma pura diferença,como costumamos nos referir ao desejo do analista, pode estar relaci-onado com obter esta marca que indica a diferença sexual e cujosefeitos não estão restritos ao dado biológico, como evidencia a próprialinguagem que nos humaniza.

NOTAPara leitura geral do texto, utilizamos a edição da editora Imago,

em sua versão para CD-ROM. À parte isto, algumas observações tam-bém concernem à releitura do texto em seu original alemão feita porMario Fleig e trabalhada no cartel preparatório do encontro “RelendoFreud e conversando sobre a APPOA”.

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com que meios é isso possível?”, Freud lança mão da especulaçãopsicanalítica, isto é, apela para o primeiro momento da metapsicologia:

“Man muss sich sagen: ‘So muss denn doch die Hexe dran.’(Goethe, Fausto, Parte I, Cena 6). Die Hexe Metapsychologie nämlich.Ohne metapsychologische Spekulieren und Teoretisieren – beinahe hätteich gesagt: Phantasieren – kommt man hier keinen Schritt weiter. Leidersind die Auskünfte der Hexe auch diesmal weder sehr klar noch sehrausführlich. Wir haben nur einen Anhaltspunkt – der allerdingsunschätzbar – an dem Gegensatz zwischen Primär- undSekiundärvorgan, und auf den will ich auch hier verweisen”. (“Obrigamo-nos a dizer: ‘Assim, a bruxa deve intervir’. A saber, a bruxametapsicologia. Sem o especular e o sem teorizar metapsicológicos –estive prestes a dizer, fantasiar – aqui não damos passo algum. Infeliz-mente, também desta vez as informações da bruxa nem são clarosnem detalhados. Temos somente um ponto de apoio – sumamenteinestimável – na oposição entre processo primário e processo secun-dário, para a qual aqui também eu me remeto.”)

É curioso o tratamento que Freud dá à metapsicologia no per-curso de suas pesquisas psicanalíticas. Ora, trata-a como um feto: “Atéa construção psicológica se porta como se fosse integrar-se, o que medaria imenso prazer. Naturalmente, ainda não sei dizer ao certo. Fazerum relatório sobre ela agora seria como mandar a um baile um fetofeminino de seis meses.” (Carta 65 a Fliess, 12-06-1895). Depois tra-ta-a como um tirano: “Nesse momento, rebelei-me contra meu tirano.Senti-me sobrecarregado de trabalho, irritado, confuso e incapaz dedominar aquilo tudo.” (Carta 81 a Fliess, de 08-11-1895). Agora, ela éuma bruxa (Hexe). Mas, por que não uma feiticeira como no Parsifal,Ato I, de Wagner? (Eine Heidin ist’s, ein Zauberweib. (Uma pagã ela é,uma mulher de feitiços, - de encantamentos).

A metapsicologia de nossos encantos e de nossos desencantos,seja bruxa, seja tirano, seja feto, é sempre uma feiticeira encantadora.

CAON, J. L. A fisionomia da especulação metapsicológica...SEÇÃO TEMÁTICA

senão que ela não passa de uma função especial desses processos.”Segundo, vejamos Freud 1937c, Die endliche und die unendliche

Analyse, Secção III. A observação empírico-clínica mostra-lhe que hátrês momentos decisivos responsáveis pelo sucesso de uma análise:1) a influência dos traumas; 2) as forças pulsionais constitucionais; 3)as alterações do eu. Detém-nos perante as forças pulsionais constituci-onais. Duvida se devemos ficar restritos ao atributo constitucional(konstitutionel) ou congênito (kongenital), pois, por mais potente queseja o momento constitucional inicial, não é impossível que um outronovo momento, no decurso da vida, possa exercer influências pareci-das, antes, durante e depois da análise. Por isso, muda a expressão“forças pulsionais constitucionais” (konstitutionelle Triebstärke) para“forças pulsionais do momento, momentâneas ou atuais (derzeitigeTriebestärke).

Na secção II, Freud havia encaminhado uma questão desta ma-neira: “é basicamente possível liquidar (erledigen), definitivamente epara sempre, um conflito pulsional (conflito entre o eu e uma pulsão)?”Nessa terceira secção, retoma o encaminhamento e escreve: “É pos-sível liquidar definitiva e permanentemente, através da terapia psica-nalítica, um conflito da pulsão com o eu, ou de uma exigência pulsionalpatógena dirigida para o eu?” Como bom explicador, Freud explica quea expressão “liquidação permanente de uma exigência pulsional”, querdizer, mais ou menos, amansamento ou doma (Bändingung, taming,apprivoisement). O resultado é como uma enxertia. Uma enxertaduraé uma operação que introduz uma parte viva dum vegetal em outrovegetal, de tal maneira que pode sobreviver e se desenvolver, agora,em condições mais fecundas e produtivas. Dito de outro modo, aspulsões ordenam-se com o eu, ficando acessíveis às influências detodas as outras tendências do eu e não mais ficam entregues à satisfa-ção pura, simples e imediata do princípio de prazer.

Mas, perante a pergunta definitiva: “através de que caminhos e

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analisante a um público benfazejo e crítico.A especulação metapsicológica freudiana e o excurso lacaniano

são versões atuais de um gênero discente, com aparências de gênerodocente, que se denomina desde os gregos de protréptica. A protrépticaé procedimento discursivo. Sua função é arrancar do sono o sujeito dadoxa, isto é, o sujeito imerso na achologia ou na recitação. (Cf. Milner,A obra clara. Rio de Janeiro, Zahar, p. 18).

Milner, após exame intensivo, dos Scripta e do Seminário deLacan, explica: “Os seminários... são tecidos de protréptica – alusões,floreios literários ou eruditos, diatribes, desconstrução da doxa; (...)buscam capturar o ouvinte (projetado, pela transcrição, em situaçãomaterial de leitor, mas pouco importa) no ponto de imaginário onde aconjuntura do momento o colocou; tendo-o capturado, buscam desalojá-lo desse lugar natural através de um movimento violento que, em Lacan,ao contrário de Platão, toma de preferência a forma da diatribe, atémesmo da invectiva: diálogos monológicos e impolidos.” Em nota, Milneracrescenta: “Lacan havia desenvolvido uma técnica que podemos cha-mar de a protréptica negativa: incitar o sujeito a se desvencilhar dadoxa repreendendo-o. A técnica não é nova; os cínicos a haviam prati-cado; encontramo-la na obra de Lewis Carrol, na qual a excelente Ali-ce, amável e terna portadora da opinião mais vitoriana, não pára de serdevidamente insultada pelos representantes do nonsense, que é sinto-ma do real: encontramo-la, enfim, entre os surrealistas e em GrouchoMarx.” (Milner, op.cit., p. 19 e 26).

O texto “Die endliche und die unendliche Analyse” que IngeborgMeyer-Palmedo e Gerhard Fichtner registram e datam como Freud1937c é texto tardio de Freud. Nele, Freud produz especulação,lucubração e reflexão sem romper a inconsutilidade da obra. O pesqui-sador psicanalítico descobre Freud perplexo. Basta examinar as se-guintes passagens, onde Freud aceita certos pressupostos:

Secção III: “(...) a análise não consegue, no neurótico, mais do

CAON, J. L. A fisionomia da especulação metapsicológica...SEÇÃO TEMÁTICA

É perigosa na sua generosidade (especulação metapsicológica) e se-vera na sua verdade (crítica metapsicológica). Aqui, também, cadapesquisador psicanalítico não irá além da capacidade conquistada nafundação da experiência psicanalítica (análise finita); e não permane-cerá na pesquisa psicanalítica senão refundando essa mesma experi-ência, sempre submetida aos rigores da crítica impiedosa e implacávelde uma alteridade transdisciplinar benfazeja (análise não finita outransfinita).

Como se pode pensar a especulação psicanalítica em Lacan?Na literatura psicanalítica escrita ou falada de Freud e de Lacan, en-contram-se freqüentemente relatos de momentos em que um e outroenfrentam perplexos o abismo e a solidão diante da aprendizagem denovos conhecimentos. Quando o conhecimento existe, buscam-no ondeele se encontra: nos livros, ou junto a pessoas que o detêm. Mas, quan-do o conhecimento inexiste, submetem-se ao dever de inventá-lo e deconstruí-lo. Freud e Lacan são sujeitos dessa exigência.

Freud, que tem o costume de freqüentar os escritos, semináriose cursos de pensadores arrojados, como Brücke e Brentano, lança mãodaquilo que, em momentos de apuro, cientistas e filósofos sempre fa-zem: utilizar o recurso da especulação. Entretanto, nas mãos de Freud,a especulação científica ou filosófica, como vimos, transforma-se erecebe o nome de especulação metapsicológica.

Lacan, filho de outro tempo e de outros costumes, sabe que fre-qüentar um homem instruído e informado sobre um determinado as-sunto vale mais do que ler dez livros sobre esse mesmo assunto. En-trevista e, sendo necessário para isso, viaja para estar com especialis-tas que lhe passam, em primeira mão, os resultados de pesquisas deponta em andamento. Mas, esses dados de pesquisas de ponta, aindarebarbativas escrituralmente, tornam-se fontes de falas extraordinári-as, no Seminário de Lacan. Para tanto, utiliza magistralmente o excursoem seu Seminário. Isto é, especula metapsicologicamente falando como

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O HOMEM DOS LOBOS... AINDA

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack

“Para este paciente, a análise era Freud”Ruth M. Brunswick

Análise finita e infinita (1), escrito em 1937, é, junto com Cons-truções em psicanálise, um dos últimos textos de Freud sobrea clínica, e talvez o mais importante de todos os que escreveu

sobre o tema. Nele atravessará questões de magna importância comotransferência, resistência, recalcamento, possibilidades e limites do tra-tamento, pulsão de morte, enquanto temas centrais.

Um clima de ceticismo, de pessimismo, ronda todo o artigo, comose quisesse deixar ressoando aos futuros psicanalistas: “não tenhamilusões, há limitações, há dificuldades, há obstáculos em todo o percur-so”.

Começa com algumas observações sobre as freqüentes tentati-vas de encurtar o processo de duração da análise. “A experiência nosensinou que a terapia psicanalítica — a libertação de um ser humanode seus sintomas neuróticos, inibições e anormalidades de caráter — éum trabalho moroso”. Critica, assim, um falso otimismo, onde se su-bestimam as perturbações neuróticas e as grandes forças pulsionais edefensivas implicadas.

Não é sem razão que ,quase imediatamente, Freud reserva umbom espaço para tecer considerações sobre seu trabalho clínico com oHomem dos Lobos, como modo de exemplificar sua experiência emacelerar um tratamento analítico.

Relembrando alguns dados sobre o Homem dos lobos, tentare-mos nos encaminhar não pelo lado de seus temas clássicos como océlebre sonho dos lobos, a questão da letra, ou mesmo a precoce alu-

SUDBRACK, M. A. P. O homen dos lobos... Ainda.

que o são leva a cabo sem esse auxílio (...) a terapia analítica não podefazer nada que não aconteceria por si só em condições normais, favo-ráveis.”

Secção V: “O eu, para que possamos realizar com ele um pacto,tem que ser um eu normal. Porém esse eu normal, como a normalida-de, em geral, é uma ficção ideal. E o eu anormal, inutilizável paranossos propósitos, não é, infelizmente, uma ficção”

Secção VII: “ Por fim, não esqueçamos que o vínculo analíticofunda-se no amor pela verdade, isto é, no reconhecimento da realida-de objetiva [alteridade] que exclui toda ilusão e todo engano”

A pesquisa de Freud, “Die endliche und die unendliche Analyse”,bem como o Seminário de Lacan são pesquisas em andamento: Freudproduz uma redação seminarial; Lacan, entrega-se ao excurso oral.São duas experiências equivalendo a uma experiência finita de infinitasexperiências.

A pesquisa psicanalítica, como qualquer pesquisa, é pesquisaquando se materializa em texto que circula. Se aceitarmos a concep-ção de sublimação, em Harold Bloom, como o triunfo do recalcamento,então a pesquisa psicanalítica transposta em texto circulante, é subli-mação triunfadora. A alteração do eu transforma-se de estorvo empedra de toque. No meio da Secção V, depois de comparar o processode recalcamento com o procedimento dos copistas, ou, como eu gostode dizer, com o procedimento do aluno que passa a limpo sua redaçãofeita no borrão, Freud nos dá essa bela imagem: “se não se estabele-cer a comparação em termos demasiadamente estritos, pode-se dizerque o recalcamento está para os outros mecanismos de defesa, comoa omissão da desfiguração do texto, e, nas diversas formas desta falsi-ficação, podemos encontrar analogias para as múltiplas variedades daalteração do eu”. E é assim a “análise finita não-finita”, essa experiên-cia finita (fundação) de infinitas experiências. (refundação).

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preender sua neurose precoce e dominar a atual”.(1) Freud acreditavaque se efetuara uma cura radical e permanente. Freud escreve Umaneurose infantil.

O paciente então, volta à Rússia (1914) em condições de en-frentar as exigências que o esperavam. A revolução russa o despojade todos os seus bens.

Em 1919, o paciente, sem meios de sobrevivência e tendoretornado a Viena, procura a ajuda de Freud, queixando-se de consti-pação histérica e permanece durante quatro meses em tratamento.Freud não só o trata gratuitamente, como também organiza coletas emdinheiro para manter o ex-paciente e sua esposa doente, durante osseis anos que se seguiram. Afinal, diz Brunswick, era o paciente quetanto havia contribuído aos fins teóricos da psicanálise.(3)

Entretanto, durante os 12 anos que se passaram após sua pri-meira análise, aconteceram diversos episódios da doença “que só po-diam ser interpretados como ramificações da neurose da sua vida.” Econtinua Freud: “Em alguns desses acessos tratava-se sempre aindade resíduos da transferência; eles então mostravam um caráter clara-mente paranóico.” (1)

Dessa forma, sintomas hipocondríacos manifestavam-se, agorarelacionados alucinatoriamente, delirantemente a partes de seu pró-prio corpo – nariz, boca, dentes – agravados paralelamente às notíciasda crescente piora do estado de saúde de Freud.

Em 1922, Serguei recebe de sua família jóias, provenientes daRússia. Supondo que fossem de muito valor, seguiu o conselho de suamulher de nada dizer a Freud, já que este poderia retirar sua ajuda. Otemor de perder evitou que pudesse pensar que Freud, talvez, não lhepermitisse gastar o capital. As jóias não tinham valor, mesmo assimresolveu não falar, pelo contrário, daí por diante cresceu sua avidezpelo dinheiro de Freud.

No verão de 1926, visita a Freud e recebe a soma anual da

SUDBRACK, M. A. P. O homen dos lobos... Ainda.SEÇÃO TEMÁTICA

cinação dos cinco anos de idade, mas, sim, desejamos seguir pelo viésespecífico que Freud nos assinala ao início deste texto.

Seu nome: Serguei Constantinovitch Pankejeff, jovem russo, deabastada família, o qual, ao iniciar sua análise com Freud, apresenta-va completo desamparo, mostrando sintomas de incapacidade para seocupar sobre as coisas da vida, mesmo as mais simples; passara pelosmais variados tratamentos, inclusive hidroterapia e eletroterapia; ha-via sido internado em vários sanatórios, consultado os mais conheci-dos médicos, entre eles os professores Zihen e Kraepelin, os dois maisfamosos psiquiatras da época. Tudo em vão.

Quando visitou Freud pela primeira vez (fev.1910), era um jo-vem de 23 anos, enfraquecido, vinha acompanhado de um médicoparticular e um assistente. Freud comenta que, em poucos anos, foipossível devolver-lhe parte de sua independência, seu interesse pelavida e por suas relações mais importantes. Sua história revelara quehavia sofrido uma fobia a lobos, aos quatro anos de idade, seguida deuma neurose obsessiva até os 10 anos, sendo que desde os 6 anosapresentara uma necessidade obsessiva de pronunciar blasfêmias con-tra Deus. A partir dos dez anos, apesar de sentir-se relativamente livredos seus sofrimentos, suas atitudes eram inibidas e temerosas. Aos 18anos foi acometido de gonorréia.

Os primeiros quatro anos de análise com Freud foram de poucosprogressos no esclarecimento de sua neurose de infância. O pacienteencontrava-se acomodado ao tratamento, sua grande resistência im-pedia-o de um mínimo progresso.

Freud, resolvendo dar uma virada naquela inalterável situação,escolheu um momento favorável e informou-lhe que resolvera inter-romper o tratamento, ao início de suas férias, não importando o pontoem que estivesse e, ademais, estava resolvido a cumprir sua decisão.

A mudança desejada, então, aconteceu, as resistências diminu-íram, parte importante de sua análise pode expressar-se “para com-

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questionamento de Freud.Lacan comenta que o Homem dos lobos andava em busca de

um pai simbólico que viesse barrar o pai real, demasiadamente gentil eque despertava no filho o temor de ser comido por ele. Ora, os paiscastradores são representados aí pelos dentistas, os quais, quanto maisarrancam os seus dentes, melhores são.

Por outro lado, estão os pais imaginários, mortíferos, relaciona-dos à imagem da cena primária, onde identifica o sujeito à atitude pas-siva, angustiante, e que corresponderia ao despedaçamento original.Então, recalcar ou questionar? Frente a essa ameaça, a resposta éagressividade radical.

Ruth relata que um ataque de diarréia, no início da análise, anun-ciou o tema do significante dinheiro. Egossintônico, não expressava omenor desejo de pagamento de sua dívida. Ficava claro que as coletasque vinham por intermédio de Freud eram aceitas pelo paciente comoalgo que lhe fosse devido, ou seja, como prova do amor de um pai - dequem fora engendrado - a seu filho. Considerava-se o filho favorito deFreud.

Por outro lado, culpava Freud pela perda de sua fortuna, já que,por questões de segurança pessoal, Freud desaconselhara-o de voltarà Rússia para “salvar” sua fortuna, visto que seu pai havia sido morto,lá, por razões políticas. Afinal não pensaria, também, que este “mau”conselho de Freud, teria sido dado simplesmente por amor?

Assim, tudo isso formando um impenetrável muro defensivo, le-vou a analista a uma intenção concentrada em “minar” o lugar narcísicode filho favorito. Em que medida estaria Freud ali presente?

Na experiência de análise, a relação da fala se abre a todos osdiferentes modos de expressão, com os quais cada um consegue semanifestar segundo sua subjetividade. Ao redor desta palavra surge arelação de transferência; é, portanto, este dom da fala, de significantes,que se estabelece entre o sujeito e seu analista.

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coleta. Seus sintomas se agravam, retorna à análise, desta vez, po-rém, encaminhado por Freud para Ruth Mack Brunswick.

Em 1937, Freud, considerando o horizonte limitado da análisenaqueles primeiros dias, continua se indagando sobre a existência dealgo que se possa chamar término de uma análise; haveria a possibi-lidade de levar uma análise a tal termo? Ou, então, - continua Freud -ao invés da pergunta de como se dá uma cura pela análise, não seriamais produtivo questionar-se sobre os obstáculos que se interpõem emseu caminho?

Mas, voltando ao Homem dos lobos (2), texto, aliás, que Lacanprivilegia para iniciar sua proposta de seminário (1951), aí a questãoda transferência é crucial. R. Brunswick ao relatar os efeitos dessaprimeira análise, que vai além das questões sobre os resíduos mórbi-dos, afirma literalmente: “Para este paciente a análise era Freud. Eracomo se uma dose suficiente de influência paterna estivesse presentee fora eficaz sem o grau adicional que teria sido fatal para o tratamen-to. E, modestamente, declara: Pode ver-se, que meu próprio papel napresente análise quase não teve importância ;não fui mais que umamediadora entre o paciente e Freud”.(3)

Ao iniciar seu trabalho analítico com Sergei, R. Brusnwick ficaextremamente surpresa com o homem que se apresentava em seuconsultório, muito diferente daquele sobre o qual lera no relato deFreud (2): era autor de faltas de honestidade, ocultava a posse de di-nheiro a Freud - o caso das jóias, p.ex. -, sem dar a mínima importân-cia para tal. Adotava uma atitude hipócrita e a qualquer menção a Freud,mostrava um risinho estranho e indulgente.

Em contrapartida, tentava comprar a cumplicidade da analista,seduzindo-a com palavras de agrados, de elogios a seu trabalho pro-fissional.

Não é nossa intenção entrar na análise clínica realizada por R.Brunswick, mas o que interessa é salientar alguns pontos nessa via do

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rência da análise anterior, como ao aparecimento de novos fragmentosda história da infância do paciente, no “só - depois”. E, então conclui:“Achei a história do restabelecimento desse paciente não muito menosinteressante do que a de sua doença.”

E Freud em tudo isto? Ora, Freud, ao expor-se, expondo a suaclínica, sempre se coloca em falta, como grande Outro barrado, nolugar corajoso da supervisão, ou seja, constantemente supervisionadopor todos os analistas posteriores, alvo para críticas e para aprendiza-gem, mas, ao mesmo tempo, deixando portas abertas para que a Psi-canálise possa avançar.

BIBLIOGRAFIA1. FREUD, S. Análise finita e infinita. In: Obras completas. Rio de Janeiro,Imago, vol. XXIII.2. FREUD, S. Uma neurose infantil. In: Obras completas. Rio de Janeiro, Imago,vol. XVII.3. BRUNSWICK, R. M. Suplementos de la historia de una neurosis infantil deFreud. In: El Hombre de los Lobos por el Hombre de los Lobos. Buenos Aires,Nueva Visión, 1976.4. CADERNOS DE LACAN. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1ª par-te. Notas e comentários sobre o homem dos lobos.5. LECLAIRE, S. A propósito del analisis de Freud sobre el hombre de losLobos. Buenos Aires, Siglo XXI.

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No caso do Homem dos lobos, qual teria sido a função dosignificante dinheiro na sua história? Lacan comenta que o que se trans-mite nessa relação transferencial não é a identificação a um pai quesuporte riscos e responsabilidades, mas o que vai valer é a relaçãocom o patrimônio, isto é, a relação narcísica com seu pai. “Sou agora oúnico herdeiro”, pensamento que lhe passa quando da morte da irmã.

As altas somas, que pagava inicialmente a Freud, nada conta-vam para aquele homem rico; porém, ao inverter-se a situação, aoproporcionar ajuda financeira ao paciente pobre, Freud participa dainversão do dom do dinheiro, e, podemos dizer, que o paciente, para-nóico, na dificuldade de emergir como sujeito, torna-se o “patrimônio”,ou melhor, o “monumento” da psicanálise.

É bom lembrar, aqui, um dos momentos geniais da investigaçãode Freud durante a primeira análise desse caso (2); ele observa indíci-os psicóticos no paciente através do episódio da alucinação do dedocortado, aos cinco anos de idade, resumindo o que a atitude do pacien-te havia lhe mostrado em relação à castração: “...e afinal coexistiamnele duas correntes contrárias, uma das quais rechaçava a castraçãoenquanto a outra estava disposta a aceitá-la e consolar-se com a femi-nilidade (...) porém, uma terceira corrente, mais antiga e profunda, quenem sequer levantara ainda a questão da realidade da castração, eraainda capaz de entrar em atividade”(2). Lacan elegeu este ponto teóri-co de Freud para lançar seu conceito de forclusão.

Sergei Pankejeff, a partir das análises realizadas com Freud eR. Brunswick, esteve sempre procurando acompanhamento terapêutico,em função de seus períodos de maiores pertubações, de crises de de-pressão, especialmente depois do suicídio de sua mulher; e assim atéo fim de sua vida. Análise interminável?

Deslocando-nos para 1937 em Análise finita e infinita, Freud,comentando o trabalho de Ruth Brunswick, fala sobre as peculiarida-des desta última análise, referindo-se não só aos resíduos da transfe-

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SEÇÃO DEBATES

nossas ancestralidades.Estará em causa – primeiro nosso desejo, de psicanalistas.

Concomitante a este, muitas outras possibilidades e temas que inter-vém e moldam nossa cultura. Não simplesmente pelo fato de poderemser enumerados e tratados como uma coletânea de acontecimentosdatados, mas por uma interrogação e uma consideração: a interroga-ção passa por colocar em causa a possibilidade dos psicanalistas con-tribuírem efetivamente para a interpretação de determinados fatos dediscurso que conformam nossa realidade. Em outras palavras, qual oreal que determina as especificidades, os desdobramentos daquilo quepoderíamos caracterizar como o discurso do Outro em nossa atualida-de. A consideração passa pelo respeito a uma falta da qual somostodos tributários, mas cuja autoridade discursiva só será reconhecida,na medida em que nos tornamos sujeitos de uma cultura e possamosproduzir a partir do mal-estar (do impossível) que a organiza. Querdizer, nossa possibilidade de avançar no campo que é próprio à psica-nálise está intimamente articulada com a valorização dos determinantesde nossa língua e cultura.

Assim relacionamos alguns tópicos como possíveis de seremabordados.1. A língua e seus desdobramentos, em particular a importância daliteratura na performatização de nossa subjetividade.2. A religião – católica, africanas, protestantes e os cultos modernos. Oque dizer do sincretismo realizado no Brasil?3. Nossa história e suas articulações com a península ibérica - Portugale Espanha. A importância do “renascimento português” e das grandesnavegações do século XVI.4. Nossas relações de fronteira com os países do Prata – as diferençase questões que temos relacionadas desde a colonização.5. O movimento de imigração na constituição do RS .6. A cultura escravagista e sua atualidade. Os desdobramentos sócio-

CARTEL – BRASIL 500 ANOSDESCOBRIMENTO, MEMÓRIA, INVENÇÃO

Robson de Freitas Pereira

Ocartel aberto que se propõe a trabalhar sobre os 500 anos dodescobrimento inicia suas reuniões neste mês. Sabemos dasdificuldades de tentar fazer uma real discussão transdiciplinar,

assim como dos riscos que implica enfrentar-se com um tema tãoabrangente e de tamanha atualidade. Os psicanalistas aprenderam comFreud que a proximidade com os fatos não é a melhor posição; pois elepreferia trabalhar quando já houvesse uma “distância” suficiente doocorrido. Ao mesmo tempo, o próprio Freud nos transmitiu que nadanos é tão próximo, tão íntimo e tão estranho quanto um sintoma e queeste é o cerne para o trajeto de qualquer trabalho analítico. Assim, 500anos da chegada dos portugueses ao Brasil pode ser um espaço inte-ressante de distanciamento, ao mesmo tempo que, por não trabalhar-mos somente com a cronologia, podemos nos interrogar sobre osimpasses da atualidade e seus efeitos sobre nosso trabalho.

Reproduzimos, a seguir, um esboço de projeto a partir do qualsurgirão outros delineamentos para nosso próximo Congresso, no ano2000.

Redescobrir é descobrir outra vez, repetir uma passagem pelahistória, pela ficção que tomamos como verdade. Fazendo um percor-rido descontínuo entre ficção – verdade – ficção, entre saber – verda-de, entre gozo – saber.

Os 500 anos tornam-se um significante para nós – tendo claroque um significante só e reconhecido posteriormente ao seu dizer. Tal-vez, uma das significações que possa nos interessar seja esta da re-descoberta e o que podemos produzir a partir dos significantes quefalam nos analisantes e, parafraseando o poeta, deságuam de suas/

PEREIRA, R. de F. Cartel - Brasil 500 anos...

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SEÇÃO DEBATES

pelos discursos.Desta forma, um projeto que tenta contemplar as diversas mo-

dalidades de articulação com a cultura, assim como com as demaisinstituições psicanalíticas locais e internacionais tem seu interesse, tantopor dar continuidade ao projeto institucional, como por lançar questõesque concernem a própria atualidade da prática psicanalítica.

Podemos pensar as melhores condições de sustentação e enca-minhamento, no sentido de dar continuidade e consolidar a transmis-são da psicanálise do qual a APPOA se faz responsável.

A próxima reunião do Cartel está convocada para o dia 12 demaio, às 20h e 30min, na sede da APPOA.

políticos da “servidão voluntária”.7. A movimentação – migração dentro do Brasil: o que faz estaintegração, quais os traços de identificação? Pensando nos efeitosconcomitantes de exclusão e não-reconhecimento do outro que atépode falar a mesma língua.8. Os efeitos na cultura, a partir das artes (música, artes plásticas,cinema), dos costumes e dos hábitos – comidas, festas e cotidianos.9. A ciência moderna, seu discurso, efeitos e função na multiplicidadede tempos e lugares.10. Os limites éticos do discurso colonial.

Estes e/ou outros eixos temáticos e de investigação poderiamacontecer em quatro direções, como um feixe:1. O Rio Grande do Sul e suas particularidades – função do RS naconstrução e expansão do Brasil.2. As relações com o que hoje denomina-se Mercosul (os psicanalistaspoderiam ter uma narrativa que seria importante contribuição a respei-to de sua história e de como a história da psicanálise no sul do Brasilestá, desde seus primórdios, articulada com os países do Prata).3. O Brasil e as particularidades de cada lugar onde pratica-se a psica-nálise. Cada cidade e/ou região tem relato de como está sendo pratica-da a psicanálise.4. Brasil x Europa, Metrópole x Colônia, mestre x escravo, afinal dequem é o desejo? No Brasil, o destino da psicanálise é cópia ou inven-ção?

Contexto para APPOAA Associação Psicanalítica de Porto Alegre, desde sua fundação

(que em 99 completará dez anos), tem como um de seus principaiseixos de trabalho a participação ativa na vida de sua pólis, na medidaem que reconhece as conseqüências do inconsciente estar estruturadocomo uma linguagem e que há um real impossível de ser consumido

PEREIRA, R. de F. Cartel - Brasil 500 anos...

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RESENHA

que não concerne unicamente à significação fálica do corpo, mas àconjunção disjuntiva dos diferentes termos do complexo de édipo. Oque escapa à consciência é o encadeamento, a relação, que termoscontrários mantém entre si; recalque esse que precipita o sintoma.

Entre estes dois limites, o autor marca que toda a teoria da trans-ferência deve estar fundada em relação à própria formação do incons-ciente, quer dizer, como uma conseqüência do recalque.

Qual a posição do analista frente ao sujeito duplamente referidopor essas operações de recalque? Que espécie de fio de prumo dáorientação à cura? O que ordena o desenrolar da transferência - já queinvariantes como o sexo, a infância e a família retornam sempre? Comoo analista se posiciona frente aos efeitos contraditórios, desencadea-dos pelo próprio dispositivo analítico? Como fazer operar o saber in-consciente, sempre binário, dividido, que emerge graças à estrutura deficção e à modalidade condicional do discurso, ultrapassando um pri-meiro momento em que analista e analisante caminham de mãos da-das, arrebatados conjuntamente? São as questões do amor, da faltaoriginária que ele deixa como resto, enfim, de um sujeito que chora aprópria castração, que organizam esse primeiro capítulo.

Tão espesso quanto à binariedade do saber inconsciente, dosignificante, será o muro da transferência (título do II capítulo) engen-drado por tal divisão, começando aí as verdadeiras dificuldades e pos-sibilidades. A divisão organizada pelo recalque detém o desenvolvi-mento harmonioso do saber e se manifesta tão logo o analista tome aposição do Outro. Só por um artifício tais efeitos de resistência serãoatribuídos à presença do analista. Toda questão se colocará a partir domomento em que ele for afetado por uma distorção significante, deforma que a parte do saber inconsciente emergente, transferido, su-posto ao analista, sempre encobrirá outra, que não se mostrará. É nes-se sentido que sua presença põe o inconsciente em ato, tornando-senecessário que o “muro” da transferência seja tomado como “oportuni-

O AMOR AO AVESSOENSAIO SOBRE A

TRANSFERÊNCIA EM PSICANÁLISE

POMMIER, Gérard. O amor ao avesso - ensaio sobre atransferência em psicanálise. São Paulo, Companhia deFreud, 1998. 473 p.

“Que ele (o analista) ame,não no sentido inútil do amor de si,

mas de um amor da existência- amor lançado ao vazio a despeitodas condições narcísicas inóspitas

que lhe cabem”.

Para indagar sobre a especificidade do conceito de transferênciana clínica psicanalítica, de início, Pommier toma algumas ques-tões referenciais: com que noção de sujeito estamos trabalhan-

do? Para o sujeito de linguagem, qual é o contexto de sua fala notratamento? Quais as implicações da regra de associação livre?

O conceito é situado em dois âmbitos, relativos às operaçõesdos recalques originário e secundário. No primeiro âmbito, situa a trans-ferência originária, testemunha da perda do que teríamos sido numtempo edênico, da significação fálica que investiu nosso corpo, viademanda materna. A partir daí, engendra-se um amor que não concernea ninguém em particular e instaura uma primeira impossibilidade: “àquiloque é preciso assemelhar-se, não sabemos o que é, a não ser que oamor o ordena”; ausência de falo na mãe e identificação impossível aofalo de outro gerando um primeiro recalque; a análise desenrolando-segraças a esse inanalisável.

No segundo âmbito, diverso, situam-se as transferências plu-rais, múltiplas, que se apoiam na transferência originária, mas são re-lativas às formações do inconsciente, efeito do recalque secundário,

POMMIER, G. O amor ao avesso.

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RESENHA

efeitos terapêuticos. Nesse sentido, dois capítulos interessantes: O pontode apoio velado da cura: a pulsão e O que se conclui em análise - queabordam questões sobre o fim de análise.

No primeiro Pommier trabalha as dificuldades relativas à sus-pensão do recalque que pesa sobre a pulsão. Se a suspensão dorecalque sobre significantes é uma operação relativamente corriquei-ra, existe uma dificuldade em fazer coincidir a decifração significante ea referenciação identificatória pela via pulsional. É só por uma opera-ção de leitura na transferência, que produza um momento dedescompletude do Outro, que se agenciará um movimento de alavan-ca, capaz de suspender o recalque da pulsão e liberar o corpo da fixa-ção do sintoma.

Nesse momento, em que tomamos como tema de trabalho doRelendo Freud e conversando sobre a APPOA o texto Análise finita einfinita (1937), as formulações destes capítulos são particularmenteatraentes. Além de detalhadas e esclarecedoras, quanto aos pontos deimpasse do fim de análise, percebemos o quão longe Lacan pode levartais investigações, a partir das propostas e dúvidas freudianas.

As reflexões destes capítulos podem ser muito valiosas parapensarmos também a formação do analista, na abordagem sobre odesejo do analista. A busca por uma identidade parece, muitas vezes,conduzir à uma prática, na qual o que está em questão é mais a tenta-tiva de “ser”, analista por exemplo, do que o exercício de uma escutafundada nos efeitos da análise pessoal. Equívoco inevitável, talvez, naformação, mas, tal como é trabalhada no capítulo (O que se conclui emanálise), destaca o quanto a eficácia da escuta analítica depende decomo esteja situado o desejo do analista. O tempo de desenrolar datransferência é, sobretudo, de alteração das modalidades de relaçãodo sujeito ao próprio desejo, o que nem sempre conduz o analisante aoexercício da psicanálise. São preciosas as reflexões quanto à passa-gem do desejo de ser analista (que na forma imperativa só produz

dade” de uma atualização, já que o obstáculo representa ocasião únicade desembaraço de uma identificação alienante e do sintoma que deladeriva. “Durante um tempo de franqueamento que se apresentafreqüentemente como uma crise, o analisante se confronta com o quesua identidade tem de mais sintomático: é o momento em que podeavaliar a quem, na realidade, sua queixa se dirige e, consequentemente,quem ele próprio é para formulá-la”. Tal torção depende menos de umexercício de inteligência antecipada por parte do analista, do que daposição ética (tão difícil) de se deixar afetar antes de saber porquê.

Ponto a ser destacado, aliás em todo o livro, é a detalhadaexplicitação das conseqüências éticas que os conceitos psicanalíticosimplicam. Na medida em que aponta o alcance de determinados con-ceitos, o que, de fato, está em questão é a própria pertinência do atoanalítico. Ali onde o analista poderia pensar que se trata de uma ques-tão de “liberdade de escolha”, de “estilo de abordagem”, vemos quefreqüentemente trata-se de manter, ou não, posições éticas quanto aopróprio conceito. Não nos enganemos quanto ao que legitima seu ato,uma vez engendrado o discurso psicanalítico.

O que quer o analisante, como se enlaçam a demanda, as iden-tificações (imaginárias e simbólicas) e o sintoma? Como incide a pulsãoe a questão do objeto na transferência, em cada tempo da análise? Porque operação ela se desvia de um exercício erótico e no que se apro-xima e diferencia do amor neurótico cotidiano? Quais os caminhos quedesvelam o desejo? Estas são algumas das questões longamente tra-balhadas, por via de numerosos exemplos, como gosta Pommier, taiscomo se apresentam em fantasmas femininos e masculinos.

Sabemos que a travessia do plano das identificações imaginári-as não determina o término do trabalho a ser realizado em análise,nem garante efeitos irreversíveis. Seria bastante esquemático reduzira cura a uma técnica de desalienação, mesmo que possam ser bem-vindos, às vezes, a redução das angústias que lhes acompanham e os

POMMIER, G. O amor ao avesso.

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63C. da APPOA, Porto Alegre, n. 68, maio 199962 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 68, maio 1999

MAIO - 1999

Dia Hora Local Atividade0304 e 18

05 e 19

0606 e 2007 e 21

10 e 2410 e 24

12

1220

28 a 30

28 a 30

A

Reunião do FórumCartel preparatório para “Relendo Freud e con-versando sobre a APPOA”Seminário “A dimensão trágica da psicanálise”- Responsável: Enéas Costa de SouzaReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de BibliotecaSeminário “Novos apontamentos para aclínica das psicoses” - Responsável: AlfredoJerusalinskyReunião da Comissão do Correio da APPOASeminário “Memórias...” - Responsáveis: AnaMaria Medeiros da Costa, Edson Luiz André deSousa e Lucia Serrano PereiraSeminário “A topologia fundamental de JacquesLacan” - Responsável: Ligia VíctoraCartel Brasil 500 anosReunião da Mesa Diretiva aberta aos membrosda APPOARelendo Freud e Conversando sobre a APPOA- Análise Finita e InfinitaCartel do Interior

Cartel do Envelhecimento

Sede da APPOASede da APPOA

Sede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOA

Sede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOA

Hotel Laje de PedraCanela/RSHotel Laje de PedraCanela/RSSede da APPOA

21h21h

20h30min

21h20h18h

20h21h

17h30min

20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

AGENDA

EM NOME DA LEI II

confirmar

inibição) ao desejo do analista, enquanto marcado pela diferença, atra-vés do percurso de análise.

O último capítulo aborda as particularidades da transferência napsicose e na perversão. Retoma o conceito comparativamente à neu-rose perguntando sobre a diferença que se impõe no caminho da trans-ferência, quando falta o recalque secundário e ela é comandada pelorecalque originário. Aborda-a quanto à nodulação dos três registros:real, simbólico e imaginário e a pulsão.

Cabe lembrar que o livro é fruto de seminários desenvolvidos aolongo de alguns anos, o que lhe confere as características dedetalhamento e de endereçar-se a um interlocutor que apõe questõesbastante cotidianas e freqüentes na prática de analistas lacanianos.

Uma indicação quanto às notas de rodapé: ler todas. São muitoricas e, além de tecerem precisões importantes, constituem um guiarigoroso para o endereçamento à obra de Lacan.

Uma observação quanto à tradução: Pommier costuma expres-sar-se num estilo claro, o que provoca uma certa estranheza nestelivro. A leitura parece não ter a mesma fluidez que noutras obras, jápublicadas em português. Apesar da satisfação pela publicação do li-vro em nossa língua, não deixamos de observar sérias reservas quan-to às opções de tradução, que tornaram muitas passagens ilegíveis outruncadas e cujas dificuldades não estão relacionadas à complexidadedo tema. Lamentamos, pois desses estraves restam conseqüênciasdas quais a própria psicanálise sempre se ressentiu - avançando mes-mo assim - para não falarmos dos esforços que cada um precisa em-preender, para sustentar as transferências em questão. Habituados,mas não adaptados, a dificuldades dessa ordem, deixemo-nos condu-zir nessa leitura extensa, mas produtiva.

Liz Nunes Ramos

RESENHA