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O POETA DOS OUTROS Cacaso Pensando em Cacaso Cacaso tinha a intenção de estudar a poesia "marginal" dos anos 70 como um vasto poema coletivo, cuja matéria seria a experiência histó- rica do período da repressão, e cujo autor seria a geração daquele decê- nio, vista no conjunto, ficando de lado a individualidade dos artistas. O ensaio dele que publicamos a seguir, ainda que dedicado a um poeta só, vai nessa direção. Trata-se de um trabalho inacabado, interrompido pela morte. Cacaso estava sempre fazendo amigos novos, de cujo valor tratava de persuadir os mais antigos. A palavra-chave nestas explicações era "figu- rinha". Se não me engano, a expressão designava pessoas que não tendo posição firmada na praça nem por isso abriam mão de um perfil exigente e caprichado. Grande figurinha aliás era o próprio Cacaso, a quem por is- so mesmo a fama, quando começou a vir, deixava um pouco atrapalhado. A estampa de Cacaso era rigorosamente 68: cabeludo, óculos de John Lennon, sandálias, paletó vestido em cima de camisa de meia, sacola de couro. Na pessoa dele entretanto estes apetrechos da rebeldia vinham im- pregnados de outra conotação mais remota. Sendo um cavalheiro de mas- culinidade ostensiva, Cacaso usava a sandália com meia soquete branca, exatamente como era obrigatório no jardim-de-infância. A sua bolsa a tira- colo fazia pensar numa lancheira, o cabelo comprido lembrava a idade dos cachinhos, os óculos de vovó pareciam de brinquedo, e o paletó, que em- KOKOKOK Nos originais deste ensaio inacabado de Cacaso ha- via algumas notas manus- critas à margem das fo- lhas, que reproduzimos na mesma ordem e posição. 135

CACASO. O Poeta Dos Outros

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CACASO. O Poeta Dos Outros

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  • O POETA DOS OUTROS

    Cacaso

    Pensando em Cacaso

    Cacaso tinha a inteno de estudar a poesia "marginal" dos anos 70 como um vasto poema coletivo, cuja matria seria a experincia hist- rica do perodo da represso, e cujo autor seria a gerao daquele dec- nio, vista no conjunto, ficando de lado a individualidade dos artistas. O ensaio dele que publicamos a seguir, ainda que dedicado a um poeta s, vai nessa direo. Trata-se de um trabalho inacabado, interrompido pela morte.

    Cacaso estava sempre fazendo amigos novos, de cujo valor tratava de persuadir os mais antigos. A palavra-chave nestas explicaes era "figu- rinha". Se no me engano, a expresso designava pessoas que no tendo posio firmada na praa nem por isso abriam mo de um perfil exigente e caprichado. Grande figurinha alis era o prprio Cacaso, a quem por is- so mesmo a fama, quando comeou a vir, deixava um pouco atrapalhado.

    A estampa de Cacaso era rigorosamente 68: cabeludo, culos de John Lennon, sandlias, palet vestido em cima de camisa de meia, sacola de couro. Na pessoa dele entretanto estes apetrechos da rebeldia vinham im- pregnados de outra conotao mais remota. Sendo um cavalheiro de mas- culinidade ostensiva, Cacaso usava a sandlia com meia soquete branca, exatamente como era obrigatrio no jardim-de-infncia. A sua bolsa a tira- colo fazia pensar numa lancheira, o cabelo comprido lembrava a idade dos cachinhos, os culos de vov pareciam de brinquedo, e o palet, que em-KOKOKOK

    Nos originais deste ensaio inacabado de Cacaso ha- via algumas notas manus- critas margem das fo- lhas, que reproduzimos na mesma ordem e posio.

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  • O POETA DOS OUTROS

    prestava um decoro meio duvidoso ao conjunto, tambm. A ligao muito prxima e viva cheia de fotografias com a me, uma senhora de bele- za comovente, completava o apego assumido aos primeiros anos.

    Contudo, essa recusa da respeitabilidade adulta nada tinha de crian- cice, de desinteresse pelo mundo prtico ou por confortos materiais. Ca- caso sonhava muito, porm se concebia como pessoa objetiva e determi- nada, a quem o descaso pelos meandros convencionais permitiria um ata- que mais funcional aos alvos que lhe importavam. A sua f na eficcia de medidas racionalizadoras da conduta, como por exemplo a reorganizao dos estudos, dos horrios de trabalho, dos sistemas de fichamento, das for- mas de colaborao e convvio, chegava a ser desconcertante. Encarava o mundo e a si mesmo com distncia humorstica, e achava que os dois me- reciam reforma, qual se dispunha sem ligar para interesses criados o que tambm dava aos seus projetos algo de conspirao entre garotos que sabem o que querem. Queria construir a sua obra de poeta, queria trazer luz do dia os podres da conivncia literria, queria acertar no amor, que- ria dar o seu depoimento sobre o Brasil, queria vencer, e sem dvida ne- nhuma queria ganhar dinheiro com o seu trabalho.

    A certa altura, Cacaso imaginou que a sua vida de intelectual e artis- ta seria mais livre compondo letras de msica popular do que dando aulas na faculdade. Na poca chegou a idealizar bastante a liberdade de esprito proporcionada pelo mecanismo de mercado. Penso que ultimamente an- dava revendo essas convices. Seja como for, o passo de professor a le- trista, acompanhado de planos ambiciosos de leitura literria, histrica e filosfica, assim como de produo crtica, mostra bem a sua disposio de entrar por caminhos arriscados e de vencer em toda linha. Talvez apos- tasse que uma certa informalidade de menino lhe permitiria ignorar e su- perar as incompatibilidades que a nossa cultura ergueu entre arte exigente e arte comercial, entre estudos e estrelato, entre conseqncia poltica e fruio desinibida. A mesma considerao direta do que pudesse satisfa- zer seja o ideal seja o apetite fazia que Cacaso se sentisse atrado por dife- rentes manifestaes da barra pesada.

    Assim como no respeitava as convenes, Cacaso adorava fazer ce- rimnia e armar jogos pessoais, desde que fossem da inveno ou simpa- tia dos envolvidos. Nesse captulo, leia-se a homenagem aos 80 anos de Drum- mond, de uma graa especialssima, onde o homenageado, o mais pernam- bucano dos mineiros, contracena com Manuel Bandeira, o mais mineiro dos pernambucanos. Para um primeiro palpite sobre o tipo to peculiar de prosa que Cacaso estava desenvolvendo, note-se o convvio entre a di- verso pura a que ele dava uma feio meio interiorana, de conversa de tico-tico e a notao crua de interesses e apetites (o ensaio que se ler em seguida exemplifica s um pouco o que estou dizendo).

    Roberto Schwarz

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  • NOVOS ESTUDOS N 22 - OUTUBRO DE 1988

    1.

    A poesia de Chico Alvim consiste num improviso. Mas onde est, o que , este improviso? Acontece que uma das formas sutis do improviso ceder a vez. Ceder a voz. Desocupar o espao para a palavra alheia. Ou- vir de tudo, mas exercer o direito de selecionar e medir. Aprender a ceder a vez, sendo atitude prudente e sbia, ainda uma tcnica, uma maneira de se obter o poema. O poeta um desentranhador, e o modelo melhor que temos Manuel Bandeira. O poeta extrai a poesia que est prisioneira nas coisas, d-lhe autonomia, individualiza a sua existncia.

    Quem que poderia imaginar que a poesia est, por exemplo, no monlogo suposto de uma prostituta, que um belo dia sente-se paralisa- da, os sentimentos ntimos predominam sobre a rotina profissional, e ela cai em melancolia reflexiva e potica? Mais uma vez, algum descobre a plvora: Chico vai buscar a poesia que existe na voz dos deserdados, dos que no deram certo, dos dilacerados, dos aparentemente realizados. E es- sa voz particular, relatando uma experincia alheia nossa, acaba tendo uma continuidade dentro da gente. Tem qualquer coisa que liga a voz e as confisses de uma prostituta a qualquer um que leia o poema, pois este facilita os elementos para a comunicao: a misria humana posta em cena, mas numa situao em que o lado humano, de integridade e harmo- nia da pessoa, predomina sobre a alienao. Predomina sobre tudo o que degrada a liberdade interior das pessoa .

    A poesia de Chico Alvim humanista neste sentido com que pro- testa contra os efeitos desumanos da engrenagem social sobre a integrida- de e a liberdade do indivduo. uma poesia que preza, acima de tudo, a autonomia do indivduo, e, neste sentido, liberal sua moda. Um libe- ralismo que incorpora a sensualidade e o prazer como ingredientes ime- diatos, que pedem manifestao imediata na experincia e na forma. Inde- pendncia de todas as faculdades do sujeito. Respeito imediato do indiv- duo por si mesmo. No caso do poeta, do artista em geral, ento nem se fala. A integridade artstica faz parte da integridade humana. E a integrida- de humana uma arte. A liberdade do artista, de atitude e de criao, uma exigncia imediata e um pressuposto. Algo que, se faltar, deixa a coisa sem parte de sua sustentao. A liberdade de criao algo que faz parte integrante da prpria identidade da coisa artstica. De pressuposto da cria- o, vai reaparecer no resultado final, a obra acabada, o poema. Tem qual- quer coisa no prprio poema, no poema feito com liberdade e arte, que pura arte e liberdade. Todo poema bem realizado, feito sem concesses, belo e livre. Por isso verdadeiro. convincente. Algo que a gente l e sente que est diante da revelao de uma verdade. Uma verdade sone- gada, pressentida, pactuada, mas que o poema traz tona. O poema uma viagem do subterrneo luz. A poesia quebra um pacto, rompe uma cum- plicidade consigo mesma e com o leitor, e ilumina um ponto delicado qual- kkkoko

    Cf. "Certa impessoali- dade caracterstica", Ma- chado, vol. III, p. 820.

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  • O POETA DOS OUTROS

    quer, s vezes um conchavo, um tabu. A poesia, por ser livre, desfaz o pac- to. Rompe a cadeia de cumplicidades. Um certo mal-estar s vezes provm da, do clima nascido com a quebra do pacto. Chico, sua moda, since- ro, diz a verdade.

    Quem que poderia imaginar que a poesia pode existir num dilo- go banal de restaurante, entre fregus e garom?

    ALMOO

    Sim senhor doutor, o que vai ser?

    Um fil mignon, um filezinho, com salada de batatas

    No: salada de tomates

    E o que vai beber o meu patro? Uma caxambu

    O segredo de um poema como este parece estar na quantidade de experincia que acumula, algo que surge na forma de hbito formado, de costume. Como no gesto social do garom, simptico, mas tambm sub- misso e instrumentalizado. O esteretipo colhido ao vivo, no seu nas- cedouro. A cena muito ntima, passa-se entre duas pessoas. Mas a media- o social, com os seus lugares-comuns, seus gestos cristalizados, sua face reconhecvel, do generalidade e impessoalidade ao poema. Existe toda uma histria contida neste "sim senhor doutor" e neste "o meu patro". Algo como a confirmao de um hbito, sua sedimentao, numa sntese de relacionamento onde tudo transparente: o garom o garom, o fre- gus o fregus. Ambos tm os seus comportamentos e as suas falas res- pectivamente adequados posio social de cada um. de se notar o as- pecto de transparncia do poema: no h qualquer mediao retrica , o apego a qualquer automatismo estilstico, nada: a cena mostrada ao vi- vo, diretamente, com economia de meios, apenas o suficiente que d para o reconhecimento cordial da situao. A poesia, a, estava contida dentro da fala humana. O humor do poema vem da sensao de reconhecimen- to: como se reencontrssemos algo que na verdade nunca vimos ou ou- vimos. Mas que muito parecido com o que vemos e ouvimos. So os gestos sociais j sedimentados, frutos de um hbito que levou tempo se formando. E um hbito bem brasileiro, onde a criao de relaes e servi- os modernos esbarra nas sutilezas do paternalismo, e se desequilibra. O garom no se limita a ser correto: solcito, alm de velhaco. Algo de visguento penetra a relao: uma camaradagem, uma cumplicidade. E tu- do em proveito das partes. Tudo familiar, reconhecvel, singelo. Garom e fregus so velhos conhecidos, mesmo que estejam se encontrando ali pela primeira vez. Quase todo encontro na verdade um reencontro. a fora de generalidade que h no gesto social cristalizado.

    A maioria dos poemas do Chico poderiam ser dramatizados, leva- dos ao palco. Porque so vozes. sempre um dilogo, um monlogo, uma kokokoko

    Falta de mediao ret- rica cf. Chico, "Eu que presto" ("Folha") " possvel fazer poesia sem se recorrer metfo- ra?"

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  • NOVOS ESTUDOS N 22 - OUTUBRO DE 1988

    cena perfeitamente representvel. A identidade dos personagens em si mes- mos no interessa: o que conta o gesto social, a quantidade de regulari- dade e constncia contidas na singularidade de uma cena cotidiana, an- nima e prxima. O hbito para Chico Alvim, como tambm para Macha- do de Assis, uma segunda natureza. Algo que ganha substantividade e pe- netrao na vida dos indivduos. Algo objetivo e aparente.

    OBRIGAO

    A gente tem que se acostumar

    Depois que nos acostumamos, as coisas ficam mais fceis: todo so- frimento minorizado. O hbito distrai da opresso, da humilhao, do desconforto. Os costumes vigoram porque facilitam a vida; so um nexo simplificado e fluente no trnsito cotidiano. Algo que j foi testado muitas e muitas vezes, e que j deu certo muitas e muitas vezes. O hbito este gesto que facilita a vida , por seu automatismo exterior tambm fonte de alienao: faz o indivduo embarcar numa representao estereotipa- da. Num movimento exterior e impessoal que tende a anular a espontanei- dade e a interioridade do sujeito. Como neste outro poema:

    OBRIGAO

    No questo de gostar de ter de ser

    O arbtrio cede lugar ao primado do fato. A vida das pessoas regi- da menos pelas convices ou princpios do que pela presso dos fatos. E, diante disso, resta a formao do hbito, o lento aprendizado e conv- vio com as relaes que nos infelicitam, que nos deformam e limitam. O hbito d naturalidade e desembarao s relaes. E a constncia do hbi- to acaba criando o hbito do hbito. Depois a pessoa no consegue mais mudar, torna-se sempre semelhante a si mesma. o peso morto, porm ativo, da tradio sobre a vida presente, onde a tradio vira limite. A poe- sia do Chico, ao trazer para a cena a questo do hbito socialmente forma- do, mas individualmente vivido, nos ensina uma coisa preciosa: que ne- cessrio sempre se desabituar do hbito. Desaprender, dissolver os esque- mas na experincia vivida, no saber exatamente como ser o dia seguin- te. Deixar uma ponta da vida solta, livre, como uma antena, uma bandeira, um radar. preciso assimilar as coisas novas, a experincia emergente, aqui- lo que est em vias de constituio. O lado vivo da vida. Desaprender deixar fluir. A fluidez plena de tudo, do sujeito, do objeto, da relao entre ambos. Um gamb cheira o outro, um cachorro cheira o cu do outro. To- do mundo se cheira, se fareja, procura de algo, de informao, de afeto, de qualquer coisa que supra uma carncia. Na ausncia dos hbitos estra- kkkkkkkkkkkkkkkk

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  • O POETA DOS OUTROS

    tificados, o fluxo da experincia aberta revela a precariedade de tudo, a carncia da vida e de suas perspectivas. A carncia gera o fluxo; o fluxo expe a carncia. A fluidez torna-se um modo de ser, e o poeta, sem tem- po e disposio de levar vida sistemtica de escritor, torna-se um repentis- ta. Improvisa. Desenvolve mtodos, prepara-se, mantm todos os sentidos funcionando como antenas ultra-receptoras. O poeta torna-se um porta- dor de tcnicas especiais de obteno do poema. O poeta, mesmo estan- do distrado, deve ser capaz de surpreender o poema no local e na hora em que ocorra. A ateno do poeta distrada . E sua distrao atenta. O fenmeno do poeta-desentranhador foi comentado por Mrio de Andrade, a propsito da questo esttica da catarse. Mrio dizia que a ca- tarse era mais geral que o fenmeno artstico, e que era possvel um sofri- mento com dor diante de um fato esttico; como tambm um sofrimento sem dor esttico , diante de um fato real: notcia de jornal, futricas em geral. O exemplo que dava era Manuel Bandeira. Dizia Mrio: "E com efeito h quem sinta poesia (...) numa notcia de jornal, ou caso da vida alheia. Manuel Bandeira tem um Poema Tirado de uma Notcia de Jornal, que est entre os mais intensamente, mais particularmente Manuel Bandei- ra da sua obra. O poeta, como os que se inspiram em notcias e dramas da vida real, alm do sofrimento com dor pela infelicidade alheia, se aper- cebe com intensidade dinmica criadora, do estado de catarse, de sofri- mento purgatrio mas sem dor, enfim, do estado esttico em que esto, e o realizam na obra-de-arte".

    "Eu que presto": "a escuta do poeta distrada".

    POEMA TIRADO DE UMA NOTCIA DE JORNAL

    Joo Gostoso era carregador da feira livre e morava no morro da Babilnia num barraco sem nmero.

    Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Danou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu

    afogado.

    Mrio de Andrade v o problema mais pelo lado do sujeito esttico, comenta e elucida as suas intenes diante do fato. J Manuel Bandeira pe- ga a coisa pelo ngulo do objeto, para situar o sujeito: "o poeta um su- jeito que sabe desentranhar a poesia que est escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos. A poesia que h em tudo, porque a poe- sia o ter em que tudo mergulha...". O poeta o sujeito capaz, por um mtodo qualquer, de trazer tona, de tornar aparente esse ter que h em tudo, de que tudo est contaminado. O poeta deve sempre poder diagnos- ticar um estado de poesia, um sintoma desse ter raro e onipresente. O poeta detecta o sintoma, e a seguir procede como quem desobstrui uma kokokoko

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    passagem, como quem limpa um terreno, particularizando no tumulto co- tidiano aquela determinada cena, dilogo, troca de olhares, instante fugi- dio que o poema tenta fixar e reter. O poeta ajuda o poema a nascer, o seu parteiro. Mas esta operao depende de tcnica, e o poeta, por meios que lhe so prprios, extrai daquele estado latente o seu ncleo propria- mente potico, duradouro. O poeta usa de tcnicas que so formas de apro- ximao. necessrio cautela e ousadia. Senso de iniciativa e preciso. O poeta corre muitos riscos. So os riscos de todo repentista que no traz a lio inteiramente decorada, que capaz de reagir dessa ou daquela for- ma conforme as circunstncias solicitarem, de incorporar as sugestes do instante e da paisagem. O poeta-desentranhador fica na escuta. E fica de olho.

    COM ANSIEDADE

    Os dias passam ao lado

    o sol passa ao lado

    de quem desceu as escadas

    Nas varandas tremula o azul de um cu redondo, distante

    Quem tem janelas

    que fique a espiar o mundo

    2.

    Essa poesia, que tanto v e tanto ouve, que tanto revela, tambm esconde. Faz vista grossa e ouvidos de mercador. H qualquer coisa de mui- to significativo que a poesia do Chico cala, silencia. Que coisa essa? uma coisa no dita inseparvel da dita, uma espcie de extenso verdica, mas no formulada, sendo possvel ao leitor apenas fazer conjeturas. O leitor transformado em detetive: formula hipteses, levanta possibilida- des, estabelece associaes, investiga indcios.

    POEMA

    Pelo amor de deus deixa eu ir no no vai no voc est me matando mas ali voc no vai

    141

  • O POETA DOS OUTROS

    Que papo este? Quem so estes personagens? O que est, afinal, acontecendo? S dispomos de vestgios, de pistas. uma tragdia? Uma comdia? literal? figurado? Diante dessas indagaes todas predomina o sentimento de um certo mal-estar. Mal-estar de quem, de simples leitor, foi transformado, revelia, em testemunha e cmplice. Mas uma testemu- nha cheia de indagaes e dvidas. O que aconteceu logo antes? E logo depois? E durante? Em que p as coisas ficaram? Em torno dessas pergun- tas todas, o silncio, as reticncias, a impossibilidade de aprofundar as in- vestigaes, de seguir uma pista at o fim . Mas, no processo de indaga- es a que o leitor induzido, acaba virando-se para dentro de si mesmo, numa espcie de transferncia intuitiva para dentro de sua prpria expe- rincia, num vo de liberdade que a fruio do poema propicia.

    Apesar do aspecto literal e transparente de suas vozes, a verdade do poema parece flutuar sobre um poo sem fundo, vertiginoso e sugestivo. E aqui chegamos naquele ponto em que o poema passa do tema para o assunto, segundo a distino de Mrio de Andrade. o momento de reali- zao da transcendncia potica. Para Mrio de Andrade, "o destino pri- meiro e imprescindvel do poeta consistir nisso de conservar a palavra em sua vagueza individualista de significao, lhe retirando em proveito do seu assunto, o menos possvel de valor associativo, sugestivo e musical (...) Para se realizar o fenmeno 'poesia' tudo est em conservar s pala- vras a fluidez originria". O assunto de um poema tudo aquilo que ele fala, mais aquilo que ele no fala mas est sugerido, insinuado, num trans- bordamento de perspectivas e direes que colocam o leitor num estado lrico de efuso, essencialmente dinmico, que lhe permite a imediata e completa identificao com o poema, a ponto de se substituir a ele. Ao passo que o tema supe o emprego da palavra no seu sentido exato, e a supresso da qualidade musical e meldica do poema. O tema mantm o leitor preso experincia pessoal do poeta, confinando-o sua inteli- gncia lgica, a um estado por demais consciente e comparativo, um esta- do discente de aprendizado. O exemplo dado por Mrio exemplar: "A paisagem de Varela est para a de Castro Alves na mesma distino que vai do assunto ao tema. curioso mesmo observar a pobreza temtica de um poeta to paisagista como Varela. Este, sim, possua realmente o senti- mento da natureza, de maneira que o assunto lhe ocorre com freqncia: a natureza, a paisagem. Se ele fala numa brana esta podia muito bem ser carvalho, ao passo que em Castro Alves a gente percebe que a brana brana mesmo. Exigncias lgicas de nomenclatura, palavras sem fluidez. Castro Alves varia a sua temtica paisagstica de maneira to realista, o por- menor difere tanto de uma para outra paisagem, que a melhor concluso a se tirar ele estar descrevendo paisagens reais que viu mesmo e que vi- veu. Varela se repete, repete os pormenores, rara a sua paisagem que no tenha uma cascata, de forma que s podemos concluir sofrer ele uma atra- o enorme pela natureza e ser particularmente sensvel a cascatas. Assim a cascata de Varela um mistrio psicolgico que interessa desvendar; ao kokoookok

    O poeta segue pistas

    sem deixar pistas. E um detetive que no se deixa investigar.

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  • NOVOS ESTUDOS N 22 - OUTUBRO DE 1988

    passo que a brana de Castro Alves uma pobre realidade". Esta citao nos reporta ao processo como Chico Alvim, na sua viso paisagstica, pas- sa para o assunto, se repetindo, repetindo os pormenores, tendo tambm seus mistrios psicolgicos a desvendar. Sobre a viso paisagstica do poe- ta, voltaremos depois. Mas, mais curiosamente ainda, Chico passa para o assunto se utilizando de personalidades annimas, alheias, supostamente exteriores. Mas vimos que o assunto implica um primado da personalida- de, do arbitrrio pessoal, sobre a obra-de-arte. O assunto supe uma su- premacia da subjetividade. Esta a mgica sutil da poesia de Chico Alvim: se despersonaliza para melhor se personalizar. como o Manuel Bandeira do Poema Tirado de uma Notcia de Jornal que, segundo Mrio, dos mais genuinamente Manuel Bandeira de sua obra . Tambm Chico, quando se exterioriza numa aparente despersonalizao, est mais prximo de si mes- mo do que nunca.

    Num poema de registro aparente puramente informativo lemos

    Bandeira, "Pardais no- vos", obras Completas, p. 486 "Dos poemas que vo- c me mandou, o melhor est no prprio texto de sua carta...".

    CURRAL

    Dos 22 aos 26 no conseguia trepar melhorou mais ou menos depois que foi benzido na Capital voltou a passar mal hoje com 39 anos est aposentado (cardiopatia grave) se sente melhor mudou j come de tudo

    Nesta ficha biogrfica sumria, em tom objetivo e impessoal, existe excesso e falta. Quem esta figura? Ficamos sabendo, de sbito, coisas de sua esfera mais ntima e privada. Informaes subterrneas, at certo pon- to sigilosas em qualquer biografia. Sabemos da intimidade da pessoa, mas no sabemos quem a pessoa. Sabemos mais do que deveramos, j que se trata de um desconhecido para ns; mas sabemos menos do que gosta- ramos, dado o estado de aguamento de nossa curiosidade. Sabemos de- mais e permanecemos desinformados. De um lado, a informao indis- creta e surpreende; de outro, escassa e frustra. Essa regio de silncio que envolve o poema, mas um silncio grave e sugestivo, est tambm neste outro.

    143

  • O POETA DOS OUTROS

    LUZ

    Em cima da cmoda uma lata, dois jarros, alguns objetos entre eles trs antigas estampas Na mesa duas toalhas dobradas uma verde, outra azul um lenol tambm dobrado livros chaveiro sob o brao esquerdo um caderno de capa preta Em frente uma cama cuja cabeceira abriu-se numa grande fenda Na parede alguns quadros

    Um relgio, um copo

    De onde vem a transcendncia? Para onde vai o silncio? Neste poe- ma tem uma voz que dita coisa por coisa, sem pressa, tirando prazer da lentido, e que vai fazendo aparecer diante do leitor um caprichoso con- junto de objetos, cuja presena e justificativa parecem arbitrrias. Olhan- do mais atentamente percebemos que formam o contexto sensvel, deta- lhadamente especificado, de uma histria que no foi contada. O que foi que nos aconteceu na ocasio em que tivemos a viso to intensa e mar- cante daqueles objetos? Que inventrio este? H identificao plena en- tre a voz subjetiva do poema e a subjetividade individual do leitor: o poe- ma procede como se tivesse emprestado para o leitor a sua maneira espe- cial de ver e de ordenar as coisas. Mas o poema no descreve e nomeia as coisas como se apontasse o dedo para elas. A voz que nomeia no pre- cisa estar e certamente no est em presena dos objetos nomeados. So objetos que ficaram retidos na memria, que ficaram ecoando, e cuja no- meao evoca o clima moral de uma situao humana particular, sem que tenhamos acesso ao conhecimento de que situao foi essa. Conhecemos apenas o timbre moral que permeia a viso intensamente evocativa dos objetos que a experincia daquela situao fixou para sempre. No sabe- mos praticamente nada de uma situao da qual sabemos alguma coisa.

    3.

    O poeta-desentranhador se despersonaliza para melhor se persona- lizar. Este um passe de mgica do processo de individualizao de Chico Alvim, notvel sobretudo em seus poemas curtos. Vejamos alguns.

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  • NOVOS ESTUDOS N 22 - OUTUBRO DE 1988

    JANTAR

    Entre uma espada e outra espada entre uma manga espada e outra manga espada

    CASA

    Parei defronte. onde voc nasceu.

    JOANA

    Corao de galinha mdio? Os nmeros explodem?

    VIDA DE ARTISTA

    Meu tio levou a vida que sempre quis era funcionrio pblico e nem a mulher sabia

    VENTO

    Vem de repente um redemoinho um sopro de terra ocre coluna no azul um vento

    BRIGA

    Vou parar de falar vou fazer

    SOZINHA

    V ao cinema Com quem?

    145

  • O POETA DOS OUTROS

    FUTEBOL

    Eu acho Serginho muito medroso ele bom de bola mas muito medroso

    DOENTE O mundo se esconde longe bem longe as guas os ventos fugiram

    MOS TRMULAS Voc quer um? No, no adianta

    DIRIO O nada a anotar

    POEMA

    Olhar como se olham duas pessoas num caf qualquer de uma cidade entre o desejo e a lembrana de outro desejo

    DUAS DA TARDE Debaixo de um cu azul, azul saindo da faculdade soam sirenes a igreja e o aqueduto passam na janela so quase duas horas

    Este ltimo poema, Duas da Tarde, contm a marca registrada do autor: a capacidade de perceber o mundo na sua plasticidade e fugacida- de, que so efeitos sensveis da experincia que o poema retm e comuni- ca. A percepo sensorial, a perecibilidade do instante, a vida como remi- niscncia: esses so os efeitos dessa poesia que tendem a transportar o lei- tor para um estado anlogo ao seu, obrigando-o a uma instropeco, nu- kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

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    ma atitude evocativa e contemplativa. Recordar viver; e viver recordar. A luminosidade da gua; a umidade da luz. O poema Duas da Tarde tem como matria a contingncia, aquilo que evapora rpido, que foge, que no volta mais. A experincia to precria e passageira que mal temos tempo de sabore-la, de usufru-la, e j est morrendo. Decorre da, dessa vertigem, a detonao instantnea de um processo de recuperao e re- teno da experincia pela memria. A memria, na poesia de Chico Al- vim, no para uma visualizao apenas do passado, mas tambm e so- bretudo do presente. A memria experincia; e a experincia evocati- va. Parte do presente j passado... grande o senso da fugacidade, e dele emana um frescor e uma agonia. O poema retm impresses: visuais, so- noras, temporais, de movimento. So impresses de um momento fugaz, aparentemente desimportante, onde nada de especial aconteceu. Nessa con- cepo o especial o desimportante, o annimo, o igual a tudo e a todos. Todos os instantes so igualmente perecveis e pregnantes. Esta poesia re- vela uma capacidade de resgatar da corrente annima da experincia um ponto qualquer arbitrrio, elo perdido na cadeia do fluxo vivido. O poe- ma uma ao presente, algo que est fluindo: fluindo no espao ("saindo da Faculdade"); fluindo no tempo ("so quase duas horas"). A vida pre- sente movimento, fluxo. Do ponto de vista do poeta, o viver leva ao escrever; do ponto de vista do leitor, o ler leva ao viver. A poesia de Chico transmisso direta de experincia, transferncia de sensibilidade, mas sem as mediaes retricas e metafricas da chamada linguagem potica . A matria do poema sendo a contingncia annima e fugaz, sua lin- guagem tambm tender para a impessoalidade, algo aparentemente ao al- cance de qualquer um . O poema passa como se no tivesse autoria, ou fosse de autoria annima. E o leitor levado a vivenciar de tal modo o poema, que passa como se fosse o seu autor, ou sujeito daquela experin- cia que o poema particulariza. O que o poema estabelece com o leitor um contato, uma aproximao sensorial, um toque direto, onde tudo fluxo vivo isento de intelectualismo e mentao abstrata.

    A poesia sem metforas, cf. "Eu que presto" ("Folha").

    Cf. Drummond, sobre Casimiro de Abreu, "obras Completas", p. 514-515: "Ele o poeta que todos ns julgamos ser capazes de ser, se qui- sssemos."; "Quanto mais pessoal, menos particula- rizado."

    4.

    Fazer poemas que simulam a ausncia de autoria em Chico Alvim uma marca inconfundvel e pessoal. A questo da impessoalidade da auto- ria interessantssima na evoluo da poesia brasileira, e recentemente constituiu-se em fenmeno, tomando corpo na dcada passada . No m- bito do que se costuma chamar poesia marginal, houve um momento, que ainda repercute, em que a poesia tornou-se um banquete de que todos, indistintamente, se serviram. estabelecida uma espcie de competncia mdia, ao alcance de todos, e o vestibular literrio abolido. Para ser es- critor basta anotar, registrar, simplesmente escrever: todos participam. Neste movimento o peso maior est do lado do coletivo, o que tem como con- mokokok

    Nos primeiros momen-

    tos do Modernismo, os autores tambm eram "impessoais", o autor era "annimo".

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    trapartida uma notvel desindividualizao da autoria. O autor o grupo, o conjunto mvel e annimo. Cada poeta e cada poema so partes inte- grantes de um impulso organizador maior, onde todos so parceiros de todos, onde tudo se intercomunica e se completa, sem se esgotar. E neste contexto de desindividualizao, o grande lugar-comum potico foi o poe- ma curto. O de registro direto e breve, em tom coloquial, de uma expe- rincia, uma viso, uma sensao, uma comparao, uma fala, um non-sense.

    O poema curto, no quadro da poesia marginal de ontem e de hoje, foi aquela grande noite em que todos os gatos so pardos. O poema curto d a impresso, e h nisso um fundo de inverdade, de que de fcil reali- zao, abolindo as noes de competncia e especializao literrias. E se postando, democraticamente, ao alcance dos pretendentes. Quem que no capaz de registrar, sem compromisso e pretenso, qualquer coisa vi- vida ou observada, tudo ao sabor da ocasio e sem maiores delongas? Descobre-se que a poesia existe em tudo, e tudo pode ser poesia. claro que, num momento desses, do ponto de vista da poesia em si mesma, natural que haja um rebaixamento do nvel de qualidade artstica. Uma des- qualificao da arte. Mas esta desqualificao vai ter um peso muito relati- vo e um valor ttico, e em certo sentido passa a papel secundrio. O im- pulso geral de desindividualizao da autoria cumpria e cumpre uma funo-chave, de alcance na poesia brasileira: a abertura para a experin- cia emergente, para a atualizao da experincia. No entanto, dentro dessa desindividualizao, ocorre algo extraordinrio: uma enorme diferencia- o interior, toda uma escala com gradaes e direes diversas. Alguns poemas so verdadeiramente originais e bem sacados, sem prejuzo de "no terem autoria"; outros, tambm "sem autoria", no passam de diluio ra- la. Ambos os tipos, e mais aqueles que permanecem numa regio interme- diria, participam da mesma experincia de co-autoria, pertencem ao mes- mo texto coletivo, e neste sentido os seus pesos so equivalentes: tudo soma, tudo engrossa o caldo. Forma-se um caldeiro comum de todos, de onde todos tiram e pem, e dentro de onde no h hierarquias de aprecia- o formal e estetizante qualitativa.

    H gradaes e resultados distintos de realizao no interior do poe- mo annimo. E neste sentido notamos que mesmo no poema curto, on- de maior a margem de indeterminao e impessoalidade, mesmo a os traos pessoais penetram e configuram uma originalidade. Mesmo a, e so- bretudo a, as sutilezas da autoria devem estar presentes, e mais do que nunca so decisivas. Chico Alvim, que no geral j pratica uma poesia de estilo desindividualizado, no poema curto vai encontrar um veculo sob medida para as suas pr-disposies para o anonimato e o despistamento. Nas manifestaes recentes do poema curto o anonimato da autoria tem dependido mais de uma socializao da experincia potica do que de um empenho individual e direcionado. O poema curto, pra Chico Alvim, um prato feito: ali o despistamento condio de todo mundo, todo mun- kkkkkokokokoko

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    do escreve e ningum autor, o disfarce est socializado. Nada melhor do que um baile de mscaras, para o mascarado, se quiser, aparecer com sua prpria cara. Usar a prpria identidade como disfarce. No mbito do poe- ma curto, e sem prejuzo da impessoalidade da atitude e da linguagem, Chi- co Alvim introduz forte dose de pessoalidade. Quanto mais o poema pro- penso desindividualizao, menos o poeta chamado a se desindividua- lizar, marcando com sua personalidade, de forma indelvel, aquele momen- to esttico. Lendo os poemas curtos de Chico Alvim aprendemos que at para se desindividualizar, ou sobretudo para isso, necessrio perspectiva prpria e timbre pessoal. Isso tudo se considerarmos a massa dessa pro- duo marginal dos ltimos anos numa viso mais diferenciada e seletiva, e levando em conta a consistncia diversa e desigual do conjunto. Uma das causas dessa desindividualizao dos ltimos tempos a juventude de uma grande parte dos poetas. Os jovens, desinformados da tradio e sem muitas veleidades de carreira, tendem ao registro mais ou menos bruto da experincia, e quase sempre incorporando o jargo, a gria do grupo a que pertencem, o que um fator de identificao e coeso, alm de um limite. Gria de grupo, formas comunitrias e cheias de subentendidos, procedi- mentos em si mesmos desindividualizadores. Por outro lado, tambm se deve juventude de uma grande frao de poetas a incorporao no ape- nas de uma matria emergente, mas tambm de uma perspectiva emergente.

    Se pensarmos a poesia brasileira dos ltimos trinta anos, veremos que quase todos os poetas lembrados tero seus nomes associados a qual- quer alinhamento sistemtico, ou esttico ou ideolgico. Doutrinas pra todo lado. Muitos pertencem gerao de 45, outros esto ligados s vanguar- das concreta, prxis ou processo; outros ainda esto associados poesia de engajamento esquerdista. E esses vrios alinhamentos possuem repre- sentantes nas geraes mais antigas e tambm nas mais recentes. Valores individuais, desligados de faces e alinhamentos, sustentados apenas pe- lo desempenho errante e arbitrrio da poesia, isso coisa mais rara. Chico Alvim um valor individual, independente, alheio a credos e programas. Um poeta que escreve poemas e publica livros . No tem doutrina estti- ca, no tem justificativa ideolgica ou poltica, no faz carreira acadmica. um poeta na tradio forte do modernismo brasileiro, de valorizao da individualidade. Neste caso, sobrevive quem tem fora, o talento convo- cado. A tradio modernista prova de fogo para a realizao do talento; o fim da fraude potica que se insinua atravs de justificativas ideolgi- cas ou doutrinrias.

    Isso que no contexto da poesia dos ltimos anos foi um efeito e uma necessidade de socializao, o processo de atenuao da autoria, em Chico Alvim uma espcie de mtodo. O processo recente da poesia bra- sileira, algo sistematizado pela experincia social e que tende para a exem- plaridade e o anonimato, em Chico Alvim atitude direcionada e fator com- plexo de individualizao. quando a complexidade vira virtude. Chico Alvim se despersonaliza para melhor se personalizar, e para isso desenvol- kkoookkokokoo

    Chico o "fio da mea-

    da" (entre outros poucos valores individuais) restaura a tradio moder- nista, interrompida e esva- ziada a partir de 45, com sucessivas reaes anti- modernistas. A crise de ta- lento depois de 45 cf. Mrio Faustino, "Ceciliazi- nhas, Murilozinhos, etc." (dcada de 50).

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    ve um sofisticado sistema de tcnicas e procedimentos. No lugar de falar, ouvir. No lugar de submeter o leitor s mitologias pessoais do poeta, a ati- tude de quem observa e recolhe o que vem de fora, dos outros. Chico Alvim o poeta dos outros. "Sou todo ouvidos", como dizia aquele perso- nagem de Machado de Assis.

    5.

    Esta atitude de ceder a vez, que uma forma de improviso, nota- velmente complexa na sua transparncia aparente. Primeiramente, um gesto de cortesia. Num outro instante, forma de conhecimento. Num ter- ceiro momento, uma estratgia para disfarar a autoria. Cordialidade, in- formao, construo.

    Vejamos mais detidamente o primeiro aspecto. Alguns poetas so derramados; outros so contidos, metdicos; de tudo h um pouco. Mas todos se manifestam, dizem o que tm para dizer. Chico Alvim poeta de outro tipo: entre falar e ouvir, prefere ouvir. o poeta dos outros. Cede a palavra. Ausenta-se para que a voz alheia ocupe a cena e a ateno. Em matria de gentileza potica, o mximo que j vi, alm da demonstrao de desprendimento que d. A pr-disposio inicial do poeta a cortesia, a preocupao com o convvio social no sentido de torn-lo mais civiliza- do e transparente. O poeta viabiliza o trfico social. Prova que no se julga melhor do que ningum; que o que tem a dizer est em plano equivalente ou mesmo secundrio em relao ao que tem para ouvir e conferir. O poeta pe-se a ouvir, e ouve atentamente e de tudo. Ouve inclusive os outros poetas, e chega a ouvir at a si mesmo. O poeta no s se apropria do que dos outros, como pode transferir, para terceiros, o que seu. A poesia como via de mo dupla. Ceder a vez: essa atitude em si mesma simpti- ca, pelo despojamento e a modstia que comporta, contrariamente ao que costuma ocorrer, ou seja, o auto-exibicionismo muito freqente em poe- tas. Ceder a vez, em primeiro lugar, isso: boa educao. Gesto sensvel de sociabilidade, susceptvel para com a diversidade e a presena alheias. Uma maneira de facilitar o trfico e propor o relacionamento, abrindo mo inclusive da precedncia da palavra. O poeta d o exemplo. Uma atitude ao mesmo tempo elevada e segura de si; humilde e sbia.

    Ora, a partir do momento em que o poeta cede a palavra, alm da simpatia que atrai pela despretenso do gesto, ainda se abre para o conhe- cimento da diversidade social e humana. Como pr-disposio para o co- nhecimento, a atitude perfeita: o sujeito lrico torna-se transparente e no lugar de sua voz uma outra voz vem preencher a cena, nos comunicar al- go, e ao prprio poeta, que so informaes originais, acrescentamentos ao nosso conhecimento . Tudo que diz respeito experincia alheia nos interessa, pois a vida alheia um espelho da nossa, e aquelas vozes anni- mas que ali se pronunciam, em grande parte somos ns mesmos. Ao ceder a vez, a vaga deixada pelo poeta pode ser ocupada por uma prostituta, um kokokokokokokokokokokokokokokokokok

    Cf. a presena intelec- tual desse tipo de poesia" (R. Schwarz sobre Paulo Emilio).

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    garom, um embaixador, um funcionrio qualquer, indivduos de outras camadas, outras idades, categorias, inclinaes etc. A poesia dotada de porosidade. Atravs dos poemas ouvimos vozes e queixas reconhecveis, vozes sugestivas e sintomticas, ao mesmo tempo familiares como um co- chicho e inslitas como uma fantasmagoria. Assistimos ao desfile anni- mo de obscuros funcionrios, altas patentes, guardas, amantes, interme- dirios e atravessadores de vrios tipos, seres fragmentados e vulnerveis, cnicos, calculistas, resignados, ressentidos... A poesia de Chico Alvim pes- quisa o convvio social brasileiro em vrias direes; o poeta revela uma extraordinria mobilidade temporal e espacial, fazendo o trabalho de um reprter que percorre todos os locais e horrios, descobrindo, anotando, bisbilhotando, espiando, conferindo. O poeta pode ser um reprter, um detetive, um antroplogo, um curioso; pode encarnar as vozes mais prxi- mas e mais remotas. O poeta uma figura de transio, uma espcie de homem-ponte que estabelece comunicao entre setores distintos do con- junto social. O poeta vaso comunicante. Est com um p no mundo ofi- cial dos gabinetes e reparties, e o outro na cultura bomia e marginal. o poeta percorre espaos diversos, sociais, geomtricos, geogrficos, psi- colgicos. Vejamos alguns casos.

    MUITO OBRIGADO

    Ao entrar na sala cumprimentei-o com trs palavras boa tarde senhor Sentei-me defronte dele (como me pediu que fizesse) Bonita vista pena que nunca a aviste Colhendo meu sangue: a agulha enfiada na ponta do dedo vai buscar a veia quase no sovaco Discutir o assunto fume do meu cigarro deixa experimentar o seu (Quanto ganhar este sujeito?) Blazer, roseta, o pas voltando-lhe no hbito do anel profissional Afinal, meu velho, so trinta anos hoje como ontem ao meio-dia Uma cpia deste documento que lhe confio em amizade Sua experincia nos pode ser muito til no incmodo algum volte quando quiser

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    Aqui tem qualquer coisa de conchavo de gabinete, de conspirao que visa beneficiar as partes, e tudo transcorre num clima reverencial, on- de fica subentendida uma certa supremacia de um interlocutor sobre o ou- tro, sem prejuzo da complementaridade dos interesses e das sondagens mtuas. Uma hierarquia onde a desigualdade dos planos muitas vezes se perde nas sutilezas dos obsquios mtuos, nos salamaleques da escorrega- dia reciprocidade paternalista. A presso dos fatos torna as pessoas levia- nas; os arranjos mentais so flexveis, mudam ao sabor da ocasio e das convenincias. Mas h tambm os momentos de autocrtica e lucidez resignada:

    REVOLUO

    Antes da revoluo eu era professor com ela veio a demisso da Universidade

    Passei a cobrar posies, de mim e dos outros

    (meus pais eram marxistas)

    Melhorei nisso hoje j no me maltrato nem a ningum

    Uma fase da vida nacional, obscura e recente, emerge desta fala. um Brasil sintomtico que se pronuncia, expondo mazelas. Num dado mo- mento o poeta se desloca para o meio da rua:

    VAI BEM DE PAQUERA?

    Na parada de nibus

    algum igualzinho a voc

    no vou mexer no

    Tou boa t boa? boaboa em que sentido? Andei muito mal fiquei com as juntas duras me benzi melhorei

    Porque voc ri tanto assim?

    mania?

    T grvida? Voc deixou algum aqui? Quem cuida de minha menina de 11 anos? (Eu no)

    Recordar o passado tristeza

    Vou l hoje

    Praquele hotel? T louco, l nunca mais Senti saudades te liguei tou magrinha

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    T gordinha? Liga pra mim ligaliga (Ligo no) Um beijinho

    Noutro instante est pelas madrugadas, nos bares:

    LUNA

    Quero arder na paixo suicida a voz me olha diz claridade do dia to esquiva de relance apenas percebida aragem das manhs distanciados os turvos sonhos, sentimentos um olho me ilumina me afagando falo de meu corpo livre derrotado

    E no momento seguinte j pode estar na praia:

    PIER

    Em certa hora h um incndio de cobre nas pilastras

    Toneladas de azul vermelho terroso amarelo bulldozer

    Na praia corpos passeiam varados de luz

    O cotidiano, na perspectiva de Chico Alvim, concebido como um palco de equilbrio precrio, onde o triunfo de uns implica a derrota de outros; onde as conquistas so desqualificadas por perdas subseqentes; onde o relacionamento humano apresentado na forma de um confronto. lololo

    O DESEJO

    O desejo faz o cavalheiro ao lado pr o p na poltrona fingir que est vontade

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  • O POETA DOS OUTROS

    Mas o outro cavalheiro que levou a melhor: tem o desejo da moa prisioneiro de si

    O poema revela a inutilidade e o ridculo do fingimento e da pose exterior com que disfaramos nossas frustraes, fracassos, pequenas e do- lorosas derrotas cotidianas, nossas aspiraes profundas e inconfessveis.

    VIVA Lus me amava muito muito mesmo apesar de suas amantes foi por isso que nunca me separei

    O amor sincero possvel, alm de apreciado, mas adltero e desigual.

    AFRONTA

    O Senhor Mauro Alonso recusou-se a receber a medalha com que fora agraciado diz o diploma por servios de menor relevncia

    Novamente: por servios secundrios, receber medalhas prova de distino e mrito. Mas este s reconhecido para realar sua desimpor- tncia e humilhar a pessoa. O mrito compensa a insignificncia; o orgu- lho (a recusa) compensa a humilhao. Nenhuma conquista integral; ne- nhuma degradao completa.

    MALDADE

    Maldade a gente no se ver nunca mais

    Se as pessoas se vissem, no haveria maldade; mas provvel que tambm no houvesse o poema. A maldade propicia o poema; o poema compensa a maldade.

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    O MILAGRE EST NAS RUAS

    Na porta do elevador nos encontramos e ele me disse que h meses procurava trabalho Eu que chegava atrasado como de costume medrei: meu deus hoje que me jogam na rua

    A poesia de Chico Alvim tematiza o universo brasileiro, uma buro- cracia semiparasitria que combina as sutilezas da dependncia paternalis- ta com a instabilidade e dureza da competio moderna. A vida institucio- nal assimila todos os expedientes dos tempos, em matria de rigidez buro- crtica e fetichismo da tcnica, e ao mesmo tempo conserva o rano e a eficcia do autoritarismo paternalista. As pessoas trocam favores, se aco- modam umas s outras, se acomodam s circunstncias. Esto sempre fa- zendo conjeturas, e se desencantando. A dose de desiluso que h nessa poesia arrasadora, mas uma desiluso do tipo instrutivo, que ilumina e orienta. Mas que no consola.

    O universo humano de Chico Alvim troca cuidados e atenes, mas est irremediavelmente antagonizado. Existe solicitude, mas o confronto implacvel. Em todo caso, necessrio ter trnsito, circular, conviver, e s nos resta desenvolver os procedimentos adequados, que viabilizam e garantem nossa insero social. preciso ter jogo de cintura, esprito refletido, senso de ocasio e das aparncias. Dentro deste caldeiro os ana- cronismos pululam, as preferncias e opes so revogveis, as convices so contingentes, as contingncias fazem as regras. Os personagens de ca- rter firme e constante so a exceo da regra, e pagam o tributo do isolamento:

    AVENTURA E ROTINA

    Nunca empregou um parente cobrador voraz de subsdios

    se faz de morto

    para melhor comer os vivos parentes s os dentes

    que assim mesmo

    mordem a gente s andava em linha reta

    Neste caso, "s andar em linha reta" serviu para no proteger a fa- mlia, o que significa iseno e progresso crtico da atitude; mas serviu tambm como tcnica de instrumentalizao das aparncias, "para melhor comer os vivos". No se deve confiar em ningum, nem nos parentes, o que significa a pulverizao do crdito familiar e o mergulho no horizonte lklklkoko

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  • O POETA DOS OUTROS

    sem sada, ou de sada degradante, da instrumentalizao moderna. O sal- do final um vazio; um nada. Em quase todas as situaes retratadas, algo se perde irremediavelmente. A imposio dos fatos restringe a manifesta- o natural do arbtrio e da vontade. A fora da coero social subordina a vontade, reprimindo-a; mas isso condio para o convvio, para a adap- tao social. Em certos poemas se exprime uma determinao da vontade, mas neste caso algo se rompe e isola o sujeito:

    BRIGA

    Vou parar de falar vou fazer

    Em outros casos a precariedade da atitude coerente vem exposta num cinismo que metade se mostra, metade se oculta:

    FRASES FEITAS

    A ele disse no sou rico mas tenho alguns cristais Viu que eu continuava srio A gente no deve se sujar por pouca coisa

    Do mesmo modo que contra fatos no h argumentos, tudo tem o seu preo. Aqui a ambigidade do efeito um equilbrio sutil. O senti- mento de honra existe, e deve ser preservado, mas s at o ponto em que no entra em conflito com o preo que julgamos estar altura de nosso merecimento. A crtica vai para o barateamento das aspiraes, e no para o risco de sua integridade. Essa atitude supe o cinismo como aparncia assumida; ou melhor, confere ao cinismo, como s aparncias em geral, uma funo pragmtica, de expediente do qual se tira algum proveito. Alm de ser uma maneira de fazer fluir o trfico social. A moral desejvel e necessria, mas no deve atrapalhar o pragmatismo; o cinismo s con- denvel se no for assumido nem propiciar ganho. O mundo visto na perspectiva da instrumentalizao universal de tudo e de todos, e neste estado de coisas s resta a salvao individual pela despolitizao da vida e a posse do dinheiro. A alienao total o reino da pseudofelicidade.

    6.

    O aspecto solcito, zeloso de si mesmo e da susceptibilidade alheia, a nfase nas mincias e variaes do comportamento em convvio, talvez expliquem o prprio mtodo de Chico Alvim, de ceder a vez. Isso que matria de seus poemas tambm o seu princpio formal. A gentileza uma tcnica.

    Novos Estudos CEBRAP

    N 22, outubro de 1988 pp. 135-156

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