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caderno 001 - jorgebarretoxavier.com · Chega de Querelas ... A importância que se deve atribuir à cultura não depende do conceito escolhido. Ou, dito ... algo que só o homem

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1. Marco Internacional .........................................................................................................................

2. Chega de Querelas ...........................................................................................................

3. Interação de Mundos ...................................................................................

4. Lugar do Diálogo.......................................................................

5. Território Livre .......................................................

6. Espaços de Imaginação ........................

7. Ação Transformadora ..........................

8. Políticas de Integração .........................................

9. Modos de Ser, Fazer, Viver.....................................................

10. Perdendo o Medo.........................................................................................

11. Demolindo Muros ........................................................................................................

12. O Próximo Fórum, Como? ................................................................................................................

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.............................................................................................................................................................6

...........................................................................................................................................40

........................................................................................................................... 64

........................................................................................................ 98

.................................................................................... 138

................................................................... 156

................................................................... 178

...................................................................................... 200

...................................................................................................... 220

........................................................................................................................238

......................................................................................................................................... 266

........................................................................................................................................................ 286

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JOSÉ

José, de Carlos Drummond de Andrade - in JOSÉ & OUTROS, Editora Record, Rio de Janeiro, RJCarlos Drummond de Andrade (c) Graña Drummond - Brasil

www.carlosdrummond.com.br

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio – e agora?

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde?

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A importância que se deve atribuir à cultura não depende do conceito escolhido. Ou, dito

de outra forma, todos os significados que possamos dar à palavra carregam consigo, e em

separado, um valor próprio e necessário.

Num primeiro momento, porque assim concebida historicamente pela civilização greco-

romana, a cultura significa o refinamento das capacidades sociais e simbólicas, algo que só

o homem já demonstrou possuir (ainda que nem sempre): reflexão sobre o mundo que o

envolve, sobre si e sobre o sentido de sua existência; construção de uma vida ao mesmo

tempo boa – eticamente comprometida – e bela – esteticamente elaborada.

Se, em segundo lugar, entendemos a cultura como um processo contínuo, situado entre

o nascimento e a morte, e que conduz o ser humano a realizar-se subjetiva e objetivamente,

então ela já sintetiza, por si só, a totalidade das manifestações materiais e espirituais, seja

as do indivíduo, seja as da sociedade.

Sob esse aspecto, a cultura exprime o modo absoluto de vida que resulta das interações

entre o que há de biológico ou inato e o mundo artificialmente construído e humanizado.

Logo, ao nos pronunciarmos sobre a cultura, falamos, inevitavelmente, de nossa existência

inteira, já que nada se encontra fora de seus limites – o modo imediato de produção

econômica, as relações políticas e sociais, a distante influência do zodíaco para a astrologia

ou os desígnios de Deus para as religiões.

Desse entendimento surgem dois outros de considerável interesse para a vida nacional ou

cotidiana e para as relações internacionais: trata-se das conseqüências trazidas por uma

visão marcadamente etnocêntrica ou, ao contrário, inteiramente relativista de cultura.

No primeiro caso, corre-se o risco de uma exasperada reivindicação e imposição dos

próprios caracteres distintivos, chegando-se facilmente ao racismo e, não poucas vezes,

ao genocídio. No segundo, quando também levado às últimas conseqüências, chega-se à

impossibilidade de se estatuírem normas universais de conduta, o que permite aceitar, em

nome da singularidade, a atitude bárbara. Em um mundo que se globaliza desde o

“(...) a cultura exprime o modo absoluto de vida

que resulta das interações entre o que há de

biológico ou inato e o mundo artificialmente

construído e humanizado (...)”

11

“Reconhecer essa dialética (...) deve ser a marca de nossos

esforços”

Danilo Santos de Miranda -Presidente do Conselho Diretor

Renascimento, essas questões adquirem uma relevância

inadiável, pois delas depende um destino que se configura

gradativamente comum ou, pelo menos, compartilhado.

Se o multiculturalismo constitui uma forma racional de

constatar não a igualdade, mas a diversidade, e sobretudo a

dignidade das culturas, reconhecendo portanto seus direitos

à existência, então o seu fundamento está necessariamente

enraizado no conceito de universal. Mas este aqui, ao incluir

as formas coletivas das relações materiais e simbólicas,

pressupõe a existência única e o respeito ao indivíduo. Logo,

o multiculturalismo somente se afirma desejável se, antes

de tudo, brotar da fidelidade e da dignidade ao que é pessoal.

Reconhecer essa dialética, em que a cultura representa o

elo de ligação entre o subjetivo e o universal deve ser a

marca de nossos esforços e a de um Fórum Mundial como

o aqui realizado.

12

Podemos ler este caderno como uma publicação das idéias centrais que resultaram da I

Conferência Global do Fórum Cultural Mundial realizado em São Paulo, de 26 de junho a 4

de julho de 2004. Podemos também entendê-lo como a seqüência no processo de um

diálogo permanente entre as comunidades em rede articuladas em torno do Fórum.

Nesta publicação, buscamos estabelecer uma narrativa estruturada a partir de perguntas

que organizam blocos de conteúdo, fomentando diálogos, contraposições, respostas a

perguntas e perguntas sem respostas.

Por meio de extratos de falas e discursos dos participantes de mesas, debates, plenárias e

conferências da Convenção Global - respeitando as particularidades e características das

línguas e dos modos de falar de cada um deles -, buscamos apresentar uma visão ampla

de alguns dos principais temas discutidos, focados na interação entre os países do chamado

Sul-Sul. Lembrando que os trechos editados foram retirados de transcrições que,

futuramente, serão lancadas integralmente em CD-ROM e, também, via internet.

Acreditamos que o caderno e o CD-ROM devam estimular o processo permanente nas

instituições de governo, na sociedade civil, nas universidades, entre os grupos de arte,

acerca da necessidade de um entendimento global baseado no respeito à diversidade, ao

meio ambiente, estimulando o desenvolvimento e a construção da paz por meio da cultura.

Os processos do Fórum estão sendo instalados gradativamente. Já temos um grande

envolvimento e trabalho conjunto com os países da América Latina, Caribe e África, com

fortes laços de cooperação, sendo estabelecidos no Oriente Médio e Ásia. Podemos ressaltar

também a cooperação crescente com instituições da Europa e América do Norte.

Sob a liderança do Ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil, os processos do Fórum

Cultural Mundial pretendem se instalar no Continente Africano para o biênio 2007-2008,

quando teremos a III Convenção Global em um país deste continente. A II Convenção

ocorrerá ainda no Brasil, sendo sediado no Rio de Janeiro, entre 19 e 23 de julho de

2006.

Esperamos que este caderno, publicado em quatro línguas, contribua para o fomento das

“(...) buscamos apresentar uma visão ampla de

alguns dos principais temas discutidos, focados

na interação entre os países do chamado Sul-

Sul.”

13

São surpreendentes a adesão, a confiança e o esforço

cooperativo das instituições e pessoas em torno dos

programas e processos do Fórum Cultural Mundial. Num

mundo onde a tônica é o conflito, os desentendimentos e a

desesperança, é animador ver o esforço participativo, a união

e o desejo de trabalhar conjuntamente permanecerem vivos

durante tanto tempo.

A verdade deste Fórum é esta: o trabalho voluntário, o

entusiasmo das organizações nas diversas regiões, a adesão

da juventude, o desejo de uma cooperação sincera baseada

em valores éticos e democráticos.

Ruy César Silva - Diretor doInstituto Cultural Casa Via Magia

discussões e da cooperação em torno das idéias do Fórum.

Foram meses de trabalho árduo, com transcrições, leituras

e seleção de textos. Todo este trabalho contou com a

dedicação extrema de colaboradores do Instituto Casa Via

Magia, aos quais quero agradecer nominalmente: Luciano

Matos, Lívia Pacheco, Raquel Salama, Ana Luz e Rose

Vermelho. Agradeço também o suporte técnico e conceitual

de Ivan Giannini e de toda a equipe do Sesc-SP, e de Roberto

Malta e os demais diretores da Rede Brasil de Produtores

Culturais, assim como ao Conselho Diretor e aos Conselhos

Regionais, aos dirigentes das redes e dos organismos

internacionais que dão suporte às atividades e idéias do

Fórum, ao Ministério da Cultura do Brasil e a todas suas

secretarias.

“Num mundo onde a tônica é o conflito, os desentendimentos e a

desesperança, é animador ver o esforço participativo, a união e o

desejo de trabalhar conjuntamente permanecerem vivos durante

tanto tempo.”

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18Este Fórum Mundial Cultural coloca São Paulo e o Brasil no centro da discussão sobre a

importância única da cultura no mundo contemporâneo.

Quero dizer a vocês que a cultura é, por isso, uma das prioridades do nosso governo.

Elemento inigualável de expressão e afirmação humana, tanto do indivíduo como dos

grupos, a cultura nos singulariza como criaturas no universo.

Ao mesmo tempo, a cultura e a produção cultural devem ser também encaradas como

fatores de geração de renda e emprego, de inclusão social, de cidadania, de crescimento

individual e coletivo, e de inserção soberana no processo de globalização.

Nessa dupla condição, o homem público não pode desconhecer o papel fundamental que

a cultura e a produção cultural desempenham no contexto das negociações econômicas e

políticas de nossos dias, tanto na vida interna dos países como nas relações internacionais.

A acelerada integração econômico-financeira e a circulação de bens e serviços em escala

mundial têm levado a uma crescente padronização cultural. É preciso reorientar esse

processo.

A inserção digna de um país no mundo demanda, essencialmente, a valorização da

diversidade cultural e o fortalecimento da identidade nacional. O governo brasileiro tem

consciência desse fato e age concretamente nesse sentido.

Através do Ministério da Cultura, procuramos criar as condições necessárias não só para

democratizar o acesso à cultura, mas também para garantir a mais ampla expressão cultural,

tanto individual quanto coletiva. Com isso valorizamos a identidade e a diversidade cultural

deste país, tão rico e variado nas manifestações de nossa gente.

Incluímos a cultura, pela primeira vez, como uma das seis dimensões estruturais do

desenvolvimento nacional contempladas no Plano Plurianual do governo. Também

incorporamos uma visão ampla e transformadora de cultura, vista agora não só como

expressão simbólica, mas como direito do cidadão e fator de desenvolvimento.

Vou dar alguns exemplos concretos das nossas ações:

Ainda esta semana – e eu quero convidar a todos que estão aqui, mas, sobretudo os

cariocas –, estaremos reinaugurando a Rádio Nacional, que teve um papel fundamental

para divulgação da música popular e da cultura brasileira por muitas décadas.

Certamente muitos artistas já não estão entre nós, mas eles serão lembrados neste ato. E

os que ainda estão vivos, nós esperamos contar com sua presença na reinauguração da

“a cultura nos

singulariza

como criaturas

no universo”

19

nossa querida Rádio Nacional, que os que têm a minha idade

ou um pouco mais sabem o papel importante que ela teve

na difusão da cultura brasileira.

Criamos o Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual, com

investimentos diretos de mais de R$ 30 milhões na produção

e na difusão de filmes e programas de televisão.

Na verdade, em relação ao audiovisual, fizemos o maior

investimento direto já realizado pelo governo federal num

mesmo ano: um aumento de 50% em relação à média dos

últimos 5 anos.

Aliás, em termos de recursos, não só elevamos em 70% o

orçamento do Ministério em relação a 2003 – orçamento

que nós herdamos – como aumentamos em 150% os

recursos disponíveis para o incentivo fiscal à cultura.

E fizemos isso democratizando as oportunidades e

promovendo um aumento geral em todas as regiões do

país em relação à média dos últimos quatro anos.

Na região Norte, o aumento foi de 636%; no Centro-Oeste,

de 106%, possivelmente porque não tenha sido aplicada

muita coisa nos anos anteriores; no Nordeste, 70%; no

Sudeste, 31%; e na região Sul, 47%.

Também incorporamos as diversas manifestações da cultura

popular e da cultura indígena nas nossas políticas

governamentais, e estamos implantando uma abrangente

política nacional de museus.

Em relação aos museus federais, investimos, em 2003, 25%

a mais – cerca de R$ 22 milhões – e vamos investir R$ 24

milhões neste ano.

Da mesma forma, temos participado ativamente de

importantes eventos internacionais. Nosso querido Gilberto

Gil, que para nossa felicidade é ministro da Cultura do nosso

país. Não é o governo Lula, mas é do Brasil. O nosso querido

ministro liderou o seminário Cultura e Desenvolvimento, que

reuniu, em Salvador, em março deste ano, mais de 180

artistas, autoridades e representantes das nações da

Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP.

Do Seminário resultaram propostas de intensificação da

produção e da circulação de bens culturais, reiteradas pelos

ministros de Cultura dos países de língua portuguesa,

reunidos em abril, em Maputo.

O ministro Gilberto Gil também dirigiu o Painel de Alto Nível

sobre “Indústrias Criativas e Desenvolvimento”, realizado na

Conferência da UNCTAD, aqui mesmo em São Paulo, no início

do mês.

Também neste mês aconteceu o 1º Festival de Cultura das

Três Fronteiras, envolvendo atividades simultâneas no Brasil,

na Argentina e no Paraguai.

E já estamos trabalhando para a realização do Ano do Brasil

na França, em 2005, que tem no diálogo cultural uma de

suas mais fortes dimensões. Nos fóruns multilaterais, temos

defendido a exceção dos bens e serviços culturais, que

merecem tratamento diferenciado.

Reativamos o Mercosul Cultural, impulsionamos a

Comunidade de Países de Língua Portuguesa e estamos em

negociações específicas com outros países em

desenvolvimento, como a Índia, a África do Sul, o México e

a Austrália.

“A inserção digna de um país no mundo demanda, essencialmente, a

valorização da diversidade cultural e o fortalecimento da

identidade nacional”

20

Temos a exata noção de que, ao mesmo tempo em que

são fontes permanentes de diversidade e identidade, as

culturas nacionais constituem também um elemento

essencial ao processo de desenvolvimento.

Estudos recentes da UNCTAD revelam que o valor global de

mercado das chamadas “indústrias criativas”, que era de

cerca de US$ 800 bilhões em 2000, deve alcançar US$ 1,3

trilhão em 2005.

Música, teatro, cinema, TV, rádio, livros, jornais, revistas,

programas para computadores, fotografia, arte publicitária,

moda, design – entre outros – são áreas de atuação que

apresentam um sem-número de oportunidades para

criadores de todos os países e que podem integrar de modo

mais pleno a cultura ao processo produtivo.

Paradoxalmente, neste mundo globalizado, quanto mais o

produto cultural for capaz de expressar a diferença e as

identidades locais, maior o seu valor e maior a sua vantagem

comparativa.

A busca dessa expressão cultural diferenciada representa

um desafio novo, sobretudo para os países em

desenvolvimento.

A uma ação diversificada no plano político e econômico deve

corresponder, portanto, um pluralismo cultural. Uma via de

mão dupla, na qual as culturas sejam receptivas à produção

externa e ofereçam condições de plena expressão interna.

Não podemos, contudo, ignorar que a produção cultural no

mundo é dominada por uns poucos e fortes oligopólios. Esse

fato torna ainda mais necessária a construção estratégica

de parcerias entre os países que aceitam o desafio de buscar

espaço para seus produtos e serviços.

Esse é exatamente um dos mais importantes objetivos desteFórum Cultural Mundial: possibilitar o conhecimento, ointercâmbio, a troca de experiências e a cooperação entrediferentes povos e culturas.

Minhas queridas e meus queridos, meus caros participantesdo Fórum Cultural Mundial:

Quero cumprimentar, em especial, o Ministério da Cultura, aSecretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, aSecretaria Estadual de Cultura; o SESC São Paulo e o InstitutoCultural Via Magia pelo belíssimo trabalho de organização deum evento dessa magnitude.

Ainda mais porque foi precedido por seminários regionais,redes de trabalho internacionais e pelo Fórum VirtualPermanente.

Saúdo efusivamente os delegados, representantes eministros da cultura dos países aqui presentes. Sejam bem-vindos a São Paulo e ao Brasil.

Criadores, intelectuais, acadêmicos, cientistas, educadorese agentes culturais dos mais diversos setores estão aquireunidos em busca de alternativas para o desenvolvimentodos povos no campo da cultura.

O governo brasileiro – tenham certeza – compartilha dosprincípios que orientam a realização deste Fórum CulturalMundial e está comprometido com os seus objetivos.

Que todos tenham um bom trabalho.

Muito obrigado.

Discurso do Presidente da República, LuizInácio Lula da Silva, na solenidade deabertura do Fórum Cultural Mundial Brasil2004 – São Paulo-SP, 29 de junho de2004

“a produção cultural no mundo é dominada por uns poucos e fortes

oligopólios”

21Vejo este evento como um território livre, sincrético em dimensão planetária de encontros,

trocas afetivas, políticas, econômicas, informativas, culturais, portanto. Vejo também como

uma cátedra, plural e urgente devotada à reflexão sobre tudo que diz respeito diretamente

ao homem e suas possibilidades neste planeta. Tudo o que não é natureza, tudo o que

está ligado ao fazer, ao pensar e ao sentir de homens e mulheres, tudo enfim o que é

cultura. Percebo aqui duas idéias fundamentais. Em primeiro lugar, que a cultura e o

desenvolvimento são conceitos e processos necessariamente interligados. Segundo, que

são processos necessariamente compartilhados. Sendo assim não podemos conceber

desenvolvimento que não seja cultural, e não devemos conceber desenvolvimento que

não seja compartilhado.

Compartilhado por Norte e Sul, por incluídos e excluídos, por centros e periferias, até para

que essas palavras percam um dia, se for o caso, o sentido sociológico. Compartilhado

também, como responsabilidade, por governos e sociedades, instituições e indivíduos. A

Declaração Universal dos Direitos do Homem define claramente os direitos culturais como

parte dos direitos humanos fundamentais, dos quais somos zeladores, e também inclui o

direito ao desenvolvimento. Isso significa o reconhecimento global de que cada sociedade,

grupo social e indivíduo têm um patrimônio cultural singular que reflete o sistema de

valores e o modo de viver próprio a partir do qual se dá a sua identidade. Significa também

o reconhecimento de que as identidades culturais existem no diálogo com as demais e

dependem disso para sobreviver, significa o reconhecimento de que a promoção da

identidade e da diversidade cultural e do convívio tolerante entre sociedades, grupos

sociais e indivíduos é vital para a democracia e está entre os deveres básicos dos governos.

Significa finalmente o reconhecimento de que a cultura é uma das dimensões do

desenvolvimento humano e que o crescimento econômico e as trocas internacionais

devem ser cultural e ambientalmente sustentáveis. Esse reconhecimento, explícito em

mais de um documento da ONU e em mais de uma convenção ou acordo multilateral,

deve ser reiterado e revitalizado, especialmente agora quando a globalização e o progresso

tecnológico se aceleram e se intensificam, para que de palavra, de vontade, se torne

exercício.

A cultura e as indústrias criativas desempenham papel importante na geração de renda e

emprego, na qualificação das relações entre os indivíduos e na construção da paz entre os

países, por isso mesmo o comércio mundial, os mercados devem respeitar os direitos

culturais das sociedades, grupos sociais e indivíduos, contribuindo para a diversidade e

não para a hegemonia e a padronização. Falo de cultura aqui não apenas como conjunto

das expressões artísticas, mas como todo patrimônio material e simbólico das sociedades,

grupos sociais e indivíduos e suas múltiplas expressões. Este fórum cultural também é,

“a cultura e o

desenvolvimento

são conceitos

e processos

necessariamente

interligados “

22

portanto, o fórum da criatividade. As indústrias criativas

representam hoje não apenas para o Brasil, mas para muitos

países em desenvolvimento, o coração para suas chances

de sucesso na globalização. Muitos se espantam quando

lêem as publicações da ONU dando conta de que o valor

global de mercado das indústrias criativas alcançará o

montante de US$ 1,3 trilhão ainda em 2005. A indústria da

música, do cinema, do design, das publicações, da web, do

software, da fotografia, dos vários conteúdos culturais, da

diversão, enfim, torna-se esse conjunto vital em vários países

emergentes, que passam a ser produtores e não apenas

consumidores dos bens simbólicos e materiais criativos.

O grande economista Celso Furtado, ex-ministro da Cultura

do Brasil, dizia que o desenvolvimento requer invenção e se

constitui em ação cultural, todas as inovações são elementos

culturais, todo o conhecimento, que é a chave da economia

contemporânea, é cultural. A integração da cultura no

processo produtivo resulta em inovação e diferenciação

sistemática dos bens e serviços gerados que assim se

revestem de sentidos e características especiais, mesmo

diante de similares. Quanto mais a produção e a

comercialização de bens e serviços estiverem imbuídas da

cultura local maior será o seu valor, a sua abrangência e o

seu impacto transformador, e maior sua vantagem

comparativa. É claro que há hegemonias crônicas nesse

setor, mas é também cada vez mais evidente a presença

de países em desenvolvimento que se lançam

corajosamente na construção de condições favoráveis ao

crescimento de suas indústrias criativas. Indústrias, aliás,

com alto poder de geração de emprego e renda em é bom

lembrar, indústrias, em geral, limpas. Diante dessa evidência,

torna-se inevitável sublinhar que as alianças entre países

pobres e em desenvolvimento constituem um aspecto

importantíssimo nas estratégicas ações para o incremento

das indústrias criativas. O momento é extremamente

favorável para as alianças, as co-produções, os programas

de cooperação entre a América Latina, a África, o Caribe, a

Ásia, a Oceania, o Oriente Médio e outras regiões e sub-

regiões em desenvolvimento também com áreas

estratégicas de regiões desenvolvidas, como é o caso da

Europa. A posição da Espanha é sinônimo disso, dessa

necessidade de amplas alianças internacionais que venham

a favorecer países em desenvolvimento ou pobres. Podemos

compartilhar experiências, mercados, energia, criatividade

e equilíbrio entre os homens, e entre os homens e o planeta.

O principal motor das alianças e também o limite na

negociação de contrapartidas é o da proteção e da promoção

da diversidade cultural através da qual o diferencial dos povos

se manifesta vital para o desenvolvimento. Há pouco tempo,

aliás, se julgava necessário adjetivar a palavra

desenvolvimento, ora se falava em desenvolvimento

econômico, ora em social de acordo com a ocasião e o

público. Abordava-se também o desenvolvimento cultural,

mas apenas nos círculos restritos da reflexão antropológica.

A obsessão por adjetivos denota um rol de concepções

parciais e excludentes do processo de desenvolvimento da

humanidade. Exatamente porque estamos tratando de

humanidade e de um movimento que tem o homem, ao

mesmo tempo uno e plural, como centro, é que uma

abordagem crítica do desenvolvimento implica a

obsolescência dos adjetivos que serviam para comentar o

tema. Assim como o homem não é apenas o econômico, o

social, o cultural, mas, soma e multiplicações das várias

dimensões de sua existência, também o desenvolvimento

“não podemos conceber desenvolvimento que não seja cultural e

não devemos conceber desenvolvimento que não seja

compartilhado”

23

é necessariamente econômico, social e cultural, tudo ao

mesmo tempo agora, conforme definição do nosso poeta e

músico Arnaldo Antunes.

Parece inegável que o sistema econômico que regula as

relações entre os homens, as instituições, as nações, nesta

etapa da história, tem gerado ciclos de desenvolvimento

que a despeito de desiguais em velocidade, intensidade,

resultados e combinados no tempo e no espaço,

impulsionam a humanidade para a frente. Embora várias

vezes a percepção que tenhamos seja diferente, obra e graça

da nostalgia de um passado refúgio construída por nossa

memória afetiva e pastoril, o fato é que em boa parte das

dimensões articuladas da vida as coisas só fazem melhorar

com o passar do tempo, vive-se mais, diverte-se mais e

guerreia-se menos atualmente. Não podemos perder isso,

não podemos tirar isso das nossas perspectivas, quaisquer

que sejam nossos novos posicionamentos, nossa crítica em

relação ao mundo atual. Talvez as coisas pudessem e

precisam melhorar mais, para mais gente, para mais pessoas

e talvez pudessem fazê-lo sem exaurir os recursos que

permitem essas melhorias. É isso que eu pretendo destacar

aqui, se é verdade que o sistema econômico tem sido

eficiente na produção de crescimento econômico, também

é verdade que foi ineficiente na abrangência deste

crescimento e no aproveitamento de recursos vitais,

principalmente o humano.

O economista Agnasir Sartes tem dito que este é o

desperdício mais grave, pois irrecuperável, a vida humana

não se estoca, flui. Falo, por exemplo, do desperdício da

subjetividade humana. As idéias de Sartes, aliás, me parecem

fundamentais para que possamos enfrentar o paradoxo a

que me referi e reorientar o sentido de nossas ações e

políticas na sociedade civil e no Estado, neste jogo dialético

e permanente de vetores sociais na direção de potencializar,

de maximizar, de incentivar os processos de

desenvolvimento tanto do que a literatura marxista chamou

de forças produtivas como do próprio indivíduo, de sua

inteligência, de sua criatividade, de sua sensibilidade, de

suas capacidades, de suas possibilidades de vida em

sociedade. Ao mesmo tempo em que se privilegiava uma e

outra dimensão do desenvolvimento, difundir essa noção

equivocada de que o meio ambiente seria um custo, um

estorvo para o avanço econômico, criando-se assim uma

falsa oposição que ganharia o status de antipodia fundamental

entre meio ambiente e gestão inteligente de recursos

ambientais e humanos, e crescimento econômico por outro

lado.

Essa dicotomia foi superada na esfera da reflexão e de

experiências alentadoras pelos adeptos do desenvolvimento

sustentável, que formularam, entre as conferências de

Estocolmo e do Rio de Janeiro sobre biodiversidade e

desenvolvimento, a Agenda 21. Agora mesmo em Barcelona,

no Fórum das Culturas Mundiais, a Agenda 21 produziu um

documento muito interessante e estará sendo submetido

aos vários setores da sociedade mundial brevemente, e traz

indicações muito interessantes para o futuro dessa discussão.

Sartes aponta o meio ambiente como a cultura, ambos não

são necessariamente um custo, visto de outra maneira, o

meio ambiente torna-se um potencial de recursos a ser

aproveitado de modo positivo. Trata-se do que o próprio

banco mundial denominou win-win, oportunidades

duplamente vencedoras. A esta concepção, porém, pode-

se acrescentar outra. Nem sempre o que parece econômica

e ecologicamente positivo é também socialmente e

“os mercados devem respeitar os direitos culturais das sociedades,

grupos sociais e indivíduos, contribuindo para a diversidade e não

para a hegemonia e a padronização”

24

culturalmente. Devemos complicar a questão para depois

simplificá-la, buscando então o triple win ou o win holístico,

desenvolvimento social e cultural econômico e

ambientalmente positivo.

Creio que o Ministério da Cultura, preocupado com o tema

do desenvolvimento, pode contribuir decisivamente ao se

ocupar da dimensão econômica da cultura e da dimensão

cultural da economia. As indústrias criativas culturais são

entre as atividades econômicas de hoje as que mais se

aproximam do triple win. As tecnologias digitais potencializam

essa vocação, ao reduzir o papel dos meios físicos de

armazenamento, transporte e difusão de conteúdos. Uma

política pública de cultura contemporânea pode ser não

apenas compensatória ou inclusiva no sentido tradicional,

mas também geradora de empregos, renda e felicidade e,

portanto, de um desenvolvimento, este sim mereceria dois

adjetivos sincronizados, sustentado e positivo.

A idéia de desenvolvimento tem pouco mais de meio século

de existência. Começou no fim da Segunda Guerra Mundial

com os trabalhos de reconstrução da Europa, ao longo do

tempo, o conceito foi se tornando mais complexo como a

própria realidade. No início, vingou a noção ingênua de que

bastaria investir nas forças produtivas, pois o crescimento

econômico resolveria tudo. De certo modo, estamos

assistindo ao renascer desta visão com o tempero das

políticas compensatórias. Ao adjetivo econômico

acrescentou-se depois o social, o político, o ambiental, isso

teve um impacto importante, obrigando os economistas a

reconhecerem os limites do pensamento puramente

econômico. Das visões unidimensionais veio finalmente a

multidimensional do desenvolvimento que nos permite

pensá-lo em seus indicadores em termos de acesso efetivo

ao conjunto dos direitos humanos de três tipos: os direitos

políticos, ou seja, a cidadania e a democracia; os direitos

econômicos, sociais e culturais; e os direitos difusos,

coletivos como o direito à afinidade, ao ambiente saudável

e também o direito ao desenvolvimento.

O desenvolvimento é assim, o processo negociado entre os

agentes sociais de apropriação crescente e efetiva por todos

nós dos direitos humanos. Como esse processo pode e

deve ser induzido, estimulado e intensificado? Penso que

através de quatro políticas complementares a serem

ministradas em equilíbrio: a política de universalização da

educação e da saúde, sem o que não se vai a lugar nenhum;

as políticas compensatórias, que resolvem ou mitigam o

imediato; a política de distribuição primária de renda através

de salário e de emprego, com a inclusão presente ao

processo produtivo dos que estão em condições de trabalhar;

e a política de planejamento, estruturação e incentivo do

mercado, para que ele realize seu potencial de inclusão e

democracia e torne-se menos oneroso ao ambiente e a vida.

Penso que essas políticas devem tratar de maneira desigual

os desiguais, conferindo às ações um sentido afirmativo que

não necessariamente tem a ver com a amplificação das

cotas, mas com o sentido geral de trocar discriminações

negativas por positivas.

Essa inversão de perspectiva torna-se crucial quando se

analisa o aspecto vital para o desenvolvimento dos países,

que é o comércio internacional. Os neoliberais dizem que a

base do desenvolvimento geral seria o livre comércio. Como

falar dele quando, segundo recente estudo da Oxfam, para

cada dólar que os países industrializados transferem aos

pobres e emergentes como assistência, dois fazem o

caminho inverso em virtude de condições adversas de

“desenvolvimento é necessariamente econômico, social e cultural,

tudo ao mesmo tempo agora”

25

comércio. Está claro que o princípio da discriminação positiva

também deve ser aplicado aqui, daí a importância estratégica

das articulações internacionais empreendidas pelo governo

Lula, também reproduzidas no campo da cultura, com o

objetivo de fortalecer o Mercosul e aproximá-lo de países e

blocos emergentes que, como o Brasil, têm potencial de

liderança em suas regiões a exemplo da Índia, da África do

Sul, da China, da Austrália, do México e do Oriente Médio.

Daí a importância de outra vertente dessa política que visa

ao fortalecimento dos organismos multilaterais além da OMC

e a revisão de suas políticas tendo, por exemplo, a Argentina

como um exemplo no receituário obtuso que deve ser

evitado, por isso a necessidade de se substituir o conceito

tradicional de crescimento econômico pelo novo conceito

de desenvolvimento culturalizado, que aqui defendemos.

Nos últimos meses, muito se tem falado, no Brasil, em

crescimento econômico. Devemos fazer um alerta: se esse

crescimento não está orientado para as economias limpas

e para a distribuição de renda, se aceitamos o império do

econômico sobre outras dimensões da existência humana

– então teremos o que Sachs chama de mau

desenvolvimento, o crescimento com elevado custo

ambiental, social e cultural.

Veremos assim apenas a apropriação desigual e combinada

das vantagens do desenvolvimento em benefício de poucos.

Em oposição, afirmo um conceito ético que deve se

materializar nas políticas públicas governamentais e nas

ações da sociedade civil. O desenvolvimento não é um

conceito de economia, esta é uma dimensão e também

um instrumento do desenvolvimento. Um processo que tem

por finalidade ética a condicionalidade ambiental. A idéia de

um desenvolvimento em co-responsabilidade que incorpore

a cultura como base e multiplicador faz com que o Ministério

da Cultura do Brasil, nesse Fórum, proponha os seguintes

compromissos às demais autoridades aqui presentes:

1 Superar os desequilíbrios sociais, econômicos e culturais

entre o Norte e o Sul do planeta, através da pactuação de

medidas que apontem para a redução da exclusão e a

promoção da igualdade.

2 Realizar políticas públicas para ampliar o acesso do

cidadão aos direitos culturais incluindo o fomento à produção

cultural, o estímulo à difusão de bens e serviços culturais e

a proteção do patrimônio cultural, material e simbólico, de

nossas sociedades.

3 Promover espaços culturais diversos, de inclusão social

e cultural, em que circulem idéias inovadoras e se

compartilhem as inquietudes artísticas e intelectuais, e

contribuir para a regulação, estruturação e dinamização das

indústrias criativas em nossos países.

4 Priorizar o desenvolvimento de acordos bilaterais e

multilaterais, políticas e fundos que estimulem a produção e

as trocas culturais de modo equilibrado entre nossos países

e os demais países do planeta, com vistas a um intercâmbio

saudável de bens e serviços culturais.

5 Defender a exclusão dos bens e serviços culturais dos

acordos de liberalização comercial em curso na Organização

Mundial de Comércio, para que as trocas culturais aconteçam

segundo o princípio da proteção à identidade e à diversidade

cultural dos países.

6 Apoiar a UNESCO em sua iniciativa fundamental de

estabelecer, de comum acordo com os países que fazem

“Superar os desequilíbrios sociais, econômicos e culturais entre

o Norte e o Sul do planeta”

26

parte da ONU, uma convenção internacional para proteção

da diversidade cultural prevista para a conferência geral de

2005.

7 Contribuir para a criação de um sistema internacional

de trocas econômicas e culturais, baseado na democracia,

na igualdade de oportunidades, na correção dos

desequilíbrios, no respeito às diferenças, nos direitos

humanos e no diálogo pleno entre as culturas.

8 Divulgar esses princípios nos órgãos multilaterais e

eventos internacionais de cultura dos quais venhamos a

participar, como participamos aqui nesse Fórum, com o

“Uma política pública de cultura contemporânea pode ser não

apenas compensatória ou inclusiva no sentido tradicional, mas

também geradora de empregos, renda e felicidade”

Gilberto Gil - Ministro da Cultura - Brasil naConferência Cultura e DesenvolvimentoSocial: Partilhando Responsabilidades

objetivo de estimular um debate global sobre o papel da

cultura no desenvolvimento sustentável das sociedades

contemporâneas.

Eis o que move o Ministério da Cultura, eis o que faço e digo

nos eventos, nas reuniões, nos encontros nacionais e

internacionais de que tenho participado. Eis o que

fundamenta, acreditamos, eu pessoalmente acredito

profundamente, creio que todos aqui acreditam. Eis o que

fundamenta esse Fórum Mundial Cultural.

Muito obrigado.

27

Creio que somos muitos os cidadãos do mundo que

entendemos que estamos diante de um grande desafio

internacional, que nos afeta a todos, e há de fazer-se novas

reflexões sobre o que denominamos a brecha existente entre

o sul, este sul cada vez mais pobre e dependente, e o norte,

cada vez mais rico e sem um compromisso real diante da

sua responsabilidade para conseguir um desenvolvimento

sustentável e uma maior coesão social.

Por isso entendemos que é urgente chegar definitivamente

a um acordo básico sobre as políticas de cooperação e de

um modo mais geral do modelo de desenvolvimento que

deve ser promovido no sul. É preciso dar prioridade a um

desenvolvimento participativo, que se apóie em estratégias,

que se definam em cada um dos países, que incluam entre

seus objetivos a luta fundamental contra a pobreza, a

igualdade de homens e mulheres e a sustentabilidade

ambiental e cultural do espaço planetário.

É o momento de superar o enfoque de confronto norte-sul

que caracteriza o momento em que nos desenvolvemos e,

ao mesmo tempo, sentar as bases de um encontro de

respeito e de diálogo muito mais construtivo entre um mundo

rico e um mundo que apenas se desenvolve (...) não

podemos pensar num desenvolvimento sustentável de cada

uma de nossas sociedades atuais se esse desenvolvimento

é produzido à custa de atentar contra a diversidade cultural,

que está em risco permanente. A globalização e o comércio

mundial podem ser um estímulo ao desenvolvimento sempre

que não prejudiquem o direito ao diverso e à diversidade de

cada um de nós.

(...) O direito ao reconhecimento da própria cultura, o direito

de participar dessa expressão, conservação e promoção e a

igualdade ao acesso à cultura de cada um, é a parte

substantiva de um imperativo ético e de uma necessidade

imperiosa do que podemos denominar desenvolvimento

cultural de nossas sociedades. (...)

Cada sociedade e cada grupo social tem um capital cultural

que lhe é próprio e que reflete o sistema de valores sobre o

qual construí sua identidade, sua maneira de ser e de estar

na vida, e que deve ser respeitada. O respeito dessas

identidades culturais, a proteção do seu patrimônio histórico,

a igualdade de oportunidades para todas as culturas e

convicções que se assentem em valores e princípios

democráticos é a via para consolidar o diálogo cultural e

para avançar neste outro efeito necessário da cultura, que é

a coesão de nossa sociedade e a prevenção e solução de

conflitos que acabam em violência. Cada vez mais os conflitos

mundiais explodem por razões culturais. Devemos ser

conscientes disso e devemos colocar o tema no jogo do

debate. O respeito à diversidade cultural é essencial para a

paz e o não-cumprimento desse respeito e essa diversidade

por parte dos governos e dos mercados se está convertendo

numa terrível experiência para muitos povos. É necessário

ressaltar de maneira insistente o papel da cultura na atual

sociedade da informação e da comunicação como fator de

criação de emprego e por tanto de desenvolvimento

econômico em termos de sustentabilidade, também de

coesão social, especialmente naqueles países e naquelas

zonas de altos índices de desemprego e, portanto, de

pobreza.

Com efeito, pensamos que a globalização e a extensão das

novas tecnologias têm um impacto cultural evidente e

“não podemos pensar num desenvolvimento sustentável de cada

uma de nossas sociedades atuais se esse desenvolvimento é

produzido à custa de atentar contra a diversidade cultural, que

está em risco permanente”

28

constituem um desafio especialmente difícil para a

preservação da rica diversidade cultural de nossos países e

do mundo em geral, por quanto se pode produzir desajustes

na coesão social e na integração cidadã neste novo termo

ao que temos que acostumarmos e que alguns já

denominam também brecha digital e, portanto, de manejo

e de desenvolvimento dos direitos de cada um dos cidadãos

do mundo. O financiamento da atividade cultural deve

considerar-se como uma das ações prioritárias dos governos.

É por tanto um dos grandes cometidos do setor público. No

entanto, promover a cultura e conservar o patrimônio que

nos legou a história corresponde ao Fundo, a toda a sociedade

e em sua plenitude ao que denominamos cidadania

democrática.

A questão está, por um lado, em envolver a sociedade civil

e, por outro, em determinar também o limite do espaço e

da intervenção pública. Em qualquer caso, caso se parta da

base de que a cultura gera emprego, aporta ao fisco uma

parte substanciosa dos recursos fiscais dos países, forma

parte também do emaranhado industrial da economia, nos

permite estabelecer valores na sociedade e, por tanto, o

investimento em cultura, me refiro de maneira especial no

âmbito público, é um elemento substancial do

desenvolvimento dos povos, ainda que às vezes a cultura e

a economia apareçam falando linguagens diferentes.

Num mercado mundial onde o comércio dos serviços

culturais está muito longe da perfeita competição, a única

maneira de promover as indústrias e os serviços culturais,

que são imprescindíveis para fomentar o desenvolvimento

sustentável, e para manter a riqueza cultural, é, a nosso

juízo, importante no âmbito do fortalecimento das políticas

públicas, que garantam sua existência como direito, sua

existência também como serviço público para os cidadãos,

e que mediante a exclusão dos bens da cultura do processo

que não pára de liberalização comercial na Organização

Mundial do Comércio, nos permita, a alguns agentes de

decisão política entre os quais estamos sem dúvida meu

colega e eu, estabelecer alguns parâmetros para deixar

sentada a base de que a cultura, ainda movendo-se no

mercado, não é produto estritamente de mercado.

Na hora de concluir minhas palavras, tenho que fazê-lo como

representante de meu governo, do meu país, neste foro de

São Paulo, também num plano bilateral das relações entre o

Brasil e a Espanha, e mais amplamente e de maneira

intensamente querida para o governo ao que pertenço, no

plano ibero-americano. A Espanha tem muitas coisas novas

que dizer na sua relação de irmandade com o Brasil e respeito

à relação norte-sul, a diversidade cultural e ao

desenvolvimento econômico através da cultura. Na medida

de nossas forças sabemos que o Brasil espera de nós que o

ajudemos na sua interlocução com a União Européia e no

desenvolvimento de políticas redutoras da brecha norte-sul.

Quanto à diversidade cultural, a Espanha é um país com

uma enorme diversidade e riqueza interna. Temos mais de

20% da população bilíngüe, em nossa constituição

celebramos a riqueza que isso supõe. Por último, as indústrias

culturais espanholas têm uma experiência e um

desenvolvimento que podem pôr a serviço do Brasil e da

comunidade ibero-americana.

O Brasil e a Espanha são neste momento países que se

admiram mutuamente e que podem pôr em comum muitas

de suas potencialidades para fazê-las realidade. O Brasil e a

Espanha são ademais parte de uma comunidade ibero-

americana, que se identifica no mundo como uma

“O financiamento da atividade cultural deve considerar-se como

uma das ações prioritárias dos governos”

29

comunidade de caráter e de extraordinária personalidade

cultural, que deve tratar de unificar critérios para ter no mundo

uma voz forte, e essa voz expressará conclusões parecidas

às que proponho brevemente a seguir.

Em primeiro lugar, trataríamos de agir contra a assimetria,

quer dizer, contra a desigualdade e a falta de paridade entre

os diferentes países e atores sociais e também entre os

diferentes meios de expressão, produção e intercâmbio

cultural. A cultura não deve ser um intruso nos acordos e as

negociações internacionais, mas sim uma parte substancial

e determinante precisamente desses acordos internacionais.

Por isso a Espanha apoiará com firmeza os trabalhos da

UNESCO para estabelecer uma convenção internacional que

proteja a diversidade dos conteúdos culturais e da expressão

artística, conferencia à que estaremos presentes no outono

de 2005.

Em segundo lugar, entendemos que a cultura é um assunto

de Estado, posto que afeta a todos os grupos sociais, a seu

bem-estar, a sua qualidade de vida. A riqueza e a diversidade

de nossas culturas dependem da ação do âmbito privado e

dos poderes públicos, da sociedade civil e dos agentes

industriais. O dinamismo de nossa cultura, sua atividade e

sua vitalidade necessitam por tanto o compromisso de todos.

Finalmente, como ministros, como ministra neste caso no

meu país, responsáveis das políticas de nossos respectivos

países, entendo que temos que promover tantos quantos

espaços de debate nos permitam tomar posições, nos foros

internacionais, que aboquem ao compromisso. Ao

compromisso, por um lado, de quem pode entender a

cultura, sua relação com a economia e com a vida, em

modos diferentes aos nossos; e a compromissos nos que

ninguém, por pertencer a nenhuma cultura, inclusive exígua

nas quantidades, sinta que está excluído da compreensão

de um mundo.

É evidente, desde todas estas considerações que fazemos,

que pretender acabar com a diversidade cultural impondo o

rodo homogeneizador de uma cultura global de massas,

por muito apoiada que esteja no poder de uma grande

potência, não só é um gravíssimo atentado à realidade das

culturas do mundo, mas também é uma impossibilidade

cultural, porque seria a negação da cultura, posto que nela

se baseia a identidade coletiva de cada um dos nossos países

e comunidades, mas também a simples afirmação de que

queremos que o mundo siga sendo o que é: múltiplo e

diverso, quer dizer, humano.

“a cultura, ainda movendo-se no mercado, não é produto

estritamente de mercado”

Carmen Calvo Poyato, na mesa Cultura eDesenvolvimento Social – PartilhandoResponsabilidades

30

31

“A cultura tem o poder de atenuar as tensões,

desarmar os ânimos, revolver idiossincrasias,

renovar”

O Fórum Cultural Mundial emprestou do poeta Drummond os versos de “José” para pontuar

as discussões dos rumos da cultura para o nosso planeta. Nada mais pertinente que nos

somarmos às inquietações do poeta para questionar os desvios desse mundo que às

vezes nos parece “sozinho no escuro qual bicho do mato” sem ter pra onde “fugir a

galope”.

A cultura tem o poder de atenuar as tensões, desarmar os ânimos, revolver as idiossincrasias,

renovar. Portanto, essa é a discussão certa, na hora certa, na cidade certa. A nossa São

Paulo é, como disse o nosso outro poeta, “como o mundo todo”. Somos a maior cidade

italiana fora da Itália, a maior cidade japonesa fora do Japão, a maior cidade nordestina fora

do Nordeste e aqui, convivemos, inevitável e cotidianamente, com todas as culturas com

as quais amalgamamos a nossa identidade brasileira. Não podemos perder de vista que a

cultura é também uma forte geradora de receitas e propulsora da nossa economia. Mas,

para que isso ocorra, precisamos difundi-la sempre em todas as suas vertentes.

Geraldo Alckmin - Governadordo Estado de São Paulo

32

A realização em São Paulo do Fórum Cultural Mundial é o reconhecimento da cidade nas

discussões mais importantes da atualidade.

Depois de oito anos marcada internacionalmente pela corrupção e o descrédito, São Paulo

resgatou nesta gestão municipal a credibilidade. Fizemos um esforço enorme para reavivar

o dinamismo de uma cidade acolhedora e cosmopolita, sede de mil povos e culturas que

convivem em tolerância e criatividade.

É essa São Paulo que agora abraça o Fórum Cultural Mundial. Ele ocorrerá num momento

particularmente oportuno, no aniversário de 450 anos da cidade, quando vamos sediar

uma série de eventos internacionais. O Fórum ocupará o primeiro plano nesse processo.

Pois pode articular uma rede global de cooperação para abrir perspectivas comuns na

cultura. É a oportunidade de constituir uma plataforma comum a todos.

Vivemos uma época de pasteurização globalizada e de domínio transnacional da indústria

do entretenimento. Flagramos culturas locais fragilizadas. A intolerância tem atropelado o

diálogo. E há uma carência crônica de políticas públicas que respeitem a criatividade e a

diversidade. Hoje, urge despertar os potenciais dos povos, monitorar a situação das artes

e da cultura, criar suportes a empresas e resguardar as culturas locais da selvageria do

mercado.

A cultura pode, assim, ser agente da prosperidade, da coexistência global e do

desenvolvimento das sociedades. Para isso, é urgente redefinir o papel do poder público

na vida cultural de seu povo.

A Prefeitura de São Paulo está empenhada num projeto assim. Cada iniciativa nossa implica

a cultura como experiência comum, espaço do encontro e da memória coletiva. A

preocupação cultural para nós é orgânica, nossas ações envolvem outras secretarias além

da de Cultura, buscam permitir o encontro, estimular a circulação de bens culturais, fazer

respirar a cultura local, dos bairros, das etnias, de toda a cidade.

Cada um dos 21 Centros Educacionais Unificados (CEU) é mais do que uma reunião de

escolas. É integração comunitária. Num CEU, há piscina, teatro, telecentro (centros de

inclusão digital) e biblioteca. Há áreas para esportes, rádio comunitária e oficinas. Todos

são abertos aos fins de semana, como espaços culturais que fazem as pessoas conviverem.

Só no distrito de Lajeado, 88% das pessoas que já foram ver filmes no CEU Jambeiro

“Vivemos uma época de pasteurização

globalizada e de domínio transnacional da

indústria do entretenimento”

33

nunca tinham ido ao cinema. Nenhuma jamais pisara num

teatro para ver uma peça e só o fez no CEU.

Desenvolvemos o projeto Centros de Bairro, que já revitalizou

45 das 50 áreas e praças previstas até o fim da gestão, em

regiões pobres. Cada um é auto-suficiente: arborizados,

seguros, têm playground, quadras, pistas de skate e lugares

para eventos, promove partilhas, convívios, encontros.

Temos hoje a maior rede de bibliotecas públicas do país.

Vamos criar o Museu da Cidade, que vai integrar toda a

memória pública de São Paulo. Redefinimos o uso das casas

históricas. Requalificamos o Centro Cultural São Paulo.

Começamos a reforma da biblioteca Mário de Andrade.

Essas experiências serão oferecidas aos participantes das

diversas nacionalidades que virão compartilhar a

oportunidade única que será o Fórum Cultural Mundial. Cultura

gerando desenvolvimento, responsabilidade social e

construção comum de alternativas. Essa é a proposta da

cidade de São Paulo.

Marta Suplicy – Prefeita da cidade de São

Paulo, no período de realização do FórumCultural Mundial

“A cultura pode, assim, ser agente da prosperidade, da coexistência

global e do desenvolvimento das sociedades”

34

Deixem-me, em nome do Office de Coopération EuroAid

que faz parte da Comissão européia, órgão responsável pelo

emprego da cooperação para o desenvolvimento, assegurá-

los do apoio entusiasta e determinado da Comissão a essa

bela e apaixonante empresa que constitui o Fórum Cultural

Mundial 2004 de São Paulo.

A decisão tomada por minha instituição de sustentar

financeiramente esse Fórum assinala o reconhecimento da

importância do diálogo intercultural como instrumento

privilegiado da cooperação para o desenvolvimento. Ela

evidencia a vontade da Europa de agir, de encorajar e

testemunhar por toda parte no mundo, em todos os lugares

de esperança em que o desejo de ir ao encontro do Outro é

superior aos demônios da violência e da ignorância.

São Paulo é hoje esse lugar de esperança e a Europa se

sentiu no dever de ser um dos patrocinadores e o

testemunho atento de um diálogo que não se dá por si só e

que ocupa muito pouco o palco principal das relações

internacionais, o que se dá entre as culturas e os povos das

regiões do mundo em desenvolvimento, que chamamos

diálogo Sul/Sul.

Mas por que então, vocês me dirão, a Europa se interessa

de tão perto por um processo que não lhe diz respeito

diretamente, do qual ela não é parte envolvida e no qual ela

não tem interesses particulares no sentido mercantil da

expressão?

A resposta é, em suma, bastante simples. Primeiro, a Europa

nem sempre é determinada em função de seus interesses

próprios. As responsabilidades que ela assume nos negócios

do mundo não são as de uma potência imperial que dá

lições, mas as de um conjunto de nações que fizeram dos

ideais de paz, de justiça e de igualdade o fundamento de

sua vida em comum. Esta experiência, a construção, por

vezes laboriosa, sempre exaltante, de uma comunidade de

destino respeitoso de suas diversas identidades e

preocupada em estabelecer o diálogo, constitui hoje um

modelo cultural que a Europa deseja compartilhar com seus

parceiros no mundo e particularmente aqueles em

desenvolvimento. Abrir as vias do conhecimento recíproco,

eliminar a ignorância e quebrar os estereótipos, lançar as

pontes da troca, tal é a vocação natural de uma Instituição

como a Comissão, que justifica seu apoio a uma iniciativa

visando a ultrapassar as fronteiras culturais entre regiões

em desenvolvimento.

O testemunho que traz a seus parceiros a Europa de hoje é

tanto mais forte quanto repousa sobre um passado temível

de assumir. Pois antes de ser um modelo pacífico, a Europa

é uma memória perturbada, o lugar de confrontos que foram

selvagens e destruidores, uma antiga terra de ódio e de

exterminação programada cujos últimos traços ainda estão

frescos e presentes, haja vista os apelos a todos os corações

dos homens e das mulheres da Europa moderna.

A imagem dela própria que lhe lança o olhar de seus parceiros

em desenvolvimento tampouco é isento de pesadas

obscuridades. Cruzadas imperialistas passando pelo

colonialismo e a escravidão, a lista é longa dos erros passados

de potências arrogantes e dominadoras cujos efeitos ainda

são vistos nos olhos dos humilhados da terra e que não são

apagados pelos esplendores da Arte, pelas proezas da

Ciência, pelas glórias literárias, pelas luzes da Razão e das

Religiões.

“importância do diálogo intercultural como instrumento

privilegiado da cooperação para o desenvolvimento”

35

A resposta a uma tal herança não é o esquecimento, esse

veneno que obscurece as consciências sob o pretexto de

torná-las livres. Tampouco é o choro do arrependido, uma

solução bastante cômoda para apagar os erros. A resposta

é a lucidez e a coragem, o olhar sem complacência sobre

os lixos da História e a vontade de aprender suas lições. É a

recusa do autismo cultural. É a troca aberta que não se

reduz somente ao prazer da conversação, mas desemboca

no conhecimento recíproco e na curiosidade do Outro, uma

curiosidade que não é adesão ou conversão, mas repousa

sobre o reconhecimento de seus próprios valores e sobre a

consciência de sua memória.

O que é isso senão a aplicação pura e simples de um princípio

de base da política de desenvolvimento o princípio de

apropriação, o qual começa pela apropriação das culturas e

constitui o objetivo prioritário da comissão quando ela se

compromete com o apoio ao desenvolvimento cultural de

seus parceiros de cooperação? O modelo cultural que a

Europa lhes propõe é, portanto, antes de tudo um

instrumento de apropriação e de reconhecimento de suas

próprias culturas. Mas isso requer também, evidentemente,

o esboço de um outro diálogo intercultural, que deve reunir

regiões em desenvolvimento marcadas por riquezas

ancestrais diversas e ignoradas umas das outras, mas

também muitas vezes por feridas históricas comuns,

inclusive aquelas devidas às antigas potências imperiais.

A iniciativa tomada pelo governo brasileiro e particularmente

por seu Ministro da Cultura, senhor Gilberto Gil, de criar esse

Fórum Cultural Mundial, oferece uma ocasião única de enfim

abrir esse diálogo inédito e deve, portanto, ser saudada e

apoiada sem ressalvas pela Europa, testemunha ativa desse

diálogo.

Aliás não é por acaso que o Fórum Cultural Mundial 2004 de

São Paulo se realiza como prolongamento de um encontro

de Chefes de Estado e de Governo da América Latina e da

Europa que teve lugar recentemente no México. A Declaração

de Guadalajara, assinada ao fim de tal encontro confirma,

no enunciado de certos parágrafos, a emergência de um

novo fôlego cultural na relação Europa-América Latina

ampliada pelo Fórum de São Paulo ao conjunto das regiões

em desenvolvimento.

Eis uma oportunidade que é preciso agarrar com firmeza

haja vista que são raras as ocasiões para a aprofundar a

dimensão cultural do desenvolvimento. Entretanto é preciso

não se enganar de alvo e não encerrar o diálogo num círculo

restrito e reservado a uma elite. A cultura é um mercado,

são indústrias, operadores, produtores, editores, artistas,

escritores que buscam, e isso não é ilegítimo,

reconhecimento e dinheiro. É um setor da economia cujo

impacto em termos de emprego não deve ser esquecido,

além de crescimento econômico e de inserção social. A

cultura precisa da vitalidade do setor cultural para existir.

Mas o diálogo intercultural perderia uma grande parte do

seu sentido se ele se limitasse a encontros “setoriais”.

Pois a cultura é também e sobretudo o público, a espera do

público, sua sede de cultura, seu desejo de acesso à cultura,

à sua cultura, à descoberta do Outro, por pouco que lhe

ofereçam a possibilidade de se formar, de desenvolver seu

pensamento e sua leitura crítica da imagem e da escrita. O

princípio de apropriação que eu citava anteriormente não é

a captação dos benefícios das trocas pelas elites. É a

restituição ao público de seus direitos culturais, de seu direito

à identidade e ao conhecimento de si. É a única via de acesso

ao diálogo dos povos, condição sine qua non de seu

“Abrir as vias do conhecimento recíproco, eliminar a ignorância e

quebrar os estereótipos, lançar as pontes da troca”

36

desenvolvimento, inclusive econômico, pois a pobreza não

é somente um estado de carência material, é também um

estado de abandono moral e espiritual, fonte de todos os

erros da violência e do ensimesmamento.

Não hesitemos portanto em alargar o campo da cultura e do

diálogo. Das políticas de recuperação urbana e rural à

educação, das políticas de inserção social à saúde, tudo é

cultural, tudo é determinante para o reconhecimento e

capacidade de acesso do público a sua cultura. Não

hesitemos tampouco, quando se trata de educar para a

cultura, em ultrapassar o quadro formal dos sistemas

educativos. Pensemos políticas de leitura pública, pensemos

pontos de encontros cívicos, entre gerações, entre castas

sociais; pensemos também religiões, componentes

irredutíveis da cultura e domínio em que a ignorância e os

estereótipos são mais devastadores; pensemos um espaço

laico aberto ao diálogo e não fechado ao conhecimento,

mesmo religioso, do Outro. O Presidente Prodi quando criou

o Grupo dos Sábios sobre o Diálogo dos Povos e das Culturas

no espaço euro-mediterrâneo, tinha em mente essas idéias

cuja pertinência foi confirmada pelos trabalhos do grupo.

Desejo de todo o coração que elas inspirem igualmente os

trabalhos do Fórum.

O trabalho é enorme, o caminho íngreme e cheio de

obstáculos, mas a questão vale a mobilização de todas as

energias. O Fórum Cultural Mundial 2004 de São Paulo abre

uma via real, pois mundial e portanto inexplorada. Em nome

de minha instituição, agradeço seus idealizadores e

participantes e lhes desejo meus mais sinceros e calorosos

votos de sucesso agora e durante o evento.

François P.Nizery – Conselheiro de Culturada Comissão Européia

“Pois a cultura é também e sobretudo o público, a espera do público,

sua sede de cultura, seu desejo de acesso à cultura, à sua cultura,

à descoberta do Outro, por pouco que lhe ofereçam a possibilidade

de se formar, de desenvolver seu pensamento e sua leitura crítica

da imagem e da escrita”

37

“Artistas, especialistas, políticos,

funcionários públicos e intelectuais

com as raízes e identidades

culturais, nacionais e políticas mais

distintas imagináveis formularam no

Fórum em São Paulo uma visível

necessidade comum, que consiste em

desenvolver o intercâmbio cultural

entre o Sul e o Sul, descobrir e

contar a história comum,

desenvolver a cultura e arte

própria e de povos aparentados,

inclusive os danos de efeito

retardado da colonização, da

migração voluntária e involuntária,

enquanto recursos para a

elaboração de uma identidade e

consciência de si.”

Dieter Jaenicke – Diretor Executivodo Fórum Cultural Mundial 2004

38

39

Em 1999, o Banco Mundial, em cooperação com a UNESCO

e o governo italiano, organizou uma conferência intitulada

“A cultura conta: financiamentos, recursos e a economia da

cultura no desenvolvimento sustentável”. Dentre os diversos

outros documentos que resultaram dessa conferência, há

um relatório do Banco Mundial denominado “Cultura e

Desenvolvimento Sustentável – Um Marco para a Ação”,

que claramente reconsidera a importância da cultura como

um elemento de sucesso nos programas de

desenvolvimento financiados pelo Banco Mundial:

Numa época em que a globalização nos aproxima, é

fundamental que saibamos valorizar e apoiar a diversidade

de culturas e a experiência histórica dos países onde

atuamos. A ênfase na cultura, como base para um maior

desenvolvimento em educação, saúde e produção de bens

e serviços é responsabilidade das sociedades. A cultura é o

próprio cerne da questão no que se refere à redução da

pobreza, assim como a uma melhor qualidade de vida. A

autoconsciência e o orgulho que resultam da identidade

cultural dos povos são ingredientes essenciais para que as

comunidades assumam a sua autonomia e façam as suas

próprias”

James D. Wolfensohn – Presidente do

Banco Mundial - Cultura como o Cerne daQuestão.