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Modernidade e instrumentalização da linguagem Sobre a expressão do conhecimento e a procura do lugar da verdade Gil Baptista Ferreira Universidade da Beira Interior Julho de 2000 Índice 1 As querelas alemãs 1 2O conhecimento da mais pequena coisa 3 3 Tempos da informação 7 4 Episteme e experiência 8 5 Do debate sociável à mediação solitá- ria 11 6 A cesura epistémica 14 7 Linguagem e negatividade 15 8 Ilusões comunicativas 17 9 A inutilidade social do discurso esté- tico 19 10 O diagnóstico percursor de Kraus 21 1 As querelas alemãs Ao longo do século XX, fruto da tradição ilu- minista mais clássica do conhecimento, duas preocupações distintas começaram a opor-se com maior ênfase, num processo que, com raízes no século anterior, se estendeu em múltiplos aspectos até aos nossos dias: de um lado a posição positivista, do outro a teo- ria crítica. A cisão entre estas posições coin- cidiria, além do mais, largamente com a ci- são entre os campos científicos americano e europeu. Neste sentido, também – e sobre- tudo – nos círculos alemães se desenvolveu o debate filosófico e científico, acentuado a partir de 1961 com a célebre conferência de Tübingen, na Alemanha. Max Horkheimer, num conjunto de en- saios escritos nos anos trinta, apresentara e destinguira já a teoria crítica de outras no- ções de teoria suas contemporâneas, e ata- cara então o positivismo lógico do Círculo de Viena. Sobre a teoria tradicional e a te- oria crítica, dizia Horkheimer: “A teoria no sentido tradicional, estabelecida por Descar- tes e por todo o lado praticada por ciências especializadas, organiza a experiência à luz de questões situadas fora da vida social ac- tual. O resultado do trabalho dessas disci- plinas contém informação numa forma que a torna utilizável em cada situação particu- lar, para o maior número possível de propó- sitos. Mas a génese social dos problemas, as reais situações em que a ciência se apli- caria, e os propósitos a que se destinaria, são todos olhados pela ciência como exter- nos a si.” 1 Horkheimer apresentaria como 1 Horkheimer, Max, citado por David Frisby, The Positive Dispute in German Sociology, Londres, Hei- nemann, 1983, pág. xxvi.

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Modernidade e instrumentalização da linguagemSobre a expressão do conhecimento e a procura do lugar da verdade

Gil Baptista FerreiraUniversidade da Beira Interior

Julho de 2000

Índice

1 As querelas alemãs 12 O conhecimento da mais pequena

coisa 33 Tempos da informação 74 Episteme e experiência 85 Do debate sociável à mediação solitá-

ria 116 A cesura epistémica 147 Linguagem e negatividade 158 Ilusões comunicativas 179 A inutilidade social do discurso esté-

tico 1910 O diagnóstico percursor de Kraus 21

1 As querelas alemãs

Ao longo do século XX, fruto da tradição ilu-minista mais clássica do conhecimento, duaspreocupações distintas começaram a opor-secom maior ênfase, num processo que, comraízes no século anterior, se estendeu emmúltiplos aspectos até aos nossos dias: deum lado a posição positivista, do outro a teo-ria crítica. A cisão entre estas posições coin-cidiria, além do mais, largamente com a ci-são entre os campos científicos americano e

europeu. Neste sentido, também – e sobre-tudo – nos círculos alemães se desenvolveuo debate filosófico e científico, acentuado apartir de 1961 com a célebre conferência deTübingen, na Alemanha.

Max Horkheimer, num conjunto de en-saios escritos nos anos trinta, apresentara edestinguira já a teoria crítica de outras no-ções de teoria suas contemporâneas, e ata-cara então o positivismo lógico do Círculode Viena. Sobre a teoria tradicional e a te-oria crítica, dizia Horkheimer: “A teoria nosentido tradicional, estabelecida por Descar-tes e por todo o lado praticada por ciênciasespecializadas, organiza a experiência à luzde questões situadas fora da vida social ac-tual. O resultado do trabalho dessas disci-plinas contém informação numa forma quea torna utilizável em cada situação particu-lar, para o maior número possível de propó-sitos. Mas a génese social dos problemas,as reais situações em que a ciência se apli-caria, e os propósitos a que se destinaria,são todos olhados pela ciência como exter-nos a si.”1 Horkheimer apresentaria como

1Horkheimer, Max, citado por David Frisby,ThePositive Dispute in German Sociology, Londres, Hei-nemann, 1983, pág. xxvi.

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alternativa a teoria crítica da sociedade, que“tem por objecto os homens como produto-res da própria forma de vida na sua totali-dade. As situações reais que são o pontode partida da ciência não são olhadas comosimples dados (data) para serem verificadose previstos em acordo com as leis de proba-bilidades.”2 Como na imagem de Kafka, nãomais corremos atrás dos factos, como prin-cipiantes de patinagem em lugar impróprio;recorrendo a outra metáfora kafkiana, antessomos livres e em segurança, porque presosa uma cadeia bastante longa que “permiteexplorar livremente todos os espaços terres-tres, mas não tão longa que possa[mos] seratraído[s] para além das fronteiras da terra.”3

Cada dado (datum) dependerá agora não danatureza isolada, mas também do poder dohomem sobre ela. E assim, afirmava entãoHorkheimer, os objectos, os tipos de percep-ção, as questões colocadas e os significadospercepcionados, tudo está dependente da ac-tividade humana e do grau do seu poder.

Se já no período em que Horkheimer es-creveu tais textos os assumiu como uma te-oria crítica, distinta das outras críticas, noentanto não foram alvo de uma controvérsiagenuína, dado o contexto de exílio em quese encontravam tanto o autor como os mem-bros da depois chamada Escola de Frank-furt. E é assim que, passadas pouco maisde duas décadas, no ano de 1961 em Tü-bingen, Adorno, regressado do exílio ame-ricano, retoma a controvérsia. Como pontode partida, Adorno apresenta os positivis-tas como defendendo “um conceito rigorosode validade (gueltigkeit) científica objectiva,acolhida pela filosofia, enquanto que os dia-

2Ibidem.3Kafka, Franz, “Meditações”, pág. 121.

lécticos, encorajados nesse sentido pela tra-dição filosófica, procedem de maneira espe-culativa.” E logo acusa: “a linguagem cor-rente modificou o conceito de ‘especulação’,de forma a invertê-lo completamente. Não émais interpretado, como em Hegel, no sen-tido de uma autorreflexão crítica do entendi-mento, da sua limitação e da sua autocorrec-ção: chegamos, sem dar conta, a interpretá-lo no sentido popular do termo, que repre-senta o que especula como o pensador irres-ponsável”;4 aquele que, não se baseando naautocrítica lógica, não se confronta com ascoisas.5

Contudo, se o positivismo é o alvo maisvisado nesta disputa, difícil é obter uma de-finição clara dos elementos que o compõem,de forma unívoca. O positivismo como cor-rente não é uma entidade estática, possui umdinamismo próprio que o leva a tomar dife-rentes formas nos vários contextos históri-cos. Por essa razão, o próprio Karl Popper– apresentado como o contendor positivistana querela - não se considerava positivista,sendo mesmo crítico do Círculo de Viena, deque aliás nunca seria membro. Criticou deforma incisiva os positivistas lógicos, e a sua

4Theodor, Adorno, “Introduction”,in AAVV, DeVienne a Francfort, la Querelle Allemande des Scien-ces Sociales, Bruxelas, Complexe, 1979, pág.10.

5A superação da hermenêutica gadameriana faceao cientificismo positivista toca a posição adornianatambém neste ponto: o da estrutura especulativa doconhecimento. Com efeito, e como referimos ante-riormente, a própria linguagem, por meio da qual seprocessa o conhecimento, tem uma estrutura intrin-secamente especulativa. Não é fixa nem dogmatica-mente certa, mas processa-se sempre como evento derevelação: o seu movimento resiste constantemente àfixidez dos juízos finais, à maneira talmúdica.

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classificação nessa escola não é possível demaneira nenhuma.6

Mas o positivismo lógico é apenas umadas variantes – decerto a mais importantedeste século – de positivismo que, incorpo-rando racionalismo e empirismo, reflecte so-bre os diversos domínios. A este respeito,parece ainda claro que Popper tinha umamuito própria noção de positivismo, a que,todavia, os seus opositores nesta disputa nãoaludiram de forma tão concreta e dirigida,como o fizeram em relação ao positivismológico.7 É neste sentido que, num momentoda sua comunicação, Adorno afirma ser a te-oria de Popper mais leve que o positivismocorrente, reportando-se então a nomes comoHans Albert. Como Adorno reconhece, Pop-per não se refere de forma irreflectida à neu-tralidade axiológica e, como veremos de se-guida (contrariamente ao positivismo cor-rente), confere mesmo importância aos sis-temas de valores presentes em cada época.8

2 O conhecimento da maispequena coisa

A teoria de conhecimento de Karl Popper foiapresentada em Tübingen sob a forma de 27teses conducentes a uma proposição, numaformalmente assumida preocupação de sim-plicidade, rigor e método. Enunciava as-sim Popper um método científico, com asdiversas etapas estruturadas em termos lógi-cos, cuja pretensão inicial ao nível de co-nhecimento era a resolução de problemas.

6Cfr. Frisby, David,Op.cit., pág. xi.7Ibidem.8Cfr. Adorno, T. W.,Op.cit., pág. 52, e Cfr. Pop-

per, Karl, “La logique des sciences sociales”, inDeVienne a Francfort, la Querelle Allemande des Scien-ces Sociales, págs. 83-84.

Avançou então com uma tese principal, que,no essencial, consistia em colocar sucessiva-mente à prova, tentando refutar, tentativas desolução dos problemas. Este colocar à provaera, assim, uma crítica factual (Sachlich) e,a partir dela, toda a crítica se constituiria emtentativas de refutação.9 O crescimento doconhecimento, diz Popper noutro momento,seria “o resultado de um processo muito se-melhante ao que Darwin designou por “se-lecção natural”, aqui uma selecção naturaldas hipóteses. O nosso conhecimento con-siste sempre em hipóteses cuja aptidão (com-parativa) se revela durante a luta pela exis-tência, uma luta competitiva que elimina ashipóteses inadequadas.”10

É neste sentido que Popper afirma que “onosso saber em mais não consiste que em su-gestões provisórias de solução”, até que umacrítica factual refute o que até aí era conhe-cimento. A forma de justificação é assima resistência dos nossos ensaios de soluçãoà crítica – a uma crítica objectiva, efectu-ada com instrumentos lógicos. Note-se aindaque tudo o que não for acessível à crítica fac-tual é eliminado como não científico, mesmoque apenas provisoriamente.11 Entramospois, embora de modo diverso, no famoso ejá antes abordado postulado de clareza witt-gensteiniana: de novo é válida a proposi-ção “Tudo o que pode de todo ser pensado,pode ser pensado com clareza. Tudo o quese pode exprimir, pode-se exprimir com cla-reza.”12 Um postulado em que o que nãotiver correspondência sensível, ou antes, o

9Cfr. Popper, Karl,Op.cit.,pág. 77.10Ibid., Objective Knowledge, Oxford, Oxford Uni-

versity Press, 1972, pág. 261.11Ibid., “La logique des sciences sociales”, pág. 77.12Wittgenstein, Ludwig,Tractatus, §4.116, págs.

63-64.

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que não for passível de sujeição à crítica fac-tual, não pode ser expresso com clareza. É aevidência, nesta perspectiva, que talha o dis-curso verdadeiro e eficaz, consagrado sobre-tudo através da construção lógica, e válidopara as circunstâncias possíveis e para os in-divíduos existentes, numa dada sociedade.

Karl Popper apresenta assim um “relati-vismo universal” para o conhecimento, umrelativismo histórico sem uma verdade ob-jectiva, mas apenas com verdades válidaspara cada século. No lugar de uma verdadeobjectiva como resultado, coloca Popper aobjectividade científica, sustentada por umatradição crítica que se instala em torno dedogmas que prevalecem, e marcada pela sé-rie de condições sociais e políticas que a tor-nam possível.13 É aqui que afirma Popper(o que o próprio Adorno realça) a importân-cia dos valores, presentes de forma lógica noprocesso de conhecimento: “a ausência dejuízos de valores é em si mesma um valor, ea exigência de uma ausência de juízo de va-lor é um verdadeiro paradoxo.”14

Mas o debate inicia-se verdadeiramentequando Adorno passa também ele a caracte-rizar o positivismo, reactualizando a denún-cia da natureza objectivada e da razão instru-mental. Com ironia, afirma que, para quemas contradições são anátemas, o positivismoé vítima inconsciente de contradição interna,na sua própria orientação fundamental: “so-nha com uma objectividade extrema, pur-gada de toda a projecção subjectiva”, con-tudo não hesita em recorrer à “particulari-dade de uma razão instrumental puramentesubjectiva.”15 Trata-se de uma crítica que,

13Cfr. Popper, Karl,Op.cit., págs. 81-82.14Ibid., pág. 84.15Adorno, Theodor,Op.cit., pág.11.

abarcando Carnap, se estende a Wittgens-tein (doTractatus, sobretudo), que acusa decriar uma tal tensão na pretensão de objec-tividade no espírito científico, que o resul-tado mais não foi que “esse paradoxo filosó-fico que constitui aaurawittgensteiniana”.16

Para Adorno, simplesmente, todo o objecti-vismo que acompanhou os movimentos ilu-ministas teve como contraponto um subjec-tivismo latente17 – um inevitávelreductoi ashominem,cuja crítica e refutação que viriama constituir a versão epistemológica da suaDialéctica Negativa.

Para além das evidentes diferenças de es-tilo (uma dimensão lógico-instrumental daescrita em oposição à interpretação dos tex-tos e à dimensão cultural e histórica dosproblemas), a diferença entre perspectivas

16Ibidem.17Também esta tese tem as suas histórias emblemá-

ticas, que mais não são que narrações não-objectivasda impossibilidade de objectivar (narrativas, entre ou-tras coisas). Paul Celan, por exemplo, apresentou asua versão:

“Ele pôs na balança virtudes e vícios, culpa e ino-cência, boas e más qualidades, porque queria certezasantes de se julgar a si próprio. Mas os pratos da ba-lança, com tais pesos, mantinham-se à mesma altura.

Como queria a todo o custo chegar a uma conclu-são, fechou os olhos e andou vezes sem conta à voltada balança, ou num sentido ou no outro, até já saberem qual dos pratos estava este ou aquele peso. Depoiscolocou, às cegas, num dos pratos a sua decisão de sejulgar a si próprio.

Quando voltou a abrir os olhos, um dos pratos ti-nha, na verdade, baixado, mas já não era possível re-conhecer qual dos dois, se o prato da culpa, se o dainocência.

Isto deixou-o zangado, recusou-se a ver nisso umavantagem e pronunciou a sua sentença, sem, contudo,poder evitar a sensação de estar eventualmente a co-meter uma injustiça.” “Contraluz” inArte Poética,O Meridiano e Outros Textos, Lisboa, Cotovia, 1996,págs. 25-26.

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é essencial ao nível dos argumentos: e as-sim, as representações wittgensteinianas nãopodem ser abordadas de maneira coerente.Possuindo regras, como um jogo, que va-lem tão só em si mesmas como um mo-mento no interior da realidade - como umfacto social- a linguagem separa-se de tudoo que não é dado por esse facto, e a re-flexão não poderá ultrapassar esse momentodo mundo, a que apenas temos acesso pelalinguagem. Isto é, a linguagem forma umcontexto imanentemente fechado, através doqual são mediatizados os momentos não lin-guísticos do conhecimento, e entre eles osdados sensíveis e evidentes.18 A este pro-pósito, Adorno aponta uma essencial contra-dição latente no apriorismo linguístico, quereconhece em Wittgenstein, quando este dizque tudo o que pode ser pensado o pode sercom clareza. Observa que decerto há esta-dos de coisas que são algo menos que claros,por vezes até mesmo confusos: “Nada ga-rante que eles [estados de coisas] se deixemexprimir com clareza.”19 É legítimo, no en-tanto, que a expressão se venha a adequar àcoisa – que possamos falar dela – fazendo-lhe justiça. E aí reside a contradição witt-gensteiniana: muitas vezes esse desejo declareza não é satisfeito senão gradualmente,e mesmo aí não com a clareza imediata quea expressão exigia noTractatus.20 Esta si-tuação, forçosamente assimétrica, desenha-se em torno de um outro princípio: a posi-ção adorniana defende que é a reflexão sobrea posição do conhecimento social, no inte-rior do que ele mesmo (conhecimento) co-nhece, que permite ultrapassar o estádio da

18Cfr. Adorno, Theodor,Op. cit., pág.22.19Ibid., pág.47.20Cfr. Wittgenstein, Ludwig,Tractatus, §4.116.

sistematização pura e simples. Também noTractatus, Wittgenstein afirmara que a pro-posição mais simples, a proposição elemen-tar, define a existência de um estado de coi-sas, fazendo eco do dogma cartesiano quedefendia ser o mais simples mais verdadeiro.Uma vez mais, neste “confronto”, simplici-dade é para os cientistas – e também Popperretoma este valor na quinta tese da sua expo-sição,21 - um importante critério valorativono processo de conhecimento, uma virtudecientífica. Ora, fora essa exigência de siste-matização e de simplicidade, apartada da re-alidade, que obrigara Wittgenstein ao para-doxo abertamente expresso na sua fase pos-terior (e de que demos conta em secções an-teriores), depois de testemunhar como a for-malização objectiva não pode ter a últimapalavra, ainda que sendo essa formalização“moldada” socialmente porque sancionadapela norma. Adorno exprime por isso a su-perioridade de Wittgenstein sobre os positi-vistas do Círculo de Viena: nesse momento,“o lógico apercebe-se do limite da lógica.”22

Adorno coloca então o problema em termosopostos. Existe algo nas formas da lingua-gem que escapa aos positivistas, e escapa-lhes por não estar inteiramente no dado fac-tual (pedra de toque da crítica metodológicadefendida por Popper, para além de essen-cial ao “jogo de linguagem” wittgensteini-ano), embora esteja na linguagem. Quantomais a linguagem se limita de forma estritaao dado factual, mais ela se destaca da “sig-nificação, para adoptar qualquer coisa comouma expressão.”23 Por outras palavras, “lite-ralidade e precisão não são a mesma coisa,

21Popper, Karl,Op.cit, pág.77.22Ibidem.23Adorno, Th.,Op. cit., pág. 47.

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vão antes em sentido contrário.”24 Em talprocesso, tornar-se-á, decerto, cada expres-são quantificável e simplificada, apropriadapara o conhecimento científico; “mas, se osteoremas sociais devem ser simples ou com-plexos, são os objectos que o decidem objec-tivamente.”25 O sentido que Adorno acusa aciência de seguir mais não é que o de umainteligibilidade universal e quase democrá-tica das operações de conhecimento e dasideias. O método lógico de redução a ele-mentos (de simplificação) a partir dos quaiso social é passível de ser construído eliminavirtualmente todas as contradições objecti-vas. Reina assim um entendimento tácito en-tre o elogio da vida simples e a preferência“anti-intelectual” pelo simples, como sendoo desejável para o pensamento.26 O ideal deobjectividade científica defendido por Pop-per, em que para cada momento é aceite con-sensualmente pela crítica (factual) científicauma proposta tida como universal, é recu-sado por Adorno. O conhecimento das re-alidades sociais objectivas, e assim a sua re-presentação pura, não pode em nenhum mo-mento ser quantificável em termos de con-senso objectivo. É que tal consenso objectivoé obtido em virtude de operações de pensa-mento mecânicas que, em acordo com o pos-tulado da simplicidade, negam involuntaria-

24Ibid., pág.34.25Ibid., pág.38.26Note-se, a este propósito, a excelente (e opor-

tuna) ilustração de Marcuse: “O intelectual é cha-mado a depor. Que quer o senhor dizer quando diz...?Não está a ocultar algo? O senhor fala uma lingua-gem suspeita. O senhor não fala como nós, como ohomem comum, mas como um estranho que não per-tence ao nosso meio. (...) Vamos ensiná-lo a dizer oque tem em mente, a ‘ser claro’ a ‘pôr as cartas namesa’.” (Marcuse, Herbert,O Homem Unidimensio-nal, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pág. 181).

mente a complexidade de conceitos em pro-veito da extrema operacionalidade (estabe-lecendo uma relação que, como noutro mo-mento diz Adorno, é semelhante à do ditadorcom os homens: “conhece-os na medida emque os pode manipular. O homem da ciênciaconhece as coisas na medida em que podefazê-las.”27 Ao assumir a simplicidade comoum dever para o próprio pensamento, o mé-todo lógico de redução recorre a elementosa partir dos quais se eliminam virtualmentecontradições. Refere-se Adorno à simplifi-cação de que são alvo conceitos como alie-nação, reificação, funcionalidade e estrutu-ralismo.28 O que traduz um processo emque ocorre desde logo a tentativa de dissolvera permanente e laboriosa tarefa da interpre-tação, assim convertida na identificação daessência das coisas sempre com o mesmo,onde, por fim, “oem sidas coisas se con-verte empara ele”29 - numa elucidativa si-metria das teses principais sobre a comuni-cabilidade da experiência.

Também Franz Kafka havia tido a percep-ção de como o conhecimento objectivo damais ínfima das partículas não é tarefa fácil– mesmo com o recurso à mais sistematizadacientificidade. É o que nos mostra no contobreve chamadoO Pião,30 onde narra a histó-ria do filósofo que “acreditava que o conhe-cimento de uma pequena coisa, qualquer queela fosse, até, por exemplo, um pião girando,bastava para o conhecimento do universal”, ecria ser desperdício a preocupação com gran-

27Adorno, Th. e Horkheimer, Max,Dialéctica dela Ilustración, Madrid, Trotta, 1994, pág. 65.

28Adorno, Th.,Op.cit., págs. 40-41.29Adorno, Th. e Horkheimer, Max,Op. cit., pág.

66.30Kafka, Franz, “O Pião”,in Histórias com Tempo

e Lugar, prosa de autores austríacos, pág. 159.

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des problemas. “Uma vez conhecida a maispequena das coisas, estava tudo conhecido,e daí ele [filósofo] ocupar-se apenas com opião a girar.” Só que não é tarefa fácil che-gar a esse entendimento. Naquele decisivo etão desejado momento, “davam-lhe náuseas,e a gritaria das crianças, que ele não ouviraaté então e que, agora, de repente, se lhe en-fiava pelos ouvidos, punha-o em fuga e lá iaele a cambalear, qual pião lançado por desa-jeitado baraço.” É este o marco que encerraa compreensão dentro de determinados limi-tes, mas que simultaneamente deixa algo emaberto: algo que pertence essencialmente (nosentido pleno do termo) à natureza das coi-sas. Era neste sentido que Gadamer citava H.Kuhn: “A lei é geral e por isso não pode fazerjustiça a cada caso particular.”31 E acrescen-tava ainda como esta questão tão pouco de-pende, por exemplo, da codificação das leis:qualquer codificação é apenas possível por-que as leis são em si mesmas, e pela sua es-sência, de carácter geral.32 O que nos indicauma conclusão: que, no plano da linguagem,todas as palavras são portadoras de sentidosvirtuais, e só a experiência da sua representa-ção consegue que se transformem em espaçode pura afirmação da linguagem. Ou ainda,como na oportuna expressão de Habermas,que “a imagem linguística do mundo aindaestá entrosada com a ordem do mundo.”33

3 Tempos da informação

Interessará, neste momento e de forma (ape-nas por ora) sumária, reflectir o alvorecer

31Kuhn, H., citado por Gadamer, H.-G.,Verdad yMetodo, pág. 615.

32Gadamer, H.-G.,Ibid., págs. 615 e segs.33Habermas, Jürgen,Discurso Filosófico da Mo-

dernidade, Lisboa, D. Quixote, 1990, pág. 116.

da nova forma de comunicação que surge,agora, associada à sofreguidão pela verdade:a informação. A informação, antecipemos,que no espírito objectivo do tempo surge nãosó como valor mas sobretudo como impera-tivo, vem tocar, precisamente, num dos vér-tices que nos tem sido caro na nossa análiseda linguagem, a comunicabilidade da expe-riência.

É no ensaioO Narrador que Walter Ben-jamin se refere ao bem sucedido advento dainformação, a nova forma de comunicaçãona época moderna, pretensamente rigorosa eisenta. Que, contudo, coincide com a deca-dência da narrativa. Mas convirá, antes demais, reter algumas palavras sobre a figuraem extinção do narrador, tal como Benja-min no-lo apresenta: “o narrador vai colheraquilo que narra à experiência, seja própriaou relatada. E transforma-a por vezes emexperiência daqueles que ouvem a sua his-tória.”34 Isto é, detém uma experiência que étransfere convertendo-a em experiência da-queles que ouvem a história. O primeirosinal da crise da narratividade é dado peloadvento do romance; ao nível da experiên-cia (tão fundamental, recordemos, para estaconcepção de pensamento e linguagem), oromancista é incomensuravelmente mais po-bre. A produção do romance é feita na pró-pria solidão do autor, a sua palavra não é já“tecida na substância da vida vivida”, e o ro-mancista perde a autoridade para se apresen-tar como exemplo. A experiência da leituraprescinde mesmo da figura romancista e, daexperiência da leitura, não há já uma recor-dação identificável com a acção; assim se

34Benjamin, Walter, “O Narrador”, inSobre Arte,Técnica, Linguagem e Política, pág.32.

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torna decisivamente mais pobre a experiên-cia individual.

Com a eclosão da técnica moderna, simul-taneamente alimentada e alimento da cres-cente exigência de conhecimento e rigor,surge uma nova forma de comunicação que,se com origens remotas, nunca encontraraambiente (que analisaremos adiante) tão pro-pício ao seu florescimento; essa forma decomunicação é a informação e o seu instru-mento a imprensa.

Vimos já que a narratividade dispunhade uma autoridade intrínseca, que lhe vinhatanto da figura do narrador e da experiênciada narração como da tradição; a sua autori-dade era credível e não necessitava de verifi-cação. Já a informação, contudo, tem que sercomprovada de imediato; para além de terque ser verificável, provada, demonstrada eplausível, necessita ser compreensível em to-dos os seus aspectos – clara e simples, dir-se-ia. Por ser fornecida impregnada de explica-ções leva à interpretação unívoca e pretensa-mente exacta. Contrariamente, na decadentenarrativa “o leitor tem a liberdade de inter-pretar as coisas como as entende e, dessemodo, os temas narrados atingem uma am-plitude que falta à informação.”35 Enquantoque a narrativa pede para ser lembrada, con-tada, interpretada e explorada repetidas ve-zes, sem perder nunca a sua força, a infor-mação vive da actualidade e esgota-se nessemomento. Fruto de uma época de progressoeconómico e de técnica industrial, afirmavaValéry como o homem de então já não se de-dicava a coisas que não pudesse abreviar;36

e era assim, de forma breve e imediata, quepretendia transmitir “o que há de puro ‘em

35Ibid., pág.34.36Citado por Benjamin,ibid., pág.38.

si’ nas coisas”,37 através da informação oudo relato. Pureza das coisas que não estavaao alcance da narrativa, dizia Benjamin nocapítulo IX d’ O Narrador: uma vez que “anarrativa tem marcadas as marcas do narra-dor, tal como o vaso de barro traz as marcasdas mãos do oleiro que as moldou.”

Apercebemos desde já a emergência, nestemomento da época moderna (primeira me-tade do nosso século), de uma forma decomunicação adequada aos novos tempos eàs suas exigências: a informação como va-lor, a quantidade como preferível, o rigorconjugado com a clareza, e simplicidade eunivocidade como imperativos. Tarefa quese nos afigura fundamental é, à luz do queda linguagem temos vindo a dizer, questio-nar a linguagem da actualidade e, intentandoum dos principais objectivos deste trabalho,compreender as suas possibilidades comuni-cativas.

4 Episteme e experiência

Mas retomemos: uma das característicasfundamentais do estilo filosófico de Witt-genstein é a frequência com que coloca ques-tões. Mais precisamente questões sem res-posta, ou questões que em si mesmas são res-postas. De um certo ponto de vista, as prin-cipais conclusões a tirar do confronto comas posições anteriores é que as questões dalinguagem são infinitamente mais complica-das e as respostas mais flutuantes e com-plexas do que as haviam desejado os neo-positivistas, Karl Popper e o próprio Witt-genstein doTractatus.

A superioridade essencial de Wittgensteinna sua fase posterior sobre a maior parte

37Ibid., pág. 37.

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dos pensadores contemporâneos foi já aquipor vezes considerada, e advém justamenteda percepção arguta da enorme complexi-dade dos problemas filosóficos em geral (eda linguagem em especial). Foi essa percep-ção que o conduziu a rejeitar como simplis-tas e redutoras todas as respostas clássicas,recusando-se a entrar na filosofia pela via ha-bitual. Wittgenstein continuou, não obstante,convicto de que as soluções – mas tão sóna medida em que são possíveis soluções -são simples, claras, completas e acessíveis aqualquer espírito preparado e atento. E aquireside (mais) um paradoxo a flutuar sobre asua obra, que passa por ser umas das maisdifíceis e obscuras, conforme referimos ini-cialmente.

A análise das abordagens neo-positivistasde Frege e Russell, o positivismo de Pop-per e os dois momentos de Wittgenstein nãoforneceram à linguagem a autocompreensãopara os seus problemas actuais, embora porrazões diferentes. Apesar da sua força, ob-servámos como a teoria da linguagem witt-gensteiniana da última fase se mantém encer-rada na dicotomia ‘sujeito-objecto’, uma ca-racterística do pensamento iluminista, maugrado a sua firme rejeição do cientificismopositivista. Ao perspectivarmos desse modoa nossa interpretação, não nos apercebemosdo poder e da ubiquidade da linguagem e daprópria história na nossa existência. A lin-guagem é vista como um objecto que comu-nica “significado”, e o homem como o pro-dutor de símbolos, sendo a linguagem o sis-tema com que domina os símbolos.

Mas já a rejeição desta dicotomia por partede Gadamer permite uma concepção maisapropriada aos nossos propósitos: a interpre-tação em geral é interpretação linguística, ecompreender é sempre experiência – na lin-

guagem, uma vez que toda a compreensão élinguística.38 O alcance desta superação parao nosso estudo é incontornável, e será alvode desenvolvimento posterior. Desde a Kanta Hegel, toda a filosofia idealista alemã havialegado a tese da identidade do sujeito e doobjecto como pressuposto necessário para aexistência da verdade. Isto fazia supor que osujeito que se conhece a si próprio deve, se-gundo a concepção idealista, ser ele própriopensado como idêntico ao absoluto: devepois encerrar em si o conhecimento univer-sal. Mas, deste modo, a consequência ine-vitável é a determinação de toda a relaçãoà experiência a partir daepisteme. O queGadamer põe então em evidência é o obs-táculo que consiste na crescente epistemo-logização da própria categoria de experiên-cia: trata-se de “uma categoria de experiên-cia (...) inteiramente orientada para a ciênciae que não leva em conta, por consequência,a historicidade interna da experiência, pois oobjectivo da ciência é o de objectivar a ex-periência para a despojar de todo o elementohistórico”.39 Como é dito no trabalho con-junto de Adorno e Horkheimer, “a creduli-dade, a aversão à dúvida, a precipitação nasrespostas, (...): todas estas atitudes e outrassemelhantes terão impedido o feliz matrimó-nio do entendimento humano com a naturezadas coisas, antes o ligando a vãos conceitose experiências sem plano.”40 E experiência,como vimos anteriormente, não é um tipode conhecimento fora da história, do tempo,abstracto e fora do espaço, onde uma cons-ciência vazia e não localizada recebe percep-ções – antes é algo que acontece aos seres

38Cfr. Gadamer, H.-G.,Op. cit., pág. 317.39Ibidem.40Adorno, Th, e Horkheimer, Max,Op. cit., pág.

59.

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humanos possuidores de vida e de história.Pela ausência de plano e de localização noespaço e no tempo ocorreria a insidiosa massimultaneamente irresistível acusação: “Ummatemático não tem ar de coisa nenhuma;isto é, tem um ar inteligente de um modotão geral que não faz nenhum sentido!”, acu-sação proferida tão violenta quanto oportu-namente por Walter, personagem desse vastofresco da cultura ocidental que éO HomemSem Qualidadesde Robert Musil. Que ex-plicita: “um matemático percebe tanto dascoisas que lhe dizem respeito como as pes-soas virão a perceber acerca dos prados, dasgalinhas e das vitelas quando as pílulas vi-taminadas tiverem substituído a carne e opão!”41 O positivismo moderno surge as-sim como arguente no momento do divór-cio entre a exigência cientificista do saber(em que “não deve existir nenhum mistério,mas nem tampouco o desejo da sua revela-ção”)42 e uma outra forma de procura da ver-dade, que rompe de forma evidente contrao destino factual e instrumental da Razão.43

Historicamente, esta clivagem teria atingidoum momento de irreversibilidade a partir daI Guerra Mundial, momento em que, reto-mando o ensaio de Benjamin sobre oNarra-

41Musil, Robert,O Homem sem Qualidades,I vol.,Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pág. 75.

42Adorno, Th. e Horkheimer, Max,Op.cit., pág.75.

43Ocorre, a este propósito e acerca dos livros comopaixão, o admirável texto de Benjamin, “Desempaco-tando a minha biblioteca”: “O nosso único conheci-mento exacto – disse Anatole France – é o do ano depublicação e o do formato dos livros. (...) A época,a região, a arte, o dono anterior, (...) todos esses de-talhes se somam para formar uma enciclopédia má-gica, cuja quintessência é o seu destino de objecto.”in Obras Escolhidas II, Brasília, Editora Brasiliense,1987, pág.228.

dor, ao fragor das novas máquinas de guerraque a técnica possibilitara apenas respondiaa mudez dos homens, tão “mais pobres emexperiência comunicável”.44 Iniciava-se adominação da actualidade pela técnica e peloprogresso, a destruição da experiência (ou,pelo menos, da experiência da experiência) ea consequente crise da narratividade, com aimposição de uma linguagem instrumental eepistémica como sendo a única aceitável.

É assim que em Tübingen se opõem doisconceitos de crítica: onde Popper entendeum mecanismo racional para pôr à prova pro-posições gerais da ciência,45 Adorno entendea crítica e o desenvolvimento da realidadeatravés do seu conhecimento, o que implicatomar em consideração a mediação social.46

Quatro anos antes, uma frase de Adorno -“incondicionalmente, a teoria é a crítica”47

- soara como uma chamada à necessidadede questionar a autoridade não questionadada indústria da ciência. De novo a partir deMusil - através de Ulrich, principal perso-nagem do admirávelO Homem sem Quali-dades- colhemos a marca clara deste mo-mento: “Ulrich recordava-se muito bem damaneira como a incerteza recuperara o seulugar. Surgiam cada vez com mais frequên-cia as declarações nas quais as pessoas queexercem uma profissão bastante incerta, po-etas, críticos, mulheres, ou aqueles cuja vo-cação é formar novas gerações, se lamenta-

44Cfr. Benjamin, Walter, “O Narrador”, pág. 28.45“Livra-te de dar rédea solta à tua razão”, advo-

gava neste sentido Karl Kraus, razão que com exube-rância desencantava o mundo.

46Cfr. Dahrendorf, Ralf, “Comentaires sur les dis-cussions de Tübingen”, inDe Vienne Franqfort, laquerelle allemande des sciences sociales, pág. 116.

47Citado por Assoun, Paul-Laurent,A Escola deFrankfurt, Lisboa, D. Quixote, 1989, pág. 63.

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vam de que a ciência pura era um venenoque corroía as grandes obras dos homenssem ser capaz de as recompor e apelavampara uma nova fé, para um regresso às fon-tes interiores, para um renovo espiritual e ou-tras histórias do género.”48 A causa suben-tendida continua ainda hoje, naturalmente, aser alvo de debate, mas para Ulrich era ób-via: “a ciência começava a passar de modae o tipo de homem indefinido, que caracte-riza a nossa época, principiava a impor-se.”49

Se a Teoria Crítica da Sociedade se assumeainda como uma das referências mais mar-cantes do pensamento social do nosso sé-culo, a sua posição é também incontornávelno caso dos estudos da comunicação e da lin-guagem. A crítica que moveu à por si deter-minada indústria da cultura50 não deve de al-gum modo ser considerada como momentosimplesmente acessório da reflexão social;para além disso é um contributo essencialpara a posterior definição adorniana de umaestética da negatividade. Ora, é esta perspec-tiva que veremos profundamente enraizada,por seu lado, numa análise muito pessimista

48Musil, Robert,Op. cit., pág. 306.49Ibidem.50A expressão foi usada pela primeira vez naDia-

léctica do Iluminismo, escrita por Adorno e Horkhei-mer em 1944 e publicada em 1947. Num texto de1963, Adorno explicita as razões da escolha: “Nosnossos rascunhos, falava-se de cultura de massa.Substituímos essa expressão por ‘indústria da cul-tura’, para obstar de antemão à interpretação que égrata aos defensores desta causa: a de que se tratade qualquer coisa que surge espontaneamente a partirda própria massa, a forma presente da arte popular, aforma presente da arte popular. A indústria da cul-tura distingue-se desta. (...) A indústria da cultura é aintegração deliberada dos seus consumidores a partirdecima.” Adorno, Theodor, “Culture industry recon-sidered”, inThe Culture Industry, Selected essays onmass culture, Londres, Routledge, 1996, pág. 85.

- realizada por diversos movimentos a que seconvencionou agrupar sob o denominador de“modernismo” - da problemática da comuni-cação na sociedade moderna, onde a tónicafoi de forma inequívoca colocada numa re-cusa dos processos de mercantilização dasdiversas instâncias culturais.

No complexo debate ainda em curso, asposições críticas então assumidas por estacorrente são decerto de discutível actuali-dade, como aliás até pela sua natureza dia-léctica se afigura natural; contudo, tais posi-ções não poderão deixar de constituir pontode referência e sinal de aviso que não podemser ignorados, sobretudo numa actualidadede incontornável configuração mediática.

5 Do debate sociável à mediaçãosolitária

A universalização e massificação dos pro-cessos de comunicação, sobretudo a partirda introdução das novas técnicas industri-ais de reprodução, viria a levar a sociedadecapitalista a um estado em que Jurgen Ha-bermas diagnosticou a “desagregação do es-paço público”. Com efeito, concluídos osprocessos de acumulação e de concentraçãode capital, os conflitos que começaram porexplodir no mundo do trabalho alargaram-se ao universo político, e atingiram a opi-nião pública: a generalização dos conflitosde interesses, sob a forma de luta de clas-ses, resulta na pulverização do espaço pú-blico.51 Em rigor, Habermas entende por es-paço público “o domínio da nossa vida so-cial onde pode formar-se algo como uma es-

51Cfr. Pissarra Esteves, João,A Ética da Comuni-cação e os Media Modernos, Lisboa, Fundação Ca-louste Gulbenkian, 1998, págs. 209-210.

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fera pública”,52 e a sua dimensão instituci-onal deve ser considerada em sentido am-plo, uma vez que compreende todas as for-mas de mediação entre os particulares e oEstado; os seus órgãos são os que servempara que o público se comunique, funçãoonde naturalmente os media (e a imprensacomo primeiro grandemediummoderno) as-sumem um papel decisivo.53 Habermas ob-servou então a existência de uma autonomiaprivada, na qual se conjugam três estadosdo conceito de humanidade (que se preten-dem estendidos a todos os homens), e quedefinem o sujeito enquanto ser humano: sãoeles o livre arbítrio, a comunhão de afecto ede formação. Subsiste nesse momento “umaemancipação que ainda ressoa quando se falado puramente ou “simplesmente humano”,uma interioridade a desenvolver-se segundoleis próprias e livre de finalidades externasde qualquer espécie.”54 Neste contexto his-tórico em que Habermas situou a formaçãodo conceito de “esfera pública”, restringidode forma explicita ao modelo liberal clássicoda sociedade burguesa tal como se constituiuno século XVIII, a esfera pública pretendia,de forma progressiva, instaurar uma autori-dade racional em última análise sobrepostaà autoridade do Estado. A opinião públicasurgia então como instância do ‘saber’ dosfactos, em oposição à legitimidade do ‘que-rer’, esta a modalidade atribuída ao sobe-rano. Aqui, a orientação era no sentido deum ideal de acessibilidade universal, de eli-minação de privilégios e de legitimação raci-

52Habermas, Jurgen,Mudança Estrutural na Es-fera Pública, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro,1984, pág.14.

53Cfr. Ibid., págs. 14-15.54Ibid., pág. 64.

onal.55 Ora, é o momento em que este idealse revela minado por interesses particulares– o que é exemplificado por Habermas nacomercialização da imprensa – que marca osurgimento de uma verdadeira indústria daconsciência, que se exprime na formação deum falso consenso (manifestação da particu-laridade dos interesses capitalistas), em tudooposto ao consenso livre e racional do idealburguês clássico.

Assim, de forma progressiva, o espaço pú-blico autonomiza-se primeiro, e transforma-se depois, de modo a garantir a circulaçãogeneralizada da opinião.56 Até aí veículo daopinião produzida em espaços públicos dedebate, de confronto e de convívio, a im-prensa passa então a ser, pouco a pouco, pro-dução de opinião em si mesma, mas opiniãocomposta e recomposta em acordo com pa-drões predefinidos, sem outra função que apassiva acomodação ao público e a circula-ção generalizada, numa lógica em muito se-melhante à das leis da mercadoria. Todo otrabalho de elaboração racional e colectiva,orientado pelos ideais iluministas, ficou re-servado, de então em diante, a uma novaclasse especializada: a dos profissionais dainformação, demonstrada e plausível.

A função mediadora passa do público paraaquelas instituições que, como as associa-ções, se constituíram a partir da esfera pri-vada ou, como os partidos, se constituíram apartir da esfera pública. No decurso desteprocesso, as instâncias proprietárias destenovo espaço preocupam-se em recorrer aosmedia mais favoráveis,“no sentido de ob-ter do público mediatizado um assentimentoou ao menos uma tolerância.” Em suma, a

55Cfr. Ibid., págs. 213 e segs.56Cfr. Ibid., págs. 68-70.

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referida publicidade “é desenvolvida comoque do alto para criar uma aura degood willpara certas posições.” Donde, “está reben-tado o campo de ressonância de uma camadaculta criada para usar publicamente a razão”e, desde então, é “a esfera pública [que] as-sume funções de propaganda”,57 difundindoatravés dos media uma “cultura de integra-ção”. Ao mesmo tempo, o público perde opoder crítico sobre os produtores dos diver-sos discursos; os media captaram, pouco apouco, e absorveram depois a maioria doscanais que tradicionalmente serviam para aprodução e difusão da informação. Consti-tuíram um espaço abstracto, anónimo e deninguém, que substituiu o anterior espaçoconcreto da partilha intersubjectiva, própriodo debate intersubjectivo.58 Por outras pa-lavras, é o “fim dos cenários interiores comoredutos do imaginário, mas também como le-gitimação dos comportamentos”;59 o fim dohomem iluminista orientado na sua formaçãoe acção a partir da interior reflexão racional,desde agora substituído pelo sistema de ori-

57Ibid., pág. 207-210.58No seu estudo sobre a mudança de carácter na so-

ciedade americana, David Riesman mostrou com cla-reza este aspecto. Ao analisar as funções socializa-doras do impresso na orientação da acção e do pen-samento do indivíduo, Riesman referiu como o leitorpodia encontrar na imprensa refúgio às críticas dosvizinhos, ao mesmo tempo que punha à prova a pró-pria orientação a partir dos modelos que a imprensalhe ia fornecendo. O seu desempenho público, ape-nas eventual, ocorria quando escrevia ele próprio paraa imprensa, na figura de correspondente local. Nãopassava, ainda assim, de um desempenho ‘público’sem face a face, impessoal. Riesman, David et all,AMultidão Solitária, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971,págs. 152-154.

59Breton, Philippe,A Utopia da Comunicação, Lis-boa, Piaget, 1994, pág. 123.

entação externa da acção humana, a partir doque lhe é dado a consumir pelos media.

Surge neste momento uma certa inte-lectualidade que progressivamente se isola,“deixada para trás” no dito de Habermas,estabelecendo-se a distância crescente entreas minorias críticas e produtivas, sem verda-deiro acesso aos media, e o grande público,alvo preferencial (e exclusivo) dos meios decomunicação de massa, ponto de partida parauma percepção adorniana de “neutralizaçãoda cultura”. A desagregação da esfera pú-blica liberal clássica, expressa pela teoriza-ção de Habermas, corresponde à lógica pro-funda daDialéctica do Iluminismo, avan-çada na célebre análise conjunta de Theo-dor Adorno e Max Horkheimer: a lógicada razão instrumental obrigou a uma totalfuncionalização dos processos de produçãoe de troca de sentido, sujeitos a uma ero-são que, em última análise, os reduziu auma simples mecânica. A sua aparente dinâ-mica e mobilidade mais não é que a do mer-cado capitalista, possuidor de um “catálogoexpresso e implícito” homologador do tole-rado e do proibido, e que fixa positivamentemesmo a própria linguagem, com as respec-tivas sintaxe e semântica.60 A este propó-sito diz Marcuse, traduzindo a voz da razãoinstrumental: “O senhor não fala como nós,como o homem comum, mas como um es-tranho que não pertence ao nosso meio. Te-mos de reduzi-lo às suas devidas proporções,desmascarar os seus truques, expurgá-lo.”61

Porém, o próprio Habermas viria ainda, 30anos depois, a rever criticamente o seu pen-samento quanto a estas questões, nomea-

60Cfr. Adorno, Theodor e Horkheimer, M.,Op.cit., págs. 172-173.

61Marcuse, Herbert,Op. cit.,pág. 181.

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damente acerca da avaliação do comporta-mento do público. Com efeito, na épocada sua primeira análise da esfera pública, atelevisão dava ainda os primeiros passos ea influência da teoria da cultura de massade Adorno era demasiado marcante. Alémdisso, Habermas considera ter subestimadoa influência do desenvolvimento do ensino,factor que viria a ter importante reflexo querna mobilização cultural como no desenvol-vimento do espírito crítico. Por isso, o di-agnóstico de uma evolução linear de um pú-blico politicamente activo para um público‘privado’, de uma racionalidade sobre a cul-tura a um consumo da cultura, é demasiadoredutor. E assim, afirmará agora: “Avalieide forma demasiado pessimista a capacidadede resistência, e sobretudo o potencial críticode um público de massa pluralista e larga-mente diferenciado, que desenha as frontei-ras de classe nos seus hábitos culturais.”62

6 A cesura epistémica

Mediante a categoria da razão instrumentaldeve então compreender-se uma dupla di-mensão do processo civilizacional: a trans-formação da natureza externa (tecnologia,indústria, domínio da natureza) e a transfor-mação da natureza interna (individuação, re-pressão e formas de domínio social). Ora, opreço a pagar pelo domínio da natureza ex-terna ameaça com a destruição da subjecti-vidade dos sujeitos que assim empenham asua emancipação. No breve ensaio intituladoA Vida dos Estudantes, Walter Benjamin tembem presente esta percepção; observa sobre-tudo como “na maioria dos casos, o desem-

62Habermas, Jurgen, ““L’espace public”, 30 ansaprès”, inQuaderni no 18, 1992, pág. 174.

penho social do homem comum serve pararecalcar as aspirações originais e autênticasdo homem interior”, e verifica com pesarcomo “a submissão acrítica e sem resistên-cia a esse estado de coisas é um traço es-sencial” da vida dos estudantes alemães doinício do século.63 Conviria ainda, neste mo-mento, tornar presente a distinção haberma-siana entre acção instrumental e acção comu-nicativa: por dimensão de acção instrumen-tal considera uma extensão do âmbito da téc-nica e um incremento das capacidades de di-recção e de cálculo; já na dimensão da acçãocomunicativa, a racionalidade identificar-se-ia com os processos de emancipação e indi-viduação, e com a correspondente ampliaçãodas esferas comunicativas, livres de outrodomínio. Em suma, é o retomar de uma dife-renciação antes iniciada, que devemos reava-liar à luz de ‘razão técnica’ e ‘razão prática’,‘saber produtivo’ e ‘saber reflexivo’ e, porfim, de ‘racionalização’ e ‘emancipação’.64

Deste modo, para retomar a oposição tam-bém feita por Walter Benjamin no texto so-bre a vida dos estudantes, a experiência cria-dora é substituída pela vivência, a existênciade criador pela de procriador, ou ainda, dá-sea “deformação do espírito criador em espí-rito profissional”.65 Estas considerações evi-denciam desde já a urgência em desenvolvertambém uma teoria da linguagem adequadaaos novos fundamentos.

Ponto assente é que o cerne da questão

63Benjamin, Walter, “A vida dos estudantes” inDo-cumentos de Cultura, Documentos de Barbárie, S.Paulo, Editora Cultrix, 1986, págs. 152-153.

64Cfr. Wellmer, Albrecht, “Comunicatión y eman-cipación”, inIsegoría, o, Barcelona, Instituto de Filo-sofia, 1990, págs. 29-32.

65Benjamin, Walter, “A vida dos estudantes”, pág.155.

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está em que o homem moderno já não se regepelas leis universais da razão. A este pro-pósito, Max Horkheimer escreve: “Durantemuito tempo, a palavra ‘razão’ significou aactividade de conhecimento e de assimilaçãodas ideias eternas que deviam servir de fi-nalidade aos homens. Hoje, pelo contrário,já não é apenas o papel, mas o trabalho es-sencial da razão encontrar meios ao serviçodos fins, que cada um adopta num dado mo-mento.”66 Face à crítica realizada pelos teó-ricos de Frankfurt, vemos pois como este fe-nómeno vai favorecer a submissão dos sujei-tos, pretensamente emancipados, a estruturassociais escravizantes. E é então que quemnão se adapta a tal dinâmica é reduzido a umestado de impotência, económica em certoscasos e espiritual noutros, que dá lugar àsfiguras do falido ou do solitário. Aparente-mente sem outra solução (dita normal) pos-sível, depois de ser “excluído da indústria, éfácil convencê-lo [ao indivíduo] da sua in-suficiência”.67 Enquanto elemento nuclearduma nova “sociedade total”,68 a indústriada cultura é analisada como um verdadeiromecanismo de manipulação, que não admitecontradições por residuais que sejam. As

66Horkheimer, Max, citado por Touraine, Alain,Crítica da Modernidade, Lisboa, Piaget, 1996, págs.183-184.

67Adorno Th. e Horkheimer, Max,Op. cit., pág.178.

68O conceito de “sociedade total” ou “mundo ad-ministrado” surgiu a partir da década de 40 com cres-cente insistência no discurso dos membros do Insti-tuto de Pesquisa Social (Institut fur Sozialforschung),e radica na desilusão pelo fracasso da experiência so-cialista na União Soviética e das vanguardas revoluci-onárias europeias. A partir desses anos, os membrosdo Instituto irão pôr em causa a própria noção de su-jeito revolucionário, cujo desaparecimento numa so-ciedade massificada acabarão por postular.

consequências deste mecanismo no domínioda linguagem são muito claras e remete-nosde novo para o espaço delimitado da lingua-gem instrumental. Aqui, a transgressão dalocução para além da estrutura analítica fe-chada é incorrecta e, nesse universo de lo-cução pública, a palavra move-se entre si-nónimos e tautologias; por fim, o conceito- fechado, ritualizado e repetidamente ‘mar-telado’ – é tornado imune à contradição.69

Poucos anos depois, no final dos anos 50 e apropósito do aparecimento de um outrome-dium, a televisão, Adorno criticava o uso quedela se fazia. Justamente pela moderna su-perficialidade com que os assuntos são apre-sentados e recebidos, a televisão mostrava-sevocacionada para difundir ideologias e ori-entar de modo falso a consciência das pes-soas. Uma ideologia difundia ela, antes detudo: tornava o mundo homologado, em-bora feliz, pela manipulação dos seus dese-jos;70 um mundo dominado a nível ideoló-gico pelo“Grande Irmão” de1984, romancede George Orwell, em que o real se pretenderacional (cuja crença promove justamente aConsciência Feliz marcuseana), e em que aracionalidade tecnológica se traduz em com-portamento social.

7 Linguagem e negatividade

Ao ser submetida à lei da mercadoria, tam-bém a linguagem se torna cúmplice de umalógica de feiticização, que faz com que osvalores e relações reais com as coisas querepresenta surjam deslocados e escondidos,no jogo in-significante da repetição (“para

69Marcuse, Herbert,Op.cit., pág. 95.70Adorno, T.W., “Televisón y formación cultu-

ral”, in Educación para la emancipación, Eddicion-nes Morata, s/d, págs. 51-53.

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mostrar a divindade do real mais não há querepeti-lo cinicamente até ao infinito”)71 e doestereótipo. Este último é mesmo a “pedra”convertida em pão com que a indústria cul-tural alimenta os homens, uma pedra que, sevazia de sentido, era acima de tudomediumou instrumento a apontar para algo bem con-creto.72 A dinâmica deste processo passa porlevar as instâncias diversas da comunicação aacomodarem-se passivamente aos papéis quede antemão lhes estão reservados; a ideolo-gia exigeprevisãosocial, e por isso o indiví-duo deve ser consciente da sua própria nuli-dade, subscrever a sua própria derrota, sendoque é a sua falta de resistência que o quali-fica como membro de confiança.73 É face aeste estado de coisas que a atitude do artista(e do criador em geral) modernista, reflectidapela teorização adorniana, se traduz no recuopara uma esfera já só pensável como “antí-tese social da sociedade”, numa recusa ve-emente da instrumentalização avançada pelapretensa racionalidade das formas de comu-nicação dominantes. Esta recusa é a únicaforma de manter aberto um espaço de utopia;nele, a criação funciona ainda como expres-são negativa com potencialidades essenciais.Como é defendido (entre outros) no célebretexto daindústria da cultura, a cultura, num

71Adorno Th. e Horkheimer, Max,Op.cit., págs.192-193.

72Ibid., págs. 192-193.73Cfr. Ibid., pág. 197 e segs. Neste sentido, é de-

saconselhado todo o comportamento não ‘alinhado’,dissociado. É uma ideia recorrente no pensamentocrítico, e que se dissemina por múltiplas direcções,sociais ou epistemológicas. Retenha-se, pois, a con-sideração geral: “A atitude mais vituperada, a misan-tropia, reprimida no inconsciente, domina este mundoda divisão de classes e da competência.” Horkheimer,Max, Historia, metafísica y escepticismo, Barcelona,Altaya, 1988, pág. 169.

certo sentido, não se acomoda a si própriaaos homens, simplesmente; antes surge mui-tas vezes em protesto contra as relações pe-trificadas sob as quais esses homens vivem.74

Esta posição é recorrente desde as origens daModernidade, e encontra-se bem vincada naDialéctica do Iluminismo: “Noutro tempo, aoposição do indivíduo à sociedade constituíaa sua substância”,75 o que parte já da exal-tação de uma citação de Nietzsche. Aqui, éjá tempo do conformismo, tempo em que oreal é ‘racional’ ao mais alto nível. Nestesentido, considerámos a pergunta gadame-riana como a implicação de uma negativi-dade da experiência hermenêutica; o hori-zonte hermenêutico é o horizonte das per-guntas e respostas, mas numa estrutura cujoimpulso – a pergunta – representa justamenteum não querer integrar de forma imediata asopiniões prévias, mas que antes move paranovas experiências. A negatividade da expe-riência implica a pergunta e a resposta, aliásnuma lógica que reactualiza de modo surpre-endente a forma dos diálogos platónicos.76

Pelo contrário, a partir da análise feita à in-dústria cultural constatamos como o indiví-duo só é tolerado enquanto a sua identidadecom o universal estiver fora de dúvidas. Estesentimento assume uma força extraordináriana obra de outro teórico do Instituto de Pes-quisa Social, Herbert Marcuse; a tese cen-tral da sua obra principal,O Homem Uni-dimensional,é precisamente a preponderân-cia da consciência feliz num pensamento emque a racionalidade tecnológica e instrumen-tal é a única dimensão. Há a “grande recusa”

74Cfr. Adorno, Theodor, “Culture Industry recon-sidered”, págs. 85-86.

75Adorno e Horkheimer,Op. cit., pág. 198.76Cfr. Gadamer, Hans-Georg,Verdad y Metodo,

págs. 444-447.

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pela sociedade moderna da “recusa”, e assimo pensamento negativo é substituído pelosexercícios do pensamento instrumental. Se“na verdade, a cultura superior esteve sem-pre em contradição com a realidade social(...) a característica principal actualmente é oaplanamento do antagonismo entre cultura erealidade social por meio da obliteração doselementos de oposição (...), em virtude doque ela [cultura superior] constituiu uma ou-tra dimensão da realidade.”77 Mas essa liqui-dação da cultura bidimensional, acrescentaMarcuse, não se deveu à negação ou à re-jeição dos valores culturais, que seria umaforma de pensamento negativo: antes ocor-reu pela incorporação destes na ordem esta-belecida, pela sua reprodução e pela exibiçãoem escala maciça “marteladas e remartela-das”.

Bem ao contrário do modelo do pensa-mento negativo, uma análise da indústria dacultura vem mostrar como ela se aproximoudaquilo que hoje se entende por relações pú-blicas, no elementar sentido de procurar con-sensos e boas vontades (“good-will”), tendocomo irrelevantes todas e quaisquer questõescomplexas ou particulares, que não de fá-cil e imediato entendimento.78 Neste con-texto, a posição consciente da massa acercade qualquer acção de resistência é pronta ebem clara (imediata): “quem ante a potênciada monotonia ainda duvida, é um louco”,79

e assim a unidimensionalidade cultural maisnão é que instrumento ao serviço da coesãosocial.

77Marcuse, Herbert,Op. cit., págs. 69-70.78Cfr. Adorno, Th.,Op. cit., pág. 276.79Adorno Th., e Horkheimer, Max,Op.cit,

pág.192.

8 Ilusões comunicativas

A nova ideologia (de laivos cientificista)a que a Teoria Crítica da Sociedade seopõe considera ainda o mundo como ob-jecto, como vimos numa parte anterior.Deste modo se adopta o culto do facto,valorizando-se sempre a exposição maisexacta possível, no reino bem concreto dosfactos. Neste sentido, a indústria da cul-tura tende a apresentar-se como um con-junto de proposições protocolares, e assim,a assumir-se glorioso“profeta irrefutável doexistente”. Mediante esta transposição, arealidade mesma converte-se em sucedâneodo sentido, e palavra que não émediumouinstrumento não tem sentido: cada palavraconverte-se em “proclamação energética esistemática do existente”, e exibe uma aver-são “quase científica a comprometer-se comalgo que não possa ser verificado”,80 reac-tualizando em pleno o sentido wittgenstei-niano formulado noTractatus. Marcuse co-loca claramente a tónica da questão: “o ca-rácter anticientífico dessas ideias [Belo, Jus-tiça e Paz] enfraquece fatalmente a sua opo-sição à realidade estabelecida; (...) e o seuconteúdo concreto e crítico evapora-se na at-mosfera”.81 Os conceitos, como vimos nou-tro momento, são ritualizados e imunizadosà contradição. Nos limites, Marcuse apontaa eclosão de uma “linguagem orwelliana” fa-miliar, que conduziria à consagração geralde “mentiras pela opinião pública e privada,[com] a supressão do seu conteúdo monstru-oso.”82

Assumindo até às últimas consequências aextensão deste estado de coisas, no domínio

80Ibidem.81Marcuse, Herbert,Op. cit., pág. 145.82Ibid., pág. 96.

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da linguagem também onome(a que o carác-ter mágico estaria associado, como mostrouBenjamin antes) sofre uma profunda e essen-cial “mudança química”. Assume a formadas tais “etiquetas arbitrárias e manipuláveis,cuja eficácia pode ser calculável”, é estili-zado e assim reduzido a sigla publicitária (nosentido de uma veloz circulação pública). Asignificação é a função única admitida pelasemântica, e realiza-se perfeitamente sob aforma de sinal. Um sinal marcado pela ra-pidez com que circula e se repete, num pro-cesso que favorece a utilização universal dedeterminados termos, que vimos tornados fa-miliares de forma (embora) cega mas veloz.

Além disso, mas de importância essencialpara as concepções de linguagem que temosvindo a desenvolver, ao privilegiar a instru-mentalidade e o uso universal, “o extracto deexperiência que fazia das palavras palavrasdos homens que as pronunciavam foi intei-ramente alienado, e na sua pronta assimila-ção adquire a linguagem aquela frieza queaté agora só caracterizava as colunas publici-tárias e as páginas de anúncios dos jornais.”83

A Teoria Críticaaceita conscientemente,a partir desta asserção, o risco da incomu-nicação, e entrincheira-se numa intransigên-cia metodológica que visa salvaguardar, con-tra a mercantilização da linguagem, a insi-tuável diferença do sentido, num tempo emque “não é possível já perceber nas palavrasa violência que sofreram.”84 Em muitas pa-lavras – algumas, como ‘memória’, são ci-tadas como exemplo – ter-se-á suprimido oúltimo vínculo entre a experiência sedimen-tada e a língua. Mas para o redactor, figura

83Adorno, Th. e Horkheimer, Max,Op. cit., pág.211.

84Ibidem.

que adiante será especialmente visada e aque também alude a parte final do texto daindústria da cultura, para ele “as palavras ale-mãs petrificaram-se e convertem-se subrep-ticiamente em palavras estrangeiras”,85 dasquais não apreende já o sentido, mas quemesmo assim utiliza com notável e descom-prometido à-vontade. É este o fundamentoprincipal do violento requisitório que Krausdirigiu à actividade jornalística, fazendo do‘abastardamento’ da língua o suporte da suacrítica. Com veemência, denuncia: “Heinealargou tanto o corpete à língua alemã (...)que hoje qualquer caixeiro [leia-se jorna-lista] pode mexer-lhe nos seios.”86

Mais uma vez, esta é uma posição que ex-prime de forma clara o estatuto problemá-tico da comunicação e a precaridade de fi-guras como o artista ou o criador na socie-dade moderna, num tempo que terá perdidoo seu carácter criativo, e culminará com a fa-mosa sentença de Adorno sobre a impossi-bilidade da poesia depois de Auchwitz. JáHabermas havia focado bem este aspecto,e situara a origem deste tempo (com Ar-nold Hauser) por volta da metade do séculoXIX: um tempo em que “o reconhecimentopublicitário-jornalístico do artista e da obraestá apenas ainda numa relação ocasionalcom o reconhecimento deles pelo grande pú-blico.”87 Mas, como tem sido aludido, é aaguda consciência de crise que afirma fre-quentemente a tentação do silêncio. Nãofoi “apenas depois de Auchwitz” que pôdelevantar-se a questão do carácter problemá-tico da arte, numa sociedade marcada pela

85Ibidem.86Kraus, Karl, citado por Ribeiro, Ant. Sousaet

all, Histórias com Tempo e Lugar, pág. 290.87Habermas, Jurgen,Mudança Estrutural na Es-

fera Pública, pág. 206.

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barbárie: Auchwitz só pôde surgir no seio deuma sociedade em que por acção dos meca-nismos da indústria da cultura, se gerou umfalso colectivo que alienou toda a capacidadecrítica (uma importante tese que adiante de-senvolveremos), esse falso colectivo perso-nagem central dos textos krausianos.88

9 A inutilidade social do discursoestético

Recuando a essa época situada por Haber-mas e a um autor unanimemente conside-rado como representativo de um certo mo-dernismo, é já essa mesma a questão que en-contramos levantada num dos projectos deprefácio paraAs Flores do Mal(1861) deCharles Baudelaire: “Eu sei que o apaixo-nado pelo belo estilo se expõe à cólera dasmultidões. Mas nenhum respeito humano,nenhum falso pudor (...), nenhum sufrágiouniversal me constrangerão a falar opatois(dialecto) incomparável deste século”. E as-sim Baudelaire escreveu este livro, “essen-cialmente inútil”, para não mais que se “di-vertir” e exercer o “gosto apaixonado pelo

88Numa posterior análise crítica à actividade jorna-lística, ver-se-á que Benjamin, no texto sobre a obrade arte na era da reprodutibilidade técnica, acusa jáa linguagem de preparar o caminho para a agressãoe para a desumanização do homem – onde a guerra,como esteticização da vida política, seria o ponto cul-minante. Karl Kraus é mais conciso: “Através de umaprática de decénios, ele [repórter] levou a humani-dade precisamente àquele estado de falta de fantasiaque torna possível uma guerra de extermínio contrasi própria. Já que, com a rapidez desmedida das suasengrenagens, lhe poupou toda a capacidade de ter vi-vências e de as prolongar intelectualmente, tudo o queo repórter é capaz de fazer é instilar à humanidade anecessária coragem do desprezo pela vida que a levaa precipitar-se numa guerra contra si própria.” “NestaGrande Época”, pág. 206.

obstáculo”.89 Logo a seguir, no contextode uma referência irónica à marcha do pro-gresso, escreve ainda: “Este mundo ganhouuma espessura de vulgaridade que confere aodesprezo do homem espiritual a violência deuma paixão.”90

E é nessa vulgaridade que Adorno eHorkheimer notam a indústria cultural trans-formada em indústria da diversão, do cu-rioso: “a excentricidade do circo, do mu-seu de cera e do bordel” é então compará-vel a excentricidades como Schonberg e KarlKraus.91 Em concreto sobre a arte e sua re-cepção, num outro momento, Adorno veri-fica ainda como elas não deveriam ser “ummeio de prazer de ordem superior”;92 masque antes emergia em si o seu valor de ver-dade – e seria essa a sua função.

Todavia, a percepção deste estado de coi-sas (e ao contrário da violência aludida) emBaudelaire não se exprime por qualquer de-sejo de intervenção pública, mas antes porum resignado encolher de ombros. “A mi-nha intenção inicial era responder a nume-rosas críticas e, ao mesmo tempo, esclareceralgumas questões muito simples, totalmenteobscurecidas pelas luzes modernas (...), masdetive-me perante a assustadora inutilidadede explicar seja o que for a quem quer queseja.”93

Esta consciência da inutilidade de ‘entrarno jogo’ da comunicação não resultará, cre-mos, de uma qualquer arrogância estética do

89Baudelaire, Charles,Les Fleures du Mal, Paris,Gallimard, 1992, pág. 229.

90Ibid., págs. 229-230.91Adorno, Th. e Horkheimer, Max,Op.cit., pág.

180.92Adorno, Theodor W.,Teoria Estética, Lisboa,

Ed. 70, 1982, pág. 24.93Baudelaire, Charles,Op.cit., pág. 230.

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artista, mas antes se articulará de modo maisexplícito como uma crítica ao progresso e àsformas de comunicação de massa por ele de-senvolvidas. A própria afirmação de Baude-laire da inutilidade do seu discurso frente aosoutros discursos (úteis...?) que dominam oquotidiano representa uma reivindicação dediferença radical, a expressão plena do afas-tamento e da cisura entre as grandes massasde consumidores e as minorias de especia-listas que não pensam (e recusam por inútilqualquer explicação) publicamente.94 É este,finalmente, o grande dilema das vanguardas:por um lado a reconstituição da autentici-dade, mas pelo outro restabelecer uma estru-tura comunicacional que permita a autocom-preensão. É também esta a consciência queMarcuse pretende expressar: “Poderá fazerpoesia – está certo. Adoramos poesia. Masqueremos entender a sua poesia e só pode-remos fazê-lo se compreender-mos os seussímbolos, as suas metáforas e imagens emtermos da linguagem ordinária. (...) Mas, seo que ele diz pudesse ser dito em termos dalinguagem ordinária, provavelmente tê-lo-iafeito logo de início.”95 E aqui está, por fim,o eixo desta problemática: é que a compre-ensão de uma qualquer linguagem ou mesmoconteúdo pode pressupor precisamente o co-lapso e a invalidação do universo de locução

94É esta uma posição concomitante e recorrente aolongo das teses apontadas. Veja-se, como exemplo,um outro aforismo de Kraus: “A arte tem que desa-gradar. O artista quer agradar, mas nada faz de agra-dável. A sua vaidade compraz-se na criação. A vai-dade da mulher compraz-se no eco. É criadora comoa do artista, como a própria criação. Vive do aplauso.O artista, a quem a vida nega o aplauso por direito,antecipa-o.” Kraus, Karl,Contra Los Periodistas yotros contras, Madrid, Taurus, 1982, pág. 77.

95Marcuse, Herbert,Op.cit., pág. 181.

previamente adquirido, e no qual a massa oquer traduzir.

Menos de meio século mais tarde, amesma reivindicação de autonomia, associ-ada a uma crítica feroz às antinomias e con-tradições do progresso reflectidas de formaemblemática num dos media – na imprensa– irá encontrar uma expressão singular napanfletária e satírica obra do vienense KarlKraus, de quem apresentámos já alguns pres-supostos acerca da questão da linguagem.De certo modo enraizada em concepções queconsideramos comuns a Adorno, se pensadasnum quadro mais amplo do paradigma esté-tico e cultural modernista, encontram-se afi-nidades relevantes entre as teses adornianasda arte (e da criação) como antítese social dasociedade e o sentido orientador da obra doescritor e jornalista vienense. Com efeito, aestética da negatividade de Adorno - fundadana oposição irredutível entre as formas decriação artística e as formas mercantilizadasde comunicação produzidas pela indústria decultura -, expressa também na testamentáriae póstumaTeoria Estética(“a arte é a antí-tese social da sociedade e não deve imedia-tamente deduzir-se desta”)96 está fundada jápor Kraus nalguns dos seus aspectos capi-tais. Como modelo directo está a crítica in-transigente da degradação da linguagem pelaimprensa, que favorece a sua instrumentali-dade, e onde a dedução do sentido - aparente- é imediata. Ora, como veremos, “a imedi-ata comunicabilidade a qualquer preço não éo critério do verdadeiro”.97

96Adorno, Theodor W.,Teoria Estética, pág. 19.97Ibid., Dialéctica Negativa, Madrid, Taurus, 1992,

pág. 49.

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10 O diagnóstico percursor deKraus

A revistaDie Fackel(O Archote) foi a obrade toda uma vida de Kraus e constituiu umaverdadeira tribuna sempre atenta e impla-cável aos problemas sociais e culturais dasprimeiras décadas deste século, sendo semdúvida um violento testemunho (com fundopessimista) do caminho por que enveredou acivilização europeia a partir do século XIX,sobretudo no que se refere ao esvaziamentode valores e à vitória da banalidade. O jor-nal, na forma puramente comercial que as-sumiu a partir de meados do século XIX, foi(aos olhos de Kraus) o responsável máximopela mercantilização da linguagem, e é en-tendido como tal que tem que ser decisiva-mente combatido (com a violência de umapaixão, diria Baudelaire). Embora tambémnão imune à tentação do silêncio – conformeem outro momento, no discursoEsta GrandeÉpoca, é bem visível98 -, a acção de Krausantes se irá exprimir numa intervenção satí-rica de envergadura invulgar, onde a críticada língua, dos seus usos e abusos, será umaarma destrutiva e um espelho de toda a ci-vilização à beira de um abismo, tantas vezesprevisto nas páginas daFackel.

O alvo essencial dos ataques krausianos édesde cedo apontado – de novo o estereó-tipo, uma figura que, ao longo deste traba-lho, tem sido constantemente evocada, masde cuja crítica Kraus terá sido de certo modo

98Referimo-nos de novo àquele discurso pronunci-ado em Viena a 19 de Novembro de 1914, após o eclo-dir das hostilidades da I Grande Guerra. Um textocujo “único fim é preservar o silêncio de ser mal in-terpretado” e que começa justamente com um apeloao silêncio: “quem tiver alguma coisa a dizer, avancee fique calado”. “Nesta Grande Época”, pág. 200.

pioneiro.99 Uma figura que funciona comoum efeito pré-programado gerador de formasde percepção automatizadas, que esvazia alinguagem, transformando-a em simples ob-jecto de consumo, instituindo-lhe uma rela-ção puramente instrumental com o mundo.O estereótipo adapta-se perfeitamente ao“culto do facto”, é vago em termos de con-teúdo embora possa ser exposto com exacti-dão, é facilmente aplicável e assim uma efi-caz ferramenta ou instrumento; sendo facil-mente entendido em qualquer contexto (emcerta medida), depressa se escapa a qualquerexperiência que lhe possa dar sentido.100

No emblemático e central texto de 1944sobre a indústria da cultura, com a GuerraMundial como pano de fundo, Adorno eHorkheimer observarão, também eles, como“é verdade que esta linguagem se foi conver-tendo, pouco a pouco, em universal e tota-litária”,101 e aí constatam o papel que a lin-guagem estereotipada (tão afastada da expe-riência da linguagem) teve em tal processo.Nesse mesmo texto observam ainda comopara a massa qualquer palavra que não sejamediumou instrumento surge “sem sentido”.Funcionando antes como consumidores, fas-cinados pelo esplendor da técnica, é para estamesma técnica que a massa volta o interesse,em detrimento dos menosprezados conteú-

99Decerto que não de todo; por exemplo, conhece-se a suprema admiração de Kraus por Shakespeare,em especial pela figura de Hamlet, a que recorre comfrequência em diversos contextos, e com quem pre-tendia sinalizar o desconcerto dos tempos. Ora, tam-bém Shakespeare conhecia bem os poderes da lin-guagem, mas sobretudo as suas limitações: é sobe-jamente conhecida, neste sentido, a constatação deHamlet:“words, words, words...”

100Cfr. Adorno e Horkheimer, Op.cit., págs. 192,210.

101Ibid., pág. 211.

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dos estereotipadamente repetidos e vazios desubstância. As consequências que tal mo-delo de linguagem trará à concepção indi-vidual do mundo e formação subjectiva doespírito, nomeadamente no que se refere auma teoria da linguagem como experiênciado mundo, assumem-se de grande interesse eo seu questionamento será adiante oportuno,aquando da análise da linguagem dos media.

Neste momento, observemos tão só comoa oposição arte/indústria da cultura (enten-dida esta última como universalidade do es-pectáculo e do estereótipo e combatível ape-nas por uma ascese “ao serviço da palavra”,que recuse a lógica aparentemente imperi-osa da comunicação) está também no cernede toda uma estética krausiana (também elaabrangente, é certo). Atente-se neste sen-tido no aforismo seguinte, publicado numadas suas célebres colectâneas de aforismos:“Toda a arte me parece ser apenas arte parao presente se não for arte contra o presente.Se mata o tempo – não o mata. (...) A artesó pode nascer da recusa. Só do grito, não daaquietação. A arte, chamada como conforto,abandona com uma maldição o quarto ondea humanidade agoniza.”102 E é esta mesmanegatividade radical que dá à arte a possibili-dade de sobreviver para além da sua circuns-tância.103

É ainda esta mesma ideia que surge cominsistência naTeoria Estéticade Adorno, porexemplo, quando se afirma que “só o que emcada momento está mais avançado tem capa-

102Kraus, Karl, “Ditos e Contraditos”, inHistóriascom Tempo e Lugar, pág. 228.

103Repare-se na pergunta e resposta oportunas deBertold Brecht, em De como construir obras duradou-ras: “Quanto tempo vão durar as obras? Enquanto nãoestiverem prontas.”, inBertold Brecht Poems Part II,1929-1933, Londres, Eyre Methuen, 1976, pág. 193.

cidades de resistir ao tempo”,104 e que apelatambém para o tempo messiânico de Benja-min, um tempo de que a verdade está carre-gada a ponto de explodir. Por outras pala-vras, também o tempo do “agora” benjami-niano abre a “modernidade” para a promessade realização, fruto daquela combinação deestruturas temporais aparentemente contra-ditórias que lhe dão tanta força quanto com-plexidade.

A mesma estética da negatividade foi umadas características distintivas não só da obrade Franz Kafka e dos seus anti-herois, masmesmo da sua biografia e naturalmente dasua lúcida atitude reflexiva. Ainda em 1904,escreveu Kafka a um seu amigo, Oskar Pol-lak: “devíamos ler apenas livros que nosmordam e firam. Se o livro que estamos a lernão nos desperta violentamente como umapancada na cabeça, para que havemos de nosdar ao trabalho de o ler?” Também Kafka,à semelhança de Adorno, rejeita a ideia doslivros (ou da arte, em Adorno) como objectode consolo, de satisfação: “seríamos igual-mente felizes sem livros nenhuns”, refere.Bem pelo contrário, a experiência da negati-vidade é expressa logo de seguida: “Do queprecisamos é de livros que nos atinjam comoa desgraça mais dolorosa, como a morte dealguém que amávamos mais que a nós pró-prios, que nos façam sentir como se tivésse-mos sido expulsos para o meio dos montes,longe de qualquer presença humana,comoum suicídio. Um livro tem de ser a pica-reta para o mar gelado dentro de nós.”105

Tudo em Kafka funcionava de forma nega-tiva, sublinhe-se; também ele como os seus

104Adorno, T. W.,Teoria Estética, pág. 67.105Kafka, Franz, citado por Manguel, Alberto,Uma

História da Leitura, Presença, Lisboa, 1988, pág.105.

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personagens, alimentados pela experiênciadão e tiram ao mesmo tempo, minam a fimde satisfazer, num vai e vem constante ondeflutua a ilusão de compreender.

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