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1 Eugénio de Andrade (19 de Janeiro de 1923 13 de Junho de 2005) Duplo Retrato, 1980 por Alfredo Cruz (Tinta da China)

Caderno digital de Literatura

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Eugénio de Andrade

(19 de Janeiro de 1923 – 13 de Junho de 2005)

Duplo Retrato, 1980 por Alfredo Cruz (Tinta da China)

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PALAVRAS INTERDITAS

Os navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios. Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso partir. É preciso ficar. Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te… E entram pela janela as primeiras luzes das colinas. As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras. Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura. E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.

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PROCURO-TE

Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu, o ar onde a respiração é doce, um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria. Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido. Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio.

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Um pássaro e um navio são a mesma coisa quando te procuro de rosto cravado na luz. Eu sei que há diferenças, mas não quando se ama, não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho. Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquanto o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas. Porém eu procuro-te. Antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

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OS OLHOS RASOS DE ÁGUA

Cansado de ser homem o dia inteiro

chego à noite com os olhos rasos de água.

Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,

entrar dentro de ti como num bosque.

É a hora de fazer milagres:

posso ressuscitar os mortos e trazê-los

a este quarto branco e despovoado,

onde entro sempre pela primeira vez,

para falarmos das grandes searas de trigo

afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso

a quem se estender ao pé de mim,

ou deixar uma lágrima nos meus olhos

ser a nostalgia das areias.

É a hora de adormecer na tua boca,

como um marinheiro num barco naufragado,

o vento na margem das espigas.

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CANÇÃO

Hoje venho dizer-te que nevou no rosto familiar que te esperava. Não é nada, meu amor, foi um pássaro, a casca do tempo que caiu, uma lágrima, um barco, uma palavra. Foi apenas mais um dia que passou entre arcos e arcos de solidão; a curva dos teus olhos que se fechou, uma gota de orvalho, uma só gota, secretamente morta na tua mão.

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VEGETAL E SÓ

É outono, desprende-te de mim. Solta-me os cabelos, potros indomáveis sem nenhuma melancolia, sem encontros marcados, sem cartas a responder. Deixa-me o braço direito, o mais ardente dos meus braços, o mais azul, o mais feito para voar. Devolve-me o rosto de um verão sem a febre de tantos lábios, sem nenhum rumor de lágrimas nas pálpebras acesas. Deixa-me só, vegetal e só, correndo como rio de folhas para a noite onde a mais bela aventura se escreve exactamente sem nenhuma letra.

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METAMORFOSES DA PALAVRA

A palavra nasceu:

nos lábios cintila.

Carícia ou aroma,

mal pousa nos dedos.

De ramo em ramo voa,

na luz se derrama.

A morte não existe:

tudo é canto ou chama.

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Quartos ao pé do Mar , 1951

Rooms by the Sea – Edward Hopper (1882-1967)

EPITÁFIO PARA UM MARINHEIRO

MORTO QUANDO JOVEM

Perguntam por ti e oiço

a secreta voz da água.

Perguntam por ti e vejo

o perfil azul do mar.

Perguntam por ti e digo:

Acorda e veste-te de branco.

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QUASE MADRIGAL

Os anjos que prometes são apenas o rosto triste dos dias desolados. Eu não prometo nada, sou alegria. Aceito os anjos nos beijos que me dás, pondo rosas nos teus dedos descuidados.

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LISBOA

Alguém diz com lentidão: «Lisboa, sabes…» Eu sei. É uma rapariga descalça e leve, um vento súbito e claro nos cabelos, algumas rugas finas a espreitar-me os olhos, a solidão aberta nos lábios e nos dedos, descendo degraus e degraus e degraus até ao rio. Eu sei. E tu, sabias?

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PALAVRAS

São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória. Inseguras navegam; barcos ou beijos, as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes, leves. Tecidas são de luz e são a noite. E mesmo pálidas verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem as recolhe, assim, cruéis, desfeitas, nas suas conchas puras?

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À TUA SOMBRA

A terra me sabes,

à luz das manhãs

lisas de verão,

ao calor das pedras

achadas nas dunas.

Apetece cantar

nos gomos, nas luas,

nas colinas breves

do teu corpo nu;

cantar ou correr

na água, na seiva

dos ombros, dos braços,

no azul secreto

da concha das pernas.

Ó sabor eterno,

ó mortal sabor

das fontes da terra,

materno, solar

rumor de alegria:

apetece morrer,

morrer ou cantar.

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MÚSICA MIRABILIS

Talvez a ternura crepite no pulso, talvez o vento súbito se levante, talvez a palavra atinja o seu cume, talvez um segredo chegue ainda a tempo – e desperte o lume.

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CRISTALIZAÇÕES

1 Com palavras amo. 2 Inclina-te como a rosa só quando o vento passe. 3 Despe-te como o orvalho na concha da manhã. 4 Ama como o rio sobe os últimos degraus ao encontro do seu leito. 5 Como podemos florir ao peso de tanta luz? 6 Estou de passagem: amo o efémero. 7 Onde espero morrer será manhã ainda? Cabeça de Bronze, 1964, por Lagoa Henriques

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NATUREZA MORTA COM FRUTOS Natureza Morta com Maçãs e Laranjas (Óleo sobre tela Paul Cézanne (1839-1906)

1 O sangue matinal das framboesas escolhe a brancura do linho para amar.

2 A manhã cheia de brilhos e doçura debruça o rosto puro da maçã.

3 Na laranja o sol e a lua dormem de mãos dadas. 4 Cada bago de uva sabe de cor o nome dos dias todos de verão.

5 Nas romãs eu amo o repouso no coração do lume.

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ESCRITO NO MURO

Procura a maravilha.

Onde a luz coalha e cessa o exílio.

Nos ombros, no dorso, nos flancos suados.

Onde um beijo sabe a barcos e bruma.

Ou a sombra espessa.

Na laranja aberta à língua do vento.

No brilho redondo e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.

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Banhista Sentada, 1892 Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)

OS JOELHOS

Considerai os joelhos com doçura: vereis a noite arder mas não queimar a boca onde beijo a beijo foi acesa.

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CALCEDÓNIA

Afinal os romanos eram como eu: amavam os lugares onde a grandeza e a solidão andam de mãos dadas.

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PENICHE

Vento vento há tanto há só vento no meu país vento branco verde vento negro ardente seca as lágrimas corta a voz na raiz.

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ESSA MULHER, DOCE MELANCOLIA

Essa mulher, a doce melancolia

dos seus ombros, canta.

O rumor

da sua voz entra-me pelo sono,

é muito antigo.

Traz o cheiro acidulado

da minha infância chapinhada ao sol.

O corpo leve quase de vidro.

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COM O TEMPO, APROXIMAR-SE-ÃO OS RIOS

Com o tempo aproximar-se-ão os rios e os montes, com o tempo acabará por te vir comer à mão e fazer ninho na tua cama o silêncio

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Eugénio de Andrade

por Alfredo Cruz, 1989 (Acrílico)

A CLARIDADE COROA-SE DE CINZA, EU SEI

A claridade coroa-se de cinza, eu sei: é sempre a tremer que levo o sol à boca.

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QUANDO O SER DA LUZ FOR

Quando o ser da luz for

o ser da palavra,

no seu centro arder

e subir com a chama

(ou baixar à água),

Então estarei em casa.

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ESTÃO SENTADOS QUASE LADO A LADO

Estão sentados quase lado a lado no chão à espera que passe um barco, a luz muito quieta no regaço como se fora um gato, o sorriso antigo, a casa à beira do crepúsculo atenta aos passos nas areias; era outra vez Abril, chovia no jardim, já não chovia, um aroma, apenas um aroma, tornava espesso o ar. Uma criança me leva rio acima.

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Eugénio de Andrade por Emerenciano - 1988 (Técnica mista)

CARDOS

Este é o lugar onde só o lume não demora a florir, onde o verão abdica de ser metáfora para arder até ao fim.

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O PEQUENO PERSA

É um pequeno persa azul o gato deste poema. Como qualquer outro, o meu amor por esta alminha é materno: uma carícia minha lambe-lhe o pêlo, outra põe-lhe o sol entre as patas ou uma flor à janela. Com garras e dentes e obstinação transforma em festa a minha vida. Quer-se dizer, o que me resta dela.

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Ilustração de Cristina Valadares para o livro ―Os Dóceis Animais‖

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Andorinha/Amor - 1933/34 Pintura-poema de Joan Miró (1893-1983)

SOU FIEL AO ARDOR

Sou fiel ao ardor, amo esta espécie de verão que de longe me vem morrer às mãos, e juro que ao fazer da palavra morada do silêncio não há outra razão.

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ESTOU CONTENTE, NÃO DEVO NADA À VIDA

Estou contente, não devo nada à vida,

e a vida deve-me apenas

dez réis de mel coado.

Estamos quites, assim

o corpo já pode descansar: dia

após dia lavrou, semeou,

também colheu, e até

alguma coisa dissipou, o pobre,

pobríssimo animal,

agora de testículos aposentados.

Um dia destes vou-me estender

debaixo da figueira, aquela

que vi exasperada e só, há muitos anos:

pertenço à mesma raça. Eugénio de Andrade Por Emerenciano, 1990 (Tinta da China)

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A CHUVA CAI NA POEIRA COMO NO POEMA

A chuva cai na poeira como no poema de Li Bai. No sul os dias têm olhos grandes e redondos; no sul o trigo ondula, as suas crinas dançam no vento, são a bandeira desfraldada da minha embarcação; no sul a terra cheira a linho branco, a pão na mesa, o fulvo ardor da luz invade a água, caindo na poeira, leve, acesa, Como no poema.

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SOBRE A MESA A FRUTA ARDE: PERAS

Sobre a mesa a fruta arde: peras, laranjas, maçãs, pressentem a íntima brancura dos dentes, o desejo represado, o espesso vinho de vozes antigas; arde a melancolia ao inventar outra cidade, outro país, outros céus onde lançar os olhos e o riso: deita-te comigo, trago-te do mar a crespa luz da espuma, nos flancos este amor retido.

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ANTES DE SABER

Até onde os dedos tocam o quente do barro a mão sabe antes de saber. É um saber mais vivo, um saber de ave: águia cegonha falcão, animais quase no fim como o lume destes dias. Testemunhar a favor do lince é nossa obrigação. Por ser azul.

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A SÍLABA

Toda a manhã procurei uma sílaba.

É pouca coisa, é certo: uma vogal,

uma consoante, quase nada.

Mas faz-me falta. Só eu sei

a falta que me faz.

Por isso a procurei com obstinação.

Só ela me podia defender

do frio de Janeiro, da estiagem

do verão. Uma sílaba.

Uma única sílaba.

A salvação.

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A JORGE PEIXINHO

Faltava-te essa música ainda, a do silêncio, fria de tão nua, agora para sempre e sempre tua.

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DESENHO ANTIGO

Às vezes ia pela tarde até ao rio. Os álamos mesmo em Agosto quase de bruma. Por caminhos de cabras, nem pastor nem gado. Só o riso dos rapazes despindo-se perto da água - o sexo exasperado.

O Banho - 1892/93 Paul Cézanne (1839 - 1906)

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CANÇÃO DA MÃE DO UM SOLDADO DE PARTIDA PARA A BÓSNIA

É muito jovem, sem tempo ainda de ser triste. Demora-se nos meus olhos enquanto leva a maçã à boca. Nenhuma fala obscura escurece a tarde, a cabeleira solta é a sua bandeira; os pés brancos, irmãos da chuva de verão, anunciam a paz. Suplico à estrela da manhã que lhe guie os passos, agora que partiu; que tenha em conta a sua ignorância, não só da morte, também da vida.

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A PEQUENA PÁTRIA

A pequena pátria; a do pão;

a da água;

a da ternura, tanta vez

envergonhada;

a de nenhum orgulho nem humildade;

a que não cercava de muros

o jardim nem roubava

aos olhos o desajeitado voo

das cegonhas; a do cheiro quente

e acidulado da urina

dos cavalos; a dos amieiros

à sombra onde aprendi

que o sexo se compartilhava;

a pequena pátria da alma e do estrume

suculento morno mole;

a da flor múltipla e tão amada

do girassol.

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OIÇO FALAR

Oiço falar da minha vocação

mendicante, e sorrio. Porque não sei

se tal vocação não é apenas

uma escolha entre riquezas, como Keats

diz ser a poesia.

Desci à rua pensando nisto,

atravessei o jardim, um cão

saltava à minha frente,

louco com as folhas do outono

que principiara, e doiravam o chão. A música,

digamos assim,

a que toda a alma aspira,

quando a alma

aspira a ter do mundo o melhor dele,

corria à minha frente, subia

por certo aos ouvidos de deus

com a ajuda de um cão,

que nem sequer me pertencia.

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SÃO COISAS ASSIM

São coisas assim que tornam o coração vulnerável: o

regresso

das cegonhas brancas,

o comboiinho do ramal da Ceira

que parece de corda, as oito linhas

da Canção Nocturna do Viandante

de Goethe que Schubert musicou.

Quem dividiu comigo a alegria

merecia ao menos

que o trouxesse à orvalhada

e limpa terra do poema. Mas também

o poeta escreve direito por linhas

tortas: a poesia é a ficção

da verdade. Não será

a curva apetecida do teu peito

mas os lémures de Madagáscar,

que só vi num filme francês,

o que verdadeiramente me interessa

hoje trazer ao poema.

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RILKIANA

De ti e desta nuvem; desta nuvem branca como voo de pássaro em manhã de Abril; de ti e da íntima chama de um fogo que não consente extinção; de ti e de mim fazer um só acorde, um acorde só; para não te perder.

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HOMENAGEM A MARK ROTHKO

Mark Rothko (1903-1970)

Amarelo, laranja, limão, depois o carmim: tudo arde nas areias entre as palmeiras e o mar – era verão. Mas no lugar do teu nome a terra tem a cor do verde pensativo, que só a noite pastoreia leve.

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~ ~ ~ ~ ~ ~

“Todas as coisas tombam

e são construídas de novo

E os que as constroem outra vez são

felizes.”

~ ~ ~ ~ ~ ~

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