Calçadas invisíveis

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Mostra critérios de projeto para execução de calçadas em áreas urbanas.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    RICARDO KLEIBER DE LIMA SILVA

    CALADAS INVISVEIS: aspectos do passeio pblico, em Natal-RN, como projeo de uma cidadania ausente

    NATAL 2013

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    RICARDO KLEIBER DE LIMA SILVA

    CALADAS INVISVEIS: aspectos do passeio pblico, em Natal-RN, como projeo de uma cidadania ausente

    NATAL 2013

  • RICARDO KLEIBER DE LIMA SILVA

    CALADAS INVISVEIS: aspectos do passeio pblico, em Natal-RN, como projeo de uma cidadania ausente

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais. Orientadora: Prof. Dr. Lisabete Coradini.

    NATAL 2013

  • Catalogao da Publicao na Fonte.

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Biblioteca Setorial do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

    Silva, Ricardo Kleiber de Lima.

    Caladas invisveis : aspectos do passeio pblico, em Natal - RN,

    como projeo de uma cidadania ausente / Ricardo Kleiber de Lima Silva.

    2013. 136 f.: il. -

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps

    Graduao em Cincias Sociais, 2013.

    Orientadora: Prof. Dra. Lisabete Coradini.

    1. Acessibilidade Natal(RN). 2. Arquitetura e deficiente. 3. Espaos urbanos. 4. Mobilidade urbana. 5. Passeio pblico. I. Coradini, Lisabete. II.

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

    RN/BSE-CCHLA CDU 712.36(813.2)

  • RICARDO KLEIBER DE LIMA SILVA

    CALADAS INVISVEIS: aspectos do passeio pblico, em Natal-RN, como

    projeo de uma cidadania ausente

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais.

    Aprovada em:____ de ______________ de 2013.

    ______________________________________

    Prof. Dr. Lisabete Coradini Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Orientadora

    _______________________________________

    Prof. Dr. Mnica Lourdes Franch Gutirrez Universidade Federal da Paraba

    Membro

    _______________________________________

    Prof. Dr. Lincoln Moraes de Souza Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    Membro

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Criador, que me ensina por meio de pequenas coisas a importncia de

    amar a vida.

    Aos meus pais, que me orientaram a lutar pela realizao dos meus sonhos,

    sempre colocando a frente o trabalho e a fora de vontade.

    Ao meu irmo, Rogrio, pelas palavras de incentivo e pela colaborao nas

    minhas necessidades em todos os momentos.

    Aos meus amigos, Flvio Csar Oliveira da Rosa e Sandovnia Maria de

    Oliveira, que sempre estiveram presentes nos momentos de dificuldade.

    A minha orientadora, Professora Lisabete Coradini, por sua confiana e

    incentivo produo acadmica.

    Aos professores que fazem parte do programa de ps-graduao, em

    especial aos professores Lincoln Moraes de Souza e Dalcy da Silva Cruz.

    A professora Llia Batista de Souza, pelo incentivo dado continuidade dos

    meus estudos.

  • O inferno dos vivos no algo que ser;

    se existe, aquele que j est aqui, o

    inferno no qual vivemos todos os dias, que

    formamos estando juntos. Existem duas

    maneiras de no sofrer. A primeira fcil

    para a maioria das pessoas: aceitar o

    inferno e tornar-se parte deste at o ponto

    de deixar de perceb-lo. A segunda

    arriscada e exige ateno e aprendizagem

    contnuas: tentar saber reconhecer quem e

    o que, no meio do inferno, no inferno, e

    preserv-lo, e abrir espao*.

    (Italo Calvino)

    *Personagem Marco Polo de Cidades Invisveis (CALVINO, 2003, p.158).

  • RESUMO

    Esse estudo tem por objetivo estabelecer uma relao entre as caractersticas do passeio pblico do bairro de Lagoa Nova, em Natal, e o tipo de cidado que os moldes de construo e manuteno desse espao refletem. Entende-se aqui como passeio pblico, especificamente, o local destinado ao trnsito de pedestres, situado entre os lotes urbanos e a via de acesso aos veculos motorizados. Procura-se fazer um breve histrico sobre a ocupao dessa regio e uma descrio detalhada das caractersticas fsicas de suas caladas, que apresentam inmeros obstculos acessibilidade dos transeuntes, tentando encontrar possveis fatores que expliquem o seu traado problemtico, visto que, aparentemente, em sua maior parte a acessibilidade de pedestres comprometida. Investiga-se, tambm, o pensamento da populao local em relao s noes de ocupao desse ambiente, bem como aspectos culturais, polticos e econmicos que poderiam influenciar na apropriao desse espao hbrido, situado na fronteira entre o pblico e o privado. Confirma-se que o formato atual do passeio pblico no apenas reflexo da cidadania ou ausncia dessa, mas se constitui como agente ativo relacionado construo desse conjunto de direitos e deveres fundamentais ao convvio harmnico entre os habitantes de uma cidade. Palavras-chaves: Acessibilidade. Cidado. Espaos Urbanos. Fotografia. Passeio Pblico.

  • ABSTRACT

    This study has as a goal to establish a relationship between public sidewalk characteristics of Lagoa Nova District (neighborhood), in Natal and the kind of citizens whose constructions and maintenance layouts reflects. Its understood here as public sidewalk, specifically, the place reserved for passers-by traffic, located between public lots and vehicles pavements. Its a concern to make a brief survey about the occupation of this particular region and a detailed description over physical characteristic of its sidewalks that shows several obstacles for passers-by accessibility, trying to find possible factors that explain the problematic format, once, at the first sight, most of accessibility of passers-by is compromised. It also, searched, local population thoughts regarding occupation notions about this environment, just like as cultural, political and economical aspects that might influence upon snatching these hybrid places located between private and public border line. Its confirmed that the nowadays sidewalks shapes is not only citizenship reflection or a lack of it but shows it as an active agent related with the construction of this set of fundamental rights and duties vital for harmonical co-living local citizens. Key-words: Accessibility. Citizen. Urbans Places. Photography. Public Sidewalk.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Fotografia 01: Runas de Pompia I ..................................................................... 25

    Fotografia 02: Runas de Pompia II .................................................................... 25

    Fotografia 03: Runas de Pompia III ................................................................ 26

    Fotografia 04: Vista Parcial de Natal Comeo do sc. XX ................................ 27

    Fotografia 05: Rua em Capim Macio, prximo Av. Ayrton Senna ..................... 28

    Fotografia 06: Rua Neuza Farache, Capim Macio ............................................... 28

    Fotografia 07: Calada no Centro de Gramado/RS .............................................. 29

    Fotografia 08: Residncia tpica de Gramado/RS ................................................ 30

    Fotografia 09: Calada portuguesa, formando mosaico, em Lisboa, Portugal ..... 31

    Fotografia 10: Calado da Praia de Copacabana, Rio de Janeiro ...................... 31

    Fotografia 11: Avenida Roberto Freire, Ponta Negra, Natal/RN ........................... 31

    Fotografia 12: Calado da Praia de Ponta Negra, Natal/RN .............................. 31

    Fotografia 13: Calada de pedra portuguesa em construo, Lagoa Nova ......... 32

    Fotografia 14: Calada de pedra portuguesa em construo, Lagoa Nova ......... 32

    Fotografia 15: Calada de pedra portuguesa em construo, Lagoa Nova ......... 33

    Fotografia 16: Travessa da Rua Henrique Ges, Bairro Lagoa Nova .................. 35

    Fotografia 17: Caladas, bairro Cidade Jardim, Natal/RN .................................... 39

    Fotografia 18: Praa Andr de Albuquerque. Comeo do sc. XX....................... 45

    Fotografia 19: Praa Andr de Albuquerque. Viso atual .................................... 45

    Fotografia 20: Localizao do bairro Lagoa Nova em Natal. Mapa I .................... 49

    Fotografia 21: Viso ampliada do bairro Lagoa Nova e seus limites. Mapa II ...... 50

    Fotografia 22: Estdio Joo Cludio de Vasconcelos Machado, anos 1960 ........ 53

    Fotografia 23: Viso do Estdio (Machado) em 2009 ........................................ 53

    Fotografia 24: Estdio (Machado) em demolio no final de 2011 ..................... 54

    Fotografia 25: Travessia de pedestres, Lagoa Nova ............................................ 54

    Fotografia 26: Caladas do canteiro de obras da Arena das Dunas .................... 55

    Fotografia 27: Caladas do canteiro de obras da Arena das Dunas .................... 55

    Fotografia 28: Caladas do canteiro de obras da Arena das Dunas .................... 55

    Fotografia 29: Caladas do canteiro de obras da Arena das Dunas .................... 55

    Fotografia 30: Vista parcial da Avenida Senador Salgado Filho........................... 57

    Fotografia 31: Final da av. Praia do Forte na Redinha ......................................... 83

  • Fotografia 32: Av. Pres. Caf Filho, Santos Reis ................................................. 84

    Fotografia 33: Terminal de nibus na Av. Praia do Forte ..................................... 84

    Fotografia 34: Av. Praia do Forte / Incio da Rua da Liberdade, Praia do Meio ... 85

    Fotografia 35: Rua Erivan Frana. Orla de Ponta Negra (esgotos) ...................... 85

    Fotografia 36: Rua Erivan Frana. Orla de Ponta Negra (depsitos) ................... 86

    Fotografia 37: Rua Erivan Frana. Orla de Ponta Negra (falta de manuteno) .. 86

    Fotografia 38: Av. Pres. Caf Filho, Praia do Meio .............................................. 87

    Fotografia 39: Av. Pres. Caf Filho, Praia do Meio .............................................. 87

    Fotografia 40: Av. Dr. Joo Medeiros Filho, Redinha ........................................... 88

    Fotografia 41: Rua Luiz XV, B. Nordeste ............................................................. 89

    Fotografia 42: Rua 25 de Maro, Quintas ............................................................ 89

    Fotografia 43: Av. Cel. Estevam, Bairro do Alecrim ............................................. 89

    Fotografia 44: Rua da Liberdade, Santos Reis..................................................... 89

    Fotografia 45: Trecho da Rua Jnio Cavalcante em Nova Descoberta ................ 90

    Fotografia 46: Castelinho do Z do Monte. Rua 25 de Maro, Quintas ............. 90

    Fotografia 47: Av. Dr. Joo Medeiros Filho, Bairro Igap Zona Norte de Natal. 91

    Fotografia 48: Av. Jernimo Cmara, Cidade da esperana ................................ 92

    Fotografia 49: Calada do TCE Av. Getlio Vargas, Petrpolis ........................ 92

    Fotografia 50: Av. Getlio Vargas, Petrpolis....................................................... 93

    Fotografia 51: Rua So Joo de Deus, Rocas ..................................................... 93

    Fotografia 52: Av. Jernimo Cmara, Lagoa Nova CEASA .............................. 94

    Fotografia 53: Rua Cel. Joaquim Correia SEMURB .......................................... 94

    Fotografia 54: Av. Rio Branco, Bairro Cidade Alta ............................................... 95

    Fotografia 55: Av. Cap. Mor Gouveia Bairro, Felipe Camaro ............................. 96

    Fotografia 56: Rua prxima SEMURB no Bairro Candelria ............................. 96

    Fotografia 57: Rua Gen. Glicrio, Ribeira ............................................................ 97

    Fotografia 58: Rua Dr. Solon de Miranda Galvo, Prximo a UFRN .................... 97

    Fotografia 59: Rua So Jos, Lagoa Nova. A regra ............................................. 98

    Fotografia 60: Av. Bernardo Vieira. Entrada Shopping Midway Mall. A exceo . 98

    Fotografia 61: Rua So Joaquim. Fundos do Shopping Midway Mall .................. 99

    Fotografia 62: Av. Bernardo Vieira. Entrada do Shopping Midway Mall ............... 99

    Fotografia 63: Travessia de pedestres ao fundo o estdio Arena das Dunas ... 100

    Fotografia 64: Travessia de pedestres Av. Romualdo Galvo .......................... 100

    Fotografia 65: Passarela I Av. Senador Salgado Filho ...................................... 101

  • Fotografia 66: Passarela II. Av. Senador Salgado Filho ....................................... 101

    Fotografia 67: Passarela III. Av. Senador Salgado Filho .................................... 101

    Fotografia 68: Passarela IV. Av. Senador Salgado Filho ................................... 101

    Fotografia 69: Rua do Caulim, campo de futebol Potilndia, Lagoa Nova ........ 102

    Fotografia 70: Rua do Ouro, conjunto Potilndia, Lagoa Nova ............................ 103

    Fotografia 71: Rua da Granada, conjunto Potilndia, Lagoa Nova ...................... 103

    Fotografia 72: Rua Berilo Wanderley, Lagoa Nova .............................................. 104

    Fotografia 73: Avenida Capito Mor Gouveia, Lagoa Nova ................................. 104

    Fotografia 74: Anel Virio do Campus da UFRN, Lagoa Nova............................. 105

    Fotografia 75: Av. Senador Salgado Filho, prximo ao Midway Mall ................... 105

    Fotografia 76: Rua Dr. Francisco Maiorana. Condomnio de alto padro .......... 105

    Fotografias 77, 78 e 79: Avenida Senador Salgado Filho, Lagoa Nova ............... 106

    Fotografia 80, 81 e 82: Tnel. Avenida Senador Salgado Filho, Lagoa Nova ...... 107

    Fotografias 83, 84, 85, 86 e 87: Avenida Senador Salgado Filho, Lagoa Nova ... 108

    Fotografia 88: Muro gigantesco, Avenida Senador Salgado Filho, Lagoa Nova .. 109

    Fotografia 89: Avenida Airton Senna, Natal/RN ................................................... 109

    Fotografias 90, 91 e 92: Avenida Bernardo Vieira, Natal/RN ............................... 110

    Fotografia 93: Avenida Bernardo Vieira, Natal/RN ............................................... 111

    Fotografia 94: Avenida Bernardo Vieira, Natal/RN ............................................... 111

    Fotografia 95: Avenida Dr. Mrio Negcio, Natal/RN ........................................... 112

    Fotografia 96: Avenida Dr. Mrio Negcio, Natal/RN ........................................... 112

    Fotografia 97: Rua Auris Coelho, Nova Descoberta ............................................. 113

    Fotografia 98: Rua Nelson Matos, Nova Descoberta ........................................... 113

    Fotografia 99, 100, 101 e 102: Caladas no bairro Cidade Jardim, Natal/RN ...... 114

  • LISTA DE SIGLAS

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    CAERN Companhia de guas e Esgotos do Rio Grande do Norte

    CEASA Centro Estadual de Abastecimento S/A

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IHG Instituto Histrico e Geogrfico

    IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

    NBR Norma Brasileira (elaborada pela ABNT)

    OSCIP Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico

    SENAI Servio Nacional de Aprendizagem Industrial

    SESC Servio Social do Comrcio

    SESI Servio Social da Indstria

    SEMOB Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana

    SEMOPI Secretaria Municipal de Obras Pblicas e Infraestrutura

    SEMOV Secretaria Municipal de Obras e Viao

    SEMURB Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo

    TCE Tribunal de Contas do Estado

    TCU Tribunal de Contas da Unio

    UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................... 13

    1 FAAM-SE AS CALADAS: UM CAMINHO ENTRE O PBLICO E

    O PRIVADO ............................................................................................... 25

    1.1 GNESE .................................................................................................... 25

    1.2 OS CRIADORES E A CRIATURA ............................................................. 29

    1.3 DEFINIO E NOMENCLATURA ............................................................. 33

    1.4 A CALADA COMO ESPAO PBLICO .................................................. 35

    1.5 CIDADANIA: TRAJETRIA E ESPAO .................................................... 39

    2 CALADAS DAS DUNAS ........................................................................ 45

    2.1 A URBANIZAO DE NATAL ................................................................... 45

    2.2 O BAIRRO LAGOA NOVA ......................................................................... 49

    2.3 CARACTERSTICAS ATUAIS DO PASSEIO PBLICO............................ 57

    3 DIALOGANDO COM O CAMPO DE PESQUISA ..................................... 63

    3.1 TRAJETRIAS DA PESQUISA ................................................................. 63

    3.2 CONVERSANDO COM ALGUNS CIDADOS .......................................... 65

    3.3 VISITANDO A SECRETARIA MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE E

    URBANISMO (SEMURB) .......................................................................... 75

    3.4 ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE AS ENTREVISTAS .................... 77

    4 O PASSEIO PBLICO E SUAS IMAGENS .............................................. 81

    4.1 ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE AS IMAGENS ............................ 81

    4.2 CALADA DAS DUNAS: PANORAMA GERAL DAS CALADAS EM NATAL 83

    4.3 IMAGENS DE LAGOA NOVA .................................................................... 98

    4.4 ESSE CAMINHO FOI PRODUZIDO EM PRETO E BRANCO ................... 107

    4.5 PARA NO DIZER QUE NO FALEI DAS FLORES................................. 114

    4.6 RECURSOS UTILIZADOS ........................................................................ 114

    CONSIDERAES FINAIS ...................................................................... 115

    REFERNCIAS ......................................................................................... 118

    APNDICE ................................................................................................ 124

    ANEXO ...................................................................................................... 128

  • 13

    INTRODUO

    O tema Mobilidade Urbana tem sido bastante debatido na atualidade, em

    especial, no Brasil, devido ao mega evento esportivo da Copa do Mundo de 2014.

    Conforme o Relatrio do Tribunal de Contas da Unio 2011, o termo Mobilidade

    Urbana deixou de tratar ou priorizar apenas aspectos ligados circulao de

    veculos, assumindo, hoje, o significado de deslocamento de pessoas e bens dentro

    do espao das cidades, mediante utilizao de veculos, de vias pblicas e da

    infraestrutura disponvel1. Assim, passa a ter como foco as pessoas, est ligado

    organizao do territrio e sustentabilidade das cidades.

    A capital no Rio Grande do Norte ser uma das cidades brasileiras que

    sediar esse campeonato mundial de futebol. Sobre o tema mobilidade urbana em

    questo, nessa capital, podem-se destacar alguns problemas que so comuns

    maioria das cidades de mesmo porte como a deficincia nos meios de transporte

    coletivos, o constante congestionamento das principais avenidas, devido ao excesso

    de veculos motorizados individuais, a falta de acesso s pessoas com necessidades

    especiais etc. Dentre esses problemas, foram pesquisadas as condies de

    acessibilidade aos pedestres no espao denominado passeio pblico, conhecido

    mais popularmente como calada.

    Entre as definies mais completas sobre passeio pblico cita-se a que consta

    na legislao da capital Paulista2 de 25 de agosto de 2004 que assim o define:

    Passeio pblico a parte da via pblica, normalmente segregada em nvel diferente, destinada circulao de qualquer pessoa, independente de idade, estatura, limitao de mobilidade ou percepo, com autonomia e segurana, bem como implantao de mobilirio urbano, equipamentos de infraestrutura, vegetao, sinalizao e outros fins previstos em leis especficas (Lei Municipal n 13885, Art. 1).

    tambm, uma das normas que mais se aproxima do conceito europeu de

    acessibilidade3, segundo o qual:

    1 O relatrio completo do TCU sobre Mobilidade Urbana pode ser acessado diretamente pelo site: www.tcu.gov.br/contasdogoverno.

    2 Decreto n 45.904 de 19 de maio de 2005. Regulamenta o artigo 6 da Lei n 13885, de 25 de agosto de 2004, no que se refere padronizao dos passeios pblicos do municpio de So Paulo. Disponvel em: .

    3 Relatrio do Grupo de Peritos criado pela Comisso Europeia 2003. Disponvel em: .

  • 14

    Um meio edificado acessvel constitui elemento chave para o funcionamento de uma sociedade assente em direitos iguais, dotando os seus cidados de autonomia e de meios para a prossecuo de uma vida social e economicamente activa. Constitui o fundamento de uma sociedade inclusiva, baseada na no discriminao. A nossa sociedade assenta na diversidade, que exige a construo de um meio fsico sem barreiras e que no crie deficincias e incapacidades. Significa que a acessibilidade uma preocupao de todos, no s de uma minoria com necessidades especiais. Numa sociedade cada vez mais diversificada e a envelhecer, o objectivo traduzir-se-ia e traduzir-se- na promoo e adopo crescente da acessibilidade para todos (CONCEITO EUROPEU DE ACESSIBILIDADE, 2003, p.21).

    A orientao dessa pesquisa ser a partir desse conceito amplo de

    acessibilidade, que o define de acordo com as necessidades coletivas e no de uma

    minoria com necessidades especiais, em especfico.

    Quando um meio edificado incorpora as caractersticas desse conceito dito

    que possui um Desenho Universal. A Associao Brasileira de Normas Tcnicas,

    quando trata sobre acessibilidade a edificaes, mobilirio e equipamentos urbanos

    estabelece que o Desenho Universal aquele que visa atender maior gama de

    variaes possveis das caractersticas antropomtricas e sensoriais da populao

    (NBR 9050, 2004)4.

    Por meio da leitura de alguns trabalhos acadmicos, como as seguintes

    dissertaes de mestrado: Avaliao da poltica pblica de acessibilidade no

    perodo de 1992 a 2002 na cidade do Natal (SOUSA JNIOR, 2005); A cidade sem

    barreiras para todos? Avaliao das condies de deslocamento no bairro Cidade

    Alta, Natal/RN, face s intervenes em acessibilidade processadas entre 1993 e

    1998 (PIRES, 2007), apresentadas ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura

    e Urbanismo da UFRN e Natal sculo XX: do urbanismo ao planejamento urbano,

    tese de doutorado defendida por Pedro Antnio de Lima Santos, na USP, em 1998,

    que trata, especificamente, dos planos urbansticos concebidos para Natal desde o

    incio do sculo passado, alm de dados estatsticos relacionados ao tema e do

    conhecimento das normas legais5 que regulamentam esse espao, chega-se

    seguinte problematizao: as caractersticas do passeio pblico podem refletir o

    4 O arquivo completo sobre acessibilidade a edificaes, mobilirio e equipamentos urbanos encontra-se disponvel em: .

    5 Lei Municipal n 4.090, de 03 de julho de 1992 (Dispe sobre a eliminao de barreiras arquitetnicas para portadores de deficincia nos locais de fluxo de pedestres e edifcios do uso pblico e d outras providencias); Lei complementar n 055, de 27 de janeiro de 2004 (Institui o Cdigo de Obras e Edificaes do Municpio de Natal e d outras providncias); Lei complementar n 082/2007 (Dispe sobre Plano Diretor de Natal e d outras providncias). Disponvel em: .

  • 15

    perfil do cidado de uma determinada regio. Por meio da construo, manuteno

    ou formas de apropriao desse espao, existe a possibilidade de perceber como

    esse cidado demonstra, na prtica, seu grau de compromisso com os demais

    moradores de um aglomerado urbano e como esses moradores reagem diante dos

    possveis obstculos que lhes tiram o direito de transitar de forma livre e segura

    pelas caladas de sua cidade.

    Pode-se questionar, tambm, a influncia do poder pblico como regulador

    desse espao, visto que para grande parte dos entrevistados a responsabilidade

    pelo atual estado do passeio pblico recai sobre a prpria administrao municipal.

    De qualquer forma, indiretamente, acaba-se voltando a problematizao anterior,

    pois as mesmas pessoas que responsabilizam o governo so tambm responsveis

    por manter, eleger e reeleger seus administradores.

    Em trabalho anterior, Silva (2010), em que pesquisei a mesma temtica,

    apresentada na concluso do curso de graduao em Cincias Sociais na UFRN, no

    final de 2010, que teve como campo de trabalho o Bairro Lagoa Nova, em Natal -

    RN, tambm est servindo como base, por apresentar os primeiros exerccios e

    reflexes realizados durante a pesquisa. Pretende-se, agora, ampliar e aprofundar

    algumas questes j tratadas anteriormente, assim como, incluir novos

    conhecimentos pertinentes ao tema.

    O estudo desse espao surgiu, inicialmente, pelo interesse em identificar as

    razes pelas quais o passeio pblico, na cidade de Natal, encontra-se, na maior

    parte de suas regies, fora dos padres funcionais e satisfatrios de acessibilidade

    aos transeuntes, bem como a relao com os problemas sociais decorrentes desse

    quadro. Cabe destacar que, de acordo com o conceito citado anteriormente, a

    condio necessria seria a construo de um meio fsico adequado ao trnsito

    seguro a todos, que no apresentasse deficincias e incapacidades para o acesso

    de todo e qualquer pedestre, o que justifica ser a acessibilidade uma preocupao

    comum sociedade em geral.

    Ao caminhar atentamente pela cidade, constata-se que quase impossvel

    percorrer completamente, de forma contnua e segura, qualquer quarteiro sobre suas

    caladas. Geralmente, independentemente da nossa condio fsica, encontramos

    algum tipo de obstculo que impede, total ou parcialmente, o acesso. Devido a isso,

    comum perceber, pelas principais ruas e avenidas, pessoas que, sem alternativa,

    caminham perigosamente pelo asfalto, competindo com os automveis.

  • 16

    Ouve-se, tambm, de algumas pessoas com idade avanada e, consequente

    diminuio de sua capacidade fsica natural de locomoo que, como no existem

    caladas adequadas em sua cidade, preferem, muitas vezes, no sarem de casa.

    De acordo com uma pesquisa6 realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa

    Econmica Aplicada), em 2003, sobre Impactos Sociais e Econmicos dos

    Acidentes de Trnsito nas Aglomeraes Urbanas, a cidade de So Paulo revelou

    um nmero de nove quedas por grupo de mil habitantes, devido s ms condies

    do passeio pblico ao longo de ruas e avenidas, a um custo mdio em torno de R$

    2,5 mil para cada um desses tipos de acidente. Esses dados demonstram que a

    inadequao das caladas pode causar inmeros transtornos e prejuzos

    populao em geral.

    O abandono, o acmulo de lixo e o despejo de esgoto a cu aberto, flagrados

    nas caladas de alguns lotes at mesmo em bairros considerados nobres, como

    o caso de Lagoa Nova podem ser responsveis pela multiplicao de insetos e,

    consequentemente, a propagao de doenas por esses vetores. O esgoto

    despejado s margens dessas caladas, alm de trazer prejuzos sade pblica,

    pode, at mesmo, indiretamente, prejudicar o trnsito dos automveis, pois parte

    desse fluxo de gua, muitas vezes vai se infiltrando em alguns trechos de ruas e

    avenidas destruindo o seu revestimento.

    Apesar do aumento do nmero de veculos particulares circulando pela cidade

    nas ltimas dcadas, o transporte pblico ainda o principal meio de locomoo da

    maioria da populao nos centros urbanos e, mesmo parecendo bvio, no se deve

    6 Tradicionalmente, os acidentes de trnsito incluem apenas os acidentes envolvendo veculos. As

    estatsticas referentes a esses acidentes j destacam o pedestre, vtima de atropelamento cerca de 50% das mortes - como o elemento mais vulnervel no trnsito. No entanto, a queda de um pedestre na calada ou na prpria via, sem a participao direta ou indireta de um veculo, no considerada como um acidente de trnsito, ainda que a queda tenha ocorrido em razo de um defeito na calada ou na via. Os estudos de custos de acidentes de trnsito realizados em outros pases no costumam considerar os custos decorrentes das quedas de pedestres. Segundo pesquisas origem-destino, realizadas em algumas cidades brasileiras, mais de 30% dos deslocamentos realizados em rea urbana so feitos a p. A fim de conhecer a importncia desse fenmeno, optou-se por estud-lo nesta pesquisa. Para isso, foi realizada pesquisa domiciliar em 354 domiclios da aglomerao urbana de So Paulo, totalizando 1426 moradores entrevistados para identificar a freqncia das quedas e os seus custos. A pesquisa realizada na Aglomerao Urbana de So Paulo revelou nove quedas por grupo de mil habitantes, a um custo mdio em torno de R$2,5 mil por queda. Embora os valores encontrados estejam sujeitos a variaes significativas, dado o pequeno nmero de casos identificados, esta pesquisa mostra a importncia da formulao especfica de polticas e projetos voltados para a segurana de pedestres, principais vtimas dos acidentes de trnsito tanto por atropelamentos como por quedas atravs da melhoria de caladas, da sinalizao, implantao de passarelas e faixas de travessia (IPEA, 2003). Disponvel em: .

  • 17

    esquecer, portanto, que as pessoas para terem acesso a esse tipo de transporte e

    seus pontos de embarques, obrigatoriamente, precisam circular pelas caladas.

    A importncia do formato desse espao no se resume, apenas, em garantir o

    direito de ir e vir com segurana e conforto pelas ruas da cidade ou em facilitar os

    mais diversos tipos de interaes sociais que esse recorte do espao urbano pode

    proporcionar. Essa faixa complexa de tecido urbano, tal qual uma malha ou rede,

    que se estende por toda a cidade, ocupando uma poro considervel do territrio,

    pode interferir tambm no equilbrio ecolgico desse ambiente.

    Assim, os milhares de quilmetros quadrados somados, quando totalmente

    impermeabilizados, impedem a infiltrao natural das guas pluviais no solo - o que,

    segundo alguns estudos, contribuem para que algumas substncias txicas fiquem

    concentradas nas reservas aquferas do subsolo, inviabilizando o uso dessa gua

    pelas companhias de abastecimento que atendem a populao local isso faz com

    que os poos de coleta de gua subterrnea sejam perfurados cada vez mais

    distantes dos aglomerados urbanos e com custos, certamente, mais elevados. Esse

    somatrio de reas impermeabilizadas tambm contribui no perodo de chuvas,

    como fator de risco s pessoas, devido s possveis inundaes.

    O passeio pblico tambm, por excelncia, um dos locais mais utilizados

    para o plantio de vegetao arbrea nos centros urbanos. Esse tipo de vegetao,

    quando constituda de espcies apropriadas e controladas por um servio

    especializado de manuteno, no apenas acolhe vrios tipos de pssaros e

    pequenos animais, como embeleza e valoriza as reas edificadas, contribui para

    diminuio da poluio sonora e o excesso de radiao solar, alm de, entre os

    benefcios mais importantes para cidades de climas quentes, como o caso da

    Capital Potiguar, promover o conforto trmico. Conforme Velasco (2007)7, pesquisas

    realizadas em So Paulo revelam que ruas densamente arborizadas podem diminuir

    a temperatura local ou a sensao trmica em at 2C. Porm, para que as caladas

    possam oferecer todos esses tipos de vantagens populao, elas deveriam ser

    realmente bem planejadas e adaptadas para esse fim.

    Alguns obstculos que tornam as nossas caladas intransitveis so

    facilmente identificveis, como: muros, paredes e degraus construdos,

    7 Tese de doutorado defendida na USP, em 2007, por Giuliana Del Nero Velasco, sobre o Potencial da arborizao viria na reduo do consumo de energia eltrica na cidade de So Paulo. Disponvel em: .

  • 18

    arbitrariamente, dentro dos limites do passeio; estacionamento indevido de veculos;

    comerciantes fixos ou ambulantes, que se apropriam parcial ou totalmente do

    espao. Alm de outros, gerados por invases fixas ou temporrias, somam-se,

    ainda, aqueles causados pelo descuido e o abandono (caracterizados por buracos,

    crescimento de vegetao desordenada, depsito de lixo) ou, ainda, pelo isolamento

    dessa via de acesso (pela construo de muros altos em lotes particulares, que

    impedem totalmente a viso da rua, contribuindo para tornar esse espao invisvel e

    favorvel a alguns tipos de aes criminosas).

    A partir dessas constataes, pode-se concluir que cidados, enquanto

    pedestres, trilham por um caminho duplamente inseguro, seja pelos riscos de

    acidentes fsicos, decorrentes da grande quantidade de obstculos e irregularidades

    em nosso passeio pblico ou pela construo de ambientes que facilitam prticas

    violentas do cotidiano urbano, por sua invisibilidade. Segundo Jacobs (2000, p. 29),

    quando as pessoas dizem que uma cidade, ou parte dela, perigosa ou selvagem,

    o que querem dizer, basicamente, que no se sentem seguras em suas caladas.

    Partindo dessa realidade, cabe questionar quem seriam os responsveis pelo

    planejamento, construo e manuteno das caladas.

    De acordo com Jacobs (2000, p. 30):

    [...] as caladas e aqueles que as usam no so beneficirios passivos da segurana ou vitimas indefesas do perigo. As caladas, os usos que as limitam e seus usurios so protagonistas ativos do drama urbano, da civilizao versus barbrie.

    Desse modo, pode-se pensar nesse espao como consequncia do

    pensamento, das aes e da forma como se estabelecem as relaes com o

    ambiente e o restante das pessoas com quem se convive diariamente na cidade.

    Influencia-se e se influenciado por esse ambiente, que no somente utilizado

    para circulao, mas para vrios tipos de interao social. Nas caladas, encontra-

    se o comrcio informal e extenses do comrcio legal, trabalhadores ambulantes,

    profissionais do sexo, praticantes de esportes, visitantes de outras cidades, pessoas

    trocando informaes, pedintes e, at mesmo, indivduos que transformam esse

    local em uma espcie de moradia. Neste sentido, pode-se dizer que se est diante

    de um outro universo social contido dentro dos limites da sociedade urbana.

  • 19

    Yzigi (2000) aponta toda a complexidade desse tema e prope que se pense

    esse conflituoso espao urbano como um retrato da nossa sociedade. O estado

    atual de precariedade ou pouca funcionalidade do passeio pblico algo

    imperceptvel para maioria da populao e quando percebida parece ser ignorada

    por pessoas que ainda no desenvolveram a capacidade e o hbito de lutar por

    direitos coletivos e cumprir muitos dos seus deveres individuais. Uma sociedade em

    que esses componentes bsicos ao exerccio da cidadania esto muito ausentes.

    Seguindo esse raciocnio, poder-se-ia levantar algumas questes: Por que

    esse espao est to distante da sua finalidade prtica e funcional? O que leva as

    pessoas a aceitarem essa situao to passivamente? Ser possvel perceber isso?

    Conforme Ferrara (1988, p.3):

    A percepo urbana uma prtica cultural que concretiza certa compreenso da cidade e se apia, de um lado, no uso urbano e, de outro, na imagem fsica da cidade, da praa, do quarteiro, da rua, entendidos como fragmentos habituais da cidade. Uso e hbito, reunidos, criam uma imagem perceptiva que se sobrepe ao projeto urbano e constitui o elemento de manifestao concreta do espao. Entretanto, essa imagem, porque habitual, apresenta-se homognea e ilegvel.

    O envolvimento e o trabalho desenvolvido na rea de paisagismo,

    possivelmente, fez com que eu percebesse a questo esttica da despadronizao

    do nosso passeio pblico. Mas junto desarmonia visual das caladas,

    perceptvel, tambm, a falta de planejamento para que sirvam como espaos

    funcionais que permitam a circulao livre e segura dos pedestres.

    Alm disso, a iniciao dos estudos na rea de sociologia ampliou ainda mais

    minha viso sobre as questes relacionadas a esse local de convivncia entre as

    pessoas, fazendo com que eu percebesse as caladas como um lugar complexo,

    onde ocorrem diversos tipos de interaes sociais, pois no serve apenas como

    meio de acesso entre as regies da cidade, mas tambm como local de trabalho,

    lazer, conversas e troca de informaes, razo pela qual me senti motivado a

    estudar os problemas sociais relacionados constituio desse espao. Espero,

    dessa maneira, poder contribuir com outros trabalhos dedicados ao planejamento e

    melhoria dos espaos urbanos em nossas cidades, assim como aos estudos

    sociolgicos ligados formao da nossa cidadania.

    Como objetivo geral desse trabalho tenta-se estabelecer relaes entre as

    caractersticas do passeio pblico no bairro de Lagoa Nova em Natal e o tipo de

  • 20

    cidado que os moldes de construo e manuteno desse espao refletem.

    Especificamente, deseja-se alcanar os seguintes pontos: traar um perfil geral das

    caladas na cidade e mais detalhadamente do bairro estudado; identificar os

    possveis fatores que explicam o seu traado problemtico; analisar o

    posicionamento dos moradores que trafegam, diariamente, no bairro nesse contexto;

    e, finalmente, investigar o pensamento dessa populao em relao s noes de

    ocupao dos espaos sociais urbanos.

    Ao caminhar pela cidade, pode-se perceber que muitas obras parecem no

    ter sido planejadas de acordo com a sua verdadeira finalidade, o passeio pblico,

    por exemplo. Volta-se s seguintes questes: Quem planejou? Por que planejou

    algo to distante da realidade? Pelo menos da realidade da maioria das pessoas

    que utilizam esses espaos.

    Jacobs (2000) faz uma crtica a quem planeja a cidade e diz que as cidades

    deveriam ser vistas como laboratrios. Os bairros mais antigos poderiam servir de

    modelo para que se evitassem cometer os mesmos erros na hora de planejar, por

    exemplo, os passeios pblicos em bairros mais recentes. Porm, quem projetou o

    traado, na maioria dos novos bairros em Natal, no contemplou as reas

    destinadas aos pedestres. Para a pesquisadora:

    As cidades so um imenso laboratrio de tentativa e erro, fracasso e sucesso, em termos de construo e desenho urbano. nesse laboratrio que o planejamento urbano deveria aprender, elaborar e testar suas teorias. Ao contrrio, os especialistas e os professores dessa disciplina, (se que ela pode ser assim chamada) tm ignorado o estudo do sucesso e do fracasso na vida real, no tm tido curiosidade a respeito das razes do sucesso inesperado e pautam-se por princpios derivados do comportamento e da aparncia das cidades, subrbios, sanatrios de tuberculosos, feiras e cidades imaginrias perfeitas qualquer coisa que no as cidades reais (JACOBS, 2000, p. 5).

    Pode-se comprovar essa realidade analisando a Avenida Airton Senna,

    (Fotografia 89 na pgina 109) cuja construo recente. Nela percebe-se um

    enorme descaso com o passeio pblico, situao similar Avenida Mrio Negcio

    (Fotografias 95 e 96 na pgina 112) uma das avenidas mais antigas da cidade, onde

    praticamente impossvel encontrar linha contnua de pelo menos um quarteiro

    com caladas apropriadas.

    Esse tipo de planejamento, se que se pode chamar assim, desconsidera

    componentes bsicos ao exerccio da cidadania, como a segurana, o conforto e a

  • 21

    tranquilidade para quem usa as caladas como meio de acesso. Quando se dificulta

    o trnsito de pedestres nas caladas por meio de barreiras arquitetnicas ou se

    esconde atravs de muros altos e portes que isolam totalmente a viso da rua

    (Fotografia 88 na pgina 109) constri-se, indiretamente, um local duplamente

    inseguro. Torna-se um local arriscado tanto para o pblico que passa, quanto para

    os prprios moradores que chegam motorizados, mas precisam parar nessa fronteira

    antes de entrarem no seu mundo privado. Constata-se que o passeio pblico no

    se limita apenas as suas caractersticas fsicas, mas ao significado que vai sendo

    construdo socialmente, junto ao desenvolvimento das cidades e os objetos com os

    quais as caladas faz limite, no caso citado acima, o muro.

    As campanhas realizadas na cidade, as reportagens de jornais e revistas, e

    alguns trabalhos cientficos associam melhoria desse espao conscientizao da

    populao sobre o conceito de cidadania. Predomina na mdia, no entanto, uma

    ideia muito vaga e incompleta desse termo, tanto quanto o conceito de pblico e

    privado e os limites entre cada um deles.

    Sabe-se que existem normas para a construo de qualquer obra em nossa

    cidade e, se por acaso, no so conhecidas, o bom senso deveria mostrar que um

    local destinado ao trnsito de pedestres deve estar livre de barreiras que impeam o

    livre acesso. O problema que, at mesmo, quanto a esse aspecto legal j existe

    um grande obstculo. Como se pode esperar que as leis sobre os passeios pblicos

    sejam cumpridas, se cumprir a lei para os brasileiros, segundo DaMatta (1997, p.

    82), parece significar assumir ser um cidado inferior? Uma obedincia s leis

    configura na sociedade brasileira uma situao de pleno anonimato e grande

    inferioridade [...].

    Para fundamentar todas essas questes, alm da leitura de artigos miditicos,

    trabalhos acadmicos e obras de autores que abordam assuntos relacionados ao

    tema, dialoga-se mais profundamente com os seguintes autores: Yzigi (2000), que

    fornece uma viso ampliada e especfica sobre as caladas; DaMatta (1997), que

    trata de questes ligadas cidadania como um universo relacional e Santos (2000),

    que aborda a influncia geogrfica espacial na construo da cidadania.

    Conta-se, ainda, como suporte terico para a pesquisa autores como: Covre

    (1999), que apresenta um panorama geral sobre a origem e adaptao do conceito

    de cidadania; Lynch (1997), que trata da imagem e do significado da calada;

    Jacobs (2000), que discorre sobre a construo social e a segurana desse espao,

  • 22

    alm de Carvalho (2006), que faz uma reconstruo histrica do conceito de

    cidadania no Brasil.

    A compreenso dos aspectos visuais e a utilizao de imagens na pesquisa

    foram ampliadas com a leitura das seguintes obras: Os argonautas do Mangue, de

    Andr Alves (2004), Ver a Cidade, de Lucrecia DAlssio Ferrara (1988) e

    Sociologia da Fotografia e da Imagem, do socilogo Jos de Souza Martins (2008).

    Para a constituio do corpus dessa pesquisa optou-se por um tipo de

    amostra intencional, cujo mtodo comporta os mais variados tipos de pessoas e

    problemas ligados ao tema. Enfatizou-se o aspecto qualitativo, entretanto, procurou-

    se manter o equilbrio entre as quantidades de variveis e atores/agentes

    semelhantes pesquisados, tentando se aproximar do que os professores Fernando

    Lefevre e Ana Maria Lefevre (2010) chamam de mtodo qualiquantitativo (utilizado

    em suas recentes pesquisas sobre representaes sociais).

    Em relao aos atores/agentes envolvidos, decidiu-se por entrevistar os

    seguintes estratos: homens e mulheres adultos proprietrios ou no de lotes

    urbanos, transeuntes do bairro Lagoa Nova, funcionrios pblicos da rea de

    planejamento e urbanizao da prefeitura, alm de profissionais da rea de

    arquitetura e urbanismo.

    O estudo foi realizado no bairro de Lagoa Nova, em Natal, no Rio Grande do

    Norte. Dentre outras razes que justificam a escolha desse bairro, destacam-se os

    seguintes pontos: no contexto histrico da cidade uma das regies de ocupao

    mais recente, aproximadamente cinco dcadas; est, geograficamente, situado em

    uma regio central da poro mais urbanizada da cidade; apresenta aspectos

    urbansticos variados que tanto podem ser encontrados em bairros mais novos ou

    perifricos, como em bairros antigos ou centrais; apesar do predomnio de imveis

    residenciais apresenta um grande fluxo de pessoas, pois contm tambm grandes

    centros comerciais (conhecidos como Shopping Centers), redes de supermercados

    e muitos estabelecimentos de ensino pblicos e particulares, entre eles o Campus

    Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e, tambm, pela facilidade

    de acesso por ser o bairro onde eu, como autor da pesquisa, trabalho e resido.

    Como forma de destacar o passeio pblico visualmente e facilitar a

    observao desse espao em momentos posteriores, foi construdo um acervo de

    imagens de vrios pontos da cidade e do prprio bairro pesquisado por meio de

    registros fotogrficos. Estes registros foram realizados ao longo de vrias ruas e

  • 23

    avenidas, buscando observar curiosidades apresentadas em suas caladas, bem

    como flagrantes de situaes cotidianas. Procura-se justificar a tcnica e analisar

    com mais detalhes e profundidade cada um dos momentos registrados pela cmera.

    No primeiro captulo, apresentado um histrico geral sobre o surgimento

    desse espao, desde os primeiros vestgios arqueolgicos encontrados na cidade de

    Herculano e Pompia, na Itlia, at as primeiras caladas que foram sendo

    construdas no Brasil, em So Paulo, descritas por Yzigi (2000). Procura-se

    demonstrar como os aspectos culturais, histricos e econmicos, apesar de

    influenciar, no so isoladamente determinantes para a qualidade no quesito

    acessibilidade na constituio desse espao. Apresentam-se algumas definies

    sobre o que se entende por passeio pblico e o que descrito pela legislao.

    Finalmente, situa-se a calada dentro de um contexto chamado de espao pblico.

    No segundo momento, descreve-se o processo de urbanizao da capital

    potiguar, a ocupao e o desenvolvimento do bairro Lagoa Nova, as caractersticas

    atuais do passeio pblico na cidade e, especificamente, no bairro estudado. Neste

    histrico da regio, trata-se brevemente sobre o planejamento urbano em Natal e seus

    desdobramentos, incluindo o papel do Estado, as polticas pblicas adotadas at o

    momento8, a participao popular nesse contexto e, consequentemente, uma reflexo

    sobre a formao especfica do cidado local que vai se moldando nesse processo.

    No terceiro captulo, descreve-se a trajetria da pesquisa, assim como,

    analisa-se o material colhido por meio das entrevistas realizadas com os

    atores/agentes envolvidos com o campo de pesquisa, fazendo-se as consideraes

    necessrias que podem ser conectadas s teorias relacionadas ao tema.

    No ltimo captulo, apresenta-se uma seleo de imagens mais significativas,

    que levem o leitor a perceber o campo de pesquisa com mais intensidade, alm de

    elaborarem-se algumas consideraes mais detalhadas sobre esses registros

    fotogrficos.

    8 Como exemplos tm-se os projetos Cidade Sem Barreiras (1993) e o projeto Cidade Para Todos

    (1995), implantados pela prefeitura de Natal com o objetivo de solucionar os problemas relativos acessibilidade e mobilidade urbana, especialmente para os portadores de necessidades especiais. O segundo plano fazia parte de um projeto nacional e foi financiado pelo governo federal. Maiores detalhes, sobre as intervenes realizadas na cidade a partir desses projetos, foram analisadas por PIRES (2007), na dissertao de mestrado A cidade sem barreiras para todos? Avaliao das condies de deslocamento no bairro Cidade Alta, Natal/RN, face s intervenes em acessibilidade processadas entre 1993 e 1998.

  • 24

    CAPTULO I

    FAAM-SE AS CALADAS: um caminho entre o pblico e o privado

    Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (jul./2009).

  • 25

    1 FAAM-SE AS CALADAS: UM CAMINHO ENTRE O PBLICO E O PRIVADO

    1.1 GNESE

    Quando esse espao, pavimentado e destinado, especialmente, circulao

    de pedestres, foi criado? Quais fatores histricos e culturais podem explicar

    caractersticas to diversificadas na construo e modo de apropriao desse

    espao? No existem dados que indiquem uma data precisa de sua criao, nem

    que tenha surgido com os mesmos objetivos atuais para os quais vem sendo

    aperfeioado. Percebe-se que os fatores histricos e culturais podem exercer grande

    influncia na arquitetura desses espaos, mas no so determinantes. possvel

    haver uniformidade e, at mesmo, extremas diferenas em trechos edificados num

    mesmo perodo histrico ou em regies que possuam culturas semelhantes.

    Imagens, ao longo do trabalho, demonstraro essa diversidade.

    H vestgios arqueolgicos que demonstram que as caladas j existiam em

    civilizaes muito antigas.

    Caladas bem pavimentadas eram tambm marca registrada da Roma antiga. Cidades como Herculano e Pompia permitiam que as famlias se deslocassem com segurana pelas vias comerciais que compreendiam padarias, saunas e anfiteatros, posteriormente destrudos pelo vulco Vesvio em 79 da nossa era (CARIM, 2007, p. 1).

    Fotografia 01: Runas de Pompia I9 Fotografia 02: Runas de Pompia II

    10

    Fonte: Arquivo Adriana Nascimento Fonte: Autor desconhecido.

    9 Disponvel em: . Acesso em:

    13 dez. 2009. 10

    Disponvel em: . Acesso em: 13. dez. de 2009.

  • 26

    Fotografia 03: Runas de Pompia III

    11

    Fonte: Autor desconhecido.

    Yzigi (2000) escreve que, no Brasil, no incio da urbanizao de So Paulo,

    quando as ruas no eram pavimentadas e no havia separao nesse espao para

    a circulao de pessoas, cavalos ou veculos de trao animal.

    [...] chamava-se calada ou caladinha uma faixa horizontal empedrada, de pequena largura, colada parede externa da construo, destinada a proteger as fundaes da infiltrao de guas pluviais de onde, talvez, tenha vindo a atual denominao. E, medida que os beirais avanavam sobre as mesmas, serviam de passagem protegida para o pedestre, nos trechos em que existia (YZIGI, 2000, p. 31).

    Imagens antigas da capital potiguar demonstram o que relata Yzigi (2000).

    Como se pode perceber pelas fotografias, no h, historicamente, linearidade

    quanto ao formato desse espao, conforme imagem 04. Esse dado pode ser

    comprovado pelas imagens no desenvolvimento do trabalho. Ainda hoje, moradores

    de bairros mais recentes, em que as ruas no so pavimentadas, costumam

    constru-las da maneira como descreve o autor. Esta iniciativa dos moradores pode

    11

    Disponvel em: . Acesso em: 10 set. 2012.

  • 27

    explicar, de certo modo, porque, em alguns trechos as caladas, apresentam uma

    grande quantidade de desnveis entre um lote urbano e outro. Nessas ruas, no

    pavimentadas, normalmente, no existe uma demarcao indicando o local em que

    ser o calamento. Muitos proprietrios foram construindo suas caladas adotando

    nveis individuais e aleatrios sem consultar a prefeitura12, conforme pode ser

    observado nas imagens 05 e 06.

    Fotografia 04: Vista parcial de Natal e suas primeiras caladas no comeo do sc. XX (esquina da atual Praa Andr de Albuquerque com a Praa Joo Tibrcio, ao fundo, o rio Potengi)

    13

    Fonte: Arquivo de Bruno Bougard (Acervo IHG/RN).

    13 Natal Ontem e Hoje / Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo. Natal (RN): Departamento de Informao Pesquisa e Estatstica, 2006.

  • 28

    Fotografia 05: Rua em Capim Macio e suas caladas desniveladas (prx. Av. Ayrton Senna). Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Jun./2010).

    Fotografia 06: Rua Neuza Farache, Capim Macio. Local prximo Av. Eng. Roberto Freire. Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Ago./2012).

  • 29

    1.2 OS CRIADORES E A CRIATURA

    Certas paisagens urbanas, em nosso pas, lembram a origem tnica ou

    cultural dos seus criadores. Observando a arquitetura de alguns municpios do sul

    do Brasil, como Gramado e Canela, so perceptveis traos da colonizao alem,

    em Caxias do Sul e Bento Gonalves, por exemplo, traos da cultura italiana. A

    maioria das cidades, entretanto, traz marcas dos portugueses. Apesar da

    diversidade de etnias que povoaram ou vieram povoar o Brasil, somos,

    predominantemente, frutos da colonizao lusitana.

    Conforme Freyre (2000), os brasileiros apresentam caractersticas

    extremamente mescladas por outras culturas. De acordo com o autor, os

    colonizadores portugueses, alm de terem desenvolvido uma vocao comercial

    martima, que lhes proporcionavam contatos com uma grande diversidade de povos

    no mundo, estavam situados geograficamente em uma regio intermediria entre o

    continente Europeu e a frica. Soma-se a isso, ainda, o que ele chamou de

    plasticidade cultural, certa facilidade em misturar-se ou adaptar-se a outras

    culturas. Isto poderia ser explicado, em parte, porque o conjunto das caladas,

    herdeiras, em sua maior parte, desta cultura lusitana, seja como uma colcha de

    retalhos, refletindo um pedacinho de cada povo que mesclou a cultura brasileira.

    Fotografia 07: Calada no Centro de Gramado/RS. Fonte: Autor desconhecido

    14.

    14

    Disponvel em: .

  • 30

    Fotografia 08: Residncia tpica de Gramado/RS. Fonte: Autor desconhecido

    15.

    Dentre as diversas heranas artsticas e culturais deixadas no Brasil pelos

    lusitanos est a calada portuguesa ou mosaico portugus16. Este tipo de calada

    se destaca pelo modo artesanal, formado por pequenas pedras de cores

    contrastantes (geralmente em preto e branco), que resultam em uma estampa

    decorativa ao longo dos seus encaixes. Este modelo tornou-se muito popular no

    Brasil a partir do sculo passado e continua fazendo parte das paisagens urbanas,

    como o caso do famoso calado da praia de Copacabana no Rio de Janeiro. Em

    Natal, encontram-se extensos exemplares com este tipo de revestimento,

    principalmente em reas pblicas, como as caladas da orla da praia de Ponta

    Negra ou o calado ao longo da Avenida Roberto Freire, no bairro Capim Macio.

    15

    Disponvel em: . 16

    A calada portuguesa, conforme a conhecemos, foi empregada pela primeira vez em Lisboa no ano de 1842. O trabalho foi realizado por presidirios (chamados "grilhetas" na poca), a mando do Governador de armas do Castelo de So Jorge, o Tenente-general Eusbio Pinheiro Furtado. O desenho utilizado nesse pavimento foi de um traado simples (tipo zig-zag), mas, para a poca, a obra foi de certa forma inslita, tendo motivado cronistas portugueses a escrever sobre o assunto. Aps este primeiro acontecimento, foram concedidas verbas a Eusbio Furtado para que os seus homens pavimentassem toda a rea da Praa do Rossio, uma das zonas mais conhecidas e mais centrais de Lisboa, numa extenso de 8.712 m. A calada portuguesa rapidamente se espalhou por todo o pas e colnias, subjacente a um ideal de moda e de bom gosto, tendo-se apurado o sentido artstico, que foi aliado a um conceito de funcionalidade, originando autnticas obras-primas nas zonas pedonais. Daqui, bastou somente mais um passo, para que esta arte ultrapassasse fronteiras, sendo solicitados mestres calceteiros portugueses para executar e ensinar estes trabalhos no estrangeiro. Disponvel em: .

  • 31

    Fotografia 09: Calada portuguesa formando Fotografia 10: Calado da Praia mosaico, em Lisboa, Portugal. de Copacabana, Rio de Janeiro. Fonte: Autor desconhecido. Fonte: Autor desconhecido.

    17

    Fotografia 11: Avenida Roberto Freire, Fotografia 12: Calado da Praia de Ponta Negra, Natal/RN. Ponta Negra, Natal/RN. Fonte: Autor desconhecido. Fonte: Autor desconhecido.

    18

    17

    As Fotos 09 e 10 esto disponveis em: . 18

    As Fotos 11 e 12 esto disponveis em: .

  • 32

    Fotografia 13: Calada de pedra portuguesa, em construo. Avenida Salgado Filho, Lagoa Nova. Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Jun./2010).

    Fotografia 14: Calada de pedra portuguesa, em construo. Avenida Salgado Filho, Lagoa Nova. Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Jun./2010).

  • 33

    Fotografia 15: Calada de pedra portuguesa, em construo. Avenida Salgado Filho, Lagoa Nova. Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Jun./2010).

    1.3 DEFINIO E NOMENCLATURA

    A palavra calada de origem latina e seria derivada do termo calcatura

    (ao de calcar ou pisar). De acordo com Yzigi (2000, p. 31):

    Entende-se por calada o espao existente entre o lote do quarteiro e o meio fio, superfcie usualmente situada a cerca de 17 centmetros acima do leito carrovel das vias urbanas. Sua denominao mais correta passeio, mas consagrou-se como calada por causa de alguns fatos histricos.

    Hoje, as caladas fazem parte do planejamento urbano, possuem normas de

    padronizao previstas em lei, no cdigo de obras da maioria das cidades. O grau

    de prioridade e cuidado destinado a esse espao foi ou continua sendo dado de

    acordo com o desenvolvimento dos aglomerados urbanos e as caractersticas

    particulares de cada local. Aqui em Natal, est presente na lei complementar n. 55,

    de 27 de janeiro de 2004, que certifica a calada como rea de circulao pblica,

    razo pela qual deve estar livre de obstculos que impeam o trnsito das pessoas

    por essa via de acessibilidade, , entretanto, da responsabilidade do proprietrio de

    cada lote urbano a construo e a manuteno das caladas (conforme o cdigo de

    obras da cidade em anexo).

  • 34

    As caladas renem caractersticas de um outro mundo complexo, dentro

    das cidades. Possuem uma histria e uma geografia particular, esto numa linha

    de tempo no linear, cuja ocupao ocorre das mais diversas formas. Em alguns

    trechos, ainda podem ser encontradas pessoas sentadas em suas caladas para

    conversarem e olharem o movimento das ruas, fato comum em dcadas passadas19.

    Em outras regies, as caladas so utilizadas como ponto comercial (vende-

    se de tudo), possui horrio e dias fixos de funcionamento. Vendedores ambulantes

    fazem, de toda a extenso do passeio, um espao de sobrevivncia, local em que

    so comuns, tambm, profissionais do sexo e moradores em situao de risco. Mas

    ser que existe espao para todos?

    Nesse contexto, encontram-se, ainda, moradores que, invadem essa rea de

    domnio pblico, privatizando-o, inclusive, at mesmo, com construes de alvenaria,

    tomando esse espao, em alguns casos, totalmente para si, outros constroem suas

    caladas de maneira inadequada, h muitas barreiras arquitetnicas, que impedem o

    trnsito seguro dos transeuntes. Existem, ainda, vrios quilmetros de caladas

    abandonadas, tanto pelo poder pblico, quanto pelos proprietrios particulares,

    principalmente, de alguns imveis mantidos vazios, possivelmente, alimentando a lista

    de imveis utilizados para a especulao imobiliria20.

    [...] alguns terrenos vazios e algumas localizaes so retidas pelos proprietrios, na expectativa de valorizaes futuras, que se do atravs da captura do investimento em infra-estrutura, equipamentos ou grandes obras na regio ou nas vizinhanas. Isto provoca a extenso cada vez maior da cidade, gerando os chamados vazios urbanos, terrenos de engorda, objeto de especulao (ROLNIK, 1994, apud CAPISTRANO, 2002, p.11).

    19

    Sobre esse aspecto destacamos duas monografias apresentadas no curso de Cincias Sociais, na UFRN, respectivamente em 2002 e 2003: Alma da Rua: um estudo sobre a apropriao do espao pblico urbano no conjunto Cidade Satlite de Rosa de Lima Cmara Guaignier e Memrias que passam, cadeiras que ficam. A construo histrica do hbito de conversar nas caladas a partir da chegada dos primeiros moradores da Rua Olinda, na Cidade da Esperana, Natal de Josenilton Tavares.

    20 Sobre especulao imobiliria em Natal, ver: CAPISTRANO, Ana Claudia M. Alves. Imagens do

    Futuro: vises sobre a modernidade na cidade do Natal. UFRN, 2002, e OLIVEIRA, Jean Barbosa de. A Expanso Urbana Dentro do Bairro Planalto: reflexo da expanso imobiliria. UFRN, 2002.

  • 35

    Fotografia 16: Dois terrenos com aspecto de abandono (Travessa da Rua Henrique Ges, Bairro Lagoa Nova). Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Jun./2008).

    1.4 A CALADA COMO ESPAO PBLICO

    Cruz (1994) descreve que os termos pblico e privado datam do Imprio

    Romano e se referem, respectivamente, ao Direito Pblico e ao Direito Privado que

    so as pedras fundamentais do Direito Romano, que , por sua vez, a pedra

    fundamental de todo o Direito da civilizao ocidental. No entanto, a ideia de

    espao pblico aparece desde a antiga civilizao grega.

    Na polis grega o espao pblico a esfera de ao do cidado, o espao onde se compete por reconhecimento, precedncia e aclamao de idias. nesse ambiente, com condies de homogeneidade moral e poltica e de ausncia de anonimato, que existe a perseguio da excelncia entre os iguais. Por oposio, o espao privado onde se do as relaes entre os que no so cidados, os comerciantes, as mulheres, os escravos (CRUZ, 1994, p. 1).

    Assim, originalmente, o termo pblico associado ideia de coletividade e ao

    exerccio do poder. Nas palavras desse mesmo autor, sociedade dos iguais. O

    privado, de outro lado, estaria no mbito particular ou na sociedade dos desiguais.

  • 36

    De acordo com os estudos sociolgicos, porm, a sociedade dinmica, est em

    permanente estado de transformao.

    O perodo moderno marcado por profundas mudanas polticas e

    econmicas, consequentemente, essas mudanas e transformaes atingiram

    tambm o campo das relaes sociais. Esse novo cenrio formado pelos Estados

    Nacionais deixa cada vez mais claro uma relao de poder na esfera pblica, entre

    desiguais, ou seja, entre governantes e governados.

    Com o fortalecimento do Mercado, comea a ser entendido como pblicas, as

    relaes estabelecidas entre o Estado e a sociedade atravs das leis, porm,

    estabelecera-se um cdigo particular privado entre os comerciantes e donos de

    empresas. Segundo Cruz (1994), surge, tambm, nesse momento, a dicotomia

    entre bens pblicos e bens privados.

    Interessante observar que a diviso terica entre o poder pblico, associado ao

    Estado e a esfera privada, ligada, exclusivamente ao Mercado, parece ter existido e

    ainda existir apenas na teoria. Os fatos mostram a existncia de uma relao muito

    afinada entre as partes, mesclando-se em alguns momentos e at se confundindo.

    Hoje, assiste-se a mais uma fase desse relacionamento em que cada vez

    mais o Estado como espao de poder pblico vai sendo engolido pelo sistema

    capitalista, mantendo, no entanto, a aparncia terica de que cada um exerce papis

    diferenciados na sociedade. Na viso terica neoliberal, o Estado no deveria se

    intrometer nas questes do mercado. Na prtica, deve ajudar as grandes empresas

    a crescerem ainda mais ou socorr-las em momentos de crise para que possam

    enfrentar possveis dificuldades financeiras durante as turbulncias do mercado.

    As polticas pblicas, de todas as ordens entre elas as polticas pblicas de

    acessibilidade estariam muito bem definidas dentro dessa diviso e encaixadas,

    perfeitamente, dentro da esfera pblica e estatal. Porm, mesmo admitindo que na

    relao entre Estado e polticas pblicas, o primeiro sempre exerceu papel de

    destaque e nunca esteve ausente. De acordo com Souza (2009):

    Como sabemos, a viso atual do Estado como detentor do monoplio da dimenso ou esfera pblica decorre principalmente da ideologia liberal e da expresses habituais como gesto pblica, administrao pblica, funcionrio pblico e outros congneres. Ora, se isso fosse correto, toda ao ou poltica estatal seria pblica por excelncia. Em outras palavras, as aes estatais seriam caracterizadas pela transparncia, acessibilidade, continuidade e participao da populao. O que, evidentemente, no encontra respaldo na realidade de uma sociedade capitalista (SOUZA, 2009, p. 12).

  • 37

    Nesse contexto, a calada , legitimamente, um espao pblico, mas localiza-

    se numa regio de fronteira entre a casa e a rua. Possui caractersticas hbridas, ora

    mostra-se como pblica inclusive contando com investimentos da iniciativa privada

    para constru-la ou revitaliz-la , ora mesclada com o domnio privado ou

    totalmente privatizada quando alguns cidados se apropriam dessa rea para

    fins particulares, acoplando a calada sua residncia ou a utilizando como uma

    extenso do seu estabelecimento comercial.

    Assim como Yzigi (2000), entende-se que o formato do nosso passeio

    pblico concebido como um espelho da nossa sociedade. Pode-se ver,

    concretamente, atravs dos seus contornos, que a cidadania ou o seu pleno

    exerccio, est longe de ser alcanado. As barreiras existentes tornam-se, muitas

    vezes, invisveis. Ora porque estamos habituados, geralmente, a olhar aquilo que

    est a nossa volta de maneira muito superficial ou, simplesmente, porque nos

    acostumamos com esses obstculos.

    Isso nos remete a outro ponto de vista, que se soma a ideia desse ambiente

    como reflexo da sociedade, a questo do espao como agente ativo formador. Milton

    Santos (2000), no seu livro O espao do Cidado, prope que se veja o espao

    fsico das cidades no apenas como um reflexo da nossa sociedade, mas como um

    instrumento ativo, que exerce grande influncia na formao dos indivduos.

    O passeio pblico parece impor limites ao pleno exerccio da cidadania. Crescer

    circulando por esse espao naturaliza esse caminho e seus obstculos. como se as

    caladas formassem algum tipo de trilha desenhada pela prpria natureza.

    A Antropologia ensina a relativizar o pensamento e estranhar aquilo que

    parece familiar. Olhar a calada de vrios ngulos importante para se

    compreender a sua complexidade. A Sociologia, atravs de Durkheim (1993),

    prope refletir sobre o peso que a sociedade exerce sobre os indivduos, assim a

    existncia do nosso cidado parece ser formada ou deformada pelo nosso sistema

    econmico, por nossa tradio histrica e pelos acontecimentos polticos que, tantas

    vezes, negam direitos individuais ou coletivos aos cidados, deixando sempre como

    resultado uma cidadania incompleta. Por outro lado, h autores que mostram a

    influncia exercida pelos indivduos, dependendo do grau de conscincia desses, e

    de outros fatores complexos que podem ampliar o seu raio de ao.

  • 38

    Ao analisar esse espao, percebe-se a importncia de se considerarem todos

    esses conhecimentos e constata-se a difcil tarefa de separar o objeto de estudo do

    seu contexto e da subjetividade prpria de cada um.

    A calada uma obra social impregnada de caractersticas individuais. Para

    analis-la, preciso compreender esses dois aspectos que se mesclam e do forma a

    um s corpo, pblico e privado. Parece haver uma tendncia em se fazer uma mistura

    entre esses dois territrios21. Alguns lugares destinados ao trnsito e a convivncia

    entre os pedestres so construdos e mantidos pela iniciativa privada como o caso

    dos shoppings, clubes sociais de lazer e condomnios residenciais fechados.

    O Privado, assim, abre espao para o Pblico, mesmo que esse pblico seja

    selecionado ou formado em sua maioria por cidados-consumidores, de maior

    poder aquisitivo. Outras reas pblicas como praias, reservas de mata nativa (dentro

    e fora dos limites urbanos) so privatizadas por pessoas ou apropriadas por

    empresas particulares.

    A realidade mostra um mundo confuso, onde no h limites bem definidos

    entre esses dois lados. bastante claro que essa confuso sempre beneficiou uma

    pequena parcela da nossa sociedade. A ideia de espao pblico captada pelo

    nosso sistema econmico que o molda de acordo com seus interesses, assim como

    se concebe o conceito de cidadania. No capitalismo moderno, conforme Santos

    (2000) cidado vira sinnimo de usurio-consumidor.

    Como se viu anteriormente, a lei estabelece a calada como um espao

    pblico. Mas parece haver certa dificuldade para grande parte da populao em

    diferenciar os espaos urbanos pblicos e privados.

    No fcil estabelecer um limite entre esses dois conceitos em relao

    apropriao dos espaos urbanos. Para se ter uma ideia, quando um cidado qualquer

    pretende construir uma obra particular dentro de uma cidade, deveria ter em mente que

    o prprio lote particular que compra e o chama de seu, e que est localizado,

    totalmente, antes do limite da calada, portanto rea de domnio privado, no lhe d o

    direito de construir, por exemplo, uma casa, da maneira que bem entender. Existem leis

    e normas que iro determinar: qual a frao do lote que poder ser edificada; qual a

    altura mxima ou mnima das paredes que podero ser levantadas; qual o recuo que

    21

    Sobre a mescla desses dois conceitos temos o trabalho de ngela Lcia de Arajo Ferreira e Snia Marques, Privado e Pblico: inovao espacial ou Social?, levanta as questes sobre a privatizao dos espaos pblicos e a publicizao da vida privada. Disponvel em: .

  • 39

    dever ser obedecido pela obra em relao aos limites da calada e aos lotes vizinhos,

    entre outras regras (ver cdigo de obras do municpio).

    Logo, mesmo que se trate como uma rea de domnio privado, dever-se-ia,

    como bons cidados, respeitar certas normas que beneficiam a coletividade. Por que

    com as caladas seria diferente? Mesmo que no se tivesse a certeza desse espao

    como pblico, o bom senso motivaria a procura pelos rgos competentes para

    informar sobre a maneira correta de construir esse espao.

    Fotografia 17: Exemplo de calada do tipo ideal no bairro Cidade Jardim, Natal/RN. Fonte: Arquivo Pessoal Ricardo Silva (Jun./2008).

    1.5 CIDADANIA: TRAJETRIA E ESPAO

    A cidadania sempre esteve ligada vida em sociedade, pode ser associada

    ao surgimento da vida na cidade e capacidade que os homens desenvolveram de

    se relacionarem mediante o exerccio de direitos e deveres de uns para com os

    outros. Apesar de no existir uma preciso quanto ao aparecimento desse conceito,

    existem indcios de que a ideia de cidadania j circulava entre os gregos dentro de

  • 40

    suas primeiras cidades, conhecidas como polis22. Fez parte, tambm, dos ideais

    romanos, mas at esse perodo, apenas um grupo muito restrito de indivduos tinha

    a sorte de nascer com essa ddiva e poderia ser considerado um cidado. A

    cidadania era um privilgio concedido de acordo com a origem ou o sexo dos

    indivduos. Essa situao gerou muitos conflitos. Numerosas batalhas foram

    travadas ao longo da histria para que o direito cidadania fosse estendido a um

    nmero maior de habitantes dessas primeiras cidades.

    Na idade mdia, pouca coisa mudou nesse aspecto, poucos tinham o

    privilgio de serem definidos como cidados. Nesse tipo de organizao social,

    formada basicamente pelos nobres, pelo clero e uma grande massa de

    camponeses, apenas os dois primeiros grupos, constitudos por um nmero reduzido

    de indivduos, tinham esse direito garantido.23

    Com o Renascimento e o fortalecimento dos Estados Nacionais, atravs de

    muitas lutas, esse direito foi sendo ampliado a um contingente maior de pessoas. A

    ascenso da Burguesia, que teve como um dos marcos a Revoluo Francesa,

    trouxe mudanas profundas nesse campo. O lema Liberdade, Igualdade e

    Fraternidade dos revolucionrios franceses, serve de inspirao at hoje para a

    maioria das sociedades modernas. Criou-se ento, nesse perodo, o que se conhece

    como Estado de Direito.24

    Este surge para estabelecer direitos iguais a todos os homens, ainda que perante a lei, e acenar com o fim da desigualdade a que os homens sempre foram relegados. Assim, diante da lei, todos os homens passaram a ser considerados iguais, pela primeira vez na histria da humanidade (COVRE, 1999, p.16).

    22

    A polis era composta por homens livres, com participao poltica contnua numa democracia direta, em que o conjunto de suas vidas em coletividade era debatido em funo de direitos e deveres... Na polis grega, a esfera pblica era relativa atuao dos homens livres e sua responsabilidade jurdica e administrativa pelos negcios pblicos. Viver numa relao de iguais como a da polis significava, portanto, que tudo era decidido mediante palavras e persuaso, sem violncia. Eis o esprito da democracia. Mas a democracia grega era restrita, pois inclua apenas os homens livres, deixando de fora mulheres, crianas e escravos (COVRE, 1999, p.16).

    23 Baseado no artigo A Evoluo do Conceito de Cidadania. Escrito pelos professores Cyro de Barros Resende Filho e Isnard de Albuquerque Cmara Neto, da Universidade de Taubat. Disponvel em: . Acesso em: 15 jun. 2010.

    24 De acordo com Covre (1999), esse fato foi proclamado principalmente pelas constituies francesa e norte-americana, reorganizado e ratificado, aps a II Guerra Mundial, pela Organizao das Naes Unidas (ONU) com a declarao Universal dos Direitos do Homem (1948).

  • 41

    Segundo Carvalho (2006), a cidadania possui trs dimenses bsicas: os

    direitos civis fundamentais vida, liberdade, propriedade e igualdade perante a

    lei; os direitos polticos, ligados participao do cidado no governo da sociedade;

    e, por ltimo, os direitos sociais, que seria a garantia na participao na riqueza

    coletiva. No entanto, a ordem dessas conquistas e a nfase ou prioridade

    estabelecida em relao a alguma delas foi desenvolvida de forma particular pelas

    diferentes naes, assim como o prprio tipo de cidado formado. Quando falamos

    de um cidado ingls, ou norte-americano e de um cidado brasileiro, no estamos

    falando exatamente da mesma coisa (CARVALHO, 2006, p. 12).

    Isso parece ocorrer tambm em escalas menores. Por exemplo, dentro da

    nossa sociedade, parece no existir um cidado brasileiro, porm tipos variados e

    de diversas ordens, alm daqueles totalmente excludos desse tipo de classificao,

    mesmo que denominados, teoricamente, como tal. Alm dos elementos de origem

    histrica, essas diferenas podem ser evidenciadas, entre outros fatores, pelas

    caractersticas dos espaos ocupados por esses indivduos. Segundo Santos (2006),

    os espaos em nossas cidades, no s se constituem como elementos de

    identidade para o indivduo como tambm contribuem ativamente na formao de

    um determinado tipo de cidado.

    Apesar dessa diversidade de formas, de acordo com a tradio histrica e o

    sistema econmico que marcou e marca at hoje a sociedade brasileira, podem-se

    traar alguns pontos gerais prprios da construo desse direito no Brasil.

    A colonizao e a explorao do Brasil foi produto da expanso comercial

    europeia e decorrente do incio do processo de acumulao de riquezas do sistema

    capitalista. A maioria dos habitantes desse novo territrio multiplicou-se dentro de

    um contexto de submisso. Primeiramente, em relao metrpole Portuguesa,

    depois Inglaterra patrocinadora da independncia desse novo pas, em

    seguida, rendeu-se ao domnio norte-americano e, hoje, ao chamado mercado

    globalizado e ao monoplio das gigantescas multinacionais (atualmente, algumas

    to poderosas quanto s naes mais desenvolvidas do planeta).

    Essa sociedade tem marcas profundas de um longo perodo de escravido e

    de muitos anos de governos ditatoriais. Muitos direitos concedidos ao povo brasileiro

    no foram conquistados, exclusivamente, atravs de lutas ou reivindicaes, mas

    sim utilizados como estratgia de governo para manipulao das massas. Os

    direitos foram e so representados at hoje como se fossem um favor da elite

  • 42

    concedido s classes populares, sempre com o objetivo de domesticar esses

    indivduos e mant-los subjugados e conformados diante do quadro de explorao e

    extrema desigualdade de direitos reais.

    Assim, encontra-se, genericamente, nesse pas, uma forma de cidadania

    muito incompleta ou totalmente adaptada para dar suporte ao modelo econmico

    capitalista. A maioria dos brasileiros no tem liberdade de escolha para decidirem

    onde morar, qual profisso seguir ou sobre a maneira de circular pela cidade. A

    participao poltica se resume, praticamente, ao voto no perodo de eleies

    lembrando-se que, segundo as normas do pas, obrigatrio. Por ltimo, de acordo

    com dados da ONU, o Brasil figura numa lista entre os oito pases que apresentam

    os piores ndices de distribuio de renda do planeta25. Dentro desse quadro, ainda,

    tem-se a ideologia capitalista, que tenta reduzir o conceito de cidadania apenas ao

    direito de consumo.

    No basta ter uma Constituio Cidad, preciso conseguir por em prtica

    o que nela est escrito. Para isso, necessrio que os brasileiros sejam educados

    para reivindicar o direito de cobrar pelos seus prprios direitos assim como exigir

    que as normas sejam cumpridas pelos demais.

    Em relao ao espao, o trabalho de Coradini (1995), Praa XV: espao e

    sociabilidade, realizado em uma praa central na cidade de Florianpolis, alm de

    trazer uma rica contribuio ao conceito de apropriao social do espao, possui

    tambm um conjunto de imagens que nos transportam para uma Florianpolis vista

    atravs de alguns fragmentos visuais antigos e de outros mais recentes. Recortes de

    certo espao, flagrantes de seus usos, que podem ser lembrados ou imaginados,

    pois as fotografias retratam particularidades e especificidades, comuns ao cotidiano

    de muitos outros lugares.

    Ainda, nesse trabalho, Coradini (1995) escreve sobre a diversidade da

    concepo do termo espao nas cincias sociais. A pesquisadora rene conceitos

    dados ao termo desde o ano de 1890 em Durkheim (1983), at os tericos mais

    25

    O conceito de desigualdade social um guarda-chuva que compreende diversos tipos de desigualdades, desde desigualdade de oportunidade, resultado, etc., at desigualdade de escolaridade, de renda, de gnero, etc. De modo geral, a desigualdade econmica a mais conhecida chamada imprecisamente de desigualdade social, dada pela distribuio desigual de renda. No Brasil, a desigualdade social tem sido um carto de visita para o mundo, pois um dos pases mais desiguais. Segundo dados da ONU, em 2005 o Brasil era a 8 nao mais desigual do mundo. O ndice Gini, que mede a desigualdade de renda, divulgou em 2009 que a do Brasil caiu de 0,58 para 0,52 (quanto mais prximo de 1, maior a desigualdade), porm esta ainda gritante. Disponvel em: . Acesso em: 15 set. 2010.

  • 43

    atuais com caractersticas interdisciplinares como Bourdieu (1989), Maffesoli (1984)

    e Foucault (1987), detalhando o enfoque desses e outros autores citados por ela. A

    autora escreve:

    O espao pode ser considerado o mais interdisciplinar objeto de anlise. Ele hoje tema de reflexo de arquitetos, gegrafos, historiadores, antroplogos e at mesmo de fsicos e matemticos. Isto fora necessariamente a quem deseja trabalhar com ele buscar referncias dispersas muitas vezes em outras reas (CORADINI, 1995, p.13).

    Como pode se observar diversas so as definies do termo espao. Para a

    pesquisa que se trata aqui, ou seja, a tentativa de associar, principalmente, as

    caractersticas fsicas das caladas ao tipo de cidado que ocupa esse espao,

    optou-se por adotar a conceituao de espao proposta pelo gegrafo Milton

    Santos. Para ele o espao formado por um conjunto indissocivel, solidrio e

    tambm contraditrio, de sistemas de objetos e sistemas de aes, no

    considerados isoladamente, mas como um quadro nico na qual a histria se d

    (SANTOS, 2008, p.63), e ainda, constitui um dado ativo, devendo ser considerado

    com um fator e no exclusivamente como reflexo da sociedade. no territrio tal

    como ele atualmente , que a cidadania se d tal como ela hoje, isto ,

    incompleta (SANTOS, 2000, p. 06).

    No captulo seguinte ser apresentado um histrico da fundao e formao

    da cidade, bem como sua urbanizao e expanso, alm da formao do bairro

    Lagoa Nova, uma explanao de sua constituio e imagens que retratam o objeto

    de estudo desse trabalho as caladas.

  • 44

    CAPTULO II

    CALADAS DAS DUNAS

    *

    * Fotografias antigas retiradas do Anurio Natal 2009 Secretaria Municipal de Meio ambiente e Urbanismo Natal (RN): Departamento de Informao, Pesquisa e Estatstica, 2009.

  • 45

    2 CALADAS DAS DUNAS

    2.1 A URBANIZAO DE NATAL

    De acordo com Souza (2008), segundo os historiadores Cmara Cascudo e

    Hlio Galvo, Natal tem hoje pouco mais de 400 anos. Seu primeiro aglomerado de

    casas comeou a se desenvolver na regio que conhecemos hoje como Cidade Alta

    e Ribeira.

    A cidade de Natal foi fundada no pequeno planalto que se estende da atual Praa das Mes, na Avenida Junqueira Aires (hoje, Cmara Cascudo), at a descida do Baldo. O cho firme e elevado, a que se refere Varnhagen o espao ocupado, hoje, pela Praa Andr de Albuquerque, Palcio Potengi, Catedral Velha e a Igreja de Santo Antonio. No espao atualmente ocupado pela Praa Andr de Albuquerque, realizou-se o ato de fundao da cidade (SOUZA, 2008, p. 58).

    Fotografia 18: Praa Andr de Albuquerque Fotografia 19: Praa Andr de Albuquerque, comeo do sc. XX. viso atual. Fonte: Arquivo Bruno Bougard (Acervo IHG/RN). Fonte: Acervo SEMURB.

    Apesar de receber o ttulo de Cidade, permaneceu, durante muito tempo,

    apenas como um pequeno conjunto de edificaes simples, s comeando a

    merecer crdito a esse ttulo a partir do sculo XVIII26. Segundo o historiador Olavo

    de Medeiros Filho, citado por Souza (2008, p. 61), at o ano de 1700, parece ter

    havido duas ruas em Natal: a primeira corresponde que fica em frente Matriz, na

    26

    Somente no sculo XVIII, foi que Natal comeou a adquirir uma fisionomia urbana tradicional, os dois bairros primitivos Cidade Alta e Ribeira se consolidaram no seu espao geogrfico, surgindo, assim, as primeiras ruas (SOUZA, 2008, p. 61).

  • 46

    atual Praa Andr de Albuquerque; a segunda, o caminho do rio de beber gua, as

    atuais ruas Santo Antnio e da Conceio (MEDEIROS FILHO, 1991, p. 70).

    Ao longo do sculo XVIII, foram construdas as primeiras igrejas, praas e

    prdios da administrao pblica. Para se ter uma ideia, de acordo com Cascudo (apud

    SOUZA, 2008, p. 62), at a metade do sculo na cidade havia aproximadamente 118

    casas. O seu crescimento permaneceu muito lento at o final do sculo XIX.

    Em uma citao de Henry Koster, datada de 1810, em que descreve a cidade

    encontra-se um dos primeiros relatos sobre a construo de caladas na cidade. A

    cidade no calada em parte alguma e andasse sobre uma areia solta, o que obrigou

    alguns habitantes a fazerem caladas de tijolos ante suas moradas. Esse lugar contar

    com seiscentos ou setecentos habitantes (KOSTER, 1978, p.89, apud SOUZA, p. 62).

    Natal comeou a desenvolver-se mais rapidamente a partir do sculo XX.

    Itamar de Souza destaca quatro momentos decisivos para esse crescimento,

    conforme citao:

    Primeiro, a Proclamao da Repblica. A implantao do regime republicano despertou nas Provncias o interesse de suas respectivas elites dirigentes para a construo de sua identidade e o desenvolvimento de suas potencialidades. Segundo, aps a revoluo de 30, cessadas as turbulncias do poder poltico, Natal teve uma dcada de muito progresso nos governos do Interventor Mrio cmara e de Rafael Fernandes Gurjo, impulsionado tambm pela vinda dos americanos na II Guerra Mundial. Terceiro, o surto de desenvolvimento regional, iniciado nos anos 60 pela Sudene, ocasionou mudanas fundamentais em Natal, sobretudo no que se refere energia eltrica para a indstria e o consumo domstico. Quarto, na dcada de 70, Natal foi profundamente beneficiada pelo governo federal que, atravs do II PNAD, investiu muitos recursos nas capitais dos Estados do Nordeste, visando elevar o padro de vida da populao urbana e, assim, diminuir as tenses sociais (SOUZA, 2008, p. 67).

    Conforme esses dados pode-se concluir que a capital potiguar uma cidade

    com um histrico de planejamento urbano e de urbanizao27 recentes, iniciados

    27

    A urbanizao no simplesmente o aumento do nmero e tamanho das cidades. Ela se manifesta em duas dimenses: (a) a do espao social, referente a um modo de integrao econmica, capaz de mobilizar, extrair e concentrar quantidades significantes de produto excedente e, tambm, de uma integrao ideolgica e cultural, capaz de difundir os valores e comportamentos da vida moderna; (b) a do espao territorial, correspondente ao crescimento, multiplicao e arranjo dos ncleos urbanos, cuja feio particular est vinculada ao seu papel no padro geral de circulao do excedente, no planejamento estatal e na articulao deste com a sociedade local (BECKER, 1991, p.52-53). O termo urbanizao refere-se ao mesmo tempo constituio de formas espaciais especficas d